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HISTÓRIA DE MANON LESCAUT

Abade de Prévost

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História de Manon Lescaut
Abade de Prévost
s.m. do tradutor

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eBooksBrasil

Fonte Digital
Digitalização de edição em papel
Clube do Livro, 1943

© 2002 — Abade de Prévost


ÍNDICE

Introdução
Prefácio do Autor
Primeira Parte
Segunda Parte


História de Manon Lescaut

 

Abade de Prévost


INTRODUÇÃO

 

O LIVRO notável de que hoje damos a lume a tradução é, sem dúvida, o primeiro e, talvez, o único romance de costumes com que foi dotada a época em que viveu o seu autor; e seguramente o podemos considerar como o prelúdio brilhante do romance moderno.

Manon Lescaut não tem, porventura, precedentes algum no seu gênero, e mais de um autor contemporâneo foi beber a inspiração do seu trabalho neste primor literário de Francisco Prévost d’Exiles, célebre escritor e padre francês.

Têm-se escrito muitos volumes em que se tenta fazer ensaios sobre o caráter da mulher e descrevê-la; mas, um capítulo de todos esses estudos fica sempre incompleto: — é o da mulher observada nos amores passageiros, em que a sua fidelidade é voluntária e em que os laços que a prendem ao homem podem ser despedaçados à sua vontade, segundo o seu capricho e inconstante fantasia.

Manon Lescaut é a página de mais relevo desse capítulo, que ninguém terminará, porque é infinito como o próprio amor. — Variante e movediça como as águas do oceano (disse Shakespeare, falando da mulher) quem poderá desenhar com perfeição o que sem cessar varia de forma?

Manon nem por isso é um tipo criado pela poética imaginação do autor; em todas as épocas existiu. No século de Péricles, chama-se Aspásia; Demóstenes ama-a, chamando-lhe Laís; é a Impéria da Roma dos Papas; é a Margarida Gautier do século atual.

Avaliar, literariamente, o que é Manon Lescaut, é querer analisar a graça, a elegância da frase e a mordacidade da idéia. A tarefa é difícil, e, no entanto, uma das mais vigorosas penas da França conseguiu vencê-la nas seguintes linhas que aqui reproduzimos.

É Júlio Janin quem fala:

Manon Lescaut é um desses primores de literatura, vibrantes de paixão e de amor, primores que só os homens de gênio concebem, num momento de entusiasmo, que eles, decerto, não encontram duas vezes durante a vida.

“Livro maravilhoso! história admirável! drama patético, que é passado no último degrau da escada social! Como esta pobre mulher resvala por sobre o opróbio, à força de beleza e juventude! Como este rapaz evita a desonra à força de amor e dedicação! E, depois, quando os seus lábios, ávidos ainda de prazer, têm esgotado o cálice da voluptuosidade, vem a morte que santifica todo este delírio; e não só a morte, mas também o perdão”.

Em menos palavras, ninguém decerto diria mais.

E Júlio Jonin não exagerou. Manon há de ficar na história da literatura como um monumento que nem a mão destruidora dos anos poderá derribar.

São estas as únicas obras que ficam perduráveis na memória dos vindouros. O livro é a melhor lembrança que o sábio e o observador podem legar às gerações futuras.

Quantos heróis têm passado, cujos nomes nem já lembram? Vede porém se Camões há de esquecer nunca, se Garrett pode ser olvidado, se Walter Scott deixou de existir, se Balzac ou Alexandre Dumas Filho, hão de desaparecer da memória dos homens...

Decerto que não; nos livros que deixaram têm eles a voz duradoura, que os fará viver, através das idades.


PREFÁCIO DO AUTOR

 

MUITO embora eu pudesse ter contado as aventuras do cavalheiro des Grieux nas minhas memórias, pareceu-me que, havendo tão pouca ligação entre umas e outras, o leitor sentiria prazer maior, vendo-as em separado.

Uma narrativa tão longa teria interrompido desmarcadamente o fio da minha própria história.

Bem longe estou de nutrir a pretensão de escritor correto; mas não ignoro que uma narração qualquer deve ser liberta de todas as circunstâncias, que a tornem pesada e obscura; é este o preceito de Horácio:

Ut jam nunc dicat jam nunc debentia dici,
Pleraque differat et præsens in tempus omittat.

Não era precisa tal autoridade para se demonstrar uma verdade tão simples, pois o bom senso é o axioma em que esta regra se funda.

Se o público achou algum interesse na história da minha vida, não duvido afirmar-lhe que não ficará menos satisfeito com a adição que ora lhe faço.

Verá, na conduta de des Grieux, um terrível exemplo da força das paixões. Vou darcrever um rapaz cego à luz da razão, que recusa ser feliz para se precipitar voluntariamente no abismo dos maiores infortúnios; que, possuindo todas as qualidades, com que os homens se podem nobilitar no mundo, prefere, espontaneamente, uma vida obscura e vagabunda, a todos os favores da Natureza e da Fortuna; que prevê todas as suas desgraças, sem as querer evitar, que as sofre, que, afinal, é por elas esmagado, sem ao menos tirar partido dos conselhos e lenitivos, que incessantemente lhe oferecem, e que podem a todos os momentos pôr um termo a seus males; enfim, um caráter ambíguo, um amálgama da virtudes e de vícios, um contraste perpétuo de bons sentimentos e de más ações. Tal é o fundo do quadro que apresento.

As pessoas sensatas não olharão esta obra como um trabalho inútil. Além do prazer que há numa leitura agradável, poucos incidentes se encontrarão nela que não sirvam para a morigeração dos costumes. E, na minha opinião, presta-se um bom serviço ao público, quando o podemos instruir, recreando-o.

Não se pode refletir nos preceitos da moral, sem que tenhamos de pasmar, vendo-os igualmente estimados e aborrecidos, e a nós mesmos perguntamos qual a razão desta incoerência do coração humano, que admira idéias do bem e da perfeição, afastando-se delas na prática.

Se as pessoas duma certa ordem de conhecimentos e de instrução quiserem examinar qual é o motivo mais vulgar das suas conversas, ou mesmo das suas meditações solitárias, fácil lhes será observar que vão sempre até às considerações morais. Os melhores momentos da sua vida são aqueles que passam, ou sós ou com um amigo, conversando, de coração a larga, acerca da magia da virtude, das doçuras do afeto, dos meios de alcançar a felicidade, das fraquezas naturais que nos afastam dela e dos remédios que as podem curar.

Horácio e Boileau apontam estes colóquios como um dos traços mais belos com que arquitetam a imagem da vida venturosa. Como é que tão facilmente nos precipitamos do alto destas maravilhosas idéias e nos nivelamos com o comum dos homens. Ou eu me engano muito ou a razão que vou dar explicará claramente essa contradição das nossas idéias e da nossa conduta — é que não sendo os preceitos da moral mais do que princípios vagos e gerais, será muito difícil aplicá-los na especialidade aos costumes e às ações humanas.

Exemplifiquemos a questão; as índoles benfazejas olham a brandura e a humanidade como virtudes dignas de serem queridas em extremo, e uma força irresistível inclina-as a pô-las em prática; mas, chega o momento dessa prática, ei-las hesitantes: — Será a ocasião própria para as executar? Sabemos por acaso até que ponto as devemos levar? Não haverá engano no fim a que as destinamos? Mil dificuldades surgem: receamos ser enganados, ao passo que a beneficência e a liberalidade nos impelem; de passarmos por fraoos e covardes, quando não somos senão sensíveis e ternos; numa palavra, tememos exceder ou não cumprir os deveres que se acham encerrados nas noções gerais da bondade e da doçura. Nesta incerteza, não há senão a experiência ou o exemplo para determinar qual deva ser o rumo do coração. Ora, a experiência não é vantagem de que todos disponham e que todos mesmo possam usar; ela depende das situações diferentes, em que cada um se acha colocado, conforme a sua fortuna. Não resta mais do que o exemplo a servir de norma no exercício da virtude.

É precisamente para leitores desta ordem que obras como a atual podem ser de extrema utilidade, muito mais, quando escritas por pena guiada pela honra e pelo bem senso. Cada fato narrado é um facho do luz, uma lição instrutiva, que supre a experiência; cada aventura é um modelo, pelo qual nos podemos formar; não falta senão apropriarmo-la às circunstancias em que nos encontremos. Toda a obra é um tratado de moral agradavelmente posta em ação.

Talvez, algum leitor severo se ofenda ao ver que eu, na minha idade, vou escrever aventuras de amor e de paixão; mas, se os raciocínios que acabo de expor são sólidos, justificam-me; se forem errados, no erro está a minha desculpa.

***

O público leu com muito interesse o último volume das “Memórias dum Homem de qualidade”, que contém aa aventuras do cavalheiro des Grieux e de Manon Lescaut. Trata-se dum rapaz com dons brilhantes e amáveis, que, arrastado pela ardente paixão que consagrava à mulher que lhe agradou, prefere uma vida vagabunda e de libertinagem a todos os triunfos que o seu talento e a sua condição social podiam conquistar-lhe; dum desgraçado, escravo do amor, que prevê as suas desgraças, sem ter a energia de evitá-las; que as sente vivamente, que se afunda nelas e que desdenha empregar os meios para ser mais feliz; trata-se, finalmente, dum moço conjuntamente cheio de vícios e de virtudes, pensando bem e procedendo mal: — amável pelos seus sentimentos, detestável pelos seus atos. Eis um caráter bem singular!

O de Manon Lescaut é ainda mais estranho. Ela conhece a virtude, aprecia-a mesmo, e no entanto comete as mais indignas ações. Ama o cavalheiro des Grieux com intensidade extrema: contudo, o desejo de viver no luxo e na abundândia, a vaidade de brilhar, levam-na a trair o seu amor por esse homem com um rico financeiro. Que arte não foi preciso desenvolver para atrair a atenção do leitor e inspirar-lhe uma funda comiseração, motivada pelos funestos infortúnios, que se abatem sobre esta moça pervertida!

Ainda que um e outro sejam muito devassos, lamentam-se, porque se vê nitidamente que os seus desvairamentos derivam das suas fraquezas morais e do ardor das suas paixões, e que, além disso, eles próprios condenam a sua conduta, convindo em que é criminosa.

Deste modo, o autor não ensina o vício, muito embora o exponha claramente. Pinta os efeitos dum amor violento, que torna útil a razão, desde que alguém se entregue inteiramente a esse amor: narra uma cegueira de alma que, não sendo capaz de sufocar por completo no coração o sentimento da virtude, impede, no entanto, que tal sentimento se pratique. Numa palavra, este livro põe a nu todos os perigos de desregramento. Depois de o lerem, não haverá rapazes ou moças que queiram parecer-se com des Grieux e com a sua amante. Se são dissolutos, os remorsos e as desventuras acabrunham-nos.

Quanto ao resto, o caráter de Tiberge, esse exemplar eclesiástico amigo de des Grieux, causa admiração. É um homem prudente, cheio de compaixão e de religião: um amigo generoso e sincero: um coração sempre condoído pelas fraqueza daquele a quem dedica o seu puro afeto. Como a piedade ê nobre, quando se alia a uma bela índole!

Nada direi do estilo desta obra. Não se notam nele, nem a retórica, nem a afetação, nem os argumentos sofísticos: — foi a própria Natureza que o escreveu. Como um escritor empertigado e artificioso parecerá lamentável, se o compararmos com estas páginas eloqüentes e simples! O autor deste volume não corre atrás do espírito ou daquilo que se convencionou chamar assim. O seu estilo não é laconicamente limitado; é um estilo correto, amplo e expressivo. Compõem-no apenas pinturas e sentimentos — mas pinturas exatas, sentimentos naturais.


PRIMEIRA PARTE

 

SOU obrigado a fazer remontar o leitor até à época, em que, pela primeira vez, encontrei o cavalheiro des Grieux: cinco ou seis meses antes da minha partida para Espanha.

Ainda que raras vezes abandonasse a minha solidão, a amizade e carinho que tinha a minha filha levavam-me a fazer algumas pequenas viagens, que eu encurtava tanto quanto me era possível.

Voltava, um dia, de Ruão, onde fora, a seu pedido, solicitar o andamento de uma causa, no parlamento da Normandia, acerca da herança de umas terras às quais tinha pretensões pelo lado de meu avô materno. Tendo tomado pela estrada de Évreux, onde dormi a primeira noite, cheguei no dia seguinte, ao jantar a Passy, distante daquela cidade cinco ou seis léguas.

Ao entrar na povoação, fiquei surpreendido de ver todos os seus habitantes em alarme. Saíam precipitadamente de casa em turbamulta e corriam para defronte da porta de uma péssima estalagem, diante da qual se viam duas caleças. Os cavalos que estavam ainda atrelados e que pareciam mortos de fadiga e de calor mostravam que os dois veículos tinham chegado havia pouco tempo.

Detive-me um momento para me informar da causa de tão grande tumulto, mas poucos esclarecimentos obtive de uma populaça curiosa, que nenhum caso fazia das minhas perguntas e que avançava constantemente para a hospedaria, acotovelando-se no meio da maior confusão. Por fim, como um archeiro de bandoleira a tiracolo e de mosquete ao ombro, aparecesse à porta, chamei-o e pedi-lhe que me iniciasse nos motivos de uma tal desordem.

— Não é nada, senhor — disse ele — Trata-se, apenas, duma dúzia de mulheres perdidas que conduzimos ao Havre, onde devem embarcar para a América. Há algumas bem bonitas, e talvez seja isso o que excita a curiosidade desta gente.

Ter-me-ia retirado, ouvindo esta explicação, se me não tivessem detido os lamentos de uma velha, que, saindo da estalagem e pondo as mãos na cabeça, gritava que era uma barbaridade, uma cousa que fazia horror e compaixão...

— Que é? — perguntei-lhe.

— Ah! senhor, entre e veja se o espetáculo não é capaz de comover o coração mais empedernido.

A curiosidade fez-me apear do cavalo, que entreguei ao meu palafreneiro, e entrei na estalagem, não sem grande custo, depois de ter aberto caminho por entre a multidão. E vi, com efeito, bastante para ter motivo de me enternecer.

Entre as doze mulheres, que estavam ligadas pela cintura seis a seis, havia uma, cujos modos e figura iam tão pouco de acordo com a sua atual posição, que fora dali tê-la-ia tomado por pessoa de elevada hierarquia. A tristeza que se lhe desenhava no rosto, a imundície de que seu vestido estava coberto, desfeavam-na tão pouco, que a sua vista inspirou-me respeito e compaixão.

A pobre rapariga procurava voltar-se, tanto quanto a sua cadeia lho permitia, a fim de esconder o rosto aos ávidos olhos dos espectadores e esse esforço para se ocultar era tão natural que bem parecia ser originado pelo mais nobre sentimento da modéstia e do pudor.

Como os seis guardas, que acompanhavam esta desgraçada turba estavam, também, no mesmo aposento, chamei o chefe em particular, e tratei de elucidar-me sobre a sorte desta bela rapariga. Apenas me pôde fornecer algumas informações incompletas.

— Fomos buscá-la ao Presídio, por ordem do tenente-general da polícia, e todas as probabilidades são de que ela não estava lá encerrada pelas suas virtudes. Tenho-a interrogado várias vezes durante a jornada, mas obstinou-se em não responder, e ainda que não recebesse ordem de a poupar mais do que as outras, não tenho deixado, por isso, de lhe manifestar uma certa deferência, porque me parece que esta rapariga vale alguma cousa mais do que as suas companheiras. Ali está um rapaz — ajuntou o archeiro — que poderá, melhor do que eu, instruí-lo sobre a causa da sua desgraça: tem-na acompanhado desde Paris, sem cessar um instante de carpir-se. Por força que é seu irmão ou seu amante.

Voltei-me para o canto do compartimento, onde o rapaz estava sentado. Parecia absorto numa profunda meditação; nunca vi imagem mais viva e perfeita de dor. Estava vestido com simplicidade, mas distinguia-se, logo à primeira vista, um homem não nascido da plebe e que teve educação. Aproximei-me dele; levantou-se, e descobri nos seus olhos, no seu todo, nos seus movimentos, uma tal finura e nobreza, que senti logo em mim a força irresistível da simpatia que me inspirava.

— Não o quero importunar — disse-lhe sentando-me a seu lado — mas poderia satisfazer-me a curiosidade que tenho de saber quem é esta linda rapariga, que não me parece ter nascido para a triste sorte em que a vejo lançada?

Respondeu-me amável, mas tristemente — que não podia dizer-me quem ela era sem se dar a conhecer a si próprio e que tinha sobejas razões para se conservar incógnito.

— No entanto, posso dizer-lhe o que estes miseráveis já não ignoram — continuou ele indicando os archeiros: — é que a amo, e com uma paixão tão violenta que faz de mim o mais desgraçado de todos os homens. Debalde, empreguei em Paris todos os meios para obter a sua liberdade. Os pedidos, a astúcia e a força, tudo foi inútil e impotente. Resolvi, portanto, segui-la, embora tenha de ir ao fim do mundo. Embarcarei com ela e passarei para a América. Mas, sobretudo, o requinte da crueldade, é estes marotos — ajuntou o rapaz falando dos archeiros — não permitirem que eu me aproxime dela. O meu desígnio era de os atacar cara a cara a algumas léguas de distância de Paris. Tinha-me associado com quatro homens que prometeram auxiliar-me, mediante uma soma considerável; mas os poltrões deixaram-me só, e fugiram-me com o dinheiro. A impossibilidade de vencer pela força fez com que depusesse as armas. Pedi aos archeiros que me deixassem, ao menos, segui-los, oferecendo-lhes uma recompensa: a ambição do lucro levou-os a acederem ao meu pedido, mas todas as vezes que consentem em que eu fale à minha amante, outras tantas querem ser pagos, de modo que, em pouco tempo, a bolsa ficou-me esgotada, e hoje, que estou sem um soldo, têm a crueldade de me repelir brutalmente, ao menor passo que dou para dela me aproximar. Ainda não há um instante que, pelo fato de eu lhe dirigir a palavra apesar de todas as suas ameaças, ousaram levantar sobre mim a coronha do mosquete. Sou desgraçadamente forçado, para satisfazer a sua insaciável cobiça e para me achar em circunstâncias de continuar a jornada a pé, a vender aqui um mau cavalo em que até hoje tenho vindo montado.

Ainda que esta narração parecia ser feita com a maior tranqüilidade de espírito, contudo, ao acabá-la, algumas lágrimas, borbulhando dos seus olhos, deslizaram pelas faces do desconhecido.

Esta aventura pareceu-me das mais extraordinárias e tocantes.

— Não quero obrigá-lo a descobrir-me o seu segredo, mas se posso ser-lhe útil em alguma cousa, da melhor vontade o servirei — disse-lhe eu.

— Ah! — continuou ele — nem mesmo antevejo a esperança dum dia poder mudar de sorte. Forçoso é submeter-me a todo o rigor do meu destino. Irei para a América, e lá ao menos serei livre com aquela que amo. Escrevi a um dos meus amigos, que terá à minha disposição alguns socorros, no Havre. O único embaraço com que agora luto é só a despesa da minha condução até lá, e procurar a esta pobre criatura — acrescentou ele, fitando tristemente a sua amante — algum alívio durante a jornada.

— Pois vou tirá-lo desse embaraço — afirmei eu; — aqui está algum dinheiro que de todo o coração lhe peço queira aceitar. E bem pesaroso estou de não o poder servir doutro modo.

Dei-lhe quatro luíses de ouro, sem que os guardas o percebessem, pois estava bem persuadido de que se soubessem que ele era senhor desta soma, vender-lhe-iam ainda mais caro as suas pequenas condescendências. Ocorreu-me, mesmo, a idéia de negociar com eles, para obter ao moço namorado a liberdade de falar continuamente à sua amante até ao Havre. Fiz sinal ao chefe para se aproximar de mim, e propus-lhe as minhas condições. Pareceu-me um pouco envergonhado, de todo o seu descaramento.

— Não é, senhor — respondeu ele, perturbado — que nós nos recusemos a deixá-lo falar a esta rapariga; mas o seu desejo é estar sempre ao pé dela e isto incomoda-nos. É justo, pois, que pague esse incômodo.

— Pois bem, vejamos quanto querem para que esse incômodo deixe de se fazer sentir.

Teve a audácia de me pedir dois luíses! Dei-lhos imediatamente.

— Mas tomem cuidado, — ameacei eu — não pratiquem alguma ladroeira, pois vou dar a minha morada a este moço para que me possa informar do que ocorrer, e contem que posso fazê-los castigar.

Assim, custou-me esta curiosidade seis luíses de ouro.

O bom modo e o vivo reconhecimento com que o rapaz me agradeceu acabaram de me convencer de que ele era bem nascido e que merecia as minhas liberalidades. Dirigi algumas palavras à sua amante antes de sair. Ela respondeu-me com uma modéstia tal e tão encantadora que não pude deixar de fazer, retirando-me, mil reflexões sobre o caráter incompreensível das mulheres.

Tendo voltado de novo à minha solidão nada mais soube da continuação desta aventura. Passaram-se dois anos, espaço bastante para eu a esquecer totalmente, até que o acaso fez com que me pudesse elucidar de todas as suas circunstâncias e pormenores.

Acabava de chegar a Calais, de volta de uma viagem a Londres com o marquês de..., meu discípulo. Estávamos hospedados, se bem me recordo, no Leão de Ouro, onde por motivos particulares nos vimos forçados a passar o dia inteiro e a noite seguinte. Seria meio-dia, quando, ao darmos um passeio pelas ruas, pareceu-me reconhecer num indivíduo que passava o mesmo rapaz que havia encontrado na estalagem de Passy. Estava muito mal vestido e ainda mais pálido do que a primeira vez em que eu o tinha visto; contudo, a sua fisionomia era em demasia distinta para que por mim fosse reconhecida imediatamente.

— Tenho necessidade de falar àquele homem — disse eu ao marquês.

Em seguida, aproximei-me do desconhecido.

— Ah! senhor! — exclamou ele, beijando-me a mão, — que felicidade não é a minha de poder ainda uma vez mais mostrar-lhe o meu eterno reconhecimento.

Perguntei-lhe donde vinha. Respondeu-me que acabava de chegar do Havre, de volta da América.

— Não me parece achar-se em melhores circunstâncias do que outrora — continuei eu. — Vá ao Leão de Ouro, onde estou hospedado, que não tardo lá um instante.

Com efeito, corri logo à hospedaria, cheio de impaciência para conhecer os detalhes do seu infortúnio e os pormenores da sua viagem à América. Tratei-o com as maiores provas de amizade, ordenando que não lhe faltasse cousa alguma. Não esperou que eu lhe pedisse para me contar a história da sua vida.

— Procede tão nobremente comigo — disse-me ele — que nunca perdoaria a mim próprio o usar da mais pequena reserva para com o senhor. Quero contar-lhe não só as minhas desgraças e sofrimentos, mas também as minhas extravagâncias e vergonhosas fraquezas; estou certo que condenando-me não poderá, contudo, deixar de me lastimar.

Devo advertir, nesta altura, o leitor de que escrevi esta história logo depois de a ter ouvido, podendo portanto assegurar que nada há mais exato e fiel do que a minha narração. E digo fiel até na relação das reflexões e sentimentos que o moço aventureiro exprimiu com a melhor graça. Eis pois a sua história, a que procurarei não juntar, até o fim, nada que não seja dele:

***

— Tinha eu dezessete anos, e havia acabado os meus estudos de filosofia em Amiens onde meus pais, que são duma das mais distintas famílias de P..., me tinham mandado educar. A minha vida era tão regular, tinha tão bom comportamento, que os meus mestres me apontavam como um exemplo a todos os meus camaradas do colégio. Não que eu fizesse esforços extraordinários para merecer este elogio, mas, naturalmente dócil e sossegado, aplicava-me ao estudo por índole, e contavam-me no número das virtudes a aversão natural que eu tinha ao vício. A minha família, o êxito dos meus estudos e algumas perfeições exteriores haviam-me tornado conhecido e estimado de toda a gente honesta e respeitada da cidade.

Fiz os meus exames públicos com unânime aprovação de todos os espectadores, a ponto do bispo, que a ele assistia, me propor a minha entrada na vida eclesiástica, onde de certo, dizia ele, não deixaria de adquirir mais distinção e renome do que na ordem de Malta, a que meus pais me destinavam. E tanto assim, que eles me obrigaram já a trazer a cruz, com o nome de cavalheiro des Grieux. Chegadas as férias, preparava-me para regressar ao lar doméstico, para junto de meu pai, que tinha prometido enviar-me imediatamente para a Academia. O único pesar que tinha ao retirar-me de Amiens, era deixar ali um amigo a quem me unia a maior ternura e amizade. Era um pouco mais velho do que eu. Tínhamos sido educados juntos, mas os seus bens eram assaz medíocres, e portanto foi obrigado a tomar o estado de eclesiástico e a ficar em Amiens para aí continuar os estudos necessários a esta profissão. Possuía inúmeras qualidades. Há de conhecê-lo pelas melhores, no decurso da minha narração, e principalmente por um zelo e generosidade no afeto que excedem os mais célebres exemplos que a história antiga nos apresenta. Se houvesse, então, seguido os seus conselhos, teria sido sempre honrado, honesto e feliz; se ao menos me tivesse aproveitado das suas repreensões, à borda do precipício onde os meus vícios me arrastavam, teria salvo alguma cousa no naufrágio da minha fortuna e da minha reputação. Mas desgraçadamente o meu amigo não colheu outro fruto dos seus cuidados e dedicação, do que o pesar de os ver olvidados e algumas vezes duramente recompensados por um ingrato que só via nos seus bons conselhos uma ofensa, ou os olhava como inoportunos.

Havia determinado já o dia em que deveria sair de Amiens. Porque não antecipei vinte e quatro horas a minha partida? Se assim o tivesse feito, decerto, ao entrar em casa de meus pais, levaria comigo toda a minha inocência.

Na própria véspera do dia fatal em que tinha de deixar essa cidade, andando a passear com o meu amigo, que se chamava Tiberge, vimos chegar a diligência de Arraz, e seguimo-la até à estalagem, onde estes carros fazem alto. Não nos moviam outros motivos, além da curiosidade.

Apearam-se quatro mulheres, que se retiraram imediatamente; mas ficou uma, muito nova, que esperava no pátio da estalagem que um homem de idade avançada, e que parecia servir-lhe de guia, fizesse descarregar a sua bagagem. Pareceu-me tão linda, tão encantadora, que eu, que até então nunca tinha pensado nem na diferença dos sexos, e muito menos olhado para uma mulher com mais atenção do que para qualquer outra criatura; — eu, cuja inocência era por todos admirada, achei-me de repente exaltado até ao transporte. Até então tinha o defeito de ser demasiadamente tímido e fácil em perder o sangue frio; mas, nesse momento, longe de me intimidar por esta fraqueza, dirigi-me resolutamente para aquela que já considerava como dona absoluta de meu coração.

Embora ela fosse mais nova do que eu, retribuiu os meus cumprimentos sem embaraço algum. Perguntei-lhe o que a levava a Amiens e se ali tinha alguém conhecido. Respondeu-me ingenuamente que seus pais a mandavam para aquela cidade, a fim de entrar para um convento.

O amor tinha já por tal forma esclarecido o meu coração, no tão diminuto espaço de tempo que nele residia, que olhei logo este desígnio como um golpe mortal dado nos meus desejos.

Falei-lhe de modo que lhe fizesse compreender os meus sentimentos, porque ela mostrava uma experiência maior do que a minha. Era contra sua vontade que a mandavam para um convento, sem dúvida para impedir a sua tendência natural para os prazeres sensuais, — tendência que já se havia manifestado e que no futuro causou todas as suas e as minhas desgraças.

Combati a descaroável intenção de seus pais por todas as razões que o meu amor e a minha eloqüência escolástica me sugeriram.

Não afetou nem rigor nem desdém; apenas me disse, depois de um momento de silêncio, que bem previa quanto ia ser desgraçada, mas que tal era aparentemente o desígnio do céu, pois que nenhum meio se lhe antolhava de o evitar.

A doçura do seu olhar, o ar cheio de encantadora tristeza ao pronunciar estas palavras, ou antes o ascendente do meu destino, que me arrastava à minha perda, não me deixaram um só instante para refletir na resposta.

Assegurei-lhe que se ela quisesse depositar confiança na minha honra e na ternura infinita que já me inspirava, empregaria todas as minhas forças para a libertar da tirania de seus pais, e para fazê-la feliz. Mil vezes me admirei, mais tarde, da ousadia e facilidade com que então me expressei, mas, decerto, não se teria feito do amor um deus, se ele não operasse, tão repetidas vezes, grandes prodígios.

Disse-lhe muitas cousas eloqüentes.

A minha bela desconhecida sabia perfeitamente que na minha idade não se engana ninguém; confessou-me que, se por acaso eu pudesse dar-lhe a liberdade, ser-me-ia devedora de alguma cousa mais cara, para ela, do que a própria vida.

Repeti-lhe que estava pronto a tudo empreender; mas não tendo bastante experiência do mundo para imaginar, num golpe de vista, todos os meios que poderiam estar ao meu alcance para a servir limitei-me a esta única promessa bem vaga que, certamente, não devia ser de grande auxílio, nem para ela, nem para mim.

O seu velho argos tinha vindo para junto dela, todas as minhas esperanças iam naufragar, se a argúcia do seu espírito não fosse tanta que pudesse bem suprir a esterilidade do meu. Fiquei surpreendido de que, à chegada do seu companheiro, me chamasse primo, e que, sem se desconcertar, me dissesse que visto a felicidade que tivera em me encontrar, transferia a sua entrada no convento para o dia seguinte, a fim de dar-se o prazer de cear comigo.

Percebi perfeitamente a mentira, e propus-lhe irmos hospedar-nos numa estalagem, cujo dono havia sido cocheiro de meu pai muito tempo, antes de se estabelecer em Amiens, e que me era inteiramente devotado.

Fui eu quem a conduziu até lá, ao passo que o seu velho companheiro parecia resmungar de mau humor, e o meu amigo Tiberge, que não compreendia a mais pequena cousa desta cena, me seguia sem pronunciar uma palavra. Não tinha ouvido a nossa conversa, ficando a passear no pátio, enquanto eu falava de amor à minha linda amante.

Receando repreensões de Tiberge, desembaracei-me da sua companhia, pedindo-lhe que se encarregasse dum serviço meu. Assim, tive o prazer, ao chegar à hospedaria, de me achar a sós com a soberana do meu coração.

Não tardou muito que conhecesse que era muito menos criança do que eu mesmo me julgava. Meu coração achava-se engolfado em mil sentimentos agradáveis, dos quais eu nem a mais leve idéia tinha: um fogo ardente e voluptuoso começou a correr-me nas veias; estava num como transporte que me tirou por algum tempo o dom da palavra e que não me deixava exprimir senão com os olhos.

Manon Lescaut — foi assim que ela me disse chamar-se — pareceu-me muito satisfeita e lisonjeada com o efeito que em mim produziram os seus encantos. Percebi que não se encontrava menos comovida do que eu. Confessou que me achava amável e que estava encantada de me dever o favor da sua liberdade.

Quis saber quem eu era, e tendo-lhe dito, a sua afeição aumentou para comigo, pois que, sendo duma família plebéia, ficara satisfeitíssima de ter conquistado um amante da minha condição. Conversámos sobre a maneira de resolver o problema que nos preocupava. Depois de muitos e vários planos, assentamos em que o único meio melhor era a fuga. Para isso, era preciso iludir a vigilância do homem que a acompanhava e que apesar de ser um simples criado, não era criatura de quem se menoscabasse a esperteza.

Concordamos em que eu faria, naquela mesma noite, arranjar uma sege de posta e que no dia seguinte de madrugada, quando todos ainda estivessem dormindo, sairíamos da hospedaria, dirigindo-nos diretamente a Paris, onde nos casaríamos tão depressa lá chegássemos.

Os meus fundos orçavam por uns cinqüenta escudos, fruto das minhas economias; os dela seriam talvez o dobro.

Imaginamos, como crianças que éramos, que esta soma nunca se acabaria, e acreditamos cegamente no êxito das nossas outras combinações.

Tendo ceado com mais satisfação do que em dias de minha vida tinha sentido, saí para ir executar o nosso projeto. Os meus arranjos de partida foram tanto mais fáceis quanto, tendo eu tenção de me retirar para casa de meus pais no dia seguinte, as malas já estavam preparadas. Portanto, limitei-me a alugar a sege, ordenando que estivesse pronta às cinco horas da manhã, momento em que as portas da cidade estariam abertas; encontrei, porém, um obstáculo com que não contava, e que esteve a ponto de frustrar inteiramente todos os meus planos.

Tiberge, ainda que apenas mais velho do que eu três anos, era um rapaz sisudo e dum comportamento muito regular, e estimava-me com uma dedicação extraordinária. O encontro duma rapariga tão bonita como Manon, a minha diligência em conduzi-la à hospedaria, e o cuidado que eu mostrara em dele me desembaraçar, despertaram-lhe suspeitas do meu amor para com ela. Não tinha ousado voltar à estalagem, onde me havia deixado, receando ofender-me com a sua volta; mas tinha ido esperar-me em minha casa, onde o encontrei sentado, não obstante serem já dez horas da noite. A sua presença desgostou-me, e facilmente Tiberge percebeu o contratempo que a sua visita me causava.

— Estou certo — disse-me ele, sem o menor rebuço — que meditas alguma cousa que me queres ocultar; bem vejo isso pelo teu modo.

Respondi-lhe bruscamente que não era obrigado a dar-lhe parte de todas as minhas ações.

— Não; é verdade, — continuou ele — mas sempre me tens tratado como amigo, e a amizade requer alguma confiança e franqueza.

Tanto instou comigo, que não lhe pude ocultar o segredo, e fiz-lhe uma inteira confidência da minha paixão.

Recebeu-a com tão evidentes provas de descontentamento que muito me fez recear; arrependi-me, sobretudo, de lhe ter descoberto o plano da minha fuga.

Disse-me que era sobejamente meu amigo para se não opor, com todas as suas forças, às minhas tenções, e que se por meio da persuasão eu não renunciasse a esta miserável e criminosa idéia, advertiria alguém, que com toda a certeza havia de impedir-me a sua execução. Neste sentido, fez-me um discurso que durou mais de meia hora, acabando por declarar que me denunciaria, se eu não lhe desse a minha palavra de honra de me conduzir com mais juízo e tino.

Estava desesperado por me ter traído tão pouco a propósito. Contudo, o amor abrira-me os olhos de tal modo no curto espaço de duas ou três horas que notei não lhe ter dito que a minha fuga devia realizar-se no dia seguinte, e resolvi portanto enganá-lo com o auxílio duma mistificação.

— Tiberge — respondi — acreditei sempre que eras meu amigo, e quis avaliar até que ponto chegava a tua amizade. É verdade que amo, e nisto não te enganei, mas a respeito da minha fuga, não é isso resolução que se tome no ar. Vem amanhã ter comigo às nove horas, mostrar-te-ei, se puder, a minha amante; então, julgarás se ela merece que eu dê por sua causa este passo.

Depois disto saiu, tendo-me feito de novo protestos de afeto.

Levei a noite a pôr em ordem todos os meus negócios, e ao romper do dia dirigi-me à pousada de Manon, que já me esperava à janela, e que apenas me viu veio logo abrir-me a porta, saindo sem fazer o menor ruído.

A sua bagagem consistia apenas num saco com alguma roupa branca, de que eu me encarreguei. Metemo-nos na sege e saímos imediatamente da cidade.

Contarei mais adiante qual foi o procedimento de Tiberge, vendo que tinha sido por mim enganado. O seu zelo não esfriou por isso, e ver-se-á a que excesso ele o levou, e quantas lágrimas eu não deveria derramar ao lembrar-me qual fora sempre a recompensa que dei a tão nobre dedicação.

Íamos tão depressa que chegámos a São Diniz antes de anoitecer. Eu montava a cavalo ao lado da carruagem, o que nos havia impedido de conversarmos, a não ser em ocasião de mudas; mas logo que nos vimos tão próximos de Paris, isto é, quase em segurança, tratamos de jantar, pois desde que tínhamos saído de Amiens nada havíamos comido.

Por mais enamorado que eu estivesse de Manon, ela fez-me sentir que a sua paixão por mim não era menor.

Éramos tão pouco reservados nas nossas carícias, que nem paciência tínhamos para esperar que estivéssemos sós. Os postilhões e estalajadeiros olhavam-nos com admiração, surpreendidos de verem duas crianças como nós amarem-se com tanto fervor.

Os nossos projetos de casamento foram esquecidos em São Diniz; violamos os direitos da Igreja e achamo-nos esposos sem fazermos sobre isso a menor reflexão. A verdade é que, com a minha índole terna e constante, toda a minha vida teria sido feliz se Manon me houvesse sempre sido fiel. Quanto mais a conhecia, mais descobria nela novas qualidades dignas de estima. O seu espírito, o seu coração, a sua ternura e beleza, formavam uma cadeia com elos tão fortes que eu fazia consistir toda a minha ventura em nunca sair dela.

Terrível mudança! o que hoje constitui o meu desespero poderia ter constituído a minha felicidade! Se ao presente sou o mais desgraçado dos homens, devo-o a esta mesma constância, de que só esperei o mais belo de todos os futuros, a mais perfeita recompensa de amor.

Alugamos um quarto mobilado, em Paris, na rua V... e para minha desdita junto da casa de M. de B..., célebre arrematante das rendas do Estado.

Três semanas decorreram, durante as quais estive tão entregue à minha paixão que não pensei um só momento na minha família, nem nos cuidados em que meu pai deveria estar por motivo da minha ausência. Contudo, como nem o desregramento, nem o vício influíam na minha conduta, e Manon se comportava também com a maior decência, a tranqüilidade em que vivíamos fez-me recordar pouco a pouco o meu dever.

Resolvi reconciliar-me, se possível fosse com meu pai. A minha amante era tão simpática que não duvidei um instante de que ela não lhe agradasse se eu encontrasse meio de lhe fazer conhecer o seu bom comportamento e as suas virtudes; numa palavra, lisonjeava-me a idéia de obter de meu pai a permissão de a desposar, tendo perdido completamente a esperança de o poder fazer sem o seu consentimento.

Comuniquei este projeto a Manon e fiz-lhe compreender que além dos motivos de amor e do dever, o da necessidade deveria ser tomado em linha de conta, pois os nossos fundos sofriam grande desfalque e eu começava a convencer-me de que não eram inesgotáveis.

Manon ouviu com a maior frieza esta proposta. No entanto, as razões que ela opôs pareceram-me devidas mais à sua ternura e ao receio de que meu pai não quisesse aceder à nossa vontade, uma vez que conhecesse o lugar para onde tínhamos fugido, do que ao golpe cruel que ela me preparava.

À objeção da necessidade, respondeu-me que ainda nos restava com que vivêssemos algumas semanas, e que passado este prazo ela acharia recursos na afeição d’alguns parentes que tinha na província e a quem escreveria. Adoçou ao mesmo tempo a sua recusa por meio de carícias e afagos tão ternos e apaixonados, que eu, que não tinha a menor desconfiança do seu coração e do seu amor, concordei com todas as suas resoluções.

Havia-lhe confiado o encargo de pagar a nossa despesa ordinária, bem como a administração de todos os nossos fundos; mas depois desta conversa, notei que a nossa mesa era mais bem servida e que ela havia feito algumas compras dum valor considerável; como não ignorava que não deveríamos ter mais do que doze ou quinze dobrões, signifiquei-lhe o meu espanto por este aumento aparente da nossa opulência. Disse-me, rindo, que não me desse isso cuidado.

— Não te prometi que encontraria recursos? — exclamou.

Amava-a com muita simplicidade para ter dela a mais leve suspeita. Certa ocasião, em que eu saíra depois do meio-dia, advertindo-a de que talvez me demorasse mais tempo do que de costume, fiquei surprendido de que me fizessem esperar, quando voltei, dois ou três minutos.

Éramos servidos por uma rapariga pouco mais ou menos da nossa idade. Quando veio abrir-me a porta perguntei-lhe a razão da demora. Respondeu-me, toda embaraçada, que não me tinha ouvido bater. Apenas tinha batido uma vez e, por isso, perguntei-lhe:

— Mas se não ouviste, como vieste?

Este argumento fê-la titubear, e não tendo esperteza bastante para me responder, pôs-se a chorar, afirmando-me que Manon a havia proibido de abrir a porta até que M. de B... saísse pela outra escada que dava para o gabinete.

Fiquei tão aturdido que nem forças tive de entrar em casa. Desci sob pretexto dum negócio e ordenei à rapariga que dissesse a sua ama que eu voltava em breve, intimando-a, porém, a que não lhe fizesse saber o que me tinha dito a respeito de M. de B...

Tão grande foi a minha consternação, que não pude deixar de derramar copiosas lágrimas ao descer a escada, e isto sem saber quais eram os sentimentos que as originavam. Entrei no primeiro café, sentei-me a uma mesa, e, apoiando a cabeça entre as mãos, procurei desenvolver e estudar tudo quanto se passava no meu coração.

Não ousei relembrar o que acabava de ouvir; queria considerar isso como uma ilusão; e por duas ou três vezes estive decidido a reentrar em casa, sem mostrar que sabia tudo. Parecia-me por tal forma impossível que Manon me traísse, que temia injuriá-la com tal suspeita.

Eu adorava-a, certamente; não lhe tinha dado mais provas de amor do que dela tinha recebido; porque motivo a acusaria então de ser menos sincera, menos constante do que eu?

Que razão poderia Manon ter para me atraiçoar? Ainda não haviam decorrido três horas que ela me tinha feito as mais ternas carícias, recebendo as minhas com transporte; não conhecia melhor o meu coração do que o seu.

— Não, não, — repetia eu — não é possível que Manon me tenha traído. Não ignora que eu só vivo para ela. Sabe muito bem que a adoro, e isto não é uma razão para que possa ser odiado!

Contudo, a visita e a saída furtiva de M. de B... intrigavam-me. Lembrava-me ao mesmo tempo das pequenas compras feitas por Manon, compras que excediam muito as forças das nossas riquezas presentes. Isto parecia denunciar liberalidades dum novo amante. E essa confiança que ela me tinha mostrado em recursos por mim desconhecidos? A falar a verdade, custava-me dar a tantos enigmas um sentido tão favorável como o meu coração desejava.

Por outro lado, quase que a não tinha perdido de vista desde que estávamos em Paris. Em ocupações, passeios e divertimentos, tínhamos estado sempre um ao lado do outro. Meu Deus! um instante de separação ter-nos-ia afligido bastante. Era preciso repetirmo-nos sem cessar que nos amávamos; morreríamos de inquietação sem isso. Como poderia eu, pois, imaginar que Manon pensasse um só momento em outrem que não fosse eu?

Por fim, julguei achar a chave deste mistério.

— M. de B... — disse comigo mesmo — é homem que trata de muitos negócios e tem imensas relações; os parentes de Manon ter-se-ão talvez servido deste homem para lhe mandar dinheiro. Talvez ela já tenha recebido algum, e hoje é muito provável que lhe fosse levar mais. Manon fez sem dúvida empenho em me ocultar esta circunstância, talvez para me fazer alguma agradável surpresa. Quem sabe se ela me estaria neste momento falando nisso, se em lugar de vir para aqui torturar-me eu tivesse entrado em casa? Estou bem certo que nada me ocultará, se eu lhe falar nisso.

Fortaleci-me tanto nesta opinião, que ela conseguiu aplacar muito a minha tristeza. Voltei imediatamente para casa. Beijei Manon com a minha ternura costumada. Recebeu-me perfeitamente. A princípio, tentei descobrir-lhe as minhas conjeturas, que me pareciam, agora mais do que nunca, verdadeiras; mas dominei-me na esperança de que havia de chegar o momento em que ela me contasse tudo quanto se tinha passado.

Serviram-nos a ceia. Sentei-me à mesa muito alegre, mas à luz do candieiro, colocado entre mim e ela, pareceu-me divisar sinais duma profunda melancolia no rosto e nos olhos da minha querida amante. Notei que o seu olhar me era dirigido dum modo muito diferente do costume: não podia, contudo, atinar se era por amor ou por compaixão, ainda que me pareceu originado por um sentimento de languidez e de ternura. Fitei-a igualmente com a mesma atenção, e talvez não lhe custasse menos a ela do que a mim, avaliar, pelo meu olhar, o estado do meu coração. Não pensávamos nem em falar nem em comer. Por fim, lágrimas abundantes correram de seus lindos olhos. Lágrimas pérfidas!

— Oh! meu Deus! Tu choras, querida Manon! Sofres a ponto de chorar, e nem um só dos teus pesares me contas!

Não me respondeu senão com suspiros, que apenas contribuíram para aumentar a minha inquietação.

Levantei-me, todo trêmulo, conjurando-a por tudo quanto de mais sagrado podia haver no amor, a dizer-me a causa das suas lágrimas; eu mesmo também chorei ao enxugar as suas: estava mais morto do que vivo. Um bárbaro ter-se-ia enternecido diante das provas da minha dor e dos meus temores.

Enquanto isto se passava, ouvi o ruído que faziam várias pessoas subindo a escada. Bateram à porta muito de leve. Manon deu-me um beijo e fugiu dos meus braços, fechando-se no seu gabinete. Pareceu-me que estando um pouco em desalinho, querer-se-ia esconder aos olhos dos estranhos que haviam batido. Eu próprio fui abrir a porta.

Apenas a tinha aberto, fui agarrado por três homens, que imediatamente reconheci serem criados de meu pai. Não exerceram sobre mim a menor violência, mas, como dois dentre eles, me tivessem seguro pelos braços, o terceiro apalpou todas as minhas algibeiras, donde tirou um pequeno canivete, único ferro que trazia comigo. Pediram-me perdão de serem forçados a faltar-me ao respeito, dizendo-me que se assim o faziam era por ordem de meu pai, e que meu irmão mais velho me esperava em baixo dentro duma carruagem. Estava tão perturbado que me deixei conduzir sem resistência e sem murmurar a menor palavra. Meu irmão estava efetivamente à minha espera. Meteram-me na carruagem ao lado dele, o galope para São Diniz.

Meu irmão abraçou-me ternamente, mas não me disse nada, de sorte que tive toda a liberdade de que necessitava para pensar no meu infortúnio.

Achei que tudo quanto acabava de acontecer-me era tão obscuro que nem na menor conjetura podia encontrar um vislumbre de luz.

Tinha sido cruelmente atraiçoado; mas por quem? Tiberge foi o primeiro que me veio à idéia. Traidor, dizia eu, podes encomendar a tua alma à Deus, se as minhas suspeitas se confirmarem. E, contudo, raciocinando melhor vi que ele ignorava o lugar onde eu estava, e que conseqüentemente não podia ter sido o denunciante. Acusar Manon!... era exatamente do que o meu coração não queria tornar-se culpado. Aquela tristeza extraordinária que tanto a acabrunhava, as suas lágrimas, o terno beijo que me tinha dado ao retirar-se, tudo isto me parecia enigmático; mas não sei porque me sentia levado a explicá-lo como um pressentimento da nossa comum desgraça; e enquanto me irritava pelo incidente que a ela me havia arrancado, tinha a ingenuidade de julgar que Manon era ainda mais digna de lástima do que eu.

O resultado da minha meditação foi o persuadir-me de que teria sido visto nas ruas de Paris por alguém do meu conhecimento, e que disso tinha sido avisado meu pai. Uma tal idéia consolou-me. Contava ficar quite por algumas repreensões ou mesmo por alguma violência que teria de sofrer da autoridade paterna.

Resolvi, portanto, suportar tudo com paciência e prometer quanto de mim se exigisse, a fim de que melhor se me facilitasse a ocasião de voltar mais prontamente a Paris, e ir restituir a vida e a alegria à minha querida Manon.

Em breve, chegamos a São Diniz. Meu irmão, surpreendido com o meu silêncio, imaginou-o motivado pelo receio. Procurou consolar-me, assegurando-me que eu nada tinha a temer da severidade de meu pai, contando que estivesse disposto a entrar sem relutância no cumprimento dos meus deveres e a tornar-me digno da afeição que ele por mim sentia. Obrigou-me a passar a noite em São Diniz, tomando a precaução de fazer dormir os três lacaios no meu quarto.

O que me causou um grande desgosto foi o achar-me na mesma estalagem em que tinha ficado com Manon na viagem de Amiens para Paris. O estalajadeiro e os criados conheceram-me, adivinhando ao mesmo tempo a verdade da minha aventura. Ouvi dizer ao dono da casa:

— Ah! é aquele lindo rapaz que passou por aqui há seis semanas, com uma rapariguinha a quem parecia amar tanto! Como ela era bonita! E que festas que se faziam as pobres crianças! É pena que os tenham separado.

Eu fingia não ouvir e ocultava o rosto o mais que podia.

Meu irmão tinha, em São Diniz, uma sege de dois lugares em que partimos na manhã seguinte, e chegamos a nossa casa ao cair da noite. Falou a meu pai antes de mim para o predispor favoravelmente, contando-lhe a docilidade com que eu me tinha deixado conduzir, de modo que fui recebido muito menos asperamente do que esperava. Contentou-se em fazer-me algumas repreensões pela falta que eu havia cometido, ausentando-me sem sua autorização.

Quanto ao que dizia respeito à minha amante, disse-me que eu tinha merecido tudo quanto me acontecera, lançando-me assim às cegas nos braços duma desconhecida; que formava melhor opinião da minha prudência, mas que esperava que esta pequena aventura faria que para o futuro eu tivesse mais juízo.

Aceitei a prática unicamente na parte que se conciliava com as minhas idéias. Agradeci a meu pai a sua bondade em me perdoar e prometi-lhe que dali em diante teria uma conduta mais regular e submissa.

Triunfava, ainda que em segredo, pois pelo caminho que as cousas tomavam, não duvidava de que pudesse ter a liberdade de me evadir de casa antes mesmo do fim da noite.

Sentamo-nos à mesa para cear: mofaram todos de mim pela minha conquista de Amiens e sobretudo pelo rapto desta fiel amante. Sofri de cara alegre e da melhor feição todos os motejos. Estava até encantado por poder falar na mulher em que a minha mente só pensava. Mas, algumas palavras de meu pai fizeram com que a minha atenção redobrasse.

Falou da perfídia e dos serviços interesseiros de M. de B... Fiquei atônito, ouvindo-lhe pronunciar tal nome e roguei-lhe submissamente que se explicasse melhor. Voltou-se para meu irmão perguntando-lhe se não me havia contado toda a história, ao que ele respondeu que, tendo-me eu mostrado tão tranqüilo durante a jornada, não julgara dever aplicar-me este remédio para me curar da minha loucura. Notei que meu pai hesitava em dar todas as explicações. Pedi-lhe, supliquei-lhe com tanta instância, que satisfez por fim a minha vontade, ou para melhor dizer, assassinou-me cruelmente com a mais horrível de todas as narrações.

Perguntou-me primeiro se eu havia tido sempre a boa fé de acreditar que era amado pela minha amante. Respondi-lhe ousadamente que estava disso tão convencido que nada me podia infundir a menor dúvida.

— Ah! ah! ah! — exclamou ele rindo com todas as suas forças — é admirável! Tu és um pateta e ficam-te muito bem esses sentimentos. É pena, meu pobre cavalheiro, fazer-te entrar na ordem de Malta, quando tens tantas disposições para um marido sofredor e pacífico.

Acrescentou a isto mil outros motejos sobre o que ele chamava a minha tolice e a minha credulidade.

Por fim, como eu não respondesse, continuou dizendo-me que segundo o cálculo do tempo que podia fazer desde a minha partida de Amiens, Manon apenas me tinha amado doze dias.

— Porque — ajuntou ainda meu pai — sei que saiste de Amiens a 28 do mês passado; estamos a 29 do corrente; há doze dias que M. de B... me escreveu; suponho que lhe foram necessários oito para estabelecer conhecimento com a tua amante: assim, quem tira onze e oito dias de trinta e um dias, espaço decorrido de 28 de um mês a 29 do outro, ficam doze pouco mais ou menos.

As gargalhadas dos presentes recomeçaram.

Eu escutava tudo, mas o coração ia-se-me confrangendo de tal modo que temi não poder resistir até ao fim a triste comédia.

— Sabe então, — continuou meu pai, — que M. de B... está de posse do coração da tua princesa, pois quer talvez divertir-se comigo, fazendo-me convencer que é por um zelo desinteressado pela minha honra e bom nome de todos os meus que me avisou. É exatamente dum homem como ele, e de quem não sou conhecido, que se devem esperar sentimentos tão nobres! Soube por ela que tu eras meu filho; e para se desfazer de ti como dum importuno, escreveu-me indicando o lugar onde te ocultavas e as extravagâncias no meio das quais vivias, dando-me ao mesmo tempo a entender que seria preciso empregar a força para te dominar; ofereceu-se para me facilitar os meios de te prender, e foi debaixo da sua direção e mesmo da de tua amante, que teu irmão achou a forma de te fazer cair na ratoeira. Felicita-te agora da duração do teu triunfo! Sabes vencer rapidamente, cavalheiro; mas não sabes conservar as tuas conquistas!

Não tive força para ouvir por mais tempo uma arenga de que cada palavra me trespassava o coração. Levantei-me da mesa, e ainda bem não tinha dado quatro passos, quando caí sem sentidos. Fizeram-me voltar a mim por meio de prontos socorros. Abri os olhos para derramar uma torrente de lágrimas, e a boca para proferir as mais tocantes e tristes lamentações. Meu pai, que sempre me quis ternamente, empregava todos os meios que a sua afeição lhe sugeria para me consolar. Escutava-o mas não o ouvia. Lancei-me a seus pés; pedi-lhe de mãos erguidas que me deixasse voltar a Paris para ir apunhalar M. de B...

— Não — dizia eu — o coração de Manon não lhe pertence, forçou-a talvez brutalmente. Manon ama-me. Não o sei eu muito bem?!... Ameaçou-a, talvez, com a morte, para a obrigar a abandonar-me. Que não faria ele para me roubar uma tão linda amante? Oh! meu Deus! seria possível que Manon me traísse e deixasse de amar-me!?

Como eu persistisse na loucura de querer voltar imediatamente para Paris e me levantava mesmo a todos os momentos para sair, meu pai viu que na exaltação em que me achava, nada seria capaz de conter-me. Conduziu-me para um quarto no último andar da casa, onde deixou dois criados, para me fazerem sentinela à vista. Não era senhor de mim. Mil vidas que tivesse tê-las-ia dado para estar em Paris um quarto de hora apenas. Compreendi que, tendo-me desmascarado tão abertamente, não me permitiriam facilmente que saísse do meu quarto. Medi com a vista a altura das janelas. Não vendo meio algum de fugir por este lado, tentei seduzir os meus dois guardas. Comprometi-me por mil juramentos a fazer um dia a sua fortuna, se consentissem na minha evasão. Pedi, acariciei-os, cheguei até às ameaças; mas tudo foi inútil.

Perdi, então, toda esperança. Resolvi morrer, e atirei-me para cima da cama com a firme intenção de não a deixar senão com a vida. Passei a noite e o dia seguinte nesta situação, e recusei totalmente toda a comida que me serviram.

Meu pai, veio à tarde visítar-me. Teve a bondade de lisonjear os meus pesares pelas mais doces consolações. Ordenou-me tão imperiosamente que comesse alguma cousa, que eu obedeci para respeitar as suas ordens.

Alguns dias se passaram, durante os quais nada tomei senão na sua presença e só para me conformar com a sua vontade. Meu pai continuava sempre a dar-me os bons conselhos que podiam restituir-me a razão e inspirar-me o desprezo que merecia a infiel Manon. Era certo que eu já a não estimava; como poderia estimar a mais volúvel e pérfida das criaturas? Mas a sua imagem, as suas feições encantadoras, que eu tinha indelevelmente gravadas no espírito, subsistiam ainda. Eu bem o sentia.

— Posso morrer, — dizia eu — deveria mesmo morrer depois de tanta vergonha e tanta dor; mas antes mil mortes do que esquecer a ingrata Manon.

Meu pai estava espantado de ver como a minha afeição continuava tão fortemente. Conhecia a minha honra e brio, e não duvidando de que a traição de Manon me infundisse justo desprezo para com ela, imaginou que a minha constância era resultante menos desta paixão em particular do que dum fraco para com todas as mulheres em geral.

Aferrou-se por tal modo a esta idéia que não dando ouvidos senão à muita afeição que me consagrava, disse-me um dia:

— Cavalheiro, é verdade que até hoje formei tenção de te fazer entrar na ordem de Malta; mas vendo que a tua inclinação não é para o celibato, antes ao contrário amas as belas mulheres, estou resolvido a procurar-te uma que te convenha e agrade. Dize-me o que pensas a este respeito.

Respondi-lhe que para mim não havia já distinção alguma entre as mulheres e que depois da desgraça que me tinha acontecido, detestava-as a todas igualmente.

— Procurar-te-ei uma que se pareça com Manon, e que te seja mais fiel — disse meu pai.

— Ah! se ainda me estima, é Manon que me deve restituir; esteja certo, meu querido pai, de que ela não me traiu, pois não era capaz de tão negra e cruel baixeza. É o pérfido B... que nos engana, a meu pai, a ela e a mim. Se soubesse quanto Manon era terna e sincera!... Se a conhecesse, também meu pai a amaria.

— És uma criança — disse-me meu pai — como podes ainda estar cego até esse ponto, depois do que a seu respeito te contei? Foi ela própria quem te entregou a teu irmão. Até o nome lhe deverias esquecer, e aproveitar-te, se tivesses juízo, da indulgência com que te tenho tratado.

Eu bem reconhecia que meu pai tinha razão. Existia, porém, uma força involuntária que me fazia tomar assim o partido da minha infiel amante.

— Mas — continuei eu — o certo é que sou o desgraçado alvo da mais covarde de todas as perfídias. Sim, — acrescentei, derramando lágrimas de despeito — bem vejo que não passo de uma criança. A minha credulidade não lhe custava muito a enganar. Mas sei muito bem o que tenho a fazer para me vingar.

Meu pai perguntou-me quais eram as minhas tenções.

— Irei a Paris, — respondi eu — deitarei fogo à casa de B... e queimá-lo-ei vivo com a pérfida Manon.

Esta bravata fê-lo rir e não serviu senão para que eu fosse vigiado ainda mais cautelosamente na minha prisão.

Aí passei seis meses, durante o primeiro dos quais pouca mudança houve nas minhas disposições. Todos o meus sentimento não passavam duma alternativa perpétua de ódio e de amor, de esperança ou de desespero, segundo a forma sob a qual Manon me acudia à mente. Umas vezes não via nela senão a mais amável de todas as mulheres, e ardia no desejo de a tornar a ver; outras, considerava-a como uma desleal e desprezível amante, e fazia mil juramentos de nunca mais a procurar senão para a punir.

Deram-me livros que serviram para tranqüilizar-me alguma cousa o espírito. Li, novamente, todos os meus autores prediletos. Adquiri um gosto infinito pelo estudo. O senhor verá, mais tarde, a utilidade que disto resultou para mim. A experiência que me dera o amor fez que eu percebesse muitos trechos de Horácio e Vergílio, que até então me eram obscuros. Fiz um comentário amoroso ao quarto livro da Eneida, que destino ainda hoje a dar a lume, e julgo que o público ficará satisfeito com a obra. — Mas ai! — dizia eu ao escrevê-lo — era um coração como o meu que a fiel Dido precisava.

Tiberge veio visitar-me um dia na minha prisão. Fiquei surpreendido do júbilo com que me abraçou. Ainda não tinha, contudo, provas da sua afeição que ma pudessem fazer olhar por outro prisma que não fosse uma simples amizade de colégio, tal qual ela se estabelece entre rapazes pouco mais ou menos da mesma idade. Achei-o tão mudado, depois dos cinco ou seis meses que passei sem o ver, que a sua presença e o tom das suas palavras infundiram-me respeito. Falou-me mais como um prudente conselheiro, do que como um amigo de escola. Lastimou o erro em que eu tinha caído e felicitou-me pela minha cura, que julgava muito avançada. Enfim, exortou-me a aproveitar deste erro da mocidade para bem julgar da vaidade dos prazeres mundanos. Olhei-o com espanto, o que ele notou.

— Meu caro amigo, — continuou Tiberge — não te digo nada que não seja solidamente verdadeiro, e de que eu não esteja convencido por um sério exame. Eu tinha tanta tendência para a voluptuosidade como tu; mas o céu havia-me concedido ao mesmo tempo o gosto da virtude. Comparei o fruto que poderia obter duma e outra, e não levei muito tempo em conhecer a diferença entre ambas. O socorro do céu veio em auxílio das minhas reflexões, e concebi, desde então, um tal desprezo pelo mundo que não podes imaginar a sua veemência. Adivinharás, por acaso, o que me retém na sociedade e que me impede de ir refugiar-me num ermo? É unicamente a terna amizade que tenho por ti. Conheço a excelência do teu coração: nada haverá de bom de que tu não sejas capaz. O veneno do prazer desviou-te do justo caminho. Que perda para a virtude! A tua fuga de Amiens penalizou-me tanto, que a datar de então ainda não tive um instante de prazer e alegria. Podes julgar a este respeito pelos passos que tenho dado.

Contou-me que, tendo visto que eu o havia enganado, fugindo com a minha amante, montara a cavalo para me seguir; mas que, tendo eu cinco ou seis horas de avanço sobre ele, impossível lhe fora o alcançar-me; que, no entanto, chegara a São Diniz meia hora depois da minha partida; que, certíssimo de que eu teria ficado em Paris, passou a procurar-me, inutilmente durante seis semanas; que corria todos os lugares, onde julgava poder encontrar-me e que uma noite, reconhecendo a minha amante no teatro, mas vestida com tão grande luxo que imaginou logo que ela devia tudo isso a algum novo protetor, tinha seguido a carruagem de Manon até casa e que soubera então por um criado que quem pagava toda a despesa era M. de B...

— Não satisfeito com isto, — continuou ele — voltei no dia seguinte para saber da própria boca de Manon o que era feito de ti. Despediu-me bruscamente, apenas me ouviu falar no teu nome, e fui obrigado a regressar à província sem nenhum esclarecimento mais. Foi aí que soube então da tua aventura e da consternação a que ela te reduziu, mas não quis ver-te sem estar certo de que te encontrarias mais tranqüilo.

— Então, viste Manon? — perguntei-lhe eu, suspirando. — És mais feliz do que eu, que estou condenado a não tornar a vê-la.

Tiberge repreendeu-me por este suspiro, que bem denotava ainda a minha fraqueza por essa mulher perdida. Lisonjeou-me ao mesmo tempo sobre a bondade do meu caráter e sobre as minhas inclinações, e isto de tal modo, que me fez nascer logo, nesta primeira visita, um forte desejo de renunciar como ele a todos os prazeres do mundo, para entrar no estado eclesiástico.

Encantou-me por tal modo esta idéia, que apenas me achei só não pensei em outra cousa. Lembrei-me do discurso do bispo de Amiens, que me tinha dado os mesmos conselhos, e os presságios felizes que havia formado a meu respeito, se eu me resolvesse a abraçar tal carreira. A crença também se mesclava às minhas considerações. Levarei uma vida santa e cristã, dizia eu comigo mesmo, ocupar-me-ei só do estudo e da religião, o que não me deixará pensar nos perigosos prazeres do amor. Desprezarei o que o geral dos homens admira; e como sinto perfeitamente que o meu coração não ama senão o que estima, terei assim menos inquietação do que desejos.

Sobre estes raciocínios formei de antemão um sistema de vida pacífico e solitário. Imaginava-me já numa casa retirada, com uma pequena mata e um regato de água pura ao fundo do jardim; uma biblioteca composta de livros escolhidos; um pequeno número de relações virtuosas e de bom senso; uma mesa boa, mas frugal e moderada. Juntava a isto um bom amigo em Paris, que me informasse das notícias do dia, menos para satisfazer a minha curiosidade, do que para encontrar um divertimento nas loucas agitações dos homens.

— Não serei então feliz? Não se realizarão todas as minhas aspirações?

É certo que este projeto lisonjeava bastante as minhas inclinações. Mas, ao fim dum plano tão prudente e sensato, sentia que o meu coração esperava ainda alguma cousa mais, e que para nada desejar na minha encantadora solidão, era forçoso ter Manon na minha companhia.

Entretanto, Tiberge, continuando a fazer-me freqüentes visitas para me fortalecer no desígnio que me havia inspirado, forçou-me a declarar as minhas intenções a meu pai. Ele confessou que, sendo seu intuito deixar aos filhos a livre escolha da sua carreira, de modo algum se oporia ao meu desígnio, não reservando para si mais do que o direito de me ajudar com os seus conselhos. E, na verdade, aconselhou-me ponderadamente, não com o fim de me fazer pôr de lado a minha resolução, mas antes ao contrário, para me levar a persistir nela conscientemente.

A abertura das aulas aproximava-se. Combinei com Tiberge que entraríamos ambos no seminário de São Sulpício; ele para acabar os seus estudos de teologia, e eu para começar os meus. O seu talento e aproveitamento, já bem conhecidos do prelado da diocese, fizeram-lhe obter um benefício considerável antes mesmo da nossa partida.

Meu pai julgando-me totalmente curado da minha violenta paixão deixou-me seguir sem a menor dificuldade da sua parte.

Chegámos a Paris. O hábito eclesiástico substituiu a cruz de Malta e o nome de padre des Grieux o de cavalheiro. Apliquei-me com tanto afã ao estudo, que em poucos meses fiz progressos extraordinários. Nele empregava eu uma grande parte da noite, e não perdia nem um instante do dia. A minha reputação formou-se, tão brilhantemente que já me felicitavam pelas dignidades que eu não podia deixar de obter; e sem que eu o solicitasse o meu nome foi inscrito na lista dos benefícios eclesiásticos. Os deveres religiosos não eram esquecidos; mostrava o maior fervor nos exercícios devotos. Tiberge estava encantado do que ele considerava como obra sua; e muitas vezes o vi chorar, aplaudindo-se daquilo a que chamava a minha conversão.

Que as resoluções humanas estejam sujeitas a modificarem-se, nunca a mim me admirou: uma paixão as faz nascer, uma outra as pode destruir; mas, quando penso na santidade das que me conduziram até São Sulpício, e na alegria interior que o céu me fazia sentir ao executá-las, fico horrorizado da facilidade com que eu as calquei aos pés. Se é certo que o socorro celeste é sempre igual à força das paixões, que me expliquem então como, ou por que funesto ascendente, podemos ser arrastados para longe do nosso dever num abrir e fechar de olhos, sem nos sentirmos capazes da menor resistência e sem o mais leve remorso.

Julgava-me totalmente liberto das fraquezas do amor. Parecia-me que prefiria a leitura duma página de Santo Agostinho, ou um quarto de hora de meditação cristã, a todos os prazeres dos sentidos, sem excetuar mesmo aqueles que Manon me poderia oferecer. Contudo, um instante desgraçado fez-me recair no precipício, e a minha queda foi tanto mais irreparável quanto, achando-me de repente no mesmo abismo que tinha saído, os meus novos desvarios levaram-me ainda mais para o fundo.

Tinha passado já um ano em Paris sem querer saber de Manon. Ao princípio, uma tal violência feita ao meu coração alguma cousa me custou, mas os conselhos sempre presentes de Tiberge e a minha própria reflexão fizeram-me triunfar. Os últimos meses tinham decorrido tão tranqüilos, que eu julgava já poder esquecer pra sempre essa encantadora, mas pérfida criatura. Aproximava-se o tempo em que eu devia sustentar um debate público na Escola de teologia; mandei pedir a muitas pessoas de consideração que se dignassem honrar o meu ato com a sua assistência. Por esta forma, o meu nome espalhou-se por todos os bairros de Paris: chegou mesmo aos ouvidos da minha infiel amante. Estou bem certo de que ela o não conheceu sob o título de padre; mas um resto de curiosidade, ou talvez mesmo o arrependimento de me ter traído (nunca pude saber qual destes dois sentimentos a guiara), fez-lhe tomar interesse por um nome tão semelhante ao meu. Veio, pois, à Sorbonna, juntamente com outras damas. Assistiu ao meu exercício, e sem dúvida que não teve grande trabalho para me reconhecer.

Não tive a menor notícia desta visita. Como se sabe, há nestes lugares gabinetes particulares para as senhoras, onde elas ficam ocultas por meio duma persiana. Voltei a São Sulpício coberto de glória e vitoriado por mil cumprimentos. Eram seis horas da tarde. Vieram avisar-me, um momento depois da minha chegada, de que uma dama perguntava por mim e queria ver-me.

Corri imediatamente ao locutório. Meu Deus! Que apariçãa surpreendente! Encontrei Manon. Era ela, mais amável e mais sedutora do que nunca a vira! Estava no seu décimo oitavo ano: os seus encantos ultrapassavam tudo quanto sobre eles se pudesse dizer. Que figura tão fina, tão doce, tão atraente! Era o próprio amor com forma humana! Toda ela me pareceu um perfeito enlevo.

Fiquei atônito diante dela e não podendo conjeturar qual seria o fim desta visita, esperei, de olhos baixos e tremendo, que ela se explicasse. A sua agitação foi, durante alguns segundos, igual à minha mas vendo que o meu silêncio continuava, levou as mãos aos olhos para ocultar as lágrimas. Disse-me, com voz tímida, que confessava a sua infidelidade, e que bem merecia o meu ódio, mas que se na verdade eu tinha sentido por ela algum amor, levei a crueldade ao requinte, deixando passar dois anos, sem procurar saber do seu destino, e que mostrava ainda uma crueldade maior, vendo-a tão consternada junto de mim sem lhe dizer uma só palavra. Não saberia exprimir a perturbação do meu espírito, ao ouvi-la.

Sentou-se; eu fiquei de pé, meio voltado, não ousando encará-la diretamente. Muitas vezes, comecei uma resposta que não conseguia acabar. Enfim, depois dum esforço supremo, exclamei dolorosamente:

— Pérfida Manon!

— Ah! Pérfida! Pérfida!... Repetiu-me, chorando amargamente, que não pretendia justificar a sua perfídia.

— Então, que queres? — interroguei eu ainda.

— Quero morrer, se o seu coração me não for restituído, porque sem ele não posso viver!

— Pede pois a minha vida, infiel! — respondi a meu turno derramando copiosas lágrimas, que em vão tentei impedir — a minha vida que é a única cousa que me resta para te dar, porque o meu coração nunca deixou de pertencer-te!

Apenas tinha acabado de dizer estas imprudentes palavras, Manon, levantando-se exaltadamente, correu a beijar-me. Subjugou-me com as mais apaixonadas carícias; chamou-me com todos os nomes que o amor inventa para exprimir as suas mais vivas ternuras. Eu correspondia-lhe ainda frouxamente.

Que fuga tão espantosa da situação tranqüila em que me encontrava para a agitação tumultuosa que sentia renascer! Estava aterrado. Tremia como acontece quando nos achamos de noite no meio duma vasta planície deserta e que nos sentimos assaltados por um pavor secreto, que não nos abandona, sem termos observado largo tempo o terreno, onde nos achamos.

Sentamo-nos um junto do outro. Estreitei as suas mãos nas minhas.

— Ah! Manon — disse, contemplando-a tristemente — nunca esperei a negra traição com que pagaste o meu amor. Bem fácil te foi enganar um coração que era todo teu e cuja felicidade se resumia em agradar-te e obedecer-te. Dize-me, agora, se encontraste um outro tão terno e tão submisso. Não, não; a natureza não fez dois corações da têmpera do meu. Dize-me ao menos se alguma vez de mim te lembraste com saudade. Que importância devo eu ligar a esse arrependimento que te trouxe hoje até junto de mim para me consolares? O que vejo é que cada vez estás mais encantadora; mas em nome de todos os desgostos que por ti tenho sofrido, promete-me, minha bela Manon, se me serás mais fiel para o futuro.

Respondeu-me com tocantes palavras dum sincero arrependimento, e jurou-me uma fidelidade eterna por meio de protestos tais, que me enterneceu a um ponto inexprimível.

— Minha querida Manon — continuei com uma mistura profana de expressões teológicas e amorosas, —: és em demasia adorável para uma mulher. Vou perder o meu futuro e a minha reputação por tua causa, bem o sei; leio o meu destino nos teus olhos encantadores; mas do que não serei eu capaz pelo teu amor? Os favores da fortuna não me interessam; a glória parece-me fumo; todos os meus projetos da vida eclesiástica não eram mais do que criações de louca imaginação; enfim, todos os gozos diferentes dos que espero alcançar com a tua posse, são para mim bem desprezíveis, pois que eles não prevaleceriam um só momento no meu coração, sob os teus olhos.

Ao passo, porém, que lhe prometia um geral esquecimento de todas as suas faltas, quis, contudo, ser informado de que modo se tinha deixado seduzir por M. de B... Manon contou-me que, tendo-a ele visto à janela, havia ficado loucamente enamorado, e fizera-lhe a sua declaração como arrematante geral das rendas do Estado, isto é, observando-lhe numa carta que a paga seria proporcional aos favores; que ela, a princípio, capitulara sem outro intuito que não fosse extorquir-lhe alguma soma considerável com que ambos pudéssemos viver comodamente, mas que, fascinada depois pelas mais deslumbrantes promessas, pouco a pouco fora cedendo; que eu, no entanto, bem deveria avaliar os seus remorsos pela dor com que a tinha visto acabrunhada na véspera da separação; que, apesar da opulência de que ele a rodeara, nunca havia tido um só momento de felicidade, não só porque, segundo disse Manon, não achava em M. de B... a delicadeza dos meus sentimentos e a amabilidade das minhas maneiras, mas porque, no meio do turbilhão dos prazeres que ele sem cessar lhe oferecia, havia no fundo do seu coração a imagem viva do nosso amor e os remorsos da sua infidelidade. Falou-me de Tiberge e da confusão extrema que a sua visita lhe causou.

— Uma espada que me cravassem no corpo não me teria doído tanto. Voltei-lhe as costas, pois que não poderia suportar a sua presença — declarou ela.

Manon continuou, dizendo-me por que forma havia sido sabedora da minha estada em Paris, da transformação da minha carreira, e dos meus exercícios na Sorbonna. Assegurou-me que tinha estado tão agitada durante o meu ato, que bem lhe custou não só a reter as lágrimas, mas mesmo os seus gemidos e os seus gritos, que mais duma vez estiveram para rebentar. Enfim, disse-me que tinha sido a última a sair daquele lugar para ocultar a sua comoção e a desordem das suas feições, e que não tendo escutado senão a voz do seu coração e a impetuosidade do seu desejo, correra direita ao Seminário na firme idéia daí morrer se eu não estivesse disposto a perdoar-lhe.

Onde se encontraria o bárbaro a quem tão vivo e sincero arrependimento não comovesse? Quanto a mim, senti, nesse momento, que teria sacrificado a Manon todos os bispados do mundo cristão. Perguntei-lhe qual o rumo que devíamos dar aos nossos destinos. Disse-me que era preciso sair imediatamente do Seminário e tratarmos de arranjar um lugar seguro, onde pudéssemos viver. Acedi a todas as suas vontades sem replicar. Manon entrou na sua carruagem para me ir esperar à esquina da rua; e eu, um momento depois, escapei-me do locutório, sem ser visto do porteiro. Subi para o lado dela, e no caminho entrámos numa loja de adeleiro. Tornei outra vez a ornar-me com os galões e a espada. Manon pagou a despesa, pois eu não tinha nem um soldo, e temendo que encontrasse algum obstáculo à minha saída de São Sulpício, nem ao menos quis que eu fosse à cela buscar o dinheiro que lá possuía. Os meus tesouros eram além disso medíocres, e Manon estava suficientemente rica com as liberalidades de M. de B... para desprezar aquilo que me fazia abandonar. Em casa do próprio adelo combinámos o que havíamos de fazer.

Para engrandecer a meus olhos ainda mais o sacrifício que ela me fazia de M. de B..., Manon resolveu não ter para com ele a menor atenção.

— Deixar-lhe-ei todos os seus móveis, são dele; mas levarei, porque é de justiça, todas as jóias e perto de sessenta mil francos que lhe arranquei durante dois anos. Não lhe dei nenhum poder sobre mim, portanto podemos viver sem receio em Paris, onde alugaremos uma casinha cômoda e elegante para passarmos a nossa vida.

Afirmei-lhe que se não havia perigo para ela, havia-o para mim, e bastante, porque cedo ou tarde não deixaria de ser reconhecido e continuamente havia de estar exposto à desgraça que já uma vez sobre mim pesara. Manon deu-me a entender que teria pena de deixar Paris, e eu temia tanto causar-lhe o menor desgosto, que afrontaria tudo, contanto que lhe agradasse; porém, achamos um meio termo, muito razoável, que foi o de alugarmos uma casa nos arrabaldes de Paris, donde nos seria fácil vir à cidade quando o prazer ou a necessidade a ela nos chamassem. Escolhemos Chaillot, que é pouco afastado. Manon voltou imediatamente a sua casa. Eu fiquei-a esperando junto à pequena porta do jardim das Tulherias.

Uma hora depois, estava de regresso, vindo numa carruagem de aluguel, com a criada que a servia, e algumas malas onde os seus vestidos e tudo quanto tinha de precioso estavam encerrados.

Não tardamos em chegar a Chaillot. Dormimos a primeira noite na estalagem para termos tempo de procurar uma casa que nos conviesse e que achamos no dia seguinte.

A minha felicidade pareceu-me, a princípio, estabelecida por forma inquebrantável. Manon era a doçura e a complacência em pessoa. Tinha para mim tão delicadas atenções que me cheguei a julgar perfeitamente indenizado de todos os meus sacrifícios. Como havíamos adquirido ambos uma certa experiência, não será para admirar que fizéssemos algumas reflexões sobre a estabilidade da nossa fortuna. Sessenta mil francos não era soma que pudesse durar tanto tempo como a nossa vida. Além disso, não estávamos dispostos a restringir a nossa despesa, pois não era de certo a economia a primeira virtude de Manon, nem tão pouco a minha.

Eis o plano que propus:

— Sessenta mil francos, — disse-lhe eu — podem sustentar-nos durante dez anos, pois nos bastam dois mil escudos anuais se continuarmos a viver em Chaillot. Aqui, passaremos uma vida pacífica e simples. A nossa única despesa extraordinária será a do custeio duma carruagem e o teatro. Estabeleceremos uma regra. Tu gostas da ópera: iremos lá duas vezes por semana. Quanto ao jogo, tomaremos nele cuidado por tal modo que as nossas perdas nunca excedam dois dobrões. É impossível que, no espaço de dez anos, não haja mudança na minha família; meu pai é idoso: pode morrer. Então, estaremos ao abrigo de todos os receios.

Esta linha de conduta não teria sido a ação mais louca da minha vida, se houvéssemos tido o bom senso de a seguirmos à risca. Mas, a nossa boa vontade não durou mais dum mês. Manon tinha a paixão dos prazeres e eu estava louco por ela. A todos os momentos, surgiam novas ocasiões de despesa, e longe de a censurar pelas somas que ela gastava com profusão, era eu o primeiro a adivinhar-lhe os pensamentos e a ir ao encontro dos seus menores desejos. A nossa habitação em Chaillot começou a ser para ela um encargo.

O inverno aproximava-se, todos voltavam para a cidade e o campo ficava deserto. Manon propôs-me o regresso a Paris. Não acedi à proposta; mas para a satisfazer em alguma cousa disse-lhe que podíamos alugar na capital um quarto mobilado para passarmos as noites, quando acontecesse demorarmo-nos demasiadamente nas visitas que muitas vezes fazíamos durante a semana, pois o incômodo de voltarmos na mesma noite e fora de horas para Chaillot era o pretexto que ela invocava para deixar a casa. Assim, ficámos com duas habitações: uma urbana, outra rural. Esta mudança trouxe rapidamente a desordem aos nossos negócios, sendo a origem de duas aventuras que nos perderam para sempre.

Manon tinha um irmão que era soldado da guarda real; desgraçadamente, porém, deu-se a circunstância de morar na rua que nós habitávamos em Paris. Reconheceu sua irmã, vendo-a um dia de manhã à janela, e correu imediatamente à nossa casa. Era um homem brutal e sem os mais leves princípios de honra. Entrou no nosso quarto, praguejando horrivelmente e, como conhecia parte das aventuras de sua irmã, acabrunhou-a com injúrias e acusações.

Eu tinha saído momentos antes, o que sem dúvida alguma foi uma grande felicidade quer para ele, quer para mim, que não estava disposto a sofrer o mínimo insulto. Quando voltei para casa, já ele tinha saído. A tristeza de Manon denunciou-me que na minha ausência alguma cousa extraordinária se havia passado.

Contou-me a cena vergonhosa que acabava de ter com seu irmão e as ameaças que ele lhe fizera.

Ressenti-me por tal modo com a afronta, que correria a vingar-me imediatamente se as lágrimas da pobre rapariga não me retivessem a seu lado.

Enquanto eu conversava com ela nesta aventura, o soldado da guarda real entrou no aposento onde estávamos, sem mesmo se fazer anunciar. Decerto, não o receberia tão polidamente como o fiz se o tivesse conhecido; mas, tendo-nos cumprimentado com ar risonho, teve ensejo de dizer a Manon que lhe vinha pedir desculpa do seu arrebatamento, pois a julgara entregue à vida dissoluta e fora esta opinião que excitara a sua cólera; mas que, tendo-se informado de quem eu era com um dos nossos criados, soubera a meu respeito cousas tão favoráveis que lhe fizeram nascer o desejo de viver de bem conosco.

Ainda que esta informação, que obtivera dum dos meus lacaios, alguma cousa tivesse de ofensiva e de bizarra, recebi os seus cumprimentos com dignidade. Pensei que, por este modo, causaria prazer a Manon. Ela parecia encantada com o fato de seu irmão estar pronto a reconciliar-se.

Convidamo-lo para jantar, ao que ele anuiu prontamente.

Em poucos momentos, tomou tanta confiança, que, tendo-nos ouvido falar da nossa volta para Chaillot, quis absolutamente acompanhar-nos, e forçoso nos foi dar-lhe um lugar na nossa carruagem. Foi uma espécie de tomada de posse, porque bem depressa se costumou a visitar-nos e com tanto gosto que fez da nossa casa a sua, e tornou-se também senhor de tudo quanto nos pertencia. A mim chamava-me seu irmão, e sob pretexto da liberdade fraternal, quase trouxe todos os seus amigos para a nossa casa de Chaillot, onde os banqueteava à nossa custa. Fez que pagássemos todas as suas dívidas. Eu fechava os olhos a tão grande desaforo para não desagradar a Manon, a ponto mesmo de fingir que ignorava que seu irmão lhe extorquia continuamente somas consideráveis. É verdade que, sendo um jogador vicioso, tinha a delicadeza de lhe pagar uma parte do dinheiro que lhe pedia quando a fortuna o favorecia; mas, os nossos recursos eram medíocres para darem azo por muito tempo a despesas tão pouco moderadas.

Estava a ponto de ter com ele uma explicação categórica para nos libertarmos das suas exigências, quando um funesto incidente veio poupar-me este desgosto, mas causando-nos outro maior, que nos arruinou completamente.

Tínhamos ficado um dia em Paris, para aí dormirmos, como tantas vezes nos acontecia. A criada, que ficava em Chaillot, veio avisar-me no dia seguinte, logo de manhã, que tinha havido fogo em casa durante a noite e que bastante trabalho houvera para o extinguir.

Perguntei-lhe se a nossa mobília havia sofrido algum dano. Respondeu-me que tinha sido tal a desordem com a multidão dos estranhos que foram em socorro, que ela nada podia afirmar ao certo. Tremi pelo nosso dinheiro que estava guardado num pequeno cofre. Corri imediatamente a Chaillot. Trabalho baldado! O cofre tinha desaparecido!

Foi então que conheci que se pode amar o dinheiro sem avareza.

Esta perda causou-me uma dor tão profunda, que cuidei perder também o juízo. Rapidamente compreendi a que novas desgraças tornava a ficar exposto. Conhecia Manon; tinha aprendido em demasia que por muito fiel e delicada que me fosse durante a fortuna, era preciso não contar com ela na miséria. Amava ela muito a abastança e os prazeres para que mos sacrificasse.

— Perdê-la-ei! — exclamei comigo mesmo. — Desgraçado cavalheiro, vais ficar ainda uma vez sem aquela que amas.

Esta suspeita perturbou-me por tal forma que eu pensei por alguns momentos em acabar com todos os meus males, suícidando-me.

No entanto, ainda conservei a presença de espírito suficiente para examinar se nenhum recurso me restava para o futuro. O céu fez-me nascer uma idéia que diminuiu de certo modo o meu desespero: julguei que me não seria impossível ocultar esta perda a Manon, e que pelo engenho ou por qualquer favor do acaso, poderia prover às nossas necessidades, sem que ela sentisse a menor falta.

— Julguei — dizia comigo mesmo para me consolar — que vinte mil escudos nos bastariam durante dez anos. Suponhamos que os dez anos estão decorridos, e que nenhuma das mudanças que eu esperava na minha família ocorreu. Que partido tomaria? — Não sei, mas o que teria feito neste caso quem mo impede de fazê-lo agora? Quantas pessoas vivem em Paris que não têm nem a minha instrução nem as minhas qualidades naturais, e que no entanto angariam os meios de subsistência com o seu próprio esforço!

A Providência — acrescentei ainda, reflexionando nos diferentes estados da vida — não dispôs tudo tão sabiamente? A maior parte dos grandes e dos ricos não passam duns néscios. Isto é claro para quem conhece um pouco o mundo. Ora, nesta distribuição há uma justiça admirável. Se juntassem o talento à riqueza seriam demasiadamente felizes, e os restantes homens demasiadamente miseráveis. As qualidades corporais e espirituais são concedidas a estes últimos para se tirarem da miséria e da pobreza. Uns tomam parte na riqueza dos grandes, contribuindo para os seus prazeres, e enganam-os; outros servem para instruí-los e procuram fazer deles alguma cousa, o que na verdade é bem raro conseguirem, mas não é esse o fim da sabedoria divina. Colherão sempre um fruto dos seus trabalhos, que é o de viverem à custa daqueles a quem instruem; e de qualquer modo que se tome a questão, sempre acharemos um excelente rendimento para os pequenos, na toleima e ignorância dos ricos e dos grandes.

Estas considerações acalmaram-me alguma cousa. Resolvi primeiro ir consultar Lescaut, o irmão de Manon, que conhecia perfeitamente Paris e de quem tive bastante ocasiões de observar que o seu dinheiro não provinha, nem dos seus bens, nem tão pouco do seu soldo. Apenas me restavam vinte dobrões que milagrosamente tinha metido na algibeira. Mostrei-lhe o estado das minhas finanças, explicando-lhe o meu infortúnio e comunicando-lhe os meus receios. Ao mesmo tempo, pedi-lhe que me dissesse se haveria para mim um partido a escolher, entre o de morrer à fome ou o de fazer saltar os miolos de desespero. Respondeu-me que o suicídio era o recurso dos tolos, e que, quanto a morrer de fome, só quem assim o queria assim o tinha: que dependia de mim examinar do que seria capaz, e que em todo o caso contasse com o seu auxílio e conselhos em todas as minhas empresas.

— Isso, na verdade, é muito vago, senhor Lescaut — respondi eu. — A minha situação pede remédio mais pronto e enérgico. Que hei-de eu dizer a Manon?

— A propósito de Manon — atalhou ele: — Que é que lhe causa tanto receio? Não tem na beleza e na figura da minha irmã um meio de pôr termo a todas as dificuldades quando assim o desejar? Uma rapariga como ela devia sustentar-se a si, a mim e ao senhor.

Lescaut cortou-me a resposta que tanta infâmia merecia, para continuar, dizendo-me que antes da noite me garantia mil escudos a dividir entre nós, se eu quisesse seguir o seu conselho porque conhecia um homem tão liberal no capítulo dos prazeres, que estava bem certo de que nada lhe custaria a dar esses mil escudos para obter os favores duma mulher como Manon.

Interrompí-o nesta altura.

— Tinha-o em melhor conceito — respondi eu; — parecia-me que o motivo que o senhor teve para me conceder a sua amizade, era um sentimento totalmente oposto àquele que agora patenteia.

Confessou-me, imprudentemente, que sempre tinha pensado do mesmo modo, e que tendo sua irmã violado uma vez as leis de seu sexo, não obstante havê-lo feito com o homem que mais amava não se havia contudo reconciliado com ela, senão na firme esperança de tirar o maior partido da sua repreensível conduta.

Só então é que pude julgar que ambos havíamos sido logrados pelo senhor Lescaut.

Por muito má impressão que tais palavras me causassem, a imediata necessidade que eu tinha do seu auxílio forçou-me a responder, rindo-me, que um tal conselho era o recurso a que apenas se recorreria na derradeira extremidade. Pedi-lhe que me indicasse um outro caminho.

Propôs-me, então, que me aproveitasse da minha juventude e da figura elegante com que a natureza me havia dotado, para alcançar relações amorosas com alguma velha dama generosa.

Este expediente, que me teria levado a ser infiel a Manon, não teve ainda o meu voto.

Falei do jogo como do meio mais fácil e mais conveniente à minha situação.

Respondeu-me que o jogo, conquanto fosse um bom recurso, necessitava ser estudado; que pretender jogar, confiando apenas nas esperanças usuais do ganho, era o meio de completar a minha ruína; que procurar exercê-lo só e sem auxílio, usando dos pequenos meios que um homem hábil emprega para corrigir a falta de sorte, seria ocupação demasiadamente perigosa; que havia um terceiro meio, e era o da sociedade, mas que a minha juventude fazia-lhe recear que os senhores confederados não me julgassem ainda com as qualidades necessárias e próprias para entrar na liga. No entanto, prometeu-me os seus bons ofícios junto deles; e — o que eu nunca teria esperado de tal indivíduo — ofereceu-me dinheiro para quando me achasse totalmente desprovido dele. O único favor que, porém, lhe pedi, no momento, foi o de não informar Manon dos precalços que tivera e do objetivo da nossa conversa.

Saí de sua casa muito menos satisfeito do que quando para lá entrei; arrependi-me até de lhe ter confiado o meu segredo. Ele não tinha feito em meu auxílio nada que eu mesmo não pudesse obter sem a minha indiscreção; e temia muito que ele faltasse à promessa de nada dizer a Manon.

Tinha, também, motivo para recear, atendendo à confissão dos seus sentimentos, que Lescaut estivesse resolvido a tirar partido de sua irmã segundo as suas palavras, arrebatando-ma, ou pelo menos aconselhando-a a deixar-me, para tomar novas relações com outro amante mais rico e mais feliz.

Sobre isto fiz mil reflexões, que não tiveram outro resultado senão o de atormentar-me e renovar o desespero que de manhã me invadira.

Assaltaram-me, muitas vezes, tentações de escrever a meu pai, fingindo uma nova conversão, a fim de obter dele algum dinheiro; mas vinha logo a lembrança de que, toda a sua bondade, me tinha conservado preso seis meses numa estreita cadeia, pela minha primeira falta, e bem certo estava de que, depois dum escândalo tal como o que a minha fugida de São Sulpício deveria ter produzido tratar-me-ia ainda mais rigorosamente.

Enfim, esta confusão de pensamentos trouxe-me finalmente uma idéia que num instante me apaziguou, admirando-me eu de que há mais tempo não me tivesse lembrado dela: foi a de recorrer ao meu amigo Tiberge, no qual bem certo estava de encontrar sempre o mesmo zelo e amizade.

Nada há tão belo, nada faz mais honra à virtude do que a confiança com que nos dirigimos às pessoas, cuja probidade é geralmente reconhecida. Sente-se que não há risco a correr: e se nem sempre as achamos em circunstâncias de nos prestarem auxílio, temos a convicção de que ao menos encontraremos a bondade e a compaixão.

Olhei como prova da proteção do céu o ter-me lembrado do Tiberge tão a propósito, e resolvi procurar a maneira de o ver antes da noite. Voltei imediatamente para casa para lhe escrever um bilhete e indicar-lhe um lugar próprio para a nossa entrevista. Pedi-lhe silêncio e discreção, como um dos mais importantes serviços que me poderia prestar na situação em que me encontrava.

A alegria que a esperança de o ver me inspirava d’algum modo velou os sinais de pesar que Manon não poderia deixar de ler em meu rosto. Falei-lhe da nossa desgraça de Chaillot, como duma bagatela que de modo algum a devia inquietar: e sendo Paris a cidade do mundo, onde ela se achava com mais prazer, em nada a contrariou o ouvir-me dizer que ficaríamos aí até que se reparassem em Chaillot alguns ligeiros estragos do incêndio.

Uma hora depois, recebi a resposta de Tiberge, prometendo ir ao lugar que eu lhe designava. Esperei com a maior impaciência por esse momento, ainda que cheio de vergonha por ter que me apresentar diante dum amigo, cuja presença era já uma acusação de todos os meus desvarios; mas a opinião que formava da bondade de coração de Tiberge e o meu amor por Manon deram-me força e audácia.

Tinha-lhe pedido que fosse ao jardim do Palácio Real. Quando cheguei, já ele lá estava, e apenas me avistou correu a abraçar-me, apertando-me muito tempo entre os seus braços e molhando-me o rosto com as suas lágrimas.

Disse-lhe que me apresentava na sua presença envergonhado e cheio de remorsos por motivo do meu mau comportamento e ingratidão; que a primeira cousa que lhe suplicava era que me dissesse se ainda podia considerá-lo como amigo, tendo merecido tão justamente perder a sua estima e a sua afeição.

Respondeu-me, no tom mais terno e amável, que nada seria capaz de o fazer renunciar a esta qualidade; que as minhas próprias desventuras e, se eu lho permitia as minhas faltas e erros, tinham duplicado a sua ternura para comigo, mas ternura amargurada pelo mais profundo pesar precisamente como se deve sentir por quem nos é caro e que vemos correr à sua perda sem lhe podermos prestar socorro.

Sentamo-nos num banco.

— Ai de mim — continuei eu com um suspiro partido do fundo do coração — a tua paixão deve ser enorme, se me asseguras que é igual às minhas desgraças e loucuras. Tenho pejo de tas patentear, pois que a causa delas não é gloriosa; mas os efeitos são por tal modo tristes, que não há precisão de ser-se tão meu amigo como tu és para se ficar comovido.

Pediu-me como sinal de amizade que lhe contasse, sem o menor disfarce, tudo quanto me tinha acontecido depois da minha fuga de São Sulpício. Satisfi-lo, e, longe de atenuar a mais leve cousa da verdade, ou de diminuir o vulto aos desvarios, para os tornar mais desculpávéis, falei-lhe da minha paixão com toda a eloqüência que ela me inspirava. Representei-lha como um desses reveses particulares ditados pelo destino inflexível, que cavam a ruína dum ser miserável, e dos quais é tão impossível defender-se a virtude como o é ao bom senso evitá-los. Fiz-lhe uma patética pintura dos meus desgostos, do meu desassossego, da desesperação em que me achava duas horas antes de o ver, e daquela em que ia cair, se os meus amigos me abandonassem tão implacavelmente como a sorte; enfim, por tal forma enterneci o bom Tiberge que decerto ele estava tão acabrunhado e compadecido dos meus sofrimentos como eu o estava pelo sentimento dos meus próprios males.

Não se cansava de me abraçar, exortando-me a que tivesse coragem e resignação; mas, como ele baseava os seus conselhos na minha separação de Manon, fiz-lhe compreender claramente que essa separação era o que eu olhava como o maior dos meus infortúnios, e que estava disposto não só a sofrer a maior crueldade da miséria, mas até a mais dura morte, que preferia a um remédio para mais insuportável do que todos os meus infortúnios.

— Explica-te, então — disse-me ele — em que te posso eu valer, se te revoltas contra todas as minhas propostas?

Não me atrevi a dizer-lhe que era da sua bolsa que tinha necessidade; mas, Tiberge compreendeu-o, por fim, e ficou algum tempo calado e pensativo, como quem hesitava na resolução a tomar.

— Não julgues, — tornou-me ele — que o meu devaneio provenha de resfriamento de zelo e amizade; mas em que alternativa me colocas tu, se tenho necessidade ou de recusar o único auxílio que tu aceites ou de faltar ao meu dever concedendo-to? Pois não será tomar parte nos teus desatinos dar-te meios para os continuares? No entanto, — continuou Tiberge após momentos de reflexão — imagino que é provavelmente o estado violento em que a indigência te lança, que não te deixa escolher a melhor vereda a trilhares. Para que se avalie a virtude e o bom senso é indispensável a tranqüilidade do espírito.

Vou tratar de alcançar-te algum dinheiro. Permite-me, porém, meu caro cavalheiro — ajuntou Tiberge abraçando-me — que te imponha só uma condição: é a de me dizeres onde moras, e que sofras com paciência os meus sermões para de novo te conduzir ao caminho da virtude, porque sei que a amas, e da qual só te afasta o ardor das paixões.

Concedi-lhe do melhor grado o que ele desejava, pedindo-lhe que lastimasse a malignidade da minha estrela, que tão mal me fazia aproveitar os conselhos de um amigo virtuoso. Levou-me, depois, a casa de um banqueiro seu conhecido que me adiantou, sob a responsabilidade de Tiberge, cem dobrões, pois, como já disse, o meu amigo não era rico e não possuía aquela soma. O benefício eclesiástico de Tiberge valia mil escudos, mas como era o primeiro ano que o possuía, ainda não havia recebido o seu rendimento, e era sobre o fruto futuro dos seus trabalhos que ele me fazia este empréstimo.

Senti todo o preço da sua generosidade. Fiquei comovido a ponto de deplorar a cegueira dum amor fatal, que me obrigava a postergar todos os deveres. Durante alguns momentos, teve a virtude bastante força para se erguer altiva contra a minha paixão e eu senti, pelo menos, neste instante luminoso, a vergonha e a indignidade do meu procedimento; mas, infelizmente esta luta durou pouco. Um olhar de Manon ter-me-ia feito precipitar do céu; e admirei-me, ao achar-me de novo junto dela, de que pudesse ter considerado vergonhosa uma ternura tão justa por uma criatura tão encantadora.

Manon tinha um caráter extraordinário. Nunca mulher alguma, na sua posição, teve menos amor do que ela ao dinheiro; mas, não podia estar tranqüila por muito tempo, quando o receio de que ele lhe faltasse a vinha atormentar. Eram os passatempos e os prazeres as suas primeiras necessidades; nunca teria gasto um soldo se se pudesse divertir sem o despender. Nem sequer se informaria do estado da nossa fortuna, contanto que pudesse passar os dias agradavelmente; de modo que, não sendo excessivamente inclinada ao jogo, nem capaz de deixar-se deslumbrar pelo fausto das grandes despesas, era bem fácil satisfazê-la, oferecendo-lhe diariamente diversões de que ela gostasse. Era tão necessário para Manon viver assim ocupada pelo prazer que não havia outra maneira de dominar o seu humor e as suas tendências. Ainda que tivesse por mim um terno amor e eu fosse o único homem que pudesse fazer-lhe sentir as doçuras desse afeto, estava seguro de que a sua ternura não seria bastante forte para subsistir contra certos receios. Ter-me-ia preferido ao mundo inteiro, com uma fortuna medíocre; mas não duvidava de que Manon me abandonasse por algum novo B..., logo que me não restassem mais do que a constância e a ternura para lhe oferecer.

Resolvi, pois, regular a minha despesa particular por tal modo que estivesse sempre em estado de prover às suas exigências, preferindo antes privar-me das cousas indispensáveis a faltar-lhe a ela com o supérfluo. A carruagem era o que me dava mais cuidado, pois não tinha meios de poder sustentar um cocheiro e cavalos.

Patenteei todos os meus temores ao senhor Lescaut, não lhe ocultando que tinha recebido cem dobrões dum amigo. De novo ele tornou-me a repetir que, se quisesse tentar os azares do jogo, não desesperava de que, sacrificando uma centena de francos para fazer a boca doce aos seus associados, eu pudesse ser admitido por sua interferência na Liga dos jogadores. Por maior que fosse a minha repugnância em enganar alguém, deixei-me arrastar por uma cruel penúria.

Lescaut apresentou-me, nessa mesma noite, como um dos seus parentes, acrescentando que eu escava tanto mais disposto a conseguir os meus fins, quanto é certo que tinha necessidade dos maiores favores da fortuna. Contudo, para fazer crer que a minha miséria não era a de um pobretão, disse-lhes que eu estava disposto a dar-lhe de cear. O oferecimento foi aceito com entusiasmo e tratei-os magnificamente. Falaram muito tempo da gentileza da minha figura e das minhas felizes disposições. Pretendiam que havia muito a esperar de mim, pois que tendo eu na fisionomia o que quer que fosse que denotava um homem honrado, ninguém desconfiaria dos meus artifícios. Enfim, agradeceram ao senhor Lescaut o ter recrutado para a ordem um noviço com o meu mérito, e encarregaram um dos membros dessa ordem de me fornecer por alguns dias as instruções essenciais.

O principal teatro das minhas explorações devia ser o hotel da Transilvânia, onde havia uma banca de faraó (l) e vários outros jogos de cartas e de dados. Esta espelunca pertencia ao príncipe de R... que então habitava em Clugny, sendo a maior parte dos seus servos filiados na nossa associação.

Afirmá-lo-ei para minha vergonha! Aproveitei-me em pouco tempo das lições do meu instrutor. Adquiri, sobretudo, imensa habilidade em empalmar as cartas; com o auxílio dum par de punhos, fazia as escamoteações com tanta destreza que enganava os olhos mais perspicazes, e arruinei, sem ostentação, muitos jogadores honestos. Esta perfeição extraordinária ativou tanto o progresso da minha fortuna que me achei em poucas semanas na posse de somas consideráveis além daquelas que de boa fé partilhava com os meus associados.

Então, não receei descobrir a Manon a nossa perda de Chaillot, e para a consolar, ao dar-lhe esta desagradável notícia, aluguei uma casa mobilada, para onde fomos viver com opulência e segurança.

Tiberge, durante este intervalo de tempo, não havia deixado de me visitar, freqüentes vezes. A sua moral e os seus sermões eram intermináveis. A toda a hora, lembrava-me o mal que eu fazia à minha conciência, à minha honra e à minha fortuna. Recebia os seus conselhos com amizade, e ainda que não tivesse a menor tenção de os seguir, agradecia-lhe interiormente as suas palavras, porque bem conhecia o sentimento que as ditava. Algumas vezes, motejei-o risonhamente mesmo na presença de Manon, exortando-o a não ser mais escrupuloso do que um grande número de bispos e outros padres, que sabem perfeitamente conciliar uma amante com um benefício.

— Vê — continuava eu, mostrando-lhe Manon, — e dize-me se há erros que uma tão bela causa não justifique.

Tiberge enchia-se de paciência e até mesmo a levou muito longe; mas, quando viu que as minhas riquezas iam em aumento e que não só lhe tinha pago os seus cem dobrões como além disso tinha alugado uma nova casa e duplicado a minha despesa, engolfando-me cada vez mais nos prazeres, mudou inteiramente de tom e de maneiras. Queixava-se da dureza do meu coração; ameaçava-me com os castigos do céu, predizendo-me uma parte das desgraças que infelizmente não tardaram a abater-se sobre mim.

— É impossível que as riquezas que servem para alimentar os teus desatinos sejam adquiridas legitimamente — disse ele. — Assim como as alcançaste, do mesmo modo as perderás. A punição mais terrível que Deus poderia dar-te seria a de deixar-te gozá-las tranqüilamente. Todos os meus conselhos, — juntava ainda Tiberge — têm sido inúteis: e bem prevejo que não tardará que eles se tornem importunos. Adeus, ingrato e fraco amigo. Possam os teus criminosos prazeres desvanecer-se como uma sombra! Possam a tua fortuna e o teu dinheiro naufragar sem recurso, e tu, ficando só e nu, sentires a vaidade dos bens que tão loucamente te embriagam! Será então que me hás-de encontrar pronto a estimar-te e a servir-te: mas rompo hoje todas as ligações contigo, e detesto a vida que levas!

Foi mesmo no meu quarto e diante de Manon que ele fez esta arenga apostólica. Levantou-se para se retirar. Quis retê-lo, mas Manon impediu-me, dizendo que Tiberge era um doido que forçoso seria abandonar.

O seu discurso, porém, não deixou de me impressionar. Noto as diversas ocasiões em que o meu coração se sentiu inclinado ao bem, pois que é a estas recordações que eu devo uma parte da força moral que tive nas mais desgraçadas circunstâncias de minha vida. As carícias de Manon dissiparam em breve o desgosto que esta cena me causou e continuámos na nossa vida de gozo e de amor.

O aumento das nossas riquezas redobrou a nossa afeição. Vênus e Pluto nunca tiveram escravos mais felizes. Meu Deus! para que chamaram ao mundo um lugar de misérias, quando nele se podem fruir tão encantadoras delícias! Pena é serem bem pouco duradouras. Que outra felicidade ambicionariam os mortais, se elas fossem permanentes? A minha ventura teve, pois, a sorte comum: a de durar pouco e de ser seguida de amargos pesares.

Tinha ganho somas tão avultadas ao jogo que pensei finalmente em colocar parte do meu dinheiro. Os meus criados não ignoravam os meus êxitos, sobretudo o de quarto e a aia de Manon, diante dos quais muitas vezes conversámos sem desconfiança. Esta rapariga era linda e o meu criado particular estava dela enamorado. Ambos tinham de tratar com amos jovens que imaginaram poder enganar facilmente. Conceberam esse desígnio, e executaram-no tão desgraçadamente para nós que nos deixaram numa situação de que nunca mais foi possível sairmos.

Uma noite fomos cear com Lescaut; já passava da meia hora quando voltamos para casa. Eu chamei o meu criado, Manon a sua aia: nem um nem outro apareceram. Disseram-nos que não tinham sido vistos depois das oito horas e que ambos saíram depois de haverem feito transportar algumas caixas, isto segundo as ordens que diziam ter recebido de mim.

Pressenti uma parte da verdade, mas não formei a esse respeito uma idéia que não fosse excedida pelo que descobri ao entrar no meu quarto. A fechadura do meu gabinete fora forçada e o dinheiro roubado com toda a minha roupa. Enquanto refletia neste incidente, Manon, toda assustada, veio dizer-me que a mesma pilhagem havia sido feita nos seus aposentos.

O golpe pareceu-me tão cruel que só um esforço extraordinário de razão é que impediu que eu me entregasse desatinamente aos gritos e lágrimas. O temor de comunicar o meu desespero a Manon fez que eu afetasse uma aparente tranqüilidade. Disse-lhe, rindo, que me vingaria em algum pato no hotel da Transilvânia; no entanto, ela pareceu-me tão sensível à nossa desgraça, que a sua tristeza teve maior força para a afligir do que a minha alegria fingida para a impedir de sofrer.

— Estamos perdidos! — exclamou, com as lágrimas nos olhos.

As minhas próprias lágrimas traíam o meu desespero e a minha consternação. Com efeito, estávamos por tal modo arruinados que nem tínhamos uma camisa!

Resolvi mandar chamar imediatamente Lescaut. Aconselhou-me a que fosse, mesmo àquela hora, a casa do intendente geral da polícia e do preboste de Paris. Fui, para maior desgraça minha, porque, além de que os passos que dei e os que obriguei a dar a estes dois oficiais de polícia, não surtiram resultado algum, dei a Lescaut o ensejo de conversar com sua irmã e de inspirar-lhe, na minha ausência, uma horrível resolução.

Falou-lhe de G... M..., velho libertino que pagava com mão larga os prazeres sensuais, e fez-lhe uma pintura tão lisonjeira das vantagens que Manon teria em se amancebar com ele, que perturbada como estava pelo nosso infortúnio, prontamente acedeu ao que seu irmão lhe insinuava.

Este “honesto” negócio foi concluído antes do meu regresso, e a execução ficou retardada para o dia seguinte, isto para que Lescaut pudesse primeiro prevenir G... de M...

Surpreendi-o, esperando-me ainda em minha casa: Manon deitara-se, tendo dado ordem ao criado para me dizer que, estando fatigada, me pedia que a deixasse só durante aquela noite. Lescaut saiu depois de ter-me oferecido alguns dobrões, que aceitei.

Eram perto das quatro horas da madrugada, quando me deitei, e como por muito tempo estive pensando nos meios de recuperar a minha fortuna, adormeci tão tarde que não pude acordar serião perto do meio-dia.

Levantei-me, rapidamente, para ir saber da saúde de Manon; disseram-me que ela havia saído uma hora antes com seu irmão, que a viera buscar numa carruagem de aluguel. Ainda que este passeio dado com Lescaut me parecesse misterioso, esforcei-me por suspender as minhas suspeitas. Deixei decorrer algumas horas, que passei a ler. Por fim, não podendo já dominar a minha inquietação, passeava agitadamente por toda a casa. Foi então que vi no quarto de Manon uma carta fechada, que estava em cima da mesa. Pelo sobrescrito, vi ser para mim; a letra era de Manon. Abri a carta, tremendo convulsivamente; era concebida nos termos seguintes:

“Juro-te, meu caro, que ainda és o ídolo do meu coração e que não há no mundo ninguém que eu possa amar tanto como te amo a ti; mas não vês, meu pobre querido bem, que, no estado a que ficamos reduzidos, a felicidade seria a mais tola das virtudes?

“Julgas que se possa ser terna, quando a miséria nos bate à porta? A fome seria capaz de causar-me algum equívoco fatal; renderia qualquer dia o derradeiro suspiro pensando que ainda suspirava de amor. Adoro-te, fica certo disso; mas deixa-me por algum tempo o encargo de tornar a restabelecer a nossa fortuna. Desgraçado do que me cair nas mãos! Trabalharei para tornar rico e feliz o meu amor. Meu irmão te dará notícias de Manon, e dir-te-á quanto ela chorou ao ver-se obrigada a deixar-te”.

Depois da leitura desta carta, fiquei num estado difícil de descrever, porque ainda hoje ignoro quais os sentimentos que, então, me dominavam. Foi uma dessas situações únicas, nunca sentida até então: não seria possível narrá-la a outra pessoa porque ninguém seria capaz de formar sobre ela uma idéia exata; e sabe Deus quanto custa explicá-la a nós mesmos, porque, sendo única no seu gênero, a memória não a liga ou pode comparar com outras quaisquer nem a aproxima de nenhum sentimento conhecido.

No entanto, fosse qual fosse a natureza das emoções que então me agitavam, devia haver nelas uma mescla de dor e de despeito, de ciúme e vergonha. Bem feliz teria sido se nelas não tivesse entrado ainda mais amor!

— Manon ama-me, quero acreditá-lo; mas não seria mister, — exclamava eu — que ela fosse um monstro para me odiar? Que maiores direitos se podem ter sobre um coração do que eu sobre o dela? Que me resta a fazer por Manon depois de tudo o que lhe sacrifiquei? E, no entanto, abandona-me! E a ingrata julga-se ao abrigo das minhas argüições só com o dizer-me que não deixa de amar-me! Tem medo da fome!... Deus do amor, que grosseria de sentimentos e como é triste a retribuição que dá à minha delicadeza! Só eu não temi essa fome — eu, que me exponho a ela voluntariamente por Manon, renunciando à minha fortuna e às doçuras do lar paterno; eu que me coíbo até do necessário para satisfazer as suas menores vontades e caprichos! Adora-me, diz ela. Se me adorasses, ingrata, bem sei de quem seguirias os conselhos e não me terias abandonado sem ao menos me dizeres adeus! É a mim a quem se deve perguntar qual é a dor cruel que se sente, ao separarmo-nos da pessoa que se adora. É preciso perder-se o juízo para que alguém voluntariamente se exponha a essa dor.

As minhas lamentações foram interrompidas por uma visita que, decerto, eu não esperava: — a de Lescaut.

— Vedugo — disse eu, levando a mão ao punho da espada — onde está Manon? Que fizeste dela?

Este movimento assustou-o. Respondeu-me que, se era assim que eu o recebia, quando vinha dar-me conta do serviço mais considerável que me poderia ter prestado, se retirava e nunca mais tornaria a pôr os pés em minha casa.

Corri à porta do quarto, que fechei cuidadosamente.

— Não imagines — repliquei, voltando-me para ele — que podes mais uma vez zombar de mim, enganando-me com as tuas histórias: defende a tua vida, ou dize-me onde é que está Manon.

— Apre, que é impaciente! — atalhou Lescaut. — É esse o único motivo que me traz aqui. Venho anunciar-lhe uma felicidade com que, decerto, o cavalheiro não contava e reconhecerá certamente, depois de ouvir-me, que me é devedor de grandes obrigações.

Quis ser esclarecido imediatamente.

Contou-me que Manon, não podendo conformar-se com a idéia de que havia de chegar um dia em que ela não tivesse de comer e, sobretudo, não podendo conciliar consigo mesma a necessidade em que se achava de restringir as nossas despesas e modo de vida, tinha-lhe pedido que a apresentasse a G. de M... que passava por homem generoso.

Lescaut não teve pejo algum em me confessar que o conselho fora dele e que também fora ele quem preparara as cousas para esta traição!

— Levei-a a casa de G... de M... — continuou Lescaut — hoje de manhã, e este digno homem ficou por tal modo encantado com a sua beleza que a convidou logo a ir fazer-lhe companhia por algum tempo na sua casa de campo, onde ele foi passar vários dias. Eu — acrescentou Lescaut — compreendendo num relance quanto este arranjo deveria ser vantajoso para o senhor, dei-lhe a entender que Manon havia sofrido perdas consideráveis, e por tal modo excitei a sua generosidade que começou por presenteá-la com duzentos dobrões. Agradecendo-lhe a dádiva, disse-lhe que ela bastava para o presente, mas que o futuro acarretaria grandes necessidades a minha irmã, pois que ela se havia encarregado de sustentar um irmão ainda moço que nos tinha entrado em casa, depois da morte dos nossos pais, e que se ele a julgava merecedora da sua estima não a deixaria sofrer por amor dessa pobre criança, que ela considerava como metade de si própria. Esta narrativa enterneceu-o a ponto de prometer alugar uma casa confortável para o senhor e para Manon: o cavalheiro des Grieux, é esse pobre órfão que ele se comprometeu a vestir e alimentar, fornecendo-lhe todos os meses quatrocentos francos, que somam no fim do ano, se a tabuada não mente, quatro mil e oitocentos francos. Deu ordem ao seu intendente antes de partir para o campo, para que procurasse uma casa e a tivesse pronta no seu regresso. Tornará, então, a ver minha irmã, que me encarregou de o beijar mil vezes por ela, assegurando-lhe que o ama mais do que nunca.

Sentei-me, pensando neste extravagante destino que me impunha a minha estrela. Tinha o meu espírito dividido entre sentimentos tão opostos e por conseguinte numa incerteza tão difícil de terminar, que fiquei muito tempo sem responder ao tropel de perguntas que Lescaut me fazia, umas atrás das outras. Foi nesse momento que a honra e a virtude me fizeram sentir mais uma vez o peso dos remorsos, e então deitei os olhos, suspirando, para Amiens, para a casa de meus pais para São Sulpício enfim, para todos os lugares onde havia vivido na inocência. Que abismo me não separava agora dessa vida feliz e sossegada! Via a felicidade de longe, como uma sombra que atraía ainda os meus desejos e me causava pesares, mas que era fraca em demasia para excitar os meus esforços.

— Por que fatalidade — dizia eu — me tornei culpado? O amor é uma paixão bem cândida; como se transformou para mim numa fonte de desatinos e misérias?! Quem me impediria de viver tranqüilo e virtuoso com Manon? Porque não havia eu de desposá-la antes de ter obtido dela a menor concessão? Meu pai, que tanta amizade e ternura me consagrava, não o teria consentido se eu lho tivesse pedido, com todas as instâncias legítimas? Ah! decerto que sim; meu pai mesmo tê-la-ia amado como uma mulher encantadora, muito digna de ser a esposa de seu filho. Eu seria feliz com o amor de Manon, com a afeição de meu pai, com a estima das pessoas honradas, com bens de fortuna e com a tranqüilidade da virtude. Revés funesto!... Que infame papel vêm aqui proporcionar-me? Pois que! Iria eu compartir?... Mas haverá que ponderar, se foi Manon quem deliberou o plano e se eu a perder sem uma tal condescendência?

— Senhor Lescaut — exclamei eu, fechando os olhos como para afastar da mente tão vergonhosas reflexões — se teve idéia de bem servir-me, agradeço-lhe o empenho. Poderia, porém, ter seguido outro meio mais honesto: mas o plano que acaba de detalhar-me é definitivo, não é assim?... Não pensemos, pois senão em nos aproveitarmos das suas diligências e em realizarmos o seu projeto.

Lescaut a quem a minha cólera, seguida de um tão longo silêncio, havia causado algum receio, ficou satisfeitíssimo ao ver-me tomar um partido muito diferente daquele que esperava. Não era covarde e de futuro tive bastantes provas da sua intrepidez.

— Sim, sim, — apressou-se a responder-me — foi um bom serviço que lhe fiz, e verá que havemos de tirar dele mais vantagens do que mesmo o senhor espera.

Combinamos então de que modo podíamos evitar as suspeitas que G. de M... pudesse conceber da nossa fraternidade ao ver-me mais adiantado em anos do que ele talvez imaginasse. Não achamos outro meio senão o de eu afetar diante dele um ar simples e provinciano fazendo-lhe crer que estava resolvido a entrar na vida eclesiástica e que ia para isso todos os dias ao colégio. Resolvemos também, que iria muito mal vestido a primeira vez que fosse admitido a ter honra de o visitar.

G. de M... voltou à cidade três ou quatro dias depois. Ele próprio conduziu Manon à vivenda que o seu intendente havia tido o cuidado de preparar. Lescaut, informado por Manon da sua chegada, avisou-me e corremos ambos a sua casa. O velho amante já tinha saído.

Apesar da resignação com que me havia submetido à sua vontade, não pude reprimir o queixume do meu coração, quando novamente a vi.

Achou-me triste e acabrunhado. A alegria de a tornar a ver não era suficiente para destruir o desgosto que a sua infidelidade me infundira. Ela, ao contrário, parecia arrebatada e cheia de alegria, por me ter outra vez a seu lado. Estranhou, portanto, a minha frieza, acusando-me por isso. Não pude conter-me sem lhe chamar pérfida e infiel ainda que estes nomes fossem acompanhados de constantes suspiros.

A princípio, zombou da minha simplicidade; mas, quando viu o olhar triste em que a envolvia e o desgosto que me causava uma ação tão contrária ao meu humor e aos meus desejos, retirou-se para o seu gabinete. Seguí-a imediatamente. Achei-a lavada em lágrimas. Perguntando-lhe o motivo de um tal choro, respondeu-me:

— É bem fácil adivinhá-lo. Como queres tu que eu viva, se a minha presença já não serve senão para te tornar triste e carrancudo? Ainda não me fizeste uma só meiguice e há uma hora que aqui estás; recebeste as minhas carícias com majestade do Grão-Turco no seu serralho!

— Escuta, Manon — disse eu, beijando-a; — não te posso ocultar que tenho o coração moralmente ferido. Não quero falar do que sofri com a tua fuga imprevista, não quero falar da crueldade que praticaste, abandonando-me sem ao menos me dirigires uma palavra de consolação, depois de teres passado a noite fora do meu leito; tudo isso fará esquecer o encanto da tua presença. Mas julgas que possa pensar, — sem soltar um suspiro, sem derramar abundantes lágrimas, — na triste e desgraçada vida a que tu queres forçar-me nesta casa? Ponhamos de parte a minha família e a minha honra; são razões tão fracas que não devem entrar em concorrência com um amor como o meu; mas não imaginarás tu que este mesmo amor se sinta ofendido por ser tão mal recompensado, ou antes tão cruelmente tratado por uma ingrata e dura amante?...

Manon interrompeu-me.

— Basta! — disse ela — É inútil atormentares-me com repreensões que me despedaçam a alma, porque vêm da tua boca. Bem vejo o que te ofende. Pensei que consentisses no projeto por mim formado de restaurarmos a nossa fortuna, e era para poupar a tua delicadeza que eu havia começado a executá-lo sem previamente te haver prevenido; mas, renuncio a ele, pois que não o aprovas.

Acrescentou que só me pedia alguma complacência para o resto daquele dia: que tinha recebido já duzentos dobrões do seu velho amante e que ele lhe havia prometido trazer-lhe à noite um belo colar de pérolas juntamente com outras jóias, e além de tudo isto, metade da pensão anual que lhe estabelecera.

— Deixa-me só o tempo, — continuou Manon, — de receber os seus presentes: juro-te que não se poderá gabar dos favores que de mim obteve ou há de obter. É verdade que mais dum cento de vezes me beijou a mão, mas é justo que pague este prazer, e não será excessivo se o fizer com cinco ou seis mil francos, pois é preciso haver proporção entre as suas riquezas e a sua idade.

Esta resolução de Manon foi para mim muito mais agradável do que a esperança dos cinco mil francos. Tive ocasião de conhecer que o meu coração não havia perdido de todo os sentimentos da honra, pois tão satisfeito se mostrava por fugir à infâmia. Mas tinha nascido para as pequenas alegrias e para as longas dores. Logo que demonstrei a Manon, por mil carícias, quanto me julgava feliz pela sua resolução, disse-lhe que era preciso prevenir Lescaut para que as nossas combinações fossem tomadas de comum acordo. A princípio, insurgiu-se; mas os quatro ou cinco mil francos em dinheiro de contado conciliaram-no conosco. Concordou-se em que iríamos todos cear com G. de M... e isto por duas razões: uma, para termos o prazer duma cena agradável, fazendo-me Lescaut passar por um estudante irmão de Manon; a segunda, para impedir que esse velho libertino tomasse demasiada liberdade com a minha amante atendendo ao direito que julgava ter já adquirido sobre ela, pagando adiantado e tão generosamente.

Lescaut e eu tratamos de arranjar uma carruagem para estar pronta à porta, pois quando G. de M... tratasse de se retirar para o quarto, onde deveria passar a noite com Manon, esta, em lugar de o seguir, viria passá-la comigo.

Chegada a hora da ceia, G. de M... não se fez esperar muito tempo. Lescaut estava na sala com sua irmã. O primeiro cumprimento do velho foi oferecer à sua bela um colar, braceletes e brincos, tudo de pérolas, valendo pelo menos mil escudos. Contou-lhe logo em seguida, em belos luíses de ouro, a soma de dois mil e quatrocentos francos, montante da metade da pensão. Acrescentou ao seu presente muitas amabilidades ao gosto da corte. Manon não lhe pôde recusar alguns beijos; eram outros tantos direitos que ela adquiria ao dinheiro que lhe caía nas mãos. Eu estava à porta, de ouvido à escuta, esperando que Lescaut me mandasse entrar.

Veio buscar-me pela mão logo que Manon guardou os brilhantes e o dinheiro; conduziu-me junto de G.. de M... e ordenou-me que lhe apresentasse os meus cumprimentos. Fiz duas ou três reverências das mais profundas.

— Desculpai, senhor, — disse-lhe Lescaut, — é um rapaz muito novo. Está ainda bem longe, como vê, da vivacidade parisiense, mas espero que o havemos de domesticar. Terás o prazer e a honra de ver aqui muitas vezes o senhor G. de M..., — acrescentou ele voltando-se para mim; — trata pois de aproveitar as lições de tão bom mestre.

O velho amante pareceu sentir prazer em me ver. Deu-me duas ou três pancadinhas nas faces, dizendo-me que eu era um rapaz gentil, mas que era preciso ter muita cautela em Paris, onde a mocidade se entregava facilmente à devassidão.

Lescaut assegurou-lhe que eu era naturalmente tão sisudo, que não falava noutra cousa que não fosse em ser padre, e que todo o meu prazer era o de fazer capelinhas.

— Parece-se muito com Manon, — continuou o velho, levantando-me o rosto com a mão.

Respondi-lhe, com um ar apalermado:

— Senhor, os nossos corpos têm grandes pontos de contacto. É por isso que amo minha irmã como a mim mesmo.

— Ouve? — disse ele a Lescaut. — O rapaz tem espírito. É pena que tenha tão pouco uso da sociedade.

— Oh! meu caro senhor! — exclamei eu — tenho visto muita gente nas igrejas da minha terra e estou certo de que hei-de encontrar em Paris ainda maiores tolos do que eu.

— Veja — acrescentou G. de M...; — é admirável para um rapaz da província...

Toda a nossa conversa durante a ceia decorreu pouco mais ou menos neste tom. Manon, que era travessa, esteve, porém, muitas vezes a ponto de deitar tudo a perder com as suas gargalhadas estrepitosas. Tive ocasião, mesmo durante a ceia, de contar ao nosso anfitrião a sua própria história e o mau resultado que o ameaçava. — Lescaut e Manon manifestaram a sua inquietação durante a minha narrativa, sobretudo quando eu fazia o retrato ao natural de G. de M...; mas o amor próprio impediu-o de se conhecer a si mesmo nesse apólogo, e eu concluí por tal modo a narração, que ele foi o primeiro a achar a história muito engraçada.

Ver-se-á que não foi sem razão que eu alonguei esta ridícula cena.

Chegada, enfim, a hora de nos recolhermos, G. de M... falou de amor com impaciência. Eu e Lescaut retiramo-nos. Conduziram G. de M... ao seu quarto; e Manon, tendo saído desse aposento, sob um pretexto fútil, veio ter conosco à porta da rua. A carruagem que nos esperava três ou quatro prédios mais abaixo, avançou para nos receber. Num instante, afastamo-nos do bairro.

Ainda que a meus próprios olhos esta ação fosse um verdadeiro roubo, não era contudo a mais injusta de que tivesse a acusar-me. Pungia-me mais a maneira como eu havia adquirido dinheiro ao jogo. Contudo, bem pouco aproveitamos tanto dum como doutro; e o céu. determinou que a mais leve destas duas injustiças fosse a mais rigorosamente castigada.

G. de M... não tardou muito a compreender que havia sido ludibriado. Não sei se deu logo, naquela mesma noite, alguns passos para nos descobrir, mas o fato é que tinha demasiada influência para os não dar inutilmente, e nós demasiada imprudência em nos fiarmos na grandeza de Paris e na distância que medeava entre o nosso e o seu bairro. Não só foi informado da nossa morada e da situação em que nos achávamos, mas também soube quem eu era, a vida que tinha levado em Paris, a antiga ligação de Manon com B..., a “peça” que esta lhe havia pregado; em uma palavra, todos os escândalos da nossa história. Tomou, em seguida, a resolução de nos fazer prender e de nos tratar menos como criminosos do que como libertinos.

Estávamos ainda na cama quando um prefeito de polícia entrou no quarto com meia dúzia de guardas. Apoderaram-se primeiro do nosso dinheiro, ou antes do de G. de M... e fazendo-nos levantar sem mais cerimônia, levaram-nos até à porta da rua, onde achamos duas seges em uma das quais Manon me foi arrebatada sem mais explicações, conduzindo-me na outra para São Lázaro.

É preciso ter sofrido tais reveses, para avaliar o desespero que eles podem causar. Os guardas tiveram a crueldade de não me deixarem beijar Manon, nem dirigir-lhe uma única palavra. Muito tempo ignorei o que tinha acontecido. Foi talvez uma felicidade para mim não o ter sabido logo, pois uma catástrofe tão terrível ter-me-ia feito perder a razão e talvez a vida.

Manon foi, pois, manietada diante de mim, e levada para um lugar que tenho horror de nomear. Que sorte para uma criatura tão encantadora, que teria ocupado o primeiro trono do universo se todos os homens tivessem o meu coração! Não a trataram barbaramente, mas fecharam-na numa estreita prisão, só, condenada a desempenhar diariamente um certo trabalho, condição essencial para obter o mesquinho alimento que lhe davam.

Não fui informado destes pormenores senão muito tempo depois, quando já eu próprio tinha experimentado por muitas vezes uma tão rude e fastidiosa penitência.

Como os guardas que me prenderam não me revelassem o lugar para onde tinham ordem de me conduzir, só à porta de São Lázaro conheci o destino que me aguardava. Teria preferido a morte naquele momento, ao estado em que me julguei prestes a cair.

Fazia uma idéia horrível desta casa, e os meus receios aumentaram quando, ao entrar, os guardas me apalparam pela segunda vez as algibeiras, para se certificarem de que não me restavam nem armas, nem meios alguns de defesa.

O superior apareceu logo; estava prevenido da minha chegada. Saudou-me com bastante doçura.

— Meu padre, — disse-lhe eu, — nada de indignidades; perderia antes mil vidas do que sofrer um só insulto.

— Não, não, senhor — respondeu ele. — Se tiver um comportamento regular, ficaremos satisfeitos um do outro.

Pediu-me que subisse, com ele, a um quarto dos andares superiores; segui-o sem resistência.

Os archeiros acompanharam-nos até à porta, onde, a um sinal do superior, se retiraram.

— Sou, então, seu prisioneiro! Pois bem, meu padre, que pretende fazer de mim?

Respondeu-me que estava encantado por me ver tomar um tom mais dócil; que o seu dever era o de me inspirar o gosto pela virtude e pela religião, e o meu o de aproveitar-me das suas exortações e conselhos; que, por pouco que eu quisesse corresponder às atenções que por mim teriam, não acharia no isolamento senão prazer.

— Ah! prazer, — retorquí eu; — ignora, decerto, meu padre qual é a única cousa capaz de mo dar!

— Sei, sei, — continuou ele — mas espero que a sua inclinação mudará.

Esta resposta fez-me comprender que o padre estava ao corrente das minhas aventuras e talvez do meu nome. Pedi-lhe que me esclarecesse. Disse-me, com a maior naturalidade, que o haviam informado de tudo.

Este fato foi o mais rude de todos os meus castigos e fez-me derramar uma torrente de lágrimas, no meio do maior desespero... Não podia consolar-me duma humilhação que me ia tornar irrisório para todas as pessoas do meu conhecimento, e que representaria a vergonha da minha família.

Passei, assim, oito dias no mais profundo abatimento, incapaz de ouvir ou de me ocupar doutra cousa que não fosse do meu opróbrio. A própria recordação de Manon nada acrescentava à minha dor, não entrava nela senão como um sentimento que havia precedido esta nova mágoa, e as sensações dominantes da minha alma eram o pejo e a confusão.

Há pouca gente que conheça o que sejam estes impulsos particulares do coração. O geral dos homens não é sensível senão a cinco ou seis paixões no círculo das quais passam a vida, limitando-se só a elas as suas agitações. Tirai-lhes o amor e o ódio, o prazer e a dor, a esperança e a incerteza; não sentem mais nada. Mas os indivíduos dum caráter mais nobre serão afetados de mil modos diversos; parece que têm mais de cinco sentidos e que podem receber idéias e sensações que ultrapassam os limites ordinários da natureza; e como têm o sentimento dessa superioridade que os eleva acima do vulgar, nada mais há no mundo de que se mostrem tão ciosos. Daí resulta a circunstância de sofrerem com impaciência o desprezo e a zombaria e de ser a honra uma das suas mais violentas paixões.

Em São Lázaro tinha eu esta triste vantagem. Tão excessiva pareceu a minha tristeza ao superior, que, receoso das conseqüências que dela podiam derivar, julgou dever tratar-me com muita doçura e indulgência. Visitava-me duas e três vezes por dia, levava-me a passear ao jardim, e, durante o passeio, todo o seu zelo se esgotava em exortações e conselhos salutares, que eu ouvia com a maior atenção, mostrando-lhe por este modo o meu reconhecimento. Era nesta minha humildade que ele baseava a esperança da minha conversão.

— O senhor é, por temperamento, tão dócil e tão amável — disse-me ele um dia, — que não posso compreender os desatinos de que o acusam. Duas cousas me surpreendem: a primeira, é como tendo tão boas qualidades, se pôde entregar aos excessos da libertinagem; a segunda, que eu ainda mais admiro, é o modo por que recebe de tão bom grado os meus avisos e as minhas instruções, tendo vivido tanto tempo no meio da devassidão e das más companhias. Se isso é arrependimento, o senhor é um admirável exemplo da misericórdia celeste; se é bondade natural, tem então um caráter excelente, o que me deixa supor que não precisaremos de o reter aqui por muito tempo, para o reconduzirmos a uma vida honesta e morigerada.

Fiquei encantado ao vê-lo formular tão boa opinião a meu respeito, e resolvi consolidá-la por um comportamento que o satisfizesse inteiramente, persuadido como estava de que era este o único meio de abreviar a prisão. Pedi-lhe livros, e ficou surpreendido, tendo-me deixado livre a escolha, de eu solicitar alguns autores sérios. Fingi aplicar-me com ardor ao estudo, dando-lhe assim constantemente uma prova da mudança que ele desejava.

No entanto, esta mudança não era senão exterior. E, devo confessá-lo para vergonha minha, fiz, em São Lázaro, o papel do mais refinado hipócrita.

Em lugar de estudar, quando estava só, não fazia senão carpir o meu destino. Amaldiçoava a prisão e a tirania que nela me retinha. Sempre que saía deste acabrunhamento, recaía nos tormentos do amor. A ausência de Manon, a incerteza da sua sorte, o receio de não tornar a encontrá-la, eram os únicos alvos das minhas freqüentes meditações.

Figurava-se-me vê-la nos braços de G. de M..., pois foi esse o pensamento que tive logo ao princípio, e longe de imaginar que ele a houvesse tratado como a mim me tratou, estava convencido de que não me tinha separado dela senão para a possuir mais tranqüilamente.

Passei assim dias e noites duma duração que me parecia eterna. Só tinha esperança no êxito da minha hipocrisia. Observava cuidadosamente a fisionomia e as arengas do superior para me certificar do que ele pensava a meu respeito, e fiz um estudo muito particular da maneira de agradar-lhe, como ao árbitro supremo do meu destino. Fácil me foi reconhecer que lhe tinha caído completamente em graça e não duvidava já de que estivesse disposto a servir-me.

Aventurei-me, um dia, a perguntar-lhe se era dele que dependia a minha liberdade. Respondeu-me que não era absolutamente senhor dela mas que, sob a sua informação, esperava que G. de M..., a pedido de quem o tenente geral da polícia me tinha feito encarcerar, consentisse na minha libertação.

— Poderei esperar — continuei eu melifluamente — que os dois meses de prisão que tenho sofrido sejam por ele considerados como expiação suficiente?

Prometeu-me falar-lhe a esse respeito, se eu assim o desejasse.

Noticiou-me dois dias depois que G. de M... tinha ficado tão comovido com o que ele lhe dissera a meu respeito que não só parecia disposto a deixar-me gozar a liberdade, mas que também havia mostrado um forte desejo de me conhecer de mais perto e que tencionava fazer-me uma visita na minha prisão.

Ainda que a sua presença nada de agradável tivesse para mim, tomei-a como uma aproximação do momento da minha saída de São Lázaro.

Veio com efeito ao meu cárcere; achei-o menos parvo e com ar mais grave e sério do que quando o vi em casa de Manon. Fez-me algumas observações, com muito bom senso, sobre a minha conduta, acrescentando, para aparentemente justificar as suas próprias extravagâncias, que era permitido à fraqueza dos homens procurar certos prazeres que a natureza exige, mas que o roubo e os artifícios vergonhosos mereciam ser castigados.

Ouví-o com uma tal submissão, que me pareceu ter ficado satisfeito. Não me ofendi mesmo ao ouvir-lhe alguns motejos sobre a mmha fraternidade com Lescaut e Manon, e sobre as capelinhas que eu deveria ter feito em grande número em São Lázaro, visto que tanto prazer achava nesta piedosa ocupação. Mas não se coibiu, desgraçadamente para ele e para mim, de dizer-me que Manon havia de fazer o mesmo no Presídio.

Apesar da convulsão que a palavra Presídio me causou, tive ainda sobre mim a força necessária para lhe pedir que se explicasse.

— Mas é verdade! Há dois meses que Manon aprende a ter juízo no Presídio geral, e bem desejo que tenha aproveitado tanto com a lição como o senhor aqui, em São Lázaro.

Ainda que eu tivesse de ficar preso para sempre e que a morte surgisse diante de mim, não poderia ter dominado a cólera que me abrasou, ouvindo semelhante notícia. Deitei-me a ele com tal desespero, que gastei metade das minhas forças. No entanto, ainda conservei o vigor para o lançar por terra e apertar-lhe o pescoço. Ia estrangulá-lo quando, ao ruído da queda e alguns gritos agudos que ele de vez em quando soltava, o superior e muitos religiosos entraram no meu quarto e o tiraram das minhas mãos.

Eu mesmo quase havia perdido o alento e a respiração.

— Meu Deus! — exclamei eu soluçando — justiça do céu, posso ainda gozar um sopro de vida depois de ouvir uma tal infâmia?

Quis de novo arrojar-me sobre o malfeitor que acabava de me assassinar. Agarraram-me, mas o meu desespero, os meus gritos, as minhas lágrimas excediam tudo quanto a imaginação pode criar. Fiz cousas tais, que todos os assistentes, ignorando a causa do meu delírio, olhavam-se mutuamente tão cheios de receio como de surpresa.

G. de M... tornou a atar o nó da gravata, e a pôr a cabeleira; e furioso por ter sido recebido por tal modo, ordenou ao superior que me encarcerasse com mais rigor do que nunca, fazendo-me sofrer todos os castigos em voga e uso em São Lázaro.

Não, senhor, — respondeu-lhe porém o superior; — não é com uma pessoa da qualidade e educação deste cavalheiro que nós empregaremos tais meios. Demais, é tão dócil e meigo que me custa a acreditar neste excesso, sem que ele para isso tivesse fortíssimas razões.

Uma tal resposta fez perder completamente a paciência a G. de M... que saiu dizendo que bem sabia como havia de ensinar-me a mim, ao diretor e a todos quantos ousassem faltar-lhe ao respeito.

O superior, depois de ordenar aos religiosos que acompanhassem G. de.M..., ficou só comigo. Pediu-me que lhe dissesse imediatamente o que motivara uma tal violência.

— Meu padre! — disse eu chorando como uma criança — imagine a mais horrível crueldade, a mais detestável barbaridade, e verá a ação que o indigno G. de M... teve a covardia de levar a cabo. Oh! despedaçou-me o coração! Quero contar-lhe tudo, — ajuntei soluçando — porque o senhor é bom e terá compaixão de mim.

Fiz-lhe a narração abreviada da imensa e indomável paixão que tinha por Manon; da situação florescente da nossa fortuna antes de termos sido roubados pelos nossos criados; dos oferecimentos que G. de M... havia feito à minha amante; da conclusão deste negócio e do modo como fora desmanchado. Apresentei-lhe, porém, os fatos, e isto, seja dito em abono da verdade, pelo lado que mais favorável nos era.

— Aqui tem, meu padre — continuei — qual é a fonte donde provém o zelo de G. de M... pela minha conversão. Teve influência para me fazer encerrar aqui, por um puro sentimento de vingança; isso perdôo-lho; mas não é tudo: arrebatou-me cruelmente a mais cara metade de mim próprio e fê-la encerrar vergonhosamente no Presídio, tendo a imprudência de mo vir anunciar aqui. No Presídio, meu padre! A minha cara amante, a rainha do meu coração, no Presídio, como a mais infame de todas as criaturas! Onde encontrarei eu forças para não morrer de dor e de vergonha?

O bom padre, vendo-me neste estado de aflição, tentou consolar-me. Disse-me que nada sabia da minha aventura, pela forma como eu a contava; que, na verdade, o tinham informado de que eu vivia escandalosamente, mas que pensava que todo o interesse de G. de M... em corrigir-me havia sido ocasionado por alguma ligação íntima de estima e amizade com minha família; que só deste ponto de vista tinha explicado o caso a si mesmo, e que o que eu acabava de lhe narrar mudava completamente a face da minha situação, pois não duvidava de que a narração fiel da minha história, que ia fazer ao intendente geral da polícia, contribuísse para me soltarem.

Perguntou-me, depois, a razão por que eu não tinha ainda dado notícias à minha família visto que ela de modo algum concorreu para o meu cativeiro. Satisfiz esta objeção com algumas razões sugeridas pela dor que havia receado causar a meu pai e com a vergonha que eu próprio sentiria. Por fim prometeu-me que iria a casa do chefe da polícia ainda que mais não fosse senão para prevenir algum exagero de G. de M..., o qual saira de S. Lázaro muito pouco satisfeito e que tinha a suficiente preponderância para se fazer temido.

Aguardei o regresso do padre com a ansiedade dum desgraçado que espera o momento da sua sentença.

Que terrível suplício era o meu, quando pela mente me passava a idéia de que Manon jazia no Presídio! Além da infâmia de tal habitação, ignorava de que maneira aí a tratavam; e a lembrança de todos os pavores, que eu ouvira contar acerca dessa mansão de horror, renovavam a todos os momentos a minha exaltação.

Estava por tal forma resolvido a socorrê-la fosse qual fosse o meio que devesse empregar, que, ainda mesmo que tivesse de deitar fogo a São Lázaro para conseguir a minha saída da prisão, fá-lo-ia sem hesitar.

Supondo que o intendente geral da polícia insistisse em me conservar preso, comecei a pensar maduramente nos meios que poderia ter ao meu alcance para me evadir.

Refleti, pois, no que teria de fazer, se o intendente geral da polícia continuasse a conservar-me preso, contra a minha vontade. Submeti a minha inteligência a todas as provas, estudei todas as probabilidades. Não me ocorreu ninguém que pudesse assegurar a minha evasão, e temi que fosse depois encerrado com mais cautela no caso de que se malograsse a minha tentativa.

Lembrei-me de alguns amigos de quem deveria esperar auxílio e socorro: mas qual o modo de lhes fazer saber a minha situação? Enfim, julguei ter formado um plano tão bem concebido que poderia obter êxito, resolvendo aperfeiçoá-lo ainda mais, depois do regresso do superior, se a inutilidade dos seus passos o tornasse necessário.

Não tardou muito que o padre voltasse, mas o seu rosto não indicava a alegria que acompanha sempre uma boa nova.

— Falei — disse ele — ao intendente geral da polícia, mas infelizmente era muito tarde. G. de M... já lá havia estado, e por tal modo o indispôs contra o senhor, que estava decidido a enviar-me novas ordens para maior rigor no seu cativeiro. Contudo, ao contar-lhe a sua história, pareceu abrandar um pouco; e rindo da incontinência do velho G. de M..., disse-me que para lhe dar uma satisfação era necessário que o senhor estivesse mais seis meses preso, porque julgava, além disso, que esta detenção não lhe havia de ser inútil. Recomendou-me que tivesse todas as atenções para com o cavalheiro, e pela minha parte posso assegurar-lhe que não terá de que se queixar.

O bom padre levou tanto tempo nesta explicação, que me deu lugar a fazer um acertado raciocínio. Vi claramente que me expunha a frustar todos os meus desígnios, se lhe mostrasse o empenho que tinha de quanto antes me ver livre dos ferros. Fingindo-me resignado, disse-lhe que, sendo obrigado a ficar por mais tempo na prisão, não tinha senão de que lisonjear-me por ter merecido de certo modo a sua estima. Terminei, pedindo-lhe um favor, que em nada de certo interessaria a ninguém e que serviria para a minha tranqüilidade: e vinha a ser em consentir que um santo eclesiástico, que vivia em São Sulpício, fosse prevenido de que eu estava em São Lázaro, e ao mesmo tempo permitir que ele pudesse, de quando em quando, visitar-me. Este favor foi-me logo concedido.

Era do meu amigo Tiberge que se tratava: não que eu esperasse dele o auxílio necessário para a minha evasão, mas queria interessá-lo nisso ainda que não fosse senão por meios indiretos e sem que ele mesmo o suspeitasse.

Numa palavra, o meu projeto era escrever a Lescaut, para que ele e mais alguns amigos comuns se encarregassem da minha libertação.

A primeira dificuldade era, pois, fazer-lhe chegar às mãos a carta, e este devia ser o papel de Tiberge. Contudo, como ele o conhecia por irmão de Manon, temi que não se quisesse aceitar o encargo. O meu intento era fechar a carta de Lescaut em um sobrescrito dirigido a uma respeitável pessoa do meu conhecimento, a quem pediria para a fazer chegar ao seu destino: e como era necessário que eu falasse com Lescaut para concordarmos nas medidas a tomar, queria dizer-lhe que viesse ter comigo a São Lázaro, procurando-me como se fosse meu irmão mais velho que tivesse vindo expressamente a Paris para saber da minha situação. Então, combinaria com ele os meios que nos parecessem mais seguros e rápidos. O superior fez da melhor vontade advertir Tiberge do desejo que eu tinha de lhe falar. Este fiel amigo não me havia perdido por tal modo de vista que ignorasse a minha aventura. Sabia que eu estava em São Lázaro, e talvez mesmo esta desgraça o não desgostasse, pois a julgava capaz de me conduzir de novo ao caminho do dever.

A nossa entrevista transbordou de amizade. Falei-lhe sem a menor reserva, abrindo-lhe o meu coração, excetuando porém o desígnio da minha fuga.

— Não é a teus olhos, meu caro amigo, que quero parecer o que não sou. Se julgaste encontrar aqui um amigo prudente e regrado nos seus desejos, um libertino arrependido pelo castigo do céu, em uma palavra, um coração livre do amor e desiludido dos encantos de Manon, julgaste-me muito favoravelmente. Encontras-me tal qual me deixaste há quatro meses, sempre terno e apaixonado e sempre infeliz e desgraçado por esta mesma ternura, na qual me não canso de procurar a minha felicidade.

Respondeu-me que a confissão que eu acabava de fazer não me tornava merecedor de desculpa: que se encontravam muitos pecadores que, embriagando-se com a falsa felicidade do vício chegavam a ponto de preferi-la à virtude, mas que ao menos era em imagens de aventura verdadeira que eles se fundavam e que eram iludidos pelas aparências; porém, reconhecer, como eu o fazia, que o objeto da minha dedicação só servia para tornar-me desgraçado e criminoso, e continuar a precipitar-me voluntariamente no infortúnio e no crime, era uma contradição de idéias e de procedimento que em nada fazia honra à minha inteligência.

— Tiberge — interrompi eu — como te é fácil a vitória, quando nada se apõe às tuas armas! Deixa-me raciocinar por minha vez. Podes pretender que o que chamas virtude seja isento de penas, desgostos e inquietações? Que nome darás tu à prisão, às cruzes, aos suplícios dos tiranos? Dirás, talvez, como os místicos, que o tormento do corpo é um benefício para a alma? Decerto não ousarás dizer tal: é um paradoxo insustentável. Essa dita que tu tanto louvas é cheia de dores, ou, para falar com mais propriedade, não é senão um tecido de desgraças através do qual se chega à felicidade. Ora, se a força da imaginação faz encontrar prazer nesses mesmos males, porque eles podem conduzir-nos a um termo ditoso que esperamos, porque hás-de chamar contraditória e insensata a uma disposição semelhante da minha conduta? Amo Manon: e procuro, através de mil desgostos, viver tranqüilo e feliz ao seu lado. A estrada por onde vou é desgraçada, mas a esperança de chegar ao meu fim espalha sempre doçura nela; e julgar-me-ia largamente pago de todos os males que sofro com um só momento passado junto de Manon. Ambos estamos, portanto, na verdade, ou se ainda há alguma diferença, é sem dúvida a meu favor; porque a felicidade que eu espero está próxima; ao passo que a tua está bem distante; a minha é da natureza dos pesares, isto é, sensível ao corpo; a outra é de natureza desconhecida, e não é certa senão pela fé.

Tiberge pareceu horrorizado em face deste raciocínio. Deu dois passos à retaguarda, afirmando com o ar mais sério do mundo que aquilo que eu acabava de dizer não só ofendia o bom senso mas que era um triste sofisma de impiedade e irreligião.

— Porque — acrescentou ele — a comparação do termo dos teus males como o que a religião propõe é uma idéia das mais libertinas e monstruosas.

— Confesso que essa idéia não é justa, — respondi — mas, pensa bem, não é sobre ela que fundei o meu raciocínio. Pretendi explicar o que tu tomas como uma contradição na perseverança dum amor desgraçado: e julgo ter provado suficientemente que se há aqui, realmente, uma contradição, também tu és contraditório. Foi só deste ponto de vista que tratei as questões em debate como iguais, e sustento ainda que o são. Responder-me-ás tu que o fim da virtude é infinitamente superior ao do amor? Quem o contesta? Mas a questão é diversa. Não se trata da força que uma e outro têm para nos fazer suportar os sofrimentos? Julguemo-lo pelos efeitos. Quantos desertores não encontras da virtude austera, e como são poucos os que desertam do amor! Responder-me-ás ainda que se há pesares no exercício da virtude, eles não são nem infalíveis, nem necessários; que se não encontram aí tiranos, nem cruzes e que há bastantes pessoas virtuosas, que passam uma vida tranqüila e sossegada! Mas também te direi que há amores pacíficos e ditosos, do que resulta uma diferença que me é em extremo vantajosa; e acrescentarei que o amor, mesmo que nos engane muitas vezes, contudo nunca promete senão alegria e prazer, ao passo que a religião nos impõe uma existência triste e mortificada.

Não te assuste — continuei eu, vendo o seu zelo prestes a doer-se. A única cousa que quero concluir disto é que não há pior método para desgostar um coração do amor do que descrever-lhe as doçuras prometendo-lhe mais felicidade no exercício da virtude. Pelo modo como somos formados, é evidente que a nossa felicidade consiste no prazer, e desafio que me provem o contrário: ora, não há necessidade de consultar largo tempo o coração para sentir que de todos os gozos aquele que lhe é mais caro sem dúvida é o do amor.

Pregadores que quereis conduzir-me à virtude, dizei-me que ela é indispensavelmente necessária, mas não oculteis que é severa e penosa! Estabelecei muito embora que as delícias do amor são passageiras; que são proibidas, que serão castigadas com as penas eternas, e, que talvez exerça sobre mim maior impressão, que quanto mais doces e encantadoras elas forem, tanto mais generoso será o céu em recompensar tão grande sacrifício; mas confessai que, com o coração que temos, são na terra a nossa maior ventura.

O final do meu discurso restituiu o bom humor a Tiberge. Concordou que alguma cousa havia de razoável nos meus pensamentos. A única objeção que opôs foi a de me perguntar porque não entrava eu, ao menos, nos meus princípios, sacrificando o meu amor à esperança desta remuneração de que tão alta idéia formava.

— Oh! caro amigo! — exclamei — é nisso que conheço a minha fraqueza e a minha miséria: sim, é dever meu proceder pela forma que penso; está porém a ação no domínio dos meus poderes? Que seria preciso para me esquecer dos encantos de Manon?!

— Deus me perdoe — atalhou Tiberge — parece-me ter diante de mim um jansenista.

— Não sei o que sou — repliquei eu — e não vejo claramente o que deva ser: mas sinto a verdade do que eles dizem.

Esta conversação serviu para renovar a comiseração do meu amigo. Conheceu que a fraqueza excedia a malignidade em todas as minhas ações. A sua amizade mostrou-se mais disposta a prestar-me, no futuro, socorros sem os quais eu teria morrido na miséria. No entanto, nem palavra lhe disse dos meus planos de evasão de São Lázaro. Pedi-lhe somente que se encarregasse de fazer chegar a minha carta ao seu destino. Já a tinha pronta antes da sua chegada, e não me faltou um pretexto para colorir a necessidade que tinha de a escrever. Tiberge cumpriu fielmente a missão que lhe confiei. Lescaut recebeu antes da noite a que lhe era destinada.

No dia seguinte, de manhã, já ele estava comigo, tendo passado sem dificuldade por meu irmão. A minha alegria foi extrema ao vê-lo entrar no quarto, cuja porta cuidadosamente fechei à chave.

— Não percamos um único momento — comecei eu; — conte-me primeiro tudo quanto sabe de Manon e dê-me em seguida um bom conselho para me libertar dos meus ferros.

Afirmou-me que não tinha visto sua irmã desde o dia antecedente ao da minha prisão; que só com grande custo tinha conhecido a minha e sua sorte; que, tendo-se apresentado duas ou três vezes no Presídio, lhe tinham proibido a entrada.

— Desgraçado G. de M..., — bradei eu, — como tu pagarás tudo bem caro!

— Pelo que respeita à sua liberdade — continuou Lescaut — não é cousa tão fácil como julga. Passámos ontem a noite, eu e dois amigos meus, a observar o exterior do edifício, e julgamos que dando as suas janelas para um pátio circundado de habitações, como bem deve ter visto, haverá grande dificuldade em o tirar daqui. Demais a mais, está no terceiro andar, e não podemos introduzir cá dentro nem cordas nem escadas. Portanto, não vejo o mais pequeno recurso da parte de fora; é, a meu ver, dentro de São Lázaro que está a chave que o há de pôr ao ar livre.

— Não, — repliquei eu, — tenho examinado tudo, especialmente depois que sou menos rigorosamente vigiado, em virtude da indulgência do superior. A porta do meu quarto nunca se fecha à chave e posso passear no cláustro dos religiosos, mas todas as escadas estão vedadas por espessas e fortes portas que cuidadosamente se conservam aferrolhadas tanto de dia como de noite, de maneira que é impossível escapar-me só pelo ardil. Espere — continuei eu depois de refletir algum tempo numa idéia que me pareceu excelente; — poderia o senhor trazer-me uma pistola?

— Com toda a facilidade — respondeu Lescaut; — mas quer matar alguém?

Assegurei-lhe que não tinha esse desígnio e que nem sequer era preciso que a pistola estivesse carregada.

— Traga-ma amanhã — acrescentei — e não se esqueça de estar defronte da porta principal do edifício, com dois ou três dos nossos amigos, às doze horas da noite. Espero que me será possível ir juntar-me com o senhor.

Lescaut instou comigo para que lhe dissesse o que tencionava fazer; respondi-lhe que uma empresa tal como eu a meditava só poderia parecer aceitável desde que desse bom resultado. Pedi-lhe que abreviasse a sua visita, para que na manhã seguinte tivesse facilidade em me tornar a ver.

No dia imediato, foi do mesmo modo introduzido sem dificuldade na minha prisão. O seu aspecto era grave; ninguém deixaria de o tomar por um homem honesto.

Achando-me, pois, munido do instrumento da minha libertação, quase não duvidei do bom resultado do meu projeto que, com franqueza, era bizarro e atrevido; mas de que não seria eu capaz com as razões que me animavam? Tinha observado, desde que me era permitido sair do meu quarto e passear nos claustros, que o porteiro trazia, à noite, as chaves de todas as portas ao superior e que, momentos depois, o mais profundo silêncio reinava em todo o edifício, sinal evidente de que todos estavam deitados. Ora, eu podia passar, sem o menor obstáculo, do meu quarto para o do superior, por uma galeria de comunicação. A minha resolução era, pois, a de tirar-lhe as chaves, assustando-o com a pistola se pusesse dificuldade em mas entregar, e servir-me delas para me franquear a saída para a rua.

Esperei, impacientemente. O porteiro veio, por fim, como de costume, à mesma hora, isto é, alguns minutos depois das nove. Deixei ainda passar uma, para me certificar de que todos os religiosos e criados estavam adormecidos. Por fim, parti com a minha arma e uma luz. Bati à porta do padre muito devagar para o acordar sem ruído. Ouviu-me à segunda pancada, e julgando sem dúvida que era algum religioso que adoecera e tinha necessidade de socorro, levantou-se para abrir. No entanto, antes disso, tomou a precaução de perguntar, pelo buraco da fechadura, quem era eu e o que lhe queria.

Vi-me na necessidade de dizer o meu nome, mas afetei um tom lastimoso para lhe fazer compreender que não estava bom.

— Ah, sois vós, meu caro filho! — exclamou ele ao abrir-me a porta. — Que vos traz aqui tão tarde?

Entrei no quarto, e levando-o para o lado oposto à porta, declarei-lhe que me era impossível permanecer por mais tempo em São Lázaro: que a noite oferecia uma ocasião propícia para eu sair sem ser visto, e que portanto esperava da sua amizade que consentiria em me abrir as portas, ou confiar-me as chaves para eu mesmo as abrir.

Um tal atrevimento devia surpreendê-lo. Ficou algum tempo atônito, olhando para mim sem me responder: mas, como eu não tinha um momento a perder, tomei de novo a palavra, dizendo-lhe que estava sumamente penhorado com a sua bondade, mas que sendo a liberdade o mais precioso de todos os bens, sobretudo para mim, a quem tão injustamente a roubavam, estava resolvido a procurá-la esta noite mesmo, fosse qual fosse o preço por que a devesse obter; e receando que ele gritasse para pedir socorro, mostrei-lhe a respeitável razão para impor-lhe silêncio e que trazia debaixo do meu casaco.

— Uma pistola! — exclamou ele. — Pois que! meu filho, quereis tirar-me a vida em sinal de reconhecimento pela consideração em que sempre vos tive?

— Deus me livre de tal — respondi eu. — Tem, meu padre, demasiado bom senso para me não forçar a tal extremo, mas quero ser livre e estou tão resolvido a isso, que se o meu projeto falha por sua culpa, pode despedir-se do mundo.

— Mas, meu caro filho — interrompeu o superior pálido e assustado — que vos fiz eu? Que motivo tendes para me querer dar a morte?

— Ah! não — repliquei eu cheio de impaciência — não tenho tenção de o matar, se quiser viver. Abra-me a porta, e serei o seu melhor amigo.

Tendo descoberto as chaves que estavam em cima da mesa, agarrei-as e pedi-lhe que me seguisse, fazendo o menor ruído possível.

Não teve remédio senão resolver-se a acompanhar-me. À medida que avançávamos e que abria uma porta, dizia-me, suspirando:

— Ah, meu filho! quem o teria julgado?

— Nada de barulho, meu padre, — repetia eu, pelo meu lado, a todo o momento.

Enfim, chegamos a uma espécie de barreira que está diante do portão da rua. Julgava-me já livre e estava por detrás do superior com a lanterna numa das mãos e a pistola na outra.

Enquanto ele se apressava a abrir-me a porta, um criado que dormia num quarto, ouvindo o barulho dos ferrolhos, levantou-se, mostrou a cabeça pela porta do compartimento. O bom padre julgou que esse homem seria capaz de me prender. Ordenou-lhe, imprudentemente, que viesse em seu socorro.

Era um valente mocetão que se lançou a mim resolutamente. Não hesitei um instante: disparei a pistola: a bala entrou-lhe no peito.

— Eis, meu padre, um ato de que sois culpado — disse eu altivamente ao meu guia. — Mas que isto vos não impeça de acabar o serviço — concluí, impelindo-o para a última porta.

Não se recusou a abri-la. Saí, felizmente, e deparei a quatro passos de distância Lescaut, que me esperava com dois amigos, segundo a sua promessa.

Afastamo-nos. Lescaut perguntou-me se não tinha havido um tiro.

— A culpa é sua — disse eu: — para que me trouxe a pistola carregada?

No entanto, agradeci-lhe a sua precaução, sem a qual teria ficado em São Lázaro por muito tempo.

Fomos passar a noite numa casa de pasto, onde me desforrei da má comida com que me alimentaram durante três meses. Não pude, porém, recuperar a alegria. Manon fazia-me sofrer mortalmente.

— É preciso libertá-la — disse eu aos meus três amigos. — Não desejei a liberdade senão para isso. Peço a todos três a ajuda da sua astúcia; eu empregarei em tal empresa a própria vida.

Lescaut, a quem não faltavam a finura e a prudência, aconselhou-me muita cautela, pois a minha evasão de São Lázaro e a desgraça que à saída me havia acontecido, dariam que falar, o intendente geral da polícia havia de procurar-me, e ele tinha os braços compridos. Acrescentou, por fim, que se eu não quisesse estar exposto a cousa pior que São Lázaro, era preciso esconder-me por alguns dias, para que o primeiro fogo dos meus inimigos se extinguisse. Os seus conselhos eram avisados, mas era preciso também ter juízo para os seguir. Tanta lentidão e rodeios não se conciliavam com a minha paixão. Toda a minha complacência se resumiu em lhe afiançar que passaria o dia seguinte a dormir. Fechou-me no seu quarto, onde fiquei até à noite.

Empreguei uma parte deste tempo a formar projetos, e a lembrar-me de expedientes para socorrer Manon. Estava bem persuadido de que a sua prisão era ainda mais impenetrável do que a minha. Não se tratava de força ou de violência, era preciso o artifício; mas a própria deusa da invenção não saberia por onde começar. Realmente, via tão poucos meios, que resolvi pensar num plano, quando tivesse conhecimento da disposição interior do Presídio.

Logo que a noite me tornou senhor da minha liberdade, pedi a Lescaut que me acompanhasse. Travamos conversa com um dos porteiros que nos pareceu homem de bom senso. Fingi ser um estrangeiro que tinha ouvido falar com admiração do Presídio geral e da ordem que nele se observava. Interroguei-o sobre as menores cousas e de detalhe em detalhe falamos dos administradores de quem lhe pedi me dissesse os nomes e a posição. As suas respostas a tal respeito fizeram-me nascer uma idéia por mim louvada imediatamente e que não tardei a pôr em execução.

Perguntei-lhe, como parte essencial da realização do meu desígnio, se estes senhores tinham filhos. Disse-me que não podia dizer-mo ao certo a respeito de todos, mas que em relação a M. de T..., que era um dos principais, conhecia-lhe um filho em idade de casar, e que tinha vindo com seu pai muitas vezes ao Presídio. Bastava-me este esclarecimento.

Acabei logo a conversa, e confiei a Lescaut, ao voltarmos para casa, o plano que tinha concebido.

— Penso — disse-lhe eu — que o filho de M. de T..., que é rico e de boa família, deve ter uma tal ou qual inclinação para o prazer, como a maior parte dos rapazes da sua idade. Não pode ser inimigo das mulheres, nem ridículo a ponto de recusar os seus serviços num negócio de amor. Tenciono interessá-lo na libertação de Manon. Se é honrado e dotado de elevados sentimentos, conceder-nos-á a sua ajuda por mera generosidade. Se não for capaz de deixar-se guiar por um tal sentimento, decerto há de fazer alguma cousa por uma rapariga linda, ainda que não seja senão com a esperança de obter os seus favores. Não quero pois adiar o meu encontro com ele senão até amanhã. Sinto um tal contentamento com este plano que desde já agouro o seu êxito.

Lescaut concordou que alguma cousa poderíamos esperar das minhas engenhosas idéias.

Logo que amanheceu, vesti-me o mais elegantemente que me era possível, no estado de indigência em que me encontrava, e fiz-me conduzir num carro de aluguel a casa de M. de T... que ficou surprendido com a visita dum desconhecido. Fiquei bem impressionado com a sua fisionomia e as suas maneiras. Abri-me com ele francamente e, para excitar os seus sentimentos naturais, falei-lhe da minha paixão e das excelentes qualidades da minha amante, como de duas cousas que não podiam ser avaliadas senão uma por outra. Respondeu-me que, não obstante não ter visto ainda Manon, tinha ouvido falar dela, se por acaso se tratava da que havia sido amante do velho G. de M... Não duvidei de que ele conhecesse também a parte que eu tivera nesta aventura, e para ganhar mais e mais no seu espírito, pela confiança que nele depositasse, contei-lhe tudo quanto nos tinha acontecido, a mim e a Manon.

— Bem vê, senhor — continuei eu — que o interesse da minha vida e do meu coração está agora nas suas mãos. Um não me é mais caro do que o outro. Não tenho com o senhor a mais pequena reserva, porque estou informado do seu cavalheirismo e a aproximação das nossas idades deixa-me esperar que há de haver muitos pontos de contactos nas nossas inclinações.

Mostrou-se muito penhorado por estes sinais de franqueza e de sinceridade. A sua resposta foi a de um homem de educação e sentimentos elevados que o mundo nem sempre dá, e que muitas vezes faz perder.

Disse-me que considerava a minha visita como uma das suas melhores fortunas, que consideraria a minha amizade como a mais feliz das suas aquisições e havia de se esforçar por a merecer com o zelo dos seus serviços.

Não prometeu restituir-me Manon, porque não tinha, segundo me dizia, para isso suficiente poderio; mas ofereceu-se para me proporcionar o prazer de a ver e de fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para que ela voltasse de novo aos meus braços. Fiquei mais satisfeito com esta incerteza da sua influência, do que o teria ficado com a plena promessa de satisfazer todos os meus desejos. Achei na moderação das suas ofertas um sinal de franqueza que me encantou. Numa palavra, prometeu-me todos os seus bons ofícios. Só a perspectiva de me fazer chegar junto de Manon era bastante para que por ele eu tudo empreendesse. Mostrei-lhe em parte os sentimentos que me animavam e por um modo tal que ficou convencido de que eu não era dotado de má índole. Abraçamo-nos ternamente e tornamo-nos amigos, sem outro impulso que não fosse a bondade dos nossos corações e uma simples disposição que leva o homem generoso a amar um outro homem que com ele se pareça.

Ele levou a demonstração da sua estima ainda mais longe, pois, calculando as minhas aventuras e julgando que, tendo saído de São Lázaro, não deveria estar em muito boas circunstâncias, ofereceu-me a sua bolsa, instando comigo para que a aceitasse. Não a aceitei, mas disse-lhe:

— É excessivo, meu caro senhor. Se com tanta bondade e afeto fizer que eu torne a ver a minha querida Manon, terá em mim um escravo dedicado por toda a vida. Se ma restitui não me julgarei quite do que lhe ficarei a dever, ainda que derrame todo o meu sangue para o servir.

Não nos separámos senão depois de termos combinado a hora e o lugar em que de novo nos encontraríamos. Foi tão amável que não espaçou este prazo além da tarde desse mesmo dia.

Esperei-o num café e seriam quatro horas quando veio ter comigo, saindo ambos imediatamente para o Presídio. Os meus joelhos vergavam, quando eu atravessava o pátio da prisão.

— Poderio de amor! — dizia eu — tornarei pois a ver o ídolo do meu coração, a causa de tantas lágrimas e de tantas inquietações! Céu! conserva-me a vida até que a veja; depois, dispõe dela como te aprouver: não tenho mais nada a pedir!

M. de T... falou a alguns porteiros da casa, que correram a servi-lo. Fez que lhe indicassem o lugar do edifício onde estava Manon, e para lá nos conduziu um carcereiro, levando na mão uma chave de tamanho desmesurado que servia para abrir a porta do seu quarto. Perguntei a este homem, que nos guiava, e que era o encarregado de a vigiar, de que modo passava ela o tempo nesta triste habitação. Respondeu-me que Manon era duma bondade angélica, que nunca de sua boca saira uma palavra mais áspera, que durante as primeiras seis semanas da sua reclusão não fazia senão chorar, mas que ultimamente parecia sofrer com muita paciência a sua desgraça, ocupando-se em costurar de manhã até à noite, exceto algumas horas que destinava à leitura. Perguntei-lhe ainda com interesse se havia sido bem tratada. Afirmou-me que pelo menos o necessário não lhe havia faltado nunca.

Aproximou-nos da porta. O meu coração batia violentamente. Disse a M. de T...:

— Entre, primeiro e previna-a da minha visita, porque temo que ela sofra uma grande comoção, vendo-me sem me esperar.

Aberta a porta, M. de T... entrou, e eu fiquei no corredor, mas a distância que podia ouvir em que se falava. Dizia-lhe ele que a vinha consolar, que era um dos meus amigos, e que tinha o maior empenho na nossa felicidade. Manon perguntou-lhe se lhe poderia dizer o que era feito de mim. M. de T... respondeu-lhe logo que se comprometia a levar-me diante dela, tão terno, tão fiel como ela o poderia desejar.

— E quando?

— Hoje mesmo; esse feliz momento não tardará muito; des Grieux vai aparecer na sua presença se assim o deseja.

Manon compreendeu que eu estava à porta. Entrei no momento em que ela corria precipitadamente para fora.

Beijamo-nos com essa efusão de ternura que uma ausência de três meses torna encantadora para os verdadeiros amantes. Os nossos suspiros, as nossas exclamações interrompidas, mil nomes de amor repetidos languidamente, foram durante um quarto de hora uma cena que comoveu M. de T...

— Fazem-me inveja — disse-nos ele, obrigando-nos a sentar; — não há destino, por mais glorioso que fosse, que eu preferisse a uma amante tão bela e tão apaixonada.

— Também eu desprezaria todas as grandezas do mundo, só para me garantir da fidelidade do seu amor — respondi.

Todo o resto dum encontro tão desejado não podia deixar de ser infinitamente terno. A pobre Manon contou as suas aventuras; eu as minhas. Chorámos amargamente, quando falamos da situação em que estávamos. M. de T... animou-nos com novas promessas de se dedicar inteiramente a finalizar as nossas desventuras. Aconselhou-nos que não prolongássemos demasiadamente esta primeira entrevista, para que ele tivesse mais facilidade em nos proporcionar outras. Custou-lhe muito obter a nossa obediência. Manon, sobretudo, não se resolvia a deixar-me partir. Mais dum cento de vezes me fez de novo sentar. Prendia-me a roupa e agarrava-me as mãos.

— Ah! em que lugar tu me abandonas! — exclamava ela. — Quem sabe se te tornarei a ver?

M. de T... prometeu-lhe que a visitaria muitas vezes comigo e acrescentou alegremente:

— Quanto ao lugar, não se deve chamar Presídio. Desde que está aqui uma pessoa que merece a adoração de todos os corações, é Versalhes.

Gratifiquei generosamente, ao sair, o carcereiro a fim de que ele fosse mais solícito para com Manon. Este rapaz era de melhor índole e menos brutal do que os da sua laia. Tinha sido testemunha da nossa entrevista e o espetáculo comovera-o. Um luís de ouro que lhe dei acabou de levar ao máximo grau toda a sua dedicação. Chamou-me à parte, quando descíamos a escada para me dizer:

— Se o senhor me quiser tomar ao seu serviço, ou recompensar da perda do emprego que aqui tenho, posso talvez libertar a menina Manon.

Todo eu era ouvidos ao escutar uma tal proposta; e ainda que nada tinha de meu, fiz-lhe promessas muito superiores aos seus desejos. Contava que sempre me seria fácil recompensar um homem desta espécie.

— Fica certo, meu amigo — disse-lhe eu — de que não haverá nada que não te faça, e que a tua fortuna é tão certa como a minha.

Quis saber qual o meio que tinha tenção de empregar para realizar as promessas que me fazia.

— O meio é este: — abrir-lhe de noite a porta do quarto e conduzi-la até à rua, onde será preciso que o senhor esteja para a receber.

Perguntei-lhe se não haveria a recear que ela fosse reconhecida ao atravessar os corredores e os pátios. Confessou-me que algum perigo havia, mas que era preciso arriscar alguma cousa.

Ainda que estivesse contente de o ver tão firme, chamei M. de T... para lhe comunicar este projeto e a única razão que a mim me parecia torná-lo duvidoso. Achou-o mais difícil do que eu o julgaya, concordando, no entanto, que ela podia evadir-se deste modo.

— Mas se a conhecem, — continuou ele — se a prendem ao fugir, talvez nunca mais tenha liberdade. Além disso, era preciso que ambos saíssem imediatamente de Paris, pois nunca estariam bem ocultos das pesquisas da polícia. Duplicá-las-iam tanto pelo senhor como por ela. Um homem só escapa facilmente; mas é quase impossível permanecer incógnito, quando é acompanhado por uma mulher bonita.

Por mais sólido que me parecesse este argumento, não pôde vencer no meu espírito a idéia de ver proximamente Manon restituída à liberdade. Assim o declarei a M. de T..., pedindo-lhe que perdoasse ao amor um pouco de temeridade e de imprudência. Acrescentei que o meu desígnio era, com efeito, deixar Paris para ir viver, como já outrora o tinha feito, n'’algum arrabalde.

Combinamos, então, com o criado como não se dilatar a empresa, além do dia seguinte; e para tornar o êxito tão seguro, quanto cabia em nossas forças, resolvemos arranjar uma roupa de homem, a fim de facilitar a saída de Manon. Não era fácil fazê-la entrar; mas não me foi impossível achar o meio para o conseguir. Pedi somente a M. de T... que trouxesse no dia seguinte duas vestes ligeiras uma sobre a outra e encarreguei-me do resto.

Voltamos nessa manhã ao Presídio. Trazia comigo, com destino a Manon, meias, camisa, etc. etc., e por cima do gibão um sobretudo que não deixava ver o volume das algibeiras. Não conversamos com Manon senão uns momentos. M. de T... deixou-lhe ficar uma das suas vestes; dei-lhe o meu gibão, porque, para completar o meu vestuário, sem ser notado, me bastava o sobretudo. Nada faltava, a não ser o calção, que desgraçadamente me tinha esquecido.

Esta falta duma peça tão necessária causar-nos-ia riso se o embaraço em que nos colocava não fosse tão sério. Estava desesperado pelo fato duma bagatela desta natureza ser capaz de nos tolher a execução do nosso projeto. No entanto, tomei um partido, que foi o de eu mesmo sair sem calções, deixando-os ficar a Manon. O meu sobretudo era comprido, e com a ajuda de alguns alfinetes, achei-me em estado de chegar decentemente até à rua.

O resto do dia pareceu-me de uma extensão insuportável. Enfim, vindo a noite, dirigimo-nos para junto da porta do Presídio dentro de uma carruagem. Não nos demoramos muito tempo sem que víssemos aparecer Manon e o seu guia. Aberta a portinhola do carro, ambos subiram para ele num instante. Recebi nos braços a minha querida amante, que tremia como uma folha ao vento. O cocheiro perguntou-me para onde nos devia conduzir.

— Leva-nos para o fim do mundo, e para qualquer parte onde eu não possa mais ser separado de Manon. Esta exaltação que não pude dominar ia-nos sendo fatal. O cocheiro notou a minha linguagem, e, quando em seguida lhe disse o nome da rua para onde nos devia levar, respondeu-me que receava muito que eu o comprometesse; que bem via que o indivíduo a quem chamavam Manon era uma rapariga que eu raptava do Presídio, e que ele não se achava muito disposto a perder-se por minha causa.

Os receios deste tratante não eram senão o desejo de me fazer pagar mais pelo aluguel do carro. Estávamos muito perto do Presídio para que não procedêssemos com prudência.

— Cala-te, — disse-lhe eu — ganhas um luís de ouro.

Depois destas palavras, ter-me-ia ajudado a deitar o fogo ao próprio Presídio.

Chegamos a casa onde morava Lescaut. Como era tarde M. de T... despediu-se de nós no caminho, prometendo vir ver-nos no dia seguinte.

Conosco ficou só o criado. Levava Manon tão estreitamente apertada nos meus braços, que não ocupávamos os dois mais do que um lugar na carruagem. Ela chorava de alegria, e eu sentia as minhas faces banhadas pelas suas lágrimas.

Mas quando nos apeamos para entrar em casa de Lescaut, tive com o cocheiro um novo desacordo, cujas conseqüências foram funestas.

Arrependi-me de lhe ter prometido um luís, não só porque a gratificação era excessiva, mas por outra razão ainda mais forte, que era a impossibilidade em que me achava de o pagar. Mandei chamar Lescaut, que desceu à porta da rua, e informei-o ao ouvido do embaraço em que estava. Como era arrebatado e como por modo algum estava costumado a tratar bem os cocheiros, respondeu-me que eu estava brincando.

— Um luís de ouro!... — ajuntou; — vinte bengaladas nesse maroto!

Debalde tentei mostrar-lhe que a sua sem razão nos ia perder. Tirou-me a bengala das mãos e arremeteu para o cocheiro. Este, que talvez já soubesse o que era um soldado da guarda real ou um mosqueteiro, fugiu cheio de medo, gritando que eu o tinha enganado mas que em breve teria notícias suas. Debalde lhe pedi que parasse...

A sua fuga inquietava-me extremamente; não duvidava de que ele fosse informar o comissário de polícia.

— Perdeu-nos — disse eu a Lescaut; — não estaremos em segurança em sua casa, é preciso fugirmos já.

Dei o braço a Manon e saímos prontamente desta rua tão perigosa. Lescaut fez-nos companhia.

É admirável o modo como a Providência encadeia os acontecimentos. Tínhamos apenas andado alguns metros, quando um homem, cujo rosto não descobri, reconheceu Lescaut.

Procurava-o decerto nos arredores da sua casa com o desgraçado desígnio que levou a cabo.

— É Lescaut, — disse ele, disparando uma pistola; — irá esta noite cear com o diabo.

E fugiu em seguida.

Lescaut caiu sem dar sinal de vida. Instei com Manon para fugir, porque os nossos socorros eram inúteis a um cadáver, e eu temia ser preso pela polícia, que não devia tardar a aparecer. Meti-me com ela e o criado pela primeira rua. Manon estava de tal modo desfalecida que quase custava a sustê-la. Por fim, avistei uma carruagem no extremo dessa rua. Subimos para ela; mas, quando o cocheiro me perguntou para onde nos havia de conduzir, fiquei novamente embaraçado com a resposta que devia dar-lhe. Não tinha asilo seguro, nem amigo de confiança a quem ousasse pedir auxílio; estava sem dinheiro, não tendo na algibeira mais do que meio dobrão. O susto e a fadiga tinham de tal modo deprimido Manon que estava como que pasmada ao meu lado. Demais, eu tinha a imaginação transtornada com o assassínio de Lescaut, e não haviam desaparecido ainda as minhas apreensões pelo que respeitava à perseguição da polícia.

Que havia a fazer? Lembrei-me, felizmente, da hospedaria de Chaillot, onde tinha passado alguns dias com Manon, quando fomos àquela aldeia procurar casa para morarmos. Esperava não só estar aí em segurança, mas poder viver algum tempo sem ser obrigado a pagar de pronto.

— Leva-nos para Chaillot — disse eu ao cocheiro.

Recusou ir até lá àquela hora avançada, a não ser que lhe dessem um dobrão; outro motivo de embaraço. Enfim ajustei a corrida por seis francos. Era todo o meu dinheiro.

Pelo caminho, tratei de consolar Manon; mas em verdade eu tinha o desespero na alma. Ter-me-ia suicidado se não levasse nos braços o único bem que me prendia à vida. Este pensamento dava-me coragem: — Ao menos possuo-a; Manon ama-me. Manon é minha.

Por mais que diga Tiberge, não é isto só um fantasma da felicidade. Veria perecer todo o universo sem que isso me importasse. — Por que? Porque nenhuma afeição mais me restava. Este sentimento era verdadeiro; contudo, na ocasião em que eu tão pouco caso fazia dos bens do mundo, sentia a necessidade de possuir uma pequena parte deles, para ainda mais soberanamente poder desprezar o resto. O amor é mais forte do que a abundância, mais forte do que os tesouros e as riquezas; mas tem necessidade do seu auxílio, e nada há mais desesperador para um amante delicado do que ver-se forçado por este fato a descer à grosseria das almas vis e baixas.

Eram onze horas, quando chegámos a Chaillot. Fomos recebidos na hospedaria como conhecimentos velhos. Não se admiraram de ver Manon em traje de homem, porque em Paris e seus arrabaldes está-se habituado a ver as mulheres praticarem toda a sorte de extravagâncias. Fiz servir Manon como se a minha bolsa estivesse bem recheada. Ela ignorava a miséria das minhas finanças e eu tive o cuidado de não a informar desta particularidade, resolvido como estava a voltar, no dia seguinte, a Paris para procurar remédio a esta desgostante espécie de doença. Durante a ceia, Manon pareceu-me pálida e magra. Não havia dado por isso no Presídio, porque o quarto onde a tinha visto pela primeira vez não era dos mais claros. Perguntei-lhe se seriam ainda efeitos do horror de ver assassinar seu irmão: respondeu, assegurando-me que, por muito que este acidente a tivesse prostrado, a sua palidez não provinha senão de ter passado três meses ausente de mim.

— Então, amas-me extremosamente?

— Mil vezes mais do que to poderia dizer.

— E nunca mais me deixarás?

— Não, nunca! — replicou ela.

E esta confissão foi confirmada por tantas carícias e juramentos que parecia impossível que ela os pudesse esquecer. Sempre julguei que Manon era sincera. Que razão teria para se contrafazer até este ponto?

Mas, era ainda mais volúvel, ou antes, não era mais que inconstante, e nem sequer se reconhecia a si própria quando, tendo diante dos olhos mulheres que viviam no meio do luxo e da abundância, se via forçada a lutar com a miséria e as necessidades. Estava em vésperas de ter uma última prova desta verdade, prova terrível que excedeu todas as outras, que produziu a mais extraordinária aventura que tenha acontecido a um homem da minha condição, e com a minha sorte.

Conhecendo-lhe, pois, esta tendência, dei-me pressa em ir no dia seguinte a Paris. A morte de seu irmão, a necessidade de ir buscar roupa para ela e para mim, eram razões tão convincentes que não tive precisão de inventar nenhum pretexto.

Saí da hospedaria com a intenção, disse eu a Manon e ao estajaladeiro, de tomar uma carruagem de aluguel; mas era uma fanfarronada esta evasiva. A penúria obrigou-me a ir a pé até Cours-la-Reine, onde tinha tenção de parar. Carecia dum momento de solidão para estudar minuciosamente o que ia fazer a Paris.

Sentei-me na relva. Entrei num oceano de considerações que se reduziam pouco a pouco a três principais pontos; tinha precisão de socorro imediato para ocorrer a um número infinito de necessidades urgentes; carecia de encontrar um meio qualquer que me desse ao menos esperança para o futuro; e, o que não era também de pouca monta, tinha de procurar informações e de tomar medidas para minha segurança e de Manon. Depois de ter esfalfado a mente em projetos e em combinações sobre estas três questões, julguei ainda a propósito omitir as duas últimas. Não estávamos mal refugiados numa casa em Chaillot, e quanto às exigências futuras, bastaria pensar nelas depois de ter acudido às presentes.

Tratava-se, pois de encher sem demora a bolsa. M. de T... tinha-me generosamente oferecido a sua; mas repugnava-me extremamente voltar a falar-lhe neste assunto. Que personagem é aquela que vai expor a sua miséria a um estranho, pedindo-lhe que reparta com ela o que tem! Só uma alma vil seria capaz de tal cousa, praticando uma baixeza que a impede de lhe sentir a indignidade, ou só um cristão despegado das vaidades da terra, movido por um excesso de humildade que o torna superior a esta vergonha. Eu não era nem um homem abjeto, nem esse bom cristão. Teria dado metade do meu sangue para evitar uma humilhação de tal ordem.

— Tiberge, — dizia eu comigo, — o bom Tiberge, recusar-me-á o dinheiro com que me possa socorrer? Não; ficará comovido com a minha miséria, mas assassinar-me-á com a sua moral: é preciso ir disposto a afrontar as suas repreensões e conselhos: há de fazer-me comprar o seu auxílio tão caro, que daria ainda uma parte do meu sangue para me não expor a esta cena desagradável que me deixará no sentimento a perturbação e o remorso...

Será, então, preciso renunciar a toda a esperança, visto que outros meios me não restam e eu estou tão pouco disposto a usar destes dois, que antes daria metade da vida, voluntariamente, do que seguiria um só deles. Sim, o meu sangue todo, — concluí, depois da reflexão dum momento; antes queria dá-lo do que ver-me reduzido a fazer tais súplicas. Mas trata-se aqui do meu sangue? Trata-se da vida e do sustento de Manon, do seu amor e sua fidelidade! Que tenho eu a pôr em paralelo com ela?! Manon é para mim a glória, a felicidade, a fortuna. Há muitas cousas, sem dúvida, pelas quais eu daria a minha vida para as obter ou para as evitar; mas, o fato de eu estimar uma cousa mais do que a minha vida, não é razão bastante para que a estime tanto como a Manon.

Depois destes raciocínios, pouco me custou a resolver-me. Continuei o meu caminho, na intenção de ir com Tiberge, e de me dirigir dali a casa de M. de T...

Ao entrar em Paris, tomei uma carruagem; ainda que eu não tivesse com que a pagar, contava com os recursos que ia pedir. Fiz-me conduzir ao Luxemburgo, donde mandei advertir Tiberge de que estava à sua espera. A minha impaciência foi satisfeita pela sua prontidão em aparecer. Informei-o da minha penúria sem o menor rodeio. Respondeu, perguntando-me se os cem dobrões que eu lhe tinha pago me bastariam; e sem fazer a menor objeção, foi buscá-los com esse ar franco, esse prazer de obsequiar que só conhecemos no amor e na verdadeira amizade.

Ainda que não tivesse a menor dúvida sobre o bom êxito do meu pedido, surpreendeu-me havê-lo conseguido tão barato, isto é, sem que Tiberge me fizesse um sermão sobre a minha impenitência. Mas, enganei-me, julgando-me totalmente quite das suas repreensões, porque, quando acabei de meter o dinheiro no bolso e me preparava para deixá-lo, pediu-me que fosse dar com ele uma volta pela alameda.

Eu não lhe tinha falado de Manon; Tiberge ignorava que ela estivesse no gozo da liberdade: assim, o seu sermão não versou senão sobre a minha fuga temerária de São Lázaro, e sobre o receio que ele tinha de que as lições que eu lá havia recebido, em vez de me servirem de proveito, fizessem que eu caísse de novo na devassidão. Disse-me que tendo ido a São Lázaro para visitar-me, no dia seguinte ao da minha evasão, ficara altamente surpreendido, quando soube o modo porque havia fugido; que a tal respeito tivera uma conferência com o superior; que o pobre padre ainda não estava em si do susto, mas que, no entanto, levava a sua generosidade ao ponto de esconder ao intendente geral da polícia as circunstâncias da minha fuga, fazendo ao mesmo tempo que, para além das portas do edifício, todos ignorassem a morte do porteiro; que eu podia estar certo de que por este lado nenhum mal me viria, mas que se me restava ainda algum vislumbre de honra, deveria aproveitar-me desta crise feliz que o céu dava às minhas extravagâncias; que o meu dever era escrever a meu pai, tratando de me reconciliar com ele; e que, se eu quisesse uma vez ao menos seguir os seus conselhos, era de opinião que deixasse Paris, voltando ao seio da minha família.

Ouvi o seu sermão até ao fim. Nele havia bastantes cousas tranqüilizadoras. Fiquei satisfeitíssimo de nada ter que temer do lado de São Lázaro. As ruas de Paris tinham-se tornado livres para mim. Em segundo lugar, regozijei-me com o fato de Tiberge nada saber da libertação de Manon, ignorando que estava novamente em minha companhia. Notei mesmo que Tiberge tinha timbrado em me não falar nela, na opinião, aparentemente, de que eu já não estava tão apaixonado, visto que tão tranqüilo me mostrava a seu respeito. Resolvi, no entanto, não voltar para casa de minha família, mas ao menos escrever a meu pai, como ele me aconselhava, testemunhando-lhe quanto me achava disposto a regressar aos meus deveres e a obedecer à sua vontade.

A minha esperança era de o levar a enviar-me dinheiro, sob o pretexto de fazer os meus estudos na Academia, pois custar-me-ia muito a persuadi-lo de que eu estava na disposição de voltar ao estado eclesiástico. No fundo, não tinha a menor aversão por aquilo que lhe prometia.

Estava até bem satisfeito, ao contrário, de procurar uma vida honesta e decente, tanto quanto este desígnio pudesse conciliar-se com o meu amor. Fazia conta de viver com a minha amante e continuar ao mesmo tempo os meus estudos. Isto era muito aceitável.

Estas idéias produziram em mim uma tal satisfação, que prometi a Tiberge enviar naquele mesmo dia uma carta a meu pai. Entrei, efetivamente, depois de deixá-lo, num escritório e escrevi uma epístola tão terna e tão submissa que, ao lê-la, pensei que, com ela, obteria alguma cousa do coração paterno.

Ainda que já estivesse em circunstâncias de pagar uma carruagem, achei prazer em caminhar altivamente a pé, dirigindo-me para casa de M. de T... Achava um certo encanto nesse exercício da minha liberdade, pela qual o meu amigo me havia assegurado nada ter a temer. Contudo, lembrou-me de repente que esta segurança era só relativamente a São Lázaro e que eu estava, além disso, envolvido no caso do Presídio, sem contar com a morte de Lescaut, à qual eu tinha assistido como testemunha.

Esta lembrança assustou-me por tal modo que me retirei para uma rua deserta, donde mandei chamar uma carruagem.

Fui direito a casa de M. de T..., que eu fiz rir com os meus receios. Até eu também tinha vontade de rir depois que ele me disse que nada tinha a temer, nem pelo que respeitava ao Presídio nem pelo assassínio de Lescaut. Contou-me que, na idéia de que supusessem ter ele tomado parte no rapto de Manon, havia ido logo de manhã ao Presídio, pedindo para vê-la e fingindo ignorar o que havia acontecido; que ali estavam tão longe de nos acusar a mim ou a ele, que se tinham apressado, ao contrário, a narrar-lhe a aventura, como uma notícia extraordinária, e admiravam-se de que uma moça tão bonita como Manon houvesse fugido com um criado; que ele se limitara a responder friamente que não estranhava o caso e que tudo se faz para se conseguir a liberdade.

Continuou, contando-me que tinha ido dali a casa de Lescaut, na esperança de lá me encontrar com a minha encantadora amante; que o dono da casa, que era carroceiro, lhe afirmara que não nos tinha visto; mas que não admirava que nós não aparecêssemos em casa, se era só para visitar Lescaut que lá íamos, porque sem dúvida teríamos sabido que o haviam assassinado. Interrogando o homem sobre as causas e circunstâncias desta morte, ele tinha declarado o seguinte: duas horas antes, um soldado da guarda real, amigo de Lescaut, viera visitá-lo e depois começaram a jogar. Lescaut ganhara tão rapidamente o dinheiro que o seu camarada trazia, que ele, em menos de uma hora, ficou sem os seus escudos.

Este desgraçado, vendo-se sem um soldo, pediu a Lescaut que lhe emprestasse metade da soma que tinha perdido; e por algumas questiúnculas que sobrevieram, os dois começaram a disputar, chegando às maiores insolências. Lescaut recusara sair para se bater, e o outro, afastando-se, jurou que lhe havia de fazer saltar os miolos, o que executou nessa mesma noite.

M. de T... acrescentou que tinha estado muito inquieto por nossa causa, e que continuava a oferecer-me os seus serviços. Não hesitei em lhe dizer o lugar para onde me tinha retirado. Pediu-me que o deixasse ir cear conosco.

Como não me restava mais nada a fazer do que levar roupa e vestidos para Manon, disse-lhe que podíamos partir imediatamente, se ele tivesse a bondade de passar por algumas lojas em minha companhia. Não sei se julgou que eu fazia esta proposta com o fim de estimular a sua generosidade, ou se foi simples movimento duma bela alma: o caso é que consentiu em acompanhar-me e levou-me aos estabelecimentos que forneciam a sua casa; fez-me escolher fazendas de preços mais consideráveis do que aquelas que eu queria, e quando me dispunha a pagá-las, proibiu os comerciantes que recebessem de mim a mais pequena quantia. Isto foi feito com tal delicadeza, que julguei poder aproveitar-me do favor sem ter de corar. Tomamos ambos o caminho de Chaillot, onde cheguei muito mais tranqüilo do que quando de lá saí...”

O cavalheiro des Grieux tinha gasto já mais de uma hora nesta narração; pedi-lhe, portanto, que descansasse um pouco e que nos fizesse companhia à ceia. Esta delicadeza fez-lhe crer que o havíamos escutado com prazer. Assegurou-nos que a continuação da sua história ainda era mais interessante; e, quando acabamos a refeição, continuou nestes termos:


SEGUNDA PARTE

 

A minha presença e a urbanidade de M. de T... bastaram para dissipar a tristeza que se tinha apossado de Manon.

— Esqueçamos terrores que já lá vão, minha querida — disse-lhe eu. — Somos mais felizes do que nunca. O amor é, em último caso, um bom soberano. A Fortuna não poderia causar-nos tantos males como de alegrias ele nos tem proporcionado.

A nossa ceia foi uma verdadeira cena de jovialidade.

Estava mais ufano e satisfeito com Manon e os meus dobrões do que decerto o estaria o mais rico capitalista com os seus tesouros empilhados. É preciso avaliarmos a nossa riqueza pelos meios que temos de satisfazer os nossos desejos; e eu não tinha mais do que um! O futuro pouco cuidado me dava. Estava quase certo de que meu pai me daria com que pudesse viver honestamente em Paris, visto que, contando já vinte anos, tinha o direito de exigir uma parte da herança de minha mãe. Não ocultei a Manon que tudo quanto então possuía eram cem dobrões, quantia suficiente para esperar tranqüilo e sossegado uma melhor fortuna que não deveria falhar-me, ou fosse pelos meus direitos de sucessão, ou pelos recursos do jogo.

Assim, durante as primeiras semanas, não cuidei senão de gozar a minha situação; e a honra e ainda um tal ou qual receio da polícia, faziam-me adiar, de dia para dia, uma nova ligação com os associados da espelunca da hospedaria de T... Limitava-me a jogar noutros círculos menos falados, onde o favor da sorte me poupou a humilhação de recorrer à fraude.

Ia passar à cidade todas as tardes, e voltava, para cear, em Chaillot, acompanhado muitas vezes por M... de T..., cuja amizade para conosco aumentava de dia para dia.

Manon achou meios de distração. Ligou-se, na vizinhança, com algumas moças que a primavera levara até Chaillot. Os passeios e os exercícios próprios do seu sexo formavam alternativamente a sua ocupação. Uma partida de jogo, cujo preço elas tinham limitado, dava para as despesas da carruagem. Iam à tarde gozar o ar fresco ao bosque de Bolonha, e à noite, no meu regresso, encontrava sempre Manon mais bela, mais contente e mais apaixonada do que nunca.

No entanto, algumas nuvens pareceram ameaçar o céu da nossa felicidade; mas bem depressa se dissiparam, e o gênio folgazão de Manon fez que o seu desenlace fosse tão cômico, que ainda sinto prazer na recordação que me traz à mente a sua ternura e os recursos do seu espírito.

O único criado que eu tinha chamou-me um dia de parte para me dizer, todo atrapalhado, que tinha a comunicar-me um segredo de importância. Animei-o a que falasse com toda a liberdade. Depois de alguns rodeios, disse-me que um cavalheiro desconhecido parecia ter-se apaixonado pela menina Manon.

Todo o meu sangue afluiu ao coração.

— E ela gosta dele? — interrompi eu, mais repentinamente do que a prudência mandava, para obter todos os esclarecimentos.

A minha vivacidade assustou-o. Respondeu-me, um tanto inquieto e balbuciante, que a sua penetração não tinha ido tão longe; mas que, tendo observado que esse desconhecido vinha assiduamente ao bosque de Bolonha, que se apeava da sua carruagem e que parecia procurar ocasião de se encontrar a sós com Manon, ele se lembrara de entabolar relações com os lacaios que o acompanhavam, para indagar o nome do amo: que eles lhe tinham dito que era um príncipe italiano e que o julgavam envolvido numa aventura amorosa; que nenhuns outros esclarecimentos pudera obter, porque o príncipe, chegando-se ao pé dele, lhe tinha com toda a familiaridade perguntado o seu nome. Depois, como se tivesse adivinhado que ele era nosso servo, tinha-o felicitado por estar ao serviço da pessoa mais encantadora do mundo.

Esperava com impaciência o final desta narrativa. O criado terminou-a com evasivas cheias de timidez, que eu não atribuí senão às minhas imprudentes exaltações. Debalde instei para que continuasse a contar-me o que soubesse sem o menor rebuço. Protestou-me que nada mais sabia: que o que me acabava de contar se havia dado no dia antecedente, e que desde então não tivera ensejo de tornar a falar aos criados do príncipe.

Sosseguei-o, não só fazendo-lhe elogios, mas até dando-lhe uma boa recompensa; e sem mostrar a menor desconfiança de Manon, recomendei-lhe com modo mais tranqüilo que vigiasse todos os passos do estrangeiro.

Mas, na verdade, o susto do meu criado, ao ver-me tão sobressaltado com a notícia, deixava-me numa dúvida e incerteza cruéis. Quem sabia se este susto era a causa dele ter suprimido uma parte da verdade?! No entanto, depois dum momento de reflexão, o meu alarme acalmou e cheguei mesmo a ter pesar de haver dado tal mostra de fraqueza. Eu não podia acusar Manon pelo fato de a amarem. Havia todas as probabilidades de que ela ignorava a conquista que tinha feito: e que vida seria a minha se desse com tanta facilidade ouvidos ao ciúme? Voltei a Paris no dia seguinte, sem ter formado outro projeto a não ser o de acelerar o aumento da minha fortuna, jogando mais forte, a fim de me achar em circunstâncias de abandonar Chaillot ao primeiro motivo de inquietação. À noite, quando regressei, nada me constou que pudesse sobressaltar-me. O estrangeiro tornara a aparecer no bosque de Bolonha, e, usando ou abusando do que se tinha passado na véspera, aproximou-se do meu confidente e falou-lhe do seu amor, mas em termos tais que nenhuns indícios dava de estar em relações com Manon. Tinha-o interrogado sobre mil cousas. Enfim, tentou comprá-lo com promessas valiosas; e, tirando da algibeira uma carta que já trazia pronta inutilmente lhe ofereceu um punhado de luíses para que ele a entregasse a sua ama.

Dois dias decorreram sem haver nenhum outro incidente. O terceiro foi mais tempestuoso. Soube, chegando muito tarde da cidade, que Manon, durante o passeio, se afastara um momento das suas companheiras, e que o estrangeiro, que a seguia a pouca distância, se tinha aproximado a um sinal dela, recebendo uma carta com vivas demonstrações de alegria. Ele não tivera tempo de exprimir esta alegria senão beijando amorosamente a epístola, porque Manon se afastou imediatamente. Mas, durante o resto do dia ela esteve sempre contente e, à noite, conservava-se ainda do mesmo humor. A cada palavra do criado eu tinha uma convulsão.

— Estás bem certo, — disse-lhe eu tristemente — de que os teus olhos não te enganaram.

Invocou o céu por testemunha da sua boa fé.

Não sei até onde me teriam levado os tormentos que sofria o meu coração, se Manon, que me tinha sentido entrar, não viesse ao meu encontro, queixando-se da minha demora. Não esperou pela resposta para me encher de carícias; e quando ficámos sós, repreendeu-me pelo hábito que eu ia tomando de recolher-me tão tarde. Como o meu silêncio lhe deixasse a liberdade de continuar, disse-me que havia já três semanas que eu não passava um dia inteiro com ela; que não podia sofrer tão longas ausências; que me pedia ao menos um dia com intervalos, e que todo o seguinte me queria ter ao seu lado desde manhã até à noite.

— Estarei — respondi eu secamente.

Manon deu pouca atenção à minha tristeza, e, na sua alegria, que na realidade me pareceu duma singular vivacidade, fez-me mil pinturas engraçadas do modo como tinha passado o dia.

— Estranha criatura! — dizia eu comigo; — que devo esperar deste intróito? A aventura da nossa primeira separação ocorreu-me à idéia. Contudo, julguei ver no fundo da sua alegria e da sua meiguice um acento de verdade que concordava com as aparências. Não me foi difícil atribuir a tristeza, de que não me pude ver livre durante a ceia, a uma perda considerável que tinha sofrido ao jogo. Considerava como uma felicidade que a idéia de eu não sair de Chaillot no dia seguinte tivesse emanado dela. Era ganhar tempo para as minhas deliberações. A minha presença afastava todos os receios; e se eu não observasse nada que me fizesse falar sobre o que tinha descoberto, tencionava levá-la dois dias para a cidade, onde iria morar num bairro que os príncipes não freqüentassem. Tendo tomado esta resolução, pude passar uma noite mais tranqüila, sem que no entanto abrandassem no meu espírito a dor e o temor duma nova infidelidade.

Quando nos erguemos, Manon declarou-me que, apesar de eu passar o dia em casa, ela não queria que eu andasse em desalinho, e que ela mesmo desejava pentear-me. Tinha eu então um belo cabelo. Por muitas vezes já se tinha divertido com a mesma cousa; mas naquele dia empregou mais cuidado com o meu penteado do que nunca. Fez-me sentar defronte do seu toucador e passar por todas as impertinências que julgou a propósito para me tornar belo. No decurso do seu trabalho, fez-me voltar muitas vezes o rosto para ela, e, apoiando as mãos sobre os meus ombros, olhava-me avidamente; depois, exprimindo a sua satisfação com um ou dois beijos, continuava o seu trabalho.

Este brinquedo durou até à hora do jantar. O prazer com que o tinha praticado pareceu-me tão natural e a sua alegria mostrava tão pouco artifício, que eu, não podendo conciliar aparências tão constantes com o projeto de uma negra traição, estive muitas vezes tentado a confessar-lhe tudo e a desembaraçar-me dum fardo que começava já a ser-me pesado. Mas lisonjeava-me que a confissão partisse dela, e de antemão gozava um delicioso triunfo.

Reentramos no seu gabinete de toilette. Manon começou novamente a compor-me os cabelos, e a minha complacência fazia-me ceder a todas as suas vontades, quando vieram preveni-la de que o príncipe de... pedia para lhe falar. Este nome irritou-me até à exaltação.

— Que é? — exclamei, repelindo-a: — Quem? Que príncipe?

Ela não respondeu às minhas perguntas e dirigindo-se ao criado:

— Mande-o entrar — disse-lhe friamente.

Depois, voltando-se para mim:

— Meu querido amante! a ti, que eu adoro, peço um momento de paciência; um momento, um só; amar-te-ei mil vezes mais; toda a minha vida te serei reconhecida.

A indignação e a surpresa tolheram-me a língua. Manon repetia o seu pedido e eu procurava expressões para negar, com desprezo. Mas, ouvindo abrir a porta da sala contígua, agarrou com uma mão os meus cabelos, que flutuavam sobre as costas, e segurando com a outra um pequeno espelho, empregou toda a sua força para me levar neste estado até à porta do gabinete; e, abrindo-a com o joelho, ofereceu ao príncipe — a quem o ruído tinha feito parar no meio da sala — um espetáculo que o deveria ter admirado bastante.

Vi, então, um homem muito bem vestido, mas de figura antipática. Apesar do embaraço em que esta cena o lançava, nem por isso deixou de fazer uma funda reverência. Manon não lhe deu tempo de abrir a boca. Apresentou-lhe o seu espelho.

— Vamos, senhor, — disse ela — veja-se bem e faça-me justiça. Pede-me amor. Eis aqui o homem que eu amo e que jurei amar toda a minha vida. Faça o senhor mesmo a comparação. Se julga poder-lhe disputar a posse do meu coração, diga-me em que se funda, pois declaro-lhe que aos olhos desta sua humilde serva todos os príncipes da Itália reunidos não valem nem um só dos cabelos que tenho na mão.

Durante esta disparatada arenga, que ela sem dúvida alguma tinha estudado, eu fazia esforços inúteis por me desembaraçar, e, tendo até dó da triste figura que um homem da sua qualidade estava fazendo, dispunha-me a reparar este pequeno ultraje com as minhas delicadezas. Mas o príncipe, recuperando rapidamente o sangue frio, respondeu a Manon com certa grosseria que me fez mudar de intuitos.

— Menina, menina! — disse ele com um sorriso forçado — abro, com efeito, os olhos e vejo-a muito menos inocente do que me tinha parecido.

Retirou-se depois sem a olhar e acrescentando em voz baixa que as francesas não valiam mais do que as italianas. Nada me animava, naquele momento, a fazê-lo mudar de opinião acerca do belo sexo.

Manon deixou-me, sentou-se numa cadeira, e atroava o quarto com as suas gargalhadas. Não dissimularei que bastante me penhorou este sacrifício que só ao amor podia atribuir; no entanto, a graça pareceu-me pesada e repreendí-a. Em resposta, Manon contou-me que o meu rival, depois de a ter perseguido durante muitos dias no bosque de Bolonha e de lhe ter feito adivinhar os seus sentimentos por meio de sinais, tomara o partido de lhe fazer uma declaração de amor em carta, em que mencionava o seu nome e os seus títulos e que lhe fez entregar pelo cocheiro da carruagem que a levava a ela e às suas companheiras até ao bosque; que nessa carta ele lhe prometia na Itália uma brilhante fortuna e eternas adorações; que tinha voltado para Chaillot resolvida a informar-me desta aventura; mas que tendo pensado que talvez nos pudéssemos divertir com ela, não conseguira resistir ao prazer de levar a cabo o seu plano: que tinha oferecido ao príncipe italiano, por uma resposta lisonjeira, a liberdade de a visitar, e que logo formulara a de me fazer tomar parte na sua tentativa sem que eu suspeitasse a menor cousa.

Não lhe disse a mais pequena palavra do que já sabia; e a cegueira do amor triunfante fez-me concordar com tudo.

Notei que em toda a minha vida o céu escolheu sempre, para me ferir com os seus mais rudes castigos, as ocasiões em que a minha fortuna parecia mais solidamente estabelecida. Julgava-me tão feliz com a amizade de M. de T... e a ternura de Manon, que nada seria capaz de me convencer de que tinha a recear uma nova desgraça. E, contudo, preparava-se uma tão funesta que me reduziu ao estado em que o senhor me viu em Passy, e, a pouco e pouco, a extremos tão deploráveis que muito lhe custará a acreditar na fidelidade de minha narração.

Uma noite em que M. de T... ceava conosco, ouvimos parar uma carruagem à porta da hospedaria. A curiosidade levou-nos ao desejo de sabermos quem seria que chegava a tais horas. Disseram-nos que era o jovem G... M..., isto é, o filho do devasso que nos tinha prendido a mim em São Lázaro e a Manon no Presídio. O seu nome fez-me subir o rubor às faces.

— É o céu quem o traz — disse eu a M... de T... — para o punir da vileza de seu pai. Já não escapa sem que meça a sua espada com a minha.

M. de T..., que o conhecia e que era mesmo dos seus melhores amigos, esforçou-se por me fazer mudar de idéias a seu respeito. Asseverou-me que G... M... era um rapaz muito amável, e tão incapaz de ter tomado parte na ação de seu pai, que eu mesmo logo que o conhecesse não hesitaria em conceder-lhe a minha estima e em desejar a sua.

Depois de ter dito muitas outras cousas em favor do recém-vindo, pediu-me que lhe concedesse licença para o ir convidar a sentar-se à nossa mesa, e arranjar-se conforme pudesse com os restos da ceia.

À objeção do perigo a que ia expor-se Manon, descobrindo ao filho do nosso inimigo o seu esconderijo, respondeu-me protestando novamente pela sua honra e pela sua fé que logo que ele nos conhecesse não teríamos mais zeloso defensor.

Em vista disto, cessaram as minhas hostilidades. M. de T... não o trouxe sem primeiro o informar de quem nós éramos. Efetivamente, a sua figura dispôs-nos bem. Abraçou-me; sentamo-nos. Elogiou Manon, elogiou-me a mim e a tudo quanto nos pertencia, e comeu com um tal apetite que fez honra à nossa ceia.

Quando se levantou a mesa, a conversação tornou-se mais séria. Baixou os olhos para nos falar do arrebatamento a que seu pai tinha chegado contra nós. Pediu-nos por esse motivo milhares de desculpas.

— Abrevio estas desculpas para não renovar uma recordação que me envergonha em demasia — disse ele.

Se tais desculpas eram sinceras no começo, mais sinceras se tornaram: ainda não tinha passado meia hora depois que estávamos reunidos, e já eu me apercebia da impressão que os encantos de Manon exerciam sobre ele. Pouco a pouco, as suas maneiras e os seus olhares foram-se enternecendo; não obstante as suas palavras não o terem atraiçoado e sem que o ciúme me esclarecesse, a minha experiência em amor não deixava que me passasse despercebida uma tal atitude.

Fez-nos companhia durante uma parte da noite e não nos abandonou senão depois de se ter felicitado pelo nosso conhecimento e haver-nos pedido a permissão de vir mais algumas vezes renovar pessoalmente a oferta dos seus serviços.

Eu não sentia, como disse, nenhuma inclinação para o ciúme e acreditava mais do que nunca nos juramentos de Manon. Esta encantadora criatura era tão absolutamente dona do meu coração e da minha vontade, que eu não nutria para com ela um único sentimento que não fosse de estima e de amor.

Longe de a culpar por ela ter agradado ao jovem G... M..., estava encantado pelo efeito que nele tinham produzido os seus dotes naturais, e aplaudia-me por ser amado por uma mulher que toda a gente achava encantadora. Julguei mesmo conveniente não lhe dar parte das minhas suspeitas.

Ocupámo-nos durante alguns dias no cuidado de arranjarmos o nosso vestuário e em deliberar se poderíamos ir ao teatro sem corrermos o risco de ser reconhecidos.

M. de T... veio visitar-nos no fim da semana e consultamo-lo a este respeito. Viu que era preciso dizer que sim para agradar a Manon. Resolvemos, pois, ir ao teatro nessa mesma noite.

No entanto, este projeto não se realizou, pois tendo falado comigo em particular, M. de T... disse-me:

— Estou na maior inquietação desde a última visita que lhe fiz e a minha vinda aqui, hoje, é motivada por isso mesmo. G... M... está apaixonado por Manon; confessou-mo. Sou amigo íntimo dele e estou disposto a servi-lo em tudo, mas não o sou menos seu. Vi que as suas intenções eram indesculpáveis e condenei-as. Teria guardado este segredo, se G... M... não estivesse resolvido a empregar mais do que os trâmites comuns; mas ele está bem informado da índole de Manon. Soube, não sei por quem, que ela gosta da abundância e dos prazeres; e, como é senhor duma fortuna considerável declarou-me que quer tentá-la primeiro com um valioso presente, e depois com a oferta duma pensão de dez mil francos. Se o partido fosse igual, custar-me-ia muito a atraiçoá-lo, mas a justiça abriu-se, em seu favor, à amizade, e tanto mais que tendo eu sido a causa imprudente da paixão de G... M... introduzindo-o aqui, sou obrigado a evitar os efeitos do mal que causei.

Agradeci a M. de T... um serviço desta importância e confessei-lhe, pagando a confiança com confiança, que o caráter de Manon era exatamente igual ao que G... de M... julgava: — isto é, que não podia suportar e nem mesmo ouvir falar em pobreza.

— Contudo, — disse-lhe eu — como agora não se trata da questão de mais ou de menos, não a julgo capaz de me abandonar por um outro. Estou em condições de lhe não faltar com cousa alguma, e conto que a minha fortuna irá em aumento de dia para dia. Não tenho medo senão de uma cousa: é que G... M... se sirva da circunstância de saber onde moramos para nos fazer alguma partida desagradável.

M. de T... asseverou-me que nenhum receio devia ter por esse lado; que G... M... era capaz duma loucura amorosa, mas não de uma infâmia; que se ele tivesse a covardia de cometer uma tal baixeza, seria ele o primeiro a puni-lo e a reparar por esse modo a desgraça a que tinha dado ensejo.

— Agradeço-lhe esses sentimentos, — repliquei eu — mas o mal estaria feito e o remédio seria muito incerto. Assim, o partido mais prudente a tomar é o de me prevenir, abandonando Chaillot para irmos morar noutra parte.

— Sim — concordou M. de T... — mas a impossibilidade está em o fazerem com tanta pressa quanto é preciso, pois G... M... deve aqui estar ao meio-dia; disse-mo ontem, e foi isso o que me obrigou a vir tão cedo informá-lo dos seus planos. Pode chegar dum momento para o outro.

Uma notícia de tal ordem fez-me encarar mais seriamente o negócio. Visto a impossibilidade em que estava de evitar a visita de G... M... e portanto a de impedir que ele fizesse a sua declaração a Manon, tomei o partido de ser eu mesmo quem a prevenisse dos desígnios deste novo rival.

Imaginei que ela, vendo-me ao fato das propostas que ele lhe ia fazer, e recebendo-as perto de mim, teria a força necessária para as rejeitar. Comuniquei a minha intenção a M... de T... que me respondeu que era uma cousa muito delicada.

— Confesso-o — retorquí eu; — mas eu possuo todas as razões que qualquer homem pode ter para depositar uma cega confiança na sua amante, e posso contar com a afeição de Manon. Só o brilho das ofertas a deslumbrará e eu já lhe disse que ela não é interesseira. Gosta das suas comodidades, mas também gosta de mim; e na situação pecuniária em que me encontro, eu não devo acreditar que ela me repudie pelo filho de um homem que a mandou prender no Presídio.

Numa palavra, persisti na minha idéia; e, a sós com Manon, confessei-lhe francamente tudo quanto acabava de ouvir.

Manon agradeceu-me o bom conceito em que eu a tinha e prometeu-me receber os oferecimentos de G... M... de modo tal que não lhe havia de ficar muito desejo de os renovar.

— Não — disse-lhe eu; — é preciso não irritar com alguma grosseria; pode-nos ser isso muito prejudicial. Mas tu bem sabes, tu, minha criança, — acrescentei rindo, — de que modo deves desfazer-te dum amante desagradável ou incômodo.

Manon, depois de ter pensado um pouco, replicou-me:

— Veio-me à idéia um plano admirável e orgulho-me de ser a sua inventora. G... M... é filho do nosso mais cruel inimigo: é preciso vingarmo-nos do pai, não no filho, mas sim na sua bolsa. Hei-de dar-lhe atenção, aceitar as suas ofertas e, depois, zombar com ele.

— O projeto é atraente, — repliquei — mas não vês, pobre criança, que foi um projeto idêntico, que nos levou direitinho à prisão?

Debalde tentei mostrar-lhe os perigos da empresa; respondeu-me que tudo estava no modo por que tomássemos as nossas precauções.

Dai-me um amante que não vá cegamente de acordo com todos os caprichos da mulher adorada, e ficarei convencido de que fiz mal em ceder tão facilmente.

Resolvemos enganar G... M..., mas por uma bizarra reviravolta do acaso fui eu por ele enganado.

Eram onze horas quando a sua carruagem chegou. Pediu-nos muitas desculpas, todas estudadas, pela liberdade que tomava de vir jantar conosco. Não se admirou de encontrar M. de T... que na véspera lhe tinha prometido vir também, mas que pretextara alguns negócios para que ele o dispensasse de o acompanhar na mesma carruagem.

Ainda que nem um só de nós todos não tivesse a idéia da traição na mente, sentamo-nos à mesa com o ar da maior confiança e amizade. G... M... achou facilmente ocasião para declarar os seus sentimentos a Manon, pois que eu propositadamente me ausentei da sala de jantar por alguns momentos.

Vi, quando voltei, que não o tinham tratado com rigor. Estava muito satisfeito. Eu fingi estar igualmente alegre. G... M... ria-se interiormente da minha cegueira e eu da sua, Toda a tarde representamos um para outro uma cena muito agradável. Antes da sua partida, ainda lhe proporcionei um momento de conversa a sós com Manon, de sorte que só teve de felicitar-se tanto pela minha complacência, como pelo jantar que eu lhe dera.

Logo que G... M... entrou na carruagem com M. de T..., Manon correu para mim de braços abertos, e beijando-me muito, vi-a a ponto de estalar com riso. Repetiu-me as suas palavras e propostas, sem lhes mudar uma sílaba. Reduziam-se ao seguinte: ele adorava-a, queria partilhar com ela uns quarenta mil francos de rendimento que já usufruía, sem contar com o que esperava por morte de seu pai. Ela ia ser dona absoluta do seu coração e da sua fortuna; e, como penhor das suas promessas, ele comprometia-se a dar-lhe já carruagem, um palácio mobilado, uma criada particular, três lacaios e um cozinheiro.

— Ora eis aí um filho — disse eu a Manon — muito mais generoso do que seu pai. Mas falemos sério e de boa fé: — Não te tenta este oferecimento?

— A mim? — respondeu ela, juntando à sua resposta estes versos de Racine:

“Moi! vous me soupçonnez de cette perfidie?
“Moi! je pourrais souffrir un visage odieux
“Qui rapelle toujours l’Hôpital a mês yeux”

— “Non!” — repliquei eu continuando a paródia:

“J’aurais peine a penser que l’Hôpital, madame,
“Fût un trait don l’amour l’eût gravé dans votre âme.”

Mas é uma fortuna sedutora, um palácio mobilado com carruagem e três criados; o amor poucas vezes proporciona dessas felicidades.

Manon protestou-me que o seu coração era meu por toda a vida e que não receberia outras flechas, além das que eu lhe atirasse.

— As promessas que ele me fez são mais um incentivo à vingança do que um apelo ao amor — concluiu ela.

Perguntei-lhe se estava resolvida a aceitar o palácio e a carruagem. Respondeu-me que só queria dinheiro.

A dificuldade estava em poder obter uma cousa sem a outra. Resolvemos, pois, esperar a inteira explicação do projeto de G... M..., numa carta que ele tinha prometido escrever a Manon. Ela recebeu-a, com efeito, no dia seguinte, da mão dum lacaio sem libré que, com toda a astúcia, lha entregou sem que ninguém visse. Manon disse-lhe que esperasse pela resposta e veio trazer-me a carta. Abrimo-la juntos.

Além das banalidades costumadas nas cartas deste gênero, continha ela os detalhes das promessas do meu rival. Não se poupava a despesas. Comprometia-se a entregar-lhe dez mil francos ao tomar ela posse do palácio, e a custear por tal forma as diminuições que esta quantia sofresse que ela pudesse sempre encontrá-la intacta na sua bolsa. O momento da ligação não era muito distante. Pedia-lhe dois dias para os preparativos, e dizia-lhe o nome da rua e a casa onde esperava encontrá-la, na tarde do segundo dia, se ela pudesse escapulir-se da minha companhia. Era este o único ponto em que ele queria ser esclarecido. Mostrava estar certíssimo de tudo o mais, mas afirmava que se Manon tinha dificuldade na fuga, ele acharia meio de a facilitar.

G... M... era mais inteligente do que seu pai. Queria pescar o peixe antes de gastar a isca. Discutimos o procedimento que Manon teria a seguir. Fiz ainda todos os esforços para lhe tirar da cabeça um tal projeto, mostrando-lhe todos os perigos.

Nada foi capaz de a dissuadir da sua resolução.

Respondeu em poucas linhas a G... M... para lhe dizer que não tinha dificuldade alguma em estar em Paris no dia marcado, e que ele a podia esperar na certeza de que a veria.

Combinámos, em seguida, que eu iria imediatamente alugar casa num lugar fora de Paris, diametralmente oposto ao que ocupávamos, e que para lá faríamos transportar toda a nossa pequena mobília; que na tarde seguinte, dia marcado, ela se dirigiria a Paris; que, depois de ter recebido os presentes de G... M..., pedir-lhe-ia instantemente que a conduzisse ao teatro, guardando consigo tudo quanto pudesse levar da soma dada, encarregando do resto o meu criado, que ela quis ter em sua companhia. Era ainda o mesmo que a havia ajudado a fugir do Presídio, e que nos era infinitamente afeiçoado. Eu devia achar-me, com uma carruagem, à entrada da rua de Santo André dos Arcos, e deixá-la aí ficar pelas sete horas, para avançar a pé e na obscuridade até à porta do teatro. Manon prometeu-me inventar um pretexto para sair um instante do camarote, vindo imediatamente ao meu encontro. A execução do resto era fácil. Num momento, estaríamos dentro do carro e sairíamos de Paris pelo arrabalde de Santo Antônio, a caminho da nossa nova habitação.

Este plano, não obstante ser tão extravagante, pareceu-nos muito bem combinado. Mas, afinal, sempre era uma louca imprudência pensar que, ainda mesmo que ele tivesse o melhor êxito, poderíamos escapar às suas conseqüências.

No entanto, expusemo-nos com a mais temerária confiança. Manon partiu com Marcelo — era assim que se chamava o nosso criado. Ao vê-la partir, confrangeu-se-me o coração. Abraçando-a, disse-lhe:

— Manon, não me enganas? Serás sempre fiel?

Ela queixou-se ternamente da minha desconfiança e renovou-me todos os seus juramentos.

A sua tenção era chegar a Paris pelas três horas. Parti depois dela. Fui matar o tempo, durante a tarde, ao café de Feré, na ponte de São Miguel. Aí me demorei até à noite. Saí, então, para alugar um fiacre, que coloquei, segundo o ajustado, à entrada da rua de Santo André dos Arcos; seguidamente, dirigi-me a pé para a porta do teatro. Admirei-me de não encontrar Marcelo, que me devia esperar ali. Durante uma hora, estive, cheio de impaciência, confundido com uma multidão de lacaios, observando quantas pessoas entravam e saíam.

Enfim, pelas sete horas, como eu não tivesse visto a mais pequena cousa que se relacionasse com o plano combinado, comprei um bilhete da platéia para ver se descobria n’algum camarote Manon e G... M... Nem um nem outro lá estavam; voltei, novamente, para a porta do teatro, muito inquieto. Não tendo visto aparecer ninguém, dirigi-me para a carruagem sem saber o que pensar ou o que deveria fazer. O cocheiro, avistando-me, adiantou-se para me dizer que uma linda mulher me esperava dentro do carro, havia mais de uma hora; que perguntara por mim, dando sinais certos, e que, tendo sabido que eu voltaria, disse que me esperava.

Imaginei logo que era Manon. Aproximei-me; mas vi uma linda carinha, que não era, porém, a dela; era uma estranha, que me perguntou primeiro se não tinha a honra de falar ao cavalheiro des Grieux. Afirmei-lhe que era esse o meu nome.

— Tenho uma carta para lhe entregar, — continuou ela — que o há de instruir do motivo que aqui me traz, e por que razão sei como o senhor se chama.

Pedi-lhe que me desse o tempo necessário para a ir ler num restaurante que ficava próximo. A mulher quis seguir-me e aconselhou-me a que pedisse um lugar reservado.

— De quem é esta carta?

— Leia e depois verá.

Reconheci a letra de Manon. A carta dizia pouco mais ou menos o seguinte: — “Que G... M... a tinha recebido com uma amabilidade e magnificência que ultrapassava tudo quanto ela poderia ter imaginado. Havia-lhe feito uma infinidade de presentes, e deixava-lhe entrever um futuro de rainha. Manon afirmava-me, no entanto, que no meio do seu novo esplendor não me esquecia; mas que não tendo podido naquela noite resolver G... M... a levá-la ao teatro, adiava para outro dia o prazer de me ver; e para me consolar um pouco do desgosto que esta notícia me ia causar, tinha achado meio de me enviar uma das melhores mulheres de Paris, que seria a portadora do seu bilhete.” Assinado: — “Tua fiel amante, Manon Lescaut”.

Esta carta tinha para mim um não sei que de tão cruel e insultante, que estive suspenso entre a cólera e a dor, e decidi tentar um esforço para esquecer eternamente a minha ingrata e perjura amante.

Lancei os olhos para a mulher que tinha diante de mim. Era extremamente linda, e desejaria que ela ainda o fosse mais, para que eu pudesse por minha vez tornar-me perjuro e infiel; mas não achei esse olhar celeste e lânguido, esse porte divino, essa cor composta pelo próprio Amor, enfim, essa fonte inesgotável de encantos, com que a natureza tão pródiga tinha sido com Manon.

— Não, não — disse-lhe, deixando de olhar para ela; — a ingrata que mandou aqui a menina bem sabia que lhe fazia perder os passos. Volte para ela e diga-lhe da minha parte que goze o seu crime, e que o goze, se é possível, sem remorsos. Abandono-a sem recriminações e renuncio, ao mesmo tempo, a todas as mulheres que não poderiam ser tão dignas de me incutirem uma paixão, mas que sem dúvida alguma devem ser tão vis como ela.

Estive resolvido a retirar-me sem me importar mais com Manon; e como o ciúme mortal que me dilacerava se convertesse pouco a pouco numa desesperadora e sombria tranqüilidade, julguei-me tanto mais próximo da minha cura, quanto eu não me sentia dominado por nenhum desses acessos violentos doutras ocasiões idênticas. Mas como me enganava! Era atraiçoado pelo amor, tanto quanto o julgava ser por G... M... e Manon.

A mulher que me tinha trazido a carta, vendo-me disposto a partir, perguntou-me que resposta queria que desse a G... M... e à dama que estava com ele. Tornei a entrar no gabinete ao ouvir esta pergunta, e, por uma mudança ignorada dos que nunca sentiram paixões violentas, achei-me repentinamente transportado da tranqüilidade em que julgava estar a um terrível acesso de furor.

— Vai — disse-lhe eu, — levar ao traidor G... M... e à sua pérfida amante, a notícia do desespero em que a sua maldita carta me lançou; mas faz-lhes saber que não se hão-de rir muito tempo, porque os apunhalarei a ambos.

Deixei-me cair sobre uma cadeira; o meu chapéu tombou para um lado e a bengala para outro. Uma torrente de lágrimas corria-me dos olhos. O acesso de raiva que acabava de sentir transformou-se numa dor profunda; não fiz senão chorar, suspirando e gemendo. — Aproxima-te, minha filha, aproxima-te, — exclamei — visto que te enviam para me consolares. Dize-me se conheces alguma cousa para combater a fúria, o desespero e o desejo do suicídio, depois de ter arrancado o coração a dois entes que não merecem a vida. Sim, aproxima-te, continuava eu, vendo que ela dava alguns passos tímidos e incertos na minha direção; vem enxugar as minhas lágrimas; vem restituir-me o sossego ao coração, vem dizer-me que me amas, a fim de que me habitue a ver a meu lado outra que não seja a minha infiel amante. Tu és bonita; talvez te possa amar por minha vez.

Esta pobre mulher que não contaria mais de dezesseis ou dezessete anos e que me parecia ter mais pudor do que as da sua triste condição, estava extraordinariamente surpreendida com a cena. No entanto, aproximou-se de mim, para me acariciar; mas eu repeli-a imediatamente:

— Que queres tu de mim — perguntei eu. — Ah! tu és mulher..., és do sexo que eu abomino, que detesto, que já não posso suportar. A inocência e a candura do teu rosto pressagiam-me alguma traição. Vai-te e deixa-me aqui só.

A mulher fez-me uma reverência, sem nada me dizer, e voltou-se para sair. Gritei-lhe que esperasse.

— Mas, dize-me ao menos, por quê, como, e com que fim te mandaram aqui! Como soubeste o meu nome e o sítio onde me poderias encontrar?

Declarou-me que conhecia de muito perto G... M..., que ele a mandara buscar às cinco horas e que, em companhia do lacaio que lhe tinha levado o recado, entrara num grande palácio, onde o encontrou a jogar as cartas com uma senhora muito linda e galante; que ambos a encarregaram de me entregar a carta que me havia dado, depois de a terem informado que me encontraria dentro duma carruagem, ao fim da rua de Santo André. Perguntei-lhe se não lhe tinham dito mais nada. Respondeu-me, corando, que ambos lhe haviam afirmado que talvez eu instasse para que ela me ficasse fazendo companhia...

— Enganaram-te, — disse-lhe eu, — enganaram-te, minha pobre filha. És uma mulher, precisas dum homem, mas dum homem que seja rico e feliz, e não é em mim que tu o encontras. Volta, volta outra vez para G... M..., que possui tudo quanto é preciso para ser amado das belas: tem palácios mobilados e carruagens para dar. Quanto a mim, que não tenho senão amor e constância para oferecer, as mulheres desprezam a minha miséria e mofam da minha ingenuidade.

Acrescentei mil cousas mais, tristes ou violentas, conforme as paixões que alternativamente me agitavam. Contudo, à força de me atormentar, os meus transportes diminuíram bastante para darem lugar a algumas reflexões. Comparei este último infortúnio com os que tinha sofrido do mesmo gênero e não achei motivo para me desesperar mais do que dos primeiros. Conhecia Manon: para que me havia de afligir tanto por motivo de uma desgraça que deveria ter previsto? Porque não cuidaria antes de dar-lhe remédio? Ainda era tempo. Devia, ao menos, não poupar nenhum esforço, se não quisesse depois arrepender-me de haver eu sido, com a minha negligência, a causa de todas as minhas penas. Comecei, portanto, a refletir nos meios que podiam abrir-me um caminho para a esperança.

Empreender arrancá-la pela violência das mãos de G... M... era uma solução arriscada que não serviria senão para me perder e que não tinha a menor aparência de bom êxito. Mas pareceu-me que, se eu pudesse conseguir uma curta explicação com Manon, teria ganho a partida; conhecia tão bem todos os fracos do seu coração! Estava tão certo de ser amado por ela! A extravagância de me ter enviado uma mulher bonita para me consolar devia ter partido dela e era um efeito da sua compaixão pelas minhas penas.

Resolvi empregar toda a minha habilidade e astúcia para a ver. Entre a infinidade de meios que examinei uns após outros, detive-me no seguinte: M. de T... tinha começado a obsequiar-me com demasiada afeição para me deixar a menor dúvida sobre a sua sinceridade e o seu zelo. Propus-me ir a sua casa imediatamente e pedir-lhe que mandasse chamar G... M... sob um pretexto qualquer. Bastava-me meia hora para falar a Manon. O meu fim era introduzir-me no seu próprio quarto, e julgava que isso me seria fácil na ausência de G... M...

Esta resolução tranqüilizou-me mais: paguei à mulher generosamente, e, para lhe tirar toda a vontade de voltar para junto dos que ma tinham enviado, perguntei-lhe onde morava e dei-lhe a entender que talvez eu fosse passar com ela essa noite.

Tornei a entrar na minha carruagem, e mandei bater a toda a brida para casa de M. de T... Muito feliz fui em lá o encontrar, o que pelo caminho me causou algumas inquietações. Poucas palavras me bastaram para o pôr ao fato dos meus pesares e do serviço que lhe vinha pedir.

Ficou tão admirado de saber que G... M... tinha conseguido seduzir Manon, que, ignorando a parte que eu mesmo tivera na minha desgraça, ofereceu-se-me generosamente para reunir todos os seus amigos e, com a ajuda das suas espadas, irmos libertar a minha amante.

— Reservemos a força para a última extremidade; por agora — disse eu — medito num meio muito mais brando e que no entanto não promete menor êxito.

Comprometeu-se a fazer tudo quanto eu quisesse, fosse o que fosse, e tendo-lhe eu dito que não se tratava senão de mandar chamar G... M... e entretê-lo por uma ou duas horas, saiu logo comigo para satisfazer o meu pedido.

Principiamos por analisar o expediente que buscaríamos para o demorar tanto tempo longe de Manon. Aconselhei-o a que lhe escrevesse primeiro um simples bilhete, datado de qualquer “bar” pedindo-lhe que fosse imediatamente falar-lhe ali para um negócio que não podia sofrer delongas.

Notei-lhe que todo esse aparato podia ser pernicioso a Manon e a mim.

— Estarei de atalaia para, quando ele sair, entrar eu sem custo em sua casa, visto que ninguém lá me conhece a não ser Manon e Marcelo, que é meu criado. Quanto ao meu amigo, que permanecerá durante esse tempo com G... M..., poderá dizer-lhe que o negócio tão urgente, que o obrigara a mandá-lo chamar, era uma falta de dinheiro; que acabava de perder tudo quanto tinha ao jogo, e que continuara a jogar sob palavra, mas com a mesma infelicidade. Será preciso algum tempo para ele ir a sua casa buscar-lhe o dinheiro, e esse tempo é suficiente para eu executar o meu plano.

M. de T... cumpriu esta combinação. Deixei-o num “bar”, onde ele escreveu prontamente a carta. Fui postar-me a alguns passos de distância da casa de Manon; vi chegar o moço com o bilhete, e G... M... sair pouco depois a pé, seguido de um lacaio. Tendo-lhe dado tempo para que se afastasse da rua, avancei para a porta da casa da minha infiel, e apesar de toda a minha cólera, bati com o respeito que se sente diante dum templo. Felizmente, foi Marcelo quem me veio abrir a porta. Fiz-lhe sinal para que se calasse; ainda que nada tivesse a temer dos outros criados, perguntei-lhe em voz baixa se me podia conduzir ao quarto onde estava Manon, mas sem que ninguém me visse. Disse-me que isso era muito fácil, subindo eu pela escada principal.

— Então vamos já a isso, e trata de impedir, enquanto eu lá estiver, que suba alguém.

Manon estava a ler. Foi aqui que tive ocasião de admirar o caráter dessa mulher. Longe de se mostrar assustada e tímida ao ver-me, apenas denunciou esses leves sinais de surpresa que ninguém é capaz de esconder, quando vê junto a si uma pessoa que julga afastada.

— Ah! és tu, meu amor? — exclamou ela, vindo beijar-me com a sua ternura costumada. — Meus Deus, que audacioso que és! Quem te havia de esperar hoje neste lugar!

Soltei-me dos seus braços, e, longe de corresponder às suas carícias, repelí-a desdenhosamente e recuei dois ou três passos para me distanciar dela. Este movimento desconcertou o seu sangue frio. Ficou pregada ao sobrado no mesmo lugar e fitou-me, mudando de cor.

Mas, na verdade, eu estava tão satisfeito de a tornar a ver, que, apesar de tantos motivos de cólera, me custava imenso abrir a boca para a repreender e censurar. E, no entanto, a ferida que ela me rasgara no coração sangrava imenso; lembrava-me do ultraje que Manon acabava de me fazer e procurava que nos meus olhos brilhasse um fogo que não fosse o do amor.

Como eu ficasse algum tempo silencioso e ela notasse a minha agitação, vi-a tremer aparentemente por efeito do susto que eu lhe inspirasse.

Não pude prolongar este espetáculo.

— Ah! Manon infiel, perjura Manon! — disse-lhe eu com voz terna — Como queres tu que eu comece a queixar-me? Vejo-te pálida e trêmula, e ainda sou tão sensível às tuas menores aflições que temo agora aumentá-las com as minhas reprimendas e argüições. Mas, Manon, tenho o coração dilacerado com a dor da tua perfídia. Golpes desta violência não se vibram num amante, senão depois de se ter resolvido matá-lo. Esta é já a terceira vez, Manon; contei-as bem; é impossível que isto me esqueça. Agora compete-te a ti, e neste mesmo momento, dizer-me qual é o partido que tens tenção de seguir, pois o meu triste coração não está por modo algum afeito a tão duro e cruel tratamento. Sinto que ele vai sucumbir e que está prestes a estalar de dor. Não posso mais! — concluí, sentando-me numa cadeira. — Mal consigo falar e ter-me de pé.

Manon não me respondeu; mas quando me viu sentado, deixou-se cair de joelhos e encostou a cabeça aos meus, cobrindo o rosto com as minhas mãos. Senti abundantes lágrimas correrem dos seus olhos. Meu Deus, que estranhos sentimentos me agitavam!

— Ah! Manon, Manon — recomecei — são bem tardias as lágrimas depois do assassínio. Finges uma tristeza que não sentes. O maior de todos os teus males é sem dúvida alguma a minha presença, que foi sempre importuna aos teus prazeres. Abre os olhos, olha para mim; não se chora dessa forma por um desgraçado a quem se traiu e abandonou cruelmente.

A pobre mulher beijava-me as mãos sem se mover.

— Inconstante Manon, mulher ingrata e sem fé, onde estão as tuas promessas? que é feito dos teus juramentos? Amante mil vezes volúvel e cruel, que fizeste desse amor que tu ainda hoje me juravas? — Justo céu! — exclamei eu — é assim que uma infiel se ri de vós depois de vos ter invocado tão santamente? É pois o perjúrio que é recompensado? O desespero e o abandono são a paga da constância e da fidelidade?!

Estas palavras foram acompanhadas dum raciocínio tão amargo, que a meu pesar me fez verter algumas lágrimas. Manon conheceu essas lágrimas pela mudança da minha voz, e rompeu por fim o silêncio:

— É preciso que eu seja bem culpada, visto que tanto mal te fiz; mas invoco o céu por testemunha de que jamais tive idéia de sê-lo agora ou mesmo de futuro.

Esta resposta pareceu-me tão pouco sincera e desprovida de senso, que me foi impossível dominar um vivo movimento de cólera.

— Que horrível dissimulação! — exclamei eu. — Vejo agora, melhor do que nunca, que tu não és mais do que uma infame e uma pérfida. Só agora conheço o teu miserável caráter. Adeus, vil criatura, — continuei, levantando-me; — antes queria sofrer mil mortes neste momento, do que ter contigo a menor convivência. O céu me castigue se de hoje em diante eu te olhar! Fica com o teu novo amante, ama-o, detesta-me; renuncia à honra, ao bom senso, ao pudor; rio-me disso; para mim tudo é o mesmo.

Manon ficou de tal modo perturbada ao ouvir-me tais palavras, que, permanecendo de joelhos junto da cadeira donde eu me tinha levantado, fitava-me tremendo e quase sem respirar. Dei ainda alguns passos para a porta, com os olhos fitos nela, mas seria mister que eu tivesse perdido todos os sentimentos de humanidade para me mostrar inexorável contra tantos encantos.

Estava tão longe de possuir esta força bárbara que, passando duma extremidade à outra, voltei para junto dela sem refletir. Apertei-a nos meus braços; dei-lhe mil beijos; pedi-lhe perdão do meu arrebatamento, confessei-lhe a minha brutalidade e disse-lhe que não era digno de ser amado por uma mulher como ela.

Fiz sentá-la, e pondo-me de joelhos diante dela, conjurei-a a que me ouvisse nesta posição. Depois, tudo quanto um amante submisso e apaixonado pode imaginar de respeitoso e terno, condensei-o eu em poucas palavras, com as minhas desculpas. Pedi-lhe que dissesse que me perdoava; Manon deixou cair os braços sobre os meus ombros, afirmando que era ela quem precisava da minha bondade, para me fazer esquecer todos os pesares que me causava, e que começava a ter receio de que eu não acreditasse no que me tinha a dizer, para se justificar.

— Eu! — interrompi imediatamente — não te peço justificação. Aprovo já tudo quanto tens feito. Não serei eu quem te exija explicações do teu comportamento. Muito contente, muito feliz me hei-de julgar se a minha cara Manon ainda conservar por mim toda a ternura do seu coração. Mas dize-me — continuei eu, sem refletir na minha sorte — dize-me, onipotente Manon, tu que és a causa das minhas alegrias e dos meus sofrimentos: depois de eu me ter humilhado e arrependido não me será permitido falar das minhas penas e das minhas dores? Saberei da tua boca o que o destino hoje me reserva e se é sem apelação que vais lavrar a minha sentença de morte passando a noite com o meu rival?

Antes de responder, meditou nas suas palavras.

— Meu cavalheiro, — disse ela recuperando a serenidade — se em lugar da fúria a que a princípio te entregaste, tivesses logo dito qual o motivo que aqui te trazia, decerto que não terias sofrido tanto e poupar-me-ias uma cena bem aflitiva. Como o teu pesar é ocasionado pelo ciúme, tê-lo-ia imediatamente morto oferecendo-me hoje para seguir-te até ao fim do mundo. Mas imaginei que a causa do teu despeito eram a carta que te havia escrito à vista de G... M... e a mulher que dela tinha sido portadora. Pensei que pudesses ter tomado essa carta como um insulto, e essa mulher — imaginando que ia da minha parte, — como uma declaração de que eu renunciava completamente ao teu amor para me ligar a G... M... Este pensamento foi o que me consternou; pois, por mais inocente que estivesse, ao meditar no fato, via que todas as aparências me condenavam. Contudo, quero que sejas meu juiz depois de te haver explicado o que há de verdade em tudo quanto hoje tenho feito depois que te deixei.

Contou-me, então, tudo quanto lhe sucedera desde que se havia encontrado com G... M... que a esperava no lugar onde agora estávamos e que, efetivamente, a tinha recebido como a primeira princesa do mundo. Havia-lhe mostrado todos os quartos, que eram dum gosto e duma magnificência admiráveis. Entregara-lhe dez mil francos no seu gabinete, juntando mais a esta oferta alguns objetos de valor, entre os quais se contavam o colar e os braceletes de pérolas que ela já tinha recebido de seu pai. Depois, tinha-a conduzido para uma sala que ele a princípio lhe não mostrara, e onde lhe fez servir um delicioso e delicado jantar. Mandara-o servir pelos novos criados que contratara para ela, ordenando-lhes que dali para o futuro a olhassem como sua ama; enfim, mostrara-lhe a carruagem, a parelha, e o resto dos presentes; depois propusera-lhe jogarem as cartas até à hora da ceia.

— Confesso-te — continuou Manon — que esta magnificência chocou-me bastante. Refleti que seria pena privar-mo-nos de repente de tanta cousa, levando apenas os dez mil francos e as jóias; que aquilo era uma fortuna para nós ambos e que poderíamos viver agradavelmente à custa de G... M...

Em vez de lhe pedir que me levasse ao teatro, meteu-se-me na cabeça sondá-lo a teu respeito, para saber se teríamos ou não facilidade em nos vermos quando quiséssemos, supondo a execução do plano que imaginava. Achei-o complacente. Perguntou-me o que eu pensava a teu respeito e se eu te havia deixado sem tristeza. Disse-lhe que eras tão amável, que tinhas sido sempre para comigo tão delicado, que não era natural poder um dia odiar-te. Confessou-me que tu eras muito simpático e que tinha desejado muito conseguir a tua amizade. Quis saber de que modo eu pensava que tu encararias a minha fuga, sobretudo quando soubesses que estava na sua companhia. Respondi-lhe que a nossa ligação já era antiga e tivera tempo de arrefecer; que, demais, tu não andavas muito abonado e que talvez não olhasses a minha perda como uma grande infelicidade, porque ela te exonerava dum encargo que em demasia te pesava. Acrescentei que estando muito convencida de que tu procederias pacificamente, não tivera a menor dificuldade em te dizer que vinha a Paris para tratar duns negócios; que havias consentido e que tendo-me acompanhado, não me pareceste muito inquieto quando eu te deixei.

— Se eu acreditasse, — disse G... M... — que o seu temperamento lhe permitiria viver na minha companhia, seria eu o primeiro a oferecer-lhe os meus serviços e bons ofícios.

Assegurei-lhe que com o caráter e sentimentos que te conhecia não duvidava que tu correspondesses cavalheirosamente às suas ofertas, sobretudo se ele pudesse servir-te de amparo nas tuas finanças, que estavam muito embaraçadas, depois que te tinhas malquistado com tua família. Interrompeu-me para me protestar que te serviria em tudo quanto dependesse dele, e que se tu quisesses tomar uma nova amante, mandaria procurar-te uma linda mulher que abandonara por minha causa. Aplaudi muito esta idéia, — exclamou Manon, — para melhor dissipar todas as suas suspeitas; e, cada vez mais firme no meu projeto, não pensava senão no meio de te informar dele, receosa como estava de que te assustasses por não me veres aparecer no lugar combinado.

Foi por motivo disto que lhe propus que te enviasse, esta noite mesmo, essa nova amante, com o fim de arranjar ocasião de te escrever; não tinha remédio senão recorrer a este meio, pois não podia esperar que ele me deixasse, por outra forma, um único momento livre.

G... M... riu-se da minha proposta. Chamou um lacaio e mandou-o procurar por toda a parte a sua antiga amante. Ao princípio, imaginou que era a Chaillot que a devia mandar ter contigo; mas eu disse-lhe que, quando te deixei, tinha ficado de me encontrar contigo no teatro, ou tu me esperarias dentro de uma carruagem ao fim da rua de Santo André; que era melhor, portanto, mandar ali a mulher, ainda que mais não fosse senão para te não deixar ficar uma noite inteira à minha espera. Disse-lhe, também, que achava bom escrever-te duas palavras, para te advertir da troca, aliás de certo não a compreenderias. Consentiu nisto, mas fui obrigada a fazer a minha carta na sua presença, não podendo, por isso, explicar-me abertamente.

— Ora aqui tens, — concluiu Manon — como as cousas se passaram. Nada te oculto: nem a minha conduta, nem as minhas intenções. A rapariga veio, achei-a bonita, e como não tinha a mais pequena dúvida de que a minha ausência te penalizava, era sincera quando te escrevia, desejando que ela fosse capaz de te distrair alguns momentos, porque a fidelidade que de ti quero é a do coração. Bem desejaria mandar-te o recado por Marcelo, mas não tive nem um só instante de meu para lhe ensinar o que ele te deveria dizer.

Manon terminou a sua narrativa, revelando a perplexidade de G... M... ao receber o bilhete de M. de T... Hesitou em a deixar; mas depois saiu, afirmando que não se demorava um instante.

— É isso o que provoca a minha inquietação por te ver aqui e foi isso o que deu lugar à minha surpresa quando te vi chegar.

Ouvi com a maior paciência tudo quanto Manon me disse. A sua confissão mortificava-me, porque a intenção em que estava de me ser infiel era tão manifesta, que ela nem mesmo se dera ao trabalho de mo ocultar.

Manon bem devia supor que G... M... não a deixaria passar a noite como se ela fosse uma vestal. Era pois com ele que Manon contava dormir. Que revelação para um amante! Contudo, reconheci que eu era em parte a causa principal da sua traição, primeiro por a ter informado tão explicitamente da paixão de G... M..., segundo, pela minha complacência em entrar tão cegamente no plano temerário da sua aventura. Além disso, o maldito gênio que tenho levava-me a aceitar de bom grado a ingenuidade da narrativa, não obstante o modo franco com que ela me contava até os detalhes que mais ofendiam o meu amor próprio.

— No seu pecado não há malícia; é leviana e imprudente, mas sincera e leal — dizia eu.

Ajunte-se a isto, o amor a vendar-me completamente os olhos, e a esperança de que ainda naquela mesma noite a roubaria ao meu rival, e digam-me se tinha ou não motivo para lhe perdoar todas as suas faltas.

— E com quem passavas a noite? — interroguei tristemente.

Esta pergunta embaraçou-a. Apenas me respondeu com mas e com se interrompidos constantemente.

Tive dó dela e terminei, dizendo-lhe que esperava me seguisse naquele mesmo momento.

— Isso quero eu; mas, então, não aprovas o meu projeto?

— Quê? Pois não basta a minha aprovação tácita a tudo quanto tens feito até agora?

— Nem ao menos levamos os dez mil francos? — replicou Manon. — São meus, ele deu-mos.

Aconselhei-lhe que não trouxesse cousa alguma e que não cuidasse senão na fuga; pois ainda que eu estava com Manon havia apenas meia hora, receava muito que G... M... voltasse dum instante para o outro. No entanto, Manon com tanta instância me pediu para que eu consentisse em que ela não abandonasse a casa do meu rival, como vulgarmente se diz, de mãos a abanar, que entendi dever conceder-lhe alguma cousa, visto que tanto tinha já obtido dela.

Preparavamo-nos para a partida, quando sentimos bater à porta.

Não tinha a mais pequena dúvida de que fosse G... M..., e na perturbação em que esta idéia me lançou, disse a Manon que se ele aparecesse era um homem morto. E com efeito ainda não estava suficientemente sereno para moderar a minha exaltação diante dele. Marcelo, porém, tranqüilizou-me trazendo um bilhete de M. de T... que lhe tinha sido entregue à porta.

Nesse bilhete dizia-me ele que, tendo G... M... ido buscar dinheiro a casa, aproveitava-se da sua ausência para me comunicar uma idéia muito divertida: parecia-lhe que eu não tinha melhor meio de me vingar do meu rival, do que comer-lhe a ceia e passando aquela noite debaixo dos mesmos lençóis em que ele esperava dormir com a minha amante; julgava isto muito fácil se eu tivesse três ou quatro homens que o agarrassem no meio da rua e o conservassem preso até ao dia seguinte; pela sua parte, prometia reter ainda mais uma hora G... M..., logo que ele voltasse.

Mostrei este bilhete a Manon e contei-lhe de que meio me tinha servido para me introduzir livremente em sua casa. A minha astúcia e a lembrança de M. de T... pareceram-lhe admiráveis. Rimo-nos ambos à nossa vontade, durante alguns momentos; mas, quando lhe falei no último desforço como duma brincadeira, fiquei surprendido ao ver que Manon insistia pela sua execução como se isso lhe desse o maior prazer.

Debalde lhe perguntei onde queria que eu, do pé para a mão, arranjasse gente para prender G... M..., e conservá-lo custodiado uma noite. Disse-me que era preciso pelo menos tentar encontrar essa gente, uma vez que M. de T... nos garantia ainda uma hora de liberdade; e por única resposta às minhas objeções, asseverou que eu representava sempre para com ela o papel de tirano, não tendo nunca a menor complacência para com os seus desejos. Nada achava tão belo como este projeto.

— Terás à mesa o seu lugar — repetia-me Manon; — dormírás nos seus lençóis, e amanhã de madrugada arrebatar-lhe-ás não só a amante, mas até o seu dinheiro. Ficamos bem vingados do pai e do filho.

Não obstante o que me pressagiava o coração, cedi às suas instâncias. Saí resolvido a procurar dois ou três soldados que Lescaut me fizera conhecer, a fim de se encarregarem da tarefa de guardar à vista, durante essa noite, G... M... Não achei em casa senão um, mas esse era tão resoluto que apenas lhe disse do que se tratava, assegurou-me logo o melhor êxito; pediu-me, apenas, dez dobrões para recompensar três soldados que ia empregar na execução da empresa. Disse-lhe que não perdesse tempo, e em menos de um quarto de hora tinha reunido os seus companheiros. Eu esperava-o em sua casa e, quando o vi de volta com os seus associados, conduzi-os até à esquina da rua por onde necessariamente G... M... devia passar para ir ter com Manon.

Recomendei-lhes que o não maltratassem, e que apenas o tivessem preso até às sete horas da manhã. O soldado da guarda deu-me a sua palavra de que conduziria G... M... para o seu quarto, obrigá-lo-ia a despir-se e a deitar-se na sua cama, ao passo que ele e os seus três bravos passariam a noite a beber e a jogar.

Demorei-me com eles até ao momento em que vi aparecer G... M..., retirando-me, então, para a penumbra dum portal a fim de, sem ser visto, poder presenciar esta cena extraordinária.

O soldado avançou para ele de pistola em punho, e explicou-lhe muito cortesmente que não atentava nem contra a sua vida, nem contra a sua bolsa, mas que se ele opusesse a menor resistência em acompanhá-lo ou se desse o mais pequeno grito, lhe fazia saltar os miolos. G... M..., vendo-se seguro por três soldados e temendo sem dúvida alguma o cano da pistola, não resistiu. Vi-o levar como se fosse um cordeiro.

Voltei imediatamente para junto de Manon, e, para tirar todas as suspeitas aos criados, disse-lhes ao entrar que não esperassem para a ceia o sr. de G... M...; que, sendo-lhe necessário demorar-se em casa por motivo de negócios urgentes, me tinha encarregado de vir desculpá-lo, e de cear com Manon, o que eu tomava como um grande favor perto de tão bela dama.

Manon secundou perfeitamente o meu ardil. Sentamo-los à mesa, e durante a ceia observamos a maior correção, enquanto os lacaios nos estiveram servindo. Por fim, depois que lhes demos ordem de se retirarem, passámos uma das mais agradáveis noites da nossa vida. Ordenei em segredo a Marcelo que fosse alugar um fiacre, e que o mandasse estar à porta de casa no dia seguinte às seis horas da manhã. Cerca da meia-noite fingi despedir-me de Manon, mas tendo entrado novamente, muito de mansinho, ajudado por Marcelo, preparei-me para ocupar o leito de G... M..., do mesmo modo que tinha tomado o seu lugar à mesa.

Durante este tempo a nossa má estrela trabalhava para nos perder. Fruíamos a embriaguez do prazer, e a espada estava suspensa sobre as nossas cabeças. O fio que a sustentava ia quebrar-se. Mas para melhor esclarecer as circunstâncias da nossa ruína, mister será explicar a causa que a motivou.

G... M... era acompanhado por um lacaio, quando foi preso pelos soldados da guarda real. O rapaz, assustado com o acontecimento, fugiu, indo em seguida avisar o velho G... M... do que acabava de passar-se.

Uma notícia tão desagradável não podia deixar de o assustar imenso. Não tinha senão aquele filho e queria-lhe extremamente. Exigiu que o criado lhe dissesse tudo quanto ele tinha feito durante a tarde; se tivera alguma questão com alguém, se se tinha envolvido n’alguma desordem, se tinha entrado n’alguma casa suspeita. O lacaio, que julgava que seu amo corria grande perigo e que imaginou não dever ter a menor reserva para que mais facilmente o socorressem, descobriu tudo quanto sabia do amor do jovem G... M... para com Manon, da despesa que ele tinha feito, o modo como ele passara a tarde até às nove horas da noite, a sua saída, e o seu regresso desgraçado. Foi quanto bastou para convencer o velho de que seu filho estava envolvido numa questão amorosa. Ainda que fossem já dez horas e meia da noite não hesitou em correr a casa do tenente-geral da polícia. Pediu-lhe que ordenasse a todas as patrulhas que procurassem seu filho, e, tendo-lhe pedido uma para o acompanhar, dirigiu-se para a rua onde ele fora preso. Visitou todos os lugares da cidade, onde esperava encontrá-lo, e nada tendo conseguido, fez-se conduzir, finalmente, a casa de Manon, onde julgou que seu filho tivesse já regressado.

Ia deitar-me, quando ele chegou. A porta da alcova estava fechada, e não ouvi bater à da rua; mas ele entrou seguido de dois archeiros, e tendo inutilmente pedido informações aos criados de qual seria o lugar onde estava seu filho, quis ver a sua amante no intuito de, por ela, poder obter alguma luz. Estávamos a meter-nos no leito: a porta da alcova abriu-se; o sangue gelou-se-nos nas veias...

— Meu Deus! é o velho G... M... — disse eu a Manon.

Deito mão à espada, mas desgraçadamente, embaraçada no cinturão, não a pude desembainhar. Os archeiros, que viram o meu movimento, deitaram-se a mim imediatamente para ma arrebatarem. Um homem em camisa está privado de toda a resistência. Tiraram-me todos os meios de me defender.

G... M..., ainda que perturbado à vista de um tal espetáculo, não tardou em me reconhecer, e muito mais depressa a Manon.

— Será ilusão minha? — disse ele com toda a gravidade; — não é na presença do cavalheiro des Grieux e de Manon que eu estou?

A raiva, a dor e a vergonha dominavam-me por tal forma que não lhe respondi.

G... M... demorou-se algum tempo em silêncio como se a sua imaginação fosse assaltada de tropel por mil pensamentos diversos: de repente, abrasado em cólera, dirigiu-me a palavra:

— Ah! desgraçado! tenho a certeza de que mataste meu filho!

Esta injúria feriu-me vivamente.

— Velho celerado — retorquí com altivez; — se tivesse de matar alguém da tua família, por ti é que eu havia de começar.

— Segurem-no bem — intimou G... M... aos archeiros; — é preciso que ele me dê notícias de meu filho. Faço-o enforcar amanhã se me não diz já onde ele se acha.

— Far-me-á enforcar, infame? — repliquei. — São os teus e todos os da tua raça que devem ser entregues ao algoz. Sabe que sou nobre, e mais nobre do que tu. Sim — acrescentei — sei tudo o que aconteceu a teu filho; mas se continuas a exasperar-me faço-o estrangular antes que o sol apareça no horizonte, e prometo-te que a mesma sorte te há de esperar.

Cometi uma imprudência, ccnfessando-lhe que sabia onde parava seu filho: mas o excesso da cólera levou-me até esta inconfidência.

Chamou imediatamente mais cinco ou seis archeíros, que o esperavam à porta da rua, e ordenou-lhes que prendessem todos os criados da casa.

— Senhor cavalheiro, — continuou G... M... em tom de mofa, — sabe onde está meu filho e conta fazê-lo estrangular, ao que afirma; pois conte também que nós lhe impediremos as suas danadas resoluções.

Foi só então que conheci a gravidade da falta cometida.

O velho aproximou-se de Manon, que estava sentada na cama, chorando amargamente, e dirigiu-lhe meia dúzia de galanteios irônicos sobre o império que ela havia alcançado sobre o pai e o filho, e o bom uso que dele fazia. Este monstro de incontinência e devassidão quis levar mais longe as suas liberdades com Manon.

— Livra-te de lhe tocares! — exclamei eu — nada, por mais sagrado que seja, te poderias arrancar às minhas mãos.

G... M... saiu, deixando na nossa alcova três archeiros, a quem ordenou que me fizessem vestir rapidamente.

Não sei qual era a tenção que ele tinha formado a nosso respeito nesse momento. Talvez nos deixasse em paz se lhe disséssemos onde estava seu filho. Enquanto me vestia, meditei se não seria esse o melhor meio a seguir.

Mas se as suas disposições eram essas, quando saiu da alcova, bem mudada se achavam quando regressou.

Tinha interrogado todos os criados de Manon, que os archeiros prenderam. Eles nada puderam dizer; mas logo que foi informado de que Marcelo era o nosso antigo servo, resolveu, por meio de ameaças, obrigá-lo a dizer tudo quanto soubesse.

Marcelo era um rapaz fiel, mas simplório e ignorante. A recordação do que tinha feito no Presídio para libertar Manon, junto ao terror que G... M... lhe inspirava, impressionou por tal forma o seu espírito fraco e tacanho, que julgou que o levariam daí para a forca ou para junto do cepo, se não falasse. Prometeu dizer tudo quanto sabia, se lhe concedessem a vida. G... M... convenceu-se de que neste negócio havia maior criminalidade e motivos para o encarar mais seriamente do que ele a princípio julgara. Ofereceu a Marcelo não só a vida, mas grandes recompensas pela sua revelação.

O pateta informou-o do nosso plano, sobre o qual não tínhamos guardado silêncio diante dele, visto que devia tomar uma parte na sua execução. É verdade que ele ignorava completamente as modificações que lhe introduzíramos em Paris; mas estava perfeitamente ao fato, quando partimos de Chaillot, da empresa e do papel que nela lhe estava reservado. Declarou G... M... que os nossos intuitos eram os de mistificar seu filho; que Manon receberia ou tinha já recebido dez mil francos, os quais, segundo o nosso projeto, nunca mais pertenceriam aos herdeiros da casa de G... M...

Ao saber tal cousa, o velho, arrebatado, subiu, cheio de cólera, ao nosso aposento, e sem soltar uma palavra entrou no gabinete de Manon, onde encontrou sem grande custo a soma em questão e as jóias. Voltou-se para nós com as faces inflamadas, e, apontando o que ele chamava o nosso roubo, cuspia-nos os epítetos mais ultrajantes. Mostrou de perto a Manon o colar de pérolas e as pulseiras.

— Conhece-as? — dizia ele escarnecedoramente. — Não é a primeira vez que a menina as vê. São as mesmas! Eram do seu gosto, pelo que vejo, minha bela. Pobres crianças! — ajuntou G... M... — são bem galantes tanto um como o outro, mas são também alguma cousa ladrões...

O coração batia-me de raiva, ao ouvir tais insultos. Teria dado, para estar solto um momento... justos céus! que não daria eu? Enfim, violentei-me para lhe dizer com uma moderação que não era mais do que o cúmulo do furor:

— Acabemos, senhor, por uma vez com esses insolentes gracejos; de que se trata? que pretende fazer de nós?

— Trata-se, cavalheiro, — respondeu-me G... M... — de que vai tal qual está e a esta hora para o Châtelet. Agora é de noite e amanhã de dia verei mais claramente os nossos negócios; espero que terá então a bondade de me dizer onde pára meu filho.

Não foi preciso pensar muito, para avaliar as terríveis conseqüências de sermos encerrados no Châtelet. Tremi, prevendo todos os perigos desta reclusão.

Apesar de toda a minha altivez, vi que era necessário dobrar a cerviz ao peso do infortúnio, e lisonjear o meu mais cruel inimigo para, por meio da submissão, conseguir dele alguma cousa.

Pedi-lhe humildemente que me ouvisse um instante.

— Faça-me justiça, senhor! Confesso que o verdor dos anos me tem levado a cometer bastantes faltas, e que o senhor tem sobejas razões para delas se queixar: mas se conhecesse a força do amor, se pudesse avaliar o que sofre um pobre rapaz a quem arrebatam tudo quanto ele ama e estima, talvez achasse digna de perdão a idéia de saborear uma pequena vingança, ou ao menos havia de julgar-me demasiadamente punido com a afronta que acabo de receber. Não são precisos nem a prisão nem o suplício para me obrigarem a descobrir-lhe onde pára seu filho. Está em segurança. Nunca tive idéia de lhe fazer mal, nem de ofender seu pai. Estou pronto a declarar-lhe onde seu filho passa tranqüilamente a noite, se o senhor nos concede a graça da liberdade a mim e a Manon.

O velho tigre, longe de se comover com as minhas súplicas, voltou-me as costas, rindo-se. Soltou, apenas, algumas palavras para me fazer compreender que conhecia o nosso desígnio do começo ao fim. Quanto ao que dizia respeito a seu filho, acrescentou brutalmente G... M..., visto que eu o não tinha assassinado, havia de encontrá-lo facilmente.

— Levem-no para o Pequeno-Châtelet — disse ele aos archeiros — e tenham cautela não fuja o cavalheiro; é um finório que já se escapuliu de São Lázaro.

Saiu, deixando-me num estado que o senhor bem pode imaginar.

— Oh! céus! — exclamei eu — receberia submissamente todos os golpes que viessem diretamente da vossa mão; mas que um infame tenha o poder de me tratar com tanta tirania, leva-me ao cúmulo do desespero!

Os archeiros pediram-nos que os não fizéssemos esperar mais tempo. Tinham uma carruagem à porta. Estendi a mão a Manon para descer.

— Vem, minha querida rainha, vem submeter-te a todo o rigor da nossa sorte. Praza ao céu que possamos ainda gozar dias mais felizes.

Partimos juntos. Manon lançou-se-me nos braços. Não lhe tinha ouvido articular uma palavra desde que G... M... aparecera pela primeira vez na alcova; mas, achando-se só comigo, disse-me palavras carinhosas, acusando-se de ser a causa de minha desgraça. Assegurei-lhe que nunca me queixaria do meu destino, enquanto ela não deixasse de amar-me.

— Não sou eu o digno de lástima, — continuei; — alguns meses de prisão não me assustam, e prefiro o Châtelet a São Lázaro. Mas é por ti, minha cara Manon, que estou com cuidado. Que sorte espera uma criatura tão encantadora! Céus! é possível que trateis com tanto rigor a mais perfeita das vossas obras? Porque não nascemos um e outro com qualidades concordantes com a nossa miséria? Temos espírito, sentimento e gosto; e que uso fazemos de todos estes dotes? Ao passo que tantas almas vis, e apenas dignas da nossa desdita, gozam de todos os favores da fortuna!

Estas reflexões derramavam a dor a toda minha alma, mas não era nada em comparação da que me inspirava o futuro. Tremia horrivelmente por motivo de Manon. Ela havia já estado no Presídio, e ainda que de lá houvesse saído pela boa porta, as reincidências deste gênero eram em extremo perigosas. Quereria fazê-la partilhar dos meus receios; mas, sem ousar adverti-la do perigo, abraçava-a, suspirando, para ao menos lhe assegurar a constância do meu amor — único sentimento que me atrevia a exprimir-lhe.

— Manon, — dizia eu, — fala-me com franqueza: há de amar-me sempre?

Respondeu-me que era bem desgraçada, só pela dúvida em que eu estava a esse respeito.

— Está bem! Não duvido e afrontarei todos os meus inimigos, forte com esta certeza. A minha família há de tirar-me do Châtelet, e a minha vida de nada servirá se eu, uma vez livre, não quebrar igualmente as tuas cadeias.

Chegámos à prisão, e fomos separados. Já o esperava, por isso custou-me menos. Recomendei Manon ao carcereiro, fazendo-lhe perceber qual era a minha posição social e prometendo-lhe uma recompensa considerável. Beijei a minha cara amante antes de a deixar, conjurando-a a que não se afligisse demasiadamente, nem temesse nada enquanto eu vivesse.

A minha bolsa não estava exausta. Dei a Manon uma parte do meu dinheiro e paguei ao carcereiro um mês adiantado da avultada carceragem por ela e por mim.

O dinheiro produziu ótimo resultado. Deram-me um quarto sofrivelmente mobilado e afirmaram-me que Manon tivera outro igual.

Tratei logo de obter a minha liberdade. Era claro que não podia ser acusado de ter cometido um crime; e, supondo mesmo que a deposição de Marcelo provasse a intenção do roubo, sabia perfeitamente que a lei não castiga as intenções. Resolvi por isso escrever prontamente a meu pai, pedindo-lhe que viesse em pessoa a Paris. Como já disse, custava-me menos estar preso no Châtelet do que em São Lázaro; e demais, posto que eu conservasse todo o respeito que devia à autoridade paterna, a idade e a experiência tinham diminuído muito a minha timidez. Escrevi-lhe, pois; no Châtelet não puseram dificuldade em deixar passar a minha carta; ter-me-ia, contudo, poupado a este trabalho, se soubesse que meu pai devia chegar no dia seguinte a Paris.

Ele tinha recebido a carta que eu lhe escrevera oito dias antes: sentiu ao lê-la uma alegria imensa: mas, por mais que acreditasse na minha conversão, não quis fiar-se absolutamente nos meus prometimentos. Tomou o partido de vir em pessoa assegurar-se da minha boa fé e de regular o seu comportamento pela sinceridade do meu arrependimento.

Chegou no dia imediato ao da minha prisão. A sua primeira visita foi para Tiberge, a quem eu lhe tinha pedido para dirigir a resposta à minha carta. Não pôde saber dele nem onde eu morava nem qual era então a minha conduta; apenas, foi informado das minhas principais aventuras depois que eu fugira de São Sulpício.

Tiberge falou-lhe muito favoravelmente das disposições que na nossa última entrevista eu tinha mostrado para o bom comportamento. Acrescentou que me julgava inteiramente desligado de Manon; mas, não obstante, estava surpreendido de que eu não lhe tivesse dado notícias minhas havia já oito dias. Meu pai não se iludiu; compreendeu que havia alguma cousa que escapava à penetração de Tiberge no silêncio de que ele tanto se lamentava, e empregou tanta atividade em descobrir as minhas pisadas, que dois dias depois da sua chegada, sabia já que eu estava preso no Châtelet.

Antes de receber a sua visita, que eu não esperava tão cedo, recebi a do tenente-geral de polícia, ou para chamar às cousas pelo seu nome, sofri o interrogatório que a lei ordena. Fez-me algumas repreensões, mas sem dureza, nem ofensa. Disse-me com brandura que sentia o meu mau comportamento; que eu tinha feito mal, criando-me um inimigo da qualidade de G... M...; que de fato era fácil de observar que neste negócio havia imprudência e ligeireza do que má fé; mas que, não obstante, era a segunda vez que eu caía debaixo da sua jurisdição, e que tinha pensado que eu teria mais juízo depois de haver sofrido durante dois ou três meses a lição de São Lázaro.

Encantado por tratar com um juiz tão reto, expliquei-me com ele dum modo tão respeitoso e com tanta moderação, que pareceu extremamente satisfeito com as minhas respostas.

Disse-me que não me devia entregar em demasia ao pesar, e que, em atenção à minha hierarquia e juventude, sentia-se disposto a fechar os olhos às minhas faltas. Atrevi-me a recomendar-lhe Manon, elogiando a sua doçura e boa índole. Respondeu-me, sorrindo, que posto que a não tivesse visto, lhe diziam que ela era uma pessoa perigosa. Esta acusação excitou de tal modo a minha ternura, que fiz uma apaixonada e calorosa defesa da minha pobre amante, chegando mesmo a derramar algumas lágrimas. Mandou-me recolher ao meu quarto.

— Amor! amor! — exclamou este grave magistrado, vendo-me sair — quando te reconciliarás tu com a prudência?

Estava fazendo tristes reflexões sobre a conversa que acabava de ter com o tenente-geral da polícia, quando senti abrir a porta do meu quarto; era meu pai. Posto que devesse estar meio preparado para esta entrevista, porque já a esperava, fiquei contudo tão abalado, que se a terra pudesse abrir a meus pés, ter-me-ia precipitado nas suas entranhas.

Beijei-o com todos os sinais duma extrema confusão.

Sentou-se sem que eu ou ele tivéssemos dado uma palavra.

Como eu ficasse de pé, descoberto e os olhos no chão, ele disse-me:

— Sente-se, senhor, pode sentar-se! Graças ao escândalo da sua libertinagem e das suas ladroeiras, pude descobrir o lugar onde estava residindo. É a vantagem que tem quem possui as suas qualidades: — não poder viver incógnito. Caminha para a celebridade por uma estrada infalível. Espero que o termo dessa carreira será em breve a Grève e que o senhor terá a glória de ser exposto nesse lugar à admiração de toda a gente!

Nada respondi; ele continuou:

— Como é desgraçado o pai que, depois de não ter poupado nada para fazer de seu filho um homem útil e honrado, não encontra nele, por fim, mais do que um ladrão que o desonra! Podemos consolar-nos dum revés da fortuna; o tempo fá-lo esquecer e o pesar diminui; mas que remédio teremos contra um mal que aumenta todos os dias e que é representado pelas desordens e devassidão de um filho vicioso que perdeu todos os sentimentos da honra? Não falas, desgraçado? — acrescentou meu pai. — Vejam esta modéstia contrafeita, este ar de doçura hipócrita: quem não diria que está aqui o homem mais digno da sua família?

Ainda que eu fosse obrigado a reconhecer que era merecedor destes ultrajes, pareceu-me contudo que meu pai os levava ao excesso. Julguei, então, que me seria permitido explicar naturalmente as minhas idéias.

— Asseguro-lhe, senhor — respondi eu — que a modéstia de que me vê possuído na sua presença não é de modo algum afetada: é a situação natural dum filho bem educado que respeita infinitamente seu pai, e sobretudo um pai irritado. Não quero, no entanto, passar pelo homem mais bem comportado da nossa família. Conheço que sou merecedor das suas reprimendas; mas, peço-lhe que nelas faça vislumbrar alguma bondade, e não me trate como o mais infame de todos os homens. Não mereço tão ásperos epítetos. Foi o amor, meu pai bem o sabe, que causou todas as minhas faltas. Fatal paixão! Ah! não lhe conhecerá o senhor a força? e será possível que o seu sangue, fonte donde o meu derivou, não tivesse jamais sentido os mesmos ardores? O amor tornou-me demasiado terno, apaixonado em extremo, muito fiel, e talvez mesmo complacente em excesso para com os desejos duma amante encantadora: eis os meus crimes. Meu pai vê neles algum que o desonre? Suplico-lhe — acrescentei eu ternamente — tenha alguma piedade para com um filho que foi sempre todo respeito e afeição para convosco; que nunca renunciou, como pensa, à honra e ao dever, e que é mil vezes mais digno de lástima do que meu pai pensa.

Ao finalizar estas palavras, amargas lágrimas deslizaram dos meus olhos.

O coração dum pai é a obra prima da natureza, que nele reina, por assim dizer, docemente, e que regula toda a sua elasticidade. Meu pai — homem de espírito e de gosto, — ficou por tal modo enternecido com o tom que eu havia dado às minhas desculpas, que não conseguiu disfarçar esta mudança.

— Vem, meu pobre cavalheiro — disse ele, — vem abraçar-me. Fazes-me dó.

Abracei-o, e apertou-me contra o peito com tanta ternura que eu pude conhecer bem o estado do seu coração.

— Mas que meio empregaremos para te tirar daqui? — continuou ele; — conta-me e explica-me toda a tua vida sem nada me esconderes.

Como afinal de contas nada houvesse, no fundo das minhas ações, que pudesse desonrar-me absolutamente, pelo menos comparando-as com as de certos rapazes da boa roda, e como uma amante não passa por ser uma infâmia no século em que vivemos, do mesmo modo que também o não é alguma esperteza para conquistar a fortuna ao jogo, fiz sinceramente a meu pai a narrativa da vida que havia passado. A cada falta que lhe confessava, tinha o cuidado de juntar-lhe exemplos célebres para diminuir a vergonha que dela me poderia resultar.

— Vivo com uma amante — comecei eu — sem que as cerimônias do casamento religioso ou civil nos hajam ligado: o duque de... sustenta duas à vista de todo Paris; Mr. D... tem uma há dez anos, amando-a com uma fidelidade, que nunca mostrou a sua mulher. Os dois terços das pessoas honestas de França consideram isso como uma honra. Usei de algumas artimanhas ao jogo: o marquês de... e o conde de... não possuem outros rendimentos: o príncipe de... e o duque de... são os chefes dum bando de cavalheiros da mesma ordem.

Pelo que respeitava aos meus desígnios sobre a bolsa dos dois G... de M... poderia provar facilmente do mesmo modo que eu não era exceção única: mas conservava ainda muita dignidade para me condenar a mim próprio, para que me quisesse condenar com todos aqueles de quem propusesse o exemplo; de sorte que implorei de meu pai que me perdoasse esta fraqueza, devida às duas violentas paixões que me tinham agitado — a vingança e o amor.

Pediu-me, depois, se eu lhe podia dar alguma elucidação sobre os meios mais rápidos de obter a minha liberdade, e de modo a que pudesse ser evitado o escândalo.

Fiz-lhe conhecer os sentimentos de bondade que o intendente geral da polícia tinha para comigo.

— Se meu pai encontrar alguns obstáculos, não podem provir senão dos G... de M...; assim, julgo que seria útil que os fosse visitar.

Meu pai assim mo prometeu.

Não ousei solicitar-lhe que intercedesse por Manon. Não proveio isto da falta de ousadia, mas foi motivado pelo temor que eu tinha de o revoltar novamente com um tal pedido, suscitando-lhe algum desígnio que nos fosse funesto tanto a ela como a mim. Estou ainda hoje para saber se este receio, impedindo-me de observar as disposições de meu pai e de procurar inspirar-lhe idéias favoráveis para a minha desgraçada amante, não causou os meus maiores infortúnios. Teria, quem sabe, excitado mais uma vez a sua comiseração? Pô-lo-ia de sobreaviso contra as sugestões que certamente iria receber do velho G... de M...

Talvez que o meu mau destino o tivesse feito insurgir contra todos os meus esforços; mas, então, só teria de acusar esse destino e a crueldade dos meus inimigos de todas as minhas desgraças.

Meu pai, ao deixar-me, foi fazer uma visita a G... de M.... Encontrou-o com o seu filho, a quem o soldado da guarda havia honradamente, logo de manhã, restituído à liberdade. Nunca soube as particularidades da sua conversação; mas foi-me fácil avaliá-las pelos seus mortais efeitos. Foram juntos (falo dos dois pais), ao intendente geral da polícia, de quem solicitaram duas graças: uma a de me fazer sair imediatamente do Châtelet: a outra a de encerrar Manon numa prisão pelo resto dos seus dias, ou de enviá-la para a América. Começava-se então a deportar para o Mississipi muitos vagabundos. O intendente geral da polícia deu a sua palavra de honra de que faria partir Manon pelo primeiro navio.

G... de M... e meu pai vieram ambos imediatamente trazer-me a notícia da minha libertação.

G... de M..., esquecendo o passado e depois de me ter dado os parabéns por possuir um tal pai, exortou-me a aproveitar doravante as suas lições e os seus exemplos. Meu pai ordenou-me que lhe pedisse perdão da pretendida injúria que eu havia feito à sua família, agradecendo-lhe, ao mesmo tempo, a sua intervenção para a minha liberdade.

Saímos juntos sem havermos trocado uma única palavra sobre a minha amante. Não ousei mesmo falar dela em presença dos aguazis. As minhas tristes recomendações teriam sido inúteis! A ordem cruel viera ao mesmo tempo com a que me abria as portas da prisão. Esta desgraçada mulher foi conduzida uma hora depois ao Presídio, para ser do número d’algumas desgraçadas a quem a mesma sorte esperava.

Como meu pai me obrigasse a acompanhá-lo até à casa onde residia na capital, foi só quase às seis horas que pude escapar à sua vigilância, para voltar ao Châtelet. Não tinha outro intuito senão o de levar a Manon algumas consolações e de recomendá-la ao carcereiro, pois estava convencido de que me não concederiam a autorização de a ver. Também não dispusera ainda do tempo suficiente para refletir nos meios que havia de empregar para a libertar do cárcere.

Pedi para falar ao carcereiro; mostrou-se satisfeitíssimo com a notícia da minha liberdade, de sorte que, muito disposto a obsequiar-me, começou logo a falar-me da sorte de Manon como duma desgraça que muito lamentava, pois que bastante me devia afligir. A princípio, não o compreendi: conversámos algum tempo sem nos entendermos. Por fim, percebendo que eu tinha necessidade duma explicação, deu-ma e por tal forma que ainda hoje tenho horror em a dizer, embora seja obrigado a repeti-la.

Nunca apoplexia fulminante foi capaz de causar efeito mais rápido e terrível. Caí com uma palpitação de coração tão dolorosa, que de repente perdi os sentidos, julgando-me liberto para sempre da vida. Esta preocupação ainda se conservou no meu espírito, quando tornei a mim; estendi a vista pelo compartimento onde eu estava e sobre mim próprio, para me assegurar se por acaso ainda gozava da faculdade de homem vivo. É certo que, seguindo-se apenas o movimento natural, que leva a cada um a emancipar-se dos seus sofrimentos, nada podia parecer-me mais suave do que a morte, neste momento de desespero e de consternação.

A própria religião não podia fazer-me encarar nada mais insuportável, depois da vida, do que as convulsões cruéis que me atormentavam. Contudo, por um destes milagres que só opera o amor, recobrei num instante as forças necessárias para poder agradecer ao céu o ter-me dado novamente o uso da razão. A minha morte não teria sido útil senão para mim. Manon carecia da minha vida para que eu a libertasse, para a socorrer, enfim, para vingar.

Jurei dedicar-me a esta missão sem considerações de qualquer espécie.

O carcereiro tratou-me como só o meu melhor amigo o teria feito. Recebi os seus serviços com o maior reconhecimento.

— Ah! — disse-lhe eu — está então comovido com as minhas dores?! Todo o mundo me abandona. Meu pai, mesmo, é sem dúvida um dos meus mais cruéis perseguidores. Ninguém tem compaixão de mim. Só o senhor, nesta moradia de dureza e de barbaria, mostra interesse pelo mais desgraçado de todos os homens.

Aconselhou-me a que não saísse para a rua sem estar um pouco mais restabelecido do abalo violento por que acabava de passar.

— Deixe, deixe — respondi eu, saindo; — tornarei a vê-lo mais depressa do que o senhor julga. Prepare-me a mais escura e fétida das enxovias, pois vou trabalhar para a merecer.

Com efeito, as minhas resoluções eram nada menos do que desfazer-me dos dois G... de M... e do intendente geral da polícia, caindo depois à mão armada sobre o Presídio, acompanhado de todos quantos eu pudesse angariar para a minha causa. Meu próprio pai custou-me imenso a respeitá-lo nesta vingança que me parecia tão justa, pois o carcereiro não me tinha ocultado que ele e G... de M... eram os autores da perda de Manon. Mas, logo que dei alguns passos na rua, e que o ar atmosférico refrescou o meu sangue, o furor cedeu o lugar a sentimentos mais razoáveis. A morte dos nossos inimigos teria sido de pequena utilidade para Manon, e isso expor-me-ia, decerto, a ficar impossibilitado para sempre de a socorrer. Além disso, recorreria a um bárbaro e covarde assassínio! Que outro caminho poderia eu abrir à minha vingança?

Reuni todas as minhas idéias e todas as minhas forças, para trabalhar primeiro para conseguir libertar Manon, deixando ficar adiada a vingança para depois do bom ou mau sucesso desta importante empresa.

Restava-me pouco dinheiro, e no entanto o dinheiro era uma das bases por onde seria forçoso começar. Só conhecia três pessoas de que eu o pudesse obter: M. de T..., meu pai, e Tiberge. Dos dois últimos, não poderia eu conseguir grande cousa, e tinha vergonha de importunar o primeiro com os meus peditórios. Mas não é no desespero que se geram destas delicadezas. Fui imediatamente ao seminário de São Sulpício, sem me importar se seria ou não reconhecido. Mandei chamar Tiberge. As suas primeiras palavras deram-me a entender que ele ignorava completamente as minhas últimas aventuras. Esta idéia fez-me mudar a intenção em que estava de o enternecer por meio da compaixão. Falei-lhe em geral do prazer que havia tido em tornar a ver meu pai, e pedi-lhe em seguida que me emprestasse algum dinheiro, com o pretexto de pagar, antes da minha retirada de Paris, algumas dívidas que desejava que ficassem ignoradas. Apresentou-me imediatamente a sua bolsa. Dos seiscentos francos que ela continha, tomei quinhentos. Quis passar-lhe um recibo; mas Tiberge era muito generoso para mo aceitar.

De lá, voltei a casa de M. de T..., com quem não usei de reservas. Fiz a exposição das minhas desgraças e das minhas dores, que ele conhecia já até aos menores detalhes, em virtude do interesse com que seguira a aventura do jovem G... de M.... No entanto, ouviu-me e lastimou-me bastante.

Quando lhe pedi a sua opinião sobre os meios de libertar Manon, respondeu-me tristemente que não via modo algum de o conseguir, e a não ser algum auxílio extraordinário do céu, seria forçoso renunciar a toda e qualquer esperança; que tinha ido ao Presídio depois que lá a haviam encerrado, mas que nem ao menos obtivera licença para a ver; que as ordens do intendente geral da polícia eram muito rigorosas e que para cúmulo da desventura, ela fazia parte do número das desgraçadas que iam ser degredadas para a América dois dias depois.

Esta certeza consternou-me por tal forma, que M. de T... poderia ter falado uma hora seguida sem que eu lhe prestasse a menor atenção. Continuou dizendo que não me tinha ido visitar ao Châtelet, para que, não se suspeitasse da sua intimidade comigo, me pudesse servir mais facilmente quando fosse preciso: que, algumas horas depois de eu ter de lá saído, tivera o desgosto de não saber para onde eu fora e que desejara ver-me rapidamente para me dar o único conselho, na sua opinião razoável, sobre o modo de libertar Manon, mas esse conselho era tão perigoso que pedia para eu ocultar sempre a parte que ele tomava na sua execução: tratava-se de escolher meia dúzia de valentes que tivessem a coragem de atacar os guardas de Manon, logo que a escolta saísse de Paris. Não esperou que eu lhe falasse da minha indigência.

— Eis aqui cem dobrões — disse-me ele, apresentando-me a sua bolsa, — que lhe serão muito necessários. Restituir-mo-á quando a fortuna lhe sorrir.

Acrescentou que se a sua posição lho permitisse, o seu braço e a sua espada estariam às ordens para esta empresa.

Tanta generosidade comoveu-me até às lágrimas. Empreguei, para lhe provar o meu reconhecimento, toda a vivacidade que a minha perturbação permitia. Perguntei-lhe se nada haveria a esperar por rneio dum pedido feito ao intendente geral da polícia. Disse-me que tinha pensado nisso, mas que julgava inúteis todos os passos que se dessem junto dessa autoridade, porque uma graça de tal natureza não se podia solicitar sem um motivo qualquer, e não via qual ele devesse ser, para que uma pessoa circunspecta e poderosa pudesse interceder na libertação de Manon; que os únicos que podiam fazer alguma cousa a este respeito eram G... de M... e meu pai, que se assim o pedissem ao intendente geral da polícia, conseguiriam decerto a revogação da sentença.

Ofereceu-se-me para empregar todos os seus esforços nesse sentido, junto do filho de G... de M..., não obstante ele julgar que a sua amizade esfriara alguma cousa por suspeitas que tivesse concebido da parte que ele havia tomado no negócio da sua aventura; e exortou-me a que nada poupasse para que meu pai, de algum modo, modificasse a sua resolução.

Não era isso para mim cousa muito fácil, não só pela dificuldade que eu teria em vencer a má vontade de meu pai, mas por uma outra razão que me levava a recear ter de apresentar-me na sua presença; havia saído de casa sem sua ordem, estava muito resolvido a lá não tornar a pôr os pés depois que soube do triste destino que aguardava Manon. Temia que meu pai me retivesse em casa contra a minha vontade e que me levasse para a província. Já meu irmão havia, outrora, usado deste ardil. Verdade seja que eu, agora, tinha mais idade; mas a idade nunca foi razão contra a força.

Contudo, ocorreu-me um meio de evitar este perigo — o de mandar chamar meu pai a um lugar público, anunciando-me sob um nome suposto. Tomei imediatamente este partido. M. de T... dirigiu-se a casa de G... de M... e eu ao Luxemburgo, donde o mandei prevenir meu pai de que um gentil-homem seu amigo o esperava para negócio urgente. Receei que ele hesitasse em aparecer, visto aproximar-se a noite. No entanto, vi-o chegar, momentos depois, acompanhado de um criado. Pedi-lhe que se retirasse comigo para uma rua, onde pudéssemos falar sem sermos ouvidos.

Andámos cousa duns cem passos sem nos dirigirmos a palavra. Meu pai imaginava sem dúvida que não se faziam tantos preparativos para negócio de pouca importância. Esperava a minha arenga; eu meditava-a.

Falei, finalmente:

— Senhor — exclamei eu, tremendo — sois um bom pai. Tendes me obsequiado imensamente e perdoado um número infinito de erros. Tomo o céu por testemunha de que nutro por vós todos os sentimentos dum filho terno e respeitoso. Mas parece-me... que o vosso rigor...

— Então o que tem o meu rigor? — interrompeu meu pai, que notava, de certo, que eu falava muito lentamente para a impaciência que o dominava.

— Parece-me, meu pai, que o seu rigor é demasiado no modo como tratou a desgraçada Manon. Deu ouvidos ao que lhe disse G... de M... e o ódio deste libertino representou-lha sob as mais negras cores. Faz dela uma idéia horrível, e no entanto Manon é a mais doce e amável criatura que a natureza produziu. Por que não aprouve ao céu inspirar-lhe o desejo de a ver, ainda que não fosse senão por um momento?! Estou tão certo de que ela o deixaria encantado como o estou de me haver enfeitiçado apenas a conheci. Tomaria logo o seu partido; havia de desprezar os negros e infernais artifícios de G... de M..., teria compaixão dela e de mim. Sei que o seu coração não é insensível, enternecer-se-ia decerto.

Meu pai interrompeu-me de novo, vendo que eu falava com um ardor que prometia longa duração ao discurso. Quis saber qual era o meu fim, com uma arenga tão apaixonada.

— O de pedir-lhe a vida, que não posso conservar um momento, se Manon for desterrada para a América — retorqui eu.

— Não, não — disse ele com toda a severidade — antes te quero morto, do que sem tino e sem honra.

— Não vamos mais longe — exclamei, agarrando-o por um braço — tire-me já aqui esta vida odienta e insuportável; pois, no desespero em que me lança, a morte será o maior favor para mim; será um presente digno da mão de um pai!

— Não te farei a vontade, apesar de não mereceres outra cousa. Conheço muitos pais que não teriam esperado tanto tempo para serem eles próprios os carrascos de seus filhos; mas foi a minha desmarcada bondade que te perdeu...

Lancei-me a seus pés.

— Se ainda lhe resta alguma cousa dessa bondade — exclamei eu, abraçando-lhe as pernas — não seja surdo aos meus rogos e às minhas lágrimas. Lembre-se de que sou seu filho... Recorde-se de minha mãe. Meu pai queria-lhe tão extremosamente! Tê-la-ia defendido até à morte. Não terei um coração como meu pai? Pode-se chegar a ser bárbaro tendo-se, uma só vez que seja na vida, sentido o que é a dor e a ternura?

— Não me digas nem uma palavra de tua mãe! — bradou ele com voz irritada; — essa recordação indigna-me cada vez mais contra ti. Os teus desatinos tê-la-iam levado a campa, morta de dor, se houvesse vivido bastante para os poder presenciar. Acabemos com esta entrevista; incomoda-me, e não me fará mudar de resolução. Vou para casa, e ordeno-te que me sigas.

O tom áspero com que me intimou esta ordem fez-me compreender que o coração de meu pai era inflexível. Afastei-me alguns passos, receando que ele me prendesse pela sua própria mão.

— Não aumente o meu desespero, forçando-me a desobedecer-lhe — respondi eu. — É-me impossível seguí-lo e não o é menos viver, depois da dureza com que me trata. Assim, digo-lhe adeus para sempre. A minha morte, de que em breve terá notícia, talvez o faça ter para a minha memória sentimentos de pai.

Como eu me dispusesse a deixá-lo, disse-me cheio de cólera:

— Recusas então seguir-me? Vai, corre à tua perda. Adeus, filho ingrato e rebelde!

— Adeus — retorquí no meio do meu doloroso transporte — adeus, pai bárbaro e desnaturado!

Saí imediatamente do Luxemburgo. Dirigi-me como um doido a casa de M. de T... Ao caminhar, levantava as mãos e os olhos para o céu, para invocar as potências celestiais.

— Serás tu, oh! céu! serás tu tão inexorável como os homens? Não tenho agora a esperar socorro senão de ti.

M. de T... ainda não tinha regressado; não se fez, porém, esperar muito tempo. As suas negociações não haviam tido melhor êxito do que as minhas. Disse-mo com a maior tristeza. O jovem G... de M..., ainda que menos irritado do que seu pai contra Manon e contra mim, negara-se a pedir qualquer cousa em nosso favor. Recusou-se, alegando o receio que tinha desse velho vingativo, que já se havia exaltado contra ele, argüindo-o dos seus desígnios de comércio carnal com Manon.

Só me restava o caminho da violência, seguindo exatamente o plano que M. de T... havia traçado. Limitei pois a este ponto todas as minhas esperanças.

— São bem incertas — disse — mas a que é mais sólida e que me consola é a de que posso morrer na empresa.

Deixei-o, pedindo-lhe que rezasse por mim, e só pensei em reunir meia dúzia de camaradas, aos quais pudesse incutir uma centelha da minha coragem e resolução.

O primeiro de quem me lembrei foi do soldado da guarda real de que me tinha servido para prender G... de M... Estava resolvido também a ir passar a noite no seu quarto, visto não ter cabeça, nem forças para durante a tarde procurar um albergue onde me recolhesse.

Estava só e mostrou-se muito contente por me ver fora do Châtelet. Ofereceu-me afetuosamente os seus serviços, e eu expus-lhe quais eram os que ele podia prestar-me. Não obstante ter demasiado bom senso para notar todas as dificuldades do meu plano, foi bastante generoso para deixar de estudar comigo os meios de as vencer.

Uma grande parte da noite foi empregada em combinarmos a melhor maneira de realizar as minhas intenções. Falou-me dos três soldados da guarda de que se tinha servido na última ocasião, como de três bravos, provados como tais. M. de T... havia-me informado do número exato dos archeiros, que deviam conduzir Manon; eram apenas seis. Cinco homens atrevidos e resolutos bastavam para fazer fugir esses miseráveis, que não são capazes de se defender com honra desde que possam evitar o perigo cometendo uma covardia.

Como me não faltasse o dinheiro, o soldado aconselhou-me a que nada poupasse para assegurar o bom êxito do nosso ataque.

— Precisamos de cavalos, pistolas e um mosquete para cada um: encarrego-me de arranjar amanhã todas essas cousas. São precisos também três roupas à paisana para os soldados, que não ousarão decerto mostrar-se com o uniforme do regimento em negócio desta natureza.

Dei-lhe os cem dobrões que tinha recebido de M. de T..., e que no dia seguinte foram gastos até ao último soldo. Os três soldados passaram em revista diante de mim: animei-os com grandes promessas, e para lhes tirar todo o motivo de desconfiança, comecei por lhes fazer presente, a cada um deles, de dez dobrões.

Chegado o dia da execução do meu plano, enviei um dos soldados, muito cedo, ao Presídio, para se certificar com precisão do momento em que os archeiros apareceriam com a sua presa. Ainda que eu não tivesse tomado esta resolução senão por excesso de previdência e inquietação, vi depois que ela era de absoluta necessidade. Tinha tomado como certas algumas falsas informações que me haviam dado no caminho; e, persuadido de que era na Rochella que esta desgraçada turba devia embarcar, perderia todo o meu trabalho, esperando-a no caminho de Orleãs. O soldado informou-me de que os archeiros tomaram o caminho da Normandia e de que era no Havre que o embarque para a América devia efetuar-se.

Dirigimo-nos imediatamente para a porta de Santo Honorato, tendo o cuidado de ir cada um por sua rua, para não infundir suspeitas. Reunimo-nos na extremidade do arrabalde. Os nossos cavalos eram bons. Não tardamos em avistar os seis guardas e os dois miseráveis veículos que o senhor viu em Passy há dois anos. Este espetáculo esteve a ponto de me fazer perder os sentidos e as forças.

— Oh! fortuna cruel! — exclamei eu — concede-me aqui ao menos a morte ou a vitória!

Durante um momento, combinámos os meios de que usaríamos para o ataque. Os archeiros levavam-nos apenas de dianteira uns quatrocentos passos, e podíamos cortar-lhes a passagem tomando um atalho que seguia pelo campo adjacente à estrada real.

O soldado da guarda opinou que tomássemos este atalho para os surpreender, caindo sobre eles como um raio. Apoiei a idéia, e fui o primeiro a dar de esporas ao cavalo. A fortuna porém tinha resolvido ainda zombar das minhas esperanças.

Os archeiros, vendo correr para eles cinco cavaleiros, não duvidaram de que fosse para os atacar. Colocaram-se logo na defensiva, carregando os mosquetes e armando as baionetas resolutamente.

Este espetáculo, que não fez mais do que espicaçar-nos, a mim e ao soldado da guarda, levou o desalento aos nossos três covardes companheiros. Pararam, como se já estivessem de acordo, e dizendo entre si meia dúzia de palavras que não ouvi, fizeram meia volta, e, esporeando os cavalos, tomaram a toda a brida o caminho de Paris!

— Meu Deus! — exclama o meu companheiro, tão desalentado como eu — que vamos fazer? Somos só dois!...

Não podia falar; o furor e a admiração tinham-me tirado a voz. Parei, hesitando se o meu primeiro passo não devia ser o de perseguir e castigar três covardes e infames, que assim me abandonavam. Via-os fugir, e olhava também os archeiros. Se fosse possível dividir-me em dois, teria caído ao mesmo tempo sobre os dois grupos, ambos objeto do meu furor e da minha raiva, para os destruir conjuntamente.

O soldado da guarda, que avaliava a minha incerteza pelo movimento desordenado da minha vista, pediu-me que escutasse por um momento os seus conselhos.

— Somos apenas dois — disse ele — e seria loucura atacar seis homens tão bem armados como nós e que parecem esperar-nos a pé firme. É preciso voltarmos a Paris e sermos mais escrupulosos na escolha dos nossos bravos. Os archeiros não podem fazer grandes marchas com dois veículos pesados; amanhã torná-los-emos a alcançar sem grande custo.

Reflexionei um pouco nesse sentido; mas, não vendo de todos os lados senão motivos de desespero, tomei uma resolução verdadeiramente desesperada: foi a de agradecer ao meu companheiro os seus serviços, e, longe de atacar os archeiros, resolvi ir submissamente pedir-lhes que me aceitassem entre eles, para acompanhar Manon até ao Havre e depois atravessar com ela o Atlântico.

— Não encontro senão quem me persiga ou me traia — disse ao soldado da guarda real; — não tenho confiança em pessoa alguma; nada espero já nem da fortuna, nem dos homens. As minhas desditas tocaram o seu auge; que me resta pois, senão resignar-me e submeter-me à desgraça? Fecho assim os olhos, a toda a esperança. Possa o céu recompensar como merece a sua dedicação e generosidade. Adeus! vou ajudar a má estrela que me persegue a consumar a minha ruína, correndo para ela voluntariamente.

O soldado fez inúteis esforços para me resolver a voltar para Paris. Pedi-lhe que me deixasse seguir a minha resolução, e que me abandonasse imediatamente, receando que os archeiros continuassem a acreditar que queríamos atacá-los.

Dirigí-me para eles a passo lento, e com tal consternação desenhada no rosto, que nenhum receio deveriam ter, vendo-me aproximar. No entanto, conservaram-se na defensiva.

— Sosseguem, senhores, — disse-lhes eu ao chegar perto deles — não venho declarar-lhes guerra, mas pedir-lhes paz e proteção.

Solicitei-lhes que continuassem sem desconfiança a sua marcha, e durante o caminho, fiz-lhes saber qual era o favor que esperava que me concedessem.

Discutiram entre si de que modo receberiam as minhas palavras. O comandante da escolta tomou a palavra, dizendo-me que a ordem que tinha recebido era de vigiar rigorosamente as prisioneiras; que, no entanto, eu lhe parecia ser tão amável que não duvidavam, ele e os seus companheiros, de serem menos escrupulosos no restrito cumprimento do seu dever; mas que eu bem devia ver que uma condescendência desta ordem custar-me-ia alguma cousa.

Restava-me ainda cerca de quinze dobrões; tive a demasiada boa fé de lhes dizer a quanto montavam todos os meus fundos.

— Pois bem, seremos generosos — disse-me o archeiro. — Custar-lhe-á um escudo cada hora que conversar com qualquer das mulheres presentes que mais lhe agradar: é o preço corrente em Paris.

Não lhes tinha falado de Manon em particular, porque não desejava que conhecessem a minha paixão. Imaginaram, primeiro, que era uma extravagância de rapaz que buscava uma distração, entretendo-se algum tempo com estas criaturas; mas, quando viram que eu estava apaixonado, aumentaram por tal forma o tributo, que a minha bolsa ficou exausta ao sairmos de onde havíamos pernoitado, exatamente na manhã do dia em que o senhor nos viu chegar a Passy.

Dir-lhe-ei qual foi o tema constante das minhas conversas com Manon durante esta deplorável jornada, ou que impressão produziu em mim a sua vista, logo que consegui dos archeiros licença para aproximar-me da sua carroça? A palavra, por mais veemente que seja, nunca será capaz de exprimir completamente os sentimentos do coração. Imagine a minha pobre amante amarrada pela cintura com uma cadeia, sentada sobre um molho de palha, a cabeça encostada a um dos lados da carroça, o rosto pálido e alagado por uma torrente de lágrimas, que achavam fácil saída através de suas doridas pálpebras, não obstante conservar continuamente os olhos fechados! Manon nem mesmo teve a curiosidade de os abrir para ver o que os archeiros fizeram quando recearam ser atacados. A sua roupa estava suja e em desalinho, as mãos mimosas iam expostas à inclemência do ar; enfim, este conjunto de belezas celestiais, este rosto capaz de tornar idólatra o universo inteiro, estava reduzido ao maior grau de desespero e abatimento.

Marchando a cavalo ao lado da carroça, detive-me algum tempo a contemplá-la. Era tão pouco senhor de mim, que muitas vezes estive a ponto de cair desastradamente. Os meus suspiros, as minhas freqüentes exclamações, chamaram finalmente a sua atenção. Ao reconhecer-me, o seu primeiro movimento foi o de arrojar-se para fora da carruagem, para cair nos meus braços; a cadeia, porém, retesando-se, fez que ela recaísse na sua posição primitiva.

Pedi aos archeiros que, por compaixão, se detivessem algum tempo: consentiram no meu pedido, movidos pela avareza, e apeando-me fui sentar-me ao lado de Manon. Estava tão fraca e comovida, que se demorou muito tempo a articular uma palavra e a apertar-me as mãos. As lágrimas regavam o seu colo, e, não podendo eu próprio falar, conservámo-nos durante longos momentos numa das mais tristes situações de que haja exemplo. As nossas expressões não foram menos tristes logo que tivemos a liberdade de conversar. Manon falou pouco: a vergonha e a dor pareciam ter-lhe alterado os órgãos da voz: o som era fraco e trêmulo. Agradeceu-me não a ter eu esquecido, dando-lhe o prazer de me abraçar ainda uma vez antes do último adeus. Mas, apenas lhe jurei que força alguma da terra seria capaz de me arrancar dentre os seus braços; que estava resolvido a acompanhá-la, ainda que fosse até ao fim do mundo, para a servir, para a amar, para a estremecer, para unir indissoluvelmente a minha triste sorte à sua miserável existência, a pobre rapariga perdeu a cabeça, louca de contentamento, e entregou-se a tais excessos de ternura que muito me fizeram recear pela sua vida, atendendo a uma comoção tão violenta.

Nos seus olhos pareciam concentrar-se todos os movimentos da sua alma. Tinha-os fixos em mim. De quando em quando, abria a boca como para soltar frases desconexas, que a maior parte das vezes não tinha a energia de acabar. No entanto, pude perceber algumas palavras. Eram mostras evidentes de admiração pelo meu amor, ternas queixas de todas as suas loucuras, dúvidas de que pudesse ser feliz por me haver inspirado uma paixão tão profunda, pedidos reiterados para me dissuadir do desígnio de a acompanhar e para que procurasse, longe dela, um futuro mais digno de mim e uma felicidade que, segundo afirmava, nunca eu poderia encontrar vivendo a seu lado!

A despeito da mais cruel das sortes, eu sentia-me venturoso com a certeza da sua afeição, com a ternura inexaurível que emanava do seu olhar.

Verdade era que tinha perdido tudo quanto os homens mais estimam e ambicionam; mas era senhor absoluto do coração de Manon — o único tesouro que eu estremecia.

Viver na Europa, na América, que me importava onde, se tinha a certeza de lá ser feliz junto da mulher que amava? Não é o universo inteiro a pátria comum de dois amantes fiéis? Não encontram eles, no amor um do outro, pai, mãe, irmãos, parentes, amigos, riquezas e venturas?

Se alguma cousa havia que me inquietasse, era o receio de ver Manon exposta a sofrer as agruras da indigência.

Imaginava-me já com ela no meio de uma região inculta e só habitada por selvagens. — Estou bem certo, pensava de mim para mim, que por muito cruéis e ferozes que sejam, nunca o serão tanto como G... de M... e meu pai. Hão-de deixar-nos, ao menos, viver sossegados. Se o que se tem escrito a seu respeito é exato, esses bárbaros seguem as leis da natureza. Não conhecem nem o furor da avareza que domina G... de M... nem possuem essas idéias fantásticas da honra, que fizeram de meu pai um meu inimigo; não hão-de perturbar a tranqüilidade de dois amantes que viverem tão simplesmente como eles. Por este lado estava descansado.

Não acontecia o mesmo em relação às necessidades comuns da nossa vida. Mais de uma vez, tinha experimentado que há privações insuportáveis, principalmente para uma mulher acostumada às comodidades. Desesperava-me por ter inutilmente exaurido a minha bolsa, vendo que o pouco dinheiro que me restava seria ainda pasto da sórdida cobiça dos archeiros.

Com uma pequena soma poderia alimentar a esperança de, na América, não só combater a miséria mas estabelecer-me comodamente, assegurando o nosso futuro, isto pelas simples razão de que o dinheiro naquele país, sendo muito raro, tinha um grande valor. Meditando sobre isto, resolvi escrever a Tiberge, que sempre achei pronto em socorrer-me com a sua bolsa e com o seu afeto. Da primeira cidade, por onde passámos, dirigi-lhe uma carta, não lhe dando outro pretexto para este pedido senão o da urgência que teria dele no Havre onde eu lhe confessava que tinha ido acompanhar Manon. Pedia-lhe cem dobrões. — “Manda-mos para o Havre, pelo correio. É a última vez que importuno a tua delicada afeição, pois, no momento em que a minha desgraçada amante me é arrebatada para sempre, eu não devo deixá-la partir sem lhe dar alguma cousa com que lhe possa minorar tão horrível sorte”.

Os archeiros tornaram-se tão intratáveis, logo que descobriram a violência da minha paixão, que duplicando continuamente o preço dos seus menores favores, reduziram-me em breve à extrema penúria. Por outro lado, o amor não consentia que eu poupasse o dinheiro. Esquecia-me de manhã à noite junto de Manon: e não era a hora que marcava o tempo para mim: — era o dia inteiro. Por fim, esgotados os meus recursos, vi-me exposto aos caprichos e à brutalidade de seis miseráveis que me trataram com um desdém e uma altivez insuportáveis. O senhor foi disso testemunha em Passy. A felicidade de o ter encontrado constituiu um momento de tréguas que me concedeu a má fortuna. A sua bondade pelos meus sofrimentos foi a única recomendação junto da sua generosa alma. Os socorros, que tão liberalmente me prestou, chegaram-me até ao Havre, e os archeiros cumpriram mais fielmente do que eu esperava a sua promessa.

Chegámos ao Havre. Fui logo ao correio, mas Tiberge ainda não tivera tempo de me responder. Informei-me do dia exato em que podia esperar a sua carta, e vi que só a receberia dois dias depois; mas, em conseqüência da minha má sina, o navio que nos conduziria para a América fazia-se de vela na manhã do mesmo dia em que a carta devia chegar.

Não imagina o meu desespero.

— Pois que! — exclamava eu — nem mesmo na desgraça hei-de ser poupado?

Manon respondia-me:

— E merecerá uma vida tão desgraçada que nós tenhamos tanto cuidado por ela? Morramos no Havre, meu caro cavalheiro. Venha a morte e acabem-se por uma vez todas as nossas desditas, todas as misérias! Iremos arrastar-nos por países estrangeiros com todas essas penúrias, numa região onde nos devem esperar as maiores provações, visto que me desterram para lá? Morramos — repetia-me ela — ou ao menos vai procurar outro futuro nos braços duma amante mais feliz.

— Não, não, — dizia-lhe eu — tenho orgulho em ser desgraçado contigo!

As palavras de Manon incutiram-me sérios receios. Julguei-a prestes a sucumbir ao peso de tantos males e desgostos. Forcejei por apresentar um semblante mais tranqüilo, a fim de lhe desvanecer essas sombrias idéias de morte e de desalento. Resolvi ter o mesmo comportamento para o futuro, o que de fato realizei, ficando para mim exuberantemente provado que nada há que mais coragem possa inspirar a uma mulher do que a intrepidez do homem que ela ama.

Perdidas, pois, as esperanças de receber o dinheiro de Tiberge, vendi o meu cavalo. O produto da venda junto ao que me restava da quantia que o senhor me tinha dado, montava a dezessete dobrões. Sete, empreguei-os em bagatelas necessárias a Manon, e os dez restantes guardei-os cuidadosamente, como a base da nossa fortuna e das nossas esperanças na América.

Foi muito fácil obter lugar no navio. Procuravam-se rapazes que estivessem dispostos a agregar-se voluntariamente à colônia. Passagem e sustento foram-me concedidos gratuitamente. No dia seguinte, devendo partir o correio para Paris, escrevi uma nova carta a Tiberge. Era patética e devia tê-lo enternecido até ao último ponto, para que tomasse uma resolução como a que tomou — resolução que só a amizade mais terna, a generosidade mais completa, podiam determinar.

Desfraldámos as velas. O vento foi-nos sempre favorável. Obtive do capitão um beliche separado para mim e para Manon. Este homem teve a bondade de nos distinguir entre os nossos miseráveis companheiros.

Logo nos primeiros dias, chamei-o de parte, e, para conquistar a sua compaixão, narrei-lhe uma parte dos meus infortúnios. Pensei que não me tornaria culpado por mentir vergonhosamente, dizendo-lhe que era casado com Manon. Fingiu acreditá-lo, concedeu-nos a sua proteção e durante a viagem recebemos dele as maiores provas de estima. O capitão ordenou que a nossa comida fosse igual à da sua mesa, e as atenções que nos dispensava fizeram-nos respeitar pelos companheiros da nossa miséria. Toda a minha preocupação era que Manon não sofresse o mais leve incômodo. Ele bem o notava; e isto, junto ao extremo sentimento a que me tinha votado por motivo dela, tornava-a tão terna e apaixonada, tão cuidadosa em prover às minhas menores necessidades, que era uma perpétua emulação, entre nós ambos, de serviços e de amor. Não tinha saudades da Europa; ao contrário, quanto mais nos aproximávamos da América, mais se me alargava o coração, mais tranqüilo ficava. Se tivesse a certeza de que nada me faltaria para suprir às primeiras necessidades da vida, teria agradecido o céu esta crise que as minhas desgraças haviam provocado.

Depois de uma feliz viagem de dois meses chegámos enfim às praias desejadas. A região nada tinha de atraente e agradável à primeira vista. Eram plagas e campos estéreis e inabitados, vendo-se aqui e acolá algumas plantas silvestres ou árvores que o vento despojava das suas folhagens. Não havia indícios de homens ou de animais.

Contudo, tendo o capitão mandado disparar alguns tiros de peça, vimos aproximar-se da praia uma multidão de habitantes de Nova Orleãs que, alegres e risonhos, vinham ao nosso encontro. Não podíamos ver a cidade, porque estava oculta por uma alta colina. Fomos recebidos como quem baixava do céu.

Aquela pobre gente porfiava entre si qual deles seria o que mais perguntas nos havia de fazer sobre o estado da França e das diversas províncias donde eram naturais. Abraçavam-nos como irmãos, como companheiros queridos, que iam compartilhar da sua miséria e desterro. Dirigímo-nos todos para a cidade: mas, à medida que avançávamos, ficamos surprendidos com o fato de o que nos tinham dito ser uma boa cidade não passar de um agregado de pobres cabanas. Nesses miseráveis albergues, viviam umas quinhentas a seiscentas pessoas. A casa do governador destacava-se pela altura e pela situação: era defendida por algumas trincheiras de terra amassada, tendo ao redor um largo fosso.

Apresentaram-nos primeiro ao governador, que teve uma larga entrevista com o capitão; depois, voltando-se para nós, examinou uma por uma todas as mulheres que acabavam de chegar. Eram trinta, pois no Havre tinha-se-nos juntado um rancho de infelizes vindas doutras partes da França.

O governador, depois deste minucioso exame, fez chamar diversos rapazes da cidade que se definhavam à espera duma consorte. Deu as mais bonitas aos principais, o resto foi tirado à sorte. Ainda não tinha falado com Manon quando ordenou às outras que se retirassem; eu e Manon ficamos com ele.

— Acabo de saber pelo capitão — disse — que sois casados, e que durante a viagem teve ocasião de ver que éreis dignos de toda a estima e merecedores das maiores atenções. Não quero falar nos motivos que causaram a vossa desgraça; mas se sois o que realmente mostrais na aparência, prometo-vos que nada pouparei para abrandar o rigor da vossa sorte, e vós mesmos me fareis ter alguns momentos de prazer nesta região deserta e selvagem.

A minha resposta foi a que mais conveniente achei para o confirmar no bom conceito que de nós já formava. Deu as suas ordens para nos prepararem um alojamento na cidade, e convidou-nos para jantar com ele. Para um chefe de míseros degredados, achei-o muito amável e delicado. Em público, nada nos perguntou acerca das nossas aventuras. A conversação foi sobre cousas gerais, e apesar da tristeza que nos dominava, esforçamo-nos, eu e Manon, por a tornar agradável.

À noite, mandou conduzir-nos à habitação que nos fizera preparar. Era uma desconfortável cabana construída de pranchas de madeira e barro amassado, dividida em dois outros compartimentos, com um sótão pela parte superior.

Havia neste albergue cinco ou seis cadeiras e alguns móveis dos mais necessários às comodidades internas duma habitação. Porém, tudo isto era tão pobre que Manon, ao entrar, recuou horrorizada. Era mais por minha causa que ela se afligia do que por si própria. Logo que ficamos sós, sentou-se e começou a chorar amarguradamente. Quis primeiro consolá-la; mas, quando lhe ouvi dizer que me lastimava unicamente a mim, e que nas nossas misérias comuns nada a afetava senão a parte que eu tinha de sofrer, fingi que estava animadíssimo, e até alegre, para assim lhe inspirar se possível fosse algum sossego.

— De que me hei-de queixar? — perguntei eu; — possuo tudo quanto desejo. Amas-me, não é verdade? Nenhuma outra felicidade ambicionei ainda. Deixemos pois o nosso futuro a Deus. Não vejo que ele seja muito para desesperar. O governador é homem atencioso e delicado; mostrou por nós toda a consideração, e decerto não há de consentir que nos falte o necessário. Pelo que toca à pobreza da nossa cabana, e ao tosco da mobília, bem viste que poucas pessoas há aqui que pareçam estar alojadas mais suntuosamente do que nós; e depois, tu és a mais admirável feiticeira que eu conheço, acrescentei beijando-a; transformas tudo em ouro.

— Nesse caso, serás a pessoa mais rica do universo — atalhou Manon — porque se nunca existiu na terra amor como o teu, é impossível do mesmo modo que haja quem seja amado mais ternamente do que tu és. Faço-me justiça. Conheço que nunca mereci essa prodigiosa afeição que sempre me tens consagrado. Tenho-te dado toda a casta de desgostos, que me perdoaste com a mais extrema bondade. Tenho sido leviana, e, mesmo amando-te excessivamente, como sempre tenho feito, não era mais do que uma ingrata. Mas tu não sabes quanto estou mudada. As lágrimas que tão abundantemente derramei desde que saímos de França, nem uma só vez tiveram por motivo os meus males. Deixei de os sentir, quando tu começaste a partilhá-los. Não chorei senão de compaixão e de ternura por ti. Nunca me poderei consolar de te haver causado tantos males. Acuso-me continuamente das minhas inconstâncias, e enterneço-me ao admirar quanto tu tens sido capaz de fazer, em respeito e amor, por uma desgraçada que de nada era digna e que ela não pagaria mesmo com todo o seu sangue — terminou Manon no meio de grandes soluços — nem sequer uma sombra dos pesares que te tem causado.

As lágrimas, as palavras, o tom em que ela as disse, impressionaram-me tão extraordinariamente que sentí como que uma divisão interior na minha alma.

— Cuidado, querida Manon — atalhei eu; — não tenho forças para suportar provas tão vivas da tua afeição; não estou afeito a estes excessos de alegria. Meu Deus! nada mais vos peço: estou certo de possuir o coração de Manon; encontrei nele os afetos que eu desejava para ser feliz; não posso agora deixar de o ser; eis a minha felicidade realizada.

E acredita — retorquiu ela — que serás ditoso se unicamente fazes depender de mim a tua felicidade; e também sei onde sempre hei-de encontrar a minha.

Deitei-me, embalado por estas risonhas idéias, que transformaram a minha cabana num palácio digno do universo. Nesta doce ilusão, a América pareceu-me uma paraíso terreal.

— É para Nova Orleãs que se deve vir habitar — disse eu a Manon — quando se quiser aspirar às verdadeiras delícias do amor. É aqui que se ama sem interesse, sem ciúme, sem inconstâncias. Os nossos compatriotas vêm à procura de ouro, e mal podem imaginar que encontramos nestas agrestes regiões tesouro mais digno de estima e mais grato ao coração.

Tratamos de cultivar cuidadosamente a amizade do governador. Este funcionário teve a bondade, algumas semanas depois da nossa chegada, de me dar um pequeno emprego que vagara na fortaleza. Ainda que a posição não era das mais distintas, aceitei-a como um favor vindo do céu, pois me colocava em circunstâncias de viver sem ser pesado a quem quer que fosse. Tomei um criado para mim e uma criada para Manon. Não era dissipador, media a despesa pela receita, e Manon fazia outro tanto. Não perdíamos nunca ocasião de obsequiarmos e fazer bem aos nossos vizinhos, o que nos valeu a amizade e a confiança de toda a colônia.

Em pouco tempo, alcançámos tal consideração que, depois do governador, éramos os primeiros personagens da cidade.

A inocência em que vivíamos e a tranqüilidade da nossa existência fizeram despertar em nós as idéias religiosas. Manon nunca tinha sido uma mulher ímpia, eu não era também um desses libertinos impudicos, que fazem gala na irreligião e na depravação dos costumes.

O amor e a juventude tinham sido as únicas causas dos nossos desvarios. A experiência começava a suprir a idade: ela operou em nós do mesmo modo que uma seqüência de anos. As nossas conversas, cheias de reflexão, levaram-nos pouco a pouco ao gosto do amor casto e virtuoso. Fui eu o primeiro que propus a Manon esta mudança. Conhecia-lhe de sobejo o coração, e facilmente lhe fiz compreender que para a nossa felicidade ser completa era necessário que o céu a abençoasse.

— Temos almas nobres, corações em demasia bem formados, tanto um como o outro, para vivermos assim voluntariamente no esquecimento do dever. Que vivêssemos amancebados na França, vá, porque aí grandes embaraços nos rodeavam; mas na América, onde não dependemos de pessoa alguma, onde não temos a acatar as leis arbitrárias da posição social em todas as cousas, onde todos acreditam que somos casados, que nos impede de o sermos realmente, nobilitando o nosso amor pelos juramentos que a religião autoriza? Nada te ofereço de novo — acrescentei, — oferecendo-te a minha mão; não quero mais do que renovar a dádiva aos pés do altar.

Pareceu-me que estas palavras levaram a alegria à alma de Manon.

— Acreditarás — disse-me ela — que tenho pensado nisso milhares de vezes depois que estamos na América? O receio de te desgostar fez que eu guardasse silêncio e não tivesse a presunção de aspirar ao título de tua esposa.

— Ah! Manon, sê-lo-ias em breve dum rei, se o céu me tivesse feito nascer com uma coroa. Não hesitemos. Não há obstáculo nenhum a temer. Hoje mesmo falarei ao governador, e confessar-lhe-ei que o temos enganado até agora. Deixemos para os amantes vulgares o receio das indissolúveis cadeias do matrimônio. Não as temeriam decerto, se tivessem, como nós temos, a convicção de que toda a vida os laços do amor nos hão-de unir.

Manon, ao ver-me tomar esta resolução, não cabia em si de contente.

Estou persuadido que não haverá no mundo um homem de sentimentos que não aprove esta minha resolução nas circunstâncias especiais em que me achava, isto é, fatalmente avassalado por uma paixão que não podia dominar, e minado de remorsos que desgraçadamente não podia sufocar. E poderá haver alguém que taxe de injustas as minhas queixas conta o céu, por ter anulado um desígnio que só por lhe agradar havia formado? Ah! anulado? Que digo eu! Puniu esse desígnio como se fosse um crime. O céu tinha-me suportado enquanto cegamente marchei na vereda do vício; logo que quis entrar na da virtude, descarregou sobre mim os mais dolorosos castigos. Temo que me faltem forças para acabar a narração da desgraça mais funesta que a alguém tenha acontecido no mundo.

Fui a casa do governador, como combinara com Manon, para lhe pedir que consentisse na cerimônia do nosso casamento. Com certeza que nem a ele nem a pessoa algum teria falado neste assunto se o seu esmoler — o único padre que então havia na cidade — me fizesse a ocultas esse serviço; mas receando que ele não guardasse silêncio, resolvi-me a proceder abertamente.

Tinha o governador um sobrinho chamado Synnelet, a quem muito estimava. Era um rapaz de trinta anos, bravo, mas arrebatado e imprudente. Não era casado. A beleza de Manon cativara-o desde o dia da nossa chegada, e as inúmeras vezes que teve ocasião de a ver durante nove ou dez meses tinham por tal modo exaltado a sua paixão, que o rapaz definhava-se a olhos vistos, mas guardava para si o seu segredo.

Contudo, como estava persuadido, do mesmo modo que seu tio e toda a cidade, que eu era realmente casado, havia conseguido dominar o seu amor, a ponto de não deixar transparecer o menor vislumbre da sua paixão, e o seu zelo serviçal tivera mais de uma vez ensejo de se me tornar útil.

Ao chegar ao forte, encontrei-o conversando com seu tio. Nada me impedia que ocultasse de Synnelet o segredo do meu desígnio; por isso não tive dúvida em falar mesmo na sua presença. O governador ouviu-me com a sua costumada benevolência. Contei-lhe uma parte da minha história, que escutou com prazer, e quando lhe roguei que se dignasse assistir à cerimônia que projetava, levou a generosidade a comprometer-se a fazer à sua custa toda a despesa em que ela importasse. Retirei-me, pois, muito contente e satisfeito.

Não tinha decorrido ainda uma hora, e já o seu esmoler entrava em minha casa. Cuidei que vinha dar-me algumas instruções sobre o meu casamento; mas, depois de me ter cumprimentado friamente, declarou-me em duas palavras que o governador me proibia de pensar mais em tal cousa, visto que tinha outras vistas sobre Manon.

— Outras vistas sobre Manon! — atalhei eu com o coração sobressaltado — E quais são essas vistas, senhor esmoler?

Respondeu-me que eu não devia ignorar que o governador era senhor absoluto; que tendo Manon sido enviada de França para a colônia, podia dispor dela como endendesse; que se até então o não tinha feito, era porque me julgava casado com ela; mas que tendo sabido da minha própria boca que isso não era verdade, julgava melhor concedê-la a Synnelet, que estava apaixonado por ela. A prudência ainda desta vez foi suplantada pela vivacidade. Ordenei altivamente ao esmoler que saísse de minha casa, jurando-lhe que nem o governador, nem seu sobrinho, nem toda a cidade, ousariam arrebatar-me a esposa ou a amante, como eles quisessem chamar-lhe.

Participei logo a Manon a terrível mensagem que acabava de receber. Convimos que Synnelet tinha seduzido seu tio na minha ausência, e que tal resolução não era mais do que parte da deliberação há muito premeditada.

Eram eles os mais fortes. Estávamos em Nova Orleãs do mesmo modo que no meio das vastidões do Oceano, isto é, separados do resto do mundo por espaços incomensuráveis. Para onde havíamos de fugir, num país desconhecido e deserto, ou habitado por feras e por selvagens tão bárbaros como elas? Era muito estimado na cidade, mas não podia confiar em comover o povo a meu favor para disso tirar remédio proporcionado ao mal. Era preciso dinheiro e eu era pobre. Demais, o êxito duma rebelião popular era incerto: e se fôssemos mal sucedidos, a nossa desgraça seria irremediável.

Todos estes pensamentos referviam na imaginação; comunicava a Manon uma parte deles; formava logo outros sem esperar resposta; assentava numa resolução, e logo noutra; falava só, e respondia em voz alta aos meus próprios pensamentos; enfim, a agitação que me dominava não a poderei comparar com nada, porque é impossível haver ou ter havido no mundo cousa igual à que a motivara.

Manon não tirava os olhos de mim; avaliava, pela minha perturbação, a grandeza do perigo, e, tremendo mais por mim do que por ela, esta amável mulher não se atrevia mesmo a dizer palavra, para me exprimir os seus receios.

Depois de uma infinidade de raciocínios, decidi ir novamente à presença do governador e procurar comovê-lo, apelando para a sua honra e para a afeição que nos tinha dedicado desde a nossa chegada até àquele dia. Manon quis opor-se à minha saída:

— Vão matar-te — dizia-me ela com os olhos rasos de lágrimas; — nunca mais te tornarei a ver; quero morrer antes de ti.

Custou-me imenso a persuadi-la da necessidade que tinha de sair, e da que havia em ficar ela em casa. Prometí-lhe que voltaria rapidamente. Manon ignorava, assim como eu, que era sobre ela mesma que devia cair toda a cólera do céu e a fúria dos nossos inimigos.

Dirigi-me ao forte; o governador estava com o seu esmoler. Desci, para o comover, a pedidos tais, que me teriam feito morrer de vergonha se os houvesse formulado por outra causa; ataquei-o com todas as razões capazes de impressionar um coração que não fosse igual em ferocidade ao do tigre.

O bárbaro não teve para as minhas lamentações senão uma resposta que repetia cem vezes:

— Manon dependia dele; e tinha feito a seu sobrinho a promessa de que lha daria.

Estava resolvido a levar a minha moderação até à última extremidade; contentei-me em lhe dizer que o julgava em demasia meu amigo, para querer a minha morte, a qual eu preferiria à perda da minha amante.

De sobra, fiquei persuadido, ao sair, que nada tinha a esperar deste velho teimoso, capaz de se fazer excomungar cem vezes por amor de seu sobrinho. Contudo, persisti na intenção de conservar até ao fim um ar de moderação, resolvido, se por acaso chegassem a realizar a maior injustiça, a oferecer à América um dos espetáculos mais sanguinolentos e horríveis a que o amor pudesse ter dado origem.

Voltava para o meu albergue, meditando neste projeto, quando a sorte, que queria ativar a minha ruína, me fez encontrar Synnelet. Ele leu nos meus olhos grande parte dos meus pensamentos. Já disse que ele era valente: dirigiu-se para mim.

— Não me procurava? — perguntou; — bem sei que o meu amor o ofende, e tinha já previsto que um de nós era demais sobre a terra; vamos ver qual será o mais feliz.

Respondí-lhe que tinha razão, e que só a minha morte poria termo à nossa desavença.

Afastamo-nos da cidade uma centena de passos. As nossas espadas cruzaram-se, ferí-o e desarmei-o quase ao mesmo tempo. Ficou tão enraivecido pela sua infelicidade, que recusou pedir-me a vida e renunciar a Manon. Eu tinha talvez o direito de lhe tirar, nomesmo momento, tanto uma como outra; mas um sangue nobre e generoso nunca se desmente. Atirei-lhe a sua espada.

— Comecemos de novo, e olhe que não há quartel.

Synnelet atacou-me com uma fúria insana. Devo confessar que eu não era muito forte no jogo das armas, tendo tido apenas três meses de lições em Paris. O amor conduzia a minha espada, o que não obstou a que meu rival me varasse, de lado a lado, o braço; mas apanhando-o descoberto, atirei-lhe um bote tão certeiro que caiu a meus pés sem movimento.

Apesar da alegria que dá a vitória, depois de um duelo de morte, refleti logo nas conseqüências que este fato teria para mim. Não podia esperar nem perdão, nem delonga no momento do suplício. Certo como estava da afeição do governador por seu sobrinho, a minha morte não seria adiada uma hora, depois que ele soubesse da de Synnelet. E no entanto, não era esta a principal causa dos meus receios. Manon, o perigo que ela corria, a fatalidade de a perder, perturbavam-me a ponto de me cegarem e impedirem de reconhecer o lugar onde me encontrava. Cheguei a invejar a sorte de Synnelet; uma morte tão repentina parecia-me o único remédio para os meus males.

Contudo, este mesmo pensamento fez que eu tornasse a mim do meu torpor.

— Pois que! quero morrer — exclamei eu — para pôr termo aos meus males? Haverá cousa que seja capaz de me desesperar mais do que a perda da mulher que amo? Ah! soframos até à última extremidade para salvar a amante e reserve-se para depois a morte, se tudo for inútil.

Retomei o caminho da cidade. Entrei em casa e achei Manon semimorta de inquietação. A minha presença reanimou-a. Eu não podia ocultar-lhe o terrível acidente que acabava de acontecer. A pobre mulher caiu sem sentidos nos meus braços, ao ouvir a narração da morte de Synnelet e ao ver que eu estava ferido. Mais de um quarto de hora a tive desmaiada, custando-me muito reanimá-la.

Eu mesmo, sabe Deus como estava; não via a mais pequena esperança, nem para mim, nem para ela.

— Manon, que havemos de fazer? — perguntei-lhe eu logo que a vi algum tanto serena — que havemos de fazer? Queres ficar na cidade? Sim, fica, podes ainda aqui ser feliz: eu vou, longe de ti, procurar a morte no meio dos selvagens ou entre as garras de alguma fera.

Manon pôs-se de pé, apesar da sua fraqueza; pegou-me na mão e levou-me até à porta.

— Fujamos juntos, — disse ela — não percamos tempo. Pode ser que por acaso tenham encontrado o cadáver de Synnelet, e talvez já seja tarde.

— Mas, adorada Manon — repliquei eu transtornado — dize-me para onde é que havemos de ir? Vês algum recurso? Não será melhor que tu procures viver aqui, sem mim, e que eu vá voluntariamente entregar a minha vida ao governador?

Uma tal proposta não fez mais do que aumentar o seu ardor em querer partir; era forçoso segui-la. No entanto, ao sair, tive ainda a presença de espírito suficiente para levar alguns licores fortes que tinha no meu quarto e todas as provisões que me couberam nas algibeiras. Dissemos aos criados que íamos dar o nosso passeio da tarde (costume que há muito tínhamos), e afastamo-nos da povoação mais rapidamente do que a fraqueza e a debilidade de Manon o permitiam.

Irresolutos sobre o lugar para onde fugiríamos, nem por isso eu deixava de ter esperança em duas cousas, sem as quais teria preferido a morte à cruel incerteza do que poderia acontecer a Manon. Durante os dez meses que habitei na América, tinha estudado bastante para saber como havia de captar a benevolência dos selvagens. Podia, com facilidade, cair-se em seu poder, sem o risco duma morte certa. Tinha até aprendido alguns termos da sua linguagem, alguns dos seus costumes, isto nas diversas ocasiões que por acaso os encontrara.

Este recurso por um lado, tinha um outro do lado dos ingleses, que do mesmo modo que os franceses possuíam estabelecimentos no Novo Mundo; eis as minhas esperanças. Mas a idéia das grandes distâncias fazia-me estremecer: tínhamos de atravessar, até chegar às suas colônias, campinas estéreis de muitos dias de jornada e algumas montanhas tão altas e escarpadas, que o seu trânsito parecia impossível aos homens mais rudes e vigorosos. Pensava, contudo, que poderíamos tirar partido dos selvagens para nos servirem de guias, e dos ingleses, para nos darem valhacouto nas suas habitações.

Caminhamos, assim, tanto tempo, quanto as forças de Manon o permitiram, isto é, pouco mais ou menos duas léguas, porque esta amante incomparável constantemente se recusava a deter-se. Por fim, vencida pela fadiga, confessou-me que não podia dar nem mais um passo. Era noite; sentamo-nos no meio duma vasta planície, não tendo encontrado nem uma árvore para nos abrigarmos.

Manon cuidou logo em pensar a minha ferida, e mudar-lhe os fios e a ligadura que lhe tinha posto antes da nossa partida. Em vão me opunha à sua vontade. Apressaria a sua morte se lhe tivesse recusado a satisfação de me julgar a salvo do perigo, antes mesmo de pensar em si própria. Durante alguns momentos, submeti-me aos seus desejos. Recebi as atenções que ela me prodigalizava em silêncio e cheio de vergonha. Mas, logo que ela satisfez os seus caprichos, com que ardor a minha ternura retomou a parte que lhe cabia! Despi quase toda a roupa para lhe fazer uma cama menos dura do que o terreno que estava à nossa disposição. Debalde ela quis resistir; não cedi. Aquecia-lhe as mãos com a ardência dos meus beijos e com o calor dos meus suspiros, e passei a noite velando junto dela e pedindo ao céu que lhe concedesse um sono pacífico e descansado. Como as minhas súplicas eram vivas e sinceras! e com que rigor o céu as atendeu!

Desculpe-me, se termino em poucas palavras uma narração gue me mata. Conto-lhe uma infelicidade sem igual; toda a minha vida é destinada a chorá-la. E apesar de a ter sempre bem impressa na memória, a alma horroriza-se todas as vezes que tenho de a exprimir por meio da palavra.

Tínhamos passado tranqüilamente uma parte da noite: julgava que Manon adormecera, e por isso quase não respirava, receando perturbar-lhe o sono. Ao despontar do dia, tocando-lhes nas mãos, vi que ela as tinha frias e trêmulas; aproximei-as do meu peito para as aquecer. Manon notou este movimento, e, fazendo um esforço para se apoderar das minhas, disse-me com uma voz enfraquecida e quase sem alento, que julgava prestes a sua derradeira hora.

A princípio, julguei que esta queixa não era mais do que uma expressão vulgar no infortúnio, e tentei tranqüilizá-la com as consolações do amor. Mas os soluços freqüentes de Manon, o seu silêncio a todas as minhas perguntas, as suas mãos inteiriçadas que apertavam as minhas, tudo me fez conhecer que o fim dos seus torinentos se aproximava.

Não exija de mim que lhe descreva o que então sofri, nem quais foram as suas últimas palavras. Perdí-a, e recebi dela, mesmo no momento fatal, todas as provas de amor; é tudo quanto posso dizer-lhe de tão funesto e triste acontecimento.

A minha alma não seguiu a sua. O céu julgou, sem dúvida alguma, que eu não estava rigorosamente punido; quis que arrastasse ainda por mais algum tempo uma vida triste e miserável. Renuncio voluntariamente a uma existência mais venturosa.

Durante vinte e quatro horas tive a boca colada sobre as mãos e sobre o rosto de Manon. Estava resolvido a esperar assim a morte; mas, no segundo dia, refleti que o corpo da minha amante ficaria exposto assim, depois do meu passamento, a ser pasto dos animais selvagens. Resolvi enterrá-la, e sobre a sua sepultura aguardar a morte. Estava tão próximo deste momento, pela fraqueza que o jejum e a dor me tinham causado, que era necessário um grande esforço para me conservar de pé. Vi-me obrigado a recorrer aos licores que comigo trazia, e eles deram-me a força necessária para realizar o triste ofício que me propusera.

Não era muito difícil escavar o terreno, por ser quase todo de areia. Quebrei a espada para, juntamente com as mãos, fazer a cova. Nela, coloquei o ídolo da minha alma, depois de o ter embrulhado em toda minha roupa para impedir que a areia o tocasse. Depois de a ter beijado mil vezes, e vendo outra vez faltarem-me as forças, resolvi fechar a cova, e encerrar no seio da terra tudo quanto até então a tinha pisado de mais perfeito e encantador; deitei-me depois sobre a sepultura, com o rosto contra a terra; e, fechando os olhos na intenção de nunca mais os abrir, invoquei o auxílio de Deus e esperei a morte com impaciência.

O que talvez lhe custe a acreditar é que durante este lúgubre exercício não deslizou de meus olhos nem uma só lágrima, e nem um suspiro me saiu do peito. A consternação profunda em que estava, e o desígnio determinado de morrer, tinham embotado todas as expressões da dor e do desespero. Assim, em breve perdi os sentidos, estendido como estava sobre a sepultura.

Depois do que o senhor acaba de ouvir, a conclusão da minha história é de tão pouca importância, que não vale a pena que perca tempo em escutá-la. Tendo sido levado o corpo de Synnelet para a cidade e examinadas todas as suas feridas, viu-se que não só não estava morto, mas até que era possível salvá-lo. Synnelet narrou depois a seu tio o modo como as cousas se tinham passado, e a sua generosidade e cavalheirismo levaram-no a tornar público por toda a parte o modo leal com que eu me houvera no duelo. Procuraram-me por toda a parte, e a minha ausência junta à de Manon ilucidou-os sobre a nossa fuga. Era já muito tarde para irem sobre nós; mas os dois dias que se seguiram foram empregados na nossa perseguição. Ao cabo dela, acharam-me inanimado sobre a sepultura de Manon; e logo que me descobriram neste estado, vendo-me quase nu e coberto de sangue, que corria da minha ferida, não duvidaram de que eu tivesse sido roubado e assassinado. Levaram-me para a cidade. O movimento fez-me voltar os sentidos. Os suspiros que eu soltei, abrindo os olhos e vendo-me ainda no número dos vivos, deram a conhecer que eu talvez ainda pudesse ser salvo; e com efeito não se enganaram.

No entanto, não deixaram de me encerrar em estreita prisão: instauraram-me um processo, e como Manon não aparecia, fui acusado de me ter desfeito dela n’algum momento de raiva e de ciúme. Contei, naturalmente, a minha lamentável aventura. Synnelet, apesar do sofrimento que a minha narrativa lhe causou, teve a generosidade de solicitar o meu perdão, e obteve-o.

Estava tão fraco que saí da prisão novamente para a cama, onde estive três meses retido com uma violentíssima febre. O ódio pela vida não diminuiu, e recusei-me durante muito tempo a tomar remédio algum. O céu, porém, depois de me ter punido com tanto rigor, queria que as minhas desditas e os seus castigos me fossem úteis; esclareceu-me com as suas luzes, e fez germinar em mim idéias dignas da minha condição e daqueles que me deram o ser.

A tranqüilidade começou a renascer pouco a pouco no meu espírito, e a cura veio depressa. Entreguei-me depois às inspirações da honra e ao exato cumprimento dos deveres do meu pequeno emprego, esperando os navios de França que uma vez cada ano tocam neste ponto da América. Estava resolvido a voltar para a minha pátria, onde, por meio dum comportamento sério e honrado, reparasse os desvarios e escândalos doutrora. Synnelet tinha feito transportar o corpo da minha desventurada Manon para lugar sagrado dentro da povoação.

Haviam decorrido umas seis semanas depois do meu restabelecimento, quando, ao passear uma tarde só na praia, vi chegar um navio que negócios comerciais traziam a Nova Orleãs. Observava com atenção o desembarque da marinhagem, quando fiquei surpreendido ao reconhecer o meu amigo Tiberge entre os que se dirigiam para a cidade. Era ele, com efeito, e o único motivo da sua viagem tinha sido o de me ver e de me convidar ao regresso à França. Tiberge disse-me, que tendo recebido a carta que lhe havia escrito do Havre, correra em pessoa a levar-me o dinheiro que lhe pedia; que não imaginava o desgosto que tivera quando soube da minha partida, e que me teria imediatamente seguido se houvesse outro navio pronto a fazer-se para a América: que, durante muitos meses, procurara transporte em todos os portos, e que achando, finalmente, em Saint-Malo, um navio que se dirigia à Martinica, embarcara na esperança de achar nesta ilha meio fácil de seguir para Nova Orleãs; que o navio fora, na viagem, aprisionado por corsários espanhóis, e que ele se escapulira arteiramente da prisão, achando por fim este pequeno navio, que felizmente o conduziu até junto de mim.

Todo o reconhecimento que eu mostrasse por tão generosa e constante amizade era pouco. Levei-o para minha casa. Informei-o de tudo quanto me tinha acontecido depois da minha saída de França; e para lhe causar uma alegria que ele decerto não esperava, declarei-lhe que os gérmenes de virtude, que ele outrora lançara no meu coração, começavam a florescer e a produzir resultados que o deixariam satisfeito. Afirmou-me que uma tal certeza o indenizava de todos os trabalhos da sua viagem.

Ao chegar, escrevi a minha família e, pela resposta do meu irmão mais velho, soube a triste notícia da morte de meu pai, para a qual receio que os meus desvarios tenham contribuído muito. Sendo o vento favorável para Calais, embarquei imediatamente para este ponto, a fim de ir ter com meu irmão, que tinha combinado esperar-me em casa dum gentil-homem meu parente e que mora algumas léguas de distância desta cidade.

 

Este trabalho foi composto e impresso nas oficinas do
ESTABELECIMENTO GRÁFICO “CRUZEIRO DO SUL” à rua Santo Antônio, 93
em São Paulo para o CLUBE DO LIVRO no mês de julho de 1943

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(l) - Faraó, jogo de cartas semelhante ao monte.


 

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