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O ÚLTIMO HOMEM

Ricardo Rocha

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O Último Homem
Ricardo Rocha

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Fonte Digital
Documento do Autor

Capa:
Drica Del Nero

Copyright:
©2001,2006 Ricardo Rocha
ricarddr@escelsa.com.br


 

Índice

O Autor
O ÚLTIMO HOMEM
Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Epílogo


 

O Autor

[imagem]

 

Ricardo Rocha foi jornalista durante mais de 10 anos, tendo encerrado prematuramente a carreira na editoria internacional do ValeParaibano de São José dos Campos, com 10 anos de profissão e sem um diploma.

Hoje, presta consultoria para alunos universitários no Espírito Santo.

“O Último Homem” foi produzido especialmente para a internet. “Esperança”, “O preço da traição”, “A Senhora Lens” e “Folhas partidas” (este, o primeiro, escrito ao relento no inverno europeu) são alguns dos outros que estão aguardando os acontecimentos.


 

O ÚLTIMO
HOMEM

[imagem]

Ricardo Rocha


 

PRÓLOGO

 

Vagões. Vagões. Vagões. Quando um deles cumprirá a promessa de Marcelino, trazendo seu sucessor? A violência voltou a tomar conta da terra. Pessoas vão e vêm, tentando levar a vida; mas, a cada dia, torna-se mais difícil levar a vida por aqui.

Como naqueles tempos...

Disparos ecoam por toda parte no calor. Enfrentam-se duas quadrilhas em meio à correria dos moradores do vilarejo. Ali, Marcelino iria aparecer; e a poeira, baixar por entre os raios da manhã.

Eu mesmo não estava lá. Hilson me contou o começo da história quando deixávamos o Igapó. Mas ele também não estava no princípio. Esta é uma história que passou por muitas vozes até chegar a meus ouvidos. Quem poderia imaginar que seria eu o único a sobrar para contá-la?


 

I

 

No zunir das balas, dois homens se atracavam no chão com facas. O menino passou por Alonso e Takeda, temendo ser visto. Não devia ter mais que uns 13, 14 anos. O sol que aparecia no horizonte, ao fazer luzir no seu pescoço o estranho crucifixo, paralisou os contendores.

Era Marcelino! — Alonso, boquiaberto, largou a faca.

A lenda era verdadeira! — o outro não se aproveitou da chance de recuperar a vantagem no combate.

O crucifixo, costurado com fios de ouro, pendia resplandecente, signo arraigado na memória dos mais velhos, símbolo do expoente que um dia estivera à frente deles, pairando sobre as terras e planícies, pelos sonhos na epopéia daqueles deserdados, levando-os à paz.

O filho de Crisóstomo? Ora, Alonso estava louco... Jerônimo, chefe de uma das quadrilhas, aproximava-se quando o menino desapareceu, enveredando pelo meio das casas de adobe. Acreditava, perguntou a Alonso, naqueles contos de índios?

Era verdade, confirmou Takeda. Ele também vira...

Verdade? Tanta convicção não abalara o coração endurecido de Jerônimo. A única verdade que ele sabia era que Takeda era um homem morto... — e disparou três vezes no chefe da quadrilha rival.

Era mesmo verdade... Os olhos de Alonso em Takeda, estirado na poça de sangue, pareciam não o ver. Viam a filha dele... sua amada Maria... Compadeceu-se.

Vamos! — Jerônimo empurrava o capanga. Os inimigos estavam cercados na fazenda.

Os cavalos atrelados agitavam-se. Aqui e ali, mulheres tropeçavam nas saias ao correr. Os homens que bebiam no botequim ajuntaram-se, agachados, atrás do balcão. Dentro das casas, os moradores deitavam-se e oravam para escapar ilesos das balas perdidas.

Aquela gente se havia acostumado a um cotidiano bruto, contrário ao direito e à lei, onde os assaltos eram comuns e ninguém merecedor de confiança. Quando os mais violentos prevaleciam, e os lucros do narcotráfico ditavam as regras da existência.

O crime se organizara com o aparecimento dos poderosos, logo lutando entre si pelo controle da distribuição, a que se somava a prostituição infantil e toda a sorte de desvios. Quem visse qualquer coisa estava fadado a desaparecer.

Numa cena semelhante, Crisóstomo surgiu.

Ninguém sabia ao certo como tudo começou. A versão mais considerada era a que dava Crisóstomo como um jovem usuário de maconha, cansado de ver, impotente, seus amigos serem exterminados.

Criou um pequeno exército de 107 homens envolvidos com levantes que precipitaram os acontecimentos. Conspiraram em escala regional contra os coronéis e políticos por detrás do crime organizado.

Numa madrugada de 5 de julho, tomaram uma fazenda, rendendo o proprietário e fazendo fugirem o prefeito e o governador, que entregaram assim a cidadela aos rebeldes.

Cercados por tropas nacionais, sustentaram a posição até o dia 27, quando aderiram ao que se chamou guerra móbil, fugindo ao longo do rio até a fronteira. Marcharam a pé e a cavalo, durante cerca de 3 anos, escapando de cercos implacáveis e produzindo extraordinárias baixas no crime organizado, incluindo danos políticos ao Governo.

Suas façanhas tornaram-se possíveis, em boa parte, pelo apoio de chefes indígenas e missionários.

O prestígio de Crisóstomo espalhou-se por todo o País, era o Cavaleiro da Paz. Era época dos grandes jejuns de Gandhi na Índia, e, como o Governo Britânico, tanto quanto Crisóstomo livre, os coronéis, políticos e traficantes temiam que, preso ou morto, se tornasse um mártir cujo poder se tornasse ainda mais devastador que o da sua luta em liberdade.

Era a luta da independência dos pequenos camponeses obrigados a servirem aos traficantes, da legalização das drogas leves e da distinção entre usuário e traficante, contra a impunidade dos poderosos que, volta e meia envolvidos em escândalos, sempre saíam ilesos.

Recusava-se a uma revolução no sentido corrente do termo, o que acreditava ser uma outra forma de estabelecer a burguesia. Apenas interessava-lhe inverter a situação e, de fato, os poderosos passaram de caçadores a caça.

Logo, Crisóstomo tinha suas próprias terras, tomando-as de proprietários que mantinham grandes extensões inúteis, para doá-las a famílias que se estabelecem nelas e a trabalhassem. O Governo assistia de longe, sem saber exatamente o que fazer para detê-lo.

E nas terras da gente de Crisóstomo começaram a se multiplicar o gado, as culturas. Alguns aventureiros do ouro e traficantes desertores também a ele acorriam e eram assentados.

Mas um dia, em conseqüência de uma bala que se alojara em seu pescoço, Crisóstomo morreu, sem que pudesse conduzir um processo de transição da revolta armada para algum tipo de sociedade transigente, leal e cortês, usufruindo pacificamente de paz, alegria e justiça.

O grupo dividiu-se na luta pela sucessão, porque, de fato, não havia um legítimo sucessor.

Com sua morte, foram-se também os dias de paz que haviam banido a violência e a injustiça daquele território. E a violência voltaria.

* * *

Marcelino era um menino educado. Teve acesso à Educação, à Cultura, algo muito raro naquela terra de ninguém. Foi a herança que Walter lhe deixou ainda em vida, nos tempos em que ainda não enviuvara e vivia em Bragança.

—Pai? ...

—O quê, Marcelino? — retrucou Walter. — Que cara é essa?

—Dois homens lá fora estavam lutando, pai, e pararam quando me viram — o menino ainda resfolegava, do jeito como entrara em casa.

Walter o olhou com expressão indefinida. Entendeu que afinal chegara o dia que por tanto tempo temeu. Disse ao menino: — É hora de você não mais me chamar de pai.

Perplexo, Marcelino balbuciou: —Eu não sou seu filho?

Leu a resposta no rosto do velho antes de ouvi-la:

—Você me foi entregue, chorando, entre os sobreviventes de uma chacina. Não tinha mais que dois meses de vida.

Após o silêncio que se seguiu, Marcelino encontrou forças para perguntar: — Mas por que esses homens me reconheceram como o “filho de Crisóstomo?”

—Você trazia um crucifixo. Na época, eu nada sabia a respeito. Mas um dia, vi uma mulher fazendo, às margens do Guaporé, o desenho dessa cruz... — perdeu o olhar na lembrança. — Ela me disse chorando quando perguntei do que se tratava, que era o bem da terra, a fonte da vida, o regresso da paz à região.

—Eu?

—Quem mais?

—Mas sequer tenho o respeito dos meus amiguinhos, dos meus companheiros de jogos e brinquedos...

—Terá.

—E não tenho inimigos.

—Qualquer que seja inimigo da paz, será seu inimigo também.

A notícia da aparição de Marcelino já chegara à fazenda de Takeda, junto ao corpo ensangüentado do líder, trazido por sua gente.

“Seu” Takeda tinha certeza?

Oh, Olavo, se não tivesse certeza do que os próprios olhos viam, do que mais poderia ter? — Takeda estava deitado em sua cama e Alice Eiko, sua filha adolescente, colocava-lhe compressas e fazia curativos.

Um outro homem entrou, ofegante.

Estavam encurralados, contou. Jerônimo cercara a fazenda. Deviam invadi-la a qualquer momento.

As balas zuniam e ricocheteavam, deixando rastros de fumaça e ecos pela floresta.

Oshieoyá...Alice Eiko introduziu os dedos da mão direita, carinhosamente, através dos cabelos desgrenhados do pai. Durante toda a vida ela havia tido vergonha de ser filha de um bandido. Pediu-lhe que resistissem e Deus seria com eles. Disse que seu orgulho seria eterno por ser filha do homem que levara Crisóstomo a seu lugar.

Olavo ouvira? A voz de Takeda soava cheia de dignidade. Que os homens fossem organizados. Todos a seus postos!

Alguns dos capangas de Jerônimo já entravam no terreno da fazenda. Uns eram mortos; outros continuavam a avançar no sentido da casa principal.

O vento derramava-se pelas planícies.

No vilarejo, Walter admoestava seu filho adotivo: — Porque você está aí parado, Marcelino?

—E o que devo fazer, meu pai?

—Já lhe disse para não me chamar mais de pai. E é você quem tem uma missão, não eu. Não posso te ensinar a ser o que você é.

Bateram palmas lá fora.

—Pa... senhor Walter... devo abrir?...

—Por que não deveria?

—Tenho medo.

—Vá de uma vez, Marcelino! Estou mandando! Nem que seja a última ordem que lhe dou!

O menino obedeceu, trêmulo.

—Marcelino... — Alonso com reverência olhava o rosto do rapazinho encimando o crucifixo.

—Como sabe o meu nome?

—Qualquer um que conheça o desenho dessa cruz, saberá o seu nome.

Marcelino tocou a jóia e sentiu-se forte — E o seu nome, qual é?

—Alonso — Alonso permanecia quieto em atitude quase de adoração perante aquele que o inquiria.

—E quem é você?

—Eu pertencia à quadrilha de Jerônimo. Fugi quando faziam o cerco à fazenda de Takeda. Lá dentro da casa, estando resistindo mais do que poderiam, gritando seu nome.

—Resistem em meu nome? — Marcelino havia tirado a corrente do pescoço e a observava.

—Mas que diabo, garoto! — exasperou-se o velho Walter. — Você é surdo?

O menino repôs a correntinha e, apertando-a, incendiara-se. — Basta! Sigam-me!


 

II

 

No leito do rio, os seixos ondulavam-se às carícias das ondas. Calor opunha-se ao mais ínfimo bem-estar nos corpos dos homens sobre os cavalos encarniçados galopando. A visão, a fúria do som dos cascos na terra foi arrefecendo. Cessou. Um relincho. Outro.

Do alto da Serra da Esperança, Marcelino e seus seguidores viram a fazenda de Takeda sendo tomada. Renegando suas integridades físicas, atacaram o bando de Jerônimo.

Com Marcelino, dispuseram-se a vir todos os homens do vilarejo que tinham bom traquejo de armas e mesmo alguns nem tanto. Todos queriam estar presentes. Nada importava se haviam obtido o privilégio de seguir filho de Crisóstomo e partilhar sua sorte.

Inicialmente, era o fator surpresa que os favorecia nos primeiros momentos da batalha. Não tardou porém e a valentia do líder deles, corajosamente investindo contra o inimigo, inspirou-os.

Os homens de Jerônimo, sendo vencidos, estavam perplexos. Era o filho de Crisóstomo? — transtornados, encontraram razão de deterem-se na arremetida.

—É Marcelino! — festejavam de dentro da casa.

Um olhar agradecido, e um tanto mais que isso, acompanhava o rapazinho em seu cavalo. Alice Eiko sentia-se fresca na canícula. O menino em seu cavalo...

Mas, de súbito, não conseguia mais vê-lo. Alguém o havia derrubado, saltando-lhe por cima. A poeira subiu e envolveu a luta. Jerônimo não podia crer, estava sendo subjugado!

Ao imobilizar ser adversário, Marcelino lhe disse para mandar seus homens recuarem e seria poupado.

—Para carregar pelo resto da vida a vergonha de ter sido derrotado por um garoto? Não, obrigado — disse Jerônimo.

Para ter a honra de ser um dos homens do filho de Crisóstomo — retrucou solene Marcelino.

—Ora, o que não se faz no Sul, pensando que somos todos uns ignorantes! ... Uma réplica do crucifixo!... — que Marcelino acreditasse, disse Jerônimo: — Isso nada significa para quem como eu teve a honra de lutar ao lado do próprio Crisóstomo.

Marcelino agarrou-se ao crucifixo, despencando pelo tempo infiltrado na jóia. Soltou Jerônimo e deixou o revolver ao alcance de sua mão. Soubera de Walter que ele não fazia prisioneiros. Pois bem, podia mata-lo. E verificaria como seria idolatrado por ter vencido o filho de Crisóstomo, a quem assim venerava. Honra, para quem não a tem, é estar, seja como for, do lado vencedor, seja qual seja. Jerônimo olhava o menino sem compreender direito. Marcelino completou: — E se acaso não houver um lado vencedor, porque os dois lados pactuaram com a paz, fugirão; nada querem com a paz.

Jerônimo havia apanhado o revólver.

Ali! — uma voz sobrelevou-se no silêncio. Jerônimo ia acabar com a lenda.

Oh meu Deus — Alice Eiko tornou a ver o menino.

Estava acabado — Olavo apareceu ao lado da filha do patrão, trazido pela exclamação. Era mesmo um impostor. O filho de Crisóstomo jamais se deixaria vencer numa luta.

Que largassem as armas! — Jerônimo recolhera a mão que segurava o revólver e estendeu a outra, oferecendo-a a Marcelino. — Larguem as armas! — disse. Que largassem as armas e fossem socorrer os feridos! A ordem não foi atendida e por entre todos adejou outra vez silêncio. Jerônimo mesmo o quebrou, dirigindo-se a Marcelino, filho de Crisóstomo sim, à sua frente. Ele o perdoava? Por favor. Aquela coragem e espírito só poderiam mesmo ser herança de Crisóstomo e graça de sua cruz. O crucifixo é autêntico. É claro que ele era Marcelino. Jerônimo lhe pediu que lhe permitisse lutar a seu lado.

Marcelino lhe garantiu que seria um privilégio.

Mas quanto aos homens de Jerônimo...

Vendo sua quadrilha debandar, Jerônimo apontou o revólver. Atirou algumas vezes sobre os fugitivos, a galope no sentido da serra, para o lado dos garimpos. Os cavalos dos atingidos empinavam. Sofreando, bufavam. Corpos apareceram na terra, os olhos no nada, as camisas tintas de vermelho, o sangue escorrendo-lhes em filetes pelos cantos das bocas.

Marcelino deteve Jerônimo, abaixando sua mão. Disse que os deixasse. Haveriam de voltar, mais cedo ou mais tarde, para assaltar, matar e seqüestrar; e Jerônimo teria sua oportunidade de liquidar com eles. Até lá, podiam ter a chance de se arrependerem. Agora vem, disse Marcelino.

Alonso aproximou-se, notando que Marcelino estava ferido.

O menino respondeu que não era nada e chamou-os para entrar e ver como estava Takeda.

Os que estavam na casa principal instantes depois, inclusive Maria Yukie, irmã mais velha de Alice, constituíam o núcleo do grupo que fundaria Nova Lábrea. A ausência de Hilson, então um desconhecido, era significativa.


 

III

 

As janelas do outro lado da casa de Takeda davam para os campos e cerrados perdidos na floresta estacional. Desembocavam num horizonte recortado por montes menores, antecipando-se à Cordilheira Vassala. A noroeste, a distância escondia as copadas densidades da planície fértil de várzea e o verdor dos cedros forasteiros. Junto à casa, pés de açaí e mangaba, piribá e tucamã. E uma linha de pés de maracujá. O apiário ficava distante, para que as abelhinhas não impedissem a polinização das flores. O rio Antarca corria por detrás do galpão, de cerca de trezentos e cinqüenta metros quadrados. Barqueiros vinham de madrugada com frutas, trazidas da Ilha de Macerva.

Tudo se havia transfigurado aos olhos de Alice Eiko, por causa da presença de Marcelino, deitado em sua cama.

Em doce, ingênuo êxtase, as primícias primaveris o amor transformara.

— Olá, meu jovem paciente!... — ela entrou no quarto e sentou-se à beira da cama, ao lado dele, que se recuperava dos ferimentos. O vestido de popelina farfalhou um tantinho quando se abaixava. — Vim trazer bálsamos e trocar seus curativos.

— Você é um bálsamo...

Lisonjeada, a menina enrubesceu.

Na verdade, a presença da filha de Takeda atravessou em segundos toda a existência do rapaz, levando-a para algum lugar de sonho muito além daquele aposento. O aspecto nobre de sua feminilidade juvenil materializou a música que imediatamente se fez atmosfera entre as paredes, ensejando em Marcelino a adoração da intimidade que podia com ela privar, como se fora um velho amigo, como se fosse o futuro amor.

Ele não devia falar assim com uma adolescente — Alice Eiko baixou o olhar num sorriso tímido.

Por quê? Não é normal um líder apreciar a beleza de uma mocinha?

Não devia falar assim porque a mocinha podia acreditar e começar a sonhar...

E prenunciar a chegada — concluiu em pensamento — de dias quando a inocência daria lugar a um gosto forte de vida.

Pois que acreditasse — disse Marcelino — ela era um bál...ai!...ai!...

A menina pediu por favor que ele a desculpasse. Prometeu que teria mais cuidado.

Valia a pena um pouquinho de dor, sorriu Marcelino, se fosse para ter como recompensa aquele jeitinho encabulado de pedir desculpas.

Marcelino era bem galante — disse ela — para um menino que jamais saía de casa.

Era bem galante — disse ele — para recuperar o tempo perdido.

Também para um menino naquele fim de mundo, Marcelino falava bonito — ela disse. Mas Alice esperava que não fossem só palavras. Lembra-lhe que o crucifixo fora visto pelo pai e por Alonso quando ele estava correndo, aparentemente com medo da luta.

Marcelino aceitou a delicada repreensão sem comenta-la. Apenas disse que se o pai de Alice não fosse um grande homem, de nada teria mesmo valido o que viu. — Tomara tenha eu algum dia um estilo de amar como o dele.

A proximidade dos seios pequenos — protegidos, ao longo dos dias, de olhares ávidos dos garimpeiros e agricultores pela discreta blusa de babados sobrepostos (mas não das imaginações) — deixava-o tonto mais que o cheiro vivo das ervas. O leve toque de Alice, então, quase o faz desmaiar.

Ela olhou dentro de seus olhos. — Como se sente?

—Hoje é o grande dia de minha vida.

Ela iria agora lhe trazer agora uma bela refeição: tempurá com aipim e um delicioso pavê achocolatado de cupuaçu. Tudo ela mesma fizera.

—Não vá ainda, por favor...

Tinha de ir. Era só um pouquinho...

—Um pouquinho sem você — disse ele — é uma eternidade.

—Ora! — exclamou ela exultante — que ele não fosse assim bobo!

—Fique...

Ela já voltaria...

—Você é tão linda!...

Não era não! —Por que você fala assim tanto?!

—É impossível ficar calado diante do que sinto.

Não houve tempo para que sentisse nada — disse ela.

—Então me diz que também não está sentindo nada por mim.

Ela nada disse.

Recostado na cama, Marcelino aproximou-se de seu rosto e beijou-a levemente. Alice Eiko correspondia, quando súbito se afastou.

—Somos tão jovens... — disse ela.

Calado, Marcelino captou-lhe dos olhos uma intensidade que não soube interpretar.

* * *

As estrelas navegavam na música. Aquela noite, passaram-na os convivas em grande alegria e descontração; ninguém se recordava de uma tão magnífica festa, todos autênticos em descontração, uma vez que haviam bebido menos do que o costume em tais ocasiões.

Viva Marcelino!!! — Alonso era o único que passara um pouco da conta na aguardente.

Deus abençoasse a todos e àquela missão pacificadora! O rapazinho ergueu seu copo de suco de manga e tirou Alice Eiko para dançar.

Dançaram até próximo da manhã.

O exemplo animou outros casais, como Maria Yukie e Alonso, que havia tempo se entreolhavam.

Ela chegou até ele, fez uma mesura zombeteira e o puxou para o centro do salão. Sentindo seu hálito, sentiu que não seria difícil seduzi-lo.

Ele não sabia dançar.

—O que é preciso saber? Apenas relaxe e permita que seu corpo acompanhe o ritmo.

Acompanhar o ritmo da música não foi nada para Alonso; duro foi relaxar com o corpo em fogo pelo contato da irmã de Alice, quando a viola parou de tocar rapidamente e ela decidiu demonstrar como era aquele outro tipo de dança, com música lenta de bandolins.

Sabedor de que falhara demais como pai, Takeda pedia a Deus para que suas filhas realizassem seus sonhos, todos eles, quem sabe a partir mesmo daquela noite. Para Takeda, fora um grande sacrifício educar as meninas depois da morte de sua esposa. O ar feliz que as duas exibiam era gratificante. Ainda assim, preocupou-se quando Alice Eiko desapareceu do salão.

Walter vira sua filha?

—Não, amigo. Mas se não sei onde ela está, fique tranqüilo: sei exatamente com quem está...

O casalzinho estava à beira do regato, mãos dadas, sentados nas pedras, os pés imersos na água.

Alice Eiko tomou a cruz na palma de sua outra mão.

Era linda — disse ela.

— É sua — ele disse.

A menina declinou. — É ela em você que nos protegerá a todos de todo o mal.

Talvez representasse algo; mas em si mesma, não era nada — ele disse.

—Assim como a Bíblia — disse ela. Nem por isso deixava de ser um livro sagrado.

Para Marcelino, tudo o que havia de sagrado no mundo era Alice.

—Você mal me conhece. Sou tão moça ainda — insistiu ela. Na verdade — enfatizou—, ela mesma não se conhecia direito.

Ele pediu que ela aceitasse, fazendo menção de tirar a corrente do pescoço.

A menina o impediu. — Não posso aceitar — disse. Mas estava muito envaidecida pela oferenda.

Os lábios se tocaram. Um beijo que se alonga.

A brisa era suficiente para encrespar a superfície das águas, compondo os elementos um hino singelo de jovens apaixonados.

Não podiam imaginar o inferno que os esperava.


 

IV

 

Dois anos depois.

Meio-dia.

Takeda tomava sua sexta dose de aguardente.

— Desculpe-me, meu velho — disse o forasteiro —, mas eu estava sentado aí.

Em meio ao hálito de álcool — Viva Marcelino!... Viva os índios!... —, o pai de Alice Eiko e Maria Yukie arrastava a voz.

— Meu velho, por favor...

Takeda encarou-o e perguntou-lhe, com os olhos muito vermelhos, afinal o que era — Não gostava de índios? Pois soubesse que Marcelino era descendente de japurás. Ou também não sabia quem era Marcelino?

—Não, não sei quem é Marcelino. Sei apenas que o senhor está sentado em meu lugar.

Takeda deu uma gargalhada e perguntou se o estranho comprara aquela banqueta.

—Não, não comprei, apenas sentei nela primeiro que o senhor. Com licença...

Segurando Takeda pelas axilas, o forasteiro colocou-o sobre a banqueta ao lado. O velho, tonto, não parou ali um minuto, desabando no assoalho. Alice vinha chamar o pai para o almoço. Deparou com o final da cena.

— Covarde! — gritou, dirigindo-se ao estranho.

Ele virou-se. Os olhares se cruzaram em algum ponto além deles, daí resultando um longo silêncio de fascínio.

Takeda resmungava, deitado. Os dois lembraram-se dele e se abaixaram para ajuda-lo.

O barulho de passos, solene, precedeu a entrada de Marcelino. Olavo vinha logo atrás.

—Os tempos estão realmente violentos — Marcelino encarou o estranho desafiadoramente. —Não se respeita mais um velho embriagado, mesmo ele estando em sua própria cidade e o outro sendo um completo desconhecido?

O estranho disse que nada havia feito de mal.

—De onde você veio derrubar um velho embriagado não é nada?

O estranho disse que não fizera aquilo.

Alice então disse a Marcelino que parasse. Ela mesma estava decepcionada com a postura do forasteiro. Parecia-lhe mesmo um covarde. — Acabou, Marcelino — disse ela. — Está tudo bem.

—Não, Alice, nem começou. Você, como filha, relevaria a ofensa? Eu, como futuro genro, não relevarei.

O estranho perguntou o que Marcelino pretendia fazer a respeito de tão grande afronta — sua ironia soou melancólica.

—Se vier para fora, saberá.

O estranho disse que não estava disposto a brigar sem motivo.

—Disposto ou não, é o que lhe resta. Eu decido se há ou não motivo.

O estranho disse: — Porque você está em sua cidade e eu sou um forasteiro.

—Exatamente.

O estranho disse que, vencendo ou perdendo, a vergonha seria de Marcelino.

—É um problema meu, amigo.

O estranho disse que não tinha amigos.

Fez-se silêncio. Takeda — já quase sóbrio pela tensão — e Alice Eiko iriam insistir para que Marcelino parasse com aquilo. O estranho tinha razão, era um confronto absurdo. Apenas Olavo, que fora avisar Marcelino sobre o que estava acontecendo no bar, carregando nas cores de sua versão, parecia disposto a ver o resultado do duelo.

Entretanto, a arma brotou, engatilhada, na mão direita do forasteiro. O cano, direto na direção do rosto de Marcelino.

Quem poderia culpa-lo, perguntou o estranho? —Todos aqui são testemunhas de que você me provocou.

—Pois atire — desafiou Marcelino.

Alice e seu pai, em uníssono, imploraram que ele não o fizesse.

O estranho, afastando a arma, disse que jamais o faria.

Então, Marcelino recebeu dele um soco para não esquecer. No chão, perdendo os sentidos, apertou o crucifixo nas mãos. Súbito, levantou-se e desferiu um golpe com o abdutor do dedo mínimo, derrubando o estranho que, antes de cair, bateu com a cabeça no balcão e perdeu os sentidos.

O arrependimento de Marcelino, embora quase imediato, veio tardiamente.

Alice abaixou-se junto ao corpo, dizendo que ele dizia a verdade, nada fizera de mal. Mas, na verdade, ela não sabia se ele dissera de fato a verdade, isto é, se nada havia de mal em si.

—Está morto? — os segundos que antecederam a resposta de Alice foram eternidades para Marcelino.

Finamente, Alice pronunciou a frase que rezava para ouvir: — Graças a Deus não. Vive.

Recobrando os sentidos, o estranho fixou um olhar reverente no adversário de minutos atrás. —Procuro trabalho — disse. Mas tudo o que sabia fazer era usar os punhos e a arma.

Pousando a mão direita, que havia pouco o derrubara, no ombro largo de Hilson, Marcelino contou-lhe. Liderava um grupo que tentava estabelecer a paz na região. Seu pai abominava o tráfico, o garimpo criminoso, as injustiças na distribuição da terra, a prostituição infantil, e tudo aquilo que se fizera a triste realidade da região.

Um dia enfim, todos poderiam ter suas próprias casas, suas próprias terras, num mundo mais justo. Era seu sonho. Enquanto não se tornava realidade, defendia ao menos a causa de dezenas e dezenas de famílias acampadas no território.

O que toda aquela gente, que o estranho vira ao chegar, pretendia?

Que lhes fosse permitido viver e trabalhar em paz.

O estranho dispôs-se. —Conte comigo — disse. E Marcelino achasse, é claro, que merecia um lugar entre eles.

Seria uma honra. Como se chamava?

Seu nome era Hilson.

Marcelino também enviava homens em missões. Com aquela destreza, Hilson haveria de ser imensamente útil.

A honra seria dele.

No momento em que Alice Eiko se aproximou e Marcelino pôs o braço ao redor de seus ombros, depositando um beijo no rosto da noiva, Hilson sentiu-se gelar.

* * *

Entre os japurás que naqueles dias viviam à leste do chapadão, alguns índios dedicavam-se à pintura. Espalhavam areia no chão e misturavam tinturas multicores para representarem motivos religiosos. Com essa preparação concluída, deram início a uma cerimônia especial.

O rosto do homem que os haveria de livrar da extinção aparecia no centro do ritual, pousado no solo arenoso — o rosto de Marcelino.

Enquanto isso, o próprio Marcelino se angustiava pela sorte do homem que derrotara.

Como Hilson recusasse cuidados, dizendo ter de sair em viagem imediatamente para resolver alguns negócios pendentes em Sonora, antes de juntar-se a eles, Marcelino seguiu pela rua única da vila até a praça, insistindo para que ele não viajasse sem antes consultar um médico.

Por que teimava assim?

Hilson disse que estava bem. Precisava apenas ir à igreja agradecer por sua vida.

Concedendo, Marcelino o acompanhou.

Enquanto Hilson rezava perante o Crucificado, uma corrente de vento apagou as velas do castiçal. Na penumbra, a mão tocou o ombro de Marcelino, ajoelhado, um pouco atrás de Hilson — Por quanto tempo você vai suportar um tão longo noivado — a bela nissei olhou nos olhos do filho de Crisóstomo, que virara o rosto para ver quem era.

— Você não respeita nem um lugar sagrado?

Eram os mais excitantes — disse ela. Além disso, não estava propondo um adultério, só uma noite de alegria. Afinal, vocês se casam lá no fim do mês que vem. —Não me olhe assim. É só uma visita ao meu quarto, uma só vez... — seus lábios destilavam mel e seu gosto imaginado também era dulcíssimo.

Mas seu fim era mais amargo que o absinto.

Depressa... sussurrava Maria Yukie ao amanhecer —Depressa... assim...

Cantarolando baixinho, a futura cunhada preparou-lhe a saída.

Naquele mesmo instante, cavalgando para Sonora, Hilson deixou-se ficar imerso em seus pensamentos. Recolheu o significado do cochicho na capela entre Marcelino e Maria Yukie.

Na conjunção daqueles momentos, havia nascido o futuro — o reflexo do pecado na vida das pessoas e na terra sobre a qual viviam.


 

V

 

Viola e vozerio podiam ser ouvidos junto à serra, ao sul de Tumucarate, onde Marcelino e sua gente comemoravam a condenação na capital do juiz corrupto envolvido com o tráfico e que mandara para a cadeia muitos viciados; mas, principalmente, o assentamento de sete mil famílias.

Era quase o paraíso para quem se havia acostumado com os desertos de borracha e castanha: Arroz, feijão, milho, café, cacau — tudo podia ser cultivado. A criação bovina não seria a tradicional, extensiva, mas em muito melhorada. As árvores, frutíferas. As meninas que haviam sido vendidas aos garimpos, e mesmo as que por vontade própria da falta de recursos se prostituíram, estavam de volta aos lares; e um grande número de dependentes químicos e alcoólatras regressava de um período de recuperação para junto dos seus.

Graças a Marcelino. Antes de morrer, dois fazendeiros interessam-se pela posteridade de seus nomes. Chamaram-no e passaram para o nome dele todas as terras de que eram proprietários. Agora, abençoados por um período climático benfazejo, os agricultores entravam na posse de seu futuro. O próprio Marcelino irá se estabelecer ali após se casar.

Através do complexo de áreas, corria o rio Eldorado, cujas margens ofereciam folhagens densas e águas cristalinas. As superfícies pétreas estavam lustradas de verde. O vale se abria em uns duzentos mil hectares. As árvores que limitavam as terras a oeste, na fronteira da floresta, envolviam-nas miríades de flores silvestres. E havia a atmosfera de música.

—Digo a vocês que ouço mais! Ouço o Futuro! — clamou Marcelino sobre o caixote. —Fundaremos aqui uma fortaleza, não para a guerra. Sairemos divididos em grupos e voltaremos para compartilhar o sucesso e festejar a pacificação de extensões cada vez maiores de terra! E chegará um dia quando não mais sairemos, pois todo esse imenso território entre Bosque e Ibirazu já não mais será terra de desespero. Será enxugada dos olhos toda lágrima e não haverá mais morte, pranto, nem dor — respirou fundo. — Mas não nos iludamos! — prosseguiu, passando o braço no suor que da testa pingava. —As revoluções não podem ser previstas cientificamente. Não podem ser perfeitas porque são obra de homens imperfeitos. A única revolução que pode nos levar avante e garantir nossos sonhos parte de dentro de cada um. E, infelizmente, nem todos tem um interior puro. Vimos quantos fugiram quando começamos essa obra! Quantos se corromperam junto ao inimigo! Assassinos, cobiçosos que agiam covardemente e ainda assim mantinham o discurso da paz e da justiça! Ladrões, cuja honra está à venda! Oportunistas de todo tipo! Hoje, são políticos, autoridades esportivas, candidatos a toda sorte de cargos, alguns já em pleno exercício! Mas não sabem eles que são assim mesmo que nos ensinam! — as pessoas gritavam e lançavam ao ar seus chapéus de palha. —Digo-lhes pois agora o nome da cidade que será o coração de nossas glebas: Nova Lábrea! ... Nova e santa Lábrea! Meu pai deu sua vida pela paz e pela justiça no campo. Graças a ele, viveremos essa paz! E nossos filhos e filhas estarão conosco!

Walter tomou a palavra: O passado e o futuro são evocados! Mas agora eis que todos queriam que o filho de Crisóstomo, o passado glorioso, lhes desse também um glorioso futuro, garantindo o seu sucessor! Era a hora de Marcelino e Alice Eiko se casarem! O matrimônio já fora por demais adiado!

Todos concordaram em uníssono.

Alice Eiko e Takeda, numa carroça guardada por Hilson e Maria Yukie, entrariam dali a uma semana no centro do complexo das áreas marcelinas, Nova Lábrea, fundada poucos meses depois. A chegada aconteceu numa noite em que as águas do rio estavam agitadas pelo vento — era uma noite escura, muito escura, como a madrugada que precede com a treva mais densa o amanhecer.

* * *

O verão partira. Não havia sido tão árduo como aquele em que se conheceram, Marcelino e Alice, agora diante do padre Oziel, saudados por toda aquela gente na cerimônia de sua união. No lugar onde a igreja seria erguida, eles diziam sim um para o outro. Ela pensou num último de solteira na direção de Hilson, que assistiu a cena como quem morria.

O arvoredo gutífero testemunhou a chegada de uma mulher. Walter foi discretamente a seu encontro.

Cumprimentou-a.

—Sabe quem sou? — perguntou ela.

Estava claro que era irmã de Marcelino. — Eu o criei — disse Walter. Como não reconheceria esses olhos?

—Os olhos de nosso pai.

Walter estava perplexo. —Como pode? — sussurrou.

—Genética.

O velho sorriu com os olhos. —Eu perguntei como pode você aqui — disse. O que a trouxera?

Ela contou. Havia mulheres nas terras de Crisóstomo.—Era muito lascivo nosso pai — disse. Um coração enorme, mas talvez menor que seu apetite sensual.

Dentro dos olhos e nos movimentos da boca da jovem mulher também desabrochava uma velada concupiscência. Ela balançou a cabeça, os cabelos demonstravam toda a textura de seda. Bem, havia mulheres...

—Mulheres dos outros, é claro. E havia crianças. Alguma teria de ser dele, fatalmente.

Pelo menos quanto a duas ela tinha certeza: ela mesma e o filho da melhor amiga de sua mãe.

Marcelino...

—Minha mãe não pode argumentar contra o processo da fisionomia, genética, DNA diriam hoje.

Walter era um homem gentil, ouvia. Prudente, não procedia a qualquer julgamento prematuro. Esperou que a moça continuasse.

—Eu herdara muitos traços de Crisóstomo — passou os dedos nas sobrancelhas. —Ele herdou o ódio do homem que deveria ser meu pai. E foi morto por causa disso. E por causa disso teve seu sonho de pacificar a terra tão drasticamente interrompido pelo sono eterno.

Ana? — Jerônimo apareceu por detrás dos dois.

Ela o olhou sem qualquer emoção, mas gentilmente. —Devo falar com o assassino do marido de minha mãe?

Jerônimo retrucou que apenas livrara a terra de alguém suficientemente maldito para ter a coragem de matar Crisóstomo.

—Devemos esquecer de coisas assim num dia como hoje — disse Ana. —Faz parte do passado. E diante de nós está o futuro.

Como ela sabia que Marcelino estava ali? — perguntou Jerônimo.

—Eu ia disser a esse senhor, e sua presença facilita as coisas pra mim.

Walter perguntou a Jerônimo de onde a conhecia.

Quando Crisóstomo apareceu morto, o pai de Ana confessara o crime publicamente. E, com orgulho, Jerônimo podia dizer que o executara ali mesmo, na hora.—Pouco depois o acampamento foi atacado e eu fugi. E, sabendo que ela era filha de Crisóstomo, levei-a comigo.

Mas ela fugira.

—Nunca porém o perdi de vista, Jerônimo — disse ela. —Queria conhecer meu irmão e sabia que você era minha ligação com essa chance. Fui adotada — prosseguiu — por uma família de Naun Ruins. Vi você algumas vezes em plena ação, saqueando, seqüestrando, matando.

Jerônimo calava-se.

—Meu pai era um herói e você, Jerônimo, que matou o marido de minha mãe sob o pretexto de vinga-lo, representava tudo o que ele desprezava.

Walter contemporizou: E o que Ana sabia afinal sobre Marcelino?

Por um momento, o olhar da moça perdeu-se ao restaurar na memória a imagem da amiga de sua mãe: Era uma mulher bela, como todas as que atraíam Crisóstomo. Era humilde. Embora prezasse uma certa aristocracia, Crisóstomo não deixaria de passar algumas horas de prazer com uma rude camponesa para dedicar essas mesmas horas a debates políticos ou mesmo a discussões sobre planos de ação.

Como era seu nome?

Chamava-se Lehina. Vivia dizendo para Ana que lhe daria o crucifixo quando ela crescesse. Lehina sabia que Ana era filha do homem a quem amava e queria fazer disso uma relação meio mística. Mas, engravidando ela mesma de Crisóstomo, colocou imediatamente a correntinha com a cruz no bebê, assim que nasceu.

E, morrendo no ataque, entregou o bebê a Walter, rogando que jamais permitisse que ele deixasse de usa-lo. Os olhos do velho ficaram marejados ao lembrar.

Ana, a fugitiva... a garotinha... —Jerônimo murmurava.

Agora uma bela mulher — observou Walter.

—Uma irmã — disse ela —, que quer ficar ao lado de seu único irmão verdadeiro.

Walter perguntou se ela aceitaria ser uma aia de Alice.

—Da esposa de Marcelino? Claro que não. Pelo contrário, ficaria lisonjeada.

Por que se importaria?

Jerônimo desconfiou: — Não inveja a celebridade de seu irmão, provinda do pai de vocês, sendo você a mais velha?

Ana abriu os braços, —O que posso invejar nisso? — disse. E continuou: —Sou apenas uma mulher — esboçou um sorriso no ricto dos lábios.

Maria Yukie estava entre os melhores homens do grupo, a cunhada do irmão de Ana. —E uma mulher bem atraente.

—Não faço esse gênero. Posso até vir a admira-la, mas não faço a menor questão de ter essa honra, só quero o que é meu.

E o que ela julgava exatamente que seria o que era seu?

—O nome. Um lugar junto ao líder de vocês, meu irmão.

Walter disse que sabia que Marcelino não iria se opor. —Considere pois essas coisas como verdadeiramente suas.

* * *

Num lugar de sonho e presenteados prodigamente, os noivos não tinham entretanto olhos para a pujança material que os cercava, pois, crescendo na proporção em que a tarde diminuía, as expectativas do desejo acabavam por dirimir toda outra pontada que não fosse a do quarto que lhes estava reservado, esperando-os com a substância de que é feita a perpetuação dos homens e da vida, o mistério da legitimidade de um ato cujo fascínio reside na interdição.

O mundo esteve aos pés de Alice Eiko quando Takeda, de braço com ela, levou-a ao pequeno altar arranjado de helíconias e fúcsias vermelhas às quais a luz do sol filtrada pelas copas das árvores dava uma tonalidade álacre e lépida; mas a perspectiva sensual, móbil, sobreviveu à sublime novidade desse prazer, galhardamente, passeando pelos objetos, pelas cores e tecidos da cerimônia, pelas luzes, pelas comidas e danças da recepção, como se fossem armas heráldicas que se imprimissem em tudo a que Alice emprestava sua vida.

A transparência dos olhos de Marcelino deleitava-se em reflexos de amor derramados sobre sua prometida, dizendo de seu prazer nas mechas soltas que escapavam das flores nos cabelos dela, nos lábios de Alice aquecidos de um vinho cintilante amarronzado, no colo casto e nos pequenos seios brotando da alvura do cetim que os emoldurava — profecias que poderiam se prolongar indefinidamente antes de seu cumprimento, uma vez que a alegria era a própria esperança, mais que sua realização. Depois da recepção, Marcelino e Alice Eiko estavam no quarto, pela primeira vez sozinhos oficialmente. Vibrando dentro do vestido, ela reclinou o pescoço para receber os lábios do marido. Ele percorreu um caminho de beijos que invadiu os bordados, na passagem das mãos ao saiote, entrando sobre a organza e tateando a cobertura macia dos tensores e dos pectínios atrás da tímida cortina de seda e renda, no crepitar e nas ruínas da batalha, ondulando o bosque em resplendor curvilíneo de orvalho, sonho antes apenas degustado através da visão, agora revelado nas pantomimas molhadas e eretas, um só corpo, átomo compartilhando elétrons, duas vidas, cargas elétricas se atraindo.

Após desvencilhar-se do laço em que culminava a faixa marcando a cintura, desfazendo-o com paciência monacal, Marcelino tratou dos botões que o separavam da plenitude, liberando-a enfim diante de sua paixão, ao som gemente e abafado dos transportes — e o sistema nervoso recebeu as mensagens da dimensão do amor, nele latejando. Enfiou-lhe Alice as unhas nas costas, marcando-o duns riscos vermelhos tão suaves, que nem vertiam. Incansável e curiosa, a língua ao toque conferia paramentos, no balanço das ancas, na pressão arredondada, subindo pelo sulco do dorso, no meio. O linho da calça, deixado num monte, ficou sem função. Esperou ela algo, e ele outro tanto, em seus corpos cálidos, turbilhonados e, respirações suspensas, ele a cobriu. Suavam. Odores fortes, joelhos dobrados, impulsos e pesos, e à beira da cama, a boca no ouvido, tocando-se, e mais.

Para ele, era algo com que sonhara todo aquele tempo, desde o dia em que os dois, adolescentes ainda, se beijaram na cama da menina Alice, então sua enfermeira. Por muito tempo, de Alice fora esse também o sonho. Por muito tempo...

Até seu olhar se cruzar com o de Hilson.

Como evitar aquele pensamento insistente movimentando-se entre todos os seus dias? Entretanto, amara um dia sim aquele homem a seu lado. Amara-o sinceramente. O que havia acontecido? Não podia crer que fosse tão volúvel... Marcelino não devia perceber que ela estivera a chorar.

Dentro do coração de Marcelino, nada se passara entre a atmosfera antiga, interlúdica, daquele amor e a sua concretização com o casamento. Buscava agora resgata-la, ressuscitando as sensações do primeiro beijo, num beijo maduro e de diferentes conseqüências. Dividida, ela manifestava seu prazer com as carícias do marido em meio à aceleração dos corações.

Dado momento, ela se esqueceu completamente de Hilson, e nada havia nela além do desejo incontido que a levou a desabotoar a camisa de Marcelino, a camisa branca que escolhera para as núpcias. Se ainda havia algum dilema em Alice, as mãos de Marcelino eram muito mais velozes.

De modo algum herdara Marcelino de seu pai a lascívia, porém quando chamado a satisfazer a mulher que amava não mediu esforços, e grande era o seu sucesso. Alice reconhecia a dedicação e competência do esposo e sabia retribuir. Pareceu-lhe, num lampejo, que jamais iria pensar em outro homem além de seu homem, e era tentada a se lamentar de haver incentivado o amor de Hilson, um amor mais que proibido — desnecessário.

Mas as chispas de pensamento morriam todas entre suas pernas enlaçando o corpo que a possuía sem cessar.

A cada investida, o marido declarava-lhe amor eterno. Assim fazia em que se aproximou o momento em que deveria, também ele, experimentar o último segredo reservado pelo matrimônio. Alice fechou os olhos e, durante os momentos que se seguiram, e mesmo alguns dias depois, não mais estaria tentada pelo fogo de um amor pecaminoso.

Para Marcelino, apenas se estava consumando o mais lícito dos amores.


 

VI

 

Longe ia o tempo em que as feições do filho de Crisóstomo eram as de um garoto assustado. Um homem agora, perto de completar vinte e cinco anos, há três casado com Alice, guardava ainda um segredo que o angustiava. Isso tornava seu rosto, anguloso e vincado de rugas de expressão, ainda mais misterioso. Seus olhos, embora muito claros, eram reservados quanto à sua alma. Em seu rosto, transparecia apenas aquilo que ele permitia a seus homens saberem dele — sua liderança, sua generosidade, sua firmeza de caráter.

Depois que os outros saíram da sala, após uma aula de higaraná que ministrava, Maria Yukie aproximou-se de seu aluno predileto.

—Estou grávida — ciciou. E, antecipando-se à reação de Marcelino: —Mas não se preocupe. Alonso virá amanhã comunicar nossa partida para casarmo-nos. Portanto, não vá insistir para que a gente fique. Estabeleceremos família na casa dos pais dele. Bem longe daqui.

Enquanto isso, longe dali, mas nem tanto, no igapó, eu rendia o homem negro, de glabela crispada e temporais salientes, com jeito de pacato, a fim de subtrair-lhe algum dinheiro, talvez o mantimento que estivesse em sua mochila. Sobre tições, restos de tambaqui.

—Não se mexa. Passe pra cá tudo o que tiver.

Nas entranhas da pluviosidade arbórea, os tambores levavam a percutir no seio dos uês e globos, paños e caúras, japurás e todos os demais povos da floresta, a ilusão do futuro. Imaginava eu que era o único branco infurnado naquele território terciário, único a ter me penetrado do gosto da vida própria dos silvícolas. Ferido de morte ela maldade civilizada, estava agora precavido contra minha maldita raça. Ao menos, se não era indígena, aquele também não era um branco. Sua negritude luzia dos restos da fogueira. Estava recostado na árvore que uns cem dele daria, num sono cuja expressão fiava apenas de Deus o alívio da alma atribulada, a enfrenta-lo no peito, como se um inimigo fosse.

Aproximando-me, não pretendia na verdade me aproveitar de possíveis bens materiais que pudesse trazer consigo — a amizade, só a amizade, desejava daquele homem. Mesmo quando reagiu, ele parecia sabe-lo.

—Isto serve? — o revolver surgiu em sua mão, engatilhado direto no meu rosto.

—Tenha misericórdia de mim — engoli em seco, assustado. Toda minha família morreu naquela chacina de abril nos Jacarés. Estou com fome.

Hilson pensou uns instantes. Talvez tivesse um futuro melhor para mim do que ficar por ali assaltando gente pacífica para comer.

—Não!... eu não como gente, senhor. Eu só queria um dinheirinho para comprar alguma coisa, ainda não estou desesperado a ponto de me tornar um canibal. Eu não como gente não, moço, eu não...

—Cala a boca, menino! Você fala sempre assim?

Toda aquela tarde fiquei aprendendo a manusear uma arma. Hilson me incentivava, estava muito bom o meu aprendizado, extraordinariamente rápido. Eu poderia ir com ele, como um verdadeiro pistoleiro, e me tornar um membro de seu estranho movimento, que defendia os trabalhadores rurais, as prostitutas, os viciados, todos os explorados — uma história que começara na verdade muito antes de Crisóstomo, numa fruta que, afastada de sua árvore, devia inevitavelmente cair nas mãos de inimigos dos seres humanos, numa cadeia de sofrimentos e dores imputados ao homem pelo homem, e que, de fato, imputara-se o homem a si mesmo.

De vez em quando, sabíamos que estávamos sendo observados; mas as crianças índias logo se distraíam com outras coisas e iam embora.

—Um dia você terá a chance de vingar seus pais.

Aquilo me incentiva a ser um ainda melhor aprendiz. Mal sabia que tal desejo, a vingança, mais que um prato que se coma frio, é um que não se deve comer. Mas, ainda éramos uma despersonalização, um sentimento de justiça duvidoso, que só teria fim quando alcançássemos a nós mesmos, e isso não era uma conquista de armas — nem por armas nem por força, assim deveríamos alcançar a liberdade e, só assim, estar aptos a libertar. Seria um aprendizado doloroso, para mim, para Hilson, Marcelino, para todos.

Descemos, e continuamos descendo rio abaixo.

* * *

Seguimos no sentido leste. Desembrenhamo-nos da floresta mais densa. Em Monte Santo, enquanto reavia seu cavalo, Hilson consegui-me um. Seguimos assim. Foi quando pela vez vi esta estação ferroviária onde espero pelo cumprimento da promessa.

Paramos em Paiopeba, para pousar.

—Você não vai ao prostíbulo antes de partirmos?

Hilson não costumava fazer isso.

—Não costuma estar com mulheres? — estranhei. —Mas você, é homem, e pistoleiro!

Era também escravo.

Naquele momento, não entendi sua resposta. Mas tampouco contestei. Afinal, um homem tão bom tem direito a alguma excentricidade.

A grande floresta.

Chuva. Seringais. Mangas e mangabas. Tambaquis e dourados. Diarréia. Histórias, muitas histórias. Hilson e eu conversávamos todo o tempo. Eu acabara de encontrar um verdadeiro tesouro, pois aquele homem era realmente um grande amigo.

Sentia-me desolado quando o via se martirizar por aquela mulher, a esposa de seu líder e melhor amigo. O problema começava aí, di-lo-ei sinceramente. Queria ter a honra de ser, eu, o seu melhor amigo, e não um homem que, sem sequer o conhecer, por um motivo fútil, se dispusera a humilha-lo e talvez até mata-lo.

Ao longo de nossa travessia da floresta, até Paiopeba, nem vale a pena mencionar tudo o que ele dizia. A maioria das coisas era produto da bebida em alguém que visivelmente não tinha esse costume. Eu nem conhecia a tal mulherzinha e já a odiava, por tornar meu benfeitor um andrajo de gente.

Alice Eiko.

Eu me ajoelharia diante dela para lhe contar as derradeiras notícias...

—Eu, que partilho o coração de Marcelino no plano espiritual, sou obrigado a me ver afastado daí quando estou perto dela.

Disse a Hilson que ele já bebera demais. — Descanse um pouco.

—Sabe o que é uma amizade verdadeira, rapaz? É o que há de mais importante na vida de um homem, a dignificação da existência. A mulher nos faz perder a alma...

Aí Hilson dormia e no dia seguinte já não se lembrava de nada do que havia dito. E seguia em silêncio. Durante um bom tempo a viagem transcorria assim, arrebatada pelo dilema que dilacerava o peito daquele pistoleiro extraordinário que, muito mais que atirar, ensinou-se a ser verdadeiramente um homem.

Um dia afinal eu vi, deslumbrado, Nova Lábrea reluzindo, ao longe. Estávamos chegando.

—Adeus Maria Yukie! Adeus Alonso! Vão com Deus! Sejam felizes!

Aqueles que estavam partindo responderam o adeus.

—Olhem! — disse Maria. — É Hilson!

E havia alguém com ele, percebeu alguém na pequena multidão ao redor dos dois cavaleiros.

Era um entardecer quase sagrado de tão belo, o poente para os lados de Iomará. Eu estava na idade dos idealismos, não carregava vícios comigo. Minha vontade se aperfeiçoava. Meu encontro com Hilson definiu a minha vida. Antes dele, e da morte de meus pais, eu sonhava em ser um herói. Desses que salvam as mocinhas na hora exata.

Desdenharia em breve esse tipo de heroísmo e notoriedade. Tudo o que haveria de querer seria exatamente o contrário, uma existência banal, sem grandes feitos, sem uma missão. Mais não poderia escapar mais do destino. Estaria com aqueles homens nas horas em que toda esperança estaria fadada à miséria.

—Olá, Hilson! — os olhos rasgados de Maria Yukie sorriam quando Hilson se aproximou.

—Olá Maria — pela primeira vez vi Hilson sorrir plenamente. Aonde vai? E — virando-se para o amigo — você Alonso?

Iam para o Sul, se casar. A terra estava em paz. As quadrilhas da região desapareceram. Longe está o tempo violento em que viviam. Até aqueles que, Hilson me contara, haviam se introduzido no movimento com fins escusos tinham chegado ao fim de suas pretensões — e findaram suas carreiras de assassinos, ladrões e vendedores de honra, corruptos, oportunistas de toda laia, detentores de cargos públicos.

Como disse Hilson, muito deixaram como ensinamento.

Agora, afinal, tudo era paz.

—Espero que sejam felizes! — disse Hilson com o coração cheio de alegria por eles e dor por si mesmo.

Eles seriam, assegurou Alonso. A felicidade de fato imprimia-se em seu rosto. — E seu ferimento?

—Dói um pouco.

Alonso lembrou-lhe o quanto todos insistiram para que fosse ao médico naquela época.—Você insistiu em não ir. Dizia ter a cabeça dura, lembra?

—Eu estava errado. Marcelino acertou-me em cheio.

E esses retiros para orar no Igapó, parecem que não têm adiantado muito... — a expressão maliciosa emprestada por Maria Yukie ao comentário, dir-se-ia, era um pouco maliciosa.

—Às vezes Deus demora pra atender as preces, para testar-nos.

Quem era aquele rapaz? — Alonso olhou para mim.

—Um bom rapaz. Estará conosco. Está pronto.

Todos preferiam acreditar que não mais será necessário estar pronto — Marcelino aproximava-se. Perto de Hilson, estendeu-lhe a mão que, com angústia, foi apertada.

Maria disse que eu tinha pérolas nos olhos, enquanto seu cavalo, relinchando, girava em torno de si mesmo.

—E a tempestade nas mãos...

Um elogio de Hilson era algo de que alguém poderia decerto se orgulhar.

Se fora ele o mestre e eu aprendi o ensinado, certamente teria a tempestade — concluiu Alonso.

—Isso não se ensina. É como ser bom ou mau.

Alice Eiko correu para fora ao saber que a irmã já estava partindo. Foi surpreendida pela presença de Hilson. Seus olhares se cruzaram. Ana observava.

—Que bom que veio, Hilson — disse Marcelino. —É tempo de se unir a nós nos festejos da consolidação da paz.

Era uma pena. Ele não podia ficar.

—Mas você acabou de chegar! — protestou Marcelino.

Viera apenas para mostrar o caminho para mim.

Marcelino se virou para mim. —Seja bem-vindo. — disse, cortes. E, tornando o rosto para o amigo, quis perguntar o que o impedia de ficar.

Estava ainda em seu tempo de retiro.

—Tenho certeza de que Deus não é assim tão rigoroso — disse Marcelino. —Fique para a noite hoje e amanhã retorne a suas orações.

O olhar de Hilson era indecifrável.

—Tem certeza — continuou Marcelino — de que não quer ainda ir a nosso bom médico, o Dr. Raul, para que possa definitivamente se curar?

Não havia medicina humana capaz de curar seu ferimento.

—Suas palavras são duras. Fazem com que me sinta culpado pela sua dor.

Não era culpado. Cansou de pedir para que Hilson ficasse. Se não fosse negligente — baixou os olhos tristes — estaria curado. O tempo passou. Agora só lhe restava suportar a dor até que Deus dela o quisesse poupar.

Hilson abraçou o amigo. Uma lágrima insistia em descer mas ele a retinha.

Disse adeus a Marcelino.

—Adeus, querido amigo.


 

VII

 

Partiram assim Maria Yukie e Alonso para apanhar o trem na estação de Maceto. E partiu Hilson na direção contrária, para noroeste, na direção de seu santuário pantanoso.

Mais tarde, as confraternizações da paz em Nova Lábrea transcorriam com alegria. Não tão alegres como o desejaria o filho de Crisóstomo, saudoso de uma companhia duradoura de seu melhor amigo.

Subitamente, a voz de Marcelino se ergueu na festa, por sobre a música, interrompendo as danças.

O que precisaríamos mais para ser completa a nossa alegria? A paz reina. As colheitas são férteis. Há abundância de ouro para todos. Nada nos falta. Meu pai — virou-se para Walter — o Mal ainda mantém algum resquício entre nós?

—O Mal estará sempre onde é menos esperado e jamais será totalmente banido nesta vida.

Falava de religião?

—No meio social, meu filho, tudo se interpenetra.

O egoísmo e a vaidade se entranham nos melhores dentre os projetos. Cada qual então encontra a moral que adota ou refuta. Só perscrutando a própria Natureza quando criada poderíamos chegar à raiz da moral, lá, onde o intelecto não chega ou chega e nada vê, só lhe restando razões, que de nada adiantam contra Mal.

—No seio das famílias e das amizades é que o Mal se faz pior — insinuou Olavo

Marcelino perguntou Como assim?, estremecendo ante a possibilidade de ouvir o que de há muito suspeitava.

—A ausência constante de Hilson responde sua pergunta, mas quem quer ouvir?

Marcelino ordenou que Olavo fosse claro, sabendo que mais claro não poderia ele estar sendo.

—Por que Hilson não festeja nossas vitórias senão porque sente-se derrotado? — desafiou Olavo. —Por que não comemora a paz a não ser por não estar em paz? E por quem foi vencido, se ninguém pode vence-lo? Pelo pecado.

O silêncio que se fez permitia ouvir as moscas.

Pecou? Hilson era de todo íntegro!

—Traiu seu melhor amigo e foi infiel a seu líder.

Não era verdade!—Não é verdade, Marcelino! — Alice Eiko caiu em pranto, uma confissão: nada havia sido ainda dito a respeito dela.

—Está disposto a colocar sua acusação em julgamento, Olavo? — Marcelino estava surpreendentemente sereno para a situação, e firme.

Contra Hilson? — temeu Olavo.

—De que tem medo? — Marcelino tranqüilizava-se na perspectiva lógica da recusa de Olavo. —Não confia que Deus jamais deixará a verdade cair diante da mentira, não importava quem a esteja defendendo?

—Está bem — concordou Olavo, confiando muito mais nas precárias condições físicas de Hilson do que no poder da verdade diante de Deus.

—Jesus... — a lágrima rolou pela face de Alice. —Você não podia simplesmente acreditar em mim? —perguntou ao marido.

Ele acreditava. Porém era preciso que a inocência de Hilson ficasse muito clara não só para si, mas diante de todos. Em seguida, ergueu a voz de líder:—Ao amanhecer Hilson e Olavo lutarão com facas e a verdade ficará manifesta.


 

VIII

 

Nas folhas enormes, pendiam gotas multicores. Hilson dorme recostado no grande pé de cupuaçu. No emaranhamento abafado e úmido, cerca-o a água abrupta em efeitos de erosão. Gramíneas supõem a presença de gado por perto. Voltando pela estrada de terra, enviado por Marcelino, eu percebia muito pasto onde deveria haver floresta. Hilson não chegara ainda ao coração do igapó. Talvez nem estivesse disposto a seguir até lá.. Estava exausto e triste.

—Hilson... — murmurou Alice, tocando-o para que acordasse. —Hilson...

Num sobressalto, ele trouxe à memória sua inocência — não a poderia trazer do coração.

Olhou-a em silêncio.

Ali estava Lícia, de delicia, como chamara Alice em seu íntimo, naquele primeiro dia, quando o pai dela sentou-se em seu lugar no botequim. Trazia na face juvenil o sinal do tormento onde os amores proibidos terminam, quer se consumem ou deixem de se consumar.

Hilson sentou-se.

Era estranho vê-la assim, a seu lado, e não sentir culpa. Percorreu com os olhos o rosto e o corpo enlameado daquela a quem amava com amor tão cego — Lícia, não Alice, — a quem só os seus sonhos conheciam.

—Somos indignos?

Na verdade, Alice Eiko sentia-se indigna de Hilson. Afinal, ele era um homem nobre, de caráter, jamais trairia seu melhor amigo, com quem ela era casada. E por que o era? Por que não confessara aos dois homens o que se passava dentro dela? Marcelino era bom, compreenderia. Hilson visivelmente a amava, ficaria feliz. Tudo terminaria bem. O que pretendera ao se casar? O poder de ser a mulher do líder? Não ligava pra essas coisas. Mas então, o que, afinal? Por quê? Será que apenas sentira-se atraída pelo gosto do proibido? Passava dias inteiros se fazendo perguntas, sem resposta.

Provocara aquela situação que caminhava para um desfecho fora de seu controle?

—Hilson?

Ele despertou afinal e me fitou durante alguns segundos antes de se aperceber da situação.

Dormira. Sonhara. E agora acordava com o coração ainda descompassado pela imagem de Alice, que diante de si não estava.

Angustiada, ela temia o amanhecer em Nova Lábrea.

—Hilson? ... Acorde... Você está sendo esperado na cidade ao nascer do sol.

Val? Será que estaria ele estou sonhando com os dias em que caminhávamos pelo igapó?

—Não sou eu certamente quem povôo seus sonhos, amigo.

Contei-lhe o que estava acontecendo.

Hilson ouvia, impassível.

Parecia, entretanto, que sua cabeça ia explodir de tanta dor.

* * *

Amanhece, e os corações batem pesado em Nova Lábrea.

Pulsam. Pulsam.

—O sol nasceu — disse Olavo. O filho de Crisóstomo tinha mais de uma palavra?

O ritmo da cavalgada se fez ouvir ao longe.

Era Hilson! — alegram-se todos.

Ele interrompeu o galope à sombra da igrejinha do complexo de sítios. Olavo começou a suar frio. Hilson desmontou. O burburinho das pessoas continha grande esperança, logo concretizada.

Ninguém derramou uma única lágrima quando Olavo caiu morto.

* * *

A cidade, por essa época, já havia sido plenamente edificada. Era as entranhas do complexo, as vísceras do mundo para todos ali. Lembro-me do meu espanto quando cheguei. Ainda hoje, é essa a imagem que evoco durante o vagar com que minhas noites passam, insones e solitárias.

Quando me lembro, estremeço.

Havia aquela áurea magnífica, atmosferando os campos, as casas, as igrejas. E sobretudo a cidade, a rua da cidade, a casa de Marcelino.

Os construtores trazidos tinham realmente se esmerado e sido inspirados. Antigos garimpeiros, ao serem assentados, doaram ouro. Era uma cidade dourada. E havia o espírito de minhas conversas com Hilson através da floresta, coisa que então minha alma de rapaz não conseguia plenamente alcançar.

Ali próximo ao lugar onde Olavo acusou Alice Eiko e Hilson, a decoração fazias das paredes como que redomas aureamente detalhadas, numa geometria fantástica. E, pela estranheza do episódio, Marcelino relacionando a vitória na luta à benção de Deus (e ainda num assunto tão insólito em que seu melhor amigo e sua própria esposa estavam envolvidos) — e também por algum eventual efeito das luzes de fogo nos lampiões —, tudo levava a crer que eu estivesse mesmo sonhando.

Mas não fora um sonho.

Ali mesmo, depois da morte de Olavo, Marcelino dissera a Hilson: — Perdoe-me por tira-lo de seu retiro, suponho que você precise voltar.

—Se você me permite...

Hilson olhara para Alice vendo Lícia e afastou-se.

Saiu à rua. Aproximou-se de seu cavalo, fez um afago entre os olhos do animal, desatrelou-o, montou e partiu.

Coincidiu naquele dia que Marcelino foi visitado por alguns japurás que lhe traziam certas novas cujo conteúdo eu então desconhecia, mas de gravidade evidente. O filho de Crisóstomo preparou a montaria e seguiu com os visitantes.

Era tudo que Alice Eiko não pedira a Deus.

* * *

Embora orgulhosos de suas aptidões agrícolas e artísticas, os japurás eram essencialmente um povo de pastores. Habitavam na terra o tempo suficiente para plantar e colher. Durante esse tempo, teciam cobertores cheios de desenhos em ponto-de-cruz e fabricavam bijuterias com prata.

Antes da dizimação e da reserva.

Havia muito tempo, quando se viam hoganas armadas na planície, sabia-se que ali se encontravam japurás cuidando de seus animais. Naquela época, haviam se instalado a sudeste do Riacho Preto, policultivando uma terra desdenhada, e criando.

Marcelino reuniu-se a uns dez pastores naquele dia. Deram-lhe informações sobre seu passado e futuro.

Alice, enquanto isso, alcançava Hilson em Monte Santo, antes de Luzilândia. Ali aconteceu o que estava predestinado pela maneira como se olharam quando da primeira se viram, na bebedeira de Takeda.

Ao chegar em casa, de madrugada, Marcelino, na soleira, encontrou Walter. Perguntou-lhe onde Alice estava.

Ele sabia.

Deveria encontra-los?

Teria de decidir sozinho.

Subindo o degrau do passadiço, Takeda interveio: Só pedia que não a matasse. Até porque a vida com essa culpa será para Alice um castigo maior.

Era noite alta quando Marcelino chegou na cidade onde os trabalhadores assentavam os trilhos para a chegada da ferrovia, da qual viam-se claros indícios.

Dirigiu-se ao hotel onde Hilson e Alice Eiko estavam hospedados, levado por diabólica intuição. Perguntou ao porteiro pelo casal. O homem não teve constrangimento em dizer o número do quarto nem impediu de algum modo que subisse.

Do lado de fora da porta, ouvindo os gemidos, pendurou na maçaneta a corrente com seu crucifixo.

Ainda destroçado, mas sem derramar uma lágrima do mar que havia dentro de si, Marcelino chegou de volta a Nova Lábrea. Dirigiu-se ao quarto onde exausto deixou-se cair na cama.

Logo, adormeceu.

Quando Ana foi procurar Alice Eiko para confirmar o boato de que havia encontrar o amante, vibrando, escutou a voz de Marcelino. Ao perceber que, sonhando com a esposa, ele delirava com o nome dela nos lábios, a filha de Crisósotomo entrou no quarto.

Alice?

—Sim, meu amor, sou eu...

Ao acordar, Marcelino percebeu, desesperado, o incesto.

Ana?!

Ana, sempre com a arma apontada para o irmão, recompôs-se e, entre maldições ao irmão, disse: — Eu poderia mata-lo agora, mas assim não teria tanta graça. Terá notícias minhas muito em breve.

No entanto, por muito tempo não se soube mais de Ana ou Alice.

E maldita se tornou Nova Lábrea por causa delas. E maldito tornou-se Marcelino, e seu pecado levou a miséria aos povos da floresta.


 

IX

 

A seca durante metade do ano e as enchentes na outra metade os sufocava, dizia Walter perante o Conselho. Haviam perdido os desígnios. A violência voltara a imperar ao redor. A terra parecia jamais ter sido fértil. A região tornou-se misteriosamente inóspita. O gado estava morrendo. Tudo perdera as cores. Tudo se tornara inútil. A luta parecia derrota, de antemão. O povo sofria sem mais poder viver de seu trabalho na lavoura. As jazidas a céu aberto se esgotaram e não havia meios de procurar o ouro e as pedras nas profundezas da terra. Cabia a ele, Marcelino, tomar agora uma decisão que os livrasse da morte, a eles e a toda a gente da região.

—A mim? perguntou Marcelino. — Eu não sou Deus!

Jamais pretendera, disse, aquela honra de ser a salvação de todos, de ter a solução para os problemas do povo. Não fora ele quem atribuíra poder sobrenatural ao crucifixo.

No entanto, sabia melhor do que ninguém que aquelas desgraças tiveram início no dia em que perdera o crucifixo.

—Tudo o que sei é que a minha desgraça começou nesse dia.

Mal completou a frase, Marcelino revirou os olhos, teve um colapso e caiu.

Morreu? — perguntavam-se todos.

Ainda estava vivo, disse Walter sentido-lhe a fraca respiração. Mas não saberia dizer por quanto tempo.

Deviam buscar o médico?

O que precisava não era um médico. Esteve entre os seus antepassados e tudo fora profetizado, inclusive aquela síncope. Os japurás esperavam um redentor que os livrasse do extermínio. Seu rosto era o rosto que buscavam. Mas o curandeiro, assim como garantiu que Marcelino era o homem, afirmara também que ele não os poderia livrar sem antes passar ele mesmo por uma grave doença que, quando o atingisse, também atingiria a própria terra.

—O que é, exatamente?

Uma gravíssima degeneração óssea e muscular.

—Por que não evitou tanta desgraça se conhecia o futuro?

—Por que não conduziu sua dor pessoal de modo condizente com a sabedoria de sua extirpe? Era o filho de Crisóstomo!

—Era um homem — disse eu. —O índio não falou sobre tratamento? — perguntei.

Sim, havia uma cura. A dose única de um certo chá. Mas a raiz de Uahú, de que é feito, era muito rara. Nem o próprio curandeiro soubera dizer com certeza se poderia ainda ser encontrada.

Na verdade, depois que Alice Eiko partiu, o próprio Marcelino não queria outra coisa senão morrer e jamais se preocupou em precaver-se.

—Não importa — eu disse. —Dê-nos a característica dessa raiz e iremos procurá-la.

Seria como agulha no palheiro.

—Não importa — disse Jerônimo. Que Walter falasse e iríamos todos em busca da cura.

Depois que Walter nos instruiu, dispersamo-nos pelas serras fronteiriças, do Pico-Mor ao Chapadão, ao longo do Rio Grande, até a Ilha Atlântida, em busca da raiz de Uahú.

Takeda estava à frente quando partimos.

* * *

Esquecidos de nós mesmos e em torno de um mesmo ideal, saímos, os homens de Marcelino, pelo mundo selvagem, comungando a mesma esperança. A reflexão especular do sol e da lua nos rios caudalosos apontava os raios à eternidade.

Estávamos a princípio em grupos. Mais tarde, tornou-se cada um por si. Marcamos encontros em diversas datas e lugares — alguém dentre nós haveria de encontrar Uahú?

Perguntávamos a qualquer um pelo caminho. Passávamos por aldeias indígenas, ignorando mesmo a ferocidade dos Uruaques, Gês e Caribós, a qual na verdade encontramos nos homens brancos das cidades e vilas, ou quando nos apanhavam dentro das terras incultas de imensos latifúndios.

Muitos fomos tidos por loucos e tratados como tal. Alguns foram linchados, outros assassinados em emboscadas.

Procuramos por toda parte.

Passou o tempo. Os homens iam morrendo, um a um.

Tentamos inspiração em plantas alucinógenas, em meditações e preces, — tentamos tudo na procura. Inútil.

Estações e estações de trens. Estações e estações do ano.

Ninguém achou a raiz e a maior parte de nós estava desaparecida.

O mar, o planalto cretáceo; os rios cheios; ventos quentes e tempestades; a eletricidade no ar; os pântanos; a umidade entranhando-se nos ossos; as serras espectrais e os vales nas encostas — eu seguia cavalgando, caminhando, navegando. E o tempo ia passando, indiferente à minha exaustão.

Encontrei a morte de muitos em meu caminho e disse a mim mesmo que era loucura aquela busca, estava acabado, era loucura, não havia nenhuma raiz.

Era loucura, pensei, estava acabado, não havia nenhuma raiz.

Um dia, entrando pela rua principal de uma cidade, do passadiço, acenou-me um garoto. —Ei, moço!...

Não era eu, perguntou-me ele, um dos que procuravam a raiz de Uahú?

Voltei e vi aquele rosto bendito.

Respondi que sim, saindo de mim de tanta alegria.

Ele sabia onde se poderia encontrá-la?

Correu à frente de meu cavalo. —Eu levo o senhor lá.

Saímos de Pés-Pretos e entramos uma casinha de palafita. O garoto sentou-se à mesa e veio até mim uma mulher metida num vestido de algodão vermelho com passantes debaixo do busto, muito maquilada, os cabelos sobre o rosto.

—Pobrezinho — disse ela. —Por onde andou? Por quanto tempo tem caminhado?...

Eu andara por sertões sem fim, caminhara entre serpentes, perdera-me no meio de florestas tenebrosas, resvalei e rolei por ravinas abissais. Percorri durante meses a fio milhares de quilômetros e, sempre, só os mortos esperavam a minha chegada.

—Portanto, não achou o que procurava...

Tudo o que achara foram crianças brincando em meio a lobos, menestréis bêbados às portas de botequins, homens ambiciosos e cruéis, pregadores gritando inaudíveis, disparos pelos motivos mais fúteis, gente doente e suicidas, puristas desdenhando da pureza, chefes de família sem ter como sustenta-las, um palhaço chorando e uma cantora se prostituindo em troca de pão, um negro sendo enforcado, jornalistas mentindo e por isso sendo honrados, artistas vendendo as almas, índios envenenados com álcool, meninas puras oferecendo a si mesmas por nada mais terem a oferecer e sua pureza ninguém queria, poetas queimando versos, o triunfo da traição e da mentira, velhos servindo de chacota, e trovões anunciando a tempestade.

—Sim, meu querido, é terrível a tempestade que está para cair...

Mas eu estaria abrigado junto a ela, disse-me. —Venha. Descanse. Junte-se a nós.

Ofereceu-me uma caneca de cerveja. Quando ia leva-la à boca, vi Manuel.

Manuel ali? —E você, Sandro? Yaco? Vocês... acharam a raiz?

—Não existe nenhuma raiz... — disse a mulher, que então reconheci.

Ana...

—Eu, sim... Ande, beba... Descanse... Junte-se a nós e alegre-se... Dias de glória estão chegando.

Não! Gritei, tentando alcançar a porta. Fui impedido.

—Bem, — disse Ana — você teve a sua chance.

—Levem-no para fora! — disse o menino que até ali me guiara. —E que tenha o mesmo fim dos outros que recusaram nossa companhia.

Fui arrastado para as margens do Rio Grande.

Lá, espancaram-me até a morte e me precipitaram.

Não atingi a morte por linchamento como julgavam, mas estava bem próximo da morte por água.

Lutando contra a corrente, quase desfalecendo, eu via na morte além da morte. Acima, ouvi o motor de um barco. Os impulsos sonoros eram angustiantes. A perturbação se propagava em minha alma, transmitindo-me força divina, como ondas eletromagnéticas.

Senti que a raiz estava ali, em algum ponto das margens, mas nada fiz senão tentar me salvar. E, agarrando-me nuns galhos, consegui.

Saindo do rio, perdi os sentidos.

* * *

Visivelmente exausto, à beira de um colapso de exaustão, Takeda bebia das águas do rio no ponto em que eu havia saído há pouco. Eu estava atrás de uns arbustos, recuperando-me. Quando o vi, quis deixar o esconderijo e ir até ele.

Tarde demais.

—Renda-se! —disse o menino que me levara até Ana. Os homens que traíram Marcelino o seguiam.

Takeda olhou o bando com espanto.

Manuel? Sandro? Yako? Que faziam ali? Quem era aquele pequeno doido?

—Eu sou Falabonito —disse o garoto. —O chefe de todas as quadrilhas do Norte.

Era o que Takeda dizia: Ele era um doido.

—Retire o que disse —Falabonito havia desde o nascimento quebrado com tudo que não dissesse respeito a si mesmo. —Envergonhe-se do nome do filho de Crisóstomo, preste-me tributo e viverá!

Era realmente doido, murmurou Takeda. E, erguendo a voz: —E eu estou do lado de Marcelino, e assim viverei, ou morrerei.

—Morrerá, então.

Esvaziaram em Takeda seus revólveres.

Quando partiram, aproximei-me dele.

—Amigo?... Sou eu, Val...

Mal podia sustentar o olhar em minha direção. Mesmo assim, teve firmeza para dizer o que pensara ter sido um delírio de Walter, mas não...

—Walter também morreu nas mãos desse ensandecido?

Dignamente. Como sempre viveu. Takeda o encontrou, agonizante. Ele lhe contou, mas era difícil imaginar...

E Takeda me disse o que se passava. Coisas que Walter não sabia, o próprio Marcelino mais tarde me contaria...

 

Marcelino olhou para Falabonito.

—Você é filho de Ana?

—Seu filho!

—Então por que esse ódio em seu olhar?

—O que poderia sentir por um pai como você? Olhe para si mesmo! É patético! Representa a benção da terra e todas as terras a seu redor estão assoladas e mortas. Diz ser o pacificador e só há violência em sua volta. O povo morre pela fome e pela lei do mais forte. Isso, aliás, se chama “evolução”. Você parou no tempo. Este mundo está destinado a mim, não a você. Os fortes lideram num mundo assim. Você é uma piada! Ouviu falar das catástrofes? Sim, este é o meu mundo!...

—Então, o que quer de mim?

—Num gesto de misericórdia, estou lhe oferecendo sua própria sobrevivência. Em troca, dê-me essas terras e ordene a esses poucos homens que se mantém fiéis a você que passem para o meu lado. Eu providenciarei jornalistas do Sul para que venham ouvir de sua boca que sou o legítimo herdeiro de Crisóstomo. Só uma questão de palavras. E você terá esse garantia de vida. As palavras têm esse poder, sobretudo nas mãos da imprensa, você sabe.

—Não posso lhe dar o que me pede. Quem está comigo está por vontade própria, por livre arbítrio. Por terem testemunhado que o crucifixo estava em meu pescoço.

—Você perdeu o crucifixo quando achou seus chifres!

—Mas não a autoridade que você agora quer. Na verdade, não é minha. Eu não sou nada. Você bem disse, sou patético. Apenas servi um dia de mediador na região entre a paz e os homens. Quando meus homens voltarem com a raiz de minha cura, a paz será restabelecida.

—Meu Deus!... Mas que diabo!... você está mesmo mal informado!... Não há mais nenhum de seus homens há procura de nenhuma raiz. Dos que saíram a procura-la, ou estão mortos ou passaram para meu lado. A paz não será restabelecida. E, se a violência não serve a seus propósitos, serve aos meus, para manter meu poder.

—Você não teria nenhum se Deus não permitisse. De fato, não tem nenhum.

—Talvez ainda não. Mas você também não ouviu falar do pó branco de Niemann? Nada sabe de Mantegazza e de um tal Freud? É o futuro, meu pai... Muito poder sem risco nenhum. Uma mina inesgotável. Não poderá sequer imaginar o que poderá fazer um estimulante sem limites, para o trabalho dos colonos, dos garimpeiros? Não pode imaginar as meninas mais virtuosas entregando seus corpos por uma nova dose e o preço de seus corpos a seu dono, eu? Trabalharão de graça no final, todos, e diligentemente, por uma ração desse alcalóide, farão a riqueza de muitos, dos poderosos. E se eu incluisse você entre esses?

—Não, obrigado.

—Não? Idiota... É por isso que você parou nas aulas de Literatura. Isso é vida, meu pai.

—Você não sabe o que é vida. A fonte dela é a justiça e a paz.

—Ah, mas onde estão a justiça e a paz? Digo de novo: Olhe a seu redor.

—As coisas às vezes não são o que parecem.

—Tudo bem, serei misericordioso. Você não precisa receber os jornalistas. Apenas me dê minha parte nessas terras e algumas dezenas das filhas de seus homens para servirem nos garimpos e nas cidades que já conquistei. Por que você sabia que há um mundo além de Nova Lábrea, não sabia, ou pensava que terminasse onde termina a rua principal?... Muito bem, muito bem... Apenas faça isso, do resto me encarrrego. Providenciarei inclusive um médico decente e você terá sua cura. Se não conseguir cura-lo, terá toda a cocaína, toda a heroína, toda morfina que precisar para esquecer a sua dor. Não lhe parece caridoso? Não é mais justo? Por sua causa, tantas jovens ficaram sem pai e suas mães sem um homem na casa, e a terra sob maldição. Mas eu restaurarei isso.

—Não sei mais onde estão a justiça e a paz, mas com certeza não estão em seu coração.

—Ah, realmente não! Como poderia, sabendo que meu pai é um corno mestiço?!

—A descendência índia muito me honra. E amo Alice e Hilson é o maior amigo que um homem poderia ter.

—É, eu sei. E por isso mais te odeio. Talvez, se você se envergonhasse... Mas, como disse, sente-se honrado! Ah meu Deus que idiota você é, que grande imbecil! Coisa triste de se ver... E esteja certo de que minha primeira providência será destruir todos os índios dessa região. Os japurás, é claro, serão os primeiros a serem dizimados. E seus avós os primeiríssimos. Quanto a Alice e Hilson, é por demais aviltante... Que trapo de homem!... Meu pai... Que vergonha!

—São seus antepassados também.

—Um simples acidente.

—Isso é verdade, aliás, você mesmo foi um acidente infeliz. Mas não conte transformar seus delírios em realidade.

—Se não for por bem, será por mal. O que agora você está me negando, eu terei de uma forma ou de outra.

—Não creia nisso.

—E como espera me impedir?

—Ficar a sós e erguer uma prece será um bom começo.

—Erguer uma prece... Ah, meu pai, meu tio, grande guerreiro da paz...Veremos!

—Se você achasse mesmo que não sou empecilho para seus planos não estaria agora aqui me propondo esse vil acordo.

—O motivo principal por que estou aqui é que não queria em minhas mãos o sangue de um mártir. Mas darei um jeito nisso também. O povo é inconstante...

—Vá embora, Falabonito. Deixe-me sozinho. Estou cansado.

—Eu vou sim. Mas eu voltarei. Então, tirarei de você essa dourada cidadela de brinquedo onde você se esconde do mundo. Ela será o meu quartel-general. E vou mata-lo com minhas próprias mãos...

 

Ouvi abismado o que Takeda me contava.

—Aquele menino é o demônio...

E só eu, disse-me Takeda, poderia ainda livrar a terra dele, achando a cura para Marcelino, disse-me e eu via morrer à minha frente o pai de Alice Eiko e Maria Yukie.

—Somente eu? Nem Jerônimo? Nem...

Ninguém. Todos os que sobreviveram à busca já haviam feito suas escolhas: ou Falabonito ou a morte. Só restava eu, de todos os que deixáramos Nova Lábrea com a missão de encontrar a raiz de Uahú.

Evocando minha quase morte por linchamento e água, eu a Takeda que estivera bem perto. —Muito perto, senhor. Mas falhei.

Não importava. Que eu tentasse. Faria isso? —Minha filha, disse-me ele, precisa de paz.

Sim. Eu o faria.

Mal acabei de falar, Takeda expirou.

* * *

No vilarejo assolado pela seca, as pessoas me reconheceram como um dos homens do filho de Crisóstomo. Vejam, diziam. Por isso estava a miséria e a peste entre eles! Eu era um daqueles malditos que quiseram se passar como discípulos do filho de um deus. E, como resultado, a morte estava viva entre eles. Era o que herdaram de Marcelino e seus seguidores: a morte.

As pessoas que atravessavam o lugar, de um lado para o outro, iam parando e se aglomerando num círculo em torno de mim. Mal me recuperara de um linchamento, e já estava para sofrer outro. “Não de novo”, pensei. Mas logo as pedras começaram a voar na minha direção.

Fui sendo acuado entre as pessoas enfurecidas e o Rio Preto. Ah, sociedade fechada, indiferente ao restante dos homens exceto no que lhes poderia ser útil. Comunidade, não humanidade. Teriam a mesma essência? A coisa é tida por sua expressão e a pessoa pelo que simboliza. A verdade por aproximação não é plena, crianças imitam, abelhas ferroam o macho agora inútil, a aproximação da felicidade chega ao objetivo do conforto e do bem-estar. O universo ainda era, como será sempre, uma máquina de fazer deuses. Uma pedra me derrubou e minha testa começou a inchar.

Olhei para trás, completamente tonto. Vi as águas que corriam e desabei na correnteza.

Imergindo e emergindo, não me importei com a morte próxima. Queria apenas discernir nos ramos das margens algo que se parecesse com uma planta cuja raiz se chamasse Uahú. Tive subitamente a intuição. Ali — era ela! Socorrendo-me de seus ramos, detive meu corpo arrastado. Numa fração de segundos em que engoli mais água do que julguei ser capaz, eu estava morrendo; na fração seguinte, agarrado à planta, consegui subir na beira do rio.

Adormeci.

Ao acordar, desarraiguei o ramo e veio com ele aquela coisa barrenta, em nada parecida com a cura de alguém. A vida sem mais ilusões, vinda da terra em que não se vê mas reluz a eternidade. Agora eu sabia e tinha nas mãos o que sabia.

Comecei afinal depois de tantos anos o caminho de volta.

Encontrei um velho japurá. Ele me confirmou a legitimidade da raiz. Também realizei uma outra descoberta que, junto à cura, levaria a Marcelino — uma revelação sobre seus avós e Alice Eiko.

Segui caminho.

Os dias se passaram e eu, errando, agonizava com as terras, quando vi a cidade no meio do complexo de fazendas, brilhando lá embaixo, além do Monte Santo, o ponto dourado, a cidade, Nova Lábrea. Foi um momento que me marcou de tal modo que, hoje, cada vez que, como agora, estou nessa estação de trens, erguida dentro daquelas terras, como fronteira natural entre o campo e a floresta, e recosto-me na parede atrás do banco de madeira, enquanto insetos sibilam a meu redor, e lanço um olhar distante que alcança o céu além do horizonte, sentindo na carne a dor e a felicidade daqueles dias gloriosos, sob essa mesma indescritível imensidão azul, eu posso ver, as coisas que não vejo, desde então. Todos estão ou indo ou chegando e são emoções parecidas com as nossas de outrora, porque nascem igualmente no amor que as pessoas têm umas pelas outras — e eu sei que neste exato momento um rapaz estará em profundo dilema por causa de um afeto dilacerado, que o trará enfim.

Eu sei. Que ele sabe em seu coração que aqui é o lugar dele. Imagino que não estará longe aquela a quem entregará esse mesmo coração, talvez num leito de convalescença ou à beira de um lago após uma festa, no amanhecer derramando-se sobre as planícies — e não sei o que se passará depois porque o câncer já terá enfim dado fim àquilo que sei apenas para mim mesmo, e talvez eu saiba então por meio dos ouvidos de outros, através da voz mítica dos mortos.

Lembrando aquele amanhecer em que vi Nova Lábrea ao longe, murmuro: —Não estará mais deserta a cidade outrora festiva. Despertará. Sacudirá de sua memória os tempos do luto. Porque um remanescente descerá o chapadão e as serras, e subirá do sul para habitar a cidade, com intensa alegria. Não irão temerosos os que entrarem, porque o sucessor de Marcelino estará adiante deles.

—Quando? —pergunta o menino sentado a meu lado.

—Quando? —sorrio ao perceber que falo sozinho. —Um dia —digo. E penso: “Falando sozinho... Os sintomas estão chegando. Se demorar muito ainda, quando ele chegar me encontrará chamando de papagaio o abutre...”

Um dia...

E, esperando esse dia, sou Lourival de Almeida, sentado no banco de jacarandá dessa estação, tendo um menino desconhecido e curioso a meu lado, aguardando que se cumpra a promessa.

Talvez hoje. O trem pára.

Uma barulheira e, na azáfama, gente começa a descer. Parentes e amigos aguardam, ansiosos. Não. Nada de alguém com uma corrente no pescoço e luzindo ao sol um belo e estranho crucifixo. Apenas gente comum, sendo derramada pelos vagões para dentro da fumaça. E eu, alegre em minha esperança, logo a enterro, até o trem seguinte.

—O último trem de hoje —murmuro. E permaneço lembrando...

* * *

Entro na cidade triste.

Resplandecia ao sol a misericórdia de Deus quando passei para o quarto onde Marcelino estava deitado. A melancolia o enfraquecia ainda além da doença.

—Beba, amigo. —eu disse ao sentar à cabeceira do filho de Crisóstomo.

—Será mesmo uma erva milagrosa se me curar — disse Marcelino. —Ponha a caneca em meus lábios, não tenho forças. Tantos anos... estou acabado...

—Beba, chefe. Depois conversaremos —eu disse. E pensei: “Mas que coisa... ainda tenho de ficar escutando essas lamentações depois de tudo por que passei...”

Ele tomou o chá e dormiu em seguida. Na praça, eu fiquei conversando com os homens que haviam permanecido em Nova Lábrea, com Marcelino. Estavam conformados. Não tinham mais esperança. Essa era a essência do que diziam. Perderam a confiança em mim, ou em si mesmos.

Talvez até houvessem ido embora, se tivessem para onde ir. O destino lhes havia sido arrebatado.

Cerca de meia hora depois que deixei Marcelino, ele apareceu na soleira que dava para a rua.

—Homens! —gritou.

“Ai meu Deus...O que ele quer agora?”, pensei, sem me dar conta que ele estava de pé. —Marcelino, você está bem?

—Estaria, se não fosse tão inseguro. Todos têm feito tudo por mim!... Até Hilson e Alice carregaram uma culpa que na verdade era minha. O que tenho feito para merecer uma lenda? —parou um momento, a cabeça baixa, mas logo a ergueu de novo, com firmeza na voz e no olhar: —Um bem há que precisa ser feito e um mal a ser destruído. E não será um crucifixo que fará isso por mim.

—Mas certamente —ponderei— a cruz o protegeria, se você acreditasse mesmo que ela o estava protegendo.

—Eu até acreditaria, se ela estivesse comigo. Como não está, acredito em mim mesmo.

—A raiz é mesmo uma maravilha! —exclamei. E, como ele me olhasse de um jeito esquisito, emendei: —Como você está corado e bem disposto!


 

X

 

Crianças brincavam ao lado do fogo. O homem passou por elas. Cabeça erguida, ombros largos — imponente. Sombras em seu semblante generoso. No ar, o outono. Seu coração bate mais forte ao entrar na tenda.

Uma lágrima. Beijando a face da anciã, Marcelino chora também. Estava na parte de trás da hogana. “Vá meu filho”, disse a velha japurá. Ele soluçou. Apertou a avó num abraço e seguiu para o lugar indicado.

Alice.

Ela sorriu, muito meiga e docemente.

Meu marido.

Quem dera tivesse sabido ser.

Ela mostrou a jóia pendendo em seu dedo.

O passado ressurgiu, apontando para o futuro na luz do crucifixo.

Aquilo o fizera diferente, disse Marcelino muito triste. Gostaria de ter sido um homem como outro qualquer.

Não era um homem qualquer, como poderia ter sido assim?

Como gostaria de simplesmente ter sido amado!...

Alice o amara, amara demais.

Que o perdoasse, pediu Marcelino.

Hilson não fora culpa dele, mas a tortura de um fascínio não renegado.

Hilson, grande amigo... Onde estaria?

Quem sabe? Tudo o que possuía no mundo era a amizade de Marcelino e o desejo de lhe ser fiel até a morte.

E o amor que Alice lhe dedicava.

Oh, meu Deus!... Isso também... Mas se ele tinha um lugar no mundo, não era ao lado de Alice, mas ao lado de Marcelino.

—A nosso lado, simplesmente. Terá morrido?

Ah, sem dúvida... —Mesmo que esteja vivo.

Então Marcelino comentou quanto precisávamos de Hilson naquele momento, de sua coragem e destreza.

Não, disse Alice a Marcelino. Todos precisam do líder que ele próprio era. Livre, para pacificar o território, salvar o povo de seus avós. E livrar a terra da ameaça do filho de Ana que sobre todos pesava.

Como Alice sabia de tudo isso?

O avô de Marcelino era um homem extraordinário, um profeta. Ou, sugeriu ela, apenas um homem com a sabedoria do amor.

O pôr do sol dourava a aldeia. Logo, o crepúsculo legava figuras purpúreas, cavalos e homens, mulheres e bois, o vulto das serras. Quando a noite desceu, o filho de Crisóstomo estava partindo.

Alice Eiko estendeu a Marcelino a mão em que pendia a correntinha. Tome, ela disse.

Pelo menos, ainda que temporariamente, ela acabara aceitando a oferta que um dia ele lhe fez.

Querido. Entre lágrimas, Alice Eiko balbuciava.

Alice... Abraçou-a. Alice...

Se ele ainda quisesse, o estaria esperando em seu regresso.

Voltaria. Nem que fosse em sonhos.

Depois que ele saiu, a mulher voltou às orações e ao jejum que entraria pela vigília seguinte. Orava fervorosamente pelas almas de Marcelino e Hilson.

* * *

Chovia na serra e o cheiro da chuva se misturava à voz aguda dos coelhos e uivos vindos dos ventos e dos zorros. Ao longe, distinguíramos o acampamento de Falabonito. O filho de Marcelino ultimava os preparativos para a invasão de Nova Lábrea. Tínhamos uma chance se atacássemos de surpresa.

Agora, precisamos avançar com cuidado. Os mosquitos infernizam ao redor. Seriam horas delicadas de caminho por lhanos assolados. Guias nos ajudavam nas trilhas. Reunimos todo nosso exército e acampamos, todos menos aqueles que seguiram frente, em coluna. Nossa vanguarda aqui e ali elimina uma vigia inimiga.

Conosco, muitos camponeses. Pegavam em armas pela primeira vez. As mulheres traziam víveres e explosivos. Não era um apoio absoluto. Falabonito conseguiu seduzir pelo menos uma terça parte dos lavradores, e todos os antigos latifundiários a quem agora abrigava com promessas. Naturalmente, logo seríamos traídos. Por isso a pressa se fazia ainda maior.

Foi no dia 25 de maio. O acampamento de Falabonito era em Graças. Grande era a nossa desvantagem inicial. Cerca de 200 fuzis, duas metralhadoras de base fixa, uma escopeta e uma espingarda de cano serrado, contra 5.000 armas de toda a espécie.

Cruzamos o rio Yucah e finalmente atacamos em bloco. Tomamos pontos do acampamento depois de lhes cortar toda a comunicação com seus aliados fora dali. Alguns, sentindo-se cercados, prepararam vagões e fugiram pela via férrea, mas, desgovernados por coquetéis Molotov, descarrilaram. Da vantagem inicial, entretanto, gradativamente, quase nada podíamos reter. Nem percebíamos que éramos, proporcionalmente, apenas alguns fiéis atacando o poder de todo um exército. Estávamos dispostos a lutar até o último homem.

Ainda assim, parecia demorar mais do que deveria a nossa derrota. É bem verdade que alguns valentes entre nós faziam estragos com ataques suicidas; também a Thompson manejada por Marcelino e a escopeta que eu usava assombravam o inimigo. Mas nada que se comparasse ao fuzil, à pistola e à faca que do nada surgiram, quando a noite descia dos céus.

Hilson?

O nevoeiro e a fumaça impediam a visão plena daquele que apareceu entre nós, levantando brados mortais de nosso inimigos, espalhando cadáver sobre cadáver sobre a terra ensangüentada.

Estava frio e chovia. Eu havia posto a velha calça de brim para a batalha e um boné de orelheiras. Agora, descalçara as luvas preparando a repetição. Senhor Deus! Somos filhos da guerra!... Amontoavam-se desenhos espectrais entre as vísceras. Uma estatística diria que a maioria entre nós era de homens nascidos ao pé das serras, às margens das torrentes, e conservávamos algo de sua natureza, fluidos e encrespados, enchentes que tudo arrastam. Éramos senhores e, súbito, precisávamos que soubessem que éramos senhores. A quem temeríamos? Quem seria contra nós? Entretanto, ai de nós, eles podiam sim nos vencer, quando quisessem, e de fato queriam isso demonstrar, alongando a peleja a seu prazer.

Hilson?

Os movimentos simétricos dos braços, as leis da compensação e do equilíbrio, dependiam ainda da habilidade pessoal, da inteireza, do coração. Não teríamos sido dignos? —Senhor, não somos dignos!... Mas devíamos cumprir o momento, o juramento, um dia pronunciado, em um momento de delírio, a promessa.

Hilson!? É você?!

Talvez um dia eu lembrasse de tudo e escrevesse, quem sabe escrevesse, não sei bem com que motivo, como elo entre eras, numa aura abissal de resistência, homem novo dilacerado, homens vivos em pleno corpo da morte, quem nos livraria do inevitável?

Hilson? Era ele!

Como haveria condenação? O que fora impossível a Marcelino, porque adoecera, fez-se possível por um espírito de vida e poder, num lugar onde a história teria fim. Talvez estivesse partida a espinha dorsal do exército de Falabonito mas ainda crescia sobre nós, atacando desde três pontos distintos — de um submetendo-nos a cerco; de outro, a coluna que tinha à frente o próprio filho de Marcelino, e de um terceiro, que deveria ser o golpe de misericórdia sobre nós.

O cerco, entretanto, se dissipava. O ataque frontal chegava em fragmentos, e aquele imperativo tremendo captava a forca de antigos mestres, a destreza de um castanho sazonado de paixão, desativando o último golpe planejado do inimigo. Explosões, clarões, fogo. Lâminas ensangüentadas. Patas de cavalo sobre o chão, relinchos e gritos. E clamores. O som dos rifles e carabinas e o silêncio quase incógnito do Anjo.

Hilson!

Sua arma respondia em seu lugar.

Hilson! Só podia ser ele.

O fogo se alastrara pelas casas do acampamento. Graças ao Anjo Exterminador, entramos pela escuridão quase em igualdade de forças. Explosões fantásticas elevavam a potências, duma só vez, as baixas de Falabonito. As habitações eram fornos. Homens fugiam delas horrorizados para caírem sob nosso fogo.

Entretanto, víamos morrer amigos queridos a nosso lado. Pensávamos nas famílias deles, que haviam ficado em Nova Lábrea. Alguns eram pais; outros, arrimos, garotos imberbes. Vi uma carteira ao lado de um menino e, ao lado, a foto da namorada se incendiava. Era uma linda menina. Ele a viu também. Quanta dor...

Às duas da manhã, sob a luz claríssima de uma lua cheia, à beira da trilha que margeava o pântano, entráramos na fase final da batalha. Aproximou-se a habitação principal, onde resistiam Falabonito e seus homens mais íntimos. A ventania uivava, redemoinhava o enxofre. O pasto estava lilás. Ouvimos de longe um grito agudo e o vulto de uma mulher caiu perante ao que parecia ser o vulto do filho de Marcelino. Marcelino gritou, num rompante dolorido, que se rendessem. As mãos em concha à frente da boca, esperava escutar a resposta que não veio. A hogana já ardia. Todavia, a rajada de M1 fez cair quase todos a nosso lado. A lua apagara-se num rubor sangrento. Não haveria de ser conseguida a paz senão pela guerra? Talvez naquele momento, pensando em seu sucessor, Marcelino imaginou uma nova filosofia de vida e de trabalho.

No prado, pairava o cheiro de morte. Ao erguer-se o nevoeiro azulado, dissipando-se no ar, havia sobre terra vermelha uma quantidade fabulosa de mortos sem nome.

Marcelino? —o grito irrompeu solitário no silêncio finalmente refeito.

Ali estavam, à minha frente, em meio aos corpos. O filho de Crisóstomo ajoelhou-se e aconchegou nas mãos a cabeça de Hilson, onde da ferida escorria sua nobreza, vertida também do peito opresso.

Velho amigo, disse Marcelino com ternura.

O ar estranhamente gelado se manifestava pela fumaça em minha respiração.

Poderia morrer em paz, sabendo que ele já o perdoara? —as palavras saiam vermelhas da voz de Hilson.

Os justo sempre morrem em paz, meu grande amigo.

Bem-vindas seriam aquelas palavras se Hilson fosse justo.

Mas ele era, afirmou Marcelino. Que mais poderia dizer?

—Que me perdoa.

Éramos todos culpados.

Que ele voltasse, que voltasse para Alice... Ela estava...

Psiu... Marcelino suplicou que Hilson não falasse tanto.

—Então, prometa que volta...rá...

Alice Eiko morreria um ano depois. Encontrei-a na aldeia quando voltava da batalha. Ela não verteu uma única lágrima. Sorriu gentilmente e me disse que já sabia de tudo que acontecera ali no Vale da Morte, ao norte da Chapada.

Sim Val, eu já sei. Sonhei com Marcelino esta noite.

Ao pousar a cabeça de Hilson no chão e cerrar-lhe os olhos com os dedos em V, Marcelino foi chamado, não pelo nome.

—Paizinho! —zombou Falabonito. Não era irônico?, acrescentou. Só os dois haviam restado.

Não, eu disse. Eu ainda estava ali, maldito.

Que eu me acalmasse e os deixasse, ordenou Marcelino. Era um assunto de família. Virando-se de novo para o filho, Marcelino perguntou pela irmã.

Minha louca mãezinha?, tive de mata-la, no final ela implorava que eu me rendesse, que ela havia sido louca em provocar aquela situação, implorou de joelhos perante mim, tive de mata-la.

Era ainda mais louco do que ela.

Marcelino foi desafiado pelo filho.

Andaram de lado, em torno um do outro. Pai e filho na terra desolada em meio aos corpos. O solo exalava um fétido odor triste. Os papagaios, quero dizer, os abutres, adivinham o cheiro da carne putrefata. Ao olhar do ódio do filho de Marcelino, seguiu-se seu ataque. Marcelino parecia lutar consigo mesmo, hesitando em efetivamente reagir. A faca luziu entre seus olhos. Era como seu olhar que me lançou fosse uma despedida e senti que meu corpo tremia. O rumor oco e surdo da luta ecoava na pradaria e na eternidade. Eu tinha de contar aquele impulso de ajudar meu senhor. Era um conhecimento terrível o daquele novo sofrimento que se avizinhava, quando Marcelino morresse nas mãos do filho.

Diante de mim, dolorosas interrogações. Esperava que a porta se abrisse e aparecesse o carrasco numa noite escura que jamais invoquei. Neblima úmida, treva. Luz de um archote ardendo com as últimas esperanças da terra. Qual é a possibilidade de que as condições em que realizam os acontecimentos permitem que lhes seja atribuído significados? Por que, meu Deus, não poderia ainda filho de Marcelino num rompante agir bem, arrepender-se, e levantar o seu semblante? o pecado estava em seu coração, e sobre ele se assenhoreara seu desejo, que ele em tese deveria ele dominar.

Eu não respirava. Uma brisa espalhou-se pela planície, balançando os ramos em que alguns pássaros matinais já ousavam agitar, as águas do rio corriam. Um corpo caiu. Maldito seja Falabonito, fruto e disseminador do pecado. Bendito Marcelino, seja-lhe um futuro por promessa. As lâminas haviam entrado simultâneas. Ai de nós. Evaporam-se juntos o ideal e a cobiça à cortina funérea que se abria.

Falabonito teve morte instantânea.

—Val! —Marcelino agonizava. —Vá até o rio! Tome. Jogue-o nas águas—recomendou-me, devagar, porque mais depressa não podia falar e também para que ficasse claro que não deveria questionar a sua ordem.

Estendeu-me a lendária jóia, que tomei em minha mão. Montei e fui. Quando voltasse, ali estaria apenas o corpo do filho de Crisóstomo.


 

EPÍLOGO

 

Na aldeia, antes do ataque ao acampamento, enquanto comíamos, Marcelino me havia dito:

—Assim como a maldição veio do pecado em minha casa, virá também a az. Quando o sangue dos justos estiver clamando desde a terra, surgirá um homem. Descerá de um vagão de trem que estiver parado em uma estação onde, casualmente, você estiver. Então você irá até ele e lhe contará quem ele é.

—E quem ele é?

—O homem com o crucifixo.

—Com este crucifixo?

—Quem sabe...

—A tradição diz que a cruz deve ser enterrada com o último homem da linhagem de Crisóstomo. É esse a quem estamos indo matar, não é?

—Não. Mataremos o pecado, a conseqüência do pecado. O homem de quem falo vem do Sul, para onde foi Maria Yukie. Meu filho.

—Mas...

—Nem pense em me dizer o que está pensando.

—Que seu filho com Maria Yukie também seria um filho do pecado? Eu jamais diria isso...

—É melhor que seja assim. E o que ia dizer?

—Ia lhe perguntar: por que tudo tem de ser assim complicado, por que vocês, mitos, não podem simplesmente ter filhos e cria-los normalmente, para variar?

—Meus olhos não estão mais aqui...—dissera então Marcelino.

Assim, o filho de Crisóstomo expirava. Não na fúria do combate, mas tomando tranqüilamente o seu café.

 

Decorreram dez longos anos.

Outro trem se aproxima.

O sucessor de Marcelino será um dos passageiros?

Embora tenha apenas 47 anos, me sinto velho e cansado.

Poderei enfim dormir, quando meus olhos o virem.

FIM


 

©2001,2006 Ricardo Rocha
ricarddr@escelsa.com.br

Copyright by Ricardo Rocha
Texto protegido pela Lei de Propriedade Intelectual
No. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998

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