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DRÁCULA

Bram Stoker


 

Drácula
Bram Stoker

Edição
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
Thiago Maia
O Dialético
www.odialetico.hpg.com.br/

©2002 — Bram Stoker


Índice

Prefácio
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27


DRÁCULA
de
Bram Stoker

imagem

Edição de 1897


PREFÁCIO

 

À leitura destes papéis, tornar-se-á evidente o motivo de terem sido eles dispostos em seqüência. Todas as matérias inúteis foram eliminadas, de modo a ser apresentada como simples fato uma história que não se enquadra muito bem nas possibilidades atuais. Não há, em toda ela, uma afirmação de coisas passadas em que a memória possa errar, pois as anotações escolhidas são rigorosamente contemporâneas, baseadas nos pontos de vista, e de acordo com o conhecimento dos que as fizeram.


CAPÍTULO I

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Taquigrafado)

3 de maio. Bistritz — Parti de Munique às 8:35 da noite e cheguei a Viena na manhã seguinte, muito cedo; devia ter chegado às 6:46, mas o trem estava atrasado uma hora. Tive ótima impressão de Budapeste, pelo que pude ver do trem, e pelo pequeno passeio que dei pela cidade. A impressão que tive foi a de estar saindo do Ocidente e entrando no Oriente.

O tempo estava muito bom quando partimos e, ao anoitecer, chegamos a Klausenburg, onde passei a noite no Hotel Royale. Ali jantei, ou melhor, ceei, uma excelente galinha temperada com uma espécie de pimenta vermelha. (Nota: arranjar receita para Mina.) Meu alemão, embora eu o fale mal, me foi muito útil; para falar a verdade, não sei como me arranjaria sem ele.

Antes de partir de Londres, como dispunha de algum tempo, fiz uma visita ao Museu Britânico, onde consultei livros e mapas referentes à Transilvânia. Descobri que a região por ele mencionada fica perto das fronteiras de três Estados: Transilvânia, Moldávia e Bucovina, nos Montes Cárpatos, um dos lugares mais selvagens e menos conhecidos da Europa. Não consegui localizar, exatamente, o Castelo de Drácula, mas verifiquei que Bistritz, a localidade mencionada pelo Conde Drácula, é bem conhecida. Vou recorrer aqui a algumas das minhas notas, pois elas poderão refrescar-me a memória, quando conversar com Mina a respeito das minhas viagens.

A população da Transilvânia se compõe de quatro nacionalidades: os saxões, ao sul, e misturados com os valáquios, descendentes dos dácios; os magiares, a oeste, e os zequelis, a leste e norte. Estou viajando para a região habitada por estes últimos, que se dizem descendentes de Átila e dos hunos. Segundo li, existem ali as mais curiosas superstições do mundo. (Nota: falar ao Conde a esse respeito.)

Não dormi bem, apesar de minha cama ser bastante confortável, pois fui perturbado, por sonhos esquisitos. Durante a noite inteira, um cão ladrou sob a minha janela, e talvez tenha sido ele que me prejudicou o sono, ou, talvez, tenha sido a pimenta que comi no jantar. O fato é que bebi um frasco de água inteirinho, pois senti uma sede ardente.

Somente quando já estava quase amanhecendo foi que consegui conciliar o sono e fui despertado por pancadas repetidas na porta do quarto, de maneira que acho que estava, mesmo, dormindo profundamente.

Como primeira refeição, me deram mais pimenta vermelha e uma espécie de mingau de farinha de milho, chamado “mamaliga”, um ovo misturado com carne, que constitui um prato excelente, chamado “impleata”. (Nota: pedir a receita, também.)

Tive de comer apressadamente, pois o trem partia às oito horas. A verdade é que ainda esperei dentro dele uma hora inteira, até que ele partisse. Parece que quanto mais a gente avança rumo ao Oriente, tanto maiores se tornam os atrasos. Como é que se arranjarão na China? Durante todo o dia atravessamos uma bela região, entremeada de aldeias ou castelos situados em encostas de colinas íngremes. Em todas as estações, havia grupos de camponeses, metidos em seus trajes regionais. São pitorescos e parecem, à primeira vista, bandidos orientais. São inofensivos, contudo, segundo me disseram. Já escurecera quando chegamos a Bistritz, que é uma velha localidade, muito interessante. Situada praticamente na fronteira com a Bucovina, tem tido uma existência tempestuosa e mostra os sinais disso. Há cinqüenta anos, ocorreu aqui uma série de grandes incêndios, que provocaram enormes prejuízos, em cinco ocasiões diferentes. No começo do século XVII, suportou um sítio que durou três semanas, tendo perdido 13.000 pessoas, e as baixas da guerra foram acrescidas dos que morreram de fome e miséria.

O Conde Drácula me havia indicado o Hotel Coroa Dourada, onde eu já era esperado. Uma anfitriã simpática, vestindo trajes regionais, recebeu-me e deu-me as boas vindas.

— É o Herr inglês? — perguntou, fazendo uma mesura.

— Sim — respondi. — Sou Jonathan Harker. Sorrindo, ela fez um sinal a um velho em mangas de camisa, que se retirou e voltou, pouco depois, trazendo-me a seguinte carta:

Meu amigo: Seja bem-vindo aos Montes Cárpatos. Espero-o com ansiedade. Desejo que passe uma boa noite e amanhã, às três horas, tome a diligência que se destina a Bucovina, e na qual já está reservado um lugar para o senhor. No Passo de Borgo, minha carruagem o estará esperando e o conduzirá até mim. Espero que sua viagem de Londres até agora tenha sido boa e estou certo de que será agradável sua estada em meu belo país. Seu amigo,

DRÁCULA.

4 de maio — O dono do hotel, segundo fui informado, recebeu uma carta do Conde, dando-lhe instruções para reservar o melhor lugar para mim na diligência. Quando o interroguei a esse respeito, porém, ele me pareceu reticente e fingiu que não estava entendendo o alemão que eu falava. Isso não podia ser verdade, pois, antes, já o havia entendido perfeitamente; pelo menos, respondeu minhas perguntas como se as tivesse entendido. Ele e sua mulher, a velha que me recebera, entreolharam-se, parecendo amedrontados. Quando perguntei ao dono do hotel se conhecia o castelo do Conde Drácula, tanto ele como sua mulher se resignaram que nada sabiam. Mas já estava tão perto da hora de partir que não tive tempo de fazer perguntas a outra pessoa àquele respeito. Parecia haver um certo mistério, nada tranqüilizador. Pouco antes de minha partida, a mulher do dono do hotel foi ao meu quarto e perguntou, sem esconder um grande nervosismo:

— O senhor tem mesmo que ir? Jovem Herr, tem mesmo que ir? Estava tão excitada que custei a entender o que dizia. Parecia não estar mais dominando o pouco do alemão que conhecia e o misturava com alguma outra língua que eu desconhecia. Quando lhe respondi que não podia deixar de ir, pois estavam me esperando para um negócio importante, perguntou de novo:

— Sabe em que dia estamos?

Respondi que era 4 de maio, mas ela sacudiu a cabeça e retrucou:

— É claro! Sei muito bem, mas sabe que dia é hoje?

Como eu lhe dissesse que não estava compreendendo, ela continuou:

— Hoje é a véspera do dia de São Jorge. Não sabe que hoje, quando o relógio bater meia-noite, todos os espíritos malignos do mundo estarão soltos? Que acontecerá, então, com o senhor?

Parecia tão assustada que procurei acalmá-la, mas em vão. Acabou caindo de joelhos diante de mim, suplicando-me que não partisse, que esperasse, pelo menos, mais um ou dois dias. Sua atitude parecia-me verdadeiramente ridícula e acabei ficando nervoso. Reafirmei que negócios importantes exigiam minha partida. Ela se pós de pé, enxugando os olhos, e, tirando um pequeno crucifixo, entregou-mo. Como membro da Igreja Anglicana, fiquei sem saber o que fazer, pois considero tais objetos como idólatras mas, ao mesmo tempo, não queria desapontar a velha senhora, que estava tão bem intencionada e em tal estado de espírito. Creio que ela percebeu minha hesitação, pois tratou de colocar, ela mesma, o crucifixo em meu pescoço, dizendo-me:

— Por amor de sua mãe!

Logo depois, retirou-se do quarto.

Estou escrevendo estas linhas enquanto espero a diligência, já atrasada. Conservo o crucifixo no pescoço. Não sei se é a sua presença ou porque a dona do hotel tenha me contagiado com seu nervosismo, mas o fato é que não estou me sentindo muito à vontade, como habitualmente. Se este caderno chegar às mãos de Mina antes que eu volte para junto dela, aqui lhe deixo meu adeus.

A diligência está chegando!...

5 de maio. Castelo — As névoas da manhã dissiparam-se e o sol já se acha bem alto. Não estou com sono e, como não vou ser chamado senão quando acordar, escreverei até vir o sono.

As minhas impressões da viagem, depois da partida de Bistritz foram bem estranhas e variadas. Quando cheguei junto à diligência, para torná-la, o cocheiro estava conversando com a dona do hotel, sem dúvida a meu respeito, pois me olharam de soslaio. Consegui ouvir, durante sua conversa, diversas palavras muitas vezes repetidas, palavras esquisitas, pois falavam várias línguas. Assim, tirei da valise meu dicionário poliglota, e olhei o significado dessas palavras. A constatação não foi muito alvissareira para mim, pois as palavras eram: “Ordog” — satanás; “pokol” — inferno; “stregoica” — feiticeiro e “vrolok” e “vlkoslak”, ambas com a mesma significaçâo, pois uma é eslovaca e outra sérvia: uma espécie de lobisomem ou vampiro. (Nota: indagar ao Conde a respeito dessas superstições.) Quando partimos, todas as pessoas que tinham se reunido em frente da estalagem, e que eram em número considerável, persignaram-se, e fizeram figa pra mim. Com alguma dificuldade, consegui que um companheiro de viagem me explicasse o quê eles queriam: a princípio, esse meu companheiro de viagem não quis explicar, mas, quando soube que eu era inglês, explicou-me que se tratava de uma simpatia contra o mau-olhado. Não era muito agradável para mim, partir assim para um lugar desconhecido, a fim de me encontrar com um homem desconhecido, mas todos pareciam tão bondosos e preocupados comigo, que não pude deixar de me sentir sensibilizado.

Em breve a beleza da paisagem me fez esquecer aqueles temores fantásticos, embora talvez não conseguisse me livrar deles tão facilmente, se soubesse a língua que falavam meus companheiros de viagem. Diante de nós estendiam-se encostas verdejantes, margeadas por florestas e bosques e, no alto das colinas, agitavam-se pomares ou casas residenciais de alguma fazenda. Apesar da estrada ser íngreme, a carruagem seguia com uma pressa que eu não podia compreender, mas era evidente que o cocheiro queria chegar o mais depressa possível a Borgo. Eu fora informado de que aquele caminho é excelente no verão, mas que ainda não fora reparado, depois dos danos sofridos durante o inverno. Sob esse aspecto, é diferente dos caminhos dos Cárpatos, em geral, pois é unia velha tradição que os mesmos sempre estejam em mau estado.

O caminho parecia infindável e o sol foi descendo, cada vez mais, pelo horizonte, e as sombras da noite começaram a aproximar-se. De vez em quando, passávamos por tchecos e eslovacos, com seus pitorescos trajes, mas notei que, infelizmente, o bócio era muito comum.

Algumas vezes, as ladeiras eram tão íngremes que, apesar da pressa do nosso cocheiro, os cavalos tinham de retardar o passo. Eu quis descer e acompanhar a carruagem a pé, como costumamos fazer em nossa terra, mas o cocheiro não permitiu.

— Não, não — disse ele. — Não deve andar a pé aqui. Os cães são muito bravos.

E acrescentou, visivelmente com intenção de fazer gracejo, pois olhou em torno para ver o sorriso aprovador dos outros:

— E o senhor ainda pode ter de se haver com muita coisa desse gênero, antes de se deitar.

A única parada que fez foi momentânea, Para acender os faróis. Quando escureceu de todo, a agitação entre os passageiros tornou-se grande. A carruagem avançava a grande velocidade, mas, ainda assim, os viajantes incitavam o cocheiro a avançar ainda mais depressa. Este, brandindo seu comprido chicote, açoitava os cavalos e os estimulava, aos gritos. As montanhas pareciam aproximar-se. A estrada tinha melhorado; estávamos entrando no Passo de Borgo. Um a um, vários dos passageiros ofereceram-me presentes, obrigando-me a aceitá-los, de modo tão afável que não admitia recusa; eram presentes esquisitos, não resta dúvida, mas todos oferecidos com boa vontade, com uma palavra de carinho, uma bênção e aquela mistura estranha de movimentos supersticiosos que eu vira diante do hotel de Bistritz.

Depois, enquanto o cocheiro se debruçava sobre os animais e os cavalos galopavam pela estrada, os passageiros procuravam olhar através das vidraças, sondando a escuridão. Era evidente que algo de muito excitante estava acontecendo, ou na iminência de acontecer, mas, embora eu tivesse perguntado a todos os passageiros, ninguém quis me dar uma explicação. Essa excitação se manteve durante algum tempo; e, afinal avistamos, diante a entrada do Passo do lado oriental. Nuvens escuras e pesadas cobriam o céu, ameaçando tempestade. Tinha-se a impressão de que a cadeia de montanhas separava duas atmosferas e que havíamos entrado, agora, na tempestuosa. Comecei a procurar a condução que deveria me levar para junto do Conde. Esperava, a qualquer momento, ver o clarão dos faróis, mas só via a escuridão. A única luz era dos faróis de nosso próprio carro. Os passageiros me olhavam com uma espécie de alegria que parecia zombar de meu próprio desapontamento. Eu estava pensando no que deveria fazer, quando vi o cocheiro consultar o relógio e dizer aos outros algo que mal pude ouvir, pois foi dito em voz muito baixa. Pareceu-me, contudo, que dissera:

— Uma hora de adiantamento.

Depois, ele se voltou para mim e disse-me, num alemão pior que o meu:

— Não há carruagem alguma aqui. O Herr não está sendo esperado. Deve ir conosco para Bucovina e voltar amanhã, ou depois. Depois de amanhã será melhor.

Enquanto falava, os cavalos começaram a relinchar e a corcovear, de maneira que o cocheiro precisou dominá-los. E então, entre gritos dos camponeses, todos se persignando, apareceu uma caleça de quatro cavalos diante de nós, que, vindo por trás da diligência, emparelhou-se com ela. À luz dos faróis, pude notar que os quatro cavalos eram todos pretos e tinham magnífica aparência. Eram dirigidos por um homem alto, de comprida barba castanha e grande chapéu preto, que parecia esconder seu rosto de nós. Apenas pude notar o brilho de seus olhos muito vivos.

— Está adiantado esta noite, meu amigo — disse ele ao cocheiro.

O homem gaguejou, em resposta:

— O Herr inglês estava com muita pressa.

Ao que o estranho retrucou:

— Talvez seja por isso que querias levá-lo para Bucovina. Não tentes iludir-me, meu amigo. Sei muita coisa e meus cavalos são velozes.

Enquanto falava, sorria e a luz dos faróis iluminou-lhe a boca, de contorno rude, com lábios muito vermelhos e dentes aguçados e brancos como marfim.

Um de meus companheiros de viagem murmurou para outro o verso de Lenore de Burger:

“Denn die Todten reiten schnell”
(“Pois a morte viaja depressa”)

O estranho sem dúvida ouviu aquelas palavras, pois olhou, sorrindo. O viajante virou o rosto, persignando-se.

— Dê-me a bagagem do Herr — ordenou o estranho.

E, rapidamente, minhas malas foram colocadas na caleça. Desci do lado da diligência ao longo do qual estava estacionada a caleça e o cocheiro desta ajudou-me a subir, pegando-me pelo braço, com um punho de aço; sua força devia ser prodigiosa. Sem uma palavra, ele sacudiu as rédeas, os cavalos viraram e mergulhamos na escuridão do Passo. Olhando para trás, vi a diligência partir a caminho de Bucovina. Vendo-a sumir nas trevas da noite, correu-me pelo corpo um estranho arrepio de frio e dominou-me a sensação de isolamento; mas senti um manto ser atirado sobre meus ombros, um xale sobre meus joelhos e o cocheiro me disse, em excelente alemão:

— A noite está fria, mein Herr, e meu senhor, o Conde, me incumbiu de tomar conta do senhor. Debaixo do assento há uma garrafa de slivotitz (aguardente de ameixa do país), se o senhor quiser.

Não bebi, mas já era um consolo saber que tinha a bebida ali à mão. Sentia-me confuso e amedrontado. A carruagem avança com rapidez, depois fez uma curva completa e entrou em outra estrada. Minha impressão ~é que o carro passava constantemente pelos mesmos lugares e, realmente, prestando atenção, numa saliência, vi que era isso que estava acontecendo. Não tive, porém, coragem de perguntar ao cocheiro o que significava aquilo. Não adiantaria meu protesto, no caso dele estar mesmo atrasando a viagem, deliberadamente. Tive curiosidade, contudo, de saber as horas e, com um fósforo aceso, consultei o relógio; faltavam poucos minutos para meia-noite. Senti um certo choque, pois creio que a superstição a respeito da meia-noite, tão espalhada, aumentara, com as minhas recentes experiências. Aguardei os acontecimentos, numa expectativa desagradável.

Depois, ouvi um cão latir ao longe. Outros latidos foram respondendo, até que, trazido pelo vento que agora soprava de leve sobre o Passo, chegou aos meus ouvidos um urro selvagem, que parecia vir de muito longe, tão longe quanto a imaginação pode alcançar. Ouvindo o uivo, os cavalos começaram a ficar indóceis, mas o cocheiro lhes falou com voz calma e eles se aquietaram. Depois, muito longe, vindo das montanhas de ambos os lados, começou um uivo mais forte e mais agudo — que afetou da mesma maneira a mim e aos cavalos. Tive vontade de pular da caleça e sair correndo e os cavalos se empinaram e relincharam, sendo preciso o cocheiro empregar toda a sua força para contê-los. Dentro de alguns minutos, contudo, meus ouvidos se acostumaram com aquele som e os cavalos ficaram tão calmos que o cocheiro pôde descer do carro e se colocar diante deles, acariciando-os e falando-lhes no ouvido, como eu tinha ouvido dizer que os domadores de cavalos costumam fazer, e com grande resultado, pois os animais se mantiveram inteiramente calmos, embora ainda tremessem. O cocheiro voltou para o seu lugar e tocou o carro a grande velocidade. Dessa vez, quando chegou à extremidade do Passo, virou, de súbito, para um caminho, que fazia uma curva apertada para a direita.

Árvores margeavam o caminho e, de novo, grandes rochedos surgiram de ambos os lados. Apesar de estarmos abrigados, podíamos ouvir o sibilar do vento. O frio aumentava e a neve começou a cair, em flocos muito finos. O vento ainda nos trazia o latido dos cães, embora cada vez mais fracos. O uivo dos lobos parecia, ao contrário, cada vez mais próximo. Tive receio de que os cavalos partilhassem meu medo. O cocheiro, contudo, parecia imperturbável; olhava ora para a esquerda, ora para a direita, mas eu não conseguia distinguir coisa alguma no meio da escuridão.

De repente, vi brilhar uma luz azulada à esquerda. O cocheiro a viu no mesmo momento; deteve, imediatamente, os cavalos, saltou do carro e sumiu nas trevas. Eu não sabia o que fazer, principalmente com o uivo dos lobos cada vez mais perto; mas, enquanto estava pensando, o cocheiro reapareceu e, sem dizer uma palavra, sentou-se no seu lugar e continuamos a viagem. Creio que adormeci, e comecei a sonhar com o incidente, pois ele se repetiu indefinidamente, e agora, relembrando-me, tenho a impressão de um pesadelo horrível. Certa vez, a chama apareceu tão perto da estrada que, apesar da escuridão que nos cercava, pude distinguir as feições do cocheiro. Ele se dirigia rapidamente para o ponto onde aparecia a chama azulada — que devia ser muito fraca, pois não parecia iluminar o local situado em torno dela — e, apanhando algumas pedras, arranjava-as de certo modo. Certa vez, surgiu um estranho efeito ótico: quando o cocheiro ficou entre mim e a chama não, obstruiu sua luz fantasmagórica. Isso me intrigou, mas o efeito foi momentâneo. Depois, as chamas azuis sumiram entre a escuridão, com o uivo dos lobos em torno de nós, como se os animais nos estivessem seguindo, num círculo envolvente.

Afinal, houve uma ocasião era que o cocheiro avançou mais do que das outras vezes e, durante sua ausência, os animais começaram a relinchar e pinotear, apavorados. Não compreendi o motivo disso, pois o uivo dos lobos cessara inteiramente; justamente então, a lua, irrompendo entre as nuvens escuras, surgiu atrás de um rochedo e, à sua luz, vi um círculo de lobos, com os dentes pontiagudos e as línguas pendentes. Senti-me paralisado pelo medo.

Todos juntos, os lobos começaram a uivar, como se a lua tivesse algum efeito peculiar sobre eles. Os cavalos empinavam, desesperados, mas o círculo vivo do terror os cercava por todos os lados e eles tinham de ficar dentro dele. Gritei chamando o cocheiro, pois compreendi que a única solução seria tentar romper o círculo dos lobos, e, para ajudá-lo a se aproximar, comecei a gritar e bater com as mãos no lado de fora da caleça, na esperança de assustar os lobos que estavam daquele lado, e dar ao cocheiro uma oportunidade de se aproximar. Como ele chegou, não sei, mas o fato é que ouvi sua voz, dando uma ordem imperiosa e, olhando para a direção de onde partia o som, eu o vi de pé na estrada. Agitou os braços, como que afastando algum obstáculo impalpável e os lobos recuaram. Nesse momento, uma pesada nuvem obscureceu a lua, e as trevas reinaram outra vez.

Quando pude distinguir as coisas de novo, o cocheiro estava entrando na caleça, e os lobos tinham desaparecido. Era tão estranho que um pavor indizível me dominou e tive medo até de falar ou me mexer. Continuamos a subir, descendo às vezes, mas quase sempre subindo. De repente, notei que o cocheiro estava fazendo os cavalos entrarem no pátio de um vasto castelo arruinado, de como nas janelas não vinha um só raio de luz.


CAPÍTULO II

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Continuação)

5 de maio — Eu devia ter dormido, pois, se estivesse inteiramente acordado, tetia notado a aproximação de um lugar tão notável. Na escuridão, o pátio parecia muito grande e vários caminhos escuros davam para ele, através de grandes arcos arredondados, que talvez parecessem maiores do que eram na realidade.

Quando a caleça parou, o cocheiro me ajudou a descer. De novo não pude deixar de notar sua força prodigiosa. Em seguida, ele tirou minha bagagem, que colocou no chão ao meu lado, diante de uma grande e velha porta de ferro, que se abria na parede de pedra. Subindo de novo para a caleça, o cocheiro sacudiu as rédeas, os animais partiram e o carro desapareceu numa das passagens escuras.

Fiquei em silêncio, onde estava, sem saber o que fazer. Não havia sinal de campainha, ou de aldrava e não parecia provável que minha voz penetrasse aquelas paredes e janelas escuras. Tive a impressão de ter esperado um tempo infinito. Em que lugar viera me meter, e com que espécie de gente? Seria essa uma aventura banal na vida de um mero ajudante de procurador, que tinha de explicar a um estrangeiro a compra de uma propriedade em Londres? Ajudante de procurador! Mina não gostaria disso. Procurador, pois pouco antes de sair de Londres eu soubera que fora feliz no concurso que fizera. Era, agora, um procurador.

Tive de me beliscar e esfregar os olhos, para ver se estava acordado. Aquilo tudo estava me parecendo um pesadelo horrível e esperava acordar, de repente, em minha casa. Mas meus olhos não me iludiam. Estava realmente acordado, nos Cárpatos. A única coisa que me restava era ter paciência e esperar o amanhecer.

Justamente quando chegara a essa conclusão, ouvi, por trás da porta, passos pesados que se aproximavam. Uma chave girou na fechadura, com um rangido característico do desuso, e a pesada porta se abriu. No lado de dentro, estava de pé um velho alto, sem barba e com um comprido bigode branco, vestido de preto da cabeça aos pés. Trazia na mão uma velha lâmpada de prata, cuja chama lançava nas paredes sombras enormes. O velho fez-me sinal para entrar, com a mão direita, num gesto cortês, dizendo, em excelente inglês, mas com uma entonação estranha:

— Seja bem-vindo à minha casa! Entre por sua livre e espontânea vontade!

Não fez menção de avançar para vir ao meu encontro, deixando-se ficar imóvel como uma estátua, como se seu gesto de boas-vindas o tivesse petrificado. Logo que entrei, contudo, ele adiantou-se, impulsivamente, e apertou minha mão com uma força que me fez pestanejar, para o que também contribuiu o fato de sua mão ser fria como gelo — mais parecendo a mão de um morto que a de um vivo.

— Seja bem-vindo à minha casa — disse, de novo. — Entre à vontade, saia são e salvo e deixe aqui um pouco da felicidade que traz!

A força com que me apertou a mão era tão semelhante à que eu havia notado no cocheiro, cujo rosto não vira, que, por um momento, imaginei se os dois não seriam a mesma pessoa. Para me assegurar, perguntei:

— O Conde Drácula?

— Sou Drácula — respondeu ele, com uma mesura cortês. — E desejo-lhe boas-vindas à minha casa, Sr. Harker. Entre; a noite está fria e o senhor deve estar precisando comer e descansar.

Enquanto falava, colocou a lâmpada num nicho da parede e, antes que eu pudesse impedir, pegou minha bagagem. Protestei, mas ele insistiu:

— O senhor é meu hóspede. Já é tarde e meus criados não estão por aí. Deixe que eu mesmo cuide do senhor.

Fez questão de levar; ao longo de um corredor e de uma escada de pedra, após a qual seguiu por outro corredor de pedra, que terminava numa porta. No fim desse corredor, o Conde abriu uma pesada porta é regozijei-me, ao ver uma sala bem iluminada, com uma mesa posta para a ceia e uma lareira onde crepitava bom fogo.

O Conde depositou minha bagagem no chão, fechou a porta e, atravessando a sala, abriu outra porta, que dava para um pequeno quarto octogonal, iluminado por uma simples lâmpada e que parecia não ter janela alguma. Atravessando-o, abriu outra porta e me fez sinal para entrar. A vista era agradável: tratava-se de um grande quarto de dormir bem iluminado e aquecido por outra lareira. O próprio Conde colocou ali minha bagagem e disse, antes de fechar a porta:

— O senhor há de querer, depois da viagem, fazer sua toalete. Espero que encontre tudo que deseja. Quando terminar, pode passar para a outra sala, onde encontrará a ceia preparada.

A luz e o calor e a cortês recepção do Conde tinham dissipado minhas dúvidas e receios. Voltando ao meu estado normal, verifiquei que estava faminto; assim, depois de fazer uma toalete rápida, entrei na outra sala.

Encontrei a ceia já posta. Meu anfitrião, que estava de pé junto à lareira, mostrou a mesa, num gesto cortês, dizendo:

— Peço-lhe que sente e ceie à vontade. Espero que me desculpe por não lhe fazer companhia; mas já jantei e não costumo cear.

Entreguei-lhe a carta lacrada que o Sr. Hawkins me confiara. Ele a abriu e leu-a, gravemente, depois, sorrindo amavelmente, entregou-ma para que eu a lesse. Pelo menos um trecho dela deu-me grande prazer:

“Lamento que um ataque de gota, moléstia que me ataca com freqüência, me impeça, em absoluto, qualquer viagem num futuro próximo; mas tenho o prazer de comunicar que posso enviar um substituto plenamente capaz, no qual deposito absoluta confiança. É um jovem enérgico e talentoso, à sua maneira, e muito leal. É discreto e pouco falador e se fez homem trabalhando comigo. Estará à sua disposição, para ajudá-lo quando senhor desejar e receberá suas instruções respeito de todos os assuntos.”

O próprio Conde tirou a tampa de uma travessa e eu ataquei, imediatamente, um excelente frango assado, que, com queijo, salada e uma garrafa de velho Tokay, do qual tomei dois copos, constituiu minha ceia. Enquanto eu comia, o Conde me fez muitas perguntas sobre a viagem e contei-lhe todos os pormenores.

Quando acabei de cear, aquiescendo ao desejo de meu anfitrião, sentei-me numa cadeira junto do fogo e pus-me a fumar um charuto que ele me ofereceu, desculpando-se, ao mesmo tempo, pelo fato de não fumar. Tive, então, oportunidade de observá-lo e achei sua fisionomia altamente expressiva.

Tem nariz aquilino, narinas dilatadas, testa ampla e bela cabeleira, já rareando nas têmporas, mas muito abundante no resto da cabeça. Suas sobrancelhas são espessas, quase se encontrando sobre o nariz. A boca, pelo que pude ver, sob o bigode espesso, é firme e dura, e os dentes são particularmente aguçados e brancos, projetando-se entre os lábios, cuja cor demonstra extraordinária vitalidade para sua idade. Quanto ao resto, as orelhas são pálidas e muito pontudas, o queixo largo e forte e as faces firmes, embora finas. O que mais impressionava, no entanto, era sua extraordinária palidez.

Até então, eu tinha notado as costas, de suas mãos, que tinham me parecido brancas e finas; mas, vendo-as mais de perto, pude notar que eram bem grosseiras, com dedos fores. Por mais estranho que pareça, as palmas das mãos tinham cabelos. As unhas eram compridas e finas, terminando em ponta. Como o Conde se curvasse sobre mim, encostando-me as mãos, não pude conter um tremor. Talvez tenha sido por causa do seu mau hálito, mas o fato é que me dominou uma horrível sensação de náusea, que não pude esconder. O Conde notou-a, evidentemente, e recuou; e com uma espécie de sorriso que deixava ver melhor seus dentes salientes, sentou-se, de novo, do outro lado da lareira. Ficamos em silêncio durante algum tempo. Do vale, vinham os uivos de muitos lobos.

— Ouça-os... os filhos da noite — disse o Conde, com os olhos brilhando. — Que música fazem!

E, notando, sem dúvida, minha estranheza, acrescentou:

— Os senhores, habitantes da cidade, não podem compreender os sentimentos de um caçador.

Pôs-se de pé, depois acrescentou:

— Mas o senhor deve estar cansado. Seu quarto já está arrumado e amanhã poderá dormir até a hora que quiser. Tenho de me ausentar durante toda a tarde. Durma bem, portanto, e tenha sonhos agradáveis!

E, com uma mesura cortês, abriu-me a porta do aposento octogonal e entrei em meu quarto.

Perturba-me um mar de contradições. Duvido; tenho medo; penso coisas estranhas que não me atrevo a confessar a mim mesmo. Deus que me proteja, ao menos para o bem daqueles que me são caros!

7 de maio — Descansei bastante nestas últimas vinte e quatro horas. Dormi até tarde e ninguém me acordou. Depois vesti-me, dirigi-me à sala onde ceara e encontrei uma refeição fria e café ainda quente, pois a cafeteira estava colocada no fogão. Em cima da mesa, havia um cartão, que dizia:

Tive de me ausentar por algum tempo.
Não espere por mim.
D.

Terminada a refeição, procurei a campainha, a fim de chamar os criados para tirar a mesa, mas não encontrei campainha alguma. Havia, naquela casa, algumas deficiências esquisitas, em contradição com as provas de riqueza que a cercavam. O serviço de mesa era de ouro e tão bem trabalhado que devia ter um imenso valor. Também as cortinas e tapeçarias eram valiosíssimas, mas estavam velhas e mofadas. Em nenhum dos aposentos, nem mesmo no meu toucador, havia um espelho e tive de me valer do espelhinho de barbear que trouxera na minha mala para me barbear ou pentear os cabelos. Ainda não tinha visto um criado ou ouvido qualquer ruído no castelo, a não ser o uivo dos lobos. Algum tempo depois, acabada a refeição, procurei alguma coisa para ler, pois não queria andar pelo castelo antes de pedir licença ao Conde. Não havia no aposento livro, jornal ou mesmo material para escrever; abri a porta do quarto e encontrei uma espécie de biblioteca.

Na biblioteca, encontrei, satisfeito, muitos livros ingleses. No centro havia uma mesa repleta de revistas e jornais londrinos, nenhum deles, contudo, de data recente. Os livros eram sobre assuntos os mais variados e havia até o Guia de Londres.

Enquanto estava examinando os livros, a porta se abriu e o Conde entrou. Saudou-me, cordialmente, e acrescentou:

— Estou satisfeito que tenha achado o caminho para aqui pois tenho certeza de que há aqui muita coisa que o interessará. Estes companheiros — disse, apontando pára o livros — têm sido bons amigos para mim e, há alguns anos, desde que tive a idéia de ir para Londres me têm dado muitas horas de prazer. Através deles, aprendi a conhecer sua grande Inglaterra; e conhecê-la é amá-la. Estou ansioso para ir para as ruas repletas de gente de Londres, ver-me no meio do turbilhão da humanidade, compartilhar de sua vida, suas transformações, sua morte. Mas, infelizmente, só conheço seu idioma através dos livros. Quero aprender a falá-lo com o senhor.

— Mas o senhor sabe e fala o inglês perfeitamente, Conde! — disse eu.

— Agradeço, meu amigo, sua apreciação lisonjeira, mas ainda me falta muita coisa.

— Na verdade, o senhor fala o inglês magnificamente.

— Não — respondeu ele. — Sei que, se fosse para Londres, ninguém ali me tomaria por estrangeiro. Isso não é bastante para mim. Aqui sou nobre; os plebeus me conhecem e sou um senhor. Mas um estranho numa terra estranha não é ninguém. Ficarei contente de ser como os outros de maneira que, quando eu falar, ninguém pare para comentar: “É um estrangeiro”. Tenho sido senhor tanto tempo, continuaria ainda a ser senhor, ou, pelo menos, ninguém seria meu senhor. O senhor não veio aqui somente como agente de meu amigo Peter Hawkins, de Exeter, para conversar comigo sobre minha nova propriedade em Londres. Espero que fique comigo algum tempo, para que, conversando com o senhor, eu possa adquirir o sotaque inglês, corrigindo-me mesmo os pequenos erros. Peço desculpas por ter estado fora tanto tempo; mas sei que perdoará quem tem tantos negócios importantes para tratar.

Naturalmente, concordei e pedi-lhe licença para entrar à vontade naquele aposento.

— O senhor pode ir onde quiser no castelo, exceto naturalmente onde as portas estiverem fechadas a chave — respondeu ele. — Não pode se esquecer de que estamos na Transilvânia, onde os costumes são diferentes dos da Inglaterra e o senhor aqui poderá ver muitas coisas diferentes.

Era evidente que estava disposto a conversar e fiz-lhe muitas perguntas relativas a fatos que já tinham acontecido comigo ou que pudera perceber. Às vezes, ele se afastava do assunto, fingindo não compreender; mas, em geral, respondeu com muita franqueza. Tornei-me mais audacioso e perguntei-lhe o que significavam as coisas estranhas que vira na véspera, como, por exemplo, o fato do cocheiro ter se dirigido aos lugares onde apareciam as chamas azuladas. — Segundo dizem — respondeu ele — na véspera do dia de São Jorge aparece uma chama azulada nos lugares em que está enterrado um tesouro. Não há dúvida de que existem muitos tesouros enterrados nesta região, pois seu solo foi disputado, durante muitos séculos, pelos valáquios, saxões e turcos. Há poucos palmos desta terra que não tenha sido regado com o sangue dos patriotas ou dos invasores. Quando os austríacos e húngaros invadiram o pais, os patriotas os enfrentaram nas montanhas. Quando o invasor triunfou, pouca coisa encontrou, pois o que havia foi escondido no solo.

— Mas esses tesouros terão ficado tanto tempo escondidos, quando era tão fácil procurá-los? — perguntei.

O Conde sorriu, deixando à mostra os dentes compridos, pontudos.

— Os camponeses são medrosos — respondeu. — Essas chamas só aparecendo; numa noite e, nessa noite, ninguém desta região tem coragem de sair de casa. Mas vamos falar sobre Londres e minha futura residência.

Pedindo desculpas pelo meu descuido, dirigi-me ao quarto, a fim de tirar os documentos de minha mala. Enquanto os estava arrumando, ouvi barulho de porcelana e prata no outro aposento e, quando voltei, notei que a mesa já fora tirada e que a lâmpada não estava acesa, pois escurecera de todo.

O Conde, estendido no sofá, estava lendo nada mais nada menos que o Guia Bradshaw da Inglaterra.

Quando entrei, ele tirou da mesa os livros e papéis e começamos a discutir planos, dados e algarismos de todo o tipo. Ele estava interessado por tudo e fez-me uma infinidade de perguntas sobre o lugar e seus arredores. Evidentemente estudara muito o assunto, pois estava mais bem informado do que eu mesmo. Como tivesse salientado tal fato, ele retrucou:

— Não acha natural que assim seja? Quando eu estiver lá, meu amigo Jonathan Harker não estará mais ao meu lado, podendo prestar-me todas as informações de que eu necessitar, pois, sem dúvida, estará em Exeter, a milhas de distância provavelmente trabalhando com documentos jurídicos, ao lado de meu outro amigo, Peter Hawkins.

Tratamos, então, dos detalhes da aquisição da propriedade de Purfleet. Depois que eu dera ao Conde as explicações e de ele ter assinado os papéis necessários, e de haver escrito uma carta para a remessa dos documentos ao Sr. Hawkins, indagou como foi que eu descobrira a propriedade. Li, então, para ele, as notas que eu tomara então e que reproduzo aqui:

“Em Purfleet, num caminho transversal, descobri uma propriedade que parecia adequada, e onde havia um cartaz estragado anunciando que a mesma estava à venda. É cercada por um muro alto de pedras, que há muitos anos não é reparado. Os portões são de carvalho e ferro, roído pela ferrugem.

“A propriedade é chamada Carfax, sem dúvida corruptela de Quatro Faces, pois a casa tem quatro fachadas, que dão para os pontos cardeais. A propriedade deve ter uns vinte acres, cercados inteiramente pelo muro supra-mencionado. Há muitas árvores que tornam o lugar sombrio, e uma capela nos fundos. Existem poucas casas nas proximidades, sendo uma delas muito grande, ampliada há pouco tempo e transformada em hospício. Não é visível, no entanto, dos terrenos da propriedade.”

Quando terminei, o Conde disse:

— Sinto-me satisfeito de saber que se trata de uma casa grande e velha. Pertenço a uma velha família e seria horrível, pra mim, ter que morar numa casa nova. Também sinto-me satisfeito por saber que possui uma capela. Nós, os nobres transilvanos, achamos que nossos ossos não devem jazer entre os mortos plebeus. Não estou procurando alegria. Já não sou jovem, e meu coração, depois de acostumado com a morte, durante tantos anos, não está afeito à juventude.

Tive a impressão, contudo, de que sua fisionomia não estava muito de acordo com as palavras que dizia, ou melhor, que suas expressões davam ao sorriso algo de malicioso e amargo.

Logo depois, pediu licença e retirou-se, pedindo-me para arrumar todos os papéis. Comecei, então, a examinar os livros e, folheando um atlas, este se abriu, como que por acaso, num mapa da Inglaterra. Debruçando-me sobre ele, vi que havia três localidades, com um pequeno círculo feito a tinta. Notet que uma delas era a leste de Londres, precariamente onde ficava a nova propriedade do Conoe; as duas outras eram em Exeter e Whitby na costa de Yorkshire.

Passara-se quase uma hora, quando o Conde voltou.

— Sempre metido com os livros! — disse ele. — Muito bem! Mas não deve trabalhar demais. Venha. Fui informado de que a ceia está pronta.

Levou-me ao aposento vizinho, onde, de fato, a mesa estava posta. Mais uma vez, o Conde desculpou-se por não me fazer companhia, pois tinha jantado quando estivera fora de casa. Contudo, conversou comigo, enquanto eu comia, como na véspera. Depois da ceia, fumei, como na noite anterior, e o Conde ficou junto de mim, conversando e fazendo-me perguntas, sobre os mais variados assuntos. Eu estava sem sono, pois o da noite anterior me fortificara. Mas não pude deixar de sentir esse arrepio que nos costuma vir quando a madrugada se aproxima. De repente, ouvimos o canto de um galo, que cortou estridente o ar calmo da madrugada. O Conde ergueu-se, de um pulo.

— Como! — Exclamou. — Já é madrugada de novo! Não devia tê-lo feito ficar acordado até estas horas. O senhor deve tornar menos interessante sua conversa sobre minha nova pátria, a Inglaterra, para que eu não me esqueça de que o tempo voa.

E, com uma mesura cortês, retirou-se.

Fui para o meu quarto e abri as cortinas, mas havia pouca coisa para ver; a janela dava para o pátio e a única coisa que vi foi o céu cinzento. Assim, tornei a fechar as cortinas e tratei de tomar estas notas no meu diário.

8 de maio — Começo a recear, quando escrevo este diário, que esteja me tornando muito vago; mas sinto-me satisfeito por ter anotado os pormenores desde o princípio, pois há algo de tão estranho nesse castelo que não posso deixar de me sentir inquieto. Antes já estivesse fora dele, ou nunca nele tivesse entrado. Talvez essa estranha existência noturna esteja me afetando; mas apenas isto! Se pelo menos eu tivesse alguém para conversar! Só tenho o Conde com quem conversar e ele!... Receio ser a única alma vivente, neste castelo. Sejamos mais prosaicos tanto quanto os fatos podem ser; isso me ajudará a suportar a situação, e a imaginação não me atormentará. Se isso acontecer, estou perdido.

Dormi apenas algumas horas. Quando me meti na cama, vendo que não conseguiria dormir mais, levantei-me. Prendi na janela meu espe1hinho de barbear e estava começando a fazer a barba, quando de súbito senti que me seguravam. pelo ombro e ouvi a voz do Conde dizer:

— Bom dia.

Fiquei surpreso, pois me intrigara o fato de não tê-lo visto entrar, quando todo o aposento por trás de mim estava refletido no espelhinho. Na minha excitação, cortei-me ligeiramente com a navalha, mas, no primeiro momento, não notei o fato. Tendo respondido à saudação do Conde, tornei a olhar para o espelho, para ver como me enganara. Desta vez, não podia haver erro, pois o homem estava junto de mim e eu podia vê-lo sobre meus ombros. Mas sua imagem não estava refletida no espelho! Todo o quarto, por trás de mim, aparecia no espelho, mas não havia sinal de homem algum, a não ser eu. Era surpreendente tal fato, surgindo após tantas coisas e aumentando a inquietação que eu sempre sentia perto do Conde; mas, naquele instante, vi que o corte sangrara um pouco e o sangue escorria-me pelo queixo. Abaixei a navalha e virei-me procurando alguma coisa para o sangue. Quando o Conde viu meu rosto, seus olhos chamejaram com uma fúria demoníaca e, de repente, ele estendeu as mãos para agarrar-me o pescoço. Virei-me, e sua mão tocou, o rosário que prendia o crucifixo. Isso acarretou uma mudança instantânea nele, pois a fúria passou tão rapidamente que mal pude acreditar que tivesse ocorrido.

— Tome cuidado para não se cortar — disse ele. — É mais perigoso do que pensa, nesta região.

Depois, agarrando o espelhinho prosseguiu:

— E foi este maldito objeto o causador de tudo! É um ridículo instrumento da vaidade humana. Fora com ele!

E abrindo a pesada janela, atirou o espelho, que se fez em mil pedaços, nas pedras do pátio, embaixo. Depois retirou-se, sem dizer mais uma palavra. Foi uma coisa muito desagradável, pois não sei como vou fazer a barba, a não ser que a caixa do meu relógio ou o fundo da bacia de barbear, que felizmente é de metal, sirvam de espelho.

Quando cheguei à sala de jantar, a refeição matinal estava posta; mas não consegui encontrar o Conde em lugar algum. Assim, comi sozinho. É estranho ainda não ter visto o Conde comer ou beber. Deve ser um homem bem original!

Depois de comer, andei um pouco pelo castelo. Desci a escada e encontrei um aposento dando para o sul. A vista era magnífica. O castelo fica à beira de um terrível precipício. Uma pedra que caia da janela se despenhará por mil pés sem tocar coisa alguma! Até onde a vista podia alcançar, só havia as copas verdes das árvores, com um rochedo saliente, de vez em quando. Aqui e ali, viam-se fitas prateadas de rios serpenteando através da floresta, em ravinas profundas.

Continuei a examinar o castelo; portas, portas por toda a parte, e todas fechadas e trancadas.

O castelo é uma verdadeira prisão e sou prisioneiro.


CAPÍTULO III

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Continuação)

Quando verifiquei que estava prisioneiro, uma irritação profunda me tomou conta. Corri pelas escadas, acima e abaixo, tentárido abrir as portas, mas em vão. Quando voltei, depois de algumas horas, tive a impressão de haver enlouquecido, pois minha conduta parecia a de um rato apanhado numa ratoeira. Contudo, quando me veio a convicção de que estava indefeso, sentei-me calmamente e comecei a refletir sobre o melhor que havia a fazer. Ainda estou refletindo e não cheguei a uma conclusão definitiva. Somente de uma coisa tenho certeza: é que não devo permitir que o Conde saiba o que estou pensando. Ele sabe muito bem que estou aprisionado; foi ele próprio que me prendeu e apenas iria me enganar se eu lhe revelasse os fatos. O que tenho a fazer é esconder meus próprios segredos e temores e conservar os olhos bem abertos.

Mal chegara a essa conclusão, ouvi o barulho da grande porta de baixo que se fechava e percebi que o Conde havia entrado. Ele não se dirigiu logo para a biblioteca, e, indo cautelosamente para o meu próprio quarto, encontrei-o arrumando a cama. Era estranho aquilo, mas confirmava a conclusão a que eu chegara: não havia criados naquela casa. Quando mais tarde, através da greta da porta, vi o Conde pondo a mesa da sala de jantar, não tive mais a menor dúvida. Aquilo era uma prova de que só havia uma pessoa no castelo, e, portanto, devia ter sido o próprio Conde o cocheiro da caleça que me trouxe aqui. Foi terrível pensar tal coisa; pois, se assim era, isso quer dizer que o Conde pode dominar os lobos, como dominou, apenas levantando a mão, em silêncio. Por que toda aquela gente de Bistritz e da diligência tinha tido tanto medo por minha causa? Que significava o oferecimento do crucifixo, do alho, da rosa-silvestre e da sorveteira? Bendita seja a boa mulher que amarrou o crucifixo em meu pescoço! Tocá-lo, me dá força e confiança. É estranho que um objeto que eu devia considerar como uma prova de idolatria me proporcione tal sentimento de conforto. Mas pensarei nisso mais tarde. Por enquanto, preciso descobrir tudo que for possível acerca do Conde Drácula, para que eu possa compreender melhor o que está se passando. Esta noite, talvez ele fale a respeito de si mesmo, se eu dirigir a conversa nesse sentido. Contudo, preciso ter cautela, para não despertar suas suspeitas.

Meia-noite — Tive uma longa conversa com o Conde. Fiz-lhe algumas perguntas sobre a história da Transilvânia e ele se entusiasmou com o assunto. Ao falar dos acontecimentos, especialmente das batalhas, parece que os presenciou. Explicou-me depois que tem tanto orgulho com sua casa como consigo próprio. Quando se refere à sua casa, diz sempre “nós”, e fala no plural, como um rei.

Nós os zequelis — disse ele — temos o direito de nos sentirmos orgulhosos, pois, em nossas veias corre o sangue de muitas raças valentes que travaram lutas leoninas para a conquista. Aqui, neste cadinho de raças européias, a tribo de Ugrie trouxe da Islândia o espírito belicoso que lhe deram Thor e Wodin e seus homens se lançaram com tal afã nas praias da Europa e também da África e da Ásia, que os povos pensavam que tinham aparecido os próprios lobisomens. Também para aqui vieram e se encontraram com os hunos, cuja fúria guerreira varrera a terra como uma fogueira, até que os povos moribundos afirmassem ter nas veias o sangue daquelas velhas feiticeiras que, expulsas da Cítia, cruzavam-se com os demônios no deserto. Idiotas! Que demônio ou bruxo foi tão grande quanto Átila, cujo sangue corre em nossas veias? Não é de admirar que sejamos uma raça de conquistadores. Quando redimimos aquela grande vergonha de minha nação, a vergonha de Cassova, quem, senão um homem de minha própria raça atravessou o Danúbio e bateu os turcos em seu próprio terreno? Um Drácula! É não foi esse Drácula que inspirou aquele outro de tua raça, muito depois, que lançou suas forças através do grande rio nas terras dos turcos? Quando foi batido, voltou, e tornou a voltar, muitas vezes, embora tivesse vindo sozinho do sangrento campo de batalha, onde suas tropas estavam sendo massacradas, pois sabia que, no fim ele sozinho acabaria triunfando! Dizem que só pensava em si mesmo. Mas de que valem os camponeses sem um chefe? No entanto os dias de guerra passaram. O sangue é uma coisa muito preciosa, nestes dias de paz vergonhosa. Já estava quase amanhecendo e fomos para a cama.

(Nota: Este diário se parece horrivelmente com o começo das Mil e Uma Noites, pois tudo acaba com o canto do galo — ou se parece com o espectro do pai de Hamlet.)

12 de maio — Comecemos com os fatos — fatos mesquinhos, verificados em livros e algarismos e a respeito dos quais não pode haver dúvida. Ontem à noite, o Conde veio ao meu quarto e fez-me perguntas referentes a assuntos judiciais.

Quis saber, em primeiro lugar, se na Inglaterra é lícito uma pessoa ter dois ou mais procuradores. Respondi-lhe que, quem quisesse, poderia ter até uma dúzia de procuradores, mas que não era aconselhável ter mais de um empenhado na execução de uma transação, pois apenas um podia agir de cada vez, e mudar de procurador sem dúvida seria prejudicial aos interesses da parte.

Ele pareceu compreender perfeitamente e perguntou-me se havia alguma dificuldade prática em ter uma pessoa para atender, por exemplo aos interesses bancários, outra para cuidar de embarques por via marítima, no caso de haver necessidade, em lugar que não fosse o da residência do procurador bancário.

Pedi-lhe para explicar-me melhor e ele disse:

— Vou exemplificar. Nosso amigo comum, Sr. Peter Hawkins, que mora em Exeter, longe de Londres, compra para mim, por intermédio do senhor, uma propriedade em Londres. Agora deixe-me dizer francamente, para que o senhor não ache estranho eu ter contratado os serviços de alguém que mora longe de Londres, que fiz isto porque não desejava que outros interesses locais fossem satisfeitos, a não ser os meus. Assim, preferi ter meus interesses defendidos em Londres por alguém que lá não reside. Agora, suponhamos que eu tenha muitos negócios e deseje, por exemplo, embarcar mercadorias, para Newcastle, Durham, Harwich ou Dover, por exemplo. Não o faria com mais facilidade atravês de consignações para um daqueles portos?

Respondi que sim, embora os procuradores tenham um sistema de agências.

— Mas — perguntou ele — eu teria liberdade de dirigir eu próprio as atividades, não é verdade?

— É claro — respondi. — Tal coisa é feita, freqüentemente, por homens de negócio, que não desejam que o conjunto de seus negócios seja conhecido por uma só pessoa.

— Ótimo! — disse ele, passando em seguida a fazer perguntas sobre os meios de fazer consignações e sobre os meios de se livrar de toda a sorte de dificuldades que pudessem surgir, e ser evitadas de antemão. Expliquei-lhe tudo isso, o melhor que pude, e ele me deu a impressão de que seria um ótimo procurador.

— O senhor escreveu, depois de sua primeira carta, ao nosso amigo, Sr. Peter Hawkins, ou a qualquer outra pessoa? — perguntou, depois.

Foi com certa irritação que respondi que não, pois não tivera ainda oportunidade de enviar cartas a quem quer que fosse.

— Pois então, escreva agora mais jovem amigo — disse ele. — Escreva ao seu amigo e a qualquer outra pessoa e diga, se quiser, que vai ficar comigo durante um mês.

— Quer que eu fique tanto tempo? — perguntei, sentindo um frio no coração.

— Desejo muito, e não concordarei com uma recusa. Quando seu patrão concordou em enviar uma pessoa em seu lugar, ficou combinado que seriam levados em consideração meus interesses.

Tive que concordar; afinal de contas, estava ali representando os interesses do Sr. Hawkins, e não os meus. Além disso, enquanto falava, o Conde Drácula dava a entender, pelo olhar, que eu era seu prisioneiro e tinha de fazer o que ele quisesse.

— Peço-lhe, meu amigo — prosseguiu — que só fale de negócios em suas cartas. Sem dúvida, seus amigos ficarão satisfeitos sabendo que o senhor vai bem e quando pretende voltar, não é mesmo?

Enquanto falava, apresentou-me três folhas de papel e três envelopes, finíssimos, e compreendi, pelo olhar do Conde, que estava insinuando que eu tivesse o máximo cuidado com o que escrevesse, pois ele poderia facilmente ler as cartas. Resolvi, assim, escrever apenas bilhetes formais, mas escrever em segredo, uma carta completa para Mr. Hawkins e também para Afina, pois, para ela, poderia taquigrafar, de maneira que o Conde não pudesse ler. Depois de escrever as duas cartas, sentei-me lendo um livro, enquanto o Conde tomava várias notas, consultando alguns livros que se encontravam em cima da mesa. Depois, pegou as duas cartas e colocou-as junto com as suas e saiu, deixando-as na mesa, viradas para baixo. Olhei os endereços. Uma estava endereçada para Samuel F. Billington, N. O 7, The Crescent, Whitby, outra para Herr Leutner, em Viena, a terceira para Coutts & Co., em Londres, e a quarta para Herren Klopstock & Billreuth, banqueiros, Budapeste. A segunda e a quarta estavam abertas. Eu já ia olhá-las, quando a maçaneta da porta se moveu. Tornei para a minha cadeira, só tendo tempo de deixar as cartas como estavam, antes que o Conde entrasse, trazendo outra na mão. Pegou as cartas que estavam em cima da mesa, selou-as e disse-me:

— Espero que me desculpe, mas tenho muita coisa que fazer esta noite. Encontrará todas as coisas que desejar, assim espero.

Chegando à porta, voltou-se para dizer:

— Quero avisá-lo, meu jovem amigo, que, se sair destes aposentos, não deve, de modo algum, dormir em outra parte do castelo. É muito velho e as pessoas que nele não souberem dormir terão maus sonhos. Se tiver sono, volte para seu próprio quarto, ou para estes aposentos, pois aqui ficará em segurança. Mas se não tiver cuidado...

Compreendi a insinuação perfeitamente; mas duvidava que pudesse haver pesadelo pior que o mistério que me rodeava.

Mais tarde. — Confirmo o que disse. Não receio dormir em qualquer lugar onde ele não esteja. Coloquei o crucifixo na cabeceira da minha cama, imaginando afastar os pesadelos.

Quando o Conde se retirou, fui para meu quarto. Algum tempo depois, como tudo estivesse em silêncio, saí e dirigi-me à escada de pedra, de onde podia olhar para o lado do sul. Dava-me certa sensação de liberdade olhar para a vastidão do lado de fora, embora me fosse inacessível, em comparação com a estreiteza e escuridão do pátio. Ao debruçar-me à janela, notei alguma coisa que se movia no andar de baixo, à minha esquerda, onde deviam se abrir, segundo meus cálculos, pela ordem dos assentos, as janelas do quarto do Conde. Afastei-me e olhei, atentamente.

O que chamara minha atenção era a cabeça do Conde, saindo para fora da janela. Não vi o rosto, mas distingui-o pelo pescoço e pelo movimento de suas costas e braços. De qualquer maneira, não podia me enganar com aquelas mãos, que tivera tantas oportunidades de examinar. A principio, eu estava interessado e um tanto distraído, pois qualquer coisa serve para distrair um prisioneiro. Mas meus sentimentos transformaram-se em repulsa quando vi todo o corpo do Conde projetar-se pela janela, vagarosamente, e sair se arrastando pela parede, de cabeça para baixo, com o manto agitando-se ao vento, como asas enormes. A princípio, não pude acreditar no que estava vendo. Pensei que fosse uma ilusão causada pelo luar. Mas não podia haver dúvida. Os dedos dos pés e das mãos se agarravam as pedras da parede, e o Conde andava velozmente, de cabeça para baixo, como uma lagartixa.

Que homem será este, ou que criatura semelhante a um homem? Receio que o pavor deste horrível lugar me enlouqueça e que não haja meio de escapar daqui. Estou tão horrorizado que não ouso pensar em...

15 de maio — Outra vez vi o Conde sair pela parede abaixo, como uma lagartixa, e desaparecer, a uns cem pés abaixo, em alguma janela ou buraco. Vi que saíra do castelo e resolvi aproveitar a oportunidade para procurar ver mais do que tinha me atrevido a ver até agora. Voltei ao quarto e, pegando uma lâmpada, experimentei todas as portas. Estavam trancadas, como esperava, e as fechaduras eram relativamente novas; mas desci pela escada de pedra, chegando ao vestíbulo por onde entrara.

Verifiquei que podia abrir facilmente os ferrolhos da porta, e o cadeado, mas a porta estava trancada e a chave desaparecera. A chave devia estar no quarto do Conde; resolvi ver se encontrava a porta do seu quarto aberta para me apoderar da chave e fugir. Continuei a examinar as várias escadas e corredores e tentar abrir as portas que davam para os mesmos. Havia uns dois aposentos abertos, mas nada havia demais neles, a não ser a mobília, muito velha e mofada.

Afinal, encontrei uma porta, no alto da escada, que se abriu quando a empurrei com bastante força. Encontrei-me, então, numa ala do castelo mais à direita que os aposentos que eu tinha visto e um andar abaixo dos mesmos. O castelo é construído num elevado rochedo e inexpugnável por três lados. Para o este, fica um grande vale, que dá para as montanhas. Esta era, evidentemente, a parte do castelo ocupada pelas damas nos velhos tempos, pois a mobília era mais confortável que nos aposentos que eu vira até então. Aqui estou escrevendo, numa mesinha de carvalho, onde, possivelmente, nos velhos tempos, alguma jovem se sentou, enrubescida, para escrever cartas de amor.

Mais tarde: madrugada de 16 de maio — Deus conserve minha saúde, que é tudo que me resta. Enquanto viver aqui minha única esperança é não enlouquecer. Estou começando a ver sob nova luz certas coisas que tinham me intrigado.

A misteriosa advertência do Conde me atemorizou quando foi feita e me atemoriza hoje mais ainda, pois, para o futuro, ele terá um terrível domínio sobre mim.

Depois que escrevi meu diário e que, felizmente, tinha colocado no bolso o caderno e a pena, senti sono. Lembrei-me da advertência do Conde, mas senti certo prazer em desobedecê-la. O luar me acalentava e a vastidão avistada através da janela dava uma sensação de liberdade que me exaltava. Resolvi não voltar naquela noite aos aposentos sombt~o9. Puxei um grande divã para um canto, de onde podia me deleitar com a bela vista para b sul e para o leste. Creio que adormeci; tenho a impressão de ter adormecido, mas tudo que, se seguiu foi tão real que não posso acreditar que estivesse dormindo.

Não estava só. O aposento não se modificara em coisa alguma e eu podia ver, no próprio chão, iluminado pelo luar, as marcas que meus pés tinham deixado na poeira. Em frente de mim, estavam três jovens mulheres, damas da nobreza pelas maneiras e modo de trajar. Pensei que era um sonho, pois, embora o luar estivesse por trás delas, suas sombras não apareciam no chão. Aproximaram-se de mim, olharam-me durante algum tempo e sussurraram algumas palavras umas para as outras. Duas eram morenas, com narizes aquilinos, como o do Conde, e grandes olhos escuros e vivos, que pareciam quase vermelhos, em contraste com o pálido luar. A outra era loura e olhos cor de safira. Tive a impressão de conhecer aquele rosto, mas não pude lembrar-me de onde e quando. Todas três tinham dentes branquíssimos, que brilhavam como pérolas, entre o rubi voluptuoso dos lábios. A sensação que provocavam em mim era estranha, ao mesmo tempo de desejo e de pavor. Sentia uma vontade ardente que elas me beijassem com aqueles lábios vermelhos. Não devia escrever isto, pois algum dia Mina vai ler estas notas e sentirá ciúmes; mas é a verdade. Depois de sussurrarem entre si, as três mulheres riram, uma risada límpida, musical, mas tão forte que seria impossível ter saído de lábios humanos. A moça loura sacudiu a cabeça, sensualmente, e as duas outras a estimularam. Uma delas disse:

— Vai. Você primeiro e nós depois. Você tem o direito de começar.

— As jovens são mais fortes — acrescentou a outra. — Há beijos para nós todas.

Fiquei imóvel, olhando entre as pálpebras quase descidas, na agonia de uma deliciosa expectativa. A moça loura avançou, debruçou-se sobre mim e pude sentir o contato suave de seus lábios na sensível pele do meu pescoço, e a dureza de dois dentes aguçados ali pousados. Fechei os olhos, num êxtase langoroso, e esperei, com o coração aos pulos.

Mas, nesse instante, uma outra sensação. Tive consciência da presença do Conde e percebi que estava furioso. Abrindo os olhos, involuntariamente, vi sua rude mão agarrada ao pescoço da moça loura e seu rosto demonstrava uma fúria que nunca imaginei, mesmo em demônios. Sem exageros, seus olhos chamejavam.

— Como se atreve a tocá-lo? — disse ele. — Como se atreveu a pôr os olhos sobre ele, quando proibi? Para trás, vocês todas! Este homem me pertence! Cuidado com a maneira de tratá-lo, ou terão de se haver comigo!

— Você jamais amou! — exclamou a moça loura, com uma gargalhada.

As outras a acompanharam, e gargalharam com tanta força que quase desmaiei ao ouvi-las. Depois o Conde virou-se, após olhar meu rosto atentamente, e disse, em voz baixa:

— Eu também sou capaz de amar. Vocês mesmas podem dizer isto, pelo passado. Agora, prometo que, quando não precisar mais dele, vocês poderão beijá-lo à vontade. Agora, vão-se embora!

— Não temos nada para esta noite? — perguntou uma das mulheres, com uma gargalhada, e apontando para o saco que o conde atirara no meio da sala e que se movia, como se houvesse um ser vivo lá dentro.

O Conde fez um sinal com a cabeça. Uma das mulheres precipitou-se sobre o saco e o abriu. Se meus ouvidos não me enganaram, ouvi o arquejar de uma criança. Fechei os olhos, horrorizado e, quando as mulheres tinham desaparecido, e, com elas, o horrível saco. Perdi os sentidos.


CAPÍTULO IV

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Continuação)

Acordei na minha própria cama. Se não sonhei, o Conde deve ter me trazido para aqui. Havia algumas pequenas provas de que eu sonhara. Minhas roupas estavam dobradas de modo diferente do que costumo dobrá-las e meu relógio sem corda. Mas isso não constitui prova suficiente. Uma coisa me satisfaz: se o Conde me trouxe para aqui e tirou minha roupa, devia estar com pressa, pois não mexeu em meus bolsos.

18 de maio — Desci, outra vez, à luz do dia, pois preciso saber a verdade. Quando cheguei à porta no alto da estrada, encontrei-a fechada pelo lado de dentro.

Receio que não tenha sido sonho.

19 de maio — Estou em maus lençóis, sem dúvida. Ontem à noite, o Conde me pediu, com bons modos, para escrever três cartas, uma dizendo que meu trabalho aqui já está quase pronto, e que vou regressar dentro de poucos dias; outra dizendo que vou partir no dia seguinte ao da carta, pela manhã, e a terceira dizendo que saí do castelo e cheguei a Bistritz. Na situação atual, seria loucura rebelar-me abertamente contra o Conde, quando me encontro em seu poder. Minha única esperança é ganhar tempo, esperando uma oportunidade que possa surgir. Assim, fingi concordar e perguntei ao Conde que datas deveria pôr nas cartas. Ele refletiu um minuto, depois disse:

— A primeira deve ser de 12 de junho, a segunda de 19 e a terceira de 29 de junho.

Deus que me ajude!

28 de maio — Há uma possibilidade de fuga ou, pelo menos, de mandar notícias para a Inglaterra. Um bando de ciganos está acampado no pátio do castelo.

Vou escrever algumas cartas e tentar fazer com que os ciganos as punham no correio. Já falei com eles através da janela do meu quarto, para travar conhecimento. Eles tiraram os chapéus, cumprimentaram-me e fizeram muitos sinais, que, contudo, não pude compreender, como não entendi o que diziam...

Escrevi as cartas. A carta para Mina taquigrafada e outra para o Sr. Hawkins, pedindo-lhe, apenas, para se avistar com Mina, à qual expliquei a situação, mas sem contar os horrores que me cercam e que a iriam mortificar. Se as cartas não seguirem, o Conde também não saberá meu segredo ou a extensão de meu conhecimento...

Atirei as cartas pela janela, junto com uma moeda de ouro, e fiz sinais, indicando que queria que as pusessem no correio. O homem que as apanhou apertou as cartas de encontro ao peito e curvou-se, tirando o chapéu.

O Conde apareceu algum tempo depois. Sentou-se perto de mim e disse, com voz muito calma, enquanto abria duas cartas:

— Os ciganos me entregaram estas duas cartas. Veja! Uma é do senhor para meu amigo Peter Hawkins e a outra — viu os símbolos estranhos quando abriu o envelope, fechou a cara e seus olhos brilharam sinistramente — a outra é uma... um ultraje à amizade e à hospitalidade! Não está assinada. Não nos importa, pois.

E, calmamente, atirou a carta e o envelope na chama da lâmpada. Depois, prosseguiu:

— Naturalmente, vou enviar a carta para Hawkins, uma vez que foi escrita pelo senhor. Suas cartas são sagradas para mim. Desculpe-me, porque a abri, na ignorância em que estava. Quer sobrescritá-la de novo?

Entregou-me a carta, com toda a cortesia, e não me restava outra coisa senão metê-la de novo no envelope e sobrescritá-la. Quando o Conde saiu do aposento, ouvi o barulho da chave que era girada de leve na fechadura. Um minuto depois, tentei abrir a porta, e vi que estava trancada.

Quando, uma ou duas horas depois, o Conde voltou, teve de me acordar, pois eu dormira no sofá.

— Está cansado, meu amigo? — perguntou, amavelmente. — Vá para a cama. Não posso ter o prazer de conversar esta noite, pois tenho muita coisa que fazer. Mas estou certo que o senhor dormirá.

Fui para o meu quarto, meti-me na cama e, por mais estranho que pareça, dormi sem sonhar.

31 de maio — Quando acordei esta manhã, tive idéia de tirar de minha mala papel e envelope, para metê-los no bolso, a fim de escrever, se aparecesse alguma oportunidade, mas nova e desagradável surpresa me aguardava: tinham desaparecido de minha mala todos os papéis em branco, assim como minhas anotações e todos os meus documentos, tudo que me seria útil quando conseguisse sair do castelo. Também o terno com que eu viajara tinha desaparecido, assim como meu sobretudo.

17 de junho — Esta manhã, quando estava sentado na cama, pensativo, ouvi ruído de chicotadas e de cascos de cavalos no caminho que fica para além do pátio. Corri à janela e avistei dois carretões, puxados cada um por oito cavalos, havendo um eslovaco, com seu chapéu característico, junto de cada parelha. Corri para a porta, pensando em descer e tentar alcançá-los através do vestíbulo principal, que eles poderiam abrir. Nova decepção: minha porta estava fechada pelo lado de fora.

Corri à janela e gritei. Os homens olharam-me estupidamente, não atenderam ao chamado.

24 de junho, antes do amanhecer — Na noite passada, o Conde deixou-me bem cedo e trancou-me em meu próprio quarto. Pouco depois, corri para a escada e olhei pela janela que dá para o sul. Estava ali há q~ meia hora, quando vi alguma coisa saindo`; da janela do quarto do Conde. Recuei e vi-o sair. Senti um choque, ao ver que vestira o terno com que eu viajara para o castelo e levava nas costas o horrível saco que eu vira no aposento das mulheres. Não podia haver dúvida sobre sua intenção: queria que os habitantes da região atribuíssem a mim o que ia fazer.

Resolvi aguardar sua volta e deixei-me ficar longo tempo à janela. Depois, comecei a notar que havia pequenas manchas flutuando ao luar. Olhando-as, senti uma espécie de torpor, uma certa calma. Recostei-me. De repente, porém, ouvi uivos de cães, no vale, e as manchas que pareciam de poeira começaram a assumir novas formas, enquanto dançavam ao luar. Pareciam fantasmas. Fugi, horrorizado e refugiei-me em meu quarto, onde me senti mais seguro.

Umas duas horas depois, ouvi um ruído no quarto do Conde, como o de um choro, prontamente abafado. Sentei-me na cama, desesperado, depois de ter tentado, em vão, abrir a porta.

Enquanto estava sentado, ouvi no pátio gritos agoniados de mulher. Corri à janela. Havia, de fato, uma mulher desgrenhada, de braços estendidos, no portão. Ao me ver na janela, gritou-me, ameaçadora:

— Monstro, dê-me meu filho!

E, caindo de joelhos, repetiu as mesmas palavras, de um modo que me cortou o coração.

Do alto, provavelmente da torre, veio a voz do Conde, num sussurro duro, metálico. Seu apelo pareceu ser atendido até muito longe pelo uivo dos lobos. Não se passaram muitos minutos e uma matilha deles apareceu e se lançou sobre a pobre mulher, que foi devorada em poucos instantes.

Que farei? Como escapar desta tortura?

25 de junho, pela manhã — Ainda não vi o Conde à luz do dia. Será que ele dorme enquanto os outros estão despertos, para poder estar acordado quando os outros dormem? Se pudesse entrar em seu quarto! Mas a porta está sempre fechada, não há meio.

Sim, há um meio, se eu me atrevesse. Por que não o imitaria e chegaria à sua janela como ele próprio faz? As probabilidades são mínimas, mas minha situação ainda é mais desesperadora. Vou arriscar. Deus me ajude! Adeus, Mina, se eu falhar! Adeus, meu amigo e segundo pai! Adeus, Mina!

Mesmo dia, mais tarde — Deus me ajudou e voltei são e salvo a este quarto. Aventurei-me enquanto ainda estava sob o impulso da coragem. Dirigi-me à janela que dá para o sul, tirei os sapatos e aventurei-me no caminho perigoso.

Durante o trajeto não olhei para baixo. Conhecia bem a direção e a distância da janela do quarto do Conde e segui para lá o melhor que pude, valendo-me de todas as oportunidades. Não senti tonteira — creio que estava muito excitado — e o tempo pareceu-me ridiculamente reduzido até que me vi de pé no peitoril da janela procurando abri-la. Quando consegui, olhei em torno, procurando o Conde, mas, com surpresa e alegria, fiz uma descoberta. O quarto estava vazio. Os móveis eram semelhantes aos dos aposentos que davam para o sul e estavam cobertos de pó. Procurei a chave, mas não a achei. A única coisa que encontrei foi um monte de moedas de ouro, de diversos países e cobertas de poeiras, como se estivessem ali há muito tempo. Nenhuma tinha menos de trezentos anos.

A um canto do quarto, havia uma pesada porta. Abri-a e vi um corredor, que dava para uma escada em caracol, pela qual desci. No fim da escada, outro corredor escuro, semelhante a um túnel, onde senti cheiro de terra removida há pouco. Afinal encontrei uma pesada porta entreaberta e, passando-a, vi-me numa capela arruinada que tinha sido, evidentemente, usada como cemitério. Procurei por toda a parte, mesmo nas criptas sombrias, cujo aspecto me apertava o coração. Em duas delas, havia apenas fragmentos de esquifes e poeira; na terceira, contudo, fiz uma descoberta.

Ali, numa das grandes caixas, das quais havia cinqüenta ao todo, num monte de terra recentemente escavada, estava o Conde! Estava ou morto ou dormindo, não posso dizer, pois seus olhos estavam abertos e parados, mas sem o aspecto vítreo que lhes dá a morte e as faces tinham o calor da vida, apesar da palidez; os lábios estavam vermelhos como sempre. Mas não havia sinal de movimento, de respiração nem o coração batia. Debrucei-me sobre ele e tentei em vão procurar um sinal de vida. Resolvi ver se as chaves estavam com ele, mas ao revistá-lo, encontrei seus olhos que refletiam tanto ódio, embora inconsciente de minha presença, que fugi e, saltando a janela do quarto do Conde arrastei-me, de novo, pela parede do castelo. Chegando ao meu quarto atirei-me na cama e procurei refletir...

29 de junho — De novo vi o Conde descer pela parede, vestindo meu terno. Não ousei esperá-lo voltar, pois receava ver suas malditas irmãs. Fui para a biblioteca e li até adormecer.

Fui acordado pelo Conde, que me encarava com tristeza profunda, e disse:

— Amanhã, meu amigo, devemos nos separar. O senhor regressará à Inglaterra. Eu tenho certo trabalho a fazer e talvez nunca mais nos encontremos. Pela manhã virão os ciganos, que têm de executar alguns trabalhos aqui, e também alguns eslovacos. Quando tiverem partido, minha carruagem virá buscá-lo para levá-lo ao Passo de Borgo, a fim de tomar a diligência.

— Por que não posso partir esta noite? — perguntei-lhe a queima-roupa.

— Porque meu cocheiro e os cavalos estão ausentes.

— Mas eu poderia ir a pé.

— E sua bagagem? — retrucou o Conde, com um sorriso diabólico.

— Posso mandar buscá-la mais tarde.

— Não quero que o senhor fique em minha casa um minuto contra a sua vontade — exclamou o Conde. — Venha comigo, meu jovem amigo!

E, gravemente, segurando a lâmpada, precedeu-me na escada e caminhou até a porta do vestíbulo, onde parou.

— Ouça!

De muito perto, vinha o uivo de lobos. Depois de alguns momentos, o Conde aproximou-se da porta e começou a abri-la, após tirar as pesadas trancas.

Com assombro, vi que a porta não estava fechada a chave. Mas, à medida que ia se abrindo, o uivo dos lobos ia se tornando mais forte e feroz. Compreendi que era inútil lutar contra ele naquele momento.

— Feche a porta! — gritei. — Esperarei até amanhã!

O Conde fechou a porta e voltamos em silêncio para a biblioteca e, um ou dois minutos depois, passei para o meu quarto. Quando ia me deitar, tive a impressão de ouvir um sussurro junto à porta. Aproximei-me na ponta dos pés e ouvi a voz do Conde:

— Voltem para o seu lugar! Sua ocasião ainda não chegou. Tenham paciência! Esta noite é minha. Amanhã será de vocês!

Houve uma risada baixa, zombeteira e, furioso, abri a porta e vi do lado de fora as três horríveis mulheres, passando a língua nos lábios. Vendo-me, soltaram uma gargalhada terrível e fugiram.

Voltando ao quarto, caí de jóelhos. Está, pois, tão próximo o meu fim? Senhor, protegei-me!

30 de junho, pela manhã — Talvez sejam estas as últimas palavras que escrevo neste diário. Acordei com o canto dos galos e desci ao vestíbulo. Como a porta não estava fechada a chave na véspera, tinha alguma esperança de fugir. Puxei os pesados ferrolhos e fiz cair os cadeados, mas a pesada porta não se moveu. Todos os meus esforços foram vãos.

Resolvi, então, procurar a chave, custasse o que custasse. Desci mais uma vez, pela parede, até o quarto do Conde. Minha angústia era tanta que não hesitei em arriscar a vida.

O quarto do Conde estava vazio. Desci a escada em caracol que conduzia ao corredor subterrâneo e, de lá, cheguei à capela. O caixão continuava em seu lugar, mas, dessa vez, a tampa estava descida. Levantei-a, com cuidado pois estava disposto, de qualquer modo, a revistar os bolsos do Conde.

O que vi me encheu de horror. Era o Conde mesmo, mas como se tivesse remoçado. Os cabelos e bigodes brancos tinham se tornado grisalhos, a pele mais clara e a boca ainda mais vermelha que sempre, nos lábios gotas de sangue fresco, que escorriam pelo queixo e pescoço. Toquei-o com enorme repulsa, mas era preciso. Em vão remexi-lhe os bolsos; não encontrei as chaves.

Contemplei, depois o Conde. Parecia me olhar com um sorriso sarcástico. Aquele era o ser que eu estava ajudando a levar para Londres, onde, talvez, nos séculos futuros, saciará sua sede de sangue e criará novo e crescente círculo de semi-demônios. A essa idéia, tornei-me presa de um desejo furioso de livrar o mundo de tal monstro. Não havia armas à mão, mas agarrei uma pá, que os trabalhadores estavam usando para encher os caixões e desfechei-lhe uma pancada no rosto odiento. Mas, ao fazer isto, sua cabeça virou-se e seus olhos pareceram me fitar, com todo o seu brilho de basilisco. Essa visão me paralisou e a pá afastou-se, produzindo apenas um corte na testa do Conde. Depois, a pá escapou de minha mão, sobre a tampa do caixote, que se fechou.

Atordoado, fiquei refletindo sobre o que deveria fazer, quando ouvi cantos, vozes que se aproximavam, o ruído de rodas, e estalar de chicotes. Os ciganos e eslovacos a respeito dos quais falara o Conde estavam chegando. Corri para o quarto, dele, disposto a fugir no momento em que a porta fosse aberta. Apurei os ouvidos e escutei, embaixo, o rangido da chave e o ruído da grande porta que se abria. Depois, o barulho de muitos passos, passando por algum corredor. Voltei de novo para a cripta onde talvez pudesse encontrar outra entrada; mas, naquele momento pareceu vir violento sopro de vento e a porta da escada bateu com toda a força. Eis-me de novo prisioneiro e com o cerco apertando em torno de mim.

Enquanto escrevo ouço passos no corredor embaixo e pesos arrastados, sem dúvida os caixões com sua carga de terra. Também escuto pancadas de martelo: é a caixa que está sendo pregada. Agora, posso ouvir passos que se afastam.

A porta foi fechada e ouvi o ruído da chave na fechadura; depois, esta sendo retirada. Outras portas se abrem e fecham...

Do pátio, chegam os ruídos de estalar de chicotes e rodas que se afastam. Os ciganos partem!

Estou sozinho no castelo, com aquelas terríveis mulheres! Não posso ficar! Tenho que tentar descer pelos muros ainda mais longe do que tentei. Levarei algum ouro comigo, posso precisar dele mais tarde. Talvez encontro um meio de sair deste lugar medonho.

Pelo menos, a misericórdia de Deus é melhor do que esses monstros e o precipício é alto e íngreme. A seus pés, um homem pode dormir — como homem. Adeus, todos! Mina!


CAPÍTULO V

 

CARTA DE MISS MINA MURRAY A MISS LUCY WESTENRA

9 de maio

Querida Lucy:

Peço-lhe perdão por ter custado tanto a lhe escrever, mas é que estou assoberbada de trabalho. A vida de uma professora assistente é muito trabalhosa. Estou ansiosa para encontrar-me contigo à beira-mar, onde poderemos conversar à vontade e fazermos nossos castelos no ar. Tenho treinado muito taquigrafia, pois, assim, poderei ajudar a Jonathan, quando nos casarmos. Ele, às vezes, escreve-me cartas estenografadas, para eu treinar, e sei que também taquigrafa. suas notas de viagem. Quando estiver com você, vou escrever um diário, também taquigrafado, que será ótimo para exercitar-me.

Jonathan só me escreveu alguma linhas da Transilvânia. Está passando bem e regressará dentro de uma semana, mais ou menos.

Estou aflita para ouvir todas as novidades que ele tem para contar. Deve ser tão bom conhecer países estrangeiros!... Mas o relógio está batendo dez horas. Adeus.

Afetuosamente.

MINA

P.S. — Dê-me notícias completas, quando escrever. Há muito tempo que nada me conta. Ouvi certos boatos, em particular sobre um rapaz alto, moreno, de cabelos encaracolados...

CARTA DE LUCY WESTENRA A MINA MURRAY

7 Chatman Street

Quarta-feira

Minha querida Mina:

Não tem razão de censurar-me. Já lhe escrevi duas vezes e, além de tudo, nada tenho para lhe contar. A vida na cidade está correndo de maneira muito agradável e temos ido bastante às galerias de pintura e passeado a pé e de carro no parque. Quanto ao rapaz alto, de cabelos encaracolados, trata-se de Mr. Holmwood. Ele nos visita com freqüência e se dá muito bem com mamãe. Conhecemos um rapaz que seria excelente partido para você, se já não fosse noiva do Jonathan. É um ótimo partido, bonito e de boa família e, além disso médico de muito futuro. Imagine! Tem 29 anos, dirige um imenso hospício! Mr. Holmwood apresentou-o a mim e ele veio nos fazer uma visita, e tem vindo muitas vezes depois. Creio que é o homem mais resoluto que já vi e, no entanto, é muito calmo. Parece imperturbável. Imagino que maravilhoso poder deve ter sobre seus doentes. Tem o hábito curioso de encarar a gente bem no rosto como se estivesse querendo ler os pensamentos. Diz ele que eu lhe ofereço um curioso estudo psicológico. Como você sabe, não me interesso muito por vestidos, para poder lhe descrever as novas modas. A moda é tão cacete... Lá vem gíria outra vez, mas não faz mal. Arthur diz isto todo o dia. AI está, tenho que dizer... Não adivinha, Mina? Eu o amo. Sinto-me envergonhada de escrever isto, pois, embora ache que me ame, ele não declarou por palavras. Mas eu o amo, Mina. Queria estar junto de você, querida, para dizer-lhe o que sinto. Não sei como estou escrevendo isto, mesmo para você. Preciso parar. Adeus, Mina. Reze por mim, reze pela minha felicidade.

LUCY

P.S. — Não é preciso dizer que isto é segredo L.

CARTA DE LUCY WESTENRA A MINA MURRAY

24 de maio

Minha querida Mina:

Muitas vezes obrigada pela sua amável carta. Foi tão agradável recebê-la!

Minha querida, imagine que eu, que vou fazer vinte anos em setembro, e nunca fora pedida em casamento, fui agora pedida três vezes! Imagine! Três vezes, no mesmo dia.

Sinto-me tão feliz, Mina, que nem sei o que fazer! Três pedidos. Mas, por favor, não conte às outras moças, senão vão fazer as idéias mais extravagantes. Há moças tão fúteis! Eu e você, Mina, estamos noivas e podemos desprezar a vaidade.

Mas deixe-me falar sobre os três pedidos. O primeiro pretendente, que veio antes do almoço, é o Dr. John Seward, diretor do hospício, sobre o qual já lhe falei. Parecia muito calmo, mas, na verdade, estava nervoso. Tinha, sem dúvida, pensado, antes, em inúmeros detalhes, mas quase sentou em cima de sua cartola, o que os homens em geral não fazem, quando estão calmos, e ficou o tempo todo brincando com uma lanceta, quase me fazendo dar um grito. Falou-me diretamente. Disse-me quão cara eu lhe era, embora me conhecesse tão pouco. Estava dizendo como seria infeliz se eu não me interessasse por ele, mas, vendo-me chorar, exclamou que era um bruto e não iria aumentar minha perturbação. Depois, perguntou-me se poderia amá-lo algum dia. Sacudi a cabeça e suas mãos ficaram trêmulas e, depois de hesitar um pouco, perguntou-me se eu gostava de outro. Achei que devia lhe dizer sim. Apenas lhe disse isso e ele me disse que desejava que eu fosse feliz e que, se precisasse de um amigo, devia contar com ele. Não posso deixar de chorar, Mina; peço desculpas por esta carta toda manchada. Paro aqui, pois me sinto tão triste, no meio de minha félicidade!...

À noite

Arthur acaba de sair e encontro-me num estado de espírito melhor do que quando interrompi a carta, por isso vou continuar a contar o que se passou durante o dia.

O número dois apareceu depois do almoço. É um rapaz muito simpático, americano do Texas, e parece tão jovem que custa a acreditar que tenha estado em tanto lugares e vivido tantas aventuras. Mr. QuinCey. Morris encontrou-me sozinha. Parece que um rapaz sempre encontra a gente sozinha, mas não é, pois Arthur procurou duas vezes a oportunidade e eu sempre o ajudando o mais que podia; não me envergonho de contar. Mas, como ia dizendo, Mr. Morris sentou-se a meu lado, segurou-me a mão e disse:

— Miss Lucy, não sou digno de desatar-lhe os sapatos, mas, para encontrar um homem que seja digno da senhora, talvez tenha de esperar muito tempo. Na falta de outro melhor, não se contentaria com um marido imperfeito?

Parecia tão bem-humorado, que me foi muito menos difícil responder-lhe negativamente do que ao pobre Dr. Seward. Assim, disse-lhe, tão despreocupadamente quanto pude, que não sentia pressa de me casar. Ele retrucou, então, que esperava que, se tivesse falado de modo que nem parecera leviano para uma ocasião tão séria, eu lhe perdoaria. E acabou, realmente, falando com seriedade. Fiquei nervosa, e ele percebeu minha agitação.

— Sim — confessei-lhe. — Realmente, amo outro, embora ele ainda não tenha me dito que me ama.

— A senhora é uma moça leal — disse ele. — Se já gosta de outro, só me resta resignar-me, mas pode crer que serei sempre seu amigo dedicado.

Tudo isso me agitou muito, querida, e não posso descrever agora minha felicidade, depois de lhe haver contado tudo isso.

Sua afetuosa amiga

LUCY

P. S. — Não há necessidade de dizer o nome do número Três, que você já deve ter adivinhado. E tudo aconteceu tão rapidamente! Ele entrou e abraçou-me. Sinto-me transbordante de alegria. Tudo que me resta no futuro é mostrar que não sou ingrata para com Deus por me dar esta felicidade, este apaixonado, marido e amigo. Adeus.

DIÁRIO DO DR. SEWARD
(Gravado em fonógrafo)

25 de maio — No abatimento em que me encontro, depois da recusa que sofri, creio que o melhor remédio é o trabalho. Escolhi um doente que promete um estudo muito interessante.

Interroguei-o demoradamente, a fim de compreender as razões de sua alucinação.

R. M. Renfield, idade, 59. — Temperamento sanguíneo; grande força física; períodos de depressão, terminando com alguma idéia fixa. Possivelmente homem perigoso, provavelmente perigoso não sendo egoísta. Os homens egoístas são menos perigosos, por terem cuidado consigo.


CAPÍTULO VI

 

DIÁRIO DE MINA MURRAY

24 de julho — Whitby — Lucy foi me esperar na estação e de lá fomos para a casa em Crescent, onde elas alugaram quartos.

É um lugar lindo. O rio Ersk atravessa o vale; que vai se alargando, à medida que se aproxima do porto. À direita da cidade, ficam as ruínas da Abadia de Whitby, que dizem ser mal-assombrada pela Dama de Branco. Entre essas ruínas e a cidade, fica outra igreja, a paroquial, rodeada por um grande cemitério. Na minha opinião, é o lugar mais bonito de Whitby, pois de lá se tem uma vista linda para o porto. Muita gente passeia por ali e senta-se nos bancos, admirando a paisagem. É de um desses bancos que escrevo estas linhas. A meu lado, está sentado um velho marinheiro, de rosto queimado pelo sol. Diz que tem quase cem anos e era marinheiro da frota de pesca da Groenlândia por ocasião de Waterloo. Creio que é um tanto cético, pois, quando lhe perguntei pela Dama de Branco, respondeu:

— Não acredito nisso, senhorita. São coisas que passaram. Não digo que não tenham existido, mas não foram de meu tempo.

Quando o relógio bateu seis horas, ele se levantou, com esforço, explicando-me:

— Tenho de voltar para casa, senhorita. Minha neta não gosta de me esperar para o chá.

Afastou-se, descendo a escada o mais depressa que pôde. Essa escada é uma característica deste lugar. Vai da cidade à igreja e tem centenas de degraus, fazendo uma curva discreta. A encosta é tão suave que até a cavalo pode ser galgada.

Agora, vou para casa. Lucy saiu, para fazer visitas com sua mãe, mas já deve ter voltado.

25 de julho — Cheguei aqui com Lucy há uma hora e tivemos uma conversa muito interessante com meu velho amigo e dois outros que sempre ficam com ele e que o consideram, sem dúvida, como seu mestre. Lucy estava linda, com seu vestido branco; ganhou uma bela cor depois que chegou aqui. Notei como os velhos vêm se sentar ao seu lado, mal ela aparece. Também, é tão amável com eles!

Insisti com o velho marinheiro sobre as lendas, mas ele, mais uma vez, deu mostra de seu ceticismo.

Eu e Lucy ficamos algum tempo, e ela me falou de novo a respeito de Arthur e de seu próximo casamento. Isso me fez sofrer um pouco, pois há um mês não tenho notícias de Jonathan.

Mesmo dia — Vim aqui sozinha, pois estou muito triste. Não havia carta para mim. Espero que tudo esteja correndo bem para Jonathan. O relógio acaba de bater nove horas. Contemplo as luzes da cidade e penso em Jonathan. Onde estará a uma hora destas? Por que não está aqui, perto de mim?

DIÁRIO DO DR. SEWARD

5 de junho — Quanto mais interessante se torna o caso de Renfield, menos compreendo. Ele possui certas qualidades muito desenvolvidas: personalidade, capacidade de guardar segredo e curiosidade. Queria saber qual é o objetivo dessa última qualidade. Parece ter arquitetado algum plano. Sua maior qualidade é o amor pelos animais, embora, às vezes sua atitude me leve a crer que é apenas anormalmente cruel. Seu passatempo agora é pegar moscas. Tem uma enorme quantidade delas.

18 de junho — Agora, passou a se interessar pelas aranhas e tem vários exemplares, muito grandes, numa caixa. Alimenta-as com suas moscas, cujo número diminui, embora ele se utilize de metade de seu alimento para apanhá-las.

1.° de julho — Suas aranhas estão aumentando demais e dei-lhe ordem de acabar com elas, como já lhe dera de acabar com as moscas. 8 de julho — Sua loucura tem um certo método, não resta dúvida. Agora resolveu se distrair com os pardais e já amansou um quase inteiramente. Seu método de amansá-lo é simples, pois as aranhas já diminuíram. As que restam, contudo, estão bem alimentadas, pois ele continua a pegar moscas com a comida.

19 de julho — Estamos progredindo. Meu amigo tem agora toda uma colônia de pardais e as moscas e aranhas estão quase esquecidas. Quando entrei, correu para mim, fazendo-me festas como um cão e implorou-me que lhe desse um gato, ao menos um gatinho... Recusei-lhe, porém.

20 de julho — Estive com Renfield hoje cedo. Procurei os pássaros e, não os encontrando, perguntei-lhe onde estavam. Sem se voltar, pois estava de novo caçando moscas, ele me respondeu que tinham fugido. Mas havia penas pelo quarto e, no travesseiro, uma gota de sangue.

11 horas — O guarda acaba de me dizer que Renfield está passando mal, tendo vomitado muitas penas. “Acho, doutor, que ele comeu os pássaros crus, com pena e tudo” — disse-me o guarda.

11 da noite — Dei um forte soporífero a Renfield. Meu maníaco homicida é de uma espécie peculiar. Inventarei uma nova classificação para ele: maníaco zoófago (comedor de vida). O que ele deseja é absorver tantas vidas quanto seja possível. Deu muitas moscas a uma aranha, muitas aranhas a um pardal, e queria um gato para comer muitos pardais...

DIÁRIO DE MINA MURRAY

26 de julho — Estou preocupada com Jonathan e com Lucy, também. Não tinha notícias de Jonathan há muito tempo, quando ontem o Sr. Hawkins, que é muito atencioso comigo, mostrou-me uma carta dele, anunciando seu regresso, em poucas palavras. É esquisito, nem parece carta de Jonathan.

A saúde de Lucy, também, me preocupa. Está bem disposta, mas voltou a seu velho sonambulismo. Conversei a respeito disso com a mãe dela e prometi fechar, todas as noites, com cuidado, a porta do nosso quarto, Lucy está dormindo no quarto comigo. A Sra. Westenra está muito preocupada, pois acha que os sonâmbulos caminham pelos telhadós, de onde se arriscam a cair e fraturar o crânio. Coitada, gosta tanto da filha! Contou-me que o marido tinha o mesmo hábito: levantava-se, à noite, dormindo, vestia-se e sala, se não fosse impedido. Lucy vai se casar no próximo outono e está muito preocupada com o enxoval. Isso me faz desejar ainda mais ardentemente o regresso de Jonathan. O Sr. Holmwood — o Exmo. Sr. Arthur Holmwood, filho único de Lord Godalming — virá se reunir a nós dentro de pouco tempo, logo que possa sair da cidade, pois seu pai não está passando bem, e Lucy está contando as horas, ansiosa.

27 de julho — Continuo sem notícias de Jonathan, o que me preocupa muito. Se ele me escrevesse ao menos uma linha! Lucy continua com sonambulismo e todas as noites acordo com ela caminhando pelo quarto. Felizmente o tempo está bom e não há perigo dela apanhar um resfriado. Mas a falta de sono está me afetando e estou ficando nervosa. Felizmente, Lucy está passando bem. O Sr. Holmwood continua preso junto do pai, cujo estado de saúde está se agravando.

3 de agosto — Mais uma semana, e nenhuma notícia de Joriathori, nem mesmo para o Sr. Hawkins. Deus queira que não esteja doente! A letra de sua última carta é dele mesmo, mas a carta não me satisfez. Lucy não caminhou muito dormindo durante a última semana.

6 de agosto — Outros três dias sem notícia. Essa expectativa é insuportável. Se ao menos eu soubesse para onde escrever ou ir, sentir-me-ia menos preocupada; mas não tive a menor notícia dele, depois de sua última carta. Só me resta rezar a Deus, pedindo paciência.

Durante a noite passada, ventou muito, e os marinheiros achavam que estávamos na iminência de uma tempestade. Hoje, o nevoeiro está muito forte. Todos os barcos de pesca rumam. para terra. Encontrei-me com o velho marinheiro e fiquei admirada com sua mudança: estava realmente abatido, prevendo naufrágios.

Fiquei satisfeita quando um guarda costeiro aproximou-se, empunhando um binóculo. Parou para conversar comigo, como faz sempre, mas olhava, constantemente, para um estranho navio.

— Pelo aspecto, deve ser russo — disse ele. — Não parece estar sendo dirigido; deve estar vendo a tempestade aproximar-se, mas parece que não se decide se segue para o norte ou se entra aqui. Vamos ouvir falar dele antes de amanhã a estas horas.


CAPÍTULO VII

 

RECORTADO DO “DAILYGRAPH” DE 8 DE AGOSTO
(Incluso no diário de Mina Murray)

De um Correspondente:

(Uma das maiores e mais violentas tempestades de que se tem memória aqui, com resultados estranhos e sui generis. Na noite de sábado, o tempo estava bom. Grupos de pessoas passeavam no Bosque de Mulgrava, Baía de Robin Hood, Rig Mill, Runswick, Staithees e diversos outros lugares das vizinhanças de Whitby. Os vapores “Emma” e “Nelson” realizaram excursões pelo litoral e a cidade de Whitby estava muito movimentada. O crepúsculo foi muito bonito. Um velho marinheiro, que há mais de meio século observa os sinais do tempo no Rochedo de Leste, previu, com segurança, uma tempestade. O vento abrandou inteiramente durante a noite e, à meia-noite houve uma calmaria absoluta, calor intenso e o mormaço que fazem as pessoas sensíveis prever a aproximação de tempestade. Havia poucas luzes à vista no mar, pois mesmo os vapores costeiros que, em geral, navegam muito perto da costa, tinham ganho o mar alto e poucos barcos de pesca estavam à vista. As únicas velas visíveis eram de uma escuna estrangeira que parecia ir para oeste. A imprudência ou ignorância de seus oficiais deu motivo a muito comentário e procurou-se fazer-lhe sinal no sentido de reduzir as velas, em face do perigo.

Pouco antes de dez horas, a atmosfera se tornou opressiva e reinou um silêncio tão completo que se podia ouvir o latir de um cão na cidade. Pouco antes de meia-noite, veio um ruído estranho do mar e um uivo encheu o ar.

De repente, sem advertência, a tempestade se desencadeou. As ondas ergueram-se furiosamente. Súbito, a escuna apareceu iluminada pela luz do farol. Um grito de angústia irrompeu de todos os lábios, mesmo dos homens mais fortes e habituados com as surpresas marítimas.

— Não escapa! — gritaram. — Vai se arrebentar de encontro aos rochedos.

Erguida por uma onda gigantesca, a escuna foi projetada no porto. Parecia um milagre. A luz do farol a acompanhou e um arrepio percorreu todos que a contemplavam, pois, amarrado ao leme, havia um cadáver. Nenhum outro vulto era divisado na coberta.

Arrastado pelas ondas, o navio encalhou na praia. E o mais estranho de tudo foi que, logo que o navio encalhou, um cão enorme pulou da proa, caiu na areia e saiu correndo, como uma flecha, em direção ao cemitério da igreja, onde desapareceu.

O guarda costeiro que estava de serviço na zona oriental do porto foi o primeiro a subir ao navio. Embora estivesse um pouco longe, também me dirigi logo para lá. Quando cheguei, já havia grande multidão, que a polícia e a guarda-costeira tratavam de impedir entrasse na escuna. Por cortesia das autoridades, pude entrar, na qualidade de jornalista.

O que se via era inacreditável. O homem estava com as mãos amarradas na roda do leme. Entre a mão que estava para o lado de dentro e a madeira, havia um crucifixo cujo rosário fora enrolado em ambos os punhos do cadáver e na roda. Um médico, o Dr. J. M. Caffyri, que chegou logo depois de mim, opinou que ele já devia estar morto há uns dois dias. No seu bolso foi encontrada uma garrafa, cuidadosamente arrolhada, contendo um pequeno rolo de papel que parece ser um adendo ao diário de bordo. O guarda costeiro diz que o homem deve ter amarrado as próprias mãos, atando o nó com os dentes.

A tempestade já passou e os curiosos estão voltando para casa. Enviarei mais pormenores para a próxima edição.

9 de agosto — Verificou-se que escuna é russa, de Varna e chama-se “Demeter”. Estava navegando com lastro de areia, tendo, apenas um pequeno carregamento, constituído por um certo número de grandes caixotes de terrá. Esse carregamento estava consignado a um procurador de Whitby. Sr. S. F. Billington, de Crescent, que, esta manhã, foi a bordo e tomou posse dos bens. Também o cônsul tomou posse formal do barco e pagou os impostos devidos.

Não se fala em outra coisa na cidade a não ser no estranho acontecimento. O destino do cão tem despertado grande interesse. Alguns membros da Sociedade Protetora dos Animais o procuraram, em vão. Para desapontamento geral, ele parece ter desaparecido inteiramente da cidade. Talvez, amedrontado, tenha se refugiado nos brejos, onde ainda se encontre. Não falta quem receie que, mais tarde, ele se torne um perigo, pois é enorme. Hoje cedo, um cão muito grande, mestiço de mastim, pertencente a um carvoeiro de perto do cais, foi encontrado morto, com o pescoço estraçalhado, mostrando que lutou ferozmente.

Mais tarde — Graças à amabilidade do inspetor da Câmara de Comércio, pude examinar o diário de bordo do “Demeter”. Não registra fato algum de particular interesse, a não ser o desaparecimento de alguns membros da equipagem. O documento mais interessante é o que foi encontrado dentro da garrafa. Transcrevo, omitindo apenas alguns pormenores de ordem técnica. Parece que o capitão era maníaco e seu estado mental foi se agravando durante a viagem. Naturalmente, minhas informações devem ser aceitas em termos, pois estou escrevendo o que dita um empregado do cônsul russo, que teve a bondade de traduzir para mim, já que o tempo é curto.

DIÁRIO DE BORDO DO “DEMETER”
Viagem de Varna a Whitby

Escrito a 18 de julho. Estão acontecendo coisas tão estranhas, que farei anotações cuidadosas, a partir de agora, até chegarmos ao nosso destino.

Em 6 de julho recebemos a carga, que consiste de areia e caixotes cheios de terra. Ao meio dia, partimos. Vento de leste. Tripulação: cinco marinheiros... dois pilotos, o cozinheiro e eu próprio (capitão).

Em 11 de julho, entramos no Bósforo ao amanhecer. Inspetores aduaneiros turcos vieram a bordo. Tudo em ordem. Partimos às 4 da tarde.

Em 12 de julho, atravessamos os Dardanelos. Mais inspetores alfandegários. Atravessamos o arquipélago à noite.

Em 13 de julho, passamos pelo Cabo de Matapari. A tripulação mostra-se insatisfeita com alguma coisa. Parece amedrontada, mas não revelaram o motivo.

A 14 de julho, fiquei preocupado com a tripulação. Todos os marinheiros eram homens corajosos, que já tinham viajado comigo antes. O imediato não pôde saber o que havia; os marinheiros apenas lhe disseram que havia alguma coisa e se persignaram. O imediato perdeu a calma com um deles e agrediu-o. Esperava barulho, mas tudo terminou bem.

A 16 de julho, o imediato me comunicou que um dos homens, Petrowsky, desapareceu. É incompreensível.

A 17 de julho, ontem, um dos homens, Olagren, procurou-me e me avisou que acha que existe um estranho a bordo. Disse-me que, quando estava em seu posto, viu um vulto comprido e esguio caminhar ao longo da cobertura e desaparecer. Acompanhou-o, pé ante pé, mas, ao, chegar à proa, não encontrou ninguém e todas às escotilhas estavam fechadas. Está apavorado, e receio que o medo contamine o resto da tripulação.

Para tranqüilizá-lo, percorri todo o navio, de proa a popa.

Mais tarde, reuni todos os tripulantes e disse-lhes que, como estavam achando que havia alguma coisa a bordo, iríamos dar uma batida completa no navio. O imediato irritou-se, achando que aquelas idéias tolas desmoralizariam os homens. Deixei-o no leme enquanto o resto dava uma batida completa, com lanternas. Só havia os grandes caixotes, não existindo canto onde uma pessoa pudesse esconder-se. Os tripulantes ficaram tranqüilizados.

22 de julho — Mar agitado nos últimos três dias. Os tripulantes parecem ter esquecido seus temores. Passamos Gibraltar.

23 de julho — Uma maldição parece pesar sobre este navio. Desapareceu outro homem, enquanto estava de serviço. O medo reina de novo. os homens pediram para ficar de serviço de dois em dois. Receiam ficar só. O imediato está furioso.

28 de julho — Quatro dias de inferno, tempestade furiosa. Ninguém dorme. Os homens estão exaustos. É difícil pôr alguém de serviço, pois já não há ninguém em condições. O segundo piloto se ofereceu para fazer a vigília e ficar no leme para que os homens possam dormir algumas horas.

29 de julho — Outra tragédia. Tive de fazer turnos simples, por falta de homens. Pela manhã, só encontrei o timoneiro. Estamos agora sem segundo piloto e a tripulação em pânico.

30 de julho — última noite. Felizmente estamos nos aproximando da Inglaterra. Tempo bom, todas as velas levantadas; dormi profundamente; acordei com o imediato me comunicando que tanto o homem da vigília como o timoneiro tinham desaparecido. Só restamos eu, o imediato e dois marinheiros.

1.° de agosto — Dois dias de nevoeiro e nenhuma vela à vista. Esperava que, na Mancha, pudesse pedir socorro. Estamos navegando contra o vento. O imediato tornou-se o mais desmoralizado de todos. Os marinheiros estão trabalhando com paciência e vigor. São russos, o imediato é romeno.

2 de agosto, à meia-noite — Acordei após Poucos minutos de sono, ouvindo um grito. Nada pude ver na escuridão. Esbarrei com o imediato. Mais um homem desapareceu. Parece que estamos no Mar do Norte, depois de atravessar o Estreito de Dover. Deus tenha piedade de nós!

3 de agosto — A meia-noite, vim substituir o homem que estava no leme. O vento estava muito forte. Gritei pelo imediato que, alguns segundos depois, apareceu transtornado e murmurou no meu ouvido: “Ele está aqui, agora sei. Eu o vi, na noite passada. Debruçou-se na amurada. Aproximei-me dele e dei-lhe uma facada, mas a faca o atravessou sem feri-lo, como se tivesse cortado o ar. Mas ele está aqui, tenho certeza. Talvez dentro de uma daquelas caixas. Vou abrir uma por uma. Fique no leme”. E afastou-se, com o dedo nos lábios. Pouco depois, avistei-o subindo para a coberta, carregando uma caixa de ferramentas e uma lanterna. Deve ter enlouquecido. Não adianta contrariá-lo. Assim, deixei-me ficar aqui e escrevo estas notas. Apenas me resta ter fé em Deus e esperar que o nevoeiro passe. Se conseguir chegar a qualquer porto com esse vento, arriarei as velas e farei sinal pedindo socorro... De repente, ouvi um grito horrível e o imediato apareceu correndo, tendo no Posto, uma expressão de pavor. “Salve-me!”. “É melhor vir também, capitão, antes que seja demasiado tarde. Ele está aqui. Agora, conheço o segredo. O mar me salvará dele!” E, antes que eu pudesse dizer uma palavra, precipitou-se no mar. Creio que agora também sei o segredo. Foi esse louco que se livrou dos homens, um a um, e agora os acompanhou. Deus tenha piedade de mim. Como poderei contar todos esses horrores, quando chegar ao porto? Mas chegarei?

4 de agosto — Ainda o nevoeiro, que o sol não pode atravessar. Não me atrevo a deixar o leme. Esta noite eu o vi... Deus me perdoe, mas o imediato fez bem em se atirar ao mar. Comigo, porém, o caso é diferente. Tenho de salvar minha honra de comandante. Estou cada vez mais fraco... Se o barco naufragar, talvez esta escuna seja encontrada e poderão compreender; se não... Então todos saberão que fui fiel ao meu posto. Deus, a Santa Virgem e os santos ajudem-me a cumprir meu dever...

Naturalmente o inquérito não pode contar com testemunhas. A opinião quase unânime é que o capitão foi um herói e será enterrado com toda a pompa. Assim terminará mais este “mistério do mar”.

DIÁRIO DE MINA MURRAY

8 de agosto — Lucy esteve muito agitada à noite passada e eu também não consegui dormir. A tempestade rugiu furiosa a noite toda. Por duas vezes Lucy levantou-se e se vestiu. Felizmente, pude ver a tempo e, sem assustá-la, fi-la despir-se e deitar de novo. É realmente curioso esse estado de sonambulismo.

Levantamos cedo e fomos ao porto, ver se acontecera alguma coisa durante a noite. Havia muita gente. O sol estava brilhante e a atmosfera muito pura. Sinto-me realmente feliz lembrando-me que Jonathan não estava ontem no mar, mas em terra. Mas estará ele em terra ou no mar? Onde estará e como? Se eu soubesse o que fazer!

10 de agosto — O enterro do desventurado capitão foi emocionante. Marinheiros carregaram o féretro e uma enorme multidão o acompanhou. Eu e Lucy havíamos chegado antes ao cemitério, que é o nosso passeio favorito. Depois, chegou o enterro.

Lucy está visivelmente abatida. Naturalmente as noites de sonambulismo a deprimem. Além isso, soubemos, também, da morte do nosso amigo, o velho marinheiro quase centenário. Seu corpo foi encontrado, hoje de manhã, no banco onde costumamos sentar, com o pescoço quebrado. Segundo disseram e de acordo com o médico, ele tinha caído, tomado por intenso terror e a expressão de pavor estampada em seu rosto fez, segundo dizem, os que o viram estremecer. Coitado! Tínhamos tomado amizade por ele.

Lucy é muito sensível e agora mesmo um pequeno acidente concorreu para deixá-la nervosa. Um dos marinheiros compareceu ao enterro acompanhado por um cão muito manso, que o acompanha sempre. Durante o enterro, o cão não ficou junto do seu dono, mas alguns passos afastado, uivando sem parar. O marinheiro chamou-o, a principio com bons modos, depois furioso, mas o animal não atendeu, nem parou de uivar e ladrar. O marinheiro, afinal, perdeu a paciência, agarrou o pobre animal e atirou-o de encontro ao túmulo. Logo que bateu na pedra, o cão se acalmou, mas começou a tremer muito e não tentou fugir. Lucy ficou com muita pena dele. Receio que, com sua extrema sensibilidade, sonhe esta noite com o incidente.

Acho que o melhor é dar um longo passeio até os rochedos da Baía de Robin, pois, quando ela está mais fatigada não é atacada pelas crises de sonambulismo.


CAPÍTULO VIII

 

DIÁRIO DE MINA MURRAY

11 de agosto, 3 horas da madrugada — Não consigo dormir, de modo que resolvi escrever. Tivemos tal aventura, uma experiência tão angustiosa! Estava dormindo, quando fui despertada de súbito e sentei-me na cama, com uma sensação horrível de medo e de vácuo em torno de mim. O quarto estava inteiramente escuro. Levantei-me e apalpei o leito de Lucy. Estava vazio. Acendi um fósforo e verifiquei que ela não estava no quarto. A porta estava fechada, mas não à chave. Para não acordar a mãe de Lucy, vesti-me sem fazer barulho. Verifiquei que tanto os vestidos como o peignoir estavam em seus lugares. Isso queria dizer que Lucy não podia estar longe, pois trajava apenas a camisola.

Desci a escada e procurei em todo o andar térreo. Nada encontrei. A porta da rua estava aberta. Enrolei-me num xale e saí. O relógio da igreja estava batendo uma hora. Tudo estava deserto, enquanto eu seguia pela orla do cais. Ao luar, avistei as ruínas da Abadia e o cemitério. Lá, no banco onde gostamos de nos sentar, havia um vulto branco e um vulto negro. Não pude distinguir se era um homem ou um animal, pois, nesse momento, a luz da lua foi toldada por uma nuvem escura. Subi a escada, que me pareceu interminável. Sentia as pernas trêmulas e a respiração ofegante. Devo ter caminhado depressa, embora tivesse a impressão de que meus pés tinham se tornado de chumbo e que as juntas de meu corpo estavam enferrujadas. Quando cheguei à entrada do cemitério, pude ver que havia uma forma comprida e negra inclinada sobre o vulto branco de Lucy. “Lucy! Lucy!”, gritei, horrorizada. Ela não se mexeu, mas, por trás dela, dois olhos ardentes e vermelhos me olharam. Corri, mas, durante algum tempo, perdi Lucy de vista, oculta pela igreja. Quando cheguei junto dela, achei-a sozinha.

Estava ainda dormindo, respirando com dificuldade, e levou ambas as mãos ao pescoço, como que para fechar a gola. Atirei meu xale sobre seu ombro e o prendi com um alfinete. Mas parece que fui desajeitada, na minha pressa, pois ela tornou a levar a mão ao pescoço e gemeu. Calcei-a com meus sapatos e acordei-a com cuidado. — Acordou aos poucos, e não pareceu surpreendida quando me viu. Abraçou-me, trêmula. Acompanhou-me, com docilidade e voltamos para casa.

Tivemos sorte de não encontrarmos ninguém. Eu receava muito, não somente pela saúde de Lucy, como pela sua reputação, se o caso se tornasse conhecido. Depois de entrarmos e lavarmos os pés, rezamos e nos deitamos de novo. Antes de dormir, ela pediu para não contar a ninguém, nem mesmo à sua mãe, a aventura. Hesitei, a princípio, mas acabei prometendo, principalmente devido ao estado de saúde de sua mãe. Fechei a porta e amarrei a chave no pulso.

Mesmo dia, meio-dia — Lucy dormia tão profundamente que tive que acordá-la. Está bem.

Mesmo dia, à noite — Passamos o dia bem. Almoçamos no Bosque de Mulgrave e a Sra. Westenra nos acompanhou, de carro. Meu prazer teria sido completo, se Jonathan estivesse comigo. Mas tenho que ter paciência. A noite, fomos ao Cassino, ouvimos boa música e deitamo-nos cedo. Lucy parece mais bem disposta que nos últimos tempos e dormiu logo. Vou fechar a porta e guardar a chave.

Fiquei aborrecida, notando que minha falta de jeito com o alfinete a havia ferido. Em seu pescoço, havia o sinal de duas picadas e em sua camisola uma gota de sangue. Pedi desculpas, mas ela riu e disse que nem ao menos sentira.

12 de agosto — Por duas vezes, durante a noite, fui despertada por Lucy querendo sair. Mesmo dormindo, pareceu muito contrariada ao encontrar a porta fechada e voltou para a cama protestando.

13 de agosto — Ontem à noite, dormi, de novo, com a chave amarrada em meu punho. Tornei a acordar durante a noite e encontrei Lucy sentada na cama e apontando para a janela, mas ainda dormindo. Levantei-me e abri a cortina. A noite estava linda, com o luar maravilhoso. Um grande morcego voava fazendo círculos e uma ou duas vezes aproximou-se, mas acho que teve medo de mim e fugiu, em direção à Abadia. Lucy tornou a deitar-se e dormiu tranqüila o resto da noite.

14 de agosto — Passei todo o dia no Rochedo Oriental, lendo e escrevendo. Lucy gosta muito do lugar e não é fácil trazê-la para casa, às horas das refeições. Antes de entrarmos, apreciamos o maravilhoso crepúsculo. Nuvens purpúreas incendiavam O céu, lançando um Clarão rosado sobre a paisagem. Ela parecia estar olhando para um vulto que estava sentado sozinho a alguma distância. Eu mesma fiquei um tanto espantada e notei que, à luz do crepúsculo, os olhos do homem pareciam brasas. Mas a ilusão se dissipou quando se extinguiu um raio de sol que batia nos vitrais da igreja. Chamei a atenção de Lucy para aquele efeito peculiar, mas ela continuou triste. Talvez estivesse pensando naquela terrível noite.

Jamais nos referimos a ela assim eu nada disse e voltamos para casa, para jantar. Lucy estava com dor de cabeça logo que se levantou da mesa. Assim que ele dormiu, saí para fazer um passeio até os rochedos, triste, com saudade de Jonathan.

Quando voltei para casa, com um luar muito bonito, olhei através da janela e vi Lucy com a cabeça inclinada. Pensei que estivesse olhando para mim, do lado de fora e, assim, abri meu lenço e agitei-o, Mas ela não pareceu notar. Nesse momento, a lua iluminou a janela em cheio e distingui perfeitamente Lucy, com a cabeça encostada no peitoril e os olhos fechados. Estava dormindo e junto dela, no peitoril da janela, havia alguma coisa que se parecia com uma ave de bom tamanho. Subi a escada correndo e entrei no quarto. Lucy dormia, respirando com dificuldade e levava constantemente a mão ao pescoço, como para protegê-lo contra o frio.

Não a despertei, mas cobri-a e fechei a porta e a janela, cuidadosa. Achei Lucy mais pálida que de costume. Acho que está se preocupando com alguma coisa, que eu desejaria saber o que é.

15 de agosto — Levantamos mais tarde que de costume. Lucy estava cansada, mas, durante o almoço, houve uma boa surpresa. Chegou uma carta de Arthur, cujo pai está melhor e deseja que o casamento se realize o mais depressa possível. A Sra. Westenra mostrou-se muito satisfeita, pois, evidentemente, sabe que não pode vi ver muito tempo e quer deixar a filha casada.

17 de agosto — Não tive ânimo para escrever, durante dois dias. A casa está triste. Não tenho a menor notícia de Jonathan. Também não compreendo o que se passa com Lucy, que come e dorme bem, mas está ficando cada dia mais fraca e mais pálida. Não tem saído mais e dorme, depois que dei para amarrar a chave em meu punho, à noite, mas se levanta, anda pelo quarto e senta-se diante da janela aberta. Na noite passada, encontrei-a assim, tentei acordá-la, mas ela desmaiou. Tive muito trabalho para fazê-la recuperar os sentidos. Chorava e respirava com dificuldade.

Perguntei-lhe o que fazia junto à janela, mas não respondeu. Olhei-a agora, depois que dormiu de novo e notei que os diminutos ferimentos do pescoço não cicatrizavam. Parecem, mesmo, ter aumentado. Se não melhorarem, dentro de um ou dois dias, vou chamar o médico.

CARTA DE SAMUEL F. BILLINGTON & FILHO, PROCURADORES, DE WHITBY, AOS SRS. CARTER, PATERSON & CIA., DE LONDRES

17 de agosto

Prezados Senhores:

Enviamos junto fatura de mercadorias embarcadas pela Estrada de Ferro do Norte, que deve ser entregue em Carfax, perto de Purfleet, logo depois de desembarcada na estação de Kings Cross. A casa está vazia, mas enviamos junto as chaves, todas com as respectivas etiquetas.

Pedimos o obséquio de depositar os caixotes, em número de cinqüenta, na parte do prédio parcialmente arruinado e marcada com um “A” na planta inclusa. A mercadoria chegará no trem das 4:30 da tarde de amanhã. Nosso cliente deseja que a entrega seja feita com a maior presteza e enviamos junto um cheque de dez esterlinos para as despesas. V. S.as devem deixar as chaves no vestíbulo principal da casa, onde o proprietário as encontrará, entrando com sua chave duplicata.

Atenciosamente,

SAMUEL F. BILLINGTON & FILHO

DIÁRIO DE MINA MURRAV

18 de agosto — Lucy está muito melhor, recuperando as cores, o que me alegra muito. Voltamos juntas ao velho cemitério e ela me perguntou, sorrindo: “Quem me trouxe aqui, durante a noite? “Você estava sonhando, sem dúvida” respondi-lhe. “Talvez”, disse ela, “mas guardo uma recordação nítida, como se fosse realidade. Senti-me atraída como um ímã, embora tivesse medo. Lembro-me de ter atravessado as ruas, dormindo, enquanto os cães ladravam. Subi a escada da Abadia. Depois, avistei um homem escuro, com olhos vermelhos. Quando se aproximou de mim, tive a impressão de ter mergulhado numa água profunda e perdi os sentidos. Depois, senti-me violentamente sacudida”.

Depois começou a rir, o que achei estranho. Não insisti mais.

19 de agosto — Tive uma grande alegria, embora incompleta. Tive, afinal, notícias de Jonathan. Estava doente e era por isso que não escrevia. Segundo me escreveu Irmã Agatha, do Hospital de São José e Santa Maria, de Budapeste ele se encontra lá, atacado de uma febre cerebral. Chorei muito, ao ler a carta da irmã. Vou partir amanhã para junto de Jonathan e trazê-lo de volta, quando estiver são. Ele sofreu grande choque nervoso e precisa de um repouso no sanatório antes de se restabelecer inteiramente. No seu delírio, segundo a irmã, falou a respeito de lobos e sangue, mas, graças a Deus, já está melhor.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

19 de agosto — Mudança repentina na conduta de Renfield. Ontem, mais ou menos às oito horas da noite, ficou agitado e começou a farejar, como um cão que encontra as pegadas do dono. O guarda o interrogou e o louco, que se mostra sempre cortês com ele, respondeu-lhe com brutalidade: “Não quero mais conversar com você. Estou esperando o Mestre.” O guarda achava-se convencido de que ele foi atacado por nova forma de mania religiosa. Em tal caso, será conveniente redobrar a vigilância. Não pode haver algo mais perigoso que a mania homicida misturada com a religiosa. Às nove horas, fui vê-lo. Sua atitude diante de mim foi idêntica à que mostrara diante do guarda. Fingi que não estava prestando atenção, mas não tirei os olhos dele. Ele se assentou na cama, com o olhar vago. Para verificar se tal indiferença era simulada ou não, procurei puxar assunto falando a respeito dos bichos, seus prediletos. Ele a principio não respondeu, depois disse, com maus modos:

— Não me amole! Me importo tanto com eles como com a primeira camisa que vesti!

— Como? — exclamei, surpreendido. — Já não se interessa pelas aranhas?

Sua resposta foi esquisita:

— As damas de honra causam regozijo aos olhos de quem espera a noiva, mas, quando a noiva aparece, as outras perdem o brilho.

Não quis se explicar mais. Manteve-se em silêncio obstinado, depois. Estou cansado e deprimido, esta noite. Não posso deixar de pensar em Lucy. Se não conseguir dormir, recorrerei ao cloral, o moderno Morfeu... Não. Preciso ter cuidado para não se tornar um hábito.

Mais tarde — Foi bom ter tomado tal resolução. Às duas horas da madrugada, o guarda foi me avisar que Renfield tinha fugido. Vesti-me e sal apressadamente, pois o doente é muito perigoso, para ficar à solta. O guarda me afirmou que, dez minutos antes, vira Renfield em seu leito, dormindo, ao olhar através da abertura de observação da porta. O ruído de uma jaula que se abria alertou-o. Correu justamente a ver o louco desaparecer pela janela, vestido de camisa de dormir. O guarda, que é robusto, não pôde passar pela janela, más eu passei. Como a janela fica poucos pés acima a do solo, não me machuquei com o pulo. Cheguei a tempo de ver um vulto branco escalando o alto muro que separa o terreno do hospício do terreno da casa abandonada.

Voltei imediatamente e dei ordem a guarda de arranjar, imediatamente, três ou quatro homens, para me acompanharem à propriedade de Carfax, para o caso do louco se mostrar perigoso. Arranjei uma escada e pulei para o outro lado. Consegui avistar Renfield justamente quando ele estava sumindo no canto da casa e corri atrás dele. Encontrei-o apertado contra a velha porta de ferro e carvalho da capela. Segundo parecia, estava conversando com alguém, mas não me atrevi a aproximar-me, para que ele não fugisse.

— Aqui estou, para cumprir suas ordens, Mestre — ouvi-o dizer. — Sou seu escravo e servi-lo-ei fielmente. Adoro-o há muito tempo e, agora que está perto, espero suas ordens.

Quando nos acercamos dele, lutou como um tigre. Parece mais uma fera que um ser humano. Nunca tinha visto antes um lunático tão furioso.

Agora, disse palavras compreensíveis, pela primeira vez:

— Terei paciência, Mestre. Está chegando... está chegando...


CAPÍTULO IX

 

CARTA DE MINA MURRAY A LUCY WESTENRA

Budapeste, 24

Minha querida Lucy:

Sei que você está ansiosa para saber notícias minhas desde que parti de Whitby. Cheguei à noite, sem novidades, a Hull, e ali tomei o itavio para Hamburgo, de onde vim parar aqui. Não me lembro bem dessa viagem. Jonathan ocupava todos os meus pensamentos. Encontrei-o em estado doloroso, magro e abatido. Seus olhos perderam o brilho e não se lembra de coisa alguma que lhe aconteceu há muito tempo, ou, pelo menos está querendo me fazer acreditar que isso seja verdade, e não insisti. A Irmã Agatha, que é uma ótima criatura e uma enfermeira nata, me contou que seu delirio foi muito grave. Pedi-lhe para me contar o que ele dissera, mas ela persignou-se e nada quis dizer, falando que é um segredo de Deus. Mas advertiu, ao mesmo tempo, que eu não precisava ficar preocupada, pois nada do que lhe acontecera afetava o amor que me dedicava. Estou agora sentada à cabeceira de sua cama, contemplando seu sono. Ele está acordando!...

Quando acordou, pediu-me para lhe dar seu casaco, pois queria procurar alguma coisa no bolso. Pedi a Irmã Agatha, que trouxe tudo. Entre essas coisas, vi seu caderno de notas e pensei que fosse me entregar, mas ele pediu-me para ir até a janela, dizendo que queria ficar sozinho por algum tempo. Depois, chamou-me e disse, solenemente:

— Wilhelmina — compreendi que era coisa muito importante, pois só me chamou assim quando me pediu em casamento — você conhece minhas idéias a respeito da confiança mútua entre marido e mulher. Tive um grande choque nervoso, pois a febre cerebral que me atacou é uma espécie de loucura. Você poderá conhecer o segredo que envolve tal fato, está aqui e não quero conhecê-lo. Quero começar a vida agora, com o nosso casamento. Está disposta, Wilhelmina, a compartilhar minha ignorância? Eis o caderno. Fique com ele, leia-o, se quiser, mas não converse jamais a respeito disso comigo.

Caiu, exausto, no travesseiro. Pedi a Irmã Agatha para providenciar junto à superiora, no sentido de que nosso casamento se realize esta tarde, e estou esperando a resposta...

Ela acaba de me dizer que o capelão da missão da Igreja Anglicana está à nossa disposição. Vamos nos casar dentro de uma hora, logo que Jonathan acorde...

Lucy, tudo acabou. Jonathan acordou pouco mais de uma hora depois e tudo já estava providenciado. Mal posso falar. Sinto-me tão feliz!

Quando o capelão e as irmãs me deixaram sozinha com meu marido — é a primeira vez, Lucy, que escrevo as palavras “meu marido” — embrulhei o caderno com seu diário num papel branco, amarrei-o com uma fita azul que trazia no pescoço e selei-o com lacre em cima do nó, carimbando-o com meu anel de noivado. Prometi a Jonathan não romper o selo senão em aso de extrema necessidade, para a segurança ele próprio ou do cumprimento de um dever.

Estarei inteiramente feliz quando Jonathan estiver restabelecido de todo. Adeus, minha querida.

Vou enviar esta carta imediatamente e talvez escrever-lhe de novo em breve.

Sua afetuosa

MINA HARKER

DIÁRIO DO DR. SEWARD

20 de agosto — O caso Renfield se torna cada vez mais empolgante. Durante uma semana, mostrou-se furioso, depois uma noite, quando a lua acabava de surgir, acalmou-se de repente e murmurou para si mesmo:

— Agora, posso esperar.

O guarda me comunicou e fui logo vê-lo. Ele ainda estava metido na camisa de força e no quarto acolchoado. Dei ordem para pô-lo mais à vontade. Os guardas hesitaram.

— Imagine! Acham que posso fazer mal ao senhor!

Estaria mesmo me encarando com amizade, u apenas queria me lisonjear para obter algum vor? Procurei fazê-lo falar, mas foi em vão, esmo lhe oferecendo um gato.

— Posso esperar, posso esperar — repetia.

Os guardas me contaram que ele ficou tranqüilo até certa hora, depois foi de novo presa de ma crise de fúria, à qual se seguiu uma espécie e coma.

... Há três dias que se dá a mesma coisa: violência durante todo o dia, depois calma desde o nascer da lua até o nascer do sol. Parece que há uma influência que vai e vem. Esta noite, vou fazer uma experiência. Outro dia, ele fugiu sem nossa ajuda; esta noite fugirá com ela. Vou dar-lhe uma oportunidade e meus homens prontamente o seguirão, em caso de necessidade...

23 de agosto — Renfield preferiu não fugir pela janela deixada propositadamente aberta, mas, quando o guarda foi vê-lo à noite, atirou-o por terra e correu para o corredor. Avisado imediatamente, dei ordem aos guardas para segui-lo. De novo ele entrou no terreno da casa abandonada e fomos encontrá-lo apertado contra a porta da capela. Ao me avistar, tornou-se tão furioso que, se os guardas não o segurassem a tempo, teria tentado matar-me. De repente, redobrou seus esforços, depois aquietou-se de súbito. Olhei em torno, mas nada vi. Depois, acompanhei os olhos do enfermo, que estavam voltados para o céu enluarado, mas a única coisa que vi foi um grande morcego, que voava rumo ao poente.

— Não precisam segurar-me assim — disse ele, tornando-se cada vez mais calmo. — Irei por bem.

E, sem dificuldade, voltamos. Sinto que há algo de ameaçador nesta calma e não me esquecerei desta noite...

DIÁRIO DE LUCY WESTENRA

Hillingham, 24 de agosto — Resolvi imitar Mina e escrever um diário. Só assim poderei lembrar-me de tudo que pretendo lhe contar, quando ela voltar. Na noite passada, tive a impressão de estar sonhando de novo, como acontecia em Whitby. Talvez tenha sido a mudança de ar ou o fato de estar em casa de novo. Tudo é sombrio e horrível para mim, de nada me lembro mas sou presa de um temor vago e sinto-me fraca e abatida. Quando Arthur apareceu para almoçar, ficou visivelmente impressionado ao me ver e não consegui mostrar-me animada. Vou ver se durmo hoje no quarto de minha mãe.

25 de agosto — Outra noite desagradável. Minha mãe não pareceu entusiasmada com a minha proposta. Naturalmente, como não está passando bem ficou com medo de me dar trabalho. Tentei ficar acordada até mais tarde, mas, quando soaram as doze badaladas fui despertada de um cochilo. Ouvi pancadas na janela, mas não me preocupei em saber o que era, e como não me lembro mais nada, acho que devo ter adormecido.

Hoje amanheci muito fraca, pálida e meu pescoço dói muito. Devo estar com alguma coisa no pulmão, pois respiro com dificuldade. Mas preciso mostrar-me animada, durante o almoço, para não causar preocupação a Arthur.

CARTA DE ARTHUR HOLMWOOD AO DR. SEWARD

Albemarle Hotel, 31 de agosto

Meu caro Jack:

Desejo um favor seu. Lucy não está passando bem; não tem uma doença definida, mas está piorando de dia para dia e não me atrevo a conversar a respeito disso com a mãe dela, cujo estado de saúde é grave. Peço-lhe, pois, para vir vê-la. Deposito a máxima confiança em sua opinião. Venha almoçar amanhã, aqui em Hillingham, de maneira que sua visita não faça a Sra. Westenra desconfiar de qualquer coisa. Estou aflitíssimo e quero conversar com você, logo que a tenha examinado. Não deixe de vir!

ARTHUR

TELEGRAMA DE ARTHUR HOLMWOOD A SEWARD

1.° de setembro

Fui chamado para ver meu pai, que piorou. Escreva-me tudo hoje à noite para Ring. Telegrafe-me, se for necessário.

CARTA DO DR. SEWARD A ARTHUR HOLMWOOD

2 de setembro

Meu caro amigo:

No que diz respeito à saúde de Miss Westenra, apresso-me em dizer-lhe que, na minha opinião, não há distúrbio funcional ou moléstia. Ao mesmo tempo, não fiquei satisfeito com seu estado, que mudou muito, depois da última vez que a vi. Parece que se trata de uma perturbação mental. Depois de muita reflexão, resolvi escrever ao meu velho amigo e mestre, o Professor Van Helsing, de Amsterdam, que conhece mais a respeito de enfermidade desse tipo que qualquer outra pessoa do mundo. Pedi-lhe que viesse examinar Miss Westenra, e expliquei a minha interferência e seus laços com Miss Westenra. Estou certo que ele virá, pois nunca deixou de atender a um pedido meu. Aparentemente, ele é um homem esquisito, arbitrário, mas isso se dá porque sabe o que diz. É um filósofo, um metafisico, um dos mais avançados cientistas de nossos dias; e tem, estou convencido, uma mentalidade muito arejada. Amanhã vou tornar a examinar Miss Westenra. Ela vai se encontrar comigo em Stores, para não assustar sua mãe.

Sempre seu

JOHN SEWARD

CARTA DO DR. SEWARD A S. EXa. ARTHUR HOLMWOOD

3 de setembro

Meu caro Art.:

Van Helsing veio e já voltou. Foi comigo a Hillingham e, graças às providências de Lucy, sua mãe estava almoçando fora e ele pôde examinar a paciente demoradamente.

Vai me informar a respeito, pois, naturalmente, não estive presente durante todo o tempo. Confesso que o achei preocupado, mas disse-me que tem de refletir sobre o caso. “É uma questão de vida ou morte, talvez mais do que isso”, disse-me ele. Quis que me explicasse melhor, mas ele não deu novos esclarecimentos. Não fique aborrecido comigo, porque a própria reticência de Van Helsing é uma prova de que seu cérebro está trabalhando intensamente para o bem de Miss Westenra. Ele dará sua opinião quando julgar oportuno. Ainda na hora de partir, disse-me:

“Telegrafe-me, dando notícias, todos os dias. Se for preciso, voltarei. A enfermidade — que, aliás, não é, de modo algum propriamente enfermidade — me interessa e aquela encantadora jovem me interessa muito, também. Voltaria por causa dela, mesmo se não fosse por causa da moléstia ou por sua causa.

Espero que seu pai esteja melhor. Sei como você se sente, preocupado com duas pessoas que lhe são tão caras. Sei que o dever o prende junto seu pai, mas, se houver necessidade, mandarei imediatamente para ver Lucy; não que, portanto, muito aflito, antes de receber qualquer notícia.

TELEGRAMA DE SEWARD, DE LONDRES, PARA VAN HELSING, AMSTERDAM

4 de setembro — Paciente continua melhor

TELEGRAMA DE SEWARD, DE LONDRES, PARA VAN HELSING, DE AMSTERDAM

5 de setembro — Paciente muito melhor. com apetite; dorme naturalmente; animada; cores voltando.

TELEGRAMA DE SEWARD, DE LONDRES, A VAN HELSING, DE AMSTERDAM

6 de setembro — Terrível mudança para pior. Venha imediatamente; não perca uma hora. Vou aguardar sua chegada para telegrafar para Holywood.


CAPÍTULO X

 

CARTA DO DR. SEWARD A S. EXa. ARTHUR HOLYWOOD

6 de setembro

As notícias de hoje não são boas. Lucy não está passando bem. Mas há males que vêm para bem. Mrs. Westenra ficou aflita e consãftou-me como médico. Aproveitei a oportunidade e disse-lhe que meu velho mestre, o grande especialista Van Helsing vem me visitar e que eu o levaria para tratar de Lucy. Desse modo, não precisamos assustar a velha senhora.

Sempre seu amigo.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

7 de setembro — A primeira coisa que Heiing disse, quando nos encontramos em Liverpool Street foi: Contou alguma coisa ao seu jovem amigo, namorado dela?

— Não — respondi. — Estava esperando sua chegada, como disse em meu telegrama. escrevi-lhe apenas dizendo que o senhor vinha, pois Miss Westenra não está passando muito em.

— Fez muito bem, meu amigo! — disse ele. — É preferível que ele saiba o mais tarde possível.

Quando descrevi os sintomas de Lucy — os mesmos de antes, porém muito mais acentuados — ele se mostrou muito sério, mas nada disse.

Quando chegamos, a Sra. Westenra veio receber-nos. Estava assustada, mas não tanto quanto eu esperava. A natureza, em sua sabedoria, determinou que mesmo a morte tivesse um antídoto para seu próprio terror. A pobre senhora está, ela própria, tão mal que não percebe a doença da filha.

Eu e Van Helsing fomos levados ao quarto de Lucy. Fiquei horrorizado com o seu aspecto. Estava de uma palidez mortal; a cor desaparecera mesmo de seus lábios e gengivas e os ossos da face pareciam querer furar a pele. Respirava com grande dificuldade. Van Helsing não escondeu sua profunda preocupação. Lucy estava sem forças para falar e assim por alguns momentos, ficamos todos em silêncio. Depois, Van Helsing me fez um sinal e saímos do quarto em silêncio.

— Temos de fazer uma transfusão de sangue imediatamente — anunciou, então. — Quem dará o sangue? Eu ou você?

— Sou mais moço e mais forte, professor. Devo ser eu.

— Então, prepare-se pois vou buscar minha valise. Já estou preparado.

Desci ao andar térreo com ele, e, quando caminhávamos, uma pancada forte soou na porta. Quando chegamos a criada tinha acabado de abrir a porta e Arthur entrou.

— Estou morrendo de aflição — disse-me ele. — Sua carta me assustou terrivelmente. Como meu pai melhorou um pouco, tomei o primeiro trem. Não é o Dr. Van Helsing? Sou-lhe muito grato por ter vindo, doutor.

— Chegou a tempo. Sua noiva está mal, muito mal.

Arthur empalideceu e sentou-se numa cadeira, quase desmaiado.

— Que devo fazer? — perguntou Arthur. — Minha vida lhe pertence e, por ela, darei, de boa vontade, até a última gota de meu sangue.

— Não lhe pedirei tanto — disse o professor. — Não precisaremos da última gota! Venha. O senhor é um homem e é disso que precisamos.

Arthur pareceu intrigado e o professor tratou de explicar:

— A jovem está muito mal. Precisa de sangue, para não morrer. Eu e meu amigo John já íamos fazer uma transfusão de sangue, John tinha se oferecido para doar o seu, mas acho que o do senhor será muito melhor.

— Se soubesse quanto estou disposto a morrer por ela... — disse Arthur.

— Muito bem! — disse Van Helsing.

Aproximou-se, então, do leito de Lucy, tendo pedido a Arthur para não entrar no quarto. Tirou, da valise, um pacotinho e colocou dentro de um copo d’água.

— Tome isto que lhe fará bem, disse a Lucy, jovialmente.

Ela conseguiu beber, com esforço. Foi espantoso o tempo que a droga levou para fazer efeito. Afinal, o narcótico fê-la adormecer. Van Helsing, então, chamou Arthur e mandou-o tirar o casaco. A transfusão foi feita sem dificuldade e as cores começaram a voltar rapidamente às faces de Lucy.

— Chega! — exclamou, de súbito, Van Helsing, que tinha os olhos no relógio. — Cuide dele, que tomarei conta dela.

Depois de ter feito o curativo, apalpou o travesseiro de Lucy. A tira de veludo preto que ela trazia no pescoço, presa por um broche de diamantes, presente de seu namorado, saiu do lugar, deixando ver um pequeno ferimento. Arthur não o notou, mas observei que Van Helsing respirou fundo, o que é um de seus modos de demonstrar emoção.

— Agora, leve para fora o valente namorado — disse-me ele. — Dê-lhe um cálice de vinho do Porto e faça-o deitar por algum tempo. Depois, ele deve ir para casa, e dormir bastante. Não deve ficar aqui.

Quando Arthur se retirou, voltei para o quarto. Lucy estava dormindo sossegada. Perguntei ao professor, em voz muito baixa:

— Que acha daquele ferimento no pescoço?

— E você, que acha?

— Ainda não o examinei — respondi.

Tratei, então, de afrouxar a tira de veludo. Um pouquinho acima da veia jugular havia duas incisões, que não eram muito grandes, mas não tinham bom aspecto. Imaginei que talvez aquilo explicasse a perda de sangue, mas logo abandonei a idéia, pois toda a cama deveria estar vermelha, com a quantidade de sangue que a moça devia ter perdido, para estar tão pálida antes da transfusão.

— E então? — insistiu Van Helsing.

— Não compreendo.

— Tenho de voltar para Amsterdam hoje à noite — disse o professor. — Preciso de certos livros e outras coisas. Você deve ficar aqui a noite toda, sem perdê-la de vista.

— Não acha bom chamar uma enfermeira? — sugeri.

— Eu e você somos melhores que enfermeiras. Providencie para que ela se alimente bem e ninguém a importune. Regressarei em breve e começaremos o tratamento. E então, podemos começar.

— Podemos começar? Que quer dizer isto?

— Você verá. Lembre-se de minhas recomendações. Se você abandoná-la e surgir alguma coisa de mal, irá ter muito remorso!

DIÁRIO DO DR. SEWARD
(continuação)

8 de setembro — Fiquei sentado a noite inteira ao lado de Lucy. Ela acordou naturalmente e seu estado é inteiramente diferente do que era antes. A Sra. Westenra não concordou com as instruções do Dr. Van Helsing, mas eu me mostrei muito firme.

De manhã cedo, chegou a criada e vim para casa. Telegrafei a Van Helsing e a Arthur, comunicando o excelente resultado da transfusão. Durante o jantar recebi um telegrama de Van Helsing, dizendo-me para ir a Hillingham esta noite, e comunicando que ele partiria à noite e de manhã estaria comigo.

9 de setembro — Estava muito cansado quando cheguei a Hillingliam, pois há duas noites que não durmo. Lucy estava muito bem disposta e insistiu comigo para não ficar acordado.

— Já estou bem de novo — disse ela, mostrando-me um quarto contíguo ao seu. — Fique ali naquele sofá e se eu precisar de qualquer coisa, chamarei.

Cansado como estou, e diante de tal promessa, não pude deixar de concordar.

10 de setembro — Acordei com a mão do professor na minha cabeça.

— E a nossa doente? — perguntou ele.

— Estava bem, quando nos separamos ontem.

Mas, quando chegamos ao quarto de Lucy, encontramos a pobre moça mais pálida e abatida que jamais.

— Depressa! — exclamou Van Helsing. — Traga a aguardente.

Quando eu trouxe a garrafa, ele colocou algumas gotas nos lábios de Lucy e, depois de alguns momentos de angústia, exclamou:

— Não é tarde demais. O coração ainda está batendo, embora fracamente. Temos de começar tudo de novo. Desta vez, terei de apelar para você mesmo, amigo John.

Não havia nem tempo nem necessidade de soporífero. Foi com um sentimento de orgulho pessoal que vi as cores voltarem, de leve, às faces de Lucy.

Terminada a transfusão, Van Helsing recomendou-me que descansasse e comesse bem. Ele passaria a noite com Lucy.

11 de setembro — À tarde, fui a Hillingham. Encontrei Van Helsing bem-humorado e Lucy muito melhor... Pouco depois, chegou uma encomenda procedente do estrangeiro e destinada ao professor. Ele abriu o embrulho e tirou de dentro um galho de flores.

— É para a senhorita, Miss Lucy — disse ele.

— Para mim, Dr. Van Helsing?

— É, sim, mas não é para se distrair. É um remédio. Não precisa fazer caretas, que prometo que não terá de beber coisa alguma. Com estas flores, farei uma guirlanda, para colocar em torno de seu pescoço. Sim! São como as flores de lótus, que afastam os males.

— O senhor está brincando — disse Lucy, depois de cheirar as flores e atirá-las para um lado, entre risonha e decepcionada. — Não passam de flores de alho.

— Não costumo brincar! — retrucou Van Helsing, com um modo que me causou surpresa. — Tem de me acreditar, quando digo que estas flores terão, sobre sua saúde, um efeito benéfico. Eu mesmo vou fazer a guirlanda e, além disso, espalharei as flores pelo quarto. Tive muita sorte de conseguir arranjar estas flores agora, nesta estação. Venha, amigo John, me ajudar a colocar as flores de alho, que a propósito, vieram todas de Haarlen, onde meu amigo as cultiva em estufas durante todo o ano.

Entramos no quarto, levando as flores conosco. A atitude do professor foi muito estranha, sem dúvida. Fechou cuidadosamente, as janelas e esfregou as flores em todos os caixilhos, a fim de que o ar que entrasse no aposento ficasse impregnado com seu cheiro. Fez a mesma coisa na porta e na lareira.

— Sei que tem motivo para fazer o que está fazendo, mas isso não deixa de me intrigar — observei. — Dir-se-ia que o senhor está querendo afastar algum mau espírito.

— Talvez esteja! — respondeu ele, enquanto começava a fazer o colar que Lucy deveria usar durante a noite.

Esperamos que Lucy fizesse sua toilette e, quando ela se deitou, o próprio Van Helsing colocou a guirlanda de flores de alho, em torno do seu pescoço. As últimas palavras que ele disse foram:

— Tenha cuidado de não atrapalhá-la; e mesmo se o quarto parecer abafado, não abra a janela nem a porta.

— Prometo — disse Lucy — e agradeço-lhe mil vezes por sua bondade comigo!

— Esta noite, posso dormir tranqüilo — disse Van Helsing, quando nós entramos. — Procure-me amanhã cedo, para irmos ver a moça.

Talvez lembrando-me da confiança que eu próprio sentira duas noites antes, sua confiança não me tranqüilizou de todo.


CAPÍTULO XI

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD

13 de setembro — Chegamos, eu e Van Helsing, a Hillingliam às oito da manhã. Fomos recebidos pela Sra. Westenra, que nos disse:

— Lucy ainda está dormindo. Não quis acordá-la.

— Pelo que vejo, meu diagnóstico estava certo, uma vez que o tratamento está dando bom resultado — observou o professor.

— Não deve atribuir todo o crédito só a si mesmo, Doutor. O estado de Lucy esta manhã se deve, em parte, a mim.

— Que está querendo dizer, minha senhora? — perguntou o professor.

— Esta noite, fiquei um pouco nervosa, por causa de minha filha e fui vê-la. Ela estava dormindo a sono solto, mas havia um cheiro sufocante no quarto, que estava completamente fechado. Também, não era para menos, pois estava cheio daquelas flores horríveis por toda a parte e até em torno do pescoço dela. Achei que aquele cheiro lhe faria mal e não somente tirei as flores todas, como abri a janela para arejar o quarto. Vai ficar satisfeito com ela, tenho certeza.

Olhei o rosto dó professor e vi que se tornara lívido. Conseguiu dominar-se enquanto a velha senhora estava presente, pois sabia o seu estado, as logo que ela saiu, eu o vi desanimado pela primeira vez. Depois, segurou-me pelo braço, exclamando:

— Vamos vê-la. Temos de lutar!

Levantei a cortina, enquanto ele se aproximava do leito.

— Já esperava por isto — murmurou Van Helsing.

Dessa vez, foi apenas com infinita piedade e tristeza que ele olhou para o rosto lívido de Lucy.

Sem uma palavra, fechou a porta e começou os preparativos para a transfusão de sangue. Comecei a tirar o casaco, mas ele me deteve:

— Não. Hoje você faz a operação e eu dôo o sangue. Você já está enfraquecido.

De novo a transfusão e já volta às faces de Lucy alguma cor, da respiração regular e, de um sono saudável. Dessa vez, fiquei observando, enquanto Van Helsing ia se refazer.

Uma hora depois, Lucy acordou, bem disposta, depois da terrível provação.

Que significa tudo isto? Estou começando a imaginar se não estarei também ficando louco, e tanto viver entre loucos.

“THE PALL MALL GAZETTE” DE 18 DE SETEMBRO
LOBO FUGIDO

Um lobo que conseguiu fugir do Jardim Zológico em circunstâncias bem misteriosas, foi recapturado depois de ter paralisado Londres um dia e meio, sem grande dificuldade, com a cabeça toda cortada, o que é atribuído a ter tentado galgar algum muro em que o morador tenha colocado cacos de vidro. O animal, aliás, era muito manso e seu guarda não compreende a fuga e diz que o lobo continua de novo muito bem comportado.

TELEGRAMA DE VAN HELSING, EM ANTUÉRPIA, A SEWARD, CARFAX
(Enviado para Carfax, em Sussex, pois não fora mencionado o Condado; entrega retardada 24 horas)

17 de setembro — Não deixe de estar em Hillingliam esta noite. Se não vigiar a noite toda, visite com freqüência e veja se as flores estão no lugar; é muito importante; não falhe. Estarei com você o mais cedo possível, depois de chegar.

MEMORANDO DEIXADO POR LUCY WESTENRA

17 de setembro, à noite — Sinto-me morrer de fraqueza, e mal tenho força para escrever, mas quero escrever isto, para que ninguém se veja em dificuldade por minha causa.

Fui para a cama como de costume nestes últimos dias, depois de verificar se as flores estavam colocadas de acordo com as instruções do Dr. Van Helsing, e não tardei a dormir.

Fui acordada pelo barulho de bater de asas contra a vidraça, barulho esse que começou desde o dia em que caminhei dormindo até o rochedo de Whitby e fui salva por Mina. Somente agora começo a conhecê-lo bem. Não tive medo, mas gostaria de saber se o Dr. Seward está no quarto próximo. Esforcei-me para dormir de novo, mas não consegui e fiquei dominada pelo medo. Abri a porta e gritei: “Tem alguém aí?” Ninguém respondeu e, receando acordar minha mãe, tornei a fechar a porta. Então, ouvi, vindo do mato, do lado de fora, um uivo como de um cão, porém mais alto e mais forte. Aproximei-me da janela e vi, do outro lado da vidraça, um grande morcego. Naturalmente é ele que bate de encontro a vidraça. Tornei a ir para a cama, mas disposta a não dormir. Logo depois, a porta se abriu e minha mãe apareceu.

— Estava preocupada com você, minha ha, e vim ver se está passando bem.

Com medo que ela se resfriasse, pedi-lhe que e deitasse junto de mim, o que fez sem tirar o peignoir, pois pretendia ficar só um pouco e depois voltar para o seu quarto.

As pancadas na janela recomeçaram e minha mãe perguntou o que era, trêmula. tranqüilizei-a e ela se aquietou, mas percebi que eu coração batia com muita força, Algum tempo depois, ouvi de novo o uivo e houve um barulho de vidros quebrados. edaços de vidro caíram no quarto e, através da vidraça partida, apareceu a cabeça de âm lobo. inha mãe deu um grito, horrorizada, garrando-se, instintivamente, ao queencontrou ais próximo e, na sua aflição, arrancou a guirlanda que o Dr. Van Helsing colocara em meu pescoço. Seus olhos dilataram-se, denotando um pavor indescritível e, dando um gemido, ela caiu ara trás, batendo com a cabeça em minha esta, o que me fez estontear. Tive a impressão e que tudo estava girando. Fiquei olhando friamente para a janela, mas o lobo tinha retirado cabeça e uma miríade de pequenas manchas parecia entrar entre os vidros quadrados e rodopiar, como coluna de poeira que os viajantes escrevem quando ocorre num no deserto. Tentei mexer-me, mas parecia dominada por um encantamento e o corpo de minha mãe, já io, pois o coração cessara de bater, pesava sobre o meu; não me lembro mais do que aconteceu, durante algum tempo.

Não deve ter passado muito tempo, mas foi horrível, até eu recuperar a consciência. Um sino tocava nas vizinhanças; os cães uivavam e bem perto de nossa casa um rouxinol cantava. Sentia-me inteiramente confusa, dominada pelo sofrimento, pelo terror e pela fraqueza, mas o canto do rouxinol parecia a voz de minha mãe reconfortando-me. O barulho parecia ter acordado também as criadas, pois ouvi o ruído de seus passos do lado de fora de meu quarto. Chamei-as e elas viram o que acontecera e puseram-se a gritar. Tiraram o corpo de minha mãe e colocaram-no na cama, recoberto com um lençol, depois que me levantei.

Depois, retiraram-se para a sala de jantar. Coloquei todas as flores que tinha, sobre o corpo de minha querida mãe. Como as criadas não voltassem, saí para a sala de jantar e encontrei as quatro caídas no chão, respirando com dificuldade. A garrafa de xerez estava aberta, mas tinha um cheiro esquisito. Percebi que era cheiro de láudano. E, de fato, encontrei vazio o vidro de láudano que o médico receitara para minha mãe. Que farei?

O ar parece cheio de manchas, flutuando e circulando e as luzes empalidecem. Minha mãe morreu. É tempo que eu vá também. Adeus, Arthur, e Deus que me ajude!


CAPÍTULO XII

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD

18 de setembro — Cheguei cedo a Hillingham. Bati COM cuidado, para não acordar Lucy ou sua mãe, esperando que apenas a criada viesse abrir. Não sendo atendido, bati com mais força, várias vezes, mas em vão. Fiz a volta da casa, na esperança de encontrar algum, meio de entrar. Encontrando fechadas todas as portas e janelas, voltei para a varanda, justamente quando Van Relsing estava chegando. Dirigimo-nos para o fundo da casa e, com ajuda de instrumentos cirúrgicos do professor, conseguimos abrir uma janela da cozinha e por ela, penetramos na casa. Van Helsing não procurava esconder sua aflição.

Não encontramos ninguém na cozinha nem nos quartos das criadas, mas ao chegarmos na sala de jantar, encontramos quatro criadas caídas no chão. Não estavam mortas, pois estertoravam e o cheiro ativo de láudano mostrava o que ocorrera.

— Podemos cuidar delas mais tarde — disse Van Helsing.

Subimos até o quarto de Lucy. Como descrever o que vimos ali? Na cama jaziam duas mulheres: Lucy e sua mãe. Esta última, coberta por um lençol branco, e, a seu lado, LUCY, mortalmente pálida. As flores que tinham sido colocadas em torno do seu pescoço, estavam no peito de sua mãe e os dois pequenos ferimentos que eu notara antes estavam visíveis com um aspecto horrível.

Sem uma palavra, o professor curvou-se sobre o leito.

— Ainda não é demasiadamente tarde! — exclamou. — Depressa, a aguardente!

Corri ao andar de baixo e trouxe a garrafa de aguardente e, enquanto a esfregava em Lucy, Van Helsing disse-me:

— É a única coisa que posso fazer por enquanto. Vá acordar aquelas criadas. Esfregue o rosto delas com uma toalha, com bastante força. Antes de mais nada, temos que aquecer esta infeliz.

Não tive dificuldade em despertar três das mulheres. A quarta estava pior e deixei-a no sofá, dormindo. Fui enérgico com as outras, dizendo que se não trabalhassem com presteza, sacrificariam a vida de Miss Lucy. Chorando e desculpando-se, elas correram à cozinha, onde, felizmente, o fogão estava aceso e não havia falta de água quente.

Levamos Lucy para um outro quarto que lhe fora preparado e metemos, à força, algumas gotas de aguardente em sua boca.

Quando estávamos entregues a essa tarefa, uma das criadas anunciou que tinha aparecido um cavalheiro, com um recado do Sr. Holywood e, pouco depois, ouvi a voz de Quincey Morris. Van Helsing fechou a cara, mas logo sua atitude mudou, quando me viu receber a visita efusívamente.

— Quincey Morris! Que o trouxe aqui?

— Acho que foi Art — disse ele, entregando-me o seguinte telegrama:

“Seward não me manda notícias há três dias, e estou aflitíssimo. Não posso partir. Meu pai no mesmo estado. Comunique-me como Lucy está. Não atrase. HOLYWOOD”

— Creio que cheguei no momento oportuno. Basta me dizer o que devo fazer — disse o americano.

— O sangue de um homem é a melhor coisa que existe para uma mulher em dificuldade — disse Van Helsing. — O senhor é um homem de fato, é evidente. O diabo pode trabalhar contra nós, com tudo de quanto dispõe, mas Deus nos envia ajuda, quando precisamos.

Mais uma vez, começou a transfusão. Não tenho coragem de descrever os pormenores.

Terminada a operação fui levar Quincey Morris para fora do quarto, a fim de se providenciar um cálice de vinho do Porto e alguma coisa que comer para ele e, quando voltei ao quarto, encontrei Van Helsing, tendo na mão duas folhas de papel, que me entregou, dizendo:

— Caiu do colo de Lucy.

Quando terminei a leitura, perguntei, ao professor:

— Que significa tudo isto. Ela estava ou está, doida, ou que perigo horrível está morrendo?

— Esqueça-se disso por enquanto — respondeu Van Helsing. — Saberá oportunamente.

Quando acordou, à tarde, o primeiro movimento de Lucy foi enfiar a mão no colo e, para surpresa minha, tirar o papel que Van Helsing me havia dado para ler e que, naturalmente, ele tornara a colocar ali. Depois, vendo-nos junto dela, pareceu alegrar-se, mas, de repente, olhando em torno, deu um grito e cobriu o rosto com as mãos. Percebemos que se lembrara de sua mãe. Dissemos-lhe que um de nós ficaria sempre junto dela e isso pareceu reconfortá-la. Ao anoitecer, ela adormeceu e, enquanto dormia, tirou o papel do seio e rasgou-o em dois. Van Helsing retirou-o de suas mãos, mas ela continuou a fazer movimentos como se estivesse fazendo o papel em pedacinhos e depois jogando-o fora.

19 de setembro — Lucy continua muito mal. Quando dormia, parecia mais forte, e a boca aberta mostrava as gengivas brancas afastadas dos dentes, que, assim, pareciam maiores e mais aguçados que habitualmente; quando acordava, a expressão de seus olhos adoçava-lhe a fisionomia, que parecia mais suave, mas, ao mesmo tempo, a de uma moribunda. Ao meio-dia, perguntou por Arthur e telegrafamos chamando-o. Quincey foi esperá-lo na estação.

Quando ele chegou eram quase seis horas e o sol estava se pondo. Quando a viu, Arthur ficou em estado de choque com a emoção e nenhum de nós conseguiu dizer coisa alguma. A presença de Arthur, contudo, pareceu agir como um estimulante. Lucy aquietou-se um pouco e conversou com ele melhor do que fizera desde que tínhamos chegado.

É quase uma hora da manhã e Arthur e Van Helsing estão sentados ao lado de Lucy. Vou rendê-los, dentro de um quarto de hora, e estou gravando este diário no fonógrafo de Lucy. Eles vão procurar descansar até as seis horas. Deus nos ajude.

CARTA DE MINA HARKER A LUCY WESTENRA
(Não foi aberta pela destinatária)

17 de setembro

Minha querida Lucy:

Há muito tempo que você não me escreve, mas está perdoada. Você também, estou certa, vai desculpar meu silêncio, ao saber o que sucedeu. Trouxe meu marido de volta. Em Exeter, havia uma carruagem nos esperando e nela, o Sr. Hawkins, muito embora tivesse tido um ataque de gota. Levou-nos para sua casa, onde tinha preparado para nós dois belos e confortáveis quartos e onde jantamos. Após o jantar, o Sr. Hawkins disse:

— Meus caros, quero beber à sua saúde e prosperidade. Conheço-os desde crianças e vi-os crescer, com amor e orgulho. Quero que fiquem aqui nesta casa comigo. Não tendo filhos, deixei tudo para vocês em meu testamento.

Confesso que chorei, quando eu e Jonathan apertamos a mão do bom velho. Passamos uma noite muito agradável.

Estamos, assim, instalados nesta magnífica mansão. A vista é linda do meu quarto. Não é preciso dizer que tenho estado muito ocupada com os cuidados de casa. Jonathan e o Sr. Hawkins andam atarefados todo o dia, pois, agora, Jonathan é seu sócio e o Sr. Hawkins quer que ele fique bem informado sobre todos os clientes.

E, agora, quero saber suas notícias. Quando vai se casar? Conte-me tudo, pois tudo a seu respeito me interessa.

COMUNICAÇÃO DO DR. HENNESSEY AO DR. JOHN SEWARD

20 de setembro

Prezado Senhor:

De acordo com suas instruções, envio relatório referente a tudo deixado a meu cuidado... No que diz respeito ao paciente Renfield, há mais a dizer. Teve ele uma nova crise que poderia ter sérias conseqüências, o que, felizmente, não ocorreu.

Hoje à tarde, passou, diante do hospício, uma carroça com dois homens, que se destinava à casa vizinha. Os dois homens pararam diante da porta do hospício, a fim de pedir informações sobre o caminho, que não conheciam muito bem. Na ocasião, eu estava à janela do escritório, fumando após o jantar, e vi um dos homens entrar no hospício. Quando passou diante da cela de Renfield, este começou a injuriá-lo grosseiramente. Fiz sinal ao homem para não se importar e ensinei-lhe o caminho, pelo que ele me perguntara, com muitos bons modos.

Dirigi-me à cela de Renfield, a fim de acalmá-lo, e fiquei surpreendido ao ver que ele se mostrava bastante tranqüilo. Quando lhe falei a respeito do incidente, desconversou, fingindo não entender. No entanto, meia hora depois, fugiu, pulando a janela. Saí, acompanhado de dois guardas, em sua perseguição e conseguimos alcançá-lo perto da entrada da propriedade vizinha. A carroça que passara diante do hospício estava parada ali e vi em cima dela alguns grandes caixotes. Os dois homens estavam em cima da carroça, limpando o suor do rosto. Antes que pudéssemos impedir, Renfield atirou-se contra os homens e puxando um deles para fora da carroça, começou a bater sua cabeça no chão. Creio que o teria matado, se eu não o tivesse agarrado. O outro homem saltou da carroça e desfechou terrível pancada com o cabo de um chicote que trazia na mão, na cabeça do louco, que, afinal dominamos, e metemos numa camisa-de-força, enquanto ele furioso gritava:

— Hei de impedir que façam isto! Não me roubarão! Não me matarão aos poucos! Lutarei por meu Amo e Senhor!

Os dois homens a princípio ameaçaram apresentar queixa e denunciar-nos à justiça, mas acabaram se tornando mais razoáveis, depois de um copo de aguardente e de uma moeda de ouro. Tomei nota de seus nomes, para o caso de necessidade. São Jack Smollet e Thomas Snelling, e trabalham ambos para a Companhia de Transportes e Navegação Harris & Filhos, de Solio.

Comunicar-lhe-ei qualquer assunto de interesse e telegrafarei, caso se dê alguma novidade importante.

Atenciosamente,

PATRICK HENNESSEY

CARTA DE MINA HARKER A LUCY WESTENRA
(Não foi aberta pela destinatária)

18 de setembro

Minha querida Lucy:

Fomos atingidos por um rude golpe. O Sr. Hawkins morreu repentinamente. Pode haver quem pense que não temos motivo para sentir muito, mas a verdade é que o estimávamos tanto que, para nós, é quase como ter perdido um pai. Jonathan está muito abatido. Diz ele, também, que a responsabilidade que recai sobre seus ombros o torna nervoso. Está começando a duvidar de si mesmo. Felizmente, eu acredito nele e isso o ajuda a ter mais confiança em si. Mas a verdade é que o grande choque por que passou o afetou profundamente. Não acho nada agradável a perspectiva de ir a Londres, depois de amanhã, pois o Sr. Hawkins, em seu testamento, disse que fosse enterrado no mesmo túmulo que seu pai. Como ele não deixou um só parente, Jonathan terá que fazer as,bonras. Vou fazer tudo para vê-Ia, meu bem, nem que seja apenas por alguns minutos.

Sua afetuosa

MINA

DIÁRIO DO DR. SEWARD

20 de setembro — Sinto-me profundamente abatido com essa sucessão de mortes: a mãe de Lucy, o pai de Arthur e agora...

Rendi a Van Helsing, velando junto de Lucy. Foi com grande dificuldade que conseguimos fazer com que Arthur saísse de perto dela, para descansar um pouco. Olhei através da janela, levantando uma ponta da cortina. O jardim estava iluminado pelo luar e um grande morcego se aproximava, às vezes, da casa, sem dúvida atraído pela claridade. Lucy respirava com dificuldade e, pela boca aberta, mostrava as gengivas esbranquiçadas. Seus dentes pareciam mais compridos e mais aguçados e, em particular, devido a algum jogo de luz, os caninos pareciam maiores e mais pontudos que os outros.

Pouco depois, ela acordou e eu lhe dei alimento, conforme as prescrições de Van Helsing, mas ela muito pouco comeu. Não parecia estar dominada pela inconsciente luta pela vida que, até então, caracterizara sua enfermidade. Achei curioso o fato de que, no momento em que se tornou consciente, apertou as flores de alho de encontro ao pescoço. Não deixava de ser esquisito que, quando ficava no estado de letargia, com a respiração ofegante, empurrava as flores para longe; mas, agora, apertava-as para junto de si.

Às seis da manhã, Van Helsing veio me render.

— Levante a cortina — ordenou-me ele.

Obedeci-lhe e ele se curvou sobre Lucy, examinando-lhe o pescoço.

— Meu Deus — exclamou, recuando.

Aproximei-me e olhei, e um arrepio percorreu-me o corpo.

Os ferimentos do pescoço tinham desaparecido inteiramente.

Durante cinco minutos, Van Helsing ficou olhando para Lucy, depois murmurou:

— Vai morrer dentro de pouco tempo. Para mim, haverá uma grande diferença, se ela morrer acordada ou dormindo. Vá chamar o pobre Arthur.

Arthur estava dormindo na sala de jantar e procurei preparar-lhe o espírito o melhor que pude. O pobre rapaz ficou num estado penoso.

Quando entramos no quarto, Lucy abriu os olhos e vendo o noivo murmurou:

— Arthur! Meu amor, sinto-me tão alegre por você ter vindo!

Arthur aproximou-se dela, para beijá-la, mas Van Helsing fez-lhe um sinal para recuar.

— Ainda não! — sussurrou. — Segure a mão dela. Isto a confortará mais.

Arthur ajoelhou-se junto do leito, segurando a mão de Lucy, que fechou os olhos e adormeceu.

E, então, insensivelmente, ocorreu a estranha mudança que eu observara durante a noite. A respiração de Lucy tornou-se estertorante a boca se abriu e as gengivas brancas fizeram com que os dentes parecessem mais compridos e aguçados. De modo vago, sonolento, Inconsciente, ela abriu os olhos, que tinham se tornado duros, e murmurou, com uma voz voluptuosa, que eu nunca ouvira em seus lábios:

— Arthur! Meu amor, estou tão alegre por você ter vindo! Beije-me!

Arthur debruçou-se para beijá-la, mas Van Helsing precipitou-se sobre ele, afagando-o do leito e empurrando-o para longe, com uma força que eu não podia supor.

— Por sua vida, por sua alma é pela alma dela! — exclamou.

E colocou-se entre os dois, como um leão defendendo sua presa.

Arthur ficou tão espantado que durante alguns momentos, não soube o que dizer.

Eu tinha os olhos fixos em Lucy, do mesmo modo que Van Helsing, e vi uma expressão de raiva em seu rosto. Depois, ela fechou os olhos e, quando os reabriu, pegou a mão de Van Helsing e beijou-a:

— Meu verdadeiro amigo — disse, com uma voz fraquíssima, mas emocionada. — Meu amigo verdadeiro e amigo dele também! Proteja-o, dê-lhe paz!

— Eu o juro! — disse Van Helsing, solenemente, ajoelhando-se junto ao leito.

Depois voltou-se para Arthur:

— Venha, meu filho. Pegue na mão dela e beije-a na fronte e apenas uma vez.

Os olhos dos dois amantes se encontraram, em vez de seus lábios; e assim se separaram.

Os olhos de Lucy se fecharam; Van Helsing segurou Arthur pelo braço e afastou-o.

A respiração de Lucy tornou-se estertorante de novo, e parou em seguida.

— Acabou — disse Van Helsing. — Está morta.

Segurei Arthur pelo braço e levei-o para o aposento vizinho, onde escondeu o rosto nas mãos e começou a soluçar.

Voltei para o lado de Van Helsing e exclamei:

Pobre moça! Afinal alcançou a paz! É o fim!

— Infelizmente, é apenas o começo! — retrucou Van Helsing, gravemente. — Mas, por enquanto, nada podemos fazer. Esperemos.


CAPÍTULO XIII

 

DIÁRIO DO DR. SIEWARD
(Continuação)

O enterro foi marcado para o dia seguinte, a fim de que Lucy e sua mãe pudessem ser enterradas juntas. Tomei as providências devidas. Não havia parentes na cidade é, como Arthur teve de voltar no dia seguinte, para assistir ao enterro de seu pai, não pudemos, notificar nenhum que pudesse haver. Em vista dessas circunstâncias, eu e Van Helsing nos encarregamos ele examinar os papéis, etc. Ele fez questão de examinar os papéis de Lucy.

Tirando de uma carteira o papel que estava no colo dela e que ela rasgara dormindo, disse:

— Quando você descobrir quem é o procurador da Sra. Westenra, sele todos os papéis e escreva para ele. Quanto a mim, vou ficar aqui neste quarto e no antigo quarto de Miss Lucy, durante toda a noite, vendo o que há. Não convém que seus próprios pensamentos caiam na mão de estranhos. Arthur amanhã poderá cuidar dos papéis da Sra. Westenra, pois o enterro do pai dele foi hoje. Devemos, agora, descansar um pouco. Amanhã teremos muito que fazer, mas esta noite não precisarão de nós.

Antes de sairmos, fomos ver de novo a pobre Lucy. O quarto já estava transformado numa câmara ardente. Havia muitas flores e a morte se tornara o menos repulsiva que pode ser. O rosto de Lucy estava coberto com um lençol e, quando o professor o descobriu, delicadamente, tanto eu quanto ele ficamos surpreendidos com a beleza da morta. Era difícil para mim acreditar que estava contemplando um cadáver.

— Fique aqui até eu voltar — disse o professor. E saiu do quarto. Voltou trazendo um punhado de alho bravo que tirara de uma caixa que estava no vestíbulo, mas que não fora aberta, e espalhou as flores sobre o corpo e em torno do leito. Depois tirou do peito um pequeno crucifixo de ouro e colocou-o sobre a boca de Lucy. Em seguida, desceu o lençol sobre a cabeça e nós nos retiramos.

— Amanhã, quero que você me traga, antes da noite, um jogo de bisturis para autópsia — disse-me Van Helsing.

— Temos que fazer uma autópsia? — perguntei.

— Sim e não. Vou lhe dizer do que se trata, mas não diga uma só palavra a ninguém. Vou cortar-lhe a cabeça fora e retirar seu coração. Mas você, um cirurgião, ficar tão chocado! Você, que já vi fazer operações tão difíceis! Mas estou me esquecendo, caro amigo John, que você a amava. Eu preferiria fazer a operação esta noite, mas não posso, por causa de Arthur. Ele ficará livre depois do enterro de seu pai, amanhã, e há de querer vê-la... Depois que ela estiver fechada no caixão, para o dia seguinte, nós o destamparemos, faremos a operação e tornaremos a tampar o caixão, sem deixar ninguém saber.

— Mas para que mutilar o corpo da infeliz sem necessidade? É monstruoso! Amigo John — disse Van Helsing, pondo a mão em meu ombro.

— Tenho muita pena de você e, se pudesse, lhe pouparia isso. Mas há coisas que você não sabe, mas tem de saber, e deve dar graças a Deus porque as sei, embora não sejam coisas agradáveis. Você me conhece há tanto tempo! Já me viu fazer alguma coisa sem um motivo justo? Posso errar, mas acredito no que faço. Você não ficou espantado, ou talvez mesmo horrorizado, quando não deixei Arthur beijá-la? No entanto, viu que ela me agradeceu e me beijou as mãos. Pois bem. Tenho bons motivos para fazer o que pretendo. Terá confiança em mim?

Apertei-lhe a mão, prometendo. Vi-o entrar para o seu quarto e fechar a porta. Antes de entrar para o meu, vi uma das criadas entrar no quarto onde Lucy se encontrava e fiquei comovido com aquela prova de dedicação. Vencendo o medo tão natural, a pobre moça ia ficar junto da patroa, para que seus restos mortais não ficassem sozinhos...

Devo ter dormido profundamente, p92 já era dia claro quando Van Helsing foi me acordar.

— Não precisa mais se preocupar com os bisturis — disse ele. — Não vamos mais fazer o que eu pretendia.

— Por quê?

— Porque é tarde demais, ou cedo demais — respondeu ele, gravemente. — Veja! — acrescentou mostrando o pequeno crucifixo de ouro. Isto foi roubado na noite passada.

— Roubado? Então como está com ele?

— Porque o tomei da amaldiçoada. Seu castigo virá, mas não por meu intermédio. Ela não sabe tudo que fez.

Afastou-se, então, deixando-me às voltas com um novo mistério.

O procurador da família apareceu ao meio-dia. Mostrou-se grato pelas providências que tínhamos tomado e se encarregou de tomar as que fossem necessárias dali para diante. Durante o almoço, contou-nos que a Sra. Westenra vinha esperando, desde algum tempo, morrer de repente e pusera todos os seus negócios em ordem. Com exceção de alguns bens vinculados deixados pelo pai de Lucy e que, agora, terão de ser herdados por parentes afastados, todos os bens, móveis e imóveis, caberão a Arthur Holywood.

Arthur, agora Lord Godalming, pela morte do pai, fazia pena, quando apareceu. Sei que era muito bom filho e perder ao mesmo tempo o pai e a noiva deve ter sido um golpe terrível.

Levei-o ao quarto onde estava o corpo e levantei o lençol de seu rosto. Meu Deus, como estava bonita! Parecia estar ficando mais linda, de hora para hora. Arthur estremeceu, depois me perguntou, quase sem voz:

— Jack, ela está mesmo morta?

Assegurei-lhe que, infelizmente, essa era a verdade e disse-me que devia se despedir dela, pois o caixão tinha de ser preparado; ele beijou-lhe a mão e a testa, e levei-o, depois, para a sala de visitas, onde estava Van Helsing.

Depois de alguma hesitação, o professor perguntou-lhe:

— Sabe que a Sra. Westenra lhe deixou todos os seus bens?

— Não, coitada. Nunca pensei nisto.

— E, como tudo é seu, o senhor tem direito de fazer o que quiser. Queria que me desse permissão de ler todos os papéis e cartas de Miss Lucy. Pode crer que não se trata de mera curiosidade, mas que é para o bem de Lucy.

— Dr. Van Helsing — exclamou Arthur, com seu modo franco — pode fazer o que quiser. Sinto que, ao dizer isto, estou fazendo uma coisa que minha querida Lucy teria aprovado.

— E tem razão — disse o velho professor. — Haverá sofrimento para todos nós, mas devemos ser corajosos e abnegados e cumprir o nosso dever.

Dormi naquela noite num sofá, no quarto de Arthur. Van Helsing passou a noite em claro, andando de um lugar para outro do quarto e sem perder de vista o quarto onde se encontrava Lucy em seu caixão, rodeada de flores de alho.

DIÁRIO DE MINA HARKER

22 de setembro — No trem de Exeter, Jonathan está dormindo. Parece que foi ontem, e quanta coisa já aconteceu... Eu em Whitby, Jonathan longe, sem dar notícias e agora eu casada com Jonathan, e o Sr. Hawkins morto e enterrado.

A cerimônia fúnebre foi muito simples. Apenas estávamos nós, os criados um ou dois velhos amigos de Exeter, seu agente em Londres é um representante da Sociedade Judiciária. Saindo do enterro, eu e Jonathan vimos um ônibus até o Hyde Park, onde estivemos durante algum tempo. Quando caminhamos de braço dado pelo Picadilly, Jonathan exclamou, de repente, apertando-me o braço:

— Meu Deus!

Olhei-o vi que se tornara lívido. Acompanhando a direção do seu olhar, percebi que estava olhando para um homem alto e magro, de nariz aquilino, bigode preto e cavanhaque, que, por sua vez, olhava para uma linda moça. o rosto desse homem tinha uma expressão de maldade e seus dentes, que pareciam mais brancos por causa dos lábios muito vermelhos, eram pontudos como os de um animal.

— Está vendo quem é?

— Não, querido — respondi. — Quem é?

Sua resposta me chocou, pois parecia que não era comigo que ele estava falando:

— É ele em pessoa!

Evidentemente, era presa de terrível emoção e creio que teria caído, se eu não estivesse ali para sustentá-lo. O homem, sem tirar os olhos da moça que passava numa carruagem, fez sinal a um carro que passava. Jonathan continuou olhando para ele e disse, como que para si mesmo:

— Acho que é o Conde, mas ficou mais jovem. Meu Deus, se for mesmo!

Estava tão preocupado que tive medo de desviar sua atenção perguntando-lhe por outras coisas e fiquei em silêncio.

Continuamos a caminhar e sentamo-nos num banco do Green Park. O dia estava bem quente para o outono. Depois de alguns minutos, Jonathan fechou os olhos e adormeceu, com a cabeça no meu ombro. Cerca de vinte minutos depois acordou e disse, jovialmente:

— Que coisa, Mina! Como dormi! Desculpe-me ter sido tão grosseiro. Venha. Vamos tomar um chá, em algum lugar.

Sem dúvida, tinha se esquecido tudo a respeito do sujeito moreno. Não me atrevi a perguntar-lhe.

Mais tarde — Que tristeza a volta à casa, ainda vazia, com a morte do Sr. Hawkins! Jonathan anda pálido e abatido, e agora um telegrama de Van Helsing, dizendo:

“Lamento comunicar-lhe que a Sra. Westenra morreu há cinco dias e que Lucy morreu anteontem. Ambas foram enterradas hoje.”

Quanta tristeza em tão poucas palavras!

DIÁRIO DO DR. SEWARD

22 de setembro — Tudo terminou. Arthur regressou a Ring, em companhia de Quincey Morris. Quincey é um bom sujeito. Acho que está sentindo tanto a morte de Lucy como qualquer um de nós. Van Helsing está descansando um pouco, para a viagem. Vai esta noite para Amsterdam, mas disse que voltará amanhã à noite. Disse que tem negócios a tratar em Londres que o reterão durante algum tempo.

Fui com ele levar Arthur e Quincey à estação e quando voltamos, Van Helsing, na carruagem, começou a rir histericamente. Riu até chorar, tornou a rir e a chorar, muitas vezes, como uma mulher.

Afinal, quando se tornou mais sério e eu interroguei, explicou:

— Estou rindo por causa da amarga ironia que há nisso tudo. Todos aqueles homens vestidos de branco, como anjos, fingindo ler os livros de reza, mas sem que seus olhos jamais encontrem as páginas e nós todos de cabeça baixa... E tudo por quê? Ela está morta, não está?

— Desculpe-me, amigo John — disse Van Helsing. — Não demonstrei meus sentimentos para os outros, mas apenas para você, amigo velho, em quem posso confiar. Se você pudesse ver dentro do meu coração, enquanto estou rindo, teria mais pena de mim que de todos os outros.

Fiquei comovido com o tom de sua voz e perguntei por quê.

— Porque sei — disse ele.

“THE WESTMINSTER GAZETTE” 25 de setembro

Um mistério em Hampstead

Está ocorrendo, nos arredores de Hampstead, uma série de acontecimentos que parecem se emparelhar com aqueles que fizeram surgir cabeçalhos berrantes como “O Horror de Kensington” ou “A Mulher de Preto”. Durante os últimos dois ou três dias, várias crianças estiveram desaparecidas durante a noite. Todas ela eram tão novas que, ao serem encontradas, não souberam explicar onde tinham estado, mas todas se desculpavam dizendo que tinham estado com uma “dama de branco”. Todas desapareceram a altas horas da noite e duas só foram encontradas na manhã seguinte. Supõe-se que a primeira criança desaparecida inventou que a dama de branco a convidou para dar um passeio e que as outras a imitaram.

Há, contudo, um aspecto do caso que parece sério, pois algumas das crianças desaparecidas à noite apresentam ligeiros ferimentos no pescoço. Os ferimentos parecem ter sido produzidos por um rato ou cão de tamanho pequeno e, embora não tenham muita importância por si mesmos, parecem indicar que o animal que os produz tem um certo método. A polícia recebeu instruções para ter o máximo cuidado com crianças encontradas sós, especialmente muito pequenas, e com qualquer cão solto pelas ruas.

“THE WESTMINSTER GAZETTE” 25 de setembro

Edição Extraordinária

O HORROR DE HAMPSTEAD

A DAMA DE BRANCO

Outra criança ferida.

Acabamos de ser informados que outra criança, desaparecida durante a noite passada, só foi encontrada às últimas horas da manhã de hoje, num matagal do lado do Monte Shooter, lugar meio deserto. A criança tinha o mesmo ferimento no pescoço observado nos outros casos. Estava num estado de grande fraqueza e muito pálida. Quando melhorou, contou a mesma história, dizendo ter sido atraída pela dama de branco.


CAPÍTULO XIV

 

DIÁRIO DE MINA HARKER

23 de setembro — Jonathan está melhor, depois de ter passado mal a noite. Estou satisfeita porque ele tem bastante trabalho para fazer, de modo que pode se esquecer daquelas coisas terríveis. Vai ficar fora até tarde, pois me disse que não vai poder almoçar em casa. Já arrumei a casa, de maneira que vou poder fechar-me num quarto para ler o diário que escreveu no estrangeiro...

24 de setembro — Não tive ânimo de escrever ontem à noite. Aquelas coisas horríveis registradas por Jonathan me abalaram tanto! Coitado! Como deve ter sofrido, quer fosse verdade, quer fosse apenas imaginação! Não haverá alguma verdade em tudo isso? Aquele homem que ele viu ontem... Parecia ter certeza absoluta... Coitado! Acho que ficou muito nervoso com o enterro. Mas o fato é que acredita em tudo. Parece haver em tudo isso certa continuidade... Aquele horrível Conde pode ter vindo para Londres... Preciso estar preparada. Vou começar a copiar o diário à máquina imediatamente. Se Jonathan vencer o nervosismo, pode querer me contar tudo, e eu poderei lhe fazer perguntas e esclarecer muita coisa, e saber como posso confortá-lo.

CARTA DE VAN HELSING À SRa. HARKER

24 de setembro

(Confidencial)

Prezada Senhora:

Peço perdoar-me a liberdade que tomo de escrever-lhe, já tendo-lhe comunicado antes a triste notícia da morte de Míss Lucy Westenra. Por bondade de Lord Gadalming, li as cartas e documentos da mesma e estou muito preocupado com certas questões de importância vital. Imploro-lhe, Madame Mina, que me ajude, a fim de serem redimidos grandes males e evitadas muitas dificuldades. Poderei vê-Ia? Pode confiar em mim. Sou amigo do Dr. John, de Lord Godalming (que era o Arthur de Miss Lucy). Por enquanto, isso deve permanecer estritamente entre nós. Irei a Exeter para vê-la, imediatamente, se me permitir. Pelas, cartas de Lucy, sei quanto a senhora é boa e quanto seu marido sofre; peço-lhe, portando, se for possível, para não contar-lhe nada, a fim de não aborrecê-lo. Peço perdoar-me, mais uma vez.

VAN HELSING

TELEGRAMA DA SRa. HARKER A VAN HELSING

25 de setembro — Venha hoje, pelo trem de dez e um quarto, se puder tomá-lo. Posso vê-lo a qualquer hora que aparecer.

WILHELMINA HARKER

DIÁRIO DE MINA HARKER

25 de setembro — Espero ansiosa a visita do Dr. Van Helsing. Talvez ele possa esclarecer um pouco as tristes experiências de Jonathan; e, como assistiu aos últimos momentos da desventurada Lucy, poderá me falar a respeito dela. É por isso que vem. É porque está preocupado com Lucy e seu sonambulismo e não por causa de Jonathan.

Jonathan saiu hoje de manhã para passar todo o dia e a noite fora e é a primeira vez que se separa de mim, depois do casamento. Espero que nada lhe aconteça que possa fazê-lo ficar nervoso. São duas horas e o Dr. Van Helsing deve chegar dentro em pouco. Não vou lhe dizer nada sobre o diário de Jonathan, a não ser que ele me pergunte. Felizmente, datilografei meu próprio diário, e poderei mostrar-lhe, no caso dele perguntar por Lucy.

Mais tarde — Ele já veio e já se foi embora. Que encontro estranho! Sinto-me atordoada. Pareço estar sonhando. Se eu não tivesse lido o diário de Jonathan antes, não teria aceito esta possibilidade. Coitado de Jonathan, como deve ter sofrido!

O Dr. Van Helsing apareceu às duas e meia e disse-me que tinha vindo ver Mina Murray, a amiga de Lucy Westenra. Pediu-me para contar tudo que eu sabia a respeito de Lucy e respondi-lhe que escrevia um diária e que podia mostrá-lo, se quisesse. Ele o aceitou, agradecendo muito, depois perguntou por meu marido.

— Ele ficou muito chocado com a morte do Sr. Hawkins — respondi.

— Eu sei — disse Van Helsing. — Li suas duas últimas cartas.

— Acho que isso o perturbou muito, pois quando estávamos na cidade, quinta-feira passada, teve uma espécie de choque — acrescentei.

— Um choque, tão pouco tempo depois de uma febre cerebral! Não é bom. Que espécie de choque foi.

— Ele achou que vira alguém que lhe fazia lembrar uma coisa terrível, uma coisa que provocara sua febre cerebral.

Nesse momento, senti que tudo aquilo era demais para mim. A pena que sentia de Jonathan, o horror que experimentara, o mistério do seu diário e o pavor que aquilo me provocava, tudo me dominou em tumulto. Lancei-me de joelhos e implorei ao médico que pusesse meu marido bom de novo.

Ele me acalmou, dizendo-me que eu precisava comer, pois Jonathan não gostaria de me encontrar tão pálida. Disse que ficaria em Exeter esta noite, pois queria refletir sobre o que eu lhe dissera e, depois fazer-me algumas perguntas.

Depois do almoço, quando voltamos à sala de visitas, ele me disse:

— Agora, conte-me tudo a respeito do seu marido.

— Dr. Van Helsing — disse-lhe eu, antes de começar — o que tenho de lhe contar é tão esquisito que receio que o senhor ria de mim ou de meu marido. O senhor deve se mostrar tolerante para comigo e não pensar que acreditei nestas coisas estranhas.

— Se a senhora soubesse como é estranho o que me traz aqui, então seria a sua vez de rir — replicou ele. — Aprendi a não fazer pouco de qualquer crença, por mais absurda que pareça.

— Agradeço-lhe mil vezes! — exclamei. — O senhor tirou um peso de minha consciência. Se me permitir, vou lhe dar o diário de Jonathan para ler. É comprido, mas eu o datilografei. Depois de ler, o senhor poderá ter a bondade de dar sua opinião.

Ele prometeu, e saiu levando os papéis, ficando de almoçar conosco amanhã.

CARTA DE VAN HELSING A SR. HARKER

25 de setembro, 6 horas.

Prezada Madame Mina:

Li o formidável diário de seu marido. Pode dormir sabendo que, por mais estranho e terrível que pareça, é verdade! Pode ser pior para outros; mas para ele e a senhora nada há a temer. Posso lhe afirmar que o que ele fez, fugindo do castelo, não seria feito por um homem suscetível de ficar definitivamente inutilizado por um choque. Seu cérebro e seu coração estão perfeitos.

Atenciosamente

ABRAHAM VAN HELSING

CARTA DA SR. a HARKER A VAN HELSING

25 de setembro, 6:30 da tarde.

Prezado Dr. Van Helsing.

Mil vezes agradecida por sua carta, que me livrou de uma grande preocupação. Mas, se for verdade, que coisa horrível aquele monstro estar realmente em Londres! Recebi um telegrama de Jonathan, dizendo que estará aqui às 10:18 da noite de hoje. Assim, em vez de vir almoçar, não poderá o senhor vir tomar café conosco, às 8 da manhã, se não for muito cedo? Se estiver com pressa, poderá partir pelo trem de dez e meia.

Muito grata,

MINA HARKER

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

26 de setembro — Pensei que nunca mais iria escrever este diário de novo, mas a vez chegou. Ontem, depois que cheguei e que ceamos, Mina me falou sobre a visita de Van Helsing e disse-me que havia lhe dado os dois diários copiados e manifestado sua apreensão a meu respeito. Mostrou-me uma carta do médico, dizendo que tudo que escrevi era verdade. Agora que sei, não tenho medo, mesmo do Conde. Ele conseguiu chegar a Londres e está mais jovem, mas não importa. Van Helsing será capaz de desmascará-lo e persegui-lo, se é como Mina diz.

Ele pareceu surpreendido quando me viu.

— Madame Mina me disse que o senhor estava muito mal! — exclamou, reparando muito em mim.

Era engraçado, ouvir aquele velho robusto e de fisionornia bondosa chamar minha mulher de “Madame Mina”.

— Estive doente, mas já estou curado — respondi-lhe. — A carta que o senhor escreveu para Mina curou-me.

— Poderei pedir-lhe alguma ajuda — disse ele. — Pode me contar o que houve com o senhor ir à Transilvânia? Mais tarde, poderei pedir nova ajuda e de espécie diferente. Mas, por enquanto é só isto.

— Isso tem relação com o Conde?

Respondeu afirmativamente e retruquei:

— Então estou com o senhor, de corpo e alma. Como o senhor vai viajar no trem de dez e meia, não terá tempo de ler estes papéis, mas vou fazer um embrulho com eles e o senhor os lerá no trem.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

26 de setembro — Recebi uma carta de Arthur, de domingo, que mostra que ele está reagindo otimamente. Quíncey também me escreveu e me disse que Arthur já recuperou uma parte de seu ânimo. Infelizmente, contudo, as feridas que a pobre Lucy deixou em mim não se cicatrizaram. Hoje, Van Helsing, que estava em Exeter, entrou no meu gabinete, quase correndo, às cinco e meia, e entregou-me o número da “Westminster Gazette” de ontem.

— Que me diz a isto? — perguntou.

Li uma notícia sobre o desaparecimento, durante a noite, de criancinhas, em Hampstead. Não me interessou muito, até que cheguei ao parágrafo que falava a respeito de pequenos ferimentos no pescoço. Estremeci.

— É como a pobre Lucy! — exclamei.

— E que deduz daí?

— Que há uma causa comum para os dois.

— Isto é verdade, indireta, mas não diretamente.

— Que está querendo dizer, professor? — perguntei. — Não sei o que pensar.

— Está querendo dizer, amigo John, que não desconfia do que a desventurada Lucy morreu?

— Foi em conseqüência de uma prostração nervosa, produzida por grande perda de sangue.

— E a perda de sangue por que foi causada? Você é inteligente, mas tem muitos preconceitos. Não acha que existem coisas que não podemos compreender, mas que existem? Que algumas pessoas vêem coisas que os outros não podem ver? Existem coisas velhas e novas que não podem ser contempladas pelos olhos dos homens, porque eles conhecem algumas coisas que os outros lhes disseram. Nossa ciência não pode explicá-las e, então, diz que não há nada a explicar. Creio que você não acredita na materialização, nem na transmissão de pensamento, nem no hipnotismo...

O hipnotismo foi perfeitamente provado por Charcot — observei.

— Quer dizer que acredita nele — disse Van Helsing sorrindo. — Mas, então por que não acredita na transmissão de pensamento? Vivemos rodeados de mistérios. Quero lembrar-lhe que existem coisas feitas hoje pela ciência da eletricidade que teriam sido consideradas absurdas pelos próprios homens que descobriram a eletricidade e que, por sua vez, teriam sido, outrora, queimados como feiticeiros. Ninguém descobriu ainda o mistério da vida e da morte. Você poderá dizer por que a tartaruga vive mais que gerações de homens e que o papagaio não morre, a não ser por mordida de cão ou gato ou coisa semelhante? Nós todos sabemos que tem havido sapos que viveram em rochedos durante milhares de anos. Quero que você acredite em coisas que não pode acreditar. Um americano deu a seguinte definição de fé: “a faculdade que nos permite acreditar em coisas que sabemos, não serem verdadeiras.” Quero que você compreenda o que estou querendo dizer. E, agora, diga-me uma coisa: acha que os pequenos ferimentos no pescoço das crianças foram feitos peio mesmo que produziu os ferimentos em Miss Lucy?

— Suponho que sim.

— Então, está redondamente enganado. Antes fosse isso. Mas é muito pior.

— Em nome de Deus, professor! O que está querendo dizer?

Com um gesto de desespero, escondendo o rosto com as mãos, ele respondeu:

— Foram feitos por Miss Lucy!


CAPÍTULO XV

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD
(Continuação)

Durante alguns momentos, uma raiva furiosa me dominou; era como se Van Helsing tivesse esbofeteado Lucy, quando ela era viva.

— O senhor está doido? — exclamei.

— Antes estivesse — respondeu ele levantando a cabeça e olhando-me com uma ternura que me fez acalmar um pouco. — Seria preferível a loucura à certeza que tanto me faz sofrer! Acha que eu iria dizer uma coisa destas só para torturá-lo?

— Perdoe-me — pedi-lhe.

— Esta noite, posso provar que, infelizmente, é a verdade. Tem coragem de vir comigo? Se não for verdade, a prova será um alívio; na pior hipótese, não fará mal. Venha, vou lhe dizer o que pretendo fazer. Em primeiro lugar, vamos ver a criança no hospital. O Dr. Vincent, do Hospital do Norte, onde o jornal diz que a criança está, é meu amigo. Deixará dois cientistas examinarem o caso, se não deixar dois amigos. Não lhe diremos nada, mas apenas que desejamos aprender. E depois...

— E depois?

Tirou uma chave do bolso e continuou:

— Depois, eu e você passaremos à noite no cemitério onde Lucy está. Esta é a chave de seu túmulo. O homem da empresa funerária me deu, para entregá-la a Arthur.

Senti um aperto no coração, diante da terrível prova. Mas disse que era melhor andar depressa, pois a tarde já ia avançada...

Encontramos a criança acordada e o Dr. Vincent nos mostrou o ferimento no pescoço. Era igualzinho ao que eu observara no pescoço de Lucy.

Perguntamos a Vincent a que atribuía o ferimento e ele respondeu que devia ser a dentada de algum animal, talvez um rato, mas que, de sua parte, estava inclinado a acreditar que fosse algum morcego, muito comum na zona norte de Londres.

— Entre os inofensivos, pode haver algum de outra espécie, fugido do Jardim Zoológico por exemplo — disse ele. — Estas coisas acontecem. Ainda há poucos dias, fugiu um lobo, para aqueles mesmos lados.

— Espero, que quando mandar a criança para casa, advirta a seus pais tomarem muito cuidado — disse Van Helsing, antes de sair.

Quando saímos do hospital, estava anoitecendo.

— Não precisamos correr — disse Van Helsing. — Temos muito tempo.

Jantamos no “Jack Straw’s Castle” de onde saímos mais ou menos às dez horas.

Quando chegamos junto ao cemitério, pulamos o seu muro e, com alguma dificuldade, devido à escuridão, encontramos o jazigo da família Westenra. Van Helsing abriu o portão de ferro e, polidamente, me convidou a entrar em primeiro lugar e, depois de ter fechado o portão, cuidadosamente, tirou da valise, fósforo e uma vela, que acendeu logo. Aquele jazigo que, durante o dia, enfeitado com flores frescas, me parecera lúgubre, alguns dias antes, era horrível à noite, com as flores já murchas e as aranhas reiniciando seu trabalho, entre a pedra escura e as grades enferrujadas.

Levantando a vela, para poder ler as placas dos caixões, Van Helsing certificou-se que estava diante do de Lucy e, depois de ter prendido a vela no chão, sobre um pouco de cera quente, tirou da valise uma chave de fenda.

— Que vai fazer? — perguntei.

— Abrir o caixão. Você precisa se convencer.

Imediatamente, começou a tirar os parafusos, levantou a tampa e o féretro de chumbo apareceu embaixo. Aquilo foi demais para mim. Pareceu-me que seria para a morta uma profanação igual à que teria sido desnudá-la em vida. Cheguei a segurar a mão de Van Helsing, para detê-lo.

— Você vai ver — disse ele, tirando uma serra da valise.

E, depois de fazer uma pequena abertura no caixão de chumbo, com a chave de fenda, nela introduziu a serra e fez uma abertura de uns dois pés, onde introduziu a vela e me mandou olhar.

Aproximei-me e olhei. O caixão estava vazio.

— Está convencido agora, amigo John? — perguntou-me o professor.

— Estou convencido que o corpo de Lucy não está aí dentro — respondi. — Mas isso nada prova. Alguém pode tê-lo retirado.

— Precisamos de outras provas — disse o professor, dando um suspiro. — Venha comigo.

Tornou a fechar o caixão, reuniu todos os seus objetos e meteu-os na valise, inclusive a vela. Depois que salmos do jazigo e que ele fechou a porta pelo lado de fora, ofereceu-me a chave.

— Não quer ficar com ela? — disse. — Assim, terá mais confiança.

— Uma chave não quer dizer nada — retruquei. — Pode haver uma duplicata.

Sem nada dizer, Van Helsing meteu a chave no bolso, depois me disse para vigiar de um lado do cemitério, enquanto ele vigiaria do outro.

Escondi-me atrás de um cipreste e vi o vulto de Van Helsing caminhar entre as árvores e os túmulos até desaparecer.

Esperei muito tempo. Ouvi um relógio distante bater meia-noite, depois uma e duas horas da manhã. Sentia frio e estava furioso com o professor por ter me arrastado aquilo.

De súbito, tive a impressão de ver um vulto, branco movendo-se entre duas árvores escuras do lado do cemitério mais afastado do jazigo; ao mesmo tempo, vi um vulto negro mover-se vindo do lado onde estava o professor e se encaminhar rapidamente rumo ao primeiro. Avancei, também, tropeçando nos túmulos. O céu estava coberto de nuvens e um galo cantou ao longe. Um pouco ao lado, ao longo de uma fila de ciprestes que margeavam o caminho da igreja, tênue e esbranquiçada avançava em direção ao jazigo, que estava escondido pelas árvores, de modo que não vi onde o vulto desapareceu. Corri naquela direção e encontrei o professor com uma criancinha nos braços.

— Está convencido agora? — perguntou-me ele.

— Não! — respondi, de modo agressivo.

— Não está vendo a criança?

— Estou. Mas quem a trouxe aqui? E está ferida?

— Vamos ver — disse ele.

Depois de afastarmo-nos um pouco, entramos numa moita de árvores e acendemos um fósforo, para examinar o pescoço da criança. Não tinha o menor sinal.

— Está vendo? — exclamei, triunfante.

— Chegamos justamente a tempo — disse o professor, satisfeito.

Tínhamos de resolver o que iríamos fazer com a criança. Não podíamos levá-la a um posto policial, para não sermos interrogados. Resolvemos, portanto, levá-la e, quando víssemos um policial, deixá-la, de tal modo que ele não pudesse deixar de encontrá-la. E, realmente, não tardamos muito a ouvir os passos de um e, deixando a criança no caminho, escondemo-nos. O policial ficou muito espantado com o encontro e nós nos afastamos, sem sermos vistos. Por sorte, encontramos um carro de aluguel perto do Spaniards e viemos para a cidade.

Não consegui dormir até agora. Mas preciso ver se durmo algumas horas, pois Van Helsing vem me procurar ao meio-dia. Faz questão que eu o acompanhe em outra expedição.

27 de setembro — Somente às duas horas conseguimos uma oportunidade para nossa tentativa. O enterro realizado ao meio-dia tinha acabado e o coveiro fechou o portão pelo lado de fora. Sabíamos que teríamos até a manhã seguinte para fazer o que quiséssemos, mas o professor me disse que não seria necessário mais de uma hora.

Voltamos ao jazigo. O lugar era menos lúgubre que à noite, mas era um espetáculo insuportável de ver-se, iluminado pelo sol. Van Helsing aproximou-se do caixão de Lucy e eu o segui. Abriu a tampa e senti-me dominado por terrível surpresa.

Lá estava Lucy, como a tínhamos visto na noite da véspera do enterro. Parecia mais bela que nunca, e eu não podia acreditar que estivesse morta. Os lábios estavam vermelhos, mais vermelhos que antes, e, nas faces, havia um rubor delicado.

— Está convencido agora? — perguntou Van Helsing, e, enquanto falava estendeu a mão e levantou os lábios da morta, provocando-me um arrepio de horror. — Veja, os dentes estão ainda mais aguçados que antes. Com estes caninos, as criancinhas são mordidas. Acredita agora, amigo John?

De novo, a revolta se apossou de mim. Eu não podia aceitar uma realidade tão horrível.

— Ela pode ter sido colocada aí depois desta madrugada — murmurei.

— Acha mesmo? — retrucou Van Helsing. — Mas ela está morta há uma semana. Depois de tanto tempo, os mortos não têm esse aspecto.

Não encontrei argumentos para refutá-lo. Van Helsing examinava atentamente o rosto da morta, levantando as pálpebras e examinando de novo os dentes. Depois, observou:

— É um caso diferente de todos os outros que se tem memória; trata-se de uma dupla vida, que não é o caso comum. Foi mordida pelo vampiro, quando estava em transe, em estado de sonambulismo. Morreu em transe e em transe, também, é não-morta. É nisso que se difere de todos os outros. Habitualmente, quando um não-morto dorme em casa — e fez um gesto sugestivo para mostrar o que é a “casa” de um vampiro — seu rosto mostra o que é, mas esta quando deixa de ser Não-Morta volta dos mortos comuns. Não há maldade aqui, veja, e, por isso, será para mim uma tarefa penosa ter que matá-la em seu sono.

Senti um arrepio de frio, mas refleti que, se ela estava realmente morta, por que a idéia de matá-la me causava horror? Van Helsing naturalmente notou a expressão de meu rosto, pois perguntou, quase jovialmente:

— Está acreditando agora?

— Não me force a aceitar tudo ao mesmo tempo — respondi. — Estou disposto a acreditar. Como fará o seu sangrento trabalho?

— Vou cortar-lhe a cabeça e encher sua boca de alho e atravessar-lhe o corpo com um espeto.

Senti um arrepio de horror, à idéia de mutilar o corpo da mulher que eu amara. Depois de ficar pensativo algum tempo, Van Helsing observou:

— Por meu gosto, eu acabaria com tudo agora mesmo, pois assim eliminaríamos o perigo para sempre. Mas há o caso de Arthur. Se você, que viu os férimentos no pescoço de Lucy e da criança, que viu o caixão vazio ontem e hoje com o corpo dela, custou a acreditar, imagine ele. Seria uma deslealdade fazer isto sem ele saber. Temos que explicar-lhe tudo. Amanhã à noite, você vai me procurar no Berkeley Hotel, às dez horas. Mandarei chamar também Arthur e aquele simpático americano que doou seu sangue. Mais tarde, teremos todos que agir.

E, assim, fechamos o jazigo, pulamos o muro do cemitério e voltamos a Picadilly.

BILHETE DEIXADO PELO DR. VAN HELSING NO BERKELEY HOTEL E ENDEREÇADO AO DR. JOHN SEWARD
(Não entregue)

27 de setembro.

Amigo John:

Escrevo para o caso de acontecer alguma coisa. Vou sozinho vigiar aquele cemitério. Quero que a Não-Morta, Miss Lucy, não saia esta noite, para amanhã à noite estar mais ansiosa para sair. Por isso, vou levar algumas coisas de que ela não gosta — alho e um crucifixo — e fechar a porta do túmulo. Ela é uma Não-Morta jovem e se aquietará. Não tenho medo quanto a ela. Mas o outro que aqui está e que a tornou Não-Morta, tem o poder de encontrar seu túmulo e achar abrigo. Ele é astucioso. Mesmo nós quatro não poderemos com sua força. Além disso, ele pode convocar seu lobo e outras coisas. Assim, se ele aparecer esta noite, me encontrará, mas só a mim. Mas possivelmente, não tentará ir lá.

Escrevo, portanto para se acontecer alguma coisa... Tome os papéis que estão com este, o diário de Harker e o resto, leia-os, depois procure esse grande Não-Morto e corte-lhe a cabeça e enfie um espeto em seu coração, para que o mundo fique livre dele.

Se assim for, adeus.

VAN HELSING

DIÁRIO DO DR. SEWARD

29 de setembro, de manhã — ...Ontem à noite, um pouco antes de dez horas, Arthur e Quincey vieram e apareceram no quarto de Van Helsing; este nos disse o que queria, mas dirigindo-se especialmente a Arthur. A explicação foi dolorosa. É fácil compreender como Arthur ficou afetado. Seria demais exigir que ele acreditasse naquilo tudo de pronto, se até as minhas próprias dúvidas ameaçavam.

— Quero sua permissão — concluiu o professor — para fazer o que acho que devo fazer, esta noite. E, assim, quero que me prometa, sem saber do que se trata, para que, mais tarde, embora o senhor possa ficar com raiva de mim durante algum tempo, não fique corri remorso de coisa alguma.

— Gosto desta franqueza! — exclamou Quincey. — Respondo pelo professor. Sou capaz de jurar que ele é sincero. E isto é bastante para mim.

— Agradeço-lhe — disse Van Helsing. — E sinto-me honrado em ser seu amigo.

— Dr. Van Helsing — disse Arthur, muito sério — se o senhor me garantir que o que vou prometer não afeta minha honra de cavalheiro e minha fé de cristão, darei meu consentimento imediatamente.

— Aceito sua reserva! — exclamou Van Helsing. — Vamos, portanto, fazer o que o dever nos impõe.


CAPÍTULO XVI

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD
(Continuação)

Faltava exatamente um quarto de hora para a meia-noite, quando entramos no cemitério pelo muro baixo. A noite estava sombria e só de vez em quando a luz da lua conseguia irromper através das pesadas nuvens. Conduzidos pelo professor, chegamos ao jazigo, cuja porta ele abriu e, notando uma natural hesitação entre nós todos, entrou em primeiro lugar. Acompanhamo-lo e fechamos a porta. Van Helsing acendeu uma lanterna e apontou para o esquife. Arthur avançou, hesitante.

— Você esteve aqui ontem — disse-me Van Helsing. — O corpo de Miss Lucy estava neste caixão?

— Estava — respondi.

Van Helsing abriu o esquife. Estava vazio!

Durante vários minutos ninguém disse uma palavra. O silêncio foi interrompido por Quincey Morrís:

— Eu respondi pelo senhor, professor. Só quero sua palavra. Foi o senhor que fez isto?

— Juro por tudo quanto é sagrado que não a toquei nem a removi — respondeu Van Helsing. — Ontem à noite, eu impedi que ela saísse, colocando em torno da sepultura flores de alho, que os Não-Mortos não toleram. Hoje, antes do sol se pôr, tirei o alho e outras coisas. E por isso, encontramos o caixão vazio. Mas esperem comigo, do lado de fora, escondidos e calados, e verão coisas ainda muito mais estranhas. Vamos sair, pois.

Abriu a porta e saímos, saindo ele por último e fechando a porta. Cada um de nós ficou no lugar que ele nos designara. Arthur estava sombrio e Quincey Morris fleumático. Quanto a Van Helsing não estava parado. Primeiro, tirou da valise uma hóstia enrolada num guardanapo, depois uma espécie de massa, e, esfarinhando a hóstia, misturou-a com a massa, com a qual começou a encher as fendas entre a porta e seu encaixe no jazigo. Arthur e Quincey olliavam, curiosos, e eu, não contendo a minha curiosidade, perguntei o que ele estava fazendo.

— Estou fechando o túmulo, para que a Não-Morta não possa entrar.

— E o que é isto? — perguntou Arthur.

Van Helsing tirou o chapéu, ao responder:

— A Hóstia Sagrada. Trouxe-a de Anisterdam. Tenho uma Indulgência.

Era uma resposta que o mais cético de nós aceitava sem discussão. E, em silêncio respeitoso, cada um tomou o seu lugar. A demora nos pareceu interminável. Afinal o professor apontou e, na aléia de ciprestes, surgiu um vulto branco, carregando uma pequena forma escura. o vulto parou e um raio da lua, passando através das nuvens, iluminou uma mulher de cabelos escuros, vestida de mortalha. Não pudemos ver seu rosto, que estava debruçado sobre a forma escura, que vimos, então, ser uma criança loura. Ouviu-se um gritinho, como as crianças costumam dar dormindo e, instintivamente, demos um passo para diante, mas Van Helsing nos fez sinal para parar. A figura esbranquiçada avançou de novo e tornou-se bem visível ao luar. Senti um frio no coração, ao ver a expressão de horror estampada no rosto de Arthur, quando reconheceu as feições de Lucy Westenra. Lucy Westenra, mas como estava mudada! A doçura de sua fisionomia transformara-se numa expressão de crueldade e a pureza numa expressão de luxúria. Obedecendo a um gesto de Van Helsing, avançamos e nós quatro nos colocamos em linha diante da porta do jazigo. Van Helsing levantou a lanterna e fez sua luz incidir no rosto de Lucy, e pudemos ver que seus lábios estavam vermelhos de sangue fresco, que lhe escorria pelo queixo e manchava a mortalha branca que a envolvia.

Estremecemos de horror. E meu horror cresceu quando vi seus olhos arderem com uma luz pecaminosa e um sorriso voluptuoso perpassar-lhe nos lábios. Com um gesto descuidado largou a criança, que caiu no chão, gemendo. Arthur não conteve um grito; e, quando ela avançou na direção dele, de braços estendidos, escondeu o rosto nas mãos.

— Venha, Arthur! — disse ela, languidamente. — Deixe os outros e venha comigo. Venha, e poderemos descansar juntos. Venha, meu marido, venha!

Arthur parecia dominado por um encantamento e, tirando as mãos do rosto, abriu os braços. De um pulo, Van Helsing se interpôs entre os dois, mostrando o pequeno crucifixo. Lucy recuou, com uma expressão de ódio no rosto, e fez menção de entrar no jazigo.

A um passo ou dois de distância, porém, parou, como detida por uma força irresistível. E, durante meio minuto, que pareceu uma eternidade, ficou entre o crucifixo e a entrada do jazigo. Van Helsing rompeu o silêncio, perguntando a Arthur:

— Diga-me, meu amigo, devo continuar com o meu trabalho?

Caindo de joelhos e escondendo o rosto nas mãos, Arthur respondeu:

— Faça o que quiser, meu amigo. Não poderá haver jamais horror pior do que este.

Aproximando-se do túmulo, Van Helsing retirou o símbolo sagrado que colocara em sua entrada. Quando recuou, nós todos contemplamos, horrorizados, a mulher, cujo corpo era tão real, naquele momento, quanto os nossos corpos, passar pela fenda onde uma lâmina de faca mal teria passado.

O professor apanhou a criança no chão e disse:

— Vamos, meus amigos; não poderemos fazer mais nada até amanhã. Quanto a este pequeno, não sofreu muito e amanhã à noite estará bom.

Arthur e Quincey vieram para casa comigo e todos nós procuramos nos reanimar mutuamente no caminho.

29 de setembro, à noite — Um pouco antes de doze horas, eu, Arthur e Quince3f Morris fomos procurar o professor. Dirigimo-nos ao cemitério à uma e meia e agimos de tal maneira que, quando os coveiros terminaram sua tarefa e saíram, fechando o portão, e pensando que não havia mais ninguém, colocamo-nos em posição. Em vez de sua valise preta habitual, Van Helsing trouxera uma maleta de couro, mais comprida.

Quando vimos que estávamos sós, acompanhamos o professor até o jazigo. Ele abriu a porta e entramos, fechando-a por dentro. Van Helsing tirou, então, da maleta a lanterna, que acendeu, e duas velas de cera, que também acendeu, e colocou sobre outros esquifes, para iluminar bem o interior do túmulo. Quando o caixão de Lucy foi aberto, vimos seu corpo em toda a beleza.

— É realmente o corpo de Lucy ou algum demônio sob sua forma? — perguntou Arthur, com esforço.

— É seu corpo e, ao mesmo tempo, não é — respondeu Van Helsing. — Mas espere um pouco e vai vê-la como era, e é.

Com seu método habitual, Van Helsing começou a retirar vários objetos da maleta. Primeiro uma lâmpada de soldagem e um pouco de solda, depois os bisturis e, finalmente, um comprido espeto de pau com cerca de três polegadas de espessura e três pés de comprimento, com uma das pontas muito aguçada. Depois, tirou ainda um malho, desses usados para quebrar carvão.

Quando tudo estava pronto, exclamou:

— Antes de mais nada, quero explicar-lhes o que isso significa; vem da experiência e conhecimento dos antigos e de todos que têm estudado o poder dos Não-Mortos. Quando se tornam assim, há uma mudança no curso da imortalidade; não podem morrer, mas devem continuar pelos anos afora acrescentando novas vítimas e multiplicando os males do mundo, pois todos os que morrem como presas dos NãoMortos tornam-se, eles próprios, Não-Mortos. E assim o círculo vai se alargando. É o que lhe aconteceria, amigo Arthur, se a pobre Lucy o tivesse beijado. A carreira da desventurada menina mal começou. Aquelas crianças cujo sangue ela sugou ainda não constituem coisa grave, mas, se ela continuar vivendo como Não-Morta, elas irão cada vez perdendo mais sangue e irão procurá-la, pelo poder que ela exercerá. Mas, se ela morrer de verdade, tudo cessará. Em vez de fazer o mal durante à noite, ela tomará seu lugar entre os outros mortos. Assim, meu amigo, será abençoada a mão que desfechar o golpe que a liberte. Estou disposto a isso, mas não há, entre vocês, alguém com mais direito do que eu?

Nós todos olhamos para Arthur. Pálido como a neve e com as mãos trêmulas, ele disse, contudo, com a voz firme:

— Meu verdadeiro amigo, agradeço-lhe do fundo de meu coração amargurado. Diga-me o que tenho de fazer e não hesitarei!

— Muito bem, valente rapaz! — disse Van Helsing. — Um momento de coragem e tudo estará pronto. É preciso atravessá-la com esta estaca. Será uma provação horrível, não vou negar, mas o tempo será curto e depois você poderá regozijar-se. Mas não deve fraquejar, quando tiver começado. Segure a estaca com a mão esquerda, pronto a colocá-la bem sobre o coração, e o martelo na mão direita. Depois, quando começarmos a rezar a oração dos defuntos, para o que eu trouxe o livro de rezas, crave a estaca, em nome de Deus, para que tudo fique bem para a morta que amamos e Não-Morta desapareça.

Arthur segurou a estaca e o martelo e fez o que tinha de fazer, sem que suas mãos tremessem. Van Helsing abriu o missal e começou a ler, e eu e Quincey o acompanhávamos o melhor que podíamos.

A coisa que estava no caixão contorceu-se e um grito horrível, sangrento, saiu de seus lábios vermelhos. Os dentes brancos e aguçados cravaram-se nos lábios e a boca se cobriu de espuma. O corpo se contorcia todo. Mas Arthur não fraquejou. Afinal, o corpo se imobilizou. A terrível tarefa estava terminada.

Arthur largou o martelo e teria caído, se não o sustentássemos. Durante algum tempo, nem tivemos coragem de olhar para o caixão. Quando olhamos, contudo, não pudemos conter um grito de surpresa. Lucy retomara a expressão de doçura e pureza que tinha em vida, marcada, é verdade, também pelo sofrimento.

— Agora, meu filho, pode beijá-la — disse Van Helsing a Arthur. — Agora, é uma morta de verdade, cuja alma está com Deus!

Arthur beijou a morta e mandamos que ele e Quincey saíssem do jazigo. Eu e o professor serramos, então, a parte de cima da estaca, deixando a ponta cravada no corpo de Lucy. Em seguida, cortamos-lhe a cabeça e enchemos sua boca de alho. Soldamos o caixão de chumbo, fechamos a tampa do ataúde e retiramo-nos. O professor entregou a Arthur a chave do jazigo.

Ao chegarmos ao lado de fora, vendo o sol brilhar e ouvindo os pássaros, pareceu-nos que toda a natureza se modificara. Mas Van Helsing nos advertiu:

— Ainda não terminamos a nossa tarefa. Temos de descobrir o autor de todos esses males e eliminá-lo. Estão dispostos a ajudar-me?

Todos nós prometemos e ele continuou:

— Daqui a dois dias, vamos jantar juntos, às sete da noite. Vou apresentar-lhes duas outras pessoas que ainda não conhecem. Amigo John, venha comigo, pois temos muito que conversar.


CAPÍTULO XVII

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD
(Continuação)

Quando chegamos ao Berkeley Hotel, Van Helsing encontrou um telegrama, que havia chegado em sua ausência:

“Chegarei por estrada de ferro. Importante notícia. MINA HARKER.”

O professor ficou muito satisfeito.

— Madame Mina é uma pérola! — disse ele. — Mas não posso esperá-la. Deve ir recebê-la na estação e levá-la para sua casa, amigo John.

Em seguida, deu-me cópias de um diário escrito por Jonathan Harker no estrangeiro e de um diário da Sra. Harker, em Whitby.

— Leia estes papéis e estude-os bem — disse-me ele. — Quando eu voltar, você estará bem a par desses assuntos e poderemos tomar as providências necessárias.

Cheguei à estação quinze minutos antes do trem chegar. Quando este chegou, fui reconhecido pela Sra. Harker, que fora avisada, em caminho, por telegrama, de que eu iria esperá-la na estação, em vez do professor Van Helsing.

— O senhor é o Dr. Seward, não é? perguntou-me. — Reconheci-o pela descrição feita pela pobre Lucy.

Corou, ao dizer aquilo, mas eu também corei e aquilo pareceu nos pôr mais à vontade, como uma resposta tácita a ela própria. Peguei sua bagagem, que incluía uma máquina de escrever.

Pouco depois, chegávamos ao hospício, onde eu mandara preparar um quarto e uma sala para a Sra. Harker.

DIÁRIO DE MINA HARKER

29 de setembro — Depois de ter me aprontado, fui ao gabinete do Dr. Seward. Parei, por um momento junto da porta, e o ouvi conversando com outra pessoa. Bati na porta e ele me mandou entrar.

Fiquei surpreendida ao encontrá-lo só. Na mesa, em frente dele, havia um aparelho que, pela descrição, vi se tratar de um fonógrafo, coisa que eu nunca vira antes.

— Estava fazendo meu diário — disse-me ele.

— Seu diário?

— Sim. Gravo nesta máquina.

Fiquei entusiasmada e pedi para ouvir alguma coisa. Muito embaraçado, ele murmurou:

— Meu diário é quase exclusivamente acerca de meus casos, de modo que...

Para livrá-lo de seu embaraço, sugeri:

— O senhor assistiu à morte de Lucy. Ficar-lhe-ei muito grata por tudo que souber a seu respeito. Ela me era muito querida.

Fiquei surpreendida com a reação dele:

— Contar-lhe a morte dela? Por coisa alguma do mundo!

— Mas, por que não? — insisti.

Muito sem jeito, ele desculpou-se, dizendo que não conseguiria distinguir uma parte determinada de seu diário.

— Então, será melhor o senhor deixar que eu copie o diário a máquina — propus.

— Não, não! — protestou ele. — De maneira alguma! Não a deixaria ficar sabendo daquele caso horrível!

— O senhor não me conhece — repliquei. — Quando tiver lido meu diário e o do meu marido, que datilografei, há de me conhecer melhor.

Ele se pôs de pé e abriu uma gaveta, onde havia vários cilindros ocos, cobertos com cera escura.

— Tem razão — disse. — Não confiei na senhora porque não a conhecia, mas agora já a conheço. Leve estes cilindros e os escute.

Ele mesmo levou o fonógrafo para minha sala, onde o preparou para mim.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

29 de setembro — Fiquei tão absorvido com a leitura do diário que nem percebi a passagem do tempo. Quando terminei a leitura e fui para a sala de jantar, a Sra. Harker tinha acabado de voltar. Estava triste e tinha os olhos vermelhos de chorar.

— Peço desculpas por ter-lhe aborrecido — exclamei.

— Não me aborreceu — disse ela. — Mas fiquei profundamente comovida com o pesar demonstrado pelo senhor. A sua voz cortava o coração. Por isso, resolvi copiar o diário a máquina, para que os outros possam lê-lo em vez de ouvi-lo. Naturalmente, o senhor me deixará ajudá-lo, não é mesmo? Eu e Jonathan estamos trabalhando, noite e dia, depois que estivemos com o professor Van Helsing. Não devemos ter segredos entre nós. Devemos trabalhar juntos e termos completa confiança uns nos outros.

— Tem razão — concordei. — Precisamos ser muito fortes, para executar a tarefa que temos pela frente. Mas, agora, venha jantar.

DIÁRIO DE MINA HARKER

29 de setembro — Depois do jantar, fui com o Dr. Seward para o seu escritório. Ele trouxe o fonógrafo e eu a máquina de escrever, e ele me deu as instruções necessárias.

Se eu não tivesse lido o diário de Jonathan na Transilvânia, não acreditaria nessa horrível história da morte de Lucy. Felizmente, não tenho propensão para desmaiar.

— Vou tratar de escrever tudo, para que esteja pronto, quando o Dr. Van Helsing chegar — disse, afinal, ao Dr. Seward. — Telegrafei a Jonathan, dizendo-lhe para vir para aqui, quando chegar a Londres, procedente de Whitby.

O Dr. Seward colocou o fonógrafo em pequena velocidade e comecei a copiar o diário,_a partir do começo do sétimo cilindro, tirando três cópias.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

30 de setembro — O Sr. Harker chegou às nove horas. É muito inteligente e, a julgar por seu diário, muito enérgico, também. Ele conseguiu as cartas entre o consignatário dos caixotes em Whitby e o transportador de Londres que se encarregou de sua remessa.

É estranho eu nunca ter imaginado que a casa vizinha pudesse ser o esconderijo do Conde! Havia muitos indícios, pela conduta do internado Renfield. Se tivéssemos sabido mais cedo, poderíamos ter salvo a pobre Lucy.

Encontrei hoje Renfield sentado em seu quarto, com os braços cruzados, sorrindo. Naquele momento, parecia tão sadio como qualquer um de nós. Sentei-me ao seu lado e conversei com ele sobre vários assuntos que abordou com muita facilidade. Depois, por sua própria iniciativa, falou em voltar para casa, assunto que, ao que eu saiba, jamais mencionou, desde que aqui se encontra. É estranho. Sei que as suas crises correspondiam à presença do Conde na propriedade vizinha. Que significará, agora, essa sua estranha calma? Desconfio dela. E, por precaução, determinei ao guarda vigiá-lo atentamente e ter uma camisa-de-força à mão.

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

9 de setembro, no trem, em viagem para Londres — Quando recebi a atenciosa carta do Sr. Billington, prontificando-se a me dar qualquer informação, pensei que o melhor era ir a Whitby. Meu primeiro objetivo é descobrir para onde foi a horrível carga do Conde. O Sr. Billington pôs à minha disposição todas as cartas relativas à consignação de caixotes. Tudo fora preparado com precisão. Vi a fatura: “Cinquenta caixotes de terra comum destinadas a experiências.” Vi e copiei a cópia da carta li Carter Paterson e a resposta. Depois, conversei com os funcionários da Alfândega e da Guarda Costeira, que me falaram sobre a estranha chegada do navio, e me puseram em contato com os homens que tinham recebido as caixas, mas nada mais sabiam, exceto que as caixas eram pesadíssimas.

30 de setembro — Depois de várias indagações, cheguei, pelo menos a uma conclusão: todas as caixas vindas pelo “Demeter” foram colocadas na velha capela de Carfax. Ali deve haver cinqüenta caixas, a não ser que alguma tenha sido removida, como receio, pelo que diz o diário do Dr. Seward.

Preciso procurar o transportador que levou as caixas de Carfax, quando Renfield atacou os homens.

DIÁRIO DE MINA HARKER

30 de setembro — Lord Godalming e o Sr. Morris chegaram mais cedo do que esperávamos. O Dr. Seward tinha saído, com Jonathan, de maneira que tive de recebê-los. Foi um encontro penoso, pela lembrança de Lucy. Dei a cada um deles uma cópia dos diários para lerem na biblioteca.


CAPÍTULO XVIII

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD

30 de setembro — Cheguei em casa às cinco horas e vi que Godalming e Morris não só já haviam chegado como já tinham estado todos os papéis que Harker e sua encantadora mulher arranjaram.

— Posso lhe pedir um favor? — perguntou a Sra. Harker. — Queria ver seu doente. O que o senhor disse a respeito, dele no diário me interessa muito.

Pediu com tanto empenho que não pude recusar-lhe. Fui ao quarto de Renfield e lhe disse que uma senhora estava querendo vê-lo.

— Por quê — retrucou ele, simplesmente.

— Está visitando a casa e quer ver todo o mundo aqui — respondi.

— Está bem — disse ele. — Pode trazé-1a. Mas espere um minutinho, para eu fazer uma limpeza aqui no quarto.

Seu método de fazer limpeza era bem original: engoliu todas as moscas e aranhas das caixinhas, antes que eu pudesse impedir.

Quando terminou sua repelente tarefa, anunciou, jovialmente:

— Pode mandar a dama entrar.

Sentou-se na cama, de cabeça baixa, mas com os olhos levantados. Por um momento, tive medo que estivesse com intenções homicidas, e fiquei ao lado dele, pronto para agir, se fosse preciso.

A Sra. Harker entrou sorridente e estendeu a mão, cumprimentando amavelmente o louco. Ele a olhou durante algum tempo, depois exclamou, causando-me grande espanto:

— A senhora não é a moça com quem o doutor queria casar, não é? Não pode ser, pois sei que ela está morta.

— Não — respondeu ela. — Já era casada antes de conhecer o Dr. Seward. Sou a Sra. Harker.

— Que está fazendo aqui?

— Eu e meu marido viemos fazer uma visita ao Dr. Seward.

— Então, não demore.

— Por quê?

Achei que a conversa não devia estar agradando a Sra. Harker e intervi, perguntando:

— Como soube que eu queria me casar com alguém?

— Que pergunta idiota! — disse Renfield.

— Não vejo porque, Sr. Renfield.

— A senhora deve compreender — disse o doido voltando-se para ela — que, quando um diretor de estabelecimento é estimado como é o Dr. Seward, tudo quanto lhe diz respeito é de interesse de nossa pequena comunidade. O Dr. Seward é estimado não apenas pelos seus parentes e amigos, mas também pelos seus pacientes, alguns dos quais, devido ao desequilíbrio mental, costumam confundir a causa com o efeito. Como eu mesmo tenho estado internado num hospício, não posso deixar de observar que as tendências sofisticadas de alguns dos doentes conduzem a erros.

Fiquei espantado. Como seria possível aquele louco estar falando sobre filosofia e se portando como um cavalheiro? Fosse espontâneo ou devido a influência inconsciente da Sra. Harker, o fato é que ela devia ter alguma qualidade ou poder raro.

Continuamos a conversar e, vendo que ele parecia inteiramente razoável, a Sra. Harker se aventurou a falar sobre o assunto favorito dele, depois de me ter consultado com um olhar. De novo fiquei assombrado, pois ele respondeu com a imparcialidade de uma pessoa mentalmente sã.

— Eu mesmo sou o exemplo de um homem que tive uma estranha crença. Não é de admirar que meus amigos tenham se alarmado e tratado de me colocar sob vigilância. Convenci-me de que era possível prolongar indefinidamente a vida consumindo uma multidão de seres vivos, por mais baixos que fossem na escala da criação. Algumas vezes, acreditei com tal convicção que tentei matar. O doutor pode confirmar que, certa vez, tentei matá-lo, a fim de aumentar minhas forças vitais pela assimilação em meu corpo da sua vida, através do sangue, baseando-me, naturalmente, na frase das Escrituras “Pois o sangue é a vida”. Na verdade, o vendedor de certas panacéias vulgarizou o tratamento até o ponto de se tornar desprezível, não é mesmo, doutor?

Fiz que sim com a cabeça, pois estava espantado demais para saber o que dizer ou pensar. Não podia acreditar que, ainda cinco minutos antes, aquele homem estava comendo moscas e aranhas.

Consultei o relógio e vi que estava na hora de ir esperar o Dr. Van Helsing na estação. Avisei a Sra. Harker, que me acompanhou até fora do quarto, depois de ter se despedido amavelmente de Renfield, que disse:

— Adeus. Espero nunca mais ver seu rosto bondoso. Que Deus a abençoe e a proteja!

Van Helsing estava animado ao desembarcar.

— Tudo vai bem? — perguntou-me. — Deixei todos os meus negócios em ordem e poderei demorar-me, se houver necessidade. Todos estão com você .

Informei-o das novidades de que dispúnhamos e, terminado o jantar, levou uma cópia dos papéis, a fim de estudá-los, antes da nossa reunião, que está marcada para as nove horas.

DIÁRIO DE MINA HARKER

30 de setembro — Duas horas depois do jantar, estávamos reunidos no gabinete do Dr. Seward. O professor Van Helsing ficou na cabeceira e eu à sua direita, fazendo as funções de secretária; Jonathan sentou-se perto de mim. Em frente estavam Lord Godalming, o Dr. Seward e o Sr. Morris.

— Creio — começou o professor — que devo dizer algumas palavras sobre o inimigo que temos de enfrentar. Os vampiros existem. Não podemos duvidar disso. Mas, se fomos incapazes de salvar a desventurada Miss Lucy, temos o dever de trabalhar para que outras almas não pereçam, quando as podemos salvar. O nosferatu não morre como a abelha quando se pica. Fica mais forte e mais capaz de praticar o mal. Esse vampiro que está entre nós é mais forte que vinte homens; é mais astucioso que qualquer mortal e se vale, ainda, da necromancia; pode, dentro de certas limitações, aparecer à vontade, sob qualquer das formas de que dispõe; pode, dentro de sua categoria, dirigir os elementos: a tempestade, o nevoeiro, o raio; pode dar ordem a seres inferiores: o rato, o morcego, a coruja, a raposa e o lobo; pode crescer e tornar-se pequeno; e pode, às vezes, desaparecer e tornar-se desconhecido. Não será fácil destruí-lo. Mas temos um dever diante de nós e não podemos recuar. Quanto a mim, estou velho, e pouco tenho a perder. Mas vocês são moços. Que me dizem?

Quando o professor terminou eu e meu marido encaramo-nos bem nos olhos, e ele exclamou:

— Respondo por mim e por Mina.

— Conte comigo, professor — disse Quincey Morris, laconicamente.

— Estou com o senhor — disse Lord Godalming. — Por causa de Lucy, se não houvesse outro motivo.

O Dr. Seward limitou-se a um aceno de cabeça.

— Muito bem — prosseguiu o Dr. Van Helsing. — Já sabem contra o que temos de lutar; mas não carecemos, também, de poderio. Temos a ciência, temos liberdade de agir e raciocinar e podemos dispor tanto das horas do dia quanto da noite. Lutamos por uma causa, anos pela abnegação e não pelo egoísmo. Tudo isso tem grande importância. Vejamos as limitações dos vampiros em geral e, em particular, daquele contra o qual temos que lutar. O.vampiro não morre com a passagem do tempo simplesmente; fortalece-se, quando pode dispor do sangue dos vivos. E mais do que isso, vemos que pode mesmo rejuvenescer. Mas não pode se fortalecer sem a dieta de sangue; não come outra coisa. O amigo Jonathan que morou com ele durante semanas, jamais o viu comer. Não produz sombra, nem se reflete no espelho, como Jonathan também teve ocasião de constatar. Tem uma força prodigiosa, outra constatação de Jonathan. Pode se transformar em lobo, como deduzimos pela chegada do navio a Whitby, onde ele despedaçou um cão; pode se transformar em morcego, como Madame Mina viu na janela em Whitby e como foi visto na janela do quarto de Lucy. Pode surgir no meio do nevoeiro, como mostrou o capitão do navio, as parece que esse nevoeiro é limitado e só fica em torno dele próprio. Pode vir sob a forma de poeira, como Jonathan viu se dar com as irmãs no castelo de Drácula. Pode se tornar pequeníssimo, como nós próprios vimos, quando Miss Lucy entrou numa fenda diminuta para o túmulo. Pode ver no escuro, o que é uma grande coisa. Pode fazer tudo isso, mas não é livre. Está mais preso que o escravo na galé ou o louco na cela. Não pode ir aonde quer. Não pode entrar em lugar algum pela primeira vez, a não ser que alguém da casa o convide, embora, depois, possa entrar à vontade. Seu poder, como o de todas as coisas malignas, cessa com o nascer do dia. Apenas em certas ocasiões tem uma liberdade ilimitada. Se não está no lugar ao qual pertence, só pode se mudar ao meio-dia ou no momento exato do nascer e do pôr do sol. Assim, ao passo que pode fazer o que quer dentro de seus limites, quando mora em seu túmulo, sua casa infernal, seu lugar sacrílego, como vimos na cova do suicida em Whitby; em outras ocasiões, só pode se mudar na oportunidade propícia. Existem coisas que o afligem tanto que não tem poder contra elas, como o alho, que nós conhecemos, e entre as coisas sagradas, como símbolo, meu crucifixo. Há ainda outras coisas: um ramo de rosa-silvestre colocado no seu caixão o impede de sair de lá; uma bala abençoada disparada contra seu caixão mata-o de verdade, e, quanto à estaca, vocês já conhecem seu poder, assim como a cabeça cortada. Vimos isto com nossos próprios olhos. Assim, precisamos descobrir a habitação desse ex-homem, prendê-lo em seu caixão e destruí-lo.

O Sr. Morris, que estava olhando atentamente para a janela, saiu nesse momento do aposento. Houve uma pequena pausa, e o professor prosseguiu:

— E, agora, vamos traçar os planos de nossa campanha. Sabemos que do castelo vieram para Whitby cinqüenta caixas de terra, todas as quais foram entregues em Carfax; também sabemos que pelo menos algumas dessas caixas foram removidas. Parece-me, que a primeira coisa que devemos fazer e verificar se o resto das caixas está na casa vizinha deste hospício.

Um tiro de pistola, disparado do lado de fora, o interrompeu; a vidraça da janela foi quebrada por uma bala, que, ricocheteando, foi se cravar no alto da parede do gabinete. Todos os homens se puseram de pé. Lord Godalming correu até a janela e abriu-a. Ouvimos, então, a voz do Sr. Morris, vinda do lado de fora:

— Desculpem-me por té-los assustado.

Um minuto mais tarde, tendo voltado, ele nos explicava:

— Foi uma tolice minha, e peço-lhe mil desculpas, Sra. Harker. Receio tê-la assustado muito. Mas é que, enquanto o professor estava falando, apareceu um grande morcego... que pousou no peitoril da janela. Por causal destas coisas que têm acontecido, tomei tanto horror desses bichos, que não pude me conter e sàí, pga atirar nele, como faço, agora, sempre que vejo um morcego.

— Acertou? — perguntou o Dr. Van Helsing.

— Não sei; acho que não, pois ele fugiu para o bosque. — Tornamos a nos sentar e o professor prosseguiu:

— Precisamos descobrir aquelas caixas ou capturar ou matar aquele monstro em seu esconderijo; ou, então, por assim dizer, esterilizar a terra, de maneira que ele não possa mais procurar proteção nela. Assim, poderíamos encontrá-lo em sua forma de homem, entre o meio-dia e o pôr do sol, quando ele é mais fraco. Quanto à senhora, Madame Mina, de agora em diante deve se poupar. Quando nos separarmos hoje, a senhora não deve mais fazer perguntas. Oportunamente, nós lhe diremos tudo. A senhora é nossa estrela e nossa esperança e queremos agir sabendo que não corre os mesmos perigos que nós.

Nada pude fazer, a não ser concordar.

— Como não há tempo a perder, proponho irmos imediatamente ver a casa dele — exclamou Morrís. — Para combate-lo, o fator tempo é da máxima importância.

A proposta foi aceita e todos saíram. Vou deitar-me e fingir que estou dormindo, para que Jonathan não fique ainda mais aflito quando voltar.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

11 de outubro, 4 da manhã — Justamente quando íamos sair, chegou-me um recado urgente de Renfield, dizendo que queria me ver imediatamente, pois tinha uma comunicação importantíssima para fazer. Disse ao mensageiro para responder que iria vê-lo na manhã seguinte, mas o guarda observou:

— Ele parece estar muito aflito e receio que tenha um acesso de fúria se o senhor não for.

Achei mais prudente vé-lo e segui acompanhado de todos os outros, que estavam com curiosidade de ver o louco. Encontramo-lo muito agitado, mas muito mais racional em suas palavras e nos seus modos do que sempre. Queria que eu lhe desse liberdade imediatamente, a fim de voltar para casa. Justificava sua pretensão com argumentos sobre seu restabelecimento.

— Apelo para os seus amigos — acrescentou. — A propósito: o senhor não nos apresentou.

Fiz as apresentações. Renfield apertou a mão de cada um.

— Lord Godalming — disse — tive a honra de conhecer seu pai em Windham; lamento saber, pelo fato do senhor estar usando o título, que ele já não vive; sei, que, em sua mocidade, inventou um famoso ponche de rum. Sr. Morris, o senhor deve se sentir orgulhoso de seu grande Estado. Sua recepção na União foi um precedente que pode ter conseqüências de longo alcance. E que direi do prazer de conhecer Van Helsing? Não me desculpo por ter dispensado os prefixos cerimoniosos. Quando um indivíduo revoluciona a medicina com sua descoberta sobre a evolução contínua do cérebro, as formas convencionais tornam-se supérfluas. Os senhores, que, pela nacionalidade, hereditariedade ou pela posse de dons naturais, estão em condições de ocupar lugares destacados no mundo, podem ser testemunhas de que tenho o espírito tão lúcido como pelo menos a maioria dos homens que gozam de sua liberdade. E estou certo de que o senhor, Dr. Seward, que não é somente um cientista, mas um médico humanitário, sentir-se-á no dever moral de tratar-me como alguém que merece ser considerado dentro de circunstâncias especiais.

Creio que todos ficaram estupefatos. Quanto a mim, fiquei convencido de que, a dos antecedentes, o homem tinha recuperado a razão; e tive vontade de dizer-lhe isto e anui3ciar-lhe que, no dia seguinte cedo, tomaria as devidas providências para que ele fosse posto em liberdade. Mas, refletindo melhor, contive-me e disse-lhe apenas que, de fato, parecia estar melhorando muito e que, no dia seguinte, teria uma conversa prolongada com ele, para estudar a possibilidade de satisfazer seus desejos.

— Creio — retrucou ele, vivamente.

Como eu não respondesse, ele me olhou, depois olhou para os outros.

— Será possível que errei em minha suposição? — perguntou.

— Errou — respondi, com uma franqueza que eu mesmo achei brutal.

— Então, acho que devo modificar a natureza do pedido. Permita-me que peça essa concessão, esse privilégio. Sou levado a implorar em tal caso, não por motivos pessoais, mas para bem de outros. Não posso lhe explicar todos os motivos, mas pode acreditar que me são ditados pelo dever. Se pudesse ler o meu coração, aprovaria inteiramente os sentimentos que me animam. E, mais do que isso, poderia me considerar um de seus melhores e mais leais amigos.

Van Helsing, que o encarava fixamente, perguntou-lhe, então:

— Pode me dizer, com toda a franqueza, o verdadeiro motivo que o leva a desejar ser posto em liberdade esta noite? Se me disser, comprometo-me a conseguir que o Dr. Seward lhe conceda o que pede.

— Nada posso dizer — retrucou Renfield. — Se eu pudesse, não hesitaria um momento; mas não sou senhor de mim mesmo nessa questão. Só lhe posso pedir que confie em mim. Se me recusarem, a responsabilidade não recairá sobre mim.

Achei que era tempo de acabar com aquilo e convidei os outros a se retirarem.

— Vamos, meus amigos. Temos um trabalho a fazer. Boa noite.

Ao nos aproximarmos da porta, porém, nova mudança ocorreu com o enfermo, que caiu de joelhos, implorando-me, de mãos postas que o deixasse sair.

— Deixe-me sair desta casa imediatamente, Dr. Seward! Mande-me para onde quiser; mande-me acompanhado de guardas, com correntes e chicotes; mande-me numa camisa-de-força, dentro de uma jaula, mas deixe-me sair daqui. Não sabe o que está fazendo ao manter-me aqui, e eu não posso dizer. Estou lhe implorando do fundo do coração, do fundo da alma. Pelo amor do Onipotente tire-me daqui e salve minha alma! Deixe-me sair! Deixe-me sair!

Achando que quanto mais aquilo se prolongasse mais furioso ficaria ele, segurei-o por um braço e levantei-o.

— Acabe com isto — exclamei, com energia. — Vá para sua cama e fique quieto.

Ele parou e me encarou, fixamente, durante algum tempo. Depois, sem dizer uma palavra levantou-se e sentou-se na cama.

Quando eu estava saindo do quarto, disse-me, com muita calma:

— Estou certo, Dr. Seward, que, mais tarde, o senhor me fará justiça, reconhecendo que fiz o que pude para convencê-lo esta noite.


CAPÍTULO XIX

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

10 de outubro, 5 horas da manhã — Saí com os outros despreocupado, pois tinha a impressão de nunca ter visto Mina tão forte e bem disposta.

A caminho da casa vizinha, fomos conversando sobre a estranha atitude do Sr. Renfield e o Dr. Seward explicou:

— Se ele fosse um doido comum, eu poderia ter corrido o risco de confiar nele. Mas tem alguma estranha ligação com o Conde e o caso se complica por isso. Não posso me esquecer que, certa vez ele me implorou que lhe arranjasse um gato, quase da mesma maneira. Além disso, chamou o Conde de “meu senhor” e pode estar querendo sair para ajudá-lo.

Nesse ponto, Lord Godalming, que se afastara de nós, alguns minutos antes, voltou, anunciando, depois de ter mostrado um pequeno apito de prata:

— É possível que a casa abandonada esteja cheia de ratos, mas, para tal caso, arranjei um antídoto

Depois de pularmos o muro, dirigimo-nos para a casa, tendo o cuidado de nos escondermos nas sombras das árvores, quando o luar aparecia. Quando chegamos à varanda, o professor abriu a valise e dela retirou vários objetos, que separou em quatro grupos, evidentemente um para cada um de nós, depois disse:

— Meus amigos, vamos correr um grande perigo e precisamos de vários tipos de armas. Lembrem-se que nosso inimigo tem uma força prodigiosa. Precisamos evitar seu contato. Ponham isto perto do coração — e entregou-me, então, um pequeno crucifixo de prata — estas flores em torno do pescoço e, para outros inimigos mais terrenos, usem este revólver e esta faca; para completar, esta pequena lanterna elétrica e, acima de tudo, isto, que não devem usar sem necessidade.

Era uma parte da Hóstia Sagrada, que ele pôs num envelope e me entregou. Todos os outros receberam os mesmos objetos.

O Dr. Seward tirou do bolso duas chaves dessas que abrem qualquer porta, com sua habilidade de cirurgião, não tardou a abrir a porta da casa, que gemeu em seus gárizos enferrujados.

— In manus tuas, Domine! — exclamou, persignando-se ao passar pelo umbral.

Avançamos cautelosamente, iluminados pela luz das lanternas elétricas. Tudo estava coberto de poeira, a não ser onde havia marcas de pisadas recentes. As paredes e os tetos estavam cobertos de teias de aranha. Numa mesa do vestíbulo, havia um grande molho de chaves, cada uma com uma etiqueta amarelada pelo tempo.

O professor dirigiu-se a mim:

— Você conhece a casa, Jonathan, pois copiou muitas plantas dela. Qual é o caminho para a capela?

Indiquei o caminho e, com um pouco de dificuldade, encontramos a chave e abrimos a porta. Um cheiro intenso de terra, de umidade e podridão enchia aquele desagradável ambiente. Mas, depois de um estremecimento involuntário de náusea, todos nos pusemos a trabalhar, como se estivéssemos num jardim.

Examinamos cuidadosamente o local, tendo o professor explicado, quando começamos:

— A primeira coisa que temos que ver é quantas caixas restam. Temos de olhar por toda a parte.

Das cinqüenta caixas, restavam apenas vinte e nove!

Enquanto estávamos entregues à nossa tarefa, senti, certa vez, um arrepio de horror: Lord Godalming virou-se de súbito e começou a olhar para a porta abobadada que dava para o escuro corredor. Olhei, também, e tive a impressão de ver o rosto maligno do Conde, com seus olhos vermelhos e sua palidez cadavérica. Mas apenas por um momento. Corri ao corredor; não vi sinal de ninguém, e não havia nenhuma abertura por onde alguém, mesmo ele, pudesse ter passado.

Alguns minutos depois, vi Morris recuar, vivamente, de um canto que estava examinando. Olhamos para lá e, instintivamente, todos recuamos. A capela estava se enchendo, inteiramente, de ratos.

Durante alguns momentos, ficamos atordoados, todos, menos Lord Godalming, que estava preparado para tal emergência. Correu para a pesada porta de carvalho que dava para fora, meteu a chave na fechadura e abriu-a. Depois, tirando o assovio de prata do bolso, levou-o à boca e soprou-o. De além da casa do Dr. Seward veio uns latidos de cães e, pouco depois, três cães rateiros apareceram. Instintivamente, nós todos tínhamos nos dirigido para a porta. O número de ratos tinha aumentado de tal maneira, que os animaizinhos cobriam inteiramente o chão. Os cães avançaram, mas, no limiar da porta, pararam e começaram a uivar lamentosamente. Os ratos estavam se multiplicando aos milhares, e nós nos retiramos.

Lord Godalming carregou um dos cães e colocou-o no chão da capela. No momento em que seus pés tocaram o chão, o animal pareceu recuperar a coragem e investiu contra os seus inimigos naturais. Os ratos fugiram apressadamente, a tal ponto que o cão não pôde matar mais de uns vinte e os dois cães, que tinham sido colocados da mesma maneira, apenas conseguiram poucas presas, antes de toda a massa ter desaparecido.

Fechamos, então, a porta de fora e demos uma busca rigorosa na casa, mas não encontramos nada além de muita poeira. Os cães não demonstraram, também, qualquer sinal de inquietação.

Já estava amanhecendo quando saímos. O Dr. Van Helsing tinha tirado do molho a chave da porta da frente, que fechou, metendo a chave no bolso depois.

— Até agora — disse ele — tudo transcorrido muito bem. Nada sofremos ainda, como eu receava, e já sabemos quantas caixas. E um fato alvissareiro foi o de não ter sido preciso trazer Madame Mina conosco nessa perigosa missão. Ficamos sabendo, ainda, que os seres brutos que servem sob as ordens do Conde não são sensíveis ao seu poder espiritual: os ratos que invadiram a capela fugiram dos cães de nosso amigo Arthur. E, agora, vamos tratar de descansar, pois o dia já se aproxima.

O hospício estava em silêncio, a não ser gritos que vinham de uma enfermaria afastada e gemidos que partiam da cela de Renfield. Caminhei pé ante pé ao entrar no nosso quarto e encontrei Mina dormindo, respirando tão de leve que tive de pôr o ouvido junto dela para ouvi-la. Estava mais pálida que de costume. Permita Deus que estas emoções por que temos passado não prejudiquem sua saúde. Vou dormir num sofá, para não acordá-la.

10 de outubro, mais tarde — Era natural que estivéssemos com tanta necessidade de dormir, depois de um dia e uma noite tão agitados. Mesmo Mina devia estar exausta, pois, embora eu tivesse me levantado quando o sol já estava alto, fui encontrá-la dormindo tão profundamente que tive de chamá-la três vezes antes que acordasse. Por alguns instantes, pareceu não me reconhecer e encarou-me com uma cara assustada, como alguém que acaba de sair de um pesadelo. Queixou-se de cansaço e deixei-a repousar até mais tarde.

Sabemos, agora, que vinte e uma caixas foram removidas e, se várias foram removidas ao mesmo tempo, poderemos descobrir para onde foram todas. Vou procurar Thomas Snelling, hoje mesmo.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

1 de outubro — Era mais ou menos meio-dia quando fui acordado pelo professor, que entrava no meu quarto.

— Seu paciente me interessa muito — disse ele. — Queria vê-lo.

Como tinha um trabalho urgente para fazer, pedi-lhe para ir sozinho, mas adverti-o para tomar cuidado, a fim de não ter uma falsa impressão. Mais tarde, quando terminei o trabalho, Van Helsing veio me procurar de novo.

— Nossa entrevista foi curta — disse-me ele. — Quando entrei na cela, Renfield estava sentado, muito quieto. Perguntei-lhe se não estava me conhecendo e sua resposta não foi tranqüilizadora: “Conheço-o até demais. É o velho idiota Van Helsing. Vá para mais adiante com suas teorias cretinas sobre o cérebro!” Não disse mais uma palavra e nem olhou para o meu lado. Deixei-o, portanto, e agora, se puder, vou conversar um pouco com aquela encantadora Madame Mina.

E, assim, Van Helsing foi conversar com Harker e sua senhora; Quincey e Art estão fora, procurando descobrir a pista das caixas de terra. Vou acabar meu trabalho para nos encontrarmos à noite.

DIÁRIO DE MINA HARKER

10 de outubro — É estranho, para mim, ficar tão às escuras como estou hoje; depois das confidências de Jonathan, durante tantos anos, é esquisito vê-lo evitar, deliberadamente, a conversa sobre certos assuntos comigo. Ele não me disse uma palavra sobre o que aconteceu na casa do Conde e, no entanto, devia saber como eu estava aflita. E, agora, eis-me chorando como uma criança. Na verdade, sinto-me estranhamente triste e abatida hoje. Acho que é reação à terrível excitação.

Ontem à noite, fui me deitar quando os outros saíram, apenas porque me tinham dito, para deitar-me. Estava sem sono e com terrível ansiedade. Não me lembro bem como adormeci. Lembro-me de ter ouvido latidos de cães e ruídos estranhos, como se houvesse alguém rezando, ruidosamente no quarto do Sr. Renfield, que fica por baixo deste. Depois veio — o silêncio tão profundo que me espantou e eu me levantei e olhei pela janela. Tudo estava tranqüilo e escuro, pois nuvens espessas encobriam a lua. Tudo estava tão parado na natureza que um pouco de névoa esbranquiçada que avançava, devagar, quase imperceptivelmente, sobre o gramado, em direção à casa, parecia dotada de vida. Voltei para a cama, mas não consegui dormir e, depois de algum tempo, tornei a olhar pela janela. A névoa estava se espalhando, já perto da casa, espessando-se de encontro à parede, como se estivesse subindo para as janelas. O pobre homem estava falando mais alto que antes e, embora eu não distinguisse uma palavra do que ele dizia, percebi, pela tonalidade, que estava muito emocionado. Depois, ouvi o barulho de uma luta e percebi que alguém enfrentava o louco. Fiquei com tanto medo que me meti na cama, escondi a cabeça embaixo das cobertas e tapei o ouvido com a mão. Acho que não estava com sono, mas devo ter dormido, pois, a não ser sonhos, não me lembro de coisa alguma até de manhã, quando Jonathan me acordou. Meu sonho foi esquisito, confundindo-se com meus pensamentos na vigília.

Pensei que estava dormindo e esperando o regresso de Jonathan com ansiedade e sem poder me mover, pois sentia os pés, as mãos e o cérebro muito pesados. Depois comecei a ter a impressão de que o ar em torno de mim estava pesado, úmido e frio. Tirei a cabeça de baixo das cobertas e, com surpresa, vi que tudo estava escuro. O bico de gás que eu deixara aceso, mas muito baixo, era, agora, um simples clarão vermelho no nevoeiro, que, evidentemente, se tornara mais espesso e invadira o quarto. Imaginei se teria fechado a janela antes de deitar-me, mas não consegui ir verificar, pois uma pesada letargia tolhia-me os nervos. E o nevoeiro foi se tornando cada vez mais espesso e pareceu formar uma espécie de coluna, tendo no alto a chama do bico de gás. Tudo começou a girar, a coluna pareceu aproximar-se e pareceu-me ver, em lugar de um único, dois olhos vermelhos, como Lucy disse ter visto ao crepúsculo, certo dia. De repente, fui tomada de horror, lembrando-me que Jonathan vira aquelas horríveis mulheres se corporificarem saindo da névoa, ao luar, e, no sonho, devo ter desmaiado, pois tudo escureceu em torno de mim. O último esforço consciente de minha imaginação foi mostrar-me um rosto lívido debruçado sobre mim. Preciso não ter mais esses pesadelos. Se não fosse o receio de assustá-los pediria ao Dr. Van Helsing ou ao Dr. Seward para me receitarem algum soporífero.

2 de outubro, 10 horas da noite — Não sonhei à noite passada. Devo ter dormido profundamente, pois não acordei quando Jonathan se deitou. No entanto, sinto-me muito abatida hoje. ontem à tarde, Renfield mandou me pedir para vê-lo. Coitado! Mostrou-se muito amável e beijou minha mão, pedindo que Deus me abençoasse. Fiquei muito emocionada com isso; choro quando me lembro dele. Aliás, preciso ter cuidado com essa história de chorar à toa. Jonathan iria sofrer muito, se soubesse. Hoje, à noite, como estava sem sono, pedi ao Dr. Seward para me dar algum soporífero. Ele me deu um, dizendo que não me faria mal. Tomei-o e estou esperando o efeito.


CAPÍTULO XX

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

19 de outubro, à noite — Encontrei Thomas Snelling em sua casa, mas tão bêbado que nada me pôde adiantar. Sua mulher, porém, disse-me que ele é apenas ajudante de Smollet. Assim, parti para Walworth e encontrei o Sr. Joseph Smollet em casa e em manga de camisa tomando chá em um pires. É trabalhador sério, inteligente e consciencioso. Lembrava-se bem do caso das caixas e tirando do bolso um caderno de notas, repleto de anotações que me pareceram hieroglifos, deu-me o destino dos caixotes.

Havia, disse ele, seis na partida que levou de Carfax para o número 197 da Chicksand Street, Mile End New Town, e outras seis para Jamaica Lane, Bermondsey.

Se o Conde quer espalhar suas sinistras caixas por toda a extensão de Londres, esses lugares devem ter sido escolhidos para que de lá as caixas sejam distribuídas mais amplamente.

Perguntei a Smollet se não poderia nos dizer se outras caixas tinham sido retiradas de Carfax.

— Há uns quatro dias, numa taberna, ouvi um homem chamado Bloxam contar que ele e seu companheiro tinham feito um carreto muito poeirento de uma velha casa em Purfleet. Esses trabalhos não são comuns e, portanto, é capaz de se tratar dessas caixas pelas quais o senhor se interessa. Talvez Sam Bloxam possa lhe dar a informação.

Prometi-lhe outra meia libra se me arranjasse o endereço de Sam Bloxam, ou mais.

— Não adianta o senhor ficar esperando hoje — disse ele. — Talvez eu me encontre com Sam ainda hoje, mas não é certo; mas, mesmo que encontre não é provável que ele esteja em condições de conversar esta noite. Quando começa a beber, vai longe... Se o senhor deixar um envelope selado e com seu endereço, vou saber onde Sam pode ser encontrado e mando para o senhor esta noite. Mas é bom procurá-lo de manhã, pois ele sai sempre cedo, mesmo que tenha bebido muito na véspera.

2 de outubro, à noite — Hoje foi movimentado. Recebi, pelo primeiro correio, O envelope que eu subscritara para mim mesmo e que trazia dentro um pedaço de papel muito sujo com o endereço de Sam Bloxam. Levantei-me sem acordar Mina, que tem andado pálida e indisposta. Só estive com o Dr. Seward por um momento, e disse-lhe aonde ia, prometendo voltar logo que pudesse.

Não foi fácil encontrar o bairro em questão e quando encontrei o endereço, fui informado que Bloxam. saíra às cinco da manhã para trabalhar em Poplar. O informante não sabia onde era o seu local de trabalho, mas tinha uma vaga idéia de que se tratava de “um armazém novo”. Dispondo apenas dessa precária informação segui para Poplar e só ao meio-dia tive uma informação satisfatória a respeito do tal armazém, num botequim onde alguns operários estavam almoçando. Finalmente, consegui descobrir o tal armazém e um capataz me disse que, de fato, havia um sujeito chamado Bloxam que trabalhava ali. Mandou-o chamar, pois prometi-lhe uma recompensa. Era um sujeito bem esperto embora sem educação. Quando prometi pagar-lhe generosamente a informação, ele me contou que fizera duas viagens entre Carfax e uma casa em Piccadilly e havia levado nove caixas “muito pesadas”. Perguntei-lhe se podia dizer o número da casa de Piccadilly e ele respondeu:

— Esqueci-me do número, mas sei que fica bem perto de uma grande igreja branca, ou coisa parecida. É também, uma casa muito cheia de poeira, embora não tanto quanto a casa de onde tiramos as caixas.

— Como foi que entrou nas casas, se ambas estavam vazias?

— O velho que tinha me contratado estava esperando na casa de Purffeet. Ajudou a carregar as caixas. Nunca vi sujeito tão forte, apesar de já ter o bigode branco!

— Como foi que você entrou na casa de Piecadilly?

— Ele estava lá, também. Chegou na minha frente, pois, quando toquei a campainha, ele mesmo abriu a porta e ajudou-me a colocar as caixas no vestíbulo.

— Todas as nove caixas?

— Sim. Cinco na primeira viagem e quatro na segunda.

— Não ficou com alguma chave?

— Não. O velho abriu a porta e fechou-a quando eu saí.

— E não pode se lembrar do número da casa?

— Não, senhor, mas não será difícil encontrá-la. Tem uma fachada de pedra e uma escada na porta.

Certo de que conseguiria encontrar a casa, graças a essa descrição, e tendo pago o informante, segui para Piccadilly.

Não tive dificuldade em encontrar a casa. Evidentemente estava desocupada há muito tempo. As janelas estavam cobertas de poeira e as cortinas descidas. Indaguei de alguns homens que vi pelas proximidades se sabiam alguma coisa a respeito da casa desocupada e um deles me informou que, ultimamente, havia um letreiro anunciando que a mesma estava à venda e que se lembrava de ter visto no anúncio o nome da firma Mítchell, Filhos & Candy.

Tratei de procurar o endereço dessa firma e, pouco depois, estava lá. Fui recebido por um cavalheiro bem-educado, mas muito reticente. Negou-se a me dar qualquer informação, a não ser que a casa estava vendida. Resolvi entrar com meu jogo.

— Eu também sou de sua profissão — disse-lhe. — Sou procurador de Lord Godalming que está interessado em comprar a casa. A quem é que ele deve se dirigir para isso?

Ao mesmo tempo, entreguei-lhe meu cartão.

— Eu teria muito prazer em ser útil, Sr. Harker, e especialmente em ser útil a Lord Godalming — disse o homem. — Já fuemos alguns serviços para ele. Se quiser deixar o endereço, consultarei os diretores e me comunicarei com Lord Godalming pelo correio da noite.

Como eu queria fazer um amigo e não um inimigo, dei-lhe o endereço do Dr. Seward, agradeci-lhe e saí.

Tomei o primeiro trem para Purfleet. Encontrei todos os outros em casa. Mina estava abatida e pálida, mas fez um grande esforço para parecer animada. É desagradável ter de esconder as coisas dela.

Não podia contar aos outros minha descoberta senão quando ficássemos a sós; assim, depois do jantar — seguido por um pouco de música, para salvar as aparências, mesmo entre nós — levei Mina para o quarto e deixei-a na cama.

Ela se mostrou mais afetuosa que sempre. Graças a Deus tudo continuou na mesma entre nós, embora eu tenha deixado de contar-lhe muita coisa que acontece comigo.

Encontrei os outros na sala e contei o resultado de minhas investigações.

— Aproveitou bem o dia, Jonathan — disse Van Helsing. — Não há dúvida de que estamos na pista das caixas que faltam. Se encontrarmos todas na casa, nosso trabalho estará quase terminado. Mas se faltar algumas, temos de procurar até encontrá-las.

— Mas como entraremos naquela casa? — perguntou Morris.

— Já entramos na outra — apressou-se em dizer Lord Godalming.

— Mas o caso é diferente, Art. Entramos na casa de Carfax, mas protegidos pela noite e por um parque murado, Será muito diferente praticarmos um arrombamento em Piccadilly, de noite ou de dia.

— Quincey tem razão — disse Lord Godalming. — A tarefa é difícil, a não ser que encontremos as chaves do Conde.

Como nada se poderia fazer antes da manhã seguinte e convinha esperar a comunicação de Mitchell a Lord Godalming, resolvemos nada fazer antes do amanhecer.

Aproveitei para escrever este diário, embora esteja morrendo de sono. Mina está dormindo profundamente e respirando com regularidade.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

1 de outubro — Estou preocupado com Renfield. Tive uma longa conversa com ele hoje e percebi que está agora preocupado com a “alma” de alguma coisa. Não há perigo de querer a “vida” no futuro. Desprezando as formas inferiores de vida, teme ser perseguido por suas almas. Logicamente, todas essas coisas apontam para um caminho. Ele tem alguma garantia de que irá adquirir uma vida mais elevada e teme as conseqüências: a responsabilidade por uma alma. Portanto, é uma vida humana que está procurando!

E a garantia?

Meu Deus, o Conde o tem influenciado e deve ter tramado algum novo plano de terror!

Mais tarde — Comuniquei minha suspeita a Van Helsing. Ele ficou muito sério e, depois de refletir, pediu-me para levá-lo ao quarto de Renfield. Quando entramos, vimos, com assombro, que o doente tinha espalhado de novo o açúcar para pegar moscas. Tentamos fazê-lo voltar ao assunto de nossa conversa anterior, mas em vão. Começou a cantar, como se estivesse sozinho. Tinha na mão um pedaço de papel, que dobrou e meteu num caderno de notas.

CARTA DE MITCHELL, FILHOS & CANDY A LORD GODALMING

1.° de outubro

Meu Lord:

É com o máximo prazer que nos apressamos a satisfazer seu desejo. Com referência à informação, solicitada por intermédio do Sr. Harker, a respeito da compra e venda do prédio número 347 de Piccadilly, temos a dizer que os vendedores são os testamenteiros de Archibald Winter Suffield e o comprador é um nobre estrangeiro, Conde de Ville, que fez o pagamento à vista. Além disso, nada mais sabemos.

Somos, meu Lorde, Seus humildes servidores,

MITCHELL,FILHOS & CANDY

DIÁRIO DO DR. SEWARD

2 de outubro — Coloquei um homem no corredor, para prestar atenção em qualquer ruído suspeito que saísse do quarto de Renfield e chamar-me imediatamente.

Antes de deitar-me, observei a cela, pela abertura da porta. Renfield estava dormindo.

Esta manhã, o guarda me disse que, um pouco depois de meia-noite, Renfield mostrou-se agitado, rezando em voz alta. Perguntei-lhe se era tudo e ele me respondeu que fora tudo que ouvira. Desconfiei do seu modo e, insistindo, fi-lo confessar que “cochilara” um pouco.

Hoje, Harker saiu, seguindo a pista que descobriu, e Art e Quincey saíram para procurar cavalos. Godalming acha que é bom termos cavalos à mão, pois, quando tivermos a informação de que necessitamos, não podemos perder tempo. Temos que esterilizar toda a terra importada entre o levantar e o pôr do sol; assim, apanharemos o Conde quando está mais fraco e sem refúgio para onde ir. Van Helsing está no Museu Britânico, estudando as velhas autoridades de medicina. Os antigos médicos atentavam para coisas que seus sucessores não aceitam e o professor está procurando tratamentos para bruxas e demônios, que podem nos ser úteis mais tarde.

Às vezes, penso que nós todos estamos doidos e que o aconselhável seria nos metermos em camisas-de-força.

Mais tarde — O guarda entrou correndo em meu gabinete e me disse que ocorreu um acidente com Renfield. Ouviu-o gritar e, quando entrou, encontrou-o caído de bruços, coberto de sangue. Vou para lá imediatamente.


CAPÍTULO XXI

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD

3 de outubro — Quando entrei no quarto de Renfield, encontrei-o estendido no chão, apoiando-se no lado direito, no meio de uma poça de sangue. Devia ter recebida ferimentos graves. Verifiquei que seu rosto em contusões, como se tivesse O batido de encontro ao chão.

— Acho que ele está com a espinha quebrada — disse o guarda, que se ajoelhara junto dele. — Veja: tanto a perna e o braço direito, como todo o lado direito do rosto, estão paralisados. Não posso compreender. Ele poderia machucar o rosto batendo a cabeça de encontro ao chão e acho que quebrou a espinha caindo da cama. Mas não posso conceber como as duas coisas ocorreram ao mesmo tempo.

— Vá chamar o Dr. Helsing e peça-lhe para vir imediatamente — ordenei ao guarda.

Pouco depois, o professor aparecia, ainda de robe de chambre e chinelo.

— Um lamentável acidente — disse ele, depois de um rápido exame. — É necessário vigiar o doente e prestar muita atenção nele. Vou me vestir, mas voltarei dentro em pouco.

O enfermo respirava com dificuldade.

Van Helsing voltou logo depois, com sua valise de instrumentos cirúrgicos.

— Mande o empregado embora — disse ele. — Precisamos estar a sós com o doente, quando ele recuperar a consciência, após a operação.

Fiz o que ele pedia e passamos a fazer um exame cuidadoso do paciente. Os ferimentos do rosto eram superficiais; o verdadeiro ferimento era uma fratura do crânio, estendendo-se à direita pela zona motora. Depois de refletir um pouco, o professor observou:

— Precisamos reduzir a pressão. Toda a zona motora parece afetada. Precisamos fazer a trepanação imediatamente, senão será tarde demais.

Enquanto estava falando, bateram de leve na porta. Fui abrir e vi, no corredor, Arthur e Quincey, de pijama e chinelos.

— Ouvi chamarem o Dr. Van Helsing e resolvi ir acordar Quincey, para vir ver se, por acaso, têm necessidade de nós — disse Arthur.

Fiz-lhe sinal para entrar e fechei a porta depois que me obedeceram, Contamos-lhes, em poucas palavras, o que ocorrera.

— Temos de esperar a fim de verificar qual é o melhor lugar para a trepanação, para podermos retirar rápida e completamente o hematoma — disse Van Helsing.

Passaram-se minutos de grande ansiedade e, afinal, a respiração do paciente se tornou ofegante; podia morrer de um momento para outro.

— Não há tempo a perder — disse Van Helsing. — Suas palavras podem valer muitas vidas. Pode haver uma alma em jogo! Vamos operar acima da orelha.

E, sem dizer mais nada, iniciou a operação. O paciente continuou a respirar ofegante durante algum tempo, mas, depois, respirou fundo, dando um suspiro tão demorado. De súbito, seus olhos se abriram e ficaram fixos, com uma expressão selvagem. Algum tempo, depois, os olhos se abrandaram, numa expressão de surpresa e satisfação, e dos seus lábios saiu um suspiro de alívio. Mexeu-se, convulsivamente e disse:

— Vou ficar quieto, Doutor. Mande tirar a camisa-de-força. Tive um pesadelo horrível, que me deixou tão fraco que não me posso mexer. O que houve no meu rosto? Está inchado e doendo muito.

— Conte-nos seu sonho, Sr. Renfield — disse Van Helsing.

— É o Dr. Van Helsing — disse o doente. — Que bom ter vindo! Dêem-me um pouco de água, pois tenho os lábios secos, e vou procurar contar-lhes. Sonhei...

Parou, parecendo que estava desmaiando.

Voltei-me para Quincey:

— Traga a aguardente.

Quincey saiu correndo e voltou logo com a garrafa, um copo e um frasco de aguardente os lábios do doente, que voltou a si.

— Não devo me iludir — disse ele.. — não é um sonho, mas a triste realidade.

Fechou os olhos, depois os abriu e exclamou:

— Depressa, Doutor! Estou morrendo. Sinto que só tenho poucos minutos: depois tenho de voltar à morte... ou coisa pior! Umedeça meus lábios com aguardente de novo. Preciso dizer uma coisa antes de morrer. Obrigado! Foi naquela noite, depois que o senhor saiu, quando lhe implorei para me deixar ir embora. Não podia falar, então, pois sentia a língua presa, mas, a não ser isto, estava perfeitamente são, como estou agora. Fiquei desesperado, durante muito tempo, depois que o senhor saiu, depois me tranqüilizei. Ouvi os cães latirem por trás da casa, mas não onde ele estava!

— Continue — disse Van Helsing.

Renfield prosseguiu:

— Ele subiu para a janela, na névoa, como eu já o vira fazer muitas vezes antes; mas não era, então, um fantasma e seus olhos chamejavam, como os de um homem quando tem raiva. Ria com sua boca vermelha e seus dentes aguçados e brancos brilhavam ao luar, quando se virou para olhar para as árvores, onde os cães estavam ladrando. A princípio, eu não lhe disse para entrar embora soubesse que ele queria. Então, ele começou a me prometer as coisas, não em palavras, mas fazendo-as surgir, como costumava fazer aparecer as moscas, quando o sol brilhava. Ratos, ratos! Centenas, milhares, milhões, e cães para come-los, e gatos também. Todos vivos, com sangue vermelho, trazendo anos de vida! Depois, uma nuvem vermelha, cor de sangue, pareceu aproximar-se de meus olhos. E, antes que soubesse o que estava fazendo abri a janela e disse-lhe: &lquo;Entre, meu Amo e Senhor” Todos os ratos tinham desaparecido, mas ele entrou no quarto, embora a janela estivesse apenas entreaberta.

A voz do moribundo estava mais fraca e tornei a umedecer-lhe os lábios com aguardente, e ele prosseguiu; mas pareceu que sua memória continuou a trabalhar no intervalo, pois a narrativa já estava adiantada.

— Durante o dia todo esperei notícias dele, mas não me mandou coisa alguma, nem ao menos uma varejeira, e, quando a lua nasceu, eu estava furioso com ele. Quando ele entrou pela janela, que estava fechada, sem nem ao menos bater, recebi-o hostilmente. Encarou-me desdenhosamente como se eu não existisse. Nisso, a Sra. Harker entrou no quarto.

O professor estremeceu.

— Quando a Sra. Harker veio me ver esta tarde, já não era a mesma — continuou Renfield. — Não gosto das pessoas pálidas, e sim com muito sangue, e ela parecia ter perdido o seu. Naquela ocasião, não pensei nisso, mas quando ela saiu, comecei a refletir e fiquei furioso ao saber que ele estava lhe roubando a vida. Assim, quando ele veio esta noite, ataquei-o. Ouvi dizer que os loucos têm uma força prodigiosa e acho que ia vencer, pois não queria que ele continuasse a roubar a vida dela, até que vi seus olhos. Eles penetraram-me, queimando, e perdi a força. Ele me levantou e atirou-me ao chão.

Sua voz estava enfraquecendo e sua respiração transformando-se em estertor.

Van Helsing pôs-se de pé.

— Sabemos o pior — exclamou. — Ele está aqui e sabemos o que quer. Talvez não seja tarde demais. Vamos nos armar, como a noite passada, mas não podemos perder tempo, nem um instante.

Nós todos nos apressamos e fomos buscar, em nossos respectivos quartos, as mesmas coisas que levávamos conosco quando entrámos na casa do Conde.

Encontramo-nos no corredor e paramos diante da porta do quarto de Harker

— Se a porta estiver trancada — disse Van Helsing — temos que arrombá-la. Meus amigos, quando eu virar a maçaneta, se a porta não se abrir, vocês todos metam o ombro, com força!

Girou a maçaneta e a porta não se abriu. Lançamos-nos todos contra ela, que foi arrombada e, com o impulso, quase fomos atirados ao chão. O que vi dentro do quarto fez os meus cabelos se arrepiarem.

O luar estava tão claro que mesmo através da cortina da janela iluminava bastante o interior. No leito, junto da janela, Jonathan Harker dormia profundamente, como que narcotizado. Ajoelhada na beira do leito, estava o vulto branco de sua esposa. Ao seu lado, estava de pé um homem alto e magro, vestido de preto. Tinha o rosto virado para o outro lado, mas reconhecemos imediatamente o Conde, até pela cicatriz da testa. Com a mão esquerda, segurava as duas mãos da Sra. Harker e, com a direita, a segurava pela nuca. A camisola de dormir da Sra. Harker estava manchada com sangue, que escorria, também, pelo queixo do Conde e no seu peito. Quando irrompemos no quarto, o Conde virou o rosto para o nosso lado e a expressão do seu rosto se tornou demoníaca. Empurrando sua vítima para o leito, avançou contra nós. Mas Van Helsing caminhou ao seu encontro, segurando o envelope que continha a Hóstia Sagrada. O Conde parou, de súbito, como a pobre Lucy tinha parado à entrada do túmulo, e recuou. Avançamos, mostrando os crucifixos, e ele foi recuando cada vez mais. A lua foi, de súbito, obscurecida por uma pesada nuvem e, quando Quincey riscou um fósforo e acendeu o gás, o Conde havia desaparecido e vimos apenas uma névoa, passando através das fendas da porta, que se fechara de novo. Nesse momento, a Sra. Harker deu um grito tão estridente que tenho impressão que hei de ouvi-lo para o resto da vida. Corremos para junto dela. Seu rosto estava cadavérico, de uma palidez acentuada pelo sangue que a manchava e lhe escorria pela boca, queixo e pescoço; seus olhos denotavam um pavor indizível. Escondeu o rosto nas mãos, deixando ainda ver nos punhos os sinais das garras do Conde.

— Jonathan está no estado de estupor que o Vampiro pode produzir, como sabemos — murmurou Van Helsing. — Nada podemos fazer pela pobre Madame Mina, por enquanto. Precisamos despertá-lo.

Molhou uma toalha em água fria e começou a esfregar o rosto de Jonathan, cuja esposa, enquanto isto, soluçava, com o rosto escondido nas mãos.

A lua já brilhava de novo e, olhando pela janela, vi Quincey Morris que atravessava o gramado correndo e se escondia à sombra de uma árvore. Estava imaginando qual seria sua intenção, quando ouvi a voz de Harker, que estava recuperando os sentidos, e começou a gritar.

— Em nome de Deus, que significa isto? — gritou ele. — Que aconteceu? Mina, que aconteceu? Contem-me! Que quer dizer este sangue? Meu Deus, meu Deus, ajudai-nos!

E pulando da cama, frenético, continuou:

— Dr. Van Helsing, sei que o senhor tem grande estima por Mina. Faça alguma coisa para salvá-la. Ainda deve haver tempo. Tome conta dela, enquanto eu o procuro!

— Não! — gritou Mina, esquecendo o próprio sofrimento e agarrando-se ao marido. — Não pode deixar-me, Jonathan!

Van Helsing procurou acalmar ambos.

— Não tenha mais medo, minha filha. Estamos aqui e, enquanto isto estiver junto de você, nada de mal lhe acontecerá disse a Mina, entregando-lhe um crucifixo. Está em segurança por esta noite; devemos nos manter calmos e discutirmos a situação. Ela estremeceu e ficou em silêncio; escondendo a cabeça no peito do marido. Quando se afastou, a camisa de dormir de Jonathan estava manchada de sangue, onde seus lábios tinham se encostado e onde pingara o sangue dos pequenos ferimentos do pescoço.

— Estou contaminada! — exclamou, então, soluçando. — Não devo mais encostar em meu marido ou beijá-lo! Sou, agora, sua pior inimiga!

— Deixe de tolice, Mina — retrucou Jonathan. — Não diga mais isto.

Quando a Sra. Harker finalmente se acalmou um pouco, Jonathan pediu-me:

— Agora, Dr. Seward, conte-me tudo, por favor. Sei muito bem o que se deu, naturalmente, mas desejo conhecer os detalhes.

Contei-lhe exatamente o que acontecera e ele me ouviu impassível. Quando acabei de contar, Quincey e Godalming, que também tinham saído do quarto em perseguição ao Conde, voltaram.

— Fui ao quarto de Renfield, mas a única coisa que descobri foi que o pobre coitado morreu — disse Arthur.

— E você, amigo Quincey, que viu? — perguntou Van Helsing.

— Não vi o Conde, mas vi um morcego saindo da janela do quarto de Renfield e voando em direção ao poente — respondeu o americano. — Esperava vê-lo voltar a Carfax, sob qualquer forma, mas evidentemente ele procurou outro esconderijo. Não voltará esta madrugada, pois o dia já está quase nascendo.\

— E agora, Madame Mina, conte-nos, exatamente, o que aconteceu — disse o professor. — Só Deus sabe quanto lhe queria evitar qualquer sofrimento, mas temos de saber tudo.

Depois de uma pausa, naturalmente para coordenar seus pensamentos, a desventurada Sra. Harker começou:

— Ontem, tomei o soporífero que o senhor me deu e seu efeito demorou. Comecei a pensar em coisas horríveis: na morte, em vampiros, em sangue, em sofrimento. Percebi que devia ajudar o remédio com minha vontade e fiz força para dormir. Não vi quando Jonathan se deitou. Quando me vi de novo acordada ele estava ao meu lado. No quarto havia a mesma névoa fina e branca que eu já notara antes. Aliás, creio que o senhor ainda não sabe disso, mas contei no meu diário. Senti o mesmo terror vago que me dominara antes. Tentei acordar Jonathan, mas ele estava dormindo tão profundamente que parecia que fora ele que tomara o soporífero. Fiquei horrorizada. Depois, o horror ainda se tornou maior: junto do leito, como se tivesse saído da névoa, ou, melhor como se a névoa se tivesse transformado nele, estava um homem alto e magro, vestido de preto. Reconheci-o imediatamente, pela descrição dos outros. Quis gritar, mas ele sussurrou, apontando para Jonathan: “Silêncio! Se fizer o menor barulho, eu arrebentarei os miolos dele.” Não consegui dizer nada. Com um sorriso zombeteiro e segurando-me com força, ele desnudou-me o pescoço com a outra mão, dizendo: “Não é a primeira nem a segunda vez que suas veias apaziguam minha sede!” Sentia-me atordoada e, por mais estranho que pareça, não queria dificultar sua ação. Acho que isso faz parte da maldição que ele traz, quando toca em uma vítima. Senti minhas forças desaparecerem e fiquei meio desfalecida. Não sei quanto tempo durou aquele horror; só sei que custou muito a afastar sua boca asquerosa. Eu a vi gotejando sangue! Depois, ele me disse, em tom zombeteiro: “Você estava querendo ajudar a perseguir-me e frustrar minhas intenções. Mas, agora você é carne de minha carne, sangue do meu sangue, e atenderá ao meu chamado. Quando meu cérebro lhe disser: “Venha!” você atravessará terra ou mar para me obedecer.” E, desabotoando a camisa, abriu uma veia no peito com suas unhas aguçadas e, enquanto me segurava pelos punhos com uma das mãos, com a outra segurou-me a cabeça e apertou-me q boca de encontro ao ferimento, de modo que, para não morrer sufocada, eu tinha que engolir... Meu Deus, meu Deus! Que fiz, para merecer tal sorte? Tende piedade de mim, meu Deus! Quando terminou sua dolorosa narrativa, o dia já estava clareando.


CAPÍTULO XXII

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

3 de outubro — Como preciso fazer ala coisa, para não enlouquecer, resolvi escrever este diário.

Depois de mais ou menos refeitos dos terríveis acontecimentos da noite passada, tratamos de discutir qual a providência que deveríamos tomar em seguida e a primeira coisa que resolvemos foi não esconder coisa alguma de Mina, por mais Penosa que fosse.

Ela própria concordou com isso, observando:

— Aliás, nada poderia haver no mundo capaz de me fazer sofrer mais do que o que já sofri e estou sofrendo. Não me assusta a realidade. Estou disposta a morrer, se notar que posso fazer mal a quem amo.

— Não diga uma coisa destas! — protestou Van Helsing. — A senhora não pode morrer, enquanto o outro, que conspurcou sua vida, não tenha morrido de verdade, pois, se ele ainda for Não-Morto, a morte da senhora a tornará igual a ele.

A minha pobre Mina ficou lívida, mas exclamou, corajosamente:

— Prometo-lhe, caro amigo, que, se Deus me deixar viver, lutarei para isso, até que, graças a ele, fique livre dessa maldição.

Passamos, então, a discutir nossos planos de ação.

— Até o fim do dia de hoje — disse Van Helsing — aquele monstro conservará a forma que tem agora. Está preso, dentro de suas limitações, em seu invólucro de terra. Não pode se dissolver no ar nem passar através das fendas. Se passar por uma porta, terá que abri-la, como um mortal. Assim, temos o dia de hoje para procurar todos os seus refúgios e esterilizá-los. Se não o tivermos ainda descoberto e destruido, teremos que obrigá-lo a se esconder em algum lugar onde possamos, afinal, com segurança, encontrá-lo e destruí-lo. Temos de agir com a máxima presteza. E, muito provavelmente, a chave da situação é aquela casa de Piccadilly. É possível que o Conde tenha comprado muitas casas e, em tal caso, terá as escrituras de compras, as chaves e outras coisas. Deve ter papel para escrever um talão de cheques. Precisa de um lugar para guardar todas essas coisas; por que será naquele lugar tão tranqüilo e onde pode entrar e sair pela frente e pelos fundos, a qualquer hora, protegido pela própria intensidade do movimento?

— Então vamos logo — exclamei. — Que tempo é precioso!

— Mas como entraremos na casa de Piccadilly? — retrucou o professor.

— De qualquer maneira. Mesmo que seja preciso arrombá-la!

— E a policia?

— Não espere mais do que o necessário. Estou certo de que sabe a angústia em que me encontro.

— Na verdade, meu filho, não há necessidade de aumentar sua angústia — disse Van Helsing. — Mas precisamos de uma chave para entrar, não é mesmo?

— Arranjarei um serralheiro respeitável e o mandarei ajustar a fechadura para mim.

— E a polícia?

— Não intervirá, se souber que o homem está trabalhando autorizado.

Mina estava se interessando por tudo e regozijei-me vendo que as exigências das tarefas que tínhamos de realizar a estavam fazendo esquecer um pouco das angústias da noite. Mas estava pálida, lívida, e tão magra que seus lábios estavam afastados, mostrando os dentes um tanto salientes. Nem gosto de pensar nisto. Mas o tempo urge.

Quando Passamos a discutir a seqüência de nossos esforços, resolvemos, em vez de começar em Piccadilly, destruir o esconderijo do Conde mais à mão.

Quanto à distribuição de forças, o professor sugeriu que, depois de nossa visita a Carfax, nós todos fóssemos à casa de Piccadilly e que eu e os dois médicos ficássemos ali, enquanto Lord Godalming e Quincey fossem descobrir e destruir os esconderijos de Walworth e Mile End. Opus-me a esse plano, pois não queria me separar de Mina, mas ela não concordou comigo, dizendo que eu devia ir, pois minha experiência poderia ser muito útil no exame dos papéis do conde, e acrescentou que a única esperança que lhe restava era que todos trabalhássemos juntos.

— Quanto a mim, não tenho medo — exclamou. — Vá, meu marido! Deus, se assim quiser, pode me proteger sozinha.

— Então — disse eu — em nome de Deus, partamos imediatamente, pois estamos perdendo tempo. O Conde pode aparecer mais cedo em Piccadilly do que pensamos.

— Está se esquecendo de que ele se banqueteou fartamente na noite passada e que, portanto vai dormir até tarde? — retrucou Van Helsing.

Mal acabara de falar, arrependeu-se de sua distração e pediu muitas desculpas a Mina.

— Não tem importância — disse ela, com lágrimas nos olhos. — É uma coisa que eu própria não conseguirei esquecer. Mas o café está pronto e vocês todos precisam comer.

Durante a refeição, tentamos, em vão, nos mostrar alegres e Mina foi a que fez mais esforço.

— E agora, a caminho, para nossa terrível empresa meus amigos! — exclamou Van Helsing. — Todos estão armados como estávamos naquela noite em que estivemos pela primeira vez no esconderijo do inimigo? A senhora estará em perfeita segurança aqui, Madame Mina, até o pôr do sol. Mas, antes de partirmos, quero vê-Ia armada contra um ataque pessoal. Já preparei seu quarto com as coisas que o impedirão de entrar. Agora vou tratar de protegê-la diretamente, encostando a Hóstia Sagrada em sua testa, em nome do Padre, do Filho e do...

Ouvimos um grito horrível, que nos cortou o coração. Ao tocar a testa de Mina, a Hóstia se queimara como se tivesse sido colocada numa chapa de ferro incandescente. Minha pobre esposa, escondendo o rosto nas mãos, começou a gritar:

— Estou contaminada! Até o Onipotente evita a minha carne contaminada! Trarei essa marca de vergonha em minha fronte até o Dia do Juízo Final!

Abracei-a, tentando consolá-la, enquanto nossos amigos viravam o rosto, procurando esconder as lágrimas.

— Madame Mina — disse Van Helsing, com voz emocionada — pode ficar certa de que essa cicatriz desaparecerá quando Deus tiver visto o peso que colocou sobre nós. Até então, temos de carregar nossa Cruz, como Seu Filho carregou, em obediência à Sua Vontade. Pode ser que tenhamos sido escolhidos para instrumentos de seu prazer e que nos elevemos a ele através de vergonha, lágrimas, sangue, dúvidas, temores e tudo que constitui a diferença entre Deus e o homem.

Mina sentiu-se confortada com essas palavras. E, sem dizermos uma palavra, nós todos nos ajoelhamos e rezamos por ela.

Era tempo de partir. Despedi-me de Mina, numa despedida de que nunca mais hei de me esquecer em minha vida, e partimos.

Uma coisa já resolvi: se virmos que Mina acabará sendo um vampiro, não irá sozinha para aquela região desconhecida e terrível. Creio que era assim que, nos velhos tempos, os vampiros se multiplicavam; do mesmo modo que seus horríveis corpos só podiam descansar em terra sagrada, assim também o mais santo amor era quem recrutava suas sinistras legiões.

Entramos em Carfax sem dificuldade e encontramos tudo como se encontrava na primeira ocasião.

— E agora, meus amigos — exclamou o Dr. Van Helsing, solenemente — temos que esterilizar a terra que ele trouxe de um país distante para uso tão sórdido. Ele escolheu essa terra porque era sagrada. Vamos derrotá-lo com suas próprias armas, pois a tornaremos ainda mais sagrada.

Enquanto falava, tirou da valise uma chave de fenda e abriu logo o primeiro caixote. Depois, tirou da valise, reverentemente, um pedaço da Hóstia Sagrada, que espalhou sobre a terra. Logo em seguida tratou de tampar de novo o caixão e, em breve, já tínhamos feito o mesmo com todos os outros caixotes.

Ao passarmos diante do hospício, a caminho da estação, olhei, ansiosamente, e vi Mina na janela do nosso quarto e acenei-lhe com a mão dando a entender que tínhamos sido bem sucedidos. Ela me acenou também, demonstrando ter entendido.

Escrevi isto no trem.

Piccadilly, 12:30 — Antes de chegarmos a Fenchurch Street, Lord Godalming me disse:

— Eu e Quincey vamos procurar um serralheiro. É melhor o senhor não vir conosco, pois chamará menos atenção ao entrarmos numa casa vazia. Meu título será útil para arranjar as coisas com o serralheiro e com algum policial que possa aparecer. Quando vir a janela aberta, quer dizer que tudo correu bem e o senhor poderá entrar.

— O conselho é bom — concordou Van Helsing.

Godalming e Morris tomaram um carro de aluguel e nós seguimos em outro. Na esquina de Arlington Street senti o coração bater com muita força, ao avistar a casa em que se concentravam as nossas esperanças. Sentamo-nos num banco e começamos a fumar, de maneira a atrair o menos possível a atenção dos transeuntes. Os minutos se arrastavam.

Afinal, vimos parar diante da casa muita carruagem de quatro rodas, muito à vontade, Lord Godalming e Morris, ao mesmo tempo que saltava da boléia um homem carregando um cesto de ferramenta! Lord Godalming mostrou ao operário o que vinha fazer e ele tirou o paletó, pendurando-o na grade que havia em frente da casa, enquanto dizia alguma coisa a um policial, que acabara de aparecer. O policial sacudiu a cabeça, em sinal de aquiescência, e se afastou, enquanto o serralheiro ajoelhava-se junto da porta e punha mãos à obra. Não tardou muito o trabalho estava terminado e, despedido o operário, os dois homens entraram. Eu e Van Helsing esperamos algum tempo, depois atravessamos a rua e batemos na porta da casa, que foi aberta imediatamente por Quincey Morris, ao lado do qual estava Lord Godalming, acendendo um charuto.

— A casa está com um cheiro horrível — disse o último.

Era o mesmo cheiro de Carfax e não havia dúvida de que o Conde estava se utilizando da casa. Tratamos logo de examiná-la, andando todos juntos, para o caso de um ataque. Na sala de jantar, encontramos apenas oito das nove caixas que estávamos procurando. Nosso trabalho não terminara, pois não podíamos descansar enquanto não tivéssemos localizado a última caixa.

Depois de uma busca rigorosa, chegamos à conclusão de que se encontravam na sala de jantar todos os objetos pertencentes ao Conde. Estes consistiam nas escrituras das casas de Piccadilly, Mile End e Bermondsey, papéis para carta, envelopes e tinha tudo embrulhado por causa da poeira, e também uma escova de roupa, pente, um jarro e uma bacia com água suja, que parecia avermelhada com sangue. Havia, finalmente um molho de chaves de todas as espécies e tamanhos, provavelmente pertencentes às outras casas. Lord Godalming e Morris tomaram nota dos endereços das outras casas e se muniram com as chaves das mesmas, a fim de destruir as caixas que se encontravam naqueles lugares. O resto do grupo tinha de esperar pacientemente seu regresso — ou o aparecimento do Conde.


CAPÍTULO XXIII

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD

3 de outubro — Pareceu-nos incrivelmente longo o tempo que tivemos de esperar pelo regresso de Godalming e Quincey Morris: O professor procurou nos distrair, conversando sem parar, e notei, pela maneira com que se dirigia a Harker, que estava preocupado principalmente com ele, o que era natural.

Enquanto conversávamos, batendo na porta, com a dupla pancada característica dos estafetas telegráficos e nós todos corremos instintivamente para a entrada, mas Van Helsing, com um gesto impós-nos silêncio e foi abrir a porta. O estafeta entregou o telegrama e o professor fechou a porta de novo, e depois de olhar para todos os lados, abriu-o e leu-o, em voz alta:

“Procurem D. Agora mesmo, 12:45 acaba de sair de Carfax, apressado, em direção ao Sul. Talvez queira vê-los.

MINA

— Agora, graças a Deus, vamos encontrá-lo dentro em pouco! — exclamou Harker.

— Deus saberá agir oportunamente e como lhe parecer melhor — atalhou Van Helsing, vivamente.

Meia hora depois, bateram de novo na porta. Era uma pancada comum, como qualquer pessoa costuma bater, mas fez meu coração bater descompassadamente. Olhamos um para o outro e dirigimo-nos juntos ao vestíbulo, prontos a nos utilizar de nossos diversos instrumentos, os espirituais com a mão esquerda e os mortais com a direita.

Mas eram apenas Godalming e Quincey Morris que voltavam.

— Tudo correu bem — anunciou o primeiro. — Encontramos seis caixas em cada casa e esterilizamos todas.

— Agora, nada nos resta senão esperar — disse Quincey. — Se, contudo, ele não aparecer até cinco horas, devemos voltar, pois é perigoso deixar a Sra. Harker sozinha.

— Ele não vai demorar muito a chegar — anunciou Van Helsing. — Estejam todos preparados!

Não pude deixar de admirar como, mesmo num momento como aquele, cada um de nós manifestava as tendências de sua personalidade. Em todas as nossas caçadas e aventuras, em diferentes partes do mundo, Quincey Morris sempre organizava o plano de ação e eu e Arthur estávamos acostumados a segui-lo. O velho hábito pareceu renovar-se instintivamente. Quincey olhou rapidamente em torno e, sem dizer uma palavra, com simples gestos, colocou-nos cada um numa posição. Eu, Van Helsing e Harker ficamos atrás da porta, de maneira que, quando ela fosse aberta, o professor pudesse guardá-la, enquanto nós dois nos colocássemos entre o recém-chegado e a porta. Godalming e Quincey, perto da janela, estavam prontos a entrar em ação logo que fosse preciso.

Esperamos, com ansiedade que fazia os segundos se arrastarem com uma lentidão de pesadelo. Passos lentos, cuidadosos, se fizeram ouvir no vestíbulo; evidentemente, o Conde receava alguma surpresa.

De repente, de um pulo, ele se precipitou na sala, com um movimento de pantera. O primeiro a agir foi Harker, que se lançou diante da porta que dava para a sala da frente da casa. Ao nos ver, o Conde soltou um rugido, mostrando os dentes aguçados. Nós todos avançamos contra ele. Harker desfechou-lhe uma facada e somente sua agilidade o salvou: por uma fração de segundo, a lâmina deixou de se enterrar em seu coração. A ponta da faca abriu o casaco do Conde e, pelo rasgão, um punhado de notas e muitas moedas de ouro se espalharam pelo chão: A expressão do rosto tornou-se diabólica e receei pela vida de Harker, que investira de novo com a faca. Instintivamente, avancei para protegê-lo, levantando o Crucifixo e a Hóstia na mão esquerda. É impossível descrever a expressão de ódio que se estampou na fisionomia do Conde. Com um ágil movimento, afastou-se. Harker e, depois de ter apanhado no chão um punhado de dinheiro, atravessou o quarto correndo e pulou a janela. Entre o tilintar de vidros partidos, caiu no pátio embaixo. No meio do barulho do vidro estilhaçado, pude ouvir o tilintar de algumas moedas de ouro que caíram das mãos do vampiro.

Corremos à janela e vimo-lo levantar-se, incólume, e dirigir-se ao portão dos fundos.

— Pensam que podem me enfrentar? — gritou para nós. — Ainda vão sofrer muito! Pensam que me deixaram sem lugar para descansar, mas tenho mais. Minha vingança está apenas começando! Suas mulheres, que vocês amam, já são minhas. E, através delas, vocês todos serão minhas criaturas.

E, com um rugido furioso, desapareceu no portão dos fundos.

— Ficamos sabendo de uma coisa — disse o professor. — Apesar de suas basófias, ele está com medo de nós. E acho que é preciso providenciar para que ele nada encontre que lhe possa ser útil, no caso de voltar.

E, assim falando, meteu no bolso o dinheiro que sobrara e colocou na lareira as escrituras e os demais objetos, ateando fogo em seguida. Godalming e Morris tinham corrido ao pátio, em perseguição ao Conde, mas ele já ia longe.

A noite se aproximava e tratamos de voltar para o hospício, onde encontramos a Sra. Harker nos esperando, aparentemente animada.

Antes dela e do marido irem se deitar, o professor preparou o quarto contra o Vampiro e assegurou-lhes que podiam ter confiança de que iriam passar uma noite tranqüila.

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

3-4 de outubro, quase a meia-noite — O dia me pareceu interminável. Antes de nos separarmos, discutimos a respeito de qual deve ser nossa próxima providência, mas não chegamos a acordo. A única coisa que sabemos é que resta uma caixa de terra e só o Conde sabe onde ela está. Se ele resolver ficar escondido, pode nos enfrentar durante anos. Não gosto nem de pensar numa coisa destas! Graças a Deus, Mina está dormindo tranqüilamente. Eu também preciso dormir...

Mais tarde — Devo ter dormido, pois fui acordado por Mina, que estava sentada na cama, muito assustada.

— Há alguém no corredor! — murmurou no meu ouvido.

Levantei-me, pé ante pé, e abri a porta. O Sr. Morris estava no corredor, estendido num colchão, mas bem acordado.

— Vá para a cama — disse-me ele. — Um de nós vai ficar aqui a noite toda. Não facilitamos.

4 de outubro — Mais uma vez, Mina me acordou durante a noite. Dessa vez, percebi, através das janelas, que já estava amanhecendo.

— Vá chamar o professor — disse ela. — Preciso vê-lo imediatamente.

— Para quê?

— Tive uma idéia. Creio que essa idéia surgiu durante a noite e foi amadurecendo sem que eu soubesse. Ele deve me hipnotizar antes do amanhecer e poderei falar. Vá depressa, querido. O tempo está passando.

Abri a porta. O Dr. Van Helsing estava descansando no colchão no corredor e, ao me ver, levantou-se. Dois ou três minutos depois, estava no quarto, metido em seu robe de chambre, enquanto Morris e Lord Godalming, na porta com o Dr. Seward, faziam perguntas.

— Quero que o senhor me hipnotize, antes de amanhecer, para que eu possa falar livremente — disse Mina.

Olhando fixamente para ela, o professor começou a fazer passes com as mãos. Mina ficou imóvel, sem tirar os olhos dele; o coração batia descompassadamente, pois eu receava uma crise. Pouco a pouco, os olhos dela foram se fechando e ela sentou-se e ficou imóvel. Depois de mais alguns passes, o professor perguntou:

— Onde se encontra?

— Não sei — respondeu Mina, com uma voz muito esquisita. — É inteiramente desconhecido para mim.

— Que está vendo?

— Não consigo ver coisa alguma; tudo está escuro.

— Que está ouvindo? — O barulho da água. Pancadas de pequenas ondas.

— Quer dizer que você está num navio?

Nós todos olhamos uns para os outros. Tínhamos medo de pensar.

— Estou!

— Que mais está ouvindo?

— Homens que caminham por cima de onde estou. O ruído de uma corrente, o ranger de um cabrestante.

— Que é que você está fazendo?

— Estou imóvel, tão imóvel! É como a morte!

A voz desapareceu e Mina abriu os olhos. O sol já se levantara e estávamos iluminados pela luz do dia. O Dr. Helsing segurou Mina pelos ombros e pôs sua cabeça no travesseiro. Ela dormiu tranqüilamente durante algum tempo, depois, dando um suspiro, acordou e olhou em torno.

— Falei dormindo? — foi tudo quanto disse.

Mas parecia conhecer a situação, pois se mostrou muito interessada em saber o que tinha dito. O professor repetiu a conversa e ela exclamou:

— Então, não há um momento a perder. Talvez ainda não seja muito tarde.

O Sr. Morris e Lord Godalming fizeram menção de se encaminhar para a porta, mas o professor os conteve.

— Calma, meus amigos! — disse ele. — Aquele navio estava levantando âncora, no momento em que ela falou. São muitos os navios que levantam âncora no porto de Londres. Qual deles será? Graças a Deus, temos de novo uma pista, embora não saibamos ainda aonde ela pode nos levar. Agora, podemos compreender qual foi a idéia do Conde, quando agarrou aquele dinheiro em Piccadilly. Queria fugir. Viu que, dispondo apenas de uma caixa de terra e com um grupo de homens a persegui-lo, como cães atrás de uma raposa, não havia lugar para ele em Londres. Levou sua última caixa de terra para um navio e deixou este país. Acha que vai escapar, mas está enganado. Nós o acompanharemos. Por enquanto, vamos tratar de tomar banho, vestirmo-nos e comermos.

— Mas, se ele está fugindo de nós, para que persegui-lo? — perguntou Mina.

— Agora, minha cara Madame Mina, é que precisamos segui-lo, mesmo se fosse para as profundezas dos infernos — respondeu o professor. — Porque ele pode viver séculos e a senhora é apenas uma mulher mortal. Há tudo a temer, depois que ele deixou aquele sinal em seu pescoço.

Corri a tempo de recebê-la, desmaiada, em meus braços.


CAPÍTULO XXIV

 

DIÁRIO FONOGRAFICO DO DR. SEWARD, FALADO POR VAN HELSING

Este recado é para Jonathan Harker.

Deve ficar com Madame Mina. Vamos sair para fazer novas investigações mas para você nada há de mais importante que ficar ao lado dela. Nosso inimigo voltou para o seu castelo na Transilvânia. Ele é muito esperto e sabia que seu jogo aqui estava terminado. Temos agora que descobrir o navio e persegui-lo. Pode ficar confiante. A batalha apenas começou e havemos de vencê-la.

VAN HELSING

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

4 de outubro — Quando li para Mina o recado que Van Helsing deixou no fonógrafo, ela ficou muito animada. O dia correu tão rapidamente que até estou custando a acreditar. Já são três horas.

DIÁRIO DE MINA HARKER

5 de outubro, 5 horas da tarde — Presentes: professor Van Helsing, Lord Godalming, Dr. Seward, Sr. Quincey Morris, Jonathan Harker e Mina Harker.

O Dr. Van Helsing tomou a palavra:

— Como eu sabia que o Conde queria voltar à Transilvânia, deduzi que ele devia ir pela foz do Danúbio ou por algum porto do Mar Negro, caminho pelo qual veio. Assim, tratamos de saber que navios tinham partido para o Mar Negro e chegamos à conclusão de que se trata de uma escuna, a “Czarina Catherine”, que partiu para Varria do cais de Doolitle. Dirigimo-nos àquele cais e ali um empregado nos deu todas as informações que desejávamos. Na véspera, ao anoitecer, um homem alto, magro e pálido, de nariz adunco, dentes muito brancos e olhos que pareciam. fosforescentes, aparecera, a embarcar um caixote para Varria. Tirara ele mesmo o caixote de uma carroça, demonstrando uma força prodigiosa, pois foram preciso vários homens para levá-lo para bordo. O homem insistiu muito sobre o lugar que a caixa devia ser colocada, a tal ponto que o capitão perdendo a paciência, mas, depois de praguejar em várias línguas, pois era poliglota, acabou dizendo que ele poderia voltar, se quisesse, para ver onde o caixote ia ficar. A escuna não pôde partir na hora esperada, pois um nevoeiro a envolveu. O capitão estava de muito mau humor, quando o homem magro apareceu de novo, pedindo para ver onde estava o caixote. O capitão mandou-o a todos os diabos, mas o homem não se ofendeu e foi, levado por um marinheiro, para ver onde estava a caixa. Ao voltar, parou no convés, coberto pelo nevoeiro. Ninguém reparou quando ele saiu. Na verdade, a tripulação não se preocupou muito com ele, pois, em breve, o nevoeiro se desfez e o barco pôde se preparar para partir.

Quando tivemos estas informações, a escuna já estava em alto-mar. Assim, cara Madame Mina, devemos agora descansar um pouco, pois nosso inimigo está no mar, com o nevoeiro à sua volta, a caminho da foz do Danúbio. Vamos cercá-lo, viajando por terra. Nossa grande esperança é encontrá-lo na caixa entre o nascer e o pôr do sol, pois, então, ele não poderá lutar e poderemos atacá-lo. A caixa, segundo apuramos, deve ser desembarcada em Varria, e será recebida por um agente chamado Ristics.

Perguntei ao Dr. Van Helsing se tinha certeza de que o Conde estava a bordo do navio.

— Temos a melhor prova nesse sentido: suas próprias palavras, quando em transe hipnótico, hoje de manhã — respondeu.

Perguntei, ainda, se seria necessário perseguir o Conde, pois não queria que Jonathan se separasse de mim, e ele naturalmente, faria questão de ir, se os outros fossem. O Dr. Van Helsing respondeu, quase com raiva:

— É indispensável! Para seu próprio bem, em primeiro lugar, e para o bem da humanidade. Esse monstro já fez muito mal. Tem de ser exterminado! E Deus está conosco. Já nos permitiu redimir uma alma e agora, como os antigos Cruzados, iremos redimir outras. Como eles, viajaremos rumo ao nascente e, como eles, se cairmos, teremos caído em defesa de uma nobre causa!

Depois de uma discussão geral, ficou resolvido deixar a decisão definitiva para amanhã.

Senti-me muito tranqüila, como se uma presença desagradável tivesse se afastado de mim. Mas não pude deixar de ver no espelho, a mancha vermelha em minha testa. Sei que ainda estou contaminada.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

5 de outubro — Levantamo-nos todos muito cedo e o sono foi muito bom para todos nós.

Quando nos reunimos na refeição matinal, estávamos mais alegres do que acreditaríamos antes ser possível.

Ao sairmos da mesa, o professor me acompanhou ao meu gabinete.

— Amigo John — disse ele — há uma coisa que precisamos conversar a sós. Madame Mina está mudando. Com a triste experiência de Miss Lucy, devemos, desta vez, estar prevenidos, antes que as coisas cheguem muito longe. Já podem ser notados em seu rosto as características do vampiro. Ainda são muito leves, por enquanto; mas precisamos ter coragem de olhar sem preconceitos. Seus dentes estão mais aguçados e, às vezes, seu olhar se torna mais duro. Mas isso não é tudo: há os seus silêncios, como ocorria com Miss Lucy. O que receio é o seguinte: se ela pode, por nosso transe hipnótico, contar o que o Conde está vendo e ouvindo, não é verdade que ele a hipnotizou primeiro, que bebeu do sangue dela e fez com que ela bebesse do seu, poderá obrigar o espírito de Mina a dizer o que ela sabe? Se assim é, impedir que isso aconteça; deve que esconder dela o que tencionamos fazer e, ignorando nossas intenções, ela não poderá contar o que ignora. É uma tarefa penosa, mas indispensável. Quando nos reunirmos hoje, vou dizer-lhe que, por motivos que não podemos explicar-lhe, ela não tomará mais parte em nossas decisões, mas apenas será protegida por nós.

Mais tarde — Logo no começo da reunião geral, eu e Van Helsing tivemos um grande alívio, pois a Sra. Harker mandou um recado, pelo marido, dizendo que achava melhor não participar de nossas reuniões, para não nos embaraçar com a sua presença. Por minha parte, achei que, se a própria Sra. Harker percebia o perigo, muito aborrecimento e perigo poderiam ser evitados.

Van Helsing resumiu a situação em poucas palavras:

— O “Czarina Catherine” saiu do Tâmisa ontem de manhã, e deverá levar pelo menos três semanas para chegar a Varna, ao passo que nós, viajando por terra, poderemos chegar àquela cidade em três dias. Se admitirmos menos dois dias para a viagem do navio, devido às influências meteorológicas que sabemos que o Conde tem poderes para manobrar, e se contarmos com um dia e uma noite para os atrasos que possam ocorrer conosco, teremos uma vantagem de cerca de duas semanas. Assim, a fim de não corrermos nenhum risco, devemos partir daqui no dia 17, o mais tardar. Desse modo, chegaremos em Varna na véspera da chegada do navio, e poderemos tomar as providências necessárias. Naturalmente, iremos armados com nossas armas materiais e espirituais.

— Sei que o Conde é de um país onde há muitos lobos — observou Quincey Morris. — Proponho, portanto que acrescentemos carabinas Winchester ao nosso armamento.

— Concordo plenamente — disse Van Helsing. — E outra coisa: acho que, presentemente, nada nos prende aqui. Creio que nenhum de nós conhece Varna e, por isso, talvez fosse mais interessante partirmos logo. Tanto adianta esperar aqui, como lá. Até amanhã, podemos preparar tudo e, então, se tudo correr bem, podemos, nós quatro, partir para a viagem.

— Nós quatro? — perguntou Harker.

— Sim — apressou-se em dizer o Professor. — Você deve ficar, para tomar conta de sua mulher.

Harker ficou em silêncio durante algum tempo, depois disse, com voz abafada:

— Falaremos sobre isto amanhã cedo. Preciso conversar com Mina.

Achei que era hora de Van Helsing avisá-lo para não contar nossos planos à sua esposa. Como ele não tomasse a iniciativa, olhei-o de modo significativo e tossi. Mas ele, em resposta, levou um dedo aos lábios; dormindo profundamente. Van Helsing me fez um sinal para que o acompanhasse, e saímos do quarto. Fomos para seu quarto, onde chegavam, pouco depois, Lord Godalming, o Dr. Seward e o Sr. Morris. O professor contou-lhes o que Mina lhe dissera e acrescentou:

— De manhã, partiremos para Varria. Temos de contar, agora, com um novo fator: Madame Mina. Não podemos perder nenhuma oportunidade e, em Varria, devemos estar prontos para agir, quando o navio chegar.

— Que devemos fazer? — perguntou o Sr. Morris, laconicamente.

— Em primeiro lugar, devemos entrar a bordo daquele navio — respondeu o professor, depois de refletir um pouco. — Depois, quando tivermos identificado a caixa, colocaremos em cima dela um ramo de rosa-silvestre. Desse modo, ninguém poderá sair de dentro da caixa.

— Eu não aguardarei tal oportunidade — exclamou Morris. — Quando vir a caixa, tratarei de abri-la e destruir o monstro, mesmo que milhares de pessoas estejam me olhando e que eu seja exterminado no momento seguinte!

— Você é um rapaz valente e abnegado, meu filho! — exclamou Van Helsing. — Deus o abençoe por isso. Mas, na verdade, não poderemos afirmar o que vamos fazer. Muitas coisas podem ainda acontecer e, até o momento exato, nada podemos dizer. Devemos estar armados e dispostos e, quando chegar o momento decisivo, nossa coragem não pode faltar. E, agora, tratemos de tomar as providências necessárias, inclusive as passagens.

Não havia necessidade de se dizer mais nada, e separamo-nos. Mais tarde — Todas as providências foram tomadas; fiz meu testamento. Mina, se continuar viva, será minha única herdeira, Em caso contrário, serão os outros, que têm sido tão bons para nós.

Tenho de escrever tudo no diário, pois minha querida Mina não Pode sabe-las agora; mas futuramente saberá.

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

5 de outubro, de tarde — O rumo que as coisas estão tomando me intriga. Achei esquisita a resolução de Mina de não participaria reunião. Também a maneira com que os outros receberam o fato me intriga; da última vez que conversamos sobre o assunto, tínhamos resolvido que nada mais se ocultaria entre nós. Mina está dormindo como uma criança. Graças a Deus.

Mais tarde — É estranho. Fiquei contemplando o sono de Mina e me senti quase feliz, apesar de tudo. De repente, ela abriu os olhos e, encarando-me ternamente, disse-me:

— Jonathan, quero que me prometa uma coisa, sob palavra de honra. Uma promessa para ser cumprida, mesmo que eu me ajoelhasse a seus pés e lhe pedisse, chorando, que a quebrasse. Prometa-me imediatamente.

— Não posso fazer uma promessa desta imediatamente, Mina — retruquei. — não tenho o direito de fazê-la.

— Mas sou eu que desejo, querido e não é para mim mesma. Pode perguntar ao Dr. Van Helsing se não tenho razão; você pode fazer o que quiser. E mais ainda: se vocês todos concordarem, você poderá deixar de cumprir a promessa.

— Prometo! — disse eu.

E, durante um momento, Mina pareceu muito feliz, embora para mim, toda a felicidade lhe fosse negada pelo sinal vermelho da testa.

— Prometa-me — disse ela — que você não me contará coisa alguma dos planos organizados para a campanha contra o Conde, e nem ao menos dará a entender qualquer coisa sobre os mesmos, enquanto isto estiver em mim!

E apontou para a mancha vermelha.

— Prometo! — exclamei.

E tive a impressão de que, naquele momento, uma porta se fechara entre nós.

6 de outubro, pela manhã — Outra surpresa. Mina acordou cedo, quase na mesma hora de ontem, e pediu-me para chamar o Dr. Van Helsing. Pensei que ela queria ser hipnotizada de novo e, sem nada perguntar, fui chamar o professor. Ele devia estar esperando o chamado, pois estava vestido e a porta do seu quarto entreaberta.

Quando chegou ao nosso quarto. Mina lhe disse:

— O senhor deve me levar em sua companhia na viagem.

O Dr. Van Helsing ficou tão espantado quanto eu e perguntou, depois de um pequeno silêncio:

— Por quê?

— Deve me levar. Estarei mais segura com o senhor e o senhor estará mais seguro comigo.

— Mas por quê, Madame Mina? Sabe que sua segurança constitui para nós um dever sagrado. Vamos enfrentar perigos que para a senhora, em vista das circunstâncias...

E o professor parou, embaraçado.

— Eu sei — disse Mina, apontando para sua testa. — É por isto que preciso ir. Posso dizer-lhe agora, enquanto o sol está nascendo; talvez não possa dizer-lhe de novo. Sei que, quando o Conde quiser, terei de ir. Sei que se ele me disser para ir escondida, irei, lançando mão de todas as astúcias, iludindo até mesmo Jonathan.

Apenas consegui apertar-lhe a mão; não pude falar e minha emoção era demasiadamente grande, mesmo para se expandir em lágrimas.

— Vocês são fortes e bravos — continuou Mina. — Além disso, posso ser útil, pois o senhor poderá me hipnotizar e ficar sabendo o que até eu mesma não sei.

— Tem razão, como sempre, Madame Mina — replicou Van Helsing, gravemente. — Deve vir conosco. Juntos, faremos o que temos que fazer.

Como Mina não dissesse mais nada, olhei para ela. Tinha tornado a se deitar e estava dormindo profundamente. Van Helsing me fez um sinal para que o acompanhasse, e saímos do quarto. Fomos para seu quarto, chegavam, pouco depois, Lord Godalming, o Dr. Seward e o Sr. Morris. O professor contou-lhes o que Mina lhe dissera e acrescentou:

— De manhã, partiremos para Varna. Temos de contar, agora, com um novo fator: Madame Mina. Não podemos perder nenhuma oportunidade e, em Varna, devemos estar prontos para agir, quando o navio chegar.

— Que devemos fazer? — perguntou o Sr. Morris, laconicamente.

— Em primeiro lugar, devemos entrar a bordo daquele navio — respondeu o professor, depois de refletir um pouco. — Depois, quando tivermos identificado a caixa, colocaremos em cima dela um ramo de rosa-silvestre. Desse modo, ninguém poderá sair de dentro da caixa.

— Você é um rapaz valente e abnegado, meu filho! — exclamou Van Helsing. — Deus o abençoe por isso. Mas, na verdade, não poderemos afirmar o que vamos fazer. Muitas coisas podem ainda acontecer e, até o momento exato, nada podemos dizer. Devemos estar armados e dispostos e, quando chegar o momento decisivo, nossa coragem não pode faltar. E, agora, tratemos de tomar as providências necessárias, inclusive as passagens.

Não havia necessidade de se dizer mais nada, e separamo-nos.

Mais tarde — Todas as providências foram tomadas; fiz meu testamento. Mina, se continuar viva, será minha única herdeira. Em caso contrário, serão os outros, que têm sido tão bons para nós.

Tenho de escrever tudo no diário, pois minha querida Mina não pode sabê-las agora; mas futuramente saberá.


CAPÍTULO XXV

 

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

15 de outubro, Varna — Partimos de Charing Cross na manhã do dia 12, chegamos na noite do mesmo dia a Paris e tomamos os lugares que nos estavam reservados no Orient Express. Viajamos durante a noite e o dia, chegando aqui cerca de cinco horas da tarde. Lord Godalming foi ao consulado, a fim de ver se havia chegado algum telegrama para ele, enquanto nós, restantes, vínhamos para este hotel, o Odessus. Não prestei atenção na viagem.

Até que o “Czarina Catherine” chegue a este porto, coisa alguma do mundo me interessara. Graças a Deus Mina está passando bem; parece estar se fortalecendo e está mais corada. Dormiu durante quase toda a viagem. Antes do levantar e do pôr do sol, contudo, tem se mostrado muito agitada; tornou-se quase um hábito de Van Helsing hipnotizá-la nessas ocasiões. A princípio, era preciso muito esforço, mas agora o sono hipnótico vem com grande facilidade. o professor sempre lhe pergunta o que ela está vendo e ouvindo e ela responde, invariavelmente:

— Não estou vendo coisa alguma; tudo está escuro. Ouço as ondas batendo contra o navio e o ruído de velas e enxárcias.

É claro que o “Czarina Catherine” ainda está no mar, a caminho de Varna.

Lord Godalming acaba de voltar, trazendo quatro telegramas, um correspondendo a cada dia, desde que partimos e todos no mesmo sentido: O “Lloyd’s” ainda não recebeu qualquer comunicação sobre o “Czarina Catherine”. Godalming providenciou, antes de sair de Londres, que lhe telegrafassem, diariamente, transmitindo informações nesse sentido.

Deitamo-nos cedo. Amanhã iremos procurar o vice-cônsul para ver se conseguimos entrar a bordo do navio logo que chegue. Diz Van Helsing que a nossa sorte será chegar ao navio entre o nascer e o pôr do sol. O Conde, mesmo se tomar a forma de um morcego, não pode atravessar a água corrente por sua própria vontade e, portanto, não poderá sair do navio. Como não se atreverá a tomar a forma humana sem despertar suspeitas — que, evidentemente, deseja evitar — terá que ficar dentro da caixa. Assim, se entrarmos no navio depois do nascer do sol, ele ficará a nossa mercê. Graças a Deus estamos num país onde tudo se consegue com suborno, e temos bastante dinheiro.

16 de outubro — Mina continua a fazer as mesmas revelações: ondas batendo, escuridão e ventos favoráveis. É claro que chegaremos a tempo e, quando tivermos notícias do “Czarina Catherine”, estaremos em condições de agir. Naturalmente, teremos alguma notícia, quando a escuna atravessar os Dardanelos.

17 de outubro — Tudo foi providenciado, Acho que estamos em condições de receber o Conde condignamente. Godalming disse aos armadores que desconfiava que a caixa embarcada no navio continha objetos roubados de um amigo seu e que este o autorizara a abrir a caixa, por sua conta e risco. Os armadores deram-lhe uma autorização, para ser apresentada ao comandante. Além disso, puseram o agente à nossa disposição, o qua14se mostra encantado com a maneira com que Godalming o trata e está disposto a fazer tudo que estiver ao seu alcance para nos facilitar. Já combinamos tudo que devemos fazer quando abrirmos a caixa. Se o Conde estiver lá dentro, Van Helsing e Seward cortarão imediatamente sua cabeça e atravessarão seu coração com uma estaca.

Eu, Morris e Godalming impediremos a interferência de terceiros, ainda mesmo que tenhamos, para isso, de utilizar as armas que possuímos. O professor afirma que, se fizermos isso com o corpo do Conde, ele se transformará em poeira, imediatamente. Em tal caso, não haveria prova contra nós, no caso de surgir suspeita de homicídio. Mas, seja como for, estamos dispostos a executar nossa missão. Combinamos com algumas autoridades que, logo que o Catheririe seja avistado, nós seremos avisados por um mensageiro especial.

24 de outubro — Uma semana inteira de espera, Godalming recebe um telegrama diariamente, mas sempre anunciando que não há novidade. As respostas de Mina, pela manhã e à tarde, durante seu sono hipnótico, são invariáveis: barulhos de ondas e rangidos de velas e cordames.

Telegrama, 24 de outubro

SMITH, DO LLOYD’S DE LONDRES, A LORD GODALMING, AOS CUIDADOS DO VICE-CÔNSUL DE SUA MAJESTADE BRITÂNICA EM VARNA

Informou-se esta manhã “Czarina Catherine” nos Dardanelos

DIÁRIO DO DR. SEWARD

25 de outubro — Estou sentindo muita falta do fonógrafo. Escrever um diário com caneta dá muito trabalho, mas Van Helsing acha que devo escrever. Ficamos todos muito excitados ontem, quando Godalming recebeu o telegrama. Apenas a Sra. Harker não demonstrou qualquer emoção. Aliás, ela tem mudado muito, nas últimas três semanas. A letargia progride e, embora seu aspecto seja melhor e esteja mais corada, eu e Van Helsing não estamos satisfeitos. Van Helsing, segundo me disse, tem examinado seus dentes com muito cuidado, durante os transes hipnóticos e diz que, há perigo de mudança imediata. Se ocorresse tal mudança, seria necessário tomar certas medidas! Nós sabemos quais seriam essas medidas, embora não tenhamos coragem de falar sobre isto. “Eutanásia” é uma palavra confortadora!

Dos Dardanelos até aqui, de acordo com o tempo gasto pelo “Czarina Catherine” depois que saiu, o trajeto deve ser feito em cerca de 24 horas. A escuna deve chegar, portanto, pela manhã; mas, como não poderá entrar antes do meio-dia, vamos estar prontos à uma hora.

25 de outubro — Nenhuma notícia da chegada do navio. A informação hipnótica da Sra. Harker, hoje de manhã, foi a mesma de sempre. Todos nós estamos muitos excitados, com exceção de Harker; suas mãos estão frias como gelo e, há uma hora, encontrei-o amolando um facão de que não se separa.

Mais tarde — Ao pôr do sol, a Sra. Harker fez a habitual revelação hipnótica. Seja onde for que ele esteja, no Mar Negro, o Conde está se encaminhando para o seu destino. Para o seu aniquilamento, espero!

26 de outubro — Outro dia sem notícia do “Czarina Catherine”. A escuna já devia estar aqui. Parece que continua a navegar para algum lugar, pois as revelações da Sra. Harker continuam as mesmas.

27 de outubro — É estranho! Nenhuma notícia do navio. As revelações da Sra. Harker ontem à noite e hoje de manhã foram as mesmas, acrescentando: “ondas muito fracas”. Os telegramas de Londres comunicam que não chegaram outras informações. Van Helsing está aflitíssimo, com medo do Conde ter escapado de nós.

“Não estou gostando da letargia de Madame Mina”, disse ele. “As almas e a memória podem fazer coisas estranhas durante o transe.”

Eu ia pedir-lhe que explicasse melhor, mas Harker entrou nesse momento e o professor me fez um gesto significativo.

28 de outubro — TELEGRAMA. MILFUS SMITH, DE LONDRES, A LORD GODALMING, AOS CUIDADOS DO VICE-CÔNSUL E SUA MAJESTADE BRITÂNICA.

Informa-se que “Czarina Catherine” entrou em Galatz à uma hora de hoje.

DIÁRIO DO DR. SEWARD

28 de outubro — Quando chegou o telegrama anunciando a chegada do navio a Galatz, creio que ninguém sentiu o choque que seria de se esperar. Acho que, no fundo, já esperávamos coisa semelhante. Van Helsing levantou as mãos para o alto, mas não disse uma palavra. Lord Godalming empalideceu e Quincey Morris apertou o cinto, com um movimento rápido, que conheço muito bem e quer dizer: ação. A Sra. Harker ficou lívida, de tal modo que a mancha na testa pareceu estar queimando. Harker sorriu, amargamente, como alguém que tivesse perdido as últimas esperanças. Mas, ao mesmo tempo, sua mão procurou o inseparável facão.

— A que horas parte o primeiro trem para Galatz? — perguntou Van Helsing, sem se dirigir a nenhum de nós em particular.

— Às 6:30 da manhã!

Nós todos nos espantamos, pois fora a Sra. Harker quem respondera.

— Como sabe? — perguntou Art.

— Sou especialista em horários de trem — respondeu a Sra. Harker. — Em Exeter sempre tomava nota dos horários, para ajudar meu marido. Eu sabia que, se tivéssemos de ir ao Castelo de Drácula, tínhamos de ir por Galatz, ou, de qualquer modo, passando por Bucareste, de maneira que decorei os horários. Infelizmente, não há necessidade de decorar muito, pois, como já disse, o primeiro trem só parte amanhã, às seis e meia.

— Não conseguiremos arranjar um trem especial? — sugeriu Lord Godalming.

— Infelizmente, creio que não — respondeu Van Helsing. — Este país é muito diferente do seu e do meu. Mesmo se conseguíssemos um trem especial, provavelmente ele não iria partir antes do trem comum. O melhor é tomarmos logo as providências. Você, amigo Arthur, vá à estação comprar as passagens e providencie para que tudo esteja em ordem amanhã cedo. Você, amigo Jonathan, vá procurar o agente do navio e obtenha uma carta dele ao agente de Galatz, autorizando-nos a revistar o navio. Você, Quincey Morris, vá procurar o vice-cônsul e providencie para que seu colega de Galatz, facilite tudo para nós. Você, John, ficará comigo e Madame Mina, para discutirmos.

— Farei tudo que estiver em minhas mãos para ajudá-lo — disse a Sra. Harker. — Tenho a impressão de que algo se afasta de mim e sinto-me mais livre do que tenho me sentido ultimamente.

Os três rapazes mostraram-se alegres, ao ouvirem estas palavras, mas eu e Van Helsing nos entreolhamos preocupados.

Quando os três outros se retiraram, Van Helsing pediu à Sra. Harker para ir buscar uma cópia do diário de Harker escrito no Castelo e, quando ela saiu, fechando a porta, me disse:

— Amigo John, quero lhe dizer uma coisa. Vou assumir uma tremenda responsabilidade, mas acho que estou fazendo bem. No momento em que Madame Mina disse aquilo que tanto nos surpreendeu, veio-me uma inspiração. No transe, há três dias, o Conde enviou-lhe seu espírito, para ler seu pensamento. Ele ficou sabendo, então, que estamos aqui e agora está fazendo todo o esforço para escapar de nós. Está certo de que ela atenderá ao seu chamado. E tenho esperança que nossos cérebros de homens que, não perderam a graça de Deus, possam chegar mais longe que seu cérebro de criança que jaz na tumba há séculos e que só atua para satisfazer o egoísmo e, portanto, mesquinhamente. Mas Madame Wina está voltando. Nem uma palavra a respeito de seus transes! Ela nada sabe e iria ficar desesperada, quando tanto precisa de esperança.


CAPÍTULO XXVI

 

DIÁRIO DO DR. SEWARD

29 de outubro — Estou escrevendo no trem, em viagem de Varna para Galatz. Ontem à noite, reunimo-nos, um pouco antes do anoitecer. Cada um de nós tinha executado a tarefa que lhe competia, da melhor maneira possível. Quando chegou o momento oportuno, a Sra. Harker preparou-se para ser hipnotizada; e, depois de um esforço mais sério e mais prolongado por parte de Van Helsing do que tem sido necessário, habitualmente, ela caiu em transe. Em geral, ela responde a uma simples insinuação: mas, dessa vez, o professor teve de insistir nas perguntas, antes que conseguisse saber de qualquer coisa. Afinal, veio a resposta:

— Não estou vendo coisa alguma; estamos parados; não há batida de ondas, mas apenas o de água correndo junto ao navio. Ouço vozes de homens gritando, longe e perto e o ruído de remos. Um canhão atirou; o eco parece longínquo. Por cima, há o ruído de passos; cordas, cabos e correntes são arrastados. Que é isto? Surge um raio de luz; sinto o sopro do ar me atingindo.

Nesse ponto, ela parou. Tinha se levantado do sofá onde estava, impulsivamente, levantando ambas as mãos com as palmas viradas para cima como se estivesse carregando um peso.

Eu e Van Helsing trocamos olhares significativos. Houve um silêncio bem prolongado, depois Van Helsing exclamou:

— Como estão vendo, meus amigos, ele está perto da terra: saiu de sua caixa. Mas ainda precisa chegar à terra. De noite, pode ficar escondido em algum lugar, mas, se não for transportado, ou se o navio não encostar, não poderá chegar à terra. Em tal caso, poderá, se for de noite, mudar de forma e voar ou pular para terra, como fez em Whitby. Mas se o dia chegar antes dele alcançar a terra, a não ser que seja carregado, não escapará. E, se for carregado, os funcionários da alfândega poderão descobrir o que a caixa contém. Assim, se ele não escapar esta noite ou antes do amanhecer.

Esperamos, com paciência, até o amanhecer, quando poderíamos saber mais alguma coisa por intermédio da Sra. Harker.

Hoje cedo ouvimos, com a respiração contida pela ansiedade, suas respostas em transe. O sono hipnótico custou a vir mais ainda que na véspera. Foi preciso um grande esforço de Van Helsing; afinal, em obediência à sua vontade, ela respondeu:

— Tudo está escuro. Ouço as pancadas da água, junto de mim, e um ruído como de madeira sobre madeira.

Parou, e o sol surgia, vermelho. Temos que esperar até a noite. Deveríamos chegar a Galatz entre duas e três da manhã, mas já passamos por Bucareste com três horas de atraso e, portanto, só vamos poder chegar bem depois do sol nascer.

Mais tarde — Felizmente, no momento do anoitecer, não estávamos numa estação, pois, se tal tivesse acontecido, não teríamos conseguido a calma e o isolamento necessários. A Sra. Harker caiu no transe hipnótico com mais dificuldade ainda que de manhã. Receio que seu poder de ler as sensações do Conde venham a desaparecer justamente quando mais precisávamos dele. Quando ela falou, suas palavras foram enigmáticas:

— Algo se afasta; posso sentir que passa por mim como um vento frio. Posso ouvir, muito longe, sons confusos, de homens conversando em línguas estranhas, água que se despeja com força e uivos de lobo.

Foi tomada, então, por um tremor convulsivo e, depois disso, nada mais disse, apesar das perguntas imperiosas do professor.

30 de outubro, 7 da manhã — Estamos perto de Galatz e talvez eu não tenha tempo de escrever mais tarde. O amanhecer de hoje foi ansiosamente esperado por nós. Em vista da crescente dificuldade de conseguir o transe hipnótico, Van Helsing começou os passes mais cedo que de costume, mas eles só produziram efeito um minuto antes do sol nascer. O professor não perdeu tempo em interrogar e a resposta veio logo:

— Tudo está escuro. Ouço a água passar, à altura dos meus ouvidos e o ranger de madeira. Mugidos de bois. Há um outro ruído esquisito, parecido com...

— Vamos, continue, eu ordeno! — exclamou Van Helsing.

A Sra. Harker, porém, abriu os olhos e murmurou:

— Professor, para que me mandar fazer o que não posso?

O trem está apitando; estamos perto de Galatz.

DIÁRIO DE MINA HARKER

30 de outubro — O Sr. Morris levou-me ao hotel onde tínhamos mandado reservar quartos por telegrama, sendo ele o indicado para isso, porque não fala nenhuma língua estrangeira e os outros estavam ocupados em outras tarefas. As forças foram distribuídas corno tinham sido em Varria, com a diferença que o Lord procurar o vice-cônsul, pois seu título constituiria uma garantia de que precisávamos agir com urgência. Jonathan e os dois médicos foram procurar o agente do navio, para saber os pormenores da chegada do “Czarina Catherine”.

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

30 de outubro — Às nove horas, eu, o Dr. Van Helsing e o Dr. Seward procuramos a firma Mackenzie & Steinkoff, agentes da Companhia de Londres. Eles tinham recebido um telegrama de Londres, em resposta a um pedido de Lord Godalming, receberam-nos com muito amabilidade e nos levaram, imediatamente, a~ bordo da escuna. Fomos, então, apresentados ao comandante, Donelson, que nos contou a viagem.

— Nunca vi uma viagem assim na minha vida! — disse. — Viemos de Londres ao Mar Negro com vento favorável, a tal ponto que parecia que o próprio diabo estava soprando as velas, para o seu proveito. Mas, ao mesmo tempo, sempre que passávamos por um porto ou um navio, a escuna ficava envolta pelo nevoeiro. Passamos por Gibraltar sem podermos fazer sinal. Até chegarmos aos Dardanelos, onde tivemos de parar, para obter licença para entrar, não tivemos a menor comunicação com quem quer que seja. Quando entramos no Bósforo, os marinheiros começaram a resmungar; alguns deles, os romenos, vieram me pedir para atirar ao mar uma caixa que fora colocada a bordo por um velho esquisito, antes de partirmos de Londres. Eu notara que eles tinham olhado horrorizados para o tal velho e tinham feito figa para se livrar do mau-olhado. Muito bem. O nevoeiro não nos deixou durante cinco dias e deixei o vento nos levar, pois, se o diabo queria ir a algum lugar, lá chegaria... Não resta dúvida que a viagem foi boa, tivemos sempre calado suficiente; e há dois dias atrás, quando o nevoeiro se dissipou, vimos que estávamos no rio, em frente de Galatz. Os romenos ficaram furiosos e queriam, por força, pegar a caixa e atirá-la ao rio. Tive de enfrentá-los decididamente, para impedi-los de fazer aquilo, pois, com diabo ou sem diabo, tenho de entregar devidamente a carga que me foi confiada pelos armadores. A caixa estava despachada para Galatz, via Varna e, assim resolvi descarregá-la no porto, livrando-me dela para sempre. Tivemos de passar a noite ancorados, mas de manhã, uma hora antes do amanhecer, apareceu um homem a bordo, com uma ordem enviada da Inglaterra, para receber uma caixa destinada ao Conde Drácula. Tinha todos os papéis em ordem e dei graças a Deus de lhe entregar a encomenda.

— Como se chamava esse homem? — perguntou o Dr. Helsing, sem esconder a ansiedade.

— É fácil saber — disse o capitão, que, indo ao seu camarote, voltou, trazendo um recibo assinado por Inimanuel Hildesheim, cujo endereço era Burgenstrasse 16.

Despedimo-nos do capitão e fomos encontrar Hildesheim em seu escritório. Era um hebreu do tipo clássico, com nariz adunco e um fez. Com alguns argumentos convincentes de nossa parte ele nos contou o que queríamos. Recebera uma carta de Mr. de Ville, procedente de Londres, encarregando-o de receber, se possível antes do amanhecer, para evitar a alfândega, uma caixa que chegaria a Galatz pelo “Czarina Catherine”. A caixa tinha de ser entregue a um certo Petrof Skinsky, que se entendia com os eslovacos, que faziam o transporte para o porto, pelo rio. Fora pago em papel-moeda inglês. Quando Skinsky o procurara, levara-o ao navio e desembarcara a caixa, a fim de evitar as despesas de carreto. Era tudo que sabia.

Fomos, então, procurar Skinsky, mas não conseguimos encontrá-lo.

Um dos vizinhos, que não parecia, aliás, estimá-lo de modo algum, informou-nos que ele partira há dois dias e ninguém tivera mais notícias suas. Isso foi confirmado pelo dono de sua casa, que recebera, por um mensageiro, as chaves da casa e o aluguei devido, em dinheiro inglês, entre dez e onze horas da noite da véspera.

Enquanto estávamos conversando, apareceu um homem correndo, ofegante, para anunciar que o corpo de Skinsky tinha sido encontrado dentro do cemitério da igreja de São Pedro, com o pescoço estraçalhado por algum animal selvagem.

Saímos, sem podermos chegar a qualquer conclusão definitiva. Estávamos convencidos de que a caixa estava sendo transportada, por água, para algum lugar, mas só isto. Consternados, voltamos ao hotel para junto de Mina.

DIÁRIO DE MINA HARKER

30 de outubro, à noite — Eles estão tão cansados, que não adianta tentar fazer qualquer coisa, enquanto não tiverem descansado; por isso, pedi-lhes para se deitarem durante uma meia hora. Sou grata a quem inventou a máquina de escrever portátil e ao Sr. Morris, por ter arranjado esta para mim. Eu divagaria muito, se tivesse de escrever à mão...

Creio que, com a ajuda de Deus, fiz uma descoberta. Vou examinar os mapas...

Estou cada vez mais convencida de que tenho razão. Minha nova conclusão está pronta, e vou reunir o pessoal e ler o memorando. Cada minuto nos é muito precioso.

MEMORANDO DE MINA HARKER
(Anexado ao seu Diário)

Assunto analisado — O problema do Conde Drácula consiste em voltar para o seu castelo.

(a) Tem de ser levado para ali por alguém. Isto é evidente, pois se tivesse o poder de mover-se sozinho ele poderia ir sob a forma de homem, lobo, morcego ou sob outra forma. Evidentemente, ele tem medo de ser descoberto ou detido no estado de impotência em que deve estar, metido, do nascer ao pôr do sol, em sua caixa de madeira.

(b) Como será levado? — A esse respeito, será útil aplicar um método de exclusão. Pela estrada comum, por estrada de ferro ou por água.

1. Pela estrada comum — Haveria grandes dificuldades, especialmente para sair da cidade:

(x) Há gente, com a curiosidade natural do homem. Uma dúvida a respeito do que conteria a caixa seria fatal ao Conde.

(y) Há, ou pode haver, funcionários aduaneiros.

(z) Seus perseguidores podem acompanhá-lo. Isto é o que mais ele teme; e para evitar isso, para impedir de ser traído, ele repeliu, tanto quanto pôde, até sua vítima — eu!

2. Por estrada de ferro — Não há ninguém encarregado de tomar conta da caixa. Isso tornaria provável seu atraso, e o atraso lhe pode ser fatal, com os inimigos no seu encalço. Na verdade, ele pode escapar de noite; mas que adiantaria, se fosse deixado num lugar estranho, sem um refúgio para onde pudesse ir?

3. Por água — Este é o caminho mais seguro, sob um aspecto, porém mais perigoso, sob outro. Sobre a água, ele é o nevoeiro, a tempestade, a neve e seus lobos. Mas, se naufragasse, estaria perdido. Poderia levar a embarcação para terra, mas se fosse uma terra hostil, sem refúgio, ficaria numa situação desesperadora.

Sabemos que ele estava sobre a água; resta saber que água.

A primeira coisa consiste em compreender exatamente o que ele já fez; poderemos, então, ter um indício de qual será sua tarefa futura.

Em segundo lugar, devemos deduzir, pelos fatos que sabemos, o que ele fez aqui.

Quanto à primeira, evidentemente ele tencionava chegar a Galatz e mandou a fatura para Varria para nos iludir. A prova disso é a carta a Inimanuel Hildesheim.

Sabemos que, até agora, seus planos têm sido bem sucedidos.

Agora, resta saber o que o Conde deve ter feito depois de sua chegada, em terra, a Galatz.

A caixa foi entregue a Skinsky antes do amanhecer. Ao amanhecer, o Conde podia aparecer em sua própria forma. Por que Skinsky foi escolhido? No diário de meu marido, está esclarecido que esse homem trabalhava com os eslovacos, que são muito mal vistos aqui. O Conde queria isolamento.

Minha dedução é a seguinte: o Conde resolveu voltar ao seu castelo por água, como o meio mais seguro e secreto. Fora tirado do seu castelo por ciganos e, provavelmente, estes entregaram sua carga aos eslovacos, que transportaram as caixas para Varria, para serem despachadas para Londres. Assim, o Conde conhecia as pessoas capazes de executar esse serviço. Quando a caixa estava em terra, entre o anoitecer e o amanhecer, ele saiu da caixa, esteve com Skinsky e deu-lhe instruções sobre o modo de providenciar o transporte da caixa rio acima. Feito isso, apagou Sua Pista, assassinando seu agente.

Examinei o mapa e cheguei à conclusão de que os eslovacos devem estar subindo ou o Pruth ou o Sereth.

Li no diário que, em meu transe, ouvi o mugido de vacas e a água correndo à altura de meus ouvidos, e o ruído de madeira. O Conde, então dentro da caixa, estava num rio, num barco aberto, impulsionado por varas ou remos, subindo a correnteza.

Naturalmente, tanto pode ser o Sereth como o Pruth. O Pruth é mais facilmente navegável, mas o Sereth recebe, que contorna o Passo de Borgo e, portanto, passa muito mais perto do castelo de Drácula.

DIÁRIO DE MINA HARKER
(continuação)

Quando acabei a leitura, Jonathan tornou-me em seus braços e beijou-me. Os outros cumprimentaram-me, efusivamente, e o Dr. Van Helsing disse:

— Mais uma vez, Madame Mina foi o nosso mestre. Seus olhos viram quando nós estávamos cegos. Agora, estamos mais uma vez na Pista e, dessa vez, podemos ser bem sucedidos. Nosso inimigo está desamparado; se pudermos apanhá-lo de dia, sobre a água, nossa tarefa estará terminada. Agora, ao nosso Conselho de Guerra!

— Vou arranjar urna lancha a vapor para segui-lo — disse Lord Godalming.

— E eu vou arranjar cavalos, para segui-lo pela margem do rio, a fim de vigiar suas possibilidades em terra — disse o Sr. Morris.

— Muito bem! — disse o professor — mas ninguém deve ir sozinho. Devemos dispor de força, para o caso de necessidade; os eslovacos são fortes e perigosos, e ele leva armas poderosas.

— Eu trouxe algumas espingardas Winchester — disse o Sr. Morris. — Devemos estar preparados para tudo.

— Acho que é melhor eu ir com Quincey — disse o Dr. Seward. — Estamos acostumados a caçar juntos. Você não deve ir sozinho, Art. Pode haver necessidade de enfrentar os eslovacos e, desta vez, não devemos facilitar. Não podemos descansar enquanto a cabeça e o corpo do Conde não tenham sido separados e tenhamos certeza de que ele não poderá reencarnar.

Olhou para Jonathan, enquanto falava, e Jonathan olhou para mim. Percebi, perfeitamente, o que o torturava. Naturalmente, queria ficar comigo; mas a expedição da lancha seria, muito provavelmente, a que iria destruir... o... o... Vampiro. (Por que hesitei ao escrever esta palavra?).

— Amigo Jonathan — disse o Dr. Van Helsing — você é que deve ir com ele, por dois motivos. Em primeiro lugar, porque é jovem e valente e pode lutar com todas as energias que serão necessárias; e, em segundo lugar, porque tem o direito de destruí-lo, de destruir aquele que trouxe tantos males para você e os seus. Não tenha receio quanto a Madame Mina; tudo farei ao meu alcance, para protegê-la. Estou velho, mas posso lutar à minha maneira. E, se for preciso saberei morrer, como os homens mais moços. Enquanto Lord Godalming e o amigo Jonathan subirem o rio na lancha e John e Quincey tomarem conta da margem do rio, onde talvez ele desembarque, levarei Madame Mina bem no coração do país inimigo. Enquanto a velha raposa estiver presa dentro de sua caixa, flutuando em água corrente, de onde não pode escapar para a terra, iremos seguir o roteiro seguido por Jonathan, indo de Bistritz, através do Borgo, até o castelo de Drácula. O poder hipnótico de Madame Mina sem dúvida nos será útil e encontraremos nosso caminho depois do primeiro nascer do sol, quando estivermos próximos do lugar fatídico. Temos muita coisa que fazer e muitos lugares a santificar, para que aquele ninho de víboras seja arrasado.

— Quer dizer, professor, — exclamou Jonathan, muito excitado — que o senhor pretende levar Mina, enquanto ela está com essa doença infernal, bem dentro daquela armadilha? De modo algum!

Durante um momento, sua emoção foi tão grande que nem o deixou falar, depois prosseguiu:

— Sabe o que é aquele lugar horripilante? Sentiu os lábios do Vampiro em seu pescoço? Meu Deus, que fiz para termos esse horror sobre nós?

E deixou-se cair sentado num sofá, completamente abatido.

— Meu amigo — disse o professor — é porque quero salvar Madame Mina daquele lugar horripilante que devo ir. Deus não permita que eu a tenha de levar. Lá deve ser feito um trabalho medonho, que seus olhos não devem ver. Todos vocês, com exceção de Jonathan, viram com os próprios olhos, o que tem de ser feito para que aquele lugar fique purificado. Lembrem-se que, se o Conde escapar desta vez, pode resolver ficar dormindo durante um século e, em tal caso, sabe o que aconteceria, Jonathan. Meu amigo, não se trata de uma terrível necessidade, para a qual estou arriscando possivelmente, a vida?

— Faça o que quiser — disse Jonathan, com um suspiro que o fez tremer de alto a baixo — estamos nas mãos de Deus!

Mais tarde — É admirável o esforço e a boa vontade desses homens. Graças a Deus, Lord Godalming é rico e tanto ele, como o Sr. Morris, que também tem dinheiro, mostram-se dispostos a gastá-lo generosamente. Sem isso, nossa pequena expedição não poderia partir, tão depressa, nem tão bem equipada. Não fazem três horas que resolvemos o que cada um de nós faria e Lord Godalming e Jonathan já dispõem de uma ótima lancha, que partirá ao primeiro sinal. O Dr. Seward e o Sr. Morris já estão com meia dúzia de cavalos aparelhados. Dispomos de todos os mapas e instrumentos de que necessitamos. Eu e o professor Helsing partiremos pelo trem de 11:40 da noite de hoje para Veresti, onde arranjaremos uma carruagem, para atravessarmos o Passo de Borgo. O professor fala vários idiomas, o que facilitará muito as coisas. Nós todos seguiremos armados, até eu, que tenho um revólver. Infelizmente, não posso usar as armas que os outros podem: a mancha de minha testa o impede.

Mais tarde — Foi preciso toda a coragem para me despedir de meu marido. Talvez nunca mais nos vejamos.

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

30 de outubro, à noite — Estou escrevendo ao clarão da fornalha da lancha, que Lord Godalming está atiçando. Ele tem grande experiência com lanchas, tendo uma no Tâmisa e outra em Norfolk Broads. No que diz respeito aos nossos planos, estamos convencidos de que a dedução de Mina estava correta e que, se o Conde fugir para o seu castelo por via fluvial, será pelo Sereth e depois pelo Bistritza. Chegamos à conclusão de que o lugar escolhido para a travessia da região, entre o rio e os Cárpatos, deve ser mais ou menos a 47 graus de latitude norte. Não temos receio de subir o rio à noite a boa velocidade, pois ele é largo e bem profundo. Lord Godalming me disse para dormir um pouco, a fim de revezarmos, mas estou sem sono. Não posso dormir, lembrando-me do perigo terrível que ameaça minha querida Mina e de que ela vai àquele lugar maldito. Meu único consolo é que estamos nas mãos de Deus.

O Sr. Morris e o Dr. Seward partiram antes de nós; estão seguindo pela margem direita, mas afastados do rio, pelo planalto, de onde podem ter uma vista ampla do curso dágua e evitar seguir suas curvas. No princípio do percurso, levaram dois homens, para tomar conta dos cavalos de reserva, quatro ao todo. Dentro em pouco, dispensarão os homens e eles mesmos cuidarão dos animais. Uma das selas poderá ser transformada em silhão, rapidamente, para servir a Mina, em caso de necessidade.

31 de outubro — Continua a viagem. O dia nasceu e Godalming está dormindo. Estou de plantão. A manhã está muito fria e é agradável ficar junto à fornalha. Ainda há pouco, passamos por alguns barcos abertos, mas nenhum deles conduzia qualquer caixa ou volume parecido. Sempre que voltávamos sobre eles o foco da lanterna elétrica, os tripulantes ficavam amedrontados e caíam de joelhos, rezando.

1 de novembro, à noite — Nenhuma novidade, durante todo o dia. Revistamos toda embarcação encontrada, grande ou pequena. Hoje de manhã cedo a tripulação de um barco nos tomou por autoridades e nos tratou com o máximo respeito. Isso nos deu uma idéia, e em Fundu, onde o Bistritza deságua no Sereth, arranjamos uma bandeira da Romênia, que hasteamos ostensivamente. O truque deu resultado com todas as embarcações que revistamos depois. Alguns eslovacos nos disseram que um grande barco passou por eles, navegando a uma velocidade superior à habitual, pois tinha uma tripulação dupla. Isso ocorrera antes deles chegarem a Fundu, de modo que não podiam dizer se o barco entrara no Bistritza ou continuara no Sereth. Em Fundu ninguém nos deu notícia de tal barco. Estou sentindo muito sono. Godalming insiste em fazer o primeiro plantão, Deus que o abençoe, por tudo quanto tem feito por Mina e por mim.

2 de novembro, pela manhã — É dia claro. Godalming não me acordou. Diz que seria uma malvadeza, pois eu dormia tranqüilamente, esquecido dos sofrimentos. Parece egoísmo eu ter dormido tanto, deixando-o velar a noite toda. Sinto-me outro; Godalming dorme. Onde estarão agora Mina e Van Helsing? Devem ter chegado a Veresti lá pelo meio-dia de quarta-feira. Deus os guie e proteja! Se pudéssemos viajar mais depressa!

DIÁRIO DO DR. SEWARD

2 de novembro — Três dias. Nenhuma novidade e nenhum tempo para escrever, pois cada minuto é precioso. Temos de nos apressar; só ficaremos satisfeitos quando avistarmos a lancha de novo.

3 de novembro — Soubemos em Fundu que a lancha subiu o Bistritza. O frio está apertando. Há indícios de neve; se cair muito pesada, ela nos deterá. Nesse caso, teremos de arranjar um trenó e prosseguir viagem à moda russa.

4 de novembro — Soubemos hoje que a lancha foi detida por um acidente, quando tentava forçar caminho numa corredeira. Os barcos eslovacos sobem bem, com a ajuda de um cabo e de um piloto experimentado. Poucas horas antes, alguns tinham passado. Afinal, a lancha passou, mas, segundo informaram os camponeses, a embarcação parecia avariada.

DIÁRIO DE MINA HARKER

31 de outubro — Chegamos a Veresti ao meio-dia. O professor me contou que hoje ao amanhecer mal conseguiu me hipnotizar e que a única coisa que pude dizer foi: “escuro e quieto”. Ele saiu para comprar uma carruagem e cavalos. Mais tarde, disse ele, comprará mais cavalos, para podermos mudá-los, durante a viagem. Temos mais de 7O milhas diante de nós.

Mais tarde — O Dr. Van Helsing voltou. Arranjou os cavalos e a carruagem; vamos jantar e partir dentro de uma hora. A dona do hotel preparou um enorme cesto de provisões, que parece dar para um regimento.


CAPÍTULO XXVII

 

DIÁRIO DE MINA HARKER

1 de novembro — Viajamos durante todo o dia, a boa velocidade. O Dr. Van Helsing tem se mostrado lacônico; diz aos camponeses que estamos com pressa de chegar a Bistritz e pagá-los bem para fazerem a muda dos cavalos. Parece que não se cansa; não repousou durante todo o dia, embora tivesse me obrigado a dormir bastante. Ao anoitecer, hipnotizou-me e, segundo me contou, minha resposta foi a habitual: escuridão, água batendo e estalidos de madeira. Portanto, nosso inimigo ainda está no rio. Escrevo isto enquanto esperamos, numa fazenda, que aprontem os cavalos. Já vamos partir...

2 de novembro, pela manhã — Consegui dirigir a carruagem, enquanto Van Helsing descansava e, assim nos revezando, viajamos durante toda a noite. Agora, estamos em pleno dia, claro, apesar de frio.

Há na atmosfera um peso estranho — digo peso por falta de um termo melhor. Ambos sentimo-nos oprimidos. Ao amanhecer, Van Helsing me hipnotizou e disse que eu respondi: “escuridão, madeira estalando e água rugindo”, o que quer dizer que o rio está mudando, à medida que sobe. Espero que meu marido não esteja correndo perigo — mais do que seja necessário; mas estamos nas mãos de Deus.

2 de novembro, à noite — Viajamos todo o dia. A região está se tornando mais selvagem, à medida que nos aproximamos das encostas dos Cárpatos. O Dr. Van Helsing diz que amanhã cedo chegaremos ao Passo de Borgo. Os cavalos são muito poucos agora e os que restam terão que seguir conosco, pois não poderão ser mudados. Atravessaremos o Passo de Borgo de dia; não queremos chegar antes.

MEMORANDO DE ABRAHAM VAN HELSING

4 de novembro — Para o meu velho e leal amigo John Seward, médico de Purfleet, em Londres, para o caso de não me ver. Estamos de manhã e escrevo junto de uma fogueira que eu e Madame Mina conservamos acesa durante toda a noite. Está fazendo muito frio e Madame Mina está dormindo. Ao anoitecer, tentei hipnotizá-la. mas, infelizmente, sem resultado.

Chegamos ao Passo de Borgo logo depois do amanhecer de ontem. Ao ver os sinais da aurora, preparei-me para hipnotizar Madame Mina. Paramos a carruagem e descemos. Preparei uma cama com peles, fi-la deitar-se e com muito mais rapidez que sempre, ela ficou hipnotizada. Como antes, veio a resposta: “escuridão e o burburinho da água” Depois, acordou, muito bem disposta, e, em breve chegamos ao Passo. Nessa ocasião, algum novo poder pareceu se manifestar nela, pois apontou para a estrada, dizendo:

— Este é o caminho.

— Como sabe? — perguntei.

— Naturalmente o conheço — disse ela, acrescentando, depois de uma pausa — Jonathan não viajou por ele e descreveu viagem?

A princípio, achei estranho, mas depois vi que só existia aquele caminho transversal. Seguimos por ele. Aos poucos, fomos encontrando tudo que Jonathan descreveu em seu diário. Viajamos durante muitas horas. Eu disse a Madame Mina para dormir e ela dormiu de fato durante muito tempo, tanto que fiquei desconfiado e tentei acordá-la. Afinal, depois de muito tempo, consegui despertá-la. Tentei hipnotizá-la, algum tempo depois, mas não consegui. Quando terminei os meus inúteis esforços, escurecera de todo. Madame Mina deu uma risada. Está acordada, agora, e parece tão bem disposta como eu nunca mais a vira, desde aquela noite em Carfax, quando entramos, pela primeira vez, em casa do Conde. Estou um tanto intrigado, mas ela está tão alegre e atenciosa comigo, que me esqueço de todos os temores. Acendi uma fogueira e, enquanto ela preparava a comida, fui cuidar dos cavalos. Quando voltei, a comida já estava pronta, mas ela não quis comer comigo, dizendo que estava com tanta fome que não agüentara me esperar. Não gostei disso, mas tive medo de assustá-la e nada disse. Distraí-me ao comer e, quando a olhei de novo, ela estava acordada, mas encarando-me com os olhos muito brilhantes. Dormi até pouco antes do amanhecer. Tentei hipnotizá-la, mas sem resultado. Quando o sol se levantou foi que ela adormeceu profundamente. Tive de carregá-la para a carruagem, depois de ter selado e atrelado os animais. Ela continua a dormir, parecendo mais bem disposta que nunca. E eu tenho medo, muito medo!

5 de novembro, pela manhã — Viajamos ontem o dia inteiro, aproximando-nos cada vez mais das montanhas e atravessando uma região cada vez mais selvagem. Madame Mina continuava dormindo, e o sol estava baixando. Mas de repente, a paisagem mudou: as montanhas Pareciam afastar-se e chegamos perto do alto de uma colina íngreme com um castelo igual ao que Jonathan descreveu em seu diário. Regozijei-me e estremeci ao mesmo tempo pois agora, para o bem ou para o mal, o fim estava próximo.

Acordei Madame Mina e mais uma vez tentei hipnotizá-la, em vão. Acendi uma fogueira e preparei a comida, mas ela não comeu, protestando, simplesmente, falta de apetite. Não a forcei, mais tratei de comer, pois sabia que precisava mostrar-me muito forte, para enfrentar o que tinha pela frente. Depois, temeroso, tracei uma grande circunferência em torno do lugar em que estava Madame Mina e, sobre ela, espalhei uma parte da hóstia, que eu pulverizara muito, de maneira que nenhum lugar da circunferência ficasse descoberto. Madame Mina ficou sentada, durante todo aquele tempo, imóvel como se estivesse morta, e foi empalidecendo até se tornar mais pálida do que a neve; e não dizia uma palavra. Mas, quando me aproximei, ela se agarrou a mim, tremendo da cabeça aos pés.

— Não quer chegar até a fogueira? — perguntei-lhe desejando verificar o que ela podia fazer.

Ela levantou-se, mas, depois de dar um passo, parou.

— Por que não vem? — insisti.

Ela sacudia a cabeça e tornou a sentar-se onde estava.

— Não posso! — exclamou, depois.

Regozijei-me, pois o que ela não podia fazer nenhum daqueles de quem eu tinha medo poderia.

Embora houvesse perigo para seu corpo, sua alma estava salva!

Pouco depois, os cavalos começaram a relinchar e a empinar e tratei de acalmá-los. Quando sentiram minhas mãos em seu pêlo, mostraram-se alegres e acalmaram-se, lambendo-me as mãos. Muitas vezes, durante a noite, o fato se repetiu.

Pela madrugada, a fogueira começou a apagar-se e fui atiçá-la, pois a neve estava começando a cair e o frio a apertar. No meio da escuridão, havia uma espécie de luz e a neve, ao cair, parecia assumir formas humanas, de mulheres arrastando vestidos compridos. O silêncio era quebrado apenas pelo relincho dos cavalos, que pareciam apavorados. Comecei a sentir medo, um medo terrível. Tive medo por Madame Mina, quando aqueles vultos malditos se aproximaram, rodando em torno. Olhei-a, mas ela estava calma, contemplando-me; como eu desse um passo em direção a fogueira, para avivá-la, ela me agarrou pelo braço, sussurrando como uma voz que a gente só ouve em sonhos, tão baixa era:

— Não! Não saia! Não saia! Aqui está em segurança!

Encarei-a nos olhos e disse:

— Mas e a senhora? É pela senhora que tenho medo!

— Medo por mim? Por quê? Ninguém está mais em segurança no mundo que eu! — disse ela, soltando uma gargalhada, baixa, estranha.

Quando procurava refletir sobre a significação de suas palavras, um sopro de vento avivou as chamas e, à luz da fogueira, vi a mancha vermelha na testa da pobre moça.

Então, compreendi. De qualquer maneira, teria compreendido pouco depois, pois as figuras que giravam na névoa e na neve se aproximaram, mantendo-se, porém, sempre fora do círculo sagrado. E começaram a materializar-se até que vi as três mulheres que Jonathan tinha visto.

— Venha, irmã! Venha conosco! — gritavam.

Olhei para Madame Mina e senti uma alegria profunda, ao ver a repulsa, o terror, estampado em seus olhos. Graças a Deus, não era ainda delas!

E assim ficamos até o amanhecer, enquanto a neve caía. Eu me sentia abatido e amedrontado, mas quando o sol começou a subir pelo horizonte, tudo mudou. Aos primeiros alvores da aurora, as figuras malditas se dissolveram, num turbilhão de névoa e neve, que desapareceu, na direção do castelo.

Vendo que o amanhecer se aproximava, virei-me, instintivamente, para Madame Mina, disposto a hipnotizá-la, mas ela adormecera, de súbito, profundamente, e não consegui acordá-la. Fui ver os cavalos: todos estavam mortos. Tenho muita coisa que fazer hoje. Vou comer para me fortalecer bastante e depois, mãos à obra! Madame Mina continua a dormir. Graças a Deus, seu sono é calmo.

DIÁRIO DE JONATHAN HARKER

4 de novembro, à noite — O acidente com a lancha foi um golpe terrível para nós. Se não fosse isso, já teríamos alcançado o barco há muito tempo e minha querida Mina estaria livre. Não gosto nem de lembrar dela perto daquele lugar horrível. Arranjamos cavalos e estamos seguindo por terra. Escrevo enquanto Godalming faz os preparativos. Se ao menos Morris e Seward estivessem conosco!

DIÁRIO DO DR. SEWARD

5 de novembro — Ao amanhecer, avistamos o grupo de ciganos diante de nós, afastando-se do rio, cercando a carroça. Ao longo, ouviam-se uivos de lobos; a neve, que cai sem cessar, deve tê-los expulsado das montanhas e estamos rodeados por perigo de todos os lados.

MEMORANDO DO DR. VAN HELSING

5 de novembro, à tarde — Pelo menos, não estou louco. Devo agradecer a Deus esta graça, depois do que passei. Deixei Madame Mina dormindo dentro do círculo sagrado e tomei o rumo do castelo. O malho de que me muni em Veresti foi útil: com ele, arrombei todas as portas. Lembrando-me do diário de Jonathan, encontrei o caminho da capela. O ar estava poluído; parecia haver ali algum vapor sulfuroso, que, às vezes, me punha inteiramente tonto.

Lembrei-me, então, de Madame Mina e senti um aperto no coração. Não me atrevera a trazê-la àquele lugar, e a deixara protegida contra o Vampiro, naquele círculo sagrado; mas mesmo lá havia o perigo do lobo! Mas a tarefa que eu tinha de executar estava ali e, quanto aos lobos, tínhamos de nos resignar, se essa fosse a vontade de Deus.

Eu sabia que tinha de encontrar pelo menos três sepulturas — sepulturas habitadas. Procurei e encontrei uma delas. Ali estava ela, em seu sono de vampiro, tão cheia de vida e voluptuosa beleza que estremeci lembrando-me que tinha ido para matar.

Sentia-me fascinado, sem dúvida, pela simples presença daquela mulher, embora estivesse numa sepultura estragada pelo tempo e coberta pelo pó dos séculos, e apesar do cheiro horrível que ali havia, como nos esconderijos do Conde. E eu, Van Helsing, com toda a minha resolução e todo o meu justificado ódio, senti-me imobilizado. Mas, através do espaço, veio um som, vibrante como o toque de um clarim, que me fez agir; pois era a voz de Madame Mina.

E eis-me de novo entregue à minha sinistra tarefa, arrombando outro túmulo de outra das irmãs, a outra morena. Não me atrevi a parar para olhá-la, como fizera com a primeira; e continuei procurando até que, pouco depois, encontrei, num túmulo grande e alto, a outra irmã loura que, como Jonathan, eu tinha visto se corporificar, saindo dos átomos da névoa. Tinha uma beleza tão radiosa que meu próprio instinto de homem me gritava para amá-la e protegê-la. Mas, Deus seja louvado, o gemido angustioso de Madame Mina não saíra de meus ouvidos; e, antes que o encantamento tivesse efeito sobre mim, eu tinha terminado o pavoroso trabalho.

Eu já procurara, então, todos os túmulos da capela e tinha visto apenas três daqueles fantasmas, durante a noite, pelo que deduzi que não havia mais Não-Mortos ali. Havia um grande túmulo, mais imponente que todos os outros. Nele havia apenas uma palavra:

DRÁCULA

Era, portanto, a casa do Não-Morto, do Vampiro-Rei, responsável por tantos outros. Antes de fazer voltar as mulheres à condição de mortas, com meu horroroso trabalho, espalhei sobre o túmulo de Drácula um pouco da Hóstia e assim o bani para sempre dali.

Depois começou minha medonha tarefa, e tive medo. Se fosse uma só, teria sido relativamente fácil. Mas três! Se tinha sido horrível com a encantadora Miss Lucy, que dizer com aquelas estranhas, que tinham sobrevivido durante séculos e se fortificado com a passagem dos anos e que, se pudessem, lutariam por sua vida?

Foi um trabalho de carniceiro, amigo John. Se eu não tivesse fortalecido meus nervos pela lembrança da outra morta, não teria ido adiante.

Graças a Deus, meus nervos não fraquejaram. Se não tivesse visto a expressão de repouso da primeira, e a alegria que demonstrou antes da dissolução final, revelando que a alma fora conquistada, eu não teria ido adiante em minha carnificina. Não poderia suportar as horríveis contorções, quando a estaca atravessou o peito, nem os lábios expelindo espuma sangrenta. Pobres almas! Agora sinto piedade delas, tão calmas se mostram no seu sono de morte, por um rápido momento, antes do desaparecimento final. De fato, amigo John, mal minha faca cortou a cabeça de cada uma delas, o corpo começou a se desmanchar e transformou-se em pó, como se a morte, que esperara tantos séculos, tivesse afinal proclamado: “Aqui estou!”

Antes de sair do castelo selei suas entradas, para que nunca mais o Conde ali penetrasse como Não-Morto.

Quando entrei no círculo onde Madame Mina estava dormindo, ela acordou e, ao me ver, gritou:

— Vamos sair deste lugar horrível! Vamos encontrar com meu marido, que, tenho certeza, está se aproximando de nós.

Estava pálida e fraca, mas seus olhos denotavam pureza e fervor.

E, cheio de esperança e confiança, porém, ao mesmo tempo, de medo, caminhamos para o nascente, para nos encontrarmos com nossos amigos, que Madame Mina tinha me dito saber que estavam se aproximando de nós.

DIÁRIO DE MINA HARKER

6 de novembro — A tarde já ia muito adiantada quando eu e o professor seguimos rumo ao nascente, por onde eu sabia que Jonathan estava vindo. Não caminhamos depressa, embora o caminho fosse em declive, pois estávamos levando peles, para nos proteger contra o frio, e provisões. Quando tínhamos caminhado cerca de uma milha, cansei-me e sentei-me. Olhamos para trás e vimos o castelo de Drácula recortando o céu, imponente sobre um precipício quase a pique. Ao longe, ouviam-se uivos de lobos. Estavam longe, mas seu rugido, mesmo chegando abafado pela neve que caía, era pavoroso.

Dentro em pouco, o professor que se adiantara, fez um sinal para mim e levantei-me indo me juntar a ele. Tinha descoberto um lugar maravilhoso, uma espécie de gruta na rocha, cuja entrada parecia uma porta. O professor colocou dentro da gruta as peles que tínhamos trazido e as provisões e me fez entrar. Insistiu comigo para comer, mas não consegui; a comida me causa repugnância. O professor tirou da caixa seu binóculo e ficou em pé no alto do rochedo, olhando o horizonte. De repente, gritou:

— Venha ver, Madame Mina!

Subi para junto dele, que me entregou o binóculo, apontando na direção correta. A neve estava caindo, e o vento a arrastava com força. Às vezes, porém, havia pausas no vento e eu podia ver um longo trecho do caminho. Além de um grande espaço coberto pela neve, pude ver um rio, que parecia uma fita escura. Bem em frente de nós, e não muito distante — de fato tão perto que fiquei admirada de não ter avistado antes — vinha um grupo de homens montados a cavalo, rodeando uma carroça. Pelas vestimentas, pareciam ciganos.

Sobre a carroça, havia uma grande caixa quadrada. Meu coração bateu furiosamente, ao avistar aquilo, pois compreendi que o fim estava se aproximando. A noite chegava e eu sabia que, quando o sol se escondesse, a “coisa” que ainda estava aprisionada na caixa adquiriria liberdade e poderia fugir à perseguição. Voltei-me para o professor, mas verifiquei, consternada, que ele não estava mais lá. Logo em seguida, eu o vi embaixo do rochedo, em torno do qual traçou um círculo, igual àquele dentro do qual eu me abrigara na noite anterior. Quando terminou, voltou para junto de mim e disse:

— Pelo menos, a senhora estará aqui livre dele!

Tomou o binóculo de minhas mãos e exclamou:

— Veja. Estão vindo depressa; chicoteiam os cavalos e galopam com a maior velocidade que podem. Querem chegar antes do anoitecer. É possível que estejamos muito atrasados.

Uma rajada de neve encobriu o espaço diante de nós, mas passou dentro em pouco e outra vez o binóculo se fixou na planície. E, de súbito, um grito:

— Veja! Dois cavaleiros chegam do sul, a galope. Devem ser Quincey e John. Tome o binóculo e olhe antes da neve ocultar tudo.

Peguei o binóculo e olhei. Os dois homens podiam ser o Dr. Seward e o Sr. Morris. De qualquer maneira, eu sabia que nenhum deles era Jonathan. Ao mesmo tempo, sabia que Jonathan não estava longe; e, olhando em torno vi dois outros homens galopando a toda velocidade. Um deles eu sabia que era Jonathan e deduzi que o outro era Lord Godalming. Também eles estavam perseguindo o grupo de homens com a carroça. Quando contei ao professor, ele deu gritos de satisfação, como um menino, e, depois de olhar atentamente, até que a neve impediu a visão, preparou sua carabina. Eu tirei o revólver, disposta a utilizá-lo, também, pois, enquanto conversávamos, o uivo dos lobos estava se aproximando cada vez mais.

Quando a neve diminuiu por um momento, tornamos a olhar. Pelas encostas da montanha pontos escuros se moviam aos dois e três, ou mais: os lobos estavam se reunindo, para atacar sua presa.

Cada instante de espera parecia uma eternidade. O vento fazia a neve rodopiar e, às vezes, não enxergávamos um palmo diante do nariz e outras vezes nossa vista alcançava até longe. O sol descia no horizonte e o grupo de ciganos se aproximava.

De repente, duas vozes gritaram: “Alto!” Uma era de Jonathan, alta e emocionada; outra do Sr. Morris, calma e resoluta. Os ciganos podiam não entender a língua, mas o tom era inconfundível em qualquer língua em que a palavra fosse dita. Instintivamente, eles pararam e Lord Godalming e Jonathan aproximaram-se, a galope, de um lado, e o Dr. Seward e o Sr. Morris de outro. O chefe dos ciganos, um homem de aspecto magnífico, que parecia um centauro, deu ordem a seus homens de prosseguirem a cavalgada e estes obedeceram; mas os quatro homens apontaram as carabinas e ordenaram, ameaçadoramente, que parassem. Os ciganos pararam de novo e o chefe lhes deu nova ordem. Cada um se muniu da arma de que dispunha, faca ou pistola, e preparou-se para a luta.

O chefe lançou o cavalo para a frente apontando primeiro para o sol — que estava quase atingindo o alto da montanha — depois para o castelo, disse alguma coisa que não pudemos compreender. Em resposta, nossos quatro companheiros apearam e avançaram contra a carroça. Eu devia ter tido um medo horrível de ver Jonathan correndo tal perigo, mas o ardor da batalha deve ter me empolgado como aos demais; não senti medo, mas apenas um desejo frenético de alguma coisa. O chefe dos ciganos deu uma ordem a seus homens, que imediatamente rodearam o carro, formando um muro difícil de ser transposto.

Vi Jonathan de um lado do círculo de homens e Quincey de outro, forçando passagem para a carroça. A impetuosidade de Jonathan deu bom resultado e ele conseguiu galgar a carroça e, com força inacreditável, empurrou a grande caixa para o chão. Enquanto isto, o Sr. Morris tivera de empregar a força para romper o círculo dos ciganos. Enquanto eu, contendo a respiração, olhava para Jonathan, tinha, também, percebido o Sr. Morris avançar desesperadamente entre as facas dos ciganos e, quando chegou ao lado de Jonathan, que pulara da carroça, vi que apertava a ilharga com uma das mãos e que o sangue escorria entre seus dedos. Não se deteve, contudo, pois, enquanto Jonathan procurava, com desesperada energia, levantar, com seu facão, a tampa da caixa no lado de cima, ele atacou pelo outro lado, freneticamente. Sob os esforços conjuntos dos dois, a tampa da caixa foi aberta.

Enquanto isto, os ciganos, vendo-se ameaçados pelas carabinas de Lord Godalming e do Dr. Seward, tinham desistido de resistir. O sol estava quase se escondendo sobre os cumes da montanha e as sombras de todo o grupo caíam sobre a neve. Vi o Conde estendido dentro da caixa, sobre a terra, uma parte da qual se espalhara sobre ele, quando a caixa caíra da carroça. Estava mortalmente pálido, parecendo uma figura de cera e seus olhos vermelhos tinham aquela expressão horrível que eu conhecia tão bem.

E quando aquele olhos viram o sol que se punha, a expressão de ódio transformou-se numa expressão de triunfo.

Mas, naquele instante, o facão de Jonathan brilhou. Estremeci, ao vê-lo cortando o pescoço do Conde; ao mesmo tempo, a faca do Sr. Morris atravessou-lhe o coração.

Foi como um milagre; diante dos nossos próprios olhos, em menos de um segundo, todo o corpo se transformou em pó e desapareceu de nossa vista.

Enquanto viver, terei a alegria de lembrar que, no momento da dissolução final, houve no rosto do Conde uma expressão de paz como jamais supus que pudesse haver.

Os ciganos, ao verem o extraordinário desaparecimento do morto, fugiram, sem uma palavra. Os que estavam na carroça, gritavam aos outros que não os abandonassem, enquanto fugiam também. Os lobos, que tinham se mantido a certa distância, saíram atrás deles, deixando-nos livres.

O Sr. Morris, que tinha caído no chão, apoiou-se no cotovelo, com a mão apertando a ilharga; o sangue continuava a escorrer entre os seus dedos. Corri para junto dele, pois o círculo sagrado já não me detinha; o mesmo fizeram os dois médicos. Jonathan ajoelhou-se por trás dele e o ferido encostou a cabeça em seu ombro. Com um suspiro, Morris segurou minha mão com a sua que não estava suja de sangue. Deve ter visto a angústia estampada em meu rosto, pois sorriu, dizendo:

— Sinto-me feliz por ter sido útil! Meu Deus! — gritou, apontando para mim. — Vale a pena morrer para isso! Olhem!

O sol estava bem em cima do cume da montanha e seus raios caíam em cheio sobre meu rosto. Impulsivamente, os homens caíram de joelho, exclamando: “Amém”.

— Graças a Deus que tudo não foi em vão! — disse o moribundo. — Vejam! A neve não é mais imaculada que sua fronte! A maldição passou!

NOTA

Há sete anos atrás, todos nós atravessamos um inferno; e a felicidade de alguns de nós depois disso compensa, penso eu, tudo que sofremos. Eu e Afina sentimo-nos satisfeitos pelo fato do aniversário de nosso filho transcorrer na mesma data da morte de Quincey Morris. Sua mãe acredita, eu sei, que algo do espírito abnegado e bravo de nosso amigo passou para ele. Seu nome é uma homenagem a todo o nosso grupo de amigos; mas nós o chamamos de Quincey.

No verão deste ano, fizemos uma viagem à Transilvânia e percorremos os lugares tão cheios, para nós, de terríveis recordações. É quase impossível acreditar que o que vimos com nossos próprios olhos e ouvimos com nossos próprios ouvidos tenha sido verdade. Todos os seus traços desapareceram. O castelo continua como antes, erguendo-se sobre uma paisagem de desolação.

Ao regressarmos, falamos dos velhos tempos, de que podemos lembrar sem desespero, pois tanto Godalming como Seward estão casados e são felizes. Tirei os papéis do cofre, onde estavam encerrados desde nosso regresso, há tanto tempo.

Ficamos chocados com o fato de que, em todo esse material, dificilmente se encontra um documento autêntico; tudo se resume em papel datilografado, com exceção das últimas anotações feitas por mim, Mina e Seward e do memorando de Van Helsing. Não poderíamos exigir que alguém aceitasse tais documentos como prova de acontecimentos tão estranhos. Van Helsing resumiu tudo, ao dizer, enquanto carregava nosso filho nos joelhos:

— Não precisamos de provas; não pedimos a ninguém que nos acredite! Este menino saberá, algum dia, como sua mãe foi valente e corajosa. Já conhece sua dedicação e carinho; mais tarde, há de saber como alguns homens a amaram tanto que se atreveram a tais coisas para sua salvação.

JONATHAN HARKER


 

©2002 — Bram Stoker

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Dezembro 2002

 

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