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O PROBLEMA NACIONAL BRASILEIRO

Alberto Torres

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O Problema Nacional Brasileiro
Alberto Torres

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Fonte Digital
Digitalização da 3a. edição

© 2002 — Alberto Torres


 

ÍNDICE

Apresentação 
Saboia Lima

Algumas palavras de introdução 
I — Senso, Conciência e Caráter Nacional 
II — Em prol das nossas raças 
III — A soberania real 
IV — Nacionalismo 

Notas 


 

OBRAS DO MESMO AUTOR

Vers la paix — Études sur l’établissement de la paix générale et sur l’organisation de l’ordre Internationale — Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909. [Disponível, em português, no eBooksBrasil]

Le problème mondial — Études de politique internationale — Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1913. [Disponível, em português, no eBooksBrasil]

A Organização Nacional — Primeira parte: A Constituição — Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914. [Disponível no eBooksBrasil]

As Fontes da Vida no Brasil — Rio, 1915. [Disponível no eBooksBrasil]


 

À MEMÓRIA DE MEU PAI
DR. MANOEL MARTINS TORRES,

Senador da República, antigo magistrado, falecido em 16 de Dezembro de 1905, depois de haver prestado à Pátria, com austero civismo e ardente amor ao trabalho e a justiça, todos os serviços que a sua abnegação, a sua modéstia e a sua nobreza de caráter não o impediram de prestar;

E A MINHA MÃE
D. CARLOTA DE SEIXAS TORRES,

cuja existência, consagrada, com incansável lida, a obras de amor e de virtude, é um dos maiores estímulos da minha confiança no valor da nossa raça.


 

 

 

 

Desvanece-me sobremaneira a honra de dizer algumas palavras para a segunda edição do “PROBLEMA NACIONAL BRASILEIRO”.

Outros o fariam com mais autoridade e mais brilho. Mas poucos, entre tantos que conhecem e admiram a obra do grande pensador fluminense, sentem mais profunda e sinceramente a gloriosa integração da sua obra com as mais altas finalidades nacionais. E foi por isso que não recusei, por um sentimento de insuficiência, a honra que me outorgou a família de Alberto Torres.

O grande brasileiro deixou obras que são um justo título de orgulho para o intelectualismo e para o pensamento brasileiro. Interessou-se pelo problema universal da Paz e concebeu estes monumentos de perspicácia, de saber filosófico, histórico e de análise, que são seus livros “VERS LA PAIX” e “LE PROBLÈME MONDIAL”.

De todas as obras de Alberto Torres, as que, entretanto, mais intimamente nos interessam são: “O PROBLEMA NACIONAL BRASILEIRO”, a “ORGANIZAÇAO NACIONAL” e as “FONTES DA VIDA NO BRASIL”.

Nesses trabalhos revelou-se Alberto Torres a nossa mais completa organização de sociólogo e de pensador.

Como obra construtora e obra nacionalista tem um brilho, uma utilidade e um valor incomparáveis; são como catecismos políticos onde se contém tudo o que é de útil como compreensão do nosso passado e como perspectiva para o futuro.

Ninguém, até hoje, falou da nossa história, dos nossos problemas, dos nossos erros, das nossas virtudes e dos nossos deveres com tanta superioridade de entendimento e com tanta força de persuasão.

Alberto Torres não fulminou o homem com o anátema da sua pequenez, nem exaltou a natureza com a afirmação delirante da sua pujança como tão comumente procede o pessimismo nacional. Humano e bom, raciociniador e filósofo, compreendeu que essa dualidade de aspectos não pertencia somente à nossa história, mas se enquadrava nas leis que regem a vida dos homens e das coisas; procurou harmonizá-las, aproximando-as, comparando-as, concluindo, aconselhando.

O livro “O PROBLEMA NACIONAL BRASILEIRO”, que não omite nada do que se refira às grandes necessidades da nossa pátria é, por essa razão, um livro que anima, que fortalece, que engrandece nossas energias e disciplina nosso desejo de progredir. E só a introdução a esse livro, cheio todo de uma grande sinceridade, basta para enlevar o mais indiferente espírito. Esta sinceridade é o caráter dominante em toda a sua obra, desde quando o autor denuncia e combate o “espírito romântico e contemplativo” brasileiro, tão inútil no nosso esforço de construção social e política, até quando declara que “nas finanças, na administração, na justiça, na ordem política, na moralidade administrativa, na instrução, o declínio é manifesto”.

E esta sinceridade é que o levava a apelar para os homens públicos para que lessem os seus trabalhos e discutissem as suas idéias.

E a propósito, é significativo o trecho seguinte de uma carta de Alberto Torres a Pedro Lessa, datada de Fevereiro de 1915, quando se pensou na revisão constitucional.

Dizia o Mestre:

“O nosso país, que nunca se consolidou em nação e em sociedade, é presa de uma das mais escandalosas anarquias, de que há exemplo; e, para o simples critério jurídico, nada mais fácil do que demonstrar que muitas das causas dessa anarquia resultam, não de se não praticar a Constituição, mas da índole e do espírito das suas instituições, visivelmente repugnantes ao nosso temperamento político. Nessa série de desordens a que se chama, entre nós, política — exibição flagrante e superlativa da verdade de que a vida institucional dos povos contemporâneos é ainda a mesma forma de exploração dos postos de direção pública, como butins da luta social — os conflitos que se reproduzem anualmente demonstram a insuficiência da lei de 24 de Fevereiro. Mas isto é apenas a prova feita pelos levedos da espuma, agitada na superfície política, pela excitação das ambições e das paixões — estímulo quase exclusivo das lutas partidárias. Abaixo disso, a nossa pátria é um colosso em dissolução, — nessa época em que se esta pleiteando a grande concorrência mundial entre os povos no terreno da sinergia organizadora. Permita que lhe diga com sinceridade a causa psicológica da sua opinião: a sua educação mental é, nestes assuntos, uma educação jurista, e como jurista, seguindo, aliás, os metodos das nossas escolas, — de aplicador e de intérprete da lei e do Direito. Faltam-lhe o hábito da observação política e o critério da organização. Esse é o imenso mal do nosso país, onde as inteligências não sabem manter, sobre todas as coisas, senão a atitude crítica e a de diletantismo literário, quando o que se nos está impondo é a coragem da iniciativa e da responsabilidade de solver. Se o seu espírito se aplicasse ao exame da anarquia que por aí vai, a simples consideração da desagregação deste país — onde cada régulo de aldeia é mais soberano do que a nação, que tem vinte Estados de uma federação de caudilhagem e não tem o Estado nacional — bastaria para provar-lhe que esta forma de governo, que vem comprometendo a nossa sorte, com a sustentação de uma sociedade de parasitas mantidos pelos cofres públicos ou vivendo à custa dos interesses ilegítimos criados pela organização anti-social da nossa política, e com essa ostentação megalomaníaca de luxos, de vaidades e de grandezas, sem gosto e sem cultura, que se exibe nas nossas cidades, ao passo que a produção permanece em eterna crise, e que não formamos ainda economia nacional, nem para o simples efeito alimentar — não pode deixar de ser substituída por uma verdadeira organização política.

Os livros que lhe mandei são o espelho desta realidade e contêm o remédio para esta anarquia. Tenha paciência, meu caro Lessa, leia e medite esses meus trabalhos: é o apelo que faz ao seu alto espírito e ao seu reto caráter um Brasileiro que está estudando as coisas do seu tempo e da sua terra com a atenção e o cuidado prático, de um capitão de navio em ação e para a ação.

Leia atentamente esses meus trabalhos, mas leia-os na terra e na vida, e não de camarote de teatro, seja do teatro cômico, dramático ou trágico; e se tiver dúvidas e objeções, dê-me a honra de vir conversar comigo. Desculpe a forma deste apelo, do homem modesto e isolado — o mais fraco e o mais esquecido dos seus patrícios, o mais abandonado dos trabalhadores mentais desta terra, que cumpre deveres de consciência, e não deveres de cargo, e não conta, para compensação da alma, do sangue e dos nervos, que põe em seus trabalhos, senão com a consoladora animação, puramente moral, da sua divisa: In posterum. Muito ex-corde — ALBERTO TORRES.

Infelizmente toda a obra magnífica e autenticamente grande de Alberto Torres não teve repercussão em vida do seu autor.

Edificante sarcasmo este da indiferença patrícia para com o máximo exegeta do seu caráter, e das suas índoles histórico-sociais!

E este sarcasmo foi talvez a maior amargura que ferira a mentalidade de Alberto Torres. Ele morreu sem ver a sua palavra doutrinária e sincera ouvida pelos dirigentes e pelos legisladores brasileiros.

Humberto de Campos escreveu recentemente que “Alberto Torres teve, de fato, a previsão de todas as calamidades que tombariam, dentro de vinte anos, sobre o país, e chamou para elas a atenção dos homens públicos. Das eminências em que pairava o seu espírito, ele viu e anunciou as nuvens sinistras que se acastelavam no horizonte. Daniel, em Babilônia, decifrou a Baltazar a verdade das palavras misteriosas. Os generais e fidalgos assírios sorriram, porém, da ameaça do céu. E o resultado aí está: a anarquia política, a anarquia econômica, a anarquia social, o edifício de um país novo desmantelando como as ruínas de um império oriental”.

E conclui o brilhante escritor:

“Durante três lustros o Brasil esqueceu esse grande homem que devia ter sido o palinuro da nau virgiliana dos seus governos.

“Ninguém acreditava nas suas predições. Até que os acontecimentos, confirmando o que ele predissera, o impuseram à admiração das gerações novas, que iniciaram, finalmente, agora, para a admiração pública, a resurreição da sua obra e do seu nome. Morto há dezesseis anos, Alberto Torres está hoje mais vivo do que na véspera da sua morte. As verdades que ele disse, levantam-se, agora, do seu túmulo. Como o cajado de Elias, a pedra de uma sepultura realiza o milagre que não fez, sobre a terra, o homem que sob ela dorme.

“Este grande homem morto é, na verdade, nesta hora, o melhor general para os vivos”.

Sente-se, de fato, que a obra do pensador fluminense vai viver com o sopro animador dos homens vindouros, que a cultura sadia do seu espírito procurou criar a consciência política da nacionalidade.

SABOIA LIMA.


 

Algumas palavras de introdução

 

 

Dos trabalhos aqui reunidos, é o primeiro inteiramente inédito; compõe-se o segundo de um estudo publicado em 1912 no Jornal do Commercio sob o título “Canaã”, de trechos do discurso que pronunciei, no mesmo ano, perante o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao tomar posse do lugar de sócio honorário desta instituição, e mais um longo desenvolvimento inédito; e os dois últimos, de estudos publicados também em 1912 no mesmo jornal, o penúltimo com o título “Nação ou Colônia”, e o último com o de “Nacionalismo”, que conserva. Estes dois últimos receberam alguns aditamentos, e todos os escritos já publicados sofreram as alterações de forma impostas pela diversidade dos fins que têm em vista.

Representavam os escritos já publicados antecipações impostas pela urgência dos acontecimentos, de estudos compreendidos para trabalhos definitivos, sem a forma de combate que os fatos me impuseram.

Ainda uma vez ficou aqui demonstrado que a maior independência moral é garantia fragílima à firmeza de projetos e à segurança de planos. Uma sociedade perturbada, aos azares do desgoverno, não deixa livre a mais sólida vontade. Se Tennyson tinha razão quando escreveu: “I am a part of all I have seen”, a vida parece toda concertada para nos convencer que, muito mais que frações das coisas que temos visto, somos penas e flocos de neve, à mercê de todos os ventos que varrem a sociedade.

E se um propósito forte e tenaz vence, por vezes, os estímulos do interesse e da ambição, e as próprias solicitações da saúde, não há resistência possível ao comando do patriotismo, quando nos aponta o cumprimento de um dever, inscrito na alma, como voto de apostolado, desde a idade primaveril em que, lançando-nos à vida, abrimos à fecundação dos ideais a flor do nosso espírito...

Meus estudos eram o reatamento de uma vida intelectual e moral, nascida com as primeiras inspirações da mocidade, que os azares da existência e, principalmente, os da política, haviam perturbado.

A vida dos homens que atravessam crises revolucionárias é toda feita, igualmente, de revoluções pessoais. Só quem haja acompanhado, dos primeiros movimentos a seus últimos refluxos, os torvelinhos de uma época crítica, poderá conhecer e avaliar os abalos que a desordem geral vem produzindo em nossos destinos.

Dos homens que fazem as revoluções, conseguem dominar a onda os que são colhidos pelas primeiras vagas, já definitivamente consagrados, conquistando uma vitória pessoal, cuja eficácia, a bem das idéias, fica dependendo da maturidade da reforma que promoveram e do seu preparo para consumá-las.

Os que as revoluções produzem, nem são, em regra, expoentes das idéias que elas representam, nem instrumentos de suas obras. Rebeldes à tradição e estranhos às aspirações, sem linhagem política no passado, e sem solidariedade com as tendências da época, prolongam para o futuro o impulso e o espírito da desordem. Bonaparte foi, em sua obra política, o produto mais legítimo da Revolução Francesa.

Quem atravessa uma crise revolucionária, sem temperamento revolucionário, é vítima de todos os seus embates. Tal foi a minha sorte, durante os vinte e quatro anos em que a República tem procurado aplicar ao Brasil a forma adotiva com que foi concebida. Duas aspirações viviam em combate em meu espírito, durante todo este tempo: servir ao meu país e ao regime republicano, e completar a minha formação mental, que o advento da República interrompera.

Dos meus serviços, prestados com desprendimento que resgata seus erros prováveis, nem todos aproveitaram, porque a República foi sempre volúvel, e não fundou glórias e reputações senão sobre as ruínas de suas obras.

Não foi sem certo contentamento que aceitei, assim, com a inatividade na última das minhas funções públicas, a liberdade de trabalhar, para repor minha carreira no ponto em que a deixara, quando entrei em atividade política.

Estudos desordenados me tinham feito entrever a tremenda confusão das idéias em nossa época. Insubmisso ao despotismo mental da autoridade, formar consciência própria sobre os problemas que me interessavam, como homem e como brasileiro, foi a ardente aspiração que me dominou; e, abandonando sistemas, categorias e divisões de conhecimentos; despreocupado de ser filósofo, sociólogo, economista, ou cultor de qualquer outra ciência, abri caminho às minhas pesquisas políticas e sociais, tomando por guias os primeiros ideais da minha vida e a ambição de cooperar praticamente por sua realização, através de ciências e de sistemas, mas, principalmente, através das realidades e dos fatos, à proporção que as interrogações se iam formulando em meu espírito. Esclarecendo a inteligência, e resolvendo as dúvidas, eu ia chegando, assim, a formar juízo meu e a educar o critério, para solver com os dados correntes da vida os problemas da prática.

Foi um preparo essencialmente “humanista”, o que me dispus a realizar, mas “humanista” num dos sentidos contemporâneos da palavra, como expressão de uma filosofia da vida e dos fatos, capaz de abrir e de iluminar os olhos, a toda a luz da claridade, para os horizontes do futuro.

Formar consciência não significava, para mim, encher a memória com alguns milhares dos milhões de conceitos e verdades, em circulação nas ciências, nas letras e na política; não significava, também, atar o discernimento ao poste de um sistema; mas, ao em vez de atopetar o espírito com frmulas e normas, dilatá-lo e abri-lo, largamente, à franca iluminação da percepção, da análise e da síntese.

A inteligência contemporânea atravessa a crise de mais anarquia a que jamais chegou o espirito humano. Em nenhuma outra fase da História é mais aparente a impressão de que a marcha do homem se tem realizado por ciclos, com voltas freqüentes a uns tantos pontos, firmados pelo hábito. Raro tendo chegado a conclusões práticas, o espírito humano encerrou sempre o labor de suas investigações, regressando a esperanças e crenças antes abandonadas. Resultado da confusão dos problemas da realidade humana com problemas metafísicos, da intervenção de elementos transcendentes nas operações de sua solução, e, principalmente, do desalento e fraqueza dos pensadores, ante a falta de influência efetiva e de ação eficaz na sociedade — vencidos pela impossibilidade de realizar as soluções que apontam, quando não tolhidos pelo temor das verdades que enxergam.

Foi no trabalho de reunir os resultados de meus estudos, para obras definitivas, que a crise que atravessa a nossa Pátria me veio encontrar. Não tinham os estudos, então publicados, a pretenção de assentar conclusões gerais definitivas. Formavam, entretanto, os princípios aí sustentados certezas bastante firmes para serem expostas sem receio à crítica, traduzindo os mais puros, os mais práticos, os mais vivos interesses das nacionalidades e do próprio futuro da nossa espécie.

As idéias destes trabalhos convergem para uma conclusão final, que deve representar, como conquista do progresso contemporâneo, um princípio jurídico da Humanidade culta; é a sua doutrina geral:

A civilização tem o dever de conservar as riquezas inexploradas da Terra, reservas destinadas às gerações futuras, e de defender as que estão em produção, contra a exploração imprevidente, assim como o de proteger todas as raças e nacionalidades contra as formas de concorrência que possam importar ameaça a seus interesses vitais, bem como à segurança, propriedade e prosperidade de suas descendências.

O Brasil tem os interesses orgânicos da sua sociedade e os da sua economia, não simplesmente ameaçados, senão efetivamente atacados pela sua anarquia social e política, e pelas imprudentes aventuras financeiras que se estão praticando na América do Sul. Para dar idéia da justiça de sua causa, bastaria lembrar que, segundo um princípio ainda vigente entre as nações cultas, os governos recusam-se a submeter à decisão arbitral os litígios que tocam a seus “interesses vitais”. Invocar o mesmo princípio, não contra a serena e ealta autorídade da Justiça arbitral, mas contra a exploração colonial da sua terra e da sua gente, vale por invocar o mais límpido, o mais certo dos direitos.

Este programa começa a ser prestigiado pela opinião em todo o país, e há de ter por si a simpatia de todos os espíritos bem intencionados e refletidos.

No que toca à subordinação social e econômica das nações sul-americanas — forma aguda e superlativa de sua desorganização — aqui registro as opiniões de três das mais altas personalidades dos Estados Unidos, profundamente expressivas.

Em discurso recentemente pronunciado, proferiu o Sr. Woodrow Wilson, que à autoridade de Presidente dos Estados Unidos junta a de ser um dos mais notáveis publicistas e historiadores contemporâneos, as seguintes palavras:

“O que esses estados (os da América do Sul) estão procurando realizar é emancipar-se da subordinação, que foi inevitável, a empresas estrangeiras. Não tenho senão motivos para me congratular com a perspectiva de que consigam levar a efeito essa emancipação, e considero meu dever ser o primeiro a tomar lugar entre os que os auxiliam a levá-la a termo”.

A estas palavras, acrescentou o Sr. William Jennings Bryan, secretário de Estado do Presidente Wilson, candidato, em mais de uma eleição, à Presidência da República, e figura muito popular em seu país, por seu talento oratório e pelo ardor de suas opiniões democráticas:

“É uma política esta que toma o lugar da dollar diplomacy. O capitalista estrangeiro foi muitas vezes um elemento perturbador na América Latina”.

Depois da palavra dos chefes do partido democrata, atualmente no poder, eis a palavra de uma das mais ilustres figuras do partido repúblicano: o Sr. Elihu Root, ex-ministro do Sr. Theodore Roosevelt, e, inegavelmente, o homem de maior capacidade em seu partido:

“Uma falsa concepção da doutrina de Monroe, do que ela prescreve e do que ela justifica, de seu escopo e de seus limites, invadiu a imprensa e afetou a opinião pública, nestes últimos anos. Grandiosos planos de expansão nacional invocam a doutrina de Monroe. Interesses por obrigar os países da América Central e do Sul a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa de que cidadãos americanos possam tirar proveito, invocam a doutrina de Monroe. Ambições de glória nacional, alimentadas por cérebros muito vasios para apreenderem, em seu conjunto, o senso o dever nacional, invocam a doutrina de Monroe. A pretensão intolerante de exercer essa espécie de superintendência sobre a conduta e as opiniões de outros povos que é da essência da tirania, invoca a doutrina de Monroe. Indivíduos irrefletidos que não vêem a diferença entre a ação legal e a força física, sustentam que a doutrina de Monroe é um título de intervenção nos negócios internos das nações mais fracas do novo mundo. Contra estas supostas doutrinas, muitos protestos têm sido levantados, tanto nos Estados Unidos como na América do Sul. Estes protestos não têm aplicação à verdadeira doutrina de Monroe”.

A transcrição destes trechos tem o alto valor de dar ao nosso país a imagem, clara e iniludível, do pensamento político dos americanos, expresso pelo órgão de seus mais eminentes estadistas.

Como sucede com todos os pensamentos novos, surpreendeu este, em começo, a nossa opinião, habituada a ter por dogmas idéias correntes, e a adotar por critério, de julgamento e de ação, conceitos gerais e fórmulas vagas. Em nosso país, mais que em qualquer outro, a força dessas generalidades e abstrações é ainda poderosíssima.

A necessidade de capitais e de braços estrangeiros era um dos abrigos a que se tinham acolhido a nossa indolência e o nosso despreparo, em face dos problemas da nossa economia, que, não sabendo solver, iludíamos por essa forma. Esse apelo não tem por si o apoio de nenhuma teoria. Ninguém concebeu jamais o crédito como meio de solução às crises de prodigalidade e da desorganização econômica, nem a importação de gente, às da desorganização do trabalho: é um simples recurso protelatório, explorado por intermediários que vivem nas capitais e cercam os governos, e implorado pela necessidade sequiosa da produção, em eterna falência, enquanto os dirigentes, sem capacidade para dar soluções práticas, continuam a comprometer os povos nos riscos de suas concepções fantasistas.

Nossa história é toda feita dessas sucessivas peregrinações em prol de idéias arbitrariamente concebidas — para as quais caminhamos às cegas, pensando realizá-las de improviso e objetivando-as com o mesmo olhar ingênuo do homem rústico que fosse colocado diante da tela, onde tivesse de pintar uma paisagem. E nem são sempre aspirações idealísticas que assim nos distraem. Já em outro trabalho tive ocasião de me referir às utopias retrógradas, invocadas, em todos os tempos, pelo espírito reacionário, sob autoridade de princípios tão fictícios como os mais arrojados sonhos de reformadores. A Humanidade vive de há muito a terçar armas por causas que não compreende e que nada dizem a seus fins, seus destinos defraudados sob flâmulas que invocam preconceitos e flâmulas que proclamam ilusões. É tempo de a fazer descer à terra, para cuidar, de si e do seu patrimônio físico, de que tem sido tão descuidado e ingrato gestor.

Nenhum outro povo tem tido, até hoje, vida mais descuidada do que o nosso. O espírito brasileiro é ainda um espírito romântico e contemplativo, ingênuo e simples, em meio de seus palácios e de suas avenidas, de suas bibliotecas e de seus mostruários de elegâncias e de vagos idealismos. Com uma civilização de cidades ostentosas e de roupagens, de idéias decoradas, de encadernação e de formas, não possuímos nem economia, nem opinião, nem consciência dos nossos interesses práticos, nem juízo próprio sobre as coisas mais simples da vida social. A afirmação desta verdade é, de hábito, recebida, entre nós, como sinal de pessimismo, e até, por vezes, de despeito. Por otimismo — termo que, entre parêntesis, bem merece a censura do bom senso — entendemos essa atitude de aceitação e de aplauso, senão de êxtase e de admiração, diante das nossas apregoadas maravilhas, com que estamos anquilosando o critério e cultivando a simpleza, ao passo que nos desforramos do dever de pensar e de agir.

Quanto à República e às suas obras, a intolerância partidária nunca permitiu, nem a adversários nem a confrades, negar os benefícios e progressos, que atribui ao regime. A simples observação da decadência, a que descemos, nos costumes eleitorais — base do sistema representativo e título dos governos democráticos — bastaria para provar aos mais zelosos defensores da fama da nova “forma de governo”, que vem de azedo pessimismo o desgosto com que muitos repúblicanos desconhecem, nas instituições dominantes, a República que haviam sonhado.

Nas finanças, na administração, na justiça, na ordem política, na moralidade administrativa, na instrução, o declínio é manifesto; e só se compreende que o contestem, justamente, porque o hábito da vida em desordem nos está varrendo dos espíritos os critérios, que formavam a base da nossa consciência social, e, com eles, a própria sinceridade — virtude profunda e ingênita em nossos maiores.

Na cultura, a decadência da sociedade nacional é evidente. Nunca chegamos a possuir cultura própria, nem mesmo uma cultura geral. As duas primeiras gerações que se seguiram à Independência eram, entretanto, formadas de espíritos a que o conjunto e equilíbrio do preparo davam certa solidez e firmeza. Mais variada, e muito mais vasta, a nossa ilustração é, hoje, vaga, fluida, sem assento, não a dominando nenhum interesse por habilitar os espíritos a formar juízos e a inspirar atos. No nível geral da sociedade, e com respeito às formas superiores do espírito, o diletantismo, a superficialidade, a dialética, o floreio da linguagem, o gosto por frases ornamentais, por conceitos consagrados pela notoriedade ou pelo único prestígio da autoridade, substituiu a ambição de formar a consciência mental para dirigir a conduta. O aplauso e a aprovação, as satisfações da vaidade e do amor próprio, fazem toda a ambição dos espíritos: atingir a verdade, ser capaz de uma solução, formar a mente e o caráter para resolver e para agir, são coisas alheias a nossos estímulos.

Nosso país está hoje transformado em vasto cenário onde se agita um povo que não sabe caminhar, conduzidos uns pela moda, outros pela ambição de efeitos literários, jornalísticos e de tribuna; pela da popularidade, terceiros; pela auto-admiração e cultura de estéreis virtudes passivas e severas intransigências pessoais, alguns mais. Preparando-se aqueles para o céu, estes para a glória, outros para o aplauso, para a admiração, ou para a simpatia, renunciaram todos à aspiração da eficiência, pela utilidade das idéias e dos atos.

Não temos opinião e não temos direção mental.

Na economia — eis uma verdade que não temo submeter à contra-prova das mais rigorosas e profundas investigações da estatística e da análise social — toda a nossa aparente vitalidade consta, de extremo a extremo do país, de extração de produtos e de limitado esforço de exploração extensiva, em que a nossa terra vai cedendo tudo quanto possui em riqueza natural, ao alcance da mão ou de rudimentaríssimos processos de trabalho, com vertiginosa desvalorização, ainda não atingida — a não ser no vale da Mesopotâmia — em regiões já exploradas há muitas dezenas de séculos. Nesta terra, assim saqueada, o comércio, o trabalho estrangeiro e o crédito de usura que possuímos, drenam, em capital, para o estrangeiro quase todo o produto dessa inconsciente e brutal destruição, dando-nos, em troco, gêneros e objetos, que, muitíssimo longe de representar o preço da ruina de que resultam, não deixam, entre nós, em obras e bens voluptuários, senão fração mínima de seu valor.

O aumento das nossas exportações e importações não traduz senão a expressão da troca dos produtos e dos próprios elementos e forças produtivas das nossas terras virgens, por coisas fúteis, solicitadas pela nossa vaidade, ou que se fazem necessárias justamente por causa da nossa incúria. É um fato que se pôde dar, e que se dá, na exploração de qualquer território selvagem por feitorias estrangeiras. Toda a nossa fictícia circulação econômica é obra, assim, de uma federação de feitorias, que, desde as vendas do interior até às casas de importação e de exportação, as estradas de ferro, as fábricas, o comércio intermediário e os bancos — em mãos, quase totalmente, de estrangeiros — não fazem senão remeter para o exterior, em produtos, lucros comerciais, industriais e bancários, rendas de várias naturezas, a quase totalidade dos frutos da nossa terra. As duas verbas da exportação e da importação equivalem para a nossa economia a verbas de passivo, e de um passivo colossalmente precário, enormíssimamente lesivo. É isto, e só isto, que está em progresso, entre nós, acarretando, com imensa perda para a terra, e com o abatimento e a desmoralização do povo, o prolongamento, na vida mundial, da corrente de fenômenos que, havendo dado causa às guerras e revoluções do passado, provocarão d’aqui por diante, se não forem tolhidos, ainda maiores e mais desastrosos conflitos.

Sínteses do estudo sincero das nossas coisas, estas verdades devem servir de base a toda ação patriótica, fundada na única forma legítima do otimismo: o otimismo firmado na confiança e na esperança, que começa por apurar a verdade, para cumprir o dever de agir, não se contentando com se forrar, alimentando e propagando ilusões, da obrigação de advertir, de emendar, de melhorar.

Assim esgotando a terra, deixamos, também, de formar a nação. Abandonando a terra, e não cuidando da nação, abandonamos a Pátria, porque a Pátria é a terra, como habitat, mas principalmente, para o sentimento e para a razão, a nação, isto é, a gente. Fora disto, a palavra “Pátria” não exprime senão uma imagem supersticiosa — como as de qualquer culto fetichista — ou uma falsidade convencional.

O desenvolvimento destes trabalhos contém a melhor das lições de otimismo, conduzindo, depois de consignar e de comprovar a verdade, a estas outras conclusões animadoras; que este nosso estado não resulta nem de uma inferioridade étnica, nem de uma degeneração, da nossa gente; e, apontando as causas físicas, sociais e históricas, que explicam, não só as nossas crises, como as razões da aparente superioridade de outros povos, propõe, depois do estudo crítico, os meios de restabelecer a nossa marcha evolutiva.

No que respeita às raças, o problema fica definitivamente dirimido com estas razões, que sintetizam os resultados destes estudos. Seja-se monogenista ou poligenista, é de necessidade reconhecer que os fatores mesológicos são determinantes dos caracteres étnicos: originais, na segunda hipótese, de variação, na primeira. Produzidos pelos meios físicos, estes caracteres assinalam, em cada um deles, os tipos “mais aptos” para aí viverem: os “tipos superiores”, por conseqüência, para esses meios. De parte a questão da capacidade destas raças para o aperfeiçoamento, a conclusão que resultaria, do fenômeno da seleção natural mesológica, é que as raças autóctones tenderiam, por natureza, a fortalecer-se, e as outras a decair; mas, como a perfectibilidade daquelas raças está demonstrada pelos fatos, uma outra conclusão se impõe: se o “meio artificial” formado pelas condições da vida no estado de civilização, permite a adaptação de indivíduos de outras raças em meios naturais estranhos, o conjunto destas condições, cooperando com os fatores mesológicos naturais, deve favorecer particularmente as raças indígenas. Ora, a nossa população, contendo, infelizmente, fração pequena dos antigos povoadores do solo, mas podendo aproveitar ainda muito das tribos em estado selvagem, conta grande número de tipos de raças oriundas de meios idênticos: os negros; e consta, em suas camadas superiores, de descendentes das raças mediterrâneas, raças do “meio-dia” europeu quase tropicais, em cujo sangue se encontra grande mescla do sangue das raças trigueiras do Oriente e do Norte da África.

Não há motivo para crer, por outro lado, na degeneração das nossas populações. Fisicamente, o conjunto do nosso povo não tem feição menos robusta que a dos japoneses, de franceses do sul e das cidades, de espanhóis, de portugueses do continente, ou dos chineses, que, emigrados, por exemplo, para as Filipinas, formam a aristocracia da população, tendo o mesmo caráter étnico dos japoneses. Nos grandes centro europeus não é raro que o aspecto dos indivíduos impressione pela fraqueza do corpo e pela morbidez das fisionomias, sendo comum verem-se figuras evidentemente degeneradas.

Se, com estas razões, se levar mais em conta que os critérios contemporâneos de avaliação da saúde são ainda empíricos, baseados em conceitos da saúde e da moléstia induzidos de observações mui limitadas, no tempo e no espaço; que a reflexão sobre os fenômenos da história nosológica da nossa espécie e sobre os da hereditariedade mostra que as raças atuais, contando séculos de vida em sociedade — nas clássicas civilizações que conhecemos, onde a cultura dos espíritos e a elevação de arte floresceram a par do mais completo desmazelo, no que toca à higiene e ao conforto, — devem ter, em circulação no sangue, gérmens de quase todos os males que assolaram a humanidade, não há motivo para duvidar da média da saúde do nosso povo e da possível restauração de suas forças. Quanto aos caracteres psíquicos, as nossas raças são constituídas, em sua natureza individual, de seres dotados das melhores tendências humanas.

A tudo isto, sobreleva, porém, razão melhor para que confiemos no futuro da nossa progênie. Se a crise da adaptação climatérica não podia deixar de provocar, nos indivíduos imigrados e na prole da principal raça que povoou o Brasil, verdadeiras revoluções orgânicas, a falta de adaptacão ao meio físico, perturbando a nutrição, e a falta de organização social e econômica, impedindo a formação das instituições e dos costumes de conservação e de aperfeiçoamento, ainda mais nos desviaram do curso normal da formação progressiva de todas as nacionalidades.

Estes fenômenos estão demonstrados, nestes trabalhos, de forma rigorosamente convincente, para dissipar, de vez, o ceticismo do nosso desalento e da nossa meia ciência de empréstimo.

As causas das nossas crises e do nosso endêmico estado de dissolução aí estão demonstradas com ilações e interpretações induzidas diretamente dos fenômenos históricos, geográficos e sociais do nosso país, e não fundadas — como sóe acontecer, nos estudos até hoje feitos, — sobre inferências analógicas e associações de contiguidade ou de semelhança, ou por deduções de idéias e doutrinas de sociólogos e filósofos estrangeiros.

Verdades tiradas do concreto e do vivo, as que aqui se encontram são superiores a divergências de escola, de orientação e de sistema: são fatos; e, como fatos, impõem conseqüências, que é força aceitar.

O nosso país precisa, de uma vez por todas, formar um espírito e uma diretriz prática, que o conduza, salvando-o do atravancamento das opiniões e das tendências particularistas e sistemáticas, em que está dividido, a organizar e pôr em movimento as suas próprias forças.

Tal é a base das conclusões destes estudos.

Estas causas podem ser resumidas em poucas linhas. As idéias em que se baseiam os estudos sociais e políticos até hoje feitos sobre a nossa vida, partem de postulados e dados, analíticos ou sintéticos, inferidos da vida e da evolução de povos de existência multi-secular, e de seu progressivo desenvolvimento em regiões densamente povoadas, sob ação dos fatores ordinários da formação e desenvolvimento das velhas sociedades e civilizações. Estas idéias não têm aplicacão à interpretação dos fenômenos dos países, como o nosso, criados por descobrimento, com sociedades formadas por colonização, — nem à solução de seus problemas.

A evolução destes países, criados por ato do homem, ou resulta de uma sucessão de outras criações, também conscientes e deliberadas, ou é reflexo de atividade dos outros povos, — necessariamente dominantes, graças às vantagens do avanço e da força — sempre contrária ao interesse dos povos novos, cujo desenvolvimento tende a ser obstado, desviado, ou esmagado, por força de suas correntes, muito mais poderosas.

As causas apontadas nestes trabalhos explicam inteiramente a nossa desorganização: o descobrimento e o povoamento por uma nação de qualidades fortes por natureza mas fraquíssima pela estreiteza de seu território, que, comprimida entre as migrações e guerras do continente e a concorrência e as lutas do oceano, entrou, por isso, logo depois do descobrimento, em longo estádio de subordinação e declínio, concentradas todas as suas energias num heróico, e, em grande parte, improfícuo, esforço defensivo; a disparidade da terra colonizada com a terra dos colonizadores, apresentando problemas de adaptação e de cultura, até agora não solvidos; a síncope da evolução política, com a vinda da casa de Bragança. Sem contar outras causas, de natureza social e política, peculiares algumas, também, ao nosso meio, mais de uma, porém, comum à história de outros povos de organização política e progressos mais aparentes que reais, são estas três bastantes para dissipar todas as dúvidas sobre os antecedentes da nossa organização.

No Brasil, o ressecamento das terras e do ar, secas periódicas, cada vez mais prolongadas, a alteração e irregularidade das estações — fato ordinário em vastíssimas regiões do território, e já patente em outras onde foram outrora abundantes as águas, manifestando-se no atraso das primaveras, relegadas, com quase certo sacrifício das semeaduras, para o começo do estio, na quase esterilização das pastagens e falta de ferragens, durante longo período do ano, fruto principal das nossas devastações e da política colonial que temos feito — já se manifestam aos próprios olhos distraídos das afortunadas populações das grandes cidades, com as crises da “falta d’agua”, de ano para ano mais penosas.

Destas causas há uma que merece especial destaque. Pertence ao número das mais perigosas ilusões da nossa imaginação, a da riqueza do nosso país. O Brasil possui, talvez, ainda muitas riquezas; mas estas riquezas ou não são de fácil exploração, ou a sua exploração não corresponde, atualmente, aos interesses políticos da nossa nacionalidade, tendendo, como a da metalurgia, a perpetrar a aplicação de atividades e capitais, muito provavelmente estrangeiros, em indústrias impróprias à consolidação da economia nacional, ou não corresponderá também, em breve, tão intensamente como até hoje, pelo menos — o que sucederá, provavelmente, dentro em pouco, à própria metalurgia — aos interesses e necessidades da nossa era.

Em abstrato, a questão da riqueza ou pobreza do nosso território é um problema sem interesse, pela simples razão de que, na prática, a nossa terra é pobre para a sua gente.

De parte a riqueza mineral, que não sabemos explorar, — e que não convém explorar, por inoportuno, no interesse da constituição nacional, — temos, como todos os países intertropicais, uma natureza contrária à exploração agrícola, pelos processos europeus. Sem contar as forças e os elementos naturais inacessiveis à ação humana, tais como os fenômenos da gravitação, do calor, da luz, das correntes maritimas e dos ventos, as regiões intertropicais têm, contra a sua exploração, o percalço climatérico da falta das geleiras e das neves.

Se as montanhas, os rios e as florestas são, em toda a parte, fontes e depósitos de fertilidade e de produção, e, portanto, de vida, estes elementos assumem, nas zonas intertropicais, um valor extraordinário, como únicos mananciais, que são, de águas correntes, de chuvas e de umidade atmosférica.

Não tendo estudado os meios de conservar e de reparar tão preciosas riquezas do nosso solo; desbaratando-as, pelo contrário, com as nossas audaciosas devastações, precisamos, d’agora por diante, não só poupar as que nos restam em estado virgem, senão reparar e restabelecer as que já estão comprometidas.

O espírito humano não aprendeu ainda a aproveitar as lições da História. É singular a leveza com que a imaginação e a inteligência do homem repetem os mesmos erros, as mesmas eternas causas de seus males e sofrimentos, esquecendo e perdendo os ensinamentos que os permitiriam evitar.

Entre nós, a inadvertência atinge a proporções descomedidas com o nosso desenvolvimento intelectual. Vivemos a cometer perpetuamente as mesmas imprudências — e não só as repetimos, como improvisamos outras iguais, absorvidos, a cada passo, por preocupações alheias à realidade, exagerando pormenores, incidentes e aspectos superficiais da vida pública, ao passo que reincidem, reproduzem-se, multiplicam-se e avolumam-se, as causas da nossa decadência.

Os nossos eternos deficits, as nossas emissões de papel-moeda, as nossas Caixas de Conversão, as nossas valorizações, os nossos empréstimos à lavoura, os nossos protecionismos, todas as fantasias do inflacionismo, e da especulação, as nossas eternas lutas, aéreas e estéreis, de partidarismo, e não menos freqüentes agitações políticas sem objetivo, por doutrinas e ideais sem base real, são experiências que nos passam pelos espíritos sem deixar a menor impressão educativa.

Da incapacidade para observar e adquirir a experiência dos fatos damos prova na simplicidade com que insistimos na política de colonização, apesar da prova evidente de seus desastrosos resultados, dada pela nossa observação, e até da lição política de outros governos, como por exemplo, a do governo italiano. Depois das famosas reclamações que deram lugar à celebre questão dos protocolos, da resistência do governo italiano à emigração para o Brasil, e da missão, em nosso país, do ministro Antonelli — o mesmo eminente diplomata que havia iniciado, na Abissínia, a política de expansão colonial da Itália — tínhamos dados bastantes para compreender que ao interesse que levava a Itália a fundar estas possessões correspondia idêntico interesse nosso em evitar a perpetuação do sistema colonial, na organização do trabalho agrícola.

Assim também deixamos de ver, na aplicação que fez o governo dos Estados Unidos da lei Sherman aos nossos depósitos de café em território americano, evidentemente ofensivos dos preceitos dessa lei geral contra os açambarcamentos comerciais, além de um ato perfeitamente jurídico, uma cooperação amigável desse governo, na defesa dos nossos verdadeiros e legítimos interesses.

Não nos devemos iludir, quanto à gravidade destas crises, que se nos revelam gravíssimas, justamente no momento em que toda a sociedade humana parece estar sendo submetida às mais severas provas de capacidade e de energia; é preciso que encaremos, com retidão e ânimo sereno, a feição dos nossos problemas. Se a Pátria é, antes de tudo, a nação, isto é, a gente, o momento próprio para defende-la não será aquele em que qualquer inimigo, mais audaz que corajoso e sensato, se dispuser a nos fazer a conquista material, manu militari, do território, mas aquele em que o espetáculo da nossa derrota, nos processos da seleção social e econômica, se nos apresenta com as formas flagrantes de uma positiva subordinação e de um já sensível abatimento em amplas camadas da população.

À política, que não pôde, a princípio, e à qual não ocorreu, depois, acudir aos interesses e reclamos da nação, cumpre reparar, hoje, o esquecimento e abandono em que a deixou. Em face desta situação, nossos cuidados e trabalhos pela organização e defesa militar parecem — como aliás, muitas outras empresas humanas — verdadeiros passa-tempos de crianças barbadas. Uma nação, vencida no diuturno combate da vida, progressivamente despojada da gestão da sua economia e da sua influência social, onde cada geração pode ler, na vida de seus coevos, os documentos do aniquilamento da sua estirpe, só entra em combate para repelir, de armas na mão e com risco da vida, o inimigo agressor, por força da mesma fatalidade mecânica, ou do mesmo impulso animal, com que todos os povos, inclusive os selvagens e bárbaros, lutam igualmente pela conservação e pelos objetos mais frívolos e ridículos.

O nosso problema vital é o problema da nossa organização; e a primeira coragem de que nos cumpre dar provas, é a de longa, máscula e paciente tenacidade, necessária para empreender e sustentar, com vigor e inteligência, o esforço múltiplo e vagaroso da construção da nossa sociedade. É uma obra de arquitetura política, mas de uma arquitetura destinada a edificar um colossal e singular edifício, que deve viver, mover-se, crescer e progredir, — a que incumbe à nossa geração.

O Estado é, no Brasil, um fator de dissolução. A influência deletéria dos interesses anti-sociais, criados e alimentados em torno do poder publico, desde os municípios até a União, sobre a vida brasileira, é um fato cujo alcance não foi ainda atingido pelos observadores das nossas coisas públicas. Este regime deve ser substituído por outro, capaz de levar a termo o encargo da geração presente para com o futuro do Brasil.

E o povo brasileiro — é a minha inteira e viva convicção — é capaz deste esforço.

Rio de Janeiro, Junho de 1914.

A. T.


 

I

Senso, Consciência e Caráter Nacional

 

 

Não terás deuses estrangeiros diante de mim!”, disse o Senhor a Moisés no Monte Sinai(1).

Javeh era o deus único de um povo único — único pela origem, pela raça e pela língua, e, ainda hoje, único pela resistência à dissolução, por séculos de lutas e de sofrimento, de trabalhos e de perseguições, sem terra, sem lei e sem governo, entre gente adversa.

De Javeh de Israel nasceram dois deuses, cujos destinos seguiram rotas, vicissitudes e glórias distintas: o Deus de Israel — deus ambulante de uma raça peregrina de mercadores — seguiu a sorte dos filhos, expulsos do solo natal, e não se instalou na ara das sinagogas, senão depois que a força do caráter hebreu — forjado, por esses tempos, em que a luta crua era lei da vida, nas angústias dos êxodos e nos flag~icios da dor física — conseguiu comprar, a peso de ouro, nos balcões das casas de crédito, o direito à vida, à liberdade e à segurança, da consciência e do lar. O outro, o Deus Cristão, perdeu, transportado para Roma, na ampla atmosfera que conquistou e ao carinho de almas de todas as raças — a feição nacional, para tornar-se o Deus do amor, no coração dos apóstolos do Cristianismo, e o Deus do Império espiritual, no cérebro de seus políticos.

Mas Deus, ser ideal, absoluto e infinito, essência e fim das coisas, foi um dos primeiros sonhos especulativos da alma humana, ao se lhe despontar a consciência do próprio ser, como parcela de um universo enfeixado no âmbito do horizonte, e de uma sociedade, confinada na vida gregária do bando.

Deus era, mais que tudo, para os primeiros homens — seres ainda em transmutação, das formas grosseiras do instinto para as formas incipientes da consciência, entre a meia noite da última animalidade e o primeiro minuto da vida racional — o Pai eterno da estirpe, seu criador, seu protetor, seu chefe e seu guia. O ser superior e eterno, entidade universal e ubíqua, simbolizada no sol que trazia a luz, no animal, ou na árvore, cuja presença, ou cuja vista, provocava a geração, curava as moléstias, dava a saúde e a vida, e guiava os passos — estava indissoluvelmente ligado às duas maiores realidades atingidas pelo olhar mais amplo do espírito selvagem: o horizonte encerrando todo o espaço e o bando, exprimindo a solidariidade entre a vida de cada um e as vidas que o interessavam. Deus, o espaço e a grei confundiam-se nos espíritos. Estirpe e bando: a sociedade de interesse vital, em gestação.

Por que? Não era Deus que interessava ao homem. No mundo físico, o que o interessava era o sol, a chuva, a luz, a terra, as plantas, os outros animais; no mundo social, os seres que lhe eram iguais e semelhantes em hábitos. Mas o cosmos e a sociedade não se mostravam ao homem senão por sensações e aparências grosseiras; a eterna pergunta sobre a realidade, ainda hoje insolvida, atormentava-o — não só como explicação das coisas, mas, até, como instrumento da ação humana sobre as coisas, e entre os demais seres. Onde, então, a chave da verdade: a explicação do senso, a origem da razão, o impulso do movimento e da vontade?

Deus. As sínteses humanas são tanto mais vastas e arrojadas, quando mais arbitrárias; Deus-universo e Deus-Nação, Deus-criador e Deus-protetor, Deus-lei das coisas e lei das pessoas Deus-origem, e Deus-fim, Deus-princípio, e Deus-destino.

Na vida social, a imagem de Deus ficou, desde logo, ligada à idéia, fundamental em todo agrupamento, de proteção, de amparo, de assistência, de socorro e de guarda: proteção e socorro, contra o estranho; amparo e assistência, dentro do grupo. A primeira lei de todas as sociedades é a lei religiosa: lei a um tempo moral, política, e civil, revela e manifesta a sociedade unida por vontade de Deus.

Este laço inicial de união, inexpresso no grupo gregário, despontando na tribo e no clã, engloba, com a “nação”, diversos elementos confluentes: a raça; e, por força da raça, a língua; um território, a tradição oral de uma lenda, uma religião já complicada de dogmas, mitos e liturgia, obra da imaginação e da consciência de autoridade, do feiticeiro...

Deus defende o homem dos males inacessíveis do mundo cósmico, e, na sociedade, dos males, imprevistos e ocultos, que não alcança e não pode combater.

O espírito da “nação” forma-se, assim, como um sentido coletivo de proteção, de amparo, de assistência e de socorro, práticos e efetivos, contra riscos conhecidos e experimentados, entre homens e famílias que vivem juntos, tendo interesses comuns, e sabendo da existência de outros grupos, com os mesmos caracteres, e ligados pelos mesmos interesses, contrários, ou alheios, aos dos seus, e prontos a sacrificá-los, a bem da gente de seu sangue.

O “Deus estrangeiro” dos “gentios”, inimigos dos filhos de Israel, não hesitaria em massacrar as tribos judaicas, da mesma forma que Minerva, nos poemas homéricos, dava todas as energias da sua divina coragem ao braço dos helênicos contra as forças troianas.

A “nação”, forma em que culminou a composição social dos grupos da mesma raça, da mesma lingua e da mesma religião, desenvolveu-se, ampliou-se, complicou-se, entrelaçando-se com o “País”, a “Pátria”, o “Estado”. Seus atributos alteraram-se e multiplicaram-se; seu caráter modificou-se. Roma foi, igualmente, “nação”, enquanto simples fusão tribal dos Ranianos, dos Titias e dos Luceres; quando conquistou, depois, toda a Itália, e quando dominou, afinal, sob a égide imperial, o “orbis romanus”. A própria “civitas” dilatou-se até as margens do Tibre, as areias do Saára, a Britânia, as fronteiras longínquas da Germânia. Mas o espírito da nação permaneceu sempre o mesmo, dentro dos muros de Roma, ou, sob a autoridade dos prefeitos, nas províncias imperiais e nas senatoriais.

A nação era a sociedade de todas aquelas “gentes”, congregadas à força pelas legiões romanas, mantidas, depois, em disciplina, por amor à paz e no interesse da segurança e da vida em comum: da ordem, em suma, fundada sobre a confiança na proteção, no amparo, na assistência.

Feudal, na idade média, imperial, durante as grandes mornarquias modernas, a idéia de “nação” readquire, por algum tempo, em mais recente período, ao influxo de doutrinas liberais, o velho sentido de sociedade étnica, com a denominação de “nacionalidade”, mas cristaliza-se, por fim, no consenso geral, aplicada às grandes divisões políticas, no sentido de “povos” — sociedades dos habitantes de um país, compreendendo toda a sua vida: a vida memorial dos antepassados e a vida efetiva da geração presente.

A “nação brasileira” é, assim — num primeiro sentido superficial — a associação dos indivíduos e famílias que habitam o Brasil com ânimo de permanência, protegidos pelo conjunto dos órgãos da sua política: o “Estado”; formando, sobre seu habitat territorial: o “País”, graças à conscíência de uma continuidade histórica de heranças morais e materiais e de uma simpatia e comunidade entre os vivos, uma agremiação fundada sobre a confiança em certas condições práticas de tranqüilidade e de segurança, superiores à vontade e ao poder de cada um de seus membros: — uma “Pátria”.

O laço de proteção, de amparo, de assistência, e, por acreção moral — desenvolvimento lógico dos móveis primitivos — de amor e de solidariidade, abrange, assim, no tempo, o passado, o presente e o futuro, e, no espaço, toda a sociedade — e, pois que a terra é a base da vida social, fonte de sua prosperidade e desenvolvimento, o sentimento nacional transporta-se, do seu objeto vivo, para o patrimônio material da nação — berço da sua existência, sede da sua ação, recinto da sua vida, paísagem de suas dores e de suas alegrias. Mas o patriotismo territorial só é, por isso mesmo, um sentimento real, como reflexo do sentimento afetivo entre a gente.

A sensação permanente desta comunhão é que forma o “senso nacional”; mas, assim como a natureza da “nação” variou, nos longos períodos de seu curso histórico, e diverge entre vários, tipos de países, o “senso nacional” não pode ser idêntico para todos os povos. O “senso nacional” dos judeus liga indivíduos sem pátria, espalhados pela superfície da terra; o dos franceses liga homens e famílias, congregados com a mesma língua, numa fusão, relativamente uniforme, de raças — ciosos de conservar o caráter e os brios de uma tradição; o senso nacional do alemão, distintíssimo, hoje, do senso do germânico, e, até, do senso dos coevos de Kant e de Frederico, o Grande, inspira a ardorosa ambição, comercial e expansionista, de uma geração conquistadora, cujo impulso psíquico se revela num intrépido e pujane impulso para as vitórias da força e da vontade. O senso do anglo-saxônio dos Estados Unidos está para o do anglo-saxônio da Inglaterra, como o do alemão para o do francês: sedentos de iniciativa, e ardentes de audácia, aqueles, tentando explorações e empreendimentos, ansiando por engrandecer; vagarosos e seguros, os outros, absorvidos no zelo e nos cuidados da conservação, da experiência, do aperfeiçoamento. O anglo-saxônio da Austrália e da Nova Zelândia dir-se-ia um antípoda do seu antepassado britânico. Admiravel prova da falsidade da base étnica das civilizações e tendências dos povos!

A raça é, de todos os elementos da nacionalidade, talvez o menos ativo. Nenhum dos povos contemporâneos é formado de uma raça homogênea; alguns compõem-se de raças distintas. A Suíça, com a sua população variada, de origem francesa, germânica, italiana e romaica, contém ramos, ainda hoje radicalmente destacados, dos três grandes tipos étnicos europeus: o tipo nórdíco, o mediterrâneo e o braquicéfalo central. Os Estados Unidos reúnem representantes de todas as estirpes étnicas; a população austro-húngara forma um verdadeiro mosaico de variedades humanas, desde os teutos até os descendentes, magiares, dos hunos. Nenhum destes povos deixa de formar uma “nação”, moral, política e socialmente. A Suíça e os Estados Unidos, países federados, são nações de forte e vigorosa unidade, no sentimento, no espírito e na harmonia dos interesses. O Brasil conta exemplares de raças extremas, mas só um cuidadoso estudo etnológico autorizaria a classificação de cada alemão de Blumenau como germânico, e de cada italiano, espanhol ou português, de S. Paulo, de Minas e do Rio de Janeiro, como latino.

Esta denominação popular de “latino” é das menos caráterísticas, como expressão de parentesco étnico; traduz, de preferência, sob vaga reminiscência de remota proximidade de origens, muito confundidas e diluídas no bulício das migrações, um certo sentimento de simpatia moral, e, sobretudo, intelectual, que a semelhança das línguas gerou. A suposição de uma herança latina, sendo um erro étnico e um prejuízo de cultura, pode tornar-se perigoso guia político — de que carecemos emancipar-nos, sem para isso afrouxar os laços que nos prendem aos povos desse nome.

Da crença de que a origem latina importa uma identidade de temperamento e certa simpatia mais íntima, resulta a adoção de uma afinidade que entra no espírito nacional como veículo de dissolução, desnaturando sentimentos reais, ao contato de uma afeição fictícia — de mera sugestao literária — e como impulso centrífugo, repelindo outras simpatias mundiais. Provém daí a imitação do tipo intelectual e dos moldes do pensamento e da arte, dos costumes e do gosto, dos franceses e, principalmente, de Paris, capital moderna do mundo latino.

As civilizações européias chamadas latinas não estão em fase de atividade, nem de vigor; trabalha-se, hoje, mais intensa e energicamente, na Alemanha, nos Estados Unidos e na Inglaterra. A nossa curiosidade intelectual e o nosso interesse por assimilar produções e estudos alheios, a nossa aspiração de fusão na sociedade mental da nossa época, devem conduzir-nos a dilatar o círculo das nossas colheitas de saber, substituindo a atitude passiva, que nos tem trazido a receber as idéias que nos exporta o acaso, ou o instinto político, de outros povos, por um trabalho autônomo de escolha e de seleção consciente. Aprender com alemães, com americanos, com franceses, com ingleses, e com brasileiros, quando for possível, a ser brasileiros: eis a fórmula ideal do nosso cosmopolitismo mental.

Filosofia, ciência, arte e política, são sistemas de abstrações e de conceitos, que nada dizem e nada realizam, quando se não adaptam, e não se vitalizam, como elementos motores da vida real — nervos e sangue, da nutrição e da vontade de um povo. Na prática, cada terra e cada povo tem a sua filosofia, a sua ciência, a suas arte, a sua política, que não alteram as idéias gerais, aliás limitadíssimas, do saber humano, mas fundam e desenvolvem formas e processos autônomos de viver.

A idéia de “raça” é uma das mais abusivamente empregadas entre nós. A raça é um tipo biológico, e, particularmente, morfológico, da espécie humana. Para que se possa determinar distinção étnica, é mister que se encontrem caracteres físicos e psíquicos, distintamente marcados, de identidade entre grande massa de indivíduos, e de divergência destes com outros grupo. Onde um ou alguns destes caracteres estiverem apagados ou confundidos, deixa de se dar a figura característica da raça, para surgir uma variedade composita, que se pode estender a uma tribo, a uma classe, a uma nação, ou a uma sub-raça. O número das raças puras é limitadíssimo, sendo poucos, em nossos dias, os exemplares de verdadeiros epécimes de raças, virgens de mescla. No negro importado para o Brasil, o olhar instruído do etnologista pode encontrar, além da estampa da raça etíope, de Blumenbach, ou negróide, de Huxley, traços de malaios e árabes, introduzidos na África, em várias épocas de migração. Todos os tipos mediterrâneos, a que pertencem os nossos colonos antigos e modernos, são mestiços.

É, assim, dificílimo generalizar juízos sobre a capacidade específica das diversas raças: a confusão tem obliterado os caracteres étnicos; os trãmites da evolução nacional e política realçaram, por força dos costumes e das instituições, os fatores puramente sociais de seleção.

A idéia que nos cumpre assentar e consolidar no espírito, em lugar da noção inconsciente e pueril em voga, é a desta profunda e grave sentença de Ratzel: “A diferença de civilização, entre dois grupos da humanidade, não tem relação com a diferença de seus dotes(2)”.

No conflito dos caracteres étnicos com os fatores mesológicos e sociais que operam sobre os diversos tipos humanos, a vitória cabe à última destas influências. O homem moderno resulta, muito mais diretamente, do meio que habita, e, principalmente, da sociedade que o cerca, que dos impulsos congênitos da sua estirpe. É o caso do índio civilizado — ontem selvagem e antropófago, hoje cristão e moralizado, e do preto.

Brasileiros, o nosso afeto patriótico deve abranger, numa igual e completa cordialidade, os descendentes dos portugueses, dos negros, dos índios, dos italianos, dos espanhóis, dos eslavos, de alemães, de todos os outros povos, que formam a nossa nação. Fora destes, não temos que reconhecer senão homens, senão semelhantes, seres da mesma natureza e do mesmo espírito, para quem o nosso país teve sempre abertas, com urbanidade e franqueza talvez inigualadas, e com vivos transportes de hospitalidade, casas e almas.

Entre os patrícios é que cumpre estimular e cultivar o afeto que, sem o perceber, e contra o que de hábito dizemos, sentimos íntima e sinceramente, não lhe dando, por falta de consciência e de coragem cívica, toda a extériorização concreta. Transparece, ainda aqui, a fluidez da nossa mentalidade — leviana e volúvel, por falta de feitio e de modelação social. Questão de convívio nos salões, a parte, e de relações íntimas, pessoais ou sociais — impulsos estéticos e de educação, naturais, não raro exagerados, porém, por vaidade, com adoção de preconceitos alheios — poucos serão, em nosso país, os que sintam repugnância, ou desprezo, pelo negro e pelo índio. Pelo preto, todo brasileiro da geração que testemunhou os costumes da escravidão, sente a ternura comovida que liga a imagem do servidor leal e bom desses tempos à lembrança das emoções da nossa antiga vida doméstica, tão encantadora em sua cordial simplicidade, e da nossa vida do campo, bizarramente poetizada pelo consórcio da alma portuguesa, uma das mais líricas dentre os povos modernos, com a meiga ingenuidade do africano. Pelo índio, se a raridade de seus tipos cultos não nos permite observação muito ampla, não há indício de qualquer laivo de prejuízo ou de antipatia. Ninguém sente, no Brasil, constrangimento, ou desgosto, no tocar a mão e contemplar a face de um caboclo autêntico, virgem de sangue branco. O tipo do caboclo não tem, entretanto, vantagem estética sobre o do negro; alguns dos traços primitivos da raça são até mais grosseiros.

O contraste entre o nosso inteiro despreconceito para com o caboclo e o desdém que se afeta pelo negro, em certos meios, ilumina a feição literária e convencional de alguns dos nossos sentimentos sociais.

Fora dos anais da colonização, onde os encontros entre brancos e indígenas não passaram quase de tragédias de morticínio e de exterminação, o selvagem não tem história literária senão em livros de viajantes curiosos e nos estudos modernos, e já menos prevenidos, de antropologistas. Certas concepções idílicas do homem primitivo e do selvícola, de que o “contrato social”, de Rousseau, é uma versão política, decoram-lhe, mesmo, o tipo com fulgores poéticos: a miragem da idade de ouro, as lendas de heróis e semi-deuses, o culto pagão dos antepassados, as alegorias de Homero, dos poemas bramânicos, dos sagas escandinavos, a fascinação extática de Nietzsche, o primevismo, heróico e sentimental, de Alencar...

Já nas relações com o preto, é diferente a atitude exterior de muita gente.

O negro é, de há muito, uma das caricaturas do humorismo literário. Único escravo dos tempos modernos, recebeu, ainda mais, sobre os ombros, toda a carga dos labéus da escravidão. A escravidão — sorte de vencidos e comutação da morte, para povos inermes, em que caiam, igualmente, raças incultas e povos abatidos, como os gregos que iam, entretanto, ensinar artes, letras, ciências e filosofia, a seus poderosos senhores romanos — é de uma das instituições amaldiçoadas pela magistratura crítica.

O narrador dos nossos costumes sociais viu a escravidão, através deste prisma literário.

A escravidão foi, entretanto, uma das poucas coisas com visos de organização, que este país jamais possuiu; nas aéreas instituições políticas, que temos tido, as boas intenções do segundo monarca, a honestidade e o saber de seus ministros, não conseguiram fazer descer para o nível dos fatos a nuvem luminosa das doutrinas adotadas; a República vai sendo um jogo floral de teorias, sobre um campo de misérrimas realidades. Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos, e fundou toda a produção material que ainda temos. A moral dos seus costumes foi superior à das relações, desapiedadamente cruas, dos anglo-saxônios com os pretos e indígenas, nos Estados Unidos.

Toda a operosidade deste país, tudo quanto nele se edificou como fonte de riqueza e de trabalho, o pouco que já possuimos em estabilidade social e dinamismo orgânico progressivo, assenta sobre a labuta do preto e sobre o esforço do senhor, porque — e eis aqui um ponto capital a assinalar — o senhor de escravos — o das primeiras gerações colonizadoras, em realce (coisa de que, no correr destes estudos, se encontrará a explicação) — foi um explorador da terra ignorante e desavisado, mas incansavelmente laborioso. Na vida própria do interior, a gente que, na “fazenda”, formava a nossa família rústica, era ocupada e ativa como a de qualquer outro povo agrícola.

Os que conhecem, por observação direta, os nossos antigos costumes, sabem que, na roça, entre os que lá se conservavam, e, nas cidades, entre os que mantinham os hábitos ali adquiridos, a vida doméstica era ocupada, e os homens esforçavam-se por produzir.

Onde o nosso caso mostra as causas específicas da futura dissolução, é nos contatos da vida urbana com a do campo, na interpenetração da civilização, que íamos fazendo, com a economia que possuíamos: na fusão dos costumes das cidades, com os costumes da roça.

As praias, os portos, as fronteiras, as cidades à beira-mar e cosmopolitas, os povoados à margem das grandes vias de comunicação — poisos de marujos, de aventureiros e de viajantes em jornadas de ambição, e em férias, pelo menos, de disciplina social — são, em toda a parte, zonas mistas de difusão e desagregação social, áreas de invasão de costumes fáceis e de perversão dos caracteres. Antes das invasões guerreiras dos bárbaros, Roma estava dissolvida por suas migrações pacíficas; o Pireu infectou Atenas; fenícios e cartagineses eram, na antigüidade, propagadores de vícios e autores dos crimes os mais audazes; nas ilhas da Oceania, as populações selvagens das costas corrompem-se, pervertem-se e aniquilam-se ao contato dos colonizadores europeus, ao passo que os aborígenes isolados nas costas mais altas das montanhas conservam, com a robustez física, os caracteres da raça. No conflito entre o exemplo dos colonos ordinários e as sugestões da catequese, definha o tipo indigena, que se entrega, anêmico e servil, quando não se extingue toda a raça, à faina dos serviços baixos dos civilizados.

Em nosso país, onde tudo, apesar do nosso extenso território, se diria regulado para submeter as populações à ditadura mental da Corte — o que, com a própria vastidão, passou a ser uma causa dissolvente; onde os espíritos não receberam senão o preparo para copiar e imitar coisas, homens, idéias e costumes estrangeiros, todo o mundo aprendeu a viver, a sentir e a pensar, conforme o que se lhe dava, no Rio, por tipo e por modelo. O primeiro cuidado dos pais, a quem sorria a fortuna, era mandar os filhos para os internatos da cidade; os fazendeiros repousavam dos labores da fazenda, nos hotéis elegantes, nas palestras da rua do Ouvidor, no Lírico e nos teatros alegres: era distinto citar os nomes em voga no Chiado e nos boulevards. Alguns versos de poetas afamados, frases de oradores e publicistas, intrigas de romances sentimentais e eróticos, misturavam-se, nos cérebros de bacharéis e doutores, a provérbios populares e trechos de compêndios. E assim se fizeram a filosofia e a orientação política, que dispuseram, durante quase todo o século XIX, da sorte deste país.

O romantismo e o demagogismo da França — credo de melancolia e de cepticismo, um, e simples anelo de entusiasmo reformador, o outro, foram, súbito, deslocados pelo realismo e pela confusão científica, filosófica e política espalhada pelo surto do evolucionismo e do positivismo e pelo estudo e crítica das teorias liberais. Ao positivismo, forte pela união, e pela integridade de consciência que sugere aos espíritos, as outras escolas não juntaram nenhuma fundação estável. Tudo isto deu às inteligências, quase em branco, do nosso país sem cultura, essa atitude de erudição vacilante e de dialetos negativa, sempre de objeção em riste, em que idéias filosóficas e leis científicas, temas de artigos e discursos, confundem-se nas memórias com provérbios e noções populares, correntes como as moedas de troco, e fatos, coisas e dados concretos, baralham-se com anedotas, imagens e fições. Conservadores e católicos agiam por sentimento, e conquistavam por atos. Só de recente data surgiu um movimento de proselitismo intelectual, na Igreja. A influência mental da França fazia-nos repetir, por símbolos da nossa “psicose”(3), e alvo das nossas aspirações, a angústia e as dúvidas de um povo, desordenado pela ruína de instituições seculares, e indeciso na escolha de novas formas. O liberalismo, perito na destruição, não tinha aprendido a organizar; doutrinários arquitetavam sistemas e planos definitivos de construção social, só com isto desprestigiados no juízo de espirites práticos, por estas razões, e porque os reacionários dispunham dos instrumentos de uma habilidade finamente educada e da disciplina, contando com a vantagem da tradição e de instituições conhecidas, naturalmente simpáticas à ignorância e ao comodismo das maiorias, a nossa tutora mental, oscilando entre os extremos de suas revoluções e reações, não nos ensinava a caminhar; e nós íamos praticando, como vida normal de sociedade culta, uma existência de colônia moral e intelectual, modelada pelos agentes dessa ocupação de espíritos com sede no Alcazar, nas livrarias e nas casas de modas, ao passo que outros, franceses e de outras nações, faziam-nos sua colônia econômica, nos bancos e nos armazéns do comércio internacional.

Portugal, por sua vez, passando por duas fases brilhantíssimas de atividade intelectual, no século XIX — bastante, cada uma, para firmar o prestígio de uma nação intelectual — foi em ambas agitado pelas crises, diversas, mas todas violentas, da paixão de um povo, que, havendo consumado obras de raro vulto histórico, sentiu prematuramente tolhidas as energias com as fadigas da secular reação contra a pressão, quase esmagadora, das lutas migratórias e dinásticas do continente, e a concorrência e a ameaça constante, e, depois, predomínio das ambições imperantes no oceano. Destas crises, se a primeira foi desanimada e dolente — abatidos os espíritos ao peso dos “ásperos desenganos”, que, no dizer de Herculano, os isolavam nos retiros, onde, “como no desabar do Império romano, tantas almas severas e enérgicas, desesperando do futuro de Roma, iam buscar os ermos” — foi a outra amarga e nevrótica, audaz sem confiança e revoltada sem poder. Exportou-nos, esta, a literatura que nos afigurava a sociedade dos nossos contraparentes como uma cáfila de deliquescentes, poída de músculos na rotina, e enxovalhada na libertinagem.

A França, sob a própria influência do naturalismo, contava com prestígio bastante forte: seus escritores haviam sabido isolar zelosamente a Pátria das penas de suas observações de biologia e psicologia social, para lhe manter a fama de país são: condenando seus patrícios, os literatos de Lisboa e do Porto condenaram-nos também, e habituaram-nos mais a guindar em sentenças de crítica social, bisbilhotices de esquina e de cafés — a psicologia dos romances mundanos, onde se julgam povos pelos escândalos da rua, e as pessoas, pela moral da ponta de língua: o único juiz expedito, talvez, no mundo inteiro.

Enquanto recebíamos de Portugal a literatura romântica, da primeira fase, e, renovando o impulso de autonomia intelectual, iniciado nos tempos da colônia, tentávamos, com Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães, Luiz Guimarães Júnior, José de Alencar, e, depois, com Machado de Assis, refletir a própria imagem e a emoção da nossa terra e das nossas almas nas obras literárias, não aprendemos a maldizer das nossas coisas; mas, quando o naturalismo francês e português começou a circular, e, impotentes, quase todos, para assimilar a grave filosofia emancipada do século, começámos a ingerir-lhe os bosquejos e interpretações, que nos supriam jornais e revistas, assim como filosofias bizarras e destruidoras, o contágio pessimista acirrou a severidade dos escritores, excitada pela consciência do realce intelectual numa sociedade quase inculta, em sentenças de desespero e inexorável condenação. Está na lógica das coisas que a ilustração aplique, em ardor e intensidade de crítica e de combate, as energias que não dispõem de materiais próprios para construir. E as frases céticas das literaturas estrangeiras tomaram máscaras de juizes sobre as nossas coisas. Nada escapou ao ardor punitivo: os costumes, o espírito, a moral, a raça; com esta, os avós; e, como não era esperado que a execução da sentença recebesse embargos, também a sorte dos descendentes foi incluída, nessa partilha espontânea, em vida, dos despojos desta nação.

Tudo isto não passa, contudo, de literatura; está no caráter dos espíritos juvenis fazer de tudo literatura: das coisas, das pessoas, dos fatos, e das idéias: fazer, até da própria vida, literatura em ação; e, se se não tivesse dado que, em falta de filosofia e de política, tal literatura invadiu-nos os hábitos e instalou-se como palavra oficial do nosso pensamento, nada haveria a temer. Cumpre, porém, arrancar toda esta vegetação malígna do cérebro deste povo, já bastante aturdido pelos problemas e dúvidas de uma existência arrastada entre os segredos, não desvendados, de uma natureza estranha, e a ignorância da gente que lhe pretende ensinar a vida, sobre esta terra que ninguém estudou.

E, neste problema da vida, estão o núcleo e a essência da Filosofia e da Política — ciência e arte prática, esta última, a que hão de afinal convergir todas as especulações e pesquisas se quiserem continuar a merecer a atenção e a reflexão humanas. Toda a nossa biologia e psicologia podem, em suma, resumir-se nesta última síntese: o homem é o ser em quem o fenômeno da vida reuniu as condições e propriedades mais complexas da “adaptatividade”. Índole, tendências, faculdades, sentidos, instintos, potencialidades, tudo quanto, em suma, nas investigações analíticas de cada aspecto do organismo, parece cristalizar e traduzir caracteres, físicos ou psíquicos, do modo de ser a que se chama “natureza humana”, definir pendores, inclinações, limites e distinções, que predeterminem, encaminhem, fixem e guiem, a orientação dos nossos passos e do nosso espírito, tudo resume-se nessa palavra — afirmação da generalidade indefinida do nosso poder de desenvolvimento, sem limites e sem distinções subjetivas, talvez, mas fronteira, ao roesrno tempo, de sua extensão, fixada, no que é terreno, não por incapacidade do nosso poder orgânico — susceptível, talvez, de imprevistos e extremos alcances — mas por uma necessidade geral de equilíbrio e de harmonia das coisas, a que se não pode furtar, na relatividade contingente do mundo cósmico e do finito, no tempo e no espaço, nem mesmo esse assombroso fenômeno complexo do espírito humano.

Este problema da vida é a interrogação inconscientemente posta pelo homem, em todas as perguntas feitas sobre os mais transcendentes objetos da especulação. Mas o problema da vida concreta, em suas realidades imediatas e parciais, não se lhe fazia sentir em forma abstrata — como problema intelectual. A satisfação imediata da fome, a necessidade de abrigo e de calor, as primeiras exigências de conforto, não foram os problemas que preocuparam o espírito humano.

Cada necessidade isolada e cada interesse particular encontrava-se solvido, por obra de um dos muitos processos contínuos pelos quais o contínuo da mente vai solvendo o contínuo da existência. A vida desenrolou-se, assim, por um progresso lento de conquistas infinitesimais, desenvolvendo a primeira sensação afetiva, que combinada não se sabe com que força natural, a fez surgir — por séries de sensações idênticas e de memorizações repetidas e multiplicadas, tornando-se hábitos automáticos, instintos, impulsos imediatos, que, só em estado muito adiantado da espécie, apresentaram as formas superiores do cuidado permanente pela existência, na forma geral do problema da conservação, da segurança, do “plano de vida”, e, afinal, da ambicão. A vida concreta é, para o animal e para o homem primitivo, um problema encarado e solvido au jour le jour. Cada apetite instintivo não era um problema para a necessidade do instinto; cada satisfação não era uma solução. Mas, assim como a questão metafísica do “ser” reflete a curiosidade do homem pela sua relação com o universo, o mundo propunha ao espírito de nossos antepassados a questão de sua vida, em face da grandeza e do poder misterioso das coisas colossais que o cercavam, que produziam chuvas e torrentes, acidentes e mortes, e que lhe opunham, da parte dos outros animais e dos outros homens, tantas ameaças e tantos perigos à sua segurança e integridade, tantos obstáculos, desenganos e combates a suas empresas.

O problema da vida apresentou-se ao homem ancestral com esta feição prática, nos primórdios da sua atividade mental consciente. Um espírito de tendência teleológica diria que esta noção é reflexo da consciência da “função”, sobre os móveis, aparentemente livres, do pensamento; mas o pensamento, só por si, explica toda a sua causalidade e toda a sua relatividade.

Às perguntas do homem sobre seu destino, em meio às coisas, respondia o socorro de Javeh; mas à pergunta sobre os perigos que vinham dos homens e dos outros animais, quem respondia era o companheiro da caverna, e, depois, o parente da tribo. Para os perigos das coisas, o socorro de Deus; para o perigo dos inimigos, o socorro da “nação”. Religião e política nasciam, assim, como roteiros à esperança e ao temor humanos, nos azares e nas penas do destino.

Deus era invocado sempre, sem dúvida; mas à própria alma enlevada dos apóstolos, nas causas humanas da paz e da guerra, ele falava e agia pelas bocas e pelos braços da nação.

Para o homem inculto, a existência desenhava-se como um plano horizontal no tempo; e a sociedade parava, na era contemporânea, como fechada por uma seção vertical no espaço.

No passado, vivia a lenda, poetizada, trágica ou divina, olímpica ou demoníaca; Javeh ou Júpiter, Ptah ou Thor, foi, por muito tempo, o maior dos avós, o avô engrandecido até ao poder colossal do comando das forças físicas; o futuro era ignorado por ele, para quem a genesis estacava com sua própria existência e o destino não compreendia senão seu ser e os seres que o cercavam. Deus e os viventes resumiam a filosofia e a política, faziam a ordem no universo e a policia na tribo — mas isso para a vida e no interesse de cada um.

Toda a história sintetiza-se, então, nesse esforço do homem por assentar e amparar a segurança da sua existência; perplexo entre os interesses imediatos, sua timidez não lhe permitia sequer formular o problema do futuro. Quando o amor pelos seus lhe sugeria, porventura, vagos cuidados por uma hora um pouco mais avançada, ele solvia a dificuldade, transportando o poder de Deus, do mundo sidéreo, para os tempos adiante: tergiversava, porque não era essa a solução que ele se dava, para os interesses próximos; e a consciência dormia, sobre a tranqüilidade dessa proteção, tão poderosa, que fazia cair o raio sobre a árvore próxima para não deixar ferir a criatura, e arredava as avalanches para os abismos do vale.

E assim se instalou, por séculos, o fatalismo, providêncial e depois cético, que encerrou o horizonte dos problemas e de cada indivíduo e de cada geração dentro do alcance da existência.

Nos limites do presente, religião e política sabiam, contudo, que a vida tinha sua segurança e seu destino pendentes da nação, não só por força da polícia e da justiça que ela criara, desde as suas formas rudimentares, mas porque a ordem social da nação organizava a subsistência e o êxito de todos. A nação, prolongamento, a princípio, da estirpe, foi, depois, uma união de estirpes, acomodadas num regime de paz, em prol do interesse de todos. Do “pária” ao rei, todos sabiam que a defesa de suas vidas contra o inimigo estava sob a guarda da nação, e que tinham a sorte confiada aos meios de vida, estabelecidos pela sociedade e por ela regulados; a fortuna do indivíduo era fortuna da nação; a fortuna da nação, fortuna do indivíduo.

No que respeita ao “sustento”, à “conservação” e à “defesa” da vida, em sua forma direta, as organizações políticas primitivas olhavam, de mais perto, para o interesse e para a tranqüilidade do indivíduo. Os “estados”, dessas primeiras sociedades, eram “estados coletivistas”. Sob o regime doméstico, com um rei, com um déspota, ou sob uma oligarquia, na escravidão, ou na servidão, protegido ou vassalo, contava, cada qual, com o alimento, com o abrigo, com a união para defesa comum. O regime social e político era um regime de mutualidade, por subordinação; a nação, um poder paterno sobre cada um de seus membros.

O ânimo paternal, que gerou essas primeiras associações de interesses, presidindo ao seu desenvolvimento e acompanhando seus progressos formou, assim, a base psíquica da sociedade, sobre um estado de confiança recíproca, que, salvo aberrações, mais numerosas, naturalmente, nos tempos primitivos, mas sem expressão estatística, como coeficientes sociais, mantinham a normalidade de situações convenientes à satisfação dos requisitos mínimos da vida.

Com a evolução dos povos, ampliadas as necessidades, multiplicavam-se, simultaneamente, os recursos; dilatadas as camadas superiores, desenvolveram-se os meios de satisfação; reduzida a ação patriarcal do Estado, surgiram os trabalhos, as indústrias, as profissões, que iam contentando as precisões. Deixando, paulatinamente, de socializar a vida, no interesse dos dominadores, tornando-se político, o regime da ordem e da legalidade restringiu-se à esfera jurídica, à proporção que a vida econômica ia crescendo, e emancipado, ia também o indivíduo encontrando, numa atividade social paralelamente desenvolvida, o apoio que o Estado retirava. Este processo, vagaroso, gradativo, diuturna e imperceptivelmente mais largo e mais alto, ia também formando uma sociedade, onde, sob as ondulações e linhas quebradas naturais no nível de grandes coletividades se estendia uma linha média de populações cada vez mais vastamente prósperas. As nações de formação imemorial e evolução espontânea produziram, mantêm e desenvolvem, assim, como que um leito, ou uma rede, de condições de garantia individual, por entre as grandes massas da sociedade. A miséria, existente entre os grandes povos civilizados, forma exceção, ao lado de imensas populações para as quais, não só não existe a fome, senão também as necessidades e aspirações, materiais ou espirituais, crescentes, contam com probabilidades de satisfação. Há um plano ascendente contínuo na prosperidade material e no progresso moral destas populações.

O fenômeno do “pauperismo”, das grandes civilizações, não tem comparação com o definhamento e a morte, em massa, de populações, como na China e na Índia contemporânea, ou com o nomadismo, miserável e bruto, dos nossos sertanejos.

As condições sociais da vida individual, conservando, nestas novas sociedades, o caráter oe permanência, firmaram o de continuidade. “Permanência” e “continuidade” são caracteres fundamentais da vida social(4).

Neste processo, Deus, libertando-se, com a espiritualidade das novas formas religiosas da fusão imediata com a matéria e com o mundo objetivo, emancipou o teatro das realidades terrenas, da sua interferência permanente: o homem, livre, no conceito de todas as religiões, tomou posse do seu governo; e as coisas da vida coletiva formaram objeto de um pensamento, de uma ação, de uma arte secular. A separação do espiritual e do temporal, e inteira emancipação da política e da autoridade espiritual, é conseqüência, imediata e lógica, do dualismo do espírito e da matéria, e do “livre arbítrio”.

Reconhecendo no homem capacidade para reger e administrar os universais, ainda que limitados ao presente, religião e política reconheceram-lhe, implicitamente, a faculdade de prever as conseqüências futuras dos atos da gestão social.

Providência objetiva sobre os fatos da vida comum e previsão dos sucessos e das conseqüências dos atos humanos sobre a sociedade, são o verso e o reverso da mesma aptidão humana para viver em grupo social.

Desde logo, era fatal que surgisse o Estado, como órgão geral dos problemas e das soluções dependentes da ação coletiva e futura, confiada, nos limites do espaço e do tempo, ao “arbítrio” e à “responsabilidade” do homem.

Na vida espiritual, o homem comunica a sua relação com a realidade divina, pelo nexo da fé, na esfera da consciência individual; o século e o mundo, o tempo e o espaço, ao alcance da relatividade da sua vida objetiva, ficaram entregues à única força e única autoridade efetiva e prática sobre seu arbítrio e sobre sua responsabilidade: o Estado, órgão da nação.

Doutrinas filosóficas podem contestar ao homem e à sociedade capacidade para prever o futuro, mas devem, por conseqüência inevitável, adotar o anarquismo: negar ao homem aptidão de raciocínio lógico sobre as coisas futuras, envolve, fatalmente, negar-lhe a de raciocínio lógico sobre as coisas gerais no presente, isto é, importa contestar a legitimidade do Estado e do Governo.

Reconhecer a liberdade e negar a previsão, traduz-se pelo fatalismo mais cego das mais grosseiras concepções naturistas.

As massas humanas, assimiladas em “todos”, compunham, com a possível adaptação, dados os nossos conhecimentos sobre a relação da espécie com o mundo físico, e sobre a nossa natureza corpórea e psíquica, uma agremiação, fundida com seu habitat, e integrada como sociedade, que se mantinha por si, salvo acidentes físicos ou guerras, e desenvolvia-se. Meio, povo e forma política formavam membros de um corpo extremamente elástico e flexível; enraizada na terra, ou com a terra, desenvolvia-se a vida (que não a gente por vezes nômade) graças à necessária revelação e acumulação de indícios e hábitos, próprios a manter as funções de relação, satisfazendo apetites e instintos, por força dessa espécie de harmonia, integrada, numa atmosfera tônica, pela afinidade com o meio e pela assimilação objetiva na sociedade.

Formaram-se, assim, as nações do mundo civilizado, apresentando a forma de coletividades em que os indivíduos são funções da sociedade e a sociedade é função dos indivíduos, desenvolvendo-se, uns e outra, coordenadamente, sem choques e sem hiatos, como num processo contínuo de elevação de um mesmo plano. A prosperidade e o progresso — no sentido ordinário do termo — do homem e da sociedade, nos países de longa evolução normal, são, assim, produto de uma elaboração vagarosa e lenta, semelhante, por exem-plo, à ação dos fatos físicos, quíimicos e mecânicos, que serviram para compor as partes geológicas da crosta da terra.

Deste processo de elevação sucessiva do sociedade, organicamente integrada e diferenciada surgiram as nações, os povos e os homens, do ocidente moderno, caracterizados, em geral, por uma certa conformidade de hábitos evolutivos. O processo sofre hoje diversas crises: — efeitos do desenvolvimento da cultura, sem a necessária segurança, nos espíritos, da verdade científica e das suas aplicações, e efeitos, ainda mais, da revelação e consciência dos problemas positivos do homem, em seu aspecto duradouro, como teses gerais, da elevação do nível da instrução e da excitação das ambições, generalizadas a vastos grupos das sociedades, mas, principalmente, do surto das invenções materiais e dos instrumentos mercantís que, dos fins do século XVIII, para nós, aceleraram a indústria, as comunicações e o comércio, em progressão vertiginosamente desproporcionada com os misteres e interesses humanos.

Profundamente perturbadores da evolução das sociedades organizadas, estes fenômenos tornaram-se, nas mãos daquelas de suas classes que os manejam, um poder tremendo sobre os destinos das classes inferiores, e, ainda mais, sobre as das novas sociedades, surgidas do desconhecido, mercê dos descobrimentos, e voluntariamente formados por esforços individuais dos colonizadores, ou pela ação política das metrópoles.

As nações de origem remota e de lenta evolução não conheceram, nem conhecem, o problema nacional, pela mesma razão por que os herdeiros de grandes fortunas desconhecem o problema da subsistência e cada indivíduo desconhece o problema da formação estrutural do seu organismo. As nações surgidas por descobrimento e formadas por colonização são improvisos sociais do acaso, ou de fatos excepcionais do progresso. Se fosse possível conceber que os governos metropolitanos ou as camadas colonizadoras transplantassem para as suas novas possessões a estrutura e organização das metrópoles, poder-se-ia, também, admitir que as colônias teriam prolongado sobre os novos territórios o organismo das sociedades metropolitanas integradas; nem tal, porém, se dá, nem, ainda, seria de supor — o que, aliás, não seria bastante — que as forças ativas na manipulação das novas sociedades: governos das metrópoles, seus delegados e colonos, tivessem agido sobre estes meios, obedecendo aos mesmos estímulos que lhes impeliam os passos, na vida ordinária sobre o solo natal. O descobrimento e a colonização, fatos imprevistos e mutações gigantescas, epicamente sugestivos, revolucionam, também, os espíritos, com as alegorias quase lendárias e com os prêmios magnificentes das primeiras jornadas.

Governos coloniais e colonizadores fazem invasões e conquistas: não fundam nações; são exploradores: não são sócios.

Dos costumes, tradições, leis empíricas da prática, e normas da consciência, permanecem os que, por neutros, não tolhem os passos, em empresas e aventuras: a visão dos novos cenários, a força impulsiva e os delírios da ambição despertam almas novas, nos cérebros transfigurados e ardentes de “bandeirantes”, “emboabas”, de toda a casta de pioneiros — evictores sumários de terras e sümaríssimos eliminadores de concorrentes.

Nas nações novas, o fato, resultante da forma peculiar da sua exploração, é que a sociedade não chega jamais a constituir-se: a assimilação e a integração, obras de lento e gradual evoluir, nos velhos países, não encontram os mesmos móveis de estímulo e de operação; e, pelo contrário, por entre a vizinhança, a contiguidade, e uma certa comunidade, material ou moral, de semelhanças e analogias: a língua, a religião e a raça — fios de tecedura, entre outros, na composição dos elementos vitais de associação, e forças de sua atividade solidária — são aqui dissolventes. As religiões, por exemplo, como outras agremiações, agindo independentemente do mecanismo nacional, onde se deveriam entrosar, e promovendo, sem a ação geral paralela das forças nacionais, os ideais que as animam, sob a direção de sua autoridade mundial e com a sua poderosa disciplina, contribuem para desagregar as nacionalidades.

Os países novos carecem de constituir artificialmente a nacionalidade. O nacionalismo, se não é uma aspiração, nem um programa, para povos formados, se, de fato, exprime, em alguns, uma exacerbação mórbida do patriotismo, é de necessidade elementar para um povo jovem, que jamais chegará à idade da vida dinâmica, sem fazer-se “nação”, isto é, sem formar a base estática o arcabouço anatômico, o corpo estrutural, da sociedade política.

Não são os requisitos da prosperidade e do progresso, no sentido popular, que falecem, mas os próprios órgãos e vísceras de uma associação humana com assento topográfico em um território e revestida de uma cúpula política.

Sua população é um aglomerado de famílias, classes, associações, partidos, profissões, raças, nacionalidades, religiões: pode possuir, durante uma fase relativamente longa de sua vida histórica, de dezenas de anos, ou, ainda, talvez, de um ou dois séculos, cidades ostentosas, estradas de ferro, obras e empresas colossais; tudo isso, porém, não viverá senão uma vida fatícia, sem espírito e sem unidade, como a vida de um hotel, ou de uma estação de estrada de ferro, onde se encontram e cruzam-se, em movimento febril, milhares de indivíduos, camadas e gerações da sociedade, sem nenhuma consciência de interesse comum. Tais sociedades não deixam, em pós si, senão riquezas mortas e monumentos mais mortos ainda: obras frias de uma história, que não animou o espírito de um ideal.

Avenidas, teatros e estátuas registrarão para o futuro os anais infantis de um povo que não soube viver.

A nacionalidade não é, aqui, um desses conceitos verbais a que a tradição habitua os espíritos, e que transforma em sugestão, mas a própria vida do povo, base da vida do indivíduo, da família, das classes e das gerações, medium da tranqüilidade, da confiança e da coragem, no presente e para o futuro. É provável que uma investigação positiva de psicologia social, pondo em contraste a vida norte-americana, por exemplo, com um conceito de nacionalidade, formulado com todos os rigorosos cuidados da relatividade e das proporções, no tempo e no meio físico dos Estados Unidos, chegasse também ao resultado de que igualmente este país não forma uma “nação”; mas os Estados Unidos iludem, por um lado, com o brilho e a grandeza espetacular da sua vitalidade, e mostram, por outro, evidentemente, solidíssimos requisitos de evolução organizadora.

No Brasil, destruídos os rudimentos de organização que já tivemos, lançados em mau terreno, nada ficou de definitivo, e a fachada da nossa civilização oculta a realidade de uma completa desordem. Não há uma só instituição no Brasil, como também, provavelmente, em quase todas, senão em todas, as outras repúblicas sul-americanas, assente sobre bases próprias, para um crescimento, evolutivo regular.

Vivemos, até aqui, de ensaios e reformas; cada idéia nova pousa sobre ruínas; cada transformação planta as aspirações de um sistema sobre a agreste verdade de formas sociais ainda grosseiras. Daí, o desânimo e a descrença de um povo, para quem a vida pública não é senão uma crônica de anedotas pessoais e de audácias, escândalos e imoralidades, verdadeiros e falsos, exagerados e deturpados; onde o mérito não tem estímulo, o trabalho não tem valor, a produção não tem preço, as fortunas não têm garantias, o povo não tem opinião, o cidadão não tem voto, os espíritos não têm idéias e as vontades não sabem mover-se. Não fosse a ingênita honestidade deste povo e sua claríssima inteligência, seu bom senso e seu extraordinário espírito de ordem, e este país não contaria mais um só coletor probo na mais remota e inculta vila do sertão, e viveria, como terra de bárbaros, dilacerado em guerras e pilhado em saques permanentes. Uma constituição e umas centenas de leis, empalhadas em volumes, não fazem um Direito; quanto mais, a vida de uma nação!

Os Estados Unidos tiveram, sobre nós, imensas vantagens. Foram colonizados por uma nação que, estando na época do descobrimento da América, em pleno estádio de vigor, continuou a marcha progressiva do seu extraordinário desenvolvimento, durante todo o tempo da formação das colônias da Nova Inglaterra; possuem um território de clima, frio ou temperado, semelhante ao do país de seus colonizadores, imediatamente adaptável, sem estudos especiais, nem devotados cuidados, às culturas que eles faziam na metrópole, de onde podiam receber lições e educação, sem maior aprendizagem sobre o terreno e a adaptação, sobre as plantas e o cultivo; não sofreram, como nós sofremos, com a vinda da casa de Bragança, nenhuma síncope de evolução política.

As raças que povoaram a Inglaterra não divergem tão profundamente como se supõe, das que povoaram Portugal; o fundo étnico era idêntico; os primeiros povoadores da Britânia, de cuja existência já se encontra testemunho histórico, eram celtas, como os primitivos povos históricos da península, e caminharam, do continente para a ilha, por via ibérica; nas aluviões migratórias que se seguiram, para ambas as direções, houve mescla de dolicocéfalos nórdicos com braquicéfalos do centro; houve latinos, na Britânia. A massa que predominou em Portugal pertencia a gente que vinha de participar de civilizações como a romana e a árabe da idade média.

A Inglaterra foi uma estufa humana, protegida pelo oceano, e que monopolizou o oceano, desde que o oceano passou a ser teatro das grandes lutas da concorrência; Portugal foi um pequeno povo quase sem terra para a sua conservação, que, tendo realizado no mar as maiores empresas de descobrimento e de ocupação, cedeu à força do poder numérico e da vantagem territorial, no continente, dobrando-se, ao mesmo tempo, perante a concorrência marítima da própria Inglaterra e dos povos descobridores e colonizadores mais ativos que o mundo possuiu, no período da grandes iniciativas oceânicas. Conquistado pela Espanha, Portugal não se reemancipou, senão para viver a mais crítica das existências, numa inútil reação contra a pressão das lutas continentais, colimadas com a fuga de D. João VI, e contra a expansão marítima da Inglaterra, ultimada com a definitiva subordinação política à poderosa aliada do norte.

A capacidade e o valor abstrato de um povo, como os de um indivíduo, não se aquilatam em absoluto, pelo que pôde realizar, mas pelo confronto do que realizou com os obstáculos e as possibilidades encontrados. Sob este critério, a pátria de Camões e de Vasco da Gama apura, com honra, o quilate do seu caráter. A colonização do Brasil realizou-se justamente durante o período de declínio de Portugal.

A outra dificuldade é ainda mais considerável. Aos povos europeus que para aqui vieram, coube uma região inteiramente ignorada, cujas terras, equatoriais e tropicais, opunham obstáculo às culturas, imprestáveis, como eram, para quase todas as lavouras conhecidas dos colonos, de caracteres climatéricos e meteóricos de todo estranhos, alguns de influência imediata e direta sobre a vida do colono e sobre seus trabalhos, outros de efeitos mais remotos, que ninguém imaginava, sequer, por esse tempo, ainda até pouco, apenas notados, por observadores diretos da nossa vida rural, sob o aspecto de sua ação imediata sobre as culturas, e só de recente data apontados, com todo o seu alcance sobre a vida agrícola e a produção, sobre as estações e a produtividade dos nossos terrenos, sobre a nutrição, o vigor e a saúde da nossa gente — o que vale dizer, sobre a base inteira de toda a nossa vitalidade.

Improviso da criação, pelo descobrimento; fraqueza fortuita dos descobridores; diferença do clima e da terra; vicissitudes da colonização; interrupção e desvio, no processo histórico da independência e da formação nacional: aqui estão cinco enormes fatores, cada qual bastante para impedir e tolher o surto de uma sociedade. Ao último, costuma-se creditar, em confronto com a história das repúblicas sul-americanas, as vantagens da ordem e da unidade nacional. A ordem não foi assim tão completa; e se ganhámos um pouco em sossego, é certo que perdemos em iniciativa e em vigor de caráter, com o governo dinástico. Somos, afinal, descendentes de portugueses, povo, sem contestação, menos impetuoso que o espanhol; e não é arriscado conjecturar que mais firme teria sido a vida deste país, se a sua independência resultasse do progresso da aspiração nacional na vida do povo e fosse presidida por essa máscula geração de 1820, tendo a consciência, a liberdade e a responsabilidade da organização política.

A terra, esta, está de todo por ser estudada; e o sinal da consciência, quanto a este ponto, só se mostrará, no dia em que, abandonando tentames de melhoramentos materiais artifíciosos, ou, pelo menos, prematuros, como o das culturas secas, voltarmos sensatamente os olhos para as regiões já exploradas e em exploração, e para os vales férteis onde abunda a água, existentes em todo o país, para restaurar, por meios conhecidos, não muito custosos e de efeitos próximos, as condições de umidade e de produção, que lhes vão faltando, corrigir e retificar as falhas e insuficiências das terras, sanar as regiões insalubres e defender as riquezas naturais, em estado de produção, ou virgens: procurando concentrar e fazer florescer as populações nacionais sobre estas zonas.

Um país em que a cultura extensiva da terra esgotou, em menos de três séculos, zonas equivalentes ao duplo, talvez, da área do Egito, explorado agricolamente, só dentro da vida histórica, quatro mil anos antes da nossa era, e ainda hoje em plena produção, não precisa abater seu espírito, nem desmoralizar-se a seus próprios olhos, para explicar as fraquezas e crises da sua constituição social: basta-lhe lembrar que nenhum outro povo soberano passou, nos tempos modernos, por igual conjuntura, e que causas desta natureza não se revelam, em regra, a povos e governos, senão com o flagrante da sua realidade.

Com tais vicissitudes, na posse do seu patrimônio territorial; sem base histórica para as fundações da sociedade; lutando, ao contrário, com os obstáculos que mataram os gérmens das suas experiências de organização — este país não pódia ter iniciado, sequer, a criação de uma economia. A nacionalidade é a vida de um povo, feita pelo calor e pela energia de um espírito, sobre a saúde de uma economia. Nós temos de fundar a economia da nossa Pátria, fazendo revelar o espírito das suas raças, sobre a sua natureza tropical.

Para isso, só há um caminho a seguir: traçar a sua política; e para conceber a sua política, é mister formar uma consciência nacional.

A autonomia de um povo nasce em sua consciência: a raiz da personalidade é a mesma, no homem e na sociedade. Ter consciência significa, em seu mais alto grau, possuir, com os poderes de sensação e de percepção, o de formar juízos: juizos concretos, sobre as coisas; juízos abstratos, sobre as idéias; juízos morais, sobre os sentimentos que são como a faculdade superior do afeto. O sentimento é a razão da natureza emocional. O postulado de Sócrates: “a virtude é a sabedoria”, contém o gérmen desta verdade psicológica. A base da mais alta virtude humana está na sabedoria da coragem, da moderação e da prudência, externada na conduta, com o equilíbrio indefectível da “eudemonia”...

A natureza afetiva é idêntica, no selvagem e no homem culto das altas sociedades: o selvagem pratica os atos mais cruéis, com uma consciência límpida, de herói ou de santo; o civilizado arruina concorrentes, submete famílias e sociedades à miséria, dizima povos, nas lutas econômicas, na concorrência social e nas guerras. O médico, capaz de morrer de fadiga à cabeceira de um doente, contempla, impassível, sem uma vibração de sensibilidade, a lenta agonia de populações dizimadas pelo impaludismo. O homem começa apenas a praticar a ciência do sentimento e a arte do amor, em suas relações com os outros seres, com a terra e com seus semelhantes. As verdades da consciência moral, todos as possuem em abstrato; nem todos as sabem localizar, nas relações da vida concreta.

Grande número das concepções ligadas aos nossos sentimentos gerais são metafóricas, hiperbólicas, muitas vezes. A língua é um serviçal, mas, também, um traidor do espírito e do coração; e as formas exageradas de expressão dos impulsos morais defraudam sentimentos verdadeiros, que se tornam figuras acanhadas e constrangidas, nas roupas de suas imagens retóricas.

O coração tem as suas proporções e a alma a sua harmonia arquitetônica.

Sob os vagos nomes, dados, declamatoriamente, às nossas afeições sociais, como o de “fraternidade humana”, “patriotismo universal”, “pátria ideal”, “família humana, ou brasileira” — metáforas que são quase delírios de linguagem — pomos, de costume, a “simpatia”, o impulso de “mútuo auxílio”, a “benevolência”, a nobre e pura “caridade”, dos católicos, o “altruísmo”, eloqüente nome da síntese da virtude de Augusto Comte: “viver para outrém”, o espírito de “humanidade”, que nos unem, enfim, ao nosso semelhante — chinês ou kafir, da Terra-Nova ou patagão — acima da “amizade” que nos prende ao companheiro e consócio na vida e no trabalho, e de todos os sentimentos reais, domésticos, pátrios e sociais, que nos ligam ao irmão no sangue, ao compatrício descendente dos mesmos avós, vizinho no solo e confrade na língua, deixando-nos inebriar por estímulos nus de senso e vasios de naturalidade. Assim também a “solidariidade americana”, a afinidade da “raça latina”, o espírito, sentimento, interesse, ou caráter “sul-americano”.

E se, como sentimentos para com as pessoas e para com os povos, estas hipérboles nada dizem de sincero, porque dizem coisas que excedem das fronteiras do senso, exprimem apenas, nas relações políticas, inadvertências juvenis do critério.

A síntese da política internacional brasileira pode ser resumida nestes breves termos. No continente americano, a identidade da evolução política e das instituições sociais impõe a todos os países uma política de paz. Na prosecução desta política, os Estados Unidos têm direito, por sua posição internacional, pela iniciativa na realização de idéias liberais comuns e pela prioridade no serviço da paz, à direção do continente; esta aproximação pode ser estendida a outras nações, sem, contudo, formar-se partido, ou aliança internacional, coisa incompatível com a própria idéia da paz. A vizinhança impõe-nos cuidados de cortesia e de prudência e ânimo de transação, nas relações com as nações contíguas; interesses políticos e econômicos podem justificar comércio mais íntimo, ou mais freqüente, com algum país.

Não há, assim, razão geográfica nem étnica para qualquer preferência, interposta entre o nosso patriotismo e o laço universal de estima humana, que não ganha, nem em efusão nem em calor, com superlativos declamatórios, e para o qual o melhor nome é, provavelmente, o de hospitalidade — o nobre e espontâneo impulso de acolhimento e de carinho a estrangeiros, comum a pagãos e a cristãos, a muçulmanos e budistas, testemunhado nos livros sagrados, nas epopéias e nos códigos de moral e jurídicos de todos os povos, que Kant gravou como lema do seu ideal de paz: o ideal da “hospitalidade universal”.

Sentimentos fictícios e solidariedades sem base, não servem todas essas convenções, senão para acumular, nas relações da vida real, motivos artificiais de ação, de que só podem resultar perturbações políticas.

A aspiração de uma unidade internacional americana é uma das formas absurdas deste preconceito. A configuração geográfica da America, em longa faixa longitudinal, é um imperativo de diferenciação, jamais um determinante de unidade.

Interesses particulares à parte, limitados a seu objeto imediato, não há, assim, nenhum motivo para que se alimente, entre o patriotismo e a hospitalidade humana, outra qualquer afeição, nem para que se conceba a criação, entre a “nação” e a “humanidade”, de formações intermédias, ainda que passageiras. No próprio processo de encaminhamento para a paz mundial, a intervenção de formações tais como a federação européia ou americana, envolveria mais perigos que promessas de êxito. A organização geral das nações e da índole própria da idéia de paz, e as formas intermédias podem complicar, em lugar de favorecer, o seu advento.

As raças de uma nação devem venerar os povos avós de seus filhos, mas este sentimento, como o de qualquer cidadão, individualmente, por este ou por aquele país estrangeiro, não tem expressão prática, de país para país: fica no âmago das consciências.

A “nação”, dos antigos, e da opinião vulgar, exprime uma combinação de afeições coletivas, em que se juntam vagas reminiscências de liga gentílica e impressões de autoridade e de subordinação patriarcal, com a esperança do patrocínio, confiança no patronato, posse de um patrimônio comum; é a consciência que clama o apelo à concentração em torno do chefe, nas horas de perigo, e em torno do governo, nos momentos de crise.

É um estado de consciência e um impulso de instinto: o chamado espírito nacional dos povos, contra as agressões armadas dos povos inimigos; não é nem um sentimento, nem uma idéia, nem um princípio de ação.

A forma superior de “nação” não se consolida, senão depois que a sociedade, que envolve a existência dos indivíduos, se corporifica com a solidez e a plasticidade precisas para oferecer base à segurança e medium à prosperidade, na vida comum. É um estado já avançado da formação nacional: obra de séculos de evolução, nos países de existência imemorial; obra política, para as nações modernas. A mais alta expressão de seu progresso é aquela em que o espírito envolve, na síntese mais ampla, os móveis íntimos da solidariidade social, fazendo-a reverter para o futuro, para o interesse da prole.

Com esta feição, a consciência nacional é completa.

A imagem da vida dos indivíduos, na sociedade, e da atividade dos vários grupos que ela mostra, dá a ilusão de que toda “nacionalidade” tem vida, obedecendo ao impulso do seu próprio dinamismo. A vida nacional não é, entretanto, a soma das vidas dos indivíduos, nem a soma das atividades das classes e associações, que se agitam em seu território; é uma vitalidade especial, inconfundível com a das pessoas e com a dos grupos, naturais ou artificiais, em que se divide — revelando-se, sem dúvida, nos fenômenos de desenvolvimento, de prosperidade, de progresso, de civilização e cultura, de indivíduos, famílias, classes e associações; mas agindo, sobre a sociedade completa e de permeio às suas unidades e aos seus múltiplos, como um complexo de forças e de valores, que progridem em nível ascensional, de alcance, e em linha horizontal, no tempo, para o ideal adaptativo.

De degrau em degrau, em marcha para o equilíbrio e para a harmonia, dos homens entre si, e dos homens com a Terra; de geração em geração, com a conservação e o desenvolvimento da riqueza e da energia, a civilização cria, sobre a rusticidade da Terra e sobre a imperfeição humana, o ambiente que acumula e que impulsiona os progressos.

Indivíduos, grupos, classes, associações, podem agitar-se e prosperar, enriquecer e progredir, sem que a “nação” se desenvolva, à custa mesmo da fortuna, da seiva e das energias nacionais.

A atividade da massa dos indivíduos e a de seus agrupamentos não é o elemento dinâmico da vida nacional: é o seu elemento estático; não é a sua força progressiva: pode ser-lhe uma força retrocessiva.

E é este, literalmente, o caso da nossa Pátria.

A nossa vida social traduz-se por uma atividade sem produção, numa grande agitação de esforços estéreis.

Há um fenômeno de circulação social(5), semelhante ao da circulação econômica. A vida de um povo gravita em torno dos critérios, dos modelos e dos exemplos, exibidos pelas figuras e pelas classes representativas da sua sociedade. São estas que ditam a pauta dos valores e impulsionam os turnos e evoluções das iniciativas e dos interesses. Mônaco é um formidável centro de vida, agitado entre mesas de jogo; Londres concentra, ainda hoje, por força da pujante organização do seu crédito, toda a vida bancária da Terra. Paris é a capital literária do mundo pseudo-latino. Em cada país, a vitalidade corre, como um líquido, para o plano dos interesses favorecidos pelos agentes da sua direção. Há uma tendência, em todas as sociedades, para o abandono do trabalho, e para a especulação. Esta tendência apresenta-se, entre nós, como a forma de uma circulação social e econômica, não só irregular, mas aleatória e víciosa. A sorte do brasileiro que confia, ainda, no labor do seu braço e no esforço do seu espírito, é um bilhete de loteria, pendente do arbítrio governamental, de negócios fictícios e de transações imorais, que o inflacionismo e erros da nossa orientação econômica e da nossa educação social fizeram indústrias preferidas, em nossa sociedade.

Fazer fortuna é o programa de todos; vencer, custe o que custar, o lema em prestígio. Como? Por todos os meios, processos e caminhos, aptos para conduzir ao êxito. A escolha não é livre. O estalão, uma vez decretado, pela ditadura da Fortuna, os espíritos gravitam em torno dele. O homem não tem por destino ser herói, nem ser mártir. Para conservar a integridade do caráter, em sociedades selecionadas pelos caprichos do azar, é preciso possuir ânimo de atleta moral.

A sociedade faz o indivíduo; o caráter e o valor são, normalmente, determinantes das tendências, sobre uma caudal de energias; quando há ordem na sociedade, cada onda é feita do concurso das correntes individuais; na anarquia, as ondas são feitas dos ímpetos e dos saltos acrobáticos dos apetites e das ambições. As personalidades fortes são esmagadas, de encontro à própria fortaleza; as almas bem intencionadas, esterilizam-se na amargura e na descrença. Tudo isto, porém, significa apenas uma coisa: a sociedade faz o indivíduo: não pode produzir indivíduos úteis uma sociedade que se não acamou em seu leito natural — que não coordenou a sua direção.

Impressionistas, nós nos dividimos em duas filosofias, ambas estéreis, em face desta realidade: um otimismo extasiado com as aparências da nossa civilização, e um ceticismo destruidor, terrível de contágio e feroz de intolerância, contra todo esforço de reação. Para estes, o mal está na raça e nos indivíduos, e, isto, tão somente porque, logo adiante dos fatos, o que se lhes apresenta aos olhos são as imagens das pessoas.

É um simples erro de visão dos dados sociais. O nosso preparo ético e político ainda nos não permite perceber que, entre a figura de um homem e seu espírito, entre a vida que ele vai fazendo e suas qualidades, há um mundo de causas de variação, que se estendem do mais remoto passado até ao momento atual, e sobre o qual se esbatem reflexos e refrações de todas as vidas e de todos os fatos que nos cercam. Os instrumentos e as possibilidades sociais dispõem do futuro; e o clássico Destino, da tragédia grega, pode ter por voto de Minerva, em sociedades não organizadas, o acaso que, no dia de uma crise política, decida, com uma penada, entre César e João Fernandes, para dirigir a sorte de um povo.

O nosso hábito de apreciar os fatos políticos e sociais sob sugestão das emoções morais, à barra do “julgamento” — forma predominante, em nosso espírito, da “consciência moral” — leva-nos a não ver os assuntos públicos senão pelo dilema do bem e do mal, do honesto e do desonesto; e, no declive desta observação imediata das coisas, a avaliação do que é publico e social, do que é da conta da opinião: da res publica, apagou-se tanto, em nosso critério, que, nas esferas mais altas da vida pública, os pormenores pessoais e acidentes políticos, quando não atos e fatos de todo particulares, sobrelevam a programas e idéias. De programas não se cogita senão para efeitos eleitorais; e de problemas e soluções, não se chegou ainda a cogitar. Estamos, ainda, em assuntos de medicina social, em fase de terapêutica de sintomas. Pouca gente conhece, com exatidão, entre nós, os dados da nossa situação financeira; raros têm notícia dos problemas da nossa economia, para não falar senão de coisas muito superficiais; não há, porém, quem se emocione com a notícia da última desordem ocorrida num Estado qualquer, onde o grupo dos “fascínoras”, que estão no poder, pleiteia a posse do Governo, contra o grupo dos “salvadores”, em oposição: e as atitudes de um e de outro lado valem-se reciprocamente, exprimindo, ambas, situações criadas e mantidas sob um mesmo critério: o da luta pelas posições.

As lacunas e os erros da nossa vida pública são apenas sintomas do mal profundo da nossa desorganização; são, mesmo, manifestações gravíssimas, é certo, de desorganização; mas o fato de as ter em foco, como problema governamental, mostra o estado rudimentar do nosso critério político e da nossa capacidade organizadora.

O nosso problema não é um problema de moralidade pessoal: os abusos apontados, em nossa vida pública, nada valem quase, por muitos e grandes que sejam, em face das perdas colossais que sofremos, com a nossa inadvertida política, melhor, com a nossa inteira falta de política. Quem quer que haja passado pela política e pela administração pública, em nosso país, não pode deixar de sentir-se enobrecido com a certeza da probidade dos nossos homens públicos e dos nossos funcionários.

O problema da nossa vida não é o problema do caráter individual, é o problema do caráter nacional; não são penas que temos a impor, nem moralização, que nos cumpre fazer; a resolução de “consertar” e de “endireitar”, fórmulas a que se reduzem, em regra, os nossos intuitos reconstrutores, é sintoma tão pernícioso, como as imoralidades que condenamos. São os eternos brados de paixão, de todos os “puritanos” e “incorruptíveis”, em épocas e entre povos revolucionados.

O caráter nacional, a formar, entre nós, não é o caráter dramático, das obras de regeneração, nem um rígido caráter punitivo; mas um caráter consciente e sereno, capaz da sinceridade de reconhecer, sobre o espelho das nossas flagrantes realidades, que não sabíamos nada das coisas da nossa terra, e que temos vivido a pretender executar, sobre este solo único, um repertório de teorias exóticas. Tendo caminhado para o oceano, precisamos regressar ao centro: voamos, abandonando a terra, que implorava os nossos cuidados. Quisemos formar cabeça, antes de possuir um corpo, plantamos sementes importadas, e ainda não sabemos produzir sementes; importamos e cultivamos frutos alheios, abandonando os frutos do nosso clima.

Esta política de reparação só nos parece impossível, porque, em regra, não concebemos reformas políticas, senão como mutações, instantâneas e integrais, do cenário social. As reformas não se realizam como edificações materiais: iniciam-se com uma “mudança de atitude”, em face dos problemas, e prosseguem, com um programa político firme, dentro de uma forma constitucional flexível, que se não limite a esta ou àquela ordem de coisas, a tal ou qual ramo do governo. Não basta encarar dois, vinte, ou cinqüenta aspectos da nossa vida social e política; é mister abranger, na complexidade dos interesses do povo, todas as suas faces, dependentes de fatores, próximos ou remotos, diretos ou indiretos, que se alternam, sucedem-se, interrompem-se, surgem e desaparecem, sem que ninguém possa predeterminar, com exatidão, os atos certos e as medidas próprias, para cada momento e para cada lugar, senão com firme consciência do fim a alcançar, inteira mestria dos processos, e posse completa dos meios. Tudo mais seria trabalho baldado, que mal mereceria o nome de política. Nada destruir, no que tiver raízes sociais, reconstruindo ao lado e para diante.

Este progresso no caráter nacional demanda dois esforços, que não chegam a ser sacrifícios: repulsa definitiva do habitual desencargo de consciência e da inextinguivel confiança na magia sólutoria do amanhã — essa previdente divindade que nos quita dos deveres, acenando-nos com a promessa de todos os dotes e virtudes; e troca definitiva do nosso humor objetante por uma sincera disposição de fazer, ou de deixar fazer.

Os destinos deste povo só não serão determinados pela inocente candura da sua alma, por seu amor à paz, espírito de tolerância e sua grande capacidade de trabalho, se o não quiser a geração presente.

Esta geração carece de ter por guia, neste momento, a moralidade desta anedota histórica:

Em uma ceia, prolongada noite adiante, penguntara alguém as horas ao suíço de serviço; ao que este, olhando para o relógio, e verificando que era passada a meia noite, respondeu: “Já é amanhã, meus senhores”.


 

II

Em prol das nossas raças

 

 

Somos um dos povos mais sensatos e inteligentes do mundo.

Nenhum brasileiro, que tenha uma vez viajado, deixou de sentir-se alegre ao confrontar o espírito e o caráter do nosso homem do povo com o do homem de outros países.

Sensível, generoso, nobre, hospitaleiro, probo, trabalhador(6), o homem genuinamente brasileiro, fiel ao nosso espírito e sentimento tradícional, que não deturpou o caráter na confusão cosmopolita das grandes cidades, mostra, logo à primeira vista, no sorriso aberto e na palavra mansa e serena, onde a ociosidade a que foi habituado põe uns laivos de desânimo — a inteligência viva e aguda, um raro senso da realidade, um engenho curioso e hábil.

E é este o povo que aí vive, tranqüilo, com a inocente tranqüilidade dos seres que a luta pela vida não armou nem amedrontou, e que, quando ao contato da civilização, nas grandes cidades veste as roupas que a moda lhe traz de Paris e recebe as idéias correntes nos jornais, transforma o desânimo em descrença da raça e da pátria, e adota por credo de ação a forma negativa da virtude e do patriotismo que consiste em exagerar e proclamar os nossos defeitos, os nossos vícios, a nossa corrupção, a nossa ignorância.

E esta atitude intelectual é de eco inconsciente do modo de pensar dominante, até há pouco tempo, nas letras dos povos de que somos reflexo. O cansaço dos esforços e das lutas da civilização mediterrânea fermentou, no longo período de inércia que está terminando, no levedo do cepticismo. A atividade vitoriosa das civilizações do norte da Europa deixou as sociedades, ainda irrequietas e desordenadas, do meio-dia, sem objetivo; e os povos que não andam, ficam, como os indivíduos paralisados pela inércia de seu meio sem sentimentos fortes, sem idéias positivas, sem energia.

Está, talvez, nesta posição do espírito, em face das interrogações práticas da vida, o critério decisivo da sorte de indivíduos, nações e sociedades. Em cada período histórico, dividem-se as gerações em grupos de homens que tendem a dizer: “sim” aos problemas da vida, e grupos que tendem a dizer: “não”. Os afirmativos contemplam o futuro com a confiança segura do amor à vida; arrastados pela onda dos fatos, vão os outros seguindo o destino anônimo da ren[uncia, a sentença tácita do sacrifício.

Foi esta lição negativista, levada até um pessimismo absoluto, que nos foi ministrada pelas letras de que nos nutrimos. As gerações modernas dos povos chamados latinos beberam o álcool do romantismo e do realismo: formas revolucionárias do pensamento dos povos nossos mestres, como revolucionaria tem sido a sua vida; e dessa evolução, através de um meio século de sonho e de outro de pintura viva das realidades baixas da existência, resultaram a descrença no ideal e a dúvida do progresso.

Enquanto isto, os povos do Norte iam edificando os bastiões da sua força intelectual, estendendo as linhas da sua conquista social e política. Um dos traços mais interessantes e salientes, que o estudo permite destacar, na amálgama, em estado de balanço critico e de liquidação, do saber humano, é o da poderosa influência dos fenômenos sociais e econômicos e do estado de espírito e dos interesses, resultantes desses fenômenos, sobre a marcha das idéias na ciência, nas letras e na arte.

Já não é possível, hoje, ao falar de qualquer das categorias do conhecimento humano, arriscar generalizações definitivas. A ciência vai diferenciando, dia a dia, os objetos dos seus estudos, ao ponto de se restringir, quase, a um conjunto de métodos e dados de contra-prova: cada fenômeno é a operação de uma multidão de leis; cada fato, o efeito de uma infinidade de causas. Igualmente errados andam, assim, o materialismo histórico, quando explica os estados da evolução mental, como puros reflexos dos antecedentes do meio que interessam à vida física dos indivíduos, e o idealismo, que os filia a simples conceitos do espírito. Há, contudo, um asserto que se pode afirmar, sem temor: ao lado dos descobrimentos realmente e totalmente científicos, a história das idéias encerra uma multidão de verdades e de meias verdades, — produtos exclusivos da influência social, ou onde a influência social lançou uma dose, mais ou menos forte, de sugestão, de interesse ou de autoridade: coisas que se traduzem, todas, por perversões do critério racional.

A evolução do pensar humano passou, no fim do século XVIII, por um período característicamente político: as faculdades do homem, longamente reprimidas pelas velhas instituições despóticas, desabrocharam, numa primavera de idéias simpáticas, liberais, humanitárias, que fundaram direito de cidade em muitos ramos da ciência: a democracia, os direitos do homem, o individualismo, a igualdade, o livre câmbio — todas as teses desse resurgimento da iniciativa, da vontade e da energia — refluíram sobre os estudos científicos, inspirando hipóteses, alvitres e soluções.

A este período de simpatia e de liberalismo sucedeu, como era de prever, a reação dos interesses radicados nas velhas correntes históricas. Entre os traços expressivos deste refluxo nenhum se destaca com eloqüência mais vigorosa do que a luta contra o princípio, ou contra o ideal, da igualdade humana. Princípio e ideal presupunham a identidade morfológica do organismo humano, em todas as seções da espécie, um mesmo nível de possibilidades progressivas, de poderes de aquisição.

Para legitimar a reação dos impulsos da força, da autoridade, das supremacias privilegiadas, impunha-se derruir o princípio tutelar das aspirações contrárias; e, pois que a época era de renascimento científico, e o argumento científico trazia uma arma nova, de tremendos efeitos, a reação vestiu roupagens científicas, apoiando seus preceitos com todos os aparatos da observação e da experiência. A feição nova da “volonté de puissance” tinha forjado o seu arsenal de combate.

Não se poderia achar prova mais clara da natureza política deste movimento, do que a que mostram a semelhança e simultaneidade das diversas doutrinas aristocráticas, predominantes na ciência social. Gobineau e Maltus, Vacher de Lapouge, certas filiações políticas e sociais do darwinismo, Nietzsche, surgiram, de origens e de fontes diversas, quase na mesma geração, chegando, por métodos todos científicos, à mesma conclusão: a afirmação da superioridade morfológica, irredutível, de certas raças e certos povos. Este período é justamente aquele em que a idéia da igualdade humana, já assentada no terreno político, ia avançando, com a instrução dos trabalhadores e o aumento do proletariado urbano, para o terreno econômico, exigindo a extinção dos monopólios e das vantagens sociais das classes privilegiadas, e em que a expansão colonizadora dos tempos modernos começava a operar o encontro das nações cultas com as raças menos adiantadas. Chefes superiores e raças colonizadoras pediram títulos à ciência, para os direitos da hierarquia e da subordinação.

Mas a curiosidade e o interesse da ciência não se contentaram com a promulgação de tais decretos; sem contar com os protestos de sábios de tendências teológicas e metafísicas, os novos horizontes, abertos ao estudo, lançaram sobre a história da civilização uma luz, que remeteu para o segundo plano, na cronologia, a civilização das raças brancas e louras da Europa. Os trabalhos dos egiptólogos já haviam desvendado uma civilização, anterior à helênica, rica em descobrimentos e investigações, arrojada e perita nas construções da arte monumental, relativamente apurada, no lavor e no desenho das artes plásticas, de profunda e mística imaginação religiosa e de nobre e delicada sensibilidade moral. Esta raça era uma raça trigueira, se não escura. As probabilidades de sua origem, asiática ou africana, excluem qualquer filiação à estirpe dos homens do centro e do norte da Europa. Mas, quando os alviões dos operários de Schliemman e de Evans exumaram as ruínas de Micenas e de Creta, pondo a descoberto os paços reais das civilizações egéia e minoana — idade muito anterior às invasões do norte e obra evidente de povos das raças morenas do Mediterrâneo — todo o edifício da superioridade ariana, ou teutônica, ruiu por terra, com a demonstração irrefragável de que as fontes da nossa civilização brotaram de cérebros de homens do Mediterrâneo, quase, certamente, da margem sul do Mediterrâneo.

Esta prova bastaria para aniquilar a pretensão de superioridade das raças louras, ou antes, da raça loura teutônica, pois que, dentre os próprios louros, alguns — a imensa massa dos braquicéfalos do centro da Europa, por exemplo — são repelidos pelos grandes eleitores da ciência selecionista; mas a ciência, proseguindo em suas indagações, chegou à conclusão de que, ao lado das diversidades físicas, verificadas na estrutura humana, nada, absolutamente nada, autoriza a afirmação de uma desigualdade radical, na constituição cerebral, em seu funcionamento, em seu poder de desenvolvimento. A relação entre os caracteres físicos e os caracteres psíquicos jamais se conseguiu afirmar com dados definitivos e irrefutáveis. Recentes investigações, do mais ilustre, talvez, dos antropologistas americanos, o Sr. Boas, demonstraram que os caracteres somáticos de uma raça alteram-se, notavelmente, de uma geração para outra, com a simples mudança para um meio novo.

São caracteres que nas mensurações antropométricas e comparações antropológicas se tinha conseguido distinguir e classificar com rigor. Ficou demonstrado que, a respeito destes caracteres, ligados habitualmente à capacidade psíquica do homem, o tipo da raça não é um tipo definitivamente fixado. A própria cor, quase irredutível entre os extremos, cede à ação do ambiente, mas a cor não foi jamais relacionada com os caracteres psíquicos.

Antes já de Boas, Ratzel, uma das maiores autoridades contemporâneas em assuntos de etnografia, havia escrito esta sentença: “A raça, como tal, nada tem que ver com a civilizacão. Seria insensato negar que, em nosso tempo a mais alta civilização tem estado nas mãos das raças brancas ou caucásicas; é fato, porém, igualmente importante, por outro lado, que, por milhares de anos, em todos os movimentos civilizares houve uma tendência para levantar todas as raças à altura de seus encargos e deveres, realizando-se, por esta forma, a grande concepção da Humanidade, concepção proclamada como um atributo distintivo da sociedade moderna, mas de cuja realização muitos duvidam ainda. Lancemos, porém, o nosso olhar para adiante do breve e estreito curso de acontecimentos a que chamamos arrogantemente História da Terra, e teremos de reconhecer que membros de todas as raças trouxeram contribuições à história que se estende além deste limite: a história das eras primevas e pré-históricas”. A posição relativa, a hierarquia das raças, nas diversas épocas, é um simples fenômeno da evolução social; não é um fato anatômico, nem fisiológico:, eis a conclusão deste trecho.

Mas a ciência reservava para a idéia da igualdade fundamental da espécie humana vitória ainda mais completa.

A obra possante de Gobineau, o genial advogado das pretensões da sua nobre estirpe; dos Valcher de Lapouge e dos Ammon, figuras menos ilustres do mesmo cientismo tendencioso, aristocrata bretão, aquele, e procurador oficioso do imperialisrno germânico, este último; as visões delirantes, sobre o passado helênico, de Nietzsche, gênio metafísico desvairado pela grandeza teatral de uma idade agitada e forte, que a poesia tornou heróica, contemplada, através da sua imaginação épica e com uma cultura toda filológica, sem nenhum senso da realidade histórica, — eram muito para a dialética e dispunham de imensa autoridade, porém não davam à teoria a pedra fundamental de um monumento persistente.

Esta base foi achada por alguns dos discípulos de Darwin. Exagerando o fator da luta pela vida na seleção natural, o grande filósofo naturalista atenuara a eficiência deste fator, na seleção social, e, lógico com a sua concepção do transformismo, admitira a transmissão hereditária dos caracteres adquiridos pelo indivíduo: — caracteres que, formados em cada indivíduo, primeiro, pela luta pela vida e, depois, pelos fatores acessórios da adaptação, da seleção sexual, etc., realizavam a sobrevivência dos mais aptos, e, transmitidos por herança, iam fixando e aperfeiçoando a espécie, até que a influência de fenômenos diferenciadores viesse operar a caracterização de espécies novas.

A esta teoria aderem, francamente, seu émulo, o descobridor contemporâneo do transformismo e da seleção natural, A. R. Wallace, — Bates, Bateson, todos os representantes ingleses da ortodoxia darwinista. A doutrina da variação das espécies, por saltos ou mutações, de Hugo de Vries, não era contrária às idéias fundamentais da perfectibilidade dos caracteres das raças, transmitidos individualmente, assim como não o eram as teorias da variação e da herança, de Mendel.

Tal era o pensamento dominante na ciência quando a história das idéias começou a testemunhar este caso expressivo. O professor Augusto Weissmann, sábio alemão, médico de um arquiduque austríaco até certa época da sua vida, catedrático, depois, em Friburg, tendo feito, em começo da sua carreira, estudos de biologia e, mais especialmente, de zoologia, surgiu, em 1889, com a sua teoria do plasma germinal, que importando inteira separação e independência, nos organismos, do plasma germinal e do plasma somático, acarretava as conclusões da distincâo irredutivel entre as raças e da intransmissibilidade dos caracteres individuais.

Coincidindo com o aparecimento deste estudo, um outro sábio alemão, o antropologista O. Ammon, pública, em 1890, o livro Seleções Sociais, veemente apologia da superioridade da raça teutônica, onde se pregam, com honrosa e ingênua franqueza, os direitos de expansão e de dominação da raça teutônica, o imperialismo do novo povo eleito, fundado em sua definitiva e absoluta superioridade física e mental. Aliando ao sistema das suas conclusões antropológicas a teoria de Weissmann, funda Ammon sobre esse acervo de idéias uma ciência de conclusões sociais práticas, em que se afirma e sustenta, além da superioridade das aristocracias hereditárias, a força e energia germânicas, o seu direito de submeter as raças e nacionalidades inferiores, a necessidade de estender o poder colonial da Alemanha, de aumentar a sua força naval, de ampliar o seu comércio e a sua colonização nos países novos, mantendo e desenvolvendo as relações comerciais por intermédio dos alemães estabelecidos no estrangeiro, e a fidelidade destes à Pátria, à lei, aos costumes nacionais e ao “Kaiser”.

E — quereis ver como o móvel da propaganda e da ação política transparece numa clara confissão? —: o sábio professor, um espírito seguro e prático, de raciocínio cauto e terra a terra, um desses discípulos extremados na fidelidade, que ousam apenas bordejar à margem das idéias dos mestres; transformista, darwinista e materialista, que liga, irrevogavelmente, a natureza e a sorte, moral e intelectual, da espécie humana à natureza do plasma germinal, abre um parêntesis, em certo ponto de seu livro, para salvar a Thologia da submersão em que arremessa todas as doutrinas espiritualistas, por amor ao direito divino dos monarcas.

Este esforço científico, que termina com a gestação de duas ciências básicas do imperialismo, coincide com a terminação do governo de Bismarck; com o período da organização legislativa, financeira e social da Alemanha unida; com o auge das lutas do “Kulturkampf”, por um lado, e da legislação anti-socialista, por outro; com o início dos choques e das oscilações do Império, em sua experiência prática — ponto de partida da expansão colonial e do poderio naval germânicos. Para apoiar a “política prática”, defendida pela “mão de ferro”, fundava-se a “ciência prática” — sacrário das idéias que deviam impelir a força e fundar a glória da “Deutschland über alles”, por oceanos e continentes.

Pois bem, se o balão de ensaio de Ammon malogrou, a teoria de Weissmann, depois de todos os elastérios e hipóteses, que seu autor lhe foi concedendo, para refutar objeções, está terminantemente condenada. Os modernos estudos científicos fizeram a demonstração de que não há distinção essencial entre o plasma germinal e o somático, e que não é possível explicar a evolução orgânica sem admitir a transmissibili-dade dos caracteres adquiridos(7).

A doutrina da desigualdade das raças perdeu, assim, todos os pontos de apoio, em todas as regiões da ciência. Cumpre, porém, não esquecer que, se esta doutrina não conta mais com a mesma autoridade científica, nem, talvez, com igual força política, mesmo na própria Alemanha, — ela inspira uma forte corrente de opinião e de interesses nesse país, como em todos os que podem nutrir ambição imperialista, alegando títulos de superioridade étnica.

Há, contudo, um país — e a minha pena propende aqui a empregar um estilo de conto de fadas — em que essa teoria teve toda a força e autoridade do mundo intelectual, com o selo da Academia, a rubrica das congregações, a adesão dos Governos, o assentimento do povo. Este país é o que possui a população mais mesclada do mundo; é um país onde, não só a mistura de tipos de quase todas as raças, como inúmeros casos de miscegenação, cruzados entre várias estirpes, mostram todos os matizes da cor e todos os modelos do aspecto, da gama étnica; e a parte mais “nobre” do povo, afora pequena parcela de sangue germânico, ainda não estudada, é formada por gente das raças tidas por inferiores e menos puras da Europa.

Tão singular abnegação seria uma interessante virtude, muito decorativa, para o nosso romântico desinteresse, se não exprimisse curiosidade mais rara. “Somos o povo mais sensato e inteligente do mundo”, é a primeira frase deste estudo, mas este povo, inteligente e sensato, foi destinado, por uma série de acasos da História, a ser orientado, sobre o oceano infinito das idéias, por uma das mais bizarras direções de que há exemplo.

Este país virgem, tão apto a inspirar impulsos de iniciativa, de coragem e de trabalho, colonizado por uma raça viril, autora de uma grande obra própria, no conjunto da civilização, apesar da estreiteza do seu território, da sua escassa população e do curto período em que os embates de forças mais poderosas lhe permitiram crescer e dilatar-se, de uma cultura original e alta quanto possível para um pequeno povo oriundo de bárbaros e de camadas baixas da civilização romana, este país novo teve por sorte realizar, por efeito do contraste entre a evolução do pensamento que lhe serviu de modelo e a da sua vida e de seus problemas, uma história de conflitos entre as idéias decadentes que ia recebendo e os impulsos de uma terra e de uma gente que tendiam a crescer.

O influxo que animou a vida mental do Brasil nasceu da calmaria das instituições, das leis e dos costumes de Portugal em declínio, com intermitências de rajadas revolucionárias, de aragens românticas e de bafejos céticos, do espírito francês até à terceira República; nosso gênio podia produzir, e de fato produziu, exemplares superiores de capacidade e de ilustração, tipos notavelmente dotados; nunca, porém, espíritos dirigidos para os trabalhos pacientes da observação, caracteres intelectuais animados desse ardor de descobrimento e de aplicação, que assinala as almas confiantes e otimistas, e as inteligências adestradas no exercício do pensamento sobre os fatos da experiência.

Ao convite de trabalho que a natureza nos dirigia e ao brado de animação e de coragem, que ela clamava, nós respondemos, instalando, no grandioso e no intermino da nossa superfície, a civilização em miniatura das instituições portuguesas e a voluptuosidade preguiçosa, ou a rebeldia exaltada, das letras francesas, em estado de ebulição, de reforma e de dúvida.

Compreende-se, assim, que Nietzsche, os Vacher de Lapouge e os Gobineau fossem pontífices entre nós. Porque esses idolatras do helenismo e bardos póstumos do feudalismo proferiram a condenação de toda a gente que não traz madeixas louras nas cabeças e não teve avós comungando nas aras de Thor ou de Lorki, os apóstolos da nossa fé nacional, mestres de patriotismo de nossos filhos, conselheiros do nosso povo — tão forte, apesar da incúria da sua higiene, da sua péssima alimentação e do envenenamento alcoólico, a que o deixam entregar-se; de rara média de sanidade mental; onde houve e há valores e primores de capacidade, de gênio artístico e de energia — apregoam, todos os dias, nos jornais, em manifestos, nos livros filosóficos, nos discursos acadêmicos, a degenerescência, o aniquilamento, a corrupção insanável do nosso sangue e do nosso espírito!

Todas as blandícias e todos os hinos são reservados para o culto mítico de uma Pátria abstrata, que não é a do povo e do território.

A fidelidade ao sangue, ao laço tribal, o zelo pelo tótem gentílico, precede a todos os outros sentimentos sociais do homem. Tão intima, tão profunda, tão orgânica é a sua força — que se não tem a virtualidade dramática da voz do sangue, possuiu sempre o poder de reunir as primeiras hordas, ignorantes ainda do mistério fisiológico da reprodução, em torno do instinto filial materno — que se lhe firma, através de todas as vicissitudes e peripécias da História, como a força permanente, o impulso vivaz das energias e dos sentimentos coletivos.

Esta bela noção afetiva da Pátria, que mostra, nas migrações de selvagens e de bárbaros, como um astro orientador, a terra ignorada e formosa, onde se oculta a promissão do reino de Javeh para o gozo e alegria da mulher e dos filhos arrastados pelos areais dos desertos, e que marca, para os povos sedentários, na curva azul do céu místico que iluminou os sonhos dos antepassados e que fulge aos olhos ardentes da prole, o ideal de um futuro de bênçãos; essa noção da pátria viva, da pátria do irmão, da pátria do sangue, da pátria dos pais, da pátria dos filhos, não é o símbolo do patriotismo brasileiro, a imagem do nosso zelo pela comunidade nacional. Nós não exprimimos o interesse pela conservação nacional, senão com a forma dramática do culto da bandeira e do ardor militar.

E é este desprendimento da comunhão física do sangue, de zelo pelos tesouros acumulados, na herança moral, durante séculos de lutas e décadas de trabalho em comum, por afetos, simpatias e reflexos de amor e de apoio, que inspira o aberrante símbolo de Canaã(8), para imagem do nosso ideal patriótico, como se essa imagem não envolvesse, para a nossa dignidade e para os nossos interesses, o sarcasmo de que seremos os canaanitas da tragédia gravada nesse símbolo, — o povo condenado ao exílio, nos areais do deserto, ou à submissão perpétua sob o jugo do conquistador favorecido pelo poder misterioso de qualquer das providências positivas da nossa era.

Não é, não pode ser este o símbolo ideal da nossa nacionalidade. Este símbolo deve ser mais humano e mais nobre; não pode conter um voto de renúncia, a aceitação do sacrifício. O símbolo de nosso ideal deve traduzir o paralelismo entre a vastidão do nosso território e a vastidão da nossa hospitalidade, entre a ambição que temos, como homens, e a ambição que respeitamos, nos outros homens; a consciência dos direitos dos nossos semelhantes, como medida dos nossos direitos; a aspiração de receber, em troco do asilo que damos, e do coração que abrimos, a todos os forasteiros, a mão estendida para as permutas leais, sentindo a pulsação do mesmo sentimento que mostramos nas linhas dos nossos sorrisos e em nossos gestos.

Não é isto que se está fazendo no Brasil. O povo brasileiro precisa, como os estrangeiros que aqui aportam, antes mesmo destes, ser “ímigrado” à posse da sua terra e ao gozo de seus bens.

Em discurso que pronunciei em Petrópolis, como paraninfo de normalistas que recebiam o grau, usei de uma imagem, para definir a natureza da civilização que deve florescer em nossa terra, em que a figurava como a inversão do mito de Babel: o regresso de povos, dispersos pela terra, ao solo de uma pátria, formada sobre a base generosa e prática do amor ao homem e do amor à vida. Esta imagem, verifiquei-o depois, havia sido antecipada por um dos grandes apóstolos da Igreja Católica. Pouco importa, ela tem o cunho de uma grande aspiração, traz o índice de nossos destinos: é um emblema que pode servir aos nossos poetas como aos nossos estadistas.

Para estes, a grande obra a realizar é a organização nacional; e para esta obra, uma das nossas melhores razões de confiança está nas próprias forças das nossas raças.

O objeto da luta de hoje é inconfundívelmente claro; resume os dois problemas capitais dos nossos dias: o direito dos fortes de fazer a polícia do mundo, para garantir a civilização; o da igualdade moral e intelectual das raças.

Os fortes são as potências militares; a raça superior é, no entender dos imperialistas, uma só: a dos brancos puros do Norte da Europa, os dolicocéfalos louros de olhos azuis e grande estatura, descendentes legítimos e impolutos do nobre povo indo-europeu, da casta semi-divina dos Árias...

Não é uma metáfora: é a simples posição do problema, como o colocam os imperialistas; e não há ilusão possível sobre a verdade aparente e manifesta da doutrina. Quais são as nações cultas, os focos da civilização, em todas as suas faces, senão os próprios países que representam a força militar? São eles os portadores das luzes da nossa era, foram deles as civilizações de Roma e da Grécia. Depositários do espólio da cultura humana, herdeiros do melhor de seu sangue, fortes — pela disciplina, pelas instituições e poder militar, — quem com eles competirá na direção do mundo, na superintendência do progresso?

Não é, contudo, felizmente, esta a opinião de todos os homens privilegiados com a herança do “aristoi” ário-iraniano. Há, por essas regiões temperadas e frias da Europa e nas terras colonizadas pelos seus, outro modo de compreender as vantagens relativas de uma raça que representa a florescência de um longo período da História. Estes sabem atingir, no vasto e complexo fenômeno da seleção, toda a extensão dos fatos da adaptação e da luta; vêem que, ao lado dos documentos antropológicos, das mensurações e dos confrontos craneométricos, uma imensa coleção de caracteres sociais e psíquicos demonstra à evidência que o dolicocéfalo louro não é nem o tipo superior, nem o tipo mais forte da espécie, mas, unicamente, o tipo vitorioso nas regiões do norte da Europa e nos climas iguais, porque é o herdeiro do homem primitivo dessas zonas.

Mas essa raça tende a perder a vantagem da sua antiga posição, e os selecionistas de lógica métrica consignam e lamentam, aliás erroneamente, o triste fenômeno. Porque essa tendência? Porque as seleções da nossa era não se fazem mais sob a pressão rigorosa dos climas e das forças físicas da natureza, de costumes toscos e de lutas violentas: operam-se através de gerações que de há muito caminham, submetendo os meios físicos às modificações da vontade, da ciência, da arte — suavizando os processos da ação social. O tipo físico, que já não encontra as mesmas condições materiais em que se elaborou, degenera, ao calor das habitações, nos hábitos de conforto, entre a multidão de cuidados com que a sociedade e a civilização vão protegendo a sua nova criatura: o animal desembrutecido, a figura apurada, de homem moderno.

Por isso, os homens das outras raças, como os das regiões mediterrâneas, de que somos, em grande parte, herdeiros, mais afeitos ao calor, mais ágeis, mais nervosos, entram para a concorrência, com a vivacidade, a ductilidade, a imaginação, a rápida percepção e a decisão pronta, mais próprios para as lutas intensas, os esforços, rápidos e fulgurantes da inteligência e do caráter, em nossa era.

A adaptação física e a social são o modelador étnico do homem. É preciso haver, de todo, extraviado o espírito no labirinto dos pormenores morfológicos, das confrontações dos esqueletos do homem moderno com os dos primevos, para não perceber a evidência que resulta do simpies e elementar confronto do homem primitivo com o selvagem de hoje e com o ária, do ária com o negro ou com o índio civilizado, do negro ou o índio civilizado com o branco civilizado, de uma uniforme aptidão para receber costumes, sentimentos e idéias: para não ver que, por toda a parte, o indivíduo civilizado é o mesmo, no moral e na inteligência; que o homem primitivo, tendo evoluído em diversas direções, a civilização o conduz para o mesmo nível de aperfeiçoamento.

Nascida às margens do Mediterrâneo, a civilização teve início, como vimos, com uma raça que ninguém confundiu ainda com o heróico privilegiado do Norte: os egípcios; passou por povos, inteiramente eliminados do seio dos filhos dos deuses: os semitas; floresceu e floresce em regiões jamais perlustradas pelo pé do árias: as dos povos, de origens mongólicas e polinésicas, da China e do Japão. Só com argumentos um tanto hiperbólicos se poderia sustentar que as raízes árias do grego e das línguas latinas correspondem com exatidão aos glóbulos de sangue da maioria de quantos povos inundaram as duas penínsulas das civilizações clássicas; só olhos realmente prevenidos podem recusar, na Europa, a finlandeses, magiares e outros descendentes de invasores amarelos — aptidão para a civilização e para a cultura.

Em nossa população mista o grupo de origem alemã representa parcela reduzida; o sangue holandês do norte diluiu-se nos cruzamentos; à maioria latino-celtíbera, ligeiramente tinta de germânico e um pouco mais de mouro, juntam-se uma boa fração africana, outra indígena, e muitos cruzamentos.

É esta a pátria pela qual temos de lutar. É a pátria de nossos pais, a pátria de nossos filhos. Se fôssemos fiéis de algum mito cósmico, poderíamos prender nossos afetos e esperanças ao esqueleto territorial da Pátria e... “laisser faire, laisser aller, laisser passer”, certos de que a Providência, ou a Evolução, viria trazer-nos, mais cedo ou mais tarde, para vestir os ossos nus da terra natal, a carne pura e o sangue rico do ária. Se nos deixássemos dirigir por qualquer adoração mística, confiaríamos à fé simbólica, ou mágica, na bandeira, ou no hino nacional, a missão de prescrever nossos destinos e dispor de nosso futuro. Mas nós somos um povo inteligente e sensato como poucos; podemos confiar às qualidades que honraram os próceres da nossa História e distinguem a nossa geração a missão de defender, preservar e melhorar um trecho da Terra e uma sociedade, que representam, justamente pelos caracteres de sua formação, o tipo mais aproximado da sociedade ideal no futuro de civilização e de cultura humana, que iniciamos.

Para tanto é mister que, ao lado da confiança em nossas forças e da fé em nosso futuro, tenhamos a consciência precisa das dificuldades que vamos enfrentar, a coragem de afirmar o nosso caráter, de proclamar, com honra, a nossa origem e a nossa índole; que não pactuemos com os nossos êmulos e com os nossos perigos, iludindo-nos, supondo iludir os outros. A ilusão, neste caso, seria um triplo erro: não enganaria a ninguém, de fora; enganar-nos-ia, criando uma esperança vã e desnecessária; impedir-nos-ia de seguir, na organização da nossa vida e na política internacional, a direção que os fatos nos impõem.

O problema das raças, como problema de seleção social, é matéria julgada pela nossa experiência e pela experiência de outros. Nós sabemos, porque o temos verificado em cinco séculos ae vida, que as diversas variedades humanas, habitantes de nosso solo, são capazes de atingir o mais alto grau de aperfeiçoamento moral e intelectual alcançado por qualquer outra raça. Sabemos que a sua adaptação ao meio produz uma vitalidade e uma média de longevidade e de fecundidade, melhores que as de raças tidas por superiores. Podemos afirmar que o negro puro e o índio puro são susceptíveis de se elevarem à mais alta cultura. Sem recorrer a estatísticas, lembrando apenas nomes próprios, veríamos facilmente que, para o número de brasileiros negros e índios, que têm conseguido vencer as dificuldades sociais e econômicas da educação, os homens de valor representam uma boa proporção. Quanto ao mulato, o mesmo processo nos levará a conclusão ainda mais segura: os tipos de mestiços de alta inteligência e elevado caráter moral são comuns no Brasil.

Há aqui, como em toda parte, um preconceito contra o mulato do povo; mas este preconceito resulta,, antes, do fato que eu chamarei de “mestiçagem social”, do que da “mestiçagem étnica”. O mulato ocupa um lugar intermédio entre duas camadas da sociedade; elevado acima do meio dos pretos, não encontra apoio para se incorporar aos brancos; e fica, assim, desclassificado entre nobres e “párias”, desprezado por uns e invejado pelos outros. Do fato social resulta a disposição psíquica que carateriza o tipo ambíguo e instável do mulato das ruas. A cordura da alma brasileira vai destruindo estas distinções.

Do colono alemão nada é preciso dizer. Ele se recomenda pelos próprios e merecidos títulos que, exagerados e indevidamente aplicados, dão argumento à crítica superficial contra as nossas outras raças. Mas o caso do alemão brasileiro é mais uma prova da falência da doutrina da superioridade das raças. A colonização alemã, no território fluminense, deu os mais expressivos resultados. Mal escolhidas as regiões colonizadas, que, pela altitude e suavidade do clima, se afiguravam mais convenientes à adaptação, os alemães instalados em Friburgo e Petrópolis prosperaram, como prosperaram portugueses, explorando indústrias e profissões urbanas, próprias das cidades de vilegiatura; os que se deixaram ficar no campo mantiveram-se estacionários ou decairam, na penúria da luta contra uma terra ingrata, quase inapta para as pequenas culturas, subsidiárias da vida local; os que, descendo as encostas das terras, vieram para as regiões cafeeiras, prosperaram, tal como os portugueses vizinhos e seus descendentes. Mas como os descendentes de portugueses, os filhos e netos de alemães seguem o mesmo destino de afastamento do campo e do trabalho, esterilizam-se nas cidades, arruinam-se, perdem estímulos e energias; e os que permanecem na lavoura sofrem a mesma influência da detérioração da terra e das dificuldades sociais e econômicas da cultura.

Da mesma forma, nas colônias alemãs do sul a prosperidade da primeira geração estabelecida, e, em parte, a dos primeiros descendentes, é fruto de uma espécie de cultura artificial: a colônia oficial é uma estufa de cultura humana, onde a natureza da terra, melhor escolhida, e a conservação de costumes, tradições e, até, da língua de origem, favorecem a resistência dos centros coloniais. Já as gerações seguintes, perdendo o tipo patriarcal da localidade, confundindo-se na vida e no espírito ambiente, esquecem os hábitos sedentários, o amor ao tranqüilo bem-estar da pequena indústria ou das lavouras, lançam as vistas para as ambições, mais fáceis e mais prometedoras, do comércio, da especulação, da política. A terceira geração de colonos alemães é, pode-se assim dizer, conquistada pela sedução de fortunas prontas, de carreiras fáceis e de vida ociosa, que caracteriza os povos novos sem regime econômico organizado e sem educação social.

Mais do que o alemão, porque não se estabeleceu em colônias, o italiano, o português e o espanhol, de recente imigração, tendem para as cidades, para o comércio, para as vendas, espalhadas nas encruzilhadas das estradas e nas povoações, para as especulações, para a conquista da fortuna, a todo o custo e por todos os meios. Dos que trabalham nas fazendas de café, alguns alimentam o fluxo e refluxo, de migração periódica, entre a metrópole e o nosso país, entre o Brasil e a República Argentina, onde preferem fixar-se. Dos que ficam na lavoura, como meeiros, ou como proprietários de pequenos sítios, os filhos são, apenas, mais assíduos ao trabalho do que os filhos dos negros e dos antigos agregados das fazendas; nada mais ficam sabendo, contudo, de agricultura, do que as noções rudimentares, adquiridas por hábito de plantação, limpa e colheita nos cafezais, de cultura extensiva do milho e do feijão, do tratamento, aos azares do tempo e à sorte dos climas e das moléstias, do cavalo de sela — o grande luxo de todo roceiro que se preza —, do porco, da galinha e do burro de carga. Tudo isso feito, aliás, sem a mais vaga notícia da utilidade do amanho da terra ou da necessidade da irrigação, por exemplo.

Quanto ao português, que a nossa ironia nos habituou a ver como um tipo bisonho, — figura de fato extravagante e bizarra, por força do contraste que resulta do singular estabelecimento do homem do campo europeu, analfabeto e rude, no comércio e nas indústrias urbanas — nenhuma raça deu jamais melhores provas de energia, de inteligência e de coragem nos mais arrojados empreendimentos; poucas se lhe avantajaram na cultura e na produção literária, e muito raras possuem, ainda hoje, povo mais sóbrio, mais trabalhador, mais honesto, de mais cândida alma e sensibilidade moral mais delicada. A ascendência portuguesa é uma honra para o Brasil; e se aquele nobre povo, apertado em sua estreita faixa de terra, que as portas abertas para o oceano punham ao alcance de todas as cobiças, e de todas as opressões e que êmulos e vizinhos do continente ameaçavam constantemente, e submetido a governos acabrunhados pelos cuidados da conservação da independência e da liberdade material, estacionou, num tipo relativamente inculto, não se poderia encontrar melhor prova do vigor e da inteligência prática de uma raça, do que o êxito no Brasil desses mesmos rudes colonos, transformados, sob a excitação da ambição e graças aos mais largos horizontes da sua nova sociedade de humildes e avaros campônios, em chefes e diretores de grandes casas de comércio, de bancos e de fábricas. Analfabetos, quase, estes homens mostram, entretanto, excepcional capacidade organizadora e administrativa.

Não temos senão motivos, assim, para confiar na energia e na capacidade das nossas raças.

Ao fator moral da confiança cumpre juntar, contudo, outros, mais importantes, que devem visar a solução dos nossos mais sérios problemas: a consolidação do caráter do povo, pela educação; a defesa da sua economia física, pela alimentação e pela higiene pessoal, doméstica e pública; a defesa da sua economia social, pela política econômica. A causa principal do êxito de quase todo imigrante nos países novos é o estímulo da esperança de fortuna sobre terras ricas, prometedoras e férteis: é um fenômeno, verificado, de psicologia social, na história das migrações. É preciso que a nossa sociedade mantenha, nos herdeiros, e estimule, nos indígenas e nos descendentes desses colonos forçados que foram os escravos, a mesma ambição laboriosa.

Aceitando e reconhecendo, franca e corajosamente, a nossa posição no quadro etnográfico do globo, nada teremos a perder: ficaremos em plano intermédio, na escala convencional das raças, — acima de metade, talvez, do gênero humano: teremos tudo a ganhar com a consciência e com o estudo do nosso real problema étnico.

O homem, no dizer de todas as doutrinas monogenistas, religiosas ou científicas, nasceu entre os trópicos; o clima de seu berço é, necessariamente o melhor dos climas; as nossas terras oferecem regiões de adaptação para todas as raças: numa concorrência pacífica, os representantes das raças adiantadas contam com as vantagens da educação, do preparo prático; os filhos dos brancos aclimados, dos pretos e dos índios, com a de uma adaptação mais antiga; suprindo a aptidão dos últimos, mantendo com firmeza os meios de desenvolvimento, mental e físico, de todos, deixemos que a seleção faça a sua obra, dando a cada um seu lugar próprio na trama complexa da atividade social.

No estado atual dos povos, não vejo motivo para que nos inquietemos com o problema das raças, tanto que o não perturbe uma proposital ou irrefletida agitação política. Salvo raras populações do extremo norte da Europa, que conservam pura uma das variedades da raça branca, todas incorrem na condenação dos selecionistas intransigentes: são raças mestiças; e a nossa não deve estar abaixo da média dos povos do sul da Europa. Descontando os exageros desta doutrina e, apoiando-nos sobre a nossa própria experiência e observação, teremos, então, de resolver o problema, no ponto de vista da dificuldade que ele apresenta, em face da ciência, para os efeitos do aperfeiçoamento futuro.

A tese mais delicada é a dos cruzamentos. Debate dos mais renhidos na Heredologia apresenta duas questões interessantes para a formação étnica dos países novos: a da fecundidade das uniões de indivíduos de raças distintas, e dos produtos destas uniões, uns com os outros, ou com indivíduos das raças mães; e a da harmonia e equilíbrio dos caracteres dos pais, nos descendentes híbridos e mestiços.

O conhecimento do assunto é ainda incompleto. As teorias, divergentes, opõem-se radicalmente; e os trabalhos mais recentes de Antropologia e de Etnologia consignam a falta, que eu havia de há muito sentido, de estatísticas e observações, cientificamente baseadas para autorizar conclusões sérias.

A nossa pobre espécie, conduzida, pela imaginação de seus apóstolos, de seus filósofos, de seus criadores de sistemas sociais, políticos e morais, nas mais extravagantes aventuras, às lutas que a vieram arrastando, aos saltos, entre o reino da fantasia e as realidades da vida, não conhece ainda as leis que regulam a saúde e o equilíbrio de seu sangue, nas uniões de indivíduos das suas diferentes variedades...

Em longo debate, em que os estudos de Darwin, de Wallace, de Weissmann, de Mendel e de Hugo De Vries conduzem, ora a conclusões favoráveis, ora a conclusões contrárias, à fecundidade e à vitalidade, à normalidade e à sanidade dos mestiços; onde o velho litígio sobre os caracteres do gênero e da espécie intervém como elemento perturbador; a ciência tende a excluir as questões de sistema e a concentrar o exame na verificação das hipóteses baseadas em dados positivos.

É conhecido o velho critério de distinção, nas classificações zoológicas e na humana, entre a espécie e a variedade. “As verdadeiras espécies distinguem-se das variedades, segundo os naturalistas, em que dão híbridos estéreis quando se cruzam, ao passo que as variedades da mesma espécie têm descendência e fertilidade, nos bastardos e mestiços”(9).

Mas esta distinção, pecando por dar para critério de um fato a caráterizar os próprios elementos desse fato, não tem assento na observação e na experiência. Em verdade, entre os híbridos (produtos de cruzamento entre indivíduos de espécies diferentes) encontram-se exemplos de todos os graus de fertilidade e exemplos de esterilidade. Há casos de fecundidade, em uniões de indivíduos de espécies profundamente diferentes e de esterilidade, em uniões de espécies afins.

A natureza não conhece quadros de classificação. A classificação não é mais que uma convenção, não científica, mas técnica, destinada a facilitar os processos lógicos da análise, da indução e da dedução. Quando se fala, assim, em gêneros, espécies, raças e variedades, a propósito de grupos de indivíduos, cumpre ter sempre em vista que tais grupos não se cindem, não se incluem, nem se excluem com fronteiras rigorosamente traçadas. Quando, assim, Naudin, citado por Sergi, define a espécie: “um grupo de indivíduos semelhantes, que contrastam de qualquer modo com outros grupos, conservando, na sucessão das gerações, a fisionomia e a organização comuns a todos os indivíduos”, o sábio naturalista dá uma definição da espécie, que poderia servir, igualmente, ao gênero, à raça e à variedade. Desta definição excluem-se, apenas, de fato, as variações individuais, não transmissíveis por herança. É a justa crítica que, com mais desenvolvimento, faz Kermer de Marilaun, também citado pelo etnólogo italiano.

Se é certo, assim, que a tendência para a diferenciação, que os fenômenos mesológicos e os sociais, a luta pela vida, a seleção sexual, o auxilio mútuo, vão acentuando, separa e distingue, em grupos gradualmente menores, as variações naturais, mais ou menos caracterizadas, — ou por efeito de transformações bruscas (os saltos ou mutuações, de Hugo de Vries) ou por efeito da extinção dos indivíduos intermédios (explicação de Darwin, hipótese mais provável ou, pelo menos, mais comum), não há nenhum elemento de austero rigor científico que determine fronteiras precisas, e que distinga, menos ainda, o tipo do híbrido do tipo do mestiço, e os casos de fecundidade e de esterilidade entre híbridos e mestiços. Naturalistas e etnólogos convergem, por último, com maior ou menor aquiescência, em chamar híbridos os descendentes de uniões de espécies, e mestiços os descendentes de uniões de raças. Quando se dá, porém, a esterilidade e a fecundidade?

As experiências respondem, destruindo o valor prático da distinção, com exemplos de fecundidade e de esterilidade, em casos, perfeitamente caracterizados, tanto de hibridismo como de mestiçagem. Abbado cita, mesmo, alguns casos de fecundidade, produzindo híbridos (não diz Sergi, se fecundos) em cruzamentos vegetais de espécies pertencentes a gêneros diferentes.

Da soma das observações feitas acerca dos fatos de cruzamento, no reino vegetal, como no animal, a generalização menos imperfeita é a de Hugo de Vries: “a afinidade sexual, e, portanto, a probabilidade de reproduzir, caminha paralelamente com a afinidade sistemática, isto é, com o grau, mais ou menos próximo, de semelhança entre indivíduos e grupos”; mas este paralelismo sofre tantos desvios e encontra tantas exceções, que não é possível adaptá-lo por critério de julgamento. A fecundidade e esterilidade das espécies precisam ser observadas em cada caso particular; eis o conselho da prudência.

No homem, as observações mais regulares tendem a demonstrar o fato da esterilidade, nas uniões de híbridos de certas raças, ao passo que, nas de outras, a afinidade sexual parece perfeita. Entre o branco e o negro as observações dos antropologistas mais fidedígnos condizem com a observação vulgar, conhecida no Brasil, de esterilidade das uniões entre mulatos. Não há dados estatísticos exatos nem estudos científicos regulares, de onde se possam tirar ilações definitivas, mas a probabilidade da regra assenta sobre base suficientes para que a hipótese da esterilidade a seja preferida, como base de uma política eugênica.

A diminuição da fecundidade e a esterilidade, resultando da ausência de afinidade sexual, demonstram uma debilitação genética, ou uma inaptidão de progênie, na união.

Ora, se se considerar que a diminuição da fecundidade ou a esterilidade pode não ser o único resultado mau do cruzamento, e que as teorias biológicas mais autorizadas, favoráveis, umas, à doutrina da superioridade de certas raças, e outras contrárias, tendendo, todas, ou a afirmar a degeneração humana nos casos de cruzamento, ou a declarar indiferentes os efeitos do cruzamento, — às observações antropológicas juntam-se razões biológicas bastantes para que se evitem, quanto possível, os cruzamentos.

O problema é extremamente dificil e depende da verificação de não pequeno número de conceitos científicos ainda pouco assentados. Entre estes ocupa lugar saliente o dos caracteres, morfológicos ou psíquicos, das raças e das variedades. Que são tais caracteres e que valor têm, como elementos de distinção qualitativa, entre tipos humananos? Há diferença de natureza entre os elementos que distinguem as várias raças, ou simples diferença de forma, de quantidade, ou de grau de desenvolvimento? Se há distinção qualitativa, qual o alcance desta distinção?

Preestabelecido, como está, pela observação que a natureza humana alcança um mesmo nível, relativamente fixo, de capacidade; que entre os tipos de todas as raças encontram-se exemplos de indivíduos escalados por todos os graus de aperfeiçoamento e de cultura; que a espécie humana mostra, de há muito, sobre todos os animais, a peculiaridade da vida social, formando assim centros de seleção e de variação, onde atuam, mais poderosamente, fatores originais e, até certo ponto, voluntários; que a lei de Pallas(10) é, por conseguinte, aplicável a grande número de casos de reprodução entre as raças humanas, a questão das aptidões destas apresenta-se, principalmente, sob o aspecto da maior ou menor adaptação aos meios, e da apuração das qualidades congênitas de cada uma das raças. Neste último ponto, particularmente, parece conveniente firmar uma prudente e zelosa política etnológica.

As conclusões científicas até hoje firmadas são desfavoráveis à opinião corrente baseada em falsas observações zootécnicas sobre o cruzamento. Os casos de aperfeiçoamento de raças pela hibridação são mero produto de esforço industrial.

Não há posição mais arriscada do que esta, na questão dos cruzamentos.

E cumpre acentuar ainda aqui um outro grave equÍvoco, em que caem freqüentemente os que se referem, entre nós, a este assunto. É preciso não confundir o cruzamento étnico com as uniões entre indivíduos da mesma raça a título de aperfeiçoar a descendência com a compensação de elementos hereditários que favoreçam disposições progressivas e neutralizem ou combatam tendências retrogressivas ou de degeneração.

Os fatos biológicos são distintos, no caso de hereditariidade étnica e no da simples hereditariidade fisiológica. Aconselhar o cruzamento de indivíduos de raças diferentes, para corrigir, ou para evitar, diversas tendências ou disposições patológicas ou degenerativas, importa confundir problemas distintos: a hereditariidade étnica tem condições e obedece a processos peculiares; se a união de indivíduos normais com indivíduos predispostos à moléstia ou à decadência orgânica é um dos meios de regeneração fisiológica da estirpe, não é possível dar por assentada a idéia de que estas uniões devem, ou podem, consistir em cruzamento entre indivíduos de raças diferentes, — e isto porque se o indivíduo de uma das raças for fisiologicamente mais são, a vantagem do cruzamento pode ser anulada pelo desequilíbrio orgânico resultante da fusão de raças caracterizadas por qualidades profundamente incutidas durante muitos séculos de diferenciação.

É preciso ter em vista, neste ponto, alguns dados, de assinalado valor com relação a todos os problemas da hereditariedade. Cumpre atender, em primeiro lugar, a que não se trata, no exame destas questões, de firmar, como supõem os que as estudam pela rama, sentenças de superioridade ou de inferioridade absoluta, de pureza ou de impureza, de sanidade ou de incapacidade, de raças e de povos, sob qualquer estalão ou unidade de perfeição ou de bondade, que não existe; senão, unicamente, de consignar conclusões sobre a capacidade vital, a aptidão adaptativa, de grupos e de indivíduos.

Quando se afirma, assim, a tese — que parece apoiada por grande número de casos observados em nosso país, conquanto contestada pelas melhores autoridades e não confirmada pela observação, em outras espécies, e, dentro de uma mesma espécie, em outras regiões — da esterilidade das uniões entre mulatos, isto é, entre híbridos perfeitos de pretos e brancos, não se profere nenhuma sentença sobre o valor do mulato, como indivíduo, a qualquer título. O fato da esterilidade da progênie é um fato de hereditariidade, aliado, naturalmente, a outras condições e outros caracteres, mas que não importa em si nenhuma depreciação do valor individual.

Semelhante afirmação também não pode ser feita, por outro lado, senão sob reserva de inúmeras condições de tempo, de localidade, de meio físico ou social, de alimentação. A lei de Pallas, já citada, atesta a transformação, por efeito da domesticação, de híbridos estéreis para híbridos férteis, na vida natural.

Tendo em atenção estas observações, que juízo se deve formar do cruzamento, como fator étnico?

Duas idéias capitais devem dominar o espírito na solução deste problema: a de que não há raças superiores, em absoluto, e a de que a raça, ou represente um ramo originário da espécie humana, como pretendem os poligenistas, ou representa uma variante, produzida, na evolução da espécie, em período remoto, só se pode explicar como efeito de fatores mesológicos e, acentuadamente, do clima. Isto posto, a afirmação mais segura que é lícíto fazer, com relação às raças atuais do Brasil, é que a raça colocada em posição mais vantajosa em relação às condições da adaptação, e, por conseguinte, a mais apta, é a dos autóctones, vindo em segundo lugar a dos negros, originários de um clima evidentemente mais semelhante, e em terceiro, a dos europeus de origem mediterrânea ou ibérica, produtos, em geral, de uma longínqua fusão eurafricana ou eurasiática e nascidos em regiões de climas mais aproximados aos nossos.

Estes troncos — particularizando, entre os últimos, os que já fizeram um longo estádio de aclimação — representam, na mais rigorosa exatidão científica, elementos privilegiadamente dotados, para a resistência e para a prosperidade, em nosso meio. Desta simples conclusão resulta imediatamente esta primeira conseqüência, quase intuitiva: uma política eugênica bem inspirada, sincera e conscientemente preocupada de facilitar e favorecer o desenvolvimento espontâneo do homem brasileiro, nas melhores condições de adaptação e de progressividade, emancipada dos levianos prejuízos de amor próprio e de esnobismo circulante, deve procurar, esforçadamente, manter puros os tipos étnicos aclimados, para que estes, evoluindo naturalmente, manifestem e desenvolvam os caracteres próprios.

O cruzamento entre indivíduos de raças acentuadamente distintas, já o vimos, tem contra si uma primeira presumção desfavorável, na esterilidade dos híbridos. Os selecionistas partidários da desigualdade natural das raças, afirmando a superioridade da raça caucásica e, em particular, da nórdica teutônica, repelem, veementemente, o cruzamento, pelos dois seguintes motivos: a geração de um tipo intermédio, quando o esforço da raça superior deve consistir em manter ilesa a pureza do seu sangue nobre; e a desarmonia e desequilíbrio orgânicos, conseqüentes do conflito, no indivíduo, de sangue mesclado de caracteres estranhos e, por vezes, incompativeis. Vê-se assim que, perante a teoria — que nada tem de científica — da superioridade de certas raças, o cruzamento, longe de ser recomendável, encontra esta primeira objeção, de certo peso: o presumido progresso étnico, obtido pelo produto da união de duas raças, que se supõe subir acima ao plano da raça inferior, ficando em primeira geração a meio caminho da raça superior, até confundir-se, de todo, em sucessivos cruzamentos progressivos, no nível desta, além de contra-indicado, pelo fato, já observado, da esterilidade dos híbridos, é neutralizado, e pode-se até considerar pela aliança de elementos geradores orgânicos, de órgãos, de tecidos, de caracteres físicos e psíquicos, desarmônicos, incompatíveis, possivelmente hostis.

Os biologistas e etnólogos que não aceitam a doutrina da desigualdade natural das raças, considerando a questão do valor e da capacidade das diversas variantes étnicas, em função do tempo e do lugar, e que admitem, além disso, a herança dos caracteres adquiridos pelo indivíduo, condição favorabilíssima à educabilidade, ao progresso e ao aperfeiçoamento de todas as estirpes humanas, não podem, entretanto, concluir favoravelmente aos cruzamentos. Mais do que para os outros, é, para estes, certo, que a causa da “variação” étnica é de natureza mesológica, e que, por conseguinte, o valor da raça, de suas variantes e de suas mesclas deve ser aquilatado em relação às condições próprias ao florescimento. O cruzamento é um elemento perturbador desta evolução natural.

Isto posto, as conclusões que se impõem sobre a questão dos cruzamentos são estas: não tem nenhuma base científica a opinião, corrente entre nós de que o cruzamento é um meio de aperfeiçoamento étnico; os dados de observação e as mais prováveis induções científicas inclinam antes a evitar do que a procurar os cruzamentos.

Chegados a esta conclusão, terminarão es observações com uma advertência e uma exortacão aos brasileiros. Entre as leviandades que um cepticismo de infantil imitação e uma espécie de inconsciência nacional pôs em circulação e alimenta na vida mental brasileira, uma das mais nocivas e deprimentes é o hábito de menoscabar do nosso sangue, de depreciar a nossa idoneidade física e moral, de nos dar por um povo degenerado, corrompido, em franco estado de abatimento corpóreo e mental. Não há nada mais falso: o Brasil sofre todas as crises de uma sociedade nova, formada, por um povo estranho, em território diverso do de sua origem, que até hoje não fundou as bases da sua adaptação à terra e não organizou a sua vida: eis as causas do seu atual estado, agravadas por um acúmulo de crises, nossas e alheias. Não o podia fazer, antes de surgir a consciência do problema nacional e da sua orientação. Se há sinais de algum enfraquecimento na principal raça colonizadora, a portuguesa, e nas outras que contribuem, em menor escala, para a formação da nacionalidade; se a raça preta e os indígenas civilizados parecem, também, depauperados — resulta isto, quanto aos brancos, em pequena parte, do processo de aclimação, naturalmente deprimente enquanto faltam elementos acessórios de acomodação mesológica, de higiene e de alimentação, e, para estes, como para os outros, da quase completa ausência desses meios de conservação e de progresso, para o indivíduo e para a estirpe.

A quase totalidade do nosso povo não possui ainda habitação conveniente, mal se precata das intempéries, pouco conhece dos hábitos e dos instrumentos favoráveis à saúde, não tem educação de espécie alguma; e a pouca instrução que recebe é antes de ordem a lhe perturbar o espírito na solução dos problemas práticos e a desviá-lo dos cuidados reais e dos pensamentos positivos da existência, que de lhe abrir os olhos e lhe mostrar o caminho, para a conquista do vigor do corpo e da mente.

A alimentação é escassa, no Brasil, para a grande maioria do povo; insuficiente e má, para quase toda a gente, nos próprios grandes centros, entre as classes médias; mesquinha e grosseira, para os homens do povo; imprópria e caríssima, para os abastados.

Outra causa, cujo valor se exagera, é a das moléstias. Há uma certa atividade de espírito terapêutico em toda a sociedade moderna, e a feicão contemporânea das inteligências é a de uma pronunciada tendência para a diagnose nosológica e para a clínica, individual ou social, física ou psíquica. Tudo é moléstia e tudo é curável medicamente, com drogas materiais, ou com drogas psíquicas. Pondo de parte as confusões, algumas de perigosíssimo exagero, dos diversos critérios de caraterização e de avaliação dos males, de seus efeitos e dos meios de tratamento, consignemos o aspecto que esta tendência tomou, em nosso meio.

Ao nosso ordinário e geral pendor para a displicência, para o pessimismo e para o cepticismo, esta direção das inteligências juntou mais um peso, seriamente gravoso. Passamos a ver a nossa nacionalidade minada pelas moléstias, em vésperas de eliminação, por força de causas patológicas — imprestável para a vida, tantos gérmens e parasitas lhe corroem os tecidos. De uma das máximas, que esta Filosofia pôs em circulação: a influência do espírito sobre o corpo, vimos, principalmente, o aspecto negativo, que conduz à aceitação da moléstia, à resinação ao sofrimento, à submissão alegre à morte, à atitude estóica, interpretada, em geral, como posição de impassibilidade, de fatalismo, quase, em face dos obstáculos, das dificuldades, das crises, pessoais ou coletivas, da vida. Obedecendo ao impulso, comum à origem de todos os movimentos humanos, as interpretações que se deram a este, apresentaram-no com uma forma judicial, como fundando uma nova autoridade e um novo código de preceitos nas palavras.

Daí, a imagem de pânico que se reflete nas palavras e nos escritos de crítica social, sob a influência pronunciada de leituras, precipitadas e sem aplicação, de obras estrangeiras, e de impressões, circulantes também nos centros estrangeiros, sobre as nossas coisas e sobre a nossa gente. Tranqüilizemo-nos, com relação ao valor geral destas apreensões e à importância e alcance de seus efeitos sobre o nosso futuro. Curemo-nos da opressão sugestiva destes arestos de uma magistratura incipiente, ainda pouco esclarecida sobre seus próprios horizontes, naturalmente ardente da ambição de sua autoridade, e que está caindo, como terá de cair, durante muito tempo, antes de fixar seu terreno de ação e firmar seus processos, em muitos e gravíssimos erros.

As estatísticas européias, os trabalhos dos higienistas, as modernas e profundas investigações dos eugenistas, provam à saciedade que os mais cultos países europeus estão sendo vitimados pela maior parte das moléstias, diáteses e das predisposições patogênicas, que se observam entre nós; distinguindo todos os elementos, propriamente nosológicos, de depressão física, dos elementos de natureza climatérica e alimentar, não será arriscado, talvez, afirmar que as influências patogênicas aqui dominantes, — que, diga-se incidentemente, não nos são exclusivas, ou não se originaram em nosso país — não se acentuam, aqui, em grau desfavoravelmente desproporcionado à nossa sociedade. Um olhar observador, lançado, durante algumas semanas, sobre as populações das grandes capitais européias, basta para convencer que a decadência física, de causa patológica, é um fato muito generalizado, nos centros das velhas civilizações.

Uma outra razão, de profunda e prática filosofia médico-social, é de ordem a nos dar, não só tranqüilidade, senão até animação. O conceito da moléstia e o conceito da saúde, são temas que começam a submeter aos homens de ciência, novas e interessantíssimas questões, com respeito ao valor das categorias patológicas. Como causa mortis, ou como causa de enfraquecimento e de degeneração do indivíduo e da estirpe, começa-se a inquirir se, posta em confronto com outros fatos da vida, a “moléstia” representa, realmente, o principal fator da decadência humana. Em face dos fenômenos comuns da vida, e dos fatos classificados nos livros de Patologia, se a noção da “moléstia” não se define com uma precisão bem nítida, muito menos clara é a noção da “saúde”.

Para o clínico ou para o demografista, habituados a contemplação sólida das formas, agudas ou crônicas, designadas como enfermidades, a questão parece infundada. A patologia — partindo do ponto de vista médico, que criou um meio e uma vida de moléstias e de doentes — isolou moléstias e doentes, sistematizou uma teoria particular de fenômenos mórbidos, e fundou-se e desenvolveu-se, guiada pela piedade e pela curiosidade do anômalo, ao inverso de toda a lógica indutiva; construiu o seu sistema de idéias, sobre o conceito, acentuadamente relativo, da moléstia, com induções firmadas sobre a observação de uma só das categorias, e exatamente a excepcional. A ciência não procede sob a sugestão de curiosidades ociosas, nem de prazeres; deve resistir à atração tendenciosa da psicose, das generalizações e das particularizações técnicas. As especialidades tendem, quase sempre, a formar uma certa ordem de prejuízos. É o que tem sucedido, em grande parte, na evolução da medicina e da higiene.

Sucede, assim, que, se a medicina tem progredido, no conhecimento da patologia, se lhe não pode negar um certo avanço, em muitas apl1cações da terapêutica, ela é uma arte imperfeita, no que toca ao conhecimento da relação precisa entre o fato da saúde e o fato da moléstia.

Nascida da observação dos casos mórbidos notáveis, raros na antigüidade, e cada vez menos comuns, ela não conhece, da ciência da normalidade da vida, da ciência da “saúde”, senão a sua expressão negativa: definiu o normal, por exclusão do anormal — o que decorre de um erro inicial de lógica: o erro de todas as ciências incipientes; — a presuposição de uma unidade, de um tipo, de um estalão, de perfeição: a sanidade física, neste caso. Ora, esta unidade não existe, em nenhuma seção da natureza, em nenhuma das manifestações da vida.

A “saúde”, em absoluto, é um preconceito, filho do erro inicial de lógica, imposto pela natureza da evolução da medicina. A evolução natural do saber humano prescreve à ciência do organismo e da vida do homem uma transformação radical: ela tem de se transformar, de ciência das moléstias e dos remédios, em ciência da vida e da saúde, em seu sentido relativo; tem de se aplicar ao estudo dos fenômenos de adaptação do indivíduo ao meio físico e ao meio social, de estudar o indivíduo, como organismo, — num horizonte muito mais vasto que o da anatomia, da biologia e da fisiologia, pelo método que se emprega, senão exclusivamente estático, puramente mecânico, em laboratórios e gabinetes.

As noções da saúde e da moléstia serão forçosamente transformadas por força desta nova orientação. A menos que se não pretenda substituir a metafísica das grandes categorias: do espaço, do tempo, do absoluto, do infinito por uma metafísica dos micro-organismos e das causas, de moléstias, será fatal concluir que há gérmens particulares a certas regiões e a certas épocas, e que estes gérmens, inócuos até certo ponto, devem ser, até certo tempo e em dadas condições, propícios ou, pelo menos, relacionados, à adaptação local e às circunstâncias dominantes.

Na quase totalidade dos casos, entre um tipo suposto são e um tipo, verificado, de doente, é difícil, e será, muitas vezes, impossível, formular juízo sobre a probabilidade da morte, a probabilidade da degeneração, o vigor, a aptidão vital, a capacidade física ou psíquica, de um e de outro. Fenômenos comuns, de inferioridade física ou psíquica, importam, muitas vezes, causas de inferioridade muito mais graves do que as causas mórbidas, mesmos específicas, de inferioridade.

A ciência moderna tem de banir, por conseqüência, do seu critério, até exame ulterior à transformação de seus estudos, a sua atitude de avaliação e de julgamento, com relação aos fatos da saúde e da moléstia.

Por efeito da generalidade do desenvolvimento das causas mórbidas, e por esta razão de filosofia biológica, estamos a salvo do motivo de desalento em que a nossa passageira tendência cética traduziu o brado veemente dos médicos, mais inclinados — como foi sempre o homem no início de suas investigações e de seus costumes, a atitude judicial do que à atitude política, preferindo críticar a agir, fundar uma escola a prevenir.

Em nosso caso, repitamo-lo, as grandes causas de fraqueza física são principalmente de três naturezas: cósmico-sociais, decorrentes da falta de estudo do clima e das condições da vida sã, em nossos meios, geralmente úmidos e quentes, e das sucessivas transformações meteóricas e climatéricas; escassez e impropriedade dos alimentos; e causas econômicas, sociais e pedagógicas, relativas à prosperidade e à educação do povo.

Se fatores patológicos cooperam para a nossa decadência física, a operação destes fatores é insignificante, em proporção à daqueles. Todos os esforços da higiene e todas as reformas sanitárias serão luxos profissionais, ou simples desvios, na focalização dos fatos reais, mal atacando as moléstias e nunca extinguindo as predisposições mórbidas, enquanto o problema geral da economia nacional não for solvido, em seu conjunto. Neste ponto, não é possível, até, dissimular o fato de uma quase renúncia da vida, na observação de certos aspectos das nossas medidas sanitárias, tomadas, em grande parte, nas capitais, no interesse do estrangeiro, ou da nossa fama no estrangeiro...


 

III

A soberania real

 

 

Atravessamos, neste momento, a crise mais séria da nossa História. Politicamente livres, com todos os atributos formais da soberania interna e da independência externa, depois de um passado que é o melhor atestado do bom senso e da excepcional probidade do nosso povo, encontramo-nos em situação melindrosa, perante fatos da nossa economia e da vida mundial, que põem em equação o problema do nosso futuro.

Há cerca de quatro anos, quando me foi posssível voltar o espírito para o estudo dos assuntos políticos do país, que haviam sido objeto de meus trabalhos, durante mais de metade da minha vida, precisaram-se em meu espírito os traços da tendência que ia tomando a evolução do Brasil, em face da política e da economia dos outros povos. Em estudos que fui públicando, procurei mostrar aos que dirigem a opinião e aos que nos governam os sinais da crise próxima, advertindo-os da necessidade de prevenir perigos que se iam acumulando sobre nossas cabeças, de reparar erros e descuidos que temos cometido, resultantes de estranhável despreocupação dos nossos problemas práticos e dos da política mundial.

Devemos confiar no critério e no patriotismo dos brasileiros e esperar que por entre as fraquezas e as indecisões, a desordem e a desorientação, da hora triste que estamos atravessando, a alma cândida deste povo, simples e generoso, seu sereno e claro discernimento, sua ponderada e segura energia, lhe hão de iluminar o quadro deste momento histórico e mostrar o caminho a seguir.

Não é possível prescindir de destacar certo número de conclusões da nossa história social. Antes de entrar neste trabalho, é força implorar aos que têm qualquer parcela de prestígio na sociedade brasileira, que atentem para esta observação, capital no estudo do nosso desenvolvimento: a vida de um país tem faces múltiplas, mostra várias e desencontradas flutuações, sob as quais se vai realizando o funcionamento profundo e orgânico da sociedade, despercebido dos que têm os olhos fitos nos acontecimentos superficiais, julgando-os sob a impressão do momento, ou com o critério parcial da posição, da simpatia, da profissão, de solidariidades pessoais ou espirituais. Tenho procurado, em meus estudos, chamar a atenção de meus patrícios e, particularmente, dos que nos governam, para este fato, comum às nacionalidades modernas de origem colonial, mas, no Brasil, excepcionalmente notável: a ausência de espírito nacional; “prático”, da solidariidade patriótica fundada na consciência dos interesses comuns a todos os agrupamentos políticos, religiosos, econômicos, geográficos, comerciais e industriais. Esta solidariidade, quase instintiva nas velhas nações, onde é obra secular de relações, de trocas e de apoio mútuo, só pode surgir, em novas e extensas nacionalidades, com a forma de um móvel consciente e como conhecimento objetivo das necessidades permanentes do país, superiores às divergências e divisões do presente e à sucessão das gerações. No Brasil, com mais forte razão, o estudo da síntese nacional, e o trabalho de educação da opinião e de arregimentação dos espíritos em torno de um programa e de um ideal, é, por força da nossa conformação geográfica, mais e mais necessário.

Ora, toda a gente, entre nós, desde os homens do povo, distraídos das coisas públicas, até aos que, tendo ardor cívico, se dedicam ao cultivo das idéias destinadas a dirigir a sociedade, passa a existência sob a influência de duas correntes de estímulos, distintas e independentes; a dos conceitos e ideais teóricos e a dos fatos da época: agitações, conflitos partidários, lutas locais, toda a massa pululante de personalismos, de ambições, de gestos e discursos ociosos e estéreis, — trabalho desorientado e sem objetivo, que domina, entretanto, as atenções, como se fosse a expressão real da nossa vida.

A mescla, que não conjunto, e, ainda menos, síntese, das idéias e dos móveis da nossa vida pública, apresenta-se, assim, na formação das opiniões e dos atos — como o baralhamento das perguntas e das respostas, no jogo popular dos disparates — tecendo e confundindo, desencontradamente, duas correntes artificiais, estranhas à vida positiva da sociedade: de um lado, a ideação, — literária, ou pelo menos, teórica, dos intelectuais de todas as cores, jurídica e formalística, dos políticos, matizando a atmosfera da nossa mentalidade com o íris das mais vistosas teorias, do outro, a força dos interesses, movendo as pessoas, distribuindo-as, separando-as, reunindo-as, sob os galhardetes dos mais brilhantes programas, mas agindo todas na mais desafinada, furiosa, atroadora e desconcertante balbúrdia.

A vida cerebral do Brasil gira em torno de dois centros: o mundo dos intelectuais e o dos governantes; os escritores, professores, homens de letras e de ciência, os artistas, no primeiro grupo; os políticos, os administradores, os funcionários, no segundo. E esta vida, inteiramente alheia à vida da sociedade, reflete-se, entretanto, no pensamento de todos, sob as formas do diletantismo e do pessimismo, que traduzem a sensação indefinida de que essas coisas não são as que deveram interessar, mas com esta sensação, uma extrema perplexidade na consciência e no caráter social.

A desorientação é característica da nossa época, em toda a parte, e, assinaladamente, nos centros cultos das velhas civilizações. Entre as muitas ruínas que tombam e que oscilam, são ainda pouco visíveis os perfís indecisos de novas construções. A imensa atividade intelectual contemporânea trabalha, quase toda, numa região atulhada de destroços, entre tentames fatícios ou abortivos de construção. O mundo que vai acabando, foi um mundo de sistemas “a priori”; e a sensação de que ele cai inspira aos espíritos tímidos o temor das soluções, mantendo, nos arrojados, a ilusão de que, aos sistemas mortos, devem suceder novos sistemas. Perdem-se aqueles no cepticismo, e estes no trabalho tantálico de erigir castelos sobre castelos, utopias sobre utopias. Toda a nossa cultura, bebida em tais fontes, esterilizou-se, na dubiidade da descrença, ou obstruiu o caminho, diante dos passos, com a concepção de novos e rígidos sistemas. A inteligência contemporânea ficou sendo uma inteligência híbrida, incapaz de procriar.

Na política, a anarquia das idéias e dos atos atinge as proporções do desvario. A ordem social, mantida por simples tolerância costumeira, já não corresponde à ordem das velhas organizações e está longe de satisfazer à organização dos novos elementos da sociedade. Os aparelhos e forças que equilibravam efetivamente o mundo foram substituídos, na lei e na política, por meras abstrações verbais e máximas conceptuais de filosofia social; e, como estas entidades abstratas, com que o idealismo quis fazer as colunas das novas civilizações: a liberdade, a justiça, o direito, todos os lemas das lutas revolucionárias, não possuem realidade objetiva, não representam o tecidos substanciais dos bens necessários ao homem: são meros atributos das suas aspirações na vida real; o esforço da sociedade contemporânea tem o aspecto de uma eterna ascensão ao cume atingível da fantasia. A realidade da vida não depende, imediatamente, das relações do homem com o meio, dos homens entre os homens; a vida se realiza pelo esforço sobre a natureza, com os encontros e as relações dos esforços. Tudo isto forma uma multidão de necessidades e de interesses, concretos, práticos: uns materiais, outros físicos; mas, ao passo que a vida, suas necessidades e seus interesses, são fatos reais, os espíritos, impacientes por descobrir as causas dos males humanos e por lhes dar remédio, abandonam o caminho horizontal das soluções terrestres para pedir à imaginação as soluções do milagre. Ao problema positivo da aplicação das energias humanas, deu-se a solução do socorro sobrenatural; a este socorro, a que acudiram, primeiro, poderes providenciais de várias naturezas, responderam, depois, as bênçãos e mercês da metafísica política.

Foi assim que as revoluções defraudaram as aspirações humanas, iludindo a fome, a miséria, o instinto de ação, o impulso dinâmico das almas e dos corpos, com os artifícios de panacéias subjetivas. As instituições opressivas do passado, sob as formas do despotismo, da escravidão, da servidão, do poder dinástico, da autoridade, do feudalismo, eram, principalmente, restrições ao desenvolvimento, à expansão, aos movimentos da personalidade humana, à ação de suas energias, ao trabalho, à distribuição dos meios de ação e dos frutos da ação.

Os diretores dos destinos do homem não viram senão as formas aparentes da realidade, e supuseram que opondo a liberdade à tirania, a igualdade à servidão e ao feudalismo, a justiça e o direito aos privilégios, solviam os seus problemas; mas, como os fatos da vida, do esforço e do trabalho, os estímulos ativos da natureza do homem, os móveis profundos de sua eficiência, não podiam ser atingidos por essas transformações exteriores, a desigualdade, a injustiça, a falência do direito e da ordem revestiram novas formas, e a sociedade permaneceu a mesma, decorando com outros nomes coloridos as suas velhas utopias. Todo o espectáculo atual da política é a ostentação burlesca deste jogo de palavras e de fórmulas, sobre a realidade, dia a dia mais pungente, dos problemas da economia e do trabalho.

A separação da política e da vida social atingiu, em nossa Pátria, o máximo da distância. À força de alheação da realidade a política chegou ao cúmulo do absurdo, constituindo, em meio nossa nacionalidade nova, onde todos os elementos se propunham a impulsionar e fomentar um surto social robusto e progressivo, uma classe artificial, verdadeira superfetação ingênua e francamente estranha a todos os interesses, onde, quase sempre com a maior boa fé, o brilho das fórmulas e o calor das imagens não passam de pretextos para as lutas da conquista e da conservação das posições.

A política é, de alto a baixo, um mecanismo alheio à sociedade, perturbador da sua ordem, contrário a seu progresso; governos, partidos e políticos, sucedem-se e alternam-se, levantando e combatendo desordens, criando e destruindo coisas inúteis e embaraçosas. Os governantes chegaram à situação de perder de vista os fatos e os homens, envolvidos entre agitações e enredos pessoais.

E é este estado de coisas que todos têm por manifestação normal da nossa vitalidade, em torno do qual se debatem as opiniões, formam-se os partidos, elegem-se legisladores e chefes de Estado, surgem e desaparecem as personalidades, agita-se a oratória, fervilham doestos e calúnias, rebentam revoluções e violências de toda a espécie, explodem crises de sangue e de escândalo; e, nesta gitação, que não representa, aqui como em outros países, outra coisa senão a estagnação de um povo descuidado de si mesmo, perdido na contemplação de miragens teóricas, paralisado, por falta de consciência e de direção, toda a atividade pública se reflete num eterno debate entre dois coros, onde as pessoas se alternam, fazendo uns o papel de tiranos e de bandidos, outros o de juizes punidores, cantando estes hinos de louvor aos vencedores, clamando, aqueles, as mais tremendas e cruas objurgatórias.

É certo que este espetáculo é universal. Se alguns países possuem uma ordem aparente, se outros, sob a proteção dessa ordem, obedecem ao impulso de forças íntimas progressivas, o divórcio da sociedade e da política é o fato mais saliente do estado atual da civilização. Nas mais velhas e cultas nações, o patriotismo e a capacidade dos estadistas são insuficientes para lhes dar alcance à vista e segurança aos passos, em meio aos tumultuosos e precipitados problemas da nossa época; nas camadas onde se faz a seleção dos governantes, e, entre os que se dispõem a arrostar as sensações das lutas de onde surgem os dirigentes, a cultura não representa o nível mais alto da competência. Os problemas sucedem-se, surpreendendo os homens que governam; e estes, quando os não podem iludir, atacam os sintomas e os acidentes, com a facilidade e prontidão de agentes de policia, entre as contorsões da sociedade que clama por novas bases de equilíbrio.

Não é caso, assim, para que nos vexemos dos nossos erros; outros, mais fortes e mais cultos, mostram, agora mesmo, provas iguais de despreparo político; mas, se o mal não é só nosso, o perigo destas situações não é o mesmo para todos; e, pois que, nas liquidações das lutas políticas, a força impõe sua lógica, através dos erros dos que governam, há povos mais expostos que outros aos riscos da crise comum. Nós estamos, pela vastidão do nosso território, pela escassez da nossa população, e porque somos uma das nações que menos cuidaram da organização da vida prática, da educação do instinto de conservação, da luta pela força e pela riqueza, compreendidos neste número.

Os manifestos e mensagens presidenciais, os programas dos partidos, os discursos parlamentares, todos os atos dos nossos políticos e estadistas são documentos, às vezes copiosamente eruditos, sempre sincera e ardentemente patrióticos, dessa estranha falta de adaptação do saber e do patriotismo às peculiaridades da terra e do povo brasileiro.

Os problemas que eles agitam são problemas de completa e neutra generalidade. As eternas questões de administração e de finanças, de moeda, de emissão, de despesas e de impostos, de obras públicas e de viação, de assistência e de ensino, de regime fiscal e de policia, de Direito Publico e de Direito Privado, que se debatem na França, na Bélgica, na Grécia, na Espanha e na Turquia, repetem-se, sucedem-se, aparecem e desaparecem, no “tapete da discussão”, faustosamente solvidas hoje, combatidas amanhã, ora em nome da escola a, ora em nome da filosofia b, obedecendo às simpatias doutrinárias do ministro que está no poder, à pressão de tal ou qual incidente, refletindo, muitas vezes, o ardor de uma ambição reformadora, traduzindo, quase sempre, a influência das últimas idéias em voga num país europeu — com a mesma feição com que se apresentam na França, na Bélgica, na Grécia ou na Turquia. Vamos, assim, criando serviços, fazendo obras públicas, abrindo e desenvolvendo estradas de ferro, organizando repartições e escolas, exatamente como fazem os legisladores daqueles povos. Para os problemas da economia rural, adotamos os mesmos institutos, escolas, campos de demonstração, sindicatos, exposições, que encontramos em outros países. Porque temos um vasto território, vamos estendendo linhas de estradas de ferro. Os portos são melhorados, dotados de cáis e de armazéns. Possuímos institutos de ensino superior e escolas primárias. Temos, enfim, todos os aparelhos e processos de governo, incolores, neutros, vagos, inadequados, que se encontram por toda a parte: mas, por entre esta organização complicada, e, por vezes, luxuosíssima, a vida do homem, a sua alimentação, os interesses da economia social, a distribuição da riqueza, a circulação comercial e monetária, a educação física, moral e cívica, debatem-se de encontro aos mesmos obstáculos das mais atrasadas sociedades e vão encontrando maiores tropeços, nas próprias construções desta aparente civilização.

Ao lado de um certo, embora desorientado, cuidado por melhoramentos materiais, não aprendemos a arte, primordial e muito mais dificil, de civilizar e cultivar o homem. Os melhoramentos materiais não são, para um país, senão a ossatura, a que só um povo, sólido, instruído e enérgico, dá músculos, nervos e sangue. Não é nas escolas e nas academias que se cria este povo: é na educação pelos costumes, pela política, pela circulação de idéias práticas, pela legislação econômica e fiscal, pelo estímulo ao trabalho, pela segurança da remuneração, pela supressão dos incentivos à ociosidade e ao ganho fácil e ilegítimo de empregos e de fortunas. A formação de uma sociedade e a seleção do seu caráter resultam do critério, nela domínante, sobre o valor do homem; dos modelos que ela apresenta de prestígio, de estima, de respeito. A vida de um povo é função da enxada do trabalhador, ou do bilhete de loteria. Nas sociedades contemporâneas, e em nossa terra, hoje, mais, talvez, do que em outras, as carreiras de azar e os favores do azar estendem-se e ramificam-se por todos os lados.

A sorte das nações modernas depende da direção que tomarem no sentido do trabalho ou no sentido da especulação, da escolha entre a produção e as indústrias improdutivas, do relativo nivelamento social, pela máxima distribuição das riquezas, ou da divisão da sociedade em classes afortunadas e classes proletárias; da plena expansão dos valores, pela liberdade comercial, ou do regime de restrições e de entraves, de monopólios e de privilégios.

A riqueza é árbitro dos destinos, neste momento histórico. Na produção e no comércio, na política e na guerra, a vitória está com os povos ricos, os que concentram nas mãos a maior soma de dinheiro; a mais poderosa energia de nossos dias, o mais eficaz reprodutor de energias. A política internacional maneja ainda os recursos da paz armada, da força militar; e a riqueza é, no estado atual da arte da guerra, a primeira condição de superioridade. Povo forte e povo rico são expressões eqüipendentes. A política de um povo moderno, para a paz ou para a guerra, consiste na arte de conservar, de obter e de aumentar riquezas. Tal é a política ofensiva de outros povos, tal precisa ser a nossa política defensiva.

Obter, conservar e aumentar riquezas, é, contudo, um vago objetivo, que não prescinde de explanação.

A Terra tem sido presa de um único móvel de obtenção de riquezas: a ambição individual. Toda a vida econômica dos povos gira em torno da cobiça de cada um, e a soma das cobiças pessoais forma a vida econômica coletiva. Resultam daí conseqüências que é imprescindivel registrar, quando se trata da riqueza de uma nacionalidade.

As riquezas naturais, sob quaisquer formas são patrimônio do povo que habita o território nacional; mas os indivíduos que têm a propriedade do solo e do subsolo julgam-se, e o são quase sempre, em Direito, senhores de suas riquezas. Cada indivíduo e cada geração delapidam, assim, em proveito próprio, fontes preciosas de imensos valores. Os homens de ciência, na Europa, já consideram um problema a resolver o da substituição da hulha por outro produtor de força motriz.

O homem tem sido um destruidor implacável e voraz das riquezas da Terra. Toda a vida histórica da humanidade tem sido uma vida de devastação e de esgotamento do solo, de incêndio de tesouros e de florestas, de saque de minérios ao seio da terra, de esterilização da sua superfície. A exploração colonial dos povos sul-americanos foi um assalto às suas riquezas; toda a sua história econômica é o prolongamento deste assalto, sem precauções conservadoras, sem corretivos reparadores, sem piedade para com o futuro, sem atenção para com os direitos dos pósteros.

Assombrados com essas vastas e, por vezes, insanáveis lesões à natureza, com o desvio e perda de tantas forças naturais, com as alterações do clima e com os acidentes meteóricos, resultantes da desastrada exploração da Terra, os povos previdentes, como os ingleses, na Índia, os canadenses, os americanos, em vários de seus Estados, começam a fazer a polícia de seus bens naturais e a reconstruí-los. O reflorestamento das regiões desbastadas é, aliás, um velho costume europeu.

No Brasil, onde a população, e igualmente, a riqueza, não tem crescido em progressão igual à dos Estados Unidos, seria de elementar prudência que os poderes públicos procurassem suster a devastação das matas, feita, às vezes, para o nefasto desenvolvimento de culturas extensivas, outras com o único propósito de extração de madeiras e de lenha; que procurassem manter as populaçõesi nas regiões já exploradas, desenvolvendo novas culturas, por processos intensivos; que estimulassem o gosto pelo amanho da terra e pela produção; que habituassem o homem à vida do campo; que fiscalizassem e corrigissem as alterações do clima, os acidentes meteóricos, o ressecamento de certas terras, o alagamento de outras, o abandono, em suma, de quase todas onde a árvore do café pereceu por velhice; que, antes de tudo, promovessem a utilização destas últimas, recolonizando-as com elementos estrangeiros e, de preferência, nacionais, para poupar com zelo, senão com usura, as riquezas ainda não exploradas.

No momento, porém, em que, nos Estados Unidos, no Canadá, na Índia, os governos começam a zelar por suas riquezas e a repará-las, nós outros, pelo órgão dos homens que nos governam, corremos pressurosos a oferecer a quantos se propõem a violar o seio virgem dos nossos repositórios de madeiras, de húmus e de fertilidade, vastas e generosas concessões; prontificamo-nos, beatamente, a auxiliar a devastação, oferecendo clentela do Governo ao comércio das madeiras derrubadas; recebemos, enfim, com agradecimento e reverência, todos os que se propõem a explorar fontes de riquezas. Para os nossos estadistas, esse ataque às reservas da nossa natureza, por sindicatos estrangeiros — que apenas usam, do nosso país, quando as não trazem, as máquinas humanas — representam auspíciosas “colocações de capitais”.

Os povos semi-bárbaros, mas sedentários, da Ásia, como os chineses, não sabendo, apesar de suas densas populações, extrair e explorar o minério de suas jazidas, possuem vivíssima a sensibilidade do dono da terra, vibrátil até à revolta aos primeiros estudos dos engenheiros, às primeiras contusões das picaretas. Nós, que não sentimos pressa, e com razão, em rasgar o seio da nossa terra, para nosso proveito, temos solicitudes alviçareiras por entregá-la ao primeiro solicitante, fazendo, com delícias, o lenocínio do nosso solo.

Conhecemos, apenas, durante o período colonial, o regime das explorações por feitorias; raros estabelecimentos possuíamos, há pouco, parecidos com os desses formidáveis esgotadores de riquezas, à custa do trabalho bruto de “fellahins” e de negros. Foi preciso que a República atingisse a maioridade, para que se nos apresentasse a perspectiva de ver instalar, entre nós, colônias de minerações como as da África do sul, monopólios industriais e agrícolas, extensas regiões entregues à exploração alheia, estradas de ferro marginadas de vastas zonas de influência estrangeira, toda a perspectiva de uma rede de viação férrea destinada a realizar a obra, absolutamente destituída de base e de necessidade econômica, de um aparelho de circulação continental interna; extensas culturas de borracha, entregues a estrangeiros, na Amazônia; o escândalo inqualificável do enfeudamento da indústria pastoril a um sindicato; a eventualidade da concentração do comércio de café, em mãos de comerciantes forasteiros; o estabelecimento de bancos hipotecários, munidos de favores e privilégios, que a Turquia não concederia, talvez.

Empresas de denominações americanas, inglesas e francesas, mas que, como é natural — no estado do mercado monetário mundial — representam principalmente capitais franceses, compraram, ou estão para comprar linhas de estradas de ferro, que, ligando a Argentina e o Uruguai ao Brasil, atravessando os Estados do Rio Grande, Mato-Grosso, do Paraná e de S. Paulo, tendem a se unir, para o norte, com outras já em poder de estrangeiros, percorrendo, todas, extensas regiões, onde se projetam vastas fundações agrícolas e explorações de minas.

Se estas empresas se tivessem vindo formando paulatinamente, no correr da nossa vida, seria agora a oportunidade para que o Governo brasileiro se dispusesse a examinar o estado da propriedade industrial estrangeira no país, de forma a impedir, por algum tempo, senão a sustar, o seu desenvolvimento.

Quem quer que estude conscienciosamente a nossa história econômica será forçosamente levado a concluir que a vitalidade da nação brasileira representa o produto de três formas de indústrias: a exploração colonial, extensiva, das riquezas do solo; o desenvolvimento do comércio; e, recentemente, um certo surto industrial, criado e animado por meio de tarifas protecionistas. A contribuição da cultura intensiva nas colônias estrangeiras, fator insignificante nas trocas do comércio internacional, pouco mais pesa nas do comércio interno.

Ora, se o trabalho, grosseiro e perdulário, do senhor de vastas terras, tem sido um saque brutal às nossas riquezas, o comércio que ele provocou, instalou e animou, foi, e será, o mais eficaz auxiliar, do esgoto, da exportação, do êxodo, de seus frutos. As colônias têm sempre um comércio de caráter sui generis e as produções exóticas são exploradas por intermediários, ávidos de lucros largos e fáceis.

Dos tempos coloniais até hoje, a direção e a organização da nossa vida econômica têm obedecido ao único intuito de canalizar os produtos para as mãos do comércio, de facilitar e robustecer o comércio, de abrir meios novos de expansão e de influência comercial, no interior. Habituados a encarar, com o virtuoso simplismo que é um dos atestados da nossa probidade, cada ramo da economia isoladamente, nós nos desvanecemos com o desenvolvimento comercial que possuímos, sem percebermos que esse desenvolvimento representa realmente o trabalho da conquista, da sucção, da drenagem, das nossas riquezas, — desordenada e precipitadamente arrancadas à terra, — para as nossas metrópoles econômicas.

Portos, cidades, estradas de ferro, rios navegáveis, são sempre instrumentos de trânsito, nem sempre instrumentos de troca. As permutas entre sociedades que fazem comércio compensam-se e liquidam-se por lentas e amplas operações, durante longos períodos, de gerações para gerações. Ora, na vida de um país vasto como o Brasil, não há quem, saindo do Rio de Janeiro para qualquer direção, não encontre vastas regiões esgotadas; imensos tesouros saqueados; poucos depararão com alguma coisa que represente, para esse enorme capital extorquido à terra, alguma compensacão remuneradora, qualquer reparação real à produtividade ou ao valor do solo.

O selvagem, surpreendido pela astúcia de navegadores, troca as pedras preciosas, o ouro, as especiarias, por espelhos, objetos brilhantes e ornatos ostentosos. Nós outros, sem recebermos, de mão a mão, dos que exploram comercialmente as nossas riquezas, os palacetes das nossas avenidas, as carruagens, os automóveis, as jóias, as letras fáceis e brilhantes, os vestuários, as modas, que simulam o nosso “progresso”, e enquanto esse progresso nos embala com seus perfumes e com o espetáculo de suas grandezas e suas luzes de rampa teatral, não vemos que o Brasil real, o Brasil das matas virgens e das minas, com as aluviões e os sedimentos de milhares de séculos de trabalho do tempo e da natureza, vai sendo desnudado, minado, raspado, pulverizado, resecado: o ouro puro segue para outras bandas, ficando-nos, em troca, as lentejoulas das nossas cidades e os arrebiques dos nossos palácios e das nossas avenidas!

Em nossa era, os povos novos, rapidamente civilizados, são, necessariamente, um tanto megalomaníacos. Há sociedades parvenues como os indivíduos, nações rastaquouères como os rastaquouéres que “flanam” nos boulevards parisienses. A América, fundada pela política das metrópoles e pela cobiça dos colonizadores, possui uma grande força civilizadora: a falta de tradições e de instituições aristocráticas, de espírito de hierarquia, de tendência para a disciplina e para a autoridade; e traz, com um vício orgânico, uma fonte provável de ruínas e de desordens futuras: a vasta propriedade territorial, a exploração senhorial da terra, o estímulo de intensa exploração, que animou seus primeiros habitantes e anima os de hoje. Se os homens de estudo e os homens de Estado compreendessem o problema da evolução humana e a sua inevitável diretriz, teriam realizado o encaminhamento para o progresso, segundo a fórmula do individualismo de Adam Smith, pela organização e distribuição do trabalho; teriam fundado, no solo americano, uma civilização, onde a reação socialista seria exótica, porque o socialismo não é senão o refluxo das leis econômicas contra a interpretação do individualismo pela predominância do capital. Mas os homens de saber e os homens de governo preferiram divagar, nos cenáculos literários e nas academias, repetindo, em nosso meio novo e virgem de estudo, os mesmos debates, as mesmas pesquisas curiosas, as mesmas teses teóricas, d’além-mar; e, enquanto isso, os espíritos práticos fundaram a vida factícia que levamos, onde forças mínimas de escasso capital, multiplicando-se indefinidamente por milhares de expedientes, instalaram um verdadeiro feudalismo argentário, as mais imprevistas formas da especulação, as suseranias dos reis da indústria e dos negócios.

Com esta orientação, as novas nacionalidades americanas ficaram sujeitas ao domínio da cobiça, à pressão do capital, ou, o que é mais verdadeiro, de especulações sem freio; e, sob o impulso desses interesses imprevidentes e desapiedados, nações e territórios vão tendo o destino de terras enfeudadas aos mais audazes, conforme a sua natureza. É aqui que o problema brasileiro apresenta seu aspecto mais grave.

Os Estados Unidos, e, em grande parte, a Argentina, são países de terras semelhantes, senão iguais, às terras que habitavam os colonizadores europeus. O clima e a natureza do solo não diferem do clima e do solo da mãe-patria. Os hábitos aí encontram o mesmo ambiente, as mesmas sementes, do país natal; a mesma terra, as mesmas probabilidades de germinação e de produção. A colonização é uma mudança ordinária, de casa velha para casa nova. O Brasil é, por sua posição geográfica, o único grande país soberano de clima e constituição francamente equatorial e tropical; semelhante às regiões da África e da Ásia exploradas como feitorias, seduz e atrai grande número de colonos instáveis, comerciantes em trânsito, ou de breve estadia, sendo habitado e povoado a esmo, cultivado e explorado empiricamente. Jamais os problemas da adaptação do homem ao meio novo e estranho, os da cultura do solo ignorado, os das instituições e dos costumes próprios para essa adaptação e para essa exploração, foram objeto de estudo. O colono e o comerciante localizados no Brasil, seus descendentes e seus discípulos, ficaram sendo seres, assim, estranhos a seu habitat, eternos desaclimados — exploradores vorazes, a princípio, de seus bens, vítimas, afinal, de novos exploradores.

Se Portugal já não tivesse, a dar para modelo da nossa arquitetura, as suas vastas casas de herdade, chatas e largas, com amplas varandas, é provável que, já nos nossos campos e nas nossas cidades dos tempos coloniais, se encontrassem os chalés suíços, e os edifícios, agudos e esguios, construidos para o deslizar das neves; mas a tolice que o primeiro colono não fez, está fazendo o bisonho civilizado contemporâneo; as nossas novas e garridas cidades, os lares das nossas modernas fazendas, tomam, para modelo de seus edifícios, os palácios de Paris e os “cottages” ingleses; e a este exemplo material, visível, de falta de senso de adaptação, corresponde, nos hábitos da vida, nos processos de trabalho, nos métodos de ação social, nas instituições, uma combinação de maneiras, costumes, idéias, convenções, formas, aplicações, todos importados, que tornam o homem cada vez mais estranho a seu meio e a sociedade cada vez mais disparatada com o seu ambiente. A perpetuação de uma existência colonial, no fundo e na essência, é o resultado inevitável desta inexperiência da realidade, deste inconsciente conflito entre o agente e o objeto da civilização.

Para bem explorar esta natureza, corrigir seus defeitos, estimulá-la e aperfeiçoá-la, fazemos apelo à ciência, às artes, à lição e à sabedoria dos europeus; e, assim como, nas Faculdades Superiores, nas letras, nos jornais, nas escolas, nos ginásios, as idéias em circulação são as frases textuais, os dizeres literais, dos livros do velho continente, os institutos e escolas fundados para educação prática dos produtores, sob modelos dados, aliás, na Europa por ineficazes pelos espíritos mais práticos e lúcidos, parecem, aos olhos do que mourejam no labor da terra e que ainda não aprenderam a guiar o arado dos egípcios e dos gregos, academias de um saber transcendente.

Emigrados que não compreenderam o mistério da fecundação da sua terra, não tendo ainda adquirido, no contato quotidiano do trabalho, o amor que liga o cultivador interessado e previdente ao bem que é fonte de sua fortuna e segurança de sua prole, os brasileiros ficaram divididos em duas sociedades sem liga e sem solidariedade: os que exploram o patrimônio nacional à guisa dos estrangeiros, e a multidão que trabalha para não morrer, ou que se vai deixando extinguir, porque não tem onde, nem como, trabalhar.

A nossa população augmenta; mas o valor social da população não se tem desenvolvido. A alegria com que se proclama o acréscimo da população nacional e o aumento das nossas exportações, indica, apenas, o grau dessa “insouciance” que os observadores franceses da nossa vida tantas vezes sublinham, como traço saliente de nosso espírito. Para que tão pequena camada de povoadores, extraindo e colhendo, descuidada e levianamente, os frutos de uma terra virgem e vasta, não proliferasse e não tivesse produtos a exportar, fora mister que não existissem, do outro lado do oceano, velhas e bastas populações, solicitando e recebendo os produtos das nossas depredações; mas, quantos milênios de formação do subsolo, da terra e do “húmus”, não representam este progresso no povoamento, esta dolorosa exportação dos frutos, quase extrativos, da nossa natureza; quantos séculos de futuro bem estar não estão sendo descontados, para sustentar e animar o florescimento desta prosperidade?

A exploração material de um território é regida pelo estímulo econômico de seus exploradores, obedece à força predominante no espírito dos habitantes, à força dos interesses: ao maior ou menor poder de atração dos agentes da exploração e do comércio, no país e fora dele, nas operações da colheita e da distribuição, nas permutas da exportação e da importação, nas trocas do intercâmbio. O comércio realiza trocas aparentes, satisfaz necessidades ocasionais. Nas velhas nacionalidades de fundação normal e de lenta evolução gradativa, o regime conservador da economia, operando permutas quase todas internas, manteve dentro dos territórios o valor dos frutos extraídos da terra, transformando-os em indústrias supletórias de novas riquezas, e valorizando as riquezas consolidadas. Quando se começam, depois, a operar, com o desenvolvimento da viação e das relações mercantís, as trocas externas, o país está suficientemente vigoroso e instruído para preservar as suas riquezas, para evitar que se tornem inúteis, para se não permitir extravagâncias e desvarios de prodigalidade. O surto das nacionalidades americanas — simultâneo do surpreendente e vertiginoso desenvolvimento da viação, dos meios de circulação, dos instrumentos de tráfego, de crédito e de exploração, e da excitação da curiosidade, com a leitura e com as viagens — acumulou sobre estas nacionalidades, já habituadas pelo regime colonial à passividade econômica, gigantescos mecanismos mercantís de extração e de desvio de riquezas.

As exportações comerciais para os mercados externos representam o esgoto da substância, da riqueza dos solos, brutalmente explorados; o que as importações restituem não passa de mercadorias e produtos de interesse secundário, de satisfação de necessidades imediatas, quase sempre de uso breve e rápido consumo. O capital que permanece, acumulado nas cidades, em indústrias de transformação, no comércio, em prédios e na propriidade móvel, representa pequena fração dos prêmios da produção, e fica quase todo esterilizado.

O Progresso mágico dos Estados Unidos é a miragem que seduz quase todos os diretores das sociedades americanas; mas o desenvolvimento da nação dos “yankees” fundou-se sobre bases mais sólidas e sobre terreno mais conhecido, que o de outras nações do continente, e principalmente, do que o Brasil; e o melhor modelo que eles nos oferecem não está em sua civilização material, senão na cultura moral e intelectual da sua sociedade.

O progresso material dos americanos é uma obra audaciosa e febril, um esforço monstruoso de energia, no trato da natureza, com fito no enriquecimento: saque formidável sobre o futuro, em suma, que só a cultura, também intensa, de seus homens permite esperar ver resgatado. Seguindo o seu exemplo, na audácia da exploração material, não os seguimos, no da cultura do homem. Aquela audácia, por um lado, tal incúria, por outro, são riscos de um seguro aleatório, temeridades dificilmente reparáveis.

A natureza da terra americana; seus climas, temperados ou frios; seu sistema hidrográfico; a expansão, rápida, porém, metódica, das suas populações, concomitante com o desenvolvimento das vias férreas; uma relativa estabilidade de populações e de trabalho, nas zonas primitivamente exploradas; o conhecimento prático da terra e das culturas; a falta de culturas vivazes, de longa duração, esgotantes, e de dificil, senão impossível, replanta, segundo a experiência verificada; a regularidade das estações, idênticas às da Europa; o suprimento normal de águas e de umidade às terras e ao ar, pelo degelo e pelas neves; a formacão permanente de “húmus”, com a queda regular das folhas; a abundância de carvão e de ferro; a imediata e fácil produção dos gêneros ordinários de alimentação, para europeus; todas as condições, em suma, da natureza e da economia, — permitiam, facilitavam, incitavam, uma exploração intensa e vigorosa, arrojadas tentativas de industrialismo e de negócios. Os Estados Unidos fizeram-se, desde logo, assim, um centro de conservação e de atração de capitais, incorporando-se ao organismo mundial da circulação financeira, renovando, periódica e freqüentemente, a sua irrigação monetária, e oferecendo-se, como terreno de escol, ao emprego normal de capitais. As suas retribuições ordinárias ao crédito não são prêmios de usura, salários de serviços excusos, de “réclame”, ou de corretagem, frutos de arriscadas e onerosas empresas coloniais. Mas esse desenvolvimento “à coup de baguette” está sendo combatido, nos próprios Estados Unidos, onde os homens de estado, ou economistas e os sociólogos, começam a se insurgir contra os riscos do progresso material “à outrance”.

Uma das mais caras imagens do nosso culto à Pátria é a proclamação das nossas riquezas. Foi, por longos anos, axioma do nosso otimismo oratório; começa a ser uma das desilusões do nosso ceticismo postiço.

A questão do valor intrínseco do solo é um problema tão complexo, depende tanto de dados, ainda insuficientes, de Geologia e de Agronomia, e do estudo comparativo das utilidades e das necessidades atuais e futuras do homem e da sociedade, que toda pretensão de formular sobre ela juízos categóricos é, pelo menos, prematura.

Pondo-a de parte como tese, há um aspecto da nossa riqueza natural que se nos impõe à atenção: a da relação do clima com a produtividade da terra. A natureza equatorial e tropical carece de certos elementos primordiais de conservação da fertilidade das terras e da regularidade das produções: os gelos e as neves, mananciais de águas correntes e fontes de umidade, para a atmosfera e para o solo: a queda anual das folhas, origem da terra vegetal.

Em nossos climas, estes elementos são substituídos pelas condensações atmosféricas, alimentados os terrenos pelas águas que aí se formam. Preservar as florestas, nos espinhaços das serras, nos altos dos morros, nos planaltos, nos pontos elevados, e, em geral, em toda a parte onde a derrubada não for imposta por necessidades reais das populações no cultivar a terra por processos racionais, intensivos e conservadores, torna-se, assim, para nós, um interesse vital, de dobrada importância, em relação aos países frios ou temperados, onde estes assuntos já fazem, aliás, um pouco, objeto de cuidados governamentais.

O nosso sistema hidrográfico, tão desigual e ingratamente distribuído, tão mal estudado e brutalmente desperdiçado, sem nenhum regime de canalização e de irrigação; as nossas florestas, tão levianamente devastadas, nesse afã de ir estendendo populações aventureiras e empresas capitalistas, que lastram, como pragas devastadoras, por todo o território, — sem amor pela terra nem interesse pelo futuro humano, — estão a pedir, antes, uma política de conservação da natureza, de reparação das regiões estragadas, de concentração das populações nas zonas já abertas à cultura, sendo educado o homem para aproveitá-las e para as fazer frutificar, valorizando-as.

O caso norte-americano não se pode reproduzir mais, no estado atual da civilização, em que, ao surto do progresso material, hão de suceder novos estímulos e nova posição do problema humano, para evitar as mais graves perturbações à ordem e perda das mais preciosas conquistas, da evolução social. E, quando essa repetição fosse possível, o Brasil seria, com seu meio insuficientemente conhecido para uma vasta colonização e arrojado comércio, o terreno menos apto ao novo ensaio. No estado de desequilíbrio entre a distribuição das populações e o aproveitamento das terras, que caracteriza uma das faces mais graves do problema mundial, o destino do Brasil não pode ser o de oferecer novas regiões a explorar e novas riquezas às ambições irnmediatas dos povos super-povoados ou excessivamente ricos, mas o de ir realizando, à medida que o estudo dos problemas da sua natureza o permitir, com a instalação quase patriarcal, a princípio, dos colonos, e com estabelecimentos agrícolas de caráter mais industrial, depois, a solução do problema fundamental da sociedade contemporânea, que consiste em fazer regressar o homem ao trabalho da produção — às indústrias da terra. O desequilíbrio das sociedades modernas resulta, principalmente, da deslocação constante das populações, das zonas rurais para os centros populosos, da agricultura para as indústrias, do esforço produtivo para as manufaturas e para o comércio. O Brasil tem por destino evidente ser um país agrícola: toda a ação que tender a desviá-lo desse destino é um crime contra a sua natureza e contra os interesses humanos.

As sociedades modernas estão já pagando, com a carestia da vida, pesado tributo ao desaproveitamento do solo e do braço humano, à atividade infecunda e à inércia do maior número: uma das mais graves conseqüências da política do capitalismo, das especulações mercantís, da febre de enriquecimento. O Brasil ou será o país da regeneração do homem pelo trabalho, ou representará, na história da civilização, um roubo das gerações contemporâneas ao progresso humano. Contribuir para este escândalo, seria uma vergonha para brasileiros e para estrangeiros: um crime, para os nossos governantes.

Para realizar o seu destino, cumpre-lhe reagir contra o açodamento dos que procuram fazer a exploração extensiva das riquezas naturais, jogando com os capitais disponíveis nos grandes mercados monetários do mundo. Está nisso um dos maiores males econômicos da nossa época: a principal causa das perturbações da ordem internacional, a origem das zonas de influência, dos conflitos de ambição entre as grandes potências, dos protetorados e das conquistas a mão armada. Os mais graves erros e atentados da política internacional contemporânea têm, todos, origem na ambição incontida de capitalistas, sindicatos e bancos, que se não contentam com empregos de capital razoavelmente remunerados e regularmente amortizados e, ainda mais, em manejos de corretores e intermediários de negócios, apoiados por poderosas instituições financeiras, à caça de fortunas rápidas, em empresas coloniais.

Nas sociedades novas, sem costumes e sem organização econômica favoráveis à distribuição das riquezas, dá-se, em elevada potência, um fenômeno idêntico ao das sociedades feudais, baseadas na suserania e na vassalagem, por um lado, e na servidão do trabalho, por outro: os elementos parasitas, protegidos pela força — que, em nossos tempos, está principalmente no capital — associam-se, todos, contra os produtores. Se a força do capital — que não é um produtor de riqueza, senão um simples motor da exploração e da circulação — está no estrangeiro, a associação dos interesses nacionais ativos e dominantes pende para o elemento mais forte, contra o elemento explorado; e a produção nacional é sempre vencida, ainda que, quase sempre, num lento sacrifício mudo e inconsciente.

Imitando as tendências das sociedades européias, e cedendo à atração dos prazeres e vaidades que seduzem a gente das camadas superiores do mundo moderno, os americanos do norte, em primeiro lugar e em plano destacado, e os do sul, em seguida, vão desvirtuando o caráter da sua civilização e dissipando os patrimônios nacionais. Daí o desenvolvimento dos inúmeros processos e instrumentos pelos quais, em alguns dos países novos, e no Brasil, assinaladamente — por efeito de causas já apontadas — a riqueza nacional, mobilizada, tende a emigrar, e todos os agentes econômicos, sociais e políticos, tornam-se auxiliares, quando não co-autores, do empobrecimento geral, com perda do estímulo produtivo, afrouxamento da probidade econômica, robustecimento progressivo do prestígio e do poder dos que representam interesses estranhos.

Em relação a quase todas as nossas indústrias, o comércio nacional, os intermediários mercantís, todos os que exercem profissões liberais, os banqueiros, e os capitalistas, são colaboradores do estrangeiro, no esgoto das riquezas e no êxodo de capitais; os hábitos pessoais e os costumes da sociedade cooperam para avolumar as correntes de drenagem. E, como a produção e o trabalho não são representados na sociedade senão pelos seus elementos menos cultos — quase bisonhos, em sua simplicidade, e perdidos, na maior parte, no isolamento do campo e das cidades remotas — os letrados, os homens de imprensa, os profissíonais diplomados, os políticos, os governantes — órgãos de um pensamento, literário e científico, importado, e sem adaptação, e advogados dos interesses dos que conseguem fazer-se ouvir, gozando de prestígio social e dispondo, em suma, dos instrumentos de publicidade, — fazem a obra nefasta do parasitismo, sobre a planta robusta da exploração colonial.

A análise das influências dominantes na formação da mentalidade brasileira, e que preponderam na direção da nossa vida prática, pertence ao número dos problemas que mais se impõem à atenção dos políticos. Se não é absolutamente certo que a humanidade tem sido dirigida por idéias, é rigorosamente exato que as idéias, como fatos psíquicos, possuem um poder sugestivo: são fontes e motores de impulsos e de emoções. A evolução das sociedades humanas tem sido, principalmente, obra de impulsos e de emoções.

Derivando de uma civilização elevada e distinta, que, quando não houvesse dado outras provas da superioridade da raça que a produziu, contaria, só na herança artística e literária que nos legou, um alto documento de capacidade; gente que, por comprimida numa faixa de terra, entre os embates das imigrações continentais e o oceano, não pôde prosperar e engrandecer-se, na época em que o futuro dos povos modernos se jogava no campo das conquistas imperialistas; — o nosso espírito, guiado, em grande parte, pela fatalidade da língua, cedeu aos mesmos impulsos das influências religiosas, acadêmicas e sociais, dominantes na mãe-patria, não educou a observação e a experiência, e carecia de elevação ideal, de força de pensamento e de exercício do raciocinio, quando realizamos a Independência.

As letras onde fomos, após, buscar alimento para a nossa curiosidade, as letras francesas, passavam, por sua vez, também, por um estádio de desordem, de inspiração reflexa e de tibieza, na iniciativa e na produção.

Observa-se, assim, em quase toda a nossa história intelectual, em primeiro lugar, um notável abatimento, no nível da cultura filosófica, das idéias gerais, do espírito de generalização. Os intelectuais eram, quase todos, também, profissionais; à educação acadêmica, literária e formalista, os misteres e contingências da profissão juntavam mais uma causa de depressão intelectual, com a especialização dos conhecimentos. Se se encontram, assim, por vezes, aqui e acolá, ao tempo da primeira constituinte, nas palavras e nos escritos de alguma inteligência mais ambíciosa, citações dos nomes do alto pensamento humano, na Filosofia, na Ciência, ou na arte que tem por material a linguagem, se se deparam referências, menos às idéias desses grandes espiritos, do que às suas fórmulas e máximas — engastadas, nas peças oratórias, nos artigos e em livros, como jóias para atavio literário — o nível comum da instrução era o da ilustração, colhida nos tratados, nas obras de comentário e de desenvolvimento, nas de atualidade e de impressão.

Tal tem sido o nível do nosso preparo mental, até hoje. Nós temos ilustração; não temos cultura.

Sem possuir estabelecimentos de cultura geral nem órgãos privados que a façam, a nossa curiosidade intelectual, estreitada e abatida pelas cogitações profissionais, divaga, desnorteada, no oceano de tinta da imprensa moderna, sem atingir, nem à formação da personalidade, nem à lucidez da consciência.

Nascem daí as duas situações mais comuns, no pensamento brasileiro: tendência para as ortodoxias, como resultado dos conflitos das inteligências, entre mundos de opiniões e orientações divergentes, e como abrigo dos espíritos mais fortes e das consciências mais exigentes; e essa atitude de vacilação e de dúvida — quase de inexpressão cerebral — bem característica do “intelectualismo”, rico de conhecimentos e de idéias, capaz de prodígios de dialética, mas de todo inapto para afirmar uma convição, para aplicar uma tese aos fatos, para vencer a inércia paralítica, própria da insufíiciência mental no dar força criadora à idéia, em transformar o pensamento em impulso volitivo.

Neste estado de espírito, ébrio de frases e de palavras, sedento de impressões violentas, submisso aos tipos da moda, a notoriedade substituiu a autoridade, a literatura fácil, de divulgação, e impressões ligeiras, colhidas nos compte-rendus e nos noticiários, sufocaram o juízo, o gosto e o discernimento. Os espíritos são movidos, como pelas grandes rodas dos colossais maquinismos da imprensa diária e periódica, à força de tiragens. E, sendo a noção desenhada nos cérebros pelas idéias de civilização e de progresso, a dos aspectos visuais e das emoções dos grandes centros de agitação e de luxo, os estímulos que aqui se apresentam, como modelos e como exemplos, são os das aparências mais superficiais da vida quotidiana dos povos adiantados.

Os teóricos repetem, maquinalmente, as doutrinas e sentenças em moda: sistemas rígidos e construções factícias, umas, — condenadas à esterilidade, como espécimes de herbanário e coleções de museus — nos anais do pensamento; contrárias, outras, à realidade, e opostas, no combate das idéias (reflexo do embate das tendências antagônicas dos interesses) aos nossos interesses vitais. Outras formas do pensamento menos pretensiosas adotam, com as últimas sailiies dos humoristas e frases dos acadêmicos célebres, os juízos correntes na Europa, — em regra, expressivos de um estado de sentimento e de idéias, estranhos, senão hostis, aos nossos.

Sobre tudo isto, a opinião dos jornalistas e dos financeiros impõe a ditadura das correntes de idéias, favoráveis aos interesses dominantes. A opinião das massas, manifestada nas expansões populares, ou por seus órgãos de publicidade, reflete o interesse dominante em cada época e o estado dos espíritos em relação a este interesse.

Não é licito duvidar de que, na atual situação econômica da Terra, com o desequilíbrio que caracteriza as relações da produção e do consumo, e com o inflacionismo comercial e industrial, os interesses dos grandes centros de negócios estão, naturalmente, em conflito com os interesses dos países novos, que eles exploram mercantilmente. O pensamento, que os espíritos educados na literatura ligeira e nos artigos de jornais, e os brasileiros viajados, recebem, das palestras e da vida mundana — que nos vem, enfim, por vários canais, da City, de Londres, e da Bolsa, de Paris, traduzindo a impressão da sensibilidade da finança sobre os riscos de seus interesses — é um pensamento, senão sempre adverso, sempre alheio aos nossos interesses. A opinião vulgar dos europeus e dos homens de finanças, principalmente, indiferente a altos ideais e à sorte dos povos, não vê, em nossas fortunas e nossas vicissitudes, senão o aspecto da sua repercussão sobre as rendas públicas e sobre os juros de títulos, de seu efeito sobre os lucros comerciais.

Este interesse não caminha paralelamente ao nosso; e o efeito daquelas impressões sobre as nossas coisas, transportadas pelas alviçaras dos brasileiros que viajam e que aprendem por artigos de jornais, entra no número das causas mais graves dos desvios da nossa educação.

As crises das nossas finanças expõem-nos, por outro lado, a mais nova subordinação. Absorvidos nos cuidados do crédito no exterior e acabrunhados pela pressão das dívidas, descem os governos a um verdadeiro estado de subalternidade, sob o temor do credor estrangeiro e a pressão do capitalista, e não têm nem o critério nem o braço livres para dar ao país a orientação indicada por seus interesses permanentes e ordinários. São escravos dos interesses estrangeiros.

A soberania dos países avariados — usando a expressão, já hoje clássica, do Sr. Leroy Beaulieu — só não sofre os vexames das agressões diplomáticas, porque corretores e zangões incumbem-se de liquidar, nos corredores das Bolsas, à custa dos interesses da nação devedora, as contas, usurárias, dos empréstimos.

A independência de um povo funda-se, antes do mais, sobre a sua economia e sobre as suas finanças. Edificar sobre a nossa autonomia econômica, alimentada pela iniciativa, pela energia e pela tenacidade, que já provamos possuir; e sobre a mais severa exação nas nossas finanças, — um pensamento nacional a respeito das coisas da vida humana, e um juizo nosso, sobre os nossos problemas e os nossos destinos: aqui está o guia do nosso esforço patriótico. E esta obra não é uma obra de educação: é uma obra de direção política. Nenhum povo tem a educação necessária para dirigir seus interesses gerais.

Intelectuais, porém, e, em geral, homens de letras, estão longe de ocupar a posição que lhes compete na sociedade brasileira. Não formam, até hoje, uma força social.

A intelectualidade brasileira levou ao ultimo extremo essa atitude de impassibilidade perante a coisa pública a que a absorção do espírito, em estudos especulativos e o desinteresse pela vida e pela realidade habituou filósofos e cultores da arte.

A inspiração reflexa da arte européia e o pensamento de empréstimo tiram aos que falam à nossa sociedade todo o prestígio eficaz: sente-se, em quase toda a obra espiritual dos nossos homens de letras e de ciência, a tendência subalterna de espíritos não educados para compreender e para aplicar: cérebros oberados de idéias, de fórmulas e de imagens, senão de todo alheias, de inspiração e de feitio alheios. Em nossa bela inteligência, tão aguda e tão luminosa, a memória, a imaginação passiva, de simples forma, puramente verbal, a facundia e a facilidade de produzir, tomaram o lugar da capacidade de conceber e de elaborar.

Os capitalistas, estes se volvessem os olhos para o passado, verificariam, com um simples relance, que o capital e a riqueza, no Brasil, raro passam de uma geração. Os hábitos de trabalho e de economia, a arte de ganhar, de acumular e de gerir as fortunas, não são transmitidos aos herdeiros, — educados, ao contrário, para o simples gozo, para a dissipação dos haveres. Não há seguranças testamentárias, garantias jurídicas de qualquer espécie, capazes de evitar o esboroamento das fortunas, quando a sociedade é dominada por forças contrárias à esterilidade e à conservação, quando os indivíduos não têm sido preparados para defender seus patrimônios.

Em conflito permanente o homem e a terra, como os interesses do habitante e os dos novos imigrados, não se forma nunca a “economia nacional”, não se desenvolve a “sociedade”. Eis o que explica as crises, as ruínas, as falências periódicas, que deslocam fortunas de geração para geração, destruindo, hoje, ao sopro de um acidente comercial, ou de uma crise financeira, fortunas ontem florescentes.

Nesta fase da evolução humana, o capital brasileiro está à mercê de tendências sociais e políticas estranhas, há pouco dificeis de perceber, hoje patentes, aos olhos dos que se dão ao simples trabalho de ler telegramas e notícias de jornais. A luta entre o imperialismo financeiro e a liberdade econômica dos países fracos; a luta do imperialismo militar, com a independência, ou, pelo menos, a autonomia, destes países, — que será o capitulo seguinte; a luta do capital e do trabalho; a forma particular do problema social no Brasil, indefinida, e, por isso, despercebida de observadores superficiais, — jamais capaz de produzir crises violentas, mas de força a anemiar, até à ruína, as fontes da nutrição nacional: o problema do trabalho e da produção rural; — são elementos que se estão precipitando, na política mundial e na do país, com uma celeridade e um ímpeto que podem, de um instante para outro, subverter todos os valores sociais, destruir todas as bases da fortuna, anular-lhe todos os títulos. A simples lembrança das crises do valor da propriedade móvel e imóvel, em nossa época, bastaria para convencer os homens de capital, da necessidade de aderir a uma política previdente, que, sem a esperança vã de resistir à evolução inevitável dos problemas do trabalho e do capital, defenda a economia brasileira do risco de ser imolada, em proveito de interesses alheios, e prepare a nossa sociedade para ir substituindo as instituições e os costumes, sem subversão e sem sacrifícios.

A insuficiência das nossas estatísticas do comércio exterior e a falta completa de estatísticas de comércio interno, tornam quase impossível um estudo sério dos resultados do intercâmbio econômico, compreendendo todas as verbas da troca e da deslocação dos valores; mas, se um governo, desejoso de ter a consciência exata da marcha da riqueza nacional, confrontasse o seu valor atual com o das duas gerações anteriores, — trabalho que não seria impossível, pelo sistema da soma das sucessões hereditárias, durante o número de anos que fazem a média da vida no Brasil — tenho por certo que, tomando em conta as diferenças do valor da moeda, do seu poder aquisitivo e do custo da vida, o aumento da riqueza nacional seria nulo, em confronto com as nossas perdas colossais, em riqueza exportada, em aplicações improdutivas de capitais, em desvalorização da propriedade privada e desbarato da natureza.

O Brasil apresenta-se ao mundo como o melhor terreno, talvez, para solução de mais de um de seus problemas. Nisto estará a sua glória, ou disto virá a sua ruína. Se as soluções se forem operando com a consolidação da nossa independência social e econômica, a nossa soberania política será laureada com uma das mais brilhantes posições, na política mundial; se se operarem pelo assalto de capitais, pela ocupação e conquista da produção e do comércio, seremos uma colônia tropical de companhias e sindicatos estrangeiros.

Para manter independente a nação, é imprescindível preservar os órgãos vitais da nacionalidade: suas fontes principais de riqueza, suas indústrias de primeira necessidade e de utilidade imediata, seus instrumentos e agentes de vitalidade e de circulação econômica; a viação e o comércio interno: a mais ampla liberdade de indústria e de comércio. Nenhum monopólio, nenhum privilégio; a mais plena garantia e proteção ao trabalho livre, à iniciativa individual, à pequena produção, à distribuição das riquezas.

Precisamos, para isso, de homens e de capitais, proclamam, solenemente, os que governam. Estou de acordo, com a condição de acrescentar-se um terceiro elemento, que não ocorre a ninguém, colocando-se em primeiro lugar: o de trabalho; e com a cláusula expressa de que, se o Brasil precisa de capitais e de homens, só os não tem recebido, e os não continuará a receber, naturalmente, sem solicitação, em boas e justas condições, por não haver organizado o seu trabalho.

Entre as formas ambíguas da nossa logomaquia política, uma das mais queridas é a do povoamento do solo. Não se sabe bem qual a entidade a que se pretende consagrar essa mercê do povoamento.

Para espíritos habituados a representar os objetos concretos e as abstrações, como realidades definidas, um país, uma nação, uma pátria, pode exprimir uma destas três coisas, ou o conjunto das três: o território, o povo e a sociedade; para espíritos de critério político, a sociedade e uma realidade, complexa e viva, amorfa, elástica e dinâmica, que se estende, num momento dado sobre o território nacional em que existe, desenvolve-se, indefinidamente, das épocas remotas da sua formação para o presente, projetando a sua vida e a sua evolução para o futuro, com uma lógica tão necessariamente previsível como a sociedade contemporânea é visível. O futuro apenas deixa de ser um fato, por falta de apresentação objetiva. O futuro de uma sociedade é, políticamente, uma abstração positiva, uma realidade antecipada.

Retida esta observação, uma outra se impõe aos que estudam fatos sociais. Quando se cogita de preparar o futuro de uma nacionalidade, qual o fim, o escopo, o ideal em mira, no espírito de políticos e estadistas? O bem do homem, o bem da vida, a satisfação do conjunto de necessidades e interesses que resultam dos desejos e das afeições físicas e mentais do homem, e que se traduzem, na vida prática, pelas expressões de bem-estar, de felicidade, de contentamento.

Em relação ao território, o povoamento não é, por si só, nem um bem, nem um mal; mas, no interesse do território, o objetivo político deve ser, não o do seu aproveitamento inconsciente, o da “mise en valeur” — nome técnico da arte, cara a banqueiros, economistas e corretores coloniais, da extração incontinente dos produtos da terra — mas o do seu aproveitamento útil, em benefício geral; o da conservação das fontes matrizes das riquezas, dos elementos primários de produção, de correção e reparação das condições secundárias da produtividade. Povoar um território sem educar o homem para a produção econômica, sem organizar o trabalho, importa roubar à terra e causar mal ao homem, fazer das populações infecções corroedoras da superficie do solo. Este povoamento nós o temos feito, como todos os povos novos; tal será o resultado da colonização, como tem sido praticada.

Quanto ao povo, à geração atual da sociedade brasileira, a simples contemplação do espetáculo das nossas populações basta para demonstrar que a luta com uma massa avultada de colonos e com a força de capitais, não é o remédio que se lhe está recomendando, como ação política. Expressão, como fator social, de uma fração deliberadamente abandonada, confessadamente desprezada, conscientemente condenada por incapacidade física e por incapacidade moral, pelos que o dirigem; caluniado por vezes até no espírito, no caráter, na probidade, pelo grupo de seus filhos que sabe falar e escrever, este povo só tem por necessidades a impor a seus governantes a justiça, por um lado, as suas qualidades, e uma severa, mas humana e nobre, política de educação para o trabalho. Se os nossos estadistas estudassem a nossa sociedade e lessem o que se passa em outros países saberiam que o fenômeno, aqui observado, da deslocação das populações nacionais, do trabalho para as profissões improdutivas e para a ociosidade, é geral, principalmente nas nações rapidamente colonizadas. Nos Estados Unidos, a robustez, a operosidade e a energia dos anglo-saxões estabelecidos, quase os não defendem da invasão de forasteiros, menos ainda da de emigrantes mais sóbrios, mais humildes, mais submissos, como os irlandeses, os italianos, os chineses, os japoneses. O sacrifício das gerações de brasileiros, na luta com as forças de colonizadores e do capital, não é um fato étnico, é um fato social, que se reduz, por fim de contas, a um fato político, porque é obra dos governos.

Em relação à sociedade, em seu aspecto permanente, o problema da colonização é tão complexo, que é impossível examiná-lo, no quadro limitado de um estudo. Compreende-se que um país novo, de rápida prosperidade, procure obter suprimentos de população, proporcionados às suas necessidades; compreende-se que outros desejem desembaraçar-se de seus excedentes. Nestes termos limitados, a colonização é uma solução provisória, a certas crises da política nacional. Compreende-se que, como meio transitório de acudir a certos interesses de uma geração, solvendo álguns dos problemas ocasionais da ordem e do progresso mundial, se concerte, entre as nações, um plano de colonização, sujeito a outros requisitos e outras garantias de segurança; mas acreditar que a colonização é meio normal de povoar regiões desabitadas, descongestionando, efetivamente, outras, é erro muito crasso, para homens de estado.

Já em estudos anteriores havia eu chegado a duvidar do real incremento das populações, por efeito da colonização, quando, em recente trabalho de um sociólogo americano, encontrei consignado que a população norte-americana deixou de crescer, na mesma razão do seu crescimento anterior, depois de iniciadas as fortes correntes imigratórias.

No fim de algumas dezenas de anos, depois da política de colonização, os Estados Unidos tinham uma população bastante inferior à que deveram ter, pelo simples efeito da reprodução.

No interesse da humanidade, o sacrifício do nosso povo — efeito inevitável da política de capitalímo e de colonização — seria inútil, senão pernícioso. O Brasil é, ainda, e apesar da ação de seus governos, um repositório e uma reserva de riquezas; e a humanidade, crescendo desproporcionadamente à sua produção, e, principalmente, ao seu sistema de distribuição econômica, está pedindo, neste momento, lições, e escola, de produtividade econômica, ao contrário das de esgotamento da natureza, — que é o que se tem feito e se está fazendo, com pueril e demente imprevidência, entre nós.

Há um argumento, fácil de adivinhar, nos lábios dos discutidores de palestra, contra estas razões: a ciência resolverá, a ciência está resolvendo, estas dificuldades. A “Ciência”, esta ciência providencial para quem se apela, sem noção bem precisa do seu poder e do seu alcance, é uma das divindades do palavroso misticismo contemporâneo. O pendor mental para admitir criações habituou o espírito humano à idéia de que a ciência é capaz de gerar, de produzir, novos seres; a ciência não inventa, não cria, não fabrica; toda a sua ação — realmente racional, realmente “científica”, permita-se-me o pleonasmo — por que só neste sentido ela é auxiliar do fenômeno universal, insofismavel, da evolução — deve consistir em conhecer, aprofundar e analisar, os métodos, os processos, os modos e leis do desenvolvimento, da reprodução e da transformação, para auxiliar as sínteses naturais: nunca, para as substituir, para as produzir ou para as criar.

Há, é fato uma ciência de laboratório, com que espíritos fantasistas, por um lado, e espíritos mercantís, por outro, esforçam-se — obedecendo, sem o sentir, à mesma orientação que guiou os alquimistas na pesquisa dos meios de fabricar o ouro, ao mesmo estímulo que tem conduzido os que estudam os fatos da vida humana a cultivar de preferência a medicina, aperfeiçoando a arte de inventar remédios, em vez de estudar os meios de defender, de propagar e de multiplicar a saúde, pelo desenvolvimento das condições normais da existência — ciência em que é ainda visível a tendência da imaginação primitiva para as maravilhas e para os milagres, ao lado da ambição de domínio espiritual, de feiticeiros e de mágicos, e de uma forte dose de cobiça industrial; que se esforça, dizíamos, por substituir as criações naturais por criações de síntese. Tal ciência, quando não representa uma ilusão, não é senão um erro de especialistas, que só alcançam os fins e as probabilidades, parciais, ou momentâneas, de seus inventos — pagos, afinal, com o desequilíbrio das forças físicas ou econômicas, da Terra e do homem.

Não é possível, por mais que se procure atenuar a imagem da nossa dissídia, para com os interesses vitais do país, na orientação que lhe estão dando os seus financeiros e administradores, dissimular a penosa impressão dessa renúncia da autonomia, da capacidade econômica, da personalidade nacional. Jamais, em qualquer das nações avariadas do mundo, se viu permitir tão completa, tão imprudente, tão leviana, alienação de riquezas e de negócios. Aos títulos da dívida pública, e aos títulos garantidos, de empréstimos estaduais, que dão a certos trechos do território nacional uma posição de verdadeiros feudos das bolsas estrangeiras; aos empréstimos, que, sem fiscalização, e sem ciência, talvez, da União, vão fazendo, no estrangeiro, as municipalidades; às indústrias, fundadas e exploradas por empresas estrangeiras; às estradas de ferro, que já lhes pertênciam; ao lento processo de apropriação por estrangeiros, de meios de trabalho e de fontes de riqueza: fatos que resumem a história da nossa colonização, — juntar, de chofre, sem que isso represente um fenômeno normal da nossa evolução econômica, senão simples conseqüência do nosso desgoverno, da existência, nos mercados estrangeiros, de capitais desempregados (causa e origem da política imperialista) e da solicitação de agentes e intermediários nacionais e estrangeiros, uma instantânea alienação das mais extensas e das melhores das nossas estradas de ferro, concessões, de toda a espécie, para explorações industriais e monopólios virtuais de indústrias essenciais à vida do povo: — a cessão, enfim, das fontes da vida e das obras vivas da nacionalidade: — vale por uma verdadeira confissão de demência. Não é outra a história do imperialismo e da política expansionista, na China, na Turquia, no Oriente europeu; não foi outra, a do Egito e de Marrocos. E, quando a mais ligeira informação sobre a origem de tais negócios autoriza a supor que eles obedecem a vastas combinações, notando-se o entravamento com outros movimentos políticos, dessas operações financeiras, o caso começa a aparecer aos olhos, com um aspecto, que pode pôr em causa, ao ver de estrangeiros, o próprio zelo dos nossos governos pela integridade do país.

A história, deplorável, da nossa vida política, com a falta de ordem legal, e, por vezes, da própria ordem material, os nossos eternos “deficits”, ameaçadores e sem promessa de corretivos, a violação das leis e da Constituição, notórios abusos administrativos, só ignorados, parece, pelo governo, tudo isso seria bastante para que a alma nacional, o sentimento patriótico deste povo, reclamassem, num só brado, enérgica e pronta reação — para que o governo deliberasse enfrentar as nossas dificuldades e as ameaças acumuladas sobre o nosso futuro; para que os nossos braços se erguessem, enfim, num só movimento — pronto, enérgico, seguro — a deter o país, despenhado por esse declive de ruína e de dissolução.

Mas os fatos a que me venho referindo, estes, são de ordem a não admitir discussão, delongas, tergiversações. Isso que aí se está passando não pode ser consumado. Uma nação pode ser livre, ainda que bárbara, sem segurança e sem garantias jurídicas; não pode ser livre, sem o domínio de suas fontes de riqueza, de seus meios de nutrição, das obras vivas de sua indústria e do seu comércio.

Não é uma reação nativista, que se nos esta impondo: é um simples ato instintivo de conservação, um vulgar movimento de defesa: a mera demonstração da nossa consciência, sobre a realidade. As melhores organizações militares nada valem, na defesa de países ocupados pelas “armées financières des états...”.


 

IV

Nacionalismo

 

 

Neste caso de renúncia nacional, agravado pela apropriação, por empresas e sindicatos estrangeiros, por estrangeiros recentemente imigrados, por um comércio sem sede no país, e estrangeiros em trânsito ou com estabelecimento passageiro pelo tempo preciso para enriquecer, de vastas regiões do nosso solo, das melhores das nossas estradas de ferro, das nossas fontes naturais de riqueza, de grande número de propriedades privadas, dos mais importantes instrumentos de crédito, de comércio e de indústria, levada até ao projeto de uma rede continental de estradas de ferro, que deve talhar o país em zonas de influência estrangeira; — é impossível dissimular o espanto que provoca o contraste entre a gravidade dos fatos e a singular atitude dos que têm governado o país e dirigido a sua opinião.

O povo brasileiro jamais cogitou de um perigo nacional que o afrontasse de súbito, ameaçando-o, como o despenhar de uma avalanche, com a apropriação do melhor do seu patrimônio bruto e de seus bens em exploração, subordinando-o virtualmente ao governo de estrangeiros, e pondo a continuação da sua integridade, da sua independência e da sua soberania à mercê das grandes potências econômicas e militares. Nunca teve de cogitar de tais coisas, primeiro, porque o Brasil parecia estar, até há pouco, acima da possibilidade de assaltos desta natureza, pela solidez do seu crédito e prestígio da sua administração, impondo-se à estima do mundo, como terra livre dos desvarios, das leviandades e das ilusões de certos povos, que, para satisfazer a vaidosas aspirações de aparente progresso e dar largas aos caprichos perdulários de uma geração, desprezam o trabalho, a produção, as alegrias sãs do esforço e do labor paciente, entregando-se às mais arriscadas aventuras. Depois, porque a nossa terra era vasta e afigurava-se-nos rica, dispensando-nos quase da luta, fazendo-nos esquecer o previdente dever de acautelar o patrimônio, nosso e dos nossos...

Não tendo de formar idéias políticas, de saber leis econômicas, de compreender os fatos da sua vida e da dos outros povos; não lhe cabendo formular e resolver a equação do seu desenvolvimento, com o estudo da relação entre o estado da sua economia e a economia dos demais países, mais audazes e combativos; repousando, em suma, entre o doce descuido da sua vida confiante e o intrépido avanço conquistador dos outros, o nosso povo vivia cego à realidade — entretanto, evidente — de uma nação que não chegou a se definir — entre as gerações fortes dos colonos que a vêm explorando e as dos indígenas e filhos de colonos, anulados para o trabalho e para a luta.

O povo não tinha meios de prever o perigo. Confiava, como era natural, nos que o governam e nos que exercem a missão de o dirigir. Somos um país juridicamente organizado, com uma constituição e leis, instituições políticas, administrativas, poderes públicos e funcionários. Estes aparelhos e instrumentos não têm outra razão de existir, outro título de legitimidade, senão os que lhes vêm do mandato de zelar pela causa pública, de gerir os interesses coletivos. Preservar o interesse geral contra a soma dos interesses individuais; dirigir a vida permanente do país, através dos impulsos pessoais e das correntes passageiras da paixão, da ambição e das ilusões; defender o todo contra as partes, a agregação contra a desagregação, o interesse público contra os apetites, o progresso nacional contra as cobiças, o bem-estar de cada um e o bem-estar de todos, contra as fantasias, as leviandades, a precipitação de maiorias, ou de minorias acidentalmente predominantes, e de cada um; a segurança da propriedade e dos direitos, contra os regimes aleatórios, que, com suas leis e atos ineptos, põem em jogo os haveres de todos; a sorte das diversas camadas da sociedade, condenadas aos azares do trabalho instável e à carestia da vida, com a desorganização econômica da sociedade, quando a política dos governos é contrária à corrente dos interesses do país — é a missão daqueles órgãos. O povo sabia que tinha governo, legisladores e administradores, e não podia senão confiar que seus mandatários estariam alerta, em guarda à defesa das suas vísceras, dos seus nervos, do seu sangue...

O povo sabia que o país conta grande número de academias, de estabelecimentos de ensino: uma ampla sociedade de homens de letras, de cientistas, de professores. Sabia e não podia deixar de esperar que, iminente o perigo, estes homens, habituados a ler, em seus livros, em seus jornais, em suas revistas, a exposição dos fatos, dos fenômenos, dos acontecimentos, da marcha dos interesses e dos problemas, durante o curso da História e na vida de outros povos, se levantariam, una voce, para reclamar dos governantes a pronta, a enérgica, a firme reação que impõe a crise extrema da nossa organização social, da independência étnica, moral e econômica do país, da integridade da nossa soberania, do nosso prestígio de nação livre, de seu nome de povo idôneo, cioso da sua terra e árbitro de seus direitos.

O povo brasileiro sabia disto e descançava, com toda a justiça, à sombra desta confiança; não pode, não deve, não tem que sofrer censura nem pena, incorrer em responsabilidade, pela inadvertência de seus chefes, diante de fatos desta ordem.

Fique esta afirmação aqui consignada, como artigo capital, para o futuro juízo em que se fizer o julgamento político, ou — se a eliminação é a sorte que nos reserva o destino — puramente moral, desta crise brasileira, que é também um grave acidente da evolução humana.

A consciência nacional precisa encarar, face a face, sem tergiversações, sem pânico, mas, também, sem ilusões, o drama político que se lhe depara. Deve, para isso, dissipar, em primeiro lugar, dois equívocos, sobre os quais repousam habitualmente a inércia dos que fogem ao cumprimento do dever e a incúria dos que não querem reagir. Um destes equívocos diz respeito ao valor da ação dos governos, como autores ou fautores de casos desta ordem e órgãos próprios para lhes dar emenda e correção; o outro, a significação real de certa ordem de conceitos e de fórmulas, ordinariamente invocados, em termos vagos, pelos que discutem estes assuntos — sem clara consciência, quase sempre, do que exprimem, mas com fé profunda, reverente, quase devota, sempre, em sua virtude e seu poder. Refiro-me ao valor das muito repetidas “leis espontâneas e naturais da evolução social”, “tendências necessárias do desenvolvimento humano”, “causas e efeitos dos fenômenos e fatos históricos”, “ação mecânica das forças da evolução, do desenvolvimento e do progresso”: o determinismo melhorista, dos crédulos, e o determinismo indiferente, dos céticos: — as muitas abusões, em suma, que o pedantismo e o comodismo puseram, em nossa época, no lugar da Providência, para que costumam apelar nossos avós.

Nada há mais comum que deparar, em escritos dos nossos intelectuais sobre questões sociais, com frases desta ordem: “Há uma lei de mecânica...”, como se as leis de mecânica, ou de qualquer outra ciência exata, tivessem, com os fatos da sociedade, relação prática mais apreciável do que a influência hereditária da vinha de Noé sobre as uvas das nossas sobremesas...

Sob inspiração da Filosofia revolucionária, do preconceito igualitário de Jean Jacques Rousseau, do “materialismo histórico”, de Karl Marx, de certas interpretações, mecanistas e automatistas, dos processos da evolução, erigiu-se em axioma a idéia da desvalia, ou, pelo menos, da insignificância, da ação dos governos e dos indivíduos, na marcha dos acontecimentos e na direção da vida social. Certas forças, materiais ou coletivas, contêm o poder decisivo, a energia incontrastável, que dispõe da sorte dos povos e das nações. Os governos são meros produtos, no presente, da operação de tais forças; os indivíduos, órgãos ou instrumentos do poder mágico desses elementos, cegos e inconscientes...

É alheio a esta questão o velho debate do determinismo e do livre arbítrio. Nem o determinismo implica fatalidade, na ocorrência dos fatos e na sucessão dos acontecimentos, nem o processo mental de seleção das representações psiquícas, de formação da consciência e do juízo, nos indivíduos e na sociedade, importa, necessariamente, exercício do livre arbítrio. De parte esta tese de doutrina, a verdade iniludível, que o estudo da evolução humana demonstra, é que o estado atual da civilização é, em muito mais alto grau, produto da governação dos povos e da sua direcão intelectual, que das forças materiais que condícionam a vida e das forças coletivas que dominam os fenômenos propriamente sociais. A fase da evolução humana a que chegámos tem sido caracterizada pelo predomínio do fator político sobre os fatores cósmicos e sociais do desenvolvimento. A vontade dos chefes temporais e dos chefes espirituais — do rei ao caudilho eleitoral, do sacerdote ao feiticeiro, do homem de ciência ao taumaturgo — pesou mais sobre os destinos dos povos, que seus interesses, seus sentimentos, suas aspirações e suas necessidades.

Os povos têm sido moldados à imagem e semelhança de seus chefes, de seus padres e de seus sábios.

É erro imputar aos povos, na crítica dos acontecimentos sociais, a responsabilidade dos desvios da evolução e esperar deles a iniciativa de reformas e movimentos reparadores. O corpo alimenta; não inspira, nem dirige, o cérebro.

A evolução social não obedece, por outro lado, a nenhuma força, energia, atividade, poder, ou tendência, transcendente, sobrenatural, imanente à organização coletiva, de não se sabe que misteriosa propriedade mística, magnética ou sugestiva, com efeitos forçados para determinadas finalidades, imprescreptível progresso e inevitável aperfeiçoamento.

O homem é uma energia viva, e a sociedade, a soma destas energias vivas e autônomas. Transcorridos os processos psíquicos que provocam, impelem e dirigem as vontades e os atos, a vida social resulta da soma das vontades e dos atos individuais, sob o influxo, brando, às vezes, de certos estados emotivos, ao impulso, violento, das paixões, outras vezes.

As forças sociais reduzem-se, em última análise, a vontades, atos e relações — fatos positivos, observáveis, verificáveis: estas forças obedecem a impulsos, senão sempre egoístas, sempre individuais e imediatos.

As únicas forças da sociedade, que, assim, se poderiam dizer espontâneas, caminham para realizar desejos e satisfazer a necessidades de caráter individual.

Só há um fator, uma força, um instrumento, um órgão, uma vontade, uma inteligência, com a função de promover a ação nacional, de manter a vida do país, no que o interessa em conjunto e permanentemente: é o aparelho político-administrativo, com seus vários órgãos.

A nação a quem falta este órgão está condenada a dissolver-se, a desagregar-se, a ser conquistada, e se o momento é propício ao surto de outro povo mais forte, mais bem governado.

Não há atenuação possível à cor profunda desta realidade. Aos povos que viveram, quase exclusivamente, de vida pública, como as sociedades políticas da Grécia e as da Roma repúblicana, a História fez suceder as grandes tiranias medievais, sem vida cívica, nem vida social, mas com intensa vida política. A idade moderna procurou realizar, com o governo representativo, a transação entre o indivíduo e a sociedade; mas o individualismo, no arrancar ao Estado a direção dos interesses sociais e econômicos, bateu de encontro aos abusos do seu próprio princípio, substituindo o despotismo do Estado pelo despotismo de indivíduos e grupos eventualmente mais fortes. O milionário, o sindicato capitalista, o “trust”, representam, hoje, a mesma influência e o mesmo poder de Felipe II, de Colbert, das “chartered companies”. O papel dos governos contemporâneos, nas sociedades normalmente organizadas, consiste, neste ponto, em defender os indivíduos, contra os abusos do individualismo, a sociedade, contra seus déspotas espontâneos: em fazer a polícia da vida nacional e econômica, contra os privilégios, os monopólios, os açambarcamentos, dos “reis” das soberanias argentárias.

Para os povos de organização regular, o problema político de nossos dias está todo em saber-se se, na conquista das liberdades teóricas, pelo caminho das idéias e das fórmulas jurídicas, as aparências não iludiram os espíritos, substituindo o predomínio da tradição e do sangue, pelo predomínio da especulação e do dinheiro, as castas aristocráticas, com seus títulos militares e suas virtudes marciais, arrogantes de sua honra e de sua bravura, por essa outra classe de senhores improvisados, selecionados nos corredores das Bolsas e no pano verde das roletas, às vezes, cujos caprichos e aventuras pesam sobre a sorte de milhões de homens, em seus países e no estrangeiro, mais efetiva e poderosamente, que o de muitos reis de outr’ora.

Para os povos desprevenidos e incautos, fracos por fraqueza orgânica, ou, como em nosso caso, pela coincidência da infância nacional com o intenso surto expansionista de velhas e vigorosas nações, de profundo instinto e sólida educação de luta, o problema duplica de gravidade.

A crise apresenta-se, para estes, com toda a intensidade da luta social interna e da luta social externa; e a reação de uma nação — mal despertada do sono de uma existência quase patriarcal, que um feliz isolamento permitiria sobre vasto e, até agora, farto território — em face da alienação da sua economia, ou é empenhada com célere e ardente investida às armas, ou vale, estrategicamente, tanto quanto a retirada do território, o abandono dos baluartes da fronteira, na defesa do patrimônio e da liberdade.

É aqui que a posição dos que nos governam mostra o espetáculo de uma surpreendente indiferença.

E se os governos, impenetráveis em sua maciça postura de esfinge, param diante do ataque à nossa liberdade e do saque a nossos bens, não se sente, também, entre os que dirigem a opinião, a atitude reta e máscula, que os fatos impõem.

Ainda se não quis compreender que este momento vale, sem sombra de hipérbole, a recapitulação inteira das nossas conquistas políticas, do nosso desenvolvimento nacional, da nossa independência e do nosso prestígio. O x, que está em frente deste caso, é a incógnita de equações que terão por termos os valores positivos, ou os valores negativos, do 7 de Setembro, do 13 de Maio e do 15 de Novembro. Não é um simples caso, embora avultado, de administração, um grave problema econômico ou social, como o da libertação dos cativos, o da colonização, o da perda ou conquista das liberdades políticas e civis: é a própria síntese da nossa política, que está em causa; é um problema político que não admite divisões partidárias, desconhece interesses contrários; que não sofre, nem tolera, vacilações, dubiedades, tibiezas....

É esta idéia que é preciso firmar, assentar, consolidar, indestrutivelmente, em nossos espíritos. Se o Brasil não tinha, até hoje, política nacional deliberada — como não a têm, conscientemente, os povos que a fortuna exclue dos embates da concorrência — pertencia ao número das nações de nítida, imaculada, cristalina soberania política; se, entre os devaneios de futuras remodelações da carta do Globo e sonhos imperialistas, de algum Bonaparte retardado ou de um novo Cecil Rhodes, se aventurou, alguma vez, o desejo, ou a ambição, de nos conquistar, isso entrava no número das possibilidades da fortuna que podem correr quaisquer povos, ainda os mais possantes.

Contamos sempre com um respeito ao nosso pavilhão, igual, pelo menos, ao que mereceu, das potências mais fortes, nas ocasiões mais críticas, o pavilhão norte-americano; éramos o país de mais crédito, na América do Sul; tínhamos uma nobre tradição de honra financeira, de probidade administrativa e pessoal, de ordem, de garantias jurídicas, de segurança e de hospitalidade para com o estrangeiro; fomos, durante a Monarquia, nesta parte do continente, um Império de ordem e de liberdade, devotado à paz e à concórdia: a República fez da nossa Constituição um programa de pacificação, para a nossa vida e para o mundo; sentinela avançada do pacifismo, oferecíamos à civilização o espetáculo de uma nação, jovem e sã, que arvorou, como emblema de suas aspirações de força e de glória, a bandeira branca do arbitramento: país de escravidão retardada e de instituições espúrias, tivemos, nas forças armadas, o advogado da abolição, o restaurador das instituições naturais do povo, voto e sonho dos nossos maiores; Rio Branco conquistou, para nós, como advogado internacional e como diplomata, um posto sem igual, nos fastos do arbitramento e da solução pacífica dos litígios entre nações. O Sr. Rui Barbosa eleva-nos à posição de diretores da reivindicação dos direitos das nações fracas, pleiteando a igualdade jurídica dos Estados, na composição do Tribunal Internacional de Justiça e do Tribunal de Presas. Abroquelados na seriedade da nossa administração e na retidão da nossa justiça, repelimos, com hombridade, a célebre doutrina Drago, esse deplorável reverso sul-americano da doutrina de Monroe...

Nós éramos isto... E qual a realidade que se nos depara?

Estamos em época em que o rigor da crítica e a severidade da investigação nada poupa, no ardor de firmar a verdade, ou — pois que a própria noção da “verdade” entra no número dos conceitos em debate — no de esclarecer as inteligências. Mas, neste parlamento universal que tem em ordem do dia todos os postulados, todos os princípios, todas as idéias, da ciência, da política e da filosofia, — não há estudante, de Cambridge ou de... Constantinopla, que dê por situação normal de soberania nacional a de um povo cujo território é talhado em vastas zonas de influência estrangeira, onde quase todas as estradas de ferro, incluindo as mais rendosas, caem em poder de sindicatos estrangeiros, onde se projeta executar uma rede ferroviária continental, subordinada a planos estranhos aos interesses do país, com a posse de portos, de outros instrumentos de viação, obras e serviços públicos, largas feitorias de mineração, agrícolas e pastoris, bastantes estas para aniquilar a indústria nacional, realizando-se, assim, pública e confessadamente, um plano de expansão colonial, uma política social e econômica, um estado no estado, — e um estado que traz para a luta com os nossos estados de politiquice e com a nossa federação de caudilhagem, com o próprio esqueleto das nossas melhores riquezas, a musculatura da vontade implacável de povos habituados a vencer e o nervo de quantos capitais queiram pedir às Bolsas congestas da Europa!

Este fato, esta realidade, este flagrante, este corpo de delito, este axioma, esta verdade patente e intuitiva; isto, a que os juristas chamariam prova provada, por confissão e testemunhas de vista; esta demonstração matemática; esta coisa corpórea, material, visível, sensível, tangível; este indiscutível, este absoluto, esta certeza, esta evidência, esta afirmação e este reconhecimento, patentes, insofismáveis, iniludiveis, formados com o a b c das certezas mais elementares e irrefragáveis da política internacional, precisos, rigorosos e inflexíveis como o 1 + 1 da primeira verdade aritmética, este assalto às escancaras... isto é coisa que não deve oscilar, na consciência de nenhum brasileiro, que não deve permitir um minuto de tolerância ou de adiamento.

Não há, neste caso, nada a separar, nada a distinguir, nada a atenuar. Todos os aspectos e todos os pormenores do problema que nos foi posto, e que foi aceito pela indiferença dos nossos Governos, giram em torno de uma questão central, orgânica, preliminar: a da existência de uma política nacional, integra, límpida, indivisível. Esta política e a soberania são termos equipolentes, feições componentes do caráter e da vida nacional: são incompatíveis, não só com o todo, mas com quase todas as frações das conquistas que se estão consumando em nosso território.

Compreende-se que não tivéssemos consciência da falsa orientação social e econômica do país, enquanto a realidade se não tinha apresentado, como um fato indiscutivel, da nossa progressiva e crescente desnacionalização; enquanto a fome, a miséria, a ignorância, a superstição, se não haviam mostrado, como fenômenos comuns e extensos, por vastas regiões do país; enquanto a verdade flagrante da lenta vitória dos colonizadores e comerciantes estrangeiros, na vagarosa conquista social da fortuna e do bem-estar, não haviam progredido até o caso assombroso, da quase instantânea invasão do país por uma organização financeira, talvez a mais poderosa do mundo: uma ocupação imperialista por escalada e por assalto, a realização de um sonho expansionista diante do qual a ambição de Cecil Rhodes pareceria o inócuo projeto de uma partida de sport!

Os árbitros dos destinos do povo brasileiro precisam compenetrar-se que estão confessando à Nação e registrando, para o futuro julgamento da História, que vivem alheiados da política de seu país e da política mundial de sua época.

Não espanta, por isto que, neste momento, em que o mundo inteiro oferece, aos olhos do observador, como traço tipico da política, o fenômeno de uma exaltação do nacionalismo, os nossos governantes não vejam que, ao passo que a China, vencendo as tendências negativas de sua tradícional indolência, consubstancia em um definido esforço de coesão nacional o surto da sua reconstituição política; ao passo que a Grécia e os Estados balcânicos concentram todas as energias da afinidade nacional, étnica e religiosa, contra as forças desagregantes do islamismo; ao passo que a Itália consuma, em Trípoli, a empresa da sua velha aspiração à renovação dos surtos da águia romana; enquanto a Inglaterra e a Rússia debatem, na Pérsia, as linhas do seu domínio econômico e da sua influência comercial; enquanto a partilha da China volta à discussão, nos centros diplomáticos, financeiros e jornalísticos, onde se elabora o fermento das grandes intrigas e dos terríveis dramas da política internacional; enquanto a incorporação definitiva do Egito é levantada como problema de oportunidade, pelos ingleses; enquanto as grandes potências e os Estados balcânicos vêem abaladas as mais seguras esperanças da paz, diante da guerra turco-balcânica; enquanto, em todos os países do mundo, a onda que assoberba o horizonte político e domina os sentimentos e as idéias, é a de um intenso e vivo nacionalismo: na Inglaterra, consolidando, por interesse da defesa, a concentração das colônias e do Reino Unido, na unidade imperial; nos Estados Unidos, expansionista, apesar de sua tradição: dispostos a “vencer industrialmente”, na frase infeliz do Sr. Philander Knox; na França, tomada de um ímpeto de expansão e de rejuvenescimento, que estuam nas palavras de seus homens de Estado, na literatura, no nacionalismo de Barrés, na aspiração da influência francesa, “educativa” e diretora, da “Jeune France” e dos diversos coloridos intelectuais de sua “volonté de puissance”, e apoiados na força conquistadora do seu mercado monetário, nesse tremendo problema da Alemanha, — gigante contido pelo pulso de uma forte vontade política, mas que o mais ligeiro acidente pode, de súbito, arremessar à satisfação da sua natural, espontânea, orgânica, necessidade de crescimento e de transbordamento de gente de energias: — enquanto a fibra da política, o nervo das agitações, em todo o mundo, estão na vitalidade, na energia, na atividade, na aspiração de supremacia, — a gente que nos governa não veja que o Brasil, até ontem sobranceiro a dúvidas sobre a sua autonomia efetiva, vai sendo lançado para o nível das nações de segunda ordem, no gozo da soberania, da liberdade de governar-se, do prestígio político...

Por todo o planeta, os povos conscientes e critériosos estão sentindo que precisam concentrar e robustecer o máximo vigor de sua energia, todo o valor de seu sangue, com o poder varonil da sua força nervosa, ativa, resistente, ofensiva, se tanto for mister, para enfrentar e vencer o ímpeto das competências, que surge e se emaranha, por todas as regiões da Terra: e, em meio desta luta, que terá por árbitro a prontidão das iniciativas, a verticalidade incorruptível dos caracteres, os que nos dirigem preferem dar-nos uma flácida posição de emasculados, a moleza da afeminação, a postura horizontal das hospitalidades condescendentes.

E, enquanto, no terreno dos atos e dos fatos, agrava-se, dia a dia, esta atitude de passividade — acentua-se e sublinha-se a realidade, com as luzes fátuas e as expansões místicas, de um patriotismo oratório e bizantino, substituída a virilidade consciente por nevróticos ataques de amor próprio, a coragem, por singulares e doentios acessos de bravura impulsiva, a nobre e digna reação da luta pela vida e pela honra, por fervores místicos e torvos delírios orientais... Sabem os que acompanham os debates políticos mundiais -— pleitos em que se vai processando o julgamento dos povos e se vão determinando os futuros conflitos — que a tese da capacidade das raças é um dos bastiões montados pela ambição dos que aspiram ao domínio. A ambição ao domínio universal, das raças teutônicas, fundada na pretensão da sua superioridade, é um ideal político conhecido, que conta em seu serviço com a autoridade de uma ciência e de uma literatura, com a força econômica, o poder militar, a aparente superioridade, física e mental, a real vantagem atual, destas raças. É uma pretensão infundada e injusta; e a todas as razões com que a ciência contemporânea respondeu à ciência dos imperialistas, o Brasil — museu vivo de etnologia e esplêndido laboratório de experimentação étnica — pode juntar documentos irrefutáveis. O teutão, localizado no Brasil, prospera ou declina, em função do meio físico ou da vida social, nas mesmas condições que o branco de origem européia meridional, o preto e o índio. Mas apesar disto, a teoria continua a ser tema da polêmica política e eixo da luta das hegemonias, das influências, das supremacias.

As raças são julgadas pela energia, pela atividade, pelo vigor, pela independência, pelo brio e o valor, com que sustentam a autonomia, — pelo conjunto das qualidades que formam o caráter étnico; e o que se está passando, atualmente, em nosso país, parece feito para documentar o libelo das ambições teutônicas...

Os povos conquistadores são também moralizadores. A posição de superioridade, de supremacia, de simples sobranceria, mesmo, ainda que passageira, inspira atitudes catedráticas, exemplares, disciplinares... Os bárbaros foram o “fléau de Dieu”, vibrado contra a dissolução romana; e mãos cristãs, mãos limpas de pecado, abriram-lhes as portas de1 Roma... Não houve horda de hunos, ou de mongóis, que se não desse pelo povo “eleito de Deus”, em missão de vindita religiosa, ou de reparação moral. A Moral, como a Civilização, dá, por vezes, assim, boas flâmulas de guerra. Nossos costumes e, ainda mais que os costumes, nossos móveis íntimos e nossos sentimentos, em confronto com os móveis e sentimentos de outros povos, são de ordem a nos honrar, entre os que mais se prezem. Os países mais civilizados são também os mais corruptos; suas capitais são sedes de vício e de dissolução; suas sociedades, centros de corrupção e de venalidade; mas a força não admite o contraste, nos julgamentos que instaura, e em que se arvora juiz final, de arma em punho. Processa, julga e dita a sentença. Ora, o que se passa no Brasil, e que está em contraste flagrante com a nossa índole, seria de ordem a dar visos de justiça à sentença que nos condenasse por indignos da guarda do nosso patrimônio e da nossa soberania política. Um povo que renuncia à gestão de seus bens, para confiá-la a mãos estrangeiras, que desiste da capacidade econômica e social, não pode prezar sinceramente a capacidade política. A liberdade não se divide. Desistir da parte da liberdade que interessa ao trabalho, à energia e à força produtíva, ao zelo e estima pelo patrimônio, ao interesse pela conservação e pela melhor exploração da terra que pertenceu aos pais e deve pertencer aos filhos, e pretender conservar a liberdade política, importa fazer-se parasita na própria terra, comprar o ócio à custa da miséria da prole.

Há um dever de lealdade nacional, de fidelidade ao amor pelos irmãos na raça, na língua, na religião, no solo natal, que é a primeira e a mais íntima virtude do selvagem. A justiça da ambição e da força é implacável para com os povos que concedem tais argumentos às opressÕes regeneradoras...

Nós somos patriotas, vivamente patriotas, calorosamente patriotas, mas o nosso patriotismo precisa exprimir-se, nesta hora, em termos diversos do cunho romântico, da feição emocional, que só vibram em transes de exaltação, que só apresentam à mente, como imagem e expressão do amor à Pátria, a idéia da guerra, do sacrifício da vida, da luta física. É a forma do patriotismo de feição medieval, com traços da hostilidade dos primitivos; do ódio tribal e gentílico; é o patriotismo agressivo: o patriotismo em cuja liga o sentimento adverso ao estrangeiro sobreleva ao sentimento de amor pelo compatrício; o patriotismo que tem por ideal a luta, em lugar do ideal da fraternidade; o patriotismo do sangue e da morte, em lugar do patriotismo da vida, da solidariidade, da cooperação.

O apelo a este patriotismo tem sido a nota mais vibrada neste momento. É uma nota imprópria: mostra a má compreensão da justa posição das coisas. Deixando de encarar a triste realidade de agora, protelamos, para transes imaginários de uma guerra futura, o movimento de energia e de coragem, que se nos está impondo.

Iludimos e dissimulamos as dificuldades que se amontoam, os prejuízos que estamos sofrendo, a afronta que nos infligem à face do mundo. Este brado oratório de patriotismo encobre uma confissão de abandono. A invocação à bravura, para longínquas e duvidosas batalhas, em lugar de nos mostrar noção certa de seus interesses, morais e materiais, com a alta coragem de civilizados, que estimam os bens intangíveis da honra, do brio, do amor à terra e à gente de sua pátria, capazes de trabalho e de organização, não nos faz aparecer senão como um povo de flibusteiros e de condottieri, valente para guerrilhas, com a intrepidez animal de leões, se quiserem, mas sem a coragem de varões livres. Explosão impulsiva, de forma oratória, este patriotismo brota da fonte onde nascem as manifestações doentias da alma, explodindo na erupção de uma batalha homérica que não é, porém, do Homero da Ilíada, mas do Homero da Batracomiomaquia...

Correr mentalmente para a idéia da guerra, deixando de atender à posição atual do problema e de lhe procurar as soluções, encerra todos os erros do balbuciar intelectual, todas as fraquezas de caráter, das crianças. Esta atitude serve, apenas, para mostrar uma das manifestações da enfermidade nacional — mal superficial, de educação, mas dominante em toda a extensão dos nossos sentimentos, das nossas idéias e dos nossos atos: a tendência retórica da nossa mentalidade — decorativa na arte, mnemônica no saber, farisáica na aceitação, na cópia, na interpretação e na aplicação de idéias e de sistemas; bizantina, no culto material da forma; quase superstíciosa, no amor a conceitos e a fórmulas. Textuais no que sabemos, exegetas e glossadores, no que produzimos, obsecados de idéias alheias e de ilusões, vivendo o romance dos nossos devaneios e das nossas imagens, literárias, idólatras de homens e de nomes próprios, céticos para os ideais concretos, surdos ao otimismo que demanda esforço e ordena o exercício da vontade, crédulo às mais extravagantes fantasias e artifíciosas teorias; afetando descrença na virtude, na seriedade, no trabalho; confundindo ouropéis e lentejolas com a arte; admiradores dos torneios e das argúcias da política pessoal e partidária; entusiastas de um progresso de palácios sem arquitetura e de cidades ostentosas, sem delineamentos e sem enquadramento artístico sobre o fundo da natureza; — vamos sacrificando o que já havíamos conquistado, em apuro superior, na arte, em elevação e profundeza, nas inteligências, em iniciativa, em autonomia e em força produtiva, nos caracteres. O gosto pela música ligeira, por efeitos vistosos, por cores e luzes vivas, pelo luxo; um teatro de bambochata: todos os ruídos atordoantes da vaidade e do mercantilismo, abafam os impulsos para as formas superiores da civilização e da cultura.

Neste estado de alma, não espanta que o nosso patriotismo reúna, num mesmo movimento, a indiferença pela perda da vida, a assomos de bravura, para a defesa — provavelmente desnecessária — do futuro.

D. João VI, com o Atlântico entre sua corte e o exército de Junot, poderia justificar o abandono da sua faixa de terra européia, pela fundação de um grande Império.

Pondo a nossa indiferença entre as conquistas de hoje e a nossa futura reação, condenamos a Pátria à vassalagem econômica, e, muito provavelmente, à dominação política; e os nossos filhos, à sorte de um proletariado de fellahs, sem propriedades e sem educação, e, senão à miséria, ao alcoolismo, à morte por consumpção, nas tavernas, nos alcouces, à margem das estradas...

Neste estado de inconsciência mental, com as nossas elegantes fatiotas de figurinos modernos, e de alheiamento de sentimentos e de idéias, sob o fulgor das palavras e o brilho decorativo das frases, não admira que o patriotismo evite contemplar a verdadeira situação da Pátria e corra à invocação litúrgica da bandeira; que esqueça o Cristo e apegue-se à cruz; que abandone a terra e a gente e condene a prole à miséria, delirando de extasis místicos ao som do hino nacional...

A substituição das imagens e dos símbolos, às realidades, é sinal de enfraquecimento do espírito.

Mas este patriotismo não é o patriotismo dos brasileiros. Nós somos um povo sensato, de espírito claro e prático, de afeições reais, de sentimento profundo, intimo e natural, — sentimento direto e espontâneo, que vai imediatamente às pessoas, ao lar, aos compatriotas, à terra natal, sem liga de sugestões alheias aos impulsos do coração, sem laivos de conceitos adotivos, de inspirações doutrinárias, de crença, de filosofia, ou de escola. Somos um povo franco, com o senso real das coisas, das afeições, das idéias. Entre cada um de nós e os objetos da nossa estima, do nosso amor, da nossa veneração, o eflúvio que nos vem das almas não se esbate na imagem cultuai da religião, nem o empana a névoa de um conceito convencional, de uma sensibilidade de empréstimo: estende-se e penetra com a limpidez do sol nas manhãs claras. Um povo que assim sente, não pode bizantinizar-se na idolatria dos símbolos, corromper o espírito na adoração das fórmulas, quitar-se do dever, com a absolvição de contrições e de homilias, de penitências e de holocaustos sacrificiais.

Este patriotismo é o patriotismo oficial ou litúrgico, o patriotismo dos protocolos e do ritual, bom, quando expresso com austeridade, para recordar, nos dias notáveis da vida nacional, os feitos gloriosos ou lutuosos que passaram, reavivando a chama do amor pátrio.

O patriotismo do povo brasileiro está vendo com inteira lucidez a realidade que o cerca.

Éramos uma nacionalidade dispersa, amorfa, em estado quase líquido, sem elementos de condensação e de resistência; um composto de admiráveis caracteres individuais, moralmente unidos, sem caráter social; um conjunto de raças e de tipos, sem modelo nacional; uma nação, sem nacionalidade.

Entre esta população dispersa, disseminada em vasto território, vivendo tranqüila e segura como todos os povos para quem a vida é fácil, sem inquietações e sem ambições, o estrangeiro, trazendo a educação para a luta na concorrência, ambícioso e prático, assentou o trapiche, o armazém, o entreposto, a loja, a venda, o comércio de exportação e o de importação, o comércio intermediário. Como em toda a parte, os capitais, frutos da produção, fluem para as grandes cidades; mais do que em outros pontos, os capitais, concentrados nas cidades, resistem à volta à circulação. Dos estrangeiros, uma parte regressa ao país natal, transportando as fortunas, ou agravando o curso habitual das exportações de numerário; outra parte, fixada no país, depois de presentear os parentes que ficaram na terra, com íração não pequena do trabalho extrativo das riquezas nacionais, deixa aqui um patrimônio, às vezes avultado, a descendentes que não possuem o estímulo, e, na quase totalidade, a educação, do trabalho. A sociedade, formada com os descendentes dos antigos colonos, com os pretos e com os indígenas, vai sendo relegada para a miséria, para o parasitismo proletário, nas classes baixas; para o funcionalismo, para as profissões liberais, para a política, nas classes médias; para o capitalismo parasita, de fruidores de juros de apólices e rendas de prédios urbanos, nas elevadas. O caso não é exclusivamente nosso: nos Estados Unidos, o anglo-saxônio, de geração americana, começa a sentir-se vencido pelas ondas dos novos colonos; mas atinge, aqui, proporções muito mais graves. A nacionalidade brasileira ficou, assim, composta de escassa camada de homens ricos, inativa e estéril — fortunas dissipadas, em regra, em segunda geração; de imensa massa popular, pseudo-proletária, miserável e analfabeta, quase toda de funcionários e doutores.

Ao trabalho escravo não sucedeu organização do trabalho livre. Importação oficial de colonos para o serviço dos fazendeiros, colonos para as capinas e para as colheitas, serviço oficial de colonização local, sem vantagem para as produções estabelecidas, sem valia, quase, para o consumo geral, eis tudo quanto se tem feito pelo trabalho.

O produtor nacional, não se habituando a capitalizar, não tendo chegado a organizar o trabalho, foi sempre dependente da pressão do custeio, quanto ao capital, e da pressão das colheitas, quanto ao trabalho.

Se as instituições de crédito foram sempre escassas no país, o crédito para o produtor, em todo o mundo mais restrito, foi, ainda aqui, mais dificil e oneroso. Poucos, se raros serviços, deve a produção ao crédito, sempre oneroso, aberto por comissários, e, nos últimos tempos, por exportadores — situação anormal, cujos efeitos são fáceis de calcular. O crédito rural e o crédito agrícola no Brasil têm taxas que atingem à usura.

Sem organização de trabalho, sem capital, sem crédito, precisando de somas avultadas para o custeio das fazendas, dependendo, graças à natureza das culturas, de um serviço irregular, encontrou sempre a produção adversários tremendos na organização do comércio de exportação, atrasada, onerada de faux frais e de intermediários inúteis, e na organização dos mercados de importação no estrangeiro, sujeitos às vicissitudes e oscilações dos negócios de produtos exóticos, sem elementos seguros para fixação dos preços, de difícil, senão impossível, pauta.

A lavoura nacional foi sempre, de fato, em lugar de agente principal, na série das operações do intercâmbio, um serviço colonial da exportação, incumbido da extração das riquezas; e, se, apesar de todos os percalços e de todas as contingências, os lucros fabulosos das nossas especiarias davam para lhe fazer chegar às mãos, às vezes, proventos consideráveis, a falta de educação industrial, o absenteismo, a prodigalidade, faziam-na colaborar com seus concorrentes, na obra da própria ruína.

No estudo dos problemas da produção e da riqueza nacional, cumpre ter sempre em vista os elementos — que têm servido de base a todos os meus trabalhos — da relação do valor das riquezas extraídas em função do tempo e da extensão das regiões exploradas, e da relação da extração das riquezas e do esgoto do solo, em função da riqueza conservada no país, da riqueza em movimento, e da riqueza exportada para o exterior. Só assim se pode chegar a formular conjecturas justas sobre o nosso ganho e as nossas perdas e sobre a realidade do nosso progresso material. Estes elementos deixam fora de dúvida a falaz suposição da formação de uma riqueza nacional, consolidada ou móvel: a ilusória pretensão do nosso progresso material.

Nunca tivemos política econômica, educação econômica, formação de espírito industrial, trabalho de propaganda e de estímulo para a aplicação das atividades. Organizamos, pelo contrário, uma “instrução pública”, que, da escola primária às academias, não é senão um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo.

A política fiscal, motivada unicamente pelas necessidades dos teseouros, foi sempre adversa à produção — suporte efetivo, afinal, de toda a carga das tributações, diretas ou indiretas. O protecionismo, recente, viu contrabalançadas as vantagens que prometia à produção, pelos entraves à circulação e ao comércio, pelos tributos estaduais e municipais, pelos açambarcamentos, pelo enxerto de intermediários e de especuladores.

Sobre esta vida social prática, a nossa política e as nossas legislaturas edificaram, primeiro, o castelo da monarquia parlamentar inglesa, depois, o castelo do presidencialismo federativo americano; leis e regulamentos de Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Administrativo, de todas as origens; repartições, copiadas de todos os países. Esta montanha de preceitos legais, que não interessam à vida do indivíduo e da sociedade, senão em ocasiões excepcionais da existência, em relação aos atos que têm origem e natureza jurídicas, e este mundo de instituições e de repartições, realizando o trabalho, peculiar às burocracias, de uma atividade quase exclusivamente aplicada aos objetos do seu próprio mecanismo e funcionamento, fundaram, em nossa existência positiva, uma vida de teatro entremeiada na vida real, com discursos ingleses e interpretações literais de textos ingleses ou americanos. Dominando tudo isto, duas grandes divindades presidem a ordem, garantem a segurança e mantêm, entre nós, o direito: a bondade e a probidade do povo, sem igual em qualquer outra parte do mundo.

Com a sua escassa polícia e a sua insuficiente justiça, o Brasil poder-se-ia dizer um país em estado de anarquia, com ordem e direitos espontaneamente mantidos pela honestidade popular. Elisée Réclus levou daqui a ilusão de haver encontrado a “terre promise” do seu ideal libertário...

Temos sido, assim, um país ao qual tem faltado: organização e educação econômica, capital, crédito, organização do trabalho, política adaptada às condições do meio e à índole da gente: um país desgovernado, em suma.

A supremacia do comércio e das colônias estrangeiras sobre a sociedade nacional, o enfeudamento econômico das populações a estrangeiros, são fatos já antigos, crescentes, progressivos, notados por observadores isolados da nossa vida, mas desconhecidos ou desprezados pelos Governos. As observações de alguns políticos, entre os quais o autor deste estudo, eram utilizadas em seus trabalhos pessoais. Alguns escritores trouxeram para a imprensa eruditos e documentados estudos, sem outro efeito além da polêmica e do aplauso literário. Um dos mais abalizados dentre eles, eleito deputado, o Sr. Silvio Romero, consubstanciou as suas idéias em um projeto apresentado à Câmara, mas, como era de prever, rejeitado.

À falta de capital, de trabalho organizado, de crédito, cumpre juntar-se, assim, a falta absoluta de uma política nacional.

Este ponto, mais de uma vez desenvolvido em outros trabalhos, não perde por ser ainda destacado. A política nacional de um povo se pode definir como a atividade espontânea da sociedade, na defesa do seu caráter e da sua economia: no preparo nutritivo do seu desenvolvimento material, e no educativo do seu espírito. Esta política resulta, em geral, de um instinto da própria nacionalidade, isto é, de um certo número de hábitos, gravados hereditariamente nos organismos, transmitidos pela tradição, que conservam o vínculo do interesse coletivo, a consciência dos perigos comuns, o senso do auxílio mútuo, da solidariidade e da cooperação, fixados, por experiência secular, entre indivíduos relativamente semelhantes, habitando a mesma terra.

Longa posse da terra, lento e normal desenvolvimento das populações, devido, principalmente, à reprodução entre os indígenas, formam o terreno sobre o qual se enraizam os elementos psíquicos, materiais e sociais do instinto nacional.

Ora, o descobrimento das terras e as colonizações, primitivas ou suplementares, fizeram surgir, nos tempos modernos, nações que não assentam sobre tais bases, e onde a ação do meio circundante e a ação das camadas sucessivas de colonos não obedecem a nenhum processo espontâneo e vagaroso de adaptação. O Brasil é justamente um dos países onde a discordância entre o meio e os costumes do colonizador apresenta feição mais flagrante e tem dado os resultados mais desastrosos. Mas se a adaptação, a associação do homem com a sua nova terra, não foram adequadas, o homem obedecendo aos exemplos da sua época, querendo caminhar a par das civilizações e competir com seus concorrentes, não teve hesitações, no ardor da exploração, exaltando até à fúria devastadora a cobiça de converter os produtos da terra em riqueza apreciável. Destruiu e não enriqueceu.

Qual a lição que disto resulta? Resulta que a formação artificial das nacionalidades, tal como a nossa, impõe, como necessidade imperativa, a formação, por convição racional, da consciência nacional: a criação e o desenvolvimento, par en haut, — da inteligência para os hábitos, do raciocinio para os reflexos — do instinto de conservação e de progresso nacional.

Os homens que fundaram a nação brasileira não tinham o espírito dirigido para esta espécie de observações. Com a cultura geral portuguesa e a escassa cultura francesa, quase exclusivamente jurídica, não contavam sequer com os imperfeitos instrumentos da ciência dos fisiocratas e dos economistas, para receberem as primeiras luzes da vida social e econômica. José Bonifácio seria, talvez, capaz, com sua educação científica e seu gênio, de deparar com a porta de entrada para o labirinto da ciência real da nossa vida, mas José Bonifácio foi o caráter forte e a inteligência séria que, depois de ter realizado a independência política, teve de ser repelido, por indigesto, pelo estômago da mediania que a fruiu...

Uma vez fundada, a Nação Brasileira não sentiu o sofrimento do estado colonial efetivo, como sociedade e como economia. O povo — que age, nestas coisas, por sensibilidade — nunca mais teve, também, quem o advertisse. O povo não percebia, entretanto, a sua gradual eliminação, só porque não sofria. A perda incessante e paulatina da saúde não se revela senão a olhos prevenidos, e a ingênua alma brasileira tinha, sobre a imperecivel grandeza da sua terra e do seu futuro, a ilusão do seu céu azul e do seu belo sol de ouro puro.

Hoje, a realidade se lhe mostra, não só com uma cópia de documentos que nos põem surpresos da nossa própria inadvertência, mas com um fato que representa, na história das tentativas coloniais, o caso mais arrojado de expansão econômica. Não há, na crônica das conquistas lentas das semi-soberanias bárbaras e das nações emasculadas, nada que se aproxime, que pudesse mesmo fazer conjecturar, a surpresa que nos assalta.

A atitude que nos cumpre manter, nesta situação, não é a atitude vacilante, a posição tíbia, condescendente, de quem se propõe a negociar, a transigir. A diplomacia deste momento não seria a da negociação, mas a da repulsa, se pudéssemos admitir que a Nação tivesse de negociar diplomaticamente com os particulares que formam as associações de seus invasores.

Não é na faixa da fronteira que está o nosso problema atual; não são pormenores de defesa militar, de política e de administração, que nos devem preocupar; não se trata de saber se carecemos ou não de capitais, se devemos ou não aceitar os capitais que nos oferecem. Com a forma que estas coisas revestem, dadas as condições do nosso estado social e econômico (pelas quais não somos, responsáveis, e que, em confronto com a situação moral e política de outros países, não nos põe em posição de inferioridade) nada mais temos que fazer senão opôr a empresas e sindicatos estrangeiros a recusa liminar do non possumos, varrer o território da intromissão inóspita, e promover a nossa reorganização social e política, de forma a preparar o Brasil para ser um cooperador da civilização, em vez de um logradouro internacional da especulação e do capitalismo ocioso.

Há brasileiros, e dos mais dígnos, que, iludidos por uma falsa compreensão dos nossos interesses, aceitaram posição na gestão de empresas estrangeiras; deixemos-lhes a liberdade de resolver seus problemas pessoais; mas, despersonalizando a questão, não hesitemos um momento em tornar bem claro, neste transe da nossa História, que as classes dirigentes do nosso país não se dispõem a aceitar o papel de prepostos das companhias de exploração colonial da sua terra.

O ideal nacional, que este caso desperta, contém a mais elementar, a mais pura das formas, a forma essencial, do patriotismo. É simples abuso de tolerância vernácula confundir a reivindicação da posse completa da nossa política e da nossa autonomia com qualquer das formas mórbidas da exaltação nativista.

Queremos, para nós, a liberdade e a autonomia nacional, que tem toda e qualquer nação soberana; a autonomia e a liberdade de que nos temos mostrado dígnos, e de que não usamos, senão para partilhar com o estrangeiro os bens da nossa terra e os afetos dos nossos corações. Contestar-se-nos o direito de reaver a parte desta autonomia que nos está sendo eliminada, equivaleria, para os estrangeiros que aqui pretendem ficar, o repúdio da sorte de seus filhos, e, para os que pensam em regressar, a confissão de que não se sentem interessados pela sorte de um povo do qual recebem a hospitalidade talvez mais franca no mundo inteiro.

O nosso nacionalismo não é uma aspiração sentimental, nem um programa doutrinário, que presuponha um colorido mais forte do sentimento ou do conceito patriótico. É um simples movimento de restauração conservadora e reorganizadora.

E, em torno deste objetivo moral e político, deve concentrar-se, não mais a atenção, nem o espírito, dos que respondem pela sorte do Brasil, mas a sua atividade, para que não esteja longe a alvorada em que nos sintamos de posse da direção dos nossos destinos.


 

Notas

(1) — Êxodo, XX, 2.

(2) — RATZEL — The history of mankind.

(3) — Esta palavra está aqui empregada em seu sentido normal de “processo psíquico”.

(4) — LESTER WARD — Pure Sociology.

(5) — LESTER WARD — Pure Sociology.

(6) — A idéia vulgar de que o brasileiro é, de natureza, preguiçoso, pertence ao número dos prejuízos que a observação superficial da nossa índole e dos nossos costumes inspirou ao nosso cepticistno de adoção. O brasileiro é trabalhador e ativo como os mais operosos povos do mundo. O trabalho é, no Brasil, em todas as profissões, mais demorado e mais intenso do que na Europa. Quem observou a nossa vida doméstica, no tempo em que os costumes nacionais não tinham tomado a forma cosmopolita de hoje, viu a existência ocupada, a labutação constante da nossa “dona de casa”, de homens e mulheres, senhores e fâmulos, no meio famílial; quem assistiu ao labor assíduo e, por vezes, penoso, fazendeiros, feitores e agregados nos tempos em que o nosso trabalho agrícola tinha alguma organização, ainda que atrasada; quem conheceu e conhece a atividade dos nossos profissionais das classes liberais: médicos, advogados, magistrados, engenheiros, funcionários, suportando, com modéstia e resignação, encargos e sacrifícios extraordinários, mesquinhamente remunerados quase sempre; quem recordar os hábitos e a disciplina do nosso antigo comércio — não pode ter dúvidas sobre a capacidade de trabalho e o amor ao trabalho do nosso homem.

O fato positivo, demonstrado pela observação do estado atual da nossa sociedade, não é o da propensão para a indolência, mas o de um desequilíbrio geral, na educação dos indivíduos, nas modalidades da sociedade e nas condições da adaptação: falta de preparo do homem, para o trabalho próprio e conveniente; instrução exclusivamente especulativa e literária, com a feição superficial do exercício dialéctico, bizantina preocupação de regularidade gramatical e purismo clássico; arrebicado atavio da forma; desorganização do trabalho, destruindo o regime das grandes propriedades, ou mantendo-o, nas regiões mais prósperas, com o tipo menos favorável ao estímulo, sendo a “fazenda” uma “feitoria” do proprietário, freqüentemente ausente, sem amor ao solo nem zelo por sua conservarão; esquecimento, enfim, das regras e dos costumes empíricos que formavam o saber técnico do lavrador europeu, abandonados uns por impróprios ao meio, outros desprezados, por ineficazes, em face das alterações fisicas da terra.

Daí o estado psíquico que a observação ligeira atribui à indolência; estado de incapacidade prática e de torpor cerebral, que inabilita os indivíduos para a percepção das coisas, dos fatos e das idéias, desabituando-os da observação, da experiência e do raciocinínio; estado moral, devido ao conflito do explorador da terra com os mistérios e surpresas de uma natureza desconhecida e com os obstáculos de uma economia social, em parte anarquizada e, em srande parte, contrária aos interesses da produção. A ociosidade dos brasileiros resulta destas causas.

(7) — P. KROPOTKINE — Inheritance of Acquired Characters, Nineteenth Century and After.

(8) — Quando públicada no Jornal do Commercio, esta parte deste estudo trazia por título o nome tradícional da Terra da Promissão.

Não foi a lembrança do título do admirável romance de Graça Aranha, nem uma interpretação do seu pensamento em sentido desfavorável ao valor das nossas raças, que sugeriu o título do artigo.

(9) — G. SERGI — L’Uomo, Milano, 1910.

(10) — Lei pela qual os híbridos tornam-se fecundos por efeito da domesticação.

 


 

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