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AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO

(Estudo Sociológico)

Gabriel Tarde

Tradução de Maristella Bleggi Tomasini

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As Transformações do Direito (Estudo Sociológico) – Gabriel Tarde
Tradução: Maristella Bleggi Tomasini

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© 2002 – Maristella Bleggi Tomasini
mtomasini@cpovo.net


 

Índice das Matérias

Introdução à Obra
Maristella Bleggi Tomasini
Jean-Gabriel (de) Tarde (1843-1904)
O Jurista Sociólogo

Vida e Pensamento
Tarde e a Sociologia do Direito
A Imitação
As Transformações do Direito
Obras
A Sociologia
Aspectos Históricos
Principais Correntes Sociológicas
Organicismo Positivista
Teorias do Conflito
Formalismo
Behaviorismo Social
Funcionalismo
Conclusão
Repercussão da Obra de Gabriel Tarde

As Transformações do Direito

Prefácio à 2ª Edição Francesa

Introdução
Observações Preliminares
Lenta introdução do fermento evolucionista e antropológico no estudo do Direito Civil. A evolução jurídica e a antropologia jurídica. Falsa concepção ordinária da evolução. Similitudes numerosas entre as diversas fases atravessadas pelos Direitos independentes – problemas que elas suscitam.
Capítulo Primeiro
Direito Criminal
A idéia espontânea do Direito nascida da simpatia, fonte da imitação. Distinção fundamental entre as relações internas do grupo primitivo e as relações externas com outros grupos. Antigüidade do sentimento da culpabilidade – dupla evolução paralela e contrária.
Capítulo Segundo
Processos
Similitudes. Ordem lógica e irreversível na sucessão de certos ordálios. Diferenças. Dois sentidos da palavra evolução, propagação de exemplos ou série de iniciativas. Houve ponto de partida semelhante? Ou caminho semelhante? Ou semelhante ponto de chegada? Direito Romano e Direito Ateniense comparados. Justiça chinesa. O processo do amanhã.
Capítulo Terceiro
Regime de Pessoas
A família primitiva. Preconceitos científicos a este respeito. Promiscuidade, matriarcado, patriarcado: quid? Couvade. Fases curiosas dos direitos da mulher no curso da evolução jurídica no Egito. Gerontocracia. Diversidade inicial das constituições familiares. Maioridade, cada vez menos precoce. Transformações sucessivas da idéia de nobreza. Lei superior: alargamento contínuo do círculo social, do círculo jurídico.
Capítulo Quarto
Regime de Bens
Formas primitivas da propriedade. Três tipos de provas invocadas a favor do comunismo primitivo. Pretensa reprodução desse comunismo nas nascentes colônias modernas. Exame dessa alegação de Sumner-Maine e de A. Loria. As sociedades animais segundo Espinas. O mir, a allmend, a zadruga, o tonw-ship, etc. A comunidade familiar seguiu-se ou precedeu à comunidade de aldeia? O verdadeiro significado de ambas. Retomada linear, retomada vicinal, retomada feudal, direito de retratação, recompra: quid? As pleiges. O carnaval. A ménage nivernais e os monastérios. Explicação geral: duas grandes causas que fizeram variar o regime e a propriedade coletiva ou individual. Prescrição: Por que sua duração se vai prolongando? Sucessões.
Capítulo Cinco
Obrigações
I. Erros acreditados. Pretendida ausência do contrato primitivo. As invenções. Verdadeira fonte das obrigações. II. Obrigações contratuais. Sua antigüidade. Freqüentes entre os membros do grupo social primitivo, raras de grupo para grupo. Responsabilidade coletiva. Cauções, pleiges. O executor contratual no Egito e na Grécia. Arras. Similitudes: abrandamentos fonéticos, abreviaturas escriturais, abrandamento de cerimônias, aperfeiçoamentos industriais, abrandamento das penalidades e dos procedimentos. Faculdade de retratação. Causas de nulidade. III. Obrigações não contratuais. Sua proporção é crescente? Importância teórica exagerada da idéia de contrato. A vontade unilateral. Savigny e os títulos ao portador. O contrato, comando reflexo e recíproco. IV. Obrigação nascida da combinação de uma vontade com um juízo. Leis de causação e fases da evolução a distinguir. Silogismo intelectual, lógico, e silogismo prático, teleológico, moral. V. Explicação que faz derivar ao mesmo tempo de uma mesma fonte, a saber, de uma teoria completa e precisa do silogismo, uma teoria do valor e uma teoria da obrigação, do mesmo modo, nítidas e gerais.
Capítulo Sexto
O Direito Natural
O Direito Natural e o Direito das Gentes entre os romanos e os modernos. Razão de ser de sua dualidade e de sua convergência. Ambigüidade da idéia de natureza: relação intra-orgânica e relação extra-orgânica. Benthan e Rousseau. Indeterminação essencial da idéia de Direito Natural. Exemplos. Direito Internacional. Verificação manifesta de nossas explicações neste ramo do Direito: Mare liberum et mare clausum. Contrabando de guerra. Antinomia da soberania dos Estados e da liberdade dos indivíduos.
Capítulo Sétimo
O Direito e a Sociologia
I. Novas críticas contra a idéia da evolução uniforme. Uniformidade e diferenciação: contradição. Pretendida necessidade de transformações. Mutações jurídicas sempre devidas a inserções exteriores ou interiores de idéias estrangeiras ou imprevistas. Exemplo: o Direito Armênio. Retificação de erros. II. Novas considerações em apoio à importância da imitação. As histórias infantis e os mitos solares. A fase feudal das sociedades. Origens das instituições feudais. Costumes pré-islâmicos e indo-europeus. Direito de “aubaine”. Retirada linear. Direito de primogenitura. Simplificação dos procedimentos e da gramática. Imitação entre os juristas. III. Desempenho da invenção e da lógica. Desenvolvimento reputado análogo ao Direito Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da lógica social. O gênio inventivo subordinado às grandes necessidades do organismo. Dualidade destas necessidades fundamentais, de nutrição e geração; necessidade e dificuldade de harmonizá-las juridicamente. Convergências ou coincidências das morais. IV. O Direito e a Lingüística: analogias de desenvolvimento.

Bibliografia Consultada
Notas


 

Todo livro, seja ele um poema ou um romance, é um Catecismo ou um Código em projeto. Não há livro, sobre não importa que assunto, que não aspire a regrar a conduta ou o pensamento dos homens, a ensinar-lhes alguma verdade ou a fazer-lhes algum bem.
Gabriel Tarde


 

As Transformações do Direito
Estudo Sociológico

 

G. Tarde

Membro do Instituto
Professor do Collège de France

Obra baseada na 7ª edição francesa de 1912, com notas, comentários, estudo biográfico do autor, resumo histórico da Sociologia e seus principais representantes


 

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Jean-Gabriel (de) Tarde
(1843-1904)

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O Jurista Sociólogo

Foi num final de tarde que, entre prateleiras abarrotadas de livros, encontrei um pequeno, gasto, com as páginas amareladas e quebradiças. Chamava-se As Transformações do Direito e vinha assinado por G. Tarde. Era Gabriel Tarde, crítico mordaz de Lombroso e opositor ferrenho de O Homem Delinqüente, obra que eu acabara de traduzir. Lembrava-me bem daquele que dissera de Lombroso que ele foi como café... excitou a todos, mas não alimentou ninguém.

No prefácio, a primeira surpresa: Os pequenos livros têm a vantagem das preces curtas: se não vão todos ao céu, vão direto ao coração do leitor contemporâneo que está sempre apressado. Era bonito. Original. Segundo me disseram, todavia, não era interessante reeditá-lo. Já sofrera rejeições e não tinha futuro. Levei o livro para casa mesmo assim e comecei o trabalho, cuja complexidade não demorou a se mostrar claramente. Pouco mais de duzentas páginas de pura essência escritas em francês clássico entremeado de expressões idiomáticas, longas perguntas e longas respostas, tudo articulado e funcional... mas profundamente filosófico. Não seria uma tarefa fácil nem rápida.

Não havia, à época, quase nenhum material disponível sobre Gabriel Tarde, e eu contava apenas com duas edições de As Transformações do Direito. À medida em que a tradução avançava, porém, começaram a aparecer outras obras do mesmo autor numa sincronização notável. Bastou uma consulta à internet para que se descobrisse a importância dada a todos os seus livros na Europa, especialmente pela expectativa dos cem anos de sua morte, agora, em 2004. Dediquei-me, então, não apenas ao trabalho de tradução propriamente, mas a pesquisas paralelas que pudessem, de modo razoável, apresentar o autor aos seus leitores brasileiros.

Descobri um Gabriel Tarde surpreendente. Filósofo. Irônico e, ao mesmo tempo, terno; sutil, sem falar no que mais impressiona: o terreno quase metafísico que reclama àquilo que seriam as transformações pelas quais o Direito passou ao longo da História, a coragem de, por vezes, abandonar a linguagem objetiva e fazer uso de imagens poéticas, apelando ao coração e à subjetividade. Para quem viveu no tempo em que um determinismo avassalador pretendia explicar e reduzir o universo à mecânica, a sociologia à uma ciência natural, o homem a uma espécie animal ainda não muito distanciada do macaco; para quem viveu num século XIX tão tipicamente pretensioso, Gabriel Tarde surge quase romântico, ao reclamar a cada um sua originalidade irredutível.

Encontrar, num livro de Direito, num capítulo dedicado às insípidas Obrigações, um trecho como este: Mas quem de nós não inventa e não inova em algum grau e não é iniciador obscuro, de algum modo, ao mesmo tempo que imitador em todo o resto de sua conduta? Quem não deixa atrás de si, num círculo mais ou menos amplo ou restrito, um hábito novo no que lhe toca, uma modificação despercebida de linguagem, de maneiras, de idéias, de sentimentos? Nada está perdido de tudo aquilo que jorrou de nosso coração um dia, e cuja misteriosa fonte, escondida nas profundezas de nossa originalidade irredutível, escapa à sonda do psicólogo.

Quanta coragem, quanta ousadia! Ousar insinuar, — num livro de direito, obra supostamente técnica, notem bem, — que cada um de nós possui uma fonte misteriosa que escapa à sonda do psicólogo...

Foi por isso que não pude fugir ao subjetivismo também, e escrevo na primeira pessoa do singular, ao arrepio da melhor técnica e das mais recomendáveis precauções. Seria, para mim, uma tarefa irrealizável a de traduzir um livro como este sem ao menos tentar conhecer (ou, quem sabe, tentar intuir) quem foi Gabriel Tarde, de onde partiram observações tão sagazes quanto originais: sagazes, porque correram contra a corrente de pensamento imposta à época em que viveu; originais, porque idéias e linguagem aliam-se de maneira simbólica, quase que esgotando todos os recursos semânticos possíveis, e causando, no leitor, a impressão concreta de poder ultrapassar o pensamento formal. Gabriel Tarde, assim, requer de seu público a qualidade do sábio que deve enxergar pelo avesso a cadeia e a trama da tela humana que o artista olha pelo direito.

Divido com o leitor aquilo que a curiosidade me levou a descobrir sobre Jean-Gabriel de Tarde, do qual outras duas obras já estou traduzindo também, A Criminalidade Comparada e A Opinião e a Multidão. Vejamos sua biografia e, em tese, seu pensamento.

Vida e Pensamento

Sarlat, no Périgord, foi sua cidade natal. Nasceu em 12 de março de 1843, numa antiga família de notáveis. Seu pai era juiz de instrução, e sua mãe pertencia a uma família de juristas. Diz-se que Tarde fez brilhantes estudos entre os jesuítas de Sarlat, — ainda que não lhe agradasse o internato, — obtendo, em 1860, o bacharelado em Letras e depois em Ciências. Preparou sua entrada na Escola Politécnica, mas, em razão de problemas de saúde, como veremos depois, optou pelo estudo do Direito em Toulouse, estudos estes que terminou em Paris em 1866. No ano seguinte tornou-se secretário assistente do juiz de Sarlat e depois juiz substituto, também em Sarlat, de 1869 a 1875; enfim, juiz de instrução até 1894. Já em 1877 desposara a filha de um conselheiro da Corte de Apelação de Bordeaux , tendo com ela três filhos.

A partir de 1880, publicava regularmente na Revue Philosophique e, em 1887, nos Archives d’Anthropologie Criminelle, mantendo abundante correspondência com criminólogos italianos. Em 1894, seus amigos, numerosos entre os penalistas, o fazem nomear diretor do serviço de estatística judiciária do Ministério da Justiça em Paris, pois, desde 1890, com a obra As Leis da Imitação, tornara-se um homem famoso. A partir de 1896 dá conferências no Collège Libre des Sciences Sociales e, após um primeiro fracasso, é eleito professor no Collège de France em 1900. Ensinou até sua morte, que ocorreu em Paris em 1904.

Estes são seus dados biográficos em ordem cronológica. Mas o que mais poderemos saber sobre esse filósofo, literato, poeta, psicólogo, criminólogo que alcançou mesmo a celebridade em seu tempo, mas que foi rapidamente esquecido?

Veja-se que assinou seu nome sempre como Gabriel Tarde, mas sabe-se que poderia assiná-lo também Gabriel de Tarde. Gabriel Tarde ou Gabriel de Tarde? Ele jamais fez uso da partícula nobiliárquica, ao contrário de seu pai e de seus filhos. Como pertencesse a uma das mais antigas famílias da região onde nasceu, poderia indicar tal origem através do uso da partícula de (indicativa de nobreza), embora não o tenha feito. Jean Tarde (1561-1636), seu antepassado, capelão particular de Henrique IV, foi um célebre astrônomo, amigo de Galileu que o presenteou com uma de sua lunetas.

Com apenas 7 anos, o pequeno Gabriel ficou órfão de pai, e sua formação, junto aos jesuítas de Sarlat, obrigou-o a suportar anos terríveis de internato, meio depravador, quase tanto quanto a prisão, escreveria ele mais tarde, onde as crianças são entregues às sugestões violentas das piores entre elas.

Após seu bacharelado em Letras, como dissemos, pretendia cursar a escola politécnica, quando enfrentou sérios problemas de saúde. Foram problemas que afetaram sua visão. Tarde sofreu crises dolorosas de oftalmia, numa cegueira quase total, que o forçou a ficar num quarto escuro durante meses.

O contato com sua obra vai nos revelar um homem sensível, modesto, voltado ao bem. Apesar da lógica com que desenvolve a temática proposta, por vezes o texto revela-nos algo de subjetivo e profundo, quase romântico. Foi justamente este o aspecto que mais incitou minha curiosidade, e levou-me a pesquisar e procurar compreender quais teriam sido as influências sofridas pelo autor, influências estas que deveriam ter sido, afinal, muito marcantes. Dados disponíveis sobre Tarde podem esclarecer em parte tal peculiaridade. Durante sua juventude que, como vimos, foi bem difícil, descobriu a obra de Maine de Biran, um grande sofredor. Trata-se de Maria Francisco Pedro Gonthier de Biran, filósofo francês (1799-1824), considerado um dos baluartes do espiritualismo europeu. Espiritualismo aqui, — é bom gizar, — de ordem metafísica especulativa. Maine de Biran preocupou-se com a substância do eu (que não deve ser confundida com a alma teológica), como “uma força hiperorgânica que se faz consciente de si mesma quando move algum grão corpóreo”. Especulações à parte, as obras deste filósofo chegaram a ser republicadas no século XX. Temos: Oeuvres, Paris, 1920; Maine de Biran, Antologia, M. T. Antonelli, Bréscia, 1948; Oeuvres Choisies, Paris, 1942; M. de B. e son Oeuvre Philosophique, Paris, 1931, etc. Considero importante, para uma melhor compreensão do pensamento de Gabriel Tarde, que nos detenhamos um pouco mais sobre Biran, porque alguns trechos deste livro dependem de um razoável domínio dos aspectos filosóficos que orientaram a visão de Gabriel Tarde no tocante às transformações sofridas pelo Direito.

Trata-se do mais vigoroso pensador francês da primeira metade do século XIX. Muito mais que o de seus contemporâneos, o pensamento de Biran é operante ainda hoje e teve profunda influência sobre o Intuicionismo[1] e sobre o Espiritualismo[2] contemporâneos, especialmente sobre Bergson. O interesse constante e fundamental de Biran é “a inclinação sobre nós mesmos” como a mais sólida justificativa da tradição religiosa. A vida íntima seria derivada da consciência, o “sentido da existência individual”, sem a qual não há conhecimento. Atividade e passividade seriam elementos sempre presentes no ato de conhecer. O eu não poderia conhecer-se como força espiritual sem agir sobre algo que lhe resiste: a consciência da própria espiritualidade é dada ao eu pela resistência do corpo, fatos indissoluvelmente ligados. O esforço, — dado pela experiência interna, — identifica-se com a causalidade. O eu que se intui imediatamente como esforço voluntário é o sujeito singular que se vive, mas não se exprime. Biran chama-o “homem interior”, em oposição ao “homem exterior” captado da análise da ciência. Na intuição de si mesmo, o eu deduz os conceitos de causa, substância, força, unidade, etc., que aplica à realidade externa. Afasta-se aqui das formas a priori de Kant e das idéias inatas de Descartes e do hábito de Hume. Atrás dos fatos e das leis que a ciência descobre, haveria um mundo de forças semelhantes à nossa atividade voluntária: nas coisas haveria um princípio de atividade espontânea que escaparia ao cientista, mas não ao filósofo.

Além de Biran, ao longo da juventude, fase depressiva de sua vida, Tarde leu também Teresa de Ávila. Minha grande dor­ — escreveu ele — é não poder satisfazer minha necessidade suprema de amor. Quem amar? Quem me ama? É a melancolia célebre dos jovens ao final do século XIX. Lê os estóicos, Hegel, Cournot, escreve poemas e dá longos passeios a pé.

Quanto a Antônio Agostinho Cournot (1801-1877), trata-se de alguém que merece um comentário à parte.  Foi economista, matemático e realizou investigações na área dos cálculos de probalidade e fundamentos do conhecimento, bem como teorias econômicas sobre a riqueza e o encadeamento de idéias nas ciências e na História.  Sua teoria econômica sobre o monopólio de preços ainda é adotada, assim como outras referentes às finanças públicas. No exemplar de As Leis da Imitação que tive em mãos (6ª edição, Félix Alcan, Paris, 1911), Gabriel Tarde escreveu: À memória de Cournot eu dedico este livro.”  Tal demonstração de respeito por parte do autor foi, para mim, um indício seguro, tanto da consideração de Tarde pela obra de Cournot, quanto das bases filosóficas e lógicas da teoria da imitação, teoria esta que não pecou pela superficialidade ou precipitação, mas que requereu do autor profundos embasamentos que não refogem à Teoria do Conhecimento. Melhor prova disso seja talvez a reedição na França, não só de As Leis da Imitação, como de praticamente toda a obra de Tarde, reedições que vêm acompanhadas de comentários, entrevistas e discussões a respeito do alcance de suas teorias que, apesar dos quase cem anos que nos separam de sua morte, permanecem atuais sob muitos aspectos.

Chegam as primeiras intuições filosóficas. Tarde sentia grande atração pela matemática, mas terminou optando pelo Direito. Felizmente, a oftalmia desaparecera e ele segue sua carreira na magistratura, casando-se e tornando-se pai de três filhos.

Foi sempre um homem apaixonado por seu trabalho. Intelectual poderoso, não poderia deixar de se interessar pelos debates, crescentes à época, em torno da Criminologia, ciência nascente. Inspirado, escreve inúmeros artigos e começa a corresponder-se com César Lombroso, com o qual empreendeu debates que passaram da polidez inicial aos mais vivos insultos. A propósito, Criminalidade Comparada, obra que, em breve, será objeto de edição comentada, foi escrita a partir de o O Homem Delinqüente, e Tarde demonstra aí toda sua sagacidade de crítico mordaz e opositor ferrenho à tese do criminoso nato. Eis como ele dá início ao livro: Estais curioso para conhecer a fundo o criminoso, não o criminoso de ocasião que a sociedade pode imputar-se na maior parte, mas o criminoso nato e incorrigível pelo qual a natureza, quase unicamente, — dizem-nos, — é  responsável? Lede a última edição de O Homem Delinqüente de Lombroso[3] que foi, há dois anos, traduzida para o francês.  Quanto é lamentável que uma obra dessa força e dessa densidade, uma tal concentração de experiências e de observações tão engenhosas quanto perseverantes, e onde se resume o trabalho não de todo estéril de uma vida inteira, de toda uma escola inovadora, não pôde, malgrado a força dos erros, tentar a pluma de um tradutor francês! 

Mas foi em 1890 que a notoriedade chegou para Gabriel Tarde com As Leis da Imitação. A partir daí chegou à celebridade, começando uma nova vida em Paris. Convites, festas, palestras, enfim, uma vida agitada de pensador reconhecido e famoso ao seu tempo. Não escreveu, porém, apenas livros que se poderiam chamar técnicos.

Eu não podería deixar de falar sobre o que encontrei a respeito do livro chamado Fragmento da História Futura (Fragment d’Histoire Future). Trata-se de um fascinante romance de antecipação, recentemente reeditado na França, como quase toda a obra de Tarde. Neste interessantíssimo livro, ele dá uma versão poética de todo seu sistema, imaginando que o Sol teria se extinguido e a Terra ter-se-ia transformado num globo gelado sob a noite eterna. A humanidade, então, deveria encontrar o caminho de sua regeneração numa urbanidade escondida, perto do coração quente da Terra, lugar onde os desejos circulariam instantaneamente, em tempo real, enquanto o espaço seria reduzido a uma abstração. Tarde pretenderia com isso propor uma teoria sociológica que pudesse ser válida a despeito do paradigma espaço-tempo? É difícil imaginar sem haver lido a obra, mas é permitido supor que não lhe faltavam qualidades intelectuais para enfrentar tal desafio.

Teve uma vida agitada após a celebridade. Escreveu muito, alcançou a fama e deixou a todos uma obra marcante, perturbadora, eu diria, para aqueles que empreenderem uma cuidadosa leitura de seus textos. Foi na noite de 12 de maio de 1904, aos 61 anos, que morreu Gabriel Tarde, que também foi poeta: Como todo ser, estamos destinados a entrar em breve, pela morte, no infinitesimal de onde saímos, neste infinitesimal: o que poderia ser, no fundo, quem sabe? Tudo além da verdade, tudo asilo póstumo, inutilmente procurado nos espaços infinitos[4].

O pensamento de Tarde só pode começar a ser compreendido através de sua concepção da imitação. O célebre autor via aí o princípio de quase toda explicação sociológica: a ação de um espírito sobre o outro. É de salientar que, à época em que Tarde iniciou seus estudos, a influência de Spencer era grande, assim como a da Evolução, do biologismo. Mas, a Tarde, jamais agradou a idéia de admitir o animal como ascendente do homem e tampouco aceitou que tudo evolui da homogeneidade confusa para a heterogeneidade definida. Empreendeu uma verdadeira luta contra todas as formas de interferência do biologismo, do transformismo e do organicismo em Sociologia. O que nos importa a Sociologia aqui? Este não é um livro de Direito? Sim, trata-se de um livro de Direito, mas o leitor não pode se esquecer nunca de que, para Tarde, o Direito deve ser compreendido como um ramo da grande árvore da Sociologia.

Além disso, para ele, a Sociologia fundamentava-se na Psicologia, no fenômeno da imitação principalmente. Mas, quando a imitação não pudesse estar em causa, a invenção explicaria o fenômeno social. A invenção, um fenômeno idêntico àquele da ordem natural, seria causa de imitações posteriores. O espírito inventivo a acompanhar o evoluir do tempo, rumo ao aperfeiçoamento que desemboca no progresso. A lógica social, por sua vez, concilia crenças e desejos. Quase toda Psicologia Social originou-se nos trabalhos de Gabriel Tarde, que tiveram grande desenvolvimento na Itália.

Destacamos: Existir é diferir; nossas semelhanças, que o sábio estuda, nossas mútuas imitações, não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença essencial, delícias de artista, única razão de ser de nosso ser. Eis aí aquilo que pertence ao filósofo demonstrar, se ele quiser cumprir sua missão inteiramente, que não é apenas a de sublimar a ciência e destilar a arte, mas combinar, em suas fórmulas, todo o suco de uma com a essência da outra.

Quando Tarde afirma que existir é diferir, coloca a diferenciação como princípio de sua filosofia, atuando juntamente com a preexistência dos possíveis e o caráter infinitesimal do real. Os seres reais, como os eventos e as coisas, poderiam não acontecer, e isto já fora sustentado por Leibniz, mas, uma vez que ocorram, que existam, que aconteçam, sua existência se torna necessária. Assim, a realidade compõe-se de possibilidades, é virtual, e cada uma de suas emergências não é senão uma realização probabilística pontual. As entidades não teriam atributos, mas propriedades, e a realidade, seja das coisas, seja dos homens ou da sociedade aparece como um continuum de diferenças, de integrações sucessivas de elementos infinitesimais heterogêneos. Assim o existir é integrar o infinito no finito. A sociedade é o plano onde a contingência vem à consciência, mas esta é sempre individual, porque, — em oposição àquilo em que acredita Durkheim, — a consciência coletiva não tem sentido. A psicologia tardiana entende assim explicar como indivíduos diferentes chegam a pensar a mesma coisa, ou influenciar o pensamento dos outros.

Jean-Baptiste Marangiu[5], no prefácio da obra A Opinião e a Multidão, destaca: A expressão psicologia coletiva ou psicologia social  é freqüentemente compreendida num sentido quimérico que importa, antes de tudo, descartar. Tal sentido consiste em conceber um espírito coletivo, uma consciência social, um nós que existiria fora ou acima dos espíritos individuais. Não temos qualquer necessidade, segundo nosso ponto de vista, desta concepção misteriosa, para estabelecer, entre a psicologia ordinária e a psicologia social, — que chamaremos inter-espiritual, — uma distinção bastante nítida. Enquanto a primeira, com efeito, liga-se às relações do espírito com a universalidade dos outros seres exteriores, a segunda estuda, ou deve estudar, as relações mútuas dos espíritos, suas influências unilaterais e recíprocas — unilaterais primeiro, recíprocas depois. Logo, existe entre ambas, — a psicologia ordinária e a psicologia social, — a diferença do gênero à espécie. Mas a espécie, aqui, é de uma natureza tão singular e tão importante que deve ser destacada do gênero e tratada por métodos que lhe sejam próprios.[6]

Contrariamente a Emile Durkheim, seu principal adversário, que foi um universitário profissional, Tarde poderia ser chamado de um homem da terra, um jurista ligado à sua província natal que, notadamante durante os anos em que exerceu a magistratura em Sarlat, observou de forma atenta o comportamento social de seus semelhantes, de preferência a elaborar uma doutrina universitária. Suas experiências como juiz de instrução levaram-no primeiro à Criminologia, a nova ciência desenvolvida pela escola italiana no fim do século XIX. Foi aí que ele se opôs a César Lombroso, o célebre professor de Medicina Legal, Psiquiatria e Antropologia Criminal na Universidade de Turim. Mordaz, não apenas em A Criminalidade Comparada, — em trecho citado mais acima, – mas ainda em sua Filosofia Penal, Tarde expressou-se assim: “...o mérito de Lombroso não é nada diminuído pelas pesquisas de seus predecessores: ele é maior a nossos olhos por esta ausência de método, por esta insuficiência de crítica, por esta complicação desordenada de fatos heterogêneos, por esta tendência a tomar como prova de uma regra um acúmulo de exceções, enfim, por esta precipitação nervosa de julgamento e esta obsessão de idéias fixas, eu quero dizer, de idéias correntes que se observam em todos os seus escritos, e que sua impetuosidade arrebatadora, sua riqueza de percepções, sua engenhosidade original não chegam a fazer esquecer. Este pesquisador entusiasta não é menos o verdadeiro promotor daquilo que ele chama, — de maneira assaz imprópria, de resto, — a antropologia criminal, e o impulso que incita, nas múltiplas vias desse ramo de estudos, mesmo fora da Itália, tantos espíritos distintos, emana dele[7].”

Depois, no terreno da Sociologia, ele desenvolveu, desta vez contra Durkheim, uma psicologia social do comportamento dos indivíduos. Os fenômenos coletivos deveriam ser tratados, segundo ele, como fenômenos psicológicos ordinários. A evolução não vai do simples ao complexo, mas do complexo ao simples, e deve-se sempre considerar que o heterogêneo é anterior ao homogêneo. O fato social deve ser definido a partir de interações, de inter-relações entre as consciências individuais.

Mas o que pensava Durkheim? Durkheim era considerado discípulo de Augusto Comte e, para ele, o fato social deveria ser visto como coisa, coisa não material, mas existindo exteriormente às consciências individuais. O caráter científico deste fato, necessariamente, exigiria sua sujeição a leis determinadas. Trata-se do sociologismo positivista, com caráter de independência em relação às consciências e às ações individuais que Durkheim separa dos fatos sociais, para ele, peculiares ao organismo social: a sociedade vista como uma realidade sui generis, com natureza própria e independente das naturezas individuais.

Mas autores como Durkheim não conseguem explicar como é que o coletivo social pode ser assimilado coercivamente pelos indivíduos sem que existam relações intermentais. Tarde critica este caráter coercivo, exterior e coletivamente orientado que empresta ao fato social. Aqueles escritores imaginam que estão declarando uma verdade com grande peso quando eles afirmam, por exemplo, que as línguas e as religiões são produções coletivas; que as multidões, sem um líder, construíram o grego, o sânscrito e o hebreu, tal como o Budismo e a Cristandade, e que as formações e transformações das sociedades são sempre explicadas pela ação coerciva do grupo sobre os seus membros individuais. (...) A falha destes autores está, — segundo Tarde, – em não perceberem que, postulando uma força coletiva, a qual implica a conformidade de milhões de homens agindo juntos sob certas relações, eles não prestam atenção a uma grande dificuldade, nomeadamente, o problema de explicar como é que uma tal assimilação geral podia alguma vez ter lugar.  Tarde aceita e propõe a análise da relação intercerebral de duas mentes, uma refletindo a outra: Apenas assim podemos explicar os acordos parciais, o bater dos corações em uníssono e as comunhões de alma, as quais, uma vez ganhas, perpetuadas pela tradição e imitação dos nossos antecessores, exercem no indivíduo uma pressão que é freqüentemente tirânica, mas saudável.   Se somos governados por modelos coletivos e interpessoais, a pressão para a adoção desses modelos não é propriamente exterior, mas resultante do contágio imitativo entre indivíduos, contágio este que pode vir, por exemplo, da tradição, da educação, dos costumes, da moda. Neste sentido, a invenção entra como fonte de iniciativas criativas, individuais e independentes, dependente das leis da imitação efetivadas na atividade intermental, na medida em que é a partir da invenção que surgem novos modelos a serem imitados. (Marco António Antunes, Universidade da Beira Interior[8])

Durkheim e Tarde mantiveram polêmica. Ora, para o primeiro, por exemplo, a horda seria uma espécie de protoplasma do social, da horda passa-se ao clã. Estranhamente, o clã deveria preceder à família.  Concepção curiosa, mas princípio essencial e necessário à concepção de Durkheim, princípio este que deve ser aceito como verdadeiro, embora seja natural e humano que os indivíduos se congregassem primeiro em famílias... Já para Gabriel Tarde, não se poderia admitir o determinismo dessa afirmação e, muito menos, conferir-lhe a qualidade dogmática da premissa em que se baseia.

Na França, a influência póstuma de Tarde foi reduzida, se comparada àquela de Durkheim, que foi sempre sustentada pela Sorbonne, oficial, vencedora e a serviço da república laica. Nos Estados Unidos, Tarde, notadamente, influenciou James Mark Baldwin (1861-1934, fundador do American Journal of Psychology, e Edward Alsworth Ross, 1866-1951). No livro que foi considerado como um referencial de autoridade nos Estados Unidos, nos anos 20-40, Introduction to the Science of Sociology, de Robert Park e Ernest Burgess, Tarde é considerado como um autor importante, tão importante quanto Durkheim.

Tarde e a Sociologia do Direito

Segundo Tarde, a vida em sociedade necessita de uma coesão (liame social), teoria que ele aplica às transformações do Direito e igualmente à sociologia do crime. Ele fez suas as primeiras descobertas da psicologia experimental na École de la Salpétrière (Jean-Martin Charcot, 1825-1893; Alfred Binet,1857-1911). Para ele não há outra realidade senão a existência de consciências individuais. Os indivíduos, por sua vez, não se unem uns aos outros senão a partir do momento em que adotam um modelo de referência e imitam esse modelo. Esta imitação não se faz sem resistência, sem oposição; mas é ela que permite a adaptação social, a vida em sociedade, o liame social.

A Imitação

“Ela, imitação, é a cadeia e a trama da tela humana que o artista olha pelo direito, ao lado de seus detalhes, de suas variações geniais e fugidias, mas que o sábio deve enxergar pelo avesso, ao lado de suas repetições, únicas mensuráveis, únicas enumeráveis, únicas formuláveis em dados estatísticos ou em leis científicas.”[9]

 

A mais conhecida e a mais célebre das obras de Gabriel Tarde, As Leis da Imitação (1890), apresenta a sociologia do ponto de vista do pluralismo da dinâmica das relações entre indivíduos e grupos. Tarde vê, na imitação, a característica constante do fato social e condena os teóricos organicistas e evolucionistas. O mesmo pensamento expresso em As Leis da Imitação, bem como seu questionamento frente aos evolucionistas, repete-se nas Transformações do Direito, onde cabe destacar: Os evolucionistas, malgrado tudo, concordam, pois, em afirmar a existência de uma lei única necessária de evolução jurídica; mas seu desacordo começa quando eles se atrevem a formular e a precisar as fases que o Direito estaria subordinado a atravessar em sua trajetória histórica.

O que motiva fundamentalmente o indivíduo são a crença e o desejo. Todas as crenças são motivadoras, as crenças ideológicas, mas também as outras, e é o desejo que alimenta a crença. Veremos, neste livro, esta mesma perspectiva aplicada a uma inovadora teoria das obrigações correlacionada à lógica, onde a formação das premissas, seja da parte do indivíduo, seja mesmo da parte do Estado, obedece a convicções momentâneas submissas às crenças e aos desejos, variáveis estes de época para época, conformes, ora aos costumes e aos hábitos, ora à moda, produto das invenções, irradiadas pela imitação.

Ao longo da história, foram as invenções humanas que forneceram os instrumentos de que a crença e o desejo tiveram necessidade. O gênio inventivo individual, — portanto não submisso à jurisdição das grandes leis gerais, nem mesmo previsível através delas, — foi o motor da evolução social. Mas a sociedade, esta não aparece senão graças à imitação que, para  Tarde, é o fator primeiro e decisivo da aparição do liame social entre os indivíduos, embora não exclusivo. É porque  vivem em conjunto que os homens pensam e agem do mesmo modo. Mas restaria a pergunta: o que é inventado ou imitado? Qual a relação entre a invenção, a imitação, as crenças e os desejos? As respostas a estas perguntas aparecem em As Leis da Imitação, onde Gabriel Tarde se permite filosofar sobre sua teoria e nos coloca: A invenção e a imitação são o ato social elementar, nós o sabemos. Mas qual é a substância ou a força social da qual este ato é feito, da qual ele não é senão a forma? Em outros termos: o “quê” é inventado ou imitado? Aquilo que é inventado ou imitado, o “quê” é imitado, é sempre uma idéia ou um querer, um julgamento ou um propósito, onde se exprime uma certa dose de crença e de desejo, que é, com efeito, toda alma das palavras de uma língua, preces de uma religião, administração de um Estado, artigos de um código, deveres de uma moral, trabalhos de uma indústria, técnicas de uma arte. A crença e o desejo. Eis, pois, a substância e a força; eis, também, as duas quantidades psicológicas que a análise reencontra no fundo de todas as qualidades sensoriais com as quais elas se combinam, e, quando a invenção, depois a imitação, dominam para organizá-las e empregá-las, eis aí, de maneira semelhante, as verdadeiras quantidades sociais. É pelos acordos ou pelas oposições de crenças que se fortificam ou se limitam entre si que as sociedades se organizam; as instituições são, sobretudo, isso. É por concursos ou concorrências de desejos, de necessidades, que as sociedades funcionam. As crenças, religiosas e morais principalmente, mas também jurídicas, políticas, lingüísticas mesmo — (porque, quantos atos de fé implicados no menor discurso, e que poder de persuasão, tão irresistível quanto inconsciente, possui sobre nós nossa língua materna, verdadeiramente maternal mesmo!) — são as forças plásticas das sociedades. As necessidades, econômicas ou estéticas, são suas forças funcionais[10].

A imitação difunde-se em ondas concêntricas em torno do modelo. Esta seria a explicão da existência da repetição dos fatos e da própria emergência das instituições. Nesse sentido, notável a observação de Tarde a respeito do direito de primogenitura e sua difusão. A imitação não é apenas um fato individual, porque os grupos sociais também se imitam. Explicam-se também assim as convergências existentes entre associações, sociedades, classes sociais, povos... A imitação opera primeiramente de dentro para fora.  Julgamentos e desejos são copiados antes dos atos; crenças, antes dos modos de vida. A seguir, a imitação opera do superior em direção ao inferior: as classes sociais superiores servem de modelo às inferiores, e não o inverso. Quando a classe superior se isola em suas tradições e as defende contra as mudanças, pode-se dizer que sua grande obra está cumprida e que seu declínio avança (Les Lois de l’Imitation). No mesmo diapasão, em Criminalidade Comparada, Tarde vaticina do mesmo modo, embora com outras palavras: Um povo, no qual a força do sacrifício pessoal se esgota, vive de seu capital, e sua decadência está próxima. Permanecemos generosos até o dia em que deixamos de ser inventivos e fecundos, e começamos a nos tornar imitativos e rotineiros. O egoísmo é uma aquisição senil.

O processo imitativo não é todavia automático, porque não se desenvolve sem resistência individual e coletiva. Aliás, é entre os que resistem, entre os que se recusam a imitar, que estão os inovadores, os que inventam. A imitação não se faz sem oposição, uma oposição que é seguida de uma adaptação do grupo. É esta adaptação que permite uma estabilidade provisória, que em breve será abatida por uma nova invenção... que será imitada, etc.

As Transformações do Direito

Gabriel Tarde, certamente, vai surpreender a todos aqueles que o lerem. Traduzi-lo foi um desafio, e a tarefa não teria sido possível sem uma pesquisa mais ampla que a temática proposta neste livro.  Especialmente no campo do Direito, nossos colegas terão muito a descobrir. Antes de mais nada, porém, é importante notar que a obra foi escrita por um literato. O texto é notável, mas exige do leitor atenção redobrada, não apenas pelo uso eventual de figuras de linguagem, mas ainda pelas inversões, pelos enunciados entremeados de apostos e, em especial, pelas perguntas metodicamente intercaladas, perguntas às vezes longas, tão longas que optamos por sinalar a chegada de cada uma delas com um ponto de interrogação invertido, à moda espanhola. Liberalidades desta edição que esperamos facilite a leitura. Na obra, transparece o estilo socrático empregado pelo autor, que expõe minuciosamente os dados que quer rebater, demonstra-os magistralmente, argumenta a favor dos mesmos e, a partir de perguntas engenhosas e pertinentes, cria-nos a dúvida. Convida-nos então a acompanhá-lo na busca de outras respostas que não aquelas convencionais e consideradas verdadeiras à época.

Evolucionistas, antropólogos criminais, romanistas clássicos têm todo o arcabouço de suas verdades desestruturado a partir dessa metodologia que torna evidentes falhas tão pressurosamente disfarçadas, e que todavia não eram menos que baluartes jurídicos, biológicos e sociais.  Assim, os conceitos usuais de evolução, de contrato, da origem das penas, do próprio Direito Natural são objeto de especulação fecunda e não podem deixar de sofrer sérios abalos.

Está-se diante de um pensador que reclama à imitação um lugar de destaque, não o mesmo que ocupa o alfabeto em relação à literatura, mas o de fenômeno social por excelência. E foi a desconsideração deste fenômeno que levou muitos de seus contemporâneos a exagerarem a importância do atavismo e da hereditariedade, fenômenos aos quais Tarde não negou a influência, mas tão-só a exagerada ampliação desta.

Não há uma similitude no universo que não tenha por causa uma destas três grandes formas, superpostas e embaralhadas, de repetição universal: a ondulação para os fenômenos físicos, a hereditariedade para os fenômenos vivos, a imitação para os fenômenos sociais propriamente ditos. (...) É claro que se devem levar em conta os três, e não apenas o último, para dar a explicação completa das analogias apresentadas pelo mundo social, que nasce do mundo vivo e move-se no meio físico.

O leitor, todavia, encontrará também um homem que, apesar da ironia e da desenvoltura com que argumenta e rebate, não consegue esconder sua inclinação ao bem e ao belo, e à convicção de que a humanidade traz em seu coração um quê misterioso, visível e palpável em manifestações aparecidas ao longo de toda a História, através de grandes homens que conduziram os seus na direção de uma beleza moral que não se confunde com a estética, mas ultrapassa-a. E Tarde pergunta: Não existe também uma verdade moral que toda sociedade inevitavelmente formula um dia, onde todas as morais diversas vão desembocar como num golfo, e que faz com que Confúcio tão freqüentemente nos reedite Sócrates, Buda, o Cristo, e que o perfeito bravo homem de todos os tempos, Aristides ou Franklin, Epicteto ou Littré, Epaminondas ou São Luiz, o marabuto árabe ou o santo cristão seja, em toda parte, reconhecível nos mesmos traços essenciais, não diferindo senão pelo grau de abertura de seu horizonte intelectual e pelo raio da esfera da humanidade na qual se desenvolve? E não existe uma beleza, uma moral sublime, una e idêntica, para onde se orienta como a um pólo toda alma generosa de todos os cantos da Terra, que ora falhasse em ver aí a simples condensação, num instinto especial, de hábitos hereditários sugeridos por experiências de utilidade geral acumuladas ao longo do passado da humanidade, que ora, de preferência, esta orientação traísse também qualquer ação mais sutil e mais profunda, qualquer revelação do fundo divino das coisas? Muitos permanecerão indiferentes a isso; muitos, ainda, talvez anseiem pela costumeira objetividade, muitas vezes estéril, seca, cronológica, de alguns de nossos juristas, escritores contemporâneos que tudo querem resumir e esquematizar, o quanto baste para simular uma leve idéia do assunto, tudo em nome da prática; mas outros, talvez poucos, serão tocados e levados a pensar, a rever idéias e conceitos, a analisar fatos e circunstâncias a partir de um novo enfoque. Acredito que estes são os destinatários da mensagem de Gabriel Tarde que escolhi para a abertura deste livro.

As Transformações do Direito: uma evolução descontínua e multimilenar. Vê-se aqui Tarde aplicar sua teoria ao processo, ao regime de pessoas, de bens, às obrigações, ao Direito Natural e ao Direito Criminal.

O processo é historicamente desenvolvido segundo diferentes técnicas ligadas à invenção de modos de registro. Não há processo sem registro. Na História, houve mesmo o escrivão iconográfico, que registrava em figuras as etapas dos julgamentos. O regime de pessoas mostra que a evolução foi extremamente diversificada. Esse regime varia segundo o tipo de sociedade considerada: poligâmica, monogâmica, matriarcal, patriarcal. No que concerne ao regime de bens, Tarde é da opinião que é a invenção pessoal que faz a apropriação. O inventor proclama-se proprietário para defender seu bem, bem este vital para ele. Depois, a rede da apropriação desenvolve-se segundo o processo imitativo. A apropriação privada dos bens é, para ele, a primeira historicamente; a coletiva, posterior. Quanto às obrigações, os contratos, para Tarde, o princípio segundo o qual se deve respeitar essas contratações viria do respeito à invenção, respeito que se impõe àqueles a quem ela aproveita. Esse sentimento, de que se deve respeitar a invenção no interesse interindividual, torna-se, a seguir, o sentimento que faz respeitar, no interesse geral, a invenção. Depois, torna-se o sentimento que faz respeitar as contratações também no interesse geral. É a imitação que permite generalizar o sentimento de estar obrigado. Mas, em especial, será neste capítulo dedicado às obrigações que Tarde mais vai surpreender, quando analisa o contrato e o surgimento das obrigações, tanto quanto a absoluta ineficácia da concepção ortodoxa, — dita clássica, — dos elementos essenciais à formação do contrato, frente às novas invenções, v. g., os títulos ao portador. O Direito Natural é, para Tarde, um direito convencional, contratual, uma construção à qual se dá um alcance universal. Este dito Direito Natural nada tem a ver com a natureza, da qual a noção, para ele, permanece muito ambígua, e o estado de natureza” de Jean-Jacques Rousseau não é, para ele, senão uma utopia, uma construção ideológica destinada a justificar o poder de um grupo social.

Finalmente, Tarde encerra sua obra trazendo-nos uma interessante análise do Direito e a Sociologia, onde vai surpreender na parte reservada à analogia do primeiro com o desenvolvimento da Lingüística.

Obras

As principais obras de Tarde são:

A Sociologia

Em tese, este resumo não é necessário. Bastaria o livro e mais nenhum comentário. Todavia, como já observei, para Gabriel Tarde o Direito não pode ser impunemente dissociado da Sociologia que, por sua vez, sofreu, como o Direito, muita transformações ao longo da História. Por outro lado, é importante saber, com razoável certeza, onde e como Gabriel Tarde entra nesta ciência e o que reclama.

Ora, o conceito de Sociologia é variável conforme a época, o enfoque e a concepção. Teríamos diversas correntes de acordo com a escola individualista de Rousseau, por exemplo, ou de Hegel, Conte com o positivismo, Spencer com o evolucionismo, etc.

Pode-se defini-la como a ciência que estuda a natureza, as causas e os efeitos das relações que se estabelecem entre os indivíduos, quando organizados em sociedade. Seu objeto são as relações sociais, as transformações por que passam estas relações, assim como as estruturas, as instituições e os costumes que delas se originam. Distingue-se das demais ciências sociais pela abrangência de seu objeto, buscando conhecer, através de metodologia científica, a totalidade da realidade social, sem proposta de transformação, ou seja, trata-se de conhecer a realidade como tal. Eis seu conceito corrente, poder-se-ia dizer, seu conceito atual.

A abordagem sociológica das relações entre os indivíduos distingue-se hoje da abordagem biológica, psicológica, econômica e política dessas relações, ainda que não fosse sempre assim. Para Gabriel Tarde, assim como para Gustave Le Bon[11], por exemplo, a Psicologia deve integrar a Sociologia, especialmente no que concerne às multidões.

Vejamos Le Bon: “Afora as coletividades fixas constituídas pelos povos, existem coletividades móveis e transitórias denominadas multidões. Ora, essas multidões, com o concurso das quais se efetuam os grandes movimentos históricos, têm caracteres inteiramente alheios aos dos indivíduos que as compõem. Quais são esses caracteres, como evoluem? Esse novo problema foi examinado na Psicologia das Multidões. Só depois desses estudos comecei a entrever certas influências que me tinham escapado. Mas ainda não era tudo. Entre os mais importantes fatores da história, havia um, preponderante: as crenças. (...) Enquanto a psicologia considerou as crenças como voluntárias e racionais, elas permaneceram inexplicáveis. Depois de haver provado que elas são irracionais na maioria das vezes e involuntárias sempre, pude dar a solução desse importante problema.[12]

Embora haja pontos comuns, Tarde dirige uma crítica a Le Bon. Segundo este último, haveria uma ascensão perigosa das multidões; mas o primeiro entende que as multidões seriam um reflexo do passado, condenadas a ser substituídas pelos públicos, na medida em que não promovem a discussão crítica. Vive-se na era dos públicos e não na era das multidões como defendia Le Bon. Mas Tarde afirma que o público pode se tornar, embora raramente, numa multidão em potência, isto é, de um público tumultuoso derivariam multidões fanáticas que se passeiam pelas ruas gritando viva ou morra não importa o quê. Tarde estabelece uma relação inversa entre público e multidão, isto é, o público da Universidade, dos salões, dos cafés, da imprensa, etc. cresce mais rapidamente à medida que a multidão tumultuosa diminui; esta situação explica-se porque o público, enquanto espaço de discussão crítica, é gerador de apaziguamento nas relações pouco racionais da multidão[13].

Independente disso, porém, o interesse da Sociologia focaliza-se, atualmente, no todo das interações sociais e não apenas em um de seus aspectos, cada um dos quais constitui o domínio de uma ciência social específica. Vários obstáculos impediram a constituição da Sociologia como ciência, desde que ela surgiu, no século XIX. Entre os mais importantes citam-se a inexistência de terminologia clara e precisa, assim como a tendência para ver os fatos sociais de maneira subjetiva. Até então, podemos apenas referir homens e idéias que se foram desenvolvendo ao longo dos séculos. É o que faremos de maneira muito breve, apenas suficiente para estabelecer uma noção cronológica destas idéias e de seus autores, e de como as primeiras foram se propagando de século a século.

Aspectos Históricos

O interesse pelos fenômenos sociais já existia na Grécia antiga, onde foram estudados pelos sofistas. Os filósofos gregos, porém, não elaboraram uma ciência sociológica autônoma, já que subordinaram os fatos sociais a exigências éticas e didáticas. Assim, a contribuição grega à sociologia foi apenas indireta.

Os pensadores antigos já haviam notado a existência de certos fenômenos sociais que se diferenciavam dos demais, à medida em que não podiam ser enquadrados nas ciências então conhecidas.  Eram observados, assim, sob o ponto da vista moral, com Sócrates (469-399, a. C.); ou da política, com Aristóteles (384-322, a. C.).

Do primeiro, mais moralista que filósofo, sabemos que nasceu em Atenas, discutia pelas ruas, sofreu e foi condenado à morte que voluntariamente aceitou. Via a finalidade da ação humana na realização do bem moral; a virtude, que permitiria conhecer o bem, estaria na sabedoria. É dele o emprego da ironia crítica, que usou contra os sofistas, para demonstrar o absurdo de suas concepções. Trata-se da maiêutica, método em que em que se multiplicam as perguntas, a fim de obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito geral do objeto em questão. O leitor terá a oportunidade de ver este método em ação com Gabriel Tarde.

O segundo, Aristóteles, genialmente estabeleceu, com maior nitidez, o campo das ciências morais e o das ciências políticas. É a Aristóteles que devemos a idéia da divisão dos poderes em legislativo, executivo e judiciário, idéia esta mais tarde retomada por Montesquieu.

Entre ambos, podemos mencionar Platão (429-347, a. C.), aristocrata e principal discípulo de Sócrates, com quem conviveu durante oito anos. Sua concepção filosófica tem a justiça como principal virtude, constituindo-se em fundamento das demais que dela promanam: a temperança, a coragem e a prudência

Não deixando de fora o Oriente, podemos dizer que, já no século VII a. C., é permitido afirmar que havia também sistemas filosóficos, em especial, na Índia e na China. Na Índia, os Vedas, livros onde a religião, o mito e a filosofia formavam um todo; na China, o vulto lendário de Confúcio (551-478 a. C.), que ensinava a viver à procura do bem e evitando o mal.

Já na Idade Média constata-se a existência quase efetiva de um pensamento social, mas, ressalte-se, pensamento não sistemático, porque baseado na especulação e não na investigação objetiva dos fatos. Além disso, neste período medieval, anulou-se a distinção entre as leis da natureza e as leis humanas e impôs-se a concepção da ordem natural e social como decorrência da vontade divina, que não seria passível de transformação. Assim, eivado de conotações ideológicas, éticas e religiosas, o pensamento social medieval pouco evoluiu. Dos pensadores do medievo, porém, deve-se mencionar Santo Agostinho e Tomás de Aquino.

Agostinho (354-430), ou Santo Agostinho de Tagasta, por muito tempo foi pagão e professor de retórica, mas converteu-se ao cristianismo, tornando-se bispo, Bispo de Hyponna. Um dos pais da Filosofia da História, numa moral otimista, exaltou a liberdade humana que deve dirigir-se a Deus, tendo o bem por fundamento. Tomás de Aquino (1225-1274), construtor da síntese escolástica, deteve-se em especial nos estudos deixados por Aristóteles. Apresenta a natureza inteira “como uma grande hierarquia, partindo do menos perfeito e mais informe para o mais acabado e mais determinado[14]”. Deve-se a ele a proclamação da autonomia do saber racional e a separação entre filosofia e dogma.

Como grandes nomes do Renascimento, devemos referir, ao menos, Tomas Morus (1480-1535) e sua Utopia, editada por Erasmo, obra que delineia uma cidade ideal inspirada pela República de Platão; e João Althusius (1557-1638), que defendeu a tese da soberania inalienável do povo, tese esta, mais tarde, retomada por J. J. Rousseau.

O século XVII inicia-se com Descartes (1596-1650), o pai da filosofia moderna, e o estabelecimento do princípio da dúvida metódica, partindo da célebre afirmação: penso, logo, existo. O Discurso do Método, livro de poucas páginas que, sem a menor dúvida, abalou o mundo, foi escrito para servir de prefácio à Dióptrica, aos Meteoros e à Geometria, três ensaios surgidos em 1637. É tentador estendermo-nos. Eis os quatro preceitos do método:  1º) Nunca receber como verdadeira coisa alguma que não se reconheça evidente como tal, isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não aceitar senão aqueles juízos que se apresentem clara e distintamente ao espírito, de modo a não ser possível a dúvida a respeito deles; 2º) Dividir as dificuldades, que devem serem examinadas em tantas parcelas quantas se fizerem necessárias; 3º) Conduzir com ordem os pensamentos, partindo dos objetos mais simples e mais fáceis, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento daqueles objetos mais compostos, supondo mesmo a existência de ordem entre aqueles não se precedem naturalmente uns aos outros; 4º) Fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que se possa estar seguro de nada se haver omitido.

Mas foi apenas nos séculos XVIII e XIX que as ciências naturais e humanas fizeram rápidos progressos, com a ocorrência de profundas modificações econômicas, sociais e políticas ocorridas na sociedade européia daquele tempo, em decorrência da revolução industrial e do surgimento do capitalismo. Pôde-se então reafirmar, sobre bases mais sólidas, a libertação do pensamento dos dogmas medievais. Todavia, mesmo esses progressos, que teriam a seu favor uma suposta cientificidade, não eram sempre objetivos.

Contam-se, entre os antecedentes da sociologia, a filosofia política, a filosofia da história, as teorias biológicas da evolução e os movimentos pelas reformas sociais e políticas; em seus primórdios, foram mais influentes a filosofia da história e os movimentos reformistas. A pré-história da sociologia situa-se, assim, num período aproximado de cem anos, de 1750 a 1850, entre a publicação de L’Esprit des Lois (O Espírito das Leis), de Montesquieu, e a formulação das teorias de Auguste Comte e Herbert Spencer. Sobre estes três falaremos um pouco. Note-se bem que, até aqui, praticamente só falamos de filosofia, pois ainda não nascera nada que pudesse ser chamado “sociologia”,  – ainda não inventada, — embora, inegavelmente, o pensamento sobre os fatos sociais já existisse, fosse englobado na filosofia, fosse-o em religião.

Montesquieu (1686-1755) empregou mais de vinte anos para escrever L’Esprit des Lois, livro célebre pela definição de lei como a relação necessária que deriva da natureza das coisas. Notável historiador, jurista, estudioso das ciências sociais, Montesquieu é considerado um precursor da Geografia Humana, graças a seus trabalhos sobre clima e população.

A constituição da Sociologia como ciência, porém, só vai ocorrer na segunda metade do século XIX e mesmo o termo sociologia só vai aparecer com Comte, que consagrou-o na obra Cours de Philosophie Positive (1839, Curso de Filosofia Positiva), na qual batizou a nova “ciência da sociedade” e tentou definir seu objeto.

Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte (1798-1857) orientou seu pensamento a partir de duas idéias básicas: a de que os fenômenos sociais, como os de caráter físico, também obedecem a leis; e a de que todo conhecimento científico e filosófico deve ter por finalidade o aperfeiçoamento moral e político do homem. Mais tarde, dedicou-se integralmente à instituição da religião da humanidade, que logo se tornou influente em numerosos países, como Brasil, Chile e México. O filósofo impregnou-se de misticismo, criou um sacerdócio, sacramentos e orações, além de propor para seus adeptos uma rígida disciplina. O desejo de firmar e divulgar as bases do positivismo levou Comte a um empenho quase obsessivo e à dedicação em tempo integral à propaganda de sua nova religião. A correspondência de Comte com as sociedades positivistas em todo o mundo era vastíssima.

Herbert Spencer (1820-1903), um dos fundadores da Sociologia, dirigiu suas especulações rumo ao evolucionismo, transportando para o mundo moral e social os mesmos princípios do fenômeno da evolução no mundo físico.  Spencer pode ser considerado um dos adeptos da Teoria Organicista que veremos mais tarde, um pouco mais em detalhes, em razão das sérias conseqüências sociais e políticas que advieram desta teoria, com forte repercussão no Direito. O evolucionismo spenceriano não encontra mais apoio científico. Vale lembrar, todavia, que não se deve considerar totalmente destituído de mérito o trabalho de um homem que enfrentou, nada mais nada menos, que a monumental tarefa de construir toda uma filosofia, uma ética, uma moral e uma justiça que teriam como base pressupostos, à época, considerados científicos, em oposição às intervenções metafísicas. Spencer enfrentou duras críticas, mesmo ao tempo em que seus trabalhos tiveram aceitação, v.g., a acusação do Reverendo Davies, publicada no Guardian de 16 de julho de 1890: Spencer parece subentender aquilo que não reconhece. Na sua elaboração da idéia de Justiça, Spencer subentende a existência de uma lei que rege a razão humana e a conduta humana, quando sustenta que o bem da espécie é desejável de per si e que o entendimento humano aceita esta lei e corresponde a ela sem exigir outra justificação. Ora, enquanto Spencer se contentar unicamente com demarcar a marcha da evolução, não terá o direito de empregar a palavra: dever. Como poderia ele modificar o ‘veredictum’ de Kant e como lhe seria possível refutá-lo? A isto, Spencer respondeu: Pretende Vossa Reverência que a minha teoria da direção moral não me autoriza a indignar-me com o espetáculo de uma agressão ou de um malefício qualquer e acrescenta que, indignando-me, peço emprestado a Deus o fogo celeste. Subentende-se, pois, daqui, que somente os homens que aceitam as crenças correntes têm direito a indignar-se perante a iniqüidade. Por minha parte, não lhes confiro o monopólio desta indignação. Se Vossa Reverência me perguntar o que me impulsiona a censurar o injusto procedimento dos civilizados ante as raças inferiores, responder-lhe-ei que sou a isso compelido por um sentimento que acorda em mim sem a mínima intervenção da noção do dever, sem a influência de qualquer preceito divino, sem consideração de nenhuma espécie acerca de castigo ou recompensa neste ou noutro mundo. Tal sentimento resulta em parte de que se deu origem a um sofrimento, tornando-se-me penoso o conhecimento que dele tive; e resulta também da irritação que, em mim, desperta a infração de uma lei de conduta, ao serviço da qual estão os meus sentimentos, lei a que o bem da humanidade exige, no meu entender, a obediência de todos[15]. Spencer por Spencer talvez reserve algumas surpresas àqueles que o leram somente através de seus críticos e detratores, alguns julgando-o excessivamente inclinado ao biologismo, outros julgando-o excessivamente inclinado à metafísica.

Ora, tudo começou em 1859, quando Charles Darwin publicou The Origin of Species (A origem das espécies), livro polêmico, de grande impacto no meio científico, que pôs em evidência o papel da seleção natural no mecanismo da evolução. Darwin partiu da observação segundo a qual, dentro de uma espécie, os indivíduos diferem uns dos outros. Há, portanto, na luta pela existência, uma competição entre indivíduos de capacidades diversas. Os mais bem adaptados são os que deixam maior número de descendentes. Se a prole herda os caracteres vantajosos, os indivíduos bem dotados vão predominando nas gerações sucessivas, enquanto os tipos inferiores se vão extinguindo. Assim, por efeito da seleção natural, a espécie aperfeiçoa-se gradualmente. Entretanto, o sentido em que age a seleção natural é determinado pelo ambiente, pois um caráter que é vantajoso num ambiente pode ser inconveniente em outro.

O darwinismo estava fundamentalmente correto, mas teve de ser complementado e, em alguns aspectos, corrigido pelos evolucionistas do século XX para que se transformasse na sólida doutrina evolucionista de hoje. As idéias de Darwin e seus contemporâneos sobre a origem das diferenças individuais eram confusas ou erradas. Predominava o conceito lamarckista de que o ambiente faz surgir nos indivíduos novos caracteres adaptativos que se tornam hereditários. Isso não impediu, todavia, a ampliação do paradigma darwiniano ao campo social, com reflexos intensos no Direito, tanto civil quanto criminal. Exemplos claros desta ampliação não faltam. Podemos ilustrá-lo desde já, com a citação empreendida por Garofalo, em sua famosa obra La Criminologie, na terceira parte da qual, — destinada à repressão do delito, – abre-se o primeiro capítulo com uma citação de Darwin (A Origem das Espécies, cap. IV), a saber: Dei o nome de seleção natural, ou de persistência do mais apto, à conservação das diferenças e das variações individuais favoráveis, e à eliminação das variações nocivas[16].  É claro que, nisto, Darwin referia-se às espécies animais, mas idéia inspirou a alguns: e se fosse assim na sociedade dos homens? Bastava desenvolver as idéias já ventiladas por Darwin[17] e teríamos um novo sistema, de cunho científico, palavra tão em voga na época.

Ora, era pretensão de Spencer também aplicar ao homem o determinismo físico da natureza. As Teorias Organicistas assim estruturadas, no entanto, terminaram por desembocar numa verdadeira cruzada biológica. Como Tarde reagiu a isso?

A Sociologia, segundo Tarde, deveria identificar-se com a psicologia social, só podendo ser compreendida a partir de uma “psicologia intermental” que estudasse a interação das consciências. Contrariamente às teses correntes em seu tempo, teses estas que encaravam a Sociologia como física social, biologia social ou ideologia social, Tarde prefere a expressão “psicologia social”, expressão esta criada por ele. A verdade é que uma coisa social qualquer, uma palavra de uma língua, um rito de uma religião, um segredo de um ofício, um procedimento de arte, um artigo de lei, uma máxima moral, transmite-se e passa, não do grupo social tomado coletivamente ao indivíduo, mas certamente de um indivíduo, – parente, mãe, amigo, vizinho, camarada, — a um outro indivíduo, e que, na passagem de um espírito para outro espírito ela [a coisa social] se reflita.[18]

Principais Correntes Sociológicas

Esse campo nada visa senão indicar, com bastante brevidade, quais são as cinco correntes principais da sociologia: organicismo positivista, teorias do conflito, formalismo, behaviorismo social e funcionalismo.

Organicismo Positivista

Primeira construção teórica importante surgida na sociologia, nasceu da hábil síntese que Comte fez do organicismo e do positivismo, duas tradições intelectuais contraditórias. O organicismo representa uma tendência do pensamento que constrói sua visão do mundo sobre um modelo orgânico e tem origem na filosofia idealista. O positivismo, que fundamenta a interpretação do mundo exclusivamente na experiência, adota como ponto de partida a ciência natural e tenta aplicar seus métodos no exame dos fenômenos sociais. Os fundadores da nova disciplina agora chamada Sociologia adaptaram essa síntese ao ambiente social e intelectual de seus países: Auguste Comte, na França, Herbert Spencer, no Reino Unido, e Lester Frank Ward[19], nos Estados Unidos, os pioneiros.

Depois da fase dos pioneiros, surgiu o chamado período clássico do organicismo positivista, caracterizado por uma primeira etapa, em que a biologia exerceu influência muito forte, e uma segunda etapa em que predominou a preocupação com o rigor metodológico e com a objetividade da nova disciplina.

O organicismo biológico, inspirado nas teorias de Charles Darwin, considerava a sociedade como um organismo biológico em sua natureza, funções, origem, desenvolvimento e variações. Segundo essa corrente, praticamente extinta, o que é válido para os organismos é aplicado aos grupos sociais. A segunda etapa clássica do organicismo positivista, também chamada de sociologia analítica, foi marcada por grandes preocupações metodológicas e teve em Ferdinand Tönnies[20], Émile Durkheim e Robert Redfield[21] seus expoentes máximos.

Émile Durkheim (1917-1858), partindo da exterioridade dos fatos sociais, abordou a sociedade como um fato sui generis e irredutível a outros, compreendendo-a como um conjunto de ideais constantemente alimentados pelos indivíduos que fazem parte dela. Dessa forma, conceituou a consciência coletiva como o “sistema das representações coletivas de uma dada sociedade”. A linguagem, por exemplo, é uma representação coletiva, assim como os sistemas jurídicos e as obras de arte.

Para Durkheim, cujo pensamento prevaleceu na França em detrimento do de Gabriel Tarde, o núcleo organicista encontra-se na afirmação segundo a qual uma sociedade não é a simples soma das partes que a compõem, e sim uma totalidade sui generis, que não pode ser diretamente afetada pelas modificações que ocorrem em partes isoladas. Surge assim o conceito de “consciência coletiva” que se impõe aos indivíduos, consciência coletiva esta que não existe para Gabriel Tarde. Para Durkheim, os fatos sociais são “coisas” e como tal devem ser estudados. Seria ele o sociólogo que mais teria se aproximado de uma teoria sistemática, deixando uma obra importante também do ponto de vista metodológico, pela ênfase que deu ao método comparativo, segundo ele o único capaz de explicar a causa dos fenômenos sociais, e pelo uso do método funcional. Não afirmou, todavia, a grande influência da imitação nos fatos sociais, coisa que Tarde genialmente destacou, como já se viu inicialmente. Para Durkheim, não basta encontrar a causa de um fato social; é preciso também determinar a função que esse fato social vai preencher. Sociólogos posteriores, como Marcel Mauss[22], Claude Lévi-Strauss[23] e Mikel Duffrenne, retomaram de forma atenuada o realismo sociológico de Durkheim.

Teorias do Conflito

Segunda grande construção do pensamento sociológico, surgida ainda antes que o organicismo tivesse alcançado sua maturidade, a teoria do conflito conferiu à sociologia uma nova dimensão da realidade. O grupo social passou a ser concebido como um equilíbrio de forças e não mais como uma relação harmônica entre órgãos, não-suscetíveis de interferência externa.

Antes mesmo de ser adotada pela sociologia, a teoria do conflito já havia obtido resultados de grande importância em outras áreas que não as especificamente sociológicas. É o caso, por exemplo, da história, da economia clássica, em especial sob a influência de Adam Smith[24] e Robert Malthus[25]; e da biologia nascida das idéias de Darwin sobre a origem das espécies. Dentro dessas teorias, cabe destacar o socialismo marxista, que representava uma ideologia do conflito defendida em nome do proletariado, e o darwinismo social, representação da ideologia elaborada em nome das classes superiores da sociedade e baseada na defesa de uma política seletiva e eugênica. Ambas enriqueceram a sociologia com novas perspectivas teóricas. Cumpre detalhar um pouco mais em que consistia essa representação ideológica elaborada em nome das classes superioriores da sociedade e sua política seletiva e eugênica. Vejamos Morel e seu Tratado das degenerescências físicas, intelectuais e morais da espécie humana, Paris, 1857, para, mais uma vez, ilustrar a aplicação do paradigma biológico à sociedade. (Vale lembral que Morel é citado por César Lombroso, em seu Homem Delinqüente, como “o primeiro de todos”[26].)

Foi espantosa a repercussão deste Tratado, apesar de seus erros e de sua absoluta parcialidade. Não podemos jamais nos esquecer de que todo aquele período histórico foi marcado por crenças totalmente despidas do que hoje se considera científico, assim como nosso próprio tempo será também alvo de análises semelhantes a essas que operamos hoje relativamente ao passado. “Após Morel, a sociedade humana conheceu o nome de seu inimigo”, Gennil-Perrin (1913). Saída dos ideais revolucionários de 1789, a idéia da perfectibilidade do homem é a base da doutrina do progresso que animava o pensamento científico do século XIX. Vejamos Pierre Larousse: “O mundo marcha em direção ao bem. A fé na lei do progresso é a verdadeira fé de nossa era. Está aí uma crença que encontra poucos incrédulos. O progresso não está apenas no indivíduo; ele está ainda, por conseqüência, no gênero humano. Espelha a mesma lei da espécie. Devemos ter como verdadeira fé esta fé no progresso que sustenta nossa marcha. Acreditemos no progresso sem fracioná-lo; num progresso uno, onde todos os progressos se atenham. Esta é a fé de nossa era.” Ora, ao lado da lógica racional que deveria dar sustentação ao científico, nenhuma época, nenhum período histórico refoge às crenças que permeiam a sociedade, a mais das vezes, engendrando a própria razão e impulsionando nossa maneira de agir. Inoperantes que se fizeram as cruzadas pela fé, desencadear-se-ia então um verdadeira cruzada biológica, armada de toda uma sistemática, uma nomenclatura, uma simbologia que se sacraliza através da ciência.

Morel destacou, em primeiro lugar, que as causas da degenerescência (definida esta como um desvio doentio do tipo normal da humanidade), sejam elas de ordem fisiológica ou de ordem moral, são sempre solidárias.  Ele observa sobretudo que essas causas irradiam-se na família e na sociedade, vindo a criar raças doentes e a constituir, para as nações, um perigo relativo não menos sério do que aquele que pesa sobre o indivíduo. O ser degenerado, — afirma Morel, — torna-se não apenas incapaz de constituir, na humanidade, a cadeia de transmissibilidade de um progresso, mas constitui-se ainda num obstáculo, o maior obstáculo, a este progresso, através de seu contato mantido com a parte sã da população”. Como herança, pois, as causas da degenerescência transmitem-se e são um obstáculo maior à perfectibilidade do homem. Como se vê, Morel apoia-se também sobre considerações filosóficas e teológicas, e lança a seus colegas um verdadeiro apelo à mobilização geral. Estas linhas tiradas de seu Tratado são particularmente instrutivas:

“A solidariedade das causas degeneradoras não é mais, para mim, objeto de dúvida, e este livro destina-se a demonstrar a origem e a formação de variedades doentias na espécie humana. É-me impossível doravante separar o estudo da patogenia das doenças mentais daquela das causas que produzem as degenerescências fixas e permanentes, das quais a presença, em meio à parte sã da população, é causa de perigo incessante. Se é assim, o tratamento da alienação mental não deve ser visto como independente de tudo aquilo que é indispensável tentar para melhorar o estado intelectual, físico e moral da espécie humana. A conseqüência é rigorosa dá-se no sentido desse tratamento, compreendido dentro do ponto de vista médico, mais amplo, mais filosófico e mais social, ao qual se dirigirá, a partir de agora, toda a atividade de minhas investigações terapêuticas. (...) Meus objetivos serão alcançados no dia em que se vir aumentar o número de médicos, dos quais os esforços terão por objetivo a melhora intelectual, física e moral da espécie humana.”

Destaque-se, entretanto, a perspicácia notável de Gabriel Tarde, no quarto capítulo da presente obra, ao referir-se à temática do naturalismo jurídico, que chegou a ter conseqüências no campo do Direito Privado: É sobretudo a propósito das sucessões que o naturalismo jurídico acreditou poder ter seqüência. D’Aguanno consagra oito ou dez páginas de texto cerrado à hereditariedade fisiológica, à cissiparidade, à gemiparidade, à geração alternante, à pangênese de Darwin, à perigênese de Hoeckel, e tudo para justificar dessa sorte o direito à herança. Eis seu raciocínio: se está demonstrado que as virtudes, os vícios, as doenças, os caracteres quaisquer se transmitem hereditariamente, está provado que os bens devem se transmitir da mesma maneira. Aliás, por uma razão biológica que me parece melhor, ele trata de mostrar que direito de sucessão e o direito de propriedade são, no fundo, idênticos.  Mas, com argumentos desse gênero, onde se iria parar? Sob o pretexto de que a criança é a continuação fisiológica de seus pais, visto “a continuidade do plasma germinativo”, de acordo com o Dr. Weissmann, tornar-se-ia o filho responsável por todas as contratações, engajamentos e todas as faltas do pai. As sociedades primitivas, eu reconheço, bem antes de toda iluminação antropológica, editaram essa solidariedade familiar. Mas eu creio que o progresso humano consistiria em romper esse feixe natural para permitir a esses elementos disjuntos a formação de associações verdadeiramente sociais em sua origem e em seu objetivo. Em suma, a necessidade de estudos biológicos é mal compreendida pelos sociólogos naturalistas. É necessário conhecer a natureza fisiológica do homem, mas não a fim de curvar servilmente às exigências de seu organismo suas instituições sociais, mas a fim de empregar este conhecimento na realização de seus fins sociais, dos desígnios coletivos, mesmo quiméricos às vezes, dos planos de reorganizações nacionais ou humanitários, porque o contato entre os espíritos associados é o único a poder fazer brilhar um deles, difundindo-o entre os demais. Nascidas das funções vitais, as funções sociais não se sujeitam, de início, senão se as liberando e subjugando a seu turno. O homem social faria bem em conhecer a ciência enciclopédica, seu querer e, por conseguinte, seu dever permaneceriam em larga medida, numa medida sempre crescente, independentes de seu saber. E, malgrado sua onisciência, sua moral poderia não ser mais fortalecida. Que fazer? — perguntar-se-ia ainda e mais ansiosamente que nunca, esse espírito que tudo saberia. Eu digo mais ansiosamente que nunca, porque ele teria perdido, em se satisfazendo, sua ambição mais elevada, aquela de conhecer.  O universo inteiro não apresenta à Vontade espectadora senão um imenso campo de recursos; cabe a ela criar seu objetivo, o que fará, não olhando o céu nem a terra, mas escutando a si própria, penetrando o enigma profundo de sua originalidade inata e única, estendendo-se socialmente, pela luta e pelo amor, do fundo do coração, de onde eclodem as inspirações ambiciosas ou generosas, despóticas ou heróicas.

Ora, o darwinismo social, como se pôde ver, assumiu conotações claramente racistas e sectárias. Entre suas premissas estão a de que as atividades de assistência e bem-estar social não devem ocupar-se dos menos favorecidos socialmente porque estariam contribuindo para a destruição do potencial biológico da raça. Nesse sentido, a pobreza seria apenas a manifestação de inferioridade biológica. Quanta diferença do pensamento sustentado por Tarde!

Felizmente, nem todos os homens que viveram naquele tempo submeteram-se à miopia da época, e, ao que se pode notar, Gabriel Tarde foi um destes a respeito de quem pode-se afirmar que fugiu à regra. Em sua obra Criminalidade Comparada, verdadeira reação empreendida contra o Homem Delinqüente de Lombroso, Tarde propunha já uma visão mais ampla da questão criminal, chegando a sugerir políticas de integração social do delinqüente, que não poderia ser visto simplesmente como a resultante biológica da degeneração.

Formalismo

Para o formalismo, as comparações devem ser feitas entre as relações que caracterizam qualquer sociedade ou instituição, como, por exemplo, as relações entre marido e mulher ou entre patrão e empregado, e não entre sociedades globais, ou entre instituições de diferentes sociedades. O interesse pela comparação entre relações permitiu à sociologia alcançar um nível mais amplo de generalização e conferiu maior importância ao indivíduo do que às sociedades globais. Essa segunda característica abriu caminho para o surgimento da psicologia social.

Behaviorismo Social

Surgida entre 1890 e 1910, o behaviorismo social se dividiu em três grandes ramos: behaviorismo pluralista, interacionismo simbólico e teoria da ação social, legando à sociologia preciosas contribuições metodológicas.

O behaviorismo pluralista, formado a partir da escola de imitação-sugestão representada por Tarde, centralizou-se na análise dos fenômenos de massas e atribuiu grande importância ao conceito de imitação para explicar os processos e interações sociais, entendidos como repetição mecânica de atos.

Os americanos Charles Horton Cooley[27], George Herbert Mead[28] e Charles Wright Mills[29] são alguns dos teóricos do interacionismo simbólico que, ao contrário do movimento anterior, centralizou-se no estudo do eu e da personalidade, assim como nas noções de atitude e significado para explicar os processos sociais.

O alemão Max Weber[30] foi o expoente máximo do terceiro movimento do behaviorismo, a teoria da ação social. Com seu original método de “construção de tipos sociais”, instrumento de análise para estudo de situações e acontecimentos históricos concretos, exerceu poderosa influência sobre numerosos sociólogos posteriores.

Funcionalismo

A reformulação do conceito de sistema foi o centro de todas as interpretações que constituem a contribuição do funcionalismo, última grande corrente do pensamento sociológico e integrada por dois importantes ramos: o macrofuncionalismo, derivado do organicismo sociológico e da antropologia, e o microfuncionalismo, inspirado nas teorias da escola psicológica da Gestalt e no positivismo. Entre os adeptos do funcionalismo estão os antropólogos culturais Bronislaw Malinowski[31] e A. R. Radcliffe-Brown[32].

Conclusão

Repercussão da Obra de Gabriel Tarde

Assim, a partir de um rápido esboço, espero haver conseguido apresentar, — resumidamente, — nosso autor, bem como seu pensamento e sua importância, traçando um brevíssimo histórico da Sociologia, sem maiores pretensões senão aquelas de melhor situar o leitor de hoje perante uma obra que foi escrita há quase cem anos.

Independente disso, porém, a obra de Tarde vem sendo objeto de reedições e comentários, pois sua temática, ao discutir a imitação, a invenção, o público, as multidões e os meios de comunicação, mostra-se de uma atualidade contundente, aportando paradigmas plenamente válidos, como ferramentas a serviço daqueles a quem cabe interpretar a realidade, o Direito e a sociedade.

Finalmente, cabe destacar, a partir do brilhante trabalho “Público, Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário e Análise Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule”, de Marco António Antunes, Universidade da Beira Interior, a relação de obras, — algumas bastante atuais, — que têm em comum o fato de haverem sido escritas a respeito de Gabriel Tarde. Vejamos algumas:

AAVV, 1973, Gabriel Tarde: Ecrits de psychologie sociale, Toulouse, Privat.
BOUDON, Raymond, 1964, La “statistique psychologique” de Tarde in Annales internationales de criminologie, nº 2, Paris.
BOUGLÉ, C., 1905, Un sociologue individualiste: Gabriel Tarde in Revue de Paris, XII, Paris
CLARK, Terence N. (introduction and edited by), 1969, Gabriel Tarde On Communication and Social Influence: Selected Papers, Chicago, University of Chicago Press.
DAVIS, Michael, 1906, Gabriel Tarde: An Essay in sociological theory, Columbia University (tese de doutoramento).
DUPONT, A, 1910, Gabriel Tarde et l’économie politique, Paris
ESPINAS, A., 1910, Notice sur la vie et les oeuvres de Gabriel Tarde in Séances et travaux de l’Académie des Sciences morales et politiques, LXXIV, Paris.
GEISERT, M., 1935, Le système criminaliste de Tarde, Paris, Editions Domat-Montchrestien.
GIDDINGS, F., 1896, Reviews of Gabriel Tarde and other works in Political Science Quarterly, vol. 11.
KATZ, Elihu, 1992, On parenting a paradigm: Gabriel Tarde’s agenda for opinion and communication research in International Journal of Public Opinion Research, vol. 4.
LACASSAGNE, A., 1904, Gabriel Tarde (1843-1904) in Archives d’anthropologie criminelle, vol. 19.
LUBEK, Ian, 1981, Histoire de psychologies sociales perdues: le cas de Gabriel Tarde in Revue française de sociologie, vol. XXII-3, Paris.
LUBEK, Ian, 1980 (10 Jul) Some overloocked French contributors to social psychology before 1908: Hamon, Duprat, Tarde, and others in XXII Congresso de Psicologia, Leipzig, GDR.
MATAGRIN, Amédée, 1910, La psychologie sociale de Gabriel Tarde, Paris, Félix Alcan.
MILLET, J., 1970, Gabriel Tarde et la philosophie de l’histoire, Paris, Vrin.
RICHARD, G., 1902, Revue de Gabriel Tarde: Psychologie Economique in Revue Philosophique, vol. 54.
ROCHE-AGUSSOL, Maurice, 1926, Tarde et l’économie psychologique, Paris, M. Rivière.
TOSTI, Gustavo, 1897, The Sociological Theories of Gabriel Tarde in Political Science Quarterly, vol. 12.
TOSTI, Gustavo, 1900, Review of Gabriel Tarde’ s Social Laws in Psychological Review, vol. 7.
VUILLEMIN, J., 1949, L’imitation dans l’interpsychologie de Tarde et ses prolongements in Journal de psychologie, vol. 42, Paris.

E podemos ainda, felizmente, citar o Brasil, em novembro de 2001, quando o Dr. Eduardo Viana Vargas,  – do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, com dissertação de Mestrado, no início dos anos 90 sobre Gabriel Tarde, — lança agora o livro Antes Tarde do que Nunca — Gabriel Tarde e a Emergência das Ciências Sociais, editora Contra Capa, RJ, 2001.

Ao leitor, mais uma vez, reitero o desejo de Gabriel Tarde já destacado na primeira página: “Todo livro, seja ele um poema ou um romance, é um Catecismo ou um Código em projeto. Não há livro, sobre não importa que assunto, que não aspire a regrar a conduta ou o pensamento dos homens, a ensinar-lhes alguma verdade ou a fazer-lhes algum bem.”

A Tradutora


 

AS
TRANSFORMAÇÕES
DO
DIREITO
(Estudo Sociológico)

 

 

Gabriel Tarde


 

[imagem]

Prefácio à 2ª Edição Francesa

 

Os pequenos livros têm a vantagem das preces curtas: se não vão todos ao céu, vão direto ao coração do leitor contemporâneo que está sempre apressado. Mas têm eles o inconveniente de induzir o crítico em erro, na falta de suficiente desenvolvimento dos temas. Este teve a sorte de encontrar muita benevolência em seu caminho; mas objeções foram-lhe endereçadas, talvez nascidas de mal-entendidos. Faltar-me-ia espaço se fosse responder a todas, ou mesmo apenas àquelas que o tradutor espanhol Adolpho Posada, professor da Universidade de Oviedo, introduziu no sábio comentário que fez a honra de acrescentar à sua tradução.  Até agora devo, pois, resignar-me a conservar, quase sem alterações, o texto da primeira edição. No entanto, parece-me conveniente reproduzir certas explicações que, já publicadas na Revue Philosophique e endereçadas a um de nossos mais distintos contraditores, permanecem próprias a dissipar muito bem interpretações errôneas, às quais me permito opor meu ponto de vista sociológico, interpretações estas que tiveram lugar um pouco por falha minha talvez.

É verdade que fiz uma obra polêmica negativa, dirigida, ao mesmo tempo, contra a origem dos novos estudos e contra as suas aplicações?” De forma alguma. Não foram estes os estudos que combati, mas as conclusões prematuras, as generalizações precipitadas construídas sobre elas e a origem mesma dessas generalizações abusivas, a saber: a hipótese sem prova e sem probabilidade de que, malgrado a diferença das raças e circunstâncias, todas as sociedades tiveram o mesmo ponto de partida e seguiram — ou tenderam a seguir — normalmente a mesma série de fases. Se eu nego que o normal seja o uniforme, afirmo em toda parte a necessidade de um desenvolvimento, de uma gênese por transformação. O que rebato é o transformismo unilinear que não é senão um determinismo intensificado. Contento-me com um determinismo simples que se limita a exigir de todos os fenômenos a obediência às leis da mecânica e da lógica, mas que não se constrange, de outra parte, a sofrer as exigências dessas tiranias subalternas que qualquer um intitula: “a fórmula da Evolução...”.  Admitindo a heterogenia inicial, não sem alguma razão, acredito na pluralidade das linhas de desenvolvimento, e deve-se convir que a observação dos fatos está longe de me ser contrária.

No início dos estudos filológicos, admitia-se, geralmente, — julgava-se científico e filosófico admitir, — que todas as línguas deveriam proceder de uma mesma língua mãe, e permanece, até hoje, alguma coisa desse preconceito entre os lingüistas que pretendem ainda sujeitar todos os idiomas a atravessarem os quatro estados sucessivos do monossílabo, da aglutinação, da flexão... e do analitismo. Seria isto o que abriu uma brecha nos estudos lingüísticos, estes que nos poderiam prestar, ao contrário, o maior serviço, quando se reconheceu que existem um certo número de famílias de línguas, sem parentesco entre elas, evoluindo cada uma à parte, e seguindo sua própria lei, como cada idioma seguindo seu próprio gênio? Bopp[33] ridiculariza, de modo encantador, esta gramática unitária, pois que as declinações grega, latina, alemã, — únicas conhecidas em sua época, — não ultrapassariam jamais o número de seis casos, demonstrada sabiamente a necessidade desse número e a impossibilidade de um número superior. Ele publicou isto justamente no momento em que a descoberta do sânscrito[34] revelava a existência de um sétimo, de um oitavo caso e de outros ainda. Não foi isto o que se fez em prejuízo dos estudos de religião comparada, quando se demonstrou a Max Müller[35] que sua teoria dos mitos formados por trocadilhos inconscientes, — ou a Spencer que seu evemerismo[36] renovado, — eram aplicáveis a tal ou qual mitos, mas não universalmente? Não foi isto o que prejudicou mesmo estas altas pesquisas e a infância da ciência futura que elas traziam em seu seio, caso se viesse a demonstrar que há diferentes famílias de religiões e diversos tipos de evolução religiosa, — e eu acrescentaria política, econômica, estética, moral, jurídica enfim, — em lugar do tipo único ao qual se está ainda muito disposto a dogmatizar?

Bem, é o máximo a que ouso avançar. Permaneço convencido de que, após haver compilado muitos documentos que revelaram, em Direito comparado, também um sétimo, um oitavo, um centésimo caso não previsto, somos levados a expandir a noção atualmente difundida de Evolução. A evolução não é uma via, mas uma rede de vias anastomoseadas.

Já que o fato parece demonstrado pelas línguas, — onde os dicionários diferem de modo irredutível de uma família a outra, e onde os gramáticos não apresentam, seja do ponto de vista de sua composição, seja de sua formação, senão vagas analogias, quase informuláveis, — por que olhar como anticientífica a idéia de que bem poderia se dar o mesmo nos diferentes ramos da árvore sociológica? O mais desenvolvido, o melhor formado destes ramos é precisamente a lingüística. E constata-se que é ela que parece dar a confirmação mais sensível às minhas idéias em sociologia.

Notai que minha maneira de ver não obriga, de modo algum, a desconhecer a importância das similitudes imprecisas das quais falei entre os tipos de evolução independente. Ela as eleva, ao contrário, considerando-as, não como coincidências fortuitas ou misteriosas, mas como efeitos necessários da lógica humana, cumprindo finalidade humana, em tudo comparável a ela mesma, e aplicando-se a descobrir os liames de percepções em tudo similares ou as satisfações de necessidades orgânicas em tudo semelhantes. Precisar as leis desta lógica, demonstrar os encadeamentos que ela requer, as uniões que ela impede, as retrogradações que ela interdita. Realçar estas leis, elevá-las acima de todas as pequenas fórmulas empíricas de evoluções concretas, como uma fórmula de evolução ou de dedução superior seja possível, aplicável a todas as conexões possíveis de trocas sociais. Tal é a tarefa que, ao meu sentir, deve se impor à Sociologia, se se quiser dar-lhe um lugar entre as ciências, porque nenhuma dessas leis é, no fundo, outra coisa senão um regramento de possibilidades, ou seja, de certezas condicionais. A distinção entre uma lei empírica e uma lei científica é que esta última tem sempre um conteúdo virtual imenso. O que quer que seja, parece-me que, ao ver as coisas sob tal prisma, não merece quase nenhuma reprovação o reduzir quase tudo, em ciência social, à imitação. Da imitação ocupei-me muito, porque jamais pude compreender como se fechavam os olhos diante dela, para torturar o espírito em explicar sem ela, aquilo que só ela evidenciava da maneira mais simples ao mundo. Mas eu sei bem que, se a imitação é um fato social elementar, ela não é, – e eu jamais disse que era, — o que é o alfabeto para quase toda a literatura. Exagerei talvez seus méritos? Seja. Mas reagi contra uma tal obstinação!

Um de meus adversários é um bom exemplo. Para ele, a imitação é quase nada. “Não podem, – diz ele, — existir leis de desenvolvimento jurídico (ou de desenvolvimento social qualquer, bem entendido) senão fora da imitação”. Os fatos da imitação não ofereceriam senão a importância “apresentada pelas doenças para o conhecimento dos estados de saúde”. “É apenas quando a imitação está fora de causa, quando o desenvolvimento continua incontestavelmente fora de todo empréstimo, em sua originalidade integral, que se pode, em sentido próprio, perguntar-se quais são as leis que o regem.” — Em sua originalidade integral? Eu ignoro o que possa significar tal expressão numa doutrina que, postulando uma analogia inata, obrigatória, de todos os desenvolvimentos, não deixa a cada um destes nada de verdadeiro, de profundamente característico. Pode-se permanecer original, quando não nos assemelhamos a qualquer um senão quando o copiamos. Mas quando, espontaneamente, centenas de homens isolados agem como um só homem, não é autônomos que se os devem chamar.  São autômatos. Não importa. O que retenho da precedente citação é que as leis dos fenômenos da imitação não têm nada de científico. Esta asserção, se refletirmos, supõe a inversão completa da idéia de ciência. Com efeito, não se saberia contestar, a imitação é uma das formas, a forma propriamente social, eu creio, — o que não quer dizer a forma social única — da repetição universal. Com toda certeza, é a ela que são devidos, de fato, pensamentos e atos humanos, palavras, ritos, produtos, — como a geração em termos de funções e de caracteres orgânicos, como a ondulação em termos de movimentos e de figuras, — as repetições, as mais precisas, as mais suscetíveis de se prestarem aos registros e aos cálculos sábios da estatística, esse termômetro, ou esse dinamômetro social. Tudo o quanto há de quantitativo, ou quase tudo, no domínio propriamente social, é o que existe aí de imitativo. Se, pois, a Sociologia deve, cuidadosamente, excluir de seus dados os fenômenos da imitação, o mesmo equivale a dizer que as ciências físicas deveriam deixar de lado todos os fenômenos ondulatórios, luminosos, som, eletricidade; as ciências biológicas, todos os fenômenos outros além daqueles de geração espontânea; e que físicos ou naturalistas, ocupando-se do que pode ser medido e contado, em fazendo uso de seus instrumentos de precisão, perdem seu tempo. Seguramente, não atribuo ao meu sábio crítico tais enormidades. Mas seu princípio aí o conduz diretamente. Persisto em crer, pois, que não é sem interesse científico ver-se aplicar perfeitamente as leis lógicas ou extralógicas da imitação à propagação gradual de um corpo de costumes, onde uma legislação que, a partir de uma cidade conquistadora, de uma casta dominante, se difunde ou tende a difundir-se de comunidade a comunidade, de classe a classe; à estagnação de um direito, do qual a vida é alimentada unicamente pela imitação dos antepassados; à progressão de um direito fecundado pela imitação do estrangeiro, etc.  Erra-se em não cuidar da imitação e de sua importância. Imaginando milhares de tipos de similitudes de evolução jurídica universalizadas sem motivo e exageradas freqüentemente, deixam de lado a mais concreta, a mais séria, a mais universal das leis do desenvolvimento. Quero referir-me àquela da expansão progressiva das relações de direito,  que não cessei de pôr em relevo.  Verdade seja dita: O que restaria da história do Direito, caso se suprimisse tudo aquilo que repousa, expressa ou implicitamente, sobre a imitação?

Alguma coisa, sim. Mas observe-se que não se poderia jamais dizer o quê. O triste é que, se verdadeiramente não pudesse ser questão de leis do desenvolvimento jurídico senão “quando a imitação estivesse fora de causa”, dever-se-ia renunciar a tentar aplicar a menor destas leis, pois: Nos casos em que as legislações de dois povos, mesmo antípodas um do outro, se assemelhassem nitidamente, estar-se-ia seguro de que não houve imitação? Não se pode duvidar que, no passado agitado de nossa espécie, — como em nossos dias, — operaram-se uma série de semeaduras longínquas de idéias e de exemplos, um transporte freqüente de germes sociais a grandes distâncias, do qual autores anônimos não fizeram nenhum alarde e de que todas as pistas se perderam. Outrora, antes do darwinismo, quando se reconhecia, em dois países distantes, sem comunicação conhecida, flora e fauna um pouco semelhantes, ou mesmo muito semelhantes, reputavam-se-as autóctones, criadas sobre o lugar e não se tinha a idéia de maravilhar-se do prodígio implicado nessa autoctonia. Deve-se aos esforços de Lyell, de Darwin, de cem outros, fazer prevalecer a idéia de que houve geração e não criação e que, na realidade, os organismos mais sedentários, plantas ou animais, encontraram um meio de expedirem, até a extremidade do globo, óvulos fecundados de sua espécie, missionários de sua religião vital.  É suficiente, mesmo, um só viajante, um prisioneiro de guerra, um navegador extraviado, para inocular aos insulares, aos bárbaros, tal idéia, tal necessidade, tal produto de um povo civilizado situado a milhares de léguas de lá. Outras vezes, mais freqüentemente, a propagação faz-se mais próxima, mas, por conta de revoluções antigas, as etapas intermediárias desaparecem.  Igualmente, tenho eu o direito de pensar que se inverteram os papéis quando, a propósito de passagens onde supus, — com ou sem razão, pouco importa, – que certas similitudes marcantes entre povos longínquos podem ser devidas a empréstimos. Pedem-me a prova de que houve cópia. Eu perguntaria: Quem me provaria que não houve cópia, ou seja, que houve, talvez, um encontro dos mais surpreendentes? O maravilhoso não se presume. Talvez eu me engane, conjeturando a possibilidade de um transporte de nossos contos de fadas até a terra dos zulus, ou conjeturando aquela de uma ação imitativa qualquer no fundo das marcantes analogias assinaladas por Seignette entre os costumes pré-históricos dos árabes e aqueles dos romanos antes das XII Tábuas. Mas se fui temerário nisso, Humbolt[37] foi mais ainda, porque, seguramente, as analogias de ordem mitológica, artística, agrícola, sobre as quais ele fundamenta a hipótese de uma importação de idéias do Antigo Continente até o Novo Mundo, muito tempo antes de Cristóvão Colombo, são menos nítidas que as confrontações de Seignette; e, além disso é muito mais corajoso conjeturar uma comunicação pré-histórica da China ou do Japão com o México dos astecas ou com o Peru dos incas através do oceano, como àquela da Índia antiga com a Arábia. Todos conjeturamos sempre, meus adversários bem mais que eu. Eles, em imaginando que, se se pudesse remontar ao berço de todas as evoluções históricas, convir-se-ia com suas fórmulas sugeridas, todavia, para um certo número de povos apenas; eu, em supondo que, se se conhecessem em detalhes os fatos, ver-se-ia, não a totalidade, mas a maioria (em número e importância) das similitudes sociais postas na conta da geração espontânea, por assim dizer, ligar-se à geração ordinária e verdadeiramente “normal” pela via do empréstimo. Hipótese por hipótese, a minha tem talvez a vantagem da clareza.

Por exemplo: eu consinto de boa vontade que uma invenção pode ter — e freqüentemente tem – muitos inventores. Mas onde eu disse o contrário? Antes reconheci isso mesmo em termos formais. Apenas a uniformidade da evolução exige, além do mais, que as mesmas invenções devam, ao longo do tempo, aparecer em toda parte e, em toda parte, na mesma ordem. É esta ordem invariável que eu nego, e não àquela da reaparição inevitável.  Ora, concedei-me que, em razão de sua natureza em parte acidental, as invenções puderam e deveram suceder-se numa ordem em parte variável, e não se deve retirar todo apoio concreto à idéia de um único encadeamento normal de fases, porque a anterioridade ou a posteridade de uma descoberta em relação à outra é fato de imensa conseqüência, relativamente aos frutos longínquos que ela trará no curso que vai imprimir à história de um Direito, de uma língua, de uma religião, de uma ciência, de uma arte.  A raça de furfoz, segundo Quatrefages[38], era muito inferior à raça cro-magnon que desenhava artisticamente, possuindo o arco e a flecha; mas a primeira, que não sabia nem atirar com o arco nem desenhar, conhecia a arte da cerâmica que a segunda ignorava. Em agricultura, em cerâmica, em arquitetura, em limpeza, os antigos peruanos eram muito elevados, mas não tinham qualquer sorte de escrita. Supondo que a pólvora houvesse sido inventada nos tempos de Roma, ou a bússola, ou a imprensa, ou simplesmente a notação do zero, — invenção tão simples em aparência, imaginada pelos gregos, tão admiravelmente dotados, de resto, em matemática, — a face da antigüidade e do mundo moderno teria sido absolutamente diferente, e não teríamos, sem dúvida, a Idade Média... Inútil ir mais longe. Esses exemplos são suficientes para mostrar a parte do acidental, — em termos de evolução, mesmo científica, — e o erro de não ver senão uma quantidade negligenciável ou uma anomalia passageira. Do acidental decorre o necessário. Poligenismo [39] e determinismo[40] nada têm de contraditório.

 

G. T.
Maio de 1894.


 

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Introdução

Observações Preliminares

Lenta introdução do fermento evolucionista e antropológico no estudo do Direito Civil. A evolução jurídica e a antropologia jurídica. Falsa concepção ordinária da evolução. Similitudes numerosas entre as diversas fases atravessadas pelos Direitos independentes – problemas que elas suscitam.

 

O Direito é, de todos os domínios da vida social, aquele onde a especulação filosófica é a menos exercida em nossos dias. Ela tem curso em filologia e mitologia comparadas, em política, em moral, em estética, em economia política; mas aos Códigos faz medo. Deixa o Direito aos juristas, a mina aos mineiros. Recuou ela, — não sei por quê, — diante dos estudos especiais que a exploração desse novo filão exigiu? Ou haveria, entre o espírito jurídico e o espírito filosófico, alguma incompatibilidade de natureza? O que quer que seja, esse abandono do campo legislativo aos simples trabalhadores braçais, chamados comentadores ou homens de negócios, teve resultados os mais desagradáveis para a ciência do Direito, primeiramente, porque permaneceu fechada em si, estéril, caseira e rotineira e, a seguir, porque as ciências outras, suas irmãs, — a economia política sobretudo, em esquecendo seu parentesco e seus direitos na partilha da herança comum, — transgrediram, sem saber, seus limites naturais. A reação socialista que se produziu tão apaixonadamente na segunda metade deste século contra a economia política da antiga escola, não foi ela devida, em parte, às usurpações inconscientes desta última que, em suas ambiciosas teorias sobre a riqueza, jamais foi detida por qualquer grande teoria do Direito, rival e fraterna?

Mas, após alguns anos, a introdução do fermento darwiniano, evolucionista, antropológico, no Direito Criminal determinou uma crise que se propaga com extrema rapidez e que começa a ganhar o Direito Civil, ele mesmo[41]. Já os arqueólogos da legislação haviam preparado esse movimento por suas pesquisas eruditas. Até eles, o Direito Romano, único estudado historicamente da fonte à embocadura, era, para o teórico jurisconsulto, alguma coisa como a História Santa para o historiador de outrora, ou seja, um fenômeno único e sagrado, absolutamente incomparável, — e por isso sem comparação, — tornado absolutamente inexplicável. Quando os egiptólogos, quando os assiriólogos contemporâneos nos revelaram o direito egípcio, o direito assírio; quando, — todos análogos nas antigüidades das famílias indo-européias e semíticas, germanos, eslavos, persas, celtas, assim como muçulmanos e hebreus, etc., — nos fabricaram, pouco a pouco, um vasto museu jurídico, no qual Dareste[42], entre nós, poderia ser chamado de o conservador, a velha jurisprudência então revelou-se inesperadamente ampliada e rejuvenescida. Seria contudo uma ilusão pensar que, em razão de se constatarem similitudes numerosas e surpreendentes entre diversas línguas, e em razão de fundar-se a filologia comparada, construiu-se a teoria da linguagem. Seria um erro igual persuadir-se de que foi suficiente ao jurisconsulto filósofo haver descoberto analogias entre muitas evoluções legislativas mais ou menos independentes umas das outras e criado assim a legislação comparada. Essas similitudes não são senão os dados do problema a resolver; trata-se de limitá-las primeiramente, estreitá-las com habilidade em seus limites naturais, freqüentemente ultrapassados por um abuso de engenhosidade. Trata-se de explicá-las, a seguir, em remontando às suas causas, que são de duas sortes: orgânicas ou sociais. As primeiras consistem nas necessidades inatas e hereditárias da natureza humana, que permanece a mesma através da diversidade das raças e das gerações; as segundas, nas necessidades derivadas e adquiridas por contágio imitativo de homem a homem. Devem-se combinar estas duas ações parciais para se compreenderem as transformações históricas do Direito, assim também como àquelas da língua, da religião, das instituições, das indústrias, dos costumes. Mas, para combiná-las, deve-se, antes de tudo, não as confundir; distingui-las, ao contrário, com toda a nitidez possível, deixando, a cada uma delas, sua parte.

Não é que belos trabalhos filosóficos sobre o Direito não tenham aparecido, lá e acolá, por exceção. É suficiente citar a obra capital de Sumner-Maine[43] sobre o Direito Antigo e os notáveis estudos que se seguiram. Mas pode-se constatar que a escola evolucionista, tão rapidamente conquistadora, tão pronta aos impulsos empreendedores fora de seu berço darwiniano, haja se mostrado tão reservada do ponto de vista do Direito. Sumner-Maine não se liga a ela senão por um parentesco colateral e muito longínquo de qualquer sorte; e ele é da escola histórica, muito francesa de origem, que não esperou nem Darwin nem Spencer para vir ao mundo. Em Direito Penal, é verdade, a doutrina da evolução imiscuiu-se desde há alguns anos, mas ainda muito de preferência em Antropologia Criminal do que foi questão em evolucionismo penal. Quanto ao Direito Civil, ele permaneceu fora do movimento até uma época mais recente ainda. Veja-se entretanto que se ouvem anunciar já os nomes de “antropologia jurídica” e também de “evolução jurídica”; mas de modo semelhante aos nomes que os antigos geógrafos davam, por antecipação, às regiões ainda pouco exploradas da África ou da América. Na realidade, sem desconhecer o mérito dos primeiros exploradores destas terras desconhecidas, é permitido supor que eles deixaram toda uma colheita a ceifar depois deles. Assim é evidente que muitos pesquisadores tendam a se lançar sobre suas pegadas.

Os historiadores e os arqueólogos da legislação haviam já há muito tempo preparado seus caminhos.

Mas a História e a Arqueologia são, infelizmente, as que parecem menos inquietar os discípulos de Herbert Spencer[44] que, aplicando aqui alguma fórmula geral de evolução, — chave mágica do universo, — tomam por uma explicação esta aplicação pura e simples. É verdade que os evolucionistas recentes do Direito são, em geral, também antropologistas[45], e poder-se-ia esperar deste encontro de pesquisas antropológicas com os grandes sistemas darwiniano e spenceriano o mais feliz resultado. Poder-se-ia crer que aquilo que o conhecimento minucioso e detalhado dos órgãos e das necessidades dos indivíduos fornecesse para alguns completasse ou temperasse a tendência excessiva às generalizações sugeridas pelos outros; que uns permitiriam, pela primeira vez, propor ao Direito futuro seu ideal verdadeiro, a perseguição de um Direito verdadeiramente natural, conforme às exigências naturais do organismo humano, enquanto os outros revelariam a necessidade das vicissitudes atravessadas no curso de sua história pelo Direito do passado. Mas a verdade obriga-me a confessar que, ao menos até aqui, esta confluência de duas grandes escolas não foi muito fecunda em idéias duráveis, e eu não vejo ainda se elevar, entre as muitas pequenas torres de babel jurídicas precipitadamente construídas, alguma Torre Eiffel que humilhe com sua sombra os trabalhos anteriores dos Sumner-Maine e dos Fustel de Coulanges[46]. A Cité Antique deste último permanece, com seus estudos sobre a origem do sistema feudal, — infelizmente deteriorados pelo espírito de sistema e de inutilidades polêmicas, — uma das obras que fazem melhor penetrar, indiretamente, na própria vida do Direito e nos segredos de suas mutações[47]. Quanto ao Ancien Droit e as outras obras do grande jurisconsulto inglês, por desprovidas que elas sejam de ambiciosas pretensões, parecem haver extraído de nosso assunto todo o sumo filosófico que ele contém. Isso não é senão ilusão no entanto, e restam, seguramente, muitas outras descobertas a fazer num campo tão pouco ou tão mal explorado.

Não é fácil saber o que se compreende pela introdução da Antropologia no Direito Civil. Em Direito Criminal, nós o sabemos, consiste em ocupar-se do criminoso mais que do crime, em individualizar as questões. Está muito bem. Mas se, para sustentar a Antropologia Criminal, trata-se de edificar a “Antropologia Jurídica”[48], poder-se-ia fazer o mesmo com igual sucesso?  É que, por acaso, sonhar-se com individualizar as disposições legais, com ajustá-las aos diversos indivíduos separadamente, como os alfaiates fazem para nós as vestimentas. De tal sorte: Ter-se-ia, para cada homem jovem ou para cada jovem mulher, uma idade especial de maioridade, de capacidade civil? E ter-se-ia também que o valor dos contratos deveria ser julgado de acordo com o exame antropológico dos contratantes? Tal seria, seguramente, antes zombar do que emprestar esse sentido pueril à preocupação naturalista em face da legislação. Não nos esqueçamos: o que existe de mais natural no homem é o gosto do racional, a necessidade de submeter-se a regras gerais, arquiteturais de aspecto. Em Direito Penal mesmo essa necessidade faz-se sentir; mas, bem mais vivamente ainda, em Direito Civil. As leis são monumentos, não vestes. De preferência são, por sua vez, uns e outros, porque não é impossível conciliar a uniformidade e o ajustamento.  As estatuetas de Tanagra revelam-nos a graça do plissado individual que as belas mulheres de Tebas sabiam dar ao panejamento de suas roupas, de corte igual para todas, que lhes serviam de ornamento. Tal deve ser a arte do legislador civilizado: destacar regras iguais mas flexíveis, que se dobrem facilmente ao talhe dos indivíduos.  Isso se torna tanto melhor quanto mais obtém ele o ajuste destas prescrições às necessidades naturais, ou tornadas tais, judiciáveis. E vejo bem que se aplica o nome de Direito Natural, desviando-o um pouco de seu sentido antigo e estóico para um certo ideal vago de legislação que seria, por hipótese, — hipótese realizável ou não, — a perfeição desta conformidade. Mas não posso admitir que, sendo as necessidades às quais se trata de se conformar em parte, em grande parte, o produto da cultura e de acidentes históricos, fosse suficiente haver medido muitos crânios humanos de todos os tempos e de todas as raças e mesmo fazer muito de psicologia fisiológica, para poder dar a última palavra a esse respeito. Sem dúvida importa, por exemplo, não esquecer, como fazem muito freqüentemente os juristas, que a matéria das sucessões se relaciona intimamente àquela da hereditariedade vivente. Mas isso não é uma razão para entrar, a este propósito, em longos detalhes sobre a hereditariedade das particularidades anatômicas entre as inúmeras espécies animais[49], como se se persuadisse de que esse estudo minucioso possa ser o único a pôr luzes sobre a questão do melhor regime sucessoral a adotar. Adiante voltaremos a essa grande concepção do Direito Natural.

Muito mais clara em aparência que a idéia de uma “antropologia jurídica” é aquela da “evolução jurídica”. Também ela apresenta, todavia, grande necessidade de ser precisada.  Se não se trata senão de substituir o estudo do Direito Romano por aquele do direito asteca, do direito peruano, do direito fueguino, do direito australiano, do direito da idade do bronze ou da pedra lascada ou polida, de todos os direitos bárbaros ou selvagens quaisquer, para esclarecer as origens da legislação, a coisa não reclama senão uma certa dose de erudição fácil, a serviço de uma força média de imaginação. E esta estará sempre segura do assentimento de um público especial, se revestir-se dessa “forma banal de originalidade” que consiste em ser, por sua vez, conservadora e ousada, dedutiva e engenhosa, própria a lisonjear, ao mesmo tempo, por suas hipóteses científicas, a rotina do espírito e o gosto das novidades. Aqui, como um pouco por toda a Sociologia, há muito abuso dos selvagens. Desde Spencer, que inaugurou magistralmente a exploração dessa mina ao mineiro tão impuro, há um pequeno número de anedotas, sempre as mesmas, tomadas de algumas tribos americanas, africanas ou oceânicas que circularam pela imprensa sociológica e que se vão citar por muito tempo ainda sob diversos rótulos. Sem a sombra de uma prova senão àquelas que pode fornecer uma observação superficial, consegue-se validar a idéia a priori que o estado social primitivo, o suposto ponto de partida do progresso, é idêntico entre todos os selvagens. É impossível, todavia, fechar os olhos sobre as diferenças profundas que apresentam os selvagens atuais, mesmo os mais inferiores: as raízes verbais, as construções gramaticais de suas línguas, seus ritos e suas crenças, seus embriões de governos despóticos ou paternais, seus costumes pacíficos ou belicosos, doces ou ferozes, fraternos ou perversos, suas melodias harmoniosas, seus ensaios de desenhos diferem completamente. Mas não se constrangem por tão pouco. Os selvagens, que são dessemelhantes, o são, diz-se, porque não são educados mais ou menos no alto da escala da selvageria. Sua própria diversidade é instrutiva do ponto de vista da identidade original, da qual ela mede o grau de distanciamento. Ela não a contradiz em nada. Quanto aos selvagens que se assemelham, admite-se, à primeira vista, que sua similitude seja completamente espontânea. Não se leva, em geral, em nenhuma conta a extrema probabilidade dos contatos que deveram existir, fosse entre eles, fosse entre seus ancestrais, na longa noite de sua história ou, antes, de sua pré-história. Não se sonha em perguntar se, por aí, bem mais naturalmente que por uma pretensa fórmula de evolução única e necessária, não se explicaria uma parte notável destas similitudes.

Isso é deplorável, mas forçoso. Se, por evolução, acredita-se dever entender um encadeamento regrado de fases, de metamorfoses tão fatais e tão regularmente repetidas quanto àquelas dos insetos, através de variações puramente acidentais e reputadas insignificantes, não deveria, antes de tudo, a fase inicial ser vista como a mesma em todos os sentidos? Lamentável é que o transformismo[50] haja nascido entre os naturalistas, não entre os sociólogos ou físicos; e se está habituado a considerar como o único tipo possível de desenvolvimento a espécie singular — e singularmente rotineira — de desenvolvimento apresentado pelos seres organizados. Persuade-se muito facilmente de que evolução signifique, não apenas produção de fases sucessivas cumpridas segundo as leis da mecânica e da lógica, mas ainda reprodução de exemplares múltiplos de fases predeterminadas, análogas às idades sucessivas de um indivíduo vegetal ou animal[51]. Não ocorre a idéia de que esta lei das idades, assim conhecida, sobre o modelo desses seres excepcionais, poderia bem não ser inteiramente aplicável aos sistemas solares ou às transformações das sociedades; que o crescimento de uma língua, de uma religião, de um corpo de Direito, de uma arte, tudo estando também conforme ao determinismo universal, como o crescimento de uma gramínea ou de um quadrúpede, poderia bem ser de outro modo, original e único em si. Deixa-se muito precipitadamente pensar, afirmar que, porque todo ser vivo é ou parece ser[52] levado à morte por um princípio interno, tal princípio deva existir também para todo sistema astronômico, mesmo chegado à sua fase de equilíbrio estável, e também para toda língua, para toda religião, para toda legislação, mesmo chegadas aos seus estados de perfeição relativa e de circulação estacionária, uma necessidade interior de morrer. Ora, que cedo ou tarde deva provavelmente sobrevir de fora qualquer choque dissolvente onde perecerá a língua, a religião, a legislação, a mais indestrutível até então, nada de mais admissível. Assim pereceram antigas civilizações asiáticas que durarariam ainda sem qualquer acidente de guerra; assim pereceram talvez muitos cultos atacados pela ciência; assim a velha China, talvez, ao contato com os europeus. Mas uma coisa é esta morte violenta, — interrupção de uma imortalidade possível e normal, — e outra é a morte natural, da qual nenhum vivente escapa em limite de tempo aproximadamente fixo[53]. Antes de generalizar em lei suprema este último fenômeno, e tantos outros caracteres aparentes ou reais da vida, valeria a pena refletir um pouco: A idéia-tipo do desenvolvimento, em lugar de ser emprestada à vida, não poderia ela também ser reclamada à Astronomia ou à Lingüística ou à Mitologia Comparada? Será que as leis da mecânica e as leis da lógica, umas se espelhando nas outras, não dominam àquelas da vegetação e da animalidade? E será que a noção do desenvolvimento, tal como nos é sugerida pela mecânica celeste, como sendo essencialmente a perseguição de um equilíbrio estável e móvel, ou bem, tal como ela nos é sugerida pela lógica individual ou social, como sendo a perseguição de um sistema harmonioso, indefinidamente durável, de pensamentos e de vontades sem contradição, bem de acordo entre elas, não é superior em precisão, em clareza, em valor explicativo, à idéia dessa marcha insensata e fatal em direção à morte que a vida nos sugere?

Nós tentaremos esboçar ou indicar os principais traços da evolução do Direito concebida como uma alta e complexa operação de lógica social; mas, primeiramente, haveremos de monstrar a insuficiência do evolucionismo social tal como ele é geralmente interpretado. Vítima de sua idéia fixa, este é e deve ser necessariamente levado: 1º) a exagerar o número e o alcance das similitudes que atingem o espirito à primeira vista, quando se comparam os corpos de Direito reputados estrangeiros uns com os outros, assim como línguas, religiões, exércitos, nações consideradas sob o ponto de vista político, industrial, artístico, moral; 2º) a considerar todas essas semelhanças, verdadeiras ou falsas, como espontâneas, sem haver considerado, ou sem haver tentado considerar, a parte legítima que cabe ao princípio da imitação. É curioso ver espíritos que se dizem positivistas sucumbirem à sedução do maravilhoso realizado, segundo eles, por essas coincidências multiplicadas e preferirem, à explicação clara de uma parte dessas semelhanças pelo contágio do exemplo, sua explicação obscura pelo atavismo e pela hereditariedade. Permitimo-nos entrar em alguns detalhes a esse respeito.

Os melhores espíritos podem ser enganados por sua preocupação sistemática. Não quero tomar por prova senão Dareste[54]. ”Um fato que os trabalhos modernos têm trazido à luz, diz ele no início de seu livro sobre a Histoire du Droit, é a afinidade, para não dizer a identidade de diversas legislações primitivas. A filologia tem mostrado, através de admiráveis descobertas, a origem comum da maior parte das línguas européias que ela tem sabido relacionar às antigas línguas — hoje mortas — da Índia e da Pérsia. Mais estreito ainda é o parentesco de diversas legislações. Não apenas elas têm todas sofrido transformações análogas, mas ainda se reproduzem freqüentemente umas e outras, traço por traço e quase palavra por palavra, através de enormes distâncias e longos intervalos de tempo, quando então nenhum empréstimo direto era possível. De sorte que, para explicar esta semelhança, — que não saberia ser fortuita, – deve-se, necessariamente, admitir: ou que ambos os povos tinham uma origem e por conseguinte uma tradição comum ou que as mesmas causas tenham para todos os mesmos efeitos.” Visivelmente, Dareste inclina-se muito para esta última interpretação. Aliás, — vê-se, — coloca ele muito bem a questão e limita-se, além disso, a relacionar as legislações das raças superiores, com exclusão meritória dos selvagens de todas as raças. Mas, nestes limites mesmo, — nós o veremos, – ele alega muito mais do que prova seu livro.  O que quer que seja, — já que ele mesmo se exprime assim, — não se deve surpreender de ver Letourneau, — que estende a todas as populações ou nações conhecidas o campo de suas comparações, — atribuir a mesma uniformidade desoladora ao longo de suas transformações jurídicas. Contudo a verdade por ele sustentada leva freqüentemente ao preconceito. Ele admite divergências iniciais de desenvolvimento social a partir da mais baixa selvageria[55], porque lhe custaria muito confundir as tribos republicanas com as tribos monárquicas. E esta base de distinção, por mais que seja manifestamente muito estreita, é sempre boa de observar. Em seu estilo colorido, ele chega também a caracterizar com vigor a fisionomia jurídica própria a cada povo, inteiramente sui generis, e ignora afrontosamente nisto, – pelo horror confessado aos romanistas e imperialistas, — a originalidade superior do Direito Romano, exaltando, além da medida, àquela do Direito Ateniense por amor às democracias.

Os evolucionistas, malgrado tudo, concordam pois em afirmar a existência de uma lei única (e necessária) de evolução jurídica. Mas seu desacordo começa quando eles se atrevem a formular e precisar as fases que o Direito estaria subordinado a atravessar em sua trajetória histórica.  Há todavia alguns pontos sobre os quais se mostram um pouco em falta. Em Direito Penal, eles admitem e demonstram a universalidade primitiva tanto no Novo quanto no Antigo Mundo, do talião e da vingança familiar seguidos da composição pecuniária e, mais tarde, do processo oficial. Em procedimento criminal, admitem a universalidade primitiva dos ordálios, dos julgamentos de Deus e, muitas vezes, sob formas assombrosamente semelhantes. Em Direito Civil, admitem a universalidade primitiva da comunidade da aldeia, depois de família, como regime de bens, antes da gradual aparição da propriedade privada; e, como regime de pessoas, a universalidade primitiva (muito contestada no entanto) do matriarcado, seguido do patriarcado e, então, daquela da escravidão das mulheres, — coisa pouco conciliável com a soberania anteriormente atribuída à mãe de família; — depois, a passagem desta servidão até uma lenta emancipação feminina. Quanto às obrigações, acredita-se ver em toda parte os contratos reais precederem aos contratos consensuais, e a elaboração jurídica conduzir os jurisconsultos, fossem romanos, fossem árabes, fossem hebreus, independentemente uns dos outros, a uma teoria das obrigações quase que concebida sobre o mesmo plano. Passemos em revista esses diversos pontos.


 

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Capítulo Primeiro
Direito Criminal

A idéia espontânea do Direito nascida da simpatia, fonte da imitação. Distinção fundamental entre as relações internas do grupo primitivo e as relações externas com outros grupos. Antigüidade do sentimento da culpabilidade – dupla evolução paralela e contrária.

 

Comecemos por reconhecer, de boa vontade, uma similitude das mais universais e mais importantes: a idéia do Direito, por diferente que seja em conteúdo, é formalmente a mesma em todos os países e em todas as raças. Não que ela seja inata, mas parece derivar necessariamente de instintos naturais hereditariamente legados ao homem por seus ancestrais humanos ou pré-humanos e refletidos pelo meio social. De tal sorte, por impossível que seja, se a idéia do Direito viesse a desaparecer hoje da humanidade, ela renasceria fatalmente amanhã. Mas é importante não se enganar, designando a fonte natural dessa tendência irresistível, quando se pretende, com justiça, fazer remontar até ela as origens do Direito. “O instinto reflexo de defesa, — diz Letourneau[56], — é a raiz biológica das idéias de Direito, de justiça, pois que ele é, evidentemente, a base da primeira das leis, da lei do talião.” Que as noções de que ele trata tenham uma base biológica, nada de mais verdadeiro; mas que esta raiz seja unicamente, ou principalmente, o instinto reflexo de defesa, eis que está muito pouco demonstrado. Em nossa opinião é também, – e antes de tudo, — o instinto de simpatia, condição primeira e indispensável a todo grupo social, pela comunicação contagiosa de emoções, de desejos e de idéias.

A omissão grave, o erro importante que observo, tem por causa o esquecimento muito geral de uma distinção que acredito fundamental. Os primitivos puderam dar lugar aos julgamentos mais contraditórios, conforme os juízes, segundo suas relações com os estrangeiros, com os indivíduos pertencentes a outras tribos, a outras famílias, mesmo vizinhas às suas, ou segundo suas relações com os membros de seu pequeno grupo, mônada social fechada em si, fortaleza estreita, rude para com os estranhos, confortável e suave para com os de dentro. Em suas relações externas, que são muito mais numerosas e mais fáceis de perceber, — e eis por que a maior parte dos viajantes ou dos eruditos não percebem senão isso, — eles são grosseiros, cruéis, desumanos. A morte ou a pilhagem de um estrangeiro não lhes causa nenhum remorso e, se um estrangeiro matar ou pilhar um dos seus, vêem nisso um razão para guerra, que reclama represálias contra o autor do delito ou contra os seus, indiferentemente. Se, para a reparação do dano feito assim à pequena sociedade, se lhe oferece um rebanho ou uma soma em dinheiro, eles aceitam sem pudor, como nossos Estados civilizados recebem uma indenização de outro Estado pelos prejuízos sofridos por seus nacionais. Em tudo isso não existe marca de um sentimento moral propriamente falando; o assassino, o ladrão não é julgado culpado, e a vingança exercida contra ele ou seu grupo não tem o caráter de uma punição. Se, pois, está provado que assim foi o começo, — e o único começo, — da justiça penal, se está provado que é pura e simplesmente a transformação da vingança primitiva, sua regulamentação oficial com inserção, mais tarde, de noções teológicas relativas à culpa e ao pecado, poder-se-ia então atribuir a Enrico Ferri que a idéia da culpabilidade é uma invenção moderna[57], uma criação fática, contra a natureza ou contra a razão, de imaginação metafísica, e que o progresso do Direito Penal pode e deve passar dela. É a esta conseqüência, com efeito, que ele chega logicamente a partir de suas premissas errôneas.

Impende, pois, retificar estas premissas que estão incompletas. Trata-se do que não se vê, entre os primitivos, como entre nós; e que freqüentemente é o mais essencial a considerar, ainda mais essencial do que aquilo que se vê. Ora, o que não se vê entre eles, de ordinário, porque é coisa secreta e murada, são suas relações internas, o que se passa em seus corações. Tratam-se de remorsos verdadeiros misturados talvez a temores supersticiosos, quando cometem um fratricídio ou qualquer outro crime em prejuízo de um de seus irmãos, de seus concidadãos correligionários; e dá-se entre eles, espectadores do delito ímpio, o escândalo, a indignação, a vergonha, a dolorosa piedade também, causadas por essa abominação, aliás muito rara. Todos os livros sagrados, todas as lendas antigas atestam o remorso vingador, a maldição indignada que castiga os Cains, os Etéocles e os Polinícios[58] e, ainda mais, os parricidas: seu crime foi condenado pelos deuses, como aquele de Orestes. E não é questão de vingança então, de resgate pecuniário; o culpado é proscrito, excomungado por um tribunal doméstico. E, muitas vezes, quando o crime não parece muito imperdoável, o objetivo visado pela pena, após muitas provas, é a reconciliação final solenizada por um festim.

Diremos nós que os tribunais de família, com o caráter sentimental, moral, de sua justiça e de sua penalidade foram universalmente difundidos entre os primitivos? Eles o foram extremamente, porque nós os encontramos na origem de todos os povos indo-europeus, bem como dos semíticos. Nós os vemos funcionar ainda em nossos dias entre os cabilas[59], entre os ossetos[60] do Cáucaso e mesmo na China, onde os tribunais imperiais, tomados como modelos, em certa medida, não foram, de modo algum, por exceção, completamente substituídos, como ocorreu, em geral, com os tribunais monárquicos nos países civilizados. Entretanto, eu não ousaria afirmar que eles existiram em toda parte, e que, em toda parte, fossem julgados moralmente os crimes internos da família, da tribo ou do clã; enquanto se pode afirmar, sem medo de errar, que, em toda parte, a origem, o costume da vingança privada, da responsabilidade coletiva, depois do Wergeld[61], exerceu o que concerne aos crimes exteriores. Também entre os peles-vermelhas e os bárbaros do antigo continente, a vingança foi praticada, e a composição em dinheiro ou em cabeças de gado substituiu-a.  Mas pode-se afirmar também que não há um só povo civilizado que não apresentasse, desde suas mais antigas fases, um sentimento profundo de responsabilidade moral nas relações recíprocas de seus cidadãos, socialmente aparentes; e se, entre alguns selvagens contemporâneos, não se encontram marcas desse sentimento (?), mesmo no círculo estreito de suas relações quase domésticas[62], temos o direito de supor que eles o perderam, ou bem que esta lacuna lamentável é uma das causas, — e não a menor, — de sua parada no mais baixo grau da escala humana.

Assim, na origem, a reação defensiva contra o ato criminoso bifurca-se em duas formas bem distintas e de extensão bastante desigual: uma moral, indignada e, ao mesmo tempo, compassiva; outra vingativa, odiosa e impiedosa; ambas, por outro lado, tendo por traço comum uma tendência ao talião verdadeiro ou simulado.  É, com efeito, um erro muito propagado identificar as idéias do talião e da vingança; àquelas do talião e da penitência não são menos unidas, e o pecador arrependido acha justo ser punido ou punir-se ele mesmo por onde pecou, como os exércitos na guerra acham natural vingar-se, devolvendo cilada por cilada, vandalismo por vandalismo[63]. — Ora, a repressão moral circunscrita aos tribunais domésticos, ou de repressão vingativa desdobrada nas vinganças de tribo a tribo, deve ser considerada como a fonte inicial de onde o Direito Penal deriva? Eu pretendo que seja a primeira, reconhecendo que a segunda tem, mais freqüentemente e por mais tempo, servido de tipo à justiça dos tribunais de Estado, quando eles são, pouco a pouco, substituídos no todo pelos tribunais de família e pelas guerras privadas. É em doses muito variadas, de resto, que esses dois modelos tão diferentes combinam-se para dar origem às cortes criminais em diferentes países; e nós vemos já, por aí, que a evolução penal está longe de haver sido uniforme. Esta variabilidade se explica: um Estado forma-se sempre por uma anexação mais ou menos violenta e considerável de tribos ou de pequenas populações mais ou menos estreitamente ligadas ou desunidas pelo sangue, religião, língua, recordações históricas. Quando a união das tribos, sob essas diversas relações, é tão estreita quanto possível, e a nação nascida da aglomeração desses liames é pouco vasta, a justiça do Estado tinge-se fortemente das tintas familiais; este é o caso de Israel, de Atenas e da maior parte das repúblicas gregas, de Roma ao tempo dos reis. Também Moisés e outros antigos legisladores destes povos proscreviam a vingança privada[64], e sua obra reflete, em sua severidade, um alto sentimento moral. Mesmo quando a aglomeração das tribos primitivas constituía um vasto império, tal como o Egito e a China, mas um império ainda muito homogêneo, onde os súditos, os mais afastados, não haviam ainda cessado de se sentirem como irmãos, a justiça real, sem merecer sempre nem freqüentemente sua pretensão de ser paternal, marca fortemente, em certos detalhes, sua derivação doméstica. A justiça egípcia, ainda que algumas vezes atroz, “denota, — diz Letourneau, — uma humanidade desconhecida da maior parte dos Estados bárbaros e uma viva preocupação com a solidariedade social”. Se, na China, os culpados são tratados como prisioneiros de guerra bem mais do que como crianças corrompidas, não é menos verdade que são também considerados sob este último aspecto; por exemplo: “todo condenado deve agradecer ao mandarim juiz a pena pronunciada contra ele”.  Evidentemente, se a pena não fosse concebida senão como uma vingança oficialmente regulamentada, esta bizarra exigência não existiria. Outras particularidades da justiça Chinesa: o perdão concedido àquele que espontaneamente se confessa culpado e exprime arrependimento, o golpe de bastão adotado como pena fundamental, ao modo das correções usadas pelos pais[65], etc., são de origem familiar e não vingativa. Ser desonrado aos olhos dos seus, excomungado por sua família é, na China, o maior dos castigos e, para fugirem de tal punição, vêem-se pobres-diabos consentirem em substituir condenados à morte. Mediante esta correção, voluntariamente sofrida, sua memória é restabelecida.

Mas quando as tribos hostis ou heterogêneas são violentamente estreitadas por um liame fático num Estado pequeno ou grande, como os concidadãos de renome são na realidade desprovidos de todo sentimento de fraternidade, a justiça penal procede militarmente, espancando, cortando cabeças, numa sorte de furor sanguinário. Tais são os grandes reinos incoerentes da Ásia, os pequenos reinos não menos multicoloridos da África. No Japão, já a penalidade é de natureza mais vingativa que na China, e o princípio da responsabilidade coletiva impessoal reina por mais tempo, talvez porque o japonês seja mais belicoso que o chinês, e porque a conquista desempenhe um grande papel na formação de sua nacionalidade.

Se não levarmos em conta senão as fronteiras políticas de uma sociedade, nada haverá de mais nítido do que a diferença entre o compatriota e o estrangeiro: nada existe entre ambos. Mas as  fronteiras morais são, ao contrário, imprecisas e, sob este ponto de vista, há mil graus intermediários, sucessivamente franqueados ao curso da civilização, da confraternização progressiva entre o compatriota mais próximo e o estrangeiro mais afastado. O mesmo ato criminoso, pois, segundo atinja um ou outro desses dois extremos, ou qualquer um dos graus que os separam, pode incitar a uma punição variável do infinito ao zero com relação à responsabilidade moral de seu autor. Toda tribo é limitada a um círculo pequeno ou extenso de tribos congêneres que, mesmo em se combatendo, formam uma federação social mais ou menos estreita; seus vínculos se enfraquecem à medida em que se ampliam, até chegar a nações longínquas ou desconhecidas, reputadas pura e simplesmente como caça.  Compreende-se que o senso moral e o senso penal deveram ser, desde a origem, profundamente diferentes entre duas tribos, entre as quais uma não está em relação habitual senão com tribos irmãs, e onde outra não tem relações freqüentes senão com populações heterogêneas.  Vê-se já por aí, do ponto de vista da evolução criminal e penal, a complexidade natural que fornece a distinção estabelecida por nós, e o que existe de artificial na simplificação obtida através de sua omissão. Ver-se-á bem melhor a seguir.

Entretanto não está aí senão um dos menores inconvenientes deste esquecimento.  Sua mais grave conseqüência é de haver introduzido este erro: que o sentimento e a noção da culpabilidade sejam coisa recente, o mesmo que vale dizer superficial e artificial, um simples produto da alquimia metafísica que teria transmutado nesse ouro puro, — e eu ignoro como, — o chumbo vil da vingança e do ódio. A verdade é que este sentimento e esta noção existiram sempre, mas localizados primitivamente em recintos bastante murados que os esconderam aos nossos olhos; estas cercas, a civilização as abateu, afastou, abateu novamente e, a seguir, estendeu cada vez mais o domínio moral, mas não criou jamais a moralidade, da qual a essência íntima é a simpatia, condição sine qua non do liame social. Quanto à vingança e ao ódio, paixões não menos primitivas, elas evoluíram também, e estão longe de se metamorfosearem, quer dizer, de desaparecer, eis que reaparecem aumentadas aos nossos olhos nessas grandes guerras de revanche que são as vinganças das nações[66].

É curioso notar as fases dessa evolução. Primeiramente empregados entre famílias, a vingança e o talião, após a fusão das famílias em pequenos burgos, foram suprimidos pouco a pouco nas relações interfamiliares, mas apareceram nas relações belicosas dos burgos entre eles; depois, após a fusão dos burgos em cidades, vimos desaparecerem as vinganças de burgos e aparecerem as vinganças das cidades; e enfim, após a agregação das cidades em Estados, e em Estados cada vez maiores, as guerras de cidade a cidade foram suprimidas, mas em proveito de guerras de nação contra nação (ou de classe contra classe), e sempre, e em toda parte, as nações, por grandes que elas sejam, praticam represálias e revanches militares. De sorte que a vingança rareou mas expandiu-se por graus. Inversa e simultaneamente, os sentimentos de fraternidade, de mútua assistência, de justiça, primeiramente reduzidos ao círculo doméstico, foram se desenvolvendo indefinidamente como uma onda circular.

Em resumo, não é verdade que a vingança, o golpe por golpe das crianças, seja o único nem o principal ponto de partida da evolução penal.  A Penalidade tem duas fontes: a fonte secundária, ainda que a mais aparente, é a vingança; mas a fonte essencial é a punição doméstica, expressão de uma reprovação moral e tradução de um remorso. Estas duas fontes misturam-se em doses muito diversas nos costumes e leis de diferentes povos, e daí vem sua divergência. A civilização tende a cavar-lhes dois leitos distintos. Em meio a todas essas dessemelhanças, relevamos todavia uma similitude importante, mas da qual é fácil extrair a razão, e que concerne à incriminação. É que, sempre e em toda parte, o assassinato e o roubo cometidos em prejuízo do compatriota reconhecido como tal são reputados crimes. É evidente que toda sociedade onde, nas relações mútuas entre seus membros, reinasse o direito ao assassinato e ao roubo, não tardaria a se dissolver.


 

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Capítulo Segundo
Processos

Similitudes. Ordem lógica e irreversível na sucessão de certos ordálios. Diferenças. Dois sentidos da palavra evolução, propagação de exemplos ou série de iniciativas. Houve ponto de partida semelhante? Ou caminho semelhante? Ou semelhante ponto de chegada? Direito Romano e Direito Ateniense comparados. Justiça chinesa. O processo do amanhã.

 

No que concerne ao processo, seja criminal ou seja civil, encontramos uma profusão de curiosas similitudes. Em matéria criminal, primeiramente, é natural que a prova testemunhal e a confissão hajam sido universalmente empregadas, ainda que sua importância relativa tenha variado prodigiosamente.  Pode-se se espantar mais ao ver praticar, em qualquer outro país bárbaro ou selvagem, esses recursos a místicos pareceres que se chamam ordálios[67], onde se joga, por assim dizer, com a vida dos acusados. É mais surpreendente ainda, à primeira vista, constatar que suas formas não variam nada. O duelo judicial, é verdade, não foi praticado em toda parte. Ele não pôde nascer espontaneamente senão no seio de tribos belicosas. Jamais uma tribo pacífica, como existem em tão grande número entre os selvagens, o imaginou. Ele não aparece nos códigos bramânicos nem no Avesta[68]; mas o encontramos nas tribos americanas, australianas, oceânicas, como também nas do Mundo Antigo. As provas por água fervente ou pelo ferro em brasa são extremamente difundidas. Elas figuram nas legislações antigas da Índia, da Pérsia, da Geórgia, dos tchecos, da Polônia, da Sérvia, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Germânia, etc. Evidentemente, é pelo contágio imitativo que se explica esta difusão. Mas como justificar racionalmente semelhante êxito? Deve-se supor que, lá onde essas deliberações supersticiosas de divindades importadas de fora são aclimatadas, existiam anteriormente práticas mais absurdas ou mais cruéis ainda do que aquelas que foram substituídas.

Com efeito, parece-me haver existido uma certa ordem lógica e irreversível, não constante, todavia, da sucessão histórica dos ordálios[69], lá ao menos onde o duelo judicial floresceu. Eles apareceram e continuaram no sentido de um abrandamento natural escondido na lei geral do menor esforço, regra superior das transformações industriais, bem como rituais, fonéticas e gramaticais das sociedades. A tendência de nossa magistratura contemporânea em dar caráter correcional, cada vez mais, às questões criminais dissimulou em parte essa tendência geral. Do duelo judicial, o mais insensato, o mais sangrento e o menos facilmente vulgarizável de todos os ordálios, passou-se, de ordinário, às provas da água e do fogo, mais brandas que aquelas do ar e suscetíveis de fraude. Mas, finalmente, o que prevaleceu foi o juramento, que pode ser considerado como uma forma “abrandada e simplificada”, — diz muito bem Dareste, — dos julgamentos de Deus[70]. Ele preexistiu muitas vezes a todos os outros e sempre sobreviveu. Lá onde não existe nenhum indício do duelo judicial nem de qualquer outro ordálio, por exemplo entre os muçulmanos, o juramento é a prova capital. Entre os Sutras[71], os mais antigos códigos bramânicos, não se tratam senão de provas pela água e pelo fogo, menos ainda do juramento das partes. Mas ensinam-nos que o juramento das testemunhas foi introduzido com o tempo, e este meio de prova tendeu a predominar. No Código de Manu, que é posterior aos Sutras e que “inaugura um novo período da legislação bramânica”, a prova se faz “por testemunhas e, se necessário, pelo juramento da parte”. Os ossetos do Cáucaso, que sobreviveram à força de arcaísmos jurídicos, não conheciam, até o presente, senão as provas materiais e o juramento, mas demonstraram que outrora conheceram o duelo judicial e outros ordálios, dos quais ainda permanecem indícios. Em todos os países de raça germânica, o duelo judicial foi o mais antigo procedimento. Foi lá o berço dessa criação e das transformações que a revestiram sucessivamente até os absurdos neocavaleirescos do duelo moderno. Desde os tempos de Tácito, a Germânia praticava um duelo divinatório de onde o duelo judicial não pôde senão nascer. Conhecia ela já a prova da água fervente? É pouco provável, em razão do silêncio de Tácito. Mas a Lei Sálica fala daquela assim como do juramento da parte e dos co-juradores. Na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, sob a influência das idéias cristãs, o combate judicial foi abolido em torno do ano 1000 e substituído pelo ferro em brasa.  No século XIII, este último ordálio foi suprimido a seu turno, não sem vivas resistências da população, e “o julgamento de Deus assim eliminado não deixou outro meio de prova senão o juramento prestado por uma das partes e confirmado por um certo número de co-juradores”.

É evidente, — diga-se entre parênteses, — que o paralelismo dessa ordem de sucessão nesses três reinados, assim como entre os ossetos e outros povos, nada tem de espantoso, e que a mesma causa histórica, — a pregação do Evangelho, — devera, naturalmente, produzir os mesmos efeitos. Mas continuemos. Na Islândia também o duelo foi abolido em 1011 sob a influência de idéias cristãs; reinava então a prova do ferro em brasa e, enfim, o juramento prestado, senão pela parte, ao menos por uma assembléia de vizinhos muito semelhantes aos co-juradores merovíngios. Na Irlanda, a abolição do combate judicial remonta a São Patrício no século V. Foi substituído então pela água fervente, que é tema no Senchus Mor. Depois, pelo juramento da parte e dos co-juradores. Entre todos os povos eslavos, tchecos, russos, poloneses, etc., o duelo judicial foi usado primitivamente. Entre os tchecos era a prova por excelência para o homicídio, processo mortífero que parecia convir às acusações de assassinato. Mas, em certos casos, — tratavam-se de pessoas julgadas incapazes de lutar, exceção feita, pouco a pouco, à regra, — devia-se substituir o juramento. Em casos de ataque noturno a uma habitação, o pretenso agressor devia justificar-se “por juramento, em apondo dois dedos da mão sobre um ferro em brasa”. Vê-se aqui uma combinação original desses dois meios de prova.  Mas, em caso de danos à colheita, o acusado devia justificar-se através de juramento confirmado por testemunhas, e estas testemunhas, — dizem-nos, — “substituíram a prova da água fervente usada antigamente”. Na Polônia usava-se o combate. Mas, “o combate, sendo ordenado, se o acusado provasse que não se encontrava em estado de combater, recorria-se à prova do ferro em brasa”. A prova pelo juramento era também admitida e única requisitada para os delitos de importância secundária. Estes, sendo mais numerosos, deveram acostumar-se, com o tempo, a que a prova habitual e normal fosse o juramento. Também o Estatuto de Wislica (séculos XIV e XV), que revogou muitos dos antigos costumes, não tratou mais dos ordálios nem do duelo judicial; entretanto, o juramento desempenhava ainda um importante papel. Em certos casos, este estatuto exige co-juradores. O código lituano, como o código polonês no qual se inspira, quer que a prova, em caso de homicídio ou de agressão e ferimentos, se faça pelo juramento do queixoso. Na Rússia, no século X, o duelo judicial estava em grande uso; ignora-se se a prova pelo fogo ou água era conhecida. Mas a prova por excelência era sempre, — juntamente com a produção de peças para convicção, — o juramento do queixoso. Na Dalmácia, no século XIII, o juramento passou por demonstrativo no mais alto grau, juramento do acusador, se havia testemunhas; juramento do acusado, em caso contrário. Aquele que devia jurar com um certo número de co-juradores podia, se não os encontrasse em número suficiente, “suprir os que faltavam, prestando ele mesmo, muitas vezes, o mesmo juramento”. Por exceção, o duelo judicial, na Hungria, sobreviveu à prova pelo ferro em brasa que, no século XIII, — dizem-nos, — resolvia nove décimos dos processos. A esse respeito, um registro criminal do Capítulo Episcopal de Warad, de 1209 a 1235, nos dá curiosos detalhes desse procedimento, bem menos temível na realidade que na aparência. Mas se o duelo persistiu longo tempo após essa estranha espécie de demonstração, foi sob forma atenuada e de nenhum modo mortal. De resto, quando o ferro em brasa era aceito, os clérigos eram autorizados a substituir esta prova pelo juramento. Notemos também que, segundo o Código sérvio (século XIV), a rainha das provas não era o juramento, mas “o julgamento de Deus pela água fervente e pelo ferro em brasa[72]”.

Essa rápida vista de olhos é suficiente para fazer adivinhar a natureza das similitudes assinaladas entre povos que, na maior parte, tiveram relações freqüentes uns com os outros. Acrescentemos que as fórmulas de bênçãos do ferro e da água empregadas nos ordálios eram as mesmas em toda a cristandade. Este pequeno fato revela bem a importância do papel que a imitação desempenhou nessa matéria. É de observar, como contraprova desta explicação, que não há indícios de ordálios entre japoneses e chineses e que, se se conhece um no Cambodja ou no Tibet, — país simultaneamente esclarecido pela irradiação imitativa da Índia, — é a prova do óleo fervente, de origem hindu, provavelmente. Em Madagascar, entre os hovas[73], como um pouco por toda a África, o ordálio habitual é a prova por uma beberagem envenenada. Pode-se notar também que, se o combate judicial e algumas provas supersticiosas eram praticadas na América e na Austrália, bem como em nosso velho continente, o juramento não o era. O juramento judicial é desconhecido entre quase todos os selvagens[74].

Ele é conhecido todavia em algumas tribos de costumes pacíficos e agrícolas. Eis uma diferença que tem seu alcance e que, acrescentada a muitas outras, restringe a seus verdadeiros limites as similitudes precedentemente postas em relevo. Pode-se ver que, entre certos povos eslavos, a demanda ou a acusação era suficientemente justificado pelo juramento do queixoso ou do acusador. Isto é o oposto do que se passa ordinariamente entre os bárbaros[75]. Num caso como no outro, é verdade que o juramento do acusador ou aquele do acusado fosse considerado justificativo, o que prova a força da desonra e o horror sagrado que se ligava à idéia do perjúrio; mas não se poderia chegar a dizer, seguramente, que a escolha de um ou de outro dos dois juramentos fosse indiferente. Ter a faculdade de provar jurando passava por uma vantagem muito apreciável; e eis por que, em tantas legislações bárbaras, o onus probandi, — encargo presentemente, favor então, –  pesava sobre o réu ou acusado. O encargo da prova, com efeito, após haver incumbido primeiramente — em geral — ao réu ou acusado, passou a seu adversário e, em nossos dias, é um axioma jurídico indiscutível que a demanda ou acusação deve provar. A passagem inversa é constatada? Vê-se, no curso de uma evolução jurídica qualquer, a obrigação da prova transportada do demandista ao demandado, do acusador ao acusado? Eu não o creio[76]. Eis aí um exemplo da marcha irreversível; e eu dou muito mais valor, confesso-o, a esses casos de irreversibilidade, onde se mostra a obra da lógica social, que às similitudes mais surpreendentes à primeira vista.

Poder-se-ia ser levado a crer talvez que a regra testis unus, testis nullus, universalmente seguida na Idade Média européia e até em nossos dias ainda, conservada em algumas legislações particulares dos Estados Unidos, tenha seu fundamento na natureza humana, e que sua universalidade relativa se explique dessa forma? Mas, se eu der crédito a Viollet[77], esta regra que exige duas testemunhas fundamenta-se, na origem, sobre a passagem do evangelho de São João: in lege vestra scriptum est quod duorum hominium testimonium verum est. Através deste texto evangélico, a prescrição hebraica foi difundida nos dois mundos. Não se deve, provavelmente, procurar noutro lugar senão neste costume judaico a explicação do costume árabe, que exige também duas testemunhas, com a seguinte modificação todavia: duas testemunhas homens ou bem um homem e duas mulheres.

Entre os berberes existiram sempre os co-juradores de nossa Idade Média.  Cinqüenta pessoas juram que o acusado é inocente, e ele é absolvido. É esta uma imitação tradicional de nossa antiga instituição totalmente semelhante? Talvez esteja aí a sobrevivência de um fundo comum de tradições. Quanto ao mais, a idéia que vem mais naturalmente, mais espontaneamente, a um homem do povo acusado de um delito qualquer é a de apelar, — na falta de qualquer prova testemunhal ou outra, — a seus vizinhos, a seus parentes, a seus amigos, e rogar-lhes que atestem solenemente sua boa conduta, sua boa reputação, sua honestidade, sua veracidade. Esta idéia é tão natural que, em muitos países ao mesmo tempo, sem qualquer imitação, suscitou um procedimento análogo àquele de nossos co-juradores, dos quais a quase universalidade é fácil de compreender. Para dizer a verdade, este meio de prova desapareceu verdadeiramente? Não. Não mais que o duelo judicial que, a despeito de nossas revoluções democráticas, floresce sempre sob a forma de embates à espada e pistola regulamentados por um código absurdo, autorizados e freqüentemente ordenados mesmo pelas autoridades militares. Estas, após haverem prescrito o embate, condenam ao calabouço o vencido, como que para atestar que o duelo, o duelo militar ao menos, não deixou de ser um verdadeiro julgamento de Deus[78]. Eis aí uma evolução, ou antes uma persistência extraordinária; e seria talvez surpreendente que, como o mais absurdo dos ordálios pôde sobreviver em se transformando, o mais racional, — o juramento dos co-juradores, — houvesse perecido completamente. Não é verdade. Depois que este juramento foi suprimido, o hábito de se fazer escoltar ao Palácio de Justiça por um longo séquito de parentes e de amigos, dos quais apenas a presença era um atestado mudo e solene da honorabilidade, persistiu até o século XVIII. Em nossos dias, a tendência a invocar esses atestados em massa é ainda tão forte que, na maior parte dos negócios correcionais e diante dos tribunais, os réus ou acusados fazem ler, por seus advogados, certidões revestidas de inúmeras assinaturas. Bem mais: quando um homem popular vem a ser objeto de uma acusação grave que atinja profundamente sua honra, ele chega freqüentemente a apresentar-se diante de algum colégio eleitoral. E então: Não parece a todo mundo, — com exceção única de alguns filósofos, — que, se obtiver a maioria, sua eleição seja uma espécie de vox populi reputada sempre vox dei? Seus eleitores são, portanto, co-juradores; e deve-se confessar que este procedimento, em se generalizando, nos reconduziria a todos diretamente aos tempos bárbaros.

Mas por natural que seja no fundo esse meio de prova, ele tem se revestido, a cada época e em cada país, de modalidades notáveis, e as diferenças — aqui tampouco — não são menos importantes que as concordâncias. Por exemplo, num formulário da época merovíngia, lê-se esta fórmula citada por Fustel de Coulanges[79]: “Ele (um homem que se pretenda nascido livre) prestará juramento em quarenta dias, em tal igreja, onde, pronunciando os juramentos com doze juradores que sejam de sua família, ou bem, se não tiver mais parentes, com doze juradores que sejam homens livres como ele diz ser.” Não é o único caso onde vemos os juízes preferirem assim o juramento dos parentes àquele dos amigos, e não admitirem este senão na falta daquele. No presente, vemos o parentesco como uma causa de suspeição legítima. Mas, naquele tempo, era-se sobretudo impressionado por esta consideração de que uma família inteira não saberia concordar em violar a santidade do juramento e condenar-se em bloco aos castigos infernais.

Detenho-me para fazer uma observação naturalmente trazida pelo assunto precedente e de uma importância mais geral. Se tomarmos à parte, isoladamente, uma invenção jurídica, por exemplo, o duelo judicial, o juramento judicial, os co-juradores, a prova do fogo, — eu poderia bem dizer a tortura, o júri, a extradição ou ainda a adoção, o arrendamento de colheita em parceria, etc., — e a seguirmos através de seus destinos históricos, nada de mais claro que a idéia da evolução aplicada a este caso, como àquele de uma raiz verbal, de um mito, de uma máquina industrial, de um procedimento artístico, às quais se seguem as peregrinações no espaço e no tempo. Mas, abrangendo ao mesmo tempo muitas invenções jurídicas, mesmo conexas e aproximadas, — o grupo de diversos ordálios, o grupo de diversas ações da lei ou, em geral, das formas do processo civil, o grupo dos diversos sistemas de parentesco ou de sucessão, etc., — nós damos também o nome de evolução à substituição gradual de umas pelas outras. Nada de mais obscuro que este novo sentido da palavra, completamente distinto do primeiro. Sua obscuridade não provém de sua maior complexidade, o que não é sempre verdadeiro, mas do que se percebe de contraditório, a saber, uma real descontinuidade e uma real acidentalidade dissimuladas sob o falso ar de uma continuidade necessária, ou de uma necessidade contínua, inerente à idéia mesma de evolução. Ora, por que esta diferença? Porque, no primeiro caso, a mudança considerada consiste principalmente em: 1º) na maior ou menor propagação imitativa, onde uma idéia jurídica, — uma vez nascida em qualquer parte num cérebro engenhoso, graças a circunstâncias particulares, — mostrou-se benéfica, quando foi pouco a pouco difundida entre novas classes e empregada a novos objetos; 2º) na maior ou menor crença em sua eficácia, que acompanha esta difusão imitativa. Eis aí dois fenômenos contínuos e que, segundo sejam realizados no sentido de uma majoração ou de uma diminuição da imitação e da fé, constituem, verdadeiramente, uma evolução ascendente ou descendente, um desenvolvimento ou um declínio.

Por exemplo, uma vez nascida, num canto da Gália ou da Germânia, a idéia de fazer lutarem os litigantes[80], — para saber quem tinha razão, — difundiu-se primeiramente entre povos vizinhos. Depois, em cada um deles, desceu, de camada em camada, dos grandes aos pequenos, com uma fé cuja intensidade aumentava naturalmente, à medida em que se via propagar, em torno de si, esse uso sangrento. Nós sabemos, pelos considerandos da lei Gombette e pelas fulminações de certos concílios, de que favor frenético ele desfrutava nos tempos merovíngios.  Enfim, esgotou-se a fé, e seu desuso natural começou. Seguem-se facilmente os graus a partir de São Luiz.  Ora, esse progresso seguido desse declínio, essa onda de fé e de desejo que cresce e depois decresce, enquanto se estende e depois restringe a imitação desse exemplo, — eis aí um fenômeno tão geral que se pode julgar universal e, por conseguinte, necessário. Ao contrário, de resto, há as idéias jurídicas, — por exemplo, aquelas do testamento e da hipoteca, — cujo sucesso, uma vez que foram elas introduzidas em algum lugar, mantém-se indefinidamente[81]. Há outras, tais como o divórcio ou a adoção, onde o crédito está sujeito a flutuações, a retomadas em voga após descréditos momentâneos ou mesmo seculares. Há também casos excepcionais, onde, longe de marchar a passos iguais, as variações da fé e aquelas da imitação tomam sentido inverso. O júri, por exemplo, continuando a difundir-se pelo globo, ganhando velocidade, enquanto a confiança em suas decisões decresce em toda parte. Além disso, se se procurasse bem, ver-se-ia que a propagação ou o desuso de uma invenção jurídica, como de uma palavra, de um rito, de uma forma de arte, de um preceito moral, de um artigo industrial atém-se a circunstâncias particulares, acidentais em grande parte, que os favorecem ou contrariam. Quaisquer que sejam, — abstração feita às suas causas, — as variações da imitação e da fé formam uma seqüência natural, como aquelas de uma quantidade qualquer, e prestam-se, como elas, à concepção de um encadeamento racional, formulável em espécies de teoremas. Competirá mais tarde à Estatística, esta matemática transcendente das sociedades, diligenciar estas fórmulas. Mas como esperar formular, alguma vez, ou formular com uma nitidez análoga, a lei (se lei houver) de qualquer outro fenômeno, de um fenômeno que consiste numa troca de qualidades substituídas umas às outras, e não de uma mesma quantidade em graus variáveis? Quando a fórmula do pretor substituiu, em Roma, a actio sacramenti ou qualquer outra ação legal; quando, entre nós, a tortura no século XIII substituiu-se ao duelo judicial, ou bem, há cem anos, o júri substituiu a tortura: Estão aí fatos comparáveis àquele que vem a ser estudado? Seria bom mostrar que esta substituição foi gradual, que o começo de uma nova instituição liga-se ao fim da precedente por um liame estreito, como se passa gradualmente de uma cor à outra do arco-íris. Não é menos verdade que houve, num certo momento e num certo lugar, a implantação de um germe novo, mais ou menos fortuito e imprevisto, impossível mesmo de prever, ainda que justificável ao final, do mesmo modo que nada nos faria predizer o amarelo após o azul ou o vermelho após o amarelo, se nós não conhecêssemos as cores.

Tudo isso se diz para fazer perceber que há dois sentidos profundamente distintos da palavra evolução aplicada às sociedades, e que o erro ou a arte inconsciente e insidiosa dos evolucionistas é a de os haver confundido: 1.º) evolução, num sentido muito nítido, quer dizer propagação imitativa, mais ou menos ampla, de um exemplo fornecido por um primeiro iniciador; 2.º) evolução quer dizer, num sentido muito confuso, metamorfose à Proteu[82], série de iniciativas diferentes mais ou menos mal encadeadas. Este equívoco leva a outro porque, quando nos falam de uma evolução uniforme em todas as sociedades, a uniformidade da qual se trata estende-se, por sua vez: 1.º) àquela que tem por causa a imitação de um mesmo modelo, a transmissão de uma mesma tradição; 2.º) àquela que tem por causa a identidade do organismo humano e do espírito humano em certa medida, de onde resulta a coincidência de certas invenções maiores suscitadas, independentemente umas das outras, pelas mesmas necessidades, assim como sua produção sucessiva numa ordem freqüentemente quase igual, em virtude das leis da lógica. Limitemo-nos, no momento, a esta observação e, voltando às formas comparadas do processo, convenhamos, voluntariamente, que, em muitos procedimentos primitivos, mesmo naqueles de Atenas, como na Actio sacramenti dos velhos quirites[83], reencontra-se o depósito obrigatório de uma soma em dinheiro pelos litigantes, previamente a qualquer outra formalidade, para assegurar o pagamento das custas judiciais. É deplorável ter de constatar que, desde sua mais remota origem, a justiça aparece em toda parte como uma coisa essencialmente custosa. E eu estou ao ponto de acrescentar que muitas das numerosas nulidades imaginadas pelos diversos códigos de processo civil não existem senão para relembrar as interdições do tabu polinésio; mas eu não me sinto com coragem de gracejar sobre um tão lamentável assunto[84]. Sumner-Maine observou analogias flagrantes entre as formas de pignoris capio, usada entre os romanos primitivos, e aquelas de penhorar o gado, tão importantes no velho Direito Inglês[85]. Hoje, dizemos ainda mettre na fourrière[86]; mas esta expressão não é mais, entre nós, que uma sobrevivência, porque a fourrière não mais existe. Fourrière era um pedaço de terra cercado de tapumes e, extraordinariamente, “situado a céu aberto”, cuja destinação especial, — tanto era difundido o hábito de penhoras senhoriais, — era a de receber e de guardar os animais penhorados pelos credores não satisfeitos. Havia uma em cada cidade.

É provável, convir-se-á sem dificuldade, que a analogia sinalada por Sumner-Maine ligue-se a esse fundo comum de tradições e de instituições que se sabe haver sido a herança de todos os povos indo-europeus[87]. Falando de outro modo, ela tem por causa a imitação de pai para filho. Uma outra analogia indicada pelo mesmo autor explica-se do mesmo modo, a saber, aquela da vigília dharna usada entre os hindus, com o jejum contra alguém praticado na Irlanda. Em ambos os casos, vê-se o credor, para constranger seu devedor a pagar a dívida, plantar-se indefinidamente diante de sua porta e jejuar até que aquele execute o pagamento[88]. Efetivamente, o pagamento esperado não tardava nada, tanto a opinião pública desonrava aquele que deixasse seu credor cair doente por fraqueza ou morrer de fome diante de sua porta. Farei observar que este procedimento original de constranger atesta sentimentos compassivos em alto grau entre os primitivos, e não se pode, de nenhum modo, concordar com a insensibilidade profunda que se lhe costuma atribuir. Ainda um outro indício onde se observa seu espírito de fraternidade cordial: entre um grande número de povos bárbaros, sobretudo no Norte, a refeição comum é a grande cerimônia jurídica, o procedimento por excelência. Há o banquete de casamento, o banquete de adoção (Noruega), o banquete de reconciliação, que lembra nosso processo de reabilitação, o banquete de homenagem dado pelos fazendeiros a seu chefe (Direito Céltico).  Mesmo na Índia atual, de acordo com observações diretas feitas por Lyall, o direito e o hábito de sentar-se numa mesma mesa, do mesmo modo que o direito e o hábito de casar-se em conjunto, são o sinal exterior mediante o qual se reconhecem as pessoas que fazem parte de uma mesma casta. Um jantar era então o equivalente de um diploma ou de um certificado. Tudo isso, parece-me, testemunha costumes fraternos e um liame social que pode estreitar-se bem mais. Até o primitivo procedimento dos romanos, tão duro de aspecto, é suscetível de interpretação análoga. Observam-se analogias de forma e de espírito entre esse antigo cerimonial das ações da lei e o mais antigo procedimento dos francos. Um e outro são obra da parte privada, sem intervenção do poder público. Mas isto não quer dizer, de modo algum, que um sentimento de ódio ou de vingança os inspire. “Esse procedimento, diz Glasson, nada tem em comum com o exercício brutal do direito de vingança; ele é, ao contrário, composto por uma série de atos solenes e sacramentais. A parte lesada não obtinha reparação pela violência, mas afirmando seu direito através de atos solenes e fórmulas consagradas.” Isso revela, entre os primitivos, uma enérgica e justa concepção do Direito.

Perguntemo-nos, em suma, se está provado: 1.º) que o processo e a organização judiciária tiveram, como ponto de partida semelhante, um mesmo estado embrionário; ou bem, 2.º) que atravessaram, em seu desenvolvimento, partindo talvez de estados desiguais, uma ordem semelhante de fases sucessivas; 3.º) que tenderam em toda parte, mesmo por caminhos diferentes, a convergir espontaneamente na direção de um mesmo estado de perfeição ideal.

Em primeiro lugar: Onde se vê o indício dessa semelhança inicial que se admite tão facilmente?  Quais razões se têm para crer nisso, a não ser essa simplificação ilusória, essa destruição aparente dos contornos e das cores que a distância, no tempo e no espaço, opera, e que é a miragem dos historiadores filósofos? Quanto mais eles remontam ao passado, mais eles vêem também recuar a cena da vida primitiva, una e uniforme, que brilha a seus olhos num longínquo engano.  Daí o erro geral de situar o uno, o homogêneo, o in-diferente no início e no fundo das coisas, naquilo que se vê pior, como se, em toda a parte onde se dá ao trabalho de aprofundar a homogeneidade pretendida, não se vissem pulular as diferenças características.  Se olharmos para as tribos selvagens ou bárbaras ainda existentes, observar-se-á que, entre algumas, como os cabilas, o poder judicial é exercido pela assembléia da cidade inteira; que, entre outras, ele se concentra no chefe, patriarca ou déspota; que, entre outras ainda, ele se divide entre o chefe e a assembléia; descobrir-se-ia, talvez, que chamam um juiz estrangeiro, semelhante ao podestat das cidades italianas, para julgar mais imparcialmente suas diferenças. Observar-se-á também que, se quase todas, — não todas, — praticam certos ordálios muito diferentes aliás uns dos outros, fazem-no de modo muito desigual; que muitas não conhecem o juramento, nem mesmo o duelo judicial, meio de prova, todavia, naturalmente mostrado entre povos que se nos apresentam como universalmente inclinados à guerra perpétua.

Desconfiemos de generalizações precipitadas. Sumner-Maine, ele mesmo, é muito apressado em generalizar aqui. Porque as velhas “ações da lei” dos romanos, assim como muitos dos antigos procedimentos observados por ele na Índia, consistem em simulacros de combates para disputa de um objeto, ele acreditou que esta “comédia jurídica” deveria ser o primeiro estado universal do processo. “Toda essa mímica, — diz Letourneau, — tem como objetivo evidente evitar uma disputa violenta, limitando-se a recordá-la. Do mesmo modo, as formalidades da penhora inspiram-se também no ataque primitivo, substituindo-o.” Muito Bem. Este simbolismo do processo, como aquele da pena, — porque esta “mímica” e o talião podem se esclarecer mutuamente, — é freqüente.  Por uma espécie de simetria natural dos contrários, ocorre freqüentemente que um fato social reflita outro e, quase sempre, àquele ao qual se opõe e se substitui. O que há de mais contrário à reconciliação que a vingança? Todavia, a cerimônia da reconciliação entre os ciganos no século XIV, tal como os usos morávios nos descrevem[89] é um simulacro da vingança. Que há de mais contrário à guerra que o jogo?  Entretanto sabe-se que os jogos de cartas e de xadrez, sem falar nos outros, são combates simulados. Mas universalizar esse caráter que, sem dúvida, deve ser exclusivamente próprio aos povos imaginativos, é iludir-se à maneira dos filólogos que querem explicar a origem de todas as línguas pela onomatopéia, mímica vocal. Aparentemente, esta explicação demasiado simplista, rejeitada, de resto, pela maior parte dos sábios, não é aplicável senão aos idiomas criados por indivíduos excepcionais, pertencentes ao que Ribot[90] e outros psicólogos chamam o tipo auditivo[91]. Haveria mais de verossimilhança, seguramente, em colocar no linchamento o início universal do processo criminal que deveu preceder ao processo civil. Nós reencontramos este procedimento sumário entre muitos povos, notadamente, em Israel, onde, ao lado dos julgamentos reais ou levíticos, havia os julgamentos de zelo, execução espontânea de um criminoso por uma multidão indignada; porque a indignação é coisa muito antiga e a moral também, por conseqüência. Mas ainda seria abusivo pretender, após isso, que todos os povos primitivos linchassem. Concluímos que a maior diversidade deve ter reinado entre os procedimentos primitivos, como entre as línguas primitivas.

Em segundo lugar, não percebo uma grande similitude, não mais, na sucessão de fases atravessadas pelo desenvolvimento dos diversos procedimentos e das diversas organizações judiciárias, a não ser aquela que é a conseqüência direta ou indireta da imitação. Direta, quando as instituições jurídicas de um povo estrangeiro foram copiadas; indireta quando, sem nenhuma cópia jurídica, mas por conta da difusão geral de exemplos quaisquer e de sua mútua troca, as tribos tornam-se cidades, as cidades, reinos, impérios, grandes nações mais e mais civilizadas, ou seja, complexas, e que esse crescimento gradual somado a essa complexidade gradual constrangem o processo e a organização judiciária a se adaptarem. Numa certa medida não muito precisa, as formas sucessivas desta adaptação apresentaram alguma analogia. É certo que, quando a cidade cresce, uma justiça real deve se substituir aos tribunais de família para diversas naturezas de delitos ou de processos.  Do mesmo modo, o crescimento gradual do grupo social explica por que, em quase todas as legislações, era interdito, primitivamente, litigar por procuração, e a apresentação à justiça devia ser pessoal, enquanto, no final, não apenas tornou-se permitido tomar um procurador, como ainda obrigatório. É assim que, nos pequenos Estados democráticos, as leis deviam ser votadas diretamente pelo povo reunido em assembléia e, nos grandes Estados, não o podiam ser senão por representantes. É certo também que, quando as invenções relativas à domesticação de animais primeiramente, de plantas a seguir, como objetos de difusão e permuta, fizeram a tribo passar da vida caçadora à vida pastoral primeiro; depois, à vida agrícola, que permitiu a fixação ao solo e uma maior densidade populacional, o processo enriqueceu-se em toda parte e tornou-se mais complexo, a função judiciária regularizou-se, dividiu-se, especializou-se. Mas não vejo como esta semelhança pudesse ir mais longe, a não ser através de empréstimos diretos, sem os quais dois povos permaneceriam sempre estranhos um ao outro.

De acordo com Letourneau, “se, em fazendo abstração do período imperial em Roma, nós compararmos a evolução da justiça na cidade de Rômulo, naquela de Sólon[92], veremos que em ambos os países a organização do poder judiciário passou por fases quase idênticas. Roma, como a Grécia, começou pela justiça familiar; depois, ela foi confiada aos cuidados do juiz, dos reis e das cúrias práticas. A seguir, a reforma de Servius Tullius[93] copiou aquela de Sólon e transportou aos comícios centuriais a maior parte das atribuições primeiramente reservadas às cúrias. Uma vez lançado, o movimento foi mais longe ainda, e os comícios das tribos foram também entregues à justiça.  Enfim, chegou-se ao sistema das Questions, ou seja, comissões de jurados escolhidos por sorteio, como o eram os heliastas[94] de Atenas. De outra parte, para completar a semelhança, o senado romano julgava um pouco como o Areópago, e as prerrogativas judiciais do cônsules haviam começado a parecer-se muito àquelas dos arcontes[95]”. À primeira vista, estas analogias são especiais; de perto, reduzem-se àquilo que se deveria esperar de acordo com as leis da imitação e da lógica, das quais já falei mais acima. Primeiramente, deveu-se a Letourneau “fazer abstração do período imperial”, como se esta fase final, a mais longa de todas e prolongada até nós através de toda a Idade Média, não se ligasse intimamente às precedentes: não houve jamais solução da continuidade judiciária em Roma. Depois, sem entrar nos detalhes das objeções: Encontrou-se em Atenas o equivalente daquilo que dominou a justiça romana, a jurisdição do pretor?  Em Atenas, os heliastas; em Roma, o pretor. Eis o que deve saltar aos olhos.  De um lado, uma sorte de júri enorme, composto de 500, de 1.000, de 1.500 jurados reunidos em praça pública, e onde todos os defeitos próprios aos nossos júris deveriam produzir-se ao décuplo, ao cêntuplo; de outro lado, um magistrado único ocupando o cargo em seu pretório. De uma parte, assim, uma multidão julgava de acordo com suas impressões momentâneas, sem nenhum cuidado das formas nem do fundo do Direito, e diante da qual, como se vê bem nos discursos civis de Demóstenes e de outros oradores atenienses, deviam-se advogar as causas mais simples, mesmo de uma parede-meia, por razões de sentimento e de conveniência política. D’outra parte, um patrício transformava em ponto de honra o respeito a seu édito, respeito, mesmo com um exagero meticuloso, às formas antigas de dizer o Direito. Adivinham-se as divergências que uma tal diferença de organização judiciária devia imprimir à evolução de ambos os procedimentos e também de ambas as jurisprudências. É à Heliéia, — malgrado a admiração expressa por Letourneau a este tribunal popular, dito “mais acessível ao progresso”, — que se imputa comumente a imperfeição deplorável em que permaneceu o Direito Ateniense, sua inferioridade flagrante relativamente a outras ciências e artes. O que há de menos suscetível de perfeição no mundo é o júri. Outra particularidade da justiça romana: por longe que se remonte às suas origens, vêem-se sempre delitos e crimes perseguidos de ofício. Sem dúvida, o Senado relembra um pouco, muito pouco, o Areópago, e as Questões têm em comum com a Heliéia o serem tribunais eleitos, mas eleitos de uma outra feição, compostos de um muito menor número de membros e limitados em seus poderes especiais por uma fórmula onde o pretor os encerra num círculo de Popilius[96]. Onde está a analogia da fórmula romana, tão original, tão característica, com o procedimento ateniense? Quanto ao mais, comparai a evolução do processo e da organização judiciária mesmo entre povos muito vizinhos, Atenas e Esparta, França e Inglaterra, e vós vereis pulularem as mais fortes diferenças.

Enquanto em Atenas e em Roma a justiça real precede a justiça popular, relativamente democrática, o inverso tinha lugar na Judéia. Entre os hebreus, após uma época conjetural, onde reinava a vingança na total ausência de toda justiça organizada, a primeira fase conhecida foi aquela da assembléia da tribo, uma espécie de djemmad cabila; depois, a função judiciária, monopolizada pelos levitas, dividiu-se entre eles, e cresceu então a importância do juiz e do escriba, onde se percebe a imitação do Egito de quem Israel tanto importou. Enfim vieram os reis. Salomão é o grande justiceiro lendário, e Josafat organiza o Sinédrio, esta alta corte de setenta membros que julgavam de acordo com um processo tão sábio e tão complicado!  Guardai-vos, aliás, malgrado sua sabedoria proverbial, de compará-lo ao Areópago, porque do ponto de vista evolucionista, é precisamente o inverso, pois este último tribunal, em lugar de ser criação monárquica e relativamente recente, remonta, ao contrário, aos tempos mais fabulosos da Grécia e, dizem-nos, “procede, sem dúvida, do Conselho de Anciãos situado da ágora à época homérica”.

Tudo o que se pode dizer de mais geral a respeito das transformações sucessivas do processo é que, contrariamente à opinião vulgar, ele se torna cada vez mais formalista à medida em que avança, ao menos até uma certa época, ou seja, cada vez mais preciso, regular e minucioso; e veja-se bem por quê. É pela mesma razão pela qual a ortografia das línguas torna-se de uma meticulosidade sempre crescente, a despeito desses reformadores atuais, à medida em que progridem as literaturas. A propósito da Germânia, Letourneau reconhece este fato, mas parece julgá-lo excepcional e deplora-o. “Em se regularizando, o processo germânico (amorfo no início) tornou-se tão completamente desarrazoado quanto àquele de Roma ou da Irlanda.  Adotaram-se fórmulas, expressões obrigatórias das quais a omissão levava à perda da causa.”

Se não há um ponto de partida comum, nem uma via comum que se impôs às justiças dos diversos povos, dir-nos-ão que elas tendem a se direcionar a um mesmo ponto de chegada? Até aqui este pólo hipotético não passou sob meus olhos. E vejo bem, à medida em que se estende o campo do mundo civilizado, um pequeno número de procedimentos substituir-se a muitos outros que desaparecem diante deles; e é de crer que esta eliminação progressiva poderá conduzir finalmente ao reino de um processo único, a saber, aquele do processo, tanto quanto o da língua própria à nação mais invasora, mais estrondosa, mais prestigiosa. É certo, de acordo com as leis da imitação que, precisamente porque existe na origem uma diversidade de coisas originais, aspirando cada uma a fazer-se imitar universalmente, a unidade deva realizar-se um dia, para triunfo de uma delas. É assim que, no Império Romano, a unidade jurídica se fez pela superposição do Direito da cidade de Roma ao Direito Etrusco, ao Direito Céltico, ao Direito Helênico, etc. Mas uma coisa é esta uniformidade final, efeito necessário da concorrência de contágios imitativos, espontâneos ou forçados; outra coisa é a uniformidade que teria por causa uma necessidade de gênero muito diverso, em virtude da qual cada Direito, em se desenvolvendo isoladamente, alcançaria um estado muito aproximado daquele para onde viriam a convergir cada um dos outros, como por uma espécie de atração superior, qualquer que fosse o afastamento de seu ponto de origem e de suas distintas peregrinações.

Ora, quanto a esse último ponto de vista, concordo de boa vontade que certos usos ou certas regras devam prevalecer ao longo do tempo, um pouco em toda parte, porque eles respondem melhor às necessidades da natureza humana naquilo que elas têm de idêntico e de permanente. Reencontram-se na justiça chinesa, diz Letourneau, estes “grandes princípios dos quais se orgulha a Europa moderna: as circunstâncias atenuantes, a não retroatividade, o direito de apelo, o respeito à liberdade individual, a confusão das penas, enfim o direito de graça deixado ao soberano.” Este encontro da China e da Europa sob diversos pontos não pode, aliás, explicar-se pela imitação, já que as instituições de uma e de outra evoluíram sem se influenciar reciprocamente de maneira apreciável. Mas, expressa nesses termos gerais e vagos, a analogia sinalada é bem mais completa na aparência do que é na realidade. Nada se parece menos, de fato, ao processo chinês que o nosso. Quanto ao mais: Pode-se afirmar que os “grandes princípios” em questão estão destinados a ser, necessária e universalmente, descobertos pelo progresso jurídico? Se julgarmos de acordo com o crescimento das idéias socialistas, o respeito à liberdade individual não parece dever ser o caráter dominante do Direito futuro. As circunstâncias atenuantes são, aos olhos dos novos criminalistas, uma transação eclética e passageira entre o antigo dogma da responsabilidade absoluta fundada sobre o livre arbítrio e a idéia da imputabilidade fundada sobre a defesa social. O direito de graça é rejeitado por eles como uma sobrevivência do absolutismo monárquico, da soberania judiciária encarnada no rei. O próprio apelo é de utilidade contestada. Desconhecido na origem, introduziu-se como uma necessidade de circunstância, quando a justiça real, sobrepondo-se às justiças familiares ou locais, mas não ousando ainda suprimi-las, deixou-as funcionar, reservando-se o direito de julgar em última instância.  Eis aí ainda um expediente eclético.  Se um tribunal é presumido superior a outro em sabedoria, por que não encarregá-lo, desde o início, do conhecimento das causas? Há, judicialmente, dois graus de jurisdição, como há, politicamente, duas câmaras, dualidade da qual a utilidade desapareceria no dia em que o recrutamento de uma câmara única fosse submetido a garantias suficientes, onde, por exemplo, não se pudessem fabricar leis senão com a condição de se apresentar, ao menos, as mesmas provas oficiais de capacidade que se exigem dos juízes encarregados apenas de aplicá-las.

Como seria descer até aos detalhes práticos? Será que o processo ideal implica, necessariamente, na existência de advogados, de defensores, de meirinhos? De escrivães, convenho, após a invenção da escrita. Entre os astecas mesmo, na falta da escrita, havia uma sorte de pintura cursiva. Tínhamos um escrivão pictográfico nos julgamentos. Mas o antigo Egito, ainda que sua evolução jurídica tenha sido a mais longa, a mais impulsionada na direção de um sentido próprio entre todas aquelas do universo, era sem advocacia, sem advogados; os debates eram escritos. Na China, sem advogados, como no Japão. No Prata, — e todavia sabe-se o quanto os povos da América do Sul se vangloriam de ser amigos do progresso, — não há nem defensores nem meirinhos. Não vou querer afirmar que este seja o último termo da perfeição; mas eu acredito ter o direito de concluir que ninguém saberia descrever o processo do amanhã, — ele será o que for.


 

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Capítulo Terceiro
Regime de Pessoas

A família primitiva. Preconceitos científicos a esse respeito. Promiscuidade, matriarcado, patriarcado: quid? Couvade. Fases curiosas dos direitos da mulher no curso da evolução jurídica no Egito. Gerontocracia. Diversidade inicial das constituições familiares. Maioridade, cada vez menos precoce. Transformações sucessivas da idéia de nobreza. Lei superior: alargamento contínuo do círculo social, do círculo jurídico.

 

Após haver examinado o Direito Criminal e o processo, passemos a esta extensa parte do Direito Civil que rege as relações entre as pessoas.  Aqui novamente veremos desaparecer a idéia de uma evolução uniforme. Acumulam-se volumes sobre volumes para resolver a questão de saber qual era a constituição da família primitiva, e não se pergunta se havia razões suficientes para olhar esta constituição como sendo a mesma em toda parte.  Não existe a menor. Os resultados contraditórios fornecidos por pesquisas igualmente conscienciosas são a prova. Temos raramente o prazer de encontrar de acordo Morgan com Mac Lennan, Bachofen com Starcke, Herbert Spencer com antecessores e com Sumner-Maine.  Muitos escritores têm todavia por demonstradas as hipóteses seguintes, tornadas lugares comuns científicos: na origem, promiscuidade universal, depois matriarcado, mais tarde patriarcado, etc.  D’Aguanno acredita provar que a família primitiva não poderia ser monogâmica, ainda que a monogamia exista já entre os animais superiores; porque, se ela apareceu repentinamente, — e ele o crê, — a formação da primeira horda devera, forçosamente, tê-la dissolvido. “É necessário, diz ele, admitir que a sociedade primitiva, por certo tempo, destruiu a família, até que, após um processus muitas vezes secular, aquela reapareceu em seu seio.” Eis aí muito de imaginação. Concebe-se que seres humanos, após terem uma fêmea só para si, teriam consentido na promiscuidade da horda? Dizem-me que a vida de caverna não permitiria em nada aos trogloditas fazerem uma união à parte.  Por quê? Cada família não poderia ter uma gruta só para si? É mais fácil representar uma horda promíscua aglomerada numa única gruta? O erro é acreditar que a horda fosse o único ou o principal início da humanidade, e que exista “entre a família e a sociedade um antagonismo constante nas fases rudimentares” da segunda. Não é mais natural supor que o desenvolvimento da família, lá onde ela é mais fortemente organizada, ou seja, patriarcal[97], — porque, de resto, os ensaios mais diferentes de organização doméstica apareceram em grande quantidade e coexistiram longo tempo, — produziu seu fracionamento em colônias múltiplas, e que a tribo nasceu assim, simples federação de famílias? E como a família fosse obrigada a expulsar freqüentemente os elementos indisciplinados: Não é de supor que estes detritos de diversas famílias se reunissem talvez, congregados aqui e ali em hordas? E estas hordas, inimigas naturais das famílias regulares, não deveram contudo formar-se à maneira de um tipo de família qualquer, pois que não havia outro modelo a copiar?

Segundo d’Aguanno, que acredita resumir o último estado da arqueologia pré-histórica, os homens que, na idade da pedra lascada refugiavam-se em grutas, “andavam nus, sem propriedade e sem família, sem chefes fixos e sem divisão de trabalho” (pág. 115). Tantas palavras, tantas suposições desmentidas pelos dados arqueológicos. Os bastões de comando esculpidos que se encontraram nas grutas e que indicam mesmo, segundo Lartet[98], uma hierarquia marcada pelo número de suas covas[99], provam que os habitantes das grutas tinham chefes regulares e estáveis. Para chefes sem estabilidade seria poupado esse luxo relativo de ornamentação e de insígnias. Eles ignoravam tão pouco a divisão do trabalho que seus utensílios de pedra tinham destinações especiais e diversas, e certos arqueólogos estimam que, entre eles, as relações de troca eram muito desenvolvidas. A descoberta de instrumentos de pedra lascada fabricados com rochas exóticas, estranhas a todas as rochas do país onde são descobertos, parece revelar o estabelecimento de um certo comércio internacional a grandes distâncias, anterior mesmo à idade da pedra polida. Esses trogloditas não andavam completamente nus, se os analisarmos de acordo com seus raspadores que deviam servir, pensa-se, para raspar peles de animais e, de acordo com suas belas agulhas em osso, apontadas e furadas, sem dúvida, para costurar essas peles. Presume-se facilmente, de acordo com isso, que eles não eram nem sem propriedade nem sem família...

Não há dificuldade em concordar que a coexistência de muitas aldeias lacustres a pouca distância umas das outras permite supor relações pacíficas ou amigáveis entre eles, e o mútuo respeito a seus direitos. Mas que razão existe para se pensar que “o sentimento do justo e do injusto” nasceu entre os habitantes dos lagos? Em épocas anteriores, não vemos também grutas habitadas, muito vizinhas umas das outras? Esta reunião de grutas presumidas contemporâneas é fato habitual em todos os vales onde se as descobre, notadamente, nos vales de Vézère e da Dordonha. Na hipótese em que as pequenas comunidades que os habitavam estivessem continuamente em guerra entre elas, em que não reconhecessem nem respeitassem qualquer direito, onde nenhum esboço de direito internacional existisse desde então: Esta aproximação teria sido possível? Não, segundo d’Aguanno, ele mesmo. É necessário, eu creio, representar esses grupos de cavernas como federações pacíficas unidas por trocas comerciais. Se está aí um início da humanidade, — mas não creio que este seja senão um de seus numerosos inícios, — não vejo nenhum motivo para que nos descrevam nossos primeiros ancestrais como tigres bebedores de sangue. Eram tranqüilos caçadores, pescadores de ocasião, passando o tempo, — quando estava bom, — a cercar sua presa e, nos dias de chuva, a curtir e raspar as peles dos animais mortos por eles.[100]

Mas examinemos um pouco mais de perto a série pretendida: promiscuidade, matriarcado, patriarcado. Nada mais imaginário do que esta ordem. Dessa promiscuidade universal, batizada hetairismo, com que Bachofen[101] sonhou, onde está a prova, não digo de sua universalidade, mas de sua realidade mesmo nos tempos mais antigos? O exemplo mais nítido que se pode citar desse comunismo feminino é aquele da tribo hindu dos naires[102]; mas seu estado social está longe de ser primitivo. Eles formam uma casta nobre. Starcke[103] está autorizado a dizer que, longe de ser um ponto de partida, esta prática é, entre eles, o último termo de uma longa evolução.  Uma de suas cerimônias nupciais, — porque, coisa notável, eles têm comemorações de vinte e quatro horas para seus casamentos, — prova que, numa época anterior, o casamento fiel e durável lhes era conhecido. A prostituição sagrada, que era obrigatória na Babilônia para todas as mulheres uma vez na vida, pode ser interpretada como o vestígio de uma época em que os babilônios disponibilizavam tal prostituição a todos os babilônios? Mas era aos estrangeiros, não aos indígenas que elas deviam se prostituir, e como era no Templo de Afrodite que esse sacrifício de suas pessoas devia ter lugar, parece natural explicar esta forma de culto pelo desejo de ser agradável à impudica deusa, em a celebrando através de um rito apropriado ao seu gosto, assim como celebravam o deus da guerra através de jogos guerreiros. É verdade que se pode perguntar como esta divinização do impudor pudera introduzir-se num país onde reinava anteriormente a castidade das mulheres. Mas está aí uma das questões mais complexas. Uma palavra apenas. Não esqueçamos um fenômeno histórico muito freqüentemente negligenciado: esses frenesis intermitentes de imitação de povo a povo, não motivados, sem os quais não se compreende a propagação de nenhum culto.  Não vimos propagar-se, nos meios há pouco os mais cultos da Idade Média, o favor a uma inovação religiosa, — albigense[104], por exemplo, — com as práticas de um sensualismo dos mais licenciosos?

Muito se fala da couvade, este curioso costume de, em alguns povos, sujeitar-se o pai, após o nascimento da criança, a colocar-se no leito, fazer-se sangrar, purgar, tratar-se como doente e sofrer como tal os efeitos de uma medicação das mais dolorosas. Vê-se aí uma simulação da maternidade e uma sobrevivência ativa do matriarcado. O pai fingindo ser mãe para ser investido da autoridade doméstica. Mas, segundo Starcke e diversos sábios, se, como convém, aproximarmos este uso de muitos outros bem mais difundidos, e dos quais o sentido é claro, reconhece-se que a couvade não foi instituída nem para o pai, nem para a mãe; ela o foi no interesse da criança, à qual se acreditava assegurar a transmissão da bravura paterna, dando ao pai ocasião de a ostentar, porque “ele deve ter uma grande coragem para submeter-se a prescrições tão numerosas e tão duras”. Desejou-se ver também, mas erroneamente, na filiação uterina, no hábito de designar a criança como filho de sua mãe e não como filho de seu pai, um vestígio do matriarcado desaparecido. Numa sociedade patriarcal, a poligamia, — que é precisamente o contrário do matriarcado, – deve necessariamente fazer predominar o hábito em questão, para permitir distinguir as crianças nascidas da mesma mãe.

Se fosse verdade que a mãe, numa fase muito antiga das sociedades, houvesse possuído, geralmente e antes do pai, o cetro da família, que prova mais brilhante poderia ser dada da bondade original do homem e da intensidade dos sentimentos afetuosos entre nossos ancestrais? Porque, com toda certeza, a aceitação dócil da autoridade de uma mulher, — este ser fraco, – por seu marido ou por seus maridos, por seus irmãos, por seus filhos, pelos guerreiros que lhe são muito superiores em bravura, em força, em inteligência mesmo, não é suscetível de uma outra explicação, senão o grande desenvolvimento do amor ou da piedade filial.  Pode-se dizer que, em toda parte, nas populações incultas, é atribuído à mulher, mais freqüentemente que ao homem, um poder oculto e supersticioso nascido do medo, não do amor. Respondo que esse prestígio de feiticeira, sempre excepcional, estaria longe de ser suficiente para motivar sua preponderância social e não é explicável, ele mesmo, senão por uma grande sensibilidade ao seu encanto próprio, à sua magia sexual. Todavia, por uma contradição singular, os teóricos do matriarcado contam-se entre os sábios que fazem dos costumes primitivos um quadro mais tirante ao negro. Mas, de fato, esse matriarcado tão famoso existiu? Jamais, diz Starcke, as mulheres tiveram mais direitos ou outros direitos que os homens. Apenas em certas tribos africanas, os bechuanos[105], por exemplo, e a maioria das populações bantos[106], a mãe de família assiste ao conselho, o marido é freqüentemente guiado por sua mulher, tudo como um europeu, e as crianças adoram sua mãe até o fim de seus dias, o que não é muito excepcional, mesmo na Europa. Em outros termos, a mulher participa dos direitos do homem; em certas tribos, ela pode mesmo ser chefe, como a Rainha da Inglaterra, ao mesmo título que o homem, em nenhum lugar a título exclusivo. Se, todavia, encontramos aqui e acolá uma pequena população como aquela dos kocchs da Ásia, onde os homens efeminados são respeitosamente submetidos às vontades de suas mulheres e de suas sogras, que se arrogam o monopólio da bravura e do trabalho, será que, por acaso, se quer fazer desta inversão sexual, acidental e mórbida como tantas outras inversões sexuais, tão curiosamente estudas em nossos dias, a regra geral da humanidade selvagem? Acrescento que as tribos atualmente situadas no mais baixo grau da escala social, os bosquímanos[107] e os hotentotes entre outros, ignoram completamente o matriarcado[108].

D’Aguanno, todavia, descreve-nos, como se houvesse visto, a avó matriarcal no exercício de suas funções judiciais e conta-nos de que maneira ela transmitiu ao patriarcado o trono familiar. Estamos, é verdade, um pouco surpreendidos por aprender que esta substituição maravilhosa do matriarcado pelo patriarcado não parece haver “operado uma mudança notável no organismo jurídico”. Resta saber o que poderia bem ser o organismo jurídico nesses tempos imaginários. De acordo com autores menos imaginativos, o matriarcado, na medida em que existiu acidentalmente, não apareceu nem podia aparecer senão após o regime patriarcal.

É que esse progresso jurídico, tal como nos é dado observar no curso da História verdadeira, nos apresenta, ordinariamente, não esse destronamento e essa escravização da mulher consecutiva ao seu pretenso absolutismo; é, ao contrário, sua emancipação gradual que a fez passar de um regime de escravidão para uma era de liberdade e de autoridade relativa. Novamente, devemo-nos guardar de generalizar este último fato. Com efeito, não é mesmo verdadeiro dizer, — ainda que se o diga e que se o torne a dizer tão freqüentemente, — que o progresso do direito se opera sempre no sentido da mais completa libertação da mulher, gradualmente igualada ao marido. A história do Direito Egípcio, a partir dos ptolomeus, é suficiente para contradizer essa asserção muito geral. Vê-se, então, sob a influência do Direito Grego, — que subordinava tão absolutamente a mulher ao homem, — o Direito Egípcio cessar de conceder à mulher, como havia feito desde as mais antigas épocas, um papel independente, privilegiado às vezes, no casamento, e submetê-la ao jugo marital. Todavia a importação do direito helênico foi, para Direito Egípcio, uma aquisição fecunda, um estimulo e uma fonte de progresso[109]. Do mesmo modo, é bom dizer que o efeito inevitável da civilização é o de diminuir sem cessar a autoridade jurídica do pai sobre seus filhos, ao contrário do que se viu em muitas províncias romanas, quando o édito de Caracala teve por efeito, segundo Sumner-Maine, ampliar a patria potestas romana, tão rigorosa e tão extensa ainda sob o Império, sobretudo à vista dos bens próprios às crianças, a uma multidão de pessoas que não conheciam nada semelhante. Estes últimos, então, em se civilizando, viram bruscamente crescer seu poder doméstico e mesmo sua fortuna. O progresso cumpriu-se para eles no sentido de um estreitamento, e não de um relaxamento dos liames autoritários da família.

Não são apenas os diversos sexos, são as diferentes idades da vida que disputam entre si a preeminência. Esta luta incessante não se resolve sempre nem em toda parte da mesma maneira; suas soluções sucessivas não se seguem sempre e em todo lugar na mesma ordem. Eu admiro aqueles que pretendem regrar de antemão a sorte desses combates. Ora, — e este é o caso ordinário, — o sexo masculino domina; ora, raramente, o sexo feminino; mas a subordinação deste último é mais ou menos completa e varia muito, num sentido ou noutro, segundo as idéias e as paixões dominantes no curso da civilização. Do mesmo modo, ora a idade madura, ora a juventude, ora a velhice têm o governo dos negócios. Pode-se dizer que a gerontocracia é muito freqüente entre os povos primitivos, sem todavia ser constante, que a efebocracia é exceção, e que o reino dos homens maduros, no vigor da idade, — o que se poderia chamar antropocracia, – é o regime normal, o que não quer dizer habitual. Não houve jamais uma sociedade em que as crianças comandassem como senhores? Por uns tempos, é possível. Mas se esta singularidade houvesse existido, seria fundamento para pretender que a pedocracia é uma fase necessária da evolução social, um dos anéis dessa longa corrente? Eu não vejo mais razão para atribuir esta mesma importância ao matriarcado, à ginecocracia.

De todos esses debates sem fim relativos aos sistemas de parentesco e de casamento, o que me parece resultar de mais claro é que a família primitiva foi muito diferente dela mesma, aqui monogâmica, lá poligâmica, alhures poliândrica, ora exogâmica, ora endogâmica[110], freqüentemente mais autoritária, às vezes mais liberal do que se tornou mais tarde. Mas, se o ponto de partida é múltiplo, os caminhos percorridos são paralelos ou convergem na direção de um mesmo estado final, notadamente em direção a uma forma de casamento mais ou menos vizinha ao casamento cristão? Não. Apenas é verdadeiro dizer que a adoção desta forma superior foi uma causa de triunfo na luta das sociedades, o que explica sua difusão progressiva. Pouco não faltou todavia para que a conquista árabe não cobrisse a Europa e não lhe impusesse a poligamia. A monogamia, aliás, é compreendida de várias maneiras diferentes. No velho Egito, por longe que se remonte em sua história, o casamento era um contrato de sociedade entre dois iguais; na Arábia, na Pérsia, na antigüidade greco-romana, entre os mongóis, na China, era um contrato de venda: a mulher era comprada pelo marido.  Na Polinésia e entre os esquimós é freqüentemente um contrato de empréstimo ou de aluguel temporário.  Algures floresceu o casamento por servidão do genro ao sogro, de Jacó na casa de Labão. Entre os peles-vermelhas, entre os hindus, esta variedade está representada. Além disso, havia o casamento por captura.

O casamento não tem, pois, ponto de partida numa forma única e não tende a isso. Será que, sobre as interdições ao casamento, ora entre parentes, ora entre estrangeiros, ora entre castas diferentes, — será que, sobre as obrigações ao casamento, tais como o levirato[111], — será que, sobre os casos de nulidade de casamento, sobre a faculdade mais ou menos extensa, unilateral de início, recíproca a seguir[112], de se divorciar ou separar, sejam bens, sejam corpos, as diversas legislações civilizadas se assemelham ou parecem ter uma tendência espontânea a assemelhar-se? Na Pérsia, o incesto, mesmo entre ascendentes e descendentes, era não apenas autorizado, mas favorecido mesmo pela lei, segundo Dareste.  Exceção única, de resto, na família ariana. Entre nós, os reis tiveram, por longo tempo, o direito de ordenar casamentos entre seus súditos e, após cessar seu reconhecimento, continuaram a rogar a seus súditos que se casassem, rogo que era uma ordem. Submetiam-se, quando havia espírito monárquico, do mesmo modo que, quando havia espírito familiar, submetiam-se a um comando análogo do pai de família.  Hoje, não há mais dessas coerções matrimoniais por ordem; mas quanto ainda de casamentos forçados impostos por diversas considerações! — Quanto às interdições ao casamento, nós não admitimos mais aquelas que, editadas outrora no interesse da conservação das famílias, não respondem mais aos nossos costumes individualistas; mas nós suportamos, sem lamentar, aquelas que se fundam sobre um interesse nacional, por exemplo, aquelas que impedem os militares de se casar até uma certa idade, ou que subordinam o casamento de oficiais à aprovação de seus chefes. E achamos isso completamente natural.

É assaz notável que a idade da maioridade, muito precoce entre os bárbaros, mesmo no Norte, tornou-se mais e mais tardia em geral, no curso da civilização[113]. Entre os romanos primitivos, a puberdade, a plena capacidade jurídica era fixada aos quatorze anos; do mesmo modo entre os francos ripuários[114], os burgúndios[115], os visigodos[116]. Ela era fixada aos doze anos entre os anglo-saxões. Mas, à medida em que se civilizavam, os romanos chegaram a retardar a maioridade até os vinte e cinco anos; os visigodos, em se civilizando também, sob a influência da imitação romana, é verdade, retardaram-na até os vinte anos; os ingleses, até os vinte e um, como nós. Esse retardamento das maioridades é bem um efeito da civilização, — da civilização que, todavia, aumenta sem cessar a precocidade das inteligências, — onde, para os plebeus, para as classes nacionais que permanecem incultas, nós vemos longo tempo subsistir a antiga maioridade precoce, enquanto ela é retardada nas classes da nobreza. Na Inglaterra e no Oeste da França, no século XIII, “a moça nobre, diz Viollet, era maior aos quinze anos; a moça plebéia, aos doze”. No Leste da França, o gentilhomme era maior aos quatorze ou quinze anos; o plebeu, pouco mais cedo. No século XVI, já estando organizada a civilização, todas essas maioridades são abaixadas. Como explicar isso?  Assaz simplesmente, eu creio. Quanto mais nos aproximamos da vida primitiva, mais as profissões são simples, o aprendizado fácil, e mais cedo é possível a uma criança “arrumar trabalho”. Desde os doze ou treze anos, um pequeno camponês pode ganhar sua vida.  Ele abandona o teto de seu pai, — muito pobre para alimentá-lo, — e vai trabalhar para um patrão ou para um senhor; ele troca uma servidão familiar por uma dominação patronal. Assim, é sempre reduzido o benefício da maioridade.  Mas que jovem rapaz letrado de nossos dias, a não ser na América, — terra nova e primitiva em certo sentido, – ganha sua vida antes dos vinte e um anos?

As transformações sucessivas da idéia de nobreza podem dar lugar a uma generalização de certa solidez. Fustel de Coulanges, em sua Monarchie Franque e outras, mostrou que, após haverem conhecido, num passado remoto, muito tempo antes da invasão, a nobreza hereditária e inerente ao sangue, os diversos povos da Germânia quase não conheciam mais, no momento da invasão, senão a nobreza transitória, administrativa, ligada à escolha real ou às funções públicas. D’outra parte, em Roma, a mesma evolução produziu-se: no início da história romana, sabe-se do papel preponderante que desfrutava o patriciato[117]. Ora, pouco a pouco, esta nobreza de origem fisiológica declinou e, sob o Império, foi substituída enfim por privilégios temporários de ordem senatorial, livremente recrutados pelo soberano entre todas as classes da nação. O patriciato não guardava mais que seu lustro arcaico e seu valor estético, sempre apreciados aliás. — Seria esta uma lei geral? Eu seria levado a ver aí ao menos uma tendência habitual, conforme àquela que nós conhecemos sobre a substituição progressiva das causas sociais às causas naturais nos fatos humanos. Acrescente-se que, pelo enobrecimento, em todos os países, imagina-se entrar artificialmente, sem nenhuma consangüinidade, no corpo inicialmente fechado da nobreza, como, pela adoção, no seio da família. Estas duas invenções respondem ao mesmo objetivo: liberar o lado social do homem de sua natureza animal, romper a subordinação primitiva das relações sociais às relações de parentesco.

A prova, todavia, de que a lei enunciada não tem um alcance universal, e de que a transformação indicada por ela não é absolutamente irreversível, é que uma transformação precisamente inversa nos é apresentada, excepcionalmente, por nossa Idade Média[118]. Persigamos a história dos francos e de outros povos invasores do Império Romano. No momento em que eles se espalharam, nós o sabemos, e Glasson nos repete, “eles não contavam com nobres em suas fileiras”; e foi esta ausência de uma classe nobre, nos tempos merovíngios, que permitiu aos reis dessa época exercerem um poder absoluto. Mas este autor acrescenta: “Foi apenas na seqüência, e muito mais tarde, que a classe da nobreza (hereditária), saída em grande parte dos funcionários do reino, constituiu-se e tomou um lugar importante no Estado.” Assim, entre esses povos, após transformar-se de hereditária em transitória, a nobreza retorna de transitória à hereditária.  Foi suficiente, para isso, o enfraquecimento do poder central, que deixou os cargos públicos se perpetuarem em certas famílias, e o usufruto dessas funções se transformar em propriedade, santa e sagrada aos olhos de todos. Quem sabe se, pela ação da mesma causa, no seio de nossas democracias modernas, a elaboração lenta e despercebida de uma nova casta aristocrática seja, além do mais, tão impossível quanto se é levado a supor, posto que, verdade seja dita, isso me pareça pouco provável? Não se vêem despontar, aqui e acolá, alguns germes de verdadeiras dinastias republicanas? O que quer que seja, o exemplo citado prova até que ponto é temerário generalizar em ciência social[119].

Uma bela, uma admirável progressão que não nos damos ao trabalho de observar, e que acompanha, porém, todas as evoluções jurídicas, é a ampliação contínua das relações de direito. Primeiramente, restritas ao grupo estreito e fechado dos parentes, que cresce tanto quanto pode pela adoção, pela lenda, anexando toda sorte de parentes fictícios ou imaginários, ampliam-se a seguir, seja pelo contrato feudal, seja pelo contrato de associação corporativa, no círculo mais vasto de vizinhos, confrades, concidadãos locais, mais tarde, pela idéia da pátria, a milhões de compatriotas e, pela idéia de cristandade, de Islã, de uma comunidade religiosa qualquer, amplia-se a centenas de milhões de estrangeiros mesmo; enfim, pela idéia de humanidade, de direito das gentes, de direito natural, amplia-se a todos os homens[120]. E, ao mesmo tempo em que se amplia desse modo, o campo jurídico aprofunda-se mais e mais, pela admissão sucessiva de camadas cada vez mais baixas do grupo social, da mulher, do plebeu, do escravo, na grande igreja do Direito. Eis um duplo progresso incessante que realiza a História. Eis aí a obra direta ou indireta da imitação que, nascida da idéia da simpatia, condição essencial da sociabilidade, aumenta-a, desdobra-a, fortifica-a e consolida-a em direitos e deveres reconhecidos, à medida em que os homens, melhor assimilados por ela, sentem-se mais ligados entre eles.

Parece que se percebe uma parte dessa façanha quando, na companhia de Sumner-Maine, discernimos duas fases sucessivas do Direito: aquela onde o sentimento de solidariedade jurídica fundamenta-se unicamente sobre o sentimento correto ou errôneo da consangüinidade, e, a seguir, aquela onde ele se fundamenta, de preferência, sobre a coabitação num mesmo território.  Mas, como vemos esse fato sem ver sua causa, nós a falseamos, exagerando-a. Porque, enunciado nesses termos, exprime um erro. Jamais, entre pessoas que permaneceram sem contato simpático e assimilador umas com as outras, o nexo geográfico de vizinhança foi suficiente para criar um liame de direito: os chineses, os judeus, que se assimilam tão raramente ao ambiente estrangeiro, são raramente admitidos na comunhão jurídica. Mais são vizinhos próximos, mais se colocam violentamente fora da lei. D’Aguanno, que encontra freqüentemente vistas muito justas, a custo observa que o sentimento de igualdade de direitos primeiramente nasceu nas relações de um pequeno grupo de pessoas unidas por laços de sangue; depois, da corporação ou da casta, quando se fecha até que, com o passar do tempo, venha a se expandir.  Mas cada vez que esta expansão rompe ruidosamente um de seus diques, este autor não vê, sob a ação intermitente das causas assinadas pelos historiadores, — jus connubii entre patrícios e plebeus, um dia o voto, outro dia conquistas violentas da plebe sobre a nobreza, em outro a publicação de tal evangelho revolucionário, etc., — a ação contínua da qual ela deriva. Deve-se, eu creio, não esquecer nunca dessa consideração muito simples, se se quer desembaraçar com êxito o fio da história, e não exagerar, falando de evolução.

Uma observação en passant. Os evolucionistas insistem muito, e nisto eles têm razão, sobre a solidariedade rigorosa que ligava, entre eles, os membros do grupo social primitivo. Eles repetem freqüentemente que o sentimento da personalidade coletiva sobrepujava então absolutamente, como nas colmeias e formigueiros, àquele da personalidade individual.  Muito bem. Mas como se pode dizer, após isso, que os primitivos se distinguiam por um egoísmo grosseiro, completamente desprovido desse requintado “altruísmo” com o qual apenas a civilização, parece, os haveria gratificado?


 

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Capítulo Quarto
Regime de Bens

Formas primitivas da propriedade. Três tipos de provas invocadas a favor do comunismo primitivo. Pretensa reprodução desse comunismo nas nascentes colônias modernas. Exame dessa alegação de Sumner-Maine e de A. Loria. As sociedades animais segundo Espinas. O mir, a allmend, a zadruga, o tonw-ship, etc. A comunidade familiar seguiu-se ou precedeu à comunidade de aldeia? O verdadeiro significado de ambas.  Retomada linear, retomada vicinal, retomada feudal, direito de retratação, recompra: quid? As “pleiges”. O carnaval. A “ménage nivernais” e os monastérios. Explicação geral: duas grandes causas que fizeram variar o regime e a propriedade coletiva ou individual. Prescrição: Por que sua duração se vai prolongando? Sucessões.

 

Não menos que o regime de pessoas, o regime de bens foi objeto, na escola transformista, de profundos trabalhos que merecem exame. É suficiente citar, entre outros, a Propriété et ses Formes Primitives, por Laveleye, onde nos é revelada, senão a universalidade, ao menos a extraordinária freqüência, num passado muito distante, da apropriação comunista do solo por um grupo de parentes ou de vizinhos associados. Segundo este eminente economista e seus adeptos, o comunismo de aldeia teria precedido historicamente àquele de família, que não seria senão um fracionamento do primeiro. Esta idéia, — que encontrou em seu caminho generalizadores em excesso e contraditores apaixonados, porque ela parece ligar-se às preocupações socialistas do momento presente, — apóia-se sobre um respeitável acúmulo de fatos e de considerações. É inútil resumir o que já foi tão freqüentemente vulgarizado. Indiquemos apenas os argumentos principais.  Eles são de dois tipos. De uma parte, aproximam-se instituições comunistas ainda existentes, — disseminadas aqui e ali no coração das montanhas onde tudo se conserva indefinidamente (allmend suíça, pastagens comuns dos Pirineus), ou nos vales da mesma forma conservadores da Ásia e nas estepes quase asiáticas da Rússia (comunidades de aldeias hindus, mir[121] russo, zadruga[122] sérvia) ou, enfim, entre as tribos selvagens da África, da América, da Oceania; — e retira-se desta aproximação uma razão para pensar que esses costumes, hoje excepcionais, são os restos das instituições gerais de antigamente. De outra parte, indo mais longe, escava-se o solo ou o subsolo jurídico das nações modernas, — as mais estranhas a todo espírito comunista, — e descobrem-se particularidades, tais como a retomada linear ou vicinal, nas quais se vê o vestígio de um comunismo anterior.

Há bem uma terceira espécie de provas e que, se fosse justificada, seria a mais sólida de todas.  Também vou examiná-la por completo inicialmente, ainda que ela tenha muito menos sucesso que as precedentes — não sei por quê. Foi indicada pela primeira vez por Sumner-Maine em seus Études sur l’Histoire du Droit[123], mas não vi seu desenvolvimento senão na obra de Loria, economista italiano, sobre a Analisi della Proprietà Capitalista[124]. Este novo gênero de argumentos consiste em mostrar que os primeiros pioneiros anglo-saxões da América do Norte, fundando as colônias esparsas que se tornaram os Estados Unidos, começaram por praticar a propriedade indivisa do solo, para formar várias comunidades de aldeia, mais ou menos análogas ao mir ou à comunidade hindu. Se o fizeram desse modo, não se deveria ver nesse recomeço espontâneo da evolução histórica da propriedade, a partir de seu suposto termo inicial, a confirmação experimental, de qualquer sorte, desta hipótese? E não seria provocante encontrar nos Estados Unidos, — nesta terra clássica do individualismo exuberante, – a mais autêntica amostra, a melhor demonstração da necessidade do comunismo primitivo[125]?

Por infelicidade, examinados de perto e sem preconceito, os fatos sinalados por Sumner-Maine e desenvolvidos por Loria tomam uma significação completamente diferente daquela indicada por eles. “É um fato muito marcante”, diz com razão Sumner-Maine, que os primeiros imigrantes ingleses na América “organizaram-se primeiro espontaneamente em comunidades de aldeia, para se dedicarem à agricultura”. Muito marcante efetivamente. Sobretudo se esse modo de estabelecimento houvesse sido tão espontâneo quanto nos afirmam. Mas o mesmo autor vem de nos dizer que esses primeiros imigrantes “pertenciam principalmente à classe dos yomem”, ou seja, fazendeiros vassalos. Ora, uma página mais além, em nota, ele nos ensina que, de acordo com autoridades americanas eminentemente competentes sobre as quais ele se apóia, essas primeiras colônias “tendiam a reproduzir, não a Inglaterra do tempo dos Stuarts (época dessas colonizações), mas aquela do Rei João e da Grande Carta” e que “essas instituições essencialmente feudais pareciam completamente naturais aos colonos, qualquer que fosse sua pátria de origem, anglo-saxões, holandeses ou franceses exilados pela revogação do Édito de Nantes[126]”. Trata-se, como se vê, não da maravilhosa ressurreição de um passado pré-histórico, morto e esquecido após séculos, mas do sonho de um passado recente, apenas adormecido, ainda vivo nas tradições de colonos inteiramente penetrados pelo espírito feudal. O mesmo fizeram os refugiados franceses que, aliás, vindos após os outros, não puderam senão seguir a corrente dos hábitos já estabelecidos antes deles sobre o solo americano. O fenômeno invocado é, pois, um simples fato de imitação dos avós, onde o atavismo, até mesmo o pseudo-atavismo, do uso de tantos evolucionistas contemporâneos, não conta absolutamente nada.

Notai como esse comunismo colonial se estabeleceu. “A Corte Geral concedia uma certa extensão de terras a uma sociedade de indivíduos, e essas terras eram possuídas pela sociedade a título de propriedade comum.”  Era pois, tão simplesmente, uma concessão de terras feita a uma companhia. Nada mais freqüente mesmo em nossos dias. Mas não era sempre desse modo que uma colônia começava. De resto, a sociedade em questão apressava-se em partilhar entre seus membros, contanto que pudesse fazê-lo, as terras concedidas. Vejamos entretanto Loria a esse respeito, pois que, de acordo com ele, as colônias são para o arqueólogo do Direito o que são as montanhas para o geólogo: uma ocasião única de ver e de tocar terrenos primários, estratos em toda parte enterrados sob espessas camadas de solo. Instruamo-nos um pouco sobre o antigo passado de nossa raça, em as estudando.

O que nos ensinam as colônias? Vemos, primeiramente, que seus fundadores são muito dessemelhantes, muito diferentes de raça, de classe, de religião, de hábitos, de costumes.  Ao Norte dos Estados Unidos, são puritanos ingleses de classe média; ao Sul, grandes proprietários. No Canadá, emigrados da nobreza, brigões ou caçadores. Em São Domingos, aventureiros normandos, piratas e flibusteiros. Nas Antilhas, um clero industrial, ativo e empreendedor. Na Austrália, condenados espanhóis, anglo-saxões, holandeses, portugueses. Os colonos vêm de toda parte. Também todos colonizam de maneira diversa. Não apenas suas colônias diferem pelo objetivo perseguido, — cultura industrial ou agricultura, colônias de plantação ou colônias de povoação, — mas aquelas que tinham o mesmo objetivo, atingiam-no por meios diferentes, trabalho livre ou servil, por exemplo.

Apenas uma coisa é comum a esses imigrantes: eles são todos imitadores. Todos aplicam e copiam modelos tomados de seu antigo ou de seu novo meio. Do antigo, quando os puritanos da Escócia reproduziram, na América, os costumes comunistas ainda subsistentes em seu país natal, a retrovenda[127] vicinal[128] entre outros, ou quando os franceses importaram do Canadá a retrovenda simplesmente linear[129]. Pela segunda vez; porque Leroy-Beaulieu nos ensina que os colonos canadenses, nossos compatriotas, “entranhando-se por toda parte na imensidão das florestas à procura de peles e de caça, tomavam os hábitos indígenas e deixavam a natureza civilizada pela selvagem”. Ele nos diz também que os colonos normandos estabelecidos em São Domingos haviam tomado o nome de caçadores de búfalos, “porque tinham adquirido o costume de se reunirem, após a caça, para defumar, ou seja, fazer secar a carne dos búfalos que haviam caçado com fumaça, segundo o procedimento dos selvagens.” Não vejo por que Loria não procura aí, entre os caçadores nômades, e não entre os colonizadores ingleses, que começaram pela agricultura, a reaparição fantástica dos tempos primitivos. Em todo o caso, esses caçadores tornaram-se tais, não espontaneamente, não por uma necessidade de situação que nunca se fez sentir em torno deles, mas, bem verdadeiramente, em virtude de um exemplo de seus ancestrais combinado com aquele dos peles-vermelhas. Além disso, os caçadores tornaram-se pastores a seguir, depois agricultores, de maneira conforme a uma norma dita modelo? De modo algum.

Objetar-me-ão talvez que, se nossos colonos e, por conseguinte, nossas colonizações modernas foram muito dessemelhantes, não se deve ter dado o mesmo nos tempos pré-históricos. Mas por quê? Por longe que remontemos na História, não encontramos sempre raças, línguas, costumes, idéias, hábitos diferentes? Que ilusão tomar por uniformidade real o impressionismo do passado pelo próprio efeito de seu distanciamento! Tudo se apaga a distância, tudo se desfaz, mas nós sabemos bem que é suficiente nos aproximarmos das colinas azuis para ver pulularem diferenças em sua cor uniforme.

A partir dessas opiniões, deve-se convir: as colônias são uma retrogradação. Vêem-se renascer processos culturais abandonados depois de muito tempo na pátria mãe; ou instituições desaparecidas naquela, como a escravatura ou mesmo, talvez, a composição pecuniária para os crimes. O que se deve conceder sem dificuldade a Loria é que, recolocado em condições semelhantes, o homem tende a reproduzir, ao menos em parte, instituições quase iguais. Mas o que resulta claramente de suas pesquisas sobre as colônias é que as condições destas diferiam profundamente umas das outras. Primeiro, sob as condições indicadas mais acima, e, também, conforme a segurança ou a insegurança de sua localização: na vizinhança de tribos ferozes ou pacíficas ou, ainda, conforme o clima. Ora, todas estas causas de dessemelhanças deviam existir, afinal, entre as tribos primitivas ou qualificadas como tais, e, por primitivas que elas nos pareçam de longe, teriam herdado, de uma longa fileira de ancestrais, uma imensa cadeia de tradições.

Uma primeira questão: Se essas colônias fizeram reviver espontaneamente as “formas primitivas da propriedade”, como foi que elas não fizeram também reviver as formas primitivas da família? Todavia não nos falam jamais, a esse respeito, nem do hetairismo, nem do matriarcado, nem do patriarcado poligâmico ou monogâmico. Dir-se-á que a não ressurreição ou, para melhor dizer, a não aparição, nas colônias, desses estados supostos da família antiga não prova nada contra sua existência num passado remoto? Pois bem. Mas então: Qual o direito de atribuir maior importância aos fatos do coletivismo apresentados pelas colônias?

No que concerne à ocupação das terras, a história das colônias mostra o homem em toda parte oscilando entre duas tendências antagônicas: a tendência à dispersão pela apropriação individual e independente, e a tendência à associação pela apropriação indivisa. De preferência, vê-se-o sempre tender à dispersão, mais freqüentemente forçada, malgrado ele recorra à associação, à indivisão comunista, seja para conformar-se às necessidades da vida pastoral, quando ela ainda existe, seja, mais tarde, para defender-se contra os perigos que cercavam o ambiente ou para executar trabalhos de desmatamento e de irrigação superiores à sua força individual. Também é de observar que, em toda parte onde a indivisão subsiste ainda, e em toda parte onde ela existiu no passado em face da posse imobiliária, encontra-se um dos três casos de constrangimento enumerados, ou os três de uma só vez. Ao percorrer-se toda a obra de Laveleye, não se descobriria um único exemplo de coletivismo agrário que não entrasse numa dessas categorias.

O que não se vê jamais, por exemplo, é uma colônia começando pela comunidade de aldeia, para estabelecer a seguir a comunidade de família e fundar enfim a propriedade individual.  Loria não nos diz nada semelhante.  Ele nos mostra (tomo II, página 17 e seguintes) que os primeiros colonos, ocupantes de um solo virgem e prodigiosamente fértil, lá ao menos onde reina uma segurança relativa, instalavam-se cada um para si e para sua descendência. O fato dominante, então, é o isolamento dos colonos (p. 23). Eles estão separados por um deserto. É o extremo oposto do coletivismo. E isto lembra muito bem, como faz observar Loria, a famosa passagem de Tácito sobre os germanos: Colunt discreti ac diversi, ut fons, ut campus, ut nemus placuit. Uma luta se engaja a seguir, pouco a pouco, no coração desses corajosos pioneiros, entre as duas forças que indico a todo momento: a necessidade da apropriação individual independente e a necessidade da associação defensiva. Ora, conforme uma ou outra destas duas forças domina, e na medida em que predomina, — porque sua vitória não é jamais completa, — o estado social é mais ou menos fortemente marcado de individualismo ou de coletivismo.  Quando este último domina, tal significa: ou que a fase pastoral não foi ultrapassada, ou que o agricultor está exposto, como os berberes[130] sedentários, às razias de tribos rapinantes e ferozes, a perigos diversos, ou que ele tem necessidade, como em Java, da cooperação de uma cidade inteira para irrigar seus arrozais, desbravar suas florestas, etc.[131] Nos Estado Unidos, o individualismo dominou nos primeiros tempos, porque os índios eram relativamente dóceis e pacíficos, porque a cultura não exigia, em geral, a colaboração de um grande número de braços e porque os imigrantes desembarcavam da Europa, não no estado de pastores, ignorando a enxada e o arado, mas munidos dos segredos da agricultura civilizada. Esses neoprimitivos traziam com eles dez séculos ao menos de invenções agrícolas, e foi sobretudo este fato, este “fator” intelectual de primeira ordem que, muito mais que “o fator econômico”, dito preponderante, determinou seu gênero de vida.

É verdade que, entre os colonos americanos, as comunidades de aldeia de um certo tipo formaram-se lá e acolá; mas Loria reconhece que elas foram posteriores ao isolamento primitivo dos colonos, e constituíram uma liga contra os perigos nascidos do isolamento excessivo. Apenas neste segundo período houve, em alguns estados, na Virgínia entre outros, divisão de terras por lotes, interdição de possuir individualmente além de um certo máximo de terras, às vezes cultura em comum. Tal estado de coisas lembra, em vários sentidos, a marcha alemã da Idade Média[132]. Como nesta, todas as profissões eram monopolizadas e submetidas a regras tão tirânicas quanto protecionistas. Mas tudo se explica, se imaginarmos que, ao isolamento dos indivíduos, ou antes, ao isolamento das famílias, sucedeu o isolamento das cidades, e trata-se, para cada uma daquelas a seu turno, na ausência de todo comércio, de bastarem-se a si mesmas. Este é um caráter importante comum a todas as aglomerações humanas dispersas sobre um vasto território a grandes distâncias umas das outras: aldeia hindu, mir russo, marcha germânica, allmend suíça. Poder-se-ia acrescentar a vila galo-romana[133]. Fustel de Coulanges descreve-nos esta como um organismo independente e resistente, fortemente hierarquizado e centralizado. Não é menos curioso ver, sobre essa terra americana, onde o individualismo anglo-saxão deveria desabrochar em nossos dias, a evolução social começar quase que pela regulamentação despótica e pelo socialismo de estado.

Após as colônias modernas, consultemos as cidade animais, como certos sociólogos, a respeito do assunto que nos ocupa. Muito bem.  O que vemos? Já entre os animais sociais encontramos, lado a lado, a propriedade individual e a propriedade coletiva. Esta, lá onde aparece, reveste-se da forma familiar. Um ninho pertence a um casal de pássaros que, todos os anos, vem habitá-lo, repará-lo em comum. “A propriedade de um território é um fato constante, quase universal, nas famílias dos pássaros[134]”, diz Espinas. As famílias vizinhas praticam o respeito recíproco a seus territórios de caça e de pesca. A caça reservada é conhecida entre muitas espécies. Quanto a saber se, entre as abelhas, a propriedade individual da célula precedeu ou seguiu-se à propriedade coletiva da colmeia, não me encarregarei de resolver este problema.  Mas é bem pouco verossímil que a haja seguido. O que quer que seja, passemos a considerações mais sérias.

O mérito eminente e incontestável de Laveleye é o de haver descoberto, relacionado, trazido à luz fatos desconhecidos de comunismo disseminados sobre o globo e na História. Ele extraiu daí um dos livros mais sedutores que se podem ler. Mas enganou-se, eu creio, na interpretação geral que se apressou em dar a esses fatos, e onde não cessa de ser obsidiado por suas longas pesquisas. “Os povos primitivos, diz ele, obedecem a um sentimento instintivo, reconhecendo a todo homem um direito natural de ocupar uma porção do solo de onde possa tirar com quê subsistir, trabalhando.” Eis um erro teórico que o conduz imediatamente a falsear, senão os próprios fatos, ao menos sua ordem cronológica que ele inverte. Com efeito, de acordo com ele, os primeiros povos “partilhavam igualmente, entre todos os chefes de famílias, a terra, propriedade coletiva da tribo”. Muitas vezes ele repete, — e todos aqueles aos quais arrasta a sedução de seus modos repetem também, — esta última proposição erigida em lei histórica, uma ordem cronológica que lhes parece se impor como uma dedução lógica. “Na origem, eram o clã, a aldeia e os corpos coletivos que possuíam a terra; mais tarde, é a família que tem todos os caracteres de uma corporação, perpetuando-se através dos tempos.”  Mas onde estão as provas desta pretensa verdade, qual seja a de que a comunidade de aldeia precedeu e engendrou a comunidade de família? Eu as procuro e não as encontro. Eis aí todavia o nó do problema. E, contrariamente àqueles que de pronto se resolvem neste sentido, eu pretendo que, lá onde a comunidade de aldeia existe, ela é a seqüência de comunidades de famílias anteriores, que se federaram entre elas, ou onde uma só, mais freqüentemente, em crescendo, englobou as outras.

Em apoio a esta idéia, é de observar-se que, em toda parte onde o coletivismo rural conservou sua seiva e seu sabor arcaico, na Rússia e na Índia, os co-proprietários guardaram a tradição de um antigo parentesco que os uniria. Na Índia, “os habitantes de cada cidade (onde existe a indivisão) têm a idéia de que descendem de um ancestral comum”, diz um relatório oficial inglês. Os camponeses russos do mir acreditam do mesmo modo em sua filiação comum.  Sobre este ponto Sumner-Maine e Fustel de Coulanges encontram-se, e aquilo que este diz da marcha germânica do século XII[135], – onde ele não vê senão o resto de uma antiga co-propriedade familiar, — o primeiro diz também da comunidade de aldeia hindu que oferece, de acordo com ele, “o aspecto de um grupo de famílias unidas pela suposição de uma origem comum[136]”. A interdição de vender ou de legar o bem familiar, — mais tarde, os entraves aportados à faculdade de alienar, — parecem vestígios de coletivismo antigo. Seja. Mas tais regras costumeiras não podem se interpretar senão a favor da co-propriedade da família, e não do clã. Ao homem que deseja testar, o legislador antigo responde, pela boca de Platão, nas Leis: “Tu não és o dono nem de teus bens nem de ti mesmo; tu e teus bens, tudo isso pertence à família, ou seja, a teus ancestrais e a tua posteridade.” Mas para que é bom multiplicar as provas, na ausência de provas contrárias? Não é natural, à priori, fazer nascer o complexo do simples e não o simples do complexo? Não é estranho supor que famílias, até então independentes, pelo fato único de sua aglomeração em um burgo, tenham adquirido a coesão e a disciplina internas, em lugar da perdê-las, e, pela primeira vez, saboreado as doçuras da indivisão? Não sabemos, ao contrário, que, em toda a parte e sempre, as relações de cidadania, em se multiplicando, relaxam as relações de parentesco? A comunidade de aldeia não pôde nascer senão sobre o modelo ampliado da comunidade de família, como o fogo de Vesta da cidade não se pôde acender senão no interior do lar doméstico; o primeiro efeito da primeira, ao seu nascimento, devera cortar, não engendrar a segunda.

Eu admito, pois, plenamente, que a comunidade de família foi muito difundida, seja por conta de sua propagação imitativa, seja em razão de sua aparição espontânea em muitos focos distintos de irradiação na origem das sociedades. Quer isso dizer que ela existiu sempre? Não. Lá, por exemplo, onde a família apareceu sob a forma patriarcal, sorte de cesarismo doméstico, o chefe da casa é o único proprietário. É o individualismo em todo seu esplendor. Aliás, quando a indivisão familiar se estabelece, ela afeta a maior diversidade de aspectos e, segundo o governo do grupo inclinar-se mais à hierarquia monárquica ou à igualdade democrática, ela afasta-se ou aproxima-se do tipo ideal desta, tal como é ainda representada aos nossos olhos pela zadruga eslava.

Mas, para bem compreender a verdadeira característica desse comunismo fraternal e o erro daqueles que querem ver aí uma antecipação do coletivismo social, deve-se ter presente no espírito a estreita, a íntima solidariedade que incorporava uns aos outros os homens unidos pelo sangue, em épocas e em regiões onde a insegurança do meio ambiente habituava-os a unirem-se e a aglutinarem-se assim. O indivíduo conta infinitamente pouco, de ordinário, aos seus olhos ou aos olhos de outrem entre os primitivos. Como prova de sua nulidade original, não temos senão que imaginar o papel ínfimo que ele representa ainda em nossas sociedades civilizadas já. Na Idade Média, não havia a idéia de contar a população senão por lares. Entre os incas, a nação era partilhada segundo o sistema decimal, não como nós aferimos no presente, por grupos de 100, de 1.000... indivíduos, mas por grupos de 100, de 1.000...famílias. Na aldeia hindu, como na comunidade teutônica, — comparação freqüente sob a pluma de Sumner-Maine, — a família nos aparece tão forte, tão fechada em si e concentrada, que parece difícil imaginar um bloco mais resistente: “um mistério extraordinário a envolve”. Nas montanhas do Cáucaso, entre os ossetos, alguma coisa desse passado sobrevive ainda. “Encontram-se, diz Dareste, aldeias plantadas como fortalezas nas alturas de um acesso difícil, onde cada casa é um torreão habitado por uma mesma família ou, de preferência, por uma comunidade de quarenta, de cinqüenta e até de cem pessoas unidas entre elas pelos liames de seu parentesco, e correlacionando-se através de um ancestral comum, do qual elas trazem o nome. Em volta de cada casa há um muro serrilhado; em um de seus ângulos, há uma torre em forma de pirâmide com muitos andares, servindo para defesa... Entre os habitantes de uma mesma casa tudo é comum. A autoridade pertence a um ancião.” Todavia, só a aproximação dessas habitações, a federação urbana dessas famílias, devia enfraquecê-las mais ou menos. Qual devia ser, pois, sua concentração interna antes desse enfraquecimento inevitável?

Se é assim, e isso não é duvidoso, deve-se olhar a propriedade coletiva dos tempos primitivos como o equivalente puro e simples de nossa propriedade individual, do mesmo modo que a responsabilidade coletiva dos parentes, em razão do crime cometido por um deles, aí corresponde à responsabilidade individual de hoje. O grupo familiar e, muitas vezes por extensão, o grupo de aldeias daquele tempo, é a única unidade social, indivisível, não podendo ser decomposta como os indivíduos o podem ser no presente.  Sozinho, ele é capaz de exercer o direito de propriedade, quando apresenta caracteres de personalidade independente e original. Esta pessoa moral começou por ser a única pessoa real, seja encarnada despoticamente no chefe, seja marcada e repartida entre todos os membros, mas sempre, por ele ou por eles, proprietário absoluto de seus bens, com exclusão de qualquer outro grupo igual. — E isto é tão verdadeiro, que o traço mais flagrante do pretenso coletivismo descoberto no mir, na allmend suíça ou italiana, na comunidade de aldeia hindu e javanesa, na marcha germânica, é o seu exclusivismo essencial, ferozmente não hospitaleiro[137]. — Na Suíça, para gozar do domínio comunal, deve-se “descender de uma família que tenha esses direitos desde tempos imemoriais...” Daí as lutas tão violentas “entre os reformadores radicais, que reclamam direitos iguais para todos, e os conservadores, que pretendem manter as antigas exclusões”. A allmend forma também “uma corporação fechada e privilegiada”.  Quando se invoca, em favor da antigüidade das idéias e dos sentimentos comunistas, a tradição da partilha das terras tão freqüente entre os gregos antigos, não se deve perder de vista que, de acordo com Aristóteles, as leis gregas sobre a conservação dessas partilhas primitivas “ligavam-se a um pensamento aristocrático e tinham muitas vezes o objetivo de impedir a plebe de tornar-se proprietária”. Resumo as citações. Em suma, nas associações onde a humanidade teria feito seu noviciado comunista, passa-se ordinariamente o tempo a repelir o estrangeiro que quer forçar as cercas espinhosas desse sítio familiar. Vejo lá os convivas, mais ou menos numerosos, mais ou menos parentes, sentados numa mesma mesa. Mas não se segue nunca que esse seja um banquete público. É um grande jantar particular servido numa sala hermeticamente fechada.

Como se pôde perceber o vestígio de um comunismo anterior, de uma fé antiga na co-propriedade universal, do direito inato de todos sobre cada parcela de terra, em instituições tais como a retomada linear, a interdição de testar e tantos outros obstáculos opostos pelo costume à alienação do patrimônio: instituições onde aparece tão fortemente a crença enraizada de que tal pedaço de terra pertence, por direito inato e hereditário, a tal família, que ele é o corpo permanente desta personalidade imortal? Eis todavia uma maneira de ver que teve o maior sucesso. Ora, seguramente, a retomada linear, esta faculdade deixada aos parentes de recomprar o bem vendido por um deles, e a retomada vicinal, faculdade análoga deixada às vezes aos vizinhos, atestam, na maior parte dos casos, a existência de uma co-propriedade anterior e esquecida, limitada aos parentes e aos vizinhos. Nós o demonstramos, comparando a retomada feudal com as duas precedentes: se o senhor feudal tinha o direito de recomprar o feudo alienado por seu vassalo, é porque se lhe reconhecia uma espécie de co-propriedade superior, o domínio eminente, que o vassalo não tinha o direito de alienar.  Mas essas retomadas tinham ainda uma outra significação mais geral e mais profunda. Para compreendê-la, deve-se, eu creio, compará-la a muitos outros costumes curiosos inspirados pelo mesmo espírito, e que não aparecem na explicação precedente. A retrovenda, faculdade de resgate deixada ao próprio vendedor, espécie de retomada individual, — o direito concedido ao mesmo vendedor, em muitas legislações primitivas[138], de arrepender-se da venda, de retratar-se ao longo de um certo prazo; — o direito concedido ao doador ancião, segundo Viollet, de retratar sua liberalidade por livre e espontânea vontade; — enfim, disposições constantes em leis muito antigas, polonesas, por exemplo, que declaram os imóveis imprescritíveis, indisponíveis, impenhoráveis por dívidas: tantos direitos notáveis que derivam, não da propriedade coletiva, — pois que se trata expressamente de propriedade individual, e o vendedor ou o doador podem perfeitamente alienar seu próprio bem, — mas do desfavor atrelado às alienações nas sociedades pouco civilizadas. É apenas sob este último ponto de vista que esses direitos singulares e as retomadas podem ser compreendidos num mesmo golpe de vista. E esse desfavor, a seu turno, não exprime senão um sentimento de propriedade de tal modo enérgico e exclusivo, que fazia olhar o proprietário (coletivo ou individual, não importa) e o seu bem como a carne e a unha, e a ruptura acidental deste liame sagrado, como uma anomalia dolorosa, uma ferida a curar o mais rápido e o melhor possível[139].

Sumner-Maine faz uma observação muito sutil em apoio à tese comunista. Sabe-se da dificuldade insuperável que existe, em todo país atrasado, em fazer com que o camponês aceite a menor modificação no preço costumeiro e nas condições tradicionais do arrendamento das terras. Estaria aí puro misoneísmo? Não, dizem-nos. Porque este mesmo iletrado aceita sem dificuldade as mudanças sobrevindas no preço dos objetos mobiliários. Mas este contraste se explica, se se admitir que “o sentimento persistente de uma antiga confraternidade na posse do solo” faria obstáculo à idéia de obter das terras alugadas o mais alto preço exigível, ou seja, à idéia da renda livremente discutida. Isto é muito justo? A verdade parece-me ser, de preferência, que esteja aí a lembrança inconsciente de uma época onde o grupo de pessoas às quais se podia alugar ou vender sua terra era praticamente restrito aos membros de um pequeno círculo fraternal, enquanto havia toda comodidade em alugar ou vender suas mercadorias, suas armas, mesmo seu gado aos estrangeiros. Era permitido explorar, espoliar à vontade estes últimos, não os outros. Está aí a reprodução, sob uma nova forma, da distinção capital — vista mais acima — entre as relações interiores do grupo societário e suas relações exteriores.

Eu negligencio intencionalmente argumentos comunistas cujo alcance foi exagerado. Lançados na pista do comunismo primitivo, os eruditos acreditaram descobrir o traço evidente neste fato, por exemplo: de que, entre povos pouco avançados, o uso de obrigações estritamente solidárias entre muitos co-devedores, em geral membros da mesma família, ou bem como na Idade Média, o uso de pleiges (reféns por dívidas) foi extremamente difundido. Mas não nos esqueçamos de que, antes dos progressos sociais que permitiram a invenção da hipoteca e a tornaram viável, a única garantia séria oferecida a um credor era a pluralidade e a solidariedade dos devedores. Era naturalmente mais fácil ao que pedia emprestado convencer a seus parentes, e não a estranhos, a ligarem-se a ele de modo tão estreito. Esta explicação é tão verdadeira que, em nossos dias ainda, nos usos comerciais, — porque a hipoteca, com sua morosidade é impraticável, — uma promissória revestida de uma só assinatura não é jamais descontada; e a multiplicidade de endossos, freqüentemente de parentes, numa mesma promissória, portadores de um mesmo warrant, assim como sua responsabilidade coletiva, são fatos habituais, análogos às obrigações co-reais do passado[140].

Poder-se-ia bem, — diga-se sem zombaria, — olhar o hábito tão geral na Europa de “fazer carnaval” com seus parentes, jantando com eles na terça-feira gorda, como uma sobrevivência da antiga vida comum. Se não nos detivemos sobre essa idéia, é sem dúvida porque, infelizmente, a origem deste costume nascido da Quaresma cristã pela via do contraste é, aqui, muito claro e não se presta a nenhum equívoco.  Mas, em revanche, o é que impede, à primeira vista, de ver um fragmento da antiga existência falansteriana, subsistindo curiosamente em meio ao nosso individualismo atual, tão egoísta, tão ávido pelo ganho, em nossas recepções periódicas de polidez, em nossas trocas de visitas, em nossos grandes jantares sacramentalmente ofertados e retribuídos, onde se disfarçam olhares recíprocos, onde se finge esquecer de alguém, para entregar todos os seus bens como pasto a seus convivas? É desagradável, eu confesso, que essa conjectura não sustente o exame. Nessas práticas do mundo, sem dúvida, exprime-se a sociabilidade humana, antiga seguramente, contemporânea da sociedade mais primitiva, anterior mesmo a toda sociedade, como a potência é anterior ao ato. Mas essa expressão de uma coisa tão velha é relativamente jovem e, quando se remontam às fontes históricas desses hábitos polidos, desses simulacros recíprocos e alternativos de devotamento ou de prodigalidade, percebe-se que eles decorrem[141] dos respeitos feudais devidos pelos vassalos ao senhor, ou da refeição feudal dada pelo senhor aos vassalos, dever limitado de início e unilateral, depois pouco a pouco generalizado e mutualizado pela imitação descendente de camada em camada. É curioso seguir as transformações graduais atrás das quais as genuflexões dos vassalos, prestando o juramento de fé e de respeito a seu suserano, tornaram-se nossas saudações recíprocas pela inclinação do alto da cabeça num salão.

Também deve-se precaver o espírito e couraçar a razão contra a tentação erudita, contra a ilusão arqueológica de antedatar prodigiosamente a origem de certos fatos que têm bem a cor do tempo, como os velhos muros, mas que, como eles, podem indiferentemente passar por ter alguns milhares de anos a mais ou a menos. É o próprio Sumner-Maine quem faz observar, a propósito da Índia: “Assinalaram-se, diz ele, muitas práticas, às quais os indígenas recorrem em nossos dias pela primeira vez, sob a simples pressão de circunstâncias exteriores, e que todavia nos são apresentadas, de ordinário, como existindo desde tempos imemoriais, e como caracterizando a infância da humanidade.” Entre nós, muito se fala a propósito da questão que nos ocupa, da ménage nivernais. Era uma sorte de pequeno falanstério rural não muito excepcional em certas regiões francesas nos séculos XII e XIII. Vê-se aí, naturalmente, um resto de comunismo pré-histórico. Mas não seria mais natural imaginar aqui a grande corrente de paixão imitativa que suscitou, precisamente no século XII, tantas comunas e corporações, tantas associações sob múltiplas formas[142]? Se se quiser ir mais longe, não é visível que a idéia destas comunas e destas corporações não foi sugerida pelo tipo, – tão freqüente então, tão multiplicado depois do fim do Império Romano, — da comunidade monástica, de nenhum modo da comunidade de aldeia? A existência desta, após quatro séculos de dominação romana, permanece problemática, ou não pode ser senão acidental, enterrada em lugares obscuros, impróprios para servir de modelo imitativo. Talvez as guildas[143], as associações comerciais da Idade Média relacionem-se antes aos collegia de Roma que aos conventos; mas, com toda certeza, não à marke. Pode-se procurar muito: não se encontrará nada de mais típico, de mais nítido, em face da organização comunista, que o monastério, onde a indivisão de bens tem por causa a fusão das almas numa mesma fé e num mesmo fim. E, de fato, tudo aquilo que se acredita, na Idade Média, próprio às associações profissionais tem um falso ar monacal e é, antes de tudo, uma confraria.

Na antigüidade grega, não foi o mesmo, salvo que a instituição monástica aí floresceu sob formas mescladas de patriotismo e de religião, como em Creta, onde sabemos que Licurgo procurou o plano de sua reforma socialista? Mas, dizem-nos, jamais houve essa partilha igual de terras, jamais esses ágapes periódicos e tantas outras instituições atribuídas a esse lendário legislador teriam podido viver e durar, se o povo espartano não houvesse sido preparado por um longo hábito, ou a lembrança ainda viva de um comunismo anterior, sobre o qual a história é, infelizmente, muda. É como se se dissesse que o universal contágio da febre monacal nos séculos IV e V de nossa era, quando milhares de conventos jorraram de toda parte sobre o solo do império, denotasse a existência, em toda parte difundida, ou em toda parte lamentada, da comunidade de aldeia céltica ou germânica entre os povos cristãos de então. Sabe-se, todavia, que todos tinham, desde há séculos, o hábito e o gosto da propriedade quiritária, individual que fosse[144], dogmatizada pelos jurisconsultos romanos.  Não. É a contagiosa propagação, é a salutar epidemia da nova fé que explica sozinha a maravilha assinalada no início da alta Idade Média; é suficiente, mas é obrigatório supor uma epidemia semelhante, infinitamente mais localizada, uma crise de patriotismo religioso revelada e propagada na Lacedemônia[145], para compreender o radicalismo revolucionário de Licurgo. A esta hipótese se opõe, eu o sei, o preconceito relativo ao pretenso misoneísmo dos antigos. Mas onde está o misoneísmo de tantos primitivos que se convertiam em massa às crenças cristãs? Os historiadores, em geral, fazem a História sem levar em conta esses grandes furacões de imitação fervorosa que, de tempos em tempos, se erguem inevitavelmente e rompem ou deformam todos os costumes à sua passagem. Seria o mesmo que tentar fazer meteorologia sem falar dos ventos.

Tenhamos ao menos por certo o que segue. A mesma causa que, após um século, fez desaparecer as comunas deveu e pôde sozinha, em tempos mais ou menos antigos, multiplicá-las em toda parte: eu quero dizer a atração do exemplo propagado traz o desejo de “fazer como os outros”.  Estejamos seguros de que esse modo muito particular de prazer, ainda visível lá e acolá, — divisão de terras aráveis em três estreitas e longas bandas recortadas cada uma em parcelas iguais, periodicamente sorteadas, adubadas com cinza, — foi inventado em algum lugar, tendo lá sua razão de ser, e imitado em muitos lugares onde estava longe de ser o melhor regime a seguir[146].  Mantém-se, em raros locais onde, como nas Hébridas, justifica-se ainda por motivo de utilidade. “É uma observação surpreendente de Nasse, diz Sumner-Maine, que o sistema de campos comuns (quer dizer, o vestígio subsistente de uma antiga posse coletiva do solo) apresente, na Inglaterra, a marca de uma origem exótica.” Surpreendente, com efeito, é esta observação do meu ponto de vista.  Ela se nos apresenta como um convite a supor que esse coletivismo arcaico, onde se é muito levado a situar o ponto de partida espontâneo, natural, necessário da evolução da propriedade, começou por ser uma combinação singular, vulgarizada pouco a pouco e levada para longe por alguma onda prolongada de imitação.

De resto, antes de nos reportarmos a uma antigüidade fabulosa de instituições, de usos que se descobrem e que se observam pela primeira vez no século XIX, é bom observá-los de muito perto[147], porque se os descobre quase os mesmos, — crê-se, pelo menos, — na Rússia, na Sérvia, na Índia, tanto quanto em diversos cantos da Europa latina ou germana, onde se é ofuscado por essa vasta extensão, concluindo pela universal necessidade dessas práticas como fase inicial das sociedades. Mas é precisamente essa grande difusão que se deveria ter em guarda contra esta conclusão precipitada. O que me inclina a examinar a zadruga eslava, – esse sonho de Fourrier realizado, da alta antigüidade que se lhe supõe, — é sua semelhança assombrosa com a menage nivernais da qual venho de falar, e também com certas comunidades de família da Lombardia[148]. Tratam-se aqui de países latinos, trabalhados até as últimas profundidades pelo arado de Roma. Esse fato imenso, a ocupação romana, que durou 500 anos na Gália e 1.000 anos na Itália, tempo mais que necessário para um transbordamento de exemplos e de decretos assimiladores, para fazer desaparecer, sob seus aluviões, todo traço da propriedade indivisa, bárbara, estrangeira e contrária ao Direito Romano. Esse fato imenso e culminante na História do mundo, levou-o Laveleye sempre em conta?  Teve ele sempre em vista também este outro fato considerável, qual seja, a ação exemplar exercida, mesmo fora dos limites do Império, pelas instituições romanas sobre os bárbaros fascinados, ciumentos e imitadores? E enfim, aquele não menos importante: a ação do Direito Romano na Europa ao longo de toda a duração da Idade Média[149]? No entanto, ele não esquece sempre este último fato. A propósito dos eslavos (p. 464), ele confessa que “na Polônia, na Boêmia e mesmo entre os eslovenos da Caríntia[150] e da Carniola[151], as comunidades de família desapareceram, na Idade Média, sob a influência do Direito Romano”. Que argumento a fortiori se poderia tirar daí contra a data atribuída a certas comunidades de aldeia ou de família que, remontando a um período anterior à Roma, teriam sido miraculosamente conservadas em pleno coração do mundo romano, mesmo a despeito do Direito Romano, o qual, completamente vivo, teria menos vigor que seu próprio cadáver exumado! Um sociólogo quer que o mir eslavo seja a forma mais antiga da apropriação do solo, que haja sido adotado em eras proto-históricas e, provavelmente, antes de toda a História, pela generalidade das populações bárbaras da Europa. O mir russo seria um fragmento maravilhosamente conservado aí, como os mamutes da Sibéria, dessa antiga instituição. Infelizmente, um economista e historiador russo notável acredita haver fornecido excelentes razões para pensar que o mir é de origem assaz recente. E sua explicação, além de verossímil, tem a vantagem de conciliar-se muito bem com a origem atribuída por Fustel de Coulanges, não sem provas em apoio, das comunidades francesas. Notai que o mir é uma associação de trabalhadores rurais devedores de renda a um senhor. Isso faz sentir singularmente sua feudalidade. Ora, de acordo com Fustel, — e é impossível não reconhecer à sua tese um fundo de verdade, — o senhor feudal não é senão um sucessor transformado dos grandes proprietários galo-romanos. Deve-se recordar que o domínio rural deste último dividia-se em duas partes para o cultivo: uma, reserva própria do senhor, consistia principalmente em prados e florestas, dos quais ele abandonava o gozo parcial do que fosse apanhado, em madeira morta, em pasto, e mediante prestações, aos rendeiros da outra parte do domínio. Cada um desses colonos tinha direito a uma pastagem ou a uma coleta proporcional ao seu lote de cultivo. Era exatamente isso que tinha lugar no mir.  Essa divisão do domínio galo-romano em duas partes teve maior importância aos olhos de nosso autor, e é a primeira das duas que teria dado nascimento aos nossos bens comunais.  Tudo isso pode ser contestado, mas está, ao menos, tão provado quanto a origem fabulosamente primitiva do mir, da allmend, da zadruga e do township.

É suficiente, todavia, desentulhar o terreno. É tempo de aplicar aqui, mais explicitamente, nosso ponto de vista geral, e expor a uma nova prova sua veracidade. Duas causas principais, dizem-nos, devem ter feito variar consideravelmente o regime da propriedade, seja coletiva, seja individual, a proporção e a natureza de ambas e, por conseguinte, a legislação nesse sentido.  Essas duas causas são duas transformações sociais causadas elas mesmas, uma pelo progresso da imitação, outra pelo progresso da invenção entre os homens[152]. A primeira é o alargamento incessante do grupo social, o número crescente de sociedades unidas pelo sentimento de uma certa concidadania moral devida à troca simpática e prolongada de exemplos. A segunda é, de uma parte, a acumulação contínua de invenções relativas à domesticação de animais e de plantas, a submissão das matérias aos aperfeiçoamentos da indústria; de outra parte, a substituição freqüente de certas invenções por outras julgadas mais perfeitas, por exemplo, aquelas que constituíam a metalurgia em vez daquelas que constituíam a arte de talhar o sílex, ou ainda daquelas que constituíam a arte agrícola por uma parte das outras que constituíam a arte pastoral ou a arte venatorial[153].

Imaginemos, para maior clareza e através de uma abstração metódica, que cada uma destas duas transformações se cumpra sozinha[154]. Isso vai realçar, aos nossos olhos, a parte da influência que lhes cabia sobre o regime jurídico da propriedade. Perguntemo-nos, pois, primeiro, qual efeito produziu o aumento numérico da sociedade. Ele teve por conseqüência necessária, em primeiro lugar, o crescimento do número de proprietários, à medida em que o grupo se expandia em profundidade. Quando a mulher, por exemplo, que era outrora excluída, entra por hipótese no círculo, o direito das filhas à sucessão dos bens começa a ser reconhecido. Daí, em parte, a exclusão das filhas e, mais tarde, sua admissão no regime sucessoral arcaico. Em segundo lugar, vem uma conseqüência não menos necessária desse distanciamento progressivo das fronteiras sociais, senão nacionais, graças à universal necessidade de exercer e de sofrer o apostolado do exemplo, que fez crescer incessantemente o número de coisas apropriáveis, seja individual, seja coletivamente, entre os gêneros de riquezas já existentes, assim como seu afastamento do proprietário, seja, desnecessidade gradualmente menor do exercício do domínio direto sobre a coisa. Não vemos realizar-se continuamente esse grande fato sob nossos olhos? Mais nós observamos, mais se estende raio territorial, onde nos é praticamente permitido escolher os objetos de nossas posses mobiliárias ou imobiliárias. A extensão  das comunicações de homem a homem coloca ao nosso alcance jurídico imóveis ou móveis, bens, casas, títulos de comércio, etc., mais e mais distanciados de nós fisicamente[155]. Outrora devia-se habitar sua terra e sua casa, e não se concebia o comunismo, a indivisão, senão entre parentes ou entre vizinhos, entre pessoas reunidas sob um mesmo teto ou encerradas numa mesma fortaleza. No presente, a indivisão existe entre todos os acionistas co-proprietários do Canal de Suez, disseminados em todas as partes do globo, entre todos os membros de um sindicato, entre todos os cidadãos de nossos Estados crescentes, co-proprietários do domínio público espalhado sobre o território da metrópole e das colônias.

Quanto ao progresso das invenções, teve ele efeitos ainda mais profundos. Multiplicou sem cessar as formas de apropriação, seja individual, seja coletiva, dos objetos já existentes e, de outra parte, criou cada unidade de novos objetos apropriáveis, de novas riquezas desejáveis. A cada descoberta de um novo animal doméstico, tais como o asno, o cavalo, a cabra, o carneiro, a vaca, de uma nova planta alimentícia, tais como a cevada, o centeio, o trigo, o arroz, as riquezas humanas são acrescidas de todos os seres vivos, animais ou plantas tornados susceptíveis de domesticação. Toda árvore frutífera que se aclimata, toda espécie de legume ou de flor que se importa aumenta o tesouro dos pomares e dos jardins. A cada descoberta de uma arma ou de uma armadilha próprias à caça ou à pesca, a proporção da fauna marítima ou silvestre transferida à mesa do homem aumenta rapidamente. É como se uma geração espontânea de animais de caça terrestre e marítima tivesse lugar. Às invenções relativas à navegação, a partir do remo e da vela até a hélice do vapor, a partir dos grosseiros instrumentos da astronomia nascente até a bússola, acrescentaram, à lista de bens, embarcações, balsas, navios, etc. Às invenções relativas à vidraria, acrescentaram-se as garrafas, as vidraças de janelas, os espelhos. Às invenções relativas ao crédito, acrescentaram-se as ações das companhias, os títulos de renda. Às invenções relativas à imprensa, acrescentaram-se o comércio livreiro, os livros, as revistas, os jornais. Às invenções artísticas, os templos, os palácios, os quadros, as estátuas, os museus.

Ao mesmo tempo em que novos bens eram suscitados, nasciam novas maneiras de possuir os antigos.  Antes de toda invenção pastoral ou agrícola, a única maneira de possuir uma terra era conquistá-la. Era este o mesmo motivo pelo qual a indivisão era a regra, neste caso, em face de imóveis, este modo de posse sendo de sua natureza indivisa. Não era o mesmo, em grau próximo, no regime pastoral, mas, desde que uma nova espécie até então desconhecida de animal fosse importada, a terra via-se desejada e possuída de uma maneira inconcebível anteriormente. De modo semelhante, a aparição de uma nova planta que exigia um novo modo de cultivo.  Bem entendido, a propriedade das servidões de água, tão regulamentadas em todos os códigos, não se tornou possível senão após a descoberta dos efeitos benéficos da irrigação e da arte de irrigar, e as servidões de paisagem, do mesmo modo que a maior parte das servidões urbanas, não puderam senão preceder à invenção de muralhas e janelas, a arte de construir. Em geral, o capítulo das servidões prediais ou rurais deu à propriedade individual um falso ar coletivista em todos os códigos, a cada progresso da civilização. Enganamo-nos aqui às vezes; as regras para a repartição das águas de irrigação feitas pelos maures[156] da Espanha foram tomadas como um resto de coletivismo anterior. O inverso seria mais verdadeiro.

Eis o que toca ao domínio privado. Mas o domínio público enriquece-se também pelas invenções relativas à navegação, ainda aos armamentos e à estratégia, aos serviços de limpeza urbana, aos correios, aos telégrafos. Um exemplo entre mil: sem o progresso da navegação fluvial, tais caminhos jamais teriam sido abertos ao público. Deixo a Fouilée, que consagrou todo um interessante livro intitulado Propriété Sociale, fazer-nos um maravilhoso inventário de nossas riquezas indivisas, com o cuidado de mostrar-nos de quantos milhares de francos é co-proprietário cada cidadão francês. Contai os caminhos, os canais, as redes ferroviárias, os ancoradouros, os fortes, os canhões, os couraçados, etc., que nós possuímos em conjunto; e contai também os modos variados de posse que supõe esta variedade de objetos.

Tais são, ao primeiro exame, os efeitos mais marcantes que deve ter o progresso da imitação e o progresso da invenção sobre o regime da propriedade. Agora, resultaria dessa percepção sumária a necessidade de uma evolução universalmente idêntica do direito de propriedade? Sim. Mas apenas na medida em que a expansão do grupo social é necessária em virtude das leis da imitação, e onde o progresso da invenção é forçado a fluir numa certa inclinação, como um rio numa direção vagamente determinada pelas necessidades do organismo e pelas regras do espírito humano em combate com as forças exteriores. Ora, em que medida é verdadeiro dizer que a série de invenções inseridas umas sobre as outras com aparente capricho está sujeita, sem que pareça, a um traçado fatal? Nada de mais insolúvel, a todo rigor, que um tal problema. Sem dúvida, os rios evoluem, pois correm e deslocam-se. Mas que geógrafo, mesmo que também geólogo, poderá submeter a uma fórmula única de evolução suas infinitas sinuosidades? O sistema pentagonal de Élie de Beaumont[157], — do qual se ria, — era uma tentativa análoga, para fazer entrar num mesmo plano divino, nítido como um traçado geométrico, preciso como um cálculo de arquitetura, a ordem de erupção sucessiva das grandes montanhas. Os naturalistas de seu tempo, — dos quais não se ria, — viam da mesma maneira a ordem de criação sucessiva das espécies viventes, como a execução gradual e regular de um plano não menos rigoroso da natureza. E, certamente, não quero dizer que tudo seja de rejeitar nesta idéia nem na outra.  Pode ser que as leis da mecânica e da lógica circunscrevam, entre fronteiras intransponíveis, o jogo espontâneo das forças, as vicissitudes de suas uniões e de seus combates. Pode mesmo ser que, quando se trata de evolução, uma razão esconda as manobras, solicite-as invisivelmente a cair, um dia ou outro, em armadilhas inevitáveis, não dispostas de antemão, todas expressas ao longo de uma via única, mas eternamente semeadas em todas as rotas possíveis, no espaço infinito das possibilidades realizáveis e irrealizáveis.  Quero dizer por aí que ela é, talvez, destinada a reencontrar aquilo que supõe operar, condições de equilíbrio mecânico ou de equilíbrio lógico, tais como os tipos astronômicos caracterizados pelas figuras regulares da geometria, — elipse, parábola, esfera, — tais como os tipos físicos de ondulação ou tipos químicos de arranjos moleculares permanentes, tais como os tipos de animais ou de plantas viáveis, tais como as constituições sociais, as línguas, as religiões, os corpos de Direito, as formas de arte viáveis e duráveis. De tal sorte que, chegada aí hesitante, um pouco mais cedo, ou um pouco mais tarde, a partir de um ponto ou de outro, com grande margem deixada ao acidental, luxo tão necessário ao mundo, necessidade tão profunda do coração das coisas, a evolução deverá parar e repousar até nova ordem, os planetas descrevendo um giro gravitacional sem fim, com a ajuda de um imenso compasso elíptico, as ondas sonoras e luminosas entrelaçando no espaço seus desenhos infinitos de uma desesperadora regularidade, os óvulos fecundados brincando de reproduzir os arabescos complicados do esquema ideal de sua espécie, as colônias humanas comprazendo-se em multiplicar a imagem aumentada ou apequenada de sua pátria mãe... Sim, isso é admissível, mas não significa, de modo algum, que um leito invariável e único se imponha ao rio das descobertas, das invenções, das iniciativas bem sucedidas, de sua fonte selvagem até sua embocadura ultracivilizada.  E é isso, entretanto, que se deveria provar, para se estar autorizado a colocar uma fórmula única de evolução jurídica.

Durante muito tempo, acreditou-se que as invenções relativas primeiramente à caça ou à pesca, em segundo lugar à domesticação de animais, enfim à domesticação das plantas, seguiram-se numa ordem invariável. Caçador ou pescador, pastor, agricultor: o homem tinha de passar, universal e necessariamente, por estas três fases, segundo a opinião de todos.  Está aí o exemplo mais nítido e o mais sólido que se pode citar de uma série fatal de invenções. Infelizmente é necessário renunciá-lo. Sabemos que os caçadores peles-vermelhas começaram, antes mesmo da chegada dos europeus, a ser agricultores, sem haver nunca, apesar disso, atravessado o estado pastoral. Eles não possuíam outro animal doméstico além do cão, seu aliado para a caça. Na América, todavia, as espécies animais suscetíveis de domesticação não faltavam. Por que, pois, neste continente, houve tão poucos (talvez nenhum) povos pastores? E por que, ao contrário, na Ásia e na África, o regime pastoral reinou e reina ainda? A importância capital do acidente histórico, da originalidade individual em face das invenções mostra-se aqui claramente. Os polinésios não conheceram o estado pastoral; eles pescavam e praticavam um pouco de agricultura. Eles não conheciam qualquer animal doméstico. Fosse verdade, aliás, que as três fases em questão se encadeassem como se supunha outrora, dever-se-iam ter, em grande conta, as dessemelhanças que apresentam cada uma delas, segundo circunstâncias acidentais ou diferentes inspirações do gênio humano. O comunismo restringe-se ou estende-se, e sempre se modifica entre as populações selvagens ou bárbaras, conforme a natureza de sua pesca ou de sua caça, que favorece mais ou menos o espírito de associação[158]. Os caçadores de búfalos, de bisões, de elefantes deveram associar-se mais freqüentemente e de maneira diferente que os caçadores de gamos ou lebres; os pescadores de baleias, mais freqüentemente e de outra maneira que os pescadores de carpas.  As armas de fogo foram permitidas aos caçadores de feras no isolamento, onde o arco e a flecha lhes eram defesos.  A agricultura pôde ser mais ou menos intensiva ou extensiva, o que muito influiu sobre o espírito de associação entre os agricultores, não sendo porém suficiente. Só quando a necessidade da produção intensiva sobre um menor espaço foi sentida pelos agricultores, é que os procedimentos de adubagem, — que a tornariam possível, — foram imaginados. Foi necessária uma iniciativa individual secundada pelas circunstâncias. Porque a idéia de semear a cada dois ou três anos o trigo, graças ao adubo animal, numa terra onde existia o hábito secular de descansar seis anos, vinte anos, vinte e cinco anos às vezes, após uma única colheita precedida de um simples jato de cinzas, esta idéia tão simples hoje devera parecer, naquele tempo, de uma ousadia extraordinária, e eu não sei como se pôde obstinadamente taxar de misoneístas às populações que a adotaram.

Mas se a idéia de um desenvolvimento predeterminado de invenções é quimérica, existem, em revanche, bem realmente, similitudes espontâneas de invenções, e cabe-lhes uma certa parte nas coincidências constatadas entre sociedades que jamais realizaram qualquer empréstimo. Um certo número de instituições muito semelhantes foram imaginadas espontaneamente, sem qualquer imitação, por iniciadores diferentes, em diferentes épocas e em diferentes lugares, porque elas eram as únicas soluções possíveis, simples e fáceis de conceber frente aos problemas criados pelas necessidades naturais do homem. Por exemplo: apresentando-se a necessidade urgente de saber o que cultivar na terra, para alimentar a população, apenas algumas soluções poderiam se oferecer: 1º) forçar as mulheres a este trabalho; 2º) poupar a vida dos prisioneiros de guerra e reduzi-los à escravidão; 3º) cultivo livre auxiliado por animais ou por forças naturais dominadas. Ora, todas estas soluções foram experimentadas e realizadas, mas não necessariamente na ordem acima exposta. No mundo antigo, a mais difundida foi a segunda, a cultura servil; e, como se viu florescer a escravidão entre os astecas, — que jamais tiveram qualquer comunicação com a antigüidade greco-romana, assim como entre os negros africanos que provavelmente não a conheceram melhor, — deve-se pensar que sua semelhança a esse respeito não teve por causa a imitação.

Uma vez estabelecida a escravidão, outro problema se apresenta: Qual a melhor maneira de utilizar o trabalho escravo? Ora, o proprietário e senhor pode, para o cultivo: seja fazer trabalhar seus escravos em grupo sobre toda a extensão de seu domínio; seja dispersá-los sobre a propriedade, e conceder a cada deles um lote especial de onde vai retirar proveitos mediante condições especiais. O senhor romano, de início, adotou com exclusividade o primeiro procedimento; mas o senhor galo-romano deu preferência ao segundo que, agigantando-se e especificando-se, transformou-se em servidão. Esta é uma solução muito fácil de descobrir e, desde que apareceu em algum lugar onde ofereceu vantagens, uma corrente de interesses não tardou em torná-la dominante. Assim explica-se o fato de a servidão haver existido não apenas na Idade Média cristã, como também o de haver precedido às invasões entre os germanos e, mais antigamente ainda, na Grécia. “Os hilotas[159] de Esparta, os penestas[160] da Tessália, os clerotas de Creta, talvez os tetes[161] da Ática fossem servos da gleba.” (Fustel de Coulanges) Os antigos romanos ignoravam esta forma especial de escravização. Quando ela, mais tarde, apresentou-se a eles, poder-se-ia admitir que fora copiada? Isso não é necessário, à vista da simplicidade da idéia: ela produz-se, diz muito bem o autor que acabamos de citar, “primeiramente sobre um domínio, depois sobre outro e, pouco a pouco, sobre todos[162]

Para retornar uma última vez ao coletivismo, perguntemo-nos se, de acordo com os princípios expostos, ele deve ter precedido à propriedade individual. De modo algum.  Em todos os tempos existiram e precisaram existir, — isto é reconhecido, — coisas apropriadas individualmente: armas, móveis, vestimentas, ferramentas. Mas é certo ou provável que a proporção dessas coisas apropriadas individualmente, relativamente às outras (coletivas), diminuiu sem cessar e, no presente, é inferior ao que era na idade da pedra lascada ou polida? Não vejo a menor prova. Concordo apenas que a propriedade coletiva do solo deve ter sido mais geral e mais extensa, quando se apresentava uma época na qual o solo não era susceptível de aproveitamento senão em comum[163]. Mas naqueles tempos, em revanche, a propriedade coletiva das coisas móveis não era sequer imaginável, e em nossos dias é sob esta forma sobretudo que o coletivismo ganha terreno, pelas companhias ferroviárias, pelas sociedades industriais ou comerciais quaisquer; é sob esta forma sobretudo que o coletivismo espera reinar um dia pela expropriação do satânico capital e sua nacionalização. Vejo bem, além do mais, que o alargamento do campo social, em diminuindo a insegurança primitiva da indústria, permite-lhe satisfazer mais amplamente sua tendência inata à propriedade livre e divisível, enquanto o progresso da agricultura intensiva tornaria a cultura indivisa mais impraticável.  Mas, de outra parte, o alargamento do campo social permitiu também associações de proprietários maiores e mais fortes; de outro lado, ele enfraqueceu o sentimento do direito de propriedade. A propriedade exclusiva, inalienável, perpetuamente fixa do grupo familiar ou de aldeia, o aperfeiçoamento agrícola, pouco a pouco, substituiu-a pela propriedade exclusiva também, mas alienável e móvel do indivíduo. Durante esta mudança, o culto à propriedade perde muito de sua força; ele abdica de seu caráter absoluto e sagrado, e reveste-se de uma relatividade que unicamente o ceticismo pode penetrar.

A única questão é saber se as condições favoráveis à propriedade indivisa estão em via de aumento ou de diminuição, ou se, após haverem desaparecido, ou parecerem desaparecidas, elas não tenderiam a reaparecer transformadas. Podemos ter por assegurado que o comunismo familiar ou de aldeia não renascerá, porque o alargamento do horizonte social se lhe opõe. A intensidade do sentimento que seria o elo com os tempos antigos, entre parentes ou vizinhos, alimenta-se sobretudo de seu isolamento em um meio hostil.  Deviam amar-se muito entre si, e muito odiar ao estranho, para viver esta vida incômoda. No presente, deve-se amar nesse nível todos os co-associados, ou mesmo odiar até esse ponto todos os outros homens, para que o sonho de nossos comunistas atuais foi realizável; poder-se-ia remeter-lhes a Utopia de Thomas Morus. À medida que, com efeito, se alargava o círculo social, o sentimento de confraternidade perdia em intensidade o que ganhava em extensão. Mas o novo coletivismo é muito menos sentimental, porque não tem necessidade de o ser. Reflitamos, com efeito, nas outras mudanças produzidas pela causa indicada. Ela teve, notadamente, aquela conseqüência, qual seja, a de que a distinção, muito nítida na origem, entre o preço para o irmão e o preço para o estranho, — o primeiro fixado pelo costume, o segundo, unicamente pela concorrência, — foi se atenuando e apagando por etapas. Segue-se, — corolário importante, — que o número de compradores ou de locatários possíveis, aceitáveis juridicamente, dos bens imóveis não cessou de crescer, os preços de fechamento ou de venda tornaram-se cada vez menos fraternos, costumeiros, justos, cada vez mais discutidos e aceitos pela força. Daí uma reação que não pôde faltar de se produzir contra aquilo que se chama de a exploração do fraco pelo forte, da maioria pela minoria. E quando a maioria torna-se poderosa a seu turno, quer reformar, com ou sem razão, este estado de coisas, e conduz-se de modo a socializar novamente as fontes de riquezas, mesmo as imobiliárias, que um longo progresso anterior havia individualizado[164]. Lembremo-nos, enfim, de uma consideração precedente e apliquemo-la. Como cada onda de invenções industriais foi seguida, no passado, de algum novo modo de apropriação, de alguma modificação no regime da propriedade, seria muito surpreendente que, no decorrer de nosso inventivo século, tão fértil em renovações da indústria agrícola, como em todas as outras, a concepção do direito de propriedade não sofresse uma modificação bastante profunda.

Uma palavra sobre a prescrição. “A duração requerida para que a posse se transforme em prescrição, diz Viollet, é muito mais curta entre os povos jovens que entre as nações avançadas em civilização.” Ela prolonga-se à medida em que a nação se civiliza.  Entre os germanos, antes da introdução das idéias romanas entre eles, ela era de um ano. Entre os romanos, eles mesmos, no início de sua carreira histórica, ela era de um e dois anos; mais tarde apareceram prescrições de dez anos, de vinte, de trinta, de quarenta anos; e foram estas últimas que acabaram por triunfar. Por que isto? Não vou procurar todas as causas. Mas não é evidente que uma das principais é o progresso da arte de escrever e o hábito de registrar no curso do desenvolvimento civilizador? Entre os primitivos, que são iletrados, não se saberia combater uma posse recente senão pela prova verbal de uma posse mais antiga, e a natureza desta prova é a de tornar-se rapidamente menos probante e mais perigosa ano a ano. Mas quando a prova escrita de uma propriedade pôde ser fornecida, a segurança e as garantias de verdade que ela ofereceu subsistiram quase as mesmas durante longos anos. A invenção ou a importação e a propagação da arte de escrever tiveram, pois, uma ação indireta das mais fortes sobre a evolução histórica da prescrição em muitos países diferentes[165].

Não podemos encerrar sem tocar nas sucessões. É verdade que “o regime sucessoral, consagrado pelos mais antigos usos da humanidade, seja em toda parte o mesmo”, e que haja atravessado fases invariáveis? Eu vejo bem que, em geral, as filhas são excluídas, assim como os ascendentes; — concílio que acarretará ao matriarcado a primeira dessas duas exclusões[166]. Mas vejo também o Direito nascente, entre diversos povos, hesitar entre a sucessão colateral e a sucessão direta. Quando um homem morre, não se sabe muito se é seu irmão ou seu filho que lhe deve suceder. E como sair desta enrascada? Ocorre sempre que o direito do descendente seja preferido, finalmente, àquele do irmão? Não[167]. Na Arábia e entre os astecas é o colateral que prevalece. “Em nossos dias ainda, — diz Viollet, — na Turquia, como outrora em Kief, o Sultão tem por sucessor, não seu filho, mas seu irmão ou seu tio.” O rio da evolução tem, pois, seus deltas, suas bifurcações fortuitas. Outro exemplo. No início, entre os bárbaros, a eleição e a hereditariedade partilhavam confusamente a devolução do poder real.  Oscila-se entre um ou outro desses dois princípios. Mas qual dos dois fixou-se? Ora um, ora outro. Se o princípio da hereditariedade prevaleceu em quase toda a Europa, cada vez mais, à medida em que as monarquias se enraizavam, o princípio da eleição excluiu alhures seu rival, notadamente na Polônia, por conta do próprio desenvolvimento da realeza.

Dir-se-á, por acaso, que o direito de primogenitura foi uma fase universal e necessária do regime sucessoral? Mas ele era desconhecido em Roma e em Atenas[168]. E eu acredito que Fustel de Coulanges, ele mesmo, viu-se bem embaraçado para encontrar-lhe o gérmen nas instituições do Império Romano. O mundo semítico ignorava-o também. O que contribuiu para sua propagação foi o exemplo das classes superiores, onde se implantou primeiramente. Hoje o direito de primogenitura é praticado em todas as classes do povo inglês, mas começou como privilégio da nobreza. Um direito opositor ao direito de primogenitura, o direito de juveigneur, existia entre os germanos, os celtas, os tártaros nômades e outros povos.

É sobretudo a propósito das sucessões que o naturalismo jurídico acreditou poder ter seqüência. D’Aguanno consagra oito ou dez páginas de texto cerrado à hereditariedade fisiológica, à cissiparidade, à gemiparidade[169], à geração alternante, à pangênese[170] de Darwin, à perigênese[171] de Hoeckel, e tudo para justificar dessa sorte o direito à herança. Eis seu raciocínio: se está demonstrado que as virtudes, os vícios, as doenças, os caracteres quaisquer se transmitem hereditariamente, está provado que os bens devem se transmitir da mesma maneira[172]. Aliás, por uma razão biológica que me parece melhor, ele trata de mostrar que o direito de sucessão e o direito de propriedade são, no fundo, idênticos.  Mas, com argumentos desse gênero, onde se iria parar? Sob o pretexto de que a criança é a continuação fisiológica de seus pais, visto “a continuidade do plasma germinativo”, de acordo com o Dr. Weissmann, tornar-se-ia o filho responsável por todas as contratações e todas as faltas do pai. As sociedades primitivas, eu reconheço, bem antes de toda iluminação antropológica, editaram essa solidariedade familiar. Mas eu creio que o progresso humano consistiria em romper esse feixe natural, para permitir a esses elementos disjuntos a formação de associações verdadeiramente sociais em sua origem e em seu objetivo. Em suma, a necessidade de estudos biológicos é mal compreendida pelos sociólogos naturalistas. É necessário conhecer a natureza fisiológica do homem, mas não a fim de curvar servilmente, às exigências de seu organismo, suas instituições sociais, mas a fim de empregar este conhecimento na realização de fins sociais, de desígnios coletivos, mesmo quiméricos às vezes, de planos de reorganizações nacionais ou humanitários, porque o contato entre os espíritos associados é o único a poder fazer brilhar um deles, difundindo-o entre os demais.  Nascidas das funções vitais, as funções sociais não se sujeitam, de início, senão se as liberando e subjugando a seu turno[173]. O homem social faria bem em conhecer a ciência enciclopédica, seu querer e, por conseguinte, seu dever permaneceriam em larga medida, numa medida sempre crescente, independentes de seu saber. E, malgrado sua onisciência, sua moral poderia não ser mais fortalecida. Que fazer? — perguntar-se-ia ainda e mais ansiosamente que nunca, esse espírito que tudo saberia. Eu digo mais ansiosamente que nunca, porque ele teria perdido, em se satisfazendo, sua ambição mais elevada, aquela de conhecer. O universo inteiro não apresenta à Vontade espectadora senão um imenso campo de recursos; cabe a ela criar seu objetivo. Ela o criará, não olhando o céu nem a terra, mas escutando a si própria, penetrando o enigma profundo de sua originalidade inata e única, estendendo-se socialmente, pela luta e pelo amor, de onde eclodem as inspirações ambiciosas ou generosas, despóticas ou heróicas, do fundo do coração.


 

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Capítulo Cinco
Obrigações

I. Erros acreditados. Pretendida ausência do contrato primitivo. As invenções. Verdadeira fonte das obrigações. II. Obrigações contratuais. Sua antigüidade. Freqüentes entre os membros do grupo social primitivo, raras de grupo para grupo. Responsabilidade coletiva. Cauções, “pleiges”. O executor contratual no Egito e na Grécia. Arras. Similitudes: abrandamentos fonéticos, abreviaturas escriturais, abrandamento de cerimônias, aperfeiçoamentos industriais, abrandamento das penalidades e dos procedimentos. Faculdade de retratação. Causas de nulidade. III. Obrigações não contratuais. Sua proporção é crescente? Importância teórica exagerada da idéia de contrato. A vontade unilateral. Savigny e os títulos ao portador. O contrato, comando reflexo e recíproco. IV. Obrigação nascida da combinação de uma vontade com um juízo. Leis de causação e fases da evolução a distinguir. Silogismo intelectual, lógico, e silogismo prático, teleológico, moral. V. Explicação que faz derivar ao mesmo tempo de uma mesma fonte, a saber, de uma teoria completa e precisa do silogismo, uma teoria do valor e uma teoria da obrigação, do mesmo modo, nítidas e gerais.

I. Erros acreditados.

Pretendida ausência do contrato primitivo. As invenções. Verdadeira fonte das obrigações.

 

Após os desenvolvimentos precedentes, o que vamos dizer sobre as obrigações já se pode adivinhar; mas um assunto tão interessante merece que nos detenhamos. Eis qual foi, segundo d’Aguanno, o ponto de partida da evolução. “Num primeiro período, o grupo humano agia como um único todo; e, do mesmo modo que não se concebia então a propriedade privada e que a noção de personalidade e de liberdade era extremamente fraca, de forma semelhante, as relações obrigacionais não tinham lugar senão de grupo a grupo, reduzindo-se a trocas de objetos materiais.” Esta maneira de ver, que parece tão natural e que é tão falsa, inspira-se no erro fundamental que viciou, nós o sabemos, a história da penalidade. Faz-se partir da troca internacional a história das obrigações, em virtude do mesmo ponto de vista que faz partir da vingança, exercida de tribo à tribo, de família à família, a história da pena. Lançando o olhar, ao contrário, às relações interpessoais de homem a homem no grupo primitivo, percebe-se que o castigo, tal como nós o concebemos, era conhecido. Do mesmo modo, se se quiser bem imaginar que os membros da família antiga, malgrado sua estreita solidariedade, ou, de preferência, em razão de seus liames fraternais, contraindo necessariamente obrigações em conjunto, emprestavam-se freqüentemente seus utensílios e suas armas, trocando seus rebanhos, suas presas, suas peles de animais, suas grutas talvez, reconhecer-se-ia que eles teriam possuído, para seu uso interno, uma noção de obrigações de outro modo tão rica e complexa que não se imagina, de acordo com a consideração exclusiva de suas relações com os estrangeiros.

É, pois, infinitamente provável que nenhum dos quatro contratos romanos, — do ut des, do ut facias, facio ut des, facio ut facias, – fosse ignorado no seio da mais antiga corporação doméstica. Estejamos mesmo seguros de que o análogo às nossas vendas a crédito, quer dizer, a troca a crédito, deve ter sido praticada, e tanto mais praticada quanto mais forte era o espírito de união. Com qual direito supor, com o sábio professor italiano, que a troca de objetos materiais foi a única conhecida pelos primitivos, que jamais, até as épocas mais avançadas da civilização, trocaram um objeto contra um serviço ou serviços entre eles? Eu admito esta hipótese, se se quiser, a toda força, não considerar senão as relações externas dos selvagens ou dos bárbaros; acrescento mesmo que a observação se aplica também ao comércio exterior das nações mais civilizadas. Esse grande negócio, quando aparece pela primeira vez entre dois povos que anteriormente não tinham relações comerciais, por exemplo, entre a Inglaterra e o Japão no decorrer deste século, começa por não ser senão uma troca, uma troca de mercadorias contra mercadorias, como devem ter sido as primeiras relações comerciais entre dois selvagens de tribos diferentes. Além do mais, ele consiste, como nestas, num pequeno número de operações; e, nesse sentido, mas apenas nesse sentido, não tendo em conta senão as relações exteriores, é exato dizer que os contratos eram quase desconhecidos na origem. Não é menos exato acrescentar, sempre a respeito desse mesmo ponto de vista incompleto, que, exclusivamente reais no início, esses contratos tornaram-se mais e mais consensuais e, ao mesmo tempo, mais e mais numerosos. À medida em que se desenvolve o comércio marítimo entre duas nações, sua desconfiança mútua se dissipa, e elas correm mais corajosamente o risco de negociar a crédito. Assim, existe uma verdade parcial e relativa na idéia de Sumner-Maine sobre a ausência primitiva de contratos, e nesta asserção de Dareste, de que “os contratos reais precederam em toda parte os contratos consensuais”.  Mas quer isso dizer que, no interior do círculo social, variável a cada época e crescendo sem cessar, no recinto da família, do clã, da casta, da cidade, da pátria, as convenções não hajam sido nunca raras, e que o simples consentimento nunca foi impotente para selar um contrato, sob o império da confiança habitual e sob a autoridade do pai de família, do chefe, do senhor, do rei? Relata-se, — ou deseja-se, — tomar aqui, por duas fases sucessivas do Direito, dois ramos diferentes e sempre coexistentes do tronco jurídico.

A grande, a incontestável lei histórica é, — eu repito, — a tendência do círculo mágico do qual falei, em alargar-se incessantemente, e é também a realização progressiva desta tendência por tanto tempo enquanto não sobrevêm as catástrofes que aniquilam uma sociedade. Este progresso que, — nós o sabemos, — deve-se à atividade contínua da imitação sob suas mil formas, é a causa principal das transformações cumpridas no modo de compreender e de praticar o Direito relativo às Obrigações.  Uma outra causa é a atividade intermitente da invenção, que tem por efeito fazer nascer ou fazer desaparecer muitas espécies particulares de contratos ou de obrigações não contratuais, muitos modos de provas ou de execuções. O arrendamento de terras não se tornou concebível senão após as invenções agrícolas; o aluguel de casas, senão após as invenções arquiteturais. Não se aluga uma tenda. O empréstimo a juros supõe a invenção da moeda e de todas as indústrias que dão importância ao capital monetário. O contrato de homenagem feudal desapareceu pouco a pouco, substituído por mil novos contratos incompatíveis com ele e suscitados por nossa inventiva civilização moderna. A invenção da escrita sugeriu a prova por escrito, o notariado, o registro (do qual somos devedores aos atenienses, parece). Ela rechaçou e fez desaparecer a prova por juramento ou por co-juradores. A invenção da imprensa valeu-nos os anúncios judiciários. Aquela do correio e das estradas de ferro pede-nos, talvez, a substituição dos bedéis, como agentes de execução, pelos carteiros. A invenção da fotografia pede-nos já a confiança ligada à reprodução fotográfica de atos dos quais a minuta se perdeu, etc. À vista dessas duas ordens de considerações intimamente entremeadas, explicam-se, sem trabalho, os caracteres com que as obrigações têm se revestido sucessivamente, e que os historiadores do Direito tiveram a sagacidade de descobrir. Mas falemos primeiro das obrigações convencionais apenas, dos contratos.

II. Obrigações contratuais.

Sua antigüidade. Freqüentes entre os membros do grupo social primitivo, raras de grupo para grupo. Responsabilidade coletiva. Cauções, “pleiges”. O executor contratual no Egito e na Grécia. Arras. Similitudes: abrandamentos fonéticos, abreviaturas escriturais, abrandamento de cerimônias, aperfeiçoamentos industriais, abrandamento das penalidades e dos procedimentos. Faculdade de retratação. Causas de nulidade.

 

Sempre e em toda parte, quando dois homens contratam um com o outro, sejam concidadãos, sejam estrangeiros, têm prevista a violação possível de suas contratações, e estão mais ou menos prevenidos contra esta eventualidade. Mas a natureza e o rigor das precauções tomadas diferem de uma parte, segundo o contrato haja sido firmado entre um concidadão e um estrangeiro, ainda que esta diferença tenha se atenuado, à medida em que se distanciava o limite do grupo social; porque, em se ampliando o limite do grupo, essa proteção diminui. E, de outra parte, as precauções variam a cada novo grau dessa ampliação progressiva. No fundo, a única garantia verdadeira é o apoio moral ou material, provável ou assegurado, dos co-associados sob os olhos dos quais os contratantes se obrigam. Enquanto não se pensava em contratar fora dos muros cerrados dos vaus familiares, este apoio era certo; e a segurança, em sendo obtida imediatamente pela adesão espontânea que dão às convenções um público de parentes, sobreviverá muito tempo sem qualquer escrito. Mas quando a federação de famílias de um burgo, de um burgo da cidade, das cidades de um Estado, aumenta por graus este público, torna-se cada vez mais difícil ter o todo inteiro por testemunha e por garantia.  Procuram-se e criam-se[174] meios variados de provar a obrigação de outrem em casos de denegação, e de executá-la em casos de vontade viciada.  É sempre graças a algum desses novos procedimentos que um gênero de contrato, precedentemente encerrado nos muros da família, ou do clã, ou da corporação citadina, aventura-se a sair e esforça-se por se aclimatar fora.

Quando o empréstimo de consumação, o empréstimo de uso, o empréstimo em geral tentou fazer portanto sua estréia no mundo, seu início deve ter sido facilitado pela idéia da garantia ou, mais tarde, pela dos interesses usurários. O empréstimo puro e simples, sem garantia, sem interesse, foi seguramente muito usado entre os primitivos, mas apenas entre pessoas da mesma tribo ou da mesma casta, como ocorre ainda em nossos campos, onde, entre vizinhos, entre primos, os utensílios domésticos são emprestados quotidianamente. Estejamos seguros de que, na Roma primitiva, era o mesmo, e que os membros de cada gens se emprestavam gratuitamente toda sorte de objetos. Mas, em revanche, quando se emprestava fora de sua gens, quando o patrício emprestava ao plebeu, a usura maltratava, desumana e feroz, à la Shylock[175]. O curso da civilização teve por efeito abrandar esse contraste. De uma parte, rareou os empréstimos gratuitos e generalizou os empréstimos a juros; de outra parte, abaixou ou nivelou a taxa de juros, sob a influência de causas complexas, é verdade, porém, em parte, por conta de uma crescente reprovação atrelada à exploração de homens tornados ou reconhecidos nossos semelhantes. Mesmo em nossos dias, contudo, os europeus permitem-se, em suas colônias, espoliar sem misericórdia seus devedores indígenas.  Na Índia bramânica, “entre pessoas da mesma casta, — diz Dareste, — os juros não poderiam ultrapassar o capital; entre pessoas de castas diferentes, o capital poderia ser multiplicado por 3, por 4 ou por 8”. Muitas legislações antigas, aquelas da Islândia e da Noruega entre outras, do mesmo modo que a mais antiga legislação romana, autorizavam o credor a perseguir, com impiedoso rigor, a cobrança de seu crédito: o devedor insolvente era reduzido à escravidão, para ser constrangido a trabalhar e, se não trabalhasse, seu dono poderia matá-lo ou mutilá-lo. Mas trata-se aí, — não duvidemos, — de relações entre pessoas pertencentes a famílias ou a gens diferentes.  Se a lei antiga não fala das relações entre co-associados, é pela mesma razão pela qual ela nada diz do parricídio às vezes, nem mesmo do adultério; como os crimes domésticos, os contratos domésticos não eram visualizados. Certamente, jamais os parentes, os afins, os fiéis de uma mesma confraria teriam ousado negociar desse modo.

Uma das mais antigas garantias imaginadas para a execução de contratos exteriores foi a de fazer pesar sobre todos os nacionais uma responsabilidade coletiva. Por exemplo, na Idade Média, quando um mercador florentino faltava com a palavra a um lionês, este processava, em Lyon, os mercadores de qualquer outro mercado de Florença. Está aí uma sorte de vingança comercial exercida sobre os bens. O penhor, garantia análoga, era uma espécie de refém comercial. A tais precauções acrescentava-se aquela de exigir o juramento. Mais que qualquer outro progresso, o progresso das crenças religiosas favoreceu a extensão do sentimento fraternal e, por conseguinte, a expansão dos contratos fora de seu berço estreito. O juramento era um sacramento. O violador politeísta da fé jurada temia o raio de Júpiter. Quanto um árabe seria ardiloso e mais desrespeitoso de sua palavra empenhada ao estrangeiro, se não fossem os preceitos morais do Alcorão! Será muito seguro que o hábito de respeitar as contratações teria, algum dia, se enraizado na humanidade, se não houvesse a idéia de contratar diante de fetiches, ou da família, ou da tribo, diante do altar dos deuses, do túmulo dos marabutos[176], das relíquias dos santos?

Outra precaução: o uso de cauções, de coobrigados solidários, tanto mais geral quanto mais alto se remonta ao passado. Eram parentes muitas vezes. Viu-se aí, e provavelmente com razão, um resto da antiga solidariedade familiar; mas isso mesmo prova que se tratam de contratos com estrangeiros, porque não se poderia estar completamente tranqüilo neste caso, senão através da participação de todos os membros das duas famílias, na contratação de cada um deles. Mas, nas relações interiores dos parentes, em seus engajamentos mútuos, esta exigência foi inútil e mesmo absurda. Como o corpo inteiro da mesma família teria podido tornar-se solidário ao mesmo tempo em obrigações contraídas por Pedro em relação a Paulo, e por Paulo em relação a Pedro? A este uso, atrela-se uma particularidade do Direito grego primitivo, que se encontra também no Direito egípcio e no Direito persa: “para que houvesse contrato obrigatório, diz Dareste, não era suficiente o acordo entre duas vontades, era necessário, em geral, que um terceiro interviesse e prestasse caução.” Daí essa singularidade aparente que, nos contratos de venda gregos, — descrobriu-se-os em grande número em Delfos, — o seguro contra a evicção é prometido, não pelo vendedor ele mesmo, mas por um garante chamado provendedor. Eis aí uma espécie de executor contratual, como vemos ainda os executores testamentais.

É de crer que as primeiras vendas a estrangeiros devem ter sido feitas à vista. Depois, quando se estava menos disposto a desconfiar deles, seguiu-se a idéia das vendas a crédito que, aliás, deviam praticar-se desde há séculos no grupo social, já que havia aí o hábito do empréstimo que supõe a confiança.  A transição da venda à vista até a venda a crédito devia, nessas relações externas, operar-se pelo pagamento imediato, não da totalidade, mas de uma fração, primeiro considerável, a seguir, mínima, do preço. Daí, sem dúvida, o uso das arras. As arras, entretanto, podem haver existido às vezes desde a origem, e, com toda certeza, adquiriram mais tarde outra significação. Observemos que, muitas vezes, elas são, não um à vista pago sobre o preço, mas uma sorte de gratificação de mercado, o pagamento da pequena festa de albergue destinada a torná-las públicas; alguma coisa como nossos direitos registrais. Elas faziam parte dessas cerimônias que acompanhavam o antigo contrato de venda, e onde não era permitido ver senão os meios de dar à transmissão da propriedade toda a publicidade possível. Porque os meios variam, mas o fim permanece o mesmo. Quando essas formalidades bizarras desapareceram, elas foram substituídas; e, se se diz agora, em princípio, que a venda é perfeita unicamente pelo consentimento, sujeita-se este último, de fato, à formalidade nova e mais custosa da transcrição, sem a qual a venda não é oponível a terceiros. No fim, como no início de sua evolução, o contrato de venda é essencialmente formalista. Assim como a venda à vista, as arras são um sinal simbólico de tal forma natural, que bem podem ter sido espontâneas desde o início. Elas simbolizam a tradição futura do preço, ao mesmo título que a entrega de um torrão de terra ou de um tufo de erva simbolizam a tradição atual ou futura do campo ou do prado vendido.  Tomar a parte pelo todo ou, antes, exprimir o todo pela parte, isso é o que, em retórica, chama-se uma figura; e esta figura tem curso espontaneamente também em mitologia, em política, em poesia, assim como em Direito. Do mesmo modo como se diz cem velas por cem navios, ou dez fogões por dez casas; do mesmo modo como Aníbal[177], depois de Canas, envia ao senado de Cartago um alqueire[178] de argolas de ouro, para indicar o número de cavaleiros romanos mortos nesta gloriosa batalha; do mesmo modo como o rei personifica o Estado e o embaixador personifica a nação, e que um ultraje feito ao embaixador é considerado como feito à nação inteira; do mesmo modo como as jovens gregas depositavam uma mecha de seus cabelos sobre o túmulo de seu amigo, para simular o sacrifício fúnebre de sua pessoa inteira, e que, ainda em nossos dias, entre os ossetos[179] do Cáucaso, em lugar de imolar, sobre o túmulo de um homem, seu cavalo e sua mulher, atira-se lá um punhado dos cabelos de uma e das crinas do outro; de modo semelhante, o comprador primitivo, para mostrar que estava disposto a pagar todo o preço da venda, remete ao vendedor uma porção insignificante deste. Mas será isso dizer, como se diz, que em toda a parte onde nós vemos as cabeleiras femininas ou as crinas atiradas sobre um túmulo, haja-se começado por imolar mulheres ou cavalos, e que, em toda parte onde nós vemos pagarem-se arras, haja-se começado por não vender senão à vista? Isso não está bem demonstrado. Diz-se muito também, sem prová-lo tampouco, que a encarnação nacional do rei foi, em toda parte, precedida do governo popular direto. Será certo que figuras de retórica nada tenham de primitivo[180], e que não pareça que elas abundem sobretudo entre os iletrados, como os tropos[181] jurídicos no Direito antigo? Porque o tropo do qual venho de falar não foi o único que floresceu. A hipérbole, que é quase o inverso do precedente, não serviu, em Direito criminal, para a exageração das expressivas penalidades do talião crescente? A metáfora,  não existe ela por efígie durante as execuções e as ficções do Direito civil? Não nos esqueçamos de que a lei é a poesia dos povos-crianças, que muitas vezes não têm outra: cantam-na em versos, estudam-na com amor, e, ainda durante a Idade Média, deram-se às coletâneas de Direito nomes afetuosos, na França, na Alemanha, entre os Árabes: o Espelho de Souabe, o Espelho de Saxe, a Flor de Magdebourg, a Beleza Sorridente das Coleções. Imaginem-se nomes semelhantes dados às coletâneas de Sirey ou de Dalloz! — De resto, não arrisco tais considerações senão a título de conjecturas, como também o são muitas interpretações mitológicas ou outras, — às quais elas arruínam, eu convenho, — e que não parecem repousar sobre provas muito mais sólidas.

Acrescento que estou longe de contestar, em muitos casos, a legitimidade das induções, nas quais combato unicamente a generalização abusiva.  Opera-se a esse respeito, na vida do Direito, um fenômeno análogo àquele que nós observamos na vida da linguagem, da religião, da indústria, da arte, e que se liga à perseguição universal e constante de um máximo de utilidade com um mínimo de esforço. Esse objetivo não se obtém freqüentemente senão pela passagem do todo à parte e da coisa significada ao signo. Desse ponto de vista, é interessante comparar: 1º) o que os filólogos chamam de a lei do abrandamento fonético: a tendência preguiçosa em contrair e abreviar as palavras usuais, reduzi-las a uma pequena parte delas mesmas, que se tornam, por assim dizer, um símbolo do todo; 2º) a abreviação da escrita, não menos demonstrada; a escrita hieroglífica torna-se, pouco a pouco, a escrita demótica, mais rápida e mais fácil; 3º) o abrandamento dos ritos, notadamente dos sacrifícios, com as vítimas humanas sendo substituídas por imolações de animais, reais no início, depois simulados e, enfim, por oferendas vegetais; 4º) os aperfeiçoamentos industriais, no mesmo sentido; 5º) enfim, o abrandamento das penalidades e também dos processos, a despeito de sua multiplicação: o talião a fazer-se substituir, com o tempo, pela composição pecuniária; os castigos atrozes do antigo regime, a fazer-se mitigar por graus até nossas confortáveis prisões; as antigas formas, tão incômodas e tão fatigantes, da tradição das coisas vendidas, a fazer-se simplificar gradualmente, a ponto de tornarem-se o “simples dar-se as mãos, o concurso de duas mãos que se aproximam, uma para dar, outra para receber”. (Dareste.) Tais analogias são muito naturais e explicam-se muito facilmente, para que se torne útil determo-nos por mais tempo.

O uso das arras liga-se estreitamente à faculdade de retratar-se, que era tão habitual no Direito antigo e tão característica. Surpreende-se em ver as antigas legislações do Oriente, sem falar das nossas, em particular o Direito Muçulmano, olharem a venda, a doação, o empréstimo de uso, a sociedade, o mandato, o depósito, mesmo o casamento às vezes, como contratos essencialmente revogáveis ao nível de uma das partes e malgrado a outra, num certo prazo que foi abreviado ao longo do processo legislativo. Segundo o Código de Manu, o vendedor tem dez dias, assim como o comprador, para se arrepender e se liberar; o código bramânico de Narada, posterior, não dá mais que um ou dois dias. Constata-se, muito rapidamente, que a idéia do contrato irrevogável faltava em absoluto aos primitivos, e que, aos seus olhos, a vontade podia sempre desfazer o que havia feito, a contratação. Isto é esquecer o caráter sacramental que eles atrelavam às suas convenções, conformes aos costumes tradicionais e concluídas com seus compatriotas. Sem dúvida, as crianças gostam muito de se liberarem, quando varia o seu capricho, e ele varia muitas vezes; mas como elas não prevêem nada, nem mesmo a variação do seu capricho, gostam muito de comprometerem-se de modo irrevogável.  Com os povos-crianças dá-se o mesmo.  A idéia de reservar-se o amanhã, de prever, excepcionalmente, que a venda que é de seu desejo mudará de direção, não lhes pôde ocorrer antes de suas relações com os estrangeiros, nas condições de livre concorrência e de mútua traição, onde o costume, o protetor comum de todos, não intervinha. Aí procuravam-se armar ciladas um para o outro, sabe-se. Era, pois, natural guardar uma porta de saída, para escapar de um adversário astuto. Também foi aí, — penso eu, — que a faculdade de se retratar deve ter nascido, ressalvada a generalização a seguir. Para bem compreender tal faculdade, não será necessário comparar estas múltiplas escapatórias que as antigas legislações procuraram para os contratantes, em fazendo, com tempo, a enumeração dos vícios de consentimento? Não apenas a loucura, a coação, a embriaguez, o erro são causas de nulidade em Direito Muçulmano[182], mas ainda a fraqueza de memória, a doença, etc., e mesmo a viagem. Imaginada por um povo nômade, esta última condição de invalidade tem o ar de uma piada de mau gosto; mas ela demonstra que se trata, no pensamento do legislador, de atingir sobretudo aos compromissos contratados com outras tribos, porque era viajando que se os contatava. Esses primitivos tinham pelos contratos desse gênero, precisamente o respeito duvidoso que nós dirigimos aos nossos tratados com potências estrangeiras.

III. Obrigações não contratuais.

Sua proporção é crescente? Importância teórica exagerada da idéia de contrato. A vontade unilateral. Savigny e os títulos ao portador. O contrato, comando reflexo e recíproco.

 

Chegamos às obrigações que se formam sem contrato. Muito se tem dito e repetido que a proporção relativa destas, comparadas às obrigações contratuais, fora diminuindo incessantemente no decorrer da civilização.  Na origem, não haveria senão aquelas, e nós caminhamos na direção de um amanhã onde as outras serão as únicas reconhecidas. Será verdade? Ouço muito dizer, em toda parte, que ninguém está obrigado sem havê-lo querido; que o reconhecimento desta verdade é uma das conquistas do espírito moderno e que, fora da hipótese de um contrato implícito ou explícito, o estado social desmoronaria como o mundo dos hindus sem o elefante imaginário que o sustenta. Mas, ao mesmo tempo, dizem-me que devo obediência a uma multidão de leis nas quais eu jamais teria votado, a uma multidão de decretos que eu jamais teria assinado. Pergunto-me se o selvagem tiranizado, — dizem-nos, — pelas prescrições rituais de seus costumes, constrangido à tatuagem, às vinganças hereditárias, ao culto de seu fetiche, aos usos transmitidos de pai a filho, como sua língua, e praticados como ela é falada, isto é, simplesmente sempre, não é mais escravo da vontade de outrem, como o é o mais livre cidadão de nossas democracias, sob o jugo pesado do imposto, do serviço militar, e sob os incontáveis volumes dos Bulletin des Lois[183]. Recordo-me de que, em muitos países atrasados[184] onde, antes da introdução das idéias modernas, não era suficiente uma maioria de votantes para modificar as leis, mas era necessário o consentimento unânime dos que estivessem sujeitos à jurisdição.  Essa unanimidade obrigatória mostrou-se entre nós à época merovíngia[185] e carolíngia[186]. Na Rússia foi o mesmo outrora. Em Montenegro[187] este princípio “existia nas assembléias políticas populares, substituído, a partir da metade deste século, por um Conselho de Estado ao estilo moderno”. Entre os ossetos permanece em vigor. Comparai essa arrogante exigência de nossa dócil submissão às maiorias eleitorais de algumas vozes, e dizei se a repugnância à obrigação imposta e não consentida é um sentimento suscitado em toda parte pela civilização. Tudo o que se pode dizer é que a natureza dos deveres impostos pela sociedade ao indivíduo não consultado muda com o estado social, com as transformações trazidas à agricultura, à indústria, às relações políticas, pelas inovações acumuladas.

O que é verdadeiro também e incontestável é que, primitivamente concebida como coisa hereditária e inata, transmitida com a vida, a obrigação não contratual acabou por nada ter em comum com o fato da geração[188]. O crescimento do grupo social emancipou-o dessa sorte que, nem por isso, é menos tirânica; e não é menos penoso obedecer a uma maioria eleitoral de confronto, do que contrariar as prescrições tradicionais dos antepassados. Felizmente, a mesma causa produziu a transformação análoga das obrigações convencionais. No princípio, não se acreditava estar obrigado a engajamentos outros que não àqueles contraídos com os membros de sua família, de seu clã, de sua tribo. Liame de direito e liame de sangue não eram senão um. A idéia da obrigação, voluntária ou não, ligava-se à idéia do parentesco e, por conseguinte, ao caráter de intimidade misteriosa e profunda, indelével e inexplicável, inerente a esta. O indivíduo não tentava mais, então, raciocinar e discutir seus direitos e seus deveres, adquiridos ou inatos, e não imaginava perguntar-se por que estava obrigado. Este era um problema fundamental, diante de cuja majestade ele se inclinava. Pouco a pouco, todavia, quando as relações comerciais com as tribos exteriores se multiplicaram, fez-se sentir a necessidade de estender-se, aos contratos com o estrangeiro, o caráter obrigatório das convenções estabelecidas com os parentes naturais ou adotivos. E esta necessidade se fez tanto mais intensa quanto o progresso das trocas de mercadorias e de exemplos, assimilando os povos em contato, fazendo ampliar a família humana e criar o sentimento da fraternidade aberta. O vinculum juris é assim estendido e exteriorizado. O vinculum juris é uma coerção que se fundamenta sobre uma coesão social e uma atração simpática. Assim, vê-se, não é precisamente pela proporção das obrigações contratuais e não contratuais que as fases primitivas do direito contrastam com as subseqüentes; é pela fonte, quase exclusivamente vital no início, quase unicamente social no fim, das obrigações formadas com ou sem contrato.

Somente que a evolução não parou aí; é por havê-lo esquecido que se é levado, pela transformação gradual da qual venho de falar, a admitir, sem reflexão, uma teoria filosófica das obrigações, onde não se tem em conta que, no contrato, e onde, dentro do contrato, não se vê senão o concurso de duas vontades livres quaisquer, sem nenhum olhar às exigências imperativas, permanentes ou cambiantes, do meio social em que estas vontades concorrem,  e que é o único onde elas podem concorrer. Acaba-se por se persuadir que esses concursos de vontades são o único fundamento racional dos deveres e dos direitos e que, em toda parte onde há direitos e deveres verdadeiros, deve-se descobrir, procurando bem, algum contrato preciso ou confuso, explícito ou implícito.

À primeira vista, nada de mais claro nem de mais plausível. Mas reflita-se: Onde está a razão de pensar, porque duas ou mais vontades estiveram um instante de acordo, que elas deverão estar necessariamente sempre, e que a força pública, o conjunto das outras vontades cercantes, deverá sancionar e garantir este acordo, se ele permanecer estrangeiro, eu digo mesmo hostil?  Onde está a razão de pensar que o único caso em que minha vontade expressa torna-se irrevogável, não pode mais ser retratada, malgrado as mudanças ulteriores, mesmo as mais motivadas de meu querer, é aquele em que qualquer um ao mesmo tempo que eu, quer aquilo que eu quero, e faz-me sabê-lo? No entanto, esta teoria, mediante certos contrafortes de sofismas, pôde sustentar-se por tanto tempo quanto as relações dos indivíduos entre eles, ainda que consideravelmente estendidas para fora do grupo primitivo, não estavam ainda bastante desenvolvidas para cessar de serem pessoais. Explico-me: enquanto, — visto o fraco progresso das comunicações, a clientela, por exemplo, é pouco numerosa e resumida a um estreito raio, — o produtor conhece pessoalmente todos os consumidores aos quais se endereça. Um sapateiro não trabalha senão para tais e tais clientes, de quem ele conhece os nomes e as feições; ele não trabalha ainda para um cliente anônimo.  Assim é com o padeiro, com o açougueiro, com o alfaiate, etc. É o mesmo, em tempos mais próximos ao nosso, com os próprios jornalistas. Por muito tempo, no século XVIII, Grimm redigiu um jornal manuscrito que se endereçava a uma vintena de cabeças coroadas. Ele trabalhava para elas pessoalmente, não para o público. Mas, quando a imprensa tomou seu impulso, quando as estradas de ferro sulcaram os continentes, quando, por causa das grandes invenções, apareceu e cresceu a importância deste personagem impessoal que se chama o público, — e o público está em via de se tornar, na comédia contemporânea, como o coro da tragédia grega, o principal interlocutor, ao qual se nos endereçamos, e que vos responde, ou não vos responde, — as condições sociais que haviam feito florescer a teoria do contrato foram profundamente alteradas. Tal teoria mostra então toda sua estreiteza e sua insuficiência.  Inicialmente, com efeito, como não havia negócios em geral senão com pessoas consideradas uma a uma e separadamente, o contrato clássico poderia passar pela mais importante, senão a única, fonte das obrigações. Mas, no presente, se a lei e, melhor ainda, a prática judiciária, o costume comercial e social, mais avançado aqui que a lei, não devessem sancionar as contratações tomadas em relação ao público, senão a partir do momento, unicamente, onde tal pessoa designada as aceita e faz conhecer sua aceitação, e nada senão que à vista desta pessoa, a maior parte dos negócios, a totalidade dos grandes negócios, seria impossível. Em casos que se vão multiplicando, está-se, pois, obrigado, por romanista encarniçado que se seja, a conceder força jurídica às promessas ainda não aceitas. Sem cessar, multiplicam-se os engajamentos em relação a pessoas indeterminadas que, bem entendido, não saberiam aceitar aquilo que elas ignoram; sem cessar, multiplicam-se os títulos ao portador, os seguros de vida, os anúncios, os prospectos. Todas estas inovações, suscitadas pelas idéias geniais próprias a este século, ou aos séculos anteriores, tendem, manifestamente, a relegar ao segundo plano o contrato que, na época romana clássica, era, sem contradita, o primeiro.

A profunda obra de Savigny sobre o Droit des Obligations descreve às maravilhas a enrascada inextricável dos romanistas diante das inovações frente às quais se inquietam. Mais lógico do que a maior parte de seus colegas, este autor confessa que é impossível fazer entrar essas novas espécies nos quadros clássicos. “Muito se tem tentado, diz ele, fazer intervir neste estudo (aquele dos títulos ao portador, sobre os quais ele se estende longamente) o Direito Romano; e, ainda que seja certo que os romanos não tenham conhecido, de modo algum, os títulos ao portador, poder-se-ia crer, entretanto, que alguns princípios do Direito Romano fossem aplicáveis à instituição em questão. Mas os princípios da representação ou do crédito a adquirir por uma terceira pessoa não podem se aplicar aqui senão de uma maneira arbitrária e forçada, pois que, entre os romanos, estes princípios eram constantemente estabelecidos com relação a pessoas determinadas.” Também Savigny conclui, — com pesar, — como ele deve entender a questão de acordo com as suas idéias. Quando, em um título, “o devedor obriga-se a pagar ao portador, quem quer que ele seja”, será uma tal operação jurídica válida? – pergunta-se ele. “Muitos autores a declaram válida; outros, ao contrário,  e os mais autorizados, têm-na por nula; e eu mesmo, de acordo com a regra estabelecida acima, eu devo, de forma semelhante, pronunciar-me pela nulidade. Nem a prática da jurisprudência, nem o interesse dos negócios, por considerável que ele seja, podem certamente fazer declarar válida, de um ponto de vista abstrato, esta operação.” (Tomo II, página 250 da tradução francesa. Ver também páginas 238, 274, 277, etc.) Quando se vê um jurista desta envergadura reduzido a tais extremos por sua própria lógica, não restam mais dúvidas sobre a insuficiência dos princípios que o guiaram.

Além do mais, deve-se reconhecer um mérito a propósito de uma nova teoria filosófica do Direito, que faz seu caminho na Alemanha[189]. Não é, de acordo com ela, o encontro de duas vontades que é o criador da obrigação: é a emissão de uma vontade única, mesmo antes que se haja realizado o ato. E, no próprio contrato, se se o analisar a fundo, não se encontrarão dois objetos perfeitamente distintos, e não apenas um, como erroneamente se afirma? E não existem aí duas vontades que, por estarem enlaçadas, não deixam de produzir efeitos até certo ponto independentes um do outro? No contrato epistolar, cada vez mais freqüente, “é quimérico, diz René Worms, procurar o momento em que as duas vontades se encontram, visto que, uma vez que o ofertante faz sua oferta, ele não deseja mais: sua volição continua a portar efeito, mas, enquanto fato psicológico, ela cessa de existir. Por outro lado, quando a outra parte escreve sua carta de aceitação, ela esquece também; e, no momento em que a carta é recebida, ela liga “o ofertante, que não tem mais a intenção de oferecer, que — talvez mesmo — arrependeu-se de sua oferta”, e liga o aceitante, que — talvez também — arrependa-se já de haver aceito. A simultaneidade de duas vontades, condição necessária de seu encontro, não existe pois, ou não existe senão por uma ficção de jurista sutil[190], no caso do contrato por correspondência.  De fato, a simultaneidade não existe quase nunca; ela se torna cada vez mais fictícia e realizável com a facilidade crescente de contratar a muito grandes distâncias. Não se saberia dizer quanto esse velho preconceito do contrato considerado como a verdadeira fonte das obrigações tem entravado a marcha do Direito.

A verdade é que toda obrigação, contratual ou não, decorre, antes de tudo, de uma alta e profunda vontade unilateral, aquela do senhor, seja do senhor hereditário e semidivino, seja do senhor eleito e profano, que legifera como bem lhe parece. Esta é a única origem das obrigações constituídas sem contrato. Quanto às obrigações convencionais, elas derivam primeiramente desta grande vontade unilateral, que se chama a autoridade pública, e, a seguir, da pequena vontade unilateral de cada um dos contratantes que, à semelhança daquele comando exterior e superior, — e aliás conforme à latitude que o subjuga, — comanda-se a si própria, por sua vez senhora e serva, e comanda-se a obedecer ao comando de outrem. Aí está toda singularidade do contrato: ele é o gosto de comandar-se, nascido, por imitação, do hábito de ser comandado; ele é, não apenas o comando reflexo, mas o comandamento recíproco[191], voluntariamente sofrido em conformidade com uma vontade exterior, sofrida involuntariamente[192].

Mas, — eu convenho, — tudo isso não explica em nada a idéia da obrigação. É necessário descer mais para encontrar suas raízes. De onde vem o comando, exterior ou interior, a virtude obrigatória que ela, obrigação, reveste perante nossos olhos em certos casos, não em todos os casos? A idéia da vontade unilateral não é mais explicativa, no fundo, do que a velha noção do contrato. No momento em que se diz que minha própria vontade me obriga, esta vontade não é mais minha; ela me é tornada estranha; de sorte que é exatamente como se eu recebesse uma ordem de outrem. Receber do pater familias, do cônsul, de um ministro, de um guarda campestre, uma ordem que me desagrade, ou receber de meu eu passado uma ordem que não me desagrade menos: Onde está a diferença no que concerne ao meu interesse atual? Meu querer passado, que não é mais meu, mas que, no entanto, se impõe a mim, e que me pode ser oposto, é comparável à vontade dos ancestrais que dirige os vivos. Ora, quando se deve, e por que se deve obedecer a um comando, seja interior, seja exterior? Eis, — eu repito, — a questão.

IV. Obrigação nascida da combinação de uma vontade com um juízo.

Leis de causação e fases da evolução a distinguir. Silogismo intelectual, lógico, e silogismo prático, teleológico, moral.

 

Não a resolveremos jamais, se não quisermos ver aqui os desejos, as vontades presentes. Existe ainda outra coisa: as crenças, as opiniões. E isso não de uma vontade, não do encontro de duas vontades, mas antes da combinação de uma vontade com um julgamento, de um desejo com uma crença que nasce da idéia do dever de ação, germe essencial da idéia da obrigação.  Esta combinação se opera em virtude de um silogismo despercebido de todos, tanto ele nos é familiar a todos, e que se pode chamar silogismo moral. Permita-se-nos entrar aqui em alguns breves desenvolvimentos. A teoria das obrigações é, em jurisprudência, aquilo que a teoria do valor é em economia política: o problema central de onde escoam, por todos os declives, as discussões, o que não quer dizer o ponto de convergência necessário e inevitável de todas as evoluções. As obrigações são concebidas pelos jurisconsultos árabes[193] de maneira completamente diferente que pelos jurisconsultos romanos, a despeito da própria influência exercida por estes sobre aqueles na Ásia menor; e nada autoriza afirmar que a elaboração jurídica dos primeiros, tanto ela foi prolongada, tanto foi julgada fechada, acabada e perfeita, a partir do segundo século da Hégira[194], seria mais aproximada do pensamento dos segundos. Não é mais certo, senão provável, que, se as especulações embrionárias de Xenofontes[195] e de outros filósofos gregos sobre a menagem [196], se desenvolvessem a ponto de fundar uma ciência da Economia Política tão elaborada quanto a nossa, eles teriam sido conduzidos, através dos meandros de seu pensamento sutil, a uma noção de valor idêntica àquela de Adam Smith ou de Bastiat[197]. Mas não é menos exato pretender que não existe, que não pode haver existido, em um sentido muito geral, senão uma só e mesma teoria verdadeira das obrigações, que uma só e mesma teoria verdadeira do valor, como não é possível senão uma só e verdadeira fórmula de atração astronômica. Não se nos enganamos, supondo que o caráter essencial de uma teoria física, se ela é verdadeira, é o de aplicar-se, de maneira idêntica, a todas as evoluções astronômicas ou geológicas mais dessemelhantes; e não se nos enganamos tampouco, ao pensar que o caráter essencial de uma teoria filosófica das obrigações, ou de uma teoria filosófica do valor, se forem justificadas, é o de aplicar-se a todas as evoluções sociais, quaisquer que elas sejam[198].

Há, com efeito, duas espécies de leis às quais se é levado a confundir em nossos dias: as leis de causação e as pretendidas leis da evolução. As primeiras são, por sua vez, precisas e sem exceção; verificáveis em todos os tempos e em todo lugar, elas dão trato a similitudes rigorosas de produção, os mesmos fenômenos se reproduzem, quando as mesmas condições se produzem. As segundas são sempre muito vagas, se se quiser que elas se adaptem à totalidade, ou à quase totalidade dos casos, ou, se se as quiser precisar, por pouco que seja, elas são corroídas de exceções. Infelizmente a confusão destas duas espécies de regras tão diferentes favoreceu à ambigüidade abusiva da palavra lei. De sorte que, com medo de anular o alcance universal das primeiras, acreditamo-nos obrigados, muitas vezes, a universalizar erroneamente o alcance das segundas, ou bem vice-versa. Contudo, foi provado que os sistemas solares, esparsos nos céus a partir de sua nebulosa inicial até seu término ignorado, evoluem muito diversamente, e que a fórmula geral de sua evolução têm-se por permanecer extremamente desprezível e quase insignificante. E isto abalaria de algum modo o mundo da verdade das leis mecânicas e da lei newtoniana? E as leis físicas e químicas, não são elas reputadas imutáveis, ainda que a evolução dos seres vivos, regidos por elas, contenha o que há de mais variado de espécie à espécie, e mesmo de indivíduo a indivíduo? É irritante que, em ciências sociais, não se tenha visualizado esta distinção; em economia política sobretudo. Não é sem razão que os fundadores desta ciência têm procurado, na ordem destes fatos, regras comparáveis às leis físicas, por sua constância e sua universalidade. Não a têm nomeado, desse ponto de vista, “a física social”? A teoria do valor, se ela fosse formulada em termos psicológicos, – porque a psicologia é, para as sociedades, o que a química é para os seres vivos, — teria o caráter das leis de causação. Mas, confundindo-as com estas, os economistas emitem outras que não apresentam senão uma verdade circunstancial. Em nossos dias, por conta da moda darwiniana e spenceriana, esforça-se por dar uma cor exclusivamente evolucionista às leis econômicas; e não se percebe que se tem desvirtuado, dessa sorte, o sentido essencial de algumas dentre elas; elas cessam de ter uma significação qualquer, se não tiverem uma significação universal. As transformações industriais e comerciais, como as transformações religiosas, poéticas, artísticas, lingüísticas, conformam-se a certos tipos, vagamente formuláveis, de evolução, mas ao mesmo tempo há, em tudo isso, outra coisa de formulável e com mais precisão.

De modo semelhante, não existem, sob as transformações jurídicas cambiantes, verdades jurídicas estáveis? Eu creio que cabe à teoria jurídica das obrigações formulá-las. Mas, para dizer a verdade, em as formulando, se nos afastaríamos muito dos hábitos de linguagem e de pensamento particulares aos juristas. É aos lógicos, de preferência, — se não me engano, — que se deve perguntar. Sua antiga e sempre verdadeira teoria do silogismo poderia, — parece-me, — ser estendida e completada de certa maneira que permitisse fazer entrar, como corolários, a teoria do valor, a teoria das obrigações e, talvez mesmo, outras teorias desse gênero, aplicáveis a outros aspectos das sociedades.

O silogismo[199], procedimento lógico por excelência, não serve apenas de regra ao julgamento; ele serve também de regra à vontade.  Existe o silogismo intelectual, o único de que nos ocupamos, aquele que combina, não duas proposições, como se diz muito vagamente, mas duas crenças, variáveis de intensidade, e onde o grau de intensidade importa considerar.  Existe o silogismo moral, que combina uma crença com um desejo. — Ora, um e outro chegam a editar, como conclusão, um dever, no sentido mais amplo e mais compreensivo da palavra; dever de afirmação num caso, dever de ação em outro caso. Eu creio que o Alcorão[200] é infalível: ora, eu creio que, de acordo com o Alcorão, o Sol gira em torno da Terra; logo, eu devo afirmar, quer dizer, esforçar-me por crer, que a Terra não gira em torno do Sol. Eis o silogismo intelectual dos fiéis. Eu creio que existe uma tal concatenação matemática entre a paralaxe[201] de um objeto e sua distância; ora, eu creio que a paralaxe do Sol é tal; logo, devo afirmar, aplicar-me em crer, que a distância do Sol é aquela que indica a concatenação matemática em questão. Eis o silogismo intelectual dos sábios, e também dos iletrados ao longo de toda a vida. — Eu desejo obter minha salvação; ora, eu creio que, se eu não jejuar na Quaresma, não me salvarei; logo, eu devo jejuar na Quaresma, quer dizer, tratar de querê-lo. Eu desejo ter em meu jardim uma fonte que me falta; ora, eu creio que em tal local existe um lençol d’água subterrâneo; logo, devo cavar um poço, constranger-se a tomar esta decisão. Eis um silogismo moral, sob sua forma religiosa ou profana.

Mas, enquanto não se levarem em conta os graus de crença ou os graus de desejo combinados assim, a conclusão desses raciocínios elementares, inconscientes muitas vezes, parece ser quase tão insignificante quanto àquela do silogismo das escolas. Ela não adquire seu relevo verdadeiramente instrutivo senão à vista desses graus essencialmente desiguais, variáveis de zero ao infinito, da certeza à dúvida completa, da paixão à indiferença absoluta. Porque é apenas na razão dessa desigualdade extrema que o confronto, tão freqüente, tão habitual, de dois silogismos intelectuais ou morais na alma de um homem, onde suas conclusões, conduzidas por caminhos diferentes, ora se contradizem, ora se confirmam, não sendo sempre um choque desestruturador no primeiro caso, nem um acoplamento estéril no segundo. A lógica clássica nada nos diz desses combates ou dessas uniões de silogismos; e ela faz bem, porque é impotente para extrair desses choques íntimos, a não ser a mútua destruição dessas duas conclusões contraditórias, supostas ambas de força igual. Quanto às duas conclusões conformes uma à outra, sua mútua confirmação nada tem de mais interessante, se supusermos, como se faz implicitamente nas escolas, que uma e outra estão absolutamente certas.  O infinito multiplicado por ele mesmo não aumenta. — Ao contrário, demo-nos ao trabalho de observar que a intensidade dos deveres de afirmação e de ação, destituídos de nossas crenças e de nossos desejos, participa de sua desigualdade, que ela aumenta ou diminui, como essas duas qualidades mentais, em contínuo movimento do alto ou de baixo, e que ela é rigorosamente determinada pelo grau destas. A partir de então, ser-nos-á fácil compreender que, quando duas conclusões, dois deveres se contradizem, o dever menos intenso, o menos fortemente sentido, é o único destruído ou paralisado, o outro lhe sobrevive, embora diminuído; e que, quando dois deveres se confirmam, a intensidade de cada um deles é multiplicada pela do outro. Não posso entrar aqui nos detalhes sem fim dos anexos que a introdução desse ponto de vista acrescenta ao silogismo ordinário; necessárias complicações que têm por efeito restabelecer a utilidade prática, o uso habitual e constante desse pretendido instrumento escolar. É-me suficiente dizer, no momento, que tudo o que tende a fazer elevar ou baixar o nível da crença ou o do desejo, na maior ou na menor, influi sobre a intensidade do dever concluído. Se, para retomar um dos exemplos indicados mais acima, meu desejo de ter água em meu jardim se aviva (por conta de uma longa seca; de conversações com agrônomos, etc.), e que minha crença na existência de um lençol d’água subterrâneo em meu jardim vem a crescer também (pela visita de algum hidrólogo ou pela leitura de certas obras), eu sentirei mais fortemente meu dever de cavar um poço. Pode ocorrer que esse desejo enfraqueça, enquanto essa crença se fortifica; ou que ele se fortifique, enquanto ela enfraquece; e, se houver compensação entre essas variações de sentido inverso, eu sentirei o dever do qual se trata com uma intensidade que não varia nada.

Mas é de notar um caso singular. É aquele onde, no silogismo da atividade, a maior[202] é representada por um desejo de intensidade tão superior a qualquer outro, tão soberano, tão fixado em residir no coração, que se torna quase inconsciente e age sem se mostrar, tanto mais irresistivelmente, à maneira de um déspota invisível. Tal é o desejo de salvação no cristão, de gloria na Grécia de Péricles, de riqueza em muitos dos modernos, a preocupação com a honra entre as pessoas honestas. Nesse caso, de maneira conforme ao princípio colocado mais alto, o dever de ação é sentido, de qualquer sorte, infinitamente. Ele reveste-se de um ar absoluto, imperiosamente dominador.  Eis aí o dever moral propriamente dito, dever puro e simples que perdeu o sentimento de seu parentesco com a relação de finalidade de onde deriva todavia. — E isso não ocorre unicamente no silogismo de atividade. É no silogismo do pensamento que o caso especial se realiza quase. Seja no fiel, seja no homem desprendido de dogmas, realiza-se nas crenças infinitas e inextirpáveis, na fé nas Santas Escrituras em um, na fé no testemunho dos sentidos em outro. Daí, para o primeiro, quando ele deduz dos Livros Sagrados uma conseqüência, o dever absoluto de a afirmá-la, ou, quando reconhece que um principio é contrário aos Livros Sagrados, o dever absoluto de negá-lo. Daí também, para o segundo, quando uma idéia se apresenta a ele como a conclusão de uma experiência feita sob os seus olhos, o dever imperioso de adotá-la. — A analogia dessas duas singularidades notáveis em dois silogismos comparados é tal, que não se nos devemos assombrar de ver os jurisconsultos árabes inscreverem, no cabeçalho de sua lista de obrigações humanas, a obrigação de crer em tudo o que se deduz da palavra do Profeta. A principal obrigação canônica dos sectários de uma religião qualquer, de um partido político qualquer, não é mesmo a adesão a certas idéias? Somente não mais existe a lealdade de fazer figurar nos códigos a fé obrigatória ou interdita ao lado da ação comandada ou proibida[203].

 

V. Explicação que faz derivar ao mesmo tempo de uma mesma fonte, a saber, de uma teoria completa e precisa do silogismo, uma teoria do valor e uma teoria da obrigação, do mesmo modo nítidas e gerais.

 

Eis que voltamos ao nosso assunto. A obrigação jurídica não é senão uma espécie da qual o gênero é uma obrigação moral, espécie ela mesma de um gênero mais vasto, formado, — já o dissemos, — pelos deveres de finalidade. Quando eu me sinto obrigado a alguma coisa, é sempre porque eu desejo obter uma vantagem ou evitar um prejuízo, e porque acredito atingir este objetivo, fazendo alguma coisa. Mas esta obrigação moral não é jurídica, senão quando ela entra nas categorias de deveres onde o legislador, anônimo ou nominado, costume ou rei, tradição ou maioria parlamentar, sente, mais ou menos, a obrigação de sancionar, porque ele deseja tal ou qual fim designado pela vontade geral, e porque ele acredita útil, desse ponto de vista, consagrar essa natureza de deveres, ter à mão sua execução.

Esta explicação tem a vantagem de aplicar-se igualmente a todas as espécies de obrigações jurídicas, sejam elas involuntárias e formadas sem contrato, ou voluntárias e contratuais, ou voluntárias e unilaterais. Por exemplo, minha obrigação de servir sob a bandeira e de pagar minhas contribuições, cargas impostas por meu próprio nascimento e sem meu consentimento, fundamenta-se sobre estes dois silogismos, um deles feito por mim: “Eu desejo o bem de meu país. Ora, eu acredito ser-lhe útil assim. Logo, eu devo agir assim.” Ou bem: “Eu desejo não ser atingido por uma condenação judicial. Ora, eu acredito que seria perseguido correcionalmente, se eu me abstivesse dessas patrióticas corvéias. Logo, não devo abster-me”. E outro feito pelo Estado: “Eu quero estar armado para fazer-me respeitar por meus vizinhos. Ora, eu creio que, sem a circunscrição militar e sem os impostos atuais, eu estaria desarmado. Logo, devo constranger os cidadãos ao serviço militar e ao pagamento de impostos.”

Por exemplo ainda. Uma casa é vendida por dez mil francos a crédito. Antes da conclusão deste contrato, cada uma das partes sente-se no dever de concluí-lo, porque cada uma delas diz: Eu desejo mais adquirir dez mil francos (ou esta casa), do que arrepender-me de me despojar desta casa (ou de dez mil francos). Ora, eu creio que, mediante a cessão desta casa (ou deste dinheiro), haveria este dinheiro (ou esta casa). Logo, devo fazer este negócio. — Mais uma vez o contrato formado pelo assentimento dessas duas conclusões silogísticas, a obrigação moral de executá-lo, para o comprador como para o vendedor, fundamenta-se sobre um silogismo diferente: “Eu não quero ser desonrado aos olhos de meus semelhantes ou aos meus próprios olhos. Ora, eu acredito que o seria, se não me ativesse às minhas contratações. Logo, eu devo ater-me a elas (quer dizer, entregar a casa ou pagar o preço).” Esta obrigação é jurídica, porque o assentimento destas duas conclusões está de acordo com a conclusão seguinte, tirada pelo legislador: “Eu quero a paz pública, eu quero a prosperidade geral. Ora, eu creio que a manutenção forçada das convenções desse gênero (cumpridas em certas condições, como adiante será dito) pode evitar conflitos entre os cidadãos, e porque isso assegura, na média dos casos, a maior vantagem para todos. Logo, eu devo impor à força o seu cumprimento.”

Mesma explicação para as obrigações nascidas de uma promessa ainda não aceita, seja porque ela se endereça ao público, seja porque ela se endereça a um deus, a um morto, a um ser imaginário ou relegado a uma majestade silenciosa, numa misteriosa obscuridade. O industrial, que lança prospectos ou oferece sua mercadoria com abatimento, ao arrepender-se a seguir,  diz a si mesmo: “Não quero prejudicar meu crédito. Ora, eu acredito que o depreciarei, não executando minha promessa. Logo, devo ater-me a ela.” E o legislador, neste caso, onde, sob forma mais ou menos desviada, transforma esta obrigação moral em obrigação jurídica: “Não quero prejudicar o crédito público, condição da prosperidade geral. Ora, eu acredito que ele seria abalado pela não execução impune destas ofertas comerciais. Logo, eu devo sancioná-las.” Sob os imperadores romanos, sob os Severos, por exemplo, um armador fez voto a Mercúrio de erguer-lhe um pequeno templo à beira-mar, se o seu navio regressasse com segurança ao porto.  Este voto criou, aos olhos dos pagãos, uma obrigação que, depois de não haver sido, por longo tempo, senão uma obrigação moral, cuja violação desonraria seu autor, terminou por receber a consagração da lei civil. Bem mais, essa obrigação passou aos herdeiros daquele que se obrigou desse modo.  Dir-se-ia seriamente, — como se tem ousado, — que a força obrigatória do voto lhe vem daquilo que é “reputado como um contrato com os deuses”? Mas, aos olhos dos pagãos, eles mesmos, não é verdadeiro que os deuses hajam, necessariamente, dado seu consentimento; e, aos olhos dos cristãos, é demonstrado que os deuses, esses demônios impuros, deram e fizeram conhecer sua adesão a essa promessa, na qual o armador havia bem contraído uma ligação com eles. O voto não seria obrigatório moralmente. O legislador sectário do Cristo não teria a idéia de sancioná-lo civilmente. Não. Se o nosso armador se sente obrigado, é porque ele quer o retorno de seu navio e acredita no poder de Mercúrio para o efeito de seu voto; e, se sua contratação tem efeitos jurídicos, é porque o legislador pagão, desejoso da segurança pública, e persuadido, como quase todo mundo em torno dele, de que um voto piedoso, se fosse violado, atrairia a cólera dos deuses sobre todo o Império, sente-se no dever de impedir essa calamidade.

Isso é tão verdadeiro que, se antes do retorno do seu navio, o armador em questão se convertesse ao cristianismo e cessasse de acreditar na existência ou no poder de Mercúrio, ele cessaria de estar moralmente obrigado.  Produzir-se-ia então esta grave anomalia: ele permaneceria juridicamente obrigado a fazer o que sua consciência lhe interditara cumprir. Mas, quando o inconveniente social desses conflitos entre Moral e Direito, flagelo reservado aos tempos de crise religiosa, houver atraído a atenção do próprio legislador, ele não faltará em dissipá-los, subordinando aqui, e em toda a parte, a consagração civil das obrigações ao seu valor moral. — Na hipótese inversa da precedente, quer dizer, no caso em que o público, e também o legislador, convertem-se à nova religião, ou a novas idéias filosóficas, a obrigação moral de cumprir seu voto subsistiria para o fiel que permanecesse atrelado às suas velhas crenças, mas a força jurídica não se acrescentaria mais.  Tudo isso se explica da maneira mais natural do mundo, assim como muitas outras dificuldades da mesma ordem, segundo nossa maneira de ver.

Explica-se do mesmo modo, — pela natureza e pela energia variáveis do objetivo geral que o legislador perseguiu, e pela natureza e energia, não menos variáveis, das opiniões que lhe serviram de guia, — a diversidade das legislações relativamente à proporção das obrigações morais consagradas nas relações de Direito. Explica-se, de modo semelhante, sua menor diversidade, sua relativa uniformidade no que concerne às causas de nulidade das contratações civis. Os vícios que as atingem são de duas espécies: aqueles que dão trato à maior, e aqueles que dão trato à menor do silogismo moral do obrigado. A maior é viciada, quando o desejo que ela exprime não emana da própria pessoa que se obrigou, de seu caráter, mesmo de seus caprichos, espontaneamente manifestados do fundo de suas idéias e tendência habituais e normais, mas foi sugerido de fora, por captação, por abuso de autoridade ou por um acesso de loucura. A menor é viciada, quando a crença que ela contém é, não o resultado de experiências, de leituras, de viagens, das circunstâncias morais onde é formada a inteligência do indivíduo que se obriga, mas o efeito de uma mentira interesseira ou de um erro devido a uma causa doentia, tal como uma ausência de memória subseqüente a uma febre tifóide ou a um enfraquecimento senil. É evidente que estas alterações psicológicas nas contratações, – sempre quase as mesmas entre todos os homens, e fáceis de prever pelos legisladores de todos os países, — retiram, da contratação assim formada, na média de dos casos, a vantagem social que apresenta o conjunto das contratações normais.

Também assim as obrigações morais, ou de preferência, em geral, imorais, proibidas pela legislação, tais como as dívidas de jogo às vezes, os estatutos das associações criminosas, etc. A lei opõe-se então, como toda a sua força, à execução dessas contratações julgadas por ela contrárias ao interesse público. É que existiu, nesse caso, precisamente o inverso da consagração jurídica, conflito e não acordo de conclusões entre o silogismo moral do obrigado e aquele do legislador.

Mas, na realidade, o trabalho mental que se opera, seja entre o obrigado, seja entre o legislador, é mais complexo do que acabamos de dizer.  No espírito, seja de um ou de outro, de ordinário, não apenas um único silogismo é formado, mas um combate ou um concurso de silogismos. E é isso que vai mostrar a íntima relação da teoria jurídica das Obrigações com a teoria econômica do valor. — De uma parte, não é nunca sem hesitação, sem oscilações íntimas, que o obrigado se decide a contratar ou se resigna a aceitar sua obrigação. Ele deve, rapidamente, ou por muito tempo, contrabalançar sua deliberação, as vantagens que lhe advirão de sua obrigação com os sacrifícios que lhe vão custar, ou seja, deve confrontar desejos com desejos, crenças com crenças. Um homem que hesite em trocar um cavalo por um quadro, faz pequenos raciocínios interiores, por onde conclui, ora que deve, ora que não deve fazer a troca; ou seja, ora seu cavalo vale menos que o quadro, ora vale mais. “Eu gosto muito de equitação e acredito que dificilmente substituirei este cavalo. Logo, não devo trocar. — Eu amo muito as telas desse mestre e acredito que, se perder essa ocasião, não a encontrarei mais. Logo, devo trocar meu cavalo por ela.” A luta se estabelece entre estas duas conclusões opostas, engendradas por umas ou outras premissas; e toda idéia, toda influência superveniente, que tiver por efeito fazer baixar ou elevar o nível do desejo ou da crença na maior ou menor de cada um desses silogismos, fortificará ou enfraquecerá tal conclusão, elevará ou baixará o valor aparente de tal objeto, decidirá enfim o resultado da batalha.

De outra parte, o legislador, quando consagra uma obrigação, quando edita uma disposição qualquer que cria uma obrigação de fazer ou de não fazer, sabe muito bem que intervém na mistura de interesses opostos, para favorecer alguns a despeito de outros. Ele, pois, ele também, escolhe e sacrifica, pesa valores relativos, dando aqui, à palavra de valor, um sentido, não individual como a toda hora, mas geral e, em aparência, impessoal, ainda que o valor, em sentido superior, não seja, no fundo, senão a resultante de inúmeras estimativas pessoais silogisticamente concluídas. — Se se tratam de contratos? Ele espera tanto quanto possível e, salvo o caso em que o Estado é, ou se acredita, interessado em proteger uma das partes contra a outra, por exemplo, no casamento, a igualdade das vantagens obtidas e dos sacrifícios consentidos pelos dois no conjunto das convenções; e, se ele, Estado, acredita que uma cláusula, que uma particularidade qualquer faz geralmente, e com exceções, pender a balança de um único lado, ele deve anular o contrato atingido desse vício. Existe, na consagração das convenções livremente formadas, uma presunção de equivalência de vantagens, de equação de valores. Esta é a razão pela qual se dá força de lei a essas ordens recíprocas que se endereçam às partes contratantes, como se tais ordens emanassem dele, Estado. E a prova de que esta presunção está bem no fundo de seu pensamento, é que, quando ela é formalmente contraditada por certos fatos, ele anula de fato o contrato. Ou bem, por antecipação, ele coloca regras às quais ele espera que os contratantes devam conformar-se; e estas regras são aquelas que, por sua vez, parecem-lhe as mais próprias a impedir a exploração de uma parte pela outra. É nos contratos especiais, — venda, locação, empréstimos a juros, etc., — que estas regras se multiplicam e tem manifestamente esse objetivo (por exemplo, limitação legal da taxa de juros). — A convenção particular que tem meu casamento é consagrada pelo legislador com restrições que, em geral, possuem um outro desígnio aqui, ele não deseja, senão secundariamente, a igualdade de vantagens que podem procurar os esposos. Sua preocupação maior é o interesse do Estado que exige, a todo preço, mesmo ao preço da sujeição da mulher, ou da indissolubilidade tirânica do liame matrimonial, a procriação de novos cidadãos. — Ele deixará aliás, e deverá deixar, uma margem de liberdade mais ou menos ampla à vontade dos contratantes, segundo as aspirações e as opiniões mais ou menos liberais de seu país e de seu tempo, partilhadas sempre por ele mesmo. Em Direito israelita, uma venda de bens móveis está rescindida por causa da lesão de um sexto do preço; entre nós, esta causa de nulidade não existe para as vendas de bens móveis, porque ela seria um entrave irritante à nossa grande atividade comercial; e, para os imóveis, a lesão que dá abertura ao direito de rescisão deve ultrapassar os sete doze avos do preço de venda. Em suma, nas regras sobre os contratos, o legislador não perde jamais de vista o quadro dos diversos valores, tal como ele se apresenta a um dado momento e em dado lugar, e ele deve tê-lo sempre presente, para impedir que um contratante explore o outro além de uma certa medida, determinada ela mesma pelo estado da opinião. Não é preciso senão pesar, consciente ou inconscientemente, as utilidades e as privações, assinar limites ao jogo de vontades que, para adquirir as utilidades esperadas, permitem  privações freqüentemente desproporcionais. — E se se tratarem de obrigações formadas sem contrato? É o mesmo problema. Não existem ainda para a autoridade legislativa senão interesses indiferentes a avaliar.

Do mesmo modo, pois, as modificações aportadas ao sistema de valores têm por efeito, — nós o vimos, – modificar a escala dos delitos e das penas, transformar o Direito criminal: do mesmo modo, elas têm por conseqüência, com o tempo, a reforma da legislação civil. Elas comandam fazer interditar certas coisas permitidas outrora, ou comandam permitir certas outras proibidas antigamente. As proibições ou os entraves muito tempo opostos à venda de bens rurais foram suprimidos em nosso regime moderno, e foram mesmo substituídos, em nossos dias, pois leis tais como o Ato Torrens, que favorecem as alienações de imóveis. É que a estabilidade hereditária das propriedades em cada família tinha, aos olhos de nossos ancestrais, um valor de primeira ordem, pouco a pouco diminuído, e, hoje, a mobilização dos imóveis, por assim dizer, parece ser devida, ao contrário, a uma vantagem eminente. É assim que o estrangeiro, o adquirente vindo de fora, era reputado inimigo, e agora é hóspede amado e mimado, o modelo copiado. — Entre o interesse do credor em fazer penhorar todos os bens móveis ou imóveis do devedor, e o interesse do devedor em torná-los impenhoráveis, que fará a lei? Isso depende de qual dos dois lhe pareça valer mais, à razão das necessidades sentidas em sua época e dos juízos acreditados sobre os melhores meios de as satisfazer. Entre os georgianos, de acordo com o velho direito, e também entre muitos outros povos bárbaros[204], a penhora poderia atingir todos os móveis e, à sua falta, a própria pessoa do devedor. Mas os imóveis de família eram impenhoráveis. Entre nós, onde a sociedade tornou-se mais ambiciosa de progresso que de duração, e persuadiu-se de atingir melhor seu objetivo pela proteção do indivíduo que pela conservação da família, todos os imóveis podem ser penhorados, mas não todos os móveis: as ferramentas profissionais são excetuadas e alguns móveis indispensáveis; e a pessoa do devedor, o mais insolvente, é liberada de todo constrangimento. — Entre os ossetos do cáucaso, tudo pode ser vendido na grande casa comunal, salvo o caldeirão de cobre e a corrente de ferro que o suspende ao fogão, objetos sagrados, espécies de fetiches domésticos aos quais se atribui o mais alto valor social, porque eles são reputados necessários à perpetuidade das comunidades familiares, sonho supremo desses corações simples.

Segue-se disso que, se uma boa teoria do valor nos informa as causas gerais que fazem variar continuamente o sistema de valores, o economista indicaria por aí, ao legislador, em que sentido, quando essas causas funcionam, deve ser remanejada a legislação[205]. Ora, não é manifesto, de acordo com o que precede, que essas causas, em última análise, são as invenções, as descobertas, as inovações individuais propagadas pela imitação, cega ou racional, inconsciente ou reflexa? Em definitivo, um objeto vale tanto mais quanto mais se deseja um certo bem, e quanto mais se acredita esse objeto capaz de produzir esse bem[206]. Mas o que é então que fortifica e generaliza um desejo, que o superexcita e o propaga, a não ser aquilo que o satisfaz mais abundantemente, aquilo que coloca sua satisfação ao alcance de um maior número de homens, ou, dizendo de outro modo, uma idéia de inventor? A invenção da pólvora fortificou e difundiu a sede de conquistas militares; a invenção da imprensa, a paixão pela leitura; a invenção das estradas de ferro, a febre da locomoção. E o que é que faz aumentar e difundir uma crença, a não ser a ação prestigiosa de um apóstolo original, ou a magia do estilo de um escritor superior, ou o ensinamento de um sábio esclarecido pela descoberta de fatos? Sem a invenção das estradas de ferro, o legislador francês do século XIX não teria, sem dúvida, editado a expropriação por causa da utilidade pública. Há cem anos, julgava-se o direito de propriedade mais respeitável que a necessidade de deslocamento rápido, e sacrificava-se este àquele. No presente, faz-se o sacrifício contrário, porque a mania da locomoção, graças à invenção da locomotiva, foi decuplicada, centuplicada, e porque as estatísticas, habilmente imaginadas sobre a comparação entre os acidentes de diligência e os de estradas de ferro, recompensou e vulgarizou a confiança do público na segurança deste último meio de transporte, de onde a conclusão de que a lei deveria autorizar a passagem das vias férreas através dos domínios de proprietários eventualmente recalcitrantes. — O que importa sobretudo observar são as variações de intensidade ou de direção aportadas por um séquito de grandes homens ao grande desejo coletivo de uma nação, à sua paixão nacional que subordina naturalmente todos os fins individuais, tritura-os, dobra-os ou emprega-os. Desde Maomé, que suscitou em todo seu povo o sonho ardente da propaganda religiosa à mão armada e a fé na vitória, esse fanatismo e essa fé declinaram sob certos califas e reacenderam sob outros, graças a reformadores inspirados; e, segundo essas vicissitudes de almas, a obrigação jurídica de participar da Guerra Santa, de cumprir a peregrinação à Meca, de jejuar durante o Ramadã[207] era inscrita em primeiro ou segundo lugar, mas bem raramente em último, na lista dos deveres mais sagrados.

Seria fácil, mas inútil, multiplicar os exemplos. Já disse o bastante para justificar minha proposição, que a teoria das obrigações e a teoria do valor, em correlação íntima uma com a outra, ligam-se, ao mesmo tempo e com muitas outras, à teoria do silogismo devidamente renovado. A lógica, — vê-se, — uma lógica rigorosa, governa os fenômenos psicológicos e os fenômenos sociais, vistos sob um certo ângulo, como a mecânica rege os movimentos físicos. E mesmo, para falar com propriedade, a lógica assim estendida não é outra coisa senão uma mecânica mental e social, da qual as regras, tão rigorosas quanto universais e permanentes, regem os encontros dessas forças concorrentes ou opostas que chamei crenças e desejos[208], verdadeiras quantidades íntimas suscetíveis de crescer e de diminuir indefinidamente, sem mudar de natureza, ainda que mudando de objeto, e que, adicionadas umas às outras, subtraídas umas às outras, combinadas umas às outras, explicam todas as revoluções morais, portanto, políticas e jurídicas, da humanidade.

Vê-se, a história das sociedades parece-nos, a nós mesmos, submissa a leis, e a leis muito precisas. Mas, vê-se também, essas leis não perturbam em nada a rica diversidade das evoluções sociais, como certas fórmulas estreitas que têm a pretensão de canalizar esses grandes rios, esses Renos, esses Nilos, esses Mississipis caprichosos e selvagens. Nossas leis, ao contrário, afirmam a necessidade deste capricho e desta exuberância, a necessidade, por assim dizer, dessa liberdade.  Porque é impossível não se constatar a importância capital concedida mais acima, na produção das forças sujeitas à jurisdição dessas regras, ao acidente individual do gênio, à iniciativa pessoal. Eu não pude citar senão poucos nomes de inventores ilustres. Mas quem de nós não inventa e não inova em algum grau e não é iniciador obscuro, de algum modo, ao mesmo tempo que imitador em todo o resto de sua conduta? Quem não deixa atrás de si, num círculo mais ou menos amplo ou restrito, um hábito novo no que lhe toca, uma modificação despercebida de linguagem, de maneiras, de idéias, de sentimentos? Nada está perdido de tudo aquilo que jorrou de nosso coração um dia, e cuja misteriosa fonte, escondida nas profundezas de nossa originalidade irredutível, escapa à sonda do psicólogo. O sotaque parisiense, no momento atual, é o eco sintético de todos os timbres de voz que têm caracterizado cada um dos habitantes de Paris após inumeráveis gerações; nossa espirituosa construção gramatical, em nossa época, é a síntese de incalculáveis gêneros de espírito, todos inesperados à sua aparição e dotados de um encanto inteiramente próprio; nossa pintura francesa, nossa poesia francesa contemporânea são um belo novo onde se condensam todos os belos novos sucessivamente descobertos por gerações de poetas e de artistas; nosso ideal nacional ou humanitário, a cor de nosso patriotismo ou de nossa filantropia, de nosso próprio pessimismo ou de nosso misticismo, são herança acumulada de inumeráveis formas de devotamento, de sofrimento ou de amor, inventadas por alguma alma particular, reputada passageira, e propagadas  cada uma por sua vez. Cada aspecto social, cada estado social não é, de qualquer sorte, senão a integração de infinitesimais invenções, de infinitesimais novidades aportadas por seres onde cada um, em verdade, foi único em si, sem falar dos grandes personagens; e eis por que esse estado ou esse aspecto, ele mesmo, não foi senão uma vez e não se o reverá mais; e eis por que não é permitido falar de uma sucessão desses estados ou desses aspectos, porque seria submergir numa corrente banal. Nenhum sociólogo de há dois mil anos, por esclarecido que se o supusesse, teria previsto a fisionomia de nossa época, o gênio da França ou da Alemanha atuais. E toda época tem sua fisionomia, porque nós temos todos a nossa; e toda nação tem seu gênio, porque milhões de homens têm o seu, humilde ou ilustre, latente ou patente.  Existir é diferir. Nossas semelhanças, que o sábio estuda, nossas mútuas imitações, não são senão um meio de pôr em relevo nossa diferença essencial, delícias de artista, única razão de ser de nosso ser. Eis aí aquilo que pertence ao filósofo demonstrar, se ele quiser cumprir sua missão inteiramente, que não é apenas a de sublimar a ciência e destilar a arte, mas combinar, em suas fórmulas, todo o suco de uma com a essência da outra. Para dar contas da própria evolução orgânica, Darwin deveu postular essa floração espontânea e incessante de variações individuais, inexplicável fundamento de suas explicações. A fortiori, toda interpretação da História humana requer esse postulado, cheio de desconhecido e de esperança. Único, ele justifica nosso interesse apaixonado por esse drama sem fim, quotidianamente renovado, e nossos sacrifícios, e nossos esforços infatigáveis para preparar sua ação futura, que permanece sempre um enigma...


 

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Capítulo Sexto
O Direito Natural

O Direito Natural e o Direito das Gentes entre os romanos e os modernos. Razão de ser de sua dualidade e de sua convergência. Ambigüidade da idéia de natureza: relação intra-orgânica e relação extra-orgânica. Benthan e Rousseau. Indeterminação essencial da idéia de Direito Natural.  Exemplos. Direito Internacional. Verificação manifesta de nossas explicações neste ramo do Direito: Mare liberum et mare clausum. Contrabando de guerra. Antinomia da soberania dos Estados e da liberdade dos indivíduos

 

Enquanto se elaboravam as legislações positivas, — o que foi assunto exclusivamente até aqui, — o sonho de uma justiça mais alta, ideal por sua vez, e destinada a ser realizada, ou presumida realizada já, em um longínquo passado, espécie de paraíso terrestre jurídico a descobrir ou a reencontrar, não cessa de martelar o coração do homem. E este belo sonho, cheio de um pressentimento verdadeiro, tem exercido uma ação tão poderosa, esta idéia tem sido, por ela mesma, uma força tão considerável entre aquelas que concorrem para o melhoramento legislativo, que não nos é permitido passar sem nada dizer.

Menos permitido também o que toca à preocupação do “Direito Natural” ou da “Eqüidade”, que pode ser muito considerada, quando atinge um certo grau de acuidade, como uma das fases mais regulares, mais constantes ao seu tempo e à sua hora, das transformações do Direito. Em toda a civilização que chega à sua idade clássica, a concepção do Direito Natural, sob diferentes nomes, formula-se com mais ou menos nitidez: em Roma, já sob Augusto, mas sobretudo sob os Antônios; em Atenas, ao tempo de Platão (As Leis) e dos estóicos[209], cujo adágio era, — sabe-se, — “seguir a natureza”; a Inglaterra, no século XVIII; na França, sob Luiz XIV, quando Domat[210] escreveu seu Droit Civil dans son Ordre Naturel, comparado por Viollet a um desses frios e simétricos monumentos da mesma época, ou às tragédias de Racine. Entre os ingleses, o Direito Natural, ou aquilo que se pode chamar assim, tem por expressão a jurisprudência da Chancelaria[211] que, segundo Sumner-Maine[212], “traz o nome de eqüidade”. Ela repousa sobre princípios relativamente novos “que tendem a suplantar a velha jurisprudência do país, em virtude de uma superioridade moral intrínseca”, quase como a jurisprudência pretoriana de Roma.

Mas os elementos desta “eqüidade” são muito complexos: Direito Canônico (nada de menos natural todavia, em certo sentido, que o espírito cristão); Direito Romano e, a partir do século XVIII, “sistemas misturados de jurisprudência e de moral retiradas aos publicistas dos Países Baixos. As fontes do jus naturale, concebido pelos pretores e pelos grandes jurisconsultos de Roma, são elas menos misturadas? Não. Há primeiro o jus gentium, o direito suposto comum a todas as nações estrangeiras com as quais Roma, estendendo-se, foi forçada a relacionar-se.  À cada extensão dessas relações internacionais corresponde uma modificação, ou uma complicação da idéia que se fazia desse Direito, sorte de terreno sedimentar formado ao pé do rude Direito quiritário por uma seqüência de estratos superpostos, de aluviões jurídicos devidos aos fluxos sucessivos de imitação estrangeira. Mas há também, e sobretudo, a filosofia e a moral estóicas, da qual todos os grandes jurisconsultos romanos, da época em que floresceu a teoria do Direito Natural, estavam impregnados.

Ora, dessas duas inspirações tão diversas que são combinadas nesta teoria, e mesmo opostas em um sentido, qual teve a parte mais ativa? Tem-se exagerado muito, — eu creio, — a importância da primeira às expensas da segunda, ou, de preferência, às expensas das causas que a esta favoreceram. Vê-se, no comércio exterior, a alma da regeneração do Direito Civil, de sorte que o progresso deste último consistiu em estender, pouco a pouco, as relações dos cidadãos entre eles, graças às inovações pretorianas, às regras jurídicas apostas às relações dos cidadãos com os estrangeiros.  Este seria precisamente o inverso do verdadeiro progresso moral e jurídico, que consiste, — nós o sabemos, — em tratar os estrangeiros, num raio que não cessa de crescer, como se tratavam os parentes primitivamente. Mas, antes de admitir irrefletidamente que o progresso do Direito Romano fez exceção a uma lei tão geral, perguntemo-nos se é verdadeiramente em seus contatos com povos exóticos, ou se não é, de preferência, na assimilação, na unificação de inumeráveis povos pela conquista romana, tornada a paz romana, que os jurisconsultos de Roma apuseram a idéia do próprio jus gentium. Com toda certeza, estava a unidade do grande império assentada em seu repouso benfazejo, que permitiu ao ideal da cidade universal, — concebido alguns séculos antes por grandes filósofos, ao tempo de Alexandre, – renascer mais brilhante após César.  O estoicismo de Epicteto[213] e de Marco Aurélio era, — como o Evangelho, mas sob uma forma mais fria e menos arrebatadora, — a extensão do sentimento da fraternidade a todo gênero humano. Eis aí seu caráter eminente aos olhos de todos. E é isto que explica seu eclipse nos longos períodos de guerras, de perturbações, de divisão política e social, e seu retorno fulgurante a cada momento histórico de grandeza e de paz. Se os moralistas estóicos ou cínicos[214] de longa barba tiveram quase o mesmo sucesso, na Roma imperial, entre as classes esclarecidas que serão, mais tarde, entre todas as classes, nos belos séculos da Idade Média, as menos mendicantes, pregadoras de um outro comunismo fraternal, é que já o mundo romano começava a formar, como mais tarde a Europa cristã, uma vasta família aberta. Ora, é sob a influência dominante deste grande fato e desta grande doutrina ressuscitada por ele, que o Direito Natural é precisado e transfigurado, a ponto de tornar-se, na realidade, o contrário do jus gentium de onde é reputada sua origem[215].

Se, com efeito, é colocado, em princípio, que o Direito Natural, do mesmo modo que o jus gentium, compreende todas as disposições legais comuns a todas as nações, e não compreende senão estas, os jurisconsultos do Império deveriam ter dito que a escravidão era essencialmente de Direito Natural. Todos os povos de então, qualquer que fosse sua diversidade sob outros pontos de vista, tinham escravos; nada era mais flagrante que esta similitude. Todavia é notável que os jurisconsultos imperiais, inspirando-se primeiro em sentimentos estóicos, cristãos a seguir, faziam entrar a escravidão no jus gentim, mas a excluíam do jus naturale. A seus olhos, pois, este diferia profundamente daquele. Tinha, por conseguinte, uma outra origem.

Não é menos verdadeiro dizer que os contratos comerciais exteriores favoreceram grandemente, em todos os países, a prosperidade da idéia e o desejo de um Direito mais amplo que o Direito nacional. Em Roma, em Atenas, mesmo na Babilônia foi assim. Mas por quê? Porque estas trocas fizeram nascer, em toda parte, a simpatia pelo estrangeiro, o gosto de tomar exemplo sobre ele e o desejo, enfim, de viver, com ele, em comunhão social[216]. E é unicamente na medida em que esses sentimentos assimiladores foram experimentados, que o jus gentium aproximou-se do jus naturale, a ponto de acabar por parecer não fazer senão um com ele. Mas, no fundo, e malgrado tudo, sua dualidade é tão real, fundamenta-se sobre uma distinção tão profunda, que os desenvolvimentos póstumos do Direito Romano, durante a era moderna, fizeram eclodir sua dessemelhança e produzir sua divergência. Enquanto o jus naturale, de uma parte, passava nas melhores disposições do Direito Canônico, inspirava o Contrato Social de Rousseau e os Direitos do Homem, o jus gentium propriamente dito, de outra parte, suscitava, nos séculos XVI e XVII, o que os modernos chamam também de o Direito das Gentes e que, na realidade, tem mais que um parentesco nominal com seu sinônimo latino. Quando os principais Estados centralizados da Europa ganharam o sentimento de sua nacionalidade distinta e perderam aquele de sua solidariedade comum, sob o cetro de um mesmo papa ou de um mesmo imperador, fez-se sentir a necessidade de dar uma cor jurídica às relações anárquicas desses grandes indivíduos coletivos, desses soberanos independentes, rivais e hostis uns aos outros. Não é surpreendente que se haja, então, imaginado aplicar-lhes as regras relativas às relações entre dois indivíduos de nacionalidades diferentes. E, muito felizmente, o jus gentium, que as regrava, formara-se numa época em que o estrangeiro havia cessado de significar inimigo. Daí o caráter elevado de nosso Direito Internacional, em teoria, é verdade, muito mais que de fato. Porque, na prática, ele é feroz em crueldade, odioso em maldade e em cinismo, e nada parece-se menos aos Direitos do Homem.

Explica-se agora por que, malgrado a íntima conexão histórica do Direito Natural e do Direito da Gentes, eles não puderam fusionar-se completamente. Sumner-Mainne sinalou o fato sem dar-lhe a razão[217]. A verdade é que o Direito Natural, se por aí entendermos a eqüidade, a justiça igual, indulgente e branda, é a generalização de um tipo de relações tomadas de empréstimo às relações interiores dos membros do grupo social primitivo, aos direitos e às obrigações reciprocas de irmãos, de confrades, de concidadãos estreitamente vinculados; enquanto o jus gentium é, ou ao menos tem a pretensão de ser, a fórmula das relações entre os homens pertencentes a grupos diferentes. Aliás, é somente quando as similitudes imitativas, quando os traços de parentesco social se multiplicam entre dois povos, que eles têm a idéia de formular um direito internacional para seu uso. O único fato de reconhecer um direito a estrangeiros e de comerciar com eles denota que eles lhes são desvalorizados. Este é, pois, — eu repito, — um grande erro, mas um erro explicável e escusável, de fazer honra ao comércio e ao jus gentium da nobre a alta concepção do Direito Natural, tal como os romanos nos deixaram. Ela lhes foi sugerida, — tivessem ou não eles consciência, — de dentro, e não de fora, do grupo social, família, tribo ou cidade. Nós reencontramos agora, aqui, o falso ponto de vista que combatemos mais acima, sob tantas outras formas e, notadamente, na explicação histórica da penalidade.

Mas deve-se convir que a expressão Direito Natural presta-se a este equívoco, porque a idéia de natureza é ambígua. O que é natural está em relação exterior com os organismos — concorrência e seleção naturais — ou não está, de preferência, em relação interior, harmônica, hierárquica, finalidade dos órgãos de um mesmo corpo? Não confundamos a associação vital com a batalha vital. É necessário optar. Infelizmente, não se opta: confunde-se[218]. Daí este híbrido que traz o nome de Direito Natural e que, por suas inconscientes inconseqüências, ainda mais que por sua grandeza, foi tão bem feito para agradar ao ecletismo francês, dito espiritualista, da primeira metade deste século. O caráter completamente notável desse Direito, que lhe é tão caro, é o de não ter nenhum, de ser alguma coisa absolutamente insípida e incolor, desprovida do menor átomo de originalidade, ou seja, daquilo que existe, precisamente, de mais natural no homem e nas coisas humanas.

Certamente, é da natureza de um povo, pequeno ou grande, pequeno como uma família ou grande como o Império Romano, ter sua marca original; e, a este título, o direito quiritário, o jus quiritium, malgrado suas asperezas ou, para melhor dizer, na razão de seu próprio caráter pitoresco, era infinitamente mais natural que o jus gentium e mesmo que o jus naturae. Ele o foi, ao menos por tanto tempo quanto persistiram as condições sociais, estreitas e rigorosamente circunscritas, que lhe deram nascimento. Mas, mais tarde, quando mudaram as circunstâncias, graças à expansão de Roma para fora, ele deixou de ser. Produziu-se então um fenômeno que não escapou à sagacidade de Sumner-Maine. Os romanos, no início, desprezavam o jus gentium nascente, malgrado a amplitude da generalidade internacional que eles atribuíram, desde então, às suas disposições; e eles orgulhavam-se das particularidades mais pueris de seu Direito próprio. Mas, pouco a pouco, surgiu-lhes admiração pelas regras julgadas comuns às leis de todos os povos e alguma tendência a zombar de seu velho direito quiritário. Como se pôde operar esta verdadeira revolução moral? Nós já o sabemos. A assimilação gradual dos povos, sua uniformidade acelerada pela conquista, e a mútua simpatia fizeram isso. O caráter geral, — ou suposto tal, — de certas instituições fazia-se desprezar no início, porque geral significava banal e vulgar, tanto que a generalidade dos povos estrangeiros passava por uma barbárie ambiente. Mas, com a desaparição desse preconceito chauvinista, habituou-se a pensar que um povo vale um outro e, por conseguinte, que muitos povos valem mais que um; que as instituições de todos os povos valem mais que aquelas de um só. A autoridade, a superioridade, a soberania do número começaram a impor-se aos espíritos. Porque o prestígio do número é um efeito da assimilação social que substitui, ao aspecto qualificativo dos indivíduos ou dos povos não ainda assimilados, seu aspecto quantitativo, próprio a deslumbrar os sábios antes, e permitir um dia aos políticos a aplicação da estatística e do sufrágio universal. O que quer que seja, quer isto dizer que o mundo romano, mesmo na época clássica, não foi jamais interessado por um Direito sem sabor e sem marca própria? De modo algum. O banal, o não original, não cessara de lhes repugnar, como a toda nação vivaz ainda; e é a título de Direito universal e romano por sua vez, — como se disse mais tarde “Igreja Católica e Romana”, e, seguramente, catolicidade jamais significou banalidade, — é a este título, unicamente, que o Direito Natural foi cultivado com amor pelos jurisconsultos e magistrados de Roma. Não se dirá, — eu penso, — que o Corpus juris, sua obra secular, é um monumento sem estilo. É obra de um gênio, energicamente autoritário, hierárquico, organizador que aspira e que se sobressai em universalizar suas particularidades distintivas. Sente-se, em toda parte, a garra do leão, e sente-se-a também em todos os grandes corpos de Direito, tais como o Direito Canônico e as leis de Napoleão, onde se encarna a mesma pretensão de ter para si toda razão escrita. Não de a sente menos nos sistemas dos grandes escritores, — no Contrato Social ou na Aritmética Moral de Benthan[219], — que acreditaram dogmatizar o Direito racional, outra expressão do Direito Natural.

Venho de comparar Benthan a Rousseau. Não gostaria que se desprezasse o alcance dessa aproximação. Evidentemente, o Direito Natural, tal como o concebe o grande Génevois, como o retorno a um estado de natureza imaginário, a uma quimérica idade do ouro, — é um erro puro e simples. Mas é necessário ver aí também a visão inconsciente de um ideal de legislação futura fundada sobre a preocupação exclusiva do bem público, sobre uma sorte de benthanismo antecipado, como diz Sumner-Maine. Ora, desse ponto de vista, pode-se dizer que o utilitarismo coletivo, do qual o benthanismo foi uma forma particular e bastante estreita, destina-se a servir de fundamento comum às legislações futuras, pois que, inevitavelmente, o progresso das relações sociais deve acabar por dar o sentimento e estimular a necessidade do bem público. Nesse sentido, o sonho do Direito Natural poderia ser muito profético. Mas, ao mesmo tempo, deve-se acrescentar que este bem público, dependente do objetivo geral e das idéias em voga, será sempre muito diversamente perseguido pelas diferentes sociedades. E não se deve esquecer que a construção de um Direito não é somente uma obra de teleologia social, uma conciliação difícil de desejos, de vontades, de interesses, mas também é uma operação de lógica social, um acordo também muito penoso de julgamentos, de idéias, de crenças. Antes de tudo, a elaboração jurídica, — seja entre o juiz e o comentador, seja entre o próprio legislador, — é uma sistematização; ou, — se se quiser, — é a teleologia apresentada sob um colorido lógico. É bastante dizer que, sendo infinito o número de elementos a combinar, seria insensato aventurar-se a predizer qual, dentre as inumeráveis combinações possíveis, é a mais legítima e a destinada a preponderar. Na realidade, o amanhã jurídico será o que forem as invenções a surgir. Ninguém saberia prevê-lo.

Vê-se, pelo que precede, que eu me recuso, — como Sumner-Maine, — a explicar todas as mudanças do Direito pela perseguição suposta desse único fim: a utilidade. A esta teoria muito difundida objetou-se, com razão, que as crenças e os preconceitos têm desempenhado um papel ainda maior que as necessidades nas metamorfoses jurídicas. Ora, em um interessante trabalho sobre Sumner-Maine[220], Icilio Vanni, professor de Direito em Parma, responde que essas crenças e esses preconceitos dos quais se fala dão trato a objetos de esperança e de temor, imaginário ou fundado, não importa, e que, por exemplo, se a fé na divindade do ancestral, o culto do fogo, constituíram a religião da família antiga em nosso mundo indo-europeu, esse culto foi considerado como um simples meio de evitar grandes males ou de obter grandes bens; daí pode-se deduzir que entra também na preocupação utilitária. Em suma, a maneira pela qual a utilidade é perseguida é especificada pelas crenças; mas é sempre a utilidade que é o objetivo. — A  isso eu replico duas coisas. Primeiro, esta especificação de utilidade, pela natureza da crença, é o que nos interessa, porque, até ela, a utilidade permanece vaga e indeterminada. E como é que aquilo que é indeterminado seria determinante? Em especificando a utilidade, as crenças criam necessidades novas que não existiriam sem elas; elas a suscitam menos que as precisam. E isso não é procura de revanche; porque não são as necessidades que dão às crenças sua forma característica; são as percepções ou as alucinações particulares. Há, pois, aí duas fontes distintas. Em segundo lugar, Vanni esquece de dizer-nos, não apenas de qual utilidade ele quer falar, mas ainda da utilidade de quem. Dito de outro modo: Quais são as partes do grupo social, qual é a classe ou a casta cujas necessidades a satisfazer, criadas ou especificadas, como vem de ser dito, são o objetivo perseguido pela legislação? Nós vemos variar, nós vemos crescer esta fração dominante da sociedade no curso da civilização, e está aí a causa mais importante das variações jurídicas. Mas por que esta fração varia e cresce? Eis a questão. E nós nos esforçamos por respondê-la. Em toda parte se nos oferecem, a nós, em uma dada sociedade, a distinção entre a minoria governante e a maioria governada. E a minoria governante, ora não persegue senão sua própria utilidade egoísta, com exclusão daquela de seus súditos, ora faz concessões aos desejos daqueles, mas numa medida muito variável, e que varia segundo os princípios morais em curso, acreditados por uma religião nova ou por uma filosofia em voga. Não é suficiente, pois, dizer que os homens têm necessidades e que eles procuram satisfazê-las para resolver, por este axioma, — muito simples na verdade, mas muito estéril, — os problemas jurídicos de todos os tempos e de todos os lugares. As necessidades não são senão matéria elaborada e transfigurada por formas ideais do espírito.

Voltemos ao Direito Natural. Haveria, malgrado tudo, a temeridade de pedir à idéia desta Eqüidade famosa, — ao sentimento confuso que nós temos e que é o eco de nosso passado jurídico, — a solução das questões práticas e precisas que se colocam aos fazedores de leis? Alguns ecléticos têm tentado, e conhece-se a puerilidade de suas soluções. A menor reflexão é suficiente para mostrar a incerteza incurável e o indeterminismo essencial desta idéia. Dir-me-ão somente qual é a maneira mais “natural” de contar os graus de parentesco? Se a representação é natural ou não? Se os colaterais da linha paterna devem ou não devem “naturalmente” ser preferidos àqueles da linha materna? Seria natural, parece, preferi-los e dar, em toda parte, em geral, a preferência ao masculino sobre o feminino, pois que nada há de mais natural no mundo que o direito do mais forte. Adota-se contudo a negativa.

Em face do processo criminal ou civil, o que é conforme ao Direito Natural? Hoje, vejo bem que seria “natural” substituir, em um grande número de casos, os meirinhos pelos carteiros, as intimações pelas cartas. Mas por que, e desde quando isso começa a nos parecer natural, ou seja, racional? Porque e desde que o progresso das comunicações, graças à invenção das estradas de ferro, dos correios, dos selos postais, etc., chegou-se ao ponto que nós conhecemos.  Há dois séculos, nada seria menos natural que a idéia de semelhante reforma. Era natural, ao tempo em que se acreditava no sobrenatural quotidiano, considerar os ordálios, duelo judiciário, como o procedimento por excelência. Há alguns anos ainda, a maior parte dos juristas, se fossem consultados, seriam da opinião de que o júri era de Direito Natural, que deveria ser sempre inscrito à testa do processo criminal ideal. No presente, quantas mudanças a esse respeito!

O Direito Natural comporta um título relativo aos privilégios e hipotecas? Impossível responder. Impossível dizer se será um progresso para a legislação do século XX ou XXI apagar dos códigos o privilégio e a hipoteca. Quem pode predizer qual será o regime da propriedade em um ou dois séculos, e se será tal que permitirá ainda a penhora imobiliária? Não sabemos que, entre muitos povos, os imóveis foram ou são ainda impenhoráveis? Outra questão: O testamento faz ou não parte do Direito Natural? É natural que um homem sobreviva a si mesmo por qualquer sorte de disposição de seus bens numa época que se segue à sua morte? Está aí a liberdade absoluta ou a liberdade restrita — e em que proporções? — do direito de testar, que é o regime testamental mais natural? — Vejo bem que o regime matrimonial da comunhão de bens é mais justo que o regime dotal; mas não mais natural. Porque aquilo que é natural, ainda uma vez, é o abuso da força. — Constato também que o progresso da civilização faz predominar mais e mais os contratos escritos sobre os contratos verbais. Mas é muito claro que, se isso nos parece natural, é por causa da invenção muito artificial e da difusão contagiosa da arte da escrita... inútil insistir.

Eu já disse uma palavra sobre o Direito Internacional; mas retorno, antes de terminar, porque esse ramo do Direito nos fornece uma excelente ilustração de nossos princípios sobre a importância decisiva da imitação e da invenção em toda a extensão do domínio jurídico. De onde vem a um texto de lei em geral seu poder efetivo? Vem, unicamente e antes de tudo, da força pública, do comando legislativo? Maine provou muito bem que não está aí senão uma das fontes, e a mais recente, da autoridade atrelada às prescrições legais. Todavia, se o Direito Internacional não existisse, poder-se-ia recusar admitir a opinião do grande jurisconsulto inglês. Mas eis todo um corpo de Direito que se impõe em tempos de guerra nas relações dos exércitos, em tempos de paz, nas relações diplomáticas e que, entretanto, não deve sua força a uma ordem legislativa, pois que não existe legislador supremo das nações. Deve-a mesmo sempre a um contrato pelo qual, à falta de uma ordem superior, os diversos Estados iguais e soberanos teriam convindo em observar certas regras? Não. A maior parte das leis de guerra que reconhecem os Estados civilizados não foram jamais deliberadas, ou não foram unanimemente aceitas nas convenções internacionais. Esse Direito parece ser a realização gloriosa dessa “moral sem obrigação nem sanção” com a qual sonhava Guyau[221]. De onde procede pois, na realidade, esse poder eficaz? É bem simples e bem conhecido: do sucesso que tiveram em seu tempo as obras de Grotius[222] e de Vattel[223], quer dizer, da adesão entusiástica dada às suas fórmulas por uma multidão de espíritos eminentes, depois homens de Estado, enfim de espíritos esclarecidos quaisquer que sofreram sucessivamente o contágio salutar desse entusiasmo. E esse sucesso, ele mesmo, essa corrente imitativa, que é transportada sobre esses livros de preferência a outros, explica-se pelo grau de civilização comum a que haviam chegado, no século XVII, os povos europeus, graças a essas sucessões de grandes inundações imitativas, a romanização, a cristianização, a feudalização, a “humanização” da Renascença, sem falar das guerras, que contribuíram para a disseminação de todos esses germes, para a expansão dessas ondas, para o nivelamento do solo da Europa por suas próprias perturbações. Grotius e seus sucessores, pela acolhida feita a seus livros, suscitaram no público “um sentimento intenso de aprovação a favor de um certo número de regras[224]”, um sentimento intenso de “reprovação” contra aqueles que as violentam. Tal é sua única sanção. Para que esta intensidade de sentimento seja alcançada, foi preciso que a propagação dessas idéias fosse rápida, e que os espíritos fossem inflamados por sua velocidade adquirida. É aqui de se ter em conta, por sua vez, o número de imitadores e o grau de convicção apaixonada excitada em cada um deles. O poder real de uma fórmula jurídica é igual, para falar matematicamente, ao produto dessas duas quantidades multiplicadas uma pela outra.

Seria menos assombroso ver um tratado de Grotius, uma “personalidade sem mandato”, fazer-se obedecer por todos os soberanos em virtude de sua própria autoridade, quer dizer, pela conformidade de suas opiniões às idéias que sua leitura sugeriu à maior parte dos homens, se se imaginasse que, depois de tudo, um livro qualquer, à medida em que se faz ler com favor por um público cada vez mais extenso e fervoroso, está em via de tornar-se um Catecismo ou um Código. Todo livro, seja ele um poema ou um romance, é um Catecismo ou um Código em projeto. Não há livro, sobre não importa que assunto, que não aspire a regrar a conduta ou o pensamento dos homens, a ensinar-lhes alguma verdade ou a fazer-lhes algum bem; e, segundo uma ou outra destas duas tendências seja mais manifesta, pode-se dizer que ele é um Dogma ou uma Lei embrionária. De resto, há todos os graus intermediários possíveis entre o Dogma ou a Lei que, desde a sua promulgação, estão seguros de ser acreditados ou obedecidos pela quase unanimidade daqueles aos quais se endereçam, e o livro que, quando de sua publicação, não pode contar com certeza sobre nenhum leitor favorável. Quantos códigos, desde aquele de Manu até a maior parte das leis e das constituições revolucionárias, sem contar muitos éditos reais, não obtiveram jamais senão uma obediência aparente, parcial e momentânea! Quantos credos têm inspirados menos fé que os escritos de Platão ou de Aristóteles! — Será surpreendente, depois disso, que o Direito Internacional, formulado por grandes escritores dos três últimos séculos, seja praticado em nossos dias, como foi o Direito Romano durante nossa Idade Média, sem qualquer ordem legislativa?

Vejamos agora a ação das invenções sobre o desenvolvimento desse Direito. O problema de saber qual será o modo de apropriação internacional dos mares e dos rios, se se deve preferir o regime do mar livre, indiviso, aberto a todas as bandeiras (mare liberum) ou do mar fechado e monopolizado (mare clausum), se a navegação de um curso d’água deve existir para todos os Estados ribeirinhos, seja apenas nos limites de suas respectivas margens, seja da fonte à embocadura; o problema relativo, em tempos de guerra, aos direitos dos navio neutros, a saber, se seus carregamentos podem ser ou não visitados pelos navios beligerantes, e se estes, em caso afirmativo, têm o direito de realizar a apreensão da mercadoria chamada contrabando de guerra trazida pelos navios neutros; esses problemas, e muitos outros, são susceptíveis de numerosas soluções, entre as quais a opção é raramente isenta de arbitrariedade. Não é mesmo fácil decidir se a abolição do direito de navegação é, sem qualquer contestação possível, preferível à sua manutenção, ainda que todos os Estados civilizados, com exceção dos Estados Unidos, sejam da opinião de o abolir. Malgrado aquilo que existe de selvagem nesse direito de armar e de lançar, em tempos de guerra, corsários para capturar navios mercantes pertencentes ao inimigo, deve-se convir que a grande república transatlântica não saberia renunciar a essas permissões de caça humana, como ela faz observar, sem imitar o luxo ruinoso e desastroso de nossos armamentos marítimos permanentes; e pode-se hesitar em escolher entre esses dois males. Não é menos verdadeiro que, de um período a outro, vê-se a balança dos motivos a favor de tal solução e em prejuízo de tal outra oscilar aos olhos de todos e levar a uma modificação do Direito das Gentes. Então, se se procurar a causa profunda dessa mudança, descobre-se sempre alguma invenção industrial ou militar ou alguma nova idéia teórica eclodida nos espíritos.

São as invenções, na verdade, que têm simplesmente por efeito modificar as aplicações de um princípio e não o próprio princípio. Por exemplo. O princípio de que o contrabando de guerra pode ser apreendido se for reconhecido. Trata-se de saber o que se deve entender por essas palavras; antes da invenção dos navios de casco metálico, não se imaginava inserir o ferro, ao lado da madeira e do cânhamo, enquanto doravante deve-se classificar esse metal entre os artigo proibidos. Do mesmo modo, regras sobre bloqueios de portos de mar devem se ressentir do fato que, depois da invenção das estradas de ferro, os portos sitiados podem se irradiar por terra, de onde se segue que o bloqueio marítimo se torna cada dia mais ilusório e deve ser tido como tal. Mas as invenções têm também o poder de atingir às próprias regras e às mais estáveis. O sistema de mar fechado poderia ser mantido depois que os navios a vapor foram inventados? Um regime que convém à cabotagem não saberia resistir aos progressos da grande navegação. — E, a propósito, observemos que, aqui, a evolução do Direito Marítimo, em se prolongando, produziu duas transformações inversas. O mar, de acordo com os jurisconsultos romanos, era propriedade comum e indivisa de todas as Nações ribeirinhas. Desta indivisão, passou-se à individualização da propriedade, aqui como em face das terras; do mar livre ao mar fechado. Mais eis que se passa novamente do mar fechado ao mar livre. A História é cheia dessas surpresas.

Não se pode duvidar que o conjunto das invenções civilizadoras, de onde resulta o crescimento de nosso bem-estar material, haja poderosamente contribuído para o abrandamento das leis de guerra, a proibição dos saques a cidades, o tratamento mais humano dos prisioneiros, primitivamente escravizados e espoliados. Mas, ao mesmo tempo em que somos humanizados desse modo, tornamo-nos mais bárbaros num ponto muito importante, e esta anomalia serve precisamente de contraprova à nossa explicação, porque é manifesto que, sem a fecundidade inventiva de nossa época e sua afeição carinhosa pelos inventores quaisquer, esta exceção a nossa regra de humanidade não existiria. O hábito com efeito, de ver em todo inventor um benfeitor, mais ou menos dissimulado, quaisquer que sejam os efeitos imediatos de sua descoberta, explica sozinho nossa atitude singular, à vista das terríveis descobertas de engenhos militares, e mesmo engenhos criminosos, que têm tornado a guerra tão mortal e o crime tão temível. Os homens da Idade Média, muito mais rudes que nós todavia, faziam uma muito diferente acolhida às novidades desse gênero. A balestra[225], à sua aparição, foi anatematizada, notadamente pelo Concílio de Latrão em 1139[226], como uma arma desumana e feroz. Em todo lugar, ela foi, da parte da população, objeto de uma indignação que levou muitos séculos para ser vencida. O mesmo grito de indignação saudou mais tarde o arcabuz. Nos combates, não se faziam jamais aquartelar os balestreiros primeiro, depois os arcabuzeiros, que eram considerados como bandidos. Em nossos dias, ao contrário, é com uma calma perfeita, com admiração, que acolhemos nossas novas armas, nossas balas cônicas, com ferimentos tão dolorosos e quase sempre mortais, nossos fuzis de tiro rápido, nossos torpedos próprios a fazer voar grandes navios com toda sua equipagem. Sabe-se também com que brandura foram tratados, em Paris, os dinamitadores e quanto, comparada ao alarme público por seus atentados assustadores, a indignação pública contra eles foi fraca e de pouca duração. Eu sei bem que, no escândalo causado na Idade Média pelas inovações militares, entrava um pouco desse “misoneísmo” que fazia proscrever então os sapatos de bicos revirados ou o chapéu feminino no momento de sua vinda, como também a balestra ou o arcabuz. Eu sei bem, de modo semelhante, que, em nossa complacência em aplaudir ou em aceitar todas as nossas novas armas, todos os nossos novos explosivos, há muito desse “filoneísmo” que nos valeu o progresso de nossa indústria. Mas isso prova o que o misoneísmo pode ter de bom, e o filoneísmo de mau, para não dizer detestável; e aliás é claro que o misoneímo ou o filoneísmo, tendentes a se regrarem pelos modelos antigos ou pelos novos, é sempre de imitatividade passiva e cega — ou ao menos míope.

O Direito Internacional forma-se sob o império do ideal atual do Direito Natural. Mas a prova que este ideal é transitório e demanda ser reformado é que, aplicado, por sua vez, ao Direito Internacional e ao Direito Individual, ele engendra, com o tempo, entre ambos, uma contradição não percebida. Considera-se como um grande progresso moderno o respeito crescente à soberania dos Estados pequenos ou grandes, como, em nossas legislações civis, o respeito crescente à liberdade dos indivíduos. Porque aquilo que se chama liberdade para as pessoas, chama-se soberania para as nações. Um Estado é soberano quando se o julga livre para escolher a constituição que lhe apraz, o regime comercial que lhe convém e para tomar todas as medidas militares que pareçam úteis à sua defesa ou aos seus projetos, às suas ambições coloniais por exemplo. Mas não se percebe que, em se respeitando além de um certo grau esse individualismo nacional, se nos expomos a violar ou a deixar violar gravemente o individualismo pessoal, único real. Com efeito, colocamo-nos agora tão longe da observação da regra relativa a essa autonomia dos Estados que, quando apraz a um deles armar-se até os dentes, arregimentar toda sua população válida, eriçar-se de fortalezas, gastar todos os seus bilhões em couraçados ou em torpedos, os outros estados deixam-no fazê-lo, sabendo que a tolerância desse abuso obriga-os a imitar, cedo ou tarde, este exemplo, a arruinar-se assim em orçamentos de guerra. Ora, por conta desses armamentos exagerados e necessariamente contagiosos, a liberdade dos indivíduos, em cada Estado, encontra-se submissa a restrições, a impostos, a regulamentações cada vez mais abusivas e tirânicas, que a reduzem a muito pouca coisa, enquanto a liberdade desastrosa desses grandes leviatãs abstratos, os Estados, satisfazem-se triunfalmente. E certo que a prática um pouco menos timorata do direito incontestável de intervenção, — limitação necessária da independência dos Estados, — teria, muitas vezes, conseqüências favoráveis à independência dos indivíduos, tão ameaçados, de outra parte, — estranho contraste, — pelo o progresso do socialismo de Estado. Suponhamos que, para lutar contra uma liga comercial das nações americanas, os povos europeus tentassem organizar a seu turno um grande zollwerein[227] continental, e que a obstinação de um único Estado europeu em repelir esse regime, vantajoso para todos, fizesse fracassar a realização desse vasto plano. Amaldiçoar-se-ia esse Estado. Mas ninguém lhe contestaria o direito de isolar-se assim, em enorme prejuízo de todo nosso continente? É duvidoso. Após haver visto como um grande progresso a expropriação de particulares por causa da utilidade pública, ver-se-ia como uma retrogradação a expropriação de um Estado por causa da utilidade européia.

Mas, observemos, não é senão entre povos civilizados à nossa maneira que nós concebemos e praticamos esse respeito escrupuloso por aquilo que julgamos ser o Direito Natural das Nações. Porque nós não temos nenhum escrúpulo em expropriar, quando bem nos parece, os Estados bárbaros ou as tribos selvagens que nos são vizinhas. Os índios encravados no território dos Estados Unidos sabem-no.


 

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Capítulo Sétimo
O Direito e a Sociologia

I. Novas críticas contra a idéia da evolução uniforme. Uniformidade e diferenciação: contradição. Pretendida necessidade de transformações. Mutações jurídicas sempre devidas a inserções exteriores ou interiores de idéias estrangeiras ou imprevistas. Exemplo: o Direito Armênio. Retificação de erros. II. Novas considerações em apoio à importância da imitação. As histórias infantis e os mitos solares. A fase feudal das sociedades. Origens das instituições feudais. Costumes pré-islâmicos e indo-europeus. Direito de “aubaine” . Retomada linear. Direito de primogenitura.  Simplificação dos procedimentos e da gramática. Imitação entre os juristas. III. Desempenho da invenção e da lógica. Desenvolvimento reputado análogo ao Direito Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da lógica social. O gênio inventivo subordinado às grandes necessidades do organismo. Dualidade destas necessidades fundamentais, de nutrição e geração; necessidade e dificuldade de harmonizá-las juridicamente. Convergências ou coincidências das morais. IV. O Direito e a Lingüística: analogias de desenvolvimento.

 

Em resumo, os estudos precedentes permitem-nos constatar que, em nenhum dos principais ramos do Direito se aplica a tese da uniformidade da evolução; e, além disso, eles nos fazem perceber o caminho por onde se devem procurar as leis gerais que determinam as fases jurídicas, sem fazer obstáculo à rica diversidade de seus cursos. Mas estas duas conclusões, uma negativa e outra positiva, valem o trabalho de um exame mais aprofundado, e trataremos de fortificá-las por algumas considerações de ordem ainda mais geral que têm por objetivo unir, por um liame ainda mais estreito, o Direito à Sociologia.

 

I. Novas críticas contra a idéia da evolução uniforme. Uniformidade e diferenciação: contradição. Pretendida necessidade de transformações. Mutações jurídicas sempre devidas a inserções exteriores ou interiores de idéias estrangeiras ou imprevistas. Exemplo: o Direito Armênio. Retificação de erros.

 

Comecemos por formular novas críticas contra a idéia que combatemos. Os partidários da evolução uniforme, seja em Direito, seja em toda ordem de fatos sociais, lingüísticos, religiosos, políticos, econômicos, estéticos, morais, são os mesmos que dão por característica primeira à evolução jurídica, como a todas as outras, a de ter uma diferenciação. Eu sei bem que não existe aí inconseqüência, se se entender a fórmula no sentido de que a diferenciação, entre cada povo em via de evoluir juridicamente, opera-se da mesma maneira. Mas empresta-se-lhe também, sem tomar cuidado, uma outra significação onde a contradição é flagrante. Por exemplo, em comparando a história do Direito Francês àquela do Direito Alemão, far-se-á ver, — com a satisfação evidente de aplicar uma vez mais a famosa lei spenceriana, — que, partindo de um mesmo estado jurídico próprio ao Império Franco, estes dois Direitos divergiram de maneira singular, sob a influência, notadamente, do Direito Romano e do Direito Canônico infiltrados aqui e ali em doses muito desiguais; de tal sorte que, salvo o esforço crescente de um e de outro em direção à centralização legislativa, nada se assemelha em sua marcha. Mostrar-se-á o quanto a Inglaterra e a França chegaram a legislações que não podem ser mais desiguais, ainda que partindo de um ponto comum no século XII e mesmo além. Do mesmo modo, dir-se-á que o início da evolução na Suécia e na Dinamarca foi a comunidade de aldeia, mas que, desse comunismo igualitário, saiu, por caminhos diversos, a organização aristocrática da Dinamarca e a democracia sueca. — Em política semelhantemente. Desse ponto de vista, diz Glasson[228], “a Idade Média resume-se a uma luta entre a Nação, a Igreja, a monarquia e a feudalidade”. Ora, destas “quatro forças em permanente estado de conflito para chegar à supremacia”, na Inglaterra, foi a primeira que acabou por sujeitar as outras; na França, foi a terceira; na Alemanha, a última. Nada de mais diferente que estas três evoluções. — Depois disso, que nos repitam que a evolução é necessariamente a mesma em toda parte. Como conciliar a necessidade dessa similitude com a necessidade dessas diferenças? E se as diferenças são tais entre povos irmãos, em continua troca de exemplos e modelos, que será entre as nações sem parentesco nem contato?

Todavia, a maior parte dos evolucionistas são muito sérios e muito sagazes para fechar os olhos sobre as dessemelhanças profundas que separam as transformações dos diversos Direitos. Mas eles se acreditam autorizados a não as levarem senão fracamente em consideração, sob o pretexto de que, se em todas as sociedades, a evolução fosse abandonada a ela mesma, ela se conformaria à sua fórmula. O triste é que esta hipótese é inadmissível: Qual é, pois, o Direito que, espontaneamente, sem influências exteriores e acidentais, — tomadas a um Direito estrangeiro ou a inovações suscitadas por gênios originais mesmo indígenas, — não seria nunca transformado? O Direito Romano teria indefinidamente permanecido o direito quiritário, sem as guerras e as anexações que puseram Roma em comunicação fecunda ou perturbadora com tantos povos estrangeiros, forçado o pretor ao contágio de idéias exóticas, sugerida a idéia do jus gentium, depois do jus naturae, e, por essa série de transfusões de sangues diferentes, regenerada a velha Lei das Doze Tábuas. Uma forma social qualquer, língua, religião, Direito, quando ela é fixada, isto é, equilibrada em permanência, é suscetível de duração indefinida, se permanecer localizada e fechada, ao abrigo de invasões, por exemplo, numa ilha afastada. Foi assim que os berberes das Canárias, os guanchos[229], perpetuaram até o século XVI, época em que foram descobertos (ou redescobertos), o estado social dos trogloditas da pedra polida, contemporâneos do homem fóssil de Cro-Magnon, o que deu lugar a pensar que dele descendiam. Os berberes africanos, ao contrário, inundados tantas vezes pelo transbordamento da civilização egípcia, fenícia, romana, árabe, transformaram-se completamente[230]. Entre os tuaregues[231], em particular, a mulher é emancipada a ponto de fazer reinar debaixo de sua tenda um despotismo igual àquele da “dama” européia em sua casa; enquanto, entre os guanchos, ela permanece escravizada[232].

A palavra evolução é enganosa. É tão suave de se pronunciar que dá naturalmente a idéia de um deslizar sobre a areia sem obstáculo nem bloqueio. Mas, se se entrar no detalhe, percebe-se que a fluidez, a continuidade aparente emprestadas assim às séries de mudanças é imaginária. Tomai um Direito qualquer, vós vereis que sua evolução, dita contínua, decompõe-se em inserções laboriosas e muitas vezes sangrentas de novas idéias aportadas de tempos em tempos, de um lado ou de outro, — não se sabe por quê, — ao imprevisto. Elas foram enxertadas nele, seja por uma religião proselitista (cristianismo, islamismo, budismo), seja por uma conquista exterior (Direito Romano infundido mais que imposto aos vencidos, mesmo aos egípcios e aos gregos; Direito Inglês superposto às leis hindus; Direito Francês islamizado na Argélia, etc.), seja por revoluções intestinas que fizeram passar o poder dos patrícios aos plebeus, ou do Senado ao Imperador ou da nobreza ao Terceiro Estado, etc., seja por um interesse intermitente por instituições e legislações estrangeiras. Os exemplos desta última causa de renovação jurídica são numerosos: que nos seja suficiente indicar a influência exercida pelo Direito Romano mesmo fora do Império Romano, pelo Direito Grego entre os bárbaros, pelo Direito Chinês em toda Ásia oriental, — pelo Direito Canônico, em outro sentido, sobre o Direito laico da Idade Média e dos tempos modernos.

Ora, no intervalo desses enxertos dolorosos, lentos para cicatrizar, nem sempre vitoriosos, o Direito dito nacional parece não ter a menor tendência a “evoluir”; ele não parece tender senão a assentar-se. Cada um desses progressos é um golpe de chicote imprevisto que o desperta e o desvia. Pode-se pretender seriamente que o Direito Romano clássico esperava e aspirava receber o abalo que lhe foi comunicado pela propagação do cristianismo, que tão fortemente o bizantinizou em seu último estágio? O que foi que, desde o seu nascimento, predestinou-o a este abalo regenerador? E, para remontar ainda mais além: As ações da lei tendiam elas mesmas ao sistema formulado? Os éditos dos pretores, as leis votadas, os éditos reais, etc.: tantas fontes intermitentes de Direito, que não correm jamais sem provocação. Há nesta pretendida necessidade de evolução jurídica o que há naquela que constrange a linguagem a passar pelas três fases sucessivas do monossilabismo, da aglutinação e da flexão. Os novos lingüistas sabem que valor atribuir a esta fórmula...

Lancemos um golpe de vista sobre o Direito da Armênia, segundo Dareste. Os armênios, meio arianos, meio semitas, tinham primitivamente um Direito caracterizado, dizem-nos, pela vingança do sangue e pela constituição patriarcal da família. Entre a influência do Império Persa e aquela do Império Romano, seus dois grandes vizinhos, eles oscilaram. Mas sua conversão ao cristianismo, depois das conquistas de Justiniano, puseram fim a sua hesitação, e, em 536, a legislação de seus conquistadores foi superposta a seu Direito nacional, que permanecera fortemente romanizado. Mais tarde as Cruzadas fundam um reino feudal no Oriente; o Direito Armênio feudaliza-se. A prova de que, sem os acasos da guerra e as inspirações do apostolado, sem as vitórias bizantinas e a propagação da fé cristã, os Armênios teriam guardado seu velho Direito inalterado, fornecem-nos seus vizinhos, os georgianos. Estes, em tudo semelhantes àqueles, mas que permaneceram independentes, conservaram seu Direito primitivo; incorporados já ao Império russo, eles eram ainda regidos por suas próprias leis. — Assim, lado a lado, eis dois povos irmãos, os georgianos e os armênios, dos quais um permaneceu sempre fiel à vingança do sangue e ao regime patriarcal, e onde o outro apresentou a mais completa mistura legislativa. Mas essa mistura não é menos um Direito nacional também, tornado tal sem qualquer contestação possível, pela íntima fusão de elementos emprestados às fontes mais diversas, às Leis de Moisés, às constituições dos imperadores bizantinos, aos concílios dos primeiros séculos, aos costumes feudais[233]. Quanto ao Direito dos georgianos, se nos parece mais homogêneo e unitário, não será talvez porque nós ignoramos quase inteiramente sua formação histórica? O pouco que sabemos nos ensina, aliás, que os diferentes ordálios admitidos na Geórgia tinham origens múltiplas.

Da tribo pele-vermelha ao Império Asteca, seguem-se as fases de uma transformação bastante regular[234]. Evidentemente esta série de progressos corresponde a uma série de invenções militares e agrícolas[235]. É ela necessária, esta evolução? O exemplo de numerosas tribos indígenas que permaneceram estacionárias prova o contrário. Foi ela uniforme na América? Nós podemos responder pelo contraste das duas civilizações, asteca e peruana, que partiram do mesmo estado selvagem e atingiram resultados opostos. O Império Mexicano, quase em toda parte, substituiu o comunismo pelo individualismo, e sua organização, essencialmente aristocrática e militar, tinha qualquer coisa de feudal. O Império Inca era um grande falanstério pacífico e piedoso, uma teocracia igualitária.

Muitos sábios, na verdade, não têm qualquer dificuldade em reconhecer que a necessidade de mudança é fraca ou nenhuma entre os selvagens; chega-se mesmo a emprestar-lhes um horror natural à mudança, que seria — coisa muito extraordinária — a marca distintiva dessas crianças grandes. Mas, em revanche, quer-se que o grau de civilização meça-se, de qualquer sorte, pelo apetite de mudança. Daí a conseqüência que a evolução social devesse ser extremamente lenta no início e que se fosse acelerando a cada passo. Essa persuasão geral parece confirmada, à primeira vista, pelo espírito de rotina inerente a numerosos selvagens ainda existentes. Todavia, se aplicar-se essa proposição à cada um dos aspectos da vida social tomado à parte, em particular às evoluções lingüística e religiosa, percebe-se que a verdade é, de preferência, o inverso desse preconceito filosófico. Com efeito, as línguas nascentes, — por exemplo, o francês do século X, — são o que há de mais instável, de mais continuamente cambiante; sua rapidez de crescimento não diminui senão na idade adulta, onde estaciona. O francês não foi muito mais alterado do século X ao XII, em duzentos anos, do que do XIII ao XIX? E, desde há dois séculos e meio, quais mudanças foram tão importantes para submeter sua gramática, ossificada, por assim dizer? Do mesmo modo que o cristianismo nascente desenvolveu-se visivelmente até o Concílio de Nicéia[236], depois disso, quase não mudou. — A evolução de uma arte nova, tal como a pintura a óleo, do século XV ao XVI, a tragédia grega no século V antes da nossa era, a tragédia francesa de Rotrou a Racine, etc., é mais rápida até o momento em que a arte está formada, após o que detém-se, — equilíbrio móvel, — patinando sobre o mesmo lugar ou progredindo bem lentamente, progresso insensível, penoso, como aquele de um rio esgotado que se entranha nos deltas pantanosos em direção à sua embocadura. De modo semelhante, tomai uma indústria qualquer a partir da data em que ela é colocada ou recolocada a progredir. Vereis que cada uma dá lugar a observações parecidas. Nossos tempos não fazem mesmo exceção à regra. O século XIX tem por característica haver voltado, principalmente em direção à indústria, seu gênio inventivo, admirável de resto, como as épocas anteriores preferiram direcionar o seu rumo à jurisprudência, à teologia, à poesia, à arquitetura, à pintura, à cultura da língua, — e desse modo inauguraram, em quase todos os ramos da indústria, uma nova era de maravilhosas germinações, que são um verdadeiro recomeço da história para cada uma delas. O espetáculo, pois, dessa magia de transformações rápidas que assistimos até aqui é ele mesmo uma verificação de nossa lei. Não acreditemos que essa febre durará para sempre. Já em muitas das indústrias especiais chegadas a uma perfeição relativa, impossível de ultrapassar momentaneamente, não se inventa mais, não se aperfeiçoa mais, contenta-se em produzir e reproduzir, e o sucesso não é senão muito grande. Após um período muito curto de ensaios, de criações, de metamorfoses muito profundas e muito precipitadas, a indústria das estradas de ferro, definitivamente organizada, lança-se ao mundo e não recebe senão aperfeiçoamentos secundários. Se ela fosse mais “progressista”, ela não seria provavelmente tão próspera.

Tudo isso se explica, — se se quiser bem reconhecer conosco que toda transformação é devida a um afluxo de pequenas ou de grandes invenções, — pela exploração de uma nova mina de descobertas. São estas minas, como as outras: não são jamais inesgotáveis, e a extração do mineral, abundante e fácil no início, torna-se difícil e ingrata depois. — As pobres e pequenas pedreiras, de ordem filosófica e mitológica notadamente, que propiciaram à curta imaginação dos selvagens, num longínquo passado, a extração de seu idioma, seu culto, sua bagagem social, foram depois longamente exploradas por seus ancestrais; daí sua estagnação atual.

 

II. Novas considerações em apoio à importância da imitação. As histórias infantis e os mitos solares. A fase feudal das sociedades. Origens das instituições feudais. Costumes pré-islâmicos e indo-europeus. Direito de “aubaine[237]. Retomada linear. Direito de primogenitura. Simplificação dos procedimentos e da gramática. Imitação entre os juristas.

 

Não há uma similitude no universo que não tenha por causa uma destas três grandes formas, superpostas e embaralhadas, de repetição universal: a ondulação para os fenômenos físicos, a hereditariedade para os fenômenos vivos, a imitação para os fenômenos sociais propriamente ditos. Não quero repetir aqui[238] as relações mútuas destes três agentes de analogia universal. É claro que se devem levar em conta os três, e não apenas o último, para dar a explicação completa das analogias apresentadas pelo mundo social, que nasce do mundo vivo e move-se no meio físico. Não é, pois, duvidoso que a influência dos climas e aquela das raças não dêem a chave de um certo número de semelhanças observadas entre sociedades de mesmo sangue ou que floresceram sob a mesma latitude. Mas muito se tem exagerado a importância destas duas influências em Sociologia, porque se despreza o papel dominante da terceira, que acaba sempre por usar as outras ou imprimir-lhes sua marca. Aquilo que existe de contínuo, aquilo que existe de necessário, aquilo que existe de submisso às leis cientificamente formuláveis, nos fatos sociais, é o caráter comum a todos eles, e que é exclusivamente próprio ao seu conjunto: o de serem imitativos ou imitados[239]. Imitação consciente ou inconsciente, inteligente ou motora, instrução ou rotina, não importa. Falar, rezar, trabalhar, guerrear, realizar obra social qualquer, é repetir aquilo que se aprendeu com alguém que o aprendeu com outro alguém, e assim, em seqüência, até os primeiros editores de cada uma das raízes verbais que se transmitem, de forma idêntica, de boca a boca, desde há milhares de anos, como as ondulações luminosas ou sonoras de átomo a átomo, ou até os primeiros autores de cada um dos ritos, de cada um dos processos de trabalho, de cada um dos procedimentos guerreiros, estocadas de esgrima, manobras, astúcias estratégicas que passam de homem a homem ao longo de um tempo mais ou menos prolongado. Eu não digo que a imitação seja toda a realidade social; ela não é senão uma expressão da simpatia que lhe é preexistente e que ela redobra quando a expressa; e ela depende da invenção, faísca da qual ela não é senão o fulgor. Ela começa por ser uma espécie de serva da hereditariedade, por tanto tempo quanto o grupo social se reduza à família e a transmissão de exemplos se limite ao estreito círculo dos parentes. Depois, quando ela se liberta da geração, quando ela domina mesmo a seu turno, tanto mais ela se curva sob uma outra regra: ela é subordinada, — nós o sabemos, — às leis superiores da lógica, como a ondulação às leis da mecânica. Mas não é menos certo que ela, sozinha, confeccione os tecidos sociais organizados pela Lógica social. Ela, imitação, é a cadeia e a trama da tela humana que o artista olha pelo direito, ao lado de seus detalhes, de suas variações geniais e fugidias, mas que o sábio deve enxergar pelo avesso, ao lado de suas repetições, únicas mensuráveis, únicas enumeráveis, únicas formuláveis em dados estatísticos ou em leis científicas. O que era a física antes que a teoria da ondulação aí houvesse realizado sua estréia e que muitas das leis da mecânica fossem conhecidas? Bem pouca coisa. Tal será a Sociologia, enquanto dela não fizer parte, — uma larga e invasiva parte, — a teoria da imitação.

Faltos de observarem a universalidade, a continuidade, a importância maior do fato da imitação na História, muitos arqueólogos, muitos historiadores, mesmo os mais circunspectos e os mais lúcidos, são conduzidos às mais errôneas induções. Por exemplo: Não foi o estranho esquecimento desse fato elementar que, por longo tempo, permitiu acreditar-se no abuso extravagante dos mitos solares?[240] Vê-se-os em toda parte, não apenas lá  onde eles realmente existem, mas em quaisquer lendas de todos os povos e até nas histórias infantis. Como se havia reencontrado o tema da Pele de Asno, do Pequeno Polegar, do Gato de Botas, etc., quase idênticos entre povos separados pelas maiores distâncias, ficou-se maravilhado com esta coincidência e acreditou-se não se poder explicá-la de outro modo senão que pela preocupação com um mesmo fenômeno exterior, visível e igualmente notável em todos os pontos da Terra. E qual fenômeno preencheria melhor estas condições senão os movimentos periódicos do Sol no céu, seu nascimento, seu crescimento, seu declínio, sua morte, sua ressurreição? E então, com grandes reforços de etimologias de fazer cair os cabelos, mediante a transformação de Barba Azul[241] em Indra[242], sob o pretexto de que ambos eram barbudos, ou qualquer outra assimilação insolente, chegou-se a fazer adotar esta hipótese engenhosa por espíritos sérios. Não havia a idéia de dizer-se que, depois de séculos e séculos, a imitação, seja de criança a criança, tão poderosa, tão constante, tão universal, seja de adulto a adulto, durante as vigílias em que se repetem as fábulas próprias a agradar aos espíritos incultos, trabalho que espalha os contos populares, seria largamente suficiente para fazer compreender sua difusão de um lado a outro da Terra, até entre os zulus, onde se descobriram algumas de nossas récitas lendárias.

Eis aí uma amostra entre milhares de erros grosseiros que seriam evitados em se tendo em vista a ação imitativa; mas há erros mais sutis, mais difíceis de perceber, dos quais ela preservaria também os melhores espíritos. Está-se bastante inclinado, entre os sociólogos, a tomar a constituição feudal[243], tão complexa e tão característica, por uma fase necessária da evolução social, de não importa que raça ou que nação. Fustel de Coulanges, ele mesmo, após haver observado que o regime feudal se produz entre populações que nada têm de germânico, Gália meridional, Império Bizantino, países eslavos, Hungria, Irlanda, do mesmo modo que entre os povos que nada têm de romano, conclui assim: “Ele é produzido em todas as raças; não é romano nem germânico, pertence à natureza humana.” Todavia, antes de recorrer à hipótese quase miraculosa de uma geração espontânea desse regime singular, em toda parte o mesmo, eu não sei em quantos diferentes lugares, não haveria lugar para procurar se sua ubiqüidade relativa, — exagerada aliás, — não seria explicável pelas vias mais simples da geração social ordinária, quer dizer, da imitação? Ora, todas as pesquisas do eminente historiador que acabo de citar tendem precisamente a mostrar que os elementos disseminados do regime feudal existiam quase todos nas instituições do Império Romano, e que seu desenvolvimento simultâneo, sintético, foi o resultado de circunstâncias muito particulares, em que o mundo romano ocidental, especialmente a Gália, encontrava-se após a queda do poder imperial. O alódio[244] não seria senão o domínio rural dos galos-romanos, a cidade; o benefício[245] não seria senão o precário[246]; o patronato é completamente romano. A imunidade é uma extensão dada às isenções de encargos municipais que os imperadores concediam às vezes. Que mais o mesmo autor nos ensina aliás?– E isto é uma luz bem mais viva ainda jogada sobre a questão. — Que os antrustiões reais[247], a relação do rei merovíngio com seus fiéis antrustiões, foi o primeiro embrião do liame da vassalagem... — Mas, se é assim, qual é a idéia que se oferece naturalmente ao espírito? É que a síntese desses elementos múltiplos sob a forma do feudo, da homenagem e dos serviços feudais é um feliz reencontro operado em algum lugar do mundo romano, e não alhures, e, deste canto do mundo, propagou-se pouco a pouco, entre próximos, graças às vantagens momentâneas e também à popularidade contagiante da qual se beneficiou, como tudo aquilo que o vento da moda leva à popa. Como sabemos que a marcha da imitação é uma cascata liberada do alto para baixo da pirâmide social, e dos povos mais civilizados aos mais bárbaros, acolheremos sem trabalho que a idéia dos antrustiões reais foi imitada pelos grandes senhores, depois pelos pequenos senhores, em se modificando, e que, uma vez constituída na nação romana, a feudalidade difundiu-se na Germânia e um pouco em toda parte[248]. O fato é que se a viu nascer na Gália mais rápido que em nenhuma outra parte aliás, bem mais tarde na Irlanda, na Dinamarca, na Suécia, no Império Bizantino; e, se não se tem sempre a prova de que ela foi importada de fora nos países em que se a constata[249], nada mais admissível que esta conjectura. A idéia da ogiva é certamente mais simples que a idéia da feudalidade, e sua aparição, idêntica em muitos centros diversos de propagação na Idade Média, no Império Árabe e na cristandade separadamente, repugnaria muito menos à razão. Têm-se todavia motivos para pensar que se a tomou dos árabes ou que eles a obtiveram de nós[250], mas, em todo caso, o gênio humano economiza, mesmo aqui, o custo de uma dupla invenção supérflua.

Tudo o que há de nítido, de preciso, de característico nas similitudes de uma ordem qualquer, lingüística, religiosa, política, econômica, jurídica que os evolucionistas tenham observado entre diferentes povos, mesmo muito distantes, tem por causa a imitação. Tais são, não é de duvidar, as analogias surpreendentes apresentadas, desses diversos pontos de vista, pelos hindus, pelos germanos, eslavos, celtas, latinos, helenos, nações que se mais agruparam, sob o nome de arianos, em uma mesma raça hipotética. Hipótese verdadeira ou falsa, mas que, mesmo aqui, tem tido a culpa de embair o espírito filosófico e de fechar os olhos à evidência. Por uma verdadeira petição de princípio, após haver concluído o parentesco fisiológico desses povos, porque se haviam constatado semelhanças entre suas línguas ou suas instituições, deixou-se pensar que elas eram semelhantes porque eles eram parentes. Confundiram-se duas coisas que, mesmo que estivessem relacionadas uma a outra nesse caso, nem por isso deveriam ser menos distinguidas; tomou-se por uma herança vital o que não era evidentemente senão uma herança social. A linguagem e a religião muito se transmitem em geral, e salvo muitas exceções notáveis, dos pais aos filhos, os filhos não as herdam do mesmo modo como herdam os traços físicos de seus pais; fala-se, não a língua de sua família, se dela se está sempre separado, mas a língua das pessoas que se ouve falar durante a infância. Isso é muito claro. Por que, pois, desde que se descobriu um fundo comum de raízes verbais, de mitos, de processos, de formas embrionárias de governo nas nações indo-européias, apressa-se a decidir que elas tiveram ancestrais comuns, como se esta indução não sofresse qualquer dúvida? Triste é que, uma vez a árvore genealógica dos soi-disant arianos definitivamente traçada, assim como aquela dos semitas e de outras grandes famílias possíveis, percebe-se, entre povos heterogêneos, similitudes senão lingüísticas, ao menos religiosas e jurídicas, iguais em precisão e em importância àquela dos povos reputados congêneres. Por exemplo. Os arianos, entre eles, não nos mostram, em parte alguma, coincidência mais completa que aquela que, segundo Seignette[251], revela-se entre os costumes dos árabes antes de Maomé e as instituições dos romanos primitivos. “O poder paterno em todo seu rigor, a tutela perpétua das mulheres, o testamento, a hereditariedade dos agnatos[252], dos chefes e dos gentios, sua tutela, a tutela testamentária, o nexum, a pignoris capio, o abandono noxal[253], o talião, a composição legal, as relações de patrão a cliente foram costumes inscritos na Lei das Doze Tábuas. Eles correspondem a usos pré-islâmicos identicamente semelhantes, dos quais alguns foram mantidos, outros abolidos pelo Alcorão.” Se se relacionar a vizinhança da Arábia e da Índia, onde reinaram costumes análogos, e a tendência mútua dos povos vizinhos a emprestarem-se suas instituições civis, bem mais que suas religiões e sobretudo seus idiomas, explicar-se-á sem trabalho essas semelhanças por uma ação imitativa.

O que confirma esta interpretação são muitos outros pontos de contato jurídico entre arianos e semitas. Eles apresentam uma tal precisão que sua aparição espontânea é absolutamente inconcebível. Foi espontaneamente que se pôde produzir a estreita similitude do direito criminal ou civil israelita com a legislação ateniense e os costumes hindus? Em Israel como em Atenas, o direito de asilo era aberto em certos lugares designados aos homicidas involuntários; a vingança do sangue não podia realizar-se, senão após conduzir-se o culpado perante os juízes e fazê-lo condenar, se agiu com intenção de matar. Aliás, a influência grega trai-se claramente nos códigos rabínicos, pelo emprego de palavras técnicas tomadas do grego (Dareste). Em Israel, como na Índia, existe a responsabilidade penal dos habitantes das comunas. Como na Grécia e na Índia, o irmão deve desposar a viúva de seu irmão morto sem filhos; e, enquanto a Lei ordena, entre diversos semitas, a prostituição das filhas, ela a interdita entre os hebreus. O credor israelita pode fazer penhorar os móveis de seu devedor, mas não tem o direito de penetrar em sua morada. Ele deve esperar à porta: último traço, sem dúvida, — diz Dareste, — do antigo costume de constranger pelo jejum, do qual falam o Código de Manu e as leis irlandesas. Como os germanos de Tácito, os israelitas possuem a instituição da Ketubá[254], dote constituído pelo marido a sua mulher.  “O marido, que é o único a ter o direito de divórcio, compromete-se a não usar deste direito, senão mediante o encargo de pagar à sua mulher uma certa soma”, que é a ketubá, garantia engenhosa concedida à esposa contra a onipotência marital. O Direito Hebraico tem também traços de semelhanças marcantes com o Direito Romano, notadamente por uma certa maneira de redigir o contrato de venda, que relembra nosso testamento místico. — Manifestamente, tais concordâncias não saberiam ser inatas.

Muitos fatos que devem parecer anomalias, se se lhes aplicar a fórmula estreita da evolução, são conseqüências muito simples do princípio da imitação.  Por exemplo, o direito de aubaine, este odioso costume próprio aos tempos da barbárie, não se atenuou, mas, ao contrário, agravou-se desde os tempos merovíngios até a belle époque da Idade Média; isto é, à medida em que a Europa se civilizava ou se desbarbarizava. No início, segundo Viollet, ele não se exercia senão contra os estrangeiros desconhecidos e sem consideração, e não contra os estrangeiros conhecidos e considerados. Mas, pouco a pouco, estendeu-se a todos. Eis um singular progresso jurídico e bem às avessas do que se poderia predizer de acordo com as fórmulas em curso. Mas explica-se o fato, seja por considerações de ordem fiscal, seja, — eu creio, — em se relacionando sobretudo que, sob os merovíngios, malgrado a barbárie da época, a sobrevivência das estradas romanas e dos hábitos romanos de viagem multiplicava os contatos assimiladores com o estrangeiro e deixava ver ainda nele um compatriota social; ainda mais que o fantasma do imenso império reinava sempre nas imaginações. Mas, mais tarde, quando a feudalidade estabelecida encerrou cada feudo em si, sem comunicação com os de fora, estrangeiro e inimigo voltaram a ser sinônimos. Depois, nos séculos XV e XVI, o movimento de viagens, de relações internacionais e interfeudais é retomado, anima-se e conduz à supressão do direito de aubaine.

Às vezes a imitação parece não ter nada a ver em certas similitudes históricas que a identidade da natureza humana parece suficiente para explicar; e todavia é incontestável, de sua parte, e de larga parte, que ela tem ação. Porque, ao lado da imitação irradiante, existe a imitação difusa, e, ao lado da imitação em linha direta — por assim dizer, que reúne duas coisas uma a outra por uma série de cópias, — há a imitação colateral que, por séries do mesmo gênero, relaciona-as separadamente a um modelo comum, muito antigo às vezes. À forma difusa da imitação importa muito considerar. Assim, notam-se curiosamente similitudes surpreendentes que apresentaram a organização dos exércitos sob os imperadores dos últimos séculos, — caixa de dotação da armada, causas de exceção, exoneração mediante uma soma  em dinheiro variável, etc. — e sob o Império napoleônico. Tem-se observado também, e Taine[255] foi um dos primeiros, que a administração romana em geral, após a reforma de Diocleciano, parecia-se espantosamente com a que saiu pronta do cérebro de Napoleão. É de crer todavia que o grande corso haja copiado Diocleciano? Não diretamente ao menos. Mas como ele, e não menos que ele, estava romanizado e latinizado até a medula dos ossos pela educação clássica; e, independente de toda influência racial, não é surpreendente que esses dois grandes espíritos batidos pela sorte, semelhantemente à efígie de Roma e de César, hajam concebido o mesmo programa de reorganização militar e civil em conjunturas um pouco análogas.

Mostramos muitas vezes, mais acima, um outro gênero de ação indireta, de uma importância capital. O funcionamento prolongado da imitação em todas as ordem de fatos sociais tem-se exercido sobre o Direito, alargando incessantemente o círculo de simpatia e de fraternidade. A civilização, a bondade, a justiça jamais puderam florir aqui embaixo, senão no cercado, onde devem existir sem cessar, recuadas dentro de muros, até que estas plantas preciosas possam um dia ser cultivadas em plena terra. Nós não o veremos. Mas talvez possamos fazer observar a ação direta, imediata, da imitação sobre o Direito, quando ela tem a ele próprio por objeto. É através dela que, com o tempo, a unificação jurídica das diversas classes e das diversas províncias de uma nação não pode deixar de operar-se. Ela unifica as classes tanto quanto as províncias pela eterna tendência de o inferior imitar o superior. O costume jurídico dos grandes desce, através dos diversos estágios da nobreza, às últimas classes da plebe, e tende a fazer desaparecer a diversidade de seus costumes próprios. De modo semelhante, as grandes cidades passam suas legislações às pequenas, as pequenas aos burgos, e sua costumeira disparidade desaparece. As nações mais brilhantes irradiam-se do mesmo modo sobre as mais obscuras. Já indiquei acima a descida contagiosa do direito de primogenitura da nobreza ao povo. Retomemos este instrutivo exemplo. No início do período feudal, o direito de primogenitura e o direito de masculinidade, ligados conjuntamente, não se formularam no princípio com precisão, senão que para a sucessão real. Depois, os grandes senhores, a seu turno, e, após eles, todos os possuidores de feudos[256] modelaram-se sobre o rei. Todavia, os plebeus permaneceram ainda fora desse movimento. Nas colônias de São Luiz diz-se que o pai plebeu não pode avantajar a um de seus filhos, mesmo em face de móveis e de bens adquiridos. Dito de outro modo, os plebeus tinham então o privilégio de viver por antecipação sob o império de uma legislação igualitária e democrática. Tiveram eles a idéia de apreciarem sua felicidade? Não. Eles não tiveram senão o mais vivo desejo de copiar o exemplo retrógrado vindo do alto. A partir do século XVI, talvez antes, a plebe vangloriava-se de ter também o direito de fazer um primogênito. Em Béarn[257], a regra aristocrática estendeu-se à herança dos plebeus. Do mesmo modo, na Normandia “a indivisibilidade dos grandes feudos, consagrada pela Corte de Justiça[258] e pelo Grande Direito dos Costumes, estendeu-se, com os anos, aos simples subvassalos, aos feudos ordinários e aos plebeus com terras adquiridas mediante aluguel, mas que se poderiam adquirir a termo fixo[259], e, nesta província, a igualdade da partilha não era observada senão para os bens de herança plebéia[260], que formavam uma classe intermediária entre o feudo e o alódio.”

Não quero dizer por aí que a imitação haja sido aqui, não mais que em toda parte aliás, cega e desinteligente. Se se imita o superior, não é apenas por “sugestão”, é também por vaidade ou por um interesse familiar. Os pais plebeus julgavam o direito de primogenitura muito próprio a consolidar e elevar sua família. Mas não se deve esquecer que, se este objetivo, a perpetuidade e a ascensão social da família, entrou e ancorou-se em seu coração, a visão da nobreza não era estranha a esta preocupação, de nenhum modo espontânea entre os hilotas.  Qualquer que seja, aliás, a causa da imitação, é seguro que se imita e que, se não se houvesse imitado, jamais o direito de primogenitura reinaria em toda parte onde se o viu estabelecido no século XVIII.

Outro exemplo. “A retomada linear[261] introduziu-se primeiro apenas para os feudos e foi a seguir estendida às heranças tidas por plebéias, mas com o mesmo objetivo, para conservar as propriedades da família.” Vê-se, entre parênteses, pela maneira através da qual esta retomada veio às famílias plebéias, que é difícil olhá-la como um resto de um comunismo primitivo e soi-disant democrático. — Outro exemplo ainda. Nos países de direito consuetudinário, com a dissolução da comunidade, a mulher nobre tinha sozinha, originariamente, o direito de repudiar ou de aceitar a comunhão, fazendo inventário nos quarentas dias que se seguiam ao falecimento do marido. Mas, pelo final da Idade Média, “a prática tendeu desde então a estender-se à viúva plebéia, que viria a desfrutá-la definitivamente na reforma do Costume de Paris em 1580.

Segundo John (citado por Viollet), cada povo germânico tinha seu direito próprio; mas, pouco a pouco, quando se estabeleceu o Império Franco, um único desses Direitos, aquele dos francos, e aquele dos mais ilustres, dos francos sálios[262], a saber, a Lei Sálica[263] suplantou todas as outras. A unidade jurídica operou-se assim numa sociedade da mesma maneira que a unidade lingüística: todos os dialetos são expulsos sob o nome de algaravias pelo dialeto invasor da capital. — Num grupo de pessoas em contato, o mais civilizado comunica seu Direito a seus vizinhos por uma sorte de exosmose jurídica. É assim que, na Idade Média, o Direito Alemão penetrou na Boêmia e na Polônia. E ele introduziu-se primeiro pelas camadas mais esclarecidas da população, pelas cidades. O Direito de Magdebourg serviu de modelo à maior parte das cidades tchecas do Norte e a quase todas as cidades polonesas. — A influência italiana, na mesma época fez-se sentir na legislação dalmática.

De uma outra maneira ainda, em sentido diferente, a imitação trabalha para unificar o Direito. Uma língua que possui muitos tipos de declinações ou de conjugações termina, com o tempo, por dar preponderância a um desses tipos, objeto de imitação crescente, sobre o qual se declinam ou se conjugam desde então todas as palavras novas. Por que este modelo é imitado cada vez mais e, enfim, exclusivamente?  Unicamente porque ele era já um pouco mais imitado. A imitação serve aqui de razão suficiente a ela mesma. Em latim, a primeira e segunda declinações prevaleceram (rosa, rosae; dominus, domini). Em francês, a primeira conjugação. Também todos os verbos novamente criados conjugam-se sobre aimer, não sobre vieillir ou sobre recevoir. Diz-se hypnnotiser, magnétiser, dérailler; não se tem idéia de dizer hypnnotisoir, magnétisir, déraillir. É o mesmo em Direito. Quando um Direito possui muitos procedimentos próprios a alcançar um mesmo objetivo, — por exemplo, muitos modos de libertação de escravos, — um só dentre eles acaba por prevalecer e reduz os outros ao estado de velharias. Sob os merovíngios, havia na Gália sete ou oito maneiras de libertar, umas de origem germânica, outras de origem romana — pelo denário, pela lança, pela flecha, pela Igreja, pela carta. — Mas no século VIII, a libertação pela carta, quer dizer, por escrito, era a única usada. — Esta simplificação dos procedimentos, não sem relação, — vê-se, – com o abrandamento dos processos que foi questão mais acima, distingue-se todavia, do mesmo modo que a simplificação análoga das gramáticas não deve ser confundida com o abrandamento fonético. Porque, freqüentemente, não há motivo apreciável para preferir o procedimento ou a forma gramatical escolhida. Não se dá o mesmo com outros gêneros de unificação, onde a imitação aparece a serviço da razão. Por exemplo. No fim do Império Romano, vemos justaporem-se, de acordo com Fustel de Coulanges, muitas classes diferentes de agricultores: “escravos trabalhando em comum, escravos com posse especial de um feudo, pequenos fazendeiros livres, colonos fixados ao solo”. Ora, pouco a pouco, a última classe, modificando-se, estendeu-se progressivamente, porque ela pareceu apresentar mais vantagens, e afastou todas as outras. Na Idade Média, unicamente ela existia.

É curioso notar a maneira pela qual a imitação jurídica age no mundo especial dos magistrados e dos jurisconsultos. Aqui é altamente consciente e reflexa; e responde a uma necessidade de uniformidade e de estabilidade tão necessárias à segurança do sujeito à jurisdição, tanto que é, muitas vezes, obrigatória. Mas, não fosse ela, pode-se assegurar que se operaria da mesma forma. Entre as inumeráveis interpretações a que os textos legais, como os versículos das Escrituras, são susceptíveis, o juiz deve escolher; e se ele escolhesse arbitrariamente, em cada processo, sem preocupar-se com suas soluções passadas nem se detendo perante espécies análogas, para as Cortes superiores, a unidade da legislação não impediria a anarquia jurídica. Também o juiz é, necessariamente, essencialmente rotineiro; esta santa rotina — que se chama sua jurisprudência — é objeto de seu culto mais fervoroso[264]. Mas ele não está sempre preocupado no mesmo grau em não contradizer-se, em não desviar-se de sua linha e da de seus predecessores; ele o é cada vez menos, quando o espírito de conservação e de tradição abaixa na sociedade ambiente; e então, ele, de preferência e cada vez mais, cuida de decidir como a maior parte dos outros juízes, seus contemporâneos, quando não são eles mesmos seus superiores hierárquicos. Sua imitatividade incurável, e sempre inteligente, volta-se em direção ao novo modelo de preferência ao antigo; a moda torna-se-lhe mais cara que o costume, como ao próprio legislador a ao público. Porque a estabilidade da legislação não é um bem menor que sua uniformidade.  Mas não se aprecia mais a primeira em certas épocas, senão que aspirando à outra em outros tempos. Hoje, queremos muito ver leis uniformes para todos, para todas as classes e todas as províncias, mas nós as alteramos à vontade.  Outrora, aplicavam-se teimosamente as velhas leis costumeiras, mas suportava-se sem muita trabalho o fracionamento da França e a divisão em camadas da sociedade francesa numa multidão de diferentes leis. E bem: o juiz participa um pouco dessas mudanças de vento sobrevindas à atmosfera pública, de sorte que seu próprio gênero de imitação, por excepcionalmente racional que ela seja, não deixa de ser, em parte, uma sedução.

Pode-se ver ainda a prova no fato de que o juiz francês de nossos dias, não contente em conformar-se aos arestos de seus colegas ou aos seus próprios, esforça-se por tomar decisões conformes às opiniões teóricas expressas pelos comentadores acreditados de códigos. Ora, esse respeito um pouco supersticioso pelos “autores” compreender-se-ia muito bem da parte dos magistrados romanos, entre os quais nasceu. Os romanos não conheciam nada análogo às nossas coletâneas de arestos e, por conseguinte, àquilo que chamamos “jurisprudência”; eles não tinham, aliás, juízes permanentes. Foi, sem nenhuma dúvida, na falta desta autoridade reguladora de precedentes judiciais, que eles sentiram a necessidade de criar uma outra, atribuindo às respostas dos prudentes uma considerável importância. Nossos juízes da Idade Média e também do Antigo Regime, na falta de coletâneas de arestos regulamentares reunidos e publicados, deviam inclinar-se diante da opinião dos grandes juristas de seu tempo. Mas nossos juízes atuais, que podem abster-se desse modelo exterior, pois que eles têm o modelo interno, como se dá que respeitem a “doutrina” quase tanto quanto a jurisprudência?

Eis aí uma verdade dupla, a acrescentar às numerosas duplas jurídicas que Viollet finamente notou[265] e todas, de resto, são testemunhas eloqüentes a favor do poder da imitação. Porque, seguramente, podem-se encontrar excelentes razões para justificar, mesmo em nossa época, a submissão dócil de nossos advogados, os mais radicais e os mais inovadores, à autoridade de um Troplong ou de um Demolombe, dos quais uma citação faz ganhar ou perder um processo. Mas estejamos bem certos de que, se os romanos, nossos mestres, não elevassem à classe de leis as responsa prudentum, e, se nossos pais, a seu exemplo, não houvessem recolhido como oráculos as opiniões de um Dumoulin ou de um Pothier, uma meia dúzia de escritores jurisconsultos não se encontrariam hoje investidos, entre nós, do estranho direito, sem nenhum mandato, de dizer o Direito para todos.

 

III. Desempenho da invenção e da lógica. Desenvolvimento reputado análogo ao Direito Muçulmano e ao Direito Romano. Processo da lógica social. O gênio inventivo subordinado às grandes necessidades do organismo. Dualidade dessas necessidades fundamentais, de nutrição e geração; necessidade e dificuldade de harmonizá-las juridicamente. Convergências ou coincidências das morais.

 

Mas nem todas essas similitudes, mesmo de origem social, que apresentam as legislações ou, para melhor dizer, as atividades jurídicas dos diversos povos, têm a imitação por causa. Muitas erguem-se pela lógica. Se o homem é imitativo, é porque ele é inventivo; se a ação niveladora e contínua da devolução de exemplos persegue seu curso, dividida em milhões de rios, riachos e valetas que contribuem cada um para o que se poderia chamar de as formações sedimentares da civilização, é, eu repito, porque, de tempos em tempos, grandes ou pequenas inovações, montanhas ou colinas, têm surgido.  E, se o homem é inventivo, é porque ele é lógico. Lógico ou inventivo, é tudo o mesmo no fundo. Uma invenção, uma descoberta não é senão a resposta a um problema, e esta resposta consiste sempre em ligar uns aos outros, por relação fecunda de meio e fim, modos de ação precedentemente separados e estéreis, ou ligar uns aos outros pela relação não menos fecunda de causa à conseqüência, de idéias ou de percepções que, anteriormente, pareciam não ter nada em comum[266]. E é verdade que, em se fazendo, dessa sorte, confirmar ou entreajudarem-se idéias ou atos, crenças ou desejos, a invenção tem freqüentemente por efeito tornar inúteis ou incômodas as invenções anteriores e, por conseguinte, criar novas contradições ou contrariedades.  Mas faz-se então sentir, — mais ou menos viva e geralmente, segundo tempos e lugares, — a necessidade de remediar esse mal-estar, de promover entre eles acordos parciais. Esta é a obra dos fundadores de religiões ou dos filósofos na esfera da inteligência; dos moralistas e legisladores na esfera da atividade. Esta elaboração lógica não é também uma grande invenção, uma descoberta superior? Na medida em que experimenta a necessidade de descobrir e de inventar, segundo o sentido ordinário da palavra, um povo experimenta também a necessidade de coordenar originalmente suas descobertas e necessidades que foram suscitadas. E seus sistemas de filosofia, do mesmo modo que seus códigos, são máquinas grandiosas que fazem honra ao gênio humano, como o telégrafo elétrico ou a fórmula da atração. O legislador está para o engenheiro assim como o filósofo está para o sábio. Uns e outros são diferentes obreiros da lógica social; eles respondem, cada um por sua parte, a este problema maior que, como todos os outros problemas nascidos de nossas necessidades, renascem de suas próprias soluções, tornam-se paixão, depois se abrandam e se resolvem em repouso, para renascerem mais exigentes, inquietantes às vezes.

Ora, se existem razões para pensar que esse trabalho lógico, em se prolongando, deve chegar a resultados divergentes, característicos, artísticos; é também de crer que, sob muitos aspectos, seus efeitos serão fatalmente bastante semelhantes.  Essas similitudes serão de duas espécies: umas serão simplesmente formais; outras, substanciais.

Eis um exemplo das primeiras. Dareste sinala, en passant, entre o desenvolvimento do Direito Muçulmano e aquele do Direito Romano, uma similitude incontestável, mas que se trata de bem interpretar. Os grandes jurisconsultos árabes trabalharam sobre a base um pouco estreita do Alcorão, como os grandes jurisconsultos romanos, sobre o fundamento não menos estreito da Lei das Doze Tábuas. Aqueles, como estes, desenvolveram o Direito pela via da autoridade doutrinal, inovando sem cessar sob o pretexto de comentar. Hanifat, Malek, Chefeï e Hanbal, do VIII ao IX século, “criaram o Direito Muçulmano, como antes deles Sabinus e Labéon criaram o Direito Romano. Roma tivera os sabinianos e os proculianos[267]. O Islã teve os hanifitas, os malequitas, os chefeïtas e hanbalitas, todos igualmente ortodoxos”, mas de horizonte mais ou menos amplo. “Enfim, esse grande movimento terminou entre os árabes como em Roma. Em um certo momento, a criação parou e sobreveio a esterilidade.” — É muito justo. Mas, para ver bem o significado dessa aproximação, é necessário compará-la a muitas outras, na esfera jurídica ou mesmo fora dela. O Direito Hebreu desenvolveu-se de modo muito semelhante. Grandes rabinos elaboraram a Lei de Moisés, tornada pouco a pouco a Michná e o Talmude; eles fundaram escolas rivais e seu trabalho, enfim, parou, chegando a uma perfeição relativa. Do mesmo modo, em todo país que se civiliza, vêem-se gramáticos sábios elaborarem, depurarem, estenderem, fixarem a língua nacional, espécie de Alcorão caído do céu, do qual eles são os respeitosos e engenhosos comentadores ou falsificadores. Cada idioma cultivado tem seus Vaugelas, chefes de escolas divididas; e, em toda parte, após haver apaixonado os espíritos, — os nossos, na França em meio ao século XVII, — esta fermentação gramatical tem fim quando a perfeição relativa da língua parece obtida.  Da mesma maneira ainda em religião.  Sobre uma Bíblia ou um Evangelho trabalham, num dado momento, teólogos famosos que argumentam, comentam, coordenam, desnaturam, sistematizam, dividem-se em seitas ou em heresias até que, enfim, a ortodoxia é uma vez fixada. A era dos grandes teólogos e dos grandes heresiarcas encerra-se por um certo número de séculos ao menos.  O budismo, o bramanismo, o judaísmo, o islamismo, como o cristianismo, atravessaram esses períodos.

O que é preciso admirar aqui é, em toda ordem de idéias, a duração relativa de obras lógicas, de sistemas coerentes formados por uma longa e pertinaz reflexão ou por uma colaboração secular, qualquer que seja, aliás, a heterogeneidade de seus elementos importados de fora. Uma língua, sobretudo considerada em seu lado gramatical, é um desses todos lógicos; e sabe-se a persistente vitalidade das línguas, sobretudo de sua gramática, ainda mais que seu dicionário. Uma religião, quando é condensada em teologia, o que não se pôde fazer com o paganismo helênico, apresenta o mesmo caráter. Da mesma maneira, um código. Viu-se, através de invasões e catástrofes, o Corpus Juris reinar na Europa até os nossos dias. Fenômeno ainda mais notável, a Mischná, que é o Corpus Juris dos judeus, devida à elaboração dos grandes jurisconsultos hebreus, tem persistido e dura ainda, malgrado a dispersão do povo. Esta força de resistência inerente a tudo o que é sistemático, e esta tendência de toda coisa social a sistematizar-se, eis similitudes que nada têm de imaginário; e elas têm um caráter de universalidade e de profundidade totalmente diverso das semelhanças tão exageradas de idéias e de instituições entre civilizações heterogêneas.

Mas o que isso significa? Quer isso dizer que haja uma fórmula mágica de evolução por onde tudo seja forçado a fluir? Não. Isso quer simplesmente dizer que o homem é um animal lógico, e que sua necessidade de coordenação sistemática tem acessos de excitação seguidos de calma. Vemo-la nascer e crescer nele.  Ele se alimenta, durante certo tempo, de suas próprias satisfações. Dadas percepções incoerentes, o árabe, o hindu, o hebreu primitivos procuraram vagamente um acordo; um dia, eles acreditaram havê-lo encontrado, graças ao ensinamento religioso de um homem aclamado como divino ou semidivino; e, de pronto, sua sede de verdade, dita de crenças sistematizadas, de fraca que era, tornou-se muito forte. Também a elaboração lógica que produziu esta palavra divina e que explica seu sucesso não parou nela; continuou após ela.  Porque esta palavra apresenta obscuridades e, aplicada aos fatos, ela faz surgir mil dificuldades novas.  Trata-se de dissipar estas dúvidas, de completar a harmonia; nesta tarefa trabalham ansiosamente os teólogos.  Vê-se, eles não fazem senão prosseguir na obra do fundador de sua religião. Como ele, eles partem de dados contraditórios a conciliar; estes dados, para eles, teólogos, como para ele, fundador de uma religião, são fatos e textos. Depois, quando todos os meios possíveis de conciliação foram imaginados, o melhor é adotado: o monumento teológico parece chegar ao seu coroamento. — É isso bem verdadeiro todavia? Nós sabemos que cedo sobrevêm novos dados, observações e experiências científicas ou muitas idéias suscitadas pelo contato com religiões estrangeiras. Daí novos esforços para resolver esses novos problemas. E assim por diante.

Tratam-se de desejos e não de crenças a harmonizar? A lógica das sociedades não procede de outra forma. O coração humano nasce povoado de desejos tão incoerentes quanto suas idéias; fazer um mundo desse caos, transformar, seja no seio do indivíduo, seja, por conseguinte, no do grupo social, esta incoerência em mútua assistência, eis o problema que se colocou aos primeiros legisladores confundidos freqüentemente com fundadores de cultos. Ele é resolvido por uma lei reputada divina, Lei de Moisés, de Zoroastro, de Manou, de Maomé. Mas, após um certo tempo, novas necessidades, novos comandos íntimos engendrados pelas invenções civilizadoras, pelos contatos com povos estrangeiros, como ocorreu com Israel e com o Islã, tornam difícil conciliá-los com os comandos legais. Então, esforçam-se os jurisconsultos de um lado, os casuístas de outro, por dissimular as dissonâncias ou absorvê-las numa harmonia superior. Eles são reputados como quem não obra senão a extensão da venerável Lei; mas, na realidade, eles se esforçam por substituir em parte, às suas ordens, por ordens não menos imperiosas que ditam as novas necessidades. “Contornar a lei para provar que se a respeita” é máxima de uma prodigiosa antigüidade. Os rabinos trataram a Lei de Moisés como os pretores o jus quiritium. Como a prescrição relativa ao ano sabático — que, a cada sete anos, extinguia as dívidas — molestava bastante, começaram por demonstrar que havia algumas exceções à regra. “Ela não se aplicaria nem às mercadorias vendidas a crédito nem aos salários, nem às obrigações impostas pelos tribunais.” Depois, graças a esta última exceção, famoso Hilel[268], contemporâneo de Jesus Cristo, forneceu um meio de subtrair um crédito qualquer a esta prescrição sagrada: “O credor não precisa fazer mais que remeter seu título ao tribunal, que lhe dá em troca um título judicial.” — Pela via da ficção também, como observou Sumner-Maine, o Direito transforma-se um pouco em toda parte. Do mesmo modo que, em lingüística, o progresso se opera pela adição de um sentido figurado ao sentido próprio das palavras, da mesma maneira, em Direito, a adoção, parentesco figurado, acrescenta-se ao parentesco natural, etc. — Os autores destas engenhosidades fazem, definitivamente, a mesma coisa que havia feito o próprio autor da Lei, em a compondo: Maomé, por exemplo, não fizera senão refundir os antigo costumes árabes e apropriá-los à sua época. Depois, chegou momento em que o edifício da jurisprudência e da casuística parecia completo. Admira-se-o, diz-se-o inviolável, por tanto tempo quanto, ao menos, o estado social não é inovado. Mas quando esta renovação tem lugar, a elaboração lógica retorna mais bela, sempre a mesma, no fundo. Apenas parece que os legisladores modernos, diferentemente dos antigos, não têm em conta os precedentes legislativos. Todavia, isso não é senão uma vã aparência. A faculdade de tudo transtornar legislativamente, que pertence, em teoria, aos nossos deputados e senadores, não é senão nominal; eles são forçados a respeitar, numa certa medida, as leis antigas, os hábito jurídicos das populações e também a inspirarem-se em suas necessidades, velhas ou novas, que eles devem satisfazer de modo conforme a esses hábitos. De fato, sua onipotência aparente não é senão uma dócil obediência ou constrangimento a essas necessidades, a essas ordens de seus eleitores. Tais ordens são para eles o que eram para os rabinos os preceitos de Moisés ou, para os jurisconsultos árabes, as prescrições do Alcorão. Jurisconsultos antigos ou legisladores contemporâneos realizam, igualmente, ato de submissão a comandos superiores que eles elaboram de maneira lógica, submetendo-os, hierarquicamente, uns aos outros. Após o que, os textos votados e promulgados, nossos comentadores atuais, professores, juízes, conselheiros, fazem dizer, sob a forma de jurisprudência ou doutrina, uma multidão de coisas com as quais seus autores não sonharam jamais.

Em suma, a similitude da evolução, muito vaga e completamente formal, constatada por Dareste entre o Direito Muçulmano e o Direito Romano não é senão o caso de uma similitude muito mais vasta e muito mais prolongada; e ela consiste em que a evolução, em toda ordem dos fatos sociais, tem sempre por ponto de partida um certo número de percepções naturais ou de idéias ensinadas, de necessidades inatas ou adquiridas sobre as quais se exerce uma necessidade, por sua vez inata e cada vez mais desenvolvida, de coordenação lógica, ela mesma, com suas vicissitudes de excitação e de apaziguamento: de apaziguamento, quando está satisfeita por um tempo, por uma obra grandiosa e monumental; de excitação, quando novas idéias e desejos necessitam de um trabalho de modificação ou reforma. Apesar de tudo, Dareste não desconhece as profundas diferenças que separam ambos os Direitos por ele comparados. Porque é de observar-se que são, no fundo, os costumes pré-islâmicos e as leis primitivas de Roma que se parecem. À medida em que cada um desses Direitos se desenvolve, aumenta sua distância. O Direito Muçulmano não conhece distinção entre a posse e a propriedade, nem a prescrição, nem a hipoteca, nem as servidões, as quais substituiu pela idéia bem superior à concepção romana, de uma associação entre proprietários. Se a teoria das obrigações, em revanche, parece ser quase a mesma em ambos os Direitos, é porque os jurisconsultos muçulmanos as tomaram de empréstimo, na Síria, aos jurisconsultos romanos. Aliás, esta semelhança não é senão uma aparência enganosa[269].

Mas, além das similitudes que foram questão até agora e que apresentam o modo de ação da lógica social, há outras bem mais profundas que tratam da natureza dos objetos sobre os quais elas são exercidas. Novamente devem-se aqui multiplicar as reservas. — Eu não voltarei àquilo que disse a respeito de seu funcionamento silogístico. Um código pode ser considerado como a conclusão, mais ou menos bem tirada, de um gigantesco silogismo prático, do qual a maior é fornecida pelo estado das aspirações, das paixões, dos apetites numa dada sociedade, e a menor, pelo estado dos conhecimentos, das crenças, das idéias.  Logo, todo empreendimento, toda inovação, toda invenção que tende a modificar a maior ou a menor deve ter seu contragolpe legislativo. A menor é modificada pela aparição de novas crenças religiosas, de novas idéias filosóficas ou científicas. A maior, quer dizer, o objetivo perseguido, — que é sempre a consagração de uma hierarquia de interesses e de privilégios, – é modificada, seja em razão de guerras civis ou exteriores, de revoluções ou de conquistas devidas a táticas hábeis, a traços de gênio político ou militar, seja por mudanças econômicas devidas a invenções que, transformando as profissões, abalam o equilíbrio das necessidades. A evolução jurídica, pois, depende das evoluções religiosa, filosófica, política, militar, econômica, e ela não saberia ser una e predeterminada senão se as outras o forem também. Bem mais. Mesmo que cada uma delas estivesse sujeita a fases regulares, não se seguiria, necessariamente, que a primeira, que é sua combinação, tivesse o mesmo caráter de regularidade. Porque as evoluções elementares aqui são independentes e não paralelas, elas não marcham no mesmo passo; a evolução criada deve, pois, variar muito mais que qualquer de seus elementos. Uma religião pouco avançada, como no Egito, pôde coexistir com um governo assaz aperfeiçoado, uma indústria e arte maravilhosas; na Índia, é quase o inverso que se vê. Tudo isso prova que a divergência — (Sempre crescente? Não digo isso.) — das atividades jurídicas é inevitável. Mas, malgrado tudo, ela não ocorre sem concordâncias manifestas que têm a estreiteza pouco elástica do círculo em que é dado moverem-se o pensamento e a vontade humana, e onde eles são freqüentemente forçados a girar no mesmo sentido, como andorinhas aprisionadas.

O gênio inventivo está às ordens das necessidades que lhes colocam seus problemas. Ora, tais problemas, por diferentes que eles sejam, alinham-se sob um pequeno número de líderes, sempre os mesmos: o problema da fome e o problema do amor, a necessidade da conservação e a necessidade da reprodução por si tudo dominam. A cada um desses dois grandes pontos de interrogação relacionam-se linhas de problemas, fluindo em séries até um certo ponto irreversíveis. Da fome satisfeita, decorre a necessidade de vestimenta, depois de abrigo, depois de todos os gêneros de propriedade e de conforto. Do amor satisfeito decorre a necessidade de paternidade, da família, de um Estado forte, de todos os gêneros de associação. À medida em que se satisfazem melhor separadamente, nascem outras necessidades, superiores e mais livres: a necessidade de distrações e de artes e a necessidade de conhecimentos; a necessidade de simpatia imitativa e a necessidade de harmonia lógica, o amor à justiça e o culto do belo. Eu sei bem que a árvore genealógica desses problemas sucessivos é multiforme e pitoresca, como todas as árvores; eu sei bem que as soluções possíveis de cada um deles são numerosas e que é a natureza, sempre acidental em parte, da solução encontrada que determina ou especifica aquela do problema seguinte. Eu sei bem, além do mais, que as necessidades que vão crescendo sem cessar, — porque elas têm origem inteiramente social: necessidade de prazer e de justiça, necessidade de curiosidade e necessidade de beleza, — são, precisamente, os problemas suscetíveis das soluções mais numerosas e mais variadas, por conseguinte, é mais temerário procurar adivinhar de antemão como o amanhã as resolverá. Eu acredito também, em conseqüência, que, se os autores de codificações não tivessem uma pronunciada tendência a copiarem-se através das distâncias e das épocas, essas grandes tentativas de síntese prática difeririam provavelmente umas das outras, tanto quanto diferem dois sistemas filosóficos originais, o sistema de Descartes ou o sistema de Kant, aqueles de Platão ou de Aristóteles, de Hegel ou de Spencer, ou duas escolas de arte originais, a arquitetura grega e a arquitetura ogival, o canto gregoriano e a música de Wagner. E, de fato, se fizermos a abstração dos pastiches, constataremos que, no fundo, esses grandes monumentos do Direito são muito diferentes. Todavia, é-nos permitido afirmar que eles devem divergir cada vez mais, entregues a eles mesmos? Não parece que a elaboração lógica, em se prolongando, reconduz ou tende a reconduzi-los a uma similitude relativa, como se o esgotamento das invenções, das soluções menos perfeitas e menos viáveis, devesse conduzir as civilizações heterogêneas a se reencontrarem sobre um certo número de invenções mais perfeitas?

Questão insolúvel a todo rigor, do mesmo modo que a questão análoga que se coloca à filosofia natural: É ou não é inevitável que toda evolução biológica force a convergência em direção à produção de um organismo animal aproximado do tipo humano? Para responder, é necessário poder comparar a fauna dos planetas vizinhos ou distantes à nossa, faculdade que nos falta, que, infelizmente, nos faltará sempre, e que não nos faltaria se a ciência fosse verdadeiramente a razão de ser do ser, como tantos filósofos têm orgulhosamente pensado. A própria insolubilidade dessas questões fundamentais prova que o homem é feito para agir mais que para saber. Prova que se, — para consolar-se de sua impotência em não possuir jamais a plena verdade do pensamento, — ele aspira a realizar a beleza acabada da conduta, se não for à sua inteligência, é ao seu coração sobretudo que ele deve perguntar a regra de sua ação.

Aliás, se o quadro da verdade completa nos é velado, nós o percebemos em fragmentos.  Estamos certos, se certeza existe, que nossa geometria, nossa mecânica, nossa astronomia, nossa física, em seu estado incompleto, são verdadeiras; e devemos pensar que, não importa em que humanidade estelar, a evolução científica acabaria por chegar a teoremas idênticos aos nossos teoremas. Não existe também uma verdade moral que toda sociedade inevitavelmente formula um dia, onde todas as morais diversas vão desembocar como num golfo, e que faz com que Confúcio tão freqüentemente nos reedite Sócrates, Buda, o Cristo, e que o perfeito bravo homem de todos os tempos, Aristides ou Franklin, Epicteto ou Littré, Epaminondas ou São Luiz, o marabuto árabe ou o santo cristão seja, em toda parte, reconhecível nos mesmos traços essenciais, não diferindo senão pelo grau de abertura de seu horizonte intelectual e pelo raio da esfera de humanidade na qual se desenvolve? E não existe uma beleza, uma moral sublime, una e idêntica, para onde se orienta como a um pólo toda alma generosa de todos os cantos da Terra, que ora falhasse em ver aí a simples condensação, num instinto especial, de hábitos hereditários sugeridos por experiências de utilidade geral acumuladas ao longo do passado da humanidade, que ora, de preferência, esta orientação traísse também qualquer ação mais sutil e mais profunda, qualquer revelação do fundo divino das coisas? Parece, porque seguramente as inspirações do heroísmo são bem mais semelhantes entre elas que as inspirações do gênio; e parece mesmo também que esta verdade moral haja existido para o homem muito tempo antes da mais fraca aurora da verdade intelectual; e que esta beleza moral não tenha esperado, para manifestar-se, a aparição das belas-artes. Seguramente, esta estética superior da conduta, esta arte poética da vontade, têm de notável que todos os seus estetas se compreendam e simpatizem através dos tempos, enquanto os estetas das artes divergem sem cessar. E, enquanto nada se parece menos à música ideal do presente que aquela do passado, é sempre quase a mesma a harmonia das ações justas, é sempre quase a mesma a melodia dos sentimentos puros que nos cantam os grandes moralistas.

Mas a legislação não é a moral, não mais que a filosofia não é a ciência. A filosofia pretende preencher as lacunas da ciência; e eis por que ela difere tanto dela mesma de um sistema a outro. A legislação pretende substituir por regras precisas as máximas vagas e freqüentemente ambíguas da moral; e eis por que ela é cambiante de um código a outro, e ela sempre o será. É-nos suficiente, para prová-lo, sinalar a natureza proteiforme da capital dificuldade que se oferece ao legislador de todos os países e de todas as épocas, a saber, aquela de conciliar as duas grandes necessidades de nutrição e de geração, sob a forma social, mais ou menos desenvolvida, que elas revestem. No indivíduo, elas se combatem: a procura do alimento e a procura do prazer, a aprendizagem de uma profissão e o amor das mulheres redobram dolorosas lutas no coração dos jovens; e no coração dos pais de família, o dever de desenvolvimento pessoal é sempre presa do dever de devoção a outrem. Nas sociedades, eles não se combatem menos. Estendidos pelos contatos e exemplos sociais que o dividem e o subdividem ao infinito, o primeiro, a necessidade de conservação, enche nossos códigos de tudo o que contempla a propriedade e as obrigações, tais como a venda, locação, empréstimo; a segunda, de tudo o que dá trato ao casamento, à família, às corporações, às igrejas, ao Estado, a todas as diversas formas de associação que são criadas a partir do primeiro par conjugal. É necessário, para que o equilíbrio social seja assegurado, que, desses dois grandes ramos do desejo humano, o primeiro esteja sempre subordinado à segunda necessidade, quer dizer, que, — se o progresso industrial conduz a primeira a novas brotações, fortifica o egoísmo, aumentando o conforto, — o progresso moral suscita como contrapeso novas extensões artificiais da família, e fortifica assim o espírito de fraternidade, de abnegação, de amor. É tarefa própria ao legislador favorecer o crescimento destas últimas forças, eminentemente sociais, em toda parte onde se as vê manifestarem-se. Mais a indústria tem progredido e, com ela, o individualismo, mais deve o legislador secundar o espírito de devoção sob todas as suas manifestações antigas ou recentes, e não se limitar a superexcitar o espírito de patriotismo, ainda que a extensão dos sacrifícios à pátria, coisa digna de nota, aumente e agrave, paralelamente, os progressos do egoísmo. A pátria não seria suficiente para preencher o coração do homem social, e o legislador deve: defender primeiro a família, onde o coração se exercita com o sacrifício de si, aprende o gosto e o prazer de devotar-se; respeitar também todas as associações religiosas, industriais, civis, — que não sejam conspirações sediciosas, — e permitir o crescimento daquelas que quiserem nascer delas mesmas. Lembremo-nos do legislador antigo, tão patriota, mas tão pouco respeitoso dos lares, das gentes, das fhratries[270], das curias[271], de todas as confrarias quaisquer. Todavia a indústria rudimentar reprimia então as necessidades de conforto. Com mais forte razão, o legislador moderno, para lutar contra o industrialismo individualista de seu tempo, deve mostrar-se associacionista, se não socialista.

 

IV. O Direito e a Lingüística: analogias de desenvolvimento.

 

Bem entendido, o quadro restrito deste volume nos torna defeso entrar no detalhe de reformas tornadas necessárias pela mudança de nosso estado social, e nosso trabalho deve parar por aqui. Antes de terminar, todavia, insisto sobre a importância — às vezes ainda desconhecida — de estudar o Direito como um simples ramo da Sociologia, se se quiser apreender sua realidade viva e completa. Ele não é, aliás, um ramo qualquer dessa grande árvore que possa ser impunemente separado do tronco, e que não se abastece de seiva por seu ajuste em relação aos outros, em razão de múltiplas semelhanças e de diferenças não menos instrutivas, que esta aproximação faz perceber entre seus diversos modos de crescimento. Mas é sobretudo a evolução jurídica que demanda ser esclarecida desse modo: a rigor, o desenvolvimento de uma religião, de uma arte, de um corpo de ciências tal como a geometria, de uma indústria tal como aquela dos metais ou dos tecidos, pode ser explicado separadamente; não aquele de um corpo de Direito, porque o Direito, entre as outras ciências sociais, tem o caráter distintivo de ser, como a língua, não apenas parte integrante, mas espelho integral da vida social. As invenções lingüísticas, — que elas consistam em criar palavras novas ou novos sentidos de palavras antigas, ou novas construções de frases, — têm de particular o serem provocadas e exigidas pelo conjunto de todas as outras invenções.  A cada uma destas, que aporta sempre sobre a marcha verbal uma ação nova ou um novo objeto, deve sempre corresponder a criação de um signo vocal distinto. Existem assim, em outro sentido todavia, inovações jurídicas que nascem, senão para exprimir, ao menos para colocar, no grande escaninho dos direitos, cada nova forma de atividade introduzida por quaisquer inovações.

Eis por que chego tão freqüentemente, no decorrer deste estudo, a notar similitudes entre a marcha jurídica e a marcha lingüística de evolução da humanidade.  Similitudes curiosas, tanto mais quanto elas entram, evidentemente, na categoria daquelas que não têm como causa a imitação. A todas as analogias que indiquei de passagem mais acima eu poderia acrescentar muitas. Rebusquemos mais algumas, ao acaso, o quanto baste para dar às outras o gosto de colhê-las aqui. Esta será também uma pequena ilustração das verdades gerais por nós enunciadas.

O Direito e a Língua, sabe-se, são coisas imitativas e rotineiras em alto grau.  Nada se faz senão pelo jogo perpétuo e combinado de três formas de imitação: a imitação de outrem sob suas duas espécies: cópia do modelo contemporâneo (moda) e cópia do modelo antigo (costume); e imitação de si mesmo (hábito). Mas a que domina e dá o tom é, seja na Língua, seja no Direito, a influência costumeira. Quando o afluxo de novidades recebidas pela moda, aqui e ali, ultrapassa um certo grau, sempre muito baixo, a dificuldade de classificá-las e de assentá-las logicamente num sistema de noções ou de instituições depois de muito tempo consolidadas, produz uma crise, um mal-estar da legislação ou da língua; e é necessário que uma morra ou expulse violentamente a maior parte desses alimentos indigestos, tão apressadamente ingeridos. Também tem sido sempre impossível implantar e fazer viver, numa nação qualquer, mesmo a mais escravizada, uma língua ou um Direito constituídos de todas as peças, por lógica e artisticamente construídos que eles possam ser. Essas admiráveis construções definham logo que nascem, enquanto os amálgamas legislativos ou gramaticais do passado se obstinam em não morrer. Por quê? Precisamente porque a lógica é a suprema necessidade. Porque essa necessidade, para a língua como para o Direito, divide-se em duas que se combatem. E este combate faz toda a vida, toda a dificuldade, todo interesse de elaboração jurídica ou lingüística através dos tempos. Se não se tratasse senão de conciliar entre eles os elementos de uma legislação ou de uma linguagem, de maneira a criar um todo regular e coerente, seria bem fácil; mas, ao mesmo tempo em que o esforço dos gramáticos ou dos juristas ou, de preferência, o esforço de todo o público, conspire, ciente ou inconscientemente, de forma constante em direção a este arranjo lógico interno de uma gramática pouco a pouco depurada de suas exceções e de suas bizarrias, de uma codificação pouco a pouco regularizada e tornada simétrica, trata-se também e sobretudo de estarem as gramáticas e os códigos de acordo, e em acordo cada vez menos imperfeito, com a sociedade que eles devem reger.  Este último acordo, ele também, é um arranjo lógico em outro sentido da palavra, teleológico, para falar com propriedade. Ora, o estado da sociedade, se se abarcarem num olhar as idéias e as pretensões opostas que se justapõem, é sempre, em grande parte, ilógico e incoerente. Para um corpo de Direito, pois, como para um corpo lingüístico, o problema da evolução consiste em adaptar-se consigo mesmo, tanto quanto se pode fazer, adaptando-se a uma sociedade que jamais se adapta muito bem a ela mesma. Ele consiste, falando de outro modo, em realizar o lógico através do ilógico. Por conseguinte, existe sem cessar o perigo de sacrificar uma dessas duas aspirações paralelas e contrárias, e os gramáticos como os juristas, têm uma pronunciada tendência em fazer prevalecer abusivamente a primeira, enquanto o público, por felicidade, tem uma tendência inversa. Daí essas duas doenças diferentes, das quais o Direito e também a língua podem ser afetados: conciliarem-se com eles mesmos, mas não com o meio social, como uma constituição revolucionária ou como o volapuque[272], a mais regular das línguas; ou bem, conciliar-se com o meio social, mas não com eles mesmos, como a constelação confusa das leis inglesas ou a maior parte de nossas línguas européias.

Os lingüistas, após haverem suportado eles mesmos, — os primeiros, — a ilusão das fórmulas simplistas de evolução, deveram rejeitá-las: eles não acreditam mais, nós o sabemos, na necessária travessia dos três estados do monossilabismo, da aglutinação e da flexão. Mas eles não têm rejeitado essas generalizações vagas e falsas, senão para substituí-las por leis precisas e sólidas. E quando se vai ao fundo destas leis, o que se encontra? Uma simples aplicação das leis mais gerais da imitação, considerada como o procedimento elementar e universal da lógica social.

Por exemplo. Perguntai a Darmesteter[273] como se opera a mudança do sentido das palavras (abstração feita, no momento, da mudança de seu som). Ele vos dirá que, ora existe a extensão de seu sentido, seja por irradiação, seja por encadeamento, ora estreitamento e, finalmente, desaparição e esquecimento. O esquecimento desempenha um grande papel na evolução lingüística, como o desuso na evolução jurídica, a memória e o hábito sendo irmãos. O caráter simbólico de certos procedimentos, tais como as antigas formas da tradição, são inevitavelmente esquecidas com o tempo, como o caráter metafórico de certas expressões verbais; daí uma causa das transformações freqüentes para as palavras e os processos.  Há direitos e deveres que não mais se praticam, como palavras e construções gramaticais de frases que cessam de ser empregadas, apesar de ainda figurarem, por rotina, nos dicionários, nas gramáticas e nos códigos. Se se pudesse fazer um dicionário em oito volumes com nada além de palavras desaparecidas da língua francesa, duplicar-se-ia facilmente uma biblioteca com todas as legislações mortas, com todo velho vestuário jurídico da França. — Sem desaparecer, o sentido de uma palavra pode fechar-se por especialização; assim veste, hábito, após haverem significado vestimenta em geral, designam agora formas muito especiais de vestimenta; cátedra, de início, significou um assento qualquer. Ao contrário, pode existir a extensão pela via da generalização crescente; é o caso, notadamente, de todo substantivo próprio que acaba por tonar-se um substantivo comum, tal como renard[274], um Alceste, um Tartufo. Paralelamente, as instituições ou os procedimentos jurídicos modificam-se, seja por uma extensão, seja por uma especialização gradual de seu domínio. Como exemplo do primeiro caso, tem-se, no Direito Romano, os progressos do direito pretoriano, os progressos do procedimento baseado em formulários, o progresso do procedimento extraordinário. Como exemplo do segundo caso, pode-se citar a exclusão das mulheres da herança, exclusão geral, segundo o Direito Germânico, mas pouco a pouco distanciada e enfim restrita à hereditariedade monárquica.  Quanto às mudanças de sentido por irradiação ou por encadeamento, observemos que as mudanças de uso dos processos e das instituições jurídicas apresentam a mesma distinção muito aparente.  Existe irradiação, em sentido análogo àquele de Darmesteter, quando uma instituição tal como a homenagem ou o juramento, após não ser aplicada senão a um objeto, desenvolve-se, aplicando-se a uma multidão de outros. Existe encadeamento, quando uma instituição tal como o duelo judicial subsiste e sobrevive mudando de alma muitas vezes, como os substantivos romance e papel.

Ora, não é visível que tais modificações jurídicas ou lingüísticas, por acréscimo, decréscimo ou deslocamento, ergam-se, por sua vez, de uma mesma causa: o poder expansivo da imitação dirigido pela tendência geral ao acordo lógico, em ambos o sentidos da palavra? Com efeito, quando uma forma legal ou uma forma verbal se aplica a novos casos, cresce seu domínio, pois que, no grande concurso das formas existentes, todas mais ou menos rivais ou aliadas umas às outras, ela é favorecida pela superveniência de idéias ou de necessidades propagadas pela imitação, às quais é apropriada a exprimir ou a satisfazer. Ao contrário, quando ela se especializa, ou quando ela se transforma, é que, por conta de idéias ou de necessidades contraditórias que sobrevêm e são difundidas entre o público, ela luta com maior desvantagem contra suas rivais e é abandonada por suas aliadas.

Não retornarei sobre aquilo que já disse alhures[275] a respeito da distinção fundamental entre os dois modos de operação da lógica social ou mesmo individual, o duelo lógico ou o acoplamento lógico. Acredita-se haver dito tudo, quando se fala da luta pelo direito ou da concorrência vital das palavras de uma língua. Mas não se viu assim senão um lado da verdade, e ainda, de ordinário, se o viu mal. Sejam palavras, sejam direitos que se façam obstáculo, é entre eles que se deve escolher um, sacrificando o outro, — por exemplo, os sinônimos ou essas formas paralelas de ação oferecidas, ao mesmo tempo, pelo Direito Quiritário e pelo Direito Pretoriano, pelo Direito costumeiro e pelo Direito escrito, espécies de sinônimos jurídicos, — e há também palavras e direitos que se transportam seguros, seja porque se combinam numa nova criação, seja simplesmente porque um não se pode propagar sem apressar a propagação do outro.

No que concerne à luta pelo direito, observemos, primeiramente, que a expressão é equívoca. A luta contra as violações individuais de um direito existente e reconhecido não faz senão conservar o Direito, como o bom combate dos professores e dos críticos para a correção do estilo não faz senão conservar a língua. A luta que faz progredir o Direito e a língua é aquela que se engaja entre um direito ou uma palavra nova, em via de formular-se e fazer-se reconhecer, e um direito ou uma palavra antiga que se trata de destronar. Desse ponto de vista, Ihering tem razão em dizer que os progressos do Direito são, não pacíficos, inconscientes, sem esforços, mas, muitas vezes, obtidos ao preço de enérgicas afirmações e combates encarniçados. Apenas errou ao acrescentar que nisso a evolução do Direito difere por completo em face daquela das línguas. Ele parece acreditar que estas evoluem sem qualquer conflito. Todavia, não realizamos sempre, em falando, um trabalho e um combate lógicos, muito consciente, ainda que muito rápido? Desde a criança, para a qual falar bem é a principal preocupação intelectual, até ao escritor que se aplica com constância em escrever bem, não cessamos de procurar locuções justas, fortes, delicadas, de estudar o léxico e a gramática, e criticá-los, em os aplicando. Se a vida do Direito não é, numa boa metade, senão uma seqüência de processos terminados por julgamentos, ou uma seqüência de deliberações legislativas penosas, hesitantes, terminadas por promulgações de leis, o equivalente do processo, na vida das línguas, não é a escolha que fazemos a cada instante, mais ou menos rapidamente, às vezes com muito trabalho, entre duas expressões, entre duas construções gramaticais de frases que pretendem disputar nossa preferência? E não existe aí um séquito de argumentações internas, de pequenas deliberações, de pequenas sentenças?

Nós não podemos, sente-se, senão tangenciar esse vasto assunto. Façamos observar, terminando, que se se tentar abarcar num mesmo golpe de vista as sucessivas fases das diversas línguas, não se percebe em lugar algum uma tendência dessas diversas evoluções lingüísticas, contanto que elas permaneçam independentes, a convergir na direção de uma mesma língua ou de um mesmo estado final. A um resultado análogo nos conduz o estudo de diversas evoluções jurídicas. Tudo o que se vê claramente é uma tendência ao triunfo de uma só língua ou de um pequeno grupo de línguas, de um único Direito, ou de um muito pequeno grupo de Direitos, e de uma língua ou de um Direito comum a todas as classes da sociedade. Ora, esta é a dupla conseqüência inevitável da ação por longo tempo contínua da imitação. Mais se remonta ao passado, mais se descobrem idiomas distintos e costumes que tinham força de lei; ainda que, na origem, devam-se supor tantas línguas e tantos direitos quantas cidades[276]. Mas, à medida em que as relações entre os homens se multiplicam, a maior parte dessas criações lingüísticas e jurídicas, tão espantosamente multiplicadas, são rechaçadas ou destruídas, para que um pequeno número dentre elas, e nem sempre as melhores, devam às circunstâncias históricas, étnicas, geográficas, ainda mais que à sua superioridade intrínseca, o privilégio de se difundirem sobre o globo. D’outra parte, e simultaneamente, as mudanças são aportadas às línguas pelos empréstimos de palavras nobres ao estilo plebeu, de palavras literárias ao estilo ordinário, empréstimos irônicos freqüentemente, mas sempre imitativos, e estas mudanças correspondem, em Direito, às mudanças produzidas pela importação do direito de primogenitura às camadas plebéias, pela gradual extensão às classes inferiores de direitos quaisquer primitivamente reservados às classes superiores. Pouco a pouco, dessa sorte, estabelece-se uma língua igual para todos, do mesmo modo que um Direito igual para todos.

Fim


 

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Bibliografia Consultada

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Notas

[1] – Concepção que afirma serem as entidades da Lógica Matemática livres criações do pensamento, independendo de origens empíricas, e sustentadas pela clareza que lhes confere seu caráter intuitivo.

[2] – Doutrina que admite a independência e o primado do espírito com relação às condições materiais.

[3]L’Homo delinquente, por Cesare Lombroso, 3ª edição, Fratelli Bocca, 1884. Tradução francesa de Félix Alcan.

[4]Gabriel Tarde et la philosophie de l’Histoire, Vrin 1970, citado em entrevista concedida por JEAN-BAPTISTE MARANGIU EM 11/03/99, disponível na Internet.

[5] – JEAN-BAPTISTE MARANGIU EM 11/03/99, entrevista disponível na Internet sobre vida, obra e pensamento de G. Tarde. (GABRIEL TARDE\Revue d’Histoire des Sciences Humaines.htm).

[6] – G. Tarde. L’Opinion et la Foule, 2ª edição, Felix Alcan, Paris, 1904.

[7] – TARDE, G., La Philosophie Pénale, A. Maloine, Editor, Paris, 1903.

[8] – Público, Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário e Análise Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule (1901), por Marco António Antunes, Universidade da Beira Interior, BOCC — Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação.htm

[9]As Transformações do Direito, Capítulo VII, O Direito e a Sociologia.

[10] – G. TARDE, Les Lois de l’Imitation, 6ª edição, Félix Alcan, Paris, 1911.

[11] – Gustave Le Bon (1841-1931) foi médico, sociólogo e é conhecido especialmente por sua obra sobre a psicologia das multidões. Espírito curioso e universal, fundou a Bibliothèque de philosophie scientifique. L’Homme et les sociétés (O Homem e as Sociedades), publicada em 1881, empreende uma nova leitura da sociedade, abordando a Antropologia Social e Cultural que chamará “ciência do homem”. A obra apresenta o resumo do estado dos conhecimentos antropológicos ao final do século XIX, e o autor anuncia uma teoria do irracional (fábulas, mitos e lendas), assim como uma história das mentalidades que desenvolve na Psychologie des foules (Psicologia das Multidões). (Le Bon\L’Homme et les sociétés – Leurs origines et leur histoire.htm)

[12]A Revolução Francesa e a Psicologia das Revoluções. Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1922.

[13] – Público, Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário e Análise Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule (1901), por Marco António Antunes, Universidade da Beira Interior, BOCC.

[14] – FAGUET, Emílio. Iniciação Filosófica, Guimarães & Cia., Lisboa, 1915.

[15] – SPENCER, Herbert. A Justiça, Livrarias Aillaud & Bertrand, editado em Lisboa, sem data.

[16] – GAROFALO, R. La Criminologie — Étude sur la Nature du Crime et la Théorie de la Pénalité, Alcan, Paris, 1892.

[17] – Sobre este tema, vale citar aqui a interessante tradução sintética de João Corrêa de Oliveira, A Origem do Homem, de Charles Darwin, Magalhães Moniz Editor, Porto, sem data.

[18] – Público, Subjectividade e Intersubjectividade em Gabriel Tarde, Comentário e Análise Crítica de Le public et la foule in L’opinion et la foule (1901), por Marco António Antunes, op. cit.

[19] – Ward, Lester Frank (1841-1913). Sociólogo americano. Partidário da divisão da sociologia em duas grandes partes, a dinâmica e a estática, idéia que dividia com Auguste Comte e Herbert Spencer. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[20] – Ferdinand Julius Tönnies nasceu em Riep, Schleswig, na Alemanha, em 26 de julho de 1855. Na Universidade de Kiel, lecionou filosofia, economia, estatística e sociologia, mas foi demitido do cargo por denunciar o nazismo e o anti-semitismo. Presidiu por 24 anos a Sociedade Alemã de Sociologia, que ajudou a fundar com Georg Simmel, Werner Sombart e Max Weber. Morreu em Kiel, em 11 de abril de 1936. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[21] – Redfield, Robert (1897-1958). Antropólogo americano. Teórico do organicismo positivista, um dos primeiros a estudar o fenômeno da aculturação. Adaptou temas sociológicos à antropologia. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[22] – Marcel Mauss nasceu em Épinal, França, em 10 de maio de 1872. Era sobrinho de Émile Durkheim, que muito contribuiu para sua formação intelectual. As principais contribuições de Mauss consistem na aplicação e no refinamento teórico de conceitos desenvolvidos inicialmente por Durkheim, a quem sucedeu como editor da revista L’Année Sociologique, que circulou de 1898 a 1913. Morreu em Paris em 10 de fevereiro de 1950. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[23] – Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 28 de novembro de 1908. Sua maior preocupação é estabelecer fatos verdadeiros sobre a mente humana, mais do que sobre a organização social de qualquer sociedade ou classe particular. Alinha-se assim entre os antropólogos sociais que procuram, por meio de comparações, descobrir verdades fundamentais do comportamento humano em escala universal. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[24] – Adam Smith foi batizado em 5 de junho de 1723 em Kirkcaldy, Escócia. Smith chegou à conclusão de que todo sistema econômico em que existisse a livre atividade dos indivíduos se desenvolveria de forma harmônica, de acordo com um modelo de crescimento contínuo da riqueza geral do país. Dois séculos depois de sua morte em Edimburgo, em 17 de julho de 1790, Adam Smith permanece como uma das figuras mais destacadas da história do pensamento econômico, o primeiro elo de uma corrente em que se incluem autores fundamentais como David Ricardo e Karl Marx. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[25] – Thomas Robert Malthus nasceu entre 14 e 17 de fevereiro de 1766, em Rookery, Surrey, Inglaterra. Seu pai era amigo do filósofo David Hume e seguidor ardoroso de Jean-Jacques Rousseau. Em 1798, Malthus publicou anonimamente seu Essay on Population (Ensaio sobre a população), no qual afirma que a população cresce em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos aumenta em progressão aritmética. A solução para evitar epidemias, guerras e outras catástrofes provocadas pelo excesso de população, consistiria, segundo ele, na restrição dos programas assistenciais públicos de caráter caritativo e na abstinência sexual dos membros das camadas menos favorecidas da sociedade. Malthus morreu em Saint Catherine, Somerset, em 23 de dezembro de 1834. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[26] – ...”é justamente nesta tara, que torna duráveis, que perpetua as tendências embrionárias para o crime, que reside a natureza teratológica e mórbida do criminoso nato; quando esta tara patológica, hereditária, não existe, as tendências criminosas embrionárias atrofiam-se, como se atrofiam num corpo bem munido de órgãos embrionários, — o timo, por exemplo. Magnam, depois de haver negado os criminosos natos, apresenta-nos, ele mesmo, uma série de casos. Não acredito que o faça para colocar-se, ele próprio, em falta. Certamente, se é para demonstrar que são hereditárias, nos filhos de alcoólatras, não faz senão repetir o que já afirmei em minha edição italiana e o que disse, antes de mim e melhor do que eu, Saury, Knetch, Jacoby, Motet e o primeiro de todos, Morel.” LOMBROSO, César. O Homem Delinqüente, Ricardo Lez Editor, Porto Alegre, 2001.

[27] – Cooley, Charles Horton (1864-1929). Sociólogo americano. Teórico do interacionismo simbólico, considerou a importância do eu e da personalidade no fato social e aprofundou o estudo das teorias grupais. Obras: Natureza humana e ordem social (1902), Organização social (1909). Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[28] – Mead, George Herbert (1863-1931). Filósofo e sociólogo americano. Principal representante do pragmatismo no país, com sua teoria que chamou behaviorismo social. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[29] – Charles Wright Mills nasceu em Waco, Texas, nos Estados Unidos, em 28 de agosto de 1916. Mills aplicou a teoria do determinismo econômico de Marx e Weber, segundo a qual as relações de produção determinam, em última instância, a composição de classes e os elementos da superestrutura de uma sociedade. Morreu em Nyack, estado de Nova York, em 20 de março de 1962. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[30] – Max Weber nasceu em Erfurt, Prússia, em 21 de abril de 1864. Em 1918, Weber participou, depois de terminada a primeira guerra mundial, da elaboração da constituição da república de Weimar. Morreu em Munique, em 14 de junho de 1920. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[31] – Um dos mais importantes antropólogos do século XX. Bronislaw Kasper Malinowski nasceu em 7 de abril de 1884 em Cracóvia, Polônia. Formou-se em filosofia pela Universidade Jagelloniana de Cracóvia, em 1908. Malinowski conquistou renome nos círculos antropológicos com ensaios sobre os aborígines australianos. Na segunda guerra mundial engajou-se na defesa da Polônia. Malinowski atraiu também a admiração de cientistas de outras áreas, como psicologia e lingüística. Reconhecia seu débito para com os sociólogos europeus, sobretudo Émile Durkheim, Marcel Mauss e outros da escola francesa, mas a suas noções abstratas preferiu um enfoque mais centrado no indivíduo, que julgava mais realista. Afirmava que todo costume, objeto material, idéia e crença preenche uma função vital, tem um objetivo e é parte indispensável de qualquer civilização. O antropólogo deve entender tais funções e relações para compreender a cultura. Malinowski incentivou estudos sobre mudanças sociais e culturais e programas educacionais para missionários e assistentes sociais. Morreu em 16 de maio de 1942 em New Haven, Connecticut, Estados Unidos. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[32] – Alfred Reginald Radcliffe-Brown nasceu em Birmingham, Warwick, Inglaterra, em 17 de janeiro de 1881. Entre 1906 e 1912, realizou pesquisas antropológicas nas ilhas Andaman, a sudoeste da Indochina, e na Austrália ocidental, a fim de estudar os sistemas de parentesco e a organização familiar dos povos aborígines. Radcliffe-Brown reclamou a condição de ciência para a antropologia e para as demais disciplinas das sociedades humanas. Morreu em Londres, em 24 de outubro de 1955. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

[33] – Francisco Bopp foi um filólogo alemão (1791-1867), estudante das línguas industânicas e professor de filologia e sânscrito na Universidade de Berlim. É considerado o fundador da filologia comparada. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[34] – O sânscrito foi descrito e codificado pelo gramático Panini no século V a.C. Descobriram-se semelhanças entre esta língua, o latim e o grego, descoberta esta que pode ser considerada como responsável pelos avanços da filologia no Ocidente em fins do século XVIII. Trata-se de uma língua indo-européia do ramo indo-ariano. Os quatro Vedas foram escritos em sâncrito (1200-900 a.C.). Entre os séculos VI a.C. e XI d.C., tornou-se a língua da literatura e da ciência hindus. É mantida, ainda hoje, por razões culturais, como língua constitucional da Índia. (Dicionário Aurélio Século XXI, 2001). Além disso, pode-se acrescentar que o sânscrito converteu-se, juntamente com o latim e o grego, no modelo fundamental para a reconstrução do indo-europeu original ou proto-indo-europeu. Sua gramática possui traços muito semelhantes aos da grega e da latina, tais como seu caráter flexivo, segundo o modelo raiz-tema-desinência, e sua complexidade sintática. (Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações) (N. da T.)

[35] – Max Friedrich Müller (1823-1900). Lingüista e historiador. Seria alemão, de acordo com a Encyclopaedia Britannica do Brasil, ou inglês, conforme Enciclopédia Brasileira Mérito. Dedicou-se ao estudo do sânscrito desde a juventude e realizou um estudo comparativo das mitologias indo-européias, concluindo que elas provinham de um mesmo tronco ariano primitivo. Max Müller pensou ter encontrado na mais antiga literatura hindu, sobretudo nos Vedas, as formas primitivas das crenças e dos mitos, e pareceu-lhe que as divindades eram, na origem, nomes dados às forças naturais. Imaginou que os “homens primitivos”, impressionados pelos fenômenos da natureza, haviam começado por dar-lhes nomes, e que estes nomes gradualmente tornaram-se pessoas: o espírito primitivo considerado incapaz de representar as abstrações. Assim, a vida do universo dramatizara-se progressivamente. Max Müller tentou dar exemplos concretos desse processo. Como a luz do sol é a fonte de toda vida e atividade, ele foi levado a dar aos “fenômenos solares” uma importância capital. Para ele, a luta de Zeus (em cujo nome está a raiz que significa dia) contra os Titãs não é senão o drama cotidiano e a vitória da luz sobre as trevas. As formas monstruosas dos Gigantes seriam as névoas da Noite. Tifon seria a tempestade. Atenas seria a luz virgem do dia ao amanhecer. Hefestos, o ferreiro, o sol levante: o disco de ferro vermelho saído da forja divina. Héracles ou Hércules, por sua vez, torna-se um mito solar por excelência, através dos doze trabalhos que seriam os doze signos do zodíaco, ou seja, as doze etapas percorridas pelo Sol durante o ano. Assim, pouco a pouco, a mitologia inteira, através de etimologias incertas, — os “trocadilhos inconscientes referidos por Gabriel Tarde, — achou-se reduzida a uma vasta meditação sobre a chuva e bom tempo. Evidentemente, tratam-se de idéias simples demais. Hoje está demonstrado que os mitos não provém de uma enfermidade de linguagem. Verificou-se que as interpretações alegóricas, ao aplicarem aos mitos os fenômenos meteorológicos, estão longe de ser primitivas. Resultam, sim, de especulações tardias: Jano, por exemplo, um deus romano, só foi considerado como o símbolo do ano a partir dos pitagóricos de Roma, o que não se deu antes do primeiro século antes de Cristo, ao passo que o próprio Janus já existia há muito tempo. Na religião egípcia, o mito de Ísis e Osíris, — mito solar por excelência, — não é primitivo sob sua forma canônica, mas resume uma teologia completa longamente elaborada. Pierre GRIMAL. A Mitologia Grega, 2ª edição. Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1958. (N. da T.).

[36] – Do grego Euhémeros; latim, Euhemerus ou Evemerus (300 a.C.), filósofo e historiador grego, mais -ismo. Doutrina segundo a qual as personagens ou heróis mitológicos são seres humanos divinizados após a morte. Dicionário Aurélio Século XXI, 2001. (N. da T.).

[37] – Friedrich Wilhelm Karl Heinrich Alexander von Humboldt nasceu em Berlim em 14 de setembro de 1769. Atraído desde jovem pelas expedições científicas, renunciou ao cargo de inspetor de minas e, em maio de 1799, partiu de Madri, com o botânico francês Aimé Bonpland, para a América. A maior parte da fortuna que herdou foi gasta nessa viagem e na publicação de suas obras. Publicou Voyage de Humboldt et Bonpland aux régions équinoxiales du nouveau continent, fait en 1799-1804 (1805-1834), em trinta volumes, e Kosmos, Entwurf einer physischen Weltbeschreibung (1845-1862, Cosmos, ensaio de uma descrição física do mundo), em cinco volumes, concluídos aos 86 anos do autor e síntese de seus conhecimentos. Morreu em Berlim em 6 de maio de 1859. Encyclopaedia Britannica do Brasil. (N. da T.).

[38] – João Luiz Armando de Quatrefages de Bréau foi matemático (graduado antes do 20 anos), antropólogo, zoólogo, etnólogo e médico francês (1810-1892). Seus célebres dons de erudição atraíram a atenção de todos, e afirma-se que jamais foi superado como professor de Antropologia. Foi Presidente da Academia de Ciências da França. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[39] – Qualquer hipótese ou teoria que afirma que determinada entidade, ser ou conjunto de seres não tem origem única e resulta de múltiplos processos, independentes entre si, de formação ou desenvolvimento. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[40] – Relação entre os fenômenos pela qual estes se acham ligados de modo tão rigoroso que, a um dado momento, todo fenômeno está completamente condicionado pelos que o precedem e acompanham, e condiciona com o mesmo rigor os que lhe sucedem. Quando relacionado a fenômenos naturais, o determinismo constitui o princípio da ciência experimental que fundamenta a possibilidade de busca de relações constantes entre os fenômenos. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[41] – É de observar-se aliás que, em todos os tempos, a refundição legislativa, o enxerto de novas idéias na árvore jurídica iniciou-se pelo ramo penal, a primeira manifestação e sempre a mais em evidência.

[42]Études d’histoire du Droit, por Dareste, do Instituto (Lerose et Forcel, 1889).

[43] – Jurisconsulto e historiador inglês, seu nome completo era Henrique James Sumner-Maine (1822-1888). Foi um dos primeiros a lecionar Direito Romano na Inglaterra, e sua obra Direito Antigo (1861) teve muita repercussão. Também estudou as condições jurídicas e sociais da Índia, onde esteve de 1862 a 69, como membro do conselho do vice-rei. Em Governo Popular, 1885, provocou acirrada polêmica, porque Sumner-Maine, baseando-se no método histórico, negou a teoria do contrato social de Rousseau. Sua obra foi considerada antiliberal. Recebeu o título de Sir. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[44] – Herbert Spencer nasceu em Derby, Derbyshire, Inglaterra, em 27 de abril de 1820 e adquiriu, como autodidata, uma boa formação científica. Dedicou-se ao estudo dos fenômenos sociais, que tratou sob perspectiva científica. Spencer indica a possibilidade de, por meio do princípio da evolução, oferecer explicação total da realidade, bem como realizar a síntese das diferentes ciências. Concebeu a realidade toda como produto do desenvolvimento perpétuo de uma força de caráter incognoscível manifestada na evolução do que é de início homogêneo, indeterminado e simples, para a heterogeneidade, determinação e complexidade. Processo semelhante observa-se-ia nas sociedades humanas, que teriam evoluído das hordas primitivas para as sociedades militares, cuja coesão se baseava na força, até chegar às industriais, baseadas em contrato voluntário entre indivíduos. Spencer preconizou um modelo liberal sem nenhum tipo de intervencionismo estatal como única forma de respeito à liberdade individual. Morreu em Brighton, Sussex, em 8 de dezembro de 1903. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[45] – Por exemplo, Letourneau, autor de L’Évolution Juridique (1891) e Giuseppe d’Aguanno de quem o livro intitulado La genesi e l’Evoluzione del Diritto Civile secondo le Resultanze delle Science Antropologiche e Storico-sociali (Turin, 1890) deu lugar a que dele nos ocupássemos algumas vezes. Citemos ainda, de um autor de uma outra ordem de idéias, a obra de Ibering sobre a Lutte pour le Droit. Já é tempo que a famosa “luta pela vida” encontre uma palavra a dizer em legislação.

[46] – Numa Diniz Fustel de Coulanges, historiador francês (1830-1889). Lecionou História em várias escolas francesas. Em seus escritos, procurou diminuir a importância que se atribuía à influência alemã na formação da tradição histórica francesa. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[47] – O culto excessivo e exclusivo do documento escrito conduziu esse grande historiador, no fim de sua carreira, ao preconceito que o tornou injusto à vista das descobertas de outros. É curioso, por exemplo, vê-lo então censurar, a Laveleye, a Glasson, etc., o emprego do método comparativo que, precisamente, lhe valeu sua obra maior, a Cité Antique.

[48] – Esse desejo traduz a expressão empregada por um antropologista distinto, Manouvrier.

[49] – Ver, por exemplo, a obra acima citada de d’Aguanno.

[50] – Em biologia, transformismo significa a doutrina segundo a qual as espécies se formam por sucessivas transformações de organismos anteriores. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.)

[51] – É-se muito levado a confundir o liame verdadeiramente rigoroso de causa e efeito, de condições a condicionado, com o liame muito mais brando e flutuante de fase à fase numa evolução qualquer.

[52] – De acordo com Dr. Weissmann (Essais sur l’Hérédité, 1892), os seres vivos monocelulares são imortais; eles segmentam-se, mas onde está o cadáver? A morte não seria senão uma “invenção prática” mas bastante recente da vida. Delboeuf tem também muito curiosas e profundas considerações sobre isso (La Matière Brute et la Matière Vivante).

[53] – Desejar-se-ia-se saber, diz Espinas, se as populações (animais) se desorganizam e morrem por elas mesmas ao cabo de um período limitado como os indivíduos mais simples que as compõem. Nós não pudemos recolher qualquer observação que o estabelecesse. (Société Animales, p. 513).

[54] – Camilo Dareste foi um naturalista francês (1822-1899). Foi um dos primeiros a ocupar-se de morfologia experimental, que ele denominou teratogenia. É considerado um dos precursores da moderna orientação experimental em Embriologia. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[55] – O termo é atualmente evitado pelos antropólogos, por ser considerado impreciso e pouco fundamentado, além de ter conotação depreciativa. (N. da T.).

[56] – Trata-se do prefaciador de L’Homme Criminel (O Homem Delinqüente), de César Lombroso, traduzido para o francês a partir da 4ª edição italiana, Félix Alcan, 1887. Neste prefácio, vê-se com clareza a posição de Letourneau sobre a origem do sentimento de justiça: ...”o primeiro móvel que suscitou, na consciência de nossos ancestrais selvagens, um vago sentimento de justiça foi simplesmente a necessidade de defender-se, o movimento reflexo que, no homem e no animal, faz instintivamente devolver golpe por golpe. No animal, ele resulta em atos maquinalmente executados que não deixam na consciência senão traços fugidios. No homem, por grosseiro que ele seja, mas vivendo em sociedade, a repetição das agressões e das resistências acaba por gerar a idéia de contrabalançar, mais ou menos exatamente, os agravos sofridos e as vinganças satisfeitas. Formulou-se então a grande lei da justiça primitiva, a lei do talião, tão bem resumida no adágio semítico: olho por olho, dente por dente. Esta lei do talião, nós a reencontramos, no tempo e no espaço, em todas as raças pouco desenvolvidas”. (N. da T.)

[57] – D’Aguanno, — devo convir, — assina à idéia moral uma data muito recuada. Ele nos ensina que “o sentimento do justo e do injusto apareceu somente no fim da era quaternária” (ver seu livro, p. 114). E ele faz ver todas as conseqüências que deduziu desse dado tido como incontestável.

[58] – Mitologia grega. Etéocles era Rei de Tebas, filho de Édipo e Jocasta e irmão de Polinice e Antígona. Concordou em ceder o trono a seu irmão Polinice em anos alternados, mas faltou à promessa, e os irmãos digladiaram-se até a morte. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[59] – O natural ou o habitante da Cabília (Argélia, Norte da África). (N. da T.)

[60] – Povo oriundo do Cáucaso Central. Na Bética, ficou representando os alanos. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[61]Wergeld ou vehrgeld é palavra de origem alemã derivada de wehr, defesa e de geld, dinheiro. No Direito Germânico e na França, durante a época franca, constituía-se na indenização que o autor de um fato danoso pagava à vítima deste fato, ou àqueles que tivessem direito, para assim subtrair-se à vingança privada. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[62] – Como o sentimento dessa profunda distinção entre o tratamento do compatriota e a conduta em relação ao estrangeiro faltaria nos homens primitivos, quando nós constatamos sua existência nas sociedades animais? “As abelhas, — diz Letourneau, — são muito gulosas, respeitando sempre (Sempre? Quem pode assegurar?) as provisões de reserva acumuladas nos alvéolos de sua colmeia, mas de sua colmeia somente, porque muitas dentre elas tentam se introduzir para pilhar as colmeias estrangeiras, a despeito das sentinelas... ou bem elas armam emboscadas nas vizinhanças de uma colmeia rival para assaltar, na passagem, as abelhas saqueadoras...” Tal deve ser, tal é a tribo primitiva. Nenhum ou quase nenhum dos crimes e delitos interiores, mas os exteriores todos parecem permitidos.

[63] – É bom fazer esta observação para prevenir o erro dos escritores que, sempre que vêem num código antigo uma penalidade inspirada pelo espírito do talião, apressam-se muito vivamente em ver aí um espírito de vingança e uma prova irrefragável de costumes ferozmente grosseiros. — A vingança é o único modo de repressão prática, lá onde uma força pública exterior e superior às tribos faz falta. É, aliás, um dos mais eficazes remédios contra o delito que jamais se imaginou, e eu não sei se os criminalistas utilitários, em lugar de tanto denegrirem este costume bárbaro, não deveriam, logicamente, propor seu restabelecimento. Um dia ou outro, se a série de bombas anarquistas não parar por ela mesma, perceber-se-á que o único modo eficaz de repressão é o de retornar ao antigo procedimento de represálias. Para lutar contra essa selvageria, devem-se restaurar esses costumes selvagens. Por tanto tempo quanto, na Argélia, mesmo após nossa conquista, esses costumes reinaram, usufruiu-se, com pouca despesa — diz Seignette, muito competente a esse respeito — “de uma segurança muito satisfatória para pessoas e bens”. Mas depois que, politicamente, a administração francesa acreditou dever esforçar-se para suprimir, com a condição sine qua non, essa vingança familiar, empenhando-se em “desagregar a tribo”, constatou-se que “em toda parte onde seus esforços foram coroados de sucesso, a segurança desapareceu, sem que a organização normal da polícia pareça hoje suficiente para restabelecê-la”. O problema penal seria melhor resolvido por esses primitivos que por nós? (Ver Código muçulmano de Khalil, trad. francesa de Seignette, introdução.) O mesmo autor diz além do mais: “É fora de dúvida para que se dê ao trabalho de comparar as estatísticas criminais da França e da Argélia. Os crimes violentos... são muito menos freqüentes entre os árabes que entre os europeus à vista da proporção populacional.

[64] – A primeira palavra pronunciada pelos antigos legisladores, diz Dareste, foi a supressão da vingança privada... Num certo momento, o Estado constitui-se e eleva-se a mediador e pacificador.

[65] – Nas penalidades chinesas, não encontro nada que traia o desejo de tornar a pena semelhante à falta, senão quando o assassino é punido de morte. Aliás, por não importa que outra falta, — injúria, difamação, roubos, incêndios, — infligem-se golpes de bambus, como fazem os pais por todo pecadilho, fustigando sua progenitura.

[66] – Não assistimos nós, nesse momento, uma recrudescência desses crimes de ódio, de ódio individual e sobretudo de ódio coletivo?

[67] – O ordálio é prática quase universal entre povos primitivos. Toma múltiplas formas. Em bramanismo, por exemplo, há dez, sendo os principais o das escadas e pesos, o do fogo, o da água e o do veneno. Quando a perspicácia humana é incapaz de encontrar o culpado, existiria nas coisas um poder intrínseco que revelaria a iniqüidade e reivindicaria a justiça. Em termos mais filosóficos, no ordálio, a natureza das coisas falaria quando consultada: a vontade divina intimamente vinculada à ordem social. MICKLEM, Nathaniel. La Religion, Fondo de Cultura Económica, México-Buenos Aires, 2ª edição 1950. (N. da T.)

[68] – Chama-se Avesta ao conjunto de textos sagrados primitivos dos povos iranianos. A palavra deriva do idioma avéstico masdâo, e significa onisciente, caráter atribuído ao deus Aúra, mais o sufixo –ismo. Foi daí que se originou o masdeísmo, religião antiga dos iranianos caracterizada pela divinização das forças naturais e pela admissão de dois princípios em luta, aúra-masda e arimã, espécies do bem e do mal. O Avesta é também conhecido como Zendavesta. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[69] – “Os ordálios são, de qualquer sorte, as perícias divino-legais. Eles correspondem à fase mitológica do espírito humano, como as nossas perícias atuais começam a corresponder à sua fase científica que apenas começa. (...)Quando, por exemplo, sempre religiosas, mas voltadas ao delírio divinatório, as populações européias dos séculos XII e XIII cessaram de depositar fé nos duelos judiciais e em outras provas quiméricas, um positivismo relativo fez-se sentir também na escolástica, secamente racional, estritamente aristotélica desses tempos, a exigir o emprego de um meio mais racional de intuição do processo: o sistema inquisitorial. Todavia, esses tempos de racionalismo seco e duro tinham sua superstição especial, a superstição da força, e é através da força que ele pretende descobrir a verdade, pela força dos silogismos de escola em teologia, pela força da tortura em justiça criminal.” TARDE, Gabriel. La Philosophie Pénale, Maloine, 4ª edição, Paris, 1903. (N. da T.).

[70] – Desse juramento merovíngio ao nosso juramento judicial atual até o nosso juramento decisório notadamente ou àquele que é exigido de nossas testemunhas não há senão um passo, e a transição é fácil de seguir. Assim, nosso juramento, ele mesmo, é um resto dos julgamentos de Deus e não mais uma forma.

[71] – Na literatura da Índia, tratado onde se reúnem, sob a forma de breves aforismos, as regras do rito, da moral, da vida cotidiana. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[72] – As citações e informações anteriores foram todas tiradas do livro de Dareste.

[73] – Constituíam os hovas a classe aristocrática da raça malásia. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[74] – Ver Letourneau, p. 43 e seg.

[75] – Eu passo por alto as diferenças mais superficiais. Entre os aborígenes da Índia, o juramento judicial é prestado sobre a pele de um tigre ou de um lagarto; na Sumatra, sobre o túmulo de um ancestral; entre os germanos, primitivamente, sobre as espadas consagradas aos deuses e, após sua conversão ao cristianismo, sobre as relíquias dos santos, como ainda sobre o Evangelho ou sobre o Corão. As mulheres germanas juravam sobre o próprio peito. Por insignificantes que possam parecer essas particularidades, elas não revelam menos divergências essenciais na maneira de conceber a hierarquia das coisas respeitáveis.

[76] – Para as causas de recusa de testemunhas, observa-se uma inversão análoga. Entre os árabes (v. Seignette, obra citada), de acordo com o código muçulmano, é o parentesco das testemunhas com o acusador, mas não com o acusado, que permite recusar seu testemunho; precisamente o inverso do que tem lugar entre nós. Esta diferença se atém ao sistema acusatório; e, como o progresso das comunicações, a extensão do grupo social, deve inevitavelmente substituir, um dia, a acusação privada pela acusação pública, pode-se acreditar também que a passagem do modo árabe de recusa até o nosso é irreversível. Entre nós ainda, quando a ofensa apresenta-se como partie civile, último resto subsistente do procedimento acusatório, não pode ser ouvida como testemunha dos fatos dos quais foi a vítima.

[77]Histoire du Droit Français, p. 26.

[78] – A respeito do duelo, encontramos, em Mantegazza, a referência que segue: “Os tratadistas definiram o duelo um combate singular, de homem a homem, em tempo, modo e lugar determinado, ao árbitro dos combatentes, em conseqüência de um desafio por palavras e por escrito. De todas as definições, a mais concisa e, ao mesmo tempo, mais exata é a que dá Ellero: o duelo é um combate privado e convencional por pontos de honra. Hoje, na nossa sociedade moderna, há três opiniões diversas sobre o valor moral do duelo. Uma pequena minoria o defende, o exalta, dele faz a panacéia de todas as baixezas humanas, a única e segura salvaguarda da honra, uma ginástica salubre de coragem e delicadeza. Outros, o maior número, admitem o duelo como uma dolorosa necessidade que defende de maiores males. Não se devem procurar as ocasiões, mas, dadas elas, aceitá-lo. Esta grande maioria não se lembra que, pensando assim, põe o duelo na mesma linha que a prostituição, vergonha tolerada para fugir a maiores males. Há, ainda, uma classe de pensadores, e a esta me honro de pertencer, que reputam o duelo uma vergonha da civilização que se deve combater nas escolas, nos livros, nas leis, com todas as armas honestas do sentimento e do pensamento. E quem, a não ser que feche os olhos para não ver, poderá não achar o duelo imoral e injusto? De um lado é expor-se a um evidente perigo de morte, sem que um importante dever obrigue a isto; de outro, a morte provável de um homem que, em caso algum, provocador ou provocado, se pode chamar agressor injusto. Isto, porém, não impede que o duelo seja um melhoramento na história da evolução do ódio. O selvagem ofendido mata o ofensor sem desafio prévio: julgar-se-ia muito estúpido se avisasse o inimigo de que iria atacá-lo.  Preferirá, a mais das vezes, esperá-lo escondido e feri-lo impunemente, quando se não lança, impetuosamente, sobre ele. Os antigos não conheceram o duelo. César não pensou, de modo algum, vingar com um desafio as injúrias de Catão, e Pompeu, ofendido, não mandou cartel a César. Contam César e Tácito que os antigos germanos decidiam pelas armas as questões e os agouros, mas todos os povos do Norte, especialmente os escandinavos, legislavam sobre este costume. Muitos escritores atribuem aos lombardos a origem do duelo. Se isso não é verdade, é certo, pelo menos, que eles o introduziram na Itália. Desta invenção do duelo não devemos acusar os germanos, mas antes louvá-los, porque o duelo é uma transformação progressiva da vingança. É o ódio acompanhado de desejo de uma justiça e de um sentimento de coragem e generosidade”. MANTEGAZZA, Paulo. Fisiologia do Ódio, Livraria Clássica Ed., Lisboa, 1946. (N. da T.).

[79]Monarchia Franque, p. 439.

[80] – Esta idéia foi anteriormente sugerida por outra bem mais antiga — e da qual já falava Tácito — de fazer lutarem, antes de uma batalha, um guerreiro do exército e um prisioneiro inimigo, para adivinhar o resultado provável do combate geral de acordo com aquele do combate particular. Assim, o duelo divinatório engendrou o duelo judicial. Mas estas são, todavia, duas invenções distintas; a aparição da segunda exigira uma combinação mental nova, a saber, a idéia de consultar a divindade para um combate singular, não mais a propósito da batalha entre dois exércitos, mas, a propósito do processo entre dois homens.

[81] – Indefinidamente é dizer muito. Há ainda aqui exceções. Maomé suprimiu o testamento que, — a dar-se crédito a Seignette (e ele dá provas muito fortes em apoio à sua opinião), — existia nos costumes pré-islâmicos.

[82] – Da mitologia grega, deus capaz de assumir múltiplas formas. (N. da T.).

[83] – Chamavam-se quirites aos cidadãos que residiam em Roma, em oposição àqueles que andavam nos exércitos (N. da T.).

[84] – Um exemplo entre mil. Há alguns anos, um agricultor abastado e honesto de minha vizinhança, o Senhor D., demandava contra um de seus vizinhos. Ele obteve, por conta de uma sindicância sumária neste processo que não era suscetível de apelo, um julgamento que condenava seu adversário a pagar-lhe 700 francos de perdas e danos. Ora, na redação do julgamento, houve uma omissão: esqueceu-se de mencionar que as testemunhas haviam prestado juramento. Notai que elas haviam prestado juramento à vista de todos e de todo mundo; mas a menção desta formalidade arcaica faltara nos considerandos do julgamento. O perdedor, em razão desta omissão, requereu a pena de nulidade, pedindo a cassação da sentença. A Corte cassou o julgamento e devolveu a causa a outro tribunal. Em aguardando que a causa fosse julgada por aquele, o adversário do Sr. D. pretendeu haver as custas do processo de cassação, em torno de 1.800 francos. D. assombra-se e indigna-se; tomariam seus bens, seria expropriado e seus imóveis, — que sustentavam toda sua família, — seriam adjudicados a preço vil, suficiente apenas para pagar as ditas custas. Eis um homem arruinado por haver ganho seu processo; eu poderia mesmo dizer por haver ganho duas vezes, porque, após sua ruína, o novo tribunal decidiu o feito, julgando-o como o primeiro. Acrescento que D., aturdido com essa aventura, esteve em via de perder a cabeça. E verdadeiramente tinha por quê.

[85]Intitutions Primitives, trad. Franc., p. 323 e seg.

[86] – Enviar ao depósito de bens penhorados, confiscar, penhorar (N. da T.).

[87] – E mesmo muitos outros; porque a questão de raça aqui é muito secundária. Os semitas assemelham-se espantosamente aos arianos em suas origens jurídicas.

[88] – Entre os hebreus, raça semítica todavia, encontra-se um traço deste procedimento, como faz observar Dareste. O credor, para haver de seu devedor o que lhe pertence, não pode se introduzir no domicílio daquele. “Vós esperareis fora, — diz o Deuteronômio, — e ele vos dará pessoalmente o que tiver.”

[89] – Ver Dareste, pág. 166: “O homicida apresenta-se descalço, sem cinto, na cova do defunto. O mais próximo parente deste toca-o, entre os ombros, com a ponta de uma espada e lhe diz: etc.”

[90] – Armand Ribot (1839-1916), filósofo francês autor de estudos de psicologia experimental: Doenças da Memória, Doenças da Vontade, etc. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[91]Revue Philosophique, outubro 1891. Artigo de Ribot, Enquete sobre as idéias gerais.

[92] – Legislador ateniense e um dos sete sábios da Grécia (640-558 a. C.). Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[93] – Sexto Rei de Roma (578-534 a. C.) Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[94] – Membro da Heliéia, na antiga Grécia, o mais importante tribunal ateniense, composto de seis mil membros, os heliastas, que eram sorteados anualmente entre os cidadãos de mais de trinta anos de idade. (N. da T.).

[95] – Magistrado da Grécia antiga, primeiramente com poder de legislar, e, depois de Sólon (em 559 a.C.), mero executor das leis (N. da T.).

[96] – Popilius Lenas, cônsul romano em 173 a. C.. O senado enviou-o para junto do rei da Síria, Antiocus Epiphane, para obrigá-lo a renunciar às suas conquistas. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[97] – A família patriarcal é o regime da autocracia paternal, o governo cesariano da família, por sua vez igualitária e despoticamente regida. Que esse regime haja existido na origem de todas as evoluções sociais independentes, é muito improvável; mas que haja existido na origem de todas aquelas que acabaram por triunfar no concurso geral das civilizações, é muito provável, como Sumner-Maine me parece haver demonstrado em um de seus mais sólidos estudos. A idéia dessa organização começou por ser uma invenção, cujos efeitos vantajosos a fizeram adotar gradualmente. Mas outras idéias haviam já, sem dúvida, aparecido, e é difícil, impossível mesmo, descobri-las sempre.

[98] – Arqueólogo francês(1801-1871). Dedicou-se ao estudo sistemático das cavernas da França, encontrando, em Aurignac, sinais evidentes da existência do homem e de mamíferos extintos. É considerado um dos mais ilustres fundadores da Paleontologia. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[99] – Ver a esse respeito um opúsculo do italiano Ratto que formula objeções sólidas contra a opinião de seu compatriota.

[100] – Julgamos pertinente acrescentar aqui uma passagem escrita pelo próprio G. Tarde, da obra La Philosophie Pénale, 4ª edição, A. Maloine, Paris, 1903. “A criminalidade transforma-se de época para época. É verdade que, em se transformando, ela diminui? Sim, certamente, se não remontarmos senão aos tempos bárbaros. Mas não me parece demonstrado, malgrado o preconceito difundido a este respeito, que os selvagens mais antigos fossem dados ao homicídio e ao roubo em grande escala. Este erro, que serviu de fundamento à explicação do crime pelo atavismo, demanda ser esclarecido desde o início de nosso trabalho. Exagera-se a imoralidade dos selvagens ainda existentes, como demonstrou, entre outros autores, Henry Joly em seu livro Crime (1888), e, sem o menor fundamento, apressa-se em atribuir a improbidade e a desumanidade mais completas às populações da Idade da Pedra, as quais, todavia, — como observa Nadailhac e as descobertas da arqueologia pré-histórica, – não poderiam ser desprovidas de toda boa-fé, pois que praticavam o comércio exterior, e não poderiam ser desprovidas de toda piedade, pois que nos deixaram vestígios não duvidosos dos cuidados que dispensavam aos seus doentes. Ainda que no mundo selvagem atual ou moderno, — único observado por nós, — as tribos pilhantes e sanguinárias apareçam em maior número, não se segue, de modo algum, que fosse sempre assim, que a espécie humana haja nascido maldosa, que a bondade, o sentimento da justiça e a semente das virtudes quaisquer sejam obra tardia da civilização.” (N. da T.).

[101] – Jurisconsulto e historiador suíço (1815-1887). Considerado um dos fundadores da Etnologia Jurídica, dedicou-se também a estudos puramente históricos. Procurou demonstrar as características extra-raciais da religião e as diferenças psicológicas entre o homem primitivo e o civil. Caracterizou a religião primitiva como um culto da mãe e da terra.  Sua obra foi exaltada sobretudo pelos adeptos de Nietzsch. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.)

[102] – Do sânscr. nayaka, ’chefe’, ’diretor’, pelo malaiala nayar. Entre os hindus do Malabar, militar nobre. As nairas eram mulheres desta casta. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[103]Famille Primitive, pág. 84.

[104] – O albigenses eram membros de uma facção da seita dos cátaros, que professavam doutrina maniqueísta, pregavam a austeridade e a não-violência. Surgidos no S. da França no séc. XI, foram exterminados no séc. XIII (N. da T.).

[105] – Pertencente a Botsuana, antiga Bechuanalândia, na África austral (N. da T).

[106] – De ba-, partícula africana que indica plural, mais -ntu, homem. Termo cunhado na década de 1850 por W.H.I. Bleek, bibliotecário do governo britânico na antiga Colônia do Cabo. 

Os bantos formam uma população cujo idioma é constituído por um grupo de línguas pertencentes ao benuê-congo, e que é composto de várias centenas de línguas faladas numa área muito extensa da África, desde o paralelo 5º até a antiga Colônia do Cabo, na atual República da África do Sul. Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.).

[107] – Do africâner boschjesman, homem da mata. Povo nômade que habita principalmente o deserto de Calaári, Botsuana e Namíbia, no S.O. da África (N. da T.).

[108] – (Reforme sociale, 15 de julho de 1886). Artigo de Claúdio Jannet sobre o livro do inglês Devas, Mestre em Artes de Oxfort, Études sur la Vie de Famille. O autor “mostra que o costume que liga as crianças à mãe de preferência ao pai (das Mutterrecht) nasce espontaneamente em certas situações econômicas e morais e não é, de modo algum, a prova de um estado precedente de poliandria ou de casamento comunal. A sociedade egípcia, na época demótica, é a prova”. Claudio Jannet, a esse propósito, cita uma idéia de Bertillon que, impressionado com o número de falsas uniões parisienses, propunha seriamente fazer uma lei para reconhecer sua existência, análoga àquela do concubinato romano. “Chegar-se-ia assim a uma família puramente maternal, pela corrupção mesmo de uma civilização precedente mais elevada. Não é o caso desses budistas birmaneses onde os costumes domésticos assemelham-se surpreendentemente àqueles dos americanos contemporâneos? A família aí é instável, a democracia reina no lar tanto quando poderia desejá-lo um jurisconsulto moderno.”

[109] – Segundo Viollet, em seu Précis de l’Histoire du Droit Français, obra tornada clássica, a igualdade jurídica, senão política, do homem e da mulher estava talvez mais perto de ser completamente realizada no século XIII, sob o império de certos costumes ao menos, do que em nossos dias. Nós ainda dizemos na França, como esse autor observa com perspicácia, que um pai sua filha em casamento; nós não dizemos jamais que ele seu filho em casamento.

[110] – Mais freqüentemente a tribo era endogâmica e o clã exogâmico.

[111] – Do latim, levir, cunhado, mais –ato. Prática socialmente institucionalizada do casamento de uma viúva com o irmão de seu marido, ou a regra matrimonial que prescreve esse tipo de casamento que é, inclusive, mencionado no Antigo Testamento como vigente entre os hebreus (N. da T.).

[112] – Eis, por exemplo, um progresso que parece verdadeiramente irreversível. O divórcio, quando era praticado primitivamente, começou por ser unilateral, concedido ao marido apenas; depois, mutualizou-se, e a mulher, a seu turno, pôde requerer o divórcio. Jamais se viu o inverso, ou seja, a passagem do divórcio mútuo ao divórcio unilateral. Esse caso entra numa regra geral que formulei alhures como um corolário das leis da imitação.

[113] – Ver particularmente a obra já citada de Viollet, pág. 428 e seguintes.

[114] – Do latim, ripuariu, da margem. Indivíduo dos ripuários, antigas tribos germânicas que habitavam as margens do Reno (N. da T.).

[115] – Povos de raça teutônica que habitaram primeiramente a região compreendida entre o Vístula e o Ôder. Durante o século III, dividiram-se em dois ramos, um dos quais invadiu a Gália, enquanto o outro ocupou a ilha de Borholm, no Báltico. Mais tarde, um dos chefes desse povo, Gondicário, invadiu a Gália e fundou aí o reino da Borgonha (N. da T.).

[116] – Do latim, visigothu, germano do west, oeste, mais, do latim, gothu, godo. Indivíduo dos visigodos ou godos do Oeste (N. da T.).

[117] – Do latim, patriciatu, por via semi-erudita. Entre os romanos, estado ou condição de patrício. A classe nobre; a aristocracia, a nobreza (N. da T).

[118] – E pela antigüidade romana, ela mesma. No início do século II de nossa era, a cúria, nos municípios romanos, compunha-se ainda de magistrados eleitos. Foi só mais tarde que essa magistratura eleita se tornou hereditária.

[119] – Quis-se assentar aqui, como regra geral, a passagem irreversível da teocracia à monarquia laica. Todavia, o inverso é visto na história. A monarquia carolíngia era teocrática, enquanto a monarquia merovíngia não o era; e aquela de Luiz XIV era mais que a de Henrique IV. — Bodin, em sua République está muito longe de supor que não haja senão uma linha de evolução e um único sentido de evolução social. Há, diz ele, seis mudanças perfeitas. “São, a saber, de monarquia em estado popular ou de popular em monarquia; e paralelamente de monarquia em aristocracia ou de aristocracia em monarquia; e de aristocracia em estado popular ou de estado popular em aristocracia.” Ele admite, vê-se, a reversibilidade dessas mudanças políticas. E todavia, como se sabe que cada época erige, a esse respeito, suas preferências ou seus hábitos em leis, há uma tendência a ver, em cada um desses pares de transformações, uma como normal e outra como anormal. Porém ocorre que sua escolha é precisamente o inverso da nossa. “Todas as mudanças de senhorias em estados populares, diz ele, foram violentas e sangrentas, e, ao contrário, os estados populares transformam-se em senhoriais por uma mudança suave e insensível”, por exemplo, “na República de Veneza, Lucques, Raguse, Gênes.” Parece que, a seus olhos, esta última evolução seja conforme à natureza das coisas.

[120] – Na Belle histoire des idées morales dans l’antiquité, por Denis, seguem-se as etapas de uma parte desse grande progresso ininterrupto.

[121] – Comuna rural autônoma da Rússia. O mir é um organismo de propriedade coletiva (N. da T.).

[122] – Sociedade familiar existente entre os escravos do Sul, caracterizada pela comunidade de bens entre os parentes unidos por linha masculina. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[123] – Página 264 da tradução francesa.

[124] – Ver o primeiro capítulo do segundo volume desse livro interessante e escrito com profundidade (Turim, 1889).

[125] – Eu disse primitivo, porque este adjetivo do qual se abusa e do qual somos forçados a usar e abusar nós mesmos como outros, teria então um sentido nítido e preciso que estou longe de lhe conceder. Ou ele nada significa, com efeito, pois que não pode ser questão, bem entendido, de remontar ao primeiro homem ainda semi-animal ou às primeiras coisas humanas, em sentido unicamente cronológico; ou ele significa, simples e claramente, num sentido de preferência lógico, que existe um ciclo fechado de fases, onde voltas e revoltas sujeitam as coisas humanas a periódicas repetições. Primitivo, pois, quer dizer recomeço, ou nada quer dizer. Tenho de fazer esta observação de uma vez por todas.

[126] – Édito de Nantes. Rescrito de Henrique IV da França que promulgou, em 1598, a liberdade de consciência e de culto para os protestantes em todo o país, com exceção de Paris, Lião, Reims, Toulouse e Dijon. A liberdade assegurada pelo édito compreendia o direito de possuir templos, sinos e escolas. Aos indivíduos, assegurava o direito de concorrer a todos os empregos e dignidades do Estado, bem como de ser julgado por um tribunal huguenote. Havia, porém, algumas limitações, como a proibição de trabalho em dias santificados pela Igreja Católica e a obrigação de sujeitar-se às leis matrimoniais da Igreja oficial. Houve muitas hostilidades ao cumprimento do Édito de Nantes, o que acarretou revoltas huguenotes em 1620 e 1628, em verdadeira guerra civil. Luiz XIV determinou a revogação do rescrito em 1685, daí resultando o exílio dos inconformados, exílio este referido por G. Tarde no texto. A emigração de perto de 40.000 huguenotes para a Inglaterra trouxe grande prejuízo econômico para a França. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[127] – De retr(o) mais venda. Em contrato de compra e venda de imóvel, cláusula que ao vendedor reserva o direito de recomprar o bem dentro de certo prazo, sob a condição de restituir o preço, ressarcir os gastos efetuados pelo comprador e reembolsá-lo pelo valor dos melhoramentos acrescentados ao imóvel (N. da T.).

[128] – Chamo assim ao direito concedido aos vizinhos do vendedor desapossado adquirirem-no de um estranho ao grupo, reembolsando o preço de sua aquisição.

[129] – Quer dizer, o direito concedido aos parentes do vendedor desapossado de afastar da mesma maneira o adquirente estranho à família.

[130] – Do árabe, Barbar. Indivíduo dos berberes, qualquer dos povos nômades que habitam as regiões norte-africanas da antiga Barbária (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito) e do Saara (N. da T.).

[131] – Na América, os selvagens, na falta de machados de metal, tinham necessidade de unir seus esforços para derrubar suas florestas. Hoje o indivíduo, por seus próprios esforços, por seu trabalho remunerado, pode adquirir terras tanto quanto ganhar dinheiro. Mas, nos tempos da indústria grosseira e sem comércio, ele não podia adquirir senão coisas móveis, armas encontradas ou trocadas, ferramentas, jóias, presas de caça, colheitas anuais. Quanto aos domínios, não havia, em geral, senão duas maneiras de os adquirir: o desmatamento ou a conquista. Mas, seja para conquistar, seja mesmo, assaz freqüentemente, para desbravar, era necessária uma associação de esforços, militar num caso, laboriosa e pacífica no outro. Era o clã inteiro que se anexava um novo território. Devia então parecer natural possuir as coisas adquiridas coletivamente e aproveitar, cada um, a parte das coisas individualmente conquistadas. Eis em parte por que, lá onde as terras são comuns, os móveis, todavia, mesmo quando poderiam sê-lo, não o são.

[132] – E esse estado de coisas tinha como caráter marcante ser de um equilíbrio sempre muito instável. Sumner-Maine faz a mesma observação a respeito da comunidade de aldeia hindu: “Tudo o que perturbava sua ordem pacífica levava ao engrandecimento da família dominante e de seu chefe”, ou seja, à aparição da propriedade individual, primeiramente excepcional, depois generalizada pela imitação. — A constituição da aldeia hindu era aristocrática ou democrática? É duvidoso. Ela era aristocrática, assim parece, de acordo com as observações precedentes. Em todo caso, esses comunistas são de um conservadorismo excessivo, rebeldes a todo melhoramento agrícola. Deu muito trabalho fazê-los compreender a utilidade da cultura do algodão.

[133] – Diz-se de povo ou da civilização oriunda do contato entre os invasores romanos e os gauleses após a conquista da Gália (N. da T.).

[134] – “A habitação comum, a propriedade familiar, análoga à dos clãs iroqueses ou aos falanstérios dos povos da América Central, existe também entre os pássaros. Citarei, a título de exemplo, aqueles que constroem seus ninhos em família, uns sobre as árvores, outros no alto de velhos edifícios” (Letourneau.)

[135]Problèmes d’Histoire, página 313 e 314.

[136]Ètudes sur l’Histoire du Droit, página 20.

[137] – Ver na última edição da obra de Laveleye muitas passagens, especialmente páginas 129, 148, 278, 379.

[138] – Notadamente em todos os países muçulmanos. Ver a esse respeito a Théorie du Droit Musulman de Savvas-Pacha.

[139] – Ver o artigo de Koralesky sobre a família patriarcal no Cáucaso, na Revue Intern. de Sociologie, julho-agosto de 1893. O autor mostra aí que, nessas populações caucásicas que permaneceram tão primitivas, o culto dos ancestrais acarreta enormes despesas em festins rituais que arruínam a família e a obrigam a vender alguns de seus bens. Mas, “antes de concluir-se a venda com um estrangeiro, o costume exige que se dê preferência aos familiares parentes pertencentes ao mesmo clã. Se for um membro do mesmo clã que o compre, a terra não sai do círculo dos parentes e o culto das divindades familiares não sofre interrupção. O direito de preempção familiar, quer dizer, o direito de comprar concedido, de preferência, aos parentes (retomada linear) encontra-se assim em relação muito mais estreita com o culto familiar do que se acreditava até então. Se é assim, e se esta explicação, como eu acredito, é suscetível de uma certa generalização, vê-se que o direito de retomada linear, simples corolário de crenças religiosas, nada tem a ver com a comunidade de aldeia, ela mesma. Trata-se de fato derivado do culto dos ancestrais, preferencialmente a constituir-se num fato primitivo.

[140] – Ver Viollet, página 501.

[141] – Na Europa ao menos; mas alhures, a explicação deve apenas modificada. Não é provável que, de modo semelhante, as maneiras afetadas dos chineses, e mesmo as cerimônias hospitaleiras dos árabes sob suas tendas, procedam, pela imitação, de hábitos primitivamente próprios a seus chefes, a seus reis, a seus líderes quaisquer?

[142] – Em toda parte e sempre o campo imita a cidade. Assim, não devemos nos surpreender com um fato, desconhecido pelos historiadores, mas revelado por Luchaire (Les Communes Françaises à l’Époque des Capétiens Directs, 1890), a saber, após e conforme as grandes comunas juramentadas do século XII, Laon, Dijon, Soissons, etc., uma multidão de pequenas comunas rurais (pág. 69 e seg.) pulularam. O homem nasce tão sociável que, de todos os exemplos humanos, o mais contagioso é, naturalmente, o exemplo da associação.

[143] – Do francês guilde, gilde latim medieval, gilda, forma latinizada, reunião, banquete de natureza simbólica e religiosa;corporação. Associação de auxílio mútuo constituída na Idade Média entre as corporações de operários, artesãos, negociantes ou artistas (N. da T.).

[144] – A eclosão dos monastérios, é verdade, poderia haver sido sugerida pela organização interior da vila galo-romana, tal como Fustel de Coulanges nos descreve. Essas vilas, que se dividiam por quase todo o solo da Gália, e de onde saíram nove décimos de nossas cidades modernas, eram o mesmo que pequenas repúblicas unas e indivisíveis. Cada domínio bastava-se a si mesmo. Havia, como em cada comunidade de aldeia, uma aproximação instrutiva — “moleiros, padeiros, carpinteiros de carros, pedreiros, carpinteiros, ferreiros, barbeiros”. Esses costumes de trabalho repartido e solidário da vida grupal disciplinada e autônoma não podem haver favorecido o gosto das comunidades monásticas? É possível, mas esta explicação não se aplicaria senão aos escravos e aos colonos; e é sobretudo às classes superiores, entre os proprietários, que tem servido a paixão do hábito monástico.

[145] – Esparta. (N. da T.).

[146] – Em muitas grandes cidades da América do Sul, onde não chove jamais, onde, por conseqüência, os telhados chatos são os únicos racionais, existe o furor de construir casas em estilo renascença, com telhados pontudos, para seguir a moda européia.

[147] – Laveleye pretende descobrir na China a propriedade coletiva. Mas vê-se obrigado a remontar, diz-nos, ao ano 2205 a. C.

[148]La Propriété et ses Formes Primitives, última edição, p. 487.

[149] – Acrescentai a isso um outro cataclismo: a invasão da idéia feudal que se difundiu invisivelmente durante o período mais obscuro da alta Idade Média, como um transbordamento noturno do qual se nos maravilhamos ao acordar. Para ele, este último fato tem tal relevância que, malgrado seu desejo de relacioná-lo ao mais longínquo passado das raças arianas, os townships escoceses, como qualquer outra comunidade ainda subsistente,  Sumner-Maine deixa escapar esta confissão: “Pensa-se geralmente que o sistema feudal da Escócia, muito exclusivo e muito unitário, deveria ter podido apagar os traços dos antigos usos teutônicos nas terras baixas”, quer dizer, nas zonas mais férteis, mais cultivadas, as primeiras inundadas pelas invasões das novas modas. Na verdade, ele cita um exemplo que acredita próprio (Histoire du Droit, pág. 130 e seg.) a contradizer essa asserção geral e acreditada, mas simplesmente porque a comunidade agrícola da qual se trata parece-lhe ter “uma cor das mais arcaicas”. São necessárias razões mais fortes, documentos precisos, para permitir afirmar-se que um fragmento de tempos fabulosos sobreviveu, no meio de uma planície, a despeito dos quatro grandes fatos assinalados.

[150] – No original Carinthie, estado da República da Áustria. Nouveau Petit Larousse Illustré, Librairie Larousse — Paris, 1947, (N. da T.).

[151]Carniole, antiga província da Áustria, de população eslovena, partilhada em 1919 entre a Iugoslávia e a Itália. Nouveau Petit Larousse Illustré, Librairie Larousse — Paris, 1947, (N. da T.).

[152] – Foi questão, mais acima, os efeitos diretos da imitação e da invenção sobre o regime da propriedade. Tratam-se agora de seus efeitos indiretos que são muito mais importantes. Não existe ação direta desse gênero senão quando, por exemplo, um novo direito de propriedade é inventado e é propagado pela imitação. Para que uma semelhante invenção seja feita, é necessário que ela tenha se tornado desejável e viável, através de um conjunto de outras invenções, em aparência, estranhas ao Direito, tais como a idéia de um novo modo de cultura intensiva.

[153] – De venatório, do latim, venatoriu. Respeitante à caça (N. da T.).

[154] – Esta separação, eu o sei, é impossível de fato. É justamente o aumento do grupo social que força o espírito inventivo a desenvolver-se, para imaginar novos meios de subsistência e de bem-estar e, vice-versa, é a descoberta de novos meios de subsistência ou de novas indústrias que torna possível o aumento numérico das sociedades.

[155] – Aliás, por ela mesma, e independentemente do progresso inventivo, a causa indicada não cria qualquer novo objeto a possuir, não acrescenta nada às riquezas existentes sobre a terra.

[156] – Habitantes da Mauritânia. Quando os cartagineses se estabeleceram na África setentrional, deram aos berberes indígenas o nome de maures, nome este que, na Idade Média, foi estendido aos conquistadores árabes da Espanha. Nouveau Petit Larousse Illustré, Librairie Larousse — Paris, 1947, (N. da T.).

[157] – Geólogo francês (1798-1874). Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[158] – Em geral, a caça está ligada ao comunismo. É assim mesmo em nossas nações civilizadas, onde os territórios de caça são desfrutados indivisamente pelos caçadores, mais freqüentemente reunidos em bandos. Este comunismo é de tal maneira inevitável, que não se deve ter o trabalho de observá-lo. Mas, caso fosse insignificante: Por que aquele dos selvagens teria significação?

[159] – Do grego, heilótes. Em Esparta, escravo que cultivava o campo. (N. da T.).

[160] – Antigo povo da Penéstia, na Ilíria Meridional, na Grécia antiga. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[161] – Proletários atenienses. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[162] – Em face de similitudes sem imitação, pode-se citar ainda a semelhança dos procedimentos pecuniários empregados pela Restauração francesa, para pôr fim às reivindicações dos emigrados arruinados pela Revolução, com medidas tomadas em casos semelhantes “em Éfeso e em toda a Ásia após a conquista de Mitrídate”. ( Dareste, Hist. du Droit, p. 49).

[163] – Aliás, é inconteste que o coletivismo sempre coexistiu com a propriedade individual de uma parte do solo. Por longe que se remonte na História, vê-se a marke germânica, a allmend suíça, etc. cumprirem uma função especial, análoga àquela de nossas comunas, apenas mais extensa e mais importante. — Todavia é bom acrescentar que a propriedade coletiva pôde e deveu ser freqüentemente a forma primitiva da soberania nacional, quer dizer, comunal. Isso quando as idéias de propriedade e de soberania estavam confundidas. É natural pensar que então, na opinião de todos, uma sorte de domínio eminente sobre todas as terras cabia ao clã, à tribo, ao Estado.

[164] – Eu não digo que o deseje. Veja-se o porquê: percebo muito a maneira pela qual esta revolução se opera, segundo todas as verossimilhanças. É certo que a terra é monopolizada pelos proprietários; mas este monopólio, enquanto a propriedade individual domina, neutraliza-se quase, em se fracionando.  Se o coletivismo se estabelecesse, ver-se-ia este monopólio concentrar-se simplesmente entre as mãos de alguns políticos, que acabariam por explorar todo o solo em seu proveito. Na realidade, a terra é e será sempre monopolizada; e o único remédio, ou o único paliativo, a este inconveniente é o fracionamento das propriedades, o que é bom para favorecer também as associações livres de proprietários, para conciliar com a pequena propriedade a grande cultura. A propriedade individual é o único contrapeso eficaz que subsiste ainda contra os excessos da centralização política e administrativa. O exemplo das comunidades de aldeia em Java, tão admiradas todavia por Laveleye, permite estas apreensões. Partilham-se periodicamente os lotes de terra, mas o prefeito extrai, apenas para si, dez vezes mais que seus administrados, e os conselheiros municipais três vezes mais. Acrescente-se que os habitantes trabalham a terra do prefeito (pág. 66). Em suma, o prefeito é senhor, e sua assim dita comunidade de bens é uma sorte de feudo. E este caso não é uma exceção. Cada vez que Laveleye nos faz penetrar no coração de uma dessas colmeias falansterianas de aspecto idílico a distância, nós descobrimos algo semelhante. Na Alemanha, segundo Tácito, cada um dos co-proprietários toma uma parte “proporcional à sua dignidade”. (Ver também páginas 88, 129, 34, 148, 278, 322, 354, 379, etc.). Existe aí alguma coisa para reflexão.

[165] – Entre os povos em que a distinção entre as relações com os parentes e as relações com os estrangeiros guarda alguma coisa de sua nitidez primitiva, a duração da prescrição não era igual à vista de todos. Em direito muçulmano, de acordo com a escola malaquita (ver Dareste, obra citada, página 61), a prescrição é de dez anos entre os estrangeiros e de quarenta anos entre os parentes.

[166] – Às vezes, ao inverso daquilo que se observa geralmente, as mulheres são excluídas da sucessão após haverem sido admitidas. Os cabilas da Argélia, no último século, aboliram o direito de sucessão das mulheres editado pelo Profeta e voltaram, — diz Dareste, — “ao antigo costume que não dá à mulher senão alimentos”.

[167] – Viollet, Histoire des Institutions Polit., página 246.

[168] – No velho Egito, “as crianças sucediam a seu pai sem distinção de sexo e, em geral, em iguais porções, salvo cláusula testamental a favor do primogênito” (Dareste). Mas “essa cláusula testamental é, para dizer a verdade, uma compensação. Ela se atém ao fato de que o primogênito entre os filhos está encarregado de representar a sucessão, enquanto ela permanecer indivisa, e fazer a partilha entre todos os herdeiros”.

[169] – Processo de reprodução por meio de gemas, comum nos vegetais inferiores. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[170] – Teoria formulada por Darwin, segundo a qual os caracteres hereditários provém de todas as células do organismo. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[171] – Teoria que pretende explicar a determinação da forma do organismo e, portanto, a hereditariedade e a evolução, pela natureza do movimento vibratório dos plastídulos, ou seja, unidades granulosas dispostas em fileira no protoplasma. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[172] – Quanto a perguntar por considerações dessa ordem a serem feitas na escolha dentre os múltiplos regimes sucessorais, inútil pensar, bem entendido.

[173] – Eu evito com cuidado a palavra “adaptação”, da qual se abusa, porque é equívoca. Dizer que as funções sociais se adaptam às funções vitais pode significar indiferentemente que elas se submetem àquelas ou que elas se submetem a elas mesmas.

[174] – Aqui vem juntar-se a influência direta da invenção à sua influência indireta.

[175] – Shakespeare escreveu The Merchant of Venice (1596-1597, O mercador de Veneza, obra esta protagonizada por Shylock, judeu que pretende usar a justiça para uma terrível vingança contra Antônio, o mercador cristão. Encyclopaedia Britannica do Brasil. (N. da T.).

[176] – Do árabe murabit, literalmente: aquele que vive em um ribat (fortaleza ou monastério, ou seja, eremita, monge, guia religioso. A palavra significa geralmente asceta religioso ou guia espiritual muçulmano; em sentido estrito, membro de qualquer uma das comunidades religiosas e militares do Norte da África, de grande ascendência espiritual e política entre os berberes. Por extenção, significa também local sagrado, associado à presença de um marabu, como o templo onde este realiza o serviço religioso, ou a sepultura em que está enterrado.(N. da T.).

[177] – As técnicas de combate inventadas por Aníbal nas batalhas que travou contra os exércitos romanos foram consagradas pela história dos conflitos bélicos. Aníbal foi talvez o maior gênio militar da antigüidade. Filho de Amílcar Barca, comandante da primeira guerra púnica contra os romanos, Aníbal nasceu em Cartago no ano 247 a.C. Aos 26 anos, depois do assassinato do pai e do cunhado Asdrúbal, assumiu o comando do exército. Durante a segunda guerra púnica, Aníbal reagiu organizando uma expedição à Itália, composta de aproximadamente quarenta mil homens e grande número de elefantes. Após a travessia dos Pireneus e dos Alpes, o cartaginês infligiu aos romanos a primeira derrota em Trébia, no vale do rio Pó, onde incorporou a suas tropas os gauleses cisalpinos. Na batalha de Trasimeno esmagou as forças de Flamínio, estimadas em 15.000 homens, e conquistou o domínio da Itália central. G. Tarde, aqui, refere-se à batalha travada em Canas, campo situado nas proximidades de Bareta, Apúlia, SE. da Itália, em 216 a. C., outra retumbante vitória de Aníbal contra um contingente romano duas vezes mais numeroso que as tropas cartaginesas. Encyclopaedia Britannica do Brasil e Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.)

[178] – Neste caso, a medida não é agrária, mas significa um recipiente com capacidade de um alqueire, para medição de quantidade de grãos de cereais. (N. da T.).

[179] – Povo da região de Ossétia, no Cáucaso Central, que parece descender dos antigos iranianos. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[180] – As mais antigas raízes verbais foram a designação de um objeto ou de uma ação por um de seus caracteres entre mil; a expressão do todo pela parte.

[181] – Emprego de palavra ou expressão em sentido figurado. (N. da T.).

[182] – Ver a obra já citada de Savvas-Pacha.

[183] – Boletim das Leis, ou seja, espécie de diários oficiais da época (N. da T.).

[184] – Ver Viollet, Hist. des Instit. Polit., página 286 e s.

[185] – Pertencente ou relativo à primeira dinastia francesa, fundada por Meroveu, que reinou de 448 a 458. (N.da T.).

[186] – Pertencente ou relativo à dinastia de Carlos Magno, rei dos francos e imperador do Ocidente de 742 até 814. (N. da T.).

[187] – Principado balcânico; independente após o Tratado de Berlin (1878), reino após 1910, anexado à Ioguslávia depois de 1919. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.)

[188] – Uma das mais rigorosas obrigações de direito, em todo país teocrático (e quase toda sociedade começa por aí), é a obrigação de crer. Ora, na origem ela é uma simples herança fisiológica. Vós nasceis de pais muçulmanos ou cristãos, vós deveis crer na Lei de Maomé ou de Jesus, como, sob os merovíngios, as famílias francas, visigodas, romanas, misturadas sobre o solo gaulês, seguiam cada uma sua própria legislação. Mas, mais tarde, foi o fato de habitar um país muçulmano ou cristão que, independente de qualquer parentesco, criou a obrigação da crença muçulmana ou cristã, como a submissão à legislação nacional, a mesma para toda uma população, aparentada ou não.

[189] – Ela é exposta e discutida com uma independente simpatia por René Worms, em sua tese sobre a Volonté Unilatérale Considérée comme Source d’Obligacion, Giard, 1891 (A vontade unilateral considerada como fonte da obrigação). Ele mostra que, seja em Direito Romano, seja nas legislações modernas, deve-se dar um lugar inconfessável, mas real, às obrigações nascidas de uma vontade unilateral: em Direito Romano, promessas de doações a cidades, a pessoas morais, votos aos deuses (tornados legados piedosos do Direito Canônico); em Direito Francês, estipulação por alguém, contratos de seguro de vida em favor de crianças não intervenientes no contrato, títulos à ordem ou ao portador, ofertas de negócios, etc.

[190] – É curioso notar aqui a fraqueza filosófica de um dos mais ilustres comentadores de nossos códigos. Eis como ele tenta salvar a velha teoria desestruturada por objeções análogas à precedente. “O autor da oferta, diz Demolombe, em a emitindo, emite a vontade de formar o contrato, quando a outra parte houver aceito. Por sua aceitação, a outra parte emite uma vontade análoga. As duas vontades se encontram, e o contrato está formado.” Worms sinala o vício desse raciocínio. “O contrato não pode se formar senão se a vontade atual do ofertante concorrer com a do aceitante. O ofertante tem, por sua oferta, manifestado sua vontade de manter, até a aceitação, sua vontade de contratar. Mas, se a vontade de contratar desapareceu no momento da aceitação, por qual estará ele retido? Por sua primeira vontade que o obrigaria a não mudar de intenção. Logo, é sempre e unicamente por sua primeira declaração, por sua declaração de vontade unilateral, que ele está obrigado.

[191] – Poder-se-ia observar também que, no início das sociedades, os engajamentos unilaterais precediam, em geral, os engajamentos recíprocos. A doação precedeu à troca; doação ao senhor, doação aos deuses, tornada em breve imposto obrigatório. Spencer bem o demonstrou. — O engajamento da mulher em relação ao marido precedeu àquele do marido em relação a ela; o casamento não começou por ser um contrato. — Assim, pelo desenvolvimento que elas emprestam às promessas unilaterais, as sociedades velhas revivem, mas num sentido totalmente diferente, um dos caracteres de sua infância.

[192] – É a vontade unilateral que apreende (sapere, prehendere) que, na origem, fundou o direito de propriedade e, afinal, o direito autoritário da família ou da cidade. Isto significa que a visão de um homem resolvido a tomar e a guardar um objeto faz nascer na alma daquele que olha uma espécie de respeito natural pelo exercício desta vontade, da qual este respeito é o reflexo.  – É assim que, mesmo em nossos dias, no que concerne à tomada de posse de uma nova ilha descoberta, o Estado manifesta a intenção de estabelecer-se, e é reputado proprietário aos olhos de todos os Estados civilizados. Se é assim, por que a vontade unilateral de fazer e de dar não teria a virtude de engendrar a obrigação, o dever? Um destes fatos está exatamente na dependência do outro. A visão de um homem que manifestou a vontade de fazer ou dar qualquer coisa faz nascer naquele que olha a expectativa jurídica desta ação ou desta doação.

[193] – Ver, a esse respeito, a obra já citada de Savvas-Pacha e o código muçulmano de Khàlil traduzido por Seignette.

[194] – Era maometana, que tem como ponto de partida a fuga de Maomé de Meca para Medina, em 622 da nossa era. (N. da T.).

[195] – Historiador, filósofo e general ateniense, um dos discípulos de Sócrates. Distinguiu-se na guerra do Peloponeso, dirigindo a retirada dos dez mil. Mais tarde, combateu contra seus concidadãos que o haviam banido e não se lembraram dessa sentença 20 anos mais tarde. Espírito curioso e engenhoso, boa testemunha das coisas de seu tempo escritor simples, puro e espiritual. Nasceu em torno de 427 e morreu depois de 355 a. C.. Nouveau Petit Larousse, op. cit. (N. da T.)

[196] – A palavra menagem, aqui, tem o significado de pacto, promessa feita no cumprimento de palavra dada, de uma cláusula ou de um contrato. A mesma palavra significa também homenagem, preito, e ainda prisão fora do cárcere, que a justiça militar concede sob promessa ou palavra do preso de que não sairá do lugar onde se acha ou que lhe for designado. Enciclopédia Brasileira Mérito, Dicionário Aurélio Século XXI. (N. da T.)

[197] – Economista francês nascido em Bayonne, Claude-Frédéric Bastiat foi um defensor da liberdade do trabalho e do livre-comércio. Nasceu em 1801 e morreu em 1850. Nouveau Petit Larousse, op. cit. (N. da T.)

[198] – Quanto às disposições legais relativas às obrigações, é de modo abusivo que elas pretendem o nome de teoria; e, ainda que sejam dotadas, graças a sua generalidade, de uma longevidade especial que lhes permitiu sobreviver a outras partes de seus códigos, elas não são, elas próprias, susceptíveis senão que de aplicações circunscritas e temporárias. Sua sobrevivência é, aliás, mais aparente que real, e a permanência enganosa do Direito formal dissimula aqui as mutações do Direito vivo. A “teoria” legal das obrigações parece restar quase a mesma do Império Romano até nós. Mas a substância dessas formas, o conteúdo dessas fórmulas mudou completamente. É a mesma gramática, é o mesmo dicionário; apenas tal regra ou tal palavra, outrora muito usadas, caíram em desuso e vice-versa. Não apenas tal gênero de contrato, — por exemplo, a retrovenda ou o contrato em cabeças de gado usados antigamente na Idade Média, — é agora excepcional, ou tal outro, — o arrendamento fechado, antes muito raro, — está generalizado; mas ainda as condições dentro das quais esses contratos se operam foram subvertidas. Os preços de venda, os preços de fechamento perderam suas antigas proporções. Contratos de venda, arrendamentos, locações de empregados, contratos de casamento mesmo; todas essas convenções guardaram seus nomes, mas foram profundamente transformadas. Pode-se dizer, depois disso, que o Direito relativo às obrigações permaneceu o mesmo? – E de modo semelhante: Pode-se dizer que é idêntico entre dois povos, porque um emprestou ao outro suas fórmulas ou, espontaneamente, imaginou fórmulas semelhantes?

[199] – Do grego, syllogismós, argumento; pelo latim, syllogismu. Dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas, por inferência, se tira uma terceira, chamada conclusão. (N. da T.)

[200] – Compilação do conjunto das revelações de Deus, Alá, ao profeta Maomé (c.570-632), que compreende a doutrina religiosa e a codificação da vida civil e social islâmica. (N. da T.).

[201] – Diferença aparente na localização de um corpo quando observado por diferentes ângulos. (N. da T.)

[202] – A premissa maior. (N. da T.).

[203] – Esta diferença pode dirigir-se em parte a que, no silogismo intelectual, por profunda e infinita que seja a crença contida na premissa maior, jamais esta se torna inconsciente, operando invisivelmente. Sua majestade permanece sempre diminuída em comparação à premissa maior, igualmente infinita, do silogismo moral. Esta pode continuar a agir por muito tempo ainda, após sua desaparição ou sua morte que não se percebe. Quantos deveres morais sobrevivem aos desejos e às esperanças religiosas que os fizeram nascer! Mas, quando um dogma é abalado ou abatido num espírito, todos os princípios que dele decorrem não tardam a tombar com ele.

[204] – Dareste, página 132.

[205] – Mas, bem entendido, o sistema de direitos e de obrigações, ossatura do corpo social, não saberia corresponder senão muito inexatamente, nem adaptar-se senão muito devagar ao sistema de valores, coisa plástica, em mutação contínua, como a carne viva.

[206] – Gostaria muito que se nos guardássemos de julgar, sobre esse simples enunciado, nossa teoria do valor. Limito-me a citá-lo aqui. Aliás, (na Revue Philosophique, na Revue d’Économie Politique) tentei esboçá-lo mais completamente. Tive o prazer de ver Gide, em seu Traité d’Économie Politique, dar boa acolhida a uma parte dessas idéias e notadamente a esta, de que a crença, não menos que o desejo, (expressão da necessidade) é um fator essencial do valor. — Deve-se ter em conta também a repartição, mais ou menos igual ou desigual, das fortunas. — Acreditei mostrar que o valor tem dois sentidos inversos e complementares: o primeiro exprimindo o resultado da luta engajada em cada indivíduo, entre os desejos e as crenças que ele trata de sacrificar uns aos outros; o segundo exprimindo o resultado do concurso de desejos e de crenças que se entreajudam e se entreconfirmam.

[207] – O nono mês do ano muçulmano, considerado sagrado, e durante o qual a lei de Maomé prescreve o jejum num período diário entre o alvorecer e o pôr-do-sol. (N. da T).

[208] – Permito-me enviar o leitor, curioso de esclarecimentos, a um capítulo de meu Lois de l’Imitation, a respeito do que chamei de o duelo lógico ou acoplamento lógico das inovações sucessivas, conformes ou contraditórias, ou toda ordem de fatos sociais, em lingüística, em mitologia, em política, em legislação, em indústria, em arte.

[209] – Partidários do estoicismo, designação comum às doutrinas dos filósofos gregos Zenão de Cício (340-264) e seus seguidores Cleanto (século III a.C.), Crisipo (280-208) e os romanos Epicteto (55-135) e Marco Aurélio (121-180), caracterizadas sobretudo pela consideração do problema moral, constituindo a ataraxia, a calma, o estado em que a alma, pelo equilíbrio e pela moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, atinge o ideal supremo da felicidade: a imperturbabilidade o ideal do sábio. (N. da T.).

[210] – João Domat (1625-1696) foi um jurisconsulto francês, jansenista. O jansenismo era uma doutrina sobre a graça, a predestinação e a capacidade moral do homem presente, com tendência ao rigorismo moral. Ligado ao círculo de Port-Royal e amigo íntimo de Pascal, — com quem estudou matemática, — foi magistrado durante trinta anos. Droit Civil dans son Ordre Naturel foi publicada em 1694. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[211] – Ministério das Relações Exteriores (N. da T.).

[212]Ancien droit, página 43 e seguintes da tradução francesa.

[213] – Filósofo estóico (60 d.C., morto em data ignorada) que viveu em Roma e foi escravo de Epafrodito, um liberto de Nero que lhe prodigalizava maus-tratos, suportados com paciência por Epicteto. Suas doutrinas assemelhavam-se às cristãs, mas não há prova de contato direto entre este filósofo e pregadores do cristianismo. Não especulou sobre a natureza, ciência ou bens, mas limitou-se à doutrina moral, preocupado em indicar ao homem regras práticas de proceder. Foi exilado em Roma, em 90 d.C., por Domiciano. Não deixou escritos. Sua doutrina, porém, pôde chegar até nós graças a seu discípulo Flávio Arriano, que redigiu, com as notas que tomara, as Práticas e o Manual. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[214] – A palavra aqui não se insere na acepção comum, mas significa partiário do Cinismo, enquanto doutrina e modo de vida dos seguidores dos filósofos socráticos Antístenes de Atenas (444-356 a.C.) e Diógenes de Sínope (413-323 a.C.), fundadores da Escola Cínica, que pregavam a volta à vida em estrita conformidade com a natureza e, por isso, se opunham radicalmente aos valores, aos usos e às regras sociais vigentes. (N. da T.).

[215] – “A moderna expressão Direito das Gentes não corresponde, de maneira alguma, à expressão latina jus gentium empregada por jurisconsultos romanos. O jus gentium dos romanos era o conjunto de instituições de direito privado, comuns à maior parte dos povos civilizados, que eram acessíveis aos peregrinos. Opunha-se ao jus civili, que era o conjunto das instituições próprias ao povo romano e do qual os cidadãos romanos, unicamente, podiam usar. Ainda hoje, no Direito Francês, a jurisprudência e alguns autores servem-se da expressão direito das gentes  no sentido que ela tinha em Direito Romano, em oposição ao Direito Civil, para regrar, por uma distinção análoga, a situação dos estrangeiros na França em relação ao exercício de direitos privados” (AUBRY ET RAU, Cours de Droit Civil Français, I, § 78) in FOIGNET, René. Manuel Élémentaire de Droit International Public, Librairie Arthur Rousseau, Paris, 1926. (N. da T.).

[216] – Há também uma outra razão, porque o problema é complexo e árduo. Como, ainda uma vez, pôde ser que as relações com o estrangeiro, que se odiava ou, ao menos, que não se amava, dessem nascimento, direta ou indiretamente, a um Direito que, comparado ao Direito nascido das relações com o compatriota, único objeto das afeições do coração, constituiu um real abrandamento dos rigores jurídicos, um passo decisivo em direção à era da eqüidade? A coisa se explica, além das considerações acima, se se observar que, visto o caráter eminentemente hierárquico, não igualitário e autoritário, de uma Nação primitiva, — e mesmo de uma Nação qualquer, — o Direito nacional, a despeito da simpatia mútua dos cidadãos, deve ser fundado sobre a autoridade, sobre a desigualdade, e apoiar sobretudo o poder do pai, do magistrado, do marido, do sacerdote ou do áugure, do patrício, do chefe militar. Ao contrário, precisamente porque o romano e o estrangeiro não faziam parte da mesma nação, eles sentiam-se iguais entre si, sem poder legítimo um sobre o outro. É, pois, sobre esse pé de igualdade, — quer dizer, sobre a relação que tende a estabelecer, no seio da própria nação, o progresso da civilização, — mas ao longo do tempo e mais em aparência do que em realidade, que, em primeiro lugar e muito realmente, fundamentaram-se as regras do Direito com o estrangeiro, do jus gentium. E eis por que o jus gentium parece-se tanto com o jus naturale, pois que é tomado freqüentemente por este. Não é menos verdade que a simpatia é, não menos que a autoridade (no fundo da qual a simpatia se esconde) a fonte do Direito.

[217] – “Parece estranho à primeira vista, diz ele, no Ancien Droit, encontrar, na história inteira do Direito, o jus naturale e o jus gentium sempre misturados e jamais confundidos.”

[218] – Por exemplo: Em que sentido é verdadeiro dizer que os fundadores teóricos do Direito da Gentes moderno hajam aplicado o Direito Natural às relações dos Estados? Eles acreditaram dever considerar esses Estados como iguais entre si, iguais em direito, malgrado sua extrema desigualdade de poder, e trata-se de conciliar juridicamente essas soberanias desiguais. Problema insolúvel, para dizer a verdade. Quem diz soberania, poder supremo, diz poder sem limite territorial. Esta idéia de uma multiplicidade de soberanos, supostos senhores absolutos cada um em seu domínio pequeno ou grande, e nisso iguais, é o que há de mais anárquico no fundo, e mesmo contraditório. A concepção que reinava no mundo romano-cristão, após a própria queda do Império, segundo a qual não havia nem podia haver senão uma soberania no mundo, dividida, aliás, em duas ou mais pessoas, — como a divindade tripla e una, da qual a idéia foi talvez sugerida pela divisão do poder imperial — era tudo de outro modo natural, se se qualificar assim toda a idéia própria a estabelecer a ordem, o equilíbrio e a paz no mundo, e a produzir o mais lógico dos arranjos.

[219] – “A maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas” — este era o lema com o qual Bentham define o utilitarismo, doutrina por ele criada, cujo fim era a obtenção do bem-estar do indivíduo pela organização pragmática da sociedade. Jeremy Bentham nasceu em Londres em 15 de fevereiro de 1748. Estudou direito em Oxford, formando-se em 1772. Em sua obra An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (1789) expôs a doutrina do utilitarismo, cuja base era o reconhecimento de que o mundo é regido por dois princípios: prazer (bem) e dor (mal). Como esse fato é incontestável, a ordem social e moral deve buscar a utilidade, isto é, aquilo que produz o bem do indivíduo ou, pelo menos, evita uma dor desnecessária. É preciso estabelecer uma ordem de valores, de acordo com a utilidade de cada um e escolher pragmaticamente os que possam produzir o maior bem para o maior número de pessoas. Como o castigo produz dor e não bem-estar, só deve ser empregado para prevenir males piores. Interessado numa reforma legislativa em benefício do povo, Bentham colaborou em vários projetos legais para o desenvolvimento do ensino, a erradicação da pobreza e a suavização das penas e dos regimes de prisão. Contribuiu também para que diversos países adotassem mudanças em suas leis penais e processuais. Em 1823 participou da fundação da Westminster Review e formou a seu redor um grupo de discípulos, entre eles o filósofo John Stuart Mill, que perpetuou sua doutrina ao longo do século XIX. Na verdade, Bentham nunca pretendeu elaborar uma teoria filosófica, mas sim favorecer a racionalização das instituições. Suas idéias exerceram grande influência sobre o desenvolvimento do liberalismo político e econômico. Morreu em Londres, em 6 de junho de 1832. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[220]Gli studi di Sumner-Maine, por Icilio Vanni.

[221] – Guyau, Jean-Marie (1854-1888). Poeta e filósofo francês. Sua obra procura valorizar a função da solidariedade na ética. Esboço de uma moral sem obrigação nem sanção. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[222] – Hugo Grotius (Huigh de Groot), considerado o fundador do Direito Internacional, nasceu em Delft, Países Baixos, em 10 de abril de 1583. Formou-se aos 15 anos pela Universidade de Leyden e, em 1598, editou a enciclopédia de Marciano Capela. Em 1607 tornou-se advogado fiscal da província da Holanda e em 1613 pensionário (espécie de governador) de Rotterdam. Durante esse período firmou-se como poeta, dramaturgo e historiador. A partir de 1610, ao lado de Oldenbarnevelt, passou a defender a doutrina do bispo Arminius, oposta ao dogma calvinista da predestinação, o que despertou o ódio da casa reinante, protetora dos calvinistas. Oldenbarnevelt foi executado e Grotius fugiu, em 1621, para Paris, onde foi bem recebido por Luís XIII e pelo cardeal Richelieu. Em De jure belli ac pacis (1625, Sobre o direito de guerra e de paz), sua obra mais importante e dedicada a Luiz XIII, afirma que as relações entre os países deviam fundar-se em sua independência e igualdade. Obra considerada um verdadeiro código de Direito Internacional, foi traduzida em todas as línguas. Desenvolveu, ainda, a doutrina da guerra justa, como meio de obter reparação quando não existissem tribunais competentes para resolver os litígios. Escreveu sobre o Antigo e o Novo Testamento, os costumes belgas e a história dos bárbaros. Em 1634 a rainha Cristina designou-o embaixador da Suécia em Paris, posto que conservou até a morte. Grotius morreu num naufrágio perto de Rostock, Alemanha, em 28 de agosto de 1645. Suas obras exerceram notável influência sobre o pensamento racionalista e iluminista do século XVII. Encyclopaedia Britannica do Brasil e FOIGNET, René. Manuel Élémentaire de Droit International Public, Librairie Arthur Rousseau, Paris, 1926. (N. da T.).

[223] – Vattel, Emmerich de (1714-1767). Jurista suíço. Conhecido por um tratado que estabelece regras básicas para as relações internacionais. Defendeu os ideais de liberdade e igualdade expressos na declaração de independência dos EUA. Direito das gentes (1758). Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[224] – Esses são os termos de Sumner-Maine em seu Traité de Droit International.

[225] – Arma antiga, formada de arco, cabo e corda, com que se disparavam pelouros ou setas. (N. da T.).

[226] – Sumner-Maine, Traité de Droit international.

[227]Zollverein ou a união aduaneira alemã. O Congresso de Viena havia organizado, no centro da Europa, a Confederação Germânica, composta de 39 Estados separados uns dos outros por barreiras aduaneiras que paralisavam a indústria e entravavam o comércio. A Prússia, então, colocou-se à cabeça de uma vasta associação aduaneira. Mais do que qualquer outro Estado, a Prússia sofreu com a existência de aduanas múltiplas, possuindo seus Estados encravados, uns ao lado do Elba, outros do Reno. Em 1818 concluiu, com muitas dificuldades, uma união aduaneira que recebeu o nome de Liga Prussiana. Enfim, em 1833, graças a uma perseverança e uma habilidade notáveis, o governo russiano conseguiu fundir diversas uniões aduaneiras anteriormente existentes (liga bárbara e outras)em uma só união aduaneira ou zollverein. FOIGNET, René. Manuel Élémentaire de Droit International Public, Librairie Arthur Rousseau, Paris, 1926. (N. da T.).

[228] – Ver sua muito interessante introdução à Hist. du Droit de d’Allemagne, por F. Schulle.

[229] – Antigos habitantes do Tenerife, ilhas Canárias. (N. da T.)

[230] – Ver a esse respeito o início de um livro dos mais instrutivos para quem se interessa pela embriologia das sociedades, Le Formation des Cités chez les Populations Sédentaires de l’Algérie, por Masqueray (Paris, Leroux, 1886).

[231] – Povo berbere, nômade, que se desloca entre o centro e o O. do deserto de Saara. (N. da T.).

[232] – Sua escravização aqui, diga-se de passagem, não é nada própria a confirmar a hipótese do matriarcado primitivo.

[233] – Que há de mais nacional, de mais original que o Direito Egípcio? Todavia, nada mais composto. O Egito antigo, há lugar para supor, não era senão uma combinação de raças berberes e de raças negras da África com semitas vindos da Ásia. Imaginem-se as seqüências incalculáveis do acaso histórico ou pré-histórico desse encontro.

[234] – Ver Évolution de la Propriété, por Letourneau, página 186.

[235] – Acrescente-se que o caráter próprio desta civilização, como de qualquer outra, lhe vem da natureza das invenções que fizeram e da natureza daquelas que lhes faltaram fazer, não menos fortuitamente. Por exemplo, é porque eles não tinham gado, — e parece que eles não tiveram a idéia de domesticar algumas das espécies animais de sua fauna, — que os astecas, ainda que civilizados em tantos outros aspectos, praticaram a antropofagia. Observemos o quanto as invenções muito simples faziam falta a esses povos tão engenhosos: entre eles, nada de balança, nada de pesos, nada de moedas, nada de embarcações.

[236] – O Concílio de Nicéia reuniu-se em 325, em Constantinopla, sob o pontificado de S. Silvestre, para combater o arianismo, movimento teológico iniciado por Ário, Presbítero de Alexandria. Enciclopédia Brasileira Mérito (N. da T.).

[237] – Direito pelo qual a sucessão de um estrangeiro não naturalizado era atribuída ao soberano. O Direito de aubaine foi suprimido em 1819. Por analogia, em francês, a palavra também significa caso fortuito vantajoso, proveito inesperado. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[238] – Já consagrei a esse assunto meu livro sobre Lois de l’Imitation (Alcan).

[239] – Não excetuamos mesmo as invenções e as descobertas enquanto fatos sociais. Não apenas elas são sempre em parte imitativas, formadas por uma interseção mental de imitações diversas, mas ainda, mesmo no que elas têm de mais original, devem ser imitadas para se tornarem fatos sociais e não simples fatos individuais. Uma invenção não propagada, uma idéia não adotada, não reflete no espírito de outrem. É, socialmente, como se não existisse.

[240] – Max Friedrich Müller (1823-1900), já mencionado anteriormente, pensou ter encontrado na mais antiga literatura hindu, sobretudo nos Vedas, as formas primitivas das crenças e dos mitos, e pareceu-lhe que as divindades eram, na origem, nomes dados às forças naturais. Imaginou que os “homens primitivos”, impressionados pelos fenômenos da natureza, haviam começado por dar-lhes nomes, e que estes nomes gradualmente tornaram-se pessoas. Como a luz do sol é a fonte de toda vida e atividade, ele foi levado a dar aos “fenômenos solares” uma importância capital. Para ele, a luta de Zeus (em cujo nome está a raíz que significa dia) contra os Titãs não é senão o drama cotidiano e a vitória da luz sobre as trevas. As formas monstruosas dos Gigantes seriam as névoas da Noite. Tifon seria a tempestade. Atenas seria a luz virgem do dia ao amanhecer. Hefestos, o ferreiro, o sol levante: o disco de ferro vermelho saído da forja divina. Héracles ou Hércules, por sua vez, torna-se um mito solar por excelência, através dos doze trabalhos que seriam os doze signos do zodíaco, ou seja, as doze etapas percorridas pelo Sol durante o ano. Assim, pouco a pouco, a mitologia inteira, através de etimologias incertas, achou-se reduzida a uma vasta meditação sobre a chuva e bom tempo. Evidentemente, tratam-se de idéias simples demais. Hoje está demonstrado que os mitos não provém de uma enfermidade de linguagem. Verificou-se que as interpretações alegóricas, ao aplicarem aos mitos os fenômenos meteorológicos, estão longe de ser primitivas. Resultam, sim, de especulações tardias: Jano, por exemplo, um deus romano, só foi considerado como o símbolo do ano a partir dos pitagóricos de Roma, o que não se deu antes do primeiro século antes de Cristo, ao passo que o próprio Janus já existia há muito tempo. Na religião egípcia, o mito de Ísis e Osíris, — mito solar por excelência, — não é primitivo sob sua forma canônica, mas resume uma teologia completa longamente elaborada. Pierre GRIMAL. A Mitologia Grega, 2ª edição. Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1958. (N. da T.).

[241] – Personagem de conto homônimo de Charles Perrault, publicado em Contos da Carochinha (1696). Sua sétima esposa, prestes a ser morta ao descobrir que ele degolara as seis antecessoras, é salva pela chegada de seus irmãos, que o matam. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[242] – Divindade védica da antiga Índia, deus do céu e da chuva, protetor dos guerreiros e inimigo das trevas. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[243] – Os traços característicos dos quais ela se compõe, dos quais ela é a combinação original, são muito bem definidos por Fustel de Coulanges: “Posse condicional do solo em lugar da propriedade; sujeição dos homens ao senhor em lugar de obediência ao rei; hierarquia dos senhores entre eles em lugar do feudo e da homenagem.”

[244] – Bem ou propriedade com isenção de direitos senhoriais em oposição ao feudo. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[245] – Benefício. Entre os romanos, significava privilégio. A partir do século III, passou a designar as concessões de terras feitas pelos imperadores. Larousse du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932. (N. da T.).

[246] – Precário. Em direito antigo, designava-se sob o nome de precário, ao tempo dos francos, uma concessão de terras concedida pela Igreja que parece havê-la tomado de empréstimo ao Direito Romano. Imita o fisco imperial que, para explorar suas terras, consentia, sob o Império, baixas temporadas de cinco anos. O precário é, com efeito, uma concessão de terras feita, na origem, por cinco anos e mediante o pagamento de uma taxa anual. Com o tempo, porém esta concessão modificou-se, tornando-se vitalícia, e foi afastada a cláusula em virtude da qual, na falta de pagamento da taxa, estaria revogada de pleno direito. Enfim, o precário tornou-se, freqüentemente, transmissível aos herdeiros do concessionário. Larousse du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932. (N. da T.).

[247] – No original truste royale, sorte de companhia guerreira composta por homens livres agrupados em torno de chefes, entre os francos, para constituir-lhes uma espécie de guarda de honra da qual os membros tinham o nome de antrustiões. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N.da T.).

[248] – Se o estabelecimento do regime feudal fosse devido principalmente à conquista germânica, e houvesse sido criado pela exploração dos vencidos, seria incompreensível que esse regime fosse tão facilmente difundido na Germânia, entre os pretensos conquistadores, e se apresentasse, na Idade Média, com características bem mais rigorosas, bem mais aristocráticas e opressivas ainda que aquelas que afetou na Itália, senão na França. Ao contrário, se se admitir que ele se constituiu pacificamente, por ele mesmo, através e não mediante os transtornos e as conquistas, a partir de germes instalados pelo Império Romano, deslocados pelos bárbaros, compreender-se-á muito bem que, uma vez formadas, as instituições feudais, julgadas excelentes desde sua eclosão, tenham sido bem-vindas na Germânia, país tão dócil às sugestões romanas.

[249] – Diz-se que ela havia existido no Japão, mas muito se tem forçado a proporção das analogias e fechado os olhos às suas diferenças.

[250] – Em sua bela obra sobre a civilização árabe, o Dr. Le Bon dá argumentos especiais em favor da primeira opinião.

[251] – Tradução francesa do Código Muçulmano de Khâlil, introdução, página XXXVII.

[252] – Pessoas que tem relação de parentesco (entre indivíduos de qualquer sexo) traçada por linha exclusivamente masculina. A palavra vem do latim agnatione. (N. da T.).

[253] – No Direito Romano, abandono noxal era a medida penal limitadora da vingança de sangue. Consistia na entrega do filho do criminoso, pelo próprio pater familias, à parte ofendida, a fim de livrar-se da reparação do dano patrimonial oriunda do delito. Ainda no Direito Romano, era a faculdade concedida ao dono de animais domésticos, eventualmente causadores de prejuízos à propriedade alheia, de abandonar seu domínio em favor do lesado, a título de ressarcimento. (N. da T.).

[254] – Criada por Shimón Ben Shetaj, no ano 80 antes da Era Comum, a ketubá é o documento legal que atesta o matrimônio. Escrita em aramaico, linguagem das massas e de todos os documentos legais desse período, enumera as obrigações legais do marido para com a esposa em caso de morte ou divórcio. As obrigações da esposa para com seu marido não são detalhadas na ketubá. Estas sempre foram dadas como conhecidas. KOLATCH, Alfred J.. El Libro Judio de Por Que, L. B. Publishing CO., Reencuentro, L. B. Editorial C.C., Jerusalém, Israel, 1995. (N. da T.).

[255] – Hippolyte-Adolphe Taine nasceu em Vouziers, Ardennes, França, em 21 de abril de 1828. Estudou no Collège Bourbon (Paris) e na École Normale Supérieure (1848). Doutorou-se em letras em 1853 com uma tese sobre a poesia de La Fontaine e a seguir dedicou-se inteiramente à literatura. Aos trinta anos já era famoso. Taine expôs sua teoria do conhecimento, racionalista e positivista, em Les Philosophes Français du XIXe Siècle (1857). Professor de estética e história da arte na Escola de Belas-Artes, publicou Philosophie de l’Art (1865) e procurou analisar a evolução artística com base na fisiologia e na sociologia. Considerava a arte e a literatura como funções naturais do homem, exercidas sob a influência de uma faculdade mestra, própria de cada nação e de cada artista. Essa faculdade, por sua vez, seria determinada pelas condições geográficas e por três fatores principais: a raça, o momento histórico e o meio ambiente. Escreveu sobre autores como Stendhal e Balzac, e apontou este último como fundador de uma literatura sociológica.

Em De l’Intelligence (1871),voltou-se para o estudo da psicologia, que o atraíra desde jovem. A aplicação sistemática de suas doutrinas à interpretação dos fenômenos morais, estéticos e espirituais de seu tempo converteu-o em grande teórico do naturalismo. Hippolyte Taine morreu em Paris em 5 de março de 1893. Reconheceu grande valor ao trabalho de César Lombroso, o que se pode aferir através da carta que escreveu ao grande criminólogo italiano, carta esta que abre a 5ª edição do Homem Delinqüente. Encyclopaedia Britannica do Brasil (N. da T.).

[256] – Ver o Droit Coutumier, Henri Beaune, página 405 e seguintes.

[257] – Antigo país da França que pertencia aos condes de Foix, em Navarra, e foi reunido à França por Luiz XIII em 1620. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[258] – No original Livre de l’Échiquier, nome dano na Normandia à Corte de Justiça que foi transformada em Parlamento do século XVI. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[259]Ténements roturies, no original. (N. da T.).

[260] – No original Bourgage, herança plebéia que, situada numa cidade ou num burgo fechado, não era submetida a nenhuma espécie de taxa de censo nem feudal. Larousse du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932. (N. da T.).

[261] – Beaune, obra citada.

[262] – Da tribo de francos que vivia primitivamente nas margens do Issel. (N. da T.).

[263] – Vale lembrar que a Lei Sálica excluía do trono as mulheres. (N. da T.).

[264] – A jurisprudência enxerta-se sobre a legislação. Isto é, definitivamente, uma sorte de novo Direito costumeiro sobre o Direito legislativo que, precisamente, tinha por objetivo substituir-se ao costume anterior. O costume dos juízes substituiu àquele dos sujeitos à jurisdição. Eis tudo. Mas sempre e em toda parte, vê-se a autoridade jurídica ter por fundamento necessário a imitação.

[265] – E, a relacionar, as duplas lingüísticas, das quais Darmesteter citou muitos exemplos, eles também explicáveis pela imitação apenas, apesar de o progresso da imitação tender igualmente a fazer-lhes desaparecer, como vimos mais acima a propósito da simplificação das gramáticas e dos procedimentos.

[266] – Não há lugar para comentar aqui. Mas ao leitor instruído não faltarão exemplos colocados pela história das ciências ou das indústrias. A descoberta de Newton, por exemplo, consistiu em olhar duas idéias estranhas até uma à outra: a queda dos corpos terrestres e a gravitação da Lua em torno da Terra, como duas conseqüências de um mesmo princípio. A invenção da locomotiva consistiu em reunir teleologicamente esses dois modos de ação até separados, o pistão à vapor e a locomoção sobre rodas, etc.

[267] – Proculianos. Em Direito Romano, designava-se por esta palavra o membro de uma escola de jurisconsultos que foi fundada sob Augusto, por Marco Antísio Labeão (50-18 a. C.), um dos primeiros a introduzir, no Direito Romano, princípios filosóficos. A escola deveu seu nome a um de seus sucessores, Proculus, e as soluções que davam os proculianos a diversas questões controversas estavam em oposição àquelas da escola rival, — a escola sabiniana, — sem que haja existido, parece, diferença radical de método. Foram chefes desta escola: Proculus, Nerva, o filho, Pegasus, Juventius, Celsus, o pai, Celsus, o filho, Neratius Priscus. Larousse du XXe. Siècle, t. V, Librairie Larousse, Paris, 1932; Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[268] – Doutor judeu do século I a.C.. Autoridade em leis e doutrina judaicas, foi presidente do Sinédrio. Era liberal e compôs um método de interpretação dos livros sagrados denominado As Sete Regras. Enciclopédia Brasileira Mérito. (N. da T.).

[269] – Para convencer-se é suficiente ler o Etude sur la théorie du Droit musulman (Paris, 1892), por Savvas Pacha, antigo ministro do sultão. Distinguem-se: 1º) as obrigações concernentes às crenças religiosas; 2º) as obrigações concernentes às práticas religiosas. A mais obrigatória das “ações” é a fé! — Outra distinção: 1º) as obrigações que incumbem a todos os crentes sem exceção: fé, prece, jejum; 2º) as obrigações que, cumpridas por uma parte dos crentes, são consideradas como cumpridas por todos, em virtude da reversibilidade dos méritos e dos deméritos. O quanto estamos longe das noções de nossos autores clássicos!

[270]Phratries, palavra de origem grega que significa uma subdivisão da tribo. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[271] – Aqui trata-se de subdivisão das tribos entre os romanos e também o lugar de reunião de cada uma dessas subdivisões. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[272] – Do volapuque Volapük, de vol, mundo, mais pük, língua. Trata-se de uma língua auxiliar de comunicação internacional, lançada em 1879 pelo alemão Mons. Johann Martin Schleyer (1831-1912). Dicionário Aurélio Século XXI, ed. 2001. (N. da T.).

[273] – Darmesteter foi um lingüista francês que viveu de 1846 a 1888 e desenvolveu estudos sobre as línguas romanas. Seu irmão, James, estudou particularmente as línguas do antigo Irã. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[274] – Não existe correlação em português. Em francês, renard significa raposa; a alusão relaciona-se com Jules Renard (1864-1910), autor do Roman de Renart, coletânea de vinte e seis pequenos poemas em que os personagens são animais, particularmente a raposa. Trata-se de uma verdadeira epopéia, espirituosa sátira das classes dirigentes da Idade Média. Nouveau Petit Larousse Illustré, op. cit. (N. da T.).

[275] – Em meu Lois de l’Imitation, capítulo intitulado “As leis lógicas da imitação”, e, notadamente, página 173 e seguintes.

[276] – Isto é tão verdadeiro que, mesmo em nossa própria época, a cidade, de acordo com Arsène Dumont, é a unidade lingüística. (Rev. Scientif., 10 de setembro de 1892).

 


 

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