Dois Contos
Cleusa Sarzêdas
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Fonte Digital
Documento da Autora
©2002 — Cleuza Sarzedas
clsarzedas@ig.com.br
cleonicesarzedas@yahoo.com.br
ÍNDICE
Uma História Estranha
A Velha do Café
As Queixas dos Banquinhos
Cleusa Sarzêdas
Dois Contos
UMA HISTÓRIA ESTRANHA
A VELHA DO CAFÉ
Num velho casarão de paredes descascadas e parte do teto destelhado morava uma mulher de 88 anos. Todo dia se levantava às 5 horas e fazia o café. O aroma despertava os três preguiçosos filhos, dois rapazes e uma moça, para o trabalho numa fábrica de papel, na cidade vizinha.
Ela passava o dia cuidando dos afazeres da casa, da pequena horta, do galinheiro com umas poucas galinhas e um galo de grande crista caída, e também de uma cabra que ainda alimentava a família com seu leite escasso, presa a grande árvore no fundo do quintal.
No fim do dia recostava o corpo cansado e cochilava alguns minutos. Despertava antes da chegada dos filhos para servir-lhes o jantar. Depois, recolhia-se ao seu quarto — um pequenino cômodo nos fundos da residência — onde, numa cama de madeira cujo colchão era uma esteira coberta com lençol feito de pano de saco de algodão, esticava o corpo magro e encarquilhado
Nas noites de maior solidão abria a janela e permitia que a lua com seus raios brilhantes a invadisse e descortinasse o vazio da sua alma dissipando a tristeza da sua existência.
Numa manhã levantou-se indisposta. Fez o café, preparou as três marmitas e voltou a deitar-se. Os filhos, após o repasto, foram para o trabalho levando o almoço preparado pela mãe. Nem perceberam a sua ausência.
À noite, encontraram-na recostada numa cadeira sem braços mostrando no rosto a dor que sentia. Perguntaram-lhe o que fazia ali parada, por que a casa estava desarrumada e se o jantar estava pronto.
Ela, com dificuldade, pressionando o lado do corpo com as mãos respondeu que estava com dor nos ossos. Eles gargalharam e disseram ser ela ignorante porque ossos não doem e que era desculpa para não fazer o jantar. Sentaram-se à mesa, demonstrando pouco caso com o sofrimento mãe, alegando cansaço e proferindo um discurso sobre a necessidade de se alimentarem e que não era justo fazerem o trabalho que competia a ela.
A velha levantou-se devagar. O corpo rangeu qual máquina enferrujada. Capenga, dirigiu-se à cozinha e preparou uma refeição da qual não provou. Dos olhos sem brilho e encobertos pela flácida pálpebra, desciam gotas que esbarravam nas lombadas da pele enrugada e, exauridas, escondiam-se em qualquer lugar.
Passado o tempo, o fato esquecido, numa manhã despertou muito disposta. No fim da tarde fez um pequeno bolo de milho; enfeitou-o com clara de ovo batido com açúcar e sobre ele colocou muitas velas. Na hora em que os filhos costumavam chegar, acendeu-as esperando que lembrassem do seu nonagésimo aniversário. Naquela noite, como em muitas outras, eles não vieram e ela, decepcionada, guardou o bolo e foi conversar com a lua.
No dia seguinte, vestiu sua melhor roupa, colocou o bolo sobre a mesa, acendeu as velas e, sentada à cabeceira aguardou a chegada deles. Assim que entraram a filha correu em sua direção. A velha levantou-se esperando ganhar um abraço de parabéns mas a jovem apanhou o bolo, dirigiu-se à cozinha e jogou-o dentro da pia abrindo a torneira sobre ele. Os outros, em gritos e acusações crescentes, chamaram a mãe de incendiária e que ela desejava deixá-los na rua da amargura.
A velha, ainda de pé, sentiu as pernas dobrarem e uma dor profunda invadir seu peito. Pensou ser a morte chegando. Olhou para eles firmemente, virou-se e dirigiu-se aos seus aposentos. Fechou a janela.
A partir daquele incidente a velha tornou-se uma pessoa carrancuda. Não falava nem respondia ao que lhe perguntavam, só alimentava sentimentos de mágoa e de rancor que se desenvolveu em ódio mortal.
Numa tarde os filhos retornaram ao lar após dias de ausência. Sentiram o forte aroma do café e foram saboreá-lo. Quando entraram na cozinha encontraram a mãe caída próximo ao armário com o bule sobre o corpo, o café espalhado no chão, a chaleira em uma das mãos e na testa profundo corte com o sangue coagulado.
A velha, com o atestado de óbito, foi deixada no necrotério para ser sepultada. O piedoso coveiro colocou sobre o túmulo uma flor.
Os dias se sucederam e, de repente, um grito surdo se fez ouvir com fortes pancadas na porta da frente. O filho mais velho, que se encontrava em casa sozinho, julgando ser brincadeira dos irmãos, não deu importância ao fato. Outras pancadas também nas janelas. Ele, irritado, abriu a porta e contornou a casa. Nada viu; esperou escondido na intenção de pegá-los. Nesse momento sentiu o cheiro do café e entrou, foi à cozinha, mas lá não havia ninguém. Amedrontado, decidiu sair e voltar somente à noite quando, possivelmente, os outros irmãos também estariam em casa.
A partir daquele dia muitos fatos sinistros aconteceram: o aroma do café inundava a casa todas as manhãs; o sol brilhava quando um raio partiu a árvore do quintal matando a cabra; uma raposa surgiu do nada comendo as galinhas e somente o galo que se encontrava no alto do poleiro sobreviveu, morrendo mais tarde de fome. As plantas o sol crestou; o poço secou. Gargalhadas eram ouvidas à distância.
O pavor tomou conta dos habitantes daquela casa que não conseguiam mais dormir. Foram despedidos do emprego.
Desesperados chamaram padres, rezadeiras e tudo faziam para livrarem-se daquela maldição, mas só conseguiam aumentar as estranhas ocorrências. Decidiram vender a casa. Ninguém se interessou e passavam longe do local mal-assombrado.
Certa noite ao chegarem, os filhos viram de longe a casa toda iluminada, parecia estar ocorrendo ali uma festa. Temerosos, abriram a porta devagar. A velha mãe estava sentada à cabeceira da mesa e muito sorridente, parecia feliz. À sua volta, pessoas estranhas cantavam parabéns para você. No centro da mesa, um bolo coberto com glacê e, sobre ele, muitas velas acesas. No final, um sopro violento elevou uma bola de fogo que subiu ao teto. Os filhos petrificados foram arremessados para fora com queimaduras graves. No hospital ninguém entendia o que eles diziam e a equipe médica julgava estarem perdendo a razão, tal a confusão de palavras com que se expressavam.
O mato cobriu o terreno. O povo garante que vê, todos os dias às cinco horas da manhã quando sai para o trabalho, um galo de crista caída ciscando e uma velha agachada tendo nas mãos um bule e uma chaleira, e sente o forte aroma de café.
“As queixas dos banquinhos”
Num jardim de uma grande mansão está montada enorme mesa forrada com toalha branca, aparentando fim de festa. Ao redor, vários banquinhos, banquetas e banquetinhas. Dois banquinhos conversam:
—Ô rapaz! Você viu...que festa! Todo mundo queria sentar em cima de mim. Diziam que eu não cederia. Não sei o que queriam quer dizer com isso. É só uma banqueta dá mole pra vê se eu cederia ou não, claro que cederia! não sou bobo nem nada, e com muito prazer, ha!ha!ha! esse negocio de não ceder é próprio de banqueta que antes a gente tem que passar conversa, convidar pra sair, fazer um chamego e até ser poeta se necessário. Só assim. Dá um traba...lho. Nessa vida a gente tem que ser artista. Não é mais fácil ceder logo? Fica mais gostoso, você não acha? Mas voltando à festa: no início até gostei, vieram as crianças, você sabe, criança é sempre bonita embora muitas fazem coisas ruins com a gente, batem, quebram, jogam a gente longe, cortam com faca, mas mesmo assim, eu amo as crianças. depois vieram os adolescentes, esses, apesar de bonitos são terríveis, arrastam a gente, pensam que nossos pés são de ferro, Deus devia criar uma Lei para que todo mundo fosse banquinho por um dia, só pra ver como é bom ser massacrado, pisoteado, lavado, jogado fora , desmontado e queimado, sem ao menos pedir desculpas ou agradecer o tempo que serviu antes de ficar velho. Eles pensam que a gente não tem alma, tem sim. A gente sente dor, fica magoado, chora. Ninguém vê. Não sei se você reparou, quase no fim da festa apareceu uma bum...., rapaz que bum.... grande, pesada, se esparramou em cima de mim, fiquei sufocado, e gostou tanto que não queria mais sair, até que finalmente chamaram aquele bum....zão e eu pude respirar um pouco, que alivio rapaz, ufa!
—Você está reclamando! Pior sou eu que sou de plástico, quando sentam em cima de mim quase me lasco todo, quando não me quebro!! Outro dia fiquei com muita vergonha, estava eu paquerando uma banquetinha, bonitinha de madeirinha, cherosinha, um bijú, aí chegou um grandalhão e se esparramou em cima de mim, ah! ah! ah! você nem imagina, rangeu tudo, minhas pernas se espalharam, fiquei mais baixo que a banquetinha que eu paquerava. Ela sorriu zombando de mim. Esses grandalhões não deviam deixar a gente nessas circunstâncias, estima e educação cabem em qualquer lugar; estou amuado até hoje. E ainda perdi a danadinha de vista. Quem disse que voltei a olhar pra ela! Não tive coragem!.
—Outro dia fui mandado pra casa de um garoto muito estudioso, mas o danado tinha uma estante e toda hora subia em cima de mim, com aqueles enormes sapatos e apanhava livros na última prateleira, e ainda ficava na pontinha do pé, olha! Era de amargar, como doía! Depois descia e me empurrava lá pro canto do quarto, ainda bem que sou de madeira, puxa, eu só servia enquanto servia, depois..., era jogado de qualquer maneira em qualquer lugar. Não é justo, um dia ainda vou convocar uma passeata para protestar pela maneira como tratam a gente. Depois disso vão nos respeitar. Vai ter até Sindicato pra nos defender, aposto.
—Ih!ih!ih!!! olha só, ívem o meu dono me levar pra casa, presta bem atenção como ele me pega, de qualquer jeito, só faz isso porque sou de plástico, se eu fosse de ouro estaria guardado a sete chaves dentro de uma caixinha de veludo e seria acariciado e mostrado com orgulho aos visitantes, mas sou de plástico, né! Nada de mordomias, fazer o quê! Na próxima encarnação vou pedir pra voltar como banquinho de ouro, ha! ha! ha! ha! ha! ha!
—Até a próxima vez amigo, eu também já me vou, meu dono está chegando. A gente se encontra em outra festa. Olha! Não se esqueça de mim quando voltar como ouro! ha! ha! ha! ha!.
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