A Alegria da Revolução
Ken Knab
Tradução livre:
Railton Sousa Guedes
Coletivo Periferia
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Versão para eBook
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Fonte Digital
Digitalização da edição em pdf originária de
www.reocities.com/projetoperiferia
©2003 — Ken Knab
BUREAU DOS SEGREDOS PÚBLICOS
A Alegria da Revolução
Ken Knab
Versão em lingua portuguesa de The Joy of Revolution
Índice
Capítulo 1: Coisas da vida
Utopia ou precipício. “Comunismo” estalinista e “socialismo” reformista são simples variantes do capitalismo. Democracia representativa versus democracia delegativa. Irracionalidades do capitalismo. Revoltas modernas exemplares. Algumas objeções comuns. O domínio crescente do espetáculo – Notas
Capítulo 2: Excitacão preliminar
Descobertas pessoais. Intervenções críticas. Teoria versus ideologia. Evitar falsas opções e elucidar as verdadeiras. O estilo insurrecional. Cine radical. Opressão versus jogo. O escândalo de Estrasburgo. A miséria da política eleitoral. Reformas e instituições alternativas. Correção política, ou igualdade na alienação. Inconvenientes do moralismo e o extremismo simplista. Vantagens da audácia. Vantagens e limites da não violência – Notas
Capítulo 3: Momentos decisivos
Causas das diferenças sociais. Convulsões de pós-guerra. Efervescência de situações radicais. Auto-organização popular. O FSM. Os situacionistas em maio de 1968. O obrerismo está obsoleto, mas a posição dos trabalhadores continua sendo o ponto central. Greves selvagens e ocupações. Greves de consumo. O que podia ter acontecido em maio de 1968. Métodos de confusão e cooptação. O terrorismo reforça o estado. O momento decisivo. Internacionalismo. – Notas
Capítulo 4: Renascimento
Os utópicos não prevêem a diversidade pós-revolucionária. Descentralização e coordenação. Salvaguardas contra os abusos. Consenso, domínio da maioria e hierarquias inevitáveis. Eliminar as raízes da guerra e do crime. Abolição do dinheiro. Absurdo da maior parte do trabalho presente. Transformar o trabalho em jogo. Objeções tecnofóbicas. Temas ecológicos. O florescimento de comunidades livres. Problemas mais interessantes. – Notas
Capítulo 1. Coisas da vida
Utopia ou precipício — Comunismo estalinista e socialismo reformista são simples variantes do capitalismo — Democracia representativa versus democracia delegada — Irracionalidade do capitalismo — Revoltas modernas exemplares — Algumas objeções comuns — O crescente domínio do espetáculo
“Só podemos compreender este mundo questionando-o como um todo.... A raiz da ausência de imaginação dominante não pode ser compreendida a menos que sejamos capazes de imaginar o que falta, isto é, o desaparecido, o oculto, o proibido, e o possível na vida moderna.”
— Internacional Situacionista(1)
Utopia ou precipício
Nunca ocorreu na história um contraste tão deslumbrante entre o que poderia ser e o que realmente é.
Basta examinar hoje todos os problemas do mundo — a maioria dos quais são bem conhecidos, e meditar sobre eles normalmente não produz outro efeito senão tornar-nos menos sensíveis à sua realidade. Mas mesmo que sejamos “suficientemente estóicos para suportar as desgraças dos outros”, a grande deterioração social presente nos afeta a todos. Quem não padece a repressão física direta tem que suportar as repressões mentais impostas por um mundo cada vez mais medíocre, estressante, ignorante e feio. Quem escapa da pobreza econômica não pode escapar do empobrecimento geral da vida.
Mas nem mesmo nesse nível mesquinho a vida pode ser levada. A destruição do planeta pelo desenvolvimento mundial do capitalismo chegou a um ponto em que a humanidade pode extinguir-se em poucas décadas.
Mas, sem dúvida, este mesmo desenvolvimento baseado previamente na escassez material, tornou possível abolir ao sistema da hierarquia e da exploração, e inaugurar uma nova e genuína forma de sociedade livre.
Saltando de um desastre para outro em meio à demência coletiva e ao apocalipse ecológico, este sistema desenvolveu um impulso incontrolável até mesmo por seus supostos donos. Quanto mais nos aproximamos de um mundo em que não somos capazes de abandonar nossos guetos fortificados sem vigilantes armados, nem sair à rua sem aplicar proteção solar para não pegar um câncer de pele, mais se torna difícil levar a sério quem nos aconselha mendigar algumas reformas.
O que faz falta, creio, é uma revolução democrática-participativa mundial que aboliria tanto o capitalismo como o estado. Admito que é pedir muito, mas temo que não bastará nenhuma solução de menor alcance para atingir a raiz de nossos problemas. Pode parecer absurdo falar de revolução, mas todas as alternativas assumem a continuação do atual sistema, o que é ainda mais absurdo.
* * *
“Comunismo” estalinista e “socialismo” reformista são simples variantes do capitalismo
Antes de entrar nas premissas dessa revolução e responder a algumas objeções típicas, ressaltamos que revolução não tem nada a ver com os repugnantes estereótipos que normalmente evocam a palavra (terrorismo, vingança, golpes de estado, líderes manipuladores que predicam o auto-sacrifício, militantes zumbis entonando slogans politicamente corretos). Particularmente não deve ser confundida com os principais fracassos das modernas tentativas de mudanças sociais: o “comunismo” estalinista e o “socialismo” reformista.
Depois de décadas no poder, primeiro na Rússia e depois em muitos outros lugares, ficou óbvio que o estalinismo é o oposto de uma sociedade livre. A origem desse fenômeno grotesco é menos óbvia. Os trotskistas e outros têm tratado de diferenciar o estalinismo do antigo bolchevismo de Lenin e Trotsky. É verdade que existem diferenças, mas são mais de grau que de tipo. O Estado e a Revolução de Lenin, por exemplo, apresenta uma crítica mais coerente do estado que a que pode ser encontrada na maioria dos escritos anarquistas; o problema é que os aspectos radicais do pensamento de Lenin acabaram disfarçando a real prática autoritária bolchevique. Situando-se ao lado das massas que afirmava representar, e com uma hierarquia interna entre os militantes do partido e seus líderes, o partido bolchevique já se encaminhava para a criação das condições para o desenvolvimento do estalinismo quando Lenin e Trotsky assumiram firmemente o controle.(2)
Mas devemos ver claramente o que falhou se queremos fazer melhor. Se socialismo significa plena participação das pessoas nas decisões sociais que afetam suas próprias vidas, isso não existiu nem nos regimes estalinistas do Leste nem nos estados de bem-estar do Oeste. O recente colapso do estalinismo não é nem uma vindicação do capitalismo nem uma prova do fracasso do “comunismo marxista”. Qualquer um que se dê ao trabalho de ler Marx (a maior parte de seus eloqüentes críticos obviamente não faz isso) sabe que o leninismo representa uma severa distorção do pensamento marxista e que o estalinismo é sua paródia total. A propriedade estatal, tampouco, nada tem nada a ver com o comunismo em seu autêntico sentido de propriedade comum, comunal; é simplesmente um tipo diferente de capitalismo em que a propriedade nas mãos da burocracia do estado substitui (ou se combina com) a propriedade privada corporativa.
Há muito tempo o espetáculo da oposição entre estas duas variantes de capitalismo oculta seu reforço mútuo. Os sérios conflitos se limitam a batalhas por representações no Terceiro Mundo (Vietnã, Angola, Afeganistão, etc.). Nenhuma das partes leva a cabo um intento real de golpear o inimigo em seu próprio coração. (O Partido Comunista Francês sabotou a revolta de maio de 68; os poderes ocidentais vêm intervindo massivamente onde não são chamados, ao mesmo tempo em que recusaram enviar algumas poucas armas antitanques que os insurgentes húngaros de 1956 necessitavam desesperadamente). Guy Debord assinalou em 1967 que o capitalismo de estado estalinista simplesmente se revelou como um “parente pobre” do clássico capitalismo ocidental, e que sua queda privaria os dominadores do Oeste da pseudo-oposição que os reforçavam aparentando representar a única alternativa a seu sistema. “A burguesia está na eminência de perder o adversário que objetivamente a apoiava aportando uma unificação ilusória de toda a oposição à ordem existente”. (A Sociedade do Espetáculo, §§110-111).
Embora os líderes do Oeste fingissem dar boas vindas ao recente colapso estalinista como uma vitória natural de seu próprio sistema, nenhum deles previu e obviamente nem tinha idéia do que fazer com os problemas resultantes, exceto tirar partido da situação antes do desmoronamento. As corporações multinacionais monopolísticas que proclamam o “comércio livre” como uma panacéia são muito conscientes de que o capitalismo de livre mercado teria se arrebentado há muito tempo por suas próprias contradições se não houvesse sido salvo mediante umas quantas reformas pseudo socialistas estilo New Deal.
Pode ser que aquelas reformas (serviços públicos, seguridade social, jornada de oito horas, etc.) até tenham melhorado alguns dos defeitos mais notórios do sistema, mas não passou disso. Nos recentes anos nem mesmo isso se manteve diante do aceleramento das crises. As melhoras mais significativas foram conseguidas em todos os casos apenas mediante grandes, freqüentes e violentas lutas populares onde os burocratas, os partidos de esquerda e os sindicatos, sempre pretendendo dirigir essas lutas, funcionaram principalmente como válvulas de escape, cooptando as tendências radicais e engraxando as engrenagens da máquina social.
Como os situacionistas têm mostrado, a burocratização dos movimentos radicais, que rebaixou as pessoas ao nível de simples seguidoras constantemente “traídas” por seus líderes, está ligada à espetacularização crescente da sociedade capitalista moderna, que tem reduzido as pessoas à condição de simples espectadores de um mundo sobre o qual não têm qualquer controle — um fato que se torna cada vez mais notório, embora normalmente não seja suficientemente compreendido.
Tomadas em conjunto, todas estas considerações apontam para a conclusão de que uma sociedade livre pode ser criada apenas mediante a participação ativa das pessoas como um todo, não mediante organizações hierárquicas que supostamente atuam em benefício da sociedade. Não se trata aqui de eleger líderes mais honestos ou “responsáveis”, mas de evitar conceder um poder independente a qualquer líder, seja lá quem for. Indivíduos ou grupos podem iniciar ações radicais, mas uma porção substancial e extensa da população deve tomar parte se o movimento pretende conduzir a uma nova sociedade e não simplesmente dar um golpe de estado que instale novos dominadores.
* * *
Democracia representativa versus democracia delegada
Não repetirei todas as clássicas críticas socialistas e anarquistas do capitalismo do estado. São amplamente conhecidas, ou pelo menos amplamente acessíveis. Mas para acabar com algumas das confusões da retórica política tradicional pode ser útil resumir os tipos básicos de organização social. Para ser mais claro, começarei examinando separadamente os aspectos “políticos” e “econômicos”, embora estejam obviamente inter-relacionados. Tratar de igualar as condições econômicas das pessoas mediante uma burocracia de estado é tão fútil quanto tentar democratizar a sociedade enquanto o poder do dinheiro permite a uma minúscula minoria controlar as instituições que determinam a consciência da realidade social das pessoas. Uma vez que o sistema funciona como um todo só pode ser mudado fundamentalmente como um todo.
Começando pelo aspecto político, podemos distinguir de forma aproximada cinco graus de “governo”:
(1) Liberdade sem restrição
(2) Democracia direta
a) consenso
b) domínio da maioria
(3) Democracia delegada
(4) Democracia representativa
(5) Ditadura aberta de uma minoria
A presente sociedade oscila entre os pontos (4) e (5), isto é, entre governo minoritário declarado e governo minoritário disfarçado, ambos camuflados por uma fachada simbólica de democracia. Uma sociedade livre eliminaria os pontos (4) e (5) e progressivamente reduziria a necessidade dos pontos (2) e (3)...
Discutirei mais tarde os dois tipos de (2). Mas a distinção crucial está entre (3) e (4).
Nas democracias representativas as pessoas abdicam de seu poder ao eleger governantes. A plataforma política dos candidatos são limitadas a algumas vagas generalidades. Uma vez eleitos, há pouco controle sobre suas reais decisões em centenas de assuntos — apesar da possibilidade de redirecionamento do voto das pessoas, alguns anos depois, para outros políticos rivais igualmente incontroláveis. Em suas campanhas, os representantes dependem das contribuições e do suborno dos ricos; são subordinados aos donos dos meios de comunicação de massa que decidem o que vai e o que não vai ser divulgado pela mídia; e eles são quase tão ignorantes e impotentes quanto o público em geral, dando muita importância aos assuntos que são pautados pelos burocratas não eleitos e pelas agências secretas independentes. Eventualmente, ditadores declarados podem ser depostos, mas os verdadeiros governantes nos regimes “democráticos”, aquela minúscula minoria que virtualmente possui e controla tudo, nunca é eleita nem interna nem externamente. A maioria das pessoas nem mesmo sabe quem são eles.
Na democracia delegada, os delegados são eleitos para propósitos determinados com limitações muito específicas. Podem atuar estritamente sob mandato (encarregados de votar de uma certa maneira em um certo assunto) ou o mandato pode ficar em aberto (os delegados são livres para votar como bem entendem) mas reservando às pessoas que os elegeram o direito de confirmar ou rechaçar qualquer decisão tomada. Geralmente os delegados são eleitos para períodos bem curtos e estão sujeitos a revogação a todo momento.
No contexto das lutas radicais, as assembléias de delegados normalmente são chamadas de “conselhos”. A forma de conselho foi inventada pelos trabalhadores em greve durante a revolução russa de 1905 (soviete é a palavra russa que significa conselho). Quando os sovietes reapareceram em 1917, foram sucessivamente apoiados, manipulados, dominados e finalmente cooptados pelos bolcheviques, que logo conseguiram transformá-los em paródias de si mesmos: apoiadores do “Estado Soviético” (o último soviete independente que sobreviveu, o dos marinheiros de Kronstadt, foi massacrado em 1921). Não obstante os conselhos reapareceram espontaneamente nos momentos mais radicais da história subseguinte, na Alemanha, Itália, Espanha, Hungria e outros lugares, porque representavam a solução óbvia à necessidade de uma forma prática de auto-organização popular não hierárquica. E continuamente receberam a oposição de todas as organizações hierárquicas, pela ameaça que representavam ao domínio das elites especializadas por apontar para a possibilidade de uma sociedade de autogestão generalizada: não a autogestão em alguns locais do presente sistema, mas a autogestão estendida a todas as regiões do globo e a todos os aspectos da vida.
Mas como ressaltamos acima, a questão das formas democráticas não pode ser separada de seu contexto econômico.
* * *
Irracionalidades do capitalismo
A organização econômica pode ser estudada desde a perspectiva do trabalho:
(1) Totalmente voluntário
(2) Cooperativo (autogestão coletiva)
(3) Forçado e explorador
— a) aberto (trabalho dos escravos)
— b) disfarçado (trabalho assalariado)
E desde a perspectiva da distribuição:
(1) Verdadeiro comunismo (acesso totalmente livre)
(2) Verdadeiro socialismo (propriedade e controle coletivos)
(3) Capitalismo (propriedade privada ou estatal)
Embora seja possível regular os bens e serviços produzidos pelo trabalho assalariado, pelo trabalho voluntário ou cooperativo para converter-se em mercadorias para o mercado, a maior parte destes níveis de trabalho e de distribuição tendem a corresponder-se uns com os outros. A sociedade atual é predominantemente (3): produção e consumo forçado de mercadorias. Uma sociedade livre deve eliminar (3) e reduzir (2) tão logo quanto possível em favor de (1).
O capitalismo se baseia na produção de mercadorias (produção de bens para conseguir vantagens) e no trabalho assalariado (a própria força de trabalho se compra e se vende como uma mercadoria). Como apontava Marx, há menos diferença entre o trabalhador escravo e o “livre” do que parece. Os escravos são providos dos meios de sua sobrevivência e reprodução, ao passo que os trabalhadores (que se convertem em escravos temporários em suas horas de trabalho) são obrigados a pagar a maior parte de seu salário. O fato de alguns trabalhos serem mais desagradáveis que outros, dos trabalhadores terem direito de mudar de trabalho, de empreender seu próprio negócio, de comprar estoques ou ganhar na loteria, encobrem a realidade de que a imensa maioria das pessoas está coletivamente escravizada.
Como chegamos a esta situação absurda? Se retrocedermos o suficiente, descobriremos que em algum momento as pessoas foram despossuídas pela força: expulsa da terra e conseqüentemente privada dos meios para produzir os bens necessários para a vida. (Os famosos capítulos sobre a “acumulação primitiva” de O Capital descrevem vivamente este processo na Inglaterra). Na medida em que as pessoas aceitam esta usurpação como legítima, se vêem obrigadas a um trato desigual com os “proprietários” (aqueles que lhes roubaram, ou que conseguiram posteriormente títulos de “propriedade” emitidos pelos ladrões originais), assim, acabam trocando seu trabalho por uma fração do que realmente produzem, sendo retida a plusvalia pelos proprietários. Esta plusvalia (capital) pode então ser reinvestida gerando continuamente maiores plusvalias pelo mesmo processo.
No que diz respeito à distribuição, uma fonte pública de água potável é um exemplo simples de verdadeiro comunismo (acesso ilimitado). Uma biblioteca pública é um exemplo de verdadeiro socialismo (acesso livre mas regulado).
Em uma sociedade racional, a acessibilidade deveria depender da abundância. Durante a seca, a água deve ser racionada. Por outro lado, uma vez que as bibliotecas estivessem inteiramente postas on-line poderiam chegar a ser totalmente comunizadas: todos poderiam ter acesso livre instantaneamente a qualquer quantidade de textos sem necessidade de fichas nem de devoluções, de seguro contra ladrões, etc.
Mas esta relação racional está impedida pela persistência de interesses econômicos distintos. Como último exemplo, logo será tecnicamente possível criar uma “biblioteca” mundial em que todos os livros escritos, todos os filmes realizados e todas as interpretações musicais gravadas poderiam ser colocadas on-line, potencialmente acessíveis, para que quem quiser possa receber livremente e obter cópias (sem necessidade de lojas, comércio, propaganda, empacotamento, transporte, etc.). Mas como isto eliminaria os benefícios atuais de publicação, gravação e comércio de filmes, se investe muito mais energia confeccionando complicados métodos para proteger e cobrar as cópias (enquanto outros dedicam energia correspondente procurando maneiras de driblar tais impecilhos) que do que em desenvolver uma tecnologia que poderia beneficiar potencialmente a todos.
Um dos métodos de Marx foi o de superar a obtusidade dos discursos políticos baseados em princípios abstratos filosóficos ou éticos (“natureza humana” tal e qual, todo mundo tem um “direito natural” isso ou aquilo) mostrando como as possibilidades sociais e a consciência social estão limitadas e configuradas em alto grau pelas condições materiais. A liberdade em termos abstratos significa pouco se quase todo mundo tem que trabalhar o tempo todo simplesmente para assegurar sua sobrevivência. Não é realista esperar que as pessoas sejam generosas e cooperativas quando existe apenas o suficiente para cada um (uma condição bem diferente daquela onde o “comunismo primitivo” floresceu). Mas um excedente suficientemente grande abre possibilidades mais amplas. A esperança de Marx e de outros revolucionários de seu tempo estava baseada no fato de que os potenciais tecnológicos desenvolvidos pela revolução industrial aportavam ao cabo em bases materiais adequadas para uma sociedade sem classes. Já não era uma questão de afirmar que as coisas “deveriam” ser diferentes, mas de indicar que poderiam ser diferentes; a dominação de classe é não apenas injusta, é agora desnecessária.
Foi realmente sequer necessária em outros tempos? Marx estava certo quando viu o desenvolvimento do capitalismo e o estado como etapas inevitáveis? Seria possível uma sociedade livre sem esse penoso desvio? Afortunadamente, já não é preciso ocupar-se destas questões. Quaisquer que fossem as possibilidades do passado, as condições materiais presentes são mais que suficientes para sustentar uma sociedade global sem classes.
O mais sério retrocesso do capitalismo não é sua injustiça quantitativa — o simples fato de que a riqueza esteja desigualmente distribuída, e de que os trabalhadores não recebam o “valor” completo de seu trabalho. O principal problema é que esta margem de exploração (mesmo quando é relativamente pequena) torna possível a acumulação privada do capital, que finalmente reordena tudo para seus próprios fins, dominando e deformando todos os aspectos da vida.
Quanto mais alienação produz o sistema, mais energia social deve ser desviada apenas para mantê-lo em marcha — mais publicidade para vender mercadorias supérfluas, mais ideologias para manter as pessoas alienadas, mais espetáculos para mantê-las pacificadas, mais polícias e mais prisões para reprimir o crime e a rebelião, mais armas para competir com os estados rivais — todas estas coisas produzem mais frustrações e antagonismos, que devem ser reprimidos com mais espetáculos, mais prisões, etc. Enquanto continuar este círculo vicioso, as reais necessidades humanas serão apenas incidentalmente satisfeitas, ou nem mesmo o serão em absoluto, na medida em que quase todo o trabalho é canalizado para projetos absurdos, redundantes ou destrutivos que não servem a outro propósito senão manter o sistema.
Se este sistema fosse abolido e os potenciais tecnológicos modernos fossem transformados e redirigidos apropriadamente, o trabalho necessário para cobrir as necessidades humanas se reduziria a um nível tão trivial que poderia ser fácil realizá-lo voluntária e cooperativamente, sem requerer incentivos econômicos ou o reforço do estado.
Não é difícil conceber a idéia de uma superação do poder hierárquico. A autogestão pode ser vista como o cumprimento da liberdade e da democracia que são os valores oficiais das sociedades ocidentais. Apesar do condicionamento submisso das pessoas, no momento em que for rechaçada a dominação, elas começarão a falar e a atuar por si próprias.
É muito mais difícil conceber a idéia de uma superação do sistema econômico. A dominação do capital é muito sutil e auto-reguladora. As questões do trabalho, da produção, dos bens, dos serviços, do intercâmbio e da coordenação no mundo moderno parecem tão complicadas que a maioria das pessoas aceitam a necessidade do dinheiro como mediação universal, sendo difícil imaginar qualquer mudança além de sua distribuição de um modo mais eqüitativo.
Por esta razão discutiremos extensivamente os aspectos econômicos posteriormente, mais detalhadamente.
"* * *Revoltas modernas exemplares
A revolução é inverossímil? As possibilidades provavelmente dizem o contrário. O principal problema é que não há muito tempo. Em épocas anteriores era possível imaginar que, apesar de todas as loucuras e desastres da humanidade, poderíamos sair ilesos e talvez aprender finalmente dos erros do passado. Mas agora que as políticas sociais e o desenvolvimento tecnológico alcançou ramificações ecológicas globais irrevogáveis, o método de tentativa e erro já não é mais suficiente. Temos apenas mais algumas décadas para mudar as coisas. E na medida que o tempo passa, esse empreendimento se torna cada vez mais difícil: o fato de que os problemas sociais básicos apenas são encarados, e não resolvidos, fortalece cada vez mais o desespero e as tendências delirantes da guerra, do fascismo, do antagonismo étnico, do fanatismo religioso e outras formas de irracionalidade coletiva, desviando o que poderia ser potencialmente útil para a construção de uma nova sociedade em direção a ações de contenção meramente defensivas e em última instância futis.
A maioria das revoluções têm sido precedidas por períodos em que todos se burlavam com a idéia de que as coisas pudessem mudar. Apesar das muitas tendências desalentadoras no mundo, há também alguns sinais alentadores, o menor deles é o extenso desencanto com respeito às falsas alternativas anteriores. Muitas revoltas populares deste século se moveram espontaneamente na direção correta. Não me refiro às revoluções “exitosas”, que são fraudes sem exceção, mas a esforços menos conhecidos, mais radicais. Alguns dos exemplos mais notáveis são a Rússia de 1905, a Alemanha de 1918-19, a Itália de 1920, as Asturias de 1934, a Espanha de 1936-37, a Hungria de 1956, a França de 1968, a Checoslováquia de 1968, Portugal de 1974-75 e a Polônia de 1980-81; muitos outros movimentos, desde a revolução mexicana de 1910 até a recente luta anti-apartheid na África do Sul, contiveram também momentos exemplares de experimentação popular antes de caírem sob o controle burocrático.
Ninguém que tenha analisado cuidadosamente estes movimentos está em condições de rechaçar as expectativas da revolução. Ignorá-las por seu “fracasso” é não compreender o mais importante.(3)
A moderna revolução é tudo ou nada: as revoltas individuais estão condenadas a fracassar enquanto não eclodir uma reação internacional em cadeia que se espalhe mais rápido que a repressão possa abarcar. Não é surpreendente que estas revoltas não tenham ido mais além; o que é estimulante é que foram tão longe quanto puderam. Um novo movimento revolucionário tomará indubitavelmente formas novas e imprevisíveis; mas estes esforços anteriores seguem plenos de exemplos daquilo que se pode fazer e daquilo que não se deve fazer.
* * *
Algumas objeções comuns
Se diz com freqüência que uma sociedade sem estado funcionaria se todos fôssemos anjos, mas que devido à perversidade da natureza humana é necessário alguma hierarquia para manter as pessoas nos trilhos. Mais certo seria dizer que se todos fôssemos anjos o sistema presente poderia funcionar toleravelmente bem (os burocratas atuariam honestamente, os capitalistas se absteriam de empresas socialmente danosas mesmo que fossem rentáveis). É precisamente porque as pessoas não são anjos que é necessário eliminar o sistema que permite a algumas delas chegar a ser diabos muito eficientes. Coloque cem pessoas em uma pequena habitação com apenas uma janela de ventilação, e eles se pisotearão uns aos outros diante da morte eminente. Deixe-os sair e manifestarão uma natureza diferente. Como disse um grafite de maio de 1968, “O homem não é nem o nobre selvagem de Rousseau nem o pecador depravado da Igreja. É violento quando oprimido, terno quando livre”.
Outros sustentam que, quaisquer que sejam as causas profundas, as pessoas estão agora tão fastigiadas que necessitam ser curadas psicológica ou espiritualmente antes de que possam conceber criar uma sociedade livre. Em seus últimos anos Wilhelm Reich sentia que uma “praga emocional” estava tão firmemente incrustada na população que seria necessário o surgimento de gerações de crianças crescidas saudáveis antes que fosse possível a transformação social libertária; e que enquanto isso conviria evitar confrontar o sistema diante do ninho de vespas do populacho reacionário e ignorante.
É certo que as tendências populares irracionais exigem algumas vezes discrição. Mas mesmo que possam ser poderosas, não são forças irresistíveis. Contêm suas próprias contradições. Submeter-se a alguma autoridade absoluta não é necessariamente um sinal de fé na autoridade; pode ser uma tentativa desesperada de superar as crescentes dúvidas (a tensão convulsa de uma rocha que cinde). Aqueles que se unem a bandos e a grupos reacionários, ou caem em cultos religiosos ou histeria patriótica, estão também buscando um sentido de liberdade, conexão, propósito, participação, poder sobre sua vida. Como Reich mesmo mostrou, o fascismo dá uma expressão particularmente dramática e vigorosa àquelas aspirações básicas, é por isso que com freqüência exerce um encanto mais profundo que as vacilações, compromissos e hipocrisias do progressismo e do esquerdismo.
Definitivamente, a única forma de derrotar à reação é apresentar expressões mais francas destas aspirações, e oportunidades mais autênticas de cumpri-las. Quando os assuntos básicos são forçados a sair para o domínio público, as irracionalidades que floresciam sob a tampa da repressão psicológica tendem a diminuir, como os bacilos da enfermidade expostos à luz do sol e do ar fresco. Em qualquer caso, inclusive se não nos impormos, há uma satisfação em lutar pelo que realmente cremos, o que é melhor do que cair em uma posição de vacilação e hipocrisia.
Existem limites para alguém que queira liberar-se (ou criar crianças liberadas) dentro de uma sociedade enferma. Mas mesmo que Reich estivesse certo ao assinalar que pessoas psicologicamente reprimidas eram menos capazes de conceber a liberação social, ele falhou em compreender em qual medida o processo da revolta social pode ser psicologicamente libertador. (Psiquiatras franceses disseram haver registrado uma queda significativa no número de seus clientes durante os eventos de maio de 1968!)
A noção de democracia total realça o espectro da “tirania da maioria”. Devemos reconhecer que as maiorias podem ser ignorantes e fanáticas, sem dúvida. Mas a única solução real é enfrentar esta ignorância e este fanatismo e tentar superá-los. Manter as massas na obscuridade (confiando em juízes progressistas para proteger liberdades civis ou em legisladores progressistas para adotar discretamente algumas reformas progressistas) só conduz à reação popular quando as questões sensíveis se tornam públicas.
Examinados mais detalhadamente, sem dúvida, a maior parte dos exemplos de opressão de uma minoria por uma maioria não se deve ao domínio da maioria, mas ao domínio encoberto de uma minoria, uma situação em que uma elite dominante joga com antagonismos raciais ou culturais de forma a dirigir as frustrações das massas exploradas umas contra as outras. Quando as pessoas têm poder real sobre suas próprias vidas surgem coisas mais importantes a fazer do que perseguir minorias.
Assim se evocam tantos abusos ou desastres que poderiam ocorrer em uma sociedade não hierárquica que se torna impossível responder a todos eles. Essas pessoas que resignadamente aceitam um sistema que a cada ano condena à morte em guerras e pela fome milhões de semelhantes, e outros milhões à prisão e à tortura, são as mesmas que se escandalizam ante a idéia de uma sociedade autogestionária onde poderiam ocorrer alguns abusos, alguma violência ou coerção, ou injustiça, ou inclusive simplesmente algumas inconveniências temporais. Esquecem que não é necessário que um novo sistema social resolva todos nossos problemas; mas simplesmente que lide melhor com eles do que o sistema atual — o que não é pedir muito.
Se a história seguisse as opiniões complacentes dos comentaristas oficiais, nunca teriam ocorrido revoluções. Em qualquer situação determinada há sempre suficientes ideólogos dispostos a afirmar que não é possível nenhuma mudança radical. Se a economia funciona bem, afirmam que a revolução depende das crises econômicas; se há crise econômica, outros declaram com a mesma confiança que a revolução é impossível porque as pessoas estão demasiado ocupadas fazendo malabarismos para sobreviver. Os primeiros, surpreendidos pela revolta de maio de 1968, tentaram descobrir retrospectivamente a crise invisível que segundo sua ideologia deve ter existido. Os últimos sustentam que a perspectiva situacionista foi refutada pelas péssimas condições econômicas daquele tempo.
Na realidade, os situacionistas simplesmente destacaram que o logro da crescente abundância capitalista demonstrou que a garantia de sobrevivência não é um substituto para a vida real. As subidas e quedas periódicas da economia não corroboram de nenhuma maneira esta conclusão. O fato de uns poucos na cúpula da sociedade terem conseguido reunir recentemente de modo gradual uma parte ainda maior da riqueza social, jogando na rua um número cada vez maior de pessoas e aterrorizando o restante da população com a possibilidade de cair na mesma sorte, torna menos evidente a viabilidade de uma sociedade de pós-escassez; mas os pré-requisitos materiais estão bem presentes.
As crises econômicas que evidenciaram que necessitávamos “reduzir nossas expectativas” foram realmente causadas pela super-produção e pela falta de trabalho. O absurdo mais profundo do atual sistema é o desemprego ser visto como um problema, com as tecnologias potencialmente liberadoras do trabalho dirigidas para a criação de novos trabalhos que substituam os velhos que se revelaram não mais necessários. O problema não é que muita gente não tenha trabalho, o problema é que muita gente o tenha. Necessitamos ampliar nossas expectativas, não reduzi-las.(4)
O crescente domínio do espetáculo
Mais sério que este espetáculo de nossa suposta falta de poder no plano da economia é o poder enormemente incrementado do próprio espetáculo, que em anos recentes se desenvolveu ao ponto de, ao cabo, esmagar qualquer consciência da história pré-espetáculo ou das possibilidades anti-espetáculo. Os comentários à sociedade do espetáculo (1988) de Debord encaram este novo desenvolvimento em detalhes:
“A mudança de maior importância em tudo o que sucedeu nos últimos vinte anos reside na própria continuidade do espetáculo. Esta importância não se refere ao aperfeiçoamento de sua instrumentação pelos meios de comunicação de massa, que anteriormente já haviam alcançado um estágio de desenvolvimento muito avançado; trata-se simplesmente de que a dominação espetacular tem educado toda uma geração submetida a suas leis.... A primeira intenção da dominação espetacular foi erradicar todo o conhecimento histórico em geral, impedindo toda informação e comentário racional acerca do passado mais recente.... O espetáculo se encarrega de manter as pessoas inconscientes do que está ocorrendo, ou pelo menos de que esqueçam rapidamente tudo aquilo que possa trazê-los à consciência. O mais importante é o mais oculto. Nada nos últimos últimos vinte anos foi tão profundamente encoberto com mentiras oficiais como maio de 1968.... O fluxo de imagens vai abordando tudo, e sempre é o outro quem controla este resumo simplificado do mundo perceptível, quem decide onde levará o fluxo, quem programa o ritmo do que é mostrado em uma série inacabável de arbitrárias surpresas que não deixa tempo para a reflexão... separando tudo o que se mostra de seu contexto, seu passado, suas intenções e suas conseqüências.... Não é assim surpreendente que as crianças estejam hoje começando sua educação com uma introdução entusiasta ao conhecimento absoluto da linguagem dos computadores ao mesmo tempo em que são cada vez mais incapazes de ler. Porque ler requer fazer juízos a cada linha; e como a conversação está quase morta (como ocorrerá logo com a maioria daqueles que param para conversar) a leitura é o único acesso que restou do vasto campo da experiência humana pré-espetáculo”.
Neste texto tratei de recapitular alguns pontos básicos que foram sepultados sob esta intensa repressão espetacular. Se estes assuntos parecem banais a alguns e obscuros a outros, podem ao menos servir para recordar que uma vez foi possível, em tempos primitivos e décadas atrás, que as pessoas tivessem a singular noção passada da moda de que poderiam entender e afetar sua própria história.
Embora seja inquestionável que as coisas tenham mudado consideravelmente desde os anos sessenta (em sua maior parte para pior), pode ser que nossa situação não seja tão desesperadora como parece àqueles que engolem tudo aquilo que o espetáculo lhes enfia goela abaixo. Às vezes basta uma sacudidela para romper o estupor.
Mesmo que não houvesse a garantia de uma vitória final, tais rupturas são por si só um prazer. Existe outro maior?(5)
NOTAS
1. “Geopolítica da hibernação”, International Situationista # 7, p. 10.
2. Veja-se Maurice Brinton: The Bolsheviks and Workers’ Control: 1917-1921, Voline: The Unknown Revolution, Ida Mett: The Kronstadt Uprising, Paul Avrich: Kronstadt 1921, Peter Arshinov: History of the Makhnovist Movement, e Guy Debord: A Sociedade do espetáculo §§ 98-113. Existe também a edição impressa de Castellote Editores (Madrid, 1978)
3. “As referências superficiais de jornalistas e governantes ao ‘êxito’ ou ‘fracasso’ de uma revolução não significam nada pela simples razão de que desde as revoluções burguesas nenhuma outra revolução foi bem sucedida: nenhuma delas aboliu as classes. Embora a revolução proletária não tenha vencido em parte alguma, o processo prático através do qual seu projeto se manifestou já cria pelo menos dez momentos revolucionários de importância histórica que podem ser chamados apropriadamente de revoluções. Se em nenhum destes momentos se desenvolveu completamente o conteúdo total da revolução proletária, é inegável que em cada caso se deu uma interrupção fundamental da ordem socio-econômica dominante e a aparição de novas formas e concepções da vida real — fenômenos arraigados que só podem ser compreendidos e avaliados em sua significação conjunta, incluindo seu significado potencial futuro... A revolução de 1905 não derrubou o regime tzarista, obteve apenas algumas concessões temporais. A revolução espanhola de 1936 não suprimiu formalmente o poder político existente: este surgiu, de fato, fora do levante proletário iniciado para defender a República contra Franco. E a revolução húngara de 1956 não aboliu o governo liberal-burocrático de Nagy. Entre outras limitações lamentáveis, o movimento húngaro foi em muitos aspectos um levante nacional contra a dominação estrangeira; e este aspecto nacional-resistente jogou também um certo papel, embora menos importante, na origem da Comuna de Paris. A Comuna suplantou o poder de Thiers apenas dentro dos limites de Paris. E o soviete de St. Petersburg de 1905 nem sequer tomou o controle da capital. Todas as crises mencionadas aqui como exemplos, embora deficientes em suas realizações práticas e inclusive em suas perspectivas, produziram não obstante suficientes inovações radicais e puseram suas sociedades em um severo xeque tanto que foram chamadas legitimamente de revoluções”. (“El comienzo de una nueva era”, Internationale Situationniste #12, pp. 13-14]
4. “Não nos interessa ouvir falar dos problemas econômicos dos exploradores. Se a economia capitalista não é capaz de satisfazer as demandas dos trabalhadores, isto simplesmente é uma razão a mais para lutar por uma nova sociedade, na qual tenhamos o poder de tomar nossas próprias decisões sobre toda a economia e sobre toda a vida social”. (Trabalhadores das linhas aéreas portuguesas, 27 de outubro de 1974.)
5. No título original — “The Joy of Revolution” — Ken Knabb ironiza acerca de uma série de livros de divulgação para as massas, muito populares na América, com títulos como “The Joy of Sex”, “The Joy of Cooking”, “The Joy of Reading”, etc.
Capítulo 2: Excitação preliminar
Descobertas pessoais — Intervenções críticas — Teoria versus ideologia — Evitar falsas opções e elucidar as verdadeiras — O estilo insurrecional — Cine radical — Opressão versus jogo — O escândalo de Estrasburgo — A miséria da política eleitoral — Reformas e instituições alternativas — Correção política, ou igualdade na alienação — Inconveniências do moralismo e do extremismo simplista — Vantagens da audácia — Vantagens e limites da não violência
“O indivíduo não pode saber o que ele realmente é enquanto não se realizar mediante a ação.... O interesse que o indivíduo encontra em um projeto é a resposta à questão sobre se deve atuar ou não e como”.
— Hegel, Fenomenologia do espírito
Descobertas pessoais
Mais adiante tratarei de responder a algumas outras objeções comuns. Mas enquanto os objetores permanecerem passivos, nenhum argumento do mundo os comoverá, e continuarão entonando o velho refrão: “É uma bela idéia, mas não é realista, vai contra a natureza humana, as coisas sempre foram assim”. Quem não realiza seu próprio potencial é improvável que reconheça o potencial dos outros.
Parafraseando aquela velha oração plena de sentido, necessitamos de iniciativa para resolver os problemas que podemos resolver, de paciência para suportar os que não podemos resolver, e sabedoria para discernir a diferença. Mas também necessitamos ter presente que alguns dos problemas que o indivíduo isolado não pode resolver podem ser resolvidos coletivamente. Descobrir que outros compartilham do mesmo problema é com freqüência o princípio da solução.
Alguns problemas podem, por conseguinte, ser resolvidos individualmente, mediante métodos diversos que vão desde terapias elaboradas, práticas espirituais, e até mesmo simples decisões de sentido comum para corrigir alguma falha, romper com algum hábito nocivo, provar alguma coisa nova, etc. Mas não me ocupo aqui de expedientes puramente pessoais, úteis mesmo dentro de seus limites, mas dos momentos em que as pessoas se movem “para fora” em empresas deliberadamente subversivas.
Existem mais possibilidades do que parece à simples vista. Uma vez que se rechaça a intimidação, algumas delas são muito simples. Podes começar por onde quiseres. Mas tem que fazê-lo a partir de algum lugar — Crês que poderás aprender a nadar se nunca te atirastes na água?
Às vezes é preciso um pouco de ação para romper com o falatório excessivo e restabelecer uma perspectiva concreta. Não importa que seja algo transcendental; se não surge outra coisa, pode bastar alguma iniciativa arbitrária — suficiente para mover um pouco as coisas e despertar.
Outras vezes é necessário deter-se, romper a cadeia de ações e reações compulsivas. Aclarar o ambiente, criar um pequeno espaço livre da cacofonia do espetáculo. Quase todos fazem isto em alguma medida, por simples autodefesa psicológica instintiva, praticando alguma forma de meditação, comprometendo-se periodicamente em alguma atividade que serve efetivamente ao mesmo propósito (trabalhar no jardim, passear, pescar), ou deter-se para respirar um pouco em meio a sua rotina quotidiana, voltando por um momento ao “centro tranqüilo”. Sem tal espaço é difícil ter uma perspectiva sadia sobre o mundo, ou mesmo conservar o próprio juízo.
Um dos métodos mais úteis que encontrei foi escrever. O beneficio é em parte psicológico (alguns problemas perdem seu poder sobre nós ao ordenar-se de modo que podemos vê-los mais objetivamente), em parte pela questão da organização de nossos pensamentos para ver os diferentes fatores e opções mais claramente. Às vezes mantemos noções inconsistentes sem chegar a tomar consciência das contradições até que tentamos colocar essas coisas no papel.
Às vezes tenho sido criticado por exagerar na importância das coisas escritas. Reconheço, assim, que muitos assuntos podem ser tratados de modo mais direto. Inclusive as ações não verbais requerem normalmente que se pense, que se fale e que se escreva acerca delas para levá-las a cabo, comunicá-las, debatê-las e corrigi-las eficazmente.
(De qualquer forma, não pretendo ocupar-me de todos os assuntos; apenas abordo alguns pontos acerca dos quais sinto que tenho algo a dizer. Se acha que esqueci de passar algo importante, porquê você mesmo não faz isso?)
Intervenções críticas
Escrever te permite desenvolver idéias em teu próprio ritmo, sem se preocupar com tua habilidade oratória ou medo do público. Podes expressar uma idéia de uma vez por todas em vez de ter que repeti-la constantemente. Se é necessária a discrição, um texto pode ser lançado anonimamente. As pessoas podem lê-lo em seu próprio ritmo, parar e pensar sobre ele, voltar atrás e revisar pontos específicos, reproduzi-lo, adaptá-lo, recomendá-lo a outros, etc. O discurso falado pode gerar uma reação mais rápida e precisa, mas pode também dispersar tua energia, te impedir de se concentrar e de executar tuas idéias. Aqueles que são escravos da mesma rotina que te escraviza tendem a resistir a teus esforços por escapar porque teu êxito desafiaria a passividade deles.
Às vezes o melhor que podes fazer para provocar melhor estas pessoas é simplesmente deixá-las para traz e seguir teu próprio caminho. Ao ver teu progresso, algumas delas dirão: “Ei, espere-me!”. Ou transferir o diálogo a um plano diferente. Uma carta força tanto quem a escreve como quem a recebe a desenvolver suas idéias mais claramente. As cópias nas mãos de outras pessoas envolvidas podem avivar a discussão. Uma carta aberta pode atrair o interesse de mais gente.
Se se consegue criar uma reação em cadeia na qual cada vez mais gente lê teu texto porque vê que outros estão lendo e o discutem acaloradamente já não será possível para ninguém fingir que não tem consciência dos temas que estão circulando. (1)
Suponhamos, por exemplo, que criticas a um grupo por ser hierárquico, por permitir que um líder tenha poder sobre outros membros (ou seguidores ou fãs). Uma conversa privada com um dos membros pode simplesmente resultar em uma série de reações defensivas contraditórias contra as quais é inútil argumentar. (“Não, ele não é realmente nosso líder, e se for, não é autoritário, e além disso, que direito tens tu de criticar?”) Mas uma crítica pública obriga a tirar essas contradições e põe as pessoas diante de um fogo cruzado. Enquanto um membro nega que o grupo seja hierárquico, um segundo pode admitir que é hierárquico e tentar justificar isto atribuindo ao líder uma perspicácia superior. Isto pode fazer pensar em um terceiro membro.
A princípio, molestados por teres perturbado sua pequena e cômoda tertúlia, é provável que o grupo cerre fileiras em derredor do líder e denuncie tua “negatividade” ou “arrogância elitista”. Mas se tua intervenção for suficientemente aguda pode calar fundo e ter um forte impacto. O líder tem que tomar cuidado posto que todos estão mais sensíveis a qualquer coisa que possa parecer confirmar tua crítica. Para demostrar quão injusto tu estavas, pode ser que os membros insistam em uma maior democratização. E inclusive se o grupo particular se mostra impermeável à mudança, seu exemplo pode servir como lição para um público mais amplo. Outras pessoas que não estejam comprometidas e que, sem tua crítica, haveriam cometido talvez erros similares podem ver mais facilmente a pertinência de tua crítica porque tem menos investidura emocional no grupo.
Normalmente é mais efetivo criticar instituições e ideologias que atacar aos indivíduos que se encontram simplesmente envolvidos com elas — não apenas porque a máquina é mais importante que suas partes móveis, mas porque este enfoque faz mais sentido para os indivíduos na hora de salvar a cara dissociando-se eles mesmos da máquina.
Mas por mais diplomático que sejas, quase toda crítica significativa seja ela qual for provocará provavelmente reações defensivas irracionais, que vão desde ataques pessoais até invocações de uma ou outra ideologia da moda para demonstrar a impossibilidade de qualquer consideração racional dos problemas sociais. A razão é denunciada como fria e abstrata pelos demagogos que acham mais fácil jogar com o sentimento das pessoas; a teoria é depreciada em nome da prática.
Teoria versus ideologia
Teorizar é simplesmente tratar de entender o que fazemos. Todos somos teóricos ao discutir honestamente sobre o que sucede, distinguir entre o significante e o irrelevante, penetrar as explicações falsas, reconhecer o que foi eficaz e o que não foi, considerar como algo pode ser feito melhor da próxima vez. A teoria radical é simplesmente falar ou escrever a uma grande quantidade de pessoas sobre temas mais gerais em termos mais abstratos (ou seja, mais amplamente aplicáveis). Inclusive aqueles que dizem rechaçar a teoria teorizam — simplesmente o fazem mais inconsciente e caprichosamente, e portanto de modo mais impreciso.
A teoria sem casos particulares é vazia, mas os casos particulares sem a teoria são cegos. A prática prova a teoria, mas a teoria também inspira práticas novas.
A teoria radical não tem nada que respeitar nem nada que perder. Critica a si mesma como tudo o mais. Não é uma doutrina que deva ser aceita pela fé, mas uma tentativa generalizada que as pessoas devem provar e fazer constantes correções por si mesmas, uma simplificação prática indispensável para tratar com as complexidades da realidade.
Mas com o cuidado de que não seja uma simplificação excessiva. Toda teoria pode transformar-se em ideologia, chegar a ser rígida como um dogma, ser desviada para fins hierárquicos. Uma ideologia sofisticada pode ser relativamente segura em certos aspectos; o que a diferencia da teoria é que carece de uma relação dinâmica com a prática. Na teoria tu tens idéias; na ideologia as idéias têm a ti. “Busca a simplicidade, e desconfia dela”.
Evitar falsas opções e elucidar as verdadeiras
Temos de encarar o fato de que não há truques seguros, de que nenhuma tática radical é invariavelmente apropriada. Algo que é coletivamente possível durante uma revolta pode não ser uma opção sensata para um indivíduo isolado. Em certas situações urgentes pode ser necessário incitar as pessoas a levar a cabo alguma ação específica; mas na maioria dos casos o que mais convém é simplesmente elucidar os fatores relevantes que as pessoas devem levar em conta ao tomar suas próprias decisões (Se me atrevo a dar aqui ocasionalmente alguns conselhos diretos, é por conveniência de expressão. “Fazer isso ou aquilo” deve ser entendido como “Em algumas circunstâncias fazer tal coisa pode ser uma boa idéia”).
Uma análise social não necessita ser grande e detalhada. Simplesmente “divida em um ou dois pontos” (indicando as tendências contraditórias dentro de um determinado fenômeno, grupo, ou ideologia) ou “agrupe os dois dentro de um” (revelar um aspecto comum entre duas entidades aparentemente distintas) pode ser útil, especialmente se se comunica aos diretamente envolvidos. O acesso a uma informação é mais importante que levantar muitos temas; o que faz falta é abrir o caminho entre o excesso para revelar o essencial. Fazendo isso, outras pessoas, inclusive as bem informadas, serão estimuladas a efetuar investigações mais completas, caso necessário.
Quando nos defrontamos com determinado tópico, a primeira coisa a fazer é determinar se com efeito é um simples tópico. É impossível levar uma discussão significante sobre “marxismo”, “violência”, ou “tecnologia” sem distinguir os diversos sentidos que se incluem sob tais etiquetas.
Por outro lado, também pode ser útil tomar um tema amplamente abstrato e mostrar suas tendências predominantes, se bem que tais tipos puros não existam realmente. O panfleto Sobre a miséria no meio estudantil... dos situacionistas, por exemplo, enumera mordazmente toda sorte de estupidez e pretensões do “estudante”. Obviamente nem todo estudante é culpado destes defeitos, mas o estereótipo serve como um enfoque a partir do qual organizar uma crítica sistemática das tendências gerais. Sublinhando as qualidades que a maioria dos estudantes tem em comum, o panfleto também desafia àqueles que afirmam ser exceções para que provem. O mesmo se aplica à crítica do “pro-situ” em A verdadeira cisão na Internacional de Debord e Sanguinetti — um desafiante desprezo aos seguidores, talvez único na história, dos movimentos radicais.
“Peça a todos uma opinião acerca de cada detalhe para que possas visualizar a totalidade” (Vaneigem). Muitos temas estão tão carregados emocionalmente que qualquer reação a eles pode levar ao emaranhado das falsas opções. O fato de que dois lados estejam em conflito, por exemplo, não significa que devas apoiar alguma das partes. Se não podes fazer nada acerca de um problema em particular, é melhor confessar claramente este fato e passar para outro assunto que tenha possibilidades práticas presentes.(2)
Se tomas partido escolhendo um mal menor, admita isso; não aumente a confusão purificando tua escolha ou demonizando o inimigo. Se tem que fazer algo, analise sob todos os aspectos: seja advogado do diabo e neutralize o delírio polêmico compulsivo examinando com calma os pontos fortes da posição oposta e os pontos débeis da tua. “Um erro muito comum: ter a coragem de defender as próprias posições; a questão é ter a coragem de atacar as próprias convicções!” (Nietzsche).
Combina a imodéstia com a audácia. Recorda que se consegues realizar algo é sobre a base dos esforços de muitos outros, muitos dos quais têm enfrentado horrores tais que fariam a ti e a mim desabar em submissão. Mas não esqueças que o que dizes pode produzir algum efeito: dentro de um mundo de espectadores pacificados até mesmo a mais pequena expressão autônoma sobressai.
Posto que já não há nenhum obstáculo material para inaugurar uma sociedade sem classes, o problema se reduz essencialmente a uma questão de consciência: o único obstáculo real é que as pessoas ignoram seu próprio poder coletivo. (A repressão física é efetiva contra as minorias radicais apenas na medida em que o acondicionamento social mantêm dócil o resto da população). Por conseguinte um elemento amplo da prática radical é o elemento negativo: atacar as formas diversas da falsa consciência que impedem as pessoas de dar-se conta de suas potencialidades positivas.
O estilo insurrecional
Tanto Marx como os situacionistas têm sido com freqüência denunciados de modo ignorante por essa negatividade, porque eles se concentraram principalmente no esclarecimento crítico evitando promover qualquer ideologia positiva que as pessoas pudessem aderir passivamente. Por Marx ter destacado a forma como o capitalismo reduz nossas vidas a um precipício econômico, os apologistas “idealistas” deste estado de coisas lhe acusam de “reduzir a vida a temas econômicos” — como se a grande importância do trabalho de Marx não fosse ajudar-nos a superar nossa escravidão econômica para que nossos potenciais criativos pudessem florescer. “Apelar para que as pessoas abandonem suas ilusões sobre sua condição é apelar para que abandonem uma condição que requer ilusões... A crítica arranca as flores imaginárias da prisão não para que o homem continue suportando essa prisão sem fantasia ou consolação, mas para demolir a prisão e recolher a flor vivente (Introdução a uma crítica da filosofia do direito de Hegel).
Expressar acertadamente um tema chave com freqüência tem um efeito surpreendentemente poderoso. Jogar luz sobre as coisas faz com que as pessoas abandonem suas evasivas e tomem posição. Como o destro açougueiro na fábula taoísta que nunca necessitava afiar a faca porque sempre cortava pelas juntas, a polarização radical mais efetiva não vem de protestos estridentes, mas de simplesmente revelar as divisões que existem, elucidar as diferentes tendências, contradições, opções. Muito do impacto dos situacionistas procede do fato de que articularam coisas que a maioria das pessoas já havia experimentado, mas não eram capazes de expressá-las ou temiam fazê-lo até que o gelo fosse rompido. (“Nossas idéias estão na mente de todos”)
Se alguns textos situacionistas parecem sem embargo difíceis ao princípio, é porque sua estrutura dialética vai contra a fibra de nosso condicionamento. Quando este condicionamento se rompe não parecem tão obscuros (foram a origem de alguns dos grafites mais populares de maio de 68). Muitos espectadores acadêmicos ficaram confusos tratando de resolver sem êxito as várias descrições “contraditórias” do espetáculo em A sociedade do espetáculo deixando escapar definições simplistas como, “cientificamente consistente”; mas qualquer um que esteja comprometido com a contestação desta sociedade comprovará que um exame elaborado desde diferentes ângulos, como fez Debord, é esclarecedor e útil, e fará tudo que estiver ao seu alcance para não desperdiçar uma única palavra em vulgaridades acadêmicas ou em expressões escandalosas e inúteis.
O método dialético que vai de Hegel e Marx aos situacionistas não é uma fórmula mágica para produzir uma série de predições corretas, é uma ferramenta para apreender os processos dinâmicos da mudança social. Nos recorda que os conceitos sociais não são eternos; e que contêm suas próprias contradições, interagindo e transformando-se entre si, inclusive em seus opostos; que o que é verdadeiro e progressista em um contexto pode chegar a ser falso e regressivo em outro.(3)
Um texto dialético pode requerer um estudo cuidadoso, uma vez que cada nova leitura é portadora de novos descobrimentos. E mesmo que apenas influa diretamente em pouca gente, tende a fazê-lo tão profundamente que muitos deles acabam influindo em outros da mesma forma, levando a uma reação qualitativa em cadeia. A linguagem não dialética da propaganda esquerdista é mais fácil de entender, mas normalmente seu efeito é superficial e efêmero; ao não delinear desafios, logo acaba aborrecendo os espectadores confusos sobre o que foi exposto.
Como descreve Debord em sua última película, aqueles que acham que o que dizem é demasiado difícil fariam melhor culpar sua própria ignorância e passividade, culpar às escolas e à sociedade que lhes fez deste modo, do que queixar-se de sua própria obscuridade. Quem não tem suficiente iniciativa para reler textos cruciais, fazer uma pequena indagação, ou uma pequena experimentação por si mesmo é improvável que leve algo a cabo sem ser mimado pelos demais.
* * *
Cine radical
Debord é praticamente a única pessoa que faz um uso verdadeiramente dialético e antiespetacular do cinema. Embora muitos realizadores ditos radicais aplaudam o “distanciamento” brechtiano, ou seja, cutucar os espectadores para que pensem e atuem por si próprios, em vez de absorvê-los em uma identificação passiva com o herói ou a trama — a maioria das películas radicais se dirige à audiência como se ela fosse composta por um bando de imbecis. O parvo protagonista gradualmente “descobre a opressão” e se “radicaliza” ao ponto de se alistar como um fervoroso partidário do “progressismo” político ou como um militante leal a algum grupo esquerdista burocrático. O mais distante que conseguem chegar se limita a algumas trucagens cinematográficas que permitem ao espectador pensar: “Ah, um toque brechtiano! Como este realizador é inteligente! Sou muito esperto percebendo tais sutilezas!” A realidade, é que a mensagem radical é normalmente tão banal quanto óbvia para qualquer um que fosse ver tal película pela primeira vez; mas o espectador tem a gratificante impressão de que outras pessoas podem superar seu nível de consciência vendo tal filme.
Se o espectador sente alguma inquietude acerca da qualidade do que está consumindo, logo é acalmado pelos críticos, cuja principal função é descobrir profundos sentidos radicais em praticamente qualquer filme. Como no conto da roupa nova do imperador, é improvável alguém admitir não ter consciência destes supostos sentidos tanto que busca saber deles temendo ser taxado de menos sofisticado que o resto da platéia.
Certos filmes podem ajudar a expor alguma condição deplorável ou comunicar alguma noção da sensação ante uma situação radical. Mas não é muito significativo apresentar imagens de uma luta se não se critica nem as imagens nem a luta. Os espectadores se queixam às vezes quando determinada película retrata inadequadamente alguma categoria social (p. e. as mulheres). Isso pode ser certo na medida em que a película reproduz certos estereótipos falsos; mas a alternativa normalmente implícita — de que o realizador “deveria apresentar imagens de mulheres lutando contra a opressão” — é na maioria dos casos igualmente falsa. As mulheres (como os homens ou qualquer outro grupo oprimido) são de fato normalmente passivos e submissos — este é precisamente o problema que temos que encarar. Atender à auto-satisfação das pessoas apresentando espetáculos de heroísmo radical triunfante apenas reforça esta escravidão.
* * *
Opressão versus jogo
Confiar que condições opressivas radicalizem as pessoas é desaconselhável; piorá-las intencionalmente para acelerar este processo é inaceitável. A repressão em cima de alguns projetos radicais pode incidentalmente trazer à tona o absurdo da ordem dominante; mas tais movimentos devem ser dignos de consideração por seu próprio valor — perdem sua credibilidade se são meros pretextos desenhados para provocar a repressão. Inclusive nos meios mais “privilegiados” quase sempre há problemas mais que suficientes, é desnecessário agregar outros. O importante é revelar o contraste entre as presentes condições e as presentes possibilidades, e transmitir às pessoas um maior apego e um maior desejo pela vida real.
Os esquerdistas com freqüência dão a entender que é necessário muita simplificação, exagero e repetição para neutralizar toda a propaganda dominante. Isto é como dizer que um boxeador que ficou grogue por um gancho de direita voltará à lucidez com um gancho de esquerda.
A consciência das pessoas não “aumenta” quando a sepultamos sob uma avalanche de histórias de horror, nem sob uma avalanche de informações. A informação que não é criticamente assimilada e utilizada logo acaba esquecida. Tanto a saúde mental como a física requerem um equilíbrio entre a absorção e a utilização das informações recebidas. Às vezes pode ser necessário colocar pessoas complacentes diante de alguma atrocidade por eles desconhecida, mas mesmo quando as machucamos interiormente até provocar náuseas, normalmente não se consegue outra coisa senão provocar uma fuga em direção a espetáculos menos chatos e deprimentes.
Um dos principais motivos que nos impede compreender nossa situação é o espetáculo de aparente felicidade de outras pessoas, que nos faz ver nossa própria infelicidade como um um vergonhoso sinal de fracasso. Mas um espetáculo onipresente de miséria também nos impede de ver nossos potenciais positivos. A constante difusão de idéias delirantes e de atrocidades nausebundas nos paralisa, nos converte em cínicos paranóicos e compulsivos.
A estridente propaganda esquerdista, ao fixar sua atenção sobre o insidioso e sobre o odioso dos “opressores”, alimenta com freqüência o delírio, apelando para o lado mais mórbido e mesquinho do povo. Se nos limitamos a ruminar males, se permitimos que a enfermidade e a fealdade desta sociedade perverta inclusive nossa rebelião contra ela, esquecemos por que estamos lutando e terminamos perdendo a própria capacidade de amar, de criar, de desfrutar.
A melhor “arte radical” se manifesta quando é ao mesmo tempo positiva e crítica. Quando ataca a alienação da vida moderna, ela nos adverte simultaneamente das potencialidades poéticas ocultas dentro dela. Mais que reforçar nossa tendência em evocar a autocompaixão, estimula nossa resistência, nos permite rir tanto de nossos próprios problemas quanto da estupidez das forças da “ordem”. Um bom exemplo são algumas das velhas canções e tiradas cômicas da IWW [Industrial Workers of the World, organização anarcosindicalista que ainda existe, mas que teve seu momento mais importante entre 1910-1930 (N. do T.)], se bem que a ideologia da IWW atualmente esteja um tanto quanto rançosa. Outro exemplo são as irônicas canções agridoces de Brecht e de Weill. A hilaridade de O bom soldado Svejk é provavelmente um antídoto mais efetivo contra a guerra do que o ultraje moral do típico folheto pacifista.
Nada atinge tanto a autoridade do que conduzi-la ao ridículo. O argumento mais efetivo contra um regime repressivo não é afirmar sua maldade, mas sua estupidez. Um belo exemplo disso são os protagonistas da novela de Albert Cossery, A violência e a burla, que vivem sob uma ditadura no Oriente Médio. Eles cobrem as paredes da capital com um pôster de aspecto oficial que glorifica o ditador de um modo tão ridículo que o obriga a se demitir por vergonha. Embora os zombadores de Cosséry sejam apolíticos e seu êxito demasiado bonito para ser infalível, muitos têm utilizado algumas paródias similares com fins mais radicais (p.e. o golpe de Li I-Che mencionado em Public Secrets página 304, “Um grupo radical em Hong-Kong”). Nas manifestações dos anos 70 na Itália os índios Metropolitanos (inspirados talvez no primeiro capítulo de Sylvie and Bruno de Lewis Carroll: “Menos pão! Mais impostos!”) portavam cartazes e cantavam slogans como “Poder aos Chefes!” e “Mais trabalho! Menos salário!” Qualquer um reconhecia a ironia, mas era mais difícil rechaçá-los com os habituais qualificativos.
O humor é um antídoto saudável contra todo tipo de ortodoxia, tanto da esquerda quanto da direita. É altamente contagioso e nos incita a não levar as coisas demasiadamente a sério. Mas pode facilmente vir a ser uma mera válvula de escape, canalizando a insatisfação para um eloqüente cinismo passivo. A sociedade do espetáculo aproveita as ações delirantes contra seus mais delirantes aspectos. Os satíricos têm freqüentemente uma relação de dependência de amor e de ódio no que diz respeito a seus objetivos; a paródia chega a não distinguir-se daquilo que parodia, dando a impressão de que tudo é igualmente estranho, insignificante e desesperante.
Em uma sociedade baseada na confusão e sustentada artificialmente, a primeira tarefa não é agregar mais confusão e artificialismo. As irrupções caóticas não geram habitualmente outra coisa senão irritação e pânico, resultando em que as pessoas apoiem qualquer medida que o governo tome para restaurar a ordem. Uma intervenção radical pode parecer a princípio estranha e incompreensível; mas se for levada a cabo com suficiente lucidez, as pessoas prontamente a entenderão perfeitamente.
O escândalo de Estrasburgo
Imagine que estás na Universidade de Estrasburgo no início do ano letivo em 1966-67, entre estudantes, professorado e distintos convidados que entram no auditório para ouvir o discurso inaugural do presidente de Gaulle. Encontras um pequeno panfleto colocado em cada assento. Um programa? Não. Algo sobre “a miséria da vida estudantil”. Abres o folheto ociosamente e começas a ler: “Podemos afirmar sem grande risco de nos equivocarmos, que depois da polícia e do sacerdote, o estudante é na França o ser mais universalmente depreciado...”. Olhas ao derredor e vês que todos os demais também o estão lendo, com reações que vão desde a perplexidade e regozijo até reações de choque e horror. Quem é o responsável por isso? O título da página revela que foi publicado pela União dos Estudantes de Estrasburgo, mas se refere também à “Internacional Situacionista”, qualquer que seja ela...
O que torna o escândalo de Estrasburgo diferente de outras gozações estudantis, ou das cabriolas confusas e contundentes de grupos como os yippies, foi sua forma escandalosa que trazia consigo um conteúdo igualmente escandaloso. No momento em que os estudantes se proclamaram como o setor mais radical da sociedade, este texto foi a única coisa que pôs as coisas em seu lugar. Mas as misérias particulares dos estudantes apenas estavam ali por serem o ponto de partida; textos igualmente duros podiam e deviam ser escritos sobre a miséria de todos os demais segmentos da sociedade (preferivelmente daqueles que a conhecem a partir de dentro). Algumas tentativas haviam sido efetuadas, de fato, mas nenhuma se aproximou tanto da lucidez e da coerência como esse panfleto situacionista, tão conciso quanto compreensivo, tão provocativo quanto exato, pela sua abordagem metódica de uma situação específica através de ramificações cada vez mais gerais, com o capítulo final apresentando o resumo mais conciso que existe do moderno projeto revolucionário. (Ver Sobre a miséria da vida estudantil e o artigo “Nossos fins e nossos métodos no escândalo de Estrasburgo em I.S. #11.)
Os situacionistas nunca pretenderam provocar sozinhos a revolução de maio de 1968 — como foi dito, eles predisseram o conteúdo da revolta, mas não o desfecho nem o lugar. Mas sem o escândalo de Estrasburgo e a agitação subseqüente do grupo Enragés influenciado pela IS (da qual o bem conhecido Movimento 22 de março foi apenas uma imitação tardia e confusa) a revolta nunca se sucederia. Não havia crises econômicas ou governamentais na França, nenhuma guerra ou antagonismo racial desestabilizava o país, nem nenhuma outra questão particular que pudesse anunciar uma revolta como a que ocorreu. Na Itália e na Inglaterra estavam em marcha lutas operárias mais radicais, na Alemanha lutas estudantis mais militantes. No Japão, movimentos contraculturais mais amplos, como também nos EUA e nos Países Baixos. Mas apenas na França havia uma perspectiva que vinculava todos ao mesmo tempo.
Intervenções cuidadosamente calculadas como o escândalo de Estrasburgo devem ser cuidadosamente diferenciadas não apenas de desordens confusionistas, mas também das revelações meramente espetaculares. Na medida em que a crítica social se limita a contestar este ou aquele detalhe, a relação espetáculo-espectador se reconstitui continuamente: se os críticos conseguem desacreditar os líderes políticos existentes, acabam muitas vezes se convertendo em novas estrelas (Ralph Nader, Noam Chomsky, etc.) que alimentam seus espectadores mais conscientes com um fluxo contínuo de informações escandalosas a respeito das quais raramente fazem qualquer coisa. As revelações mais moderadas conseguem uma audiência que apoia esta ou aquela facção do poder intragovernamental; as mais sensacionalistas alimentam a curiosidade mórbida do povo, incitando-o a consumir mais artigos, telejornais e docudramas, fora os intermináveis debates acerca das diversas teorias da conspiração. É evidente que a maior parte destas teorias não são senão reflexos delirantes da falta de sentido histórico crítico produzida pelo espetáculo moderno, e tentativas desesperadas de encontrar algum sentido coerente em uma sociedade cada vez mais incoerente e absurda. Em qualquer caso, na medida em que as coisas permanecem no terreno do espetacular quase não importa se algumas destas teorias estejam certas: aqueles que passam o dia na expectativa de que irá acontecer algo amanhã nunca afetarão o futuro.
Certas revelações são mais interessantes não só por levantar temas significativos ao debate público, mas também por atrair muita gente ao debate. Um exemplo simpático foi o escândalo de 1963 de “Spies for Peace” na Inglaterra, onde alguns desconhecidos anunciaram a localização de um refúgio atômico secreto reservado aos membros do governo. Quanto mais veemente a ameaça do governo em perseguir a qualquer um que reproduzisse este “segredo de estado” que já não era segredo para ninguém, mais alegre e criativa era a difusão por milhares de grupos e de indivíduos (que começaram também a descobrir e a invadir muitos outros refúgios secretos). Tanto a estupidez do governo como a loucura do espetáculo da guerra nuclear ficaram evidentes para qualquer pessoa, a espontânea reação em cadeia humana aportou uma mostra de um potencial social mui diferente.
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A miséria da política eleitoral
“Nenhum governo liberal desde 1814 subiu ao poder a não ser pela violência. Cânovas, suficientemente inteligente para ver a inconveniência e o perigo que isto representava, determinou que os governos conservadores deveriam ser sucedidos regularmente por governos liberais. Diante de uma crise econômica ou de uma greve, o plano seria demitir e deixar que os liberais resolvessem o problema. Isto explica por que a maior parte da legislação repressiva aprovada durante o resto do século foi aprovada por eles”.
— Gerald Brenan, The Spanish Labyrinth
O melhor argumento a favor da política eleitoral radical foi elaborado por Eugene Debs, o líder socialista americano que em 1920 obteve cerca de um milhão de votos para a presidência enquanto permanecia na prisão por opor-se à I Guerra Mundial: “Se as pessoas não têm informações suficientes para saber em quem votar, não saberão contra quem disparar”. Por outro lado, os trabalhadores durante a revolução alemã de 1918-19 não sabiam contra quem disparar exatamente devido à presença dos líderes “socialistas” no governo trabalhando constantemente para reprimir a revolução.
A grosso modo podemos distinguir cinco graus de “governo”:
(1) liberdade irrestrita
(2) democracia direta
(3) democracia delegada
(4) democracia representativa
(5) ditadura de uma minoria
A presente sociedade oscila entre os pontos (4) e (5), isto é, entre governo minoritário declarado e governo minoritário disfarçado, ambos camuflados por uma fachada simbólica de democracia. Uma sociedade liberada eliminaria os pontos (4) e (5) e progressivamente reduziria a necessidade dos pontos (2) e (3)...
Nas democracias representativas as pessoas abdicam de seu poder ao eleger governantes. A plataforma política dos candidatos são limitadas a algumas vagas generalidades. Uma vez eleitos, há pouco controle sobre suas reais decisões em centenas de assuntos — apesar da possibilidade de redirecionamento do voto das pessoas, alguns anos depois, para outros políticos rivais igualmente incontroláveis. Em suas campanhas, os representantes dependem das contribuições e dos subornos dos ricos; são subordinados aos donos dos meios de comunicação de massa que decidem o que vai e o que não vai ser divulgado pela mídia; e eles são quase tão ignorantes e impotentes quanto o público em geral, dando muita importância aos assuntos que são pautados pelos burocratas não eleitos e pelas agências secretas independentes. Eventualmente, ditadores declarados podem ser depostos, mas os verdadeiros governantes nos regimes “democráticos”, aquela minúscula minoria que virtualmente possui e controla tudo, nunca é eleita nem interna nem externamente. A maioria das pessoas nem mesmo sabe quem eles são...
O ato de votar, por si só, de uma forma ou de outra, é destituído de grande significância (aqueles que fazem um grande alvoroço recusando-se a votar apenas revelam seu próprio fetiche). O problema do voto é que ele tende a fazer com que pessoas deixem a ação a cargo de outras pessoas, tornando remotas as possibilidades mais significantes. No final das contas, as pessoas que tomam alguma iniciativa criativa (pense nos primeiros protestos pelos direitos civis) podem alcançar um resultado mais efetivo do que colocar sua energia na eleição de políticos menos ruins. Na melhor das hipóteses, os legisladores raramente fazem mais do que aquilo que foram forçados a fazer pela pressão dos movimentos populares. Um regime conservador sob pressão de movimentos radicais independentes freqüentemente concede mais que um regime liberal que sabe que pode contar com o apoio radical. Se as pessoas invariavelmente se reúnem para obter o menos ruim, tudo o que qualquer governante tem que fazer em qualquer situação que ameace seu poder é eliminar qualquer ameaça de um mal maior.
Até mesmo no caso raro quando um político “radical” tem uma chance real de ganhar uma eleição, todos os tediosos esforços de campanha de milhares de pessoas podem repentinamente virar em nada diante de algum escândalo trivial descoberto em sua vida pessoal, ou porque ele inadvertidamente disse algo inteligente. Se consegue evitar estas armadilhas, ele tende a evitar assuntos controversos temendo desagradar os eleitores indecisos. Se finalmente acaba sendo eleito, ele quase nunca implementa as reformas que prometeu, a não ser, talvez, depois de anos de disputas e embates com seus novos colegas; que lhe dá uma boa desculpa para sua principal prioridade: fazer os acordos necessários para que se mantenha indefinidamente no poder. Na lida com os ricos e poderosos, ele desenvolve novos interesses e gostos pelos quais ele se justifica dizendo que merece essas coisas para se recuperar dos anos que dedicou trabalhando pela causa. Pior de tudo, se ele eventualmente consegue passar algumas medidas “progressivas”, este excepcional e normalmente trivial sucesso é colocado como uma prova de que as políticas eleitorais são dignas de confiança, atraindo muito mais pessoas que irão desperdiçar suas energias nas futuras campanhas deste tipo.
Uma das pichações de maio de 1968 ilustra bem esse aspecto, “submeter-se a um chefe é doloroso; escolher um chefe é estúpido!”
Os referendos sobre temas específicos são menos susceptíveis à precariedade dos personalismos; mas os resultados não são com freqüência melhores porque os temas tendem a ser colocados de modo simplista, e qualquer projeto de lei que ameace os interesses dos poderosos normalmente acaba derrotado pela influência do dinheiro e dos meios de comunicação.
Às vezes as eleições locais oferecem às pessoas uma oportunidade mais realista de influenciar as políticas e manter sob vigilância os candidatos eleitos. Mas nem mesmo as comunidades mais conscientes estão imunes à deterioração do resto do mundo. Se uma cidade consegue preservar características ambientais ou culturais desejáveis, estas mesmas vantagens a situam sob uma crescente pressão econômica. O fato de se dar preferência aos valores humanos em detrimento aos valores de propriedade causa no final das contas enormes incrementos aos últimos (muita gente vai querer inverter essa situação ou mudar-se dali). Cedo ou tarde o incremento dos valores de propriedade se sobrepõe aos valores humanos: as políticas locais acabam anuladas por escalões superiores ou pelos governos nacionais ou regionais, chega muito dinheiro de fora para influir nas eleições municipais, os políticos municipais são subornados, os bairros residenciais são demolidos para dar lugar a arranha-céus e autopistas, a rentabilidade sobe vertiginosamente, as classes mais pobres são expulsas (inclusive os diversos grupos étnicos e artistas boêmios que animavam e compunham o aspecto original da cidade), e tudo o que resta da antiga comunidade são alguns lugares separados de “interesse histórico” para o consumo dos turistas.
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Reformas e instituições alternativas
Não obstante, “atuar localmente” pode ser um bom ponto de partida. Quem sente que a situação global é desesperadora ou incompreensível pode buscar sem embargo uma oportunidade de afetar algum assunto local específico. Associações de moradores, cooperativas, centros de informação, grupos de estudo, escolas alternativas, clínicas gratuitas de saúde, teatros comunais, periódicos de bairro, emissoras de rádio e televisão de acesso público e muitos outros tipos de instituições alternativas são valiosas em si mesmas, e se são suficientemente participativas podem conduzir a movimentos mais amplos. Mesmo que não durem muito, aportam um terreno temporal da experimentação radical.
Mas sempre dentro de alguns limites. O capitalismo foi capaz de desenvolver-se gradualmente dentro da sociedade feudal, no momento em que a revolução capitalista se desfez dos últimos vestígios do feudalismo, a maioria dos mecanismos da nova ordem burguesa estavam já firmemente assentados. Uma revolução anticapitalista, pelo contrário, não pode realmente construir sua nova sociedade “sobre a armação da velha”. O capitalismo é muito mais flexível e onipenetrante do que era o feudalismo, e tende a cooptar qualquer organização opositora.
Os teóricos radicais do século XIX podiam todavia ver suficientes resíduos sobreviventes das formas comunais tradicionais para supor que, uma vez consumada a eliminação da estrutura exploradora, poderiam reviver e ampliar-se para formar os alicerces de uma nova sociedade. Mas a penetração global do capitalismo espetacular no presente século destruiu quase todas as formas de controle popular e de interação humana direta. Inclusive os esforços mais modernos da contracultura dos anos sessenta foram há muito integrados pelo sistema. As cooperativas, os grêmios, as granjas de alimentos orgânicos e outras empresas marginais podem produzir bens de melhor qualidade sob as melhores condições laborais, mas esses benefícios todavia têm que funcionar como mercadorias no mercado. As poucas empresas afortunadas tendem a desenvolver-se no comércio ordinário, nos quais os membros fundadores assumem gradualmente um status de proprietários ou de diretores diante dos novos trabalhadores, envolvendo-se com todo tipo de assuntos burocráticos e comerciais rotineiros que nada têm que ver com “preparar o terreno para uma nova sociedade”.
Quanto mais dura uma instituição alternativa, mais ela tende a perder seu caráter voluntário, experimental, desinteressado. Seus assalariados permanentes desenvolvem um interesse pessoal na manutenção do status quo e evitam questões controversas temendo ofender seus partidários ou perder seus fundos de governo ou das fundações. As instituições alternativas também tendem a exigir demasiadamente o já limitado tempo livre das pessoas, dispersando, subtraindo energia e imaginação no confronto de temas mais gerais. Depois de um breve período a participação acaba esquecida e abandonada, deixando o trabalho aos tipos serviçais ou aos esquerdistas que tentam dar um bom exemplo ideológico. Pode soar bonito ouvir falar de associações de moradores, etc., mas a menos que suceda uma emergência local pode ser fastidioso agüentar reuniões intermináveis para escutar as reclamações de teus vizinhos, ou participar de assuntos que realmente não te interessam.
Em nome do realismo, os reformistas se limitam a perseguir objetivos “factíveis”, mas mesmo quando conseguem algo, ele é normalmente neutralizado por algum desenvolvimento em outro nível. Isto não significa que as reformas sejam irrelevantes, são simplesmente insuficientes. Temos que continuar resistindo aos males particulares, mas temos também que reconhecer que enquanto não dermos um fim ao próprio sistema ele continuará gerando outros novos problemas. Supor que uma série de reformas resultarão finalmente em uma mudança qualitativa é como pensar que podemos chegar a atravessar um abismo de dez metros com uma série de pulinhos.
Geralmente é assumido que como a revolução implica em uma mudança bem maior que reformas, deve ser mais difícil levá-la a cabo. A grosso modo, pode ser na realidade mais fácil, porque de um golpe elimina muitas pequenas complicações e provoca um entusiasmo muito maior. Em certa medida chega a ser mais prático começar do zero do que recuperar uma estrutura apodrecida.
Entretanto, até que uma situação revolucionária nos capacite para sermos verdadeiramente construtivos, o melhor que podemos fazer é ser criativamente negativos — nos concentrarmos no esclarecimento crítico, deixando que as pessoas persigam qualquer objetivo possível que possa interessar-lhes, mas sem a ilusão de que uma sociedade nova se “constrói” mediante a gradual acumulação de tais projetos.
Os projetos puramente negativos (p.e. abolição das leis contra o uso de drogas, sexo consensual e outros crimes sem vítimas) têm a vantagem da simplicidade: beneficiam quase a todos (exceto a esta dupla simbiótica, o crime organizado e a indústria de controle do crime) e requerem pouco trabalho, se é que têm algum, para serem exitosos. Mas por outro lado, não aportam uma grande oportunidade de participação criativa.
Os melhores projetos são aqueles que são valiosos por si mesmos na medida em que contêm um desafio implícito a algum aspecto fundamental do sistema; projetos que permitem às pessoas participar em temas atraentes de acordo com seu grau de interesse, enquanto tendem a abrir caminho a possibilidades mais radicais.
Menos interessantes, se bem que úteis, são as demandas por melhores condições ou direitos mais igualitários. Embora tais projetos não sejam em si mesmos mui participativos podem eliminar impedimentos à participação.
As menos desejáveis são as meras lutas de soma zero, onde o ganho de um grupo é a perda de outro.
Em última análise a questão não é dizer às pessoas o que elas devem fazer, mas fazê-las ter consciência daquilo que estão fazendo. Se promovem algum assunto para recrutar gente, é apropriado revelar seus motivos manipulativos. Se crêem que estão contribuindo para um câmbio radical, pode ser útil mostrar-lhes como sua atividade está realmente reforçando o sistema de alguma forma. Mas se estão realmente interessados no projeto pelo projeto, que continuem!
Mesmo se estamos em desacordo com suas prioridades (coleta de fundos para a ópera, por exemplo, enquanto a rua está cheia de gente sem teto) deveríamos nos guardar de qualquer estratégia que meramente invoque a culpabilidade das pessoas, não só porque tais invocações exercem geralmente um efeito negativo mas porque tal moralismo reprime saudáveis aspirações positivas. Abster-se de enfrentar assuntos de “qualidade de vida” porque o sistema continua estabelecendo questões de sobrevivência é submeter-se a uma chantagem que já não tem nenhuma justificação. “O feijão e o sonho” já não são mutuamente excludentes.(4)
Os projetos de “qualidade de vida” são com freqüência de fato mais inspiradores que demandas políticas e econômicas rotineiras porque despertam nas pessoas perspectivas mais ricas. Os livros de Paul Goodman são plenos de exemplos imaginativos e muito divertidos. Mesmo que suas propostas sejam “reformistas”, o são de uma forma tão viva e provocativa que aportam um estimulante contraste com a servil postura defensiva da maioria dos reformistas de hoje, que se limitam a reagir à agenda dos reacionários dizendo: “Estamos de acordo no que é essencial: criar emprego, lutar contra o crime, defender nossa pátria com energia; mas os métodos moderados conseguem isto melhor que as propostas extremistas dos conservadores”.
Se tudo segue igual, faz mais sentido concentrar nossa energia em temas que não recebem a atenção pública; é melhor trabalhar com projetos que podem ser executados limpa e diretamente por seus próprios interessados do que através de agências governamentais. Mesmo que tais compromissos não pareçam demasiado sérios, criam um mal precedente. A dependência diante do estado quase sempre se volta contra algo (comissões designadas para suprimir a corrupção burocrática sempre acaba se desdobrando em novas burocracias corruptas; leis desenhadas para desbaratar grupos reacionários armados terminam sendo utilizadas principalmente para perseguir grupos radicais desarmados).
O sistema prefere matar dois pássaros com um único tiro do que aceitar seus oponentes oferecer “soluções construtivas” a suas próprias crises. De fato necessita uma certa oposição para dar conta dos problemas, forçar a racionalização, exercitar seus instrumentos de controle e encontrar desculpas para impor novas formas de controle. Medidas de emergência são imperceptivelmente convertidas em procedimentos normais, de igual forma regulamentações que normalmente poderiam ser contestadas são introduzidas em situações de pânico. A lenta e constante destruição da personalidade humana por todas as instituições da sociedade alienada, da escola à fábrica, da propaganda ao urbanismo, aparecem como normais quando o espetáculo enfoca obsessivamente crimes individuais sensacionais, manipulando pessoas até a histeria em favor da ordem pública.
Correção política, ou igualdade na alienação
A alienação, acima de tudo, prospera quando pode desviar a contestação social para disputas por posições privilegiadas dentro dela.
Esta é uma questão particularmente espinhosa. Toda desigualdade social necessita ser desafiada, não só por ser injusta, mas porque enquanto permanecer pode ser utilizada para dividir as pessoas. Lograr igualdade na escravidão salarial ou oportunidades iguais para chegar a ser burocrata ou capitalista apenas constitui uma vitória do capitalismo burocrático.
É natural e necessário que as pessoas defendam seus próprios interesses; mas se o fazem identificando-se demasiado exclusivamente com algum grupo social particular tendem a perder de vista a situação mais geral. Na medida em que categorias cada vez mais fragmentadas pelejam por migalhas destinadas a cada uma, caem em jogos mesquinhos de culpabilização mútua e a noção de abolir a estrutura hierárquica é completamente esquecida. Pessoas que sempre estão dispostas a denunciar diante da mais leve insinuação de estereótipos acabam entusiasmando-se a ponto de agrupar quase todo mundo entre os “opressores”, e então se perguntam porque encontram reações tão fortes por toda parte, inclusive por gente consciente de que tem pouco poder real sobre suas próprias vidas, e muito menos sobre a dos demais.
Fora os demagogos reacionários (alegremente adotados pelos “progressistas” como alvos fáceis para o ridículo) os únicos realmente beneficiados por estas disputas de aniquilação mútua são aqueles que lutam por postos burocráticos, concessões do governo, vagas acadêmicas, contratos publicitários, clientes comerciais, ou partidos políticos nas épocas de vacas magras. Farejar a “incorreção política” lhes permite derrubar rivais e críticos e reforçar suas próprias posições como especialista reconhecido ou porta-voz de sua facção particular. Os diversos grupos oprimidos e que são suficientemente estúpidos para aceitar tais porta-vozes não percebem a mudança senão diante da sensação agridoce do ressentimento autojustificado e da ridícula terminologia oficial evocada pela neolingua de Orwell.(5)
Há uma distinção crucial, embora às vezes sutil, entre lutar contra os males sociais e alimentar-se deles. Ninguém aumenta seu poder porque é alentado a refastelar-se em seu próprio vitimismo. A autonomia individual não se desenvolve refugiando-se em alguma identidade grupal. Não se demonstra igualmente inteligência rechaçando o pensamento lógico. Não se promove o diálogo radical perseguindo pessoas que não se conformam com alguma ortodoxia política, e menos ainda lutando para reforçar legalmente tal ortodoxia.
Nem se faz história reescrevendo-a. A verdade é que necessitamos nos libertar do respeito acrítico ao passado e discernir onde houve tergiversação. Mas temos que reconhecer que apesar de nossa desaprovação diante dos prejuízos e das injustiças do passado, é improvável que teríamos atuado melhor diante das mesmas condições. Aplicar os padrões atuais retroativamente (corrigir a cada momento os autores do passado que utilizaram antigas formas masculinas convencionais, ou querer censurar Huckleberry Finn porque Huck não se refere a Jim como uma “pessoa de cor”) só reforça a ignorância histórica que o espetáculo moderno logra estimular com tanto êxito.
Inconvenientes do moralismo e do extremismo simplista
Muitos destes absurdos derivam da falsa assunção de que ser radical implica viver conforme algum “princípio” moral — como se ninguém pudesse agir pacificamente sem ser um pacifista total, ou defender a abolição do capitalismo sem desfazer-se de todo seu dinheiro. A maioria das pessoas tem demasiado sentido comum para seguir realmente estes ideais simplistas, mas se sentem com freqüência vagamente culpados por não fazê-lo. Esta culpabilidade lhes paralisa e lhes faz mais susceptíveis à chantagem dos manipuladores esquerdistas (que nos dizem que se não temos a coragem de nos sacrificar, devemos apoiar acriticamente aqueles que o fazem). Ou tratam de reprimir sua culpa denegrindo a outros que parecem mais comprometidos: um trabalhador manual pode orgulhar-se de não vender-se mentalmente como um professor; que quiçá se sente superior a um publicitário; que pode por sua vez menosprezar alguém que trabalha na indústria de armamento.
Converter problemas sociais em questões morais pessoais distrai a atenção de sua solução potencial. Tentar mudar as condições sociais mediante a caridade é como tentar elevar o nível do mar derramando caixas de água no oceano. Se alguém logra algum bem mediante ações altruístas, confiar nelas como estratégia geral é fútil porque sempre serão a exceção. É natural que a maior parte das pessoas considera antes seus próprios interesses aos interesses de seu próximo. Um dos méritos dos situacionistas foi haver superado as invocações esquerdistas da culpa e do auto-sacrifício destacando que a primeira causa para fazer uma revolução somos nós mesmos.
“Ir ao povo” para “servi-lo”, “organizá-lo”, “radicalizá-lo” conduz normalmente à manipulação e resulta com freqüência em apatia ou hostilidade. O exemplo das ações independentes dos outros é um meio de inspiração mais forte e saudável. Na medida em que as pessoas começam a atuar por si mesmas tornam-se mais dispostas a trocar experiências, colaborar em termos de igualdade e, caso necessário, solicitar assistência específica. E quando ganha sua própria liberdade é muito mais difícil voltar atrás. Um dos grafites de maio de 69 dizia: “Não estou a serviço do povo (muito menos de seus chamados líderes) — que o povo se vire sozinho”. Outro assinalava mais sucintamente: “Não me liberte — Eu cuido disso”.
Uma crítica total significa que tudo é questionável, não uma oposição a tudo. Os radicais esquecem isto com freqüência e caem em uma espiral de oposições mútuas mediante afirmações cada vez mais extremistas, supondo que qualquer compromisso equivale a vender-se, que todo prazer equivale a cumplicidade com o sistema. Realmente, estar “a favor” ou “contra” alguma posição política é bem fácil, e normalmente tão sem sentido, como estar a favor ou contra algum time de futebol. Aqueles que proclamam arrogantemente sua “total oposição” a todo compromisso, toda autoridade, toda organização, toda teoria, toda tecnologia, etc., normalmente não têm nenhuma perspectiva revolucionária — nenhuma concepção prática sobre como o sistema presente pode ser derrubado ou como poderia funcionar uma sociedade pós-revolucionária. Alguns inclusive tentam justificar esta carência declarando que uma simples revolução nunca poderia ser o bastante radical para satisfazer sua eterna rebeldia ontológica.
Esta ênfase do tudo ou nada pode impressionar temporariamente alguns espectadores, mas seu efeito último é simplesmente aborrecer as pessoas. Cedo ou tarde as contradições e hipocrisias conduzem ao desencanto e à resignação. Ao projetar sobre o mundo suas próprias frustrações, os extremistas acabam concluindo que toda mudança radical é sem esperança e reprime a experiência total; ou quiçá se alienam em alguma posição reacionária igualmente néscia.
Imagine se todo radical tivesse que ser um Durruti. É melhor nos esquecermos dele e nos dedicarmos a questões mais realizáveis. Mas ser radical não significa ser o mais extremo. Em seu sentido original significa simplesmente ir à raiz. A razão da necessidade de ser radical para lutar pela abolição do capitalismo e do estado não significa que este seja o objetivo mais extremo que se possa imaginar, significa que chegou a ser desgraçadamente evidente que menos que isso não bastará.
Temos que dar-nos conta daquilo que é necessário e suficiente; buscar projetos que sejamos verdadeiramente capazes de fazer, que sejam factíveis dentro de uma probabilidade realista. O que passar disso é ar quente. Muitas das táticas radicais mais velhas e inclusive mais efetivas — debates, críticas, boicotes, greves, ocupações, conselhos operários — logram popularidade precisamente porque são simples, relativamente seguras, amplamente aplicáveis, e bastante abertas para conduzir a possibilidades mais amplas.
O extremismo simplista busca naturalmente seu contraste mais extremo. Se todos os problemas podem ser atribuídos a uma mera camarilha sinistra de “fascistas totais” tudo o mais parecerá comparativa e confortavelmente progressista. A realidade é que as formas atuais de dominação moderna são normalmente bem sutis, proliferam soltas e sem oposição.
Fixar a atenção nos reacionários só os reforça, os faz parecer mais poderosos e fascinantes. “Não importa que nossos oponentes nos ridicularizem ou nos insultem, ou mesmo nos apresentem como palhaços ou criminosos; o essencial é que falem de nós, que se preocupem conosco” (Hitler). Reich destacou que “instruir as pessoas para que odeiem a polícia só fortalece a autoridade da polícia e a investe de um poder místico aos olhos dos pobres e desvalidos. Os fortes são odiados mas também temidos, invejados e seguidos. Sentimentos de medo e inveja por parte dos ‘despossuidos’ explica uma parte do poder dos reacionários políticos. Um dos principais objetivos da luta racional pela liberdade é desarmar os reacionários expondo o caráter ilusório de seu poder” (People in Trouble.)
O principal problema que implica em comprometimento é mais prático do que moral: é difícil atacar algo quando nós mesmos estamos implicados nele. Criticamos com evasivas por medo que outros nos critiquem por sua vez. Se torna mais difícil conceber grandes idéias ou atuar com audácia.
Como se observou com freqüência, muitos alemães consentiram a opressão nazi porque ela foi implementada de maneira bem gradual e esteve a princípio dirigida principalmente contra minorias impopulares (judeus, ciganos, comunistas, homossexuais); até que chegou ao ponto de afetar a população como um todo, incapacitada de fazer qualquer coisa.
É fácil condenar retrospectivamente aqueles que capitularam diante do fascismo ou do estalinismo, mas é provável que a maioria de nós não faria diferente se estivesse no lugar deles. Em nossas ilusões, nos pintamos como um personagem dramático enfrentando uma opção bem definida diante de uma audiência que a valoriza, imaginamos que não temos problema em levar a cabo a decisão correta. Mas as situações que encaramos na realidade são normalmente mais complexas e obscuras. Nem sempre é fácil saber onde fixar limites.
Pois que os fixemos em algum lugar, deixemos de lado a preocupação pela culpa, vergonha e autojustificação, e tomemos a ofensiva.
Vantagens da audácia
Este espírito é bem ilustrado por aqueles trabalhadores italianos que foram à greve sem fazer reivindicações de nenhum tipo. Tais greves não apenas são mais interessantes que as negociações usuais dos sindicatos burocráticos, como podem inclusive ser mais efetivas: os chefes, sem saber o que fazer, acabam muitas vezes concedendo muito mais do que o grevista se atreveria reivindicar. Estes podem então decidir sobre seu segundo passo sem ter se comprometido com nada.
Uma reação defensiva contra este ou aquele sintoma social consegue na melhor das hipóteses tão somente alguma concessão temporária sobre o tema específico. A agitação agressiva que rechaça o limite exerce maior pressão. Diante de movimentos imprevisíveis mui extensos, como a contracultura dos anos sessenta ou a revolta de maio de 68 — movimentos que põem tudo em dúvida, gerando contestações autônomas em muitas frentes, ameaçando estender-se por toda a sociedade. Demasiado vastos para ser controlados por líderes cooptáveis — os dominadores se precipitam em limpar sua imagem, aprovam reformas, aumentam os salários, libertam prisioneiros, declaram anistias, iniciam processos de paz — qualquer coisa com a esperança de adiantar-se ao movimento e restabelecer seu controle. (A absoluta incontrolabilidade da contracultura americana, que se estendeu intensamente até o próprio exército, jogou provavelmente um grande papel, tanto que o movimento anti-guerra explicitou forçar o fim da guerra do Vietnã).
O lado que toma a iniciativa define os termos da luta. Na medida em que segue inovando, retém também o elemento surpresa. “A audácia é na prática um poder criativo. Quando a audácia se defronta com a vacilação já tem uma vantagem significativa porque o próprio estado de vacilação implica uma perda de equilíbrio. Apenas quando a audácia se defronta com uma previsão cauta fica em desvantagem”. (Clausewitz, Sobre a guerra.) Mas a previsão cauta é mui rara entre aqueles que controlam esta sociedade. A maior parte dos processos de mercantilização, espetacularização e hierarquização são cegos e automáticos: mercadores, os meios de comunicação e os líderes seguem simplesmente suas tendências naturais de obter dinheiro, captar audiência ou recrutar seguidores.
A sociedade do espetáculo é com freqüência vítima de suas próprias falsificações. Posto que cada nível da burocracia trata por si mesmo de proteger-se com estatísticas infladas, cada “fonte de informação” sobrepuja às outras com histórias mais sensacionais, cada estado supera outro em competência, os departamentos governamentais e as companhias privadas põem em prática suas próprias operações de desinformação independentes (ver capítulos 16 e 30 sobre os Comentários à sociedade do espetáculo), até mesmo os dominadores que excepcionalmente vislumbram alguma lucidez dificilmente poderão averiguar o que é que realmente está ocorrendo. Como observa Debord em outro lugar do mesmo livro: um estado que reprimiu seu próprio conhecimento histórico já não mais pode conduzir-se estrategicamente.
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Vantagens e limites da não-violência
“Toda a história do progresso da liberdade humana mostra que qualquer concessão, seja ela qual for, nasce da luta.... Se não há luta não há avanço. Aqueles que professam a liberdade mas lamentam a agitação são homens que querem colher sem arar a terra. Que querem chuva sem trovões e relâmpagos. Que querem o oceano sem o imponente bramido de suas águas. A luta pode ser moral; pode ser física; pode ser moral e física ao mesmo tempo, mas deve ser uma luta. O poder não concede nada sem que se lhe peçam. Nunca o fez e nunca o fará.”
— Frederick Douglas
Qualquer pessoa com algum conhecimento de história tem a consciência de que as sociedades não mudam sem uma resistência tenaz e freqüentemente selvagem a quem está no poder. Se nossos ancestrais não houvessem recorrido a violentas revoltas, muitos daqueles que agora virtuosamente as deploram certamente seriam servos ou escravos.
O funcionamento rotineiro desta sociedade é muito mais violento do que qualquer reação que virtualmente venha a ocorrer contra ela. Imagine o escândalo que provocaria um movimento radical que executasse 20.000 oponentes; pois esta é a estimativa mínima do número de crianças que o sistema presente condena à morte por inanição a cada dia. Assim, as vacilações e compromissos permitem que esta violência continue em marcha indefinidamente, causando em última instância milhares de vezes mais sofrimento que uma simples e decisiva revolução.
Afortunadamente, uma revolução moderna, genuinamente majoritária, teria relativamente pouca necessidade de violência exceto para neutralizar aqueles elementos da minoria dominante que tratam de manter violentamente seu próprio poder.
A violência pela violência é não apenas indesejável, além de gerar pânico (e deste modo, a manipulação) também promove a organização militarista (portanto, a hierarquia). Quanto à não-violência ela implica em uma organização mais aberta e democrática; tende a promover a serenidade e a compaixão e rompe o ciclo miserável do ódio e da vingança.
Mas temos que evitar fazer da não-violência um fetiche. A velha réplica, “Como se pode trabalhar pela paz com métodos violentos?” não tem mais lógica do que dizer a um homem que está se afogando para que fique em terra firme e se afaste da água. Ao esforçar-se por resolver “mal entendidos” mediante o diálogo, os pacifistas esquecem que alguns problemas se baseiam em conflitos de interesses objetivos. Os pacifistas tendem a subestimar a malícia dos inimigos enquanto exageram sua própria culpabilidade, censurando inclusive seus próprios “sentimentos violentos”. A prática de “declarar-se” (contra a guerra, etc.), que pode parecer uma expressão de autonomia pessoal, na realidade reduz o ativista a um objeto passivo, “mais um pela paz”, que (como um soldado) põe seu corpo na frente de batalha ao mesmo tempo em que abdica da investigação ou da experimentação pessoal. Aquele que quiser descartar uma noção de guerra excitante e heróica deve ir além de uma noção de paz servil e miserável. Ao definir seu objetivo como sobrevivência, os ativistas pela paz têm pouco a dizer àqueles que estão fascinados pela aniquilação global precisamente porque adoeceram por uma vida quotidiana reduzida à mera sobrevivência, de maneira que vêem a guerra não mais como uma ameaça mas como uma libertação bem-vinda diante de uma vida chata e atolada em uma ansiedade mesquinha.
Sentindo que seu purismo não resiste à prova da realidade, os pacifistas costumam manter uma ignorância intencional sobre as lutas sociais do passado e do presente. Embora com freqüência sejam capazes de intensos estudos e de uma autodisciplina estóica em sua prática espiritual pessoal. Aparentemente crêem que um conhecimento histórico e estratégico ao nível do Reader’s Digest será suficiente para sustentar suas iniciativas de “compromisso social”. É como alguém que espera evitar a queda de uma mala eliminando a lei da gravidade, acham mais simples imaginar uma luta moral infindável contra a “cobiça,” o “ódio,” a “ignorância”, a “intolerância,” do que ameaçar aquelas estruturas sociais que realmente reforçam esses males. Se eventualmente alguém insiste que se enfrente estas questões, se queixam de que a contestação radical é um terreno mui estressante. Como de fato o é, mas tal objeção se torna estranha quando vem daqueles cujas práticas espirituais afirmam tornar as pessoas capazes de enfrentar os problemas com objetividade e equanimidade.
Há um momento maravilhoso em A cabana do tio Tom: Uma certa família ajuda alguns escravos a escapar para o Canadá, quando aparece um homem do sul procurando por escravos fugidos. Alguém lhe aponta uma escopeta e lhe diz, “amigo, não precisamos de sua ajuda por aqui”. Penso que este é o tom correto: não escorregar no ódio, nem mesmo no desprezo, mas estar disposto a fazer o que for necessário diante de uma determinada situação.
As reações contra os opressores são compreensíveis, mas aqueles que chegam a se envolver demasiadamente com eles correm o risco de escravizar-se tanto mental como materialmente, amarrados a seus amos por “vínculos de ódio”. O ódio para com os amos é em parte uma projeção de ódio a si mesmo por todas as humilhações e compromissos que se tem aceito, que é o resultado da vaga consciência de que os chefes existem em última instância apenas porque os governados os toleram. E mesmo que “a escória tenda a levantar-se como espuma”, a maioria das pessoas que ocupam posições de poder não atuam de modo mui diferente do que faria qualquer outro diante da mesma posição, com os mesmos interesses, tentações e novos medos.
Vigorosos revanches podem ensinar as forças inimigas a respeitar-te, mas tendem também a perpetuar antagonismos. A misericórdia às vezes atrai para teu lado os inimigos, mas pode também simplesmente lhes dar uma oportunidade para a recuperação e novamente te golpear. Nem sempre é fácil determinar qual destas duas políticas é melhor e em que circunstâncias. As pessoas que têm suportado regimes particularmente viciados querem naturalmente ver castigados aqueles que os perpetraram; mas um excesso de vingança mostra a outros opressores presentes ou futuros que é melhor para eles lutar até a morte uma vez que não têm nada a perder.
Mas a maioria das pessoas, inclusive aqueles que foram vergonhosamente cúmplices do sistema, observam para onde sopra o vento. A melhor defesa contra a contra-revolução não é ruminar ofensas do passado ou possíveis traições futuras, mas aprofundar a insurgência ao ponto de atrair todo mundo.
NOTAS
1. A difusão por parte da I.S. de um texto denunciando uma assembléia internacional de críticos de arte na Bélgica foi um belo exemplo disso: “Foram enviadas cópias a um grande número de críticos ou entregues pessoalmente. A outros foram feitos telefonemas onde se lia o texto completo ou em parte. Um grupo forçou sua entrada no Clube de Imprensa onde os críticos estavam sendo recebidos e espalharam os panfletos na audiência... Em resumo, foram dados todos os passos necessários para não dar nenhuma possibilidade aos críticos de ser inconscientes da existência do texto”.
2. “A ausência de um movimento revolucionário na Europa reduziu a esquerda a sua mínima expressão: uma massa de espectadores que desmaia de arrebatamento cada vez que os explorados das colônias se alçam em armas contra seus donos, e que não podem evitar de ver estes levantes como o epitome da revolução.... Ali onde há um conflito eles vêem sempre o Bem lutando contra o Mal, ‘revolução total’ versus ‘reação total’.... A crítica revolucionária começa bem além do bem e do mal; está enraizada na história e opera sobre a totalidade do mundo existente. Em nenhum caso pode aplaudir um estado beligerante ou apoiar a burocracia de um estado explorador em processo de formação.... É obviamente impossível por agora buscar uma solução revolucionária à guerra do Vietnã, é necessário em primeiro lugar por fim à agressão americana para permitir que a luta social real no Vietnã se desenvolva de um modo natural, i.e. para capacitar aos trabalhadores e camponeses vietnamitas redescobrir seus inimigos dentro de seu próprio país: a burocracia do norte e os estratos dominantes e proprietários do sul. Uma vez que os americanos se retirem, a burocracia estalinista tomará o controle do país inteiro — esta conclusão é inevitável.... A questão é não dar apoio incondicional (e nem mesmo condicional) ao Vietcong, mas lutar consistente e intransigentemente contra o imperialismo americano”. (“Das guerras locais” I.S. #11, pp. 195-196, 203.)
3. “Em sua forma mistificada, a dialética chegou a ser uma moda na Alemanha porque parecia transfigurar e glorificar o estado de coisas existente. Em sua forma racional é um escândalo e uma abominação para a sociedade burguesa e seus professores doutrinários, porque compreendendo o estado de coisas existente reconhece simultaneamente a negação deste estado, sua dissolução inevitável; porque contempla o movimento fluido de toda forma social historicamente desenvolvida, e portanto leva em conta sua transitoriedade tanto como sua existência momentânea; e por não deixar que nada se imponha sobre ela é, em sua essência crítica, revolucionária.” (Marx, El Capital.)
A cisão entre marxismo e anarquismo mutilou a ambos. Os anarquistas criticaram devidamente as tendências autoritárias e redutivamente economicistas no marxismo, mas geralmente o fizeram de uma maneira adialética, moralista, ahistórica, contrapondo vários dualismos absolutos (Liberdade versus Autoridade, Individualismo versus Coletivismo, Centralização versus Descentralização, etc.) e deixando a Marx e a outros quantos marxistas radicais um virtual monopólio sobre a análise dialética coerente — até que os situacionistas voltaram novamente a unir os aspectos libertários e dialéticos. Sobre os méritos e imperfeições do marxismo e do anarquismo ver A Sociedade do espetáculo §§ 78-94.
4. “O que emergiu nesta primavera em Zurich como manifestação contra o fechamento dos centros juvenis se estendeu por toda Suíça, alimentando o descontentamento de uma geração jovem ansiosa por romper com o que eles vêem como sociedade sufocante. ‘Não queremos um mundo onde a garantia de não morrer de fome se paga com a certeza de morrer de aborrecimento’, proclamam aos quatro ventos pelas vitrines de Lausanne”. (Christian Science Monitor, 28 de outubro de 1980.) O slogan é do Tratado de saber viver... de Vaneigem.
5. Para alguns exemplos hilariantes ver Henry Beard e Christopher Cerf: The Official Politically Correct Dictionary and Handbook (Villard, 1992): é difícil discernir com freqüência se os termos politicamente corretos neste livro são satíricos, se foram propostos realmente a sério ou se foram inclusive adotados e reforçados oficialmente. O único antídoto para tal delírio são umas quantas sadias gargalhadas.
Capítulo 3: Momentos decisivos
Causa dos abismos sociais — Convulsões de pós-guerra — Efervescência de situações radicais — Auto-organização popular — FSM — Os situacionistas em maio de 1968 — O obrerismo está obsoleto, mas a posição dos trabalhadores segue sendo central — Greves selvagens e ocupações — Greves de consumo — O que poderia ter sucedido em maio de 1968 — Métodos de confusão e cooptacão — O terrorismo reforça o estado — O momento decisivo — Internacionalismo
“Quando o véu mítico é rasgado a trama é revelada, as relações de exploração e a violência que as mantêm são desnudadas, e a luta contra a alienação é definida com clareza, aí surge a ruptura, revelada repentinamente como uma luta corpo a corpo contra o rei nu, exposto em sua força bruta e debilidade.... momento sublime em que a complexidade do mundo se torna tangível, transparente, ao alcance de todos”.
— Raoul Vaneigem, “Banalités de base”
Causas dos abismos sociais
É difícil generalizar sobre as causas imediatas dos abismos sociais. Sempre houve uma grande quantidade de boas razões para a revolta, e antes ou depois surgiram instabilidades no sentido de que algo deve mudar. Mas por quê em um determinado momento e não em outro? As revoltas ocorrem com freqüência tanto em períodos de progresso, como debaixo das piores condições. Enquanto algumas são provocadas pelo mais completo desespero, outras o são por incidentes relativamente triviais. Os agravos aceitos pacientemente durante tanto tempo porque pareciam inevitáveis podem repentinamente parecer intoleráveis diante da possibilidade de sua eliminação. A mesquindade de alguma medida repressiva ou estupidez de qualquer patochada burocrática podem pôr em evidência o absurdo do sistema mais claramente que uma acumulação constante de opressões.
O poder do sistema se baseia na crença das pessoas em sua impotência para opor-se a ele. Normalmente esta crença está bem fundada (os que transgridem as normas são castigados). Mas quando por uma razão ou outra bastante gente começa a ignorar as regras e o fazem com impunidade, a ilusão colapsa por completo. O que se pensava que era natural e inevitável se vê como arbitrário e absurdo. “Se ninguém obedece, ninguém manda.”
O problema é como alcançar esse ponto. Se só desobedecem uns poucos, estes podem ser facilmente isolados e reprimidos. De nada adianta fantasiar sobre as coisas maravilhosas que poderiam ocorrer “se todo mundo concordasse em fazer tal ou qual coisa.” Desgraçadamente os movimentos sociais não costumam funcionar desta maneira. Una pessoa com uma pistola de seis balas pode manter a distância centenas de pessoas desarmadas porque cada uma delas sabe que os primeiros seis a atacar serão assassinados.
Contudo, alguns podem estar furiosos a ponto de atacar sem fazer caso do risco; ou tentar convencer os que estão no poder de que é mais prudente ceder pacificamente do que resistir despertando um ódio ainda maior contra si mesmos. Obviamente é preferível não depender de atos de desespero, mas buscar formas de luta que minimizem o risco até que o movimento se estenda o suficiente para que a repressão já não seja factível.
Os povos que vivem sob regimes particularmente repressivos começam naturalmente tirando proveito de qualquer foco de resistência já existente. Em 1978 as mesquitas iranianas eram o único lugar onde se podia criticar o regime do Xá. Então as enormes manifestações convocadas por Khomeini, a cada 40 dias, começaram a proporcionar segurança numérica. Khomeini chegou dessa forma a ser reconhecido como um símbolo geral de oposição, inclusive pelos que não o seguiam. Mas tolerar qualquer líder, mesmo enquanto mera figura representativa, é, na melhor das hipóteses, uma medida temporal que deveria ser abandonada tão prontamente quanto possível em favor de uma ação mais independente — como fizeram aqueles trabalhadores petroleiros iranianos que no outono de 1978 acreditaram ter força suficiente para ir à greve em dias diferentes aos convocados por Khomeini.
A Igreja Católica na Polônia estalinista jogou um papel igualmente ambíguo: o estado usou a Igreja para que lhe ajudasse a controlar o povo, mas o povo também usou a Igreja para que lhe ajudasse contra o estado.
Uma ortodoxia fanática é amiúde o primeiro passo em direção a uma auto-expressão mais radical. Pode ser que os extremistas islâmicos sejam altamente reacionários, mas o desenvolvimento do hábito de tomar os acontecimentos em suas próprias mãos complicaram o retorno à “ordem” e poderiam inclusive, se não se iludissem, a chegar a ser genuinamente radicais — como ocorreu com parte da igualmente fanática guarda vermelha durante a “revolução cultural” na China, quando o que foi originalmente uma mera treta de Mao para deslocar alguns de seus rivais burocráticos conduziu finalmente à insurgência incontrolada de milhões de jovens que levaram a sério sua retórica antiburocrática.(1)
Convulsões de pós-guerra
Se alguém proclamasse: “Eu sou o maior, a pessoa forte, mais nobre, mais inteligente e mais pacífica do mundo”, seria considerado insuportável, senão louco. Mas se diz exatamente as mesmas coisas sobre seu país é tido como um cidadão admiravelmente patriota. O patriotismo é extremadamente sedutor porque permite ao indivíduo mais miserável ligar-se a um vicário narcisismo coletivo. O afeto nostálgico natural da família e da terra natal é transformado em um culto estúpido ao estado. Os medos e ressentimentos do povo se projetam até ao estrangeiro enquanto suas aspirações frustradas de uma comunidade autêntica se projetam misticamente em sua própria nação, que é vista de algum modo como essencialmente maravilhosa apesar de todos seus defeitos. (“Sim, a América tem seus problemas; mas estamos lutando pela América real, por tudo o que a América representa realmente.”) Esta consciência mística de rebanho foi quase irresistível durante a guerra, sufocando finalmente toda tendência radical.
Não há dúvida que às vezes o patriotismo exerce uma função oposta às lutas radicais (p.e. Hungria 1956). A guerra às vezes trabalha contra as revoltas. Mas aqueles que suportam a maior parte das cargas militares, supostamente em nome da liberdade e da democracia, podem reclamar ao voltar para casa uma parte justa de sua contribuição. Participar da luta e adquirir o hábito de destruir obstáculos os torna menos inclinados a crer em um status quo imutável.
As manobras e desilusões produzidas pela I Guerra Mundial provocaram levantes por toda Europa. Não aconteceu a mesma coisa na II Guerra Mundial porque o radicalismo genuíno foi destruído pelo estalinismo, o fascismo e o reformismo; porque as justificativas dos vencedores para levar a cabo a guerra, carregadas de mentiras como sempre, tiveram mais aceitação do que de costume (os inimigos vencidos são obviamente os maus); e porque desta vez os vencedores cuidaram de elaborar antecipadamente o restabelecimento da ordem de pós-guerra (entregando o leste da Europa a Stalin em troca da docilidade dos partidos comunistas franceses e italianos e o abandono do Partido Comunista Grego insurgente). Não obstante, a eclosão da guerra foi suficiente para abrir o caminho de uma revolução estalinista autônoma na China (que Stalin não desejava, uma vez que ela ameaçaria seu domínio exclusivo sobre o “campo socialista”) e para dar um novo ímpeto aos movimentos anticoloniais (que os poderes coloniais europeus naturalmente não queriam, embora fossem finalmente capazes de manter os aspectos mais proveitosos de sua dominação através de um tipo de neocolonialismo econômico que os Estados Unidos já estava praticando).
Ante a perspectiva de um vazio de poder no pós-guerra, os dominadores passaram a colaborar com freqüência com seus inimigos declarados para reprimir seu próprio povo. Ao término da guerra franco-germana de 1870-71 o exército alemão vitorioso ajudou a sitiar a Comuna de Paris, possibilitando que os dominadores franceses a esmagassem com mais facilidade. Quando o exército estalinista se aproximou de Varsóvia em 1944 convocou um levante popular na cidade contra os ocupantes nazis, depois esperou alguns dias fora da cidade enquanto os nazis suprimiam os elementos independentes que mais tarde poderiam resistir à imposição do estalinismo. Vimos recentemente algo similar na aliança Bush-Saddam antes da guerra do Golfo, quando, depois de chamar o povo iraquiano a levantar-se contra Saddam, o exército americano massacrou sistematicamente os iraquianos conscritos fugidos do Kuwait (os quais, se tivessem alcançado seu país, estariam maduros para a revolta) ao mesmo tempo em que deixou a Guarda Republicana de elite de Saddam intata e livre para esmagar os grandes levantes ao norte e ao sul do Iraque.(2)
Em sociedades totalitárias os agravos são óbvios, mas a revolta é difícil. Em sociedades “democráticas” as lutas são mais fáceis, mas os objetivos estão menos claros. Controlados em grande medida pelo condicionamento inconsciente ou por vastas e aparentemente incompreensíveis forças (“o estado da economia”) e ante a oferta de uma ampla gama de eleições aparentemente livres, torna-se difícil compreender nossa situação. Como um rebanho de ovelhas, somos conduzidos na direção desejada, mas se deixa margem suficiente às variações individuais para permitir preservar uma ilusão de independência.
Os impulsos ao vandalismo e ao enfrentamento violento podem ser vistos às vezes como tentativas de romper com esta abstração frustrante e para chegar a algo concreto.
Assim como a primeira organização do proletariado clássico foi precedida, entre finais do século XVIII e princípios do século XIX, por um período de atos “criminosos” isolados, dirigidos à destruição das máquinas de produção que privavam as pessoas de seu trabalho, assistimos atualmente à primeira aparição de um vago vandalismo contra as máquinas de consumo que nos privam igualmente da vida. É óbvio que neste caso o valor não está na destruição pela destruição, mas na insubmissão que pode ser posteriormente transformada em um projeto positivo para reconverter as máquinas no sentido de um incremento do poder real dos homens. [“Os dias ruins passarão”, Internacional Situacionista #7]
(É importante assinalar, todavia, que defender uma reação compreensível diante de um sintoma de crise social, não implica necessariamente ser uma tática recomendável).
Muitos outros fatores podem ser enumerados como estopim de situações radicais. Uma greve pode ampliar-se (Rússia 1905); a resistência popular a qualquer ameaça reacionária pode ultrapassar os limites oficiais (Espanha 1936); o povo pode tirar proveito de uma liberalização simbólica para ir mais além (Hungria 1956, Checoslováquia 1968); um pequeno número de ações exemplares podem catalisar um movimento de massas (as primeiras ocupações pelos direitos civis nos Estados Unidos, maio de 1968 na França); um atropelo particular pode ser a gota d’agua que faltava (Watts 1965, Los Angeles 1992); o colapso súbito de um regime pode deixar um vazio de poder (Portugal 1974); uma ocasião especial pode reunir multidões tão numerosas que se torna impossível evitar que expressem seus ressentimentos e aspirações (Tiananmen 1976 e 1989); etc.
Mas uma crise social envolve tantos imponderáveis que poucas vezes é possível predizê-la, e muito menos provocá-la. Em geral parece que a melhor atitude é apoiar projetos que mais nos atraiam pessoalmente, ao mesmo tempo em que procuramos manter suficiente consciência para reconhecer rapidamente novos desdobramentos significativos (perigos, tarefas urgentes, oportunidades favoráveis) que reclamem novas táticas.
A seguir, examinaremos alguns dos cenários decisivos das situações radicais já desencadeadas.
* * *
Efervescência de situações radicais
Uma situação radical é uma revelação coletiva. Em um extremo pode envolver algumas dezenas de pessoas em um bairro ou local de trabalho; em outro extremo se funda em uma situação revolucionária plena que envolve milhões de pessoas. Não é uma questão de número, mas de participação e diálogo sempre públicos e abertos. O incidente que marcou a origem do Free Speech Movement [Movimento pela livre expressão] em 1964 é um exemplo clássico e particularmente atraente. Quando a polícia prendeu um ativista pelos direitos civis do campus da Universidade em Berkeley, alguns estudantes se sentaram diante da viatura policial; minutos depois centenas espontaneamente seguiram seu exemplo, rodeando a viatura de forma que esta não podia avançar. Durante as seguintes 32 horas a viatura policial se transformou em uma tribuna para o debate aberto. A ocupação de Sorbona em maio de 68 criou uma situação ainda mais radical ao atrair uma grande parte da população parisiense não estudantil; e a ocupação das fábricas pelos trabalhadores por toda a França se transformou em uma situação revolucionária.
Em tais situações as pessoas se tornam muito mais suscetíveis para levar a cabo novas iniciativas, mais disposta a questionar antigas crenças, mais animadas em desmascarar a farsa habitual. A cada dia algumas pessoas passam por experiências que as fazem questionar o sentido de suas vidas; mas durante uma situação radical praticamente todo mundo faz isso ao mesmo tempo. Quando a máquina se detém, as próprias peças começam a questionar sua função.
Os chefes são ridicularizados. As ordens não são respeitadas. As separações se dissolvem. Os problemas pessoais se convertem em questões públicas; as questões públicas que pareciam distantes e abstratas se transformam em um assunto imediatamente prático. A velha ordem é examinada, criticada, satirizada. O povo aprende mais sobre a sociedade em uma semana do que em anos de “estudos sociais” acadêmicos ou “tomada de consciência” esquerdista. Experiências longamente reprimidas são revividas.(3) Tudo parece possível — e muito mais coisas vêm à tona. O povo não acredita como pôde suportar aqueles “velhos dias”. Embora o resultado seja incerto, a experiência pode muitas vezes ser considerada em si mesma valiosa. “Apenas temos tempo...” escreveu um grafiteiro de maio de 68; ao que outros dois responderam: “Em todo caso, não nos arrependemos!” e “Já são três dias de felicidade”.
Quando o trabalho se interrompe, o frenético ir e vir é substituído pela caminhada ociosa, o consumo passivo pela comunicação ativa. Pessoas que não se conheciam estabelecem animadas conversações pelas esquinas. Os debates se sucedem sem parar, as pessoas que chegam substituem aqueles que marcham para outras atividades ou tratam de conseguir algumas horas de sono, embora ainda normalmente demasiado excitados para dormir por muito tempo. Enquanto alguns sucumbem aos demagogos, outros levam a cabo suas próprias propostas e tomam suas próprias iniciativas. Os espectadores se lançam no torvelinho e passam por transformações incrivelmente rápidas. (Em um belo exemplo de maio de 1968, o diretor do Teatro nacional Odeon se retirou consternado para o fundo do palco quando este foi tomado por multidões radicais; mas depois de considerar a situação durante alguns minutos, avançou e exclamou: “Sim! Agora que o teatro é de vocês, sejam seus defensores, nunca o entreguem a ninguém — metam fogo nele antes de fazer isso!”) [citado no cap. 6 de Enragés y situacionistas en el movimiento de las ocupaciones]
Todavia, nem todo mundo é ganho imediatamente para a causa. Alguns simplesmente se retraem, aguardando o momento em que o movimento se aquiete para que possam recuperar suas posses e suas posições, e vingar-se. Outros vacilam, perdidos entre o desejo e o medo de mudança. O espaço de alguns dias pode não ser suficiente para romper toda uma vida de condicionamento hierárquico, a quebra dos hábitos e rotinas pode ser tão desorientadora quanto liberadora. As coisas acontecem de uma maneira tão rápida que é fácil sentir pânico. Mas mesmo conseguindo manter a calma não é fácil compreender os fatores em jogo suficientemente rápido para determinar o que fazer, que pode parecer óbvio a posteriori. Um dos principais propósitos deste texto é indicar algumas situações típicas recorrentes, de forma que as pessoas possam estar preparadas para reconhecer e explorar tais oportunidades antes que seja demasiado tarde.
Situações radicais são raros momentos onde a mudança qualitativa chega a ser realmente possível. Longe de ser anormais, revelam em que medida estamos quase sempre anormalmente reprimidos. Diante dessas situações a vida “normal” se assemelha a de um sonâmbulo. Embora haja muitos livros escritos sobre revoluções, poucos falam em profundidade sobre estes momentos. Os livros que tratam das revoltas modernas mais radicais quase sempre são meramente descritivos, aportando quiçá alguma insinuação do que as pessoas sentem em tais experiências, mas raramente efetuando alguma abordagem tática útil. Os estudos das revoluções burguesas e burocratas são geralmente as menos relevantes. Em tais revoluções, onde as “massas” jogaram apenas um papel de apoio temporário em uma ou outra direção, sua conduta pode ser analisada em grande medida como movimentos de massas físicas, em termos metafóricos familiares como o movimento de fluxo e refluxo das marés, da oscilação do pêndulo entre a radicalidade e a reação, etc. Mas uma revolução anti-hierárquica requer que as pessoas deixem de ser homogêneas, massas manipuláveis, que vá bem além do servilismo e da inconsciência que lhes sujeitam este tipo de previsibilidade mecanicista.
Auto-organização popular
Nos anos 60 pensava-se geralmente que a melhor maneira de favorecer a desmassificação era formar “grupos de afinidade”: pequenas associações de amigos com estilos de vida e perspectivas compatíveis. Formar tais grupos tinha muitas vantagens óbvias. Podiam decidir sobre um projeto e levá-lo a cabo imediatamente; são difíceis de infiltrar; e podem vincular-se a outros quando necessário. Mas mesmo desconsiderando os diversos problemas sob os quais a maioria dos grupos de afinidade dos anos 60 sucumbiram, é preciso reconhecer o fato de que alguns assuntos requerem uma organização em grande escala. Os grandes grupos logo acabam abraçando a hierarquia a menos que logrem organizar-se de forma que líderes sejam desnecessários.
Uma das formas mais simples para começar a organizar uma grande assembléia é fazer com que aqueles que tenham algo a dizer se organizem por turnos, fisicamente ou mediante listas, concedendo um certo tempo a cada um dentro do qual possam dizer o que queiram. (A assembléia de Sorbone e a concentração do Free Speech Movement estabeleceram um limite de três minutos para cada um, que se estendia ocasionalmente por aclamação popular.) Alguns dos oradores propunham projetos específicos que resultavam em grupos menores e mais operativos. (“Alguns de nós pretendemos fazer isto ou aquilo; qualquer um que queira tomar parte pode unir-se a nós em tal hora ou lugar.”) Outros suscitavam temas relacionados com os objetivos gerais da assembléia e seu funcionamento permanente. (A quem incluir? Quando se reunirá de novo? Como tratará nesse ínterim as novas questões urgentes? A quem se delegarão problemas específicos? Com que grau de responsabilidade?) Neste processo os participantes verão logo o que funciona ou não — com que rigor necessitam ser ordenados os delegados, se há a necessidade de um moderador para facilitar a discussão para que não falem todos ao mesmo tempo, etc. São possíveis muitos modos de organização; o essencial é que as coisas prossigam abertas, democráticas e participativas, e que qualquer tendência à hierarquia ou à manipulação seja imediatamente exposta e rechaçada.
Free Speech Movement
Apesar de sua ingenuidade, confusões e falta de uma rigorosa responsabilidade delegada, o Free Speech Movement é um bom exemplo das tendências espontâneas à auto-organização prática que surgem em uma situação radical. Se formaram duas dezenas de “centrais” para coordenar impressão, comunicados de imprensa, assistência legal, alimentação, sistemas de alto-falante e outras necessidades, ou encaminhar voluntários que indicaram suas habilidades e disponibilidades para diferentes tarefas. Centrais telefônicas tornaram possível contatar vinte mil estudantes em pouco tempo.
Mas além da mera questão de eficiência prática, e dos temas políticos ostensivos, os insurgentes romperam com toda fachada espetacular descobrindo o sabor da vida real, a comunidade real. Um participante estimou que em alguns meses chegou a conhecer, pelo menos vagamente, duas ou três mil pessoas — isto em um universo onde se procurava evitar “transformar pessoas em números.” Um outro escreveu comovido: “Quando nos defrontamos com uma instituição aparente, desumana, deselegante, e insensível, frustradamente desenhada para despersonalizar e bloquear a comunicação, descobrimos florescer em nós uma presença por cuja ausência protestávamos de coração.”
Uma situação radical deve expandir-se ou fracassar. Em casos excepcionais um lugar particular pode servir como base mais ou menos permanente, um centro de coordenação, um refúgio da repressão externa. (Sanrizuka, uma região rural próxima a Tokyo ocupada pelos granjeiros locais nos anos 70 em um esforço para bloquear a construção de um novo aeroporto, este espaço foi tão fortemente defendido durante tantos anos que passou a ser utilizado como quartel geral de diversas lutas em todo Japão.) Mas uma localização fixa facilita a manipulação, a vigilância, a repressão, e o comprometimento com sua defesa inibe a liberdade das pessoas mover-se em derredor. As situações radicais se caracterizam sempre por uma grande movimentação: enquanto alguns convergem para locais chave para ver o que ocorre, outros se dispersam para ampliar a contestação para outras áreas.
Uma gestão simples mas essencial em qualquer situação radical é que as pessoas comuniquem o que estão fazendo e por quê. Mesmo que se trate de algo mui limitado essa comunicação é em si mesma exemplar: contribui para ampliar a luta incitando outros à participação, rompe com a usual dependência dos rumores, dos meios espetaculares, e daqueles que dão a si mesmos o título de porta-voz de outras pessoas.
É também um passo crucial de auto-esclarecimento. Uma oportunidade de lançar um comunicado coletivo com alternativas concretas: Com quem queremos comunicar? Com que propósito? Quem está interessado neste projeto? Quem está de acordo com esta declaração? Quem discorda? Em quais pontos? Tudo isso pode conduzir a uma polarização quando o povo percebe possibilidades diferentes na situação, pode levar a uma recomposição de pontos de vista, a um agrupamento das pessoas que compartilham da mesma opinião para levar a cabo diversos projetos. Tal polarização esclarece pontos a todos. Cada tendência segue livre para expressar-se e provar na prática suas idéias, e o resultado pode ser mais claramente discernido do que uma mescla de estratégias contraditórias comprometidas com um mínimo denominador comum.
Quando o povo encontra e reconhece uma necessidade prática de coordenação, se coordenará; entretanto, a proliferação de indivíduos autônomos é mais frutuosa que aquela “unidade” superficial organizada desde cima pela qual sempre apelam os burocratas.
As grandes multidões muitas vezes permitem pessoas fazer coisas que seriam imprudentes quando feitas por indivíduos isolados; e ações coletivas, como greves e boicotes, exigem que as pessoas atuem harmoniosamente, ou pelo menos que não atuem contra a decisão da maioria. Mas muitos outros assuntos podem ser decididos diretamente por indivíduos ou por grupos pequenos. Melhor golpear quando o ferro está quente que perder tempo tratando de debater as objeções de massas de espectadores sob o domínio dos manipuladores.
Os situacionistas em maio de 1968
Os pequenos grupos têm todo o direito de escolher seus colaboradores: alguns projetos podem requerer capacidades específicas ou um acordo pleno entre os participantes. Uma situação radical abre possibilidades mais amplas entre um setor mais amplo. Simplificar os temas básicos e romper com as separações habituais, faz que aquele aglomerado de pessoas comuns seja capaz de levar adiante tarefas habitualmente inimagináveis uma semana antes. Em qualquer caso, as massas auto-organizadas são as únicas que podem levar adiante determinadas tarefas — ninguém pode fazer em seu lugar.
Qual é o papel dos indivíduos radicais em tal situação? Está claro que não devem afirmar que representam ou que lideram o povo. Por outro lado é absurdo, a pretexto de evitar hierarquias, propor “a dissolução da massa” e deixar de expor os próprios pontos de vista e de empreender os próprios projetos. Não há por que fazer menos que os indivíduos ordinários “da massa”, devem sim expressar seus pontos de vista e empreender seus próprios projetos ou nada em absoluto sucederia. Na prática aqueles radicais que afirmam ter medo de “dizer às pessoas o que fazer” ou de “atuar no lugar dos trabalhadores” terminam geralmente não fazendo nada ou desenrolando intermináveis reiterações de sua ideologia na forma de “informes de discussões entre alguns trabalhadores.” [cf. as críticas da I.S à ICO em “Commencement d’une époque” e “Preliminaires sur les conseils”.]
Os situacionistas e os Enragés tiveram uma prática consideravelmente mais lúcida e direta em maio de 1968. Durante os primeiros três ou quatro dias da ocupação de Sorbone (14-17 maio) expressaram abertamente seus pontos de vista acerca das tarefas da assembléia e do movimento em geral. Sobre a base daqueles pontos de vista um dos Enragés, René Riesel, foi eleito para o primeiro Comitê de Ocupação de Sorbone, tanto ele como os demais delegados foram reeleitos no dia seguinte.
Riesel e outro delegado (os demais desapareceram aparentemente sem desempenhar suas responsabilidades) se esforçaram por levar a cabo as duas políticas que haviam defendido: manter a democracia total em Sorbone e difundir o mais amplamente possível as chamadas à ocupação das fábricas e a formação dos conselhos de trabalhadores. Mas quando a assembléia permitiu repetidamente que seu Comitê de Ocupação fosse objetado por várias burocracias esquerdistas não eleitas e deixou de afirmar a chamada aos conselhos operários (negando portanto aos trabalhadores o estímulo para que fizessem o que a própria assembléia estava fazendo em Sorbone), os Enragés e os situacionistas abandonaram a assembléia e continuaram sua agitação independentemente.
Não houve nada de antidemocrático neste abandono: a assembléia de Sorbone seguiu livre para fazer o que bem entendesse. Mas quando deixou de responder às tarefas urgentes que a situação exigia e passou a contradizer suas próprias pretensões de democracia, os situacionistas sentiram que aquela assembléia já não poderia ser considerada como um ponto focal do movimento. Este diagnóstico foi confirmado pelo colapso que se seguiu a qualquer pretensão de democracia participativa na Sorbone: depois de sua partida a assembléia já não mais fez eleições, convertendo-se ao estilo típico da esquerda burocrática empurrando suas decisões garganta abaixo das massas passivas.
Enquanto isso ocorria entre cerca de mil pessoas em Sorbone, milhões de trabalhadores ocupavam suas fábricas em todo o país. (Daí o absurdo de caracterizar maio de 1968 como um “movimento estudantil.”) Os situacionistas, os Enragés e umas dezenas de outros revolucionários conselhistas formaram o Conselho para a Manutenção das Ocupações (CMDO) com o objetivo de incitar estes trabalhadores a prescindir dos burocratas sindicais e vincularem-se diretamente uns aos outros para realizar as possibilidades radicais que sua ação colocara em andamento.(5)
* * *
O obrerismo está obsoleto, mas a posição dos trabalhadores prossegue sendo central
“A indignação virtuosa é um poderoso estimulante, mas constitui uma dieta perigosa. É bom recordar o velho provérbio: a cólera é má conselheira.... Ali onde tuas simpatias estão fortemente situadas, por alguma pessoa ou pessoas cruelmente maltratadas, das quais não sabes nada exceto que são maltratadas, tua generosa indignação lhes atribui toda sorte de virtudes, e toda sorte de vícios àqueles que as oprimem. Nas a verdade nua e crua é que as pessoas maltratadas são piores que as bem tratadas.”
— George Bernard Shaw,
The Intelligent Woman’s Guide to Socialism and Capitalism
“Aboliremos os escravos porque não suportamos olhar em seus olhos.”
— Nietzsche
Lutar pela libertação não supõe assumir os traços do oprimido. A mais extrema injustiça da opressão social é que provavelmente ela degrada mais do que enobrece suas vítimas.
Grande parte da retórica esquerdista tradicional procede de noções obsoletas da ética do trabalho: o burguês seria mau porque não realiza nenhum trabalho produtivo, enquanto que os honoráveis proletários mereceriam os frutos de seu trabalho, etc. Com o trabalho tornando-se a cada vez mais desnecessário e dirigido para fins cada vez mais absurdos, esta perspectiva perdeu todo o sentido que porventura teve algum dia. A questão não é elogiar o proletariado, mas aboli-lo.
A dominação de classe não desapareceu com um século inteiro de demagogia esquerdista fazendo parte da velha terminologia radical soar de forma suficientemente audível. Na medida em que desaparece gradualmente certos tipos de trabalho manual tradicional, setores inteiros da população são condenados ao desemprego permanente. Assim, o capitalismo moderno prossegue proletarizando quase todos os demais. Mecânicos, técnicos, e inclusive profissionais de classe média que antigamente se ufanavam de sua independência (médicos, cientistas, acadêmicos) estão cada vez mais sujeitos à mais crua comercialização, inclusive a uma arregimentação semelhante a uma linha de montagem.
Menos de 1% da população mundial possui 80% do território. Inclusive nos Estados Unidos, os supostamente mais igualitários, a disparidade econômica é extrema e a cada dia se torna ainda mais extrema. Há vinte anos o salário médio de um alto dirigente era 35 vezes maior que o salário médio do operário de fabrica; hoje esse salário é 120 vezes maior. Há vinte anos 0,5% dos mais ricos da população estadunidense possuía 14% da riqueza privada total; agora possuem 30% dessa riqueza. Mas tais proporções não dão a medida completa do poder desta elite. A “riqueza” das classes média e baixa é dedicada quase que inteiramente a cobrir suas necessidades cotidianas, restando pouco ou nada para inverter em qualquer plano significativo que proporcione poder social. Um magnata que possui apenas cinco ou dez por cento de uma sociedade anônima pode normalmente controlá-la (devido à apatia da massa não organizada de pequenos acionistas), exercendo assim tanto poder como se possuísse toda a corporação. E bastam apenas algumas poucas corporações maiores (cujos dirigentes estão estreitamente inter-relacionados uns com os outros e com as burocracias mais altas do governo) para comprar, suprimir ou marginalizar os competidores independentes menores, e para efetivamente controlar tanto os políticos chave como os meios de comunicação de massa.
O espetáculo onipresente da prosperidade da classe média está ocultando essa realidade, especialmente nos Estados Unidos onde, devido à sua história particular (e apesar da violência de muitos de seus conflitos de classe do passado), o povo é mais ingenuamente inconsciente das divisões de classe que em qualquer outra parte do mundo. A extensa variedade de etnias e as miríades de complexas gradações intermediárias têm amortecido e obscurecido a distinção fundamental entre dominantes e dominados. Os estadunidenses possuem mercadorias o suficiente para não prestar atenção ao fato de que alguns possuem toda a sociedade. Exceto aqueles que estão mais abaixo, não podem evitar de perceber melhor estas coisas, mas mesmo assim geralmente assumem que a pobreza é culpa dos pobres, que qualquer pessoa empreendedora sempre encontrará muitas oportunidades, que se não pode ter uma vida satisfatória num lugar sempre pode encontrar um novo ponto de partida em outro. Há um século, quando as pessoas simplesmente tinham que deslocar-se mais a oeste, esta crença tinha algum fundamento; a persistência do espetáculo nostálgico da fronteira obscurece o fato de que as condições presentes são muito diferentes, já não temos nenhum lugar para onde ir.
Os situacionistas utilizam às vezes o termo proletariado (ou mais precisamente, o novo proletariado) em um sentido amplo para referir-se a “todos aqueles que não têm poder sobre suas próprias vidas e sabem disso.” Este uso pode ser pouco rigoroso, mas tem o mérito de acentuar o fato de que a sociedade está dividida em classes, e que a divisão fundamental se dá entre alguns que possuem e controlam tudo e o restante que tem pouco ou nada que trocar ou vender senão sua própria força de trabalho. Em alguns contextos pode ser preferível utilizar outros termos, como “o povo”; mas não quando isto contribui para misturar indiscriminadamente exploradores com explorados.
Não se trata de romantizar os trabalhadores assalariados que, não surpreendentemente, considerando que o espetáculo é desenhado sobretudo para mantê-los enganados, estão com freqüência entre os setores mais ignorantes e reacionários da sociedade. Não se trata de ponderar diferentes agravos para ver quem está mais oprimido. Toda forma de opressão deve ser contestada, e todos podem contribuir nesta contestação — mulheres, jovens, desempregados, minorias, lumpen, boêmios, camponeses, classes médias, e inclusive renegados da elite dominante. Mas nenhum destes grupos pode alcançar uma liberação definitiva sem abolir o fundamento material de todas estas opressões: o sistema de produção de mercadorias e o trabalho assalariado. E esta liberação só pode ser alcançada mediante a auto-abolição coletiva dos trabalhadores assalariados. Apenas eles têm a capacidade não só para conduzir diretamente à supressão de todo o sistema, como também para pôr de novo as coisas em marcha de um modo fundamentalmente novo.(6)
Não se trata de conceder privilégios especiais a ninguém. Os trabalhadores dos setores essenciais (alimentação, transporte, comunicações, etc.) que rechaçarem seus chefes capitalistas e sindicatos, e começarem a autogerir suas atividades não terão obviamente interesse em defender o “privilégio” de fazer todo o trabalho; pelo contrário, terão um vivo interesse em convidar outros, sejam não trabalhadores ou trabalhadores de setores obsoletos (justiça, exército, comércio, publicidade, etc.), a unir-se a seu projeto para reduzi-lo e transformá-lo. Qualquer um que tome parte cooperará na tomada de decisões; só ficarão fora aqueles que permanecerem a distância reclamando privilégios especiais.
O sindicalismo e o conselhismo tradicionais se inclinaram excessivamente a assumir a divisão de trabalho existente como algo definitivo, como se a vida das pessoas em uma sociedade pós-revolucionária continuasse girando ao redor de trabalhos e locais de trabalho fixos. Inclusive dentro da atual sociedade tal perspectiva está se tornando cada vez mais obsoleta: na medida em que a maioria das pessoas tem trabalhos absurdos e com freqüência apenas temporais, não se identifica de nenhuma forma com eles, e muitos outros não trabalham em absoluto no mercado assalariado, os temas relativos ao trabalho se convertem simplesmente em um aspecto de luta mais geral.
A princípio, pode convir ao movimento que os trabalhadores se identifiquem como tais. (“Nós, trabalhadores de tal ou qual companhia, ocupamos nosso local de trabalho com tais ou quais objetivos; urgimos aos trabalhadores de outros setores a fazer o mesmo.”) A meta última, naturalmente, não é a autogestão das empresas existentes. Pretender, digamos, que os trabalhadores dos meios de comunicação de massa assumam o controle sobre eles apenas porque casualmente trabalham ali seria tão arbitrário quanto o controle atual por parte de qualquer um que casualmente os possua. A gestão dos trabalhadores das condições particulares de seu trabalho deverá combinar-se com a gestão por parte da comunidade dos assuntos de incumbência geral. Donas de casa e outros que trabalham em condições relativamente particulares terão que desenvolver suas próprias formas de organização que lhes capacitem para expressar seus interesses particulares. Mas os conflitos potenciais de interesses entre “produtores” e “consumidores” serão rapidamente superados quando todos estiverem diretamente envolvidos em ambos aspectos; quando os conselhos de trabalhadores se interrelacionarem com os conselhos de comunidades e de bairro; e quando as posições de trabalho fixas gradualmente se extinguirem mediante a obsolescência da maioria dos trabalhos e a reorganização e rotação daqueles que se mantenham (inclusive o trabalho doméstico e o cuidado das crianças).
Os situacionistas estavam verdadeiramente no caminho correto lutando pela formação dos conselhos operários durante as ocupações de fábricas em maio de 1968. Mas é digno de nota que tais ocupações tiveram início mediante ações da juventude em grande medida não trabalhadora. Os situacionistas posteriores a maio de 68 tenderam a cair em uma espécie de obrerismo (se bem que com uma ética decisivamente anti-obrerista), contemplando a proliferação de greves selvagens como o melhor indicador das possibilidades revolucionárias ao mesmo tempo em que dedicavam menos atenção no desenvolvimento de outras áreas de ação. Na realidade ocorre freqüentemente que os operários que são pouco radicais em outros aspectos são forçados a unir-se a lutas selvagens pelo simples fato da descarada traição de seus sindicatos; por outro lado, pode-se resistir ao sistema de muitas outras formas além de greves (incluindo em primeiro lugar evitar o trabalho assalariado na medida do possível). Os situacionistas reconheceram corretamente a autogestão coletiva e a “subjetividade radical” do indivíduo como aspectos complementares e igualmente essenciais do projeto revolucionário, mas sem conseguir uni-las completamente (certamente o fizeram de forma mais restrita que os surrealistas, que, por sua vez, vincularam a revolta política e cultural declarando sua fervorosa adesão a uma ou outra versão da ideologia bolchevique).(7)
Greves selvagens e ocupações
As greves selvagens proporcionam possibilidades interessantes, especialmente se os grevistas ocupam seu lugar de trabalho. Isto não só torna sua posição mais segura (previne o fechamento e os fura-greves, e as máquinas e produtos servem como reféns contra a repressão), como reúne a todos, garantindo praticamente a autogestão coletiva da luta e insinuando a idéia da autogestão integral da sociedade.
Uma vez que o funcionamento habitual da fábrica é interrompido tudo adquire um aspecto diferente. Um triste local de trabalho pode transfigurar-se em um espaço quase sagrado, zelosamente guardado contra a intrusão profana dos chefes ou da polícia. Um observador da ocupação de 1937 em Flint, Michigan, descreveu os grevistas como “crianças jogando um novo e fascinante jogo. Fizeram um palácio do que havia sido sua prisão.” (Citado em Sit-Down: The General Motors Strike of 1936-1937, de Sidney Fine.) Embora o objetivo da greve fosse simplesmente conquistar o direito de sindicalização, sua organização foi praticamente conselhista. Nas seis semanas que viveram em sua fábrica (utilizando como camas bancos de carro e carrocerias como armários) uma assembléia geral de todos os 1.200 trabalhadores se reunia duas vezes por dia para determinar políticas relativas a alimentação, saúde, informação, educação, reclamações, comunicação, segurança, defesa, desportos e entretenimentos, e para eleger comitês responsáveis e freqüentemente rotativos para levá-las a cabo. Houve inclusive um Comitê de Rumores, cujo propósito era rebater a desinformação averiguando a fonte e provando a validez de cada rumor. Fora da fábrica, as mulheres dos grevistas se ocupavam de reunir comida e organizar piquetes, publicidade, e coordenação com os trabalhadores de outras cidades. Algumas das mais audazes organizaram uma Brigada de Emergência de Mulheres que tirou um plano de contingência para formar uma zona de choque em caso de um ataque da polícia contra a fábrica. “Se a polícia quer disparar terá que fazê-lo contra nós.”
Desafortunadamente, embora os trabalhadores mantenham uma posição central em algumas áreas cruciais (serviços, comunicação, transporte), em outros setores têm menor capacidade que no passado. As companhias multinacionais têm normalmente amplas reservas e podem agüentar mais que os trabalhadores ou transferir operações a outros países, enquanto que os trabalhadores têm que resistir um tempo duro sem entrada de salário. Longe de resultar em algo essencial, muitas greves atuais são meras chamadas propondo o fechamento de indústrias obsoletas que estão perdendo dinheiro. Assim, embora a greve siga sendo a tática mais básica dos trabalhadores, eles devem também inventar outras formas de luta no trabalho e encontrar vias de relação com lutas em outros terrenos.
Greves de consumo
Como as greves operárias, as greves de consumo (boicotes) dependem tanto do poder que podem exercer como do apoio que podem recrutar. Há tantos boicotes a favor de tantas causas que, exceto em alguns casos baseados em algum tema moral notavelmente claro, a maioria fracassa. Como ocorre com freqüência nas lutas sociais, as greves de consumidores mais frutíferas são aquelas em que as pessoas estão lutando diretamente por si mesmas, como os antigos boicotes pelos direitos civis no sul dos Estados Unidos ou os movimentos de “autoredução” na Itália e outros lugares em que comunidades inteiras decidiram pagar apenas um determinado percentual das faturas ou dos bilhetes dos meios de transportes. Uma greve de renda é uma ação particularmente simples e poderosa, mas dificilmente alcança o grau de unidade necessário para ter início exceto entre aqueles que não têm nada que perder; é por isto que os maiores desafios exemplares ao fetiche da propriedade privada estão sendo levados a cabo por okupas sem teto.
Naquilo que pode ser chamado de boicote ao avesso, o povo às vezes se une para apoiar alguma instituição popular que está sob ameaça. Reunir dinheiro para uma escola ou biblioteca local ou instituição alternativa é normalmente bastante banal, mas tais movimentos geram ocasionalmente um debate público saudável. Em 1974 jornalistas em greve tomaram um periódico importante da Coréia do Sul e começaram a publicar exposições das mentiras e repressão governamentais. Em um esforço por arruinar o periódico sem ter que suprimi-lo abertamente, o governo pressionou todos os anunciantes para que retirassem seus anúncios do periódico. O público respondeu comprando milhares de anúncios individuais, utilizando seu espaço para manifestações pessoais, poemas, citações de Tom Paine, etc. A “Coluna de Apoio à Liberdade de Expressão” teve um incremento de páginas a cada número e sua circulação cresceu sucessivamente até que o periódico foi finalmente suprimido.
Mas as lutas de consumidores são limitadas pelo fato de que os consumidores são os receptores finais do ciclo da economia: podem exercer uma certa pressão mediante protestos, boicotes ou distúrbios, mas não controlam os mecanismos de produção. No incidente coreano mencionado acima, por exemplo, a participação do público só foi possível graças à tomada do periódico por parte dos trabalhadores.
Uma forma particularmente interessante e exemplar de luta operária é o que se chama às vezes “greve social” ou “greve de doação”, em que as pessoas prosseguem com seus trabalhos, mas de forma que prefigure uma ordem social livre: os trabalhadores distribuem gratuitamente os bens que produzem, os empregados cobram menos da clientela, os trabalhadores do transporte permitem circular livremente os passageiros. Em fevereiro de 1981, 11.000 trabalhadores de telefones ocuparam as centrais através de toda a Columbia Britânica e mantiveram todos os serviços de telefone sem cobrança durante seis dias antes de serem enganados pelo sindicato e abandonassem aquela empreitada. Além de conseguir muitas vitórias, parece que passaram um tempo maravilhoso.(8)
Pode-se imaginar muitas formas de ir além e chegar a ser mais seletivos, como bloquear chamadas comerciais e governamentais enquanto se permite que se ocorram livremente as chamadas pessoais. Os trabalhadores postais poderiam fazer o mesmo com as cartas; os de transporte poderiam continuar enviando bens necessários enquanto rechaçam transportar a polícia ou tropas militares...
Mas este tipo de greve não teria sentido para a grande maioria de trabalhadores cujos trabalhos não servem a um propósito sensato. (O melhor que estes trabalhadores podem fazer é denunciar publicamente o absurdo de seu próprio trabalho, como fizeram alguns publicitários durante maio de 1968.) Mais ainda, até mesmo o trabalho útil é tão freqüentemente dividido que os grupos separados de trabalhadores podem aportar poucas mudanças por si mesmos. E a pequena minoria que consegue produzir produtos acabados e comercializáveis (como fizeram os trabalhadores que em 1973 tomaram a fábrica falida de relógios Lip em Besançon, França, fazendo-a voltar a funcionar por eles mesmos) continua normalmente dependendo do financiamento comercial e das redes de distribuição. Quando excepcionalmente tais trabalhadores conseguem prosperar por eles mesmos, simplesmente tornam-se uma companhia capitalista a mais; mais freqüentemente, suas inovações autogeridas acabam simplesmente racionalizando a operação em beneficio dos proprietários. Uma “Estrasburgo fabril” só pode ocorrer se os trabalhadores que se encontram em uma situação como a da Lip utilizam as facilidades e a publicidade de forma que lhes permita ir mais longe que os trabalhadores da Lip (que lutavam simplesmente para salvar seus empregos) chamando outros a unir-se a eles na superação de todo o sistema de produção mercantil e do trabalho assalariado. Mas é pouco provável que isto ocorra até que surja um movimento suficientemente amplo que aumente as perspectivas das pessoas e compense os riscos — como em maio de 1968, quando a maioria das fábricas da França estavam ocupadas.
O que poderia ter sucedido em maio de 1968
Se, em uma simples e grande fábrica, entre 16 e 30 de maio, fosse constituída uma assembléia geral enquanto um conselho com todos os poderes de decisão e execução, expulsando os burocratas, organizando sua autodefesa e convocando os grevistas de todas as empresas a se unirem a eles, este passo qualitativo poderia levar imediatamente o movimento ao seu momento decisivo.... Um número mui amplo de empresas seguiria o caminho aberto dessa forma. Esta fábrica poderia imediatamente tomar o lugar da duvidosa e em todos os sentidos excêntrica Sorbone dos primeiros dias e chegar a ser o centro real do movimento das ocupações: delegados genuínos dos numerosos conselhos que praticamente já existiam em alguns dos edifícios ocupados, conselhos que poderiam se impor em todos os ramos da indústria reunidos nessa base. Tal assembléia poderia proclamar a expropriação de todo capital, incluindo o capital do estado; anunciar que todos os meios de produção do país seriam dali em diante propriedade coletiva do proletariado organizado em democracia direta; e chamar diretamente (apoderando-se finalmente de alguns meios de telecomunicação, por exemplo) os trabalhadores do mundo inteiro a apoiar esta revolução. Alguns dirão que tal hipótese é utópica. Nós respondemos: foi precisamente por isso, pelo movimento das ocupações estar objetivamente em muitos momentos a apenas uma hora deste resultado, que infundiu tanto terror, inteiramente visível para qualquer um diante da impotência do estado, do pânico do Partido Comunista, e da conspiração silenciosa mantida no que dizia respeito a sua gravidade. [“O começo de uma nova época”, Internacional Situacionista # 12]
Os que impediram que isto sucedesse foram sobretudo os sindicatos, particularmente o maior do país: a CGT dominada pelo Partido Comunista.
Inspirados pela juventude rebelde que havia combatido a polícia nas ruas e tomado Sorbone e outros edifícios públicos, dez milhões de trabalhadores ignoraram seus sindicatos e ocuparam praticamente todas as fábricas e muitos dos escritórios do país, lançando a primeira greve geral de ocupação da história. Mas a maioria daqueles trabalhadores ficaram sem saber o que fazer depois que permitiram que a burocracia sindical se insinuasse naquele movimento que no primeiro momento trataram de impedir. Os burocratas fizeram tudo que puderam para romper e fragmentar o movimento: chamaram greves relâmpago, criaram falsas “organizações de base” compostas por fiéis membros do Partido Comunista; se apossaram dos sistemas de alto-falante; chamaram votações defendendo o retorno ao trabalho; e o mais crucial: fecharam as portas da fábrica para manter os trabalhadores isolados uns dos outros e dos outros insurgentes (com o pretexto de “defender-se contra os provocadores de fora”). Os sindicatos a seguir abriram negociações com os empresários e o governo em torno de um pacote de bonificações salariais e folgas. Este suborno foi rechaçado enfaticamente por uma ampla maioria de trabalhadores, que tinham uma noção, embora confusa, de que cabia uma proposta mais radical na agenda. Nos primeiros dias de junho, De Gaulle apresentou a alternativa pau ou cenoura, novas eleições ou guerra civil, isso finalmente intimidou muitos trabalhadores, que voltaram ao trabalho. Houve todavia numerosa resistência, mas o isolamento uns dos outros permitiu aos sindicatos dizer a cada grupo que todos os demais haviam retornado ao trabalho, na medida que acreditavam que estavam sozinhos, renunciavam.
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Métodos de confusão e cooptação
Como em maio de 1968, quando os países mais desenvolvidos se vêem ameaçados por uma situação radical, utilizam normalmente a confusão, as concessões, toques de recolher, distrações, desinformação, fragmentação, antecipação, postergação e outros meios para desviar a atenção, dividindo e cooptando a oposição, reservando a repressão física aberta como último recurso. Esses métodos, que vão da sutileza ao ridículo,(9) são tão numerosos que seria impossível mencionar aqui mais do que alguns.
Um método comum para confundir os problemas é distorcer a composição aparente de forças projetando diversas posições em um esquema linear, esquerda contra direita, implicando que se te opões a um dos lados estás a favor do outro. O espetáculo do comunismo contra o capitalismo serviu a este propósito durante meio século. A partir do recente colapso desta farsa, a tendência passou a ser declarar um consenso pragmático global centrista, agrupando toda oposição como “extremistas” lunáticos-marginais (fascismo e fanatismo religioso à direita, terrorismo e “anarquia” à esquerda).
O clássico método do dividir-para-reinar anteriormente discutido: fazer com que os explorados se fragmentem em uma multidão de identidades grupais fechadas, que podem ser manipuladas dirigindo suas energias a disputas uns contra os outros. Ao inverso, podem unir-se às classes oponentes mediante a histeria patriótica ou outros meios. As frentes populares, as frentes unidas e coalizões similares servem para obscurecer os conflitos fundamentais de interesses em nome de uma oposição unida frente ao inimigo comum (burguesia + proletariado contra regime reacionário; estratos militares e burocráticos + camponeses contra a dominação estrangeira). Em tais coalizões o grupo superior geralmente tem os recursos materiais e ideológicos para manter seu controle sobre o grupo inferior, que é obrigado a adiar a ação auto-organizada por e para si mesmo até que seja demasiado tarde. Quando se obtém a vitória sobre o inimigo comum, o grupo superior consolida seu poder (com freqüência mediante uma nova aliança com elementos do grupo derrotado) para esmagar os elementos radicais do grupo inferior.
Qualquer vestígio de hierarquia dentro de um movimento radical será utilizado para dividi-lo e miná-lo. Se não houver líderes cooptáveis, são criados mediante uma intensiva exposição mediática. Os governantes podem negociar com os líderes e torná-los responsáveis por um domínio de seus seguidores; uma vez cooptados, podem também estabelecer redes similares de comando, possibilitando que uma grande massa de gente seja colocada sob controle sem que os dominadores tenham que tratar com todos eles aberta e simultaneamente.
A cooptação de líderes serve não apenas para separá-los das pessoas, mas também para dividir as pessoas entre si — alguns vêem a cooptação como uma vitória, outros a denunciam, outros duvidam. Como a atenção se desloca desde ações participativas até o espetáculo das celebridades, líderes distantes que debatem temas distantes, a maioria das pessoas se aborrece e se desilude. Ao sentir que os assuntos estão fora de seu alcance (talvez inclusive secretamente aliviada de que outro se ocupe deles), voltam à sua antiga passividade.
Outro método para desanimar a participação popular é enfatizar problemas que parecem requerer habilidades especializadas. Um exemplo clássico foi o estratagema usado por certos chefes militares alemães em 1918 no momento em que conselhos de trabalhadores e soldados emergiam em conseqüência do colapso alemão ao final da I Guerra Mundial, tais chefes militares ficaram potencialmente com o país em suas mãos.(10)
O terrorismo reforça o Estado
O terrorismo freqüentemente tem servido para enfraquecer o impulso das situações radicais. O terrorismo deixa as pessoas confusas, converte-as em espectadores que buscam ansiosamente as últimas notícias e especulações. Longe de debilitar o estado, o terrorismo parece confirmar a necessidade de reforçá-lo. Se os espetáculos terroristas não surgem espontaneamente quando os poderosos precisam dele, o próprio estado pode produzi-los mediante provocadores. (Ver Sobre o terrorismo e o estado de Sanguinetti e a última parte do Prefácio à quarta edição italiana da “Sociedade do espetáculo” de Debord). O movimento popular pode impedir que alguns indivíduos levem a cabo ações terroristas ou outras ações irrefletidas que podem desviá-lo de seu propósito e destrui-lo tão seguramente como se fosse obra de um provocador. A única solução é criar um movimento com táticas tão firmemente consistentes e não manipulativas a ponto de que qualquer pessoa possa reconhecer tanto a estupidez individual como as provocações da polícia.
Uma revolução anti-hierárquica deve ser uma “conspiração aberta”. Obviamente há coisas que requerem segredo, especialmente sob os regimes mais repressivos. Mas mesmo em tais casos os meios não deveriam ser inconsistentes com a meta última: a supressão de todo poder separado mediante a participação consciente de todos. O segredo tem com freqüência o resultado absurdo de que a polícia é a única que sabe o que está passando, e pode assim infiltrar e manipular um grupo radical sem que ninguém mais tenha consciência disso. A melhor defesa contra a infiltração é assegurar-se de que não há nada tão importante que justifique uma infiltração, ou seja, que nenhuma organização radical exerça um poder separado. A melhor salvaguarda está no número: uma vez que milhares de pessoas estão abertamente mescladas entre si, não ocorre absolutamente nada se alguns poucos espiões se infiltram entre eles.
Inclusive em ações de pequenos grupos a segurança depende com freqüência de um máximo de publicidade. Quando alguns dos participantes no escândalo de Estrasburgo começaram a ter medo e sugeriram moderar as coisas, Mustapha Khayati (o delegado da IS que foi o principal autor do panfleto Sobre a miséria no meio estudantil) propôs que a atitude mais segura não deveria ser evitar ofender demasiado às autoridades — como se insultar apenas moderada e indecisamente resultasse em elogios! — mas perpetrar um escândalo tão amplamente divulgado que não pudesse sofrer represálias.
* * *
O momento decisivo
Voltando às ocupações de fábricas de maio de 1968, suponhamos que os trabalhadores franceses rechaçassem as manobras dos burocratas e estabelecessem uma rede conselhista através de todo o país. O que sucederia?
Diante de tal eventualidade, a guerra civil seria naturalmente inevitável.... A contra-revolução armada sairia imediatamente a campo. Mas sem certeza de que iria vencer. Parte das tropas obviamente se amotinaria. Os trabalhadores aprenderiam pegar em armas, e certamente não construiriam mais nenhuma outra barricada (uma bela forma de expressão política no começo do movimento, mas obviamente ridícula do ponto de vista estratégico)... A intervenção estrangeira se produziria inevitavelmente... Provavelmente começando pelas forças da OTAN, mas com o apoio direto ou indireto do Pacto de Varsóvia. Mas tudo dependeria mais uma vez do proletariado europeu: tudo ou nada. [“O começo de uma nova época”, Internacional Situacionista, #12]
A grosso modo, o significado da luta armada varia de modo inverso ao grau de desenvolvimento econômico. Nos países mais subdesenvolvidos as lutas sociais tendem a reduzir-se a lutas militares, porque as massas empobrecidas pouco podem fazer sem armas diante dos danos provocados pelos dominadores, especialmente quando sua tradicional auto-suficiência foi destruída por uma economia de monocultivo destinada à exportação. (Mas mesmo se vencem militarmente, podem ser normalmente dominados pela intervenção estrangeira ou pressionados a submeter-se à economia mundial, a menos que outras revoluções paralelas em outros lugares abram novas frentes.)
Nos países mais desenvolvidos a força armada tem relativamente menor significado, embora possa, eventualmente, ser um fator importante em certas conjunturas críticas. É possível, embora não muito eficiente, forçar pessoas a fazer trabalhos manuais simples sob a mira de uma pistola. Mas não é possível fazer isso com pessoas que trabalham com papel ou computadores dentro de uma sociedade industrial complexa — há ali demasiadas oportunidades de fastidiosos “erros” dos quais resulta impossível averiguar o autor. O capitalismo moderno requer uma certa cooperação e inclusive uma participação semi-criativa de seus trabalhadores. Nenhuma grande empresa poderia funcionar um único dia sem a auto-organização espontânea dos trabalhadores, que reagem diante de problemas imprevistos, compensam erros dos gestores, etc. Se os trabalhadores se comprometem em uma greve “de zelo” onde não façam outra coisa senão seguir estritamente todos os regulamentos oficiais, o funcionamento total será retardado ou até mesmo completamente interrompido (conduzindo os dirigentes, que não podem condenar abertamente tal rigor, a uma posição divertidamente delicada ao ter que recomendar que os trabalhadores cumpram com seu trabalho sem ser demasiadamente rigorosos). O sistema sobrevive apenas porque a maioria dos trabalhadores são relativamente apáticos e, para não criar problemas, cooperam o suficiente para que as coisas marchem.
As revoltas isoladas podem ser reprimidas de modo individual; mas se um movimento se amplia suficientemente rápido, como em maio de 1968, centenas de milhares de soldados e policiais nada podem fazer diante de milhões de trabalhadores em greve. Tal movimento apenas pode ser destruído de dentro para fora. Se as pessoas não sabem o que fazer, as armas não podem ajudá-las; se sabem o que fazer as armas não podem detê-las.
Apenas em certos momentos as pessoas ficam suficientemente “unidas” para rebelar-se com êxito. Os dominadores mais lúcidos sabem que só estão seguros enquanto puderem conter tais intentos antes de que desenvolvam demasiado impulso e autoconsciência, seja mediante repressão física direta, seja mediante as várias espécies de desvios mencionados acima. Pouco importa se as pessoas se dêem conta mais tarde de que foram enganadas, que tiveram a vitória em suas mãos sem saber: uma vez que a oportunidade passou, já é tarde demais.
Mesmo situações ordinárias são plenas de confusão, mas os problemas não são normalmente tão urgentes. Em uma situação radical as coisas se simplificam na medida em que essa situação se acelera: os problemas se tornam mais claros, mas há menos tempo para resolvê-los.
Um caso extremo foi dramatizado na famosa cena de Potemkin de Eisenstein. Os marinheiros amotinados, com as cabeças cobertas por uma lona, estão alinhados para serem fuzilados. Os guardas apontam seus rifles e recebem a ordem de disparar. Um dos marinheiros grita: “Irmãos! Sabeis contra quem disparais?” Os guardas vacilam. Se dá outra vez a ordem. Sob uma certa angústia os guardas baixam suas armas. Ajudam os marinheiros a atacar o depósito de armas, se unem a eles contra os oficiais, e a batalha é logo ganha.
Note-se que mesmo neste violento confronto o resultado é mais um assunto de autoconsciência do que de força bruta: uma vez que os guardas passam para o lado dos marinheiros, a luta efetivamente se acaba. (O resto da cena de Eisenstein — uma grande luta entre um oficial malvado e um herói revolucionário martirizado — é um mero melodrama.) Em contraste com a guerra, onde dois lados distintos se enfrentam conscientemente um ao outro, “a luta de classes não é apenas uma luta lançada contra um inimigo externo, a burguesia, é também a luta do proletariado contra si mesmo: contra os efeitos devastadores e degradantes do sistema capitalista sobre sua consciência de classe” (Lukács, História e consciência de classe). A revolução moderna tem a característica peculiar de que a maioria explorada ganha automaticamente no momento em que se torna coletivamente consciente do jogo que se joga. O oponente do proletariado não é em última instância nada mais que o produto de sua própria atividade alienada, seja no aspecto econômico do capital, seja no aspecto político das burocracias sindicais e políticas, ou na forma psicológica do condicionamento espetacular. Os dominadores são uma minoria tão ínfima que seriam esmagados imediatamente se não conseguissem enganar uma ampla proporção da população para que se identifique com eles, ou pelo menos considere o sistema como legítimo; e especialmente a ponto de provocar divisões na população.
A lona na cara, que desumaniza os amotinados e facilita o disparo dos guardas, simboliza a tática do dividir-para-reinar. O grito “Irmãos!” representa a contra-tática da confraternização.
Embora a confraternização refute a mentira sobre o que está sucedendo em outras partes, seu poder reside em sua maior parte no efeito emocional do encontro humano direto, que lembra aos soldados que os insurgentes são pessoas não essencialmente diferentes deles mesmos. O estado trata naturalmente de impedir tal contato levando tropas de outras regiões que não estão familiarizadas com aquilo que ocorre, e que nem mesmo falam a mesma lingua; movimentando-as rapidamente para evitar uma contaminação excessiva com as idéias rebeldes. (Algumas das tropas russas enviadas para esmagar a revolução húngara de 1956 foram instruídas de que estavam na Alemanha e que as pessoas que enfrentavam nas ruas eram Nazis ressurgidos!)
Para descobrir e eliminar os elementos mais radicais, um governo às vezes provoca deliberadamente uma situação que levará a uma desculpa para a repressão violenta. Este é um jogo perigoso, sem dúvida, porque, como no incidente do Potemkin, forçar a questão pode provocar que as forças armadas passem para o lado do povo. Do ponto de vista dos dominadores a estratégia ótima é brandir a ameaça apenas o suficiente, de forma que não necessite arriscar o momento decisivo. Isto funcionou na Polônia em 1980-81. Os burocratas russos sabiam que invadir a Polônia poderia provocar sua própria queda; mas a constante ameaça de tal invasão conseguiu intimidar os trabalhadores radicais polacos, que poderiam facilmente ter derrubado o estado, por tolerar a presença de forças militares-burocráticas dentro de Polônia. Estas puderam finalmente reprimir o movimento sem ter que chamar os russos.
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Internacionalismo
“Os que fazem meias revoluções apenas cavam suas próprias tumbas”. Um movimento revolucionário não pode obter uma vitória local e depois esperar coexistir pacificamente com o sistema até estar pronto para intentar algo mais. Todos os poderes existentes deixarão de lado suas diferenças para destruir qualquer movimento popular verdadeiramente radical antes que se estenda. Se não podem esmagá-lo militarmente, o estrangularão economicamente (as economias nacionais são agora tão globalmente interdependentes que nenhum país está imune a tal pressão). O único modo de defender uma revolução é estendê-la, tanto qualitativamente como geograficamente. A única garantia contra a reação interna é a liberação radical de todos os aspectos da vida. A única garantia contra a intervenção externa é a rápida internacionalização da luta.
A expressão mais profunda da solidariedade internacional é, portanto, fazer uma revolução paralela em seu próprio país (1848, 1917-1920, 1968). Se isto não é possível, a tarefa mais urgente é pelo menos prevenir a intervenção contra-revolucionária desde o próprio país, como quando os trabalhadores ingleses pressionaram a seu governo para que não apoiasse os estados escravistas durante a Guerra Civil Americana (inclusive quando isto significava maior desemprego devido à queda na exportação de algodão); ou quando os trabalhadores ocidentais entraram em greve e se sublevaram contra a intenção de seus governos de apoiar as forças reacionárias durante a guerra civil que sucedeu à revolução russa; ou quando pessoas da Europa e da América se opuseram à repressão de seus países às revoltas anticoloniais.
Desafortunadamente, até mesmo estes esforços mínimos necessários são bastante raros. O apoio internacional positivo é todavia mais difícil. Enquanto os dominadores mantiverem o controle dos países mais poderosos, a ajuda pessoal direta se complica e se limita. As armas e outras provisões podem ser interceptadas. Às vezes até mesmo as comunicações chegam demasiado tarde.
Algo transcendente é o anúncio de um grupo que renuncia seu poder sobre outro ou que reclama contra outro. A revolta fascista de 1936 na Espanha, por exemplo, teve uma de suas bases principais no Marrocos espanhol. Muitas das tropas de Franco eram marroquinas e as forças antifascistas poderiam ter explorado este fato declarando Marrocos independente, incitando deste modo uma revolta na retaguarda de Franco e dividindo suas forças. A provável ampliação de tal revolta a outros países árabes poderia haver desviado ao mesmo tempo as forças de Mussolini, que apoiavam Franco, para defender as possessões italianas no norte da África. Mas os líderes do governo da Frente Popular espanhola rechaçaram esta idéia por medo de que o estímulo de tal anticolonialismo alarmaria a França e a Inglaterra, dos quais estavam esperando ajuda. Desnecessário dizer que esta ajuda nunca chegou de forma alguma.(11)
De modo similar, se antes que os seguidores de Khomeini pudessem consolidar seu poder, os iranianos insurgentes em 1979 tivessem apoiado a total autonomia dos curdos, baluchis e azerbanes, poderia tê-los conquistado como aliados firmes das tendências iranianas mais radicais e poderia ter estendido a revolução aos países adjacentes donde se haviam trasladado porções daqueles povos, enquanto socavavam simultaneamente os seguidores reacionários de Khomeini no Irã.
Estimular a autonomia de outros não implica apoiar qualquer organização ou regime que possa aproveitar-se dele. Trata-se simplesmente de deixar os marroquinos, os curdos, ou seja lá quem for, resolverem seus próprios acontecimentos. A esperança é que o exemplo de uma revolução anti-hierárquica em um país inspire outros a contestar suas próprias hierarquias.
Esta é nossa única esperança, mas não é inteiramente irreal. O contágio de um movimento genuinamente liberado nunca deve ser desprezado.
NOTAS
(1). Sobre a revolução cultural, ver “Le point d’explosion de I’ideologie en Chine”, International Situationista #11 e Simon Leys: The Chairman’s New Clothes.
(2). “Na medida em que os xiitas e curdos combatiam o regime de Saddam Hussein e os partidos de oposição iraquiana trataram de remendar juntos um futuro democrático, os Estados Unidos se encontraram na incômoda posição de apoiar a continuação de uma ditadura de partido único no Iraque. As declarações do governo dos Estados Unidos, incluída a do presidente Bush, acentuaram o desejo de ver Saddam Hussein derrotado, mas não um Iraque dividido por uma guerra civil. Ao mesmo tempo, os oficiais da administração de Bush insistiam que a democracia não é atualmente uma alternativa viável para o Iraque... Isto pode explicar o fato de que até aqui, a administração rechaçasse reunir-se com os líderes da oposição iraquiana no exílio.... ‘Os árabes e os americanos têm a mesma agenda’, disse um diplomata da coalizão (contra Iraque). ‘Queremos o Iraque nos mesmos limites e que Sadam desapareça. Mas aceitaremos Saddam em Baghdad para manter o Iraque como um estado’”. (Christian Science Monitor, 20 março 1991).
(3). “É impressionante a memória do povo em reter seu próprio passado revolucionário. Os eventos presentes sacudiram esta memória. As datas que nunca aprenderam na escola, as canções nunca cantadas abertamente, são recordadas em sua totalidade.... O ruído, o ruído, o ruído todavia soa em meus ouvidos. Os gritos, os slogans, os cantos e bailes. As portas da revolução parecem abertas outra vez, depois de quarenta e oito anos de repressão. Naquele dia simplesmente tudo mudou de perspectiva. Nada foi dado por Deus, tudo devia ser feito pelo homem. As pessoas podiam ver sua miséria e seus problemas em uma perspectiva histórica.... Passou uma semana, e já parecem vários meses. Cada momento foi vivido intensamente. Já é difícil recordar o aspecto anterior dos periódicos, ou o que as pessoas diziam. Porque as revoluções não acontecem sempre?” (Phil Mailer, Portugal: A revolução impossível)
(4). Um dos momentos mais intensos foi quando os grevistas em volta da delegacia de polícia evitaram um confronto potencialmente violento com uma turba hostil de estudantes conservadores que tentavam interromper a assembléia permanecendo completamente em silêncio durante meia hora. Sem receber vento para suas velas, os provocadores se aborreceram, se desconcentraram, e finalmente se dispersaram. Tal silêncio coletivo tem a vantagem de dissolver reações compulsivas de ambos os lados; já que não há nada implícito nele, como o duvidoso conteúdo de muitos slogans e canções. (Cantar “We Shall Overcome” [“Venceremos”: canção popular do movimento pelos direitos civis] tem servido também para acalmar pessoas em situações difíceis, mas com o preço de sentimentalizar a realidade).
A melhor recordação do FSM é O Movimento da Livre Expressão de David Lance Goines (Ten Speed Press, 1993).
(5). Sobre maio de 1968 ver René Viénet: Enragés e situacionistas no movimento das ocupações e “O começo de uma nova época”, em I.S. #12. Também se recomenda Roger Grégoire e Fredy Perlman: Worker-Student Action Committees, France May ’68 (Black & Red, 1969).
(6). “A classe trabalhadora não apenas FECHARÁ as indústrias, como também as REABRIRÁ, para gerir apropriadamente as atividades necessárias para preservar a saúde e a paz pública. Se a greve continuar, a classe trabalhadora pode sentir-se inclinada a evitar o sofrimento público reabrindo mais e mais atividades SOB SUA PRÓPRIA DIREÇÃO. E é por isso que dizemos que estamos em uma estrada que conduz — NINGUÉM SABE AONDE!” (Anúncio na véspera da greve geral de Seattle de 1919). Ver Jeremy Brecher: Strike! (South End, 1972), pp. 101-114. Lembranças mais extensivas se incluem em Root & Branch: The Rise of the Workers’ Movements e em Revolution in Seattle, de Harvey O’Connor.
(7). Raoul Vaneigem (que escreveu incidentalmente uma breve e boa história crítica sobre surrealismo) representou a expressão mais clara de ambos aspectos. Seu livreto De la grève sauvage à l’autogestion généralisée(“Da greve de ocupação à autogestão generalizada”), recapitula proveitosamente uma série de táticas básicas durante as greves de ocupação e outras situações radicais assim como várias possibilidades de organização social pós-revolucionária. Desafortunadamente está também adornado com a inflada verborréia característica dos escritos pós-IS de Vaneigem, atribuindo às lutas operárias um conteúdo vaneigemista desnecessário e injustificado. O aspecto da subjetividade radical se coagulou em uma ideologia hedonista tediosamente repetida nos últimos livros de Vaneigem (O livro dos prazeres, etc.), lidos como cândidas paródias das idéias tratadas tão incisivamente em seus trabalhos anteriores.
(8). “Estamos no segundo dia [de greve], estou cansada, mas levando em conta as sensações positivas que ocorrem neste lugar, a fadiga não prevalece.... Quem esquecerá a cara dos diretores quando lhes dissemos que o controle agora era nosso, e que seus serviços já não eram obviamente necessários.... Tudo continua normal, exceto que não faturamos as chamadas.... Estamos também fazendo amigos nos outros departamentos. Os rapazes do andar de baixo nos ajudam e estão aprendendo nosso trabalho.... Estamos voando.... Nadando em adrenalina pura. É como se possuíssemos toda a maldita empresa... O aviso na porta diz, CO-OP TEL: SOB NOVA DIREÇÃO — PROIBIDO DIRETORES”. (Rosa Collette, “Operators Dial Direct Action,” Open Road, Vancouver, Spring 1981.)
(9). “Uma companhia sul-africana está vendendo um veículo antidistúrbios que emite música pelos alto-falantes para acalmar os nervos dos indivíduos potencialmente problemáticos. O veículo, já adquirido por uma nação negra, que a companhia não identifica, carrega também um canhão de água e um lançador de gás”. (AP, 23 setembro, 1979.)
(10). “Na tarde de 10 de novembro, quando o Comando Supremo estava em um Spa, um grupo de sete homens se apresentou no quartel. Era o ‘Comitê Executivo’ do Conselho Supremo de Soldados do Quartel General. Suas demandas eram algo confusas, mas obviamente esperavam jogar um papel no comando da Armada durante seu retiro. Eles queriam ao menos o direito de referendar as ordens do Comando Supremo e assegurar que o exército não fosse utilizado para nenhum propósito contra-revolucionário. Os sete soldados foram cortesmente recebidos pelo lugar-tenente coronel Wilhelm von Faupel, que havia ensaiado cuidadosamente para a ocasião.... Faupel deixou os delegados no setor de mapas do Comando Supremo. Tudo foi demarcado em um mapa gigantesco que ocupava toda uma parede: um enorme complexo de estradas, estradas de ferro, pontes, comutadores, tubos, postos de comando e depósitos de provisões — todo um intrincado encaixe de linhas vermelhas, verdes, azuis e negras que convergiam em um estreito gargalo de garrafa nas pontes cruciais do Reno.... Faupel então voltou com eles. O Comando Supremo não tinha objeção aos conselhos de soldados, disse, mas fez que seus ouvintes se sentissem competentes para dirigir a evacuação geral do exército alemão ao longo destas linhas de comunicação?... Os soldados desconcertados olhavam inquietos o imenso mapa. Um deles concordou que isso não era o que eles haviam pensado realmente — ‘Este trabalho bem que poderia ser deixado a cargo dos funcionários públicos’. Ao final, os sete soldados deram de boa vontade seu apoio aos oficiais. Mais que isso, praticamente suplicaram para que os funcionários públicos ficassem com os comandos.... Sempre que uma delegação do conselho de soldados aparecia no Quartel Supremo, o coronel Faupel voltava a repetir sua velha performance; sempre funcionou.” (Richard Watt, The Kings Depart: Versailles and the German Revolution.)
(11). Se esta questão chegasse ao conhecimento dos trabalhadores espanhóis (que já havia prescindido do vacilante governo da Frente Popular colhendo as armas e resistindo ao golpe fascista por si mesmos, no processo que desencadeou a revolução) eles provavelmente concordariam em conceder a independência a Marrocos. Em vez disso acabaram dominados pelos líderes políticos — inclusive muitos líderes anarquistas — ao tolerar este governo em nome da unidade antifascista, não puderam tomar consciência de tais temas.
A revolução espanhola continua sendo a experiência revolucionária mais rica da história, embora complicada e obscurecida pela guerra civil simultânea contra Franco e pelas agudas contradições dentro do campo antifascista, que — junto a dois ou três milhões de anarquistas e anarcosindicalistas e um contingente consideravelmente mais pequeno de marxistas revolucionários (o POUM) — republicanos burgueses, autonomistas étnicos, socialistas e estalinistas, com os últimos em particular fazendo tudo o que estava a seu alcance para reprimir a revolução. As histórias mais compreensivas desse tema são Revolution and the War in Spain de Pierre Broué e Emile Témime e The Spanish Revolution de Burnett Bolloten (este último foi substancialmente incorporado no monumental trabalho final de Bolloten, The Spanish Civil War.) Alguns bons relatos de primeira mão estão em Homage to Catalonia, de George Orwell [versão em português:Lutando na Espanha], The Spanish Cockpit, de Franz Borkenau y Red Spanish Notebookde Mary Low y Juan Breá. Outros livros dignos de serem lidos são Lessons of the Spanish Revolution, de Vernon Richards, To Remember Spain, de Murray Bookchin, The Spanish Labyrinth, de Gerald Brenan, Sam Dolgoff: The Anarchist Collectives, Noel Paz: Durruti: The People Armed, e de Victor Alba e Stephen Schwartz Spanish Marxism versus Soviet Communism: A History of the P.O.U.M.
Cap. 4: Renascimento
Os utópicos não prevêem a diversidade pós-revolucionária — Descentralização e coordenação — Salvaguardas contra os abusos — Consenso e dominio da maioria — Eliminar as raízes da guerra e do crime — Abolição do dinheiro — Absurdo da maior parte do trabalho presente — Transformar o trabalho em jogo — Objeções tecnofóbicas — Temas ecológicos — O florescimento de comunidades livres — Problemas mais interessantes
“Dirão, naturalmente, que um esquema como o exposto aqui é na realidade pouco prático, e vai contra a natureza humana. É totalmente certo. É pouco prático, e vai contra a natureza humana. Mas é por isso que merece a pena ser levado a cabo, e é por isso que alguém o propõe. O que é, pois, um esquema prático? Um esquema prático é um esquema que já existe e que pode ser levado a cabo sob as atuais condições. Um esquema que se oponha às atuais condições, ou que aceite tais condições será equivocado e estúpido. As condições devem ser superadas, e a natureza humana mudará. A única coisa que realmente sabemos sobre a natureza humana é que ela muda. A única qualidade que podemos predicar a ela é a mudança. Os sistemas que fracassam são os que confiam na imutabilidade da natureza humana, e não em seu crescimento e desenvolvimento”.
— Oscar Wilde, A alma do homem sob o socialismo
Os utópicos não prevêem a diversidade pós-revolucionária
Marx considerava presunção tentar predizer como viveriam as pessoas em uma sociedade livre. “Cabe a estas pessoas dizê-lo, quando e o que querem fazer, e que meios empregar. Eu não me sinto capacitado para oferecer nenhum conselho nesta matéria. Presumivelmente eles serão, pelo menos, tão inteligentes quanto nós” (carta a Kautsky, 1 de fevereiro de 1881). Sua modéstia com respeito a isso é maior do que a daqueles que o acusam de arrogância e autoritarismo ao mesmo tempo em que não vacilam em projetar suas próprias fantasias ao pronunciar-se acerca de qual sociedade pode ou não ser possível.
É certo, sem embargo, que se Marx houvesse sido um pouco mais explícito acerca do que imaginava, teria sido mais difícil para os estalinistas burocratas fingir que levavam a cabo suas idéias. Um protótipo exato de uma sociedade liberada não é possível nem necessário, mas as pessoas devem ter alguma noção de sua natureza e de sua viabilidade. A crença de que não há nenhuma alternativa prática ao atual sistema é algo que mantém as pessoas resignadas.
As especulações utópicas podem ajudar a nos libertar do hábito de aceitar o status quo como algo imutável, conseguir pensar sobre o que realmente queremos e sobre o que é possível. O que as faz “utópicas” no sentido pejorativo que Marx e Engels criticaram é que não levam em conta as presentes condições. Não há geralmente nenhuma noção séria acerca de como poderíamos levar as coisas daqui até lá. Ao ignorar os poderes repressivos e cooptadores do sistema, os autores utópicos geralmente imaginam uma simplista mudança gradual, supondo que a disseminação das comunidades ou das idéias utópicas levará mais gente a unir-se, então o velho sistema simplesmente desmoronaria.
Espero que este texto proporcione algumas idéias mais realistas sobre como poderia surgir uma nova sociedade. Em todo caso, irei agora mais além e farei algumas especulações.
Admitamos para simplificar que uma revolução vitoriosa se estenda por todo o mundo sem uma grande destruição das infra-estruturas básicas, vamos desconsiderar os problemas da guerra civil, ameaças de intervenção externa, confusões da desinformação ou atrasos ocasionados por importantes reconstruções de emergência, e passamos a examinar algumas das questões que poderiam aparecer em uma nova sociedade que se transformou fundamentalmente.
Para maior clareza utilizarei o tempo futuro em vez do condicional, as idéias apresentadas aqui são simplesmente possibilidades a considerar, não regras ou predições. Se tal revolução vier a ocorrer, alguns anos de experimentação popular mudarão tanto as coisas que as predições mais atrevidas logo parecerão ridiculamente tímidas e carentes de imaginação. Tudo o que podemos fazer é imaginar os problemas que enfrentaremos no princípio e as principais tendências a se desenvolverem mais adiante. Mas quanto mais explorarmos as hipóteses, mais preparados estaremos para as novas possibilidades e menos risco haverá de retornar inconscientemente aos velhos modelos.
Longe de ser demasiado extravagantes, a maior parte da literatura utópica é excessivamente estreita, geralmente se limita a uma realização monolítica dos desejos do autor. Como Marie Louise Berneri destaca no melhor estudo sobre este tema (Journey Through Utopia), “Todas as utopias são, portanto, expressão de preferências pessoais, mas seus autores normalmente têm a vaidade de supor que seus gostos pessoais deveriam ser promulgados como leis; se acordam cedo, imaginam que sua comunidade terá que estar de pé às 4 da manhã; se detestam cosméticos femininos, utilizá-los será um crime; se são maridos fiéis, a infidelidade será castigada com a morte”.
Se há algo que se pode predizer com confiança sobre a nova sociedade, é que ela estará bem além da imaginação de qualquer indivíduo ou de qualquer descrição possível realizada por uma só pessoa. As diferentes comunidades refletirão toda classe de preferências “estética e científica, mística e racionalista, de alta tecnologia e neoprimitiva, solitário e comunal, trabalhador e preguiçoso, espartano e epicureano, tradicional e experimental” revolucionando continuamente todo tipo de novas e imprevisíveis combinações.(1)
Descentralização e coordenação
Haverá uma forte tendência à descentralização e autonomia local. As pequenas comunidades promoverão hábitos de cooperação, possibilitarão a democracia direta, e tornarão possível uma experimentação social mais rica: se um experimento local falha, apenas um pequeno grupo sofrerá as conseqüências (e outros poderão ajudar); se tem êxito será imitado e suas vantagens se estenderão. Um sistema descentralizado é também menos vulnerável a uma ruptura acidental ou à sabotagem. (Este último, de qualquer forma, será provavelmente insignificante: uma sociedade liberada terá seguramente bem menos inimigos enraivecidos do que os que constantemente produz a atual sociedade).
Mas a descentralização pode favorecer também o controle hierárquico isolando as pessoas entre si. E há coisas que podem ser melhor organizadas em grande escala. Uma única grande metalúrgica tem mais eficácia energética e é menos prejudicial ao ambiente que um forno de fundição em cada comunidade. O capitalismo inclinou-se à super-centralização em certos terrenos em que uma maior diversidade e auto-suficiência teriam mais sentido, mas sua concorrência irracional tem fragmentado também muitas coisas que poderiam ser mais susceptíveis de regularizar-se ou coordenar-se centralmente. Como destaca Paul Goodman em People or Personnel (livro que está cheio de exemplos interessantes sobre os prós e os contras da descentralização em diferentes contextos atuais), onde, como e quando descentralizar são questões empíricas que requererão experimentação. Tudo que podemos dizer é que a nova sociedade provavelmente será tão descentralizada quanto possível, mas sem fazer disso um fetiche. A maioria das coisas podem estar ao cuidado de pequenos grupos ou comunidades locais; os conselhos regionais e mundiais se limitarão a temas de amplas ramificações ou que funcionem melhor em uma escala significativa, como a restauração do ambiente, a exploração do espaço, a resolução das disputas, o controle das epidemias, a coordenação da produção global, a distribuição, o transporte e a comunicação, e a sustentação de certos meios especializados (p.e. clínicas ou centros de investigação de alta tecnologia).
Muitos dizem que a democracia direta funcionou satisfatoriamente nas assembléias dos povos antigos, e que o tamanho e a complexidade das sociedades modernas a torna impossível. Como milhões de pessoas poderiam expressar seu próprio ponto de vista sobre cada assunto?
Não necessitam fazê-lo. A maioria dos assuntos práticos se reduzem no final das contas a um número limitado de opções; uma vez definidas e fixados os argumentos mais significativos, pode-se chegar a uma decisão sem mais delongas. Os observadores dos sovietes de 1905 e dos conselhos operários húngaros de 1956 se impressionaram com a brevidade das manifestações das pessoas e a rapidez com que as decisões eram tomadas. Os que falavam o essencial eram eleitos como delegados; os que mantinham um discurso vazio eram bastante criticados por fazer as pessoas perderem tempo.
Para assuntos mais complicados eram eleitos comitês para estudar diferentes possibilidades e depois retornar para informar às assembléias sobre as ramificações das diferentes opções. Uma vez adotado um plano, comitês menores poderiam continuar supervisionando sua evolução, notificando às assembléias qualquer novo assunto relevante que possa implicar em mudanças. Nos temas controversos se poderiam propor comitês múltiplos que reflitam perspectivas opostas (p.e., pró-tecnólogos contra anti-tecnólogos) para facilitar a formulação de propostas alternativas e pontos de vista diferentes. Como sempre, os delegados não imporiam decisões (exceto com respeito à organização de seu próprio trabalho) e se elegeriam de modo rotativo e sujeitos sempre à destituição, assegurando assim que façam um bom trabalho e que suas responsabilidades temporais não lhes subam à cabeça. Seu trabalho estará aberto ao exame público e as decisões finais sempre reverterão às assembléias.
As tecnologias modernas de informática e telecomunicação permitirão que qualquer um comprove instantaneamente os dados e suas projeções por si mesmos, assim como comunicar suas próprias propostas. Apesar da atual propaganda tais tecnologias não promovem automaticamente a participação democrática; mas têm o potencial de facilitá-la caso sejam modificadas adequadamente e postas sob controle popular.(2)
As telecomunicações também tornarão os delegados menos necessários que durante os movimentos radicais de antigamente, quando funcionavam em grande medida como simples portadores de informação de um local para outro. Diversas propostas podem circular e ser discutidas a uma só vez, e se um tema tiver suficiente interesse as reuniões do conselho se reportarão diretamente às assembléias locais, possibilitando que estas confirmem, modifiquem ou repudiem as decisões dos delegados.
Mas quando os temas não forem particularmente polêmicos, provavelmente bastará o envio de emissários livres. Havendo chegado a alguma decisão geral (p.e. “Este edifício deve ser remodelado para servir como depósito”), uma assembléia pode simplesmente pedir voluntários ou eleger um comitê para levar a cabo a idéia sem preocupar-se com um rigoroso controle.
Salvaguardas contra abusos
Os puristas ociosos sempre podem prever possíveis abusos. “Ah!! Quem sabe que manobras elitistas e sutis podem ser empreendidas por estes delegados e especialistas tecnocratas!” Mas não é menos certo que um grande número de pessoas não consegue vigiar diretamente cada detalhe em todo momento. Nenhuma sociedade pode evitar contar em alguma medida com a boa vontade e o sentido comum das pessoas. O fato é que os abusos são menos possíveis sob a autogestão generalizada do que sob qualquer outra forma de organização social.
As pessoas que são suficientemente autônomas para inaugurar uma sociedade autogerida estarão naturalmente atentas a qualquer ressurgimento de hierarquia. Vigiarão como os delegados levam a cabo seus mandatos, e os “revezarão” tão freqüentemente quanto possível. Para alguns propósitos poderão eleger delegados por sorteio, como os antigos atenienses, para eliminar as tendências que reduzem uma eleição a um concurso de popularidade ou a uma negociata. Os assuntos que necessitam especialistas técnicos, estes serão cuidadosamente vigiados para que o conhecimento necessário se amplie ou para que a tecnologia em questão se simplifique ou se supere. Observadores céticos serão designados para dar o alarme ao primeiro sinal de fraude. Um especialista que dê informação falsa será descoberto rapidamente e publicamente desacreditado. A insinuação mais leve de qualquer conspiração hierárquica ou de qualquer prática exploradora ou monopolística despertará o escândalo universal e será eliminada por ostracismo, confisco, repressão física ou qualquer outro meio que se julgue necessário.
Estas e outras precauções estarão sempre a disposição dos que se preocupam com os potenciais abusos, mas duvido que sejam muito necessárias. Quando se trata de questões importantes, as pessoas podem vigiar ou controlar à vontade. Mas na maioria dos casos provavelmente darão aos delegados uma margem razoável de liberdade de ação para utilizar seu próprio critério e criatividade.
A autogestão generalizada evita tanto as formas hierárquicas da esquerda tradicional como as formas mais simplistas de anarquismo. Não se prende a nenhuma ideologia, nem mesmo do tipo “anti-autoritária”. Se um problema exige algum tipo de conhecimento especializado ou algum grau de “liderança”, as pessoas implicadas logo se darão conta disto e farão o que consideram oportuno sem preocupar-se se os dogmas radicais em pauta os aprovam ou não. Para certas funções não conflituosas pode ser mais conveniente nomear especialistas por períodos indefinidos de tempo, destituindo-os apenas no caso de abuso de posição. Em situações de emergência em que são essenciais decisões rápidas (p.e. apagar incêndios) designarão pessoas com os poderes de autoridade provisionais que sejam necessários. Estos casos serão excepcionais.
Consenso e domínio da maioria
A regra geral será o consenso quando praticável, e a maioria quando necessário. Um personagem em News from Nowhere (uma das utopias mais sensatas, alegres e realistas) de William Morris exemplifica com uma ponte de metal que deve ser substituída por outra de pedra. Isso é proposto na Mote (assembléia da comunidade) seguinte. Se houvesse um claro consenso, o tema seria resolvido e em seguida seria levado adiante os detalhes de sua realização. Mas se alguns vizinhos divergem, se acham que a maldita ponte de aço ainda pode ser útil e não querem se ocupar de construir uma nova, não votam nesta ocasião, mas postergam a discussão formal para o Mote seguinte; enquanto isso se disseminam argumentos pró e contra, dos quais alguns são impressos, de forma que todo mundo sabe o que está acontecendo; e quando a Mote volta a reunir-se outra vez há uma discussão regular e por último se vota mediante levante de mãos. Se a margem entre as opiniões divididas é estreita, a questão é novamente submetida para uma discussão mais profunda; se a margem é ampla, pergunta-se à minoria se ela se submeteria à opinião mais geral, o que comumente ocorre com freqüência. Se a resposta for negativa, a questão vai a debate pela terceira vez. Se a minoria não aumenta a olhos vistos, ela sempre cede; todavia, acho que existe uma regra meio esquecida pela qual ainda podem seguir em frente com ela; mas o que sempre ocorre é que acabam se convencendo, talvez não porque seu ponto de vista seja o pior, mas porque não podem persuadir ou forçar a comunidade a aceitá-lo.
Note-se que o que simplifica enormemente estes casos é que já não há nenhum interesse econômico no conflito — ninguém tem meios ou motivos para subornar ou embromar pessoas para que votem de uma forma ou de outra porque ocasionalmente há uma quantidade de dinheiro em jogo, controle dos meios de comunicação, ou posse de uma companhia construtora ou uma parcela de terra próxima a um determinado local. Na ausência de tais conflitos de interesse, as pessoas normalmente se inclinarão à cooperação e ao compromisso, mesmo que seja apenas para aplacar os oponentes e tornar a vida mais fácil para si mesmos. Algumas comunidades podem ter disposições formais para acomodar as minorias (p. e. se, em vez de simplesmente votar não, 20% expressa uma “veemente objeção” a alguma proposta, deve passar por uma maioria de 60%); mas é improvável que alguém abuse de tais poderes formais quando sabe que o lado contrário pode fazer o mesmo. A solução típica para constantes conflitos irreconciliáveis reside na ampla diversidade de culturas: se os que preferem pontes de metal, etc., são constantemente derrotados nas eleições pelos tradicionalistas de artes e ofícios tipo Morris, podem sempre trasladar-se a alguma comunidade vizinha e fazer valer seus gostos e preferências.
A insistência no consenso total apenas tem sentido quando o número de pessoas envolvidas é relativamente pequeno e o tema não é urgente. Entre um amplo número de pessoas a completa unanimidade raramente é possível. É absurdo sustentar o direito de uma minoria de constantemente obstruir a maioria por medo de uma possível tirania da maioria; ou imaginar que tais problemas desaparecerão se evitamos as “estruturas”.
Isso é manifesto em um artigo bem conhecido há muitos anos (Jo Freeman: The Tyranny of Structurelessness). Não há algo que se possa chamar grupo “sem estrutura”, há simplesmente grupos com diferentes estruturas. Um grupo não estruturado acaba geralmente sendo dominado por uma camarilha que possui alguma estrutura efetiva. Os membros não organizados não têm como controlar esta elite, especialmente quando sua ideologia anti-autoritária lhes impede admitir que existem.
Ao não reconhecer o domínio da maioria como respaldo suficiente quando não conseguem obter a unanimidade, os anarquistas e conselhistas muitas vezes tornam-se incapazes de chegar a decisões práticas, quando não seguem líderes de fato, especializados em manipular pessoas para levá-las à unanimidade (apenas por sua capacidade de agüentar reuniões intermináveis até que toda oposição se aborreça e vá para casa). Ao rechaçar desdenhosamente os conselhos operários ou qualquer outra coisa com algum sinal de coesão, geralmente acabam se contentando com projetos bem menos radicais que compartilham um mínimo denominador comum.
É fácil destacar os erros dos conselhos operários do passado, que eram, no final das contas, improvisações apressadas de gente envolvida em desesperadas lutas. Embora aqueles breves esforços não fossem modelos perfeitos a ser cegamente imitados, representaram sem dúvida o passo mais prático na direção correta naquela circunstância. O artigo de Riesel sobre os conselhos (“Preliminares sobre os conselhos e a organização conselhista”) discute as limitações destes velhos movimentos, e destaca corretamente que o poder conselhista deveria ser compreendido como a soberania das assembléias populares como um todo, não simplesmente dos conselhos de delegados eleitos. Grupos de operários radicais na Espanha, querendo evitar qualquer ambigüidade sobre este último ponto, definiram-se a si mesmos mais como “assembleiários” ou “asambleístas” do que como “conselhistas”. Um dos panfletos do CMDO (“Mensagem a todos os trabalhadores”) especifica os seguintes traços essenciais da democracia conselhista:
— Dissolução de todo poder externo
— Democracia direta e total
— Unificação prática de decisão e execução
— Delegados revogáveis a qualquer momento por aqueles que os nomearam
— Abolição da hierarquia e das especializações independentes
— Gestão e transformação consciente de todas as condições para uma vida livre
— Participação permanentemente criativa das massas
— Extensão e coordenação internacionais
Uma vez reconhecidos e praticados estes pontos, pouco importará se as pessoas se refiram à nova forma de organização social como “anarquia”, “comunalismo”, “anarquismo comunista”, “comunismo conselhista”, “comunismo libertário”, “socialismo libertário”, “democracia participativa” ou “autogestão generalizada”, ou que seus diferentes componentes sobrepostos se chamem “conselhos operários”, “conselhos anti-trabalho”, “conselhos revolucionários”, “assembléias revolucionárias”, “assembléias populares”, “comitês populares”, “comunas”, “coletivos”, “kibbutzim”, “bolos”, “motes”, “grupos de afinidade”, ou qualquer outra coisa. (O termo “autogestão generalizada” desgraçadamente não é mui atrativo, mas tem a vantagem de referir-se tanto aos meios como aos fins uma vez que está livre das conotações enganosas de termos como “anarquia” ou “comunismo”).
Em todo caso, é importante recordar que a organização formal em grande escala será exceção. A maior parte dos assuntos locais podem ser administrados direta e informalmente. Indivíduos ou pequenos grupos simplesmente seguirão adiante e farão o que pareça apropriado em cada situação (“ad-hocracia”). O domínio da maioria será simplesmente um último recurso em um número cada vez menor de casos em que os conflitos de interesse não podem ser resolvidos de outro modo.
Uma sociedade não hierárquica não supõe que todos cheguem magicamente a ter o mesmo talento ou deva participar de tudo em igual medida; significa simplesmente que as hierarquias materialmente baseadas e reforçadas foram eliminadas. As diferenças de capacidade sem dúvida diminuem quando todos são estimulados a desenvolver seus plenos potenciais, o importante é que qualquer diferença que permaneça não se transforme em diferença de riqueza ou de poder.
As pessoas poderão tomar parte em uma variedade bem maior de atividades do que agora, mas não terão que rodar todas as posições todo o tempo se não quiserem fazê-lo. Se alguém tem uma habilidade e destreza especiais para uma determinada tarefa, outros provavelmente estarão contentes de permitir-lhe realizá-la quanto quiser — pelo menos até que alguém mais queira fazer também. As “especializações independentes” (o controle monopolista sobre a informação ou sobre as tecnologias socialmente vitais) serão abolidas; mas florescerão as especializações não dominadoras, abertas. O povo pedirá conselho a pessoas mais entendidas quando sentir a necessidade de fazê-lo (embora os curiosos e perspicazes sempre se animarão a investigar por si mesmos). Serão livres para submeter-se voluntariamente como estudantes a um professor, como aprendizes a um mestre, como jogadores a um treinador ou como atores a um diretor — permanecendo livres também para abandonar a relação a qualquer momento. Em algumas atividades, como um grupo de música folk, qualquer um poderá tomar parte ativa; outras, como intérpretes de um concerto clássico, podem requerer um treinamento rigoroso e uma direção coerente, com algumas pessoas assumindo o papel de líderes, outras seguindo-as, e outras que se contentam simplesmente em escutar. Deveria haver plenas oportunidades para ambos os tipos. A crítica situacionista do espetáculo é a crítica de uma tendência excessiva na sociedade atual; não implica que todos devamos ser “participantes ativos” vinte e quatro horas por dia.
Fora a necessária custódia dos incompetentes mentais, a única hierarquia inevitavelmente imposta será a do tempo necessário para criar as crianças até que sejam capazes de dirigir seus assuntos. Mas um mundo mais seguro e mais sadio poderia proporcionar às crianças mais liberdade e autonomia do que têm agora. Quando se trata de abrir-se novas possibilidades de vida festiva, os adultos podem aprender tanto deles como vice-versa. Aqui como em qualquer esfera, a regra geral será permitir às pessoas encontrar seu próprio nível: uma menina de dez anos que tome parte em algum projeto pode ter tanto a dizer quanto seus co-participantes adultos, enquanto que um adulto não participante não terá nada a dizer.
A autogestão não supõe que todos sejam gênios, simplesmente supõe que as maiorias não são estúpidos totais. E o sistema presente que faz demandas pouco realistas — ao pretender que pessoas às quais sistematicamente imbeciliza sejam capazes de avaliar programas políticos diferentes ou reclames publicitários de mercadorias rivais, ou de comprometer-se em atividades tão complexas e importantes como a criação de crianças ou da condução de um automóvel em uma autopista movimentada. Com a superação de todos os pseudo-problemas políticos e econômicos que são mantidos agora intencionalmente na incompreensão, a maior parte dos eventos que ocorrem não serão tão complicados.
Quando as pessoas têm pela primeira vez a oportunidade de dirigir suas próprias vidas cometerão sem dúvida um monte de erros; mas logo os descobrirão e os corrigirão porque, ao contrário da hierarquia, não terão interesse em encobri-los. A autogestão não garante que as pessoas sempre tomarão decisões corretas; mais do que qualquer outra forma de organização social, a autogestão garante que ninguém decidirá por elas.
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Eliminar as raízes da guerra e do crime
A abolição do capitalismo eliminará os conflitos de interesse que agora servem como pretexto ao estado. A maioria das guerras atuais se baseiam em última instância em conflitos econômicos; inclusive os antagonismos de tipo aparentemente étnico, religioso ou ideológico derivam normalmente em grande parte de sua motivação real da competição econômica, ou de frustrações psicológicas que estão em última instância relacionadas com a repressão política e econômica. Na medida em que a competição desesperada prevalece, as pessoas podem ser facilmente manipuladas e obrigadas a retornar a modos tradicionais de agrupamento e a disputas sobre diferenças culturais pelas quais não se molestariam em condições mais confortáveis. A guerra implica em muito mais trabalho, penas e riscos que qualquer forma de atividade construtiva; as pessoas com oportunidades reais de realização terão coisas mais interessantes a fazer.
O mesmo é válido para o crime. Deixando de lado os “crimes” sem vítimas [consumo de drogas, homossexualidade, etc.] a grande maioria dos crimes estão direta ou indiretamente relacionados com o dinheiro e deixarão de ter sentido depois da eliminação do sistema mercantil. As comunidades serão então livres para experimentar diversos métodos para resolver qualquer ato anti-social ocasional que possa todavia ocorrer.
Há muitas possibilidades diferentes. As pessoas implicadas podem discutir suas questões diante da comunidade local ou diante de um “jurado” eleito por sorteio, que trataria de tomar as decisões mais conciliadoras e reabilitadoras Um agressor convicto poderia ser “condenado” a algum tipo de serviço público — não a um trabalho intencionalmente desagradável e degradante administrado por sádicos mesquinhos, que simplesmente produzem mais cólera e ressentimento, mas projetos significativos e potencialmente atrativos que podem iniciar interesses mais sadios (a restauração ecológica, por exemplo). Alguns psicopatas incorrigíveis podem ter que ser refreados humanamente de uma forma ou de outra, mas tais casos seriam cada vez mais raros. (A atual proliferação da violência “gratuita” é uma reação previsível diante da alienação social, ou seja, as coisas funcionam de tal forma que aqueles que não são tratados como pessoas reais acabam pelo menos tendo a satisfação macabra de ser reconhecidos como ameaças reais). O ostracismo será uma medida dissuasória simples e efetiva: o valentão que se ri da ameaça de um castigo severo, que apenas confirma seu prestígio de macho, pensará duas vezes antes de cometer seus atos se souber que todos o desprezarão por isso. Nos raros casos em que isso se mostrar inadequado, a diversidade de culturas pode fazer do desterro uma solução factível: um caráter violento que constantemente perturbe uma comunidade tranqüila pode se integrar perfeitamente em alguma região áspera e agitada, tipo oeste selvagem — ou se expor a represálias menos agradáveis.
Estas são apenas algumas das possibilidades. Um povo livre descobrirá sem dúvida outras soluções mais criativas, efetivas e humanas que as que possamos imaginar atualmente. Não digo que não haverá problemas, mas haverá muito menos problemas do que agora, onde as pessoas que se encontram na base de uma ordem social absurda são severamente castigadas em seus bárbaros esforços por escapar, ao mesmo tempo em que os que estão em cima saqueiam o planeta com impunidade.
A barbárie do atual sistema penal só é superada pela sua estupidez. Os castigos draconianos têm repetidamente mostrado não ter um efeito significativo na proporção de crimes, que está diretamente vinculada com os níveis de pobreza e desemprego e com fatores menos quantificáveis mas igualmente óbvios como racismo, a destruição das comunidades urbanas, e a alienação geral produzida pelo sistema espetacular — mercantil. A ameaça de anos de prisão, que pode ser um poderoso antídoto para alguém com um modo de vida satisfatório, significa pouco para quem não tem outras saídas significativas. Não é mui brilhante eliminar programas sociais que já são lastimosamente inadequados com o fim de economizar, enquanto se enchem as prisões de presos ao custo de cerca de um milhão de dólares cada um; mas como muitas outras políticas sociais irracionais, esta tenência persiste porque é reforçada por poderosos interesses criados.(3)
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Abolição do dinheiro
Uma sociedade livre deverá abolir por completo a economia monetária-mercantil. Continuar aceitando a validade do dinheiro equivale aceitar a dominação continuada de quem previamente o acumulou, ou de quem terá a falta de escrúpulos necessária para voltar a acumulá-lo depois de qualquer redistribuição radical. Será necessário todavia outras formas de cálculo “econômico” para certos propósitos, mas com um alcance cuidadosamente limitado tendendo a diminuir na medida em que o aumento da abundância material e a cooperação social as torne menos necessárias.
Uma sociedade pós-revolucionária pode ter uma organização econômica em três níveis:
1. Certos bens e serviços básicos serão livremente acessíveis a todos sem nenhum tipo de contabilidade.
2. Outros também serão livres, mas apenas em quantidades limitadas, racionadas.
3. Outros, classificados como “luxo”, serão acessíveis a troco de “créditos”.
Diferentemente do dinheiro, os créditos se aplicarão apenas a certos bens específicos, não à propriedade comunal básica como a terra, os serviços públicos ou os meios de produção. Também terão provavelmente tempo de expiração para evitar qualquer acumulação excessiva.
Tal sistema será mui flexível. Durante o período de transição inicial a quantidade de bens gratuitos pode ser mínima — apenas o suficiente para que uma pessoa possa ajustar as contas — requerendo a maioria dos bens um pagamento através de créditos ganhos mediante o trabalho. Com o passar do tempo, será cada vez menos necessário o trabalho e mais bens serão acessíveis gratuitamente — a proporção entre os dois fatores recíprocos seguirá sempre determinada pelos conselhos, [p.e. podem decidir trabalhar mais para ter mais bens gratuitos, ou aceitar ter menos bens gratuitos por menos trabalho. Alguns créditos podem distribuir-se genericamente, recebendo periodicamente cada pessoa uma certa quantidade; outros podem receber bônus por certo tipo de trabalhos desagradáveis ou perigosos quando houver escassez de voluntários. Os conselhos podem fixar preços para determinados luxos, deixando que outros sigam a lei da oferta e da procura; quando um luxo se tornar mais abundante será mais barato, talvez finalmente gratuito. Os bens podem mover-se de um nível a outro dependendo das condições materiais e as preferências da comunidade.
Estas são apenas algumas das possibilidades.(4) Ao experimentar métodos diferentes, as pessoas prontamente se darão conta por si mesmas de que forma de propriedade, intercâmbio e contabilidade necessitarão.
De qualquer forma, quaisquer que sejam os problemas “econômicos” que possam permanecer, não serão sérios porque os limites impostos pela escassez serão um fator apenas no setor dos “luxos” não essenciais. O acesso universal gratuito à comida, roupa, moradia, serviços públicos, assistência sanitária, transporte, comunicação, educação e facilidades culturais poderá ser alcançado quase imediatamente nas regiões industrializadas e dentro de um breve período de tempo nas menos desenvolvidas. Muitas destas coisas já existem e simplesmente necessitam tornar-se mais eqüitativamente acessíveis; as que não, podem ser facilmente produzidas uma vez que a energia social se desvie de empresas irracionais.
Tomemos a questão da moradia, por exemplo. Os ativistas pela paz têm destacado constantemente que todo mundo poderia dispor de moradia digna por menos do que custam algumas semanas de desdobramento militar mundial. Sem dúvida pensam em termos de uma espécie de moradia simples; mas se a quantidade de energia que a gente despende agora trabalhando para enriquecer proprietários e imobiliárias se desviasse para a construção de novas moradias, prontamente todo mundo poderia ser alojado com dignidade.
A princípio, a maioria poderia continuar vivendo onde está e concentrar-se na construção de moradias acessíveis para pessoas sem teto. Os hotéis e os edifícios de escritórios poderiam tornar-se disponíveis. Algumas propriedades escandalosamente extravagantes podem ser requisitadas e transformadas em moradias, parques, jardins comunitários, etc. Diante desta tendência, aqueles que possuem propriedades relativamente espaçosas podem oferecê-las para alojamento temporário de pessoas sem teto enquanto os ajudam a construir suas próprias casas, mesmo que seja para evitar um potencial ressentimento.
O próximo passo será elevar e igualar a qualidade das moradias. Aqui como em outros campos, a meta não será uma igualdade rigidamente uniforme (“todos devem ter uma moradia com tais ou quais especificações”), mas o sentido geral de justiça popular, tratando os problemas sobre uma base flexível, caso por caso. Se alguém sente que não recebeu sua parte pode apelar à comunidade em geral, que, se a queixa não é completamente absurda, fará provavelmente o impossível para compensá-lo. Os compromissos terão que ser resolvidos considerando que vão viver em lugares excepcionalmente desejáveis por determinado tempo. (Podem ser compartilhadas mediante sorteio por uma série de pessoas, ou ser alugados por períodos limitados pela melhor oferta em pastas de créditos, etc.). Pode ser que tais problemas não se resolvam na medida da completa satisfação de todos, mas certamente serão tratados com bem mais equidade do que sob um sistema em que a acumulação de pedaços mágicos de papel permite que uma pessoa se afirme “proprietária” de uma centena de edifícios enquanto que outras têm que viver na rua.
Uma vez resolvidas as necessidades básicas de sobrevivência, a perspectiva quantitativa do tempo de trabalho se transformará em uma nova perspectiva qualitativa de livre criatividade. Alguns amigos podem trabalhar alegremente construindo sua própria casa mesmo que leve um ano para concluir o que uma equipe profissional poderia fazer mais eficientemente em um mês. Em tais projetos se investirá muito mais alegria, imaginação e amor, e as moradias resultantes serão muito mais encantadoras, matizadas e pessoais do que as que hoje passam por “dignas”. Um carteiro rural francês do século dezenove chamado Ferdinand Cheval gastou todo seu tempo de ócio de muitas décadas construindo seu próprio castelo de fantasia. Gente como Cheval é considerada excêntrica, mas sua única anormalidade é que continua exercendo a criatividade inata que todos possuímos, mas que normalmente nos induzem a reprimir depois da primeira infância. Uma sociedade livre disporá de grandes quantidades deste tipo de “trabalho” lúdico: os projetos pessoalmente escolhidos terão um atrativo tão intenso que as pessoas não se preocuparão com o “tempo de trabalho” gasto como o tempo dedicado a carícias de amor ou diversão.
O absurdo da maior parte do trabalho atual
Há 50 anos Paul Goodman estimou que menos de 10% do trabalho executado é dedicado a satisfazer nossas necessidades básicas. Qualquer que seja a medida exata (em nossos dias essa taxa deve ser mais baixa, dependendo do que consideramos necessidades básicas), o fato é que a maior parte do trabalho atual é absurdo e desnecessário. Com a abolição do sistema mercantil, centenas de milhões de pessoas agora ocupadas em produzir mercadorias supérfluas, ou em anunciá-las, empacotá-las, transportá-las, vendê-las, protegê-las ou tirar proveito delas (vendedores, funcionários, capatazes, diretores, banqueiros, agentes de bolsa, proprietários, líderes sindicais, políticos, polícias, advogados, juízes, carcereiros, guardas, soldados, economistas, publicitários, fabricantes de armas, inspetores aduaneiros, coletores de impostos, agentes de segurança, conselheiros de investimento, junto a seus numerosos subordinados). Toda essa multidão está indisponível para executar as relativamente poucas tarefas realmente necessárias.
No que toca aos desempregados, segundo um recente informe da ONU eles constituem agora 30% da população mundial. Embora esta proporção pareça ampla, ela presumivelmente exclui prisioneiros, refugiados, e muitos outros que normalmente não são contados nas estatísticas de desemprego oficiais, como aqueles que pararam de buscar trabalho, ou aqueles que estão incapacitados pelo alcoolismo e drogas, ou que estão tão enojados pelas opções de trabalho disponíveis que colocam toda sua energia fugindo do trabalho e dedicando-se ao crime e à fraude.
No que toca a milhões de anciãos, muitos gostariam de estar comprometidos em atividades úteis mas vivem relegados a um retiro passivo, desagradável. Adolescentes e jovens aceitariam com entusiasmo o desafio de muitos projetos educacionais e úteis se não estivessem confinados em colégios inúteis desenhados para inculcar a obediência ignorante.
Levando em consideração o grande componente de gastos incluídos em trabalhos inegavelmente necessários. Médicos e enfermeiras, por exemplo, perdem grande parte de seu tempo (além de preencher papéis de seguro, cobrar os doentes, etc.) esforçando-se quase que inutilmente para controlar todo tipo de problemas socialmente induzidos como má alimentação, lesões ocupacionais, acidentes automobilísticos, enfermidades psicológicas e doenças causadas pelo stress, poluição, ou condições de vida insalubres, sem falar das guerras e epidemias que com freqüência as acompanham — problemas que em grande medida desaparecerão em uma sociedade livre, permitindo que aqueles que cuidam da saúde se concentrem em uma medicina preventiva básica.
Considere-se então a quantidade igualmente grande de trabalho perdido intencionalmente: trabalho desenhado apenas para manter as pessoas ocupadas; a supressão de métodos para poupar trabalho porque podem deixar pessoas sem trabalho; trabalhar tão lentamente quanto possível; sabotar o maquinário para pressionar os chefes, ou por simples raiva ou frustração. Não esqueçamos de todos os absurdos da “lei de Parkinson” (o trabalho tende a expandir-se para preencher o tempo disponível), o “princípio de Peter” (as pessoas se elevam até seu nível de incompetência) e tendências similares tão hilariantemente satirizadas por C. Northcote Parkinson e Laurence Peter.
Considere-se também quanto trabalho perdido se eliminará desenhando os produtos para durar e não para quebrar ou ficar fora de moda para que as pessoas tenham que comprar outros novos. (Após um breve período inicial de alta produção para prover a todos de bens duráveis de alta qualidade, muitas indústrias poderiam reduzir-se a níveis mais modestos — apenas o suficiente para manter aqueles bens em bom estado, ou melhorá-los ocasionalmente sempre que se desenvolva algum avanço significativo).
Levando em consideração todos estes fatores, é fácil ver que em uma sociedade sanamente organizada a quantidade de trabalho necessário poderia ser reduzida a um ou dois dias por semana. Uma redução quantitativa drástica como esta produzirá uma mudança qualitativa.
Transformar o trabalho em jogo
Como descobriu Tom Sawyer (no capítulo 2 do livro de Mark Twain), quando as pessoas não são obrigadas a trabalhar, até mesmo as tarefas mais banais podem chegar a ser insólitas e interessantes: o problema não é mais como fazer com que as pessoas as executem, mas como acomodar todos os voluntários. Não seria realista esperar que as pessoas trabalhem todo o tempo em trabalhos desagradáveis e sem grande significado sem vigilância e incentivos econômicos; mas a situação se torna completamente diferente se se trata de dedicar dez ou quinze horas por semana em tarefas autogestivas, variadas e úteis que nós mesmos escolhemos.
Muitos, uma vez comprometidos com projetos que lhes interessam, não vão querer se limitar ao mínimo. Isto reduzirá necessariamente as tarefas de outros que eventualmente não tenham tanto entusiasmo.
É desnecessária qualquer inquietação pelo fim do trabalho. O trabalho assalariado tem que ser abolido; o trabalho pleno de significado, livremente escolhido pode ser tão divertido como um jogo. Nosso trabalho atual produz normalmente resultados práticos, mas não somos nós quem o escolhe, enquanto que nosso tempo livre está em sua maior parte limitado a trivialidades. Com a abolição do trabalho assalariado, o trabalho chegará a ser mais divertido, um jogo ativo e criativo. No dia em que as pessoas não mais forem conduzidas à loucura pelo seu trabalho, não mais serão necessários entretenimentos passivos estúpidos para restabelecerem-se dela.
Não que haja algo de errado em divertir-se com passatempos triviais; trata-se simplesmente de reconhecer que muito de seu atual atrativo procede da ausência de atividades plenas. Alguém cuja vida carece de aventura real pode inclinar-se a um pequeno exotismo vicário dedicando-se a colecionar artefatos de outros tempos e lugares; alguém cujo trabalho é abstrato e fragmentário pode ir longe produzindo objetos totalmente concretos, objetos mais significativos do que um navio em miniatura dentro de uma garrafa. Estes e outros inúmeros hobbies revelam a existência de impulsos criativos que florescerão realmente quando esse jogo atingir uma escala mais ampla. Imagine pessoas cuja diversão é ajustar seus utensílios ou cultivar seu jardim, elas se entusiasmarão diante da oportunidade de recriar toda sua comunidade; ou como milhares de entusiastas das estradas de ferro se apressarão em aproveitar a oportunidade de reconstruir e operar versões melhoradas das redes de trens, que serão uma das vias principais para reduzir o tráfico automobilístico.
Quando as pessoas estão sujeitas a suspeita ou a regulamentos opressivos elas tentam naturalmente fazer o menos possível sem ser castigadas. Em situações de liberdade e confiança mútua há uma tendência contrária, de orgulhar-se em fazer o melhor trabalho possível. Embora algumas tarefas da nova sociedade tendam a ser mais populares do que outras, as únicas realmente difíceis ou desagradáveis terão provavelmente voluntários mais que suficientes, respondendo a um sentimento de retidão ou desejo de apreciação, quando não a um sentido de responsabilidade. Inclusive atualmente, quando têm tempo, muitas pessoas têm satisfação em se oferecer como voluntários em projetos que valem a pena; tais pessoas ficarão ainda mais satisfeitas se não terem que se preocupar constantemente em cobrir suas necessidades básicas e as de sua família. Na pior das hipóteses, as poucas tarefas totalmente impopulares terão que ser divididas em turnos o mais breves possíveis e revezados com freqüência até que possam ser automatizadas. Ou poderiam ser subsidiadas para ver se alguém quer fazê-las em troca de ter que abater, digamos, cinco horas por semana em vez das usuais dez ou quinze; ou por alguns créditos adicionais.
Os adeptos do não cooperativismo serão provavelmente tão raros que o resto da população poderá deixá-los em paz, em vez de gastar tempo pressionando-os para que dêem sua pequena cooperação. A partir de um certo grau de abundância não faz sentido preocupar-se por causa de alguns abusos e instalar uma multidão de contadores, inspetores, informantes, espias, guardas, polícias, etc., para que comprovem cada detalhe e castiguem cada infração. Não é realista esperar que as pessoas sejam generosas e cooperativas quando não há muito o que repartir; mas um maior excedente material criará uma “margem de abuso” mais ampla de modo que não importará tanto se alguém faz menos que seu companheiro, ou consuma um pouco mais.
A abolição do dinheiro impedirá a todos de angariar mais do que contribuem. A maior parte das dúvidas acerca da factibilidade de uma sociedade livre se apoia na crença arraigada de que o dinheiro (tanto quanto seu necessário protetor: o estado) tem que existir. Esta associação entre o dinheiro e o estado cria possibilidades de abuso ilimitadas (legisladores subornados para criar sub-repticiamente brechas nas leis de impostos, etc.); mas uma vez que ambos sejam abolidos desaparecerão os motivos e os meios para tais abusos. A abstração das relações de mercado permite que uma pessoa acumule riqueza anonimamente privando indiretamente outros milhares das necessidades básicas; mas com a eliminação do dinheiro qualquer monopolização significativa de bens será demasiado difícil de manejar e demasiado visível.
Na nova sociedade poderão ocorrer outras formas de intercâmbio, a mais simples e provavelmente mais comum será a doação. Na abundância geral é fácil ser generoso. Doar é divertido e aprazível, e elimina as moléstias da contabilidade. O único cálculo é o que está ligado a uma saudável e mútua emulação. “A comunidade vizinha doou tal coisa a uma região menos favorecida; nós podemos seguramente fazer o mesmo”. “Eles deram uma festa magnífica; vejamos se podemos fazer uma melhor”. Uma pequena rivalidade amistosa (quem pode criar a nova receita mais deliciosa, cultivar uma hortaliça superior, resolver um problema social, inventar uma brincadeira nova) beneficiará todos, inclusive os perdedores.
Uma sociedade livre funcionará provavelmente em grande medida como uma grande festa. A maior parte das pessoas a desfrutará como uma comida que todos apreciam; mas mesmo que alguns contribuam com pouco ou nada há o suficiente para repartir entre todos. Não é essencial que todos colaborem exatamente na mesma medida, porque as tarefas seriam tão pequenas e tão amplamente distribuídas que ninguém ficará sobrecarregado. Uma vez que todos estão diretamente envolvidos, não será preciso investigar ninguém nem instituir castigos por falta de cooperação. O único elemento de “coerção” será a aprovação ou desaprovação dos demais participantes: o agradecimento provê estímulos positivos, e até mesmo a pessoa mais desconsiderada se dá conta de que se não contribui consistentemente passará a ser mal vista e correrá o risco de não ser convidada na próxima vez. A organização apenas é necessária se se tropeça em algum problema. (Se há normalmente demasiada sobremesa e comida insuficiente, o grupo pode decidir coordenar quem trará cada coisa. Se algumas almas generosas acabam sustentando uma cooperação injusta do trabalho de limpeza, uma admoestação gentil bastará para que outros se envergonhem e se ofereçam, ou se fará um sorteio de rodízio sistemático).
Supondo que tal cooperação espontânea seja uma exceção, que se encontra principalmente onde os vínculos comunais tradicionais têm persistido, ou entre grupos pequenos, grupos auto-selecionados de pessoas animadas pelos mesmos sentimentos em regiões onde as condições não são demasiado miseráveis. Em um mundo onde o homem é lobo do próprio homem, as pessoas cuidam naturalmente de si mesmas e suspeitam das demais. A menos que o espetáculo as comova com alguma história sentimental de interesse humano, se preocupam normalmente pouco por aqueles que estão fora de seu círculo imediato. Carregadas de frustrações e ressentimentos, podem até mesmo sentir um prazer pernicioso atropelando os prazeres de outras pessoas.
Mas apesar de tudo o que desalenta sua humanidade, e isso vale para a maioria das pessoas, se tiverem uma oportunidade, gostarão de sentir que estão fazendo coisas úteis, e que são apreciadas por isso. Atente como aproveitam a mais leve oportunidade de criar um momento de reconhecimento mútuo, mesmo que apenas abrindo uma porta para alguém ou trocando alguns comentários banais. Se surge uma inundação ou terremoto ou qualquer outra emergência, até mesmo o mais egoísta e cínico com freqüência se precipita na ação, trabalhando vinte e quatro horas por dia no resgate de pessoas, entregando comida e primeiros socorros, etc., sem nenhuma compensação exceto a gratidão dos demais. É por isso porque as pessoas freqüentemente evocam a guerras ou desastres naturais com um surpreendente grau de nostalgia. Como a revolução, tais acontecimentos rompem com as separações sociais usuais, dá a todos a oportunidade de fazer coisas que realmente importam, e produz um forte sentimento de comunidade (mesmo que seja unindo as pessoas contra um inimigo comum). Em uma sociedade livre estes impulsos sociais poderão florescer sem que sejam necessários pretextos tão extremos.
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Objeções tecnofóbicas
Atualmente a automação com freqüência não tem feito mais do que expulsar algumas pessoas de seu trabalho enquanto se intensifica o controle daqueles que nele permanecem; se eventualmente algum tempo real é ganho graças aos dispositivos de “poupança de trabalho”, esse ganho é normalmente desperdiçado em um consumo passivo igualmente alienado. Mas em um mundo livre os computadores e outras tecnologias modernas poderiam ser utilizadas para eliminar tarefas perigosas ou chatas, liberando todos para concentrar-se em atividades mais interessantes.
Sem contemplar tais possibilidades, e compreensivamente desgostosas pelo uso atual das muitas tecnologias, muitas pessoas chegam a ver a “tecnologia” em si mesma como o principal problema e reclamam um retorno a um estilo de vida mais simples. Quanto mais simplista o debate mais se descobrem defeitos em cada período, retrocedendo cada vez mais na linha do tempo. Alguns, considerando a Revolução Industrial como o principal vilão, cobrem de elogios o artesanato manual. Outros, vendo na invenção da agricultura o pecado original, sentem que deveríamos voltar a uma sociedade de caçadores-coletores, mas sem explicar o que sucederá à atual população humana que não pode se sustentar sob tal economia. Outros, para não ficar para trás, apresentam argumentos eloqüentes que provam que o desenvolvimento da linguagem e do pensamento racional foi a origem real de nossos problemas. Todavia há quem sustente inclusive que o gênero humano em sua totalidade é tão incorrigivelmente malvado que deveria altruisticamente se extinguir para salvar o restante do ecosistema mundial.
Estas fantasias contêm tantas contradições óbvias que torna-se desnecessário criticá-las detalhadamente. Dão uma questionável relevância às sociedades do passado real e não têm quase nada a ver com as possibilidades presentes. Mesmo supondo que a vida fosse melhor em uma ou outra era passada, temos que começar desde onde estamos. A moderna tecnologia está tão permeada em todos os aspectos de nossa vida que não poderia interromper-se abruptamente sem causar um caos mundial que aniquilaria bilhões de pessoas. Os pós-revolucionários provavelmente decidirão por reduzir de modo progressivo o índice populacional humano e certas indústrias, mas isto não pode ser feito da noite para o dia. Temos que considerar seriamente como tratar todos os problemas práticos que se formularam nesse ínterim.
Se porventura as pessoas chegarem diante de tal situação prática depois de uma revolução, duvido que os tecnófobos queiram realmente eliminar as cadeiras de rodas motorizadas; ou desconectar o engenhoso dispositivo informático que permite ao físico Stephen Hawking comunicar-se apesar de estar totalmente paralisado; ou deixar que morra em um parto uma mulher que poderia salvar-se por procedimentos técnicos; ou aceitar o ressurgimento de enfermidades que no passado mataram ou incapacitaram normalmente de modo permanente uma porcentagem ampla da população; ou resignar-se a não visitar nunca nem comunicar-se com gente de outras partes do mundo a menos que se falem a uma distância que possa ser percorrida a pé; ou permanecer parado sem intervir enquanto pessoas morrem de uma fome que poderia ser evitada mediante o transporte mundial de alimento.
O problema é que quanto mais esta ideologia entra na moda mais se desvia a atenção dos problemas e possibilidades reais. Um dualismo maniqueísta simplista (a natureza é o Bem, a tecnologia é o Mal) faz com que ignoremos complexos processos históricos e dialéticos; é muito mais fácil lançar a culpa de tudo em cima de algum mal primordial, uma espécie de diabo ou pecado original. O que começa como um questionamento válido da fé excessiva na ciência e na tecnologia acaba como uma desesperada e ainda menos justificada fé no retorno a um paraíso primordial, acompanhado de um fracasso na abordagem do presente sistema, feita de uma maneira abstrata e apocalíptica.(5)
Tecnófilos e tecnófobos tratam a tecnologia de modo igualmente separado de outros fatores sociais, diferindo apenas em suas conclusões igualmente simplistas de que as novas tecnologias dão automaticamente mais poder às pessoas ou são automaticamente alienantes. Na medida em que o capitalismo aliena todas as produções humanas em fins autônomos que escapam ao controle de seus criadores, as tecnologias compartilharão esta alienação e serão utilizadas para reforçá-la. Mas quando as pessoas se livram dessa dominação, não terão problema em rechaçar aquelas tecnologias que sejam prejudiciais enquanto adaptam outras para fins benéficos.
Em uma sociedade livre, certas tecnologias — o poder nuclear é o exemplo mais óbvio — são com efeito tão perigosas que não haverá dúvidas em sua interrupção imediata. Muitas outras indústrias que produzem mercadorias absurdas, obsoletas ou supérfluas, cessarão automaticamente com a interrupção de seus fundamentos comerciais. Mesmo considerando que muitas tecnologias (eletricidade, metalurgia, refrigeração, instalações sanitárias, imprensa, gravação, fotografia, telecomunicações, ferramentas, têxteis, máquinas de costura, equipamento agrícola, instrumentos cirúrgicos, anestesia, antibióticos, entre outras dezenas de exemplos que seria enfadonho citá-los todos aqui), devido a seu uso abusivo, possuem algumas desvantagens inerentes, elas são bem poucas. Trata-se simplesmente de utilizá-las de um modo mais sensato, levá-las sob controle popular, introduzindo algumas melhoras ecológicas, e redesenhando-as para fins humanos em vez de capitalistas.
Outras tecnologias são mais problemáticas. Todavia serão necessárias em alguma medida, mas seus aspectos nocivos e irracionais se reduzirão progressivamente, normalmente por desgaste. Considerando a indústria automobilística como um todo, incluindo sua vasta infra-estrutura (fábricas, ruas, autopistas, postos de combustível, poços de petróleo) e todos seus inconvenientes e custos ocultos (congestionamento, estacionamento, reparos, seguros, acidentes, poluição, destruição urbana), fica claro que seria preferível muitos outros métodos alternativos. Todavia, o fato é que toda esta infra-estrutura está aí. Sem dúvida, a nova sociedade continuará utilizando os automóveis e os caminhões existentes durante alguns anos, enquanto se concentra no desenvolvimento de modos mais sensatos de transporte para substituir os atuais gradualmente na medida em que se desgastam. Veículos pessoais com motores não poluentes podem continuar indefinidamente em áreas rurais, mas a maior parte do tráfego urbano atual (com algumas exceções como caminhões de distribuição, carros de bombeiros, ambulâncias, e taxis para pessoas incapacitadas) poderia ser evitado com diversas formas de transporte público, permitindo que muitas estradas e ruas se convertam em parques, jardins, praças e ciclovias. Os aviões serão restritos a viagens intercontinentais (racionados caso necessário) e para determinados tipos de transportes urgentes, com a eliminação do trabalho assalariado sobrará tempo para as pessoas poderem viajar de uma forma mais pausada — barco, trem, bicicleta, caminhada.
Aqui, como em outros campos, cabe às pessoas envolvidas experimentar as diferentes possibilidades para ver qual funciona melhor. Uma vez que as pessoas tenham o poder de determinar os objetivos e condições de seu próprio trabalho, apresentará naturalmente todo tipo de idéias de modo que o trabalho se tornará mais breve, seguro e agradável; e tais idéias, não mais patenteadas nem guardadas zelosamente como “segredos comerciais”, rapidamente se espalharão e inspirarão ainda mais benefícios. Com a eliminação dos motivos comerciais, as pessoas também serão capazes de dar a importância apropriada aos fatores sociais e ambientais além de considerações puramente quantitativas sobre tempo de trabalho. Se, digamos, a produção de computadores implica atualmente em alguma super-exploração do trabalho ou causa alguma poluição (embora bem menor que as clássicas indústrias das “chaminés”), não há razão para crer que não se possa imaginar métodos bem melhores uma vez que as pessoas se dediquem em descobri-los — coisa bem provável precisamente mediante o uso racional da automatização informática. (Afortunadamente, o trabalho mais repetitivo é normalmente o mais fácil de automatizar). A regra geral será simplificar as manufaturas básicas de forma que facilite uma flexibilidade ótima. As técnicas se tornarão mais uniformes e compreensíveis, de maneira que pessoas com um aprendizado geral mínimo poderão levar a cabo a construção, reparo, alteração e outras operações que antigamente exigiriam treinamento especializado. As ferramentas, eletrodomésticos, materiais brutos, partes de máquinas e módulos arquitetônicos básicos provavelmente se padronizarão e se produzirão em massa, deixando às “indústrias artesanais” os refinamentos específicos de pequena escala e os aspectos finais e potencialmente mais criativos aos usuários individuais. No dia em que o tempo deixar de ser ouro, passará a ser contemplado. Como desejava William Morris, para um primoroso ressurgimento das artes e ofícios é necessário a alegre realização de um grande “trabalho” tanto por seus criadores como por seus destinatários.
Algumas comunidades podem preferir manter uma quantidade moderada de tecnologia pesada (ecologicamente sadia); outras podem optar por estilos de vida mais simples, mas apoiadas por meios técnicos para facilitar esta simplicidade ou para emergências. Os geradores de energia solar e as telecomunicações via satélite, por exemplo, permitirão que pessoas habitem em bosques sem necessidade de cabos elétricos ou telefônicos. Se a energia solar gerada na Terra e outros recursos energéticos renováveis se mostrassem insuficientes, imensos receptores solares em órbita poderiam transmitir uma quantidade quase ilimitada de energia limpa.
Incidentalmente, a maior parte das regiões do terceiro mundo vive em zona quente onde a energia solar pode ser mais efetiva. Mesmo que sua pobreza represente algumas dificuldades iniciais, suas tradições de auto-suficiência cooperativa, mais o fato de que não estão agravados com infra-estruturas industriais obsoletas, isso pode proporcionar-lhes algumas vantagens compensadoras no que diz respeito à criação de novas estruturas ecologicamente apropriadas. Fazendo uso seletivo das regiões desenvolvidas para obter qualquer informação ou tecnologias, decidirão por si mesmos aquilo que necessitam, e poderão passar por cima do horrível estado “clássico” da industrialização e da acumulação do capital e proceder diretamente a formas pós-capitalistas de organização social. Nem tampouco a influência se produzirá necessariamente em um único sentido: um dos experimentos sociais mais avançados da história foi levado a cabo durante a revolução espanhola por camponeses analfabetos que viviam sob condições quase terceiro-mundistas.
Vulgarmente se acredita (e equivocadamente) que uma revolução mundial necessitará que as pessoas dos países desenvolvidos aceitem um triste período transitório de “baixas expectativas” para permitir que as regiões menos desenvolvidas alcancem seu nível. Esta errônea e comum concepção procede da falsa assunção de que a maior parte dos produtos atuais são desejáveis e necessários — implicando que dar mais aos outros supõe menos para nós. Na realidade, uma revolução nos países desenvolvidos superará imediatamente tantas mercadorias e assuntos absurdos que até mesmo se determinados bens e serviços se reduzissem temporariamente, as pessoas estariam melhor que agora inclusive em termos materiais (além de estar bem melhor em termos “espirituais”). Uma vez resolvidos seus próprios problemas imediatos, muitos deles assistirão de modo entusiasta aos menos afortunados. Mas esta assistência será voluntária, e em sua maior parte não acarretará nenhum auto-sacrifício sério. Dar trabalho ou materiais de construção ou conhecimentos arquitetônicos para que outros possam construir casas por si mesmos, por exemplo, não requererá desmantelar a casa de ninguém. A riqueza potencial da sociedade moderna consiste não apenas em bens materiais, mas em conhecimento, idéias, técnicas, engenho, entusiasmo, compaixão, e outras qualidades que se incrementam realmente ao compartilhá-las.
Temas ecológicos
Uma sociedade autogestiva dará naturalmente curso à maioria das demandas ecológicas atuais. Algumas são essenciais para a própria sobrevivência da humanidade; mas por razões tanto estéticas como éticas, pessoas livres sem dúvida preferirão ir além desse mínimo e promoverão uma rica biodiversidade.
O importante é que só poderemos debater tais temas livres de prejuízos quando houvermos eliminado os incentivos à exploração e à insegurança econômica que socavam agora inclusive os menores esforços para defender o meio ambiente (os madeireiros temem perder seus trabalhos, a miséria crônica obriga os países do terceiro mundo a venderem seus recursos florestais, etc.).(6)
Quando se culpa à humanidade como responsável pela destruição do meio ambiente, as causas especificamente sociais são esquecidas. Os poucos que tomam decisões se mesclam com a maioria impotente. O alastramento da fome é encarado como uma vingança da natureza devido à superpopulação, como uma reação natural que convém deixar seguir seu curso — com a maior naturalidade o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional obrigam países do terceiro mundo a cultivar produtos para exportação em vez de alimento para o consumo local. Fazem com que as pessoas se sintam culpadas por utilizar carros, escondendo o fato de que as companhias automobilísticas (adquirem e sabotam os sistemas elétricos de trânsito, optando pela construção de autopistas e impedindo subsídios às ferrovias, etc.) criaram uma situação tal que a maior parte das pessoas são obrigadas a possuir automóvel. Uma publicidade espetacular urge seriamente para que todos reduzam o consumo de energia (ao mesmo tempo em que se incita repetidamente a consumi-la mais do que nunca). Poderíamos ter desenvolvido fontes de energia limpas e renováveis de uma forma mais que suficiente se as companhias de combustível fóssil não houvessem sabotado com êxito para que nenhum fundo significativo fosse dedicado à investigação com estes fins.
Não é nem mesmo uma questão de culpar tais companhias — elas estão igualmente presas em um sistema de crescimento ou morte que as impele a tomar tais decisões — mas de abolir o sistema que produz continuamente tais pressões irresistíveis.
Uma sociedade livre poderá abarcar tanto comunidades humanas como amplas regiões da natureza virgem satisfazendo a maior parte dos ecologistas profundos. Entre estes dois extremos me apraz pensar que haverá todo tipo de interações humanas imaginativas, todavia cuidadosas e respeitosas, com a natureza. Cooperar com ela, trabalhar com ela, brincar com ela; criar matizes mesclados de bosques, granjas, parques, jardins, hortos, riachos, povos, cidades.
As grandes cidades serão parceladas, desconcentradas, “reverdecidas,” e reordenadas em uma diversidade de formas que incorporem e superem as visões dos arquitetos e urbanistas mais imaginativos do passado (que estavam normalmente limitados por sua assunção da permanência do capitalismo). Excepcionalmente, algumas cidades maiores, especialmente aquelas que tenham algum interesse histórico ou estético, manterão ou mesmo ampliarão seus traços cosmopolitas, provendo grandes centros onde culturas e estilos de vida diversos possam se desenvolver ainda mais.(7)
Algumas pessoas, inspiradas pelas antigas explorações “psicogeográficas” e idéias sobre “urbanismo unitário” dos situacionistas, construíram elaborados e decorados móveis desenhados para facilitar deambulações labirínticas através de ambientes diversos — Ivan Chtcheglov imaginou “montagens de castelos, grutas, lagos”, “habitações que induzem ao sonho mais que qualquer droga”, gente vivendo em suas próprias “catedrais” pessoais (“Receituário para um novo urbanismo”). Outros podem inclinar-se mais pela definição que um poeta do Oriente Médio fez da felicidade: viver em uma cabana no pé da serra ao lado de um riacho.
Se não há suficientes catedrais ou riachos para repartir, é possível que algum compromisso tenha que ser estabelecido. Mas se lugares como Chartres ou Yosemite estão atualmente saturados, é devido à fealdade do restante do planeta. Quando outras áreas naturais forem revitalizadas e quando os habitats humanos se tornarem mais atraentes e interessantes, já não será mais necessário que alguns locais excepcionais acomodem milhões de pessoas desesperadas por evadir-se da confusão. Pelo contrário, pode ocorrer que muita gente se desloque inclusive até as regiões mais miseráveis porque estas serão as “novas fronteiras” onde terão lugar as transformações mais excitantes (os horrendos edifícios que serão demolidos para permitir uma reconstrução experimental a partir do zero).
O florescimento de comunidades livres
A liberação da criatividade popular gerará animadas comunidades que superarão Atenas, Florença, Paris e outros famosos centros do passado, onde a plena participação estava limitada a minorias privilegiadas. Embora algumas pessoas prefiram permanecer solitárias e auto-suficientes (ermitãos e nômades poderão manter-se isolados exceto por alguns arranjos que tenham que fazer com as comunidades próximas), a maioria provavelmente preferirá o gozo e a conveniência de fazer as coisas juntos, e instalarão todo tipo de oficinas, bibliotecas, laboratórios, lavanderias, cozinhas, padarias, cafés, clínicas, estúdios, salas de concertos, auditórios, saunas, ginásios, lugares de recreio, férias, e mercadinhos de troca públicos (sem esquecer alguns espaços tranqüilos para compensar o conjunto socializado). Os blocos de moradias podem converter-se em complexos mais unificados, conectando alguns dos edifícios mediante passagens e arcadas e eliminando valas entre pátios para criar um parque interior mais amplo, jardins ou áreas de jogo para as crianças. As pessoas poderiam escolher entre os mais variados tipos e graus de participação, p.e. seja inscrevendo-se um par de dias por mês como cozinheiro, lavador de pratos ou jardineiro, obtendo o direito de comer em um bar comunal, ou cultivar e cozinhar a maior parte de seu alimento.
Em todos estes exemplos hipotéticos é importante ter presente a diversidade de culturas que se desenvolverão. Em uma, cozinhar pode ser encarado como algo tedioso que na medida do possível deve ser revezado; em outra pode ser uma paixão ou um ritual social apreciado que atrairá voluntários entusiastas mais que suficientes.
Algumas comunidades, como Paradigma III em Communitas (importante assinalar que o esquema de Paul e Percival Goodman assume a existência do dinheiro), podem manter uma aguda distinção entre o setor gratuito e o setor de luxo. Outras podem desenvolver modelos sociais mais organicamente integrados, conforme Paradigma II do mesmo livro, intentando uma unidade máxima de produção e consumo, atividade manual e intelectual, educação científica e estética, harmonia social e psicológica, inclusive ao preço de uma eficiência puramente quantitativa. O estilo de Paradigma III pode ser mais apropriado para uma forma transicional inicial, quando as pessoas ainda não estão acostumadas às novas perspectivas e desejam ter um marco econômico de referência fixado que lhes dê uma sensação de segurança contra potenciais abusos. Quando as pessoas eliminarem os defeitos do novo sistema e tiverem desenvolvido uma maior confiança mútua, tenderão mais provavelmente ao estilo de Paradigma II.
Como nas encantadoras fantasias de Fourier, mas sem suas excentricidades e com bem mais flexibilidade, as pessoas poderão comprometer-se em uma variedade de atividades de acordo com afinidades elaboradamente inter-relacionadas. Uma pessoa pode ser membro regular de certos grupos permanentes (de afinidade, conselho, coletivo, bairro, cidade, região) enquanto apenas toma parte temporariamente em várias atividades ad hoc (como fazem as pessoas hoje nos clubes, redes de aficionados a algum hobby, associações de ajuda mútua, grupos dedicados a uma ou outra questão política e projetos que resultam mais proveitosos se levados a cabo coletivamente), [p.e. a edificação de um celeiro por um grupo de vizinhos]. As assembléias locais levarão em conta as ofertas e as demandas; darão a conhecer as decisões de outras assembléias e o estado atual dos projetos em curso ou dos problemas ainda não resolvidos; e fundarão bibliotecas, centrais e redes eletrônicas para reunir e difundir informação de todo tipo e relacionar pessoas de gostos comuns. Os meios serão acessíveis para qualquer pessoa, permitindo-lhes expressar seus próprios projetos, problemas, propostas, críticas, entusiasmos, desejos, visões particulares. As artes e ofícios tradicionais continuarão, mas apenas como uma faceta de uma vida constantemente criativa. As pessoas tomarão todavia parte, com mais entusiasmo que nunca, em desportos e jogos, feiras e festivais, música e dança, fazendo amor e criando suas crianças, construindo e remodelando, ensinando e aprendendo, desfrutando do campo ou viajando; mas novos gêneros e artes de viver que nós quase não podemos imaginar atualmente também se desenvolverão.
Gente mais que suficiente se sentirá atraída pelos projetos socialmente necessários, em agronomia, medicina, engenharia, inovação educativa, restauração do meio ambiente e daí por diante, sem outro motivo senão o fato de achá-los interessantes e satisfatórios. Outros podem preferir atividades menos úteis. Alguns viverão uma vida doméstica bastante tranqüila; outros se lançarão em aventuras mais atrevidas, ou participar de grandes brincadeiras em festas e orgias; outros podem dedicar-se a olhar os pássaros, trocar fanzines, ou colecionar lembranças singulares dos tempos pré-revolucionários, ou qualquer outro de um milhão de projetos. Todos poderão seguir suas próprias inclinações. Se alguém se limita a uma existência de espectador passivo, provavelmente em algum momento se aborrecerá e tentará empresas mais criativas. Caso contrário, isso será assunto seu; que não compete a mais ninguém.
Para quem ache a utopia na terra demasiado insípida e queira apartar-se realmente de tudo, a exploração e colonização do sistema solar — quiçá finalmente incluso a emigração a outras estrelas — aportará uma fronteira que nunca terá fim.
O mesmo pode ser dito sobre as explorações do “espaço interior”.
* * *
Problemas mais interessantes
Uma revolução anti-hierárquica não resolverá todos nossos problemas; simplesmente eliminará alguns dos mais anacrônicos, permitindo-nos atacar problemas mais interessantes.
Se o presente texto parece descuidado de aspectos “espirituais” da vida, é porque eu queria enfatizar alguns assuntos materiais básicos que com freqüência são relevados. Mas estes assuntos materiais são apenas a infra-estrutura. Uma sociedade livre se baseará muito mais na alegria, no amor e na generosidade espontânea do que em regras rígidas ou cálculo egoísta. Podemos provavelmente ter um sentido mais vívido do que teríamos através de visionários como Blake ou Whitman que com debates pedantes acerca de créditos econômicos e delegados revogáveis.
Suspeito que uma vez que as necessidades materiais básicas das pessoas sejam generosamente resolvidas e não mais sujeitas a uma constante barreira de excitação comercial, a maioria (depois de uma breve embriaguez em coisas que previamente estiveram privadas) encontrará a maior satisfação em estilos de vida relativamente simples e desprendidos. As artes eróticas e do paladar serão sem dúvida enriquecidas de muitas formas, mas simplesmente como facetas de vidas plenas e equilibradas, que incluem também uma ampla gama de projetos intelectuais, estéticos e espirituais.
A educação, que não mais se limitará a acondicionar jovens para exercer um papel estreito em uma economia irracional, se converterá em uma atividade entusiasta para toda a vida. Além de qualquer tipo de instituição de educação formal que possa todavia dar-se, as pessoas terão acesso instantâneo através de livros e computadores a informação sobre qualquer tema que queiram explorar, e poderão obter experiência direta em todo tipo de artes e destrezas, ou buscar o que quiserem para instrução ou discussão pessoal — como os antigos filósofos gregos debatendo em público no ágora, ou os monges chineses medievais cruzando as montanhas em busca do mais inspirado mestre Zen.
Os aspectos religiosos que agora servem como mero escape psicológico da alienação social se desvanecerão, mas as questões básicas que têm encontrado uma expressão mais ou menos distorcidas na religião permanecerão. Todavia haverá danos e perdas, tragédias e frustrações, enfrentaremos ainda a enfermidade, o sofrimento e a morte, e no processo de tentar imaginar o que significa tudo isso, se é que significa algo, e o que fazer com ele, alguns redescobrirão aquilo que Aldous Huxley, em A filosofia perene, chama de máximo fator comum da consciência humana.
Pode ser que outros cultivem sensibilidades estéticas esquisitas como os personagens da História de Genji, de Murasaki ou desenvolvam elevados gêneros metaculturais como “El juego de los abalorios” na novela de Hermann Hesse (liberado dos limites materiais que antigamente confinavam tais atividades a pequenas elites).
Me agrada pensar que ao alternar-se, combinar-se e desenvolver-se estas atividades diversas, haverá uma tendência geral para a reintegração pessoal vislumbrada por Blake, e para as genuínas relações “Eu-Tu” previstas por Martin Buber. Uma revolução espiritual permanente na qual a comunhão prazerosa não impedirá a rica diversidade e a “generosa contenção”. As expressões esperançosas de Whitman em Folhas de erva, sobre as potencialidades da América de seu tempo, talvez sejam apropriadas mais do que qualquer coisa para sugerir o estado expansivo da mente de homens e mulheres realizados em suas comunidades, que trabalham e jogam estaticamente, que amam e brincam, que percorrem o infinito Caminho Aberto.
Com a proliferação de culturas que continuamente se desenvolvem e se transformam, a viagem pode chegar a ser de novo uma aventura imprevisível. O viajante poderá “ver as cidades e aprender os costumes de muitas pessoas diferentes” sem os perigos e desilusões enfrentados pelos vagabundos e exploradores do passado. Deslizando de cena em cena, de encontro em encontro; mas detendo-se ocasionalmente, como aquelas figuras humanas apenas visíveis das pinturas paisagísticas chinesas, apenas para contemplar a imensidão, para compreender que todos nossos feitos e ditos são apenas murmúrios na superfície de um vasto, insondável universo.
Estas são apenas algumas propostas. Não nos limitamos a fontes radicais de inspiração. Toda sorte de espíritos criativos do passado têm manifestado ou imaginado algumas de nossas quase ilimitadas possibilidades. Podemos nos inspirar em qualquer um deles na medida em que nos preocupamos por desenredar os aspectos relevantes de seu contexto original alienado.
As maiores obras não nos dizem nada de novo, apenas nos recordam coisas que esquecemos. Todos temos indicações de que a vida pode ser bem mais rica — lembranças da primeira infância quando as experiências eram ainda frescas e não reprimidas, mas também momentos posteriores ocasionais de amor ou camaradagem ou criatividade entusiasta, tempos em que estamos impacientes para que chegue a manhã para continuar algum projeto, ou simplesmente para ver o que trará o novo dia. Extrapolar estes momentos provavelmente nos dá a melhor idéia de como poderia ser o mundo inteiro. Um mundo, como o que Whitman vislumbrou,
Onde os homens e mulheres não levem as leis a sério,
Onde o escravo deixe de existir, e o amo dos escravos,
Onde o populacho se levante imediatamente contra a eterna audácia dos privilegiados,...
Onde as crianças aprendam a operar por conta própria, e a depender de si mesmos,
Onde a equanimidade se reflita em fatos,
Onde as especulações sobre a alma sejam estimuladas,
Onde as mulheres caminhem em procissão pública nas ruas da mesma forma que os homens,
Onde participem na assembléia pública e tomem seus lugares da mesma forma que os homens....
As formas primordiais surgem!
Formas da democracia total, resultado de séculos,
Formas que projetam inclusive outras formas,
Formas de turbulentas cidades masculinas,
Formas dos amigos e anfitriões do mundo,
Formas que abraçam a terra, e são abraçadas por toda a terra.
NOTAS
1. P.M.: Bolo’bolo (1983; nova edição: Semiotext(e), 1995) tem o mérito de ser uma das poucas utopias que reconhece e aprova plenamente esta diversidade. Deixando de lado suas ligeirezas, idiossincrasias e suas noções pouco realistas sobre como podemos chegar até elas, toca um monte de problemas e possibilidades de uma sociedade pós-revolucionária.
2. Embora a chamada revolução em rede tenha se limitado até aqui principalmente à circulação incrementada de trivialidades para espectadores, as modernas tecnologias da comunicação continuam jogando um importante papel minando os regimes totalitários. Durante anos os burocratas estalinistas mutilaram seu próprio funcionamento restringindo a acessibilidade das máquinas de escrever e fotocopiadoras para que elas não fossem utilizadas na reprodução de escritos samizdat. As tecnologias mais novas têm se revelado mais difíceis de controlar:
“O diário conservador Guangming Daily informa novas medidas de reforço destinadas a cerca de 90.000 fax ilegais em Pequim. Os especialistas em assuntos chineses afirmam que o regime teme que a proliferação de máquinas de fax permita que a informação flua demasiado rápido. Tais máquinas foram utilizadas extensivamente durante as manifestações estudantis em 1989 que resultaram em uma repressão militar... No conforto de suas próprias residências nas capitais do ocidente, como Londres, os opositores podiam enviar mensagens aos ativistas da Arábia Saudita que, descarregando-as via Internet em suas próprias casas, já não tinham que temer que alguém batesse na porta no meio da noite... Todo assunto tabu da política à pornografia se espalha mediante mensagens eletrônicas anônimos bem além das garras de aço do governo.... Muitos sauditas se viram discutindo abertamente sobre religião pela primeira vez. Ateus e fundamentalistas se atracam no ciberespaço saudita, uma novidade em um país onde o castigo por apostasia é a morte.... Mas proibir Internet não é possível a não ser que se desliguem todos os computadores e linhas telefônicas.... Os especialistas afirmam que aqueles que trabalharem suficientemente duro podem conseguir, todavia é pouco o que qualquer governo pode fazer para impedir totalmente o acesso à informação na Internet. Correios encriptados e subscrições em provedores de serviço fora do país são duas opções de segurança acessíveis aos indivíduos “informaticamente” avisados para evitar os atuais controles da Internet... Se há algo que os governos repressivos asiáticos temem mais que o acesso sem restrição a recursos mediáticos exteriores, é que a competitividade de suas nações na rapidamente crescente indústria da informação possa ver-se comprometida. Já não mais se ouve altos protestos dos círculos comerciais de Singapura, Malásia, e China de que censurando a Internet podem, finalmente, atrapalhar as aspirações das nações de serem tecnologicamente as mais avançadas da região”. (Christian Science Monitor, 11 agosto 1993, 24 agosto 1995 e 12 novembro 1996.)
3. “Na era de pós-guerra fria os políticos descobriram na perseguição dos criminosos um substituto à perseguição da esquerda. Assim como o medo ao comunismo propagou uma expansão sem impedimentos do complexo industrial-militar, a perseguição ao crime produziu um crescimento explosivo do complexo industrial-correcional, também conhecido como indústria do controle do crime. Os que discordam da agenda de mais prisões são marcados como simpatizantes de criminosos e traidores das vítimas. Como nenhum político se arrisca a levar o rótulo de “brando contra o crime”, uma espiral interminável de políticas destrutivas está varrendo o país.... A repressão e a brutalidade será melhor promovida pelas instituições diretamente beneficiadas por tais políticas. A Califórnia incrementou sua população de presidiários de 19.000 para 124.000 pessoas nos últimos 16 anos, pela construção de mais 19 novas prisões. Com o incremento das prisões, a Associação de Funcionários pela Paz nos Correcionais da Califórnia (CCPOA), o sindicato de carcereiros, emergiu como o mais poderoso lobby do estado.... Ao mesmo tempo em que as verbas estatais dedicadas à educação superior cai de 14,4% para 9,8%, as verbas dedicadas às prisões aumenta de 3,9% para 9.8%. O salário médio de um guarda de presídio na Califórnia ultrapassa 55.000 dólares — o mais alto da nação. Este ano a CCPOA, juntamente com a Associação Nacional do Rifle, tem dedicado uma grande quantidade de dinheiro na promoção e aprovação da lei “three strikes, you’re out”, [a terceira condenação implica automaticamente em prisão perpétua]. O que significa triplicar o tamanho atual do sistema prisional da Califórnia. As mesmas dinâmicas que se desenvolvem na Califórnia resultaram certamente do projeto de lei anti-crime de Clinton. Na medida em que uma parte cada vez maior de recursos é investido na indústria do controle do crime, seu poder e influência crescerá”. (Dan Macallair, Christian Science Monitor, 20 setembro 1994.)
4. Outras possibilidades são apresentadas bem detalhadamente no Workers’ Councils and the Economics of a Self-Managed Society (edição feita pelo Solidarity de Londres sobre um artigo de Socialisme ou Barbarie de Cornelius Castoriadis). Este texto está carregado de valiosas sugestões, mas peca por assumir a vida centrada em torno do trabalho e do local de trabalho bem mais do que seria necessário. Tal orientação já está um tanto quanto obsoleta e provavelmente estará mais ainda depois de uma revolução.
Michael Albert e Robin Hahnel: Looking Forward: Participatory Economics for the Twenty First Century (South End, 1991) inclui também uma série de observações úteis sobre a organização autogestiva. Mas os autores assumem uma sociedade sob uma economia monetária e o trabalho semanal é restrito a apenas 30 horas. Seus exemplos hipotéticos são em grande medida modelados nas cooperativas de trabalhadores atuais e na “participação econômica” prevista. Inclui temas de mercado que seriam superados em uma sociedade não capitalista. Como podemos ver, tal sociedade também tem uma semana laboral bem mais curta, reduzindo a necessidade de preocupar-se com os complicados esquemas de rodízio em diferentes tipos de trabalho que ocupa uma grande parte do livro.
5. Fredy Perlman, autor de uma das expressões mais extremas desta tendência, Against His-story, Against Leviathan! (Black & Red, 1983), aporta a melhor crítica de sua própria perspectiva em seu livro anterior sobre C. Wright Mills, The Incoherence of the Intellectual (Black & Red, 1970): “Mills rechaça a passividade com que os homens aceitam sua própria fragmentação, não mais lutam contra ela. O homem autodeterminado e coerente tornou-se uma criatura exótica que viveu em um passado distante e em circunstâncias materiais extremamente diferentes.... O movimento fundamental já não é mais o programa da direita que pode se opor ao programa da esquerda; agora é um espetáculo externo que segue seu curso como uma enfermidade.... A fenda entre a teoria e a prática, o pensamento e a ação, se amplia; os ideais políticos já não mais podem ser traduzidos em projetos práticos”.
6. Isaac Asimov e Frederick Pohl: Our Angry Earth: A Ticking Ecological Bomb (Tor, 1991) está entre os resumos mais convincentes desta situação desesperadora. Demonstra a inadequação das políticas atuais para resolver o problema, os autores propõem algumas drásticas reformas que podem postergar as piores catástrofes; mas não é provável que tais reformas sejam implementadas enquanto o mundo estiver dominado por interesses conflitantes de estados-nação e corporações multinacionais.
7. Para uma boa quantidade de sugestões sobre as vantagens e inconvenientes de diferentes tipos de comunidades urbanas, passado, presente e potencial, recomendo dois livros: Paul e Percival Goodman: Communitas y Lewis Mumford: The City in History. O último é uma das mais penetrantes e compreensivas análises da sociedade humana jamais escritas.
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Em tradução livre por Railton Sousa Guedes — Coletivo Periferia
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Coletivo Periferia, Caixa Postal 52550, CEP 08050-710, S. Miguel Pta. S.Paulo-SP, Brasil
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Junho 2003
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