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Friedrich Engels

ANTI-DÜHRING

—Ridendo Castigat Mores—


 

Anti-Dühring (1875)
Friedrich Engels (1820-1895)

Edição
Ridendo Castigat Mores

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Fonte Digital
www.jahr.org

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Autor: Friedrich Engels
Edição eletrônica:
Ed. Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


ANTI-DÜHRING

Herr Eugen Dühring’s
Revolution in Science

[imagem]

Friedrich Engels


ÍNDICE

Apresentação
Nélson Jahr Garcia

Prefácio da primeira edição.
Prefácio da segunda edição.

INTRODUÇÃO
Capítulo I – Generalidades.
Capítulo II – O que promete o Sr. Dühring.

PARTE I – Filosofia
Capítulo III – Divisão. Apriorismo.
Capítulo IV – Esquemática do mundo.
Capítulo V – Filosofia da natureza. O tempo e o espaço.
Capítulo VI – Filosofia da natureza. Cosmologia, física, química.
Capítulo VII – Filosofia da natureza. O mundo orgânico.
Capítulo VIII – Filosofia da natureza. O mundo orgânico (conclusão).
Capítulo IX – Moral e direito. Verdades eternas.
Capítulo X – Moral e direito. A igualdade.
Capítulo XI – Moral e direito. Liberdade e necessidade.
Capítulo XII – Dialética. Quantidade e qualidade.
Capítulo XIII – Dialética, Negação da negação.
Capítulo XIV – Conclusão.

PARTE II – Economia Política
Capítulo I – Objeto e método.
Capítulo II – Teoria da violência.
Capítulo III – Teoria da violência (continuação).
Capítulo IV – Teoria da violência (conclusão).
Capítulo V – Teoria do valor.
Capítulo VI – Trabalho simples e trabalho complexo.
Capítulo VII – Capital e mais-valia.
Capítulo VIII – Capital e mais-valia (conclusão).
Capítulo IX – Leis naturais da economia. A renda territorial.
Capítulo X – Sobre a "História crítica".

PARTE III – Socialismo
Capítulo I – Traços históricos.

NOTAS


APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

O marxismo é um conjunto de idéias filosófico-ideológicas, com traços de economia. Procura explicar a estrutura e funcionamento do sistema capitalista e avaliar caminhos para a superação de suas deficiências. Suas concepções básicas foram assimiladas, aceitas e seguidas por mais da metade da população do globo terrestre.

Infelizmente as idéias de Marx transformaram-se em dogmas religiosos, mesmo quando o tempo começava a abalar seus fundamentos. Qualquer contestação às teses de Marx, Lenin, Stalin, Mao e tantos outros geravam, para o autor da crítica, acusações de “reacionário”, “porco revisionista”, “burguês explorador”, “pequeno-burguês egoísta”.

Os defensores do ideário capitalista também criaram uma religião, ainda mais severa e intolerante. Os marxistas, socialistas, anarquistas, toda a esquerda enfim eram acusados de “criminosos”, “comedores de criancinhas”, “vermelhos adeptos do demônio”, “risco para a juventude, a família e a religião cristã”.

Repentinamente caiu o Muro de Berlim. Aliás não caiu, porque bem construído, mas foi derrubado, tijolo por tijolo, pedra por pedra. A derrubada foi feita pelos que não mais suportavam o autoritarismo burocrático-religioso e, há anos, vinham sonhando com a liberdade que, apesar de tudo, ainda não é plena.

Hoje se pode conhecer as afirmações marxistas, não como dogmas, mas como um conhecimento que é herdeiro da antigüidade clássica (Grécia, Roma), do Oriente antigo, da Filosofia alemã e francesa, da Economia inglesa. Suas análises são de uma lógica rigorosa, a análise das distorções do capitalismo é sugestiva e intrigante.

A leitura e, principalmente, o estudo das obras de Marx permite ao leitor e estudioso aperfeiçoar sua sensibilidade crítica, possibilitando-lhe entender melhor as concatenações que estão na base da Sociedade e do Estado.

A dificuldade é que os textos são complexos, discutem minúcias e pormenores nem sempre facilmente compreensíveis de imediato. Talvez seja mais fácil começar com Engels. Friedrich Engels teve uma formação muito semelhante à de Marx, era seu amigo e co-autor em várias obras. Tinha uma linguagem mais clara, direta e objetiva embora sua argumentação nem sempre fosse muito profunda.

Escreveu, dentre outros, dois livros: “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico” e “Anti-Dühring”.

No primeiro descreve a evolução do pensamento socialista nos séculos XVIII e XIX, suas origens econômicas e políticas; discute suas forças e deficiências (O livro se encontra neste site e em www.eBooksBrasil.org).

Em Anti-Dühring, tece críticas severas às obras do pensador, Senhor (Herr) Eugen Dühring. Ao fazê-lo, usa de um humor cáustico e, muitas vezes, extremamente agressivo. Vejamos uns poucos exemplos:

 

“Não é bastante que me resolva eu a classificar uma escova de sapatos na classe dos mamíferos, para que a mesma, como que por encanto, apresente glândulas mamárias.”

“...o Sr. Dühring também nos fala (pág. 84) da ‘gravitação dos átomos’ mas com isso prova unicamente que vive ‘nas trevas’...”

“...o Sr. Dühring fala de coisas que conhece muito pouco.”

“...todas as demais vitórias do Sr. Dühring, anunciadas por frases pomposas e retumbantes deram como resultado, em todos os setores a que se aplicaram, uma pura farsa.”

 

Ao criticar expõe os principais fundamentos do socialismo marxista: “a determinação em última instância pelo econômico”; “a filosofia da natureza”; “os princípios da dialética”; “a violência política”; “capital e mais-valia”; “exploração do homem pelo homem”; “o socialismo” e muito mais.


PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

 

O presente trabalho não é, absolutamente, fruto de um “impulso interior”. Muito pelo contrário.

Quando, há três anos, o Senhor Dühring surgia, cheio de rompante, apresentando-se, ao mesmo tempo, como adepto e reformador do socialismo, disposto a trazer o século à luta, alguns amigos da Alemanha expressaram várias vezes o desejo de que eu fizesse; no órgão do partido social-democrata, então o Volksstaat, um estudo crítico da nova doutrina socialista. Consideravam tal estudo grandemente útil, a menos que não se quisesse proporcionar ao sectarismo existente no jovem partido, ainda em formação e distante de sua unidade definitiva, uma nova oportunidade para divergência e confusão. Estavam eles, melhor do que eu, em condições de julgar a situação da Alemanha: via-me obrigado a dar-lhes crédito. Demais, pode-se verificar que parte da imprensa socialista se pôs a dar boas-vindas ao novo apóstolo com um entusiasmo que não era unicamente condescendência, mas deixava transparecer alguma inclinação para acolher, sem reservas, o Senhor Dühring, e, o que é mais, a doutrina do Senhor Dühring.

Havia mesmo pessoas que já se julgavam no dever de difundir a doutrina entre os trabalhadores. Finalmente, o Senhor Dühring e seus correligionários punham a seu serviço todas os artifícios da propaganda e da intriga para obrigar o Volksstaat a tomar posição definitiva em face da nova doutrina, que entrava em cena com tão consideráveis pretensões.

Foi-me preciso, pois, um ano para me resolver a deixar de parte outros trabalhos e trincar esse amargo pomo que, uma vez mordido, tinha que ser comido totalmente. E o mais grave é que esse pomo não era apenas muito amargo, mas, também, muito grande. A nova doutrina socialista apresentava-se como a última conseqüência prática de um novo sistema filosófico. Tratava-se, portanto, de estudá-lo em conexão com o sistema, ao mesmo tempo que ao próprio sistema; tratava-se do seguir o Senhor Dühring naquele vasto domínio onde ele encara todas as coisas possíveis.., e muitas outras ainda. Tal a origem de uma série de artigos que, a partir do fim de 1877, apareceram no jornal que sucedera ao Volkstaat, o Vorwaerts, de Leipzig, artigos esses que vão aqui reunidos.

É, pois, a natureza do assunto que obriga a crítica a tomar um desenvolvimento assaz considerável em relação ao que há de científico na matéria, isto é, nos escritos de Dühring. Mas duas outras circunstâncias poderiam ainda servir de escusas a este desenvolvimento. De um lado, proporcionar ocasião para expor em forma positiva os assuntos mais diversos que tivéssemos de abordar, concepções sobre as questões controvertidas que apresentam hoje interesse científico e prático mais geral. Foi o que fiz em cada capítulo, e, ainda que estes escritos não tenham por fim opor ao “sistema” do Senhor Dühring um outro sistema, espero, todavia, que o leitor não deixe de ver uma relação intima nas opiniões por mim expostas. Que, deste ponto de vista, meu trabalho não será completamente infrutífero, tenha, desde já, suficientes provas.

Por outro lado, o Senhor Dühring, como “criador de sistema”, não é uma aparição isolada na Alemanha contemporânea. De algum tempo a esta parte, os sistemas de cosmogonia, de filosofia da natureza em geral, de política, economia, etc., proliferam na Alemanha, da noite para o dia, às dúzias, como os cogumelos. Qualquer doutor em filosofia e até mesmo o simples estudante não mais se contentam senão com um sistema integral. Da mesma forma que, no Estado moderno, todos os cidadãos se supõem aptos para julgar as questões em que são chamados a dar voto; da mesma maneira pela qual, em economia política, se considera o comprador com conhecimentos profundos sobre todas as coisas que adquire para o seu sustento; da mesma forma se pretende proceder com respeito à ciência. A liberdade científica consistirá, assim, na possibilidade de cada qual escrever sobre ciência tudo o que nunca aprendeu, dando-o como o único método rigorosamente científico. O Senhor Dühring é um dos mais característicos tipos. desta pseudociência presunçosa, que atinge a primeira plana, em toda a Alemanha hodierna, e domina o espaço com seu estrepitoso ruído de... latão. Ruído de latão em poesia, em filosofia, em política, em economia, em história; latão na cátedra dos professores e na tribuna; em toda parte, um ruído de latão que aspira à superioridade e à profundeza do pensamento e que não deve ser confundido com o ruído de latão comum, liso e vulgar das outras nações. É esse o mais característico e abundante produto da indústria intelectual alemã, “barato, sim, porém de má qualidade”, tal como outros produtos nacionais com que o país, infelizmente, não se fez representar na Exposição de Filadélfia. O próprio socialismo alemão, de algum tempo para cá, notadamente após o bom exemplo do Senhor Dühring fez, ultimamente, grandes progressos na arte do ruído de latão e exibe tal ou qual produto batizado de ciência e da qual não contém uma palavra. Trata-se de uma doença infantil, sintoma e fenômeno inseparáveis da conversão que se está iniciando do estudioso alemão à social-democracia e de que esta, graças à maravilhosa saúde de nossos operários, já se ia curando.

Não me cabe a culpa de haver acompanhado o Senhor Dühring em regiões em que eu não passarei de um diletante. Em tais casos, limitei-me a opor. na maior parte das vezes, às afirmações falsas ou mal alinhavadas do meu adversário, os fatos incontestáveis: deu-se isso nas ciências jurídicas e freqüentemente nas ciências naturais. Além disso, trata-se de idéias gerais em ciência teórica da natureza, de um campo em que até o naturalista técnico é forçado. por vezes. a sair da especialidade e a invadir os domínios circunvizinhos — domínios que. como reconheceu Virchov, ele conhece tanto quanto nós outros, A indulgência mútua, admissível em semelhantes casos, para pequenas inexatidões ou impropriedades de expressão, ser-me-á, eu o espero, facilmente concedido.

No momento de concluir este prefácio, recebo de uma livraria um anúncio redigido pelo Senhor Dühring, no qual o filósofo promete uma nova obra “capital” intitulada: “Novas leis básicas da química e da física nacionais”. Tenho pleno conhecimento da insuficiência de meus conhecimentos em física e em química; apesar disso, porém, acredito conhecer bastante o meu caro Dühring, para adiantar, mesmo sem lhe haver lido a obra, que as leis físicas e químicas aí estabelecidas poderão competir, em confusão ou em banalidades com as leis econômicas, cosmológicas e outras que ele até agora descobriu e examinei no meu livro. Só espero que o rigometro, instrumento construído pelo Sr. Dühring para medir as temperaturas mais baixas, sirva para medir, não temperaturas altas ou baixas, mas simplesmente a arrogante ignorância do Senhor Dühring.

 

Londres, 11 de junho de 1878.


PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

 

A necessidade de fazer-se desta obra uma segunda edição foi para mim verdadeira surpresa. A personagem, que neste livro se crítica, está hoje inteiramente esquecida. A obra em si mesma não só teve numerosos leitores, quando apareceu em fragmentos no Vorwaerts de Leipzig, em 1877 e 1878, como dela se tiraram, em separado e integralmente, inúmeros exemplares. Como poderá alguém interessar-se pelo que eu disse há vários anos a propósito do Senhor Dühring?

Devo-o, antes de tudo, à circunstância de que esta obra, como, aula, quase todos os meus escritos ainda agora em circulação, foi interditada no império alemão logo após a promulgação da lei contra os socialistas. Quem quer que não estivesse preso aos hereditários preconceitos dos funcionários dos países da Santa Aliança, deveria claramente prever o efeito de semelhante medida: dupla ou tripla venda para os livros interditados e manifestação de impotência por parte daqueles Senhores de Berlim, que promulgam leis cuja execução não conseguem impor. Realmente, a amabilidade do governo do império forçou-me a novas edições que não poderia satisfazer: como não tenho tempo para corrigir o texto, coisa que seria de desejar, sou obrigado a contentar-me com uma simples reimpressão.

A essa, junta-se outra razão, o “sistema” do Senhor Dühring, de que este livro é uma crítica, estende-se a domínios teóricos muito vastos: tive de segui-lo por toda parte e opor às suas concepções as minhas. Assim, a crítica negativa resultou positiva; a polêmica transformou-se em exposição mais ou menos coerente do método dialético e da ideologia comunista defendida por Marx e por mim, numa série de domínios bastante vastos. Esta concepção, desde o seu aparecimento na Miséria da Filosofia de Marx e no Manifesto Comunista, tem atravessado um período de incubação de mais de vinte anos, até este momento em que, com a apresentação d’O Capital, ela alcançou regiões cada vez mais distantes, e, hoje, já fora das fronteiras da Europa, prende a atenção em todos os países em que há proletários e cientistas imparciais. Pareceu, então, que havia um público altamente interessado, capaz de acolher, para perpetuar, a polêmica contra a tese do Senhor Dühring (polêmica julgada hoje sem razão de ser por muita gente), e adepto das digressões positivas que acompanham a crítica.

Uma observação de passagem: tendo sido criada por Marx, e em menor escala por mim, a concepção exposta neste livro, não conviria que eu a publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia política (Sobre a história crítica) foi escrito por Marx. Infelizmente, eu o tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um.

Esta nova edição, exceto um capítulo, é idêntica à precedente, De um lado, faltou-me o tempo para a revisão cuidada em que pudesse fazer alterações na exposição. Eu tinha o dever de preparar para a impressão os manuscritos deixados por Marx, diante do que, qualquer outra tarefa é menos importante, Por outro lado, minha consciência opõe-se a qualquer modificação. É esta uma obra de polêmica e não me julgo na obrigação de modificá-la, uma vez que meu adversário em nada se corrigiu.

Só poderia aspirar ao direito de replicar ainda uma vez à resposta do Senhor Dühring. Não sei se o Sr. Dühring escreveu alguma coisa respondendo aos meus ataques; e, salvo razão especial, não o lerei jamais: teoricamente liquidei minhas contas com ele. De resto, há outra razão que me obriga a observar, com maior cuidado ainda, o decoro das lutas literárias, em relação ao meu adversário: a vergonhosa indignidade contra ele praticada, posteriormente, pela Universidade de Berlim. A bem dizer, esta última foi punida: uma Universidade que se atreve a cassar ao Senhor Dühring, nas circunstâncias que sabemos, a liberdade de ensinar, não tem o direito de admirar-se de lhe terem imposto o Senhor Schwenninger, noutras circunstâncias que igualmente conhecemos.

O único capítulo em que me permiti adições explicativas foi o segundo da terceira parte: Teoria. Ali, tratou-se unicamente de expor um ponto de vista essencial da concepção que represento: meu adversário não poderia, pois, lamentar-se de que me haja esforçado no emprego de linguagem mais acessível, completando a sucessão das idéias sistemáticas. É certo que fui instigado por outros a fazê-lo. Três capítulos da obra (o primeiro da Introdução e o primeiro e o segundo da terceira parte) foram transformados em brochura especial, por meu amigo Lafargue, atendo-se este à tradução francesa da obra; e, quando a versão francesa serviu de base à polonesa e à italiana, fiz uma edição alemã intitulada: “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, obra que em poucos meses alcançou três edições e apareceu vertida para o russo e o dinamarquês. Em todas as edições, o capítulo em questão era o único que havia sido aumentado: seria um excesso de zelo que me limitasse, na edição da nova obra, ao texto primitivo, em vez da forma ulterior, tornada internacional.

Quanto às demais modificações, que desejaria fazer, referem-se principalmente a dois pontos: primeiramente, à história primitiva da humanidade, assunto de que Morgan só nos deu a chave em 1877. Mas, como, em minha obra “As origens da família, da propriedade privada e do Estado”, tive ocasião de ordenar e expor a matéria por mim reunida desde o aparecimento deste livro, bastará recorrer a esse trabalho ulterior.

Em segundo lugar, teria desejado modificar a parte relativa às ciências naturais. Nota-se ali grande descuido de exposição e há várias coisas que hoje poderiam ser expressas com maior precisão e clareza, Não me arrogando o direito de corrigir, julgo-me na obrigação de fazer esta crítica.

Marx e eu fomos, sem dúvida alguma, os únicos que salvaram da filosofia idealista alemã a dialética consciente, incluindo-a na nossa concepção materialista da natureza e da história. Mas uma concepção da história, a um tempo dialético e materialista, exige o conhecimento das matemáticas e das ciências naturais. Marx foi um consumado matemático: mas, de nossa parte, não pudemos estudar senão fragmentariamente, de quando em quando, as ciências naturais. A medida que ocupações comerciais e a minha mudança para Londres mo foram permitindo, fiz uma completa mise en mue, como diria Liebig, das matemáticas e ciências naturais, tarefa em que empreguei quase oito anos. Estava eu em meio desse trabalho, quando me ocupei do Senhor Dühring e de sua pretensa filosofia da natureza. Se, pois, nem sempre atino com a exata expressão técnica, e se, por vezes, me vejo em alguma dificuldade no domínio das ciências naturais, é naturalíssimo. Por outro lado, a consciência da própria incerteza me fez prudente: ninguém me poderá atribuir erros patentes sobre fatos então conhecidos, nem inexatidão na exposição das teorias professadas na época. A tal respeito, só surgiu um grande matemático pouco conhecido, a queixar-se, numa carta dirigida a Marx, de que eu havia criminosamente atentado contra a honra da √-1. Tratava-se, evidentemente, de que eu, ao fazer a recapitulação das matemáticas e ciências naturais, procurava convencer-me sobre uma série de pontos concretos — sobre o conjunto eu não tinha dúvidas, — de que, na natureza, se impõem, na confusão das mutações sem número, as mesmas leis dialéticas do movimento que, também na história, presidem à trama aparentemente fortuita dos acontecimentos; as mesmas leis que, formando igualmente o fio que acompanha, de começo a fim, a história da evolução realizada pelo pensamento humano, alcançam pouco a pouco a consciência do homem pensante; leis essas primeiramente desenvolvidas por Hegel, mas sob uma forma que resultou mística, a qual o nosso esforço procurou tornar acessível ao espírito, em toda a sua simplicidade e valor universal. Será excusado dizer que a velha filosofia natural, — apesar das muitas coisas boas que realmente continha e dos muitos germes fecundos que encerrava(1) — não poderia contentar-nos: conforme se expõe minuciosamente neste livro, consiste-lhe o defeito na forma hegeliana de não reconhecer na natureza nenhum desenvolvimento no tempo, nenhuma “sucessão”, mas simplesmente uma “coexistência” (Nacheinandr-Nebeinander). Tal defeito tinha razão de ser, de uma parte, no sistema hegeliano de per si, que não atribuia ao espírito seqüência de desenvolvimento histórico, e, de outro lado, no estado das ciências naturais na época. Assim, Hegel recua, neste ponto, bem para antes de Kant que, em sua teoria da nebulosa, já punha em foco o problema das origens e cujo descobrimento do obstáculo que, segundo se supunha, as marés criavam ao movimento de rotação da terra, anunciava já a consolidação do sistema solar. Finalmente, o problema, para mim, consistia, não em impor à natureza leis dialéticas predeterminadas, mas em descobri-las e desenvolvê-las, partindo da mesma natureza.

Seria, no entanto, tarefa de gigante seguir este preceito de forma sistemática e em todos os domínios. Não só porque o objetivo a considerar é de quase impossível cálculo, mas ainda porque em todo este terreno a própria ciência da natureza é dominada por um desenrolar tão violento de fenômenos, que a custo a poderia seguir o homem que dispusesse de todo o seu tempo. Ora, desde a morte de Carlos Marx, meu tempo tem sido ocupado por deveres mais urgentes, que me forçam à interrupção do próprio trabalho. Estou, pois, provisoriamente, na contingência de me limitar, na presente obra, a aguardar a ocasião, se é que ela não virá muito tarde, de reunir e publicar os resultados obtidos, bem como, ao mesmo tempo, os importantíssimos manuscritos matemáticos deixados por Marx.

Possivelmente, de resto, o progresso da ciência teórica tornará supérflua grande parte, senão a totalidade do meu trabalho. Porque é considerável a simples tarefa de pôr em ordem as descobertas puramente empíricas, que se acumulam sempre, a fim de tornar progressivamente mais evidente o caráter dialético dos fenômenos, ainda mesmo aos mais recalcitrantes empiristas. As velhas antíteses rígidas, as linhas nítidas de demarcação intransponíveis, desaparecem pouco a pouco. Desde a fluidificação dos últimos gases “autênticos”; desde a prova obtida de que um corpo pode ser reduzido a um estado em que a forma liquida e a forma gasosa são indiscerníveis, os estados de agregação perderam a última parte do caráter que possuíam anteriormente. Com a fórmula da teoria cinética dos gases, pela qual, nos gases perfeitos, os quadrados das velocidades com que se move cada molécula gasosa são, a iguais temperaturas, inversamente proporcionais aos pesos moleculares, o calor entra, por seu turno, na série de fórmulas diretamente mensuráveis. Ainda há dez anos, a grande lei fundamental do movimento, que acaba de ser descoberta, era conhecida como lei da “conservação da energia”, simples expressão da indestrutibilidade e da invariabilidade do movimento do ponto de vista puramente quantitativo; mas, cada vez mais, esta estrita expressão negativa se substitui por uma expressão positiva: a da transformação da energia, onde se tem em conta, pela primeira vez, o conteúdo qualitativo do processus e o desaparecimento das últimas reminiscências de um criador sobrenatural. Já não há necessidade de afirmar-se, como se fora novidade, a idéia de que a quantidade de movimento (daquilo a que se dá o nome de “energia”) não se transforma quando, de energia cinética, dita “força mecânica”, ela se converte em eletricidade, calor, energia potencial e reciprocamente. Ela serve de base, doravante bem mais sólida, do processus de metamorfose em si mesmo, do grande processus fundamental cujo conhecimento encerra o conhecimento integral da natureza. E, desde que a biologia se desenvolve à luz da teoria evolucionista, foram-se apagando igualmente, no domínio da natureza orgânica, uma a uma, as linhas divisórias da classificação: elementos intermediários quase inclassificáveis multiplicam-se dia a dia; qualquer estudo mais acurado nos revela organismos de uma classe em outra e os caracteres distintivos, tornados quase artigos de fé, perdem o seu valor absoluto: possuímos hoje mamíferos ovíparos, e, se a notícia se confirma aves que caminham sobre quatro patas. Se a célula impôs a Virchow, há anos, a contingência de resolver a individualidade animal (consequentemente humana), numa federação de elementos celulares, este fato ainda mais se complica pela descoberta dos glóbulos brancos do sangue, que circulam à maneira de amebas no corpo dos animais superiores. Ora, são estas, precisamente, as contradições diametrais tidas como insolúveis; são estas as linhas divisórias e de distinção entre as classes estabelecidas arbitrariamente, que deram à ciência teórica moderna o seu acanhado caráter metafísico. Reconhecer que estes contrastes e diferenciações se encontram sem dúvida na natureza, mas relativamente apenas; que esta rigidez pressuposta, este valor absoluto não se enquadram na natureza senão pela nossa reflexão; eis em que consiste, na essência, a concepção dialética da natureza, Chega-se a tal concepção através da acumulação dos fatos da ciência da natureza; com maior facilidade a ela se chegará com a compreensão anterior da consciência das leis do pensamento dialético. Em todo caso, a ciência da natureza está hoje na situação de não mais poder fugir à síntese dialética. A compreensão do pensamento dialético facilitará a síntese, desde que não perca de vista que os resultados, em que se resumem suas experiências, são outros tantos conceitos, e a arte de operar com eles não é nem inata nem dada pelo senso comum ordinário, mas exige uma verdadeira ação do pensamento, que, por sua vez, é possuidor de uma longa história experimental, da mesma forma que a investigação empírica da natureza. Exatamente por isso, pelo fato de que vão aprendendo a utilizar os resultados de três milênios de história filosófica, por isso é que as ciências econômicas se estão emancipando de toda essa pretensa filosofia da natureza, estranha e superior a elas, assim como se vão também emancipando do mesquinho método especulativo, herdado do empirismo inglês.

 

Londres, 23 de setembro de 1885.


—ANTI-DÜHRING—

INTRODUÇÃO

Capítulo I
GENERALIDADES

 

Por seu conteúdo, o socialismo moderno é, antes de mais nada, o produto de uma dupla verificação: os antagonismos de classe entre possuidores e não-possuidores, burgueses e operários assalariados, que imperam na moderna sociedade, e a anarquia, que preside a produção. Mas, na sua forma teórica, o socialismo apresentava-se, em seus primórdios, como um desenvolvimento aparentemente lógico dos princípios proclamados pelos grandes nacionalistas franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, ainda que tenha suas raízes nos fatos econômicos, teve que se ligar, ao nascer, ao material de idéias existentes.

Os grandes homens, que prepararam, na França, os espíritos para a revolução, que haveria de desencadear-se, já adotavam atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam nenhuma autoridade exterior. A religião, a observação da natureza, a propriedade, a ordem pública, tudo era submetido à mais desapiedada crítica; tudo o que existia devia justificar sua existência perante o tribunal da razão ou renunciar a continuar existindo. A tudo, aplicava-se, como crivo único, a razão. Era a época em que, segundo a frase de Hegel, o mundo descobriu que tinha um cérebro. Em primeiro lugar, porque o cérebro humano e as conclusões a que chega com seus raciocínios se outorgam o direito de serem aceitos como base de todas as ações e de todas as relações sociais; em segundo lugar, e no sentido mais amplo, porque a realidade, que não se ajusta a esses princípios, é inteiramente subvertida, dos seus alicerces à cúpula. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as idéias tradicionais, foram postas à margem como contrárias à razão, o mundo, até então, governara-se por puros preconceitos; o passado merecia apenas comiseração e desprezo. O mundo, até então, havia estado envolto em trevas; para o futuro, a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e por todos os direitos inalienáveis do homem.

Sabemos, hoje, que esse reinado da razão era apenas o reinado idealizado pela burguesia; a justiça eterna corporificou-se na justiça burguesa; a igualdade reduziu-se à burguesa igualdade perante a lei; os direitos essenciais dos homens, proclamados pelos racionalistas, tinham, como representante, a sociedade burguesa, e o Estado da razão, o contrato social de Rousseau, ajustou-se, como de fato só podia ter-se ajustado, à realidade, convertido numa República democrático-burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, sujeitos às mesmas leis de seus predecessores, não podiam romper os limites que sua própria época traçava.

Ao lado do antagonismo entre a nobreza feudal e a burguesia, mantinha-se o antagonismo geral entre os exploradores e os explorados, entre os ricos ociosos e os pobres, criadores da riqueza. E foi precisamente esse fato que permitiu aos representantes da burguesia apresentarem-se como representantes, não de uma classe determinada, mas de toda a humanidade sofredora. Mais ainda, desde o próprio momento em que nasceu a burguesia, ela trouxe em suas entranhas sua própria antítese, uma vez que os capitalistas não podiam viver sem os operários assalariados. E na mesma proporção em que os mestres dos grêmios medievais se convertiam em burgueses modernos, os oficiais e aprendizes não agremiados se transformavam em proletários. Em termos gerais, se a burguesia pôde arrogar-se o direito de representar, nas suas lutas contra a nobreza, não só seus próprios interesses como também o das diferentes classes trabalhadoras da época, em cada um dos movimentos deflagrados já apareciam palpitações Independentes da classe que trazia consigo o germe mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. E, de fato, já na época da Reforma e da Guerra dos Camponeses, Thomaz Münzer representava essa tendência. Na grande Revolução Inglesa foram os “niveladores” que desempenharam esse papel e, na Revolução Francesa, Baboeuf serviu de porta-voz da classe proletária. Com essas afirmações revolucionárias de personalidade de uma classe incipiente surgem e se desenvolvem uma série de manifestações teóricas a elas correspondentes: nos séculos XVI e XVII aparecem as descrições utópicas de sociedades ideais e, no século XVIII, teorias já diretamente comunistas, como as Morelly e Mably. O postulado da igualdade rompia a envoltura dos direitos políticos para estender-se às condições sociais da vida dos homens. Já não se tratava apenas de abolir os privilégios de classe, mas também de destruir os próprios antagonismos de classe. Uma espécie de comunismo ascético, inspirado nos espartanos, foi o primeiro sinal de vida da nova idéia. Logo após, surgiram três grandes utopistas: Saint Simon, no qual a tendência burguesa continua a se afirmar, até certo ponto, ao mesmo tempo que a tendência proletária e Fourier e Owen, radicados no país onde a produção capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressão dos antagonismos por ela engendrados, expuseram sistematicamente uma série de projetos destinados a abolir as diferenças de classe, seguindo em linha reta as pegadas dos materialistas franceses.

Nenhum dos três teóricos citados, entretanto, representava o interesse do proletariado que, já nessa época, surgia como um produto histórico, Da mesma forma que os racionalistas, esses três autores não se propõem a emancipar uma determinada classe, mas toda a humanidade, com a instauração do reinado da razão e da justiça eterna. Mas entre eles e os racionalistas abria-se um abismo. Os novos pensadores descobrem que também o mundo burguês, instaurado segundo os princípios do racionalismo, é injusto e irracional, merecendo, portanto, ser desprezado como um traste inútil, da mesma forma como já o foram o feudalismo e as formas sociais que o precederam. Se, até então, a verdadeira razão e a verdadeira justiça não governaram o mundo, Isso se deve a que. segundo o seu modo de ver, ninguém ainda conseguiu alcançá-las. Faltava o homem genial que só agora se ergue frente a humanidade, com o segredo da verdade que por fim foi descoberto. Por que é que só agora esse homem se levanta, por que é que só agora, e não antes nem depois, é que se descobre o segredo da verdade? Não foi porque isso lhe fosse imposto como algo de inevitável, pela concatenação do desenvolvimento histórico mas apenas porque a sorte assim o quis. O mesmo poderia ter ocorrido há quinhentos anos e teria sido poupada a humanidade de quinhentos anos de erros, de sofrimentos e de lutas. Esse modo de ver é, em suma, o de todos os socialistas ingleses e franceses e o dos primeiros socialistas alemães, sem excluir Weitling. O socialismo é a expressão da verdade, da razão e da justiça absoluta, e é suficiente descobri-lo para que se imponha ao mundo por sua própria virtude. E, como a verdade absoluta é independente do espaço, do tempo, do desenvolvimento do homem e da história, só o acaso pode decidir quando e onde se deve revelar o seu descobrimento. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça absolutas, variam conforme o fundador de cada escola. E, como o caráter específico da verdade, da razão e da justiça absolutas é agraciado, por sua vez, em cada um deles, com a inteligência pessoal, as condições de vida, o estado dos conhecimentos e a disciplina mental, forçosamente surge um conflito entre as verdades absolutas, não restando outra solução senão a dos atritos ou fusões de umas com as outras. Era, pois, natural e inevitável, que surgisse uma espécie de socialismo eclético e, com efeito, a maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra têm, nos cérebros, uma mistura pitoresca que admite, aliás, toda uma série de matizes, na qual se fundem os princípios econômicos, as expansões críticas e as representações sociais do futuro, dos diversos fundadores de seitas. Essa mescla é tanto mais fácil de ser composta quanto mais depressa os ingredientes individuais vão perdendo, no curso das discussões, seus contornos agudos e concretos, como se fossem pedras aplainadas pela corrente do rio. Assim, para converter o socialismo numa ciência, só era possível situando-o no terreno da realidade.

Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII surge, logo após, a moderna filosofia alemã, à qual Hegel dá o último remate. O principal mérito dessa filosofia foi a restauração da dialética como forma suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos por natureza e o cérebro mais universal dentre eles, Aristóteles, chegou até a penetrar na forma mais substancial do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, tendo alguns brilhantes pensadores dialéticos (por exemplo, Descartes, Spinoza), deixou-se dominar cada vez mais pelas chamadas especulações metafísicas, influenciada principalmente pelos ingleses, das quais não se livram também os autores franceses do século XVIII, pelo menos no que se refere às investigações filosóficas. Fora do estrito campo da filosofia, os franceses souberam também criar obras mestras de dialética, como, por exemplo, O Sobrinho do Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre A origem da desigualdade, dos homens.

Resumiremos concisamente os traços principais de ambos os métodos filosóficos, sem que, com isso, deixemos de estudar, mais adiante, com mais detalhes, esse assunto.

Se submetermos à consideracão especulativa a natureza ou a história humana ou a nossa própria atividade espiritual. encontrar-nos-emos, logo de inicio, com uma trama infinita de concatenações e de mútuas influências, onde nada permanece o que era nem como e onde existia, mas tudo se destrói, se transforma. nasce e perece. Esta intuição do mundo. primitiva, simplista, mas perfeitamente exata e congruente com a verdade das coisas, foi utilizada pelos antigos filósofos gregos e aparece expressa, claramente, pela primeira vez, em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo está sujeito a um processo constante de transformação, de incessante nascer e perecer, Mas esta intuição, por ser exatamente a que reflete o caráter geral de todo o mundo dos fenômenos, não basta para explicar os elementos isolados de que se forma todo esse mundo. E esta explicação é indispensável, pois, sem ela, nem mesmo a imagem total adquirirá sentido exato. Para penetrar nesses elementos, antes de mais nada, precisamos destacá-los de seu tronco histórico ou natural e investigá-los separadamente, cada um de per si, em sua estrutura, causas e efeitos que em seu seio se produzem, etc...

Com efeito, é essa a missão primordial das ciências naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos situavam, com bastante razão, num plano puramente secundário, uma vez que o seu papel se restringia, substancialmente, a fornecer, por um trabalho de classificação, os materiais científicos. Os rudimentos das ciências naturais exatas não se desenvolveram até chegar aos gregos do período alexandrino e, muito mais tarde, na Idade Média, com os árabes. Na realidade, a autêntica ciência da natureza data somente da segunda metade do século XV e, a partir de então, não fez mais que progredir com velocidade constantemente acelerada. A análise da natureza em suas diferentes partes, a classificação dos diversos fenômenos e objetos naturais em determinadas categorias, a investigação interna dos corpos orgânicos segundo a sua diferente estrutura anatômica, foram outras tantas condições fundamentais a que obedeceram os progressos gigantescos realizados nos últimos quatrocentos anos, no que se refere ao conhecimento científico da natureza. Mas estes progressos processaram-se juntamente com o progresso no modo de analisar as coisas e os fenômenos da natureza, isoladamente, destacados da grande concatenação do universo. Não são, pois, encarados dinamicamente, mas estaticamente, não são considerados como situações substancialmente variáveis, mas como dados fixos, dissecados como materiais mortos e não apreendidos como objetos vivos. Por esse método de observação, ao passar, com Bacon e Locke, das ciências naturais à filosofia, sobreveio a limitação especifica, característica destes últimos tempos, no método metafísico de especulação.

Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada qual de per si, como algo determinado e perene. O metafísico pensa em toda uma série de antíteses desconexas: para ele, há apenas o sim e o não e, quando sai desses moldes, encontra somente uma fonte de transtornos e confusão. Para ele, uma coisa existe ou não existe, Não concebe que essa coisa seja, ao mesmo tempo, o que é uma, outra coisa distinta. Ambas se excluem de modo absoluto, positiva e negativamente, causa e efeito se revestem da forma de uma antítese rígida. A primeira vista, esse método especulativo parece-nos extraordinariamente plausível, porque é o do chamado senso comum. Mas o verdadeiro senso comum, personagem bastante respeitável dentro de portas fechadas, entre as quatro paredes de sua casa, vive peripécias verdadeiramente maravilhosas, quando se arrisca pelos amplos campos da investigação. E o método do pensamento metafísico, por justo e necessário que seja em vastas zonas do pensamento, mais ou menos extensas, de acordo com a natureza do objeto de que se trata, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira que, franqueada, faz com que ele se torne um método unilateral, limitado, abstrato; perde-se em contradições insolúveis, uma vez que, absorvido pelos objetos concretos, não consegue enxergar as suas relações. Preocupado com sua própria existência, não reflete sobre sua gênese e sua caducidade; concentrado em suas condições estáticas, não percebe a sua dinâmica; obcecado pelas árvores não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e disso podemos dizer ter toda a certeza, se um animal existe ou não. Mas, se investigarmos mais detalhadamente, veremos que o problema pode complicar-se, e de fato se complica às vezes consideravelmente, como não o ignoram os juristas que, em vão, se atormentam para descobrir um limite nacional, a partir do qual deve ser considerado como um assassinato a morte de um feto no útero materno. Tampouco é fácil determinar fixamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não constitui um acontecimento automático, instantâneo, mas faz parte de um longo processo. Do mesmo modo, pode-se afirmar que todo o ser orgânico é, no mesmo momento, ele mesmo e um outro. Surpreendido em qualquer instante, estará assimilando materiais absorvidos do exterior e eliminando outros de seu seio. Em qualquer momento que o observarmos, veremos que em seu organismo morrem umas células e nascem outras. E, no transcurso de um período mais ou menos longo, a matéria de que está formado se renova radicalmente e novos átomos de matéria ocupam o lugar dos antigos, donde se pode concluir que todo o ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e um outro. Mesmo assim, se observarmos as coisas detidamente, veremos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são antitéticos e que, apesar de todo seu antagonismo eles se completam e se articulam reciprocamente. E vemos, também, que a causa e o efeito são representações que só vigoram como tais na sua aplicação ao caso concreto, mas que, situando o fato concreto em suas perspectivas gerais. articulado com a imagem total do universo, se diluem na idéia de uma trama universal de ações recíprocas, onde as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era causa, toma, logo depois, o papel de efeito e vice-versa.

Nenhum desses fenômenos e métodos de investigação se enquadra nos limites das especulações metafísicas. O contrário acontece com a dialética, que encara as coisas e as suas imagens conceituadas, substancialmente, em suas conexões, em sua filiação e concatenação, em sua dinâmica, em seu processo de gênese e caducidade, como os fenômenos que acabamos de expor, que nada mais são do que outras tantas confirmações do método experimental que lhe é próprio. A natureza é a pedra de toque da dialética e não temos outro remédio senão agradecer às modernas ciências naturais nos terem oferecido um acervo de dados extraordinariamente copioso e que vêm enriquecendo todos os dias, demonstrando, assim, que a natureza se move, em última análise, pelos canais da dialética e não sobre os trilhos metafísicos. Mas, até hoje, os naturalistas, que têm sabido pensar dialeticamente, são pouquíssimos e esse conflito, entre os resultados descobertos e o método especulativo tradicional que utilizam, desvenda aos nossos olhos a ilimitada confusão hoje reinante na teoria das ciências naturais e que constitui o desespero de mestres e discípulos, de autores e leitores.

Só pela via dialética, não perdendo de vista a ação geral das influências recíprocas, da gênese e da caducidade de tudo quanto vive, das mudanças de avanço e retrocesso, podemos chegar a uma concepção exata do universo, de seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade, assim como da imagem por ele projetada nos cérebros dos homens. Este foi o caminho pelo qual seguiu, desde o primeiro instante, a moderna filosofia alemã, Kant começou sua carreira de filósofo transformando o sistema solar estável e de duração eterna de Newton num processo histórico: no nascimento do sol e de todos os planetas pelo movimento de rotação de uma massa nebulosa. Deste fato, tirou a conclusão de que esta origem implicava, também, necessariamente, na futura morte do sistema solar. Meio século mais tarde, sua teoria foi confirmada matematicamente por Laplace, e, depois de mais 50 anos, o espectroscópio demonstrou a existência, no espaço, daquelas massas ígneas de gás, em diferentes graus de condensação.

A filosofia moderna alemã foi completada por Hegel, no qual, pela primeira vez — esse é o seu grande mérito — se concebe o mundo da natureza, da história e do espírito, como um processo, isto é, como um mundo sujeito à constante mudança, transformações e desenvolvimento constante, procurando também destacar a íntima conexão que preside este processo de desenvolvimento e mudança. Encarada sob este aspecto, a história da humanidade já não se apresentava como um caos áspero de violências absurdas, todas igualmente condenáveis perante o. julgamento da razão filosófica madura, apenas interessantes para que as deixasse de lado o mais depressa possível, mas, pelo contrário, se apresentava como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, que incumbia ao pensamento a tarefa de seguir em suas etapas graduais e através de todos os desvios, até conseguir descobrir as leis internas, que regem tudo o que à primeira vista se pudesse apresentar como obra do acaso.

Não importa que Hegel não tenha resolvido esse problema. Seu mérito, que marcou época, consistiu apenas em o ter colocado. Mas não se trata de um problema que pode ser resolvido apenas por um homem. E, mesmo sendo Hegel, ao lado de Saint-Simon, o cérebro mais universal de seu tempo, seu horizonte estava circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável de seus próprios conhecimentos, e, em segundo, pela dos conhecimentos e observações de sua época, também limitados em extensão e profundidade. A tudo isso deve-se ainda acrescentar uma terceira circunstância. Hegel era idealista. As idéias de seu cérebro não eram, para ele, imagens mais ou menos abstratas das coisas e dos fenômenos da realidade, mas coisas que, em seu desenvolvimento, se lhe apresentavam como projeções realizadas de uma “idéia”, existente não se sabe onde, antes da existência do mundo. Este modo de ver tudo subvertia, revirando pelo avesso toda a concatenação real do universo. Por mais justas e mesmo geniais que fossem muitas das concepções concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pela razão que acabamos de aludir, que muitos de seus detalhes tivessem caráter acomodatício, artificioso, arbitrário, falso, numa palavra. O sistema Hegel foi um aborto gigantesco, porém o último de sua espécie. Com efeito, sua filosofia padecia ainda de uma contradição interna incurável, pois que, se, por um lado, considerava como suposto essencial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pôde, por sua própria natureza, encontrar solução intelectual no descobrimento disso que se chama de verdades absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compêndio de uma dessas verdades absolutas, Um sistema universal e compacto, definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar a ciências da natureza e da história, é incompatível com as leis da dialética. Isso, entretanto, não exclui, mas, ao contrário, faz com que o conhecimento sistemático do mundo exterior, em sua totalidade, possa progredir, a passos gigantescos, de geração em geração.

A consciência da total inversão em que o idealismo alemão incorrera, necessariamente, tinha que levar ao materialismo, Mas, note-se bem, não se trata do materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII Afastando-se da simples repulsa, candidamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê, na história, o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas tem por encargo descobrir. E, desviando-se da idéia da natureza que dominava entre os franceses do século XVIII, da mesma forma que da idéia concebida por Hegel, idéia pela qual se considerava a natureza como um todo permanente e inalterável, com mundos eternos que se moviam dentro de um estreito ciclo, tal como a representava Newton, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinava Lineu, o materialismo moderno resume e sistematiza os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também a sua história no tempo e os mundos, as espécies e os organismos, que, em condições propícias, o habitam, nascem e morrem, e onde os ciclos, na medida em que sejam admissíveis, se revestem de dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto num como noutro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não há necessidade de uma filosofia superior para as demais ciências. Desde o instante em que cada ciência tenha que se colocar no quadro universal das coisas e do conhecimento delas, já não há margem para uma ciência que seja especialmente consagrada a estudar as concatenações universais. Tudo o que resta da antiga filosofia, com existência própria, é a teoria do pensamento e de suas leis: a lógica formal e a dialética. Tudo o mais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.

A nova etapa das ciências naturais, entretanto, só conseguiu impor-se na medida em que a investigação lhe fornecia materiais positivos correspondentes, e, enquanto isso, já há muito tempo, se haviam revelado certos fatos históricos que abalaram decisivamente o modo de encarar a história. Em 1931, rompe, em Lyon, a primeira sublevação operária e, de 1838 a 1842, o primeiro movimento operário nacional, o dos cartistas ingleses, alcança o seu apogeu. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro plano na história dos países europeus mais avançados, no mesmo ritmo em que se desenvolvia a grande indústria e em que se firmava a hegemonia política da burguesia recentemente conquistada. Os fatos vinham desmentir, cada vez mais categoricamente, as doutrinas econômicas burguesas sobre a identidade de interesses entre o capital e o trabalho e sobre a harmonia universal e o bem-estar geral das nações como fruto da livre concorrência.

Esses fatos não podiam passar desapercebidos, assim como não podia ser ignorado o socialismo francês e o inglês, que eram a sua expressão teórica, embora ainda bastante imperfeita. Mas a velha concepção idealista da história, que ainda não havia sido abandonada, não podia reconhecer sequer interesses materiais de qualquer espécie. Para ela, a produção, como todos os outros fatores econômicos, só existia como acessório, como elemento secundário dentro da “história cultural”. Os novos fatos, que a realidade revelava, obrigaram a uma revisão de toda a história antiga e, dessa maneira, ficou demonstrado que a história havia sido, sempre uma história de luta de classes e que estas classes em luta foram, em todas as épocas, condições de produção e de troca, ou seja, fruto das condições econômicas e que a estrutura econômica da sociedade em todos os fatos da história era, portanto. a base real sobre a qual se erigia, em última instância, todo o edifício das instituições jurídicas e políticas, da ideologia filosófica, religiosa, etc.. de cada período histórico. Assim, o idealismo via-se despojado de seu último reduto na ciência histórica. Lançava-se os alicerces para uma concepção materialista e abria-se o caminho para verificar-se que a existência é quem determina a consciência do homem e não é a consciência quem determina a existência, como se afirmava tradicionalmente.

Verificamos, assim, que o socialismo tradicional era incompatível com a nova concepção materialista da história bem como a concepção dos materialistas franceses, sobre a natureza, não podia coexistir com a dialética moderna e com as novas ciências naturais. Com efeito, o socialismo críticava o regime capitalista de produção existente e suas conseqüências, mas não conseguiu explicá-lo e, portanto, também não o poderia destruir, limitando-se apenas a repudiá-lo, simplesmente, como imoral. Era preciso, porém, entender esse regime capitalista de produção em suas conexões históricas, como um regime necessário para uma determinada época da história, demonstrando, com isso, ao mesmo tempo, seu aspecto condicional histórico, a necessidade de sua extinção e do desmascaramento de todos os seus disfarces, uma vez que os críticos anteriores se limitavam apenas a apontar os males que o capitalismo engendrava em vez de assinalar as tendências das coisas a que obedeciam. A principal máscara, sob a qual se disfarçava o capitalismo, caiu por terra com a descoberta da mais-valia. Esta descoberta revelou que o regime capitalista de produção e a exploração dos operários que dele se origina tinham, como base fundamental, a apropriação do trabalho não pago. Revelou ainda que o capitalista, mesmo supondo-se que comprasse a força de trabalho de seu operário por todo o seu valor, por todo o valor que representava como mercadoria no mercado, e que este excedente do valor, esta mais-valia era, em última instância, a soma do valor de que provinha a massa cada vez maior do capital acumulado nas mãos das classes possuidoras. Desde então, o processo da produção capitalista e o da criação do capital já não continham nenhum segredo.

Estas duas descobertas: a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista que se resume na mais-valia são devidas a Karl Marx. Graças a estas descobertas, o socialismo converte-se numa ciência, que não é preciso senão desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações.

Era esse, mais ou menos, o sentido com que se apresentavam as coisas no campo do socialismo teórico e da decadente filosofia, quando o Senhor Eugênio Dühring veio à cena e anunciou, com o auxílio de tambores e fanfarras, a total subversão da filosofia, da economia política e do socialismo, subversão feita unicamente por ele.

Vejamos, agora, o que o Senhor Dühring promete e... o que cumpre.


Capítulo II
O QUE PROMETE O SR. DÜHRING

 

As obras do Sr. Dühring, que devemos, por ora, tomar em consideração para a nossa análise, são: Curso de Filosofia, Curso de Economia Política e Social e a História Crítica da Economia Política e do Socialismo. No momento, interessa-nos principalmente a primeira das obras por nós citadas.

Já na primeira página, o Sr. Dühring se nos anuncia como o homem “que se outorga a representação desse poder (isto é, a filosofia) em sua época e em todo o seu desenvolvimento próximo previsível.” Ou, por outras palavras, declara-se como o único filósofo verdadeiro dos tempos presentes e de um futuro “previsível”. Quem dele se afasta, saiba que se afasta da verdade, Não é o Sr. Dühring o primeiro que assim raciocina a seu próprio respeito, mas, excluindo-se Richard Wagner — é o primeiro que o afirma com tranqüilidade. E tenha-se em conta que a verdade que ele possui não é uma verdade como outra qualquer, mas “uma verdade definitiva e sem apelação”.

A filosofia do Sr. Dühring é “o sistema natural ou a filosofia da realidade... A realidade apresenta-se nela de modo tal que exclui toda quimera de representação sonhadora e subjetivamente limitada do mundo”. Esta filosofia está, pois, construída de tal modo, que transporta seu autor, por cima das fronteiras, acima de sua limitação pessoal e subjetiva, de modo que nem ele próprio o negará. E, com efeito, nada mais era preciso para que seu autor estivesse em condições de proclamar verdades definitivas e sem apelação, ainda que não tenhamos compreendido, até agora, como pôde realizar-se semelhante maravilha.

Este “sistema natural de um saber, precioso por si mesmo, para o espírito, descobriu, com toda a certeza, sem transigir quanto à profundidade da idéia, as formas fundamentais do Ser”. Desde a sua “plataforma verdadeiramente crítica”, o Sr. Dühring nos apresenta os elementos de uma filosofia real, projetada, portanto, sobre a realidade da natureza e da vida, ante a qual não se mantém um só horizonte apenas aparente, mas se desenrola ante os nossos olhos surpreendidos, em suas potentes comoções, todas as terras e os céus da natureza exterior e interior; oferece-nos, pois, um novo método especulativo e seus frutos são “resultados e observações radicalmente novos..., idéias originais criadoras de sistema... verdades comprovadas.” Nela, temos “um trabalho que encontrará a raiz de sua força na iniciativa concentrada”... supondo-se que isso queira dizer alguma coisa; uma “investigação que desce até as raízes..., uma ciência radical..., uma concepção rigorosamente científica das coisas e dos homens..., um trabalho especulativo que penetra em todos os aspectos e modalidades das coisas..., um esboço criador das hipóteses e conseqüências domináveis pelo pensamento..., o absolutamente fundamental”. O Sr. Dühring não se limita a nos oferecer, no campo da Economia Política, “trabalhos histórica e sistematicamente vastos”, entre os quais os históricos se distinguem ainda pelo “meu traço historicamente grandioso” e que fazem nascer na economia “ciclos criadores”; além disso, termina suas investigações com um plano socialista completo, pessoal, perfeitamente desenvolvido, da sociedade do futuro, plano que é “o resultado prático de uma teoria clara, que se aprofunda até as últimas raízes” e, portanto, compartilha com a infalibilidade e a virtude de santificação universal, que é o atributo da filosofia dühringuiana, pois, “só sob a forma socialista por mim desenvolvida em meu Curso de Economia Política e Social pode uma autêntica propriedade ocupar o posto dessa propriedade aparente e provisória conquistada pela violência”. Já sabe o futuro que, quer deseje ou não, terá que se basear, forçosamente, nessa concepção.

Nada nos custaria aumentar essa coleção de elogios dedicados pelo Sr. Dühring ao Sr. Dühring. Mas cremos bastar o que já dissemos para que o leitor tenha algumas dúvidas sobre o fato de ter realmente diante de si um filósofo ou... Não; rogamos ao leitor que reserve sua opinião até conhecer mais de perto o prometido “radicalismo”. Se apresentamos todo esse florilégio é porque queríamos simplesmente demonstrar não se tratar de um filósofo e socialista vulgar, desses que se limitam a formular suas idéias deixando que os outros julguem de seu valor, mas de um ser verdadeiramente extraordinário, que afirma possuir a mesma infalibilidade do papa e cuja doutrina, de virtude universalmente santificadora, deve ser aceita. sem discussão, se não se quiser incorrer na mais horrenda das heresias. Não, não se trata, absolutamente, de um desses trabalhos que enchem e superlotam as literaturas socialistas de todos os países e, ultimamente, também da Alemanha, de um desses trabalhos que as pessoas de diversos níveis procuram, com a maior sinceridade, para alcançar conclusões claras sobre os problemas para cuja solução lhes falta, em maior ou menor quantidade, dados e conhecimentos. mas nos quais, apesar de seus defeitos científicos ou literários, merece sempre ser tomada em conta a boa vontade socialista. Nada disso. O Sr. Dühring apresenta-nos doutrinas que ele mesmo proclama verdades definitivas e inapeláveis, e, portanto, de antemão excluem como falsas todas as opiniões diversas. E não só possui a verdade exclusiva. como também possui o único método rigorosamente científico para investigá-la, método perto do qual empalidecem, como falhos de seriedade científica, todos os outros. Ou o Sr. Dühring tem razão e, nesse caso, estaremos diante do maior dos gênios de todos os tempos, do primeiro homem sobre-humano, infalível, ou, então, está o Sr. Dühring equivocado, mas, mesmo assim, seja qual for a nossa opinião, se tomássemos em consideração, benevolentemente, a sua boa vontade, como se esta existisse, isso seria para ele a maior das ofensas.

Quando se está de posse da verdade definitiva e inapelável e da única ciência rigorosamente científica, é natural que se manifeste certo desprezo pelo resto da humanidade, ignorante da ciência e extraviada no erro. Nada, tem, portanto, de estranho o fato de O Sr. Dühring falar de seus predecessores com a mais profundo desprezo e só umas tantas pessoas, a quem ele mesmo, como favor excepcional, chama de grandes homens, prevaleçam ante o julgamento de seu “radicalismo”.

Vejamos o que nos diz dos filósofos: “Leibnitz, carente de todo sentido elevado, é o melhor de todos os possíveis filosofadores cortesãos.” Kant é ainda tolerado. Depois dele, entretanto, tudo virou às avessas, pois vieram as tolices e futilidades, tão sem substância e tão enganosas, dos primeiros epígonos, de um Fichte e de um Schelling..., caricaturas monstruosas de incultos filosofastros da natureza..., as “monstruosidades pós-kantianas” e as “fantasias febris” que encontram “num Hegel” o seu remate e sua coroação. Este filósofo falava uma “gíria hegeliana” e propagou a “epidemia hegeliana”, por meio de suas “maneiras e formas anticientíficas”, por suas “grosserias”.

Os naturalistas não têm tratamento melhor, apesar de ser citado apenas Darwin. Portanto, é a este que temos que nos referir: “A semipoesia e a rapidez darwinista de metamorfoses, com sua grosseira estreiteza de concepções e sua fraqueza de discernimento... Do nosso ponto de vista, a darwinismo, do qual se deve separar, naturalmente, as doutrinas lamarckianas, é uma afirmação de selvageria e um crime de lesa-humanidade”.

Mas os socialistas é que ficam em piores condições. Com exceção de Louis Blanc — o mais insignificante de todos — eles são todos pecadores e indignos da fama que o Sr. Dühring lhes poderia dar através de seu nome. E tudo isso, não apenas pela sua falta de verdade para com a ciência, mas também por sua falta de caráter. Exceto Baboeuf, e alguns outros communards, de 1871, todos os outros chegam mesmo a ter “masculinidade”. Os três utopistas não são, segundo ele, mais que “alquimistas sociais”. Unicamente Saint-Simon consegue um tratamento bastante passável, uma vez que só lhe é reprovado o “exagero”, considerando-se caridosamente a enfermidade de megalomania religiosa de que padecia. Mas, ao chegar a Fourier, o Sr. Dühring perde a paciência. Pois Fourier “descobriu todos os elementos da loucura...—, idéias que deviam estar naturalmente num manicômio..., os sonhos mais disparatados..., criaturas loucas... O inegavelmente “perturbado Fourier”, essa “cabecinha infantil”, esse “idiota”, nem sequer era socialista; o seu palavreado nada tinha a ver com o socialismo racional; era simplesmente um aborto trabalhado pelo padrão da vida vulgar”. E, finalmente, àqueles a quem não bastam essas manifestações (as de Fourier sobre Newton...), para que se convençam de que no nome de Fourier e em todo o fourierismo só a primeira sílaba (fou, em francês significa louco) encerra certa verdade, merecem ser incluídos, por sua vez, em qualquer uma das categorias do idiotismo”. E, por fim, ficamos sabendo que Robert Owen “tinha idéias pobres e mesquinhas..., sua mentalidade tão grosseira no que se refere ao terreno moral..., alguns lugares comuns degenerados em idéias confusas..., talento de observação absurdo e torpe... O processo mental de Owen não merece sequer o tempo que se gasta com uma crítica séria... A sua vaidade...” etc., etc. O Sr. Dühring classifica os utopistas, divertindo-se com os seus nomes, com o seguinte desperdício de humor: Saint-Simon, saint (santo), Fourier, fou (louco), Enfantin, enfant (criança). Só lhe faltou acrescentar Owen, o weh (oh! dor em alemão), encerrando um período bastante considerável da história do socialismo. com uma piada, em quatro letras, e quem se atrever a pôr isso em dúvida, “merece ser incluído em qualquer uma das categorias de idiotismo”.

Dos julgamentos, que Dühring faz dos socialistas posteriores, limitar-nos-emos a destacar, devido à sua brevidade, os que faz sobre Lassalle e Marx:

Lassalle: “Ensaios de vulgarização pedantes e pegajosos... excessos escolásticos..., uma mistura monstruosa de teorias gerais e de detalhes mesquinhos..., superstição hegeliana absurda e disforme..., exemplo repelente..., limitação..., envaidecimento jactancioso com a mais banal mediocridade..., nosso herói judeu..., panfletista..., ordinário..., uma concepção da vida e do mundo absolutamente insustentáveis...”

Marx: “Estreiteza de concepções..., seus trabalhos e suas conclusões são falhos por si mesmos, isto é, do ponto de vista de teoria pura. do valor permanente, são indiferentes para o nosso objetivo (a história crítica do socialismo), e, no que se refere à história geral sobre as correntes do espírito, pode-se tomá-lo em consideração, no máximo, como um sintoma da influência atingida por um ramo do escolasticismo sectário moderno..., impotência e incapacidade de concentração e ordenação..., deformação de pensamento e de estilo, maneiras de linguagem pouco dignas..., vaidade anglicana..., engano..., concepções áridas, que, na realidade nada mais são do que rimas bastardas da fantasia histórica e lógica..., processos desonestos..., vaidade pessoal..., maneiras insolentes..., impertinências..., frasezinhas engenhosas e tolices..., erudição mesquinha..., um retrógrado na filosofia e na ciência.”

E assim por diante, pois, o que dissemos, apesar de suficiente, nada mais é que um florilégio bastante superficial tirado dos jardins do Sr. Dühring. Mas é preciso ficar bem entendido que, no momento, não nos interessa saber se esses amáveis insultos, que, com um pouco de boa educação, poderiam coibir o Sr. Dühring de acusar alguém como “infame” “impertinente”, se essas afirmações são também verdades definitivas e inapeláveis. “Assim mesmo nos abasteremos, pelo menos no momento — de exteriorizar qualquer dúvida sabre o seu radicalismo”, pois temos muito medo de que isso nem sequer nos permitia escolher a categoria de idiotas na qual deveríamos ser incluídos.

Vimo-nos obrigados a dar algumas provas daquilo a que o Sr. Dühring chama de “escolha entre as maneiras corretas e estritamente modestas de expressão”, mostrando, além disso, que para o Sr. Dühring a insignificância de seus predecessores é tão inalterável como o é sua própria infalibilidade. Depois disso, nada mais nos resta senão nos humilharmos na mais profunda reverência ante o mais poderoso dos gênios de todos os tempos..., se é que as coisas são como ele no-las promete...


 

PARTE I
Filosofia

 


Capítulo III
DIVISÃO. APRIORISMO

 

Segundo o Sr. Dühring, a filosofia é o desenvolvimento da forma suprema da consciência do mundo e da vida, compreendendo, num sentido amplo, os princípios, de toda a ciência e de toda a vontade. Onde quer que se apresente à consciência humana, uma série de conhecimentos ou de impulsos, ou um grupo de formas de existência, os princípios que presidem a essas manifestações implicam necessariamente num problema de filosofia. Estes princípios são os elementos simples, ou os que assim são considerados até hoje e dos quais se compõem as mais diversas modalidades da ciência e da vontade. Do mesmo modo que a constituição química dos corpos se reduz a formas e a elementos fundamentais, pode reduzir-se, também, a seus elementos simples a constituição de qualquer coisa. E estes elementos ou princípios, uma vez obtidos, não governam apenas aquilo que conhecemos e que nos é diretamente acessível, mas também envolvem o mundo que nos é desconhecido e igualmente inacessível. Os princípios filosóficos formam, portanto, o último complemento de que necessitam as ciências para se converterem num sistema harmônico de explicação da natureza e da vida dos homens. Além das formas fundamentais de toda a existência, a filosofia só conhece os verdadeiros objetivos de investigação: a natureza e o mundo dos homens. Para a classificação dessa matéria, temos três grupos, que dela se derivam com absoluta espontaneidade: a esquemática geral do mundo, a teoria dos princípios da natureza e, finalmente, a dos princípios do homem. Além disso, essa hierarquia contém uma ordem lógica interna, pois, à frente, estão os princípios formais pelos quais se rege e, logo após, em gradação subordinada, as zonas materiais a que esses princípios se aplicarão. Até aqui, limitamo-nos a transcrever quase que literalmente as palavras do Sr. Dühring.

Quando ele fala de princípios, refere-se a princípios de pensamento independentes, não deduzidos do mundo exterior, e de princípios formais, derivados, aplicáveis à natureza e ao mundo dos homens pelos quais, portanto, a natureza e o homem serão regidos. Mas, de onde tira o pensamento esses princípios? Tira de si mesmo? Não, pois o próprio Sr. Dühring diz que, na zona puramente ideal, não há mais do que esquemas lógicos e figuras matemáticas (afirmação falsa, como veremos adiante). Os esquemas lógicos só podem referir-se a formas conceituais, e, aqui, trata-se apenas das formas do que existe, do mundo exterior, formas que jamais o pensamento pode derivar de si mesmo, mas que deve buscar no mundo exterior. Mas isto inverte toda a relação estabelecida: os princípios já não são o ponto de partida da investigação, mas seus resultados finais; não se aplicam à natureza e à história humana, mas deles são extraídos; não é a natureza e o mundo dos homens que se regem pelos princípios, mas só estes é que têm razão de ser quando coincidem com a natureza e com a história. Nisto consiste a verdadeira concepção materialista das coisas, o oposto do que afirma o Sr. Dühring, que é idealista e cuja concepção inverte todas as coisas, construindo o mundo real partindo da idéia, de uma série de esquemas, planos ou categorias existentes e de valor eterno e anterior à existência do mundo, nada mais e nada menos que... um Hegel.

Com efeito, coloquemos a Enciclopédia de Hegel, com todas as suas fantasias febris, junto às verdades definitivas e inapeláveis do Sr. Dühring. Ao que o Sr. Dühring chama de esquemática geral do mundo, Hegel chama de lógica. O que o primeiro aplica à natureza como esquemas, o segundo o faz com as categorias lógicas e daí temos a filosofia da natureza, e, finalmente, a sua aplicação ao mundo do homem, que, em Hegel, se chama filosofia do espírito. Como vemos, a “ordem lógica interna” da hierarquia dühringuiana nos encaminha diretamente, “com absoluta espontaneidade”, à Enciclopédia de Hegel, donde foi tirada com tal fidelidade, que faria chorar de ternura ao judeu errante da escola hegeliana, o professor Michelet, de Berlim.

A isto se chega quando se considera a “consciência”, o “pensamento”, com um critério absolutamente materialista, como se se tratasse de algo determinado em contraposição; desde o primeiro instante, ao que existe, à natureza. E nada mais se pôde fazer senão admirar que possam coincidir a consciência e a natureza, o pensamento e a existência, as leis do pensamento e as leis naturais. Mas, se queremos, na realidade, saber o que são o pensamento e a consciência e de onde procedem, saberemos, então, que são produtos do cérebro humano e o próprio homem nada mais é de que um produto natural que se formou e se desenvolveu dentro de seu ambiente e com ele. Tiramos, então, a conclusão, lógica por si mesma, de que os produtos do cérebro humano, que não são, em última análise, mais que produtos naturais, não se contradizem, mas se harmonizam com a concatenação geral da natureza.

Mas o Sr. Dühring não se conforma com uma concepção tão simples. Ele não pensa apenas em nome da humanidade — o que já seria suficiente — pensa também em nome da essência consciente e pensante de tudo o que existe no mundo. Com efeito, seria “degradar as formas fundamentais da consciência e da cultura, pretender excluir a sua soberana vigência, e os seus títulos incondicionais de verdade ou disso suspeitar por se as considerar atributos humanos.” Para que não surja dúvida de que possa existir algum planeta no qual dois e dois sejam igual a cinco, o Sr. Dühring se vê obrigado a prescindir da qualificação do pensamento humano e forçado, com isso, a separar essa função da única base real que para nós existe, — o homem e a natureza —, submergindo, assim, uma ideologia que nada mais é do que o epígono do “epígono de Hegel”. Além disso, teremos muitas ocasiões de saudar o Sr. Dühring noutros planetas.

Facilmente se compreende que, nessa base ideológica, não é possível fazer-se uma teoria materialista. Adiante veremos como o Sr. Dühring se vê forçado a impor à natureza, mais de uma vez, uma norma consciente de conduta, ou seja, o que vulgarmente chamamos, — um Deus.

O nosso filósofo da realidade tinha, entretanto, também outras razões para transplantar a base de toda a realidade do mundo real para o mundo do pensamento. Não é em vão que a ciência desse esquematismo geral do mundo, desses princípios formais de tudo o que existe seja precisamente a base da filosofia do Sr. Dühring. E se pudéssemos derivar o esquematismo do mundo, não de nosso cérebro, mas por meio dele, do mundo real, se pudéssemos derivar os princípios da existência daquilo que existe, não seria necessária essa filosofia, mas, pelo contrário, contentar-nos-íamos com uma série de conhecimentos positivos do mundo e do que nele ocorre, conhecimentos que não formam uma filosofia, mas apenas uma ciência positiva. Como vemos, todo o trabalho do Sr. Dühring seria tempo perdido.

E, se não necessitássemos de uma filosofia como tal, tampouco necessitaríamos de um sistema, ou mesmo de um sistema natural de filosofia. A consciência de que a totalidade dos fenômenos naturais forma um conjunto sistemático força a esta ciência verificar essa dependência nas suas diversas partes, tanto nos detalhes como no conjunto. Mas. querer reduzir um sistema científico congruente e fechado, a esse conjunto, pretender tirar uma imagem ideal exata do sistema do mundo em que vivemos, é uma simples quimera, tanto para nós, como para os tempos vindouros. Se, ao chegar a um período qualquer do progresso humano, se tornasse possível construir um sistema definitivo e determinado das concatenações universais, tanto no físico como no espiritual e histórico, ter-se-ia encerrado o ciclo dos conhecimentos humanos e, uma vez que a sociedade se sujeitasse a esse sistema, levantar-se-ia uma barreira a todo o desenvolvimento histórico futuro, o que seria um contra-senso, um absurdo. Os homens vêm-se, pois, colocados ante esta contradição: de um lado, levados a investigar o sistema do mundo, englobando todas as suas condições e relações; de outro, por sua própria natureza e pela natureza mesma do sistema do mundo, não podem jamais resolver por completo esse problema.

Mas esta contradição não se baseia apenas na natureza destes dois fatores: o homem e o mundo. A contradição é a alavanca principal de todo o progresso intelectual e resolve-se diária e incessantemente no desenvolvimento progressivo e infinito da humanidade, do mesmo modo que os problemas matemáticos, por exemplo, encontram sua solução numa série infinita ou naquilo que os matemáticos chamam de fração contínua. O fato é que toda a imagem conceitual do sistema do mundo é e continuará sendo sempre, objetivamente, por força da situação histórica e, subjetivamente, por assim o desejar a contextura espiritual de seu autor, uma imagem limitada. É claro que o Sr. Dühring proclama de antemão sua mentalidade como algo que exclui todo o perigo de representação subjetivamente limitada do mundo. Anteriormente, vimos que contava, entre os seus dons, a onipresença, uma vez que podia falar em nome de todos os planetas do universo. Agora, vemos que goza também do dom da onisciência, pois não foi em vão que resolveu os últimos problemas da ciência, fechando, por meio de tábuas, o futuro de toda a ciência do mundo.

E, do mesmo modo que age em relação às formas fundamentais do que existe, o Sr. Dühring crê que pode fazer, ao tirar de seu cérebro. acabadas e perfeitas, de um modo apriorístico, isto é, sem considerar a experiência que oferece o mundo exterior, todas as matemáticas puras. Nas matemáticas puras pôde, segundo ele, mover-se livremente a inteligência, com as “suas criações e imaginações próprias”; os conceitos de número e de figura são o “seu objetivo suficiente e a sua própria obra”, razão pela qual as matemáticas puras têm “uma validez independente da experiência concreta e do conteúdo real do mundo”.

É indubitavelmente certo que os conceitos das matemáticas puras regem independentemente da experiência concreta de qualquer indivíduo, ainda que essa virtude não pertença exclusivamente às matemáticas, o que é fato comum comprovado por todas as ciências e, mais ainda, a todos os fatos em geral, cientificados ou não. Os pólos magnéticos, a composição da água por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, o fato de que Hegel está morto e de que o Sr. Dühring está vivo, são fatos que existem independentemente de minha experiência ou da experiência de outras pessoa, e mesmo independentemente da experiência do Sr. Dühring, assim que ele dormir o sono dos justos. O que não é certo é que as matemáticas puras são entendidas pela inteligência apenas com as suas próprias criações e imaginações. De onde são tirados os conceitos de número e figura, senão do mundo real? Os dez dedos pelos quais se aprende a contar e, por conseguinte, a executar a primeira operação aritmética, nada têm de uma livre criação do espírito. E, para contar, não só fazem falta os objetos contáveis, como também a capacidade de prescindir, à vista desses objetos, de todas as suas qualidades, com exceção da do número, capacidade que é fruto de um longo desenvolvimento histórico, empírico. É o mesmo que acontece com o conceito do número, acontece também com o da figura, que é tomado exclusivamente no mundo exterior e não surge no cérebro de ninguém por obra da pura especulação. Tiveram que existir objetos que apresentassem uma forma, e cujas formas pudessem ser comparadas entre si, para que pudesse surgir o conceito de figura. As matemáticas puras versam sobre as formas no espaço e as relações quantitativas do mundo exterior e, portanto, de uma matéria bastante real. O fato de essa matéria se nos apresentar sob forma sumamente abstrata, apenas superficialmente, pode nos fazer crer que não têm sua origem no mundo exterior. O que acontece é que, para poder investigar essas formas e relações em toda a sua pureza, é necessário desligá-las completamente de seu conteúdo, deixando-o de lado como indiferente, para assim chegarmos aos pontos sem dimensões, às linhas sem largura e espessura, aos a, aos b, aos x, e aos y, às constantes e às variáveis; e por fim, depois de percorrer todos esses caminhos, chegarmos às criações verdadeiramente livres da inteligência, isto é, às grandezas imaginária.. A aparente demonstração das grandezas matemáticas não prova tampouco sua origem apriorística, mas apenas sua concatenação racional. Para se poder chegar à idéia da forma de um cilindro, pela rotação de um retângulo em torno a um de seus lados, foi necessário investigar-se, na realidade, apesar de ser forma bastante rudimentar, toda uma série de retângulos e de cilindros. As matemáticas, assim como todas as outras ciências, surgiram das necessidades dos homens. da necessidade de medir terras e volumes, do cálculo do tempo e da mecânica. Mas, como acontece em todos os campos do pensamento humano, ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as leis abstraídas do mundo real se vêm separadas desse mundo real do qual nasceram, consideradas como se fossem alguma coisa aparte, como se fossem leis vindas de fora e às que o mundo se deveria ajustar. Assim aconteceu com a sociedade e o Estado e assim acontecera, num determinado momento, com as matemáticas puras, que serão aplicadas ao mundo, apesar de nele ter sua origem e de não representar mais do que uma parte de suas formas de síntese. E é isso, precisamente, o que faz com que sejam aplicáveis ao mundo.

Mas o Sr. Dühring, do mesmo modo que imagina poder derivar as matemáticas puras dos axiomas matemáticos, “que, numa representação puramente lógica, não admitem nem necessitam fundamentação”, sem aditamento empírico de espécie alguma, para logo depois aplicar essas matemáticas puras ao mundo, imagina também poder arrancar do cérebro, sem mediador algum, as formas fundamentais de tudo o que existe, os elementos simples de toda a ciência, os axiomas da filosofia, deles derivando toda a filosofia ou esquemática do mundo, outorgando, logo após a sua Constituição, por decreto graciosíssimo de Sua Soberana Majestade, à natureza e ao mundo dos homens. Infelizmente para ele, a natureza nada tem a ver, e o mundo dos homens muito pouco, apenas uma fração insignificante, com os prussianos de 1850, com os súditos de Manteuffel.

Os axiomas matemáticos são outras tantas expressões do conteúdo conceitual, extremamente exíguo, que as matemáticas precisam emprestar da Lógica. Na realidade esses axiomas podem reduzir-se apenas a dois:

1) O todo é sempre maior que suas partes. Esse axioma é pura tautologia, uma vez que a idéia quantitativa da parte se refere, desde o primeiro momento, num sentido bastante concreto, à idéia do todo, e quando dizemos “parte” já dizemos que o “todo” quantitativo é formado quantitativamente por várias “partes”. O mencionado axioma, ao dar expressão a esta verdade, não nos faz avançar um só passo. Poderíamos até provar, de certo modo, essa tautologia, dizendo que o “todo” é o que consta de várias “partes”; “parte” é aquilo que, unindo-se com outras, forma um “todo”, de onde se deduz que a “parte” é sempre menor que o “todo”, demonstração na qual a aridez da repetição acentua ainda mais a inconsistência do conteúdo.

2) Duas grandezas iguais a uma terceira são iguais entre si. Como demonstrou Hegel, esse axioma é uma afirmação, cuja exatidão a lógica subscreve e, portanto, pode ser demonstrado mesmo fora da matemática pura. Todos os demais axiomas sobre igualdade e desigualdade são meros corolários deste.

Mas, com essas pobres verdades, não avançamos muito, nem em matemática, nem em coisa alguma. Se quisermos progredir um pouco, não teremos outro remédio senão introduzir nas verdades, fenômenos reais, relações e formas plásticas, tomadas da realidade. As idéias de linha, de superfície, de ângulo, de quadrado, de quadrilátero, de esfera, etc., etc., são todas idéias derivadas da realidade, e apenas quem professa uma ideologia inteiramente ingênua pode crer nos matemáticos quando estes dizem que a primeira linha se originou do movimento de um ponto no espaço, a primeira superfície do movimento de uma linha, o primeiro corpo, do movimento de uma superfície, e assim sucessivamente. Até a própria linguagem se revolta contra semelhante tese. Uma figura matemática de três dimensões chama-se corpo e, em latim, corpus solidum, que significa a mesma coisa que corpo tangível, nome, como vemos, que não pode ter nascido de um ato, intelectivo e livre, da imaginação pura, mas da realidade concreta.

Mas, por que todas essas digressões, depois de se ter cantado, nas páginas 31 e 32, um hino entusiasta à matemática pura, como ciência independente do mundo da experiência, ao seu apriorismo, às criações e imaginações puramente livres da inteligência, o Sr. Dühring, diz à página 44: “Na verdade, esquece-se facilmente que aqueles elementos matemáticos (número, grandeza, tempo, espaço e movimento geométrico) apenas são ideais por sua forma... as grandezas absolutas são, portanto, algo absolutamente empírico, qualquer que seja o gênero a que pertençam” ..., mas “os esquemas matemáticos são suscetíveis de uma caracterização independente da experiência e que são suficientes”, afirmação esta aplicável, em maior ou menor grau, a qualquer abstração, mas não demonstra que essa abstração, mesmo o sendo, não se deriva da realidade. Na esquemática do mundo, a matemática pura brota do intelecto puro; na filosofia da natureza, é algo perfeitamente empírico, tomado do mundo exterior, para dele se abstrair imediatamente. A qual das duas afirmações devemos dar crédito?


Capítulo IV
ESQUEMÁTICA DO MUNDO

 

“O ser universal é único. Bastando-se a si próprio, nada tolera ao seu lado ou acima de si. Associar-lhe um segundo ser seria fazer dele o que não é, ou seja, uma parte ou um elemento de um todo mais amplo. Desde que desenvolvemos nossa idéia unitária, por assim dizer, como um plano, nada do que deve entrar necessariamente nessa unidade pode conservar em si a dualidade. Mas também nada pode escapar a essa unidade conceitual. A essência de todo pensamento consiste na reunião dos elementos de consciência numa unidade... O pensamento é o centro da unidade da síntese que faz nascer o conceito de um mundo indivisível e conhecer o universo, conforme o nome já indica, como uma coisa em que tudo se funde numa unidade.”

É o que diz o Sr. Dühring. Nessas afirmações, vemo-lo aplicar, pela primeira vez, o método matemático, segundo o qual, “todo problema se resolve de um modo axiomático sobre algumas formas fundamentais simples, como se se tratasse de simples... princípios de matemática.”

“O ser universal é único, Se uma tautologia — a simples repetição no predicado do que já se exprimiu no sujeito basta para construir um axioma, aí temos um e de primeira água.”

No sujeito, o Sr. Dühring diz-nos que o ser, como universal, compreende tudo e no predicado afirma intrepidamente que nada, então, existe fora dele. Que colossal idéia “criadora de sistema”!

Criadora, com efeito. Mais seis linhas, e o Sr. Dühring, por meio de nosso pensamento unitário, transforma a unicidade do ser em sua unidade. E como a característica de todo pensamento consiste na aglutinação formadora da unidade, pelo simp1es fato de pensar em si próprio, o ser, o que existe, se concebe como uma unidade e o conceito do mundo se torna indivisível; daí se conclui que, sendo o que existe pensado e o conceito do mundo unitário, o mundo real é igualmente uma unidade indivisível. E assim “as coisas do além não têm mais lugar, uma vez que o espírito aprendeu a discernir o que existe na sua universalidade homogênea”.

Eis uma batalha do espírito comparada com a qual Austerlitz e Iena Sadow e Sédan desaparecem inteiramente. Em duas frases, numa página somente, após termos mobilizado o primeiro axioma, conseguimos abolir, pulverizando-o, todo o mundo sobrenatural: — Deus, os exércitos celestes, o céu, o inferno e o purgatório, bem como a imortalidade da alma.

Como passamos da unicidade do ser à sua unidade? Simplesmente., representando o ser a nós próprios. Desde o momento que estendemos o nosso pensamento unitário em torno dele, como plano, o ser único torna-se no pensamento um ser unitário, uma unidade de idéia, porque a essência de todo pensamento consiste na aglutinação dos elementos de consciência numa unidade.

Esta última proposição é simplesmente falsa. Em primeiro lugar, o pensamento consiste tanto em decompor analiticamente os objetos representados na consciência em seus elementos, como em unir os elementos conexos numa unidade. Sem análise, não há síntese. Em segundo lugar, a não enveredar por falsos caminhos, somente os elementos de consciência podem ser, pelo pensamento, reduzidos à unidade, unidade essa que existia previamente nesses mesmos elementos ou nos objetos.

Não é bastante que me resolva eu a classificar uma escova de sapatos na classe dos mamíferos, para que a mesma, como que por encanto, apresente glândulas mamárias. A unidade do ser, ou seja, aquilo que justifica a redução à unidade no pensamento, é, pois, justamente o que era mister demonstrar; e, quando o Sr. Dühring nos assegura que concebe o ser como unidade e não como duplicidade, nada mais faz senão expor uma opinião pessoal que a ninguém convence.

Seu processo mental, exposto rigorosamente, é o seguinte: “Começo pelo que existe. Penso. pois, sobre o que tem existência real. A idéia do que existe constitui uma unidade. Mas o pensamento e o que existe. têm que estar de acordo, correspondem-se, “coincidem”. Portanto, o que existe é também, na realidade, unitário. Donde se conclui que o sobrenatural não existe”. Se o Sr. Dühring nos tivesse falado assim, sem subterfúgios, ao invés de nos apresentar os dogmas anteriormente citados, sua ideologia se tornaria compreensível. Querer demonstrar a realidade de um resultado mental qualquer por meio da identidade entre o que se pensa e o que existe é, de fato, uma das fantasias febris mais loucas de... Hegel.

Mesmo admitindo que toda a sua argumentação fosse exata, o Sr. Dühring não teria ganho uma só polegada de terreno aos espiritualistas, estes lhe responderiam com muita precisão: também para nós o mundo constitui uma unidade; o seu desdobramento em mundo real e mundo sobrenatural somente existe para o nosso ponto de vista especificamente terreno, de homens pecadores; mas, em si e para si, isto é, em Deus, tudo quanto existe constitui uma unidade. Acompanhariam, assim, o Sr. Dühring a percorrer seus amados “planetas” e lhe apontariam um ou vários em que, por não ter havido pecado original, não conhece a distinção entre mundo real e sobrenatural e onde, portanto, a unidade do mundo é um artigo de fé.

O mais cômico nessa história é que o Sr. Dühring, para provar a não existência de Deus por meio do conceito do ser, lança mão da prova ontológica da existência de Deus. Diz essa prova: quando pensamos em Deus, nós o concebemos como a soma de todas as perfeições. Ora, a soma de todas as perfeições implica, antes de tudo, na existência, pois um ser inexistente é necessariamente imperfeito. Devemos, pois, incluir a existência no número das perfeições de Deus. Logo, necessariamente, Deus existe, É esse, tal qual, o raciocínio do Sr. Dühring; quando ideamos o ser, ideamo-lo como conceito uno. O que se compreende num só conceito é uno. O que existe não corresponderia, portanto, ao seu conceito se não constituísse uma unidade; Deus, portanto, não existe, etc.

Quando falamos do ser e somente do ser, a unidade não pode consistir senão em que todos os objetos de que se trata — são, existem. Na unidade desse ser e em nenhuma outra é que se harmonizam, e a expressão aplicada a todos em comum, isto é, — que todos são — não só não lhes pode conferir quaisquer outras qualidades, comuns ou não comuns, como exclui por enquanto de nossa consideração todas essas outras qualidades. Temos que nos afastar, um só milímetro que seja, desse simples fato fundamental de que todos os objetos têm em comum a existência para que, desde logo, comecem a surgir aos nossos olhos suas diferenças. Decidir se tais diferenças consistem em que uns são brancos, outros pretos; uns animados, outros inanimados; uns, se assim se quer, terrenos, outros supraterrenos; é coisa que não saberíamos fazer baseando nossa conclusão no fato de que unicamente a existência a todos atribuída igualmente.

A unidade do mundo não consiste precisamente em existir, se bem que seja isto uma condição de sua unidade, pois, de qualquer modo, é preciso, evidentemente, que ele seja antes de poder ser, uno. É necessário levar-se em conta que a existência começa a ser um problema a partir dos limites de nosso circulo visual. A unidade real do mundo consiste na sua materialidade e esta última prova-se, não com algumas frases de prestidigitador, mas por uma longa e laboriosa evolução da filosofia e das ciências da natureza.

Mas prossigamos na leitura do texto. O ser de que nos fala o Sr. Dühring “não é esse ser puro que, idêntico a si próprio, igual a si mesmo, é desprovido de qualquer propriedade concreta que não representa efetivamente senão uma contra-imagem do nada ou da ausência da idéia”. Logo, porém, veremos que o mundo do Sr. Dühring começa, sem dúvida alguma, por um ser despido de toda diferenciação interna, de todo movimento e de toda mudança, um mundo que não é, no fundo, mais que um reflexo do nada e não é, pois, senão um nada real. É somente a partir desse ser nada que se desenvolve o estado atual do mundo, diferenciado, mutável, apresentando já uma evolução, um processo de formação; e é somente depois de termos compreendido isso que chegamos a encontrar, de novo, sob essa transformação perpétua, “o conceito do ser universal idêntico a si mesmo”. Assim, pois, temos agora o conceito de ser num grau superior, em que compreende em si tanto a permanência quanto a mudança, tanto o ser como o vir-a-ser. Uma vez aí chegados, descobrimos que “o gênero e a espécie, o geral e o particular são caracteres distintivos mais simples, sem os quais a constituição das coisas não pode ser compreendida”. Tratam-se, porém, de caracteres distintivos da qualidade. Depois de nos termos ocupado disso, continuemos: “Aos gêneros opõe-se o conceito de grandeza como uma homogeneidade na qual já não se verificam diferenças qualitativas de nenhuma espécie. Dito de outro modo: passamos da qualidade à quantidade, sendo esta sempre mensurável.

Comparemos agora essa “nítida classificação dos esquemas gerais” e esse “ponto de vista verdadeiramente crítico”, com as ingenuidades, as grosserias e os sonhos febricitantes de Hegel. Verificamos que a Lógica, de Hegel, tem o ser, como ponto de partida, exatamente como a do Sr. Dühring; que o ser se manifesta como nulidade, tal como o do Sr. Dühring: que dessa nulidade do ser foi que se passou ao vir-a-ser, cujo resultado é a existência, isto é, uma forma mais elevada, mais rica, do ser, tal como no Sr. Dühring. A existência conduz à qualidade e esta à quantidade — ainda da mesma forma que no Sr. Dühring. E para que nenhuma peça essencial falte ao sistema, o Sr. Dühring conta-nos o seguinte, noutro trecho: “Do reino da insensibilidade não se passa ao da sensação, apesar de toda a continuidade quantitativa, a não ser por um salto qualitativo do qual... podemos dizer que se diferencia infinitamente da simples variação de graus de uma só e mesma propriedade”. É exatamente a linha nodal de desproporções hegelianas em que uma adição ou uma subtração puramente quantitativa produz, em certos pontos nodais, um salto qualitativo. É o caso, por exemplo, da água aquecida ou esfriada, para a qual o ponto de ebulição e o ponto de congelação são os nós ou elos em que se realiza, a uma pressão normal, o salto para um novo estado de agregação, nos quais, consequentemente, a quantidade se transforma em qualidade.

Nossa investigação tenta igualmente ir até a raiz das coisas e, ao atingir a raiz dos profundos esquemas fundamentais do Sr. Dühring, encontra... “fantasias febris” de um Hegel, as categorias da Lógica hegeliana (primeira parte, teoria do ser) da qual se originam esses sonhos seguindo as “deduções” rigorosamente conformes à velha “variação de graus” hegeliana, e isso sem procurar esconder o plágio.

E, não contente com haver tomado de empréstimo o seu esquematismo daquele, dentre os seus predecessores que ele mais calunia, o Sr. Dühring, depois de ter ele próprio dado o exemplo referido acima, de uma passagem brusca da quantidade em qualidade, tem a ousadia de falar de Marx, nestes termos: “Como é cômico vê-lo (a Marx) referir-se a essa Idéia confusa e nebulosa de Hegel, de que a quantidade se transforma em qualidade!”

Idéia confusa e nebulosa! Quem é que “se transforma” e quem é cômico, Sr. Dühring?

Todas essas lindas idéias não são, portanto, “estabelecidas de maneira axiomática” segundo uma ordem: são, pelo contrário, tranqüilamente importadas de fora, da Lógica de Hegel. E tanto é assim que, em todo esse capítulo, a única coisa que tem a aparência de uma conexão lógica interna é a que foi emprestada de Hegel, e tudo, finalmente, resulta em inúteis fantasias sobre o espaço e o tempo, a imobilidade e a mudança.

Do ser, Hegel passa à substância, à dialética. Aí, trata das determinações reflexas de seus antagonismos e contradições internas (por exemplo, negativo e positivo), depois chega a causalidade ou relação de causa e efeito, finalizando com o estudo da necessidade. Outra coisa não faz o Sr. Dühring. Onde Hegel escreve “teoria da substância”, o Sr. Dühring traduz por “propriedades lógicas do ser”. Mas estas consistem antes de tudo, nos “antagonismos das forças”, nos antagonismos. Mas a contradição é negada firmemente pelo Sr. Dühring. Voltaremos a esse assunto. Depois. ele passa à causalidade e desta à necessidade. Quando, pois, o Sr. Dühring diz de si próprio: “nós, que não filosofamos de uma gaiola para fora”, ele quer dizer, sem dúvida, que filosofa dentro da gaiola, a do esquematismo das categorias hegelianas.


Capítulo V
FILOSOFIA DA NATUREZA.

O TEMPO E O ESPAÇO

 

Passemos, agora, à filosofia da natureza. O Sr. Dühring tem razões, aqui também, para não estar satisfeito com os seus predecessores. A filosofia da natureza “caiu tanto, que se tornou uma árida e má poesia, feita de incultura” e foi “abandonada à filosofia prostituída, à maneira de um Schelling e outros tipos desse gênero que, traficando com o sacerdócio do absoluto, mistificavam o público”. A fadiga livrou-nos desses “monstros”, mas até agora não deram lugar senão ao “insustentável” e, “no que se refere ao grande público, a retirada de um grande charlatão é sempre, como se sabe, uma oportunidade para um sucessor, embora mais medíocre, mas com habilidade bastante que lhe permita repetir as produções do outro, como rótulo diverso”. Os próprios naturalistas não revelam “muito gosto em fazer uma excursão pelo reino das idéias universais”, limitando-se, no domínio teórico, a “improvisações incoerentes”. Nesse terreno há, pois, necessidade de um socorro urgente e, por felicidade, o Sr. Dühring está presente.

Para poder apreciar com justeza as revelações que se seguem sobre o desenvolvimento do mundo no tempo e sua limitação no espaço, é mister citar aqui algumas passagens da “esquemática do mundo”.

O Sr. Dühring, também de acordo neste ponto com Hegel(2), atribui ao ser a infinidade — o que Hegel chama de má infinidade — e assim a aprecia: “A mais clara forma de se representar sem contradição a infinidade é a sucessão ilimitada dos números na série numérica... Do mesmo modo que a cada número podemos acrescentar uma nova unidade sem jamais esgotar a possibilidade de continuar a numeração, a cada estado, do ser, qualquer que seja, acrescenta-se mais um e é na produção ilimitada desses estados que consiste a infinidade. Essa infinidade concebida com precisão, não tem, por conseguinte, senão uma forma fundamental e uma direção única. Se bem que seja, com efeito, indiferente para o nosso pensamento traçar uma direção oposta a essas sucessões de estados do ser, a infinidade que progride para trás não é, entretanto, mais que uma representação precipitada e imatura. Seria preciso que ela tivesse sido, na realidade, percorrida em sentido contrário; e assim, teria em cada um de seus estados uma série infinita de números. Mas, então, cometeríamos a inadmissível contradição de uma série infinita já percorrida e desse modo se revela como absurda a idéia de supor uma segunda direção da infinidade”.

O primeiro corolário que deriva dessas concepções da infinidade é que o encadeamento das causas e dos efeitos, no mundo, deve ter tido necessariamente um começo: “um número infinito de causas, que se houvessem previamente seguido umas após outras, é inconcebível, só pelo fato de supor como já percorrido o inumerável”. Assim fica demonstrado a existência de uma causa final.

O segundo corolário é “a lei do número determinado; a acumulação do idêntico, em não importa que espécie real de conceitos independentes, não é concebível senão formando um número determinado”. Não só o número dos corpos existentes no universo deve ser, em qualquer momento, um número em si mesmo determinado, como também deve sê-lo o número total das partículas independentes de matéria existente no mundo, por menores que sejam. Esta última necessidade é a verdadeira razão que impede realizar-se qualquer síntese em átomos. Toda divisão real tem sempre uma determinação finita e deve te-la, se não quisermos ver surgir a contradição do inumerável percorrido. Não só pela mesma razão por que o número de voltas que a terra deu até agora em torno do sol deve necessariamente ser um número determinado, embora desconhecido, todos os processos periódicos da natureza devem também ter tido um começo e todas as suas diferenciações, todas as variedades da natureza, derivadas uma das outras, devem ter, como origem, um estado idêntico a si próprio. Pode este estado, sem contradição, ter existido por toda a eternidade; mas mesmo essa representação seria também inconcebível se o próprio tempo se compusesse de partes reais, e não por um fracionamento ideal de possibilidades, classificadas, à vontade, por nosso entendimento.

Já com o conteúdo real e diferenciável do tempo não se dá o mesmo: à medida em que o tempo é realmente ocupado por acontecimentos, diferenciavelmente, específicos, esta função real do tempo e as formas de existência deste campo se enquadram, por serem mesmo distintas, como suscetíveis de serem contadas. Imaginemos um estado sem mudanças que, na sua perfeita identidade consigo próprio, não apresenta nenhuma diferença de efeitos; o conceito restrito de tempo torna-se, assim, a idéia mais geral do próprio ser. É impossível fazer uma idéia de acumulação de uma duração vazia.

O Sr. Dühring, até aqui como que se mostra maravilhado com a importância dessas descobertas. Ele espera, de início, que “pelo menos não serão consideradas como uma verdade sem importância”; logo depois confere uma maior importância a estas descobertas.

E mais adiante diz: “Lembremo-nos do método extremamente simples pelo qual nós demos aos conceitos do infinito e à sua crítica um alcance até aqui desconhecido... Recordemo-nos dos elementos do tempo e do espaço, concebidos universalmente, que se constituíram de maneira tão simples pelo presente método de precisá-los e de aprofundá-los”.

Acertamos! “Nitidez” e “profundidade” reais! Mas, quem é que acertou? Em que época vive? Quem aprofundou e precisou?

“Tese. O mundo teve um começo no tempo e também no espaço é igualmente limitado.

“Prova: Admitamos, com efeito, que o mundo não tem começo no tempo, uma eternidade se teria escoado até chegar a um momento dado, fluindo, portanto, no mundo, uma série infinita de estados de coisas sucedidos uns aos outros. Mas a infinidade de uma série consiste precisamente em que ela nunca pode ser rematada por uma síntese sucessiva. Uma série infinita e desenvolvida é, pois, impossível e, consequentemente, um começo do mundo é uma condição necessária de sua existência, que é o que se tratava de demonstrar. Mas, quanto ao segundo ponto de vista, que novamente se admita o contrário da tese: o mundo seria um todo determinado e infinito de objetos que existem simultaneamente.

Ora, podemos conceber a grandeza de uma quantidade, não estabelecida entre certos limites concretos por nós observados, somente pela síntese das partes; e a soma total dessa quantidade só pode ser concebida por meio da síntese acabada, ou pela adição repetida da unidade a si própria. Por conseqüência, para conceber, como um todo, o mundo que enche todos os espaços, deveria a síntese sucessiva das partes do mundo infinito ser considerada como acabada, isto é, seria mister, com a contagem de todos os objetos coexistentes, considerar como tendo escoado um tempo infinito. Disso resulta que não se poderia considerar um agregado infinito de objetos reais como um todo determinado, nem, conseguintemente, como objetos simultaneamente determinados. Portanto, um mundo não é infinito quanto à sua extensão no espaço, mas, pelo contrário, é encerrado sempre dentro de seus limites, o que era o segundo ponto a demonstrar”.

Essas proposições são literalmente copiadas de um livro bastante conhecido que apareceu, pela primeira vez, em 1781 e que se intitula: Crítica da Razão Pura, de Emanuel Kant, e no qual todo o mundo pode lê-las (primeira parte, 2a. seção, livro segundo, capítulo segundo, artigo segundo): Primeira Antinomia da Razão Pura. Portanto, ao Sr. Dühring cabe unicamente a glória de ter batizado uma idéia de Kant, com o nome de “lei do número determinado” e de ter descoberto a existência de um tempo onde ainda não existia tempo, mas sim apenas o mundo. Quanto ao resto, isto é, quanto aquilo que, na análise do Sr. Dühring, tem algum sentido, ao subentender “nós”, na expressão “Encontramos”, quer se referir a Emanuel Kant; a atualidade das descobertas do Sr. Dühring tem apenas noventa e cinco anos. É, na verdade, extraordinariamente “simples”. E é maravilhoso o “alcance até aqui desconhecido” da nova idéia.

Mas acontece que Kant não considera, de modo algum, a tese acima, como provada por sua demonstração. Ao contrário, na página seguinte, sustenta e prova que o mundo não tem começo no tempo nem limite no espaço e justamente nisso é que reside a antinomia, a contradição irredutível, segundo a qual podemos provar tanto uma tese como a sua contrária. Talvez pessoas de menor alcance encontrassem motivos para reflexão no fato de “um Kant” achar nisso uma dificuldade insolúvel, nunca, porém, o nosso audacioso fabricante “de resultados e de teorias essencialmente originais”: o que lhe pode servir na antinomia de Kant, ele o copia sem pestanejar, pondo o resto de lado.

O problema resolve-se muito simplesmente. Eternidade no tempo, infinidade no espaço, essa coisa consiste, por si mesma, tomando as palavras no seu sentido literal, em não ter limite nenhum nem pela frente nem por detrás, nem acima nem abaixo, nem à direita nem à esquerda. Essa infinidade é diferente da de uma série infinita, porque esta começa sempre e necessariamente na unidade, num primeiro termo. Essa representação de série é inaplicável ao nosso objetivo, como verificamos quando a aplicamos ao espaço. A série infinita adaptada ao mundo especial é uma linha tirada em direção ao infinito, a partir de um ponto determinado, numa direção determinada. Isso exprime, mesmo remotamente, a infinidade do espaço? Pelo contrário: bastam seis linhas tiradas a partir desse ponto único, em três direções opostas, para circunscrever as direções do espaço e teríamos assim seis dimensões. Kant o compreendeu tão bem que não foi senão indiretamente, por um rodeio, que ele transportou a sua série numérica para o mundo especial. O Sr. Dühring, pelo contrário, força-nos a admitir seis dimensões no espaço e, logo depois, esquecendo-se do que afirmou, não encontra palavras para exprimir a sua indignação contra o misticismo matemático de Gauss que não queria contentar-se com as três tradicionais dimensões do espaço.

Aplicada ao tempo, a linha ou a série de unidades, infinita em suas duas direções, tem um certo sentido como imagem. Mas, se nós nos representamos o tempo como uma série formada a partir da unidade, ou como uma linha tirada a partir de um ponto determinado, estamos desde já estabelecendo que o tempo tem um começo; supomos precisamente o que era necessário provar. Damos à infinidade do tempo um caráter incompleto e unilateral, e, como sabemos, uma infinidade incompleta, unilateral, é uma contradição lógica, exatamente o contrário de uma “infinidade concebida sem contradição”. Dessa contradição só podemos sair admitindo que a unidade da qual partimos para contar a série, o ponto a partir do qual traçamos a linha, é uma unidade tomada arbitrariamente na série, um ponto tomado arbitrariamente na linha, de tal modo que resulta indiferente saber onde o colocamos em relação à linha ou à série.

É a contradição que consiste em “medir uma série numérica infinita”?

Estaremos aptos a examinar mais de perto essa contradição, quando O Sr. Dühring realizar diante de nós o prodígio de contá-la, quando tiver conseguido contar de menos infinito até zero.

É claro que, não importa por onde comece a contar, deixará sempre atrás de si uma série infinita e com ela o problema que deve resolver.

Que inverta somente a sua própria série infinita 1+2+3+4..., e experimente contar de novo, desde o fim infinito, até a unidade; será evidentemente a tentativa de um homem que não sabe nem do que se trata. Há mais ainda. Quando o Sr. Dühring afirma que a série infinita do tempo escoado foi contado, afirma, implicitamente, que o tempo tem um começo; porque, de outro modo, não poderia mesmo começar a “contar”. Introduz, portanto, sub-repticiamente, como hipótese prévia, precisamente o que devia demonstrar. A idéia da série infinita contada, também chamada a “lei universal do número determinado” de Dühring. é, pois, uma contradictio in adjecto, encerra em si não apenas uma contradição, mas uma contradição absurda.

É evidente que uma infinidade que tem um fim, mas não tem começo, não é mais nem menos infinita do que aquela que tem um começo, mas não tem fim. O menor senso dialético teria advertido ao Sr. Dühring que começo e fim são conceitos necessariamente ligados, como pólo norte e pólo sul; se se abandona o fim, o começo se torna fim — o único fim da série, e assim reciprocamente.

Toda essa quimera não existiria se não fosse hábito dos matemáticos operarem com séries infinitas. Como em matemática é preciso partir do determinado e finito, para chegar ao indeterminado e infinito, é preciso que todas as séries matemáticas, positivas ou negativas, comecem pela unidade, sem o que é impossível calcular com essas séries. Mas a necessidade mental do matemático está longe de ser uma lei que aja necessariamente sobre o mundo real.

De resto, o Sr. Dühring não poderá jamais compreender, sem contradição, a infinidade real. A infinidade é, por si mesma, uma contradição prenhe de contradições.

Já é contraditório que uma infinidade se componha de quantidades finitas e, no entanto, isso acontece na realidade. Admitir que o mundo material tem limites não conduz a menos contradições que admiti-lo ilimitado. Toda a tentativa para afastar essa contradição leva, conforme vimos, a novas e mais lamentáveis contradições. Precisamente porque é uma contradição, a infinidade é um processo infinito a desenvolver-se, sem fim no tempo nem fim no espaço. A supressão da contradição seria o fim da infinidade. Hegel já o havia visto muito bem e é por isso que trata aos que se dedicam a fantasiar sobre essa contradição com um merecido desprezo.

Continuemos. O tempo teve, pois, um começo. Que havia, então, antes do começo? O mundo num estado idêntico a si próprio e invariável. E como, nesse estado, não há mudanças que se sucedam umas às outras, o conceito mais especifico do tempo se transforma na idéia do ser.

Primeiramente, é-nos completamente indiferente saber quais os conceitos que se transformam na cabeça do Sr. Dühring: não se trata do conceito do tempo, mas do tempo real, do qual o Sr. Dühring não se desembaraçará tão facilmente. Em segundo lugar, que o conceito do tempo se transforme na idéia geral do ser, isso não nos fará dar um passo à frente, porque as formas essenciais de todo o ser são o espaço e o tempo e um ser fora do tempo é um absurdo tão grande quanto um ser fora do espaço.

O ser de Hegel, “ser extinto fora do tempo”, e o “ser irrepresentável”, de que falam os neo-schellinguianos, são concepções racionais, se as compararmos com esse ser concebido à margem do tempo. O Sr. Dühring, aliás, vai com muita cautela por esse caminho; propriamente falando, é bem um tempo, mas um tempo tal que, no fundo, não se poderia chamá-lo de tempo, pois o tempo não se compõe em si mesmo de partes reais e é somente a nossa inteligência que nele introduz divisões arbitrárias; só um tempo repleto realmente de fatos diferenciáveis pode ser contado, não se podendo mesmo descobrir o que poderia significar a continuidade de uma duração, no vazio, verdadeira quimera.

O que essa sucessão poderia significar é-nos, agora, completamente indiferente: a questão é saber se o mundo, no estado aqui suposto, tem ou não uma duração no tempo. Que não se obtém resultado algum medindo uma duração semelhante e muito menos operando com medidas sem desígnio e sem finalidade objetiva, no espaço vazio, sabemos de há muito. E é precisamente no que esse processo tem de inútil que Hegel chama a essa infinidade de má infinidade. Segundo o Sr. Dühring, o tempo não existe senão pela mudança e não é a mudança que existe no tempo e pelo tempo. Justamente por que é tão diverso e independente da mudança, é que se pode medi-lo pela mudança, porquanto para medir é necessário sempre um elemento distinto da coisa que se mede. O tempo, em que se não produzem mudanças cognoscíveis está muito longe de não ser tempo algum, ele é antes o tempo puro, isento de qualquer influência estranha, isto é, é o tempo verdadeiro, o tempo como tal. Realmente, quando queremos conceber a idéia do tempo em toda a sua pureza, fora de todas as misturas estranhas e heterogêneas, somos obrigados a afastar como estranhos todos os acontecimentos diversos que se produzem, simultânea e sucessivamente, no tempo, como alheios a ele, representando-nos, assim, um tempo em que nada se passa. Por aí não fizemos, pois, diluir a idéia do tempo na idéia geral do ser: pelo contrário, foi por aí somente que chegamos à idéia pura do tempo.

Mas toda essas contradições e esses absurdos não passam de brincadeiras de criança ao lado da confusão caótica em que se embrenha o Sr. Dühring, com o seu “estado primitivo do mundo idêntico a si próprio”. Se o mundo já esteve num estado em que não se produzia absolutamente mudança alguma, como pode passar desse estado à mudança? O que é desprovido absolutamente de mobilidade, o que, mais ainda, esteve nesse estado toda a eternidade, não poderia, de modo algum, sair de si próprio para passar ao estado de movimento e de mudança. É preciso, portanto, que, de fora — do mundo exterior — tenha vindo um primeiro impulso que o pusesse em movimento.

E o “primeiro impulso”, como se sabe, é apenas uma expressão para denominar Deus.

Esse Deus e esse Além, que o Sr. Dühring pretendia haver eliminado tão galhardamente de sua “esquemática do universo”, ele próprio os reintroduz, reforçados e aprofundados, em sua filosofia da natureza.

Prossigamos. O Sr. Dühring diz: “Quando um elemento imóvel do ser adquire grandeza, esta grandeza permanece invariável em sua determinabilidade. Isso é verdade... para a matéria e para a força mecânica.” A primeira proposição fornece-nos — de passagem seja dito — um exemplo precioso da grandiloqüência axiomático-tautológica do Sr. Dühring; quando uma grandeza não muda, continua idêntica.

Assim, a quantidade de força mecânica existente no mundo, permanece eternamente a mesma. Nada diremos sobre isso senão que, na medida em que é exato, já o sabia e proclamava, há cerca de três séculos, a filosofia de Descartes e, nas ciências da natureza, é conhecida há mais de vinte anos, na teoria da conservação da força. Não insistimos sobre o fato de que o Sr. Dühring, restringindo-se à força mecânica, não melhora esta tese de maneira alguma. Mas onde estava, pois, a força mecânica, naqueles tempos do estado imutável? Essa pergunta o Sr. Dühring recusa-se obstinadamente a responder.

Onde, portanto, Sr. Dühring, vivia essa força mecânica, eternamente igual a si própria, e o que a impulsionava? Resposta do Sr. Dühring: “O estado primitivo do universo, ou, mais precisamente, de um ser da matéria invariável, não compreendendo nenhuma acumulação de mudanças no tempo, é uma questão que não pode ser posta de lado senão por um espírito que vê, na automutilação de sua força procriadora, o cúmulo da sabedoria”. Assim, ou aceitais de olhos fechados o meu estado primitivo invariável ou eu, o viril e potente Eugen Dühring, proclamo-vos eunucos intelectuais. Eis uma coisa que pode, sem dúvida, amedrontar a mais de uma pessoa. Nós, porém, que já vimos alguns exemplos da força viril do Sr. Dühring, podemos tomar a liberdade de passar por alto, sem réplica, ao elegante insulto e repisar a pergunta Mas Senhor Dühring, por favor, que ocorre, nesse caso, com a força mecânica?

O Sr. Dühring imediatamente se embaraça. O fato, balbucia ele, é que “a identidade absoluta desse estado-limite primitivo não fornece, por si própria, um principio de transição. Lembremo-nos, entretanto, que, no fundo, sucede a mesma coisa em cada novo elo, que, por menor que seja, venha a incorporar-se a essa cadeia da existência que tão bem conhecemos. Se se quer, portanto, criar dificuldades no presente caso, que é fundamental, tenha-se o cuidado de não as deixar escapar em circunstâncias menos importantes. De mais a mais, é possível interpolar estados intermediários em gradação progressiva e, desse modo, teremos aberto o caminho da continuidade para chegar, pelo retrocesso, a fazer desaparecer o jogo das variações recíprocas. Como conceito puro, na verdade, essa continuidade não nos permite ultrapassar a idéia principal, mas é para nós a forma fundamental de tudo quanto se rege por leis e de todas as transações conhecidas, de maneira que temos o direito de utilizá-las como intermediárias entre o equilíbrio inicial e a ruptura desse equilíbrio. Mas, se concebêssemos o equilíbrio por assim dizer imóvel (!), fundamentando-nos nas idéias admitidas sem grande alarde (!) pela mecânica atual, seria inteiramente impossível indicar como a matéria poderia chegar à variação.” Além da mecânica das massas, haveria ainda, segundo ele, uma transformação de movimento de massas em movimento das mais pequenas partículas. Porém, quanto a se saber como se produz essa transformação, “não temos ainda à nossa disposição um principio geral que a explique e não devemos pois admirarmo-nos se esses fenômenos se perdem um pouco na obscuridade”. Eis tudo o que o Sr. Dühring tem a dizer-nos. Efetivamente, ser-nos-ia indispensável ver não só na auto-mutilação de nossas energias genitais, mas também na fé cega do carvoeiro, o cúmulo da sabedoria, para nos contentarmos com esse fogo fátuo e essas fórmulas verdadeiramente lamentáveis. Por si mesma — reconhece o Sr. Dühring — a identidade absoluta não pode chegar à mudança. Por seu próprio impulso, o equilíbrio absoluto não tem meio algum de passar ao movimento. Que resta, portanto? Três afirmações falsas e insustentáveis.

Primeiramente, dizem-nos que é dificílimo mostrar a transição do primeiro para o segundo elo, na famosa cadeia da existência. O Senhor Dühring parece ter os seus leitores na conta de crianças de peito. A demonstração, uma por uma, das transições e conexões, na cadeia da existência, é precisamente o que constitui a matéria das ciências da natureza e, se acontece que a demonstração não fica clara como deve, ninguém. nem mesmo o Sr. Dühring, sonharia em explicar o movimento que se produziu do nada, mas sempre e exclusivamente pela transmissão, transformação ou transplantação de um movimento precedente. Ora, trata-se. aqui, de explicar, segundo se convencionou, como se pode fazer sair o movimento da imobilidade, ou melhor, do nada.

Em segundo lugar. temos a “ponte da continuidade”. Este conceito, na verdade, não permite ao Sr. Dühring superar a dificuldade, mas ele tem o direito de utilizar a continuidade como intermediária entre a imobilidade e o movimento. Infelizmente, a continuidade da imobilidade consiste precisamente em não se mover Como pode essa continuidade produzir um movimento, portanto, é um mistério cada vez maior! O Sr. Dühring faria bem em dividir a sua transição, do nada do movimento ao movimento universal, numa infinidade de pequenas partículas, atribuindo-lhes uma duração tão longa quanto quisesse; nem assim teríamos avançado um décimo de milímetro para nos esclarecer. Do nada não pode sair nada, sem que intervenha um ato criador, ainda que essa coisa seja tão pequena quanto uma diferencial matemática.

A ponte da continuidade não é, portanto, nem sequer o que os escolásticos chamavam de “ponte dos burros”; é apenas uma ponte pela qual só o Sr. Dühring sabe passar.

Em terceiro lugar, enquanto valer a mecânica atual e esta for, segundo o próprio Sr. Dühring, um dos fatores essenciais da formação intelectual, será inteiramente impossível indicar como se pode passar da imobilidade ao movimento. Mas a teoria mecânica do calor mostra-nos que o movimento de massas se transforma, em certas circunstâncias, em movimento molecular (embora, ainda aqui, um movimento nasça de outro movimento e nunca da imobilidade). Isso, talvez, insinua o Sr. Dühring timidamente, poderia oferecer uma ponte entre o que é rigorosamente estático (em equilíbrio) e o que é dinâmico (em movimento). Todos esses fenômenos, porém, se perdem “um pouco na obscuridade” na qual, nos deixa, de fato, o Sr. Dühring.

Eis, pois, a que chegamos, após tanta profundeza e exatidão: enterramo-nos, cada vez mais, em maiores absurdos para, enfim, aportar onde fatalmente aportaríamos: na “obscuridade”. Isso, porém, não desanima ao Sr. Dühring; já na página seguinte ele tem o desplante de afirmar que “pode dar ao conceito da permanência a si própria, um conteúdo real, partindo diretamente da observação da matéria das forças mecânicas”. E esse homem chama aos outros de “charlatães”.

Por felicidade, em meio a todo esse caminhar desesperadamente errante e incoerente na “obscuridade”, temos um consolo realmente alentador: “A matemática dos habitantes de outros corpos celestes não pode repousar em axiomas diversos dos da nossa”, segundo nos assevera o Sr. Dühring.


Capítulo VI
FILOSOFIA DA NATUREZA, COSMOGONIA, FÍSICA, QUÍMICA

 

Continuando o exame da obra, chegamos às teorias sobre as origens do mundo atual. Informa-nos que o estado universal de difusão da matéria era já a concepção inicial dos filósofos jônicos, mas que, sobretudo depois de Kant, a hipótese de uma nebulosa primitiva volta a desempenhar um papel, tendo a gravitação e a irradiação do calor servido de meios para a formação progressiva, a partir da nebulosa primitiva. de cada um dos diversos corpos celestes sólidos. No nosso tempo, a moderna teoria mecânica do calor permite formular, com muito mais precisão, as inferências relativas aos estados primitivos do universo. Entretanto, “o estado de difusão gasosa não pode servir de ponto de partida a deduções sérias, se, previamente, não se puder determinar, com a maior concretização, o sistema mecânico que nele se encerra. De outro modo, a idéia não só se perderá nas trevas, mas também, longe de se desfazer, a trela primitiva se tornará mais densa e impenetrável no curso de nossas deduções... Por enquanto, tudo continua ainda no vago e informe de uma idéia cuja difusão é impossível de se determinar mais detalhadamente”. E assim “não temos desse universo gasoso senão uma concepção absolutamente aérea”.

A teoria sobre a gênese dos mundos atuais, pela rotação das massas nebulosas, foi o maior progresso que a astronomia fez desde Copérnico. Pela primeira vez abalou-se a idéia de que a natureza não teria história no tempo. Até então, acreditava-se, os corpos celestes se moviam, constantemente, desde a sua origem, nas mesmas órbitas invariáveis; e se bem fosse admitido que sobre cada um dos corpos celestes os seres orgânicos individuais pereciam, entendia-se que essa morte não afetava. em nada, às espécies e aos gêneros. A natureza estava, de fato, visivelmente empenhada num movimento perpétuo: mas esse movimento parecia não ser mais que a repetição incessante dos mesmos fenômenos. Nessa concepção, que correspondia inteiramente ao método filosófico metafísico, Kant abriu a primeira brecha, e isso de maneira tão científica que a maior parte dos argumentos empregados por ele têm, ainda hoje, um grande valor. É certo que a teoria de Kant não é, ainda agora, rigorosamente mais que uma hipótese. Mas o sistema cosmológico do próprio Copérnico não conseguiu ser senão uma hipótese, até hoje; e, depois que as investigações espetroscópicas, derrubando todos os argumentos contrários. apresentaram a prova evidente de que existem tais massas gasosas ígneas no firmamento, a oposição científica à teoria de Kant foi reduzida ao silêncio. O Sr. Dühring não pode, igualmente, construir o seu mundo, sem apelar para um estado de nebulosidade precedente, mas ele vinga-se exigindo que lhe demonstrem o sistema mecânico dessa nebulosa e, como não pôde ser atendido, investe contra essa demonstração com toda a espécie de epítetos desdenhosos. Infelizmente, a ciência atual não pode definir e concretizar esse sistema, de modo a satisfazer ao Sr. Dühring. E não é capaz, muito menos, de responder a outras perguntas. A pergunta seguinte: por que os sapos não têm rabo? não pôde, até hoje, ser respondida senão pela hipótese de que, possivelmente, o perderam. Se, a propósito, perdendo a calma, disséssemos que tudo Isso é muito vago e informe, que é uma idéia pouco concreta de “perda”, uma concepção sumamente “aérea”, é possível que uma semelhante aplicação da moral às ciências naturais não nos faça avançar nem um passo. Essas condenações e essas explosões de descontentamento podem ter lugar não importa onde nem quando e é justamente por isso que não devem ser usadas em parte alguma. Se tudo está errado quem é que impede ao Sr. Dühring de descobrir, ele próprio, o sistema mecânico da nebulosa primitiva?

Por felicidade, sabemos agora que a massa nebulosa de Kant está bem longe de se confundir com um estado totalmente idêntico do meio universal, ou, melhor, com o estado da matéria, idêntico a si próprio. Eis aí um verdadeiro triunfo para Kant, que tinha razões para se contentar em fazer remontar desde os corpos celestes, atualmente existentes, até a esfera nebulosa, sem lembrar-se, por nada deste mundo, do estado da matéria idêntico a si próprio.

Observemos, de passagem, que, na ciência da natureza, a massa de névoa de Kant, que é designada atualmente pelo nome de nebulosa primitiva, não deve ser tomada, como é fácil compreender, senão num sentido relativo. Quando dizemos que ela é nebulosa primitiva, por um lado, queremos dizer que nela está a origem dos corpos celestes existentes e que ela é, por outro lado, a mais antiga forma de matéria a que podemos, até agora, remontar. O que absolutamente não exclui, mas, pelo contrário, supõe que a matéria tenha atravessado, antes da nebulosa primitiva, uma série infinita de outras formas.

E nisso o Sr. Dühring não vê nenhuma vantagem. Enquanto somos obrigados, com a ciência, a nos deter provisoriamente na nebulosa primitiva, como numa estação de trânsito, a sua ciência da ciência permite-lhe subir muito mais alto, até aquele “estado do meio universal que não poderia ser concebido, nem como puramente estático, no sentido atual do termo, nem como dinâmico, e que, portanto, de nenhum modo é possível conceber”. “A unidade de matéria e força mecânica, à qual damos o nome de meio universal, é uma fórmula por assim dizer lógico-real, da qual nos valemos para designar o estado da matéria idêntico a si próprio, como fase prévia de todas as etapas da evolução que possamos estabelecer.”

Evidentemente, não terminamos ainda com o estado da matéria idêntico a si mesmo. Esse estado é aqui designado como a “unidade de matéria e força mecânica”, “fórmula lógico-real”, etc. Assim, logo que cessa a unidade de matéria e força mecânica, o movimento se inicia.

A “fórmula lógico-real, não é senão uma fraca tentativa de utilizar” na “filosofia da realidade”, as categorias hegelianas do em si (Ansich) e para si (Fursich). Na primeira categoria reside, para Hegel, a identidade primitiva das antíteses ainda latentes e embrionárias, ocultas numa coisa, num fenômeno, num conceito; na segunda. manifestam-se a diferenciação e a separação desses elementos ocultos e começa o seu conflito. É preciso pois, e para isso nos convida O Sr. Dühring, representarmo-nos o estado de imobilidade primitiva como unidade de matéria e força mecânica e a passagem para o movimento como separação e oposição destes dois elementos.

O que com isso ganhamos não é a prova da realidade desse fantástico estado primitivo, mas somente a possibilidade de compreendê-lo sob a categoria hegeliana do Ansich e de compreender-lhe a cessação, também fantástica, sob a categoria do Fursich. Continua valendo o auxílio de Hegel!

A matéria, diz o Sr. Dühring, é a portadora de tudo o que é real, de tal maneira que não pode haver força mecânica fora da matéria. A força mecânica é, além disso, um estado da matéria. Assim, no estado primitivo, em que nada se passava, a matéria e seu estado, a força mecânica, eram uma e a mesma coisa. A seguir, quando começou a se passar algo, necessariamente esse estado se diferenciou da matéria. Será preciso, pois, que nos contentemos com essas frases mitológicas e com essa vaga afirmação de que o estado da matéria idêntico a si próprio não era nem estático nem dinâmico, nem equilíbrio, nem movimento, como quer o Sr. Dühring? Não saberemos jamais em que lugar a força mecânica se achava, naquele estado primitivo, nem como pôde, sem um impulso de fora, isto é, sem Deus, passar da imobilidade absoluta ao movimento.

Antes do Sr. Dühring, os materialistas falaram da matéria e do movimento. Ele reduz o movimento à força mecânica como sua pretensa forma fundamental e por aí se torna impossível compreender a verdadeira relação entre matéria e movimento, a qual, de resto, foi igualmente obscura para todos os materialistas que o precederam. E, no entanto, a coisa é bastante simples. O movimento é o modo de existência da matéria.

Nunca, em parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem movimento. Movimento no espaço absoluto, movimento mecânico de pequenas massas em qualquer dos mundos existentes, vibrações moleculares sob a forma de calor, de corrente elétrica ou magnética, de análise e síntese químicas, vida orgânica: em qualquer uma dessas formas de movimento, ou em várias ao mesmo tempo, é que se encontra, no mundo, cada um átomo de matéria, em cada instante determinado.

O repouso e o equilíbrio são sempre relativos, e só têm sentido e razão de ser em relação a tal ou qual forma concreta de movimento. Um corpo, por exemplo, pode achar-se à superfície da terra, em equilíbrio mecânico, estar, do ponto de vista mecânico, em estado de repouso; isso não o impede, absolutamente, de participar do movimento da terra bem como do movimento do sistema solar inteiro, assim como não impede que as suas melhores partículas físicas experimentem as vibrações provocadas por sua temperatura, ou que os seus átomos efetuem um processo químico. Matéria sem movimento é tão inconcebível como movimento sem matéria.

O movimento não pode, por conseqüência, ser criado ou destruído, como também não pode ser a própria matéria, e é a isso que a antiga filosofia (Descartes) se refere quando afirma que a quantidade de movimento existente no mundo é sempre a mesma. O movimento não pode, pois, ser criado; ele pode somente ser transmitido. Quando o movimento é transmitido de um corpo para outro podemos considerar que ele se desloca — ativamente — como causa do movimento, ou que é deslocado — passivamente — como efeito. Chamamos a esse movimento ativo de força e a esse movimento passivo de manifestação de força. É pois evidente que a força não pode ser maior nem menor que a sua manifestação, uma vez que o mesmo movimento se realiza em ambos os casos.

Imaginar um estado da matéria sem movimento é, por isso mesmo, umas das idéias mais vazias e absurdas que se pode encontrar; é, mais que uma idéia, uma “pura fantasia febricitante”. Para chegar até essa idéia da imobilidade é preciso representar-se como repouso absoluto o equilíbrio mecânico puramente relativo, no qual se pode achar um corpo à superfície da terra, para depois estender essa representação a todo o universo. É verdade que isso se torna mais fácil se se reduz o movimento universal à simples força mecânica. Além disso, essa limitação do movimento a uma simples força mecânica apresenta ainda a vantagem de que se pode representar uma força em repouso, dominada e, por conseguinte, momentaneamente sem ação. Com efeito, quando a transmissão de um movimento é, como sucede quase sempre, um fenômeno um tanto complexo, no qual não conhecemos diversos elos intermediários, pode-se retardar a transmissão propriamente dita, até o instante, julgado oportuno, não se conhecendo, entretanto, o último elo da cadeia; por exemplo, quando se carrega um fuzil aguarda-se o momento em que, pela detonação do gatilho, deve produzir-se a descarga, e, com ela, a transmissão do movimento desenvolvido pela combustão da pólvora.

Pode-se, pois, representar a matéria, durante o estado imóvel idêntico a si mesmo, como carregada de força; e é esse sentido que o Sr. Dühring parece dar, quando fala da unidade de matéria e força mecânica, se é que lhe dá algum sentido. Mas essa representação é absurda, porque transfere ao universo, como absoluto, um estado que é relativo por natureza e ao qual, consequentemente, não pode estar submetida, num mesmo tempo. senão uma parte da matéria. Mesmo que se deixasse de lado essa objeção, restaria ainda a dificuldade de se saber, em primeiro lugar, como o mundo foi carregado de forças. visto que nem hoje os fuzis se carregam por si próprios; em segundo lugar, era preciso saber qual foi o dedo que apertou o gatilho. Por mais que mudemos a direção, por voltas e voltas, pelos ensinamentos do Sr. Dühring, chegamos sempre ao dedo... da Providência.

Da astronomia, o nosso filósofo da realidade passa à mecânica e à física, e queixa-se de que a teoria mecânica do calor não tenha sido impulsionada, uma geração após a sua descoberta, para mais adiante do ponto em que Robert Mayer a situou. Além disso, diz-nos o Sr. Dühring, toda a questão permanece obscura, e devemos sempre “recordar novamente que os estados de movimento da matéria trazem consigo situações estáticas e que estas não são mensuráveis pelo trabalho mecânico... Se. acima, qualificamos a natureza de grande operária, expressão que tomamos no sentido restrito, falta-nos acrescentar ainda que os estados idênticos a si próprios e as situações de repouso não representam trabalho mecânico de espécie alguma. Voltamos, ainda uma vez, a sentir a falta da ponte que levaria do estático ao dinâmico; e, ainda que isso a que se chama calor latente continue sendo um impulso para a teoria, devemos reconhecer, ainda aqui, uma lacuna que não poderia ser negada em parte alguma e muito menos nas suas aplicações à cosmologia.”

Toda essa fraseologia oracular demonstra, uma vez mais, a sua consciência de culpa, convencido do mau passo que deu com a sua teoria do movimento saindo da imobilidade absoluta, mas não se atrever, no entanto. a apelar para a sua única salvação, para o Criador do céu e da terra. Se, mesmo na mecânica, inclusive na mecânica do calor a ponte do estático ao dinâmico, do equilibro ao movimento, não pode ser descoberta, por que o Sr. Dühring teria a obrigação de encontrar a ponte que leva de seu estado de imobilidade ao movimento? Com isso acredita por-se a salvo.

Na mecânica vulgar, a ponte do estático ao dinâmico é... o impulso exterior. Quando uma pedra do peso de cinqüenta quilos é elevada à altura de dez metros e mantida ao ar livre de maneira a ficar retida num estado idêntico a si próprio, no estado de repouso, é preciso recorrer a um público de crianças ingênuas para poder explicar que a situação atual desse corpo não representa trabalho mecânico, ou que a diferença entre essa situação e sua situação anterior não deriva do trabalho mecânico.

O primeiro transeunte fará facilmente compreender ao Sr. Dühring que a pedra não subiu por si para se pendurar na corda e o primeiro manual de mecânica com que depare poderá explicar-lhe que, se deixar a pedra cair de novo, ela realizará, em sua queda, tanto trabalho mecânico quanto foi necessário para elevá-la à altura de dez metros. O simples fato de a pedra estar suspensa no alto representa trabalho mecânico, pois, se ela ficar pendurada por muito tempo, a corda se romperá, uma vez que, como resultado de uma decomposição química, não será bastante forte para sustentar a pedra.

Ora, todos os fenômenos mecânicos podem, para falarmos com o Sr. Dühring, reduzir-se a “formas fundamentais” simples como essa; e ainda está para nascer o engenheiro que não seja capaz de achar a ponte do estático ao dinâmico, enquanto dispuser de um impulso suficiente.

É, seguramente, uma noz um pouco dura e uma pílula amarga para os nossos metafísicos o fato de que o movimento deva encontrar a sua própria medida no seu contrário, o repouso. É uma contradição flagrante e toda a contradição (Widerspruch) é para o Sr. Dühring um contra-senso (Widersinn). Contudo, é certo que a pedra suspensa representa uma quantidade de movimento mecânico determinada, mensurável com precisão pelo seu peso e pelo seu afastamento do solo, quantidade essa que pode ser consumida à vontade, de diversas maneiras, como, por exemplo, deixando-se cair a pedra, fazendo-a deslizar sobre um plano inclinado, fazendo-a impulsionar um moinho de vento, etc., e o mesmo se dá com o fuzil carregado a que nos referimos anteriormente. Para o pensamento dialético, o fato de o movimento ser expresso em seu contrário, o repouso, não apresenta dificuldade alguma.

Essa antítese é conforme tivemos oportunidade de ver, puramente relativa; não existe repouso absoluto nem equilíbrio, incondicional. Cada movimento concreto, tende ao equilíbrio, e o movimento total suprime esse equilíbrio. Assim, o repouso e o equilíbrio são, onde quer que se encontrem, o resultado de um movimento limitado e concreto, sendo natural que esse movimento seja mensurável por seu resultado ou seja nele expresso, podendo ser restabelecido a partir dele, sob uma forma ou outra. Mas uma exposição tão simples do caso não poderia contentar ao Sr. Dühring. Como bom metafísico, descobre ele entre o movimento e o equilíbrio um abismo, que na realidade não existe e, depois, admira-se de não poder encontrar uma ponte sobre o abismo que ele cavou. Poderia muito bem cavalgar a seu rocinante metafísico e ir à casa da “coisa em si” de Kant; porque é ela e não outra coisa que, em última análise, está à sua espera por detrás dessa ponte misteriosa.

Mas vejamos o que acontece com a teoria mecânica do calor e do calor inativo ou latente que “vinha sendo um impulso” para essa teoria.

Se tomarmos um quilo de gelo à temperatura do ponto da congelação e à pressão normal da atmosfera, e o transformarmos, por meio do calor, num quilo de água, tendo-se a mesma temperatura ambiente, desaparecerá, dessa forma, uma quantidade de calor suficiente para elevar o mesmo quilograma de água de 0 a 79 4/10 graus centígrados, ou, se preferirmos, para aquecer de um grau a quantidade 79 4/10 quilos de água. Se aquecermos esse quilograma de água até o ponto de ebulição, ou seja, até 100° e se o convertermos em vapor d’água, desaparecerá, até que a última gota de água se transforme em vapor, uma quantidade de calor aproximadamente sete vezes maior, suficiente para elevar de um grau a temperatura de 537 2/10 quilos de água. Essa temperatura que desaparece, diz-se que fica reprimida ou inativa. Se, pelo resfriamento, o vapor se tornar novamente água e a água se converter em gelo, essa mesma quantidade de calor, que estava até então retida, é posta em liberdade, o que quer dizer que ela pode ser medida ou percebida como calor. Essa libertação do calor, quando o vapor se condensa e a água se congela, é que faz com que o vapor, quando a temperatura alcança 100°, só se converta lentamente em água e que, a partir do ponto de congelação, se opere a congelação pouco a pouco. A questão, desde que os fatos foram colocados, é a seguinte: Em que se transforma o calor, enquanto está retido?

A teoria mecânica do calor — segundo a qual o calor consiste em vibrações mais ou menos consideráveis de acordo com a temperatura e o estado de agregação das pequenas partículas fisicamente ativas (moléculas) dos corpos, vibrações essas suscetíveis de adotarem, em certas circunstâncias, qualquer uma das formas do movimento — a teoria mecânica é que explica o fenômeno, dizendo que o calor desaparecido realiza um trabalho, se transmite a um trabalho. Quando o gelo se derrete, a coerência estreita e firme das moléculas entre si, cessa e Se transforma, de um aglomerado coeso, numa dispersão total; quando a água se evapora, no ponto de ebulição, produz-se um estado em que as moléculas soltas não exercem mais ação sensível umas sobre as outras, dispersando-se, sob a influência do calor, nas mais opostas direções. Ora, é evidente que cada uma das moléculas de um corpo em estado gasoso encerram muito mais energia que no estado líquido e, neste, muito mais que no estado sólido. O calor retido, portanto, não desapareceu, mas apenas se transformou, adquirindo a forma da força de tensão molecular.

Desde que desaparece a condição pela qual as moléculas podem conservar a sua liberdade absoluta ou relativa umas frente às outras, Isto é, desde que a temperatura alcance um mínimo, seja de 100°. seja de 0°, essa força de tensão desaparece e as moléculas se aglutinam com a mesma força com que antes se destacavam umas das outras; essa força desaparece, mas somente para reaparecer, sob forma de calor, e na quantidade mesma de calor que antes estava retida. Essa explicação é naturalmente uma hipótese, como, aliás, toda a teoria mecânica do calor, pois que ninguém, até agora, viu uma molécula e, muito menos, uma molécula vibrátil. Esta hipótese está cheia de defeitos como, aliás, toda a teoria térmica que é ainda bastante nova; mas pode, pelo menos, explicar os fenômenos sem entrar em contradição com a lei segundo a qual o movimento não se perde, nem se cria, ao mesmo tempo em que é capaz de explicar, com clareza, a existência do calor no curso de suas metamorfoses. O calor latente ou retidão não é, de maneira alguma, um impulso para a teoria mecânica do calor. Pelo contrário, essa teoria dá, pela primeira vez, uma explicação racional dos fenômenos e torna-se estranho que os físicos continuem a dar ao calor, transformado, numa outra forma de energia molecular, o qualificativo antiquado e impróprio de “calor retido”.

Os estados idênticos a si próprios e às situações de repouso da matéria em estado sólido líquido ou gasoso, representam, pois, trabalho mecânico e esse trabalho mecânico é a medida do calor. Igualmente, tanto a crosta sólida da terra como a água do oceano representam, em seu estado natural de agregação, uma quantidade concreta e determinada de calor posto em liberdade, à qual evidentemente corresponde uma quantidade também determinada e concreta de força mecânica. Quando a esfera gasosa. de que nasceu a terra, passou ao estado líquido e, mais tarde, em grande parte, ao estado sólido, uma quantidade determinada de energia molecular se irradiou no espaço sob a forma de calor. A dificuldade de que fala misteriosamente o Sr. Dühring não existe, como vemos, já que mesmo nas aplicações cósmicas, se. por um lado, podemos encontrar defeitos e lacunas. devido aos meios imperfeitos de conhecimento de que dispomos — por outro lado nunca deparamos obstáculos teóricos intransponíveis. A “ponte” do estático ao dinâmico é, aqui também, como sempre, um impulso de fora — resfriamento ou aquecimento ocasionado por outros corpus que agem sobre o objeto em equilíbrio. Quanto mais avançamos na filosofia da natureza do Sr. Dühring. mais nos parecem inconcebíveis e inconsistentes todas as tentativas de explicar o movimento pela imobilidade ou de encontrar a ponte pela qual o que está em repouso e é puramente estático poderia por si mesmo passar ao dinâmico, ao movimento.

Nesse ponto, nos desembaraçamos, felizmente, por algum tempo, do famoso estado primitivo idêntico a si próprio. O Sr. Dühring passa agora à química, e, neste campo, revela-nos três leis de invariabilidade da natureza, conquistadas por ele em sua “filosofia da realidade”: 1a. — A grandeza ou o volume da matéria universal é invariável; 2a. — o número dos elementos químicos simples é invariável; e 3a. — a grandeza ou volume da força mecânica é invariável.

Assim, o caráter não criado é indestrutível da matéria e de seus elementos simples, na medida em que ela os tem, bem como o caráter do movimento, — que são fatos antigos universalmente conhecidos, mas que são expressos de maneira deficiente. — são o único resultado realmente positivo que o Sr. Dühring nos pode dar de sua filosofia natural do mundo inorgânico. Coisas que conhecíamos há muito tempo e nada mais. O que sabíamos, porém, é que se tratava de “leis da invariabilidade” e, portanto, de “propriedades esquemáticas do sistema das coisas”. Volta a se dar aqui a mesma história que acima se deu com Kant: o Sr. Dühring arranja, não importa que velha banalidade arqui-conhecida, cola sobre ela uma etiqueta de Dühring e chama as coisas de “resultado e concepções essencialmente originais... idéias criadoras de sistema...ciência radical...”

Isso, porém, ainda não é razão para desespero. Quaisquer que sejam os defeitos da “ciência radical”, — e não há instituição social, por melhor que seja, que não os possua — uma coisa há que o Sr. Dühring pode afirmar com segurança: “O ouro existente no universo existiu necessariamente sempre na mesma quantidade e não pode, assim como a própria matéria universal, aumentar ou diminuir.” Mas o que podemos comprar com esse “ouro”, o Sr. Dühring infelizmente não nos diz.


Capítulo VII
A FILOSOFIA DA NATUREZA.
O MUNDO ORGÂNICO

 

“Da mecânica dos choques e pressões até a articulação das sensações e pensamentos, estende-se uma escala una e homogênea de graduações”. Por essa afirmação, o Sr. Dühring evita falar por mais tempo sobre a origem da vida, se bem que, de um pensador que acompanhou a evolução do mundo desde o estado idêntico a si próprio, e que tão família se mostra com os outros astros, tenhamos, talvez, o direito de esperar que, nesse problema, nos dê a solução exata. De resto, a afirmação acima não é justa senão pela metade, enquanto não é completada pela linha modal de desproporções de Hegel, da qual já falamos. Ainda que se faça, progressivamente, a passagem de uma forma de movimento a outra, é sempre um salto, uma viravolta decisiva. Assim acontece com a passagem da mecânica dos mundos para a das pequenas massas materiais num mundo concreto e também com a passagem da mecânica das massas para a das moléculas, que compreende os movimentos estudados na física propriamente dita (calor, luz, eletricidade, magnetismo); a passagem da física das moléculas para a física dos átomos — a química — que se processa igualmente por um salto muito nítido, salto esse mais pronunciado ainda na passagem da ação química ordinária ao quimismo da albumina, a que “chamamos vida”. No interior da órbita da vida, os saltos tornam-se cada vez mais raros e imperceptíveis. Desse modo é Hegel, mais uma vez, quem deve corrigir o Sr. Dühring.

A via conceitual pela qual se passa ao mundo orgânico é fornecida ao Sr. Dühring pela idéia de fim. E outra idéia tomada de Hegel que. na sua Lógica (teoria do conceito) passa, por meio da teleologia ou teoria dos fins, do mundo físico-químico ao mundo vivo. Para qualquer lado que volvamos os olhos, encontramos, nas afirmações do Sr. Dühring. “grosserias hegelianas” que ele põe sem nenhum constrangimento a serviço de sua “ciência radical”.

Iríamos longe se fôssemos procurar saber em que medida a aplicação das idéias de fim e de meio ao mundo orgânico é legitima e oportuna. Em todo caso, a própria aplicação da idéia hegeliana de “fim interno”. isto é, de um fim que não é introduzido na natureza por um ser exterior agindo intencionalmente pela sabedoria de nenhuma “providência”, mas que reside na necessidade dos próprios objetos, conduz, constantemente, as pessoas que não têm uma cultura filosófica completa, sem se dar conta disso, à suposição irrefletida de uma norma consciente e intencional nos atos da natureza. O próprio Sr. Dühring, que, à menor tendência “espiritista” em outrem, explode numa indignação moral sem limites, afirma-nos com certeza que “as sensações instintivas foram criadas, em primeiro lugar, graças à satisfação que está ligada a seu funcionamento.” Ele nos conta que a pobre natureza “deve sem cessar restabelecer e garantir a ordem no mundo dos objetos” e que, além disso, há uma série de outras funções a resolver “que da parte da natureza exigem mais sutilezas do que geralmente se pensa”.

Mas não só a natureza sabe por que ela cria isto ou aquilo, não só ela deve fazer serviços de criada, não só ela tem o dom da sutileza, o que já seria, portanto, um aperfeiçoamento considerável, no sentido de um pensamento consciente e subjetivo, como tem ainda uma vontade, que são as tarefas suplementares, graças às quais os instintos além de satisfazer às necessidades reais da natureza (nutrição, reprodução, etc.), “não devem ser considerados como diretamente mas só como indiretamente desejados”. Chegamos, assim, a uma natureza cujo pensamento e cuja ação são conscientes e eis-nos, portanto, sobre a “ponte” que liga, não certamente o estático ao dinâmico, mas o panteísmo ao deísmo. Ou será que o Sr. Dühring se permite, de quando em quando, entregar-se um pouco, ele mesmo, à “meia-poesia filosófica da natureza”?

Não, não é possível! Tudo o que o nosso filósofo da realidade nos diz sobre a natureza orgânica reduz-se precisamente à luta contra essa “meia-poesia filosófica da natureza”, contra esse “charlatanismo com suas frivolidades superficiais” e de “suas mistificações científicas, digamos assim”, contra os “rasgos poéticos” do darwinismo.

Antes de mais nada, o Sr. Dühring acusa Darwin por haver transplantado da economia para as ciências naturais a teoria de Malthus sobre a população, de não ter ultrapassado as idéias estreitas de um criador de gado, de ter feito com a luta pela existência uma poesia ou semi-poesia científica, concluindo que, todo o darwinismo, se excetuarmos os empréstimos tomados a Lamarck, não é senão uma violência cometida contra a humanidade.

Darwin trouxera de suas viagens científicas a idéia de que as espécies vegetais e animais, longe de serem permanentes, são variáveis. Para continuar, já na Inglaterra, a trabalhar essa idéia, o campo mais favorável que se lhe oferecia era o da experimentação em animais e plantas. Ora, a Inglaterra é justamente a terra clássica destas experiências. Os resultados obtidos nesse terreno em outros países, — a Alemanha, por exemplo — estão longe de atingir os que se têm conseguido na Inglaterra. De mais a mais, os grandes sucessos, neste ramo, nestes ú1timos cem anos, pertencem à Inglaterra, e a comprovação dos fatos oferece poucas dificuldades. Darwin descobriu, assim, que, a experimentação havia artificialmente provocado em animais e em plantas da mesma espécie diferenças maiores que as encontradas entre as espécies geralmente conhecidas como distintas. Provava-se, assim. de um lado, a variabilidade relativa das espécies e, de outro, a possibilidade da existência de antepassados comuns de seres com caracteres específicos e diferentes. Darwin procura saber, então, se não haverá na natureza causas que, de modo geral, sem a intenção consciente do criador, produziram, nos organismos vivos, mudanças semelhantes às que o tratamento artificial provoca. Essas causas, ele as encontrou na desproporção entre o número formidável dos germes criados pela natureza e o pequeno número de organismos que chegam a se desenvolver. Mas, como cada germe tende a se desenvolver, resulta dessa desproporção necessariamente uma luta pela existência, que se manifesta não só sob uma forma direta e física, mediante batalhas, em que uns organismos morrem devorados por outros, mas também, mesmo nas plantas, sob a forma de luta pelo espaço e pela luz. É evidente que nessa luta os indivíduos que têm maiores possibilidades de atingir à maturidade e se perpetuar são aqueles que possuem alguma particularidade individual, por mais insignificante que seja, vantajosa na luta pela existência. Dai resulta que essas particularidades individuais tendem a transmitir-se hereditariamente e, quando se encontram em vários indivíduos da mesma espécie, tendem a acentuar-se, pela hereditariedade acumulativa; quanto aos indivíduos que não possuem tais particularidades, sucumbem mais facilmente na luta pela existência e pouco a pouco desaparecem. Dessa maneira, as espécies se transformam, pela seleção natural, pela sobrevivência dos mais aptos.

Contrariando essa teoria de Darwin, diz o Sr. Dühring que a idéia da luta pela existência tem a sua origem, como o próprio Darwin havia reconhecido, numa generalização dos pontos de vista de Malthus, autor de uma teoria econômica da população e está, por conseqüência, eivada de todos os vícios, próprios às idéias clericais de Malthus, sobre o excesso de população. Ora, Darwin não sonhou sequer em dizer que a origem da idéia da luta pela existência era a teoria de Malthus. O que ele diz é que a sua teoria da luta pela existência é a teoria de Malthus aplicada a todo mundo vegetal e animal. Por maior que fosse o deslize cometido por Darwin de aceitar, na sua ingenuidade, a teoria malthusiana, vê-se logo, a um primeiro exame, que, para se perceber a luta pela existência na natureza — que aparece na contradição entre a multidão inumerável de germes engendrados pela natureza, em sua prodigalidade, e o pequeno número desses germes que podem chegar à maturidade, contradição que, de fato, se resolve em grande parte numa luta — às vezes extremamente cruel — pela existência, não há necessidade das lunetas de Malthus. E, assim como a lei que rege o salário conservou o seu valor muito tempo depois de estarem caducos os argumentos malthusianos sobre os quais Ricardo a baseava — a luta pela existência pode igualmente ter lugar na natureza sem nenhuma interpretação malthusiana. De resto, os organismos da natureza têm, também eles, as suas leis de população, que estão pouco estudadas, mas cuja descoberta será de importância capital para a teoria do desenvolvimento das espécies. E quem, senão Darwin, deu o impulso decisivo nessa direção?

O Sr. Dühring esquiva-se de abordar esse lado positivo do problema. Em vez disso, traz novamente à baila, em termos gerais, a luta pela existência. Não poderia, diz ele, tratar-se de uma luta pela existência entre vegetais privados de consciência e mansos animais herbívoros; “num sentido concreto e definido, a luta pela existência aparece, agora, representada pela brutalidade, à medida que a alimentação toma a forma de devoramento e rapina”

E, depois de haver reduzido o conceito da luta pela existência a esses limites estreitos, dá livre curso a toda sua indignação contra a brutalidade assim conceituada. Mas essa indicação moral atinge apenas o próprio ar Dühring, único autor responsável por essa limitação da luta pela existência. Não é portanto Darwin quem “procura, no mundo dos animais, as leis e a compreensão de tudo o que acontece na natureza” — pois Darwin torna extensiva a luta a todo o mundo orgânico — mas, sim, um fantasma imaginário inventado pelo próprio Sr. Dühring. Não há inconveniente em que a expressão “luta pela existência” seja abandonada às explosões de cólera moral do Sr. Dühring. Mas que seja apenas a expressão. Que a coisa se aplica também às plantas, qualquer prado, qualquer campo de trigo, qualquer bosque o demonstra, e não é precisamente de nomes que se trata (tanto se pode chamar a isso de “luta pela existência” ou “falta de condições de existência com seus efeitos mecânicos”) mas sim, trata-se do modo como esse fato atua sobre a conservação e a transformação das espécies. A esse respeito, o Sr. Dühring persiste num silêncio obstinado, “idêntico a si próprio”. Sua razão de ser sofrerá, pois, se outra coisa não for demonstrada, o processo de seleção natural.

O darwinismo, afirma-nos ele, “tira a sua metamorfose e as suas diferenças do nada”. Na verdade, Darwin, quando trata da seleção natural, faz abstração das causas que provocam mudanças em cada um dos indivíduos e se ocupa, primeiramente, da maneira pela qual tais variações individuais gradativamente se tornaram caracteres de uma raça, de uma variedade ou de uma espécie. Para Darwin, trata-se, em primeiro lugar, menos de encontrar essas causas — que até aqui são completamente desconhecidas, não podendo ser indicadas senão de um modo geral — do que achar uma forma racional sob a qual os efeitos se fixam e adquirem uma importância permanente. Que Darwin tenha com isso atribuído à sua descoberta um raio de ação exagerado, que dela tenha feito a mola exclusiva da transformação das espécies, esquecendo-se das causas determinantes das mudanças individuais repetidas, para fixar-se apenas na forma de generalização dessas mudanças, essa é uma falta comum a todos os autores que realizam um progresso real. Além disso, se fosse verdade que Darwin tirou as suas variações individuais do nada e que nisso aplicou somente a “ciência do criador”, é mister. necessariamente. que o criador tire igualmente do nada as suas variações, não só imaginárias, mas verdadeiras, das espécies animais e vegetais. Ora, quem deu o primeiro impulso para pesquisar de onde provêm essas metamorfoses e diferenciações? Ainda uma vez Darwin, e nenhum outro.

Recentemente, graças principalmente a Haeckel, a idéia da seleção natural foi ampliada e a transformação das espécies foi compreendida como resultado de um processo de ações recíprocas de adaptação e hereditariedade, sendo a adaptação descrita como aspecto modificativo e a hereditariedade como aspecto conservador do processo. Isso também não merece o apoio do Sr. Dühring, “Uma adaptação propriamente dita às condições de vida, tais como são afirmadas ou negadas pela natureza, supõe instintos e atividades que se determinam, por seu lado, por representações. De outro modo, a adaptação não será mais que uma aparência e a causalidade, que se desenvolver, não se elevará acima dos mais baixos graus do mundo da física, da química e da fisiologia vegetal.”

E a nomenclatura outra vez que aborrece e transtorna o Sr. Dühring. Mas. qualquer que seja o nome por ele dado ao fenômeno. o que importa é saber, sim ou não, se tais fenômenos provocam mudanças nas espécies vegetais e animais.

E, no entanto, o Sr. Dühring não nos dá resposta alguma nesse sentido.

“Quando uma planta toma, em seu crescimento, a direção em que recebe a luz, esse fato é o efeito da atração que representa uma combinação de forças físicas e de agentes químicos, e quando se quer falar de adaptação, não em sentido metafísico mas no sentido real, isso, fatalmente, é o mesmo que introduzir nos conceitos uma confusão espiritista” Como é severo para com os outros o mesmo homem que sabe científica e exatamente por que a natureza faz isto ou aquilo, que nos fala da sutileza da natureza e até da sua vontade!

Confusão espiritista, com efeito, mas de quem? De Haeckel ou do Sr. Dühring?

É confusão não apenas espiritista, mas também lógica. Vimos que o Sr. Dühring faz todos os esforços para aplicar, à natureza, a idéia do fim. “A relação de meio e fim não supõe, de modo algum, uma intenção consciente”. Mas o que é, então, a adaptação sem intenção consciente, sem transmissão de representações, contra a qual ele se ergue com tamanho ímpeto, senão uma tal atividade teológica inconsciente?

Assim, pois, as rãs e os insetos, que se nutrem de folhagens, e que são de cor verde, os animais do deserto que são amarelos da cor da areia, os animais das regiões polares quase sempre brancos, da cor dos gelos, não tomaram essas cores intencionalmente, nem por efeito de nenhuma espécie de representações com essas cores. Pelo contrário, essas cores só se explicam pelo jogo das forças físicas e dos agentes químicos. É inegável, portanto, que esses animais se adaptaram, por meio dessas cores, ao meio em que vivem, e passam dessa maneira muito mais desapercebidos aos olhos de seus inimigos naturais. Do mesmo modo, os órgãos, com a ajuda dos quais certas plantas capturam e devoram os insetos que nelas pousam, adaptaram-se a essa função e de modo conveniente. Se o Sr. Dühring pretende que a adaptação deve ser sempre e usada por uma série de representações, apenas diz, noutras palavras, que a atividade teleológica deve, ela também, fazer-se por força das representações, deve ser consciente, intencional. Isso nos conduz, como de hábito, à “filosofia da realidade”, ao criador consciente, à idéia de Deus. “Antigamente — diz o Sr. Dühring — chamava-se deísmo a essa doutrina; mas, também, sobre esse ponto, parece ter-se desenvolvido a coisa para trás.”

Da adaptação passemos à hereditariedade. Ainda aqui, o darwinismo, segundo o Sr. Dühring, engana-se redondamente. Darwin teria pretendido que todo o mundo orgânico descende de um ser primitivo, sendo, por assim dizer, a linhagem de um ser único. Não haveria, segundo Darwin, coexistência paralela de produtos da natureza, seres da mesma espécie, sem vínculo de descendência. Ele se vê obrigado, pois, a pôr um fim às suas concepções presas ao passado por ter-lhe faltado o fio da procriação ou de qualquer outra transplantação.

Mas essa afirmação de que Darwin faz derivar todos os organismos atuais de um ser primitivo e único não é mais que, para falarmos cortesmente, criação e “livre fantasia” do Sr. Dühring. Darwin diz expressamente, na penúltima página da Origem das Espécies (6a. edição) que ela considera “todos os seres, não como criações especiais. mas como descendentes em linha direta de um pequeno número de seres”. Haeckel vai ainda mais longe: admite “um tronco absolutamente independente para o reino vegetal, um outro para o reino animal”, e, entre esses dois reinos “toda uma série de troncos protistas isolados, cada um dos quais se desenvolvendo de maneira inteiramente independente, a partir de um tipo particular de monera arquigônica”(3). O Sr. Dühring não imaginou esse ser primitivo, senão para desacreditá-lo, anti-semiticamente, equiparando-o a Adão, o protojudeu. Mas, desgraçadamente (refiro-me ao Sr. Dühring) continua ignorando que as descobertas assíricas de Smith, mostraram que esse protojudeu era, na realidade, um proto-semita e que toda a história do Gênesis e do dilúvio universal, que nos conta a Bíblia, se revela um fragmento da velha mitologia religiosa dos pagãos, comum aos judeus, aos babilônios, caldeus e assírios.

Trata-se de uma grave censura a Darwin que não pode ser evitada, essa que se lhe faz quando se diz que suas investigações falham quando se rompe o fio da descendência dos seres! Infelizmente é uma censura que se estende a todo o conjunto da nossa ciência da natureza. Uma vez partido o fio da descendência, chega ao fim a missão de todas as demais ciências. Nenhum naturalista conseguiu ainda fazer nascer seres a não ser pela descendência, nem constituir com elementos químicos um simples protoplasma nem mesmo um pouco de albumina. Tudo o que ela pode dizer até agora, com certeza, sobre a origem da vida, é que deve ter sido por meios químicos. Mas talvez a “filosofia da realidade” venha em seu auxilio, ela que dispõe de produtos da natureza coexistentes de um modo independente e sem descender uns dos outros. Qual, portanto, poderia ter sido a sua origem? Geração espontânea? Mas até aqui os mais intrépidos partidários da geração espontânea não pretenderam criar por esse meio senão bactérias, germes de cogumelos e outros organismos muito primitivos — nunca insetos, peixes, pássaros ou mamíferos. Portanto, se essas produções equivalentes da natureza (orgânicas. já se vê, e apenas delas é que se trata) não estão ligadas pela descendência, é preciso que elas próprias, ou cada um dos seus antepassados, tenham sido, “onde se rompe o fio da descendência”, postos no mundo por um ato especial de criação. Eis-nos, portanto, às voltas, outra vez, com o Criador ou “com o que se chama deísmo”.

Além disso, o Sr. Dühring censura Darwin por se ter mostrado muito vulgar “fazendo do simples ato de composição sexual de certas propriedades orgânicas, o principio fundamental da gênese dessas propriedades.” É ainda um ato de “criação e livre imaginação” do nosso filósofo radical. Pois, pelo contrário, Darwin declara justamente (página 44) que a expressão seleção natural só abrange a conservação das modificações e não a sua origem. Mas essa nova suposição desarrazoada sobre coisas que Darwin nunca disse serve para nos preparar para a profundeza dühringuiana das seguintes conclusões: “Se se tivesse procurado, no esquematismo interno da procriação, qualquer principio de modificação substantiva, teria sido muito racional, porquanto é uma idéia bastante natural a de harmonizar o principio da gênese geral com o da reprodução sexual, e a de conceber, de um ponto de vista superior, o que se chama de geração espontânea, não como o contrário da reprodução, mas precisamente como um caso de produção.” E o homem que pôde redigir semelhante tolice, não hesita em censurar Hegel pela sua “gíria”.

Mas já é tempo de deixarmos de lado essas recriminações e lamentos aborrecidos e contraditórios com que o Sr. Dühring extravasa seu despeito ante o surto imenso que as ciências naturais devem ao impulso da teoria darwiniana. Nem Darwin nem os naturalistas seus partidários sonham em diminuir, no que quer que seja, os grandes méritos de Lamarck: foram eles, precisamente, os primeiros que lhe defenderam a reputação. Não temos, contudo, o direito de esquecer que, ao tempo de Lamarck, a ciência estava muito longe de dispor de materiais suficientes para poder resolver a questão da origem das espécies a não ser como uma antecipação a sua época, ou, por assim dizer, de uma maneira profética. Sem contar a massa enorme de materiais de zoologia e de botânica, anatômicos e descritivos, que foram reunidos a partir dessa época, surgiram depois de Lamarck duas ciências inteiramente novas e de importância decisiva neste terreno, que estudam — uma a evolução dos germes vegetais e animais (embriologia) e outra — os vestígios orgânicos conservados nas diversas camadas da crosta terrestre (paleontologia). Com efeito, descobriu-se que existe uma coincidência entre a evolução gradativa, segundo a qual os germes orgânicos se tornam organismos adultos, e a série cronológica das plantas e animais que aparecem sucessivamente na história da terra. E foi precisamente essa coincidência que deu à teoria da evolução a sua base mais sólida. Mas a teoria da evolução é ainda bastante nova e, por conseqüência, está fora de qualquer dúvida que as pesquisas ulteriores devem modificar notavelmente as idéias atuais, inclusive as que são estritamente darwinistas, sobre o processo da evolução das espécies.

E, agora, que nos diz de positivo a “filosofia da realidade”, sobre o desenvolvimento da vida orgânica?

“A... mutabilidade das espécies é uma suposição admissível”. Mas é preciso admitir paralelamente “a ordem coexistente e substantiva de produções da natureza, equivalentes, porém independentes, sem ligação de descendência.”

Ao ler esse trecho, seríamos levados a crer que as produções não equivalentes da natureza, isto é, as espécies que se modificam. descendem umas das outras, e os seres da mesma espécie, não. Mas não é propriamente isso, porque, mesmo nas espécies que se modificam, “o vínculo da descendência pode ser um ato inteiramente secundário da natureza”. Assim, pois, há descendência, mas de segunda classe. Rejubilemo-nos, entretanto, por ter entrado pelas portas do fundo, essa descendência, contra a qual o Sr. Dühring tanto blasfemou e contra a qual se lançou violentamente. O mesmo se dá com a seleção natural; depois de toda a indignação moral contra a luta pela vida, por meio da qual, todavia, se executa a seleção natural, o Sr. Dühring nos oferece, graciosamente: “a causa profunda da contextura dos seres deve ser procurada, portanto, nas condições vitais e nas circunstâncias cósmicas; a seleção natural sobre a qual Darwin insiste, pode apenas atuar em segundo plano”. Mas, de qualquer maneira, é seleção natural, embora de segunda classe; e assim temos, pois, seleção natural, luta pela existência e excesso de população, segundo a fórmula “clerical” de Malthus... É tudo: quanto ao resto, o Sr. Dühring nos envia para a teoria de Lamarck.

Finalmente, ele nos adverte contra o abuso das palavras metamorfose e evolução. Segundo ele, a idéia de metamorfose é um conceito vago e a idéia da evolução só pôde ser admitida na medida em que se pôde verdadeiramente provar a existência das leis que a regem. E aconselha-nos a substituir ambas as palavras pelo termo “composição” e então tudo irá bem, É sempre a mesma história: as coisas continuam como são e o Sr. Dühring mostra-se todo satisfeito se lhes mudamos o nome.

Faremos uma grande confusão se falarmos na evolução do pinto dentro do ovo, porque não conhecemos a ciência das leis que regem esse processo. Para esclarecer, devemos substituir, apenas a palavra “evolução” pela palavra “composição”. Não diremos mais: “essa criança desenvolve-se magnificamente”, mas sim, “essa criança compõe-se esplendidamente”. E podemos felicitar o Sr. Dühring pelo fato de, não contente com enfileirar-se dignamente ao lado do autor do Anel dos Niebelung, no que se refere ao alto conceito que tem de si mesmo, ainda não lhe fica atrás como “compositor” do futuro.


Capítulo VIII
A FILOSOFIA DA NATUREZA.
O MUNDO ORGÂNICO.

(Conclusão)

 

“Reflitamos... quais são os conhecimentos positivos que precisamos possuir em nosso capítulo filosófico sobre a natureza para compará-los com todos os seus supostos científicos. Em primeiro lugar, este capítulo tem por fundamento todas as conquistas essenciais das matemáticas, os dados mais importantes das ciências exatas no campo da mecânica, da física e da química, bem como, em geral, os resultados obtidos nas ciências naturais como a zoologia e outros ramos afins de investigação.”

Como se vê, o Sr. Dühring se exprime em termos de absoluta confiança e decisão sobre a sua erudição nas matemáticas e nas ciências naturais. Ao se ler esse fraco capítulo, e ao se deparar com os seus resultados ainda mais exíguos, não se pode suspeitar da “radicalidade” de conhecimentos positivos que aí se oculta. Em todo o caso, não se tem necessidade, para se poder pronunciar oráculos como os do Sr. Dühring sobre a física e a química, de conhecer muita coisa sobre física; salvo a equação que exprime o equivalente mecânico do calor; nem tampouco de saber química, exceto que todos os corpos se decompõem em elementos e se formam pela síntese de elementos. Claro está que o Sr. Dühring também nos fala (pág. 84) da “gravitação dos átomos” mas com isso prova unicamente que vive “nas trevas”, quanto à diferença entre átomo e molécula. Não existe átomo, como se sabe, para a gravitação ou qualquer outra forma dinâmica, mecânica, ou física, mas somente para a ação química. Quando se acaba de ler o capítulo relativo à natureza orgânica, não se pode, lendo-se esse vaivém de frases vazias e contraditórias, que ao chegar ao momento decisivo tomam, sempre um ar misterioso e absurdo de oráculo, ou de uma absoluta esterilidade em seus resultados finais, não se pode deixar de concluir que o Sr. Dühring fala de coisas que conhece muito pouco. Essa suspeita torna-se certeza quando ele propõe utilizar, na teoria do ser orgânico (Biologia), a palavra composição em lugar de evolução. Quem faz uma proposta desse gênero prova que não tem a menor noção do que é processo de formação dos corpos orgânicos.

Todos os corpos orgânicos, com exceção dos mais insignificantes, se compõem de células, isto é, de pequenas massas albuminóides, que contêm em seu interior um núcleo celular, visíveis apenas quando grandemente aumentados.

Em geral, a célula desenvolve também uma membrana exterior e, nesse caso, o seu conteúdo é mais ou menos líquido. Os organismos celulares mais inferiores compõem-se de uma célula única; mas, a maioria dos seres orgânicos são pluricelulares e formam um complexo harmônico de numerosas células que, homogêneas ainda nos mais primitivos organismos, assumem nos seres superiores formas, funções e disposições cada vez mais díspares. Por exemplo, no corpo humano, os ossos, os músculos, os nervos, os tendões, os ligamentos, as cartilagens, a pele, numa palavra, todos os tecidos ou são formados de células ou são uma síntese de células. Mas em todos os seres orgânicos celulares, desde a ameba — que é uma simples célula, um pequeno protoplasma, quase sempre sem membrana, com um nucléolo no interior — até o homem e desde a menor demidiácea unicelular até a planta superior, as células só se multiplicam de uma única maneira: pelo desdobramento. O núcleo celular estrangula-se primeiramente em seu centro; o estrangulamento que separa os dois lóbulos do núcleo torna-se cada vez mais acentuado; por fim, separam-se e formam dois núcleos celulares independentes. O mesmo processo que se dá com os núcleos estende-se à célula: cada um dos dois núcleos torna-se o centro de um agregado de matéria celular: os agregados são ligados por um fio cada vez mais delgado até que se separam, passando a viver como duas células independentes. É pela repetição de tais desdobramentos que a bolha germinal do ovo animal, depois que se processa a fecundação, engendra, pouco a pouco, todo o novo organismo e, pela mesma forma, no animal adulto, se realiza a substituição dos tecidos gastos. Chamar uma tal série de operações de “composição” e tratar a denominação “evolução” como “pura imaginação” é obra certamente de um homem que (por mais que nos custe admiti-lo nos tempos que correm) nada sabe sobre esses fenômenos. O que há ali, exclusivamente, e no sentido literal do termo, é evolução, desenvolvimento, mas, nunca, composição.

Teremos ainda o que dizer sobre o que o Sr. Dühring entende, em geral, sobre vida. Em particular, o que ele chama vida é o seguinte: “O mundo inorgânico é também um sistema de movimentos automáticos; mas só a partir do momento em que a circulação das matérias começa a ramificar-se, em sentido estrito, e a desenvolver-se por meio de canais especiais, partindo de um ponto interior para um esquema germinal, transmissível a um ser menor, é que se pode falar de vida propriamente dita no sentido estrito e rigoroso do termo.”

Essa frase é, no sentido estrito e rigoroso do termo, um sistema de movimentos automáticos. (supondo que isso significa alguma coisa), um sistema de absurdos, sem falar da lamentável gramática do Sr. Dühring. se a vida só começa com a ramificação propriamente dita, é mister lavrar sentença de morte para todo o reino dos protistas de Haeckel e talvez de muitos outros seres, conforme o modo de conceber o conceito de ramificação. Se a vida somente se inicia quando essa diferenciação é transmissível por meio de um pequeno esquema germinal, teremos de concluir que, pelo menos toda a escala de organismos, — desde os inferiores aos unicelulares, inclusive estes — não é vida, mas, pelo contrário, é morte, Se o característico da vida é a circulação das substâncias por meio de canais especiais, temos que excluir da lista de seres vivos, além dos seres que acabamos de falar, toda a classe superior dos celenterados, com exceção das medusas, e, portanto, todos os pólipos e demais seres vegetativos. E se, finalmente, a circulação das substâncias, por canais especiais que partem de um ponto interior, é o critério essencial da vida, devemos considerar como mortos todos os animais que não têm coração ou todos os que têm vários corações. Entre esses se encontram, além dos seres acima citados, todos os vermes, estrelas do mar e rotíferos (anublóida e anulosa, segundo a classificação de Huxley), uma parte dos crustáceos (lagostas etc., e, por fim, até mesmo um vertebrado, o anfioxus, sem contarmos a totalidade das plantas).

Como vemos, o Sr. Dühring, no seu exemplo de caracterizar a vida, no sentido estrito e rigoroso do termo, apresenta quatro critérios inteiramente contraditórios de vida, que se excluem uns aos outros, sendo que condena à morte não só todo o reino vegetal, mas ainda cerca de metade do reino animal. Realmente, ninguém poderá dizer que ele nos engana, quando nos promete “resultados inteiramente novos e concepções essencialmente originais”.

Lê-se, em outro trecho: “Na natureza, igualmente, existe um tipo simples que serve de base a todos os organismos, desde o inferior até o superior” e esse tipo “se apresenta inteiramente visível, nos seus traços essenciais, na mais simples reação da planta mais imperfeita.”

Essa asserção é também um absurdo “inteiramente visível”. O tipo mais simples que se pode observar, em toda a natureza orgânica, é a célula; e, certamente, ela está na base dos mais complexos organismos. Em compensação, entre os organismos mais simples e inferiores, encontram-se muitos que são ainda inferiores à célula, como sejam, a protoameba, simples partícula de albumina, sem nenhuma diferenciação, uma série inteira de outras moneras e todas as sinfonias. Todos esses seres têm apenas um ponto em comum com os organismos superiores: o seu elemento essencial é a albumina e eles exercem, em conseqüência, funções albumínicas, isto é, as funções de viver e morrer.

O Sr. Dühring ainda nos conta o seguinte: “Fisiologicamente, a sensação está ligada à existência de um aparelho nervoso qualquer, por mais simples que seja. Portanto, o característico de todos os seres animais é o de serem capazes de ter sensações, isto é, terem percepções subjetivamente conscientes dos estados pelos quais atravessam. A verdadeira linha divisória entre a planta e o animal está ali onde se realiza o salto para a sensação. E esse limite é tão claro e resiste tanto a deixar-se apagar pelas conhecidas formas intermediárias que, justamente essas formações exteriormente indistintas ou indetermináveis são as que se convertem numa necessidade lógica”. E acrescenta: “As plantas, pelo contrário, são absoluta e definitivamente desprovidas de todo traço de sensação e até mesmo da possibilidade de experimentá-la”.

Primeira, advertiremos que já Hegel dizia (Filosofia da Natureza, pág. 351, nota diferencial) que “a sensação é a differentia specifica, a característica absoluta do animal”. Eis, portanto, mais um “deslize” de Hegel, que, por meio da simples anexação por parte do Sr. Dühring, foi elevada à nobre categoria de uma verdade definitiva e sem apelação.

Em segundo lugar, ouvimos falar, pela primeira vez, de formações intermediárias exteriormente indistintas ou indeterminadas (delicioso patuá) entre o reino animal e o vegetal. Esses seres intermediários existem; há organismos que não se pode categoricamente dizer se são plantas ou animais e, portanto, não podemos estabelecer rigorosamente o limite entre a planta e o animal. E tudo isso sugere ao Sr. Dühring a necessidade lógica de fixar uma característica diferencial que, ao mesmo tempo, afirma ser insustentável. Mas não temos sequer necessidade de percorrer essa duvidosa zona intermediária entre os reinos vegetal e animal. Poderemos dizer que as plantas sensitivas — que ao menor. contato distendem ou contraem as suas folhas ou flores —, ou as plantas insetívoras não possuem o menor traço de sensação e não têm também qualquer possibilidade orgânica de experimentá-la? Nem o próprio Sr. Dühring ousaria afirmar tal coisa, sem cair na “semipoesia anti-científica”.

Em terceiro lugar, temos mais uma “criação e livre imaginação” do Sr. Dühring ao afirmar que a sensação está sempre, psicologicamente, ligada à existência de um sistema nervoso qualquer, “por mais simples que seja”. Não só nos animais primitivos, mas principalmente nos animais vegetativos — em sua grande maioria — não se descobre o menor esboço de sistema nervoso. Não é senão a partir dos vermes que o encontramos regularmente e o Sr. Dühring é o primeiro a afirmar que, nesses animais, a ausência de sensação provém do fato de não terem nervos. A sensação não está ligada necessariamente aos nervos, mas, antes, a certos corpos albuminóides que, até hoje, não foram ainda determinados com precisão.

De resto, os conhecimentos biológicos do Sr. Dühring são suficientemente caracterizados por uma pergunta que ele não teme dirigir a Darwin: “Deve-se admitir que o animal provém, por evolução, da planta?” Semelhante pergunta só poderia ser feita por um homem que nada entende nem do que é um animal, nem do que é uma planta.

Da vida em geral, o Sr. Dühring diz-nos apenas o seguinte: “A mudança de substâncias que se realiza por meio de uma esquematização, plasticamente modeladora (pode-se saber o que é isso?) continua sendo um caráter distintivo do processo vital propriamente dito.” É tudo o que nos ensina sobre a vida. E para. isso temos que nos enterrar até os joelhos na “esquematização plasticamente modeladora”. Assim, pois, se queremos saber o que é vida, não teremos outro remédio senão averiguá-lo por nossa própria conta.

A troca orgânica de matérias é o fenômeno mais geral e mais característico da vida: isso foi dito, desde há trinta anos, um número incalculável de vezes, pelos que se ocupam de química fisiológica ou de filosofia química. O Sr. Dühring simplesmente o traduz na linguagem elegante e clara que lhe é peculiar. Mas, definir a vida como troca de substâncias orgânicas é defini-la como... vida, pois a troca orgânica de matérias ou o que o Sr. Dühring chama de troca de matérias com “esquematização plasticamente modeladora”, é sempre uma expressão que tem, ela própria, necessidade de ser explicada pelo conceito de vida, explicada pela diferença entre o orgânico e o inorgânico, Isto é, entre o que vive e o que não vive. Essa explicação não nos faz, portanto avançar nem um só milímetro.

A troca de substâncias tem lugar também fora da vida. Há toda uma série de processos químicos que, por meio de um fornecimento suficiente de matérias-primas, engendram sempre, de novo, as suas próprias condições e isso de modo que a operação é sempre sustentada per um corpo determinado. É o caso da fabricação do ácido sulfúrico pela combustão de enxofre: produz-se um anidrido sulfuroso (SO2) e, introduzindo-se vapor d’água e ácido nítrico, faz-se com que o anidrido sulfuroso. absorvendo o hidrogênio e o oxigênio, se transforme em ácido sulfúrico (H2SO4). O ácido nítrico elimina o oxigênio e reduz-se ao estado de ácido nitroso. Esse ácido nitroso toma logo, do ar, novo oxigênio e passa a um grau superior de oxidação, mas o fez para fornecer imediatamente esse oxigênio ao anidrido sulfuroso e refazer novamente o mesmo processo, de maneira que, teoricamente, uma quantidade infinitamente pequena de ácido nítrico bastaria para transformar em ácido sulfúrico uma quantidade ilimitada de anidrido sulfuroso, oxigênio e água. Uma troca ou assimilação de substâncias tem lugar, além disso, na passagem de líquidos através de membranas orgânicas mortas ou mesmo inorgânicas, como se verifica nas células artificiais de Traube. Vê-se que, ainda aqui, a idéia da troca de substâncias não nos faz avançar um passo, porquanto a troca particular de substâncias, destinada a explicar a vida, tem, ela própria, necessidade de ser explicada pela vida. É preciso, portanto, procurar outro caminho para a solução desse problema.

A vida é o modo de existência dos corpos albuminóides e esse meio de existência consiste, essencialmente, no processo de auto-renovação constante dos elementos químicos integrantes desses corpos.

Entende-se pela expressão corpos albuminóides, aqueles de que trata a química moderna, que compreende, sob esse nome, todos os corpos complexos, cuja composição é análoga à da albumina normal e que também têm, às vezes, o nome de substâncias protéicas ou proteínas. Essa definição de vida não agrada aos homens, pois a albumina normal é, de todas as substâncias afins, a mais inanimada, a mais passiva, sendo, como a gema do ovo, uma simples substância nutritiva para o germe em gestação. Mas enquanto não nos adiantarmos mais na composição química dos corpos albuminóides, essa denominação será ainda a melhor por ser a mais geral de todas.

Por toda a parte onde encontramos uma manifestação de vida, vêmo-la a um corpo albuminóide, e vice-versa, desde que não esteja ainda em curso de decomposição, o corpo albuminóide estará sempre acompanhado de manifestações de vida. Sem dúvida, a presença de outras combinações químicas é necessária, num corpo vivo, para provocar uma diferenciação particular nessas manifestações vitais. Essas combinações, contudo, não são indispensáveis à vida pura e simples, senão por intervirem como alimentos e por se converterem em albumina. Os seres vivos mais simples que conhecemos são precisamente massas de albumina que manifestam já todas as funções vitais essenciais.

Mas em que consistem essas funções vitais que se encontram igualmente por toda parte, em todos os seres vivos? Consistem precisamente em que o corpo albuminóide absorve, do seu meio, substâncias apropriadas, incorpora-se, assimila-as, enquanto outras partes do corpo, que se gastam, são eliminadas. Outros corpos, os corpos não vivos, transformam-se, decompõem-se e combinam-se também no decorrer dos processos naturais, mas, ao fazê-lo, cessam de ser o que eram. O rochedo que se desfaz em poeira não é mais rochedo. O metal que se oxida transforma-se em ferrugem. Mas o que, nas matérias mortas, é causa de desaparecimento, é, na albumina, condição essencial de existência. A partir do momento em que cessa essa metamorfose ininterrupta dos elementos integrantes do corpo albuminóide, essa troca permanente de assimilação e desassimilação, o próprio corpo albuminóide se extingue, se decompõe ou, por outra — morre. A vida, modo de existência do corpo albuminóide, consiste, pois, antes de mais nada, em que ele é a todo momento ele próprio e simultaneamente um outro e isso, não como conseqüência de uma ação de fora à qual estivesse submetido, como pode ser o caso para as matérias não vivas. A vida, que é uma troca de substâncias por assimilação e desassimilação, é, pelo contrário, um processo que se realiza sem intervenção de nenhum agente exterior, um processo inerente, inato, no corpo sobre que atua a albumina, sem o qual este não pode existir. Segue-se que, só os químicos conseguissem produzir artificialmente a albumina, essa albumina manifestaria necessariamente funções vitais, por mais rudimentares que fossem. Pode-se, é verdade, indagar, supondo-se que se criasse albumina, se a química descobriria ao mesmo tempo as substâncias convenientes para alimentar essa albumina.

Da troca de substâncias, realizada por assimilação e desassimilação. considerada como função essencial da albumina, e da plasticidade que lhe é própria, derivam em seguida todos os outros fatores da vida, desde os mais simples: a excitabilidade, que traz consigo o processo de ações e reações recíprocas entre a albumina e a sua alimentação; a contratibilidade, que já se manifesta, em grau muito baixo, na absorção dos alimentos; a faculdade do desenvolvimento que, nas fases mais rudimentares. compreende a geração por cissiparidade: e o movimento interno dos corpos, pelo qual, nem a absorção, nem a assimilação dos alimentos seriam possíveis.

Nessa definição de vida é, naturalmente, muito insuficiente, porquanto, longe de abranger todas as funções vitais, é obrigada a limitar-se às mais gerais e mais simples. As definições têm sempre um valor científico muito precário. Para se ter um conhecimento verdadeiramente completo do que é a vida, seria preciso relacionar todas as formas em que ela se manifesta, desde a inferior até a superior. Mas, para uso corrente, tais definições são bastante cômodas, havendo casos em que não se pode dispensá-las. Em geral, não tem inconvenientes, desde que não nos esqueçamos de suas inevitáveis lacunas.

Mas voltemos ao Sr. Dühring. Quando se sente mal, no terreno da biologia terrestre, ele se consola refugiando-se em seu firmamento:

“Não é somente a constituição particular de um órgão sensível, mas todo o mundo objetivo, que está organizado para fazer surgir o prazer e a dor. Eis porque somos levados a admitir que a antítese do prazer e da dor — e isso se dá precisamente sob a forma que conhecemos — tem alcance universal e deve necessariamente ser representada por meio de sentimentos essencialmente análogos nos diversos mundos que compõem o Universo. Ora, essa coincidência tem um alcance que não é pouco importante, pois é a chave do universo das sensações... E, assim, o universo cósmico subjetivo não é mais estranho para nós que o universo objetivo. A constituição desses dois reinos deve ser concebida segundo um tipo harmônico; temos assim os elementos iniciais de uma teoria da consciência cujo alcance é mais do que terrestre.”

Como é possível que se possa rebaixar, devido a uns reveses no campo terrestre das ciências naturais, aquele que tem na algibeira a chave do universo das sensações?

Passemos adiante!


Capítulo IX
MORAL E DIREITO.
VERDADES ETERNAS.

 

Abstemo-nos de dar algumas amostras do guizado de tolices e sentenças oraculares, ou seja, do simples charlatanismo que o Sr. Dühring. serve a seus leitores em cinqüenta páginas como sendo a ciência radical dos elementos da consciência. Não citaremos senão esta: “Quem não é capaz de pensar, senão com a ajuda da linguagem, não tem a menor idéia do que significa pensamento original e verdadeiro”. Segundo essa afirmativa, os animais são os pensadores mais originais e mais verdadeiros, pois o seu pensamento jamais é perturbado pela intromissão da linguagem. A dizer verdade, vê-se bem nos pensamentos dühringuianos e na linguagem que os exprime, quanto eles se adaptam mal a uma linguagem qualquer, e, por outro lado, como a linguagem, pelo menos a alemã, se ajusta com dificuldade a esses pensamentos.

Enfim, eis-nos chegados ao quarto capítulo que, no meio desse fluxo de frases ambíguas, apresenta, ao menos aqui e ali, alguma coisa de aproveitável sobre a Moral e o Direito. Desde o inicio, somos convidados a fazer uma viagem aos outros mundos: os elementos da moral “devem ser encontrados de igual maneira entre todos os seres não humanos, nos quais uma inteligência ativa se ocupa de pôr em ordem consciente as reações vitais instintivas... Entretanto, o interesse que tomamos por essas idéias será sempre ínfimo... Mas, por outro lado. será sempre uma concepção própria à ampliação benfazeja dos nossos horizontes, o representarmos a vida individual e social, em outros astros, como baseada, necessariamente, na contextura fundamental e geral de um esquema que... não pode ser suprimido nem cancelado por nenhum ser que atue de modo inteligente.”

Por que, excepcionalmente, é no começo e não no fim do capítulo que se afirma o valor das verdades de Dühring para todos os outros mundos possíveis?

Há, para isso, uma razão suficiente. Uma vez estabelecido que as idéias de Dühring sobre moral e justiça valem para todos os mundos, será mais fácil “estendê-las logo beneficamente, como diria ele, a todos os tempos. Mas, ainda uma vez, não se trata aqui, nem mais nem menos, que de “verdades definitivas e sem apelação”. O mundo moral “tanto quanto o da ciência geral, tem seus princípios permanentes e seus elementos simples”; os princípios morais estão colocados “por cima da história e das diferenças que hoje separam a estrutura dos povos...” As verdades concretas de que se compõe, no curso da evolução, por síntese, a mais ampla consciência moral, e o que se pode chamar a “consciência do homem”, podem, uma vez investigadas até as suas últimas raízes, pretender para si a mesma validez e o mesmo alcance que as concepções e aplicações das matemáticas. As autênticas verdades são sempre imutáveis, de maneira que é tolice representar a exatidão do conhecimento humano algo destrutível pelo tempo e pelas transformações reais.

A segurança de um saber rigoroso e a validez dos conhecimentos mais comuns não nos permitem pois, duvidar, em momentos de reflexão, do valor absoluto dos princípios da ciência. “Já, por si mesma, a dúvida permanente é um estado doentio de fraqueza e não faz senão manifestar um desolado confusionismo que às vezes procura dar-se a aparência de alguma solidez, na consciência sistemática de sua nulidade. Em matéria de moral, a negação dos princípios universais apega-se às diversidades geográficas e históricas dos costumes e dos princípios morais; e, confessando-se a necessidade inevitável do mau e do perverso em moral, acredita-se livre da obrigação de reconhecer a comprovada vigência e a ação eficaz de padrões morais coincidentes. Esse ceticismo dissolvente, que se exerce não contra tal ou qual falso ensinamento objetivo, mas contra a própria capacidade que tem o homem de obedecer a uma moralidade consciente, atinge mesmo alguma coisa pior que o puro niilismo... Ele tem a ilusão de, facilmente, poder governar o seu tumultuoso caos de noções morais desagregadas e de poder abrir as portas ao Capricho destituído de princípios. Mas seu erro é imenso, pois é suficiente que se recordem as aventuras inevitáveis da razão na verdade e no erro. para que se reconheça, revelada por essa analogia, que a falibilidade das leis naturais não exclui necessariamente a possibilidade de saber encontrar o caminho exato.”

Até aqui, alinhamos tranqüilamente todas essas pomposas declarações do Sr. Dühring sobre as verdades definitivas e sem apelação, a soberania do pensamento, a segurança absoluta do conhecimento, etc... porque, em suma, a questão só podia ser decidida no ponto a que agora chegamos. Até aqui, nos contentávamos em verificar em que medida as proposições concretas da filosofia da realidade tinham “validez soberana”, e “títulos incondicionais de verdade”. Ao chegarmos aqui, encontramo-nos ante a questão de saber até que ponto os produtos do conhecimento humano podem aspirar a uma validez absoluta e aos títulos incondicionais de verdade. E quando digo conhecimento humano, não é que tenha qualquer intenção de ofender aos habitantes dos outros astros, que não tenho a honra de conhecer; mas é que os animais também têm um conhecimento, embora não seja nunca soberano, o cão, por exemplo, terá o seu dono por um Deus, o que não impede que esse Senhor seja o maior canalha do mundo.

O pensamento humano é soberano? Antes de responder sim ou não, é preciso primeiramente saber o que é, na realidade, o pensamento humano. É o pensamento de um só homem? Não. Ele não existe senão como pensamento concreto de muitos milhares de milhões de homens passados, presentes e futuros. Assim, pois, quando eu digo que esse pensamento de todos os homens, inclusive os vindouros, sintetizado no meu espírito, é soberano, capaz de conhecer, de modo absoluto, o mundo real, desde que a humanidade subsista o tempo necessário para isso e que não se produza, nem nos órgãos nem nos objetos do conhecimento, modificação capaz de limitar esse conhecimento, estarei dizendo uma coisa banal e, além disso, estéril. Porque o resultado mais precioso dessa idéia seria tornarmo-nos extremamente desconfiados quanto aos nossos conhecimentos atuais, posto que estamos, segundo toda a probabilidade, ainda quase no início da história da humanidade, tendo as gerações que nos corrigirão de ser seguramente muito mais numerosas que aquelas cujos conhecimentos — não poucas vezes um olímpico desprezo — somos capazes de corrigir.

O próprio Sr. Dühring considera necessário que a consciência e, por conseguinte. o pensamento e o conhecimento, só se manifestam numa série de seres isolados. Só num sentido o pensamento de cada um desses seres isolados não pode ser considerado como soberano no sentido de que não conhecemos um poder capaz de impor-lhes, pela força, quando se acham em estado de saúde e de serenidade, um qualquer pensamento... Mas, no que se refere ao valor soberano dos conhecimentos de cada mente individual isolada, sabemos que não pode haver tal valor soberano e todas as nossas experiências passadas nos demonstram que. nesses conhecimentos, sem exceção, está contida uma parte maior de dados retificáveis do que de dados não retificáveis.

Em outros termos: a soberania do pensamento realiza-se através de uma série de seres humanos pensantes muito pouco soberanos; os conhecimentos que podem alegar títulos incondicionais de verdade se impõem depois de uma série de erros relativos; nenhuma soberania pode converter-se em plena realidade a não ser através da duração infinita da própria realidade.

Encontramos, aqui, a mesma contradição, que já indicamos no trecho acima, entre o caráter, que necessariamente temos que nos apresentar como absoluto do pensamento humano e a realidade desse pensamento numa multidão de seres humanos, isolados, de pensamento limitado. Essa contradição não se pode resolver senão no decorrer de um processo infinito, na sucessão, — para nós, pelo menos, praticamente inacabável — das gerações humanas.

Nesse sentido, podemos dizer que o pensamento humano é ao mesmo tempo soberano e não soberano e a sua capacidade cognoscitiva é ao mesmo tempo limitada e absoluta. Soberano e absoluto quanto à sua capacidade, sua vocação, suas possibilidades, sua meta histórica final: não soberano e limitado, quanto à sua aplicação concreta e a realidade de cada caso particular.

O mesmo acontece com as verdades eternas. Se a humanidade chegasse. em algum tempo, a um tal grau de progresso que só atuasse com verdades eternas, com produtos do exercício do pensamento que pudessem reivindicar uma validez soberana e títulos incondicionais de verdade, teria alcançado o ponto em que se teria esgotado a infinidade do mundo intelectual, tanto em relação à realidade como em relação à possibilidade, efetuando-se assim o famoso milagre da contagem do inumerável.

Mas será possível que existam verdades tão incontestáveis que toda a dúvida a seu respeito nos faça supor, necessariamente, um indício de imbecilidade? Quando dizemos que dois e dois são quatro, que os três ângulos de um triângulo eqüivalem a dois retos, que Paris está em França, que o homem. que não se alimenta, morre de fome, etc... não estamos afirmando verdades incontestáveis? Existem, porventura, verdades eternas, verdades definitivas e inapeláveis?

É fora de dúvida que não. E, seguindo a conhecida tradição, poderemos dividir todo o campo do conhecimento em três grandes zonas. A primeira compreende todas as ciências que estudam a natureza inanimada e que, em menor ou maior grau, podem ser tratadas pelos métodos matemáticos: as matemáticas, a astronomia, a mecânica, a física, a química. Se há quem prefira aplicar palavras retumbantes a coisas tão simples, pode afirmar que alguns dos resultados destas ciências são verdades eternas, verdades definitivas e inapeláveis e esse é justamente o motivo pelo qual essas ciências são chamadas de exatas. Mas isso não significa que todos os seus resultados sejam exatos. Ao introduzir as grandezas variáveis e ao estender a sua variabilidade até o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, as puritanas matemáticas cometeram o pecado original, morderam a maçã do bem e do mal, que lhes abriu um caminho de grandes triunfos, mas também de grandes erros. A pureza das verdades absolutas, o valor incontestável das matemáticas havia, desse modo, terminado; iniciou-se a era das controvérsias e assim chegamos a uma situação em que a maioria das matemáticos se debate com as suas diferenciais e integrais, não porque saibam o que estão fazendo, mas por puro ato de fé, porque sempre viram fazer assim. Mas é ainda pior o que se dá com a astronomia e a mecânica, sem falarmos da física e da química: nelas, o cientista move-se dentro de um turbilhão de hipóteses que o assaltam, de todos os lados, como um enxame de abelhas. E é natural que assim seja. A física trata dos movimentos das moléculas; a química, da formação das moléculas, partindo de átomos e, se a interferência das ondas luminosas não é uma fábula, não há a menor esperança de que possamos algum dia chegar a ver esses tão interessantes objetos com os nossos próprios olhos. É assombroso verificar como vão desaparecendo com o tempo, nesse assunto, as verdades definitivas e inapeláveis.

Incomparavelmente mais difícil é o terreno em que pisamos em geologia, ciência que estuda, por sua própria natureza, e em primeiro lugar, fenômenos que não só não assistimos, como também não foram assistidos por nenhum outro homem, em época alguma. Aqui, a procura de verdades definitivas inapeláveis é extraordinariamente penosa, e de rendimento escassíssimo, além do mais.

A segunda categoria de ciências é a das que têm a seu cargo a investigação dos fenômenos que ocorrem nos organismos vivos. Neste campo de estudos, desenvolve-se uma série tão diversa de ações e de reações, de reciprocas causalidades, que cada problema resolvido coloca um sem-número de problemas novos, além de existirem não poucos problemas que se conseguem resolver apenas pouco a pouco, por meio de investigações que duram às vezes séculos inteiros. Além disso, a necessidade de formar-se uma noção sistemática das concatenações científicas obriga constantemente o cientista a envolver as verdades definitivas e imperecíveis com uma verdadeira floresta de hipóteses. Pense-se na imensa sucessão de fases intermediárias que foi preciso percorrer-se, desde Galeno até Malpighi, para tornar clara uma coisa tão simples como a circulação do sangue nos mamíferos; pense-se no pouco que sabemos do processo de produção dos glóbulos do sangue e na série de elos intermediários que nos faltam, ainda hoje, por exemplo, para poder relacionar racionalmente os sintomas de uma enfermidade com suas causas. De vez em quando, e com muita freqüência, aparece uma descoberta, como esta da célula, que nos obriga a submeter a uma total revisão as noções que considerávamos verdades definitivas e inapeláveis no campo da biologia e a deixar de lado, para sempre, inúmeras delas. Assim, quem se empenha a defender aqui, a todo transe, autênticas verdades imutáveis, está-se restringindo a formular vulgaridades no estilo das que damos a seguir: todos os homens são mortais, as fêmeas dos mamíferos têm, sem exceção, glândulas mamárias, etc. Nem sequer se poderá aventurar a afirmação de que os animais superiores digerem com o estômago e o intestino e não com a cabeça, pela simples razão de que a função nervosa, centralizada na cabeça, é indispensável para a digestão.

Mas as verdades eternas saem perdendo ainda mais no terceiro grupo de ciências, as ciências históricas, aquelas que investigam, na sua sucessão histórica e nos seus resultados atuais, as condições de vida dos homens, as relações sociais, as formas do Direito e do Estado, com as suas superestruturas ideal, filosófica, religiosa, artística, etc. Pelo menos, na natureza biológica, nos aparecem muitos fenômenos que, quando necessitamos observá-los diretamente, podemos fazê-lo, por que eles se repetem, com certa regularidade, dentro de limites de tempo bastante dilatados. As espécies animais e vegetais continuam sendo, de modo geral, as mesmas do tempo de Aristóteles. O mesmo não acontece na história da sociedade, na qual as repetições de situações, desde que ultrapassamos a pré-história da humanidade, a chamada Idade da Pedra, são a exceção e não a regra. Mesmo quando ocorrem, as repetições não se dão nunca exatamente nas mesmas condições. A mesma coisa acontece com o regime primitivo da propriedade coletiva da terra, em todos os povos civilizados, e, do mesmo modo, com a forma de sua dissolução, que não se processa uniformemente em todos os povos. No campo da história da humanidade, a ciência se encontra, pois, muito mais atrasada que no campo da biologia. Ainda mais, quando conseguimos conhecer, uma vez ou outra, a íntima ligação que existe entre as modalidades de vida, sociais e políticas, de uma época, isso acontece, em regra geral, quando essas formas estão já semidecadentes e caminham para a morte. O conhecimento é, pois, essencialmente relativo, porquanto o seu objetivo é sempre o de penetrar no encadeamento e nas conseqüências de determinadas épocas e em determinados povos, além de serem, por sua própria natureza, transitórias e efêmeras. Desse modo, quem sair por esses domínios à caça de verdades definitivas e de última instância, de autênticas verdades verdadeiramente imutáveis, não conseguirá reunir grandes despojos, desde que não se contente com vulgaridades e lugares-comuns da pior espécie, como, por exemplo, o de que os homens não podem viver, em geral, sem trabalhar, o de que os homens, até a nossa época, têm estado divididos, quase sempre, em dominantes e dominados, ou então o fato de ter Napoleão morrido no dia 5 de maio de 1821, e assim por diante.

Entretanto, é notável que seja este precisamente o campo em que, com maior freqüência, deparamos com pretensas verdades eternas, verdades definitivas e inapeláveis, etc. Considerar verdades eternas que dois e dois são quatro, que os pássaros têm bico, e outras coisas deste gênero, não mais pode ocorrer a quem abrigue a secreta intenção de estabelecer o princípio das verdades eternas de modo geral, para deste princípio extrair deduções sobre a existência, também no campo da história humana, de verdades eternas, como sejam, uma moral eterna, uma justiça eterna, etc.. com os mesmos títulos de legitimidade e o mesmo alcance que as verdades matemáticas e as aplicações dessas verdades. E podemos ter segurança de que, se for assim, esse mesmo filantropo aproveitará a primeira oportunidade para assegurar-nos que os fabricantes de verdades eternas que vieram antes dele não deixaram de ser, alguns mais, outros menos, umas bestas e uns charlatães, que todos andavam equivocados, que eram todos vítimas de erro, mas que os erros, que cometeram, a sua falibilidade é perfeitamente lógica, servindo para demonstrar a verdade e a exatidão que cercam o atual descobridor de verdades eternas, esse profeta recém-saido do forno, que traz, na mochila, pronta para ser posta em circulação, a verdade definitiva e inapelável, a moral eterna, a eterna justiça. Centenas e milhares de vezes tais coisas já se passaram, de tal modo que se tem que ficar assombrado, de que haja ainda homens que sejam bastante ingênuos para acreditar, já não digo nas plataformas dos outros, mas nas suas próprias. E, no entanto, temos que nos render à evidência, pois temos diante de nós um desses profetas que, como é de praxe, se enfurece e tem verdadeiros acessos de ira moral quando alguém se atreve a negar que seja ele capaz de apresentar-nos a verdade definitiva e inapelável. Sabemos já que a negação, ou, mais ainda, a simples dúvida a respeito das verdades eternas é um “estado de debilidade doentia”, um “desesperado confusionismo”, uma “nulidade”, um “nada”, “ceticismo desagregador”, “ainda pior que o simples niilismo”, um “caos de confusão”, e não sei quantas outras delicadezas do mesmo gênero. Já se sabe que os profetas não precisam molestar-se em realizar investigações críticas e científicas, pois lhes basta fulminar-nos com seus raios morais.

Poderíamos ter mencionado mais acima as ciências que investigam as leis do pensamento humano, ou seja, a lógica e a dialética. Mas também nesse terreno não é tão melhor colocada as verdades eternas. O Sr. Dühring deixa de lado a verdadeira dialética como um puro contra-senso e, como sabemos, todos os livros que se escreveram ou que continuam sendo preparados sobre lógica demonstram completamente que também neste campo não abundam, como muitos acreditam, as verdades eternas e inapeláveis.

Além de tudo, não nos precisamos assustar pelo fato de que o grau de conhecimento que alcançamos na atualidade tenha tão pouca coisa de definitivo quanto o das épocas que nos precederam. O nosso conhecimento engloba já um material imenso de dados e exige uma grande especialização de estudos por parte de quem pretende se familiarizar com um ramo ou uma disciplina qualquer de ciência. Mas quem se limita a medir com a estreiteza da verdade definitiva e sem apelação, da autêntica verdade imutável, conhecimentos que, ou estão destinados, como conhecimentos relativos por natureza, a serem estudados por muitas gerações e que, portanto, têm que ser completados pouco a pouco e gradualmente, ou aqueles outros que, como acontece com a cosmogonia, a geologia, ou a história humana, são também, e necessariamente têm que continuar a ser, por natureza, incompletos e parciais, pela insuficiência mesma do material histórico, quem, repetimos, se limita de tal forma, não faz mais que reafirmar com isso a sua própria ignorância e sua desorientação, embora não se proponha ele próprio, como no caso presente, a fazê-las ressaltar, arrogando-se, como defesa, títulos de infalibilidade pessoal. A verdade e o erro, como todos os conceitos que se movem dentro de antíteses polares, só têm aplicação absoluta dentro de uma zona muito limitada, como nós acabamos de ver e como o próprio Sr. Dühring saberia ver se tivesse uma noção dos primeiros rudimentos de dialética, que são justamente os que tratam da limitação de todas as antíteses polares. Tão logo, a antítese de verdade e erro se afasta daquela zona circunscrita em que se deve mover, ela se converte de absoluta em relativa e perde, assim, todo e qualquer valor, como meio estritamente científico de expressão; e se tentamos aplicá-la como valor absoluto, fora daquela órbita circunscrita, fracassamos definitivamente, pois os dois pólos da antítese se tocam no inverso do que são, a verdade em erro e o erro em verdade. Tomemos, como exemplo, a conhecida lei de Boyle, segundo a qual, permanecendo invariável a temperatura, varia o volume dos gases na razão inversa da pressão a que estão submetidos, Regnault descobriu que esta lei não era aplicável a certos casos. Se tivesse sido um “filósofo da realidade”, deveria ter dito: a lei de Boyle é mutável; não é, portanto, uma autêntica verdade, ou seja, não é uma verdade, mas sim um erro. Mas com isso teria cometido um erro muito maior que o existente na citada lei; a rocha granítica de sua verdade teria desaparecido como se fosse um torrão de areia na imensidade de seu erro; teria convertido o seu resultado originariamente exato num erro tal que, comparada com ele, a lei de Boyle, apesar da poeira de erros a ela aderida, resplandeceria como uma grande verdade. Mas Regnault, como cientista que de fato era, não se deixou levar por semelhantes puerilidades, tendo continuado a pesquisar, até descobrir que a lei de Boyle era apenas aproximadamente certa e que deixava de sê-lo, sobretudo na presença de gases que, quando submetidos à pressão, se tornavam fluidos, ou, mais concretamente, a lei deixava de ser certa a partir do momento em que a pressão se aproximava do ponto de fluidez. A lei de Boyle só se mantinha exata dentro de certos limites. Mas, dentro destes limites, era absoluta, definitivamente verdadeira? Nenhum físico se atreverá a afirmar semelhante coisa. Responderá unicamente que esta lei é efetiva e exata dentro de certos limites de pressão e temperatura e para determinados gases; e mesmo dentro destes limites admitirá a possibilidade de que o seu campo de aplicação se restrinja mais ainda ou que a sua fórmula se modifique como resultado de posteriores investigações.(4)

Vemos, pois, aqui, o caráter que assumem, na física, as verdades definitivas e inapeláveis. Por isso, todos os trabalhos realmente científicos se abstêm, cuidadosamente, de empregar termos tão dogmaticamente normativos como os de erro e verdade, que encontramos em grande quantidade em obras como A Filosofia da Realidade na qual pretende o autor nos impor, como sendo o fruto soberano do pensamento soberano, um mero encadeamento de frases sem sentido.

Mas, perguntará o leitor ingênuo, onde concretamente o Sr. Dühring disse que o conteúdo de sua filosofia da realidade é a verdade definitiva e inapelável? Onde? Ele o disse, por exemplo, no ditirambo que entoa em homenagem ao seu próprio sistema, na página 12 desse livro do qual tomamos algumas frases do capítulo II desta obra; ou quando diz, no parágrafo que acima citamos, que as verdades morais, sempre que possam ser conhecidas até os seus últimos fundamentos, reclamam os mesmos títulos de efetividade que as verdades matemáticas. E acaso não afirma O Sr. Dühring ter chegado até esses fundamentos últimos, até os esquemas fundamentais do ponto de vista de sua “plataforma autenticamente crítica” e por intermédio de sua investigação, que atinge “as raízes das coisas”, transmitindo com isso as verdades morais em caráter definitivo e sem apelação? Pois se o Sr. Dühring não pretende esses títulos nem para si nem para a sua época, se apenas quer dizer que um dia haverá, não se sabe quando, lá pelo nebuloso futuro, no qual se poderão descobrir verdades definitivas e inapeláveis, se, portanto, apenas quer dizer o que diz, vaga e confusamente, quando se refere ao “ceticismo desagregador” e “desesperado confusionismo”, porque, então, todo esse barulho? Que deseja, afinal, esse Senhor?

Se nada ganhamos com os conceitos de verdade e erro, menos ainda alcançamos com os do bem e do mal. Esta antítese move-se, pura e exclusivamente, dentro da órbita moral, isto é, num terreno que pertence à história humana, onde já sabemos que pouquíssimas verdades definitivas e inapeláveis podem fecundar. As idéias do bem e do mal variaram tanto de povo para povo, de geração para geração, que, não poucas vezes, chegam a se contradizer abertamente. Mas, — replicará alguém com segurança — o que é bem não é mal, o que é mal não é bem, e se se apaga qualquer distinção entre o bem e o mal, ter-se-á destruído a moral, e cada qual poderá fazer ou deixar de fazer o que bem entender. Com efeito, tal é, livre de todo disfarce oracular, a opinião do Sr. Dühring. Mas o problema não é tão fácil de resolver, pois que, assim sendo, não haveriam disputas sabre o que está bem e o que está mal e todo o mundo saberia se orientar sobre o que é bom e sobre o que é mau. Mas vejamos o que acontece em nossos dias. Que espécie de moral nos pregam hoje? Temos, em primeiro lugar, a moral cristã-feudal, que nos legaram os velhos tempos da fé e que se divide, fundamentalmente, numa moral católica e numa moral protestante, com toda uma série de variações e subdivisões que vão desde a moral católica dos jesuítas e a moral ortodoxa dos protestantes, até uma moral de certo modo liberal e tolerante. E, ao lado dessas, temos a moderna moral burguesa e, ao lado da moral burguesa moderna, a moral proletária do futuro. Portanto, somente nos países mais cultos da Europa, nos defrontamos com três grupos de teorias morais, correspondentes ao passado, ao presente e ao futuro, pretendendo esses três grupos dominar, concorrente e simultaneamente. Qual delas é a verdadeira? Em sentido absoluto e definitivo, nenhuma; mas, evidentemente, a que contém mais garantias de permanência é a moral que, no presente, representa a destruição do presente, o futuro, ou seja, a moral proletária.

Assim, verificando que as três classes que constituem a sociedade moderna, que são a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado, possuem cada uma a sua moral particular, teremos, necessariamente, de concluir, que os homens, consciente ou inconscientemente, fazem derivar suas idéias morais, em última análise, das condições práticas em que se baseia a sua situação de classe, ou seja, das condições econômicas em que produzem e trocam os seus produtos.

Existe, porventura, algum elemento comum às três teorias morais mencionadas, um só elemento que seja que possamos acatar como verdade perene e definitiva? Essas três teorias morais representam outras tantas etapas distintas de um mesmo processo histórico, e por isso têm um fundo histórico comum, o que faz com que forçosamente elas contenham toda uma série de elementos comuns. E não é só. Em fases idênticas ou aproximadamente equivalentes de desenvolvimento econômico, as teorias morais devem necessariamente coincidir, numa extensão maior ou menor. Ao surgir a propriedade privada sobre as coisas móveis, impôs-se, necessariamente, em todas as sociedades nas quais existe essa instituição, um preceito de moral, comum a todas elas: “Não roubarás”. Transformou-se este preceito, por esse simples fato, numa norma eterna de moral? Não. Numa sociedade em que tivessem desaparecido os móveis do roubo, na qual, portanto, de um modo geral, somente poderia roubar uma pessoa anormal, o pregador de moral que subisse ao púlpito para proclamar solenemente a verdade eterna do “não roubarás”, seria vitima de zombaria generalizada.

Não estamos dispostos, pois, a deixar que nos imponham como lei eterna, definitiva e imutável, um qualquer dogma de moral, sob o pretexto de que também o mundo moral tem os seus princípios permanentes, que se colocam acima da história e das diferenças existentes entre os povos. Pelo contrário, afirmamos que, até hoje, todas as teorias morais foram, em última instância, produtos da situação econômica das sociedades em que foram formuladas. E, como até o dia de hoje a sociedade se desenvolveu sempre por antagonismos de classe, a moral foi também. sempre e forçosamente, uma moral de classe; nalguns casos, construída para justificar a hegemonia e os interesses da classe dominante, noutros, quando a classe oprimida se torna bastante poderosa para rebelar-se contra a classe opressora, a moral é construída para defender e legitimar a rebelião e os interesses do futuro em geral, e da classe oprimida, em particular. Que esta evolução se processa sempre, em largos traços, da mesma forma no campo da moral como no dos demais ramos do conhecimento humano e sempre num sentido de progresso, é o que nos parece indubitável. Mas, apesar de todos os progressos, não se encontrou ainda nenhum modo de fugir da moral de classe. Para se chegar à conquista de uma moral realmente humana, subtraída a todos os antagonismos de classes ou mesmo à sua recordação, teremos, antes, que alcançar um tipo de sociedade na qual não somente se tenha abolido o antagonismo das classes mas também tenha sido esse antagonismo, além de abolido. esquecido e afastado das práticas da vida. Considere-se, pois, quanto é grande a presunção do Sr. Dühring, que, vivendo no seio da velha sociedade de classes, nas vésperas de uma revolução social, tem a pretensão de impor à sociedade sem classes do futuro, uma moral eterna, subtraída às leis do tempo e às mudanças da realidade. Assim mesmo, supondo que conheça — o que até agora ainda não sabemos — ainda que seja apenas em seus traços fundamentais, a estrutura dessa sociedade do futuro. E, para terminar, lembramos uma sua descoberta “fundamentalmente original”, mas nem por isso menos “radical”: estudando as origens do mal, deparamos com “o fato de que o tipo de gato, que é encontrado nessa espécie animal com a falsidade que o caracteriza, pode ser comparado com a contextura de certos caracteres humanos, colocados, assim. no mesmo plano que esses bichos... O mal não é, pois, nada misterioso. a menos que se queira farejar alguma coisa de místico na existência do gato ou na dos felinos em geral.” Concluímos, portanto, que o mal, segundo o Sr. Dühring, é... um gato. O diabo mudou os chifres e as patas por unhas e olhos verdes. Goethe cometeu um erro imperdoável quando, em seu “Fausto”, apresentou Mefistófoles na forma de um cão negro, em vez de dar-lhe a figura de um gato. O gato, personificação do mal! Temos, aqui, uma moral aplicável não só a todos os mundos habitáveis, mas também a todos os gatos.


Capítulo X
MORAL E DIREITO.
A IGUALDADE

 

Já tivemos ocasião de conhecer várias aplicações do método do Sr. Dühring. Consiste ele em analisar um determinado grupo de objetos do conhecimento, em seus pretendidos elementos simples, aplicando a estes elementos uns tantos axiomas não menos simples, considerados evidentes pelo autor, para, em seguida, operar com os resultados assim obtidos. Do mesmo modo, os problemas encontrados no campo da vida social, “devem ser resolvidos, axiomaticamente, pela comparação com os diversos esquemas simples e fundamentais, exatamente como se se tratasse de simples... esquemas fundamentais das matemáticas”. Assim, a aplicação do método matemático à história, à moral e ao direito, deverá nos garantir, também aqui, a certeza matemática na verdade dos resultados obtidos, imprimindo-se-lhes o selo de verdades autenticamente imutáveis.

Na realidade, não é mais do que um novo rodeio do velho e favorito método ideológico, também chamado apriorístico, que consiste em estabelecer e provar as propriedades de um objeto, não partindo do próprio objeto, mas derivando-as do conceito que dele formamos. A primeira coisa a fazer, é converter o objeto num conceito desse objeto; em segundo lugar, não é preciso mais que inverter a ordem das coisas e medir o objeto pela sua imagem, o conceito. Não é, pois, o conceito que se deve ajustar ao objeto, mas este é que se deve ajustar àquele. Nas elucubrações do Sr. Dühring, são os elementos simples, últimas abstrações a que se pode chegar, que desempenham o papel de conceitos, mas isso em nada modifica os termos do problema, pois esses elementos simples podem ter, na melhor das hipóteses, um caráter puramente conceitual. Como vemos, a “filosofia da realidade” também aqui não é mais que uma pura ideologia, ou seja, uma realidade que é deduzida, não de si mesma, mas da idéia.

Pois bem, se o ideólogo quer construir a moral e o direito, não baseado na realidade das condições sociais em que vivem os homens que o rodeiam, mas partindo do conceito “da sociedade”, ou seja, daquilo que ele chama elementos simples, com que materiais conta ele para uma tal tarefa de construção? Com duas classes de materiais, evidentemente: a primeira, os escassos vestígios de qualquer conteúdo real que possam existir ainda naquelas abstrações que servem de base à construção, e uma segunda classe, que é o conteúdo que carrega o nosso ideólogo, e que ele retira de sua própria consciência. Em sua maior parte, intuições sobre moral e direito, que são uma expressão, mais ou menos adequada — positiva ou negativa, favorável ou não — das condições sociais e políticas em que ele vive. Talvez, além dessas intuições, possam encontrar-se idéias tomadas da literatura sobre estes problemas e, por casualidade, em último lugar, uma série de figurações pessoais. O que quer que faça o nosso ideólogo, colocando-se onde quer que seja, o resultado será que a realidade histórica, que ele expulsa pela porta, volta a entrar pela janela, e, quando acredita estar construindo uma teoria da moral e do direito, para todos os tempos, e para todos os mundos, o que na realidade está fazendo é esboçar uma imagem caricatural, — arrancada de sua base real, invertida como se num espelho côncavo — das correntes conservadoras ou revolucionárias de seu tempo.

O Sr. Dühring analisa a sociedade em seus elementos simples e descobre que a mesma, reduzida em sua expressão mais simples, é formada, no mínimo, por dois homens. Estes dois homens formarão, em seguida, o material para as suas manipulações axiomáticas. Colocado neste ramo, chega-lhe às mãos, por si mesmo, o axioma básico da moral: “duas vontades humanas são, como tais, absolutamente idênticas uma à outra, e uma delas não pode, inicialmente, exigir nada de positivo da outra”. Fica, desse modo, “caracterizada a forma fundamental da justiça moral” e, também, da justiça jurídica, pois, “para desenvolver os conceitos fundamentais do direito, basta-nos desenvolver a relação simples e elementar entre dois homens”.

Afirmar que dois homens ou duas vontades humanas, consideradas como tais, são absolutamente idênticas entre si, não somente não é um axioma, como também pode ser considerado, pelo menos, um grande exagero. Dois seres humanos podem, mesmo considerados como tais, diferir entre si, antes de mais nada, pelo sexo, e este fato, tão simples. leva-nos, imediatamente, à conclusão de que os elementos simples da sociedade — para nos entretermos um momento com estas infantilidades — não são precisamente dois homens, dois varões, mas um homem e uma mulher que fundam uma família, forma primeira e mais simples da sociedade, colocada ao serviço da produção. Mas isso não convém ao Sr. Dühring. de modo algum. Por quê? Porque necessita, a todo transe, que sejam os dois fundadores de sua sociedade completamente iguais, se possível, e também porque não seria capaz mesmo o Sr. Dühring, de construir, baseado na família primitiva, a equiparação jurídica e moral do homem e da mulher. Das duas uma: ou a molécula da sociedade dühringuiana, de cuja multiplicação deve sair toda a sociedade, está condenada, desde o nascimento, a perecer, pois que dois homens não procriarão nunca, ou são eles representados como dois chefes de família. Mas, neste caso, voltamos de repente ao singelíssimo esquema fundamental, que nos demonstra não a igualdade humana, mas, em essência, a igualdade dos cabeças de família e, como nada se pergunta com respeito às mulheres, demonstra também o fato da subordinação da mulher.

Sinto muito ter de comunicar ao leitor uma notícia desagradável: não tardará muito que tenhamos de vista estes dois famosos homens do Sr. Dühring. Estes dois personagens vieram representar, aproximadamente, no campo das relações sociais, o mesmo papel que até aqui estava destinada aos habitantes dos outros mundos, dos quais, afortunadamente, já nos livramos. Existe algum problema de economia, de política, etc... para resolver? Imediatamente se põem em campo os nossos dois homens e resolvem a coisa “axiomaticamente”, de um só golpe. É uma descoberta magnífica, original, e “capaz de criar sistema”, a desse nosso filósofo da realidade! É pena que o respeito à verdade nos obrigue a dizer que a descoberta não é precisamente sua! Esses dois homens de encomenda são patrimônios de todo o século XVIII. Já os conhecemos em 1754 no “Discurso sobre as desigualdades dos homens”, de J. J. Rousseau, onde — seja dito entre parênteses — se demonstra, também axiomaticamente, o contrário do que o Sr. Dühring afirma. Tornamos a nos encontrar com eles, desempenhando um papel de relevo, na economia política, desde Adam Smith até Ricardo, embora já não sejam, nesse assunto, completamente iguais, pois que exercem ofícios diferentes — geralmente os de caçador e pescador — e trocam entre si os seus produtos. Mas o século XVIII se utiliza, de um modo quase exclusivo, desses personagens, a titulo de ilustração e exemplo; a originalidade do Sr. Dühring consiste em tornar esse método puramente ilustrativo como método fundamental aplicável a toda a ciência da sociedade e como critério para o estudo de todas as manifestações históricas. Realmente, a “concepção estritamente científica sobre coisas e homens” não poderia ser mais fácil.

Mas, para extrair logo depois axioma fundamental, segundo o qual esses dois homens e suas respectivas vontades são totalmente idênticos entre si, sem que nenhum dos dois tenha nada a exigir do outro, não é suficiente que sejam dois homens quaisquer. Deverão ser dois ares humanos tão fora de toda a realidade, tão despidos de todas as condições nacionais, econômicas, políticas, religiosas, existentes em nosso mundo, que, de todas as características e peculiaridades de pessoa e de sexo, neles só deve restar o mero conceito de homem, de ser humano. Somente assim, poderão ser “completamente idênticos”. Como se vê, não estamos precisamente diante de dois homens, mas de dois perfeitos fantasmas, evocados por este mesmo Sr. Dühring. que vive a descobrir e a denunciar, por toda a parte, as reações “espiritistas”. Esses dois espectros são naturalmente condenados a fazer tudo o que homem que os evocou deles exija; e por isso são absolutamente indiferentes às outras coisas do mundo para as suas manipulações artificiais.

Penetremos, um pouco, na axiomática do Sr. Dühring. Dizíamos que aquelas duas vontades nada podiam exigir de positivo, uma da outra. Se uma delas falta a esse dever e apresenta uma exigência, chegando mesmo a impô-la pela força, cria-se, então, um estado injusto e, deste esquema fundamental, faz o Sr. Dühring derivar a injustiça, a dominação, a escravidão, numa palavra, toda a condenável história desde a antigüidade até os nossos dias. Entretanto, já Rousseau, no estudo que citamos atrás, valendo-se exatamente de nossos dois homens, provou, de modo axiomático, justamente o contrário, ou seja, que entre os dois homens, “A” não pode escravizar “B” pela violência, a não ser colocando-o numa tal situação que “B” não possa prescindir de “A”. Esta concepção peca, no entender do Sr. Dühring, por ser excessivamente materialista. Focalizemos, pois, essa mesma coisa, de outro modo. Suponhamos que dois náufragos, sozinhos numa ilha, contratam uma sociedade. Suas vontades, são formalmente idênticas, e ambos assim o consideram, Mas entre os dois sócios existem grandes diferenças materiais. “A” é um homem resoluto e enérgico; “B” é indeciso, indolente, preguiçoso; “A” é inteligente, “B” é retardado. É natural que, cedo ou tarde, “A” acabe de impor a sua vontade a “B”, primeiramente pela persuasão e, a seguir, pouco a pouco, por força do hábito, mas sempre de um modo livre e espontâneo. Significa a mesma coisa que sejam respeitadas ou desprezadas as formas voluntárias: voluntária ou não, a servidão é servidão. A aceitação voluntária da servidão é encontrada em toda a Idade Média e, na Alemanha, chega mesmo até a Guerra dos 30 Anos. Quando, na Prússia, depois das derrotas de 1806 e 1807, foi abolida a servidão e com ela a obrigação imposta ao nobre feudal de zelar pelos seus súditos, em casos de miséria, enfermidade ou velhice, dirigiram-se os camponeses ao rei para suplicar que os deixasse continuar como servos, pois, de outro modo, quem iria cuidar deles e ampará-los na miséria? O esquema dos dois homens encerra, pois, os germes de desigualdade e servidão, tanto quanto os de igualdade e cooperação. E como, além disso, devemos, a não ser que os condenemos a perecer, concebê-los como cabeças de família, verificamos que esse esquema contém, além do mais, a explicação da escravização hereditária.

Mas deixemos por um momento este assunto e suponhamos que nos tenha convencido a axiomática do Sr. Dühring e que estejamos verdadeiramente entusiasmados com a absoluta equiparação das duas vontades, com a “soberania humana geral”, com a “soberania do indivíduo”, verdadeiras expressões maravilhosas ao lado das quais o “Único”, de Max Stirner, com todas as suas propriedades, fica obscurecido, embora também a ele seja devida uma parte modesta da criação. Admitamos pois que somos todos absolutamente iguais e independentes. Todos? Não, todos não. Existem, também, umas “dependências legitimas”, mas estas não se originam de “razões baseadas no exercício das duas vontades, como tais, mas num terceiro fator, como acontece, por exemplo, com as crianças; nestas, este terceiro fator provém da insuficiência de sua própria determinação”.

Magnífico! Desse modo, não se deve buscar as razões a que se deve a dependência no exercício de ambas as vontades como tais. Como se há de buscar aí a razão quando justamente a dependência consiste em entorpecer o exercício de uma das vontades? Essa razão, deve ser encontrada, como nos diz o Sr. Dühring, “num terceiro fator”. Esse terceiro fator é a insuficiente capacidade de determinação concreta da vontade quando sujeita à coerção. O nosso filósofo da realidade tanto dela se distanciou que, como vemos, comparado com expressões abstratas e vazias como a da vontade, o conteúdo real de determinação, própria dessa vontade, se lhe assemelha a um “terceiro fator”. Mas, seja o que for, o caso é que a equiparação das duas vontades tem exceções, pois uma vontade não se ajusta à outra, a própria determinação de uma delas é reconhecida como insuficiente. Limitamo-nos a consignar: reteirada número um!

Prossigamos. “Ali, onde homem e animal formam uma só pessoa, pode-se perguntar, em nome de uma segunda pessoa completamente humana, se a sua conduta pode, neste caso, ser a mesma que teria sido frente a pessoas exclusivamente humanas, digamos assim... Começamos por supor duas pessoas moralmente desiguais, uma das quais tem, de certo modo, um pouco do caráter das bestas, e, dessa forma, criamos um esquema fundamental ap1icável a todas as relações que podem, de acordo com essa diferença, ser encontrados... entre os grupos humanos e dentro deles.” E o leitor, se quiser, que procure entender o atormentado libelo que o Sr. Dühring apresenta ao enveredar por esta última saída, na qual dá voltas e mais voltas, deslizando por sendas tortuosas, como um jesuíta, para acabar sentenciando, judiciosamente, até que ponto pode o homem humano proceder contra o homem bestial; até que ponto lhe é licito empregar contra este último a manobra, a astúcia guerreira e mesmo os recursos da violência, do terror, da mistificação, sem faltar em nada aos postulados da moral imutável.

Assim, a igualdade também termina ali onde duas pessoas são “moralmente desiguais”. Então, para que esse esforço todo no sentido de reunir dois seres humanos absolutamente idênticos, se sabemos que não existem duas pessoas que sejam moralmente iguais? Pois é o Sr. Dühring quem nos diz que a desigualdade consiste em que uma delas é pessoa humana, enquanto que a outra tem dentro de si uma qualquer coisa de besta. Entretanto, a própria procedência animal do homem já nos indica que ele não pode nunca se desprender totalmente da condição de besta, e que, além disso, o problema da distinção entre a bestialidade e a humanidade é puramente quantitativo, referindo-se apenas a uma diferença de grau. A classificação dos homens em dois bandos nitidamente distintos e separados, o dos humanos e os dos bestiais, os bons e os maus, os cordeiros e os lobos, somente pode ser admitida pela filosofia da realidade e pelo cristianismo, com a diferença de que este é mais conseqüente, pois cria um juiz universal, que tem a seu cargo a tarefa da classificação de cada indivíduo num dos dois grupos. Mas, na filosofia da realidade, quem há de ser o juiz universal? Sucederá com ela o que costuma acontecer, na prática, entre os cristãos, em que os piedosos cordeirinhos se encarregam da função, com grande êxito, como sabemos, de juiz universal de seus próximos, os lobos deste mundo. A seita dos filósofos da realidade, caso fosse fundada algum dia, não poderia ser pior, com relação a esse assunto. Mas isto pouco nos importa; o que nos interessa é tomar nota da concessão que acaba de nos fazer o Senhor Dühring de que a desigualdade moral entre os homens acaba por anular a igualdade. Retirada número dois.

Continuemos a leitura. “Se uma pessoa age, respeitando a ciência e a verdade, enquanto que outra se deixa levar por preconceitos... necessariamente, haverá entre elas algumas perturbações... Quando atingirem um certo grau a brutalidade ou as tendências malignas do caráter, produzir-se-á forçosamente um choque... Não são apenas as crianças e os loucos que conhecem outras armas além da força. A sucessão dos grupos naturais e das classes culturais pode tornar uma necessidade inadiável a submissão de cada vontade desviada e hostil, até submetê-la aos vínculos coletivos. Ao fazer tal coisa, respeita-se como igualmente legitima a vontade alheia; o que se dá é que o seu exercício, coletivo quando hostil e prejudicial, provoca uma compensação e, se lhe faltam forças, não faz mais que suportar os efeitos reflexos, provocados pela sua própria injustiça”.

Como vemos, não é só a desigualdade moral, mas também a desigualdade espiritual que pode deitar por terra a “completa identidade” das duas vontades, instaurando o reino de uma moral que justifica todas as infâmias praticadas pelos Estados civilizados em sua cruzada de rapina contra os povos mais fracos, até mesmo as repugnantes façanhas dos russos no Turquestão. Quando, no verão de 1873, o general Kauffmann caiu, como um vendaval. sobre a tribo tártara dos jomudas, incendiou suas tendas, massacrou. “à boa maneira caucasiana”, como rezava a ordem, as mulheres e as crianças, invocava ele também a necessidade inevitável de submeter a vontade “desviada e hostil” daqueles selvagens, para reduzi-los aos “vínculos coletivos”, afirmando que os meios postos em prática por ele eram os mais eficazes para conseguir tal coisa; e já se sabe, além do mais, que os fins justificam os meios, O que verificamos é que o general conquistador era um pouco menos cruel, pois não lhe ocorria, além de tudo, rir-se dos jomudas, enganando-os com a fábula de que, ao exterminá-los, como “compensação”, não fazia mais que render homenagem à sua própria vontade, acatando-a como “igualmente legitima”. Neste conflito, os eleitos são ainda, em última instância, os filósofos da realidade, que dizem agir de conformidade com a verdade e a ciência, e que portanto são chamados a definir o que quer dizer a superstição, o preconceito, a brutalidade, o que são as tendências malignas do caráter e quando é que devem ser indicadas a dominação e a força como meios de compensação. A igualdade fica reduzida, pois, ainda uma vez, à nivelação pela força e a segunda vontade deve ser equiparada à primeira por meio de um ato de submissão, Retirada número três, que, mais que retirada, é já uma fuga vergonhosa.

Acrescentaremos, entre parênteses, que a frase segundo a qual a vontade alheia é sancionada como “igualmente legítima”, justamente por meio da nivelação pela força, não é mais que uma deturpação da teoria de Hegel, de acordo com o qual o criminoso tem direito à pena: “No fato de ver implícito na pena um direito próprio do criminoso é que se reconhece e se honra a este como um ser racional”. (Filosofia do Direito, § 100, nota).

Acreditamos que isso é suficiente, Não é preciso seguir passo a passo o Sr. Dühring para a destruição gradual de seu principio de igualdade, tão axiomaticamente proclamado, de sua soberania humana geral, etc. etc.; é inútil continuarmos a observar que, embora se necessitem apenas de dois homens para construir a sociedade, é preciso, para edificar o Estado, mais um terceiro, sem o qual — para resumir de um modo conciso — não se poderia resolver nenhum problema pelo sistema da maioria e, sem esta, isto é, sem o domínio da maioria sobre a minoria, não é possível conceber-se o Estado. Não precisamos ver como, pouco a pouco, vai o Sr. Dühring navegando para as águas tranqüilas da construção de seu Estado socialitário do futuro, no qual teremos oportunidade, numa manhã de bom tempo, de fazer-lhe uma visita. Basta-nos o que foi dito atrás para compreender que a completa igualdade entre as duas vontades fica liquidada desde o momento e no ponto exato em que qualquer uma delas chegue a desejar alguma coisa. Compreendemos, desse modo, que, desde o momento em que deixam de ser vontades humanas como tais e passam a ser vontades reais, individuais, acabou-se a igualdade das vontades de dois homens reais e concretos. Compreendemos que a infância, a loucura, o que ele chama de bestialidade, a suposta superstição, os preconceitos denunciados, a presumida incapacidade de um lado e o prurido de humanidade de outro, o domínio da verdade e das ciências, ou seja, que a mínima diferença do ponto de vista qualitativo entre as duas vontades, ou no tocante à inteligência que as orienta, justificam ume desigualdade que pode chegar até a submissão. Para que continuar, quando já o próprio Sr. Dühring pulveriza tão radicalmente, em seus próprios fundamentos, o seu edifício da igualdade?

Mas o fato de termos liquidado a absurda e tola construção que o Sr. Dühring cria sobre a idéia da igualdade, não quer dizer que tenhamos liquidado a própria idéia, que ocupa um lugar tão importante na teoria, principalmente a partir de Rousseau, e que exerceu tanta influência na política prática da Grande Revolução, e nos períodos que a seguiram e que, pela sua ação agitadora, influencia ainda hoje o movimento socialista de quase todos os países. Analisando o seu conteúdo científico, tentaremos pôr em evidência o valor que tem esta idéia para o movimento proletário.

A crença de que todos os homens, pelo simples fato de sê-lo, têm alguma coisa de comum que os torna iguais, na proporção em que exista esse ponto comum, é naturalmente antiquíssima. Mas o postulado moderno da igualdade difere radicalmente desta idéia e, pelo contrário, faz ressaltar da própria natureza, comum a todos os homens, dessa igualdade dos homens como tais, o princípio da equiparação política e social de todos os seres humanos, ou, pelo menos, de todos os cidadãos de um Estado, ou de todos os indivíduos de uma mesma sociedade. Foi preciso que muitos milhares de anos passassem e, de fato, passaram, antes que aquela idéia primitiva da igualdade relativa inspirasse, como um corolário, a idéia da igualdade dentro da sociedade e do Estado e muito mais tempo seria preciso até que esta dedução se impusesse como algo evidente e natural. Nas velhas comunidades naturais, somente se podia falar de igualdade, de fato, entre os membros da mesma coletividade; as mulheres, os escravos, os estrangeiros, ficavam excluídos, naturalmente, desta comunidade, e essa exclusão era considerada como perfeitamente natural. Na Grécia e em Roma, as desigualdades entre os homens tinham muito mais força que qualquer forma de igualdade. E se ocorresse a alguém dizer, então, que os gregos e os bárbaros, os livres e os escravos, os cidadãos do Estado e os estrangeiros acolhidos sob a sua proteção, os cidadãos romanos e os súditos de Roma (para empregar um termo geral) eram merecedores de um mesmo tratamento político, deveria essa pessoa passar por louca aos olhos dos antigos; no Império Romano, estas desigualdades foram desaparecendo pouco a pouco, com exceção apenas da que separava os escravos dos homens livres, surgindo então entre estes últimos aquele sistema de igualdade baseado no qual se desenvolveu o Direito Romano, a mais perfeita expressão que se conhece de um Direito cimentado sobre a instituição da propriedade privada. Mas, embora subsistisse a distinção entre os homens livres e os escravos, não havia razão para se falar dos corolários jurídicos derivados da igualdade de todos os homens; até há pouco tempo, podia-se ainda observar este fenômeno nos Estados escravagistas da América do Norte.

O cristianismo reconhecia apenas uma igualdade entre os homens: a do pecado original, igualdade essa que se enquadrava perfeitamente no seu caráter de religião dos escravos e dos oprimidos. Ao lado desta, admitia no máximo a igualdade dos eleitos, mas não insistia a respeito desta, a não ser muito nos primórdios da religião. Os vestígios da comunidade dos bens, com que defrontamos igualmente, nos primeiros tempos da nova religião, tinham a sua origem mais na solidariedade entre os perseguidos do que numa verdadeira idéia de igualdade. Ademais, a distinção entre os sacerdotes e os leigos veio logo pôr um fim a este rudimento de igualdade cristã. A invasão do ocidente da Europa pelos germanos varreu por vários séculos toda idéia de igualdade, levantando, pouco a pouco, uma hierarquia social e política tão complicada como até então não se conhecera; entretanto, ao mesmo tempo, a invasão germânica arrastava consigo, para o mesmo movimento histórico. todos os países do ocidente e do centro da Europa, criando, pela primeira vez, uma área compacta de cultura e sobre esta área erigindo também pela primeira vez na história, um sistema de Estados predominantemente nacionais, que se influenciavam e se contrapunham uns aos outros. Foi desse modo que se preparou o terreno para, tempos mais tarde, ser possível falar-se da igualdade humana e dos direitos do homem.

Além disso, no bojo da Idade Média feudal, entrou em gestação a classe chamada a proclamar quando atingisse a idade madura, o postulado da igualdade humana moderna: a burguesia. A burguesia, que também em seus começos era apenas uma camada feudal imprimiu um grau relativamente elevado de desenvolvimento à indústria artesanal e à troca de produtos dentro da sociedade feudal por ocasião de abertura de novas rotas marítimas, como resultado das grandes descobertas dos fins do século XV. O comércio extra europeu, que até então se realizava somente entre a Itália e os portos do Levante, torna-se extensivo agora à América e à Índia e logo ultrapassa em importância o intercâmbio entre muitos países europeus e mesmo o comércio interior destes países. O ouro e a prata da América inundaram a Europa e penetraram. como um ácido corrosivo, em todos os poros. fendas e vácuos da sociedade feudal. Não bastava já a produção artesanal para cobrir as crescentes necessidades; a manufatura tomou posições nos ramos da produção mais importantes dos países mais adiantados.

Entretanto, este gigantesco crescimento das condições econômicas de vida da sociedade não foi seguido de perto pela mudança correspondente da organização política. O regime estatal continuava sendo feudal, embora a sociedade se fosse tornando cada dia mais burguesa. O comércio em grande escala e principalmente o comércio internacional e mais ainda o comércio mundial requerem livres proprietários de mercadorias, desembaraçados em seus movimentos, capazes todos de realizar transações, dispondo de um direito igual para todos, pelo menos dentro de cada localidade. A passagem do artesanato para a manufatura pressupõe a existência de um certo número de operários livres — livres, de um lado. dos entraves gremiais e, de outro, donos dos meios de explorarem, por si próprios, a sua força de trabalho — capazes de estabelecer contrato com o fabricante, vendendo-lhe a sua força de trabalho, e que, portanto, sejam capazes de contratar de igual para igual. Finalmente, a igualdade e a igual valorização de todos os trabalhos humanos, na qualidade de manifestações do trabalho da homem, encontrou a sua mais forte expressão. embora inconsciente, na lei do valor da economia burguesa moderna, segundo a qual o valor de uma mercadoria se mede pelo trabalho socialmente necessário contido nela.(5) Mas ali onde as condições econômicas clamavam por igualdade de direitos e por liberdade, a ordem política lhes opunha, a cada passo, os entraves feudais e os privilégios de classe. Por todas as partes se erguiam privilégios locais, barreiras alfandegárias para cada produto, leis de exceção de todo o gênero, prejudicando o comércio não só dos estrangeiros e dos habitantes das colônias, mas até, muitas vezes, de categorias inteiras dos próprios súditos do país; por todas as partes, inúmeros privilégios gremiais barravam-lhes o caminho e se antepunham ao desenvolvimento da manufatura. Os competidores burgueses não encontravam liberdade e igualdade de condições em nenhuma parte, e, entretanto, essa sua reivindicação era essencial e cada vez mais premente.

A emancipação dos entraves feudais e a implantação da igualdade jurídica, pela abolição das desigualdades do feudalismo, eram um postulado colocado na ordem do dia pelo progresso econômico da sociedade, e que depressa alcançaria grandes proporções. Embora proclamado este postulado da igualdade de direitos no interesse da indústria e do comércio, não havia mais remédio senão torná-lo extensivo também à grande massa de camponeses que, submetida a todas as nuanças de vassalagem, que chegava até a servidão completa, passava a maior parte de seu tempo trabalhando gratuitamente nos campos do nobre senhor feudal, além de ter de pagar a ele e ao Estado uma infinidade de tributos. Postos neste caminho, não havia outro remédio para os burgueses senão exigir também a abolição dos privilégios feudais, da isenção de impostos para a nobreza, dos direitos políticos singulares de cada categoria social feudal. E como a sociedade não vivia mais num império mundial como o romano, mas sim dividida numa rede de Estados independentes, que mantinham entre si relações de igualdade e tinham chegado a um grau quase burguês de desenvolvimento, era natural que aquelas tendências adquirissem um caráter geral, ultrapassando as fronteiras dos Estados e era natural, portanto, que a liberdade e a igualdade fossem proclamadas direitos humanos. Para compreender o caráter especificamente burguês de tais direitos humanos, nada mais eloqüente que a Constituição norte-americana, a primeira em que são definidos os direitos do homem, na qual, ao mesmo tempo, se sanciona a escravidão dos negros, então vigente nos Estados Unidos, e se proscrevem os privilégios de classe, enquanto que os privilégios de raça são santificados.

Sabe-se, por outro lado, que a burguesia, desde o instante em que sai do embrião da burguesia feudal, instante em que, de camada feudal se converte em classe moderna, se vê ladeada, sempre e em todas as partes, inseparavelmente, como por sua própria sombra, pelo proletariado. E ao movimento da igualdade burguesa acompanha, também, como a sombra ao corpo, o movimento da igualdade proletária. Desde o instante em que se proclama o postulado burguês da abolição dos privilégios de classe, ergue-se o postulado proletário da abolição das próprias classes postulado esse que adota primeiro a forma religiosa, baseada no cristianismo primitivo, e que, mais tarde, se apoia nas próprias teorias burguesas da igualdade. Os proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a igualdade exista não só na aparência, que não se circunscreva apenas à órbita do Estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-se extensiva à vida social e econômica. E, desde que a burguesia francesa, sobretudo depois da Grande Revolução, passou a considerar em primeira plano a igualdade burguesa, o proletariado francês coloca, passo a passo, as suas próprias reivindicações, levantando o postulado da igualdade social e econômica, e, a partir dessa época, a igualdade se converte no grito de guerra do proletariado, e, muito especialmente, do proletariado francês.

O postulado da igualdade tem, pois, na boca do proletariado, uma dupla acepção. As vezes — como sucedeu sobretudo nos primeiros tempos, na guerra dos camponeses, por exemplo, — este postulado significa a reação natural contra as desigualdades sociais clamorosas, contra o contraste entre ricos e pobres, Senhores e servos, famintos e glutões. Este postulado da igualdade não é mais que uma explosão do instinto revolucionário e somente isso é que o justifica. Outras vezes, no entanto, nasce esse postulado como reação contra o postulado de igualdade da burguesia e tira dele muitas conseqüências avançadas, mais ou menos exatas, sendo utilizado como meio de agitação para levantar os operários contra os capitalistas, usando para isso frases tomadas dos próprios capitalistas e, considerado desse aspecto, se organiza e cai por terra esse postulado juntamente com essa mesma liberdade burguesa. Tanto num como noutro caso, o verdadeiro conteúdo do postulado da igualdade proletária é a aspiração de alcançar a abolição das classes. Qualquer outra aspiração de igualdade que transcenda a tais limites desborda, necessariamente, para o absurdo. Demos já alguns exemplos a este respeito e poderemos encontrá-los em abundância quando chegarmos às fantasias sobre o futuro, do Sr. Dühring.

Como vemos, a idéia da igualdade, tanto na sua forma burguesa como na proletária, é, por si mesma, um produto histórico que somente podia tomar corpo em virtude de determinadas condições históricas, as quais, por sua vez, tinham por trás de si um grande passado. Está longe, pois, de ser uma verdade eterna. E se alguma coisa é atualmente evidente para o grande público — num ou noutro sentido — se, como diz Marx, — alguma coisa “possui já a completa estabilidade de um preconceito popular”, não há de ser devido à sua verdade axiomática, mas por ser resultado da difusão generalizada e da permanente atualidade das idéias do século XVIII. Portanto, se o Sr. Dühring pode se dar ao luxo de colocar os seus dois homens a viver num plano de igualdade, isso se dá. pura e simplesmente, porque para o povo, devido a esse preconceito, parece essa igualdade ser a coisa mais natural do mundo. Não esqueçamos que o Sr. Dühring chama de filosofia natural à sua filosofia, por ser proveniente de toda uma série de coisas que parecem a ele naturalíssimas. Por que é que lhe parecem naturais é uma coisa que não merece a preocupação do Sr. Dühring.


Capítulo XI
MORAL E DIREITO.
LIBERDADE E NECESSIDADE.

 

“No que se refere aos problemas políticos e jurídicos, os princípios proclamados neste Curso repousam nos mais conscienciosos estudos especializados. Portanto, o ponto de partida será... a matéria de que já tratamos... a exposição conseqüente dos resultados das ciências jurídicas e políticas. Comecei por dedicar-me ao estudo da jurisprudência e não só consagrei a ela os três anos usuais da preparação teórica universitária, como ainda mais três anos da prática judicial, ocupados por um constante estudo, principalmente destinado a aprofundar o seu conteúdo científico... Também enfrentaria seguramente a crítica das instituições de direito privado e suas correspondentes imperfeições jurídicas, com idêntico domínio da matéria, se não estivesse certo de conhecer todos os pontos fracos desta especialidade, da mesma forma que conhecia os seus pontos fortes.”

Um homem que possui títulos suficientes para falar de si mesmo em tais termos há de nos infundir, forçosamente, uma confiança ilimitada, desde o primeiro momento, ainda mais se compararmos a sua preparação com os “estudos jurídicos primários do Sr. Marx, tão descuidados, segundo ele mesmo confessa”. A única coisa que nos assombra é que uma crítica às instituições do direito privado, que se ergue com tanta segurança, se reduza a explicar que “a cientificidade da jurisprudência... não é grande”, que o direito civil positivo é a injustiça, pois que sanciona a propriedade baseada na forma e que o “fundamento natural” do direito penal é a vingança, afirmação que não prima pela novidade, a não ser com a roupagem mística do “fundamento natural”. Os resultados da ciência política ficam reduzidos às já conhecidas negociações entre os três homens já conhecidos, um dos quais, até agora, vem exercendo a violência sobre os outros, dois, além do que, o Sr. Dühring investiga conscienciosamente se será o segundo ou o terceiro que, em primeiro lugar, introduzirá a violência ou a escravidão.

Mas, observemos de perto os conscienciosos estudos especializados e o profundo domínio da ciência, adquirido por nosso jurista, durante os três anos de prática judiciária.

Quanto a Lassalle, conta-nos o Sr. Dühring, foi acusado e processado “como instigador de tentativa de roubo de uma maleta”, “mas não foi possível uma condenação judicial, tendo-se aplicado a chamada absolvição de instância, que ainda existia nesse tempo... essa meia absolvição”.

O processo Lassalle, a que se refere, foi julgado em Colônia, em 1848, onde estava em vigor, como em quase toda a província renana, o direito penal francês. Só para os delitos e contravenções políticos era aplicado, em caráter excepcional, o direito nacional prussiano, até que, em abril de 1848, Champhausen aboliu também essa lei de exceção. O direito francês não admite, de modo algum. essa desnecessária categoria do direito prussiano que se chama “instigação a um delito”, nem tampouco, como daí se depreende, a instigação a uma tentativa de delito. Reconhece apenas a excitação ao crime; e esta, para ser condenável, deve ser realizada “por meio de presentes, promessas, ameaças, abuso de prestígio ou de força, astúcia ou artifícios culposos.” (Código Penal, artigo 60). O Ministério Público, mergulhado no direito nacional prussiano, passou por alto, da mesma forma que o Sr. Dühring, sobre a diferença essencial que distingue o preceito francês, concreto e preciso, da confusa imprecisão da norma prussiana, e, desse modo, pretendeu envolver Lassalle num processo tendencioso, tendo saído fragorosamente derrotado. Afirmar que o direito processual francês, assim como o prussiano, admite uma absolvição de instância, uma “meia absolvição”, exige uma audácia que só se pode permitir em quem desconhece completamente o moderno direito francês. O direito francês admite apenas, com relação ao processo penal, uma absolvição, ou uma condenação — não há meio termo.

Podemos, pois, afirmar, que o Sr. Dühring não poderia aplicar a Lassalle, com o modo seguro com que o faz, esta sua “historiografia de grande estilo”, caso tivesse em suas mãos, mesmo que fosse uma só vez, o Código de Napoleão. Não temos outro remédio senão concluir que o Sr. Dühring ignora, de modo absoluto, o único Código Civil moderno que se baseia nas conquistas sociais da Grande Revolução Francesa e que traduz estas conquistas para a linguagem jurídica: o moderno direito francês.

Noutro trecho, quando o Sr. Dühring crítica a instituição do jurado, implantada em todo o continente, depois de se ter aberto o precedente francês, e no qual o veredictum é tomado por maioria de votos, transmite-nos o seguinte ensinamento: “Sim, teremos de aceitar mesmo a idéia, que não é sequer nova na história, segundo a qual, numa comunidade perfeita, deveria ser considerada instituição absurda uma condenação por votos contraditórios... Entretanto, esse modo sério e profundamente espiritual de encarar as coisas há de nos parecer, forçosamente, inadequado, em relação às instituições tradicionais, como já apontamos acima, por ser demasiado bom para elas”.

O Sr. Dühring continua ignorando que a unanimidade dos jurados, não só nas condenações penais, mas também nas sentenças cíveis, é um requisito indispensável de acordo com o direito comum inglês, ou seja, o direito consuetudinário, não escrito, que vem sendo aplicado, na Inglaterra, desde tempos imemoriais, pelo menos do século XIV em diante. Um modo tão sério e tão profundamente espiritual de conceber as coisas, como esse que o Sr. Dühring reputa demasiado bom para o nosso mundo, tem sido aplicado na Inglaterra, a partir do período mais sombrio da Idade Média e, desse país, foi, a seguir, exportado para a Irlanda, para os Estados Unidos da América e para todas as suas colônias, sem que os conscienciosos estudos especializados do Sr. Dühring na matéria lhe tivessem revelado nem uma informação sobre tais fatos. A área, na qual é aplicado o princípio da unanimidade do jurado, não só é infinitamente grande, em comparação com o diminuto raio de ação do direito prussiano, como engloba também um território maior do que todos os países em que o principio da maioria prevalece com relação à instituição do júri. Daí se conclui, pois, que o Sr. Dühring ignora completamente não apenas o único direito moderno, o direito francês, como demonstra mesmo idêntica incultura com respeito ao único direito germânico que se desenvolveu até os nossos dias, estendendo-se aos quatro cantos do mundo, fora de qualquer influência romana: o direito inglês. E é natural que assim seja, pois o próprio Sr. Dühring nos afirma que o pensamento jurídico inglês “não poderia ser comparado com a disciplina dos conceitos puros dos juristas clássicos romanos, forjada dentro da Alemanha”. E acrescenta: “O que poderá significar o mundo de língua inglesa com o amalgama pueril de sua linguagem, ao lado de nosso vigoroso e antiquíssimo idioma?” Basta-nos responder a isto com as palavras de Spinoza: — “Ignorantia non est argumentum”.

Depois da que acabamos de expor, somos forçados a concluir que os conscienciosos estudos especializados do Sr. Dühring se reduziram a três anos de esforços teóricos consagrados ao Corpus Juris e outros três anos de preocupações práticas ao nobre Direito Nacional Prussiano. Estudos bastante meritórios, sem dúvida, e que são suficientes para um respeitabilíssimo juiz distrital ou para um senhor advogado prussiano. Mas quando se deseja criar uma filosofia do direito que seja válida para todos os mundos e todos os tempos, achamos que não seria demais acumular um pequeno conhecimento das instituições jurídicas de países como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos da América, que representaram na História, e ainda representam, um papel bastante diferente que o direito desse recanto da Alemanha onde floresce o direito nacional prussiano. Continuemos o exame das teorias jurídicas do Sr. Dühring.

“A pitoresca mescla de direitos locais, provinciais e nacionais, que se entrechocam nas mais diversas direções, adquirindo, de um modo caprichoso, ora a forma de direito consuetudinário, ora a da lei escrita, reduzindo matérias importantíssimas, não poucas vezes, à simples forma estatutária, este quadro, modelo de desordem e de contradição, no qual, o concreto contradiz o geral, e, às vezes, até mesmo as normas gerais contradizem os preceitos concretos, não é certamente um quadro adequado para permitir a alguém a formação de uma clara consciência jurídica.” Mas, onde é que impera esse quadro de confusão que tanto desnorteia o Sr. Dühring? Que saibamos, essa confusão reina no já referido Direito Nacional Prussiano, no qual, ao lado de um direito nacional, por cima e por baixo dele, vigora toda uma série de direitos provinciais e de estatutos locais, combinados nalgumas localidades com o direito comum e com outras complicações do mesmo estilo, numa inacabável gama de variáveis relativas, que provocam em todo o jurista profissional esse grito de angústia que com tanta simpatia recolhe aqui o Sr. Dühring. Mas nem sequer precisa cruzar as fronteiras de sua amada Prússia; basta-lhe dar um passeiozinho pelo Reno para se convencer de que aqui não exista, há mais da 70 anos, nada disso que ele descreve, sem falar de outros países civilizados em que faz muito tempo que esse antiquado regime desapareceu.

Continuemos: “De um modo menos flagrante, observamos que a responsabilidade natural do indivíduo fica encoberta pelos juízos e pelos atos coletivos, secretos e, portanto. anônimas. dos tribunais sob a forma de colégios ou de outros órgãos da autoridade, nos quais se disfarça a contribuição pessoal de cada membro.” E noutro trecho: “No atual estado de coisas, seria considerado surpreendente e excessivamente rigoroso um postulado que não permitisse que a responsabilidade individual fosse encoberta ou disfarçada por tribunais colegiais.” Talvez seja uma noticia surpreendente para o Sr. Dühring. a de que, nos territórios em que vigora o direito inglês, todos os juizes do tribunal colegial são obrigados a emitir despachos e a expender individualmente a sua opinião em sessões públicas; e talvez se surpreenda também quando souber que os organismos administrativos colegiais. que nada tem de eletivos e de atuação e votação públicas, são uma instituição eminentemente prussiana, desconhecida na maioria dos países, razão pela qual o seu postulado acima referido somente pode ser reputado surpreendente e excessivamente rigoroso... na Prússia.

A mesma coisa acontece com os seus lamentos a respeito das intromissões injustificadas do ritual religioso no nascimento, no matrimônio, na morte e nos enterros; de todos os países civilizados de certa extensão, tais lamentos se aplicam somente à Prússia, e, mesmo nesta, já se tornam desnecessários desde a implantação do sistema do Registro Civil. Até mesmo um Bismarck foi capaz de resolver, há pouco tempo, por uma simples lei, o problema que o Sr. Dühring não sonhava que se pudesse resolver a não ser por meio de seus planos “socialitários” sobre o futuro. Na sua “queixa a respeito da defeituosa preparação dos juristas para exercer a sua profissão”, aliás extensiva até “aos funcionários da administração”, volta a martelar a tecla das lamentações especificamente prussianas. Também o anti-semitismo, tendo ou não importância e que é levado a extremos ridículos, merecendo o entusiasmo do Sr. Dühring, nos demonstra a mesma qualidade, se não especificamente prussiana, pelo menos característica de uma determinada região da Prússia: o Leste do Elba.

Com efeito, este filósofo da realidade, que contempla com um desprezo soberano todos os preconceitos e superstições, se deixa influenciar profundamente pelas quimeras pessoais até o ponto de querer qualificar o preconceito popular contra os judeus, herdado da beataria medieval, de “preconceito natural” baseado em “fundamentos naturais” lançando a seguinte afirmação digna de nota: “O socialismo é a única força capaz de fazer frente a Estados de população com uma forte mescla judia.” (Estados de mescla judia! Que linguagem!)

Parece que é suficiente. Todas aquelas pretensões de erudição jurídica, se reduzem — no melhor dos casos — à vulgaríssimos conhecimentos profissionais de um vulgaríssimo demagogo prussiano. E a ciência jurídica e política, cujos frutos nos são oferecidos, consequentemente, pelo Sr. Dühring, se restringe ao raio de ação do direito nacional prussiano, Afora os conhecimentos de direito romano que possui qualquer profissional do direito, atualmente, mesmo na Inglaterra, a sua ciência jurídica limita-se simplesmente ao direito nacional prussiano, esse código ilustrado do despotismo patriarcal, escrito num alemão que se parece com o que aprendeu o Sr. Dühring, código que parece estar cheio da era pré-revolucionária, pelas suas glórias morais, pelo seu estilo vago e pela falta de consciência jurídica, bem como pelos açoites que adotava como meio de tortura e como pena. Fora disso, nada reza conforme a cartilha do Sr. Dühring: para ele não existe o moderno direito civil francês, nem tampouco o direito inglês, com a sua peculiaríssima evolução e suas garantias de liberdade pessoal, desconhecidas estas em todo o continente. Uma filosofia “que não se deixa limitar pela aparência de nenhum horizonte, mas que revolve numa profunda comoção todas as terras e todos os céus interiores e exteriores da natureza”, não tem outro horizonte real senão as fronteiras das seis províncias orientais do velho reino da Prússia, e, também, uns dois ou três palmos de terra, que ficam do outro lado dessas fronteiras e nos quais vigora o nobre direito prussiano; fora desses horizontes, não estremecem terras nem céus, não se revolve natureza alguma exterior ou interior; o que somente se agita é um quadro da mais crassa ignorância, com respeito ao que ocorre no resto do mundo.

Não é fácil falar de moral e de direito sem tocar no problema do chamado livre arbítrio, o problema da responsabilidade humana, o problema das relações entre a necessidade e a liberdade. Em relação a este problema, a filosofia da realidade nos oferece não apenas uma, mas duas soluções.

“Todas essas falsas teorias da liberdade devem ser substituídas pelo caráter da relação, em que se fundem, como a experiência nos revela, partindo, de um lado, a penetração racional e, de outro, os impulsos instintivos, como para formar uma força intermediária. A observação fornece-nos os fatos fundamentais dessa espécie de dinâmica e podemos também calculá-los, com antecedência, de uma maneira mais ou menos boa, no que concerne ao gênero e à grandeza, com relação mesmo ao que não foi observado. Desse modo, caem por terra todas essas tolas figurações a respeito da liberdade interior com as quais se remoeram e se torturaram os homens durante milhares de anos, deixando, em seu lugar, alguma coisa de positivo e de útil para a organização prática da vida.” De acordo com essa idéia, a liberdade consiste em que a penetração nacional leva o homem para a direita e os impulsos irracionais para a esquerda, formando um paralelogramo de forças em que o movimento real toma a direção da diagonal. A liberdade seria, pois, a linha média entre a razão e o instinto, entre a inteligência e a irreflexão, poder-se-ia determinar o grau de liberdade, em cada indivíduo, de modo empírico, por meio de uma “equação pessoal”, para dizê-lo em linguagem astronômica. Vamos encontrar, páginas adiante, a seguinte afirmação: “Baseamos a responsabilidade moral na liberdade, mas esta significa para nós apenas a receptividade do homem em relação aos móveis conscientes, como resultado da inteligência natural e adquirida. Todos estes móveis agem com o caráter inflexível das leis naturais, apesar de se perceber um possível antagonismo entre eles; e é precisamente com este caráter necessário e inelutável que podemos contar como pontos de apoio para as alavancas morais.”

Essa segunda definição da idéia da liberdade, que se choca flagrantemente com a primeira, não é mais do que uma fraca vulgarização da filosofia hegeliana. Foi Hegel o primeiro que soube expor de um modo exato as relações entre a liberdade e a necessidade. Para ele, a liberdade não é outra coisa senão a convicção da necessidade. “A necessidade somente é cega enquanto não compreendida,” A liberdade não reside, pois, numa sonhada independência em relação às leis naturais, mas na consciência dessas leis e na correspondente possibilidade de projetá-las racionalmente para determinados fins. Isto é verdade não somente para as leis da natureza exterior, mas também para as leis que presidem a existência corporal e espiritual do homem: duas espécies de leis que podemos distinguir, quando muito, em nosso pensamento. mas que, na realidade, são absolutamente inseparáveis. O livre arbítrio não é. portanto, de acordo com o que acabamos de dizer, senão a capacidade de decisão com conhecimento de causa. Assim, pois, quanto mais livre, for o juízo de uma pessoa com relação a um determinado problema, tanto mais nítido será o caráter de necessidade determinado pelo conteúdo desse juízo; ao contrário, a falta de segurança que, baseada na ignorância, parece escolher, livremente, entre um mundo de possibilidades distintas e contraditórias, está demonstrando, desse modo, justamente a sua falta de liberdade, está assim demonstrando que se acha dominada pelo objeto que pretende dominar, A liberdade, pois, é o domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência das necessidades naturais; como tal é, forçosamente, um produto da evolução histórica. Os primeiros homens que se levantaram do reino animal eram, em todos os pontos essenciais de suas vidas, tão pouco livres quanto os próprios animais; cada passo dado no caminho da cultura é um passo no caminho da liberdade. Nos primórdios da história da humanidade, realizou-se a descoberta que permitiu converter o movimento mecânico em calor: a produção do fogo pela fricção; o progresso tem, atualmente, como sua etapa terminal, a descoberta que transforma, inversamente, o calor em movimento mecânico: a máquina a vapor. E apesar do colossal abalo de libertação que a máquina a vapor trouxe ao mundo social — e que até hoje ainda não deu sequer a metade de seus frutos — é indubitável que a produção do fogo pela fricção, nos tempos primitivos, foi superior àquela descoberta como condição emancipadora. O fogo, obtido dessa forma, foi que permitiu ao homem o domínio sobre uma força da natureza, emancipando-o definitivamente das limitações do mundo animal. A máquina a vapor não poderá jamais representar um passo tão gigantesco na história do homem, por mais que apareça, ante nossos olhos, como a representação de todas essas gigantescas forças produtivas a ela incorporadas e sem as quais não seria possível instaurar um regime social livre de todas as diferenças de classe, no qual desapareçam as preocupações com relação aos meios de subsistência individual e se possa falar, pela primeira vez, de uma liberdade verdadeiramente humana, de uma vida em harmonia com as leis naturais que conhecemos. O simples fato de toda a história anterior à nossa época poder ser designada como a história do período que começa com a descoberta prática, que converte o movimento mecânico em calor e culmina com a descoberta que transforma o calor em movimento mecânico, esse simples fato indica como é jovem ainda a história humana, e também como seria ridículo querer imprimir às nossas idéias atuais um caráter absoluto.

Mas o Sr. Dühring compreende a história de outro modo. De maneira geral, a história, concebida como sendo a história dos erros, da ignorância e da barbárie, da violência e da escravização, é matéria que repugna à filosofia da realidade; para essa filosofia, a história, focalizada concretamente, se divide em duas grandes épocas, a saber: 1) do estado da matéria idêntica a si mesmo até a Revolução Francesa; e 2) da Revolução Francesa até o Sr. Dühring. Neste segundo período, o século XIX continua sendo “ainda essencialmente reacionário e, no terreno espiritual, chega a ser ainda mais (!) reacionário do que o século XVIII”, apesar de já trazer em suas entranhas o socialismo e, com este, “o germe de um renascimento muito mais poderoso do que o concebido (!) pelos precursores e heróis da Revolução Francesa”. O desprezo em que a filosofia da realidade tem toda a história anterior a este período se justifica da maneira seguinte: “Os poucos milênios a que se pode remontar a recordação histórica, por meio de documentos originais, para estabelecer a estrutura da humanidade até os nossos dias, não significam grande coisa, quando se pensa na série de milênios que ainda estão por vir... O gênero humano, considerado como um todo, é ainda muito jovem, e, quando chegar o dia em que as documentações científicas retrospectivas possam operar com dezenas de milhares e não apenas com milhares de anos, o caráter espiritualmente pueril e incipiente de nossas instituições ter-se-á imposto, indiscutivelmente, como sendo uma hipótese evidente sobre a nossa época, que será, então, considerada como a mais primitiva das antigüidades.”

Sem nos determos na configuração realmente “vigorosa e antiquíssima” dessa última frase, teremos que observar duas coisas. Em primeiro lugar, essa “primitivíssima antigüidade” será sempre, aconteça o que acontecer, um período histórico de grande interesse para todas as gerações futuras, pois que constitui a base de todo o progresso posterior, tendo por ponto de partida a emancipação do homem das condições do reino animal e tendo, por conteúdo, a superação de dificuldades tão grandes como jamais voltarão a se contrapor ao homem associado do futuro. Em segundo lugar, o cancelamento de toda essa primitivíssima antigüidade, em relação à qual os futuros períodos históricos, que não sofrerão contraposição dos diques das mesmas dificuldades e obstáculos, prometem muitos triunfos científicos, técnicos e sociais tão diferentes, esse cancelamento é, logo à primeira vista, um modo brilhantemente escolhido para se poder ditar normas aos séculos futuros por meio de verdades definitivas e inapeláveis, de verdades imutáveis e de concepções baseadas no conhecimento das coisas até as suas raízes, descobertas no estudo da infantilidade e da incipiência espiritual de nosso século, tão “atrasado” e “retrógrado”. É preciso que se seja um Richard Wagner filósofo — embora sem o mesmo talento — para não se compreender que todos os desprezos, que se costumam lançar sobre a história humana anterior aos nossos dias, acabam por se voltar, necessariamente, contra o próprio resultado final de suas investidas, a chamada filosofia da realidade.

Um dos capítulos mais eloqüentes dessa nova ciência radical é o que trata da individualização e da potenciação do valor da vida. No decorrer de três capítulos inteiros vemos fluir, aos borbotões, em fluxos irresistíveis, sempre os mesmos lugares comuns, vestidos de roupagens oraculares. Limitar-nos-emos, pois, infelizmente, a oferecer aos nossos leitores, apenas um par de botões como amostra de toda essa riqueza.

“A essência profunda de todas as sensações, e, portanto, de todas as formas subjetivas de vida, repousa na diferença de estados... Mas com relação à vida íntegra (!) pode-se afirmar simplesmente (!) que o que exalta a sensação de vida e desenvolve os impulsos decisivos não é a imobilidade, mas, sim, a passagem de uma situação de vida para outra... O estado quase idêntico a si mesmo, inerte por assim dizer, como que em equilíbrio, não significa nada de importante qualquer que seja o caráter com que se apresente, como uma prova de vida... O hábito e a assimilação, por assim dizer, acabam por converter-se em algo completamente indiferente, que não se diferencia em grande coisa da morte. Em resumo, manifestar-se como uma espécie de reação negativa de vida, a tortura do tédio... Numa vida estagnada, desaparece, para os indivíduos como para os povos, toda a paixão e todo o interesse pela existência. A nossa lei da diferença explica todos esses fenômenos”.

É verdadeiramente incrível a rapidez com que o Sr. Dühring sabe pôr em prática as suas conclusões autenticamente originais. Nas linhas anteriores, a filosofia da realidade foi explicada pelo lugar comum de que o friccionamento constante de um mesmo nervo ou a repetição de um mesmo friccionamento acaba por fatigar a qualquer nervo e a qualquer sistema nervoso. Assim, em circunstâncias normais, impõe-se uma interrupção ou uma mudança das reações nervosas, lugar comum esse, que é encontrado, há já muitos anos, em qualquer manual de fisiologia e que qualquer pessoa conhece por experiência própria; mas apenas foi revestida essa velha vulgaridade pelo misterioso postulado de que a essência profunda reside na diferença dos estados, da qual emerge instantaneamente “a nossa lei da diferença”. E essa lei da diferença “explica perfeitamente” toda uma série de fenômenos que não são, por sua vez, mais que outros tantos exemplos e ilustrações de como são agradáveis as variações na utilização da cada nervo, fato esse que não necessita de demonstração nem para a mais vulgar inteligência de filisteu e não adquire nem um átomo de clareza pelo fato de ter sido invocada em seu apoio essa pretensa lei da diferença.

Não se pense que com isso esgotamos a radicalidade “de nossa lei da diferença”. “A graduação das idades e as mudanças nas situações da vida, que dela derivam, fornecem um exemplo, bem ao nosso alcance, para ilustrar o nosso princípio da diferença. A criança, o adolescente, o moço, o homem, não experimentam a força de suas respectivas sensações de vida, quer em cada estado fixo em que se encontram, quer nas épocas de transição de um para outro estágio.” Mas, continua ainda: “Nossa lei da diferença pode ter uma aplicação ainda mais remota quando se tem em conta o fato de que a repetição do fenômeno já experimentado ou realizado não oferece encanto algum”. Deixemos ao leitor que tire, por si mesmo, as suas conclusões, sobre o remate oracular em que vão culminar todas essas profundas e “radicais” afirmações. Não é de estranhar que, ao terminar o livro, possa o Sr. Dühring exclamar, com um ar de triunfo: “Para a apreciação e a potenciação do valor da vida, a lei da diferença teve um caráter decisivo, tanto prática como teoricamente”. Decisivo não só para esse efeito, mas também para a apreciação que faz o Sr. Dühring do nível espiritual de seu público: pelo visto, ele parte do suposto de que todos os seus leitores são uns asnos ou uns mentecaptos.

Um pouco mais adiante, vamos encontrar as seguintes regras, extraordinariamente práticas, de vida: “Os meios para incentivar o interesse geral pela vida” (bela missão para filisteu ou para quem deseja chegar a sê-lo), “consistem em deixar que se desenvolvam ou se substituam uns aos outros os interesses concretos, por assim dizer elementares, de que se compõe a vida total, tendo como base os seus períodos naturais. Simultaneamente, dentro de um mesmo estado, deverá também ser utilizada a gradação na série dos apetites baixos e fáceis de satisfazer, até as emoções mais altas e de eficácia mais duradoura, de modo a evitar que se produzam lacunas de uma total ausência de interesse. Além disso, tudo dependerá de se precaver contra a tendência das tensões, que se produzem naturalmente ou no curso normal da existência social, se acumularem ou crescerem de um modo arbitrário ou a tendência de uma aberração inversa, a de se satisfazer à menor reação impedindo desse modo o desenvolvimento de um apetite capaz de causar um prazer. A observação do ritmo natural é, neste como noutros casos, a condição prévia que determina o movimento constante e atrativo. Não devemos tampouco nos propor o objetivo irrealizável de ampliar os encantos de uma situação qualquer além dos limites marcados pela natureza ou pelas circunstâncias, etc. etc.” O homem honesto, que aceitar como norma de vida todos esses oráculos solenes com que o pedantismo caviloso de um filisteu reveste as mais desconexas vulgaridades, não terá que se queixar, certamente, de “lacunas completamente desprovidas de interesse” pois gastará todo o seu tempo para preparar e pôr em ordem os seus prazeres obedecendo a esta receita e não lhe restará, sequer, um minuto livre para os próprios gozos.

É preciso viver a vida, a vida íntegra. O Sr. Dühring nos proíbe apenas duas coisas: “a imundície e o uso do tabaco” e as bebidas e alimentos que “provocam sensação de nojo ou contêm qualquer outra qualidade contrária às sensações delicadas”. Mas como, no seu curso de economia, o Sr. Dühring dedica uma série de ditirambos à destilação de aguardente, devemos por isso entender que a sua proibição não é extensiva a estas bebidas, mas somente ao vinho e à cerveja. Proíbe-nos, também, o uso da carne e essa proibição eleva a filosofia da realidade àquelas alturas em que se colocou, em seu tempo, com tanto êxito. Gustavo Strouvé: nas alturas da mais pura futilidade. Ademais, podia o Sr. Dühring ser um pouco mais liberal no que se refere aos espirituosos. Um homem que reconhece que não pode encontrar ainda a ponte entre a estática e a dinâmica, devia ter razões de sobra para julgar com certa benevolência a um pobre diabo, que, tendo dobrado o cotovelo mais do que podia, busca também, em vão, a ponte entre a dinâmica e a estática.


Capítulo XII
DIALÉTICA.
QUANTIDADE E QUALIDADE

 

“A primeira e mais importante das teses sobre as propriedades lógicas fundamentais do ser refere-se à exclusão da contradição. O contraditório é uma categoria que somente pode ocorrer numa combinação especulativa, mas nunca na realidade. Não existem contradições nas coisas, ou, dito de outro modo, a contradição posta na realidade é o cúmulo do absurdo... O antagonismo de forças que se medem umas às outras em determinado sentido e, inclusive, a forma fundamental de todas as ações na realidade do mundo e dos seres que nele habitam. Mas esta divergência entre as diferentes direções de força dos elementos e dos indivíduos, não se concilia, de modo algum, com a idéia de absurdos contraditórios... Podemo-nos, sentir, neste ponto, satisfeitos por poder desfazer, com uma imagem clara do verdadeiro absurdo que representa a contradição na realidade, a névoa que parece levantar-se dos pretendidos mistérios da lógica, demonstrando a inutilidade do incenso que se gastou, aqui e ali, em homenagem ao fetiche de barro da dialética da contradição, grosseiramente talhado e burilado na esquemática dos antagonismos do mundo”. É isso, mais ou menos, tudo o que o Curso de Filosofia nos diz sobre a dialética. Na sua História Crítica, o Sr. Dühring focaliza, de um modo completamente diferente, a dialética da contradição e nela, principalmente, a doutrina de Hegel. “Na lógica hegeliana, ou melhor, na teoria do Logos, o contraditório não reside no pensamento, que, por sua própria natureza, só pode ser representado como função subjetiva e consciente, mas que existe objetivamente e pode ser apalpado, digamos, de um modo corporal, nas coisas e nos próprios fenômenos; ou seja, o contra senso não é de fato uma combinação impossível de pensamentos, mas sim uma potência real. A realidade do absurdo é o primeiro artigo de fé na unidade hegeliana da lógica e da falta de lógica... Quanto mais contraditório, mais verdadeiro, ou melhor, quanto mais absurdo, mais verossímil. Esta máxima, que nem sequer é nova, pois provém da teologia da revelação e da mística, é a expressão pura e simples do chamado principio dialético.”

A idéia contida nesses dois trechos citados pode ser resumida pela afirmação de que a contradição é o absurdo e que, portanto, não pode se dar no mundo da realidade. Com efeito, para quem se ufana de possuir um sadio senso comum esta tese terá a mesma força de evidência que teria se disséssemos que uma reta não pode ser curva, nem uma curva pode ser reta. Entretanto, o cálculo diferencial, apesar de todos os protestos do sadio senso comum, equipara, em certas circunstâncias, as retas às curvas, atingindo, assim, resultados que jamais poderiam ser alcançados se os matemáticos comungassem com o presunçoso e sadio senso comum em considerar como absurda a identidade da curva e da reta. Considerando-se o papel de suma importância que a chamada dialética da contradição tem desempenhado na filosofia, desde os gregos antigos até os filósofos atuais, mesmo um adversário um pouco mais forte do que o Sr. Dühring sentir-se-ia na obrigação de lançar contra ela argumentos que não fossem apenas uma afirmação e umas tantas injúrias.

Certamente, desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se fossem estáticas e inertes, contemplando-as isoladamente, cada uma de per si, no tempo e no espaço, não descobriremos nestas coisas nenhuma contradição. Encontrar-nos-emos com determinadas propriedades, umas comuns e outras diferentes e até mesmo contraditórias entre si, mas que não encerram uma contradição verdadeira uma vez que esta se encontra distribuída entre diversos objetos. Nos limites desta zona de observação podemos aplicar o método vulgar da metafísica sem nenhum perigo. Mas a coisa é diferente se quisermos focalizar os objetos dinamicamente, acompanhando-os em sua mobilidade, vendo-os transformar-se, viver, e influir uns sobre os outros. Ao pisar neste terreno, cairemos imediatamente numa série de contradições. O próprio movimento, por si mesmo, é uma contradição; o deslocamento mecânico de um lugar para outro somente pode ser realizado por estar um corpo, ao mesmo tempo, no mesmo instante, num e noutro lugar e também pelo fato de estar e não estar o corpo ao mesmo tempo no mesmo local. A sucessão continua de contradições desse gênero, ao mesmo tempo formadas e solucionadas, é precisamente o que constitui o movimento.

Temos, pois, diante de nós, uma contradição “que existe objetivamente e que pode ser apalpada, digamos, de um modo corporal, nas coisas e nos próprios fenômenos”. Que diz a este respeito o Sr. Dühring? O Sr. Dühring afirma que, até hoje, “na mecânica racional não se encontra nenhuma ponte que ligue o estritamente estático e o dinâmico”. O leitor, finalmente, perceberá agora o que está oculto por detrás dessa frase da predileção do Sr. Dühring e que se resume no seguinte: A inteligência que só sabe pensar metafisicamente não pode, de modo algum, passar da idéia do repouso à idéia do movimento, porque o obstáculo da contradição lhe barra o caminho. Para os que assim pensam, o movimento é, como contradição, alguma coisa de totalmente inconcebível. E ao afirmar que o movimento é inconcebível dá como reconhecida, sem querer, a existência dessa contradição, reconhecendo, portanto, a existência de uma contradição que se encontra objetivamente nas coisas e nos fenômenos e, além disso, que esta contradição é uma força efetiva.

E, se o simples movimento mecânico, a simples mudança de um para outro lugar, contém uma contradição, suponha-se então a série de contradições que estarão contidas nas formas superiores de movimento da matéria, e, em particular, na vida orgânica e na sua evolução. Vimos atrás que a vida consiste, precisamente, essencialmente, em que um ser é, no mesmo instante, ele mesmo e outro. A vida não é, pois, por si mesma, mais que uma contradição encerrada nas coisas e nos fenômenos, e que se está produzindo e resolvendo incessantemente: ao cessar a contradição, cessa a vida e sobrevem a morte. Vimos também como, no próprio mundo do pensamento, não poderíamos estar livres de contradições, como, por exemplo, a contradição entre a capacidade de conhecimento do homem, ilimitada interiormente e a sua existência real, no seio de um conjunto de homens, cujo conhecimento é limitado e finito exteriormente. Essa contradição, no entanto, se resolve na sucessão infinita, pelo menos para nós, das gerações, num progresso ilimitado.

Como já vimos, uma das bases fundamentais das matemáticas superiores é, precisamente, a contradição, que consiste em equiparar, em certas circunstâncias, as retas às curvas. Uma outra contradição das matemáticas superiores é a que se observa quando se cruzam duas linhas; estas, na distância de cinco ou seis centímetros do ponto de interseção, se tornam linhas paralelas, que, por mais que se prolonguem, até o infinito, não se hão de encontrar. Entretanto, é por estas contradições e por outras, ainda mais acentuadas, não só que se encontram resultados exatos, como também se alcançam resultados perfeitamente inexeqüíveis nos limites das matemáticas inferiores.

Não nos é necessário, todavia, sair dos quadros limitados destas matemáticas inferiores, para encontrar contradições em todos os terrenos. Não há uma contradição, por acaso, no fato de que uma raiz de A seja uma potência de A, e, ainda mais, que encontremos: A1/2=√-2?

Não há uma contradição no fato de que uma grandeza negativa não possa ser quadrado de nenhuma outra, embora toda grandeza negativa multiplicada por si mesma dê um quadrado positivo? A raiz quadrada de menos um (- 1) é, pois, não somente uma contradição, mas simplesmente uma contradição absurda, um verdadeiro contra-senso. Entretanto,√-1 é, em muitos casos, o resultado necessário de uma operação matemática exata; e mesmo, onde estariam as matemáticas, tanto as elementares como as superiores, se lhes fosse proibido operar com a raiz quadrada de menos um?

As próprias matemáticas, ao tratar das operações sobre grandezas variáveis, penetram no terreno dialético, e é significativo o fato de que foi o filósofo dialético Descartes quem levou este progresso ao campo das matemáticas. Pois bem; a relação que existe entre as matemáticas das grandezas variáveis e as de grandezas invariáveis, é a mesma que medeia entre a lógica dialética e a metafísica. Isso não impede, de modo algum, que a grande maioria dos matemáticos não aceite a dialética fora desses limites e não poucos deles continuem a servir-se dos métodos obtidos pelo método dialético, à maneira antiga, limitada e metafísica.

Poderíamos deter-nos a examinar mais de perto o antagonismo de forças do Sr. Dühring e a esquemática antagônica do mundo, se, sobre esse assunto, ele nos oferecesse alguma coisa a mais que simples frases. Depois de as ter formulado, não sabe o nosso autor apresentar esse antagonismo em ação, nem uma só vez, na esquemática do mundo, nem na filosofia da natureza. Esta é a maior prova de que o Sr. Dühring nada sabe fazer de positivo com “esta forma fundamental de todas as ações na existência do mundo e dos seres que o habitam”. Quando se tem conhecimento de como se reduziu a “teoria do ser” de Hegel a esta vulgaridade de forças que se movimentem em direção determinada, mas não por um processo de contradições. o melhor que se tem a fazer é evitar cuidadosamente qualquer aplicação de um tal lugar comum.

Um outro pretexto em que se apoia o Sr. Dühring para dar vazão à sua cólera antidialética é O Capital de Marx. “Falta de lógica natural e inteligível, que serve para evidenciar os labirintos e arabescos de idéias retorcidamente dialéticas... Ao trecho que temos em nossa frente deve ser aplicado o princípio de que, em certos casos e mesmo de modo geral, (!) em conformidade com o conhecido preconceito filosófico, deve encontrar-se o todo em cada uma das coisas e cada uma das coisas deve ser encontrada no todo e, de acordo com esta idéia de mistura e confusão, tudo é, em última análise, uno.” Isso quer dizer que, penetrando no “conhecido preconceito filosófico”, o Sr. Dühring pode prever com absoluta segurança qual será o “fim” de toda a filosofia econômica marxista, e, portanto, qual o conteúdo dos restantes volumes de O Capital faz essa declaração sete linhas depois de ter afirmado que “entretanto, não há realmente nenhuma maneira de se saber o que virá de fato, falando como homem e como alemão, nos dois volumes.”

Não é a primeira vez que as obras do Sr. Dühring se vêem incluídas entre as “coisas” em que “o contraditório existe objetivamente e pode ser apalpado, digamos, de um modo corporal”. Isso não impede, entretanto, de prosseguir num tom triunfal: “É de se esperar, todavia, que a verdadeira lógica triunfará sobre a sua caricatura... O ar doutoral e a banalização dos mistérios dialéticos não tentarão àqueles que conservam um pouco de senso comum e não se deixam envolver por essas algaravias de pensamento e de estilo... Na agonia destes últimos restos das tolices dialéticas, perderão estes processos de mistificação, a sua enganosa influência... e já ninguém se considerará obrigado a se atormentar na procura de uma profunda sabedoria lá onde, uma vez posto a nu o núcleo de todas essas artimanhas retorcidas, encontraremos, na melhor das hipóteses, vestígios de teorias vulgares ou, então, lugares comuns... É absolutamente impossível reproduzir os labirintos (de Marx) referentes à teoria do Logos, sem que se tenha de prostituir a lógica verdadeira”. O método de Marx consiste em “realizar milagres dialéticos, para pasmo dos seus crentes”, etc., etc.

Também aqui se cogita de analisar a exatidão ou a falsidade dos resultados econômicos a que chegam as investigações de Marx, mas apenas se analisa o método dialético por ele aplicado. Pode-se bem afirmar que a maioria dos leitores de O Capital começaram só agora a tomar conhecimento do que na realidade leram, graças ao Sr. Dühring. E, entre esses leitores, se encontra o próprio Sr. Dühring que, em 1867 (Erganzungsblatter, III, caderno 3) pode, todavia, fazer um resumo deste livro, relativamente racional para um pensador de seu calibre, sem se sentir na obrigação de traduzir o desenvolvimento da obra de Marx em termos dühringuianos, como agora acredita indispensável. Embora já naquela época incorresse no deslize de confundir a dialética marxista com a hegeliana, não tinha ainda perdido por completo a capacidade de distinguir o método dos resultados conseguidos por meio dele, nem tampouco o dom de compreender que, para refutar de um modo concreto estes resultados, não basta lançar por terra, de um modo geral, o método.

Mas a verdadeira surpresa que nos tinha reservado o Sr. Dühring é a de que, do ponto de vista marxista, “em última análise tudo é uno”, ou seja, que, para Marx, por exemplo, capitalistas e operários assalariados, regimes de produção feudal, capitalista e socialista, “tudo é uno” e acabamos, no fim de contas, por concluir que Marx e o Sr. Dühring são também uno e o mesmo. Para não cair em tal tolice e em semelhante simplismo, não temos mais que um caminho, que é o de supor que, pronunciando a palavra “dialética”, o Sr. Dühring se vê transportado automaticamente para um estado de irresponsabilidade, no qual, partindo de uma idéia de balbúrdia e confusão, acaba por achar que tudo é a mesma coisa, parecendo-lhe que é “um todo” tudo quanto diz e faz.

Temos aí uma prova do que o Sr. Dühring chama “o meu grandioso sentido histórico” ou, como diz noutra parte, “o processo sumário que ajusta contas com a espécie e com o tipo sem, entretanto, se dignar a descer até prestar honrarias ao que Hume chamava a plebe erudita, pondo a nu a sua ignorância com uma minuciosidade microscópica”; este processo que é “no mais alto e mais nobre dos estilos, o único admitido pelos interesses da verdade plena e que é compatível com os deveres para com o público não arregimentado”. A verdade é que o grandioso sentido histórico e essa liquidação sumária de contas “com a espécie e com o tipo” são bastante cômodos para o Sr. Dühring pois lhe permitem desprezar, como microscópicos e nulos, todos os fatos concretos, eximindo-se do dever de provar alguma coisa para se limitar a construir frases gerais e lançar afirmações e palavras vistosas. Além disso, esse processo tem a vantagem de não fornecer ao adversário qualquer pretexto material, não lhe deixando, portanto, a menor possibilidade de refutação que não seja a de lançar, por sua vez, umas tantas afirmações sumárias e grandiosas, perdendo-se em frases gerais e respondendo às palavras do Sr. Dühring com outras tantas palavras vistosas, que é o que se pode dizer — devolver a pelota; mas este processo não está no gosto de todos. Devemos por isso solicitar ao Sr. Dühring que, excepcionalmente, abandone o seu estilo alto e nobre para nos oferecer, ao menos, dois exemplos dos erros em que incorre Marx em sua reprovável teoria do Logos.

“Como é cômico, por exemplo, o apelo à idéia nebulosa e confusa de Hegel, de que a quantidade se converte em qualidade e, portanto, de que, ao chegar em determinado limite, uma quantidade aumentada, pelo simples fato de crescer quantitativamente, se converte em capital.”

Com efeito, a idéia exposta dessa maneira pelo Sr. Dühring, depois de “podada” cuidadosamente, não se pode negar que é bastante esquisita. Vejamos, porém, que aspecto apresenta a idéia no original, tal como Marx a expõe. Na página 313 (2a. edição de O Capital) Marx extrai da investigação anteriormente feita sobre o capital constante e o capital variável e sobre a mais-valia, a conclusão de que “nem toda a soma de dinheiro ou de valor, qualquer que seja, pode ser convertida em capital, sem que esta transformação suponha antes, a existência de um determinado mínimo de dinheiro ou de valor de troca nas mãos do possuidor de dinheiro, ou de mercadorias.” Dá como exemplo que, num ramo qualquer de trabalho, o operário trabalha para si mesmo 8 horas diárias, ou seja, para criar o valor de seu salário, trabalhando outras 4 horas para o capitalista a fim de produzir a mais-valia que vai então para os seus bolsos. Para isso, deve, necessariamente, existir alguém que disponha de uma soma de valor que lhe permita fornecer aos operários matérias-primas, meios de trabalho e salários, do modo a poder embolsar, todos os dias, a mais-valia necessária para poder viver, pelo menos, tão bem como dois de seus operários. Mas como a produção capitalista não tem como objetivo simplesmente o de viver e se sustentar, mas também, o de incrementar a riqueza, não será suficiente que o nosso empresário tenha esses elementos, para que, utilizando os seus dois operários, seja um verdadeiro capitalista. Para poder viver duas vezes melhor do que um operário comum e para voltar a transformar, além disso. em capital, a metade da mais-valia produzida, deveria dar trabalho a oito operários, possuindo, portanto, quatro vezes a soma de valor de que tiveram necessidade para sustentar dois trabalhadores. Somente depois de estabelecer estas condições e, de acordo com outros desenvolvimentos chamados a ilustrar e a fundamentar o fato de que não basta uma pequena soma qualquer de valor para que se possa converter em capital, mas que, para isso, um período todo de evolução e um ramo inteiro de produção deverão ultrapassar um determinado limite mínimo, somente depois de tudo isso e em relação a estes fatos é que Marx adianta: “Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em variações qualitativas.“

Poderá o leitor, agora, admitir o alto e nobilíssimo estilo que permite ao Sr. Dühring, atribuir a Marx justamente o contrário do que ele na realidade diz. Marx afirma que o fato de uma soma do valor poder se converter em capital somente quando ultrapassa um limite mínimo, que varia segundo as circunstâncias, mas que, em cada caso, é um limite concreto, que esse fato prova a verdade da lei hegeliana. E que é que o Sr. Dühring diz sobre essa afirmação? O seguinte: “Porque, de acordo com a lei formulada por Hegel a quantidade se transforma em qualidade, por isso e em virtude disso, é que uma quantidade aumentada, ao chegar a um determinado ponto, se converte em capital. Como vemos, é justamente o contrário.”

Quando examinávamos a crítica que o Sr. Dühring fazia de Darwin, tivemos ocasião de conhecer esse método, que consiste em falsear as citações, sem dúvida porque assim o exige “o interesse da verdade plena” e assim o reclamam os “deveres para com o público não arregimentado”. Essa prática constitui uma necessidade interna arraigada na filosofia da realidade. O que não se pode negar é que ela oferece, a quem a maneja. um processo bastante “sumário”. Além disso, o Senhor Dühring apresenta as coisas como se Marx tivesse falado de uma “quantidade aumentada” qualquer, quando, na realidade, se trata, concretamente, de uma quantidade invertida em matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário. O Sr. Dühring as prepara de modo a que apareçam nos lábios de Marx como um puro absurdo, e, logo depois, comete a desfaçatez de considerar “cômico” e ridículo o absurdo que ele mesmo acaba de engendrar. Faz com Marx exatamente a mesma coisa que com Darwin. Constrói um Marx imaginário, feito à medida de suas forças, para poder, logo depois, triunfar sobre ele. Não resta dúvida de que o seu “caráter histórico” é “grandioso”.

Mais atrás, ao examinarmos a esquemática do mundo, vimos que, com o Sr. Dühring, se tinha passado a quase desgraça de ter reconhecido e aplicado, num momento de debilidade, essa linha nodal de desproporções, como a chama Hegel, na qual, em certos pontos, as transformações quantitativas se convertem de repente em saltos qualitativos. Citávamos um dos exemplos mais conhecidos: o da transformação dos estados da agregação da água que, sob a pressão normal do ar, ao chegar a zero centígrado, se converte de um corpo líqüido em corpo sólido e aos 100°, de líquido em gasoso, caso esse que demonstra como, ao alcançar esses dois pontos decisivos, uma simples mudança quantitativa de temperatura provoca uma transformação qualitativa no corpo.

Centenas de casos como estes, tomados da natureza ou da sociedade humana, poderiam ser lembrados para demonstração dessa lei Assim, por exemplo, em O Capital de Marx, toda a seção 4a., dedicada ao estudo da produção da mais-valia relativa ao âmbito da corporação, da divisão do trabalho, e da manufatura, da maquinaria e da grande indústria, contém inúmeros casos de simples mudanças quantitativas que fazem transformar-se a qualidade e, de mudanças quantitativas que fazem com que se transforme a qualidade das coisas podendo-se dizer, portanto, para usar uma expressão que tanta indignação provoca no Sr. Dühring, que a quantidade se converte em qualidade e vice-versa. Temos, por exemplo, o fato de que a colaboração de muitas pessoas, a fusão de muitas forças numa só força total, cria, como diz Marx, uma “nova potência de forças” que se diferencia, de modo essencial, da soma das forças individuais associadas.

Para sua maior perplexidade, no trecho que, no interesse da verdade plena, o Sr. Dühring virou às avessas, Marx acrescenta a seguinte observação: “A teoria molecular, aplicada à química moderna e desenvolvida cientificamente pela primeira vez por Laurent e Gerhardt, descansa nesta mesma lei.” O que conclui de tudo isso o Sr. Dühring? Ele sabe que “ali, onde, como acontece ao Sr. Marx, e a seu rival Lassalle, a ciência sob medidas, aliada a um pouco de filosofia rasteira, forma o mesquinho arcabouço das pretensões eruditas, ali é que se nota, precisamente, uma maior ausência dos elementos eminentemente modernos de cultura, que são os métodos das ciências naturais”; ao contrário disso, o Sr. Dühring toma sempre por base de suas investigações, como já vimos, “os dados, fundamentais das ciências exatas no campo da mecânica, da física, da química”, etc. Entretanto, para que também possam os outros julgar, com pleno conhecimento de causa, vamos examinar um pouco mais detidamente o exemplo que Marx deu em sua nota.

Trata-se das séries homólogas de combinações de carbono, muitas das quais já são conhecidas, cada uma delas tendo a sua própria forma algébrica sintética. Assim, pois, Se, do mesmo modo que os químicos, chamarmos um, átomo de carbono de C, um átomo de hidrogênio de H um átomo de oxigênio de O e por n o número dos átomos de carbono encerrados em cada combinação, podemos expor as fórmulas moleculares de algumas dessas séries, do seguinte modo:

Série da parafina normal: CnH2n + 2

Série de alcoóis primários: CnH2n + 20

Série dos ácidos graxos monobásicos: CnH2n O2.

Se tomarmos como exemplo a última dessas séries e adotarmos, sucessivamente, n=1, n=2, n=3, etc., teremos os seguintes resultados (deixando de pôr os isómeros):

ácido fôrmico — CH2O2 — ponto de ebulição: 100° — ponto de fusão: 1.°

ácido acético — C2H4O2 — ponto de ebulição: 118° — ponto de fusão: 17.°

ácido propriônico — C3H6O2 — ponto de ebulição: 140° — ponto de fusão: —

ácido butirico — C4H8O2 — ponto de ebulição: 162° — ponto de fusão: —

ácido valeriânico — C2H10O2 — ponto de ebulição: 175° — ponto de fusão: — e assim sucessivamente, até chegar ao ácido melíssico (C30H60O2) que não se funde até os 80° e não tem ponto de ebulição pela simples razão de que esse ácido se decompõe ao se evaporar. Temos, pois, aqui, toda uma série de corpos qualitativamente distintos, formados pela simples adição quantitativa de elementos que são, além do mais, agregados sempre na mesma proporção. Esse fenômeno ainda se torna mais claro quando todos os elementos, que entram na composição, variam na mesma proporção e na mesma quantidade, como acontece com a série das parafinas normais (CnH2n+2). A primeira fórmula é o metano (CH4) que é um gás; a fórmula mais elevada que se conhece é o hecdecano (C16H34), corpo sólido formado por cristais incolores, que se funde a 21.°, e que só atinge o seu ponto de ebulição a 278°. Em ambas as séries basta acrescentar CH2 ou seja, um átomo de carbono e dois de hidrogênio, à fórmula molecular do membro anterior da série, para que se tenha um corpo novo; donde se conclui que uma mudança puramente quantitativa da fórmula molecular faz surgir um corpo qualitativamente diferente.

E estas séries são apenas um exemplo fácil e palpável; em quase todos os campos da química, a começar pelos diferentes óxidos de nitrogênio ou pelos diversos oxiácidos de fósforo ou de enxofre, pode-se observar, a cada passo, como “a quantidade se converte em qualidade e como esta, que se considera como uma idéia nebulosa e confusa de Hegel, pode ser tocada corporalmente, por assim dizer, nas coisas e nos fenômenos, sem que exista a menor confusão nem a menor nebulosidade a não ser na cabeça do Sr. Dühring. O fato de ter sido Marx o primeiro que pôs em relevo esse fenômeno e o fato de ser o Sr. Dühring capaz de ler essa argumentação sem entendê-la, nem superficialmente, pois, se a tivesse entendido, não teria cometido essa inaudita atrocidade, bastam para tornar claro, sem que seja preciso recapitular a famosa filosofia dühringuiana da natureza, se é Marx ou Dühring que sente falta, neste terreno, dos “elementos eminentemente modernos de cultura que são os métodos das ciências naturais”, qual dos dois conhece, e qual ignora os “dados fundamentais... da química”.

Para terminar este capítulo vamos dar um testemunho final a favor da mudança da quantidade em qualidade: o testemunho de Napoleão. Napoleão descreve o combate travado entre a cavalaria francesa, cujos soldados eram pouco afeitos à equitação, mas que eram, no entanto, disciplinados, e os mamelucos, cuja cavalaria era a melhor do seu tempo para os combates individuais, mas que eram indisciplinados. Eis o que nos diz Napoleão: “Dois mamelucos sobrepujavam, indiscutivelmente, a três franceses; 100 mamelucos faziam frente a 100 franceses; 300 franceses venciam 300 mamelucos e 1.000 franceses derrotavam, inevitavelmente, 1.500 mamelucos”. Da mesma forma que, em Marx, a soma do valor de troca tinha que alcançar um limite mínimo determinado, embora variável, para se converter em capital, vemos que, na descrição napoleônica, o destacamento de cavalaria tem que alcançar um determinado limite mínimo para que a força da disciplina que se encerra na ordem unida de combate, e no emprego das forças, com base num só plano, possa se manifestar e se desenvolver até o ponto de poder aniquilar massas numericamente superiores de uma cavalaria irregular, composta de melhores montarias e de soldados tão bravos pelo menos quanto os outros. Que nos diz sobre isso o Sr. Dühring? Não acabou por sucumbir Napoleão na sua luta contra a Europa? Não sofreu ele derrotas sobre derrotas? Por que foi derrotado Napoleão? Pura e exclusivamente por ter desejado aplicar à tática da cavalaria a confusa e nebulosa idéia de Hegel...


Capítulo XIII
DIALÉTICA.
NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO

 

“Este esboço histórico (o da gênese da chamada acumulação primitiva do capital, na Inglaterra) é, até agora, o que há de melhor, relativamente, no livro de Marx e ainda poderia ter sido melhor se não se apoiasse na agudeza erudita e, além disso, na dialética. Recorre à negação da negação de Hegel para que ponha a seu serviço, na falta de meios mais claros e melhores, os seus serviços de parteira, ajudando-o a fazer brotar o futuro das entranhas do passado. A abolição da propriedade individual, que se processou, por esse modo, a partir do século XVI, é a primeira negação. Esta, será seguida por outra, caracterizada como negação da negação e, portanto, como a restauração da “propriedade individual”, mas de uma forma mais elevada, baseada na propriedade comum do solo e dos instrumentos de trabalho. O fato de o Sr. Marx qualificar, em seguida, esta nova “propriedade individual” também com o nome de “propriedade social”, revela a unidade hegeliana de caráter superior, na qual a contradição, conforme se verifica, fica cancelada; ou seja, de acordo com o já conhecido jogo de palavras, a contradição se mantém, ainda que superada. A expropriação dos expropriadores é, de acordo com isso, o resultado automático da realidade histórica, em suas circunstâncias materiais externas... Naturalmente, nenhuma pessoa que reflita deixar-se-á convencer só por terem sido invocados os disparates de Hegel, e a negação da negação nada mais é que um dos tantos, da necessidade de se implantar a comunidade da terra e dos capitais... Além disso, a nebulosa ambigüidade das idéias de Marx não surpreenderá a quem já sabe que ela pretende rimar com a dialética de Hegel, tomando-a como sua base científica, ou melhor, tomando como conclusão o absurdo a que nos querem levar. Para quem desconhece estes trechos, advertiremos que a primeira negação é, em Hegel, a idéia do pecado original do Catecismo e a segunda é a idéia de uma unidade superior que conduz à redenção do homem. E, sobre uma farsa desse gênero, tomada à religião, não se pode, facilmente, fundar a lógica dos fatos. O Sr. Marx se obstina em permanecer no mundo nebuloso de sua propriedade ao mesmo tempo individual e social, deixando que os seus adeptos resolvam por si esse profundo enigma da dialética.” Assim fala o Sr. Dühring.

Isto quer dizer que Marx não consegue provar a necessidade da revolução social, a necessidade da instauração de um regime de produção comum da terra e dos instrumentos de produção criados pelo trabalho, a não ser pela invocação do critério hegeliano da negação da negação; e, fundamentando a sua teoria socialista “nesta farsa tomada à religião”, conclui que na sociedade futura será implantada “uma propriedade ao mesmo tempo individual e social”, que é a unidade superior hegeliana a que terá que atingir a contradição superada.

Deixemos por um momento a negação da negação e analisemos, mais de perto, essa “propriedade ao mesmo tempo individual e social”. O Sr. Dühring nos diz que é “um mundo nebuloso” e, ainda que pareça estranho, dessa vez ele está com a razão. O pior é que, como sempre, não é Marx que vive extraviado nesse mundo nebuloso, mas, de fato, é o próprio Sr. Dühring. Com efeito, como já vimos, o seu desembaraço no manejo do método hegeliano do “delírio”, permitiu-lhe definir, sem. dificuldade, o que conteriam os volumes ainda não publicados de O Capital, e ainda aqui lhe é fácil retificar Marx de acordo com Hegel, atribuindo-lhe a unidade superior de uma propriedade sobre a qual Marx não disse uma só palavra.

Eis o texto de Marx: “É a negação da negação. Esta, restaura a propriedade individual, mas baseada nas conquistas da era capitalista, baseada na cooperação de operários livres e na sua propriedade coletiva sobre a terra e sobre os meios de produção produzidos pelo próprio trabalho. A transformação da propriedade privada e dispersa dos indivíduos que é baseada no seu próprio trabalho, em propriedade privada capitalista é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais difícil, mais duro e mais trabalhoso que a transformação da propriedade privada capitalista, repousada de fato num regime social de exploração, numa propriedade coletiva.” Isto é tudo o que disse Marx. Como se vê, o regime criado pela expropriação dos expropriadores é designado como sendo a restauração da propriedade individual, desde que seja baseada na propriedade social sobre a terra e sobre os meios de produção, produzidos pelo próprio trabalho. Para qualquer pessoa que saiba ler, isto significa que a propriedade coletiva se tornará extensiva à terra e aos demais meios de produção, e a propriedade individual se limitará aos produtos, ou aos objetos destinados ao consumo. E para que essa idéia possa ser compreendida mesmo por crianças que tenham seis anos, Marx, na página 40, fala de “uma associação de homens livres que trabalham com meios comuns de produção e que despendem suas forças de trabalho individuais, conscientemente, como uma força de trabalho social”, isto é, de uma associação organizada de forma socialista, e acrescenta: “O produto coletivo da associação é um produto social. Uma parte desse produto volta a servir como meio de produção. Continua sendo social. Mas uma outra parte é absorvida como meio de vida pelos membros da associação. Deve, portanto, ser distribuída entre eles.” Isto está mais do que claro e até mesmo uma cabeça hegelianizada, como a do Sr. Dühring, deveria compreendê-lo.

A propriedade ao mesmo tempo individual e social, esta ambigüidade confusa, esse absurdo que necessariamente teria que brotar da dialética hegeliana, este mundo nebuloso, esse profundo enigma dialético que Marx deixa para ser resolvido pelos seus adeptos é, naturalmente, como de costume, uma livre e imaginativa invenção do Sr. Dühring. Como suposto hegeliano, Marx deveria nos fornecer, como resultado da negação da negação, uma verdadeira unidade superior, e, como não o fez a gosto do Sr. Dühring, teve este de recorrer mais uma vez ao seu elevado e nobre estilo, atribuindo a Marx, no interesse da verdade plena, coisas que são um genuíno produto das suas elucubrações. Um homem absolutamente incapaz de fazer, ainda que por exceção, uma citação ajustada à verdade, poderá também deixar-se levar, por um acesso de indignação moral, a investir contra a “erudição rebuscada” de outras pessoas que citam sempre com exatidão e que, justamente por isso, não são capazes de “descobrir” a falta de penetração no conjunto das idéias dos autores citados”. Mas o Sr. Dühring tem razão! Assim escrevem a história os historiadores de “sentido histórico grandioso”! Até aqui, partimos do suposto de que as citações falsas, nas quais O Sr. Dühring insiste, pelo menos, não atentavam contra a boa fé, mas eram devidas a uma incapacidade total de compreensão por parte de quem as empregava, ou talvez a uma propriedade característica dos que escrevem a história com um “sentido grandioso”, propriedade que, noutra pessoa, se chamaria de um mau costume de, por preguiça, fazer citações de memória. Mas parece que chegou o momento em que o Sr. Dühring também se converte de quantidade em qualidade. Com efeito, se tomarmos em consideração que a frase de Marx é, por si mesma, perfeitamente clara, ainda poderíamos completá-la com um outro trecho da mesma obra, caso fosse necessário, de modo a não deixar lugar a dúvida. É preciso que se saiba que, na crítica a O Capital, quer a publicada na obra a que nos referimos atrás, quer a que está contida na primeira edição da História crítica, em nenhuma das duas consegue o Sr. Dühring descobrir esse monstro da “propriedade ao mesmo tempo individual e social”, mas apenas adverte o leitor, na segunda edição de seu livro, e, assim mesmo, depois de uma terceira leitura que se fizer. Nesta segunda edição, refundida à maneira socialista, o Sr. Dühring mostrou grande interesse em colocar nos lábios de Marx os maiores absurdos possíveis no que se refere à organização futura da sociedade, para que, com isso, ressaltasse ainda mais triunfalmente aquilo que ele chama de “Comuna econômica, por mim esboçada, econômica e juridicamente, em meu Curso”. Se tomarmos tudo isso em consideração, teremos forçosamente de concluir que o Sr. Dühring, de um modo deliberado e consciente, “ampliou beneficamente” — é claro que beneficamente para ele, — a idéia de Marx.

Vejamos agora que papel desempenha para Marx a negação da negação. Nas páginas 791 e seguintes expõe ele os resultados finais das investigações econômicas e históricas, que constam de cinqüenta páginas anteriores, sobre a chamada acumulação primitiva do capital. Antes de sobrevir a era capitalista, dominava, pelo menos na Inglaterra, a pequena indústria baseada na propriedade privada do operário sobre os meios de produção. A chamada acumulação primitiva do capital se caracterizou, nestas condições, pela expropriação desses produtores imediatos, isto é, pela abolição da propriedade privada, baseada no trabalho do próprio produtor. Efetivou-se tal coisa porque aquele regime de pequena indústria era compatível somente com as proporções mesquinhas e primitivas da produção e da sociedade, engendrando, tão logo os meios materiais de produção atingiram um certo grau de progresso, a sua própria destruição. Esta destruição, que consistiu na transformação dos meios individuais e dispersos de produção em meios de produção socialmente concentrados, constitui a pré-história do capital. A partir do momento em que os operários se transformam em proletários, em que as suas condições de trabalho passam a ter a forma de capital, a partir do instante em que o regime capitalista de produção começa a se mover por sua própria conta, a socialização do trabalho e a mudança do sistema de exploração da terra e dos demais meios de produção, e, portanto, a expropriação dos proprietários privados individuais, é preciso, para continuarem progredindo, que seja adotada uma nova forma.

“Não se trata mais de expropriar o operário que produz por sua própria conta, mas o capitalista explorador de muitos operários. E essa nova expropriação se realiza pelo jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, pela concentração dos capitais. Cada capitalista devora muitos outros. E, ao mesmo tempo em que alguns capitalistas expropriam a muitos outros, desenvolve-se, em grau cada vez mais elevado, a forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação técnica e consciente da ciência, sendo a terra cultivada mais metodicamente, os instrumentos de trabalho tendem a alcançar formas que são manejáveis unicamente pelo esforço combinado de muitos, economizam-se os meios da produção, em sua totalidade, ao serem aplicados pela coletividade come meios de trabalho social, o mundo inteiro se vê envolvido na rede do mercado mundial, e, com isso, o regime capitalista passa a apresentar um caráter internacional cada vez mais acentuado. E, deste modo, enquanto vai diminuindo progressivamente o número dos magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta, no pólo oposto, proporcionalmente, a pobreza. a opressão, a escravização, a degradação e a exploração. Mas, ao mesmo tempo, cresce a revolta da classe operária e esta se torna cada dia mais numerosa, mais disciplinada, mais unida e organizada pelo próprio método capitalista de produção. O monopólio capitalista transforma-se nas grilhetas do regime de produção que com ele e sob as suas normas floresceu. A concentração dos meios de produção e a socialização do trabalho chegam a um ponto em que se tornam incompatíveis com a sua envoltura capitalista. E a envoltura se desagrega. Soou a hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.”

Após termos transcrito este trecho, perguntamos ao leitor: onde estão os tais labirintos dialéticos e os tais arabescos imaginativos, onde estão estas idéias confusas e embrulhadas, segundo as quais tudo é uno e o mesmo, onde estão estes milagres dialéticos feitos para os crentes, esse emaranhado de enigmas dialéticos e essa deturpação da teoria do Logos de Hegel, sem os quais, Marx, segundo o Sr. Dühring, é incapaz de desenvolver suas doutrinas? Marx demonstra, apoiando-se simplesmente na história, conforme se vê no pequeno trecho transcrito, que, do mesmo modo que, em sua época, a pequena indústria, ao expandir-se, criou, por força de uma necessidade, as condições de sua própria destruição, isto é, as condições para a expropriação dos pequenos proprietários, o atual regime capitalista de produção engendra as condições materiais pelas quais deverá necessariamente perecer. Trata-se de um processo histórico, e pelo fato de ser esse processo não só histórico mas também dialético, por fatal que isso possa parecer ao Sr. Dühring, a culpa não é precisamente de Marx.

Ao chegar a este ponto, depois de desenvolver e esgotar a sua demonstração, baseada na História da Economia, Marx afirma: “O regime capitalista de produção e de apropriação, ou, o que vem a significar a mesma coisa, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho do próprio produtor. A negação da produção capitalista surge dela própria, pela necessidade imperiosa de um processo natural. É a negação da negação.”

Vemos, assim, que Marx, ao encarar esse fenômeno como um caso de negação da negação, não tem em mente a idéia de demonstrá-lo, por meio desse argumento, como um fenômeno de necessidade histórica. Pelo contrário: somente depois de haver provado historicamente o fenômeno que já se passara parcialmente e que terá necessariamente que se desenvolver daqui por diante, é que o define como um fenômeno sujeito em sua realização, a uma determinada lei dialética. E é suficiente essa explicação. O Sr. Dühring volta a incorrer, pois, num ato de falsificação, quando afirma que a negação da negação se vê aqui obrigada a prestar serviços de parteira para fazer o futuro surgir das entranhas do passado quando sustenta que Marx se socorre da negação da negação para convencer os seus leitores da necessidade da aplicação do comunismo aos capitais e à terra, o que é; seja dito entre parênteses, uma nova contradição corpórea do Sr. Dühring.

Já supõe uma total ausência de conhecimentos do que é a dialética, o fato de considerá-la o Sr. Dühring como um expediente meramente probatório, que é, aliás, o modo pelo qual as pessoas de horizonte limitado costumam usar a lógica formal ou as matemáticas elementares. A lógica formal também é, antes de mais nada e acima de tudo, um método de perscrutar novos resultados progressivos do conhecido ao desconhecido. Dá-se o mesmo, ainda com um sentido mais evidente, com a dialética que, além disso, rompendo os estreitos horizontes da lógica formal, representa, por si mesma, o germe de uma ampla concepção do mundo. E a mesma coisa ocorre também com as matemáticas. As matemáticas elementares, que operam com grandezas constantes, se movem, pelo menos em termos gerais, dentro das fronteiras da lógica formal; as matemáticas das grandezas variáveis, cujo setor mais importante é o cálculo infinitesimal, não são, em essência, nada mais que a aplicação da dialética aos problemas matemáticos. Aqui, o aspecto puramente probatório fica, de uma vez por todas, relegado a um segundo plano, substituído pela aplicação variada e constante do método a novas zonas de investigação. Mas, a rigor. quase todas as demonstrações das matemáticas superiores, a começar pelas introdutórias ao cálculo diferencial, são falsas do ponto de vista das matemáticas elementares. O mesmo acontecerá, como se pretende aqui, se desejarmos aplicar, por meio da lógica formal, os resultados obtidos no terreno dialético. Querer provar alguma coisa, pela simples dialética, a um metafísico tão declarado como o Sr. Dühring, seria perder tempo, e seria tão infrutífero, como aconteceu quando Leibnitz e seus discípulos quiseram provar, aos matemáticos de sua época, as operações do cálculo infinitesimal. As diferenciais causavam àqueles cavalheiros exatamente a mesma indignação que hoje a negação da negação causa ao Sr. Dühring, na qual, além do mais, a diferencial desempenha, como veremos, um papel de relevo. Aqueles cavalheiros foram, entretanto, pouco a pouco, pelo menos aqueles que sobreviveram àquela etapa, se rendendo à nova doutrina, embora resmungando, não por que esta convencesse, mas por que a verdade se impunha cada dia com mais força. O Sr. Dühring anda pelos quarenta, conforme sua própria informação, e podemos garantir que passará pela mesma experiência que aqueles matemáticos, se alcançar a idade avançada, como é, aliás, nosso desejo.

Mas, afinal, em que consiste essa espantosa negação da negação, que amargura a vida do Sr. Dühring, até o ponto de ver nela um crime imperdoável, algo como se fosse um pecado contra o Espírito Santo a que os cristãos não admitem salvação possível? Consiste, como veremos, num processo muito simples, que se realiza todos os dias e em todos os lugares, e que qualquer criança pode compreender, desde que o libertemos da envoltura enigmática com que o cobriu a velha filosofia idealista e com que querem continuar cobrindo-o, porque assim lhes convém, os fracassados metafísicos da têmpera do Sr. Dühring. Tomemos, por exemplo, um grão de cevada. Todos os dias, milhões de grãos de cevada são moídos, cozidos, e consumidos, na fabricação de cerveja. Mas, em circunstâncias normais e favoráveis, esse grão, plantado em terra fértil, sob a influencia do calor e da umidade, experimenta uma transformação específica: germina. Ao germinar, o grão, como grão, se extingue, é negado, destruído, e, em seu lugar, brota a planta, que, nascendo dele, é a sua negação. E qual é a marcha normal da vida dessa planta? A planta cresce, floresce, é fecundada e produz, finalmente, novos grãos de cevada, devendo, em seguida ao amadurecimento desses grãos, morrer, ser negada, e, por sua vez, ser destruída. E, como fruto desta negação da negação, temos outra vez o grão de cevada inicial, mas já não sozinho, porém ao lado de dez, vinte, trinta grãos. Como as espécies vegetais se modificam, com extraordinária lentidão, a cevada de hoje é quase igual à de cem anos atrás. Mas tomemos, em vez desse caso, uma planta de ornamentação ou enfeite, por exemplo, uma dália ou uma orquídea. Se tratarmos a semente e a planta que dela brota, com os cuidados da arte da jardinagem, obteremos como resultado deste processo de negação da negação, não apenas novas sementes, mas sementes qualitativamente melhoradas, capazes de nos fornecer flores mais belas; cada repetição deste processo, cada nova negação da negação, representará um grau a mais nesta escala de aperfeiçoamento. E um processo semelhante se dá com a maioria dos insetos, como, por exemplo, com as mariposas. Nascem, estas, também, do ovo, por meio da negação do próprio ovo, destruindo-o, atravessando depois uma série de metamorfoses até chegar à maturidade sexual, se fecundam e morrem por um novo ato de negação, tão logo se consume o processo de procriação, que consiste em pôr a fêmea os seus numerosos ovos. Por enquanto nada mais nos interessa, nem que não apresente o processo a mesma simplicidade noutras plantas e animais, que não produzem uma, mas várias vezes, sementes, ovos ou crias. antes que lhes sobrevenha a morte; a única coisa que nos interessa é demonstrar que a negação da negação é um fenômeno que se dá realmente nos dois reinos do mundo orgânico, o vegetal e o animal. E não somente nestes reinos. Toda a geologia não é mais que uma série de negações negadas, uma série de desmoronamentos de formações rochosas antigas, sobrepostas umas às outras, e de justaposição de novas formações. A sucessão começa porque a crosta terrestre primitiva, formada pelo resfriamento da massa fluida, vai-se fracionando pela ação das forças oceânicas, meteorológicas e químico-atmosféricas, formando-se, assim, massas estratificadas no fundo do mar. Ao emergir, em certos pontos, as matérias do fundo do mar à superfície das águas, parte destas estratificações se vêm submetidas novamente à ação da chuva, às mudanças térmicas das estações, à ação do hidrogênio e dos ácidos carbônicos da atmosfera; e a essas mesmas influências se acham expostas as massas pétreas fundidas e logo depois esfriadas que, brotando do seio da terra, perfuram a crosta terrestre, Durante milhares de séculos vão se formando, dessa forma, novas e novas camadas que, por sua vez, são novamente destruídas em sua maior parte e, algumas vezes, são utilizadas como matéria para a formação de outras novas camadas. Mas o resultado é sempre positivo em qualquer hipótese: a formação de um solo onde se misturam os mais diversos elementos químicos num estado de pulverização mecânica, que permite o desenvolvimento da mais extensa e variada vegetação.

Com as matemáticas ocorre exatamente o mesmo fato. Tomemos uma qualquer grandeza algébrica, por exemplo a. Se a negarmos, teremos -a (menos a). Se negarmos esta negação, multiplicando -a por -a, teremos +a2, isto é, a grandeza positiva da qual partimos, mas num grau superior elevada à segunda potência. Mas aqui não nos interessa que a este resultado (a2) se possa chegar multiplicando a grandeza positiva a por si mesma, pois a negação negada é algo que se acha tão arraigado na grandeza a2, que esta encerra, sempre e de qualquer modo, duas raízes quadradas, a saber: a do a e a do -a. E esta impossibilidade de nos desprendermos da negação negada, da raiz negativa contida no quadrado, toma, nas equações dos quadrados, um caráter de evidência marcante. Entretanto é maior ainda a evidência com que se nos apresenta a negação da negação na análise superior, nessas “somas de grandezas ilimitadamente pequenas” que o próprio Sr. Dühring considera como as supremas operações das matemáticas e que são as que vulgarmente chamamos de cálculo diferencial e integral. Como se desenvolvem essas operações de cálculo Suponhamos, como exemplo, que, num problema qualquer que nos foi dado para resolver, há duas grandezas variáveis x e y, nenhuma das quais pode variar sem que varie também a outra, na proporção que as circunstâncias determinem. Começamos, então, por diferenciar as duas grandezas, x e y isto é, por supor que são tão infinitamente pequenas que desaparecem, comparadas com qualquer outra grandeza real, por pequena que seja, não restando, portanto, de x e y nada mais que sua razão ou proporção, despojada, por assim dizer, de toda a base material, reduzida a uma relação quantitativa da qual se eliminou a quantidadedy/dx, isto é, a razão ou proporção das duas diferenciais de x e y, se reduz, portanto, a 0/0, mas esta fórmula — nada mais é que a expressão da fórmula y/x. Observamos, de passagem, que esta razão ou proporção entre duas grandezas eliminadas, bem como o momento exato em que se eliminam, é uma contradição; mas esta contradição não nos deve desorientar, como não desorientou os matemáticos de dois séculos atrás. Pois bem, que fizemos neste problema, além de negar as grandezas x e y, mas negá-las não nos descartando delas, que é o modo pelo qual a nega a metafísica, mas sim negando-as de um modo que se ajusta à realidade da situação? Substituímos as grandezas x e y pela sua negação, chegando, assim, em nossas fórmulas ou equações a dx e dy. Isso feito, seguimos nossos cálculos operando com dx e dy como grandezas reais, embora sujeitas a certas leis de exceção e ao chegar a um determinado momento, negamos a negação, isto é, integramos a fórmula diferencial, obtendo novamente, em vez de dx e dy, as grandezas reais x e y. E, ao fazê-lo, não tornaremos a nos encontrar no ponto do qual partimos, mas teremos resolvido o problema contra o qual se debateram, em vão, por outros caminhos, a geometria e a álgebra elementares.

O mesmo acontece com a História. Todos os povos civilizados têm em sua origem a propriedade coletiva do solo. E. em todos esses povos, ao penetrar numa determinada fase primitiva, o desenvolvimento da agricultura, a propriedade coletiva converte-se num entrave para a produção. Ao chegar a este momento, a propriedade coletiva se destrói, se nega, convertendo-se, após etapas intermediárias mais ou menos longas, em propriedade privada. Mas, ao chegar a uma fase mais elevada de progresso no desenvolvimento da agricultura, fase essa que se alcança justamente devido à propriedade privada do solo, esta, por sua vez, se converte num obstáculo para a produção, conforme hoje se observa no que se refere à grande e à pequena propriedade. Nestas circunstâncias, surge, por força da necessidade, a aspiração de negar também a propriedade privada e de convertê-la novamente em propriedade coletiva. Mas esta aspiração não tende exatamente a restaurar a primitiva propriedade comunal do solo, mas a implantar uma forma multo mais elevada e mais complexa de propriedade coletiva que, longe de criar uma barreira ao desenvolvimento da produção, deverá acentuá-lo, permitindo-lhe explorar integralmente as descobertas químicas e as invenções mecânicas mais modernas.

Tomemos outro exemplo. A filosofia antiga era uma filosofia materialista, porém primitiva e rudimentar. Esse materialismo não seria capaz de explicar claramente as relações entre o pensamento e a matéria. A necessidade de se chegar a conclusões claras a respeito desse problema, levou à criação da teoria de uma alma separada do corpo e logo depois se passou à afirmação da imortalidade da alma e, por fim, ao monoteísmo. Desse modo, o materialismo primitivo se via negado pelo idealismo. Mas, com o desenvolvimento da filosofia, também o idealismo se tornou insustentável e, por sua vez, teve de ser negado pelo materialismo moderno. Este não é, entretanto, como negação da negação, a mera restauração do materialismo primitivo, mas, pelo contrário, corresponde à incorporação, às bases permanentes deste sistema, de todo o conjunto de pensamentos, que nos provêm de dois milênios de progressos no campo da filosofia e das ciências naturais e da história mesma destes dois milênios. Não se trata já de uma filosofia, mas de uma simples concepção do mundo, de um modo de ver as coisas, que não é levado à conta de uma ciência da ciência, de uma ciência à parte, mas que tem, pelo contrário, a sua sede e o seu campo de ação em todas elas. Vemos, pois, como a filosofia é, desse modo, “cancelada”, isto é, “superada ao mesmo tempo que mantida”; superada, com relação à sua forma; conservada, quanto ao seu conteúdo. Pois ali onde o Sr. Dühring não vê mais que “um jogo de palavras”, se esconde, para quem sabe ver as coisas, um conteúdo e uma realidade.

Finalmente, até a teoria rousseauniana da igualdade, que tem apenas um eco apagado e falseado nas futilidades do Sr. Dühring, foi incapaz de se constituir sem os serviços de parteira da negação da negação hegeliana: e isto, mais de 20 anos antes do nascimento de Hegel. Longe de se envergonhar de tal coisa, essa teoria exibe, quase ostensivamente. em sua primeira versão, a marca de suas origens dialéticas. No estado de natureza e de selvageria, os homens eram iguais; e como Rousseau considera já a linguagem uma deturpação do estado de natureza, tem razão quando aplica o critério da igualdade, assim como, ao mesmo tempo, pretendeu classificar hipoteticamente, como homens-bestas, sob a designação de “alalos” (seres privados de fala). Mas estes homens-bestas, iguais entre si, levavam sobre os outros animais a vantagem de serem animais perfectíveis, de terem capacidade de desenvolvimento; eis onde está, segundo Rousseau, a fonte da desigualdade. Rousseau vê, assim, no nascimento da desigualdade um progresso, mas este progresso é contraditório, pois implica, ao mesmo tempo, num retrocesso. “Todos os demais progressos (a partir do estado primitivo da natureza) foram, aparentemente, outros tantos dados para o aperfeiçoamento do indivíduo humano”, mas, na realidade, o que o progredia era a decadência da espécie. A elaboração dos metais e o fomento da agricultura foram as duas artes, cuja descoberta provocou esta grande revolução”. (Rousseau se refere à transformação das florestas virgens em terras e campos de trabalho, à generalização da miséria e da escravidão, como efeito da implantação da propriedade). “Para o poeta, o ouro e a prata, assim coma para o filósofo o ferro e o trigo, civilizaram o homem e arruinaram o gênero humano”. Cada novo avanço da civilização é, por sua vez, um novo avanço da desigualdade. Todas as instituições que nascem nas sociedades, no decorrer do processo de civilização, se convertem no inverso de sua primitiva finalidade. “É indiscutível, sendo uma lei fundamental de todo o direito político, que os povos começaram por aceitar príncipes que protegessem a sua liberdade e não que a destruíssem. Entretanto. esses príncipes se converteram, por força da necessidade, em opressores dos povos que deveriam proteger, e levaram essa opressão até um ponto em que a desigualdade, elevada ao máximo, tem que se converter novamente no contrário do que é, isto é, em fonte de igualdade: frente ao déspota, todos os homens são iguais, pois todos se reduzem a zero. “Ao chegar a essa fase, o grau máximo de desigualdade é o ponto final que, fechando o ciclo, toca já o ponto inicial do qual partimos: ao chegar a este ponto, todos os homens são iguais, pelo fato de serem nada e, como súditos, têm todos, como única lei, a vontade de seu Senhor”. Mas o déspota é Senhor somente quando tem em suas mãos a força e, por isso, “no caso de ser derrotado, não pode se queixar de ter sido derrotado pelo uso da força...” “A mesma força que o susteve, o derruba, e tudo se passa, de acordo com uma causa adequada e de acordo com a ordem natural”. Significa isso que a desigualdade se transforma novamente em igualdade, mas esta já não é a igualdade rudimentar e primitiva do homem “alado”, em estado natural, mas é a liberdade superior do contrato social. Os opressores se convertem em oprimidos. É a negação da negação.

Em Rousseau, já nos encontramos, pois, com um processo quase idêntico ao que Marx desenvolve em O Capital. Além de todas as expressões dialéticas que são exatamente as mesmas empregadas por Marx, encontramos também processos antagônicos por natureza, cheios de contradições, contendo a transmutação de um extremo em seu contrário e, finalmente, o ponto nevrálgico de toda a questão, a negação da negação. Assim, já em 1754, Rousseau, que ainda não se podia exprimir pela nomenclatura hegeliana, estava, 23 anos antes do nascimento de Hegel. devorado até a medula pela peste da filosofia hegeliana, pela dialética da contradição, pela teoria do Logos, pela teologia, etc.. etc. E quando o Sr. Dühring, reduzindo a zero a teoria rousseauniana da igualdade, opera com os seus dois homenzinhos triunfais, se vê forçado a deslizar por um plano perigoso, que o leva, irremediavelmente, para a negação da negação da qual está querendo fugir. O estado em que floresce a igualdade desses dois homens e que nos é apresentado, sem dúvida, como um estado ideal, recebe à página 271 da Filosofia o apelido de “estado primitivo”. Mas, ao chegar à página 279, este “estado primitivo” se transforma, por lei necessária, no “sistema de rapina”: primeira negação. Graças, entretanto, à filosofia da realidade, conseguimos abolir este “sistema de rapina”, para implantar, sobre suas ruínas, a Comuna econômica inventada pelo Sr. Dühring e baseada na igualdade: negação da negação, igualdade elevada a uma potência mais alta. É divertido ver como, além de ampliar de modo benéfico o nosso horizonte visual, o próprio Sr. Dühring acaba cometendo, também, sem que se dê conta, contra a sua augusta pessoa, o horrendo crime, que é o de incorrer na intolerável negação da negação.

Que vem a ser, finalmente, a negação da negação É uma lei extraordinariamente geral, e, por isso mesmo, extraordinariamente eficaz e importante, que preside ao desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento; uma lei que, como já vimos, se impõe no mundo animal e vegetal, na geologia, nas matemáticas, na história e na filosofia. A esta lei, o próprio Sr. Dühring acaba por se submeter, embora sem o saber, apesar de todos os obstáculos e maldições que lança contra ela. Já se disse que o processo que atravessa, por exemplo, o grão de cevada, desde a sua germinação até que desapareça a planta a que ele deu a vida, é uma negação da negação, e, com isto, não se pretende, de modo algum, prejulgar o conteúdo concreto deste processo. Pois, se se pretendesse afirmar o contrário, quando se sabe que o próprio cálculo integral — como já vimos — é também negação da negação, seria cair no absurdo de sustentar que o processo de vida de um grão de cevada eqüivale ao cálculo diferencial, e o que fazemos com o cálculo diferencial poderíamos aplicar até ao socialismo. Isso é o que os metafísicos constantemente críticam na dialética. Quando se diz que todos esses processos têm de comum a negação da negação, o que se pretende é englobar a todos, sob esta lei dinâmica, sem se prejulgar, no entanto, de modo algum, o conteúdo concreto de cada um deles. Esta não é a missão da dialética. que tem apenas por incumbência estudar as leis gerais que presidem à dinâmica e ao desenvolvimento da natureza e do pensamento.

Poder-se-ia objetar, ainda, que a negação, que se realiza neste processo, não é a verdadeira negação; um grão de cevada é também negado quando é moído, da mesma forma que um inseto é negado quando esmagado, e a grandeza positiva A quando é negada se a anula etc. Ao se negar a afirmação: “a rosa é uma rosa”, quando se diz que “a rosa não é uma rosa”, qual é o resultado se, logo depois, se torna a negar esta negação, para dizer: “Sim, a rosa é uma rosa”? Outros não são, com efeito, os argumentos principais levantados pelos metafísicos contra a dialética, argumentos dignos da estreiteza de horizontes, característica dessa maneira de pensar. Negar, em dialética, não consiste pura e simplesmente em dizer não, em declarar que uma coisa não existe, ou em destruí-la por capricho. Já Spinoza dizia: Omnis determinatio est negatio, toda determinação, toda demarcação é, ao mesmo tempo, uma negação. Além disso, em dialética, o caráter da negação obedece, em primeiro lugar, à natureza geral do processo, e, em segundo lugar, à sua natureza especifica. Não se trata apenas de negar, mas de anular novamente a negação. Assim, a primeira negação será de tal natureza que torne possível ou permita que seja novamente possível a segunda negação. De que modo? Isso dependerá do caráter especial do caso concreto. Ao se moer o grão de cevada, ou ao se matar o inseto, está-se executando, inegavelmente, o primeiro ato, mas torna-se impossível o segundo. Portanto, cada espécie de coisas tem um modo especial de ser negada, que faz com que a negação engendre um processo de desenvolvimento, acontecendo o mesmo com as idéias e os conceitos. No cálculo infinitesimal, nega-se, de um modo diferente, a obtenção de potências positivas que partem de raízes negativas. Mas estes métodos diferentes de negar devem ser conhecidos e apreendidos, como acontece com todas as outras coisas. Não basta que saibamos que a muda de cevada e o cálculo infinitesimal se encontram sob as leis da negação da negação, para que possamos cultivar com sucesso a cevada ou para que possamos realizar operações de diferenciação ou integração, da mesma maneira que não nos é suficiente conhecer as leis que regem a determinação do som, pelas dimensões das cordas, para que saibamos tocar violino. Mas é evidente que não pode sair nada de um processo da negação da negação que se limite apenas à puerilidade de escrever num quadro negro um A, e logo depois apagá-lo, ou a dizer que uma rosa é uma rosa para, logo em seguida, dizer que não é. Somente se poderia provar, dessa forma, a idiotice de quem se entrega a tais divagações. Isso não obsta, porém, a que os metafísicos pretendam demonstrar que, se nos empenharmos em raciocinar sobre a negação da negação, somente poderemos utilizar este processo.

Chegamos, pois, à conclusão de que é o Sr. Dühring a única pessoa que quer mistificar as coisas quando afirma que a negação da negação é uma quimera analógica, inventada por Hegel, emprestada do campo da religião, e calcada sobre o mito do pecado original e da redenção. Muito antes de saber o que era dialética, o homem já pensava dialeticamente, da mesma forma por que, muito antes da existência da palavra escrita, ele já falava. Hegel nada mais fez que formular nitidamente, pela primeira vez, esta lei da negação da negação, lei que atua na natureza e na História, como atuava, inconscientemente, em nossos cérebros, muito antes de ter sido descoberta. E se o Sr. Dühring fica aborrecido com um tal nome, e quer realizar o processo, sem que ninguém saiba que o está realizando, ainda é tempo de inventar um nome melhor. Mas se o que deseja é apagar a própria operação do pensamento, deverá, antes, encontrar o modo de expulsar esse processo da natureza e da história e, para isso, deverá inventar uma matemática na qual -a X -a não deve dar +a2 e na qual seja proibido, sob penalidades diversas, o cálculo diferencial e integral.


Capítulo XIV
CONCLUSÃO

 

Acabemos o estudo da Filosofia. Trataremos, a seguir, de outras fantasias contidas no “Curso” para, finalmente, examinarmos os característicos da revolução que o Sr. Dühring introduz no terreno do socialismo. Que nos havia prometido O Sr. Dühring? Tudo. E o que finalmente cumpriu? Absolutamente nada. “Os elementos de uma filosofia real e orientada, portanto, para a realidade da natureza e da vida”, a “concepção rigorosamente científica do mundo”, as “idéias criadoras de sistema”, e todas as demais vitórias do Sr. Dühring, anunciadas por frases pomposas e retumbantes deram como resultado, em todos os setores a que se aplicaram, uma pura farsa. A esquemática do mundo, que “sem perder em nada a profundeza do pensamento, fixou as fórmulas fundamentais do ser” era, como vimos, apenas um eco charlatanesco e infinitamente desbotado da Lógica de Hegel, da qual extrai a superstição de que “essas formas fundamentais” ou categorias lógicas existem misteriosamente, não se sabe onde, antes da existência do mundo e à margem da realidade a que se devem “aplicar”. A filosofia da natureza nos oferece uma cosmogonia que tem por ponto de partida um “estado da matéria idêntico a si mesmo”, um estado que só pode ser concebido. criando-se uma caótica e irremediável confusão a respeito das relações entre a matéria e o movimento e, só pode ser concebido, além disso, supondo-se a existência de um Deus pessoal e entronizado à margem do mundo que é o único capaz, por seu impulso, de tirar o mundo deste estado de imobilidade e de lançá-lo ao movimento. No estudo da natureza orgânica tivemos oportunidade de ver que a filosofia da realidade, após condenar a luta pela existência e a seleção natural, de Darwin, como “um caso de selvageria cometida contra a humanidade”, permitia que estas teorias se esgueirassem novamente pela porta traseira, como fatores ativos da natureza, embora de segunda classe. O Sr. Dühring soube endossar, além disso, no campo da biologia, uma ignorância que, desde que se tornaram habituais as conferências de vulgarização científica, já não é fácil encontrar e que, mesmo entre as senhoritas de boa sociedade, ter-se-ia que procurar com uma lanterna. No campo da moral e do direito, foi tão infeliz, ao caricaturar Rousseau, como antes, ao se apresentar caricaturando Hegel. E endossou, ainda, inclusive no terreno da ciência jurídica, apesar de seus esforços em nos demonstrar o contrário, um desconhecimento científico que só pode ser concebido no mais vulgar e antiquado jurista prussiano. Uma filosofia como essa, “frente à qual não resiste nenhum horizonte de mera aparência”, se limita, juridicamente, a um horizonte real, que não ultrapassa as fronteiras dentro das quais vigora o direito nacional prussiano. Continuamos esperando “pelas terras e céus da natureza exterior e interior” o que essa filosofia prometia abrir aos nossos olhos “no seu potente arranco” e, desse modo, continuamos esperando as prometidas “verdades definitivas e inapeláveis” e “o absolutamente fundamental”. Este filósofo, cujo método especulativo exclui, como ele próprio o diz, toda a metamorfose, no sentido de uma “representação subjetiva e ilimitada do mundo”, não somente se considera como um homem subjetivamente limitado, pela pobreza extrema de conhecimentos de que faz alarde, por seu mesquinho método metafísico de especulação, como por suas grotescas vaidades, sem falarmos de suas pueris manias pessoais. Não consegue expor a sua filosofia da realidade, sem insinuar ao leitor a sua repugnância contra o tabaco, contra os gatos e os judeus. Pretende impor os seus gostos e repugnâncias como lei absoluta para toda a humanidade, sem incluir, como é natural, os judeus. A sua “plataforma realmente crítica”, com relação aos outros autores, consiste em pôr, nos seus lábios, insistentemente, coisas que estes nunca disseram e que são um produto genuíno e peculiar de sua própria cabeça. Os pobres restos de sabedoria que nos oferece a respeito de assuntos próprios de filisteus como, por exemplo, o do valor da vida e o melhor meio de gozá-la, tem um tal caráter de vulgaridade que bastam para explicar, perfeitamente, a cólera de seu autor contra o Fausto de Goethe. Com efeito, o Sr. Dühring, não poderá perdoar jamais a Goethe, o fato de ter criado, como herói de seu drama, um ser tão imoral como Fausto, em vez de pôr em seu lugar um ilustre filósofo da realidade, como o seria Wagner.

Em resumo, a filosofia da realidade não é, mais que, afinal de contas, para usar uma expressão de Hegel, “a mais vulgar lama do lamaçal alemão”, com uma fluidez e uma transparência feitas de lugares comuns, que só pode ser tornada mais turva e mais densa com os coágulos oraculares que o seu autor nela dissolve. Quando terminamos a última página do livro, sabemos tanto quanto antes de ter iniciado a sua leitura e somos forçados a confessar que o “novo método especulativo” ao lado dos “resultados e concepções fundamentalmente originais” e das “idéias criadoras de sistema”, nos revelou, de fato, não poucos absurdos, sem nos oferecer, em troca, uma linha sequer em que possamos aprender alguma coisa. E este homem, que tanta propaganda faz de suas artes e mercadorias, ao som de fanfarras, como o mais vulgar camelot de feira, por detrás de cujas frases grandiloqüentes não se encontra nada, mas absolutamente nada, este homem tem a ousadia de chamar de charlatães a figuras como Fichte, Schelling e Hegel, o mais humilde dos quais seria, ao seu lado, um gigante! Há charlatanismo, sim: mas onde e por parte de quem?


 

PARTE II

Economia Política

 


Capítulo I
OBJETO E MÉTODO

 

A Economia Política, no sentido mais amplo da palavra, é a ciência das leis que regem a produção e o intercâmbio dos meios materiais da vida na sociedade humana. Produção e troca são duas funções distintas. A produção pode desenvolver-se sem a troca, mas esta pressupõe, sempre, necessariamente, a produção, pelo próprio fato de que o que se trocam são os produtos. Cada uma destas funções sociais sofre a influência de um grande número de fenômenos exteriores, sendo que essa influência é subordinada, em grande parte, a leis próprias e especificas. Mas, ao mesmo tempo, a produção e a troca se condicionam, a cada passo, reciprocamente e influem de tal modo uma sobre a outra, que se pode dizer que são a abcissa e a ordenada da curva econômica.

As condições sob as quais os homens produzem e trocam o que foi produzido variam muito para cada país e, dentro de cada país, de geração para geração. Por isso, a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países nem para todas as épocas históricas. Desde o arco e flecha, passando pelo machado de pedra do selvagem, com os seus atos de troca, raríssima e excepcional, até a máquina a vapor de mil cavalos de força, os teares mecânicos, as estradas de ferro e o Banco de Inglaterra, existe um verdadeiro abismo. Os habitantes da Terra do Fogo não conhecem a produção em grande escala, assim como não conhecem o comércio mundial, nem tampouco as letras de câmbio que circulam a descoberto e os inesperados craques de Bolsa. Quem quer que se empenhasse em reduzir a Economia Política da Terra do Fogo às mesmas leis por que se rege hoje a Economia da Inglaterra, não poderia, evidentemente tirar alguma conclusão, a não ser uns quantos lugares comuns da mais vulgar trivialidade. A Economia Política é, portanto, uma ciência essencialmente histórica. A matéria sobre que versa é uma matéria histórica, isto é, sujeita a mudança constante. Somente depois de investigar as leis especificas de cada etapa concreta de produção e de troca, como conclusão, nos será permitido formular, a titulo de resumo. as poucas leis verdadeiramente gerais, aplicáveis à produção e à troca, quaisquer que sejam os sistemas. Com isto, quer se dizer que as leis, que se aplicam a um determinado sistema de produção ou a uma forma concreta de troca, são válidas também a todos aqueles períodos históricos em que esse sistema de produção ou essa forma de troca se apresentam. Assim, por exemplo, no período em que se implantou na Economia o sistema de dinheiro metálico, entra em ação toda uma série de leis que passam a reger e que se mantêm vigentes em todos os países e em todas as épocas da história em que a troca se realiza tendo como mediador o dinheiro metálico.

O regime de produção e de troca de uma sociedade histórica determinada e, com ele, as condições históricas prévias que presidem a vida desta sociedade determinam, por sua vez, o regime de distribuição do que foi produzido. Na comunidade tribal ou na comuna camponesa, organizadas à base da propriedade coletiva do solo, regime pelo qual passaram — como se pode observar em seus nítidos vestígios — todos os povos civilizados da história, é perfeitamente compreensível que imperasse um sistema de distribuição quase igualitário dos produtos. Ali onde aparece, na distribuição, uma desigualdade mais ou menos assinalada, esta desigualdade é mais um sintoma de que a comunidade começa a se desagregar. A grande e a pequena agricultura correspondem a formas muito distintas de distribuição, conforme as condições históricas prévias de que tenham nascido. Mas é evidente que a agricultura em grande escala condiciona sempre um regime de distribuição completamente diferente do da pequena agricultura; é evidente que, enquanto a primeira pressupõe ou engendra necessariamente um antagonismo de classes — divisão em amos e escravos —, a segunda forma, pelo contrário, modela uma diferença de classes que não está condicionada, de modo algum, pelos indivíduos que trabalham na produção agrícola, mas que já revela a decadência que se inicia no regime de exploração parcelada do solo. A implantação e a difusão do dinheiro metálico nos países em que a Economia tomava desenvolvimento, exclusiva ou predominantemente, pelas vias naturais, trouxe consigo uma perturbação, mais ou menos intensa, mais ou menos rápida, do sistema tradicional de distribuição, uma modificação que torna ainda mais agudas as desigualdades da distribuição entre os indivíduos, acelerando assim a divisão entre ricos e pobres. A indústria artesanal da Idade Média, do tipo local e gremial, impossibilitava a existência de grandes capitalistas e de operários, assalariados por toda a vida, com a mesma força de necessidade com que a grande indústria moderna, a atual estrutura do crédito e a forma da troca adequada ao desenvolvimento desses dois fatores, que é a livre concorrência, faz com que existam esses mesmos grandes capitalistas e operários assalariados.

E com as diferenças no regime de distribuição surgem as diferenças de classe. A sociedade se divide em classes privilegiadas e desprotegidas, exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas. E o Estado, que nasceu do desenvolvimento dos grupos naturais e primitivos em que se começaram a organizar as comunidades descendentes do mesmo tronco, para a direção de seus interesses comuns (irrigação da terra, nos países do Oriente, etc.), e para se defender contra os perigos de fora, formou para si, a partir de então, uma nova finalidade: a defesa, pelo uso da força, das condições de vida e de governo da classe dominante frente à classe dominada.

A distribuição não é, pois, um mero produto passivo da produção e da troca, mas, pelo contrário, repercute também e com força não inferior. sobre elas próprias. Todo novo regime de produção, toda nova forma de troca, tropeça, logo ao nascer, não só com a resistência passiva que lhe opõem as formas tradicionais e as instituições políticas ajustadas a elas, mas também com as barreiras do velho regime de distribuição. Por isso, devem esse regime e essa forma lutar duramente e durante largo espaço de tempo até conquistar um sistema de distribuição adequado à nova modalidade de produção ou de troca. Mas, quanto mais dinâmico e mais capaz de aperfeiçoamento e desenvolvimento for um determinado regime de produção e de troca, mais depressa deverá alcançar também o regime de distribuição um grande desenvolvimento que deixe para trás o regime seu progenitor, um grande progresso que se torne incompatível com o regime antigo de troca e de produção. As velhas comunidades naturais, a que nos referimos atrás, puderam viver milhares de anos, como aliás ainda perduram em nossos dias entre os índios e muitos eslavos, antes que o comércio com o mundo exterior engendrasse em seu seio as diferenças de patrimônio que deveriam acarretar a sua disposição. Ao contrário, a moderna produção capitalista, que não conta mais de trezentos anos de existência e que não se impôs mesmo depois da implantação da grande indústria, isto, é, até há uns cem anos, provocou, no entanto, durante este curto período, muitos antagonismos no regime de distribuição — de um lado a concentração de capitais em poucas mãos e, de outro, a concentração das massas não possuidoras nas cidades mais populosas, — de tal modo que estes antagonismos necessariamente a farão perecer.

A relação entre o regime de distribuição e as condições materiais de existência de uma determinada sociedade está tão arraigada na natureza das coisas, que chega a se refletir, comumente, no instinto do povo. Enquanto um regime de produção está-se desenvolvendo em sentido ascensional, pode contar até mesmo com a adesão e a admiração entusiasta dos que menos beneficiados sairão com o regime de distribuição ajustado a ele. Basta que se recorde o entusiasmo dos operários inglêses ao aparecer a grande indústria. E mesmo depois que este regime de produção já consolidado, constitui, na sociedade de que se trata, um regime normal, continua-se mantendo, em geral, algum contentamento com a forma de distribuição e, se se ergue alguma voz de protesto, é das fileiras da classe dominante que ela sai (Saint-Simon, Fourier, Owen), sem encontrar nem mesmo algum eco no seio da massa explorada. Há de passar algum tempo — e encaminhar-se o regime de produção, já francamente pela vertente da decadência, deve este regime já ter sido superado em parte. devem ter desaparecido, em grande proporção, as condições que justificam a sua existência, estando mesmo tomando tal vulto o seu sucessor —, para que a distribuição, cada vez mais desigual, seja considerada injusta, para que a voz da massa clame contra os fatos do passado junto ao tribunal da chamada justiça eterna. Claro está que este apelo à moral e ao direito não nos faz avançar cientificamente nem uma polegada; a ciência econômica não pode encontrar, na indignação moral, por mais justificada que ela seja, nem razões nem argumentos, mas simplesmente sintomas. A sua missão consiste exclusivamente em demonstrar que os novos abusos e males, que tomam corpo na sociedade, não são mais que outras tantas conseqüências obrigatórias do regime de produção em vigor, ao mesmo tempo em que são indícios da proximidade de seu fim, tornando conhecidos os elementos para a organização futura da produção e da troca, que já estão contidos no seio do regime econômico que caminha a passo largos para a sua dissolução, e na qual esses males e abusos terão que desaparecer. A cólera provocada no poeta tem a sua razão de ser quando se trata de descrever esses males e abusos, ou de atacar os “harmonizadores” que pretendem negá-los ou atenuá-los em benefício da classe dominante mas, para compreender como a cólera prova pouco em cada caso, basta que se considere que, até hoje, em todas as épocas da História, houve matéria de sobra para alimentar os seus impulsos.

Mas a Economia Política, concebida como a ciência das condições e das formas sob as quais as diversas sociedades humanas produzem e trocam os seus produtos, e sob as quais se distribuem os produtos, esta Economia Política, nestes termos concedida, com tal amplitude, está ainda por se criar. Tudo o que até hoje possuímos de ciência econômica se reduz quase exclusivamente à gênese e ao desenvolvimento do regime capitalista de produção. Ela parte da crítica dos restos das formas feudais de produção e de troca, põe em relevo a necessidade de fazer desaparecer estes restos, substituindo-os por formas capitalistas, desenvolve as leis do regime capitalista de produção, com as suas formas correspondentes de troca no seu aspecto positivo, isto é, do ponto de vista em que contribuem para fomentar os fins gerais da sociedade e conclui com a crítica socialista do regime de produção do capitalismo, o que quer dizer com a exposição das leis que presidem o seu aspecto negativo, com a demonstração de que este regime de produção por força de seu próprio desenvolvimento, se aproxima de um ponto em que a sua existência se torna impossível. Esta crítica torna patente que as formas capitalistas de produção e de troca vão convertendo-se em entraves cada vez mais insuportáveis para a própria produção; que o regime de distribuição, necessariamente condicionado por essas formas, engendrou, por sua vez, uma situação de classe cada dia mais insuportável e mais aguda, um antagonismo sempre mais profundo entre alguns capitalistas, cada vez em menor número, porém cada vez mais ricos e uma massa de operários assalariados, cada vez mais numerosa e em geral, também mais desfavorecida e mal retribuída; e finalmente, demonstra que a massa das forças produtivas que engendra o regime capitalista de produção e que este regime não consegue mais governar, está esperando tome posse das próprias forças produtivas uma sociedade organizada sob um regime de cooperação, baseada num plano harmônico destinado a garantir a todos os indivíduos da sociedade, em proporção cada vez maior, os meios necessários de vida e os recursos para o livre desenvolvimento de sua capacidade.

Para compreender em todo o seu alcance esta crítica da Economia burguesa, não era suficiente conhecer a forma capitalista de produção, de troca e de distribuição. Era preciso investigar e trazer à comparação embora apenas em seus traços mais gerais, as formas que a precederam e que, em países menos avançados, coexistem ainda com aquela. Até hoje, esta investigação e este estudo comparativo foram realizados somente por Marx, e devemos, portanto, a seus trabalhos, quase que exclusivamente, o que até agora se pode esclarecer com relação à teoria econômica pré-burguesa.

Embora tivesse nascido, nos fins do século XVIII, em algumas cabeças geniais, a Economia Política, no sentido restrito, tal como a apresentam os fisiocratas e Adam Smith, é essencialmente um fruto do século XVIII, figurando entre as conquistas dos grandes racionalistas franceses dessa época, participando, portanto, de todas as vantagens e todos os inconvenientes do tempo. O que dissemos dos racionalistas podemos aplicar também aos economistas desse século. A nova ciência não era, para eles. uma expressão das circunstâncias e das necessidades da época em que viviam, mas, sim, um reflexo da razão eterna: as leis da produção e da troca, descobertas por eles, não possuem uma forma condicionada historicamente, com a qual se deviam revestir essas atividades, mas outras tantas leis naturais eternas, derivadas da natureza humana. Mas o homem que eles tinham em conta era, na realidade, simplesmente o homem da classe média daqueles tempos, do qual depressa deveria brotar o homem burguês moderno, reduzindo-se a sua natureza apenas a fabricar e a comerciar, sob as condições historicamente condicionadas de então.

Tendo já ocasião de conhecer, de sobra, ao nosso “fundamentador crítico”, Sr. Dühring, bem como a seu método, por tê-lo visto operar no campo da filosofia, não nos é difícil predizer como ele apresentará as suas concepções na Economia Política. No terreno da filosofia, quando não dizia simples disparates (como o vimos fazer na Filosofia da Natureza), as suas idéias eram apenas uma caricatura das do século XVIII. Para ele não existiam leis de desenvolvimento histórico, mas apenas leis naturais, verdades eternas. As instituições sociais, como a moral e o direito, não eram determinadas pela localização dentro das condições históricas reais de cada época, mas pela ajuda prestada por aqueles dois homens famosos, dos quais um oprimia fatalmente o outro, embora até hoje esta suposição não se tenha dado nunca, infelizmente, na realidade. Não estaremos errados, pois, se, dessas idéias, deduzirmos que a Economia se baseia também, no modo de ver do Sr. Dühring, em verdades definitivas e inapeláveis, em leis naturais e eternas, em axiomas tautológicos da mais desolada inutilidade, sem, entretanto, deixar de logo nos ofertar, pelas portas do fundo, todo o conteúdo positivo da Economia, na medida em que dele tem conhecimento; nem tampouco nos enganaremos ao supormos que, para o Sr. Dühring, a distribuição, concebida como fenômeno social, não é derivada da produção e da troca, mas se constrói e fica definitivamente resolvida por meio dos dois célebres homens. E, como se trata de artifícios que já conhecemos bastante, não será preciso que nos estendamos em seu exame.

Com efeito, já na página 2 O Sr. Dühring declara que a sua Economia mantém estreita relação com o estabelecido em sua filosofia e se “baseia, em alguns pontos essenciais, nas verdades superiores, já assentadas num campo mais alto de investigação”. Sempre o mesmo empenho em nos convencer de sua grandeza. Sempre as mesmas ponderações sobre o “assentado” e “estabelecido”, pelo mesmo Sr. Dühring. Já tivemos ocasiões de sobra para ver como é que “assenta” e “estabelece” as suas verdades o Sr. Dühring.

A seguir deparamos com “as leis naturais mais gerais de toda a Economia”. Nossas previsões não tinham sido pois desmentidas. Mas estas leis naturais só nos permitem compreender exatamente a história passada, sempre e quando as “investiguemos sob essa determinação precisa que as formas políticas de submissão e agrupação imprimiram então a seus resultados. Instituições como a escravidão e a exploração do trabalho assalariado, às quais se vem unir, com sua irmã gêmea, a propriedade baseada na força, devem ser investigados como formas constitutivas econômico-sociais, de autêntico caráter político, formando as mesmas, no mundo atual, o quadro fora do qual não se poderiam revelar os efeitos das leis naturais da Economia”.

Toda esta tirada complicada é apenas a fanfarra que anuncia, como tema wagneriano a entrada em cena dos dois famosos homens, Porém, é, além disso, o tema fundamental do todo o livro do Sr. Dühring. Ao tratar do Direito, não pode o Sr. Dühring oferecer-nos nada mais que uma péssima tradução da teoria rousseauniana da igualdade para a linguagem socialista; em qualquer taberna de operários de Paris poder-se-ia encontrar uma adaptação muito melhor. Neste novo capítulo, ele nos oferece uma tradução socialista, igualmente má, das lamentações dos economistas a respeito do fracasso das leis naturais e eternas da Economia e dos efeitos causados pela intromissão do Estado e da força. Neste terreno, o Sr. Dühring está como socialista, por inteiro, completamente, merecidamente. Qualquer operário socialista de qualquer país sabe perfeitamente que a força ampara a exploração, mas que não lhe dá origem, que a sua exploração tem a raiz nas relações entre o capital e o trabalho assalariado e que estas relações tiveram a sua origem num terreno puramente econômico, e não na simples violência.

Prosseguindo a leitura, verificamos que, em todos os problemas econômicos, “podemos distinguir duas trajetórias, a da produção e a da distribuição”. E que o conhecido e superficial economista Jean Baptiste Say acrescenta a estas duas uma terceira trajetória, a do consumo, mas sem chegar a dizer nada de inteligente a respeito dela, nem mais nem menos que o seu sucessor. E, finalmente, verificamos que a troca ou circulação não é mais que um capítulo da produção, devendo entrar nesse capítulo tudo o que se deve fazer para que os produtos cheguem às mãos do último e verdadeiro consumidor. O Sr. Dühring, ao identificar dois processos tão substancialmente diferentes, embora mutuamente condicionados, como são, de fato, a produção e a circulação, afirmando, sem sombra de dúvida, que, se não se aceitar essa mistura dos dois capítulos; está-se criando uma “fonte de confusão”, não faz mais que demonstrar que ignora por completo, ou não compreende, o gigantesco desenvolvimento a que atingiu, nos últimos anos, a circulação, ignorância e incompreensão que vemos confirmadas por toda a sua obra. Mas, não contente com isto, não contente por deixar, sob a mesma rubrica de produção, à produção e à circulação, apresenta a distribuição ao lado da produção, como um segundo processo perfeitamente independente, que nada tem a ver com aquele. Como já vimos, a distribuição é sempre, em suas formas mais importantes, um fruto necessário do regime de produção e de troca, vigente numa determinada sociedade, de acordo com a condição histórica prévia desta mesma sociedade, de tal modo que, conhecendo esta condição podemos concluir com toda a exatidão qual o regime de distribuição que impera nessa sociedade. Mas reconheçamos desde logo que o Sr. Dühring por não querer trair os princípios “assentados” em sua concepção da Moral, do Direito e da História, não tinha outro remédio, senão negar este fato econômico elementar, preparando assim também o terreno para fazer-nos escorregar, na Economia, para o campo de seus dois insubstituíveis homens. Assim, desligada já, felizmente, a distribuição de todo o contato com a produção e a troca, pode, então, realizar-se, por fim o grande acontecimento.

Recordemos, antes, porém, como se desenvolveu a coisa no terreno da Moral e do Direito. Começava aí o Sr. Dühring por manobrar com um só homem, dizendo: “Um homem, na qualidade de indivíduo, ou seja, desligado de toda a conexão com quaisquer outros homens, não pode ter deveres. Não há, para ele, outros imperativos que o de sua vontade.” Quem há de ser este homem, desligado de seus deveres e concebido como indivíduo isolado a não ser o fatal “protojudeu Adão” ainda no paraíso, despido de todo o pecado, pela simples razão de não ter com quem cometê-lo? Mas também a este Adão, da Economia da realidade, está reservado o seu pecado original. Ao lado dele surge, não uma Eva de longos cabelos encaracolados, mas um segundo Adão. E imediatamente Adão adquire deveres e logo os desrespeita. Em vez de estreitar contra o peito o seu irmão, como um seu igual, submete-o logo ao seu domínio, escraviza-o. É este primeiro pecado, este pecado original da escravidão, é o pecado cujas conseqüências ainda vêm sendo sentidas por toda a história do mundo, e tal é a causa por que esta história não valha, segundo o Sr. Dühring, nem uma cadelinha qualquer.

Recordemos, incidentalmente, que o Sr. Dühring dava de ombros. pejorativamente, à “negação da negação”, na qual ele via um eco grotesco do velho mito do pecado original e da redenção. Que havemos de pensar agora desta sua novíssima edição do mesmo mito? (pois, como veremos dentro em pouco, até o mito da redenção foi por ele utilizado). Em todo o caso, preferimos desde já a versão semítica, na qual, pelo menos, os dois personagens, o homem e a mulher, saíam lucrando alguma coisa por ter deixado de lado a inocência primitiva, embora tenhamos de reconhecer que ninguém disputará ao Sr. Dühring a glória de ter construído o pecado original da maneira mais original do mundo: com dois homens.

Detenhamo-nos um momento, porém, para escutar a tradução do pecado original para a linguagem econômica: “Para a idéia da produção, basta, desde o início, que se represente um Robinson que, enfrentando isoladamente a natureza, só por meio de suas forças, nada tem a partilhar com ninguém; isto não basta como esquema especulativo... Existe a mesma conveniência em se representar o que há de mais substancial na idéia da distribuição pelo esquema especulativo de duas pessoas, cujas forças econômicas se combinam, vendo-se naturalmente forçadas a se substituir reciprocamente, sob uma forma ou outra, em relação às suas participações. É, de fato, suficiente, este simples dualismo para se poder expor, com todo o rigor, algumas das relações mais importantes de distribuição e para se poder estudar, embrionariamente, as suas leis, em sua necessidade lógica... Pode-se, igualmente, conceber aqui a cooperação num pé de igualdade, com a qual, a combinação das forças, mediante a total opressão de uma das partes, vendo-se esta, neste caso, dominada como escrava ou como mero instrumento de serviço econômico, somente sustentada na qualidade de instrumento... Entre o estado da igualdade e o da anulação de uma das partes, ao lado da onipotência e da participação ativa da outra, medeia toda uma série de graus que os fenômenos da história universal se encarregaram de preencher com uma pitoresca variedade. Uma vista de olhos universal sobre as diferentes instituições do direito e da injustiça históricos, torna-se aqui uma condição prévia essencial...” Assim, pois, todo o problema da distribuição converte-se, finalmente, num “direito econômico de distribuição”.

Pisa finalmente o Sr. Dühring em terreno firme. de mãos dadas com os seus dois insubstituíveis homens, pode ele levar de vencida a todo o seu século. Por detrás do triunvirato que se forma, ergue-se um anônimo.

“Não foi o capital que inventou a mais-valia. Onde quer que uma parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o operário, livre ou escravo, não tem outro remédio senão acrescentar ao tempo, de trabalho para o seu sustento uma quantidade de trabalho excedente, destinaria a produzir os meios de vida para o proprietário dos meios de produção, quer se trate de um caloscágatos ateniense, um teocrata etrusco, um civis romanus (cidadão romano) quer de um barão da Normandia, um escravagista americano, um Senhor feudal da Waláquia, um proprietário de terras moderno ou do um moderno capitalista.” (Marx, O Capital, t. I, segunda edição, pág. 227).

Depois de verificar por este caminho qual era a forma fundamental de exploração, comum a todas as formas de produção até a nossa época — desde que baseadas em antagonismos de classes, — não precisava o Sr. Dühring senão pôr em ação os seus dois homenzinhos e com apenas isso ficavam armados os alicerces “radicais” de sua Economia da realidade. E não vacilou ele nem um momento na execução desta idéia criadora de sistema”. Eis o ponto central: trabalho sem remuneração após ter sido gasto o tempo de trabalho necessário para a conservação do operário. O nosso Adão, agora convertido em Robinson, põe a trabalhar o segundo Adão, ou seja, o “Sexta-feira”. Porém, como “Sexta-feira” há de se prestar a trabalhar mais do que o necessário para o seu sustento? Esta pergunta parece que foi também respondida, em parte pelo menos, por Marx. Entretanto, a resposta de Marx é demasiada prolixa para os nossos dois homens. Resolve-se o assunto com mais facilidade. Robinson “oprime” o “Sexta-feira”, espolia-o “como um escravo ou instrumento, posto ao serviço econômico”, e somente o sustenta “na qualidade de instrumento”. Com esta novíssima “manobra criadora”, mata o Sr. Dühring dois coelhos com uma só cajadada. Em primeiro lugar, poupa-se ao trabalho do explicar-nos as diversas formas de distribuição que se sucedem na história, com suas diferenças e suas respectivas causas. Basta que se saiba que todas estas formas são reprováveis, pois todas elas descansam na opressão, na violência, sobre isso teremos oportunidade de falar mais adiante. Em segundo lugar, desloca toda a teoria da distribuição, do terreno econômico para o da Moral e do Direito, ou seja, do terreno dos fatos materiais concretos e decisivos para o das opiniões e sentimentos mais ou menos flutuantes. Nesta situação, já não se precisa molestar em investigações e demonstrações bastando-lhe recitar vastas tiradas declamatórias e exigir que a distribuição dos produtos do trabalho se ajuste, não às causas reais. mas ao que ele Dühring, considera justo e moral. Mas o que o Sr. Dühring considera justo não é, de modo algum, algo de imutável, distando muito de ser uma autêntica verdade, pois estas, segundo a sua opinião, “não são nunca imutáveis”. Em 1868, o Sr. Dühring afirmava (“O destino de minha memória social”, etc.) que “na tendência de qualquer civilização superior, está o modelamento da propriedade em traços cada vez mais definidos”, e que “nisto e não numa confusão de direitos e de esferas de influência” se baseava “o caráter e o futuro da evolução moderna”. E afirmava, também, que não podia simplesmente compreender como a transformação do trabalho assalariado num regime diferente de subsistência, poderia chegar a ser, de qualquer modo, compatível com as leis da natureza humana e da estrutura natural e necessária do organismo social. Como vemos, em 1868. a propriedade privada e o trabalho assalariado eram instituições naturais e necessárias e, portanto, justas. Em 1876, eram ambas, pelo contrário, resultado da violência e do roubo, e portanto,injustas. Não é nada fácil saber o que será considerado moral e justo, dentro de alguns anos, por um gênio tão vertiginoso como esse. Se quisermos, assim, estudar a distribuição das riquezas, será melhor que nos restrinjamos às leis reais e objetivas da Economia, e não às idéias momentâneas, mutáveis e subjetivas do Sr. Dühring, no que diz respeito ao Direito e à injustiça.

No que diz respeito à revolução, que se aproxima e que transformará o atual regime de distribuição dos produtos do trabalho, com todos os seus clamorosos contrastes de miséria e abundância, fome e dissipação, se contássemos apenas com a consciência de que esse regime de distribuição é injusto e de que, cedo ou tarde, o direito e a injustiça acabariam por triunfar poderíamos, então, esperar tranqüilamente sentados. Os místicos da Idade Média, aqueles que sonhavam com a proximidade do reino milenar, já tinham consciência dessa injustiça, a consciência da injustiça dos antagonismos de classe. Nos primórdios da história moderna, há uns trezentos e cinqüenta anos, ergueu-se a voz de Thomas Munzer, clamando contra esta injustiça. O mesmo grito novamente ressoa e perde-se na Revolução Inglesa e na Revolução burguesa da França. O grito, que até 1830 não tinha comovido ainda as massas trabalhadoras e oprimidas, encontra hoje eco em milhões de homens, abalando um por um, todos os países, na mesma ordem e com a mesma intensidade com que, nesses países, se vai desenvolvendo a grande indústria, e chega a atingir, no decurso de uma geração, uma força tal, que pode desafiar todos os poderes coligados contra ele, estando mesmo seguro da vitória definitiva num futuro próximo. Cabe-nos perguntar agora: A que se deve isso? Simplesmente ao fato de que a grande indústria moderna engendrou, por um lado, o proletariado, classe que se pôde levantar, pela primeira vez na história, para exigir a abolição, não de uma ou de outra organização concreta de classe, não de tal ou qual privilégio concreto de classe, mas de todas as classes em geral; essa classe, pelas próprias circunstâncias, é obrigada a impor essa abolição, sob pena de ficar reduzida à situação em que se encontram os coolies na China. Por outro lado, a grande indústria cria a burguesia; classe que ostenta o monopólio de todos os instrumentos de produção e meios de vida, ficando demonstrado, em cada período de saturação e nas crises que lhes são subseqüentes, que é já incapaz de continuar a governar as forças produtivas, que fogem ao seu controle; essa classe, sob cujo controle a sociedade corre, vertiginosamente, para a ruína, como se fosse uma locomotiva, na qual o maquinista não tem mais força suficiente para abrir nenhuma válvula de segurança. Ora, por outras palavras: a onda de rebeldia é devida a que as forças produtivas engendradas, tanto pelo moderno regime capitalista de produção, como também pelo sistema de distribuição de riquezas, por ele criado, estão em flagrante contradição com esse regime de produção, numa contradição tão irredutível que, necessariamente, deverá se produzir uma transformação radical no regime de produção e de distribuição, arrastando para o abismo todas as diferenças de classe, se é que a sociedade moderna não quer perecer. Neste fato material e tangível, que se impõe, dentro de limites mais ou menos claros, através de uma irresistível necessidade, nos cérebros dos proletários vítimas da exploração, nesse fato e não nas idéias e maquinações de um erudito especulador sobre o Direito e a Justiça, é que se evidencia a certeza de que o socialismo moderno terá de triunfar.


Capítulo II
TEORIA DA VIOLÊNCIA

 

“A relação entre a política geral e as formações do direito econômico é determinada, em meu sistema, de uma forma tão decisiva e tão original que não será demais ressaltá-la aqui, para facilitar a sua compreensão. A configuração das relações políticas é historicamente fundamental, e as dependências econômicas nada mais são que um efeito ou caso especial, sendo, portanto, sempre, fatos de segunda ordem. Muitos dos sistemas socialistas modernos têm, como principio diretivo, a aparência de uma relação totalmente inversa, que salta aos nossos olhos, fazendo com que os estados econômicos surjam, digamos, das subordinações políticas. Esses efeitos de segunda classe existem, sem dúvida, como tais, e são especialmente sensíveis nos tempos atuais; mas o elemento primário deve ser encontrado no poder político imediato e não no poder econômico indireto”. E a mesma doutrina se reflete noutro trecho em que o Sr. Dühring “extrai da tese de que os estados políticos são a causa decisiva da situação econômica e de que a relação inversa representa somente uma repercussão de segunda ordem. Enquanto não se considerem os agrupamentos políticos, por si mesmos,, como pontos de partida, considerando-os pelo contrário, exclusivamente, como meios para fins ligados à subsistência, por mais radical, mais socialista e mais revolucionário que se queria aparecer, continuar-se-á a esconder uma boa dose camuflada de reação.”

Tal é a teoria do Sr. Dühring. Teoria que, neste como em muitos outros trechos, ele se limita a formular e, quase poderíamos dizer, a decretar. Em nenhum dos três tomos de sua obra, apesar de tão volumosos, pode ser encontrada a mais leve intenção de demonstrá-la ou de refutar a opinião contrária à sua. Ainda que os argumentos fossem baratos como amoras, o Sr. Dühring não nos forneceria nenhum em apoio à sua tese. Para que fornecê-los se tudo está tão suficientemente demonstrado pelo famoso pecado original, em que víamos Robinson escravizar “Sexta-feira”? Esta escravização era um ato de violência e, portanto, um ato político. E, como esse ato de dominação é o ponto de partida e o fato fundamental de toda a história até os nossos dias, introduzindo nela o pecado original da injustiça, embora um pouco atenuado ao se converter mais tarde “nas formas bem mais indiretas da dependência econômica”, e, como desse avassalamento primitivo brota toda a “propriedade baseada na força”, que vem até hoje imperando, é evidente que os fenômenos econômicos têm a sua raiz em causas políticas e, mais concretamente, na violência. E quem não se conformar com essas deduções é um reacionário camuflado.

Observemos, antes de mais nada, que é necessário estar muito cheio de si, como o Sr. Dühring, para afirmar que esta teoria é “original”, quando ela não o é de modo algum. A crença de que os atos políticos dos chefes e do Estado são um fator decisivo da História é uma crença tão antiga como a própria historiografia e a ela se deve particularmente o fato de que saibamos tampouco a respeito da silenciosa evolução que impulsiona realmente os povos e que se oculta no fundo de todas as cenas ruidosas. Esta crença presidiu toda a História antiga até que, na época da Restauração, os historiadores burgueses lhe assestaram o primeiro golpe. O que é original é que o Sr. Dühring ignore tudo isso, como de fato o ignora.

Além disso, mesmo admitindo, por um momento, que o Sr. Dühring tenha razão ao afirmar que toda a História, até aos nossos dias, tem as suas raízes na escravização do homem pelo homem, não chegaríamos, desse modo, nem aproximadamente, ao ponto nevrálgico da questão. Surgiria imediatamente a pergunta: que levou Robinson a escravizar “Sexta-feira”? Fez Isso apenas por diversão? Sabemos que não. O que se nos afirma, pelo contrário, é que “Sexta-feira” era “espoliado como escravo, ou como simples instrumento para serviço econômico, e mantido somente na categoria de instrumento”. Robinson, portanto, escraviza “Sexta-feira” para que este trabalhe em seu beneficio. E como pôde Robinson se aproveitar do trabalho de “Sexta-feira”? Somente conseguindo que “Sexta-feira” crie, por seu próprio trabalho, mais meios de vida do que os que Robinson possui para lhe fornecer, a fim de que se mantenha em condições para trabalhar. Isto é, Robinson, contra as prescrições expressas e imperativas do Sr. Dühring “não toma como ponto de partida um agrupamento político” criado por meio da escravização de “Sexta-feira”, “por si mesmo considerando-o, pelo contrário, exclusivamente, como meios para fins ligados à subsistência”, e agora, ele que procure entender-se com o seu dono e Senhor.

Vemos, pois, que o exemplo pueril, expressamente inventado pelo Sr. Dühring para nos provar que a violência é um fator “historicamente fundamental”, na realidade nos demonstra que este fator nada mais é que o meio, enquanto que o fim está precisamente no proveito econômico. E, finalmente, tudo o que tem de “fundamental” em relação aos meios empregados para alcançá-lo, também tem de fundamental, na História, o aspecto econômico da relação entre os dois homens, comparado com o aspecto político. O exemplo citado demonstra, pois, justamente, o contrário do que o seu autor pretendia demonstrar, A mesma coisa que, como vemos, acontece com Robinson e “Sexta-feira”, pode ser observada com todos os casos de poder e avassalamento de que nos fala a História. A escravização tem sido sempre, para empregar a elegante expressão do Sr. Dühring, um “meio para fins ligados à subsistência” (concebida a subsistência em seu sentido mais amplo), sem ter sido em parte alguma um “agrupamento político”, implantado graças a si mesmo. É preciso que se seja um Sr. Dühring para se poder imaginar que os impostos cobrados pelos Estados não são mais que “efeitos de segunda ordem” e que o “agrupamento político” de nossos dias, que coloca, de um lado, a burguesia poderosa e, de outro lado, o proletariado oprimido, chegou a existir graças a si mesmo, e não como conseqüência dos “fins de subsistência” dos burgueses dominantes, ou seja, pela produção de lucro e acumulação do capital.

Voltemos. porém. aos nossos dois homens. Robinson, “com a espada na mão”, escraviza “Sexta-feira”. Mas, para que seja um fato a escravização, Robinson necessita de alguma coisa a mais que a simples espada. Nem a todos os tipos de senhores lhes são úteis seus escravos. Para que possam servir-se deles torna-se necessário duas coisas: em primeiro lugar, os instrumentos e objetos necessários para o seu trabalho, e, em segundo lugar, os meios indispensáveis para o seu sustento. Assim pois, antes de se instituir a escravidão,. para que esta seja mesmo possível, é mister que a produção tenha alcançado já um certo grau de progresso e que, na distribuição, tenha sido atingido um certo grau de desigualdade. E, para que o trabalho dos escravos possa converter-se em regime de produção predominante em toda a sociedade, é preciso que, nesta, a produção, o comércio e a acumulação de riquezas se tenham desenvolvido num grau já muito superior. Nas primitivas comunidades naturais, organizadas sobre o regime da propriedade coletiva do solo, ou não pôde a escravidão existir, sob nenhuma forma ou, então, desempenhou esta instituição papel muito secundário. Acontecia o mesmo na antiga Roma, quando esta era uma cidade de camponeses. Mais tarde, ao converter-se numa “cidade universal”, e ao concentrar a propriedade do solo da península itálica, cada vez mais intensamente, nas mãos de uma classe pouco numerosa de proprietários de terra riquíssimos, a primitiva população de camponeses cedeu lugar a uma população de escravos. Sabemos que, nos tempos da guerra dos Persas, o número de escravos se elevava, em Corinto, a 460.000 e em Egina, a 470.000, chegando a haver 10 escravos para cada cidadão livre. É evidente que para chegar a este estado de coisas, não bastava usar a “violência”, mas, pelo contrário, devia fazer falta uma indústria artística e artesanal muito desenvolvida, ao lado de uma extensa rede comercial. Nos Estados Unidos da América a escravidão não descansava nem no uso da violência, nem na existência da indústria inglesa do algodão. Nas regiões não algodoeiras e que não se dedicavam, como os Estados litorâneos, à manutenção de escravos, destinados aos Estados algodoeiros, foi-se extinguindo a escravidão por si mesma, sem apelar para a violência, pela simples razão de que não era rendosa.

Quando, portanto, o Sr. Dühring diz que a instituição moderna da propriedade está baseada na violência e a define como “aquela forma de poder que não exclui o semelhante do uso dos meios naturais da vida, mas também, o que é muito importante esta instituição está baseada no avassalamento do homem como servo”, está o Sr. Dürhing virando as coisas pelo avesso. O avassalamento do homem como servo, qualquer que seja a forma que apresente, pressupõe, em quem o avassala, o poder de dispor sobre os meios de trabalho, sem os quais o servo não lhe serviria para nada, e pressupõe, na instituição da escravidão, além disso, o poder de dispor dos meios de vida indispensáveis para o sustento do escravo. Pressupõe, assim. de qualquer maneira, um certo nível patrimonial superior ao grau médio de fortuna. Perguntamos, agora, de onde é que saiu esta diferença? É fora de dúvida que pôde ter saído do roubo, isto é, da violência, mas esta não é a única explicação possível Pode também ser o fruto do trabalho, do furto, ou de uma transação comercial ou de uma fraude. Ainda mais: para que alguma coisa possa ser roubada é mister tenha alguém criado, com o seu trabalho, aquilo que se lhe rouba.

A propriedade privada não surge na História nem como fruto do roubo e da violência nem como coisa parecida. Muito ao contrário, a propriedade privada, embora limitada a certos objetos, já existe nas comunas naturais primitivas, na origem de todos os povos civilizados. Começa por se desenvolver, ainda no seio destas comunidades, pela troca efetuada com os membros de outras comunas, sob a forma de mercadoria. E quanto mais se acentua a forma de mercadoria nos produtos da comuna, ou, o que vem a ser o mesmo, quanto maior for a proporção em que estes artigos sejam produzidos para a troca, e não para serem consumidos pelo próprio produtor, quanto mais esta troca fez substituindo ainda no seio da própria comuna, o regime primitivo e natural da divisão do trabalho, se vai cada vez mais acentuando, também, a desigualdade na situação de riqueza dos diferentes membros da comunidade, tanto mais se vai minando e solapando o velho regime de propriedade coletiva do solo e, mais rapidamente, encaminha-se a comunidade para a sua dissolução, para se converter finalmente numa aldeia que é constituída por lavradores, proprietários de suas réstias de terra. O despotismo oriental e a constante mudança de poderes, de uns para outros povos nômades conquistadores, não puderam violar durante milênios, este regime primitivo de comunidade. Em compensação, a destruição gradual de sua indústria doméstica natural, pela concorrência com os produtos da grande indústria, vai conduzindo este regime, cada vez mais aceleradamente, para a sua dissolução. Não é necessário falarmos aqui da violência, nem mesmo quando tratamos da repartição, que se está ainda realizando em nossos dias, da propriedade agrária comunal, das “fazendas” do Mosela e dos altos bosques; o que acontece simplesmente é que os lavradores acham mais proveitoso, para os seus interesses, a propriedade privada da terra em lugar da propriedade comunal. Nem mesmo a formação de uma aristocracia natural, como a que se instituiu entre os Celtas e os Germanos e na região hindu dos Cinco Rios, baseada no regime da propriedade coletiva do solo, surge, de forma alguma, baseada na violência, mas sim de modo espontâneo e por força do costume. Onde quer que apareça a propriedade privada, nasce ela com efeito das mudanças verificadas nas condições de produção e de troca, no interesse do desenvolvimento da produção e da intensificação do comércio, respondendo, portanto, a causas econômicas. Neste processo, a violência não desempenha nenhum papel. Para que o ladrão possa se apropriar de bens alheios, é evidente que a instituição da propriedade privada já deve estar consagrada e em vigor em toda a sociedade; ou seja, a violência poderá, sem dúvida alguma, transformar o estado possessório, mas, entretanto, não engendrará nunca a instituição da propriedade.

E, para explicar o “avassalamento do homem como servo”, na mais moderna de suas formas o trabalho assalariado, não podemos nem tampouco precisamos recorrer à violência ou à propriedade cimentada nela. Já observamos o relevante papel que desempenha na dissolução das velhas comunidades, e, portanto, na difusão, direta ou indireta, da propriedade privada, a transformação dos produtos do trabalho em mercadorias, a sua produção não para o consumo próprio mas para o mercado. Pois bem, em O Capital, Marx, demonstrou, com clareza meridiana, — e o Sr. Dühring se reserva o máximo possível de fazer alusão a isso — que, ao alcançar um certo grau de desenvolvimento, a produção de mercadorias se converte em produção capitalista, e que, chegado a este momento, a lei da apropriação, ou lei da propriedade privada, baseada na produção e na circulação de mercadorias, se converte, em virtude de sua própria dialética, interna e inevitável, no seu contrário. A troca de equivalentes, que era a operação primitiva, vai transformando-se até se converter numa troca apenas aparente, devido a duas razões: em primeiro lugar, porque a parte do capital que se troca pela força de trabalho não é, por si mesma, senão uma parte do produto do trabalho alheio apropriado, sem ter sido dado nada em troca; em segundo lugar, porque o produtor, o operário, não somente a repõe, mas se vê obrigado a repô-la acrescentando-lhe um novo excedente... A primeira vista, a propriedade aparecia como baseada no trabalho individual... Agora (ao finalizar o estudo de Marx), a propriedade se nos apresenta, no que se refere ao capitalista, como um direito de se apropriar do trabalho alheio não retribuído, e, no que diz respeito ao operário, como a impossibilidade de apropriar-se do produto de seu trabalho. Donde se conclui que o divórcio entre a propriedade e o trabalho se converteu numa conseqüência necessária de uma lei que parecia de “sua própria identidade”.

Por outras palavras, ainda que se suponha que fossem totalmente impossíveis o roubo, a violência e a fraude, se admitirmos que toda a propriedade privada repousa inicialmente, no trabalho pessoal do proprietário e que, no decorrer do processo histórico posterior, apenas se trocam valores iguais por valores iguais, chegamos forçosamente, ao se desenvolver a produção e a troca, ao atual regime capitalista de produção, ao monopólio dos meios de produção e de vida nas mãos de uma classe pouco numerosa, até a degradação da outra classe, constituída pela imensa maioria da população, num conjunto de proletários despojados. e, ainda até a situação em que imperam, alternativamente, os máximos de produção e as crises comerciais; numa palavra, ao estado de anarquia que hoje reina na produção. E todo esse processo se explica por causas puramente econômicas, sem necessidade de se recorrer ao argumento do roubo, nem ao da violência, nem ao Estado, nem mesmo a qualquer outra intromissão de caráter político. Donde se conclui que a famosa “propriedade baseada na força” nada mais é que uma frase declamatória. entre tantas, destinada a disfarçar a incompreensão do processo real das coisas.

Este processo, estudado historicamente, não é mais que a história do desenvolvimento da burguesia. E se “os estados políticos são a causa decisiva da situação econômica”, a burguesia moderna não pode se ter desenvolvido em luta contra o feudalismo, mas terá que ser um filho nascido espontaneamente de suas entranhas. Mas todo o mundo sabe que não foi assim, que a verdade é justamente o contrário. Camada oprimida desde as suas origens, tributária da nobreza feudal dominante recrutada entre servos e vassalos de toda a espécie, a burguesia, lutando constantemente contra a nobreza, conquistou posições, uma após outra até assenhorear-se, nos países mais avançados, do poder, para ocupá-lo em lugar da própria nobreza Na França derrubando diretamente a nobreza, na Inglaterra, aburguesando-a e convertendo-a numa cúpula ornamental de sua própria classe, E como conseguiu tudo isso? Conseguiu-o simplesmente pela mudança da “situação econômica”, a que imediatamente se seguiu. cedo ou tarde, espontaneamente ou por meio de lutas. a mudança das instituições políticas. A luta da burguesia contra a nobreza feudal é a luta da cidade contra o campo. da indústria contra o proprietário de terras, da economia baseada no dinheiro contra a economia natural, e as armas decisivas que, nestas lutas, empregou o burguês foram simplesmente os seus recursos de poder econômico, constantemente reforçados por meio do desenvolvimento da industria, a princípio artesanal e mais tarde manufatureira, e pela difusão do comércio, durante toda esta luta, o poder político formou ao lado da nobreza, com a única exceção de um período em que o poder real julgou conveniente utilizar a burguesia contra a nobreza, para contrabalançar uma camada com a outra. Mas, a partir do momento em que a burguesia, embora impotente políticamente começou a ser perigosa, graças ao seu poderio econômico cada vez maior, a monarquia voltou a aliar-se com a nobreza. provocando, assim, primeiro na Inglaterra e logo depois na França, a revolução da burguesia. Na França, os “estados políticos” permaneciam invariáveis, mas a “situação econômica” ultrapassava os seus limites. Politicamente, a nobreza era tudo e a burguesia era nada. Socialmente, a burguesia era já a classe mais importante dentro do Estado, ao passo que a nobreza tinha perdido já todas as suas funções sociais, embora continuasse cobrando as rendas com que ainda eram remuneradas essas funções desaparecidas. E não apenas isso, mas se achava a burguesia coibida também, em toda a sua atividade de produção, pelas formas políticas feudais da Idade Média, sob as quais já há muito esta produção — não somente a manufatura, mas também o próprio artesanato — não podia mais progredir, cerceada por um excesso de privilégios gremiais e de tarifas provinciais e locais que não eram mais que outros tantos incômodos e entraves para a produção. A revolução burguesa pôs fim a tudo isso. Mas não de acordo com o princípio do Sr. Dühring, adaptando a situação econômica aos estados políticos — que era precisamente o que a monarquia e a nobreza procuravam fazer em vão, desde muitos anos —, mas pelo contrário, varrendo todas aquelas normas políticas velhas e apodrecidas, e criando “estados políticos” mais de acordo com a nova “situação econômica”, onde esta pudesse viver e se desenvolver folgadamente. Na verdade, a nova “situação econômica” desenvolveu-se maravilhosamente, nessa atmosfera política e jurídica adequada às suas necessidades, tão maravilhosamente, que hoje a burguesia já não está muito longe da posição que a nobreza ocupava em 1789, pois que, de fator de progresso foi-se convertendo, pouco a pouco, num fator, não apenas socialmente inútil, mas até nocivo ao desenvolvimento da sociedade; a burguesia vai-se colocando, cada vez mais, à margem da atividade produtiva, convertendo-se, como no seu tempo a nobreza, numa classe que não faz mais do que viver de suas rendas. Todo esse processo de decadência. ao lado da criação de uma nova classe, o proletariado, se desenvolveu sem a menor intervenção da violência, por meios puramente econômicos. E ainda mais. Este resultado da atuação e da conduta da burguesia não corresponde, de modo algum. à sua vontade; muito pelo contrário, foi cedendo ante o impulso de uma força irresistível, contra a sua vontade e contra as suas intenções, simplesmente porque as suas próprias forças produtivas ultrapassaram os quadros de sua direção e empurraram a sociedade burguesa inteira, por força das leis naturais, à revolução ou à ruína. E quando os burgueses apelam para a violência com o fim de conter, à borda do abismo, a “situação econômica” que marcha para ele, isso demonstra apenas uma coisa: quem incorre no mesmo absurdo do Sr. Dühring. no absurdo de supor que os “estados políticos” são “a causa decisiva da situação econômica”, aqueles que pensam, exatamente como o Sr. Dühring, que o “poderio político primitivo”, o “poderio diretamente político”, lhes permitirá modificar esses “fatos de segunda ordem”, que constituem a “situação econômica”, de modo a resistir ao irresistível desenvolvimento, como se os efeitos econômicos da máquina a vapor e de todo o maquinário moderno por ela movimentado — a rede do mercado mundial, dos bancos e do crédito, nos tempos atuais — pudessem ser varridos do mundo por meio dos canhões Krupp e dos fuzis Mauser.


Capítulo III
TEORIA DA VIOLÊNCIA

(Continuação)

 

Vamos analisar, entretanto um pouco mais de perto, essa onipotente “violência” do Sr. Dühring. Robinson escraviza “Sexta-feira”, “com a espada na mão”. Sim, mas onde arranjou essa espada? Que se saiba, até hoje, as espadas não brotam, como árvores, de nenhum lugar da terra, nem mesmo nas ilhas imaginárias onde vivem os Robinson. O Sr. Dühring não acha oportuno responder a esta pergunta — ora, se Robinson pode armar-se de uma espada sem nos dizer de onde a tirou, nada nos impede de supor que, uma bela manhã, o nosso “Sexta-feira” aparecerá empunhando um revólver carregado e então toda a relação da “violência” estará virada pelo avesso. “Sexta-feira” se imporá e Robinson terá de trabalhar para ele. Pedimos ao leitor que nos perdoe por insistirmos tanto na história de Robinson e “Sexta-feira”, mais apropriada para a recreação de crianças do que para elucubrações cientificas, mas, que havemos de fazer? Não temos outro remédio senão aplicar conscienciosamente os métodos axiomáticos do Sr. Dühring, e não temos culpa de que se limite este pesquisador a um terreno de mera puerilidade. O revólver triunfará da espada e até a criatura mais cheia de axiomas terá de reconhecer que, neste caso, a violência não é um mero ato de vontade, pressupondo, pelo contrário, condições prévias bastante reais para o seu exercício, a saber: instrumentos, entre os quais, o mais perfeito esmaga o mais imperfeito. Estes instrumentos, que não brotam do solo por si sós, tiveram de ser produzidos, o que eqüivale a dizer que o produtor dos mais perfeitos instrumentos de violência, que são as armas, triunfa sobre o produtor dos mais imperfeitos. Daí temos de reconhecer, em resumo, que a vitória da violência se reduz à produção de armas e que esta, por sua vez, se reduz à produção em geral, e, portanto, ao “poderio econômico”, à “situação econômica”, aos meios materiais colocados à disposição da vontade de violência.

Que vem a ser, atualmente, a violência? São os exércitos e os navios de guerra, e ambos custam, como já tivemos ocasião de aprender, por dolorosa experiência, “um montão de dinheiro”. Mas, que saibamos, a violência não é capaz de criar dinheiro. A única coisa que ela sabe é arrebatar o que já foi criado, o que também de pouco nos servirá, como já o sabemos pela pungente experiência dos famosos cinco mil milhões da França. Em última análise, é sempre a produção econômica que subministra a quantidade necessária de dinheiro. Voltamos a nos encontrar, aqui, com a idéia de que a violência está condicionada pela situação econômica, da qual ela deve receber os meios necessários para se equipar com instrumentos, bem como para conservá-los. E não termina aqui a nossa história. Nada pode depender tanto dos fatores econômicos como o exército e a marinha, O armamento, a composição, a tática e a estratégia, dependem, antes de tudo, do grau de produção imperante e do sistema de comunicações. Não foram as “criações livres da inteligência” de chefes geniais que revolucionaram a estratégia militar, mas a invenção de armas mais perfeitas e as mudanças sofridas pelo material humano. O máximo que um estrategista genial pode fazer é adaptar os métodos de luta às novas armas e aos novos lutadores.

No começos do século XIV, a invenção da pólvora passou dos árabes para os europeus ocidentais, revolucionando, desse modo, como sabe aliás qualquer menino de escola, todos os métodos de guerra. E a introdução da pólvora e das armas de fogo não foi precisamente um ato do violência, mas um progresso industrial e, portanto, um progresso econômico. A indústria não perde o seu caráter de indústria por se destinarem os seus produtos a destruir e não a criar os objetos. E a adoção das armas de fogo não somente revolucionou os métodos de guerra, como também as instituições políticas de poderio e de dominação. Para conseguir pólvora e armas de fogo, faziam falta indústria e dinheiro, e ambos estes elementos estavam em mãos da burguesia das cidades. As armas de fogo foram, por isso, desde o primeiro momento, manejadas pelas cidades e pela monarquia em ascensão, que nelas se apoiava para lutar contra a nobreza feudal. As muralhas de pedra das fortalezas feudais, até então inexpugnáveis, renderam-se frente aos canhões dos burgueses e as balas dos mosquetes da burguesia trespassaram as armaduras dos cavaleiros. Ao se desbaratar a cavalaria da nobreza, com suas armaduras, se desmancha também a hegemonia da classe nobre. O desenvolvimento da burguesia fez com que passassem para o primeiro plano, como armas decisivas da guerra, a infantaria e a artilharia, tendo esta forçado a criação do uma nova seção, dentro da indústria de guerra, até então desconhecida: a da engenharia militar.

As armas de fogo desenvolveram-se com grande lentidão. Os canhões continuavam pesados. os mosquetes não perdiam sua forma tosca, apesar de muitos inventos que o modificaram em detalhes. Foi preciso que se passassem trezentos anos até que fosse inventado um fuzil que pudesse ser utilizado por toda a infantaria. Até os começos do século XVIII, o fuzil de espoleta. armado de baioneta, não eliminou definitivamente a lança, como arma de infantaria. As antigas tropas pedestres eram formadas pelos elementos mais vis da sociedade, que eram sujeitos a uma rigorosa instrução, mas não representavam nenhuma segurança e só conseguiam manter-se disciplinados à custa de pancada. Eram soldados mercenários, recrutados pelos príncipes, não poucas vezes à força, entre os prisioneiros de guerra inimigos, e a única forma de luta na qual podiam estes soldados utilizar o novo fuzil era a tática de linha, que alcançou a sua máxima perfeição sob o comando de Frederico II. Esta tática consistia em formar toda a infantaria do exército num grande quadrado de três filas, capaz de se mover somente em bloco na ordem de batalha; o que no máximo se permitia era que uma das duas alas avançasse ou recuasse um pouco. Toda essa massa disforme e lerda não só podia movimentar ordenadamente a não ser num terreno completamente plano e, mesmo assim, com grande lentidão de movimentos (à razão de setenta e cinco passos por minuto). Não se podia pensar em mudar a ordem de batalha durante o combate, e uma vez que entrava em fogo a infantaria, a vitória ou a derrota podiam ser decididas de golpe, rapidamente.

Contra estas linhas desmanteladas e tontas, se levantaram, na guerra da independência norte-americana, as guerrilhas dos rebeldes que, embora sem estar instruídos, disparavam com muito mais pontaria com as suas carabinas e, além disso, como lutavam por seus próprios interesses, não se precisava temer que desertassem, como costuma acontecer com as tropas mercenárias. E estas guerrilhas não davam aos ingleses a satisfação de enfrentá-los com este, em linha regular de combate, nem a campo aberto, operando, pelo contrário, em grupos soltos, manobrando com muita rapidez e sob a proteção dos bosques. A linha, tornada impotente teve de sucumbir frente a um inimigo invisível e inatacável e surgiu a tática dos atiradores: uma tática nova, fruto de um novo material humano.

A obra iniciada pela Revolução Americana foi levada a termo, ainda no terreno militar, pela Revolução Francesa. Frente aos treinados exércitos mercenários da coalizão, a França podia apenas levantar as suas massas, trazidas de toda a nação, numerosas mas pouco bem instruídas. Com estas massas tratava-se de proteger Paris, isto é, de defender uma determinada zona e, nestas condições, não podiam os combates abertos de massa garantir sozinhos o triunfo. Para tal resultado, não bastava também a tática de guerrilhas. Era preciso inventar uma forma nova para empregar as massas, e esta forma foi a coluna, A marcha em coluna e a sua disposição de combate permitiam ainda a tropas pouco treinadas que se deslocassem bastante ordenadamente e com certa rapidez de movimentos (à razão de cem passos e até mais, por minuto), permitiam que se rompessem as rígidas formas das velhas linhas, lutando-se em qualquer terreno, mesmo quando desfavorável para as linhas, que se agrupassem as tropas do modo mais conveniente para cada caso, podendo-se barrar, cortar o caminho e fatigar as linhas inimigas, combinando a ação regular com a ação das guerrilhas dispersas, e distraindo o inimigo até que chegasse o momento de se lançar sobre ele e de se romper a sua frente com as massas de reserva. Este novo método de luta, baseado na ação combinada de guerrilhas de colunas e no agrupamento do exército em divisões e corpos de exército independentes, integrados por todas as armas, método de luta que Napoleão utilizou e desenvolveu perfeitamente em seu aspecto estratégico e tático, surgiu, como vimos, imposto pela necessidade, precisamente na ocasião em que se transformava o material humano militar com a Revolução Francesa. Mas também pressupunha duas condições técnicas muito importantes. A primeira era a invenção, por Gribeauval, de carretas mais leves para os canhões de campanha, de modo a permitir a estes deslocar-se rapidamente. A segunda o arqueamento das escopetas de caça, que até então vinha sendo aplicado apenas no sentido de alargar o diâmetro dos canhões, quando aplicado à culatra dos fuzis, e permitir que se apontasse a um homem isolado, sem se disparar ao acaso. Este invento foi implantado na França em 1767, e podemos dizer que, sem ele, não teria sido possível equiparar eficientemente os atiradores.

O sistema revolucionário, que consistia em armar o povo, foi logo substituído pelo recrutamento obrigatório (trocado pelo resgate em dinheiro, no caso das ricos) e adotado pela maioria dos grandes Estados do continente. A Prússia foi o único país que pretendeu estender aos quadros da reserva, em grandes proporções, a força militar do povo. E foi, além disso, o primeiro Estado a adotar em toda a sua infantaria a novíssima arma, o fuzil carregado pela culatra, depois de ter usado, por pouco tempo, o fuzil de carga dianteira, aperfeiçoado e adaptado para a guerra, entre 1830 e 1860. Tais foram as duas inovações a que se deveram os triunfos prussianos de 1866.

Na guerra franco-prussiana, enfrentaram-se, pela primeira vez, dois exércitos equipados com fuzis carregados pela culatra, ambos instruídos, em essência, nas formações táticas que já eram utilizadas no tempo do velho fuzil de espoleta. Nada mais os diferenciava, a não ser que os prussianos, adotando a coluna de companhia, se esforçavam por criar uma forma de luta mais adequada ao novo armamento. Quando, porém. em 18 de agosto, perto de St. Privat, a Guarda Prussiana quis tomar a sério a ordem de batalha de sua coluna de companhia, os cinco regimentos mais empenhados na ação perderam, em duas horas, mais da terça parte de seus efetivos (178 oficiais e 5.114 homens). A partir deste momento, a coluna de companhia foi condenada a desaparecer como forma de luta, da mesma maneira que a coluna de batalhão e a linha. Abandonou-se toda e qualquer intenção de continuar expondo, ao fogo dos fuzis inimigos, formações cerradas e, a partir dessa época, os alemães passaram a guerrear somente em densas guerrilhas, naqueles mesmos enxames de tropas em que a coluna se abria, dispersando-se por si mesma, geralmente sob a chuva das balas inimigas, tática que o comando combatia como sendo contrária aos regulamentas. Uma outra inovação foi a adoção do passo rápido de marcha sob o alcance do fogo inimigo, como sendo a única forma de movimento. Novamente o soldado voltava a se mostrar mais inteligente que o oficial, descobrindo instintivamente a única forma de luta que, desde então, pôde vingar, sob o fogo do fuzil carregado pela culatra, e impondo-a, triunfalmente, apesar de todas as resistências do comando.

A guerra franco-prussiana representa, na história militar, um ponto de transição que ultrapassa em importância a todos os precedentes. Em primeiro lugar, as armas adquirem um tal grau de aperfeiçoamento que nenhum progresso é já possível capaz de revolucionar este setor. Quando já se dispõe de canhões capazes de alvejar um batalhão tão logo seja divisado a olho nu à distância, e fuzis que permitem fazer o mesmo tendo como objetivo um homem isolado e nos quais se demora menos tempo em carregar que em fazer a pontaria, todos os progressos que possam ainda ser feitos nas artes da guerra são de menor importância. Neste aspecto, podemos dizer que a era do progresso está mais ou menos terminada, pelo menos em sua parte essencial. Em segundo lugar, a guerra obrigou a todos os grandes Estados do continente a implantar o sistema rigoroso da reserva do tipo prussiano, com isso trazendo para os seus ombros uma carga militar que os levará à ruína dentro de poucos anos. Os exércitos se converteram na principal finalidade dos Estados, como um fim em si mesmos. Os povos existem hoje só para fornecer soldados e para sustentá-los. O militarismo domina e devora a Europa. Mas este militarismo traz já em seu seio o germe de sua própria ruina. A concorrência desenfreada entre os Estados os obriga a inverter cada vez mais dinheiro em tropas, em navios de guerra, em canhões, etc., acelerando, desse modo, e cada vez mais, a bancarrota financeira. Por outro lado, o serviço militar vai generalizando-se cada vez mais e com isso não faz mais que familiarizar com o emprego das armas todo o povo, ou seja, tornando-o capaz, mesmo contra a sua vontade, de impor, num determinado momento, a sua vontade à camarilha militar governante. E chegará tanto mais depressa este momento quanto mais depressa a massa do povo — os operários urbanos e rurais e os camponeses — tenham uma vontade. Chegado este momento, os exércitos dos príncipes se converterão em exércitos do povo, a máquina se negará a continuar funcionando e o militarismo perecerá, engolido pela dialética de seu próprio desenvolvimento. E o que não pôde conseguir a democracia burguesa de 1848, precisamente porque era burguesa, e não proletária, — infundir às massas trabalhadoras uma vontade ajustada à sua situação de classe — conseguirá o socialismo, infalivelmente. E pelo fato de consegui-lo, matará em suas raízes o militarismo e os exércitos permanentes.

Eis algumas lições que se podem extrair de nossa história da moderna infantaria. Uma outra lição, que nos faz voltar ao Sr. Dühring, é que toda a organização e todos os métodos de luta dos exércitos e, portanto, os triunfos e as derrotas, dependem das condições materiais, ou, mais concretamente, das condições econômicas: do material humano e do material armamento, ou melhor, da qualidade e da quantidade da população e da técnica. Somente um povo de caçadores como o americano poderia de novo pôr em prática a tática dos atiradores. E os americanos não eram caçadores por capricho, mas por causas puramente econômicas, exatamente da mesma forma por que hoje, por causas também puramente econômicas, esses mesmos yankees — pelo menos aqueles que vivem nos Estados mais antigos — se converteram em lavradores, industriais, navegantes e comerciantes, que já não se dedicam à caça no desbravamento das selvas virgens, mas que, em troca, sabem como ninguém se mover com desenvoltura no campo da especulação, no qual aplicaram também a sua tática de massas. Só uma revolução como a francesa, que emancipou economicamente o burguês e sobretudo o lavrador, poderia ter descoberto os exércitos de massa e, com eles, as formas maleáveis de deslocamento no terreno, contra as quais se esboroavam as antigas “linhas” que, por sua rigidez, eram a imagem militar do absolutismo na defesa do qual estavam sempre a batalhar. Já verificamos. seguindo passo a passo a evolução, como os progressos da técnica, enquanto se faziam aplicáveis ou se aplicavam à prática militar, provocavam e impunham quase que pela violência, imediatamente, uma série de modificações às vezes radicais, nos métodos de luta, modificações que, com freqüência, se realizavam contra as determinações do comando. Até que ponto a tática da guerra depende atualmente do estado da produção e dos meios de comunicação do país, que o exército tem em sua retaguarda, é coisa que qualquer suboficial, por pouco instruído, poderá explicar ao Sr. Dühring. Em resumo, em todas as partes e em todos os tempos, são uma série de condições econômicas e de recursos materiais que fazem com que a força triunfe, pois, sem essas condições. ela deixaria de ser força, e quem pretendesse reformar a arte da guerra do ponto de vista contrário, baseando-se nos princípios do Sr. Dühring, não ganharia mais que umas surras como recompensa.(6)

Passando dos exércitos de terra à marinha, veremos que somente os últimos vinte anos constituem uma verdadeira revolução neste aspecto da guerra. A unidade de combate da guerra da Criméia era ainda o barco de madeira com as suas duas ou três cobertas e seus 60 a 100 canhões, movido quase sempre a velas, embora auxiliado por uma pequena máquina a vapor. Seus canhões, quase todos, pesavam 50 quintais, as balas 32 libras, e um ou outro, 95 quintais e 68 libras, respectivamente. Até o fim da citada guerra surgiram as baterias flutuantes, blindadas de ferro, monstros pesados e quase imóveis, inexpugnáveis para a artilharia daquela época. A couraça de ferro não tardou a aplicar-se também aos navios de guerra. A principio era uma camada muito delgada; quatro polegadas de espessura já se considerava uma blindagem pesadíssima. Mas os progressos da artilharia alcançaram e ultrapassaram esta defesa. Para cada nova espessura da blindagem era inventado um novo canhão sempre mais pesado que a perfurava com maior facilidade. Chegamos assim às espessuras de couraças de dez, catorze, e vinte e quatro polegadas (a Itália se dispõe a construir um barco encouraçado com chapas de três pés de espessura), de um lado, e, de outro, aos canhões de 25, 35, 80 e até 100 toneladas (20 quintais de peso), capazes de lançar a distâncias antes inconcebíveis cargas de 300, 400. 1.700 e até 2.000 libras. O barco de guerra de hoje é um vapor gigantesco com chapa torneada, de oito ou nove mil toneladas de calado e 6 a 8 mil cavalos de força, com torres giratórias, e quatro ou, no máximo, seis canhões pesados, e uma proa terminada em aríete por debaixo da linha de flutuação para pôr a pique os barcos inimigos; é todo ele uma máquina gigantesca, na qual a força de vapor não somente permite um deslocamento muito mais rápido, como também toda uma série de movimentos antes desconhecidos, tais como a direção do navio da ponte do comando, o manejo do leme, a rotação das torres, a direção e o carregamento dos canhões, a sucção da água, o arriar e içar dos botes — operação que se realiza, também às vezes, a vapor, — etc. É o duelo entre a blindagem dos navios e o alcance dos canhões está muito longe de terminar, a ponto de que, geralmente, quando sai um navio dos estaleiros, já é antiquado e não mais corresponde às exigências que presidiram a sua construção. Os modernos navios de guerra não só são um produto como são também uma amostra da moderna grande indústria. São todos eles fábricas flutuantes, embora destinadas em geral a criar, em primeiro lugar, os meios de dissipar dinheiro. O país onde está mais desenvolvida a grande indústria tem quase o monopólio de construção de navios de guerra. Todos os barcos encouraçados turcos, quase todos os russos e a maioria dos alemães, foram construídos na Inglaterra. As chapas blindadas de alguma eficácia quase que só são fabricadas em Sheffield. Das três fábricas de fundição da Europa, montadas em condições de fornecer canhões mais pesados, duas correspondem à Inglaterra (Woolwich e Elswick) e a terceira à Alemanha (Krupp). Nada melhor que isto para demonstrar como a “força política imediata” que, de acordo com o Sr. Dühring, é a “causa decisiva da situação econômica”, se encontra, muito pelo contrário, subordinada completamente a esta. Não é preciso mais que observar que, não só a criação como também o manejo do instrumento de força no mar, o navio de guerra, se converteu em um ramo da grande indústria moderna, Ninguém ficará tão desesperado com esta nova situação como a própria violência, isto é, o Estado, que chega à conclusão de que um navio lhe custa hoje tanto como antes uma pequena esquadra, tendo por fim que se resignar com o fato de que estes navios caríssimos sejam logo considerados obsoletos, perdendo, portanto, o seu valor antes de fazer-se ao mar. O Estado, certamente, lamenta, tão amargamente como o Sr. Dühring, que, a bordo dos navios de guerra de hoje, desempenhe papel muito mais importante o representante da “situação econômica”, o engenheiro, do que o desempenhado pelo representante da “violência imediata”, ou seja, o capitão. De nosso lado, não temos por que nos indignar pelo fato de que, no duelo que se está desenrolando entre as placas blindadas e os canhões, o navio vai aperfeiçoando-se, até que termine por atingir uma perfeição tal que se torne definitivamente inexeqüível e inútil para a guerra.(7) Longe de tal coisa, devemos é nos alegrar ao comprovar que este duelo também se ajusta, no caso da guerra marítima, às leis dialéticas interiores da dinâmica, por força das quais. o militarismo, como qualquer outra manifestação histórica, perecerá, devido às conseqüências de seu próprio desenvolvimento.

Fica novamente patenteado, com clareza meridiana, que não é absolutamente “na força imediata nem no poder econômico indireto” que se deve procurar o “primordial”. Onde é que reside precisamente o “primordial” da própria força? Como já tivemos oportunidade de ver, reside no poder econômico, na possibilidade de dispor dos recursos da grande indústria. A força política no mar, que tem a sua base e seus alicerces nos modernos navios de guerra, longe de ser uma força “imediata”, é uma força resultante, pura e exclusivamente, da “mediação” do poder econômico, graças ao desenvolvimento da metalurgia e à existência de técnicos hábeis e de abundantes minas de carvão.

Mas para que perder tempo com todas estas demonstrações? Que na próxima guerra marítima se entregue o Alto Comando ao Sr. Dühring e veremos como ele destruirá todas as frotas de encouraçados, escravizados pela “situação econômica”, sem utilizar torpedos ou outras armas do mesmo gênero, mas simplesmente apelando para a sua “força imediata”.


Capítulo IV
TEORIA DA VIOLÊNCIA

(Conclusão)

 

“Uma circunstância muito importante é a de que, efetivamente, a dominação da natureza se desenvolveu, em geral (!), precedida pela do homem (que linguagem! A dominação da natureza se “desenvolveu” (!). A exploração da propriedade do solo, em grandes zonas, não se levou a efeito, nunca, em parte alguma, sem que fosse precedida pelo avassalamento do homem, sob uma forma qualquer de escravidão ou de servilismo. Para instaurar uma hegemonia econômica sobre as coisas, foi preciso que esta, necessariamente, se precedesse pela hegemonia política, social, econômica do homem sobre o homem. Como seria possível conceber-se um grande senhor territorial sem o seu correspondente domínio sobre escravos, servos ou homens privados indiretamente de liberdade? Que poderiam significar ou que teriam significado, as forças do indivíduo amparadas apenas pelas da operação familiar para um extensivo cultivo do campo? A exploração da terra ou a extensão do poder econômico sobre a mesma, em proporções tais que anulam as forças naturais do indivíduo, só foi possível até hoje, em toda a história, devido a que, antes de instaurar o poder sobre a terra, ou ao mesmo tempo em que isso se dava, se implantava também o necessário avassalamento do homem. Em épocas posteriores esse avassalamento se atenuou... nos tempos atuais, nos países mais civilizados, ele apresenta a forma de um regime de trabalho assalariado, mais ou menos controlado pelo poder policial. É neste regime que hoje se baseia a possibilidade prática do tipo da riqueza atual que se corporifica no vasto domínio da terra e (!) nas grandes propriedades do solo. É claro que também os demais tipos de riqueza distributiva podem ser explicados historicamente de um modo análogo, da mesma forma que a indireta dominação do homem pelo homem, que constitui, atualmente, o traço fundamental dos estados menos progressivos, não pode ser explicada nem ser compreendida por si mesma, mas como uma herança um pouco modificada de um primitivo regime direto de submissão e expropriação.” Até aqui, falou o Sr. Dühring.

Tese: o domínio da natureza (pelo homem) pressupõe o domínio do homem (pelo homem).

Prova: a manutenção da propriedade do solo, em grandes zonas, não se realizou nunca, nem em parte alguma, que não fosse por meio de servos.

Prova da prova: Não podem existir grandes proprietários de terra sem servos, pois que, sem eles, reduzido exclusivamente à sua família, o grande proprietário só poderia cultivar uma parte muito pequena de sua propriedade.

Assim, para provar que o homem, antes de submeter ao seu domínio a natureza, teve de escravizar seu semelhante, o Sr. Dühring converte a “natureza”, precipitadamente, sem qualquer preparação, numa espécie de “propriedade do solo, em grandes zonas” e esta propriedade do solo — que não nos diz a quem pertence — se converte, por seu lado, não menos subitamente, na propriedade de um grande proprietário de terras, que, por sua vez, como é lógico, não pode cultivá-la sem servos.

Em primeiro lugar, podemos observar que o “domínio da natureza” e a “exploração da propriedade do solo” não são, de modo algum, conceitos idênticos. O domínio da natureza adquire, na indústria, proporções muito mais gigantescas do que na agricultura, devido à razão de estar dominada esta pelo fator clima, por não ter conseguido ainda submetê-lo ao seu controle.

Em segundo lugar, para nos limitarmos ao cultivo ou exploração da propriedade do solo em grandes zonas, devemos saber antes de mais nada a quem pertence esta propriedade. E então chegamos à conclusão de que, nos primórdios da história de todos os povos civilizados, o que nós vemos não é esse “grande proprietário de terras” que o Sr. Dühring, com a sua habitual mania de prestidigitador — mania que ele denomina de “dialética natural” —, quer nos impingir de contrabando, mas, pelo contrário, o que vemos é a comuna rural e a tribo, com o seu regime de propriedade coletiva do solo. Desde a Índia até a Irlanda, o cultivo da propriedade do solo, em grandes zonas, pôde desenvolver-se, nas suas origens, graças precisamente a este regime coletivo das comunas rurais e das tribos, ora cultivando a terra em comum, por conta da coletividade, ora mediante a distribuição temporária de parcelas de terra a determinadas famílias, mantendo-se comunitária a utilização dos bosques e pastos. O Sr. Dühring volta a apresentar aqui os seus “minuciosos estudos profissionais, no terreno político e jurídico”, demonstrando ignorar de modo absoluto todas estas coisas e dando provas em todas as suas obras de desconhecer, completamente, os estudos fundamentais e decisivos de Maurer, a respeito do “Marco” alemão, base de todo o direito alemão, e desse manancial de literatura que continua a crescer incessantemente, e que, como o próprio Maurer sugere, serve para demonstrar o fundamento do primitivo regime de comunidade do solo em todos os povos civilizados da Europa e da Ásia e que expõe as suas diferentes modalidades e as vicissitudes que o levaram à ruína. Passa-se com o Sr. Dühring. com relação ao direito alemão, a mesma coisa que se passava com o direito francês e com o inglês: “adquiriu por si mesmo toda a sua ignorância”, apesar de ser esta muito grande. Esse homem, que tão raivosamente se põe a falar da limitação dos horizontes dos professores universitários, continua movimentando-se, no que se refere ao direito alemão, e talvez estejamos enganados, no mesmo terreno que se moviam os professores de há vinte anos.

É pura “criação e imaginação livre” do Sr. Dühring a afirmação de que para o cultivo ou exploração do solo em grandes zonas seja indispensável a existência de grandes proprietários e de servos: Em todo o Oriente, onde a propriedade da terra está nas mãos do município ou do Estado, o idioma desconhece mesmo a expressão “proprietário territorial”. O Sr. Dühring pode informar-se disso junto aos juristas ingleses, que tanto se dedicaram na Índia, e sempre em vão, procurando averiguar quem é que ali era proprietário de terra de modo um pouco semelhante à pergunta: Quem é cínico?, feita em seu tempo, pelo príncipe Henrique LXXII de Reuss-Greiz-Schleitz-Lobenstein-Eberswalde. Foram os turcos que introduziram no Oriente, nos países por eles conquistados, uma espécie de feudalismo territorial. A Grécia penetrou na história, no período heróico, com uma organização social por camadas, que é já, por sua vez, o fruto natural de uma ampla e ignorada pré-história, também ela nos mostrando que a terra é cultivada em sua maior parte por campônios independentes, e que as grandes extensões de terra dos nobres e dos príncipes de linhagem constituem uma exceção, tendendo além disso a desaparecer rapidamente. O solo da Itália foi desbravado, em sua maior parte, por camponeses: quando, nos últimos tempos da República Romana, os proprietários dos grandes blocos de terra, os latifundiários, expulsaram os camponeses de seus lotes, substituindo-os por escravos, foi ao mesmo tempo substituída a agricultura pela criação de gado, semeando, como já predizia Plínio, a ruína da Itália (latifúndia Italian perdidere). Na Idade Média, domina em toda a Europa — sobretudo no desbravamento de terras incultas — o regime camponês, sendo indiferente a questão de se saber se esse camponês tinha ou não que pagar tributos a qualquer senhor feudal. Os colonos da Frisia, da Baixa Saxônia, de Flandres, e do Baixo-Reno. os que cultivavam. à leste do Elba. a terra arrebatada aos eslavos, trabalhavam como lavradores livres, sob um estatuto muito favorável e sem estarem sujeitos a “nenhum tipo de vassalagem”. Na Norte-América, a grande maioria das terras foram abertas ao cultivo pelo trabalho de agricultores livres, enquanto que os grandes proprietários do Sul, com seus escravos e seus métodos de exploração. esgotaram o solo até o ponto de não dar mais nada, exceto pinho, razão pela qual o cultivo do algodão foi se deslocando cada vez mais em direção do Ocidente. Na Austrália e na Nova-Zelândia, fracassaram até agora todas as tentativas do governo inglês, para a instauração artificial de uma aristocracia de fazendeiros. Assim, pois, se prescindirmos das colônias do trópico, e das que ficam abaixo dele. nas quais o clima veda ao europeu o cultivo da terra, esse grande proprietário de terras, que começa por desbravar o solo e por submeter a natureza ao seu domínio, por meio de seus escravos ou de seus vassalos, não é mais que uma pura criação da fantasia do Sr. Dühring. Longe disso, ali onde aparece esse grande proprietário de terras, como aconteceu na Itália, não é precisamente para desbravar e iniciar o cultivo das terras incultas, mas, muito ao contrário, para converter em pastos as terras cultivadas pelos camponeses, despovoando e arruinando regiões imensas. E, quando chegamos aos tempos modernos, quando a grande densidade de população faz com que se eleve o valor da terra, e quando os progressos da economia permitem cultivar até mesmo as terras piores; então é que encontramos os grandes latifúndios, com o cultivo em grande escala de terras incultas e de terrenos de pasto, realizando-se essa evolução principalmente, tanto na Inglaterra como na Alemanha pela expropriação das terras comunais dos camponeses. Não se julgue que esta tendência se imponha tampouco como um caráter geral. Para cada acre de terras comunais que os grandes proprietários cultivaram na Inglaterra, converterem, na Escócia, pelos menos três acres de terra cultivadas em pasto de ovelhas e, não contentes com isso, converteram, nestes últimos tempos em simples extensões de terra destinadas à caça, povoadas de animais silvestres.

Temos que examinar aqui a tese do Sr. Dühring de que o desbravamento de grandes extensões de terra e portanto da totalidade ou quase totalidade das zonas de cultivo não se pode realizar, “nunca nem em parte alguma” a não ser pelos grandes proprietários e seus servos, tese essa que “pressupõe”, como já vimos, um desconhecimento da história, verdadeiramente Inaudito. Não nos interessa, pois, por enquanto, saber até que ponto, nas diferentes épocas históricas, se tenham cultivado essas zonas, já desbravadas em sua totalidade ou em sua maior parte, por meio de escravos (como na época do apogeu da Grécia) ou por meio de servos (como no regime de vassalagem da Idade Média). Nem nos interessa tampouco verificar qual foi a função social dos grandes proprietários de terras em cada uma das diferentes épocas.

Depois de abrir ante nossos olhos este maravilhoso quadro de fantasia, no qual não se sabe o que mais admirar, se a arte de escamotear a dedução ou a de falsear a história, exclama triunfalmente o Sr. Dühring: “É evidente que as demais espécies de riqueza distributiva podem ser explicadas historicamente, de maneira análoga”. O que evita para ele, naturalmente, o trabalho de explicar-nos por exemplo as origens do capital e até de fazer a menor alusão a este assunto.

Se o Sr. Dühring, ao afirmar que o domínio do homem sobre o homem é, em termos gerais, a condição prévia do domínio da natureza pelo homem, e com isto quer dizer apenas que todo o nosso atual estado econômico, o grau de desenvolvimento a que chegaram a agricultura e a indústria, são apenas o resultado de uma história social que se veio desenvolvendo por antagonismos de classe, por relações entre o poder e a vassalagem, nesse caso está afirmando alguma coisa que é já, desde a publicação do Manifesto comunista, um velho lugar comum. Trata-se precisamente de explicar as origens dessas classes e as relações do poder, e o Sr. Dühring não sabe nos oferecer mais que a repisada explicação da “violência”, mas essa palavra não nos faz dar nem um passo para a frente. O simples fato de que os dominados e explorados tenham sido, em todos os tempos, uma legião muito mais numerosa do que a de seus dominadores e exploradores, tendo portanto, em suas mãos a força real basta para pôr a nu toda a inutilidade da teoria da violência. O problema está, exclusivamente, repetimos, em explicar o por que dessas relações entre o poder e vassalagem.

A sua origem é dupla.

Ao se desligarem, originariamente, do reino animal — em sentido restrito — os homens entram na história ainda meio animalizados e brutos, impotentes ainda, com relação às forças da natureza, ignorantes mesmo de suas próprias forças frágeis, pois, como as próprias bestas e apenas mais produtivos do que elas. Reina entre os homens uma certa igualdade de níveis de vida e também, entre os chefes de família, uma espécie de igualdade no que concerne à posição social; não existem ainda, pelo menos, essas classes em que se há de dividir mais tarde a sociedade, e que ainda não estamparam a sua marca nas coletividades naturais e agrárias dos povos civilizados posteriores. No seio de cada uma destas coletividades existem, desde o primeiro momento, determinados interesses comuns, cuja defesa se entrega a determinados indivíduos, embora sob o controle da coletividade, como seja: administração da justiça, repressão de atos ilegítimos, inspeção do regime de águas, principalmente nos países tropicais e, finalmente, toda uma série de funções religiosas, derivadas do primitivismo selvagem destas sociedades. Tais fenômenos de distribuição de competências se encontram, nas coletividades naturais de todas as épocas, como já ocorria na sociedade antiquíssima dos marks alemães e como ainda hoje se observa na Índia. Trazem consigo, como é lógico. uma certa amplitude de poderes e representam as origens do Estado. Pouco a pouco, as forças produtivas se vão intensificando, a densidade cada vez maior de população cria interesses. ora comuns ora formados entre as distintas coletividades, de modo que, agrupando-se num todo superior, fazem nascer uma nova divisão do trabalho, criando os órgãos necessários para cuidar dos interesses harmônicos e para defender-se contra os interesses hostis. Tais órgãos, que ocupam já, como representantes dos interesses comuns de todo o grupo, uma posição especial frente a cada coletividade particular, até mesmo inclusive inimiga, vão adquirindo dia a dia maior independência, devido, em parte, ao caráter hereditário de suas funções, caráter quase evidente num mundo em que tudo se desenvolve de um modo elementar e em parte, à proporção em que se vão tornando indispensáveis pela multiplicação dos conflitos com outros grupos. Não é necessário que examinemos aqui o modo como esta independência da função social frente à sociedade foi convertendo-se, com o correr dos tempos, numa verdadeira hegemonia sobre a própria sociedade, o modo como os primitivos servidores da sociedade, nos lugares onde as circunstâncias lhes foram propícias, foram-se erigindo paulatinamente em senhores dela própria e, finalmente, o modo como, de acordo com o ambiente, esses mesmos senhores se instauraram, no Oriente, como déspotas ou sátrapas, na Grécia, como príncipes de linhagem, entre os celtas, como chefes de clã, e assim por diante. Deixaremos de tratar, além disso, até que ponto, para se entronizar desse modo, tiveram eles que se servir exclusivamente da violência, ao mesmo tempo em que, finalmente, os diversos indivíduos entronizados foram-se agrupando para formar uma classe dominante. A única coisa que nos interessa é patentear que a hegemonia política teve por base, em todas as partes, o exercício de uma função social, podendo garantir-se tão somente enquanto preenchesse a função social em que se fundamentava. Muitos foram os déspotas que passaram pelo poder, na Pérsia e na Índia, mas todos eles sabiam perfeitamente que a sua missão coletiva era, antes de tudo, a de regar os vales, pois que sem irrigação não se podia fazer ali agricultura. Foi preciso que chegassem os ingleses civilizados para que esse dever primordial do despotismo, no Oriente, fosse esquecido. Os ingleses deixaram que se estragassem os canais e as represas, e, atualmente, depois de muitos anos, as épocas periódicas de fome vêm a lhes apontar que menosprezaram a única atividade que poderia tornar a sua hegemonia sobre a Índia pelo menos tão legítima quanto a de seus antecessores.

Paralelamente a este processo de formação de classes, ainda um outro se desenvolvia. O regime elementar de divisão do trabalho, implantado no seio da família lavradora, permitiu, ao ser atingido, um certo grau de bem-estar, a incorporação à família de uma ou várias forças de trabalho alheias à ela. Isso se deu, sobretudo, naqueles países em que o regime primitivo de propriedade do solo já se tinha desagregado, ou, pelo menos, tinha cedido lugar o sistema de exploração em comum ao cultivo individual das lotes de terra, pelas famílias isoladamente. A produção tinha-se desenvolvido em tais proporções que, então, a força humana de trabalho já era capaz de criar mais do que o necessário para o seu mero sustento. Contava-se com os meios indispensáveis para a manutenção de novas forças de trabalho, assim como com os meios necessários para dar-lhes ocupação. A força de trabalho adquiriu um valor. Mas nem a coletividade, por si mesma, nem o agrupamento de coletividades de que ela fazia parte podiam fornecer forças de trabalho disponíveis, excedentes. Fornecia-as a guerra, que já se efetuava a partir, pelo menos, dos tempos em que começaram a coexistir, lado a lado, distintos grupos sociais. Até essa época, não se tinha sabido, ainda, como empregar os prisioneiros de guerra, razão pela qual eram eles liquidados em vez de se os alimentar, como era costume em épocas anteriores. Ao chegar, porém, a esta etapa da evolução econômica, os prisioneiros de guerra começaram a representar um valor. Por isso, deixaram-nos viver, a fim de aproveitarem-se de seu trabalho. Como vemos, a violência, longe de se impor sobre a situação econômica, foi posta a serviço desta. Haviam sido lançadas as bases da instituição da escravidão. Não tardou esta em converter-se na forma predominante da produção em todos os povos que já haviam ultrapassado as limitações das comunidades primitivas, para terminar por ser uma das causas principais de sua ruína. Foi a escravidão que tornou possível a divisão do trabalho, em larga escala, entre a agricultura e a indústria, e foi graças a ela que pôde florescer o mundo antigo, o helenismo. Sem escravidão, não seria possível conceber-se o Estado grego, nem a arte e a ciência da Grécia. Sem escravidão não teria existido o Império Romano. E sem as bases do helenismo e do Império Romano não se teria chegado a formar a moderna Europa, Não nos deveríamos esquecer nunca que todo o nosso desenvolvimento econômico, político e intelectual, nasceu de um estado de coisas em que a escravidão era uma instituição não somente necessária. mas também sancionada e reconhecida de um modo geral, Podemos, neste sentido, afirmar, legitimamente, que, sem a escravidão antiga, não existiria o socialismo moderno.

Não há nada mais para fazer-se que lançar umas quantas frases melodramáticas contra a escravidão e contra tudo o que se lhe assemelha, derramando uma torrente de indignação moral contra semelhante ignominia. Desgraçadamente, nada se consegue com isso, a não ser proclamar o que já todo o mundo sabe: que essas instituições dos tempos antigos já não se ajustam à nossa época, nem aos sentimentos que essa época forma em cada um de nós. Por tal caminho, não conseguiríamos provar nem uma palavra sobre o modo por que nasceram essas instituições, nem como elas se mantiveram e o papel que desempenharam na História. Neste terreno, por mais paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase bestiais para erguer-se desse estado de barbárie. As antigas comunidades, onde subsistem essas instituições, formam, desde milhares de anos, da Índia à Rússia, a base da mais tosca forma de Estado: o despotismo oriental. Somente onde essas comunidades primitivas se dissolveram, conseguiram os povos continuar progredindo por impulso próprio, e seu progresso econômico imediato consistiu precisamente em intensificar e desenvolver a produção por meio do trabalho dos escravos. Enquanto o trabalho humano era muito pouco produtivo, é claro que apenas fornecia um pequeno excedente, depois de satisfeitas as necessidades mais prementes da vida, não se podendo tratar da intensificação das forças produtivas, da ampliação do mercado, do aperfeiçoamento do Estado e do Direito, da fundação de nenhuma arte e de nenhuma ciência, a não ser pela mais reforçada divisão do trabalho, em cuja base estava, forçosamente, a grande divisão do trabalho entre as massas dedicadas ao simples trabalho manual e uns poucos privilegiados, ao cargo dos quais estava a direção dos trabalhos, o comércio, o trato dos negócios públicos e, mais tarde, o cultivo das artes e ciências. Pois bem; a forma mais simples e mais elementar de instituir essa divisão do trabalho foi a escravidão. Dentro das condições históricas do mundo antigo e, em especial, do mundo grego, o progresso que existia na instauração de uma sociedade baseada em antagonismos de classe, somente podia levar-se a cabo sob a escravidão. E representava esta instituição um progresso até para os próprios escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas já que, até então, eram todos exterminados, no começo, por meio da fogueira, e, depois, por meio do cutelo.

Já que a ocasião é propícia, queremos acrescentar que, até hoje. todas as diferenças históricas entre classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, tiveram a sua raiz nessa tão imperfeita produtividade relativa do trabalho humano. Enquanto a população realmente trabalhadora, absorvida por seu trabalho necessário, não teve nem um momento livre para se dedicar à direção dos interesses comuns da sociedade — direção dos trabalhos, dos negócios públicos, solucionamento dos litígios, arte, ciência, etc., tinha que haver necessariamente uma classe especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos. Esta classe acabava sempre, infalivelmente por impor novas e novas sobrecargas de trabalho sobre os ombros das massas produtoras, além de explorá-las em seu proveito próprio. A gigantesca intensificação das forças produtivas, conseguida graças ao advento da grande indústria, é que tornou possível que o trabalho se possa distribuir, sem exceção, entre todos os membros da sociedade, reduzindo dessa forma a jornada de trabalho do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um tempo livre suficiente para que cada um intervenha — teórica e praticamente — nos negócios coletivos da sociedade. Hoje somente é que se pode asseverar que toda classe dominante e exploradora é inútil e, mais ainda, prejudicial e entravadora do processo social. Até hoje, no entanto, não tinha chegado o momento em que essas classes deveriam ser suprimidas, como o serão, inelutavelmente, por mais que se defendam por detrás das trincheiras da “força imediata”.

O Sr. Dühring, que cerra as sobrancelhas ao falar dos gregos, por que o seu regime de vida estava baseado na escravidão, poderia também fechar-lhes a cara por não conhecerem a máquina a vapor e o telégrafo sem fios. E, quando afirma que a nossa moderna vassalagem assalariada não é mais que uma herança um pouco modificada da escravidão, sendo uma instituição que não se pode explicar por si mesma (isto é. pelas leis econômicas da moderna sociedade). as suas palavras significam que, ou o trabalho assalariado e a escravidão são duas formas de dominação e império de uma classe sobre outra, coisa que qualquer criança já sabe, ou, no caso de não significarem tal coisa, elas são falsas, pois, com a mesma razão, poderíamos dizer que o trabalho assalariado somente pode ser explicado como uma forma mitigada da antropofagia, que era, primitivamente, o fim que se dava aos inimigos vencidos.

Compreende-se com toda a clareza, do que ficou dito acima, qual o papel desempenhado pela violência, na História, com relação ao desenvolvimento econômico. Em primeiro lugar, a força política se baseia, sempre, desde as suas origens, numa função econômica, social, e ela se intensifica na medida em que, com a dissolução da primitiva comunidade, os indivíduos se convertem em produtores privados, aprofundando-se mais ainda a sua separação dos que dirigem as funções sociais coletivas. Em segundo lugar, assim que a força política adquire existência própria em relação à sociedade, convertendo-se os seus detentores de servidores em seus donos, pôde essa força passar a atuar em, dois sentidos diferentes. As vezes atua no sentido e com a orientação das leis que regem o desenvolvimento econômico. Neste caso, não há nenhuma discrepância entre os dois fatores, e a violência não faz mais que acelerar o processo econômico. Outras vezes, entretanto, a força política atua em sentido contrário e, nestes casos, acaba sempre por sucumbir, com raras exceções, frente ao vigor da evolução econômica. Essas raras exceções se referem a casos isolados de conquista. em que o invasor, menos civilizado, extermina ou persegue a população de um país, devastando ou deixando inutilizarem-se as forças produtivas do país invadido, com as quais nada sabe realizar. Foi o que os cristãos, na conquista da Espanha mourisca, fizeram com a maior parte das obras de irrigação, nas quais se baseava o progressista sistema de agricultura e de horticultura dos árabes. Toda a conquista de um país por parte de um povo inferior entorpece-lhe, indubitavelmente, o desenvolvimento econômico e anula numerosas forças produtivas. Na imensa maioria dos casos, porém, casos em que a conquista é duradoura, o conquistador, se for um povo inferior ao conquistado, não tem outro remédio senão submeter-se à “situação econômica” deste, que é superior, terminando a conquista com a assimilação do conquistador pelo conquistado, que lhe impõe, inclusive, na maior parte das vezes, o seu próprio idioma.

Nas situações em que a força, além dos casos de conquista, é representada pelo poder interior do Estado, e chega a se opor ao desenvolvimento econômico do país. como vemos acontecer sempre com o poder político, num determinado grau de evolução, nestes casos, a luta termina sempre com a derrocada do poder político. A evolução econômica vence todas as barreiras, sempre, inexoravelmente, sem exceção. Tivemos já oportunidade de citar o último exemplo histórico irrefutável desta lei: a Grande Revolução Francesa. Se a situação econômica, e com ela o regime econômico de cada país, estivesse na dependência simples da força encarnada no Poder político, como quer a teoria do Sr. Dühring, não se compreenderia por que, depois de 1848, Frederico Guilherme IV da Prússia, não houvesse podido, apesar de seu “maravilhoso exército”, mandar fundir nas corporações medievais e noutras, quaisquer quimeras românticas as estradas de ferro, as máquinas a vapor, e toda a grande indústria que começava por aquela época a se desenvolver em seu país. Nem se compreende por que o imperador da Rússia, muito mais poderoso que o rei da Prússia, não seja capaz de pagar as suas dívidas, nem sequer consiga manter a sua “violência”, sem se comprometer, correndo constantemente em busca de créditos, junto à “situação econômica” da Europa ocidental.

Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é, em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, também, para usar uma expressão de Marx, a parteira de toda a sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto. nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência: desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, esquecendo-se do elevado impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! E diz-nos tal coisa aqui, na Alemanha. onde um choque violento — que se pode impor em caso necessário, ao povo (quem o duvida?) — teria ao menos a vantagem de varrer da consciência nacional essa espécie de submissão servil que dela se apoderou desde a humilhação da guerra dos Trinta Anos! E será esse pregador desconexo, sem seiva e sem força, quem pretenderá impor sua doutrinas ao partido mais revolucionário que a história conhece?


Capítulo V
TEORIA DO VALOR

 

Há cerca de cem anos, apareceu, em Leipzig, um livro, que alcançou trinta e uma edições, até o começo do atual século, tendo sido distribuído e difundido nas cidades e aldeias, pelas próprias autoridades, por pregadores e por filantropos de toda a espécie, além de ser colocado em todas as escolas públicas do país, como texto de leitura. O título deste Livro era: O Amigo da Criança, e tinha por autor um tal Rochow. A sua finalidade era doutrinar, aos jovens filhos dos camponeses e dos artesãos, a respeito de sua missão na vida e de seus deveres para com os seus superiores hierárquicos, na sociedade e no Estado, infundindo-lhes contentamento com a sorte benfazeja que o céu lhes tinha reservado na terra, e, ao mesmo tempo, com o pão negro e as batatas, as tributações feudais e os magros salários, as surras recebidas de seu pai, e outras coisas não menos agradáveis, tudo divulgado por meio de raciocínios que eram muito comuns naquela época. Fazia-se ver aos meninos da cidade e da aldeia quanto era sábia a organização da natureza, que fazia com que o homem tivesse de correr ao trabalho para adquirir os meios de sustento e para assim poder desfrutar da vida, e quanto se deviam sentir ditosos o camponês e o artesão, pois que o céu lhes permitia temperar a sua comida com o duro trabalho, em lugar de estar padecendo do estômago, do fígado ou de indigestões, como o rico glutão, que sente repugnância até ao engolir os bocados mais apetitosos. Os mesmos lugares comuns que o velho Rochow julgava excelentes, em seu tempo, para os pequenos camponeses da Saxônia, são os que o Sr. Dühring nos oferece nas páginas 14 e seguintes de seu “Curso”, como sendo o “absolutamente fundamental na Novíssima Economia Política”.

“As necessidades humanas, como tais, se governam por leis naturais e, no que se refere ao seu aumento, elas se fecham dentro de certos limites que podem ser apenas contrariados durante algum tempo pela desobediência à natureza, mas que, finalmente, trazem asco, cansaço da vida, abatimento, atrofia social, e, por fim. uma salvadora destruição... Um jogo feito de puros prazeres, sem finalidade útil nenhuma, conduziria depressa ao embotamento, ou melhor, ao desgaste de toda a sensibilidade. O trabalho real, sob qualquer forma é, pois, a lei social da natureza dos homens sadios... Se não existisse um contrapeso para os instintos e as necessidades, eles nos dariam apenas uma existência infantil, mas nunca, de modo algum, um desenvolvimento historicamente progressivo. Satisfeitos sem nenhum esforço, eles se esgotariam depressa, deixando somente como resto uma existência desolada, que se representaria por uma série de interregnos enfermiços, que fluiriam depois e cada repetição dos prazeres... O fato da satisfação dos instintos e das paixões depender da superação de um obstáculo econômico constitui, pois, uma lei saudável, sob todos os aspectos, e que é fundamental para a natureza exterior, para o seu modo de se organizar, e para a estrutura interior do homem”, etc., etc. Como se está vendo, as mais banais vulgaridades do livro de Rochow podem celebrar no Sr. Dühring o jubileu de seu centenário, porque se renovaram, convertidas, além disso, na “mais profunda fundamentação” do único “sistema socialitário” verdadeiramente crítico e científico que jamais existiu.

Após ter assentado os alicerces conforme ficou exposto acima, pôde o Sr. Dühring prosseguir na sua construção. De acordo com o método matemático, ligando-se ao precedente do velho Euclides, começa ele por nos oferecer uma série de definições. É um processo muito cômodo, tanto mais que são as definições construídas de tal modo, que nelas entra pelo menos uma parte daquilo que se trata de provar e definir. Por esse processo, seremos informados, logo no início do estudo, de que o conceito que preside toda a vida econômica até os nossos dias se denomina riqueza. E que a riqueza, tal como vem sendo entendida efetivamente até os nossas dias, na História Universal. e tal como se desenvolveu o seu império, pode ser definida como “o poder econômico sobre homens e coisas”. É essa uma afirmação duplamente falsa. Em primeiro lugar, a riqueza das antigas tribos e comunas rurais não era, nem longinquamente, um poder sobre homens, e em segundo lugar, tampouco a riqueza se refere, predominantemente, nas sociedades que se desenvolvem sobre os antagonismos de classe, sobre o avassalamento de homens, mas, pelo contrário, este domínio sobre homens, quando existe. existe e se desenvolve por maio de relações de poder sobre coisas. A partir do instante remoto em que o aprisionamento e a exploração de escravos se converteram em dois negócios distintos, os exploradores do trabalho dos escravos souberam comprar escravos, adquirindo, disse modo, o poder sobre o homem por meio do poder sobre as coisas, isto é, sobre o preço do escravo e sobre os seus meios de vida e instrumentos de trabalho. Durante toda a Idade Média, a grande propriedade da terra é a condição prévia. graças à qual a nobreza feudal arregimenta colonos e vassalos, sujeitos todos à tributação, E, atualmente, até uma criança de seis anos pode saber que a riqueza, afirmando o seu poderio sobre os homens. consegue esse objetivo, pura e exclusivamente. por meio das coisas de que dispõe.

Que obriga o Sr. Dühring à construção dessa falsa definição de riqueza. deixando de lado a relação efetiva que se vem impondo, até hoje, em todas as sociedades de classe? Fez isto simplesmente com a intenção de arrastar a riqueza do terreno econômico para o terreno moral. O poder do homem sobre as coisas é uma instituição muito boa, mas o seu domínio sobre os outros homens é abominável, e, como o Sr. Dühring foi absolutamente incapaz, por si mesmo, de explicar a dominação dos homens como derivada da dominação das coisas, resolveu explicar esse fenômeno por um novo e audacioso salto, pura e simplesmente como sendo um fruto de sua amada violência. E assim chegamos à conclusão de que a riqueza, como poder subjugador de homens, passa a ser a “rapina” e nos encontramos, desse modo. com uma nova edição, nada melhorada, da antiquíssima fórmula proudhoniana: “A propriedade é um roubo”.

Felizmente, acabamos de passar em revista a riqueza dos dois pontos de vista essenciais da produção e da distribuição. Em primeiro lugar, a riqueza concebida como um poder sobre as coisas, a chamada riqueza de produção, lado bom; e em segundo, a riqueza concebida como um poder sobre os homens, ou seja, a que tem sido chamada de riqueza de distribuição, lado mau, expulsemo-la! Esta classificação, aplicada às atuais condições, pode ser explicada do seguinte modo: o regime capitalista de produção é excelente e pode continuar existindo, mas o regime capitalista de distribuição não serve e deve ser abolido. Veja-se a que absurdo chegam os que se põem a escrever sobre economia sem ter a menor idéia da relação entre produção e distribuição.

Depois de se definir a riqueza, tem-se a definição do valor: “Valor é a cotização que as coisas e os serviços econômicos alcançam no comércio”. Essa cotização corresponde “ao preço ou a um qualquer nome de equivalente, como, por exemplo, ao salário”, ou, o que vem a ser a mesma coisa: o valor é o preço. Mas não queremos ser injustos com o Sr. Dühring e por isso vamos reproduzir o absurdo de sua definição, transcrevendo-a com a maior fidelidade pelas suas próprias palavras: o valor são os preços. Pois é o que ele diz na página 19: “O valor e os preços que o exprimem em dinheiro”, reconhecendo com isso, sem que ninguém o exija, que um mesmo valor pode corresponder a diferentes preços, e, portanto, segundo o que dissemos atrás, a diferentes valores. Se Hegel não estivesse morto e bem morto, ao ler uma tal coisa ele se enforcaria. Não seria capaz de compreender, apesar de todas as suas teologias, essa espécie de valor que tem tantos valores diferentes como preços. É preciso ter-se, com efeito, a agudeza do Sr. Dühring para expor uma nova e mais profunda fundamentação da economia, pela declaração de que entre o preço e o valor não existe maior diferença que a do fato de que o primeiro se exprime em dinheiro, enquanto que o segundo não.

Continuamos, porém, sem saber o que é valor e a nossa ignorância é ainda maior a respeito dos fatores que o determinam. O Sr. Dühring vê-se obrigado pois a desenvolver novas explicações. “Em termos muito gerais, a lei fundamental da comparação e da avaliação, na qual se baseiam o valor e os preços que o exprimem em dinheiro, reside primeiramente na esfera da pura produção, deixando de lado a distribuição, que se limita a introduzir no conceito de valor um segundo elemento. Os obstáculos mais ou menos grandes, que a diversidade de relações naturais opõe às aspirações tendentes à aquisição dos objetos, obrigando-as a um desgaste maior ou menor de força econômica, determinam também... “o valor, maior ou menor”, e este se calcula tendo-se em vista a “resistência à aquisição que opõem à natureza e às circunstâncias. À proporção em que depositamos neles. (nos objetos) a nossa própria força é a causa decisiva e imediata da existência do valor em geral, e, em particular, a causa de sua grandeza.”

Se estas palavras têm algum sentido, só pode ser o de que o valor de um produto do trabalho se determina pela quantidade do trabalho necessário para a sua elaboração, coisa que já sabíamos há muito tempo, sem necessidade de que o Sr. Dühring no-la viesse dizer. O que acontece é que O Sr. Dühring, incapaz de expor os fatos pura e simplesmente, se vê forçado a revesti-los com a sua roupagem oracular, É totalmente falso que a proporção em que o homem deposita a sua força em um bjeto (conservamos a grandiloqüente expressão) seja “a causa decisiva imediata” do valor e de sua grandeza. Em primeiro lugar é preciso saber em que objetos se concentra a força e, em segundo lugar, como é que esta se concentra. Se um homem cria um objeto que não tem valor de uso para os outros homens, por muita força que concentre nele, não produzirá nem sequer um átomo de valor. E, por mais que se esforce em produzir manualmente um objeto que uma máquina produz vinte vezes mais barato, dezenove vigésimos da força por ele gasta não terá nenhum valor e, portanto, nenhuma quantidade especial de valor. Ademais, procurar converter o trabalho produtivo, criador de produtos positivos, numa simples superação negativa de resistências, é querer inverter completamente os conceitos. De acordo com essa idéia, para chegar a produzir uma camisa teríamos que fazer o seguinte: em primeiro lugar, vencer a resistência da semente da planta do algodão, que se opõe a ser semeada e a crescer; em seguida, a resistência do algodão maduro contra a colheita, contra o enfardamento e a expedição; depois a resistência que apresenta o produto enfardado a ser desamarrado, beneficiado e fiado; mais tarde, a resistência do fio a ser tecido, a do tecido a ser clareado e costurado e, finalmente, a resistência da camisa já confeccionada a ser vestida.

Para que todas essas invenções e complicações pueris? Simplesmente para chegar, por meio da “resistência”, do “valor de produção”, do verdadeiro valor, que até agora não tem sido senão um valor puramente ideal, mas que é o único que regula os fatos na História, ao valor da distribuição, falseado pela violência: “Além da resistência que a natureza já opõe... há um outro obstáculo, puramente social... Entre o homem e a natureza se levanta um poder entorpecedor que é, novamente, o homem. O homem, concebido individual e isoladamente, é livre frente à natureza... Mas a situação se modifica desde que pensemos num segundo homem que, com a espada na mão; barra o acesso à natureza e aos seus tesouros, exigindo um preço, sob uma ou outra forma, para deixar livre o caminho. É como se esse segundo homem... impusesse um tributo ao primeiro, sendo esta a razão por que o valor dos objetos que se deseja seja superior ao que teria sido se este obstáculo político e social não se levantasse coibindo a aquisição ou a produção... As modalidades especiais desta cotização artificialmente aumentada dos objetos, que levam naturalmente consigo uma baixa proporcional no que se refere à cotização do trabalho, são variadíssimas... Assim, portanto, é uma ilusão querer ver no valor, desde o primeiro instante, um equivalente, no sentido restrito da palavra, isto é, uma igualdade de valor, ou uma relação de troca ajustada ao principio da igualdade da prestação e da contraprestação de serviços... Pelo contrário, a nota característica de uma teoria exata do valor é que a causa mais geral de avaliação que se concebe não coincide com a modalidade de cotização que tem a sua base na coação distributiva. Esta cotização varia quando varia a organização social, enquanto que o verdadeiro valor econômico somente pode ser um valor de produção mensurado em relação à natureza, e, portanto, pode variar só com os simples obstáculos da produção, sejam de caráter natural ou técnico,.”

Isto quer dizer que, no modo de ver do Sr. Dühring, o valor de uma coisa que vigora na prática consta de duas partes: a primeira é o trabalho que esta coisa encerra e a segunda é a sobrecarga tributária ue lhe é imposta pela força do homem da “espada na mão”. Ou, por outras palavras o valor que está em vigor na atualidade é um preço de monopólio. Pois bem, se, de acordo com essa teoria, todas as mercadorias circulam sob um preço de monopólio, teremos apenas duas hipóteses. Uma é a de que todo o comprador voltaria a perder, como comprador, tudo o que ganhasse como vendedor, e, neste caso, os preços se teriam modificado apenas nominalmente, pois na realidade se manteriam invariáveis — na mútua proporção — e tudo continuaria a ser como anteriormente, desaparecendo como uma mera aparência o valor de distribuição. A outra hipótese é a de que a pretendida sobrecarga tributária representa em realidade uma soma de valor, a saber: a soma de valor que a classe trabalhadora, criadora de valores, produz e da qual a classe monopolizadora se apropria, caso em que esta soma de valor é formada, simplesmente, pelo trabalho não retribuído; mas por este caminho, chegaremos, necessariamente, apesar do homem de espada na mão, apesar de todos os encargos tributários e do tão falado valor de distribuição, ao ponto a que Marx já havia chegado: à teoria da mais-valia.

Entretanto, paremos um pouco para examinar alguns exemplos do famosíssimo “valor de distribuição”. Nas páginas 125 e seguintes, afirma: “A modelação do preço pela concorrência individual deve ser considerada também como uma forma de distribuição econômica e de mútua imposição de tributos... Se partirmos da suposição de que as existências de uma qualquer mercadoria necessária diminuem subitamente de modo considerável, o vendedor ficará, de repente, com um poder de exploração desproporcional... e essas situações anormais, nas quais se impede, por muito tempo, a afluência de artigos necessários, patenteiam com evidência as gigantescas proporções que este poder pôde atingir etc. Além disso, afirma-nos o Sr. Dühring que, no curso normal das coisas, existem também monopólios efetivos que permitem fazer subir arbitrariamente os preços, como acontece, por exemplo, com as estradas de ferro, com as companhias urbanas de distribuição de água, gás de iluminação, etc. Não é coisa nova a existência de casos de exploração monopolista. O que é de fato novo é a afirmação de que os preços engendrados pelo monopólio não constituem exceções de casos específicos, mas que são, pelo contrário, um exemplo clássico do atual regime de fixação de valores. Como se determinam os preços dos gêneros alimentícios? O Sr. Dühring nos responde: Ide a uma cidade sitiada onde estejam secas as fontes do mercado e ficareis sabendo! Como atua a concorrência sobre a fixação dos preços no mercado? Resposta: Perguntai aos monopólios e tereis a explicação!

Por muito que olhemos, não conseguimos descobrir, nesses monopólios, onde está o famoso homem que mantém a vigilância junto a eles, com a espada na mão. Longe disso, nas cidades sitiadas o homem com a espada na mão, comandante da praça, se está cumprindo com o seu dever, o que faz é dar um fim ao monopólio ao mesmo tempo em que requisita os estoques acumulados para distribuir eqüitativamente os gêneros. Sempre que os homens da espada pretenderam fabricar um “valor de distribuição” não conseguiram senão desastres e perdas de dinheiro. Pelo seu monopólio do comércio das Índias Orientais, não conseguiram os holandeses outra coisa mais que a ruina de seu monopólio e de seu comércio. Os dois governos mais fortes que já existiram no mundo, o governo revolucionário norte-americano e a Convenção Nacional, tiveram pretensão de fixar os preços máximos e fracassaram lamentavelmente. Há muitos anos, o governo russo vem trabalhando por fazer elevar, em Londres, à força de comprar naquele mercado letras de câmbio sobre a Rússia, a cotação do papel-moeda russo que, em seu próprio país, está baixando, ininterruptamente, deprimida pelas continuas emissões de bilhetes de banco de curso forçado. Em poucos anos, essa farsa custou ao Erário russo cerca de 60 milhões de rublos e, atualmente, o rublo, que devia valer normalmente mais de 3 marcos, está valendo menos de dois. Se a espada tem esse poder mágico que lhe atribui o Sr. Dühring, por que então, até hoje, nenhum governo foi capaz de infundir, em larga escala, ao dinheiro mau, o “valor de distribuição” do dinheiro bom, ou ao papel-moeda o valor do ouro? E, além disso, onde é que está a espada que governa o mercado mundial?

Existe, entretanto, outra forma de capital na qual o valor de distribuição torna possível a apropriação de prestações de serviços de outrem, sem contraprestações: “a renda possessória”, ou seja, a renda da terra mais o lucro do capital. Limitar-nos-emos, por enquanto, a consignar essas definições, para poder acrescentar, a seguir, que elas são tudo o que nos dizem sobre o famoso “valor de distribuição”. Tudo? Não, tudo não. Ouçamos o seguinte: “A despeito do segundo ponto de vista que se manifesta no reconhecimento da existência de um valor de produção e de um valor de distribuição, ficará sempre de pé alguma coisa de comum, aquele objeto básico do qual se formam todos os valores e pelo qual, portanto, podem todos ser medidos. A medida imediata e natural para todos é o desgaste de forças, e a unidade de medida mais simples é a força humana, no sentido mais cru da palavra. Esta medida se reduz, em última instância, ao tempo da existência humana, cuja própria conservação implica por sua vez na superação de uma determinada soma de dificuldades de alimentação e de vida. O valor de distribuição ou de apropriação existe somente, pura e exclusivamente, ali onde pode dispor sobre coisas não produzidas, ou, usando a linguagem vulgar, ali onde estas mesmas coisas se trocam por objetos ou serviços que representam verdadeiro valor de produção. O traço comum entre todas as expressões do valor e que, portanto, se evidencia e aparece representado nas partes integrantes do valor, apropriadas pela contraprestação, consiste no desgaste de força humana que aparece... encarnado em toda a mercadoria.”

Que devemos dizer a respeito disto? Se todos os valores das mercadorias são medidos pelo desgaste de força humana que as mercadorias representam, que foi feito do famoso valor de distribuição, da elevação dos preços, da imposição dos tributos? É verdade que o Sr. Dühring nos afirma que também as coisas não produzidas, incapazes portanto de conter um verdadeiro valor, adquirem um valor de distribuição podendo pois ser trocadas por objetos produzidos nos quais existe um valor. Mas, ao mesmo tempo, afirma que todos os valores inclusive os valores pura e simplesmente de distribuição, consistem num desgaste de força que eles representam. Francamente não compreendemos, por infelicidade, que desgaste de força pode representar uma coisa não produzida. De toda essa confusão de valores, o que nos parece claro é que esse pretendido valor de distribuição, essa elevação de preços, imposta sobre as mercadorias por meio da posição social, essa tributação imposta pela espada, tudo isso não tem existência alguma. Que representam os valores das mercadorias, determinados exclusivamente pelo desgaste da força humana, chamada popularmente traba1ho? O Sr. Dühring. deixando de lado a renda da terra além de uns tantos preços isolados de monopólio, diz-nos, então, embora muito mais desconexa e confusamente, a mesma coisa que já afirmara. há muito tempo. com muito maior precisão e clareza, a detestada teoria de Ricardo e de Marx.

Sim ele afirma isso e, ao mesmo tempo e de um só fôlego, afirma o contrário. Marx. partindo das investigações de Ricardo, diz o seguinte: O valor das mercadorias é determinado pelo trabalho geral, humano, socialmente necessário, nelas materializado, o qual, por sua vez, é medido pela sua duração. O trabalho é a medida de todos os valores, mas não possui valor algum. O Sr. Dühring. depois de ter exposto à sua moda, extravagantemente, que o trabalho é a medida do valor, acrescenta: O trabalho “se resume no tempo de existência e a sua própria conservação representa, por seu lado, a superação de uma determinada soma de dificuldades de alimentação e de. vida”. Passemos por alto sobre esta confusão — nascida do puro anseio de originalidade — que o Sr. Dühring cria entre o que é tempo de trabalho — a única coisa que nos interessa neste momento — e o que é tempo de existência, que não sabemos o que tenha sido, alguma vez até o dia de hoje, fonte ou medida de valores. Deixemos de lado, também, essa falsa aparência “socialitária” com que pretende nos envolver, ao falar da “própria conservação” desse tempo de existência: enquanto o mundo for mundo, toda pessoa que quiser se sustentar a si mesmo terá que fazê-lo consumindo, também por si mesma, os seus meios de vida. Demos por suposto que o Sr. Dühring se havia expressado em termos econômicos e precisos e que a sua afirmação acima transcrita se resume no seguinte: O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho que representa e o valor desse tempo de trabalho é representado pelos meios de vida necessários para sustentar, durante esse período. o operário, o que. aplicado à sociedade atual, quer dizer que o valor de uma mercadoria se determina pelo salário que nela está encerrado.

Terminamos desse modo, por descobrir o que, real e verdadeiramente, quer o Sr. Dühring dizer. O valor de uma mercadoria se determina, para dizer em termos de economia vulgar, pelo custo da produção. Carey, opondo-se a esta explicação. “fazia ressaltar a verdade, quando afirmava que não era o custo de produção. mas o custo de reprodução, que determinava o valor” (“História Crítica”. pág. 401). Veremos mais adiante se este custo de produção ou reprodução tem alguma razão de ser; por enquanto, basta que saibamos que ele se encontra formado, como é claro, por duas parcelas: o salário e o lucro do capital. O salário representa o “desgaste de força” materializado na mercadoria, ou seja, o valor de produção. O lucro representa o tributo ou o aumento de preço imposto à mercadoria pelo capitalista, amparado pelo seu monopólio, pela espada que tem na mão, ou seja, o valor de distribuição. E todo o emaranhado da teoria dühringuiana do valor, prenhe de contradições, acaba por se resolver, finalmente, na mais bela e harmoniosa limpidez.

A determinação do valor das mercadorias pelo salário, que ainda freqüentemente se confunde, em Adam Smith, com a determinação do valor pelo tempo de trabalho, já foi abolida, a partir de Ricardo, do terreno da economia científica, encontrando atualmente divulgação apenas na economia vulgar. Com efeito, só os mais vulgares demagogos da ordem social vigente, do capitalismo, é que pregam a determinação do valor pelo salário, ao mesmo tempo em que pretendem apresentar o lucro do capitalista como uma forma superior de salário, como uma espécie de salário de abstinência (que o capitalista reserva para si, por não ter desperdiçado o seu capital em prazeres), como um prêmio dos riscos que o capital sempre corre, como uma remuneração de seus serviços à frente do negócio, etc. O Sr. Dühring distingue-se apenas desses cavalheiros pelo fato de declarar que o lucro é um ato de rapina. Por outros termos, constrói o Sr. Dühring, diretamente, o seu socialismo com base nos ensinamentos da mais desacreditada economia vulgar. Formam um todo os dois sistemas, a economia vulgar e o socialismo do Sr. Dühring. Ao desaparecer um, desaparece o outro, necessariamente.

É evidente que o que produz um operário e o que ele custa são duas coisas tão diferentes como o são o que produz e o que custa uma máquina. O valor que cria um operário, numa jornada de trabalho de doze horas, não tem nada de comum com o valor dos gêneros que ele consome durante essa jornada de trabalho e nos intervalos e horas de descanso de cada dia. Nestes meios de vida que consome poderá estar encerrado um tempo de trabalho equivalente a três, a quatro ou a sete horas, segundo o grau de desenvolvimento a que tenha chegado o rendimento do trabalho. Suponhamos que para a produção desses gêneros tenham sido necessárias sete horas de trabalho: a teoria do valor, formulada pela economia vulgar e aceita pelo Sr. Dühring, terá que concordar que o produto de doze horas de trabalho tem o valor do produto de sete horas de trabalho, ou seja, que doze horas de trabalho são a mesma coisa que sete horas de trabalho, ou ainda, que 12 = 7. Para que a coisa seja ainda mais clara: Um operário agrícola, quaisquer que sejam as condições sociais em que trabalhe, produz, digamos, uma quantidade de trigo de vinte hectolitros por ano. Durante este tempo, consome uma quantidade de valores que se exprime numa quantidade de trigo de quinze hectolitros. De acordo com essa teoria, os vinte hectolitros terão o mesmo valor que os quinze, e isto num mesmo mercado, e sob condições que não variaram em nada. Isto eqüivale a dizer, noutros termos, que 20 eqüivalem a 15! E chamam a uma tal coisa Economia Política!

Todos os progressos da sociedade humana, a partir do momento em que se ergue do estágio da barbárie animal primitiva, tem o seu começo no dia em que o trabalho da família criou mais produtos que os necessários para o seu sustento, portanto, quando uma parte do trabalho pode ser invertida, não apenas na produção de simples meios de vida, mas em criar meios de produção. A formação de um excedente do produto do trabalho, depois de ter sido coberto o gasto de subsistência do próprio trabalho, ao mesmo tempo em que a formação e o desenvolvimento por meio deste excedente de um fundo social de produção e de reserva era, desde o princípio e continua senda hoje, a base de todo o progresso social, político e intelectual. Esse fundo vem sendo, historicamente, o patrimônio de uma classe privilegiada que pela sua posse, tem também nas mãos a hegemonia política e a direção espiritual. A revolução social que se aproxima converterá, pela primeira, vez, este fundo coletivo de produção e de reserva, isto é, a massa global de matérias-primas, instrumentos de produção e meios de vida, num verdadeiro fundo social, arrancando-o das mãos dessa classe privilegiada, que atualmente dele dispõe, e colocando-o como patrimônio coletivo a serviço de toda a sociedade.

Só pode ser aceita uma de duas soluções. Ou o valor das mercadorias se determina pelo custo de manutenção do trabalho necessário para produzir estas mercadorias, o que eqüivale a dizer, na atual sociedade, que se determina pelo salário. Neste caso, cada operário recebe, com o seu salário o valor do produto de seu trabalho, e não haverá nenhuma possibilidade de que a classe dos operários assalariados seja explorada pela classe dos capitalistas. Suponhamos que o custo de manutenção de um operário seja expresso numa sociedade determinada, pela soma de três marcos. De acordo com este custo, e baseando-nos na teoria dos economistas vulgares que acabamos de expor, o produto diário do operário terá o valor de três marcos. Admitamos, agora, que o capitalista para o qual trabalha esse operário acrescente a esse produto um lucro, um tributo de um marco, vendendo-o por quatro marcos. A mesma coisa farão todos os capitalistas. Mas, então, o operário não poderá continuar a se manter com três marcos, mas precisará de quatro. E como se supõe que as demais circunstâncias que influem no fenômeno permanecem invariáveis, continuará sendo o mesmo o salário expresso em meios de vida, mas o salário expresso em dinheiro terá, necessariamente, que aumentar, e aumentará concretamente de três para quatro marcos diários, pois que os capitalistas se verão obrigados a devolver à classe trabalhadora sob a forma de salários, aquilo que lhe arrancaram sob a forma de lucro. Continuamos exatamente no mesmo ponto em que estávamos: se o salário determina o valor, é impossível conceber que o operário seja explorado pelo capitalista. Não será também possível formar-se um excedente de produtos, pois os operários, de acordo com o que pressupomos inicialmente, consumirão exatamente a mesma quantidade de valor que eles mesmos produziram. E como os capitalistas não produzem valor algum não se pode calcular nem mesmo do que poderão eles viver. Se existe, apesar de tudo, um excedente da produção sobre o consumo, se existe um excedente de produção e de reserva, e, de fato, existe nas mãos dos capitalistas, não nos resta mais que uma explicação: os operários se limitam a consumir para a sua própria manutenção, o valor das mercadorias, deixando aos capitalistas a tarefa de explorar essas mercadorias.

Mas ainda existe outra solução: Se este fundo de produção e de reserva efetivamente existe nas mãos da classe capitalista e se ele formou, como se observa na realidade mediante a acumulação de lucros (deixando por um momento a renda do solo), estará forçosamente integrado pelo excedente do produto do trabalho da classe operária, acumulada por esta e entregue à classe capitalista, pelo excedente que resta depois de ter sido coberta a soma paga como salário pela classe capitalista à classe trabalhadora. Mas então o valor não será determinado precisamente pelo salário, mas pela quantidade de trabalho; assim a classe operária entregará à classe capitalista, como produto de seu trabalho, uma quantidade maior de valor do que o parte que recebe dela sob a forma de salário, e o lucro do capital, da mesma forma que as demais formas de apropriação do produto da trabalho alheio não retribuído, terá sua explicação, como parte integrante dessa mais-valia, nada mais é que uma descoberta de Marx.

Diremos de passagem que, em todo o Curso da Economia, não existe nenhuma referência à grande descoberta com que Ricardo, marcando época, dá início à sua obra capital, que é a seguinte: “O valor de uma mercadoria depende da quantidade de. trabalho necessária para a sua produção, e não da remuneração mais elevada ou mais baixa que é estabelecida para esse trabalho”. Na História Crítica abre-se-lhe uma pequena cova, enterrando-o com essas palavras sacramentais: “Não se vê, (isto é, Ricardo) que a menor ou maior proporção em que o salário pode ser (!) um indício das necessidades da vida, tem que se relacionar necessariamente... com uma modalidade diferente no que se refere às relações de valor.” Esta frase tem a vantagem de fazer com que o leitor possa pensar o que lhe aprouver ou, então, o que é mais seguro, não pensar nada.

Pelo que dissemos, o leitor pode agora escolher, entre as cinco classes de valor que nos são servidas pelo Sr. Dühring numa bandeja, a que mais lhe agradar: o valor de produção que tem a sua fonte na natureza, ou o valor de distribuição, criado pela maldade dos homens e que se caracteriza pela particularidade de ser medida pelo desgaste de força que ele não representa; ou então, o valor que se mede pelo tempo de trabalho; o valor que se mede pelo custo da reprodução; e, por fim, o valor que se mede pelo salário. Como se vê, há o que escolher; a coleção não pode ser mais completa, assim como o é a confusão, e, como sobremesa, podemos exclamar como o faz o próprio Sr. Dühring: “A teoria do valor é a pedra de toque pela qual se aprecia a solidez dos sistemas econômicos”.


Capítulo VI
TRABALHO SIMPLES E TRABALHO COMPLEXO

 

O Sr. Dühring descobriu em Marx uma falha econômica verdadeiramente imperdoável, que, além disso, é uma heresia socialista perigosíssima para a causa. A teoria marxista do valor, diz ele, “não é mais do que a teoria,., vulgar que vê no trabalho a causa de todos os valores e no tempo de trabalho a sua medida. A idéia que se pode ter do valor diferencial do chamado trabalho qualificado fica, nesta teoria, na mais completa obscuridade. É certo também que, de acordo com a nossa teoria, só o tempo de trabalho invertido é que pode medir o próprio custo natural e, portanto, o valor absoluto das coisas econômicas. Mas, para isso, se equipara, de antemão, de modo absoluto o tempo de trabalho de todos os indivíduos, devendo se ter em conta apenas que, quando se trata de trabalhos qualificados, vem incorporar-se ao tempo de trabalho individual de uma pessoa, o tempo de trabalho de outras pessoas, em cooperação com ela, por exemplo, no instrumento que se utiliza. Não se trata, pois, como o Sr. Marx, nebulosamente, imagina, de que o tempo de trabalho de uma pessoa valha, por si só, mais do que o de outra, como se nele se condenasse mais tempo de trabalho médio, e sim, do fato de que todo tempo de trabalho é perfeitamente equiparável, sem exceção, por princípio, sem que seja pois necessário que se tire uma média; ante a atividade despendida por uma pessoa, principalmente diante de um produto acabado qualquer, devemos ver apenas quanto tempo de trabalho de outras pessoas se oculta sob essa inversão de trabalho, aparentemente próprio e exclusivo. Para a rigorosa aplicação da teoria, não importa absolutamente que se trate de um instrumento de produção a ser utilizado pelas mãos ou que se trate das mãos e da própria cabeça, consideradas como instrumentos, as quais, sem o tempo de trabalho de outras pessoas, não teriam jamais adquirido a necessária capacitação para o trabalho. O Sr. Marx, em suas elucubrações sobre o valor, não consegue desfazer-se do fantasma do tempo de trabalho qualificado que se ergue ao fundo. O tradicional modo de pensar das classes cultas, às quais têm necessariamente que parecer monstruoso o fato de se equiparar, plenamente, no terreno econômico, o tempo de trabalho do carregador e o do arquiteto, como valores, foi que lhe impediu que acabasse com essa quimera.”

O trecho de Marx, que teve a virtude de provocar esse acesso de cólera no Sr. Dühring, é muito resumido. Marx procura investigar o que é que determina o valor das mercadorias e chega à conclusão de que é o trabalho humano nelas contido. Esse trabalho, acrescenta, “é o desgaste da simples força de trabalho que todo homem normal, em média, sem um desenvolvimento específico, possui em seu organismo físico... O trabalho mais complexo não é mais que o trabalho simples potenciado, ou melhor, multiplicado de tal maneira que uma quantidade pequena de trabalho complexo eqüivale a uma quantidade maior de trabalho simples. A experiência nos ensina que a redução de trabalho complexo para trabalho simples está sendo realizada diariamente. Embora uma mercadoria seja um produto do trabalho mais complicado do mundo, o seu valor a coloca no mesmo plano que os produtos do trabalho simples, o que faz com que só represente uma determinada quantidade de trabalho comum. As diferentes proporções em que as diferentes espécies de trabalho são reduzidas ao trabalho simples, que é a sua unidade de medida, são fixadas por meio de um processo social, desenvolvido sem o conhecimento dos produtores, que supõem mesmo que ela provém da tradição.”

Como se observa, Marx se limita, neste trecho, apenas, a investigar o critério de determinação do valor das mercadorias, ou seja, dos objetos que, dentro da sociedade composta de produtores privados, são criados por eles em seu interesse e por sua própria conta, e que são trocados pelos outros. Não se trata, pois, de modo algum, do “valor absoluto”, nem mesmo da verificação do local onde esse existe. Mas, simplesmente, do valor que vigora e que é objeto de comparações numa determinada forma de sociedade. Concebido dessa forma, sob esse sentido histórico concreto, chega-se à conclusão de que o valor é criado e tem a sua medida no trabalho humano encerrado nas diferentes mercadorias. Esse trabalho humano, por sua vez, se define como o desgaste da simples força de trabalho. Ora, nem todo trabalho consiste na simples força humana de trabalho. Existem variadas espécies de trabalho, que envolvem o exercício de aptidões e conhecimentos, adquiridos com maior ou menor esforço, ao lado de um gasto maior ou menor de tempo e de dinheiro. Formam, essas categorias de trabalho complexo, no mesmo espaço de tempo, um valor mercantil idêntico ao do trabalho simples, que é o desgaste ou a aplicação da força simples de trabalho? Está claro que não. O produto de uma hora de trabalho complexo, comparado com o produto de uma hora de trabalho simples, representa uma mercadoria cujo valor é duas ou três vezes superior. O valor dos produtos do trabalho complexo é expresso, nesta comparação, por determinadas quantidades de trabalho simples, mas esta redução do trabalho complexo ao trabalho simples se realiza por meio de um processo social desconhecido dos próprios produtores, cuja trajetória não podemos aqui senão assinalar na exposição da teoria do valor, deixando a sua explicação detalhada para ocasião oportuna.

O simples fato a que acabamos de nos referir, todos os dias realizado na sociedade capitalista, foi o que Marx pretendeu estudar. Esse fato é tão indiscutível, que nem mesmo o Sr. Dühring se atreve a negá-lo, tanto no seu “Curso”, como na sua História da Economia. E a exposição de Marx é tão simples e clara, que, indubitavelmente, quem “fica na mais completa obscuridade” é o Sr. Dühring. E só assim que se pode explicar que ele confunda o valor das mercadorias, única coisa que Marx pretende investigar nesse trecho, com aquilo que ele denomina x“custo próprio e natural”, conceito que apenas faz aumentar, como se já não fosse pouca a obscuridade do autor, confundindo também com o “valo, absoluto”, conceito que até hoje não conseguiu se impor e, que nós saibamos, não tem vigorado na economia de nenhum país. Sem pretendermos, porém, investigar o que é que o Sr. Dühring entende por “custo próprio e natural”, nem qual de suas cinco espécies de valor têm a elevada honra de representar aqui o papel de “valor absoluto”, podemos afirmar, com absoluta segurança, que Marx não se refere, de modo algum, a estas coisas, mas, pura e simplesmente, ao valor das mercadorias e que, em toda a parte de O Capital consagrada ao estudo do valor, não existe nem a menor alusão que nos faça supor que Marx pretendesse aplicar a sua teoria do valor das mercadorias a outras formas de sociedade, nem mesmo que nos permita concluir sobre se Marx admite ao menos a possibilidade de que elas venham a ser aplicadas.

Não se trata pois — continua o Sr. Dühring — “como imagina nebulosamente o ar. Marx, de que o tempo de trabalho de uma pessoa, por si só, valha mais do que o de outra, de que todo tempo de trabalho é, perfeitamente equiparável, sem exceção, por princípio, sem que seja necessário que se tire uma média”. Felizmente para o Sr. Dühring, o destino não o colocou à frente de uma fábrica, evitando, desse modo, que ele tivesse de fixar o valor de suas mercadorias de acordo com esse novo critério, pois, desse modo, ele chegaria à falência. Mas como? Será que ainda estamo-nos movendo no mundo dos fabricantes? Nada disso! Com o seu “custo próprio e natural” e o seu “valor absoluto”, o Sr. Dühring nos fez dar um salto, um verdadeiro salto mortal, que nos transplanta do nosso malvado mundo de hoje, do mundo dos exploradores, para a sua Comuna Econômica do futuro, o risonho paraíso da igualdade e da justiça. Não temos outro remédio, embora nos antecipando um pouco, que nos deter para contemplar este mundo novo a que nos estão levando.

É verdade que, segundo a teoria do Sr. Dühring, nem mesmo na Comuna Econômica se poderá medir o valor das coisas econômicas, a não ser mediante o tempo de trabalho nelas invertido. A diferença é que, nessa Comuna, o tempo de trabalho de cada um será respeitado, desde o primeiro momento, como perfeitamente equiparado ao dos demais, pois “todo o tempo de trabalho é perfeitamente equiparável sem que seja necessário que se tire nenhuma média”. Como é pobre, comparada com este formoso e radical socialismo igualitário, a nebulosa concepção de Marx, segundo a qual “o tempo de trabalho de nenhuma pessoa vale mais, por si mesmo, que o de outra”, por nele estar contido mais tempo de trabalho médio condensado, concepção essa que o arrasta ao modo de pensar tradicional, para o qual é necessariamente monstruosa a equiparação plena do tempo de trabalho do carregador, no terreno econômico, com o do arquiteto, na qualidade de valores!

Infelizmente para o Sr. Dühring, Marx escreve, em seguida ao citado trecho de O Capital, a seguinte observação: “O leitor compreenderá que aqui não falamos do salário, valor que o operário percebe por uma jornada de trabalho, digamos, mas do valor das mercadorias, em que toma corpo uma jornada de trabalho.” Ou seja, como Marx adivinhasse totalmente o que pretendia o Sr. Dühring, ele se previne, como medida higiênica, contra o perigo de que aquelas suas afirmações sejam aplicadas também para o salário que, na sociedade atual, é pago pelo trabalho complexo. E, no entanto, o Sr. Dühring, não contente com uma tal coisa, incorre naquilo contra o que Marx previne aos seus leitores, e tem, ademais, a ousadia de fazer passar aquelas mesmas afirmações como sendo os princípios que deveriam, segundo o, pensamento de Marx, presidir a distribuição dos meios de vida, na coletividade socialisticamente organizada. Como vemos, é um caso vergonhoso de mistificação, para o qual só se pode encontrar precedente na literatura de chantagem.

Vamo-nos deter ainda a examinar, um pouco mais de perto, a teoria da igualdade de valor do trabalho. Segundo o Sr. Dühring, todo o tempo de trabalho é perfeitamente equiparável, no que concerne ao valor, quer seja o de um carregador, quer seja o de um arquiteto. Assim. o tempo de trabalho, e, portanto. o próprio trabalho, tem um valor. Observe-se. no entanto, que o trabalho é o criador de todos os valores. É ele, e somente ele, que transmite um valor, no sentido econômico da palavra, aos produtos fornecidos pela natureza. Por si mesmo, o valor não é mais do que a expressão do trabalho humano socialmente necessário, representado por um objeto. O trabalho não pode, portanto, ter um valor. Ao falarmos do valor do trabalho, empenhando-nos em determiná-lo, incorremos no mesmo contra-senso em que incorreríamos se falássemos. procurando encontrá-lo, do valor ou do peso, não de um corpo pesado. mas da própria gravidade. O Sr. Dühring, que classifica a homens como Owen. Saint-Simon e Fourier. como sendo “alquimistas sociais”, demonstra, ao monologar copiosamente sobre o valor do tempo de trabalho, ou. o que vem a ser o mesmo, sobre o trabalho, que está muito abaixo dos verdadeiros alquimistas. Julgue-se, agora, depois do que acabamos de verificar, quanta ousadia foi necessária para que o Sr. Dühring atribuísse a Marx a afirmação de que o tempo de trabalho de uma pessoa não vale, por si mesma, mais que o de outra qualquer pessoa, como se o tempo de trabalho e, portanto, o próprio trabalho tivesse um valor. Atribui esse absurdo logo a Marx, que foi o primeiro a demonstrar, até mesmo em suas causas, que o trabalho não pode ter um valor!

Para o socialismo. que aspira à emancipação da força humana de trabalho de sua condição de mercadoria, é da maior importância compreender que o trabalho não tem um valor. Demonstrado este fato, caem por terra todas as tentativas, próprias do socialismo operário primitivo e elementar, que tem no Sr. Dühring um continuador, e que são destinadas a regulamentar a distribuição futura dos meios de vida, por meio de uma espécie de salário superior. Além disso. depois de esclarecer esse assunto, chega-se à conclusão de que, embora governada por motivos de ordem puramente econômica, a distribuição será regulada pelo interesse da produção, e esta se verá incentivada principalmente por um regime de distribuição que permita a todos os indivíduos da sociedade desenvolver. manter e exercitar, nos mais amplos aspectos, as suas capacidades. É claro que o medo tradicional de pensar das classes cultas, herdado pelo Sr. Dühring. tem que considerar, necessariamente, como uma monstruosidade, que chegue o dia em que não existam mais carregadores e arquitetos de profissão, e no qual o homem, que passou uma meia hora dando instruções, como arquiteto, tem que servir durante“ algum tempo como carregador, até que seus serviços de arquiteto voltem a ser necessários. Para se eternizar a categoria dos carregadores de profissão não era preciso o socialismo!

Se a equiparação de valor do tempo de trabalho significa que cada operário produz, no mesmo espaço de tempo, valores iguais, sem que seja necessário, portanto, estabelecer uma média, a tese é absolutamente falsa. Entre dois operários, até de um mesmo ramo industrial, o produto do valor criado em cada hora de trabalho se diferenciará sempre, quer devido à intensidade do trabalho, quer à habilidade do trabalhador. É este “mal”, que existe somente para homens do gênero do Sr. Dühring, não pode ser remediado nem mesmo pela Comuna Econômica, ao menos em nosso planeta. Desse modo, e que é que resta dessa pretensa equiparação de valor de todos e de cada um dos trabalhos do homem? Resta apenas a frase declamatória, frase que não tem outra base na Economia a não ser a incapacidade do Sr. Dühring de distinguir entre a determinação do valor por meio de trabalho e a determinação por meio do salário. Não tem esta frase outro fundamento senão a proclamação pela qual o Sr. Dühring dita, à nova Comuna Econômica, a sua lei fundamental: o salário pago por um tempo de trabalho igual será sempre o mesmo! Os antigos comunistas operários franceses e o alemão Weitling, pelo menos, sabiam alegar melhores razões para servir de apoio à sua igualdade de salários.

Vejamos, agora, que solução daremos a este problema tão importante que é o da retribuição mais elevada do trabalho complexo? Na sociedade de produtores privados, os gastos para a formação de cada operário instruído correm por conta dos particulares ou de suas famílias, razão pela qual devem eles mesmos lucrar com a diferença de preço das forças de trabalho qualificadas. O escravo hábil é vendido por maior preço, o operário mais competente obtém um melhor salário. Na sociedade socialista, os gastos com a instrução correrão por conta da coletividade, e a ela, portanto, é que deverão caber os seus frutos, isto é, o excedente de valor engendrado pelo trabalho complexo. Pessoalmente, não terá motivos o operário para reclamação. Donde se conclui, seja dito de passagem, como corolário prático, que o famoso direito do operário “ao produto integro de seu trabalho” se choca também, às vezes, com algumas dificuldades.


Capítulo VII
CAPITAL E MAIS-VALIA

 

“Marx não fez do capital a idéia comumente admitida em economia política, segundo a qual o capital é um conjunto de meios de produção, sendo ele próprio um produto; Marx procura expressar uma idéia histórico-dialética, penetrando no jogo de metamorfoses dos conceitos e da história.

O capital, diz ele, nasce da moeda; constitui uma fase histórica que começou no século XVI, com os rudimentos de mercado mundial que a época admitia. Evidentemente, o rigor da análise econômica perde-se em face de tal conceito. Nesse gênero de concepções... julgadas meio-históricas e meio-lógicas, mas, no fundo, unicamente produtos bastardos da fantasia histórica e lógica, a faculdade de distinção e de compreensão põe abaixo toda probidade no uso dos conceitos” — e assim continua por toda uma página, numa verdadeira carga de cavalaria. “....A definição marxista do conceito do capital só pode introduzir a confusão na rigorosa teoria econômica... improvisações que pretendem impor-se como verdades lógicas profundas... fragilidade de fundamentos”, etc.

Assim, segundo Marx, o capital teria nascido da moeda no começo do século XVI. É como se disséssemos que a moeda metálica nasceu há três mil anos, do gado, porque, como se sabe, este teve antigamente função de moeda. Só mesmo o Senhor Dühring seria capaz de exprimir-se com tanta grosseria e desacerto. Na análise que faz Marx das formas econômicas no seio das quais se opera o processo de circulação das mercadorias, a moeda aparece como a forma última e superior. “Este produto último da circulação das mercadorias é a primeira forma sob a qual se manifesta o capital. Do ponto de vista histórico, o capital ergue-se por toda parte contra a propriedade territorial, sob a forma de dinheiro, como numerário, como capital mercantil e capital usurário... O mesmo fenômeno desenvolve-se diariamente aos nossos olhos. Na sua primeira entrada em cena, isto é, na sua primeira aparição no mercado, quer se trate do mercado de mercadorias, do de trabalho ou de moeda, o capital reveste sempre a forma dinheiro, a forma de um dinheiro que, por processos determinados, deve transformar-se em capital”. (O Capital, livro I, capítulo IV). É, portanto, um fato que Marx registra. Incapaz de contestá-lo, o Senhor Dühring deforma-o; o capital teria nascido da moeda.

Marx prossegue, então, no estudo dos processos pelos quais a moeda se transforma em capital; verifica, inicialmente, que a forma sob a qual a moeda circula como capital é a inversão exata da forma sob a qual ela circula como equivalente geral das mercadorias. O simples possuidor de mercadorias vende para comprar; vende aquilo de que não tem necessidade e, com o dinheiro obtido, compra aquilo de que tem necessidade. O capitalista incipiente começa por comprar aquilo de que ele próprio “não tem” necessidade; compra para vender, e para vender mais caro, para recuperar o valor dinheiro primitivamente aplicado na compra e, mais ainda, para recuperá-lo acrescido de um excedente em dinheiro, que Marx denomina de mais-valia.

Qual a origem dessa mais-valia? Ela não pode provir nem de ter o comprador comprado as mercadorias abaixo de seu valor, nem de tê-las vendido acima de seu valor. Com efeito, nesses dois casos, os ganhos e as perdas de cada um se compensam reciprocamente, porquanto cada um é sucessivamente comprador e vendedor. Ela não pode igualmente provir do dolo, porque este pode muito bem enriquecer um a expensas de outro, mas não aumentar a soma total possuída por um e por outro, nem, por conseguinte, a soma dos valores em circulação num país. É difícil que a totalidade da classe capitalista de um país se engane a si própria”. (O Capital, pág. 165).

E, entretanto, verificamos que a classe dos capitalistas de cada país, tomada em seu conjunto, se enriquece constantemente aos nossos olhos, vendendo mais caro do que comprou, apropriando-se da mais-valia. Estamos, porém, tão adiantados como no começo; donde provém a mais-valia? É esta questão que se trata de resolver e de maneira “puramente econômica” abstração feita de qualquer dolo, de qualquer intervenção de poderes estranhos. O problema é este: como é possível vender constantemente mais caro do que se comprou, mesmo que se suponha que se trocam sempre valores iguais por valores iguais?

A solução dessa questão é, na obra de Marx, o seu grande mérito, um acontecimento que marca uma época. Ela veio iluminar domínios econômicos em que até aqui não só os socialistas como os economistas burgueses tateavam no meio das trevas mais espessas. Data dessa época, e em torno dela se agrupa, o socialismo científico.

A solução é a seguinte. O aumento do valor da moeda que se vai transformar em capital não poderia operar-se sobre essa “moeda”, nem provir da “compra”, porquanto essa moeda realiza aqui somente o preço da mercadoria, e esse preço — pressupondo-se, como se pressupõe, que os valores trocados são iguais — não é diferente do valor. Por essa razão, também o acréscimo do valor não pode provir de “venda” da mercadoria. É preciso, portanto, que essa alteração se verifique na mercadoria comprada e não em seu “valor”, visto ser ela comprada e vendida por seu valor, mas por seu “valor de uso” como tal; dito de outro modo: a mudança de valor deve resultar do consumo da mercadoria. “Para inferior, porém, o valor do consumo de uma mercadoria, seria preciso que o nosso possuidor de dinheiro tivesse a sorte de descobrir na esfera da circulação, isto é, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso fosse dotado da singular propriedade de ser fonte de um novo valor ou cuja utilização real seria, pois, a materialização do trabalho e, por conseqüência, “criação de valor”. Ora, o possuidor de dinheiro encontra no mercado essa mercadoria particular: é a capacidade de trabalho, ou “força de trabalho”. (O Capital, página 190). Se, conforme vimos, o “trabalho” como tal não pode ter um valor, não é esse, de maneira alguma, o caso da “força de trabalho”. Esta recebe um valor desde que se torna “mercadoria”, como o é hoje, de fato; e esse valor é determinado, “como o de qualquer mercadoria, pelo tempo de trabalho necessário à produção, incluindo-se nela, por conseguinte, a reprodução desse trabalho específico”; isto é, pelo tempo de trabalho necessário para criar os meios de existência dos quais o trabalhador necessita para se manter apto para o trabalho e para continuar procriando trabalhadores. Admitamos que esses meios de existência representem, em média, um tempo de trabalho de seis horas por dia, nosso capitalista incipiente, que compra “força de trabalho” para impulsionar o seu negócio, isto é, que aluga um trabalhador, paga a esse trabalhador o valor diário completo de sua força de trabalho, pois que lhe dá uma soma em dinheiro que representa igualmente seis horas de trabalho. E, desde que o operário trabalhe seis horas ao serviço do capitalista incipiente terá reembolsado inteiramente este último da quantia que lhe foi paga, isto é, do valor diário de força de trabalho que o capitalista lhe pagou. Mas, dessa maneira o dinheiro não seria transformado em capital, não teria engendrado mais-valia. Também o comprador da força de trabalho tem, em conseqüência, uma maneira inteiramente diversa de encarar a natureza do contrato realizado com o operário. O fato de somente seis horas de trabalho serem necessárias para manter a vida do trabalhador durante vinte e quatro horas, não o impede de modo algum que seja obrigado a trabalhar doze horas em vinte e quatro. O valor da força de trabalho e a sua exploração no processo de trabalho são duas grandezas distintas. O possuidor de dinheiro pagou o valor da força de trabalho; ele é, portanto, proprietário dela durante todo o dia, fazendo trabalhar o dia inteiro o mesmo operário. Que valor criado pela utilização dessa força de trabalho, durante um dia, seja duas vezes tão grande quanto o valor diário dessa força, é uma grande sorte para o comprador; mas não é, de forma alguma, de acordo com as leis que regem a troca de mercadorias, uma injustiça em relação ao vendedor. Assim, o trabalho custa ao possuidor de dinheiro, segundo a nossa hipótese, diariamente, o produto em valor de seis horas de trabalho. Diferença em proveito do possuidor de dinheiro; seis horas de sobre-trabalho não pago, no qual se acha incorporado o trabalho de seis horas. Realizou-se o milagre, a mais-valia foi produzida, o dinheiro transformou-se em capital.

Demonstrando, assim, como nasce a mais-valia e a única maneira pela qual a mais-valia pode nascer, sob o império das leis que regem a troca das mercadorias, Marx pôs a nu o mecanismo do atual regime capitalista de produção e do regime de apropriação fundado sobre ele, desvendando o núcleo central em torno do qual gira toda a ordem social atual.

Essa gênese do capital tem, entretanto, uma condição prévia essencial: “A transformação do dinheiro em capital exige que o possuidor de dinheiro encontre no mercado o “trabalhador livre”, e livre sob um duplo sentido. É preciso, primeiramente, que o trabalhador possa dispor, como pessoa livre, de sua força de trabalho, como de uma mercadoria qualquer; é preciso, em seguida, que não tenha outra mercadoria a vender e que esteja livre e desembaraçado de todas as coisas necessárias para realizar, por conta própria, a sua força de trabalho”. (O Capital, página 192). Mas essa relação entre possuidores de dinheiro e de mercadorias, homens que nada possuem senão sua própria força de trabalho, por outro lado, não é uma relação dependente da natureza, nem muito menos um fato comum a todos os períodos da História: “é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto... do desaparecimento de toda uma série de formas antigas de produção social”. Com efeito, esse trabalho livre aparece na história, pela primeira vez, em massa, no fim do século XV e começo do XVI, em seguida à decomposição do regime feudal de produção. Ora, por isso mesmo e pela criação, que data da mesma época, do comércio mundial e do mercado mundial, são lançadas as bases sobre as quais a massa da riqueza mobiliária existente vai-se convertendo progressivamente em capital e o modo capitalista de produção vai-se inclinando inteiramente para a criação de mais-valia, vai se transformando, por força das circunstâncias, no sistema predominante e exclusivo.

Até aqui, temos acompanhado as “concepções exóticas” de Marx, esses “produtos bastardos da fantasia histórica e lógica”, em que “a faculdade de discernimento da inteligência com tudo o que significa probidade no uso dos conceitos”. Oponhamos, agora, a essas “improvisações” as “profundas verdades lógicas” e o “caráter científico definitivo e rigoroso no sentido das disciplinas exatas”, tais como nos oferece o Senhor Dühring.

Já vimos que Marx não tem do capital “a idéia comumente admitida em economia política, segundo a qual é um conjunto de meios de produção que são, ao mesmo tempo, produtos; em vez disso, ele diz que uma soma de valores não se transforma em capital senão quando se valoriza, isto é, quando cria mais-valia. E que diz o Sr. Dühring? “O capital é a base dos meios econômicos que permitem a continuidade da produção e a obtenção geral de lucros sobre os resultados da força de trabalho geral”. Por mais oracular e ofuscante que seja o seu modo de expressar-se, é evidente que, segundo a própria declaração do Senhor Dühring, essa “base de meios econômicos”, embora impulsione a produção até a eternidade, não se converterá em capital enquanto não proporcionar “lucros sobre o resultado da força geral de trabalho”, isto é, mais-valia ou, pelo menos, sobre-produto. Assim, o pecado que o Senhor Dühring acusa em Marx, de não fazer do capital a idéia comumente admitida em economia política, não somente ele próprio o comete, como perpetra, em relação a Marx, um plágio torpe, “mal dissimulado” por meio de frases pretensiosas.

À página 262, essa idéia recebe um novo desenvolvimento: “O capital no sentido social (e o capital num sentido não social é outra coisa que o Senhor Dühring terá ainda que descobrir) é especificamente distinto dos simples meios de produção; porque, enquanto estes últimos não têm senão um caráter técnico e são indispensáveis em todas as circunstâncias, o capital se distingue pela sua força social de apropriação e de participação. O capital social é, na verdade, em grande parte, apenas o meio técnico de produção em sua função social, mas é precisamente essa função que... deve desaparecer”. Se nos lembrarmos que foi Marx, precisamente, quem primeiro salientou a “função social” graças à qual só uma soma de valor se torna capital, fatalmente, “todo observador atento terá que compreender logo que a definição marxista de capital só pode estabelecer confusão — não como pensa o Senhor Dühring, na rigorosa teoria econômica, mas única e exclusivamente na cabeça do Sr. Dühring, que, na História crítica, Se esquece da atração que exercia sobre ele, em larga escala; no Curso, a referida idéia de capital.

Entretanto, o Senhor Dühring não se contenta de tomar emprestada a Marx. embora sob uma forma “apurada”, sua definição do capital e é obrigado a continuar também no “jogo de metamorfoses dos conceitos e da história”, e isso apesar dele mesmo compreender que daí não podem sair senão “imaginações exóticas”, “improvisação”, “fragilidade dos fundamentos” etc. Donde vem essa “função social” do capital que lhe permite apropriar-se dos frutos de trabalho alheio e que, por si só, o distingue do simples meio de produção? “Ela não assenta — diz o Sr. Dühring — na natureza dos meios de produção e em seu indispensável caráter técnico”; ela, portanto, nasceu da História; e o Sr. Dühring limita-se a repetir, à página 252, o que nós o ouvimos dizer dez vezes: explica a origem do capital pela famosa aventura dos dois homens, dos quais um, no começo da história, transforma os seus meios de produção em capital pelo simples fato de submeter o outro ao seu poder. Mas, não contente em assinalar uma origem histórica à função social em virtude da qual uma soma de valor se torna capital, o Senhor Dühring profetiza-lhe também um fim histórico: “É precisamente ela que deve desaparecer”. Um fenômeno nascido historicamente, e que historicamente desaparece, chama-se, na linguagem comum, “uma fase histórica”. O capital é, pois, uma fase histórica, não somente em Marx como também no Senhor Dühring. Somos, assim, forçados a concluir que estamos entre jesuítas: quando dois homens fazem a mesma coisa, não é a mesma coisa. Quando Marx diz que o capital é uma fase histórica, essa afirmação é resultado de “uma imaginação exótica, produto bastardo da fantasia histórica e lógica em que a faculdade de discernimento desaparece com tudo o que significa probidade no emprego dos conceitos”. Quando o Sr. Dühring apresenta igualmente o capital como uma fase histórica, isso é uma prova de “penetração na análise econômica, do caráter científico mais definitivo e mais rigoroso, no sentido das disciplinas exatas”.

Em que se distingue, portanto, a idéia que o Sr. Dühring faz do capital da idéia de Marx? “O capital — diz Marx — não inventou o sobre-trabalho. Onde quer que uma parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o operário, seja ele livre ou escravo, é obrigado a acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria conservação um tempo de trabalho suplementar para produzir os meios de subsistência de que tem necessidade o proprietário dos meios de produção”. (O Capital, livro I, cap. VIII). “O sobre-trabalho, o trabalho excedente ao tempo necessário à manutenção do trabalhador”, e a apropriação do produto desse sobre-trabalho por outrem, a exploração do trabalho, são, pois, comuns a todas as formas de sociedade até aqui existentes, enquanto nelas reinarem os antagonismos de classes. Mas é somente quando o produto desse sobre-trabalho se reveste da forma de mais-valia, quando o proprietário dos meios de produção encontra diante de si, como objeto de exploração, o trabalhador livre — livre de entraves sociais e livre de bens próprios — e o explora tendo em vista a produção de mercadorias, é somente, então, segundo Marx, que os meios de produção se revestem do caráter específico de capital. E isso só se produziu em grande escala depois do fim do século XV e começo do século XVI.

Para o Senhor Dühring, ao contrário, “toda soma de meios de produção é capital “que constitui um direito à participação nos frutos da força de trabalho” e que, por conseguinte, tem como resultante o sobre-trabalho qualquer que seja a sua forma.

Noutros termos, o Senhor Dühring apropria-se do conceito de sobre-trabalho descoberto por Marx para fulminar a mais-valia, igualmente descoberta por Marx, e que, por enquanto, não lhe convém. Segundo o Senhor Dühring, não só a riqueza mobiliária e imobiliária dos cidadãos atenienses e corintios, que utilizavam o trabalho escravo, mas também a dos grandes proprietários territoriais romanos da época imperial, e, do mesmo modo, dos barões feudais da Idade Média, por pouco que servissem, de qualquer maneira, à produção, constituem, todas, modalidades, sem exceção, de capital.

O próprio Senhor Dühring faz, portanto, do capital “não a idéia comumente admitida de que é um conjunto de meios de produção, que são, ao mesmo tempo, produtos, mas uma idéia inteiramente oposta, que abrange inclusive os meios de produção não produzidos: a terra e seus recursos naturais. Mas, de resto, essa idéia de que o capital é simplesmente “um conjunto de meios de produção, que são, ao mesmo tempo, produtos”, não é “comumente admitida” senão na economia vulgar. Fora dessa economia vulgar tão cara ao Senhor Dühring, o meio de produção, produto ele próprio, ou, de maneira geral, uma soma qualquer de valores, só se torna capital quando produz um lucro ou juros, isto é, quando rende sobre-produto do trabalho não retribuído, sob a forma de mais-valia, apropriando-se, além disso, sob qualquer dessas duas formas ou variantes especificas, do mais-valor. Para nós, é-nos absolutamente indiferente que todos os economistas burgueses se deixem dominar pela idéia de que a virtude de produzir juros ou lucros é inerente a qualquer soma de valores invertidos, sob condições normais, na produção ou na troca de mercadorias. Capital e lucro ou capital e juros são, na economia clássica, inseparáveis, estão de tal maneira entrelaçados entre si como a causa e o efeito, o pai e o filho, o ontem e o hoje. Mas a palavra, capital, na sua significação econômica moderna, só aparece na época em que surge o próprio fenômeno que o caracteriza, em que a riqueza mobiliária se reveste cada vez mais da função de capital, isto é, explora o sobre-trabalho de operários livres, com o fim de produzir mercadorias; e esse fenômeno começa a tomar forma, pela primeira vez, na mais antiga nação capitalista que se apresenta na história: a Itália dos séculos XV e XVI. E quando em primeiro lugar Marx analisou, até às suas raízes, o regime de apropriação característico do capital moderno, quando Marx pôs o conceito de capital de acordo com os fatos históricos de que se havia afastado e aos quais devia a existência; quando Marx libertou, assim, esse conceito econômico das idéias obscuras e flutuantes que lhe eram inerentes, mesmo na economia burguesa clássica, e nos sistemas socialistas anteriores; foi precisamente Marx quem procedeu com aquele “caráter científico mais definitivo e mais rigoroso” que o Senhor Dühring tem sempre à boca e que tanto lamentamos não encontrar nele.

De fato, a coisa passa-se de modo inteiramente diverso com o Senhor Dühring. Não contente com o ter qualificado depreciativamente a concepção do capital, como fase histórica, considerando-o um “produto bastardo da fantasia histórica e lógica”, e tê-lo apresentado, logo depois, como uma fase histórica, proclama como capital “todos” os meios de poder econômico, “todos” os meios de produção que “servem para se apropriar de uma parte dos frutos da força de trabalho geral”, compreendendo-se nisso, por conseqüência, a propriedade territorial em todas as sociedades de classe; o que não o impede, de forma alguma, de fazer, em seguida, entre a propriedade territorial e a renda territorial a distinção tradicional entre capital e lucro, para qualificar de capital somente os meios de produção que produzem um lucro ou juros, como se pode ver nas páginas 118 e seguintes do seu Curso. O Senhor Dühring poderia também, sob a denominação de locomotivas, incluir cavalos, bois, asnos e cães, porque os mesmos podem pôr em movimento um veículo, censurando os engenheiros de hoje, que restringem o nome de locomotivas aos modernos transportes a vapor, fazendo disso tudo uma fase histórica e entregando-se a imaginações exóticas, produtos bastardos da fantasia histórica e lógica etc. E terminaria por declarar que cavalos, bois, asnos e cães são excluídos da denominação de locomotivas, que não se aplica senão aos veículos a vapor.

Tudo isso nos obriga a dizer novamente: são exatamente o conceito e a definição de capital, apresentados pelo Sr. Dühring, que carecem de toda “a nitidez de análise da Economia política” e que perderam a “capacidade de distinção e toda a probidade no uso dos conceitos”; as concepções áridas, os confusionismos, as superficialidades que pretendem impor-se como verdades lógicas e profundas, bem como a fragilidade dos fundamentos florescem esplendorosamente nas páginas do próprio Senhor Dühring.

Mas tudo isso não significa grande coisa. Ao Sr. Dühring caberá sempre a glória de haver descoberto o eixo em torno ao qual se moveram, até aqui, toda a economia, toda a política, todo o direito, numa palavra — toda a história. Eis aqui a pedra angular irremovível.

“A violência e o trabalho são os dois fatores capitais que entram em jogo na constituição das relações sociais”.

Nessa única proposição está encerrada a constituição inteira do mundo econômico até aos nossos dias. Ela é extremamente breve e está assim concebida:

Artigo lo.: O trabalho produz.

Artigo 2o.: A violência distribui.

E é a isso que se reduz, “falando humanamente e em alemão”, toda a ciência econômica do Senhor Dühring.


Capítulo VIII
CAPITAL E MAIS-VALIA

(Conclusão)

 

“Segundo o ponto de vista do Senhor Marx, o salário representa apenas a remuneração do tempo de trabalho que o operário emprega realmente para tornar possível a sua existência. Basta, para isso, um pequeno número de horas: todo o resto da jornada de trabalho, quase sempre muito prolongada, fornece um excedente em que está contido o que o nosso autor chama “mais-valia” ou, para falar em linguagem comum, o lucro do capital. Abstração feita do tempo de trabalho que, numa fase qualquer de produção, já está contido nos instrumentos de trabalho e nas matérias-primas, este excedente da jornada de trabalho é a parte do empreiteiro capitalista. A prolongação da jornada de trabalho é, em conseqüência, pura exploração em proveito do capitalista... ”

Assim, segundo o Senhor Dühring, a mais-valia não passa do que comumente se chama rendimento ou lucro do capital. Vejamos o que diz Marx. À página 195 de O Capital, mais-valia é explicado pelas palavras postas entre parênteses em seguida a estas: “juros, lucro, renda”. À página 210, Marx dá um exemplo em que aparece uma soma de mais-valia de 71 shillings sob as diversas formas em que ela é repartida: dízimo, taxas locais e impostos, 21 shillings; renda territorial, 28 shillings; lucros e juros do fazendeiro, 22 shillings; mais-valia total: 71 shillings. À página 52, Marx declara que uma das maiores lacunas que se notam em Ricardo é “nunca ter estudado a mais-valia como tal, isto é, independentemente de suas formas particulares, tais como o lucro, a renda territorial etc.”; é de ter, por essa razão, confundido as leis da taxa de lucro. “Demonstrarei mais adiante, — diz Marx — no livro II da presente obra, que, segundo as circunstâncias, a mesma taxa de mais-valia pode exprimir-se nas mais diversas taxas de lucro e que taxas diferentes de mais-valia podem, inversamente, exprimir-se na mesma taxa de lucro”. À página 587, lê-se ainda: “O capitalista que produz a mais-valia, isto é, que subtrai diretamente aos operários uma certa quantidade de trabalho não pago, que ele realiza em mercadorias, é o primeiro a apropriar-se dessa mais-valia, mas não é o seu último proprietário.

“Ele é obrigado a reparti-la, em seguida, com capitalistas que exercem outras funções no conjunto da produção social, tais como o proprietário territorial etc. A mais-valia divide-se, portanto, em várias partes, que se destinam a diversas categorias de pessoas e se revestem, cada uma, de uma forma especial, independentes umas das outras, tais como lucro, juros, ganho comercial, renda territorial etc. No livro III, trataremos dessas formas modificadas da mais-valia”. E assim em muitas outras passagens.

Ninguém se exprimiria com maior clareza. Em todas as ocasiões, Marx aproveita todas as oportunidades para insistir que não se deve absolutamente confundir sua mais-valia com o lucro ou o ganho do capital; que este último, pelo contrário, é uma forma secundária e quase sempre uma simples fração da mais-valia. Quando o Sr. Dühring pretende, portanto, que a mais-valia de Marx é, para falar a linguagem comum, o lucro do capital”, que se pode concluir, em face disso, uma vez que todo o livro de Marx gira em torno da mais-valia? Só há duas hipóteses: ou ele não sabe o que diz e, nesse caso, é de uma impudência sem igual pretendendo fulminar uma obra cujo conteúdo essencial ignora; ou conhece esse conteúdo e comete voluntariamente uma falsificação.

Mais adiante, o Senhor Dühring escreve: “O ódio venenoso com que o Senhor Marx cultiva essa idéia de conceber a exploração é bastante compreensível. Mas, pode-se sentir uma cólera ainda mais violenta e reconhecer, mais plenamente ainda, o caráter de exploração essencial à forma econômica fundada sobre o trabalho assalariado, sem admitir a tendência teórica que se exprime na doutrina marxista da mais-valia”.

Segundo o Senhor Dühring, o sentido bem intencionado, mas teoricamente errado de Marx, desperta nele um ódio venenoso contra a exploração; sua paixão, moral em si, reveste, como conseqüência de sua falsa, “tendência teórica”, uma expressão imoral, manifestando-se em ódio ignóbil e torpemente venenoso, ao passo que a “ciência definitiva e rigorosa” do Senhor Dühring se exprime por uma paixão moral maravilhosamente nobre, por uma cólera moralmente superior em sua forma e, além disso, quantitativamente superior àquele ódio venenoso, por ser uma “cólera mais poderosa”. Mas deixemos o Senhor Dühring deleitar-se na sua própria contemplação e vejamos onde tem suas raízes verdadeiras essa cólera potente.

“Uma pergunta se nos depara — continua ele: — Como os patrões em concorrência conseguem valorizar constantemente o produto pleno do trabalho e, desse modo, o sobre-produto, elevando-o muito acima das despesas normais de fabricação, conforme indica a proporção a que já nos referimos entre o excesso de produção e as horas de trabalho? Não se achará resposta a essa pergunta na doutrina de Marx, pela simples razão de que nessa doutrina não há lugar para tal pergunta. O caráter de luxo que reveste a produção fundada sobre o trabalho assalariado não é sequer abordado seriamente e a organização social, com seu caráter vampiresco, não é, de maneira alguma, reconhecida como fundamento derradeiro da escravatura branca. Pelo contrário, é preciso, segundo Marx, que o elemento político e social seja sempre explicado pelo elemento econômico”.

Vimos, porém, pelas passagens acima citadas, que Marx não pretende absolutamente que o sobre-produto seja, em todas as circunstâncias, vendido, na média dos casos, ao seu pleno e justo valor pelo capitalista industrial, que dele se apropria em primeiro lugar, como supõe o Senhor Dühring. Marx diz expressamente que o lucro comercial também constitui uma parte da mais-valia, e em tais circunstâncias isto só é possível se o fabricante vender seu produto ao negociante, abaixo de seu valor, cedendo-lhe, assim, uma parte de seu espólio. Feita como aí está, a pergunta na verdade, não pode nem mesmo ser encontrada em Marx. Feita em termos racionais, ei-la: Como a mais-valia se transforma em suas formas e modalidades: lucro. juros, ganho do comerciante, renda territorial etc.? E esta questão Marx promete, sem dúvida, resolvê-la no livro II de O Capital. Mas se o Senhor Dühring não podia esperar pacientemente pelo aparecimento do segundo volume de O Capital, poderia ter examinado, com mais cuidado, o primeiro volume. Neste, poderia ver, afora as passagens já citadas, à página 323, por exemplo, que, segundo Marx, as leis imanentes da produção capitalista agem no movimento exterior dos capitais como as leis imperativas da concorrência, que é a forma sob a qual se revelam à consciência do capitalista individual como os seus motivos propulsores; que, por conseguinte, uma análise científica da concorrência não é possível senão quando se discerne a natureza íntima do capital, do mesmo modo que o movimento aparente dos corpos celestes só é perceptível aos que conhecem o seu movimento real, imperceptível aos sentidos. Sobre isto, Marx mostra, por exemplo, como uma lei determinada e concreta, a lei do valor, se manifesta num caso determinado no campo da concorrência e ali exerce sua força propulsora. Bastava isto para fazer compreender ao Senhor Dühring que a concorrência representa papel capital na repartição da mais-valia e com um pouco de reflexões, estas indicações dadas no primeiro volume seriam, com efeito, suficientes para fazer reconhecer, pelo menos em suas linhas gerais, o caminho que segue a mais-valia para transformar-se em suas diferentes formas ou modalidades.

Mas, para o Senhor Dühring, é justamente a concorrência o empecilho absoluto que se ergue ante a compreensão do problema. Ele não chega a perceber como patrões concorrentes podem constantemente elevar tão acima do custo natural de produção o produto integral do trabalho, nele incluído, portanto, o sobre-produto. Mais uma vez “tornamos a encontrar aqui o seu conhecido “rigor” de investigação que, na realidade, é simples negligência.

Para Marx, o sobre-produto, como tal, não entra absolutamente nos gastos da fabricação: é a parte do produto que não custa nada ao capitalista, Se os patrões concorrentes quisessem vender o sobre-produto ao preço de suas despesas naturais de fabricação, nada mais teriam a fazer senão dá-lo de presente. Mas não nos retardemos nestes “detalhes micrológicos”. Não estariam os patrões concorrentes valorizando diariamente o produto do trabalho acima do custo natural de produção? Segundo o Senhor Dühring, os gastos naturais de fabricação consistem “no dispêndio de trabalho ou de força e esta pode, em última análise, medir-se pelo dispêndio em alimentos”, uma vez que na sociedade atual eles consistem no dispêndio real de matérias-primas, instrumentos de trabalho e em salários realmente invertidos, pondo-se à parte a “tributação”, isto é. o lucro ou sobrecarga imposta ao produto tendo uma espada na mão. Ora, todos sabem que na sociedade em que vivemos os patrões concorrentes não vendem suas mercadorias de acordo com o valor das despesas naturais de fabricação: mas que, de fato, lhes acrescentam uma sobrecarga que é o lucro, e, com efeito, de ordinário o obtêm. A pergunta, com que o Sr. Dühring julgava de um sopro, jogar por terra todo o edifício da teoria de Marx, tal como fez Josué nos tempos bíblicos, com as muralhas de Jerico, essa pergunta pode ser feita também no que se refere à teoria econômica do Sr. Dühring. Vejamos a resposta que ele dá:

“A propriedade do capital — diz ele — nada significa praticamente e não pode ser realizada em valor se nela não estiver encerrada, ao mesmo tempo, o poder indireto sobre a matéria humana. O produto deste poder é o lucro do capital e a grandeza desse lucro dependerá, portanto, da extensão e da intensidade do exercício de poder... o lucro do capital é uma instituição política e social, cuja ação é mais poderosa que a da concorrência. Os patrões, nesse terreno, atuam como classe e cada um, em particular, mantém sua posição. A cada modalidade dominante de economia corresponde, necessariamente, uma taxa determinada de lucro do capital.”

Infelizmente continuamos a não saber como os patrões concorrentes conseguem vender constantemente o produto do trabalho por quantia superior aos gastos naturais de fabricação! Não é possível que o Senhor Dühring faça tão pouco caso do seu público a ponto de querer enganá-lo com a frase: o lucro do capital está acima da concorrência como, em seu tempo, o rei da Prússia, estava acima da lei. A manobra graças à qual o rei da Prússia se havia entronizado sobre a lei é bastante conhecida; a manobra, por meio da qual o lucro do capital consegue entronizar-se por cima da concorrência e ser mais forte do que ela, é justamente o que o Sr. Dühring devia fazer-nos conhecer e o que ele se recusou obstinadamente a explicar-nos.

Não é bastante dizer-se que os patrões nesse terreno, agem com a classe e que cada um deles sustenta a sua posição. Ele não quererá, portanto, fazer-nos crer, sob sua palavra, que basta que uma coletividade aja como classe para que cada indivíduo mantenha sua posição. Os membros das corporações da Idade Média, os nobres franceses, em 1789, agiram, como se sabe, resolutamente, como classe, mas, longe de manter sua posição, foram levados à morte, sem possibilidade de resistir.

Também o exército prussiano, em Jena, atuando como um conjunto longe de garantir as suas posições, teve de abandonar o campo e, embora parcialmente, teve também de capitular. Não nos poderemos contentar, igualmente, com a certeza de que em cada regime dominante de economia o lucro do capital é, até certo ponto, uma necessidade; o que justamente se procura esclarecer é a razão pela qual se verifica esse fenômeno. Não avançamos ainda nenhum passo quando o Senhor Dühring nos faz esta comunicação: “O império do capital surgiu relacionado ao domínio sobre a terra. Uma parte dos trabalhadores agrícolas (servos), emigrando para as cidades, transformaram-se em operários industriais e acabaram por converter-se em material fabril. Após a renda territorial, o lucro do capital constituiu-se como uma segunda forma da renda possessória”. Embora façamos abstração do que esta afirmação tem de historicamente inexato, ela não deixa de ser uma simples afirmação e contenta-se em assegurar, por várias vezes, o que justamente deve ser explicado e demonstrado. Não podemos, portanto, chegar senão a uma única conclusão: a de que o Senhor Dühring é incapaz de responder à sua própria pergunta: Como os comerciantes concorrentes conseguem vender constantemente o produto do trabalho por quantia superior às despesas naturais de fabricação? É incapaz, pois, de explicar a origem do lucro. Só lhe resta decretar, numa palavra, que o lucro do capital é o produto da “violência”, o que, aliás, se ajusta perfeitamente ao artigo 2 da Constituição Social de Dühring: “a violência distribui”. É muito bonito de dizer; mas então, “outra pergunta nos acode”: a violência distribui... o quê? É preciso que haja alguma coisa a distribuir, sem o que, até a mais onipotente das violências, com a maior boa vontade do mundo, nada poderia distribuir.

O lucro que os patrões concorrentes embolsam é algo bastante sólido e palpável. A violência pode “arrebatá-lo”, mas não “produzi-lo”. E o Senhor Dühring, que se recusa obstinadamente a explicar-nos “como” a violência arrebata o lucro do capitalista, responde com um silêncio de túmulo quando se lhe pergunta: Donde ela o tira? A quem nada possui, o rei declara livre de tributos. Onde não há nada são inúteis todas as violências. Do nada nada vem e muito menos o lucro. Se a propriedade do capital não significa praticamente nada e não pode transformar-se em valor, caso não se verifique, ao mesmo tempo, um constrangimento exercido sobre a matéria humana, uma primeira pergunta nos acode: como a riqueza do capital conseguiu adquirir esse poder de constrangimento? (questão que não resolvem de modo algum as poucas afirmações históricas citadas linhas atrás); e logo uma segunda: Como se transformou esse poder em exploração do capital, isto é, em lucro? E uma terceira: de onde sai esse lucro?

Podemos examinar a doutrina econômica de Dühring sob o aspecto que quisermos e não avançaremos sequer um passo. Para o Sr. Dühring todos os fenômenos condenáveis, o lucro, a renda territorial, os salários de fome, a servidão dos trabalhadores, se reduzem a uma expressão apenas: a violência, sempre a violência. E a “poderosa cólera” do Sr. Dühring, como nada consegue explicar, volta-se contra a violência. Vimos, em primeiro lugar, que invocar a violência é uma escapatória torpe que nos faz passar do terreno econômico para o terreno político e é incapaz de explicar um único fato econômico; em segundo lugar, ela não explica a origem da própria violência e isto muito prudentemente, pois, do contrário, chegaria a concluir forçosamente que todos os privilégios sociais e toda violência política têm sua fonte nas condições econômicas, no regime de produção e de troca encontrado em cada sociedade.

Experimentemos, no entanto, arrancar ainda alguns esclarecimentos sobre o lucro, esse “profundo e inexorável fundamentador” da economia, Talvez o consigamos nas suas explicações sobre o salário, à página 158:

“O salário do trabalho é o preço da manutenção da força de trabalho e, primeiramente, aparece como base da renda territorial e do lucro do capital. Para compreendermos claramente as condições que imperam nesta matéria, examinemos historicamente a renda territorial e o lucro do capital sem salário, isto é, as condições de trabalho nos regimes de escravidão, ou de vassalagem... O fato de que o escravo, o servo ou o trabalhador assalariado tenham de ser alimentados, concorre apenas para que se estabeleça uma distinção quanto ao modo de determinar o custo de produção. De qualquer forma, porém, o produto líquido obtido pela exploração da força de trabalho constitui a renda do patrão... Vê-se, pois, que... a oposição essencial em virtude da qual se tem, de um lado, uma forma qualquer da “renda possessória”, e de outro, o trabalho assalariado sem direito de posse, não pode ser focalizada exclusivamente num destes termos, mas nos dois ao mesmo tempo”. Mas a renda possessória não é, como verificamos à página 188, senão uma expressão que designa, ao mesmo tempo, renda territorial e lucro do capital. Lê-se ainda à página 174: “O que caracteriza o lucro do capital é a apropriação duma — parte essencial do produto da força de trabalho. Sem a correlação do trabalho, sujeito, direta ou indiretamente, a uma ou outra forma, o lucro do capital é inconcebível”. E à pág. 174: “O salário nunca é mais do que o pagamento que deve, de um modo geral, assegurar ao trabalhador a sua manutenção e a possibilidade de perpetuar a sua espécie”. E, por fim, à página 195: “O que é destinado à renda possessória está necessariamente perdido para o salário e, inversamente, a parte do rendimento geral (!), que se destina ao trabalho, está fatalmente perdida para a renda possessória”.

O Sr. Dühring é uma verdadeira caixa de surpresas. Na teoria do valor e nos capítulos que se seguem até, e inclusive, a teoria da concorrência, ou seja da página 1 à página 155, os preços das mercadorias ou valores se dividiam em: 1o., custo natural ou valor da produção (a saber, despesas com matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário); 2o., sobrecarga ou valor de distribuição, tributo que a classe monopolista impõe de espada na mão. Essa sobrecarga, conforme já vimos, em nada pode alterar a distribuição da riqueza, porquanto dá com uma das mãos o que toma com a outra e que, além disso, pelo que o Sr. Dühring nos informa da sua origem e conteúdo, nasce do nada e, portanto, consiste também de nada.

Nos dois capítulos seguintes, que tratam das espécies de renda, ou seja da página 158 à página 217, não se cuida mais de tal sobrecarga. Em vez disso, o valor de todo produto do trabalho, de toda mercadoria, divide-se, agora, em dois elementos: 1o., os gatos de produção, nos quais também esta contido o salário pago; e 2o., o “produto líquido obtido pelo desgaste da força de trabalho”, que constitui a renda do patrão. Esse produto líquido tem uma fisionomia bastante conhecida que nenhuma tatuagem nem nenhuma arte de disfarce podem esconder. “Para compreender com perfeita clareza as condições que reinam nessa matéria”, compare o leitor os trechos do Senhor Dühring que acabamos de citar, com os trechos anteriormente citados de Marx a respeito do sobre-trabalho, do sobre-produto e da mais-valia, e logo descobrirá que, à sua maneira, o Senhor Dühring, copia diretamente, aqui, O Capital.

É o sobre-trabalho, sob uma forma qualquer, seja a da escravidão, da servidão ou do trabalho assalariado, que o Senhor Dühring reconhece ter sido a fonte das rendas de todas as classes dominantes até o dia de hoje: esse trecho é tomado à passagem de O Capital (pág. 277) por nós citada já várias vezes: “O capitalista não inventou a mais-valia” etc. O “produto líquido” que constitui a “renda do patrão”, outra coisa não é senão o excedente do produto do trabalho sobre o salário que, apesar de seu disfarce em “pagamento”, deve, de um modo geral, segundo ainda o Senhor Dühring, assegurar ao trabalhador o seu sustento e a possibilidade de perpetuar a espécie. Como poderia operar-se a “apropriação da parte essencial do produto da força de trabalho” a não ser porque, como em Marx, o capitalista subtrai ao trabalhador mais trabalho do que lhe é necessário para reproduzir os meios de existência consumidos por este último, isto é, porque o capitalista força o operário a trabalhar mais tempo do que lhe é necessário para substituir o valor do salário pago? Como seria possível a não ser por meio do prolongamento da jornada de trabalho além do tempo necessário para reproduzir os meios de subsistência do trabalhador? É a isso que Marx denomina de sobre-trabalho e é isso, igualmente, que se oculta no Senhor Dühring sob a expressão de “desgaste da força de trabalho”. O “produto líquido”, que retorna ao patrão, nada mais é do que o sobre-produto e a mais-valia de Marx. A não ser pela inexatidão de sua formulação em que a “renda possessória” de Dühring difere da mais-valia marxista? De resto, o Sr. Dühring tomou a expressão “renda possessória” (Besitzrent) a Rodbertus, que já reunia a renda territorial e a renda do capital ou lucro do capital sob a expressão comum de renda, de maneira que o Senhor Dühring não teve senão que acrescentar a palavra “possessória”(8). E, para que nenhuma duvida subsista sobre o plágio, o Sr. Dühring resume a seu modo as leis relativas às variações de grandeza do preço da força de trabalho e da mais-valia, expostas por Marx no capítulo XV de O Capital, dizendo que o que cabe à renda possessória está perdido para o salário e vice-versa, reduzindo, pois, as leis concretas e tão substanciais de Marx a uma tautologia vazia, porquanto não é preciso dizer que, de uma quantidade de água dividida em duas partes, uma não pode crescer sem que a outra diminua. O Senhor Dühring chegou, assim, a apropriar-se das idéias de Marx de tal maneira que faz desaparecer inteiramente o “caráter científico rigoroso, no sentido das disciplinas exatas”, que se encontra, certamente, na exposição de Marx.

Não podemos, portanto, deixar de admitir que a extraordinária algazarra feita contra O Capital, na História Crítica, e a poeira que ela faz redemoinhar em torno da famosa questão surgida a propósito da mais-valia, e que teria sido melhor o Senhor Dühring não levantar, uma vez que ele próprio não a pode resolver; não podemos deixar de admitir — dizíamos — que tudo isso não passa de um estratagema de guerra, de uma hábil manobra para esconder o plágio grosseiro de Marx cometido pelo Senhor Dühring no Curso de Economia. O Senhor Dühring tinha, com efeito, todas as razões do mundo para prevenir os seus leitores contra o estudo dessa “barafunda que se chama O Capital, do Senhor Marx”, contra os “produtos bastardos da fantasia histórica e lógica, as idéias confusas, as manias hegelianas etc.”. A Vênus da qual esse fiel mentor procura desviar a juventude alemã, ele a tinha ido buscar nas terras de Marx e a tinha posto, em surdina, em lugar seguro, para seu próprio prazer. Cumprimentemo-lo por esse produto líquido obtido, utilizando a força de trabalho de Marx, e pela luz particular que a sua anexação da mais-valia marxista, sob o nome de renda possessória, lança sobre os motivos da sua falsa e obstinada afirmação, aliás repetida em duas edições, de que Marx entendia por mais-valia somente o lucro ou o ganho do capital.

E assim somos levados a elaborar o quadro dos resultados a que chega o Senhor Dühring, da maneira seguinte, com os termos do próprio Senhor Dühring, segundo o ponto de vista do Senhor Dühring: o salário representa apenas a remuneração do tempo de trabalho durante o qual o operário trabalha realmente para tornar possível a sua própria existência. Basta, para isso, um pequeno número de horas; todo o resto da jornada de trabalho, quase sempre muito prolongada, fornece um excedente em que está contida o que o nosso autor chama “renda possessória... ” Abstração feita do tempo de trabalho já contido, numa fase qualquer da produção, nos instrumentos de trabalho e nas matérias primas relativas, este excedente da jornada de trabalho é, por conseguinte, um puro ganho do capitalista arrancado à exploração. O ódio venenoso com que o Senhor Dühring “cultiva esta idéia a respeito do fenômeno da exploração é bastante compreensível”... Mas o que não se compreende nitidamente são os meios pelos quais ele pretende alcançar a sua “cólera poderosa”.


Capítulo IX
LEIS NATURAIS DA ECONOMIA. A RENDA TERRITORIAL

 

Apesar de nossa boa vontade, até aqui não havíamos logrado descobrir como o Senhor Dühring consegue apresentar-se, no domínio da economia política, “gabando-se de um sistema novo que não só é suficiente para a época em que vivemos, como também é decisivo para esta época.

Mas o que não logramos ver, a propósito da teoria da violência, nem a propósito do valor e do capital, talvez se torne claro como o dia, aos nossos olhos, quando consideramos as “leis naturais da economia”, expostas pelo Senhor Dühring. Com efeito, diz ele com sua originalidade e sua precisão habituais, “o êxito da verdadeira ciência consiste em ultrapassar as simples descrições e classificações da matéria, por assim dizer imóvel, para chegar às idéias vivas que explicam a gênese das coisas, O conhecimento das leis é, por essa razão, o mais perfeito de todos os conhecimentos, porque nos mostra como um fenômeno determina outro”.

Para começar, a primeira das leis naturais de toda a economia foi especialmente descoberta pelo Senhor Dühring: "Coisa notável: Adam Smith não só não salientou o fator mais importante de toda a evolução econômica, como se esqueceu totalmente de formulá-la em particular e, dessa maneira, sem o querer, rebaixou a um papel secundário a força que imprimira o seu cunho à evolução da moderna Europa. Essa “lei fundamental, que é preciso formular com a máxima precisão, é a do aparecimento do equipamento técnico, espécie de armadura, de que se reveste a força econômica natural do homem”. Estas “leis fundamentais”, descobertas pelo Senhor Dühring, estão assim formuladas:

Lei no. 1: “A produtividade dos meios econômicos, das riquezas naturais e da força do homem, é intensificada pelas “invenções” e “descobrimentos”.

Espantoso! O Senhor Dühring trata-nos, mais ou menos como, em Moliere, aquele pândego trata o fidalgo, ao dizer-lhe que ele fez prosa toda a vida sem o saber. Que as invenções e os descobrimentos aumentem em alguns casos a força, produtiva do trabalho (em alguns casos, mas de modo algum num grande número, como o provam os arquivos poeirentos das negociações das patentes de invenção do mundo inteiro), há muito tempo que o sabíamos. Mas, que essa velha banalidade seja a lei fundamental de toda a economia, eis uma revelação que ficamos devendo ao Senhor Dühring. Se a “vitória da verdadeira ciência”, em economia política como em filosofia, consiste somente em dar ao primeiro lugar-comum que nos ocorre um nome retumbante, e proclamá-lo como uma lei natural, ou seja, como uma lei fundamental, então, realmente, “fundar a ciência sobre uma base aprofundada”, revolucionar a ciência, torna-se possível a todo mundo, inclusive à redação da Volkszeitung, de Berlim. Seriamos, então, constrangidos a aplicar “com todo o rigor”, ao próprio Senhor Dühring, o julgamento que ele fez de Platão. “Mas se isso é ciência econômica, o nosso autor partilha-a com alguém que jamais soube exprimir uma idéia”, ou simplesmente dizer uma palavra, “sobre a própria evidência dos fatos”, Quando dizemos, por exemplo, que os animais comem, com isso enunciamos tranqüilamente, com toda a inocência, uma grande coisa. Para revolucionarmos toda a zoologia, não teríamos senão que dizer: a lei fundamental de toda vida animal é comer.

Lei no. 2: “Divisão do trabalho. A separação dos ramos profissionais e a especialização das atividades aumentam a produtividade do trabalho”. No que contém de exato, essa tese é um lugar-comum desde Adam Smith. Até que ponto é exata, ver-se-á na terceira parte desta obra”.

Lei no. 3: “Distância e transporte são as causas principais que entravam ou favorecem a cooperação das forças produtivas”.

Lei no. 4: “O Estado industrial tem uma capacidade de produção in­com­pa­ra­vel­men­te maior que o Estado agrícola”.

Lei no. 5: “Em economia política, nada acontece sem que corresponda a um interesse material.”

Tais são as “leis naturais” sobre as quais o Senhor Dühring funda a sua economia. Ele continua fiel ao método que já expusemos a propósito de sua filosofia. Alguns truismos da mais desoladora banalidade constituem as proposições fundamentais e também as leis naturais da sua economia.

Sob o pretexto de desenvolver o conteúdo dessas leis, absolutamente sem conteúdo, a ocasião é aproveitada para uma longa digressão econômica sobre diferentes temas, cujos “nomes” se encontram nessas pretensas leis: sobre as invenções, a divisão do trabalho, os meios de transportes, a população, os interesses, a concorrência etc., digressão cuja vulgaridade não tem para salientá-la senão um grandiloqüente estilo oracular e, aqui e ali, uma deturpação proposital ou argúcia pretensiosa sobre todas as espécies de sutilezas casuísticas. Após o que, finalmente, chegamos à renda territorial, ao lucro do capital e ao salário e, como não tratamos precedentemente senão destas duas últimas formas de apropriação, terminaremos por um estudo rápido das idéias do Senhor Dühring sobre a renda territorial.

Passamos por alto todos os pontos em que o Sr. Dühring se limita a repetir Carey, seu predecessor; não trataremos aqui de refutar a Carey, nem de defendê-lo contra suas tergiversações e fatuidades acrescentadas à concepção ricardiana da renda do solo.

Interessa-nos apenas o caso do Sr. Dühring. E ele define a renda do solo como “a renda que o proprietário recebe do solo, em sua condição de proprietário”.

A idéia econômica de renda territorial, que o Sr. Dühring deve explicar, é singelamente traduzida em linguagem jurídica, de maneira que não avançamos um palmo. Nosso construtor de alicerces profundos é, portanto, obrigado a entregar-se, por bem ou por mal, a excessos de explicações. Compara o arrendamento da terra ao empréstimo de um capital, mas logo descobre que essa comparação soa como todas as outras. Porque, diz ele, “se quiséssemos prosseguir na analogia, seria mister que o lucro, que fica para o arrendatário, após ter pago a renda territorial, correspondesse ao restante do lucro do capital que toca ao empreiteiro que explora o capital, dedução feita dos juros.

Mas não estamos acostumados a considerar os ganhos do fazendeiro como a renda principal e a renda territorial como um resto... A prova de que se faz a esse respeito uma idéia diferente é o “fato” de que, na teoria da renda territorial, não se distingue especialmente o caso em que um homem explora, ele próprio, a sua terra e não se dá muita importância à diferença quantitativa que existe entre uma renda percebida sob a forma de arrendamento e uma renda produzida por aquele mesmo que a aufere. “Pelo menos, não se é induzido” a conceber a renda de um proprietário que explora o seu pedaço de terra como dividida em dois elementos, representando um, por assim dizer, os direitos dos bens rurais e o outro o lucro suplementar do empreiteiro. Abstração feita do capital próprio que o colono emprega, o seu lucro parece, no maior número de casos, ser computado como uma espécie de salário. Entretanto, seria arriscado deixar de dizer alguma coisa sobre isso, uma vez que essa questão jamais foi encarada com tal precisão. Onde existam explorações consideráveis, ver-se-á facilmente que não se poderia considerar o ganho especifico do arrendatário como uma espécie de salário de seu trabalho: esse lucro, com efeito, surge em oposição à força de trabalho agrícola, cuja exploração torna, por si mesma, possível essa espécie de renda. É evidentemente “uma fração de renda” que fica nas mãos do arrendatário e torna menor a “renda integral” que o proprietário receberia caso explorasse por conta própria a terra.

A teoria da renda territorial é uma parte da economia política especificamente inglesa e devia sê-lo, pois é somente na Inglaterra que existe um modo de produção em que a renda se separa efetivamente do lucro e dos juros. Na Inglaterra, como se sabe, dominam o latifúndio e a grande agricultura. Os proprietários territoriais arrendam suas terras, sob a forma, quase sempre, de grandes domínios, a arrendatários providos de capital suficiente para explorá-las. Estes arrendatários não trabalham como os camponeses alemães, não passando de autênticos empreiteiros capitalistas, pois empregam o trabalho de assalariados. Temos aí, portanto, três classes da sociedade burguesa e a renda própria a cada uma delas; o latifundiário, que percebe a renda territorial; o capitalista, que embolsa o lucro; o trabalhador, que recebe o salário. Nunca um economista inglês se lembrou de fazer do ganho do arrendatário, como “parece” ao Senhor Dühring, uma espécie de salário. Esse economista não acharia “arriscado” afirmar que o lucro do arrendatário é, de modo incontestável, evidente e tangível, o lucro do capital. É verdadeiramente ridículo, com efeito, dizer que nunca se levantou com tanta precisão a questão de saber o que é, na verdade, o lucro do arrendatário. Na Inglaterra, não se tem mesmo necessidade de fazer semelhante pergunta, cuja resposta está dada há muito tempo pelos fatos e nenhuma dúvida houve, até hoje, nesse sentido, desde Adam Smith.

O caso em que o proprietário explora, ele mesmo, as suas terras, segundo considera o Sr. Dühring, ou melhor, como diríamos nós, a exploração por parte dos administradores por conta do proprietário territorial, como acontece, às vezes, na Alemanha, em nada altera a questão. Quando o latifundiário fornece o capital e faz explorar a terra por sua própria conta, ele embolsa, além da renda territorial, o lucro do capital, como é inevitável no atual regime de produção. E quando o Senhor Dühring pretende que não se julgou necessário, até agora, considerar dividida em seus elementos a renda (seria mister dizer: o rendimento) de um proprietário que explora as próprias terras, é decididamente uma inverdade, que, ainda uma vez, só lhe prova a ignorância. Tomemos um exemplo:

“O rendimento, que se tira do trabalho, chama-se salário; o que um homem tira do emprego de capital chama-se lucro...; o rendimento que provém exclusivamente do solo se chama renda e pertence ao proprietário territorial. Quando essas diversas espécies de rendimento tocam a pessoas diferentes, é fácil distingui-las; mas, quando cabem a uma só e mesma pessoa, elas quase sempre se confundem, pelo menos na linguagem corrente. Um latifundiário que “também explora” parte de suas próprias terras deveria receber, uma vez pagos os gastos de exploração, a renda do proprietário territorial e o lucro do arrendatário, Entretanto, ele chamará de boa vontade, pelo menos na linguagem corrente, todo o seu ganho, de lucro, confundindo assim renda com lucro. A maioria dos lavradores da América do Norte e das Índias Ocidentais está nesse caso: a maior parte cultiva suas propriedades e raramente ouvimos falar da renda de uma lavoura, e, sim, do lucro que ela dá... Um hortelão, que cultiva com suas mãos sua própria horta, é proprietário territorial, arrendatário e operário assalariado ao mesmo tempo: o produto deveria, portanto, pagar-lhe a renda do primeiro, o lucro do segundo e o salário do terceiro; entretanto, tudo passa ordinariamente como sendo produto de seu trabalho: desse modo, a renda e o lucro se confundem com o salário”.

Esse trecho encontra-se no capítulo VI do primeiro livro de Adam Smith. O caso em que um proprietário explora, ele próprio, os seus bens, já foi, portanto, estudado há cem anos, e as dúvidas e incertezas que tanto amarguraram ao Senhor Dühring provêm exclusivamente de sua própria ignorância.

Por fim, ele procura livrar-se do embaraço com um golpe audacioso: o ganho do fazendeiro funda-se sobre a exploração “da força de trabalho agrícola”: é, pois, evidentemente, “uma fração de renda” da qual “é diminuída a renda integral” que deveria propriamente ir ter ao bolso do proprietário territorial. Isso nos ensina duas coisas. A primeira é que o arrendatário “diminui” a renda do latifundiário, isto é, que, no Senhor Dühring, não é como se havia até agora figurado, o arrendatário que “paga” ao proprietário territorial, mas o “proprietário territorial” que paga “ao arrendatário uma renda” — e eis aí “um ponto de vista eminentemente original” Em segundo lugar, ficamos sabendo, finalmente, o que o Senhor Dühring entende como renda do solo: é todo o sobre-produto obtido, na agricultura, pela exploração do trabalho do camponês. Mas, como em toda a economia política até os nossos dias — alguns defensores da economia vulgar podem ser postos à parte — esse sobre-produto se divide em renda territorial e lucro do capital —, é mister constatar que o Senhor Dühring não aceita igualmente “a concepção ordinária” da renda territorial. Assim, segundo o Senhor Dühring, a única diferença entre a renda territorial e o lucro do capital é que a primeira se obtém na agricultura e a segunda na indústria e no comércio. Ele chega a esse ponto de vista confuso e destituído de qualquer fundamento crítico através de uma seqüência necessária. Vimo-lo partir dessa “concepção verdadeiramente histórica” de que a dominação do solo só se havia podido estabelecer após ser conseguida a dominação sobre os homens. Desse modo, que o solo é cultivado por meio de uma forma qualquer de trabalho servil, daí resulta um excedente para o proprietário territorial e esse excedente é precisamente a renda, como, na indústria, o excedente do produto do trabalho sobre o salário é o rendimento do capital: “Dessa maneira, é evidente que. em qualquer tempo e em toda parte, a renda territorial existe em proporção considerável quando a cultura do solo se faz por meio de uma das formas de sujeição do trabalho...” Mas, para desenvolver este conceito de renda, apresentando-a como a totalidade do sobre-produto obtido na agricultura, o Senhor Dühring choca-se, de um lado, com o “lucro do arrendatário inglês” e, de outro, que encontramos em toda a economia clássica, do sobre-produto em duas partes, a renda do solo e o lucro do arrendatário, isto é, a formulação precisa e pura da renda.

Que faz, porém, o Senhor Dühring? Finge desconhecer completamente a divisão do sobre-produto agrícola em lucro do arrendatário e renda territorial; isto é, finge ignorar em absoluto toda a teoria da renda estabelecida pela economia clássica, pretendendo fazer crer aos seus leitores que nenhum economista, até hoje estabeleceu “com tanta precisão”, a questão de saber o que é, de fato, o lucro do arrendatário. Faz como se se tratasse de um assunto inteiramente novo, que jamais tivesse sido tratado e do qual nada se conhecia senão as aparências e as dificuldades. Foge dessa aborrecida Inglaterra, onde, absolutamente sem intervenção de qualquer escola teórica, o sobre-produto agrícola é tão impiedosamente dividido em seus elementos: renda territorial e lucro do capital; foge para as regiões de seus amores, onde reina o Landrecht prussiano e a exploração pelo proprietário está em plena florescência patriarcal, onde “o dono de uma gleba entende como renda os rendimentos que dela aufere”, onde a opinião dos senhores fidalgos sobre a renda pretende ainda impor-se à ciência, onde o Senhor Dühring pode ainda esperar insinuar-se com suas idéias confusas sobre a renda e o lucro, e até mesmo conseguir fazer passar de contrabando a sua nova invenção: a renda territorial paga não pelo arrendatário ao proprietário territorial, mas por este àquele.


Capítulo X
SOBRE A “HISTÓRIA CRÍTICA”

 

Lancemos ainda uma vista de olhos à História crítica da economia política, a do Senhor Dühring, que, como ele o disse, não tem, de modo algum, “precedentes”. Talvez, por fim, encontremos aqui aquele caráter científico rigoroso que tanto nos prometeu.

O Senhor Dühring fez grande barulho com a sua descoberta de que a “ciência econômica” é “uma criação extraordinariamente moderna” (pg. 12).

Com efeito, Marx diz em O Capital: “A economia política... como ciência autônoma, só aparece no período da manufatura” e, em seu livro Contribuição à Crítica da Economia Política, à página 29, diz que “a economia política clássica... começa na Inglaterra com Petty, em França com Boisguillebert e encerra-se na Inglaterra com Ricardo e na França com Sismondi”. O Senhor Dühring segue essa marcha, que lhe era prescrita: somente, a economia “superior” começa precisamente para ele com os lastimáveis abortos que a ciência burguesa deu à luz após a terminação de seu período clássico, Em compensação, ele triunfa com toda a legitimidade, no final de sua Introdução: “Mas, se já essa empresa carecia de predecessores, em suas particularidades exteriormente apreciáveis e no que tem de moderno a metade do seu conteúdo, pertence-me ainda mais por seus pontos de vista críticos internos e por sua tendência geral” (página 9).

Realmente, ele poderia, dos dois lados, tanto o exterior como o interior, anunciar a sua “empresa” (essa expressão industrial não foi mal escolhida) sob este título: O Único e a sua propriedade.(9),

Como a economia política, tal qual se manifestou na história, não é, de fato, senão o estudo científico do que é a economia do período de produção capitalista, não se podem encontrar proposições e teoremas que com ela se relacionem (por exemplo, entre os escritores da sociedade grega antiga) senão na medida em que certos fenômenos, tais como a produção mercantil, o comércio, a moeda, o capital que rende juros etc., são comuns às duas sociedades. Todas as vezes que os gregos incursionam ocasionalmente nesse domínio, demonstram o mesmo gênio e a mesma originalidade que nos outros. Seus pontos de vista são, pois, historicamente, os pontos de partida teóricos da ciência moderna. Vejamos agora como o Senhor Dühring escreve essa história.

“De acordo com isso, não teríamos, propriamente falando (!), nada de positivo a dizer sobre uma teoria científica da economia na Antigüidade. A Idade Média, completamente estranha à ciência, menos matéria ainda fornece a esse respeito. Mas, como a maneira de escrever que arvora vaidosamente a aparência da erudição... desfigurou o puro caráter da ciência moderna, é-nos necessário, ao menos para lembrança, fornecer alguns exemplos de uma crítica que, com efeito, se abstém da “aparência da erudição”.

Disse Aristóteles (Política, 1, 3, II, pg. 1.257) que “todo bem pode servir a dois usos — um é próprio à coisa como tal, o outro não; assim, uma sandália pode servir para calçar, ou ser trocada; um e outro são modos de uso da sandália, pois aquele que troca a sandália pelo que lhe falta, dinheiro ou alimentos, utiliza a sandália como sandália, mas não na sua maneira natural de uso, porquanto a sandália não é feita para ser trocada”. Essa proposição, segundo o Senhor Dühring, “não somente é expressa de maneira verdadeiramente trivial e escolástica, mas ainda aqueles que nela encontram uma “distinção entre o valor do uso e o valor de troca” se dão, além do mais, “ao ridículo” de esquecer que, “na época mais recente” e “no sistema mais avançado”, que é, naturalmente, o do próprio Senhor Dühring, não há mais necessidade de valor de uso e de valor de troca.

“Pretendeu-se também encontrar nos escritos de Platão sobre a República... o capítulo moderno da divisão do trabalho econômico”. Trata-se, sem dúvida, de uma alusão ao trecho de O Capital em que se mostra, pelo contrário, que os pontos de vista da Antigüidade clássica sobre a divisão do trabalho estão “em oposição rigorosa” aos pontos de vista modernos. Desdém e nada mais, é tudo o que Platão consegue do Senhor Dühring pela sua exposição — genial para seu tempo — da divisão do trabalho como base natural da cidade (sinônimo de Estado para os gregos), e isso porque ele não menciona (mas o grego Xenofonte o faz, Senhor Dühring!) o “limite que impõe toda extensão do mercado à divisão ulterior dos ramos profissionais e a separação técnica das operações especiais... A noção desse limite é a primeira verificação pela qual uma idéia que, antes, se podia dificilmente classificar de científica, se torna uma verdade de importância econômica”.

O “professor” Roscher, tão contrariado pelo Senhor Dühring, traçou efetivamente esse único “limite” que torna “científica” a idéia da divisão do trabalho e, em conseqüência, atribuiu a Adam Smith a descoberta da divisão do trabalho. Numa sociedade em que a produção de mercadorias é o modo dominante de produção, o mercado — para, uma vez, falarmos também à maneira do Senhor Dühring — é efetivamente um “limite” bastante conhecido pelos “homens de negócios”. Mas é mister outra coisa além do “saber e do instinto da rotina” para compreender que não foi o mercado que criou a divisão capitalista do trabalho, mas que, inversamente, foi o desdobramento de unidades sociais anteriores, e a divisão do trabalho dele resultante, que criaram o mercado. (Ver O Capital, livro I, capítulo XXIV, 5. “Estabelecimento do mercado interior para o capital industrial”). “O papel da moeda foi, em todos os tempos, a primeira incitação às idéias econômicas (!). Mas que sabia um Aristóteles desse papel? Evidentemente nada que ultrapassasse a noção de que a troca, por meio da moeda, sucedeu à troca primitiva em espécie”.

Mas, quando “um” Aristóteles se permite descobrir as duas “formas de circulação” diferentes da moeda, uma em que ela aparece como simples instrumento de circulação, outra em que age como capital monetário, não faz com isso, segundo o Senhor Dühring, “senão exprimir uma antipatia moral”.. Quando “um” Aristóteles leva a sua audácia ao ponto de querer analisar a moeda no seu papel de “medida do valor”, quando coloca efetivamente em seus termos exatos esse problema tão decisivo para a teoria da moeda, “um” Dühring prefere nada dizer, por motivos dele conhecidos, sobre essa impertinente audácia.

Resultado final: no quadro, que o Senhor Dühring traça, a antigüidade grega não tem efetivamente senão “idéias inteiramente vulgares” (pág. 25) se é que uma tal “parvoíce” (página 29) tem qualquer coisa de comum com idéias vulgares ou não.

Faremos melhor lendo o capítulo do Senhor Dühring. sobre o mercantilismo, no “original”, isto é, em F. List, Sistema Nacional, capítulo XXIX: O sistema industrial, falsamente chamado de sistema mercantil. Com esse cuidado, o Sr. Dühring sabe, ainda aqui, evitar toda “aparência de erudição”, pode-se ver pelo seguinte:

List diz, capítulo XXVIII (Os Economistas Italianos): “A Itália precedeu todas as nações modernas, na teoria como na prática da economia política”, e cita em seguida como “primeira obra escrita na Itália, especialmente sobre economia política, o livro de Antônio Serra, napolitano, sobre os meios de proporcionar aos reinos ouro e prata em abundância (16l3). O Senhor Dühring aceita isso sem hesitação e pode, em conseqüência, “considerar o Breve Trattato de Serra como “uma espécie de epígrafe à entrada da pré-história moderna, da economia”. A essa “gentileza literária” limita-se, de fato, o seu estudo do Breve Trattato, mas, infelizmente, as coisas se passaram na realidade de outro modo, pois, em 1869, quatro anos por conseguinte antes do Breve Trattato, apareceu A Dicourse of Trade, etc., de Tomas Mann. Essa obra teve, desde a sua primeira edição, a significação particular de ser dirigida contra o antigo “sistema monetário”, então ainda defendido como prática do Estado, na Inglaterra, e representa. portanto, a “emancipação” conscientemente praticada pelo sistema mercantil, de sistema que lhe tinha dado origem. Sob sua primeira forma, a obra teve já várias edições e exerceu influência direta na Legislação. Na edição de 1664, completamente refundida pelo autor e aparecida após a sua morte sob o título de England’s Treasure etc... continuou sendo, por mais cem anos ainda, o evangelho mercantilista. Se. pois, o mercantilismo possui um livro que fez época, “uma espécie de epígrafe à entrada”, é bem esse, que também não existe de maneira alguma para o Senhor Dühring e por sua “História, que observa com o maior cuidado as gradações hierárquicas da história”.

Do fundador da economia política moderna, Petty, o Senhor Dühring nos diz que tinha uma quantidade “bem grande” de pensamentos superficiais, que “não tinha o senso das distinções interiores e sutis entre os conceitos”... “era um espírito versátil, que conhecia muitas coisas, mas passava de uma a outra superficialmente, sem se aprofundar numa idéia qualquer”...; “seu método econômico é ainda muito grosseiro” e “chega a ingenuidades cujo disparate pôde, mesmo, na ocasião, divertir um pensador sério”. Que extraordinária condescendência, esta do “pensador sério”, Senhor Dühring, consentindo em levar em conta “um Petty”! E de que maneira o leva em conta!

As teses de Petty sobre “o trabalho e o tempo de trabalho considerado como medida do valor”, que são “rudimentos imperfeitos” dessa teoria, também não são mencionados mais no decorrer da obra. No seu Treatise on Taxes and Contributions (1a. ed. em 1662), Petty faz uma análise perfeitamente clara e exata sobre a grandeza do valor das mercadorias. Esclarecendo primeiramente, à luz da igualdade de valor entre os metais preciosos e os cereais que custam um trabalho igual, ele foi o primeiro a dizer a última palavra “da teoria” sobre o valor dos metais preciosos, expondo com a mesma precisão o princípio geral de que os valores das mercadorias são medidos por um “trabalho igual” (equal labor).

Ele aplica sua descoberta à solução de diversos problemas, alguns bem complexos, e em alguns trechos, em diversas ocasiões e em diversas obras, sem que seja mesmo repetida a proposição principal, tira dela conseqüências importantes. Mas, desde o seu primeiro trabalho: “Afirmo que isto (a taxação à base da igualdade de trabalho) é a base da equivalência da comparação. dos valores; entretanto, na construção e na aplicação prática deste princípio existe, eu o confesso, muita diversidade e complicação”. Petty confessa, pois, a importância de sua descoberta e, igualmente, a dificuldade em aplicá-la concretamente. Ele tenta também, para certos fins particulares, um outro caminho. Trata-se de achar uma relação de equivalência natural (a natural Par) entre o solo e o trabalho, de modo que se possa exprimir indiferentemente “em qualquer dos dois ou, melhor ainda, em ambos”. O próprio erro é genial. O Senhor Dühring faz, a propósito da teoria do valor de Petty, esta observação penetrante: “Se ele próprio tivesse tido mais firmeza de pensamento, não se lhe poderia achar, noutras passagens, rudimentos de uma concepção oposta como já se disse mais acima”. A verdade, porém, é que a elas não se aludiu senão para dizer que “tais rudimentos” eram imperfeitos”. É bem característico do Senhor Dühring este hábito de fazer alusão, ligeiramente, sobre qualquer coisa numa frase vazia, para, logo, fazer crer ao leitor que, “mais acima” já se lhe fez conhecer o essencial. Na realidade, porém, o autor nada mais fez do que passar pelo assunto como por cima de brasas.

Em Adam Smith, encontram-se não somente “rudimentos” de “concepções opostas” sobre a noção do valor; e não somente duas, mas três e, até mesmo, quatro concepções fortemente contraditórias do valor, prosseguem naturalmente seu caminho, ao lado e misturadas umas às outras. Mas o que é natural para o fundador da Economia Política, que necessariamente tateia, experimenta, luta com um caos de idéias em vias de formação, pode parecer estranho num escritor que faz uma síntese crítica de mais de um século e meio de pesquisas, quando os próprios resultados em parte já passaram dos livros para a consciência comum. E. para resumirmos, vimos o próprio Senhor Dühring dar-nos a escolher entre cinco espécies diferentes de valor, a cada uma das quais corresponde uma concepção radicalmente diversa. Seguramente, “se ele próprio tivesse tido mais firmeza de pensamento”, não se teria esfalfado tanto para lançar seus leitores, depois da concepção perfeitamente clara que Petty faz do valor, na mais extrema confusão.

Um trabalho de Petty, perfeitamente harmônico, é o seu Quantulumcumque Concerning Money, publicado em 1682, dez anos após seu Anatomy of Ireland (aparecido “pela primeira vez” em 1672 e não em 1691, como escreve o Senhor Dühring, conforme as “compilações dos manuais mais correntes). Os últimos traços de concepções mercantilistas, que se acham noutros escritos de Petty. desaparecem por completo nesta obra. É uma pequena obra-prima, no fundo e na forma, e é justamente por isso que não, figura na lista do Senhor Dühring. É perfeitamente compreensível que, em face do pesquisador mais genial ou do mais original dos sábios em economia uma mediocridade vaidosa de mestre escola apenas manifesta a seu descontentamento resmungão, tresandando despeitos ao ver as faíscas de luz teórica, em vez de desfilarem solenemente como axiomas bem acabados, jorrarem, pelo contrário, em desordem, numa longa sucessão de assuntos práticos e “grosseiros” como os impostos, por exemplo.

O Senhor Dühring trata Petty. fundador da Aritmética Política, vulgarmente chamada estatística, como já havia tratado Petty pelos trabalhos propriamente econômicos. Dá de ombros, com ar zangado, diante da singularidade dos métodos grotescos que o próprio Lavoisier aplicava ainda, nesse domínio, cem anos mais tarde: quando consideramos a distância que ainda separa a estatística atual do objetivo que Petty lhe traçara em linhas gerais, esse ar de superioridade suficiente, dois séculos post festum, parece como uma tolice desmedida.

As idéias mais importantes de Petty. das quais tão poucos traços há na “empresa” do Senhor Dühring, não são, segundo este último. senão puros caprichos, idéias lançadas ao acaso, pensamentos de ocasião, aos quais somente nos nossos dias se atribui, graças a citações destacadas do texto, uma importância que em si nunca teriam, não representando, por conseguinte, papel algum na “verdadeira” economia política, mas unicamente nos livros modernos inferiores ao nível da crítica radical e da “historiografia em grande estilo” do Sr. Dühring. Parece que ele, na sua “empresa”, teve em vista um círculo de leitores possuídos da fé do carvoeiro, e que não se permitiam reclamar a prova de uma afirmação. Voltaremos logo a esse assunto a propósito de Locke e North. Por enquanto. temos necessidade de deter-nos, por um momento, em Boisguillebert e Law.

Quanto ao primeiro, assinalemos o único achado que propriamente pertence ao Senhor Dühring: ele descobriu. entre Boisguillebert e Law, uma relação até aqui ignorada. Boisguillebert declara que os metais preciosos poderiam ser substituídos, na função normal da moeda, que exercem no seio da produção mercantil, por uma moeda fiduciária (um “chiffon de papier”). Law imagina, pelo contrário, que um “acréscimo” qualquer do número desses “pedaços de papel” aumenta a riqueza de uma nação. Daí se conclui, para o Senhor Dühring, que “a concepção de Boisguillebert encerrava já em si uma concepção nova do mercantilismo”. Era já, em outros termos, a teoria de Law. Eis como isso é cristalinamente demonstrado: “Bastaria atribuir a esses “simples pedaços de papel” a mesma função que “teriam” de representar os metais preciosos, e assim imediatamente se realizaria uma metamorfose do mercantilismo”. Do mesmo modo eu poderia operar, imediatamente, a metamorfose do meu tio em minha tia, Na verdade, o Sr. Dühring acrescenta, num tom conciliatório: “Certo, Boisguillebert não tinha tal intenção”. Mas, que diabo! como — uma vez que, segundo ele, os metais preciosos podem ser substituídos na sua função de moeda pelo papel — podia ele ter a intenção de substituir a sua própria concepção racionalista dessa função dos metais preciosos, pela concepção supersticiosa dos mercantilistas? “Entretanto” — continua o Senhor Dühring, com a sua gravidade cômica: — é preciso convir que nosso autor fez algumas observações realmente criteriosas”. (Pág. 83).

Quanto a Law, o Senhor Dühring tem apenas esta “observação realmente criteriosa”: “O próprio Law nunca pôde, compreende-se, “eliminar” completamente esse fundamento último (ou seja “a base dos metais preciosos”), mas ele levou a emissão de bilhetes até ao extremo, isto é, até ao desmoronamento do sistema” (pág, 94). Na realidade, porém, essas borboletas de papel, puros signos monetários, que adejavam pelo público, não se propunham “diminuir” a base de metais preciosos, mas apenas retirar esses metais dos bolsos do público fazendo-o entrar nas caixas do Estado que estavam à míngua.

Voltando a Petty e ao papel insignificante que o Senhor Dühring o faz representar na história da economia política, ouçamos, primeiro o que nos é dito sobre seus sucessores imediatos, Locke e North. As duas obras Considerations on Lowering of Interest and Raising of Money, de Locke, e os Discourses upon Trade, de North. apareceram no mesmo ano de 1691.

“O que Locke escreveu sobre os juros e a moeda não sai do quadro das reflexões que eram habituais, sob o reino do mercantilismo ligadas aos acontecimentos da vida política” (pág. 64,. O leitor poderá, agora, por intermédio desse verídico informe, compreender com absoluta clareza, porque o Lowering of Interests, de Locke, exerceu sobre a economia política francesa e italiana, da segunda metade do século XVIII, influência tão considerável, e efetivada em diversos sentidos.

“Sobre a liberdade da taxa de juros, muitos homens de negócios haviam pensado como Locke e a própria evolução da sociedade comportava a tendência de considerar como ineficazes os obstáculos legais aos juros. Num tempo em que um Dudley North podia escrever seus Discourses upon Trade, no sentido do livre-câmbio, era preciso que já houvesse, por assim dizer, no ar, uma forte tendência a não permitir que parecesse como coisa espantosa a oposição teórica às restrições aos juros”.

Era mister, portanto, que Locke cogitasse das idéias de tal ou qual “homem de negócios”, seu contemporâneo, ou que recolhesse muitas das coisas que, na sua época “flutuavam, por assim dizer, no ar, para fazer uma teoria acerca dos princípios da liberdade dos juros sem nada dizer de novo. Mas, de fato, desde 1622, no seu Treatise on Taxes and Contributions, Petty separava os juros como “renda do dinheiro”, que chamamos usura” (rent of money which we call usury) da “renda da propriedade territorial e imobiliária” (rent of land and houses), e ensinava aos senhores da terra, que queriam aniquilar, por disposições legais, não a renda territorial, mas a renda dinheiro, que “é vão e estéril fazer leis civis positivas contra a lei da natureza” (the vanity and fruitlessness of making civil positive law against the law of nature). Também considera ele, no seu Quantulumcunque (1682), a regulamentação legal dos juros, tão idiota e inútil quanto a da exportação dos metais preciosos ou das cotações do câmbio. Na mesma obra, ele diz a palavra decisiva sobre o raising of money (isto é, a tentativa que consiste, por exemplo, em dar a meio-shilling o nome de shilling, cunhando numa onça de prata um número duplo de shillings).

A respeito deste último ponto, Locke e North não fazem senão copiá-lo. Mas, quanto aos juros, Locke fica no paralelo de Petty, entre os juros monetários e a renda territorial, ao passo que North, desenvolvendo a idéia, opõe o juro como renda do capital (rent of stock) à renda territorial, e os stocklords aos landlords. Por outro lado, enquanto que Locke só admite, com restrições, a liberdade dos juros reclamada por Petty, North a aceita integralmente.

O Senhor Dühring ultrapassa-se a si mesmo quando, mercantilista mais inflexível ainda, num sentido “mais sutil”, fulmina os Discours upon Trade de Dutley North, observando que são escritos “no sentido do livre-câmbio”. É como se disséssemos, de Harvey, que ele escreveu “no sentido da circulação do sangue. A obra de North — sem falar de outros méritos que tem — é uma análise clássica, escrita com uma lógica rigorosa, da doutrina livre-cambista, referente ao comércio tanto exterior como interior, análise que, na verdade, no ano de 1691, representava “algo inaudito”.

De resto, o Senhor Dühring relata que North era um “traficante” e, ainda por cima, um mau sujeito, e que seu livro “não podia ter êxito”. Ele teria feito melhor mostrando que tal obra teria “êxito”, no momento em que triunfava definitivamente o sistema protecionista na Inglaterra, pelo menos junto à turba que representava o elemento característico. Entretanto, isso não impediu sua ação teórica imediata, que se pode mostrar em toda uma série de escritos econômicos aparecidos na Inglaterra, imediatamente depois dele, alguns ainda no século XVII.

Locke e North deram-nos a prova de que as primeiras brechas ousadas que Petty abrira em quase todos os domínios da economia política, foram ampliadas uma a uma por seus sucessores ingleses. Os traços dessa evolução, durante o período que vai de 1691 a 1752, impõem-se ao observador mais superficial pelo simples fato de que todos os trabalhos econômicos importantes dessa época a eles se referem, para dar razão ou refutar Petty. Esse período, em que abundam os espíritos originais, é consequentemente o mais importante para o estudo da gênese e do gradual desenvolvimento da economia política. O “historiador em grande estilo”, censura a Marx, como uma falta imperdoável, o fato de, em O Capital, ter feito tanto barulho em torno de Petty e dos escritores desse período, simplesmente escamoteia a todos eles da história. De Locke, North, Boisguillebert e Law, ela salta imediatamente para os fisiocratas e, então, aparece nos umbrais do verdadeiro templo da economia política... David Hume. Com a permissão do Senhor Dühring, restabeleçamos a ordem cronológica e ponhamos Hume antes dos fisiocratas.

Os Ensaios econômicos de Hume apareceram em 1752. Nos três ensaios existentes — Of Money, Of the Balance of Trade, Of Commerce, Hume segue passo a passo, às vezes até em suas simples fantasias, um livro de Jacob Vanderlint: Money answers all things, Londres, 1734. Por mais desconhecido que esse Vanderlint tivesse permanecido para o Senhor Dühring é ainda tomado em consideração nos livros ingleses de economia política do fim do século XVIII, isto é, no período que se segue a Adam Smith.

Como Vanderlint, Hume trata da moeda como simples signo do valor; copia quase palavra por palavra (e isso é importante, porque ele poderia ter tomado de empréstimo a muitas outras obras essa teoria da moeda como signo do valor), de Vanderlint, as passagens explicando porque a balança do comércio não pode ser constantemente favorável ou desfavorável a um país; ensina, como Vanderlint, a teoria do equilíbrio das balanças estabelecendo-se natural e respectivamente, segundo as diversas situações econômicas dos diferentes países; prega, como Vanderlint, o livre-câmbio de maneira apenas menos audaciosa e menos conseqüente; insiste, como Vanderlint, porém com menos vigor, sobre as necessidades como motivo da produção: segue Vanderlint no que se refere à falsa influência atribuída à moeda bancária e a todos os valores públicos sobre os preços das mercadorias; como Vanderlint. repele a moeda fiduciária; como Vanderlint, faz depender os preços das mercadorias do preço do trabalho, portanto, do salário; segue-o mesmo nessa fantasia de que o entesouramento faz baixar o preço das mercadorias, etc. etc.

O Sr. Dühring vinha já, desde há muito, resmungando, em tom oracular, que outros não tinham feito caso da teoria da moeda de Hume e, sobretudo, aludira ameaçadoramente a Marx. que, em O Capital, além do mais, assinalara, de modo contrário á boa ordem as relações secretas de Rume com Vanderlint e um autor do qual trataremos adiante: J. Massie.

Quanto a essa falsa interpretação, eis o que se passa. No que diz respeito à verdadeira teoria da moeda de Hume, segundo a qual a moeda não é senão signo do valor (e. conseqüentemente. mantendo-se iguais as condições e circunstâncias, os preços das mercadorias baixam na proporção que aumenta a quantidade da moeda circulante e sobem na proporção em que ela diminui), o Sr. Dühring não pode senão repetir tom a melhor boa vontade deste mundo — apesar da maneira luminosa que lhe é própria — os erros de seus predecessores. Mas Hume, após ter proposto essa teoria, faz a si mesmo esta objeção (que já havia sido feita por Montesquieu, partindo das mesmas premissas): é. entretanto, “certo” que depois do descobrimento das minas da América “a indústria aumentou em todas as nações européias, inclusive naquelas que nada tinham a ver com a posse dessas minas” e isso “é devido, entre outras causas, ao acréscimo da quantidade de ouro e prata”. Ele dá desse fenômeno a explicação seguinte: “se bem que o preço elevado das mercadorias seja uma conseqüência necessária do acréscimo do ouro e da prata, o mesmo não se verifica logo após a esse acréscimo: é preciso algum tempo para que o dinheiro circule em todo o Estado e faça sentir sua ação em todas as camadas da população.” Nesse intervalo, atua beneficamente sobre a indústria e o comércio. No final dessa análise, Hume diz-nos também porque isso se passa, embora de maneira menos compreensível do que diversos de seus precursores e contemporâneos: “É fácil seguir os progressos da moeda através de toda a sociedade. Verificamos que ela estimula necessariamente a atividade de cada um antes de “elevar o preço do trabalho”.

Noutros termos, Hume descreve, aqui, os efeitos de uma revolução (mais concretamente, uma depreciação) no valor dos metais preciosos, ou, o que dá no mesmo, de uma revolução na “medida do valor” dos metais preciosos. Estabelece, muito acertadamente, que essa depreciação dada a lentidão com que se nivelam os preços das mercadorias, só muito depois eleva o “preço do trabalho” ou sejam, os salários; que assim ele aumenta, às expensas dos trabalhadores (o que ele acha, aliás, perfeitamente dentro da ordem), o lucro das comerciantes e dos industriais e “estimula a atividade”. Mas o verdadeiro problema científico, que é saber se e como uma importação aumentada de metais preciosos, permanecendo idêntico o valor destes, age sabre o preço das mercadorias, mas supõe que todo “acréscimo dos metais preciosos” acarreta a depreciação destes últimos. Hume faz, pois, exatamente o que Marx (Zur Kritik, etc., pg. 141), nele denuncia. Voltaremos, ainda, de passagem, a este ponto. Vejamos, porém, primeiramente, o mulo de Hume sobre os “juros”.

A argumentação que Hume dirige expressamente contra Locke; ou seja, que os juros não são regulados pela quantidade de moeda existente, mas pela taxa de lucro, e o resto de suas explicações sobre as causas que determinam uma taxa elevada ou baixa de juros — tudo isso se encontra, com muito maior exatidão e menos espírito, numa obra aparecida em 1750, dois anos antes do Ensaio, de Hume: An Essay on the Governing Causes of the Natural Rate of Interest, wherein the sentiments of sir W. Petty and Mr. Locke, on that head, are considered. O autor desse escrito é J. Massie, publicista cheio de atividade em diversos sentidos e muito versado nestes problemas como se pode avaliar pelos livros aparecidos por essa época na Inglaterra. Massie aproxima-se, mais que Hume, da explicação, dada por Adam Smith, da taxa de juros. Nem Hume, nem Massie sabem ou dizem coisa alguma sobre a natureza do “lucro”, que representa, no entanto, um importante papel tanto num como noutro. “Aliás”, professa o Sr. Dühring ex-catedra, “tem-se na maior parte do tempo procedido com muita prevenção na apreciação de Hume e se lhe têm atribuído idéias que ele absolutamente não teve”. E desse “procedimento” o próprio Senhor Dühring nos dá mais de um exemplo surpreendente.

Assim, por exemplo, o Ensaio de Hume sobre os juros, começa por estas palavras: “Nada passa por ser um indício mais certo da prosperidade de uma nação, que o nível baixo da taxa de juros, e com razão; contudo, creio que a causa desse fato é um pouco diferente daquela que geralmente se admite”. Como vêem, desde a primeira frase, Hume aceita a idéia de que o nível da taxa de juros é o indício mais seguro da prosperidade de uma nação, como um lugar-comum que já em seu tempo se tornara banal. Efetivamente, depois de Child, essa “idéia” teve, para se popularizar, uns bons cem anos de vulgarização. O Sr. Dühring diz o contrário (pág. 10): “Entre os pontos de vista de Hume sobre a taxa de juros, é preciso, principalmente, salientar essa idéia de que ela é o verdadeiro barômetro da situação (que situação?) e que seu baixo nível é um sinal quase infalível da prosperidade de uma nação”.

Quem é, portanto, que “se perturba” e se atrapalha quando se expressa nesses termos? O próprio Senhor Dühring. Uma coisa, aliás, desperta uma admiração ingênua no nosso historiador crítico: é que Hume, a propósito de certa idéia feliz “não se apresenta como seu autor”. Eis o que jamais poderia acontecer ao Senhor Dühring.

Vimos como Hume considera todo acréscimo de metal precioso como causa que acarreta a sua depreciação e que constitui uma revolução em seu próprio valor, portanto, na medida do valor das mercadorias. Essa confusão era inevitável em Hume, porque ele compreendera a função de “medida do valor” que exercem os metais preciosos. Não podia fazê-lo porquanto nada sabia, absolutamente nada, do próprio valor. A própria palavra “valor” não se encontra, talvez, em seus Ensaios senão uma única vez e num trecho em que ele leva mais longe o erro de Locke, segundo o qual os metais preciosos só teriam um “valor imaginário”, e o agrava dizendo que eles têm principalmente um valor fictício”.

Nesse ponto, Hume é bastante inferior, não somente a Petty, mas ainda a vários de seus contemporâneos ingleses. Ele mostra o mesmo espírito atrasado quando se obstina em exaltar o “comerciante”, à moda antiga, como o primeiro motivo da produção, ponto de vista que Petty há muito tempo superara. Quando se vê o Senhor Dühring assegurar que Hume se ocupou em seus Ensaios das “principais instituições econômicas”, não se tem senão que comparar a obra de Cantillon citada por Adam Smith, (aparecida, como os Ensaios de Hume, em 1752, mas muitos anos depois da morte do autor) para admirar-se do círculo estreito em que se restringem as pesquisas econômicas de Hume. Hume, já o dissemos, continua, apesar do diploma que lhe confere o Senhor Dühring, um autor respeitável no domínio da economia política, se bem que não seja um pesquisador original e muito menos um desses pensadores que marcam época. A ação de seus Ensaios econômicos sobre os meios cultos de seu tempo, resultava, não só sua maneira excelente de expor, mas principalmente por serem uma apoteose otimista e progressista da indústria, então florescente, e do comércio, ou, dito de outro modo, da sociedade capitalista, nesse momento em ascensão rápida na Inglaterra, e na qual essas doutrinas alcançavam necessariamente um grande “êxito”. Basta uma indicação a este respeito: Todos sabem com que paixão a massa do povo inglês lutava, na própria época de Hume, contra o sistema dos impostos indiretos utilizados sistematicamente pelo famoso Roberto Walpole, com o objetivo de aliviar os proprietários fundiários e, de um modo geral, os ricos. No seu Ensaio sobre os impostos (of Taxes), Hume, sem o citar, ataca Vanderlint, o mais violento adversário dos impostos indiretos e o campeão mais declarado do imposto territorial; e diz: “É preciso, com efeito, que os impostos de consumo sejam bastante pesados e estabelecidos de maneira bastante irracional para que o trabalhador, fortalecendo sua dedicação e espírito de poupança, possa pagá-los sem necessidade de elevar-se o preço do seu trabalho”. Crer-se-ia ouvir falar aqui Roberto Walpole em carne e osso, sobretudo se acrescentarmos esse trecho do Ensaio sobre o crédito público, em que se diz, a respeito da dificuldade de tributar os credores do Estado: “A diminuição de sua renda não seria “disfarçada” sob as aparências de ser um simples artigo do imposto de consumo ou direitos de alfândega”.

Como era inevitável num escocês, a admiração de Hume pelo enriquecimento burguês está longe de ser puramente platônica. Nascido pobre, ele consegue obter um rendimento anual de milhares de libras, o que o Senhor Dühring, uma vez que não se trata mais de Petty, exprime engenhosamente da seguinte maneira: “Ele chegara, partindo de poucos recursos, graças a uma boa “economia doméstica”, a não precisar escrever para agradar a quem quer que seja”, Mais adiante, o Senhor Dühring diz: “Ele jamais fizera a menor concessão à influência dos partidos, dos príncipes e das universidades”.

Sem dúvida, não nos consta que Hume se tenha associado com um Wagner, para negócios literários(10): mas sabe-se que Hume era um partidário infatigável da oligarquia whig, defensora da “Igreja e do Estado”; e que, como recompensa de seus serviços, obteve, primeiro, o posto de secretário da embaixada em Paris, e, mais tarde, o cargo incomparavelmente mais importante e lucrativo de sub-secretário de Estado. “Do ponto de vista político, Hume era e continuou sempre conservador e estritamente monarquista. Por esse motivo, não foi excomungado com tamanha violência, como Gibbon, pelos partidários da Igreja estabelecida”, diz o velho Schlosser. “Hume, esse egoísta, esse historiador mentiroso” — diz esse “rude” plebeu Cobbet — que insulta os monges ingleses gordos, de celibatários, sem família. vivendo da mendicidade, nunca teve nem família nem mulher e era, ele próprio, um latagão gordo e grande, excelentemente engraxado pelo dinheiro do Estado, sem o ter nunca merecido, por serviço algum, verdadeiro, prestado ao povo”. “Hume”, diz o Sr. Dühring, “é, no estudo “prático” da vida muito superior. em pontos essenciais, a um Kant”.

Mas, por que Hume tem na História crítica um lugar tão exagerado? Simplesmente porque esse “pensador sério e sutil tem a honra de representar o Dühring do século XVIII. Do mesmo modo que Hume serve para provar que “A criação de todo esse ramo novo da ciência (a economia política) é o efeito de uma filosofia mais esclarecida”, o precursor Hume é a melhor garantia de que todo esse ramo da ciência encontrará, tanto quanto se possa prever desde já, o seu termo no homem fenomenal que fez de uma filosofia, apenas mais esclarecida”, a luminosa filosofia da realidade, e no qual, como em Hume. fato até aqui sem exemplo na Alemanha... o estudo da filosofia no sentido estrito da palavra se acha ligado às pesquisas científicas em economia política. “Eis porque Hume, respeitável, aliás, como economista, é promovido a estrela econômica de primeira grandeza, cuja importância só tem sido até agora desconhecida pela mesma inveja que tão obstinadamente procura fulminar pelo silêncio os serviços, “magistrais para a época”, do Senhor Dühring.

A Escola “fisiocrática” deixou-nos. como se sabe, no Quadro econômico, de Quesnay, um enigma, que, para os críticos e historiadores da economia política, tem sido de impossível decifração. Esse quadro, destinado a fazer compreender claramente a concepção que tinham os fisiocratas da maneira pela qual se produz e circula o conjunto da riqueza de um país, permaneceu bastante obscuro para os economistas ulteriores. O Senhor Dühring, ainda aqui, vai abrir definitivamente os nossos olhos. O que “deve significar no próprio Quesnay essa imagem econômica das relações de produção e distribuição”, não poderá ser compreendido se, “primeiro, não se tiver estudado minuciosamente as noções diretoras que lhe são próprias”, e isso tanto mais quanto essas noções só haviam sido, até então, expostas com mais imprecisão, tornando-se, no próprio Adam Smith, “difícil reconhecer-lhe os traços essenciais”. O Senhor Dühring vai liquidar, de uma vez por todas. “essa exposição superficial” tradicional. Mete-se a zombar de seu leitor durante cinco longas páginas, cinco páginas de expressões pretensiosas, de repetições constantes uma desordem deliberada devem disfarçar o fato desagradável de não poder dar o Senhor Dühring, sobre as “noções diretoras” de Quesnay nem sequer o que nos fornecem as “compilações dos manuais mais correntes”, contra os quais não se cansa de alertar o leitor, “Um dos aspectos mais lamentáveis dessa introdução é que, ainda aqui, encontrando pela primeira vez o Quadro econômico, até então conhecido somente de nome, ele o aponta de passagem, mas em seguida expande-se em toda sorte de “reflexões”, como, por exemplo, a “distinção entre os esforços e o resultado”: Se ela “não pode, na verdade, encontrar-se definida na idéia de Quesnay”, o Senhor Dühring vai, pelo contrário, dar-nos um exemplo fulminante, quando passa de seus longos “esforços preliminares” ao seu “resultado” extraordinariamente conciso e breve, isto é, às suas explicações sobre o Quadro propriamente dito. Repetimos, portanto, palavra por palavra”, tudo o que achou necessário dizer sobre o Quadro de Quesnay.

Na sua Introdução, diz o Senhor Dühring: “Pareceu-lhe evidente (a Quesnay) que era preciso conceber e tratar esse produto obtido (o Senhor Dühring havia se referido, pouco antes, a produto líquido) como um “valor em moeda”... E aplicou suas reflexões (!), em seguida, aos “valores em moeda”, que supôs realizados, desde a primeira transferência, como resultado da venda de todos os produtos agrícolas. É dessa maneira (!) que ele opera nas colunas de seu Quadro com vários bilhões de “valores em moeda”. Aprendemos, assim, por três vezes, que Quesnay opera no Quadro com “valores em moeda” dos “produtos agrícolas”, inclusive o do “produto ou rendimento líquido”. Mais adiante: “Se Quesnay tivesse enveredado pelo caminho de uma observação verdadeiramente natural das coisas e se se tivesse libertado, não só da preocupação dos metais preciosos e da quantidade de dinheiro, mas também da dos “valores em moeda... Ainda assim, ele não contaria senão em “soma de valores” e desde logo “imaginaria” (!) o produto líquido como um “valor em moeda”. Assim, pela quarta e quinta vez, ficamos sabendo que, no Quadro, só há valores em moeda!

“Quesnay obtinha o produto líquido fazendo a subtração das despesas e pensando (!) principalmente” (informação que, embora pouco comum, não deixa de ser superficial, “no valor que retorna como renda ao proprietário territorial”. Não demos ainda um passo, porém vamos tentá-lo: “Mas, de outro lado, o produto líquido passa, como objeto natural, à circulação e torna-se, assim, um elemento que serve. — para manter a classe qualificada de estéril.. — Pode-se ver, aqui, “imediatamente”, (!) um caso, valor em moeda, e noutro, o próprio objeto é que determina a argumentação”. Em geral, ao que parece, a circulação de mercadoria sofre totalmente dessa “confusão” de circularem simultaneamente como “objetos naturais” e como “valores em moeda”. Continuamos sempre, porém, a rodar em torno dos “valores em moeda”, porque “Quesnay quer evitar uma dupla fundamentação do produto na economia política”.

Com a permissão do Senhor Dühring: Em baixo do Quadro, na “Análise” que aí dá Quesnay, as diversas espécies de produtos figuram como “objetos naturais”, e em cima, no mesmo Quadro, figuram como “valores em moeda”, Quesnay fez mesmo inscrever mais tarde, por seus famulus, o abade Baudeau, os objetos naturais no próprio Quadro, ao lado de seus valores em moeda.

Depois de tantos “esforços preliminares”, eis, finalmente, o “resultado”. Ouvi e admirai: “A inconseqüência (no que se refere ao papel atribuído por Quesnay aos proprietários territoriais) aparece “logo”, ao perguntarmos o que se faz, no ciclo econômico do produto líquido apropriado sob a forma de renda. Só um misto de confusão e de arbítrio, levado até ao misticismo explica as idéias dos fisiocratas e o Quadro econômico”.

Tudo acabou bem. Assim o Senhor Dühring não sabe o que se torna, no ciclo econômico, (representado pelo Quadro) “o produto líquido apropriado sob a forma de renda”. O Quadro é, para ele, a “quadratura do círculo”. Segundo ele próprio confessa, não compreende o ABC da fisiocracia. Após todas essas voltas em torno do pote, toda essa palha revolvida à toa, todos esses saltos em ziguezague, essas arlequinadas, episódios, diversões, repetições e confusões estupefacientes, que deviam preparar-nos para a grandiosa revelação do que “deve significar o Quadro de Quesnay”; após tudo isso, esta conclusão: O Senhor Dühring confessa, todo envergonhado, que nada sabe a respeito.

Uma vez feita essa confissão dolorosa, liberto do negro cuidado horaciano com que cavalgara através do país dos fisiocratas, o nosso “pensador profundo e sutil” empunha de novo, alegremente, a sua trombeta. “As linhas que Quesnay traça em todos os sentidos (há seis ao todo) através de seu Quadro, de resto bastante simples, linhas que se destinam a representar a circulação do produto líquido”, levam-nos a perguntar se não há, na base dessas “estranhas combinações de colunas”, um misticismo matemático fazendo-nos lembrar que Quesnay “se ocupou da quadratura do círculo”, etc. Como essas linhas, segundo sua própria confissão, lhe ficaram incompreensíveis, apesar de sua simplicidade, o Senhor Dühring, à sua maneira favorita, delas se arreceia. E agora pode tranqüilamente dar o golpe de misericórdia nesse Quadro incômodo: “Depois de considerar o produto líquido nesse aspecto, o mais duvidoso de todos etc.” Isto é, o Sr. Dühring se atreve a chamar de “aspecto mais duvidoso do produto líquido” a confissão forçada de que nada entendeu do Tableau Economique, nem do papel que nele desempenha o produto líquido! Que amargo humorismo!

Mas não queremos que o leitor fique, a respeito do Quadro de Quesnay, na mesma ignorância em que necessariamente se afundaram os que bebem a sua ciência econômica “de primeira mão” no Senhor Dühring. Vejamos, em poucas palavras, de que se trata.

Sabe-se que, para os fisiocratas, a sociedade se divide em três classes: 1a. a classe produtiva, isto é, a classe que realmente se ocupa da agricultura, os colonos e os trabalhadores rurais, cujo trabalho é produtivo porque fornece um excedente: a renda; 2a., a classe que se apropria desse excedente que compreende os proprietários territoriais, os príncipes e toda a clientela que deles depende, de modo geral, os funcionários pagos pelo Estado e, inclusive, a Igreja, na sua qualidade particular de recebedora de dízimo (para abreviar designaremos a primeira classe simplesmente pelo nome de “colonos” e a segunda pelo de “proprietários fundiários”): 3a. a classe industrial, ou estéril (improdutiva), porque, segundo os fisiocratas, se limita a incorporar às matérias-primas fornecidas pela classe produtiva o necessário valor para compensar os víveres que esta própria classe consome. O Quadro de Quesnay é feito para tornar sensível aos nossos olhos como o produto total de um país (na realidade, a França) circula entre essas três classes e serve para a reprodução anual.

Supõe-se, inicialmente, no Quadro, que o sistema de arrendamento, e com ele a grande agricultura, no sentido que essa palavra tinha no tempo de Quesnay, fora introduzido por toda parte, na Normandia, na Picardia, na Ilha-de-França, e em algumas outras províncias francesas. Também o arrendatário é para ele o verdadeiro condutor da agricultura; representa no Quadro toda a classe produtiva (agrícola), e paga ao proprietário territorial uma renda em dinheiro. Ao conjunto dos fazendeiros é atribuído um capital em bens de raiz, ou em materiais, de dez bilhões de libras, do qual um quinto (ou sejam dois bilhões) como capital de exploração a ser reposto, inversão essa calculada ainda de acordo com as fazendas mais bem cultivadas das mesmas províncias.

Supõe-se, além disso, para simplificar: 1o., que os preços são constantes e que a reprodução é simples; 2o., que toda a circulação que não se efetua no seio de uma única e mesma classe concreta fica excluída e se toma em consideração, exclusivamente a circulação de classe a classe; 3o., que todas as vendas, bem como todas as compras que se fazem de classe a classe, dentro de um ano industrial, estão reunidas numa soma total única. Finalmente, é mister lembrar que no tempo de Quesnay, na França e quase que em toda a Europa, a indústria doméstica, própria da família camponesa. assegurava a parte mais considerável de suas necessidades além da alimentação, razão pela qual o Quadro a considera como acessória da agricultura.

O ponto de partida do Quadro é a colheita total do país, a qual, por essa razão, figura no alto do Quadro como produto bruto anual do solo ou “reprodução total” do país, ou seja, da França. O valor desse produto bruto é calculado segundo os preços médios dos produtos do solo nas nações comerciais: atinge a cinco bilhões, soma que, de acordo com os dados estatísticos então possíveis. exprime aproximadamente o valor em moeda do produto agrícola bruto da França. É a única razão pela qual Quesnay “opera” no Quadro “com vários bilhões”, concretamente com cinco, e não apenas com cinco livres tournois.

O produto total, no valor de cinco bilhões, acha-se, pois, nas mãos da classe produtora, isto é. primeiramente, nas dos fazendeiros que o produziram, despendendo anualmente um capital de exploração de dois bilhões, correspondente a um capital inicial de dez bilhões. Os produtos agrícolas, meios de existência, matérias-primas etc., necessários para substituir o capital de exploração, entre outras coisas, e, por conseguinte, necessários para sustentar todas as pessoas diretamente empenhadas nos trabalhos agrícolas, são retirados em espécie da renda total e novamente despendidos na produção agrícola.

Como dissemos, calcularam-se os preços constantes e a reprodução simples, segundo uma taxa fixada de uma vez por todas: O valor em moeda dessa parte descontada, de antemão, é igual a dois bilhões de libras. Esta parte não entra, pois, na circulação geral, porque, conforme já dissemos, a circulação que se efetua somente dentro de uma das classes, não é registrada no Quadro.

Depois que repôs o capital de exploração, tomando-o juntamente com uma parte do produto bruto, fica um excedente de três bilhões, dois em meios de subsistência e um em matérias-primas. Mas a renda que os arrendatários devem pagar aos proprietários territoriais não sobe senão a dois terços desse excedente: a dois bilhões. Por que esses dois bilhões figuram sob a rubrica “produto líquido” ou “rendimento líquido”? Logo se verá.

Mas, fora da “reprodução agrícola total”, no valor de cinco bilhões, dos quais três passam à circulação geral, há, ainda, “antes” que comece o movimento figurado no Quadro todo o “pecúlio” da nação: dois bilhões em dinheiro efetivo, nas mãos dos colonos. Vejamos:

Sendo a renda total o ponto de partida do Quadro, constitui ao mesmo tempo o ponto terminal de um ano econômico, por exemplo, o ano de 1758, após o qual um novo ano econômico começa. Durante esse novo ano de 1759, a parte do produto bruto destinada à circulação divide-se entre as duas outras classes por meio de uma série de pagamentos individuais, vendas e compras. Mas esses movimentos sucessivos, e dispersos, que se estendem por todo um ano, são — como de qualquer maneira devia fazer-se no Quadro — reunidos num pequeno número de atos característicos. abrangendo cada um, de um só golpe, o ano inteiro. Assim, no fim do ano de 1758, a classe dos arrendatários viu refluir para ela o dinheiro que havia pago como renda aos proprietárias territoriais em 1757 (o próprio Quadro mostrará como isso se dá), ou seja a soma de dois bilhões de maneira que ela pôde lançar novamente essa soma na circulação de 1759. Mas, sendo essa soma, como observa Quesnay, muito maior do que se torna necessária para a circulação total do país, na realidade — na qual os pagamentos se repetem constantemente por frações — para a circulação total do país (ou seja, para a França). os dois bilhões de libras que se encontram nas mãos dos arrendatários ficam representando a soma total da moeda circulante da nação.

A classe dos proprietários territoriais que vivem de suas rendas. apresenta-se, então, como ainda hoje várias vezes acontece, no seu papel de credora. Segundo a suposição de Quesnay. os proprietários territoriais propriamente ditos não recebem senão quatro sétimos dessa renda de dois bilhões. pois dois sétimos vão para o governo e um sétimo para os cobradores de dízimos. No tempo de Quesnay, a Igreja era o maior proprietário territorial de França e recebia, ainda por cima, o dízimo da propriedade territorial restante.

O capital de exploração despendido pela classe “estéril” durante o ano inteiro em avances annuelles, consiste de matérias primas no valor de um bilhão: em matérias primas, somente porque os instrumentos, as máquinas etc. contam-se entre os produtos dessa mesma classe. Quanto aos múltiplos papéis que esses produtos desempenham na exploração das indústrias dessa classe, é coisa que não interessa ao quadro, assim como nele não interessa a circulação de mercadorias e de dinheiro, que se verifica dentro da sua própria órbita. O salário pago pelo trabalho, graças ao qual a classe estéril transforma as matérias-primas em produtos manufaturados é igual ao valor dos meios de existência que ela recebe, diretamente, da classe produtiva e, indiretamente, por intermédio dos proprietários territoriais. Se bem que a classe estéril se divida em capitalistas e trabalhadores assalariados, ela está, segundo a concepção fundamental de Quesnay, como classe em seu conjunto, a soldo da classe produtiva e dos proprietários territoriais. Do mesmo modo, a produção industrial total e, portanto, também a sua circulação social, distribuídas no ano seguinte à colheita, são igualmente reunidas num todo único. Supõe-se, portanto, que, no começo do movimento figurado pelo Quadro, a produção anual em mercadorias da classe estéril se encontra inteiramente em suas mãos, e, por conseguinte, todo o seu capital de exploração, ou seja, as matérias-primas no valor de um bilhão, é transformado em mercadorias, no valor de dois bilhões, cuja metade representa o preço dos meios de existência consumidos durante essa transformação. Poder-se-ia, aqui, fazer uma objeção: a classe estéril consome também produtos da indústria para suas próprias necessidades domésticas; onde, pois, figuram eles, se o produto total passou às outras classes pela circulação? A esta pergunta nos responderão: não só a classe estéril consome, ela própria, uma parte dos seus produtos, como ainda procura reter o máximo que pode; ela vende, pois, suas mercadorias postas em circulação, acima do seu valor real, e é forçada a fazê-lo uma vez que incluímos essas mercadorias no valor total de sua produção. Isso, entretanto, não altera os dados estabelecidos pelo Quadro, porque as duas outras classes só recebem, afinal de contas, as mercadorias manufaturadas pelo valor de sua produção total.

Conhecemos, agora, portanto, a posição econômica das três classes distintas no início do movimento figurado pelo Quadro.

A classe produtiva, após haver substituído, em espécie, o seu capital de produção, dispõe ainda de três bilhões de produto agrícola e de dois bilhões de moeda. A classe dos proprietários territoriais só é aí mencionada pelo seu crédito de dois bilhões de renda sobre a classe produtiva. A classe estéril dispõe de dois bilhões de mercadorias manufaturadas. Os fisiocratas chamam circulação imperfeita àquela que se efetua apenas entre duas dessas três classes: a circulação perfeita é a que se passa entre todas as três.

Passemos, pois, agora, ao Quadro econômico.

Primeira circulação (imperfeita). — Os arrendatários pagam aos proprietários territoriais, sem prestação recíproca, a renda que lhes corresponde, com dois bilhões em dinheiro. Com um desses bilhões os proprietários territoriais compram, dos arrendatários, meios de subsistência, e assim receberam metade do dinheiro desembolsado para pagar a renda.

Em sua Análise, do Quadro Econômico, Quesnay já não fala nem do Estado, que recebe dois sétimos, nem da Igreja, que recebe um sétimo da renda territorial, porque o papel social de um e de outra é universalmente conhecido. Mas. no que se refere à propriedade territorial, diz ele que os seus gastos, entre os quais também figuram todos os trabalhadores são, pelo menos em sua maior parte, gastos improdutivos, com exceção da pequena parte que é destinada a “manter e a melhorar os seus bens e incrementar o cultivo da terra”. A sua função própria, segundo o “direito natural”, consiste precisamente em zelar pela boa administração e as despesas de manutenção de seu patrimônio”, ou, como acrescenta mais adiante, consiste nos avances foncières, isto é, nas despesas destinadas a preparar o solo e abastecer as fazendas de todos os seus acessórios, gastos estes que permitem ao fazendeiro consagrar todo o seu capital exclusivamente à cultura da terra propriamente dita.

Segunda circulação (perfeita). — Com o segundo bilhão em dinheiro, que se acha ainda em suas mãos, os proprietários territoriais compram produtos manufaturados à classe estéril; e, por outro lado, esta, com o dinheiro percebido, compra dos fazendeiros os meios de existência pela mesma soma.

Terceira circulação (imperfeita). — Os fazendeiros compram à classe estéril, com um bilhão em moeda, mercadorias manufaturadas correspondentes à mesma soma; grande parte dessas mercadorias consiste em instrumentos agrícolas e outros meios de produção necessários ao cultivo da terra. A classe estéril restitui aos fazendeiros o mesmo dinheiro, comprando um bilhão de matérias-primas destinadas a substituir seu próprio capital de exploração. Assim, os arrendatários recuperam os dois em dinheiro por eles desembolsado para pagamento da tenda. Desse modo, fica resolvido o grande enigma: “Que vem a ser, na circulação econômica, o produto líquido apropriado sob forma de renda?”

No começo do processo, encontramos entre as mãos da classe produtiva um excedente de três bilhões. Deles, somente dois foram pagos como produto líquido aos proprietários territoriais, sob forma de renda. O terceiro bilhão excedente constitui os juros do capital total invertido pelos arrendatários, isto é, para 10 bilhões, lO%, estes juros — frizemo-lo bem — eles não os adquirem em virtude da circulação: acham-se em espécie em suas mãos, e a circulação nada mais faz que realizá-los, transformando-os, por esse meio, em mercadorias manufaturadas de valor igual.

Sem estes juros, o arrendatário, que é o agente principal da agricultura, não fará a ela o adiantamento do capital de estabelecimento. Esta já é uma razão para os fisiocratas pensarem que a apropriação pelo arrendatário da parte do sobre-produto agrícola que representa os juros, é uma condição tão necessária como a própria existência de uma classe de arrendatários; e esse elemento não pode, em conseqüência, ser incluído na categoria de “produto líquido” ou “rendimento líquido” nacional, de poder ser consumido sem nenhuma consideração para com as necessidades imediatas da reprodução nacional. Mas este capital de um bilhão serve, segundo Quesnay, na maioria dos casos, para as reparações tornadas necessárias durante um ano, bem como para as renovações parciais do capital de estabelecimento; serve ainda de capital de reserva para os acidentes; e, enfim, quando é possível, serve para enriquecer o capital de estabelecimento e de exploração, para melhorar o solo e ampliar as culturas.

Todo este processo é, na verdade, “bem simples”. São postos em circulação, pelos fazendeiros, dois bilhões, em dinheiro, para o pagamento da renda, e três bilhões de produtos (sendo dois terços em meios de subsistência e um terço em matérias-primas); pela classe estéril, dois bilhões de mercadorias manufaturadas, ou meios de existência, no total de dois bilhões, a metade é consumida pelos proprietários territoriais e seus dependentes, a outra metade pela classe estéril, em pagamento de seu trabalho. As matérias-primas (também dois bilhões) servem para substituir o capital de exploração desta mesma classe. Dos produtos manufaturados em cada circulação (montante: dois bilhões) uma metade se escoa para os proprietários territoriais, e a outra para os arrendatários, para os quais ela é apenas uma transformação que representa os juros de seu capital acumulado, juros primitivamente tirados da reprodução agrícola. Quanto ao dinheiro que o arrendatário pôs em circulação para o pagamento da renda, volta a seu bolso, pela venda de seus produtos: desse modo, o mesmo ciclo pode ser percorrido de novo no ano econômico que se segue.

Admirai, agora, a exposição “verdadeiramente crítica” do Sr. Dühring do Quadro de Quesnay, tão infinitamente superior às “exposições superficiais e costumeiras”. Depois de nos ter, cinco vezes seguidas, apresentado em termos misteriosos o erro de Quesnay em operar no seu Quadro unicamente com valores em moeda (o que, aliás, é falso, como vimos), ele chega, finalmente, a este resultado: desde que se lhe pergunta “o que se torna na circulação econômica o produto líquido apropriado sob forma de renda, não se pode mais explicar o Quadro econômico senão por “um misto de confusão e de arbítrio levado até o misticismo”. Vimos que o Quadro, reprodução tão simples quanto genial, para a época, do processo anual de reprodução, tal como ele se realiza por meio da circulação, explica exatamente o que vem a ser o produto líquido na circulação econômica, de maneira que o “misticismo”, a “confusão” e o “arbítrio” continuam, uma vez por todas; por conta unicamente do Senhor Dühring, como “lado mais duvidoso” e único “produto líquido” de seus estudos fisiocráticos.

O Senhor Dühring está tão a par da teoria dos fisiocratas como da influência histórica dessa escola. “Com Turgot — informa-nos ele — a fisiocracia em França desaparece teórica e praticamente”. Que Mirabeau, porém, fosse essencialmente fisiocrata em suas opiniões econômicas; que ele fosse tido, na Assembléia Constituinte de 1789, como uma autoridade em matéria de economia; que esta Assembléia tenha, em suas reformas econômicas, feito passar da teoria à prática uma boa parte das teses dos fisiocratas, e, sobretudo,, que tenha imposto uma forte contribuição ao produto líquido que a propriedade territorial absorve, “sem reciprocidade”, isto é, a renda — nada disto existe para o Senhor Dühring.

Assim como esquecendo o longo período de 1891 a 1752 eliminou todos os predecessores de Hume, assim também um outro lapso suprimiu sir James Stewart, situado entre Hume e Adam Smith. Sobre a sua grande obra, que, sem falar da importância histórica, enriqueceu de maneira considerável o domínio da economia política, na “empresa” do Sr. Dühring não se encontra uma única sílaba. Como desforra, lança contra Stewart a maior injúria do seu vocabulário, ao dizer que este era “um professor” contemporâneo de Adam Smith. Infelizmente, esta insinuação é pura invenção. Stewart era, na realidade, um grande proprietário da Escócia, que, banido da Grã-Bretanha por uma pretensa participação na conjuração dos Stewarts, residiu e viajou, durante largo tempo, pelo continente, podendo familiarizar-se com a situação econômica de diversos países.

Resumamos: De acordo com a História crítica, todos os economistas só tem tido, até hoje, o valor de apresentar “rudimentos” para a doutrina “magistral” do Senhor Dühring ou para que, em face de suas lamentáveis doutrinas, ressaltem mais as excelências do autor. Há, portanto, mesmo em economia política, alguns heróis que fornecem, não somente “rudimentos” à “doutrina aprofundada”, como também “teses” de onde aquela sai, segundo as prescrições da Filosofia da Natureza, não por “desenvolvimento”, mas por “combinação”. Esses heróis são: o “incomparável e eminente”. List que, para honra e proveito dos fabricantes alemães, forjou, em poderosas frases, as “sutis” teorias mercantilistas de um Ferrier e outros; Carey, que reergue o bom senso na proposição seguinte: “O sistema de Ricardo é um sistema de discórdia... nada mais faz do que provocar o ódio entre as classes... seu livro é o manual do demagogo que se esforça por ir ao poder, através da divisão das terras, da guerra e do saque”; e, finalmente, Mac Leod, o grande confusionista da City londrina.

Assim, as pessoas que quiserem, hoje e no futuro, estudar de perto a história da economia política, seguirão caminho multo mais acertado, pondo-se ao corrente das “elucubrações insípidas”, das “sensaborias”, das “pobrezas prolixas”, que oferecem as “mais vulgares compilações, do que se fiando no quadro histórico “de grande estilo” do Senhor Dühring.

Que resulta, afinal, de contas, de nossa análise do “sistema de economia política que é a obra” do Senhor Dühring? Exatamente às mesmas conclusões a que chegamos na análise de sua “Filosofia”; todas as suas frases pomposas e suas grandiloqüentes promessas se reduziram a fumaça. A “teoria do valor”, “esta pedra de toque dos sistemas econômicos”, acaba nisto: o Senhor Dühring entende pela palavra “valor” cinco coisas absolutamente diferentes e absolutamente contraditórias entre si; de forma que em resumo, ele próprio não sabe o que quer. As “leis naturais de toda economia”, anunciadas com tanta pompa, revelaram-se apenas lugares-comuns conhecidos de todo o mundo e que, aliás, quase sempre não são interpretados corretamente. A única explicação dos fatos econômicos que este sistema dühringuiano nos oferece é que eles são o resultado da “violência”, maneira esta de falar com a qual, há séculos, os filisteus de todas as nações se consolam de tudo que lhes acontece de desagradável, e que nada nos ensina.

Mas, em vez de procurar a origem e aprofundar os efeitos da violência, o Sr. Dühring convida-nos a nos darmos por satisfeitos com essa palavra, tomando-a como última causa, a explicação definitiva e inapelável dos fenômenos econômicos, pelo que muito lhe devemos agradecer. Obrigado a fornecer mais alguns esclarecimentos sobre a exploração capitalista do trabalho, ele a apresenta, primeiro, como baseada na tributação e na elevação dos preços, com isso não fazendo mais que se apropriar de um detalhe da doutrina proudhoniana (o prélèvement), para explicar, em seguida, detalhadamente, por meio de Marx, a teoria do sobre-trabalho, do sobre-produto e da mais-valia. Consegue, dessa maneira, conciliar com felicidade duas concepções absolutamente contraditórias, copiando-as e combinando-as de uma penada. E do mesmo modo que, na filosofia, não encontrava palavras bastante grosseiras para usar contra aquele mesmo Hegel a quem não faz mais que explorar, desfigurando-o, na História crítica, as calúnias gratuitas contra Marx servem para encobrir o fato de que tudo o que se encontra no Curso, de mais ou menos racional, sobre o capital e o trabalho, não passa de um nobre plágio, cuja vítima é Marx. A ignorância do homem que, no Curso, coloca no começo da história dos povos civilizados o “grande proprietário territorial”, mostrando, assim, não ter a menor idéia da propriedade coletiva do solo, que vigorava entre as tribos e as comunidades rurais, ponto de partida, na realidade, de toda a História, e essa ignorância, mais ou menos inconcebível hoje, é quase ultrapassada ainda por aquela que, na História crítica, se apresenta sem modéstia como “alcance universal da visão histórica de conjunto”, da qual apenas demos alguns exemplos desanimadores. Em poucas palavras: primeiramente, “esbanjamento” gigantesco de elogios a si próprio, charlatanesco alarico de trompa, de promessas que se derramam umas sobre as outras; e, por fim, o “resultado” — zero.


 

PARTE III

Socialismo

 


Capítulo I
TRAÇOS HISTÓRICOS

 

Vimos, na Introdução, como os filósofos franceses do século XVIII. que abriram o caminho para a revolução, apelavam para a razão como único juiz de tudo quanta existe. Pretendia-se instaurar um Estado racional, uma sociedade ajustada à razão, e tudo quanto contradissesse a razão eterna deveria ser enterrado sem a menor piedade. E vimos também que na realidade, essa razão eterna não era senão a inteligência idealizada do homem da classe média daqueles tempos, do qual haveria de sair, em seguida, o burguês. Por isso, quando a Revolução Francesa tentou criar essa sociedade nacional e esse Estado da razão. viu-se que as novas instituições, por muito que se destacassem das antigas, ficavam ainda longe da razão absoluta. O Estado da razão fracassara ruidosamente. O contrato social de Rousseau tomaria corpo no regime do terror e, fugindo dele e desconfiando já de seus próprios donos políticos, a burguesia foi refugiar-se, primeira, na corrupção do Diretório e, por fim, sob a égide do despotismo napoleônico. A prometida paz eterna transformara-se numa interminável guerra de conquistas. A sociedade da razão também não teve melhor sorte. O antagonismo entre pobres e ricos, longe de desaparecer no bem-estar geral, aguçara-se ainda mais, com o desaparecimento dos privilégios feudais e muitos outros, que o atenuavam, e os estabelecimentos de beneficência, que mitigavam um pouco o contraste da desigualdade.

O desenvolvimento da indústria em bases capitalistas converteu a pobreza e a miséria dos massas trabalhadoras em condições de vida da sociedade. A estatística criminal crescia de ano para ano. Os vícios feudais, que até então se exibiam impudicamente à luz do dia não desapareceram, mas apenas se esconderam, ao menos por um momento, no fundo da cena. Em troca, floresciam exuberantemente os vícios burgueses, ocultos até então sob a superfície. O comércio foi degenerando, cada vez mais descaradamente, em roubo. A “fraternidade” da divisa revolucionária tomou corpo nas deslealdades e na inveja da concorrência. A opressão violenta cedeu lugar à corrupção, e a espada, primeira arma de poder social, foi substituída pelo dinheiro. O privilégio da primeira noite nupcial passou do senhor feudal para o fabricante burguês. A prostituição desenvolveu-se em proporções inauditas. O casamento continuou sendo o que já era: a forma sancionada pela lei, o manto oficial com que se cobria a prostituição seguida de uma abundância complementar de adultério. Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos racionalistas, as instituições políticas e sociais, instauradas pela “vitória da razão”, deram como resultados umas tristes e decepcionantes caricaturas, Só faltava mesmo que os homens pusessem em relevo o seu desengano Esses homens surgiram nos primeiros anos do século XIX. Em 1802, foram publicadas as Cartas genebrinas de Saint-Simon; em 1808, Fourier editou o seu primeiro livro, embora as bases da sua teoria já datassem de 1799; em 1 de janeiro de 1800, Robert Owen assumiu a direção da empresa de New Lanark.

Por aqueles tempos, todavia, o regime capitalista de produção, e, com ele, o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, não haviam saído ainda de sua fase incipiente. A grande indústria, que, na Inglaterra acabava de nascer, era inteiramente desconhecida na França. E a grande indústria é a encarregada de desenvolver, em todas as partes, os conflitos que reclamam imperiosamente, de um lado, a subversão do regime de produção — conflitos que estalam não só entre as classes engendradas por ela como também entre forças produtivas e as formas de intercâmbio por elas criadas, — e, de outro, as gigantescas forças produtivas, que oferecem os meios para resolver esses conflitos. Nos princípios do século os conflitos, que brotavam da nova ordem social, começavam apenas a crescer a muito mais, naturalmente, os meios que haveriam de conduzir à sua solução. Se as massas desprotegidas de Paris conseguiram apossar-se, por algum tempo, do poder, durante o regime do Terror, foi somente para demonstrar até que ponto era impossível manter esse poder nas condições da época. O proletariado, que começava a destacar-se, no seio dessas massas desprotegidas, como tronco de uma classe nova, mas ainda incapaz de desenvolver uma ação política própria, não representava mais do que um setor oprimido, castigado, ao qual, em sua Incapacidade para valer-se a si mesmo, teria que ser dada ajuda de fora, do alto, se possível.

Essa situação histórica dá forma às doutrinas dos fundadores do socialismo. Suas teorias incipientes não fazem mais do que refletir o estado incipiente da produção capitalista a embrionária situação da classe. Queria tirar do cérebro a solução dos problemas sociais latentes ainda nas condições econômicas embrionárias da época. A sociedade não continha senão males, que a razão pensante era chamada a remediar. Tratava-se de descobrir um novo sistema, mais perfeito, de ordem social, a fim de impô-lo à sociedade, de fora para dentro, por meio da propaganda, e, se possível, pregando-o com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelos de conduta — Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos mais haveriam de degenerar, forçosamente, em puras fantasias.

Baseados nisso, não há razão para nos determos nem um momento mais nesse aspecto já definitivamente incorporado ao passado. Deixemos que os trapeiros literários do tipo do Sr. Dühring revolvam solenemente estas fantasias, que hoje provocam riso, para salientar sobre esse “fundo” a seriedade e a respeitabilidade do seu próprio sistema. Nós, longe de nos rirmos, nos admiramos das idéias geniais e dos geniais germes de idéias que nascem por toda parte sob esse invólucro de fantasia e que os filisteus, naturalmente, são incapazes de enxergar.

Saint-Simon era filho da Grande Revolução Francesa, que estalou quando ainda não contava trinta anos. A revolução francesa foi a vitória do Terceiro Estado, isto é, da grande massa da nação a cujo cargo estavam a produção e o comércio, sobre os fundamentos, até então ociosos e privilegiados, da sociedade: a nobreza e o clero. Mas, de repente, verificou-se que a vitória do Terceiro Estado não era senão a vitória de uma parte muito pequena dele, a conquista do poder político pelo setor socialmente privilegiado dessa classe: a burguesia abastada. Essa burguesia soube, além disso, aproveitar-se da revolução para enriquecer-se rapidamente, especulando com os bens confiscados e. em seguida, vendidos, da aristocracia e da Igreja, e enganando a nação por meio dos fornecimentos ao exército. Foi precisamente o governo desses especuladores que, sob o Diretório, levou a França e a revolução à beira da ruína, proporcionando a Napoleão o pretexto que desejava para o seu golpe de Estado. Por isso, no espírito de Saint-Simon, o antagonismo entre o Terceiro Estado e os setores privilegiados da sociedade tomou a forma de um antagonismo entre “trabalhadores” e “homens ociosos”. Os ociosos eram não só os antigos privilegiados mas também os que viviam de suas rendas, sem interferir na produção nem no comércio. No conceito de “trabalhadores” não entravam somente os operários assalariados, mas também os industriais, os comerciantes e os banqueiros. Que os ociosos haviam perdido os títulos que os capacitavam a dirigir espiritualmente e a governar politicamente o país era um fato evidente que a revolução tinha evidenciado de modo definitivo. E, para Saint-Simon, as experiências do regime do terror faziam supor, também, que os sans-culottes, por sua vez, não tinham suficiente capacidade para isso. Então, quem havia de dirigir e governar a nação? Segundo Saint-Simon a ciência e a indústria, unidas por um novo laço religioso destinado a restaurar a unidade das idéias religiosas destruída desde a Reforma, um novo “cristianismo” forçosamente místico e rigorosamente hierárquico. Mas a ciência eram os sábios acadêmicos e a indústria, em primeiro lugar, os burgueses ativos, os fabricantes, os comerciantes, os banqueiros. E esses mesmos burgueses, segundo as concepções de Saint-Simon, haveriam de transformar-se numa espécie de funcionários públicos, de agentes sociais, mas conservariam, sempre, diante dos operários, uma posição autoritária e economicamente privilegiada. Os banqueiros, principalmente, seriam chamados a regular toda a produção social por meio de uma regulamentação de crédito. Esse modo de conceber a sociedade correspondia perfeitamente a uma época em que a grande indústria e, com ela o antagonismo entre a burguesia e o proletariado começava a despontar na França. Saint-Simon, não obstante, insiste em que o que o preocupa sempre, em primeiro lugar, é a sorte da “classe mais numerosa e mais pobre” da sociedade (la classe la plus nombreuse et la plus pauvre).

Já em suas Cartas genebrinas sustenta Saint-Simon a tese de que “todos os homens devem trabalhar”. E aí já se expressa a idéia de que o regime do terror era o governo das massas desprotegidas. “Vede — grita-lhes, — o que aconteceu, na França, quando vossos camaradas subiram ao poder, ocasionando uma epidemia de fome”. Mas, o conceber a Revolução Francesa como uma luta de classe entre a nobreza, a burguesia e os desprotegidos, era um descobrimento verdadeiramente genial para o ano de 1802. Em 1818, Saint-Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz a total absorção da política pela economia. E se aqui não se faz mais do que apontar a consciência de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama-se já, claramente, a futura transformação do governo político sobre os homens numa gestão administrativa sobre as coisas e no governo direto sobre os processos da produção que não é nem mais nem menos, do que a idéia da abolição do Estado, que tanto ruído levanta hoje. E, erguendo-se neste mesmo plano de superioridade sobre os contemporâneos, declara, em 1814, coincidindo quase com a entrada, em Paris, das tropas coligadas, e reafirma, em 1815, durante a guerra dos Cem Dias, que a aliança da França com a Inglaterra e a destes dois países com a Alemanha é a garantia única da prosperidade e paz, para a Europa. Para aconselhar aos franceses de 1815 uma aliança com os vencedores de Waterloo era preciso seguramente mais valentia do que para declarar uma guerra de palavras aos professores alemães.

O que, em Saint-Simon, é uma profundeza genial de visão, que lhe permite conter, em germe, todas as idéias não estritamente econômicas dos socialistas posteriores é, em Fourier, a crítica sutil do francês autêntico, crítica engenhosa mas nem por isso menos profunda das condições sociais existentes. Fourier surpreende, pela palavra, a burguesia, aos seus ardorosos profetas pré-revolucionários e seus aduladores de após-revolução. Despe impiedosamente a miséria material e moral do mundo burguês e compara-o com as promessas tentadoras dos racionalistas, com a sua imagem da sociedade — em que só a razão predominaria, em que a civilização faria todos os homens felizes e a capacidade humana de perfeição superaria todos os obstáculos, — e com as brilhantes palavras dos ideólogos burgueses da época. Mostra, derramando sobre esse ruidoso caudal da fraseologia sua sátira mordaz, como essas frases bombásticas contrastam, em todas as partes, com a mais cruel realidade. Fourier não é apenas um crítico; seu espírito sutil e engenhoso torna-o satírico, — um dos maiores satíricos de todos os tempos. A loucura de especulação, que se acentua com o refluxo da onda revolucionária e a mesquinhez do comércio francês daqueles anos, aparecem desenhados em sua obra com traços maravilhosos e cativantes. Ele se torna ainda mais formidável na crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade burguesa. É o primeiro a proclamar que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral. Onde mais se eleva Fourier, entretanto, é no modo por que concebe a história da sociedade. Fourier divide toda a história em quatro fases ou etapas: o selvagismo a barbaria, o patriarcado e a civilização, sendo que esta última, na sua opinião, coincide com a chamada sociedade burguesa atual e afirma “que a ordem civilizada exalta de modo complexo, duplamente perverso, equívoco e hipócrita, todos os vícios que a barbaria praticava em meio da maior simplicidade”. Para ele, a civilização debate-se num “círculo vicioso”, num ciclo de antagonismos, que está engendrando e constantemente renovando, sem conseguir superá-lo, obtendo sempre justamente o contrário do que quer, ou, pelo menos finge querer conseguir. E assim deparamos, por exemplo, o fato de “na civilização, a pobreza decorrer da própria abundância” Como se vê Fourier maneja a dialética com a mesma mestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que se empavonam falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, salienta com a mesma dialética, que toda fase histórica tem, ao mesmo tempo, um lado ascendente e outro descendente e projeta esta concepção sobre o futuro de toda a humanidade. E, assim como Kant proclama, na ciência da natureza, o futuro desaparecimento da terra, Fourier proclama, na ciência histórica, a extinção futura da humanidade.

Enquanto o furacão da revolução varria o solo da França, na Inglaterra se desenvolvia um processo revolucionário mais silencioso, mas, nem por isso, menos poderoso. O vapor e a nova maquinaria transformaram a manufatura na grande indústria moderna, revolucionando, com isso, todos os fundamentos da sociedade burguesa. O ritmo lento do período da manufatura transformou-se numa marcha verdadeiramente vertiginosa de produção. Com uma velocidade cada vez mais acelerada ia-se operando a divisão da sociedade em dois campos: os grandes capitalistas e os proletários, entre os quais já não ficava encravada a antiga classe média, com sua estabilidade, mas, ao contrário, oscilava, levando vida insegura, uma massa instável de artesãos e pequenos comerciantes, a parte mais flutuante da população. O novo regime de produção começava a percorrer ainda a sua vertente ascensional. Era ainda o regime de produção normal, e, também, o único possível naquelas circunstâncias. E, no entanto, já engendrava toda uma série de abusos sociais clamorosos: o amontoado de uma população arrancada de seu solo nas mais sórdidas habitações das grandes cidades; a dissolução de todos os lucros tradicionais do costume, da submissão patriarcal, da família; a exploração abusiva do trabalho, que, para as mulheres e para os menores, principalmente, tomava proporções assustadoras: a corrupção de massas de trabalhadores lançadas, de súbito, em condições de vida totalmente novas. Nestas circunstâncias, surge como reformador um industrial de vinte e nove anos, um homem cuja pureza infantil atingia o sublime, e que era, ao mesmo tempo, um inato condutor de homens, como poucos. Robert Owen assimilara os ensinamentos dos materialistas do racionalismo, segundo os quais se o caráter do homem é por um lado o produto de sua organização inata, é, por outro, o fruto das circunstâncias que o rodeiam durante sua vida, e, principalmente, durante o período de seu desenvolvimento. A maioria dos homens de sua classe viam, na revolução, apenas caos e confusão, uma ocasião propícia para se pescar em águas turvas e enriquecer-se rapidamente. Owen viu nela o terreno adequado para pôr em prática sua tese favorita, transformando o caos em ordem. Já em Manchester, dirigindo uma fábrica de mais de quinhentos trabalhadores, tentara, não sem êxito, pôr em prática sua teoria: de 1800 a 1829, conduziu, no mesmo sentido, embora com muito mais liberdade de iniciativa e com um êxito que lhe valeu fama européia, a grande fábrica de fios de algodão de New Lanark, na Escócia, da qual era sócio e gerente. Uma população operária, que foi crescendo até chegar a 2.500 indivíduos, recrutada entre os elementos mais heterogêneos, a maioria dos quais sem qualquer princípio moral, converteu-se, em suas mãos, numa perfeita colônia modelo, na qual não se conhecem a embriaguês, a policia, o cárcere, os processos, os pobres nem a beneficência pública. Para isso, bastou-lhe colocar os seus trabalhadores em condições humanas de vida, dedicando um cuidado especial à educação de seus descendentes. Owen foi o inventor dos jardins-de-infância, que funcionaram, pela primeira vez, em New Lanark. As crianças, já aos dois anos de idade, eram enviadas à escola e nela se sentiam tão satisfeitas, com os seus jogos e diversões, que não havia quem de lá as tirasse. Ao passo que, nas outras fábricas que lhe faziam concorrência, a duração do trabalho era de treze e quatorze horas por dia, a jornada em New Lanark era de dez horas e meia. Ao estalar uma crise algodoeira, que o obrigou a fechar a fábrica durante quatro meses, os trabalhadores de New Lanark continuaram percebendo integralmente os seus salários. E, apesar disso, a empresa duplicou seu capital e deu, até o último dia, grandes lucros a seus sócios.

Owen, porém, não estava satisfeito com o que conseguira. A existência que proporcionara a seus operários estava, segundo ele, ainda muito longe de ser uma existência humana: “Aqueles homens eram meus escravos”: as condições relativamente favoráveis em que os havia colocado não lhes permitam ainda, nem ao menos, desenvolver racionalmente e em todos os seus aspectos a inteligência e o caráter, e, muito menos, exercer livremente a sua vida. “E, no entanto, a parte operária daquelas 2.500 almas produzia para a sociedade uma soma tão grande de riqueza que, meio século antes, 600.000 homens juntos não seriam capazes de criá-la. Eu me perguntava: Para onde irá a diferença entre a riqueza consumida por estas 2.500 criaturas e a que teriam que consumir as 600.000 de outrora? A resposta não era difícil. Essa diferença destinava-se a abonar aos sócios da empresa os cinco por cento de juros do capital de estabelecimento, o que importava em 300.000 libras esterlinas de lucros. E o caso de New Lanark era, ainda em maior medida, o de todas as fábricas da Inglaterra. “Sem esta nova riqueza criada pelas máquinas não teria sido possível levar a cabo as guerras que se fizeram para derrubar Napoleão e manter de pé os princípios da sociedade aristocrática. E, entretanto, este novo poder era obra da classe trabalhadora”. A ela, portanto, deviam pertencer os seus frutos. As novas e gigantescas forças produtivas que, até então, só haviam servido para enriquecer uma minoria e para a escravização das massas, lançava, na opinião de Owen, os alicerces de uma nova estrutura social e estavam destinadas a trabalhar apenas para o bem-estar geral, como propriedade coletiva de todos os membros da sociedade.

E foi assim, por este caminho puramente industrial, como um fruto, por assim dizer, dos cálculos de um homem de negócios, que surgiu o comunismo oweniano, que conservou sempre este mesmo caráter prático. Em 1823, Owen propõe a criação de um sistema de colônias comunistas para combater a miséria irlandesa e apresenta, em favor de sua proposta, um orçamento completo de instalação, despesas anuais e receitas prováveis. E, em seus planos definitivos do futuro, as minúcias técnicas do assunto estão calculadas com tal conhecimento da matéria, que, aceito o método oweniano da reforma da sociedade, pouca coisa se lhe poderia objetar, mesmo um técnico muito competente quanto aos pormenores da organização.

Ao abraçar o comunismo, a vida de Owen transformou-se radicalmente. Enquanto se limitara a agir como filantropo, colheu riquezas, aplausos, honrarias e fama. Era o homem mais popular da Europa.

Dispensavam-lhe entusiástica acolhida não só os homens de sua classe e posição social, como também os governantes e príncipes. Mas, quando formulou suas teorias comunistas, a coisa mudou de aspecto. Segundo ele, os grandes obstáculos que se antepunham à reforma social eram, principalmente, três: a propriedade privada, a religião e a forma atual do matrimônio, E não ignorava o perigo que corria combatendo-os. Nem podia ignorar que lhe estavam reservadas a condenação geral da sociedade oficial e a perda da posição que nela ocupava. Mas essa consideração não o deteve em seus impiedosos ataques àquelas instituições. E ocorreu o que estava previsto. Alijado da sociedade oficial, ignorado pela imprensa, arruinado por suas malogradas experimentações comunistas na América, — às quais sacrificou toda a sua fortuna, — entregou-se diretamente à classe trabalhadora, no seio da qual ainda agiu durante trinta anos. Todos os movimentos sociais, todos os melhoramentos reais tentados pela Inglaterra em prol da classe trabalhadora estão associados ao nome de Owen. Assim, por exemplo, em 1819, depois de cinco anos de lutas. conseguiu fosse promulgada a primeira lei regulamentadora do trabalho da mulher e dos menores nas fábricas. Foi ele, também, quem presidiu o primeiro congresso em que os sindicatos de toda a Inglaterra se fundiram num grande e único sindicato. E foi também ele quem implantou, como medida de transição, até que a sociedade pudesse, na sua totalidade, organizar, comunisticamente. duas espécies de organismos: as cooperativas de consumo e de produção, que, pelo menos, mostram praticamente a inutilidade do comerciante e do fabricante, e os bazares operários, estabelecimentos em que se trocavam os produtos do trabalho por bônus de trabalho, que fazem as vezes do papel-moeda e cuja unidade é a hora de trabalho despendido. Estabelecimentos necessariamente fadados ao fracasso, mas que superam os bancos proudhonianos de intercâmbio, muito posteriores, diferenciando-se destes principalmente porque não pretendem servir de panacéia universal para todos os males sociais, mas são, pura e simplesmente, um primeiro passo para a transformação radical da sociedade.

São estes os homens que o olímpico Senhor Dühring contempla dos cimos de sua “verdade absoluta e de última instância” com o desprezo que salientamos na Introdução. Este desprezo, pelo menos em parte, tem seu fundamento e sua razão, pois nasce, em última análise, de uma ignorância verdadeiramente assustadora das obras dos três utopistas. De Saint-Simon, por exemplo, diz-nos que “sua idéia fundamental era substancialmente exata, e pondo de parte certas particularidades, ainda hoje determina e impulsiona uma série de modalidades reais”. Pois bem: apesar de não duvidarmos de que o Sr. Dühring haja tido em suas mãos algumas das obras de Saint-Simon, em vão buscaremos, nas vinte e sete páginas impressas que lhe dedica, a “idéia fundamental” de Saint-Simon, a que mais acima se refere, nem também atinamos com “o que quer significar, por si mesmo, o quadro econômico de Quesnay, e por fim, queiramos ou não, temos de nos contentar com a afirmativa de que “a imaginação e o efeito filantrópico.., com a fantasiosa hipertensão própria dele, dominavam todo o mundo ideológico de Saint-Simon”. Em Fourier, só vê e só toma em consideração as suas fantasias sobre o futuro, cheias de minúcias novelescas. Não duvidamos de que isso “interesse muito mais” para pôr em relevo a infinita superioridade do Sr. Dühring sobre Fourier do que o pesquisar como eles “procura críticar por alto os fatos reais”. Por alto, quando nele não há uma só página em que não brilhem as chamas de sua sátira e da crítica às misérias da tão endeusada civilização! É como se disséssemos que o Senhor Dühring proclama “por alto” o Senhor Dühring como o maior pensador de todos os séculos. E, no que se refere a Roberto Owen, para escrever as doze páginas que lhe consagra, não teve outra fonte de informação senão a mísera bibliografia de Sargant, um filisteu que também não conhecia as obras mais importantes de Owen: as relativas ao matrimônio e à organização comunista da sociedade. Essa ignorância permite ao Senhor Dühring lançar intrepidamente a afirmativa de que não há base para “pressupor” em Owen um “comunismo decidido”. Se houvesse tido em suas mãos o seu Book of the New Moral World, não só teria visto afirmado nele o mais definido comunismo, com o dever geral de trabalhar e o direito de participar eqüitativamente do produto do trabalho — equidade dentro de cada idade, como Owen salienta sempre — como também, perfeitamente esboçado, o edifício da sociedade comunista do futuro, com os seus planos, a sua planta e a sua perspectiva. Mas, quando o “estudo das obras pessoais dos representantes da ideologia socialista se reduz ao simples conhecimento do título, ou, quando muito, de qual é o tema de alguns livros, como é o caso do Sr. Dühring, não há outra solução senão precipitar-se em afirmativas absurdas e inventadas. Owen não só pregou o “comunismo decidido” como também o praticou durante cinco anos (do fim da década de 1830 ao início da década de 1840) na colônia de Harmony Hall de Hampshire, cujo comunismo não deixava, quanto à sua decisão, nada a desejar. Eu mesmo tive ocasião de falar pessoalmente com várias pessoas que haviam pertencido a essa colônia comunista experimental. O que acontece é que Sargant ignora completamente a atividade de Owen entre os anos de 1836 e 1850. Por esse motivo, a “profunda historiografia” do Sr. Dühring debate-se nas mais negras trevas. O Sr. Dühring diz que Owen era, “em todos os sentidos, um verdadeiro monstro de impertinência filantrópica”. Pode dizê-lo o Senhor Dühring. Entretanto, se a nós nos ocorresse dizer desse mesmo Senhor Dühring, que nos fala do conteúdo de livros que só conhece pelo título e, quando muito, pelo assunto, que é, “em todos os sentidos, um verdadeiro monstro de impertinência ignorante”, em nossos lábios isso seria um “insulto”.

Eram utopistas, pois, como temos dito, porque não podiam ser outra coisa, numa época em que a produção capitalista começava a desenvolver-se. Não tinham outra solução senão tirar da cabeça os elementos de uma nova sociedade, pelo simples fato de que na sociedade antiga esses elementos não se manifestavam ainda em caráter geral. Para esboçar os planos do novo edifício, tinham que ater-se aos ditames da razão, porque não podiam apelar para a história vivida. E se, hoje, quase oitenta anos depois de seu aparecimento, o Sr. Dühring entra em cena com a pretensão de construir o sistema “definitivo” de uma nova ordem social, não o desenvolvimento como o resultado necessário do material histórico existente, mas tirando-o de sua cabeça privilegiada, de seu espírito cheio de verdades definitivas e inapeláveis, não é mais do que um epígono dos utopistas, o último dos utopistas, ele que, por toda parte, vê apenas epígonos. O Sr. Dühring chama os grandes utopistas de “alquimistas sociais”. É possível. Também a alquimia foi necessária em seu tempo. Mas, desde então, veio a grande indústria desenvolver as contradições que dormiam no seio do regime capitalista de produção, desenvolvendo-as até convertê-las em antagonismos sociais tão clamorosos, que já se pode — se é possível dizer-se — tocar com as mãos a derrota iminente deste regime de produção a tal ponto, que as novas forças produtivas se podem conservar e desenvolver desde que seja implantado um novo regime de produção consentâneo como seu grau atual de desenvolvimento; a luta entre as duas classes, criada pelo regime atual de produção e continuamente renovada, em antagonismo cada vez mais acentuado, invadiu todos os países civilizados, tornando-se cada dia mais violenta; já temos hoje consciência de seu encadeamento histórico e podemos penetrar nas condições da transformação social, que se torna inevitável, como podemos predizer igualmente as linhas gerais dessa transformação, condicionada também por ela própria. Quando o Sr. Dühring, em vez de limitar-se ao material econômico existente, elabora, tirando de seu augusto cérebro, uma nova ordem social utópica, não só pratica a “alquimia social”, como também age como agiria alguém que, depois de descobrir e enunciar as leis da química moderna, teimasse em restaurar a alquimia no seu antigo esplendor, valendo-se dos pesos atômicos, das fórmulas moleculares, da valência dos átomos, da análise espectral e da cristalografia, para, finalmente, descobrir... a pedra filosofal.

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NOTAS

 

(1) — É bem mais fácil invetivar contra a antiga filosofia da natureza, acompanhando o vulgo profano, como o faz Carlos Vogt, do que apreciar sua importância histórica. Ela contém inúmeros absurdos e fantasias, mas não tantas quantas se encerram nas teorias dos naturalistas empíricos da mesma época e já se começa a perceber, desde a vulgarização da teoria da evolução, quanto encerra de bom senso e de inteligência. Assim. Haeckel reconheceu muito justamente os méritos de Treviranus e de Ocken. Este, estabeleceu o postulado da biologia baseado na substância colóide primitiva (Urschleim) e sua vesicuta primária (Urblaschen), coisas que depois foram chamadas protoplasma e célula. Hegel é, no que lhe concerne especialmente, de muitos pontos de vista, bem superior aos empiristas de seu tempo, que supunham haver explicado todos os fenômenos atribuindo-os a uma força — força de gravidade, força de rotação, força de contato elétrico, etc. — e na impossibilidade dessas, a uma substância desconhecida, substância luminosa, calorífica, elétrica, etc. As substâncias imaginárias estão hoje mais ou menos abandonadas, mas o “charlatanismo das forças”, que Hegel combatia, reaparece como fantasma, por exemplo, no discurso pronunciado por Helmholtz em Iunsbrück no ano de 1869. (Cf. Helmbolts, Populäre Vorlesungen, 2o. caderno, 1871, pág. 190). A propósito do endeusamento (herdado aos franceses do século XVIII) de Newton, que a Inglaterra cobriu de ouro e de honrarias, Hegel observou que Kepler, abandonado à fome pela Alemanha, é o verdadeiro fundador da mecânica moderna dos corpos celestes e que a lei da gravitação de Newton já se achava contida nas três grandes leis de Kepler, e, de forma explícita mesmo, na terceira daquelas leis. O que Hegel prova, por meio de simples equações. na sua Filosofia da Natureza, § 270, e nas adições (Hegeis Werke, edição de 1842 tomo VII, págs. 98 e 113-115) está hoje confirmado pela novíssima mecânica matemática de Gustavo Ktrchhoff (Vorlenslingen über Mathematische Physik, 2a. ed. Leipzig, 1877, pág. 10), sob forma essencialmente idêntica à fórmula matemática primeiramente exposta por Hegel. Os filósofos da natureza estão, para a ciência natural conscientemente dialética, na mesma situação em que se acham os utopistas para o comunismo moderno.

(2) — Vide Enciclopédia, § 23.

(3) — Ernst Haeckel — História de la Creacion, pag. 337.

(4) — Posteriormente à data em que escrevi o trecho acima, parece ter-se confirmado essa hipótese. Segundo as últimas pesquisas feitas por Mendelelef e Bogusky, com aparelhos de maior precisão, todos os verdadeiros gases revelaram relações variáveis entre pressão e volume; o coeficiente de expansão do hidrogênio tinha sido positivo, em todas as pressões aplicadas até então (diminuía o volume com maior lentidão conforme aumentava a pressão); no ar da atmosfera e em todos os demais gases investigados, foi descoberto um ponto morto de pressão, de tal modo que, nos casos de pequena pressão, aquele coeficiente era positivo. convertendo-se em negativo com o aumento de pressão. Assim, a lei de Boyle, embora utilizável ainda, praticamente, precisará ser completada, de acordo com os resultados das pesquisas, por toda uma série de leis especiais. (Atualmente — 1885 — já sabemos, além disso, que não existem, de modo algum, “verdadeiros” gases, pois que todos podem ser reduzidos ao estado fluido).

(5) — A fundamentação das idéias modernas de igualdade, nas condições econômicas da sociedade burguesa, foi analisada, pela primeira vez, por Marx, em O Capital.

(6) — No Estado-Maior Prussiano conhecem muito bem o assunto que estamos tratando. “A base da arte da guerra é, em primeiro lugar, o regime econômico de vida dos povos”, diz um Senhor Max Jahns, capitão de Estado-Maior, numa conferência científica (Kolnische Zeitung, 20 de abril de 1876. fl. 3).

(7) — O aperfeiçoamento que se está atingindo na grande indústria, em relação à guerra marítima — o torpedo automático — parece realizar desde já este prognóstico. Se a invenção chegar a se aperfeiçoar o mais ínfimo torpedo sobrepujará, em eficiência combativa, ao mais gigantesco encouraçado. (Quanto ao resto, permito-me recordar ao leitor que isto foi escrito em 1878).

(8) — E nem sequer esta palavra. Eis o que diz Rodbertus (“Cartas Sociais”, Carta 2, pág. 59): “Renda é, segundo esta teoria (sua teoria) tudo o que se ganha sem um trabalho próprio exclusivamente à base de um direito de posse”.

(9) — Título da obra do anarquista alemão Stirner.

(10) — Alusão a uma obra de Dürhing para Bismarck, por encomenda de Wagener, professor e conselheiro prussiano.


 

©2001 — Ridendo Castigat Mores

 

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Março 2001

 

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