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CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA

Emanuel Kant

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Crítica da Razão Prática
Emanuel Kant
Tradução e Prefácio:
Afonso Bertagnoli

Versão para eBook
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Fonte Digital
Digitalização da edição em papel da
Edições e Publicações Brasil Editora S.A., São Paulo, 1959

©2004 — Emanuel Kant


 

ÍNDICE

Prefácio
Os elementos morais na “Crítica da Razão Prática” — Afonso Bertagnoli

Prólogo do Autor

Introdução – Da idéia de uma crítica da razão prática

PRIMEIRA PARTE DA CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA 
(Teoria elementar da Razão Pura Prática)

LIVRO PRIMEIRO – A Analítica da Razão Pura Prática
Capítulo primeiro – Dos princípios da razão pura prática
§ 1 – Definição
   Escólio
§ 2 – Teorema I
§ 3 – Teorema II
   Corolário
   Escólio I
   Escólio II
§ 4 – Teorema III
   Escólio
§ 5 – Problema I
§ 6 – Problema II
   Escólio
§ 7 – Lei fundamental da razão pura prática
   Escólio
   Corolário
   Escólio
§ 8 – Teorema IV
   Escólio I
   Escólio II
I – Da dedução dos princípios da razão pura prática
II – Do direito da razão pura, no uso prático, a uma amplificação que não é possível por si no especulativo

Capítulo segundo – Do conceito de um objeto da razão pura prática
Tábua das categorias da liberdade em relação aos conceitos do bem e do mal
Da típica do juízo puro prático

Capítulo terceiro – Dos impulsionadores da razão pura prática
Elucidação crítica à analítica da razão pura prática

LIVRO SEGUNDO – Dialética da Razão Pura Prática

Capítulo primeiro – De uma dialética da razão pura prática em geral

Capítulo segundo – Da dialética da razão pura na determinação do conceito do sumo bem
I – Antinomia da razão prática
II – Solução crítica da antinomia da razão prática
III – Do primado da razão pura prática em sua união com a especulativa
IV – A imortalidade da alma como um postulado da razão pura prática
V – A imortalidade da alma como um postulado da razão prática
VI – Sobre os postulados da razão pura prática em geral
VII – De como é concebível uma amplificação da razão pura em sentido prático, sem que por isso se distenda o seu conhecimento como especulativa
VIII – Do assentimento resultante de uma exigência da razão pura
IX – Da proporção da faculdade de conhecer, sabiamente coadunada à determinação prática do homem

SEGUNDA FARTE DA CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA – (Metodologia da Razão Pura Prática)
Conclusão

Notas


 

EMANUEL KANT

[imagem]

CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA

“Duas coisas enchem o ânimo de crescente admiração e respeito, veneração sempre renovada quanto com mais freqüência e aplicação delas se ocupa a reflexão:
por sobre mim o céu estrelado; em mim a lei moral.”


 

Prefácio

OS ELEMENTOS MORAIS
NA
“CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA”

 

A transição entre as diversas medidas do conhecimento que possamos ter das coisas e o destino a dar a tudo aquilo que não tenha um uso teórico, levou Kant a traçar em linhas magistrais, a sua CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA.

Já em sua obra capital anterior tudo fizera para demonstrar que de princípios substancialmente teóricos nada poderemos deduzir de plausível acerca da divindade. Conquanto não negasse a existência de Deus, julgava que só através da teoria não conseguiríamos chegar ao seu conhecimento. Por isso, dava as razões do seu empenho destrutivo anterior, dizendo que procurava aniquilar os fundamentos científicos em voga para melhor poder consolidar os alicerces da fé, da qual o homem, na sua qualidade de mortal, não pode afastar-se totalmente. A frase famosa — depois inscrita no seu túmulo — de que duas coisas lhe enchiam o coração de admiração e de veneração sempre renovada, ou seja, a lei moral em seu recôndito e o céu estrelado sobre o ser, constitui, indubitavelmente, a mais poética das suas expressões.

Na filosofia kantiana há um esforço constante para demonstrar que a metafísica não pode assentar na razão; a moral, sim, suporta galhardamente o edifício da mesma, pelo menos em boa parte. Nas religiões, portanto, a moral constitui como que a viga mestra dos seus fundamentos palpáveis.

Agir de tal modo que a máxima da nossa ação possa valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal, é o que nos pede o filósofo. Essa expressão era fortalecida com outros argumentos, dizendo-nos o mesmo que se a determinação das coisas, por meio das leis, constitui uma natureza, agir como se a máxima do nosso ato devesse tornar-se primacial no domínio da vontade representa lei universal da natureza.

A moral leva à religião, não podendo haver atributos puros a não ser em uma religião moral. Por isso, entendia que a afirmação da imortalidade da alma intervém para assegurar ao sujeito moral a condição indispensável da perpetuidade do seu esforço, que deve partir de dentro para fora, porquanto a virtude perde todo o seu valor ao deixar-se subjugar por uma imposição de natureza exterior. Dado isso, toda a religião resulta diminuída com a abdicação da personalidade, porque querer tudo é sobrecarregar de modo hipertrofiador o seu sustentáculo.

Na CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA vemos dominar essa ambientação da moral. Para o filósofo, toda a vontade, como sujeito da moral, não supõe apenas uma regra; antes, visa um fim primordial. Este deve ser apropriado à regra, constituindo ambos a condição inicial da moralidade, ou seja, a possibilitação de um imperativo categórico, de uma necessidade moral absoluta. Como todo o princípio ético reside em nossa razão autônoma, o fim de sua vontade só poderá ser absoluto, isso de tal modo que não seja tomado como um meio de qualquer outro escopo. Dessa forma, a personalidade humana inclui o único fim absoluto.

Kant, preludiando essa afirmativa, já exemplificara que toda a vontade, como sujeito da moral, não supõe apenas uma regra; visa necessariamente um fim, o qual deve ser apropriado à mesma, ajustando-se ambos à condição inicial, à possibilidade desse imperativo categórico. O exercício da liberdade, em sua plenitude, todavia, é inseparável do conceito da moral. “Devemos, logo podemos”. Nesse ambiente, a pureza da intenção lutará sempre contra as influências de máximas sugeridas pelas inclinações que se apresentam. É um terreno complexo, porque na impossibilidade em que nos encontramos de ver como a nossa liberdade escolhe as suas regras de conduta, a nossa natureza, consoante a elas, não faz mais do que marcar os limites do conhecimento. Com isso, a potência prática da razão não é relegada ao desprezo. Todo o princípio da moral — afirma Kant — reside em nossa razão autônoma.

A imortalidade da alma, condição indispensável à perpetuidade obrigatória do esforço moral, consubstancia-se nessa doutrina. E assim chegamos ao terreno das categorias — bem diversas, quanto às definições, das aristotélicas — das quais o entendimento tinha necessidade para levar de vencida a experiência, da mesma forma que a razão se contém no princípio das idéias: “São — diz o filósofo — a meu ver, conceitos necessários, cujo objeto, todavia, não pode ser dado na experiência.”

Ponderando que estas idéias se situam na natureza da razão absolutamente como as categorias se contém na natureza do entendimento, afirma que se elas apresentam uma ilusão, esta é inevitável, ainda que seja dado prevenir tal sedução.

“A autonomia — diz o filósofo — é o princípio da dignidade da natureza humana e de toda a natureza raciocinante.”

Como se afastou, com o correr dos tempos, no setor político, grande parte da humanidade, desse ditame kantiano, constitui um fenômeno que oferecerá vasto campo de indagações aos sociólogos futuros, especialmente no próprio ambiente pátrio kantiano, onde as autonomias da vontade tanto se recurvavam às forças caudinas dos credores mais repulsivos... É que o dom da vidência nem sempre se abriga nas mentes filosóficas e, como dizia Jesus, ninguém é profeta em sua terra. De certo modo, porém, essas teorias vicejaram como parasitas às frondosas árvores kantianas e hegelianas, farto campo de implantações de extremismos da direita e da esquerda.

A justiça manda porém dizer que ninguém melhor esboçou uma paz perpétua e uma sociedade das nações do que o grande filósofo prussiano.

Para quem tinha a moralidade em conta de relação da ação com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal que possa constituir as suas máximas, o mundo contemporâneo, necessariamente, faria votar-se a insondável perplexidade. É que o respeito, a legalidade e a moralidade constituem móveis da razão pura prática.

* * *

Vontade absolutamente boa é aquela que não resultar má, aquela, conseqüentemente, cuja máxima pode erigir-se em lei universal, “sem contradizer-se a si mesma”. Portanto, vontade livre e vontade submetida a leis morais constituem uma só coisa. É que toda a lei moral se fundamenta sobre essa autonomia da vontade, isto é, de uma vontade livre que, necessariamente, tem a possibilidade de concordar, seguindo leis universais, com tudo aquilo a que deva estar submetida. As próprias leis psicológicas não refogem a isso, dentro do pensamento kantiano, porque a associação não deve reconhecer outros móveis que não sejam os morais; deve ela purificar-se da fraqueza da superstição e do frenesi do fanatismo, até dentro de uma religião, porque, ainda quando só uma delas exista, poderá, todavia, haver várias crenças.

Na genial concepção dos NOUMENOS, nessas realidades misteriosas, natureza em si, nessa coisa concebida pela razão, vemos ampliar-se esplendidamente a doutrina kantiana.

Procurou o filósofo, também afastar da moralidade todo o elemento empírico, porque este, longe de fortificá-la, turva a pureza dos costumes. A vontade inteiramente boa, como ficou exemplificado, é a que se apresenta independente de todas as influências dos princípios contingentes que a experiência possa facultar, porque os objetos das inclinações só possuem um valor condicional.

* * *

Pedimos à filosofia o conhecimento de toda a sua natureza e, com isso, as suas leis próprias, conquanto tememos que a mesma se faça arauto dos que sugerem um sentido natural, “ou não sei que natureza tutelar”.

Não há necessidade de atilado senso de penetração para sabermos o que tenhamos de fazer, isso para que a nossa vontade seja moralmente boa. A fórmula é tantas vezes reafirmada por Kant: “Age sempre como se a máxima da tua ação devera ser erigida por tua vontade como uma lei universal da natureza.”

Conceitua o filósofo, repetimos, que todo o elemento empírico, acrescentado ao princípio de moralidade, longe de fortificá-lo turva inteiramente a pureza dos costumes. O que faz o verdadeiro e ponderável valor de uma vontade absolutamente boa é a afirmação independente do seu fator de ação, diante das possíveis influências dos princípios contingentes que lhe possam ser facultados pela experiência. Quanto às inclinações, os seus objetos só possuem um valor ocasional.

Para Kant o imperativo prático é traduzível da seguinte forma, consoante às asserções já explanadas: “age de tal modo que possas tratar sempre a humanidade, seja em tua pessoa, seja na do próximo, como um fim; não te sirvas jamais disso como um meio”.

* * *

Ao apresentarmos um conhecimento como ciência, afirma Kant, há necessidade, primacialmente, de determinar com precisão o que o mesmo tem de próprio e o que o distingue de outro conhecimento. Daí a função das diferentes CRÍTICAS elaboradas pelo grande filósofo de Koenigsberg.

Assim como as fontes de um conhecimento metafísico não podem ser empíricas, os juízos da experiência são sempre sintéticos.

Desse modo, a razão que gera os princípios do conhecimento puro e que lhe dá as leis, é, quando razão prática, a causa criadora das normas da ação moral e da lei moral, facultando-nos não apenas uma orientação às nossas opiniões mas, também, à nossa conduta.

A crítica do conhecimento kantiano inclui vários aspectos, como o positivo, visando o conhecimento experimental e assentado sobre sólidos alicerces, formas puras da intuição, no espaço e no tempo, apresentando, também, conceitos racionais, como as categorias. Na experiência encontramos princípios fundamentais que são mais certos e seguros do que toda a ação isolada, possibilitando uma atitude uniforme em conjunto.

* * *

Consoante a um dos seus críticos, as demonstrações de Kant podem concretizar-se em algumas expressões básicas. O nosso conhecimento representa o produto da elaboração de uma série harmônica de sensações com as ajudas necessárias da inteligência. A percepção que temos das nossas impressões, na ordem intuitiva do tempo e do espaço, revelam que tais leis são passíveis de aplicação.

Quanto às formas puras da intuição, quais o espaço e o tempo, além das leis fundamentais da razão (como o princípio da causalidade nas categorias), não procedem da experiência, tornam, antes, possível a experiência na objetivação de uma conjugação harmônica das sensações. Só enquanto podemos experimentar as impressões que nos facultam, encontram aplicação os princípios fundamentais da razão, desde que para nós apenas são susceptíveis de experiência as coisas concretas e distintas, isto é, com os respectivos acontecimentos. A nossa objetivação consiste em incorporá-los de uma forma radical a um conjunto harmônico. Todavia, essa correlação universal não pode estar em seu todo a nosso alcance, desde que o mesmo nos foi propiciado como uma ignota.

Devendo orientar-se para as leis do conhecimento, a filosofia não pode tomar como base inicial qualquer afirmativa sobre as coisas. Dessa forma, tendo-se como realista a orientação que parte das coisas e por idealista a que assenta nas idéias, a verdadeira filosofia deve ser idealista, ainda que isso não implique na afirmativa de que a verdade se enquadre apenas em determinada doutrina, porquanto muitos aspiram à verdade e ao conhecimento do mundo, ainda que ajam por formas diversas. É assim que vemos os princípios fundamentais do conhecimento atuando como um estimulo em cada homem, no qual esse predicado deve traduzir-se pela ação.

Assentando na convicção dos estímulos que nos levam a agir na ordem espiritual, encontramos a certeza do conhecimento, assim como devemos buscar uma causa para cada fenômeno. O conhecimento (razão pura) faculta uma espécie de ação, que conceitua o seu sentido prático. Toda a certeza do conhecimento se fundamenta na convicção, serena e inabalável, dos vários estímulos que nos levam a agir na ordem espiritual, setor esse em que encontramos uma conjugação imediata entre a filosofia teórica e a prática. Daí assoma, na afirmação kantiana, a primazia da razão prática. A vontade é moral quando não colide com qualquer fim secundário diante de si mesma; é aquela que pratica o bem pelo prazer de praticá-lo. “Nem no Universo nem fora dele, poderemos imaginar o que possa considerar-se, sem qualquer limitação, como bom; mas é possível a algo impor-se como uma boa intenção”. Cumpramos o dever pelo próprio dever; ajamos de tal forma que a máxima da própria intenção possa ser a qualquer tempo um princípio de lei geral.

Dadas essas definições, sendo a reta intenção o que de mais elevado existe no universo, todos os seres humanos devem ser tratados com respeito, dado que a qualquer deles é facultado chegar aos páramos dessa reta intenção.

A ressurreição de Deus que assistimos na CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA é apenas vocabular, já que na sua obra capital anterior não negou o filósofo a divindade; apenas combateu os falsos argumentos em voga acerca da demonstração de sua existência — ponderemos, acerca deste ponto mais uma vez —, dizendo que de princípios puramente teóricos nada de apreciável acerca da divindade é possível colher. As leis naturais, os princípios da pesquisa científica, não se encontram disseminados e ocultos na realidade natural; eles existem e vivem apenas no pensamento, originando-se do mesmo. Não constituem, de modo algum, imposição arbitrária que nos possa fazer a realidade exterior mas, sim, uma auto-revelacão, dentro do nosso recôndito, um poder criador da nossa inteligência. Resulta disso um campo infinito de aplicações, no qual o pensamento se expande em todo o sentido, no domínio correlato à experiência, dado que qualquer impulso em relação à pesquisa não deve partir de um poder estranho mas, sim, necessariamente, surgir de si mesmo. É nesse “mundo da verdade”, no qual penetramos amparados pelo critério da verificação, que adquirimos a consciência de que nos é facultado conhecer tanto quanto agimos. A nenhum título de glória maior do que a afirmação radical desse princípio era dado aspirar à filosofia kantiana

A. B.


 

PRÓLOGO DO AUTOR

 

Por que este tratado não apresenta o título de “Crítica da razão pura prática”, mas, apenas, o de Crítica da razão prática em geral, não obstante ao paralelismo desta em relação à especulativa parecer exigir o primeiro, este tratado explicará suficientemente. Deve ele estabelecer que há razão pura prática, criticando com essa intenção toda a sua faculdade prática. Conseguindo-o, já então não necessita criticar a faculdade pura em si mesma para ver se a razão, como semelhante faculdade, não se excede a si mesma, atribuindo-se esse característico de um modo gratuito (como ocorre na especulativa). Se, como razão pura, ela é realmente prática, isso demonstra a sua natureza imanente e a dos seus conceitos por esse próprio fato, sendo vã toda a disputa contra a possibilidade de efetivá-lo.

Com essa faculdade, afirma-se também definitivamente a liberdade transcendental, tomada naquela significação absoluta de que a razão especulativa, no uso do conceito da causalidade, dela necessitava para salvar-se da antinomia em que cai inevitavelmente, quando quer julgar o incondicionado na sua própria série de relações causais. Este conceito do incondicionado, entretanto, só a razão conseguiu estabelecer de um modo problemático, impossível de ser concebido sem assegurar-lhe a sua realidade objetiva, mas apenas para não ser precipitada em profundo ceticismo e atacada na sua própria essência pela pretendida impossibilidade daquilo que, pelo menos como ponderável, tem ela que deixar prevalecer.

O conceito da liberdade, ao mesmo tempo que a sua realidade, fica demonstrado por meio de uma lei apodítica da razão prática e constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura, inclusive a especulativa, e todos os demais conceitos (os de Deus e da imortalidade) que, meras idéias, permanecem desapoiadas na razão especulativa, alindo-se(*) ao mesmo e adquirindo com ele e por meio dele consistência e realidade objetivas, isto é, a sua possibilidade fica demonstrada pelo fato de ser liberdade real, já que esta idéia se manifesta por meio da lei moral.

A liberdade, porém, é por sua vez a única entre todas as idéias da razão especulativa cuja possibilidade a priori conhecemos (wissen) sem penetrá-la (einzusehen) contudo, porque ela constitui a condição (1) da lei moral, lei que conhecemos.

As idéias de Deus e da imortalidade não constituem porém condições da lei moral, mas somente condições do objeto necessário de uma vontade determinada por essa lei, isto é, pelo uso meramente prático da nossa razão pura; do mesmo modo, com essas idéias, podemos afirmar que não conhecemos nem penetramos, não direi tão somente a realidade, mas nem mesmo a possibilidade. Mas, contudo, são elas as condições da aplicação da vontade, moralmente determinada, a seu objeto, que lhe é facultado a priori (o supremo bem). Conseqüentemente, a sua possibilidade pode e deve ser admitida nesta relação prática, sem conhecê-la ou penetrá-la, contudo, teoricamente. Para a última exigência basta, no sentido prático, que não contenham nenhuma impossibilidade (contradição) interna. Entretanto, aqui existe uma base do assentimento (Fürwahrhaltens), que é meramente subjetivo, comparativamente à razão especulativa, mas que é objetivamente válido para uma razão também pura, se bem prática, e mediante o qual se proporciona às idéias de Deus e da imortalidade, por meio do conceito da liberdade, realidade objetiva, autoridade, inclusivamente, necessidade subjetiva (exigência da razão pura) de admiti-las, sem que por isso, todavia, se ache distendida à razão no conhecimento teórico, mas que apenas a possibilidade, que antes era tão somente problema e que aqui passa a ser asserção, é dada, e assim encontra o uso prático da Razão a sua união com os elementos teoréticos. Esta exigência não é idêntica à exigência hipotética de uma intenção arbitrária da especulação, de ter de admitir algo se se quiser, na especulação, fazer um uso completo da razão, mas apenas uma exigência legal (gesetzliches) de algo admitir, sem o que não pode acontecer aquilo que se deve pôr irremissivelmente como propósito da ação e da omissão.

Seria, portanto, mais satisfatório para a nossa razão especulativa, resolver estes problemas por si mesmos e sem preâmbulos, conservando-os qual conhecimento (Einsicht) para o uso prático; mas a nossa faculdade de especulação não está disposta em forma tão favorável. Aqueles que se ufanam de tão elevados conhecimentos, não deveriam guardá-los para si, mas expô-los ao exame e apreciação públicos. Querem eles demonstrar; muito a propósito! Demonstrem, e se saírem vitoriosos, a crítica deporá as armas aos seus pés. Quid statis? Nolunt. Atqui licet esse beatis (2). Mas como eles, na realidade, não se aventurariam a isso, provavelmente porque não podem, devemos tornar a tomar em nossas mãos aquelas armas, para buscarmos o uso moral da razão e fundamentar nele os conceitos de Deus, liberdade e imortalidade, para cuja possibilidade não encontra aquela especulação garantia suficiente.

Aqui se explica também assim, pela primeira vez, o enigma da crítica de como se pode denegar realidade objetiva ao uso supra-sensível das categorias na especulação e conceder-lhes, apesar disso, essa realidade, em consideração aos objetos da razão pura prática; pois isso tem de parecer necessariamente inconseqüente, enquanto esse uso prático se conheça só pelo homem. Mas se por meio de uma análise completa deste último, somos levados agora à convicção de que essa realidade pensada não vem parar aqui em alguma determinação teorética das categorias, nem em qualquer ampliação do conhecimento no supra-sensível, mas somente com isso se desejar significar que em qualquer caso corresponde às mesmas, nessa relação, um objeto, porque ou elas estão contidas na necessária determinação a priori da vontade ou estão unidas inseparavelmente como objeto da mesma, desaparecerá então aquela inconseqüência, porque se faz daqueles consertos uso diverso dos necessitados pela razão especulativa.

Mostra-se agora, por outro lado, uma confirmação sobremodo satisfatória e que antes apenas se podia esperar do modo de pensar conseqüente da crítica especulativa, a saber: que a crítica especulativa se esforçou em dar aos objetos da experiência como tais, entre eles ao nosso próprio sujeito, o valor de meros fenômenos, pondo-os, contudo, como fundamento, coisas em si e, por conseguinte, timbrando em não considerar todo o supra-sensível como uma ficção e seu conceito como falho de conteúdo, e agora, por outro lado, a razão prática por si mesma e sem ter-se conluiado com a especulativa, proporciona realidade a um objeto supra-sensível da categoria da casualidade, isto é, à liberdade (mesmo quando, como conceito prático, só também para o uso prático) e confirma assim, portanto, por meio de um feito, o que ali só podia ser pensado. Ao mesmo tempo, a estranha mas indiscutível afirmação da crítica especulativa, de que inclusivamente o sujeito pensante é para si mesmo, NA INTUIÇÃO INTERNA, só fenômeno, recebe também aqui, na crítica da razão prática, a sua plena confirmação, de tal forma que teria de vir a ela, mesmo quando a primeira crítica não tivesse demonstrado essa proposição. (3)

Por isso eu também compreendo que as objeções mais importantes que me foram feitas até agora contra a crítica, giram precisamente ao redor destes dois pontos, isto é: por uma parte, a realidade objetiva, negada no conhecimento teorético e afirmada no prático, das categorias aplicadas aos noumenos(**); por outra parte, a exigência paradoxal de fazer de si mesmo um noumeno como sujeito da liberdade, mas ao mesmo tempo, também, um fenômeno na própria consciência empírica, em relação à natureza. Enquanto não se possuía conceito algum determinado pela moralidade e pela liberdade, não se podia adivinhar, por uma parte, o que se podia pôr como noumeno na base do pretenso fenômeno, e, por outro lado, se em qualquer caso era possível formar-se ainda um conceito desse noumeno, tendo já anteriormente dedicado todos os conceitos do entendimento puro, no uso teórico, exclusivamente aos meros fenômenos. Só uma detida crítica da razão prática pode desfazer esse mal entendido e colocar em plena luz o conseqüente modo de pensar que, precisamente, constitui a sua maior vantagem.

Basta o que antecede para justificar que nesta obra os conceitos e princípios da razão pura especulativa, que já sofreram a sua crítica especial, são, contudo, de vez em quando, submetidos novamente a exame, circunstância que, em outros casos, não se enquadra bem com a marcha sistemática de uma ciência por construir (pois as coisas já julgadas devem, equitativamente, apenas ser mencionadas e não voltar outra vez a pôr-se em questão); mas isso era aqui permitido e até necessário, porque a razão, com aqueles conceitos, é considerada nessa passagem com uso inteiramente diverso do que ali deles se fez. Essa transposição, entretanto, torna necessária uma comparação do antigo uso com o novo, a fim de fazer ressaltar ao mesmo tempo a conexão entre ambos. Dessa forma, as considerações de tal classe e, entre outras, aquelas que foram indicadas novamente ao conceito participante da liberdade, no uso prático da razão pura, não deverão considerar-se com parênteses que quiçá só devam servir para encher os vazios do sistema crítico da razão especulativa (pois este se completa no seu objeto) e, como sói acontecer numa construção precipitada, para colocar posteriormente marcos e apoios, mas sim como verdadeiros membros que deixam entrever a conexão do sistema, dando a conhecer agora, na sua exposição real, conceitos que ali só poderiam ser apresentados problematicamente. Esta recordação condiz principalmente com o conceito da liberdade, acerca do qual se deve observar com estranheza que muitos se jactam de bem penetrá-lo e de poder explicar a sua possibilidade, considerando-o somente na relação psicológica, quando, se a tivessem examinado com exatidão, anteriormente, sob o ponto de vista transcendental, teriam que reconhecer tanto o indispensável que está, como conceito problemático, no uso completo da razão especulativa, como ainda a sua completa incompreensibilidade; e se passassem com ele ao uso prático, teriam que chegar por si mesmos a determinar precisamente esse conceito em relação aos seus princípios, segundo essa mesma determinação, que tantas dificuldades apresenta no seu acatamento. O conceito da liberdade é o rochedo de todos os empiristas, mas é também a chave dos princípios práticos mais sublimes para os moralistas críticos que compreendem com isso que devem necessariamente proceder de um modo racional. Por isso rogo ao leitor que não passe distraidamente os olhos nisso, porque no final da analítica se dirá algo sobre esse conceito.

Julgar-se um sistema, como este da razão pura prática [que](***) se desenvolve aqui, saindo da crítica dessa razão, custou muito ou pouco trabalho, sobretudo para não falhar no ponto de vista exato, no qual o conjunto do mesmo possa ser delineado com retidão, é coisa que devo deixar aos que se familiarizarem com essa classe de trabalhos. Supõe, certamente, o Fundamento da metafísica dos costumes, mas só enquanto esta nos faz travar um conhecimento provisório com o princípio do dever e adianta, justificando-a, uma determinada fórmula do mesmo (4); no mais, a si próprio se bastará.

Que a divisão de todas as ciências práticas, o que tornaria a obra completa (zur Vollständigkeit), não foi referida, qual se fez na crítica da razão especulativa, encontra também fundamento válido na constituição dessa faculdade racional prática. Acresce que a determinação particular dos deveres como deveres humanos, para logo dividi-los, é somente possível se, antes, o conceito dessa determinação (o homem) tenha sido conhecido segundo a constituição com a qual ele é real, se bem conhecido só na medida em que ele é necessário em relação ao dever geral; mas esse conhecimento não pertence a uma crítica da razão prática em geral, que só tem que dar de um modo completo os princípios de possibilidade, da extensão e dos limites da razão prática, sem referência particular à razão humana. A divisão pertence, aqui, ao sistema da ciência e não ao sistema da crítica.

A certo crítico daquele Fundamento da metafísica dos costumes, homem mordaz e amante da verdade, mas, contudo, sempre digno de estima, que me dirigiu a reprimenda de que o conceito do bem não havia sido ali estabelecido (como, segundo a sua opinião, poder-se-ia fazer) antes do princípio moral (5), creio ter contestado a seu contento na segunda parte da analítica, da mesma forma que levei em conta algumas outras críticas, que me chegaram às mãos, partidas de homens que deixam entrever no coração a vontade de descobrir a verdade (pois os que só têm diante dos olhos o seu antigo sistema e já resolveram de antemão o que deve ser aprovado ou desaprovado, não pedem explicação alguma que pudesse opor-se à sua opinião particular); assim também me portarei sucessivamente. Quando se trata da determinação de uma faculdade particular da alma humana nas suas fontes, conteúdo e limites, não se pode, certamente, segundo a natureza do conhecimento humano, começar fora das partes da alma, pela exposição exata e completa dessas partes (na medida em que isso for possível, dada a situação atual dos nossos elementos já adquiridos). Mas há uma segunda atenção, mais filosófica e arquitetônica, a saber: conceber exatamente a idéia de todo, e, dela partindo, considerar numa faculdade pura da razão, todas aquelas partes na sua recíproca relação de uma para com outras, derivando-as do conceito daquele todo. Este exame e esta garantia só é possível por meio do conhecimento mais íntimo com o sistema, e aqueles que, em consideração da primeira investigação se tivessem enfastiado, julgando, portanto, que não valia a pena adquirir esse conhecimento, não chegam ao segundo grau, isto é: à vista do conjunto, que é um regresso sintético àquele e antes fora dado analiticamente, não sendo de admirar se se lhe depararem inconsequências em todas as partes, mesmo quando os vazios que se supõem não se encontrarem no próprio sistema, mas somente na própria marcha incoerente do seu pensamento.

Em relação a este tratado, não temo a censura de querer introduzir um novo idioma, porque o modo de conhecimento de que aqui se trata, aproxima-se por si mesmo da popularidade. Esta observação a respeito da primeira crítica não poderia também ocorrer à mente de quem quer que tivesse não só observado, mas pensado maduramente. Forjar novas palavras precisamente onde o idioma já por si mesmo não necessita de expressões para determinados conceitos, é um esforço pueril com o fito de distinguir-se entre a multidão, não por meio de pensamentos novos e verdadeiros, mas à guisa de uma veste nova sobre velho traje. Entretanto, se os leitores daquele escrito conhecem expressões mais populares que possam, não obstante a isso, acomodar-se ao pensamento, da mesma forma que me parecem terem feito as outras, ou também se se gabam de poder mostrar a inconsistência desse pensamento em si mesmo, e, por conseguinte, de toda a expressão que o designe, com isso me prestariam um grande favor, primeiramente, porque eu só quero ser compreendido, realizando, ainda, no segundo caso, uma obra meritória para a filosofia. Mas enquanto subsistirem aqueles pensamentos, duvido em muito de que possam encontrar-se para eles expressões adequadas e correntias ao mesmo tempo (6).

Deste modo seriam pois descobertos, agora, os princípios a priori das faculdades do espírito, a faculdade do conhecimento e a de desejar, determinadas segundo as condições, a extensão e os limites do seu uso, e deste modo, assentado um fundamento seguro para uma filosofia sistemática, teórica e prática, como ciência. O que de pior poderia acontecer em relação a estes esforços é que alguém fizesse o inesperado descobrimento de que não há em parte alguma, nem seria possível haver qualquer conhecimento a priori. Mas tal perigo não existe. Seria isso tanto como se alguém quisesse demonstrar por meio da razão que não há razão. É que nós dizemos apenas que conhecemos alguma coisa pela razão, quando temos consciência de que também nos fora dado algo saber, mesmo quando isso não nos fosse apresentado dessa forma na experiência, sendo, por conseguinte, a mesma coisa conhecimento racional e conhecimento o priori. Querer de uma proposição da experiência tirar necessidade (ex pumice aqua) e querer proporcionar com ela também verdadeira universalidade a um juízo (universalidade sem a qual não há qualquer raciocínio, conseqüentemente nem sequer a conclusão por analogia, já que analogia é uma universalidade e uma necessidade objetiva, pelo menos presumida, supondo portanto sempre a verdadeira), é uma contradição manifesta. Substituir a necessidade subjetiva, isto é, o costume à necessidade objetiva que se encontra nos juízos a priori, significa tanto como negar à razão a faculdade de julgar sobre o objeto, ou seja, de conhecer este e o que lhe concerne; significa, por exemplo, que havendo alguma coisa amiudadamente e sempre, em seguida a certo estado precedente, não podemos dizer que deste se possa concluir aquele (pois isto significaria necessidade objetiva e conceito de uma relação a priori) mas sim que só se podem esperar casos análogos (como nos animais), o que equivale a refutar o conceito de causa, no fundo, como falso e como um mero engano do pensamento. Se quiséssemos remediar esse defeito da validez objetiva e, por conseguinte, universal, alegando que não se observa fundamento algum para atribuir a outros seres racionais modo diversa de representação, proporcionando-nos isso uma conclusão verossímil, resultaria que a nossa ignorância nos prestaria mais serviço na ampliação do nosso conhecimento do que todas as meditações. Pois apenas segundo isso, desde que fora do homem não conhecemos outros seres racionais, teríamos um direito para admiti-los como constituídos de modo idêntico pelo qual nos conhecemos, isto é, que os conheceríamos realmente. Nem sequer menciono aqui que não é a universalidade do assentimento o que prova a validez objetiva de um juízo (digamos, a validez do mesmo como conhecimento) mas sim que, mesmo que aquela universalidade se apresentasse casualmente, isso não poderia entretanto proporcionar uma prova da coincidência com o objeto; antes, é tão somente a validez objetiva que constitui a base de um acordo universal necessário.

HUME ficaria muito a gosto neste sistema do empirismo universal em princípio, pois, como é sabido, não pedia nada mais que isto, a saber: que em lugar de toda a significação objetiva da necessidade no conceito da causa, u’a meramente objetiva — o costume, fosse admitida para negar à razão qualquer juízo sobre Deus, liberdade e imortalidade; e era certamente bem hábil para (se lhe fossem concedidos apenas os princípios) deduzir deles conclusões com todo o rigor lógico. Mas o próprio Hume não fez o empirismo tão universal a ponto de incluir nele também a matemática. Considerava como analíticas as proposições desta e, se isso fosse exato, seriam na realidade apodíticas ainda que, apesar de tudo, não se pudesse deduzir dele conclusão alguma sobre determinada faculdade da razão de atinar também na filosofia com juízos apodíticos, isto é, juízos tais que fossem sintéticos (como o princípio da causalidade). Mas se se tomasse o empirismo dos princípios universalmente, a matemática também ficaria incluída nele.

Pois bem; se a matemática cai em contradição com a razão, que só admite princípios empíricos, o que é inevitável na antinomia, posto que a matemática demonstra irrefutavelmente a absoluta divisibilidade do espaço, enquanto o empirismo não o pode admitir, então a maior evidência possível da demonstração está na contradição manifesta com as supostas conclusões tiradas de princípios da experiência e, como o cego de CHESELDEN, devemos perguntar: Que é que me engana: a vista ou o tacto? (O empirismo se funda numa necessidade sentida (gefühlten); o racionalismo em uma necessidade penetrada (eingeschen). E assim se manifesta o empirismo universal como o verdadeiro ceticismo que, numa significação tão ilimitada foi atribuído a Hume mas falsamente (7), sendo que este, pelo menos, deixa na matemática uma pedra de toque segura para a experiência, enquanto que o ceticismo não admite qualquer pedra de toque (o que nunca se poderá encontrar fora dos princípios a priori) para a experiência ainda que esta, apesar de tudo, não se componha de meros sentimentos, mas também de juízos.

Entretanto, como nesta época filosófica e crítica dificilmente se pode levar a sério aquele empirismo, que provavelmente não se realça mais do que como exercício do juízo e, para projetar luz, por meio de contrastes, na necessidade dos princípios racionais a priori, podemos agradecer aos que querem dedicar-se a esse trabalho bem pouco instrutivo.


 

Introdução

DA IDÉIA DE UMA CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA

 

Ocupava-se o uso teorético da razão de objetivos da mera faculdade de conhecer, sendo que uma crítica da razão, no que concerne a esse uso, apenas se referia propriamente à faculdade pura do conhecimento, porquanto esta faculdade despertava suspeitas, as quais também logo se confirmavam, de que a mesma se perdia facilmente, para além dos seus limites, em objetos inacessíveis, ou até em conceitos contraditórios entre si mesmos. Com o uso prático da razão ocorre coisa bem diversa. Nele vemos ocupar-se a razão com fundamentos da determinação da vontade, que resulta em faculdade de produzir objetos que correspondam às representações ou, pelo menos, determinantes a si próprios na realização de tais objetos, seja ou não suficiente para isso a faculdade física, isto é, a de determinar a sua causalidade. Desse modo pode a razão, pelo menos, bastar para a determinação da vontade, tendo sempre realidade objetiva, dentro dos limites da exclusividade do querer. Assim, portanto, a primeira questão aqui se nos apresenta: bastará a razão pura, somente por si, para determinação da vontade, ou pode ser, só como empiricamente condicionada, um fundamento da determinação da vontade? Nesta altura, surge um conceito da causalidade, justificado pela crítica da razão pura, embora incapaz de exposição empírica alguma, isto é, o conceito da liberdade; e se não podemos encontrar agora fundamentos para provar que esta qualidade corresponde na realidade à vontade humana (e do mesmo modo também à vontade de todos os seres racionais), então não somente fica exposto com isso que a razão pura pode ser prática, mas também que só ela, e não a razão empiricamente limitada, é prática de um modo incondicionado. Deveremos, portanto, elaborar não uma crítica da razão pura prática, mas só uma da razão prática em geral. A razão pura, se preliminarmente se demonstrou que existe, não necessita de crítica alguma. Ela mesma contém a regra para a crítica de todo o seu uso. A crítica da razão prática em geral tem, pois, a obrigação de tirar à razão empiricamente condicionada a pretensão de querer proporcionar por si só, de modo exclusivo, o fundamento da determinação da vontade. Somente o uso da razão pura, quando ficar estabelecido que há razão pura, é imanente; o que for condicionado empiricamente, arrogando-se o domínio exclusivo, é, por outro lado, transcendente, manifestando-se em exigências e mandatos que excedem totalmente à sua esfera, o que constitui precisamente a relação inversa da que poderíamos dizer da razão pura no uso especulativo.

Entretanto, como é sempre razão pura a cujo conhecimento se situa aqui, à base do uso prático, deverá a divisão de uma crítica da razão prática ser ordenada no seu plano geral, segundo o da especulativa. Deveremos ter também, portanto, uma Teoria elementar e uma Teoria do método da razão prática; naquela, como primeira parte, uma Analítica, qual regra da verdade, e uma Dialética, como exposição e solução da ilusão nos juízos da razão prática. Mas a ordem da subdivisão da analítica será ainda uma vez o inverso do usado na crítica da razão pura especulativa. Na presente, começaremos por princípios, em conceitos, indo destes, na medida do possível, aos sentidos; pelo contrário, na razão especulativa, começaremos pelos sentidos, devendo terminar pelos princípios. O motivo disso é que temos agora de tratar com uma vontade, devendo considerar a razão em relação não com os objetos, mas com essa vontade e com a causalidade dessa vontade, pois os princípios da causalidade empiricamente incondicionada devem constituir o começo, podendo-se só então, depois disso, ensaiar a fixação dos nossos conceitos relativos ao fundamento da determinação de semelhante vontade e de sua aplicação aos objetos e, por fim, ao sujeito e à sensibilidade deste. A lei da causalidade por liberdade, isto é, um princípio puro prático, constitui inevitavelmente, neste caso, o início, determinando os objetos a que, exclusivamente, pode referir-se.


 

PRIMEIRA PARTE
da
Crítica da Razão Prática

*

TEORIA ELEMENTAR DA
RAZÃO PURA PRÁTICA


 

LIVRO PRIMEIRO

A ANALÍTICA DA
RAZÃO PURA PRÁTICA


 

CAPÍTULO PRIMEIRO

DOS PRINCÍPIOS DA
RAZÃO PURA PRÁTICA

 

§ 1.° — DEFINIÇÃO

Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação universal da vontade, subordinando-se a essa determinação diversas regras práticas. São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira só para a sua vontade; são, por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser natural.

 

ESCÓLIO

Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas. Em uma vontade patologicamente afetada por um ser natural pode observar-se um conflito das máximas diante das leis práticas conhecidas pelo mesmo. Exemplifiquemos: alguém pode adotar o axioma de não suportar qualquer ofensa sem vingá-la, compreendendo todavia que isso não constitui nenhuma lei prática, mas apenas a sua máxima e que, de modo inverso, como regra para a vontade de todo ser racional, idêntica máxima não pode concordar em si mesma. No conhecimento da natureza, os princípios do que ocorre (por exemplo, o princípio da igualdade da ação e da reação na comunicação do movimento) são ao mesmo tempo leis da natureza, pois o uso da oração está ali determinado teoricamente e pela natureza do objeto.

No conhecimento prático, isto é, aquele que só tem que tratar dos fundamentos da determinação da vontade, os princípios que alguém formula em si mesmo nem por isso constituem leis a que inevitavelmente se veja submetido, porque a razão na prática se ocupa do sujeito, ou seja da faculdade de desejar, segundo cuja constituição especial pode a regra referir-se por formas bem diversas. A regra prática é sempre um produto da razão, porque prescreve a ação, qual meio para o efeito, considerado como intenção.

Esta regra, porém, para um ser no qual a razão não é o fundamento único da determinação da vontade é um imperativo, isto é, uma regra designada por um “deve ser” (ein Sollen) que exprime a compulsão (Nötigung) objetiva da ação e significa que se a razão determinasse totalmente a vontade, a ação ocorreria indefectivelmente segundo essa regra. Desse modo, os imperativos valem objetivamente, sendo em tudo distintos das máximas, não obstante estas constituírem princípios subjetivos. Determinam aqueles, porém, ou as condições da causalidade do ser racional como causa eficiente, só em consideração do efeito e suficiência para o mesmo, ou, então, determinam só a vontade, seja ou não ela suficiente para o efeito. Os primeiros seriam imperativos hipotéticos e encerrariam meros preceitos da habilidade; os segundos, de forma inversa, seriam categóricos, constituindo, somente eles, leis práticas. Assim, pois, são as máximas, em verdade, princípios, mas não imperativos. Os próprios imperativos, contudo, quando condicionados, isto é, quando não determinam a vontade exclusivamente como vontade, mas somente em vista de um efeito apetecido, ou seja quando são imperativos hipotéticos, constituem, portanto, preceitos práticos mas não, leis. Devem estas últimas determinar suficientemente a vontade, mesmo antes que eu indague se tenho a faculdade necessária para um efeito apetecido ou o que devo fazer para produzir esse efeito; devem, portanto, ser categóricas, pois do contrário não são leis, faltando-lhes a necessidade que, se tem de ser prática, urge ser independente de condições patológicas e, por isso mesmo, casualmente ligadas à vontade. Dizei a alguém, por exemplo, que deve trabalhar e poupar na juventude para não sofrer a miséria na velhice; trata-se isto de um preceito prático da vontade, exato e importante ao mesmo tempo. Vê-se porém logo, nesse caso, que a vontade é referente a alguma outra coisa que se supõe desejar, devendo esse desejo ser confiado ao próprio agente, pois talvez preveja ele alguma outra fonte de auxílio, além da fortuna por ele próprio adquirida, ou não espera chegar a ser velho, ou pensa que uma vez chegado ao caso de miséria, poderá satisfazer-se com pouco.

A razão, da qual unicamente pode sair toda a regra que deva conter necessidade, inclui imediatamente também a necessidade nesse seu preceito (pois sem esta não seria imperativo); mas esta necessidade só está condicionada subjetivamente e não cabe supô-la em todos os objetos em grau idêntico. Contudo, para a sua lei se exige que só necessite supor-se ela a si mesma, porque a regra é objetiva e universalmente verdadeira só quando vale sem as condições subjetivas, contingentes, que distinguem um ser natural de outro. Pois bem; dizei a alguém que nunca deve fazer promessas falsas: tal regra só se refere à sua vontade, sejam ou não as intenções que o homem pode ter, realizáveis por essa vontade; o mero querer é o que deve ser determinado completamente a priori por aquela regra. Se, todavia, acharmos essa regra praticamente exata, então é uma lei, porque se trata de um imperativo categórico. Dessa forma, porém, só à vontade se referem as leis práticas, sem ter em conta o que for efetuado pela causalidade da vontade, podendo-se fazer abstração dessa causalidade (como pertencente ao mundo dos sentidos) para obter puras essas leis práticas.

 

§ 2.° — TEOREMA I

Todos os princípios práticos que supõem um objeto (matéria) da faculdade de desejar como fundamento de determinação da vontade, são, todos eles, empíricos e não podem proporcionar qualquer lei prática.

Entendo por matéria da faculdade de desejar um objeto cuja realidade é apetecida. Se o apetecimento para com esse objeto precede à regra prática e é a condição para adotá-la como princípio, nesse caso, digo (primeiramente): esse princípio, então, é sempre empírico. O fundamento da determinação do arbítrio (Willkür) é então a representação de um objeto, e constitui a relação da representação com o sujeito, pela qual é determinada a faculdade de desejar para a realização do objeto. Mas toda a relação com o sujeito se chama o prazer na realidade de um objeto. Assim, pois, esse prazer devia ter sido pressuposto como condição da possibilidade da determinação do arbítrio. Mas de nenhuma representação de qualquer objeto, seja qual for, pode conhecer-se a priori se está ligada com o prazer, com a dor ou, se é indiferente.

Desse modo, em tal caso, o fundamento de determinação do arbítrio deve sempre ser empírico e, por tanto, também o princípio prático material que o supunha como condição.

Pois bem (em segundo lugar), como um princípio se fundamenta somente na condição subjetiva da receptibilidade de um prazer ou de uma dor (que em qualquer caso só empiricamente é conhecida e não pode ser verdadeira de modo idêntico para todos os seres racionais), não obstante possa servir, para o sujeito que a possui, como sua máxima, não pode, por outro lado, servir para este mesmo como lei (porque carece de necessidade objetiva, a qual deve ser conhecida a priori), resultando que a tal princípio nunca é dado proporcionar uma lei prática.

 

§ 3.° — TEOREMA II

Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si mesmo, ou seja à felicidade própria.

O prazer derivado da representação da existência de uma coisa, enquanto deva ser um fundamento de determinação do desejo desta coisa, fundamenta-se na receptibilidade do sujeito, porque depende da existência de um objeto; por conseguinte, esse prazer pertence ao sentido (sentimento), e não ao entendimento, o qual exprime uma relação da representação com um objeto, segundo conceitos, mas não com o objeto segundo sentimentos. O prazer, por conseqüência, é prático só enquanto a sensação do agrado que o sujeito espera da realidade do objeto determina a faculdade de desejar. Pois bem; a consciência que um ser racional tem da agradabilidade da vida e que, sem interrupção, acompanha-o em toda a existência, é a felicidade, e o princípio que faz desta o supremo fundamento da determinação do arbítrio é o princípio do amor em si mesmo. Assim, pois, todos os princípios materiais que colocam o fundamento da determinação do arbítrio no prazer ou na dor que se sente pela realidade de algum objeto, são completamente da mesma classe, quando todos eles pertencem ao princípio do amor correlato a si mesmo ou à própria felicidade.

 

COROLÁRIO

Todas as regras práticas materiais põem o fundamento de determinação da vontade na faculdade inferior de desejar, e se não houvesse lei alguma meramente formal da vontade, que a determinasse suficientemente, não seria possível admitir, também, qualquer faculdade superior de desejar.

 

ESCÓLIO I

É de admirar-se como homens tidos por argutos julguem encontrar diferença entre a faculdade inferior de desejar e a superior, na qual as representações unidas à sensação do prazer tenham a sua origem, procedam tais representações dos sentidos ou da inteligência.

Realmente, quando se indaga as causas determinadoras do desejo, colocando-se no prazer que se espera de alguma coisa, não nos inquieta saber donde vem a representação desse objeto agradável, sem dúvida, mas somente na quantidade de prazer que nos proporciona. Uma representação pode perfeitamente assentar a sua origem na inteligência e ser insignificante, se apenas puder determinar a vontade enquanto supõe o sentido do prazer no sujeito, dependendo, então, inteiramente da natureza do sentido interior que seja ela ou não princípio de determinação para a vontade, posto que se torne necessário que esse sentido possa ser afetado de um modo satisfatório por essa determinação. As representações dos objetos podem ser de todo diferentes do que se pretende, podem ser representações da inteligência e até da razão, em oposição com as representações dos sentidos; entretanto, o sentido do prazer, mediante o qual tão somente essas representações constituem o fundamento da determinação da vontade (o bem-estar, a satisfação que se espera e que impulsiona a atividade à produção do objeto) é da mesma classe, não só porque nunca pode ser conhecido quando não seja empiricamente, mas porque também afeta uma só e idêntica força vital, manifestada na faculdade de desejar e, nesta relação, não pode ser diverso de qualquer outro fundamento determinativo, a não ser pelo grau. De modo diverso, como se poderia comparar, sob o aspecto da quantidade, os princípios de determinação inteiramente diversos quanto ao modo de representação, para preferir aquele que mais afete a faculdade de desejar? O mesmo homem poderá devolver, sem ao menos, lê-lo, um livro instrutivo para si, que depois não estará mais à sua disposição, apenas para não perder uma caçada; pode interromper um formoso discurso para não chegar tarde a uma ceia, abandonar uma conversação ponderável e elevada, que outras vezes lhe apraz ouvi-la atentamente, para sentar-se à banca de jogo; pode ainda repelir um pobre, que ordinariamente socorre com satisfação, por só ter no bolso dinheiro exato para pagar a sua entrada no teatro. Se a determinação da vontade assenta na sensação do agrado ou do desagrado. que espera de determinada coisa, pouco importa o modo de representação pelo qual seja afetado.

Para decidir-se, apenas necessita saber qual a intensidade e a duração desse prazer, enquanto lhe é fácil renová-lo e qual a sua duração. Da mesma forma, ao que necessita de ouro para dispendê-lo, é indiferente a circunstância do mesmo ter sido extraído da montanha ou de qualquer aluvião, contanto que em toda a parte lhe emprestem idêntico valor, da mesma forma que nenhum homem, quando o que lhe interessa é somente a grata sensação da vida, indaga se as representações são da inteligência ou dos sentidos, mas sim unicamente quanto e quão grande é o prazer que por maior tempo lhe proporcionam. Só aqueles que disputam com gáudio à razão pura a faculdade de determinar a vontade sem pressupor qualquer sentimento, podem extraviar-se em sua própria definição, a ponto de declarar, depois, completamente heterogêneo, aquilo que tinham, antes, referido como idêntico princípio. Assim, por exemplo, o simples exercício das nossas forças, a consciência da energia da nossa alma na sua luta com os obstáculos que se opõem a seus desígnios, o cultivo das aptidões da inteligência, etc., todas estas coisas podem causar prazer, e dizemos com razão que são alegrias e gozos delicados, porque, mais do que os outros, se encontram em nosso poder, não se debilitam com o uso e ainda, pelo contrário, fortalecem o sentido para poder fruir outros prazeres da mesma classe e, ao mesmo tempo que deleitam, cultivam. Mas para designá-los, por esse motivo, como a maneira de determinar a vontade de outro modo a não ser pelo sentido, quando para a própria possibilidade daqueles prazeres há de supor um sentimento situado em nós para ele como primeira condição daquela satisfação, equivale a fazer com que ignorantes, empanturrados de metafísica, usassem de tal subtilidade nessa matéria, a ponto de experimentar, por assim dizer, uma vertigem extrema, acreditando formar assim uma idéia de um ser espiritual, porém extenso. Admitindo-se, com Epicuro, que a virtude não determina a vontade, a não ser pelo prazer que a mesma promete, não podemos criticá-lo pelo fato de considerar esse prazer como completamente idêntico na sua espécie, aos prazeres dos sentidos mais grosseiros, porquanto não há fundamento algum para censurá-lo por ter atribuído somente aos sentidos corporais as representações pelas quais esse sentido fosse nos outros excitado.

Pesquisou o mesmo a fonte de muitas delas, pelo que podemos conjeturar, também no uso da faculdade superior do conhecimento; isso porém não o impediu, nem mesmo poderia impedi-lo, segundo o citado princípio de considerar o próprio prazer que nos proporcionam aquelas representações, não obstante serem intelectuais e pelo qual tão somente podem ser elas fundamentos de determinação da vontade, iguais em tudo à sua espécie.

Ser conseqüente é a máxima obrigação do filósofo; entretanto, é o que menos se observa. As antigas escolas gregas nos apresentam muitos exemplos dessas virtudes, exemplos que não encontramos nesta época sincretística, na qual se constróem com princípios totalmente contraditórios sistemas conciliadores, destituídos de solidez e boa fé, porque se recomendam melhor a um público que se satisfaz com saber um pouco de tudo, sem saber afinal coisa alguma, pretendendo, contudo, tratar de todos os assuntos.

O princípio da felicidade própria, seja qual for o uso que nele se faça da inteligência e da razão, não pode conter outros princípios de determinação para a vontade além dos próprios à faculdade inferior de desejar, e, então, ou não há nenhuma faculdade superior de desejar, ou a razão pura tem que ser por si só prática, isto é, tem que poder determinar a vontade mediante a mera forma de regra prática, sem a suposição de qualquer sentido, conseqüentemente sem representações do agradável ou do desagradável, qual matéria da faculdade de desejar, matéria que sempre é uma condição empírica dos princípios. Só então a razão, determinando por si mesma a vontade (não estando a serviço das inclinações) é uma verdadeira faculdade superior de desejar, subordinando-se à mesma a faculdade patológicamente determinável, real e especificamente distinta desta última, tanto assim que a menor relação dos princípios com a segunda compromete o seu poderio e a sua superioridade, da mesma forma que a mínima demonstração matemática lhe tira todo o valor e toda a virtude. A razão determina imediatamente a vontade por uma lei prática, sem mediação de sentimento algum de prazer ou de dor, nem mesmo de um prazer ligado a esta lei, sendo tal faculdade, necessariamente prática como razão pura, a que lhe dá um caráter legislativo.

 

ESCÓLIO II

Desejo de todo o ser racional, porém finito, é fruir de felicidade, havendo portanto um princípio que determina inevitavelmente a sua faculdade de desejar.

Efetivamente, o seu estado original não é estar sempre satisfeito com a sua existência e gozar de uma felicidade que suporia a consciência de uma independência completa e perfeita, mas sim um problema que lhe impõe a sua natureza finita, porque tem necessidade, concernindo estas à matéria da faculdade de desejar, isto é, a alguma coisa referente a seu sentimento de prazer ou de dor, que lhe serve de princípio subjetivo, determinando o que necessita para contentar-se com a sua situação.

Mas precisamente por isso, porque esse fundamento material de determinação só pode ser considerado empiricamente pelo sujeito; é impossível considerar essa tarefa (Aufgabe) como uma lei, porque esta, sendo objetiva, imporia à vontade, em todos os casos e para quaisquer seres racionais, idêntico princípio de determinação. Conseqüentemente, ainda mesmo que o conceito de felicidade sirva em qualquer caso de base à relação prática dos objetos com a faculdade de desejar, não é mais do que o título dos princípios subjetivos, nada determinando especificamente, sendo este, entretanto, o único assunto deste problema prático e o meio exclusivo de resolvê-lo.

Cada um coloca o seu bem-estar ou felicidade nisto ou naquilo, de acordo com a sua opinião particular do prazer ou da dor, fazendo as variações desta opinião experimentar diferentes necessidades ao mesmo indivíduo; e uma lei subjetivamente necessária (como lei natural) é, portanto, objetivamente um princípio prático de inteiro contingente, podendo e devendo ser diverso em diferentes sujeitos e que, por conseguinte, não pode proporcionar uma lei, se bem que no desejo da felicidade não se trate de uma forma da lei mas apenas da matéria, isto é, se posso eu esperar prazer do cumprimento da lei e em que proporção. Os princípios do amor-próprio podem, certamente, encerrar regras universais da habilidade (na pesquisa dos meios para os fins em mira), não sendo, porém, mais do que princípios teóricos (8) como, por exemplo, o do que todo aquele que quer comer pão deverá imaginar um moinho. Mas os preceitos práticos que assentam no amor-próprio não podem ser universais, porque o princípio que determina a faculdade de desejar se fundamenta no sentimento de prazer ou de dor, o qual nunca pode ser aplicado universalmente aos mesmos objetos.

Ainda quando os seres racionais finitos pensassem todos absolutamente do mesmo modo acerca dos objetos dos seus sentimentos de prazer ou de dor, bem como acerca dos meios ajustados para conseguir uns e evitar outros, não poderiam, todavia, tomar por uma lei prática o princípio do amor-próprio, porque essa identidade seria por si mesma contingente, casual. O fundamento de determinação continuaria sendo só objetivamente verdadeiro e meramente empírico, não havendo aquela necessidade objetiva que se funda em princípios a priori e que acompanha a idéia de qualquer lei. Não se deveria, então, dar de modo algum essa necessidade como prática, mas como meramente física, ou seja: que a ação não é tão inevitavelmente imposta por nossa inclinação, como o bocejo quando vemos outros bocejar. Melhor ainda, poderíamos sustentar que não há nenhuma lei prática, mas apenas conselhos para os nossos apetites, em lugar de erigir princípios puramente subjetivos à condição de leis práticas, porque estas devem ter uma necessidade inteiramente objetiva e não apenas subjetiva, tendo que ser conhecidas pela razão a priori e não pela experiência (por empiricamente universal que possa ser).

As próprias regras dos fenômenos concordantes só são denominadas leis naturais (por exemplo, as mecânicas) quando as conhecemos realmente o priori ou, pelo menos (como ocorre nas químicas) se admite que seriam conhecidas a priori, por meio de fundamentos objetivos, caso chegasse mais a fundo a nossa penetração. Mas nos princípios práticos exclusivamente subjetivos, relevamos a condição expressa de que devem encontrar-se na sua base condições não objetivas, mas subjetivas no seu arbítrio, não podendo portanto ser apresentados como leis práticas mas, apenas, como simples máximas.

À primeira vista, esta última observação parece ser um simples enunciado de palavras; entretanto é a determinação verbal da diferença mais importante que se pode considerar nas investigações práticas.

 

§ 4° — TEOREMA III

Um ser racional não deve conceber as suas máximas como leis práticas universais, podendo apenas concebê-las como princípios que determinam o fundamento da vontade, não segundo a matéria mas sim pela forma.

A matéria de um princípio prático é o objeto da vontade. Pois bem: esse objeto é ou não o princípio que determina a vontade. Se fosse o fundamento de determinação da mesma, estaria a regra da vontade submetida a uma condição empírica (a relação da representação determinante com o sentimento do prazer ou da dor) e, por conseguinte, não seria uma lei prática.

Mas se em uma lei se faz abstração de toda matéria, isto é, de todo objeto da vontade (como princípio de determinação) não resulta dessa lei mais do que a mera forma de uma legislação universal. Em suma: ou um ser racional não pode conceber os seus princípios subjetivamente práticos, isto é, as suas máximas como sendo ao mesmo tempo leis universais ou, de forma inversa, deve admitir que a simples forma dos mesmos, segundo a qual se capacitam eles para uma legislação universal, reveste esta de característico conveniente e apropriado.

 

ESCÓLIO

Qualquer inteligência, por vulgar que seja, pode distinguir na máxima, qual a forma que se capacita para a legislação universal e qual não se encontra apta para isso.

Tomei, por exemplo, a máxima: aumentar a minha fortuna por todos os meios seguros; e eis que tenho entre as mãos um depósito cujo proprietário morreu sem deixar nada escrito acerca do mesmo. Certamente seria este o caso apropriado para aplicar a máxima; quero porém saber se pode ter a mesma o valor de uma lei prática universal. Aplico-a, portanto, ao caso presente, indagando de mim mesmo se pode ela admitir a forma de uma lei e, conseqüentemente, se posso convertê-la nesta: “É permitido a todo o homem negar um depósito cuja existência ninguém possa provar”. Observo todavia, imediatamente, que tal princípio se destruiria a si próprio como lei, porque faria com que não houvesse nenhum depósito. Uma lei prática deve ter a qualidade de um princípio de legislação universal para que eu a reconheça como tal; trata-se de uma proposição idêntica e, por conseguinte, clara por si mesma. Mas eu sustento que se a minha vontade está submetida a uma lei prática, não posso dispor-me a seguir a minha inclinação (exemplo, no caso presente: a minha cobiça) como o fundamento da determinação da vontade capacitado para a lei prática universal; longe de enquadrar-se em uma legislação universal, essa inclinação, apresentando-se desta forma, ficaria por si mesmo destruída.

Seria portanto estranhável que sendo esta máxima o desejo da felicidade universal, por conseguinte, também resultasse universal a máxima, segundo a qual cada um faz desse desejo o fundamento da determinação de sua vontade, como é de assombrar que tenha vindo à mente de homens de raciocínio tomar este princípio como lei prática universal. Efetivamente, se emprestássemos a esta máxima a universalidade de uma lei, em lugar da ordem que uma lei universal da natureza estabelece onde quer que seja, conseguiríamos precisamente o contrário, uma extrema desordem, ou então desapareceriam a finalidade da máxima ou ela própria. A vontade de todos não tem nesse particular um objetivo idêntico e único, mas cada um tem o seu (o seu próprio bem-estar), o qual, se pode concordar acidentalmente com os desígnios dos outros, dirigidos também, identicamente, por eles a si próprios, não é, entretanto, nem mesmo com esforço, suficiente para perfazer em lei, porque as exceções, que ocasionalmente se tem o direito de fazer, além de serem infinitas em número, não têm fundamento, sendo impossível compreendê-las de modo determinado em uma regra universal; de forma que se chegaria a uma harmonia semelhante a que nos mostra certo poema satírico a propósito de dois esposos que tem o mesmo escopo de arruinar-se: “Maravilhosa harmonia! O que ele quer, também ela quer”. Ou, então, semelhante á do rei Francisco I, aceitando um compromisso para com o imperador Carlos V: “O que meu irmão Carlos quer possuir (Milão), também eu o quero”. Os princípios de determinação empíricos não se prestam para uma legislação universal exterior, mas também não podem assentar uma interior, porque, tendo a inclinação a sua base na natureza de cada um, há também inclinações diferentes, dominando-as o indivíduo, ora a uma e ora a outra. Atinar-se com uma lei que venha reger todas as inclinações em conjunto, sob esta condição, ou seja a coincidência entre todas, é absolutamente impossível.

 

§ 5.° — PROBLEMA I

Supondo-se que a mera forma legisladora das máximas seja apenas o fundamento suficiente da determinação de uma vontade, encontremos a natureza dessa vontade, que só pode ser determinada dessa forma.

Como a mera forma da lei não pode ser representada senão pela razão e, portanto, não constitui objeto dos fenômenos, a representação dessa forma é, para a vontade, um princípio de determinação, distinto de todos aqueles que procedem das circunstâncias que ocorrem na Natureza, segundo a lei da causalidade, porque nesse caso as próprias causas determinantes devem ser fenômenos.

Mas se não pode servir de lei à vontade, outro princípio de determinação que não seja aquela forma legisladora universal, então uma vontade idêntica deve ser concebida como inteiramente independente da lei natural dos fenômenos, isto é, no sentido transcendental. Mas esta independência se denomina liberdade no sentido mais estrito, ou seja no sentido transcendental. Desse modo uma vontade para a qual a mera forma legisladora das máximas pode servir de lei é uma vontade livre.

 

§ 6.° — PROBLEMA II

Suposta uma vontade livre, encontrar a única lei apta a determiná-la necessariamente.

Não obstante a matéria da lei prática, isto é, um objeto das máximas, nunca possa ser dada senão empiricamente, e a vontade, contudo, deva ser determinada independentemente de toda a condição empírica (ou pertencente ao mundo sensível), uma vontade livre deve encontrar uma lei, um princípio de determinação independente de sua própria matéria. Mas se uma lei se abstrai da matéria, não existe nela mais do que a forma legisladora. Dessa maneira, a forma legisladora, quando contida na máxima, é a coisa única que pode dar à vontade livre um princípio de determinação.

 

ESCÓLIO

A liberdade e a lei prática absoluta são conceitos correlativos. Entretanto eu aqui não indago se elas são realmente distintas, ou se uma lei incondicionada não será apenas a própria consciência (Selbstbewusstsein) de uma razão pura prática, e esta a idêntica a um conceito positivo da liberdade; apenas pergunto onde começa o nosso conhecimento do que é absolutamente prático, se é pela liberdade ou pela prática. Pela liberdade não pode começar, porque de um lado o seu primeiro conceito é negativo e de outro não podemos concluí-la da experiência, não obstante a experiência não nos dar a conhecer senão a lei dos fenômenos: por conseguinte, o mecanismo da natureza, precisamente o contrário da liberdade. Resulta, portanto, que a lei moral, da qual temos consciência imediata (tão rapidamente como formulamos máximas da vontade) é a que se nos apresenta primeiramente, desde que a razão a representa como um fundamento de determinação que nenhuma condição sensível pode sobrepujar e, ainda, inteiramente independente dessas condições, conduz precisamente ao conceito da liberdade. Mas como é possível também a consciência daquela lei moral?

Podemos ter consciência de leis puras práticas, da mesma forma que temos consciência de princípios puros teóricos, observando, todavia, a necessidade com que a razão nos prescreve os mesmos e a separação de todas as condições empíricas, separação que nos é assinalada pela razão. O conceito de uma vontade pura surge das primeiras, assim como a consciência de um entendimento puro das últimas. Que esta é a verdadeira subordinação de nossos conceitos e que a moralidade nos descobre primeiramente o conceito da liberdade e, por conseguinte, que a razão prática, apresenta primeiramente à especulativa com este conceito o problema mais intrincado, como que para envolver esta na mais embaraçosa das situações, é coisa que se vê claramente mediante o que se segue, a saber: que como com o conceito de liberdade nos fenômenos nada pode ser explicado, mas aqui é o mecanismo natural que deve servir constantemente de fio condutor, como, também, a antinomia da razão pura, quando esta pretenda elevar-se ao incondicionado na série das causas, emaranha-se em incompreensibilidades, tanto em um como em outro conceito, qual seja, não obstante isso tudo, este último (o mecanismo), pelo menos tem utilidade na explicação dos fenômenos. Empreendimento arriscado foi esse de introduzir a liberdade nas ciências, não se chegando a isso se a lei moral e a razão prática não houvessem tal coisa autorizado e não nos tivessem imposto esse conceito. Além disso, esta ordem de conceitos, que em nós se encontra, está confirmada pela experiência. Supondo, por exemplo, que um indivíduo pretenda excusar a sua inclinação ao prazer, dizendo ser-lhe a mesma totalmente irresistível, quando o objeto amado e a ocasião se apresentem; mas se uma forca estiver levantada diante da casa onde tal ocasião se apresenta, para nela dependurá-lo logo após o gozo do prazer, não resistirá porventura a tal inclinação? Não é necessário muita perspicácia para atinar com a resposta. Mas perguntai-lhe se ante as ameaças de um príncipe (entre elas a de perder a vida) que quisesse arruinar a alguém mediante pretextos capciosos e que dele para tal exigisse um falso testemunho, perguntai se ele acredita poder subjugar o seu amor à vida, por pouco apreço que tenha à mesma e se, por conseguinte, negaria testemunhar. Talvez não se atreveria a assegurar se faria isso ou não; mas que tal fosse possível, admitiria sem vacilar. Julga ele, portanto, que pode fazer alguma coisa, porque tem consciência de dever fazê-la, reconhecendo em si mesmo a liberdade que, sem a lei moral, permaneceria para ele ignorada.

 

§ 7.° — LEI FUNDAMENTAL DA RAZÃO PURA PRÁTICA

Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal.

 

ESCÓLIO

A geometria pura tem postulados que são proposições práticas, os quais só contêm todavia a suposição de que se se pode fazer alguma coisa quando se exigir que se deve fazer, sendo estas as únicas proposições da mesma concernentes a uma existência. São, conseqüentemente, regras práticas recalcadas sob uma condição problemática da vontade. Entretanto, a regra diz aqui que deve proceder de certo modo absoluto. A regra prática é, portanto, incondicionada, sendo, por conseqüência, representada como proposição categoricamente a priori, em virtude da qual a vontade é determinada, objetiva, absoluta e imediatamente (pela mesma regra prática que aqui, evidentemente, é lei). Com efeito, a razão pura, em si mesma prática, aqui resulta imediatamente legisladora. A vontade é concebida como independente de condições empíricas e, por conseguinte, como vontade pura, determinada mediante a simples forma da lei, sendo esse motivo de determinação considerado como a suprema condição de todas as máximas. O caso é bastante singular, não tendo equivalente no restante do conhecimento prático. O pensamento a priori de uma legislação universal possível resulta, tal qual é, simplesmente problemático, apresentando-se diante de nós como lei incondicional, sem tomar nada de empréstimo à experiência ou a uma vontade exterior qualquer. Não é, também, um preceito segundo o qual uma ação deva ocorrer, mediante a qual fosse possível um efeito desejado (porque, então, a regra seria sempre condicionada fisicamente), mas, sim, uma regra que determina apenas a vontade a priori em relação à forma de suas máximas, sendo então uma lei que só serve para a forma subjetiva dos princípios pelo menos possível, salvo se for concebida como motivo determinante por meio da forma objetiva de uma lei geral. A consciência dessa lei fundamental pode ser denominada um ato da razão, porque não podemos inferi-la de dados antecedentes da razão, como seja da consciência da liberdade (porque esta consciência não se revela anteriormente) impondo-se por si mesma a nós como proposição sintética a priori, a qual não se fundamenta em qualquer intenção, seja pura ou empírica, ainda que fosse analítica, quando propuséssemos a liberdade da vontade, para o que, todavia, seria exigível, como conceito positivo, uma intuição intelectual que aqui não pode ser admitida de modo algum. Entretanto, para considerar essa lei como dada, sem resvalar na falsa interpretação, deve-se ter em conta que ela não é uma lei empírica, mas um caso exclusivo da razão pura, a qual se manifesta através dele como de origem legisladora (sic volo, sic jubeo).

 

COROLÁRIO

A razão pura é por si mesma prática, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral.

 

ESCÓLIO

É inegável o que acabamos de dizer. Resta apenas por analisar os juízos que os homens articulam sobre a correlação de suas ações à lei. Deduzir-se-á sempre que, seja o que for o aduzido pela inclinação, a razão, incorruptível e por si mesma obrigada, compara sempre a máxima da vontade em uma ação com a vontade pura, isto é, consigo mesma, quando a consideramos como prática a priori. Agora, convenhamos: este princípio da moralidade, precisamente pela universalidade legislativa, que o torna fundamento determinante formal da vontade, independente de todas as diferenças subjetivas da mesma, declarando-o a razão, ao mesmo tempo, lei para todos os seres racionais conquanto tenham uma vontade, ou seja uma faculdade capaz de determinar a sua própria causalidade mediante a representação de regras e, conseqüentemente, enquanto capazes de produzir ações segundo princípios e, portanto, também conformes com princípios práticos a priori (dado que só estes apresentam aquela necessidade que a razão exige em todos os princípios). Isso não se limita apenas ao homem; torna-se extensivo aos seres finitos dotados de razão e vontade, incluindo até o ser infinito como inteligência suprema. Todavia, no homem, a lei possui, no primeiro caso, a forma de um imperativo, porque, na qualidade de ser racional, pode-se supor nele uma vontade pura; mas, por outro lado, sendo afetado por necessidades e por causas motoras sensíveis, não se pode supor nele uma vontade santa, isto é, tal que não lhe fosse possível esboçar qualquer máxima em contraposição à lei moral. Para aqueles seres a lei moral, portanto, é um imperativo que manda categoricamente, porque a lei é incondicionada. A relação de tal vontade com essa lei é de dependência (Abhängigkeit) sob o nome de obrigação (Verbindlichkeit), significa uma compulsão (Nötigung), ainda quando só exercitada pela razão comum e por sua lei objetiva para uma ação, por isso denominada dever, porque um arbítrio patologicamente afetado (ainda quando não determinado por essa afeição e, por conseguinte, também constantemente livre), conduz em si um desejo que reflui de causas subjetivas, podendo por isso opor-se freqüentemente ao fundamento da determinação puro objetivo, necessitando, portanto, como compulsão moral, de resistência da razão prática, resistência que pode ser denominada uma coação interior, embora intelectual. Em uma inteligência bastante a si mesma, o arbítrio é com razão representado como incapacitado a qualquer máxima que ao mesmo tempo não possa ser lei objetiva, colocando-o o conceito de santidade que nisso lhe corresponde acima de todas as leis práticas, embora não sobre todas as leis praticamente restritivas e, por conseguinte, as da obrigação e do dever.

Esta santidade da vontade, é contudo uma idéia prática que, necessariamente, avulta como modelar, como protótipo; aproximarmo-nos dela no infinito é a única coisa que corresponde a todos os seres racionais finitos, pondo-lhes tal idéia constantemente diante dos olhos a lei moral pura, por esse motivo também chamada santa. Possuir a segurança do progresso no infinito das suas máximas e da imutabilidade das mesmas para uma ininterrupta marcha progressiva, ou seja chegar a possuir a virtude, é a coisa mais elevada que a razão prática finita possa conseguir, sendo que esta, pelo menos, como poder, adquirido naturalmente, nunca chega a ser perfeita, porque, neste caso, a segurança nunca é uma certeza apodítica, resultando, portanto, como persuasão, extremamente perigosa.

 

§ 8.° — TEOREMA IV

A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes às mesmas; mas, por outro lado, toda heteronomia do livre-arbítrio não só deixa de fundamentar qualquer obrigação como, também, resulta de todo contrária ao princípio desse livre-arbítrio e à moralidade da vontade. O princípio único da moralidade consiste na independência de toda a matéria da lei (isto é, de um objeto desejado) e, ao mesmo tempo, apesar de tudo, na determinação, à qual u’a máxima deve estar capacitada, do arbítrio por meio da forma legisladora universal comum.

Todavia aquela independência é liberdade no sentido negativo, enquanto esta legislação própria da razão pura e, como tal, prática, é liberdade no sentido positivo. Desse modo, a lei moral apenas exprime a autonomia da razão pura prática, isto é, a liberdade, incluindo-se nesta a condição formal de todas as máximas, sob cuja condição estas podem coincidir somente com a lei prática suprema. Se a matéria é e não pode ser outra além do objeto de um desejo, conjugado à lei, intervém ela na lei prática como condição de sua possibilidade, resultando disso a heteronomia do livre-arbítrio, ou seja a dependência desta da lei natural, que segue qualquer impulso ou inclinação, não impondo a vontade a si mesma a lei, mas somente o preceito para seguir racionalmente leis patológicas; contudo, a máxima que, dessa forma, nunca pode conter em si a forma legisladora universal, não só é impotente para fundamentar desse modo qualquer obrigação, como, também, contraria o princípio de uma razão pura prática e, portanto, também a intenção (Gesinnung) moral, ainda quando a ação dela resultante fosse correlata à lei.

 

ESCÓLIO I

Um preceito prático que implique uma condição material (por conseguinte, empírica), nunca deve ser tido em conta de lei prática. Realmente, a lei da vontade pura, que é livre, situa esta em esfera totalmente diversa da empírica, sendo que a necessidade que expressa, embora não deva ser nenhuma necessidade natural, consistirá simplesmente nas condições formais da possibilidade de uma lei em geral. Toda a matéria de regras práticas assenta sempre em condições subjetivas, as quais não proporcionam aos seres racionais nenhuma universalidade além da universalidade condicionada (no caso de eu desejar isto ou aquilo, o que deva fazer para obtê-lo), girando todas elas ao redor do princípio da felicidade própria. Agora convenhamos: se é inegável que todo o querer deve também ter um objeto, por conseqüência u’a matéria, nem por isso constitui o mesmo o fundamento preciso de determinação e a condição da máxima, porque, se tal ocorresse, não admite exposição na forma legisladora universal, resultando, nesse caso, a esperança da existência do objeto como causa determinante do livre-arbítrio, devendo, ainda, colocar-se a faculdade de desejar, já por si dependente, na dependência de alguma outra coisa, colocando-se então como base do querer, dependência essa que só pode ser buscada em condições empíricas, não podendo, por isso, proporcionar fundamento a uma regra necessária e universal.

Desse modo, a felicidade de seres estranhos poderia ser objeto da vontade de um ser racional. Mas se fosse ela o motivo determinante da máxima, presumiria que no bem estar alheio encontramos nós não somente um prazer natural mas, também, uma necessidade, tal como a simpatia impõe ao homem de sentimento. Esta necessidade não pode abrigar-se em todo o ser natural (muito menos em Deus). Desse modo, ainda que deva subsistir a matéria da máxima, não deve, contudo, ser a condição da mesma, porque assim não serviria de lei. Disso resulta que a forma comum de uma lei limitadora da matéria, nessa máxima, deve ao mesmo tempo ser um fundamento para acrescentar essa matéria a vontade, mas não um motivo para suplantá-la. Constitua a matéria, por exemplo, a minha própria felicidade, Se eu atribuo esta matéria a cada ser (como, efetivamente posso fazê-lo em relação aos seres finitos) pode ela resultar em lei prática objetiva, desde que eu inclua nela a felicidade dos demais. Desse modo, a lei de favorecer a felicidade de outros não resulta da suposição de que seja o mesmo um objeto para o livre-arbítrio de cada indivíduo, mas apenas indica que a forma da universalidade, necessitada pela razão como condição para dar um valor de lei objetiva à máxima do amor próprio, chega a ser o fundamento determinante da vontade; não era, portanto, o objeto (a felicidade dos demais) o fundamento de determinação da vontade pura, mas apenas a mera forma legal pela qual eu limitava a minha máxima, fundamentada na inclinação, para proporcionar-lhe a universalidade de uma lei, tornando-a assim adequada à razão pura prática, podendo dessa limitação — não da adição de um impulso exterior — derivar apenas o conceito imediato da obrigação de estender à felicidade alheia a máxima do meu amor próprio.

 

ESCÓLIO II

Resulta precisamente o contrário do princípio da moralidade tomar o princípio da própria felicidade qual motivo determinante da vontade; cabe a ele como já ponderei acima, tudo o que proponha o fundamento determinante, que deve servir de lei ao que não seja a forma legisladora da máxima. Esta contradição não é apenas lógica (como a que se produziria em regras empiricamente condicionadas e que, não obstante a isso, pretendemos elevá-las a princípios necessários do conhecimento) mas sobretudo, prática; destruiria ela completamente a moralidade se a voz da razão não fosse, em relação à vontade, tão clara, tão difícil de sufocar e tão perceptível, até mesmo para os homens mais vulgares; assim, essa contradição só pode sustentar-se ainda nas emaranhadas especulações das escolas, suficientemente pérfidas para sustentar uma teoria que de modo algum constitui um quebra-cabeça.

Se um amigo, cujo trato é para ti agradável, acredita desculpar-se de um falso testemunho para contigo, alegando, antes de mais nada, um dever sagrado, segundo aventa, da própria felicidade, enumerando imediatamente as vantagens conseguidas por esse meio, fazendo ressaltar a prudência de que usou para assegurar-se contra toda a descoberta do fato, até por parte de tua pessoa, a quem revela o segredo só porque pode negá-lo em qualquer ocasião; se, ainda, pretendesse, com a máxima seriedade, ter cumprido um verdadeiro dever humano, nesse caso, ou ririas em sua própria cara ou então o repelirias horrorizado, ainda mesmo quando, contra a regra de conduta de que só dirigiu os seus princípios em vista de uma vantagem própria, não terias a mínima objeção a fazer. Suponde também que alguém vos recomende um administrador dos vossos bens, a quem podereis confiar cegamente todos os vossos interesses, e que, para incutir confiança em vós, exalte os seus méritos de homem prudente, que sabe com habilidade tirar a sua própria vantagem, homem de infatigável atividade que não deixa passar uma ocasião sem dela colher proveito e que, se tendes qualquer receio de que não venha resultar em egoísta vulgar, gabe a finura do seu modo de viver, dizendo que não busca o prazer em amealhar dinheiro ou num sensualismo brutal, mas sim ampliar os seus conhecimentos no trato de pessoas escolhidas e instruídas; que lhe apraz ajudar os industriosos necessitados, mas que para isso tudo não seria escrupuloso nos meios de que lançasse mão (os quais só apresentam o seu valor ou o seu não valor nos fins) e que o dinheiro e as coisas alheias lhe serviriam tanto como as próprias, delas se servindo livremente, porém sem que alguém descobrisse, — então acreditarias que quem tal indicação vos fizesse, ou estaria troçando convosco ou, por certo, teria perdido a razão. Os limites da moralidade ou do amor-próprio estão assinalados com tal clareza e precisão que até a visão mais vulgar não pode deixar de distinguir se uma coisa pertence a um ou a outro.

Podem as poucas observações que seguem, certamente, parecer supérfluas diante de tão manifesta verdade, mas, pelo menos, servem para proporcionar ao juízo da razão humana comum um pouco mais de clareza.

O princípio da felicidade, embora possa ministrar máximas, não pode nunca facultá-las tais que resultem aptas para as leis da vontade, ainda mesmo se tomarmos como objeto a felicidade universal. Porque, ainda que o conhecimento desse princípio apenas se fundamenta em dados empíricos e, não obstante depender todo o juízo acerca dele, em grande parte, da opinião de cada um, o que resulta variável em extremo, deduzimos que pode facultar regras gerais mas não universais, isto é, que pode apresentar regras que, a meio termo, são na maioria das vezes exatas, mas não regras que sempre e necessariamente devam ser verdadeiras, não se podendo, por conseguinte, assentar sobre tal princípio lei prática alguma. Precisamente em razão disso, por colocar-se aqui um objeto do livre arbítrio, devemos tomá-lo como base da regra do mesmo, impondo-se o precedimento dessa regra, não podendo ela referir-se a coisa diversa daquela a que se recomenda, portanto à experiência, podendo apenas fundamentar-se sobre esta, sendo assim infinita a diversidade do juízo. Desse modo concluímos que tal princípio não prescreve idênticas leis práticas a todos os seres racionais, embora estas se situem debaixo de título comum, ou seja — o da felicidade. A lei moral, porém, é concebida como objetivamente necessária, dado que deve valer para todo aquele que possua razão e vontade.

A máxima do amor de si mesmo (prudência) só aconselha; a lei da moralidade manda. Mas existe uma grande diferença entre o que nos é aconselhado e aquilo a que somos obrigados.

O que se deva fazer, segundo o princípio da autonomia do livre arbítrio, é facílimo de intuir sem qualquer vacilação, até para a mais vulgar das inteligências; mas o que se deva fazer debaixo da suposição da heteronomia do mesmo é difícil, exigindo conhecimento do mundo, ou seja, o que é dever se apresenta por si mesmo a cada um; mas o que produza verdadeira e duradoura vantagem, está sempre, se esta vontade deva ser extensiva a toda a existência, envolvido de impenetrável obscuridade, exigindo muita prudência para conformar-se à regra prática regida pela vantagem, ainda que de modo apenas suportável, mediante hábeis exceções, com os fins da vida. A lei moral, porém, ordena a cada um o mais pontual dos cumprimentos. Desse modo, o juízo que cumpre fazer, segundo ela, não deve ser tão difícil que se não consiga aplicá-lo à inteligência mais comum e menos exercitada, àquela que nenhum conhecimento do mundo possua. Satisfazer o mandato categórico da moralidade está, a qualquer tempo, na faculdade de cada um; satisfazer, porém, o preceito empírico da felicidade condicionada não é dado a cada um, sendo possível apenas raras vezes, ainda quando em relação a uma única intenção. A causa disso é que no primeiro só se trata da máxima que deve ser verdadeira (echt) e pura; no segundo, todavia, tratamos também das forças e da potencialidade física de produzir realmente um objeto desejado. Seria insensatez um mandato segundo o qual cada um deve tratar de tornar-se feliz, porque nunca se ordena que alguém faça o que por si mesmo indefectivelmente deseje. Dever-se-ia ordenar-lhe, ou antes, facultar-lhe, as medidas que tem de tomar, porque ele não pode tudo o que quer. Ordenar, porém, a moralidade sob o nome de dever, é inteiramente razoável, porque aos seus preceitos não querem, antes de mais nada, obedecer de bom grado aqueles que vêem na mesma um contraste às suas inclinações sendo que, no concernente às normas acerca do modo de poder conformar-se a esta lei, agora não é o momento propício para ensinar, porquanto, nesse particular, cada um pode o que quer.

Quem perder no jogo pode irritar-se com a sua própria imprudência, mas, se tem convicção de que fez tribofe na partida (ainda que tenha ganho), deve necessariamente depreciar-se a si mesmo quando se põe diante da lei moral. Esta, portanto, deve ser coisa diferente do princípio da própria felicidade. Ter de dizer a si próprio: sou um indigno, ainda que tenha recheiada a carteira, significa desaprovar-se; donde resulta que deve ter diferente regra de juízo para aprovar-se a si mesmo e dizer: eu sou um homem prudente porque aumentei meu capital.

Na idéia da nossa razão prática há ainda alguma coisa que acompanha a transgressão da lei moral, isto é: a possibilidade do castigo. Pois bem: tornar-se participante da felicidade não está ligado ao conceito de um castigo, enquanto castigo. Porque, se quem se castiga, pode ter a boa intenção de dirigir tal castigo para este objeto, este há de estar justificado por si mesmo como castigo, isto é, como simples mal; de modo que o castigado, se o caso termina nessa altura, não divisando ele atrás desse rigor nenhum favor, deve convir que tudo está bem e que a sua sorte se coaduna perfeitamente ao seu modo de proceder. Em todo o castigo que o seja, deve antes de tudo, como tal, haver justiça, constituindo essa o essencial desse conceito. Com ela, certamente, pode imiscuir-se também a bondade, mas o que mereceu a pena não tem o menor motivo, depois do seu cumprimento, de contar com essa bondade. Não obstante ser o castigo um mal físico que, se não estivesse ligado, como conseqüência natural, com o moralmente mau, ainda assim se deveria unir a ele como conseqüência, segundo os princípios de uma legislação moral. Pois bem: se cada delito, ainda mesmo que não se levassem em conta as conseqüências físicas em relação ao agente, é por si mesmo passível de punição, isto é, faz perder a felicidade (pelo menos em parte), seria manifestamente absurdo dizer que o crime consistiu precisamente no fato do réu ter atraído para si uma pena, tendo prejudicado a sua própria felicidade (no que deveria consistir, segundo o princípio do amor-próprio, o conceito de todo o crime). Desse modo, a pena tornar-se-ia o motivo de chamar crime a alguma coisa, consistindo a justiça principalmente em abandonar todo o castigo e até em impedir o natural, porque, então, não ficaria na ação nada mais do mal (Böses), desde que os males que antes saíam dela, e pelos quais apenas a ação era inculcada de mal, resultariam agora afastados. Mas considerar todo o castigo e qualquer recompensa apenas como instrumento que deveria, em mãos de uma potência superior, servir só para pôr os seres racionais em atividade diante da consecução de sua intenção final (a felicidade), resultaria visivelmente em mecanismo destruidor de toda a liberdade da vontade, sendo desnecessário, portanto, determo-nos nisso.

Mais sutil, embora identicamente falso, é o que pretendem aqueles que admitem um certo sentido moral, particular, o qual, e não a razão, determinaria a lei moral; assim, pois, a consciência de virtudes estaria imediatamente conjugada com o contentamento e o prazer, mas a consciência do vício se imiscuiria à inquietação do ânimo e à dor; desse modo, ambos reduzem tudo à aspiração da própria felicidade. Sem repetir o que eu disse acima, quero observar apenas a ilusão que aqui tem lugar. Para apresentar-se o viciado como atormentado com intranqüilidade de ânimo pela consciência de suas faltas, devemos, de antemão, representá-lo, no fundamento principal do seu caráter, pelo menos até certo ponto, como já moralmente bom, a exemplo daquele que se felicita com a consciência por ações conformes ao dever, que deve ser representado também de antemão como virtuoso. Dessa forma, o conceito da moralidade e do dever deveria preceder a toda referência a esse contentamento, não podendo de modo algum dele ser derivado. Devemos, ainda, apreciar com antecedência a importância do que chamamos dever, a autoridade da lei moral e o valor imediato que a observância da mesma faculta à pessoa diante dos seus próprios olhos, para sentir aquela satisfação na consciência que tem de sua conformidade com a lei, e a mais amargosa imputação quando se sente como infrator da mesma. Como se vê, esse contentamento ou essa intranqüilidade de ânimo não é dado sentir antes do conhecimento da obrigação, não podendo esta resultar como fundamento em tal caso. Deve o indivíduo ser já, pelo menos às meias, um homem honrado para poder animar uma representação daquelas sensações.

Além disso, eu não nego que, assim como, na virtude da liberdade, a vontade humana pode ser imediatamente determinável pela lei moral, também o repetido exercício, de conformidade com esse fundamento de determinação, seja levado a efetuar, no final, subjetivamente, um sentimento de satisfação consigo mesmo; ainda, compete ao dever também fundamentar e cultivar esse sentimento, que, propriamente, é o único que merece ser denominado sentimento moral, mas o conceito do dever não pode ser derivado dele, pois, de outro modo, teríamos que pensar um sentimento de uma lei como tal, tornando objeto da sensação o que só pode ser pensado pela razão; isso, se não for uma vulgar contradição, suprimirá inteiramente todo o conceito do dever, colocando em seu lugar simplesmente um conjunto de inclinações requintadas, às vezes em choque com as mais toscas.

Se compararmos agora o nosso princípio formal supremo da razão pura prática (como uma autonomia da vontade) com todos os princípios materiais da moralidade até aqui expostos, podemos apresentar em um quadro todos os demais, como princípios mediante os quais estão, ao mesmo tempo, realmente esgotados todos os demais casos possíveis, exceto um só, mostrando assim desde logo que se torna inútil buscar outro princípio formal, além deste, agora apresentado. Todos os motivos determinantes possíveis da vontade são ou simplesmente subjetivos e, portanto empíricos, ou objetivos e racionais; mas ambos são exteriores ou interiores.

Os fundamentos determinantes práticos materiais no princípio da moralidade, são;


[imagem:texto abaixo]


SUBJETIVOS
exteriores
da educação
(segundo Montaigne)
da constituição civil
(segundo Mandeville)
interiores
do sentimento físico
(segundo Epicuro)
do sentimento moral
(segundo Hatcheson)

OBJETIVOS
interior
da perfeição
(segundo Wolff e os estóicos)
exterior
da vontade divina
(segundo Crusius e outros moralistas teólogos)


Os indicados em primeiro termo são todos empíricos, não servindo nenhum deles, evidentemente, para o princípio universal da moralidade. Os dois que se apresentam abaixo fundamentam-se na razão (pois a perfeição como a constituição das coisas e a suprema perfeição, representada em substância, isto é, Deus, só podem ser concebidas, ambas, mediante conceitos da razão). Mas o primeiro conceito ou seja o da perfeição pode ser tomado em seu significado teórico não significando então nada mais além da integridade de cada coisa em seu gênero (transcendental) ou de uma só coisa como coisa em geral (metafísica), do que não podemos aqui tratar. Mas o conceito da perfeição, no seu significado prático, é a conveniência ou a suficiência de uma coisa para toda a classe de fins. Esta perfeição, como constituição do homem, portanto interna, não é nada mais do que talento e o que este fortaleça ou complete, habilidade. A suprema perfeição em substância, ou seja, Deus e, portanto, exterior (considerada sob o aspecto prático), é a suficiência desse ser para todos os fins em geral. Desse modo, se nos devem ser dados previamente fins, em relação aos quais o conceito da perfeição (de uma perfeição interna, em nós mesmos, e de uma externa, em Deus), pode ser o único fundamento determinante da vontade; se, porém, um fim, como objeto deve preceder à determinação da vontade, por meio de uma regra prática e por encerrar o fundamento da possibilidade da mesma, logo a matéria da vontade, tomada como fundamento da determinação da mesma, é sempre empírico e, por conseguinte, pode servir de princípio epicúreo à teoria da felicidade, mas nunca de princípio da razão pura para a teoria moral e o dever (do mesmo modo que os talentos e sua cultura não podem ser causa motoras da vontade só porque contribuem para as vantagens da vida, ou a vontade de Deus, se o conformar-se a ela seja tomado como objeto da nossa vontade sem que um princípio prático antecessor dessa vontade divina, independente da sua idéia, venha a ser causa motora da vontade, apenas porque disso esperamos a felicidade) resulta: primeiro, que todos os princípios aqui expostos são materiais; segundo, que eles compreendem em si todos os princípios materiais possíveis e, finalmente, a conclusão de que, já que os princípios materiais não servem de modo algum como suprema lei moral (como demonstrei), assim, também, o princípio prático formal da razão pura, segundo o qual a forma vulgar de uma legislação universal, possível mediante a nossa máxima, deve constituir o supremo e imediato fundamento de determinação da vontade, é o único possível para servir aos imperativos categóricos, isto é, dar leis práticas (que fazem das ações deveres), e, em geral, para o princípio da moralidade, tanto no juízo como na aplicação à vontade humana, quanto à determinação da mesma.

 

I
DA DEDUÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RAZÃO PURA PRÁTICA

Revela esta analítica que a razão pura pode ser prática, isto é, pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de todo elemento empírico; — e demonstra-o na verdade mediante um fato, no qual a razão pura se manifesta em nós como realmente prática, ou seja, a autonomia, no princípio da moralidade, por meio do que determina a mesma a vontade no ato. — Por sua vez, a Analítica mostra que este fato está inseparavelmente ligado à consciência da liberdade da vontade, identificando-se, além disso, com ela, do que resulta reconhecer-se a vontade de um ser racional participante do mundo dos sentidos, bem como das demais causas eficientes, necessariamente submetido às leis da causalidade, na prática, mas, ao mesmo tempo, por outro lado, como ser em si mesmo, tem consciência de sua existência, a saber, determinável em uma ordem inteligível das coisas, não por certo segundo uma intuição particular de si mesmo, mas de conformidade com algumas leis dinâmicas que podem determinar a sua causalidade no mundo dos sentidos; por isso, já ficou suficientemente em outra parte demonstrado (no Fundamento da Metafísica dos Costumes) (9) que a liberdade, quando nos é atribuída, também nos translada a uma ordem inteligível das coisas.

Pois bem: se confrontarmos com isso a parte analítica da crítica da razão pura especulativa resulta um notável contraste entre uma e outra. Não eram princípios mas sim uma intuição pura sensível (espaço e tempo) que ali constituíam o primeiro dado que tornava possível o conhecimento a priori e, na verdade, isso apenas para objetos dos sentidos. Princípios sintéticos derivados de simples conceitos sem intuição eram impossíveis; mas só podiam os conceitos ter lugar em relação com essa situação que era sensível, por conseqüência também só em relação com objetos de experiência possível, porque os conceitos do entendimento unidos a essa intuição, só tornam possível o conhecimento a que denominamos experiência. — Fora dos objetos da experiência e portanto das coisas como “noumenos”, negou-se, com pleno direito, à razão especulativa qualquer conhecimento positivo. — Esta, contudo, fez o possível para pôr em segurança o conceito dos “noumenos”, isto é, para assegurar-lhes a possibilidade e, ainda mais, a necessidade de meditá-los e de mostrar, em contraposição a toda a objeção, que aceitar, por assim dizer, a liberdade considerada negativamente, é em tudo compatível com aqueles princípios e limitações da razão pura teórica, sem todavia dar a conhecer qualquer determinação ou ampliação relativa a tais objetos, impedindo, de preferência, toda a visão concernente aos mesmos.

Por outro lado a lei, embora não faculte qualquer visão (Aussicht), proporciona, contudo, um fato absolutamente inexplicável mediante os dados do mundo sensível e dentro de todo o âmbito do uso teórico da nossa razão, não conseguindo explicar, em toda a sua extensão, um fato que anuncia um mundo puro do entendimento, porque até o determina positivamente, dando-nos a conhecer alguma coisa dele, ou seja — uma lei.

Esta lei deve proporcionar ao mundo dos sentidos, como natureza sensível (no concernente aos seres racionais) a forma de um mundo do entendimento, isto é, uma natureza supra-sensível, mas sem danificar o mecanismo daquela. Agora, convenhamos: natureza, no mais amplo sentido, é a existência das coisas sob leis. A natureza sensível dos seres racionais em geral é a existência dos mesmos debaixo de leis empiricamente condicionadas, o que, para a razão, conseqüentemente, é heteronomia. A natureza supra-sensível dos mesmos seres é, por outro lado, a existência deles segundo leis independentes de toda a condição empírica e que, portanto, pertencem à autonomia da razão. E como as leis segundo as quais a existência das coisas depende do conhecimento, são práticos, a natureza supra-sensível, quando delas podemos formar um conceito, não é outra coisa mais do que uma natureza sob a autonomia, da razão pura prática. A lei desta autonomia, contudo, é lei moral, sendo, por isso, a lei fundamental de uma natureza supra-sensível e de um mundo intelectivo puro, cuja cópia (Gegenbild) deve existir em um mundo dos sentidos, sem mais dano ao mesmo tempo, das leis deste. Poder-se-ia denominar aquela natureza modelo (natura archetypa), que só nos é dado conhecer na razão, e esta, todavia, já que contém o efeito possível da idéia da primeira, como fundamento determinante da vontade, natureza copiada (natura ectypa). Porque, com efeito, a lei moral nos transporta idealmente a uma natureza na qual a razão pura, se fosse acompanhada do poder físico correlato, produziria o sumo bem, determinando a nossa vontade em conferir ao mundo sensível uma forma como que de um todo de seres racionais.

Que esta idéia serve de modelo, por assim dizer, como um esboço para a determinação da nossa vontade resulta confirmado pela mais vulgar observação sobre si mesmo.

Se a máxima segundo a qual eu nutra a intenção de formular um falso testemunho fosse examinadas mediante a razão prática, nisso eu levaria em conta, segundo o mesmo, o que representaria se fosse e se valesse como lei universal da natureza. É evidente que dessa forma compeliria ela todo o mundo à veracidade, porquanto não é compatível com a universalidade de uma lei natural deixar prevalecer enunciados como demonstrativos e, não obstante a isso, como intencionalmente falsos. De modo idêntico, a máxima que eu adoto, em consideração à livre disposição de minha vida, resulta imediatamente determinada, se acaso indago de mim mesmo o que seria necessário para que uma natureza se conserve de acordo com a lei de tal máxima. É evidente que em tal natureza ninguém poderia terminar a sua vida arbitrariamente, porque tal constituição não seria uma ordem natural durável, inclusive nos casos restantes. Pois bem: enquanto a natureza real é um objeto da experiência, a livre-vontade não se determina por si mesma em relação a máximas tais que, também por si mesmas, pudessem fundar uma natureza, segundo leis universais, ou que se conluiassem por si com uma natureza que fosse ordenada segundo elas. São apenas inclinações particulares que, embora constituam um todo natural segundo leis patológicas (físicas), não representam uma natureza que só por nossa vontade seria possível segundo leis puras práticas. Todavia, mediante a razão, somos conscientes de uma lei à qual estão conexas todas as nossas máximas, como se mediante a nossa vontade devesse originar-se uma ordem natural. Esta lei, por conseguinte, deve constituir a idéia de uma natureza não dada empiricamente, mas, não obstante, possível mediante a liberdade, portanto, supra-sensível, à qual concedemos a realidade objetiva, porque, enquanto somos puros seres racionais, consideramo-la como objeto de vossa vontade.

Resulta, portanto, que a diferença entre as leis de uma natureza à qual está submetida a vontade e as de uma natureza que está submetida a uma vontade (em consideração ao que implica uma relação entre a vontade e suas livres ações), consiste em que, naquela, os objetos devem ser causa das representações que determinam a vontade, mas, nesta a vontade deve ser causa dos objetos, de tal modo que a causalidade tem o seu fundamento de determinação exclusivamente na faculdade racional pura, a qual, por isso, também pode ser chamada razão pura prática.

Dessa forma, são bem distintos os dois problemas, a saber: como, por uma parte, a razão pura pode conhecer a priori objetos e, por outra parte, como pode constituir imediatamente um fundamento de determinação da vontade, isto é, a causalidade do ser racional com referência à realidade dos objetos (simplesmente mediante o pensamento do valor universal de suas próprias máximas como leis).

O primeiro problema, como pertencente à crítica da razão pura especulativa, exige que se explique, antes de tudo, como são possíveis intuições a priori, porque sem elas não é possível a um objeto ser dado de um modo absoluto e, portanto, impossível se torna conhecer sinteticamente qualquer objeto. Chega-se à conclusão deste problema, considerando: que as instruções são todas elas sensíveis, não deixando, por isso, nenhum conhecimento especulativo possível que vá além do que alcança a experiência possível, convindo-se portanto, que todos os princípios daquela razão pura especulativa não conseguem nada mais do que tornar possível a experiência, seja dos objetos dados, ou daqueles que podem ser dados no infinito, mas nunca são inteiramente dados.

O segundo problema, como pertencente à crítica da razão prática, não exige qualquer explicação de como sejam possíveis os objetos da faculdade de desejar, porque esse, como problema do conhecimento teórico da natureza, fica adstrito à crítica da razão especulativa, mas, apenas, como a máxima da vontade pode determinar a razão, se tal ocorre só mediante representações empíricas como fundamentos de determinação, ou se também a razão pura é prática e lei de uma ordem natural possível, mas não cognoscível sob o ponto de vista empírico. A possibilidade de semelhante natureza supra-sensível, cujo conceito, concomitantemente, poderia ser o fundamento da realidade da mesma, mediante a nossa livre vontade, não necessita de nenhuma intuição a priori (de um modo inteligível), que neste caso, sendo supra-sensível, resultar-nos-ia também impossível. Trata-se, portanto, unicamente do fundamento de determinação do querer, o qual se inclui nas máximas desse conceito, de ver se é empírico ou fundamento da razão pura — da conformação à lei (Gesetzmässigkeit) da razão pura em geral — e de como e porque pode ser um conceito. Se a causalidade da vontade é ou não suficiente para a realidade dos objetos, isso fica a cargo do julgamento dos princípios teóricos da razão, como pesquisa da possibilidade dos objetos do querer, cuja intuição, por isso, não constitui qualquer momento no problema prático. Trata-se apenas da determinação da vontade e do fundamento de determinação da máxima da vontade como vontade livre; não se apreciam os seus resultados. Porque, conquanto a vontade seja conforme à lei para a razão prática, pode ser o que for a faculdade da vontade na execução; das máximas da legislação de uma natureza possível pode ela realmente surgir ou não, porque isso é indiferente à crítica, que investiga se e como a razão pura pode ser prática, isto é, imediatamente determinante da vontade.

Nesse particular, portanto, a crítica pode e deve, sem expor-se à censura, começar por leis puras práticas e pela realidade destas. Em lugar da intuição, contudo, coloca por base das mesmas o conceito de sua existência no mundo inteligível, isto é, a liberdade. Porque esse conceito não significa mais do que isso, sendo aquelas leis somente possíveis em relação com a liberdade da vontade, resultando, todavia, necessárias se pressupormos a liberdade, ou, dito ao inverso, a liberdade é necessária porque aquelas leis são necessárias como postulados práticos. Pois bem: como essa consciência das leis morais ou — o que é a mesma coisa — da liberdade seja possível, isso já não é dado explicar; pode-se unicamente defender na crítica teórica a admissibilidade da liberdade.

A exposição do supremo princípio da razão prática já está feita, isto é, demonstrou-se primeiramente o que contém, que ele subsiste por si mesmo inteiramente a priori e independentemente de princípios empíricos, no que, logo, é diverso de todos os demais princípios práticos. Na dedução, isto é, na justificação do valor objetivo e universal deste princípio e no exame da possibilidade de tal proposição sintética a priori, não podemos esperar que tudo ocorra tão bem como sucedem com os princípios do entendimento puro teórico. Referiam-se estes a objetos da experiência possível, isto é, a fenômenos, podendo-se demonstrar que só trazendo esses fenômenos submetidos às categorias, em razão daquelas leis, podem tais fenômenos ser conhecidos como objetos da experiência e, por conseguinte, que toda a experiência possível tem que ser conforme a estas leis. Mas uma marcha semelhante eu não posso adotá-la na dedução da lei moral. É que esta não concerne ao conhecimento da constituição dos objetos, que podem ser dados à razão em outra parte, por qualquer outro meio, mas sim a um conhecimento tal que pode chegar a ser um fundamento da existência dos próprios objetos, tendo a razão por meio dele causalidade em um ser racional, isto é, a razão pura, que pode ser considerada como uma faculdade que determina imediatamente a vontade. Mas toda a sagacidade humana termina logo que cheguemos às forças fundamentais ou faculdades fundamentais, pois a sua possibilidade não pode ser concebida de forma alguma, nem tampouco inventada e admitida arbitrariamente. Por isso, no uso teórico da razão, só a experiência pode dar-nos o direito de aceitá-las. Este recurso, porém, que consiste em aduzir empíricas ao invés de uma dedução resultante das fontes de conhecimento a priori, aqui também nos é vedado em relação à faculdade pura prática da razão. É que todo aquele que necessita colher da experiência a prova de sua realidade deve, nos fundamentos de sua possibilidade, depender de princípios experimentais, sendo impossível considerar como tal a razão pura e, contudo, prática, ainda que apenas fosse pelo seu conceito. Além disso, a lei moral, por assim dizer, é apontada como um caso da razão pura, do qual somos conscientes a priori e que apoditicamente é certo, ainda mesmo supondo que não se possa encontrar na experiência exemplo algum que se haja seguido com exatidão. Desse modo, portanto, a realidade objetiva da lei moral não pode ser demonstrada por qualquer dedução, nem com todos os esforços da lei teorética ou especulativa, como, ainda, tampouco pode ser sustentada empiricamente, não podendo chegar, ainda que quiséssemos renunciar à certeza apodítica, a ser confirmada mediante a experiência e, por conseguinte, demonstrada a posteriori; contudo, ela se mantém firme por si mesma.

Alguma coisa distinta, mas inteiramente paradoxal (widersinniges), torna o lugar desta dedução, procurada em vão, do princípio moral, que é, a saber, que este serve inversamente como princípio da dedução de uma faculdade impenetrável que nenhuma experiência pode demonstrar, mas que a razão especulativa (para encontrar entre as suas idéias cosmológicas o incondicionado, segundo a sua causalidade própria, não se contradizendo assim a si mesmo), teve que aceitar, pelo menos como possível, a saber, a da liberdade, da qual a lei moral, que não necessita, em si mesma, fundamentos que a justifiquem, demonstra não só a possibilidade, mas a realidade nos seres que reconhecem essa lei como obrigatória para eles. A lei moral é, na realidade, uma lei da causalidade pela liberdade e, portanto, da possibilidade de uma natureza supra-sensível, assim como a lei metafísica dos acontecimentos no mundo dos sentidos era uma lei da causalidade da natureza sensível; e aquela, conseqüentemente, determina o que a filosofia especulativa tinha que deixar indeterminado, isto é, a lei para uma causalidade cujo conceito na filosofia especulativa era só negativo, proporcionando assim a esse conceito, pela primeira vez, realidade objetiva.

Esta espécie de título de crédito da lei moral, pelo qual a mesma se afirma qual um princípio de dedução da liberdade, como causalidade da razão pura, é completamente suficiente, desde que a razão teórica se viu obrigada a aceitar pelo menos a possibilidade de uma liberdade, para completar uma necessidade da razão, em lugar de toda a justificação a priori. Porque a lei moral demonstra a sua realidade suficientemente também para a crítica da razão especulativa, acrescentando-se a uma causalidade pensada de um modo meramente negativo, cuja possibilidade resultava incompreensível para essa crítica, obrigada contudo a admiti-la, acrescentando a essa causalidade uma determinação positiva, isto é, o conceito de uma razão que determina imediatamente a vontade (mediante a condição de uma forma legal universal de suas máximas) e, assim, consegue dar pela primeira vez à razão, que com as suas idéias, quando queria proceder especulativamente, resultava sempre transcendente (überschwenglich), realidade objetiva embora só prática, transformando o seu uso transcendente (transzendent) da razão em uso imanente (a própria razão, que é a causa eficiente, no campo da experiência, mediante as idéias).

A determinação da causalidade dos seres no mundo dos sentidos, como tal, nunca podia ser incondicionada, embora tenha de haver, para toda a série das condições, necessariamente, alguma coisa incondicionada, portanto, também, uma causalidade que se determine totalmente por si mesma. Por isso a idéia da liberdade, como uma faculdade de espontaneidade absoluta, não era uma exigência (Bedürfnis) mas, no concernente a sua possibilidade, um princípio analítico da razão pura especulativa. Mas como é absolutamente impossível dar em qualquer experiência um exemplo dela, porque entre as causas das coisas como fenômenos não pode resultar qualquer determinação da causalidade que seja incondicionada de um modo absoluto, poderíamos tão somente defender o pensamento de uma coisa que age livremente, aplicando-o a um ser no mundo dos sentidos, enquanto por outro lado esse ser é considerado também como noumeno, mostrando que não é contraditório considerar todas as suas ações como fisicamente condicionadas, enquanto sejam elas fenômenos e, apesar de tudo, considerar, nesse tempo, a causalidade das mesmas enquanto o ser operante é um ser intelectual, como fisicamente incondicionada, fazendo assim do conceito da liberdade um princípio regulador da razão, mediante o qual não me é dado conhecer o que seja o objeto a que se atribui tal causalidade, mas eu removo o obstáculo, embora, por um lado, na explicação das eventualidades do mundo e, por conseguinte, também nas ações dos seres racionais, ao mecanismo da necessidade natural, que é ascender do condicionado à condição no infinito, conservando aberto à razão especulativa o lugar que permanece vazio para ela, isto é, o inteligível, para colocar nele o incondicionado.

Mas eu não podia conceber esse pensamento, isto é, transformá-lo em conhecimento de um ser que assim opere, nem mesmo apenas segundo a sua possibilidade. Esse lugar vazio é agora preenchido pela razão pura prática, mediante uma determinação da lei da causalidade em um mundo inteligível (mediante liberdade) isto é, a lei moral. É certo que com isto a razão especulativa não se amplia em consideração ao seu conhecimento, (Einsicht); mas, apesar de tudo aumenta em relação à certeza do seu conceito problemático da liberdade, ao qual aqui se proporciona realidade objetiva e, embora apenas prática, indubitável. A aplicação do próprio conceito de causalidade e, portanto, o seu significado, tem lugar apenas na relação dos fenômenos para conjugá-los em experiências (como demonstra a crítica da razão pura), não o amplificando a razão prática de tal modo que estenda ela além dos seus limites previstos o uso desse conceito. Porque, se viesse parar aí, teria que mostrar como a relação lógica entre o fundamento e a conseqüência pode ser usada simplesmente em outra espécie de intuição que não seja a sensível, isto é, como resulta possível a causa noumenon, o que não pode ela levar a cabo e do que, além disso, como razão prática, também não se preocupa, pois ela apenas coloca o fundamento de determinação da causalidade do homem como ser dotado de sentidos (causalidade que, efetivamente, é dada). Por isso, usa do conceito da própria causa, de cuja aplicação aos objetos para o conhecimento teorético pode ela abster-se (porque este conceito é sempre encontrado a priori no intelecto e até independente de toda a intuição), não para conhecer os objetos mas sim para determinar a sua causalidade, em geral, relativamente aos objetos, do que resulta não ter o seu emprego outra finalidade que não seja a prática, podendo, conseqüentemente transladar o motivo determinante da vontade à ordem inteligível das coisas, confessando assim que não pode compreender qual seja a determinação do conceito de causa apresentável para o conhecimento dessas coisas. Em consideração das ações da vontade no mundo dos sentidos, a causalidade deve ser conhecida pela razão prática, isso de um modo determinado, porque, de forma inversa, à razão prática não seria dado produzir na realidade qualquer ato. Mas o conceito que ela forma da sua própria causalidade como noumeno não é necessário ser determinado teoricamente para o conhecimento de sua existência supra-sensível, nem, ainda, para facultar-lhe significação nessa medida (sofern), porque, ainda que seja para o uso prático, já recebe indiretamente uma significação mediante a lei moral. Além disso, se a considerarmos teoricamente, permanece sempre como um conceito da inteligência pura, dado a priori e que pode ser aplicado a objetos, sejam estes apresentados sensivelmente ou não, porque no último caso não tem nenhuma significação determinada ou aplicação teórica. Seria, então, simplesmente um pensamento formal mas essencial do intelecto, no concernente a um objeto em geral. É exclusivamente prática a significação que lhe proporciona a razão por meio da lei moral, pois a idéia da lei de uma causalidade (da vontade) tem uma causalidade em si mesma ou constitui o motivo determinante dessa causalidade.

 

II
DO DIREITO DA RAZÃO PURA, NO USO PRÁTICO, A UMA AMPLIFICAÇÃO QUE NÃO É POSSÍVEL POR SI NO ESPECULATIVO

Instauramos no princípio moral uma lei da causalidade que coloca o fundamento de determinação da mesma acima de todas as condições do mundo sensível; mas não consideramos como a vontade, enquanto determinável como pertencente a um mundo inteligível e, por conseguinte, o sujeito desta vontade (o homem), não só como pertencente a um mundo inteligível puro, embora para nós desconhecido nessa relação (como poderia ocorrer segundo a crítica da razão pura especulativa) mas determinado em relação à sua causalidade e mediante uma lei, a qual não pode ser incluída entre as leis naturais do mundo sensível. Fomos, portanto, levados a aventurar o nosso conhecimento para além dos limites do mundo sensível, embora a crítica da razão pura declarasse nula essa pretensão diante de qualquer pesquisa.

Pois bem: como é possível conciliar aqui o uso prático e o teórico da razão pura no concernente à determinação dos limites de sua faculdade?

David Hume, de quem podemos dizer que iniciou todos os ataques contra os direitos da razão pura, ataques que tornaram propriamente necessária uma completa investigação dos mesmos, chegou à conclusão seguinte: o conceito da causa é um conceito que contém a necessidade da conexão da existência de coisas diferentes, porque o seu valor resulta dessa mesma diversidade; de modo que se eu suponho A, reconheço que alguma coisa diferente dele, B, deve necessariamente existir. A necessidade, todavia, não pode ser atribuída também a uma conexão, salvo enquanto esta é conhecida a priori, porque a experiência facultaria apenas conhecer a existência dessa conexão, não proclamando, todavia, a necessidade da mesma.

Pois bem — diz Hume —, é impossível conhecer a priori e como necessária a conexão existente entre uma coisa e outra coisa (ou entre uma determinação e outra em tudo diferente dela) desde que não seja tal ligação facultada à nossa percepção. Desse modo, portanto, o próprio conceito de uma causa é falso e enganoso e, para falar de uma forma mais benigna, constitui uma ilusão, desculpável só porque o costume (uma necessidade subjetiva) de perceber certas coisas ou suas determinações, com freqüência juntas ou umas atrás de outras, como associadas em sua existência, é adquirido sem que se perceba por uma necessidade objetiva de dar tal conexão aos próprios objetos; e, assim, o conceito de uma causa é usurpado e não adquirido por direito, acrescendo, ainda, que não pode, nunca, ser adquirido e justificado, porque exige uma conexão impossível, quimérica e insustentável que, portanto, não resiste ao exame da razão, na qual não pode corresponder-lhe qualquer objeto. Assim, pois, o empirismo, foi introduzido primeiramente como a fonte única dos princípios, em consideração a todo o conhecimento referente à existência das coisas (ficando a matemática, portanto, dele excluída); mas com ele surge, ao mesmo tempo, o mais duro ceticismo, embora em consideração a toda ciência da natureza (como filosofia).

Segundo tais princípios, não podemos nunca, de certas determinações das coisas, de acordo com a existência destas, concluir com uma conseqüência (porque para isso se exigiria o conceito de uma causa, conceito que inclua a necessidade de tal conexão), mas apenas com a regra da imaginação aguardando casos semelhantes a esses, como sói acontecer; mas esta expectativa nunca é segura ou invariável, por mais vezes que alcance confirmação. Pelo contrário, de nenhum sucesso poder-se-ia dizer que teve de ser precedido por alguma coisa, resultando necessariamente disso o ocorrido, isto é, que tinha de ter uma causa e assim, portanto, ainda mesmo supondo que conhecêssemos numerosos casos nos quais pudéssemos encontrar tal antecedente e assim deduzir deles uma regra, não se poderia, contudo, admitir que isso ocorresse sempre e necessariamente assim; porque, a afirmarmos isso, equivaleria a abandonar-se a uma cega causalidade, na qual cessa todo o uso da razão. Isso fundamenta com firmeza o ceticismo no que concerne às conclusões que resultam do efeito à causa, tornando-o irrefutável.

As matemáticas haviam saído airosamente disso, enquanto Hume sustentou que as suas proposições eram todas analíticas, isto é, que iam de uma determinação a outra, em virtude da identidade, por conseguinte segundo o princípio da contradição (o qual, todavia, é falso, porque todas essas proposições são preferentemente sintéticas, ainda mesmo quando, por exemplo, a Geometria não se ocupe da existência das coisas, mas apenas da sua determinação a priori em uma intuição possível, encaminhando, contudo, tal ciência como se fosse por meio de conceitos causais de uma determinação A a outra, completamente distinta, B, porém como se esta estivesse necessariamente ligada com A). Mas aquela ciência, tão altamente apreciada pela sua certeza apodítica, deve necessariamente sucumbir também diante do empirismo em princípios, motivo também pelo qual Hume colocou o costume em lugar da necessidade objetiva no conceito da causa; a isso, porém, deve resignar-se humildemente, prescindindo do seu orgulho, ao ter de rebaixar as suas audaciosas pretensões de exigir imperiosamente a priori a nossa aquiescência acerca do valor universal de suas proposições; deve aguardar a aprovação para a validez universal de suas proposições do favor dos observadores que, como testemunhas, não se negariam a confessar que aquilo que o geômetra apresenta como princípios, eles sempre o acataram; por conseguinte, ainda que não fossem precisamente necessários, continuariam merecendo essa expectativa. Desse modo, o empirismo em princípios de Hume conduz também inevitavelmente ao ceticismo, inclusive em consideração da matemática e, em conseqüência em todo o uso teórico científico da razão (porque este uso pertence à filosofia ou à matemática). Sairá porventura o uso comum da razão (em tão terrível devastação como a que vamos lançar às diretivas do conhecimento) mais lúcido que o resto, ou correrá o risco de ver-se irremediavelmente envolvido nessa mesma destruição de todo o saber, não deixando, portanto, de resultar um ceticismo universal desses mesmos princípios (ceticismo, todavia, que apenas alcançará os doutos)? É esse um assunto que eu deixo ao critério de cada um.

Convenhamos: no concernente ao meu trabalho na Crítica da razão pura, ao qual deu origem aquela teoria da dúvida de Hume, foi-me dado ir muito mais além, ao compreender no mesmo todo o campo da razão pura teórica no uso sintético e, por conseguinte, também o que se denomina metafísica em geral, sendo-me dado proceder do seguinte modo no que se relaciona à dúvida do filósofo escocês em relação ao conceito de causalidade. Se declara Hume, tornando os objetos da experiência como coisas em si mesmas (como ocorre também em quase todas as partes) o conceito da causa uma enganosa e falsa ilusão, fez muito bem com isso, pois nas coisas em si mesmas e suas determinações como tais, não se pode compreender como e em virtude do que se admitirmos uma coisa A, devamos necessariamente admitir outra coisa B; como conseqüência, não podia admitir semelhante conhecimento a priori das coisas em si mesmas. Muito menos ainda poderia admitir uma origem empírica desse conceito aquele homem arguto, simplesmente porque essa origem contradiz de modo expresso a necessidade da conexão que constitui o essencial do conceito de causalidade; por conseguinte, resultava prescrito o conceito e em seu lugar se infiltrou o costume na observância do curso das percepções.

Resultou contudo das minhas indagações que os objetos com os quais devemos tratar na experiência não são de modo algum coisas em si mesmas, mas só fenômenos e que, embora em coisas dessa natureza não se pode ver e até impossível seja compreender como, se posto A, deva ser contraditório não pôr B, que é inteiramente distinto de A (a necessidade da conexão entre A como causa e B como efeito); entretanto, podemos conceber que estes, como fenômenos, devem necessariamente estar ligados de certo modo a uma experiência (por exemplo, relativamente às relações de tempo) e que, por conseguinte, esses fenômenos não os podemos separar sem incorrer em contradição para com aquela conexão, mediante o que se torna possível a experiência no qual os mesmos são objetos e, além disso, objetos apenas cognoscíveis para nós. Isso resultou verdadeiro pelo próprio fato, de tal modo que se pode não apenas demonstrar o conceito da causa segundo a sua realidade objetiva relacionada com os objetos da experiência, mas também deduzi-lo como conceito a priori, em virtude da necessidade de conexão que encerra em si mesmo, isto é, expor a sua possibilidade, tirando-o do entendimento puro sem fontes empíricas, e assim, depois de apartar o empirismo da sua origem, destruir na própria base a conseqüência inevitável desse empirismo, ou seja: o ceticismo, primeiro em consideração da ciência da natureza e logo após, também, em relação à matemática, já que esta se origina completamente de idênticos fundamentos, ciências essas referentes, ambas, a objetos da experiência possível, sendo-lhe dado, com isso, destruir radicalmente a dúvida total de tudo o que a razão teórica sustenta que compreende.

Mas como ocorre, se aplicarmos esta categoria de causalidade (e assim também as demais, pois não é possível sem elas qualquer conhecimento do que existe) a coisas que não são objetos da experiência possível mas que se situam para além dos limites da experiência? Com efeito, eu não consegui deduzir a realidade objetiva destes conceitos a não ser em consideração dos objetos de experiência possível.

Mas precisamente isso, a circunstância de ter eu apenas salvado os mesmos nesse caso e ter, apesar de tudo, mostrado que por meio deles podemos pensar os objetos, ainda quando não sejam determinados a priori, é o que lhe faculta um lugar no entendimento puro, por meio do qual eles se referem aos objetos em geral (sensíveis ou insensíveis). Se ainda alguma coisa falta, é a condição da aplicação dessas categorias, especialmente a da causalidade, aos objetos, isto é, a intuição, que onde não é dada, torna impossível a aplicação para o conhecimento teórico do objeto como noumeno, aplicação que então, se alguém se arrisca fazê-la, (como também ocorreu na Crítica da razão pura), deparam-se-lhe obstáculos, ao mesmo tempo que sempre permanece a realidade objetiva do conceito, podendo este ser usado também por noumenos, mas sem poder determinar teoricamente em mínima parcela esse conceito e produzir assim um conhecimento. Porque este conceito não contém também, em relação com um objeto, nada de impossível; como ficou demonstrado, assegurando-se-lhe a sua estabilidade no entendimento puro para toda a aplicação a objetos dos sentidos; e, ainda mesmo quando ele, referentemente a coisas em si mesmas (que não podem ser objetos da experiência), não seja, segundo isto, capaz de qualquer determinação para a representação de um objeto determinado, com o fim (zum Behuf) de um conhecimento teórico, entretanto, com algum outro fim (Behuf) — quiçá o prático — poderia ser capaz de uma determinação aplicável a si mesmo, coisa que não poderia ser possível se, segundo Hume, esse conceito da causalidade encerrasse alguma coisa que não se pudesse conceber.

Pois bem: para desvendar essa condição de aplicação do conceito da causalidade aos noumenos, devemos recordar porque não estamos satisfeitos com a aplicação dos mesmos a objetos da experiência e porque, também, queremos aplicá-lo às coisas em si mesmas.

Mostra-se então prontamente que não é uma intenção teórica mas sim prática, a que torna esse uso, para nós, uma necessidade. No campo da especulação, ainda que levássemos a efeito tal aplicação, não obteríamos, contudo, um verdadeiro proveito para o conhecimento da natureza e, em geral, relativamente aos objetos que não podem ser apresentados de modo algum; quando muito, articularíamos mais um passo além do sensivelmente condicionado (permanecer nele, palmilhando cautelosamente através dos elos das causas, já nos dá bastante que fazer) ao supra-sensível, com o objetivo de completar e limitar o nosso conhecimento pelo lado dos fundamentos, embora permanecesse sempre sem encher um abismo infinito entre aqueles limites e o que conhecemos, deixando-nos conduzir mais por uma curiosidade supérflua do que por um desejo real de saber.

Mas, além da relação em que se mantém o entendimento para com os objetos (no conhecimento teórico), existe uma relação com a faculdade de desejar, que por isso a denominamos vontade, e vontade pura, enquanto o entendimento puro (que em tal caso se chama razão) é prático, mediante a simples representação de uma lei.

A realidade objetiva de uma vontade pura, ou, o que é a mesma coisa, de uma razão pura prática está dada a priori na lei moral, por assim dizer como por um acaso; pois assim se pode denominar uma determinação da vontade, que é inevitável, ainda mesmo quando assentar em princípios empíricos. Mas no conceito de uma vontade já se contém o conceito da causalidade; por conseguinte, no de uma vontade pura, encontramos o conceito de uma causalidade com liberdade, isto é, não resulta determinável segundo as leis da natureza, não sendo, conseqüentemente, capaz, como prova da realidade dessa vontade, de qualquer intuição empírica. Mas, não obstante a isso, na lei pura prática a priori justifica plenamente a sua realidade objetiva, ainda que (como é fácil de ver) não para o uso teórico, mas, sim, para o da razão.

Pois bem: o conceito de um ser que possua livre vontade é o conceito de uma causa noumenon, e de que tal conceito não se contradiz a si mesmo, já o demonstramos com segurança, porque o conceito de uma causa, como inteiramente originado no entendimento puro e, ao mesmo tempo, também assegurado em sua realidade objetiva relativamente aos objetos em geral, pela dedução, independente, além disso, segundo a sua origem, de todas as condições sensíveis, portanto, não limitado por si mesmo aos fenômenos (a não ser onde se deva fazer do mesmo um determinado uso teórico), podia ser, dando-se o caso, aplicável às coisas tidas como puros seres do entendimento. Mas como não se pode colocar debaixo desta aplicação nenhuma intuição além da que possa ser constantemente sensível, resulta que a causa, noumenon, em consideração do uso teórico da razão, é um conceito, se bem possível e imaginável, de todo vazio.

Contudo, eu não reclamo, mediante isso, conhecer teoricamente a natureza de um ser, enquanto dotado de uma vontade pura; basta-me designá-lo, mediante esse conceito, só como tal e, por conseguinte, unir apenas o conceito da causalidade com o da liberdade (e, o que dele é inseparável, com a lei moral, como motivo de determinação da mesma); em todo o caso, esse direito me assiste em absoluto, em virtude da origem pura, não empírica, do conceito da causa, não me julgando eu autorizado a fazer uso dele, a não ser em relação com a lei moral determinante de sua realidade, isto é, unicamente um uso prático.

Se eu, como Hume, tivesse despojado o conceito de causalidade de sua realidade objetiva no uso teorético, não só em relação às coisas em si mesmas do supra-sensível, mas também, em consideração aos objetos dos sentidos, houvesse perdido tal conceito qualquer significação e tivesse sido declarado inteiramente inútil como conceito teoricamente impossível, e como não se pode fazer do nada qualquer uso, da mesma forma, o uso de um conceito teoreticamente nulo resultaria de todo absurdo. Tratando-se, contudo, do conceito de uma causalidade empiricamente incondicionada, embora teoricamente vazio (sem intuição a ele apropriada), esse conceito é sempre possível, podendo-se referi-lo a um objeto indeterminado e isso, não obstante, na lei moral e, por conseguinte, para sua relação prática, adquire uma significação, muito embora, na verdade, dele eu não tenha uma intuição que determine a sua realidade objetiva e teorética; mas ele tem, contudo, uma aplicação real que se manifesta concretamente em intenções ou máximas, isto é, possui realidade prática, que pode ser assinalada e que é suficiente para a sua justificação, ainda mesmo em relação aos noumenos.

Mas, uma vez introduzida esta realidade objetiva de um conceito puro do entendimento no campo do supra-sensível, vai dar a mesma sucessivamente a todas as demais categorias, ainda que seja apenas quando se acham necessariamente unidas o motivo determinante da vontade pura (com a lei moral), também realidade objetiva, embora que seja somente uma realidade praticamente aplicável, que não possui a menor influência sobre os conhecimentos teóricos desse objetos, como penetração na natureza dos mesmos pela razão pura, com o fito de ampliar tais conhecimentos. Desse modo, constataremos também, sucessivamente: que as categorias sempre se referem só aos seres apenas como inteligências e, por conseqüência, só à relação da sua razão com a vontade, isto é, exclusivamente ao que é prático, não se atribuindo além disso, conhecimentos algum de tais seres; que por fim, no concernente às propriedades pertencentes ao modo teorético da representação destas coisas supra-sensíveis, poder-se-ia, além disso, uni-las com esses seres, contando-se todas elas não como saber mas apenas como direito (no sentido prático correspondem à necessidade) de supô-las e de admiti-las, inclusive ali onde se admitem seres supra-sensíveis (como Deus), segundo uma analogia, isto é, segundo aquela relação pura da razão, de que nos utilizamos praticamente em consideração aos seres sensíveis, e bem assim à razão pura teórica, com essa aplicação ao supra-sensível apenas sob o ponto de vista prático, não se dá qualquer oportunidade para sulcar no transcendental (zum Schwärmen ins Überschwengliche).


 

CAPÍTULO SEGUNDO

DO CONCEITO DE UM OBJETO DA RAZÃO PURA PRÁTICA

 

Entendo como conceito da razão pura prática a representação de um objeto concebido como um efeito capaz de ser produzido pela liberdade. O conhecimento prático tem, portanto, como objeto desse teor somente a significação da relação de desejar uma ação mediante a qual o móvel ou seu contrário seria realizado; e julgar se determinada coisa é ou não objeto da razão pura prática é discernir singelamente a impossibilidade de querer a ação mediante a qual, se fôssemos dotado do poder necessário (o que cabe à experiência ajuizar) seria possível levar a efeito determinado objeto. Se supomos que o objeto constitui o motivo determinante de nossa faculdade de desejar, devemos admitir que, mediante o uso de nossas forças, esse objeto é fisicamente possível, urgindo acolhê-lo antes do juízo que deve estabelecer se é ou não um objeto da razão prática. Por outro lado, se não for dado considerar que a lei a priori é o motivo determinante da ação e, conseqüentemente essa ação resultar como determinada mediante a razão pura prática, conviremos que esse juízo independe por completo do nosso poder físico. Dado isso, a questão fica reduzida a saber se nos é permitido querer uma ação que tem como finalidade um objeto, supondo-se que ele esteja dentro do nosso poder; então, se conseguimos isso, é a possibilidade moral da ação a que atua, porque neste caso o objeto não é mais do que a lei da vontade, o motivo que determina a ação.

Os únicos objetos de uma razão prática são, portanto, os do bem e do mal. O primeiro é um objeto necessário da faculdade de desejar; o segundo é um objeto necessário da aversão, mas ambos se regem segundo um princípio da razão.

Não se origina o conceito do bem de uma lei prática que lhe preceda, devendo, antes, servir de base a esta, só então lhe sendo dado servir de conceito a algo cuja existência faculte prazer, determinando assim a causalidade do sujeito para a produção dessa faculdade de desejar. Como porém é impossível discernir a priori qual a representação que será acompanhada de prazer e qual a aliada à dor, seria coisa resultante exclusivamente da experiência decidir o que é imediatamente bom ou mau. A propriedade do sujeito, em relação à qual apenas essa experiência pode ser instaurada, é o sentimento do prazer ou da dor, tomados como receptor pertencente ao sentido interno, vindo assim o conceito do que seja imediatamente bom parar apenas naquilo com que se relaciona a sensação de prazer, tendo o conceito do que seja absolutamente mau de reportar-se somente ao que excita imediatamente o sofrimento. Mas como isso se contrapõe ao uso da língua, que distingue o agradável do bom, o desagradável do mau, exigindo que o bem e o mal sejam julgados sempre pela razão, conseqüentemente por conceitos passíveis de comunicação no sentido universal, portanto não por mera sensação que se limita a sujeitos individuais e à receptividade destes e como, todavia, um prazer ou uma dor não podem por si mesmos unir-se como qualquer representação imediata de um objeto a priori, resulta que o filósofo que se julga obrigado a colocar uma sensação de prazer como base do seu juízo prático, designaria como bom o que não passa de um meio para chegar ao aprazível, tendo assim por mau aquilo que só é causa de desagrado ou de sofrimento, porque o julgamento de relação entre os meios e os fins pertence certamente à razão. Porém quando apenas a razão tivesse o poder de penetrar a conexão dos fins com as suas intenções (de forma tal que também se pudesse definir a vontade como faculdade dos fins, sendo estes fundamentos permanentes de determinação da faculdade de desejar, segundo princípios agentes), também as máximas práticas que, como meios, podiam derivar-se do conceito do bem já aludido, não conteriam nunca, como objeto da vontade, algo que fosse bom por si mesmo, mas encerrariam algo de bom para outra coisa; então, o bem não seria apenas o útil, e aquele para o qual este útil fosse útil, deveria achar-se sempre fora da vontade, ou digamos, na sensação. Pois bem: se esta, como sensação agradável, tivesse que ser distinguida do conceito do bem, não haveria em parte alguma nada que fosse imediatamente bom, devendo o bem ser procurado só nos meios para alcançar alguma outra coisa, isto é, uma satisfação agradável.

A velha fórmula da escolástica: nihil oppetimus, nisi sub ratione boni; nihil aversamur, nisi sub ratione mali, é freqüentemente empregada de um modo exato, porém muitas vezes também de um modo funesto para a filosofia, porque as expressões boni e malo contêm uma ambigüidade da qual é culposa a pobreza idiomática, na sua ambigüidade de sentido, originando inevitavelmente confusão para as leis práticas e obrigando a filosofia, que no uso da mesma pode muito bem inteirar-se da diferença de conceito na própria palavra, sem poder, contudo, achar qualquer expressão particular para ela, o que torna impossível qualquer acordo, devido ser impossível indicar a diferença imediata por parte de alguma expressão adequada.

O idioma alemão tem a ventura de posuir nesse particular expressões exatas que não permitem passar desapercebida tal diferença. Para o que os latinos denominam com uma só palavra bonum, tem dois conceitos muito diferentes e também expressões de todo diversas: para bonum, Güte e Wohl; para malum, Böse e Übel (ou Weh), de forma que são dois juízos bem diversos a considerar numa só ação o Güte e o Böse, ou melhor o nosso Wohl e Weh (Übel). Daqui se deduz que a proposição psicológica que acabamos de citar e pelo menos incerta em demasia se a traduzirmos assim: nada desejamos que não seja com referência ao nosso Wohl ou Weh; por outro lado, essa proposição, se a expressarmos assim: nada desejamos por indicação da razão, senão o que temos por bom (gut) ou mau (böse), está então indubitavelmente certa e expressa ao mesmo tempo com perfeita clareza.

Wohl e Übel significam sempre só uma relação com o nosso estado de satisfação ou desagrado, de contentamento e de pesar; e se por isso desejamos ou detestamos um objeto, a ocorrência se observa só no referente à nossa sensibilidade e ao sentimento de prazer e de dor que produz.

O bem (Güte) ou o mal (Böse) significam contudo sempre uma relação na vontade, quando esta for determinada pela lei da razão a formular com algo um objeto que consentaneamente, porquanto a vontade nunca se determina imediatamente pelo objeto e sua representação, constitui uma faculdade de fazer, mediante uma regra da razão e para si mesma, a causa geradora de uma ação (mediante a qual um objeto pode ser realizado), Güte ou Böse contém pois o sentido que se deve referir às ações e não ao estado sensível da pessoa; e se alguma coisa tivesse de ser absolutamente boa ou má (gut ou böse), em todo o sentido e sem qualquer condição ulterior, ou ser como tal considerada, seria apenas o modo de agir, a máxima da vontade, e conseqüentemente a própria pessoa operante, não, porém, uma coisa que fosse denominada boa ou má.

Desse modo poderemos rir do estóico, que espezinhado pela mais violenta das dores artríticas, exclamava: Dor ainda me podes atormentar outro tanto, mas nunca reconhecerei que sejas um mal! Contudo tinha ele razão. O que afetava e o que o seu grito acusava era um übel, mas nem por isso poderia ele conceder que por ele sofria um Böse, porque a dor não diminuía em nada o valor de sua pessoa; o que resultava diminuído era o valor do seu estado. Uma só mentira da qual ele tivesse tido consciência seria um motivo para deprimir o seu ânimo. Mas a dor só lhe dera motivo para elevá-lo, embora tivesse consciência de não ter merecido isso por qualquer ação injusta que se tornasse merecedora de castigo.

O que devemos denominar bom (gut), é necessariamente em todo o juízo de um homem sensato um objeto da faculdade de desejar; por outro lado, todo o objeto digno de aversão aos olhos do mundo deve ser designado como böse (mal): é este, por conseguinte, um julgamento que, além da sensibilidade, requer o emprego da razão. O mesmo ocorre na distinção entre a verossimilidade e a falsidade, entre a justiça e a violência, etc. Podemos todavia denominar um mal (Übel) alguma coisa, quando, ao mesmo tempo, todos devam declará-la, umas vezes mediata e outras imediatamente como um bem (Güt); por exemplo, quem suporta uma operação cirúrgica, experimenta isso como um mal (Übel) mas ele próprio e todos serão unânimes em proclamar que se trata de um bem (Gut).

Pelo contrário, se alguém se diverte molestando aos outros e ao fim de um certo tempo lhe é ministrada uma sova de pau, este fato constitui sem dúvida alguma para ele um mal (Übel) mas todo o mundo o aplaude, considerando-o bom (gut); contudo, o mesmo que recebeu as pauladas, logo após, diante da sua própria consciência, reconhecerá que a sova lhe foi ministrada merecidamente, porque com isso se põe rigorosamente em prática a proporção entre o bem-estar e a boa conduta que a razão lhe apresenta.

O nosso bem e o nosso mal (Wohl e Weh) influirão muito nos juízos da nossa razão prática quando os consideramos; em nossa natureza sensível tudo se reporta à nossa felicidade, quando sobre ela formulamos um julgamento, como o exige preferentemente a razão, não segundo a sensação transitória, mas de acordo com a influência que o caso fortuito da felicidade exerce durante toda a nossa existência e relativa ao contentamento que a mesma nos pode proporcionar; mas tudo em geral não é dependente desse fim.

O homem é um ser que experimenta necessidades enquanto pertence ao mundo sensível, tendo por sua vez a razão como um mandato que não pode repelir nem deixar de cumprir, a saber: a de velar pelos interesses da sensibilidade e de formar princípios práticos em vista do seu bem-estar nesta vida e ainda, se for possível, na futura. Todavia não é ele materializado a ponto de permanecer indiferente a tudo quanto a razão por si mesma lhe dita e de utilizar-se desta apenas como instrumento para a satisfação de suas necessidades como ser sensível. Porque se assim não fosse, de nada lhe serviria o dom da razão, que o eleva sobre a natureza animal; o mesmo só existe nele para desempenhar o ofício que no animal cabe ao instinto, não sendo então mais do que um meio particular de que a natureza se serviria para conduzir o homem ao mesmo fim a que destina os animais, sem lhe designar outro superior. O homem, segundo dispôs a natureza, necessita certamente da razão para ter sempre presente o seu bem ou o seu mal (Wohl e Weh), mas, também, possui razão para uma finalidade superior, isto é, não só para discernir e considerar o que é gut (bem) ou böse (mal) em si, coisa acerca da qual só a razão pura, não interessada diretamente, pode julgar, como também para distinguir este juízo daquele outro, tornando-o uma condição suprema deste último.

No julgamento do bem e do mal em si mesmo, diferenciado do que se possa chamar bem ou mal só relativamente ao Wohl e ao Übel devemos considerar os seguintes pontos: ou um princípio racional é considerado em si como um motivo determinante da vontade, sem relação aos objetos possíveis da faculdade de desejar (só, pois, mediante a forma da lei de uma máxima) e então este princípio é uma lei prática a priori, devendo-se admitir a razão pura como prática por si mesma. Se isso é assim, então a lei determina imediatamente a vontade, sendo a ação conforme esta lei boa por si mesma; logo uma vontade cuja máxima é sempre conforme a essa lei, é absolutamente, sob todos os aspectos, boa (gut), contendo a condição suprema de todo o bem. Se, pelo contrário, a máxima da vontade precede um motivo determinante da faculdade de desejar que supõe um objeto capaz de prazer ou de dor e, por conseguinte, algo que produza satisfação ou dor, sendo então a máxima da razão, a de buscar o prazer e evitar a dor, a que determina as ações, quando são elas boas relativamente a nossas inclinações, donde resulta que só mediatamente (em relação a algum outro fim como meio para o mesmo) e com essas máximas não podem nunca chamar-se de leis, embora sejam preceitos naturais práticos. O próprio fim, o prazer que buscamos, não é neste último caso um bem no sentido da palavra Güte mas sim no da palavra Wohl; não é um conceito da razão, mas sim um conceito empírico de um objeto da sensação; e se a primeira palavra pode explicar-se ao emprego do meio que se deve seguir para alcançar este fim, isto é, a ação (porque ela exige uma deliberação da razão) não pode convir-lhe no seu sentido absoluto, porquanto não é absolutamente boa, mas só relativamente à nossa sensibilidade, ao seu sentimento de prazer ou de dor; mas quando a máxima da vontade venha a afetar-se em virtude disso, já não é uma vontade pura, porque esta só pode encontrar-se onde a razão pura possa ser por si mesma também prática.

Eis-nos chegados ao lugar adequado para explicar o paradoxo do método em uma crítica da razão prática, a saber: que o conceito do bem e do mal (Guten und Bösen) não deve ser determinado antes da lei moral (para a qual esse conceito aparentemente deverá servir de fundamento) mas somente (como ocorre aqui) depois desta lei e pela mesma.

Ainda que não soubéssemos que o princípio da moralidade é uma lei pura a priori que determina a vontade, seria necessário, para admitir princípios gratuitos (gratis), deixar indeterminada, pelo menos inicialmente, a questão de saber se a vontade possui apenas motivos determinantes empíricos, ou se também possui motivos que a determinem, puramente a priori; porque contradiz todas as regras fundamentais do método filosófico admitir já preliminarmente como resolvido aquilo que só depois se discutirá. Suponde agora que quiséssemos começar pelo conceito do bem para fazer derivar dele as leis da vontade; este conceito de um objeto (concebido como bom) nô-lo ofertaria ao mesmo tempo como único fundamento determinante da vontade. Não possuindo tal conceito nenhuma lei prática a priori como seu fio condutor, só se poderia colocar a pedra de toque do bom ou do mau na conformidade do objeto com o nosso sentimento do prazer ou da dor, e o uso da razão só poderia consistir em determinar de uma parte este prazer ou esta dor em completa conexão com todas as sensações de minha existência e, por outro lado, os meios para proporcionar-me o objeto do mesmo. Como porém o que é conforme ao sentimento do prazer só pode ser decidido pela experiência e como a lei prática, segundo o que se estabeleceu, deve assentar sobre este sentimento como condição, ficando assim completamente excluída a possibilidade de leis práticas a priori, já que se acreditaria necessário encontrar previamente para a vontade um objeto cujo conceito (concebido como bom) nos seria proposto como o fundamento de determinação universal da vontade, embora empiricamente. Entretanto, como era necessário investigar preliminarmente se não há também um fundamento de determinação a priori da vontade (que nunca teria sido encontrado neste caso a não ser em uma lei prática, enquanto esta prescreve às máximas a mera forma legal, sem ter em conta um objeto). Mas como já se colocava na base de toda a lei prática um objeto segundo conceitos do bem e do mal, este objeto todavia, sem uma lei anterior, não podia ser cogitado senão mediante conceitos empíricos, resultava suprimida de antemão a possibilidade ainda mesmo de apenas pensar acerca de uma lei pura prática; mas quando, pelo contrário, buscássemos antes analiticamente essa lei, resultaria que não é o conceito do bem como objeto o que determina e torna possível a lei moral, mas, pelo contrário, é a lei moral a que determina e torna possível o conceito do bem, quando este merece absolutamente tal nome.

Esta observação que concerne só ao método das investigações morais superiores, tem importância. Explica a mesma de uma só vez o fundamento que ocasionou todos os erros dos filósofos em relação ao princípio supremo da moral. Buscavam eles um objeto da vontade para tornar o mesmo a matéria e o fundamento de uma lei (a qual, então, deveria ser o fundamento da determinação da vontade, não imediatamente, mas mediante aquele objeto, relacionado ao sentimento do prazer ou da dor); eles, por outro lado, deveriam buscar antes de tudo uma lei que determinasse a priori, imediatamente, a vontade, e só depois, segundo essa lei, o objeto. Conseqüentemente, ao colocar o objeto do prazer, que deveria proporcionar-lhes o preceito do bem, na felicidade, ou então na perfeição, no sentimento moral ou na vontade de Deus, o resultado seria o mesmo princípio de heteronomia e tinham inevitavelmente que deparar com condições empíricas para uma lei moral; porque não podiam eles denominar bom ou mal o seu objeto, como imediato fundamento de determinação da vontade, mas que segundo sua relação imediata com o sentimento, que é sempre empírico. Só uma lei formal, isto é, uma lei que não prescreva à razão nada mais do que a forma de sua legislação universal, como suprema condição das máximas, pode ser a priori um fundamento de determinação da razão prática. Os antigos deixavam ver abertamente esta falta ao situar a sua investigação moral inteiramente no conceito da determinação do sumo bem, por conseguinte de um objeto, do qual tentavam imediatamente fazer o princípio determinante da vontade na lei moral, quando, pelo contrário, este objeto só podia ser apresentado à vontade muito mais tarde, quando a lei moral estiver estabelecida por si mesma e justificada como fundamento imediato de determinação da vontade, surgindo então como objeto para a vontade, já uma vez determinada a priori, segundo a sua forma, tarefa que queremos empreender na dialética da razão pura prática. Os modernos, para os quais a questão do supremo bem parece ter caído em desuso ou pelo menos resultado um tanto secundária, ocultam a falha acima citada (como em muitos outros casos), atrás de algumas palavras indeterminadas; essa falha, todavia, resulta descoberta através do seu sistema, que logo se dilata a todas as partes heteronômicas da razão prática, da qual nunca pode surgir uma lei moral que ordene universalmente a priori.

Uma vez que os conceitos do bem e do mal, como conseqüências da determinação a priori da vontade, pressupõem também um princípio puro prático, por conseqüência uma causalidade da razão pura, resulta que não se referem originariamente (de certo modo como determinações da unidade sintética na multiplicidade de intuições operadas em uma consciência) a objetos, como os conceitos puros do entendimento ou categorias da razão usada teoricamente, pois consideram elas estes objetos de preferência como já dados anteriormente, quando são em conjunto modos de uma categoria única, isto é, a de causalidade quando o fundamento da determinação da mesma consiste na representação racional de uma lei da razão que, como lei da liberdade, faculta a razão a si mesma, mostrando-se desse modo a priori como prática. Mas como as ações, embora por uma parte estejam sob uma lei da liberdade e pertençam conseqüentemente à conduta dos seres inteligíveis, por outra parte, entretanto, ainda como acontecimentos do mundo dos sentidos, pertencem aos fenômenos, resultando que as determinações de uma razão prática só poderão ter lugar em relação com esta razão, por conseguinte, embora segundo as categorias do entendimento; não, todavia, mediante a intenção de um uso teórico do mesmo para reunir e conduzir debaixo de uma consciência a priori essa multiplicidade da intuição (sensível), mas sim para submeter o múltiplo das apetições à unidade da consciência de uma razão prática que manda com a lei moral ou de uma vontade pura a priori.

Estas categorias da liberdade, que preferimos denominar assim para distingui-las dos conceitos teóricos que denominamos categorias da natureza, possuem evidentemente uma vantagem sobre estas últimas. Enquanto estas não são mais do que formas do pensamento que designam só indeterminadamente, por meio de conceitos universais, objetos em geral a toda a intuição possível para nós, por outro lado, aquelas, como tendem à determinação de um livre arbítrio (para o qual, em verdade, não pode ser facultada nenhuma intuição de todo correspondente, mas que tem como base uma lei prática a priori, coisa que não se encontra em nenhum conceito do uso teórico de nossa faculdade de conhecer) possuem em sua base como conceitos elementares práticos, em lugar de uma forma da intuição (espaço e tempo) que não se encontra na própria razão, mas que deve ser tomada de outro lado, isto é, o da sensibilidade, a forma de uma vontade pura que reside na razão, portanto na própria faculdade de pensar; por isso ocorre que, como em todos os preceitos da razão pura prática se trata só da determinação da vontade e não das condições da natureza (da faculdade prática) para a execução de seu propósito, os conceitos práticos a priori em relação com o supremo princípio da liberdade, podem chegar em seguida a ser conhecimentos, não esperando intuições para adquirir significação, e isso, pelo notável motivo que eles mesmos produzem a realidade daquilo a que se referem (a intenção da vontade) o que não acontece com conceitos teóricos. É mister notar bem que estas categorias não concernem mais do que à razão prática em geral; desse modo, na sua ordem, passam das que estão ainda moralmente indeterminadas e condicionadas sensivelmente às que, sensivelmente incondicionadas, estão determinadas só pela lei moral.

Observar-se-á facilmente no gráfico, que se considera a liberdade como uma espécie de causalidade, a qual, todavia, não está submetida a fundamentos de determinação empíricos, em consideração das ações possíveis por meio dessa mesma causalidade, como fenômenos no mundo dos sentidos; disso se conclui que se refere às categorias de sua possibilidade natural, enquanto que, não obstante cada categoria ser tomada tão universalmente, o fundamento da determinação daquela causalidade pode ser admitido também fora do mundo dos sentidos, na liberdade, como qualidade de um ser inteligível, até que as categorias da modalidade operem a transição dos princípios práticos em geral aos da moralidade, mas só problematicamente, não podendo, logo, estes últimos ser expostos dogmaticamente por meio da lei moral.

Não acrescento nada mais aqui para explicar a tábua acima, porque ela, por si mesma, é bastante clara. Uma divisão como esta, fundamentada segundo princípios, é sobremodo útil a toda a ciência, tanto em relação à solidez de sua construção como à sua clareza.


 

TÁBUA DAS CATEGORIAS DA LIBERDADE
EM RELAÇÃO AOS CONCEITOS DO BEM E DO MAL

I
DA QUANTIDADE

-Subjetivamente, segundo máximas (opiniões da vontade do indivíduo).

-Objetivamente, segundo princípios (preceitos).

-Princípios a priori, tanto objetivos como subjetivos, na liberdade (leis).

II
DA QUALIDADE

-Regras práticas de ação (preceptivæ).
-Regras práticas de omissão (proibitivæ).
-Regras práticas de exceção (exceptivæ).

III
DA RELAÇÃO

-Com a personalidade.
-Com o estado da pessoa.
-Recíproca de uma pessoa com o estado das outras.

IV
DA MODALIDADE

-O lícito e o ilícito.
-O dever e o contrário do dever.
-Dever perfeito e dever imperfeito.


Desse modo esse quadro nos ensina, por exemplo, no seu primeiro número, por onde se deve começar nas considerações práticas: das máximas que cada um fundamenta sobre as suas próprias inclinações dos preceitos que ante toda uma espécie de seres racionais adquirem relativo valor quando estes seres concordam em certas inclinações; e, por fim, da lei que igualmente vale para todos, exceto para as suas inclinações, etc.

Desse modo se alcança com um só golpe de vista todo o plano do que se deve fazer, inclusive cada questão da filosofia prática a ser contestada e, ao mesmo tempo, a ordem que se deve seguir.

 

DA TÍPICA DO JUÍZO PURO PRÁTICO

Os conceitos do bem e do mal determinam primeiramente um objeto para a vontade. Mas esses mesmos conceitos estão submetidos a uma regra prática da razão que, como razão pura, determina a vontade a priori em relação ao seu objeto. Para decidir, portanto, se uma ação que nos é possível no mundo sensível constitui ou não um caso que se enquadra nessa regra, cabe ao juízo prático decidir, por meio do qual o que está dito na regra universalmente (in abstrato) é aplicado in concreto a uma ação. Mas como uma regra prática da razão pura zela pela existência do objeto em primeiro lugar na qualidade de regra prática da razão pura, leva necessidade implícita relativamente à ação, sendo portanto, lei prática e não uma lei natural que se rege mediante fundamentos de determinação empíricos, mas sim uma lei da liberdade segundo a qual a vontade deve ser determinável independentemente de todo o elemento empírico (só mediante a representação de uma lei em geral e de sua forma), enquanto em todos os casos que ocorrem para ações possíveis não podem ser mais do que empíricos, isto é, atinentes à experiência e à natureza, resultando que parece absurdo (widersinnisch) querer encontrar no mundo sensível um caso que, devendo participar sempre do mundo sensível como caso, só debaixo da lei da natureza permita, todavia, aplicar-lhe uma lei da liberdade, e ao qual possa ser aplicada a idéia supra-sensível do bem moral, que deve surgir no in concreto. Desse modo, pois. o juízo da razão pura prática está submetido às mesmas dificuldades que se deparam ao juízo da razão pura teórica. Esta última, contudo, tinha á sua disposição um meio para fugir a essas dificuldades, a saber: que, enquanto em relação ao uso teórico se tratava de intuições, às quais pudessem ser aplicadas conceitos puros do entendimento, podem tais intuições (ainda quando apenas de objetos dos sentidos) ser dadas a priori (como esquemas) e, portanto, no que concerne à conexão da multiplicidade das mesmas, constante aos conceitos puros a priori do entendimento. Por outro lado, o bem moral é um tanto supra-sensível, de acordo com o objeto, não podendo, para ele, achar-se portanto, em nenhuma intuição sensível correspondente, e o juízo, sob as leis da razão pura prática, parece estar, por isso, submetido a dificuldades particulares, as quais se estribam no ditame de uma lei da liberdade a ser aplicada às ações como eventualidades que ocorrem no mundo sensível e que, como tais, nesse particular pertencem à natureza.

Mas aqui se abre uma nova perspectiva favorável ao juízo puro prático. Quando se trata da subsunção de um ato para mim possível no mundo dos sentidos, sob uma lei pura prática, não se trata da possibilidade da ação como uma ocorrência no mundo dos sentidos, pois essa possibilidade, para o juízo do uso teórico, pertence à razão, segundo a lei da causalidade, conceito racional puro, para o qual tem ela um esquema, na intuição sensível. A causalidade física, ou a condição sob a qual esta tem lugar, pertence aos conceitos da natureza, cujo esquema é esboçado pela imaginação transcendental. Não se trata, porém, nesta altura, do esquema de um caso, segundo as leis, mas do esquema (se esta palavra é apropriada a isso) de uma lei em si, porque a determinação da vontade (não a ação relativamente ao seu êxito) só pela lei, sem outro fundamento de determinação, congloba o conceito da causalidade com outras condições bem distintas das que constituem a conexão natural dos efeitos com as causas.

À lei natural, como lei à qual estão submetidos os objetos de intuição sensíveis como tais, deve corresponder um esquema, isto é, um processo universal da imaginação (para expor aos sentidos, a priori, o conceito puro do entendimento determinado pela lei). Mas sob a lei da liberdade (como lei de uma causalidade não condicionada sensivelmente) e, portanto, também debaixo do conceito incondicional do bem, não se pode supor qualquer intuição e, por conseguinte, nenhum esquema para a sua aplicação in concreto. A lei moral, portanto, não tem maior faculdade de conhecimento que lhe proporcione aplicação a objetos da natureza do que seja o entendimento (não a imaginação) o qual pode postar ao juízo, debaixo de uma idéia da razão, não um esquema da sensibilidade, mas uma lei, porém, apesar de tudo, uma lei tal que pode ser exposta in concreto nos objetos dos sentidos, portanto, uma lei da natureza, mas só segundo a sua forma, motivo por que podemos apontar essa lei como o tipo da lei moral.

A regra do juízo sob as leis da razão pura prática é a seguinte: — Indaga de ti mesmo se a ação que concebes poderias considerá-la possível, mediante a tua vontade, supondo-se que deveria acontecer segundo uma lei da natureza da qual fosses tu mesmo uma parte.

Mediante esta regra cada um, efetivamente, julga se as ações são boas ou más sob o aspecto moral. É assim que se diz: Como! se cada qual consente em molestar-se quando acredita agir com vantagem própria, ou se, para abreviar a vida, julga-se autorizado, quando o domina um aborrecimento completo da mesma; se pode assistir indiferente a miséria alheia, incluindo-te em semelhante ordem de coisas, encontrarias assentimento por parte de tua vontade? Pois bem: cada qual sabe que se assente secretamente no engano, na prática de uma ação malévola, nem por isso permite que todo o mundo faça outro tanto; que se alguém é insensível, quiçá sem dar-se conta disso ante o próximo, nem todos são insensíveis diante dele; tal comparação, portanto, a das máximas das suas próprias ações com a lei universal da natureza, não constitui de forma alguma o motivo determinante de sua vontade. Contudo, esta lei é o tipo do juízo das ações, segundo os princípios morais. Mas, se a máxima da ação não pode resistir a um confronto com a forma de uma lei natural em geral, tal máxima é moralmente impossível. Isto é passível de julgamento por parte da inteligência mais vulgar, porque a lei natural é sempre a base de todos os seus juízos mais usuais e também de todos os sens juízos empíricos. Este intelecto tem, portanto, sempre ao seu alcance esta lei; mas, por outro lado, nos casos em que deve julgar a causalidade da liberdade, faz ele singelamente desta lei da natureza o tipo de uma lei da liberdade, porque sem ter em mãos algo de que pudesse tornar um exemplo nos casos de experiência, não poderia proporcionar à lei de uma razão pura prática um uso na aplicação da mesma lei.

Desse modo, é permitido usar a natureza do mundo sensível como tipo de uma natureza inteligível, desde que eu não transporte a esta última as intuições e o que delas depende, mas só refira à forma da conformidade a uma lei geral (cujo conceito também é possível para o uso mais comum da razão, mas não pode ser conhecido determinadamente a priori em qualquer sentido diverso, a não ser para o uso prático da razão). É que as leis como tais e enquanto leis, são idênticas, tomem elas onde porventura tomarem os seus motivos de determinação.

Acresce que, como de todo o inteligível não existe absolutamente nada mais do que a liberdade (por meio da lei moral) que para nós possua realidade e, ainda, só como liberdade é uma suposição inseparável da lei moral, como também todos os objetos inteligíveis, aos quais quiçá pudesse conduzir-nos a razão, guiada por essa lei, não têm, para nós, chegada a sua vez, nenhuma realidade que não seja em relação a essa mesma lei, e ao uso da razão pura prática, e como esta razão está autorizada e compelida a usar da natureza (segundo as formas puras de entendimento da mesma) como tipo do juízo, resulta que a presente observação serve para impedir que o que pertence só à típica dos conceitos seja incluído entre os próprios conceitos. Esta, portanto, como típica do juízo vem preservar-nos do empirismo da razão prática, o qual situa os princípios correlatos advindos do bem e do mal simplesmente nas conseqüências da experiência (na chamada felicidade), embora esta e um número infinito de conseqüências úteis de uma vontade determinada mediante o amor próprio, se essa vontade arvorasse ao mesmo tempo em si mesma a lei universal da natureza, pode, na verdade, servir de tipo em tudo adequado ao bem moral, sem ser, contudo, idêntico a ele. Esta mesma típica também nos preserva do misticismo da razão prática, o qual, daquilo que só servia como símbolo faz um esquema, isto é, submete à aplicação dos conceitos morais intuições reais, mas, contudo, insensíveis (de um reino invisível de Deus), perdendo-se no transcendental. Correlato ao uso dos conceitos morais, só temos como apto o racionalismo do juízo, porque este não toma da natureza sensível mais do que aquilo que lhe é dado pensar por si mesma a razão pura, isto é, a conformação à lei, não introduzindo no suprassensível nada mais do que aquilo que por si mesmo, dada a sua vez, possa realmente ser representado no mundo dos sentidos mediante ações, segundo a regra formal de uma lei da natureza em geral. Entretanto, preservar-se contra o empirismo da razão prática é muito mais importante e digno de recomendação especial, porque o misticismo também se imiscui na sublime pureza da lei moral, não sendo, além disso, adequado com precisão natural ao modo de pensar comum distender a imaginação própria até onde residem as intuições supra-sensíveis; por isso, neste setor, o perigo não é tão generalizado. Por outro lado, como o empirismo extirpa a raiz da moralidade nas intenções (nas quais e não apenas nas ações reside o alto valor que a humanidade pode e deve adquirir mediante a moral), substituindo o dever, por coisa bem distinta, ou seja, pelo interesse empírico, com isso as inclinações em geral entram em relação entre si; e como, além disso, precisamente por estar unido com todas as inclinações que (tomem as formas que porventura recebem), elevadas à dignidade de um princípio supremo prático, degradam a humanidade, por favoráveis que sejam, embora, no modo de pensar de todos, resulte esse empirismo, por isso mesmo, mais perigoso do que qualquer exaltação mística, a qual, de forma geral, nunca pode constituir um estado durável para muitos homens.


 

CAPÍTULO TERCEIRO

DOS IMPULSIONADORES DA RAZÃO PURA PRÁTICA

 

O valor moral das ações, depende em sua essência do fato de que a lei moral determine imediatamente a vontade. Se a determinação da vontade, todavia, nesse caso todo particular, evidentemente, também se efetua em conformidade com a lei moral, mas só mediante um sentimento de qualquer espécie que seja, é necessário pressupô-lo para que esse sentimento possa vir a ser um fundamento de determinação suficiente para a vontade, não ocorrendo, portanto, a ação exclusivamente mediante a lei moral, ação esta que encerrará, certamente, legalidade mas não conterá moralidade. Pois bem: se qual motor (elater animi) se entende o movimento subjetivo determinante da vontade de um ser cuja razão, por uma disposição natural, não se conforma necessariamente à lei objetiva, resultará aqui, antes de tudo, que não se podem atribuir à vontade divina quaisquer motores, porque o motor da vontade humana (e de todo o ser racional criado) não pode ser outro senão a lei moral e, por conseguinte, o fundamento objetivo de determinação tem que ser sempre e por si apenas, ao mesmo tempo, o fundamento subjetivo suficiente de determinação da ação, porque esta responde perante o espírito da lei, não encerrando somente a sua letra.

Para a finalidade da lei moral e para proporcionar-lhe um influxo sobre a vontade, não há necessidade de buscar qualquer motor estranho que substituísse o da lei moral, pois isso tudo resultaria em pura e inconsistente hipocrisia, sendo até perigoso (bedenklich) deixar que alguns outros motores (como o do proveito) cooperem com a lei moral, ainda que seja apenas paralelo a ela; disso resulta, portanto, que não resta mais do que determinar cuidadosamente de que modo a lei moral resulta em motor, ou, quando o seja, o que ocorre com a faculdade humana de desejar, como conseqüência de tal fundamento determinante dessa faculdade. Porque a questão de como uma lei possa ser, imediatamente e por si mesma, o motivo determinante de uma vontade (que é essencial de toda a moralidade) é um problema insolúvel para a razão humana e idêntico ao de como seja possível uma vontade livre. Desse modo, devemos assinalar a priori não o fundamento pelo qual a lei moral em si proporciona um motor, mas o que ela, sendo motor, leva a efeito no espírito (ou, para dizer-se com mais propriedade, o que deve levar a efeito). Qualquer determinação da vontade mediante a lei moral tem alguma coisa essencial e que, como vontade livre, sem cooperação, portanto, não só de impulsos sensíveis, mas, ainda, com exclusão de todos eles e em prejuízo de todas as inclinações quando contrárias a essa lei, apenas pela lei é determinada. Nesta medida, portanto, o efeito da lei moral como motor é só negativo e, como tal, esse motor pode ser conhecido a priori. Mas, na verdade, toda a inclinação e todo o impulso sensível tem como base um sentimento, sendo o efeito negativo sobre tal sentimento (pelo dano que infere às inclinações) também um sentimento. Por conseguinte, podemos constatar a priori que a lei moral, como fundamento de determinação da vontade, deve produzir um sentimento ao prejudicar as inclinações, ao qual poderemos denominar dor; e aqui temos agora o primeiro e quiçá, também, o único caso em que podemos determinar por conceitos a priori a relação de um conhecimento (neste caso de uma razão pura prática) com o sentimento do prazer ou da dor. A união de todas as inclinações (que podem ser reduzidas a um sistema vulgar, ao qual se denominaria felicidade) constituem o egoísmo (solipsismus). É este o do amor de si mesmo, de uma benevolência excessiva para consigo mesmo (philautia) ou da satisfação de si mesmo (arrogantia). Aquele denominamos particularmente amor-próprio (Eigenliebe) e este presunção (Eigendünkel). A razão pura prática infere prejuízo ao amor-próprio pelo fato de apenas conceder-lhe os limites estritamente justos e que correspondem à lei moral, estando, ainda antes da mesma manifestar-se, natural e vivo em nós mesmos; então, é chamado de amor-próprio racional. Todavia, é completamente subjugada pela presunção, sendo todas as pretensões da estimativa de si mesmo, que precedem à coincidência com a lei moral, ocas e destituídas de qualquer direito (ohne alle Befugnis), pois a certeza precisa de uma intenção que coincide com essa lei é a condição primordial de todo o valor da pessoa (como logo veremos com mais clareza), sendo toda a pretensão anterior a ela falsa e contrária à lei. A tendência à estimativa de si mesmo pertence às inclinações a que a lei moral causa dano, enquanto essa estimativa só assenta na sensibilidade. Com isso a lei moral aniquila a presunção. Convenhamos, porém, que sendo essa lei moral, alguma coisa positiva por si mesma, isto é, a forma de uma causalidade intelectual, ou seja, da liberdade, resulta que, ao debilitar a presunção, opondo-se à resistência subjetiva, a saber, às inclinações que se manifestam em nós mesmos, é, ao tempo, objeto de respeito (Achtung) e ao derrotá-la completamente ou, então, humilhando-a, resulta um objeto de sumo respeito, sendo portanto também o fundamento de um sentimento positivo, que não é de origem empírica e que é conhecido a priori. Desse modo, pois, o respeito para com a lei moral é um sentimento que se produz por um fundamento intelectual, sendo esse sentimento o único que nos é dado conhecer anteriormente a priori e cuja necessidade podemos ter como evidente. No capítulo anterior vimos que tudo aquilo que se apresenta como objeto da vontade antes da lei moral, resulta excluído dos fundamentos de determinação da vontade que levam o nome do bem incondicionado, mediante essa mesma lei como condição suprema da razão prática e, ainda, que a mera forma prática, consistente na aptidão das máximas para a legislação universal, determina em primeiro lugar o que é absolutamente bom em si, fundamentando a máxima de uma vontade pura que é boa em todos os sentidos. Julgamos, todavia, que a nossa natureza, como seres sensíveis que somos, constituindo-se de tal modo que a matéria da faculdade de desejar (objetos da inclinação, da esperança ou do temor) logo se impõe, antes de qualquer outra coisa, resultando o nosso eu (Selbst) patologicamente determinável, ainda que seja mediante as suas máximas totalmente desconforme à legislação universal; contudo, como se constituísse todo o nosso eu, esforça-se em fazer valer anteriormente as suas pretensões à guisa de principais e de mais genuínas na sua origem. Esta tendência de em fazer de si mesmo, segundo os fundamentos objetivos da determinação do seu arbítrio, o fundamento objetivo da determinação da vontade em geral, pode denominar-se de amor a si mesmo, o qual, em se tornando legislador é princípio prático incondicionado, pode chamar-se presunção (Eigendünkel). Pois bem: a lei moral, que só é verdadeira (em todo o sentido) como objetiva, exclui totalmente o influxo do amor a si mesmo sobre o princípio prático supremo, inferindo à presunção que prescreve como leis as condições subjetivas do amor a si mesmo, um dano infinito. Mas tudo o que infere dano à nossa presunção julgamos uma humilhação. Assim, portanto, a lei moral humilha inevitavelmente a todo o homem quando este compara a tendência sensível da sua natureza com aquela lei. Resulta disso que aquilo cuja representação, como motivo determinante de nossa vontade, humilha a nossa consciência, é o que excita (porque é um motivo positivo e determinante) em nós o respeito próprio. Desse modo, portanto, a lei moral é também um fundamento subjetivo do respeito. Pois bem: como tudo o que se situa, nessa objetivação, no amor de si mesmo pertence à inclinação, repousa também, como toda inclinação, nos sentimentos, e, portanto, o que infere dano no amor a si mesmo a todas as inclinações em conjunto tem, por isso mesmo, influência sobre o sentimento por isso, concebemos como é possível compreender a priori que a lei moral, ao excluir as inclinações e a tendência a fazer delas a condição prática suprema, isto é, o amor a si mesmo, de todo o acesso à legislação suprema, possa exercer um efeito no sentimento, efeito que por um lado é meramente negativo, sendo por outro — isso em consideração da razão pura prática — positivo, não podendo para isso ser admitida qualquer espécie particular de sentimento com a nominação de prático ou moral, na qualidade de sentimento que precedesse ou que servisse de base à lei moral.

O efeito negativo sobre o sentimento (do desagrado) é, como todo o influxo sobre o mesmo, e como todo o sentimento em geral, patológico. Mas o efeito da consciência da lei moral, conseqüentemente correlato com uma causa inteligível, a saber, o sujeito da razão pura prática, como suprema legisladora, designamos certamente assim a esse sentimento de um ser racional afetado por inclinações, humilhações (desprezo intelectual), mas, em relação com o fundamento positivo da humilhação, com a lei, chama-se, ao mesmo tempo, respeito a essa lei; para esta lei não há lugar em qualquer sentimento, a não ser no juízo da razão, quando a lei afasta do caminho a resistência, sendo então a remoção do obstáculo tida como igual a um impulso positivo da causalidade. Por isso, pode este sentimento ser denominado agora também um sentimento de respeito para com a lei moral, embora por esses dois fundamentos em conjunto possa ser denominado um sentimento moral,

A lei moral, portanto, assim como é fundamento formal de determinação da ação mediante a razão pura prática, assim como, também é fundamento material, embora só objetivo da determinação dos objetos da ação sob o nome de bem e de mal, constitui também fundamento subjetivo de determinação, isto é, o motor dessa ação, porque tem influência sobre a sensibilidade do sujeito, produzindo um sentimento que fomenta o influxo da lei sobre a vontade. Aqui não precede ao sujeito qualquer sentimento que se sentisse com disposição à moralidade. Contudo, isso é impossível, dada a sensibilidade de todo o sentimento; o motor da intenção moral deve, todavia, estar livre de toda condição sensível. Preferentemente, é o sentimento sensível o que se encontra como fundamento de todas as nossas inclinações e a condição de toda a sensação a que denominamos de respeito; mas a causa da determinação desse sentimento reside na razão pura prática; por isto, e pela sua origem, não devemos chamá-la de uma sensação patológica, mas sim de uma sensação praticamente efetuada; porque, como a representação da lei moral usurpa ao amor de si mesmo o influxo, e à presunção a ilusão, é diminuto o obstáculo que se depara à razão pura prática, produzindo-se no juízo da razão a representação da superioridade de sua lei objetiva, acima dos impulsos da sensibilidade, resultando, portanto, aumentando o peso da lei de um modo relativo (em consideração de uma vontade afetada pelos impulsos sensíveis) mediante a supressão do contrapeso. Desse modo, o respeito para com a lei não constitui motor para a moralidade, mas sim a própria moralidade, considerada subjetivamente qual motor, porque a razão pura prática, ao deitar por terra todas as pretensões do amor a si mesmo em oposição a ela, proporciona autoridade (Anseken) à lei, que só agora tem influência. Deve-se notar agora nisso que, assim como o respeito é um efeito sobre o sentimento, portanto também sobre a sensibilidade de um ser racional, tal respeito presume essa sensibilidade e, assim, também o caráter finito daqueles seres a quem a lei moral impõe respeito, não podendo atribuir respeito para com a lei a um ser supremo ou também a um ser livre de toda a sensibilidade, para o qual, não pode, todavia, esta constituir qualquer obstáculo da razão prática.

Esse sentimento (sob a designação de sentimento moral) é, portanto, produzido somente pela razão. Não serve para julgar as ações nem para fundamentar a própria lei moral objetiva, mas apenas de motor para desta lei, em si mesma, erigir a máxima. Mas qual será o nome mais apropriado para este singular sentimento que não possa ser confrontado com qualquer sentimento patológico? É tão característica a sua natureza que parece só encontrar-se à disposição da razão, e precisamente da razão pura prática. O respeito só pode referir-se às pessoas, nunca às coisas. Podem estas fazer surgir em nós a inclinação; e se são animais, (como, por exemplo, cavalos, cães, etc.), também infundir amor ou terror, como o mar, um vulcão, uma fera, mas nunca respeito. O que mais se acerque deste respeito constitui a admiração, e esta, como emoção, a estupefação, podendo também aplicar-se às coisas como sejam, digamos, montanhas que se elevam ao céu, a magnificência, a multiplicidade e o distanciamento dos corpos do Universo, a força e a velocidade de certos animais, etc. Mas tudo o que por eles experimentamos não constitui respeito. Um homem pode ser para mim objeto de amor, de terror ou de admiração, inclusive até a estupefação e, contudo, não constituir objeto do meu respeito. A sua bravura, o seu bom-humor ou a sua força, o poder da sua posição e tudo o que o destaca entre os demais homens, pode inspirar-me sentimentos análogos mas sempre me falta o respeito íntimo para com ele. Ante um grão-senhor eu me inclino — diz Fontenelle —; mas o meu espírito, esse não se inclina. Eu posso aduzir: Ante um homem de condição humilde, do vulgo, no qual reconhecerei mais integridade de caráter do que em mim próprio, inclinarei o meu espirito, queira eu ou não, ainda que a minha atitude e a ufania do meu porte se impusessem, para não deixar-lhe passar despercebida a minha superioridade. E por que isso tudo? O seu exemplo apresenta-me uma lei que aniquila a minha presunção, quando comparo essa lei com minha conduta, cujo cumprimento e, portanto, efectibilidade (Tunlichkeit) aqui se me deparam passíveis de realização. Pois bem: ainda que eu tenha consciência de possuir idêntico grau de integridade, permanece, contudo, o respeito. Porque, sendo no homem todo o bem imperfeito, a lei, tornada evidente mediante um exemplo, abate a minha presunção, porque o homem que tenho diante de mim — ainda que a sua imperfeição não fosse menos visível que a minha própria presunção — aparece como que aureolado de uma luz mais pura, que me serve para tal cotejo. O respeito é um tributo que não podemos negar ao mérito, queiramos ou não; embora, em todo o caso, possamos deixar de manifestá-lo exteriormente, não podemos, todavia, impedir de senti-lo interiormente.

O respeito está tão longe de ser um sentimento de prazer que só contrafeitos a ele nos atemos em relação a um outro homem. Tratamos com afinco de encontrar algo que possa aliviar-nos dessa carga, um defeito qualquer no exemplo que nos deixa humilhados, buscando uma compensação a esse desfavor. Os próprios mortos, sobretudo se o seu exemplo parece inimitável, não estão a salvo de semelhante crítica. Pretende-se até que a própria lei moral, na sua majestade solene, aja em oposição ao respeito. Acreditai por acaso que o desejo de reduzir a lei moral ao nível da nossa inclinação íntima, que o esforço que fazemos para tornar esta lei o preceito favorito do nosso próprio interesse, ou seja de determinado interesse, provenha de outras causas que não a de livrar-nos do atribulador respeito que tão severamente nos revela a nossa indignidade? Entretanto, tão pouca dor, apesar de tudo, nele existe, que quando, uma vez abandonada a presunção e concedido ao respeito a sua influência prática, não nos é possível satisfazer o desejo de admirar a majestade dessa lei, acreditando a nossa alma elevar-se no mesmo grau que vê ascender sobre a sua frágil natureza tão santa lei. Os grandes talentos, equilibrados por uma atividade correlata, podem certamente ser fontes de respeito de um sentimento análogo a este, bem merecendo, por outro lado, que tal respeito se lhes dedique; mas, nestes casos, parece que a admiração é idêntica ao sentimento de respeito. Entretanto, observando este ponto com mais vagar, concluiremos que é difícil apreciar com exatidão até em que ponto o talento inato influi na habilidade e até onde influi nesta mesma cultura, mediante a aplicação que lhe é própria; resultará provavelmente, que a razão nos apresenta essa habilidade como fruto de cultura, portanto como um mérito que abate em muito a nossa presunção ou, antes, recrimina aos que não seguem o exemplo de um modo que mais próprio resulte, exemplo que, de sua parte, trata de impor-nos. Não é, portanto uma admiração vulgar esse exemplo que nutrimos por uma pessoa semelhante a nós (ou, com mais propriedade, pela lei cujo exemplo nos manifesta), confirmando isso também o fato de que a massa comum dos diletantes acredita estar suficientemente informada do quanto de censurável possa ter o caráter de um homem (como Voltaire, por exemplo), o que faz cessar todo o respeito para com ele; entretanto, sempre nutrirá respeito pelo verdadeiro sábio, ainda que seja só sob o ponto-de-vista do seu talento, porque cada um está empenhado em ocupação ou ofício que o coloca na situação de, por certo modo, constituir uma lei, a qual o leva a imitar aquele homem.

O respeito pela lei moral é, portanto, não só o único objetivo moral mas, também, não pode constituir móvel de qualquer dúvida; além disso esse sentimento não se aplica a qualquer outro objeto que não seja essa lei, nem com fim diverso do de constituir um motivo moral. Determina a lei moral, antes de tudo, objetiva e imediatamente a vontade no juízo da razão; mas a liberdade, cuja causalidade só é determinada pela lei, consiste precisamente em que ela limita todas as inclinações e, por isso, também a estima da própria pessoa, com a condição de observar a sua lei pura. Essa redução tem um efeito no sentimento, produzindo sensação de dor que pode ser conhecida a priori, mediante a lei moral. Mas como ela é nesse sentido um efeito negativo que, nascido do influxo de uma razão pura prática, causa dano principalmente à atividade do sujeito quando as inclinações são os fundamentos de determinação do mesmo e, portanto à opinião que tem do seu valor pessoal (que sem a concordância com a lei moral fica rebaixado ao nada), resulta que o efeito dessa lei sobre o sentimento é apenas humilhação que, embora possamos compreendê-la a priori, não podemos, todavia, conhecer nela a força da lei puramente prática como motor, mas apenas a sua oposição ante os motores da sensibilidade. Mas como a mesma lei, objetivamente, ou seja na representação da razão pura, é um motivo determinante imediato da vontade e, por isso, tal humilhação só se verifica relativamente à pureza da lei, resulta que o retraimento das pretensões da estima moral de si mesmo, ou seja, a humilhação, pelo lado sensível, é uma elevação da estima moral, ou então, prática da própria lei, pelo lado intelectual, numa palavra, respeito para com a lei, e, portanto, também um sentimento, positivo segundo a sua causa intelectual, sendo conhecido a priori. Age como fomento desta mesma atividade qualquer diminuição dos obstáculos. Mas o reconhecimento da lei moral é a consciência de uma atividade da razão prática originada em fundamentos objetivos, não exteriorizando o seu efeito em ação só porque o impedem causas subjetivas (patológicas). Desse modo, portanto, o respeito para com a lei moral tem que ser considerado também como efeito positivo, mas indireto, da mesma sobre o sentimento enquanto ela debilita a influência oposta das inclinações pela humilhação da presunção e, por conseguinte, deve ser considerado como fundamento subjetivo da atividade, isto é qual motor para a observância da lei moral e como fundamento para máximas de um modo de vida a ela conforme. Do conceito que formamos de um motor surge o de um interesse que nunca é atribuído a um ser caso não tenha razão, significando: um motor da vontade enquanto adquire representação mediante a razão. Da mesma forma que a própria lei deve ser, em uma vontade moralmente boa, o motor, assim, também, o interesse moral é interesse só da razão prática, puro e livre dos sentidos. Sobre o conceito de um interesse também assenta o de u’a máxima. Mas esta só é moralmente verdadeira quando repousa no interesse vulgar que tomamos pela observância da lei. Só aos seres finitos podem ser aplicados os três mencionados conceitos: o de motor, o de interesse e o de máxima. É que todos eles supõem uma limitação da natureza de um ser no qual a constituição subjetiva do seu livre-arbítrio não concorda por si mesma com a lei objetiva de uma razão prática; supõe, também, uma necessidade de ser impulsionado de qualquer forma à atividade, porque um obstáculo interior se opõe a essa atividade. Não podem, portanto, ser aplicados à vontade divina.

Há na lei moral pura uma isenção de tudo o que é útil, tal como se nos apresenta à observância a razão prática na sua ilimitada estimativa, alguma coisa de singular existe cuja voz íntima faz tremer até ao mais audacioso malfeitor, obrigando-o a esquivar-se de surgir diante dela; não há, portanto, do que admirar-se pelo fato de não encontrar-se fundamento na razão especulativa para esse influxo de uma idéia singelamente intelectual sobre o sentimento, devendo satisfazer-se com a compreensão a priori de apenas isto, a saber: esse sentimento está inseparavelmente ligado com a representação da lei moral em todo o ser racional finito. Se este sentimento do respeito fosse patológico e, portanto, um sentimento de prazer fundamentado no sentido interior, seria inútil tratar de descobrir uma conjugação do mesmo com qualquer idéia a priori. Pois bem: é um sentimento que só se dirige ao prático e depende da representação de uma lei, vulgarmente segundo a sua forma, e não mediante objeto algum da mesma, não podendo ser, portanto, isto em conta de prazer ou de dor, embora produza um interesse na observação da lei, interesse a que denominamos moral; assim, também, a capacidade de tomar tal interesse na lei (ou o respeito para com a própria lei moral) é propriamente o sentimento moral.

A consciência de uma livre submissão da vontade à lei, consenso também ligado a uma violência inevitável que é preciso exercer sobre todas as inclinações, violência essa que deve ser exercida unicamente mediante o ditame da própria razão, constitui o respeito à lei. Como acabamos de constatar, a lei que exige esse respeito não é outra senão a lei moral, que também o inspira (porque nenhuma outra exclui as inclinações, em razão da influência imediata que estas exercem sobre a vontade). A ação que por sua vez, segundo esta lei, exclui a participação dos motivos determinantes derivados da inclinação é uma ação objetivamente prática que se denomina dever contendo em virtude desta exclusão e no seu próprio conceito, uma compulsão (Notigung) prática, isto é, uma determinação que produz as ações, embora ocorram à nossa revelia. Do fato de ter consciência desse constrangimento, resulta um sentimento que não é patológico, assemelhando-se ao que fosse produzido por um objeto dos sentidos, mas apenas prático, isto é, possível mediante uma determinação precedente (objetiva) da vontade e pela causalidade da razão. Não encerra este sentimento, portanto, como submissão a uma lei, isto é, como mandato recebido (que significa coação para um sujeito sensivelmente afetado), prazer algum; antes, contém pesar para com a ação em si mesma. Mas, pelo contrário, como essa coação só é exercitada pela legislação da própria razão, encerra também elevação e o efeito subjetivo no sentimento, enquanto a sua causa única é a razão pura prática, podendo chamar-se portanto aprovação de si mesmo, no sentido vulgar, em consideração à última, desde que se conhece alguém como determinado a ele sem qualquer interesse mas, apenas, mediante a lei. Em virtude disso adquirimos imediatamente a consciência de um interesse diverso e, por esse motivo, produzido subjetivamente, o qual é inteiramente prático e livre, interesse que, segundo nos aconselha uma inclinação, não deveríamos tomar para uma ação que se coadune ao dever e que, por outro lado, a razão, mediante a lei prática, não só nos impõe como mandato para tomarmos interesse em tal ação, como, também produz por si mesma esse interesse, designando-o, por isso, com um nome especial: o de respeito.

O conceito do dever exige portanto da ação, objetivamente, a concordância com a lei, mas da máxima da ação, reclama, subjetivamente, o respeito para com a lei como o único modo de determinação da vontade pela lei. Repousa nisso a diferenciação entre a consciência do dever cumprido de acordo com o dever e por dever, isto é, por respeito para com a lei, sendo o primeiro caso (a legalidade) possível, ainda mesmo quando só as inclinações tivessem sido os fundamentos de determinação da vontade; mas no segundo (a moralidade) o valor moral deve ser posto exclusivamente no fato da ação ocorrer pelo dever, isto é, somente pela lei.

Nos juízos morais é de importância capital empregar a mais diligente das atenções para com a exatidão do princípio subjetivo de todas as máximas, isso com o escopo de que a necessidade das mesmas no concernente à moralidade contida nas ações, seja colocada por dever e por respeito à lei, mas não por amor e inclinação ao que tais ações devam produzir. Para os homens e todos os seres racionais criados, a necessidade moral é compulsão, ou seja, obrigação, devendo toda a ação fundamentada por ela apresentar-se como dever, e não como um modo vulgar de proceder, que nos é ou que nos possa chegar a ser agradável. Isso equivaleria a que nós, sem o respeito à lei, respeito esse que se liga ao temor ou, pelo menos, com a apreensão de infringi-la, pudéssemos, qual divindade sobreposta a toda dependência, chegar alguma vez por nós mesmos ou, digamos assim, mediante uma coincidência, resultante em natureza íntima nossa, indefectível, entre a vontade e a lei moral (a qual, portanto, já que nunca poderíamos ceder à tentação de ser-lhe infiéis, cessaria finalmente de representar mandato para cumprirmos) chegar a possuir uma Santidade da vontade.

A lei moral é, com efeito, para com a vontade de um ser todo perfeito uma lei da Santidade, mas para a vontade de todo ser raciocinante finito uma lei de dever de compulsão moral e de determinação da ação desse ser por meio de respeito para com a lei e por veneração de seu dever. Não pode ser admitido como motor qualquer outro princípio subjetivo, porque, de outra forma, certamente, a ação pode ocorrer tal como a lei a prescreve, mas como no concernente ao dever, não aconteceu, contudo, por dever, resulta que a intenção, que é do que aqui propriamente se trata nessa legislação, não é moral.

Edificante é praticar o bem para com os homens, por amor dos mesmos e por benevolência compassiva, ou ser justo por amor à ordem, mas esta, todavia, não é a genuína máxima da moral de nossa conduta, adequada à nossa situação entre seres racionais, como homens, se não tivermos a pretensão, como se fôssemos soldados voluntários, de elevarmo-nos acima do sentido do dever com a mais orgulhosa das ilusões, pretendendo fazer, independente do mandato, só por uma satisfação pessoal, aquilo para o qual nenhum mandato seria necessário. Encontramo-nos debaixo de uma disciplina da razão e em todas as nossas máximas da subordinação sob a mesma devemos não esquecer que não podemos subtrair-lhe nada, nem diminuir no mais leve que seja a autoridade da lei, ainda que lhe seja esta propiciada pela nossa própria razão com uma ilusão egoísta, colocando o fundamento de determinação da nossa vontade, embora conforme à lei, contudo em lugar diverso da mesma lei e no respeito para com esta lei. Dever e obrigação (Schuldigkeit) são as denominações exclusivas que devemos dar à nossa relação com a lei moral. Em verdade, somos membros legisladores de um reino da moralidade, possível ante a liberdade, proposto pela razão prática em relação a nós, mas, contudo, somos ao mesmo tempo, súditos e não o mandante do mesmo, sendo já o desconhecimento da nossa posição subalterna como criaturas e a rebelião da presunção contra a autoridade da santa lei um abandono da mesma consoante ao espírito, ainda quando cumpríssemos a letra à risca.

Coaduna-se perfeitamente com isso a possibilidade do mandato que ordena: Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo (10). Porquanto isto, na qualidade de mandamento, exige o respeito a uma lei que ordena amor, não relegando à escolha arbitrária a faculdade de fazer ou não de tal um princípio. Entretanto o amor de Deus, como inclinação (amor patológico) é impossível, porque não é nenhum objeto dos sentidos. Esse mesmo amor para com os homens, embora possível, não pode, todavia, ser ordenado, pois não está na faculdade de qualquer homem amar a alguém só por mandato. Assim, portanto, só ao amor prático concerne esse núcleo de leis. Amar a Deus, nessa significação, quer dizer: cumprir com satisfação os seus mandamentos; amar ao próximo quer dizer cumprir com satisfação todos os deveres para com o próximo. Mas o mandamento que com todo o ditame perfaz uma regra para nossa conduta, pode, entretanto, não ordenar que as nossas ações, consoantes ao dever, contenham a disposição de ânimo, (Gesinnung) que constitui essa regra, mas que encerrem apenas a aspiração a isso. É que um mandato de que se deve fazer algo com satisfação é, em si mesmo contraditório, porque se já sabemos por nós mesmos o que devemos fazer e se, ainda, tivéssemos consciência de que o faríamos com satisfação, seria um mandato sobre ele inteiramente desnecessário; mas se na verdade o fizéssemos, mas não precisamente com satisfação e sim apenas por respeito para com a lei, então um mandato que torna esse respeito precisamente o motor da máxima, agiria exatamente em sentido contrário à disposição de ânimo ordenada. Aquela lei de todas as leis, apresenta, pois, como todo o preceito moral do Evangelho, a disposição moral de ânimo em toda a sua perfeição, assim como, enquanto um ideal de santidade é inexequível para toda criatura, é também, apesar de tudo, o protótipo para o qual devemos propender a igualá-lo em progresso ininterrupto mais infinito. Pudesse alguma vez um ser racional chegar a cumprir com plena satisfação todas as leis morais, isso significaria tanto como não encontrar-se nele nem mesmo a posição de um desejo que o incitasse a separar-se delas, porque superar semelhante desejo importa sempre em sacrifício para o sujeito; necessita, portanto, de coação sobre si mesmo, isto é, constrangimento íntimo no que não se opera inteiramente a seu gosto. Mas uma criatura nunca pode chegar a esse grau de disposição moral de ânimo. Porque, sendo uma criatura e, por conseqüência, sempre, em relação ao que exige para completa satisfação com seu estado, é dependente, nunca pode estar inteiramente livre de desejos e inclinações, os quais, assentando em causas físicas, não concordam por si mesmos com a lei moral, que tem uma fonte inteiramente diversa, tornando, por isso, sempre necessário que, tendo em conta essas inclinações, venha fundir-se a intenção de suas máximas em constrangimento moral, não em elevação espontânea mas, sim, no respeito que a observância da lei requer, embora este cumprimento não seja levado a efeito de boa-vontade, fazendo-se deste último, isto é, do amor vulgar à lei (que cessaria então de ser mandato, deixando também a moralidade, que se transformaria então subjetivamente em santidade, de ser virtude) o termo constante embora inexequível dos seus esforços. É que naquilo que muito prezamos, mas todavia (por termos consciência da nossa debilidade) tememos, isso para maior facilidade em satisfazê-lo, substituindo-se ainda ao respeito o amor, o que seria, pelo menos, a perfeição de uma intenção dedicada à lei, se a uma criatura tal perfeição fosse dado alcançar.

Esta consideração está destinada nesta altura não só a reduzir a conceitos claros o mencionado mandato evangélico para reprimir ou, na medida do possível, prevenir o misticismo religioso fanático em consideração ao amor de Deus, mas, também, a determinar com exatidão a intenção moral, também imediatamente no que se refere aos deveres para com os homens e, na medida do possível, reprimir ou prevenir um misticismo fanático meramente moral, que infeccione muitos espíritos. O grau moral em que o homem determinadamente se encontra (e assim, segundo o que nos é dado saber através dos nossos conhecimentos, também qualquer criatura racional) constitui respeito para com a lei moral. A intenção que lhe é imposta para cumprir essa lei é a de cumpri-la por dever, um dever do qual o mesmo tomou a iniciativa, não o sendo por arbitrária propensão ou por um esforço que alguém lhe ordene. O estado moral em que poderá encontrar-se sempre é o da virtude, isto é, a intenção moral na luta e não a santidade em suposta posse de uma pureza completa nas intenções da vontade. É simplesmente misticismo moral e crescimento da presunção a que se dispõem os ânimos quando incitados a ações apresentadas como nobres, sublimes e magnânimas, colocando-se os mesmos na ilusão equívoca de que não é o dever, isto é, o respeito para com a lei, cujo jugo (embora suave, por ser imposto pela razão) ainda que a contragosto, devem suportar, o que constitui o motivo determinante de suas ações e, também, a sua humilhação, sempre que tal ilusão aceitam (obedecem), como se dela e da presunção se devessem esperar as ações e, por conseguinte, não por dever mas por merecimento puro. Acresce que se eles imitassem essas ações ou fatos, isto é, além de não terem, mediante esses princípios, cumprido o espírito da lei nem mesmo no mínimo, o qual consiste na submissão da intenção à lei e não na conformação da ação à lei (seja qual for o princípio), não só assentam o motor patologicamente (na simpatia ou também na gabação) e não moralmente (na lei), produzindo desse modo um modo de pensar ligeiro, superficial e fantástico, por meio do qual se compenetram da bondade voluntária do seu espírito, que não necessita de látego e de freio, nem mesmo de mandato, esquecendo a sua sujeição (Schuldigkeit), na qual, preferentemente ao mérito, deveriam pensar. Pode-se, perfeitamente, exaltar ações alheias, operadas com grande sacrifício, e ao certo só pelo dever, dando-lhes a denominação de nobres e sublimes, embora apenas, não obstante a isso, enquanto houver indícios que deixam supor que tenham ocorrido em tudo por respeito ao seu dever e não por um impulso do coração. Mas se quisermos apresentar alguém como exemplo a seguir, devemos usar imperativamente como motor o respeito ao dever (qual único sentimento moral verdadeiro), preceito sério e sagrado, que não permite ao amor-próprio fátuo julgar com impulsos patológicos (enquanto sejam análogos à moralidade) nem vangloriar-se de um valor meritório. Se investigarmos bem, encontraremos para todas as ações que são dignas de exaltação uma lei do dever que ordena e não deixa depender do nosso capricho o que pudesse ser agradável à nossa inclinação. É esse o modo exclusivo de representação que a alma perfaz moralmente, porque só ele é capaz de princípios firmes e exatamente determinados.

Se o misticismo, na sua mais ampla significação constitui um passo articulado, segundo os princípios gerais, para além dos limites da razão humana, o misticismo moral, portanto, representa uma transposição dos limites que a razão pura prática colocou à humanidade, proibindo colocar o fundamento subjetivo de determinação das ações correlatas ao dever, isto é, o motor moral das mesmas em qualquer parte que não seja na própria lei e na disposição de ânimo que assim é conduzida à máxima, em alguma outra parte que não seja no respeito moral para com essa lei, ordenando, por conseguinte, fazer do pensamento do dever, que destrói toda a arrogância como vã philautia, o supremo princípio de vida de toda moralidade no homem.

Não são apenas os novelistas e os pedagogos sentimentais (embora combatam a sensibilidade afetada com relativa veemência) mas, por vezes até filósofos, inclusive os mais severos deles, os estóicos, os introdutores do misticismo moral em lugar da rude mas sábia disciplina dos costumes, ainda mesmo quando o misticismo dos últimos fosse mais heróico e o dos primeiros de condição mais insípida, embora mais terna. Pode-se, também, repetir sem hipocrisia, com a máxima verdade, diante de toda a doutrina moral do Evangelho, que este é o primeiro que, pela pureza do princípio moral, mas, ao tempo, pela acomodação do mesmo com as limitações dos seres finitos, submeteu toda a boa-conduta do homem à disciplina de um dever posto ante os seus olhos, não os deixando extraviar-se em imaginárias perfeições morais, impondo à presunção, bem como ao amor próprio, que ambos prazeirosamente desconhecem, as limitações da humanidade (isto é do desconhecimento de si mesmo).

Dever! — Nome sublime e grande, tu que não encerras nada amável que leve consigo alguma insinuante lisonja, mas que pedes submissão, sem contudo ameaçar com algo que desperte natural aversão no ânimo, atemorizando-o para mover a vontade, tu que só exiges uma lei que por si mesmo encontra acesso ao ânimo e que, não abstante, conquista, ainda mesmo contra a nossa vontade, veneração por si mesma (embora nem sempre a observemos); tu, ante quem emudecem todas as inclinações, mesmo quando agem secretamente contra ti — qual é a origem digna de ti? Onde se encontra a razão de tua nobre ascendência, que repele orgulhosamente todo o parentesco com as inclinações, essa raiz da qual é condição necessária que proceda aquele valor que só os homens podem dar a si mesmos?

Não pode ser nada menos do que o que eleva o homem acima de si mesmo (como uma parte do mundo dos sentidos), o que o conjuga com uma ordem de coisas, que só o entendimento pode pensar e que, ao mesmo tempo, tem debaixo de si todo o mundo dos sentidos e com ele a existência empiricamente determinável do homem no tempo e em todos os fins (conformando-se unicamente a leis práticas incondicionadas, como seja, entre elas, o moral). Não é nada mais do que a personalidade, isto é, a liberdade e independência do mecanismo de toda a natureza, considerada essa liberdade, apesar de tudo, ao mesmo tempo como uma faculdade de um ser que está submetido a leis puras práticas correlatas, isto é, facultadas pela sua própria razão; por conseguinte, a pessoa, como pertencente ao mundo sensível, está sujeita a sua própria personalidade, ao mesmo tempo que pertence ao mundo inteligível. Não é portanto de admirar que o homem, como pertencente a ambos os mundos, tenha que considerar o seu próprio ser em relação com a sua segunda e mais elevada determinação, devendo, também, considerar com o máximo respeito as leis dessa determinação.

Fundamentam-se nessa origem várias expressões que indicam o valor dos objetos segundo idéias morais. A lei moral é santa (inviolável). O homem, conquanto bastante profano, deve conceituar a humanidade em sua pessoa como santa. Tudo o que existe na criação e sobre a parte que se tenha suficiente poder, poderemos empregar como simples meio; unicamente o homem, e com ele toda a criatura racional, é fim em si mesmo. É ele, efetivamente, o sujeito da lei moral, que resulta santa graças à autonomia da sua liberdade. Precisamente por isso, toda a vontade, como, também, a vontade própria de cada um, dirigida sobre a mesma pessoa, está limitada à condição do acordo com a autonomia do ser racional, a saber: não submeter o mesmo a qualquer intenção que não seja possível, segundo uma lei que possa originar-se na vontade do próprio sujeito passivo; não empregar este apenas como meio mas, ao mesmo tempo, também, como fim. Atribuímos esta condição até à vontade divina em relação aos seres racionais no mundo e como criaturas suas, porque ela apresenta como fundamento a personalidade desses seres, sendo que eles só através dela constituem fins em si mesmos.

Esta idéia da personalidade, que faz surgir em nós o respeito e que nos põe diante dos olhos a sublimidade de nossa natureza (segundo a sua determinação), deixando-nos perceber ao mesmo tempo a falta de conformação de nossa conduta para com ela e, por isso, destruindo a presunção, é uma idéia fácil de perceber até para a mais vulgar razão humana. Todo o homem, ainda que só medianamente honrado, não poderia, pelo fato de alguma vez abster-se de mentir, mentira por fim inofensiva, mas por meio da qual poderia ele esquivar-se de um assunto desagradável e, com isso, auxiliar a um amigo que, sendo dileto para ele, também era merecedor disso, achar-se no direito (dürfen) de considerar-se na intimidade sem desprezar-se? Para um homem de bem que se encontre na mais atribulada situação de sua vida, situação que sempre poderia ter evitado se não se preocupasse com o dever, não será porventura um conforto a consciência de ter permanecido na sua dignidade de homem justo, honrando desse modo na sua pessoa a humanidade, além de não encontrar motivo algum capaz de envergonhá-lo perante si mesmo, como, ainda, de não ter ocasião de experimentar o mínimo temor interno diante do olhar prescrutador da própria consciência? Este consolo não é todavia felicidade nem sequer parte mínima da mesma. Ninguém em verdade desejará ter ocasião para isso, preferindo até não prolongar a vida em semelhantes circunstâncias. Contudo, vive e não poderá tolerar a idéia de ser a seus próprios olhos indigno da vida. Esse alívio interior é, todavia, apenas negativo em consideração de tudo o que pode tornar agradável a vida; evita, mediante isso, o perigo de declinar em valor pessoal desde que renunciou ao dever do seu próprio estado. Essa paz tem como efeito um respeito para com algo totalmente diverso da vida, sendo que esta, comparada e oposta a esse algo, em que pese à sua deleitação, não tem nenhum valor. Mas esse homem continua vivendo ainda que seja só por dever, não porque encontre nisso qualquer prazer.

É essa a natureza do verdadeiro motor da razão pura prática; não é este nenhum outro que não seja a lei moral pura em si mesma, enquanto nos faz sentir a sublimidade da nossa existência supra-sensível, produzindo subjetivamente nos seres, por sua vez conscientes de sua existência sensível e de sua dependência da própria natureza patologicamente afetada, o respeito para com a causa superior que os determina. Mas tantos são os atrativos e os afazeres da vida que se podem associar a esse motor que, embora apenas fosse pela prudência da escolha, um Epicúreo que meditasse sobre o maior bem (Wohl) da vida, optaria pela boa conduta moral, julgando, quiçá, digno de aconselhar-se a conjugação desta perspectiva de um evidente gozo da vida com aquela causa motora suprema, já por si mesma suficientemente determinante, isso apenas para manter o equilíbrio com as atrativas lisonjas que não deixam de fazer o vício brilhar no lado oposto ao dever, não colocando ali a força propriamente motora, quando se trata de dever. Isso importaria em enturvar na sua própria fonte a intenção moral. A majestade do dever nada tem que ver com o gozo da vida; aquela tem a sua lei própria e também o seu próprio tribunal e, por muito que se pretendesse sacudi-las juntas para misturá-las e dá-las, por assim dizer, como um medicamento à alma enferma, logo se separam por si mesmas; mas ainda que a vida física alguma força adquirisse com isso, desapareceria porém irremediavelmente a vida moral.

 

ELUCIDAÇÃO CRÍTICA À ANALÍTICA
DA RAZÃO PURA PRÁTICA

Entendo por elucidação crítica de uma ciência ou de uma parte da mesma que constitua um sistema por si mesmo, a investigação e a justificativa pela qual deva ter ela essa forma sistemática e não outra, quando a comparamos com um sistema que tenha como base faculdade semelhante de conhecimento. Pois bem: a razão prática tem como base uma faculdade de conhecimento idêntica à especulativa, enquanto são ambas razão pura. Desse modo, portanto, a diferença da forma sistemática de uma e de outra deverá ser determinada pela comparação de ambas, devendo-se dar o fundamento dessa diferenciação.

A analítica da razão pura teórica trata do conhecimento dos objetos que possam ser dados ao entendimento, devendo, portanto, iniciar-se pela intuição, e por isso (já que esta é sempre sensível), pela sensibilidade, avançando só depois aos conceitos (dos objetos desta intuição) para, após essa dupla preparação, terminar com princípios. Por outro lado, como a razão prática não se ocupa de objetos para conhecê-los, mas sim de sua própria faculdade, para torná-los reais (segundo o conhecimento dos mesmos) isto é, ocupa-se de uma vontade que é uma causalidade, ao mesmo tempo que a razão contém o fundamento de determinação da mesma; e embora, como conseqüência disso, não tenha que proporcionar qualquer objeto à intuição, mas apenas (porque o conceito da causalidade contém sempre a referência a uma lei que determina a relação de múltiplos elementos entre si) como razão prática, uma só lei da razão, resulta que uma crítica analítica da razão, enquanto esta deve ser uma razão prática, (que é o problema próprio), deve começar pela possibilidade de princípios práticos a priori. Só daqui em diante me é dado passar a conceitos dos objetos de uma razão prática, isto é aos conceitos do absolutamente bom e mau, para dá-los, antes de qualquer outra matéria e como inteiramente conformes a esse princípios (porque esses conceitos do bem e do mal não podem ser dados antes daqueles princípios por nenhuma faculdade de conhecer) e só depois disso poderia concluir essa parte e capítulo em que se trata da relação que a razão pura prática estabeleceu com a sensibilidade e da influência que aquela deve necessariamente exercer sobre esta, influência que devemos conhecer a priori como sendo do sentimento moral. Desse modo, portanto, a Analítica da razão pura prática dividiu de uma forma inteiramente análoga à teórica a esfera total de todas as condições do seu uso, mas em ordem inversa. A analítica da razão pura teórica ficou dividida em Estética transcendental e em Lógica transcendental; o da prática, de modo diverso, em Lógica e Estética da razão pura prática (se aqui me é permitido usar destas denominações inadequadas só por analogia); a Lógica, por sua vez, foi dividida ali em Analítica dos conceitos e dos princípios e, aqui, na de princípios e de conceitos. A Estética, ainda, possuía ali duas partes, em razão do duplo modo de uma intuição sensível; não é a sensibilidade considerada aqui como capacidade de intuição, mas só como sentimento (que pode ser um fundamento subjetivo da apetência) e com relação a isso não permite qualquer outra divisão extraordinária a razão pura prática.

O que nesta divisão em duas partes aqui não se empreendeu, com as respectivas subdivisões (como de começo, pelo exemplo da primeira, poder-se-ia ser levado a intentar) tem um fundamento que se compreenderá perfeitamente bem. É que sendo a razão pura considerada aqui no seu uso prático, por conseguinte, partindo de princípios a priori e não de fundamentos de determinação empíricos, resulta que terá que ocorrer a divisão da analítica da razão pura prática, de modo semelhante ao de um silogismo (Vernunftschhus), isto é, passando do geral na maior (princípio moral) por meio de uma subsunção de ações possíveis (como boas e más) empreendidas na menor à conclusão, ou seja, à determinação subjetiva da vontade (interesse no bem prático possível e na máxima nele fundamentada). A quem se tenha convencido das proposições que se apresentam na Analítica, equivalências dessa natureza proporcionarão deleite, porque nos fazem elas conceber a esperança de poder chegar, quiçá, ao conhecimento da unidade total do poder da razão pura (tanto da teorética como da prática) e que possamos, em tudo, fazê-lo originar-se em um só princípio, a saber: a necessidade inevitável da razão humana, que só encontra plena satisfação em uma unidade completamente sistemática dos seus conhecimentos.

Mas se considerarmos também o conteúdo do conhecimento que possamos obter de uma razão pura prática e, ainda, que mediante ela, tal como se apresenta a analítica da mesma, encontraremos uma extraordinária analogia com a teórica, surgirão diferenciações não menos evidentes. Em considerações à teórica, pode a faculdade de um conhecimento puro da razão ser demonstrada a priori, com evidência e facilidade, por meio de exemplos colhidos das ciências (nas quais não há que temer embaralhamento secreto de fundamentos empíricos do conhecimento, tão facilmente como no conhecimento vulgar, já que as ciências põem à prova os seus princípios de maneiras diversas, mediante o uso metódico). Mas que a razão pura, sem qualquer mistura de fundamento empírico da determinação, seja por si só também prática, isso teve que expor pelo uso prático mais vulgar da razão, atestando o supremo princípio prático como um princípio desse teor, conhecido completamente a priori por toda a razão humana natural, independente de qualquer dado sensível como lei suprema da sua vontade. Foi necessário prová-lo e justificá-lo primeiramente quanto à força de sua origem, embora no juízo dessa razão vulgar, antes que a ciência pudesse tomá-lo em suas mãos para dele fazer uso como um fato que anteceda, por assim dizer, a toda a sutilidade acerca da sua possibilidade e a todas as conseqüências que pudessem ser dali tiradas. Mas esta circunstância é perfeitamente explicável pelo que se disse um pouco mais acima, porque a razão pura prática tem que começar necessariamente por princípios que devem, portanto, ser colocados como base de toda a ciência, como primeiros dados, não podendo originar-se inicialmente dela. Esta justificativa dos princípios morais, como princípios de uma razão pura, mediante um apelo vulgar ao juízo comum do entendimento humano, poderia ser concluída perfeitamente bem e com suficiente segurança, porque tudo o que é empírico e que, como fundamento de determinação da vontade, pudesse ser introduzido em nossas máximas, dá-se a conhecer logo, por meio do sentimento do prazer ou da dor que, necessariamente, a ele se une, enquanto excita apetites, opondo-se porém aquela razão pura prática a admitir precisamente esse sentimento como condição em seu princípio.

A heterogeneidade dos fundamentos de determinação (empírico e racional), dá-lhe a conhecer essa resistência de uma razão praticamente legisladora contra toda a inclinação que se imiscua, por meio de um modo de sensação peculiar a isso, a qual, todavia, não procede à legislação da razão prática, mas é efetuada de melhor forma só por esta mesma e na verdade como uma coação que é o sentimento de um respeito que nenhum homem tem para com as inclinações, sejam da classe que forem, mas sim para com a lei. Esta diferença ressalta de um modo tão claro e evidente que não há nenhum intelecto, ainda que seja o mais comum, que não se convença no momento, proposto um exemplo, de que, mediante fundamentos empíricos do querer, podemos certamente aconselhar-lhe a que siga as suas seduções, mas nunca se pode exigir dele que obedeça a outra coisa que não seja a lei pura prática da razão.

A distinção entre a doutrina da felicidade e a da moralidade, na primeira das quais os princípios empíricos constituem todo o fundamento, enquanto na segunda nem a menor intervenção dos mesmos se registra, é, na analítica da razão pura prática, a principal ocupação a que a mesma seja primacialmente obrigada, devendo nela proceder tão exatamente e, por assim dizer, tão escrupulosamente como o geômetra em relação aos seus cálculos. Mas para o filósofo que aqui deve (como sempre, no conhecimento racional por meros conceitos, sem operar-se a construção dos mesmos) lutar com maior dificuldade, porque não pode colocar nenhuma intenção como fundamento (em seu noumeno), assiste, contudo, a vantagem de poder, quase tanto como o químico, estabelecer aqui, a todo o tempo, uma experimentação com a razão prática de cada homem para distinguir o fundamento de determinação moral (puro) do empírico, podendo acrescentar à vontade empiricamente afetada (por exemplo a daquele que quisesse de bom grado mentir porque com isso pode ganhar alguma coisa) a lei moral (como fundamento de determinação.) É como que se o químico acrescentasse um álcali a uma solução de cal em espírito de sal; o espírito de sal abandona logo a cal, une-se com o álcali, precipitando-se aquela no fundo. Da mesma forma, apresentai a alguém que acima de tudo é um homem honrado (ou se coloca, pelo menos esta vez, só mentalmente, no lugar de um homem honrado) a lei moral, por meio do que reconhece ele a indignidade de um mentiroso e em seguida a sua razão prática (no juízo acerca do que mediante ele deveria ocorrer) abandona a utilidade para unir-se com aquilo que mantém o respeito para com a sua própria pessoa (a veracidade); então observareis que a vantagem, apenas separada de tudo o que possa constituir uma espécie de lastro para a razão (a qual se encontra apenas ao lado do dever) será agora apreciada no justo valor exigido para colocá-la em relação com a razão, embora em casos diversos deste, exceto onde poderia resultar inconciliável com a lei moral, porque a razão está intimamente unida a ela, não a abandonando nunca.

Mas esta distinção do princípio da felicidade do da moralidade não é, por isso, imediatamente oposição de ambos, sendo que a razão pura prática não consente que se deva, por sua parte, renunciar à pretensão de ser felizes, exigindo porém que, apenas entre em jogo o dever, não se tenha mais qualquer contemplação para com a felicidade. Pode até resultar em dever, sob certos aspectos, cuidar da própria felicidade; é que ela contém, em parte (já que a ela pertencem a habilidade, a saúde e a riqueza), meios para o cumprimento do dever e, em parte, porque a carência da mesma (por exemplo, a pobreza) encerra tentações de infligir o dever. Fomentar apenas a felicidade não constitui nunca um dever imediato e, muito menos, um princípio de todo o dever. Pois bem, embora todos os fundamentos de determinação da vontade, com exceção da única lei pura prática da razão (a moral) são em conjunto empíricos, pertencendo, como tais, ao princípio da felicidade; devem, portanto, todos eles, ser separados do princípio moral supremo e nunca ser incorporados a ele como condição, porque isso suprimiria todo o valor moral, da mesma forma que a mescla do empírico com os princípios geométricos suprimiria toda a evidência matemática, o que constitui (a juízo de Platão) a maior excelência que contém em si a matemática, precedendo à toda utilidade contida na mesma.

Em lugar da dedução do princípio supremo da razão pura prática, isto é, da explicação da possibilidade de semelhante conhecimento a priori, poderíamos aduzir apenas que, se pudéssemos considerar como possível a liberdade de uma causa eficiente, também poder-se-ia assegurar não só essa possibilidade, mas, ainda, a necessidade da existência da lei moral como lei prática suprema para os seres racionais aos quais se atribui liberdade na causalidade de sua vontade; é que ambos os conceitos se acham unidos tão inseparavelmente que a liberdade prática poderia ser definida também mediante a independência da vontade de toda outra lei, excetuada a lei moral. Mas a liberdade de uma causa eficiente, com especialidade no mundo dos sentidos, não pode ser compreendida de modo algum segundo a sua possibilidade; felizes somos nós se pudermos estar suficientemente seguros de que não pode existir prova alguma da sua impossibilidade e, agora, mediante a lei moral, que postula essa liberdade, obrigados e, precisamente também por isso, autorizados a aceitá-la. Mas ainda existe muita gente que acredita poder explicar sempre esta liberdade segundo princípios empíricos, como qualquer outra faculdade natural, considerando-a propriedade psicológica cuja explicação dependesse exclusivamente de uma lei investigadora mais exata da natureza da alma e dos motores da vontade, e não como predicado transcendental da causalidade de um ser, que pertence ao mundo dos sentidos (como em verdade aqui ocorre), suprimindo desse modo a magnífica perspectiva que abre diante de nós a razão pura prática por meio da lei moral, isto é, a perspectiva de um mundo intelectivo mediante à realização desse conceito, acima de tudo transcendente da liberdade, suprimindo, conseqüentemente, a própria lei moral que não admite nenhum motivo determinante empírico; devido isso tudo, será necessário apresentar aqui alguma coisa que nos ponha em guarda contra esta ilusão e, por sua vez, apresente o empirismo com toda a nudez própria de sua superficialidade.

O conceito de causalidade como necessidade natural, divergindo da causalidade como liberdade, concerne apenas à existência das coisas como determinável no tempo e, por conseguinte, também a causalidade, das mesmas coisas em si (que é o modo mais vulgar de apreciá-las) e das suas relações causais com a liberdade não podem ser unidas de qualquer modo, porque umas se opõem às outras. Resulta da primeira que toda a eventualidade, e, portanto, toda a ação que ocorre em dado momento se encontra necessariamente condicionada por aquilo que ocorreu no tempo anterior. Mas não estando o tempo anterior mais em meu poder, deve ser necessária toda a ação que eu exercito, por meio de fundamentos determinantes que não estão em meu poder, o que equivale a dizer que no momento em que ajo nunca sou livre. Digamos antes: ainda que eu admitisse a minha existência total como independente de toda a causa externa (por exemplo, de Deus) de modo que a minha existência total ou, melhor dizendo, os motivos determinantes da minha causalidade e até da minha existência não se encontrassem fora de mim, isto não transmudaria, nem mesmo no mínimo, essa necessidade natural em liberdade. É que em qualquer ponto do tempo eu me encontro sempre sob a necessidade de ser levado a agir determinadamente pelo que não está em meu poder e a série infinita das eventualidades que eu deveria ser levado a seguir e a executar ocorreria segundo uma ordem já pre-determinada e que nunca se iniciaria em mim mesmo, resultando em uma infinita sucessão de elos naturais, na qual não haveria lugar para a liberdade.

Desse modo, se quiséssemos atribuir liberdade a um ser cuja existência seja determinada no tempo, não podemos fugir, pelo menos sob esse ponto de vista, à existência desse ser e, conseqüentemente, também às suas ações, à lei da necessidade física, à qual estão submetidos, todas as eventualidades de sua existência e, portanto, de suas ações, o que equivaleria a abandoná-la ao mais cego acaso. Mas como esta lei, por outro lado, é concernente como inevitável a toda causalidade das coisas, enquanto a sua existência for determinável no tempo, resulta que, se não houvesse uma forma diversa de representar a existência dessas coisas consideradas em si mesmas, seria necessário repelir a liberdade como um conceito quimérico e impossível. Por conseguinte, se ainda desejarmos salvá-la, não nos resta outro caminho que não seja o de atribuir a existência de uma coisa enquanto determinável no tempo e, por isso, também a causalidade, segundo a lei da necessidade natural, simplesmente ao fenômeno, atribuindo, ainda, a liberdade a esse mesmo ser, considerado como coisa em si mesma. Certamente, isso logo resulta inevitável se desejarmos conservar ao mesmo tempo esses dois conceitos, que colidem entre si; mas na aplicação, quando desejarmos explicá-los como unidos em uma só ação, quando pretendemos explanar essa mesma união, surgem tão grandes dificuldades que parecem tornar impossível tal união.

Se em relação a um homem que cometeu um furto eu afirmo que tal ação, segundo a lei natural da causalidade para os motivos determinantes do tempo passado, é uma eventualidade necessária, isso equivale a dizer que não poderia deixar de cometê-la. Mas, então, como pode o juízo, segundo a lei moral, operar aqui qualquer modificação e aventar que tal ato poderia ser evitado porque a lei diz que não deveria ocorrer? Isso equivale a dizer: como pode, ao mesmo tempo, tendo a intenção dirigida para a mesma ação, ser qualificado completamente livre, quem ao mesmo tempo e com idêntica intenção está submetido a uma inevitável necessidade natural? Buscar uma saída dizendo que só ajustamos o modo dos fundamentos de determinação de sua causalidade, de acordo com a lei natural, a um conceito comparativo da liberdade (segundo o qual chamamos não raro efeito livre àquele cujo fundamento natural determinante está interiormente no ser agente, por exemplo o que leva ao termo um corpo arrojado quando esteja em livre movimento e assim como, em tal caso, usamos da palavra liberdade porque o corpo, enquanto está em marcha, não é impulsionado por nada que se encontre fora, ou também, como dizemos livre o movimento de um relógio porque move os seus ponteiros, sem que isso seja feito por impulso de fora, do mesmo modo as ações do homem, ainda quando para os seus fundamentos de determinação, que ocorrem no tempo, sejam necessárias, chamamo-las, não obstante a isso, livres, porque são representações interiores produzidas por nossas próprias forças, que possuem, como efeitos, desejos nascidos segundo circunstâncias ocasionais e, por conseguinte, ações produzidas segundo o nosso próprio gosto) — é um recurso mesquinho, com o qual ainda vão se entretendo certos indivíduos que pensam ter, desse modo, resolvido com uma minudência inexpressiva de palavras aquele dificílimo problema, para cuja solução se trabalhou inutilmente durante séculos e que, portanto, não poderia encontrar-se assim, tão superficialmente. Na questão daquela liberdade, que deve ser colocada na base das leis morais e da imputação conforme às mesmas, não se trata, de modo algum, de saber se a causalidade, determinada segundo a lei natural, é necessária por fundamentos de determinação situados no sujeito ou fora dele e, no primeiro caso, se tais fundamentos de determinação são instintivos ou pensados pela razão. Se essas representações determinantes, segundo confessam esses mesmos homens, possuem o fundamento de sua existência no tempo e precisamente em estado anterior e este, por sua vez em estado precedente e, assim, sucessivamente, então, por anteriores que sejam essas determinações, ainda que tenham uma causalidade psicológica e não mecânica, isto é, que realizem a ação por meio de representações e não por meio de movimento corpóreo, serão sempre fundamentos de determinação da causalidade de um ser, enquanto a sua existência é determinável no tempo, estando, portanto, sob condições do tempo passado, que agem necessariamente e, quando o sujeito deve agir, não se encontram mais em seu poder. Isto, sem dúvida, implica em liberdade psicológica (se quisermos designar desta forma uma aplicação a encadeamento vulgarmente interior nas representações da alma) mas, contudo, também em necessidade natural, não deixando portanto nenhuma liberdade transcendental, a qual deve ser concebida como independente de todo elemento empírico e, também, alheia à natureza em geral, consideremo-la como sujeito do sentido interno, como existente no tempo, como sujeito dos sentidos externos ou, ainda, como existente de uma só vez no espaço ou no tempo. Sem essa liberdade (na última significação apropriada) que só é prática a priori, não há lei moral possível e não existe também qualquer imputação viável, segundo a lei. Precisamente por isso, podemos dar, de acordo com a lei da causalidade, o nome de mecanismo da natureza a toda necessidade dos sucessos no tempo, embora por isso não seja de entender que as coisas a esse mecanismo submetidos tenham que ser verdadeiras máquinas materiais. Aqui só nos referimos à necessidade da conglobação das ocorrências em uma série temporal, tal e como se desenvolve segundo a lei natural, no sujeito a quem podemos denominar Automaton materiale, se a máquina é movida pela matéria ou, com Leibnitz, Automaton spirituale, quando é determinada a agir mediante representações; e se a liberdade da nossa vontade não fosse mais do que a esta última (a psicológica e relativa e não a transcendental ou, digamos, absoluta), não seria fundamentalmente melhor que a liberdade de um mecanismo que, dada a corda, por si mesmo executa os seus movimentos.

Entretanto, para que desapareça do exemplo em apreço a aparente contradição que resulta entre o mecanismo natural e a liberdade, dentro da mesma ação, devemos reaviver, no caso exposto, o que ficou dito na Crítica da razão pura ou então o que disso resulta: que a necessidade natural, que não pode coexistir com a liberdade do sujeito, só se refere às determinações da coisa que se encontre sob as condições do tempo, por conseguinte, só às do sujeito agente considerado como fenômeno, cujas ações, como também os motivos que os determinam, jazem no tempo passado e que não está mais em seu poder (dentro do qual também se deve compreender os seus atos já realizados e o caráter por eles determinável ante os seus próprios olhos, mediante o estudo de suas ações como fenômenos. Todavia o mesmo sujeito que, precisamente, por outro lado, tem a consciência de si mesmo como de uma coisa em si, considera também a sua existência como não submetida às condições do tempo e a si próprio como determinada simplesmente por leis que recebe da razão individual. Nessa existência não há nada anterior à determinação da sua vontade, mas toda a ação e, em geral, qualquer mutação de determinação que ocorre na sua existência em correlação com o sentido íntimo, como, também a totalidade das suas ocorrências na existência como não submetida às condições do tempo, considerando-se a si mesmo como determinável em virtude de leis que recebe da própria razão, sendo que, por sua existência, não concebe nada que seja anterior à determinação de sua vontade; mas toda a ação, e, em geral, toda a determinação de sua existência, determinação que varia segundo a transmutação que se opera em seu sentido interno e, também, a totalidade de ocorrências de sua existência como ser sensível, não se relaciona com a consciência de sua inteligência, determinação que varia segundo a mudança que se opera em seu sentido interno, inclusive toda a sucessão de sua inteligência, como ser de sentidos, não é de considerar-se, na consciência de sua existência inteligível, senão como conseqüência, mas nunca como fundamento de determinação de sua causalidade como noumeno. Entretanto, pode, sob tal aspecto, o ser racional dizer, em verdade, de toda a ação que contraria a lei que ele leva a cabo, ainda mesmo quando como fenômeno esteja suficientemente determinada no passado e seja, nesse sentido, absolutamente necessária, que poderia ser levado a omiti-la; é que ela, com todo o passado que a determina, pertence a um único fenômeno do seu caráter que ele se proporcionou e, segundo o qual, como causa independente de toda a sensibilidade, vem imputar a si mesmo a causalidade daqueles fenômenos.

Concordam em tudo com isto os fatos daquela maravilhosa faculdade que denominamos consciência (Gewissen). Um homem pode usar de todos os recursos para justificar ação contrária à lei, alegando que o fez por erro involuntário ou simples inadvertência, coisas que, por outro lado, nem sempre é possível evitar; pode, ainda, encontrar-se em uma situação desagradável, arrastado por uma necessidade natural e, contudo, declarar-se inocente; não obstante a isso, pensará sempre que o advogado que pleitear em seu favor não pode, de modo algum, sufocar em si o acusador, caso tenha tão somente consciência de que no tempo que praticou a injustiça se encontrava em perfeito juízo, isto é, em pleno uso de sua liberdade. Ainda que explique a sua falta por certo vezo que tiver nesse particular, adquirido por um lento abandono da atenção sobre si mesmo, até o ponto de não poder considerá-la como uma conseqüência natural da mesma, isto tudo, entretanto, não pode livrar-lhe da própria crítica e da acusação que formula contra si próprio. Fundamenta-se também nisso o arrependimento de um ato cometido faz longo tempo, quando é recordado, sensação dolorosa, experimentada pela disposição moral do ânimo. É, porém, um sentimento tão estéril que não consegue evitar tudo aquilo que se fez; isso, aliás, seria absurdo (como reconheceu Priestley, fatalista verídico que procede conseqüentemente, sendo esta a franqueza pela qual merece mais aplausos do que aqueles que enquanto sustentam na realidade o mecanismo da vontade e só por palavras a liberdade da mesma, querem, contudo, ser considerados como partidários da liberdade, porque, sem tornar compreensível a possibilidade da imputação, todavia a admitem no seu sistema sincrético), mas, como dor, esse arrependimento é legítimo, porque a razão, quando se trata da lei de nossa existência inteligível (da lei moral) não reconhece distinção alguma de tempo, indagando se o caso me pertence como ato, unindo em seguida, sempre com ele, moralmente, a mesma sensação, ocorra esse fato agora ou tenha acontecido há muito tempo. É que a vida sensível tem, em consideração da consciência inteligível de sua existência (da liberdade) a absoluta unidade de um fenômeno (Phänomens) que, enquanto só contém fenômenos (Erscheinungen) da disposição de ânimo que convém à lei moral (do caráter) não tem que ser julgado segundo a absoluta espontaneidade da liberdade. Pode-se, portanto, admitir que se nos fosse possível ter no modo de pensar de um homem, tal como se mostra por atos interiores e exteriores, uma visão tão profunda a ponto de todo o motor, ainda mesmo o mais insignificante, resultasse conhecido e, do mesmo modo, todas as circunstâncias exteriores que ajam sobre ele, chegar-se-ia então a calcular com segurança a conduta de um homem no porvir, como as eclipses do sol ou da lua e, não obstante a isso, sustentar que o homem é livre. Se fôssemos capazes de outra contemplação (que não nos foi concedida, mas da qual só possuímos conceitos racionais), isto é, se fôssemos capazes de uma intuição intelectual do mesmo sujeito, logo nos aperceberíamos de que toda esta cadeia de fenômenos, naquilo que só pode interessar sempre à lei moral, depende da espontaneidade do sujeito como coisa em si mesma, de cuja determinação não se pode dar nenhuma explicação física. Em conseqüência desta intenção, assegura-nos a lei moral esta diferença de relação que se refere às nossas ações como fenômenos, ao ser sensível do nosso sujeito, daquela outra pela qual este ser sensível é propriamente referido ao substrato inteligível em nós mesmos. Em relação a isso, que é natural perante a nossa razão, ainda mesmo quando resulta explicável para ela, podemos também justificar juízos pronunciados com plena consciência e que parecem, todavia, à primeira vista, contradizer completamente toda a eqüidade. Casos há em que homens, desde a infância, ainda mesmo quando dotados de uma educação proveitosa para outros que se educaram ao mesmo tempo, mostram, contudo, malícia tão precoce e continuam a aumentá-la de tal modo até a idade de homem que os temos por perversos natos e inteiramente incorrigíveis, isso no que concerne ao modo de pensar, mas, se os julgarmos por suas ações e omissões, recriminando-os pelos seus deslizes e culpas, até eles próprio (os meninos) encontram fundamento nessas imputações, como se eles, sem ter em conta a condição natural desesperada que se atribui ao seu ânimo, tão responsável fossem como qualquer outro homem. Isso não teria ocorrido se nós não propuséssemos que tudo o que se origina em seu arbítrio (como, sem dúvida, em toda a ação levada a efeito premeditadamente), tem como base uma livre causalidade que, desde a mais tenra juventude, revela o caráter nos seus fenômenos (as ações), as quais, em conseqüência da uniformidade da conduta, dão a conhecer uma conexão natural que, todavia, não torna necessária a perversa condição da vontade, sendo isso, acima de tudo, a conseqüência dos princípios maus e imutáveis, livremente adotados, os quais o tornam ainda mais dignos de castigo e reprováveis.

Resta ainda uma dificuldade no que concerne à liberdade, quando deve ela ser unida com o mecanismo natural, em um ser pertencente ao mundo dos sentidos, dificuldade que, ainda mesmo depois que todo o anteriormente exposto deva ser admitido, ameaça ainda a liberdade da mais completa ruína. Mas nesse perigo, ao mesmo tempo, uma circunstância faculta a esperança de um feliz resultado para a afirmação da liberdade, sendo que esta mesma dificuldade oprime com força bem maior (na realidade, como veremos logo, apenas oprime) o sistema onde se colhe a existência determinável no tempo e no espaço, existência tornada como das coisas em si mesmas, não nos obrigando, portanto, a abandonar a nossa principal suposição da idealidade do tempo, qual forma vulgar de intuição sensível e, conseqüentemente, mero processo de representação, próprio ao sujeito enquanto pertencente ao mundo dos sentidos, exigindo apenas, portanto, uni-la com esta idéia.

Se, também alcançarmos que o sujeito inteligível possa ser livre em relação a determinada ação, ainda quando, como sujeito pertencente também ao mundo dos sentidos, esteja mecanicamente condicionado no referente a ela, parece que, desde que se aceite que Deus, como primeiro ser universal, é também a causa da existência da substância (proposição que nunca pode ser abandonada sem que se abandone, ao mesmo tempo e com ela, o conceito de Deus como ser de todos os seres e, conseqüentemente, a sua onisuficiência, da qual, na Teologia, tudo depende), deveremos, também, aceitar que as ações do homem têm n’Aquele o seu fundamento determinante, estando isso, desse modo, inteiramente fora do seu poder, isto é, na causalidade de um ser supremo distinto inteiramente dele, do qual depende em tudo a existência do primeiro e toda a determinação de sua causalidade. Na realidade, se as ações do homem, assim como pertencem à sua determinação no tempo, não fossem determinações vulgares do mesmo como fenômeno, mas sim como coisa em si mesma, a liberdade não se salvaria. O homem não passaria de um fantoche ou de um autômato de Vaucanson, construído, carregado de força e posto em movimento pelo Supremo Artífice de todas as coisas, tornando-o a consciência de si mesmo, na verdade, um autômato pensante no qual, todavia, a consciência de sua espontaneidade, considerada como liberdade, seria um simples equívoco, já que só comparativamente mereceria ser assim denominada, porquanto embora as causas próximas determinantes do seu movimento e uma extensa série das mesmas para além de sua causa determinante, são na verdade interiores; por outro lado, a última e suprema se encontra de todo em mão alheia. É por isso que eu não vejo como os que ainda se empenham em considerar o tempo e o espaço como determinantes pertencentes à existência das coisas em si mesmas, querem evitar aqui a fatalidade das ações; ou então, se admitem eles ambas as determinações (como fez o arguto Mendelssohn) diretamente, só como condições que pertencem necessariamente à existência de seres finitos e derivados, mas não à do ser primeiro infinito, não como irão justificar onde colherão eles o direito de fazer tal distinção, nem como possam evitar a contradição em que incidem considerando a existência no tempo como determinação adstrita necessariamente às coisas finitas em si mesmas, embora Deus, que é a causa desta existência, não pode, contudo, ser a causa do tempo (ou do espaço) em si (porque este, como condição necessária a priori, deve ser pressuposto à existência das coisas), e sua causalidade, por conseguinte, deve, em relação à existência destas próprias coisas, ser condicionadas segundo o tempo, com o qual devem, inevitavelmente, entrar todas as contradições relativas aos conceitos de sua finalidade e independência. Por outro lado, a determinação da existência divina, como independente de todas as condições de tempo, diferenciando-se da de um ser o mundo sensível, é fácil de ser distinguida como existência de um ser em si mesmo, diversamente da de uma coisa no fenômeno. Por isso, quando não se admite aquela idealização do tempo e do espaço não resta mais do que o espinozismo, no qual tanto o espaço como o tempo são determinações essenciais do primeiro ser propriamente dito, mas as coisas, dependentes dele (dessa forma, também nós) não são substâncias mas só acidentes a ele inerentes, porque se estas coisas existem apenas como seu efeito, no tempo, o qual seria a condição da existência em si mesma, também as ações desses seres teriam que ser só ações que levou ele a termo em algum tempo e lugar. Por isso, o espinozismo, posto de lado o absurdo de sua idéia fundamental, conclui, apesar de tudo, com muito maior vigor lógico do que se possa concluir segundo a teoria da criação, quando, considerando os seres como substâncias e como seres existentes em si no tempo, são tidos como efeitos de uma causa suprema e, contudo, ao mesmo tempo, como não pertencentes a ela e à sua ação, mas por si mesmos como substâncias.

Dir-se-ia, entretanto, que a solução apontada acima pode ser exposta com clareza do seguinte modo: Se a existência no tempo é só um modo de representação sensível dos seres pensantes no mundo e, por conseguinte, não pertence a estes seres como coisas em si, a criação destes seres é uma criação das coisas em si mesmas, porque o conceito de uma criação não pertence ao modo de representação sensível da existência nem à causalidade mas só pode referir-se aos noumenos. Assim como seria uma contradição dizer que Deus é um criador de fenômenos, da mesma forma é uma contradição dizer que Ele, como criador, é a causa das ações no mundo sensível, isto é, das ações como fenômenos, ainda quando seja causa da existência dos seres agentes (como noumenos). Pois bem, se é possível (admitindo tão somente a existência no tempo como algo que só vale pelos fenômenos e não pelas coisas em si mesmas) afirmar a liberdade, sem prejuízo do mecanismo natural das ações como fenômenos, então o fato dos seres agentes serem criaturas não pode produzir aqui a mínima transformação, porque a criação concerne à sua existência inteligível, mas não à sensível, não podendo, ser considerada, portanto, como fundamento de determinação dos fenômenos; mas isso resultaria de todo distinto se os seres do mundo existissem no tempo como coisas em si mesmas, pois o criador da substância seria ao mesmo tempo o autor de toda a maquinaria de tal substância.

Disso resulta a grande importância da separação feita na Crítica da razão pura especulativa entre o tempo (assim como o espaço) e a existência das coisas em si mesmas.

A solução aqui proposta para a dificuldade tem, na verdade, muitas dificuldades em si, sendo apenas suscetível de ser exposta com clareza. Mas será que qualquer outra das que se tentaram ou se tentarão resulta mais fácil, mais compreensível? Poder-se-ia dizer com maior propriedade que os mestres dogmáticos da Metafísica mostraram mais astúcia do que sinceridade, deslocando da vista o quanto possível este ponto dificílimo, com a esperança de que, se nada disséssemos nesse particular, ninguém facilmente em tal pensaria. Se devemos ajudar a uma ciência, é necessário descobrir todas as dificuldades e até buscar aquelas que secretamente se encontram no seu caminho; é que cada uma delas requer um remédio que se não pode encontrar sem propiciar à ciência um relativo crescimento, seja em extensão ou em determinação, donde se conclui, portanto, que os próprios obstáculos chegam a constituir meios de fomentar a solidez da ciência. Por outro lado, se as dificuldades se ocultam intencionalmente ou se resolvem apenas com paliativos, resultarão, cedo ou tarde, em males irremediáveis que precipitarão a ciência no mais completo ceticismo.

***

Como o conceito da liberdade é propriamente o único, entre todas as idéias da razão pura especulativa, que faculta um extenso conhecimento no campo do supra-sensível, ainda que seja apenas em relação ao conhecimento prático, eu sou levado a perguntar: onde poderá ter obtido, exclusivamente para si, tão grande fecundidade, enquanto que os demais, embora assinalem o lugar vago para colocar os possíveis seres racionais puros, não conseguem, todavia, determinar com algo o conceito desses seres? A minha compreensão logo dirá que, já que nada posso pensar sem categoria, esta deve ser colhida primeiramente também na idéia de razão da liberdade, com a qual eu me ocupo, categoria que aqui é a causalidade e, logo, saberei que, ainda mesmo quando ao conceito racional da liberdade, como conceito transcendente, não pode ser submetida nenhuma intuição correspondente, todavia, ao conceito intelectivo (a causalidade) para cuja síntese requer aquele conceito racional o incondicionado, deve ser propiciada ao mesmo, anteriormente, uma intuição sensível mediante a qual lhe é assegurada, antes de tudo, a realidade objetiva. Ainda bem: todas as categorias são divisíveis em duas classes, a saber: as matemáticas, que só se referem à unidade da síntese na representação dos objetos, e as dinâmicas, que se referem à unidade da síntese na representação da existência dos objetos. As primeiras (as de grandeza e qualidade) contêm sempre uma síntese do homogêneo, na qual o incondicionado não pode surgir no condicionado, no espaço e no tempo, dado na intuição sensível, porque, nesse caso, ele próprio, por sua vez, deveria pertencer ao espaço e ao tempo e, por isso, ser sempre novamente condicionado; é por essa razão, também, que na dialética da razão pura teorética os modos de encontrar o incondicionado e a totalidade das condições para essas categorias, sendo opostos um ao outro, eram ambos inteiramente falsos. As categorias da segunda classe (as da causalidade e da necessidade de uma coisa) não exigiam de modo algum essa homogeneidade (do condicionado e da condição na síntese), porque aqui o que se deve considerar na intuição não é o conjunto dos elementos que contém, mas, sim, a existência do objeto condicionado a ela, unindo-se à existência da condição (no entendimento, como conexa à existência do objeto), sendo, então, lícito colocar no mundo dos sentidos, para o condicionado total (tanto em relação à causalidade como à existência causal das próprias coisas), o incondicionado, ainda mesmo quando indeterminado pelo demais, no mundo inteligível, tornando, dessa forma, transcendente a síntese. Por isso, na dialética da razão pura especulativa, resultou também que ambos os modos, opostos, na aparência, um ao outro, de encontrar o incondicionado para o condicionado na síntese da causalidade, na realidade não eram contraditórios entre si; não há por exemplo, na síntese da causalidade qualquer contradição no fato de conceber-se para o condicionado, que consiste na série das causas e dos efeitos do mundo sensível, uma causalidade sequer que não esteja submetida a condição sensível, seja qual for a própria ação que, enquanto pertence ao mundo sensível, está sempre submetida a condições sensíveis, isto é, resulta mecanicamente necessária, pode, ao mesmo tempo, como pertencente ao ser agente participante do mundo inteligível, ter por fundamento uma causalidade sensivelmente incondicionada e, por conseguinte, ser concebida como livre. Convenhamos: só se tratava de demonstrar com singeleza como este poder pode ser transformado em ser, isto é, de tornar evidente, em um caso real, por assim dizer, mediante um fato, que certas ações fazem supor uma causalidade semelhante (a intelectual, sensivelmente incondicionada), sejam elas reais ou apenas ordenadas, isto é, prática e objetivamente necessárias. Não podíamos esperar de ações reais dadas na experiência, como sucesso do mundo sensível, esta conexão, porque a causalidade deve ser colhida pela liberdade fora do mundo sensível — no inteligível.

Fora dos seres sensíveis não nos são dadas outras coisas além das atinentes à percepção e à observação. Não nos restava, portanto, nada mais do que encontrar um princípio incontroversível e objetivo da causalidade, capaz de excluir da sua determinação qualquer condição sensível, isto é, um princípio cuja relação não se fundamentasse sobre alguma coisa como princípio determinante da causalidade, mas que ela mesma constituísse esse princípio, no qual, por conseguinte, sendo razão pura, surgisse ela própria como razão prática. Não era porém necessário buscar ou destruir este princípio; encontrava-se o mesmo há longo tempo, na razão de todos os homens, sendo corporificado à sua essência e constituindo o princípio da moralidade. Deste modo, portanto, esta causalidade, não se sujeita a condição alguma e o seu poder, a liberdade, e com esta um ser (eu mesmo) que pertence ao mundo sensível, não só é, como pertencente também ao intelectivo, indeterminada e problematicamente pensado (coisa que já a razão especulativa poderia descobrir como possível) mas, também, conhecido e assertoricamente determinado até em relação à lei de sua causalidade, sendo-nos esta, assim, dada a realidade do mundo inteligível, em verdade, praticamente determinada, resultando tal determinação, que seria transcendente no seu sentido teórico, imanente sob o ponto de vista prático. Não podíamos articular porém o mesmo passo em relação à segunda idéia dinâmica, isto é, a de um ser necessário. Sem a mediação da primeira idéia dinâmica, não nos seria dado chegar a ele, partindo do mundo sensível. Se quiséssemos tentar isso, deveríamos ousar fazer um longo salto, abandonando tudo o que nos é possível conhecer aqui para lançarmo-nos até onde nada conhecemos capaz de proporcionar-nos algo de útil, onde pudéssemos facilitar a reunião de semelhante ser inteligível com o mundo sensível (porque o ser necessário devia ser conhecido como existente fora de nós); mas, por outro lado, isto constitui agora, como o prova a evidência, ação bem possível em relação ao nosso próprio sujeito, quando a lei moral se determina por um lado como ser inteligível (graças à liberdade), por outro lado conhecendo-se a si mesmo como ativo, segundo esta determinação, no mundo sensível. Só o conceito da liberdade permite que não tenhamos que sair fora de nós mesmos para encontrar o incondicionado e inteligível para o condicionado e sensível. É a nossa própria razão que se conhece a si mesma por meio da suprema e incondicionada lei prática, reconhecendo-se o ser que tem consciência desta lei (a nossa pessoa), como pertencente ao mundo puro do entendimento e, por certo, até com a determinação do modo que com ele, como tal, pode ser ativo. Pode-se compreender desse modo porque, em toda a faculdade da razão, pode ser a prática aquela que nos ajuda a sair do mundo sensível, proporcionando-nos conhecimentos de uma ordem e conexão supra-sensível e que, por isso mesmo, não podem ser estendidos mais do que até onde seja necessário sob o ponto de vista puro prático.

Seja-me apenas permitido neste momento chamar a atenção sobre uma coisa: que todo o passo que se dá com a razão pura, inclusive no campo prático, é onde não se leva em conta qualquer especulação, por sutil que seja, ajuste-se a mesma, em verdade e exatamente por si mesma com todos os momentos da crítica da razão teórica, como se cada passo fosse prudentemente imaginado para chegar a esta confirmação. Um confronto exato, de modo algum procurado, mas (como nos podemos convencer por nós mesmos, desde que desejemos prosseguir as pesquisas morais até as suas raízes) que se depare entre os princípios mais importantes da razão prática, juntamente com aquelas observações da crítica da razão especulativa, que amiudadamente se parecem sutis em demasia e até desnecessárias, é coisa surpreendente e maravilhosa, confirmando a máxima conhecida e exaltada por tantos outros, de que em toda a indagação científica há necessidade de prosseguir tranqüilamente o caminho próprio, com toda a exatidão e sinceridade possíveis, sem levar em conta tudo aquilo que poderia opor-se à mesma fora do seu domínio, executando-se por si mesma, enquanto possível, de um modo complexo e verdadeiro.

Uma freqüente observação já me convenceu de que, quando este assunto se conduziu a seu fim, o que em meio dele e em relação a outras doutrinas se me afigurava quiçá muito incerto, desde que eu não atendesse a essa incerteza e me consagrasse simplesmente ao meu objetivo, uma vez terminada essa tarefa, concordava a mesma, de um modo inesperado mas perfeitamente bem, com o que encontrara ela por si mesma sem a mínima consideração para com as citadas doutrinas, sem qualquer parcialidade ou deferência para com elas. Os escritores evitariam muitos erros e demasiados esforços inúteis (porquanto foram empregados em ilusões) se determinassem pôr mãos à obra com um pouco mais de sinceridade.


 

LIVRO SEGUNDO

DIALÉTICA DA
RAZÃO PURA PRÁTICA


 

CAPÍTULO PRIMEIRO

DE UMA DIALÉTICA DA
RAZÃO PURA PRÁTICA EM GERAL

 

A razão pura, considerada no seu uso especulativo ou prático, tem sempre a sua dialética, pois exige a absoluta totalidade das condições para um dado condicionado, não podendo ela encontrar-se absolutamente fora das coisas em si mesmas. Mas como todos os conceitos das coisas só podem ter referências a intuições, as quais em nós, os homens, não podem apresentar-se senão sensíveis, não deixando, por conseguinte, conhecer os objetos como coisas em si mesmas, mas só como fenômenos, em cuja série do condicionado e das condições não podemos encontrar nunca o incondicionado, surge assim uma inevitável ilusão ao aplicarmos essa idéia da razão da totalidade das condições (por conseguinte, do incondicionado) aos fenômenos, como se estes fossem coisas em si mesmas (pois como tais são considerados sempre, quando lhes falta uma crítica preventiva); mas essa ilusão não seria notada como enganosa, se não se delatasse a si próprio por uma contradição da razão para com si mesma, ao aplicar aos fenômenos o seu princípio de supor o incondicionado para todo o condicionado. Mas, por isso, a razão se vê obrigada a procurar as pegadas dessa ilusão, donde provêm e como pode ser resolvida, coisa que só poderá fazer-se mediante uma crítica completa de toda a faculdade pura da razão, de tal modo que a antinomia da razão pura, que se manifesta em sua dialética, é na realidade, o erro mais benfazejo em que pudesse por uma vez incorrer a razão humana, pois nos impele finalmente a buscar a chave para sair de tal labirinto; e essa chave, uma vez encontrada, vem revelar-nos o que não se procurava e, contudo, aqui se necessita, a saber: uma perspectiva em mais elevada ordem de coisas, imutável, na qual já estamos e, mediante certos preceitos, poderemos, através dela, continuar a nossa existência, de acordo com a suprema determinação da razão.

Como mediante o uso especulativo da razão pura devamos resolver aquela dialética natural e possamos evitar o erro, surgido de uma ilusão além de tudo natural, é coisa que encontraremos com amplos detalhes na crítica daquela faculdade. Mas para a razão, no seu uso prático, as coisas não correm da melhor forma possível. É que, com razão pura prática, busca ela para o praticamente condicionado (que é o que se fundamenta sobre as inclinações e sobre necessidade natural) também o incondicionado, e não como princípio de determinação da vontade, mas, embora tenha esta sido dada (na lei moral) a totalidade do objeto, não condicionado, na razão pura prática com o nome de sumo bem.

Determinar essa idéia praticamente, isto é, de um modo suficiente para a máxima da nossa conduta racional, constitui a doutrina da sabedoria; por sua vez, esta, como ciência, é a filosofia no significado que os antigos davam à tal palavra, em meio dos quais era um ensino do conceito em que se devia colocar o sumo bem e a conduta necessária para conquistá-lo. Seria conveniente que deixássemos a esta palavra a sua antiga significação como uma doutrina do sumo bem enquanto a razão procura elevá-la até a ciência. Por um lado, com efeito, a condição restritiva que conduz em si mesma seria correlata à expressão grega (que significa amor à sabedoria) e, ao mesmo tempo, suficiente para compreender sob o nome de filosofia, o amor à ciência e, por conseguinte, a todo o conhecimento especulativo da razão, enquanto o serve tanto para aquele conceito, como também para o fundamento prático de determinação, sem contudo perder de vista o fim principal pelo qual somente pode ser denominada doutrina da sabedoria. Por outro lado, não seria também nocivo atemorizar a presunção daquele que se atrevesse a pretender o título de filósofo, apresentando-lhe logo, na própria definição, a medida de sua estimativa real, o que rebaixaria em muito as suas pretensões; é que ser um mestre de sabedoria deve significar sempre um pouco mais do que a condição de discípulo que ainda não chegou bastante longe para dirigir-se a si mesmo e, muito menos, aos outros, com a esperança segura de conseguir um fim tão elevado; significaria um mestre no conhecimento da sabedoria, o que indica mais do que um homem modesto possa atribuir-se a si mesmo, continuando sempre a filosofia, como a própria sabedoria, na posição de um ideal que objetivamente, só na razão, é completamente representado, mas, para o indivíduo, constitui apenas o objeto do seu esforço constante.

Proclamar que está na posse disso tudo e inculcar-se o nome filósofo é situação a que só tem direito aquele que também pode apresentar como exemplo em sua pessoa o efeito indefectível do mesmo (o domínio de si próprio e o interesse indubitável que, preferentemente, vem a tomar no bem comum); é isso, também, que os antigos exigiam para que se pudesse merecer aquele honroso nome.

Em relação à dialética da razão pura prática, no concernente à determinação do conceito do sumo bem (que, se a sua solução se consegue tão bem como a da teórica) admite esperar o mais benéfico dos efeitos, porque as contradições, sinceramente apresentadas e não ocultas da razão pura prática em si mesma, obrigam a uma crítica completa de sua própria faculdade, apenas nos resta recordar uma coisa.

A lei moral é o único motivo determinante da vontade pura. Mas, embora esta lei seja formal (isto é, só exige que a forma da máxima possa ser universalmente legisladora), vem abstrair-se, como princípio determinante, de toda matéria e, conseqüentemente, de todo objeto do querer. Por conseguinte, ainda que o sumo bem seja o objeto de uma razão pura prática, isto é, de uma vontade pura, não se deve considerá-lo como o fundamento de determinação da mesma, devendo a lei moral ser considerada só apenas como o fundamento para propor-se como objeto àquele supremo bem, o que poderá ser obtido mediante a sua realização ou antecipação. Esta observação em um caso tão delicado como a determinação de princípios morais é de grande importância, porquanto o mais leve mal entendido é suficiente para falsear as intenções. Por meio da Analítica, já se poderá ter visto que, aceitando antes da lei moral algum objeto sob o nome de um bem como fundamento de determinação da vontade, para derivar dele o supremo princípio prático, então equivaleria este a uma heteronomia que se imiscuirá no princípio moral.

Da mesma forma, facílimo é compreender que se no conceito do bem supremo já está incluída a lei moral como suprema condição, então o sumo bem não só é objeto como, também, o conceito e a representação da existência do mesmo, possível mediante a nossa razão prática, constitui ao mesmo tempo o fundamento de determinação da vontade pura, porque então, na realidade, a lei moral, já incluída neste conceito é concebida mediante ele e não para com algum outro objeto, determina a vontade segundo o princípio da autonomia. Esta ordenação dos conceitos da determinação da vontade não se deve perder de vista, porque, de modo inverso advirão falsas interpretações, acreditando-se encontrar contradições onde, na realidade, reina a mais completa, recíproca e perfeita das harmonias.


 

CAPÍTULO SEGUNDO

DA DIALÉTICA DA RAZÃO PURA NA
DETERMINAÇÃO DO CONCEITO DO SUMO BEM

 

O conceito do sumo contém por si um equívoco que, não sendo tido em conta, pode criar inúteis disputas. Sumo pode significar supremo (supremum) ou também acabado (consumatum). Designa o primeiro aquela condição que é incondicionada em si mesma, isto é, não está submetida a qualquer outra (originarium); o segundo exemplifica aquele todo que não é parte alguma de um todo maior da mesma classe (perfectissimum). Que a virtude (como dignidade de ser feliz) seja a mais elevada condição de tudo o que nos possa parecer apenas apetecível e, por conseguinte, também de toda a nossa busca de felicidade, demonstrou-se por meio da analítica, onde ficou patente ser ela o bem mais elevado. Mas nem por isso constitui o bem mais completo e acabado como objeto da faculdade de desejar nos seres racionais finitos, pois para sê-lo também se exige felicidade, e isto, em verdade, não só na opinião da pessoa parcial que de si mesmo faz o fim, como, também, no juízo de uma razão imparcial que a considera no mundo, em geral, como fim em si mesmo. Porquanto é necessário convir que aspirar a felicidade, ser digno dela e, contudo, não participar da mesma é coisa que não pode coexistir com o perfeito desejo de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo todo o poder, se imaginarmos um ser semelhante, ainda que seja a simples título de ensaio. Pois bem: enquanto a virtude e a felicidade constituem conjuntamente a posse do sumo bem em uma pessoa e enquanto, além disso, estando a felicidade repartida exatamente, em proporção idêntica, à moralidade (como valor da pessoa e da sua dignidade de ser feliz), constituem ambas o sumo bem de um mundo possível, isto significa o mais completo e acabado bem; neste, todavia, a virtude é sempre, como condição, o bem mais elevado, porque não tem sobre si nenhuma outra condição, enquanto a felicidade apresenta alguma coisa que é agradável para aquele que possui, mas sem ser por si mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado que supõe, constantemente, de acordo com a lei, a conduta moral como condição.

Duas determinações necessariamente ligadas num conceito, devem ser conexas como princípio e conseqüência, isso de tal modo que esta unidade seja considerada como analítica (conexão lógica) ou como sintética (ligação real), aquela segundo a lei da identidade e esta segundo a da causalidade. A correlação da virtude com a felicidade pode ser compreendida de tal modo que, ou o esforço de um ser virtuoso e a racional procura da felicidade sejam duas ações não diversas entre si, mas idênticas em tudo, porque então, pela primeira vez, seria prescindível a necessidade de qualquer outra máxima afora aquela que serve de base à segunda; ou então, aquela conexão deve ser fundamentada no fato da virtude produzir a felicidade como coisa distinta da consciência daquela, da mesma forma que a causa produz o efeito.

Entre as antigas escolas gregas só duas houve que seguiram propriamente um método idêntico na determinação do conceito do sumo bem, pois não davam à virtude e à felicidade o valor de dois elementos distintos do sumo bem, buscando, por conseguinte, a unidade do princípio, segundo a regra da identidade; mas, por outro lado, essas escolas se separavam no concernente à escolha do conceito fundamental. Diziam os epicúreos: possuir a consciência da máxima que conduz à felicidade, tal é a virtude; diziam os estóicos: ter consciência da virtude, é a felicidade. Para os primeiros, a prudência equivalia à moralidade; para os segundos, que escolhiam uma denominação mais elevada para a virtude, só a moralidade era a sabedoria verdadeira.

É de lamentar que a perspicácia destes homens (que devemos, ao mesmo tempo, admirar, porque já haviam empreendido em época tão distanciada a conquista dos caminhos plausíveis da filosofia) fosse tão desafortunadamente empregada para descobrir uma identidade entre conceitos sumamente heterogêneos: o da felicidade e o da virtude. Mas ao espírito dialético daquele tempo convinha o que agora também seduz, não raras vezes, certas mentalidades sutis: suprimir nos princípios diferenciações essenciais e irredutíveis, tratando de transformá-las em discussões verbais e, assim, instaurando artificiosamente uma unidade aparente do conceito, só debaixo de distintas denominações. É o que ocorre comumente naqueles casos, quando a união de princípios heterogêneos tão profunda se torna ou tão elevada, ou, ainda, viria exigir tão radical transformação de doutrinas, sobretudo acolhidas no sistema filosófico, que é de temer aprofundar-se em sua diferença real, tratando-se preferentemente como dissidência em coisas formalísticas comuns.

Embora tratassem ambas as escolas de descobrir a identidade do princípio prático da virtude e o da felicidade, nem por isso eram concordantes acerca do modo de estabelecê-la: uma colocava o seu princípio no lado estético, outra no lógico; aquela na consciência da necessidade sensível, esta na independência da razão prática em relação a todos os fundamentos sensíveis de determinação. O conceito do sensível já se encontrava, segundo os epicúreos, na máxima fomentadora de sua própria felicidade; o sentimento da felicidade, por outro lado, já se incluía, segundo os estóicos, na consciência da sua virtude. Mas o que já está incluído em outro conceito, se bem seja idêntico a uma parte do conteúdo, não o é, entretanto, com o todo, podendo, além disso, dois todos ser especificamente distintos um do outro, ainda quando consistam precisamente em idêntica matéria, se em ambos as partes estão unidas no todo de modo bem diverso. Os estóicos sustentavam que a virtude era todo o sumo bem, e que a felicidade não passava da consciência da posse do mesmo, como pertencente ao estado do sujeito. Os epicúreos que a felicidade era todo o sumo bem, não sendo a virtude nada mais do que a forma da máxima para adquiri-la, isto é, no uso racional dos meios para a mesma.

Estabeleceu, contudo, a analítica com a maior clareza que as máximas da virtude e as da própria felicidade são, em relação ao seu princípio superior prático, totalmente heterogêneas e, longe de concordarem, embora pertençam a um supremo bem, para torná-lo possível, limitam-se, prejudicando imenso uma e outra no mesmo sujeito. De modo que a questão: como é praticamente possível o sumo bem, continua sendo sempre um problema insolúvel, não obstante todas as tentativas de coalisões, até agora ensaiadas. Mas o que torna ela um problema difícil de resolver está exposto na analítica, sendo que a felicidade e a moralidade constituem dois elementos do sumo bem, especificamente distintos, não podendo, entretanto, a sua união ser conhecida analiticamente (como se aquele que busca a sua felicidade resultasse, nesta conduta, ipso facto, virtuoso pela mera análise dos seus conceitos, ou aquele que pratica a virtude se desse por feliz ipso facto pela consciência de tal conduta), a não ser como uma síntese de conceitos. Mas, sendo esta união conhecida como que a priori e, por conseguinte, praticamente necessária, não se deduzindo portanto da experiência, e como a possibilidade do sumo bem não repousa em nenhum princípio empírico, a dedução deste conceito deverá ser transcendental. Torna-se, a priori, moralmente necessário produzir o supremo bem pela liberdade da vontade; desse modo, pois, a condição da possibilidade do mesmo deve assentar também só sobre fundamentos a priori do conhecimento.

 

I
ANTINOMIA DA RAZÃO PRÁTICA

O sumo bem é para nós prático; isto é, devemos realizá-lo mediante a nossa vontade, concebendo nele a virtude e a felicidade necessariamente ligados, de modo que não é possível, para uma razão pura prática, admitir aquela e não admitir esta. Mas como esta relação (como, em geral, qualquer outra) é analítica ou sintética. Mas não podendo ser esta relação (como já ficou demonstrado) analítica, devemos concebê-la como sintética e como conexão entre a causa e o efeito, embora seja concernente a um bem prático, isto é, a um bem possível mediante as ações. Portanto, ou é o desejo de felicidade, o que há de ser a causa móvel da máxima da virtude, ou é a máxima da virtude a que deve ser a causa eficiente da felicidade. O primeiro resulta absolutamente impossível porque (como se demonstrou na Analítica) as máximas, que colocam o fundamento de determinação da vontade no desejo de sua felicidade, não são morais e não podem fundamentar virtude alguma. Mas o segundo é também impossível, porque toda a relação prática das causas com os efeitos no mundo, como conseqüência da determinação da vontade, não se rege pelas intenções morais da vontade, mas sim pelo conhecimento das leis naturais e pela faculdade física de usá-las para os seus desígnios, não se podendo, por conseguinte, esperar no mundo um conjugamento necessário e suficiente para o supremo bem da felicidade com a virtude, mediante a mais pontual observância das leis morais. Constituindo, porém, o fomento do sumo bem, que contém essa relação no seu conceito, um objeto a priori necessário da nossa vontade, estando ainda em inseparável conexão com a lei moral, a impossibilidade do primeiro tem que demonstrar também a falsidade da segunda. Desse modo, portanto, se o sumo bem é impossível segundo as leis práticas, então a lei moral, que ordena a propulsão do mesmo, deve necessariamente, também, ser fantástica e dirigida a um fim vazio, imaginário e, por conseguinte, falso em si mesmo.

 

II
SOLUÇÃO CRÍTICA DA ANTINOMIA DA RAZÃO PRÁTICA

Na antinomia da razão pura especulativa encontramos contradição idêntica entre a necessidade natural e a liberdade, no concernente à causalidade das eventualidades do mundo. Resolveu-se isso com a demonstração de que não era uma contradição verdadeira, considerando-se os fatos no próprio mundo em que ocorrem (e assim devemos fazer) só como fenômenos; com efeito, o único e próprio ser agente, como fenômeno (ante o seu sentimento íntimo) tem uma causalidade no mundo sensível, sempre conforme ao mecanismo natural; mas em relação ao mesmo sucesso, enquanto a pessoa agente se considera ao mesmo tempo como noumeno (como inteligência pura cuja existência não é determinável no tempo), podendo conter um motivo determinante para essa causalidade, em virtude de leis naturais, motivo determinante esse que é, por si mesmo, independente de toda a lei natural.

É precisamente isso mesmo o que ocorre com a atual antinomia da razão pura prática. A primeira das duas proposições, ou seja, a de que a busca da felicidade venha a produzir uma intenção virtuosa, é absolutamente falsa; a segunda, ou seja a de que a intenção virtuosa proporcione necessariamente a felicidade, não é absolutamente falsa; só é falsa enquanto a considerarmos como a forma da causalidade no mundo sensível e, por conseguinte, é falsa se eu admito a existência nela do ser racional como único modo de existência; não é, portanto, falsa em tudo, mas, apenas, de uma forma condicionada. Mas estando eu não só facultado a pensar a minha existência também como noumeno num mundo do entendimento, como ainda, possuo até na lei moral um fundamento puramente intelectual de determinação de minha causalidade (no mundo sensível) não é, pois, impossível que a moralidade da disposição de ânimo tenha uma conexão, se não imediata, pelo menos mediata (graças ao autor inteligível da natureza) e que, em verdade, seria necessário, como causa, uni-la à felicidade como efeito no mundo sensível, relação esta que, em uma natureza que é somente objeto dos sentidos, jamais pode registrar-se senão acidentalmente, não podendo, por conseguinte, ser suficiente para o sumo bem.

Desse modo, em que pese a aparente contradição da razão prática para com si mesma, o sumo bem é a finalidade suprema e necessária de uma vontade moralmente determinada, constituindo um verdadeiro objeto dessa vontade, porque é praticamente possível, tendo as máximas da vontade, no que este objeto concerne às suas matérias realidade objetivada. Esta realidade é a que, em princípio, parecia encontrar-se na antinomia da ligação da moralidade com a felicidade, segundo uma lei universal, mas isso não passou de equívoco vulgar, dado que se considerou a relação entre os fenômenos como sendo relação das coisas em si para com os citados fenômenos.

Se formos constrangidos a buscar em tal extensão a possibilidade do sumo bem, esse fim de todos os desejos morais, adjudicado pela razão a todos os seres racionais, isto é, a buscá-la na relação com um mundo inteligível, deve estranhar, necessariamente, que os filósofos, tanto no mundo antigo como no moderno, tenham podido julgar a felicidade unida à virtude em proporção bem adequada, já nesta vida (num mundo sensível) ou tenham podido persuadir-se de que possuem consciência dela. Tanto Epicuro como os estóicos exaltavam a felicidade acima de todas as coisas, como algo que surge da consciência da virtude na vida; o primeiro, com os seus preceitos práticos, não mostrava as grosseiras intenções que, segundo os princípios de sua teoria, poderia argüir-se que nela existem, usados por ele para explicação e não para a ação, ou, como muitos, transtornados pela expressão “volúpia” em vez de “satisfação”, assim o interpretaram: porquanto colocava ele a prática desinteressada do bem entre as formas do gozo mais íntimo, e a frugalidade e a continência das inclinações, como pode exigir o mais severo dos moralistas, entravam no seu plano de regozijo (com isso julgava manter o coração sempre em alegria). No que se separava ele dos estóicos, principalmente, era só no fato de colocar neste prazer o fundamento motor, coisa que os últimos, na verdade com razão, sempre negavam. Por um lado, convenhamos, o virtuoso epicúreo, como também agora muitos outros nomes cheios de boa intenção moral, ainda que escassos de profundidade na reflexão acerca dos seus princípios, caiu na falta de supor já a disposição de ânimo virtuosa na pessoa a quem queria dar ele o motor para a virtude (e, de fato, não pode o indivíduo honrado ser feliz, se não tem antes consciência de sua retidão, porque, naquela disposição de ânimo, as reprimendas a que se veria obrigado para consigo mesmo, segundo o seu próprio modo de pensar, pelas transgressões e pela condenação moral de sua pessoa, certamente o privarão de todo o gozo do agrado que, acima de tudo, a sua situação poderá conter). Mas a questão é de saber-se por onde chega a ser possível tal disposição de ânimo e esse modo de pensar no apreço do valor de sua existência, porquanto, antes dela, não se encontraria no sujeito nenhum sentimento de um valor moral em geral. É indubitável que o homem, se for virtuoso, não viverá feliz sem ser consciente de que as suas ações são honestas, ainda mesmo que a sorte venha a proporcionar-lhe tudo o que possa favorecê-lo na sua vida física; mas para torná-lo virtuoso e, por conseguinte, antes que estime em tão alto grau o valor de sua existência poder-se-ia recomendar-lhe a paz da alma como recompensa merecida por ser consciente da honestidade, virtude esta acerca da qual ainda não tem qualquer noção?

Mas aqui pode haver também a possibilidade de um erro de revestimento (vituim subreptionis), isto é, de que na consciência da nossa operosidade possa produzir-se uma espécie de ilusão ótica capaz de levar-nos a confundir o que fazemos com o que sentimos, coisa que até o homem mais experimentado não pode evitar completamente. A intenção moral está necessária e imediatamente ligada pela lei à consciência da determinação da vontade. Mas, convenhamos, a consciência da determinação da faculdade de desejar sempre teve, como motivo determinante da ação produzida, uma complacência correlata àquela ação; mas este prazer, esta complacência de si mesmo não é, contudo, o verdadeiro motivo determinante da ação, porque o que determina imediatamente a vontade é, mediante a razão, o sentimento de prazer, sendo aquela determinação, portanto, uma determinação pura prática, e não estética, da faculdade de desejar. Mas esta determinação produz interiormente um efeito semelhante a um impulso à atividade, como o que produziria o sentimento da satisfação que se espera da ação desejada, resultando-nos, de certo modo, fácil conceituar o que praticamos nós mesmos como algo que só sentimos de um modo passivo e, por isso, confundimos o móvel moral com o impulso sensível, tal como sói acontecer na ilusão dos sentidos (aqui, do sentido interno). É coisa sublime na natureza humana determinar-se imediatamente as ações por meio de uma lei pura da razão, sendo-o também a ilusão de tomar o subjetivo dessa determinabilidade intelectual da vontade como algo estético, efeito de um sentimento particular sensível (porque um sentimento intelectual seria uma contradição). Também é de grande importância atendermos a essa propriedade de nossa personalidade e cultivarmos o melhor possível o efeito de um sentimento particular sensível (pois um sentimento intelectual seria uma contradição). Também é de grande importância atendermos a essa propriedade da nossa personalidade e cultivarmos o melhor possível o efeito da razão sobre esse sentimento. Mas também se deve ter muito cuidado para não rebaixar ou desfigurar por meio de um falso encômio desse fundamento moral de determinação, como um motor e, por assim dizer, com uma falsa demência, o próprio e verdadeiro motor, que é a lei em si, colocando na base daquele fundamento de determinação sentimentos de alegrias particulares (os quais, contudo, não passam de conseqüências). O respeito e não o prazer ou o gozo da felicidade é, portanto, alguma coisa para a qual não se torna possível sentimento algum precedente, colocado na base da razão (pois esse sentimento seria sempre estético e patológico) e, assim, a consciência da imediata compulsão da vontade pela lei é apenas análoga ao sentimento do prazer, porque na relação com a faculdade de desejar faz o mesmo, mas com fontes diversas; só com esse modo de representação podemos conseguir o que procuramos, isto é, que não só sejam conformes com o dever (como conseqüência de sentimentos agradáveis) como, também, ocorram por dever, coisa que tem que ser o fim verdadeiro de toda a cultura moral.

Será que não existe palavra alguma que assinale, não um gáudio como o vocábulo felicidade, mas sim uma satisfação na própria existência, um análogo da felicidade que tem que acompanhar necessariamente a consciência da virtude? Existe, sim, constituindo tal palavra o contentamento de si mesmo, que, na sua significação apropriada, designa constantemente só uma satisfação negativa em sua existência, que nos faculta a consciência de não necessitar de nada. A liberdade e a consciência desta, como faculdade de seguir a lei moral com uma disposição preponderante de ânimo, é independência das inclinações, pelo menos como causas matrizes determinantes (embora não afetivas — afficierenden) do nosso desejo; mas enquanto tenho consciência dessa independência na observância das minhas máximas morais, constitui ela o único repositório de um contentamento imutável, necessariamente ligado a si e não fundamentada sobre qualquer sentimento particular, podendo esta satisfação classificar-se como intelectual. A satisfação estética (assim impropriamente denominada), que se alicerceia sobre a satisfação das inclinações, por refinadas que sejam as imagens, não podem ser nunca correlatas ao que com elas se representa. É que assim como as inclinações mudam, crescem com o favor que a ela se concede e deixam sempre um vácuo ainda maior do que aquele que se acreditava preencher. Constituem elas, por isso, uma constante carga para um ser racional; se não as pode evitar, deseja, contudo, livrar-se delas. Embora uma inclinação conformada ao dever (por exemplo, a benificência) possa facilitar em muito a eficácia das máximas morais, não pode, todavia produzir nenhuma destas máximas. Não se deve, para isso, fundamentar tudo sobre a representação da lei, como motivo determinante, se é que a ação não deve conter simplesmente a legalidade mas, sim, a moralidade. A inclinação é cega e servil, seja uma inclinação benigna ou qualquer outra, não devendo a razão, quando se trata de moralidade, constituir-se em tutora da inclinação, mas deve, sem qualquer contemplação para com ela, na qualidade de razão pura prática, velar pelo seu próprio interesse. Este sentimento da compaixão e da ternura, que nasce da simpatia, se também precedesse da reflexão quando consideramos que é o dever e, por isso, viesse a tornar-se o seu motivo de determinação, poderia resultar agravante até para as pessoas de intenções retas, porque produziria certa confusão nas máximas que eles converteram em objetos de estudo e reflexão, introduzindo nos mesmos, além disso, o desejo de libertar-se dessas máximas e de ser, apenas, dependentes da legislação da razão.

Torna-se, portanto, fácil compreender de que modo a consciência de uma razão pura prática pode produzir, por esse próprio fato (a virtude) uma consciência de supremacia sobre as nossas próprias inclinações e, por conseguinte, como e até em que ponto podemos considerar a nossa independência delas e, também, em virtude disso mesmo, conhecer tudo o que de inapetecível sempre as acompanha, isto é, conseqüentemente, um contentamento que, na sua fonte, representa um contentamento do indivíduo para com a sua própria pessoa. Até a liberdade, desse modo (indireto) pode constituir um prazer que não deve ser chamado propriamente de felicidade, porquanto não depende da intervenção positiva de um sentimento e, para sermos mais exatos, também não pode ser denominada, bem-aventurança, pois não encerra uma independência total de inclinações e de necessidades, embora seja semelhante à última quando pelo menos a determinação da vontade pode permanecer livre da influência das inclinações e, pelo menos na sua origem, análoga à qualidade do bastar-se a si mesma, a qual só podemos atribuir ao ser supremo.

Desta solução da antinomia da razão pura prática deduzimos que, nos princípios práticos, uma relação natural e necessária entre a consciência da moralidade e a esperança de uma felicidade que lhe seja proporcionada em conseqüência daquela, pode ser julgada pelo menos sendo possível (mas nem por isso pode ser imediatamente conhecida e penetrada); pelo contrário, os princípios da procura da felicidade não podem, de modo algum, produzir moralidade e, portanto, resulta que o mais elevado bem (como primacial condição do sumo bem) constitui a moralidade, sendo a felicidade, embora segundo elemento do mesmo, contudo, de tal modo que é a conseqüência moralmente condicionada, mas não necessária da primeira. Nesta subordinação apenas o sumo bem é o objeto total da razão pura prática, que esta deve representar-se necessariamente como possível, porque é um mandato da mesma contribuir de todo o modo possível para a sua produção. Mas como a possibilidade de semelhante conjunção do condicionado com a sua condição pertence inteiramente à relação supra-sensível das coisas e não pode ser dada segundo leis do mundo sensível, ainda quando as conseqüências práticas desta idéia, isto é, as ações dirigidas com o escopo de tornar real o bem supremo, pertencem ao mundo sensível, trataremos de expor os fundamentos daquela possibilidade, primeiro em relação ao que está imediatamente em nosso poder e, depois, no que nos oferece a razão como complemento da nossa incapacidade para a possibilidade do sumo bem (necessária mediante princípios práticos) e que não está em nosso poder.

 

III
DO PRIMADO DA RAZÃO PURA PRÁTICA
EM SUA UNIÃO COM A ESPECULATIVA

Por primado entre duas ou mais coisas ligadas pela razão, entendo eu a vantagem que uma tem de ser o primeiro fundamento de determinação da união com as demais. No sentido prático, estritamente, significa a vantagem do interesse de uma enquanto a tal interesse (que não pode ser colocado atrás de qualquer outro) está subordinado o interesse das outras. A toda a faculdade do espírito podemos atribuir um interesse, isto é, um princípio que encerra a condição sob a qual somente o exercício da mesma é favorecido. A razão, como faculdade dos princípios, determina o interesse de todos os poderes do espírito e o seu próprio. O interesse do seu uso especulativo consiste no conhecimento do objeto até chegar aos princípios a priori mais elevados, ao uso prático na determinação da vontade, em relação ao fim último e mais completo. O que é exigível para a possibilidade de um uso da razão em geral, isto é, para que os princípios e afirmações da mesma não se contradigam um ao outro, não constitui uma parte do seu interesse mas, sim, a condição de ter uma razão em geral; só a amplificação, não o simples acordo íntimo, será computado como interesse.

Se a razão prática não pode admitir nem julgar como dado nada mais do que a razão especulativa, por si mesma e pelo seu conhecimento, possa proporcionar-lhe, então o primado será dela. Mas na suposição de que tivesse por si princípios originários a priori, com os quais fossem unidas inseparavelmente certas posições teóricas que, apesar de tudo, se subtraem a toda a penetração viável da razão especulativa (ainda quando não se contradizem também com as mesmas), então a questão de qual seja o mais alto interesse (não de qual deles tenha que ceder a outro, porquanto não se contradizem necessariamente) é esta: se a razão especulativa, que não conhece nada do que lhe oferece a prática para que o aceite, deva admitir essas proposições e, ainda que para elas sejam transcendentes, procurar uni-las aos seus conceitos como uma posse estranha a ela transportada, ou se ela está autorizada a seguir tenazmente o seu próprio interesse em separado e, segundo o ditame de Epicuro, a repelir como sutilidade ociosa tudo aquilo que possa justificar a sua realidade objetiva por meio de evidentes exemplos a apresentar na experiência, por muito ligado que esteja com o interesse do uso prático (puro) e, embora não seja contraditório também com o do teórico, só porque realmente prejudica o interesse da razão especulativa enquanto levanta os limites que esta coloca a si mesma, abandonando-a a todos os contra-sensos ou desvarios da imaginação.

Na realidade, enquanto se coloque como fundamento a razão prática, como patologicamente condicionada, isto é, administrando somente o interesse das inclinações, sob o princípio sensível da felicidade, não se pode fazer essa reclamação à razão especulativa. O paraíso de Maomé ou a união delinqüente dos teósofos e místicos com a divindade, conforme assenta a cada um, imporia à razão a sua monstruosidade, tanto valendo não ter nenhuma como entregá-la desse modo a todos os sonhos. Mas se a razão pura pode ser por si mesma prática e realmente o é, como a consciência da lei moral já o manifesta, então resulta sempre só, unicamente uma, a mesma razão, a que, seja no aspecto teórico ou no prático, julga segundo princípios a priori, resultando então claro que, embora a sua faculdade não consiga fixar, no primeiro, afirmando-as, certas proposições, contudo, não a contradiz, devendo admitir precisamente esta tese, desde que pertençam elas inseparavelmente ao interesse prático da razão pura, embora como coisa estranha que não germinou em seu solo, todavia, como justificada, tratando-se de compô-las e conglobá-las com tudo o que, com razão especulativa se encontre em seu poder, embora seja de convir que não são conhecimentos seus, mas apenas extensões do seu uso sob outro ponto de vista, isto é, o prático, o qual não é precisamente contrário a seu interesse, que consiste na limitação da temeridade especulativa.

O primado na união da razão pura especulativa com a razão pura prática em um conhecimento correspondente à última, sempre na suposição de que a referida união não seja contingente e arbitrária, mas fundamentada a priori sobre a mesma razão e, portanto, necessária. Com efeito, sem esta subordinação, a razão ver-se-ia em conflito consigo mesma, porque se fossem simplesmente associadas uma com a outra (coordenadas), a primeira comprimiria estreitamente os seus limites, sem admitir nada da segunda em sua esfera, ao mesmo tempo que esta última distenderia os seus limites sobre todas as coisas e, onde a sua necessidade o exigisse, procuraria incluir a primeira em seus limites. Mas, por outro lado, não se pode pretender da razão prática que se mantenha subordinada à razão especulativa, invertendo-se desse modo a ordem das coisas, porque, em último termo, todo o interesse é prático, sendo o próprio interesse da razão especulativa condicionado e só no seu uso prático é completo.

 

IV
A IMORTALIDADE DA ALMA
COMO UM POSTULADO DA
RAZÃO PURA PRÁTICA

A atuação do sumo bem no mundo é o objeto necessário de uma vontade determinável mediante a lei moral. Mas tal vontade é a total correlação da disposição de ânimo com a lei moral, a mais elevada condição do seu sumo bem. Deve ela, portanto ser tão possível quanto o seu objeto, porque está contida no mesmo mandato de fomentar que o fomenta. Mas a completa correlação da vontade à lei moral constitui a santidade, ou seja, uma perfeição para a qual nenhum ser racional está capacitado no mundo sensível, seja qual for o momento de sua existência. Mas como ela, não obstante a tudo, é exigida como praticamente necessária, não pode, também, ser encontrada fora de um progresso que vai ao infinito, àquela correlação total, sendo que, segundo os princípios da razão pura prática, é necessário admitir tal progressão prática como o objeto real da nossa vontade.

Este progresso infinito, todavia, só é possível sob a suposição de uma existência e personalidade duradoura no infinito do mesmo ser racional (a que chamamos imortalidade da alma). Assim, portanto, o sumo bem só é praticamente viável sob o aspecto da imortalidade da alma, sendo, por conseguinte, esta, ligada inseparavelmente à lei moral como se encontra, um postulado da razão pura prática (pelo qual entendo eu uma proposição teórica mas não demonstrável como tal, enquanto depende inseparavelmente de uma lei prática que possua um valor incondicionado a priori).

A proposição da determinação moral da nossa natureza de não poder alcançar a completa correlação com a lei moral a não ser em um progresso que vá ao infinito é da maior utilidade não só em relação ao atual complemento da incapacidade da razão especulativa, como também no concernente à religião. Na ausência de tal proposição, ou se despojaria a lei moral por completo de sua santidade, imaginando-a indulgente e adequada à nossa conveniência, ou então se exaltaria a sua missão e, ao mesmo tempo, a esperança de uma determinação inexeqüível, isto é, aguardar-se-ia a posse completa da santidade da vontade, divagando-se em sonhos místicos e teosóficos, de tão extravagantes, completamente contraditórios com o conhecimento de si mesmo; só o esforço incessante para o cumprimento pontual e completo de um mandato racional severo, não indulgente e, contudo, não real, mas sim de todo verdadeiro, em ambos os casos ficaria impedido. Para um ser racional, mas finito, só é possível o progresso ao infinito, na lei moral, partindo-se dos graus inferiores aos superiores. O Infinito, para quem a condição do tempo nada representa, vê nesta série, para nós infinita, o todo da correlação à lei moral e a santidade, exigida incessantemente por seu mandato para ser concordante à sua justiça na participação por ele assinalada a cada um no sumo bem, deve encontrar-se em uma só intuição intelectual da existência de seres racionais. O que somente pode corresponder à criatura relativamente à esperança desta participação seria o ser consciente de um modo seguro de sua intenção para esperar do seu progresso obtido do mau ao bem no campo moral e do propósito imutável de que esse ser consciente se houvesse formado, em razão de conhecer uma continuidade ulterior deste progresso, enquanto a sua existência possa durar, e para além desta vida (11), e assim, em verdade, nem aqui nem em qualquer momento previsível de sua existência futura, mas apenas no infinito da sua continuação (que só Deus pode dominar) ser de todo conforme à vontade deste (sem indulgências ou remissões incompatíveis para com a justiça).

 

A EXISTÊNCIA DE DEUS
COMO POSTULADO DA
RAZÃO PURA PRÁTICA

A lei moral, na análise precedente, conduziu-nos ao problema prático que, sem a intervenção de qualquer motor sensível, está prescrito só pela razão pura como elemento necessário para o conhecimento da primeira parte, a principal e mais complexa do sumo bem: a moralidade e, como este problema só pode ser completamente resolvido mediante a eternidade, também nos conduz ao postulado da imortalidade. Essa mesma lei deve levar-nos, também, à possibilidade do segundo elemento do sumo bem, isto é, à felicidade, adequada àquela moralidade, com o mesmo interesse anterior, unicamente pela razão, imparcial, ou seja, na suposição de uma causa adequada a este efeito na postulação da existência à possibilidade do sumo bem (objeto da nossa vontade que está necessariamente ligado à legislação moral da razão pura). Explanemos de uma forma convincente esta conexão.

A felicidade é o estado de um ser racional no mundo, para o qual, no conjunto de sua existência, tudo ocorre segundo o desejo de sua vontade; assenta, portanto, na concordância da natureza com a finalidade total a que se propõe e, também, com o fundamento essencial de determinação da sua vontade. Pois bem: a lei moral, como lei da liberdade, ordena por meio de fundamentos de determinação, que devem ser inteiramente independentes da natureza e da coincidência da mesma com a faculdade de desejar (como motor); mas o ser agente racional no mundo não é ao mesmo tempo causa do mundo e da própria natureza. Desse modo, portanto, não há na lei moral o menor fundamento para uma conexão necessária entre a moralidade e a felicidade proporcionada à natureza de um ser pertencente, como parte, ao mundo, e, por conseguinte, por isso mesmo, esse ser não pode ser causa dessa natureza mediante a sua vontade, sendo que, no que concerne à sua felicidade, não pode, pelos seus próprios meios, produzir um acordo contínuo entre essa natureza e seus princípios práticos. Entretanto, no problema prático da razão pura, isto é, na faina necessária do desenvolvimento do sumo bem, tal conexão se postula como necessária: devemos tratar de fomentar o supremo bem (que, portanto, tem que ser possível). Postula-se também, por conseguinte, a existência de uma causa da natureza em seu todo, distinta da natureza e que encerra o fundamento dessa conexão, isto é, da concordância exata entre a felicidade e a moralidade. Mas esta causa superior deve conter o fundamento de uma coincidência da natureza, não só com uma lei da vontade dos seres racionais, como também para com a representação dessa lei, quando estes a colocam como fundamento mais elevado de determinação da vontade, desse modo não só com os costumes, consoante à sua forma, mas também com a sua moralidade como fundamento motor das mesmas, isto é, com a sua disposição de ânimo moral. Assim, portanto, o sumo bem só é possível no mundo enquanto for admitida uma causa superior da natureza, causa essa que encerre uma causalidade consoante à disposição de ânimo moral. Um ser, portanto, que é capaz de ações segundo a representação de leis, constitui uma inteligência (ser racional), sendo a causalidade de um ser semelhante, segundo essa representação das leis, uma vontade do mesmo. Assim, portanto, a causa suprema da natureza, enquanto for ela um pressuposto para o sumo bem, é um ser que, por razão e vontade, constitui a causa (conseqüentemente, é o autor) da natureza, isto é, Deus. Por conseguinte, o postulado da possibilidade do sumo bem derivado (um mundo ótimo) é ao mesmo tempo o postulado da realidade de um sumo bem originário, isto é, da existência de Deus. Constituía um dever imposto a nós mesmos fomentar o sumo bem; por isso, não só era um direito mas também uma necessidade arraigada ao dever, como exigência, pressupor a possibilidade deste supremo bem, o qual, ocorrendo apenas sob a condição da existência de Deus, congloba inseparavelmente a suposição do mesmo para com o dever, isto é, torna-se moralmente necessário admitir a existência de Deus.

Deve-se notar aqui que esta necessidade moral é subjetiva, ou seja, exigência, e não objetiva, isto é o próprio dever; porquanto não pode haver qualquer dever em aceitar a existência de uma coisa (dado que isto só interessa ao uso teorético da razão). Também não se deve entender com isso que seja necessário admitir a existência de Deus como princípio fundamental de toda a obrigação em geral (porque, como ficou demonstrado de maneira suficiente, este princípio tem a sua base exclusivamente na autonomia da própria razão). Pertence ao dever, neste ponto, tão somente o trabalho para a produção e o fomento do sumo bem no mundo, cuja possibilidade, portanto, pode ser postulada, embora a nossa razão não o julgue cogitável senão sob o pressuposto de uma suprema inteligência; a admissão da existência desta está, portanto, relacionada com a consciência do nosso dever, ainda quando esta mesma aceitação pertença à razão teorética, diante da qual pode chamar-se hipótese, se a considerarmos como fundamento da explicação; mas em relação com a compreensibilidade de um objeto a nós proposto (do sumo bem) pela lei moral, por conseguinte, de uma exigência em sentido prático, pode chamar-se e fé racional pura, porque a razão pura (tanto considerada segundo o uso teórico como o prático) é a única fonte donde esta fé emana.

Mediante esta dedução já se torna agora compreensível porque as escolas gregas não podiam chegar nunca à solução do seu problema da possibilidade prática do sumo bem; é que elas faziam sempre da regra do uso, que a vontade do homem faz de sua liberdade, o único e por si só suficiente fundamento dessa possibilidade, sem necessitar para isso, segundo a sua opinião, da existência de Deus. Em verdade, tinham razão ao fixar o princípio da moral, independentemente deste postulado, por si mesmo, na relação da razão em si mesma com a vontade e, por conseguinte, ao torná-lo condição superior prática do sumo bem; mas nem por isso era a condição completa da possibilidade do mesmo. Pois bem: os epicúreos aceitaram, na verdade, como superior um princípio da moralidade inteiramente falso, isto é, o da felicidade e propuseram a máxima escolha arbitrária, cada qual segundo as suas inclinações, em lugar de uma lei; mas agiram com bastante conseqüência, apesar de tudo, rebaixando o seu sumo bem em proporção à exigüidade de seu princípio, não esperando nenhuma felicidade maior do que a que se possa adquirir pela prudência humana (à qual pertencem também a moderação e a contingência nas inclinações), felicidade que, como se sabe, deve ser bastante apoucada e bem diferente, segundo as circunstâncias sem contar as exceções que tinham de permitir incessantemente em suas máximas e que as tornavam impróprias para as leis. Os estóicos, por outro lado, tinham escolhido muito bem o seu princípio superior prático, a saber, a virtude, como condição do sumo bem; mas ao representar o grau de virtude exigível para a lei pura do sumo bem, como completamente realizável nesta vida, não só tinham estendido a faculdade moral do homem, sob o nome de sábio para além dos limites de sua natureza e admitido algo que contradiz todo o conhecimento humano como, também, haviam deixado o segundo elemento pertencente ao sumo bem, isto é, a felicidade, sem querer dar-lhe o valor de um objeto particular da faculdade humana de desejar; o seu sábio, como uma divindade na consciência da excelência de sua pessoa, tornaram-no eles completamente independente da natureza (no que concerne ao seu contento), expondo-o mas não o submetendo aos males da vida (ao mesmo tempo que também o representavam como livre do mal), abandonando assim o segundo elemento do sumo bem, a própria felicidade, colocando-a só na atividade e no contento com o valor pessoal, incluindo-a, portanto, na consciência do modo de pensar moral, no qual todavia, poderiam ser eles suficientemente refutados pela voz de sua própria natureza.

A doutrina do cristianismo (12), ainda mesmo quando não a considerarmos como doutrina religiosa, apresenta neste ponto um conceito do sumo bem (o reino de Deus), que é o único que satisfaz à mais severa exigência da razão prática. A lei moral é santa (inflexível) e exige santidade dos costumes, ainda quando toda a perfeição moral a que o homem possa chegar constitua sempre virtude, isto é, disposição de ânimo conforme à lei e, por conseguinte, uma estimativa de si mesmo unida à humildade; portanto, em relação à santidade, que é exigida pela lei cristã, não deixa a lei moral à criatura nada mais do que um progresso ao infinito, mas, precisamente por isso, justifica também na criatura a esperança de sua continuidade, que vai ao infinito. O valor de uma disposição de ânimo inteiramente adequada à lei moral é infinito, porque toda a felicidade possível não tem, no juízo de um distribuidor da mesma, sábio e onipotente, outro limite que não seja a falta de adequação dos seres racionais ao seu dever. Mas a lei moral só por si não promete felicidade alguma, porque esta, segundo os preceitos de uma ordem natural, não está, em geral, necessariamente unida com a observância da lei moral. A doutrina moral cristã completa esta falta (do segundo elemento necessário do sumo bem), por meio da representação do mundo, onde os seres racionais se consagram à lei moral com toda a alma, como um reino de Deus, no qual a natureza e a moralidade chegam a uma harmonia, estranha por si mesma a cada uma delas, mediante um credor santo, que torna possível o bem supremo. A santidade dos costumes já lhes é mostrada nesta vida como um guia; mas o bem proporcionado a ela, a bem-aventurança só se representa acessível em uma eternidade, porque aquela, a santidade, tem que ser sempre o modelo de sua conduta em todo o estado, sendo o progresso, para a mesma, possível e necessário já nesta vida, mas esta, a bem-aventurança, sob o nome de felicidade, não pode ser alcançada neste mundo (enquanto depende da nossa felicidade), fazendo-se, tão somente por isso, objeto da esperança. Não obstante a isso, o princípio cristão da própria moral não é teológico (por conseguinte, heteronomia) mas sim autonomia da razão pura prática por si mesma, porque não faz ele do conhecimento de Deus e de sua vontade o fundamento destas leis, mas apenas o princípio de alcançar o sumo bem mediante a condição da observância destas leis; o próprio motor para a observância das últimas não a coloca na desejada conseqüência, mas apenas na representação do dever, como única coisa em cuja fiel observância consiste a dignidade da aquisição da felicidade.

Desse modo, a lei moral, mediante o conceito do sumo bem, como objeto e fim último da razão pura prática, conduz à religião, isto é, ao conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos, não como sanções, ou seja, ordens arbitrárias e por si mesmas contingentes de uma vontade estranha, mas sim como leis essenciais de uma vontade livre por si mesma, as quais, não obstante a isso, devem ser consideradas como mandamentos do ser supremo, porque não nos é dado esperar o sumo bem, que a lei moral projeta como um dever colocar-nos qual objeto do nosso esforço, para além de uma vontade moralmente perfeita (santa e boa), ao mesmo tempo onipotente e, por conseguinte, mediante uma concordância com essa vontade. Por isso, aqui tudo ocorre de um modo desinteressado e fundamentado simplesmente sobre o dever, sem que seja necessário colocar o temor ou a esperança em seu fundamento, qual motores, porquanto, se chegam a ser princípios, aniquilam todo o valor moral das ações. A lei moral ordena-me fazer do sumo bem, possível em um mundo, o fim último de toda a minha conduta. Mas eu não posso esperar quando não seja por um acordo de minha vontade com a de um autor santo e bom do mundo; e ainda que a minha própria felicidade se contenha no conceito do sumo bem, como o de um todo no qual esteja representada como ligada, na mais exata proporção, a maior felicidade com o maior conjunto de perfeição moral (possível nas criaturas), todavia, não é ela mais do que a lei moral (que limita, imediata e preferentemente, dentro das condições mais rigorosas, o meu ilimitado desejo) o motivo determinante da vontade que se atém à impulsão do sumo bem. Por isso, a lei moral não é também propriamente a doutrina que nos ensina como nos tornamos felizes, mas, sim, como devemos chegar a ser dignos da felicidade, só depois, quando a realização sobrevém, vemos apresentar-se também a esperança de ser um dia participantes da felicidade na medida em que tratamos de não ser indignos dela.

Alguém é digno da posse de uma coisa ou de um estado, quando o fato de estar nessa posse concorda com o sumo bem. Pode-se compreender agora facilmente que toda a dignidade só depende da conduta moral, porque esta, no conceito do sumo bem, constitui a condição do remanescente (que pertence ao estado), isto é, da participação na felicidade. Deduz-se daqui que nunca se deve tratar a moral em si como doutrina da felicidade, isto é, como uma disciplina para chegar a ser participante da felicidade, porquanto ela só tem relação com a condição racional da última (conditio sine qua non), mas não com um meio de adquiri-la. Entretanto, quando ela (impondo apenas deveres e não dando regras aos desejos interessados) foi inteiramente exposta, só então, depois que despertado o desejo moral fundamentado em uma lei, de fomentar o sumo bem (conduzir a nós o reino de Deus), desejo que não poderia nascer anteriormente em qualquer alma egoísta, e depois de que, para satisfazer esse desejo, foi articulado o passo à religião, podemos denominar esta doutrina moral também doutrina da felicidade, porque a esperança desta última só desperta mediante a religião. Também se pode compreender com isso tudo que, se buscarmos o fim último de Deus na criação do mundo, não se deve aduzir a isso como fim a felicidade dos seres racionais neste mundo, mas sim o sumo bem, o qual acrescenta àquele desejo dos seres racionais ainda uma condição, a saber, a de ser digno da felicidade, isto é, a moralidade de todos esses mesmos seres racionais, que contém a única medida segundo a qual podem eles aspirar à participação da felicidade por mão de um criador sábio. Ainda que, com efeito, a sabedoria, considerada teoricamente, importe no conhecimento do sumo bem e, praticamente, na correlação da vontade ao sumo bem, não se pode atribuir a uma sabedoria suprema, independente, um fim que apenas se fundamentasse na bondade. É que não se pode conceber o efeito da bondade (relativamente à felicidade dos seres racionais) senão sob a condição restritiva de um acordo com a santidade (13) de sua própria vontade como conformada ao sumo bem na sua própria origem. Por isso, aqueles que colocam o fim da criação na honra de Deus (supondo que julgue este antropomorficamente como a inclinação a ser exaltada) encontraram a melhor expressão. É que nada honra tanto a Deus do que tê-lo como o que haja de mais apreciável no mundo: o respeito pelo seu mandato, a observância do santo dever que nos impõe a sua lei, quando vem acrescentar-se a sua magnífica disposição de coroar tão formosa ordem com felicidade que a ela se coadune. Se esta última a torna amável (para falarmos em linguagem humana) é, por outro lado, objeto de adoração para a primeira. Os próprios homens, praticando o bem, podem ser dignos de amor; mas somente com isso não podem conquistar nunca o respeito; desse modo a maior beneficência só os honra quando executada segundo a sua dignidade.

Que, na ordem dos fins, o homem (e com ele todo o ser racional) seja um fim em si mesmo, isto é, não possa nunca ser utilizado só como meio por alguém (nem mesmo por Deus), sem ao mesmo tempo ser um fim; que, portanto, a humanidade, em nossa pessoa, deve ser para nós sagrada, é coisa conseqüente, porquanto o homem é o sujeito da lei moral, e, por conseguinte, também do que é em si santo, do que permite chamar santo a tudo o que com isso for concordante. É que esta lei moral se fundamenta na autonomia de sua vontade como vontade livre, a qual, necessariamente, deve poder concordar, ao mesmo tempo, segundo as suas leis universais, com tudo aquilo ao qual se deve submeter.

 

VI
SOBRE OS POSTULADOS DA
RAZÃO PURA PRÁTICA EM GERAL

Derivam-se todos estes do princípio da moralidade, o qual não constitui nenhum postulado, mas sim uma lei por meio da qual a razão determina imediatamente a vontade. Esta vontade, precisamente por ser assim determinada, como vontade pura que é, exige essas condições necessárias na observância dos seus preceitos. Estes postulados não são dogmas teóricos, mas pressuposições em sentido necessariamente prático; portanto, se não distendem em verdade o conhecimento especulativo, dão, contudo, realidade objetiva às idéias da razão especulativa em geral (por meio de sua relação com o que é prático), autorizando-a a formular conceitos que sem isso não poderia intentar nem sequer a afirmativa de sua possibilidade.

Estes postulados são os da imortalidade, da liberdade, considerada positivamente (como a causalidade de um ser enquanto pertence ao mundo intelectivo) e da existência de Deus. O primeiro é derivado da condição praticamente necessária da adequação da durabilidade ao cumprimento integral da lei moral; o segundo da necessária suposição da independência do mundo sensível e da faculdade da determinação da sua vontade, segundo a lei de um mundo inteligível, isto é, da liberdade; o terceiro, da necessidade da condição que exige esse mundo inteligível para ser o sumo bem, mediante a suposição do sumo bem independente, ou seja, a existência de Deus.

A aspiração ao sumo bem, necessária mediante o respeito à lei moral, e a suposição, dele derivada da realidade objetiva desse bem supremo, conduz portanto, pelos postulados da razão prática, a conceitos que a razão especulativa pode exprimir como problemas, mas não conseguiu resolver por si mesma. Desse modo, digamos: 1.°) conduz ao conceito em cuja solução da razão teórica não podia fazer nada mais do que paralogismos (isto é, o conceito da imortalidade), porque faltavam aqui os caracteres da persistência para contestar o conceito psicológico de um sujeito derradeiro, atribuindo necessariamente à alma na consciência de si mesmo, isso para chegar à representação real de uma substância, coisa que a razão prática leva a termo por meio do postulado de uma duração que exige a concordância com a lei moral no sumo bem, como fim completo da razão; 2.°) conduz o conceito que sumia a razão especulativa na antinomia, cuja solução só podia fundamentar-se em um conceito, embora problematicamente imaginável, não demonstrável e determinável em sua realidade objetiva, isto é, a idéia cosmológica de um mundo inteligível e a consciência de nossa existência no mesmo por meio do postulado da liberdade (cuja realidade da razão prática a expõe mediante a lei moral, e com ela, ao mesmo tempo, a lei de um mundo inteligível), o qual a razão especulativa só podia assinalar mas não determinar o seu conceito; 3.°) proporciona significação ao conceito que só a razão especulativa podia imaginar, mas teve de deixar indeterminado, como simples ideal transcendental, o conceito teológico do ser primordial (em um sentido prático, isto é, como uma condição da possibilidade do objeto de uma vontade determinada por aquela lei) como princípio superior do sumo bem num mundo inteligível, mediante uma legislação moral para o mesmo onipotente.

Mas desta maneira, mediante a razão prática, distender-se-á realmente o nosso conhecimento, e o que era transcendente para a razão especulativa, será imanente para a prática? Indubitavelmente, mas apenas no sentido prático. Mas, desde que, na verdade, não conhecemos mediante estes conceitos nem a natureza da nossa alma, nem o mundo inteligível, nem o ser supremo, como também não temos qualquer conhecimento exato acerca do que estas coisas são em si mesmas, reunindo somente os conceitos delas em um conceito prático do sumo bem, como objeto da nossa vontade, completamente a priori mediante a razão pura, mas só por meio da lei moral e também apenas em relação com a mesma, em consideração ao objeto por ela ordenado. Mas como a liberdade seja possível e como, teórica e positivamente, deve representar-se este modo de causalidade, é coisa que não se pode compreender mediante tais conceitos; por conseguinte, podemos apenas postular que, em virtude da existência da lei moral e para a sua finalidade, deve essa causalidade necessariamente existir. Não ocorre coisa diversa com as idéias, isto é, quanto à sua possibilidade de existência; nenhum entendimento humano jamais as penetrará, nem qualquer sofismabilidade, nem mesmo a inteligência mais comum, poderá persuadir-nos de que não sejam elas verdadeiros conceitos.

 

VII
DE COMO É CONCEBÍVEL UMA AMPLIFICAÇÃO DA
RAZÃO PURA EM SENTIDO PRÁTICO,
SEM QUE POR ISSO SE DISTENDA O SEU CONHECIMENTO COMO ESPECULATIVA

Para que não nos tornemos demasiado abstratos, vamos resolver esta questão, aplicando-a em seguida ao caso presente. Na amplificação prática de um conhecimento puro, deve ser dada uma intenção a priori, isto é, um fim como objeto (da vontade) que, independentemente de todo o princípio teórico, seja representado como praticamente necessário por um imperativo que determine imediatamente a vontade (um imperativo categórico), o que, consiste aqui no sumo bem. Mas este não é possível sem pressupor três conceitos teóricos (para as quais não se pode encontrar qualquer intuição correspondente, porque são eles meros conceitos puros da razão e, por conseguinte, não podemos encontrar para os mesmos realidade objetiva alguma no roteiro teórico), os quais são: liberdade, imortalidade e Deus. Desse modo, portanto, mediante a lei prática, que ordena a existência do sumo bem num mundo, resulta postulada a viabilidade daqueles objetos da razão especulativa, a realidade objetiva que esta razão não podia assegurar-lhes, por meio do que, imediatamente, o conhecimento teórico da razão pura recebe um acréscimo, consistente, muito embora, tão somente no fato daqueles conceitos que para ela são problemáticos (simplesmente imagináveis), são agora afirmados assertoricamente, como conceitos aos quais correspondem realmente objetos, porque a razão prática necessita inevitavelmente da existência dos mesmos para a possibilidade do seu objeto, o sumo bem, que praticamente é em absoluto necessário, resultando a teórica autorizada, portanto, a supô-los. Mas esta amplificação da razão teórica não o é da especulativa, ou seja, para fazer desse ponto em diante um uso positivo dela em sentido teórico. Entretanto, como aqui a razão prática não fez mais do que mostrar que esses conceitos são reais e têm realmente os seus objetos (possíveis), e como, além disso, não é dada intuição alguma deles (o que também não pode ser exigido), resulta assim impossível uma proposição sintética por meio dessa admitida realidade. Esta descoberta (Eröffnung) não nos serve de ajutório em sentido especulativo para ampliar o nosso conhecimento, ainda que nos sirva no que se refere ao uso prático da razão pura diante do objeto de propiciar maior extensão ao nosso conhecimento. As três idéias anteriores da razão especulativa não constituem por si mesmas qualquer conhecimento; contudo, são pensamentos (transcendentes) onde não existe nada de impossível. Todavia, mediante uma lei prática apodítica e como condições necessárias da possibilidade daquilo que esta lei manda considerar como objeto, recebem realidade objetiva, isto é, mediante essa lei devemos compreender que as idéias encerram objetos sem poder, contudo, mostrar como o seu conceito se refere a um objeto, não sendo todavia isso conhecimento desses objetos, pois com isso não se torna possível julgar nada sinteticamente acerca deles nem determinar teoricamente a sua aplicação, portanto, fazer deles qualquer uso teórico da razão, no que consiste propriamente todo conhecimento especulativo da mesma. Entretanto, o conhecimento teórico, embora não desses objetos da razão, todavia, em geral, foi ampliado na medida em que pelos postulados práticos foram dados objetos àquelas idéias, adquirindo assim realidade objetiva um mero pensamento problemático. Desse modo, portanto, não era nenhuma ampliação do conhecimento de dados objetos supra-sensíveis, mas só uma ampliação da razão teórica e do conhecimento da mesma em relação ao supra-sensível em geral, enquanto se viu a mesma constrangida a admitir que existem tais objetos sem poder determiná-los com mais precisão e, por conseguinte, sem poder ampliar este conhecimento dos objetos (que lhe foram dados agora por um fundamento prático e só também para o uso prático); este crescimento, portanto, da razão pura teórica, para quem todas aquelas idéias são transcendentes e sem objeto, é devido a esta faculdade pura prática.

Estas idéias chegam a ser aqui imanentes e constituitivas, porque são princípios fundamentais da possibilidade de tornar real o objeto necessário da razão pura prática (o sumo bem), enquanto que sem isto são transcendentes e só princípios reguladores da razão especulativa, que não propõem a esta a admissão de um novo objeto para além da experiência, mas apenas aproximar da totalidade o seu uso na experiência. Mas uma vez que a razão está de posse deste acréscimo, resulta negativa como razão especuladora (propriamente só para assegurar o seu uso prático), isto é, inextensiva, mas purificante, para chegar-se à obra com aquelas idéias e deter, por um lado, o antropomorfismo, como fonte da superstição ou visível amplificação daqueles conceitos mediante uma suposta experiência, e, por outro lado, o fanatismo, que promete essa amplificação por meio de uma intuição supra-sensível ou de sentimentos análogos; todos eles constituem obstáculos do uso prático da razão pura, cuja remoção pertence, como se vê, à amplificação do nosso conhecimento no seu sentido prático, sem que resulte contraditório com este confessar ao mesmo tempo que a razão, no seu sentido especulativo, nada lucrou com isso.

Para todo uso da razão em consideração a um objeto, são requeridos conceitos puros do entendimento (categorias), sem as quais não podemos pensar qualquer objeto. Podem estes ser aplicados somente ao uso teorético da razão, isto é, a tal conhecimento, enquanto ao mesmo tempo se coloca na sua base a intuição (que é sempre sensível), apenas para representar assim, por meio deles, um possível objeto de experiência. Convenhamos, portanto, que nesse caso são idéias da razão que não podem ser dadas em qualquer experiência, o que me levaria a pensar por meio de categorias para conhecê-los. Mas também não se trata aqui do conhecimento teórico do objeto destas idéias, mas só de que elas em geral possuem objetos. Proporciona-lhe esta realidade a razão pura prática, não tendo nada que ver com isso a razão teórica, salvo quando lhe é dado pensar aqueles objetos por meio de categorias, coisa que, como demonstramos com clareza, pode ser feito preferentemente sem necessidade de intuição (seja sensível ou supra-sensível), porque as categorias têm a sua localização e origem no entendimento puro, independentemente e antes de toda a intuição, unicamente como faculdade de pensar, significando elas sempre só um objeto em geral, seja qual for o modo com que se venha a apresentar. Não se pode, portanto, nas categorias, enquanto devem ser aplicadas àquelas idéias, apresentar um objeto na intuição; mas não obstante, está suficientemente assegurado que semelhante objeto é real, por conseguinte, que a categoria, como uma mera forma de pensamento não é aqui vazia, mas apresenta significação por meio de um objeto exposto indubitavelmente pela razão prática no conceito do sumo bem; está, com isso, assegurada a realidade dos conceitos que pertencem à possibilidade do sumo bem, sem que, todavia, com esse acréscimo, venha registrar-se a menor amplificação do conhecimento, segundo princípios teóricos.

***

Se, além disso, as idéias de Deus, de um mundo inteligível (o reino de Deus) e da imortalidade, determinadas mediante predicados deduzidos da nossa própria natureza, não se pode considerar esta determinação como representação sensível daquelas idéias racionais puras (antropomorfismo), nem como conhecimento transcendente de objetos supra-sensíveis, dado que estes predicados não são outra coisa mais do que a inteligência e a vontade, consideramo-los em relação recíproca, tais como os devemos conceber na lei moral e, por conseguinte, só enquanto deles fizermos um uso puro prático. Então, fazendo abstração de tudo o que depende psicologicamente destes conceitos, isto é, enquanto observamos empiricamente esta nossa faculdade no seu exercício (por exemplo, que o entendimento do homem é discursivo, sendo por conseguinte, as suas representações pensamentos e não intuições; que estas representações ocorrem no tempo; que a sua vontade tem sempre a sua satisfação dependente da existência de seu objeto, etc., fatos esses que não ocorrem desse modo no ser supremo), não resultando assim dos conceitos, mediante os quais nos é dado representar um ser puro do entendimento, nada mais do que é exigido precisamente para a possibilidade de conceber e, por conseguinte, o conhecimento de Deus, mas somente na relação prática. Por isso, se tentarmos distender este conhecimento a um ponto de vista teorético, resultará que possuímos um entendimento que não pensa mas apenas intui; uma vontade que se dirige a objetos de cuja existência não depende, nem em parcela mínima, a sua satisfação (nem ao menos pretendo mencionar os predicados transcendentais, como, por exemplo, uma ampla existência, ou seja duração, mas que não encontra lugar no tempo, único meio possível para representarmos a existência como sendo magnífica), propriedades estas acerca das quais não podemos formular qualquer conceito que sirva para o conhecimento do objeto, concluindo com isso que eles nunca podem ser utilizados para uma teoria de seres supra-sensíveis e, portanto, não podem, nesse particular, estabelecer qualquer conhecimento especulativo, cabendo-lhe apenas limitar o seu uso ao exercício da lei moral.

Este último é tão evidente e pode ser demonstrado tão claramente por esse próprio fato que se pode, com toda a confiança reptar a todos os que se inculcam doutos em teologia natural (14) (nome extravagante) para que nos indiquem um nome a uma só que seja das propriedades desse seu objeto (fora dos predicados meramente ontológicos), ou seja do entendimento ou da vontade, sem que se possa demonstrar em seguida, de um modo irrefutável, que tirando tudo o que for de antropomórfico, não nos fique mais do que a palavra, sem poder conglobar com ela o mínimo conceito por meio do qual se pudesse esperar um amplificação do conhecimento teórico. Mas em relação ao uso prático, ainda nos resta nas propriedades de um entendimento e de uma vontade, o conceito de uma relação, à qual a lei prática (que determina precisamente a priori esta relação do entendimento com a vontade) proporciona realidade objetiva. Mas uma vez que isso ocorreu, é proporcionada realidade ao conceito do objeto de uma vontade moralmente determinada (ao do sumo bem), e com ele às condições de sua possibilidade, às idéias de Deus, de liberdade e de imortalidade, mas sempre só em relação com o exercício da lei moral (e não para uma necessidade especulativa).

Depois dessa observação, fácil se torna encontrar a resposta à importante questão de se o conceito de Deus é um conceito pertencente à física (por conseguinte também à metafísica, como a que só contém os princípios puros a priori da primeira na significação universal), ou um conceito pertencente à moral. Explicar as disposições naturais, ou as suas mutações, recorrendo a Deus como autor de todas as coisas, não é certamente uma explicação física, constituindo isso, sempre, uma confissão de que é ali onde a filosofia termina a sua tarefa, porquanto desse modo, somos obrigados a admitir algo cujo conceito não as encerra em si mesmo, para podermos formar um conceito da possibilidade daquilo que temos diante da nossa vista. Entretanto, alcançar por meio da metafísica o conceito de Deus e a prova da sua existência mediante conclusões seguras, partindo do conhecimento deste mundo, é impossível, porque não nos compete conhecer este mundo como o todo mais perfeito possível; por conseguinte, para tal fim, deveríamos conhecer todos os mundos possíveis (para podê-los confrontar com este) e, portanto, ser onicientes, para dizer que esse mundo só é possível mediante um Deus (tal e como nos é dado ter uma idéia desse conceito). Mas, além disso, é absolutamente impossível conhecer a existência deste ser por simples conceitos, porque uma proposição existencial, isto é, aquela que acerca de um ser, do qual eu formulo um conceito, diz que ele existe, é uma proposição sintética, isto é, uma proposição por meio da qual eu vou além daquele conceito, dizendo mais do que foi pensado no conceito, ou seja, que a este conceito do entendimento, corresponde um objeto fora do entendimento, o qual é manifestamente impossível de produzir-se mediante qualquer raciocínio. Desse modo, resta apenas o único procedimento à razão para alcançar esse conhecimento, a saber: que ela, como razão pura, partindo do princípio superior de seu uso puro prático (dirigido este, além disso, só à existência de algo, como conseqüência da razão), determine o seu objeto, e então mostre-se inevitável no seu problema, isto é, a direção necessária da vontade para o sumo bem, não apenas a necessidade de aceitar esse primeiro em relação com a possibilidade deste bem no mundo, mas, também, o que ainda é mais de notar, alguma coisa que faltava em absoluto ao progresso da razão no caminho da natureza, ou seja, um conceito exatamente determinado por este ser originário. Como só conhecemos deste mundo uma pequena parte e, por isso, não podemos compará-lo com todos os mundos possíveis, embora possamos, pela sua ordem, deduzir que o autor do universo deve ser sábio, bom, poderoso, etc.; isso tudo nos é dado deduzir da ordem, da finalidade e da grandeza do universo, mas não podemos conceber a oniciência, a bondade infinita e a onipotência, etc., deste autor. Podemos, ainda, admitir que temos o direito de suprir a nossa carência de poder para conceber os atributos desse autor mediante uma hipótese totalmente racional e permitida, isto é, que se em todas as partes que se apresentam ao nosso conhecimento brilham a sabedoria, a bondade, etc., em todas as demais deverá ser assim, sendo portanto racional atribuir ao Criador do mundo toda a perfeição possível; mas estas não são conclusões por meio das quais possamos enaltecer a nossa penetração, mas apenas direitos que nos podem ser concedidos e que, apesar de tudo, necessitam de um assentimento alheio para deles fazermos uso. O conceito de Deus resulta, assim, portanto, no caminho empírico (da física) um conceito não exatamente determinado da perfeição do ser primordial, não se podendo considerá-lo adequado ao conceito de uma divindade (em sua parte transcendental, a metafísica, nada se pode levar a cabo).

Cabe-me agora relacionar este conceito com o objeto da razão prática, sendo-me dado achar que o princípio não moral admite a possibilidade deste objeto apenas sob a suposição de um criador do mundo que encerre suprema perfeição. Deve ser este onisciente para conhecer a minha conduta até no mais recôndito de minha disposição de ânimo, em todos os casos possíveis e em qualquer porvir; onipotente, para dar à minha conduta as conseqüências adequadas a ela; também onipresente, eterno, etc... Por conseguinte a lei moral, mediante o conceito do sumo bem, como objeto da razão pura prática, determina o conceito do ser primordial como o de um ser supremo, o que não pode ser feito pela marcha física (e prosseguindo para o alto, a metafísica) e, por conseguinte, a marcha total especulativa da razão. Assim, portanto, o conceito de Deus não pertence originariamente à física, isto é, à razão especulativa, mas à moral, podendo-se dizer precisamente o mesmo dos demais conceitos da razão, de que já tratamos acima, como postulados da mesma no seu uso prático.

Se na história da filosofia grega não se encontra nenhum indício manifesto de uma teologia racional para lá de Anaxágoras, o motivo reside no fato de que aos antigos faltaram intelecto e perspicácia para elevar-se a esta teologia por meio da especulação, pelo menos com o auxílio de uma hipótese inteiramente racional. Que poderia ser mais fácil, mais natural do que o pensamento, que se apresenta por si mesmo a cada um, de aceitar, em lugar do grau indeterminado da perfeição de causas distintas do mundo, uma única racional que encerre toda a perfeição? Mas todos os males do mundo lhes pareceram ser objetos demasiados importantes para considerar justificada tal hipótese. Por conseguinte, mostraram com isso, precisamente, entendimento e penetração, não admitindo aquela hipótese e buscando, de preferência, nas causas naturais se entre elas não poderiam ser encontradas a propriedade e a faculdade exigíveis pelo ser primário. Contudo, quando este povo atilado progrediu nas investigações até tratar filosoficamente dos próprios objetos morais, acerca do que os demais povos não tinham feito mais do que parlengas, então viram deparar-se-lhes uma nova exigência, uma exigência prática, que não deixou de dar-lhes determinadamente o conceito de ser primário. Nisso tudo, a razão especulativa era o espectador, possuindo, além disso, o mérito de aformosear um conceito que não crescera em seu canteiro e de favorecer com uma série de confirmações tiradas da consideração da natureza pela vez primeira, certamente não para dar-lhes autoridade (que já fora estabelecida), mas o esplendor de um presumido conhecimento teorético da razão.

***

Por meio destas observações, o leitor da Crítica da razão pura especulativa, convencer-se-á perfeitamente como foi necessária e útil para a teologia e para a moral, aquela laboriosa dedução das categorias. Só por meio dela é dado impedir, situando-a no intelecto puro, de conceituá-los com Platão, como inatas, e de fundamentar nelas, sobre pretensões transcendentais, infinito número de teorias do suprasensível, tornando, assim a teologia uma fantasmagórica lanterna mágica; e, considerando-as como adquiridas, evitar a limitação que faz Epicuro do seu uso em qualquer caso, ainda mesmo no sentido prático, só em relação a objetos e a fundamentos de determinação dos sentidos. Convenhamos, a crítica, naquela dedução, demonstrou primeiramente que não são de origem empírica, mas têm o seu fundamento e a sua fonte a priori no entendimento puro; e, em segundo lugar, também, que, embora todas elas sejam referentes a objetos em geral, independentemente da intuição dos mesmos, produzem o conhecimento teorético só quando se aplicam a objetos empíricos; entretanto, aplicadas a um objeto dado pela razão pura prática servem para o pensamento determinado do suprasensível, ainda mesmo só enquanto este suprasensível resulte determinado de um modo vulgar por predicados que pertencem necessariamente ao propósito prático, como fim puro, dado a priori, e à possibilidade do mesmo. A limitação especulativa da razão pura e a amplificação prática da mesma colocam a razão naquela relação de igualdade, na qual a mesma, em geral, pode usar-se de conformidade com os fins, demonstrando-se por meio deste exemplo, melhor do que por qualquer outro, que o caminho para a sabedoria (Weisheit), há de ser seguro e praticável, não devendo conduzir a erro. Deve, necessariamente, passar entre nós, os cientistas; não nos pode, porém, convencer de que conduz a tal fim sem que percorramos todo o caminho.

 

VIII
DO ASSENTIMENTO RESULTANTE DE
UMA EXIGÊNCIA DA RAZÃO PURA

Uma exigência da razão pura no seu uso especulativo conduz somente à hipótese, enquanto uma necessidade da razão pura prática conduz a postulados, porque, no primeiro caso, eu me elevo do derivado na série de fundamentos tão alto quanto quero, necessitando de um fundamento primário, não para dar realidade objetiva àquele derivado (por exemplo, a relação causal das coisas e das mutações no mundo), mas só para satisfazer inteiramente a minha razão investigadora em consideração ao mesmo. Diante de mim, eu vejo ordem e finalidade na natureza, não necessitando recorrer à especulação para assegurar-me de sua realidade mas, apenas, para explicá-la, necessito pressupor uma divindade como sua causa; mas como a conclusão que passa de um efeito a uma causa determinada, sobretudo a uma causa tão exata e completamente determinada como a devemos de pensar em Deus, é sempre insegura e duvidosa, não podendo ir semelhante pressuposição para além do grau de uma opinião, a mais racionável para todos os homens (15). Por outro lado, uma exigência da razão pura prática, é fundamentada em um dever, o de tornar algo (o supremo bem) objeto de minha vontade para fomentá-lo com todas as minhas forças; mas, para isso, devo eu pressupor a possibilidade do mesmo e, por conseguinte, também as condições dessa possibilidade, a saber, Deus, a liberdade e a imortalidade, porque não posso demonstrá-las mediante a minha razão especulativa, nem mesmo repudiá-las. Este dever está fundamentado em uma lei, imediata e inteiramente independente destas últimas pressuposições, apoditicamente certa por si mesma, isto é, na lei moral, não necessitando portanto de qualquer outro apoio em uma opinião teórica sobre a natureza interior das coisas, sobre o fim secreto da ordem no mundo ou sobre um governante que o presida, para obrigar-nos perfeitamente a ações incondicionadas conforme à lei. Mas o efeito subjetivo dessa lei, isto é, a disposição de ânimo a ela adequada e também por ela própria necessária para fomentar o supremo bem praticamente possível, pressupõe, contudo, no mínimo, que este último resulte, possível, porque, do contrário, seria praticamente impossível esforçar-se para o objeto de um conceito que fosse, no fundo, vão e sem objetivo. Pois bem, os postulados anteriores concernem somente às condições físicas ou metafísicas, em uma palavra, localizadas na natureza das coisas, ante a possibilidade do sumo bem, não para qualquer intenção especulativa mas, sim, para um fim praticamente necessário da vontade racional pura, que aqui não escolhe mas obedece a um preceito inflexível da razão, que se fundamenta objetivamente na constituição das coisas, quando elas devem ser julgadas universalmente pela razão pura, não se fundamentando em uma inclinação que, em relação àquilo, desejamos só por fundamentos subjetivos, não está autorizada de qualquer modo a admitir os meios como que possíveis para isso, ou o próprio objeto como real. Assim, portanto, é essa uma exigência em sentido absolutamente, necessário, justificando a sua pressuposição não só como hipótese permitida, mas também como postulada em sentido prático. Uma vez que seja reconhecido o fato da lei moral pura obrigar a cada um irremissivelmente como mandato (não como regra de prudência), o homem honrado pode afirmar convictamente: eu quero que exista um Deus, quero que a minha existência neste mundo seja também, fora da relação natural, uma existência no mundo puramente racional; quero, finalmente, que a minha duração seja infinita, nisso persisto e não consinto que essa fé me seja arrebatada, porque este é o único caso que me interessa, permitindo-me dizer que, não tendo o direito de desprender-me de nada, determina inevitavelmente o meu juízo, sem ter em conta sutilidades, embora eu não esteja em situação de contestá-las ou de contrapor-lhes argumentos mais convincentes (16).

***

Para precaver-se ante interpretações errôneas no uso de um conceito, ainda mesmo quando tão desusado como o de uma fé racional pura prática, seja-me permitido aduzir uma observação. Poderia até parecer que esta fé racional fosse aqui enunciada como o mandamento de admitir como possível o sumo bem. Mas uma crença imposta constitui um absurdo. Recordemos, contudo, a análise anterior daquilo que pedimos que se admita no conceito do sumo bem e concluir-se-á que não é lícito ordenar, de modo algum, a aceitação dessa possibilidade, não se podendo exigir a sua admissão de qualquer intenção prática, porquanto a razão especulativa deve admiti-la sem que a isso seja requerida, desde que ninguém, não obstante a isso, pode querer afirmar que seja impossível uma dignidade em si, consoante à lei moral, de que os seres racionais no mundo sejam felizes em relação a uma posse dessa felicidade proporcionada àquela dignidade. Pois bem: no que se refere à primeira parte do sumo bem, a moralidade, a lei moral só nos faculta um mandato, sendo tanto quanto pôr em dúvida a própria lei moral duvidar da possibilidade desse elemento. Mas, no que concerne ao segundo elemento daquele objeto, isto é, à harmonia entre a felicidade continuamente proporcionada àquele mérito e a possibilidade de admitir esta felicidade em geral, não necessitamos, em verdade, de um mandamento, porque a razão teórica nada tem a objetar em sentido contrário; mas o modo como devemos conceber tal harmonia das leis naturais com a da liberdade encerra algo em acerca do qual nos corresponde uma escolha, porque a razão teorética não decide com apodítica certeza, podendo haver, neste ponto, em relação a ela, um interesse moral que lhe vibre o golpe decisivo.

Havíamos dito mais acima que, segundo o curso meramente natural do mundo, não é de esperar, devendo considerar-se impossível, a felicidade exatamente adequada ao valor moral e que, portanto, a possibilidade do sumo bem só poderia, nesse ponto, ser admitida sob a suposição de um autor moral do mundo. Abster-me-ei, deliberadamente, de limitar este juízo às condições subjetivas de nossa razão, para fazer uso desta restrição só quando fosse melhor determinado o modo de sua adesão. Com efeito, a mencionada impossibilidade é apenas subjetiva, ou seja, a nossa razão tem como impossível para ela tornar concebível, segundo um mero curso natural, uma conexão tão exatamente adequada e toda conforme a um fim, entre as ocorrências do mundo, que sucedem segundo leis distintas; contudo, como em todo o resto a natureza se conforma ao fim, não pode ela também demonstrar, isto é, expor suficientemente, por meio de causas objetivas, a impossibilidade dessa finalidade segundo leis naturais universalizadas.

Agora, porém, entra em jogo o fundamento de decisão de outra espécie para decidir, diante da vacilação da razão especulativa. O mandato de fomentar o sumo bem está objetivamente fundamentado (na razão prática), e a possibilidade do mesmo, em geral, é do mesmo modo objetivamente fundamentada (na razão teórica, que nada objeta em contrário). Mas a razão não pode decidir objetivamente de que modo devemos representar essa possibilidade: se segundo leis universais da natureza, sem um sábio regedor que a presida, ou apenas sob a pressuposição da existência do mesmo. Aqui, agora, vemos apresentar-se uma condição subjetiva da razão: a única maneira teoricamente possível para ela e, ao mesmo tempo, a única forma conveniente para a moralidade (que se encontra debaixo de uma lei objetiva da razão) conceber a exata concordância do reino da natureza com o reino da moralidade, como condição da possibilidade do sumo bem. Entretanto, sobrevém aqui uma condição subjetiva da razão (mas só no referente à razão prática) e, ao mesmo tempo, encontramos ao nosso alvitre o modo como queremos conceber o sumo bem, de forma que um livre interesse da razão pura prática pode decidir pela aceitação de um sábio criador do mundo, resultando disso, portanto, que o princípio que determina o nosso juízo em relação a isso é certamente subjetivo, como exigência, mas, ao mesmo tempo, como meio de fomentar aquilo que é objetivamente (praticamente) necessário: o fundamento de u’a máxima do assentimento no sentido moral, isto é, de uma fé racional prática pura. Esta fé, portanto, não é ordenada, mas sim derivada da disposição moral de ânimo como uma determinação espontânea de nosso juízo em admitir aquela existência e colocá-la, além disso, como base do uso da razão, determinação essa que é livre e consciente para o propósito moral (mandato), sendo, também, concordante com a exigência teorética da razão; por conseguinte, nos que forem moralmente bem intencionados, embora esta fé possa vacilar com freqüência, nunca poderá fazê-los resvalar para a incredulidade.

 

IX
DA PROPORÇÃO DA FACULDADE DE CONHECER,
SABIAMENTE COADUNADA À
DETERMINAÇÃO PRÁTICA DO HOMEM

Se a natureza humana está determinada a aspirar o sumo bem, devemos admitir também que a medida das suas faculdades de conhecimento, principalmente na relação destas faculdades entre si, seja convenientemente adequada a essa finalidade. Mas a crítica pura especulativa demonstra a dilatada insuficiência da mesma para resolver, de conformidade com o fim, os mais importantes problemas que lhe são propostos, embora não ignore as indicações naturais e não desprezíveis dessa mesma razão, nem os grandes passos que ela possa articular para acercar-se dessa finalidade grandiosa que lhe é proposta e que, todavia, nunca alcança por si mesma, nem que o seja com o ajutório de um maior conhecimento da natureza. Neste caso, parece que a natureza, ao prover-nos de uma faculdade necessária para a nossa finalidade, exerceu um papel de madrasta.

Supondo todavia que tivesse sido neste ponto favorável ao nosso desejo e que nos conferisse aquela capacidade de penetração ou de luzes que de bom grado quiséramos possuir, de cuja posse muitos imaginam estar, qual seria a conseqüência disso, segundo todas as aparências? A menos que ao mesmo tempo toda a nossa natureza não se houvesse transformado, as inclinações às quais, nesse ponto, sempre cabe a primeira palavra, reclamariam primeiramente a sua satisfação e, unidas à reflexão racional, a satisfação máxima possível e contínua sob o nome de felicidade; logo se manifestaria a lei moral para manter as mesmas nos seus limites convenientes, incluindo-se nisso a submissão de todas elas em conjunto a um fim superior que não leve em conta qualquer inclinação. Contudo, em lugar de observar-se agora a luta que a disposição moral de ânimo deve sustentar com as inclinações, na qual, após alguns revezes adquirimos, entretanto, pouco a pouco, a fortaleza moral da alma, divisaríamos, permanente, ante os nossos olhos, Deus e a eternidade com a sua terrível majestade, pois o que podemos demonstrar completamente vale para nós, em relação à certeza, tanto quanto nos asseguram os nossos próprios olhos. A transgressão da lei seria, imediatamente, evitada; o mandato seria cumprido; mas como a disposição de ânimo por meio da qual devem ocorrer as ações não pode ser introduzida em nós por nenhum mandato e, por outro lado, o aguilhão da atividade está aqui sempre à mão e é externo, prescindindo a razão de qualquer esforço para recolher diante de tudo isso, por meio da representação viva da dignidade da lei, as forças mediante as quais possa resistir às inclinações, a maior parte das ações consoantes à lei ocorreriam por temor, poucas por esperança e nenhuma por dever, não existindo, nesse caso o valor moral das ações, do qual não só depende o valor do indivíduo e até o do mundo aos olhos da suprema sabedoria. A conduta do homem, enquanto durasse a sua natureza e tal como é hoje, resultaria em mero mecanismo, como ocorre no teatro de fantoches, onde todos gesticulariam perfeitamente bem, mas vida alguma nas figuras se encontraria. Como somos constituídos de um modo bem distinto desse, só podemos, ainda mesmo diante de todos os esforços da nossa razão, ter acerca do futuro uma perspectiva sobremodo obscura e equívoca. O regente do mundo, embora nos faculte conjecturas a sua existência e a sua majestade, não nos deixa vê-la nem demonstrá-la claramente; mas, por outro lado, em nós, a lei moral, sem nada prometer nem ameaçar algo com segurança, exige o nosso respeito desinteressado e, além disso, quando esse respeito se eleva a ativo e dominante, então, só por isso, vem facultar-nos perspectivas no reino do suprasensível, embora só mediante um débil vislumbre; por isso, pode haver uma verdadeira disposição moral de ânimo consagrada imediatamente à lei, por isso, também, pode a criatura racional chegar a ser digna de participar do sumo bem, na proporção adequada ao valor moral de sua pessoa e não simplesmente na relativa às suas ações. Desse modo, portanto, também poderia ser exato o que nos ensina suficientemente o estudo da natureza e do homem, isto é: que a sabedoria impenetrável, por meio da qual existimos, não é menos digna de veneração por aquilo que nos negou do que pelo que nos concedeu.


 

SEGUNDA PARTE
da

Crítica da Razão Prática

METODOLOGIA DA
RAZÃO PURA PRÁTICA


 

 

Por metodologia da razão pura prática não se deve entender o modo (tanto na reflexão como na exposição) de proceder com princípios puros práticos, em relação a um conhecimento científico dos mesmos, o que se denomina, além disso, no conhecimento teórico, método propriamente dito (pois o conhecimento vulgar necessita de um modo, porém, a ciência de um método, isto é, um processo por princípios da razão, mediante o que apenas o múltiplo de um conhecimento pode chegar a ser um sistema). Neste caso, entretanto, devemos entender por metodologia principalmente o modo como se pode proporcionar às leis da razão pura prática um acesso ao ânimo do homem, incutindo-lhe influência sobre as suas máximas, ou seja, para tornar subjetivamente prática a razão objetivamente prática.

Pois bem: é evidente que os princípios determinantes da vontade, que tornam por si mesmos propriamente morais as máximas, dando-lhes um valor moral, a representação imediata da lei e a observância objetivamente necessária da mesma, como dever, têm de ser representados como os verdadeiros móveis da ação, porquanto, de forma diversa, seria observada a legalidade das ações mas não a moralidade das intenções. Não é porém tão evidente, sendo até inverossímil, à primeira vista, que também subjetivamente aquela representação da virtude pura possa ter, sobre o ânimo do homem, também subjetivamente, mais poder e dar-lhe um motor muito mais forte ainda para realizar aquela legalidade das ações e produzir decisões mais enérgicas, de forma a preferir a lei no seu respeito, sobre qualquer outra coisa que possa resultar de todas as soluções oriundas do reflexo dos prazeres e, em geral, de tudo o que se possa computar à felicidade, ou também às ameaças de dores e de males. Contudo isso acontece, e se a natureza humana não estivesse assim constituída, jamais um modo de representar a lei mediante circunlóquios e meios de recomendação poderia produzir a moralidade da intenção.

Tudo seria hipocrisia pura, a lei se tornaria odiada e até desacatada, obedecendo-se a mesma apenas por considerações de proveito próprio. A letra da lei (legalidade) surgiria em nossas ações, mas o espírito da mesma não repontaria em nossas intenções (moralidade); e como nós por muito que nos esforcemos, não podemos nos desfazer de todo da razão em nosso juízo, teríamos que aparecer inevitavelmente ante os nossos próprios olhos como indignos, homens réprobos não obstante tratássemos de nos manter sem prejuízo em face dessa humilhação, perante o tribunal íntimo, regozijando-nos nos prazeres que uma lei natural ou divina, aceita por nós, conglobasse, baseada em nossa crença demente com a máquina de sua polícia, regulada somente segundo o que se faz, sem preocupar-se com os fundamentos motores por meio dos quais se opera.

Em verdade não se pode negar que, para fazer entrar no caminho do bem moral uma alma inculta ou degradada, seja necessário prepará-la, atraindo-a com a perspectiva da vantagem pessoal ou intimidando-a mediante abantesma; mas, apenas estes mecanismos, estes recursos tenham produzido algum efeito, então há necessidade de mostrar à alma o motivo moral em toda a sua pureza, porque não somente este motivo é o único que pode fundar um caráter, um modo prático e coerente de pensar segundo máximas invariáveis, mas ainda porque ensina ao homem sentir a sua própria dignidade, dá ao ânimo uma força que ele mesmo não esperava, para desfazer-se de toda a dependência sensível enquanto esta quer ser predominante e para encontrar na independência de sua natureza inteligível, e na grandeza de alma a que é destinado, uma farta compensação do sacrifício que realiza.

Vamos, portanto, demonstrar mediante observações que cada um pode fazer que esta propriedade do nosso ânimo, esta receptividade de um puro interesse moral e, por conseguinte, a força motriz da representação pura da virtude, quando se coloca convenientemente no coração humano, é o motor mais poderoso para o bem e, tratando-se da duração e da pontualidade na observância das máximas morais, o motor único. Com este propósito devemos recordar ao mesmo tempo que se estas observações demonstram só a realidade desse sentimento, mas não a melhoria moral por ele realizada, isso não prejudica em nada o único método, que consiste em fazer das leis objetivamente práticas da razão pura, por meio de mera representação pura do dever, leis subjetivamente práticas. Não tendo este método nunca sido posto em ação, não pode a experiência demonstrar nada de seu êxito; pode-se, apenas, exigir as provas da receptividade nos objetivos em que assenta. Vou expô-las sucintamente e gizar em poucos traços o método apto para fundamentar e cultivar as verdadeiras intenções morais.

Considerando o desenrolar de uma conversação em sociedade mista, que não se componha apenas de sábios e de polemistas, mas de homens de negócios e de mulheres, observaremos que além do anedotário e da ironia, o raciocínio tem também o seu lugar no diálogo, porquanto a anedota, que para ter interesse deve encerrar alguma novidade, logo se esgota, e o chiste se torna insípido. Mas entre todos os raciocínios não há nenhum que seja tão bem acolhido entre pessoas para as quais, por outro lado, toda a discussão sutil logo causa um profundo fastio, que melhor anime uma sociedade do que aquele que versa sobre o valor moral desta ou daquela ação e tem por objeto decidir acerca do caráter de alguma pessoa. Aqueles para quem tudo o que é sutil e amaneirado nas questões teóricas, tendo-as como secas e desagradáveis, logo se intrometem na conversação quando se trata de julgar o valor moral de uma ação boa ou má; e no concernente à imaginação timbram em salientar o que possa rebaixar a pureza da intenção e, por conseguinte, o grau de virtude da mesma, ou pelo menos torná-las suspeita, colocando nesse propósito uma exatidão, uma finura, uma sutilidade que nunca se poderia esperar delas, tratando-se de um objeto de especulação. Nesses juízos pode-se ver amiudadamente o reflexo do caráter da pessoa que julga as outras. Algumas há que parecem mais inclinadas, exercendo a sua jurisdição de preferência sobre mortos, a defender contra todos as acusações humilhantes o que nas mesmas possa haver de bem, protegendo o valor moral total da pessoa contra a acusação de simulação ou de maldade velada; outras, de modo inverso, são propensas à pesquisar os motivos dessa acusação com o fito de impugnar esse valor. Não se pode todavia atribuir a estes últimos a intenção de tirar toda a virtude nos exemplos que se narram dos homens, para fazer dela um nome vazio; trata-se geralmente de uma boa intenção a que os torna severos na apreciação do valor moral das ações. Julgam em virtude de uma lei que não admite tergiversações e que, tomada a modo de exemplos, por termo de comparações, rebaixa em muito toda essa nossa presunção nas coisas morais, não exemplificando apenas a modéstia, mas fazendo-a sentir a todo aquele que a examine com uma penetração aguda de si mesmo. Em muitos casos porém nos é dado observar que os defensores da pureza da intenção nos exemplos citados, querem apagar na mesma até a mínima das manchas que possam salpicar o fundamento motor da ação onde assentam em seu favor a aparência de retidão, fazendo-o porque se for negada a verdade de todos os exemplos e repelida a pureza na virtude humana, acabaria esta sendo considerada como uma quimera e, conseqüentemente, todo o esforço para consegui-la resultaria menosprezado como afetação supérflua e presunção enganosa.

Não sei porque os educadores da juventude não fizeram há mais tempo uso dessa tendência da razão em empreender com satisfação o exame mais sutil das questões práticas propostas e porque, depois de ter posto como base um catecismo meramente moral, não rebuscaram nas biografias antigas e modernas para dispor de documentos dos deveres prepostos, mediante os quais, principalmente comparando ações semelhantes em circunstâncias diversas, poriam em jogo o juízo dos seus educandos no discernimento do maior ou menor conteúdo moral dessas ações. Concluiriam logo com isso que, inclusive a primeira juventude, ainda não amadurecida para a especulação, logo se torna muito mais perspicaz e, além disso, chega a interessar-se diante do sentido que possui do progresso de sua faculdade de julgar.

Outra coisa ainda mais importante podem esperar, mediante a certeza de que o exercício freqüente de conhecer a boa conduta em toda a sua pudera e de aprová-la, assim como também de observar, compungidos ou reprovantes, o mínimo deslize da mesma, embora até então se realize apenas como um mero jogo do juízo, no qual as crianças competirão entre elas, deixando uma impressão duradora, por um lado de alto respeito e por outro de repulsa, podendo constituir-se assim, para a vida, no futuro, uma excelente base de retidão mediante o mero costume de considerar amiudadamente tais ações como dignas de aplausos ou de censura. Desejo apenas que se omitam os exemplos das ações denominadas nobres (super-meritórias) das quais os nossos escritos sentimentais estão repletos e que se referem em tudo ao dever e ao valor a que um homem pode e deve atingir, julgando-se a seus próprios olhos um homem que tem a consciência de nada haver infringido, porquanto essas aspirações de uma perfeição inacessível só produzem heróis de novela os quais, buscando com ufania uma grandeza imaginária, esquecem da observância da obrigação comum e corrente, a qual lhes parece demasiado insignificante (17).

Contudo, se perguntarmos em que consiste propriamente a moralidade pura, que nos deve servir de pedra de toque para julgar do valor moral de toda a ação, sou forçado a confessar que só os filósofos podem tornar duvidosa a resolução desta questão, porque na razão humana comum está decidida há longo tempo, não por fórmulas gerais e abstratas, mas por um uso constante, como a distinção entre a mão direita e a esquerda. Vamos, portanto, antes de tudo mostrar com um exemplo o caráter distintivo da virtude pura e, supondo o exemplo proposto ao juízo de um menino de dez anos, veremos se este menino, por si mesmo e sem auxílio de seu mestre, deveria julgar necessariamente assim.

Narrai a história de um homem honrado a quem se pretenda comover para que auxilie a caluniadores de uma pessoa inocente, mas sem prestígio (como, por exemplo, Ana Bolena, acusada por Henrique VIII, rei da Inglaterra). Oferecem ao mesmo grandes vantagens, como sejam ricos presentes ou uma posição de destaque, e ele os recusa. Esta conduta excitará assentimento e aplausos no ânimo do ouvinte, porque se trata de vantagens. Suponde, porém, que se chegou às últimas ameaças. Em meio dos difamadores, estão os seus melhores amigos, que lhe recusam agora a sua amizade; os seus parentes próximos, que ameaçam deserdá-lo (ele, que é falho de recursos); indivíduos poderosos que podem persegui-lo e mortificá-lo em qualquer condição ou lugar; um príncipe que ameaça de tirar-lhe a liberdade e a própria vida. Mas, para que extravase a medida do sofrimento e para fazer-lhe sentir também a dor que só um coração moralmente bom possa sentir intimamente, afigure-se a família ameaçada pela extrema miséria e necessidade, suplicando-lhe que ceda; pode-se também imaginar o mesmo, apesar de honesto, contudo impressionável aos sentimentos da compaixão e aos da sua própria miséria, num momento em que não desejaria ter jamais vivido este dia que o submete a tão rude dor, fiel, entretanto, a seu propósito de honradez, sem qualquer vacilação ou dúvida. Então o jovem ouvinte vai se elevando gradativamente da simples aprovação à admiração, desta ao assombro e, finalmente, à maior veneração e ao vivo desejo de poder ser ele esse homem (embora não em tal situação). A virtude, todavia, tem nesse caso muito valor porque custa tanto e não porque traga alguma vantagem. Toda a admiração e o próprio esforço para assemelhar a este caráter, assenta aqui plenamente na pureza do princípio moral, o qual não pode ser representado ou destacar-se com evidente clareza sem separar dos móveis da ação tudo o que os homens possam computar à felicidade. Desse modo a moralidade tem tanto mais força sobre o coração humano quanto mais pura a mostramos. Disso resulta que se a lei moral, se a imagem da santidade e da virtude deve exercer alguma influência em nossa alma, não poderá fazê-lo senão enquanto se apresente com um móvel puro e despido de toda a consideração de interesse pessoal, porque é sobretudo na desgraça que mostra toda a sua dignidade. Tudo aquilo cuja ausência fortaleça o efeito de uma força motriz deve ser tido como um obstáculo. Por conseguinte, todo o misto de móveis que resultem da própria felicidade constituem um obstáculo na influência da lei moral sobre o coração humano. Além disso eu sustento que até naquela ação que merece admiração, se não se supõe outro motivo além da consideração do dever, este respeito à lei agirá mais fortemente sobre a alma do ouvinte, que poderá nutrir uma espécie de pretensão íntima à grandeza de ânimo, aos sentimentos nobres e meritórios, e que, conseqüentemente, é o dever e não o mérito o que produz sobre a alma não apenas a mais determinada influência, mas ainda, se estiver representado na verdadeira luz de sua invulnerabilidade, a mais penetrante.

Em nossos dias, quando se espera, com sentimentos ternos e compassivos, além de outras pretensões de alto voejar, todas elas vaidosas e que mais debilitam do que fortificam o coração, melhor influir sobre o ânimo do que com a representação seca e severa do dever, que mais se coaduna à imperfeição da natureza humana e a seus progressos no caminho do bem, urge mais do que nunca a referência a este método. Apresentar como um exemplo aos meninos ações que se inculcam de nobres, generosas e meritórias com o escopo de interessar-lhes entusiasmo, é processo inteiramente contrário à finalidade proposta. Como não estão eles ainda suficientemente adiantados na observância do dever mais comum e até na exata apreciação dos mesmos, a sua imaginação resulta fantasiosa e sonhadora. Ainda mesmo na parte mais instruída e experimentada da humanidade, este pretenso meio, quando não é funesto, produz qualquer efeito moral apreciável sobre o ânimo como se desejava alcançar através do mesmo.

Todos os sentimentos, especialmente aqueles que têm de produzir tão extraordinário esforço, devem fazer o seu efeito no momento de sua veemência e antes que eles se abrandem, pois de outro modo não são eficazes; porque o coração torna naturalmente a seu movimento vital, moderado e natural, caindo em seguida na tibieza que antes lhe era própria, porque se conseguiu excitá-lo um instante mas não fortalecê-lo. Os princípios têm que estabelecer-se sobre conceitos; sobre outros fundamentos só se elevam movimentos passageiros que não podem proporcionar à pessoa qualquer valor moral, nem mesmo a confiança em si mesmo, sem a qual a consciência de seu estado moral de ânimo e de seu caráter, supremo bem do homem, não pode efetivar-se. Pois bem: para que estes conceitos sejam subjetivamente práticos, não devem ser aplicados de forma que do seu uso resultem motivos de admiração ou de estima para a humanidade, mas que devem ser considerados em sua representação no que se relacionam com o homem e para o seu uso individual. Esta lei, embora se nos apresente sob um aspecto verdadeiramente respeitável, não produz contudo a atraente impressão com que nos proporcionaria se pertencesse ao elemento a que o homem está naturalmente habituado, mas o obrigaria a abandonar amiudadamente, não sem pouca abnegação, aquela inclinação, e a entregar-se a outra, mais elevada, na qual só se pudesse manter com dificuldade, dominado por um inconstante temor de retrocesso. Numa palavra, a lei moral exige a sua observância por dever e não por uma predileção ou por amor do dever, o que não se deve nem se pode supor.

Seja-me permitido ver agora no exemplo seguinte se na representação de uma ação nobre e magnânima há uma força de impulsão interna mais poderosa que opere sobre o móvel subjetivamente, do que se esta só representasse como dever, em relação com a severa lei moral. A ação pela qual alguém, com o maior perigo, trata de salvar náufragos, o que acaba por sacrificar-lhe a vida, pode ser computada por um lado ao dever, mas por outro, na sua maior parte, como uma ação meritória; mas a nossa estimativa por essa ação resulta muito diminuta quando analisamos o conceito do dever para consigo mesmo, que aqui parece ser desprezado. O generoso sacrifício da vida pela pátria é mais decisivo; mas embora se trate de um dever perfeito consagrar-se por si mesmo e imponderadamente a esse fim, pode-se ter algum escrúpulo relativamente a isso, não tendo a questão em si toda a força de um modelo e o estalão para imitar-se. Trata-se porém de um dever rigoroso, cuja violação fere a lei moral considerada em si mesma e independente de toda a consideração acerca do bem humano, de um atentado à sua santidade (deveres estes que soem ser chamados deveres para com Deus, porque incluímos neles o ideal da santidade em substância); consagramo-nos então à sua observância, com sacrifício de tudo o que possa ter algum valor para a mais íntima de todas as nossas inclinações, por perfeita que seja a sua estima, julgando o nosso ânimo fortalecido e elevado mediante esse exemplo, porque no mesmo vemos de quanto é capaz a natureza humana, não obstante tudo quanto nela mesma se possa opor a esse móvel. Juvenal propõe um exemplo desse teor seguindo uma gradação apropriada a fazer sentir vivamente ao leitor a potência motora que reside na lei do dever como dever:

Esto bonus miles, tutor bonus, arbiter idem
Integer; ambigusæ si quando citabere testis
Incertæ que rei, Phalari sbicet imperet, ut sis
Falsus, et admoto dictet perjuria tauro:
Summum crede nefas animam præferre pudori,
Et propter vitam vivendi perdere causas
(18)

Se introduzíssemos em nossa ação algo de lisongeiro acerca da idéia do mérito, então o móvel ficaria confundido com o amor próprio; há portanto um apoio por parte da sensibilidade. Por outro lado, tudo subordinar à idéia da santidade do dever e nutrir a consciência de que se pode por reconhecê-lo a nossa própria razão como mandato seu, proclamando que se deve fazê-lo, significaria elevar-se, por assim dizer, muito acima do mundo sensível. É nessa consciência da lei que se situa, inseparavelmente da mesma, o móvel de uma faculdade que domina a sensibilidade, embora nem sempre com o efeito desejado; mas a realização exata desse efeito nos é dado esperar quando, mediante freqüentes ensaios e exercícios de seu uso, inicialmente escassos, faculta-nos a esperança de sua realização, produzindo pouco a pouco em nós um interesse maior, embora puramente moral.

Vê-se portanto que o método se desenrola do seguinte modo: Primeiro se trata só de fazer com que o juízo, por meio de leis morais, venha a ser ocupação natural paralela a todas as ações que nos são próprias, sem contudo perder de vista as ações livres alheias, de forma a chegar ser, por assim dizer, um costume que se fortifique em nossa faculdade de julgar, inquirindo, cada vez com maior penetração e antes de qualquer outra coisa, se a ação está objetivamente conforme à lei moral e a que lei. Distinguimos nisso a atenção àquela lei que só nos é dado proporcionar pelo princípio da obrigação daquela outra que é de fato obrigatória (leges obligandi a legibus obligantibus) como, por exemplo, a lei que manda aliviar a penúria do homem e o direito desse mesmo homem; a última prescreve deveres essenciais, enquanto a primeira exige deveres acidentais, podendo cada um capacitar-se assim dos diferentes deveres que coincidem na mesma ação. Outro ponto acerca do qual se torna necessário chamar a atenção, é a questão de saber se a ação se realizou também (subjetivamente) prismada, na lei moral e, conseqüentemente, se está enquadrada na sua máxima; se possui, como fato, a exatidão moral, e se teve, como intenção, um verdadeiro moral. Não resta dúvida de que este exercício e a consciência da cultura que resulta de nossa razão quando formula os seus juízos, atendo-se somente ao prático, deva produzir paulatinamente em nós algum interesse para com a lei que rege a nossa razão e, por conseguinte, as nossas ações moralmente boas, porque, por fim, acabamos por amar aquilo que consideramos como fator principal de conhecimentos amplos no uso mais extenso de nossas faculdades cognoscitivas, extensão esta que devemos precisamente e de forma especial àquilo onde encontramos a exatidão moral, porquanto nessa ordem de coisas podemos encontrar a razão perfeitamente enquadrada nos seus limites quando pode determinar a priori, segundo certos princípios, o que deva ocorrer. Desse modo acaba um observador da natureza por afeiçoar-se aos objetos que de começo repugnam aos seus sentidos, ao descobrir nos mesmos a grande finalidade de sua organização, alimentando assim nessas pesquisas a sua razão. Leibnitz, por exemplo, depois de ter examinado cuidadosamente um inseto ao microscópio, tornou a colocá-lo cuidadosamente na folha onde o encontrara, porque, tendo-o instruído, e portanto proporcionado um benefício, resultara credor de sua gratidão.

Mas esta preocupação de julgar, que nos faz perceber o desenvolvimento de nossas faculdades cognoscitivas, não representa ainda o interesse que se une às ações quando descobrimos a moralidade das mesmas. Apenas faz com que alguém se entretenha com satisfação em formular juízos sobre essa ação, dando à virtude ou ao modo de pensar, segundo leis morais, uma forma de beleza que admiramos, mas que nem por isso a buscamos (laudatur et alget). Acontece o mesmo quando, considerando tudo aquilo que produz subjetivamente em nós uma espécie de consciência da harmonia que existe entre as nossas faculdades representativas, na qual encontramos inteiramente fortalecida a nossa faculdade de conhecer (entendimento e imaginação), determina uma satisfação, que pode ser comunicada aos demais, mas que nos torna indiferentes à existência do próprio objeto, considerando-o apenas como a oportunidade de conhecer a índole e a disposição de dotes que se elevam em nós sobre a natureza animal. Agora entra em ação o segundo exercício, o qual terá como objeto atrair, mediante a representação escorreita da intenção moral que encerram os exemplos, a atenção sobre a pureza da vontade, acima de tudo como perfeição negativa da própria vontade, porquanto em uma ação realizada por dever não exercem qualquer influência os móveis da inclinação, como fundamento da determinação, donde resulta que a atenção do discípulo se focaliza sobre a consciência da sua liberdade, embora esta renúncia às inclinações se assemelha à primeira vista uma espécie de sensação inicial de dor. Logo, quando o discípulo se vê alijado da coação das verdadeiras necessidades, perceberá então uma espécie de libertação da multiplicidade amargurosa em que o envolvem todas essas necessidades, tornando-se assim o espírito sensível às mostras de contentamento advindas de outras fontes, inteiramente diversas. O coração fica portanto livre e aliviado do peso que o oprime sempre ocultamente, quando nas resoluções puramente morais, cujos exemplos se propõem, vê o homem deparar-se-lhe uma faculdade interior, que ele mesmo, além disso, não conhece bem: a liberdade interna de libertar-se da impetuosa violência das inclinações até o ponto em que nenhuma, nem mesmo a que nos for mais cara, possa influir sobre uma resolução na qual se faz mister o uso de nossa razão. Suponhamos, por exemplo, um caso em que só eu saiba que a culpa me cabe, no qual a minha confissão espontânea e a espectativa da satisfação em reparar a mesma se encontrem em oposição na vaidade, no interesse próprio e até na antipatia não ilegítima que sinto por esse indivíduo, cujo direito lesei, oposição que se torna tenaz; todavia, se posso vencer todas essas dúvidas, então fica patente aí a consciência das inclinações e das circunstâncias felizes, além da possibilidade de bastar-se a si mesmo, que sempre me resulta proveitosa sob outros aspectos. Resultará disso que a lei do dever, no valor positivo que a observância da mesma nos faz sentir, encontrará fácil acesso em nosso recôndidto, graças ao respeito para com nós mesmos, que se origina na consciência da nossa liberdade. Se este respeito for bem estabelecido, se o homem não teme nada tanto quanto encontrar-se diante de seus próprios olhos em exame de consciência desprezível e repugnante, pode agora fundamentar-se sobre este sentimento todas as boas disposições morais, porque isso constitui a melhor custódia, talvez a única capaz de impedir que instintos pouco nobres, capazes de corrupção, penetrem no ânimo.

Não quis indicar aqui senão as máximas mais generalizadas da metodologia de uma doutrina para o método da educação e da prática moral. Como a multiplicidade dos deveres exigia para cada classe dos mesmos outras determinações especiais, e isso constituiria um assunto sobremodo extenso, se me excusará se eu, em um trabalho como este, que é apenas um exercício preliminar, exponha tão somente pontos fundamentais.


 

CONCLUSÃO

 

Duas coisas enchem o ânimo de crescente admiração e respeito, veneração sempre renovada quanto com mais freqüência e aplicação delas se ocupa a reflexão: por sobre mim o céu estrelado; em mim a lei moral. Ambas essas coisas não tenho necessidade de buscá-las e simplesmente supô-las como se fossem envoltas de obscuridade ou se encontrassem no domínio do transcendente, fora do meu horizonte; vejo-as diante de mim, coadunando-as de imediato com a consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que eu ocupo no mundo exterior sensível e congloba a conexão em que me encontro com incalculável magnificência de mundos sobre mundos e de sistemas, nos tempos ilimitados do seu movimento periódico, do seu começo e da sua duração. A segunda começa em meu invisível eu, na minha personalidade, expondo-me em um mundo que tem verdadeira infinidade, porém que só resulta penetrável pelo entendimento e com o qual eu me reconheço (e, portanto, também com todos aqueles mundos visíveis) em uma conexão universal e necessária, não apenas contingente, como em relação àquele outro. O primeiro espetáculo de uma inumerável multidão de mundos aniquila, por assim dizer, a minha importância como criatura animal que tem que devolver ao planeta (um mero ponto no universo) a matéria de que foi feito depois de ter sido dotado (não se sabe como) por um curto tempo, de força vital. O segundo, por outro lado, realça infinitamente o meu valor como inteligência por meio de minha personalidade, na qual a lei moral me revela uma vida independente da animalidade e também de todo o mundo sensível, pelo menos enquanto se possa inferir da determinação consoante a um fim que recebe a minha existência por meio dessa lei que não está limitada a condições e limites desta vida, mas, pelo contrário, vai ao infinito.

Mas admiração e respeito podem incitar à investigação sem, contudo, suprir a sua falta. Que se deve pois fazer para instaurá-la de uma forma útil e adequada à elevação do objeto?

Os exemplos, aqui, podem servir de advertência mas, também, de modelo. A consideração do mundo começou pelo mais fulgurante espetáculo que se possa apresentar aos sentidos do homem e que ao seu entendimento seja facultado abraçar na mais ampla das suas extensões, terminando pela astrologia. A moral começou com a mais nobre propriedade da natureza humana, cujo desenvolvimento e cultura se encaminham a uma utilidade infinita, terminando pelo misticismo ou na superstição. Assim ocorre em todos os ensaios, ainda que rudes, nos quais a parte dominante do assunto depende do uso da razão, porque tal uso não se adquire por si só mediante exercício freqüente, como ocorre com o uso dos pés, sobre tudo o que seja relativo a propriedades que não se deixem expor tão imediatamente na experiência ordinária. Mas assim que, embora tarde, chegue a ter potencialidade a máxima de refletir de antemão todos os passos que a razão se propõe articular, não deixando seguir tal máxima senão dentro do roteiro de um método previamente examinado, imprimir-se-á ao juízo do edifício do mundo uma diretriz totalmente diversa, obtendo-se então, por meio desta, um resultado incomparavelmente mais feliz. A queda de uma pedra e o movimento de uma funda, analisados nos seus elementos e nas forças por eles exteriorizadas, quando tratados matematicamente, produzem, em seu final, essa concepção do mundo, clara e imutável para todo o futuro, que pode esperar ampliar-se com observações progressivas, sem o temor de qualquer retrocesso.

Empreender esse mesmo caminho no estudo das disposições morais da nossa natureza é coisa que esse exemplo pode aconselhar-nos, dando-nos a esperança de idêntico feliz êxito. Temos à mão os exemplos do juízo moral da razão. Devemos, portanto, analisá-los nos seus conceitos elementares, empreendendo por falta de matemáticas, um processo semelhante ao da química, o da separação entre o empírico e o racional que pode encontrar-se nesse particular, isso por meio de repetidos ensaios sobre o entendimento humano ordinário, podendo conhecer a ambos puros e saber com segurança o que pode produzir cada um por si mesmo, impedindo, assim, ora o erro de um juízo, embora tosco e sem tirocínio, e, em parte (o que é mais necessário ainda) as tiradas geniais que, como sói acontecer aos adeptos da pedra filosofal, prometem, sem investigação metódica nem conhecimento da natureza, tesouros imaginários, sem qualquer apreço pelos verdadeiros. Uma só palavra: a ciência (procurada mediante a crítica e conduzida com método) é a porta exígua que conduz à doutrina da sabedoria, se entendermos esta não apenas pelo que se deve fazer, mas pelo que deve servir de fio condutor aos mestres para explanar bem e com pleno conhecimento o caminho da sabedoria, que todos devem seguir, preservando os outros dos erros, ciência esta que deve ser custodiada pela filosofia, não devendo o público tomar parte em tão sutil investigação, embora deva participar com vivo interesse nas doutrinas que possam surgir, depois dessa elaboração, com uma clareza meridiana.


 

Notas

As notas foram renumeradas para conversão para eBook.

(1) – Para que alguém não julgue encontrar aqui inconsequências, pelo fato de agora denominar a liberdade condição da lei moral e logo mais, neste mesmo tratado, afirmar-se que a lei moral é a condição sob a qual podemos adquirir consciência da liberdade, quero lembrar aqui apenas que a liberdade é indubitavelmente a ratio essendi da lei moral, mas a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade. Se a lei moral não fosse, em nossa razão, pensada anteriormente com clareza, não poderíamos nunca julgarmo-nos como autorizados a admitir alguma coisa tal como é a liberdade (ainda quando esta não se contradiz). Mas se não houvesse qualquer liberdade, de forma alguma poderia a lei moral encontrar-se em nós.

(2) – Horácio. Sát., I, 1-19.

(3) – A união da causalidade como liberdade, com a causalidade como mecanismo natural, afirmando-se aquela como meio de lei moral e esta por meio da lei natural, num único e mesmo sujeito, o homem, é impossível sem representar este como ser em si mesmo em relação à primeira, e como fenômeno em relação à segunda, no primeiro caso na consciência pura, e, no segundo caso, na consciência empírica. Sem isso é inevitável a contradição em si mesma.

(4) – Um crítico que quis dizer alguma coisa em censura deste trabalho, acertou mais do que ele próprio pudesse crer, dizendo que não se expõe nele nenhum novo princípio da moralidade, mas apenas uma fórmula nova. Mas quem pretendia introduzir um novo princípio de toda moral, inventando esta, como se diria, pela primeira vez; Como se, antes dele, o mundo tivesse vivido sem que se soubesse o que fosse o dever, ou em erro constante acerca desse ponto! Mas aquele que sabe o que significa para o matemático uma fórmula que determine com toda a exatidão, sem erro, o que se deva fazer para solucionar um problema, não julgará que uma fórmula que desempenha tal função em consideração de todo o dever em geral, seja coisa insignificante ou supérflua.

(5) – Poderiam fazer-me a objeção seguinte: — Por que não explicaste também com antecedência o conceito da faculdade de desejar ou do sentimento de prazer? Contudo tal observação seria injusta, porque, com justiça, dever-se-ia pressupor essa explicação como referente à psicologia. Mas, na verdade, a definição poderia estar ali disposta de tal forma que deslocasse o sentimento do prazer como base da determinação da faculdade de desejar (como também sói acontecer comumente); então, segundo isso, o princípio supremo da filosofia prática resultaria necessariamente empírico, coisa que todavia deve decidir-se antes de mais nada e que está cabalmente refutada nesta crítica. Por isso, quero dar aqui esta explicação tal como deve ser, para deixar sem resolver, ao começar, como é justo, este ponto controvertido. — Vida é a faculdade que possui um ser de agir segunda as leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é a faculdade desse mesmo ser, de ser, por meio de suas representações, causa da realidade dos objetos dessas representações. Prazer é a representação da coincidência do objeto ou da ação com as condições subjetivas da vida, isto é, com a faculdade da causalidade de uma representação em consideração da realidade do seu objeto (ou da determinação das forças do sujeito para a ação de produzi-lo). Para a crítica dispenso os conceitos tomados da psicologia; o resto a própria crítica proporcionará. Percebe-se facilmente que a questão de saber-se se o prazer deve sempre ser situado à base da faculdade de desejar, ou se também, debaixo de certas condições, o prazer segue somente a determinação dessa faculdade, fica indecisa com essa explicação, pois a mesma se compõe exclusivamente de notas do entendimento puro, isto é, categorias que não contêm nada de empírico. Tal corcunspecção é muito recomendável em toda a filosofia, se bem descuidada, entretanto, com freqüência, consistindo em não antecipar os seus julgamentos por meio de uma definição ousada, antes da análise completa do conceito, análise que freqüentemente só se alcança bem tarde. Também se observará em todo o decurso da crítica (tanto da razão teórica como da prática) que nele se encontram muitas ocasiões de completar numerosos defeitos da velha marcha dogmática da filosofia e de fazer desaparecer faltas que não se observam até quando se faz dos conceitos da razão um uso que se distende com o conjunto completo da mesma (*).
(*) Reportemo-nos ao texto: ...als wenn man von Begriffen einem Gebrauch des Vernunft macht, der caufs Granze derselben.

(6) – Bem mais do que aquela incompreensibilidade, temo, neste caso, que às vezes se interpretem mal algumas expressões que eu procurei focalizar com sumo cuidado, para não deixar falho o conceito a que se referem. Dessa forma, na tábua das categorias da razão prática, no título da moralidade, o permitido e o não permitido (prática-objetivamente possível e impossível), tem no uso corrente do idioma quase o mesmo sentido que a categoria que os segue imediatamente, a do dever e o contrário ao dever; mas aqui deve significar o primeiro, aquele que está de acordo ou em contradição com o preceito prático meramente possível (como, v. gr., a solução de todos os problemas da geometria e da Mecânica); o segundo, o que está na mesma relação com uma lei que se confina realmente na razão em geral; e essa diferença de significação não é tão pouco totalmente estranha ao uso corrente do idioma, ainda que seja pouco freqüente. Assim, por exemplo, a determinado orador não é permitido forjar palavras ou construções novas; ao poeta isso é permitido até certo ponto: em nenhum desses casos se cogita do dever. A quem quer prejudicar-se na fama de orador, nada se pode impedir. Trata-se aqui somente da distinção dos imperativos como fundamento da determinação problemático, assertórico e apodítico. Da mesma forma, naquela nota em que coloquei, umas diante de outras, as idéias morais de perfeição prática segundo as diversas escolas filosóficas, distinguiu a idéia de sabedoria (Weisheit) da de santidade (Helligkeit), ainda que, no fundo e objetivamente, eu as declarasse idênticas. Mas naquele caso eu entendo por sabedoria aquela que o homem (o estóico) se arroga, isto é, subjetivamente, como uma qualidade ao homem atribuída. (Quiçá o termo virtude, usado com tanta freqüência pelo estóico, pudesse melhor assinalar a característica da sua escola). Mas a expressão de um postulado da razão pura prática podia ainda ser a que mais ocasião de péssima interpretação oferecesse, se se entremeiasse com ela a significação que têm os postulados da matemática para, os quais levam em si mesmos verossimilidade apodítica. Estes todavia, postulam a possibilidade de uma ação cujo objeto se conheceu previamente, a priori, teoricamente, com certeza total, como possível. Aquele, por outro lado, postula a possibilidade de um objeto (Deus e a imortalidade da alma) inclusive por leis apodíticas práticas, portanto somente para uma razão prática; com efeito, essa certeza da possibilidade postulada não é de modo algum teórica, por conseguinte apodítica, isto é, não constitui uma necessidade conhecida em consideração do objeto, mas uma admissão necessária em consideração do sujeito, para o cumprimento de suas leis objetivas, mas práticas; é portanto apenas uma hipótese necessária. Para esta necessidade subjetiva, mas todavia verdadeira e incondicionada, da razão, não me foi possível encontrar melhor expressão.

(7) – Nomes que designam a filiação a uma seita levaram sempre consigo muita injustiça, como se disséssemos: N. é um idealista. Pois ainda que o mesmo não só admite por completo, mas insiste que, às nossas representações de coisas exteriores, correspondem objetos reais de coisas exteriores, pretende, contudo, que a forma da intuição dos mesmos depende não deles, mas só do espirito humano.

(8) – As proposições que nas matemáticas ou na física se chamam práticas deveriam mais propriamente chamar-se técnicas. Efetivamente, nestas ciências, não se trata da determinação da vontade, limitando-se estas proposições a determinar as condições particulares da ação, ajustada a produzir um efeito, sendo, portanto, tão teoréticas como nas proposições referentes à relação da causa com o efeito. Donde se conclui: a quem convém o efeito convirá também a causa.

(9) – Kant – Fundamenta da Metafísica dos Costumes. “Biblioteca de Autores Célebres” – Vol. 7 – Edições e Publicações Brasil Editora S/A.

(10) – Contrasta esta lei com o princípio da nossa própria felicidade, princípio com o qual alguns pretendem fazer a base da moralidade, a qual equivaleria a reputar ajustado o ditame: Ama-te a ti mesmo sobre todas as coisas; mas a Deus e ao teu próximo, ama-os por amor de ti mesmo.

(11) – A convicção da imutabilidade das intenções no progresso para o bem, faz com que a criatura se tenha como impossibilitada para tanto. Por isso mesmo, é que a doutrina cristã faz essa convicção derivar do próprio espírito que opera a santificação, isto é, do firme propósito e, assim, da consciência da perseverança no progresso moral. Mas também de uma forma natural, aquele que tem consciência de ter perseverado até o fim de sua vida no progresso para o bem e agido na verdade mediante fundamentos estritamente morais, pode ter direito a acariciar a suavizadora esperança, se não a certeza, de que em uma existência para além desta vida, ser-lhe-á dado permanecer no grau em que se encontra e que, embora diante de si e nesta vida, jamais tenha conseguido ser absoluta e exatamente justo, como, ainda, poderá esperar sê-lo, em que pese ao progresso de sua perfeição natural que aguarda no porvir e, com isso, também nos seus deveres, pode, contudo, nesse progresso, que, ainda quando seja concernente a um progresso situado no infinito, aspirar a um valor de posse para Deus, alentando a perspectiva de um bemaventurado porvir, porquanto é esta a expressão com a qual a razão indica um bem (Wohl) completo, independente de todas as causas contingentes do mundo, sendo, precisamente como a santidade uma idéia que só pode ser situada em um progresso infinito, não podendo, em sua totalidade, por conseguinte, ser alguma vez completamente alcançada pela criatura.

(12) – Considera-se comumente que os preceitos cristãos sobre a moral não levam qualquer vantagem no concernente à sua pureza sobre o conceito moral dos estóicos: mas a diferença entre ambas, todavia, é bem visível. O sistema estóico fazia da consciência da fortaleza da alma o eixo ao redor do qual devia girar toda a disposição moral de ânimo e, embora os partidários deste sistema falassem, em verdade, de deveres, determinando-os até muito bem, colocaram, não obstante a isso, os motores e o fundamento próprio de determinação da vontade em uma elevação do modo de pensar acima dos motores dos sentidos, inferiores e fortes apenas diante da debilidade da alma. A virtude era, portanto, entre eles, um certo heroísmo do sábio, que se eleva acima da natureza animal do homem, que se basta a si mesmo e que, embora prescreva deveres aos demais, está acima deles, não estando submetido a qualquer tentação de violar a lei moral. Mas nada disso poderiam ter feito se tivessem representado tal lei para si próprios com a pureza e a severidade com que o faz o preceito do Evangelho. Se eu entendo por uma idéia, uma perfeição, à qual nada pode ser dado de correlato na experiência, nem por isso são as idéias morais transcendentes em algo, isto é, tais que não possamos nunca determinar suficientemente nem mesmo o seu conceito, o que é incerto quando lhes corresponde sempre um objeto, como ocorre com as idéias da razão especulativa, mas que servem, contudo, como protótipo da perfeição prática, de guia indispensável da conduta moral e, ao mesmo tempo, de medida de comparação. Convenhamos, se eu considero a Moral cristã sob o ponto-de-vista filosófico, surgiria, ao compará-la com as idéias das escolas gregas, do seguinte modo: – As idéias dos cínicos, dos epicúreos, dos estóicos e dos cristãos são: a simplicidade natural, a prudência, a sabedoria e a santidade. Em relação ao caminho para alcançá-las, distinguem-se uns dos outros os filósofos gregos, sendo que os cínicos consideravam suficiente para isso o entendimento comum humano, os outros só o caminho da ciência; ambos, portanto, só o uso das forças naturais. A moral cristã, ao estabelecer o seu preceito (como tem ele que ser), tão puro e falho de indulgência, tira do homem a confiança, pelo menos aqui na vida, de ser completamente adequado a ele; estabelece-o, todavia, de forma que se agirmos tão bem como está em nossa faculdade, podemos esperar que o que não estiver em nossa faculdade, dessa forma, chegar-nos-á de outra parte, saibamos ou não o modo. Aristóteles e Platão assim se distinguiam; só em consideração à origem de nossos conceitos morais.

(13) – A propósito disso e para dar a conhecer o caráter próprio desses conceitos, observamos apenas que quando se atribuem a Deus diversas propriedades cuja qualidade também é adequada às criaturas, salvo que nele alcançam um grau mais elevado tanto umas como outras, como, por exemplo, o poder, a ciência, a presença, a bondade infinita, etc., existem, contudo, três que, exclusivamente e sem nenhuma adição de grandeza, são atribuídas a Deus, todas as três morais: Ele é o único santo, o único bemaventurado e o único sábio, porque estes conceitos já conduzem em si a ilimitação. Segundo a ordem dos mesmos, já exposta, Ele é o único santo legislador (e criador), o bondoso governante (e conservador) e o juiz justo, três propriedades que encerram em si tudo o que torna Deus o objeto da religião, propriedades essas nas quais as perfeições metafísicas se acrescentam por si mesmas em nossa razão.

(14) – Sabedoria (Gelehrsankeit) constitui propriamente apenas um conjunto das ciências históricas. Por conseguinte, só podemos chamar sabedor de Deus (Gottesgelehrter) a quem for conhecedor da teologia revelada. Mas se pretender-se dar também o nome de sabedor (Gelchrte) a quem estiver de posse das ciências racionais (matemáticas e filosofia), ainda que isto já resultasse contraditório com o significado dessa palavra (desde que sempre se compreende na sabedoria – Gelehrsamkeit – só o que tem que ser ensinado e o que ninguém pode encontrar por si mesmo, mediante a razão), então o filósofo, com o seu conhecimento de Deus como ciência positiva, teria feito um papel bem pouco edificante ao deixar-se chamar de sabedor (Gelchrte) nesse sentido.

(15) – Todavia, nem mesmo aqui poderíamos aduzir como desculpa uma exigência da razão, se não tivéssemos em vista um conceito racional problemático, mas não obstante a isso, inevitável, a saber: o de um ser absolutamente necessário. Este conceito quer, agora, ser determinado e assim, quando sobrevém o impulso à amplificação, isto é o fundamento objetivo de uma exigência da razão especulativa, a saber: a de determinar com maior exatidão o conceito de um ser necessário, que deve servir a outros de fundamento primacial, dando a conhecer, de certo modo, este último. Sem a precedência de tais problemas necessários, não existem exigências, pelo menos da razão pura; as demais são exigências da inclinação.

(16) – Em um ensaio no Deutchen Museum, de fevereiro de 1787, devido à mentalidade clara e penetrante do falecido Wizenmann, cujo desaparecimento prematuro é de lamentar-se, é combatido o direito de deduzir de uma exigência a realidade objetiva do objeto da mesma explicando o seu ponto-de-vista pelo exemplo de um enamorado que, tendo enlouquecido por uma idéia de formosura que não passa de uma quimera do seu cérebro, quisesse deduzir disso que semelhante objeto se encontra realmente em alguma parte. Dou-lhe absoluta razão em todos os casos em que a exigência se fundamente na inclinação, a qual nem mesmo pode necessariamente postular a existência do seu objeto para quem por ela está afetado e muito menos contém uma exigência válida para cada qual, sendo, portanto, somente um fundamento subjetivo do desejo. Mas aqui existe uma exigência da razão, nascida de um fundamento objetivo de determinação da vontade, a saber: a lei moral, que congloba necessariamente todo o ser racional, justificando, portanto, a priori, a pressuposição das condições adequadas e ela na natureza, tornando estas condições inseparáveis do uso completo prático da razão. É dever realizar o sumo bem segundo a nossa faculdade máxima, devendo, por isso, ser também possível; por conseguinte, é também inevitável para todo o ser racional no mundo pressupor aquilo que para a sua possibilidade objetiva é necessário realizar. Tal pressuposição é, portanto, absolutamente necessária, tanto quanto a própria lei moral; mas, também, só em relação a essa lei resulta a mesma válida.

(17) – Exaltar ações onde brilha uma grande intenção desinteressada e compassiva, a par de um sentimento de humanidade, é coisa sobremodo aconselhável. Mas aqui se deve atender não só à elevação da alma, que é passageira e fugitiva, como também à submissão de coração ao dever, da qual se pode esperar uma impressão mais ampla, porque esta conduz consigo princípios (e aquela apenas agitações). Por pouca reflexão que se faça, achar-se-á sempre uma culpa cometida, de qualquer forma, em consideração do gênero humano (ainda que não fosse mais do que esta: o gozo de vantagens devidas à designaldade dos homens na constituição civil, das quais resultam outros privados), e assim a presumível imaginação do meritório não exclui o pensamento do dever.

(18) – Juvenal – Sat. 8. 79-84 = Como bom soldado, tutor solícito e também árbitro imparcial, se alguma vez te citarem como testemunha em um caso suspeito, embora Falaria te mande ser falso, e te ordene o perjúrio, ameaçando-te com o touro candente, acredita sempre que é uma abominável iniqüidade preferir a vida à honra e por amor à vida perder o que a torna digna de ser vivida.

(*) - alindo-se no original digitalizado. Não consta do Aurélio. Talvez aliando-se. [NE]

(**) - Noumeno - Conservamos a grafia da fonte digitalizada, mais próxima do grego (noûmenon), de preferência à grafia moderna nômeno (port.) ou númeno (bras.) [NE]

(***) - [que] - Acréscimo desta edição, que se julga correção ou omissão da fonte digital. [NE]


 

©2004 — Emanuel Kant

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Novembro 2004

 

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