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A FAMÍLIA BARRETT
(As donzelas de Wimpole Street)

Giorgia Pisani


 

A Família Barrett
(As donzelas de Wimpole Street)
Giorgia Pisani

Tradução base
Dona Adelina Fernandes

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital
Digitalização de edição em papel
Edições Cultura Brasileira S.A., 1927

© 2002 — Giorgia Pisani


ÍNDICE

Capítulo I
A Avezinha na gaiola
Capítulo II
A Mãe morre
Capítulo III
Liberdade
Capítulo IV
Entretanto...
Capítulo V
Londres
Capítulo VI
Reclusão
Capítulo VII
Palavras cruéis
Capítulo VIII
Abismos
Capítulo IX
Robert Browning
Capítulo X
A correspondência
Capítulo XI
A visita
Capítulo XII
É o amor que chega
Capítulo XIII
O amor aumenta
Capítulo XIV
Vigília de amor
Capítulo XV
Guardemos segredo
Capítulo XVI
Luzes e sombras
Capítulo XVII
Aleluia
Capítulo XVIII
Sim!
Capítulo XIX
As últimas cartas
Capítulo XX
Ressurreição
Capítulo XXI
Pisa
Capítulo XXII
Sonetos traduzidos do português
Capítulo XXIII
Florença
Capítulo XXIV
1848
Capítulo XXV
As janelas do palácio Guidi
Capítulo XXVI
A Constituição Toscana
Capítulo XXVII
A minha casa
Capítulo XXVIII
Os passeios em Florença
Capítulo XXIX
Vida nova
Capítulo XXX
1849–1850
Capítulo XXXI
Nuvens
Capítulo XXXII
Em viagem
Capítulo XXXIII
A vida em Florença
Capítulo XXXIV
Aurora Leigh
Capítulo XXXV
Crepúsculo

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[imagem]

 

A FAMÍLIA BARRETT
(As donzelas de Wimpole Street)
Giorgia Pisani

I
A AVEZINHA NA GAIOLA

 

“A história da minha infância é simples como a de um passarinho cativo. Pela imaginação senti a maior parte das minhas mais intensas alegrias e vivi os fatos essenciais da minha juventude. Muito pequena ainda já escrevia versos. Quantas crianças escrevem versos sem que estejam destinadas a tornarem-se poetas!... Mas esta paixão infantil (o que muito raramente acontece) transformou-se rapidamente numa vontade de ferro. Depois desta época, a poesia foi para mim uma ardente realidade, pela qual vivi, trabalhei e pensei. Os heróis gregos da época clássica instigavam o meu entusiasmo; apoderaram-se a tal ponto do meu espírito que me levaram a abandonar o meu divertimento preferido, um cavalo preto que se chamava Moisés.”

A avezinha que tão modestamente conta como iniciou os primeiros trinados é ELISABETH BARRETT. Nesse tempo — por volta de 1820 — era uma débil mocinha de rosto pálido, emoldurado em cachos negros e iluminado por uns grandes olhos ávidos de ver e de compreender.

A “gaiola” era um casarão barroco, quase ridículo; as cúpulas, as torrinhas, as janelas em ogiva, de estilo árabe, destoavam singularmente no meio da suave paisagem inglesa, onde os modestos “cottages” eram revestidos de plantas trepadeiras. O pai de Elisabeth acabava de mandar construir esse edifício; era um homem severo, despótico, maníaco; hoje chamar-se-lhe-ia um neurastênico; descendia de uma família de fazendeiros das Índias Ocidentais, senhores de numerosos escravos e parecia encarar o direito paterno da mesma forma como os seus antepassados consideravam o domínio do dono sobre o escravo. Era, no entanto, dotado de grandes qualidades morais, mas prejudicadas por um egoísmo impiedoso, causa constante de sofrimentos para aqueles a quem mais queria. O senhor Barrett instalara a numerosa família nesse grande casarão: a esposa, criatura tímida, curvada ao jugo da autoridade marital, e uma ninhada de filhos, onze entre rapazes e raparigas. A vida decorria ali insípida e austera; não recebiam visitas e os jovens não se reuniam a camaradas da mesma idade, nem tinham qualquer outra distração “para não perturbar o pai.”

* * *

A casa era feia, o ambiente severo; mas, em compensação, que bosques magníficos ao redor, que abundante e luxuriante vegetação! Esses bosques eram o refúgio, o domínio de Elisabeth; encontrava neles numerosos amigos; sentia-se em comunhão secreta com as árvores e com todos os pedacinhos de relva; comprazia-se em escutar as vozes misteriosas que vibravam no seio da natureza, fonte inesgotável de poesia. Tinha por companheiro Eduardo, o irmãozinho preferido, tratado na intimidade por “Bro”. As duas crianças viviam nesses solitários campos ingleses uma vida irreal e de alada fantasia. Os carvalhos seculares abrigavam com a sua sombra os divertimentos mais estranhos. Uma tradução de Homero e um livro de mitologia grega, caindo, por acaso, nas mãos dos garotos, abriam-lhes horizontes maravilhosos. Júpiter, Vénus, Minerva, tornaram-se-lhes familiares. “Um dia”, conta Elisabeth, “saí de casa dissimulando sob o avental um feixe de lenha e fósforos, dos quais conseguira apoderar-me, com o fito de celebrar um sacrifício no altar de Minerva dos olhos azuis, minha deusa preferida na sua qualidade de protetora de Atenas”

Nessa época, já Elisabeth escrevia versos com extrema facilidade, Acontecia-lhe freqüentemente adormecer ligando rimas — reminiscências e glosas do que lera durante o dia — e, ao acordar, garatujava às pressas, sobre laudas de papel escondidas debaixo do travesseiro, as inspirações noturnas. Depois, seguida pelo irmãozinho, corria a instalar-se nos bosques onde fazia a “Bro” a leitura das suas obras, que ele escutava com religiosa admiração.

Mas, sobre esta juventude que decorria ao sabor dos sonhos, breve iria estender-se a sombra da dor.


II
A MÃE MORRE

 

A mãe morreu. A bondosa mãe de tão numerosa família, cujo perfil doloroso mal se delineia nas recordações de Elisabeth, desaparece do teatro da vida. Os onze passarinhos da ninhada acocoram-se uns contra os outros, assustados com o súbito retraimento da asa vigilante que os protegia contra perigos desconhecidos, mas dos quais tinham o presentimento.

Com quem poderia Elisabeth, agora que a mãe desaparecera, repartir a exuberante ternura que lhe transbordava do coração?

Quer muito ao pai, mas não é, certamente, com ele que poderia abandonar-se a efusões íntimas. As duas irmãs mais novas formam um grupo à parte. Henriette, alegre, sociável, recalcando um desejo ardente de distrações; Arabella, pelo contrário, seriíssima, tímida, caráter reservado, ocultando tesouros de dedicação. Mas há Eduardo, felizmente: “Bro”, o irmãozinho dois anos mais novo do que a irmã, é o fiel companheiro de brinquedos de Elisabeth, que lhe quer com todo o ardor da sua alma apaixonada. A ternura é recíproca: para “Bro” não há ninguém no mundo como “Ba”, (é este o sobrenome de Elisabeth). Eduardo encontrava na irmã mais velha conforto para todos os desgostos, conselhos sempre sensatos e também a criadora de ficções poéticas e maravilhosas. Agora já não são crianças. O estudo reuniu-os como outrora os reunia a brincadeira. Eduardo aprendia grego e latim; por sua vez, Elisabeth obteve o privilégio de seguir os mesmos estudos. Os heróis e os deuses que lhes eram familiares desde a infância, apareceram-lhe desde então no esplendor da arte. O latim e o grego não eram para ela línguas mortas, antes lhe abriam amplas janelas sobre um mundo desconhecido; na universal inspiração grega, nas églogas latinas, absorve a ciência dos sentimentos profundos dos quais vive a humanidade de todos os tempos. Sentia crescer em si, dia a dia, a paixão pela poesia e pelo estudo. Para Elisabeth, a poesia não era um frívolo passatempo, mas a própria essência da vida. Não duvidava da sua vocação, mas não ignorava que as encostas do Parnaso estavam cobertas de espinhos, que as flores ali eram raras e reservadas apenas a alguns eleitos. E pensa: “Ainda que não se possa atingir o cimo, é belo tentar escalar a montanha.” Seu pai, que tinha sempre a tendência de dizer “não” quando lhe manifestavam um desejo, encontrou dessa vez palavras para encorajar o talento do qual havia seguido o desenvolvimento que o enchia de orgulho; resolveu fazer imprimir à sua custa, nuns tantos exemplares, uma primeira tentativa: “A batalha da Maratona”. Ao ler-se hoje essa obra encontra-se-lhe uma grande ingenuidade, mas é preciso considerar que Elisabeth não tinha ainda dezasseis anos quando a compôs e que estudava havia apenas alguns meses. Eduardo admirava cada vez mais a irmã e declarava com imperturbável convicção: “Ba será célebre!” A intimidade entre ambos tornava-se dia a dia mais profunda com o decorrer de graves conversações, sob os velhos carvalhos que tinham abrigado os seus primeiros brinquedos. Compartilhavam as mesmas aspirações de um ideal um pouco vago de beleza, de bondade e de justiça. Ao serão lia durante horas e horas, sentados à roda do fogão, onde a chama brilhava quase todo o ano. Elisabeth era insaciável, queria ler tudo! “Meu pai dizia-me: — Não leias a história de Gibbon, não é livro para ti; nem tampouco Tom Jones; lembra-te de que não deves ler nenhum dos volumes que estão nesta estante à direita. Obedecia e jamais tocava nos livros que me haviam proibido. Mas, em compensação, lia o Dicionário Filosófico de Voltaire, as obras de Rousseau e todos os livros que não se encontravam na estante em questão ou que meu pai se esquecera de mencionar”

Fora assim que, de uma forma um pouco desordenada e desigual, se moldara a cultura intelectual de Elisabeth. Mas era sobretudo a alma que se lhe desenvolvia: alma ardente, susceptível a todo o ideal. Elisabeth começava a escutar no mais profundo do ser as inúmeras vozes da misteriosa humanidade!


III
LIBERDADE

 

EM casa dos Barrett, depois de vários tempos assinalados por um traço negro, outros se sucederam carregados de inquietação. O pai, sobrolho franzido, visivelmente preocupado, fechava-se o dia inteiro no gabinete de trabalho. Tinha-se a impressão de que o meio ambiente estava saturado de ansiedade e de incerteza. Que se estaria passando?

Elisabeth escreve a propósito disso à senhora Martin, única pessoa estranha admitida na intimidade dos Barrett: “A minha amiga sabe, sem dúvida, que se prepara neste momento uma lei sobre a emancipação dos escravos; se essa lei for finalmente votada, os proprietários das Índias Ocidentais ficarão irremediavelmente arruinados. Meu pai diz que nenhuma pessoa de bom senso quererá, doravante, dedicar-se à cultura da cana de açúcar; na sua opinião seria o mesmo que atulhar de blocos de pedra a ilha de Jamaica para a fazer ir a pique!” Após alguns dias, Elisabeth confirma a má nova à sua correspondente: “Já sabe decerto que a lei foi votada; todos os proprietários das Índias Ocidentais ficam arruinados. Na nossa casa a consternação é geral... Quanto a mim sinto-me contente; e, haja o que houver, ficá-lo-ei sempre, sabendo que os pretos estão virtualmente livres” O pai de Elisabeth tinha a maior parte do seu capital empregado na exploração de açúcar das Índias Ocidentais. A escravatura foi, em todos os tempos, considerada pelos Barrett como condição essencial e imprescritível da agricultura colonial. Elisabeth não ignorava que a nova legislação significava para todos eles a ruína financeira, sacrifícios, privações e uma vida mais triste ainda. Contudo, não hesitou em escrever à sua amiga, confessando-lhe o seu regozijo pela alforria do negro. Na alma de Elisabeth, persistirá até ao último dia de vida esse amor pela liberdade, essa revolta contra toda a espécie de opressão; e é dessa fé ardente que ela arrancará as mais nobres inspirações.


IV
ENTRETANTO...

 

AFINAL, ao contrário do que previra o senhor Barrett, a lei votada não fora para os agricultores a ruína total. Assim sucede, freqüentemente, nos momentos das grandes transformações sociais e econômicas: pouco a pouco, após bruscas oscilações e graças a uma adaptação progressiva de interesses, o equilíbrio restabelece-se.

Todavia, o golpe fora rude, O senhor Barrett decidiu tomar medidas imediatas para reduzir os gastos de família. A casa de Hope End, à qual eram todos tão afeiçoados, foi posta à venda. Entretanto, a numerosa família iria residir durante alguns meses à beira-mar, em Sidmouth.

Para Elisabeth era uma tortura abandonar Hope End, os bosques familiares e todas as recordações de infância. Por outro lado os irmãos sentiam certa dificuldade em se habituar às proporções modestas da nova casa. Mas Sidmouth era pitoresca. O mar tornou-se uma revelação para Elisabeth que passava horas e horas contemplando esse espectáculo incessantemente renovado, mas sempre majestoso. O lugar rodeado de colinas verdejantes que se desdobravam em semicírculos; mais abaixo, as espigas douradas revestindo as vertentes, e os arredores, ofereciam a Elisabeth encantadores motivos de passeio em companhia de “Bro” — na mão um livro, o coração transbordando de sonho!

Uma ou outra vez, montados em burros, os pequenos divertiam-se em alegres cavalgadas. O pai raramente se demorava em Sidmouth; os negócios retinham-no em Londres. Os filhos e as filhas, livres da inflexibilidade paterna, levavam uma vida mais animada, estreitavam relações, gozavam enfim da alegria de se sentirem jovens.

........................

Do jardim para a janela de Elisabeth ouvem-se vozes alegres:

— Vem conosco, o tempo está esplêndido, o ar é agradável, os burros estão selados. Despacha-te!

Elisabeth responde que não poderá ir. Durante a noite sentira-se mal... Não era a primeira vez que lhe acontecia estar indisposta, mas nunca estivera tão aflita: opressão violenta, palpitações, tosse. E agora sentia-se infinitamente fatigada. O médico hesitara em pronunciar-se; não fazia bem uma idéia do que se tratava; os pulmões eram delicados, mas o que constatava, principalmente, era uma grande depressão nervosa. O repouso era indispensável, repouso completo de corpo e de espírito. Nada de livros, de tinta ou de canetas!

As irmãs aprovam: “Sim, sim, foram os livros que lhe fizeram mal!”

Precisamente durante esse período, Elisabeth estava em plena febre de trabalho e a leitura já não a satisfazia; sentia a imperiosa necessidade de exprimir o que lhe ia na alma tão intensamente. Ésquilo, Sófocles, Eurípides continuavam sendo os seus inspiradores e os seus guias e quereria traduzir em versos ingleses o “Prometeu vencido” de Ésquilo. Pede que lho deixem experimentar e repousar depois. E, a propósito disso, escreve: “Fiz essa tradução em doze dias; ao décimo terceiro deveria tê-la queimado; seria essa a única forma de lhe insuflar um pouco de calor!” A despeito de tão severa declaração da autora, a tradução publicada tempos depois alcançou um êxito lisonjeiro. Vários círculos literários começaram a interessar-se pela personalidade dessa pequena que entrava com o pé direito na intimidade dos colossos da antigüidade clássica.

........................

O tempo ia passando e o senhor Barrett não levava para Londres a família; três anos tinham decorrido desde o dia em que os jovens Barrett haviam sido enviados provisoriamente para Sidmouth, onde aguardavam a nova e próxima instalação em Londres. Elisabeth não pudera vencer a sua fraqueza. As crises de asma e de sufocação tornavam-se cada vez mais freqüentes.


V
LONDRES

 

“COMO a minha amiga pode constatar, regressámos finalmente a Londres”, escreve Elisabeth à senhora Martin em 1831, “e a nossa pobre Sidmouth já não é mais do que uma recordação. Espero habituar-me a pouco e pouco à obscuridade desta prisão, onde a minha distração principal consiste em observar as aranhas. Entretanto o meu coração ficou em Sidmouth, preso à beleza do mar, ao qual, agora que o deixei, quero mais ainda. Londres está, atualmente, como se fora uma múmia, enfaixada num nevoeiro amarelo e tão cerrado que ainda não consegui ter uma idéia do aspecto da cidade. Farei, no entanto, quanto possa para me adaptar e é muito provável que, com o tempo, se os meus gostos mudarem e os meus cinco sentidos se transformarem, venha a consegui-lo! Em compensação a vida em Londres tem uma vantagem incontestável: proporcionar-nos a ocasião de conhecer certas figuras que não encontraríamos longe dela.” Com efeito, Elisabeth começava a sentir a necessidade de alargar o seu horizonte, de respirar mais livremente o ar exterior; ambicionava conhecer alguns escritores, entrar em contacto com o movimento intelectual contemporâneo, conhecer, numa palavra, por experiência própria, tudo o que a imaginação lhe havia revelado. Um primo do seu pai, o senhor Jean Kenyon, mais velho do que ele, estava nas condições de satisfazer o desejo da pequena; ele próprio escrevia versos com certa distinção, mas era, sobretudo, o amigo inteligente dos mais eminentes literatos ingleses, a quem hospedava faustosamente; era um magnata apaixonado pela intelectualidade e de índole bondosa e amável. A jovem prima provinciana, dotada duma inteligência viva e duma cultura clássica pouco comum, interessou-o imediatamente; rapidamente se estabeleceu entre ambos uma afetuosa intimidade. Elisabeth apreciava o encanto da conversação do senhor Kenyon, sempre brilhante, original e abundante em anedotas interessantes. Entrevia agora um mundo completamente ignorado: estava maravilhada! Kenyon falava familiarmente dos grandes homens — poetas e literatos — que, até esse momento, apareciam a Elisabeth entre nuvens douradas!

— O Olimpo não é então inacessível? Poderei eu também ser nele admitida?

— Proporcionar-lhe-ei a admissão se assim o deseja; apresentá-la-ei aos semideuses — propõe gentilmente o senhor Kenyon.

A esta perspectiva o coração de Elisabeth bateu com mais força... Hesitou. Decidiu-se, um tanto apreensiva, a pedir conselho ao pai...

Maravilhoso! O pai consentiu.

Elisabeth, sob os auspícios de Kenyon e acompanhada pelo seu fiel Eduardo, é acolhida nos salões literários de Londres. Não é bonita, mas o seu aspecto de extrema juventude desperta interesse; os seus grandes olhos claros atraem; os longos e sedosos cachos, em volta do rosto, à moda de então, enquadram-lhe as feições pálidas; as maneiras simples, a distinção dos gestos, o requinte da sua conversa conquistam-lhe todos os votos. O excelente senhor Kenyon tem o prazer de ouvir repetirem-lhe: “Como é encantadora, graciosa e simpática a senhorita Barrett!”

Elisabeth entra pois em relações com os grandes homens. Todavia, mesmo reduzidos à sua condição humana, sente em frente deles uma timidez supersticiosa. Entre outros, encontra o poeta Wordsworth. E a propósito disso escreve à sua amiga: “Pergunta você quais as minhas impressões no decorrer da nossa palestra; toda eu estremecia de corpo e alma... Mas Wordsworth deu provas duma enorme bondade: sentou-se ao meu lado e conversou comigo durante todo o tempo da sua visita.”

O cético Kenyon deve ter sofrido, sem dúvida, ao receber dias depois do memorável encontro, o bilhete da sua romântica priminha:

“Querido senhor Kenyon.

“...Suponho que o meu amigo irá um destes dias visitar Wordsworth à sua propriedade de “Rydall Mount”; muito gostaria que lhe pedisse, como se fosse para o primo, dois pedacinhos de mirto ou de geranium do jardim. Quer dar-se a esse incômodo? Terei um grande prazer se me responder afirmativamente, mas não ficarei demasiado aborrecida, se não lhe parecer fácil o que lhe peço. Poderá, caso o consiga, enviar-me os dois pedacinhos pelo correio...”

Gradualmente, Londres, “enfaixada de nevoeiro, como uma múmia,” conquista Elisabeth, que até então se conservara o pássaro cativo de “Hope End”. Agora, a porta da gaiola entreabriu-se e a jovem criatura, um pouco hesitante ainda, abre os olhos maravilhados sobre o universo. Pensa que a vida é bela, toma interesse por todas as coisas e o seu ardor pelo estudo e pela poesia aumentam mais ainda. Trabalha sem descanso. Kenyon, crítico conhecedor e severo, aconselha-a. Por essa ocasião as revistas publicam os primeiros poemas assinados por “Elisabeth Barrett”. A crítica tece-lhe elogios. Algumas personalidades do meio literário pedem para conhecer a jovem poetisa. Pouco a pouco Elisabeth sente-se levada pela torrente entusiasta da admiração e da simpatia de todos. Uma literata muito conhecida — Mary Russel Mitford — com quem Elisabeth se ligou por uma profunda amizade, escreve numa revista em voga a biografia da jovem poetisa e proclama-a uma das personalidades mais originais da época. Pouco depois aparece nas livrarias, sob o título “The Seraphins”, uma compilação de poemas: a primeira obra importante de Elisabeth. O êxito ultrapassa as previsões mais otimistas.

Elisabeth, cuja ingenuidade e simplicidade não haviam mudado, fica em extremo surpreendida ao verificar que, nas reuniões mundanas, faz figura de personagem de certa importância e que a rodeiam os admiradores da sua arte! “Que estranha impressão! Como os homens são bons! Como é belo o mundo!”

“Bro” exulta: a sua profecia realizara-se: “Ba” tornara-se célebre.

Mas mal o pássaro tentara voar, mão inflexível encerra-o na gaiola... Elisabeth cai doente, gravemente doente.


VI
RECLUSÃO

 

NUM momento de desânimo, Elisabeth escreve a uma das suas amigas: “Estou ameaçada duma pneumonia e o sistema nervoso está completamente desequilibrado; o estado do pulso é inquietante. Habituei-me a tomar quarenta gotas de láudano por dia e não posso diminuir a dose sem correr perigo; é a opinião do meu médico assistente. A estação fria, perniciosa aos pulmões, é, além disso, a causa indireta da minha debilidade nervosa, obrigando-me a ficar de cama. Conquanto a minha vida não perigue, eis-me desterrada do mundo, impossibilitada de freqüentar os centros de atividade social e intelectual. Tornei-me, em suma, um fardo para mim e para os outros.”

Mas Elisabeth não se deixa invadir pelo desalento; luta e pede a Deus forças para dominar essa fraqueza moral; o mundo brilhante que, sem dúvida, a tinha atordoado um pouco, está agora posto de parte. Mas não tem a doente à sua disposição as riquezas infinitas do mundo espiritual? Não é esse o seu verdadeiro caminho?

O soturno quarto da sombria casa de Londres onde Elisabeth está agora encerrada, não será a cela na qual uma prisioneira pense em tudo o que perdeu! Não tem a rodeá-la os seus livros, todos os seus livros, dos quais cada um lhe é querido como um amigo? A doente acolhe com um sorriso aqueles que vêm vê-la; fala-lhes alegremente. Pela manhã e à noite, a horas certas, o pai, de rosto invariavelmente severo, entra no quarto. Depois chega “Bro”, que pousa sobre a enferma um terno e ansioso olhar interrogaíivo. Em seguida é a visita das irmãs: a doce Arabella, a alegre e azougada Henriette; vêm depois os irmãos mais novos. Por fim chegam os amigos: Kenyon, sempre cordial, traz-lhe livros, novidades literárias; Mary Mitford, expansiva, afetuosa, exuberante de palavras. Todos se retiram tranqüilizados — todos, exceto “Bro” a quem a grande afeição pela irmã torna mais clarividente — e trocam impressões: “Elisabeth é feliz; os livros e a poesia são-lhe suficientes.”

É sempre fácil resignarmo-nos ao sofrimento do próximo; poucas pessoas são capazes de avaliar quanto às vezes é doloroso um sorriso nos lábios que o esboçam! Aos amigos que residem em “Hope End”, envia Elisabeth notícias tranqüilizadoras. Aproveita as mais leves melhoras para escrever: “Estou melhorando e encontrando forças lenta e gradualmente; o médico autorizou-me a descer ao rés-do-chão e a retomar o meu lugar na otomana.” Coitada! Que ilusão! O médico está preocupado com o estado da doente; e pensa quanto será perigoso para ela passar um segundo inverno em Londres. Elisabeth precisa dum clima mais benigno... Resolve-se então o seu regresso aos ares do mar; a doente irá para Torquay, onde se reunirá a alguns parentes que vivem ali. Eduardo acompanha-la-á e depois voltará para Londres.


VII
PALAVRAS CRUÉIS

 

A viagem foi extenuante; e a chegada a um lugar desconhecido, para ir residir numa casa estranha, leva à tristeza... Doravante Elisabeth será uma doente. Apenas se levanta alguns instantes durante o dia. Somente lhe restam forças para o trabalho. Melhorará? Viverá? Os médicos recusam pronunciar-se. O estado da enferma é, evidentemente, muito grave. Quanto lhe custa estar longe da família, dos amigos! E há ainda um sacrifício em perspectiva. Terá ela de carregar sozinha essa cruz? Será imprescindível que Eduardo regresse imediatamente a Londres? Será preciso que renuncie também a esse carinhoso convívio que tanto a reconforta? Terá que preparar-se para tão cruel separação? Um choro convulso — pouco vulgar nela — subjuga-a. Não consentirá o pai que Eduardo fique? Elisabeth escreve-lhe para submeter esse desejo à sua apreciação e o pai responde-lhe: “Atendendo às circunstâncias muito especiais, concedo a autorização pedida. Devo acrescentar, todavia, que Elisabeth, ao fazer tal pedido, incorreu na minha desaprovação paternal.” Os filhos do senhor Barrett são todos homens agora; no entanto, a tirânica autoridade do pai não quer abdicar em coisa alguma. Dois dos filhos abandonaram a casa paterna e tornaram-se independentes moral e economicamente; aos olhos do pai ambos cometeram uma falta de que ele guarda inflexível rancor. Supõe que Henriette dissimula um sonho de amor e redobra de severidade a seu respeito. Toda a família sofre essa intransigência mórbida em silêncio... heroicamente! Sob que misteriosa influência terá agido o senhor Barrett ao conceder a Eduardo o privilégio de permanecer em Torquay? Mas as palavras cruéis que acompanhavam a autorização jamais serão esquecidas por aquela a quem foram destinadas.


VIII
ABISMOS

 

EDUARDO, um dia pela manhã, vai ter com Elisabeth e diz-lhe: “Chegaram de Londres alguns amigos meus que vêm visitar-me; desejariam dar um passeio de barco. Se consentes, “Ba”, deixar-te-ei hoje por umas horas.”

“Ba” sente-se feliz ao ver Eduardo distrair-se um pouco; regozija-se ao saber que ele irá gozar esse belo dia em pleno mar. Ao regressar, “Bro” contar-lhe-á as suas aventuras!

Pela janela aberta, o ar carregado de perfumes balsâmicos do mar penetra no quarto. Os raios de sol esbatem-se sobre o “couvre-pied” branco do leito de Elisabeth: esta segue com interesse os ziguezagues da sombra e da luz. Sobre a cama há livros, grandes folhas de papel e vários lápises. A doente propõe-se consagrar ao trabalho esse dia solitário... As horas passam tranqüilas, iguais; as laudas vão-se enegrecendo; completamente entregue à sua inspiração, Elisabeth nem se apercebe do tempo que foge. Mas a noite vem caindo, e, no pequeno quarto, mal se distinguem os objetos... Como! Já é noite! Eduardo não voltou ainda, diverte-se, sem dúvida, com os amigos e esqueceu-se das horas ... O mar, tão calmo pela manhã, está agora agitado! As vagas sucedem-se enfurecidas, o vento sopra até dentro do quarto. É preciso fechar a janela... Elisabeth chama a criada; esta entra trazendo uma luz.

— Boa noite, menina!

— Eduardo ainda não voltou? É noite... Que tempestade! Não compreendo a sua demora.

— Os senhores refugiaram-se decerto num dos portos à entrada do golfo. O senhor Eduardo voltará com certeza amanhã de manhã.

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Eduardo não voltou!

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Haverá uma fronteira entre a loucura e a razão? É a razão ou a loucura que comprime o coração de Elisabeth como se fossem as garras duma tenaz? Começa, desde então, a torturá-la uma dúvida que depressa se transforma em certeza... Semelhante a um dobre a finados, ouve ressoar o horrível estribilho: “Foi por tua causa que ele aqui ficou.” E, produto da loucura ou da razão, um verme insaciável corrói agora o coração de Elisabeth. Noites de insônia, torpores entrecortados por sobressaltos angustiosos, visões terríveis que se renovam sem cessar, espasmos dolorosos seguidos dum aniqüilamento quase absoluto... Elisabeth sai destes horríveis pesadelos soltando um grito: “Como é possível que eu viva ainda?”

Há um refúgio supremo para aqueles que desesperam: Elisabeth agarra-se a esse refúgio. As lágrimas apaziguam-se quando a dor se envolve nas asas da Fé! Elisabeth escuta as palavras eternas que, passados tantos séculos, ensinam a resignação aos homens e lhes abrem as portas da ressurreição!

* * *

“O Senhor está junto daqueles que têm o coração despedaçado...” (Salmo XXXIV.)

“...Estou como uma boneca a quem tivessem partido a corda...” É nestes termos que, cerca de um ano após a morte do irmão, Elisabeth escreve à senhora Martin. Todavia, na sua correspondência, raras fezes se refere à tragédia que lhe enegreceu a vida; e escreve ainda: “Quando se perderam todas as esperanças, nunca mais interroguei fosse quem fosse e por isso nunca mais pude manifestar exteriormente o meu desgosto; encerrei-o para sempre no fundo da minha alma.” Com um pudor sombrio, protege o seu sofrimento de qualquer contato exterior. É já o silêncio eterno!

E, após a catástrofe, Elisabeth pede apenas uma coisa: abandonar Torquay... não mais ver o mar!... Fugir! — E a viagem? O médico receia que essa sombra dolorosa não possa suportar-lhe as fadigas... mas cede, afinal, a súplicas tão tocantes. Virá de Londres um carro apropriado para transportar Elisabeth numa padiola... Milagre da natureza humana? Milagre da bondade divina? Elisabeth dá provas duma inesperada resistência física: não teve ela a força de viver? Ao encontrar o pai, conserva-se calma; contudo, as duras frases paternas estão gravadas em letras de fogo no seu coração; e treme intimamente de que ele lhas repita... Mas o pai compadece-se dessa pobre criatura: viu, talvez, nesse instante, perpassar de novo a morte pelo seu lar! E não se referiu à catástrofe.

Elisabeth lembrar-se-á, toda a vida, com um reconhecimento infinito, de que nesse dia o pai não lhe dirigiu a menor censura!

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No sombrio quarto de Londres, durante esse rigoroso inverno, a doente retomou o curso da sua monótona existência. Vive? Sim! Procura, na religião e no trabalho, força para viver. A religião de Elisabeth não é ortodoxa; fora educada nos princípios de um protestantismo rígido, mas, durante a doença, e sobretudo depois de ter sido esmagada pelo sofrimento, abandonou-se a um misticismo pessoal, no qual encontrou uma consolação suprema. A sua religião é essencialmente: Amor! Na sua aspiração de infinito, reúne o amor de Deus e o amor da humanidade: é desse duplo amor que se alimenta a sua inspiração poética, que é ao mesmo tempo uma chama e uma prece. Durante esse período da vida, Elisabeth entrega-se a um trabalho intenso; tem a intuição de que, se o trabalho a não protegesse, o seu juízo vacilaria. Impõe a si própria um esforço que é para ela um estímulo moral. É comovedor ver essa frágil criatura — quase imaterial — encontrar maneira de mostrar ao mundo novas razões de fé e de esperança!

Nada em Elisabeth lembra uma literata pretenciosa; é, pelo contrário, invariavelmente simples. Não tem, além disso, falsas modéstias; ama a sua arte pelo esforço que lhe custa; fala dela com agrado, testemunhando reconhecimento a quantos lhe criticam a obra e lhe dão conselhos. Está sempre pronta a pôr de lado livros, laudas, manuscritos, para escutar, com interesse sincero, as confidências dos irmãos, das irmãs e dos amigos. Todos, instintivamente, vêm contar-lhe os seus desgostos e alegrias; Elisabeth tem o segredo de conquistar-lhes os corações. Todos lhe querem; grande número de admiradores desejam conhecê-la pessoalmente. A sua fama propaga-se. O poeta Wordsworth, recordando o encontro anterior, escreve pedindo autorização para lhe apresentar as suas homenagens. Respondem-lhe como a toda a gente: “Elisabeth Barrett não está em estado de receber visitas; necessita de um repouso absoluto.” No entanto, faz-se de vez em quando uma exceção: A senhora Jameson — mulher de grande valor, conhecida pelos seus trabalhos sobre a história da arte —, após repetidas tentativas, é admitida no quarto da doente. Elisabeth escreve, a propósito disso: “A senhora Jameson voltou mais uma vez, deixando uma carta; depois desta nova manifestação de interesse e gentileza, recebi-a no sábado passado. Estivemos juntas quase uma hora e, desde o primeiro momento, tornámo-nos amigas; foi mais uma prova daquilo a que as minhas irmãs chamam: as minhas intimidades fulminantes,” Essa intimidade devia durar toda a vida. Miss Mitford e Jean Kenyon — os sempre fiéis — fazem tudo para distrair a amiga. Miss Mitford, um dia, leva-lhe um cachorrinho: “Flush” tornar-se-á um dos mais célebres cães do século passado, após a publicação da poesia que a sua dona lhe consagrou: “Flush, my dog”. Kenyon, pela sua parte procura alegrar a cela da prisioneira. Elisabeth descreve assim à senhora Martin os melhoramentos feitos no seu quarto: “Se a minha amiga viesse visitar-me, não reconheceria decerto a minha prisão. Sobre o parapeito da janela colocaram uma grande caixa, cheia de terra, donde brotam, enlaçando-se, os troncos duma planta trepadeira de flores vermelhas; o seu desenvolvimento foi um pouco prejudicado por lhe juntarem um enorme pé de hera, cujos ramos são tão compridos que as extremidades se foram fixar na janela de Henriette, que fica no andar superior, enquanto os rebentos mais débeis serpenteiam em volta da minha janela. Esta planta é um presente do senhor Kenyon.”

Contudo, apesar de todas essas provas de interesse e simpatia, Elisabeth, no fundo da sua alma, sente a amargura da solidão: A morte do irmão tão ternamente querido arrancou-lhe do coração fibras que jamais serão substituídas. Os anos passam. Elisabeth aproxima-se da hora melancólica em que a primeira juventude declina; a sombra estende o seu manto, mas a luz calma da idade madura não brilha ainda na alma de Elisabeth! Então, às vezes, o desânimo apodera-se dela.


IX
ROBERT BROWNING

 

De Robert Browning a Elisabeth Barrett...
New Cross Hatcham (Surrey).
10 de janeiro de 1845.

ADORO os seus versos de todo o coração, minha querida menina Barrett; esta carta não é uma fórmula protocolar que se escreve como um dever, nem a expressão banal de uma vaga admiração pelo talento. Sorrio ao recapitular tudo o que tive intenção de lhe escrever (depois do dia da semana passada em que li os seus versos pela primeira vez) a fim de lhe patentear a impressão que senti. O meu primeiro ímpeto após essa leitura, foi renunciar, desta vez, à minha atitude habitual de receptividade passiva e explicar-lhe as razões da minha admiração; talvez eu tenha tido a intenção de fazer o papel de mestre-camarada e de lhe submeter as minhas críticas na esperança de lhe ser útil, com o que me sentiria assaz orgulhoso. Mas não consegui dividir-me e a sua brilhante inspiração poética tornou-se, pelo contrário, parte integrante de mim mesmo... Em todo o caso, não renuncio definitivamente a comunicar-lhe a minha opinião: com efeito, quando falo da sua obra com aqueles que estão à altura de apreciá-la, consigo, sem dificuldade, demonstrar as razões do meu entusiasmo e dar o justo valor a uma ou outra das qualidades características dos seus versos: a fresca originalidade musical, a riqueza do vocabulário, a emoção requintada, o ineditismo, a sinceridade e a elevação dos pensamentos; mas, em compensação, ao escrever-lhe pela primeira vez, sinto-me emocionado e tímido. Repito-lhe: gosto dos seus livros e também gosto de você. Sabe, porventura, que, há muito tempo, tive quase a oportunidade de conhecê-la? Kenyon disse-me um dia: “Dar-lhe-ia prazer encontrar-se com a menina Barrett?” Após a minha resposta, Kenyon foi vê-la imediatamente para lhe anunciar a minha visita... Ao voltar, comunicou-me que a encontrara muito doente para receber quem quer que fosse. Muitos anos decorreram depois dessa visita fracassada; hoje, tenho a impressão de que, por um infortúnio singular, me encontrei, no decurso duma longa viagem, à porta de uma das maravilhas do mundo, conservadas numa cripta; eu estava no patamar e bastar-me-ia afastar um pouco o reposteiro para penetrar no interior, mas, no momento preciso, um obstáculo, fácil, aliás, de transpor — pelo menos hoje parece-me que um pouco de perseverança me haveria sido propícia — sustou o meu gesto; a porta entreaberta fechou-se... e eis-me forçado a retomar a longa estrada do regresso: centenas de léguas! Talvez que eu nunca mais tenha oportunidade de realizar essa peregrinação! Felizmente os seus poemas foram publicados, concedendo-me o privilégio de lhe manifestar com os mais sinceros sentimentos de prazer e de orgulho, a profunda dedicação do

Robert Browning.

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Elisabeth Barrett respondeu imediatamente à primeira carta de Robert Browning.

50 Wimpole Street,
Londres, 11 de janeiro de 1845.

De todo o coração lhe agradeço, meu caro senhor Browning. Ao escrever-me essa caria foi, certamente, sua intenção, proporcionar-me uma grande alegria; e ainda que o senhor não o tivesse conseguido, ser-lhe-ia eu, não obstante, devedora dos maiores agradecimentos. Mas, a verdade é que lhe devo uma rara alegria! Receber uma carta tão lisonjeira... escrita pelo senhor! Sinto-me sempre feliz ao saber-me rodeada de simpatias, mas a simpatia de um poeta como o senhor é para mim mais preciosa do que tudo! Quer pois aceitar o meu reconhecimento?... A sua gentileza incita-me a tornar-me indiscreta: jamais nos podemos desembaraçar das pessoas a quem proporcionámos um grande prazer! É a experiência que o afirma; renunciemos a encontrar-lhe a moral. Decido-me, portanto, depois de muitas e naturais hesitações, a pedir-lhe — caso não lhe custe muito renunciar à “receptividade passiva” — que tenha a bondade de me indicar os erros mais em evidência nos meus poemas (não penso sequer em lhe pedir uma crítica detalhada). Far-me-ia um favor incomparável ao qual ficaria eternamente reconhecida; seria um tão grande privilégio, que não posso deixar de me sentir impaciente por gozá-lo! Não quero fazer-lhe acreditar que sou dócil aos conselhos e não lhe garanto que siga à risca mesmo os seus, mas aprecio de tal forma a elevação da sua inspiração e da sua experiência de artista, que uma simples observação geral sobre os meus defeitos principais, ser-me-á de uma utilidade singular; e não duvido que de uma ou de outra forma, eu não faça dela um tesouro... Poderia eu ter tido, de fato, há muito tempo, o prazer e a honra de o conhecer pessoalmente? É possível que o senhor pense ainda com mágoa nessa oportunidade perdida? Mas já pensou que, se tivesse efetivamente penetrado na “cripta”, teria corrido o risco de apanhar frio e de se aborrecer mortalmente, a ponto de ter talvez desejado estar a “centenas de léguas” dali? Seria porém ir contra os próprios interesses querer persuadi-lo de que foi melhor assim. Prefiro esperar que qualquer ocasião, desta vez favorável, me permita a honra que me foi interdita. Contudo, o inverno — estação em que as marmotas hibernam — separa-me do mundo. Na primavera retomaremos este projeto. Entretanto, aprenderei a conhecê-lo, não só através dos seus versos, como pelas efusões da sua bondade. O senhor Kenyon fala-me muito a seu respeito! O senhor Kenyon! Não posso dizer — ou melhor, não posso dizê-lo sem lágrimas nos olhos — que amigo bondoso tenho encontrado invariavelmente nele: amigo e guia, pois é também amigo e mentor dos meus livros. O senhor conhece-o bastante para poder avaliar quanto lhe devo. Esta carta já vai longa e, no entanto, quero ainda acrescentar-lhe algumas linhas essenciais. Sinto que a dívida de gratidão que contraí para consigo não deriva apenas da sua carta tão cordial e do grande prazer que experimentei, mas de razões mais elevadas e já antigas: enquanto eu viver e cultivar a poesia, o amor e a devoção que me animam para a nossa arte confirmarão que sou uma ardente e estudiosa admiradora dos seus trabalhos. Desejaria saber dizer-lhe tudo o que o coração me inspira.

Confessa-se com orgulho
Sua muito obediente e fiel
E. B.

Senhor Robert Browning
New Cross Hatcham,
Surrey.

A correspondência entre Elisabeth Barrett e Browning tornou-se gradualmente cada vez mais assídua.


X
A CORRESPONDÊNCIA

 

PARA Elisabeth é, daí por diante, um precioso hábito receber, das mãos do correio, duas ou três vezes por semana, uma folha de papel de carta cuidadosamente dobrada e selada — nessa época ainda não se usavam envelopes — na qual reconhece imediatamente a caligrafia minúscula e perfeitamente regular de Robert Browning. A correspondência de Elisabeth é geralmente importante: cartas de admiradores desconhecidos e de editores que se impacientam; cartas de velhos amigos de Hope Hend, de críticos e de literatos; quanto às de Browning, contêm o harmonioso eco de um entusiasmo juvenil: o poeta que atingira já a celebridade é de fato muito novo, pois não fez ainda trinta anos; também ele leva uma vida recatada, com os pais e a irmã, num bairro próximo de Londres, mas longe, todavia, do ruído e das distrações. A sua fama, aliás, não vai além de um círculo restrito de conhecedores; a sua arte é, com efeito, essencialmente aristocrática: pensamentos filosóficos revestidos da graça flutuante de um estilo por vezes difícil. Elisabeth, pela sua parte, apreciou imediatamente a vigorosa originalidade do poeta e, dois anos antes de o conhecer, escrevia: “...Pode talvez citar-se um estilista mais perfeito, mas nenhum poeta possui mais inspiração...”

Elisabeth tem agora o orgulho da amizade dedicada que lhe é oferecida e responde longamente, e com igual cordialidade, às cartas de Browning. Os dois poetas tratam de assuntos de arte e de literatura, mas procuram também conhecer-se melhor reciprocamente, confiando livremente os seus pensamentos, as suas tendências e os seus hábitos. Um dia, Browning refere-se à sua instintiva simpatia pelas coisas inanimadas. Elisabeth responde: “Recordo-me de que em criança escrevia nuns livrinhos de notas munidos de fechos; pois, antes de os fechar, beijava-os, em sinal de gratidão pela felicidade que lhes devia; e, quando saía, levava um deles comigo, alternadamente, a fim de lhes mostrar o mundo! De resto, tratava com a mesma consideração todos os meus livros; também, instintivamente, me entretinha com as árvores e as flores... Mas, ai de mim! entre essa época da minha vida e a minha personalidade atual, desdobra-se um sombrio e espesso reposteiro de ciprestes!”

Cinco anos haviam decorrido após a tragédia de Torquay, mas as recordações da infância ficaram para sempre mergulhadas na sombra fúnebre! Melancolicamente, Elisabeth evoca essas horas do passado com o seu novo amigo... “O que me diz, relativo à alta sociedade, incita-me a comparar a sua existência com a minha. O meu amigo — pelo menos, assim me parece — bebeu a grandes tragos, na taça da vida, um vinho cheio de sol! Mas eu apenas tenho vivido uma vida espiritual e dolorosa! Mesmo antes da doença me constranger à reclusão, já eu estava moralmente enclausurada... Criei-me no campo, sem jamais ter tido ocasião de entrar no mundo... Vivi com os meus devaneios e os meus livros, enquanto à minha volta a vida familiar zumbia como um enxame de abelhas num prado. E assim se passava o tempo... Mais tarde, fiquei gravemente doente e a minha vida parecia estar apenas por um fio, ou, na melhor das hipóteses, na perspectiva de nunca mais me deixar transpor a porta do meu quarto... Ao conformar-me com o grande desgosto em que a minha razão quase se extinguiu, senti uma certa amargura ao pensar que teria de deixar o templo do universo onde vivera em completa cegueira: ignorava tudo da humanidade, não contemplara jamais os cimos das altas montanhas, nem o curso dos rios poderosos com os quais me sentia aparentada ... Em suma, nada havia visto... O meu amigo avalia, decerto, quantas dificuldades tive a vencer para servir a minha arte, a despeito da minha ignorância! Não lhe parece que, se continuo a viver como uma reclusa, me encontrarei, por fim, em condições de absoluta inferioridade para o meu trabalho? Sou uma poetisa cega! Há, sem dúvida, certas compensações para este estado de coisas: a intensidade da minha vida interior, o hábito de observar e de analisar os meus sentimentos têm-me permitido aprofundar bastante a natureza humana. Contudo, embora poetisa, trocaria de boa vontade toda a cultura que tenho dos livros, pela possibilidade de afrontar diretamente a vida dos homens... Mas é cobardia lamentarmo-nos. Todos devemos enquanto vivermos, agradecer a Deus o destino que nos traçou; é, sem dúvida, aquele que merecemos! Alonguei-me um pouco sobre este assunto, por isso não ficará surpreendido quando me ouvir dizer que as minhas maiores alegrias e mais profundas emoções me foram reveladas através da poesia...”

* * *

Na sua primeira carta a Robert Browning, escrita em janeiro, Elisabeth, aludindo a uma possível entrevista, acrescentava: “Retomaremos esse projeto na primavera” A primavera chegou. As grinaldas de hera que alegram a janela da doente, agitam-se docemente ao sabor da brisa e, de quando em quando, roçando pela vidraça, parecem dizer: “Acolhe-nos!” Browning, em quase todas as suas cartas, recorda a Elisabeth a promessa feita e repete-lhe também: “Acolha-me! Acolha-me!” Finalmente Elisabeth escreve-lhe: “Pois bem, seja!... Apenas umas linhas para lhe dizer que, se o deseja absolutamente, pode vir; o prazer será inteiramente meu. Em todo o caso, não fale disso a ninguém, pois, se aceitei em princípio conhecer duas ou três pessoas em cada verão, não o coloco nessa categoria; recebo-o porque anseio conhecê-lo pessoalmente, — prefiro escolher o momento, segundo o meu estado de saúde; de resto, repugna-me fazer alarde da minha doença e excitar a compaixão. Pensaria mal de uma mulher que procedesse assim. Quanto ao mais... o meu bom amigo não pode saber de antemão se o conhecer-me de outra maneira que não seja por intermédio das folhas escritas, lhe trará algum prazer. Pelo contrário, eu estou em condições de poder avaliá-lo e posso dizer-lhe honestamente que tal não se dará. Não há nada que ver de interessante em mim e nada digo que valha a pena ser ouvido. Nunca aprendi a conversar, como se faz habitualmente em Londres: contento-me em admirar em Kenyon e noutros essa forma brilhante e maravilhosa de se expressarem. Se os meus poemas, segundo dizem certas pessoas, têm algum valor, fique certo de que pus neles o que de melhor havia em mim... Enfim, venha! De qualquer modo enconcontrará sinceridade de sentimentos. Não responda a esta carta. Não a escrevi para que me faça elogios...”


XI
A VISITA

 

NUMA tarde de maio, no seu quartinho obscuro, cuja janela é emoldurada pela hera, Elisabeth espera a visita de Robert Browning. Como habitualmente, está estendida sobre a otomana e, a despeito das carícias quentes prodigalizadas pela primavera, a doente envolve-se ainda num xale de lã.

Apesar de não querer confessá-lo a si própria, sente-se perturbada. A correspondência com Robert Browning era-lhe muito querida: entre ambos haviam-se formado, a pouco e pouco, laços de uma intimidade confiante... Que viria a acontecer após conhecerem-se pessoalmente? É de longe que a miragem ilude; não é de fato a realidade que traz a desilusão? Teria sido bem preferível não modificar as relações: a amizade que une duas almas não necessita de enterrar as raízes na terra para florescer!... Como de costume, “Flush” está deitado aos pés de Elisabeth: fita-a com os seus olhos interrogativos; tê-lo-ia o instinto advertido de que a dona, nesse dia, acolheria, no seu quartinho tranqüilo, um novo visitante?... Batem à porta. A criada de quarto, “Wilson”, desce para abri-la. Ouvem-se ressoar passos na escada e, de repente, à entrada do aposento, destaca-se a alta e elegante figura de Robert Browning, que se inclina diante de Elisabeth, cujos grandes olhos sorriem na sombra.

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No dia seguinte de manhã, um gentil bilhete de Robert Browning, exprimindo a sua ansiedade pela saúde da enferma, espera que a sua prolongada visita a não tenha fatigado muito!

No mesmo dia, uma carta seguiu este primeiro bilhete... mas jamais se lhe conhecerá o texto: Elisabeth, logo que a recebeu, destruiu-a; todavia, pode-se-lhe reconstituir aproximadamente o conteúdo pela resposta de Elisabeth:

“Sexta-feira à noite, 24 de maio de 1845.

Quis escrever-lhe ontem à noite, tentei fazê-lo esta manhã, mas não o consegui. Não pode calcular o tormento que me causou ao escrever-me tais loucuras. Se lhe desobedeço, meu querido amigo, respondendo-lhe sobre o assunto, faço-o, não com a intenção de lhe desagradar, mas com o fim de me sentir mais digna, ou melhor, menos indigna do seu generoso impulso que repelirei agora e sempre... Preste bem atenção. Escreveu-me coisas insensatas que nunca mais repetirá, que irá esquecer imediatamente; ficarão amortalhadas dentro de nós, tal como um pastel de revisão que, corrigido nas suas provas, não deixa vestígio algum: somente o senhor e o tipógrafo terão tido conhecimento dele! Procederia assim, não é verdade?, por estima por mim, que sou a sua mais sincera amiga. É esta uma condição absoluta para as nossas relações futuras, É impossível que tenha esquecido que me encontro numa situação excepcional e que, no estado miserável em que me sinto definhar, se eu consentisse sequer em ouvir certos exageros verbais, seria isso tão inconveniente para mim como perigoso para o meu amigo. Este é o lado essencial da questão. Agora, se respondesse uma palavra que fosse, se fizesse uma simples alusão ao que lhe escrevo, seria meu dever — e cumpri-lo-ia estritamente — nunca mais voltar a vê-lo! Um dia virá em que o seu coração me aplaudirá! Mas sei que, por consideração por mim, nada dirá e me poupará o desgosto de cortar as nossas relações de amizade no momento preciso em que eu me prometia tanta alegria através delas; o meu amigo não quererá privar-me de um prazer, quando tão poucos tenho e estou sobrecarregada de tantos fardos dolorosos! Proporcionou-me momentos tão bons! Garanta-me também a tranqüilidade de espírito. Dessa forma poderei enriquecer-me com os seus conselhos, os seus pensamentos, a sua cultura literária... aqui em casa estou rodeada de afeições, mas ninguém da minha família poderá, doravante, aconselhar-me. A sua amizade, a sua simpatia, ser-me-ão preciosas e queridas toda a vida... se porventura consente em aturar-me por um tão longo — ou tão curto — lapso de tempo!”

Que teria, pois, acontecido! Elisabeth, que tem a consciência do seu mal e sabe que não é bonita nem jovem (vai fazer quarenta anos), não tem a menor noção do encanto misterioso que emana da sua pessoa, realçado ainda pelo prestígio da sua arte e dos seus êxitos. Browning, ao contrário, foi presa dessa atração logo à primeira leitura da “poesia palpitante de vida”, que diferia tão profundamente das efusões sentimentais e acadêmicas de um grande número de mulheres de letras. Pela continuação, e no decorrer da sua correspondência regular com a escritora, aprendeu a conhecer melhor e a amar ainda mais esse espírito feminino tão límpido, tão puro, tão original. A imaginação e o coração do poeta, naturalmente românticos, entusiasmaram-se. Às vezes, dominado por um impulso irresistível, deixava a casinha de New Cross e ia para Londres; absorvido pelos pensamentos íntimos, dirigia-se, quase inconscientemente, para a casinha de Wimpole Street, donde irradiava o mistério que tão profundamente o emocionava... Agora desvendara-se o mistério; Robert Browning vira Elisabeth: o encanto dela agira; e a idéia de unir a sua vida à daquela mulher apresenta-se-lhe imediatamente... para logo se lhe impor. Pega na pena e escreve a carta que Elisabeth destruiu. A resposta dela, franca, leal, imperiosa, perturba, porém, a segurança de Browning. Receia por sua vez ter maculado para sempre a doce intimidade que lhe é tão preciosa. Que fazer? Como reparar o erro? O mais simples seria calar-se, segundo o desejo de Elisabeth. Mas Browning escolherá a resolução contrária... No grupo dos amigos do poeta, a reputação das frases cacofônicas que lhe escapavam umas vezes por distração, outras pela influência da timidez, constituía um caso de risota; e o poeta era o primeiro a rir quando lhe repetiam as próprias frases! Deliberou pois insistir e escreveu no meio de longos períodos, cortados de incidentes e parêntesis: “Não tive a intenção de dizer o que você supôs!”

Não são agradáveis para um mulher desmentidos deste gênero, mas Elisabeth não se preocupa com a ferida causada ao seu amor-próprio; vê apenas uma coisa: Browning continuará seu amigo. É o essencial. Nada mais interessa. Reenceta a correspondência interrompida, no mesmo tom de franca cordialidade, após dar por liquidado o incidente, aceitando a interpretação fornecida pelo poeta: “Desculpe-me, meu caro senhor Browning, se dei excessiva importância a palavras que a não tinham.” Na mesma carta tem Elisabeth o cuidado de fixar uma data para a próxima entrevista.

As visitas recomeçam então e a correspondência continua. Durante todo o verão, e uma vez por semana, Robert Browning sobe ao quartinho de Wimpole Street, levando entre os braços molhos de flores colhidas no seu jardim. De vez em quando encontra as irmãs de Elisabeth, — Arabella e Henriette — para as quais será, doravante, “o amigo de Ba”.

E as irmãs pensam: “Fantasia literária!” Não! É o amor que chega!


XII
É O AMOR QUE CHEGA

 

NO decorrer dessas longas e freqüentes visitas, que se prolongarão pelo inverno seguinte, nessa correspondência regular, tratar-se-á exclusivamente, doravante, de arte e de literatura? É raro os raios de sol não penetrarem os obstáculos que encontram no caminho; assim também o ardor dos sentimentos se filtra por vezes através das frases e das cartas de Robert Browning; é a princípio um pálido clarão que, gradualmente, se intensifica!

Mas Elisabeth não cede nunca; esforça-se por reconstituir a amizade primitiva, a boa camaradagem do início; não pode resignar-se a ver extinguir-se essa luz suave que veio providencialmente iluminar a sua noite. Elisabeth escreve regularmente, conservando nas cartas um tom amável e natural; procura desenvolver assuntos que se não prestem a qualquer sentimentalidade. Fala, por exemplo, nos primeiros tempos do feminismo — do feminismo de há um século! — “...A propósito de poetisas... sob a condição, todavia, de que me prometa não o repetir à senhora Jameson, far-lhe-ei a minha secreta profissão de fé... Diga-se o que se disser, faça-se o que se fizer, a verdade é que a inteligência das mulheres é, por natureza, inferior à dos homens. Refiro-me, bem entendido, à inteligência propriamente dita, não ao valor moral. As mulheres — tomando em globo o nosso sexo — têm talvez mais vivacidade de espírito, mas este não atinge nem a profundidade, nem o poder intelectual do homem. Sou de opinião que se os homens nos dominam por completo, submetendo-nos ao seu jugo, é por que afetivamente raras vezes somos capazes de marchar sozinhas. Não é justo, sem dúvida, que os homens abusem da sua força (não se vanglorie demasiado)... mas se os homens são parcialmente responsáveis desta injustiça, não penso, no entanto, que ela deva desaparecer completamente, em virtude do nivelamento anunciado pelas nossas profetisas.” E escreve numa outra carta: “...A maior parte dos dissabores — tão freqüentes, dizem, na vida —, tenho eu o privilégio de os ignorar. Não conheço nem a maldade do mundo, nem a sua falsidade, nem as desilusões sentimentais. Se as julgo com a minha experiência pessoal, a bondade está muito mais espalhada no planeta, e as manifestações inspiradas pelo amor são nele muito mais freqüentes do que o deixariam acreditar as obras da maioria dos moralistas.” Os bilhetes de Elisabeth têm a miúdo o fim de marcar a hora e o dia da próxima visita, o que é por vezes assaz complicado: “...Esperava, de um momento para o outro, uma palavra de miss Mitford, a fim de saber se devia contar com ela quinta ou sexta-feira, quando chegou um bilhete do senhor Kenyon anunciando-me a sua visita para quinta-feira às quatro horas. Mas não é tudo: simultaneamente recebi uma carta da minha tia, a senhora Hedley (cuja estadia em Brighton devia, segundo os projetos que nos deu a conhecer, prolongar-se ainda por mais dois meses), anunciando-me a sua visita para quinta-feira ao meio-dia. Que fazer? Pondo mesmo de parte a possibilidade da opção de miss Mitford, há a visita inadiável do senhor Kenyon e a chegada iminente da senhora Hedley... Fixemos, portanto, o nosso encontro para sexta-feira; e de futuro esse dia será para mim de bom presságio...”

Vejamos agora o reverso desta correspondência: Browning esforça-se honestamente por se conformar com as condições impostas por Elisabeth, mas de quando em quando escapa-lhe qualquer alusão aos seus verdadeiros sentimentos: “Seja indulgente com esta carta que tanto me fez sofrer para lhe dar uma forma atenuada... menos espontânea, menos direta! Escrevi uma outra antes desta, muito mais sentida e mais sincera.”

De outra vez, Browning começa nestes termos: “Permita-me iniciar esta carta com a fórmula final: “Com você, para sempre”. Conseguirá Elisabeth manter a amizade tranqüila, a boa camaradagem entre ela e Robert Browning?


XIII
O AMOR AUMENTA

 

“NA minha correspondência, esforçava-me por convencê-lo — escreve Elisabeth à senhora Martin, muito depois dos acontecimentos — que, de futuro, os dons da juventude seriam, para mim, apenas recordações; o meu coração perdera, disse-lhe, a própria força de ambicionar as alegrias naturais da vida. Quis que ele soubesse tudo... Browning não me respondeu com desmentidos lisonjeiros e disse-me simplesmente que “daí em diante não lhe restava outra escolha”. Robert supôs estar na verdade, mas, talvez, pelo contrário, tenha sido eu quem teve razão... Fosse como fosse, Browning amava-me e amar-me-á até ao fim da sua vida. Conhecia o temperamento dele e sabia que me quereria sempre, mesmo que eu nunca lhe correspondesse. Contudo, não quis de forma alguma atormentar-me e estava pronto a esperar vinte anos, se eu assim o desejasse. Preferia, dizia-me ele, passar comigo uma hora por dia, a ver realizado qualquer outro projeto mais brilhante onde eu não fosse incluída.”

Será possível que Elisabeth persista em impedir as manifestações de um sentimento tão profundo, respondendo-lhe com indiferença? Desde muito nova, Elisabeth afastara corajosamente do espírito e do coração a idéia do casamento, de uma afeição recíproca, de uma família, de uma casa sua. Dedicara-se a viver dia a dia sem projetos de futuro, esforçando-se por fazer sentir à sua volta a pouca influência benfazeja de que dispunha; concentrava a vida nas emoções da arte; rezava, encarando corajosamente a morte; não seria esta, para ela, um alívio? E agora? Agora, no decorrer dos seus dias solitários, das noites de insónia, Elisabeth sente germinar no mais íntimo da alma, maravilhosa florescência de sentimentos ignorados; experimenta a deliciosa sensação de se elevar da terra sobre asas! Escuta vozes suaves, vozes tentadoras! Uma luz deslumbrante perpassa na escuridão... Sonhos, sem dúvida, ilusões? Elisabeth procura destruir essas visões, esses esboços de felicidade! E escreve a Browning: “...Tenho hesitado bastante, sem saber se é preferível guardar silêncio, ou censurar certas expressões que você emprega. O meu amigo continua — já deu por isso? — a deixar-se seduzir por miragens e a enganar-se redondamente... No entanto, é preciso que o saiba: guardarei até ao último alento a recordação inalterável do generoso interesse que me demonstra... ia dizer: que desperdiça comigo! Que Deus o ajude em todas as suas iniciativas e me defenda de ser alguma vez — esta idéia é-me intolerável — um obstáculo direto ou indireto, ainda que mais não seja do que um minúsculo grão de areia sobre a bela e plana estrada da sua vida!” Elisabeth luta ainda, sem dúvida, mas as censuras amenizam-se e as interdições tornam-se menos absolutas.

Naturalmente, a intimidade entre os dois amigos aumenta aos poucos; a aproximação sentimental acentua-se: as confidências afloram-lhes aos lábios. Elisabeth, tão reservada em tudo que lhe diz respeito, entreabre pouco a pouco o templo secreto dos seus pensamentos e sentimentos. Refere-se à vida de família, sempre difícil e tanta vez desagradável. Fala do pai com uma delicadeza infinita e chega mesmo a evocar atragédia de Torquay. E escreve, após uma visita: “...Receio que o meu amigo forme uma opinião injusta acerca do que hoje lhe confiei. Talvez que eu tivesse feito melhor em me calar... Mas é difícil esconder de um amigo o que salta aos olhos de toda a gente. Contudo, no que me diz respeito, posso afirmar-lhe que, na vida de todos os dias, pessoa alguma impõe menos a sua vontade do que eu. De tempos a tempos, evidentemente, surgem pequenos desacordos, mas, quando se trata de desejos que nos interessam pessoalmente, vale mais ceder do que contrariar aqueles que amamos. O estorvo das rédeas curtas torna-se um hábito, não impedindo o galope! De resto, não temos nós reservada uma zona inteira onde podemos pensar livremente?... Ah! é esse, talvez, o mais grave inconveniente: Não se poder falar com o coração nas mãos a um outro coração, o mais próximo — segundo a natureza — do nosso. A continuidade da dissimulação, as reticências... são os vícios dos escravos! Vejo os meus irmãos constrangidos pela mais baixa e a mais vil das necessidades, que é a de viver numa submissão aparente; todos, exceto eu, estão sob a dependência pecuniária dessa vontade inflexível. Está compreendendo?... Mas o que o meu amigo não pode calcular é a profunda afeição, a ternura que sustém esta idéia patriarcal de querer continuar a regular, segundo as diretrizes tradicionais, a vida dos filhos que atingiram a maioridade. Sob estas estratificações hereditárias esconde-se a mais sincera afeição paterna. Sei que não existe um coração mais leal, mais puro, mais digno de respeito. O mal está no sistema: o nosso pai considera como um dever distribuir por nós, como senhor absoluto, a felicidade que nos compete, como se esta fosse propriedade sua... Apesar de tudo, asseguro-lhe, ama-nos, e eu, pela minha parte, quero-lhe muito. Quando — há cinco anos — perdi o ente a quem mais queria no mundo... foi meu pai quem senti mais intimamente ligado à minha dor, quando me ajoelhava junto ao túmulo cerrado, ou contemplava o abismo sempre escancarado do mar!... Não só deu provas de bondade e de paciência durante a minha longa doença, como também, na hora mais amarga do meu desgosto, teve a generosidade de perdoar; jamais me fez censuras, como teria o direito de fazer e como eu a mim própria as dirijo. Nunca me disse, nem nesse momento nem depois, que se o mais belo florão da sua casa fora ceifado antes de tempo, era sobre mim que recaía a responsabilidade! Nunca fez tal alusão. E se nessa ocasião meu pai tivesse usado desse direito, eu nada mais poderia fazer do que baixar silenciosamente a cabeça!...


XIV
VIGÍLIA DE AMOR

 

PASSA mais um verão.

Gradualmente, depois de alguns meses, Elisabeth sente-se melhorar; não foi, no entanto, o estio quem fez o milagre ... Não! Tinham passado já bastantes verões e a doente mal lhes sentira a influência; noutro tempo, nem mesmo nos mais belos dias podia abandonar a cela. Não! O milagre deve ser atribuído a essa luminosa atmosfera de ternura em que Elisabeth passou a viver mergulhada!

O médico está satisfeito. É evidente que as forças voltaram e que a tosse desapareceu; os curtos passeios não só já não a fatigam como ainda reanimam a sua vitalidade. O organismo emurchecido parece reflorir. É preciso, custe o que custar — afirma o médico — aproveitar sem delonga essas melhoras para evitar uma recaída; partir aos primeiros sintomas de inverno seria o ideal; é necessário levar Elisabeth para um país quente: a Itália. Só de ouvir pronunciar essas sílabas: Itália! Elisabeth tem a impressão, por instantes, de que o seu quarto está inundado de sol! Quem sabe se ali, sob aquele clima maravilhoso, não germinará a débil e vacilante esperança de felicidade que palpita dentro de si mesma!

Todos, à volta dela, parentes e amigos, a encorajam. “É preciso tentar!” Kenyon é dos mais entusiastas: “Parta, Elisabeth. Voltará curada!” O irmão Georges e a irmã Arabella dizem-lhe: “Não podes viajar sozinha; acompanhar-te-emos.”

Robert Browning pensa e escreve: “Onde Elisabeth Barrett for, irei eu também!” Browning conhece e adora a Itália. Imagina já a grande alegria de se encontrar em companhia de Elisabeth nessa terra de beleza, nessa pátria de poetas.

Mas...

16 de outubro de 1845.

“Não se zangue comigo; não me atribua a responsabilidade... já não vou para a Itália! Como eu tanto receava, esse projeto não se realizará. Não lhe contarei a cena que se passou entre Georges e papai. Dir-lhe-ei apenas a conclusão formulada por meu pai: “Tenho a liberdade de partir, se me aprouver, mas, quanto a ele, desaprova em absoluto a minha partida” Georges, indignadíssimo, ainda insistiu, mas em vão. Eis a situação: poderei partir, mas sob a ameaça da reprovação mais severa. Depois de todos os argumentos que você e o senhor de Kenyon apresentaram em favor da minha partida, argumentos aos quais adiro em consciência, se eu estivesse sozinha nesta causa, afrontaria sem hesitar a cólera de meu pai; mas não posso resolver-me a colocar na mesma contingência meu irmão e minha irmã; sinto que é impossível, que não posso fazê-lo... Nestas condições, espero que o meu amigo reconhecerá que não tenho culpa de ter que pôr de novo a corrente aos pés e de ser obrigada a curvar-me a tão dura imposição. Imaginei — quanto me amargura esta revelação! — que meu pai era mais meu amigo... Nunca, porém, lamento conhecer a verdade; e devo aceitar esta provação como as outras...”

Essa renúncia é particularmente dolorosa para Elisabeth: não só tem que abandonar a esperança de se curar, mas descobre finalmente que a afeição de seu pai, na qual sempre acreditara, apesar de tantas provas de severidade e dureza, fora suplantada pelo egoísmo. Doravante, será a uma vontade mórbida que Elisabeth deverá submeter-se. A submissão será completa; o coração de Elisabeth, todo amor e perdão, não guardará o menor azedume. Não obstante, a desilusão é cruel para a sua natureza sensível.

Nessa hora de melancolia e desânimo, o pensamento de Robert Browning chega até Elisabeth: “A minha amiga está sujeita a uma verdadeira escravatura — não hesito em escrever a palavra — e eu, que poderia dispor do poder de libertá-la, mal ouso exprimir o meu pensamento; contudo, sei que me perdoará a transcrição destas palavras que fervilham dentro de mim... todavia, se mo ordenasse, calcá-las-ia de novo no mais fundo da minha alma... A minha amiga poderia fazer-me feliz, muito para além de qualquer expressão humana... Se isto é um sonho, deixe-me sonhar um pouco... Poderíamo-nos casar imediatamente...”

Elisabeth responde: “Você perturbou-me mais do que eu julgava possível, supunha que nem mesmo o meu amigo pudesse despertar em mim uma tão profunda emoção!... A partir deste instante pertenço-lhe para tudo, menos para lhe fazer mal. Sinto que o meu coração é demasiado seu para consentir — como você me pede — que lhe faça mal... Se eu acedesse ao seu desejo, sinto-o, seria não só menos leal, mas também menos sua! É com a maior sinceridade que lhe dou esta resposta. Não seria capaz de lhe falar hoje de outra maneira e talvez seja sempre assim. Contudo, quero fazer-lhe uma promessa: aconteça o que acontecer, ninguém, doravante, poderá interpor-se entre nós senão Deus e a própria vontade do meu amigo. Quero dizer com isto que, se estiver nos desígnios da Providencia, num tempo relativamente próximo, curar-me do meu mal, serei então sua na acepção que você desejaria dar a este termo: amiga ou mais do que amiga... sua amiga, em todo o caso, até ao último dia da minha vida! Portanto, tudo depende de Deus e de você. Entretanto, considere-se como absolutamente livre a todo o momento; é preciso que não se sinta preso nem pelo mais frágil fio... senão preferirei renunciar a vê-lo, seja qual for a dor que eu possa sofrer!”

Browning responde pressuroso: “Minha, minha..., doravante será minha! Fique tranqüila, não sentirei o peso do seu jugo...”


XV
GUARDEMOS SEGREDO

 

O inverno envolve Londres de geada e nevoeiro... mas o quartinho que deita para Wimpole Street já não é sombrio; está iluminado pelo mais belo sol do universo: o amor! A pequenina cela parece agora um jardim; todos os dias Browning leva ou envia flores magníficas. Que pensarão as irmãs, os irmãos, os amigos, ao verificar essa perpétua primavera que cerca Elisabeth? As irmãs estão de agora em diante ao corrente do que se passa, e Elisabeth di-lo a Browning: “Minhas irmãs sabem tudo. Como agora estamos muito mais vezes juntos do que dantes, adivinharam-no e pediram-me para lhes dizer toda a verdade.”

A verdade é, por enquanto, apenas: Amor! Nenhuma promessa prende Browning. Enquanto o milagre da cura não for um fato, o casamento deve ser considerado como um sonho. Ninguém, exceto as irmãs de Elisabeth — nem os irmãos, nem os amigos — deve saber que tal projeto foi eventualmente encarado. Tanto segredo porquê? Uma das manias do velho Barrett é justamente uma aversão inveterada ao casamento dos filhos. Henriette espera e sofre em silêncio, não encontrando possibilidade de se tornar independente. Também Eduardo, pouco tempo antes da sua morte trágica, enamorado e correspondido, tentara em vão obter o consentimento do pai; Elisabeth, que dispunha de fortuna pessoal, desejara ardentemente facilitar o casamento do irmão. A propósito disto escreve a Browning: “Não teria feito o menor sacrifício dando uma parte do meu dinheiro para facilitar o casamento de Eduardo; que poderia eu comprar que me fosse mais precioso do que a sua felicidade? Também dessa vez me impediram de agir,” Elisabeth sabia que à primeira suspeita o pai proibiria, certamente, as visitas de Browning, essas visitas em que ela ia buscar a força e a razão de viver e às quais sentia que não poderia renunciar. É pois necessário que ninguém saiba coisa alguma, para sua tranqüilidade pessoal e também para evitar aos irmãos uma cumplicidade perigosa. E escreve, a propósito dos amigos: “Tenho refletido na melhor maneira de proceder em relação ao senhor Kenyon. Será preferível, creio, se ele o interrogar ou disser algo equivalente a uma interrogação, confessar-lhe que vem ver-me uma vez por semana... Receio que esta novidade o surpreenda um pouco, pois me disse um dia, olhando-me através dos grossos óculos inquisitoriais, que não podia compreender como é que você conseguira introduzir-se na minha intimidade. — “Miss” Mitford passou aqui a tarde inteira. Chegou às 2 horas e saiu às 7, e eu fiquei muito fatigada. Essa querida “Miss” Mitford falou por ela e por mim; no entanto, de dez em dez minutos via-me obrigada a replicar-lhe — o meu companheiro habitual “Flush”, é menos exigente ainda. — Estou cansada e venho repousar em você... Graças à minha paciente estratégia, o nome do meu amigo não foi pronunciado uma única vez; quando me parecia que a sua personalidade podia ser a finalidade de certas associações de idéias, apressava-me a fazer desviar a conversa. Tenho um medo enorme de ouvir perguntas concretas e de sentir dois olhos de mulher fixarem os meus. Receio-os mais ainda do que aos óculos do senhor Kenyon!...


XVI
LUZES E SOMBRAS

 

O inverno de 1845-1846 em Londres, foi excepcionalmente suave. Elisabeth, animada por uma febril vontade de viver, sentia acumular em si reservas de força, mas precisava ainda tomar grandes precauções. Não saía de casa, mas já não estava prisioneira no quarto. Deixara de estar continuamente estendida na otomana e já a autorizavam a descer ao rés-do-chão e a juntar-se com as irmãs no salão familiar. Passava horas a trabalhar; as pequenas laudas que usava tingiam-se com a sua bela caligrafia. Que escrevia Elisabeth nessa época? Ninguém o sabia, nem mesmo Robert Browning.

Elisabeth viveu nesse inverno como num sonho. Contudo, as nuvens douradas eram às vezes encobertas por sombras. Demais sabia ela que, se o pai chegasse a descobrir a verdade, jamais lhe perdoaria; essa idéia torturava-a: “É a minha cruz! Mas não é culpa minha se tenho de escolher entre dois afetos!” escrevia ela a Browning. Depois, a dúvida sobre o que deve decidir volta sem cessar ao seu pensamento e às suas cartas. Terá ela o direito de ligar a sua vida, tão frágil ainda, à mocidade robusta de Robert Browning? “Se alguém contasse o que se passa ao senhor Kenyon, este não deixaria de nos felicitar afetuosamente, mas no fundo do coração pensaria que você é louco e que eu sou egoísta,” Elisabeth, logo que o amor lhe apareceu como uma débil esperança, escrevera a Browning: “Serei inteiramente sua, salvo se for para lhe fazer mal.” Repetia a si própria esta restrição e repetia-a também a Robert Browning, apesar de se sentir agora presa nas doces cadeias do amor. E escrevia: “Prometa-me ser razoável se a minha saúde vacilar. Tanto você como eu, deveremos, nesse caso, resignarmo-nos à vontade de Deus!” Mas a esperança da cura acentuava-se irresistivelmente. Elisabeth curar-se-á...! “Falta-me o sol de Pisa, mas outro sol me aquece quando você está presente”

De quando em quando, a sua aventura de amor apresenta-se-lhe como um maravilhoso, um inverosímel conto de fadas: “Você veio até mim como um sonho bom: necessito traçar um sinal no lugar onde acaba o sonho e onde a realidade começa!” Numa outra carta escreve: “Se eu pensasse só em mim, desejaria morrer agora, imediatamente, antes de ter tido oportunidade de lhe dar a menor desilusão... Com efeito, tremo às vezes ao pensar que, quando você me conhecer como eu me conheço, terá, sem dúvida, uma desilusão. Que posso eu oferecer? Uma coisa apenas — bem pouco; — há só uma coisa que eu sei fazer melhor do que quem quer que seja, uma coisa que eu faço melhor do que qualquer outra: amar!”


XVII
ALELUIA

 

ABRIL volta com o seu cortejo de flores. “...As suas flores trouxeram a primavera para o meu quarto. Que riqueza de colorido!... E à medida que o sol penetra no interior, as cores avivam-se ainda mais! Adoro o mês de abril com as suas rápidas alternativas de sol e nuvens; lembra-me o tempo longínquo em que, em Hope End, me afundava até à cintura na erva úmida, enquanto o sol espalhava os seus raios pela minha cabeça e o vento brincava com a luz e com a sombra, entre a vegetação circundante. Mas, meu bom amigo, estas sensações extremas não eram a felicidade. A ventura não depende da chuva nem do sol. Quando a porta do futuro parecia para sempre fechada para mim, e me sentia cansada de ter batido tanta vez em vão, julgava-me feliz, graças à calma com que aceitava a morte! Compreendo agora o abismo que separa a vida da morte. Conheço, finalmente, a vida separada da dor!...” Um hino de gratidão, uma aleluia se eleva do coração de Elisabeth:

“Quando à dor sucedia a dor, nunca disse: não a mereci... Agora, que a alegria precede a alegria, digo sinceramente: Como pude eu merecer a felicidade?”


XVIII
SIM!

 

A palavra tão ansiosamente esperada por Robert Browning foi finalmente pronunciada:

— Sim! sim, com a ajuda de Deus, se as melhoras miraculosas persistirem... no fim do verão, ou o mais tardar no outono. Elisabeth, esposa, enfim, de Robert Browning, partirá com o marido para a Itália.

O tempo parecia agora apressar a data fatídica. Elisabeth, às vezes, quereria poder dizer-lhe; “Mais devagar!” De fato, sente-se profundamente perturbada ao pensar no pai. E escreve a Browning: “...Pobre papai! Não cesso de me interrogar se o ofenderei menos revelando-lhe a verdade do que pondo-o em face do fato consumado. Quem sabe... Se me sentisse mais forte, preferiria correr esse risco... Mas no estado em que estou! Logo que meu pai soubesse o que se passa, proibir-me-ia de te ver, de te escrever... e estou muito fraca para lutar... De resto, é possível que um ato de desobediência formal o fira ainda mais do que uma manifestação de independência... De vez em quando, perturbada por vertigens, fecho os olhos! Que Deus nos inspire e nos ajude!... De qualquer forma, após a nossa fuga, pedir-lhe-emos humildemente perdão, faremos tudo para o obter...”

O tempo prossegue na sua marcha. Ei-lo, o mês de agosto! A senhora Jameson dispõe-se a partir para a Itália; insiste com Elisabeth para que a acompanhe; não pode convencer-se de que, ainda desta vez, a um pedido tão legítimo, se oponha uma nova recusa. Elisabeth não sabe de todo o que deve responder; o que é preciso, porém, mais do que nunca, é guardar segredo. Agradece à amiga com um sorriso onde se estampa o futuro! Havia muitos anos que a família Barrett não saía de Londres, nem mesmo na época dos grandes calores em que a mudança de ares teria sido essencial a Elisabeth. Mas, justamente nesse ano, o senhor Barreit fala de uma provável vilegiatura; a casa parece necessitar de reparações e, deste modo, será preciso que a família se ausente durante algum tempo. Essa perspectiva é uma nova fonte de inquietações para Elisabeth e para Browning: uma partida para o campo obrigá-los-á a retardar o casamento até ao inverno; nessa época de frio a viagem tornar-se-á mais difícil e perigosa. Os dias passam e a incerteza aumenta. O pai concentra-se num silêncio impenetrável. Mas, a 9 de setembro, Elisabeth escreve a Browning: “...Esta noite o decreto foi promulgado. Georges partirá amanhã, a fim de procurar uma casa em Douvres, Reigate ou Tumbridge; o lugar, na opinião de meu pai, não tem importância; o essencial é que a nossa casa fique vazia durante um mês, para que se possa proceder às reparações. A partida deve efetuar-se o mais depressa possível... E, agora, que faremos nós? É muito possível que a estadia se prolongue por mais de um mês; é mesmo provável, visto haver grandes reparações a fazer em Wimpole Street, para as quais, segundo ouvi dizer, um mês não será suficiente. Sinto-me agitada e perplexa; não vejo bem o caminho que devemos seguir. Se partirmos na segunda-feira para o campo, como realizaremos os nossos projetos?... Reflete e toma uma decisão pelos dois. Passa da meia noite e tenho apenas o tempo de dar esta carta a Henriette para que a ponha no correio amanhã, bem cedo. Sou mais do que nunca, meu amor,

A tua “Ba”.

P. S. — Farei tudo o que quiseres... Compreendes?”

Browning responde imediatamente: “É meio dia e ao entrar encontrei o teu bilhete. — “Farei tudo o que quiseres !” — Compreendo que não são vãs essas palavras. Se partes na segunda-feira, o nosso casamento atrasar-se-á um mês. Será um desastre. Aí tens o que lucrámos em suspender por tanto tempo a realização do nosso projeto... Casemo-nos imediatamente e partamos para a Itália. Vou em seguida tratar dos papéis necessários e no sábado poderá celebrar-se o nosso casamento. Irei aí amanhã e combinaremos tudo. Sempre teu.

R.”

No dia seguinte Browning dirige-se a casa de Elisabeth; será a sua última visita à casinha de Wimpole Street. Robert e a sua amada tomam as últimas disposições. O casamento celebrar-se-á secretamente na igrejazinha de Marylebonne. Ninguém terá conhecimento do fato, nem mesmo as irmãs de Elisabeth; é preciso que elas possam responder sem mentir: “Nós não sabíamos nada!” quando, inevitavelmente, explodir a cólera paterna. Elisabeth será acompanhada à igreja unicamente pela sua criada de quarto, a boa e dedicada “Wilson” que, em seguida, deve partir com eles para a Itália. Logo às primeira palavras pronunciadas por Elisabeth, para lhe perguntar se quereria acompanhá-la, respondeu:

— Irei com a menina para qualquer parte, seja para onde for.

— Ser-lhe-ei grata toda a minha vida, Wilson.

........................

O casamento de Elisabeth Barrett e de Robert Browning realizou-se num sábado, 12 de setembro de 1846, na igreja de Marylebonne.

Depois da cerimônia, Elisabeth, querendo refazer-se de tantas emoções, voltou por alguns dias para casa do pai. Browning pensou que, realmente, teria sido imprudente não proporcionar uma transição a Elisabeth antes de a expor às fadigas da viagem.


XIX
AS ÚLTIMAS CARTAS

 

DURANTE os dias que se seguiram, Elisabeth viveu como num sonho, no meio da família que tudo ignorava. Ficar-lhe-á sempre uma recordação dolorosa desses dias de inquietação. O silêncio a que se via obrigada parecia-lhe (Elisabeth era sincera até ao escrúpulo) constituir um verdadeiro embuste. Os bilhetes apaixonados de Robert vinham reconfortá-la; Browning renunciara às suas visitas habituais; também ao seu caráter reto repugnava a dissimulação. E escrevia: “Sábado... Mergulho o meu olhar no nosso passado e, em tudo, quer seja nas tuas frases, nos teus gestos, nos dizeres das tuas cartas, ou nos teus próprios silêncios, me apareces perfeita! Não desejaria por coisa alguma deste mundo trocar uma das tuas palavras, modificar um dos teus olhares. Tenho esperança de gozar sempre deste amor; Deus que mo deu deve querer conservar-mo: tenho fé n’Ele! Minha Ba, tão inteiramente minha, deste-me a maior, a mais absoluta prova de amor que um ser pode dar a outro. O meu coração está cheio de reconhecimento e transbordante de orgulho. Que Deus derrame sobre ti as suas bênçãos, são os votos do teu R. Cuida, principalmente, da “minha” vida que tens inteira na tua mãozinha. Esforça-te por ser calma, meu amor! Não deixes de agradecer a Wilson da minha parte.”

Domingo, 13 de setembro.

“...Se me convencesse de que conseguiria apaziguar o ressentimento que a minha ação vai despertar, se me convencesse de que estaria na minha mão conservar-te o afeto de que gozaste até hoje, não hesitaria um instante em humilhar-me perante teu pai... Em todo o caso, a adoração que tenho pela sua filha impedir-me-á, seja em que circunstância for, de faltar ao respeito que lhe devo. Que Deus te abençoe, minha “Ba”, minha alegria, meu orgulho, meu conforto!”

Elisabeth, após a leitura dessas cartas, esquecia o tormento das lutas interiores para se abismar no amor triunfante. E escrevia: “Quando fico só, reato o fio do meu sonho. E parece-me impossível... Não compreendo... A despeito da triste, embaraçosa, difícil situação em que me encontro atualmente, exulto com a idéia de ser tua; tua indissoluvelmente, apesar de todas as oposições humanas, de toda a vontade em contrário. Doravante, ninguém no mundo poderá separar-nos!” Mas, no dia seguinte, ao pensar na carta que tem de mandar ao pai, escreve: “—Segunda-feira... Essa carta! essa carta! Sinto-me morrer, só com a idéia da obrigação em que vou encontrar-me de escrever frases deste gênero: “Papai, casei... Espero que não ficarás muito aborrecido com isto...” “Ah! pobre pai... Enganas-te, com o teu otimismo, julgando que papai se conservará calmo, que simulará indiferença. Muito ao contrário! Ficará terrivelmente colérico! Expulsar-me-á do seu coração! Mas de que serve apoquentar-me com esses pensamentos?! Ah! nem calculas a minha perturbação íntima, a primeira vez que o vi, após o acontecimento de sábado último! E dirigiu-se a mim, com bondade, a informar-se da minha saúde! Constou-me que dissera um dia ser eu a mulher mais perfeitamente pura que ele conhecia. Sorri quando me repetiram esta apreciação; devo isso ao fato de até então não o ter atormentado com intrigas amorosas e escandalosas veleidades matrimoniais!... Mas agora, meu amor, submeter-nos-emos às mais amargas penitências. Pela minha parte, estou pronta a deitar-me aos seus pés, se assim puder conseguir ser perdoada... parcialmente, o bastante para ter o direito de o beijar ainda. Quero-lhe com ternura; é meu pai e possui nobres qualidades. Sobretudo, é meu pai! Tu, que és tão bom e generoso para mim, ajudar-me-ás — como prometeste — a reconquistar a afeição que me vai ser retirada. Muito to agradeço. Não te agradeci bastante na minha carta desta manhã. Posso, absolutamente, dizer a meu pai: “Em toda a minha vida — exceto nesta emancipação — me curvei aos teus menores desejos. Põe toda essa vida anterior num dos pratos da balança e sobre a outra o fato em questão: julga-me e perdoa-me em nome da afeição que tiveste até hoje pela tua filha. “Tenho, sem dúvida, o direito de lhe falar assim; posso evocar também os meus prolongados sofrimentos e suplicar-lhe que me perdoe esta felicidade que, finalmente, me é concedida!”

As cartas, os bilhetes de Browning sucedem-se no mesmo dia. É urgente tomar todas as disposições para a partida iminente: itinerário da viagem, horários, melhor forma a dar a nova do casamento, expedição de bagagens, — “Bagagem reduzida ao mínimo” — recomenda Browning, “Eu e Wilson levaremos apenas uma mala pequena e outra de mão”, responde Elisabeth, São feitas, enfim, as últimas combinações. Os esposos encontrar-se-ão num livreiro vizinho; uma carruagem os conduzirá dali até à estação de Vauxhall; tomarão o trem para Southampton onde embarcarão para atravessar a Mancha.

“Sexta-feira à noite, 19-9-1844.

“Fica então combinado! Das 3 e meia para as 4 horas. Não te escreverei mais. Não tenho coragem... Amanhã por esta hora só te terei a ti, meu amor, para me querer. Vou enviar a tua casa, em New Cross, o volume de poesias de Hammer que te pertence e os dois preciosos livros que me ofereceste; não quero deixá-los aqui e receio estragá-los na viagem. Queres pedir a nossa irmã para guardar tudo numa caixa que encontraremos ao regressar? Quanto às tuas cartas, levo-as comigo; tentei separar-me delas mas não pude; ou melhor, foram “elas” que recusaram deixar-me. Não me ralhes.

Será a última carta que te escrevo, meu amor. Oh!... se eu te amasse um quase nada menos, só um quase nada... dir-te-ia que o nosso casamento não é válido e que não contasses comigo amanhã; é uma coisa horrível ser-se constrangido a infligir, voluntariamente, uma dor a outra pessoa! É a primeira vez na minha vida! Reza por minha intenção esta noite, Robert! E pensa em mim, a fim de me incutires coragem.

Tua “Ba”.

P. S. — A nossa bagagem foi transportada sem obstáculo. Wilson é perfeita; e eu que a julgava tímida! Começo a crer que as pessoas tímidas estão singularmente aptas a dar provas de audácia na primeira ocasião...”

Na tarde de sábado, 19 de setembro, oito dias depois do casamento, Elisabeth, seguida por Wilson, deixa, sem ser notada, a casa paterna... para sempre! Está pálida, inquieta, perturbada. Leva “Flush” nos braços e afaga-o para o impedir de ladrar.


XX
RESSURREIÇÃO

 

A senhora Jameson encontra-se ainda em Paris, primeira etapa da sua viagem. Uma bela tarde de setembro, está estendida na otomana do seu quarto de hotel, em companhia de uma sobrinha que viaja com ela, quando lhe trazem uma carta. Mal a abre... solta exclamações de surpresa! É uma carta de Robert Browning, que lhe comunica o seu recente casamento, suplicando-lhe, em termos solícitos, que vá visitar Elisabeth, a qual está de cama, prostrada pela fadiga. Browning mostra-se manifestamente inquieto.

A novidade causa imensa surpresa à senhora Jameson que, no entanto, não perde tempo em comentários. Corre a casa da amiga... Encontra Elisabeth exausta, deprimida mais ainda pelas emoções e lutas interiores do que pelas canseiras da viagem. Encoraja-a; tenta também acalmar a agitação de Browning. A senhora Jameson abraça um e outro chamando-lhes “milagres da luz”; é feliz com a felicidade deles, aprova as suas decisões sem nenhuma restrição e assegura-lhes que se teria orgulhado de haver sido admitida como cúmplice. E escreve nestes termos a uma amiga de Londres: “Estou em companhia de um poeta e de uma poetisa célebres, que fugiram juntos, depois de se terem casado secretamente. Circunstâncias excepcionais obrigaram-nos a recorrer a essa solução extrema. São duas almas de eleição. Rogo a Deus que os proteja, mas não vejo como dois corações e duas inteligências poéticas poderão adaptar-se a este mundo prosaico.” A senhora Jameson arranja para os Browning, no hotel onde habita, quartos mais confortáveis. Dá provas à sua amiga de uma solicitude materna. Ao fim de oito dias, Elisabeth, reanimada pela infinita ternura do marido, sente-se já mais calma, mais forte e começa a interessar-se pelas belezas de Paris. Em breve se encontrará em estado de continuar a viagem, que será feita em pequenas etapas. São ao todo seis: A senhora Jameson e a sobrinha; Robert e Elisabeth Browning, Wilson e Flush; este último mostrar-se-ia perfeitamente satisfeito com essa vida errante, se as autoridades ferroviárias não lhe infligissem a humilhação de o fazer fechar, durante toda a viagem, num caixote como qualquer mercadoria vulgar! Os viajantes param em Orleans e em Avignon; nesta última cidade vão em peregrinação poética a Vaucluse. A senhora Jameson conta esse episódio a uma sua amiga: “No próprio lugar onde nascem as águas, Browning levantou a esposa nos braços e atravessou a vau o rio indo depô-la sobre um rochedo que se elevava como um trono no meio da corrente. E, assim, o amor e a poesia exaltaram pela segunda vez os lugares que a fantasia de Petrarca imortalizou.”

De Avignon dirigem-se a Marselha, onde embarcam para Livorno.

Finalmente, atingem o objetivo da viagem : Pisa.


XXI
PISA

 

PISA! Uma das deliciosas cidades do silêncio! Ruas adormecidas onde a erva cresce entre as pedras e onde grupos de crianças vagueiam de um lado para o outro; ruas estreitas, sombrias, que desembocam de súbito na grande luz do “Lungarno”. Uma paz imensa e uma tepidez primaveril parecem reinar ali perpetuamente. Momentos de uma arte incomparável se agrupam em maravilhosa e natural decoração.

Muito perto da praça do Zimbório, na rua de Santa Maria, num palácio do século XVI, pertencente ao antigo colégio “Ferdinand”, construído por Vasari, Robert e Elisabeth Browning instalam o seu primeiro ninho. E a vida começa-lhes tranqüila — como um sonho — toda impregnada de uma atmosfera de ternura íntima e profunda.

No decurso da viagem a Orleans, Elisabeth recebera notícias de Inglaterra; o excelente senhor Kenyon, com a expressão da mais calorosa simpatia, enviara paternais felicitações. “Miss” Mitford manifestara também a sua amizade e o seu interesse; sentia-se um pouco mortificada por nada ter adivinhado. Além disso, também o seu puritanismo de velha-donzela se perturbara perante esse casamento clandestino: “Se a minha amiga me houvesse metido no segredo, teria tido ao menos alguém para a acompanhar à igreja!” Chegaram também cartas das irmãs, cuja leitura fez assomar lágrimas aos olhos de Elisabeth: Arabella e Henriette não puderam ocultar a furibunda indignação do pai: “Que nunca mais, doravante, o nome de Elisabeth seja pronunciado nesta casa!” Também os irmãos — surpresa dolorosa! — a censuravam voltando-se para o lado do pai. Porquê? Porquê?

Em compensação, uma velha amiga residente em Hope End, a senhora Martin, não põe em dúvida, um instante, a retidão moral de Elisabeth; e, sem hesitar, absolve-a: se Elisabeth, apesar da sua natureza tão honesta e tão sincera, recorrera a esse meio supremo, fora por não ter encontrado outra saída. Defende a causa da filha junto do velho Barrett e dos irmãos. Desejaria poder transmitir para Itália uma palavra de perdão... É tempo perdido! Elisabeth, emocionada com esses pensamentos afetivos, escreve: “Recordarei até ao fim da vida o direito que a minha amiga conquistou ao meu reconhecimento.” Pretende então pôr essa fiel amiga ao corrente de todas as circunstâncias, a fim de que ela possa julgar com conhecimento de causa. Conta-lhe, por isso, a sua longa história de amor, dando, entretanto, livre curso ao desgosto que a penaliza no meio de tanta alegria. Robert deve ignorar os remorsos que vêm perturbar a felicidade de Elisabeth; esta quer que, para ele, o céu se mostre sempre sem nuvens. Recorda à velha amiga os anos da mísera juventude que teve. Evoca esse tempo “...com o terror que deve experimentar ao pensar na mortalha em que foi envolvido, um homem que, por um horrível engano, tivesse sido encerrado vivo num caixão! Somente o amor poude arrancar a mortalha colada já ao seu corpo! A recordação de horas tão trágicas não deveria incitar ao perdão aqueles que delas foram testemunhas?” A partir desse momento, Elisabeth manterá com a senhora Martin uma correspondência regular que só acabará com a vida. Escreve também grandes cartas a outros amigos da Inglaterra: Kenyon, Miss Mitford. Que dizem essas cartas? Elisabeth tem a alma como que deslumbrada pela luz interior que resplende no fundo de si mesma, enquanto os olhos se lhe deixam também encadear por toda a beleza que a rodeia. E repete como um estribilho: “Parece que estou sonhando!” Tudo a encanta em Pisa, que lhe revela a Itália: os “lugarni” cheios de sol, as laranjas de ouro ao alcance da mão, os monumentos testemunhando o esplendor do passado, dispostos como jóias, sobre o veludo verde da praça Zimbório. A senhora Martin viajara já pela Itália; conhece Pisa. E pergunta: “Já foi até à borda do mar donde se avista a Córsega?” Elisabeth responde: “Fui, sim! Estivemos na praia e vimos a ilha de que me fala, mas Robert afirma que se trata da Gorgonne e não da Córsega. Seja qual for, essa ilha destaca-se maravilhosamente no azul das águas”. Tudo encanta Elisabeth; as longas excursões de carruagem por entre as matas de pinheiro de “San Rossore”, os curtos passeios a pé, durante os quais “se senta sobre uma grande pedra para seguir as evoluções dos luciolas que brincam com os raios de sol”. Saboreia a doçura do clima de novembro, tão diferente do mês de novembro em Inglaterra. De quando em quando, experimenta uma espécie de embriaguez ao sentir-se invadida pela seiva da saúde readquirida. “A senhora Jameson dizia-me ontem: A saúde da minha amiguinha não melhorou, transformou-se”. E assim lhe decorre a vida, uniformemente suave como um belo sonho, numa atmosfera de ternura íntima e profunda! Como é acariciante, quando a noite chega, o calor do fogão onde a lenha se transforma em brasas! Após uma ceia frugal — castanhas assadas e uvas — os esposos evocam juntos as impressões do dia. Freqüentemente, Browning abre um livro italiano; e o poeta, com marcada pronúncia estrangeira, mas com fervor, faz ressoar no salão os harmoniosos períodos do idioma de Dante.


XXII
SONETOS TRADUZIDOS DO PORTUGUÊS

 

ROBERT Browning, de pé em frente da janela do salão, prepara-se para escrever... Os dois poetas trabalham durante a tarde; são as únicas horas em que se separam. Elisabeth sobe geralmente ao seu quarto, situado no primeiro andar; Browning fica na sala do rés-do-chão. Nesse dia, Elisabeth está já no quarto... mas a porta da sala entreabre-se docemente. Browning ouve um passo ligeiro aproximar-se; uma pequenina mão colocada sobre o seu rosto impede-o de se voltar; uma outra mão introduz nos bolsos do poeta uma porção de laudas cobertas de uma caligrafia miúda... Depois, a aparição eclipsa-se misteriosamente como entrara. O que encerram essas laudas? Encerram o que Elisabeth escrevia no tempo em que guardava o seu amor bem no fundo da alma. Ninguém jamais lhe pusera os olhos em cima... nem mesmo Robert Browning. Este tira as laudas dos bolsos e começa a lê-las... A princípio sorri; mas depois, à medida que prossegue na leitura, sente-se presa de uma emoção profunda: é o hino de amor mais apaixonado que jamais saiu de um coração de mulher. O poeta admira, o amoroso exulta! Como é grande e profundo o amor de “Ba”! Robert lê: “Amor, meu amor, pensar que tu existias há um ano, enquanto eu estava aqui sentada, solitária, na neve; e que nunca me foi dado ver os vestígios dos teus passos, nem jamais a tua voz quebrou o silêncio glacial. Ocupava-me então a contar os elos da minha grilheta... sem ter a consciência de que bastaria o contacto da tua mão para me libertar! E hoje bebo pela taça miraculosa da vida! Como não ouvi eu ressoar a tua voz, ou delinear-se o teu gesto nos frêmitos do dia e da noite? Como não pressenti a tua chegada quando as brancas coroas se entreabriam? Não são menos obtusos os ateus que não adivinham a presença de Deus porque não o vêem!”

“Como eu te amo! Deixa que faça as contas da minha forma de te querer. Amo-te até ao extremo de todas as dimensões — comprimento, profundidade e altura — que a minha alma atinge quando, elevando-se sobre as coisas terrenas, paira nas fronteiras do ser e da graça ideal. Amo-te no círculo íntimo dos atos mais simples da vida quotidiana, amo-te sob os raios do sol e à luz da candeia. Amo-te com toda a minha liberdade, com o entusiasmo com que os homens lutam pelo bem. Amo-te com pureza, como aqueles que fogem da lisonja! Amo-te com a paixão com que outrora ampliava o meu sofrimento, com a fé da primeira juventude. Amo-te com todo o amor que julguei perder. Amo-te com a minha respiração, com os meus sorrisos, com as lágrimas acumuladas em toda a minha vida. E, se Deus o permitir, amar-te-ei ainda melhor após a morte!”

* * *

O colar dos quarenta e quatro sonetos desenrola-se; eis o último:

“Durante todo o estio e todo o inverno, oh! meu bem-amado, trouxeste-me as flores do teu jardim que pareciam continuar a desabrochar neste quarto fechado, como se o sol e a chuva não lhes fizessem falta. Em troca, recebe agora, em nome também do nosso amor, esses pensamentos colhidos por mim, tanto nos dias de verão, como nos dias frios do inverno, no jardim do meu coração. Os canteiros estão repletos de ervas daninhas e de joio: precisam muito que tu os podes. Aceita, em todo caso, essas rosas selvagens, com o mesmo carinho com que eu recebia as tuas flores, e põe-nas num lugar onde não feneçam. Que as suas cores conservem sempre, aos teus olhos, a mesma frescura. Que a tua alma saiba que as suas raízes ficam germinando na minha!”

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Elisabeth escrevera esses sonetos só para si, obedecendo a uma irresistível necessidade de expandir os sentimentos que lhe transbordavam do coração. Com essa delicadeza moral, própria das naturezas requintadas, ignorava, ao escrevê-las, se as mostraria alguma vez, mesmo àquele que as inspirara. Mas a doce intimidade da vida comum, em Pisa, decide-a a fazer essa suprema confissão. Elisabeth quer que o seu bem-amado possa avaliar toda a extensão do amor que palpita tão perto dele. Será esse o segredo de ambos.

Mais tarde, Browning escreverá: “Não tive coragem de guardar só para mim os mais belos soneíos que foram escritos, depois de Shakespeare.” E, com efeito, três anos após a revelação, os sonetos foram publicados e obtiveram um êxito retumbante. Mas, mesmo então, Elisabeth não quis apartar-se completamente da sua reserva. Para o público, os sonetos seriam apresentados como tendo sido traduzidos de uma obra estrangeira. Browning propôs, sorrindo: “Atribui-los-emos a Catharina de Athayde! Elisabeth tinha evocado, anteriormente, num dos seus poemas, o amor de Catharina de Athayde por Camões, o grande poeta e guerreiro português. Daí o título: “Sonetos traduzidos do português”.

Mas bem poucos leitores, em Inglaterra ou noutra parte, se deixaram iludir por essa graciosa ficção.


XXIII
FLORENÇA

 

ROBERT e Elisabeth Browning alugaram o “coupé” da diligência que fazia serviço entre Pisa e Florença, deixando definitivamente, no princípio da primavera, a cidade silenciosa e sonolenta. Iriam encontrar em Florença a senhora Jameson — a tia Nina, como lhe chamavam afetuosamente.

A viagem não era muito longa; com bons cavalos fazia-se em oito horas. Todavia, Elisabeth sentiu-se extremamente fatigada ao chegar a Florença. E no dia seguinte escrevia: “Aqui estou, prudentemente estendida no “divan”; descanso e bebo uns cálices de vinho do Porto. Espero que alguns dias neste regime me deixarão em estado de ter uma entrevista com a Vênus de Médicis”.

Depois de tomar conhecimento do casamento de Elisabeth, o senhor Kenyon tinha-lhe escrito: “A minha amiga arriscou a vida, mas fez bem em arriscá-la.” Em verdade, Elisabeth, não só cortara, sem prejuízo, com os seus hábitos de inválida, como ainda suportara as fadigas melhor do que se poderia esperar. Depois do casamento transformara-se. Todavia, de quando em quando, as forças não correspondiam à sua insaciável curiosidade. Browning recomendava-lhe, constantemente, que tivesse cuidado. Era já um milagre que Elisabeth se encontrasse em estado de visitar, ao cabo de alguns dias, todas as maravilhas que conhecia pelos livros. Da carruagem em que deu um passeio pela cidade, entreviu, por entre os raios do sol-posto, o “Perseu” de Benevenuto Cellini, os reflexos cristalinos do Arno, “Santa Maria del Fiore”. Os Browning tinham alugado uma casinha mobilada na “Via delle Belle Donne”, por detrás da praça “Santa Maria Novella”, com a decoração baseada num tom róseo, e Elisabeth julgava-se quase no paraíso! “É melhor ainda do que a nossa casa de Pisa e, apesar de ter a mais um piano de cauda, pagamos menos!”

A senhora Jameson chega pouco depois do casal se ter instalado: “Esperávamos a senhora Jameson no sábado, mas chegou de improviso na sexta-feira; lembrou-se, de repente, de que nesta data nascera Shakespeare. E trouxe de Arezzo uma garrafa de vinho para beber, disse ela, em companhia de dois poetas. Robert recitou a ária preferida do grande dramaturgo: “A luz do amor.”

O sol de Itália, tão bom no inverno — confortador e acariciante — é terrível no verão: queima e cega. Na casinha da “Via delle Belle Donne” sufoca-se literalmente. Os Browning têm uma idéia: “...uma idéia grandiosa, audaz: encafuarem-se nas montanhas e passarem dois ou três meses no convento de Vallombrosa, aguardando o final dos grandes calores”

A execução desse projeto extraordinário parece fácil. Os dois poetas metem-se a caminho imediatamente, acompanhados por Wilson e Flush, com armas e bagagens. “Fizemos o trajeto de carruagem até Pelago e em seguida, em dois carros puxados a bois brancos, até ao cimo do monte sagrado.” A ascenção leva quatro horas; a pobre Elisabeth está extenuada. No refeitório dos hóspedes, os frades servem vinho, pão e carne. — “Obrigado, obrigado”, dizia Browning, no seu melhor toscano, “mas nós somos pessoas simples. Dêem-nos ovos, leite, pão e manteiga; não pediremos outra coisa durante os dois meses que tencionamos passar aqui.”

Browning pedia justamente o que os bons padres não lhe podiam dar: “...O pão parecia feito com serradura de pinheiro e as galinhas que viviam num convento de religiosos recusavam-se obstinadamente a pôr ovos!”

Em seguida: dois meses num convento? “...Ao fim de cinco dias fomos ignominiosamente expulsos, após ter conseguido, com muito trabalho, uma prorrogação de dois dias, além dos três regulamentares; nenhum argumento foi capaz de convencer o Abade... E assim nos constrangeram a voltar a Florença. Asseguro-lhe que fiquei furiosa. Quanto eu desejaria continuar ali, apesar daquele pão execrável! O único inconveniente, no fim da estadia, foi termos compreendido que havíamos emagrecido. Mas a paisagem, que maravilha! Que bom repousar sob as sombras negras, como tinta, dessa admirável floresta de pinheiros! Tivemos que nos levantar novamente às três horas da madrugada para fazer a viagem em sentido inverso; tenho sempre diante dos olhos a visão desse sol nascente que traspassava progressivamente as nuvens acumuladas em volta dos píncaros.”

De regresso a Florença, Robert e Elisabeth Browning ficaram apenas alguns dias na casa da “Via delle Belle Donne”, à qual o calor intolerável tinha feito perder todo o encanto. Após muitas pesquisas, acabaram por alugar uma casa no “prédio Guidi, via Maggio”, que devia ser por muito tempo a residência favorita de ambos.


XXIV
l848

 

O Perseu de Cellini, o Zimbório, o Arno, os “Cascine” verdejantes e os pinheiros de Vallombrosa, tais foram as diversas etapas de prazeres intelectuais e artísticos de Elisabeth. Ia agora participar de emoções que tinham a sua fonte na própria vida. Os Browning chegaram a Florença justamente quando o fervor patriótico se inflamava em Itália. Preparavam-se em toda a Europa as perturbações políticas de 1848. As idéias que predominavam — um tanto visionárias sem dúvida — inspiravam-se todas no grande sonho que fez sempre bater o coração dos homens: a independência nacional e a liberdade política!

Elisabeth era ainda uma criança quando exultou com a nova da emancipação dos escravos; depois disso, nunca mais pôde pronunciar esse sublime vocábulo “Liberdade!” sem estremecer de entusiasmo. Em Florença ia ter justamente ocasião de assistir ao grande drama do qual participava o povo italiano levado para essa liberdade pela sua vontade oprimida durante séculos. E teve a alegria de constatar que os seus sentimentos nesta questão eram partilhados por Robert Browning, que tinha, por tradição e por instinto, idéias liberais.

O ano de 1847 ia findar. As esperanças, suscitadas num grande número de italianos pelo Papa Pio IX, atingiam o apogeu. Não pronunciara o Santo Padre, no ano precedente, do alto da “loggia”, estas palavras memoráveis: “Grande Deus, abençoai a Itália!?” Era também a época em que se aplicavam reformas nos territórios governados pelos príncipes estrangeiros. Estes, que sentiam o trono vacilar, cediam às pressões populares. Por toda a parte ressoava o carrilhão da alvorada e até a plácida Toscana estava como que sacudida pela febre; nas ruas desfilavm grupos de jovens, animados de um ideal novo. Sob as janelas do palácio Guidi um cortejo imponente aclamava o grão-duque Leopoldo II que, no mês de setembro, autorizara o recrutamento de uma guarda civil. Elisabeth relatou o acontecimento aos seus amigos ingleses: “Vieram mais de quarenta mil pessoas dos arredores para se juntarem à manifestação local... Era um espetáculo emocionante ver a alegria geral: homens circunspectos abraçavam-se; as mulheres entusiastas elevavam os filhos acima da cabeça e os petizes misturavam os seus gritos agudos às aclamações do povo... O cortejo desfilou durante mais de três horas sob as nossas janelas, e todas as casas estavam negras de espectadores. O lenços agitavam-se como asas de pombos, enquanto se atiravam flores e folhas de louro aos manifestantes. Os estandartes desfraldavam-se e podia ler-se neles as menções que exprimiam o sentimento popular: “Liberdade e União”; “Em memória dos nossos mártires”; “Viva Pio IX”; “Viva Leopoldo II”. Estou satisfeita de ter assistido a esse espetáculo grandioso.” Por vezes os Browning interrogavam-se sobre as conseqüências positivas dessa exaltação dos espíritos e dos corações: “No outro dia, enquanto observámos da janela, Robert disse pensativo: — E agora? Esta febre de entusiasmo porá as armas nas mãos desse povo? Quem sabe?” Elisabeth constatara a intensidade do entusiasmo popular e acrescentara: “Pela minha parte vejo e escuto com a mais profunda simpatia” Na correspondência de Elisabeth, nessa época, encontram-se numerosas alusões não só aos movimentos revolucionários da Toscana e do resto de Itália, como também o interesse pelos acontecimentos que se desenrolavam em França.

Os amigos de Elisabeth, habituados a vê-la falar, nas cartas, exclusivamente, das belezas da natureza, de arte, ou das alegrias do amor feliz, não compreendiam esse interesse súbito pelos acontecimentos políticos de um país estranho. Elisabeth — puro espirito poético — desviar-se-ia da poesia para se ocupar de política? Em verdade, não era nada disso; mas em certas encruzilhadas da história parece aperceber-se com freqüência — envoltos numa luz nova — a Justiça e a Liberdade! Então os seres sequiosos de ideal não podem apartar os seus olhares da radiosa visão: em 1848, Elisabeth Browning via a Liberdade e a Justiça em marcha pelo mundo; seguindo-as, continuava fiel ao seu ideal de poesia.


XXV
AS JANELAS DO PALÁCIO GUIDI

 

A impressão poética transformou-se, no espirito ardente de Elisabeth, em chama de arte. Ofereceu à Itálía o seu poema “Casa Guidi window's”, o qual começa assim: “Ontem à noite ouvi debaixo das minhas janelas do Palácio Guidi, uma criança cantando, enquanto costeava a parede da igreja; “Oh! Liberdade, és bela!” A criança que nessa noite de outono glorificava a Liberdade, não suspeitava que, por detrás das paredes do velho palácio florentino, uma alma apaixonada de mulher e de poeta, palpitava ao escutá-la. Elisabeth estava sentada — sozinha na penumbra — no meio do grande salão, tendo a alma enlevada na vozinha que cortava o austero silêncio da noite. E descreve assim a cena: “Tão pequenino! Há pouco ainda, sem dúvida, que a mão maternal pôde deixá-lo correr sozinho sobre as suas perninhas... contudo já canta: — Oh! bela Liberdade! — E então recordo as inúmeras canções italianas que escutei nos lábios de cantadores mais velhos; esses não cantam com o coração tão puro e uma esperança tão nova, mas sabem fazer passar na música a sua angústia e tocam-nos o coração tão suavemente que a piedade suscitada pelo seu canto mal nos faz sofrer... Mas, doravante, em lugar de escutar esses poetas que choram sobre os mortos e que dizem: “Se outrora não tivesses sido tão grande, Itália! hoje não serias tão desgraçada”, pegarei na mão da criancinha e também eu cantarei: “Oh! bela Liberdade!... Não digas: Nunca mais! à Itália vivente. As suas recordações gloriosas respondem: Eternamente! Dos próprios túmulos se elevam invocações aos dias de audácia e de força. Até as estátuas olham o porvir!”

A primeira parte deste poema foi escrita no fim do outono de 1847, logo que o primeiro apelo de Itália feito à liberdade chegou aos ouvidos de Elisabeth; esse poema foi terminado e publicado em 1852: na segunda parte ouve-se ressoar a voz amarga da desilusão.

Com esses versos e outros que se lhe seguiram, Elisabeth Browning forjou — escreverá mais tarde Tommaseo na lápide colocada sobre a porta do Palácio Guidi — “um anel de ouro entre a Itália e a Inglaterra”.

A crítica em Inglaterra acolheu com indiferença esse poema transbordante de entusiasmo pela causa italiana, e cuja inspiracão, puramente toscana, não podia emocionar um público estrangeiro. Mas a Itália de então foi grata — e ainda o é hoje — a essa oferenda de amor.


XXVI
A CONSTITUIÇÃO TOSCANA

 

EM 1848 foi grande a animação em Florença: o Grão-Duque outorgou uma Constituição ao povo Toscano... Dias de esperança e de ilusão! Elisabeth comentou os acontecimentos: “Os louvores ao Grão-Duque, ao nosso excelente Grão-Duque, repercutem em todas as casas, nas praças, nas ruas.” Os comentários sobre a Constituição liberal são entusiásticos. No dia seguinte à promulgação do decreto, o Grão-Duque, que tinha ido incógnito ao teatro, foi reconhecido pelo público e levado em triunfo ao Palácio Pitti, entre a luz dos archotes e aclamações frenéticas: “Parecia que, na obscuridade da noite, uma via láctea se estendia sobre a praça. Os “vivas” eram ensurdecedores. Eu participava da alegria geral e, debruçada na janela, aplaudia também!”

Essa manifestação em honra do Grão-Duque devia ser a última: a idéia que instigara tanto entusiasmo ultrapassava já as fronteiras regionais. Das lareiras acendidas nos quatro cantos de Itália, elevavam-se inúmeras fagulhas que deviam em breve alimentar a chama única do patriotismo!

Começava a ver-se desfilar pelas ruas de Florença a gente moça empunhando estandartes, os quais acabavam de ser abençoados antes de serem desfraldados nos longínquos campos de batalha: “na soleira das portas”, escrevia Elisabeth, “as mães choram ao saudar os filhos que partem para a Lombardía.”

Sabia-se que um grupo de professores e de estudantes da antiga universidade de Pisa — a cidade do sol, como lhe chamavam os Browning — escutando apenas a sua coragem e o seu amor pátrio, se dirigiam ao Mincio.

Os nomes de Curtatone e de Montanara testemunham ainda hoje o valor dessa gloriosa falange. A história fixou esses momentos resplendentes do patriotismo toscano de 1848.


XXVII
A MINHA CASA

 

ENQUANTO lá fora — na Europa inteira — reinava a luta entre os homens e as idéias, na pequenina casa cheia de sol da praça Pitti, onde os Browning hibernavam, havia, uma perpétua primavera de amor. Elisabeth escrevia à senhora Jameson: “À minha amiga, que foi a testemunha dos primeiros dias da nossa união, sinto a necessidade de dizer que o período atual, coroando quinze meses de casamento, é quinze vezes mais belo e luminoso do que o primeiro! A “lua de mel” aumenta sem cessar e acabará por absorver todas as estrelas do céu. Se, antes de casar, tivesse imaginado como realizável somente a quarta parte da felicidade de que desfruto hoje, ter-me-ia, sem dúvida, considerado louca! De quando em quando, procuro reconhecer onde estou; o meu coração transborda então de gratidão, mas, ao mesmo tempo, sinto-me um pouco perturbada ao verificar que não estou no Paraíso! Continuamos fazendo a mesma vida de que a minha amiga foi testemunha: a vida caseira. Robert nunca se afasta, a não ser uma curta fugida em companhia de “Flush”. Durante esses quinze meses não saiu nem uma só vez à noite.”

A casa do Palácio Guidi está doravante destinada a tornar-se o domicílio de Robert e de Elisabeth Browning; o seu “home”. Têm, com efeito, a intenção de se instalarem definitivamente em Florença. Os dois poetas não são ricos: Browning pertence a uma família de origem modesta; Elisabeth possui unicamente o pequeno capital que lhe legou um dos seus tios. Os rendimentos reunidos são apenas suficientes para lhes permitir viver decentemente em Florença, onde, de resto, em 1848, a vida era de tal forma barata que hoje nos parece uma fábula! Em Londres, não conseguiriam prover à sua subsistência. Mesmo em Florença precisam ser econômicos. A poesia encontra-se a braços com a prosa da vida. A senhora Jameson ria quando, em Pisa, via Elisabeth e Robert Browning consagrarem-se conscienciosamente, todas as noites, ao total das despesas. Gostava então a senhora Jameson de dizer que era contrário a todas as tradições dois poetas não abrirem bancarrota após algumas horas de vida em comum! Pertencia a Robert Browning o mérito dessas sábias virtudes de economia doméstica; na sua natureza complexa de artista e de filósofo, o humilde bom senso também encontrava lugar. Elisabeth, em compensação, continuava sendo a criatura de sonho e fantasia. Browning, em 1848, sugeria que seria mais prudente renunciar às dispendiosas e vulgares casas mobiliadas e instalaram-se definitivamente em Florença, cujo clima era esplêndido para Elisabeth. Mas perturbava-os um pensamento: o desgosto que esta decisão iria, sem dúvida, causar aos velhos parentes de Browning, às irmãs de Elisabeth, mais isoladas, mais sós na triste casa de Wimpole Street. Ao mesmo tempo que anunciavam este projeto, partiam para Londres grandes cartas explicativas: “Voltaremos, voltaremos! Todos os anos, no princípio do estío, hão-de nos ver chegar...”

Entretanto, Robert e Elisabeth começaram a procurar alojamento. Os assisados preceitos de economia cederam em breve perante as exigências do gosto requintado dos dois poetas. As casas de preço razoável não lhes agradavam. O seu grande desejo seria poder voltar para o Palácio Guidi onde, justamente, o primeiro andar estava livre... Mas o aluguel era caro, demasiado caro... A sorridente poesia vence finalmente a austera economia e o amor instala-se definitivamente no Palácio Guidi. Que grande alegria adornar o ninho, embelezá-lo todos os dias, descobrir em lojas distantes pedaços de estofos antigos, de móveis de estilo dignos de figurar no belo palácio florentino. Os comerciantes cediam barato “essas velharias!”, rindo à socapa da mania desses insulares. “Não pode imaginar como os nossos quartos têm já uma boa aparência”, escrevia Elisabeth à senhora Martin. “Tinha três grandes salas, uma salinha para o inverno e a biblioteca, que deitam para um terraço; oito janelas viradas ao nascente e, nos fundos da casa, dois bons quartos de dormir com um pequeno terraço, cozinha, etc... Tudo isto no primeiro andar. A família Guidi era parente do conde Ugolino de Pisa: o Ugolino de Dante. Mas tranqüilize-se porque nós não seguimos as tradições da Torre da Fome; e por isso lhe reservo uma deliciosa xícara de café cada vez que queira dar-me a oportunidade de lha oferecer. No terraço colocaremos caixotes de vinha virgem, loureiros e laranjeiras...” Por fim acrescenta: “Uma coisa nos torna particularmente felizes: é termos podido regularizar todas as despesas relativas à compra dos móveis — cadeiras rococó, “divans”, bibliotecas esculpidas, sedas que cobriam o leito dos cardeais — com os nossos direitos de autor na venda dos livros. Não acha que é uma bela satisfação?”


XXVIII
OS PASSEIOS EM FLORENÇA

 

O encanto sutil de Florença conquistou gradualmente Elisabeth, A cidade das graças não se abandona, realmente, ao primeiro encontro. Quer ser compreendida para depois ser amada; deseja as preferências dos espíritos elevados, cultos, sisudos, habituados a recolherem-se e a viver a vida interior; só esses sabem apreciar a nobreza austera da sua arquitetura, a delicadeza das suas meias tintas, as prestigiosas evocações históricas, a suavidade das linhas das suas colinas. Florença e Elisabeth foram feitas para se conhecerem e amarem.

A saúde de Elisabeth melhora cada vez mais. Parece um milagre! Elisabeth agora sai todos os dias. Dá longos passeios de carruagem com o marido, aquecendo-se aos primeiros raios do sol de abril. Sentado no banquinho em frente deles, Flush fica confortavelmente instalado e “contempla com desprezo os cachorros que são obrigados a andar a pé!” Elisabeth conta essas excursões aos amigos: “Todos os dias vamos dar uma volta nas deliciosas “Cascine”, onde atualmente as árvores estão envolvidas no seu suntuoso manto de folhagem nova que o sol ainda não desbotou. Para ali chegar, atravessamos a cidade, passando sob a janela onde se debruçava Bianca Capello para ver passar o Duque e também junto à pedra em que Dante se sentava...” Numa outra carta escreve: “Agora sinto-me novamente bem e forte. Muita vez, depois do chá, vamos, eu e Robert, vaguear pela cidade. Detemo-nos sob a “Loggia” para admirar o “Perseu”, ou então vamos contemplar o divino pôr-do-sol sobre o Arno que parece nesses momentos rolar ouro líquido pelas pontes.


XXIX
VIDA NOVA

 

ALGUNS dos amigos que, durante o inverno de 1849, eram recebidos em casa dos Browning, encontravam geralmente Elisabeth repousando tranqüilamente, ocupada em rever os últimos poemas, ou estendida numa otomana, sonhando. Um brilho novo, dulcíssimo, perpassava-lhe, de quando em quando, pelos grandes olhos, brilho idêntico àquele que inunda o olhar da Virgem, nos quadros dos antigos pintores, quando Maria escuta as frases pronunciadas pelo anjo da Anunciação... A 9 de março de 1849, surge à luz do dia, no Palácio Guidi, um pequenino ser, amorosamente esperado. A alegria suprema, a maternidade, vem juntar-se às outras alegrias que abençoam a vida de Elisabeth — Mãe! Elisabeth presentira já, talvez, a ternura e os cuidados da maternidade quando protegia ou chorava o seu dedicado “Bro”. Robert Browning fica verdadeiramente extasiado. Temera pela vida da esposa, mas contempla agora a felicidade da jovem mãe, sã e salva, que sorri a um lindo bebê. Não seria um milagre? Elisabeth está também maravilhada e escreve a “Miss” Mitford: “Não lhe parece surpreendente que o meu pequerrucho seja excepcionalmente forte e robusto?” Das serranias próximas chega uma bela ama para criar o pequenino “Wiedeman”. A camponesa, em quem predomina a graciosidade toscana, põe uma nota original naquele ambiente inglês; todos os dias, acompanhada por Wilson e muitas vezes, também, por Elisabeth, conduz o bebezinho de olhos azuis, através as áleas cheias de sol das “Cascine”; todas as mães param para admirar o petiz: “Que gordo! Que lindo!” Elisabeth exulta e sorri.

Mas, sob aquele céu tão límpido, surge uma espessa nuvem negra. Na casinha de New Cross, a mãe adorada de Robert Browning morre quase subitamente. O golpe é dolorosíssimo para o filho. E a propósito, Elisabeth escreve: “Jamais vi um homem vencido assim pelo desgosto; Robert queria à mãe como só os temperamentos apaixonados sabem querer... Se acaso o deixo só alguns instantes, vou encontrá-lo, freqüentemente, com os olhos cheios de lágrimas...” Revelando tesouros de doçura e paciência, a esposa pensa em consolar o marido bem-amado. Desejaria Robert ir a Inglaterra juntar-se ao pai e à irmã? Que não se preocupasse com ela. Sente-se forte e a viagem não a amedronta, Não tem ele coragem de voltar ao antigo lar, onde iria encontrar um lugar vago? Pois bem, nesse caso, o pai e a irmã que venham ter com eles; facilmente se arranjarão na casa instalações para ambos. Acabará assim a doce intimidade da sua vida? Que importa? O essencial para Elisabeth é que Robert seja feliz... Escreve também à sua cunhada Sarianna, que ainda não conhece, cartinhas afetuosas de amiga e de irmã, encorajando-a a vir para junto dela. “Vem, minha querida Sarianna. Ainda que eu não possa fazer mais nada, pelo menos rodeá-los-ei de carinhos, a ti e a teu pai, pois tanto um como outro bem os merecem!” Afinal, Sarianna e o pai decidem continuar na casinha de New Cross. Elisabeth pensa então que a mudança de ares seria, sem dúvida, favorável ao marido. Mas para onde ir? Procura, informa-se e encontra: “Alugámos uma espécie de ninho de águia, uma casa situada no alto da povoação, a mais elevada moradia de todas aquelas que se encontram sob o nome de “Bagni di Lucca”, entre uma sucessão de montanhas junto às quais corre uma torrente impetuosa. E é este ruído, acompanhado pelo canto das cigarras, o único que chega até aqui... Um tal silêncio é apaziguador e julgo que o meu marido está já um pouco mais calmo...” A estadia em “Bagni di Lucca” é, aliás, benéfica para todos: “As rechonchudas faces do nosso pequenino tornam-se dia a dia mais rosadas; anda ao ar livre de manhã à noite, exceto nas horas em que o sol é muito forte. Wilson afirma que, de todas as crianças que aqui estão, é a minha a mais perfeita!”

Quanto a Elisabeth, jamais se sentira tão bem. “Tal como o previram os meus médicos (inspirados pela amizade) a minha saúde restabeleceu-se milagrosamente. Creio sonhar quando subo as veredas abruptas em companhia de Robert, para nos perdermos no meio das florestas. Tenho a impressão de que o ar dessas paragens não só penetra nos pulmões, como resvala também até ao coração! Excita-nos, suspende-nos, transporta-nos!...”

O nascimento do filho apresentara-se a Elisabeth como uma oportunidade favorável para tentar reconciliar-se com o pai e os irmãos. A ventura infinita que lhe trouxera o casamento não a impedia de guardar no fundo do coração a nostalgia do afeto paterno e a dor duma separação à qual não previa o fim. Não cessara de manter com Arabella e Henriette uma correspondência regular, que alimentava a mútua ternura. Infelizmente, porém, todas as cartas que endereçava ao pai, sem um segundo de enfado, ficavam sem resposta. A carta que Elisabeth escrevera na véspera do nascimento do filho — na hora em que enfrentava a eventualidade da morte — transbordante de afeição humilde e dedicada, bem como aquela em que lhe anunciara a nova triunfal, haviam tido a mesma sorte. Elisabeth não podia resignar-se; tentou uma vez mais: Se seu pai persistia em querer atender apenas à estrita justiça, que a satisfizesse deserdando-a e a toda a sua família; mas, cumprida enfim essa reparação, que lhe perdoasse e lhe restituísse a sua amizade, únicos bens que a filha reclamava e desejava. Alguns meses mais tarde, uma das irmãs de Elisabeth, Henriette, decidiu-se a pedir ao pai autorização para casar com o capitão Surtey, que a amava havia cinco anos. A resposta fora implacável: Henriette renunciaria imediatamente a essa idéia de casamento, ou sairia da casa paterna.

E assim se afastou para sempre uma outra filha de Eduardo Barrett!


XXX
1849-1850

 

FLUSH e “baby” tornaram-se dois bons amigos. Flush, a quem a idade apurara a inteligência, julga com benevolência protetora essa pequenina bola de carne branca e rosada que, há uns tempos a essa parte, governa como um senhor no Palácio Guidi. Por seu lado, Baby adora Flush; o seu maior prazer é escarranchar-se no dorso do cachorro, gritando: “Hue! Hue!” Em boa verdade, Flush não se sente muito lisonjeado por se ver tratado como um vulgar cavalicoque, mas consente a brincadeira e contenta-se, como protesto, em voltar a cabeça para lamber os pezinhos nus que lhe batem nos flancos.

As cartas que Elisabeth escreve às suas amigas de Inglaterra vão cheias desses pequeninos episódios, duma insignificância deliciosa, que em todos os tempos constituíram a alegria e o orgulho das mães. Mas, a par da mãe, aparece também a mulher de elevada inteligência e grande coração, que vibra igualmente ao ritmo amplificado da vida. Elisabeth continua sendo a mesma criatura que se entusiasmara com o alvorecer de 1848... Brumas geladas tinham vindo enevoar essas esperanças; um vento impiedoso destruíra as ilusões... acontecimentos cruéis, desastrosos, inutilizaram o arrojo dos patriotas toscanos, chefes do movimento liberal: a derrota de Novara, a queda da República romana, a capitulação da heróica Veneza. O ideal sonhado da União Italiana perde-se na bruma do porvir. As reformas do governo do Grão-Duque suscitam apenas indiferença nas massas populares. Maus conselheiros lisonjeiam o povo que esquece, na libertinagem desenfreada dos costumes, o seu interesse pela liberdade. Após um esboço de revolução que conduziu Leopoldo II a Gaete, é instituída na Toscana uma república, que nasceu morta, chefiada por Guerrazi.

Florença e Livorno sofrem a vergonha das lutas fratricidas. Passado pouco tempo, a contra-revolução traz o Grão-Duque para Florença. Com a repressão das ameaças anarquistas, a pacífica Toscana vive por seu turno um período sombrio de opressão estrangeira: ouvem-se ressoar nas ruas de Florença os sabres austríacos! A propósito desse período agitado, Elisabeth, com o coração cheio de amargura, escreve: “Se não estou em erro, depois de minha última carta, tivemos duas revoluções na Toscana: Grão-Duque despedido, Grão-Duque readmitido! Os sinos das igrejas badalaram aos quatro ventos pelas duas revoluções. Começaram por plantar a árvore da liberdade, para abatê-la em seguida! A mesma ária, cantada sob as nossas janelas, acompanhou alternadamente o “Viva a Republica!” e o “Viva Leopoldo!”. O sentimento natural do povo é indiscutivelmente favorável ao Grão-Duque. “Oh! Santa Mãe de Deus”, exclama a nossa ama juntando as mãos, “como todos querem ao Grão-Duque!” No entanto, ninguém quis arriscar uma unha para defender o trono ducal. E se os Livorneses — que sobre as ruínas do trono tinham elevado Guerrazi — não tivessem deixado num café de Florença uma conta em débito, a revolução número dois não teria existido.” E numa outra carta escreve: “A pobre Florença está bastante tranqüila sob a pata austríaca, e Leopoldo, o intrépido — como lhe chama espiritualmente um poeta de Viareggio — vive pacificamente no Palácio Pitti.”

A Toscana inteira parecia adormecida... mas os espíritos fervorosos conservaram-se fiéis às suas esperanças, as quais no ano de 1859 deviam ser, finalmente, realizadas.


XXXI
NUVENS

 

AS renovadas melhoras que Elisabeth experimentara após o nascimento do filho, trazendo-lhe a ilusão de estar completamente curada, mantiveram-se apenas durante alguns meses. A tosse voltou e as crises de asma e debilidade reapareceram; a estranha moléstia, um tanto orgânica e um tanto nervosa, da qual os médicos não conseguiam definir a natureza, reapossou-se dela. Uma voz interior murmurava a Elisabeth: a felicidade não é deste mundo!

Desde então a vida da enferma não foi mais do que uma seqüência de melhoras ilusórias e de sofrimentos pungentes. Elisabeth queria, a todo o transe, evitar que o marido se afligisse; dissimulando os seus males, mostrava um rosto sorridente e esforçava-se por manifestar alegria e vivacidade. Até mesmo nas suas cartas às amigas inglesas, raras vezes se referia à sua saúde: “É um caso secundário.” Apenas um fato era importante aos olhos de Elisabeth: a felicidade de Robert! “Quando lhe ouço dizer que é feliz, sinto que a minha alma mergulha num oceano de delícias!” Robert Browning era, com efeito, verdadeiramente feliz. E, juntando umas linhas a uma carta de Elisabeth para a senhora Jameson, tem a oportunidade de manifestar a ventura que o cerca. “Querida tia Nina. “Ba” ter-lhe-á, sem dúvida, relatado tudo o que respeita ao nosso “baby” e alguns pequenos detalhes que reputa interessantes; contudo, terá provavelmente omitido a minha opinião pessoal acerca da sua natureza angélica e do seu coração verdadeiramente divino. Todos os dias descubro em “Ba” qualquer nova faceta. E eu que, durante cinco anos, julgara conhecê-la!...” Após uma crise gravíssima pela qual acabara de passar, Elisabeth escreve a “Miss” Mitford: “...Vou indo um pouco melhor, mas preciso fazer uma cura de repouso e vejo-me constrangida a renunciar aos longos passeios a pé de que tanto se orgulhava o meu Robert, o qual gabava sem cessar as minhas proezas, levando-me a dizer-lhe: — Não contes assim a toda a gente que a tua mulher te acompanhou a pé aqui ou ali, pois parecerá que o fato de ter uma esposa munida dum par de pernas é um milagre da natureza!” — Essas pernas voltaram, desgraçadamente, à sua antiga inércia. Espero, com a ajuda de Deus, recuperar as forças muito em breve.”

Mas não foi assim! Durante o verão, um novo e mais grave ataque pôs em perigo a vida de Elisabeth. A doente fala do caso com serenidade: “...Logo que fiquei em estado de me mexer, antes mesmo de poder transportar-me de um quarto para outro, o doutor Harding prescreveu uma mudança de ares imediata (a bem dizer, sentia mais disposição para mudar de mundo do que para mudar de ares!) Robert levou-me ao colo até ao trem e partimos para Siena. Alugámos nos arredores uma vila situada no alto duma colina exposta a todos os ventos (chamam-lhe a “Ponta do Vento”); disfruta-se de todas as janelas uma vista maravilhosa; a casa é rodeada de vinhas, oliveiras, árvores frutíferas... Ao cabo de três semanas deste regime, as previsões otimistas do médico, nas quais tive pouquíssima fé, realizaram-se em absoluto. Tenho esperanças de que, antes de regressarmos a Florença, poderemos passar uma semana em Siena a fim de retomarmos contato com as igrejas e obras de artes; visitaremos o Zimbório e voltaremos a admirar as pinturas de Sodoma”.


XXXII
EM VIAGEM

 

“VOLTAREMOS” — tinha escrito o casal Browning aos seus amigos de Inglaterra, no momento em que se preparava para fixar residência em Florença. “Voltaremos todos os anos!” Passaram, todavia, cinco anos sem que a promessa pudesse ser cumprida. O nascimento de Pen — era esse o sobrenome de Baby — e o estado de saúde de Elisabeth não lhes permitiram realizar a viagem.

A fase aguda da doença de Elisabeth passara, parecendo que umas tréguas se preparavam, trazendo uma vez mais a ilusão da cura. Robert Browning desejava ardentemente apresentar e dar a conhecer ao velho pai e à irmã Sarianna, a sua bem-amada “Ba” e o seu filho. Elisabeth, pelo contrário, sentia-se perturbada com a idéia de voltar a Inglaterra, onde previa que o lar paterno continuaria para ela inexoravelmente fechado. Porém, por outro lado, pensava em Arabella — dócil e paciente criatura — que vira já duas das irmãs abandonar a casa e que nela ficara sozinha para acalmar e consolar o irascível velho... Sim, por Arabella, Elisabeth desejava voltar a Inglaterra. Os Browning decidem então sublocar o Palácio Guidi. Ei-los a caminho, na primavera de 1851! Dirigem-se primeiro a Veneza. Nesse ambiente saturado de poesia e de amor, reconhece Elisabeth a sua verdadeira pátria espiritual. E escreve a alguns amigos: “É a primeira vez que transponho a porta do paraíso! A beleza dos monumentos, a fita prateada das águas que serpenteiam por entre o desdobramento de todas as artes, o silêncio encantador, os reflexos da lua, a música, as gôndolas, tudo concorre para formar um conjunto inegualável...”

Os Browning atravessam o Monte Saint-Gothard coberto de neve: “A fim de gozar melhor do panorama, passei uma parte do trajeto fora da carruagem, tendo a cabeça envolvida num xale que apenas me deixava os olhos a descoberto.” Era a primeira vez que Elisabeth contemplava o espetáculo grandioso das altas montanhas. “Julguei entrever a imagem de Deus, um Deus iracundo! Os olhos marejaram-se-me de lágrimas. Jamais, até então, enfrentara o sublime”.

Os viajantes chegaram nos fins de julho a Londres, onde os esperava uma nova forma de vida, bem diferente daquela que se propunha entre os parentes e alguns amigos. Após um acolhimento triunfal, toda a gente de Londres dada à literatura desejou festejar os dois poetas. A velha Inglaterra romântica sentiu-se emocionada com esse vivo romance de amor. Os dois poetas ficaram submersos em cartas, cumulados de convites, esmagados com presentes. “Creio, sem o menor exagero, que, depois da nossa chegada, não consenti ainda tomar uma xícara de chá que não fosse interrompida por uma campainhada! No que me diz respeito, recuso todos os convites, salvo quando o nosso amigo Kenyon se prevalece dos seus excepcionais direitos.” O coração de Elisabeth voltava-se com freqüência para Wimpole Street. Conseguiu reconciliar-se com os irmãos. Henriette, que se encontrava numa cidadezinha onde o marido estava aquartelado, dirigiu-se imediatamente a Londres, para ver a irmã. Arabella, por sua vez, a fim de se retemperar moralmente junto da irmã tão querida e do sobrinho todo graças e sorrisos, visitava-os duas vezes por dia. Mas isto não bastava a Elisabeth. O que ela aspirava era reconquistar o afeto do pai. “Apesar da opinião em contrário do nosso querido senhor Kenyon, julguei dever informar meu pai da minha chegada a Londres. Não podia encarar a idéia de partir de novo sem ter tentado, uma vez mais, ser recebida por ele, ainda que fosse uma só vez, e sem lhe levar o meu filho para que ele o beijasse. Escrevi-lhe, então, e meu marido também. O tom da carta de Robert era viril, digno e sincero; a par de muitas passagens bem tocantes, havia nessa carta um tão grande apelo à conciliação e à generosidade que me parecia impossível lê-la alguém sem ficar emocionado... A resposta foi impiedosa e de uma violência inaudita! E, na volta do correio, recebi todas as cartas que durante cinco anos escrevera a meu pai... recusadas, fechadas e com o envelope intacto! Fiquei tanto mais magoada quanto uma parte da minha correspondência havia sido escrita em papel de luto e lacrada de negro. Meu pai podia então legitimamente supor que meu filho ou meu marido tinham morrido. Mas nem sequer se deu ao trabalho de abrir essas cartas para se certificar! Tudo acabou, portanto! Quanto a mim, não posso escrever mais. Entrego-me a Deus. Aguardo...”

Entre os numerosos convites recebidos por Elisabeth, um houve que a emocionou profundamente. Os velhos amigos Martin pediam-lhe para ir com Robert e “Baby” passar algum tempo na sua casinha de Torquay. Pareceu-lhe que o passado renascia; todas as recordações reencontraram nela a mesma intensidade. “...Sois ambos muito bondosos, meus queridíssimos amigos, mas a minha boa senhora Martin, que foi sempre tão gentil comigo, compreender-me-á. Existe na minha vida um fato que conserva, hoje como ontem, todo o seu poder torturante. Essa lembrança ataca sem tréguas o meu coração como o fluxo e o refluxo da vaga!... Se eu voltasse a essas paragens, tal recordação apoquentar-me-ia sem cessar! Não atribuireis, estou certíssima, a minha abstenção a fraqueza ou afetação da minha parte... Deus é testemunha de que nem a separação nem a morte podem prevalecer contra uma amizade igual à minha!”

E mais adiante acrescenta: “Ver-nos-emos em Paris, caso não nos encontrarmos em Londres. Na sua viagem para Pau, passará por Paris, não é verdade? Tenho o maior desejo de a ver e de lhe apresentar o meu marido...”

Elisabeth entrevira Paris nos primeiros tempos do seu casamento, mas em condições físicas e morais de tal ordem que não lhe fora permitido gozar dessa estadia. Passa então ali esse inverno e fica imediatamente seduzida pela elegância e animação das ruas, por essa atmosfera muito especial que parece acelerar o ritmo da vida! Paris parece ter conseguido transformar a anacoreta de Wimpole Street numa mulher mundana que se interessasse por todas as manifestações da vida elegante. Divertia-se nos restaurantes profusamente iluminados, sentia prazer em visitar os mais luxuosos armazéns e aproveitava o ensejo para fornecer às suas amigas de Londres as informações mais minuciosas sobre a última moda.

Os esposos Browning tinham levado várias cartas de apresentação para as diversas famílias da alta sociedade francesa. São também admitidos no cenáculo de George Sand, o que interessou vivamente Elisabeth, mas escandalizou o espírito puritano de Browning. Ambos são convidados para o bairro Saint-Germain. De novo se manifestou a timidez de Elisabeth. Os triunfos de Londres não chegaram para a fazer desaparecer completamente. “Sentia-me nervosa e pedira a Robert para se conservar sempre a meu lado.”

Mas apenas os primeiros nevoeiros anunciaram a aproximação do inverno do norte — oh! sol maravilhoso dos “Lungarni” florentinos! — Elisabeth foi constrangida a encerrar-se de novo entre as quatro paredes de um quarto de hotel. No entanto, as cartas que escreveu, no decorrer desse inverno, não parecem de uma reclusa; todas elas estão impregnadas de um fervor de vida intenso e de um interesse apaixonado pelos acontecimentos políticos que se desenrolavam em França. A história, durante esse agitado período, volta rapidamente as páginas do seu grande livro. Elisabeth assiste aos acontecimentos que conduziram ao golpe de Estado de 2 de dezembro de 1852. Descreve as demonstrações populares e o plebiscito que consagrou Luiz Bonaparte “Imperador dos Franceses”. A admiração de Elisabeth por Napoleão III foi-se avolumando, dia a dia, atingindo o seu apogeu quando o Imperador tomou o comando do exército que iria cobrir-se de glória nos campos de batalha italianos.

Antes de findo o verão, os Browning regressaram a Londres; e, nos começos do outono, partiram finalmente para a Itália. Após uma ausência de ano e meio reencontraram~se, com enorme alegria, na sua bela casa do Palácio Guidi, em Florença.


XXXIII
A VIDA EM FLORENÇA

 

“QUE deliciosa sensação experimentámos ao instalarmo-nos de novo no nosso ninho, ainda quente, do Palácio Guidi, ao sentarmo-nos nas nossas cadeiras, ao dormirmos nas nossas camas!... Não pode calcular a naturalidade com que retomámos os antigos hábitos, submergindo-nos novamente na nossa vida pacífica, silenciosa, solitária, tão semelhante à dos eremitas! Foi como se jamais a houvéssemos interrompido. De tempos a tempos recebemos alguns amigos, mas sem a menor cerimônia” Elisabeth e Robert Browning tinham agrupado a pouco e pouco à sua volta alguns íntimos amigos, na maior parte ingleses e americanos; esses fiéis renunciavam de bom grado às brilhantes recepções organizadas em honra da colônia inglesa, quer fossem na Vila Tropole, ou em casa da senhorita Blagden, em Bellosguardo, para se reunirem nas noites de inverno à roda do fogão da grande sala do Palácio Guidi, e durante o estio no terraço adornado de mirtos e perfumado de laranjeiras. Esses amigos encontravam em casa dos Browning um agradável ambiente familiar. Elisabeth sentava-se numa grande poltrona, costurando (quase sempre bibes ou vestidinhos para “Pen”), animava ou moderava as conversas com um dito a propósito ou com o brilho luminoso das suas pupillas, às quais os cachos negros que lhe enquadravam o rosto delicado davam maior realce. Robert Browning, afável, despido de qualquer afetação, espirito vivo, tomava parte nas palestras ou sentava-se ao piano, interpretando magistralmente os autores clássicos. O pequenino “Pen”, de olhos azuis — o Florentino, como ele gostava que lhe chamassem — saltitava de uns para outros; divertindo-se a tagarelar, de preferência em italiano; quando se sentia fatigado, refugiava-se nos braços da mãe, onde encontrava sempre um ninho pronto a recebê-lo. Nestas reuniões abordavam-se todos os assuntos, exceto a maledicência, por expressa determinação de Elisabeth. Discutia-se política, literatura e religião. Todas as idéias originais eram tratadas com paixão. Principiava a ser moda o espiritismo; acabava de chegar de Inglaterra um célebre médium, cujas sessões provocavam comentários contraditórios. A natureza ardentemente mística de Elisabeth sentia-se naturalmente atraída para essa corrente de idéias novas que lhe davam a impressão de projetar certa luz sobre os problemas de além. Em contradição, Robert Browning, temperamento mais equilibrado, recusava-se obstinadamente a tomar parte nesse gênero de experiências, pelas quais sentia mesmo uma repulsa instintiva. O espiritismo foi, sem dúvida, o único caso importante sobre o qual diferiram esses dois espíritos que vibravam geralmente em unísono.

Excepcionalmente, os Browning e o seu pequeno grupo de amigos pessoais aceitavam, nas belas noites de verão, o convite dos seus compatriotas residentes em Florença. Elisabeth descreve uma dessas festas: “Na véspera da nossa partida, o senhor Lytton deu recepção no terraço da sua vila. Era eu a única mulher e fui eu quem serviu o chá. Comeram-se morangos com creme e falou-se de espiritismo. Passámos ali as duas horas mais agradáveis do mundo. Que linda vista se disfruta lá de cima! Florença parece derreter-se na púrpura que invade a colina, sob o manto infinito de estrelas. Estavam presentes Tennyson, Powers e Villari, um siciliano culto e distinto.” A admirável mocidade de espírito de Elisabeth, à qual os sofrimentos físicos não dominavam, revela-se ainda na carta cheia de entusiasmo, escrita em 1857 à cunhada Sarianna: “Nunca vi um carnaval tão divertido como este — as máscaras tinham sido proibidas nos anos anteriores —. “Pen” não descansou enquanto não conseguiu, à força de carícias e de lágrimas, que lhe prometesse confeccionar um dominó. Como não suporta o preto, não queria nem que se falasse de um dominó negro. Para ele o ideal era um dominó azul enfeitado de vermelho. Consegui fazê-lo desistir da guarnição vermelha; quanto ao resto, conformei-me estritamente com o seu gosto. Pobre amorzinho! É impossível calcular a sua enorme alegria! Andou na rua, de manhã à noite, perseguido a custo pela Wilson, que dificilmente conseguia acompanhá-lo: — Credo, “Lily”, (dizia-lhe o pequeno) não grites assim: Penini, Penini! — Todo o seu cuidado era não ser reconhecido! Queria à viva força desempenhar a sério aquela farsa. As lições é que se ressentiram deploravelmente! De resto, quando a cidade inteira se atirava para a rua a figurar numa gigantesca pantomima, como se poderia esperar que aqueles que ficavam em casa não perdessem também o juízo? Eu própria que, até ao início dessa folia geral, estivera várias semanas presa à minha poltrona, junto do fogão... vou deixar-te atônita quando te disser que, apesar disso, assisti ao “veglione” de dominó e máscara! Parece inverosímil, mas é assim mesmo. Robert, que tinha sido convidado várias vezes para camarotes, desejou retribuir essas gentilezas, convidando, por seu turno, alguns amigos para uma ceia com champagne, num camarote. Lamentávamos um dia pela manhã a impossibilidade em que eu me encontrava de sair nessa ocasião, quando, justamente nesse dia, o vento mudou, adoçando a temperatura. Robert declarou imediatamente que, nessas condições, eu devia ir ao “veglione”. Já não tive tempo de fazer um dominó (Robert tinha um, luxuoso, do qual tenciono fazer um vestido); contentei-me então com um dominó alugado e comprei uma máscara. Distraí-me imensamente. Nada me poderia divertir mais do que aquele espetáculo característico. Nunca me considerarei completametne feliz, minha querida Sarianna, senão no dia em que comprometer a minha reputação no Baile da Ópera em Paris! Pensas porventura que me contentei em desempenhar um papel passivo no fundo do camarote? Longe disso! Desci ao salão com Robert e abrimos caminho através da multidão compacta; de quando em quando, um desconhecido tocava-me no ombro e interpelava-me; e eu respondia-lhe com aquela liberdade imprudente que a máscara confere. Todavia, às duas horas da madrugada tive que me render; já não podia suportar aquela atmosfera asfixiante. Regressei então a casa, abandonando Robert e os nossos amigos, que ficaram até às quatro horas. Poderás avaliar o grau de educação da raça toscana quando souberes que, no meio deste ruidoso carnaval, não notei a menor manifestação de vulgaridade; nem uma desordem, nem um desregramento; e comedimento absoluto na alegria. No entanto, todas as classes sociais se confundiam sem distinção. O nosso criado teve ocasião de se cruzar com o Duque que desceu, como toda a gente, a misturar-se com a multidão. Tudo ali parecia natural.


XXXIV
AURORA LEIGH

 

OS esposos Browning passaram em Roma o inverno seguinte, do qual não guardaram uma recordação muíto agradável. “Pen” adoeceu e Elisabeth sentiu aumentarem-lhe os sofrimentos; e os seus amigos tiveram também vários dissabores.

Em face disso, Roma não causou a Elisabeth a impressão que de ordinário deixa nos poetas, No regresso ao Palácio Guidi, escreveu à cunhada Sarianna: “Sinto-me feliz em dizer-te que voltámos para a nossa querida Florença — inegavelmente a pérola de Itália. — Durante a viagem disse a “Penini”: — Faze um poema sobre Florença. — Então ele, sem hesitar, improvisou: “Não há nada mais belo do que Florença. Primeiro nasceu Florença, depois Roma e por fim Paris” “Penini” acha-se invariavelmente inspirado, pronto sempre a compor um poema sobre qualquer assunto, sem se preocupar sequer em aclarar a voz!” “Penini” não era o único poeta da casa. A mãe de Penini compunha nessa época um romance em verso, “Aurora Leigh”, que devia constituir um dos mais retumbantes êxitos do século passado. É um poema da vida contemporânea e, segundo a própria opinião da autora, a obra que marca o apogeu do seu talento; nela deu a poetisa livre curso a essa espiritualidade apaixonada, a essa exuberância de imagens que o público de hoje já não aprecia. A produção literária de Elisabeth Browning foi abundante nesses últimos anos; publicou poesias nas revistas inglesas, especialmente no “Atheneum”, que foram acolhidas com muita simpatia. Nessa época a sua reputação ultrapassava a de Browning, mas a posteridade não viria a confirmar essa opinião. Quando, após a morte de Wordsworth, o ambicionado lugar de poeta laureado ficou vago — tendo sido mais tarde ocupado por Tennyson, — não foi a candidatura de Robert Browning, mas a de Elisabeth Browning, que foi posta à votação em primeiro lugar. Robert Browning — exemplo quase único de altruísmo intelectual — sentia-se feliz, sem emulação, com os êxitos literários de sua mulher; em compensação, Elisabeth sofria imenso ao verificar que, em Inglaterra, a obra de Browning, pela qual professava uma fervente admiração, não era devidamente apreciada. Elisabeth só falava desse assunto delicado à cunhada: “Ah! minha querida Sarianna, não posso, com efeito, lamentar-me do acolhimento dado às minhas obras, mas, justamente por isso, lamento amargamente a indiferença que se demonstra em relação a Browning. Nota, Robert ignora o meu desapontamento, mas a ti confesso-te que estou estupefata da cegueira e da falta de inteligência do público inglês!”

Para o organismo cada dia mais débil de Elisabeth, viajar era, mais do que nunca, contraproducente. Contudo, os Browning foram obrigados a deixar Florença para irem passar alguns meses a Inglaterra. Esse desalojamento foi tanto mais penoso para Elisabeth, quanto lhe ofereceu a oportunidade de verificar que a implacável hostilidade de seu pai não desarmava. De fato, logo que ele soube indiretamente da próxima chegada a Londres da família Browning, obrigou a pobre Arabella a partir imediatamente para o campo. Por isso Elisabeth, cujo coração estalava de amargura, acolheu com indiferença os lisonjeiros aplausos que de toda a parte lhe enviavam. E escreve à sua boa amiga, a senhora Jameson: “A Inglaterra feriu-me no corpo e na alma... Se eu fosse constrangida a viver aqui, creio que me tornaria num monstro de maldade, acabando por declarar que odiava esta ilha inteira! A minha amiga ficaria ofendida e talvez me retirasse a sua estima; é uma eventualidade que me vejo forçada a encarar.” Elisabeth não chega a pronunciar essa frase de repulsa, mas escreve: “Estou muita vez tentada a dizer como Penini: — Sou italiana.”

Novas amarguras vieram juntar-se ao sofrimento. “Miss” Mitford morre, após longa e dolorosa moléstia, e o querido senhor Kenyon encontra-se gravemente doente. Elisabeth visitara este último, pela derradeira vez, na ilha de Wigth, no dia de Natal de 1850. Pouco depois de regressar a Florença, recebeu a notícia da morte do seu velho amigo. “Para mim, o dia de Natal deste ano ficará como que turvado por uma nuvem. Não posso conceber a Inglaterra sem esse rosto expressivo, esse amparo seguro, essa natureza nobremente generosa! Há dez anos que ele ocupava o lugar de meu pai... e agora esse lugar está duplamente vazio! O último livro de Elisabeth, “Aurora Leigh”, que aparecera havia pouco, ostentando uma afetuosíssima dedicatória a Kenyon, teve uma acolhida entusiástica. No fim de quinze dias estava esgotada a primeira edição; mas, aos amigos que lhe enviavam cumprimentos e felicitações, Elisabeth respondia: “Não tenho fisicamente forças para falar da minha “Aurora”, pois acabo de perder o amigo querido cujo nome está ligado a esse pobre volume, o amigo que partiu para regiões onde, pela primeira vez. não tomará parte na minha alegria, na minha satisfação. E daí... quem sabe?... A primeira impressão que se sente após tal separação é o sentimento da “distância”. O meu livro está como que velado de tristeza e, para mim, o seu êxito deixou de ter interesse...”

Alguns meses mais tarde, Eduardo Barrett morria sem se reconciliar com as filhas.


XXXV
CREPÚSCULO

 

OS anos foram passando. Elisabeth estava no período mais radioso da sua vida intelectual. O mundo exterior parecia perder gradualmente para ela o interesse, mas a luz interior, que lhe banhava a alma, aumentava em pureza e intensidade. Foram anos de misticismo ardente, de luta heróica contra a doença inexorável; Elisabeth conseguia, sem cessar, tirar da vida, que parecia fugir-lhe a cada instante, formas de arte mais harmoniosas. A felicidade que, com o decorrer do tempo, mergulha as naturezas medíocres no egoísmo, iluminava, pelo contrário, a alma de Elisabeth com reflexos de bondade. O seu espírito elevava-se cada vez mais para uma intima comunhão com Deus, expandindo-se numa indulgente ternura pelas criaturas e pelas coisas. Jamais se lamentava. Nos seus lábios havia apenas palavras de resignação, ou de reconhecimento e amor pelo marido: “Robert ultrapassou-se a si próprio. Durante mais de quinze dias não teve, por minha causa, um instante de repouso.” O doce clima de Florença, no inverno, já não bastava a Elisabeth. Passaram então a viver em Roma uma grande parte do ano. A vida para ela resumia-se numa perpétua renúncia. As crises sucediam-se: receber fosse quem fosse tornava-se uma fadiga cada vez maior. Todavia, o círculo de relações aumentou bastante depois de se instalarem em Roma. Robert Browning era procurado por toda a sociedade intelectual romana e estrangeira. O Príncipe de Galles, de passagem em Itália, cumulou-o de gentilezas. Browning, por seu lado, apreciava mais do que outrora as distrações da vida mundana. Um véu de melancolia, uma sombra de amargura envolvem, talvez, estas confidencias escritas a uma amiga de Florença: “Geralmente, à noite, Robert sai sozinho, como um celibatário... porque eu deito-me cedo, felicíssima ao pensar que ele se distrai um pouco. Como sabes, em Florença, Robert não ia a parte alguma e mesmo este inverno levou uma vida muito sossegada.”

Nos princípios de 1859, os Browning estavam ainda em Roma. Os primeiros raios da aurora precursora da ressurreição de Itália apareciam já no horizonte. Ninguém se interessou mais sinceramente do que Elisabeth por essa nova esperança de libertação. Embora, nessa época, fosse para a débil criatura um esforço superior às suas forças receber uma visita, acolheu com alegria Massimo d’Azeglio, que desejou trocar impressões com os Browning acerca dos destinos da pátria italiana: “Massimo d’Azeglio deu-nos a grande honra da sua visita. E disse-nos: — Vamos pôr de novo em cena o drama de 1848, mas desta vez os atores têm muito mais experiência.”

Pouco depois, os Browning recebiam a notícia de que a revolução estalara na Toscana a 27 de abril de 1859, e que o Grão-Duque fora definitivamente posto fora o mais elegantemente possível. Souberam em seguida da declaração de guerra à Áustria. Elisabeth escreve por essa ocasião: “Se houve alguma vez uma causa santa, esta é uma delas! Jamais se poderá rogar tão justamente a bênção de Deus para um exército!” A repentina e inesperada conclusão do tratado de Villafranca — destruição momentânea de tantas esperanças! — veio lançar a consternação nos corações dos patriotas italianos. Elisabeth partilhou-a: “Muita gente moça em Florença, após tal comoção, ficou doente. Quanto a mim, deixou-me o coração despedaçado. Nem podia dormir; falei demasiado e por fim sobreveio-me a dolorosa crise atual.”

Nunca mais teve tréguas no sofrimento. Os dulcíssimos laços terrestres foram-se quebrando um após outro. A irmã Henriette morrera alguns anos depois de uma felicidade tanto tempo sonhada. A velha amiga senhora Jameson, “a tia Nina”, que fora. testemunha dos primeiros dias de libertação e de amor, morrera também. “Quantos rostos familiares vivem já no mundo dos espíritos! Creio que, qualquer dia, este mundo que habitamos acabará por me parecer um país estranho e desconhecido!...” Em Elisabeth a chama de vida terrestre vacilava, mas ainda brilhava e aquecia. A 7 de junho de 1861, numa das suas últimas cartas, escreve: “A mão e a voz tremem-me ao escrever e ao pronunciar o nome de Cavour! O poderoso espírito que concebeu e realizou a idéia da unificação da Itália reconstruiu a pátria divina. Se as lágrimas e o sangue tivessem o poder de pagar o seu resgate e de conservá-lo entre nós, teria oferecido as minhas lágrimas e o meu sangue.”

Eis os últimos raios do poente: “Cintilante de estrelas, o espírito de Elisabeth, forço para continuar a viver. Desejo viver tanto tempo quanto seja necessário para conseguir a purificação da minha alma, mas nem mais um instante!” A extrema fadiga precede o grande repouso.

Uma noite, noite suave de junho, cintilante de estrelas, o espirito de Elisabeth, sem esforço, de improviso, — qual estrela cadente — espargiu um clarão supremo antes de se perder no infinito!

Um mês depois, Robert Browning, escrevendo a uma sua amiga, contava piedosamente as fases dessa última noite. E terminava nestes termos: “Contemplei então um espetáculo que ficará gravado no meu coração até ao dia em que nos reencontremos para uma união perpétua; vi-lhe nos olhos, — como jamais me fora dado ver — a expressão perfeita do seu amor por mim. Com um sorriso a iluminar-lhe o rosto, que parecia o de uma criança, a cabeça descansada na minha face, expirou nos meus braços, em poucos minutos... Nenhuma dor aguda, nem o mais pequeno sobressalto, nem a consciência de separação, pareceram tocá-la de leve. Deus levou-a como quem levanta uma criança de um leito desconfortável, num quarto escuro, para a expor em plena luz. Bendito seja Deus!... A sua última palavra quando lhe perguntei: — Como te sentes? — foi: Maravilha!...

........................

O apartamento do Palácio Guidi foi abandonado. Browning e Penini nunca mais lá voltaram... Mas a recordação fiel, indestrutível, ficará para sempre ali guardada no velho “Cemitério Inglês” que, rodeado pelas modernas construções da Florença contemporânea, será como um imenso oásis de flores e de ciprestes.

Abrigado por um grupo de loureiros, circundado de roseiras anãs, vê-se nele o túmulo de Elisabeth Browning. Nem uma inscrição, nem sequer um nome. Simples iniciais; E. B. B.

Longe, muito longe, em Londres — na Abadia de Westminster — ergue-se o túmulo de Robert Browning,

... Os dois espíritos uniram-se de novo na Luz Eterna!

FIM.

Este livro foi acabado de imprimir para edições Cultura Brasileira S/A., rua Conselheiro Nebias 255, na Impressora Commercial à rua Quirino de Andrade 59, no dia 31 de Julho do ano de MCMXXVII


 

©2002 — Giorgia Pisani

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