Do Progresso - Sua Lei e Sua Causa
Herbert Spencer
Tradução
Eduardo Salgueiro
Versão para eBook
eBooksBrasil
Fonte-base Digital
Digitalização de edição em papel
Editorial Inquérito, Lisboa, 1939
© 2002 — Herbert Spencer
ÍNDICE
Nota Editorial
NOTA
I - Em que consiste o progresso
II - O progresso na natureza
III - O progresso no mundo orgânico
IV - O progresso na sociedade
V - O progresso na linguagem e nas belas artes
VI - Natureza necessária da causa do progresso. Enunciação da lei e sua universalidade
Notas
DO PROGRESSO
SUA LEI E SUA CAUSApor
HERBERT SPENCER
TRADUÇÃO DE
EDUARDO SALGUEIRO
Nota Editorial
Esta edição, além de tornar acessível ao eventual leitor uma obra de Spencer que, pelas pesquisas que fiz, tornou-se rara, tem alguns objetivos que gostaria de deixar aqui assinalados.
Em primeiro lugar, chamar a atenção das novas gerações para um autor que teve uma importância muito grande entre nós nos fins do século XIX e início do seguinte.
Em segundo, sendo Spencer reputado (mesmo pelos que só o conhecem por terceiros, ou por rodapés, como se está tornando usual) como um “darwinista social”, sua noção de “progresso” é muito mais rica e instigante do que a noção vulgar que o termo tomou nos dias de hoje.
Isso, espero que fique claro na “capa” do presente volume.
É algo que fica claríssimo em The First Principles, em que propõe, expressamente, “UM SISTEMA DE FILOSOFIA”, não de Sociologia, como já cheguei a ler, constituindo “Os Princípios de Sociologia” apenas uma das partes da obra.
Ademais, longe de defender um determinismo do “progresso”, deixava ampla margem para a ação humana, em direção ao progresso ou à degradação, como declara expressamente nos ensaios que viriam a constituir o The Man Versus The State.
Ler ou reler Spencer hoje, quando, mais que nunca antes, ações humanas podem resultar na própria exterminação das mais básicas condições da existência humana no planeta, quando a fé na Ciência e no Progresso parciais substituiram junto a muitos o respeito devido à Natureza e à Unidade essencial do Todo, é, pelo menos, um bom antídoto.
Além do texto de Spencer, optamos por manter nesta edição, em “fair use” a Nota do Tradutor, Eduardo Salgueiro, da Editorial Inquérito e exponente das letras em Portugal, pela relevância do texto para benefício do leitor.
Teotonio Simões
Inverno, 2002
NOTA
Herbert Spencer, filósofo e sociólogo dos mais notáveis da Inglaterra, nasceu em Derby (27 de Abril de 1820) e morreu em Brighton (8 de Dezembro de 1903).
Eis um filósofo singular que nada deve às universidades — que não freqüentou — nem ao chamado ensino clássico, que nunca recebeu. Spencer é apontado como um argumento decisivo contra os que subordinam ao ensino clássico toda a disciplina mental e toda a capacidade dum labor verdadeiramente sistemático. Tudo isto, com efeito, se encontrou em Spencer, aliado a uma inteligência infatigável ante as mais árduas, exaustivas e — para tantos outros — desalentadoras tarefas.
Spencer, desde muito cedo, sentiu-se atraído pelas hipóteses evolucionistas, e, desde as primeiras interrogações da sua inteligência ante o fenômeno do Universo, não é difícil adivinhar nele uma organização mental altamente dotada para, nos domínios metafísicos, realizar trabalho pessoal. Não é ousado, porém, afirmar que na sua obra se encontram claros vestígios da influência dum Stuart Mill, dum Bentham, dum Hamilton, dum Adam Smith, dum Malthus, — a que não foi estranha a sua tendência filosófico-sociológica.
Até aos 40 anos Spencer considera que a sua vida foi apenas miscelânea. Entretanto, que atividade singular a sua, desde o bosquejo “Social Estatics” (1830), passando por “The development hypothesis” (1852), “A new theory oi population” (1852), “Manners and fashion” (1854), “The genesis of Science” (1854), “Education physical, intelectual and moral” (1861), “First Principies” (1862), “The classification of Science” (1864), “Principies of Biology” (1867), “The Study Sociology” (1873), “The moral of trade” (1874), etc.!
O ensaio agora incluído nos Cadernos Inquérito (“Progress, its law and cause”) é de 1857 e nele se encontra, em grande parte, a essência das concepções spencerianas.
Para Spencer, a filosofia é o saber totalmente unificado, e na evolução deve buscar-se a lei fundamental do Universo. O primeiro estado universal é a massa homogênea, informe e confusa. É a fase nebulosa, que se diferencia pela condensação, que dá origem ao sistema planetário em que a Terra se integra, inicialmente em estado ígneo. Pelo esfriamento gradual, aparece a primeira camada terrestre — a crosta —, os continentes, os mares, etc.
A vida, na sua forma rudimentar — o protoplasma — produz-se no mundo universal, por combinações químicas indefinidameute complexas. Pela ininterrupta diferenciação e concentração, o protoplasma desenvolve-se e dá lugar à vida orgânica, — vegetal e animal.
Pela marcha contínua do homogêneo para o heterogêneo, os seres tornam-se cada vez mais diferenciados e complexos. A sua existência, relacionada com os meios de conservação, desenvolve-se submetida a permanente luta, em que triunfam os mais aptos.
O aparecimento do sistema nervoso nos organismos assinala o ponto culminante da evolução animal, donde o homem procede.
*
Não pretendemos fazer uma síntese da filosofia de Spencer, nem seria possível fazê-la em tão acanhados moldes como os estabelecidos pelo objetivo dos Cadernos Inquérito. Algumas notas, porém, eram necessárias, para melhor compreensão do que o presente ensaio de Spencer significa no conjunto da sua obra.
Para Spencer o Universo evoluciona; e evolucionar é progredir; progride, no seu conjunto, como progridem as células, que o constituem ou habitam. E sendo a causa determinante desse progresso, em todas as ordens, — astronômica, geológica, orgânica, social, econômica, etc. — comum a todas elas, deve poder exprimir-se em função deste atributo; deve haver um caráter comum a todas as transformações. A contínua passagem do homogêneo para o heterogêneo deve assentar numa lei que pode denominar-se da transformação e enunciar-se deste modo: “toda a causa produz mais de um efeito” ou “toda a força ativa produz mais duma modificação”. E como cada modificação produzida é causa doutras, teremos os efeitos, com o tempo, multiplicados indefinidamente até ao inverosímil.
Mas Spencer é um filósofo honesto, e sabe que, depois da sua tese, nem tudo se esclarece. Não é um filósofo cheio de certezas, — dogmático e intransigente. Por isso tem o cuidado, cauteloso e angustiado, de nos dizer: “As generalizações precedentes têm valor, não para a geração das coisas em si mesmas, mas para a sua gênese, tal como se apresenta à consciência humana. Depois de tudo o que ficou dito, o derradeiro mistério fica tão oculto como dantes”. E a seguir: “O homem de ciência, contente com seguir a verdade, convence-se mais profundamente, a cada nova descoberta, de que o Universo é um problema insolúvel.
Neste caso, o homem de ciência e o filósofo confundem-se. E então haverá quem, mefistofelicamente, pergunte:
— Pode então saber-se para que serve a filosofia?...
Ao que muitos poderão responder:
— Para confirmar que nada sabemos...
E. S.
DO PROGRESSO
SUA LEI E SUA CAUSA==================================
I
EM QUE CONSISTE O PROGRESSO
PECA por indefinido e vário o conceito que habitualmente se faz do progresso. Designa, umas vezes, pouco mais que um simples crescimento, como quando, ao tratar-se duma nação, se atende ao número dos habitantes e à extensão do território; outras, refere-se à quantidade dos produtos materiais: tal ocorre quando nos detemos no adiantamento da agricultura ou da indústria; há casos, ainda, em que o critério atende à qualidade superior destes produtos ou aos novos e aos melhores meios de obtê-los. Por outro lado, quando falamos de progresso intelectual e moral, referimo-nos ao estado dos indivíduos ou do povo onde se produz; mas, ao aludir aos progressos dos conhecimentos, da ciência, das artes, temos presentes certos resultados abstratos do pensamento e da atividade humana.
Não obstante, a concepção vulgar do progresso não só é mais ou menos vaga mas até errônea em alto grau. Atende menos à realidade do progresso do que às circunstâncias acessórias que o acompanham: dá menos importância à substância do que à sua sombra. O progresso que se observa na inteligência da criança, quando esta se transforma em homem, ou na do selvagem quando se civiliza, faz-se consistir vulgarmente no maior número de fatos conhecidos ou de leis compreendidas; em rigor, porém, o progresso consiste nas modificações interiormente experimentadas, das quais o desenvolvimento da inteligência é mera expressão.
Supõe-se que o progresso social consiste na maior e mais variada produção dos objetos necessários à satisfação das nossas necessidades, na crescente segurança pessoal e da propriedade e na amplitude concedida à liberdade de ação. Todavia, o progresso social, rigorosamente entendido, consiste nas transformações de estrutura do organismo social, causa donde derivam as conseqüências que se observam. A idéia comum é teleológica. Os fenômenos consideram-se apenas na sua relação com a felicidade humana; e pensa-se que só devem reputar-se progressivas aquelas transformações que, direta ou indiretamente, tendem a aumentar esta felicidade, fazendo, por conseguinte, depender o seu caráter, na relação a que nos circunscrevemos, da referida tendência. Não obstante, para bem se compreender o progresso, devemos investigar a natureza de tais transformações, com absoluta independência da nossa individualidade.
Deixando, por exemplo, de observar as sucessivas revoluções geológicas produzidas na terra como transformações que gradualmente melhoram as suas condições de habitabilidade para o homem, e portanto, como um progresso geológico, devemos procurar discernir o caráter comum destas transformações, isto é, a lei a que obedecem. E assim em relação a todos os outros casos. Deixando de lado as conseqüências concomitantes e benéficas, devemos investigar o que é o progresso em si mesmo.
Relativamente ao progresso dos organismos individuais no decurso da sua evolução, o problema foi resolvido pelos alemães. As investigações de Wolf, Goete e Von Baer comprovaram que as mudanças, verificadas com a transformação da semente na árvore e do óvulo no animal, consistem na passagem da estrutura homogênea para a estrutura heterogênea. No seu estado primitivo, o germe é uniformemente homogêneo, tanto em contextura como em composição química; mas não tarda a aparecer uma diferença entre as partes da substância que o forma ou, como se diz em linguagem fisiológica, uma diferenciação. Cada uma destas divisões diferenciadas começa a manifestar algum contraste de partes, e estas diferenciações secundárias chegam a ser tão bem definidas como a primeira. Este processo repete-se continuamente; realiza-se, ao mesmo tempo, em todas as partes do embrião em crescimento, e, mediante intermináveis diferenciações, produz-se, finalmente, a combinação completa de tecidos e órgãos que constituem a planta ou o animal adulto.
Está fora de qualquer discussão o fato de o progresso orgânico consistir na passagem do homogêneo para o heterogêneo.
Assim, propomo-nos demonstrar, em primeiro lugar, qne esta lei do progresso orgânico é a lei de todo o progresso; quer se trate das transformações da terra, do desenvolvimento da vida à sua superfície ou do desenvolvimento das instituições políticas, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, da ciência, da arte, dá-se sempre a mesma evolução do simples para o complexo, mediante sucessivas diferenciações. Desde as mais remotas transformações cósmicas, de que ainda existem sinais, até aos mais recentes resultados da civilização, vê-se que o progresso consiste essencialmente na passagem do homogêneo para o heterogêneo.
II
O PROGRESSO NA NATUREZA
SE a hipótese da nebulosa é verdadeira, a gênese do sistema solar dar-nos-ia uma explicação desta lei; suponhamos que a matéria componente do sol e dos planetas esteve durante algum tempo em forma difusa e que, pela gravitação dos seus átomos, se foi condensando gradualmente. Segundo tal hipótese, o sistema solar, no estado nascente, existiu como um meio indefinidamente extenso e quase homogêneo em densidade, em temperatura e noutros atributos físicos.
O primeiro passo para a consolidação derivou duma diferenciação entre o espaço que a massa nebulosa então ocupava e o espaço que primeiramente ocupou; daqui proveio, simultaneamente, um contraste em densidade e outro em temperatura, entre a parte interna e a parte externa dessa massa; ao mesmo tempo, a massa teve movimentos de rotação, cujas velocidades variariam, segundo as distâncias ao centro das suas trajetórias. Estas diferenciações aumentaram em número e grau, até se desenvolver o grupo organizado do sol, dos planetas e dos satélites, tal como hoje é conhecido, — grupo que apresenta numerosos contrastes na estrutura dos seus membros e na ação recíproca duns sobre outros.
Há, em primeiro lugar, o imenso contraste entre o sol e os planetas, em volume e peso, como também o contraste subordinado entre uns e outros planetas e entre estes e os seus satélites; depois, o contraste bem nítido entre o sol, que é quase estacionário, e os planetas que giram à sua volta com grande velocidade; são igualmente de notar os contrastes secundários entre as velocidades e os períodos de revolução dos planetas, e ainda entre as simples revoluções destes e as duplas dos seus satélites, arrastados por aqueles no seu movimento de rotação. Maior é ainda o contraste entre o sol e os planetas no referente à temperatura, e há razões para supor que os planetas e satélites diferem entre si não menos pelo seu próprio calor do que pelo que recebem do sol.
Quando se pensa que a estes contrastes devemos acrescentar que os planetas e satélites também diferem nas distâncias que separam uns dos outros, e cada um do sol, da mesma forma que na inclinação sobre o respectivo eixo, no período da sua revolução, nos pesos específicos e na constituição física, vê-se o alto grau de heterogeneidade que o sistema solar apresenta em comparação com a homogeneidade quase absoluta da massa nebulosa a que é atribuída a sua origem.
Saindo deste exemplo hipotético, que só deve ser considerado pelo que vale, sem prejuízo do argumento geral, fixemo-nos noutra ordem de provas mais seguras. Hoje, geralmente, os geólogos concordam em que a terra foi em princípio uma massa de matéria em fusão e que se encontra ainda em estado fluido e incandescente a poucos quilômetros da superfície. Na sua origem, pois, a terra era homogênea em consistência, e por virtude da circulação que se dá nos fluidos quentes, devia ser comparativamente homogênea em temperatura; parece, também, que a envolvia uma atmosfera, composta, em parte, de ar e de água, e, em parte, doutros elementos que tomam a forma gasosa a temperaturas elevadas.
O contínuo arrefecimento por irradiação, mais rápido a princípio do que agora, mas sempre relativamente lento, devia necessitar de muito tempo para produzir uma transformação considerável e, por fim, conduzir à solidificação da parte mais apta para libertar-se mais rapidamente do seu calor, isto é, a superfície. Na tênue crosta assim formada, temos a primeira diferenciação importante. Um maior arrefecimento, o conseqüente aumento da crosta e o fato de nela se depositarem os elementos solidificáveis contidos na atmosfera, devia ser seguido, por fim, da condensação da água, antes em estado de vapor. Eis a segunda diferenciação; e como a condensação se verificaria nos pontos mais frios da superfície, isto é, nos pólos, aqui devia aparecer a primeira distinção geográfica de partes.
A estes exemplos de heterogeneidade crescente, que, embora deduzidos de conhecidas leis da matéria, podem considerar-se mais ou menos hipotéticos, a Geologia acrescenta uma longa série de outros, baseados em fatos estabelecidos por indução. As investigações geológicas mostram, com efeito, que a terra foi aumentando continuamente em heterogeneidade, por virtude dos estratos que formam a sua crosta; que a heterogeneidade destes estratos foi cada vez maior, porque cada um deles, formando-se dos detritos dos anteriores, se torna mais complexo do que eles devido à mistura dos materiais que contém; e que esta heterogeneidade aumentou consideravelmente pela ação do núcleo fluido que ainda existe sob a crosta terrestre, donde proveio não só grande variedade de rochas ígneas mas também a inclinação dos estratos sedimentados em todos os ângulos, a formação de fendas e de filões metálicos, e interminável número de deslocações e irregularidades.
Os geólogos ensinam-nos também que a superfície variou muito a respeito da elevação de cada parte; que os mais antigos sistemas de montanhas são os de cordilheiras mais baixas; que os Andes e o Himalaia são os mais modernos; e que, possivelmente, houve transformações correlativas no fundo do Oceano. Como conseqüência destas contínuas diferenciações, vemos que não há duas porções consideráveis da superfície terrestre semelhantes no contorno, na estrutura geológica e na composição química, e que muitas vezes são diferentes, de quilômetro para quilômetro, todos estes caracteres.
Por outro lado, simultaneamente a tais transformações, opera-se, nos climas, uma diferenciação gradual. À medida que a terra arrefecia e se solidificava a sua crosta, produziam-se consideráveis diferenças de temperatura entre as partes da sua superfície mais expostas ao sol e as menos expostas. Gradualmente, aumentando o arrefecimento, estas diferenças tornaram-se maiores, até que, por último, apareceram os acentuados contrastes entre as regiões do gelo e as neves perpétuas, aquelas em que alternam o verão e o inverno, segundo períodos que dependem da latitude, e outras em que o verão se segue ao inverno com variação pouco perceptível.
Entretanto, os sucessivos movimentos de elevação e depressão das diferentes porções da crosta terrestre, de que derivou a atual distribuição irregular da terra e da água, criaram circunstâncias que modificam o clima, independentemente da latitude, — circunstâncias essas que aumentaram em número pela diversa elevação que os terrenos atingiram, sendo esta a causa de que em certas paragens coexistam, num espaço de poucos quilômetros, a temperatura ártica e a dos trópicos. E como conseqüência geral de tais transformações, aparece o fato de toda a região extensa ter condições metereológicas próprias, e o de as diferentes localidades de cada região diferirem, mais ou menos, entre si, nestas condições, na sua estrutura, nos seus contornos e no seu solo.
Por conseguinte, entre a terra atual — cuja crosta oferece tão variados fenômenos ao geógrafo, ao geólogo, ao mineralogista, ao meteorólogo, — e o globo em fusão, donde procede, há um contraste em heterogeneidade que fica suficientemente assinalado.
III
O PROGRESSO NO MUNDO ORGÂNICO
QUANDO da terra passamos às plantas e aos animais que viveram ou ainda vivem sobre a sua superfície, tropeçamos com algumas dificuldades pela ausência de fatos. Que todo o organismo existente se desenvolveu seguindo a progressão do simples para o complexo, é, efetivamente, o primeiro princípio certo estabelecido, e que os organismos que já não existem devem ter-se desenvolvido de modo análogo, eis uma indução que nenhum fisiólogo se negará a admitir. Mas quando nos elevamos das formas individuais da vida para a vida em geral, e perguntamos se a mesma lei regeu o conjunto das suas manifestações, se as plantas e os animais dos nossos dias são de estrutura mais heterogênea que a dos antigos, e se a flora e a fauna do nosso tempo são mais heterogêneas que a flora e a fauna dos tempos passados, só dispomos de provas fragmentárias, sempre susceptíveis de discussão.
As duas terças partes da superfície da terra estão cobertas pela água; grande parte do resto é inacessível ao geólogo ou apenas foi visitada por ele; uma outra parte, não pequena, do que resta, foi muito imperfeitamente explorada, e mesmo as regiões que nos são mais familiares, como a Inglaterra, estão tão longe de ser bem conhecidas que nestes últimos quatro anos se descobriu uma nova série de estratos. Tudo isto é suficiente para que não possamos afirmar, com exatidão, que seres existiram ou não em cada período determinado. Tendo em conta a transitoriedade das formas orgânicas inferiores, as metamorfoses de muitos estratos sedimentários e os vazios que há entre os restantes, devemos desconfiar das nossas deduções. Por um lado, as descobertas contínuas de restos de vertebrados em estratos onde não se julgaria encontrá-los, de répteis onde só se julgava que tivesse havido peixes, e de mamíferos onde se imaginava não ter havido seres superiores aos répteis, evidenciam como é escasso o valor das provas negativas no problema de que se trata.
Por outro lado, é igualmente claro que não há motivos para crer que se descobriram já os restos orgânicos primitivos nem nada que se lhes compare na antigüidade. É inegável que as rochas sedimentárias mais antigas que se conhecem se modificaram consideravelmente pela ação ígnea, e esta terá transformado por completo outras ainda mais antigas. E admitindo o fato de que os primeiros estratos sedimentários que conhecemos se destruíram, temos que admitir também o de que não nos é possível dizer quando se verificou esta destruição.
Assim, a designação de paleozóico aplicada aos mais antigos estratos fossilíferos de que se tem notícia, envolve uma petitio principii; e de tal modo, que é lícito dizer que só chegaram até nós os últimos capítulos da história da terra. Em nenhum dos casos, portanto, a prova é concludente. Mas, apesar disso, não se pode negar que os fatos, por raros que sejam, tomados em conjunto, tendem a mostrar que os mais heterogêneos organismos se desenvolveram nos últimos períodos geológicos, e que a vida, em geral, se foi tornando mais heterogênea à medida que o tempo decorreu. Citemos, como exemplo, o caso dos vertebrados. Os restos dos mais antigos vertebrados que conhecemos são os dos peixes; e são, precisamente, os peixes os seres mais homogêneos do grupo dos vertebrados.
Mais recentes e também mais heterogêneos são os répteis, e mais modernos ainda, e igualmente mais hetorogéneos, são os mamíferos e as aves. Se se diz, e a objeção é oportuna, que não era provável que os depósitos paleozóicos, não sendo depósitos estuários, contivessem restos de vertebrados terrestres, os quais, todavia, puderam existir na mesma época, responderemos que nos limitamos a apontar os fatos principais, tais como hoje se nos apresentam.
Mas para evitar esta crítica detenhamo-nos unicamente na subdivisão dos mamíferos. Os mais antigos restos de mamíferos que se conservam são os dos pequenos marsupiais, que ocupam o lugar inferior na escala dos mamíferos, enquanto o tipo mais elevado da escala — o homem — é o mais recente. A prova de que a fauna vertebrada, vista em conjunto, apresenta o exemplo duma heterogeneidade crescente, é de grande importância. Mas, ao argumento de que a fauna vertebrada do período paleozóico, que consistia, como sabemos, exclusivamente em peixes, é menos heterogênea que a fauna vertebrada moderna, que compreende répteis, aves e mamíferos de numerosos gêneros, poderá responder-se que os depósitos estuários que possam encontrar-se talvez contenham outras ordens de vertebrados; mas esta objeção carece de força contra o argumento de que os vertebrados marítimos do período paleozóico se reduzem a peixes cartilaginosos, enquanto os vertebrados marítimos dos períodos mais recentes compreendem numerosos gêneros de peixes com esqueleto ósseo; de forma que a heterogeneidade desta fauna é maior que a da anterior.
Tampouco se pode negar o fato de que as ordens e gêneros de mamíferos, cujos restos se conservam, sejam muito mais numerosos nas formações terciárias que nas secundárias. Assim, firmando-nos na interpretação mais favorável, poderíamos citar a opinião do doutor Carpenter que diz: “Os fatos gerais da paleontologia confirmam, ao que parece, a convição de que o mesmo plano que preside à vida geral do globo rege a vida individual de cada uma das formas dos seres organizados que atualmente o povoam”. Também poderíamos citar, como decisivo, o juízo do professor Owen, ao dizer que, em geral, os exemplares mais antigos de cada grupo de seres se afastam menos do seu arquétipo do que os mais recentes, sendo maior a sua semelhança com a forma fundamental comum ao grupo; será isto dizer que constituem uma ordem menos heterogênea. Por outro lado, Owen defende a doutrina do progresso biológico. Mas por deferência para com uma autoridade que nos inspira o mais profundo respeito — a qual considera que as provas aduzidas não justificam ainda um veredito no sentido exposto — deixaremos este problema aberto à discussão. Seja ou não o progresso do homogêneo para o heterogêneo bastante visível na história biológica do globo, ele aparece, com relevo suficiente, no desenvolvimento do ser mais moderno e mais heterogêneo, — o Homem. É inegável que, desde o período em que a terra foi povoada, aumentou a heterogeneidade do organismo humano entre os grupos civilizados da espécie; também a heterogeneidade desta última, considerada como um todo, aumentou por virtude da multiplicação das raças e da sua diferenciação entre si.
Como prova da primeira tese, podemos citar o fato de que no desenvolvimento relativo dos membros, os homens civilizados se afastam muito mais dos tipos placentários que as raças humanas inferiores. As pernas dos papuas, que têm freqüentemente os braços e o corpo bem desenvolvidos, são muito curtas, lembrando os quadrúmanos, que não oferecem grande contraste no tamanho das extremidades toráxicas e das abdominais. Nos europeus, pelo contrário, é muito visível o maior comprimento e robustez das pernas, apresentando-se neles, portanto, uma maior heterogeneidade entre estas extremidades e as superiores. Outro exemplo da mesma verdade é a diferente relação que existe entre o desenvolvimento dos ossos do crânio e os da face, no selvagem e no homem civilizado.
Nos vertebrados, em geral, o progresso manifesta-se pela heterogeneidade crescente da coluna vertebral e, sobretudo, pela heterogeneidade das vértebras em que assenta o crânio, distinguindo-se as formas mais elevadas pelo tamanho relativamente maior dos ossos que cobrem o cérebro comparados com os maxilares, etc. Pois bem, este caráter, mais acentuado no homem do que em nenhum outro indivíduo do grupo, acentua-se mais no europeu do que no selvagem. Por outro lado, a julgar pela maior extensão e variedade das funções que desempenha, podemos inferir que o homem civilizado possui também o sistema nervoso mais complexo ou heterogêneo do que o homem não civilizado, fato que corresponde à maior relação que o cérebro do primeiro tem com os gânglios subjacentes.
Se fosse necessário dilucidar mais este tema, bastaria fixarmo-nos nas crianças. A criança européia tem muitos pontos de semelhança com a das raças inferiores, como se vê no achatamento das asas do nariz, na depressão deste, na divergência e abertura das narinas, na forma dos lábios, na distância entre os olhos e na pequenez das pernas. Pois bem, como o processo evolutivo que transformou estes traços nos do adulto europeu, é a continuação do precedente desenvolvimento do embrião, — asserção admitida por todos os fisiólogos, — daqui resulta que o processo paralelo, em virtude do qual os traços semelhantes das raças bárbaras se converteram nos das civilizadas, foi também a continuação da mudança do homogêneo para o heterogêneo.
A verdade da segunda tese, — que o gênero humano, considerado como um todo, aumentou de heterogeneidade, — é tão patente que mal necessita de explicação. Todas as obras de etnologia, nas suas divisões e subdivisões das raças, dão testemunhos disso.
Mesmo quando se admita a hipótese de que o gênero humano provém de vários troncos independentes, será sempre verdade que, de cada um deles, nasceram ramos diferentes, que, segundo se demonstra com fundamento nos caracteres filológicos, têm uma origem comum; donde se conclui que a raça, na sua totalidade, é mais heterogênea do que a princípio o foi. Acrescente-se a isto que nos anglo-americanos temos o exemplo duma variedade que se formou em pouquíssimas gerações, e que, se damos crédito às observações de alguns viajantes, teremos em breve, na Austrália, outro exemplo semelhante.
IV
O PROGRESSO NA SOCIEDADE
PASSANDO do homem como indivíduo, ao homem em sociedade, encontramos novos e mais variados exemplos da lei geral. A passagem do homogêneo para o heterogêneo verifica-se também nos progressos da civilização, vista em conjunto, do mesmo modo que nos de cada nação ou tribo. Como se observa nas tribos bárbaras atuais, a sociedade, nas suas formas primitivas e inferiores, é um agregado homogêneo de indivíduos que têm o mesmo poder e exercem idênticas funções: a única diferença observada nestas últimas é a que acompanha a diferença de sexos. Todos os homens são guerreiros, caçadores, pescadores, fabricantes de utensílios, construtores; todas as mulheres se ocupam em iguais serviços; cada família se basta a si mesma, e, fora dos casos de agressão ou de defesa, pode viver aparte das demais.
Em breve, porém, no progresso da evolução social se encontra uma diferenciação incipiente entre o governo e os governados. Certa espécie de chefatura parece coeva do primeiro passo do estado de famílias errantes e separadas para o da formação das tribos nômadas. A autoridade do mais forte em breve se faz sentir entre os selvagens, do mesmo modo que num rebanho de animais ou num grupo de rapazes. Todavia, a princípio, esta chefatura é indefinida, incerta; dela participam também aqueles cujo poder é pouco inferior ao do mais forte e não se acompanha de qualquer diferença de ocupação ou de gênero de vida; o que a exerce mata por si mesmo a caça que há-de consumir; fabrica as suas armas, constrói a sua cabana, e, considerado nas condições econômicas da vida, é como qualquer outro indivíduo da tribo. Gradualmente, à medida que a tribo progride, vai aumentando o contraste entre o governante e os governados. O poder supremo perpetua-se numa família, por via de herança; o chefe desta família, deixando de prover às suas próprias necessidades, é servido pelos outros e começa a não ter outro ofício que não seja o de governar.
Simultaneamente, aparece uma espécie de governo, coordenado ao anterior, — o da religião. Segundo comprovam todos os antigos relatos e tradições, os primeiros chefes são tidos como personagens divinas. As máximas e mandatos que impõem durante a vida são tidos por sagrados depois da sua morte e recebem força de seus herdeiros, que se julgam descendentes dos deuses e que, por sua vez, passam ao panteão da família, onde se lhes tributa o mesmo culto e as mesmas orações que aos seus antecessores: o mais antigo de todos é o deus supremo e os outros são deuses subalternos. Durante muito tempo, estas duas formas de governo — civil e religiosa — nascidas da mesma origem, continuam estreitamente unidas. Por espaço de muitas gerações, o rei é o pontífice máximo e os sacerdotes devem pertencer à família real. Durante idades inteiras, a lei religiosa contém preceitos relativos à vida civil, a lei civil participa, mais ou menos, do caráter religioso e, ainda hoje, nas nações mais adiantadas, não se diferenciam totalmente estes dois poderes.
Procedendo da mesma raiz, mas separando-se pouco a pouco, aparece outro agente diretor, — o dos costumes ou do cerimonial. Os títulos de honra, na sua origem, são todos nomes do deus-rei; depois, do deus e do rei; mais adiante, dos personagens de alta categoria; finalmente, alguns deles chegam a usar-se nas relações de homem para homem. Todas as formas de cortesia foram, a princípio, expressões de submissão dos prisioneiros para com o vencedor, ou dos vassalos para com o chefe, — fosse este humano ou divino; depois usaram-se para captar a vontade das autoridades subalternas, até que, pouco a pouco, adquiriram o caráter de uso geral. Todos os modos de saudar foram, primeiramente, homenagens tributadas ao monarca e sinal da adoração que se lhe rendia depois da morte; mais tarde, saudaram-se igualmente outros indivíduos que pertenciam a esta raça divina, generalizando-se, por fim, alguns deles,
Vemos, portanto, que não se destaca, rigorosamente, a primeira diferenciação entre governante e governados no corpo social. Originariamente homogêneo, aparece outra diferenciação incipiente no seio do próprio governo, entre as ordens civil e religiosa, entre o Estado e a Igreja, ao mesmo tempo que começava a diferenciar-se, de ambos, aquela outra espécie de governo menos definida, que regula as nossas relações diárias e que, como vemos nos colégios dos arautos, nos livros de heráldica e no cerimonial, não deixa de ter significado próprio. Cada uma destas espécies de governo se diversifica em sucessivas diferenciações, até que, com o decorrer do tempo — como ocorreu entre nós — se elabora uma organização política extraordinariamente complexa, constituída pelo monarca, pelos ministros, pelos lordes e comuns, pelos departamentos administrativos correspondentes, tribunais, erário, etc., organismos que, nas províncias, têm a sua representação nos municípios, nas juntas de freguesia, conselhos provinciais, etc.
Entretanto, aumenta a complexidade da organização eclesiástica, onde aparecem vários graus, desde os arcebispos aos sacristães, e colégios, assembléias, tribunais, etc., a que se devem acrescentar as múltiplas seitas independentes, com as suas autoridades gerais e locais. Ao mesmo tempo, desenvolve-se um conjunto, altamente complexo, de costumes, maneiras e modas transitórias, que a sociedade sanciona e regem as relações secundárias que não são do domínio da lei civil nem religiosa.
Deve notar-se, além disso, que esta heterogeneidade crescente, nas instituições de cada país, é igual nas instituições de vários países, comparadas entre si, o que origina diferenças, maiores ou menores, no sistema político e na legislação, nas crenças e instituições religiosas, nos costumes, usos e cerimônias.
Simultaneamente, aparece outra diferença de natureza mais familiar, por virtude da qual a massa social se divide em classes distintas e categorias de trabalhadores. Enquanto na parte governante se produziu a complicada evolução até agora exposta, entre os governados produziu-se o mesmo fenômeno, donde deriva a extraordinária divisão de trabalho que caracteriza as nações adiantadas. Não é necessário seguir este progresso, passo a passo, desde a divisão das castas, no Oriente, e dos grêmios na Europa, até ao complicado organismo de produção e distribuição dos nossos dias. A Economia Política já descreveu essa evolução, que começando na tribo, onde cada indivíduo executa os trabalhos para si próprio, conclui na comunidade civilizada, onde cada indivíduo executa um trabalho diferente para os demais, e assinalou também como o produtor isolado dum objeto se transforma numa combinação de produtores que, unidos sob a direção dum chefe, tomam parte distinta na obra comum.
Há, porém, outras fases mais elevadas, neste progresso do homogêneo para o heterogêneo, na organização industrial da sociedade.
Muito tempo depois de realizados consideráveis progressos na divisão do trabalho entre as diferentes classes operárias, ela é pequena, se alguma existe, entre os vários grupos da comunidade: a nação continua a ser relativamente homogênea, sob o conceito de que as diferentes circunscrições executam o trabalho próprio; mas, quando os caminhos e outros meios de comunicação se tornam bons e numerosos, começam a exercer diferentes funções e a depender umas das outras. A manufatura do tecido de algodão estabelece-se numa província, a dos tecidos de lã, noutra; aqui, produzem-se sedas; ali, rendas ou meias; noutra parte, sapatos; a fabricação de artigos de barro, quinquilharia, cutelaria, circunscreve-se a determinadas cidades; finalmente, cada localidade se distingue, mais ou menos, pela espécie de ocupação a que se dedica.
Esta subdivisão de funções não se limita a uma nação; passa as fronteiras e estende-se aos diferentes países. A troca de produtos, que o livre-câmbio promete aumentar de modo tão considerável, terá como resultado especializar, em maior ou menor grau, a indústria de cada povo. Assim, começando nas tribos bárbaras, onde, se não há homogeneidade absoluta entre as funções dos indivíduos, pouco falta para que exista, o progresso foi impelido e continua ainda no sentido de determinar a associação econômica de toda a raça humana, notando-se, cada vez mais, maior heterogeneidade nas várias funções desempenhadas por cada nação, nas desempenhadas pelas diferentes regiões do mesmo país, nas que estão a cargo dos diferentes grupos de operários e negociantes de cada cidade e, por último, nas correspondentes aos trabalhadores que se ocupam na produção de determinado objeto.
A lei geral que se descobre na evolução do organismo social também aparece, com a mesma evidência, na evolução dos produtos do pensamento e da atividade dos homens, — sejam concretos ou abstratos, sejam reais ou ideais.
Fixemo-nos, como primeiro exemplo, na linguagem.
V
O PROGRESSO NA LINGUAGEM E NAS BELAS ARTES
A exclamação é a forma mais elementar da linguagem: com ela se exprime vagamente uma idéia total, através dum único som, como ocorre entre os próprios animais inferiores. Não há provas para afirmar que a linguagem humana só tenha consistido, a princípio, em exclamações, e, por conseguinte, que tenha sido rigorosamente homogênea com respeito às partes da oração. Mas é fato já estabelecido que, nas formas primitivas da linguagem, entraram como únicos elementos os nomes e os verbos. Na gradual multiplicação das partes do discurso, a partir das referidas, na divisão dos verbos em ativos e passivos, e na dos nomes em abstratos e concretos; na distinção de modos, tempos, números, pessoas e casos; na formação dos verbos auxiliares, dos adjetivos, advérbios, pronomes, preposições e artigos, assim como na diversidade de ordens, gêneros e variedades destas partes, com as quais as raças civilizadas exprimem as mais delicadas modificações do pensamento; em tudo isto, repetimos, se vê a passagem do homogêneo para o heterogêneo. E pode observar-se que, especialmente devido a ter levado esta subdivisão de funções a um alto grau de extensão e determinação, é a língua inglesa superior a todas as outras.
Sob outro aspecto, podemos considerar o desenvolvimento da linguagem, isto é, o da diferenciação das palavras de sentido análogo. A filologia descobriu há muito tempo que em todas as línguas se podem agrupar as palavras em famílias com uma origem comum. Um nome primitivo, aplicado indiretamente a uma classe de coisas ou ações mal definidas, modifica-se, depois, de diferentes maneiras, para exprimir as divisões fundamentais da classe. Estes vários nomes, derivados duma única raiz, são, por sua vez, origem doutros, e assim sucessivamente. E graças a este sistema de formar, por derivação e composição, termos que exprimem as diferenças mais imperceptíveis, formam-se grupos de palavras tão heterogêneas que, ao não-iniciado, parece incrível que tenham a mesma origem. Grupos semelhantes nasceram ao lado doutras raízes até ao ponto de produzirem uma língua com mais de sessenta mil palavras diferentes que exprimem outros tantos objetos, qualidades e atos.
A multiplicação de línguas dá também testemunho da passagem do homogêneo para o heterogêneo. Seja como pensam Max Muller e Bunsen, que todas as línguas derivam do mesmo tronco, seja como entendem outros filólogos, que procedem de duas ou mais, será sempre certo que, se numerosas famílias de línguas — como as indo-européias — têm a mesma filiação, chegaram a diferenciar-se entre si por um processo de contínua divergência. A própria propagação dos homens pela superfície da terra, dando lugar à diferenciação das raças, produziu simultaneamente a diferenciação das línguas,— verdade que se justifica com o exemplo dos dialetos particulares que se falam nas diferentes regiões de cada nação. Portanto, o progresso da linguagem conforma-se com a lei geral, tanto na evolução das línguas como na evolução das famílias de palavras e na evolução das partes do discurso.
Passando da linguagem falada para a escrita, encontramos várias séries de fatos que implicam a mesma verdade. A linguagem escrita tem estreita conexão com a pintura e a escultura e, como estas, a princípio, depende da arquitetura que, por sua vez, se liga estreitamente com a primitiva forma de todo o governo, — a teocracia. Mencionando, de passagem, o fato de várias raças selvagens — como, por exemplo, a australiana e as tribos da América do Sul — decorarem com a pintura de personagens e acontecimentos os muros das cavernas, que provavelmente olham como lugares sagrados, fixemos a atenção no povo egípcio. Este, como o assírio, usava pinturas murais para decorar os templos dos deuses e os palácios dos reis, entre cujos edifícios, a princípio, não havia diferença, e em tal conceito se tinham as referidas pinturas que, como as cerimônias públicas e as festas religiosas, eram coisas próprias do governo, com tanto maior motivo quanto é certo que representavam a culto do deus, o triunfo do deus-rei, a submissão dos vassalos e o castigo dos rebeldes, além de exprimirem as manifestações duma arte adorada pelo povo e considerada um mistério sagrado.
Do uso habitual das representações pictóricas, nasceu, naturalmente, o uso da escrita-pintura, que é uma ligeira modificação daquelas, e que ainda subsistia entre os mexicanos quando o seu país foi descoberto. Por abreviaturas semelhantes às que ainda empregamos na nossa linguagem, falada ou escrita, foram-se simplificando sucessivamente as mais familiares das figuras pintadas, até que, por fim, se formou um sistema de símbolos, muitos dos quais só conservam remota semelhança com os objetos que primitivamente representaram.
A indução de que os hieróglifos dos egípcios se produziram deste modo, confirma-a o fato de a escrita-pintura dos mexicanos ter dado também origem às formas ideográficas da mesma família; e neste povo, como no egípcio, os referidos caracteres diferenciaram-se em imitativos e simbólicos, os quais, não obstante, se usavam conjuntamente nas inscrições. No Egito, a linguagem escrita apresenta ainda outra diferenciação, donde provém a escrita hierática e a epistolográfica, uma e outra derivadas da hieroglífica primitiva. Observa-se que, ao mesmo tempo, se empregavam símbolos fonéticos para exprimir os nomes que não podiam representar-se doutro modo; e embora os egípcios não chegassem a criar a escrita alfabética, pode aceitar-se que os símbolos fonéticos empregados por eles, como auxiliares dos ideográficos, foram o germe daquela. Uma vez separada a escrita fonética da hieroglífica, multiplicaram-se os alfabetos através de sucessivas diferenciações; entre todos eles, não obstante, é fácil descobrir relações mais ou menos estreitas, e cada nação civilizada conta já, para a representação duma série de sons, uma série correspondente de sinais escritos; finalmente, por uma diferenciação ainda mais importante, veio a imprensa que, uniforme a princípio, tomou depois variadas formas.
Enquanto a linguagem dava os primeiros passos no caminho do seu desenvolvimento, a decoração mural, que foi a sua origem, diferenciou-se em pintura e escultura. Os deuses, os reis, os homens e os irracionais representados figuravam-se, a princípio, com linhas esculpidas e a cores, e por vezes eram tão profundas e o objeto circunscrito por elas avultava de tal modo, que formava uma espécie de obra intermédia entre o entalhado e o baixo-relevo. Dá-se, depois, um novo progresso: levanta-se com o cinzel a parte do muro situada entre as figuras, dá-se cor a estas e nasce o baixo-relevo pintado. A arquitetura assíria restaurada, que se vê em Sydenham, revela esse estilo levado à maior perfeição: nas pessoas e coisas representadas, embora o colorido seja bárbaro, há muita verdade e grande profusão de pormenores; e nos leões e touros alados dos ângulos dos vestíbulos podemos notar progressos evidentes no sentido da figura completamente livre, que, não obstante, se pinta ainda e faz parte do edifício.
Mas se na Assíria a custo se encontra uma verdadeira estátua, na arte egípcia, em compensação, é fácil traçar, para a figura esculpida, a sua gradual separação do muro respectivo. Um passeio pelo Museu Britânico faz-nos compreender isto claramente, ao mesmo tempo que nos proporciona ocasião para observar sinais evidentes de que as estátuas provêm dos baixos-relevos, pois em quase todas elas não só aparece a união de todos os membros com o corpo, que é o que caracteriza o baixo-relevo, mas também as costas da estátua estão unidas, desde a cabeça até aos pés, a um bloco de pedra que ocupa o lugar do muro primitivo.
A Grécia segue o mesmo caminho no seu progresso. Como na Assíria e no Egito, a pintura e a escultura estiveram unidas entre si e com a sua mãe comum — a arquitetura —, sendo auxiliares da religião e do governo. Nos frisos dos templos gregos vemos baixos-relevos pintados que representam sacrifícios, batalhas, procissões, jogos, — cenas todas elas, de certo modo, religiosas. Nos frontões há esculturas pintadas, ligadas mais ou menos ao tímpano, cujos assuntos são os triunfos dos deuses e dos heróis. Pintam-se as estátuas, mesmo depois de definitivamente separadas da parede, e só nos últimos períodos da civilização grega se conclui a diferenciação entre a escultura e a pintura.
Na arte cristã observa-se marcha paralela à que ficou descrita. Todas as pinturas e esculturas da Europa representam asssuntos religiosos, como Cristos, crucifixos, virgens, sagradas-famílias, apóstolos, santos. Constituíam parte integrante da arquitetura das igrejas e figuravam entre os meios de excitar a devoção, como ainda se vê nos países católico-romanos. As primeiras esculturas de Cristo crucificado, da Virgem e dos Santos são esculturas pintadas, e basta recordar as madonas e os crucifixos coloridos, que ainda abundam no Continente em igrejas e santuários, para se ver que a pintura e a escultura continuam em estreita relação, subsistindo o mesmo laço entre uma e outra e a mãe comum, a arquitetura.
Ainda depois de emancipada da pintura, a escultura cristã continuou a ser religiosa e governamental nos assuntos, sendo usada nos sepulcros, nas igrejas e nas estátuas dos reis, e a pintura, por sua vez, ao deixar de ser puramente eclesiástica, aplicou-se à decoração dos palácios, representando personages reais e, principalmente, lendas sagradas. Só nos últimos séculos a escultura e a pintura chegaram a ser artes completamente seculares: só desde algumas centúrias para cá é que a pintura se divide em histórica, de paisagem, de gênero, arquitetônica, etc., ao mesmo tempo que aumenta a heterogeneidade da escultura com respeito aos assuntos reais e idéias que a inspiram.
Por estranho que pareça, é certo que todas as formas da linguagem escrita, da pintura e da escultura têm raiz comum nas decorações dos antigos templos e palácios. Por pequenas que sejam as suas semelhanças atuais, o busto que descansa na consola, a paisagem da parede, o número do Times que temos sobre a mesa são parentes afastados, não só por sua natureza mas também por sua origem. A figura de bronze da aldraba da porta que o carteiro acaba de levantar tem estreita afinidade com a Ilustração Inglesa, trazida pelo correio, e com a carta que a acompanha. Há parentesco real entre a janela pintada, o livro de devoção que ilumina e os monumentos adjacentes. As efígies da nossas moedas, as tabuletas das lojas, as figuras que adornam os livros de comércio, os brasões pintados nas carruagens, os emblemas dos ônibus, derivam, do mesmo modo que as bonecas das crianças, os livres azuis e o papel para as habitações, das rudes esculturas pintadas com que os egípcios representavam os triunfos dos seus deuses-reis e o culto que lhes rendiam. Talvez não haja exemplo que melhor demonstre a multiplicidade e heterogeneidade dos produtos que podem nascer dum tronco comum, no transcurso dos tempos, por meio de diferenciações sucessivas.
Antes de passar a outra ordem de fatos, deve observar-se que a evolução do homogêneo para o heterogêneo não se verifica somente na separação da escultura e pintura da arquitetura, e de uma da outra, ou na maior variedade de assuntos representados, mas também na estrutura de cada obra. Uma pintura ou uma estátua moderna são de natureza mais heterogênea que uma pintura ou uma escultura antigas.
Um fresco escultural egípcio representa todas as figuras no mesmo plano, isto é, a igual distância do observador, pelo que é menos heterogêneo do que uma pintura que as represente a diferentes distâncias. Aparecem todos os objetos, no primeiro, como expostos ao mesmo grau de luz, donde deriva uma obra menos heterogênea do que aparecendo os diferentes objetos e as partes de cada um expostos a grau de luz variado. Os egípcios não usavam outras cores além das fundamentais, e estas na sua maior intensidade; portanto as pinturas eram menos heterogêneas do que as modernas, onde, embora nalguns casos se empreguem as cores puras, se lança mão de extraordinário número de tintas intermédias, cada uma de diferente composição e diferente das demais em qualidade e intensidade.
Além disso vemos naquelas obras primitivas grande uniformidade de concepção, reproduzindo-se perpetuamente a mesma disposição das figuras, as mesmas atitudes, os mesmos rostos e vestidos. No Egito era tão constante o modo de representar, que se considerava como um sacrilégio a introdução de qualquer novidade; e certamente só pela observância deste preceito chegou a ser possível um sistema de hieróglifos. Nos baixos-relevos assírios descobrem-se idênticos caracteres. Deidades, reis, servidores, figuras e animais alados pintam-se em posições semelhantes, com os mesmos adornos, executando o mesmo ato, com idêntica expressão no rosto. Se entra a palmeira na composição, todas as árvores hão-de ter a mesma altura e o mesmo número de folhas, e estar equidistantes. Quando se imita a água, cada onda é igual às restantes, e os peixes, quase sempre do mesmo gênero, distribuem-se uniformemente à superfície. As barbas dos reis, dos deuses e das figuras aladas são todas semelhantes, o mesmo sucedendo com as jubas dos leões e as crinas dos cavalos. O cabelo representa-se sempre em forma de caracol; as barbas do rei são puramente arquitetônicas, dispostas em linha de caracóis uniformes que alternam com tranças transversais, distribuídas com a máxima regularidade; e de igual modo se representam os pêlos das caudas dos touros. Não nos deteremos a evidenciar os caracteres expostos na arte cristã primitiva, onde, embora menos marcados, são, todavia, visíveis; para notar que nela se manifesta claramente a marcha para a heterogeneidade, basta observar as pinturas dos nossos dias, onde a composição é extremamente variada, dissemelhantes as atitudes, a fisionomia e a expressão, diferentes em tamanho, forma, posição e contextura, onde os objetos são subordinados e muito grande o contraste nos pormenores. Se compararmos uma estátua egípcia — rigidamente sentada numa pedra, com as mãos sobre os joelhos, os dedos estendidos e paralelos, os olhos imóveis, olhando para a frente, e a figura perfeitamente simétrica em todas as suas partes, — com uma estátua da Grécia civilizada ou dos tempos modernos, na qual não há canon que regule a posição da cabeça, do corpo e dos membros, nem a disposição do cabelo, do vestido, dos acessórios, e que, por outro lado, se harmoniza totalmente com os objetos que a circundam, observaremos um exemplo claríssimo da transição do homogêneo para o heterogêneo.
Na origem coordenada e na diferenciação gradual da poesia, da música e da dança, encontraremos outra série de exemplos. A linguagem, o som e o movimento rítmicos eram, a princípio, partes da mesma peça; só pelo decurso dos tempos chegaram a ser coisas diferentes. Encontramo-las unidas nas várias tribos bárbaras que ainda existem. Os selvagens fazem-se acompanhar, nas suas danças, por uma espécie de canto monótono, de palmadas e de pancadas sobre rudes instrumentos: o movimento é compassado, como as palavras e os sons, e a cerimônia, que geralmente se refere à guerra ou à religião, é de caráter governamental. Nas mais remotas notícias que conservamos das raças históricas, encontram-se também unidas, nas festividades religiosas, as três formas da ação métrica. Nos livros hebreus lê-se que a ode triunfal que Moisés compôs, por ocasião da derrota dos egípcios, foi cantada com acompanhamento de danças e de címbalos. Os israelitas dançaram e cantaram diante do bezerro de ouro, “e se, como geralmente se crê, esta representação da divindade se adotou dos mistérios de Ápis, é provável que a dança se tivesse copiado daquela a que os próprios egípcios se entregavam em semelhante ocasião”. Havia um baile anual em Shiloh, por causa da festividade religiosa, e David dançou diante da arca.
As mesmas relações entre as referidas artes se observam por toda a Grécia, sendo aqui o tipo original, como provavelmente nos outros países, a representação mímica da vida e aventuras do deus com um canto simultâneo. Em Esparta, as danças acompanhavam-se com hinos e cantos; e, em geral, “na Grécia não havia festas nem reuniões religiosas onde não se dançasse e cantasse”; a dança e o canto eram as formas do culto que se tributava aos deuses. Também entre os romanos houve danças sagradas e a este gênero pertencem as dos sálios e as lupercais. Ainda nos países cristãos, como sucedia em tempos não muito remotos em Limoges, o povo dançava no coro em honra do Santo. A separação incipiente destas artes entre si e da religião, depressa se tornou visível na Grécia.
As primitivas danças participavam do duplo caráter guerreiro e religioso; nasceram depois, por diferenciação, as guerreiras propriamente ditas, entre as quais as houve de várias espécies, e estas deram origem às profanas. Por esta forma, a poesia e a música, ainda unidas, chegaram a separar-se da dança. Os mais antigos poemas gregos, religiosos por seu assunto, não se recitavam, cantavam-se; e embora a princípio o canto do poeta fosse acompanhado da dança do coro, teve depois vida independente. Todavia, mais tarde, quando o poema se dividiu em épico e lírico e se introduziu o costume de recitar o primeiro e cantar o segundo, nasceu realmente a poesia.
Como simultaneamente se foram multiplicando os instrumentos musicais, devemos presumir que a música se emancipou da palavra, e então, tanto esta arte como a poesia começaram a tomar outras formas, além de religiosa. Podem citar-se fatos análogos, arrancados à história dos tempos e dos povos mais recentes. Assim, os nossos antigos trovadores cantavam, acompanhando-se da harpa, canções heróicas, cuja música e letra eles próprios compunham, onde aparecem unidos numa só pessoa o poeta, o compositor, o músico e o instrumentista. Do exposto se torna evidente, sem necessidade de mais exemplos, a origem comum da dança, da música e da poesia.
O progresso do homogêneo para o heterogêneo não só se apresenta na separação destas artes entre si e da religião, mas também nas numerosas diferenciações posteriores de cada uma delas. Não nos detendo a mencionar as numerosas espécies de danças que no decurso do tempo estiveram em uso, e sem nos ocuparmos também em pormenorizar os progressos da poesia, manifestados no desenvolvimento das várias formas do metro, da rima, da estrutura, etc., fixaremos a nossa atenção na música, considerando-a como tipo de todo o grupo. Segundo afirma o doutor Burney com o testemunho dos costumes atuais de algumas tribos bárbaras, os primitivos instrumentos músicos foram, sem dúvida, de percussão, — paus, cabaças, tom-tons, — que se usavam simplesmente para marcar o compasso na dança; e nesta repetição constante dum mesmo som, aparece-nos a música sob a sua forma mais homogênea.
Os egípcios tinham uma lira com três cordas; e na lira primitiva dos gregos havia quatro: — o tetracórdio. Os gregos aumentaram, nalgumas centúrias, o número de cordas da sua lira até oito, e, decorridos mil anos, chegaram ao seu “grande sistema” da dupla oitava. Através de todas estas transformações a melodia cresceu em heterogeneidade. Usaram-se simultaneamente diferentes módulos: o dórico, o jónico, o eólio, o frígio, o lídio, que correspondem às nossas claves, podendo contar-se, por fim, uns quinze. Apesar disto, a heterogeneidade da música era escassa enquanto à medida.
Não se empregando a música instrumental, durante este período, mais do que como acompanhamento da vocal, e encontrando-se esta última completamente subordinada às palavras, pois o cantor-poeta acondicionava a duração das suas notas aos pés dos seus versos, resultava tão grande uniformidade na medida que, como observa o doutor Burney, “era impossível que qualquer recurso melódico a ocultasse”. À falta de ritmo complexo, que nós obtemos com a igualdade dos compassos e a desigualdade das notas, produzia-se um ritmo devido à diferente quantidade de sílabas, o qual, por necessidade, era comparativamente monótono. Deve observar-se também que, nestas circunstâncias, o canto, semelhante a um recitativo, se diferenciava, muito menos do que hoje, da palavra falada.
Não obstante, por virtude das escalas usadas, das variedades dos módulos, das diferenças ocasionadas nos tempos como conseqüência das transformações de metros e da multiplicação de instrumentos, a música alcançou, no último período da civilização grega, considerável heterogeneidade, não certamente se a compararmos com a nossa música, mas comparando-a com a dos tempos anteriores. E contudo, na Grécia, não se passou da melodia; a harmonia foi coisa desconhecida para ela. Enquanto a música cristã não atinge certo desenvolvimento, estes dois elementos não começam a separar-se; mas a sua determinação opera-se lentamente. Por mais difícil que seja conceber a priori como se verificou o progresso da melodia para a harmonia sem qualquer descoberta repentina, é certo que esta descoberta não existiu. A circunstância que preparou o caminho para o dito progresso foi o emprego de dois coros, que cantavam alternadamente a mesma ária. Veio depois a prática, talvez devida a um erro, de que o segundo coro começasse antes do primeiro acabar, com o que se produziu uma fuga.
Com as árias simples, então em uso, não é de estranhar que resultasse uma fuga especialmente harmoniosa, e esta fuga não deixaria de ser agradável aos homens daquele tempo; ainda conhecemos exemplos disto. Dada a idéia, devia ir aumentando naturalmente a composição de árias que produzissem fugas harmônicas, como já de certo modo se tinha conseguido com a alternativa dos coros cantantes. E foi já fácil a transição das fugas para os concertantes de três, quatro ou mais partes. Sem pormenorizar a complexidade crescente que resulta de introduzir notas de duração distinta, da multiplicação das claves, do uso dos bemóis e sustenidos, da variedade dos tempos, etc., basta comparar a música de hoje com a música de outras eras para nos convencermos do grande progresso para a heterogeneidade. Isto vê-se claramente quando se encara a música no seu conjunto enumerando os seus diferentes gêneros e espécies, considerando as suas divisões em vocal, instrumental e mista, observando as múltiplas formas da música religiosa, o simples hino, o canto, o canon, o motete, a antífona, etc., e as mais numerosas da profana, desde a balada à serenata, e desde o solo instrumental à sinfonia.
Por outro lado, descobre-se a mesma verdade comparando um trecho de música primitiva com outro de música moderna; com efeito, e embora este seja um canto comum para o piano, ver-se-á que é relativamente muito mais heterogêneo que o primeiro, não só no respeitante à variedade de tons e duração das notas, no diferente número destas que soam ao mesmo tempo, acompanhando a voz e na distinta força com que se toca e canta, mas também nas mudanças de claves, de tempos, de timbre de voz e de muitas outras modificações de expressão. Assim, entre a primitiva dança-canto, tão monótona, e uma grande ópera dos nossos dias, com a sua orquestra tão complicada e as suas combinações vocais tão complexas, o contraste a respeito da heterogeneidade é tão extraordinário, que só a custo pode crer-se que uma seja a origem da outra.
Se tivéssemos necessidade de mais exemplos, facilmente poderíamos citá-los. Partindo dos tempos primitivos em que as façanhas do deus-rei, cantadas e mimicamente representadas por danças em torno do altar, se referiam depois, utilizando a escrita-pintura, nas paredes dos templos e palácios, — onde aparecem os primeiros germes duma rude literatura, — pode traçar-se o desenvolvimento desta através de certas fases, nas quais, como sucede nos livros hebreus, estão confundidas a teologia, a cosmogonia, a história, as biografias, as leis civis, a moral e a poesia, e de outras, como se vê na Ilíada, onde se encontram misturados, de modo semelhante, elementos religiosos, históricos, épicos, dramáticos e líricos, até chegar ao seu estado presente, em que a heterogeneidade é tão grande que dos seus inumeráveis ramos não pode fazer-se uma classificação completa.
Mesmo assim, ser-nos-ia fácil descrever a evolução da ciência, começando pelo que era quando não se diferenciava da arte e unida a esta se encontrava ao serviço da religião, passando depois à época em que as ciências eram tão poucas em número e tão rudimentares que podiam ser cultivadas simultaneamente por um só filósofo, e considerando, por último, o período atual, em que a ciência se ramificou tanto que poucos podem enumerar os seus gêneros e espécies e ninguém é capaz de abarcar, por completo, qualquer das suas direções. O mesmo poderíamos fazer com a arquitetura, o drama, o vestuário.
Mas certamente o leitor estará já cansado de tantos exemplos, e pela nossa parte julgamos ter cumprido, amplamente, a nossa promessa. Supomos ter demonstrado que a lei do desenvolvimento orgânico, formulada pelos fisiólogos alemães, é a lei de todo o progresso.
Vimos a transição do simples para o complexo, através dum processo de sucessivas diferenciações, nas primitivas modificações do Universo, que a razão autoriza a supor, como nas outras que uma indução legítima permite afirmar; assim, na evolução geológica da terra e no referente aos climas como nos organismos que se encontram à superfície do globo; não menos no desenvolvimento da humanidade, embora a consideremos como individualidades civilizadas ou como agregações de raças, seja na organização política, religiosa ou econômica da sociedade; e, do mesmo modo que em tudo isto, nos numerosos produtos concretos e abstratos da atividade humana que, por toda a parte, nos rodeiam na época atual. Desde os tempos mais remotos a que a ciência pode chegar, até às novidades de ontem, o progresso consistiu, essencialmente, na transformação do homogêneo no heterogêneo.
VI
NATUREZA NECESSÁRIA DA CAUSA DO PROGRESSO. ENUNCIAÇÃO DA LEI E SUA UNIVERSALIDADE
DA uniformidade dos fatos de que temos tratado, não poderemos inferir alguma necessidade fundamental donde resulte esta uniformidade? Não nos será dado procurar algum princípio de geral aplicação que determine esta marcha universal das coisas? Não implica a universalidade da lei uma causa também universal? Não deve supor-se que possamos descobrir esta causa, considerada como númeno. O mesmo eqüivaleria a supor que pode aclarar-se o último mistério que haverá sempre para a inteligência humana. Mas talvez seja possível elevar a lei de todo o progresso, já estabelecida, da condição de generalização empírica ao estado de generalização racional. Por idêntica maneira por que foi possível interpretar as leis de Kepler como conseqüências necessárias da lei da gravitação, assim talvez o seja interpretar a lei do progresso, nas suas múltiplas manifestações, como conseqüência necessária de outro princípio, igualmente universal. Do mesmo modo que pode ver-se na gravitação a causa de todos os grupos de fenômenos formulados por Kepler, assim talvez possamos ver nalgum atributo simples das coisas a causa de cada um dos grupos de fenômenos apresentados nas páginas precedentes. Talvez seja fácil referir todas as diferentes e complexas evoluções do homogêneo para o heterogêneo em certos fatos simples de experiência imediata, os quais, por virtude da sua constante repetição, consideremos como necessários.
Concedida a probabilidade duma causa comum e a possibilidade da a formular, será bom, antes de ir mais longe, investigar quais devem ser os seus caracteres e em que direção deve ser procurada. Podemos predizer, sem receio de errar, que há-de ter um alto grau de generalidade, pois já vimos que é comum ao infinito número de fenômenos, e a universalidade das suas aplicações há-de ser proporcional ao abstrato do seu caráter. Não esperemos encontrar nela fácil solução desta ou daquela forma de progresso; porque há-de aplicar-se igualmente a formas de progresso que têm entre si muito pouca semelhança aparente: a sua associação com ordens multiformes de fatores separa-a de uma determinada ordem de fatos.
Sendo a causa determinante do progresso, em todas as ordens, — astronômica, geológica, orgânica, etnológica, social, econômica, artística, etc., — deve conter algum atributo fundamental, comum a todas elas, e poder exprimir-se em função deste atributo. O único caráter patente pelo qual são semelhantes todos os gêneros de progresso, é o de consistir, sem exceção, numa série de transformações; e portanto a solução desejada deve encontrar-se em algum caráter comum que tenham as modificações em geral. Há motivos para crer a priori que a transformação universal do homogêneo para o heterogêneo assenta em alguma lei da transformação.
Fixadas estas premissas, passemos a enunciar a lei que é a seguinte: “Toda a força ativa produz mais de uma transformação: toda a causa produz mais de um efeito”.
Para bem compreender esta lei, apresentemos alguns exemplos: quando um corpo choca com outro, representamos o efeito do choque, ordinariamente, na mudança de posição ou de movimento dum dos ditos corpos ou dos dois. Mas, basta um momento de reflexão para nos convencermos de que esta é uma vista superficial e muito incompleta da questão. Além disso o resultado mecânico visível produz um som, ou, para falar mais propriamente, uma vibração num dos corpos ou em ambos e no ar que os circunda, de tal modo que, em determinadas circunstâncias, isto é o que consideramos como efeito. Mas, o ar não só vibrou, como se produziram nele várias correntes pela passagem dos corpos. Por outro lado, as partículas dos corpos, próximas do ponto do choque, mudam de lugar, condensando-se nalguns casos visivelmente, às vezes com libertação de calor. Não é raro que se liberte uma faísca, isto é, que se produza luz pela incandescência do ponto em que se deu o choque, e esta incandescência costuma associar-se a combinações químicas.
Assim, pois, a força mecânica inicial empregada no choque produziu cinco espécies de modificações, e até mais, em certos casos. Acendamos uma vela. O primeiro fenômeno que se observa é uma combinação química devida à elevação de temperatura. Iniciado o processo de combinação há formação contínua de água, ácido carbônico, etc., tudo isto muito mais complexo do que o calor que é a sua primeira causa. Este processo de combinação é acompanhado de calor e luz; origina-se também uma coluna ascendente de gases quentes e outras correntes no ar circundante.
A decomposição duma força em outras forças não pára aqui: cada uma das modificações produzidas é, por sua vez, causa doutras. O ácido carbônico produzido combina-se com diversos gases, ou, sob a influência dos raios solares, dá o seu carbono às folhas de alguma planta. A água modifica o estado higrométrico do ar que a rodeia e, se as correntes de gases quentes que contém chocam com um corpo frio, condensar-se-ão, alterando a temperatura e, possivelmente, o estado químico da superfície que cobrem. O calor produzido funde o sebo subjacente e dilata tudo o que aquece. A luz, incidindo sobre diferentes corpos, modifica a sua cor. Estas ações secundárias ramificam-se noutras até que se tornam inapreciáveis, e assim sucessivamente. Nenhum caso pode citar-se em que uma força ativa não desenvolva outras de diferentes espécies, nem que deixe de pôr em movimento cada uma destas em novos grupos de forças. O efeito é sempre mais complexo do que a causa.
O leitor terá previsto já, sem dúvida, o rumo da nossa argumentação. Esta maneira de se multiplicarem os resultados que se observam em qualquer acontecimento atual, deve ter existido desde o princípio, e tanto nos grandes fenômenos do universo como nos mais insignificantes. A lei, segundo a qual cada força ativa produz mais de uma transformação, nasce como corolário inevitável de que em todos os tempos tenha havido uma crescente complicação de fatos. Desde já podemos ver que houve sempre na criação uma transformação incessante do homogêneo no heterogêneo, e que essa transformação ainda continua. Devemos, porém, examinar a verdade exposta, em todos os seus pormenores (1).
Sem dar à hipótese da nebulosa mais valor do que o devido, não obstante as suas muitas probabilidades de certeza, voltemos de novo a nossa atenção para o desenvolvimento do sistema solar (2). A mútua atração dos átomos duma massa difusa cuja forma não é simétrica, produz não só a condensação mas também a rotação, pois a gravitação gera simultaneamente as duas forças centrípeta e centrífuga. Enquanto a condensação e o movimento de rotação aumentavam progressivamente, a aproximação dos átomos era causa necessária duma constante elevação da temperatura. Elevando-se ainda mais esta temperatura aparece a luz, e, por fim, aparece uma esfera de revolução composta de matéria fluida que irradia intenso calor e luz, — um sol.
Há boas razões para crer que, como conseqüência da grande velocidade tangencial e da conseqüente força centrífuga adquiridas pelas partes exteriores da massa nebulosa, ao condensar-se, deveriam desprender-se periodicamente anéis giratórios que, ao romper-se, deram origem a novas massas; estas, no processo da sua evolução, repetiram os mesmos fenômenos já expostos, produzindo-se deste modo os planetas e os seus satélites, hipótese muito verosímil se atendermos aos anéis de Saturno.
Se chegasse a demonstrar-se, satisfatoriamente, que os planetas e os satélites se formaram como dissemos, ter-se-ia uma prova importante dos numerosos efeitos heterogêneos produzidos por uma causa primária homogênea; em qualquer caso, porém, basta-nos consignar o fato de que a atração mútua das partículas da massa nebulosa irregular produz os fenômenos da condensação, da rotação, do calor e da luz.
Segue-se, como conseqüência da hipótese da nebulosa, que a terra, a princípio, devia encontrar-se em estado incandescente; mas seja esta hipótese verdadeira ou não, a incandescência primitiva da terra pode estabelecer-se, por indução, com tantas probalidades de acerto que é doutrina hoje geralmente admitida pelos geólogos. Consideremos, em primeiro lugar, os atributos astronômicos deste globo fundido. Devido ao movimento de rotação, achata-se-lhe a forma e alternam o dia e a noite, ao mesmo tempo que aparecem, sob a influência da lua, as marés aquosas e atmosféricas. A inclinação do seu eixo produz a precessão dos equinócios e a diferença de estações que coexistem e se sucedem, simultaneamente, na superfície da terra. Portanto é patente a multiplicação dos efeitos. Várias diferenciações devidas à gradual diminuição do calor foram já consignadas, como a formação duma crosta, a solidificação de elementos sublimados, a precipitação da água, etc., pelo que só devemos recordá-los para fixar que são efeitos simultâneos duma causa única, a diminuição do calor.
Todavia, permita-se-nos agora observar as inumeráveis transformações que derivam da persistência dessa causa única. O arrefecimento da terra provoca a sua contração. Eis porque a crosta sólida, primeiramente formada, é demasiado grande, e, como não pode sustentar-se por si mesma, segue o núcleo. Mas uma camada esferoidal não pode adaptar-se a um esferóide mais pequeno sem se romper; sobrevêm, pois, pregas e roturas, como se observam na pele duma maçã quando a parte carnosa diminui por causa da evaporação. Conforme o frio aumenta e se vai tornando maior a crosta, as rugas produzidas pelas novas contrações são cada vez maiores até se levantarem em forma de vales e montanhas; e os últimos sistemas de montanhas assim formados não só hão-de compreender as cordilheiras mais altas mas as mais extensas, e tal é, com efeito, o que encontramos ao estudar a orografia terrestre. Assim, prescindindo doutras forças que também produzem modificações, vemos a grande heterogeneidade que na superfície da terra uma só causa — a perda de calor — originou; heterogeneidade que se desenvolveu também, segundo nos mostra o telescópio, na superfície da lua, onde faltam os agentes aquosos e atmosféricos.
Temos ainda que mencionar outra espécie de heterogeneidade na superfície da terra, desenvolvida simultaneamente e de modo semelhante. Enquanto a crosta da terra foi muito delgada, as rugas produzidas pelas suas contrações seriam muito insignificantes e os espaços entre elas adaptar-se-iam facilmente ao esferóide líquido interno, pelo que a água, ao condensar-se nas regiões árticas e antárticas, se distribuiria igualmente. Mas desde que a crosta, adquirindo mais espessura, aumentou proporcionalmente em resistência as linhas de fratura nela produzidas, de quando em quando, deveriam tornar-se cada vez mais separadas; a surpefície intermédia adaptar-se-ia ao núcleo com menos uniformidade, e, deste modo, apareceriam áreas mais extensas de terra e água.
Se tomarmos uma laranja e a envolvermos com papel de seda, observaremos a pequenez das rugas e a igualdade das superfícies intermédias; mas se fizermos uso dum papel forte, notaremos maior elevação das rugas, ao mesmo tempo que maior extensão dos espaços em que o papel não se adapta à laranja. Nesta experiência se vê claramente como, à medida que a camada sólida da terra se tornou mais espessa, tiveram de ser maiores as áreas de elevação e depressão. Em lugar de ilhas, espalhadas mais ou menos homogeneamente num mar que tudo envolve, apareceria gradualmente a distribuição heterogênea de continentes e oceanos que hoje conhecemos.
Estas duplas modificações na extensão e na elevação dos terrenos acarretou outra heterogeneidade de nova espécie: queremos referir-nos às orlas marítimas. A princípio, a igualdade da superfície teria formado nos limites do oceano costas simples, regulares; mas mais adiante, as eminências, rochas e cadeias de montanhas formadas, apresentariam, ao emergir do mar, um contorno muito irregular tanto no aspecto geral como nos pormenores.
Observe-se o sem-número de fenômenos geológicos e geográficos, lentamente produzidos por uma causa única, — a contração da terra.
Quando, dos agentes que os geólogos chamam ígneos, passamos aos aquosos e atmosféricos, vemos a mesma complicação de efeitos sempre crescente. A ação destrutora do ar e da água modificou, desde o princípio, a superfície da terra, produzindo inúmeras e diferentes modificações. A oxidação, o calor, o vento, as geadas, as chuvas, as neves, os rios, as marés, as ondas originaram desintegrações contínuas, diversas em espécie e importância, de acordo com as circunstâncias locais. Produzida num solo granítico, a ação destes agentes é pouco apreciável em certos pontos; noutros, produzem-se erosões, de que derivam montões de resíduos e calhaus; e, em alguns, depois de decompor o feldspato em argila branca, arrasta-a juntamente com o quartzo e a mica e deposita-a em leitos quer fluviais quer marítimos. Quando o terreno é simultaneamente de formação ígnea e sedimentária, o fenômeno produz modificações mais heterogêneas. Como a desintegração se produz em graus diferentes, são cada vez maiores as irregularidades na superfície. Não sendo igual a constituição dos terrenos banhados pelos rios, este arrastam para o mar elementos diversos, em diferentes combinações, e assim se formam novos estratos de composição diferente.
Aqui podemos ver um exemplo muito simples da verdade, que depois examinaremos em casos mais complexos, segundo a qual a heterogeneidade dos resultados é proporcional à heterogeneidade do objeto ou objetos sobre os quais a força opera. Um continente de estrutura complicada, com muitos estratos irregularmente distribuídos, de nível distinto e inclinados em todos os ângulos, deve oferecer, sob a ação das mesmas causas destrutoras, grande soma de efeitos variados: cada região será modificada de maneira diversa; cada rio arrastará diferente espécie de detritos; as correntes, as marés e as outras forças que atuam nas costas distribuirão de maneira diversa cada depósito; e a multiplicação dos efeitos será evidentemente maior onde maior seja a complexidade da superfície.
Não nos incumbe pormenorizar a gênese das intermináveis e complicadas modificações descritas pela geologia e pela geografia física; não obstante, podemos notar como a verdade geral de que toda a força ativa produz mais do que uma alteração é comprovada pelos efeitos das marés, das correntes marítimas, da distribuição do calor e das chuvas, etc.; e, como explanação desta verdade em relação ao mundo inorgânico, permita-se-nos considerar quais seriam as conseqüências de alguma revolução cósmica importante, por exemplo a submersão da América Central.
As conseqüências imediatas desta perturbação seriam, por si mesmas, suficientemente complexas. Além das inumeráveis deslocações de estratos, das irrupções de matéria ígnea, da propagação das vibrações dos terramotos em milhares de quilômetros de circunferência, de terríveis explosões e da libertação de gases, o Atlântico e o Pacífico precipitar-se-iam a encher o espaço vazio, chocando entre si ondas enormes que atravessariam ambos os oceanos e produziriam milhares de modificações ao longo das costas; ao mesmo tempo, as ondas atmosféricas correspondentes, sofreriam a influência das correntes formadas em torno de cada vulcão e das descargas elétricas que acompanhariam tais fenômenos. Mas estes efeitos transitórios seriam insignificantes comparados aos permanentes. As complicadas correntes do Atlântico e do Pacífico modificar-se-iam em direção e em potência. Modificar-se-ia a disposição das linhas isotérmicas, não só nos continentes vizinhos mas também na própria Europa. Alterar-se-iam as marés. Modificar-se-ia a periodicidade, a força e a direção dos ventos. A chuva não cairia, provavelmente, nas mesmas épocas nem na mesma proporção que hoje, em todos os países. Em suma, as condições meteorológicas alterar-se-iam, mais ou menos, em todas as direções, num espaço de milhares de quilômetros.
Assim, prescidindo do infinito número de transformações que as mudanças climatológicas produziram na flora e na fauna, tanto marítimas como terrestres, o leitor compreenderá a imensa heterogeneidade de resultados que derivam duma força única quando esta se produz numa área anteriormente complexa, e facilmente deduzirá que, desde o princípio, a multiplicidade de fenômenos aumenta com rapidez crescente.
Antes de mostrar como o progresso orgânico depende também da lei universal, que estabelece que toda a força produz mais de uma modificação, será conveniente fixarmo-nos na manifestação desta lei noutra espécie de progresso inorgânico, ou seja o progresso químico. As causas gerais donde derivou a heterogeneidade da terra, fisicamente considerada, produziram simultaneamente a sua heterogeneidade química. Sem insistir no fato geral de que as forças provocadoras da variedade e complexidade das formações geológicas punham em contato, ao mesmo tempo, elementos que anteriormente não estavam em condições favoráveis para unir-se, com o que se multiplicava o número de compostos químicos, passemos a considerar as complicações mais importantes, derivadas do arrefecimento da terra.
Há poderosas razões para crer que os elementos não se podem combinar a um calor excessivo. Com as temperaturas elevadas que artificialmente se podem produzir desaparecem certas afinidades, como, por exemplo, a do oxigênio e a do hidrogênio, e a maior parte dos compostos químicos resiste muito menos.
Mas deixando de lado a indução muito provável de que, no primeiro estado de incandescência da terra, nenhuma combinação química nela havia, basta ao nosso propósito observar que os compostos que resistem às mais elevadas temperaturas e que, portanto, deviam ter-se formado primeiramente, quando a terra arrefeceu, são também os mais simples. Os protóxidos, incluindo neste nome os álcalis, as terras, etc., são como classe, os mais notáveis compostos que se conhecem; muitos deles resistem ao calor mais intenso que podemos produzir. Formados estes corpos pela união de um átomo de cada um dos elementos componentes, são as combinações mais simples e só num grau menos homogêneas do que os próprios elementos. Mais heterogêneos que eles, menos estáveis e também posteriores na história da terra, são os bióxidos, os trióxidos, os peróxidos, etc., onde dois, três, quatro ou mais átomos de oxigênio se unem com um átomo de metal ou de outro elemento.
Maior é a heterogeneidade dos hidratos: nestes, une-se um átomo de hidrogênio com um de outro corpo e os átomos do composto contêm pelo menos elementos de quatro espécies diferentes. Ainda mais heterogêneos e menos estáveis são os sais que nos apresentam átomos compostos cada um de outros cinco, seis, sete, oito, dez, doze ou mais, que correspondem a três espécies, pelo menos. Mas, precisamente os sais hidratados, cuja heterogeneidade é tão grande, são os menos estáveis e experimentam uma decomposição parcial a mais baixas temperaturas; em seguida vêm os sobre-sais e os sais duplos, mais heterogêneos e, ao mesmo tempo, menos estáveis.
Portanto, sem entrar em pormenores, para os quais nos falta espaço, cremos que nenhum químico negará que é lei geral das combinações inorgânicas que a sua estabilidade diminua à medida que aumente a sua complexidade, supondo que as outras condições sejam iguais.
Se passamos a examinar os compostos orgânicos, vemos também comprovada em maior número de exemplos a lei de que à maior heterogeneidade corresponde menor estabilidade. Um átomo de albumina, por exemplo, consta de quatrocentos e oitenta e dois átomos de corpos diferentes; a fibrina, de constituição mais complexa, contém, em cada átomo, 298 de carbono, 40 de azoto, 2 de enxofre, 228 de hidrogênio e 92 de oxigênio, isto é, 660 átomos, ou, para falar com mais propriedade, equivalentes. E estas duas substâncias são tão instáveis, que se decompõem a temperaturas ordinárias, como aquela a que se expõe a carne que se queira assar. Assim, é evidente que a atual heterogeneidade química da superfície terrestre aumentou por graus, na medida em que o arrefecimento o permitiu, manifestando-se sob três formas: primeira, multiplicação dos compostos químicos; segunda, complexidade crescente destes compostos, com respeito ao número dos seus elementos; terceira, variedade progressiva nas múltiplas proporções em que estes elementos se combinam.
Seria ir muito longe afirmar que o progresso na heterogeneidade química se deve apenas a uma só causa — a diminuição do calor — pois é certo que para ela também contribuíram os agentes aquosos e atmosféricos, como também a afinidade entre os próprios elementos. Deve ter havido mais de uma causa, sendo o arrefecimento a mais geral ou a mais influente de todas; e nota-se, com efeito, que nos fatos expostos (excetuando talvez o primeiro), assim como nos que vamos agora apresentar, as causas são mais ou menos compostas. Muito poucas transformações haverá que possam atribuir-se por completo, com segurança lógica, a um só agente, prescindindo-se das condições permanentes ou transitórias sob as quais este opera. Mas como esta observação não afeta, na realidade, o nosso argumento, preferimos, para maior simplicidade, exprimir-nos segundo o uso corrente.
Se nos objetarem que a causa que apontamos nas transformações referidas — perda de calor — não é uma força mas a ausência duma força, respondemos que é verdade. Propriamente falando, as transformações devem atribuir-se às forças que entram em ação quando as antagônicas deixam de atuar. Mas, embora haja falta de exatidão quando se diz que a congelação da água se deve à perda do seu calor, disto não deriva qualquer erro prático; de forma que bem se nos pode permitir a mesma liberdade de expressão ao referirmo-nos à multiplicação dos efeitos. No entanto, a objeção serve para que atendamos ao fato de que assim como a ação duma força produz mais de uma transformação, o mesmo sucede com a sua extinção; e isto sugere-nos a idéia de que talvez a expressão mais correta do nosso princípio geral deva ser: toda a transformação é seguida de muitas outras.
Reatando o fio da nossa exposição, examinemos como no progresso orgânico impera o mesmo princípio, devendo advertir-se que temos aqui mais dificuldade em demonstrar a sua existência, apesar de ter sido onde primeiramente se comprovou a evolução do homogêneo para o heterogêneo. O desenvolvimento da semente até se converter em planta, e do óvulo até se transformar em animal, caminha por graus tão insensíveis, e as forças que o determinam são tão ocultas e difíceis de apreciar, que mal se pode notar a multiplicação de efeitos, por outro lado muito visível. No entanto, guiando-nos por provas indiretas, chegaremos certamente à conclusão de que também aqui impera a lei de que tratamos.
Notemos, em primeiro lugar, como são numerosos os efeitos que uma transformação bem nítida produz, por exemplo, num ser humano. Um ruído alarmante, a vista de certos objetos, além das impressões conseqüentes nos sentidos e nos nervos, podem produzir um estremecimento, uma alteração na fisionomia, um tremor devido à relaxação muscular, um suor brusco, palpitações no coração, a subida do sangue à cabeça e talvez a paralisação dos movimentos do coração e até uma síncope; e se o temperamento é débil, talvez uma indisposição com o seu grande cortejo de sintomas complicados. O mesmo sucede nos casos de doença. Pequeníssima porção de vacina introduzida no organismo, em certos casos, no primeiro período, produzirá rigidez, calor na pele, aceleração no pulso, sujidade na língua, perda de apetite, sede, mal-estar no epigastro, vômitos, dor de cabeça, dores nas costas e nos membros, debilidade muscular, convulsões, delírios, etc.; no segundo período, erupção cutânea, extenuação, pontadas, dor de garganta, inchação das amígdalas, salivação, tosse, rouquidão, dispnéia etc., e no terceiro período, inflamações edematosas, pneumonia, pleurisia, diarréia, inflamação do cérebro, oftalmia, erisipela, etc., sendo, por outro lado, cada um dos sintomas enumerados, mais ou menos complexo. Os medicamentos, certos alimentos e a mudança de ares podem também citar-se como exemplos de coisas que produzem múltiplos efeitos.
Basta considerar que as muitas transformações assim produzidas por uma só força num organismo adulto, deveriam, em parte, ser paralelas à que se pode verificar num organismo embrionário, para nos convencermos de que também neste a evolução do homogêneo para o heterogêneo se deve atribuir à produção de numerosos efeitos por cada causa simples. O calor exterior e outros agentes que determinam as primeiras diferenciações do germe podem, atuando sobre estas, dar origem a outras, que, por sua vez, se diversificarão, e assim sucessivamente; por tal forma que cada órgão que se desenvolve contribui para aumentar, com as suas ações e reações sobre os outros, a complexidade do conjunto. As primeiras palpitações do coração de um feto favorecem o desenvolvimento de todos os membros. Cada tecido, ao crescer, tomando do sangue certos elementos em proporções determinadas, tem que modificar, necessariamente, a constituição do mesmo sangue, e muito mais a há-de modificar a nutrição de todos os tecidos. A ação do coração pressupõe certas perdas e torna necessário o aumento, no sangue, dos elementos consumidos, fato que há-de influir no resto do sistema, e dar origem, talvez, como alguns supõem, aos órgãos excretórios. As relações que os nervos estabelecem entre as vísceras multiplicarão as influências recíprocas destas, e assim em todo o resto.
Como mais provável ainda, aparece-nos esta idéia ao recordar o fato de que um mesmo germe pode realizar a sua evolução de forma distinta, conforme as circunstâncias. Assim, durante o primeiro período, o embrião carece de sexo, e é depois macho ou fêmea, segundo as forças que atuam sobre ele. Por outro lado, provou-se que a larva de uma abelha pode transformar-se em abelha mestra, se a tempo se substitui o seu alimento pelo que se dá às larvas destas últimas abelhas. Mais notável é ainda o caso de alguns entozoários. O ovo duma ténia posto na sua região natural, que é a dos intestinos, adquire a forma bem conhecida das suas congêneres; mas se se aloja, como sucede com freqüência noutra parte do organismo, transforma-se numa espécie de bolsa, a que os naturalistas chamam o equinococcus, tão diferente da ténia no aspecto e estrutura que só depois de cuidadosas investigações se conseguiu provar que uma e outra tinham a mesma origem. Todos estes exemplos pressupõem que cada progresso no embrião deriva da ação de forças incidentes atuando sobre a complexidade antes desenvolvida.
É realmente fácil encontrar a priori razões que induzam a crer que a evolução segue esta marcha. Sabemos que nenhum germe, quer animal quer vegetal, contém o mais leve rudimento, sinal ou indicação do seu desenvolvimento futuro; hoje, com o microscópio, sabemos que o primeiro processo que se desenvolve em todo o germe fecundado é o da divisão e subdivisão espontâneas deste germe, processo que termina com a produção duma massa de células e nenhuma das quais apresenta caráter especial; verificados estes fatos, não nos fica outro recurso que não seja o de supor que a organização parcial que num certo momento subsiste no embrião em desenvolvimento, se transforma, por virtude das forças que atuam sobre ele, na fase seguinte de organização, e esta noutra, e assim sucessivamente, aumentando incessantemente em complexidade, até alcançar a última forma. Assim, apesar da delicadeza das forças e da lentidão dos resultados impedirem a demonstração de modo direto, de que as fases de heterogeneidade crescente, por que passa o embrião, derivam das numerosas transformações originadas por uma causa única, todavia, há poderosas provas indiretas de que, com efeito, assim sucede.
Já notamos a grande quantidade de efeitos que uma força é capaz de produzir num organismo adulto, e que igual fenômeno se verifica em todo o organismo, no tempo do crescimento, temo-lo observado em vários casos bem significativos; temos notado, além disso, que a propriedade que germes semelhantes têm de se converter em formas dessemelhantes pressupõe que as transformações sucessivas de ditos germes consistem em novas mudanças que recaem noutras mudanças anteriores, e vimos, por último, que, carecendo os germes de uma estrutura originária, seria imcompreensível o seu desenvolvimento posterior, desde que não se explicasse do modo exposto. Todavia, não se creia que, com o que fica dito, se explica a produção duma planta ou dum animal; encontramo-nos ainda nas trevas a respeito dessas misteriosas propriedades por virtude das quais o germe, submetido a diversas influências, sofre mudanças especiais, onde começa a série das suas transformações. Tudo o que se pode dizer é que, dado um germe que possua estas propriedades misteriosas, a sua evolução depende, possivelmente, dessa multiplicação de efeitos, por nós reconhecida, pelo menos nas esferas observadas, como causa do progresso.
Se deixarmos o desenvolvimento individual das plantas e animais e passarmos a considerar o da fauna e da flora terrestres, a nossa argumentação volta a ser clara e simples. Por muito que, conforme afirmámos na segunda parte do nosso trabalho, os fatos fragmentários que a paleontologia até agora acumulou não nos autorizem, em absoluto, a dizer que no decurso dos períodos geológicos apareceram, sucessivamente, organismos e sistemas de organismos cada vez mais heterogêneos, vamos ver, todavia, como sempre deve ter havido uma tendência para que tal se produzisse. O fato de nascerem numerosos efeitos duma causa única, por virtude da qual aumentou, sucessivamente, a heterogeneidade da terra, produziu também a heterogeneidade crescente da sua flora e da sua fauna, tanto individual como coletivamente consideradas. Um exemplo bastará para evidenciá-lo.
Suponhamos que, por uma série de perturbações como as que sabemos produzidas de longe a longe, se levantasse, pouco a pouco, o arquipélago Índico até formar um continente, com uma cadeia de montanhas ao longo do eixo de elevação. A primeira perturbação, as condições físicas em que se desenvolvem as plantas e os animais de Bornéu, de Sumatra, da Nova Guiné, etc., experimentariam ligeiras modificações. O clima, em geral, sofreria alterações na temperatura, na humidade e na periodicidade das suas mudanças, ao mesmo tempo que se multiplicariam as diferenças locais.
Em primeiro lugar, estas modificações afetariam de modo quase inapreciável a flora e a fauna da região. A mudança de nível produziria novas modificações nas plantas e nos animais, modificações que se estenderiam a espécies inteiras ou a diferentes membros da mesma espécie, conforme as circunstâncias. As plantas que só crescem na orla do mar, em localidades determinadas, deixariam de existir. Outras, que só podem viver em sítios muito úmidos, no caso de subsistirem, sofreriam notáveis modificações no aspecto. Por outro lado, seriam ainda maiores as diferenças nas plantas que gradualmente aparecessem nos terrenos saídos do mar. Os animais e os insetos que se alimentassem destas plantas, assim modificadas, sofreriam alterações derivadas da alimentação e do clima; e as alterações que sofressem aumentariam quando, pela extinção duma espécie de plantas, tivessem que pedir o sustento a outra espécie semelhante.
No decurso das muitas gerações que se sucederiam, até se produzir nova perturbação, organizar-se-iam as modificações produzidas nas várias espécies, adaptando-se estas, mais ou menos, às novas condições. A perturbação seguinte causaria modificações orgânicas mais profundas, donde nasceriam divergências muito maiores em relação às formas primitivas, o mesmo se verificando com as sucessivas perturbações.
Observe-se agora que a revolução resultante não se limitaria à substituição de mil espécies, mais ou menos modificadas, por outras mil espécies primitivas: em vez destas mil espécies primitivas apareceriam milhares de espécies ou de variedades ou de formas diferentes. Distribuindo-se cada espécie numa área de alguma extensão e tendendo, continuamente, a colonizar esta nova área, os seus indivíduos estariam sujeitos a diferentes séries de transformações. As plantas e os animais que se dirigissem para o equador não seriam afetados do mesmo modo que os que seguissem em direção oposta. Os que se aproximassem das novas costas experimentariam transformações diferentes daqueles que se aproximassem das montanhas. Portanto, cada raça primitiva de organismos seria o tronco de outras raças, mais ou menos diferentes dela e diferentes entre si; e se bem que algumas destas chegassem a extinguir-se, muitas sobreviveriam à perturbação seguinte, diversificando-se, por sua vez, como as anteriores. Às modificações originadas pela mudança de alimentos e de condições físicas, haveria que acrescentar, em muitos casos, as devidas à mudança de costumes. A fauna de cada ilha, povoando, passo a passo, os terrenos novamente aparecidos poderia pôr-se em contato com as faunas de outras ilhas, e alguns membros destas talvez não fossem parecidos aos correpondentes das primeiras. Os herbívoros, encontrando-se ao lado de novas feras, teriam que empregar meios de defesa ou de fuga diferentes dos antes usados, e simultaneamente as feras modificariam a sua maneira de perseguir e de atacar. Sabemos que, quando as circunstâncias o exigem, se operam nos animais transformações desta natureza, como também que, se tais transformações chegam a ser dominantes, podem alterar em certo grau a sua organização.
Notemos agora uma nova conseqüência. Além da tendência de cada raça de organismos para se diferenciar noutras raças, descobre-se a tendência para a produção ocasional de organismos superiores. Tomadas em conjunto, as variedades nascidas das novas condições físicas e dos novos hábitos, mostram numerosas transformações em gênero e em grau; mas estas transformações não hão-de constituir, necessariamente, um progresso. Provavelmente, na maior parte dos casos, o tipo modificado não será nem mais nem menos heterogêneo que o primitivo. Às vezes, sendo os novos hábitos de vida mais simples que os anteriores, aparecerá uma estrutura menos heterogênea, e haverá, portanto, retrocesso. Mas deve acontecer que encontrando-se algum grupo da espécie em condições que o submetam a circunstâncias mais complexas e reclamem, por conseguinte, uma atividade mais desenvolvida, alguns dos seus órgãos se diferenciem mais e a sua estrutura chegue a ser mais heterogênea.
Daqui resulta que, no curso natural das coisas, haverá, de tempos a tempos, um certo aumento na heterogeneidade da flora e fauna terrestres, e nas raças individuais nelas compreendidas. Omitindo explicações de pormenor e sem esquecer que há particularidades que não podemos precisar agora, julgamos evidente que as mutações geológicas tenderam para tornar cada vez mais complexas as formas da vida, quer as consideremos em separado quer coletivamente. As mesmas causas que originaram a evolução da crosta terrestre, no sentido do simples para o complexo, determinaram uma evolução paralela na vida que existe à sua superfície. Neste caso, como nos precedentes, vemos que a passagem do homogêneo para o heterogêneo se conforma ao princípio universal de que toda a força ativa produz mais que uma transformação.
As deduções anteriores, fundadas nas verdades admitidas na geologia e nas leis gerais da vida, ganham extraordinariamente, em crédito, quando se observa que estão de harmonia com uma indução que se apoia em experiências diretas. Precisamente, a diferenciação duma raça em muitas, que supomos se verificou durante os períodos geológicos, sabemos que se verificou também nos períodos pré-histórico e histórico, tanto no homem como nos animais domésticos. A multiplicação de efeitos que supomos ter sido produzida pelo primeiro fenômeno, também foi produzida pelo último. Causas particulares como a fome, o excesso de população, e a guerra ocasionaram, periodicamente, dispersões do gênero humano e dos seres que dele dependem, dando origem, cada uma delas, a novas variedades de tipos. Que se derivem ou não todas as raças humanas de um só tronco, a filologia mostra claramente que cada um dos grupos de raças que hoje é fácil distinguir provém duma só raça, e que a dispersão duma raça em climas e condições de existência diferentes originou muitas formas modificadas da mesma.
Outro tanto pode dizer-se dos animais domésticos. Embora nalguns casos — como o dos cães — talvez possa ser discutida a comunidade de origem, noutros, contudo — como o dos carneiros e gado do nosso país — é evidente que as diferenças de clima, de alimentação e de tratamento transformaram uma raça primitiva em muitas outras tão distintas que produziram variedades híbridas. Além disso é fácil observar, através de efeitos nascidos de causas únicas, um aumento, segundo tínhamos inferido, não só da heterogeneidade geral mas também duma heterogeneidade especial. Nas divisões e subdivisões da raça humana, há transformações que não constituem um progresso; algumas pressupõem antes um retrocesso; mas é inegável que muitas criaram tipos heterogêneos. O homem civilizado separa-se muito mais do arquétipo do seu grupo que o selvagem. Assim, a fórmula da lei e causa do progresso que, por falta de provas, se deve estabelecer, hipoteticamente, com respeito às formas primitivas da vida no nosso globo, pode comprovar-se com os fatos referentes às últimas formas.
Se o progresso do homem para uma maior heterogeneidade se explica pela multiplicação de efeitos devidos a uma causa única, todavia é mais fácil aplicar este princípio ao progresso social. Consideremos o desenvolvimento duma organização industrial. Quando algum indivíduo duma tribo mostra especial aptidão para fabricar um objeto de uso geral, como, por exemplo, uma arma, que antes cada um fabricava para si, nasce neste indivíduo uma tendência para a diferenciação, como construtor de armas. Os seus companheiros, guerreiros e caçadores, sentem quanto lhes importa o ter as melhores armas possíveis, e, como conseqüência, não deixarão de oferecer a este homem hábil o que tenham, para que fabrique armas para eles. Ele, por seu turno, tendo não só aptidão especial mas também inclinação para as construir, pois o talento para uma coisa e o desejo de se ocupar nela caminham geralmente unidos, sente-se muito predisposto para aceitar semelhantes encargos, quando lhe oferecem alguma recompensa adequada e, sobretudo, porque se sente lisonjeado no seu amor próprio. Uma vez iniciada, esta especialização da sua atividade acentua-se mais, de dia para dia; e enquanto ele se aperfeiçoa pela prática contínua, a aptidão dos seus companheiros diminui na mesma proporção, por falta de exercício. De forma que as influências que determinam esta divisão de trabalho são cada vez maiores duma e doutra parte, e a heterogeneidade incipiente subsiste, em muitos casos, durante toda a geração ou talvez mais.
Observe-se que este processo não só divide a massa social em duas partes, uma que monopoliza ou quase monopoliza o exercício duma função determinada, e outra que perdeu o hábito e, de certo modo, a faculdade de a desempenhar, mas que ao mesmo tempo é também o ponto de partida doutras diferenciações. O progresso que descrevemos supõe a introdução da troca, pois o fabricante de armas quererá ser pago com os artigos que mais lhe convenham em cada caso, e habitualmente não necessitará de artigos de uma só espécie mas sim de várias espécies; não necessitará só de esteiras, peles ou utensílios de pesca, mas sim duns e de outros, e pedirá sempre aquilo de que mais necessite.
Que resultará daqui? Se entre os membros da tribo há diferenças de aptidão para fabricar estas várias coisas, como é quase certo, o armeiro pedirá a cada um os objetos que melhor saiba fazer, — a este redes, àquele esteiras. Mas o que trocou as suas esteiras ou as suas redes terá que fazer outras para seu uso, e cada vez mais se desenvolverá a sua peculiar aptidão. Portanto, as aptidões singulares que, em escasso grau, distinguiriam, a princípio, cada indivíduo da tribo, necessariamente se hão-de ir desenvolvendo. Se as transações se repetem, as diferenças de habilidade chegarão a ser apreciáveis. E acabem ou não por transformar determinados indivíduos em únicos construtores de certos artigos, é claro que estas diferenciações influem na maneira de ser da tribo: a causa única primitiva produz não só o duplo efeito indicado, mas também numerosos efeitos secundários semelhantes em gênero, embora menores em grau.
Este processo, cujos sinais podem observar-se nos grupos de escolares, não produzirá conseqüências permanentes numa tribo que não tenha lugar fixo; mas quando se desenvolve numa tribo já estabelecida e numerosa, os seus resultados perpetuam-se e aumentam de geração em geração. A uma maior população corresponde maior pedido de cada objeto, com o que cresce, de dia para dia, a complexidade de funções nos indivíduos e nas classes, adquirindo a especialização caráter mais definido onde já existe e fixando-se onde apenas esteja iniciada.
Estes resultados multiplicam-se com a crescente necessidade dos meios de subsistência numa população numerosa, vendo-se cada pessoa obrigada, mais ou menos, a ocupar-se daquilo para que tem mais aptidão; o progresso industrial ganha com isso, assegura-se a produção futura e favorece-se o desenvolvimento da população, fato que volta a influir no mesmo sentido que antes, de forma que é evidente a multiplicação de efeitos. Graças a estes estímulos nascem novas ocupações. Rivalizando entre si, os produtores procuram oferecer melhores artigos, o que os leva a descobrir processos aperfeiçoados ou mais excelentes matérias primas. Na fabricação de armas ou de folhas cortantes, a substituição da pedra pelo bronze aumenta consideravelmente o pedido feito ao primeiro que emprega este metal e o artífice vê-se obrigado a consagrar todo o seu tempo à preparação do bronze de que necessita para os artigos que vende, tendo que encarregar outros da fabricação dos mesmos. A produção do bronze, a que eventualmente teve de dedicar-se, vai-se diferenciando, por graus, das restantes ocupações e chega, só por si, a ser um ofício.
Vejamos agora as transformações que nascem desta outra, e como se ramificam. Depressa se substitui a pedra pelo bronze, não só nos artigos onde primeiramente se usou mas também em muitos outros, como, por exemplo, armas, instrumentos cortantes, e utensílios de várias espécies, refletindo-se, por conseguinte, a influência do seu emprego em diversas manufaturas. Origina também novos processos onde estes utensílios se empregam, bem como nos produtos resultantes, modificando a edificação, as obras de carpintaria, o vestuário e os adornos das pessoas. Por outro lado, dá origem a numerosas manufaturas, que antes eram desconhecidas, por não haver matéria apropriada para fabricar as ferramentas necessárias. Todas estas transformações elevam a massa, aumentando a habilidade manual, a inteligência e o bem estar dos trabalhadores, e melhorando os hábitos e os gostos gerais. Assim, a transformação duma sociedade homogênea noutra heterogênea é, sem dúvida, conseqüência do princípio enunciado, segundo o qual nascem muitos efeitos duma só causa.
Os limites do atual ensaio não nos permitem seguir este processo através da sua incipiente complexidade. Noutro caso, ser-nos-ia fácil fazer ver como às mesmas causas se deve a localização de indústrias especiais em determinados pontos dum país, assim como a extraordinária subdivisão do trabalho na fabricação de cada objeto. Procurando exemplos aplicáveis ao caso, poderíamos registrar grande número de transformações, tanto materiais como intelectuais e morais, trazidas pela imprensa, e as não pequenas nem escassas produzidas pela descoberta da pólvora. Mas deixando de lado as fases intermédias do desenvolvimento social, indiquemos alguns exemplos de casos recentes. Para acompanharmos, por exemplo, os efeitos do vapor nas suas diferentes aplicações às minas, à navegação e a toda a indústria, precisaríamos de entrar em pormenores inumeráveis; por isso nos circunscreveremos à última encarnação do seu poder, — a locomotiva.
Esta, como causa imediata do nosso sistema de caminhos de ferro, transformou o aspecto do país, os rumos do comércio e os hábitos gerais. Observemos, primeiramente, a complicada série de modificações que precedem a construção dum caminho de ferro: os preparativos, as reuniões públicas, os estudos das seções, a intervenção parlamentar, os planos litografados, as memórias, as notícias e depósitos locais, as informações, etc., coisas que determinam inúmeras transações e a necessidade do trabalho de muitas pessoas, como engenheiros, inspetores, litógrafos, agentes parlamentares, etc., e até a criação de ocupações novas, como a dos encarregados das ações e outras.
Fixemo-nos, depois, nas transformações que nascem do caminho de ferro em construção: há que fazer os traçados, as nivelações, aberturas de túneis, estudos de curvas, construção de pontes e de estações, instalação do balastro, das travessas e dos carris, fabricação de máquinas, tenders, carruagens e vagões; tudo isto infui em numerosos ramos do comércio, no aumento da importação de madeira, na exploração de pedra, no fabrico de ferro, na extração do carvão, nos fornos de tijolo, — criando-se uma variedade de indústrias especiais, cujos anúncios se encontram semanalmente no “Railway Times”, e inúmeras ocupações novas, como sejam as de maquinistas, fogueiros, encarregados de limpeza, agulheiros, fiscais da via, etc.
Observando, a seguir, as modificações ainda mais numerosas e complicadas que, ao fim dalgum tempo, se produzem na comunidade com um caminho de ferro em exploração, vemos que, pela sua influência, se modifica, mais ou menos, a organização de todos os negócios: a facilidade das comunicações permite que o próprio interessado faça aquilo que outrora confiava a comissionados; estabelecem-se agências onde antes não poderiam subsistir; recebem-se os gêneros dos estabelecimentos que vendem por junto, embora estejam distantes, em vez de se receberem dos estabelecimentos de retalho mais próximos, e é possível usar artigos cujo uso se tornava difícil antes, por falta de meios rápidos de transporte. Por outro lado, a rapidez e o baixo custo dos portes, tendem a especializar cada vez mais as indústrias próprias de cada região, e fazem que cada manufatura se estabeleça onde as vantagens locais lhe prometam maior prosperidade.
Desta forma, a diminuição dos preços dos transportes, facilitando a distribuição dos produtos, nivela e baixa os preços, de forma que se tornam acessíveis, a muitas pessoas, diversos artigos que antes estavam fora do seu alcance por causa do preço elevado, aumentando-se, deste modo, as comodidades que todos disfrutam. Por outro lado, generaliza-se o costume de viajar. Pessoas que nunca tinham pensado em se deslocar dum certo ponto fazem excursões anuais às praias, visitam os amigos que vivem longe, empreendem viagens de recreio, — o que é muito benéfico para a saúde, para a sensibilidade e para a inteligência. Além disso, a transmissão mais rápida das cartas e das notícias multiplica as trocas e pode dizer-se que, assim, se acelera o pulso da vida nacional. Mas não é só isto; também daqui deriva uma ampla difusão da literatura barata em virtude das bibliotecas dos caminhos de ferro e dos anúncios afixados nas carruagens, fato que prepara o caminho para ulteriores progressos.
Todas as numerosas transformações brevemente indicadas são conseqüência da invenção locomotora. O organismo social aumenta em heterogeneidade por causa das muitas ocupações novas que se criam e da especialização de outras que já existiam; não há comerciante que não tenha que modificar, mais ou menos, os seus costumes mercantis, e pouca gente haverá a quem a mudança produzida não afete nos seus atos, pensamentos e emoções.
Poderia citar-se grande quantidade de outros exemplos para confirmação da mesma verdade. Qualquer influência que venha a atuar sobre a sociedade produz numerosos efeitos, aos quais se deve o aumento da heterogeneidade social: assim o comprova a história do comércio, dos costumes e das crenças; não julgamos necessário, todavia, acumular mais provas.
Há, porém, um fato em que devemos insistir. Referimo-nos à afirmação que antes fizemos segundo a qual os efeitos se multiplicam tanto em número como em espécie, na mesma proporção que cresce em heterogeneidade a área a que uma força se aplica. Entre as tribos primitivas que primeiro conheceram o cautchu, esta descoberta produziu muito poucas transformações; pelo contrário, deram-se tantas entre nós, que para fazer a sua história foi preciso um livro especial (3). Se se estabelecesse o telégrafo elétrico na homogênea e pouco numerosa comunidade das Hébridas, pouco resultado se obteria, ao passo que foram imensos os obtidos na Inglaterra. A organização relativamente simples da sociedade, sob a qual viviam os nossos antepassados de há cinco séculos, teria sofrido muito ligeiras modificações com um acontecimento semelhante ao ocorrido recentemente em Cantão; mas as medidas legislativas adotadas hoje, por causa deste acontecimento, darão lugar a milhares de modificações complexas, cada uma das quais originará muitas outras.
Se o espaço de que dispomos o permitisse, prosseguiríamos a argumentação, expondo os mais delicados resultados da vida civilizada. Assim como vimos que a lei do progresso, a que obedecem o mundo orgânico e o inorgânico, é também a que rege a linguagem, a escultura, a música, etc., poderíamos demonstrar agora que essa lei é também a verdadeira causa que determina o progresso em todos os casos que acabámos de mencionar. É fácil demonstrar, detalhadamente, que o progresso duma ciência impulsiona as restantes; a astronomia, por exemplo, aproveitou-se das descobertas da ótica, dando origem à astronomia microscópica e auxiliando o desenvolvimento da fisiologia; também a química, indiretamente, fez progredir os nossos conhecimentos acerca da eletricidade, do magnetismo, da biologia e da geologia, ao passo que a eletricidade, por sua vez, influiu nos estudos químicos, nos do magnetismo, nas descobertas relativas à luz, ao calor e a muitas leis da atividade nervosa.
O mesmo sucede na literatura. Por exemplo: os Mistérios são a origem do nosso drama moderno e influenciaram a poesia e a ficção; o primitivo diário de notícias deu nascimento à infinidade de formas da literatura periódica, que, por sua vez, originaram progressos notáveis noutras manifestações literárias.
A influência exercida por uma nova escola de pintura, como a dos pré-rafaelistas, sobre as demais, os recursos que a arte pictórica tira da fotografia, os complexos resultados das novas doutrinas críticas, como as de Ruskin, são outros tantos exemplos desta multiplicação de efeitos.
Mas seria abusar da paciência do leitor o perseguir, nas suas diversas ramificações, todos estes agentes transformadores, com tanto maior motivo quanto é certo que, desde tal ponto, começam a ser de tal modo complicados e sutis que é muito difícil pormenorizá-los.
Cremos ter concluído a nossa empresa. As imperfeições e a inevitável falta de dados que nos impôs a brevidade do estudo não destroem a nossa tese. Os pormenores omitidos não invalidariam as nossas induções. Por mais que num caso não haja provas suficientes para demonstrar a lei do progresso, todas as probabilidades concorrem, não obstante, para fazer presumir que lhe é aplicável o mesmo que ao resto da criação. Embora, ao traçar a gênese do progresso, precisássemos de falar, com freqüência, de causas complexas como se fossem causas simples, é inegável, contudo, que tais causas são mais homogêneas do que os seus resultados. A crítica dos pormenores nada afirma contra o nosso argumento geral.
Uma série interminável de fatos demonstra que todo o progresso, seja de que natureza for, parte do homogêneo para o heterogêneo, assim se verificando que uma transformação é causa de outras. E é muito significativo que, onde os fatos são mais exeqüíveis e em maior número, seja mais visível esta verdade.
Não obstante, com o fim de não ir mais além do ponto a que nos levam as nossas provas, contentar-nos-emos com dizer que tais são a lei e a causa de todos os progressos conhecidos. Desde que se estabeleça, solidamente, a hipótese da nebulosa, será evidente que o Universo inteiro, do mesmo modo que cada organismo particular, foi primitivamente homogêneo; e, quer seja considerado como um todo, quer se observe nos seus pormenores, desenvolve-se, incessantemente, no sentido duma heterogeneidade maior que aumenta sem cessar. Então se verá que, nas modificações a princípio verificadas, a decomposição de toda a força empregada se resolveu, como agora ocorre, em várias forças que, dia a dia, se tornaram mais complicadas; que este aumento da heterogeneidade continua e há-de prosseguir; e que, deste modo, o progresso não é um acidente, não está sujeito ao poder humano,— mas, sim, é uma necessidade benéfica.
Acrescentaremos algumas palavras para fixar o alcance ontológico do nosso raciocínio. Provavelmente, alguns verão no exposto uma tentativa para resolver as grandes questões em que, através dos tempos, a filosofia se tem embrenhado. Não os deixemos enganar-se; só os que não conhecem nem o fim nem os limites da ciência podem cair em erro tão grave. As generalizações precedentes têm valor, não para a geração das coisas em si mesmas, mas sim para a sua gênese tal como se apresenta à consciência humana. Depois de tudo o que ficou dito, o derradeiro mistério fica tão oculto como antes. O conhecimento de tudo o que é explicável não pode fornecer-nos outra coisa além duma luz mais clara para ver o muito de inexplicável que há por detrás. Por muito que reduzamos a equação aos seus termos mais simples, nunca poderemos resolvê-la; pelo contrário, aparece mais evidente a impossibilidade de desembaraçar a incógnita.
Embora à primeira vista o não pareça, a investigação livre procura dar alicerce mais firme a toda a verdadeira religião. Os tímidos sectários, alarmados ante os progressos do conhecimento, obrigados a abandonar, uma por uma, as superstições dos seus avós e vendo, diariamente, as suas amadas crenças mais abaladas, têm o medo secreto de que algum dia possam explicar-se todas as coisas; daqui nasce o horror que a ciência lhes inspira, com o que dão mostras do menos justificado de todos os temores,— o de que a verdade seja má. Mas o verdadeiro homem de ciência, contente com seguir as inspirações da verdade, convence-se mais profundamente, a cada nova descoberta, de que o Universo é um problema insolúvel. Assim, no mundo interior como no exterior, encontra-se no meio de perpétuas modificações, das quais não pode descobrir nem o fim nem o fundamento. Se, aventurando-se a pensar na evolução das coisas, se permite aceitar a hipótese de que a matéria existiu, primeiramente, em forma difusa, vê, em seguida, a impossibilidade de conceber como chegou a semelhante estado; se, igualmente, reflexiona sobre o futuro, não encontra limites à imensa sucessão de fenômenos que se apresentam à sua contemplação. Se se volta para o seu interior, percebe que os dois extremos do fio da consciência estão fora do seu alcance; não pode saber quando nem como começou esta consciência, nem examinar como a tem num momento dado, pois só quando o estado de consciência passou é que pode ser objeto de pensamento — e não no momento em que se produz.
Quando, depois, transfere a sua atenção, — da sucessão dos fenômenos, internos ou externos, para a sua natureza essencial, — reconhece a mesma impotência. Embora resolva todas as propriedades das coisas em manifestações de forças, não pode determinar a natureza destas forças; pelo contrário, quanto mais se esfalfa por consegui-lo, mais se confunde; do mesmo modo, embora a análise das ações mentais o leve, em último termo, às sensações, — como os elementos primitivos onde nasce todo o pensamento — nada adianta com isto; porque não lhe é dado, em última instância, compreender o que é sensação nem mesmo como esta é possível.
Por conseguinte, no externo como no interno, vê mistérios inescrutáveis em sua natureza e em sua gênese fundamentais. Por isso observa que a discussão entre materialistas e espiritualistas é simples guerra de palavras; uns e outros caem no absurdo de supor que compreendem o que ao homem é impossível decifrar. As suas investigações, qualquer que seja a direção que tomem em face do incognoscível, fazem-lhe perceber, cada vez mais claramente, a impossibilidade de penetrar tão profundos mistérios. Convence-se, ao mesmo tempo, da grandeza e da pequenez da inteligência humana, do seu poder em tudo o que está dentro da esfera da experiência, e da sua impotência perante o que transcende esta esfera. Sente, mais vivamente do que ninguém, o imcompreensível do fato mais simples, considerado em si mesmo. Apenas vê que o conhecimento absoluto é impossível; apenas conhece que, sob todas as coisas, palpita um mistério impenetrável.
FIM
Este caderno foi composto nas oficinas da EDITORIAL “INQUÉRITO”, Ltda., e acabou de imprimir-se, aos 25 de Fevereiro de 1939, na “Sociedade Editorial “A B C”, Ltda.” — Rua da Luta, I-C —LISBOA
Notas
(1) — Outra verdade correlativa que deve ter-se em conta é que o estado de homogeneidade não consiste num equilíbrio permanente. Para esclarecer este ponto com exemplos adequados, teríamos que interromper o nosso raciocínio. Preferimos remeter o leitor para o nosso estudo sobre a Fisiologia Transcendental.
(2) — A idéia de que a hipótese da nebulosa perdeu força ao transformarem-se, em grupos de estrelas, muitas massas que se tinham por verdadeiras nebulosas, é errônea. A priori é já improvável que ficassem ainda nebulosas em estado difuso, quando há milhões de anos outras se condensaram.
(3) — “Narrativa pessoal da origem do cautchu ou do fabrico da borracha elástica na Inglaterra”, por Tomaz Hancock.
©2002 — Herbert Spencer
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