Comenius: o Criador da Didática Moderna
Daniel Walker
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© 2002 Daniel Walker
walker@baydejbc.com.br
O Autor
Comenius: o Criador da Didática Moderna
Sumário
DANIEL WALKER
Biografia
Daniel Walker, (1947– ), nasceu em Juazeiro do Norte, Ceará, onde reside. Jornalista, biólogo, professor adjunto da Universidade Regional do Cariri-URCA, escritor, pesquisador da vida de Padre Cícero, a figura mais polêmica do clero brasileiro, sobre quem já publicou vários trabalhos.
Obras publicadas:
Padre Cícero na berlinda,
Pensamento Vivo de Padre Cícero,
Biografia Resumida de Padre Cícero,
O Corpo Humano é Engraçado,
Livro das Diferenças,
Maria de Araújo, a Beata do Milagre de Juazeiro,
Como Elaborar Trabalhos Escolares (Manual Para Estudantes
de Ensino Fundamental e Médio).
Curiosidades sobre Padre Cícero
Juazeiro do Norte, a terra de Padre Cícero
Padre Cícero e o livro de Alencar Peixoto
Padre Murilo de Sá Barreto, O Vigário do Nordeste, O padre
Romeiro(Co-autor)
A Câmara Municipal em Ação-Memória do Poder Legislativo
(Co-autor)
O Centenário de Leão Sampaio
Curso de Informante de Turismo
Conhecendo o Cariri (Co-autor)
Padre Cícero e a educação ambiental
Padre Cícero na ótica do prof. Daniel Walker
O Ensino das Ciências Físicas e Biológicas (Co-autor)
Algumas implicações ecológicas das romarias em Juazeiro do
Norte
Comenius: o Criador da Didática Moderna
LIVROS EDITADOS PELA INTERNET
— Padre Cícero na berlinda
(www.ebooksbrasil.org)
— Pequena biografia de Padre Cícero
(www.ebooksbrasil.org)
— Como organizar trabalhos escolares
(www.ebooksbrasil.org)
— O Corpo Humano é engraçado
(www.ebooksbrasil.org)
— O livro das diferenças
(www.papelvirtual.com.br)
— Comenius: o Criador da Didática Moderna
(www.ebooksbrasil.org)
e-mail: walker@baydejbc.com.br
Ele só queria ensinar tudo a todos
UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI-URCA
CURSO DE LICENCIATURA PLENA DO ENSINO FUNDAMENTAL
2001
Ficha Catalográfica da edição em papel:
Walker, Daniel (1947-
Comenius: o criador da didática moderna/Daniel Walker. Juazeiro do Norte:
HB Editora, 2001.
80 p.
1. Comenius, 1592-1670 2. Pedagogia 3. Pedagogia – História I. Título. II.
Série.
CDD-370-1
Endereço do Autor
Daniel Walker
Rua Santa Rosa, 776 – Caixa Postal 194
Telefones: 0xx885110663 – Cel. 99668032
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63011-970 – Juazeiro do Norte – Ceará
Copyright © Daniel Walker, 2001
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO AUTOR
AO PROFESSOR
INTRODUÇÃO
1. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO PRÉ-COMENIANA
1.1 Definição de Educação
1.2 Educação Primitiva
1.3 Educação Hindu
1.4 Educação Egípcia
1.5 Educação Chinesa
1.6 Educação Grega
1.7 Educação Romana
1.8 Educação Religiosa
2. COMENIUS, EDUCADOR, TEÓLOGO E REFORMADOR SOCIAL
2.1 Vida
2.2 Principais Obras
2.3 Ensinamentos
3. DIDACTICA MAGNA, A OBRA-PRIMA ANALISADA
3.1 Prolegômenos
3.2 A Pedagogia de Comenius
3.3 A Obra de Comenius Vista Pelos Críticos
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
Este modesto livro tem o propósito de tentar contribuir para o redescobrimento de Comenius, o criador da Didática Moderna e um dos maiores educadores do século XVII, hoje lamentavelmente muito pouco falado nas universidades.
Com essa redescoberta será possível tentar também o aprimoramento da prática pedagógica do professor, graças aos ensinamentos do grande mestre morávio, contidos na sua obra-prima Didactica Magna.
Todos sabemos que a missão do magistério nunca foi simples, e, hoje mais do que nunca, encerra uma grande massa de complexidade, exigindo paciência, talento, competência, inteligência e bastante operosidade por parte do professor.
Então, para “dar conta do recado”, usando uma expressão bem repisada, nada como rever os verdadeiros clássicos, reabsorver seus ensinamentos e pôr em prática o que for possível dentro da pedagogia atual.
O modismo (e a educação vive disso hoje) muitas vezes nos afasta das coisas boas. Mas fique certo o professor: não há nenhum inconveniente em se trazer para os dias de hoje a pedagogia de Comenius para efeito de reflexão junto a Paulo Freire, Piaget, Vygotsky, Montessori, Emília Ferreiro, Perrenoud, Rubem Alves, Libâneo, Pedro Demo, Saviani e tantos outros luminares da modernidade e da contemporaneidade da educação, pois todos eles, com absoluta certeza, também leram o grande pedagogo da Didactica Magna.
Para se ter uma idéia da importância e imortalidade dessa obra, basta dizer que foi escrita há mais de quatro séculos e ainda hoje continua em catálogo. Então, Caro Professor, conheça aqui um pouco de Comenius. Leia-o, aproveite o que for possível e bom êxito no seu trabalho de ensinar, de ensinar tudo a todos, como ele queria.
Daniel Walker
Durante muito tempo, os filósofos e educadores refletiram sobre a educação, deixando como resultado para a humanidade um legado de inestimável valor. E os educadores de hoje, em suas reflexões permanentes, não podem desconhecer esse legado.
Com efeito, todos eles, cada um a seu tempo, deram a sua contribuição de vida efêmera ou duradoura, porém todas, de alguma forma, indispensáveis para o avanço do sistema educacional.
Não há nenhuma dúvida, todo pensamento reflete a situação de cada época, da mesma forma que o pensamento atual reflete o que se passa no presente. E sendo assim, na incessante busca da verdade ninguém pode prescindir da reflexão do passado, como também, mais tarde não poderá abstrair da reflexão feita agora.
Quem opta pela educação, como exercício profissional, não deve ignorar, sob pretexto algum, o passado, pois isso certamente trará, como conseqüência, uma aberração da verdade. E, como se sabe, procurar a verdade onde quer que ela esteja é exigência básica para alguém tornar-se educador.
Rebuscando a história da educação vamos encontrar uma grande constelação de figuras de comprovada importância, nomes famosos que engrandeceram a educação em todas as partes do mundo. Neste trabalho elegemos a figura do educador eslovaco John Amos Komenský, ou João Amós Comenius (em sua forma mais conhecida), por considerarmos sua obra pedagógica um grande marco para o avanço da educação em sua época, com reflexos até nos dias de hoje. Devido a isso ele ainda é considerado, mesmo decorridos mais de quatro séculos de sua morte, por “Paul Monroe, Lorenzo Luzuriaga e muitos outros educadores como fundador da moderna pedagogia, profeta da moderna escola democrática e pai dos modernos métodos de ensino”. (Covello, 1991:86).
Aqui, relembrar Comenius não significa necessariamente impor uma pretensão de recuperar suas idéias e reaplicá-las como se fossem uma panacéia capaz de exterminar os atuais males da educação. Na verdade, a intenção mesmo é apenas procurar compreender a base do seu pensamento, a dinâmica do processo de sua constituição, explicitar as razões que o levaram a sugerir e principalmente a pôr em prática sua original arte de ensinar, mas sempre respeitando a época em que tudo aconteceu..
Ademais, como salienta Gasparin (1994:13):
O retorno a Comenius se tornou uma urgência a partir do momento em que constatamos a crise em que se encontra a didática atual. A preocupação com o imediato e o prático, no trabalho docente cotidiano, tem conduzido com freqüência a um profundo desconhecimento dos clássicos em educação que, em seu momento histórico, foram capazes de apreender as necessidades e os desafios que as práticas social e educacional determinavam.
E por fim, hoje mas do que nunca, vale a pena relembrar o educador checo, porque, conforme asseverou Luzuriaga (apud Covello, 1991:9):
Comenius foi o fundador da didática e, em parte, da pedagogia moderna. Mas foi, ainda, um pensador, um místico, um reformador social, personalidade extraordinária, em suma. Seu nome figura ao nível dos de Rousseau, Pestalozzi e Froebel, isto é, dos maiores da educação e da pedagogia.
Quem folheia os novos programas educacionais brasileiros denominados de PCN-Planos Curriculares Nacionais com seus Temas Transversais sente neles, direta ou indiretamente, a presença de Comenius, seja quando propõem “ensino para todos” seja quando pretendem “ensino de qualidade”. O ideal de Comenius.
No presente trabalho são feitas algumas considerações iniciais sobre a educação antes de Comenius, para efeito de reflexão, seguidas do que se pode definir como educação; depois, um breve ensaio biográfico do pedagogo morávio, com ênfase à sua rica coletânea de ensinamentos, e por fim, seu projeto educacional representado pela obra-prima Didacta Magna é analisado.
Uma coisa, porém, já parece incontestável: Comenius continua vivo! Não é uma mera lembrança do passado como algum contemporanista educacional de memória curta possa insinuar. Comenius pode não está explicitamente mostrado nos modismos atuais da educação, mas ajustando as lentes e melhorando a ótica de observação é possível vê-lo, ora denso ora tênue, até mesmo disfarçado, nas entrelinhas dos modelos pedagógicos contemporâneos. Mesmo no Construtivismo.
Ademais, sobre modismo educacional, é bom refletir nas palavras da especialista em desenvolvimento humano Elvira de Souza Lima, professora da Hofstra University, em Nova York, nos Estados Unidos, e da Universidade de Salamanca, na Espanha, em entrevista a Paola Gentile, na edição de dezembro de 2000 da revista Nova Escola:
É preciso ter muito cuidado com os modismos. Trabalhar só por projetos, partir da realidade do aluno e tudo isso que hoje se entende como o caminho da nova educação pode levar a escola a reproduzir apenas o que a criança e o jovem já aprendem fora. Essa não é sua função. A escola precisa preocupar-se com a formação humana. O aprendizado só ocorre quando são realizadas atividades como estudo, registro, pesquisa. Sem isso a criança não constrói conhecimento.
E também, como disse Telles (1999:55):
Recuperar o papel da Escola não deve significar, entretanto, uma ruptura completa com o passado, pois nada se constrói sobre nada. O passado deve estar vivo como lição, mostrando os erros e acertos.
É tempo, pois, de se falar de Comenius. Agora mesmo. Pois ele continua útil!
O instinto é uma característica encontrada também no homem, e não apenas em outros animais, como o inseto, por exemplo. Uma das diferenças entre o homem e os outros animais é o fato de grande parte do comportamento humano ser conduzido pela capacidade de aprendizagem do indivíduo. É justamente isto que faz o homem adquirir uma grande gama de conhecimentos, independentemente de sua programação hereditária.
Basicamente o aprendizado humano ocorre através de duas fontes:
— A experiência individual
— A transferência de conhecimentos
A experiência individual conduz a uma descoberta independente, enquanto que a transferência de conhecimentos é feita de indivíduo para indivíduo e, certamente, foi esta forma que prevaleceu.
Exercitando sua capacidade de aprender experiências – fator preponderante para que ele pudesse agir conforme um comportamento adquirido –, o homem deu origem ao processo conhecido como educação.
Dentre tantas definições, educação pode ser entendida de acordo com Cotrim, Parisi (1982:14) como “o processo pelo qual o homem através de sua capacidade para aprender, adquire experiências que atuam sobre a sua mente e o seu físico”.
Na história da humanidade a educação constitui sem dúvida uma das partes mais empolgantes, mais polêmicas e sobre a qual muito ainda se haverá de falar, embora dela já se fale desde a gênese da humanidade.
A educação, entretanto, é antes de tudo um problema, hoje um grande problema mundial, cuja solução tem sido procurada em todos os lugares. Por isso, não exagerou H.G.Wells quando disse “a história da humanidade vai se tornando cada vez mais uma corrida entre a educação e a catástrofe”. (Apud Jeffreys, 1975:11). E já dizia Bondoir (1977:9) “nunca, no passado, o problema da educação foi tão agudo quanto hoje.”
A educação será sempre alvo de controvérsias entre os estudiosos. Não é uma coisa sobre a qual se possa garantir êxito indiscutível, daí ter dito Jeffreys (1975:13):
A educação, como a democracia, é um processo lento e cheio de riscos. Pode sair errado, e pode falhar. Nada lucramos alimentando ilusões a respeito da eficácia da educação. Acreditamos na educação, assim como acreditamos na democracia, porque a alternativa seria o desespero final da humanidade. Mas nem a educação nem a democracia podem valer mais do que o povo que as põe em prática.”
A maioria dos estudiosos insiste em considerar a educação como um fenômeno ímpar, próprio da espécie humana. Dentro desse critério, qualquer coisa feita pelos animais irracionais que se pareça com educação, deve ser creditada exclusivamente ao instinto. Segundo esses estudiosos, os animais em geral adquirem um número muito limitado de conhecimentos e tudo quanto conseguem é resultado de herança genética, ou seja, é herdado.
Na era contemporânea, porém, essa crença tem sido refutada por outra corrente de estudiosos. Segundo André Santoro e Cláudio Ângelo (Superinteressante, 2000:jan) “novas pesquisas mostram que a natureza está repleta de bichos que aprendem, resolvem problemas e usam ferramentas. Todos têm um kit básico de inteligência”.
Isto, todavia, não condiz com a opinião do professor César Ades, da Universidade de São Paulo, quando afirma, categoricamente, na mesma publicação: “Nenhuma pesquisa até hoje demonstrou uma pedagogia em outras espécies”.
Como se vê, o assunto é polêmico e não está esgotado
Segundo Santos (1964:25):
A educação entre os povos primitivos constitui a forma mais rudimentar do tradicionalismo pedagógico, que atinge sua plenitude nos sistemas educativos das civilizações do Antigo Oriente. Ela é digna de ser estudada, não apenas pelo seu interesse propriamente pedagógico, como também pelos problemas filosóficos e sociais que suscita.
O homem primitivo, no seu afã de desvendar os mistérios da natureza, não podia compreender e explicar tudo que via. O movimento do sol, o brilho das estrelas, a luz do relâmpago, o estrondo do trovão, as doenças, a morte, tudo isso, enfim, constituía um intrigante mistério, do qual ele, a todo custo, procurava se inteirar, buscando, geralmente em vão, uma explicação aceitável.
Incapaz de responder às indagações que atordoavam sua mente, o homem primitivo resolveu recorrer à religião e à magia, daí emanando uma série de cerimônias, de rituais e conhecimentos sagrados que integraram um novo gênero de educação, o qual, conforme esclarecem Cotrim, Parisi (1982:32) “não nasce daquilo que o homem sabe, mas daquilo que ele desconhece”.
Durante o Paleolítico a educação foi conduzida de uma forma extremamente espontânea e totalmente subordinada à realização de alguma tarefa necessária de ser ensinada. Então, o adulto ensinava ao mais jovem como fabricar um machado de pedra, na medida em que ele sentisse necessidade de fazer o seu. Poder-se-ia dizer: era uma espécie de educação por imitação.
No período seguinte, o Neolítico, aconteceu uma verdadeira revolução cultural para a época: o homem primitivo deixou de ser um mero coletor de frutos e caçador, transformando-se em semeador de plantas e pastor de animais.
A existência de uma certa estabilidade na vida das tribos contribuiu para melhorar o relacionamento entre a comunidade. As sociedades se organizam em torno de objetivos comuns, como agricultura, criação de animais, construção civil, confecção de roupas e a utilização dos primeiros meios de transporte para navegação. Tudo isso somado só poderia trazer um sensível aumento no “conteúdo” do ensino. E uma nova “matéria” terminou sendo inevitável: a arte de guerrear, gerando, como conseqüência, o que se convencionou chamar de educação bélica ou educação para a guerra. Nessa educação, era comum o ensino da fabricação e uso de armas marciais, como arco e flecha, verdadeiros mísseis para aquela época.
O bramanismo como religião dominante e tendo como veículo doutrinário os Vedas, coletânea sagrada de hinos escritos em sânscrito, exerceu considerável influência sobre a educação hindu.
Evidentemente, os Vedas, em face do seu teor acentuadamente religioso, repleto de fórmulas sagradas e máximas direcionadas para o culto divino, não constituíam, sozinhos, o modelo educacional hindu. Porém, mais tarde o estudo dos Vedas deu origem à Enciclopédia hindu, a qual, por seu turno, fez surgir algumas disciplinas, como a Gramática, a Astronomia, a Lógica, a Dogmática, além de outras.
Desde os tempos mais remotos que as escolas elementares hindus eram numerosas, sem, contudo, terem organização oficial. Diz Santos (1964:37):
Os discípulos se reuniam em torno do mestre, ao ar livre, à sombra de uma árvore e, quando chovia, sob uma tenda. Aí aprendiam a escrever, primeiro sobre a areia e, em seguida, sobre folhas de palmeiras ou de plátano. O ensino era realizado por simples memorização, repetindo os alunos em voz alta o que lhes era ditado pelo mestre. Quando as classes eram muito numerosas, era costume empregar como auxiliares de ensino alguns alunos mais adiantados. Daí a origem do ensino mútuo ou monitorial que André Bell introduziu e Lancaster sistematizou no Ocidente. O ensino era feito segundo certas fórmulas rituais. Quando a aula começava, os alunos seguravam os pés do mestre e os colocavam sobre a própria cabeça, pedindo ao mesmo: – “Leia, Senhor!” O mestre respondia: – “Seja princípio do estudo a primeira lição que é para o discípulo e para o mestre a porta do céu.”
Mesmo assim, malgrado ter um ensino revestido de uma orientação essencialmente religiosa, a educação hindu teve o seu lugar de destaque, apresentando-se ao mundo como representante de um país de anacoretas, de letrados, de filósofos e de matemáticos.
No Egito, a aprendizagem era feita através da transcrição de hinos de livros sagrados acompanhada de “exortações morais” e de “coerções físicas”. Paralelamente à escrita, ensinava-se também a aritmética. Mas era numa instituição chamada de “Casa da Vida”, onde se acolhia a instrução superior e funcionava como repositório dos saberes, que estava o ápice da instrução egípcia.
A família, inicialmente com a mãe, depois com o pai, fomentava uma espécie de educação paralela, mas o aprendizado dele decorrente como assinala Gambi (1999:67) “não tinha necessidade de nenhum processo institucionalizado de instrução”.
O regime de ensino era de internato ou semi-internato, cabendo à família o fornecimento da alimentação. A disciplina era severa. Os alunos recebiam as instruções sentados em esteiras. Os estudos tinham objetivos eminentemente práticos, direcionados ao exercício das artes, da arquitetura, do comércio e da administração.
O modelo educacional egípcio apresentava uma particularidade: concedia ao aluno aplicado o privilégio de escolher livremente o professor de sua preferência.
Fazendo uma apreciação do sistema educacional egípcio, Santos (1964:53) conclui:
A educação egípcia possuiu alguns aspectos elogiáveis, entre os quais podemos destacar sua preocupação pela formação moral das novas gerações, os processos didáticos intuitivos de que se utilizaram e o interesse que revelaram pelo cultivo das ciências. Mas o sistema educativo dos egípcios é passível de crítica, sobretudo pelo seu sentido aristocrático, pelo monopólio cultural exercido pelos sacerdotes e pelo abandono que votaram à educação feminina.
Desde o princípio, o que sempre chamou atenção na sociedade chinesa foi a sua impressionante estabilidade cultural. Obviamente isso tem uma estreita ligação com o respeito que os chineses devotam aos seus ancestrais. Graças a sua organização rígida, a família sempre foi o centro da sociedade chinesa, todavia atrelada ao mais intransigente tradicionalismo.
Conforme Santos (1964:43) “a China parece ter sido o primeiro país a ter o ensino como função do Estado”. Basicamente a função da educação chinesa, no período imperial, era preparar dirigentes para a sociedade. Os chinesas utilizavam uma espécie de exames públicos, muito rigorosos, nos quais a memorização era extremamente essencial.
O conteúdo desses exames estava calcado nos ensinamentos de Confúcio, um dos maiores filósofos chineses, cuja filosofia está profundamente marcada pelo aspecto social.
O ensino chinês, indissoluvelmente vinculado aos ensinamentos de Confúcio, tinha como objetivo educacional tornar os homens seres superiores, respeitadores das leis da natureza e da sociedade. Todos deveriam ser generosos com os bons e rudes com os maus. O sábio chinês acreditava piamente que o homem nasce bom, mas é a educação que irá mantê-lo assim.
As escolas não possuíam prédios próprios, sendo instaladas em prédios públicos, templos, na residência do mestre ou mesmo nas casas das famílias dos alunos. Neste ponto, imperava a informalidade. Mas uma coisa era indispensável: em toda escola havia um altar em honra de Confúcio.
Para ingressar na escola, a faixa etária ideal situava entre seis e sete anos. O ensino constava de quatro classes e as matérias de ensino eram leitura e elementos de cálculo.
Uma coisa importante na educação chinesa era o valor educativo que todos davam à música, a ponto de considerá-la como eficiente meio para refrear os ímpetos. Por isso, em todas as escolas a música era ensinada.
A China foi o país do Antigo Oriente detentor do maior número de escolas, porém, de acordo com as declarações de Ruiz Amado citado em Soares (1964:45), isto não chega a ser tão relevante quando ele insinua que:
A educação chinesa deve ser estudada principalmente pelos ensinamentos negativos que oferece. Tudo o que é condenável em matéria de ensino foi cultivado pelos chineses: abuso excessivo da memória, desprezo pela formação da inteligência e do caráter, desinteresse pelas necessidades reais da vida, passividade do trabalho escolar, anulação da personalidade do educando.
E conforme observou também Paul Monroe citado em Cotrim, Parisi (1982:69):
O alvo da educação chinesa não é desenvolver a originalidade, mas suprimi-la; não desenvolver o poder de criação, mas o poder de imitação:não produzir habilidade literária, mas habilidade de inteligente versificador e parodista.
Quem também fez observações neste sentido foi Gambi (1999:63), dizendo textualmente:
A estrutura da sociedade chinesa permanece profundamente tradicional: familiar, patriarcal, autoritária, sacro-burocrática, nutrida de cultura literária ou técnica (mas de natureza exclusivamente pragmática). A educação também é tradicional: dividida em classes, opondo cultura e trabalho, organizada em escolas fechadas e separadas para a classe dirigente (para as quais se compilam livros e se estudam técnicas de aprendizagem como o exame), nas oficinas para os artesãos ou nos campos para os camponeses.
Mas a partir do século XX, a educação chinesa tradicionalista começou a experimentar a influência de outras idéias educativas oriundas do Japão e do Ocidente, iniciadas pelas missões cristãs. Já em 1911 o ensino chinês se encontrava completamente transformado. Era facilmente notada a grande presença de professores estrangeiros em sala de aula.
A educação, aqui entendida como instrumento de transformação social, encontra-se pioneiramente nos escritos de Platão, em torno de 400 anos antes de Cristo. Antes dele, como assevera Jeffreys (1975:31):
Já os sofistas tinham aberto a picada para esta concepção da educação, graças à sua doutrina que afirmava que a virtude pode ser ensinada, não ficando portanto inteiramente subordinada às qualidades inatas. Platão, entretanto, pode ser considerado como o primeiro grande pensador revolucionário na área da educação. Não satisfeito com a função puramente conservadora da educação, nem com o estado de coisas existentes na sociedade, ele encarou a regeneração social através da educação. Pela primeira vez, a educação era vista como algo socialmente criativo.
Mas segundo esse mesmo autor, a concepção de Platão foi prejudicada de duas maneiras. Em primeiro lugar, foi apenas uma concepção, e não um programa prático. Sequer chegou a ser realmente proposta à opinião pública mais educada de sua época. Em segundo lugar, a concepção de Platão envolvia o seguinte paradoxo: o perfeito sistema de educação era imprescindível para se formar a sociedade perfeita, mas a sociedade perfeita era um pré-requisito indispensável à educação perfeita.
E Jeffreys (1975) adverte: salientar este paradoxo não implica nenhuma crítica a Platão, pois se trata de um paradoxo inerente a toda reflexão a respeito de educação relacionada com a sociedade.
A educação grega e também a romana permaneceram essencialmente conservadoras, menos, porém, do que os sistemas educacionais da Índia e da China antigas. E o mesmo se pode dizer da Europa, durante a Idade Média.
Na antiga Grécia, mais especialmente em Atenas e Esparta, a educação era ministrada para atingir objetivos distintos: em Atenas, o objetivo era o aprimoramento da razão, o cultivo das artes, ciências e filosofia; em Esparta, interessava mais o preparo físico com finalidade militar.
Na análise de Gambi (1999) Esparta foi um modelo de estado totalitário; Atenas, de democrático, muito avançado, aliás, para a época. Seus ideais e modelos educativos se caracterizavam de maneira oposta pela perspectiva militar de formação de cidadãos-guerreiros, homogêneos à ideologia de uma sociedade fechada e compacta, ou por um tipo de formação cultural e aberta, que valorizava o indivíduo e suas capacidades de construção do próprio mundo interior e social. Esparta e Atenas deram vida a dois ideais de educação: um baseado no conformismo e no estatismo, outro na concepção de paidéia, de formação humana livre e nutrida de experiências diversas, sociais mas também culturais e antropológicas. Os dois ideais, depois, alimentaram durante séculos o debate pedagógico, sublinhando a riqueza e fecundidade ora de um, ora de outro modelo. E conclui Gambi (1999:101):
A complexa aventura da educação na Grécia assinalou uma fase de maturação e de decantação da tradição ocidental: um momento de vira-volta e de aquisição de características que permanecerão indeléveis, revelando a experiência grega talvez constitua a matriz fundamental de uma entidade cultural complexa relativa aos problemas da educação/formação.
Uma afirmação de Bowen citada por Gambi (1999) atribui a Cícero, que o texto-base da educação romana foi por muito e muito tempo o das Doze tábuas, fixado em 451 a.C., escrito no bronze e exposto publicamente no fórum, para que todos pudessem vê-lo. Nelas destacava-se o valor da tradição e delineava-se um código civil, baseado na pátria potestas e caracterizado por formas de relação social típicas de uma sociedade agrícola atrasada.
Como modelo educativo, entretanto, as Doze tábuas fixavam a dignidade, a coragem, a firmeza como valores máximos, ao lado da pietas e da parcimônia.
Em Roma, o ideal educacional estava orientado para a integração do indivíduo à vida social, daí por que se valorizavam tanto as virtudes cívicas, desprezando-se as manifestações da individualidade.
Nas escolas romanas podiam-se distinguir três níveis de ensino: a escola do literato, a escola do gramático e a escola do retórico. Na escola do literato, a criança aprendia as noções básicas de leitura, escrita e aritmética; na do gramático, aprofundava os seus estudos no idioma para que no futuro pudesse aplicá-lo na vida prática; e na do retórico, era preparada para tornar-se orador e exercer a atividade pública. Essa era, sem dúvida, a meta da educação romana. Roma tornou-se a cidade do orador. Segundo Cotrim, Parisi (1982:138):
De tal maneira os romanos desenvolveram esta arte (oratória), que havia oradores capazes de falar sobre tudo, não importava o conteúdo a ser tratado. Tinham pleno domínio sobre a forma de dizer as coisas e produziam com isso frases belas, cativantes e agradáveis.
Um dos maiores pedagogos romanos foi Marcos Fábio Quintiliano, o qual desenvolveu extraordinário papel junto à educação romana, com uma experiência de 20 anos no magistério.
O aparecimento do cristianismo promoveu uma profunda revolução cultural no mundo antigo, possivelmente a mais profunda que o mundo ocidental tenha conhecido na sua história. Foi, conforme preconiza Gambi (1999:121):
Antes de tudo uma revolução de mentalidade, na qual se propunha a afirmação de um novo “tipo” de homem (igualitário, solidário, caracterizado pela virtude da humildade, do amor universal, da dedicação pessoal, como ainda pela castidade e pela pobreza), que do âmbito religioso vem modelar toda a visão da sociedade e também os comportamentos coletivos, reinventando a família (baseada no amor e não apenas e sobretudo na autoridade e no domínio), o mundo do trabalho (abolindo qualquer desprezo pelos trabalhos “baixos”, manuais, e colocando num plano de colaboração recíproca os patrões e os escravos, os serviçais, os empregadores e os dependentes) e o da política (que deve inspirar-se nos valores ético-sociais de igualdade e solidariedade, devendo ver o soberano agir como um pai e um guia do povo, para dar vida a uma res publica cristana. Nasce um novo modelo de sociedade inspirada e sustentada pelos valores do Evangelho e que encontra na Igreja o seu ideal-guia e o seu instrumento de atuação, já que se afirma como uma sociedade baseada em relações de fraternidade e de civilidade, além de igualdade, e como o motor de todo o processo de renovação da vida social.
Com essa mudança delineou-se igualmente uma mudança radical na educação. No período compreendido entre a morte de Cristo e a época constantiniana, a Igreja vai organizando suas práticas pedagógicas, insuflada principalmente pela cultura helenística e da evolução das comunidades cristãs.
Dentro do campo estritamente educativo-escolar, dois grandes aspectos vêm caracterizar os primeiros séculos do cristianismo, ou seja, a imitação da figura nuclear de Cristo e a adoção, na formação do cristão, da cultura clássica, literário-retórico e filosófica, sobretudo.
Muitos nomes se destacam na educação cristã, entre os quais Santo Agostinho, um dos mais brilhantes padres da Igreja, Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, o mais influente pensador da Idade Média, e Santo Inácio de Loyola, que fez da educação uma das principais preocupações dos seus discípulos.
Lutero, a maior figura do protestantismo, percebeu logo cedo que a educação seria o instrumento principal de difusão de suas idéias religiosas então desgarradas do cristianismo católico romano, daí o sentido educacional que procurou emprestar à sua tarefa revolucionária.
Por causa disso, a ação educacional da Igreja Católica teve de redirecionar seus objetivos formais na tentativa de impedir a rápida difusão das idéias protestantes, recomendadas principalmente por Lutero e seus seguidores. A influência educacional de Lutero foi importante para transformar as idéias educacionais da Idade Média, na qual o setor educacional era controlado quase que exclusivamente pela igreja católica. Uma educação custeada pelo poder público foi uma das suas propostas. O pastor checo da ordem dos Irmãos Morávios, o grande educador do século XVII, João Amós Comenius, figura basilar deste trabalho, é um dos grandes nomes da educação da corrente protestante.
O educador checo João Amós Comenius ou Jan Amos Komenský, seu nome original, nasceu em 28 de março de 1592, na cidade de Uherský Brod (ou Nivnitz), na Moravia, região da Europa Central pertencente ao Reino da Boêmia (antiga Tcheco-Eslováquia).
Seus pais Martinho e Ana, também eslavos, eram cristãos adeptos dos Irmãos Morávios, uma seita cuja história remonta aos tempos de Jan Huss, líder religioso muito popular no século XV, tendo sido padre, professor e reitor da Universidade de Praga.
A seita dos Irmãos Morávios, organizada em 1467, era uma das mais rígidas em doutrina e conduta, destacando-se pelo extremado apego às Sagradas Escrituras, pela humildade e pela profunda piedade, impondo a seus seguidores vida austera, com preces diárias e leitura cotidiana da Bíblia. E diferentemente do costume da época, adotavam como língua literária o checo em vez do latim.
Comenius foi acusado de não ser, na realidade, um erudito latino. Com efeito, ele próprio chegou a admitir isso. Reportando-se a este fato significativo na vida de Comenius, diz Eby (1962:166-167):
O fato é que Comenius não era em nenhum sentido um genuíno humanista, embora tivesse escrito textos para facilitar a aprendizagem da língua latina. Ele não se apaixonou pelo encanto da eloqüência ciceroniona e não reverenciou a literatura clássica. Teve apenas desprezo por uma memória bem equipada com as brilhantes frases dos oradores clássicos. Ainda mais, negou completamente a pretensão suprema do Humanismo, o valor moral da literatura pagã.
E Eby (1962:167) justifica a atitude de Comenius afirmando que “na verdade ele queria eliminar da sala de aula o fardo completo dos escritores clássicos, e desejava fazer isso no interesse do bem-estar moral e espiritual dos alunos”.
Outro ponto muito forte na personalidade de Comenius é o fato de ter sido ele muito místico. E certamente tornou-se místico como resultado do ambiente de extrema religiosidade em que fora criado, desenvolvendo logo cedo uma identificação bem clara com as crenças do povo morávio. Como observa Covello (1991:15):
Os salmos, os evangelhos e os cânticos religiosos de Huss embalaram a infância do pequeno Jan Amos e lhe incutiram a convicção de que a única coisa necessária é buscar o reino de Deus, pois a vida terrena é apenas passagem para a eternidade... Fora de Deus, fonte de luz e vida, não há senão trevas...
A infância de Comenius foi trágica. Aos 12 anos, seus pais e suas duas irmãs (Ludmila e Suzana) morreram, tendo ele ficado só e ao abandono. Em razão disso, foi obrigado a viver em Nivnice com uns tutores rudes que lhe deram pouca atenção. E isto, possivelmente, contribuiu para que sua educação infantil fosse tão descurada, fato este por ele mesmo revelado.
Este episódio ficou indelevelmente marcado em sua personalidade, razão pela qual durante toda a sua existência dedicou peculiar atenção à infância, tendo organizado um sistema próprio de educação infantil visando à reforma da humanidade.
Numa escola dos Irmãos Morávios aprendeu rudimentos de leitura, escrita, cálculo e catecismo, mas o suficiente para despertar nele o desejo de saber e a preparação para torná-lo no grande erudito do futuro.
Na juventude, o modelo de escola da época com o qual Comenius podia contar era simplesmente desestimulador. Era um lugar de seriedade sombria, desprovido de atrativos e que exigia dos meninos postura de adultos, exercício exacerbado da memorização, verbalismo ao extremo e finalmente a prática da famigerada pedagogia da palmatória, segundo a qual “a letra com pancada entra”, coisa que, com certeza causou-lhe uma profunda decepção.
Quando Comenius concluiu os estudos secundários fez opção pela carreira eclesiástica, para a qual sempre demonstrara inclinação. Estudou teologia na Faculdade Calvinista de Herborn, na Alemanha. Aí adquire uma boa formação cultural, fica amigo dos professores, destaca-se como aluno e, ainda como estudante, apresenta duas teses de doutorado: “Problemata miscelania” e “Syloge quaestiorum controversum”, ambas alvo de elogios de seus professores.
Segundo assinala Gasparin (1994) durante esse período de estudos na Alemanha, Comenius ampliou e fundamentou suas convicções religiosas, além de haver adquirido uma vasta cultura enciclopédica e desenvolvido o espírito de reformador que o acompanharia durante toda sua vida.
E Comenius não pára. Começa a redigir um dicionário de expressões elegantes, chamado de “O tesouro da língua boêmia”, transfere-se para Heidelberg a fim de aperfeiçoar seus conhecimentos de astronomia e matemática, e só então retorna à sua pátria, entusiasmado para pôr em prática tudo o que aprendeu.
Após uma breve estada em Praga, Comenius chega a Prerov, maior centro da comunidade morávia, e aí se estabelece no magistério, contagiado pelas idéias pedagógicas aprendidas na Universidade.
Inconformado com o esquema educacional vigente, procede a uma verdadeira reforma em sua escola, aplicando métodos mais eficientes para o ensino das ciências e das artes, e assim, não demora a brilhar como professor eficiente.
Decorridos dois anos na profissão de professor é ordenado pastor dos Irmãos Morávios (1616), estabelecendo-se na cidade de Fulnek, onde se casa com Madalena Vizovska e com quem tem seus dois primeiros filhos.
Comenius está com 24 anos, mas desempenha com habilidade as funções de professor e pastor. É então nomeado diretor das escolas da Unidade.
Por ter se interessado bastante pelas idéias rosacrucianas muitos biógrafos de Comenius apontam-no como adepto da fraternidade Rosacruz, fato ainda hoje não devidamente esclarecido em sua biografia.
Uma nova tragédia surgiu em sua vida. Foi a Guerra dos Trinta Anos, conflito religioso desencadeado entre católicos e protestantes na Alemanha, estendendo-se depois por toda a Europa.
Essa guerra foi um grande martírio para a família de Comenius e também para a Tcheco-Eslováquia, cuja população foi dizimada em mais de oitenta por cento. No ano de 1621, os exércitos espanhóis invadem e incendeiam a cidade de Fulnek e nisso Comenius perde todos os seus livros e manuscritos. E como se não bastasse, perde também sua mulher e seus dois filhos vitimados pela epidemia (peste).
Comenius, mesmo diante de tantas agruras, não desanima. Ao contrário, recomeça tudo. Produz uma série de escritos de cunho religioso a fim de recuperar o ânimo da irmandade. Os Irmãos Morávios são vítimas de intensa perseguição e fogem para a Polônia, onde já existiam alguns simpatizantes.
Estabelecido em Leszno, Comenius casa em segundas núpcias com Dorotéia Cirilo, filha de um influente bispo da Unidade. Reanimado, retorna às funções de professor e pastor. Sua fama chega à Inglaterra, onde um grupo de intelectuais liderados por Samuel Hartlib estava ansioso por uma pessoa capaz de reinstalar o humanismo cristão tradicional no espírito dos homens e que também proporcionasse paz e progresso para a humanidade.
Convidado, pois era a pessoa sobre quem recaiam aquelas qualidades, Comenius vai a Londres, sendo recebido com todas as honras. A fama cresce e ultrapassa as fronteiras britânicas. Comenius é convidado inclusive para assumir a Reitoria da já famosa Universidade de Harvard. Por razões políticas, não aceita. Passa por outros países, como a Suécia, e depois volta à Polônia, fixando-se novamente em Leszno.
Na Suécia um fato bastante significativo em sua vida acontece: foi o proveitoso encontro com Descartes, no castelo de Endegeest, nas cercanias de Leide, quando o filósofo francês se ocupava em rebater as críticas feitas às suas Meditações sobre a filosofia primeira.
Apesar de não ter sido um encontro duradouro, pois não passou de quatro horas, Covello (1991:61) acredita que o pensador francês devia simpatizar com o mestre morávio, porquanto entre eles havia muitos pontos em comum:
A começar, tanto um como outro se haviam decepcionado com as humanidades ensinadas nas escolas de seu tempo (...) Tanto Comenius como Descartes foram intelectuais do método e ambos defendiam o método como condição para aquisição do saber. (...) Descartes, da mesma forma que Comenius, aspirava a uma ciência universal que pudesse ser alcançada por todos.
Mais adiante Covello (1991:62) acentua:
Mas as divergências entre os dois pensadores eram igualmente grandes. Enquanto Comenius encarava a ciência como meio de aproximação com Deus, Descartes preconizava a ciência para fins exclusivamente humanos, sem colorido religioso. (...) Descartes queria uma ciência com base na razão e repudiava a Bíblia como fonte de conhecimento científico. Para ele, a Bíblia era apenas fonte de salvação. Já Comenius encontrava nas Sagradas Escrituras os fundamentos de seu sistema filosófico e em todas as suas obras a Bíblia é mencionada como fonte de sabedoria. Ciência e religião unem-se em Comenius, ao passo que, no entender de Descartes, esses dois campos devem permanecer separados, cada qual a desempenhar sua própria função: verdades reveladas nada têm que ver com verdades científicas. A postura cultural de Descartes é a de um racionalista puro. A de Comenius é a de um intuitivo. O filósofo francês jamais aceitava alguma coisa como verdadeira, se não se evidenciasse como tal. Comenius, ao contrário, era tão crédulo que aceitava até profecias, como as de Kotter a respeito dos destinos do seu povo. Descartes reconhecia em Comenius um homem de bom espírito e grande doutrina. Mas não acreditava no seu projeto de ciência universal que os estudantes fossem capazes de aprender antes dos vinte e quatro anos. Tampouco achava viável a consecução de uma enciclopédia do saber , nos moldes comenianos.
O destino realmente conspirava contra Comenius. E veio outra tragédia. Sua cidade é reduzida a cinzas. Um incêndio, tal como acontecera em Fulnek, destruiu sua casa e, coincidência, mais uma vez perde sua valiosa biblioteca.
Mais aflição na vida de Comenius: em 1648, em Leszno, sua mulher Dorotéia morre, deixando cinco filhos, dois crescidos e três pequenos.
Completamente pobre e doente, e mais do que isso, vítima da incompreensão da comunidade, busca asilo em diversas cidades alemãs, mas terminou optando pela Holanda, onde passará os derradeiros anos de sua vida.
Comenius ainda casou em terceira núpcias, em 1649, com Johana Gajusová.
Na Holanda, instalado em Amsterdam, Comenius mesmo combalido reúne forças para prosseguir seu trabalho de educador e reformador social. E ele cresce de novo. Segundo Covello (1991) conscientes do valor de Comenius as autoridades holandesas propõem ao hóspede a publicação de todas as suas obras pedagógicas, muitas das quais já bastante conhecidas no país.
O grande sábio morávio vive feliz na Holanda, experimentando uma nova e reconfortante vida. Não enfrenta dificuldades financeiras, tem o reconhecimento do público e das autoridades, e na última fase de sua vida dedica-se a ser um apologista da paz, propugnando pela fraternidade entre os povos e as igrejas.
Sua vida chega, então, ao fim. Em 1670, quase octogenário, adoece gravemente, mas antes de morrer no dia 15 de novembro, ainda encontra fôlego para escrever um resumo de seus princípios pedagógicos, transcritos noutro capítulo deste trabalho, e alvo de comentários.
Comenius morre cercado por familiares e amigos, com aura de santidade, e é sepultado numa pequena igreja em Naarden, onde foi construído seu mausoléu.
Conforme Covello (1991), em 1956 a Conferência Internacional da UNESCO realizada em Nova Delhi delibera a publicação das obras de Comenius e o aponta como um dos primeiros propagadores das idéias que inspiraram a UNESCO por ocasião de sua fundação.
Como autor de livros e panfletos, Comenius foi infatigável e muito versátil em matéria de assuntos. Os pesquisadores costumam classificar as obras comenianas em três categorias: a) as que tratam exclusivamente de princípios educacionais; b) outras que tratam de recursos auxiliares para a instrução na sala de aula; e c) as obras mistas, nas quais se incluem as religiosas, como sermões, histórias eclesiásticas, hinários, catecismos, traduções e trabalhos proféticos.
Na opinião de Eby (1962) os textos de Comenius abrangendo princípios de métodos, atingiram extraordinária popularidade. Já as suas recomendações curriculares, embora de alguma forma extravagantes e grandiosas, estavam, porém, em harmonia com a nova corrente de reforma no currículo. E conclui: “Seu esquema geral de reforma só encontrou a mais fria recepção e foi rapidamente entregue ao esquecimento”
Todos os pesquisadores são unânimes em apontar a Didacta Magna ou A Grande Didactica, como sendo sua obra-prima e sua maior contribuição para o pensamento educacional.
Entre tantas obras Comenius escreveu:
— O labirinto do mundo, 1623
— Didactica checa, 1627
— Guia da escola materna, 1630
— Porta aberta das línguas, 1631
— Didactica Magna (versão latina da Didactica checa), 1631
— Novíssimo método das línguas (1647)
— O mundo ilustrado (1651)
— Opera didactica omnia ab anno 1627 ad 1657
— Consulta universal sobre o melhoramento dos negócios humanos (1657)
— O anjo da paz, 1667
— A única coisa necessária(1668)
Nesta coletânea de ensinamentos comenianos é fácil perceber a grande preocupação do grande mestre morávio com a educação integral do homem, a partir de criança. Talvez por ter sido durante toda a sua vida uma pessoa mística, temente a Deus e profundamente admiradora da natureza, de onde procurava tirar os exemplos a serem aplicados, Comenius mostra-se como um educador do tipo que hoje se enquadraria como um moralista.
Com efeito, ele sempre procurou ser um reformador social e não apenas um pedagogo, ou teólogo, sempre colocando a figura de Deus no centro de tudo, atitude não tão encontradiça entre os educadores contemporâneos, mais ligados aos modismos, que muitas vezes não passam de coisas do passado maquiadas, e apresentadas como novidade.
Os ensinamentos de Comenius, mesmo com mais de 400 anos de existência, ainda não perderam totalmente a sua atualidade, daí por que vale a pena conhecê-los e, em muitos casos, segui-los à risca ou reciclando-os e adaptando-os à vida atual.
Quando se vê Montessori (1965:13) dizer:
Devemos despertar na consciência do educador o interesse pelas manifestações dos fenômenos naturais em geral, levando-o a amar a natureza e a sentir a ansiosa expectativa de todo aquele que aguarda o resultado de uma experiência que preparou com cuidado e carinho
fica difícil não acreditar que a obra de Comenius continua viva.
Vamos, então beber um pouco da sua sabedoria nos ensinamentos abaixo, todos transcritos de sua Didactica Magna:
“As Sagradas Escrituras nos ensinam primordialmente que não há caminho mais eficaz para corrigir a corrupção humana que a correta educação da juventude”. (Comenius, 1997:27)
“Se for preciso curar a corrupção do gênero humano, é preciso fazê-lo sobretudo por meio de uma atenta e prudente educação da juventude”. (Op. cit., 29)
“Educar os jovens com sabedoria significa, ademais, prover a que sua alma seja preservada da corrupção do mundo; favorecer para que germinem com grande eficácia – as sementes de honestidade que neles se encontram, por meio de ensinamentos e exemplos castos e assíduos”. (Op. cit., 30)
“Grande parte da juventude cresce sem a devida educação, como uma selva que ninguém cuida de plantar, irrigar, podar e fazer crescer bem. Por esse motivo, hábitos e costumes selvagens e indômitos acabaram prevalecendo em todo o mundo”. (Op. cit., 32)
“O que somos, fazemos, pensamos, dizemos, inventamos, conhecemos, possuímos é como uma escada com a qual, subindo sempre mais, alcançamos degraus mais altos, mas nunca chegamos ao topo”. (Op. cit., 44)
“Quem ama o poder e a riqueza não encontrará onde saciar sua fome, mesmo que possua todo o universo. Quem almeja demasiadas honras não ficará satisfeito nem que seja adorado por todo o universo. Quem se entrega aos prazeres, por mais que os sentidos se engolfem em rios de delícias, tudo acaba se consumindo, e o desejo se volta de um objeto para outro. Quem aplica o espírito no estudo da sabedoria nunca encontrará o fim: quanto mais souber, tanto mais compreenderá que falta muito por saber”. (Op. cit., 45)
“Três são as espécies de vida para cada um de nós e três as moradas: o útero materno, a Terra e o Céu. Da primeira se entra na segunda pelo nascimento; da segunda, na terceira pela morte e pela ressurreição; da terceira nunca se sai, por toda a eternidade. Na primeira recebemos apenas a vida, com movimentos e sentidos incipientes; na segunda, a vida, o movimento, os sentidos, com os primórdios do intelecto; na terceira, a plenitude absoluta de tudo”. (Op. cit., 46-47)
“Entendo por INSTRUÇÃO todo conhecimento das coisas, das artes e das línguas; por COSTUMES, não só a correção do comportamento externo, mas o equilíbrio interno e externo dos movimentos da alma; por RELIGIÃO, a interna veneração com que o espírito humano se liga e se vincula à divindade suprema”. (Op. cit., 55)
“Quem prefere as coisas agradáveis às saudáveis é tolo. E ainda mais tolo é quem, desejando ser homem, cuide mais dos ornamentos do homem que de sua essência”. (Op. cit., 56)
“Todo homem nasceu com capacidade de adquirir a ciência das coisas, antes de mais nada porque é imagem de Deus”. (Op. cit., 58)
“O homem nada recebe do exterior, mas só precisa expandir e desenvolver as coisas que já traz implícitas em si, mostrando a natureza de cada uma”. (Op. cit., 59)
“No homem é inerente o desejo de saber e também de enfrentar (e não apenas de suportar) os esforços que isso implica. Tal já acontece na primeira infância e nos acompanha por toda a vida”. (Op. cit., 60)
“Os exemplos dos autodidatas mostram com muita clareza que o homem, com a orientação da natureza tudo pode alcançar”. (Op. cit., 61)
“Nosso cérebro, forja de pensamentos, é com justiça comparado à cera, sobre a qual são impressos os selos ou com a qual se moldam estatuetas. De fato, assim como a cera que, adaptando-se a todas as formas, pode ser plasmada e replasmada de todas as maneiras, também o cérebro, abrangendo as imagens de todas as coisas, recebe em si o que o universo contém”. (Op. cit., 62)
“Ah, como somos cegos se não reconhecemos que estão em nós as raízes de toda a harmonia!”. (Op. cit., 65)
“Nos movimentos da alma, a roda principal é a vontade; os pesos que a fazem mover-se são os desejos e os afetos que a fazem pender para um lado ou para o outro. O escapo, que aumenta ou diminui o movimento, é a razão que mede e determina o que deve acolher ou do que deve fugir, onde e em que medida. Os outros movimentos da alma são como rodas menores que seguem a principal. Se aos desejos e aos afetos não for atribuído um peso excessivamente grande, e se o escapo, que é a razão, aumentar ou diminuir os movimentos com discernimento, só poderá seguir-se harmonia e o acordo perfeito das virtudes, ou seja, um equilíbrio conveniente entre ações e paixões”. (Op. cit., 66)
“É coisa torpe e nefanda, sinal evidente de ingratidão, insistir na degeneração e esquecer a regeneração!”. (Op. cit., 68)
“A natureza dá as sementes da ciência, da honestidade, da religião, mas não dá a ciência, a virtude, a religião; estas são adquiridas apenas com a prece, com o estudo, com o esforço pessoal”. (Op. cit., 71)
“A educação é necessária para todos”. (Op. cit., 75)
“O que são os ricos sem sabedoria, senão porcos engordados com farelo? Os pobres sem o conhecimento das coisas o que são, senão burros de carga? Um homem de bom aspecto mas ignorante o que é, senão um papagaio de bela plumagem? Ou então, como disse alguém (Diógenes Laércio), uma bainha de ouro com um punhal de chumbo? A quem um dia caberá comandar outros, como reis, príncipes, magistrados, pastores e doutores da igreja, a estes, mais que a ninguém, é necessária a educação profunda da sabedoria, assim como os guias precisam ter os olhos treinados, e os intérpretes a língua, a trompa precisa ser capaz de tocar, e a espada de cortar. Do mesmo modo, os súditos precisam ser iluminados, para que saibam obedecer com prudência os que comandam com sabedoria: não por obrigação e com servil obséquio, mas de bom grado e por amor à ordem. Isso porque uma criatura racional deve ser guiada pela razão, e não por meio de gritos, cárcere, pancadas e aqueles que agem de modo diferente ofendem a Deus, que neles também opôs sua imagem e os assuntos humanos estarão cheios – como estão – de violência e descontentamento. Fique estabelecido, pois, que a todos os que nasceram homens a educação é necessária, para que sejam homens e não animais ferozes, não animais brutos, não paus inúteis. Segue-se que alguém só estará acima dos outros se for mais preparado que os outros”. (Op. cit., 75-76)
“No homem é sólido e duradouro apenas o que foi absorvido na primeira idade”. (Op. cit., 80)
“Para orientar e guiar as crianças, são mais úteis os exemplos do que as regras: se algo é ensinado a uma criança, pouco fica gravado, mas se for mostrado o que os outros fazem, ela logo os imitará, sem precisar de ordens”. (Op. cit., 86)
“Se quisermos servir a Deus, ao próximo e nós mesmos, devemos ter piedade em relação a Deus, honestidade em relação ao próximo e ciência em relação a nós mesmos”. (Op. cit., 98)
“A arte de ensinar não exige mais que uma disposição tecnicamente bem feita do tempo, das coisas e do método”. (Op. cit., 127)
“Que tesouro de instrução conseguirás se a cada hora aprenderes nem que seja um único teorema de uma ciência, uma única regra de aplicação técnica, uma narrativa ou uma máxima elegante (coisas que, claramente, não requerem esforço?)”. (Op. cit., 143)
“As coisas todas só atraem a juventude quando adequadas à sua idade e quando as explicações são muito claras e intercaladas com algumas amenidades ou com assuntos menos sérios, mas sempre aprazíveis. É isso que significa unir o útil ao agradável”. (Op. cit., 170)
“Facilitará o estudo do aluno quem lhe mostrar como usar na vida cotidiana aquilo que está sendo ensinado”. (Op. cit., 180)
“A escola tem a missão de ocupar os jovens só com coisas sérias”. (Op. cit., 185)
“Por que vagar entre opiniões diferentes sobre as coisas quando se busca conhecer o que são as coisas realmente?”. (Op. cit., 190)
“O homem instruído com fundamento é como uma árvore que se sustenta com as próprias raízes e a própria linfa; por isso, estará sempre vigoroso (aliás, fica mais robusto a cada dia que passa) verdejante, e produz flores e frutos”. (Op. cit., 192)
“Tudo o que se ensina deve ser consolidado por razões que não permitam dúvidas nem esquecimentos”. (Op. cit., 196)
“De tudo o que se aprende, é preciso buscar logo a utilidade, para não aprender nada de inútil”. (Op. cit., 198)
“Instrução nunca chegará a ser realmente sólida se não se instituírem repetições e exercícios, freqüentes e bem feitos”. (Op. cit., 199)
“É melhor ter no bolso uma moeda de ouro que cem de chumbo”. (Op. cit., 221)
“Devem ser banidos das escolas todos os autores que ensinam só palavras, sem dar a conhecer nada de útil”. (Op. cit., 223)
“O juízo correto acerca das coisas é o verdadeiro fundamento de todas as virtudes”. (Op. cit., 264)
“O triste vício do egoísmo é estritamente relacionado com a natureza corrupta que faz desejar apenas o proveito próprio, sem atentar os outros”. (Op. cit., 267)
“É preciso manter os filhos longe das más companhias para que não sejam por elas corrompidos”. (Op. cit., 269)
“Antes de mais nada, acredito que todos concordam que a disciplina deve ser exercida contra quem erra, mas não porque errou (o que foi feito, feito está), mas para que não erre mais. Portanto, deve ser exercida sem paixões, sem ira, sem ódio, mas com simplicidade e sinceridade, de tal modo que mesmo aquele a quem for aplicada perceba que é para seu bem e que é ditada pelo afeto paterno de quem tem a responsabilidade de guiá-lo; assim, poderá recebê-la com o mesmo espírito com que se toma um remédio amargo receitado pelo médico”. (Op. cit., 311-312)
“Quem ignora o seu próprio mal dele não cuida; quem não sente a dor não geme; quem não percebe o perigo não estremece nem quando está sobre o abismo ou o precipício; assim, não espanta que não se preocupe aquele que não nota as desordens que afligem o gênero humano”. (Op. cit., 25)
“Nada é mais difícil do que perder os hábitos adquiridos (o hábito de fato é uma segunda natureza, e tu podes expulsar a natureza à força, mas ela sempre retorna), é lógico que nada é mais difícil que reeducar um homem que recebeu educação ruim; depois que a árvore cresceu, seja ela alta ou baixa, com os ramos esticados ou curvos, uma vez adulta assim permanece e não se deixa modificar”. (Op. cit., 29)
“Se quisermos igrejas, estados e famílias bem organizados e florescentes, antes de mais nada ponhamos em ordem as escolas, fazendo-as florescer, para que se tornem realmente forjas de homens e viveiros de homens de igreja, estado e família; só assim alcançaremos nossos fins, e não de outro modo”. (Op. cit., 34)
“Quem nos deu a vontade nos fará atingir o objetivo: é o que devemos pedir à misericórdia divina e esperar com confiança”. (Op. cit., 39)
“Todos os que tem a tarefa de formar homens devem educá-los de tal forma que vivam lembrados de sua dignidade e de sua excelência: que procurem, pois, orientar seus esforços para esse supremo fim”. (Op. cit., 42)
“Tudo existe em função do homem, inclusive o tempo. Por isso, não será concedido ao mundo uma duração maior que a necessária para completar o número dos eleitos”. (Op. cit., 51)
“Assim como é certo que o tempo transcorrido no útero materno é uma preparação para a vida no corpo, também o tempo transcorrido no corpo é preparação para a vida que dará continuidade à vida presente e durará por toda a eternidade. Bem-aventurado aquele que sai do útero materno com os membros bem formados; mil vezes bem-aventurados aquele que deixar esta vida com a alma limpa”. (Op. cit., 52)
“Se fosse concedido ao homem mil anos, durante os quais, adquirindo sempre novos conhecimentos, ele passasse de um conhecimento a outro, ainda assim teria novos objetos para conhecer, tal é a inexaurível capacidade da mente humana, que no conhecimento é como um abismo”. (Op. cit., 59)
“Devemos admirar o espelho da sabedoria de Deus, que obrou de tal modo que a massa não muito grande do cérebro fosse suficiente para receber milhares e milhares de imagens”. (Op. cit., 63)
“Abstenhamo-nos de limitar a graça de Deus, pois Ele está pronto a derrama-la sobre nós com prodigalidade”. (Op. cit., 69)
“Ninguém cuide realmente de ser homem se não tiver aprendido a comportar-se como homem, ou seja, se não tiver sido formado nas coisas que fazem o homem”. (Op. cit., 71-72)
“A educação deverá ser iniciada muito cedo, porque na vida não só se deve aprender, como também agir. Convém, pois, instruirmos-nos o mais depressa possível sobre o que se deve fazer na vida para que não nos aconteça ter de abandoná-la antes de termos aprendido a comportar-nos”. (Op. cit., 78)
“O homem que por toda a vida tem infinitas coisas para conhecer, experimentar e fazer, deve abrir a tempo os seus sentidos à contemplação das coisas”. (Op. cit., 78)
“Para que o homem possa ser formado para a humanidade, Deus lhe concedeu os anos da juventude, durante os quais é incapaz de fazer outras coisas, tendo condições apenas de se formar”. (Op. cit., 80)
“É muito perigoso deixar de infundir no homem, desde o berço, regras salutares de vida”. (Op. cit., 81)
“Em primeiro lugar, todo o homem nasceu para o mesmo fim principal, o de ser homem, ou seja, criatura racional senhora das outras criaturas, imagem manifesta de seu criador. Portanto, todos quantos forem devidamente instruídos nas letras, nas virtudes e na religião devem tornar-se capazes de levar a vida presente de modo útil e de preparar-se dignamente para a vida futura”. (Op. cit., 89)
“A essência da alma é composta por três faculdades (que correspondem à Trindade incriada): intelecto, vontade e memória. O intelecto aplica-se à observação da diversidade dos objetos (até as pequeníssimas minúcias). A vontade provê à opção, ou seja, à escolha das coisas profícuas e à rejeição das nocivas. A memória retém para uso futuro as coisas que antes ocuparam o intelecto e a vontade, recordando à alma a sua dependência de Deus e suas missões: sob esse aspecto, chama-se também consciência. Para que essas faculdades possam cumprir bem a sua tarefa, é necessário instruí-las nas coisas que iluminam o intelecto, dirigem a vontade, estimulam a consciência: para que o intelecto conheça com agudeza, a vontade escolha sem erros e a consciência anseie por consagrar tudo a Deus. Portanto, assim como essas faculdades (intelecto, vontade e consciência), por constituírem uma só alma, não podem ser separadas, também os três ornamentos da alma (instrução, virtude e piedade) não devem ser separados”. (Op. cit., 97)
“Vãos desejos: os dias passados não voltarão. Nenhum de nós, já entrando em anos, voltará a ser jovem, para poder aprender a levar a vida de modo mais idôneo: só nos resta uma coisa, de uma só coisa somos capazes, que é ajudar nossos pósteros na medida do possível; assim, demonstrando os erros em que nossos preceptores nos lançaram, mostraremos o caminho para evitá-los”. (Op. cit., 108)
“Não se faz um mercúrio com qualquer madeira, dizem alguns; eu respondo que de qualquer homem se faz um homem, desde que não haja corrupção”. (Op. cit., 113)
“Deus quis conceder-nos apenas o tempo que considerou suficiente à preparação de uma vida melhor. Para esse fim, a vida é suficientemente longa, se soubermos fazer bom uso”. (Op. cit., 133)
“Deus quis que as coisas para o nosso uso fossem muitas e diferentes, para que muitas sejam as coisas em que nos empenhamos, exercitamos e instruímos”. (Op. cit., 133)
“Quem trabalha com destreza e paixão, sabendo o que, onde, quando e como é necessário fazer e deixar de fazer, não terá desenganos. No entanto, é verdade que às vezes até os mais experientes não obtêm resultados (pois para o homem é quase impossível realizar tudo com tal precisão que não lhe escape algum erro de um modo ou de outro), mas aqui não nos ocupamos da perícia ou do acaso, porém da arte, ou seja, do modo como é possível prevenir os acidentes”. (Op. cit., 146)
“A criança não pode ser instruída enquanto é pequena demais, porque a raiz da inteligência ainda está escondida. Instruir o homem na velhice é tardio demais, pois a inteligência e a memória começam a arrefecer; na idade madura isso é difícil porque é trabalhoso reunir as forças da mente, que estão dispersas nas várias ocupações. Portanto, isso deve ser feito na juventude, quando o vigor da vida e da mente está em ascensão: nesse momento, todas as faculdades estão crescendo e lançando raízes profundas”. (Op. cit., 148)
No século XVII, muitos países passaram momentos difíceis devido a questões políticas cujas conseqüências foram bastante danosas aos interesses educacionais. Na Inglaterra, por exemplo, uma terrível guerra civil deixou a maioria das escolas no mais completo descrédito. O desmando foi de tamanha sorte que levou Riboulet (1951:9) a afirmar que naquele país “barbeiros e açougueiros fizeram fortuna mantendo escolas”, porque os diretores preferiram deixar o caminho educacional aberto para os aventureiros.
Tal situação, também comum em outros países europeus, gerou um enorme desestímulo ao estudo por parte dos filhos dos nobres, a ponto de, consoante salientou Parmentier citado por Riboulet (1951:9) um nobre chegou ao cúmulo de dizer, em franco estado de desespero:
Juro que antes de fazer de meu filho um mestre-escola, o enforcaria. Fazer ressoar a buzina, entender de caçadas, levar bem o facão e adestrá-lo, eis o que assenta bem a filho de gentil-homem. Quanto ao saber que se busca nos livros, deve-se deixar aos vadios
Por isso, não é sem razão que Gambi (1999:280) evoca o nome de Comenius como forma de tentar compreender o que estava acontecendo no Velho Mundo, quando diz:
Para compreender o século XVII e todas as suas potencialidades e contradições é útil e oportuno partir de Comenius e do seu modelo de educação universal que veio mediar reciprocamente ciência, história e utopia sobre um pensamento fortemente original e, ao mesmo tempo, rico de passado e carregado de futuro.
No século XVII, como decorrência do humanismo, que significava, praticamente, uma saída às possibilidades humanas para solução dos problemas do homem e uma escapada ou recusa para buscar essa solução no milagre, ou seja, fora da natureza, a dedução experimental iria afirmar-se como o grande recurso do homem para, através da compreensão e do relacionamento das coisas e dos agentes naturais, tentar dirigir a natureza em seu próprio benefício. Foram feitas inúmeras tentativas com a Física, a Química, a Mecânica Celeste, a Medicina, a Geometria.
Francis Bacon, embora otimista demais, soube tomar consciência do pensamento de sua época e, interpretando-o conseguiu difundir as bases de um grande e profundo movimento de idéias e práticas que seriam largamente utilizadas nos séculos seguintes, imprimindo uma orientação menos formalista e mais concreta e humana ao pensamento pedagógico e aos processos de instrução escolar. Não foi propriamente o criador do método científico, mas soube formulá-lo e divulgá-lo. Deu destaque ao estudo da natureza como base em todo o progresso científico, calcando esse estudo a partir de observações e da experiência, pois o estudo dos fatos seria o começo do progresso de pensar. Reafirmou o espírito renascentista no domínio da ciência, recusando toda autoridade em favor da pesquisa livre. Como resultado, ao tratar do avanço dos estudos e da aprendizagem, teve de abandonar os defeitos escolares do seu tempo, inclusive a aprendizagem formal e verbal do humanismo estreito, estimulando a inclusão do conhecimento científico nos programas escolares, acompanhado de facilidades de pesquisa e prática.
Deixou aberto o caminho para Wolfgang Ratke tentar a primeira formulação do que, em história da educação, se convencionar chamar de “realismo sensorial” e que se caracterizava, primordialmente, pelo postulado de que o conhecimento das coisas concretas deveria prevalecer em relação ao estudo de palavras a respeito das coisas.
Entre tantas regras reformuladas por Ratke merecem destaque as seguintes: a procura da ordem natural para segui-la; o ensino de uma coisa de cada vez e de maneira cabal; repetição até se garantir o domínio ensinado; uso da língua materna para todo o ensino, inclusive para as explicações no ensino das línguas estrangeiras; disciplina sem violência; nada de memorização e muitas perguntas e compreensão; uniformidade didática e de material de ensino; substituição da autoridade pela experiência e a pesquisa individual.
Tudo isso seria depois reformulado de modo sistemático, servindo como embrião de quase toda a teoria educacional dos séculos seguintes, notadamente os XVIII e XIX, por Comenius.
Mas, se a influência de Comenius iria ser decisiva para toda a pedagogia posterior, é bom não esquecer a grande contribuição que ele encontrou nos trabalhos de Locke, básico no que diz respeito aos posteriores progressos da psicologia da inteligência e do conhecimento, cuja conclusão é a de que o conhecimento consiste sobretudo em estabelecer relações entre percepções. E também, vendo que a educação, menos ou mais do que o armazenamento de informações e conhecimentos, seria a aquisição de equipamentos de hábitos, conforme a seguinte ordem de valores: saúde, virtude, sabedoria, serenidade e aprendizagem mental, sendo que esta consistiria apenas em aprender a pensar e a usar a razão, e não em informações de conhecimentos ditados ou já adquiridos.
Vale ressaltar, pois, que, sem essa notável contribuição de Locke, embora Leif, Rustin (1968:7) tenham dito que “a concepção pedagógica de Locke não tem a largueza de Comenius e o contraste é vivo, e bem significativo”, a Didacta Magna de Comenius talvez não tivesse alcançado a repercussão que conseguiu. Isto porque, a obra de Locke, embora diretamente relacionada com a pedagogia comeninana, que repousava na graduação do ensino, de acordo com a natureza da criança, completou-a e tornou-a viável.
Boaventura (1987:19) discorrendo sobre a educação aponta que ela:
Deve promover a formação do homem, do cidadão e do produtor de bens e serviços. O objetivo da ação educativa é o homem em sua totalidade. Formar o homem pelo desenvolvimento de sua personalidade e de seus talentos.
Como se poderá ver no decorrer deste capítulo esse já era o ideal do modelo de educação de Comenius no século XVII, o que vem mostrar o seu comportamento de educador de vanguarda, sempre antenado com a evolução.
Para Gasparin (1994:66) “o ensino é o núcleo do pensamento didático-pedagógico de Comenius”.
Nesta trabalho, para exposição do modelo pedagógico comeniano serão utilizados os trechos mais significativos de sua obra-prima Didactica Magna, aqui transcritos da edição italiana de Marta Fattori, traduzida para o português por Ivone Castilho Benedetti, editada por Martins Fontes Editores, São Paulo, 1997, 390 p., acompanhados dos comentários e análises de alguns estudiosos e do autor deste trabalho.
A Didactica Magna foi editada pela primeira vez na Opera Didactica Omnia, em Amsterdã, 1657. Era a tradução latina da Didactica tcheca. Comenius decidiu pela versão latina e em razão do papel mais amplo que ela assumiria, alterou várias de suas partes, exageradamente ligadas à situação política contingente, e deixou de oferecê-la à nação boêmia, passando a dedicá-la a “todos os que presidem os destinos humanos, aos ministros de Estado, aos pastores das Igrejas, aos diretores das escolas, aos pais e aos preceptores dos jovens”. Reescreveu e mudou alguns capítulos para torná-los mais compatíveis com as idéias pansóficas que ele vinha elaborando.
Comenius submeteu o manuscrito da tradução latina à leitura de várias pessoas. A uma delas, o historiador Joachim Hübner, pediu, em especial, um parecer técnico sobre a publicação.
Hübner foi cruel: apresentou um extenso e minucioso parecer, no qual se manifesta totalmente contrário à publicação, e isto ao que tudo indica fez Comenius retardar a sua publicação.
Entre tantos trechos de menosprezo imputados ao trabalho de Comenius, disse Hübner:
A obra, da forma como está, nem mesmo está pronta para ser publicada.(...) Com referência ao mérito da própria obra, considero que a maioria das pessoas ficará irritada com a discrepância entre o título, demasiado penhorante, e todo o restante da obra. De fato, está tão distante de ensinar a arte de ensinar a todos que até o momento sequer me pareceu estar definido o que significa realmente ensinar, e no que o ensino difere das outras ações que, sobretudo por meio da palavra, são exercidas em proveito do homem pelo homem. Muito menos foi mostrado de que modo alguém pode ensinar da melhor maneira possível algo a alguém. Como se toda a arte de ensinar estivesse restrita apenas às escolas, como se fora delas essa arte não tivesse nenhuma outra utilidade na vida humana; como se o pregador no templo, o senador na cúria etc., não ensinassem a seus ouvintes tanto quanto o pedagogo na escola. (...) De que serve a extrema perícia dos docentes para ensinar, se as péssimas leis da escola não permitem que seja usada? (...) Qual a vantagem de os príncipes financiarem para uso escolar e destinaram altíssimos salários aos docentes e aos discentes, se não têm a capacidade de promulgar leis com as quais obriguem os dois a desempenharem suas funções, se a vigilância existente nas escolas só serve para alimentar sub-repticiamente os erros? A tua obra guarda profundo silêncio a respeito de todas essas questões. Pois bem, admitido o erro do título, que poderia ser facilmente corrigido e substituído por um título mais modesto, ainda assim não estariam corrigidas as imperfeições e os defeitos inerentes ao próprio assunto. Mesmo a tarefa dos doutores, proa e popa de todo o livro, é pouquíssimo explicada, sendo por isso uma temeridade ousar fazer tudo o que se segue apenas com uns poucos preceitos. Não são poucas as partes referentes aos deveres deles que são tratadas com leviandade: as outras são expostas por meio de simples preceitos, e não por conselhos e instruções precisas. Todos esses defeitos, por outro lado, não são compensados pelas muitas coisas supérfluas que, aliás, os tornam ainda mais enfadonhos. (Comenius, 1997:5-7)
Diante dessas críticas, profundamente aborrecido, Comenius que antes pensava numa edição da Didática provavelmente antes de 1638, esquece o projeto durante duas décadas. Mas deu resposta a Hübner e aos demais críticos a quem enviou cópias de sua obra. Especialmente a Hübner, com quem, aliás, continuara mantendo relações de amizade e colaboração, escreveu:
A obra deveria, ao contrário, iniciar-se com a definição de Didática e ensinar a arte de ensinar em si, e nada mais. Respondo, primeiro, que aquelas coisas não foram escritas para os sábios, mas para despertar da letargia geral do sono profundo do povo: portanto, não podiam ser iniciadas sem o prelúdio da experiência.(...) Propondo-me a ensinar tudo, precisei mostrar o todo, não a parte, e a estrutura devia começar pelas mais profundas, imutáveis bases. (Op. cit., 8)
Finaliza, enfático: “Não mudo nada, a Didactica Magna começa pelo fim último do homem e, despertado nele o desejo de sua última perfeição, o conduz por meio de todos os graus intermediários, até a suprema fruição de seu desejo”. (Op. cit., 8)
E a obra foi realmente publicada conforme ele havia idealizado. E começa assim: (Observação:para melhor identificação os trechos transcritos literalmente da Didactica Magna serão doravante apresentados em itálico).
“Didactica Magna que mostra a arte universal de ensinar tudo a todos, ou seja, o modo certo e excelente para criar em todas as comunidades, cidades ou vilarejos de qualquer reino cristão escolas tais que a juventude dos dois sexos, sem excluir ninguém, possa receber uma formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para a piedade e, assim, nos anos da primeira juventude, receba a instrução sobre tudo o que é da vida presente e futura, de maneira sintética, agradável e sólida. Os princípios de tudo o que se aconselha aqui são extraídos da própria natureza das coisas; a verdade é demonstrada através de exemplos paralelos das artes mecânicas a ordem dos estudos é disposta segundo anos, meses, dias, horas; o caminho, enfim, fácil e seguro, é mostrado para pôr essas coisas em prática com bom êxito.
Que a proa e popa da nossa didática sejam: buscar e encontrar um método para que os docentes ensinem menos e os discentes aprendam mais; que nas escolas haja menos conversa, menos enfado e trabalhos inúteis, mais tempo livre, mais alegria e mais proveito, que na república cristã haja menos trevas, menos confusão, menos dissensões, mais luz, mais ordem, mais paz e tranqüilidade”. (Op. cit.,1997:11-12).
“Aos Leitores
Didática significa arte de ensinar: de não muito tempo a esta parte homens ilustres têm-se empenhado em estudar essa arte por sentirem compaixão do trabalho de Sísifo realizado pelos escolares; diferentes as tentativas, diferentes os resultados.
Alguns saíram em busca de compêndios para ensinar mais facilmente apenas esta ou aquela língua; outros tentaram caminhos mais rápidos para poder ensinar esta ou aquela ciência ou arte. Outros buscaram outras coisas. Quase todos obraram com observações extrínsecas, extraídas de uma prática demasiado superficial, ou, como se diz, a posteriori.
Nós ousamos prometer uma Didactica Magna, ou seja, uma arte universal de ensinar tudo a todos; de ensinar de modo certo, para obter resultados; de ensinar de modo fácil, portanto, sem que docentes e discentes se molestem ou enfadem, mas ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda. Finalmente, demonstramos essas coisas a priori, partindo da própria natureza imutável das coisas, como se fizéssemos brotar de uma fonte viva regatos perenes, que unissem depois num único rio para constituir uma arte universal, a fim de fundar escolas universais.
Portanto, são grandes as coisas prometidas, que devem ser ardentemente desejadas: no entanto, prevejo com clareza que a alguns parecerão sonhos, e não exposições de fatos concretos”.(Op. cit., 13-14)
“(...) Ensinar a arte das artes é, portanto, tarefa árdua que requer juízo atento não de um só homem, mas de muitos, porque ninguém pode ser tão atilado que não lhe escapem muitas coisas.” (Op. cit.,15)
“(...)Esta arte de ensinar e de aprender, no grau de perfeição a que agora, ao que parece, quer alçar-se, foi em grande parte desconhecida nos séculos passados: por isso, no mundo das letras e das escolas sempre se acumularam canseiras e enfado, incertezas e falhas, erros e imperfeições , razão pela qual somente os dotados de engenho superior podiam aventurar-se em busca de uma instrução mais sólida” (Op. cit., 15-16)
Nesta oportunidade, Comenius faz uma crítica à escola de sua época e aos métodos usados até então para ensinar as línguas e as artes, acrescentando, entretanto, que, por obra de Deus, surgiu uma plêiade de luminares formada por pedagogos e teólogos alemãos, e aí cita os nomes de Ratke, Lubin, Helwig, Ritter, Bodin, Glaum, Vogel, Wolfstirn e aquele que segundo ele deveria ser citado em primeiro lugar: J. V. Andreae “que em seus áureos escritos denunciou de modo incomum os males da igreja e dos Estados, assim como os das escolas, indicando remédios para aqueles e para estas”. (Op. cit., 16). Comenius também cita o nome do francês J. C. Frey, que publicou em 1629 um boa didática.
Ele conta que desejando obter maiores informações para elaboração do seu projeto pedagógico, escreve para várias pessoas, mas isso terminou sendo em vão, seja porque muitos não quiseram colaborar e outras porque o Correio não encontrou os destinatários das correspondências enviadas.
Ressalta, todavia, a atenção dispensada pelo famosíssimo J. V. Andreae, que amavelmente respondeu dizendo que Comenius devia dar continuidade a sua missão, estimulando-o a ousar algo neste sentido.
Assim, diz Comenius: “estimulado, meu espírito começou a refletir com mais freqüência sobre essas coisas, até que o fortíssimo desejo do bem público me levou a intentar essa empresa (o projeto pedagógico) desde as suas fundações”. (Op. cit., 17)
Seu modelo de escola previa uma escola “onde as mentes dos discentes sejam iluminadas pelo fulgor do saber para penetrar facilmente todas as coisas secretas e manifestas, onde os espíritos e suas paixões sejam encaminhados para a harmonia universal das virtudes, onde os corações ardam de amor pela divindade, de tal modo que nisso se inebriem e todos os que sejam mandados às escolas cristãs para serem educados na verdadeira sabedoria já se habituem aqui à vida celeste. Numa palavra, onde todos aprendam totalmente tudo”.(Op. cit., 55)
Esclarecendo que “as Sagradas Escrituras nos ensinam primordialmente que não há caminho mais eficaz para corrigir a corrupção humana que a correta educação da juventude” (Op. cit., 27) Comenius leva à frente o seu projeto, todo ele inspirado nos ensinamentos das Sagradas Escrituras e nos exemplos da Mãe Natureza que ele tanto exalta, a ponto de afirmar: “com a orientação da natureza, o homem tudo pode alcançar”. (Op. cit., 61)
Referindo-se à utilidade da arte didática, Comenius indaga a quem interessa que a didática seja bem fundamentada, e responde:
“1. Aos Pais: até hoje a maioria deles não sabia com certeza o que esperar para os filhos. Contratavam preceptores, cercavam-nos de favores, adulavam-nos com presentes, às vezes os substituíam, com freqüência inutilmente, sem um mínimo de resultado. Mas, uma vez que o método de ensino tenha atingido infalível certeza, obter-se-á sempre com a ajuda de Deus o resultado esperado.
2. Aos Preceptores: destes, a maioria sempre ignorou a arte de ensinar; por isso, para cumprir com seu dever, consumiam-se e exauriam suas forças em diligente atividade; ou então mudavam de método, procurando obter resultados por este ou aquele caminho, nunca sem um aborrecido gasto de tempo e energia.
3. Aos Estudantes: que serão conduzidos sem dificuldade, sem enfado, sem gritos e pancadas, praticamente brincando e divertindo-se, aos mais elevados graus do saber.
4. Às Escolas: com um método mais eficaz, não só poderão manter-se em plena florescência como também melhorar indefinidamente. Tornar-se-ão uma “brincadeira”, verdadeiras casas de delícias e de atrações. E quando (graças à infalibilidade do método) cada aluno se tornar doutor (do grau superior ou inferior), os estudos não poderão deixar de prosperar nem faltarão pessoas aptas a dirigir as escolas.
5. Aos Estados: segundo o citado testemunho de Cícero. Com este concorda Diógenes, o Pitagórico (mencionado por J. de Stóboi): “Qual o fundamento de todos os Estados? A educação dos jovens. As videiras que não são bem cultivadas nunca produzem bons frutos”.
6. À Igreja: porque somente escolas bem fundamentadas poderão evitar que à igreja faltem doutores instruídos e a estes, discípulos capazes.
7. Finalmente é de interesse do CÉU que as escolas sejam reformadas para promover a educação idônea e universal das almas: por isso, não é de espantar que o fulgor da luz divina retire com maior facilidade das trevas todos aqueles que o som da trombeta divina não foi capaz de despertar. (...) (Op. cit., 37-38)
Um ponto forte na pedagogia comeniana é quando ele diz que o homem para ser homem precisa ser formado, e que ninguém cuide ser realmente homem se não tiver aprendido a comportar-se como homem, ou seja, se não tiver sido formado nas coisas que fazem o homem. E prossegue:
“O homem, por ser dotado de corpo, é feito para trabalhar, e no entanto vemos que não tem de nascença nada mais que simples aptidão: será preciso ensiná-lo aos poucos a sentar-se, a ficar ereto, a andar, a mexer as mãos para realizar uma operação. Como então, nossa mente poderia ter a prerrogativa de ser perfeita, em si e por si, sem preparação? É lei para todas as criaturas ter início do nada e desenvolver-se gradualmente, seja quanto à essência, seja quanto às ações. (Op. cit., 72-73)
Defendendo ardorosamente a idéia de que a educação é necessária para todos, Comenius assevera:
“Se observarmos com atenção as diversas condições dos homens, verificaremos sempre o mesmo. Quem pode duvidar que a educação seja necessária para que os estúpidos vençam sua estupidez? Mas na realidade as pessoas inteligentes têm mais necessidade ainda da educação, porque a mente aguda, se não estiver empenhada em coisas úteis, ocupar-se-á com as inúteis, extravagantes, perniciosas. Assim, como um campo, quanto mais fértil, maior abundância de espinhos e cardos produz, também um engenho superior está sempre cheio de pensamentos extravagantes se não é semeado com sementes de sabedoria e virtude”. (Op. cit., 74)
Comenius completa seu raciocínio pronunciando um célebre pensamento:
“O que são os ricos sem sabedoria, senão porcos engordados com farelo? Os pobres sem o conhecimento das coisas o que são, senão burros de carga? Um homem de bom aspecto mas ignorante o que é, senão um papagaio de bela plumagem? Ou então, como disse alguém(Diógenes Laércio), uma bainha de ouro com um punhal de chumbo?” . E continua:
“A quem um dia caberá comandar outros, como reis, príncipes, magistrados, pastores e doutores da igreja, a estes, mais que a ninguém, é necessária a educação profunda da sabedoria, assim como os guias precisam ter os olhos treinados, e os intérpretes a língua, a trompa precisa ser capaz de tocar, e a espada de cortar. Do mesmo modo, os súditos precisam ser iluminados, para que saibam obedecer com prudência os que comandam com sabedoria: não por obrigação e com servil obséquio, mas de bom grado e por amor à ordem. Isso porque uma criatura racional deve ser guiada pela razão, e não por meio de gritos, cárcere, pancadas e aqueles que agem de modo diferente ofendem a Deus, que neles também pôs sua imagem e os assuntos humanos estarão cheios – como estão – de violência e descontentamento.
Fique estabelecido, pois, que a todos os que nasceram homens a educação é necessária, para que sejam homens e não animais ferozes, não animais brutos, não paus inúteis. Segue-se que alguém só estará acima dos outros se for mais preparado que os outros”. (Op. cit., 75-76)
Para Comenius, a formação do homem é muito fácil na primeira infância: ou melhor, só pode ser dada nessa idade. Conforme suas convicções “no homem, é sólido e duradouro apenas o que foi absorvido na primeira idade”. E faz essas comparações, sempre tendo exemplos tirados da natureza: “O vaso conserva o odor com que se impregnou quando novo até quebrar-se. A árvore que, enquanto tenra, estendeu seus ramos para cima, para baixo, para os lados, assim os manterá durante cem anos, até que seja cortada. A lã mantém com tanta tenacidade a cor inicial que não é possível mudá-la. O círculo envelhecido de uma roda pode quebrar-se em mil pedaços mas não volta a ficar reto. Do mesmo modo, no homem as primeiras impressões ficam tão arraigadas que é quase um milagre modificá-las: por isso é extremamente aconselhável propiciar-lhes o surgimento já nos primeiros anos segundo as verdadeiras regras da sabedoria.
Finalmente, é muito perigoso deixar de infundir no homem, desde o berço, regras salutares de vida. De fato, assim que os sentidos externos começam a cumprir seu papel, já não há mais maneira de o espírito humano voltar a aquietar-se; se já não estiver empenhado em coisas úteis, não poderá evitar ocupar-se com coisas vãs ou mesmo nocivas (vejam-se os exemplos deste nosso século corrompido): desaprendê-las seria depois impossível, ou muito difícil, como já dissemos. Por isso, o mundo está cheio de erros, e para elimina-los não são suficientes os magistrados políticos nem os ministros da Igreja, ao passo que procurar eliminar o mal na origem não apresentaria dificuldades sérias”. (Op. cit., 80-81)
Comenius defendeu a presença de toda a juventude, de ambos os sexos, na escola. Particularmente sobre o sexo feminino fez as seguintes alusões, na verdade, uma magistral defesa da mulher, num século onde isso seria praticamente impossível de se pensar, em face do machismo predominante na época:
“Ninguém deve ser excluído, a não ser aqueles a quem Deus negou sentidos ou inteligência. Tampouco se pode aduzir qualquer motivo válido para excluir o sexo frágil (para dizer algo de especial sobre esse assunto) dos estudos da sabedoria (seja em língua latina, seja em língua materna). Também as mulheres, assim como os homens, são imagem de Deus, participam da graça divina e do reino do século futuro; também são dotadas de inteligência aguçada e aptas ao saber (freqüentemente mais do que nosso sexo); também para elas, como para os homens, estão abertas as portas de postos elevados, porque muitas vezes foram destinadas por Deus ao governo dos povos, a aconselhar sabiamente reis e príncipes, à ciência médica e às outras ciências úteis ao gênero humano, bem como ao dom da profecia e a censurar sacerdotes e bispos. Por que então permitimos que se alfabetizem e depois as afastamos dos livros? Temos medo da sua falta de reflexão? Mas quanto mais ocupada estiver a mente menor será o espaço destinado à imprudência, que nasce de mentes vazias.
Portanto, as mulheres também devem ser instruídas, não certamente por meio de uma mistura indiscriminada de livros (de resto, isso também vale para o outro sexo; aliás, é deplorável que até o momento não se tenha agido com mais cautela), mas por meio dos livros que permitam adquirir para sempre virtudes verdadeiras e verdadeira piedade, com o verdadeiro conhecimento de Deus e de suas obras”. (Op. cit., 91-92)
Na opinião de Comenius a instrução da mulher deve servir para ela “administrar bem a casa e para promover seu próprio bem, o do marido, dos filhos e de toda a família”. (Op. cit., 92). Ele valoriza o trabalho das mães, sobre o qual escreve um tratado – o Guia da escola materna. Nele destaca o papel das mães, não só delas mas também das amas, no processo pedagógico. Dá grande importância ao brinquedo infantil, considerando-o tão relevante quanto a nutrição e o sono.
Mas o cerne da pedagogia de Comenius está configurado na expressão segundo a qual a educação nas escolas deve ser universal, ou seja, educação para todos, tal como apregoa hoje o governo. Ele diz:
“Cumpre-nos agora demonstrar que nas escolas é preciso ensinar tudo a todos. Isto não quer dizer que queiramos para todos um conhecimento (exato e profundo) de todas as ciências e artes: isso não seria útil em si mesmo nem possível a ninguém, tendo em vista a brevidade da vida.
(...) Em suma, como dos anos da infância e da primeira educação depende todo o resto da vida, se os espíritos não forem, desde o princípio, suficientemente preparados para as circunstâncias de toda a vida, não haverá mais nada a fazer. Assim como no útero materno se formam os membros igualmente para todos os homens, e em cada um se formam as mãos, os pés, a língua etc., ainda que nem todos venham a ser artífices, corredores, copistas, oradores, também na escola é preciso ensinar a todos todas as coisas que digam respeito ao homem, ainda que depois uma delas venha a ser mais útil a um, e outra ao outro”. (Op. cit., 100-101)
No seu tempo, Comenius reclamava que nenhuma escola havia atingido tal grau de perfeição, qual seja, o de promover o ensino para todos. Todavia, mesmo nos dias atuais isto ainda é uma utopia para muitos países, e assim ainda permanecerá por muito tempo.
No projeto pedagógico de Comenius ele propôs um modelo de organização escolar segundo o qual:
“I. Toda a juventude nela seja educada (exceto aqueles aos quais Deus negou inteligência).
II. Seja educada em todas as coisas que podem tornar o homem sábio, honesto e piedoso.
III. Essa formação, que é a preparação para a vida, seja concluída antes da idade adulta.
IV. E seja tal que se desenvolva sem severidade e sem pancadas, sem nenhuma coarctação, com a máxima delicadeza e suavidade, quase de modo espontâneo (assim como um corpo vivo aumenta lentamente sua estatura, sem que seja preciso esticar e distender seus membros, visto que, alimentado com prudência, assistido e exercitado, o corpo, quase sem aperceber-se, adquire robustez); da mesma forma, os alimentos, os nutrientes, os exercícios se convertam no espírito em sabedoria, virtude e piedade.
V. Todos sejam educados para uma cultura não vistosa mas verdadeira, não superficial mas sólida, de tal sorte que o homem, como animal racional, seja guiado por sua própria razão e não pela de outrem e se habitue não só a ler e a entender nos livros as opiniões alheias e a guardá-las de cor e a recitá-las, mas a penetrar por si mesmo na raiz das coisas e delas extrair autêntico conhecimento e utilidade. A mesma solidez é necessária para a moral e a piedade.
VI. Que essa educação não seja cansativa, mas facílima: que aos exercícios de classe não sejam dedicadas mais de quatro horas, de tal modo que um só preceptor possa ensinar até cem alunos simultaneamente com um trabalho dez vezes menor do que o atualmente necessário para ensinar apenas a um. (Op. cit., 109-110)
Na sua Didacta Magna, Comenius como que assumindo uma posição de psicólogo, trata das diferenças individuais e chega a estabelecer uma espécie de psicotipologia educacional, com a qual classifica os alunos, conforme os critérios da inteligência (que ele chama de engenho) e das inclinações pessoais.
De acordo com o seu juízo de valor, os alunos são classificados dentro do critério da inteligência, em seis tipos, a saber: “a) o inteligente e ávido de saber; b) o inteligente e vagaroso; c) o inteligente, ávido de saber, mas obstinado; d) o obtuso, lento, mas dócil e ávido de saber; e) o obtuso, lento e preguiçoso e f) o deficiente.” (Op. cit., 117-119)
Seu trabalho nesse sentido vai mais além: prescreve orientação adequada e não exclui nenhum, pois o seu propósito é ensinar tudo a todos, indiscriminadamente.
Ele ensina que o professor tem de ter prudência com o aluno inteligente e ávido de saber a fim de evitar que caminhe mais depressa do que convém e acabe se tornando estéril. Diz que o aluno inteligente e vagaroso precisa de estímulo, ao passo que o inteligente e ávido de saber, mas obstinado, necessita de orientação e disciplina. Ao aluno obtuso, lento, mas dócil e ávido de saber, recomenda tratamento especial: muita tolerância por parte do mestre e estímulo permanente a fim de se evitar o desânimo. Se o professor tiver muita prudência e extraordinária paciência, poderá corrigir o aluno obtuso, lento e preguiçoso. E finalmente, ao deficiente, recomenda que o professor se controle e tente a todo custo a sua recuperação.
Comenius também cuidou das inclinações pessoais dos alunos, classificando-os em: aluno amigo das letras, cujo perfil era o de um intelectual voltado para o saber desinteressado, e aluno amigo das coisas mecânicas, que seria o prático, o extrovertido, cujos interesses voltam-se para os objetos exteriores. Na opinião de Covello (1991) “com essas idéias, Comenius antecipa-se dois séculos a seus contemporâneos, sugerindo uma reforma radical na educação de seu tempo”.
A arte de ensinar, segundo Comenius “não exige mais que uma disposição tecnicamente bem feita do tempo, das coisas e do método”. (Comenius, 1997: 127)
Em síntese, o método comeniano consistia nos seguintes princípios:
PRIMEIRO PRINCÍPIO
A natureza aguarda o momento propício
Por exemplo, o pássaro não inicia a reprodução no inverno, quando tudo está frio e rígido, nem no verão, quando tudo está abrasado e extenuado pelo calor, nem no outono, quando a vitalidade das coisas decresce com o sol e predomina o frio, que é inimigo das coisas novas, mas a inicia na primavera, quando o sol dá vida e vigor a todas as coisas.(Op. cit., 147)
Depois cita o exemplo do jardineiro que fica atento para que tudo aconteça no tempo devido e por isso não semeia durante o inverno (porque a linfa não está aderente à raiz), nem no verão (porque a linfa já está espalhada pelos ramos), nem no outono (porque a linfa se está retirando para a raiz), mas sim na primavera, quando o humor começa a difundir-se a partir da raiz e a alimentar as partes mais altas da planta.
Cita outros exemplos, como sempre retirados da natureza para depois criticar que as escolas contrariam os princípios naturais pelo menos de dois modos:
“I. Não aproveitando o tempo oportuno para exercitar os engenhos (inteligências).
II. Não organizando cuidadosamente os exercícios de modo que tudo avance gradualmente e sem erros”.(Op. cit., 148).
Depois comenta que a criança não pode ser instruída enquanto é pequena demais, porque a raiz da inteligência ainda está escondida; é tardio demais instruir o homem na velhice, porque a inteligência e a memória estão falhas; e conclui que a formação do homem deve ocorrer durante a idade primaveril (ou seja, na infância, símbolo de primavera), que as horas matinais são as mais propícias aos estudos, e compara que a manhã corresponde à primavera; o meio-dia, ao verão; a tarde, ao outono, a noite, ao inverno, e finalmente diz: “Tudo o que será aprendido deve ser disposto segundo a idade, para que nunca se ensine nada que não possa ser compreendido”. (Op. cit., 148)
“SEGUNDO PRINCÍPIO
A natureza prepara a matéria antes de começar a introduzir-lhe a forma
Por exemplo, para produzir uma criatura semelhante a si, o pássaro primeiramente forma a semente com uma gota de seu sangue; depois, prepara o ninho para chocar os ovos e, finalmente, chocando-os com seu próprio calor, forma a criatura e a faz sair do ovo. (Op. cit., 149)
Citando outros exemplos, como o do arquiteto experiente que antes de começar a construir um edifício, junta primeiramente o material de construção, e o pintor que antes prepara a tela (doravante serão citados apenas um exemplo para cada Princípio e será sempre o do pássaro), ele diz que as escolas contrariam esse princípio;
I. Porque não cuidam previamente de ter os vários instrumentos, livros, quadros, exemplos e modelos, sempre prontos para o uso, mas só quando há necessidade é que isto ou aquilo é procurado, feito, ditado ou transcrito; e quando isso é feito por um instrutor inexperiente ou negligente (e essa raça é sempre numerosa), os resultados são escassos; é como se um médico, precisando administrar um remédio, saísse pelos campos e bosques à cata de ervas e raízes, pondo-se a cozê-las e destilá-las ao passo que seria mais prático ter os remédios já prontos para todos os casos.
II. Em segundo lugar, porque nos próprios livros escolares não é observada a ordem natural, segundo a qual a matéria precede e a forma lhe sucede. (Op. cit., 149-150)
Então ele critica as escolas afirmando que elas ensinam as palavras antes das coisas e diz que para corrigir o método desde os fundamentos é preciso:
“I. Ter prontos os livros e todos os outros instrumentos didáticos.
II. Que o intelecto seja formado antes da língua.
III. Que não se aprenda nenhuma língua a partir da gramática, mas apenas a partir de autores apropriados.
IV. As disciplinas reais devem preceder as lógicas.
V. Os exemplos devem preceder as regras”. (Op. cit., 151)
“TERCEIRO PRINCÍPIO
Ao obrar, a natureza toma um indivíduo apto e prepara-o antes, oportunamente
Por exemplo: o pássaro não põe uma coisa qualquer no ninho, para chocar, mas um objeto do qual possa nascer um passarinho, ou seja, o ovo. Se junto dele alguém puser um seixo ou qualquer outra coisa, ele o rejeitará como inútil. (Op. cit., 151)
Como sempre, Comenius cita outros exemplos, todos com a mesma linha de raciocínio, para depois criticar as escolas afirmando que elas contrariam esse princípio não tanto por aceitarem crianças cretinas ou tolas (pois todas devem ser aceitas), mas porque “não se atribui às escolas a tarefa de proceder de tal modo que todos os que devam ser formados homens não saiam delas antes que a educação se complete”. (Op. cit., 152).
Ele propõe:
“I. Quem ingressar na escola deve ser perseverante.
II. Para qualquer estudo encetado, é preciso predispor as mentes dos alunos.
III. Devem ser afastados dos estudantes todos os tipos de obstáculos”. (Op. cit., 153)
“QUARTO PRINCÍPIO
Em suas obras, a natureza não procede confusamente, mas de modo claro
Por exemplo: Ao formar um passarinho, a natureza em dado momento constitui os ossos, os nervos e as veias, e em outro fortalece-lhe a carne, recobre-o de pele e depois reveste-o de penas, para em seguida ensiná-lo a voar”.(Op. cit., 154)
Mas nas escolas, segundo Comenius, “há uma grande confusão que deriva de se querer abarrotar as mentes dos alunos com muitos conhecimentos ao mesmo tempo”. (Op. cit., 154)
Sua proposta: Que nas escolas também os alunos se dediquem em dado período a uma única matéria de estudo.
Na verdade, hoje é muito comum esse tipo de estudo nos cursos modulares ministrados nas faculdades.
“QUINTO PRINCÍPIO
A natureza começa todas as operações pelas partes mais internas
Por exemplo: a natureza não forma antes as unhas do passarinho, ou as penas, ou a pele, mas as vísceras; as coisas externas vêm depois, no momento oportuno. (Op. cit., 155)
Depois de citar outros exemplos, como sempre faz para ilustrar e fundamentar os seus Princípios Educacionais, Comenius diz:
“Portanto, erram os instrutores que querem levar a cabo a formação da juventude ditando muitas coisas e obrigando decorá-las sem uma cuidadosa explicação. Erram também os que querem explicar mas não conhecem o método, não sabem de que modo abrir lentamente a raiz para nela inserir o enxerto das ciências. Desse modo estragam os alunos como alguém que, para cortar uma planta, usasse um bastão ou um bate-estacas em vez de uma faca.
Por isso:
I. Antes se forme o entendimento das coisas, depois a memória e, em terceiro lugar, a língua e as mãos.
II. Os docentes devem procurar todos os caminhos para abrir o intelecto e usá-los com sabedoria”. (Op. cit., 156)
“SEXTO PRINCÍPIO
A natureza inicia todas as suas formações pelas coisas mais gerais e acaba pelas mais particulares
Exemplo: para produzir um pássaro a partir de um ovo, não delineia nem forma logo de início a cabeça, os olhos, as penas, as unhas, mas aquece toda a massa do ovo e estende veias por toda parte graças ao movimento produzido pelo calor, de tal modo que o passarinho fique totalmente delineado (ou seja, a cabeça, as asas, as patas em embrião) e por fim todas as partes se desenvolvem gradualmente, até atingirem a perfeição”. (Op. cit., 156-157)
Comeniuis critica as escolas dizendo que o ensino das ciências será mal conduzido se for particularizado, se antes não forem propostas as linhas mais simples e gerais de todo ensinamento; e que nem é possível instruir ninguém perfeitamente numa única ciência sem relacioná-las com as outras.
Será que não estaria sendo lançado aí o principio da interdisciplinaridade, hoje tão decantado pelos Planos Curriculares Nacionais?
Fundamentalmente Comenius propõe:
“Que qualquer língua, ciência ou arte seja ensinada no início apenas por meio de rudimentos simples, de modo que delas se tenha uma idéia geral para depois se aprimorar o estudo por meio de regras e exemplos, e, em terceiro lugar, por meio de sistemas completos, incluindo as irregularidades; finalmente, se necessário, que sejam incluídos comentários. Na verdade, quem compreende uma coisa desde seus fundamentos não precisa de comentários, aliás pouco depois poderá fazê-los por conta própria”. (Op. cit., 158-159)
“SÉTIMO PRINCÍPIO
A natureza não procede por saltos, mas gradualmente
A formação de uma passarinho procede por graus, que não podem ser saltados nem pospostos, até que o passarinho, quebrando a casca do ovo, dele saia. A seguir, a mãe não lhe ordena logo que voe ou que saia em busca de alimento (pois ele não seria capaz disso), mas alimenta-o e, aquecendo-o com seu próprio calor, ajuda o crescimento das penas. Depois de nascidas todas as penas, não o empurra logo para fora do ninho para que voe, mas leva-o a exercitar-se gradualmente, e no início ensina-o a abrir as asas no próprio ninho, depois a movimentar-se elevando-se acima do ninho; a seguir, permite que ele tente o vôo fora do ninho, mas sempre nas proximidades, e só depois deixa que voe de galho em galho, de árvore em árvore, de altura em altura: assim, finalmente, pode confiá-lo com segurança ao céu aberto. Eis que todas essas ações exigem o momento oportuno, e não só o momento, mas os graus, e não só os graus, mas uma série imutáveis de graus.(Op. cit.,159-160)
Depois de citar outros exemplos, Comenius argumenta:
“Portanto, é um absurdo que os mestres não distribuam os estudos, para si e para os alunos, de tal modo que não só uns se sucedam naturalmente aos outros, mas que cada matéria seja completada em dado limite de tempo. Se não se estabelecem muito bem os fins, os meios para atingir esses fins e a ordem dos meios, será fácil esquecer ou inverter alguma coisa, e todo o estudo de algum modo será prejudicado.
Conclui-se, pois, que:
I. Todas as matérias de estudo sejam divididas em aulas, de tal modo que as primeiras sempre aplanem e iluminem o caminho das seguintes.
II. O tempo deve ser bem distribuído para que, a cada ano, mês, dia, hora, seja atribuída uma tarefa particular.
III. A medida do tempo e dos trabalhos deve ser rigidamente observada, para que nada seja esquecido ou invertido.” (Op. cit., 160)
“OITAVO PRINCÍPIO
Depois de iniciar uma obra, a natureza não a interrompe, mas conclui
Ainda, como sempre, usando em primeiro lugar o exemplo do pássaro, diz Comenius:
“O pássaro que, por natural instinto, começou a chocar os ovos não pára enquanto eles não se abrem: se parasse, nem que por algumas horas, logo o feto morreria de frio. Depois que os passarinhos nascem, não pára de aquecê-los até que, robustecidos e cobertos de penas, eles possam se expor ao tempo”. (Op. cit., 161)
Dado o exemplo da natureza, ele argumenta: “Está claro, portanto, que seria prejudicial mandar as crianças para a escola a intervalos de meses e de anos, distraindo-as com outras preocupações. O preceptor também erra se inicia, com o aluno, ora uma coisa, ora outra, sem nunca se aprofundar em nada com seriedade. Também erra se a cada hora não estabelece nem leva a termo nada de definitivo, de tal modo que o progresso seja cada vez mais notável. Onde falta esse calor tudo se esfria; não por acaso se diz que o ferro deve ser batido enquanto está quente; se esfriar, batê-lo com o martelo será em vão, sendo necessário levá-lo de volta ao fogo com prejuízo inevitável, seja de tempo, seja de ferro. Porque a cada vez que se volta ao fogo, perde-se um pouco do material”.
E em seguida conclui:
“Por isso:
I. Quem se dedica aos estudos deve freqüentar a escola até se tornar homem instruído, dotado de moral e religioso.
II. A escola deve ser um lugar tranqüilo, distante da turba e das distrações.
III. É preciso fazer tudo o que deve ser feito, sem interrupções.
IV. Não se deve permitir que ninguém se distraia ou se afaste (por nenhum motivo)”. (Op. cit., 161-162)
Com este Princípio, estimulando a presença do aluno na escola até a sua completa formação, Comenius estava condenando a evasão, hoje uma grande preocupação do governo.
“NONO PRINCÍPIO
A natureza está sempre atenta para evitar as coisas contrárias e nocivas
Ao aquecer os ovos enquanto choca, o pássaro os defende do vento forte, da chuva e do granizo, expulsando cobras, aves de rapina e outros perigos. (...) Portanto, é pouco prudente apresentar aos jovens, desde o início, controvérsias sobre algum assunto, ou seja, pôr em dúvida coisas que ainda precisam ser aprendidas. Essa atitude porventura não equivale a sacudir com violência uma planta que está assentando raízes?
Seja, pois, deliberado que:
I. Não se deve dar aos jovens nenhum livro, a não ser os de sua classe.
II. Esses livros devem ser tão bem-feitos que possam merecidamente ser definidos como inspiradores de sabedoria, virtude, piedade.
III. Não devem ser toleradas as más amizades nas escolas ou nas suas imediações.
Se tudo isso for escrupulosamente observado, é quase impossível que as escolas não atinjam seu fim”. (Op. cit., 162-163)
O projeto pedagógico de Comenius não se esgota aqui. Muita coisa está contida nos seus ensinamentos transcritos noutra parte deste trabalho e outras serão vistas conforme a ótica dos estudiosos cujas obras sobre Comenius foram selecionadas tendo em vista oferecer uma visão mais ampla e diversificada do estudo.
Assim, na ótica de Fargnoli (2000:10-11) “a didática de Comenius se assentava nos seguintes princípios:
— A finalidade da educação é conduzir à felicidade eterna com Deus, pois é uma força poderosa de regeneração da vida humana. Todos os homens merecem a sabedoria, a moralidade e a religião, porque todos, ao realizarem sua própria natureza, realizam os desígnios de Deus. Portanto, a educação é um direito natural de todos.
— Por ser parte da natureza, o homem deve ser educado de acordo com o seu desenvolvimento natural, isto é, de acordo com as características e os métodos de ensino correspondentes, de acordo com a ordem natural das coisas.
— A assimilação dos conhecimentos não se dá instantaneamente, como se o aluno registrasse de forma mecânica na sua mente a informação do professor, como o reflexo num espelho. O ensino, ao invés disso, tem um papel decisivo à percepção sensorial das coisas. Os conhecimentos devem ser adquiridos a partir da observação das coisas e dos fenômenos, utilizando e desenvolvendo sistematicamente os órgãos dos sentidos.
— O método indutivo consiste, assim, da observação direta, pelos órgãos dos sentidos, das coisas, para o registro das impressões na mente do aluno. Primeiramente as coisas, depois as palavras. O planejamento de ensino deve obedecer ao curso da natureza infantil; por isso as coisas devem ser ensinadas uma de cada vez. Não se deve ensinar nada que a criança não possa compreender. Portanto, deve-se partir do conhecido para o desconhecido”.
Discorrendo sobre o modelo educacional comeniano, Gambi (1999:290) esclarece que Comenius “avança uma proposta de organização escolar que prevê quatro graus sucessivos, para cada um dos quais delineia objetivos, os conteúdos e os métodos, com uma meticulosidade e uma minúcia por vezes excessivas, que desemboca na repetitividade e no pedantismo. As quatro escolas são:
a) A escola maternal para a infância, a mais importante, a que prepara “o terreno da inteligência” e à qual está ligada “toda a esperança da reforma universal das coisas”:
b)A escola nacional ou vernácula para a meninice, cuja finalidade “é fazer adquirir prontidão e esbelteza para o corpo, para os sentidos, para a inteligência”. É articulada em seis classes nas quais se aprendem a leitura, a escrita, a matemática, mas também os primeiros preceitos morais e os rudimentos da fé;
c) A escola de latim ou ginásio para a adolescência, cujo objetivo é “colocar em forma a floresta de noções recolhidas pelos sentidos para um uso mais claro do raciocínio”. É chamada de latim porque educa para a elegância expressiva e para a leitura pessoal dos textos;
d) A academia para a juventude, cuja finalidade é “a formação da luz harmônica, plena, universal, que congrega sapiência, virtude e fé”. É chamada academia porque se coloca como “conselho” de sábios e está situada em lugar apartado e tranqüilo”.
E continua Gambi (1999:292) “ao lado das quatro escolas já apresentadas na Didactica Magna ele prevê outras quatro:
a) A escola pré-natal ou do seio materno: tem por objetivo fornecer aos pais conselhos úteis no plano moral e higiênico-sanitário;
b) A escola da virilidade: destina-se à idade madura e tem a finalidade de orientar a “práxis” da vida do indivíduo através do temor de Deus e o empenho profissional;
c) A escola da velhice: é de preparação para a morte e tem o objetivo de “conseguir finalmente que toda a vida seja boa, enquanto boa será a sua conclusão;
d) A escola da morte: “não se destina apenas aos velhos, mas a todas as idades”.
Comenius não se descuidou do ensino das línguas ao qual deu atenção especial. Covello (1991:50) cita as oito regras básicas adotadas por Comenius para o ensino da língua:
“1ª Aprenda-se cada língua em separado.
2ª Ao estudo de cada língua, consagre-se um período determinado de tempo.
3ª Todas as línguas devem aprender-se mais com a prática do que por meio de regras.
4ª Todavia, as regras devem ajudar e confirmar a prática.
5ª As regras das línguas sejam gramaticais, e não filosóficas.
6ª A norma para escrever as regras de uma nova língua seja uma língua já conhecida, para que se mostre apenas a diferença daquela relativamente a esta.
7ª Os primeiros exercícios de uma nova língua sejam acerca de matéria já conhecida.
8ª Todas as línguas podem, portanto, aprender-se por um só e mesmo método.”
Abaixo são transcritos alguns depoimentos de pedagogos nacionais e estrangeiros sobre o trabalho realizado por Comenius como educador e reformador social.
Lorenzo Luzuriaga: “Comenius foi o fundador da didática e, em parte, da pedagogia moderna. Mas foi, ainda, um pensador, um místico, um reformador social, personalidade extraordinária, em suma. Seu nome figura ao nível dos de Rousseau, Pestalozzi e Froebel, isto é, dos maiores da educação e da pedagogia”. (Apud Covello, 1991:9). Sobre os Princípios Pedagógicos ele acrescenta: “Essas regras, que deveriam ser chamadas as regras de ouro da didática, podem-se comparar, sem desar, com as que Descartes estabeleceu para o método lógico em seu famoso Discurso do Método”. (Luzuriaga, 1985:225)
Frederick Eby: “Nas obras de Comenius, sente-se que um profeta está falando; ele foi, com efeito, uma figura colossal, mas apenas em anos recentes suas idéias receberam o respeito que merecem. (...) O plano de Comenius de educação pansófica compreendia a arte de ensinar tudo a todos. Considerando a expansão atual do conhecimento em todos os setores, a sugestão é totalmente absurda, mas no século XVII não era tão quixotesca. Não obstante, Comenius tinha uma concepção exagerada da capacidade intelectual das massas. O ideal que inspirou o amável bispo em todos os seus esforços, foi a nobre visão de educar cada criança de tal forma que esta pudesse participar, até a plenitude de suas capacidades, de todo o conhecimento e da vida social”. (...) Nenhum educador teve maior fé no poder da educação de salvar a humanidade e, conseqüentemente, de fazê-la retornar à sua divindade original. (...) Outra qualidade fundamental em Comenius era sua profunda simpatia pelo homem comum. Nenhum grande defensor da educação das massas surgira ainda com proeminência na história educacional. (...) Antecipou os pensadores de séculos posteriores e deu ao mundo um esboço de treinamento pré-escolar surpreendente em sua perfeição. Como o primeiro grande profeta da idade moderna sofreu o destino usual que aguarda homens de visão muito arrojada”. (Ebby,1962:154 e seg)
Sergio Carlos Covello: “As mais arrojadas idéias pedagógicas que, a partir de então, ganhariam voga na pena de Rousseau, Pestalozzi, Froebel e outros gigantes da educação moderna, já se encontravam delineadas com clareza nas obras comenianas: método natural, graduação de ensino, uso dos sentidos, emprego do brinquedo como instrumento pedagógico, educação pré-escolar, metódo ídeo-visual e o aprender fazendo... Mas ninguém fez a mínima referência ao autor do primeiro tratado completo, científico e sistemático sobre a arte de ensinar. As cartilhas e as obras didáticas que o incomparável checo escreveu para a infância, estas sim tiveram franca aceitação e circularam, com o maior sucesso, nas escolas e nos lares europeus até quase este nosso século, servindo de modelo aos modernos manuais escolares. Coube ao romantismo alemão despertar as atenções dos estudiosos para a obra filosófico-pedagógica de Comenius. A herança que Comenius deixou à posteridade, em mais de uma centena de obras, notadamente nos domínios da educação, é imperecível.... Muitas das idéias de Comenius são avançadas ainda em nossos dias”. (Covello, 1991:86-87)
Rosane Pimenta Fargnoli: “Comenius foi o primeiro educador a formular a idéia da difusão dos conhecimentos a todos e criar princípios e regras do ensino. Desenvolveu idéias avançadas para a prática educativa nas escolas, numa época em que surgiam novidades no campo da Filosofia e das Ciências e grandes transformações nas técnicas de produção, em contraposição às idéias conservadoras da nobreza e do clero. Desempenhou uma influência considerável, não somente porque empenhou-se em desenvolver métodos de instrução mais rápidos e eficientes, mas também porque desejava que todas as pessoas pudessem usufruir dos benefícios do conhecimento.”.(Fargnoli, 2000:10-11)
Gilberto Cotrim e Mario Parisi: “Jan Amos Comenius foi o maior educador do século XVII. Era um homem de formação religiosa; contudo, valorizava o espírito científico de sua época. Procurou desenvolver um sistema educacional no qual o educando, de posse do saber científico, fosse levado ao aprimoramento de suas qualidades morais. Seu objetivo era preparar o indivíduo para a vida e não apenas para o desempenho de uma profissão. Pretendia despertar nos homens as virtudes religiosas, de maneira que eles agissem seguindo os ideais de Cristo. (Cotrim,Parisi, 1982:206)
Theobaldo Miranda Santos: Comenius foi, sem dúvida, o maior pedagogo realista e um dos vultos mais eminentes da história da educação. Apesar disso, foi pequena a influência que exerceu sobre os educadores de sua geração, a não ser no ensino das línguas. Por quase dois séculos sua obra pedagógica permaneceu desconhecida. A Didactica Magna é o maior dos seus livros e nele Comenius afirma que o fim absoluto da educação é a felicidade eterna na contemplação de Deus. Os meios para a consecução desse ideal supremo são fornecidos pelo conhecimento que o homem pode adquirir de si mesmo e de todas as coisas. É o que Comeniuis chamava de pansofia ou sabedoria universal. Daí as restrições que fez ao método indutivo de Bacon que só permite o estudo dos fenômenos naturais. Preconizou, entretanto, o ensino vivo e atraente, realizado por processos objetivos e práticos, em que fossem utilizadas as coisas e não símbolos”. (Santos, 1964:240)
Claudino Piletti: “Comenius foi o mais importante pensador educacional do século XVII. Escreveu mais de cem tratados e livros educacionais. Suas principais idéias educacionais, no entanto, estão contidas em sua obra Didactica Magna. Nessa obra ele trata de numerosos assuntos relacionados com a educação. Afirma, por exemplo, que o objetivo da educação é auxiliar o homem a alcançar o seu fim último, ou seja, a sua felicidade eterna com Deus. Mas isso não é novidade, pois todos os educadores desses séculos concordavam nesse ponto. Comenius, porém, inovou. Enquanto os outros afirmavam que a educação, para alcançar seu objetivo, deveria tentar destruir os desejos naturais, instintos e emoções, Comenius afirma que o objetivo deve ser alcançado pelo domínio de si mesmo, o qual é assegurado pelo conhecimento de si mesmo e de todas as coisas úteis." (Piletti, 1997:143)
João Luiz Gasparin: “A didática sempre existiu na história dos homens, porque sempre se ensinou e sempre se aprendeu. Em Comenius, todavia, ela adquire dimensões peculiares que a diferenciam de todas as outras formulações anteriores ou contemporâneas, como, por exemplo, as de Ratke ou da Ratio Studiorum dos Jesuítas. (...) Os elementos essenciais de sua arte de ensinar e de sua arte de educar são uma peculiar e coerente apreensão das contradições e das novas necessidades humanas, que estavam surgindo em função das transformações profundas pelas quais passava a sociedade (...) A arte de ensinar, como núcleo do pensamento didáticio-pedagógico de Comenius, manifesta sua radicalidade não apenas quanto à sua extensão em termos de conteúdo e de universalidade das pessoas a abranger, mas também em relação à profundidade dos conhecimentos de que trata. A intenção comeniana não é somente ensinar tudo a todos totalmente, mas também que todos aprendam tudo, totalmente. Com efeito, sua arte, num processo de superação por incorporação, parte do ensino para chegar a um estágio superior, a aprendizagem, abrangendo os dois pólos opostos numa única globalidade. (...) A didática comeniana incorpora coerentemente em sua estruturação o modelo dos artesãos, mas também dos manufatureiros que, mais expressivamente, traduzem as transformações e os avanços da ciência e da tecnologia que estavam em curso no início da Idade Moderna. Por isso, o relógio e a tipografia tornam-se os exemplos da arte de ensinar. Todavia, o modelo mais perfeito que Comenius encontrou para moldar todos os passos de sua didática é a natureza. Ela torna-se o guia ideal a ser reproduzido por todo aquele que se propõe a ensinar. Mas como o ensino não é algo natural, e sim artificial, só pode ser ministrado por uma arte que repita a natureza. Para Comenius, porém, toda arte imita essencialmente a natureza, não havendo, portanto, nenhuma contradição em tomá-la como modelo que se concretiza por meio de uma arte (...) A didática comeniana tem, pois, como ponto de partida e fundamento imediato, a natureza, mas também o método da ciência, a força das idéias dos interlocutores e o método de trabalho." (Gasparin, 1994:14 e seg.)
Franci Gambi: “Para compreender o século e todas as potencialidades e contradições é oportuno partir de Comenius e do seu modelo de educação universal que veio mediar reciprocamente ciência, história e utopia sobre um pensamento fortemente original e, ao mesmo tempo, rico de passado e carregado de futuro. (...) Se com Montaigne se teoriza um modelo de educação individual e prática, baseado sobre o respeito da natureza e da psicologia do educando, com o século XVII afirma-se um modelo de pedagogia explicitadamente epistemológico e socialmente engajado, representando, especialmente na área norte-européia, onde mais se observam os ideais culturais e políticos da Idade Média, sobretudo por Comenius e seus colaboradores, os quais elaboram uma idéia de educação universal nutrida por fortes ideais filosóficos e políticos-religiosos. Estes remetem explicitamente às posições dos utopistas da época renascentista, sobretudo no que tange aos ideais de justiça e de pacificação universal, além de reforma social, política e intelectual. Quem, porém, desenvolve estas posições em chave declaradamente pedagógica é, em primeiro lugar, Comenius, que afirma a universalidade da educação contra as restrições devidas a tradições e a interesses de grupos e de classes, e a sua centralidade na vida do homem e da sociedade. Com ele se delineiam pela primeira vez de maneira orgânica e sistemática alguns dos problemas já relevantes da pedagogia: desde o projeto antropológico-social que deve guiar o mestre até os aspectos gerais e específicos da didática, para chegar às estratégias educativas referentes às diversas orientações da instrução. (...) É só a partir do fim do século que se assiste, depois de mais de um século de esquecimento, a uma retomada de interesse pela figura e pela obra de Comenius. (...) Hoje, de Comenius tende-se a valorizar o forte engajamento religioso e civil orientado para uma radical reforma da sociedade e substanciado por um conceito plurilateral de formação. (...) No plano estritamente pedagógico, são hoje considerados motivos basilares do seu pensamento o estreito vínculo entre os problemas da educação e as problemáticas gerais do homem, a centralidade da educação no quadro do desenvolvimento social, a existência de um método universal de ensino baseado em processos harmônicos da natureza, o conceito de uma instrução para toda a vida e aberta a todos, a concepção unitária do saber e o empenho por uma educação para a paz e a concórdia entre os povos. Todos esses motivos fazem de Comenius um grande inovador e antecipador de problemas e soluções que são próprios da Modernidade, mas isso não pode levar a separá-lo da cultura de seu tempo. (...) A sua grandeza se manifesta também no fato de ser um espírito luminoso numa época trágica.(...) A concepção pedagógica de Comenius baseia-se num profundo ideal religioso que concebe o homem e a natureza como manifestações de um preciso desígnio divino. Para Comenius, Deus está no centro do mundo e da própria vida do homem. (...) Toda a construção pedagógica de Comenius é, de fato, caracterizada por uma forte tensão mística que sublinha seu caráter ético-religioso e a decidida conotação utópica: a educação neste quadro é a criação de um modelo universal de “homem virtuoso”, ao qual é confiada a reforma geral da sociedade e dos costumes. (...) Sobre as bases desta concepção do homem, Comenius edifica o seu projeto educativo; isso faz dele o primeiro verdadeiro sistematizador do discurso pedagógico, aquele que relaciona organicamente os aspectos técnicos da formação com uma abrangente reflexão sobre o homem.” (Gambi, 1999: 280 e seg.)
René Hubert: “Comenius é o primeiro verdadeiramente grande pedagogo dos tempos modernos. (...) O princípio fundamental da pedagogia de Comenius, fiel, nesse ponto, à dupla orientação do pensamento reformado, é que cumpre formar o homem com vistas à vida espiritual, mas também em face da vida temporal e civil. (...) Comenius liga a moral à disciplina escolar: o aluno deve aprender a dominar-se, a dirigir a vontade, a estimar o bem pelo bem. (...) Foi um grande pedagogista, em quem se viu, com razão, o teórico da educação realista pelas coisas e defensor da educação natural adaptada ao desenvolvimento espontâneo da criança, o inventor dos métodos intuitivos e ativos, o partidário de um ensino popular generalizado”. (Hubert, 1976:154)
Ruy de Ayres Bello: “Comenius é considerado uma grande figura da história da Educação. Prescrevia a pedagogia de Comenius que o ensino levasse em conta a evolução mental do aluno. Para atender a essa exigência, deveria a escola desenvolver primeiramente a intuição sensível, depois a memória, as idéias abstratas, e, por último, a capacidade de julgar. Era de grande importânia para Comenius que o aluno percebesse a utilidade do que estudava, a fim de que seu interesse fosse sempre solicitado. Para satisfazer as exigências de seu método intuitivo, Comenius desejava que nas paredes da escola se colocassem quadros murais com a reprodução de textos dos livros de classe, devidamente ilustrados. Os jogos e as representações dramáticas têm lugar destacado na pedagogia de Comenius, sendo considerados como prolongamentos das lições. Considerando a disciplina como a primeira condição de eficiência do ensino, Comenius queria que ela se fundasse no respeito e na estima mútua entre professores e alunos, banidos os castigos físicos, salvo casos excepcionais”. (Bello, 1967:174177).
Como ficou evidenciado no capítulo inicial deste trabalho, a educação do passado privilegiava demais a figura do professor em detrimento da figura do aluno. Como dono absoluto do saber, era o professor o dínamo do processo educacional, fonte irradiadora do conhecimento, agente ativo das informações, enquanto ao aluno cabia apenas o papel de mero ouvinte, o que fazia dele agente passivo do processo educacional. Seu dever, ouvir o mestre e, se possível, aprender. Participar do processo questionando, nem pensar.
E foi assim durante séculos a fio, sem a menor possibilidade de alguma mudança que pudesse melhorar a situação do aluno.
Depois de se rever o modelo pedagógico proposto por Comenius chega-se à conclusão que não é nenhum exagero afirmar que ele realmente fez uma grande revolução educacional em sua época.
Mesmo não tendo sido reconhecido de imediato, como alias costuma acontecer com quem apresenta idéias revolucionárias demais para a sua época, o trabalho de Comenius foi entendido um século depois, e repercutiu na Europa por muito tempo após a sua morte. Dos pedagogos conhecidos dos séculos passados, ele é um dos poucos merecidamente admirados e menos criticados.
Vivendo numa época em que a psicologia pouco sabia do processo do desenvolvimento mental, ele teve a iniciativa de graduar o ensino, da infância à maturidade, tendo aí demonstrado um fino tirocínio.
No caso particular do ensino das línguas, sua preocupação foi muito além do que foi feito por qualquer outro pedagogo do seu tempo.
Ele deu também especial atenção aos livros, aos métodos de ensino e de estudo, à disciplina e à formação do caráter dos educandos numa extensa faixa etária da infância até aos 24 anos, já na fase universitária. Certamente na história da pedagogia ninguém chegou a se preocupar com espaço de tempo tão extenso de formação escolar.
Os modelos pedagógicos atuais, embora camufladamente, ainda trazem resquícios do seu extraordinário trabalho, sendo isto uma prova evidente da importância do nome dele para a educação. Os pedagogos pós-Comenius, mesmo sem o terem conhecido, seguiram na sua esteira.
É verdade que muitas das idéias de Comenius são consideradas um tanto quanto avançadas mesmo nos dias atuais, e outras consideradas completamente obsoletas. Mesmo assim, atualmente, em vários países, inclusive no Brasil, expande-se o movimento de valorização e divulgação da vida e da obra de Comenius. À medida que o tempo passa muitos estudiosos estão se convencendo do valor do seu legado bibliográfico e sua ação pedagógica têm substancial importância, não apenas por ter sido ele um educador de vanguarda, mas também um grande reformador social.
O que engrandece Comenius é sem dúvida a maneira toda especial como ele soube constituir sua arte de ensinar; na verdade, uma fiel expressão da fisionomia dos anseios humanos do momento vivido em seu tempo, um momento histórico de transição.
Seu modelo foi um misto de conteúdos que envolvia uma nova compreensão da natureza (seria uma ecologia emergente?), passando pelo desenvolvimento das forças produtivas, das novas descobertas da ciência, mas sem descurar da fidelidade das suas raízes com as coisas divinas.
Seu programa educacional não há como contestar: foi extremamente democrático, com total eliminação das distinções de classes. Numa época em que se acreditava no direito divino dos reis, aos quais foram dados poderes autocráticos, o sistema escolar comeniano tinha tudo para ser qualquer coisa parecida como um maldição, um anátema.
Uma coisa, porém, é certa: hoje quando se ouve falar tanto em “ensino para todos” a gente não pode esquecer que foi exatamente isso que Comenius preconizou no século XVII. E isto significa dizer: o grande sábio morávio está mais atual do que nunca, consolidando sua posição de vanguarda dentro da pedagogia moderna.
As Universidades brasileiras precisam, pois, redescobrir Comenius.
Porque Comenius continua vivo!
BELLO, Ruy Ayres. Pequena história da educação. São Paulo: Editora do Brasil, 1967. 234 p.
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COTRIM, Gilberto & PARISI, Mário. História e Filosofia da Educação. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1982. 336 p
COVELLO, Sérgio Carlos. Comenius, a construção da pedagogia. São Paulo: SEJAC, 1991. 99 p.
EBY, Frederick. História da educação moderna. Rio de Janeiro: 1962, 634 p.
FARGNOLI, Rosane Pimenta. Didática do ensino. Vitória: IBEAD/BOU, 2000. 100 p.
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GASPARIN, João Luiz. Comenius ou da arte de ensinar tudo a todos. São Paulo: Papirus, 1994. 187 p.
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SANTORO, André & ÂNGELO, Cláudio. Animais inteligente. Superinteressante. São Paulo: Editora Abril, jan.2000, p.25
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TELLES, Maria Luiza Silveira. Educação. 4 ed., Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
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Dezembro 2001
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