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WU MING

Textos em Português

Wu Ming

eBooksBrasil


 

Wu Ming: Textos em Português
Wu Ming

Tradução: Wu Ming website
Revisão e Edição de texto: eBooksBrasil

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
www.wumingfoundation.com

© copyleft 2003 — Wu Ming


 

Índice

Prefácio do Editor

WU MING — TEXTOS EM PORTUGUÊS:
Wu Ming – declaração de intentos – Janeiro de 2000
Notas para uma Declaração dos direitos (e deveres) dos narradores – Verão de 2000
Tute Bianche: o lado prático da produção de mito (em tempos catastróficos) – Outubro de 2001
Astronautas de quem? Imaginação e multidão em Itália nos dias do cacerolazo global – Fevereiro de 2002
Carta Capital (BR), 24 abril de 2002 – Eterna Heresia
Folha de São Paulo (Ilustrada), São Paulo, 4 maio de 2002 – Todos os nomes...
Trecho de entrevista com Make World (sobre a cultura pop como "pré-requisito do comunismo") – julho de 2002
Imprensa, São Paulo, Agosto 2002 – resenha de Q (embora não pareça :-))
Entrevista sobre o copyright na newsletter da Associação Italiana das Bibliotecas – Junho de 2002
Copyright e maremoto – Outubro de 2002
[Wu Ming 1 no Brasil] Folha de São Paulo (Ilustrada), 29 outubro de 2002
[Wu Ming 1 no Brasil] Estadão, 31 outubro de 2002
[Wu Ming 1 no Brasil] Visita ao Telecentro da cidade Tiradentes, SP
[Wu Ming 1 no Brasil] Magnet – é um artigo realmente ruim...
[Wu Ming 1 no Brasil] Entrevista na Universidade Federal de Santa Catarina: PLB, arte, copyleft, situacionismo...
[Wu Ming 1 no Brasil] Entrevista à Agência Carta Maior: languagem, povo, multidão...
Zero Hora, Segundo Caderno, 7 de dezembro 2002: Subversão anônima
Extra Classe ano 7 n° 68, Dezembro de 2002: Wu Ming entre “arte” e guerrilha literária


 

Prefácio do Editor

Publicar uma coletânea dos textos em português disponíveis no website do Wu Ming é para eBooksBrasil mais do que uma grande honra, é um imperativo de princípios.

Sim, porque desde outubro de 1999, quando começámos a disponibilizar eBooks na rede, os princípios do copyleft, defendidos pelos Wu Ming, são os que norteiam esta eBiblioteca Pública, embora alguns, poucos, insistam em não entender um princípio tão simples quanto este: é imoral (além de ilegal) vender o que é distribuído grátis, sem o consentimento de quem distribui; o fato de alguém distribuir grátis o que é seu não significa abdicar, de modo algum, à remuneração eventual do fruto de seu trabalho.

Tais princípios são dissecados e explicados à exaustão pelos textos desta coletânea e em outros textos disponíveis no website do Wu Ming: www.wumingfoundation.com (outra feliz e, provavelmente, não mera coincidência: como o eBooksBrasil.org, wumingfoundation é uma com, não uma org;).

Sobre esta Coletânea: ela reproduz a totalidade dos textos disponíveis em português no website Wu Ming, em ordem cronológica, com as seguintes exceções: o texto integral de Q. O caçador de hereges, que pode ser pego lá gratuitamente, para uso pessoal e distribuição gratuita, (não para uso comercial — enfatizar nunca é demais!) e o opúsculo editado pelo Coletivo Baderna [www.baderna.org], reunindo em pdf os textos “Copyright e maremoto” e o trecho de entrevista a Make World, reproduzidos na presente Coletânea.

Q. O caçador de hereges pode ainda ser comprado, em cola e papel, nas boas livrarias online ou direto no website da Conrad Editora: www.lojaconrad.com.br (Q – O Caçador de Hereges – Luther Blisset).

Uma nota sobre a tradução e revisão: a tradução original de alguns textos foi, visivelmente, feita em português de Portugal e respeitada, salvo no caso de alguns termos não traduzidos e que o foram na revisão e de termos pouco usuais no Brasil (p. ex. substituímos guiões pelo termo mais usual entre nós, roteiros), mas mantivemos media, rigorosamente português, em lugar de substituir pelo anglicismo midia, tão corrente por aqui; e preservámos diacríticos (como o de preservámos) de que tanto carece o português do Brasil.

eBooksBrasil
outono de 2003


 

 

Wu Ming
declaração de intentos
(Janeiro de 2000)

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Wu Ming é um laboratório de design literário, que trabalha em diversos media e por diversas encomendas.

A marca Wu Ming é gerida por um colectivo de agitadores da escrita, que se constituiu como uma empresa independente de “serviços narrativos”. A acepção que damos ao termo é a mais ampla que se possa imaginar, chegando até a cobrir actividades de ligação entre literatura e novos media.

Os fundadores de Wu Ming são Roberto Bui, Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo, Federico Guglielmi (membros do Luther Blissett Project no quinquénio 1994-99 e autores do romance Q) e Riccardo Pedrini (autor do romance Libera Baku Ora), todavia os nomes anagráficos pouca importância têm, tanto que em mandarim Wu Ming significa “nenhum nome”. Na China, esta expressão é freqüentemente utilizada para demarcar as publicações dissidentes. O nome dá conta da nossa firme intenção de não nos tornarmos “personagens”, romancistas pacificados ou macacos amestrados por prémio literário. Ao invés, no novo projecto sobrevivem, oportunamente modificadas, muitas das características que tornaram grande o Luther Blissett Project: radicalização de propostas e conteúdos, deslizes identitários, heteronímias e tácticas de comunicação-guerrilha, tudo aplicado à literatura e, mais geralmente, direccionado ao contar histórias (seja qual for a linguagem ou o suporte: romances, roteiros, reportagens para órgãos de comunicação, conceitos para jogos de computador ou jogos de mesa, etc.) ou publicar/lançar histórias escritas por outros (edição, “caça” de talentos, aconselhamentos editoriais, traduções de e em diversas línguas, etc.)

Tal como nos meses que se seguiram à saída de Q, a nossa linha de conduta será: “estar presente, mas não aparecer: transparência para com os leitores, opacidade para com os media”. Tal atitude é muito diferente da não-concedência de Thomas Pynchon ou de J. D. Salinger: Wu Ming “suja as mãos” com as actividades de promoção (entrevistas, apresentações públicas de livros, etc.), a condição disto não degenera no culto entediante da “personagem” (serviços fotográficos, aparições na tv, coscuvilhices, etc.). A cada pedido para posar para filmagens ou fotografias, Wu Ming aporá uma cortês recusa, mas pedirá a difusão ou publicação do seu logotipo oficial, composto pelos respectivos dois ideogramas.

A escolha de um nome chinês deve-se também à convicção de que o futuro da comunidade humana depende em larga medida daquilo que acontecerá e está a acontecer no litoral do Pacífico. Nenhuma consciência ecológico-social, nenhuma crítica prática dos desequilíbrios existentes entre a sobrepopulação, o controlo dos recursos e a pilhagem capitalista pode hoje em dia prescindir duma criação de pontes culturais com o Extremo Oriente, e em particular com a China continental: é aí que se joga quase tudo, tanto em termos de catástrofe global (humana, ambiental…) quanto em termos de pesquisa de alternativas; é aqui que o imaginário do planeta se vai deslocando.

A aproximação de Wu Ming à produção cultural implica a irrisão contínua de todo o preconceito ideal e romântico do génio, a inspiração individual e outras merdas do género. Wu Ming põe em causa a lógica do copyright. Não acreditamos na propriedade privada das ideias. Como já acontecia com o Luther Blissett, os produtos assinados Wu Ming — em suporte papel, magnético-óptico e outros — serão livres de copyright, mas sempre com as especificações e limitações que Wu Ming achar necessárias. No que concerne as colaboraçõs oficiais entre Wu Ming e outros sujeitos individuais ou colectivos, a questão será tratada caso a caso. O facto de ser uma empresa de trabalho mental — o maior actor típico do capital pós-fordista — que deseja superar os mitos, os ritos e os detritos da propriedade intelectual é um fecundo paradoxo, que leva o conflito ao coração do próprio mercado, para além da praxis de um sujeito informal como Luther Blissett Project. Se se quiser traçar uma afinidade, tenciona Wu Ming colocar-se no mesmo terreno dos programadores e empresários que trabalham no open source ou “software livre”.

Wu-ming é uma empresa política autónoma. “EMPRESA”, porque é a forma pela qual os brainworkers de todo o mundo — não gostamos da palavra “artistas” — devem reapropriar-se directamente, desde o fundo mas com a ambição de assaltar o céu, contra e para além do parasitismo das grandes corporações e dos dinossauros estatais na andropausa. Não se trata simplesmente de sermos free-lance, mas de adquirir mais força e estabelecer um controlo sempre maior sobre os processos produtivos e os êxitos do nosso trabalho creativo. “AUTÓNOMA” já que, pelas iniciativas e projectos que se deveriam transcender a escritura e a edição, Wu Ming não percorrerá nenhum caminho “assistencial”. Nenhuma esmola de fundos públicos, a aposta assenta inteiramente na autovalorização do trabalho mental e na nossa capacidade empresarial. Nenhuma subordinação à burocracia municipal, regional, estatal ou europeia, mas sim uma ligação paritária entre Wu Ming e as empresas com as quais interage. “POLÍTICA” porque desapareceu há muito a figura do intelectual afastado do conjunto de produção social (e portanto da política que não tem nenhuma autonomia). Hoje a informação é a mais importante força produtiva; aquela que outrora era a “indústria cultural” está em conexão dinâmica com toda a galáxia de mercadorias e serviços. Não existe mais nada que não seja “multimedial” (palavra que já soa velha porque pleonástica), nem faz mais sentido a arcaica distinção entre saberes técnicos e saberes humanísticos. Que status pode ainda reivindicar por si um “escritor”, quando contar histórias é apenas um dos tantos aspectos do trabalho mental, de uma grande cooperação social que integra programação de software, design, música, jonalismo, intelligence, serviços sociais, políticas do corpo, etc., etc.? Por conseguinte, não existe mais o “engagement” como escolha ou hipótese praticáveis ou não por parte “daqueles que criam”: o trabalho mental, em todos os seus aspectos, está completamente dentro das redes da indústria, e até é a sua principal força re/produtiva. Quem cria não pode de maneira alguma abstrair-se, evitar intervir. Escrever é já produção, narrar é já política. Há quem o perceba, e há quem participe da legião de reaccionários, mais ou menos conscientes.

Que tipo de histórias interessam a Wu Ming?

Antes do mais, histórias que tenham um início, um enredo e um fim. O experimentalismo é aceitável se e só se ajudar a contar melhor. Se, ao invés, não é senão o proverbial dedo atrás do qual se escondem medíocres ou péssimos narradores, pela parte que nos toca podem metê-lo no cu. As histórias que nos interessam são as de conflitos tecidas nos teares do epos e da mitopoiesis, histórias que adoptem os mecanismos e os modos próprios da narrativa de “género”, do biopic, do inquérito militante ou da microhistória. Romances que atinjam a matéria viva desde as zonas de sombra da história, histórias verdadeiras narradas como romances e/ou vice versa, recuperação de acontecimentos esquecidos, no centro ou nas margens a partir das quais se desenvolvem os nossos enredos: “A nossa narração ininterrupta é confusa para além de toda a verdade ou juízo retrospectivo. Apenas uma radical verosimilhança sem escrúpulos pode remeter tudo em perspectiva” (James Ellroy, introdução a American Tabloid). Aquilo que importa é meter anos-luz entre nós e a narrativa burguesa: o verdadeiro protagonista da história não é a Grande Personagem nem o Indivíduo-monade, mas sim a multidão anónima dos figurantes e, por detrás deles ou através deles, a multidão anónima e rumorosa dos eventos, destinos, movimentos, vicissitudes: “No quadro sou uma das figuras de fundo. Ao centro sobresaem o Papa, o Imperador, os cardeais e os princípes da Europa. Nos lados, os agentes discretos e invisíveis, que espreitam por detrás das tiaras e das coroas, mas que na verdade sustentam toda a geometria do quadro, enchendo-o e, sem que se deixem aperceber, consentem que aquelas cabeças ocupem o centro”. (Q, no incipit do seu diário). Queremos narrar a realização, a emergência e a interacção da multidão, que nada tem a ver com a massa, bloco homogéneo para mobilizar ou “buraco negro” do sentido para estimular a golpes de sondagens: “Um horizonte de fisicalidade descoberta e de multiplicidade selvagem. Um mundo de tramas e de combinações físicas, de associações e de dissociações, de flutuações e de concretizações, segundo uma lógica perfeitamente horizontal, que realiza o paradoxo do cruzamento de causalidade e casualidade, de tendência e possibilidade: eis a dimensão originária da multidão”. (Antonio Negri, Spinoza sovversivo).

Resumindo, Wu Ming pretende valorizar a cooperação social tanto na forma de produzir quanto na sua substância: a potência do colectivo é ao mesmo tempo conteúdo e expressão do narrar.

 

N.B. Wu Ming renuncia a quaisquer ganhos provenientes das traduções em língua castelhana das suas obras editadas na República de Cuba. Esta medida pretende ser um modesto contributo para o relançamento das actividades editoriais e culturais na ilha, actividades essas postas à prova com o perdurar do criminoso embargo económico decidido e imposto pelos Estados Unidos.


 

 

Notas para uma
Declaração dos direitos (e deveres) dos narradores (*)

 

Preâmbulo

O que é um narrador e quais são os seus deveres e direitos?

É narrador (ou narradora) quem conta histórias e reelabora mitos, conjuntos de referências simbólicas partilhadas — ou de alguma forma conhecidas e, quando for caso disso, questionadas, por uma comunidade.

Contar histórias é uma actividade fundamental para qualquer comunidade. Todos contamos histórias, sem histórias não estaríamos conscientes do nosso passado nem das nossas relações com o próximo. Não existiria qualidade de vida. Mas o narrador faz do contar histórias a sua actividade fundamental, a sua “especialização”; é como a diferença entre o passatempo do bricolage e o trabalho de carpinteiro.

O narrador desempenha — ou deveria desempenhar — uma função social comparável à do griot nas aldeias africanas, do bardo na cultura celta, do aedo no mundo clássico grego.

Contar histórias é um trabalho peculiar que pode trazer vantagens para quem o desenvolve, mas contudo é sempre um trabalho, tão integrado na vida da comunidade quanto o de apagar incêndios, cultivar os campos, assistir os incapacitados, etc..

Por outras palavras, o narrador não é um artista, mas um artesão da narração.

Deveres

O narrador tem o dever de não se considerar superior aos seus semelhantes. É ilegítima qualquer concessão à imagem idealística e romântica do narrador como criatura pressupostamente mais “sensível”, em contacto com dimensões do ser mais elevadas, também quando escreve sobre absolutas banalidades quotidianas.

No fundo também os aspectos mais ridículos e espalhafatosos do ofício de escrever baseiam-se numa versão degradada do mito do artista, que se torna uma “estrela” pelo facto de o considerarem de alguma forma superior aos “comuns mortais”, menos mesquinho, mais interessante e sincero e, num certo sentido, heróico já que suporta os “tormentos” da criação.

Pelo facto do estereótipo do artista “angustiado” e “atormentado” suscitar mais sensacionalismo e possuir mais peso do que a fadiga de quem limpa as fossas biológicas, podemos compreender o quão distorcida está a actual escala de valores.

O narrador tem o dever de não confundir a efabulação, sua principal missão, com um excesso de autobiografismo obsessivo e ostentação narcísica. A renúncia a estas atitudes permite salvar a autenticidade dos momentos, permite que o narrador tenha uma vida para viver sem que seja uma personagem por interpretar sob coacção.

Direitos

O narrador que cumpre o dever de refutar os estereótipos supracitados tem o direito de ser deixado em paz por quem, ao invés, enche os bolsos propagandeando-os (cronistas de costumes, paparazzi culturais, etc.). Qualquer estratégia de defesa contra as intromissões deve basear-se na não sujeição à lógica. Em suma, quem se quer passar por “estrela”, quem posa para estúpidas sessões fotográficas ou quem responde a perguntas sobre todos os assuntos, não tem o direito de se queixar dessas mesmas intromissões.

O narrador tem o direito de não aparecer nos media. Se um canalizador não aparece ninguém lhe pede explicações ou o acusa de snobismo.

O narrador tem o direito de não se tornar numa besta amestrada das soirées ou da coscuvilhice literária.

O narrador tem o direito de não responder a perguntas que não considera pertinentes (sobre a sua vida privada, preferências sexuais, gostos culinários, hábitos quotidianos, etc.).

O narrador tem o direito de não se fingir versado em todos os assuntos.

O narrador tem o direito de se opor, através da desobediência civil, contra as pretensões de quem o tente privar dos seus direitos (incluindo os editores).

 

Wu Ming, Verão de 2000

 

(*) — verão 1 de setembro de 2000 — aberta a contribuições e melhoramentos por parte de colegas e colega. [acréscimo à tradução em português a partir do original italiano – eBooksBrasil]


 

 

 

Eu pretendia falar o que segue no painel ‘Semi(o)resistance’ do ‘make-world festival 0=YES (fronteira=0 lugar=yes)’, Munique, dia 20 de outubro de 2001, http://make-world.org. Problemas de saúde me impediram de participar do festival. Aqui vai. — [Wu Ming 1, outubro 2001]

Tute Bianche: o lado prático da produção de mito
(em tempos catastróficos)
Por Wu Ming 1

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Tornou-se lugar-comum, mesmo ridículo, mas entretanto está sendo dito por todos em conjunto: após a queda das torres do WTC e da guerra imperial contra o Afeganistão, com toda a quantidade de ‘danos colaterais’ ganhando vulto, entramos numa nova fase de vida e conflito social.

Esta fase é altamente caracterizada pela paranóia, pela propaganda belicista, desejo de censura, restrição de direitos como a liberdade de expressão, um McCarthismo e turbas insanas reornamentadas reivindicando berufsverboten na sinistra luz da retórica do ‘choque de civilizações’. De volta ao fronte doméstico. Outra Guerra Fria. O Império assim o pede.

Contudo, os eventos de 11 de setembro ‘apenas’ tornaram mais aparente e explícito o fato de que após Gênova entramos já num domínio catastrófico.

Por ‘catástrofe’ eu não quero dizer o fim do mundo, mas uma nova topologia, um espaço criado por uma abrupta descontinuidade.

O ponto inicial foi na via Tolemaide, no dia 20 de julho. Lá nós experienciamos um súbito deslocamento. Menos de dois meses depois experienciamos uma segunda vez, como uma dobradura e um recorte do espaço público. Isso nos forçou a repensar nossa abordagem.

Essa discussão ainda está acontecendo e não há coelhos nas nossas cartolas. Tudo que posso dizer é que nenhum dos fenômenos que eu vou descrever existe mais, pelo menos não na Itália e certamente não na sua forma original.

De fato, os únicos tute bianche que se vê na TV ou nos jornais nesses dias são relacionados ao anthrax e à guerra biológica.

Por outro lado, não estamos recomeçando: não há dúvida de que as multidões que têm desafiado o capitalismo global em todo o mundo ainda desejam o fazer. No último domingo, mais de 200 mil pessoas se manifestaram em Perugia, Itália, contra os bombardeiros dos EUA no Afeganistão. Dezenas de milhares de pessoas fizeram o mesmo na Alemanha. Quanto mais ‘danos colaterais’ o Império causa ao Afeganistão, menos as pessoas se predisporão a aceitar desculpas.

Eu sei, está mais difícil do que nunca, mas somente tolos achariam que seria fácil.

As pessoas que desconhecem o uso peculiar que nós, o movimento italiano, temos dado a palavras como ‘mito’ e ‘produção de mito’ podem suspeitar tratar-se de um mero revival do pensamento de Georges Sorel e de suas descrições da ‘greve geral’ dos sindicalistas revolucionários.

De fato tentamos manter tudo que é útil no discurso de Sorel, ao mesmo tempo tentando eliminar os elementos mais ultrapassados e perigosos.

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George Sorel
(1847-1922)

De acordo com Sorel, a greve geral era uma imagem que permitia aos proletários ‘sempre conceber sua ação por vir como uma batalha na qual sua causa irá certamente triunfar’. Tal imagem, ou antes tal grupo de imagens, não deveria ser analisada ‘do modo que analisamos uma coisa através de seus elementos’, ela deve ser ‘apreendida como um todo’ como uma ‘força histórica’, sem comparações ‘entre o fato consumado e a imagem que as pessoas formaram para si antes da ação’ (Carta a Daniel Halevy, 1908). De forma clara, o mito social da greve geral era ‘capaz de evocar instintivamente todos os sentimentos que correspondem a diferentes manifestações da guerra levada a cabo pelo Socialismo contra a sociedade moderna’. A greve geral agrupava todos esses sentimentos ‘em uma imagem coordenada, e, por trazê-los consigo, [dava] a cada um deles o seu máximo de intensidade [...] Então alcançamos aquela intuição de Socialismo que a língua não pode nos dar com perfeita clareza, e a alcançamos como um todo, percebida instantaneamente’ (A Greve Proletária, 1905).

Sorel colocava seu discurso no contexto da tradicionalmente heróica, auto-sacrificial e moralística weltanschauung a qual devemos nos manter longe: é claro que ‘fatos consumados’ (isto é, a luta por comida, casa, saúde e dignidade aqui e agora, não somente após a revolução) eram muito importantes para os proletários.

E também é verdade que as pessoas não se mantêm em combate contra o estado de coisas presente se elas não são inspiradas por algum tipo de narrativa.

Nas últimas décadas os revolucionários se alternaram entre uma ‘iconofilia’ alienante e uma subalternidade a mitos (por exemplo o culto a Che Guevara como uma espécie de Cristo), e uma atitude iconoclasta que fazia tudo menos ajudar as pessoas a entenderem a natureza dos conflitos. Pense na superficial postura ‘pós-situacionista’ de muitos anarquistas, para os quais qualquer conquista concreta no terreno da democracia ou qualquer penetração da cultura popular é ‘recuperada’ e termina fortalecendo o chamado ‘espetáculo’.

Como se diz em italiano, ao jogarmos fora a água do banho não deveríamos atirar junto o bebê.

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Michel Foucault
(1926-1984)

Em uma entrevista conduzida por alguns membros do Cahiers du Cinema em 1974, Michel Foucault fez uma distinção muito clara entre o bebê e a água. Ele disse: ‘Por baixo da sentença ‘Não há heróis’ se esconde um significado diferente, sua verdadeira mensagem: ‘não havia luta’ [...] Pode-se fazer um filme sobre uma luta sem entrar no processo tradicional de criar heróis? Trata-se de uma nova forma de um velho problema’.

Na Itália, desde o início e meio dos anos 1990, uma quantidade de companheiros focou sua atenção em uma forma ainda mais nova desse velho problema. Eles se comprometeram a fazer uma exploração prática das mitologias, de modo a compreender se uma libertária e não-alienante desconstrução e re-uso e manipulação de mitos era possível ou não.

As fontes de inspiração foram antigas lendas relacionadas a heróis folclóricos, a linguagem adotada pelo EZLN, o cinema e a cultura pop ocidental em geral, assim como as múltiplas experiências dos pranksters e da guerrilha de comunicação desde os anos 1920.

Eu estava completamente envolvido nessa experiência, uma vez que fui um dos fundadores e membro do chamado Projeto Luther Blissett, talvez a mais sólida firma de trabalho de ‘engenheiros culturais’ devotados à missão.

‘Luther Blissett’ era um pseudônimo de multi-uso que poderia ser adotado por qualquer um interessado em construir a reputação subversiva do personagem-imaginário-estilo-Robin Hood, supostamente o líder virtual de uma comunidade aberta e florescente no campo dos golpes de mídia, produção de mito, escritos subversivos, performance radical e interferência artística e cultural. O PLB teve início em 1994 e envolveu várias centenas de pessoas em vários países, embora a Itália tenha permanecido o epicentro.

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Luther Blissett

No fim de 1995 o PLB publicou um panfleto intitulado Mind Invaders, cujo primeiro capítulo era uma declaração de intenções no que diz respeito à produção de mito. Ele relacionava a produção de mito à vida, desejos e expectativas de uma comunidade, não importando quão ‘aberta’ e frouxa ela fosse, e em certo sentido previu o surgimento do movimento global.

Não pretendo entrar em detalhes do Projeto Luther Blissett. Não sou (e nunca serei) um blissettologista. Pode-se achar um monte de materiais pertinentes e interessantes na internet, principalmente em http://www.lutherblissett.net/. Só quero salientar que alguns dos achados teórico-práticos do ‘Luther Blissett’ têm sido usados ‘talvez instintivamente no início e depois fazendo referências explícitas’ pelos ‘tute bianche’. Isso não é surpreendente levando em conta que ambos fenômenos foram inspirados nos zapatistas, mas também se inspiraram mutuamente.

Dois ‘preceitos’ em particular foram transmitidos:

1) Não Se Deve Ligar Para Oposições Binárias (por exemplo, as entre visibilidade e invisibilidade, legalidade e ilegalidade, violência e não-violência, estática e dinâmica).

2) Deve-se Separar Todas as Coisas Unidas e Unir Todas as Coisas Separadas de Modo a Criar Sentimentos Esquisitos de Proximidade e Distância.

Numa famosa camiseta, o slogan ‘Paz e Amor’ foi associado a imagens de confronto violento. Os ‘Tute Bianche’ muitas vezes provocavam uma espécie de distúrbio não-violento, que ocorriam numa intersecção do espaço público que não era nem ‘legal’ nem ilegal’. Os companheiros andavam na direção da linha policial, com as mãos abertas e para o alto, esperando os cacetetes e cantando: ‘Stiamo arrivando/ Bastardi, stiamo arrivando!’ [Estamos chegando/ Bastardos, estamos chegando] no refrão de ‘Guantanamera’.

Eu sei que fora da Itália as pessoas acham difícil entender o background e as táticas dos ‘tute bianche’. Bem, isso se dá porque a corrente que se está vendo é composta por três elos.

O primeiro elo é a evolução do movimento Autonomia Italiana, apesar da repressão do final dos anos 1970 e as dificuldades dos anos 1980 e 1990. Toni Negri talvez tenha sido o teórico mais influente, embora não fôsse o único. Recentemente houve muita propaganda em torno do Império, o último ensaio de Negri em co-autoria com Michael Hardt, e acabou se tornando uma espécie de livro cult. Eu diria que o Império é apenas um resumo e uma popularização dos conceitos que modificaram nosso DNA político desde os anos 1980.

O segundo elo é a colaboração direta com os Zapatistas de Chiapas, e a influência que suas estratégias e linguagem tiveram na cena italiana graças à rede de associações Ya Basta!. É impossível fazer uma descrição completa de todas essas inovações aqui e agora, mas eu darei alguns exemplos. De qualquer modo, o mais importante é saber que os Zapatistas nos forneceram material mitológico que não tinha nada a ver com o tradicional fetichismo terceiro mundista ou com turismo revolucionário.

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Marcos não era sequer um líder heróico, ele era apenas um porta-voz e um ‘subcomandante’, o que também implicava uma interessante abordagem sobre os mitos: de acordo com uma lenda popular no México, Emiliano Zapata ainda está vivo e anda em seu cavalo em algum lugar, nas montanhas e nas florestas. Alguns índios até mesmo o encaram como parte da mitologia Maya, algo como um semi-deus pagão. Os zapatistas contemporâneos foram capazes de se comunicar com a sociedade a partir de uma intersecção entre o folclore e a cultura pop. Em certo sentido, o verdadeiro Comandante ainda é Zapata. Era como se fosse dito: ‘Não ligue para mim, eu não sou seu herói mascarado, nossa revolução é impessoal, ela é nova mas é também a mesma revolução de sempre, Zapata ainda cavalga’. Esse é o significado real do passa-montanhas: a revolução não tem rosto, todos podem ser um Zapatista, todos somos Marcos.

Aqui chegamos ao terceiro elo, isto é, o trabalho da produção de mito que eu esbocei alguns minutos atrás.

Os Tute Bianche não eram nem uma ‘vanguarda’ do movimento nem uma ‘corrente’, uma ‘facção’ dele. Os tute bianche nasceram como uma referência irônica aos fantasmas do conflito urbano e depois se tornaram uma ferramenta, um símbolo e uma identidade aberta tornada disponível ao movimento. Qualquer um poderia se vestir todo de branco na medida que respeitasse um certo estilo. Uma das típicas frases era: ‘Estamos usando o branco-sobre-tudo de modo que outras pessoas o usem. Estamos usando o branco-sobre-tudo de modo que possamos tirá-lo algum dia’, o que significa: ‘Você não precisa se juntar ao exército, o branco-sobre-tudo não é nosso ‘uniforme’. O dedo está apontando para a lua, e assim que as multidões olharem para a lua o dedo irá desaparecer no ar. Nosso discurso é muito factual, estamos fazendo propostas, quanto mais pessoas as aceitarem e as puserem em prática, tão menos importante seremos’.

Tivemos sorte suficiente de decidir terminar com isso e tirar o branco-sobre-tudo logo antes de Gênova, por ele ter se tornado um objeto identitário e por querermos imergir na multidão. Se tivéssemos sido reconhecidos como ‘tute bianche’ durante a perseguição de sexta-feira, teríamos ainda mais o que lamentar agora. Se o branco-sobre-tudo tivesse realmente sido um ‘uniforme’ teríamos muito mais Giulianis para chorar.

No outono de 1994 o Prefeito de Milão, Formentini, membro do partido racista chamado Liga do Norte, comandou o desalojo do centro social e squat Leoncavallo e afirmou: ‘De agora em diante, os squatters não serão mais do que fantasmas vagando pela cidade!’. Sua descrição foi aceita ironicamente: durante uma grande manifestação, incontáveis ‘fantasmas’ em branco-sobre-tudo atacaram a polícia e causaram um distúrbio no centro da cidade. Era apenas o início.

Após isso, os ‘tute bianche’ se tornaram uma sub-seção organizada do novo Leoncavallo, fornecendo segurança nas manifestações e defendendo o lugar de outros ataques.

Porém algo estranho aconteceu: algumas pessoas opuseram retoricamente os tute bianche aos tute blu [o tradicional proletariado industrial com seus macacões azuis], e os primeiros foram usados como uma metáfora para o trabalho pós-fordista, trabalhadores flexíveis, precarizados e temporários cujos patrões os impedem de fazerem uso dos seus direitos e serem representados por sindicatos.

Além disso, o branco é a soma de todas as cores e, portanto, se encaixa melhor do que o usual arco-íris para representar a cooperação e a convergência de diferentes sujeitos.

Como conseqüência, no decorrer de 1997-98 companheiros começaram a usar o branco-sobre-tudo e a ocupar ou fazer piquete em agências de empregos temporários. Isso ocorreu em Roma, Milão, Bolonha, e no nordeste da Itália.

Então começou a guerra de Kosovo. Se não estou enganado, a ‘ação direta protegida’ foi inventada quando os centros sociais do nordeste da Itália decidiram invadir a base militar dos EUA em Aviano. Para aqueles que não sabem do que se trata essa ‘proteção’, ela consistia em espumas enroladas no corpo, capacetes, máscaras de gás, escudos de plástico e barricadas móveis feitas com câmaras de pneus e painéis de plexiglass. Nos meses seguintes, a tática ‘testudo’ [tartaruga] foi inventada para fazer com que a prática mais comum das tropas de choque da polícia se voltassem contra elas.

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Graças a essas invenções, o número de manifestantes machucados diminuiu enormemente. Além disso, a perseguição se tornou quase impossível, pelo testudo encorajar os manifestantes a não recuarem, caminharem e levarem cacetadas juntos. E de modo inverso, o número de policiais hospitalizados teve um leve aumento, uma vez que eles não tinham um treinamento específico para lidar com essa nova forma de estratégia. Algumas vezes o ‘testudo’ abria sua linha de frente e deixava alguns policiais entrarem. É claro que esses últimos caíam numa armadilha lá no meio e eram prazerosamente chutados. Tudo isso acontecia diante de incontáveis câmeras, repórteres e equipes de TV. A derrota da polícia era televisionada e amplificada. Os jornalistas eram obrigados a noticiar que os manifestantes estavam apenas marchando em direção a seu alvo, e que nenhuma pedra ou coquetel molotov tinha sido atirado, nenhuma janela tinha sido quebrada etc. Isso fez ganhar a simpatia entre todos os tipos de pessoas que procuravam um modo de desafiar o estado de coisas mas jamais participariam de um distúrbio de rua.

O fato de tantas pessoas colocarem seus corpos no caminho e ao mesmo tempo sem sentimento de martírio também lembrava a alguns as análises de Foucault (e Deleuze) sobre a ‘bio-política’ e o ‘bio-poder’. Alguns afirmaram entusiasticamente que os corpos estavam de volta, eles eram usados para desafiar a ordem do discurso imposto sobre eles, de modo a escapar do controle. Isso talvez seja um exagero, e, de qualquer forma, é um pouco fora do tópico.

Após alguns meses dessa rotina, os oficiais de polícia mais inteligentes e as autoridades do Estado supuseram que a única maneira de dar termos a essas táticas era a estratégia de ‘contenção’, que poderia até mesmo incluir acordos e negociação minuto-a-minuto. Começamos a ver policiais agitando mapas da cidade e proferindo estranhas misturas de conversa de rua, maquiavelismos e conversas no pé do ouvido:

‘OK pessoal, de modo nenhum podemos permitir que vocês cheguem aonde querem chegar, é nosso dever impedi-los e assim o faremos. Mas podemos recuar uns cem metros e deixá-los marchar até esse ponto aqui. Se vocês derem um passo a mais reagiremos, OK? Rapaziada, é bom que vocês coloquem as barricadas de borracha de volta nas vans, não há utilidade para elas, tudo está tranqüilo, OK? Meus homens estão perfeitamente sob controle. Ah, e diga às porras dos jornalistas que eles não precisam ficar no nosso caminho, o que que isso tem a ver com eles? É entre vocês e nós, vocês estão calmos, nós estamos calmos, então qual é o problema?’

É claro que os tute bianche sempre deram vários passos adiante, os policiais nunca estiveram muito calmos e os jornalistas sempre ficaram no caminho. Isso proporcionou uma vantagem real apenas para os tute bianche, já que permitia que eles aperfeiçoassem em seguida a estratégia e alcançassem alguns objetivos importantes. A abordagem de ‘fala ativa’ da polícia foi explorada de uma forma midiática altamente consciente, que sempre conseguiu colocar os tute bianche onde a mídia e as autoridades nunca esperavam que estivessem.

O mais importante é que os tute bianche encenaram uma narrativa, inspirada nos Zapatistas, de desobediência civil e das multidões ‘se movendo contra o Império’. Não era afinal de contas algo entre os companheiros e a polícia, mas sim uma mensagem à sociedade civil.

Os tute bianche normalmente anunciavam quais eram seus objetivos e quais táticas eles empregariam na próxima manifestação, de modo a ‘chantagear’ as autoridades. Eles diziam: ‘Não há segredo, faremos isso e aquilo, e esta é a estrutura. Não somos responsáveis por nada que ocorra fora da estrutura. Cabe à polícia manter as coisas tranqüilas. Vocês sabem nossas táticas, é seu dever encará-las sem excessos!’. Contudo as táticas eram empregadas de formas imprevisíveis de modo que todos ficavam espantados e os policiais se excediam, mas não podiam machucar muito. Isso trouxe resultados concretos durante o ano 2000.

Segue abaixo trechos de um texto que alguns companheiros escreveram e divulgaram pouco antes de Gênova. Eles queriam clarear alguns pontos e responder a algumas difamações e distorções espalhadas por autoproclamados revolucionários:

«[...] Alcançamos um objetivo concreto em Via Corelli, Milão, janeiro de 2000, quando nos defrontamos com a polícia e conseguimos entrar numa zona proibida até para a imprensa, isto é, o centro de detenção administrativo para imigrantes ‘clandestinos’, que era um verdadeiro campo de concentração. Ganhamos da resistência dos policiais, e os jornalistas puderam entrar no centro e descrever o que viram. Após o ocorrido, o centro foi fechado.

Alcançamos objetivos concretos após as manifestações de Mobilitebio em Gênova, de 24 a 26 de maio de 2000. Nos defrontamos com a polícia de um modo tão sem precedentes que a mídia simplesmente não pôde nos criminalizar. Após o ocorrido, o governo italiano foi forçado a banir os Organismos Geneticamente Modificados.

Durante a manifestação contra a OCDE em Bolonha (14 de junho de 2000) fomos atacados pela polícia, quatro de nós foram literalmente arrebatados para fora do testudo e tiveram seus crânios quebrados. Foi um confronto duro, como as gravações em vídeo provam: tute bianches caídos no chão com pencas de policiais chutando-os e espancando-os. Os difamadores dizem que foi tudo encenação, e que havia um acordo com os policiais. Isso é besteira, e uma vergonhosa falta de respeito pelos companheiros feridos. De qualquer forma, o noticiário da TV mostrou que estávamos apenas nos protegendo com escudos e que a violência partiu apenas dos policiais.

Nas semanas anteriores ao encontro do G8 sobre o meio-ambiente em Trieste, abril de 2001, a cidade foi totalmente fechada e invadida por milhares de policiais. A imprensa local colocou as coisas de pernas para o ar e fez com que a população local achasse que fôssemos bárbaros, prontos para pôr fogo na cidade. A manifestação foi protegida por escudos e estava pronta para a autodefesa, mas também foi pacífica, irônica e culturalmente diversificada. Os noticiários da mídia foram obrigados a admitir que nada [horrível] havia acontecido, e a população questionou as autoridades pelos desconfortos que a invasão de policiais havia causado.

Nos últimos dois meses de preparação para bloquear o G8 em Gênova, os tute bianche provaram ser capazes de evitar estereótipos. Eles obrigaram a mídia a dar interpretações esquizóides. Os picaretas não puderam rotular os tute bianche nem de ‘bons’ nem de ‘maus’.

Por outro lado, é parcialmente verdade que os tute bianche têm sido ‘superexpostos’ na mídia, os porta-vozes deles eram citados mesmo quando não havia necessidade disso, porém [...] o problema da ‘superexposição’ pode ser resolvido seguindo caminhos continuamente inconstantes:

Eles dizem que você é violento?

Desconcerte o debate sobre violência e não-violência propondo táticas que não possam ser classificadas.

Eles dizem que você é apenas uma facção, uma pequena minoria? Se infiltre na cultura pop, construa consenso, atire as representações comuns ao caos.

Eles mudam de estratégia e tentam descrevê-lo como ‘sensato’, enquanto o Black Bloc é ‘mau’? Atire-se com todo empenho e força na defesa do Black Bloc, contra todas as difamações e estereótipos.

Eles tentam descrevê-lo como se você fosse o movimento inteiro e então tentam forçá-lo a ‘negociar’ com o governo? Diga que não há nada a negociar, tudo que o governo tem a fazer é cancelar o encontro (que é a posição que sempre sustentamos).»

Apesar dos erros que cometemos, ainda acho que o modo que os tute bianche se organizaram e se impuseram à atenção pública ‘sempre evitando armadilhas e emboscadas através do conhecimento de como funciona a mídia’ não somente evitou uma carnificina ainda mais selvagem em Gênova, mas também teve um papel chave na construção do consenso em torno de suas práticas de modo que quase 300 mil pessoas decidiram juntar-se a nós no sábado e literalmente salvar nossa pele. Erros foram cometidos, embora não poderíamos esperar um aumento tão repentino do nível de repressão, nem tínhamos levado em conta suficientemente a rivalidade entre a polícia e os carabinieri [...]

Uma coisa que eu tenho certeza: mesmo nessa paisagem abruptamente transformada por descontinuidades, devemos manter todas as distinções entre os bebês e a água, e estimar e acumular as experiências que construímos.


 

 

Astronautas de quem?
Imaginação e multidão em Itália nos dias do cacerolazo global

Por Wu Ming

 

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Descarregar o discurso original de Malcolm X
I’m a Field Negro

 

É verdade que em Itália e no resto do planeta o ‘movimento dos movimentos’, embora tenha sido severamente afectado, sobreviveu às ‘matanças’ de 2001 (Goteborg, Génova, etc.) e recomeçou apesar da tentativa de desmantelamento via manu militari.

É verdade que nem sequer o pós 11 de Setembro e a filiação ideológica digna do Quinto Reich (falar do Quarto é já um anacronismo), conseguiram travar a participação de centenas de milhar de pessoas que, pelo contrário, encontraram na oposição à enduring war planetária mais uma razão para sair à rua e para se organizarem.

É verdade que milhões de refugiados da esquerda ex-‘histórica’ forçam as delineadas fronteiras deste novo movimento, variado e multiforme, reclamando argumentos e participação, ideias, gestos e palavras que lhes restituam a dignidade de oposição ao estado de coisas presente, mas também um princípio-esperança que lhes permita imaginar a sua transposição.

E é precisamente por isso que diante dos nossos próprios olhos está um primeiro problema, que se poderia escrever com maiúscula e que se poderia definir como o Problema do Imaginário. Ou melhor: o problema da relação do imaginário com a imaginação deste movimento, da representação de si mesmo e de um outro mundo possível ao qual se pretende aludir.

Até agora foi fundamentalmente um impulso ético, psicológico, moral (em alguns casos, especificamente religioso), o unificador do diálogo e da partilha das lutas. Tal facto deveu-se aos diferentes pontos de partida das várias almas do movimento e à sua conotação realmente global. Mas, a partir do momento em que este movimento surgiu como resposta à concretíssima materialidade dos problemas provocados pelo capitalismo, tornou-se impossível não enfrentar o problema da transposição do impulso ético e do alcance de uma difusa crítica materialística.

Isto não implica que se faça um ‘balanço final’, que se reduza a multiplicidade argumentativa que constitui a sua própria riqueza e novidade, mas será certamente necessário interrogarmo-nos sobre como representar e comunicar, primeiro a nós próprios, a partilha da colectiva precariedade existencial. Uma existência que conhece, claro está, macro-áreas geográficas de tutela parcial que, porém, se vão cada vez mais reduzindo, enquanto a precariedade ameaça também os reclusos ‘de luxo’ nas fortalezas do norte do planeta.

Até agora ninguém conseguiu interpretar a multidão. Quanto muito, como aconteceu em Génova, conseguiu-se evocá-la, sempre semi-conscientemente, que nem aprendizes de feiticeiro. Não é por acaso que, após Génova e depois da marcha Perugia-Assis, os eventos internacionais mais conseguidos tenham sido aqueles em que as realidades mais organizadas tenham investido menos energias e menos convicção (10 de Novembro contra a guerra, 19 de Janeiro contra a lei Bossi-Fini). O contrário também é verdade, cf. ‘A Jornada da Desobediência’ de 17 de Dezembro passado.

As realidades organizadas do movimento estão ainda demasiado prisioneiras de dois defeitos. Antes de tudo, do triunfalismo parcial, miopia trágica que leva a ver no reforço e na reprodução perpétua da própria ‘parte’ — do ‘próprio’ movimento dentro do mais amplo movimento dos movimentos — um necessário êxito. O que acarreta o risco de produzir lógicas vanguardísticas novecentistas, obsoletas segundo nos parece. Citando o Subcomandante Marcos: «Não saberíamos o que fazer com uma vanguarda que de tão avançada que é, jamais poderá ser alcançada por alguém». Ao invés, para ganhar a batalha do imaginário, é preciso libertarmo-nos do derrotismo, doença atávica da esquerda. Ou seja, o predomínio — no melhor dos casos — de um ‘cristianíssimo’ (absit iniuria) espírito de testemunho, do tema decoubertiano da ‘participação’ como elemento mais importante que a vitória; ou então — no pior dos casos, e felizmente de ocorrência mais escassa — de um hiper-radicalismo dogmático e palavroso que a um nível ‘estratégico’ privilegia uma invejável inacção e a um nível ‘táctico’ uma injúria telemática. O único conteúdo destes é a condenação — enquanto ‘inadequada’ ou ‘reformista’ — de qualquer campanha política ou forma de acção e, sobretudo, de qualquer inovação linguística e comunicativa.

E contudo é preciso saber vencer as batalhas e estar próximo das próprias vitórias concretas (mesmo parciais: mas, ao fim e ao cabo, que vitória é ‘total’?). É preciso saber reconhecer as próprias vitórias e, se necessário, dar-lhes um novo nome e relançá-las, tendo sempre presente que a amplitude da audiência é mais vasta e maior que os números da praça.

Que pretende esta multidão? E a quem o pede?

Nós acreditamos que a multidão exprime uma necessidade de novos mitos fundadores.

Radicalmente novos, com a tónica posta sobre ambos os termos, tanto na necessária radicalidade (um regresso à origem, às origens), quanto na novidade (pós-novecentesca).

Para que um outro mundo seja possível, deverá ser possível imaginá-lo e torná-lo imaginável a muitas pessoas.

Não utilizaremos pontos de apoio ‘imaterialistas’ e pós-fordistas para afirmar que a questão do imaginário e a questão das bases materiais da crítica são exactamente a mesma questão. Dizemo-lo e basta. Para poder superar o testemunho é preciso reflectir sobre a composição social, técnica e política desta ‘multidão’ que nomeamos a cada passo e sobre que imaginário e mitos de luta transporta e reproduz.

Sem um imaginário de referência, sem uma narração ‘aberta’ e ‘indefinidamente redefinível’ nos quais seja possível participar e indagar livremente, o movimento não pode senão cansar-se em sedimentar a própria experiência, que é nova, até experimental e, em muitos aspectos, inédita. Não se trata de cristalizar tal epos, mas sim de partilhá-lo, torná-lo acessível, ‘publicitá-lo’, transformando-o numa eficaz arma cultural, potencialmente hegemónica e portanto vencedora, para além de simples testemunho.

Trata-se de descrever um percurso, um caminho constelado de perguntas, mas também de pontos de força e de fractura, de restos e saltos que permitiram chegar até aqui e continuar em frente.

É forçoso que aqui nos limitemos a indicar um primeiro de matéria mítica: a assim chamada ‘anomalia italiana’. A tão estigmatizada ‘ingovernabilidade’. E é a esta última que interessa voltar.

Malcolm X diferenciava os escravos afro-americanos entre ‘pretos domésticos’ [house negroes] e ‘pretos dos campos’ [field negroes]. Os primeiros viviam debaixo do mesmo tecto que os patrões, a sua mentalidade era mais esclavagista que a do próprio escravizador, diziam: ‘a nossa plantação’, ‘a nossa casa’, preocupavam-se quando o patrão adoecia, se havia um incêndio prodigalizavam-se para o apagar. Os segundos eram explorados nos campos, odiavam os patrões, quando o patrão adoecia rezavam para que morresse, se a fábrica se incendiava rezavam para que o vento soprasse mais forte. Tornando a aplicar esta distinção nos E.U.A. dos anos sessenta, Malcolm X distinguiu aqueles que diziam ‘o nosso governo’ daqueles que, simplesmente, diziam ‘o governo’. ‘Até ouvi alguém dizer ‘os nossos astronautas’! Aquele preto passou-se da cabeça!’

Falou-se muito da Itália enquanto país turbulento, ingovernável de facto. A este propósito a esquerda italiana desenvolveu uma atitude xenófila e autoflagelatória, de fetichismo legalista, obedecendo assim ao diktat proveniente do capital mundial, a partir da Comissão Trilateral para frente. Mas o que significa ser ‘ingovernável’? Segundo nos parece, significa que, por muito baixo que possamos descer, é impossível que nos reduzamos àquilo a que neste momento estão reduzidos os Estados Unidos (inúteis os ipse dixit, Chomsky e Gore Vidal: lemo-los a todos). Enfim, aquela é uma sociedade governável, onde parecem predominar os ‘pretos domésticos’. Contudo, em Itália, ainda muita gente reza para que o vento sopre mais forte e que se está completamente lixando para os ‘nossos astronautas’. Existe um persistente desfasamento entre o país representado e o país real. E, neste preciso momento, mais do que nunca. Há já muito tempo que se define a Itália como ‘a América do Sul da Europa’ e, ao usar-se esta expressão, dá-se-lhe uma conotação racista, ou seja, somos incivilizados, bananas, fazemos com que o primeiro caudillo que passe nos cague na cabeça. Esquece-se que é a América Latina o lugar de violentas contradições, mas também da incessante mitopoiesi da esquerda, esquece-se que é um universo onde nem a mais atroz das violências fez quebrar os inumeráveis ‘fios vermelhos’. É um universo onde a resistência continua sendo underground, reemergindo sob novas formas, do zapatismo à mobilização pelo pequeno Elian Gonzales, da Colômbia ao cacerolazo argentino. O mesmo é válido para a Itália, cuja esquerda — também aquela que tem horror ao terceiromundismo — tem muitas ligações com aquelas do sub continente mestizo, desde os tempos de Garibaldi. Também aqui o mito se sedimenta, exactamente como na América do Sul, e será ele a alavanca para destravar o impasse.

O pior é que a atitude auto-difamatória é filtrada, pelo menos em parte, pela esquerda antagonista. Tende-se a mitificar movimentos e grupos da Europa do Norte ou da América do Norte que não conseguem mobilizar nem 10% das pessoas que nós mobilizamos.

Viajando percebe-se que as camaradas e os camaradas de outros países olham para a Itália com admiração. À parte da recente táctica da ‘desobediência civil protegida’, exportada com um certo sucesso, diga-se que:

— Génova e Perugia-Assis foram as duas maiores manifestações de movimento do Planeta. Em Seattle estavam 70.000 pessoas e foi um boom. O mesmo vale para as 60.000 pessoas do Quebeque. Em Londres e Berlim lembram-se como um grande sucesso as 20.000 pessoas que saíram à rua e fala-se de manifestações nacionais em grandes capitais mundiais.

— O ainda em constituição New York Social Forum é composto por gente que se espanta quando ouve falar dos Social Forum italianos, que a muitos de nós soa a coisa pouca e indizivelmente entediante.

— A mobilização contra os centros de detenção destinados a migrantes ‘clandestinos’ prossegue há tantos anos em toda a Europa, mas nunca ninguém conseguiu irromper por um CPT [Centro de Permanência Temporária] dentro e desmontá-lo peça a peça como aconteceu em Bolonha.

— Em nenhum outro país os centros sociais autogeridos existem tal qual os conhecemos, nem tão pouco com o impacto sobre o território que aqui consideramos quase previsível. Onde existiram houve uma grande limpeza (cf. Alemanha e Holanda). Em Espanha existe um ou outro, mas sem a influência cultural dos nossos. Até há dois anos atrás em Londres existia somente um, o 121 Centre de Brixton, e era como o Rossio metido na Betesga!

Poderíamos citar dezenas de exemplos, tirados mais ou menos ao acaso da história dos últimos cinqüenta anos. Em Itália, a época de ’68 durou mais de cinco anos. Aqui existiu o maior partido comunista do Ocidente e isto significou muito, para o bem e para o mal. Aqui foram desenvolvidos os filões mais inovadores do marxismo ‘herético’ contemporâneo, que puderam florescer e — pelo menos em parte — puderam reescrever o léxico da política, também graças ao fall-out da reflexão gramsciana sobre a ‘hegemonia’.

E foi por ter controlado esta maré inquieta que a Itália se tornou — e é já um estereótipo — ‘laboratório da repressão’ e da ‘prevenção’, o lugar onde se experimentavam e se experimentam métodos que veremos depois aplicados no resto do mundo (v. a Estratégia da Tensão).

A isto junta-se o facto de que, na fase presente, a Itália se encontra como sendo realmente, mutatis mutandis, a Argentina da Europa: um país onde o capital não legal detém o benefício político; onde as instituições estão em guerra contra elas próprias (executivo vs. magistratura); onde à crise de credibilidade e fiabilidade do governo no plano internacional se responde com uma crise irreversível de representatividade da oposição no plano interno; um país tão paradoxal quanto paradoxalmente privado de ‘alternativas’ plausíveis; e no qual um movimento de massas fortemente empenhado (e ameaçado) que sai à rua alude, pelo menos simbolicamente, a um novo poder constituinte.

Obrigatoriamente limitamo-nos a expor factos, não indagamos as profundezas da História à procura de motivações.

A passagem de século entregou-nos um movimento radicalmente descontínuo. Cada resistência local fala, reconduz-se e inspira milhares de outros nós que revestem o inteiro planeta. Centenas de milhar de seres sensíveis, em animalesca transumância para uma salvação possível, advertem de coração que só falando de novo uns com os outros, sentindo-nos irmãos, de um continente ao outro, em espécie e em admiração, lhes pode restituir a única possibilidade que resta. Urgem as narrações abertas e unânimes, as histórias que viajam de boca em boca, as canções que permitem reconhecermo-nos onde quer que estejamos. Não existem bruxos em ligação directa com a multidão para compor o mantra. O contrário é verdadeiro: o mantra da multidão canta um fluxo incessante, uma maré inquieta e efervescente. Devemos atingir, pescar, distribuir, contar. E, no fundo, pouco mais. Pretender a dignidade, para todos.

Somente sobre estas bases se pode erguer o novo mito fundador, a nova auto-representação reclamada por esta multidão a viva voz.


 

 

 

Cartacapital, 24 de abril de 2002 — Livros:

 

ETERNA HERESIA
Um romance histórico (e atual) sobre revolucionários e espiões no século XVI.

Q – O Caçador de Hereges, de Luther Blissett, Conrad (598 págs. R$ 55)


Por Antonio Luiz M.C. Costa

 

Quem aprecia romances históricos, como os de Gore Vidal e García Márquez, vai encontrar uma obra-prima do gênero, como também o fã de romances de espionagem ao estilo de John Le Carré e Robert Ludlum. Houve quem pensasse que seu verdadeiro autor era Umberto Eco, mas o estilo é muito diferente: sem perder tempo exibindo sua erudição, salta direto para o centro de ação, num dos periodos mais críticos da história do Ocidente.

O narrador de O Caçador de Hereges aderiu à vertente da reforma protestante que radicalizou a crítica de Lutero à Igreja Católica num ataque à autoridade do Estado e às classes sociais, em nome da fraternidade comunitária dos primerios cristãos.

Consegue sobreviver à captura e execução de seu líder Thomas Müntzer e ao esmagamento, pelos príncipes luteranos, da rebelião camponesa que havia levantado metade da Alemanha. Sob muitos nomes falsos, participa de outras agitações heréticas do século XVI, cada vez mais perseguido pelos inquisidores do Papa, de Lutero e de Calvino.

Suas apaixonadas memórias alternam-se com as cartas friamente calculistas de um espião, estrategista e agente provocador a serviço do poder, identificado apenas como Q, de Qohelet. É o nome hebraico do dogmático e conservador Eclesiastes, o livro que diz que “o que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol” (1:9). Seu destinatário é o poder encarnado pelo cardeal Carafa, que, depois de eleito papa Paulo IV, se tornaria o mais feroz e ortodoxo paladino de contra-reforma.

Sem deixar de respeitar os fatos históricos nem incorrer em anacronismos flagrantes, esse confronto representa a luta entre revolução e reação em qualquer tempo, inclusive no nosso. Onde se lê anabatistas, luteranos, tipografia, Carlos V e Fugger, também se poderia ler anarquistas, social-democratas, internet, George W. Bush e Merrill Lynch.

Os que lutam contra a globalização neoliberal vão reconhecer suas almas gêmeas e precursores nos hereges de há meio milênio. A obra é também um longo — mas fascinante — tratado teórico e prático de militância radical.

Seus autores são quatro dos, talvez milhares, que usaram em seus textos, ações o nome “Luther Blissett”, marca não registrada de toda uma vertente de vanguardia italiana. Foi tomado emprestado a um jamaicano que jogou pelo Milan nos anos 80, em sinal de desprezo aos que o transformaram em alvo de piadas racistas.

A Operação Q foi a ação mais bem-sucedida desses herdeiros da Internacional Situacionista [this is not correct, N.d.WM] dos anos 60 e início dos 70. Foi um cavalo-de-tróia para invadir o mainstream cultural, um best seller atípico para obrigar a mídia a falar do projeto Luther Blissett pelo seu valor real e não como una simples travessura.

Consumada a façanha, as fileiras italianas resolveram renunciar ao pseudônimo para continuar o projeto com menos risco de cair na repetição e na banalidade. Porém, diz um de seus avatares, “há países em que a luta com a máscara de Blissett apenas começou, e espero que prossiga”. O convite e a história do movimento estão em Guerrilha Psíquica, da Coleção Baderna.


 

 

Folha (Ilustrada), São Paulo, sábado, 4 de Maio de 2002:

 

“— A Inquisição mal sabe quem eu sou. De você, não sabe nada, e certamente nem suspeita que somos muitos. Não se preocupe. Continue dizendo só o meu nome, é o único que os irmãos devem conhecer.”
de Q – O Caçador de Hereges, de Luther Blissett

TODOS OS NOMES...
Primeiro romance do misterioso Luther Blissett é lançado no Brasil;
assim como os autores, protagonista é um “múltiplo”

DIEGO ASSIS
DA REDAÇÃO

 

Lutero, Müntzer, Rothmann, Calvino, Pole, Ticiano, Morus... Nomes que fariam a Igreja Católica tremer durante a primeira metade do século 16 serviram, às vésperas das comemorações do jubileu cristão, de personagens da última das investidas de um nome igualmente incômodo para as autoridades italianas: o de Luther Blissett.

Três anos depois de seu lançamento na Itália, “Q – O Caçador de Hereges”, primeiro romance do coletivo sediado em Bolonha responsável por uma série de provocações e peças pregadas na mídia italiana desde meados da década de 90, chega ao Brasil.

Assim como o grupo — que prefere manter seus nomes em segredo —, o estudante de teologia da Universidade de Wittenberg, que narra suas aventuras na Europa da Contra-Reforma, assume ao longo das quase 600 páginas de “Q” uma série de diferentes identidades. “Metzger, Niemanson, Jost, Boekbinder, Lot. Tantos e um. Os que eu fui. Tantos e um. Um qualquer”, escreve.

Troca-se de nome como se troca de camisa. Grosso modo, essa é a segunda lição de Luther Blissett. Incessantemente perseguido pelos príncipes católicos, especialmente por Qòelet, “fiel observador” de Gianpietro Carafa (mais tarde, o papa Paulo 4°), o protagonista do romance torna-se uma lenda em todos os lugares por que passa — e dos quais desaparece.

Adepto do anabatismo, facção radical e libertária dos primórdios do protestantismo, aparece sempre à sombra da história em fatos como o massacre de camponeses em Frankenhausen, passando pela fundação do Reino de Sião, em Münster, até a distribuição de textos calvinistas em Veneza.

Bem articulado, com uma linguagem direta e um enredo de intrigas digno de um “O Nome da Rosa” — seus autores garantem: “Não somos o Umberto Eco” —, “Q – O Caçador de Hereges” tornou-se um dos maiores best-sellers na Itália à época de seu lançamento, promovido pela Einaudi.

Publicado na Espanha, pela Mondadori, e agora no Brasil, pela Conrad, o romance é obrigado, por exigência de seus autores, a carregar uma marca incomum: “É consentida a reprodução, parcial ou total desta obra, e sua difusão por via telemática para uso pessoal dos leitores, desde que não seja com fins comerciais”.

Avesso a entrevistas, Roberto Bui, um dos quatro escritores de “Q” e autor de “Guy Debord Está Realmente Morto”, um dos textos inaugurais do Luther Blissett, aceitou falar à Folha por e-mail sobre o projeto, “suicidado” meses após a publicação do romance na Itália e rebatizado como “Wu-Ming” (Sem Nome, em chinês).

 

***

 

“Q – O CAÇADOR DE HEREGES” — Roberto Bui, do Luther Blissett, nega que projeto tenha sido inventado por escritor italiano
“Não assistimos às aulas de Umberto Eco”
DA REDAÇÃO

Leia a seguir entrevista com o italiano Roberto Bui, co-autor de “Q – O Caçador de Hereges”. Por exigência dele, todas as respostas serão dadas em nome do coletivo Wu-Ming. (DIEGO ASSIS)

Folha — “Q” tem um ritmo bastante fluido, uma mudança constante de personagens e cenários. Quais foram suas influências?

Wu-Ming — Primeiramente os livros de James Ellroy, cujas construções foram praticamente plagiadas em “Q”. Depois, autores latino-americanos como Paco Ignacio Taibo 2° e Daniel Chavarria.

Folha — Uma das condições para publicar seus livros é a impressão de uma advertência contrária aos direitos autorais. Como impor isso a grandes editoras?

Wu-Ming — A lógica do copyright tem de ser desafiada onde ela existir, na barriga da besta. Não faria sentido, político ou cultural, adotarmos uma prática marginal para os “poucos privilegiados” do underground esnobe. De qualquer forma, mantemos uma clara distinção entre os royalties — isto é, nosso percentual sobre cada edição vendida — e o direito do leitor de reproduzir a obra. Você pode scannear, digitar e colocar em seu site para outras pessoas baixarem de graça. Isso é possível até em nosso site. Mas, se você fizer as pessoas pagarem por isso, aí, sim, vamos processá-lo.

Folha — Como foi escrever esse romance a quatro mãos?

Wu-Ming — Teria levado dez anos para cada um de nós fazermos toda a pesquisa histórica necessária para escrever algo como “Q”. Em grupo, levou três anos.

Folha — Qual a relação desse processo com o conceito de linguagem tamariana, do seriado “Star Trek”?

Wu-Ming — Os tamarianos se comunicam por meio de narrativas, de histórias compactas, de parábolas, em suma, de mitos. Construção de mitos, eis o que temos feito desde o início dos anos 90.

Folha — Existe alguma diferença entre os personagens “reais” e os “míticos” em “Q”?

Wu-Ming — Todos os nomes que você leu podem ser encontrados nas crônicas originais da época.

Folha — É possível traçar uma fronteira entre ficção e realidade no romance?

Wu-Ming — De jeito nenhum.

Folha — Luther Blissett, Harry Kipper, Wu-Ming. Qual é a importância de um nome?

Wu-Ming — Ninguém sabe realmente o que é um nome.

Folha — Por que vocês se escondem atrás de uma identidade múltipla? Tem certeza de que não é o Umberto Eco?

Wu-Ming — Não nos escondemos. Já falamos em público uma centena de vezes. Só não permitimos câmeras no recinto. Simplesmente não somos palhaços. Um certo Andrea Ridolfi redigiu um panfleto, em 1997, relacionando Luther Blissett a uma criatura de grupos judaico-maçônicos, anti-Cristo, antieuropeus etc. De acordo com ele, uma leitura detalhada (isto é, paranóica) dos trabalhos de Eco seria suficiente para perceber que foi Eco quem inventou Blissett, uma espécie de Frankenstein saído do departamento de semiologia. Na verdade, nenhum de nós Luther Blissett baseados em Bolonha assistimos às aulas dele.

Folha — Até que ponto ações promovidas na internet podem afetar eventos exteriores?

Wu-Ming — Afetam muito. O novo movimento global anticapitalista, nascido das manifestações de Seattle em 1999, não teria sido possível sem a internet.

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Q – O CAÇADOR DE HEREGES.
Autor: Luther Blissett.
Lançamento: Conrad Editora.
Quanto: R$ 55 (598 págs.).
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Algumas das ações “assinadas” pelo grupo

1994 — Centenas de cartas chegam aos jornais de Bolonha comunicando o achado de entranhas de animais em lugares públicos da cidade. A imprensa dedica páginas de crônicas aos acontecimentos. Meses depois, a descoberta: todas as cartas eram falsas, enviadas por um grupo que se autodenominava Luther Blissett

1995 — Famoso programa italiano recebe a notícia do desaparecimento de um certo Harry Kipper. A produção manda uma equipe verificar a história e colhe os depoimentos de vários “amigos de Kipper”, que dão informações sobre sua personalidade e levam a equipe a lugares freqüentados pelo desaparecido. Minutos antes de a reportagem ir ao ar, a fraude é desmascarada

1996 — A editora Mondadori lança um livro assinado por Luther Blissett. “net@generation” foi organizado por Giuseppe Genna, jornalista que teria recebido instruções do “múltiplo” para compor a obra apenas pela internet. No dia em que chega às livrarias, o livro é desautorizado por Luther Blissett nas páginas dos jornais “La Repubblica” e “Il Manifesto”. Não passava de uma série de “documentos irreconhecíveis escritos por adolescentes bêbados” e de entrevistas falsas retiradas da própria rede.

1997 — Em Viterbo começam a chegar à polícia ligações anônimas alertando sobre a possível realização de missas negras na cidade. Os jornais também são comunicados, inclusive da suspeita de que os praticantes teriam relação com a polícia local. Em seguida, uma fita de vídeo chega às TVs locais com imagens de um ritual satânico. Todas dão a notícia e algumas exibem o vídeo. Uma semana depois, nova versão da fita chega à TV 7, agora com novas cenas: ao final do “ritual”, as figuras tiram seus capuzes, dançam tarantela e mostram um pôster de Luther Blissett

1997 — Luther Blisset publica “Lasciate che i Bimbi”, livro em que analisa a pedofilia como uma desculpa para um processo de caça às bruxas. A obra, lançada pela Castelvecchi, se torna um escândalo e é retirada das livrarias

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Fonte: “Guerrilha Psíquica”, Luther Blissett, Conrad, 2001
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O mito é a mensagem

DA REDAÇÃO

 

Graças à sua imaterialidade e ao uso imprevisível dos diversos meios de expressão — de manifestos a HQs, de performances de rua a aparições na televisão —, o Projeto Luther Blissett, inaugurado na primavera de 1994 em algum lugar da Europa, conseguiu sobreviver até hoje em países como Espanha, França, Inglaterra e Brasil mesmo após a renúncia simbólica (“seppuku”) de seus fundadores de Bolonha ao nome.

Assim como os zapatistas de Chiapas, liderados pelo subcomandante Marcos — outra identidade que pode ser assumida por mais de uma pessoa —, os envolvidos no projeto perceberam na internet uma das ferramentas mais eficientes nos dias de hoje tanto para a convocação de pessoas quanto para a disseminação de idéias e de mitos no mundo globalizado.

Além de aparecer em programas de televisão, reportagens de jornais, panfletos distribuídos na Bienal de Veneza de 1997 e até selos de correio, o rosto gerado por computador de Luther Blissett tem-se espalhado — e transformado — diariamente pela rede desde então, numa espécie de culto à figura de um dos primeiros ícones literalmente virtuais do século 21.

Seu xará de carne e osso parece não ter ficado muito honrado com a fama póstuma. Ex-atacante do Milan, da seleção inglesa de futebol e atual auxiliar técnico do clube inglês Watford, o jamaicano Luther Blissett — sim, ele existe — nega qualquer relação com o movimento italiano e, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que não concederia entrevista sobre o assunto.

Em textos divulgados na internet, os responsáveis (?) pela escolha do nome afirmam que teria a ver com a discriminação racial que Blissett teria sofrido nos anos em que jogou no Milan.

O fato é que, após a publicação de “Q”, seus autores também não são mais Luther Blissett. Desde janeiro de 2000, atendem pelo nome de Wu-Ming, definindo-se como uma “empresa política autônoma” dedicada à narrativa. “54”, seu romance mais recente, chegou às livrarias italianas pela Einaudi e promete uma nova rodada de surpresas. (DA)


 

 

 

Trecho da entrevista com Wu Ming
[originalmente feita como contribuição ao jornal Make-world #2],
que foi distribuído no acampamento internacional No-Border em Estrasburgo
(julho de 2002).

 

Resposta [Wu Ming]: Sim, nós afirmamos que a cultura popular ocidental do século XX (que agora está se tornando algo completamente diferente, e em certo sentido mais complexa para se tirar proveito) estava muitas vezes mais próxima do socialismo do que os regimes “socialistas” orientais do século XX conseguiram estar. Até mesmo acrescentamos que a série de imagens Mao Tsé Tung de Andy Warhol foi mais importante para a revolução do que os retratos oficiais de Mao Tsé Tung agitados por maoístas em manifestações.

Essa visão tem a ver com os nossos múltiplos backgrounds: a noção de “hegemonia cultural” de Antonio Gramsci, o marxismo autonomista (Toni Negri e outras na linha) e o fato de alguns de nós serem ex-Mods, ex-Skinheads e ex-Punks.

Você sabe, o marxismo autonomista enfatiza o poder criativo e revolucionário dos próprios trabalhadores, à parte ao Estado e aos partidos. Ao lado do típico pessimismo da esquerda, os autonomistas podem parecer sonhadores otimistas, enxergando a luta e a vitória onde outros enxergam apatia e derrota. Enquanto a maioria das pessoas (em todo o espectro político) vê o capital como agente e o trabalho como reagente, os autonomistas vêem o capital como o lado reativo da relação.

É claro, por “trabalho” queremos dizer o trabalho vivo na fábrica social, isto é, todo o poder de criação e cooperação social, o qual é necessário ao capital mas não é completamente domável. A vida emerge continuamente por debaixo, dos escombros.

Ainda achamos que um novo e justo modo de produção somente pode ser estabelecido através da reapropriação das redes existentes de cooperação social. O socialismo deve ser construído a partir da natureza coletiva presente na produção capitalista.

É por isso que, de modo diferente de pessoas como os situacionistas (que eram obcecados com a “recuperação” e o “espetáculo”), nós sempre colocamos a ênfase no lado criativo da relação entre capital e classe. Damos a ênfase no poder das multidões.

A produção da cultura pop (não traçamos uma linha divisória clara entre o “underground” e o “mainstream” nesse caso) foi um processo coletivo durante o qual as fronteiras de comunidades abertas e sempre mutantes eram constantemente retraçadas, subculturas constantemente remodelavam-se em torno de mitos. Seria melhor que compreendêssemos quais “pré-requisitos do comunismo” estavam em funcionamento nesse processo ao invés de ficarmos acreditando que milhões de pessoas estavam passando por uma lavagem cerebral.

Hoje em dia, muitas coisas estão mudando para melhor no que diz respeito à reapropriação, ou melhor, “de-propriação” da cultura. Violação de direitos autorais, pirataria de CDs, violação de DVDs, trocas de P2P, socialização de MP3s, OCRs, plunderphonics, software livre... Há um levantamento geral, galões de suor frio estão escorrendo pelos corpos dos patrões. As instituições da propriedade intelectual estão caindo em pedaços, as pessoas estão as detonando. É um maravilhoso processo popular, e está mais próximo do socialismo do que a China jamais esteve.

 

Pergunta: Eu estava me referindo mais à aura (nos termos de Walter Benjamin) que circunda os ícones pop. O sistema de estrelas cria ícones que são capazes de refletir os desejos das pessoas, de produzir identificação, novos “estilos de vida” e novas subculturas. Nesse sentido, Luther Blissett — considerado como um mito descentralizado vindo de baixo para cima — nunca terá a mesma aura de David Bowie ou Gary Grant. É uma questão de ausência de distância ou o que? Como podemos criar histórias populares, que as pessoas possam usar para reinventar suas próprias vidas? RPG e culturas do-it-yourself são a única resposta, ou um coletivo de escritores como o seu pode sugerir algo diferente?

Resposta: Podemos falar só por nós mesmos: nós jogamos RPG (o que é afinal um coletivo de ficção escrevendo no fim do dia?), e uma subcultura DIY prospera em torno de nós. Tentamos manipular gêneros literários para criar ficção popular. Usamos o termo “popular” no seu sentido original, como nas línguas latinas (italiano, espanhol, francês...), onde ela significa “pertencente ao povo” ou “feito pelo povo”. Pense nas músicas folclóricas que parecem não ter autor, elas são creditadas como “popular” ou como “tradicional”.

O ponto em que estamos é este: queremos eliminar mitos como a Autoria, o Gênio, a Inspiração etc. No que diz respeito à “aura”, ficamos do lado de Benjamin e não de Adorno, que era um chato total e até mesmo escreveu comentários racistas sobre músicos de jazz.

O fato de que artefatos culturais perderam sua aura de poder (isto é, seu caráter aristocrático e elitista) foi essencialmente positivo, permitiu que inúmeras pessoas se envolvessem mais na remanipulação da cultura. Benjamin clamava pela democratização da cultura, em certo sentido ele previu a cultura DIY e a cultura P2P. Todos deveriam ler A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica, é ainda muito atual e absolutamente brilhante, e um bom antídoto contra a intoxicação niilista/pós-situacionista.


 

 

 

Revista Imprensa — São Paulo, Agosto 2002

 

Fragmentos da utopia anárquica
Editado no Brasil segundo libro de Luther Blissett, autor que é, rigorosamente, uma lenda

Mariana Duccini

 

Da historiografia, herdamos a imagem da Alta Renascença como um dos perîodos fervilhantes da humanidade, do virtuosismo da razão e do abandono de dogmas. Cristalizadas na memória, as luzes e letras que logo motivaram os alemães a celebrarem o aufklärung, ou seja, todo o contexto que iria desaguar no iluminismo, movimento que teve na França e na Itália seus expoentes maximos. A própria Alemanha, no entanto, viveu, em pleno “cinquecento”, uma guerra de motivações dignas do medievo. O monge Martin Lutero, após liderar a Reforma protestante, teria arrefecido, interessado que estava em manter alguns privilégios individuais, aliando-se à nobreza e até a alguns segmentos da Igreja Romana. Um exército de monges rebeldes — os hereges cristãos — saía recrutando os miseráveis para a luta contra a “romanização” da Reforma: seriam eles os reais “eleitos”, os merecedores do Paraíso.

A história desenrola-se primorosamente nas quase 600 páginas de Q, o caçador de hereges, de Luther Blissett, editado, no Brasil, pela Conrad Livros.

Luther Blissett é uma lenda. No sentido literal do termo. Trata-se de um “autor coletivo”, que surgiu na Europa, em 1994, assumindo a autoria de atos de subversão e obras libertárias. Foi caracterizado como um jogador de futebol, um romancista, um poeta, um dadaísta, um ativista de esquerda... A mensagem era clara: qualquer um de nós poderia incorporar Luther Blissett, desde que assumisse o repudio às convencões, negando-se a endossar o sistema. Antes, atentando contra ele. Foram célebres os “trotes” que pregava na imprensa, divulgando notícias falsas. Graças ao gusto pelo escândalo e pelo sensacionalismo, boa parte da midia européia comprava as versões de Blissett. Ponto para o terrorismo psíquico. Ponto para as investidas anárquicas.

Tão vigorosa é a obra que muitos chegaram a atribuir a autoria de Q, o caçador de hereges ao mestre Umberto Eco, que estaria assumindo uma das faces do Blissett. Embora tenha chegado ao Brasil somente este ano, o livro foi escrito na Itália, em 1999 — ano, aliás, em que houve o suicídio de Blissett, representando, talvez, a “burocratização” do movimento. Para almas anárquicas, antes a morte do que a domesticação. Como qualquer grande romance, a narrativa desenrola-se seguindo alguns parâmetros universais: una situação de equilíbrio, uma força exterior a perturbar tal equilíbrio, um herói investido de capacidade de lutar contra o elemento de ruptura. Um detalhe, no entanto, sepulta a composição narratológica tradicional: a ordem não é restaurada. Ainda que as determinações de nossos heróis sejam exaustivamente explicitadas, a “paz” parece um projeto inviável, uma vez que a luta constante é, em última instância, contra a iniqüidade, a impiedade, a intolerância — pragas que, mesmo momentaneamente debeladas, sempre econtram, no espírito humano, terreno fértil para voltarem a crescer viçosas.

O próprio herói sabe ser impiedoso, em nome de uma causa maior: a propagação de sua fé e de uma sociedade mais justa, em que o povo não precisasse de intermediários (ainda que respeitasse a figura dos profetas) para falar a Deus. São os ícones da escória, da marginália, aqueles que têm sobre os ombros o peso da opressão e decidem, em atos de trasgressão consciente, “roubar” as rédeas da História. São, efetivamente, heróis, a despeito da crueldade. Lembram mesmo as odisséias vikings, os guerreiros expansionistas temidos pela violência, mas que carregavam intrinsecamente um sopro mítico, ancestral. Bebiam, nos crânios dos derrotados, os “tragos do Divino”, no intuito de se tornarem cada vez mais fortes e poderosos. Presentificavam, dessa forma, o Sagrado.

As obras de Blissett — de todos os que tornam uno ao compartilharem das idéias subversivas — têm, ainda, a intensidade e a fugacidade das aventuras piratas, os lobos do mar que, entre saques e orgias, proclamavam a sociedade da liberatia, em que apenas o prazer era imperioso. Os mesmos que eram capazes de se autoaniquilar para não terem de se submeter à ordem e aos governos impostos, a tudo o que não fosse fluido, intuitivo, espontâneo.

 

[Parece a resenha de um outro livro, hein? Com certeza é a resenha de um outro livro :-)]


 

 

Entrevista sobre o copyright na newsletter da
Associação Italiana das Bibliotecas
n° 1, III série — Uma comunidade aberta — 10.Junho. 2002

 

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[Demos uma entrevista sobre o copyright na “AIB notizie”, a newsletter da Associação Italiana das Bibliotecas (www.aib.it), que deverá sair no número deste mês. Parece-nos que terá sido a ocasião onde de forma mais clara explicámos a nossa posição, sendo esta quase uma adenda à “Declaração de Intentos” de Janeiro de 2000. Por este motivo, propomo-la em antestreia absoluta.]

 

1.   O que é que pensam acerca da recente lei de direitos de autor que impede (também nas bibliotecas) que se exceda um limite de 15% na reprodução de textos no mercado? Pode ser este um modo efectivo para salvaguardar os autores e favorecer o mercado do livro e a difusão da leitura?

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«Não. A difusão da leitura estimula-se permitindo a difusão dos textos, não a sua restrição. Se uma pessoa não tem os 20 e tal euros necessários para a compra de um livro, não os tem e basta. O que poderá fazer? Procurar o pote de ouro no arco-íris? A interdição à reprodução irá atingir um grupo alvo de pessoas que as editoras (também as discográficas) há já muito tempo perderam, por causa de políticos míopes, da contínua subida dos preços e da generalizada falta de qualidade. No âmbito universitário, se se pensa nos numerosíssimos textos incluídos nos programas, mesmo os medíocres ou muitas vezes péssimos, só porque foram escritos por amigos ou companheiros de cortesia...

Na generalidade, observa-se que, a uma escala planetária, toda a legislação do direito de autor é expressão de uma mentalidade oligárquica e repressiva, sempre mais disposta a defender os privilégios de obsoletos lobbies, multinacionais e potestades que vivem da apropriação indevida daquilo que deveria ser de todos.»

 

2.   Quais são as soluções alternativas?

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«Naquilo que diz respeito à universidade, o problema está bem mais a montante, os livros metem nojo e, no entanto, custam os olhos da cara. Falando de uma forma mais genérica, somos pela liberdade de reprodução. A liberdade de reprodução não limita as vendas nas livrarias: são circuitos diferentes, aproximações diferentes, suportes diferentes. Experimentamo-lo todos os dias com os nossos livros, que demonstram o que se disse: “É permitida a reprodução parcial ou total da obra e a sua difusão por processos electrónicos para uso dos leitores, contanto que sem fins comerciais.”

Esta última indicação tem também um significado político: o direito convencional, de impressão liberal-burguesa, constrói-se em volta de um indivíduo que, bem visto, é um indivíduo abstracto, não diminuído no social: é o assim chamado “indivíduo proprietário”, descrito como perenemente igual a si mesmo, prescindindo de contextos. Ao invés, nós acreditamos que haja uma enorme diferença entre indivíduos e indivíduos, e assim entre direitos e direitos. É o mesmo que dizer que as liberdades de que deve usufruir o leitor individual que quer ler um livro nosso mas não tem dinheiro para o comprar, não estão em pé de igualdade com as obrigações que contrariamente são impostas às grandes potestades económicas. Para escrever um romance como os nossos são precisos três anos de trabalho duríssimo, entre pesquisas, redacção, revisões e centenas de apresentações por toda a Itália. Aos peixes-cães da grande indústria cinematográfica ou televisiva não deve ser consentido parasitar este nosso compromisso e — sem pagar um cêntimo — extrair filmes das tramas que elaborámos, em seguida fazer milhões e reforçar a sua posição de domínio. Nestes anos percebemos o quanto foi importante plantar no terreno este alicerce, também se alguns puristas do não-copyright nos tenham criticado, ignorando os riscos que se correm quando se tem esta profissão e, no fim de contas, ignorantes do facto que a sociedade está dividida em classes :-)

Estamos sempre à procura de indicações e soluções mais concretas, satisfatórias e utilizáveis por outros. Entretanto, podem fotocopiar os nossos romances e esfregar as advertências na cara dos inspectores SIAE (Società Italiana degli Autori ed Editori) ou dos agentes da GdF (Guarda di Finanza):-)»

 

3.   Com efeito, o Wu Ming pôs, de facto, em crise a própria figura do autor como pessoa individual e, como consequência, da propriedade literária enquanto tal. Como nasce esta escolha e que visão da literatura subentende?

 

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«Não fazemos outra coisa que não tornar explícito o implícito. Na verdade, nenhum autor inventa o escrever sozinho, e não nos referimos só ao editor ou ao ghost writer de turno, mas ao facto de que as ideias estão no ar e não pertencem a único indivíduo. O autor, qualquer que seja ele, é sobretudo um “redutor de complexidade” e desenvolve uma função temporária, isto é, fazer uma síntese precária a partir dos fluxos de informação/imaginação que sejam transmitidos por toda sociedade e que a atravessem de um lado ao outro, sem paragens, como as ondas electromagnéticas.

Por princípio é absurdo querer impor uma propriedade privada da cultura. Se no fundo tudo é produto da multidão, é justo que todo o “produto do engenho” esteja à sua disposição. Não existem “génios”, logo não existem “proprietários”. Existe sim a troca e a reutilização das ideias, ou seja, o seu melhoramento. Já o dizia Lautréamont: porque as ideias progridem é necessário o “plágio” (e, assim, também a sua pré-condição, isto é, a pirataria, a reprodução livre).

Na história recente, esta posição — até há poucos séculos atrás considerada óbvia e natural — foi somente sustentada por expoentes das correntes radicais e antagonistas [...]. Hoje volta a ser uma visão hegemónica, graças à revolução digital e, mais especificamente, graças ao grande sucesso do software gratuito, GNU, Linux, etc.

Da outra parte da barricada está tudo aquilo contra o que a esquerda se bateu, em todas as suas cambiantes, desde o fim do Iluminismo: os tributos nobiliárquicos, a “mão-morta” aristocrática, a exploração dos resultados do trabalho por parte das classes abastadas parasitárias.

Mas, como dizíamos, tratam-se de classes e interesses obsoletos: também à luz de como funciona a hodierna produção de riqueza, o copyright é agora um instrumento superado, um escombro ideológico cuja existência castra a inventividade, limita o desenvolvimento do “capital cognitivo”, desenvolvimento esse que, hoje, requer cooperação social em rede, brainstorming em todos os campos. Para sermos produtivos, as ideias devem estar em livre circulação.

Se quiséssemos usar uma terminologia marxiana clássica, diríamos que hoje o desenvolvimento das forças produtivas põe em crise as relações de produção. Pensamos nos programas peer-to-peer que permitem a partilha de ficheiros MP3. Pensamos nas tecnologias de reprodução como os gravadores. A sua própria existência é a prova de que a Convenção de Berna sobre os direitos de autor foi superada nos factos, pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas. Por outras palavras: não se podem pôr no mercado tecnologias como remasterizadores, computadores, scanners, gravadores, fotocopiadoras, e depois fazer intervir os governos e as forças policiais porque as pessoas os utilizam... de uma forma “errada”.

Contra este vasto (e ainda não totalmente consciente) movimento, entra em campo uma resistência feroz por parte das máfias da propriedade individual, através do agravamento das leis vigentes. E não só: desferra-se também um contra-ataque em larga escala para estender a lógica da propriedade individual a seres vivos e sequências genéticas humanas. Por aqui percebe-se que o copyright é a principal linha de frente do actual conflito sócio-ecológico.

De qualquer forma, na indústria cultural estamos “nós” a ganhar, basta pensar na música: hoje todas as casas discográficas choram miséria, insurgem-se contra a “pirataria”, vêem drasticamente reduzidas as suas margens de lucro. Perfeito! As bolas de sabão rebentam, redimensionam-se fenómenos de parasitismo que tinham assumido proporções ridículas: cabotinos milionários só porque no bar se toca há trinta anos a sua única canção de sucesso, uma sociedade bem característica que monopoliza a administração do “direito de autor”, extorquindo dinheiro graças a extravagantes subtilezas legais e dividindo-o entre a Grande Família que a gere, etc.

A fruição da música (e não só) está a mudar, a “cultura de massas” deixa o lugar livre para uma nova forma de cultura “popular”, na qual contam sempre mais as exibições ao vivo, as redes solidárias, a partilha, o do-it-yourself (auto-produção, auto-distribuição, passa-palavra) e, no fim de contas, pouco importará saber quem compôs ou escreveu o quê. O artista será cada vez menos um Divo (o Autor) e cada vez mais um jogral, trovador, bardo, griot.»


 

 

 

COPYRIGHT E MAREMOTO
Wu Ming 1, outubro 2002

 

Atualmente existe um amplo movimento de protesto e transformação social em grande parte do planeta. Ele possui um potencial enorme, mas ainda não está completamente consciente disso. Embora sua origem seja antiga, só se manifestou recentemente, aparecendo em várias ocasiões sob os refletores da mídia, porém trabalhando dia a dia longe deles. É formado por multidões e singularidades, por retículas capilares no território. Cavalga as mais recentes inovações tecnológicas. As definições cunhadas por seus adversários ficam-lhe pequenas. Logo será impossível pará-lo e a repressão nada poderá contra ele.

É aquilo que o poder econômico chama “pirataria”.

É o movimento real que suprime o estado de coisas existente.

Desde que — a não mais de três séculos — se impôs a crença na propriedade intelectual, os movimentos underground e “alternativos” e as vanguardas mais radicais a tem criticado em nome do “plágio” criativo, da estética do cut-up e do “sampling”, da filosofia “do-it-yourself”. Do mais moderno ao mais antigo se vai do hip-hop ao punk ao proto-surrealista Lautréamont (“O plágio é necessário. O progresso o implica. Toma a frase de um autor, se serve de suas expressões, elimina uma idéia falsa, a substitui pela idéia justa”). Atualmente essa vanguarda é de massas.

Durante dezenas de milênios a civilização humana prescindiu do copyright, do mesmo modo que prescindiu de outros falsos axiomas parecidos, como a “centralidade do mercado” ou o “crescimento ilimitado”. Se houvesse existido a propriedade intelectual, a humanidade não haveria conhecido a epopéia de Gilgamesh, o Mahabharata e o Ramayana, a Ilíada e a Odisséia, o Popol Vuh, a Bíblia e o Corão, as lendas do Graal e do ciclo arturiano, o Orlando Apaixonado e o Orlando Furioso, Gargantua e Pantagruel, todos eles felizes produtos de um amplo processo de mistura e combinação, re-escritura e transformação, isto é, de “plágio”, unido a uma livre difusão e a exibições diretas (sem a interferência dos inspetores da Società Italiana degli Autori ed Editori).

Até pouco tempo, as paliçadas dos “enclosures” culturais impunham uma visão limitada, e logo chegou a Internet. Agora a dinamite dos bits por segundo leva aos ares esses recintos, e podemos empreender aventuradas excursões em selvas de signos e clareiras iluminadas pela lua. A cada noite e a cada dia milhões de pessoas, sozinhas ou coletivamente, cercam/violam/rechaçam o copyright. Fazem-no apropriando-se das tecnologias digitais de compressão (MP3, Mpge etc.), distribuição (redes telemáticas) e reprodução de dados (masterizadores, scanners). Tecnologias que suprimem a distinção entre “original” e “cópia”. Usam redes telemáticas peer-to-peer (descentralizadas, “de igual para igual”) para compartilhar os dados de seus próprios discos rígidos. Desviam-se com astúcia de qualquer obstáculo técnico ou legislativo. Surpreendem no contrapé as multinacionais do entretenimento erodindo seus (até agora) excessivos ganhos. Como é natural, causam grandes dificuldades àqueles que administram os chamados “direitos autorais” (Bernardo Iovene mostrou como eles os administram em sua investigação para o Report da RAI de 4 de outubro de 2001, cujo texto está disponível no endereço: http://www.report.rai.it/2liv.asp?s=82).

Não estamos falando da “pirataria” gerida pelo crime organizado, divisão extralegal do capitalismo não menos deslocada e ofegante do que a legal pela extensão da “pirataria” autogestionada e de massas. Falo da democratização geral do acesso às artes e aos produtos do engenho, processo que salta as barreiras geográficas e sociais. Digamos claramente: barreira de classe (devo fornecer algum dado sobre o preço dos CDs?).

Esse processo está mudando o aspecto da indústria cultural mundial, mas não se limita a isso. Os “piratas” debilitam o inimigo e ampliam as margens de manobra das correntes mais políticas do movimento: nos referimos aos que produzem e difundem o “software livre” (programas de “fonte aberta” livremente modificáveis pelos usuários), aos que querem estender a cada vez mais setores da cultura as licenças “copyleft” (que permitem a reprodução e distribuição das obras sob condição de que sejam “abertas”), aos que querem tornar de “domínio público” fármacos indispensáveis à saúde, a quem rechaça a apropriação, o registro e a frankeinsteinização de espécies vegetais e seqüências genéticas etc. etc.

O conflito entre anti-copyright e copyright expressa na sua forma mais imediata a contradição fundamental do sistema capitalista: a que se dá entre forças produtivas e relações de produção/propriedade. Ao chegar a um certo nível, o desenvolvimento das primeiras põem inevitavelmente em crise as segundas. As mesmas corporações que vendem samplers, fotocopiadoras, scanners e masterizadores controlam a indústria global do entretenimento, e se descobrem prejudicadas pelo uso de tais instrumentos. A serpente morde sua cauda e logo instiga os deputados para que legislem contra a autofagia.

A conseqüente reação em cadeia de paradoxos e episódios grotescos nos permite compreender que terminou para sempre uma fase da cultura, e que leis mais duras não serão suficientes para deter uma dinâmica social já iniciada e envolvente. O que está se modificando é a relação entre produção e consumo da cultura, o que alude a questões ainda mais amplas: o regime de propriedade de produtos do intelecto geral, o estatuto jurídico e a representação política do “trabalho cognitivo” etc.

De qualquer modo, o movimento real se orienta a superar toda a legislação sobre a propriedade intelectual e a reescrevê-la desde o início. Já foram colocadas as pedras angulares sobre as quais reedificar um verdadeiro “direito dos autores”, que realmente leve em conta como funciona a criação, quer dizer, por osmose, mistura, contágio, “plágio”. Muitas vezes, legisladores e forças da ordem tropeçam nessas pedras e machucam os joelhos.

A open source e o copyleft se estendem atualmente muito além da programação de software: as “licenças abertas” estão em toda parte, e tendencialmente podem se converter no paradigma do novo modo de produção que liberte finalmente a cooperação social (já existente e visivelmente posta em prática) do controle parasitário, da expropriação e da “renda” em benefício de grandes potentados industriais e corporativos.

A força do copyleft deriva do fato de ser uma inovação jurídica vinda de baixo que supera a mera “pirataria”, enfatizando a pars construens do movimento real. Na prática, as leis vigentes sobre o copyright (padronizadas pela Convenção de Berna de 1971, praticamente o Pleistoceno) estão sendo pervertidas em relação a sua função original e, em vez de obstacularizá-la, se convertem em garantia da livre circulação. O coletivo Wu Ming — do qual faço parte — contribui a esse movimento inserindo em seus livros a seguinte locução (sem dúvida aperfeiçoável): “Permitida a reprodução parcial ou total da obra e sua difusão por via telemática para uso pessoal dos leitores, sob condição de que não seja com fins comerciais”. O que significa que a difusão deve permanecer gratuita... sob pena de se pagar os direitos correspondentes.

Para quem quiser saber mais, a revista New Scientist ofereceu recentemente um excelente quadro da situação em um longo artigo, publicado por sua vez sob “licença aberta” (http://www.newscientist.com/hottopics/copyleft/copyleftart.jsp).

Eliminar uma falsa idéia, substituí-la por uma justa. Essa vanguarda é um saudável “retorno ao antigo”: estamos abandonando a “cultura de massas” da era industrial (centralizada, normatizada, unívoca, obsessiva pela atribuição do autor, regulada por mil sofismas) para adentrarmos em uma dimensão produtiva que, em um nível de desenvolvimento mais alto, apresenta mais do que algumas afinidades com a cultura popular (excêntrica, disforme, horizontal, baseada no “plágio”, regulada pelo menor número de leis possível).

As leis vigentes sobre o copyright (entre as quais a preparadísima lei italiana de dezembro de 2000) não levam em conta o “copyleft”: na hora de legislar, o Parlamento ignorava por completo sua existência, como puderam confirmar os produtores de software livre (comparados sic et simpliciter aos “piratas”) em diversos encontros com deputados.

Como é óbvio, dada a atual composição das Câmaras italianas, não se pode esperar nada mais que uma diabólica continuidade do erro, a estupidez e a repressão. Suas senhorias não se dão conta de que, abaixo da superfície desse mar em que eles só vêem piratas e barcos de guerra, o fundo está se abrindo. Também na esquerda, os que não querem aguçar a vista e os ouvidos, e propõem soluções fora de época, de “reformismo” tímido (diminuir o IVA* do preço dos CDs etc.), podem se dar conta demasiado tarde do maremoto e serem envolvidos pela onda.

 

_____
* Imposto sobre o Valor Adjunto.


 

 

 

Folha de São Paulo 29/10/2002 — Folha Ilustrada

 

Artesão italiano defende alternativa contra propriedade intelectual

DIEGO ASSIS
da Folha de S.Paulo

 

“É consentida a reprodução parcial ou total desta obra bem como a sua distribuição por via telemática para uso pessoal dos leitores, desde que sem fins comerciais.”

A autorização aparece nos livros do Wu Ming, coletivo literário italiano sediado em Bolonha e que há dois anos vem adotando as práticas do chamado “copyleft”, alternativa defendida pelo grupo contra as “parasitárias” leis de propriedade intelectual.

“Nós somos uma empresa e queremos viver de escrever livros. O que fazemos não é um hobby”, afirmou à Folha o escritor e co-fundador do projeto Roberto Bui, 32, que, publicamente, identifica-se como Wu Ming 1 (o termo, em chinês, significa Anônimo ou Não-Famoso). Desde 23 de outubro até 23 de novembro Bui está no Brasil para participar de palestras e encontros em São Paulo, Rio, Florianópolis e Porto Alegre.

“Nos últimos três anos, milhões de pessoas vêm trocando arquivos na internet e modificando softwares livres”, afirma o escritor. “Creio que estamos presenciando uma mudança estrutural na indústria cultural: a decadência da cultura de massas descrita por Adorno em favor de uma nova fase que é mais similar à cultura popular da era pré-industrial.”

Além de renunciarem aos nomes próprios, portanto, os cinco membros atuais do Wu Ming não se descrevem como artistas, mas como “artesãos da narrativa”.

“A cultura de massas é altamente centralizada por multinacionais que detêm o controle da indústria de entretenimento. Por outro lado, a comunidade “peer-to-peer” [baseada na livre troca entre dois computadores] é descentralizada. Daí que o autor de um software — ou de uma obra de arte — não é importante. O Linux é continuamente melhorado por uma multidão anônima.”

Pelo raciocínio do Wu Ming, se tivessem existido leis de propriedade intelectual no passado, provavelmente a humanidade não teria conhecido obras como o “Gilgamesh”, o “Mahabharata”, a “Ilíada” e até mesmo a Bíblia.

“Contar histórias deve ser uma função social como qualquer outra. Isso derruba vários mitos sobre os autores, como o de que eles são mais sensíveis do que os outros, de que são gênios e conseguem inspiração de um nível superior de consciência. Isso é besteira reacionária.”

As raízes do Wu Ming, na verdade, podem ser encontradas no projeto Luther Blissett, espécie de herói pós-moderno, “Robin Hood da era da informação”, que serviu e serve ainda de inspiração para muitos manifestantes antiglobalização. Blissett, assim como Wu Ming, era um nome vazio — o de um jogador de futebol desconhecido —, cuja menção passou a ser relacionada pela imprensa italiana no final dos 90 com a do “autor” de uma série de peças e engodos que esporádica e aleatoriamente se dedicava a expor a mídia ao ridículo.

A grande obra de Luther Blissett foi “Q”, um denso romance sobre os levantes camponeses e a perseguição de hereges pela Inquisição durante o século 17. O livro vendeu 200 mil cópias na Itália.

 

WU MING
Quando: amanhã, às 19h
Onde: Ação Educativa (r. General Jardim, 660, Santa Cecília, São Paulo)
Quanto: entrada franca


 

 

 

Estadão on line, http://www.estadao.com.br/, Quinta-feira, 31 de outubro de 2002 — 13h27

 

Design narrativo para as novas gerações

 

Pergunte a qualquer professor de Semiologia ou antropólogo e ele lhe dirá como as narrativas que nos cercam — as histórias que ouvimos dos amigos, vemos no cinema, lemos em livros e revistas, etc. — são importantes na formação de nossas identidades, expectativas e pontos-de-vista. Religiões são transmitidas sob a forma de narrativas, como os Evangelhos; e ter aspirações na vida muitas vezes se confunde com aspirar ao papel de protagonista num determinado tipo de história, seja um conto de fadas ou um “case” de marketing.

Claro, a situação não é de todo desprovida de perigos. Como diz Tyler Durden em Clube da Luta : “A publicidade nos faz trabalhar em empregos que detestamos para comprar porcarias de que não precisamos (...) Fomos criados numa dieta de TV para acreditar que um dia seríamos milionários, deuses do cinema e astros de rock”. A ironia de ter Brad Pitt fazendo esse discurso só aumenta a percepção de que milhões, ou bilhões, de pessoas em todo o mundo certamente se sentem insatisfeitas, inconformadas ou até mesmo traídas pelas narrativas que moldam — que permitiram que moldassem — suas vidas.

O que fazer?

Bem, talvez Wu Ming tenha algo para você. Definindo-se, em sua própria Declaração de Intenções como um “laboratório de design literário que trabalha em diversos media” e, em seguida, explicando-se como uma “marca”, “gerida por um colectivo de agitadores da escrita, que se constituiu como uma empresa independente de ‘serviços narrativos’ ”, Wu Ming é um grupo de cinco ativistas da esquerda italiana dedicado à criação de mitos e narrativas com caráter alternativo.

Cooperação sem nome

A ênfase, em Wu Ming, recai sobre a coletividade e a cooperação. No lugar do autor superstar, que se desdobra entre aparições em talk-shows, fotos, páginas sociais e acumula honras para si mesmo, Wu Ming é apenas Wu Ming, uma marca feita de dois ideogramas e que significa, literalmente, “Nenhum Nome”.

O artigo Myth-making and catastrophes, disponível online, explica algumas das bases do movimento. Como no trecho: “...uma exploração prática das mitologias, de forma a entender se uma desconstrução, manipulação e reutilização dos mitos de forma não-alienante e libertária seria ou não possível (...) As fontes de inspiração foram as antigas lendas de heróis populares, a linguagem adotada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, o cinema de gênero e a cultura pop ocidental em geral...” Cinema de gênero (em inglês, “genre cinema”), é uma expressão que se refere coletivamente a filmes como os de ficção científica, terror, ação e policial.

Quatro dos membros de Wu Ming são os autores do romance “Q”, publicado no Brasil como “Q – O Caçador de Hereges”, pela Conrad Editora, assinado pelo pseudônimo coletivo Luther Blissett. Mas, enquanto o projeto Luther Blissett minava a própria credibilidade da indústria cultural, Wu Ming tenta usá-la.

No Brasil

Roberto Bui, um dos cinco membros do coletivo Wu Ming, está no Brasil nesta semana. Para ontem, quarta-feira, estava marcada uma mesa-redonda com a participação dele, em São Paulo, sobre coletivos, comunidades na Web e a temática copyleft — “copyleft”, trocadilho com “copyright”, é o estatuto que se aplica à produção intelectual distribuída sem limitação ao direito de fazer cópias, desde que as cópias não tenham fim lucrativo.

“Há uma diferença clara”, explica Bui, em entrevista via e-mail, “entre a porcentagem do preço de capa que recebemos da venda de nossos livros e o dinheiro que não queremos receber, do copyright, isto é, da limitação à reprodução de nossos livros”. Ele completa: “Consideramos que seria imoral impedir as pessoas de copiar nossos livros, especialmente as pessoas que não têm o dinheiro para comprá-los. Se você compra um de nossos romances, você nos ajuda a sobreviver e a ter uma renda, mas se você não tem o dinheiro preferimos que copie o livro e leia, em vez de perder a oportunidade”.

“Vivemos de escrever romances”, diz Roberto Bui. “‘Q’ vendeu mais de 200.000 exemplares na Itália, 50.000 na Espanha e assim por diante”.

Desde que surgiu, em janeiro de 2000, Wu Ming já escreveu e publicou três romances: Asce di Guerra, Havana Glam e 54. Bui diz que o coletivo está trabalhando num roteiro cinematográfico sobre o movimento estudantil de 1977 em Bolonha (Itália). A partir de seu website, o Wu Ming Foundation, o grupo emite uma revista eletrônica, a Giap.

No site há textos e artigos da Giap vertidos para diversas línguas, incluindo o português. O coletivo também prepara uma coletânea de textos políticos a ser publicada na Espanha, com o sugestivo título Esta revolucion no tiene rostro. Ah, sim: o conteúdo do Wu Ming Foundation pode ser copiado sem problemas.


 

 

 

http://www.telecentros.sp.gov.br/interna.php?id=320

Um dos fundadores da Wu Ming visita o Telecentro Cidade Tiradentes
Admirado com o projeto, Roberto Bui elogia a iniciativa da Prefeitura

Em visita ao Brasil, o italiano Roberto Bui, um dos fundadores do Wu Ming, um projeto literário que luta contra a lei de propriedade intelectual (copyright), conheceu o Telecentro Cidade Tiradentes, no dia 30 de novembro.

Sua entidade, definida como um laboratório de design literário que trabalha em diversas mídias e que já criou diversos livros, é uma empresa que faz uma produção independente de obras de diversas pessoas, responsáveis por trabalhos na Itália e outros países como Espanha, França, Inglaterra e Brasil.

O Wu Ming renuncia a quaisquer ganho proveniente de traduções em espanhol das suas obras editadas em Cuba. Esta medida pretende contribuir para o relançamento das atividades editoriais e culturais na ilha, que passam por dificuldades graças ao embargo econômico imposto pelos Estados Unidos.

O objetivo é criar um coletivo, valorizando a cooperação social na produção e no conteúdo dos trabalhos literários. Assim como os softwares livres, o Wu Ming luta contra a propriedade intelectual para dar mais liberdade e vigor cultural, o que não é possível com restrições de copyright de editoras e outros meios, como gravadoras.

Admirado com o projeto de inclusão digital da Prefeitura, Bui comentou suas impressões e falou sobre sua entidade:

Governo Eletrônico — Qual foi a origem do nome Wu Ming?

Eu e Giovanni Cattabriga (outro fundador do projeto) estudamos mandarim. Esta expressão, que significa “estado permanente de ignorância”, corresponde à nossa convicção do futuro da humanidade, como a falta de consciência ecológico-social, falta de crítica sobre desigualdades sociais.

GE — O Wu Ming tem boa repercussão na Europa, com incentivo à trabalhos de vanguarda e alternativos.

De fato, temos obtido sucesso na Europa. Podemos dizer que já temos influência na cultura e opinião pública italiana, com artigos em jornais.

GE — Qual a sua opinião sobre a pirataria de produtos?

Vejo de forma positiva. Sobre esta expressão, prefiro chamar de comunidade. É uma forma de dar liberdade e propagar ainda mais a cultura. Um CD, por exemplo, custa muito caro, o que mostra as restrições dos direitos autorais, cujo preço é alto. Isto é um obstáculo a veiculação e acesso aos produtos, às obras.

É necessário ter liberdade para criar, divulgar e compartilhar qualquer trabalho, tornando assim a cultura mais acessível a todos.

GE — Como vocês vêem os softwares livres, que também fazem parte de uma comunidade livre que se opõe ao copyright?

Para mim, trata-se de um dos fenômenos culturais mais importantes nos últimos anos e que mudou a maneira de pensar a informática. Assim como nós, os softwares livres visam a coletividade de quem cria e desenvolvem os produtos, compartilhando-os sem nenhuma restrição, fazendo frente à poderosa multinacional Microsoft. Isto é ótimo, pois dá liberdade para criar e divulgar qualquer programa.

GE — O que você pensa a respeito do Telecentro, um projeto municipal que com o objetivo de propagar o conhecimento de informática à população carente utilizando softwares livres?

É extremamente importante. Esta iniciativa é fundamental não só no Brasil, na América Latina, mas em todo o mundo. Temos um contingente de pessoas que não têm acesso e não possuem conhecimento algum de informática. Projetos como este são imprescindíveis no combate a esta falta de conhecimento, levando informação a quem necessita. Na Itália, algumas cidades de governos de esquerda adotam um programa semelhante.

GE — E qual foi sua impressão sobre este projeto da Prefeitura de São Paulo?

Estou muito impressionado. São Paulo é a terceira maior cidade do mundo e tem diversos problemas. Mesmo com estas dificuldades, a Prefeitura lançou um projeto que desperta grandes esperanças na capacitação de comunidades carentes. Saber e constatar aqui na Cidade Tiradentes que cerca de 150 jovens da região trabalham com computadores é muito bom. Gostei muito de ter vindo ao Brasil e, certamente, é inspirativo para mim.

31/10/2002


 

 

 

Magnet — é um artigo realmente ruim...

Sinto muito em dizer isso, já que a jornalista claramente não agiu de má fé, mas o artigo que segue é realmente ruim. Estou o colocando on-line porque se trata de um bom exemplo de distorção. As coisas podem se tornar muito confusas quando falamos de “propriedade intelectual”. Evidentemente uma explicação é necessária.

Durante toda a matéria a jornalista confunde e troca os conceitos de “copyleft”, “plagiarismo”, “software livre” e “open source”. É por isso que ela escreve coisas que não têm sentido e (o que é mais grave) as põe na minha boca como se eu as tivesse dito.

Qualquer um que esteve na conferência em São Paulo sabe que eu NÃO ataquei a “definição de open source”. Pelo contrário, eu repeti 3 vezes que é perfeitamente normal que as pessoas tentem ganhar dinheiro pelo trabalho que está por detrás do Linux e da sua distribuição. Por que as pessoas deveriam ser forçadas a sacrificar tempo e energia de graça?

Eu simplesmente fiz uma clara distinção: o “movimento de software livre” — o qual criou o “copyleft” — é mais centrado em questões filosóficas e éticas (a liberdade de compartilhar conhecimento), enquanto as pessoas envolvidas com “open source” se dedicam mais a construir softwares confiáveis para negócios confiáveis. Trata-se de duas abordagens diferentes, ambas perfeitamente legítimas. De qualquer modo, acho que durante os anos 1990 o pessoal do “open source” acreditou demais no “longo boom” da “nova economia” e foi longe demais na crença da propaganda sobre a NASDAQ etc.

A jornalista escreve que “não há meia medida”. Isso é absurdo: o próprio “copyleft” é um bom exemplo do fato de “meias medidas” poderem ser mais radicais do que as posturas extremistas.

E qual é o suposto significado daquela ridícula frase sobre hip-hop e copyleft? Os artistas de hip-hop têm que pagar por cada sample que eles colocam nos seus discos. Onde diabos está o copyleft?! Isso é simplesmente copyright!

Talvez eu seja o orador “incisivo” que ela descreve. Não sei. Uma coisa eu sei com certeza: ela não sabia do que eu estava falando.

E eu deveria ter suspeitado, já que ela me fez uma pergunta sobre...

Courtney Love!

 

WM1


 

 

Luther Blissett: o homem e o mito, agora no Brasil
Renata Aquino

 

Ele não existe, nunca existiu. Mas isso não impediu Luther Blissett de publicar um livro em diversos países, criar alvoroço na Internet, defender posições sobre MP3 e Linux e até suicidar-se. Por último, Blissett esteve no Brasil, “renascido” em Roberto Bui.

Um calmo jovem cidadão de Bologna, Roberto Bui aparenta ser tudo menos o orador incisivo e polêmico que de fato é. Bui é um dos ex-integrantes mais conhecidos do Projeto Luther Blissett. O projeto consistia em criar um coletivo onde qualquer um poderia chamar-se Luther Blissett, uma figura onipresente, retratada no livro “Q”, também publicado no Brasil.

Mas Luther Blissett não causou apenas polêmica literária. Alguns participantes do projeto exposto em LutherBlissett.com chegaram a ser presos e afirmaram todos, sob juramento, “somos Luther Blissett”. As prisões, aliás, foram apenas um dos muitos efeitos colaterais da ação do grupo como trabalho com mídia independente e protestos a favor da pirataria.

Blissett acabaria por falecer suicidando-se em 2001 em um ritual transmitido online. O novo coletivo é a Fundação Wu-Ming e Bui é um de seus personagens mais importantes.

Bui esteve no Brasil para promover os livros do Projeto Luther Blissett e participou de debate ontem em São Paulo. O autor seguirá para Florianópolis e Porto Alegre, onde participará também de eventos. O debate teve participação também de Marcelo Barbão (Revista Geek), Adriana Veloso (Projeto Metáfora) e Ricardo Rosas (Rizoma.net).

A RAZÃO DO “AGITPROP”

A ira dos Luther Blissetts/Wu-Mings do mundo tem como alvo as grandes multinacionais envolvidas com mídia e tecnologia. Para Bui, “as corporações estão perdendo o controle sobre a comercialização de bens culturais e estão desesperadas e tentando medidas absurdas para prolongar esse controle”.

Esse seria o principal motivo da “adoção de políticas antipirataria e toda a ‘invenção’ da propriedade intelectual”, afirma Bui. Mas as corporações estariam lutando em vão. “As corporações têm visão curta, o capitalismo internacional não tem como frear a tecnologia que ele mesmo criou, desde os anos 70 tenta-se barrar a pirataria até em fitas cassete e nunca se conseguiu resultado”, afirmou o autor no debate.

“O desespero dos impérios de mídia é tanto que até jornalistas de música estão sendo acusados de serem ‘fontes de pirataria’ e CDs lacrados em discmans chegam a ser distribuídos para crítica musical”, contou Bui. “Ora, tudo isso é extremamente caro e improdutivo, logo esse modelo tem que acabar”, afirmou o autor.

“As gravadoras estão querendo obrigar os provedores a publicarem uma ‘lista negra’ dos usuários que trocam arquivos de MP3 só que apenas no KazAa e no WinMX são 130 milhões de usuários”, afirmou Bui. “Qual o objetivo de ter então a ‘lista negra’ se nela está praticamente todo e qualquer internauta?”, denuncia o autor.

LINUX E COPYLEFT CONTRA A ECONOMIA DA BOLHA

“Veja, por exemplo, o documentário “Revolution OS”, ele conta a história do Linux como um épico e é verdade”, disse Bui à platéia no debate. “A criação de um sistema operacional sem as amarras da propriedade intelectual, ou ganha-pão da maior empresa de software proprietário do mundo (a Microsoft), é quixotesco mas extremamente corajoso, como uma luta de Davi contra Golias”, disse Roberto Bui.

“É clara a importância do copyleft para a produção cultural, os livros do projeto Luther Blissett e da Fundação Wu-Ming estão disponíveis para quem quiser copiar ou baixar online e isso só afeta positivamente as vendas do livro em papel”, afirmou Bui. O único motivo da existência da editora é o fornecimento da infra-estrutura logística de acordo com o autor.

“Não se trata apenas de criar um novo modelo para vender livros, acreditamos que é uma mudança generalizada e estaremos prontos para um novo mundo que está sendo trazido pela tecnologia”, contou Bui.

E não há meio-termo. “Apoiamos o movimento do software livre, que é copyleft, o movimento open source é uma versão dos produtos de software livre para comercialização, logo distanciado da filosofia do programa em primeiro lugar”, disse Bui. “O Open Source é uma criação típica da ‘bolha’ da nova economia e não se sustenta sozinho esvaziada a filosofia do software livre”, disse o autor. “O maior inimigo do Open Source é o estouro da bolha enquanto o software livre não se preocupa com isso”, afirmou Bui.

COMO VENDER UM LIVRO QUE PODE SER BAIXADO DE GRAÇA

“O copyleft não representa prejuízo, o livro “Q” foi vendido com copyleft e logo chegou a 200 mil cópias, ou seja, não há como ser um fracasso” afirmou Bui. “A música, especialmente a que usa sampling ou trechos de outras músicas, já utiliza inadvertidamente o conceito de copyleft”, disse o escritor.

“Há também grandes artistas como Moby que mostram saber o que significam todas as mudanças por que passamos no controle do bem cultural”, afirmou Bui. “Mas nem sempre esses artistas querem mesmo uma mudança no sistema, o U2 por exemplo aparenta ver com bons olhos a troca de MP3 mas processou o Negativland, banda que fez algumas paródias com títulos de suas músicas”, afirmou Bui.

E o Brasil? Bui acha que o país já tem sua cota de empolgação. “Fui em um cinema e vi brasileiros cantando junto com o filme “Revolution OS” o Hino do Software Livre, fiquei muito impressionado”, contou Bui.

Os projetos sociais envolvendo tecnologia também são destacados por Bui. “Fui no Telecentro da Prefeitura na Cidade Tiradentes e nunca vi uma comunidade tão envolvida com o conhecimento”, disse o autor.

“Acredito que há a possibilidade do Brasil se tornar um país melhor com o uso de software livre e copyleft na cultura” afirmou Bui. “Isso acontecendo, haverá mudança na sociedade e troca de poder e cria-se a primeira oportunidade do Brasil capacitar e recompensar sua população, que necessita apenas de orientação para se tornar uma das mais conectadas no mundo.”

Roberto Bui parte para Florianópolis na sexta-feira, onde participará de debates com programação ainda a confirmar. O autor passará ainda por Porto Alegre, onde não há eventos previstos e deve retornar à Itália logo depois.


 

 

 

“Não há “depois da revolução”, o processo é contínuo, já começou...”
Entrevista com Roberto Bui / Wu Ming 1 — Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 11/11/02
Entrevista e tradução por Fabio Salvatti e Antonio Vargas.

 

Você foi um membro do Projeto Luther Blissett e agora é membro da Fundação Wu Ming. Quais são as diferenças entre eles e porque houve uma “morte” do Projeto Luther Blissett e um “nascimento” da Fundação Wu Ming?

Wu Ming 1: Luther Blissett era uma network indiscriminadamente aberta. Qualquer um poderia usar o nome e adicionar elementos para a reputação desse herói imaginário que era Luther Blissett, uma espécie de “bandido” da era da informação ou “Robin Hood” da internet. Qualquer ação que se fizesse com o nome de Luther Blissett era automaticamente atribuída a ele como se fosse uma pessoa real. Cada ação, cada escrito, cada performance adicionava elementos e desenvolvia a reputação de Luther Blissett. Era uma incrível comunidade aberta. Na Itália, cerca de 400 pessoas usavam o nome, a maioria delas eu nem conheço pessoalmente, só mantemos contato via e-mail. Havia grupos em cada cidade. Em Bolonha havia um dos maiores grupos, com cerca de cinqûenta pessoas. Basicamente, quase todo mundo poderia adotar o nome. Não havia um comitê central para filtrar a participação. Não havia regras escritas sobre como usar o nome. Só havia uma espécie de “autodefesa automática” da network. Por exemplo, fascistas ou nazistas não poderiam usar o nome para propósitos racistas, porque a network tinha um estilo, ainda que não fosse um estilo homogêneo. E, é claro, ser racista não fazia parte do estilo.

Desde o começo, em 1994, nós decidimos que Luther Blissett seria um plano qüinqüenal, de 1994 a 1999. Não exatamente Luther Blissett, mas o Projeto Luther Blissett. São duas coisas diferentes. O Projeto Luther Blissett era a network original, a network das pessoas que começaram a usar o nome no meio dos 90. Enquanto, por exemplo, as pessoas que usam o nome Luther Blissett agora não são parte do Projeto Luther Blisset, elas simplesmente são Luther Blissett. O Projeto Luther Blissett era uma das possíveis organizações de Luther Blissett. De qualquer maneira, o Projeto Luther Blissett estava planejado para terminar em 1999. Era uma paródia, uma caricatura da economia soviética, com os planos de cinco anos. E também porque cinco anos era tempo suficiente para se conseguir resultados, conquistas concretas, e não era tempo demais.

Em 1999 publicamos Q, que foi nossa última contribuição para Luther Blissett. O livro foi escrito por quatro membros do grupo de Bolonha do Projeto Luther Blissett. Teve um incrível sucesso. Vendeu 200 mil cópias na Itália e foi traduzido por todo o mundo. Os leitores na Itália ficaram surpresos porque Luther Blissett era famoso como uma coisa underground, como uma coisa à margem, radical, vanguarda, coisas assim. E Q teve um sucesso comercial mesmo no mainstream, mesmo que o conteúdo do romance fosse bem radical. Esta foi a última prova de que o Projeto Luther Blissett tinha que acabar, porque os quatro autores de Q estavam ficando famosos demais e todas as outras pessoas que estavam usando o nome de Luther Blissett estavam ameaçadas de serem imediatamente associadas com os autores de Q. Nós ficamos “pesados” demais. Então nós pensamos que fizemos a coisa certa quando pensamos em terminar o Projeto em 1999.

Então, em janeiro de 2000 nós começamos um novo projeto (os quatro autores de Q e outro autor chamado Riccardo, que escreveu romances de ficção científica na Itália, muito radicais pelo estilo e conteúdo) chamado Wu Ming. A diferença entre o Projeto Luther Blissett e Wu Ming é que Wu Ming é um grupo, não é indiscriminadamente aberto, porque escrever ficção é uma tarefa difícil. Vai haver uma história, com um começo, um fim e uma trama no meio. Então vai ser preciso trabalhar duro para escrevê-la. Não é fácil fazer isso. Somos um grupo de cinco pessoas, mas há toda uma comunidade ao nosso redor, nós cooperamos e colaboramos com um monte de gente. Nós temos um fanzine eletrônico chamado Giap, com mais de 3000 assinantes, que nos dão feedback e colaboram conosco. Wu Ming é um grupo, não é uma network, como o Projeto Luther Blissett. Essa é a principal diferença. Mas há coisas em comum: a recusa à propriedade intelectual, por exemplo, o fato de que não deixamos que nos fotografem ou nos filmem, nós não aparecemos na mídia. Nós aparecemos em público porque o nosso slogan (vocês o acharão no nosso website, na primeira página) é “transparente para os leitores, opaco para as mídias”, o que significa que aparecemos em público, não somos elitistas, aristocráticos. Nos últimos três anos, nós fizemos 150 palestras em público, sem fotógrafos ou cinegrafistas. E a outra coisa é o nome. Wu Ming em chinês significa “anônimo”. Então é uma referência ao projeto anterior. Há coisas que sobrevivem do projeto anterior, mas num outro contexto.

Quais foram os principais atos do Projeto Luther Blissett e da Wu Ming?

[imagem]

Os principais atos de Luther Blissett foram o que chamamos de “trotes de mídia”, guerrilha de comunicação, coisas assim. Nós começávamos “plantando” falsas notícias na mídia, com jornalistas acreditando que eram verdadeiras, e as publicando, e depois nós assumíamos a responsabilidade por elas. Algumas das ações tiveram um impacto considerável na Itália, e tivemos resultados concretos. Por exemplo, nós usamos este tipo de estratégia numa campanha de solidariedade contra a prisão de uma banda de garotos Heavy Metal. Em Bolonha, houve uma perseguição a essa banda que foi acusada de organizar rituais de magia negra, durante os quais algumas garotas e crianças teriam sido estupradas. Era algo como um ritual satânico com pedofilia. Mas era uma armação completa, não era verdade. Uma associação católica era quem os estava acusando, e um juiz aceitou a pressão desse grupo. Os integrantes da banda foram condenados a um ano e meio de prisão e foram criminalizados pela mídia. Era evidente que eles eram completamente inocentes. Não havia provas, não havia nem vítimas, só rumores, boatos. Então nós começamos uma campanha de solidariedade que não era tradicional, como abaixo-assinados, ou artigos na imprensa. Nós começamos a plantar na imprensa notícias falsas, ainda mais sensacionais e absurdas, contra a banda, que se chamava Bambini di Satana [Meninos de Satanás]. Era uma associação cultural esotérica de Heavy Metal, uma besteira assim, mas eles eram completamente inocentes. Nós fizemos acusações maiores, incríveis e absurdas. Por exemplo, nós inventamos um grupo de anti-satanistas. Eu roubei um crânio no cemitério, coloquei numa mochila e a deixei num armário da estação de trem de Bolonha. Eu peguei o ticket do armário e enviei para o principal jornal de Bolonha. Escrevi uma carta dizendo que se eles estavam interessados no caso da Children of Satan eles achariam coisas interessantes na mochila. O jornalista recebeu muito tempo depois o ticket, então ele teve que pagar o aluguel do armário por um mês, gastou um monte de dinheiro para pegar a mochila, e quando ele abriu, havia um crânio humano. No dia seguinte saiu uma foto do crânio na primeira página do jornal dizendo: “Anti-satanistas anônimos enviaram para o nosso jornal provas de atividades satânicas em Bolonha”. No outro dia, em outro jornal, nós revelamos que era tudo falso, que nós tínhamos roubado o crânio. Dissemos que aquilo era uma mentira, e que nós a inventamos. Mas nós inventamos uma. Quantas outras foram inventadas pelos jornalistas? Então as pessoas começaram a pensar a respeito. No fim a banda foi inocentada no julgamento e agora todos sabem que eles eram inocentes. Então nós tivemos resultados concretos nessa estratégia de guerrilha de comunicação. Mas a maioria das ações não era tão canalizada para um propósito específico. A maioria das ações era para espalhar a mitologia da existência de Luther Blissett.

Por exemplo, a primeira grande ação que fizemos foi quando inventamos um cara, um artista britânico. Inventamos sua vida, seus amigos, tiramos uma fotografia de uma casa em Londres e dissemos que era seu endereço. E nós ainda moldamos várias faces de fotos do meu tio com trinta anos e fizemos um rosto artificial, que depois virou o rosto de Luther Blissett. Nós enviamos para todas as agências de notícia essa foto e um texto dizendo que éramos amigos desse cara, desse artista, e ele estava em viagem pela Europa numa bicicleta com a intenção de escrever no mapa da Europa a palavra ART, conectando cidades. No final do T, ele estava perdido na Bósnia. Nós escrevemos isso e colocamos nossos telefones, perguntando se alguém tinha visto aquele homem, sua família estava preocupada, e nós também. A última vez que tínhamos ouvido falar dele, ele estava indo para a Bósnia. Seis meses depois não sabíamos o que tinha acontecido com ele. As agências de notícia enviaram a foto para os jornais publicarem na sessão de pessoas desaparecidas. A lenda se espalhou, porque esse cara teria sido um dos fundadores do Projeto Luther Blissett, todo dia a mídia era alimentada com um novo elemento da vida dele. Na televisão estatal italiana tem um programa chamado Chi l’ha visto? (Alguém o viu?), é um programa que procura por pessoas desaparecidas. Tem uma grande audiência, é no horário nobre. Nós recebemos um telefonema deles, dizendo que eles estavam interessados em cobrir o caso, e eles enviaram uma equipe de jornalistas para Bolonha, para nos entrevistar. Nós contamos toda a história, e dissemos que a última vez que ele esteve em contato com os italianos foi em Udine, no nordeste da Itália. Daí nós ligamos para alguns Luther Blissett de Udine e dissemos que a equipe de TV estava indo para lá, então que eles estivessem preparados para serem entrevistados e contarem um monte de besteiras. E foi o que eles fizeram. E o pessoal de Udine disse que o cara era de Londres, então se os jornalistas quisessem saber mais sobre ele deviam ir para Londres e entrevistar seus amigos. Daí, ligamos para algumas pessoas de Londres dizendo o que estávamos fazendo, e que os jornalistas italianos estavam indo para lá, e que eles deviam mostrar-lhes a casa onde o cara teria nascido, colocá-los em contato com seus amigos, então eles inventaram um monte de outras histórias sobre esse cara, e a equipe de TV foi pra Londres, entrevistou esses Luther Blissett e no final, quando estavam prestes a transmitir o programa (já haviam mandado os comunicados sobre o episódio para os jornais, em todo jornal havia um anúncio dizendo “Hoje no Chi l’ha visto o estranho caso do artista que desapareceu na Bósnia”), suspeitaram e checaram no Sistema de Pesquisa Anagráfico do Reino Unido e descobriram que esse cara não existia, mas todos os jornais haviam publicado a história. Então nós fizemos uma conferência de imprensa e revelamos que tudo era uma invenção e os jornalistas tinham gastado um monte de dinheiro de impostos italianos, um monte de dinheiro público, para sair pela Europa procurando por um homem que não existia. Eles nem tinham checado se ele existia realmente, eles imediatamente saíram por aí, procurando por ele. Esse foi o primeiro grande ato do Luther Blissett na Itália porque todos os jornais publicaram artigos a respeito. Daí houve uma reação em cadeia de trotes usando Luther Blissett por cinco anos.

[imagem]

O rosto de Luther

Como o da Naomi Campbell...

É, mas esse é verdade! É incrível porque é uma história verdadeira. Naomi Campbell estava em Bolonha para uma cirurgia plástica, para uma lipoaspiração. Quando os jornalistas do Il Resto de Cailino, que é o maior jornal de Bolonha ouviram os rumores eles imediatamente pensaram “Não, isso deve ser um trote do Luther Blissett, não pode ser verdade.” E eles publicaram como se fosse uma notícia falsa, mas era real. Eles estavam tão paranóicos no final que qualquer notícia podia ser falsa que eles confundiam as verdadeiras com as falsas. Isso era muito bom.

Eles provaram seu próprio veneno.

Absolutamente. É um pouco como homeopatia, acho que é saudável. Isso era Luther Blissett. Wu Ming é diferente porque Wu Ming é coletivo que trabalha contando histórias, mas de uma maneira diferente, porque as histórias que contamos são projetadas para serem publicadas em livros. Então nós continuamos contando histórias, como fizemos no Projeto Luther Blissett, mas agora estamos explorando um pouco mais os detalhes, um pouco mais profundamente o campo da literatura de ficção.

Wu Ming usa o termo copyleft para se referir a um novo jeito de tratar a propriedade intelectual. Quais são seus princípios?

A palavra copyleft foi inventada pelo Movimento de Software Livre, por Richard Stallman, nos anos 80. É o oposto de copyright, um copyright de esquerda. Foi uma grande inovação. Basicamente, o copyleft é um meio de defender o trabalho das pessoas mas sem impedir que outras pessoas o reproduzam ou copiem. Porque no Projeto Luther Blissett nós escrevíamos “sem copyright”. Mas não é o suficiente. Porque “sem copyright” significa que não há proteção possível para que, por exemplo, uma produtora cinematográfica, uma corporação, pegue a história e ganhe dinheiro só parasitando o nosso trabalho. Aí nós começamos a pensar no Movimento de Software Livre e entendemos que o copyleft é mais válido. A nota de copyleft é como a de copyright, mas abaixo dela está escrito que o autor desta obra permite sua livre reprodução somente para fins não-comerciais e somente se quem a utilizar não a colocar sob copyright. Isto significa que o copyleft, ao invés de ser um obstáculo para a reprodução, se torna uma garantia da reprodução. Porque é um direito inalienável. Significa “eu tenho o direito autoral sobre o texto e você não pode fazer nada para impedir que eu autorize outras pessoas a copiá-lo”. É um paradoxo, mas é um paradoxo muito fértil. Porque você pega a legislação existente sobre propriedade intelectual e a põe de cabeça para baixo, ou melhor, do lado direito para o esquerdo. Eu acho que esta é a melhor direção para a qual se mover e explorar, porque defende o trabalho. Uma produtora de cinema ou outra editora não pode pegar nossos livros e ganhar dinheiro com eles sem dar-nos parte desse dinheiro. Q, por exemplo, vendeu 200 mil cópias e várias produtoras se interessaram em filmá-lo. Se não houvesse nenhum tipo de proteção eles poderiam ter feito um filme, reforçar sua posição nos negócios de corporações e parasitar o nosso trabalho sem pagar dinheiro algum. Nesse caso, eles têm que negociar. Já as pessoas que não querem ganhar dinheiro sobre a obra podem copiar e usar o livro. Para fins não-comerciais a reprodução é gratuita.

Porque vocês recusam o termo artista para o escritor? Se pensarmos arte como Aristóteles, como uma techné, que significa “um modo de produzir algo”, não podemos usar o termo “artista” para a produção escrita?

Nós usamos o termo “arte”, mas no mesmo sentido que a “arte” dos artesãos. Se você for a um carpinteiro e pedir para que ele faça uma mesa, ele a faz. Se você vier até nós e pedir que nós contemos uma história, nós o faremos. Temos técnicas para isso. Isso é arte para nós. Nós nos chamamos de “artesãos da narrativa”, não “artistas”, porque pensamos que o termo “artista”, infelizmente, está mais relacionado a uma dimensão idealista, individualista de arte: inspiração, gênio, as musas, e outras coisas que fazem com que o artista de repente tenha uma iluminação, enclausurado em sua torre de marfim, comece a escrever compulsivamente, porque a musa está falando com ele, e o seu gênio está em contato com estágios elevados de consciência, toda aquela coisa romântica. Nós recusamos a superstição sobre a autoria, sobre contar histórias, sobre escrever, sobre arte. O termo “artesão” é mais concreto. Significa que eu posso fazer uma mesa, posso esculpir coisas na madeira, posso fazer um vaso de cerâmica, posso escrever um romance. É muito simples, não é teórico. Nós simplesmente pensamos que não somos gênios, que não somos melhores do que ninguém, só estamos tentando fazer nosso trabalho da melhor maneira possível. Não estamos em contato com estágios elevados de sensibilidade. Então não nos chamamos de artistas porque pode haver uma falta de entendimento do termo.

Quando vocês realizam suas ações, como as do Projeto Luther Blissett, elas não são semelhantes ao conceito romântico de artista?

Eu acho que não, porque sempre colocamos a ênfase na dimensão coletiva da realização da ação. É uma criação coletiva anônima, a qual qualquer um pode adicionar um elemento, um rumor, um pedaço da história. Isso não tem muito a ver com o conceito romântico de artista. É mais similar ao modo como a arte era antes das pessoas começarem a teorizá-la. Contar histórias era um ato coletivo nas épocas remotas. A Bíblia, o Mahabarata, a Ilíada e a Odisséia são resultados de uma contínua remanipulação coletiva de todo o patrimônio histórico. Não se consegue saber quem exatamente escreveu determinado livro da Bíblia. Acho que a nossa atividade no Projeto Luther Blissett e Wu Ming é mais parecida com o que a arte era antes de ganhar um “A” maiúsculo de reverência. A “arte” antes de ser “Arte”.

No livro “Mind Invaders” vocês mencionam o plágio como um caminho para a “condividualidade”. Como você concebe o plágio na cibercultura?

Plágio é uma definição ideológica que, para propósitos provocativos, a cultura underground tomou e começou a usar de maneira positiva. Plágio é um conceito definido por lei, é um crime. Os afro-americanos chamam uns aos outros de “nigger”, os ativistas homossexuais se chamam por “queer”, então nós nos chamamos de “plagiários, porque é a maneira com que o poder quer nos descrever.

Plágio é a maneira usual da evolução da cultura. A cultura não nasce do nada, de repente uma idéia brilhante, perfeita, vem à superfície e começa a se disseminar. Não é assim. Há sempre uma remanipulação, uma reconstrução de coisas que existiram antes, ou que existiram paralelamente. A cultura está completamente baseada no plágio. O progresso de idéias implica plágio. Porque todo mundo vive no mundo, envolto em realidade e se inspira em coisas que já existem. Ninguém cria nada do vácuo.

É um pouco absurdo que a legislação existente acha que o plágio é um crime, já que todo mundo plagia. Por exemplo, enquanto estou escrevendo um livro tenho conversas, vejo TV, encontro pessoas na rua, vou a concertos, etc. Guardo tudo isso inconscientemente ou semi-conscientemente, vou reelaborando e, de uma maneira ou outra, influencia o meu livro. Isso é plágio. É normal. Plágio é o progresso das idéias.

Tom Zé, um músico brasileiro, escreveu que “a era do autor e do compositor acabou”, e vê surgir a era do plagiocombinador. Você concorda? Como você vê essa manifestação na produção cultural atual?

Acho que ele está completamente certo. Em música, algumas pessoas usam o termo plunderphonics, que significa saquear, como os bárbaros que vinham às cidades e roubavam tudo. Na plunderphonic você toma dados e os reorganiza e cria algo novo das coisas preexistentes.

Não é uma característica exclusivamente atual. Sempre foi dessa maneira. Agora só é mais explícito porque há tecnologias de recombinação de informação, reprodução digital, compressão de arquivos, compartilhamento de conhecimento.

No entanto, se você pensar no Teatro Elisabetano, na Inglaterra, você pode comparar versões de várias peças e ver a recombinação de muitos elementos, transferidos de um lugar para outro. A razão é simples. Os dramaturgos se encontravam em pubs e discutiam suas peças. Há uma cena em “Shakespeare Apaixonado” em que Marlowe e Shakespeare se encontram num pub e começam a falar sobre o que estão escrevendo. Além disso, não havia distinção entre o autor e o ator. Shakespeare atuava nas peças que escrevia. Então ele continuava discutindo coisas com os outros atores durante os ensaios, o texto era constantemente modificado, com inspirações de outras peças que os atores tinham visto, ou peças que tinham lido. A “Comédia dos Erros”, de Shakespeare, por exemplo, tem exatamente o mesmo enredo que “Menecmi”, de Plauto, mas com variações brilhantes que criam algo diferente. “Menecmi”, por sua vez, é similar a “Fratelli”, de Terêncio, é mais ou menos o mesmo enredo. Essas duas peças passam pelo enredo da “Comédia dos Erros”. Provavelmente eles continuavam mudando referências durante as apresentações. O público normalmente gritava coisas como “esse personagem é chato, corte-o” ou “por que você não faz esse idiota morrer, eu o odeio”. Ele tomava as sugestões e continuava mudando o roteiro para as apresentações seguintes. O que temos agora, quando lemos Shakespeare, é apenas uma das muitas versões que foram achadas. É uma espécie de combinação que filologistas fizeram, mas é impossível se ter uma versão única das obras do Teatro Elisabetano.

Depois houve o romantismo, o academicismo, o idealismo na filosofia, houve também os interesses da indústria cultural no século XX para criar essa figura legendária do “autor”, como se fosse um indivíduo. Mas, antes disso, a criação era explicitamente baseada na plagiocombinação, porque não havia lei criminalizando isso. Toda a legislação de direitos autorais é muito recente. Duzentos anos, no máximo. Há muitos exemplos de tentativas de se criar uma legislação antes disso, mas a forma moderna de direito sobre propriedade intelectual não tem mais de duzentos anos. Antes disso a plagiocombinação era como a autoria de hoje, acontecia freqüentemente. Continuou acontecendo, mesmo depois, mas implicitamente, porque a lei impede o plágio. Agora, por causa das novas tecnologias, está se tornando explícito novamente. Mas não é novo.

Qual a sua opinião sobre fenômenos baseados na web, como o Linux e o Napster, por exemplo?

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Primeiro, o Napster, não só o Napster, mas qualquer programa para compartilhar MP3 numa plataforma peer-to-peer, porque o Napster não existe mais (por exemplo, eu uso WinMX, e outras pessoas usam Kazaa). É outro exemplo de como o poder pode definir um conceito ideologicamente: pirataria. Isso não é pirataria, é uma reapropriação da cultura por pessoas que acham um absurdo que um CD custe 20 libras na Inglaterra. É incrível como é caro comprar música em todos os países. É claro que é proporcional a renda média da população. A indústria fonográfica é incapaz de compreender o que está por trás da pirataria. É uma necessidade, porque a música é inacreditavelmente cara e as pessoas querem ouvir música sem pagar esse preço. As gravadoras podiam ter feito algo para parar com a pirataria há três anos. Eles tinham que baixar os preços dos CDs e se contentar com lucros normais, ao invés de lucros incríveis. Mas eles queriam sugar o sangue dos consumidores, e não entenderam o que estava prestes a ocorrer. Eles achavam que para parar o Napster bastava mandar a polícia. O Napster foi barrado, mas a idéia de compartilhar conhecimento numa network de peer-to-peer se espalhou para todos os lugares. Se houvessem cortado os preços talvez não existisse a necessidade de se fazer download de músicas em MP3. Agora, é uma cobra comendo o próprio rabo. Já que as pessoas não estão comprando mais CDs, eles aumentam os preços. Acho que brevemente eles vão entrar em colapso. Eles estão se suicidando porque são estúpidos.

A coisa mais importante sobre o Linux, ou os Free Softwares e Open Sources é o copyleft. É uma inovação radical na maneira de se tratar a propriedade intelectual. Mas há outra coisa muito importante. Free Softwares e Open Sources são a prova de que produtos feitos por um monte de pessoas em cooperação são melhores do que produtos com copyrights. Na tecnologia de servidores de internet, Linux é muito melhor e mais confiável do que o Windows. As pessoas que programam o Windows são pagas para fazê-lo, não estão entusiasmadamente dedicadas ao trabalho. São simplesmente empregados. Enquanto isso, há uma grande comunidade de milhares de usuários que continuam melhorando o Linux, porque o copyleft as autoriza a fazê-lo. Então, se eles acharem um falha no software, eles podem arrumar a falha e enviar a solução. Essa é a prova de que trabalho comunitário, coletivo, colaborativo, faz um produto melhor do que a maneira usual, centralizada e corporativa de produção.

A revista brasileira Carta Capital escreveu, em 24 de abril de 2002, que Luther Blissett era o herdeiro da Internacional Situacionista de Guy Debord. O grupo fez uma nota no site dizendo que isso não era correto. Vocês tem um texto chamado “Guy Debord está morto”. Qual a conexão entre Wu Ming/Luther Blissett e Guy Debord?

Nós viemos de outro movimento, Centri Sociali Occupati, na Itália, viemos do Movimento Autonomia, da cultura underground. Não temos muito a ver com a visão aristocrática e elitista da Internacional Situacionista de Guy Debord. Por exemplo, todas as coisas de que falamos até agora seriam trabalhadas por Guy Debord como manifestações do Espetáculo, como reificação de coisas inúteis. Porque o Situacionismo nunca olhou para o lado positivo da produção da cultura. Eles sempre tiveram uma visão apocalíptica. É essa coisa da reificação! Tudo o que você fizer será reificado pelo capital. Uma teoria que fica te dizendo que tudo o que você faz é inútil é uma teoria reacionária. Nós achamos que uma teoria radical, uma teoria revolucionária, devia mostrar-lhe que as coisas são possíveis de se fazer. Mas o Situacionismo não é assim. O Situacionismo é herdeiro da dialética negativista da Escola de Frankfurt. A maioria dos situacionistas eram pessoas muito ricas, não estavam em contato com o dia-a-dia dos trabalhadores, de pessoas que dependiam dos resultados concretos da batalha. Então eles tinham essa idéia dândi e estética da batalha, ela deveria ser pura, não deveria ter um resultado concreto, porque todo resultado seria reificado pelo capital, incorporado no espetáculo, e usado contra você. Na Europa, o Situacionismo teve 30 anos de existência e nenhuma aplicação prática. Porque as pessoas que leram a teoria situacionista e gostaram, simplesmente passaram a escrever teoria situacionista. Então era só escrita, escrita, escrita... e nenhum envolvimento em conflitos reais, porque os conflitos reais seriam reificados... Eu estou pouco me fodendo para isso. Conflitos reais devem alcançar resultados que pessoas possam usar para viver melhor. Estou pouco me fodendo para a visão purista, aristocrática e apocalíptica.

Por isso, acho que Luther Blissett e Wu Ming não são pós-Situacionistas. Porque é um outro jeito de se olhar a realidade. Nós colocamos a ênfase no lado positivo da produção cultural, e não no lado negativo. Há uma frase de Adorno que é incrivelmente reacionária, e está em um de seus trabalhos mais famosos, “Mínima Moralia”, é uma coletânea de aforismos. Ele diz que nessa sociedade repressora, a emancipação do indivíduo é uma ameaça para o próprio indivíduo. É uma camisa de força, você não pode escapar. Então é completamente inútil. E o Situacionismo começou muito bem no final dos 50 e começo dos 60, falando de “construção de situações”, “reapropriação do dia-a-dia”, mas depois de 1962, começou a falar de “reificação” e “espetáculo” e se tornou o oposto da intenção inicial. Hoje em dia eu acho que é uma teoria que não tem utilidade prática.

Qual é a participação de Wu Ming no movimento de anti-globalização?

Wu Ming esteve diretamente envolvida desde o começo do movimento na Itália. A Itália é um laboratório de subversão muito interessante. Desde que o Projeto Luther Blissett saiu do Centri Sociali Occupati nós estamos envolvidos nas atividades do movimento. Nossa principal contribuição para o movimento é a contação de histórias. É a tentativa de contar as histórias certas, que façam as pessoas quererem lutar e continuar lutando. Não é simplesmente propaganda. Nós chamamos de mitopoiesis. Nós falamos sobre mitos, mas não no sentido de “histórias falsas”, mas no sentido de “histórias compartilhadas”. Histórias que pertencem a uma comunidade maior e que são constantemente remanipuladas pela própria comunidade.

É o mesmo sentido do termo que usam autores como Mircea Eliade e Campbell.

Exatamente. Vem da antropologia. Os antropólogos dizem que a mitopoiesis foi uma fase muito antiga da história da humanidade. Nós acreditamos que a mitopoiesis continua acontecendo todo dia. Mitos do dia-a-dia. As histórias são reconstruídas, remanipuladas e colocadas em prática. Especialmente na nossa colaboração com os Tute Bianchi, que não existem mais, nós contávamos histórias, basicamente. Como aquele personagem do Asterix que acaba amarrado a uma árvore no final da história. O bardo. Nós éramos os bardos do movimento nos últimos três anos. A única diferença é que nunca fomos amarrados a uma árvore, as pessoas não corriam de nós quando começávamos a cantar e a contar a história, e participávamos dos banquetes no final da história. O bardo é um bom exemplo, porque em alguns vilarejos o bardo era o contador de histórias, era quem contava a epopéia da vila. Nós fizemos mais ou menos a mesma coisa com o movimento.

Um exemplo de mitopoiesis. Antes da manifestação em Gênova, nós escrevemos uma longa história sobre as mais radicais rebeliões da história da Europa, desde o século XIV. Era mais ou menos como a literatura de cordel. Era um poema épico, em verso livre, que começava no século XIV e acabava com o levante zapatista de 1994. Era a história de rebeliões camponesas e a narração dizia “nós somos novos, mas somos os mesmos de antes”, que é uma frase do subcomandante Marcos. Era a continuidade da luta desde o século XIV até Gênova. As pessoas ficaram abismadas: “Uau, eu não sabia! Há uma continuidade!”. Atores começaram a declamar a história nas ruas, foi lido em várias rádios livres por todo o país, foi publicada em vários fanzines, revistas e sites, foi traduzido para o espanhol, para o francês, para o inglês e começou a circular. E construiu um épico sobre “as razões pelas quais vamos para Gênova”. Era uma cobrança pelo que aconteceu no século XIV, no século XV, no século XVI, etc. Funcionou porque várias pessoas tomaram conhecimento do texto e foram pra Gênova. Elas se sentiram parte de uma comunidade maior, que não era apenas contemporânea, mas que incorporava os ancestrais. Era uma ironia, porque é claro que não há continuidade real, mas era um ato mitopoiético. A mídia oficial tentou descrever o movimento como coisa de comunistas, que as pessoas eram como aquelas dos anos setenta, forjando origens distorcidas do movimento. Então nós dissemos “nós somos as mesmas pessoas que no século XIV fizeram aquela rebelião...”. A mídia foi pega de surpresa.

Há uma bela frase no seu site que é “Essa revolução não tem rosto”. Se a revolução não tem rosto, como será o rosto do mundo depois da revolução?

Não há “depois da revolução”, o processo é contínuo, já começou. Você pode ver em certas partes da vida que já há pré-condições do que podemos chamar de anarquia, socialismo ou comunismo, você que sabe. Eu não acho que a revolução é algo que acontece de repente, do dia pra noite, e que no dia seguinte o mundo está diferente. Acho que isso é muito ingênuo. Eu acho que os Free Softwares, o movimento anti-globalização, tudo o que está acontecendo, nos mostra que a única possibilidade de evolução está na maneira mais solidária, coletiva, de se fazer as coisas, de se viver. Acho que a internet é um sintoma disso. A internet tem resistido a todas as alternativas de se comercializar. Há dez anos as pessoas falavam da internet apenas como uma maneira de se fazer negócios. Eles diziam que em alguns anos as grandes corporações iriam tomar o lugar das manifestações individuais na rede. Não aconteceu assim. Na verdade, a chamada “nova bolha da economia” explodiu, as corporações não puderam fazer lucro com a internet, e a internet ainda está lá, o acesso continua crescendo, os espaços individuais e horizontais ainda são a realidade da internet. A internet é um sucesso por causa dos fóruns, das listas de correspondência, dos chats, das networks de peer-to-peer, por causa disso. Não por causa dos sites das corporações, como a sony.com. Ninguém dá bola para a sony.com. As pessoas acessam a internet para se comunicar umas com as outras, não com as Corporações. Essa é uma boa prova do fato de que estamos evoluindo, ainda que lentamente e com contradições, para uma maneira mais coletiva, solidária, horizontal, de viver junto. É claro que é uma guerra. Nós temos inimigos. Temos Bush e outras pessoas que querem parar esse processo, mas o processo já começou. Não é algo que vai ocorrer no futuro. Está ocorrendo agora. Temos que entender isso e lutar.


 

 

 

WWW.AGENCIACARTAMAIOR.COM.BR

 

PROJETO WU MING
Em busca de uma nova linguagem para a ação política
Marco Aurélio Weissheimer

 

Suas inspirações vão do subcomandante Marcos, passando pelo escritor James Elrroy e chegando à filosofia de Spinoza e às grandes narrativas épicas da antigüidade. Recusando o experimentalismo narrativo como uma prática solipsista e narcisista, desvinculada da práxis política, os integrantes do coletivo Wu Ming acreditam que lutar por transformações sociais não é um luxo estético.

Era uma vez, na cidade de Bolonha, um grupo de jovens escritores italianos que gostavam de contar histórias. Na primavera de 1994, eles deram um nome ao grupo: Luther Blissett, um bandido virtual imaginário. Na verdade, queriam mais do que contar histórias. Queriam criar uma nova forma de contá-las. Uma forma baseada na produção de mitos e símbolos, a partir do imaginário popular e da história de sua comunidade. Mas não se tratava apenas de um experimentalismo estético. Eles estavam interessados em questionar princípios básicos da indústria cultural contemporânea (como o da propriedade intelectual) e da linguagem política utilizada pela esquerda oficial italiana.

A experiência de Luther Blissett foi bem sucedida e deu origem a um novo projeto, o Wu Ming, um coletivo literário que acredita que o rosto da revolução é o da multidão e sua história vivida. Um dos criadores desses projetos esteve em Porto Alegre, no início de novembro, para debater as idéias de Wu Ming. Em entrevista à Agência Carta Maior, Roberto Bui falou sobre a origem do movimento que pretende, entre outras coisas, desenvolver uma nova linguagem para a ação política. Suas inspirações vão do subcomandante Marcos, passando pelo escritor norte americano James Ellroy e chegando à filosofia de Spinoza. Recusando o experimentalismo narrativo como uma prática solipsista, desvinculada da práxis política, os integrantes do coletivo Wu Ming acreditam que lutar por transformações sociais não é um luxo estético.

Uma revolução sem rosto

O coletivo Wu Ming diz a que veio numa declaração datada de janeiro de 2000. Neste texto, disponível em português no site do projeto (www.wumingfoundation.com), são apresentados os princípios e regras de trabalho adotados pelos integrantes do coletivo. Wu Ming se auto-define como um laboratório de design literário, que trabalha com os mais variados meios de comunicação, como uma empresa independente de serviços narrativos. Os fundadores de Wu Ming são Roberto Bui, Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo, Federico Guglielmi (membros do Projeto Luther Blissett — 1994/1999 — e autores do romance Q – O Caçador de Hereges — publicado no Brasil pela editora Conrad) e Riccardo Pedrini (autor do romance Libera Baku Ora). Os nomes individuais têm pouca importância. Os textos são sempre assinados pela marca Wu Ming, que, em chinês, significa “nenhum nome”, uma expressão freqüentemente utilizada para identificar publicações dissidentes.

O nome dá conta da intenção dos integrantes do coletivo de não se tornarem “personagens”, “romancistas pacificados” ou “macacos amestrados por prêmios literários”. A linha editorial do Wu Ming é: “estar presente, mas não aparecer; transparência para com os leitores, opacidade para com os meios de comunicação”. Os integrantes do projeto “sujam as mãos” com atividades de promoção (entrevistas, apresentações públicas de livros, etc.), sem com isso degenerar no “culto da personagem”. Eles recusam aparecer individualmente em filmagens ou fotografias, preferindo a difusão ou publicação do seu logotipo oficial, composto por dois ideogramas chineses.

A aproximação de Wu Ming à produção cultural implica a recusa sistemática de todas o princípios ligados ao ideal romântico do gênio e da inspiração individual. Wu Ming recusa também o princípio do copyright. Não acredita na propriedade privada das idéias. Na entrevista à Carta Maior, Roberto Bui aprofundou algumas das principais idéias desse projeto que vem estabelecendo importantes parcerias com os movimentos sociais europeus que lutam contra o modelo neoliberal de globalização.

Em busca de uma nova linguagem

Carta Maior: Como nasceu o projeto Wu Ming e qual sua relação com o experimento anterior, Luther Blissett?

Roberto Bui: “No início do nosso experimento, com o Projeto Luther Blissett, nos concentramos na criação de uma linguagem icônica, imagética e narrativa. Para nós, a linguagem política corrente, do tipo lógico-referencial e propagandística, está baseada em um modelo fossilizado e ineficaz, que não comunica paixões, emoções e sentimentos. Não comunica a idéia de uma comunidade ativa, de uma comunidade que vive experiências e que tem uma percepção de sua própria identidade como comunidade. Nós acreditamos que o que mantém uma comunidade unida e coesa é a sua própria história, da qual essa comunidade se dá conta. Assim, no interior do nosso projeto, concentramos nossas energias na criação de uma linguagem baseada na narração de histórias. No ano anterior à escritura do romance “Q – O Caçador de Hereges”, criamos a narração das aventuras de um bandido virtual imaginário, Luther Blissett, como uma experimentação sobre o ato de narrar, de contar histórias.

A partir daí, essa linguagem começou a influenciar outros movimentos culturais e sociais na Itália, o que nos levou a aperfeiçoar nossa proposta lingüística, escrevendo um romance e construindo mitologias que pudessem ser utilizadas pelos movimentos que nos circundavam. Um exemplo disso foi a proclamação da multidão da Europa, uma espécie de poema de cordel, sobre as revoltas camponesas no continente, estabelecendo uma linha de continuidade entre insurreições do passado e a luta atual dos movimentos sociais. Essa proposta teve muita influência na preparação da mobilização de Gênova, em junho de 2001. Prosseguimos nossa atividade de escritores, escrevendo outros romances, mas continuamos a experimentar a criação de mitos a partir do imaginário popular. Acreditamos que essa questão do imaginário é a mais importante para o progresso cultural e para a evolução das idéias. Um dos obstáculos para a realização desse trabalho é a questão da propriedade intelectual. Nós acreditamos na narração aberta, na comunicação contínua das idéias e da experiência. Nossos livros são livres de copyright, porque acreditamos que o copyright representa um limite ao progresso das idéias. A superstição da propriedade privada, no contexto da cultura de massa, representa, ao nosso ver, uma contradição em termos, pois se a cultura é de massa, a propriedade dessa cultura não pode ser privada...”

Carta Maior: Vocês adotaram, então, o princípio do copyleft...

Roberto Bui: “Exatamente. Nossos livros são livremente reprodutíveis, utilizáveis e reutilizáveis. A idéia é manter permanentemente em movimento esse imaginário de conflitos.

Carta Maior: O projeto Luther Blissett, então, representou um primeiro passo nessa direção. Como se deu a passagem para o projeto Wu Ming?

Roberto Bui: “Luther Blissett era uma narração indiscriminadamente aberta, que foi necessária durante a primeira etapa de nossa experimentação, durante cinco anos, de 1994 a 1999, para a produção de mitos, de lendas e do nosso imaginário. Mas, já a partir da publicação do nosso romance Q, na primavera de 1999, na Itália, começamos a pensar na idéia de uma oficina literária, de um laboratório artesanal literário, de um atelier de produção narrativa, onde pudéssemos construir mitos nessa dimensão artesanal da cultura. Percebemos a necessidade de desenvolver uma maior autodisciplina, um melhor método na construção de nossa história. Método como o que utiliza um carpinteiro para a construção de uma mesa. Uma série de técnicas, de conhecimentos e de práticas para investir em nossa produção e qualificá-la.

Isso tem a ver com o trabalho de produção de mitos. Acreditamos que, a partir da Internet e do desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e de compartilhamento de informações, foi se constituindo uma dimensão produtiva mais comunitária, coletiva, horizontal e não-hierárquica. A cultura da era industrial era mais centralizada. Hoje, a indústria cultural está se disseminando, sobretudo no território urbano, de um modo muito mais horizontalizado, com uma relação mais flexível entre as pessoas. Isso é muito, muito semelhante, à cultura popular pré-industrial, uma cultura descentralizada, sem atribuição autoral rigorosa. Neste contexto, achamos que há uma tarefa muito semelhante àquela colocada para os artistas do período renascentista: encontrar uma linguagem que expresse a dimensão do imaginário que leve em conta essas transformações. Essa é uma das razões pelas quais, por exemplo, estamos muito interessados no fenômeno da literatura brasileira de cordel, uma manifestação de cultura popular horizontal, desde baixo, reticular e difusa.”

A distinção entre povo e multidão

Carta Maior: Na declaração de princípios do projeto Wu Ming são citados dois autores como fonte de inspiração dessa busca por uma nova linguagem narrativa: o escritor norte-americano James Elrroy e o filósofo italiano Antonio Negri. Você poderia explicar as razões dessas escolhas?

Roberto Bui: “Sim. James Elrroy é a principal referência do nosso trabalho como escritores. Ele é o escritor contemporâneo que manipula a história de modo mais radical. Seu livro American Tabloid, publicado em 1995, teve muita influência sobre nosso trabalho. Esse livro conta uma parte da história dos Estados Unidos, alguns anos antes do assassinato de Kennedy. Ele trabalha, sobretudo, a partir de fontes jornalísticas, retiradas de sua coleção de jornais da época, de uma maneira muito pontual e frutífera, mesclando verdade e ficção de uma maneira indistinguível. Em nosso romance Q, todos os eventos e personagens são reais. O elemento arbitrário, de invenção literária, é a interconexão entre eventos e personagens. Por exemplo, o protagonista de nosso romance não tem um nome próprio; ele muda de nome praticamente a cada capítulo. Ele adota várias identidades e cada identidade que adota são nomes reais. A invenção literária é que todos esses nomes são, na verdade, uma só pessoa. Esse é o elemento arbitrário que introduzimos na obra. É uma operação claramente inspirada no romance de Elroy.

A referência filosófica ao conceito de multidão, trabalhado por Antonio Negri, vem de Spinoza. Negri é um dos principais estudiosos contemporâneos da obra de Spinoza. Spinoza trabalha com a dicotomia entre “povo” e “multidão”. Para ele, “povo” é um todo único, uma massa homogênea, que encontra sua representação política no Estado. Há uma relação dialética muito clara e precisa entre povo e Estado. A “multidão”, por sua vez, é uma união diferenciada e heterogênea entre singularidades, que mantém sua singularidade mesmo constituindo uma unidade. A massa (o povo) são todas as pessoas que formam um bloco indiferenciado, enquanto a multidão representa uma união de singularidades diferentes.

Na guerra civil européia do século XVII, estudiosos políticos da época contrapunham essas duas noções. Na ideologia dessa época, saiu vitorioso o conceito de “povo”. Hoje conhecemos muito melhor o conceito de povo. Mas, houve também uma evolução alternativa do conceito de “multidão”, cujo potencial emerge hoje, por exemplo, no desenvolvimento das redes telemáticas na Internet. Temos uma comunidade formada por uma multiplicidade de pessoas, que não ocupam o mesmo território, que vivem em condições completamente diferentes, e que, no entanto, cooperam, colaboram e constroem uma comunidade, sem renunciar às suas diferenças e singularidades.

Em nosso romance Q, o protagonista real é a multidão. Há mais de cem personagens que não são secundários. Não é o esquema clássico, onde há o protagonista e personagens secundários. Para nós, os personagens secundários são o verdadeiro protagonista. Eles formam uma multidão de histórias, de experiências e de trajetórias que representam a verdadeira estrutura de nosso romance. Ou seja, o verdadeiro personagem é a multidão.”

Carta Maior: Alguma outra inspiração?

Roberto Bui: “Nossa maior inspiração simbólica e alegórica vem do processo de produção dos poemas épicos antigos. Quando falo de poema épico, estou falando de Homero, da Bíblia, do Mahabarata, dos Vedas, ou seja, de textos escritos por uma comunidade inteira, sem uma atribuição autoral definida. São coleções de lendas e mitos muito antigos, reelaborados e sintetizados. Não sabemos, por exemplo, quem escreveu a Bíblia. Muito provavelmente, cada livro da Bíblia foi escrito por uma ou mais pessoas, filtrando e sintetizando conhecimentos e histórias já existentes. A Bíblia, pelo que sabemos, é uma criação de uma gigantesca comunidade que se estende no espaço e no tempo.

Acreditamos que a produção multimídia da época da Internet é muito semelhante a esse tipo de imaginário e de aproximação. A Ilíada e a Odisséia são casos semelhantes. Alguns filólogos colocam em questão a própria existência de Homero, que seria, na verdade, um pseudônimo usado por diversas pessoas. Mas, mesmo que ele tenha existido de fato, o que fez foi ter sintetizado uma série de lendas, mitos e histórias de heróis, de uma região do Mediterrâneo. Ou seja, a Ilíada e a Odisséia são o resultado do trabalho de uma comunidade de pessoas que vivia no mundo grego antigo.

Nós acreditamos que a cultura que está se desenvolvendo hoje, graças às novas tecnologias, é mais semelhante à cultura que produziu a Ilíada, a Odisséia, a Bíblia, etc., que à cultura industrial do século XX, descrita criticamente pela Escola de Frankfurt. Acreditamos que estamos assistindo a uma radical mudança de fase na produção cultural, tão importante quanto aquela que se seguiu à invenção da imprensa por Gutenberg. De modo alegórico, poderíamos dizer que o nascimento da Internet é similar, em seu impacto e significado, à invenção da imprensa.”

Carta Maior: Os textos produzidos pelo coletivo Wu Ming têm a pretensão de fazer algum tipo de propaganda política?

Roberto Bui: “É importante precisar uma coisa. Nossos romances são romances. Ou seja, para lê-los e compreendê-los não é necessário, absolutamente, conhecer o background metodológico que anima sua construção. Nossos romances podem ser lidos de modo autônomo, sem que o leitor precise conhecer o que pensamos sobre a propriedade intelectual ou sobre a distinção entre povo e multidão. Na Itália, Q vendeu mais de duzentas mil cópias porque muitas pessoas se interessaram pelo livro sem se interessar profundamente por nossa teoria ou por nossa metodologia. Não queremos que nossos livros sejam conhecidos como obras de propaganda, manifestos políticos ou algo do gênero. Escrevemos romances de aventura que têm uma dimensão de entretenimento. As pessoas podem ler nossos livros tranqüilamente, sem se interessar por tudo aquilo que estamos falando aqui. É uma transformação radical da produção e da circulação da cultura.”

Carta Maior: Você tem conhecimento de outras experiências semelhantes a esta que Wu Ming vem realizando na Itália?

Roberto Bui: “Na Itália e em outros países há coletivos que trabalham com produção poética coletiva. Mas, em se tratando de prosa, não conheço outra experiência similar. Na Antigüidade, provavelmente, era mais comum a criação coletiva de literatura, explicitamente coletiva. Espero muito da Internet. Acredito que pode surgir daí um movimento de criação literária coletiva. Potencialmente, a Internet favorece esse tipo de colaboração, esse tipo de método.”

O mito romântico do gênio

Carta Maior: Para o Wu Ming, a criação individual é algo que deve ser superado?

Roberto Bui: “Não. O que defendemos é que é preciso reconhecer que, mesmo a criação individual, tem uma dimensão coletiva. Não existe o gênio que trabalha sozinho em sua torre de marfim, isolado da sociedade, que cria obras-primas a partir do nada, do zero. Essa é uma superstição idealista-romântica. Os autores individuais vivem no mundo, sendo influenciados por milhares de sugestões, conversações e percepções que não são suas. Um autor é uma espécie de terminal que reduz criativamente uma complexidade de informações e de imagens, estabelecendo uma síntese provisória. Quando um escritor escreve, todo o mundo escreve com ele. Não somos contra o ato individual de escrever. Mas fazemos questão de dizer que quem escreve, sozinho, escreve junto com todo o mundo que o circunda. Esse é um obstáculo ideológico porque a indústria cultural tem necessidade de alimentar essa superstição do gênio, da inspiração individual. Tem a necessidade disso para organizar estratégias de marketing em torno de indivíduos, supostamente, de inteligência superior aos demais, de indivíduos a serem adorados. Essa é a finalidade da indústria cultural. O que combatemos é o culto autoritário do autor. Isso pode ser superado se compreendermos que, mesmo o autor singular, escreve coletivamente.”

Os limites da linguagem da esquerda oficial na Europa

Carta Maior: Na sua palestra em Porto Alegre, você fez várias críticas à esquerda oficial italiana, repetindo críticas comuns a outros países da Europa, onde há uma crítica mais ou menos semelhante aos partidos tradicionais de esquerda. Seguindo o seu raciocínio, seria possível dizer que essa crítica é uma crítica ao tipo de linguagem adotado por esses partidos em sua comunicação com a sociedade?

Roberto Bui: “Os partidos da esquerda oficial, na Europa, se comunicam de uma maneira completamente esclerosada e fossilizada, utilizando uma linguagem alienante. Na representação e no imaginário da esquerda oficial, há uma clara supervalorização do “povo” em detrimento da “multidão”, nos termos da distinção que abordamos anteriormente. O problema da relação entre partidos e movimentos sociais é que os últimos são, por essência, expressões da multidão. Os movimentos sociais são prenhes de diferenças e de contradições, o que constitui justamente a sua riqueza. Ou seja, sua riqueza é seu caráter de multidão, onde há a convivência de muitas diferenças. Na lógica da esquerda oficial, a multidão deve ser reduzida à condição de povo, ou seja, deve ser homogeinizada, uma vez que a representação ideológica dessa esquerda é o Estado, são as eleições, a representação direta do povo no Estado (com a intermediação da esquerda oficial).

Nós não somos, por princípio, contra as eleições, contra a representação política. Mas a linguagem e o imaginário dos movimentos sociais são uma outra coisa. A complexidade desses movimentos não pode ser reduzida arbitrariamente, num movimento que pretende transformar a multidão em povo, impondo, para tanto, uma linguagem, um imaginário, uma forma de representação política. A esquerda oficial não compreende os movimentos sociais. Eles são uma espécie de extraterrestres para a esquerda oficial na Europa, que é uma esquerda muito velha e que não percebe o que há de inovador nesses movimentos. É uma esquerda aterrorizada pela diferença. Falo somente da Itália e da realidade européia que conheço. Não tenho condições de exprimir uma opinião sobre a realidade de outras partes do mundo, em relação às quais não tenho experiência direta. Não estou dizendo que toda a esquerda institucional é esclerosada. Mas posso dizer, com segurança que a esquerda institucional italiana está totalmente em crise e que uma das causas centrais desta crise é que ela perdeu a capacidade de se comunicar com a multidão.”

 

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*Marco Aurélio Weissheimer é correspondente da Agência Carta Maior em Porto Alegre


 

 

Zero Hora, “Cultura” [Segundo Caderno], sábado 7 de dezembro de 2002:

 

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A voz de uma revolução sem rosto
O Projeto Luther Blissett (o nome veio de um fracassado jogador do futebol inglês) pretende demonstrar a fragilidade da mídia, com a disseminação de noticias falsas — até em Porto Alegre. Chegou-se a atribuir o movimento ao escritor Umberto Eco.

 

[portada:]

Subversão anônima

Em tempos de Internet e de fama instantânea, um grupo de jovens intelectuais criou um personagem fictício — Luther Blissett —, causando furor na Itália e em outros países europeus.

Durante cinco anos, a Europa e — em menor escala — o mundo foram varridos pelas travessuras de um personagem criado para ser o herói da Era da Informação. Usando o nome de um jogador de futebol que passou para a história como a pior contratação do clube italiano Milan, centenas de jovens se lançaram à produção e difusão de artigos, obras artísticas, livros e, principalmente, boatos, para escancarar a precariedade da estrutura midiática.

O projeto Luther Blissett, como ficou conhecido, teve sua principal célula em Bolonha, mas inspirou ações contestatórias e subversivas na Espanha, na França, na Alemanha, no México e, inclusive, no Brasil.

Cultura conversou com Roberto Bui, um dos principais integrantes do movimento — responsàvel também pelo romance conjunto Q e por artigos subversivos incitando à guerrilha psicológica por meio da mídia. Bui, que hoje faz parte de um novo grupo de publicação coletiva de textos, denominado Wu Ming, esteve no Brasil e, em rápida passagem por Porto Alegre, proferiu uma palestra na qual falou sobre as obras, as teorias e as propostas do grupo, que prega a subversão coletiva e a resistência cultural.

Carlos André Moreira

 

Ele é escritor e integrou una conspiração virtual de proporçôes internacionais, mas à primeira vista o sujeito de estatura mediana, usando camiseta e óculos, cabelos loiros cortados rentes ao crânio e cavanhaque ralo lembra mais freqüentador do Garagem Hermética [Lugar do Circuito underground. Rua Barros Cassal, 386, POA]

O italiano Roberto Bui, membro do chamado Projeto Luther Blissett, um movimento subversivo dos anos 90, passou o mês de novembro no Brasil, transitando entre São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis e Porto Alegre, em um misto de férias e turnê de divulgação.

Criado na Europa, o projeto Luther Blissett se desenvolveu com mais força na Itália, onde diversos ativistas e grupos autodenominados subversivos pregaram peças na mídia espalhando notícias falsas e lançando boatos. Ações assinadas com o nome de Luther Blissett — que se espalhou da Itália para Espanha, Alemanha e França. Em 1999, os italianos que participavam há mais tempo do projeto cometeram o suicídio simbólico do personagem via internet, mas em outros países o nome ainda é usado — já deu as caras até em Porto Alegre. Os idealizadores da identidade Luther Blissett escrevem sob o nome coletivo de Wu Ming —expressão chinesa que tem sido traduzida como “sem rosto” ou “sem nome”.

As propostas dos grupos Blissett e Wu Ming são tanto culturais como politicas. Os textos são assinados em grupo e provocam polêmica dos dois lados do espectro político, como nos pontos que tratam da abolição dos direitos autorais ou da supressão do indivíduo na ação política e criativa. Depois de algum tempo, o grupo resolveu lançar uma obra literária séria para fugir do estigma do escândalo gratuito e da brincadeira farsesca — uma obra para ser analisada por si mesma.

O resultado foi o romance Q, o Caçador de Hereges, escrito num periodo de três anos por quatro italianos de Bolonha — Bui entre eles. Além de Bui, participaram da criação coletiva Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo e Federico Guglielmi. Os quatro se envolveram na pesquisa histórica necessária, no planejamento do enredo — feito à bases de reuniões e brainstormings — e na redação compartilhada.

O calhamaço de 600 páginas — lançado no Brasil este ano pela Conrad — traz uma história de revoluções, conspirações e lutas camponesas e religiosas no século 16, mais especificamente do 1517 (quando Lutero proclama suas 95 teses contra o papado) a 1555, ano em que Giovanni Pietro Carafa, personagem fundamental na trama, é eleito Papa Paulo IV.

A história, abertamente dedicada aos coadjuvantes dos grandes fatos históricos, é narrada por um homem que troca diversas vezes de identitade enquanto participa das revoluções do período. Ao mesmo tempo, vai tomando conhecimento das maquinações de um terrível adversário, chamado apenas de Q, espião de Carafa. O romance é vibrante e repleto de ação, mas irregular em termos de ritmo. As melhores partes lembram féericas narrativas policiais, mas uma certa prolixidade trunca alguns trechos. Com o nome de Wu Ming, o grupo já lançou outro livro na Europa: 54, ainda sem data para publicação no Brasil.

Jogos, trapaças e um nome coletivo: as principais ações do grupo Luther Blissett na Itália:

 

1994 — Jornais de Bolonha começaram a receber una série de cartas informando que entranhas de animais haviam sido deixadas em lugares públicos da cidade, como ônibus, parques e estacionamentos. A imprensa dedica páginas inteiras ao que começa a chamar de “horrorismo”, enquanto mais e mais cartas relatando encontro de visceras continuam a chegar aos jornais. Meses depois, uma correspondência assinada por Luther Blissett desmonta o acontencimento: todas as cartas eram falsas, escritas pelos próprios “horroristas”, que assina a brincadeira como Luther Blissett.

1995 — Um programa italiano chamado Quem o viu?, especializado em encontrar pessoas desaparecidas, recebe uma carta informando o sumiço de um certo Harry Kipper, artista residente na Itália. A produção manda uma equipe verificar a história e colhe os depoimentos de vários “amigos de Harry Kipper”. que dão informações sobre sua personalidade e levam a equipe a lugares freqüentados pelo desaparecido, de Bolonha a Londres. Minutos antes de a reportagem ir ao ar, a fraude é desmascarada: era outra brincadeira e os depoimentos eram falsos, prestados em combinação pelos arquitetos do trote. A foto de Kipper — que passa a ser o rosto “oficial” de Luther Blissett, foi obtida através de montagem com retratos dos anos 20 de parentes de Roberto Bui.

1996 — A editora Mondadori lança um livro assinado e organizado por um jornalista chamado Giuseppe Genna: net.gener@tion. Genna teria trocado vários e-mails com “Blissett” para compor a obra, enviada pelo “múltiplo” pela Internet. No dia em que chega às livrarias, o livro é desmoralizado por correspondências de Luther Blissett às páginas dos jornais La Repubblica e Il Manifesto. Não passava de uma série de documentos falsos, absurdos e incoerentes retiradas da própria rede com o intuito de enganar o jornalista.

1997 — Em Viterbo começam a chegar à polícia e aos jornais ligaçóes anônimas alertando para a suposta realização de missas negras na cidade. Em seguida, as televisões recebem uma fita de video filmada a longa distância, com imagens escuras e pouco nítidas de um grupo com capuzes à luz de um archote e os gritos de uma mulher ao fundo. Várias emissoras exibem o vídeo com o ritual satânico. Uma semana depois, nova versão da fita chega à TV 7. Agora, com uma parte cortada na versão anterior: ao fim da “missa negra”, a câmera dá um zoom e mostra nitidamente as figuras tirando seus capuzes, dançando uma tarantela e mostrando um pôster de Luther Blissett.

O personagem real

Sim, existiu um Luther Blissett original, atacante inglês negro, de origem jamaicana, que jogou do fim dos anos 70 ao início dos anos 90 no Watford, clube de pequena expressão na Liga Inglesa. Contratado pelo Milan como grande promessa de gols nos anos 80, tornou-se um dos fracassos mais retumbantes da história do campeonato italiano e foi devolvido ao Watford. Até hoje é considerado o maior goleador do time inglês (com 158 gols marcados entre 1972 e 1992) e ainda trabalha no clube, como auxiliar técnico. Ele se recusa a dar declarações sobre o fato de seu nome ter virado um ícone da contracultura.


 

 

Extra Classe, ano 7 n.68, dezembro de 2002:

Wu Ming — Entre a “arte” e a guerrilha literária
Marco Aurélio Weissheimer

 

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Ilustração Eduardo Antunes

 

Contar histórias é uma das atividades mais antigas do mundo. É uma prática fundamental de qualquer comunidade. Todos nós contamos histórias e gostamos de ouvi-las também. Sem elas, não estaríamos conscientes do nosso passado nem das nossas relações com o próximo ou com o mundo. Mas contar histórias, ao contrário do que querem alguns, não é uma atividade destinada a seres iluminados, inspirados por um gênio divino ou algo do tipo. É sempre um trabalho, que faz parte da vida de uma comunidade tanto quanto o de apagar incêndios, fabricar cadeiras ou plantar alfaces. Em outras palavras, o bom contador de histórias não é um artista, mas sim um artesão da narração. Essas são algumas idéias do grupo cultural italiano Wu Ming (expressão chinesa que significa algo como “sem rosto”, “sem nome”, “sem autoria definida”), um experimento político-literário que vem causando grande repercussão na Europa por seus princípios e práticas em favor da criação de uma nova linguagem narrativa e contra a transformação da cultura em mercadoria.

Os fundadores do Wu Ming são Roberto Bui, Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo, Federico Guglielmi e Riccardo Pedrini. Todavia, esses nomes têm pouca importância e talvez sejam eles mesmos fictícios. Todos os seus trabalhos são assinados por Wu Ming, expressão chinesa freqüentemente utilizada para designar publicações dissidentes e clandestinas. Um dos criadores do Wu Ming esteve recentemente em Porto Alegre. No dia 15 de novembro, Roberto Bui realizou uma palestra na Casa de Cultura Mário Quintana, onde falou um pouco sobre a história e o trabalho do grupo. Embora tenha se apresentado como Roberto Bui, não há como saber com certeza se esse é seu nome verdadeiro, ou se designa uma personagem, alter ego ou pseudômino. Essa proliferação de identidades fictícias é uma das marcas do grupo. Em suas aparições públicas, eles não permitem fotografias ou filmagens. Seu lema é: “estar presente, mas não aparecer; transparência com os leitores, opacidade para com a mídia”. Tudo para não cair no “culto entediante da personagem”, um dos traços fundamentais da indústria cultural contemporânea. A palestra de Bui serviu também como introdução oficial do mais novo eixo temático do Fórum Social Mundial: “Cultura, Mídia e Hegemonia”.

Formado em 1994, em Bolonha (Itália), o grupo conseguiu sobreviver até hoje em países como Espanha, França, Inglaterra e Brasil graças à Internet, instrumento de disseminação de suas idéias e também palco de ações políticas e literárias. Seguindo a lógica da “guerrilha semiológica”, o grupo começou a aparecer em diferentes contextos da geografia global, sempre através de um personagem único, um ente coletivo que identifica o trabalho de vários escritores e ativistas políticos. Entre as ações já realizadas pelo grupo estão manifestos, histórias em quadrinhos, performances de rua, notícias falsas disseminadas na mídia, sermões pseudo-religiosos transmitidos pelo rádio e outras ações que faziam um chamado permanente: é preciso transformar. Embora pouco conhecido no Brasil, o trabalho do grupo começa a ganhar simpatizantes por aqui.

O começo com Luther Blissett

 

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Imagens copyleft adaptadas do site oficial do Wu Ming

 

Na primavera de 1994, um grupo de jovens escritores italianos iniciou, na cidade de Bolonha, um experimento político-literário em busca de um novo tipo de discurso narrativo. Cansados da retórica oficial da esquerda italiana, eles resolveram investir na criação de uma linguagem baseada na produção de mitos e símbolos, a partir do imaginário popular e da história da sua comunidade. Nascia o projeto Luther Blissett, nome que designava um bandido virtual imaginário. Para os integrantes do projeto, não se tratava simplesmente de um experimentalismo estético. Eles estavam interessados em questionar alguns princípios básicos da indústria cultural contemporânea, como o direito da propriedade intelectual, e também a linguagem política utilizada pela esquerda oficial italiana. As obras desse grupo de escritores sempre foram assinadas coletivamente: primeiro por Luther Blissett, depois por Wu Ming.

A experiência de Luther Blissett foi bem-sucedida e deu origem a um novo projeto, o Wu Ming, um coletivo literário que pretende, entre outras coisas, desenvolver uma nova linguagem compromissada com uma ação transformadora na sociedade. Em sua passagem pela capital gaúcha, Roberto Bui contou um pouco dessa história. Segundo ele, o Projeto Luther Blissett trabalhou no sentido de criar uma linguagem narrativa baseada em imagens, ícones e na reelaboração de mitos populares. Para os criadores do projeto, a linguagem política corrente, descritiva e propagandística está baseada em um modelo fossilizado e ineficaz, que não consegue comunicar as paixões, emoções e sentimentos de uma comunidade. “Nós acreditamos”, observou Roberto Bui, “que o que mantém uma comunidade unida e coesa é a sua própria história, a história na qual a comunidade se reconhece como tal”.

Assim, a primeira fase do projeto foi totalmente dedicada à criação de uma linguagem baseada na narração de histórias. Uma dessas histórias “que alcançou grande sucesso na Europa” foi a narração das aventuras de um bandido virtual imaginário, Luther Blisset, definida por seus criadores como “uma experimentação sobre o ato de narrar, de contar histórias”. Quando foi lançado na Itália, ninguém sabia quem era o autor da obra. A imprensa chegou a especular que se trataria de uma criação de Umberto Eco. Na verdade, tratava-se de uma criação coletiva de um pequeno grupo de jovens escritores.

O surgimento de Wu Ming

A partir daí, o grupo sentiu a necessidade de dar um passo à frente. Segundo o relato de Bui, Luther Blissett era uma narração indiscriminadamente aberta, necessária durante a primeira etapa da experiência, que durou de 1994 a 1999. Com a publicação do romance Q (publicado no Brasil com o título de Q, O Caçador de Hereges, pela editora Conrad), na primavera de 1999, o grupo começou a pensar na idéia de uma oficina literária, de um laboratório artesanal literário. “Percebemos a necessidade de desenvolver uma maior autodisciplina, um melhor método na construção de nossa história. Método como o que utiliza um carpinteiro para a construção de uma mesa uma série de técnicas, de conhecimentos e de práticas para investir em nossa produção e qualificá-la”, conta Bui.

A Internet teve (e tem) um grande papel neste processo. Os criadores de Luther Blissett e de Wu Ming acreditam que, a partir da rede mundial de computadores e do desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, foi se constituindo um novo espaço produtivo comunitário, de caráter coletivo, horizontal e não-hierárquico. O projeto Wu Ming nasce com um diagnóstico preciso sobre o atual estágio da indústria cultural: “A cultura da era industrial era mais centralizada. Hoje, a indústria cultural está se disseminando, sobretudo no espaço urbano, de um modo muito mais horizontalizado, com uma relação mais flexível entre as pessoas. Isso é muito semelhante à cultura popular pré-industrial, uma cultura descentralizada, sem atribuição autoral rigorosa”, explica Bui.

Os criadores do Wu Ming acreditam que há hoje uma tarefa muito semelhante àquela colocada para os artistas do período renascentista, a saber, encontrar uma linguagem que expresse a dimensão do imaginário que leve em conta essas transformações sociais e tecnológicas. Essa é uma das razões pelas quais o grupo está interessado no fenômeno da literatura brasileira de cordel, uma manifestação de cultura popular horizontal, criada desde baixo, de uma forma difusa.

Proclamação da Multidão da Europa

A partir do sucesso de Luther Blissett, a idéia de desenvolver uma nova linguagem narrativa começou a influenciar outros movimentos sociais e culturais na Itália, o que levou o grupo a aperfeiçoar a proposta. Eles passaram a trabalhar em um romance e na reelaboração de mitos que pudessem ser utilizadas pelos movimentos que haviam se aproximado do espírito do projeto. Um exemplo disso, relata Bui, foi a Proclamação da Multidão da Europa, uma espécie de poema de cordel sobre as revoltas camponesas no continente, estabelecendo uma linha de continuidade entre insurreições do passado e a luta atual dos movimentos sociais. Essa obra teve muita influência na preparação da grande mobilização de Gênova, em junho de 2001, durante o encontro do G-8 (grupo que reúne os países mais ricos do planeta). A idéia básica era simples: reelaborar mitos, sob uma forma narrativa, a partir do imaginário popular.

Contra a propriedade privada intelectual

A questão da autoria, da propriedade intelectual, ocupa um espaço central no trabalho desses jovens escritores italianos. Roberto Bui observa que a propriedade privada das idéias representa um dos principais obstáculos para o desenvolvimento de uma comunidade. “A superstição da propriedade privada, no contexto de uma cultura de massas, representa, ao nosso ver, uma contradição em termos, pois, se a cultura é de massa, a propriedade dessa cultura não pode ser privada”, defende. Por essa razão, todos os trabalhos do Wu Ming são livres de copyright (a marca da propriedade intelectual privada), um princípio que representaria um limite ao livre progresso das idéias. Contra o copyright, eles adotaram o princípio do copyleft (um trocadilho com as expressões inglesas “right” — direita e “left” — esquerda) que defende que as idéias e o patrimônio cultural em geral são de propriedade coletiva de toda a humanidade. Todos os trabalhos do grupo são livremente reprodutíveis e utilizáveis.

A dimensão coletiva da criação individual

A idéia de que as produções culturais devem ser consideradas como patrimônio coletivo da humanidade está diretamente associada à concepção que os criadores do Wu Ming têm a respeito da criação. Eles acreditam que, mesmo a criação individual, tem uma dimensão coletiva. “Não existe o gênio que trabalha sozinho na sua torre de marfim, isolado da sociedade, que cria obras-primas a partir do nada. Essa é uma superstição idealista e romântica. Os autores individuais vivem no mundo, sendo influenciados por milhares de sugestões, conversações e percepções que não são rigorosamente suas. Um autor é uma espécie de terminal que reduz criativamente um complexidade de informações e de imagens, estabelecendo uma síntese que é sempre provisória. Quando um escritor escreve, todo o mundo escreve com ele”, explica Bui.

Os integrantes do grupo não são contra o ato individual de escrever. Eles fazem isso, na verdade. Mas fazem questão de dizer que quem escreve sozinho, sempre escreve junto com o mundo que o circunda. Para eles, a indústria cultural tem a necessidade de alimentar a superstição do gênio individual para organizar estratégias de marketing em torno de indivíduos supostamente de inteligência superior aos demais, de indivíduos a serem adorados e consumidos pela massa. “Essa é a finalidade da indústria cultural”, resume Roberto Bui. “O que combatemos é o culto autoritário do autor. Isso pode ser superado se compreendermos que, mesmo o autor singular, escreve coletivamente”, conclui.


 

© copyleft 2003 — Wu Ming

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Maio 2003

 

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