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Cecília Meireles

VIAGEM

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Viagem
Cecília Meireles
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ÍNDICE

Nota do Editor
Viagem
Índice da Obra


Nota do Editor

 

À maneira dos antigos copistas, esta edição é uma transcrição da primeira edição do livro que consagrou Cecília Meireles como a grande poetisa da língua portuguesa.

Não se trata, note-se bem, de uma reprodução da edição original, que só seria possível em papel, mas de uma mera transcrição, na qual se cuidou de manter, na medida de nossos recursos e atenção, a grafia e apresentação da edição original.

Os estudiosos da obra de Cecília Meireles, tenho certeza, apreciarão esta publicação, que mantém, com as ressalvas acima, todas as grafias do original. Além de ajudá-los em seus estudos comparativos, é uma prova testemunhal, acessível a todos, de um dos motivos prováveis do poema Errata.

Os demais leitores talvez apreciem mais as edições posteriores, revisadas pela Autora, como o excelente e bem documentado Cecília Meireles - Obra Poética, volume único, editado pela Aguilar.

Laureado com o primeiro prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 1939, publicado no ano seguinte em Lisboa pelas Edições «Ocidente», com impressão a cargo da «Editorial Império» que a finalizou em 24 de julho de 1939, a presente edição é rara não apenas por se tratar da transcrição da primeira edição.

Até ontem, era um exemplar único (em papel continua sendo) amarelecendo em minha estante, graças à ação do tempo: o mesmo tempo que torna a poesia de C.M. cada vez melhor.

Enriquecido com a colagem de uma foto de revista da época, uma foto original, encimando autógrafo e precedendo ficha catalográfica revista pela autora, pelo trabalho de um amante de bons livros, o Coronel Zacarias Silva, é este o exemplar que, virtualmente, compartilho com o leitor.

Esta edição é dedicada ao Coronel Zacarias Silva, a quem devo mais do que a preservação e o enriquecimento desta primeira edição de Viagem.

Não o conheci pessoalmente. Mas, pelos livros de sua biblioteca que meus parcos recursos permitiram resgatar em um antigo sebo que ficava do outro lado da rua do prédio número 950 da Av. Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, nos anos 60, gostaria de o ter conhecido.

Todos primeiras edições, autografadas, bem conservadas, com cuidadosas fichas catalográficas datilografadas revistas pelos autores e devidamente rubricadas pelo Coronel.

A venda de dois deles (primeiras edições autografadas de Jorge Amado e Graciliano Ramos, vendidas a Ricardo Ramos, graças aos bons ofícios de Luís Eça) me ajudou a fazer frente às despesas com o parto de minha primeira filha, meu orgulho... e do teatro nacional, corujice anexa.

Por tudo isso, dedico esta edição à memória do Coronel Zacarias Silva, com meus agradecimentos.

Importante: O leitor é convidado a ler a nota de copyright desta edição.


 


 

 





 

 

 

 

A MEUS AMIGOS PORTUGUESES

 

 


 

EPIGRAMA N. I

 

POUSA sôbre êsses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:
flor do espírito, desinteressada e efêmera.

Por ela, os homens te conhecerão:
por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inùtilmente,
quando por êle andou teu coração.


 

MOTIVO

 

EU CANTO porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gôzo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Si desmorono ou si edifico,
si permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei si fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

 


 

NOITE

 

HUMIDO gôsto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.

A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
— sòzinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.

Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrêlas e o vento.

 


 

ANUNCIAÇÃO

 

TOCA essa música de sêda, frouxa e trêmula,
que apenas embala a noite e balança as estrêlas noutro mar.

Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quási desmanchados no vento.

E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.

Toca essa música de sêda, entre areias e nuvens e espumas.

Os remos pararão no meio da onda, entre os os peixes suspensos:
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à-tôa.

Cessará esta música de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.

E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.

 


 

DISCURSO

 

E AQUI estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajectória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

 


 

EXCURSÃO

 

ESTOU vendo aquele caminho
cheiroso da madrugada:
pelos muros, escorriam
flores moles da orvalhada;
na côr do céu, muito fina,
via-se a noite acabada.

Estou sentindo aqueles passos
rente dos meus e do muro.

As palavras que escutava
eram pássaros no escuro...
Passáros de voz tão clara,
voz de desenho tão puro!

Estou pensando na folhagem
que a chuva deixou polida:
nas pedras, ainda marcadas
de uma sombra humedecida.
Estou pensando o que pensava
nesse tempo a minha vida.

Estou diante daquela porta
que não sei mais se ainda existe...
Estou longe e fóra das horas,
sem saber em que consiste
nem o que vai nem o que volta...
sem estar alegre nem triste,

sem desejar mais palavras
nem mais sonhos, nem mais vultos,
olhando dentro das almas,
os longos rumos ocultos,
os largos itinerários
de fantasmas insepultos...

— itinerários antigos,
que nem Deus nunca mais leva.
Silêncio grande e sòzinho,
todo amassado com treva,
onde os nossos giram
quando o ar da morte se eleva.

 


 

RETRATO

 

EU NÃO tinha êste rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem êstes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem fôrça,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha êste coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espêlho ficou perdida
a minha face?


 

MÚSICA

 

NOITE perdida,
Não te lamento:
embarco a vida

no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,

puro e sem nada,
— rosa encarnada,
intacta, ao vento.

Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,

e ressuscitada...
(Asa da lua
quási parada,

mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua

a minha vida
num chão profundo!
— raíz prendida

a um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,

muda alvorada
que o pensamento
deixa confiada

ao tempo lento..
Minha partida,
minha chegada,

é tudo vento...

Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada...

 


 

EPIGRAMA N.o 2

 

ÉS PRECÁRIA e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Fôste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas tôdas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.


 

SERENATA

 

REPARA na canção tardia
que tìmidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.

O orvalho treme sôbre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sôbre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.

 


 

A ÚLTIMA CANTIGA

 

NUM dia que não se adivinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-me: «Era a expressão
que ela ùltimamente tinha.»

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha bôca estremeça,
— toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gôsto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito: «N ã o».

E ondas seguidas de saüdade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.

 


 

CONVENIÊNCIA

 

CONVÉM que o sonho tenha margens de nuvens rápidas
e os pássaros não se expliquem, e os velhos andem pelo sol,
e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticídio

Convém tudo isso, e muito mais, e muito mais...
E por êsse motivo aqui vou, como os papéis abertos
que caem das janelas dos sobrados, tontamente...

Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo.

E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria.
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei: «Que bom! nem é preciso respirar!...»


 

CANÇÃO

 

PUS o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a côr que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto fôr preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

 


 

PERSPECTIVA

 

TUA passagem se fez por distâncias antigas.
O silêncio dos desertos pesava-lhe nas asas
e, juntamente com êle, o volume das montanhas e do mar.

Tua velocidade desloca mundos e almas.
Por isso, quando passaste, caíu sôbre mim tua violência
e desde então alguma coisa se aboliu.

Guardo uma sensação de drama sombrio, com vozes de ondas lamentando-me.
E a multidão das estrêlas avermelhadas fugindo com o céu para longe de mim.

Os dias que veem são feitos de vento plácido e apagam tudo.
Dispensam a sombra dos gestos sobre os cenários.
Levam dos lábios cada palavra que desponta.
Gastam o contôrno da minha síntese.
Acumulam ausência em minha vida...

Oh! um pouco de neve matando, docemente, fôlha a fôlha...

Mas a seiva lá dentro continua, sufocada,
nutrindo de sonho a morte.


 

CANÇÃO

 

NUNCA eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na bôca,
e depois no teu ouvido.

Levou sòmente a palavra,
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só si aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...

 


 

SOLIDÃO

 

IMENSAS noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.

Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrêlas.

A noite fecha seus lábios
— terra e céu — guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.

 


 

ACEITAÇÃO

 

É MAIS fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrêlas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrêlas, nem as formas do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.


 

EPIGRAMA N.o 3

 

MUTILADOS jardins e primaveras abolidas
abriram seus miraculosos ramos
no cristal em que pousa a minha mão.

(Prodigioso perfume!)

Recompuseram-se tempos, formas, côres, vidas...

Ah! mundo vegetal, nós, humanos, choramos
só da incerteza da ressureição.


 

MURMÚRIO

 

TRAZE-ME um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
— vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saüdade da flor!
— Vê que nem te digo — esperança!
— Vê que nem siquer sonho — amor!


 

CANÇÃO

 

NO DESEQUILÍBRIO dos mares,
as proas giraram sòzinhas...
Numa das naves que afundaram
é que tu certamente vinhas.

Eu te esperei todos os séculos,
sem desespêro e sem desgôsto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,
meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sôbre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a côr que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caíu de mim:
e só talvez êle ainda viva
dentro dessas águas sem fim.

 


 

GARGALHADA

 

HOMEM vulgar! Homem de coração mesquinho!
eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espêlhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpolas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espêlhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas. Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trémulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.


 

FIM

 

Ó TEMPOS de incerta esperança
que assim vos desacreditastes!
Cresceram nuvens sôbre a lua
e o vento passou pelas hastes.

Vinde vêr meu jardim sem flôres
no presente nem no futuro,
e a mão das águas procurando
um rumo pelo solo escuro!

Vinde ouvir a história da vida
no sôpro da noite deserta.
Caíram as sombra das vozes
dentro da última estrêla aberta.

Ai! tudo isto é letra do horóscopo...
E só tu, Estátua, resistes!
— Mas, embora nunca te quebres,
terás sempre os olhos mais tristes.

 


CRIANÇA

 

CABECINHA boa de menino triste,
de menino triste que sofre sòzinho,
que sòzinho sofre, — e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo mêdo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sôbre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para vêr passar numa onda lenta e fria
a estrêla perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

 


 

DESAMPARO

 

DIGO-TE que podes ficar de olhos fechados sôbre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem côr e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?


 

FIO

 

NO FIO da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o pêso do meu coração.

Tu não vês o jôgo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrêlas na mão...

— para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?


 

INVERNO

 

CHOVEU tanto sôbre o teu peito
que as flores não podem estar vivas
e os passos perderam a fôrça
de buscar estradas antigas.

Em muita noite houve esperanças
abrindo as asas sôbre as ondas.
Mas o vento era tão terrível!
Mas as águas eram tão longas!

Pode ser que o sol se levante
sôbre as tuas mãos sem vontade
e encontres as coisas perdidas
na sombra em que as abandonaste.

Mas quem virá com as mãos brilhantes
trazendo o seu beijo e o teu nome,
para que saibas que és tu mesmo,
e reconheças o teu sonho?

A primavera foi tão clara
que se viram novas estrêlas,
e soaram no cristal dos mares,
lábios azues de outras sereias.

Vieram, por ti, músicas límpidas,
trançando sons de ouro e de sêda.
Mas teus ouvidos noutro mundo
desalteravam sua sêde.

Cresceram prados ondulantes
e o céu desenhou novos sonhos,
e houve muitas alegorias
navegando entre Deus e os homens.

Mas tu estavas de olhos fechados
prendendo o tempo em teu sorriso.
E em tua vida a primavera
não poude achar nenhum motivo...

 


 

EPIGRAMA N.o 4

 

O CHÔRO vem perto dos olhos
para que a dôr transborde e caia.
O chôro vem quasi chorando
como a onda que toca na praia.

Descem dos céus ordens augustas
e o mar chama a onda para o centro.
O chôro foge sem vestígios,
mas levando náufragos dentro.


 

ORFANDADE

 

A MENINA de preto ficou morando atrás do tempo,
sentada no banco, debaixo da árvore,
recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,
murmurou: «A MAMÃE MORREU».

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caíu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
escutando na terra aquele dia que não dorme
com as três palavras que ficaram por alí.


 

ALVA

 

DEIXEI meus olhos sòzinhos
nos degraus da sua porta.
Minha bôca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua bôca há uma estrêla.
Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.

Seus olhos andam cobertos
de côres da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.

Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saüdade das esperanças
quando se acabar o mundo...

 


 

CANTIGUINHA

 

MEUS OLHOS eram mesmo água,
— te juro —
mexendo um brilho vidrado,
verde-claro, verde-escuro.

Fiz barquinhos de brinquedo,
— te juro —
fui botando todos êles
naquele rio tão puro.

.....................

Veiu vindo a ventania,
— te juro —
as águas mudam seu brilho,
quando o tempo anda inseguro.

Quando as águas escurecem,
— te juro —
todos os barcos se perdem,
entre o passado e o futuro.

São dois rios os meus olhos,
— te juro —
noite e dia correm, correm,
mas não acho o que procuro.

 


 

TERRA

 

DEUSA dos olhos volúveis
pousada na mão das ondas:
em teu colo de penumbras,
abri meus olhos atónitos.
Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.

Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncios.

Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no eléctrico
mar azul, cheio de músicas.

Desci na sombra das ruas,
como pelas tuas veias:
meu passo — a noite nos muros —
casas fechadas — palmeiras —
cheiro de chácaras húmidas —
sono da existência efêmera.

O vento das praias largas
mergulhou no teu perfume
a cinza das minhas máguas.
E tudo caíu de súbito,
junto com o corpo dos náufragos,
para os invisíveis mundos.

Vi tantos rôstos ocultos
de tantas figuras pálidas!
Por longas noites inúmeras,
em minha assombrada cara
houve grandes rios mudos
como os desenhos dos mapas.

Tinhas os pés sobre flôres,
e as mãos prêsas, de tão puras.
Em vão, suspiros e fomes
cruzavam teus olhos múltiplos,
despedaçando-se anônimos,
diante da tua altitude.

Fui mudando minha angústia
numa fôrça heróica de asa.
Para construir cada músculo,
houve universos de lágrimas.
Devo-te o modêlo justo:
sonho, dor, vitória e graça.

No rio dos teus encantos,
banhei minhas amarguras.
Purifiquei meus enganos,
minhas paixões, minhas dúvidas.
Despi-me do meu desânimo —
fui como ninguém foi nunca.

Deusa dos olhos volúveis,
rôsto de espêlho tão frágil,
coração de tempo fundo,
— por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.

E êsse foi o meu estudo
para o ofício de ter alma;
para entender os soluços,
depois que a vida se cala.
— Quando o que era muito é único
e, por ser único, é tácito.

 


 

ÊXTASE

 

DEIXA-TE estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvação.

Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.

Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saüdade.
Deslisam os planetas, na abundância do tempo que cai.
Nós somos um tênue pólen dos mundos...

Deixa-te estar neste embalo de água geando círculos.
Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras ambíguas.

Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.

Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a bôca da vontade e os seus pedidos...

 


 

SOM

 

ALMA divina,
por onde me andas?
Noite sòzinha,
lágrimas, tantas!

Que sôpro imenso,
alma divina,
em esquecimento
desmancha a vida!

Deixa-me ainda
pensar que voltas,
alma divina,
coisa remota!

Tudo era tudo
quando eras minha,
e eu era tua,
alma divina!

 


 

GUITARRA

 

PUNHAL de prata já eras,
punhal de prata!
Nem fôste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
— no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

a exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.

 


 

DISTÂNCIA

 

QUANDO o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve sêco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria...


 

EPIGRAMA N.o 5

 

GOSTO de gota d'água que se equilibra
na fôlha rasa, tremendo ao vento.

Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.

Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
pronto a cair, pronto a ficar — límpido e exato.

E a fôlha é um pequeno deserto
para a imensidade do acto.


 

CAMPO

 

CAMPO da minha saüdade:
vai crescendo, vai subindo,
de tanto jazer sem nada.

Desvêlo mudo e contínuo
que vai revestido os montes
e estendendo outros caminhos.

Mergulhada em suas frondes,
a tristeza é uma esperança
bebendo a vazia sombra.

Águas que vão caminhando
dispersam nos mares fundos
mel de beijo e sal de pranto.

Levam tudo, levam tudo
agasalhado em seus braços

Campo imenso — com o meu vulto...

E ao longe cantam os pássaros.

 


 

RIMANCE

 

ONDE é que dói na minha vida,
para que eu me sinta tão mal?
quem foi que me deixou ferida
de ferimento tão mortal?

Eu parei diante da paisagem:
e levava uma flor na mão.
Eu parei diante da paisagem
procurando um nome de imagem
para dar à minha canção.

Nunca existiu sonho tão puro
como o da minha timidez.
Nunca existiu sonho tão puro,
nem também destino tão duro
como o que para mim se fez.

Estou caída num vale aberto,
entre serras que não teem fim.
Estou caída num vale aberto:
nunca ninguém passará perto,
nem terá notícias de mim.

Eu sinto que não tarda a morte,
e só há por mim esta flor:
eu sinto que não tarda a morte
e não sei com é que suporte
tanta solidão sem pavor.

E sofro mais ouvindo um rio
que ao longe canta pelo chão,
que deve ser límpido e frio,
mas sem dó nem recordação,
como a voz cujo murmúrio
morrerá com o meu coração.


 

RENÚNCIA

 

RAMA das minhas árvores mais altas,
deixa ir a flor! que o tempo, ao desprendê-la,
roda-a no molde de noites e de albas
onde gira e suspira cada estrêla.

Deixa ir a flor! deixa-a ser asa, espaço,
ritmo, desenho, música absoluta,
dando e recuperando o corpo esparso
que, indo e vindo, se observa, e ordena, e escuta...

Falo-te, por saber o que é perder-se.
Conheço o coração da primavera,
e o dom secreto do seu sangue verde,
que num breve perfume existe e espera.

Vertí para infinitos desamparos
tudo que tive no meu pensamento.
Por onde anda? No abismo. Dada ao vento...
Era a flor dos instantes mais amargos.

 


 

PAUSA

 

AGORA é como depois de um entêrro.
Deixa-me neste leito, do tamanho do meu corpo,
junto à parêde lisa, de onde brota um sono vazio.

A noite desmancha o pobre jôgo das variedades.
Pousa a linha do horizonte entre as minhas pestanas,
e mergulha silêncio na última veia da esperança.

Deixa tocar êsse grilo invisível
— mercúrio tremendo na palma da sombra —
deixa-o tocar a sua música, suficiente
para cortar todo arabesco da memória...


 

VINHO

 

A TAÇA foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebí
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.

Desde essa hora antiga e preclara,
insensìvelmente descí,
e em meu pensamento sentí
o desgôsto de ser criatura.

Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te ví,
como que desapareci...
Rondo triste, à minha procura.

A taça foi brilhante e rara:
mas, com certeza enlouquecí.
E dêsse vinho que bebí
se originou minha loucura.

 


 

VALSA

 

FEZ TANTO luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tormei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sôbre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fóra do mundo...
— Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.


 

GRILO

 

MÁQUINA de ouro a rodar na sombra,
serra de cristal a serrar estrêlas...

Caem pedaços de sono, entre os silêncios,
em grandes flores, mornas e dóceis,
com o pêso e a côr de vagas borboletas.

Rostos de espuma, nomes de cinza,
— a vida sobe nos caules da noite, pouco a pouco.

Máquina de ouro tremendo no ar de vidro frio,
cortando o brôto das palavras rente à bôca...

Demanchando nos dedos arquitecturas que iam parando,
e livros de imagens que o vento compunha, ilògicamente.

Ah! que é dos ramos de estrêlas finamente desprendidas,
pela sonora lâmina que estás vibrando sempre, sempre?

Que é das noites extensas, de ares mansos de alegrias,
sem ruas, sem habitantes, sem solidão, sem pensamento?

Que é das mãos esperando o amanhecer definitivo
e caídas também na torrente do tempo?


 

DESCRIÇÃO

 

HÁ UMA água clara que cai sôbre pedras escuras
e que, só pelo som, deixa ver como é fria.

Há uma noite por onde passam grandes estrêlas puras.
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.

Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.

E a água cai, refletindo estrêlas, céu, folhagem...
Cai para sempre!

E duas mãos nela mergulham com tristeza,
deixando um esplendor sôbre a sua passagem.

(Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
para fóra da natureza,

onde não chegará nunca esta água imprecisa,
que nasce e deslisa, que nasce e deslisa...)

 


 

EPIGRAMA N.o 6

 

NESTAS pedras caíu, certa noite, uma lágrima.
O vento que a secou deve estar voando noutros países,
o luar que a estremeceu tem olhos brancos de cegueira,
— esteve sôbre ela, mas não viu seu esplendor.

Só, com a morte do tempo, os pensamento que a choraram
verão, junto ao universo, como foram infelizes,
que, uma lágrima foi, naquela noite a vida inteira,
— tudo quanto era dar, — a tudo que era opôr.


 

ATITUDE

 

MINHA esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarão sôbre espêlhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrêlas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.


 

CORPO NO MAR

 

ÁGUA DENSA do sonho, quem navega?
Contra as auroras, contra as baías:
barca imóvel, estrêla cega.

Bate o vento na vela e não a arqueia.
— Não foi por mim!
Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
os remos entraram por dentro da areia...

Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
— Inútil forçá-los — alastram-se, fogem
na sombra secreta de eternos países...

Mudou-se a vela em nuvem clara!
Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
— Alto e longe! — Não foi por mim...

E apenas pára
um corpo na barca vazia,
à mercê das metamorfoses,
olhos vertendo melancolia...

O vento sopra no coração.

Adeus a todos os meridianos!
Deito-me como num caixão.

Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
«Marinheiro! Marinheiro!»

(Ilhas...Pássaros...Portos... — nêsse ruído,
— O mar...O mar!...O mar inteiro!...)

Mas é tempo perdido!


 

LUAR

 

FACE do muro tão plana,
com o sabugueiro florido.

O luar parece que abana
as ramagens na parede.

A noite tôda é um zumbido
e um florir de vagalumes.

A bôca morre de sêde
junto à frescura dos galhos.

Andam nascendo os perfumes
na sêda crespa dos cravos.

Brota o sono dos canteiros
como o cristal dos orvalhos.


 

DIÁLOGO

 

MINHAS palavras são a metade de um diálogo obscuro
continuado através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.

Nossas perguntas e respostas se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.

Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...

E um mar de estrêlas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.


 

ESTRÊLA

 

QUEM VIU aquele que se inclinou sôbre palavras trémulas,
de relêvo partido e de contôrno perturbado,
querendo achar lá dentro o rôsto que dirige os sonhos,
para ver si era o seu que lhe tivessem arrancado?

Quem foi que o viu passar com sues ímãs insones,
buscando o polo que girava sempre no vento?
— Seus olhos iam nos pés, destruindo tôdas as raízes líricas,
e em suas mãos sangrava o pensamento.

E era o seu rôsto, sim, que estava entre versos andróginos,
prêso em círculos de ar, sôbre um instante de festa!
Bôca fechada sob flores venenosas,
e uma estrêla de cinza na testa.

Bem que êle quis chamar pelo seu nome em voz muito alta,
— mas o desejo não foi além do seu pescoço.
E ficou diante de sua cabeça, estruturando-se
como o frio dentro de um pôço.

E não poude contar a ninguém seu fim quimérico.
A ninguém. Pois a língua que fôra sua estava morta,
e êle era um prisioneiro entre paredes transparentes,
entre paredes transparentes, mas sem porta.

Disto êle soube. O que nunca entendeu, porém, e o que lhe amarra
o coração com ardents cordas de desgôsto
é aquela estrêla de cinza — aquela estrêla grande e plácida —
derramando sombra em seu rôsto.


 

DESVENTURA

 

TU ÉS como o rôsto das rosas:
diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.

Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
como um segrêdo que cai do sonho.

Depois, abri as mãos, — e perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.


 

NOTURNO

 

VOLTO a cabeça para a montanha
e abandono os pés para o mar.
— Coitado de quem está sòzinho
e inventa sonhos com que sonhar!

Minhas tranças descem pela casa abaixo,
entram nas paredes, vão te procurar.
Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos.
— Querido, querido, devias voltar.

Meus braços caminham pelas ruas quietas:
— caminho de rios, fluidez de luar... —
levam minhas mãos por todo o seu corpo:
— Querido, querido, devias voltar.

Partem os meus olhos, parte a minha bôca,
Na noite deserta, ninguém vê passar,
pedaço a pedaço, minha vida inteira,
nem na tua casa me escutam chegar.

Meu quarto vazio só pensa que durmo...

Coitado de quem está sòzinho
e assiste o seu próprio sonhar!

 


 

NOÇÕES

 

ENTRE MIM e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gôsto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sôbre a minha própria existência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e êste abandono para além da felicidade e da beleza.

Oh! meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sôbre êste corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sôbre a areia passiva e inúmera...

 


 

EPIGRAMA N.o 7

 

A TUA RAÇA de aventura
quis ter a terra, o céu, o mar.

Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar...

A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.

A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.


 

REALEJO

 

MINHA vida bela,
Minha vida bela,
nada mais adianta
si não há janela
para a voz que canta...

Preparei um verso
com a melhor medida:
rôsto do universo,
bôca da minha vida.

Ah! mas nada adianta,
olhos de luar,
quando se planta
hera no mar,

nem quando se inventa
um colar sem fio,
ou se experimenta
abraçar um rio...

Alucinação
da cabeça tonta!

Tudo se desmonta
em côres e vento
e velocidade.
Tudo: coração,
olhos de luar,
noites de saüdade.

Aprendi comigo.
Por isso, te digo,
minha vida bela,
nada mais adianta,
si não há janela
para a voz que canta...


 

FADIGA

 

ESTOU tão cansada, tão cansada,
estou tão cansada! Que fiz eu?
Estive embalando, noite e dia,
um coração que não dormia
desde que o seu amor morreu.

Eu lhe dizia: «Deixa a morte
levar teu amor! Não faz mal.
É mais belo êsse heroísmo triste
de amar uma coisa que existe
só para morrer, afinal...»

«Deixa a morte... Não chores... dorme!»
Noite e dia eu cantava assim.
Mas o coração não falava:
chorava baixinho, chorava,
mesmo como dentro de mim.

Era um coração de incertezas,
feito para não ser feliz;
querendo sempre mais que a vida —
— sem termo, limite, medida,
com poucas vezes se quis.

O tempo era ríspido e amargo.
Vinha um negro vento do mar.
Tudo gritava, noite e dia,
— e nunca ninguém ouviria
aquele coração chorar.

Uma noite, dentro da sombra,
dentro do chôro, a sua voz
disse uma coisa inesperada,
que logo correu, derramada
num silêncio fino e veloz.

«Meu amor não morreu: perdeu-se.
Êle existe. Eu não o quero mais.»
O chôro foi levando o resto.
Eu nem pude fazer um gesto,
e achei as horas desiguais.

E achei que o vento era mais forte,
que o frio causava aflição;
quis cantar, mas não foi preciso.
E o ar estava muito indeciso
para dar vida a uma canção.

A sorte virara no tempo
como um navio sôbre o mar.
O chôro parou pela treva.
E agora não sei quem me leva
daqui para qualquer lugar,

onde eu não escute mais nada,
onde eu não saiba de ninguém,
onde deite a minha fadiga
e onde murmure uma cantiga
para ver si durmo, também.


 

HORÓSCOPO

 

DEVIAM ser Venus
e Júpiter, sim,
que ao menos, ao menos,
olhassem por mim,
gerando caminhos
claros e serenos
por onde passar
quem vinha nutrida
de secretos vinhos,

perdida, perdida,
de amor e pensar.

Saturno, porém,
Saturno, o sombrio,
se precipitou.

Não sabe ninguém
que rio, que rio
de luto circunda
a terra profunda
que piso e que sou;

que noite reveste
o mundo em que passo
e os mundos que penso...

Que longo, alto, imenso,
calado cipreste
sobe, ramo a ramo,
entre o meu abraço
e o abraço que amo!


 

RESSUREIÇÃO

 

NÃO CANTES, não cantes, porque veem de longe os náufragos,
veem os prêsos, os tortos, os monges, os oradores, os suicidas.
Veem as portas, de novo, e o frio das pedras, das escadas,
e, numa roupa preta, aquelas duas mãos antigas.

E uma vela de móvel chama fumosa. E os livros. E os escritos.
Não cantes. A praça cheia torna-se escura e subterrânea.
E meu nome se escuta a si mesmo, triste e falso.

Não cantes, não. Porque era a música da tua
voz que se ouvia. Sou morta recente, ainda com lágrimas.

Alguém cuspiu por distração sobre as minhas pestanas.
Por isso vi que era tão tarde.

E deixei nos meus pés ficar o sol e andarem môscas.
E dos meus dentes escorrer uma lenta saliva.
Não cantes, pois trancei o meu cabelo, agora,
e estou diante do espêlho, e sei melhor que ando fugida.

 


 

SERENATA

 

PERMITE que feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sòzinha.
Há uma doce luz no silêncio
e a dôr é de origem divina.

Permite que volte o meu rôsto
para um céu maior que êste mundo,
e aprenda a ser docil no sonho
como as estrêlas no seu rumo.


 

PRAIA

 

NUVEM, caravela branca
no ar azul do meio dia:
— quem te viu como eu te via?

Rolaram trovões escuros
pela vertente dos montes.
Tremeram súbitas fontes.

Depois, ficou tudo triste
como o nome dos defuntos:
mar e céu morreram juntos.

Vinha o vento do mar alto
e levantava as areias,
sem vêr como estavam cheias

de tanta coisa esquecida,
pisada por tantos passos,
quebrada em tantos pedaços!

Por onde ficou teu corpo,
— ilusão de claridade —
quando se fez tempestade?

Nuvem, caravela branca,
nunca mais há meio dia?

(Já nem sei como te via!)


 

SEREIA

 

LINDA é a mulher e o seu canto,
ambos guardados no luar.
Seus olhos doces de pranto
— quem os pode enxugar
devagarinho com a bôca,
ai!
com a bôca, devagarinho...

Na sua voz transparente
giram sonhos de cristal.
Nem ar nem onda corrente
passuem suspiro igual,
nem os búzios nem as violas,
ai!
nem as violas nem os búzios...

Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe...

Mas o mundo está dormindo
em travesseiros de luar.
A mulher do canto lindo
ajuda o mundo a sonhar,
com o canto que a vai matando,
ai!
E morrerá de cantar.


 

ENCONTRO

 

DESDE o tempo sem número em que as origens se elaboram,
se estendem para mim os teus braços eternos,
que um estatuário de caminhos invisíveis
construiu com a côr e o frio e o som morto de mármores,
para que em teu abraço haja imóveis invernos.

Tu bem sabes que sou uma chama da terra,
que ardentes raízes nutrem meu crescer sem termo;
adextrei-me com o vento, e a minha festa é a tempestade,
e a minha imagem, como jôgo e pensamento,
abre em flor o silêncio, para enfeitar alturas e êrmo.

Os teus braços que veem com essa brancura incalculável
que de tão ser sem côr nem se compreende como existe,
— são os braços finais em que cedem os corpos,
e a alma cai sem mais nada, exausta de seu próprio nome,
com uma improvável forma, um vão destino e um pêso triste.

Pois eu, que sinto bem êsses teus braços paralelos,
na atitude sem dôr que é o rumo e o ritmo dessa viagem,
digo que não cairei com uma fadiga permitida,
que não apagarei êste desenho puro e ardente
com que, de fôgo e sangue, foi traçada a minha imagem.

Eu ficarei em ti, mísera, inútil, mas rebelde,
última estrêla só, do campo infiel aos céus escassos.
E tu mesma acharás pasmos de lagos e de areias,
diante da forma exígua, sustentada só de sonho
mantendo chama e flor no gêlo dos teus braços.

 


 

EPIGRAMA N.o 8

 

ENCOSTEI-ME a ti, sabendo bem que eras sòmente onda.
Sabendo bem que eras núvem, depús a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.


 

CANTIGA

 

AI! A MANHÃ primorosa
do pensamento...
Minha vida é uma pobre rosa
ao vento.

Passam arroios de côres
sôbre a paisagem.
Mas tu eras a flor das flôres,
Imagem!

Vinde ver asas e ramos,
na luz sonora!
Ninguém sabe para onde vamos
agora.

Os jardins têm vida e morte,
noite e dia...
Quem conhecesse a sua sorte,
morria.

E é nisto que se resume
o sofrimento:
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!

 


 

CAVALGADA

 

MEU SANGUE corre como um rio
num grande galope,
num ritmo bravio,
para onde acena a tua mão.

Pelas suas ondas revôltas,
seguem desesperadamente
todas as minhas estrêlas soltas,
com a máxima cintilação.

Ouve, no tumulto sombrio,
passar a torrente fantástica!
E, na luta da luz com as trevas,
todos os sonhos que me levas,
dize, ao menos, para onde vão!


 

MEDIDA DA SIGNIFICAÇÃO

 

I

 

PROCUREI-ME nesta água da minha memória
que povoa tôdas as distâncias da vida
e onde, como nos campos, se podia semear, talvez,
tanta imagem capaz de ficar florindo...

Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,
para sentir, na noite, o aroma da minha duração.

Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:
desapareci como aquele — no entanto, árduo — ritmo
que, sôbre fingidos caminhos,
sustentou a minha passagem desejosa.

Acabei-me como a luz fugitiva
que queimou sua própria atitude
segundo a tendência do meu pensamento transformável.

Desde agora, saberei que sou sem rastros.
Esta água da minha memória reüne os sulcos feridos:
as sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.

E aquilo que restaria eternamente
é tão da côr destas águas,
é tão do tamanho do tempo,
é tão edificado de silêncios
que, refletido aqui,
permanece inefável.

 

II

 

Voz obstinada, por que insistes chamando
por um nome que não corresponde mais a mim?

Não é do meu propósito que fiques ao longe sòzinha.
Nem tu sabes que espécie de saüdade abrolha na noite
e como o silêncio tenta mover-se inùtilmente,
quando diriges teus ímãs sonoros,
sondando direções!

Não é do meu propósito, ó voz obstinada,
mas da minha condição.

As aparências dispersaram-se de mim,
como pássaros:
que sol se pode fixar nesta existência,
para te definir a minha aproximação?

Minhas dimensões se aboliram nos limites visíveis:
como podes saber onde me circunscrevo,
e de que modo me pode o teu desejo atingir?

Eu mesma deixei de entender a minha substância;
tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.

Como podes chamar por mim como às coisas concretas,
e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?

 

III

 

Pela experiência do teu contentamento,
crio formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,
e modelo fisionomias com que te possa aparecer.

Pisarei minha solidão com renúncia e alegria
e, por entre caminhos assombrados,
resoluta virei até onde te encontres,
cortando as sombras que crescem como florestas.

Eu mesma me sentirei alucinada e exquisita,
com êsse alento das nebulosas sinistras
que se desenvolvem nas febres.

Não saberei precisamente quando me verás,
nem si compreenderei a linguagem que falas,
e os nomes que teem as tuas realidades
e o tempo dos outros acontecimentos...

Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza
é que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,
embora eu não possa estar mais perto nem mais viva,
e se tenha acabado o caminho que existe entre nós,
e eu não possa prosseguir mais...

 

IV

 

A água da minha memória devora todos os reflexos.

Desfizeram-se, por isso, tôdas as minhas presenças
e sempre se continuarão a desfazer.

É inútil o meu esforço de conservar-me;
todos os dias sou meu completo desmoronamento:
e assisto à decadência de tudo,
nestes espelhos sem reprodução.

Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,
conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.
Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,
para veres o que dêles resta
depois que chegarem a êstes ermos domínios
onde figuras e horas se decompõem.

Não precisaremos falar mais nem sentir:
seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.

E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,
olhando para esta água interminável e muda,
que não floriu, que não palpitou, que não produziu,
de tanto ser puramente imortal...


 

GRILO

 

ESTRELINHA de lata,
assovio de vidro,
no escuro do quarto do menino doente.

A febre alarga
os pulsos hirtos;
mas dentro dos olhos ha um sol contente.

Pássaro de prata
sacudindo guisos
no sonho mágico do menino moribundo.

Gota amarga
dos olhos frios,
rolando, rolando no peito do mundo...


 

ACONTECIMENTO

 

AQUI estou, junto à tempestade,
chorando como uma criança
que viu que não eram verdade
o seu sonho e a sua esperança.

A chuva bate-me no rosto
e em meus cabelos sopra o vento.
Vão-se desfazendo em desgôsto
as formas do meu pensamento.

Chorarei toda a noite, enquanto
perpassa o tumulto nos ares,
para não me veres em pranto,
nem saberes, nem perguntares:

«Que foi feito do teu sorriso,
que era tão claro e tão perfeito?»
E o meu pobre olhar indeciso
não te repetir: «Que foi feito...?»

 


 

EPIGRAMA N.o 9

 

O VENTO voa,
a noite tôda se atordoa,
a fôlha cai.

Haverá mesmo algum pensamento
sôbre essa noite? sôbre êsse vento?
sôbre essa fôlha que se vai?


 

PROVÍNCIA

 

CIDADEZINHA perdida
no inverno denso de bruma,
que é dos teus morros de sombra,
do teu mar de branda espuma,

das tuas árvores frias
subindo das ruas mortas?
Que é das palmas que bateram
na noite das tuas portas?

Pela janela baixinha,
viam-se os círios acêsos,
e as flores se desfolhavam
perto dos soluços presos.

Pela curva dos caminhos,
cheirava a capim e a orvalho
e muito longe as harmônicas
riam, depois do trabalho.

Que é feito da tua praça,
ond a morena sorria
com tanta noite nos olhos
e, na bôca, tanto dia?

Que é feito daquelas caras
escondendo o seu segrêdo?
Dos corredores escuros
com paredes só de mêdo?

Que é feito da minha vida
abandonada na tua,
do instante de pensamento
deixado nalguma rua?

Do perfume que me deste,
que nutriu minha existência,
e hoje é um tempo de saüdade,
sobre a minha própria ausência?

 


 

CANTAR

 

CANTAR de beira de rio;
água que bate na pedra,
pedra que não dá resposta.

Noite que vem por acaso,
trazendo nos lábios negros
o sonho de que se gosta.

Pensamento do caminho
pensando o rosto da flor
que pode vir, mas não vem.

Passam luas — muito longe,
estrêlas — muito impossíveis,
nuvem sem nada, também.

Cantar de beira de rio:
o mundo coube nos olhos,
todo cheio, mas vazio.

A água subiu pelo campo,
mas o campo era tão triste...
Ai!
Cantar de beira de rio.

 


 

DESTINO

 

PASTORA de nuvens, fui posta a serviço
por uma campina tão desamparada
que não principia nem também termina,
e onde nunca é noite e nunca madrugada.

(Pastores da terra, vós tendes sossêgo,
que olhais para o sol e encontrais direção.
Sabeis quando é tarde, sabeis quando é cedo.
Eu, não.)

Pastora de nuvens, por muito que espere,
não há quem me explique meu vário rebanho.
Perdida atrás dele na planície aérea,
não sei si o conduzo, não sei si o acompanho.

(Pastores da terra, que saltais abismos,
nunca entendereis a minha condição.
Pensai que ha firmezas, pensais que ha limites.
Eu, não.)

Pastora de nunvens, cada luz colore
meu canto e meu gado de tintas diversas.
Por todos os lados o vento revolve
os velos instáveis das reses dispersas.

(Pastores da terra, de certeiros olhos,
como é tão serena a vossa ocupação!
Tendes sempre o indício da sombra que foge...
Eu, não.)

Pastora de nuvens, não paro nem durmo
neste móvel prado, sem noite e sem dia.
Estrêlas e luas que jorram, deslumbram
o gado inconstante que se me extravia.

(Pastores da terra, debaixo das folhas
que entornam frescura num plácido chão,
sabeis onde pousam ternuras e sonos.
Eu, não.)

Pastora de nuvens, esqueceu-me o rosto
do dona das reses, do dono do prado.
E às vezes parece que dizem meu nome,
que me andam seguindo, não sei por que lado.

(Pastores da terra, que vedes pessoas
sem serem apenas de imaginação,
podeis encontrar-vos, falar tanta coisa!
Eu, não.)

Pastora de nuvens, com a face deserta,
sigo atrás de formas com feitios falsos,
queimando vigílias na planície eterna
que gira debaixo dos meus pés descalços.

(Pastores da terra, tereis um salário,
e andará por bailes vosso coração.
Dormireis um dia como pedras suaves.
Eu, não.)

 


 

QUADRAS

 

NA CANÇÃO que vai ficando
já não vai ficando nada:
é menos do que o perfume
de uma rosa desfolhada.

///

Os remos batem nas águas:
têm de ferir, para andar.
As águas vão consentindo —
êsse é o destino do mar.

///

Passarinho ambicioso
fez nas nuvens o seu ninho.
Quando as nuvens forem chuva,
pobre de ti, passarinho.

///

O vento do mês de Agosto
leva as folhas pelo chão;
só não toca no teu rosto
que está no meu coração.

///

Os ramos passam de leve
na face da noite azul.
É assim que os ninhos aprendem
que a vida tem norte e sul.

///

A cantiga que eu cantava,
por ser cantada morreu.
Nunca hei de dizer o nome
daquilo que ha de ser meu.

///

Ao lado da minha casa
morre o sol e nasce o vento.
O vento me traz teu nome,
leva o sol meu pensamento.


 

NOTURNO

 

SUSPIRO do vento,
lágrima do mar,
êste tormento
ainda pode acabar?

De dia e de noite,
meu sonho combate:
veem sombras, vão sombras,
não há quem o mate!

Suspiro do vento,
lágrima do mar,
as armas que invento
são aromas no ar!

Mandai-me soldados
de estirpe mais forte,
com tôdas as armas
que levam à morte!

Suspiro do vento,
lágrima do mar,
meu pensamento
não sabe matar!

Mandai-me êsse arcanjo
de verde cavalo,
que desça a êste campo
a desbaratá-lo!

Suspiro do vento,
lágrima do mar,
que leve êsse arcanjo meu longo tormento,
e também a mim, para o acompanhar!


 

ORIGEM

 

O TEMPO gerou meu sonho na mesma roda de alfareiro
que modelou Sirius e a Estrêla Polar.
A luz ainda não nasceu, e a forma ainda não está pronta:
mas a sorte do enigma já se sente respirar.

Não há norte nem sul: e só os ventos sem nome
giram com o nascimento — para o fazerem mais veloz.
E a música geral, que circula nas veias da sombra,
prepara o mistério alado da sua voz.

Meu sonho quer apenas o tamanho da minha alma,
— exato, luminoso e simples como um anel.
De tudo quanto existe, cinge sòmente o que não morre,
porque o céu que o inventou cantava sempre eternidade
rodando a sua argila fiel.


 

FEITIÇARIA

 

NÃO TINHA havido pássaro nem flores
o ano inteiro.
Nem guerras, nem aulas, nem missas, nem viagens
e nem barca e nem marinheiro.

Nem indústria ou comércio, nem jornal nem rádio,
o ano inteiro!
Nem cartas, nem modas. Tudo quanto havia
era o feitiço de um feiticeiro
que toldava o mundo e a melancolia.

Chegaram agora pássaros e flores,
e de novo guerras, aulas, missas, viagens,
e marinheiros com remos e barcas
veem saindo lá do horizonte.

Brotam de novo antigas imagens
das coleções de fotografia...
— moços com roupas de Caronte
e meninas iguais às Parcas.

Por isso é que se tem saüdade
do tempo da feitiçaria.

 


 

MARCHA

 

AS ORDENS da madrugada
romperam por sôbre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebram as formas do sono
com a idea do movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.

Também não pretendo nada
senão ir andando atôa,
como um número que se arma
e em seguida se esborôa,
— e caír no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualque fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho e meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saüdade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.

Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de mêdo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.


 

EPIGRAMA N.o 10

 

A MINHA vida se resume,
desconhecida e transitória,
em contornar teu pensamento,

sem levar dessa trajectória
nem êsse prêmio de perfume
que as flôres concedem ao vento.


 

ONDA

 

QUEM falou de primavera
sem ter visto o teu sorriso,
falou sem saber o que era.

..........................

Pus o meu lábio indeciso
na concha verde e espumosa
modelada ao vento liso:

tinha frescura de rosa,
aroma de viagem clara
e um som de prata gloriosa.

Mas desfez-se em coisa rara:
pérolas de sal tão finas
— nem a areia as igualara!

Tenho no meu lábio as ruínas
de arquiteturas de espuma
com paredes cristalinas...

Voltei aos campos de bruma,
onde as árvores perdidas
não prometem sombra alguma.

As coisas acontecidas,
mesmo longe, ficam perto
para sempre e em muits vidas:

mas quem falou do deserto
sem nunca ver os meus olhos...
— falou, mas não estava certo.


 

HERANÇA

 

EU VIM de infinitos caminhos,
e os meus olho choveram lúcido pranto
pelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caíu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consôlo, ou prémio alcançarão?


 

HISTÓRIA

 

EU FUI a de mãos ardentes
que, triste de ser nascida,
fui subindo altas vertentes
para a vida.
E perguntava, à subida:
«Ó mãos, porque sois ardentes?»

Água fina que descia,
flor em pedras debruçada,
nada ouvia ou respondia...
Nada, nada.

E eu ia desenganada,
sorrindo, porque o sabia.

E, afinal, no céu, presentes
tôdas as estrêlas puras,
pouso as mesmas mãos ardentes
nas alturas,
— sem perguntas, sem procuras,
ricas por indiferentes.

Mêdo, orgulho, desencanto
prenderam os movimentos
dessas mãos que, amando tanto,
sôbre os ventos
desfizeram seus intentos,
vencendo um tácito pranto.

Ai! por mais que se ande, é certo:
— não se encontra o bem perfeito.
Vai nascendo só deserto
pelo peito.
E entre o desejado e o aceito
dorme um horizonte encoberto.

Como esta bôca sem pedidos,
e esperanças tão ausentes,
e esta névoa nos ouvidos
complacentes,
— ó mãos, porque sois ardentes? —

Tudo são sonhos dormidos
ou dormentes!

 


 

ASSOVIO

 

NINGUÉM abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
si o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
— a dôr que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.


 

PERSONAGEM

 

TEU NOME é quási indiferente
e nem teu rôsto já me inquieta.
A arte de amar é exatamente
a de ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a idea, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nêsse deserto é que pensa
o olhar de tôdas as saüdades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silencioso, obscuro, disperso.

Tôdas as máscaras da vida
se debruçam para o meu rôsto,
na alta noite desprotegida
em que experimento o meu gôsto.

Todas as mãos vindas ao mundo
desfalecem sôbre o meu peito,
e escuto o suspiro profundo
de um horizonte insatisfeito.

Oh! que se apague a bôca, o riso,
o olhar dêsses vultos precários,
pelo improvável paraíso
dos encontros imaginários!

Que ninguém e que nada exista,
de quanto a sombra em mim descansa:
— eu procuro o que não se avista,
dentre os fantasmas da esperança!

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo — o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nêsse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho...


 

ESTIRPE

 

OS MENDIGOS maiores não dizem mais, nem fazem nada.
Sabem que é inútil e exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar.
Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de completa coragem,
longe do corpo que fica em qualquer lugar.

Entreteem-se a estender a vida pelo pensamento.
Si alguém falar, sua voz foge como um pássaro que cai.
E é de tal modo imprevista, desnecessária e surpreendente
que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai.

Oh! não gemiam, não... Os mendigos maiores são todos estóicos.
Puseram sua miséria junto aos jardins do mundo feliz,
mas não querem que, do outro lado, tenham notícia da estranha sorte
que anda por êles como um rio num país.

Os mendigos maiores vivem fóra da vida: fizeram-se excluídos.
Abriram sonos e silêncios e espaços nus, em redor de si.
Teem seu reino vazio, de altas estrêlas que não cobiçam.
Seu olhar não olha mais, e sua bôca não chama nem ri.

E seu corpo não sofre nem gosa. E sua mão não toma nem pede.
E seu coração é uma coisa que, si existiu, já se esqueceu.
Ah! os mendigos maiores são um povo que se vai convertendo em pedra.
Êsse povo é que é o meu.


 

TENTATIVA

 

ANDEI pelo mundo no meio dos homens:
uns compravam joias, uns compravam pão.
Não houve mercado nem mercadoria
que seduzisse a minha vaga mão.

Calado, Calado, me diga, Calado
por onde se encontra minha sedução.

Alguns, sorririam, muitos, soluçaram,
uns, porque tiveram, outros, porque não.
Calado, Calado, eu, que não quis nada,
porque ando com pena no meu coração?

Se não vou ser santa, Calado, Calado,
os sonhos de todos porque não me dão?

Calado, Calado, perderam meus dias?
ou gastei-os todos, só por distração?
Não sou dos que levam: sou coisa levada...
E nem sei daqueles que me levarão...

Calado, me diga si devo ir-me embora,
para que outro mundo e em que embarcação!

 


 

CANTIGA

 

BENTEVÍ que estás cantando
nos ramos da madrugada,
por muito que tenhas visto,
juro que não viste nada.

Não viste as ondas que vinham
tão desmanchadas na areia,
quási vida, quási morte,
quási corpo de sereia...

E as nuvens que vão andando
com marcha e atitude de homem,
com a mesma atitude e marcha
tanto chegam como somem.

Não viste as letras, que apostam
formar idéas com o vento...
E as mãos da noite quebrando
os talos do pensamento.

Passarinho, tolo, tolo,
de olhinhos arregalados...
Benteví, que nunca viste
como os meus olhos fechados...

 


 

EPIGRAMA N.o 11

 

A VENTANIA misteriosa
passou na árvore côr de rosa
e sacudiu-a como um véu,
um largo véu, na sua mão.

Foram-se os pássaros para o céu.
Mas as flôres ficaram no chão.


 

PASSEIO

 

QUEM ME leva adormecida
por dentro do campo fresco,
quando as estrêlas e os grilos
palpitam ao mesmo tempo?

O céu dorme na montanha,
o mar flutua em si mesmo,
o tempo que vai passando
filtra a sombra nas areias.

Quem me leva adormecida
sôbre o perfume das plantas,
quando, no fundos rios
a água é nova a cada instante?

Não ha palavras nem rostos:
eu mesma não me estou vendo.
Alguém me tirou do corpo,
fez-me nome, ùnicamente,

nome, para que as perguntas
me chamem, com vozes tristes,
e eu não me esqueça de tudo
si houver um dia seguinte.

O céu roda para oéste:
as pontes vão para as águas.
O vento é um silêncio inquieto
com perspectivas de barcos.

Quem me leva adormecida
pelas dunas, pelas nuvens,
com êste som inesquecível
do pensamento no escuro?


 

CANTIGA

 

NÓS SOMOS como o perfume
da flor que não tinha vindo:
esperança do silêncio,
quando o mundo está dormindo.

Pareceu que houve o perfume...
E a flor, sem vir, se acabou.
Oh! abelha imaginativa!
o que o desejo inventou...


 

A MENINA ENFÊRMA

 

I

 

A MENINA enfêrma tem no seu quarto formas inúmeras
que inventam espantos para seus olhos sem ilusão.

Bonecos que enchem as grandes horas de pesadelos,
que lhe roubam os olhos, que lhe partem a garganta,
que arrebatam tesouros da sua mão.

Um dia, ela descobriu sòzinha que era duas!
a que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite
e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo,
balançada num céu de estrêlas invisíveis,

sem contato nenhum com o chão.

 

II

 

A mão da menina enfêrma refratou-se também na água pura,
como, outras vezes, sua voz, nesses rios do céu.

Partiu-se a mão contemplativa dentro d'água:
mas não houve mesmo amargura, mas quási delícia,
no seu pulso quebrado e exato.

E ela contempla a onda mansa:
e tudo isso é uma simples lembrança?
é uma alheia notícia?
ou algum velho retrato?

 

III

 

A menina enfêrma passeia no jardim brilhante,
de plantas húmidas, de flores frescas, de água cantante,
com pássaros sôbre a folhagem.

A menina enfêrma apanha o sol nas mãos magrinhas:
seus olhos longos teem um desenho de andorinhas
num rosto sereno de imagem.

A menina enfêrma chegou perto do dia tão mansa
e tão simples como uma lágrima sôbre a esperança.
E acaba de descobrir que as nuvens também teem movimento.

Olha-as como de muito mais longe. E com um sorriso de saüdade
põe nesses barcos brancos seus sentimentos de eternidade
e parte pelo claro vento.

 


 

DESENHO

 

FINO CORPO, que passeias
na minha imaginação
como o vento nas areias,

serás o rei Salomão?

Há um perfume de madeira
e uma confusa noção
de óleo e nardo, a noite inteira,

na minha imaginação.

Estendem-se no meu leito
púrpura e marfins...Estão
safiras pelo meu peito,

cedros pela minha mão...

Tôrres, piscinas, palmeiras,
de pura imaginação,
parecem tão verdadeiras...

Serás o rei Salomão?

Ondas de mel e de leite
se derramam pelo chão,
no silencioso deleite

da sombra e da solidão.

Navega nas minhas veias,
em vagorosa invenção,
um vinho de luas-cheias —

Por isso, em meu corpo vão
brotando, em mornos canteiros,
incenso, mirra, e a canção

de uns pássaros prisioneiros...

Serás o rei Salomão?

Na noite quási perfeita
da minha imaginação,
que é da tua mão direita?...


 

TIMIDEZ

 

BASTA-ME um pequeno gesto
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

— mas só êsse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

—palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

— que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

— e um dia me acabarei.


 

TAVERNA

 

BEM SEI que, olhando p'ra minha cara,
p'ra minha bôca, triste e incoerente,
p'ros gestos vagos de sombra incerta
que hoje sou eu,
minha loucura se faz tão clara,
minha desgraça tão evidente,
minha alma tôda tão descoberta,
que pensam: «Êste, não bebeu...»

«Passei a noite, passei o dia
de cotovelos firmes na mesa,
de olhos sobre o vinho perdidos,
a testa pulsando na mão:
e muros de melancolia
subiam pela sala acêsa,
inutilizando os gemidos,
mas quebrando-me o coração.

«Deixei o copo no mesmo nível:
bebida imóvel, espêlho atento,
onde — só eu — vi desbrochares,
rôsto amargo de amor!
Vim da taverna ébrio de impossível,
pisando sonhos, beijando o vento,
falando às pedras, agarrando os ares...
— Oh! deixem-me ir para onde eu fôr!...»

 


 

PERGUNTA

 

ESTES MEUS tristes pensamentos
vieram de estrêlas desfolhadas
pela bôca brusca dos ventos?

Nasceram das encruzilhadas,
onde os espíritos defuntos
põem no presente horas passadas?

Originaram-se de assuntos
pelo raciocínio dispersos,
e depois na saüdade juntos?

Subiram de mundos submersos
em mares, túmulos ou almas,
em música, em mármore, em versos?

Caíriam das noites calmas,
dos caminhos dos luares lisos,
em que o sono abre mansas palmas?

Proveem de fatos indecisos,
acontecidos entre brumas,
na era de extintos paraísos?

Ou de algum cenário de espumas,
onde as almas deslisam frias,
sem aspirações mais nenhumas?

Ou de ardentes e inúteis dias,
com figuras alucinadas
por desejos e covardias?

Foram as estátuas paradas
em roda da água do jardim...?
Foram as luzes apagadas?

Ou serão feitos só de mim,
estes meus tristes pensamentos
que boiam como peixes lentos

num rio de tédio sem fim?

 


 

EPIGRAMA N.o 12

 

A ENGRENAGEM trincou pobre e pequeno inseto.
E a hora certa bateu, grande e exata, em seguida.

Mas o toque daquele alto e imenso relógio
dependia daquela exígua e obscura vida?

Ou percebeu siquer, enquanto o som vibrava,
que ela ficava ali, calada mas partida?


 

VENTO

 

PASSARAM os ventos de Agosto, levando tudo.
As árvores humilhadas bateram, bateram com os ramos no chão.
Voaram telhados, voaram andaimes, voaram coisas imensas:
os ninhos que os homens não viram nos galhos,
e uma esperança que ninguém viu, num coração.

Passaram os ventos de Agosto, terríveis, por dentro da noite.
Em todos os sonos pisou, quebrando-os, o seu tropel.
Mas, sôbre a paisagem cansada da aventura excessiva —
sem forma e sem éco,
o sol encontrou as crianças procurando outra vez o vento
para soltarem papagaios de papel.


 

MISÉRIA

 

HOJE é tarde para os desejos,
e nem me interessa mais nada...
Cheguei muito depois do tempo
em que se pode ouvir dizer: «Oh! minha amada...»

O mar imóvel dos teus olhos
pode estar bem perto, e defronte.
Mas nem navega as horas
nem se cuida mais de horizonte.

Durmo com a noite nos meus braços,
sofrendo pelo mundo inteiro.
O suspiro que em mim resvala
bem pode ser, a cada instante, o derradeiro.

Morrer é uma coisa tão fácil
que tôdas as manhãs me admiro
de ter o sono conservado
fidelidade ao meu suspiro.

E pergunto: «Quem é que manda
mais do que eu sôbre a minha vida?
Nêste mar de só desencanto,
que sereia murmura uma canção desconhecida?

E em meus ouvidos indiferentes,
alheios a qualquer vontade,
que rôstos vão reconhecendo
os passeios da eternidade?

Perto do meu corpo estendido,
náufrago inerte de sombras e ares,
quem chegará, desmanchando secretos níveis?
Serás tu? — para me levares...»

(Vejo a lágrima que escorre
por cima da minha pena.
Ai! a pergunta é sempre enorme,
e a resposta, tão pequena...)

 


 

METAMORFOSE

 

SUBITO pássaro
dentro dos muros
caído,

pálido barco
na onda serena
chegado.

Noite sem braços!
Cálido sangue
corrido.

E imensamente
o navegante
mudado.

Seus olhos densos
apenas sabem
ter sido.

Seu lábio leva
um outro nome
mandado.

Súbito pássaro
por altas nuvens
bebido.

Pálido barco
nas flores quietas
quebrado.

Nunca, jámais
e para sempre
perdido
o éco do corpo
no próprio vento
pregado.


 

DESPEDIDA

 

VAIS FICANDO longe de mim
como o sono, nas alvoradas;
mas há estrêlas sobressaltadas
resplandecendo além do fim.

Bebo essas luzes sem tristeza,
porque sinto bem que elas são
o último vinho e o último pão
de uma definitiva mesa.

E olho par a fuga do mar,
e para a ascenção das montanhas,
e vejo como te acompanhas,
— para me desacompanhar.

As luzes do amanhecimento
acharão tôda a terra igual.
— Tudo foi sobrenatural,
sem pêso de contentamento,

sem noções do mal nem do bem,
— jôgo de pura geometria,
que eu pensei que se jogaria,
mas não se joga com ninguém.

 


 

EPIGRAMA N.o 13

 

PASSARAM os reis coroados de ouro,
e os heróis coroados de louro:
passaram por êstes caminhos.

Depois, vieram os santos e os bardos.
Os santos, cobertos de espinhos.
Os poetas, cingidos de cardos.


 

 

 

ÍNDICE

 

 


Aceitação [40]
Acontecimento [129]
Alva [58]
A menina enfêrma [172]
Anunciação [14]
Assovio [158]
Atitude [89]
A última cantiga [28]
Campo [74]
Canção [32]
Canção [36]
Canção [43]
Cantar [135]
Cantiga [119]
Cantiga [166]
Cantiga [171]
Cantiguinha [60]
Cavalgada [121]
Conveniência [31]
Corpo no mar [90]
Criança [49]
Desamparo [51]
Descrição [86]
Desenho [175]
Despedida [192]
Destino [137]
Desventura [96]
Diálogo [33]
Discurso [16]
Distância [72]
Encontro [116]
Epigrama n.o 1 [9]
Epigrama n.o 2 [25]
Epigrama n.o 3 [41]
Epigrama n.o 4 [56]
Epigrama n.o 5 [73]
Epigrama n.o 6 [88]
Epigrama n.o 7 [101]
Epigrama n.o 8 [118]
Epigrama n.o 9 [131]
Epigrama n.o 10 [151]
Epigrama n.o 11 [168]
Epigrama n.o 12 [185]
Epigrama n.o 13 [194]
Estirpe [162]
Estrêla [94]
Excursão [18]
Êxtase [66]
Fadiga [104]
Feitiçaria [146]
Fim [47]
Fio [52]
Gargalhada [45]
Grilo [84]
Grilo [128]
Guitarra [70]
Herança [154]
História [155]
Horóscopo [107]
Inverno [53]
Luar [92]
Marcha [148]
Medida da significação [122]
Metamorfose [190]
Miséria [187]
Motivo [10]
Murmúrio [42]
Música [22]
Noções [99]
Noite [12]
Noturno [97]
Noturno II [143]
Onda [152]
Ofandade [57]
Origem [145]
Passeio [169]
Pausa [80]
Pergunta [182]
Personagem [159]
Perspectiva [34]
Praia [112]
Província [132]
Quadras [141]
Realejo [102]
Renúncia [78]
Ressureição [109]
Retrato [21]
Rimance [76]
Sereia [114]
Serenata [26]
Serenata [111]
Solidão [38]
Som [68]
Taverna [180]
Tentativa [164]
Terra [62]
Timidez [178]
Valsa [82]
Vento [186]
Vinho [81]


 

Reprodução da ficha catalográfica preparada em 1942 pelo Coronel Zacarias Silva. Os textos entre colchetes foram acréscimos manuscritos pela Autora – N.E.

 

CECILIA MEIRELES [GRILLO]

literariamente CECILIA MEIRELES
Usa os pseudonimos: [Florência – C. M. – C.]

BIOGRAFIA:

Nasceu no Distrito Federal.
É filha de [Carlos Alberto de Carvalho M.] e de d. [Mathilde Benevides Meireles]
Espírito de sólida cultura, Cecilia Meireles é poetisa, prosadora, pedagogista, professora e conferencista (notadamente sobre educação, arte e literatura)

ANOTAÇÕES interessantes:

1o livro publicado: NUNCA MAIS E POESIA DOS POEMAS, versos, em 1923, no Rio de Janeiro.
1o Premio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, em 1938, com seu livro VIAGEM.

BIBLIOGRAFIA:

A – POESIAS:

Nunca mais e Poema dos Poemas
Baladas para El-Rei
Viagem
Vaga Musica

B – NOVELA:

Olhinhos de Gato [– publicada na Rev. "Ocidente" de Lisboa.]


C – LITERATURA INFANTIL:

Crianca, meu amôr, [livros de textos]

E mais:

O Espirito Vitorioso, [tese de Concurso à Cadeira de Literatura da antiga Escola Normal do Distrito Federal —]

São Paulo 10/VIII/1942

 

Zacarias Silva (assinatura)

 

[Lit. infantil
– Rute e Alberto resolveram ser turistas]

 

----FICHA PROVISORIA
MODIFICADA E AMPLIADA PELA AUTORA----

 

[Conferências realizadas e editadas em Lisboa e Coimbra:
– Notícia da literatura brasileira (Coimbra)
– Batuque, samba e macumba (Lisboa)]



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__________________
Dezembro 2000


 

Nota de Copyright

O status de copyright, como domínio público, refere-se à presente edição, feita em fair use, por seu valor educacional, documental e histórico, após verificar que a obra de Cecília Meireles está disponível em edições em papel por diversas editoras. Caso o leitor tenha notícia de que algum direito patrimonial esteja sendo involuntariamente violado, favor informar a eBooksBrasil, enviando email para livros@ebooksbrasil.org, para que este título seja imediatamente removido do acesso público.

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