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A INDÚSTRIA TEXTIL

Janer Cristaldo

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A Indústria Textil
Janer Cristaldo

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A Indústria Textil

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Janer Cristaldo


 

 

 

ÍNDICE

 

Sobre o autor
Da coisifição do humano à admiração ingênua
Informe sobre um latino enamorado pelo Absoluto
Entrevista
Que devo ler para entender o Pato Donald?
Três aproximações da poética gaúcha contemporânea
Adelino dos Santos Parracho e o momento cultural português
Kalocaína, uma provável fonte de 1984
Manhã na Mafra
Au bord’elle
Arte sacra em Toledo
O território já está dividido
Sobre Don Camilo
A indústria Textil
Como um vigarista constrói seu pedestal
O visionário de Taubaté
Paris homenageia a grande prostituta
A difícil travessia do Uruguai
Ianoblefe e outros mitos dos povos da floresta


 

 

 

Sobre o autor

 

Nasceu em 1947, em Santana do Livramento, RS. Cursou o secundário em Dom Pedrito e Santa Maria, onde formou-se em Direito. Em Porto Alegre, em Filosofia. Iniciou-se em jornalismo no extinto Diário de Notícias, Porto Alegre. Escreveu no Correio do Povo e Folha da Manhã. Nos anos 71 e 72, exilou-se voluntariamente em Estocolmo, onde estudou cinema e língua e literatura suecas.

De volta ao Brasil, publicou suas primeiras traduções: Kalocaína, de Karin Boye (do sueco), e Crônicas de Bustos Domecq, de Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares (do espanhol). Em 1973, publicou O Paraíso Sexual Democrata, que teve quatro edições no Brasil e uma em espanhol, em Buenos Aires, proibida na Argentina. Em 1975, passa a assinar coluna diária para a Folha da Manhã, Porto Alegre. Em 77, recebe bolsa do governo francês para um doutorado em Letras Francesas e Comparadas. De Paris, mantém correspondência diária para a Folha da Manhã. Em 1981, doutorou-se pela Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III), com a tese La Révolte chez Ernesto Sábato et Albert Camus, traduzida ao brasileiro sob o título de Mensageiros das Fúrias. Participou de diversos colóquios na França e Alemanha, como também de festivais cinematográficos em Berlim, Cannes e Cartago, na condição de jornalista. Ainda em Paris, iniciou a tradução da obra ficcional e ensaística de Ernesto Sábato, a pedido do próprio autor.

No Brasil, foi professor visitante de Literatura Brasileira e Comparada, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, de 1982 a 1986. Neste período, traduziu vários outros romances, introduzindo no universo literário brasileiro autores como Roberto Arlt, Camilo José Cela, José Donoso, Michel Déon e Michel Tournier. Em 86, publica seu primeiro romance, Ponche Verde, que tem como fulcro a peregrinação dos exilados brasileiros por Estocolmo, Berlim, Paris e Lisboa.

Em 87, recebe bolsa do governo espanhol para um curso de Língua e Literatura Espanholas. Residiu seis meses em Madri. De 91 a 93, foi redator de Política Internacional da Folha de São Paulo e do Estado de São Paulo.

Além de Mensageiros das Fúrias e Ponche Verde, foram publicados na ebooksbrasil [http://www.ebooksbrasil.org]:

Crônicas da Guerra Fria — compilação de artigos publicados em sua maior parte entre 1989, ano da queda do Muro de Berlim, e 1991, ano da dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Laputa — novela. As tribulações de um professor de Letras em uma ilha tropical)

EleCrônicas — crônicas publicadas em 1999, no jornal eletrônico gaúcho Baguete — http://www.baguete.com.br.

Engenheiros de Almas — ensaio sobre o realismo socialista em Jorge Amado e Graciliano Ramos.

Ianoblefe — denúncia: o ano de 1993 ficará na história do jornalismo como o do maior blefe já registrado na imprensa nacional e internacional, o "massacre" dos ianomâmis que, mesmo sem ter ocorrido — até hoje não se tem prova material alguma de qualquer chacina — provocou lesões irremediáveis na imagem do Brasil no exterior e terá reflexos no desmembramento territorial do país.

A Indústria Textil é uma compilação de ensaios do Autor, publicados na imprensa brasileira e americana, com textos de 1967 a 1999.


 

 

 

Da coisificação do humano à admiração ingênua

 

Se os entes são modalidades das manifestações do Ser — o Ser em sendo — e a cultura, em seus mais triviais aspectos, uma emanação psíquica no tempo dos entes consciencializados, permissível nos é uma redução ontológica dos personagens de Disney. E se o filósofo é a medida da alienação de sua cultura, como dizia Marx, o mesmo dir-se-á do artista, em especial daquele que tão profundamente se espargiu nas massas marginalizadas do privilégio do saber.

Patinhas: a subjetividade carrancuda do quaquilionário, estratificada em decorrência da strugle for life nesta selva de lobos, não esconde que outrora o avarento tio partilhasse da ingênua Weltanschauung de Pateta. Mas numa estrutura em que os valores do ser são metamorfoseados pelo dinheiro — que, como nos diria um jovem teórico, é a alienação na abstração, ou o somatório abstrato de todas as alienações concretas — não se permite uma atitude ingênua e contemplativa.

Esta postura admirativa, que segundo Aristóteles é o gérmen do filosofar, persiste ainda em Pateta. Em um texto denso e complexo de sua Metafísica, diz Aristóteles: “É com efeito a admiração que leva e levou os primeiros homens à especulação filosófica. Ora, perceber uma dificuldade é admirar-se da própria ignorância”. Transportemo-nos a um episõdio (“A Onda dos Redemoinhos”, in Mickey, nº 175) onde, diante de um silo do qual emanam estranhos ruídos, o sobrinho Gilberto, produto hibrído do racionalismo mecanicista de um Pardal e da formação humanística de um professor Ludovico, inquire:

— Epa, que é aquilo?

Da admiração surge a pergunta e o conhecimento, diz-nos Karl Jaspers. Instaurada a indagação, demonstrando excepcional e ingênua sensibilidade, Pateta, em pleno processus de captação poética do desnudar-se fenomênico do Ser, responde:

— Elementar, meu caro sobrinho, algo faz vóim, vóim, vóim dentro do silo.

No pensamento contemporâneo é uma constante o diálogo entre o poeta e o filósofo, pois ambos, embora com fins diversos, partem de uma mesma problemática, a existência. Não por acaso, Sartre é filósofo e literato. Nesta captação primitiva de Pateta há uma admirável apreensão filosófica do eidos fenomênico. Discordamos dos que afirmam que a “sonolência do olhar acusa a letargia da consciência”. Diríamos que esta sonolência é conotativa de uma virgindade cultural que Donald, por exemplo, não possui. Num outro episódio (“Operação Kiwi Voador”, in Almanaque Tio Patinhas, nº 16) Donald, chegando a uma tribo indígena, interpela um pequeno guerreiro:

— Nós, nesta terra, intenção querer caçar. Saber onde estar guia?

O indiozinho entra na tenda e diz ao cacique:

— Papai! Este turista está tentando explicar-se usando todos os verbos no infinito. Não o entendo.

Donald aproximou-se com um pré-conceito — muito escusável se considerarmos o background donaldiano do real — que quase impossibilita a comunicabilidade entre seres de duas culturas distintas, não fora a disponibilidade do infante e a abertura ao diálogo do cacique.

Donald é o homem comum que, sem maiores ambições, satisfaz-se plenamente com o consuetudinário. Não é excepcionalmente inteligente, excepcionalmente forte ou excepcionalmente rico, senão excepcionalmente medíocre, se é que medíocre comporta tal advérbio. Voltando-nos em um flashback à sua vida escolar (“Esta é a sua vida, Pato Donald”, in Almanaque Tio Patinhas, nº 9), notamos que seu mais heróico feito foi ganhar uma competição cuja meta era colocar o número máximo de colegas numa cesta de lixo. Donald é a imagem perfeita do pato incompreendido e descrente dos homens. Acusador é o seu lamento:

— Preconceitos em toda a parte!

Talvez este episódio da infância explique sua inação burguesa. Donald encarna a alienação em sua plenitude, ao deixar-se explorar vilmente em sua força de trabalho pelo tio quaquilionário. Ou este deixar-se explora radicar-se-ia na consciência da inutilidade de uma eventual tentativa de libertação?

Pois o sustentáculo da fortuna de Patinhas não repousa em Patinhas — os valores do ter são exteriores à interioridade do homem. Suas imensas posses repousam na primeira moeda, avaramente guardada em uma redoma de vidro, cercada pelos dispositivos de segurança interna da caixa-forte, elemento de equivalência na arte disneyniana do fundamento histórico-sociológico da plus valia — a divisão do trabalho.

Disney não se pronuncia maniqueisticamente em sua obra: a função libertária é entregue não a um representante de um Bem Absoluto, mas a personagens eticamente mistos: irmãos Metralha, Madame Min e Maga Patalógica, representações simbólicas de duas tônicas do processo de libertação dos povos, a saber, a ação guerrilheira de grupos radicais e a tentativa de transformação do status pela força da magia, típica das esquerdas católicas.

Desde logo notamos o fracasso e a impotência da magia no ataque a este evento alienante, a primeira moeda. Se analisamos atentamente a caracterização psicológica dos personagens, fácil é notar a sensualidade estampada no facies de Maga Patalógica e o fenecer pós-menopáusico da carne em Madame Min, que nada mais quer senão satisfazer seus últimos estremeções sexuais com qualquer que caridosamente a aceite. Motivações assim pessoais para a luta revolucionária estão fadadas ao insucesso. As contínuas incursões contra a simbólica primeira moeda do capitalista Patinhas nada mais são senão meros pretextos das magas para demoradas e deliciosas viagens do castelo mal-assombrado à caixa-forte, montadas em suas longas vassouras, quais virgens ciclistas. Inegável é a função fálica dos cabos de vassoura na simbologia disneyniana.

Já a ação guerrilheira dos Metralhas aproxima-se mais do êxito, se bem que — por transitórios condicionamentos sócio-históricos (serviços de segurança, atitude reivindicatória isolada do povo) — esteja também fadada ao insucesso. E aqui cabe uma crítica a Disney. Parece-nos que sua concepção cíclica da história, manifesta no fato de que cada fracasso das magas ou dos Metralhas nunca é um fato absolutamente novo nem nunca será o último a ocorrer, seria válida tão-somente se inserta numa cultura clássica, mas não na hodierna. Característicos desta concepção são os versículos do Eclesiastes: “Que é que foi? O mesmo que haverá de ser. O que é que foi feito? O mesmo que se haverá de fazer. Nada de novo sob o sol, nem ninguém pode dizer: Vede, isto é novo; porque já aconteceu nos séculos que nos precederam”.

Magas e Metralhas jamais terão a posse da primeira moeda. E isto — reservamo-nos uma postura crítica — de certo modo empobrece a arte de Disney, pois além do fato de tal concepção encontrar-se em defasagem em relação ao nosso momento cultural, elimina a possibilidade de suspense, pois nos habituamos já a esperar pelo happy end e, conseqüentemente, limites temáticos são impostos à abordagem de outras alternativas.

Por outro lado, o Lobão — encarnação absoluta do Mal — não nos interessa, pois insere-se na literatura infantil de Disney, seu agir nada tem de histórico. Seu filho Lobinho, o Bem absoluto, tem do mesmo modo uma função meramente antitética: a preservação da sobrevivência dos três porquinhos. Voltemos pois àquela unidade de elementos contraditórios da verdade humana, tão bem e artisticamente captada por Disney.

(A ausência total da figura da mãe nas estórias — só encontramos pais ou filhos, tios ou sobrinhos, primos ou irmãos, avós ou netas — mereceria profundas digressões psicanalíticas, o que escapa às pretensões deste estudo).

Diz-nos Claude Tresmontant analisando a obra de Teilhard de Chardin: “O Mal provém do Múltiplo, faz parte integrante do processus de uma Criação evolutiva à base do Múltiplo; e isto por construção. Não podemos, portanto, considerar o Mal como um acidente, nem imaginar uma Criação desprovida de Mal”. A partir desta ótica cosmológica, explicita-se aquela dose mista de Bem e Mal, intrínseca tanto a nós quanto aos Metralhas, magas, Patinhas ou Mickey. Exceptus excipiendis, poupemos Pateta, que se situa num estágio pré-ético.

Diz Teilhard: “Não pode haver ordem em formação que, em qualquer grau, não implique desordem... Nada, nesta condição ontológica, que cheire a maniqueísmo. O Múltiplo puro, inorganizado, não é mau: mas por ser Múltiplo, quer dizer submetido essencialmente ao jogo de probabilidades dos arranjos, encontra-se na absoluta impossibilidade de progredir a caminho da unidade sem gerar, aqui e ali, o Mal — por necessidade estatística. Necessarium est ut adveniant scandala.”

Se nos Metralhas saudamos o agir revolucionário, em Mickey — personagem positivo tão ao gosto de um realismo socialista — vamos encontrar aquele que tanto Josph Losey como Bertold Brecht qualificariam como o “homem em ação, capaz de se descobrir, de reestruturar situações e libertar-se”. Um pseudolibertar-se, em verdade, pois a ação de Mickey não coincide com a necessidade histórica, senão que está a serviço dos departamentos de segurança do imperialismo (“Um porta-aviões no céu”, in Mickey, nº 172, e “Operação Unidade Invisível”, in Mickey, nº 168). Mas a ação, tanto de Mickey como dos Metrlhas, possui uma característica comum: a violência, produto de nossos dias, da práxis social. A violência no mundo é a necessidade da costrução do correto e da destruição do humano e do irracional. Mickey, no entanto, não realiza uma apologia da violência pela violência, como o fazem João Bafodeonça ou Mancha Negra.

Mas Disney não resolve sua problemática em termos de ação policial ou revolucionária. Metralhas, Patinhas ou magas nada mais senão representações de situações, modalidades de engajamentos (na acepção sartreana, a livre e consciente opção), mundivivências de seres, extraídos e capturados, em suas totalidades, do real. E nesta honestidade e respeito na abordagem das manifestações fenomênicas da cultura contemporânea, reside a grandiosidade e o engenho do artista.

A solucionática disneyniana embasa-se no nihilismo e na desesperança, tão típicas de uma cultura em decadência. Sinal dos tempos: do cenário agreste do western emerge a figura desdramática do anti-herói: Peninha. (“Aqui está o nhum-nhum-nhum”, in Mickey, nº 166).

Se em John Ford, Howard Hawks, Man e Dmytryck o personagem central da história tem funções de kosmokrator, em Disney encontramos a superação deste posicionamento, cuja validade só se radica nas convulsões revolucionárias de um momento histórico já ultrapassado. Disney, transpondo artisticamente a assertiva teilhardiana de que a desordem é intrínseca (Hegel explicita isto muito bem em sua Filosofia da História) a qualquer processus ordenativo, faz de Peninha o instaurador do kaos no kosmos, a própria essência do anti-heroísmo.

Onde surge Peninha, o cenário é destruído. Essa inter-relação unitária e indestrutível do homem (personagem) com seu mundo (o cenário), manifesta-se deletéria e destragicamente, compondo a medida demencial do desencadeamento e da desordem do mundo (ver seqüências finais de “Limpeza em Regra”, in Zé Carioca, nº 781, o cenário caótico de “Beleza de Mudança”, in Zé Carioca, nº 791, ou ainda “Atchim”, mesma revista, nº 803).

Bibliografia referencial:

Cahiers de Cinema
Le Phénomene Humain, Teilhard de Chardin
Zé Carioca, nºs 781, 791, 803
Metafísica, Aristóteles
L’Être et le néant, Jean-Paul Sartre
L’Être et l’avoir, Gabriel Marcel
Mickey, nºs 166, 168, 172, 175
Introdução ao pensamento de Teilhard de Chardin, Claude Tresmontant
Almanaque Tio Patinhas, nºs 9, 16
Introdução à Filosofia, Karl Jaspers

(Sátira à crítica cinematográfica. Porto Alegre, Correio do Povo, 02/07/67)


 

 

 

Informe sobre um latino enamorado pelo Absoluto*

 

“As obras sucessivas de um escritor são como as cidades que se constróem sobre as ruínas das anteriores”. Com esta imagem, já em seu primeiro livro, Uno y el Universo, Ernesto Sábato antecipa a arquitetura de toda sua obra.

Sábato lança-se à atividade literária em 1945, aos 34 anos de idade, quando já era um físico de certo renome, tendo trabalhado com Irene Joliot-Curie em Paris, e no Massachussets Institut of Technology. Motivado pela compulsão daquele que “morre, se não escreve”, abandona a carreira e presenteia sua biblioteca científica para viver num povoado nas serras de Córdoba, em difíceis condições materiais, com esposa e filhos. A Matilde — refutação encarnada de sua amarga concepção de mulher — devemos agradecer, em grande parte, o surgimento deste gigante das letras latinas. Sobre Heroes y Tumbas é dedicado “à mulher que ternamente me alentou nos momentos de descrença, que são os mais. Sem ela, nunca teria forças para levá-lo a cabo”.

Desde sua primeira opção, Sábato evidencia uma vocação radical para a literatura e exploração de seu mundo interior. Quando vemos poetas e escritores menores alegar o relógio ponto ou a magra profissão como empecilhos para a atividade criativa, podemos ter uma idéia da decisão deste homem que professa — no sentido mais pleno da palavra — o ofício literário. Como também vemos com clareza o porquê do fracasso, revelado pelo correr dos anos, de tantas carreiras literárias.

Entre suas obras fundamentais há um lapso de mais de dez anos. El Tunel surge em 48, Sobre Heroes y Tumbas em 62 e Abbadón, el Exterminador em 73. Estes intervalos revelam uma preocupação pelo acabamento da obra que fica acima de qualquer entusiasmo por um primeiro sucesso editorial. Mas o transcurso de todo este tempo não extinguiu, nem atenuou, suas primeiras angústias, que em Uno y el Universo já nos revelam um homem em busca de algo perfeito, se possível.

Desde então, o matemático Sábato, à “pirâmide de Queops, construída com dura pedra e com o sacrifício de milhares de escravos, implacavelmente demolida pela areia e o vento do deserto”, preferia a pirâmide matemática que forma sua alma, “invisível, sem peso, impalpável, que não só resiste ao embate do tempo mas está fora do tempo, não tem origem, não tem fim”. Sábato suspeita que este mundo “seja talvez uma ilusão e que por trás da árvore que timidamente cresce e morre, dos homens que lutam e das civilizações que aparecem e desaparecem, há um mundo rígido onde imperam o Número e as Formas Eternas”.

Em outro momento, afirma: “um círculo não nasceu um dia e não morrerá jamais: é incorruptível. Os centauros, a Brancura, as figuras matemáticas, pertencem a um mundo incorruptível como o céu platônico, onde o movimento e o tempo não existem, onde tudo é eterno e invariável”.

A partir deste namoro com o mundo platônico das formas eternas, não nos surpreende ouvir Sábato confessar que poucas vezes sentira, em sua juventude, tanta paz interior como quando submergiu no cálculo infinitesimal e nos primeiros teoremas.

Um homem sempre escreve sobre duas ou três obsessões básicas, afirma Sábato. Em sua obra, alguns temas se repetem obsessivamente:

• o abismo existente nas relações homem-mulher;
• o tenebroso mundo dos cegos;
• o mudo onírico, e
• a pergunta pelo Absoluto, por Deus, ou o nome que queiramos dar-lhe.

Coincidentemente, são estes os temas preferidos de Buñuel: em Belle de Jour e Tristana, o fulcro de suas abordagens é a ambigüidade homem-mulher; em Viridiana, o mais hipócrita dos personagens é um cego (e o próprio Buñuel já afirmou detestar cegos); todos seus filmes, desde Le Chien Andalou a L’Age d’Or, são um constante ir e vir entre o sonho e a realidade; e La Voie Lactée é do início ao fim uma discussão teológica.

Em Uno y el Universo, Sábato já tem uma certa prevenção em relação à mulher, esse subúrbio do mundo dos cegos, como a define seu personagem Fernando Vidal Olmos: “haverá sempre um homem tal que, embora sua casa desmorone, estará preocupado pelo universo. Haverá sempre uma mulher tal que, embora universo desmorone, estará preocupada com sua casa”.

Em El Tunel, Juan Pablo Castel inicia seu relato dizendo ser o pintor que matou Maria Iribarne e pretende explicar o móvel de seu crime. Sua história é a de um homem que quer conhecer, no sentido total e bíblico da palavra, a mulher que ama. Mas suas relações não passam de um cauteloso roçar de dois egos, jamais ocorre uma penetração mais profunda. Em uma noite solitária de devassidão, álcool e prostitutas, quando se deixava acariciar pela idéia do suicídio, Castel vê no rosto de uma profissional a mesma expressão que vira uma outra vez em Maria. “Maria e a prostituta haviam tido uma expressão semelhante. (...) Esse animal imundo que rira de meus quadros e a frágil criatura que me havia alentado a pintá-los tinham a mesma expressão em algum momento de suas vidas! Deus meu, se não era para desconsolar-se pela natureza humana, ao pensar que entre certos instantes de Brahms e uma cloaca há ocultas e tenebrosas passagens subterrâneas”.

Quando Castel mata Maria, não é fácil estabelecer-se quem é a vítima:

“Me aproximei de sua cama e quando fiquei a seu lado, me disse tristemente:

“ — Que vais fazer, Juan Pablo?

“Pondo minha mão esquerda sobre seus cabelos, lhe respondi:

“ — Tenho de te matar, Maria. Me deixaste só.

“Então, chorando, cravei-lhe a faca no peito. Ela apertou as mandíbulas e cerrou os olhos e quando puxei a faca pingando sangue, abriu-os com esforço e me fitou com um olhar doloroso e humilde. Um súbito horror fortaleceu minha alma e cravei muits vezes a faca em seu peito e em seu ventre”.

A interrogações de Sábato continuam em Sobre Heroes y Tumbas. Martín persegue inutilmente Alejandra, que ora parece pertencer-lhe, ora lhe é totalmente desconhecida, fugidia. Em Informe sobre Ciegos, Louise e Gastón, ambos cegos, se dilaceram com a mais contundente das torturas, a psíquica. Em certa ocasião, Gastón ata Louise a uma cama enquanto faz amor com uma mulher a seu lado. Mais tarde, em conseqüência de uma queda, Gastón ficará totalmente paralítico, conservado intacto apenas seu extraordinário sentido de audição. Louise vinga-se levando seus amantes ao quarto de Gastón, que “parecia emparedado dentro de uma carapaça rígida, enquanto um exército de formigas carniceiras devoravam suas carnes vivas, cada vez que a cega gemia na cama com seus amantes”.

A obsessão pelo mundo dos cegos é antiga em Sábato. Já em El Tunel, Castel afirma: “devo confessar que não gosto absolutamente dos cegos e que sinto diante deles uma impressão semelhante a que me produzem certos animais, frios, úmidos e silenciosos, como as víboras”. Nesta novela, Allende, marido de Maria, é cego.

Informe sobre Ciegos, delírio fascinante engastado na novela Sobre Heroes y Tumbas, é um pesadelo quase, relatado por Fernando Vidal Olmos, investigador do Mal — “e como se poderia investigar o Mal sem afundar-se até o pescoço na imundície?” Olmos vê nos cegos os componentes de uma seita terrível e poderosa, cuja organização e alvos pretende investigar. Seu relato assusta, pois sua paranóia — se assim houvermos por bem defini-la — tem inequívocas coincidências com o que chamamos, para escárnio de Olmos, de mundo real. “Esses indivíduos — diz Olmos — que a si mesmo se qualificam de realistas, porque não são capazes de ver além de seus narizes, confundindo a Realidade com o Círculo-de-Dois-Metros-de-Diâmetro com centro em sua modesta cabeça”.

Para Olmos, os cegos constituem uma espécie de “chantagistas morais que abundam nos subterrâneos, por essa condição que os aparenta com os animais de sangue frio e pele resvaladiça”. Após passagens por labirintos e abismos que nos lembram Lovecraft, perseguição e fugas pelo mundo inteiro em busca do segredo da seita, Olmos acaba assassinado por Alejandra, sua filha, com quatro balaços. A matar-se com as balas que restavam, Alejandra prefere morrer queimada na peça em que matou o pai, fechada à chave por dentro. Para Olmos, que há muito esperava seu assassinato (“assombrosa lucidez que tenho nestes momentos que precedem minha morte”), não restariam dúvidas: sua morte, pelas mãos da filha, seria a vingança implacável engendrada pela Seita, imposta àquele que tentou desvendar o Segredo.

Ao lermos Sobre Heroes y Tumbas, uma pergunta é inevitável: onde quer que chegar Sábato com essa ontofania fascinante que é Informe sobre Ciegos?

Em Diálogo com a América Latina, o próprio Sábato confessa a Günter Lorenz:

— O que acontece é que eu mesmo não sei o que quis dizer com o Informe. Porém pode ser que efetivamente seja uma grande metáfora sobre o mundo da noite, ou o mundo da obscuridade, que é também o mundo do útero, o mundo da caverna. (...) Por fim, para dizê-lo de uma vez por todas, não sei bem porque o escrevi. Comecei timidamente, é preciso dizer, não me animava de todo, mas à medida que me fui compreendendo e vencendo minhas próprias resistências — posso dizer que é a parte do livro que escrevi com mais violência, mais espontaneamente — deixei-me levar pelo que me diziam meus instintos, pelo que ditava meu mundo interior.

Mas Sábato não consegue expurgar definitivamente seus fantasmas em Sobre Heroes. A catarse continua em Abbadón, el Exterminador. Nesta novela, um certo Dr. Ludwig Schneider, pergunta-lhe, em 1948, data da publicação de El Tunel, sobre a cegueira de Allende. Schneider só volta a encontrar-se com Sábato em 62, quando surge Sobre Heroes y Tumbas. A propósito da descrição que Castel faz dos cegos, Schneider pergunta a Sábato:

— Então, têm a pele fria?

Mais adiante Sábato se pergunta se o atraso de mais de dez anos na tradução de Sobre Heroes em Londres e Nova York não terá nada a ver com os cegos.

O mundo onírico, outro campo de exploração para o autor. Quando um livreiro de Buenos Aires comenta que o Informe é completamente alheio à narração, Sábato pergunta-lhe se não tinha sonhos, e qual o que mais se repetia. O livreiro afirma que sim, e um se repetia: perseguiam-no por telhados inclinados e escorregadios, de grandes catedrais ou igrejas. O livreiro ficou muito confuso quando Sábato lhe pergunta que relação tinha esse pesadelo com a venda de livros.

Suprimir os sonhos, diz, “é como se pretendêssemos estar dizendo a verdade sobre um homem, mediante a descrição de todos seus atos, desde que desperta até quando se deitas, e em virtude de uma espécie de mania racionalista, lhe suprimíssemos o que sonha desde o momento em que dorme até o amanhecer, quando desperta. (...) Do mesmo modo, em uma novela, os sonhos, as alucinações, as parábolas, as fábulas, ainda que não sejam uma tradução literal da realidade externa, são testemunhos, e às vezes os mais importantes. O sonho é o que de mais pessoal tem um homem”.

A busca de um absoluto, que já se manifestava no adolescente que só encontrava paz espiritual no mundo harmônico e perfeito dos teoremas, reaparece em Alejandra que corre nua na praia e na tempestade, rindo e chorando, abrindo os braços, insultando céus e infernos, pedindo a Deus que a fulmine com um raio, se existisse. Mas a pergunta mais trágica por Deus são as hipóteses de Fernando Vidal Olmos:

1 — Deus não existe.

2 — Deus existe e é um canalha.

3 — Deus existe, mas às vezes dorme: seus pesadelos são nossa existência.

4 — Deus existe, e tem acessos de loucura: esses acessos são nossa existência.

5 — Deus não é onipresente, não pode estar em todas as partes. Às vezes está ausente. Em outros mundos? Em outras coisas?

6 — Deus é um pobre diabo, com um problema demasiado complicado para suas próprias forças. Luta com a matéria como um artista com sua obra. Algumas vezes, em alguns momentos, consegue ser Goya, mas geralmente é um desastre.

7 — Deus foi derrotado antes da História pelo Príncipe das Trevas. Derrotado, convertido em suposto Diabo, é duplamente desprestigiado, já que se lhe atribui este universo calamitoso.

Em um ensaio sobre a cultura argentina, La Cultura en la Encrucijada Nacional, Sábato afirma que os homens escrevem ficções porque estão encarnados, porque são imperfeitos. Agradeçamos, pois, a Deus por não existir. Caso contrário, não teríamos a chance de ler a obra desesperada e densa de Sábato.

(Porto Alegre, Correio do Povo, 02/11/74)


 

 

 

Entrevista

 

Janer Cristaldo — Você, que há mais de meio século vem lutando contra as tiranias dos regimes comunistas, como se sente ao final do milênio?

Ernesto Sábato — Não só lutei contra as tiranias comunistas, mas contra toda forma de tirania. Não há ditaduras más e outras benéficas: Todas são igualmente abomináveis. O que me desagrada é quando são feitas em nome de grandes ideais, como foi o caso, precisamente, da stalinista. Pelo mesmo motivo, me repugnam as igrejas estabelecidas quem como no caso da religião cristã, com um Deus onisciente e infinitamente bondoso, torturaram horrendamente ou perseguiram até a morte seitas bondosas.

JC — Estudando sua obra, sempre o vi como um espírito religioso, particularmente pelo fato de ter militado, em sua adolescência, com os anarquistas e logo depois com os comunistas.

ES — Sim, é claro que a maior parte dos adolescentes que se aproximaram destes movimentos eram espíritos religiosos, ou pelo menos para-religiosos. Lutávamos contra a injustiça social, não suportávamos ver crianças morrendo de fome.

JC — Você acredita em Deus?

ES — Sim e não, conforme o momento e as circunstâncias. Pois, como acabo de dizer-lhe, é duro compatibilizar um Deus infinitamente bondoso com a venda por 100 ou 200 dólares de meninos e meninas para a prostituição. Essa notícia saiu aqui, falando de uma região do Brasil. Mas, como diz Santo Agostinho, em suas Confissões, Deus é inacessível à razão, e o que estamos utilizando aqui são meras razões. As grandes verdades — e aquela da qual estamos falando é a grande Verdade — só podem ser alcançadas mediante a intuição mística ou poética. Falo de poesia no sentido mais primigênio e profundo da palavra, não estou falando de versinhos. Só a poesia — que inclui não apenas poemas profundos, ficções memoráveis, pinturas e obras musicais eternas — é capaz de dar uma resposta. Por outro lado, e falo a propósito de sua pergunta, um espírito religioso não é necessariamente alguém que crê firmemente na existência de Deus, mas também — e bastante amiúde — alguém que vive angustiado com este problema. Incluo nestes os que blasfemam ou dizem atrocidades, que formam uma legião majoritária e que, de modo paradoxal, acreditam em Deus. Pois contra quem lançariam então estas blasfêmias? O ateu deve ser ateu e ponto final. Isso eu o disse em meu primeiro livro, faz meio século, Uno y el universo, que você traduziu no Brasil. Pois se se trata de um ateu enérgico, é preciso se pôr em dúvida seu ateísmo. Tampouco se pode acreditar que os anticlericais — ou boa parte deles — sejam ateus: são às vezes autênticos espíritos religiosos que sentem repugnância pela igreja estabelecida, pelo stablishment. Há um anticlerical bastante conhecido, chamado Jesus, que se rodeava de analfabetos pescadores e de prostitutas, que predicava junto aos pobres, que contou aquela parábola sobre o camelo e o buraco de uma agulha, que detestava os fariseus e os escribas. Aquele ser também deve ter duvidado, como demonstra sua última e tremenda frase, quando foi crucificado. Tivesse vivido na Argentina, na última ditadura militar, que teria feito? É evidente, teria pregado para as villas-miseria, que no Brasil são as favelas. Que teria acontecido com ele? O mesmo que ocorreu com muitos de seus discípulos, que foram seqüestrados por comandos militares, logo violentados e torturados selvagemente, e finalmente assassinados. Teria sofrido, efetivamente, esta via crucis e, o que é mais horrendo, em nome dos valores "ocidentais e cristãos", por torturadores que eram assistidos e absolvidos por sacerdotes católicos. E assim teria morrido em Buenos Aires, como morreu tantas vezes em circunstâncias semelhantes em todas as partes do mundo. Pois a maldade é universal e tem a duração da espécie humana. É a frase do Eclesiastes, quando diz que nada há de novo sob o sol. Refere-se, é claro, ao coração do homem, que é o mesmo desde sempre. Esse coração que é o território no qual lutam, pela alma do homem, Deus e o Demônio. Frases, palavras do heresiarca Fedor Dostoiesvski.

JC — O que pensa a igreja argentina a seu respeito?

ES — Alguns gostam de mim e me respeitam, a maioria me acusa de "canhoto", de terrorista, de subversivo, de materialista dialético (os mais filosóficos), de bolche e epítetos semelhantes. Alguns destes são corretos. Outros, sofismas grosseiros.

JC — Quais seriam os justos?

ES — Sou, efetivamente, um subversivo. E um "canhoto", porque propugno a justiça social, a liberação dos povos oprimidos e luto contra toda forma de racismo. Quanto ao epíteto de "materialista dialético", você, que está traduzindo Hombres y Engranajes e traduziu meus três romances, sabe que é um enorme, grotesco e perverso sofisma. E assim ganhei, ao longo de meio século, uma bela fama: os reacionários me qualificam como comunista e os comunistas me qualificam como reacionário, porque fui inimigo do criminoso regime soviético e por não participar de seu ateísmo de bairro. Devo esclarecer, no entanto, algo que para mim é importante: sempre respeitei os comunistas que, por sua candidez ou sólida fé acreditaram no regime soviético, os que sofreram prisão e torturas, os que lutaram com boa fé por seus ideais. Por isso — fato que enalteci em dois de meus livros — admiro e continuo admirando Che Guevara, que foi acima de tudo e de seu marxismo, um grande idealista, um personagem quixotesco que, como diria Rilke, teve sua morte pessoal na selva boliviana, após ter abandonado a burocracia cubana. Um herói, e sempre temos de nos erguermos ante um herói que morre por ideais. Não até sua altura, é claro, mas também quis e continuo querendo bem até suas mortes seres como Gerardo Pisarello e Arturo Sánchez Riva, a quem dediquei um livro, e me doía saber que ele lia as coisas que escrevi sobre o horror do stalinismo. Eram pessoas de fé, que acreditavam apesar de tudo. E houve muitos que morreram sob tortura por defender essas idéias nas quais acreditaram: merecem admiração e respeito.

JC — A queda do muro de Berlim e o desmantelamento da União Soviética, você os previu ou os considerava como fatos impossíveis?

ES — Foram sacrificadas em torno de 20 milhões de pessoas, e a burocracia corrupta e a indigência do povo faziam possível este final. Mas a história não é previsível, já que não obedece a leis racionais, como precisamente pensavam Marx e Engels. A história é sempre novidade, dizia o filósofo norte-americano William James, irmão de Henry, o romancista. Frase brilhante mas que não gozava da admiração destes pensadores que acreditavam nas "leis" da história, como se fossem leis científicas. Marx e Engels não qualificaram seu socialismo como "científico"? Era tão pouco científico que nenhuma das predições de Marx se cumpriram: a revolução social não só não explodiu no país mais desenvolvido do mundo, como ocorreu em um país atrasado. Nem os proletários de todo o mundo se uniram para lutar contra os burgueses do mundo inteiro, mas nas duas grandes guerras mundiais os operários, junto com os burgueses lutaram contra os operários e burgueses unidos do outro lado. Nem os países comunistas não lutariam jamais contra outros países comunistas (lembremos o Camboja), isso para não falar do ódio dos chineses contra a União Soviética. Nem o espírito religioso do povo eslavo desapareceu por obra do ensino anti-religioso.

JC — Pode-se encontrar partes resgatáveis em Marx e Engels?

ES — Sim, penso que Marx foi um dos que mais lutou com seus livros contra a escravidão no mundo capitalista, e especialmente na Inglaterra vitoriana com a qual conviveu, e tem partes filosoficamente de valor. Para seus epígonos baratos, e no caso grotesco de Stalin, todas as atividades do espírito foram reduzidas às forças econômicas. Em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, afirma que não é a história que faz o homem, mas sim o homem real e vivo que faz a história. Mas a escolástica stalinista tergiversou e barateou suas ideais. Homens como Labriola, na Itália, foram sufocados pela escolástica oficial. Talvez como resultado da tradição hegeliana que na Itália se manteve por obra de Croce — filósofo idealista — pode surgir um espírito tão admirável como Gramsci, que durante seus seis anos de cárcere escreveu páginas que resplandecem em meio à baixeza filosófica do stalinismo. Lutou contra a obra de Plekanov, que tanto foi predicada em meus anos de estudante, quando defendia que a arte era um "reflexo" da sociedade e que as condições econômicas "explicavam" os sentimentos, as idéias e a arte. Bastaria lembrar que Marx recitava de memória Shakespeare e os líricos ingleses e alemães, muitos deles "reacionários", e ria de L'Insurgé, aquele romance "engajado" de um militante da Comuna de Paris. E o que não teria dito da famosa arte "proletária" incubada pelo stalinismo! Também devemos reconhecer, frente ao homem abstrato de Hegel, alheio à terra e ao sangue, a frase de Marx : "O homem não é um ser abstrato, fora do mundo: é o mundo dos homens, do Estado, da sociedade". E sua consciência é uma consciência social, enunciando assim um novo humanismo frente às enteléquias iluministas e racionalistas tipo Voltaire. Nisto, há muito parentesco com o que fariam os existencialistas de forma mais acabada. Mas ele compartilhava com os iluministas o mito da Ciência e da Luz contras as potências obscuras. Essas potências obscuras que constituíam o mais profundo e concreto da condição humana: a alma e suas paixões, o inconsciente e suas verdades, a própria fonte dessa arte que tanto admirava. Por alguma razão ele e Engels chamavam seu socialismo de "científico", frente aos utópicos anarquistas, que são os que finalmente tiveram razão. Demoliu implacavelmente Proudhon, mas agora compreendemos que aquele socialismo não teria incorrido na massificação soviética, típica tanto do capitalismo de massa como do socialismo de massa, ambos herdeiros da ciência e da técnica, que conduziram a esta espantosa catástrofe de nosso tempo.

JC — Em suma, voltar ao anarquismo?

ES — Sem dúvida, se não seremos destruídos minuciosamente pelo desastre talvez irreversível da ciência e de sua filha dileta, a técnica, com suas megalópoles, com a destruição geral da natureza e do próprio homem, massificado, coisificado, que não tem outra saída senão a droga ou o nihilismo destrutivo. Mas isto nos leva muito longe e não pode ser desenvolvido em uma simples entrevista. Você está agora traduzindo Hombres y Engranajes, que escrevi em 1951, onde explico em profundidade esta crise colossal. Me encheram de insultos e fiquei dez anos sem publicar uma única linha, até 1961, quando me decidi a editar Sobre Heróis e Tumbas. Agora, tudo o que disse naquele livro está à vista, todo o desastre do famoso progresso.

JC — Quais seriam as conseqüências desta degringolada para os futuros projetos dos escritores?

ES — Depende de que espécie de escritor você fala. Para os profundos, será sempre a mesma coisa, os temas transcendentes que constituem a condição humana, que são sempre os mesmos. Para os escritores de ocasião, para os que se limitam ao anedotário político, não sei, suponho que continuarão escrevendo as mesmas superficialidades.

JC — Você parou de escrever ou vai nos brindar com alguma outra criação?

ES — Você sabe que em 1979 me detectaram uma grave doença nos olhos: não câncer, mas algo irremediável, com o derrame do humor vítreo, com o que as retinas ficam sem proteção, e as lesões decorrentes que naquela época eram muito grandes. O especialista, um grande amigo meu, me proibiu a leitura e a escritura, salvo em quantidades mínimas e empregando minha memória digital.

JC — Está cumprindo esse pedido médico?

ES — Não foi pedido, foi uma ordem terminante, amistosa mas terminante. Claro, como não iria cumpri-la? Para cúmulo, este meu horror sagrado à cegueira...

JC — Como se seus livros, seus romances, tivessem um caráter premonitório...

ES — Sim.

JC — Você agora começou a pintar, precisamente porque está mal de vista?

ES — Claro, vale a piada. Mas a realidade é que o tamanho de um quadro me permite o que não me permite a letra. Quando o oculista me disse, com um rosto muito grave, o que me acontecia e observou que talvez eu não tivesse ficado angustiado, me falou de sua perplexidade. É muito simples, respondi, toda minha vida tive a nostalgia de minha paixão, primeiro pela pintura, desde que era pequeno e depois adolescente. Foi a minha primeira e talvez mais forte paixão. Nesse mesmo instante me senti liberado, porque que cada vez que fazia alguma coisa de pintura, sentia uma espécie de culpa, porque muitos me diziam que devia continuar escrevendo. Na realidade, ao concluir Abadon, o Exterminador, em 1974, senti que havia dito tudo o que tinha de dizer, a ponto de minha tumba aparecer no romance. Enfim, continuei escrevendo alguns pequenos ensaios. Mas as grandes verdades, pelo menos as que eu não consigo alcançar, já estavam ditas. Essas grandes verdades existenciais, as quais não só escrevemos conscientemente mas, e principalmente, com os ditados que vêm do mais profundo de nosso ser, do inconsciente. A propósito, quero acrescentar algo que considero fundamental: a pintura permite uma transmissão mais direta destas visões inconscientes. E por isso é mais catártica, mais liberadora.

JC — O mesmo não diriam um Proust ou Joyce. Explique melhor a coisa.

ES — O inconsciente se expressa sempre por imagens, como nos sonhos, que são como cinema mudo. com raras exceções. A pintura tem esta vantagem sobre a literatura, embora por outro lado tenha desvantagens. Tanto em um caso como no outro, o fundamental, as grandes verdades, vêm do inconsciente. De um sonho pode-se dizer qualquer coisa, menos que seja falso. O processo da criação, tal como pelo menos eu pude verificar pessoalmente, é assim: em momentos excepcionais, nessa região penumbrosa que fica entre o sono e o pleno despertar, às vezes se consegue entrever algo, o que poderíamos e talvez deveríamos denominar de "objeto poético", quase inexpressável, ambíguo, contraditório, mas tão verdadeiro que nos sacode, nos angustia ou nos fascina. O escritor tem de expressar esse objeto por intermédio da palavra, mas a palavra sempre é conceitual: "árvore" não é a imagem de uma árvore, já que serve tanto para uma palmeira como para um limoeiro. É uma convenção abstrata, e por isso em cada língua se diz de maneira diferente: árvore, baum, tree... Um dos grandes problemas que o escritor tem de resolver é o de expressar, mediante conceitos puros, algo que não é conceitual, mas visual, e além disso ambíguo, polivalente. Penso em todas as interpretações que se podem fazer e foram feitas dos sonhos de José, através dos séculos. Essa é a diferença entre poesia e prosa, não a que se pensa normalmente: a prosa, em sentido estrito, é um teorema, ou uma lei científica, ou um prospecto que acompanha um objeto doméstico eletrônico, em que se dá instruções precisas e unívocas sobre cada botão. A poesia, no sentido grande e clássico, é, ao contrário, ambígua e multívoca, seja um poema, uma tragédia ou um grande romance. Tem muitas leituras, como se diz agora no jargão, é suscetível de diferentes interpretações, que mudam inclusive em nós mesmos, como leitores, à medida que passam os anos. Esta linguagem poética, que na simples prosa emprega idéias abstratas, na pintura se dá diretamente através de uma imagem.

JC — Você tem feito exposições?

ES — Sim, mas só no estrangeiro. a primeira no centro Pompidou, há pouco uma em Madri e outra novamente em Paris.

JC — Como influiu em seu ânimo, e mesmo em sua saúde, essa nova condição?

ES — Maravilhosamente. A pintura é mais liberadora, por isso talvez existam pintores mais longevos que escritores. Marc Chagall não acabava de morrer nunca... Há, além disso, a vantagem de ser algo mais intuitivo e manual. Até o cheiro de terebentina me subjuga. Cada vez que entrava no ateliê de pintura de um amigo meu sentia esse cheiro e um sentimento de frustração. Alguma vez escrevi que lutamos contra o destino e o destino por fim tem razão. Eu costumava dizer a Matilde: morrerei com uma enorme nostalgia da pintura. A semicegueira me permitiu a pintura.

JC — Em que escola você se situa?

ES — Você, que leu e traduziu meus romances, que acha?

JC — Uma pintura trágica e expressionista?

ES — Acertou. Ultimamente derivou para uma obra totalmente sobrenaturalista. Há quadros tão terríveis que não poderia colocá-los em minha casa, como diria um marxista eterno, o Groucho.

* Leia Mensageiros das Fúrias, em ebooksbrasil.org


 

 

 

Adelino dos Santos Parracho e o Momento Cultural Português

 

Hegel, filósofo da História, afirmava ser a leitura dos jornais sua prece cotidiana, e via em suas páginas a manifestação do Espírito. Ao chegarmos a um país, se quisermos sentir o momento histórico presente, basta comprar um jornal qualquer, de preferência o mais lido. Em suas linhas ou entrelinhas, colunas ou lacunas, o observador atento poderá auscultar o povo inteiro.

Após uma fronteira, compro um jornal e leio:

Deu violenta cabeçada num portão e teve morte instântanea

Ilhavo — No lugar da Gafanha do Areão registrou-se um invulgar incidente, do qual resultou a morte de um indivíduo em condições invulgares.

Adelino dos Santos Parracho, de 35 anos, e seu tio, Manuel Nunes, discutiram por causa da demarcação de uma propriedade que este último se recusara a fazer. Palavra puxa palavra, os ânimos exaltaram-se de tal modo que Manuel Nunes recolheu-se à casa, fechando atrás de si o portão. O sobrinho, não gostando da atitude do tio, que não lhe permitiu a entrada, tentou forçá-la, para o que atirou uma violenta cabeçada no portão, que lhe causou morte instantânea.

Estamos, como o leitor já deve ter percebido, em Portugal.

Com sua brusca transição de meio século de ditadura salazarista, colonialismo, opressão política e proibição do pensamento, para um governo que se dirige ao socialismo, buscando para isso o consenso popular através do voto livre, Portugal sofreria traumáticas transformações em suas manifestações culturais.

Para evitar confusões de termos, começo definindo o que entendo por cultura: cultura é tudo o que homem faz. A meu ver, tanto Camões como Teixeirinha constituem cultura, como também é cultura um tacape, um automóvel ou a bomba de hidrogênio. Nesta conceituação, não cabem juízos éticos. Antes de ser boa ou má, cultura é algo que foi elaborado, que aí está. O bacalhau à Gomes Sá é cultura portuguesa, ao mesmo título que Fernando Pessoa. Nesta análise, quero deter-me apenas naquelas elaborações mais abstratas da cultura, ligadas ao jornalismo, literatura, artes, etc.

Como as páginas de um jornal, uma banca de revistas nos dá uma boa idéia do nível cultural de um povo. Na banca estão as publicações de consumo imediato, os livros e revistas que a maioria mais gosta de ler. Hoje, em Portugal, lê-se apenas, na expressão de um editor, P & P, ou seja, política e putaria. Nas bancas, ao lado de obras de Marx, Mao, Lênin, Trotsky, e cartazes de Che, Ho Chi Min, Fidel, estão livros de Cassandra Rios, publicações da Artenova, pornografia barata feita às pressas para satisfazer a demanda e pornografia mais requintada, com melhor know how, importada da Escandinávia. Ao lado, naturalmente, dessa pornografia familiar de Playboy, Lui, Penthouse, etc. A ironia da situação nos faz descrer de qualquer ideal mais nobre: um homem dá sua vida por suas idéias, para acabar, braços dados com Cassandra Rios, fazendo a fortuna de editores inescrupulosos que se pretendem progressistas.

Nos meios mais intelectualizados, hoje não importa se um autor escreve bem ou mal. O que dará valor à sua obra será o fato de ter estado ou não preso sob o regime anterior. Num jornal, não interessa se o redator tem bom texto e espírito analítico. Pesará mais o fato de ser ou não militante. Não mais se informa, quer-se formar. Notícias e manchetes estão eivadas de adjetivos como fascista, antifascista, democrata, antidemocrata. O que provocou um comentário irônico de um jornalista brasileiro, recebido com certo constrangimento por seus colegas lusos: “A pior coisa que poderia ter acontecido para vocês foi a eliminação da censura. Antes, os jornais não valiam nada, mas se jogava a responsabilidade à censura. Agora, a situação é a mesma e não mais existe a desculpa da censura”. Senão, vejamos:

Um jornal comenta os festejos carnavalescos. De alguma maneira se há de inserir na notícia as palavras fascismo e democrata:

“... o fascismo não suportava as liberdades carnavalescas (...) Este ano, com a nova situação política virada para o auxílio às classes menos favorecidas, as ruas de Lisboa ofereceram por vezes aspectos inusitados de foliões a conceder aos passeantes momentos de hilaridade mais são, agora sem receio da repressão policial. Enquanto se caminha para uma democracia que liberta o país definitivamente do fascismo, o Carnaval novo...”

Anuncia-se em Lisboa Toute une vie, de Lelouch. Seu grande mérito, salientado pelos críticos e também na legenda final do filme: “este filme acabou de ser rodado no dia 23 de abril de 1974, dois dias antes do movimento antifascista em Portugal”.

Dispenso comentários.

Um cineclube anuncia Alexandre Nevski, do grande cineasta antifascista Eisenstein. Quando o homem nem chegou a ter tempo de ser antifascista...

Um gajo estaciona mal o carro? É fascista. Uma senhora fura uma fila qualquer? É uma fascista do antigo regime. A rica e variada gama de palavrões da língua portuguesa está hoje resumida em Portugal a um só palavrão.

Festival da canção popular na Europa. Vejamos algumas letras que Portugal pretende apresentar:

O Pecado Capital

Quem será que nos contratar no ano que vem?

Quem será que nos vai enganar no ano que vem?

Quem será que vai dizer que não tem dinheiro?

Quem será que vai chuchar no dedo o ano inteiro?

Quem será que nos vai encantar com tudo o que viu?

Quem será que vai falar de coisas que nunca viu?

Quem será que vai ser fuzilado no Chile?

Quem será que vai ser torturado no Brasil?

Quem está por cima afirma que a razão do mal

Só tem a ver com o pecado original

Mas diz o povo que o pecado essencial

É o capital.

Será desta vez que acaba o medo do comunismo?

Será desta vez que acabam com o analfabetismo?

Será desta vez que vai morrer a saudade

Será desta vez que vai nascer a liberdade

Será desta vez que o mundo assiste ao conflito atômico?

Quem será que desta vez resiste ao caos econômico?

Será que alguém desta vez vai ter salvação?

Quem será que vai aproveitar esta canção?

A Boca do Lobo

Andam por aí os restos do passado

Andam por aí os textos

dos restos mortais dos tachos de comida amarga

que os que ainda vivem à larga

nos querem fazer engolir

É a boca do lobo

a morder a nuca do povo

a morder a nuca do povo

Anda aí o funeral dos parasitas

Anda aí o Carnaval

Anda aí como aliás já se previa a CIA

Quem é que não desconfia?

Quem é que se quer meter

na boca do lobo

a morder a nuca do povo

a boca do lobo

a morder a nuca do povo

a morder a nuca do povo

Anda

a gente vai começar

a gente já começou

a gente vai acabar

aquilo que começou

a gente vai começar

Anda o camponês a puxar a carroça

Anda o operário a mourejar

Anda o grande capital e os latifundiários

a arranjar processos vários

de nos continuar a meter

na boca do lobo

a morder a nuca do povo

a boca do lobo

a morder a nuca do povo

a morder a nuca do povo

Alerta

Pelo pão e pela paz

e pela nossa terra

pela independência

e pela liberdade

Alerta! Alerta!

Às armas! Às armas!

Alerta!

Pelo pão que nos a burguesia

que nos explora nos campos e nas fábricas

Operários, camponeses hão-de um dia

arrebatar o poder à burguesia

Abaixo a exploração!

Pelo pão de cada dia!

Pois claro!

Só teremos a paz definitiva

quando acabar a exploração capitalista

Camaradas soldado e marinheiro

lutemos juntos pela paz no mundo inteiro

Soldados ao lado do povo!

Pela paz num mundo novo!

Pois claro

Pelo Pão e pela Paz

e pela nossa Terra

pela Independência

e pela Liberdade

Alerta! Alerta!

Às armas! Às armas!

Alerta!

Pela Terra que nos rouba essa canalha

dos monopólios e grandes proprietários

Camponeses, lutem p’la Reforma Agrária

p’ra dar a terra àquele que a trabalha

Reforma Agrária faremos!

A terra a quem trabalha!

Pois claro!

Pela Independência Nacional

Contra o domínio das grandes potências

Fora o imperialismo internacional

Que tem nas mãos metade de Portugal

Abaixo o imperialismo!

Independência nacional!

Pois claro!

Não há povo que tenha Liberdade

enquanto houver na sua terra a exploração

Liberdade não se dá, só se conquista

Não há reforma burguesa que resista

Democracia Popular!

Democracia Popular!

Pois claro!

E assim por diante. Pelo que vemos, os compositores lusos estabelecem uma pequena confusão entre manifesto e canção.

Vejamos, no mesmo jornal, O Primeiro de Janeiro, esta obra-prima:

Decorreu com entusiasmo
o Carnaval do Palácio
promovido pelo P.C.P.

No Palácio de Cristal decorreu na noite de sábado para domingo o Carnaval popular promovido pelo Partido Comunista Português.

A festa teve a presença de milhares de comunistas e simpatizantes que alegremente conviveram até de madrugada, num Carnaval livre, de alegria transbordante, vivida sem equívocos.

Na verdade este carnaval-convívio, o primeiro após 48 anos em que comunistas se viram arredios de qualquer participação, constituiu iniludível expressão de sua força junto às camadas populares.

Abrilhantaram a festa conjuntos musicais e ranchos folclóricos, Júlia Rabo, Manuel Freire e Ari dos Santos, tendo sido cantadas músicas de intervenção.

Ari dos Santos disse alguns poemas de sua autoria, tendo merecido, no meio da alegria, uma pausa para repensar, aquela dedicada ao martirizado Povo do Chile.

A situação nos leva a uma pergunta: já que o PC português anda organizando o carnaval, não seria o caso de promover também a Páscoa?

Mas enquanto se desenvolve esta revolução, a cultura (suas manifestações mais abstratas) é traumatizada. O fenômeno não é novo. Só para citar um exemplo, pergunto que nomes nos ofereceu a literatura russa após 1917. Ao que tudo indica, se fechará este século e continuaremos preferindo Dostoievski, Kuprin, Chekov, Gorki. O único gênio elaborado pela língua portuguesa no transcurso dos séculos, Fernando Pessoa, começa a ser acusado de fascista pelas esquerdas de Portugal. (Aliás, falar de esquerdas portuguesas é pleonasmo, pois hoje todo português se proclama esquerdista. Se Espínola vencesse em sua última tentativa e quisesse banir as esquerdas do país, não teria quem governar). A acusação é temerária, pois Pessoa é gênio e foge a qualquer clichê.

Portugal terá seus 25 de Abril, 28 de Outubro, 11 de Março, as revoluções e golpes passarão. Pessoa ficará. Apressados em realizar a necessária distribuição do pão, os lusos estão jogando a um canto o homem que justifica a existência da língua e civilização portuguesas neste planeta.

Quero crer nos novos rumos de Portugal. Mas sempre me resta, no fundo, uma apreensão: a técnica de abrir portas de Adelino dos Santos Parracho.

 

(Porto Alegre, Correio do Povo, 12/04/75)


 

 

 

Que devo ler para entender O Pato Donald?

“Por que Platão é tão simples e o Scarinci tão complexo?”
Aníbal Damasceno Ferreira

 

Conta Mário Quintana que certa vez uma professora do interior perguntou-lhe que ler para entender Shakespeare. O poeta, simples e sábio, disse:

— Shakespeare, minha filha.

Nos últimos anos, têm surgido em livros e jornais sofisticadas análises das histórias em quadrinhos. Li há pouco um comentário sobre Mandrake onde se analisava a relação patrão-empregado e o binômio empregado-servo no universo ficcional de Falk & Davis, falava-se da saga dos super-heróis e finalizava com a frase do mais prolífico crítico de cinema nacional, que via em Mandrake o “nosso mágico de todos os sonhos”. Ainda recentemente, houve quem quisesse ver, numa inocente historinha de O Tico-tico, profundas implicações kafkianas e mais: o autor da historieta é apontado como precursor de Kafka. E se começamos a ler a bibliografia que está sendo lançada sobre o assunto, chegaremos à conclusão, diante dos complexos esquemas gráficos onde são dissecados os ontossemas, sintagmas e semiemas, que história em quadrinhos é algo muito profundo, fora do alcance do comum dos mortais. Já há mesmo quem veja em Chapeuzinho Vermelho implicações freudianas, e em Branca de Neve o evento do capitalismo e da propriedade privada (a posse exclusiva pelo príncipe) em substituição ao sistema primitivo e coletivista, a posse de Branca pelos sete anões.

Diante de tão doutas considerações, veiculadas por jornais e editoras de prestígio, imagino a inocente professora do interior perguntando-se, confusa:

— Que devo ler para entender o Pato Donald?

Recordo outra época em que esta epidemia intelectualóide grassava em Porto Alegre, em outro campo, a crítica de cinema. O western foi elevado à categoria de culminância da arte cinematográfica, o mocinho era o herói nietzscheano por excelência, um quebra-quebra num saloon não mais era um quebra-quebra num saloon, mas a “instauração do caos no cosmos que compunha a medida demencial do desencadeamento da desordem no mundo”. Os filmes de Maciste tinham implicações mito-teológicas e, no bandido, outrora representação do Mal, via-se a “figura destrágica do anti-herói”.

Um episódio da época vale a pena ser referido. Na noite de estréia de Alfaville, de Godard, no Rex, espectadores confusos perguntavam a um crítico porque determinado personagem, após receber duas balas na testa, reaparecia vivo nas cenas seguintes. Disse então o crítico a seus discípulos:

— Na obra godardiana vemos a destemporalização do tempo, o emprego do tempo psicológico referido por Bergson em L’Intuition créatrice e utilizado por Proust em À la Recherche du temps perdu, que nada tem a ver com o tempo cronológico, este independente de nossas subjetividades.

Soube-se mais tarde o que de fato havia ocorrido: o operador trocara os rolos do filme. A ejaculação mental do crítico foi fugaz. Durou uma noite.

O fenômeno não era local. Tinha suas raízes em Paris, mais precisamente nos Cahiers de Cinema. Como ainda acontece, os movimentos que surgem em Paris, dois anos após suas mortes, reaparecem no Brasil, onde pontificam por cinco a dez anos. (A propósito, quem mais fala ainda no nouveau roman?). Talvez a livraria Coletânea, em boa-fé, tenha sido responsável pelo vírus, pois era ali que os críticos tinham acesso aos virulentos Cahiers.

Na época, utilizando a mesma terminologia dos críticos, fiz uma análise dos personagens de Disney. A confusão intelectual era tamanha que durante uma semana a análise foi levada a sério. Um “quadrinhólogo” (idioma tolerante o nosso!) do centro do País procurou-me para incluir meu artigo numa antologia. Ainda não esqueço seu ar desolado quando lhe afirmei que não passava de uma piada.

O artigo teve efeitos saneadores: desde então, não mais se usou em Porto Alegre aquela abordagem pretensamente complexa, sofisticada e vazia, na crítica de filmes. Mas o vírus não foi extinto e ressurge agora na crítica (a que ponto chegamos!) de histórias em quadrinhos. Haja antibióticos.

Não existe ainda no Brasil uma associação de desenhistas, roteiristas ou enfim, de criadores de histórias em quadrinhos. Mas já há uma Associação dos Críticos de História em Quadrinhos. Aliás, isto é um sintoma típico da crítica. Mal surge, se associa, busca cúmplices. O criador está muito ocupado em seu trabalho, que é fundamentalmente individual, para dispor de tempo para fundar entidades. Não por acaso, recém agora se pretende fundar uma associação de cineastas gaúchos, quando já existiu, há uns sete ou oito anos, a Associação Gaúcha de Críticos de Cinema, de saudosa memória. Cinema, que é bom, nunca houve.

Não me parece ser difícil isolar este novo vírus. É o estruturalismo, mais um “mal gálico”.

O primeiro mal gálico que contaminou o Brasil foi a sífilis. Perguntei-me certa vez porque se usam até hoje, na fronteira, palavras como galica, galiqueira e engalicar. Foi lendo uma História da Prostituição, de Lujo Basserman, e as Memórias do Coronel Falcão, de Aureliano Figueiredo Pinto, que descobri a origem dos termos. A sífilis foi detectada pela primeira vez em uma guarnição militar francesa estabelecida em Nápoles. Os franceses chamavam a infecção de mal napolitano, enquanto que os italianos a chamavam de mal gálico. (Até que um médico com dotes de diplomata resolveu o impasse sugerindo a expressão mal venéreo). A palavra chegou a Porto Alegre e à fronteira através das profissionais francesas importadas pelos fazendeiros gaúchos, que estavam ancoradas no Clube dos Caçadores, que ficava no atual prédio da CEEE, vide o romance de Figueiredo Pinto.

Para a sífilis já existem antibióticos. Mas o estruturalismo ainda continua grassando impunemente. Seus agentes transmissores são bolsistas brasileiros contaminados nas promíscuas salas da Université de Paris, onde há pouco, um professor de comunicações — ó, gênio! — descobriu que a comunicação mais direta entre duas pessoas é a sexual. Mais direta inclusive que a palavra, carta, telefone, jornal, rádio ou TV. Assim é Paris.

Analisadas através dos métodos estruturalistas, tanto a obra de Guimarães Rosa como a de Vitor Matheus Teixeira, o Teixeirinha, adquirem dimensões grandiosas. Como também os quadrinhos.

Depois de uma rápida olhadela no livro Quadrinhos, de Cagnin, imagino a professora do interior sentindo-se esmagada e inculta ao ler uma Luluzinha ou Capricho, diante das infinitas possibilidades interpretativas que a história oferece.

A moda da crítica de quadrinhos apenas começou. O surto durará mais alguns anos. Até que um outro vírus substitua este. Pois os tempos de uma independência intelectual brasileira estão longe, parece-me.

Nossa época é de pobreza espiritual. O estruturalismo é apenas um sintoma desta pobreza. No fundo, em nada difere dos salões de arte moderna, dos desfiles de moda, dos psiquiatras para cães, da crônica social, do culto do medíocre. Os meios de comunicação multiplicaram milhões de vezes o gesto ou a palavra imbecil de um ídolo qualquer do momento. A fome de uma criança atirada na rua não sensibiliza ninguém. O seio esquerdo da sra. Ford deixa o mundo em suspense, os mais prestigiados jornais lhes abrem manchetes. Ninguém se preocupa em captar a magia dos poemas de Quintana, não vi ainda nenhum estudo sobre sua obra. Aliás, Mário é à prova de estruturalistas. Seus poemas são claros, não admitem interpretações.

No entanto, já existem eruditos estudos sobre os super-heróis americanos. Moacy Cirne está preocupadíssimo com as relações entre Mandrake e Lothar, relações que permitem qualquer interpretação, desde homossexualismo e racismo até colonialismo. Mas a pergunta fundamental — e a única que se impõe — não é feita: quantos milhões de dólares Mandrake transporta num passe de mágica para os industriais norte-americanos?

(Porto Alegre, Correio do Povo, 31/05/75)


 

 

 

Três aproximações da poética gaúcha contemporânea

 

O Abajur de Píndaro & Fabricação do Real traz de volta Armindo Trevisan, de poesia inteira, plenitude, entre nós, do equilíbrio da forma e do conteúdo. É a voz alta da poesia em devesa de um céu mais amplo para o homem — onde se tem, por referências maiores, justiça e liberdade. Ainda que o poeta saiba das oscilações dos tempos e climas, ele se coloca com coragem, em defesa do Homem.

Coração aberto a cobrir com água tua cidade
ar antes da chama no fundo da luz
pedra em branco sobre o ar preso na rede
cujo peixe constrói o sol
corpo de operário

Com palavras candentes, o autor consegue construir seus poemas em cima de uma visão bem mais complexa das relações entre a sua linguagem e a realidade. E, particularmente, de uma visão complexa e rica de seu instrumento específico de trabalho — a linguagem. Sua técnica fragmentária é conseqüência coerente dos temas escolhidos e da maneira de abordá-los. Não há, em O Abajur de Píndaro & Fabricação do Real, aquela gratuidade de processos que desqualifica tantos poetas novos. Pelo contrário, o experimento poético é, em Trevisan, uma necessidade que nasce da própria temática abordada. Pode-se dizer que o corpo de seus poemas, despedaçado em sua unidade, justapondo coisas heterogêneas numa colagem fascinante, é imagem da própria realidade que o poeta tenta fixar.

A pele do cavalo
vai até o céu
na casa
no poço
de papel
o fuzil bebe o silêncio

Trevisan é um dos nossos poetas mais lúcidos, uma das vozes mais graves e altas de nossa poesia em todos os tempos. É um poeta de faca na bota. Que sabe responder aos desafios intelectuais com um testemunho que sempre procurou expressar a partir de uma proposta ao nível dos mais legítimos interesses do seu povo. E desde Santa Maria, até um lugar esquecido de nossa América, onde alguém morra em luta pela liberdade que nasce no coração do homem, ele canta. E o seu canto cresce como um coro, porque ele pega pela palavra a realidade próxima de cada um.

* * *

Memorial traz de volta Luís de Miranda, de poesia inteira, plenitude, entre nós, do equilíbrio da forma e do conteúdo. É a voz alta da poesia em devesa de um céu mais amplo para o homem — onde se tem, por referências maiores, justiça e liberdade. Ainda que o poeta saiba das oscilações dos tempos e climas, ele se coloca com coragem, em defesa do Homem.

Onde tenho a injustiça
me detenho
não há entrave no meu canto
e canto (prova mais dura
de ser presente — não aparente)
o que resiste e sem demora
veste a roupa de sua hora

Com palavras candentes, o autor consegue construir seus poemas em cima de uma visão bem mais complexa das relações entre a sua linguagem e a realidade. E, particularmente, de uma visão complexa e rica de seu instrumento específico de trabalho — a linguagem. Sua técnica fragmentária é conseqüência coerente dos temas escolhidos e da maneira de abordá-los. Não há, em Memorial, aquela gratuidade de processos que desqualifica tantos poetas novos. Pelo contrário, o experimento poético é, em De Miranda, uma necessidade que nasce da própria temática abordada. Pode-se dizer que o corpo de seus poemas, despedaçado em sua unidade, justapondo coisas heterogêneas numa colagem fascinante, é imagem da própria realidade que o poeta tenta fixar.

“Flores” serás
ainda os dias erguidos
a meia voz
com chumbo nas bordas
pois já armei os dias na esperança
com muitos cavalos de insônia.

De Miranda é um dos nossos poetas mais lúcidos, uma das vozes mais graves e altas de nossa poesia em todos os tempos. É um poeta de faca na bota. Que sabe responder aos desafios intelectuais com um testemunho que sempre procurou expressar a partir de uma proposta ao nível dos mais legítimos interesses do seu povo. E desde Santa Maria, até um lugar esquecido de nossa América, onde alguém morra em luta pela liberdade que nasce no coração do homem, ele canta. E o seu canto cresce como um coro, porque ele pega pela palavra a realidade próxima de cada um.

* * *

Ordenações traz de volta Carlos Nejar, de poesia inteira, plenitude, entre nós, do equilíbrio da forma e do conteúdo. É a voz alta da poesia em devesa de um céu mais amplo para o homem — onde se tem, por referências maiores, justiça e liberdade. Ainda que o poeta saiba das oscilações dos tempos e climas, ele se coloca com coragem, em defesa do Homem.

Encontrei o humano
— o seu rosto inteiro —
não somente traços.
Já posso tangê-lo
posso conferi-lo
O que ele sente
é o estar ausente.

Com palavras candentes, o autor consegue construir seus poemas em cima de uma visão bem mais complexa das relações entre a sua linguagem e a realidade. E, particularmente, de uma visão complexa e rica de seu instrumento específico de trabalho — a linguagem. Sua técnica fragmentária é conseqüência coerente dos temas escolhidos e da maneira de abordá-los. Não há, em Ordenações, aquela gratuidade de processos que desqualifica tantos poetas novos. Pelo contrário, o experimento poético é, em Nejar, uma necessidade que nasce da própria temática abordada. Pode-se dizer que o corpo de seus poemas, despedaçado em sua unidade, justapondo coisas heterogêneas numa colagem fascinante, é imagem da própria realidade que o poeta tenta fixar.

Buscas o que te busca
Escutas a lamúria, sem telégrafo,
dos que a esposam, viúva.

Nejar é um dos nossos poetas mais lúcidos, uma das vozes mais graves e altas de nossa poesia em todos os tempos. É um poeta de faca na bota. Que sabe responder aos desafios intelectuais com um testemunho que sempre procurou expressar a partir de uma proposta ao nível dos mais legítimos interesses do seu povo. E desde Santa Maria, até um lugar esquecido de nossa América, onde alguém morra em luta pela liberdade que nasce no coração do homem, ele canta. E o seu canto cresce como um coro, porque ele pega pela palavra a realidade próxima de cada um.

(Porto Alegre, Correio do Povo, 28/02/76)


 

 

 

Kalocaína, uma provável fonte de 1984

Cada homem vivo é torturado, hoje em dia, pelo destino dramático de sua época. E o criador mais que todos. Existem certos lábios e pontas de dedos sensíveis que sentem um formigamento ao aproximar da tempestade, como se fossem espetados por milhares de agulhas. Os lábios e pontas de dedos do criador são desse tipo. Quando o criador fala com tanta certeza da tempestade que pesa sobre nós, o que fala não é a sua imaginação mas os lábios e as pontas dos dedos, que já começaram a receber as faíscas da tempestade. Nossa época há muito que penetrou na constelação da angústia”.

Nikos Kazantzakis, in Testamento para el Greco

 

Desde há muito — estamos pensando na Grécia antiga — os pensadores procuraram fixar literariamente uma organização ideal da sociedade, um modelo de Estado, ou pelo menos um projeto de transformação dessa sociedade. De um lado temos as utopias, desde a República, de Platão, até a Utopia, de Thomas Morus, ou a Cidade do Sol, de Campanella. Por outro lado, temos projetos de transformação social, cujos exemplos mais recentes encontramos em Os Sete Loucos, de Roberto Arlt, e Casa de Campo, de José Donoso. Mas em meio a projetos de Estado e projetos de transformação do Estado, floresceu um gênero sombrio, que se convencionou chamar de distopias. É a utopia às avessas, o mundo real projetado não para um futuro desejável, e sim para um futuro abominável e — o que é pior — cada vez mais próximo e inevitável.

O precursor deste gênero terá sido certamente Thomas Hobbes, com Leviatã, passando por Swift, com As Viagens de Gulliver, a mais sarcástica catilinária até hoje já escrita contra o gênero humano e, fato curioso, universalmente adaptada para o consumo infantil. Após Swift, as distopias se multiplicam e, entre as muitas deste século, temos Nós (1924), de Eugène Zamiatine, Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, Kalocaína (1940), de Karin Boye, O Zero e o Infinito (1946), de Arthur Koestler, 1984 (1948), de George Orwell, sem falar no atualíssimo A Saga do Grande Computador (1966), de Olof Johanesson, pseudônimo literário de Hannes Alfvén, prêmio Nobel de Física em 1970, que inaugura a entrada do computador nesta literatura de antecipação, com todas as suas conseqüências para o futuro da sociedade humana.

Interessam-nos no momento os romances de Zamiatine, Boye e Orwell. Pois se usualmente se vê em Nós, de Zamiatine, as influências que farão Orwell escrever 1984, uma série de elementos comuns a 1984 e Kalocaína nos fazem pensar que, ou Orwell não ignorava a obra de Karin Boye, ou Boye não ignorava a ficção de Zamiatine.

Bernard Crick, na biografia George Orwell, a life, não faz referências à escritora sueca. Mas informes nos dizem estar esta biografia superada, pois por um erro de classificação só agora foram descobertas nos arquivos da BBC mais de 250 cartas, adaptações radiofônicas de autores como Ignazio Silone, H. G. Wells, Anatole France e outros, além de 62 scripts para rádio sobre a Segunda Guerra Mundial. Segundo as primeiras pesquisas, uma fábula de Silone parece ter inspirado a Revolução dos Bichos, enquanto outros escritos já prenunciam 1984. Bernard Crick declarou desconhecer todo este material (cerca de 250 mil palavras), e as pesquisas futuras nos levarão, certamente, ao veio nórdico da obra maior de Orwell.

Por outro lado, a biógrafa por excelência de Karin Boye, Margit Abenius, jamais cita Zamiatine em Drabbad av renhet, mas este título já nos sugere qualquer coisa, como veremos adiante. Enfim, se neste clássico latino-americano, o Martín Fierro, encontramos os vestígios de uma antiga saga nórdica, os Eddas, nada nos surpreenderia ver na obra de Orwell — homem atento a seu tempo — influências de uma contemporânea sua, que vivia o mesmo engajamento ideológico (Boye lutou pelo socialismo através do movimento Clarté, como também Orweel, na Espanha, nas brigadas do POUM) e sofria as mesmas preocupações, já que tanto Kalocaína como 1984 são denúncias veements dos totalitarismos emergentes na época.

Que é 1984?

Estamos em uma sociedade que, em 1948, Orwell situará nestes dias que estamos vivendo. O mundo está dividido em três grandes superpotências — como hoje — em guerra permanente: a Eurásia, que situamos nas atuais Rússia e Europa; a Lestásia, coincidindo com a China e o Japão; e a Oceania, incluindo a Grã-Bretanha, as três Américas e Austrália. Há ainda um vago território em disputa, que inclui o Oriente Médio, a África e o Afeganistão.

A ação do romance transcorre em Londres, capital da Oceania. O personagem central é Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, cuja função é criar e divulgar inverdades. Winston relaciona-se com Júlia, “rebelde da cintura para baixo”, o que, entre outras coisas, o levará à perdição, pois neste Estado não se admite relações mais sólidas entre um cidadão e outro do que as relações entre o cidadão e o Estado. Temos ainda Goldstein, de hipotética existência, membro de uma oposição subterrânea denominada Fraternidade.

Temos o Grande Irmão, de abstrata existência, tão abstrata que sequer talvez exista, ou pelo menos tenha deixado há muito de existir, mas que exige de todos amor e submissão. E temos outro elemento importante, o tecnocrata O’Brien, o mantenedor da Ordem, definida como eterna e imutável. Toda transformação, toda revolução, é impensável no universo orwelliano. A relação entre dominante e dominado será possível através da dor. Ouçamos O’Brien, enquanto tortura Winston:

“ — O verdadeiro poder, o poder pelo qual temos de lutar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas sobre os homens. Como é que um homem afirma seu poder sobre outro, Winston?

“Winston refletiu.

“ — Fazendo-o sofrer.

“ — Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza que ele obedece tua vontade e não a dele? O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando?”

Às antigas civilizações fundadas no amor ou na Justiça, O’Brien contrapõe um mundo de medo, traição e tormento, onde o progresso será no sentido de maior dor.

“ — Já estamos liqüidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As crianças serão tiradas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência.(...) Mas sempre... não te esqueças, Winston... sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se tornando mais sutil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da vitória, a sensação do pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa sempre numa bota pisando um rosto humano — para sempre”.

Para manter ad aeternum este poder, os tecnocratas de Oceania utilizam instrumentos simples e eficazes, ao alcance de qualquer ditador contemporâneo:

— a vigilância permanente, através de um aparelho emissor-receptor de TV, o olho onipresente do Grande Irmão. Permanentemente ligada, transmite o tempo todo propaganda estatal, enquanto ao mesmo tempo vigia o espectador involuntário.

— a destruição do passado, mediante o recurso elementar de controlar o registro da História, rescrever documentos e jornais, eliminar qualquer possibilidade de memória.

— a criação de um novo vocabulário, a Novilíngua, ou melhor, a redução sistemática do acervo vocabular então existente. O discurso se reduz a slogans, o que permite dizer: guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. As palavras se transformam em siglas, não temos mais socialismo inglês, mas Ingsoc. A palavra é substituída por módulos. Em vez de mau, temos inbom. Uma pessoa que desapareceu não é uma pessoa que desapareceu, é uma impessoa. Nunca existiu.

— a aniquilação imediata, através de uma eficiente polícia política, de toda e qualquer oposição ao sistema.

Objetivo final desta filosofia: a eliminação total daquilo que se convencionou chamar um ser humano.

“ — Se és homem, Winston, és o último homem. Tua raça está extinta. Nós somos os herdeiros. Entendes que estás sozinho? Estás fora da história, tu és não existente”.

O último homem. 1984, inicialmente, tinha como título The Last Man in Europe. Como veremos adiante, também em Kalocaína temos uma vontade expressa de aniquilamento do assim chamado ser humano. E Winston, ao final do processo a que O’Brien o submete, acaba por crer finalmente que dois mais dois são cinco — ou quatro, ou seis, enfim, o que o Estado determinar — e trai sua própria amante. Submetido ao medo fundamental, a sala 101, acaba por pedir a O’Brien que ponha Linda em seu lugar, com o rosto colado à jaula do rato faminto. E passa a amar o Grande Irmão. A última expressão de individualidade é aniquilada no mundo irrespirável criado por Orwell.

Em Kalocaína, vivemos em uma sociedade indefinida no espaço e no tempo. Nós a intuímos no século XX — o avião e o metrô já existem e os personagens falam de uma Grande Guerra — mas Karin Boye não a situa geograficamente. Existe o Estado Mundial e as cidades não têm nome: temos assim as Cidades Químicas, as Cidades dos Calçados, as Cidades Têxteis, cada uma atendendo por um número. Além do Estado Mundial — o mundo teria sido dividido em dois depois da Grande Guerra — há “os outros seres do outro lado da fronteira”, o Estado vizinho, com o qual o Estado Mundial vive em guerra permanente.

Nesta sociedade sem classes, cujos habitantes são cidadãos e soldados ao mesmo tempo, o Estado oferece a cada um, recruta ou general, apartamentos estandardizados (um quarto para solteiros, dois para famílias) e uma alimentação padrão distribuída pelas cozinhas centrais de cada prédio. Como vestes, o cidadão-soldado dispõe de três uniformes: um para o trabalho, outro para o serviço policial-militar e um terceiro para o tempo de lazer. Pobres não existem, nem ricos, conseqüentemente. Olhos e ouvidos eletrônicos da polícia vigiam o interior de cada apartamento, mesmo à noite, através de raios infravermelhos, em uma antecipação ao olho do Grande Irmão, na obra de Orwell.

Mais ainda: as domésticas são trocadas semanalmente e têm o dever de enviar à polícia, após a prestação de serviços a uma família, um relatório sobre a mesma. Solicitações para visitas devem ser encaminhadas aos porteiros de edifícios, que por sua vez as encaminham à polícia. Concedida a permissão, o porteiro controlará a identidade e o horário de entrada e saída do visitante. No metrô e nas ruas, cartazes advertem:

NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO!
QUEM ESTÁ A TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO!

Nesta atmosfera já asfixiante, Leo Kall, cientista da Cidade Química nº 4, descobre a droga sonhada por todos os profissionais de informação: a kalocaína. Com apenas uma dose, sem tortura alguma, todo indivíduo que tenha idéias associais confessa alegremente e sem reservas sua culpa. Leo Kall — que acredita no Estado Mundial e em seus princípios — tem consciência da importância de sua descoberta:

“ — Daqui em diante, criminoso algum negará a verdade. Agora nem mesmo nossos mais profundos pensamentos são nossos, como pensávamos, sem razão. Sim, sem razão. Dos pensamentos e sentimentos nascem palavras e ações. Como poderiam ser os pensamentos e sentimentos coisas privadas? O cidadão-soldado não pertence inteiro ao Estado? A quem pertenceriam então suas idéias e sentimentos, senão ao Estado? Até então, eram as únicas coisas que não podiam ser controladas — mas agora este meio foi encontrado”.

Quando alguém objeta ter sido devassado o último refúgio da vida privada, Leo responde alegremente:

“ — Mas isso não tem importância alguma. A coletividade está pronta para conquistar a última região onde as tendências associais poderiam esconder-se. Vejo agora simplesmente a grande comunidade aproximar-se de sua culminância”.

Leo Kall recebe autorização para experimentar sua droga em membros do Serviço de Cobaias. No transcurso dos interrogatórios, acaba descobrindo uma seita misteriosa, sem nome nem chefes. Uma mulher, submetida à kalocaína, fala vagamente em “nosso objetivo”.

“ — O objetivo de vocês? — perguntei. Mas quem são vocês?

“ — Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Nós apenas existimos.

“ — Existem como? Como se chamam nós, se não têm nome nem organização? Quantos são vocês?

“ — Muitos, muitos. Mas eu não conheço muitos. Já vi muitos, mas nem sei como se chamam. E por que precisaríamos sabê-lo? Sabemos que somos nós”.

Mas nem Leo Kall nem o policial que o assistia nos interrogatórios conseguem extrair algo mais definido da cobaia. Não planejavam revolução alguma, não aspiravam a postos nem ao poder. “Queremos ser... queremos nos tornar... uma outra coisa...” é a resposta mais objetiva que obtém da mulher.

Ao desenrolar o fio da meada, mais confusos se tornam o cientista e o policial. As pessoas que formam a estranha seita não têm chefes, nem hierarquia. Reúnem-se na casa de um deles cumprindo um misterioso ritual. Não discutem coisa alguma e cumprimentam-se apertando as mãos. Um dos membros conta:

“ — Inacreditável! Algo necessariamente anti-higiênico e, além disso, tão íntimo que nos dá vergonha. Tocar no corpo de outro, intencionalmente! Eles afirmaram tratar-se de uma antiquíssima saudação que haviam retomado, mas não se precisava utilizá-la, caso não se quisesse, não se era obrigado a nada. No início, eu tinha medo deles. Nada é tão horrível como sentar e ficar calado. Tem-se um sentimento de que todos penetram a gente. Como se se estivesse nu, ou pior ainda. Espiritualmente nu.

Já os iniciados celebravam um outro rito. Apanha-se uma faca e alguém a entrega ao outro, deita numa cama e finge que dorme. Uma mulher faz uma descrição fantástica:

“ — Se alguém quer participar, tem lugar para ele também fingir que dorme. Pode-se sentar a cabeça na cama. Ou na mesa ou em qualquer coisa.

“ — E qual é o sentido disto?

“ — Um sentido simbólico. Através da faca ele se entrega à violência do outro. E no entanto nada lhe acontece”.

O cientista pensa estar tratando com uma seita de débeis mentais. Interrogando uma mulher sobre a organização, ouve uma resposta espantosa:

“ — Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constróem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constróem utilizando a vocês mesmo como pedras, e ruem por dentro e por fora. Nós nos construímos desde dentro, como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado”.

Após algumas reflexões, Leo Kall passa a considerar extremamente subversiva a seita. Sua defesa da filosofia do Estado Mundial ao chefe de polícia nos lembra o discurso de O’Brien:

“ — A filosofia desses loucos é contrária ao Estado. Relações pessoais mais sólicas que a relação com o Estado — é a isso que eles querem conduzir! À primeira vista, seus rituais parecem asneiras. Num segundo momento, se evidenciam como absolutamente repulsivos. São mostras de uma confiança exagerada entre as pessoas, pelo menos entre algumas. E isto já considero perigoso ao Estado. Existissem bases e razões para a confiança entre os homens, jamais o Estado seria erigido. O fundamento sólido e necessário da existência do Estado é a desconfiança mútua e profunda entre os homens. Quem nega este fundamento, nega o Estado”.

Retomemos um trecho do discurso de O’Brien: “Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos”.

Estamos diante da aniquilação sistemática daquilo que se convencionou chamar de humanidade. O’Brien, ao reduzir Winston pela tortura a um farrapo, o faz olhar-se no espelho e o define como o último homem. O que em nada difere dos propósitos do cidadão-soldado Leo Kall:

“ — Ser Humano! Um povo místico elaborou conceitos em torno desta palavra! Como se houvesse algum valor em ser humano! Ser Humano! Isto é apenas uma concepção biológica. Eis algo que precisamos abolir tão rápido quanto possível!”

Como em 1984, há um desejo manifesto de aniquilação do ser humano. Muitos são os pontos de encontro entre as duas obras. Neste rápido estudo comparativo, salientaremos apenas os mais evidentes:

• a vigilância contínua dos cidadãos pelo Estado
• a ausência de arte
• a constância dos duplos
• uma fraternidade, clandestina e paralela ao Estado
• a existência de um mundo selvagem, não organizado, e por isso mesmo desejável
• a desconfiança entre os homens como fundamento do Estado

Na obra de Orwell, cada cidadão é vigiado permanentemente pelo olho televisivo do Grande Irmão. Em Kalocaína esta função é desempenhada pela empregada, por olhos e ouvidos eletrônicos e, finalmente, pela própria substância criada por Leo Kall. (Em Nós, as paredes dos edifícios são de vidro, pois afinal cada cidadão nada tem — ou não deve ter — a esconder do Estado). Há um desejo de transparência, por parte dos ideólogos destas sociedades, de uma pureza visceral do ser humano, e não será por acaso que Margit Abenius intitula sua biografia de Karin Boye de Drabbad av renhet.

Por outro lado, se o artista é aquele que — no dizer de Ernesto Sábato — sonha pela comunidade para que esta não enlouqueça, assalta-nos a pergunta: e como seria uma sociedade sem arte? A resposta nos é dada por Boye e Orwell: é o mundo asfixiante de suas obras. O livro que Leo Kall se propõe a escrever é por ele mesmo definido, já nas primeiras linhas, como um caminho em direção ao inútil. Na última página, sua obra traz o parecer da Censura, considerando-a subversiva e condenando-a às gavetas do Arquivo Secreto do Estado Mundial. Em 1984, as manifestações artísticas são controladas pelo Estado, que mantém um corpo de técnicos encarregados de criar uma subliteratura inócua para consumo dos proles. Outros técnicos, por sua vez, são encarregados de fazer desaparecer palavras e, com elas, os conceitos que expressavam.

Nos dois romances — como também em Nós — há a ocorrência de duplos. Winston e O’Brien se confundem um com o outro, mesmo divergindo de opiniões, da mesma forma que Leo Kall e Edo Rissen. Estes personagens, ao apresentarem ao interlocutor suas razões para crer ou descrer no Estado, em verdade parecem estar fazendo um esforço tremendo para acreditar nas verdades que professam.

Em ambos os romances — como também no de Zamiatine — suspeita-se da existência de uma sociedade paralela. Em 1984, temos a Fraternidade, que tem em Goldstein seu líder, assim como os “loucos” de Kalocaína têm como inspirador um certo Reor. Já ouvimos o depoimento de um dos membros dessa seita sem nome, quando submetido à droga descoberta por Leo Kall. Ouçamos agora O’Brien falando a Winston:

“ — Já ouviste boatos da existência da Fraternidade. Sem dúvida já tens idéia dela. Imaginaste, provavelmente, um vasto mundo clandestino de conspiradores, reunindo-se secretamente em porões, rabiscando mensagens nas paredes, reconhecendo-se por meio de códigos ou gestos especiais. Nada disso existe. Os membros da Fraternidade não têm meio algum de se reconhecer e é impossível a qualquer um conhecer a identidade de mais que outros poucos. O próprio Goldstein, se caísse nas mãos da Polícia do Pensamento, não poderia fornecer uma lista completa dos conspiradores, nem informação que permitisse compilá-la. Não existe essa lista, a Fraternidade não pode ser eliminada porque não é uma organização no sentido comum da palavra. Nada a cimenta, exceto uma idéia, uma idéia indestrutível”.

Em ambos os livros, os personagens vêem em sonhos um mundo primevo, intocado pelo homem, verde e selvagem. Em 1984 é a Terra Dourada, onde há regatos com espraiados verdes, peixes nadando nas lagoas, sob os chorões, abanando a cauda. Em Kalocaína há a Cidade Deserta, de hipotética existência, e crer nela é sacrilégio. Vejamos um dos sonhos de Leo Kall:

“Ouvi então sons misteriosos de vozes mais adiante. Lá estava aberta a porta semidestruída de um porão, revestida por trepadeiras verdes em ambos os lados. Não a havia observado antes e, em minha angústia, suava frio ao ver o verde viver sua vida tão próximo a mim. Sobre os degraus rachados e gastos de pedra alguém surgira até a luz e me acenava para entrar. Não lembro mais como cheguei até a porta, talvez tenha pulado animalescamente sobre as pedras perigosas. Seja como for, entrei em uma câmara sem teto, em ruínas, onde penetrava o sol, e grama e flores pairavam sobre minha cabeça. Jamais um aposento com teto e paredes em pedaços me parecera tão seguro refúgio. Do tapete de grama emanava um odor de sol e terra e cálida despreocupação, e as vozes cantavam ainda, embora distantes. A mulher que me acenara antes estava lá e nos abraçamos um ao outro. Eu estava salvo e queria dormir de cansaço e alívio. Tornara-se totalmente desnecessário que continuasse a percorrer a rua. Ela disse: ‘tu ficas comigo’. ‘Sim, deixa que eu fique!’, respondi, sentindo-me livre de todas as preocupações, como uma criança. Quando me inclinei para ver o que me molhava os pés, notei que do chão brotava uma fonte clara, e isto inundou-me de uma indescritível gratidão. ‘Não sabes que daqui emerge a vida?’, disse a mulher. Ao mesmo tempo, eu sabia ser isto um sonho do qual despertaria, e busquei em pensamentos uma forma de guardá-lo — tão furiosamente que o coração começou a pulsar com violência e acordei”.

Desejo de evasão, de fuga da cidade e do mundo estupidamente racional em que se vive. Todo pensamento utópico implica uma repulsa, uma não aceitação das regras sociais vigentes, e criações literárias como estas nos esclarecem, melhor do que filosofias e teorias comportamentais, a proliferação de seitas e comunidades nos dias atuais. Queremos ser — como dizia a cobaia de Leo Kall — uma outra coisa...

E, finalmente, a constatação de ambos os autores de que a desconfiança entre os seres humanos é a base do Estado. Este me parece ser um dos aspectos mais profundos destas duas obras-primas, a proposta mais subversiva e vivificadora de Boye e Orwell. Os poderosos sabem que só podem reinar dividindo, e todo homem sensível sabe que só pode escapar ao poder unindo-se a seus irmãos. As instituições que querem afastar um homem do outro estão aí, são as igrejas e os Estados fundamentados em religiões ou filosofias totalitárias, com suas proibições e dogmas. Felizmente também estão aí os que buscam aproximar os seres humanos, os escritores com suas dúvidas. Escreve Karin Boye:

“Gostaria de acreditar na existência de um abismo verde no ser humano, um mar de seiva intacta, que funde todos os restos mortos em seu colossal reservatório e os purifica e recria eternamente... Mas eu não o vi. O que sei é que pais doentes e professores doentes educam crianças ainda mais doentes, até que a doença se torna norma e a saúde um pesadelo. De seres solitários nascem outros mais solitários ainda, de temerosos outros mais temerosos... Onde poderia um último resquício de saúde ter-se escondido ainda para crescer e perfurar a carapaça? Aqueles pobres homens, que chamamos loucos, brincam com seus símbolos. Algo deve ter existido...”

Todos estes pontos comuns entre os dois romances nos levam a crer, como afirmei no início, uma possível leitura de Kalocaína por Orwell. Que poderia também simplesmente não ter ocorrido, pois os dedos sensíveis de Orwell e Boye estavam apenas captando as chispas de uma tempestade que se aproximava. Margit Abenius nos conta que num debate sobre Kalocaína, Boye disse a Harry Martinson: “Eu tenho medo”. E quando sua mãe comentou que ela havia feito um bom livro, ou algo semelhante, Karin Boye respondeu com uma pergunta:

— Tu achas que fui eu quem o fez?

 

Bibliografia:
Abenius, Margit. Drabbad av renhet. Estocolmo, Albert Bonniers Förlag, 1950
Boye, Karin. Kalocaína. Rio, Editora Americana, 1974. Tradução de Janer Cristaldo
Crick, Bernard. George Orwell, une vie. Paris, Balland, 1982. Tradução de Jean Clem
Orwell, George. 1984. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1970. Tradução de Wilson Velloso
Zamiatine, Eugène. Nous Autres. Paris, Gallimard, 1874

 

(Florianópolis, revista Travessia, junho 84)


 

 

 

Manhã na Mafra

 

Era sábado e eu flanava pela Mafra, rumo à Livraria Catarinense, disposto a entregar-me àquele esporte que Mário Quintana batizou como a ronda das lombadas. Naquela manhã, minha ronda foi das mais produtivas. Ou melhor, nem foi ronda, foi coup de foudre. Já na primeira estante, enamorei-me perdidamente por uma belíssima edição de Um Estudo da História, de Toynbee, publicada pela Martins Fontes em co-edição com a Universidade de Brasília, trabalho que honra o nível de produção gráfica de qualquer país civilizado. Minha ronda acabou ali. Paguei cinco-mil-cruzados-louvado-seja-Machado e saí de Toynbee em punho, com a sensação de tê-lo ganho de graça.

Na nona parte de seu ensaio, Toynbee se propõe estudar os contatos entre civilizações no espaço e os conflitos daí decorrentes. Descobre o historiador que as civilizações "agressivas" tendem a estigmatizar suas vítimas como inferiores em cultura, religião ou raça. A parte ofendida reage, seja tentando forçar-se a um alinhamento com a cultura estrangeira, seja adotando uma postura exageradamente defensiva, reações estas que lhe parecem pouco sensatas. "Os encontros provocam terríveis animosidades e criam enormes problemas de coexistência, mas penso que a única solução possível para ambas as partes seja tentar um mútuo ajustamento. Foi assim que as religiões mais elevadas reagiram ao problema, e no mundo de nossos dias é imperativo que as diferentes culturas não se defrontem em hostil competição, mas procurem compartilhar suas experiências assim como já compartilham sua humanidade comum".

As duas reações que ao historiador parecem insensatas, são definidas como zelotismo e herodianismo, atitudes assumidas pelos judeus ante à violenta pressão do helenismo. "A facção zelota — diz Toynbee — foi formada por pessoas cujo impulso, em face dos ataques lançados por uma civilização alheia e vigorosa, foi assumir a posição a posição evidentemente negativa de destruir o formidável agressor. Quanto mais duramente o helenismo os pressionava, mais denodadamente lutavam para se manterem afastados dele e de todas suas obras; e seu método para evitar a contaminação foi o de se retirarem para a rigidez espiritual de sua própria herança judaica, de se encerrarem em sua prisão mental, de cerrarem fileiras, de manterem uma frente coesa e irredutível e de encontrarem sua inspiração, seu ideal e sua prova de lealdade na sinceridade da observância minuciosa da lei judaica tradicional. A fé que animava os zelotas era a convicção de que, se mantivesssem meticulosamente sua tradição ancestral e a preservassem totalmente intacta e inalterada, seriam recompensados, recebendo a força e a graça divinas para resistirem à agressão alheia, por mais hegemônica que parecesse a superioridade material do opressor. A postura dos zelotas foi a de uma tartaruga que se recolhe ao casco, a de um ouriço que se enrola dentro de uma espinhenta bola defensiva".

Já outra atitude seria a dos herodianos, facção antizelota de defensores e admiradores do rei idumeu Herodes, o Grande, que soube estimar objetivamente aquela força forânea para depois tomar de empréstimo ao helenismo todas as realizações que se revelassem úteis aos judeus, a fim de se prepararem para viver em um mundo que se helenizava de forma inevitável. Mas falava dos zelotas.

Fanáticos que lutavam não apenas contra os romanos mas também contra patrícios que não lhes agradavam, os zelotas não são mencionados no Novo Testamento. Há quem considere zelota um dos apóstolos, Simão, o Zelador, como também Judas, o galileu. Não confundir, por favor, este Judas com o Iscariotes, de errôneo apelido, ao que tudo indica. Se o nome provém do hebraico, significaria homem de Cariot. Outros estudiosos pretendem que seu nome derive de sicário, outra seita de judeus fanáticos, na segunda metade do século I D.C., assim chamados em função do pequeno punhal — sica — que usavam. Depois que os zelotas foram liquidados pelos romanos, os sicários continuaram a luta pela defesa de Jerusalém, mas também não hesitaram em eliminar seus inimigos judeus. O que talvez explique aquele beijo e as trinta moedas de prata. Mas não é deste Judas, talvez do sicário, talvez de Cariot, que falo. Zelota seria, isto sim, Judas, o galileu, proveniente de Gâmala na Gaulanítide. Aproveitou-se do descontentamento provocado pelo recenseamento de Quirínio para instigar os judeus contra a autoridade de Roma.

O que me fez lembrar, naquela manhã de sábado na Mafra, um refinado filme dos Monty Python, A vida de Brian. Reunidos os conspiradores judeus, o líder pergunta: que nos trouxeram os romanos? Estradas, responde alguém. Certo. Mas além das estradas, que nos deram? Hospitais, responde outro. É! Mas que mais além das estradas e hospitais? Escolas, sugere um terceiro. E assim continua a discussão, até que sai um manifesto: apesar de nos terem trazido estradas, hospitais, escolas, esgotos, Romanos go Rome! (O trocadilho é meu, perdão!). Para um herodiano, esta não é a atitude da tartaruga que se esconde sob seu casco, mas a da avestruz que esconde a cabeça na areia.

Embalado por estas e outras evocações, continuei meu passeio pela Mafra, contente com a companhia de Toynbee e enveredei pelo mercado velho. Em meio àquele odor emético de peixe estocado, um grupo de pessoas bebia champagne, e isso às onze horas de uma manhã de sábado! "Gaúcho só matando", disse alguém, enquanto que ao lado um outro qualquer tentava se convencer a si mesmo e aos demais: "como é bom ser ilhéu."

Sem querer, eu me infiltrara no box dos zelotas.

 

(Joinville, A Notícia, 25/09/88)


 

 

 

Au bord’elle

 

Paris, pentimento. A pátina dos séculos parece ter escondido esta cidade sob centenas de pentimentos superpostos, de modo a fazê-la entregar-se indistintamente a todos que a buscam, mas exibindo a cada um uma face diferente. Se todos os caminhos levam a Roma, não menos verdadeiro é que todos passam por Paris. Em uma emissão da Antenne 2, disse Carlos Fuentes: América Latina, capital Paris. Não deixa de ter razão. Como tampouco podemos negar razão ao argelino ou tunisiano que diz: Maghreb, capital Paris. Há qualquer coisa de misterioso nesta cidade que investigador algum consegue explicar, a ela acorrem intelectuais do mundo todo, que deixam em seus países uma situação geralmente confortável, para viver em Paris em condições inferiores às de uma favela. Não estou exagerando. Quem um dia lá viveu como estudante ou exilado, com dinheiro escasso, sabe muito bem que um quarto de vinte metros quadrados é luxo para poucos. Paris é a capital onde um maior número de pessoas vive nas piores condições possíveis na Europa. O problema decorre de sua própria geografia. A cidade é muito pequena — em meia hora de metrô a atravessamos de ponta a ponta — e atrai gente demais. Nela não existe sequer um metro quadrado a construir, a menos que se derrube o já construído.

Que Paris buscam os que buscam Paris? Confesso não ser o viajante mais adequado para responder a esta pergunta, embora lá tenha vivido quatro anos e sempre a visite quando na Europa. Meu mito era outro e situava-se mais ao norte. A França pouco me dizia, o paraíso me parecia estar no Reino dos Sveas. Em verdade, o mito era algo bastante genérico, poderia ser tanto Paris como Estocolmo, Roma ou Berlim. Víamos a Europa como una e homogênea, continente onde todos os cidadãos tinham seus direitos respeitados, onde polícia não espancava estudantes nem operários, terra de asilo onde todo imigrante ou perseguido político era recebido como ser humano. Viajantes, jornalistas e escritores nos transmitiam as delícias do bem-estar europeu, professores nos embriagavam com cultura européia. Das paisagens e monumentos se encarregavam as agências de turismo e institutos de línguas. Juro que ouvi falar, em aulas da Alliance Française de Porto Alegre, das eaux bleues de la Seine.

Viajei. E voltei.

Segundo Aristóteles, o homem é um animal político. Mas antes de ser político talvez seja um animal cabeça-dura. Foram necessários vários meses após a volta para aceitar intimamente que havia visto o que de fato havia visto. Viajantes, não voltamos no dia da chegada ao país de partida, mas alguns meses ou anos depois, quando nossas convicções anteriores começam a desmoronar. Jornalistas e escritores não nos haviam dito que o bem-estar europeu repousava na exploração da mão-de-obra deste escravo do século XX, o imigrante. Que o desenvolvimento econômico e tecnológico deles depende em boa parte da venda de armas para as regiões quentes do globo. Nem que, nas avançadas sociedades européias, um cão tem mais status que um negro ou árabe.

Fui morar em Paris em 1977. Já vacinado pela experiência escandinava, não alimentava maiores mitos em relação à Europa. Este desencanto, tentei equacioná-lo em Ponche Verde, romance de exílio e viagens, de descoberta do velho continente e redescoberta da América Latina. O final, evidentemente, não é feliz.

Cheguei no outono e não nego o fascínio de um outono em Paris. Mas ao amarelo outonal ajuntava-se um amarelo excrementício que jamais esperamos encontrar em uma sociedade civilizada. Nos idos de 70, este foi meu primeiro choque ao flanar pelas ruas parisienses. O espetáculo nauseabundo das crottes nas calçadas era apenas a parte emersa do iceberg. Nesta estada au bord'elle, la Seine, mantive contato com colegas de todas as latitudes — este é um dos encantos insuspeitos de Paris — e tanto latino-americanos como africanos, negros ou árabes, refugiados do Leste Europeu ou asiáticos, eram todos unânimes ao manifestar seu espanto ante aquela emética ornamentação de uma cidade tão linda.

Para nós, latino-americanos, a imagem da França sempre estará associada aos ideais de liberté, egalité, fraternité. Revoltados ante a miséria e os desníveis sociais tremendos de nossos países, parece-nos tácito que nas nações desenvolvidas européias tais problemas há muito tenham sido resolvidos. Basta alguns meses em Paris para constatarmos que a cidade em que estamos não é a que buscávamos.

Pequenos incidentes do dia-a-dia: um negro preterido na fila do correio ou da padaria. Um árabe que não pode alugar um studio pelo fato de ser árabe. Um prédio ou mesmo um bairro que se desvaloriza por ser habitado por africanos. Negros e árabes interpelados pela polícia porque têm a pele negra ou cara de árabe. Latino-americanos que, por serem negros ou terem traços levantinos, são alvo contínuo de perquirições policiais, como aconteceu com Gabriel Garcia Márquez. Como bom stalinista, usou o fato para condenar o Ocidente que o entope de dólares.

Sem falar nos faits divers da imprensa cotidiana: as brimades em bares envolvendo imigrantes; o vizinho que atira em uma criança — árabe, é claro — porque fazia ruído excessivo no pátio; o singular esporte tantas vezes praticados em fins-de-festa, tipo vamos-ver-quem-abate-primeiro-um-bougnoulle. Et j'en passe.

Descobrimos então o óbvio: a sociedade ideal não existe. Deveríamos saber antes de partir, mas o bicho-homem é antes de tudo esperançoso. Só há uma maneira de chegarmos a esta revelação: viver no país que julgamos ideal. O príncipe cambojano Norodom Sihanouk captou bem esta síndrome. Se tivesse de mandar estudantes para o exterior, os mandaria para Moscou. De Paris, todos voltavam comunistas.

O mais surpreendente no país da liberdade, igualdade, fraternidade, não é a condição de cidadão de segunda classe do imigrante, nem o racismo palpável de Monsieur Dupont (não é fruto do acaso a ascensão de Le Pen), mas algo que talvez cause pasmo a um francês: a inexistência do habeas corpus.

No final dos anos 70, Giscard d`Estaing propôs aux citoyennes et citoyens a instituição desta garantia fundamental da liberdade de cada indivíduo. Pasmo meu e pasmo dos franceses. De minha parte, não conseguia acreditar no que ouvia. Se Giscard propunha a instituição do habeas, evidentemente este não existia na estrutura jurídica do país. Quanto aos franceses, até os jornalistas tiveram de debruçar-se sobre enciclopédias para bem informar seus leitores. Como a proposta partia do poder, obviamente foi rejeitada. A França, como nação, perdeu uma oportunidade de proteger eficazmente seus cidadãos de abusos de autoridade.

Je n'ai jamais vu ça, reagiam meus interlocutores franceses, quando eu falava do habeas. Quem viveu em Paris, sabe que quando um parisiense assim fala é porque a coisa ou fato em questão não deve existir dentro dos limites do universo conhecido. Não me foi fácil convencer meus colegas de universidade que o instituto proposto por Giscard era, no Brasil, do conhecimento de qualquer prostituta de rua e muito mais usado que preservativos. A mais dura tarefa me esperava ao voltar ao Brasil, a de convencer amigos e leitores de que na França não existia o habeas corpus. Viajando e aprendendo...

La Seine... O Sena não é um fleuve, mas uma rivière, daí o feminino. "Au bord'elle, la Seine" é o mais longo capítulo de Ponche Verde. Au bord'elle morreram os últimos mitos que nutri em relação à Europa. Não por acaso, comecei o relato no dia do enterro de Sartre, sentei meus personagens no café Select, de Montparnasse, e deixei-os falar. À medida que falavam, em suas palavras constatei esta sensação ambígua de todo latino-americano em Paris, a mesma sensação de gaúcho residindo em Florianópolis: "a cidade é linda, mas..." Claro que adoramos Paris, descobri isto quando insistia junto a um amigo de Porto Alegre: "não gosto desta cidade". Afinal, se Baudelaire se permitia dizer "j'ai horreur de Paris", eu não me sentia exatamente um herético ao manifestar um certo desagrado. "Podes não gostar dela" — a talhou o gaúcho — "mas é a cidade à qual mais voltas, se possível todos os anos". Sem querer, eu me traíra.

Como se trai todo criador latino-americano às margens do Sena. Em Piedra negra sobre una piedra blanca, César Vallejo anuncia sua morte:

Me moriré en París con aguacero,
un día del cual tengo ya el recuerdo.
Me moriré en París — y no me corro —
tal vez un jueves, como hoy, en otoño.

Em Identidad Cultural de Iberoamérica, o uruguaio Fernando Ainsa contrapõe a este poema a maldição de Andrés Bello em Carta escrita en Londres a Paris por un anciano a otro:

Mal haya ese París tan divertido
y todas sus famosas fruslerias
que a soledad me tienen reducido!
Mal rayo abrase, amén, sus Tullerias
y mala peste en sus teatros haga
sonar en vez de amores, letanias!

Esta ambigüidade encontradiça tanto em latino-americanos como em estrangeiros das demais latitudes forneceria material para uma enciclopédia. Rómulo Gallegos, em Reinaldo Solar, tenta uma explicação do movimento que impele os buscadores de Eldorados:

Y por qué se ván? Por qué preferimos la lucha en el país extranjero y no la podemos resistir en el propio? Sencillamente, porque aquello es lo fantástico y esto es lo real. Al cabo de cuatrocientos años hacemos lo que hacían los conquistadores que desdeñaban poblar y colonizar, preocupados solamente con la eterna expedición de El Dorado. El Dorado fué la ficción inventada por el índio para internar y perder al español, y la gota de sangre del índio que tenemos en las venas es lo que hace pensar hoy en la fuga a Europa que es otro El Dorado.

Em tese inexplicavelmente não divulgada no Brasil, Os Conflitos de Identificação Cultural dos Estudantes Brasileiros na França, defendida na Université de Paris IX-Dauphine, a paranaense Norma Takeuti arrolou as imagens usualmente alimentadas pelos bolsistas brasileiros em Paris. Les voilà:

— berço da cultura ocidental

— eldorado da intelectualidade

— pólo irradiante da cultura no mundo: lá, tudo acontece antes

— porta-bandeira da democracia

— país dos direitos do homem

— terra da pluralidade e do pensamento aberto

— terra do livre pensamento e do laissez faire

— terra para onde você vai e se libera de tudo

Takeuti também arrola depoimentos dos mais significativos, como a da estudante que ao chegar a Paris foi imediatamente à Sorbonne "tomar um banho de cultura respirando o ar que emanava daquelas paredes". Melhor ainda, o de outra estudante, interrogada sobre a imagem que fazia da França:

A França é, para mim, o país do sonho. Penso na França do passado. Eu não posso imaginar a França de hoje. Quando penso nela, o que me vem ao espírito são os pintores nos cantos bucólicos, os apaixonados à beira do Sena, os bares acolhedores com sua decoração pitoresca, os restaurantes iluminados à luz de velas, as pequenas ruas medievais... O país das maravilhas! ... e eu, Alice, extasiada!

Chega Alice no País das maravilhas e bem outra é a realidade. Para matricular-se numa universidade precisa da carte de séjour. Para obter a carte de séjour, precisa estar matriculada em uma universidade. Para conseguir a famosa carta, terá de fazer fila de madrugada e na neve, que bolsistas jamais chegam no verão. Na fila, será equiparada a famintos de todos os quadrantes, paquistaneses, árabes, haitianos, que buscam na França uma chance de trabalhar como escravo. Mesmo pertencendo à classe média brasileira, tem boas chances de habitar um cubículo, dando graças a Deus se nele houver vaso sanitário e uma ducha, em um quinto ou sexto andar sem elevador. A queda de status, já ao chegar, abala Alice. O confronto posterior com o ruidoso mundo intelectual parisiense irá achatá-la, se não for forte.

Suicídios e perturbações mentais não são moeda rara no currículo dos buscadores de paraísos. Não foi por acaso — nem criação minha — que pendurei em uma árvore um de meus personagens em Ponche Verde, calcado em Evaldo Dalmácio Tibursky, companheiro de quarto e universidade em Porto Alegre. A propósito, Norma Takeuti, quando compilava dados para sua tese, foi procurada por um sociólogo mexicano encarregado de fazer um trabalho semelhante ao seu. O governo mexicano estava alarmado com as estatísticas sobre internações psiquiátricas e suicídios de estudantes que voltavam ao país.

O fato não passou despercebido a Rubén Dario, que assim escreve em "Augusto de Armas", em Los Raros:

No sabía que semejante a la reina ardiente y cruel de la historia, París da a gozar de su belleza a sus amantes y en seguida los hace arrojar en la sombra y la muerte.

Enfrentei Paris com tranqüilidade. No início dos 70, a Suécia caminhava uma boa década adiante da França. Não chegava virgem ao Quartier Latin. Meu fascínio com a social-democracia morrera em Estocolmo. Ante um sueco, Monsieur Dupont — o francês médio — era um ser subdesenvolvido. Ou talvez nem tanto. Na época, os suecos viviam em padrões de conforto e sofisticação de fazer inveja a Monsieur Dupont. Minha vantagem é que não estava atracando meu barco no Sena com a visão primária de um tupiniquim. O metrô parisiense, por exemplo, um deslumbramento para um brasileiro ou ugandense de primeira viagem, depois da experiência nórdica me pareceu algo caótico, sem horários definidos, coisa de país desorganizado.

Em Criollos en París, o chileno Joaquín Edwards Bello faz seu personagem confessar:

París no sirve al americano del Sur: después de algún tiempo —simples espectadores de la vida francesa— dejamos de ser americanos sin alcanzar a ser europeos. La vida parisiense es siempre un misterio para nosotros; todo nos está clausurado, aparte los sítios públicos plenamente abiertos mediante pago. Y conste: alcanzamos a conocer apenas el contorno de esa vida sin penetrar jamás en su cordial intimidad. Nuestra cursilería ha puesto de moda el eterno de "quién estuviera en París!" Conozco señoritas de la mejor sociedad cuya vida en París consistía en pasarse las horas bostezando de añoranzas, cuando no leyendo diários sudamericanos en el Consulado, y, sin embargo, aqui las verás refunfuñando: "este es un país demodé y absurdo".

Edwards Bello falava, evidentemente, dos apaniguados latinos que vicejam à sombra de ditaduras e consulados, sem nada entender do universo que os envolve. Em seu personagem há um ressentimento de exilado e plebeu. No fundo, é o que somos em Paris. Trocar de pátria dói e custa caro.

Quando Carlos Fuentes afirmava que a capital da América Latina era Paris, foi imediatamente contestado por Alejo Carpentier: que Paris fora a capital dos latino-americanos, mas que hoje existiam outras capitais como Londres, Berlim ou Madri. As distintas e sempre mesmas ditaduras militares no continente americano produziram diásporas que Paris não mais conseguiu albergar, a ponto de me parecer pertinente pesquisar a influência do Milicus latinoamericanensis no diálogo entre Velho e Novo Mundo.

A "parisite", febre que corroeu a alma de tantas gerações, adquire hoje nova sintomatologia. Os novos Colombos, ao fazer a viagem inversa, não mais assestam a proa exclusivamente rumo à torre Eiffel. Seja quais forem seus pontos de chegada, este tipo de viagem marca dolorosa e definitivamente o navegador, isto quando não acaba em naufrágio. De qualquer forma, mesmo ultrapassado o período do poder militar, a América Latina não conseguiu ainda estabelecer uma capital intelectual em seu próprio continente.

Navegar é preciso, viver não é preciso, diziam os nautas lusitanos. O leitor apressado pode cair na trampa da interpretação mais imediata, a de que navegar é necessário. Não é este o sentido do refrão. Assim falando, pretendiam os marujos alertar para o fato de que navegar é ofício que pode ser exercido com precisão, o mesmo não se podendo afirmar da vida. Ernesto Sábato afirma continuamente em suas obras que jamais viajamos em busca de países ou paisagens, mas sempre em busca de nós mesmos. Destes viajantes, que na viagem se descobrem escritores, tradutores ou comparatistas, tem dependido o diálogo entre Europa e América Latina.

Guimarães Rosa foi um destes viajores e suas navegações foram profícuas. Em Diálogo com a América Latina, diz a Günter Lorenz:

Olhe, o futuro da Europa e de toda a humanidade é como uma equação com várias incógnitas. A Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor uma grande tradição. Entretanto, os europeus não têm qualquer influência sobre essas incógnitas que determinam o futuro de um continente. O x e o y desta equação decidirão o amanhã, tanto é assim que quase já se pode dizer hoje. A América Latina talvez não seja a incógnita principal, o x, mas provavelmente será o y, uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se que uma equação não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada. Suponhamos agora que a América Latina seja a tal incógnita y.

Homem a cavalo sobre dois continentes, Guimarães Rosa não padece do deslumbramento de marinheiros de primeira viagem e confia robustamente no futuro das letras latino-americanas:

A Europa é um pedaço de nós; somos sua neta adulta e pensamos com preocupação no destino, na enfermidade de nossa avó. Se a Europa morresse, com ela morreria um pedaço de nós. Seria triste, se em vez de vivermos juntos, tivéssemos de dizer uma oração fúnebre. Estou firmemente convencido, e por isso aqui estou falando com você, de que no ano 2000 a literatura mundial estará orientada para a América Latina. o papel que um dia desempenharam Berlim, Paris, Madri ou Roma, também Petersburgo ou Viena, será desempenhado pelo Rio, Bahia, Buenos Aires e México. O século do colonialismo terminou definitivamente. A América Latina inicia agora seu futuro. Acredito que será um futuro muito interessante, e espero que seja um futuro humano.

Rosa talvez exagere em seu otimismo. De qualquer forma, na era dos computadores e redes BBS, a aldeia global se descentraliza. Viver au bord'elle, daqui para a frente, já não é mais paragem obrigatória de toda viagem iniciática. Embora meu Eldorado estivesse um pouco mais ao norte, os anos de Paris serviram para conhecer-me a mim mesmo e a meu continente. Chesterton dizia ser impossível conhecer uma catedral permanecendo dentro dela. Se não consegui com Paris aquela intimidade inatingível da qual fala Edwards Bello, lá muito conheci da América Latina, como muito conhecerá de Paris o francês que passe algum tempo em nosso continente. Não por acaso, poucas relações tive com o parisiense sedentário, que só se desloca da Rive Gauche para alguma praia do Mediterrâneo. Meus interlocutores eram em geral jornalistas, cooperantes ou bolsistas estrangeiros, seres que por contingências do ofício muito bem sabem que Paris não é o centro do mundo.

Em Paris, morreu para mim o mito Paris, e penso que esta é a mais vital descoberta para um latino-americano. Descoberto isto, podemos pensar em criar, sem ligar para modelos nem sentir-se Terceiro Mundo. Antes porém, navegar foi preciso.

 

(Florianópolis, Revista Travessia, 1989)


 

 

 

Arte sacra em Toledo

 

“A Idade Média não foi tão ruim assim, nela se desenvolveram extraordinariamente as artes sacras”, dizia-me certa vez uma colega de magistério, deixando transparecer no olhar uma certa nostalgia daqueles dias cinzentos. Lembrei-me muito dela, em um destes ensolarados domingos de maio, quando fui revisitar Toledo. Realmente, as artes se desenvolveram extraordinariamente naqueles dias. Particularmente uma que, que por hedionda que pareça, não deixa de ser arte.

Foi instalado em Toledo, em 1896, um museu particularíssimo, diante do qual muitos visitantes preferem desviar o olhar e tratar de ver outras coisas. Afinal, Toledo tem uma soberba catedral, duas sinagogas, a casa de El Greco, O Enterro do Conde de Orgaz, sem falar nos cochinillos y lechales, pelo menos isto é o que alegam os guias turistícos, padres ou piedosas senhoras, quando perguntamos: “Mas onde é mesmo que o Museu de Instrumentos de Tortura da Inquisição?”

O problema, leitor, é saber se o cochinillo ou o lechal devem ser degustados antes ou depois da visita ao museu. Se visitamos antes, perdemos o apetite. Se o visitamos depois, para estômagos mais sensíveis, a vontade é de vomitar. Pois ali estão os instrumentos que permitiram à igreja manter-se no poder e erguer, ali ao lado, a majestosa catedral da antiga capital espanhola.

Por onde começar a visita a este circo de horrores? Comecemos logo pela entrada, onde reina, soberana, a Donzela de Ferro. Para quem já viu antigos filmes de terror, nada de novo. A donzela é uma espécie de sarcófago com duas portas, no interior das quais estão fixados pregos que penetram o corpo da vítima quando o aparelho é fechado. Foi muito utilizada a partir do século XVI e tem seus requintes: os pregos estão fixados em posições que não atinjam órgãos vitais, que isso de a vítima morrer mal se fecha o sarcófago, decididamente não tem graça. Diz a crônica da época, a respeito de um falsificador de moeda submetido ao amplexo da donzela: “as pontas afiadíssimas lhe penetravam os braços, as pernas, em vários lugares, e a barriga e o peito, e a bexiga e a raiz do membro, e os olhos e os ombros e as nádegas, mas não a ponto de matá-lo; e assim permaneceu fazendo grande gritaria e lamentações durante dois dias, depois dos quais morreu”. Nos filmes de terror de nossa adolescência, o herói sempre dava um jeito de escapar do abraço da donzela. O mesmo não acontecia na Idade Média.

Ainda na mesma sala, estão o machado e a espada de decapitar, instrumentos que animaram grandes festas públicas na Europa central e nórdica há uns 150 anos, e ainda hoje a televisão ou os jornais nos mostram algumas práticas da antiga arte nos países orientais. Se o verdugo era hábil, sorte da vítima. Caso contrário, teria de sofrer na carne as várias tentativas do aprendiz de carrasco.

Adelante! Ainda na entrada do museu, solene, sinistra, está a guilhotina, que durante a Revolução Francesa foi considerada um instrumento de humanização da pena de morte, tanto que mereceu o apodo de l’amie du peuple. Luis XVI e Maria Antonieta, no 21 de janeiro de 1793, mereceram sua homenagem, após o que a máquina passou a chamar-se de la Louisiette. Seu inventor, o médico francês Joseph-Ignace Guillotin, teria sido mais tarde submetido a seu próprio invento, o que não é historicamente verdadeiro, pois morreu pacificamente em 1821. O que é verdadeiro, isto sim, é que a guilhotina só foi abolida na França há dez anos, durante o governo Mitterrand.

Villiers de L’Isle-Adam, um dos desconhecidos precursores do modernismo em literatura, há cerca de duzentos anos preocupava-se com o novo instrumento de execução. Em um de seus Contos cruéis, um médico, imbuído do espírito de investigação do Iluminismo, tenta convencer, um condenado à morte a prestar uma última colaboração à pesquisa neurológica: no momento da execução, ele, o médico, estaria do outro lado da guilhotina, junto ao cesto que recolhe a cabeça do condenado. Não poderia este, em nome da ciência, é claro, responder com um ligeiro piscar de olhos, após a descida da lâmina, para confirmar a continuidade da consciência após a separação da cabeça do corpo? O condenado aceita a proposição, mas seu gesto é tão vago que não permite ao pesquisador conclusão alguma. Hoje se sabe que uma cabeça cortada por machado ou guilhotina continua consciente enquanto roda ou cai no cesto. O que deve ser uma percepção no mínimo desagradável.

Logo após vem a roda. Todos teremos visto, em pinturas ou xilogravuras medievais, ou mesmo em filmes alusivos à época, intermináveis seqüências de corpos agonizantes, atados a uma espécie de roda de aranha erguida sobre um alto poste. Muitas vezes em minha vida vi a reprodução de tais cenas e sempre imaginei que lá estariam os cadáveres dos condenados, para exemplo e edificação da plebe. Pois não é nada disso, feliz do condenado se assim fosse. A roda para despedaçar — que assim era chamada — constituiu o instrumento de execução mais comum depois da forca na Europa germânica, desde a baixa Idade Média até o século XVIII. E seu emprego é um pouco mais sofisticado do que eu imaginava.

A vítima, nua, era espichada, com a boca para cima, no chão ou no patíbulo, com os membros distendidos e atados a estacas ou argolas de ferro. Sob os punhos, cotovelos, joelhos e quadris eram colocados, atravessados, pedaços de madeira. O verdugo, assestando violentos golpes com a roda, ia quebrando osso após osso, articulação após articulação, incluindo os ombros e quadris, sempre procurando não assestar golpes fatais. Segundo uma crônica anônima do século XVII, a vítima transformava-se então em “uma espécie de grande títere gemente retorcendo-se, como um povo gigante de quatro tentáculos, entre rios de sangue, carne crua, viscosa e amorfa misturada com lascas de ossos quebrados”.

Mas tudo seria muito simples se a tortura terminasse neste ponto. Após o despedaçamento, a vítima era desatada e introduzida entre os raios da grande roda horizontal, no extremo de um poste que era então erguido. Logo entravam os corvos em ação, arrancando tiras de carne e vazando os olhos até a chegada da morte, constituindo talvez o suplício da roda a mais longa e atroz agonia que o poder era capaz de infligir.

Junto à fogueira e o esquartejamento — diz o catálogo de horrores que apanhei no museu — este era um dos espetáculos mais populares entre os muitos outros semelhantes que tinham lugar diariamente nas praças européias. Multidões de nobres e plebeus deleitavam-se com um bom despedaçamento, de preferência quando a ele eram submetidas várias mulheres em fila.

Há também a gaiola, este bem mais simples. Pendura-se a vítima a uma gaiola de madeira ou de ferro, até que morra de frio, fome ou devorado pelos corvos. Uma versão mais simples e prática desta modalidade é simplesmente pendurar o condenado pelos pés em uma vara horizontal, na qual também são pendurados, um cada lado, dois lobos famintos.

Depois vem a serra, muito usada no século XVIII, criação espanhola. A não ser pelos dentes mais espaçados, em nada difere de uma prosaica serra de madeira. Pela xilogravura que explica a utilização do instrumento, pareceu-me que naquele século faltou imaginação ao verdugo: pendurava-se a vítima pelos pés em uma vara, e dois homens passavam a serrá-la, a partir do cóccix. Tortura idiota, pensei, o homem deve morrer já no início do suplício. Santa ingenuidade minha! Devido à posição invertida do corpo, que garante suficiente oxigenação ao cérebro e impede a perda geral de sangue, a vítima só perdia a consciência quando a serra alcançava o umbigo e, às vezes, o peito.

Embora se associe este suplício à Espanha, sua origem vem de época em que nem se pensava em Espanha. Os leitores atentos da Bíblia devem lembrar que o sábio rei Davi (II Samuel 12:31) exterminou os habitantes de Rabbah e de todas as outras cidades amonitas submetendo homens, mulheres e crianças ao suplício da serra e sofisticações outras da época. Era aplicada preferentemente a homossexuais de ambos sexos. Na Espanha foi utilizada como método de execução militar, na Alemanha luterana era destinada aos líderes camponeses rebeldes e, na França, fazia justiça às mulheres emprenhadas por Satanás.

Mais adiante, encontramos a “cunha de Judas”, uma pirâmide pontiaguda de madeira sustentada por um tripé. Sua finalidade não exige maiores esforços de imaginação. A vítima, nua, é içada por cordas, de forma que todo seu peso repouse sobre o ponto situado no ânus ou na vagina. O carrasco, conforme determinação dos interrogadores, pode variar a pressão do peso do corpo e inclusive sacudi-lo repetidamente sobre a cunha.

Em meio a estes instrumentos mais brutais, o museu exibe outros aparentemente anódinos, mas que não deixam de ter sua eficácia. Por exemplo, os látegos com correntes. Na ponta, uma bola de ferro com pontas agudas. Sua utilização não requer maior prática ou habilidade. Mas há um outro látego, de aparência bem mais inocente, porém de atroz eficácia, é o látego para esfolar. É um chicote de couro, com dezenas de cordas, aparentemente inofensivas. Na extremidade de cada cordel há uma ponta de ferro afiadíssima. Os cordéis eram empapados em uma solução de sal e enxofre dissolvidos em água, de forma que a vítima, ao ser fustigada, tinha sua carne reduzida a uma polpa e ao final do suplício ficava com pulmões, rins, fígado e intestinos expostos. Durante este procedimento, a zona afetada ia sendo umedecida com a solução quase em estado de ebulição.

Ou algo ainda mais prosaico, que imaginação para fazer seu próximo sofrer é o que não falta ao ser humano: um funil e alguns baldes de água. A vítima é inclinada com os pés para baixo e obrigada a engolir quantidades imensas de água através do funil, enquanto o nariz é tapado, o que a força a tragar todo o conteúdo do funil antes de poder respirar um hausto de ar. Sem falar no terror da asfixia, a todo instante repetido, quando o estômago se distende e incha de maneira grotesca, inclina-se o supliciado de cabeça para baixo. A pressão contra o diafragma e o coração ocasiona sofrimentos inimagináveis, que o verdugo intensifica golpeando o abdômen. Esta prática é bastante utilizada ainda nos dias atuais, por ser fácil de administrar e não deixar marcas delatoras.

Que mais? Pois afinal mal entramos no museu. Continuando, há as aranhas espanholas, também chamadas de aranhas de bruxas. O instrumento é de uma estrutura elementar: garras metálicas com quatro pontas em forma de tenazes, usadas tanto frias como em brasa, para içar a vítima pelas nádegas, pelos seios ou pelo ventre, ou ainda pela cabeça, em geral com duas pontas nos olhos e as outras duas nos ouvidos. Efetivamente, na Idade Média as artes tiveram um desenvolvimento extraordinário!

Mas este passeio — que me desculpe o leitor — está ainda longe de seu fim, e isso que estou resumindo. Há por exemplo a cegonha, também chamada de “a filha do lixeiro”. É constituída por quatro hastes metálicas que prendem, ao mesmo tempo, o pescoço, as mãos e as pernas do supliciado. À primeira vista, é apenas um método a mais de imobilização, mas em poucos minutos a vítima é acometida de fortes cãibras que afetam primeiro os músculos abdominais e retais e, depois, os peitorais, cervicais e as extremidades. Com o passar das horas, a cegonha produz uma agonia contínua e atroz, que pode ser intensificada, ao prazer do verdugo, com chutes, golpes e mutilações.

As maneias de ferro, para pulsos e tornozelos, as deixo de lado. Paremos alguns segundos ante um instrumentozinho de concepção elementar, mas efeitos abomináveis. É o esmaga-cabeças, patente italiana, contribuição veneziana às artes do medievo, consta que muito em uso nos dias atuais. É uma espécie de torno munido de um capacete, que comprime a cabeça do condenado contra uma barra metálica. Comentários supérfluos: primeiro são destroçados os alvéolos dentários, depois as mandíbulas, até que o cérebro escorra pelas cavidade dos olhos e por entre os fragmentos do crâneo.

Com a mesma finalidade, há outras versões mais simples do mesmo instrumento, tipo um arco metálico que se cerrando em torno à cabeça, com pregos internos que vão perfurando a calota craniana.

Mas ilimitado é o engenho humano, quando se trata de supliciar outrem. O museu, em verdade, não é nem um Louvre ou Prado, mas cada objeto nos rouba mais minutos do que a contemplação de um Velázquez ou Goya. Há técnicas que parecem ter sido concebidas por um deficiente mental, de elementares que são. A tartaruga, por exemplo: põe-se a vítima estendida no solo e, sobre ela, uma superfície quadrada de madeira, sobre a qual vai-se empilhando vários quintais de peso. Para aumentar o sofrimento, pode-se acrescentar, sob o dorso do supliciado, um calço transversal de forma triangular chamado de báscula.

Ou a forquilha do herege, este um verdadeiro achado, prático, baratinho e eficacíssimo. Imagine o leitor uma espécie de garfo, com duas pontas em cada extremidade. Duas destas pontas são cravadas profundamente sob o queixo, enquanto que as pontas da outra extremidade são apoiadas sobre o externo. Uma pulseira de couro fixa a forquilha contra o pescoço. A forquilha, ao ir penetrando nas carnes, impedia qualquer movimento de cabeça, mas permitia que o acusado de heresia, com voz apagada, pudesse dizer abiuro, palavra que estava gravada em um dos lados do instrumento.

Ou a mordaça, também chamada de babeiro de ferro, uma espécie de colar de ferro, com um tipo de funil achatado na parte interna do aro, que era enfiado na boca do torturado, enquanto o colar era preso na nuca. Tinha por função evitar que os berros da vítima atrapalhassem a conversa dos torturadores. Um pequeno buraco permitia a passagem de ar, o que também permitia que o carrasco sufocasse sua presa, com o simples gesto de obstruir o buraco com um dedo. Giordano Bruno, uma das inteligências mais brilhantes de sua época — e nisto constituía seu crime — foi queimado pela Inquisição dem 1600 e submetido a uma destas mordaças provistas de duas longas puas, uma das quais perfurava a língua e saía pela parte inferior do queixo enquanto a outra perfurava o palato.

Em outra sala do museu, tão solene quanto a donzela de ferro, está a cadeira de interrogatórios, uma espécie de poltrona metálica, toda forrada de pregos agudíssimos, desde o espaldar até o assento e inclusive na parte inferior, que fica junto à barriga da perna e sob os pés. O suplício podia ser aumentado mediante pancadas nos membros ou com um fogareiro aceso sob o assento. Versões modernas deste instrumento são muito apreciadas pelas polícias de todos os países e no Brasil — todos devem ainda estar lembrados — tivemos recentemente a cadeira do dragão.

A fogueira, todos conhecemos, que mais não seja das festas juninas. Só que na saudosa Idade Média não era utilizada exatamente para assar pinhões, inclusive a Igreja deu-se ao luxo de fazer churrasco de uma santa. Aliás, quem quiser maiores detalhes sobre o assunto, pode ler romance recentemente publicado no Brasil, de Michel Tournier, Gilles & Jeanne. A edição é da Bertrand Brasil, São Paulo, e a tradução é deste que vos narra estes horrores. Mas a fogueira em si pouca ou nenhuma arte exige naquela época em que, como sabemos, as artes se desenvolveram extraordinariamente. Verdugos mais criativos bolaram uma versão bastante engenhosa: a vítima era atada a uma escada, que por sua vez era inclinada sobre as chamas, no melhor estilo de um autêntico churrasco gaúchos. Em algumas execuções, atava-se um saco cheio de pólvora junto ao peito.

Havia também o touro, método este já bem mais sofisticado. Era simplesmente um touro de metal, dentro do qual se metia o condenado. Depois, acendia-se uma fogueira embaixo. O touro logo começava a mugir, para deleite do público. Consta que em versões orientais deste instrumento, um complexo sistema de tubos transformava em uma espécie de música os berros do coitado.

Já o potro é de origem italiana, e todos já o teremos visto até mesmo em revistas em quadrinhos, pois tornou-se um dos instrumentos mais simbólicos dos porões da Inquisição. É uma mesa onde o condenado é atado de pés e mãos e um cabrestante passa a espichar os seus membros. Antigos testemunhos narram casos em que se obteve até trinta centímetros a mais em um ser humano, pelo deslocamento de articulações de braços e pernas, pelo desmembramento da coluna vertebral e rompimento dos músculos de extremidades, tórax e abdômen, isso evidentemente antes que o homem morresse.

As mulheres, por sua vez, mereciam atenções e instrumentos específicos, todos mutilando as partes sexuais. Tenazes incandescentes para esmagar mamilos, garras para rasgar seios ou nádegas, etc. Um achado digno de menção é a pêra, um objeto de madeira em forma da dita fruta, que é introduzido na vagina das pecadoras ou no ânus dos homossexuais. Depois, por meio de um parafuso, a pêra abria-se em quatro partes, até sua distensão máxima.

Sei que este desfile de horrores já vai longe, não os compilei todos e creio que nem os próprios organizadores do museu de Toledo conseguirão um dia catalogar todos os métodos que o homem criou para fazer seu próximo sofrer. Mas antes de concluir, permito-me arrolar esta maravilha para comprovar-se se uma mulher era ou não bruxa: atava-se a acusada pelas mãos e pés e se a jogava em um rio. A comprovação era imediata e de clareza meridiana. Sendo a água um elemento puro e inocente, no caso da acusada ser bruxa, a água a recusaria e a faria flutuar, com o que a mulher seria conduzida à fogueira e queimada. Se, ao contrário, a água a aceitava e a mulher se afogava, sua inocência estava comprovada.

Tudo isto em nome de Deus, é claro. E duvido que qualquer inquisidor perdesse o sono em função de sua piedosas tentativas de salvar uma alma pecadora.

Não falta quem afirme que tudo isto são águas passadas — o que, aliás, não é verdade! — e que tal tipo de museu só serve para excitar sádicos e masoquistas. Que tais práticas devem ficar esquecidas no fundo dos tempos. Pois pessoalmente não penso assim. A luta do homem pela preservação da memória, escrevia Milan Kundera, é a eterna luta do homem contra o poder e a tirania.

A inquisição é coisa da Idade Média, objetam alguns. Tampouco é verdade. No século passado, sob Fernando VII, foi restabelecida a inquisição na Espanha. Que mais não seja, Hitler, Stalin, Mao ou Pol Pot são nossos contemporâneos. Aliás, se quero evocar atrocidades contemporâneas, não preciso afastar-me do continente latino-americano, muito menos de meu país.

Agora, que na Idade Média desenvolveram-se extraordinariamente as artes sacras, disso não tenho dúvida alguma.

 

(Blumenau, FURB, Revista de Divulgação Cultural, julho 1991)


 

 

 

O Território Já Está Dividido

 

A idéia de independência dos Estados do sul brasileiro é vista como um sonho separatista de gaúchos saudosos da República do Piratini. O Ministério do Exército afirma que separatismo é barbárie, anomalia cívica, ruptura da unidade nacional. A finada URSS se parte em cacos, a antiga Iugoslávia também, a própria Rússia tem sua unidade questionada: Estônia, Letônia e Lituânia se independentizaram praticamente sem sangue. A Tchecoslováquia cindiu-se em paz, o Canadá quer divorciar-se de si mesmo, a Itália também. Mas esse nosso dinossauro informe, cujo cérebro verde-amarelo nunca conseguiu comandar os próprios membros em nome de uma identidade nacional que jamais foi definida, deve permanecer um só. É o que dizem os que militam pela preservação dos fósseis. Esta tarefa típica de ecologistas está sendo assumida agora por militares, que começam a ranger os dentes ante a uma pacífica iniciativa dos gaúchos. Que também já foi projeto de paulistas, diga-se de passagem.

O que ninguém manifesta — ou prefere não manifestar — é que o Brasil já deixou de constituir uma unidade territorial. Por um punhado de linhas na imprensa internacional, Collor de Mello entregou a dez mil aborígenes que, existindo há milênios, não conseguiram emergir de uma cultura ágrafa, um território equivalente a três Bélgicas, uma para cada três mil índios. Uma recente edição da revista Geografia já tem um chamado de capa sobre “o país dos ianomâmis”. Que ninguém se iluda: os latifúndios entregues de mão beijada àqueles autóctones que sequer chegaram aos preâmbulos de uma gramática, não pertencem mais ao Brasil. Os ianomâmis, que vivem do ócio e da devastação da floresta amazônica, podem ter um país para uso próprio. Gaúcho, catarinense, paulista, gente que trabalha e produz, não pode sequer pensar no assunto. É crime contra a segurança nacional.

Estupro também é crime, exceto quando cometido por índios. Paulinho Paiakan, o cacique caiapó, saudado pela imprensa americana como “o homem que pode salvar a humanidade” estuprou uma menina com a cumplicidade de sua mulher e permanece livre como um passarinho em seu feudo. O processo se arrasta há quase um ano e Paulinho — são simpáticos os diminutivos! — avisou: se for condenado, não sai de sua reserva. Ameaçou inclusive fazer rolar o sangue dos brancos, em caso de condenação. E pensávamos que limpeza étnica é estratégia de sérvios.

A “nação” caiapó, que já faturou US$ 10 milhões nos últimos dez anos exportando madeira de mogno para a Europa, não só não aceita o sistema judiciário nacional, como ainda alberga e protege o estuprador. Se bem me recordo de minhas aulas de Direito, albergar criminoso também constitui crime. Exceto no país caiapó, onde as leis são outras e estupro não é crime. O grave em tudo isto não é propriamente o estupro, crime comum capitulado no Código Penal. Temos agora um cidadão brasileiro, com carisma de salvador da humanidade, que diz com todas as letras que não aceita a lei do país onde vive. Jamais ouvi pronunciamento de autoridade nenhuma condenando esta rebelião civil. Não tenho notícias de que o Ministério do Exército tenha se preocupado com estes senhores que, com todas as letras, negam os sistemas legislativo e judiciário nacionais.

Mal surge a idéia do separatismo, que está longe de ser nova no Rio Grande do Sul, não falta quem fale em racismo e preconceito. Por alusão, evidentemente, aos nordestinos e nortistas, indesejados na nova comunidade. Aliás, depois das exéquias da finada luta de classes, racista é o novo insulto que substitui burguês. O que, no caso brasileiro, é duplo equívoco. Em primeiro lugar, nordestino jamais constituiu raça diferente da branca. Segundo, se constituísse, a ninguém se pode obrigar a dela gostar. O mínimo — e também o máximo — eticamente exigível é respeitá-la. Gostar ou não de alguém é questão de foro íntimo. Respeito é obrigação de todo ser humano em relação ao outro, ou voltamos à lei da selva. O bíblico “amai-vos uns aos outros” pode ser uma ordem para os cristãos. Ocorre que vivemos em país que não deve obediência nenhuma a Roma. Curiosamente, ninguém acusa de racismo tchecos ou eslovacos, lituanos, letônios ou estônios.

Quanto a preconceito, é mais uma dessas palavras manipuladas pela mídia sem respeito nenhum a seu significado. Se, sem jamais ter visto ou ouvido falar de nordestinos, em relação a eles tenho uma atitude adversa, trata-se evidentemente de um “pré-conceito”. (Exemplo cabal de preconceito é o nutrido em relação ao Iéti. Jamais foi visto de perto e já recebeu a pecha de “abominável homem das neves”). Mas depois de um Collor de Mello, P.C. Farias ou de um Inocêncio Poços de Oliveira Artesiano, temos um pós-conceito. Ao ser acusado de escavar poços em suas terras utilizando serviços de uma instituição pública, o presidente do Congresso, eventual presidente da República, declarou que isto é normal e que muitos outros deputados fazem o mesmo. Sulistas, nada temos contra o Nordeste que trabalha. Nosso rechaço é contra o Nordeste dos aguatenentes, estes gordos carrapatos que sugam o magro dorso do país.

Em bom português: quando autoridades civis e militares se dizem preocupadas com a unidade do território nacional, este há muito já está dividido. Um país para cada tribo indígena é bom, digno e justo. Um projeto de país para os sulistas é um atentado à Constituição. A chancelaria brasileira endossou a fragmentação da União Soviética, Iugoslávia e Tchecoslováquia. Mas Brasil não pode.

Militares não são pagos para mandar, mas para servir. As Forças Armadas devem atender aos desejos nacionais. Quando militares se opõem às aspirações civis, temos ditadura, e da última ninguém tem saudades. Em país civilizado, militar não manda. Obedece. Se o país quer cindir-se, faça-se um plebiscito. A menos que alguém prefira o método iugoslavo.

 

(Porto Alegre, Zero Hora, 26/06/93)


 

 

 

Sobre Don Camilo

 

Porto Alegre está de parabéns. Pelo que me consta, recebe pela primeira vez um prêmio Nobel de Literatura. Outro já passou por aqui, no dia 9 de agosto de 1949. Cansado e acometido durante a viagem por uma hemoptise, seu estado de ânimo não é dos melhores. Deixará registrado em seu diário de viagens: "a cidade é feia. Detesto essas ilhotas de civilização". Chamava-se Albert Camus, mas ainda não havia recebido o prêmio Nobel. Na ocasião, foi saudado por Erico Verissimo.

Por que Cela está em Porto Alegre e não em São Paulo, como seria a ordem natural das coisas? O poder econômico e de imprensa de São Paulo faz com que a cidade monopolize os grandes eventos culturais do país. A presença de Cela na capital gaúcha tem um significado maior. Gaúchos, sempre tivemos uma relação mais íntima com a cultura hispânica. Enquanto o eixo São Paulo/Rio sempre esteve mais voltado para Paris ou Nova York, o gaúcho sempre olhou para o Prata e por extensão, para Madre Espanha. Martín Fierro, por exemplo, pouco ou nada diz para um paulista, mas é íntimo de qualquer bolicheiro da campanha gaúcha.

A obra fundamental de Cela é, sem dúvida alguma, seu primeiro livro, A Família de Pascual Duarte, publicado na Espanha em 1942. Só foi traduzido no Brasil, para nossa vergonha, em 1986, nada menos que 44 anos depois. Costumo dizer que o Brasil está sempre uma década atrás do que acontece na Europa. Neste caso, estamos nada menos que quatro décadas em atraso. As traduções de obras literárias de porte sempre exercem forte pressão, seja sobre as línguas para as quais foram traduzidas, seja sobre a literatura do país que as acolhem. A Família de Pascual Duarte chegou com enorme atraso ao Brasil, mas pelo menos chegou.

Tivesse sido traduzida nos anos 50, certamente outros seriam os rumos de nossa própria literatura. Falar nisso, recém se começa a pensar em traduzir no Brasil este ensaio fundamental de Camus, O Homem Revoltado, publicado em 1951. A comparação não é fortuita, no sentido de que estes dois criadores escreveram sob a sombra da Guerra Fria e tiveram de suportar todas suas conseqüências. Vários estudos já foram feitos, estabelecendo relações entre O Estrangeiro e A Família de Pascual Duarte, livros publicados no mesmo ano de 1942 em meio ao vácuo de valores decorrente das matanças da Guerra Civil espanhola e da Segunda Guerra Mundial.

 

Da dificuldade de transportar Cela — Voltando de uma viagem à Espanha, em 1987, com alguns dólares ainda no bolso, decido comprar as Obras Completas do mais importante autor espanhol contemporâneo. Passo na Casa del Libro, em Madri, e mando descer Don Camilo das prateleiras. Para meu pânico, eram — na época — dezessete volumes, cerca de 800 páginas cada um. E o que faltava integrar à coleção daria mais três ou quatro tomos da mesma idade. E o homem continuava "vivito y coleando". E escrevendo.

Afirmar que um autor vivo é o mais importante de sua época é gesto ousado, pois não poucos partidários de outros autores também significativos brandiriam suas próprias preferências em protesto. Mais delicada se torna esta afirmação quando é feita sobre um escritor polêmico como Camilo José Cela — "hay celianos, celistas y celosos" — autor que, apesar de obra vastíssima e de contar entre suas láureas o prêmio Nobel, ainda não foi julgado digno do prêmio Cervantes.

Por outro lado, afirmar que Cela é o mais importante escritor espanhol contemporâneo não exige maior coragem intelectual. Não continua A Família de Pascual Duarte brilhando solitária no panorama espanhol deste século? Não é a novela espanhola mais traduzida depois do Quixote? Em meio a uma obra imensa e variegada, que vai do poema e do conto à crônica e lexicografia, não produziu dois outros grandes momentos da novelística espanhola, A Colmeia e Mazurca para Dois Mortos? Afirmar a importância maiúscula de Cela nas letras de Espanha não exige maior audácia, nem maiores justificativas.

Aliás, Don Camilo já suspeitava disto. Em 1953, para escândalo de seus leitores, afirmava: "Me considero el más importante novelista español desde el 98. Y me espanta el considerar lo fácil que me resultó. Pido perdón por no haberlo podido evitar". Para Jorge Urrutia, fazem parte do estilo celiano estas frases claramente agressivas, que têm o propósito de escandalizar: "posiblemente es cierto que Camilo José Cela sea el más importante novelista español desde el 98, pero no es correto que lo declare él mismo".

Mas o ensaísta aventa uma outra leitura destas duas frases, o espanto de um autor dotado de uma grande capacidade autocrítica, "modestamente asustado de su posibilidad de escritura y lamentando haber destacado de tal modo por encima de sus contemporâneos. Temeroso quizá de que la relativa pobreza de la novela española de este siglo haya subrayado tanto su existencia".

Há coisa de dez anos, ao propor um curso sobre a novelística de Cela em uma universidade brasileira, as objeções não se fizeram esperar: Cela não é um escritor significativo, ele lutou na Falange. De fato, em 1937, nosso autor engajou-se no exército rebelde, onde foi cabo de artilharia do Regimento Ligeiro n. 16. Foi ferido na perna direita e recebeu um tiro de metralhadora no peito. Em 1940, pertencia ao time dos vencedores. Mas se o autor não se viu forçado ao exílio, o mesmo não ocorreu com sua obra. E não será por este gesto — que adquire um novo significado após a queda do muro de Berlim — que se irá jogar ao lixo uma das mais densas e inovadoras obras deste século.

Jorge Luis Borges pode ser condecorado por Pinochet, pode voltar do Chile afirmando que lá não viu tortura alguma e isto lhe é perdoado, não terá passado de uma boutade do grande escritor argentino. Pablo Neruda morre stalinista convicto, mas coroado pelo Nobel e em odor de santidade. Jorge Amado desenvolveu boa parte de sua vida um zdanovismo primário (com perdão pela redundância), recebeu comovido o prêmio Stalin de literatura, escreveu hagiografias em torno ao Paizinho dos Povos, mas é preferível omitir tais fatos em sua biografia. Marinetti. arauto da guerra e porta-voz do fascismo, é louvado como o inspirador e patrono das vanguardas brasileiras de início do século e seus manifestos, que seriam assinados embaixo por um Goebbels ou Hitler, continuam ainda hoje sendo objeto de culto por não poucos professores de literatura. Heidegger foi conivente com o nazismo. "Mas que tem a ver o pensador com sua obra"? — objetam certas almas caridosas.

 

Um espécime em extinção — Estamos recebendo, hoje em Porto Alegre, um espécime em extinção. Don Camilo terá hoje mais de cem títulos publicados, e esse tipo de autor tende a morrer com este século. Estamos entrando em uma era em que o suporte da transmissão do saber já não é necessariamente o livro. Ou pelo menos não é o livro na forma em que o conhecemos atualmente, o livro-papel. Os editores sabem disso, os professores de Letras também e espero não estar falando de corda em casa de enforcado.

No início de sua carreira literária, assim se definia Cela:

"Meço um metro e oitenta, peso 76 quilos, calço 41, tenho 12 de pressão arterial, meus olhos são castanhos, com belos reflexos verdes à luz do entardecer, meus cabelos estão a perigo e, como sinais particulares, posso apresentar duas cicatrizes no rosto — uma no queixo e outra no lábio superior — um tiro na virilha esquerda, por sorte e um tiro de metralha no peito: o normal dos que eram jovens na virada de 37. Para entreter-me, fiz uma guerra, me casei duas vezes, fiz um filho e publiquei dez ou doze livros".

Sua trajetória na literatura é paradoxal: começa aos 26 anos com uma obra-prima, La Familia de Pascual Duarte (1942), o romance espanhol mais traduzido no mundo depois de Dom Quixote. Entre suas dezenas de títulos, destacam-se La Colmena (1951) e Mazurca para Dos Muertos (1983). Estes três já foram traduzidos no Brasil. Um outro título importante — e maldito — é San Camilo, 36, (1969), onde o escritor aborda, através de colagens de jornais e monólogos interiores, a eclosão da Guerra Civil Espanhola.

Em La Familia de Pascual Duarte, até hoje considerada sua obra maior — traduzida para mais de 20 idiomas, entre estes o latim — o autor narra as peripécias de um camponês estremenho de temperamento violento, que após uma série de crimes brutais, acaba por matar a navalhadas a própria mãe. Este tipo de ficção, bastante aparentada aos "romances de ciegos", nos quais um recitador desfia um rosário de desgraças, foi chamado pelos críticos de "tremendismo", ou seja, o gosto por situações truculentas e cruéis, exacerbação das misérias físicas dos personagens e humor sinistro. Interrogado certa vez por uma professora se o livro seria autobiográfico, Cela deu vaza a seu senso de humor: "Claro. E se a senhora visse com que ganas apunhalei minha mãe!"

Na obra de Cela há uma forte presença da prostituição e não seria de todo exagerado afirmar que Mazurca para dois mortos é uma crônica galega da Guerra Civil, vista através da ótica de um bordel. Prostitutas à parte, esse romance surpreendeu a crítica espanhola por inovar poderosamente a narrativa ficcional, constituindo ao mesmo tempo uma telúrica reportagem sobre a Galícia e seus mitos. Com esta crônica travestida de romance, o autor atinge a condição de "escritor para escritores".

As prostitutas desempenham um papel fundamental na novelística celiana, fazendo-se presentes desde sua primeira obra: a irmã de Pascual Duarte é levada à prostituição por El Estirao. O leitor atento notará o carinho com que Cela as trata: em meio a canalhas, delatores, padres lúbricos, vagabundos e assassinos, as profissionais são os raros personagens — patéticos personagens — a manter intacta uma certa reserva de humanidade.

Pesquisador deste universo em geral esquecido pelos literatos, Don Camilo chegou a publicar, em 1964, um belo estudo sobre as putas de Barcelona, intitulado Izas, Rabizas y Colipoterras (Drama con acompañamiento de cachondeo y dolor de corazón), obra hoje rara e perseguida por bibliófilos, pois parece que as moças do Barrio Chino julgaram-se por demais expostas nas fotos que ilustram o ensaio. Em A Colmeia há uma cena antológica. Quem viu o filme — onde Don Camilo faz uma ponta — deve lembrar o momento em que, para ter acesso a um apartamento de encontros, todo freqüentador deve dizer uma senha: "Napoleón fué derrotado en Waterloo". Mas a senha é de tal conhecimento público, que quando um cliente se engana, uma vizinha responde: "el piso de las putas es el de arriba".

Que restará, nas décadas vindouras, da obra de Cela? Pascual Duarte, é claro, ficará brilhando como sua obra maior. Enquanto houver um galego e uma Galícia, Mazurca para dois Mortos sempre será lido com deleite. Todo hispanófono ou hispanófilo sempre encontrará, em algum recanto da obra celiana, um oásis onde descansar. Sabemos que a luta entre os mortos é muito mais violenta que a luta entre os vivos. Os vivos disputam suas áreas de influência nos jornais, universidades e editoras, onde acordos e tréguas são viáveis. Os mortos se dão cotoveladas nos territórios mudos e sem apelo das enciclopédias.

Se um homem deixar um só livro para a posteridade, já justificou sua existência. A tradução é a posteridade imediata de um autor, ele se torna presente em outra cultura que não a sua. O estremenho Pascual Duarte transportou Don Camilo a todas as línguas de cultura. Aos 26 anos, fato insólito na vida de um escritor, Cela conquistou seu passaporte para a posteridade.

Não bastasse este feito, Cela, com sua obra posterior, tornou-se o intérprete maior da Espanha. É escritor para ser degustado, antes de mais nada, por pessoas que um dia se apaixonaram pela Espanha ou que, por razões de origem, a trazem na memória ou no sangue. Não se pode esperar, evidentemente, que jovens ensurdecidos pelo rock ou funk tenham qualquer apreço pela música que emana, por exemplo, de Mazurca para Dois Mortos.

Há obras que ficam profundamente arraigadas a uma cidade, uma região ou época histórica. Se Mazurca existirá enquanto existir Galícia, A Colmeia e San Camilo, 36 serão obras de referência obrigatória para quem quiser entender Madri. Temos depois toda uma obra de crônicas referentes à Espanha, que dizem respeito mais ao leitor espanhol que ao brasileiro, e que despertará a atenção daquele estrangeiro que quiser mergulhar um pouco mais profundamente na Espanha. Como acontece com toda literatura, a seleção será feita pelo correr dos séculos.

Neste abordagem à vôo de pássaro da obra de Cela, quero dar notícia de dois livros. Quero mostrar de um lado a faceta lúdica e ao mesmo tempo erudita do autor e também seu lado político, sua inquietação de intelectual preocupado com a história de seu país. Antes disso, algumas palavras sobre...

 

Por que não se lê Cela no Brasil? — Apesar do elevado contingente de galegos e espanhóis migrados para São Paulo e Rio Grande do Sul, pode-se dizer que a difusão da obra de Cela é mínima. A Família de Pascual Duarte teve duas pequenas edições no Brasil todo, Mazurca para dois Mortos apenas uma e, mesmo após o Nobel, não houve uma venda maior desses livros. É como se o público brasileiro, viciado com as fórmulas de bestsellers vindos do mundo anglo-saxão, não tivesse mais pálato para degustar um autor original, telúrico... e espanhol. Neste sentido, a iniciativa gaúcha deve ser mais uma vez louvada, pois trouxe até nós um autor que há dez anos era visto como leproso pela universidade brasileira. Explico.

Antes de entrar no cerne do problema, duas palavras sobre a indústria do livro no Brasil. Paralelamente ao lobby poderoso que vende os bestsellers vindos do Norte — onde às vezes encontramos inclusive bons ensaios — há a indústria infame do livro de curso forçado no circuito universitário. Os programas de vestibular e os currículos universitários forçam a venda de uma literatura ridícula, que nada tem a dizer a ninguém, e que jamais venderia não fosse esta venda forçada imposta pelas instâncias acadêmicas. Há centenas de autores na literatura brasileira que há muito estariam mortos e esquecidos, gozando do justo repouso dos mortos, não fossem as imposições da máfia universitária.

Ora, essa imposição, que não se contenta em afastar da degustação das Letras os estudantes de Letras, mas também todos os vestibulandos que, mesmo se dirigindo a medicina ou engenheira são obrigados a ler, ainda que perfunctoriamente, Camões ou Aluísio de Azevedo, essa imposição afasta todo jovem da boa literatura e fecha o espaço editorial a bons escritores. Entre um medíocre recomendado para o vestibular e um escritor como Cela, um editor não pensa duas vezes.

Vamos ao cerne do problema. Quando estava traduzindo Cela, em 1984, propus um curso introdutório à sua obra na UFSC, que foi imediatamente recusado por meus colegas. Motivo: Cela, em sua juventude, havia lutado na Falange franquista. Ou seja, meio século após a partição da Espanha em dois, vivíamos em plena Guerra Civil... em Florianópolis. Não importava o autor ter produzido a novela espanhola mais traduzida depois do Quixote — que já nos chegava com nada menos que meio século de atraso — não importava ser o intérprete "del país más lindo del mundo". Havia lutado na Falange e estava proibido em Florianópolis. Só consegui levantar o embargo três anos mais tarde, em 87, quando já havia traduzido dois de seus livros e a imprensa do centro do país começava a descobrir Cela.

Sugeri ao editor de Cela a publicação de um dos livros que considero fundamental em sua bibliografia, San Camilo, 36. Mas parece que a dedicatória do livro o assustou. Com a coragem do homem que não se dobra a fanatismos, escreve Cela: "A los mozos del reemplazo del 37, todos perdedores de algo: de la vida, de la libertad, de la ilusión, de la esperanza, de la decencia. Y no a los aventureros foráneos, fascistas y marxistas, que se hartaron de matar españoles como conejos y a quienes nadie habia dado vela en nuestro propio entierro".

Ou seja, antes da primeira linha, o autor nos adverte não nutrir nenhuma simpatia pelos estrangeiros que levaram a Espanha a uma carnificina. Num século que cultuou como heróis Neruda, Hemingway, Malraux, Sartre e tantos outros stalinistas, estas poucas linhas soam como heresia imperdoável. Mas os tempos mudam, e cada vez mais aceleradamente neste final de milênio.

No dia 9 de novembro de 1989, fiz uma palestra aqui em Porto Alegre, no Instituto de Cultura Ibero-Americana, sobre Cela e a Guerra Civil espanhola, enfocando particularmente San Camilo, 1936. A data é significativa. Depois daquele dia, toda a história do Ocidente, e particularmente da Espanha, teve e terá de ser revisada. (Não em função de minha palestra, é claro). Naquela noite, caía o muro de Berlim.

Tornou-se evidente hoje o que só era óbvio para espíritos não contaminados pelo fanatismo. O papel de Franco na história terá de ser revisto. Um dos primeiros intelectuais espanhóis a dar-se conta disto foi Jorge Semprun, que concluiu não ter sido a democracia liberal que instaurou a modernidade na Espanha, mas o franquismo. Cito Jorge Luís Borges: "De haber triunfado la República, hoy España seria otra Cuba. Franco ha sido positivo para España". Se isto há dez anos o teria jogado no limbo dos autores encalhados, hoje já o situa no pequeno circulo dos videntes, apesar de sua cegueira.

Derrubado o muro de Berlim, talvez seja mais fácil editar e ler San Camilo, 1936. Mientras tanto, louvemos a independência intelectual de Cela que, tendo praticamente nascido com o século, soube manter-se isento dos fanatismos que o mancharam com toneladas de sangue. É difícil encontrar um autor de relevo que tenha percorrido este século sem ter-se contaminado pelo marxismo. Mesmo os mais lúcidos se deixaram iludir pela nova religião laica, entre eles podemos arrolar Gide, Orwell, Koestler, Sábato, Camus, Semprun e tantos outros, criadores brilhantes e de uma honestidade exemplar mas que, em um determinado momento, acenderam velas a Marx. Don Camilo, praticamente nascido com a Revolução de 17, escapou deste culto. E isto já é um grande mérito, ser ateu em uma época dominada por crentes.

 

Cela, cornólogo — Pretendia falar, disse, sobre duas facetas de Cela, e a primeira delas era a homem lúdico e ao mesmo tempo erudito. Pois Cela, que entre outras tantas ocupações dedicou-se à lexicografia, nos legou uma dessas obras que tem boa vocação para a posteridade, uma espécie de tratado geral de cornudos, ou melhor, Rol de Cornudos.

O fenômeno pode parecer irrisório, mas está na base de toda arte ocidental e tem inspirado pintores, romancistas, teatrólogos e cineastas. Não há história de amor que se preze sem um corno e um cornificador. Os grandes momentos da ópera estão recheados de cornos. O Don Juan, de Mozart, é o cornificador por excelência do continente europeu. In Spagna, gia sonno mille e tre.

Mas, justiça seja feita ao Ocidente, o fenômeno não lhe é exclusivo. O grande legado oriental à arte literária nasce sob o símbolo ameaçador da cornificação. Que são As Mil e Uma Noites senão o subproduto do medo do rei Shahriyar de ser traído pela esposa? Seu irmão Shahzamán já havia sofrido as mesmas dores — como direi? — de cabeça, e Shahriyar encontra a única maneira viável de não ser traído: a cada noite escolhe uma virgem, filha de algum de seus súditos, e a decapita na manhã seguinte.

Surge então Sharahrazad. Ciente da misoginia do rei, ao final da noite conta-lhe um conto, deixando o desfecho para o dia seguinte. Conseguindo despertar o interesse de Shahriyar, tem sua pena transferida para o dia seguinte. E assim sucessivamente, durante mil e uma noite, quando Shahriyar já tem três filhos de Sharahrazad e motivos suficientes para perdoá-la. Em suma: o monumento por excelência da literatura árabe nasce sob o temor ancestral à cornificação.

Os cornos — eu diria — são como os deuses, só existem para os que neles crêem. Mas quem neles creia é o que não falta, como também não falta quem creia em deuses. Charles Fourier, por exemplo, pensador utópico do século XVIII, em sua crítica à família monogâmica, vê a cornificação como conseqüência natural e necessária do casamento. Enumera os 64 tipos de corno que conhece, relação que chegará a 144 em obra posterior, abrangendo, pela ordem do coroamento, desde o corno potencial ao corno póstumo. Cela parte da relação inicial de Fourier e alarga consideravelmente o leque, inserindo nesta mostragem universal, segundo suas próprias palavras a "generosa contribuição ibérica".

O livro de Cela é dedicado a Charles Fourier (1772-1835), "tratadista que clasificó los cornudos de su tiempo y a mi amigo el Ilmo. Sr. Don Estanislao de la Sagra y Mascaresque, aliás Pijo Péndulo (1918-1976) cuyas ambas sucesivas esposas tanto y tán honesto solaz proporcionaron a mis carnes y mi espíritu gracias a lo mucho y bien que cornificaron en vida a su difunto. Laus Deo!"

Don Camilo parte do axioma suficientemente explicado por Franz Jakubowski, en Der Ideologische Ueberbau in der materialistischen Geschichtsauffassung, de que jamais houve um mamífero superior sem cornos. Considera que Xenócrates, sucessor de Euspésipo como escolarca da Academia Platônica, defendeu em seu pitagorismo a teoria de que os cornos são cambiantes como as nuvens, já que não há dois iguais. Xenófanes de Colofão explica, por sua vez, em seu Poema sobre a Natureza, que o universo é regido por um deus único, supremo e esférico —"todo olhos, todo ouvidos, todo cornos"— que é imóvel mas que, apesar de sua imobilidade, o rege e governa por seu pensamento e reparte cornaduras, entre os seres racionais, com infinita prodigalidade.

Alguns dos espécimes catalogados por don Camilo. Poderíamos começar pelo corno adorado, aquele que é amado em silêncio por quem o cornifica como substitutivo de conseguir seu amor. Consta que no cortejo fúnebre de certa dama estavam seu marido e seu amante. Este demonstrava tais sinais de desconsolo que o marido, tomando-o pelo braço, disse-lhe: "Não fique assim, mantenha a calma, o mais provável é que me case de novo".

Depois viria o alcoólatra, o que bebe para esquecer. Se abusa da bebida, chega a perder a noção do que queria esquecer e continua bebendo por inércia, sem mais lembrar o que aspirava jamais recordar. É espécie boêmia e tresnoitadoura. Por ordem alfabética, pinço a seguir o cornudo alérgico, o que mais sofre na primavera. pois tem os cornos inflamados pela polinização. Viria depois aquele "ao qual lhe abrem os olhos". Este, com não pouca surpresa, acaba compreendendo que o é. Espécime dominical vespertino, a esposa o empossa no cargo enquanto ele enrouquece chamando de corno um juiz que não apitou um pênalti evidente.

Temos depois o amansado — não confundir com o manso —, que também atende por catequizado ou convertido. É o que começou carreira esbravejando mas acabou se acalmando com o andar da carroça. Ao chegar à maturidade, costuma ser encantador. Poderíamos agora pinçar o anistiado, aquele que os teve apagados. São espécimes alegres, geralmente reincidentes. Viria em seguida o angélico, aquele que ao encontrar sua mulher na cama com o vizinho, atribui o fato aos rigores do inverno e à falta de calefação.

Isto sem falar no áugure. Este, segundo Cela, adivinha o sexo das crianças. Se incha o corno de estibordo, é menino. Se incha o de bombordo, dá menina. Na letra C, por exemplo, encontramos ser cada vez mais pululante, o corno contra natura. É cornificado por lésbica e qualquer tribunal de honra o expulsaria da confraria. Segundo nosso cornólogo, é espécie da qual nem vale a pena falar.

Já mais brioso e bastante encontradiço nas secretarias de Estado é o corno com vocação de sobrevivência, ou por causa emergente. É o cornudo de emergência de Fourier, ou de salvaguarda, que só entra no clube por necessidade de salvar a vida ou a fortuna. Não se preocupa pelos sinais externos e não deve ser confundido com o cornudo de sinais externos, ou seja, aquele que adorna a cornadura com as pompas e vaidades da carreira política.

Ainda na letra C, encontramos um distinto representante da confraria, o cosmopolita. Cornificado por uma legião de galãs forâneos, carece materialmente de tempo para distinguir entre quem lhos põe, quem lhos pôs e quem não lhos pôs e não pensa jamais pôr-lhes. Vive, diz Cela, em fronteiras ou aeroportos e costuma ler Le Monde.

Não deve este exemplar ser confundido com o de ambos mundos, também chamado póstumo. Este é cornificado pela esposa, sem respeito aos prazos legais ou consuetudinários. Outro espécime patético é o de bom modos, ou cerimonioso, o que jamais abdica de sua urbanidade. Se encontra sua mulher deitada com o vizinho, recrimina-o com suma cortesia: "Sua conduta não é correta, cavalheiro. Observe que a senhora que o senhor tem por baixo é minha legítima esposa, como posso provar-lhe documentalmente".

Segundo Cela, é espécime cujos confrades, quando pequenos, estudaram em colégios pagos, de jesuítas, oblatos, ou no Sagrado Coração de Jesus. Viria depois o de confiada evidência, o "casado com mulher cuja feiúra o tranqüiliza dos cornos". Mas nem sempre os evita, pois há cornificadores em desespero de causa que se contentam com o que é servido. Mais típico ainda é o defensor do vínculo, ou propagandista. Acérrimo partidário do matrimônio, estimula os amigos a se casarem, ignorando que podem tornar-se tão cornudos quanto ele. E recém estamos na letra D.

Para encurtar a conversa, me permito listar mais unzinho, o luminoso. Ou fosforescente. É aquele que tem luz própria, como as estrelas e, diferentemente dos astros, nele a cornadura brilha como a auréola dos santos mártires. É espécie decorativa, mas de escassa utilidade pública.

Este é o Don Camilo lúdico, que dedica seu ócio, ou suas pesquisas, a dissecar esta dor de cabeça tão típica dos países católicos. Se colhi — não exatamente ao acaso — alguns espécimes de fácil entendimento, cabe lembrar que Rol de Cornudos é um livro de extrema erudição, em certos momentos de difícil leitura e de tradução quase impossível. Se um editor brasileiro quisesse enfrentar esta empreitada, melhor faria se contratasse um escritor para pesquisar a fauna nativa.

 

Cela cronista — Voltemos ao Don Camilo mais grave, preocupado com a história espanhola. Embora não seja a mais divulgada obra de Cela, San Camilo, 1936 é certamente seu romance mais polêmico e talvez por isso mesmo ainda não publicado no Brasil. Pois entre nós, não poucas pessoas ainda ignoram o que ocorreu no dia 9 de novembro de 1989. Publicado em 1969, vinte anos antes desta revolução, ainda na época de Franco, evoca o clima de Madri nos últimos dias da Espanha republicana. O romance é um longo monólogo, narrado na segunda pessoa do singular, de um jovem perplexo que se olha no espelho, no tórrido verão madrileño de 36. A estratégia narrativa já é definida no início: "Uno se ve en el espejo y se tutea incluso con confianza...", frase que abrirá quatro outros capítulos e será retomada constantemente no corpo do relato. Este tutear-se, diálogo de Cela consigo mesmo, esparrama-se ao longo de toda a obra, entrecortado por referências históricas e fatos presentes.

Entre os fatos do presente, justapostos em uma espécie de collage — recurso que o autor usará abusivamente, mais tarde, em Mazurca para Dois Mortos — estão os faits divers da imprensa cotidiana e incidentes de rua, todos elegidos, ao que parece, por sua gratuidade e morbosidade. Cito ao acaso: na calle de Mesón de Paredes aborta uma criada que fora emprenhada em seu povoado, na glorieta de Bilbao agoniza um menino com garrotilho, em uma sala da calle de Arlabán se canta a plenos pulmões quando de repente alguém morre de infarto, no pronto-socorro de la Encomienda são curados dois que brigaram nas ruas, na calle de Velázquez seqüestram um deputado que será assassinado e na calle de Tudescos matam uma puta a navalhadas, "esto de la puta tiene menos importancia, putas hay muchas y además los crimenes pasionales no cuentan o cuentan poco, a la gente suelen gustarles pero por lo comun son muy monótonos, reiterativos y vulgares..."

Subrepticiamente, em meio aos anódinos fatos de uma crônica policial, o autor insere um seqüestro que será o leitmotiv de sua história e terá graves conseqüências na História espanhola. Outros fatos das ruas, sem transcendência política ou histórica nenhuma, mas reveladores de uma especial psicologia do homem do povo, são utilizados pelo autor para a composição de sua tela:

A violência latente do dia-a-dia madrilenho vai permeando o espírito do personagem que se olha no espelho. Respira-se um clima de guerra e "la necesidad de cometer un asesinato se siente en el paladar en un picorcillo pegajoso y caliente que se posa en el paladar y se va extendiendo después por la lengua, por las encías y por toda la boca". Essa ardência na boca vai contaminando os madrilenhos. Quem jamais havia pensado em assassinar torna-se facilmente assassino, "es fácil ser asesino, todos los hombres llevan dentro el pecho una bombillita de fragilísimo cristal en la que se agazapa el huevo del asesinato, esta bombillita se rompe mui facilmente al menor descuido, lo demás viene solo y por sus pasos, es como una infección..."

O assustador, seja no relato de Cela, como também em qualquer estudo sobre a Guerra Civil espanhola, é a rapidez com que se propaga o vírus do ódio entre irmãos. A guerra está no ar, prestes a instaurar-se com seus horrores. Mas até mesmo entre os senhores da guerra, raros são os que têm consciência de sua iminência e houve até mesmo generais passados pelas armas sem saber o que estava acontecendo.

"... nadie es asesino hasta que asesina, pero al que va a ser asesino se le posa antes de asesinar una rara picazón en cielo de la boca, se le nubla la vista, empiezan a zumbarle los oídos y se ciega pero no de todo, nadie está libre de que le nazca una turbia moneda en el paladar, hay dos clases de asesinos, el que mata como quien bebe un vaso de água, que es el peor, y el que mata como quien se acuesta con una mujer, sin poder evitarlo..."

Uma sangrenta litania percorre San Camilo, 1936 o tempo todo, assim como asperge continuamente vivos e mortos, assassinos e assassinados, em Mazurca para Dois Mortos, outro romance erguido sob a sombra da Guerra Civil. Mas paralelamente a este refrão hediondo — e aqui emprego o adjetivo em acepção espanhola, no sentido de mau cheiro — uma outra música se faz ouvir no romance, o que aliás valeu a Cela acusações de pornografia e obscenidade. Pois o autor utiliza o vocabulário nosso de cada dia. Usasse um linguajar centroeuropeu, falasse em Eros e Tanatos, instintos vitais e de morte, outro seria seu conceito junto a pudicos intelectuais. Mas não seria Cela.

Sua tese é simples. A ir à guerra, "lo mejor es ir de putas y olvidar, lo mejor es ir a una casa de putas y olvidarse de todo mientras uno se folla a una puta bien guapa".

Voltando a San Camilo: o jovem que se olha ao espelho em seus vinte anos e que ainda não entrou em "quintas" — sorteio para o serviço militar — julga melhor ir rumo às putas que servir de carne de canhão ou, na melhor das hipóteses, entregar-se ao calor da mulher amada, opção na qual é apoiado por um certo tio Jerónimo, alter ego cuja voz vai dominar o último capítulo do livro:

"... hártate de amar a Toisha desnuda y después cuando vuelva a quedarte solo cierra los ojos para sentirte aún vivo y en su contato, deja que sean otros los que se maten, tú no quieres morir, tú quisieras vivir eternamente..."

Para tio Jerónimo, a paz só voltará a reinar quando os homens buscarem o prazer e não a dor, o que pode parecer uma vasta lapalissade mas no fundo é utopia, urge que chegue o dia em que homens e mulheres se amem à luz do sol nos parques e no meio da rua, quando então serão cerrados abismos de ódio, concupiscência e fastio, aquele dia em que criada a benemérita ordem das putas de caridade:

"... este es un país de leche contenida, de leche a presión, tu crees?, claro que lo creo, aqui se jode poco y mal, si los españoles jodieran a gusto serían menos brutos y mesiánicos, habría menos héroes y menos mártires pero también menos asesinos y a lo mejor funcionaban las cosas..."

O humanismo de tio Jerónimo, esta espécie de breve contra os males da guerra, em uma Espanha católica e supostamente casta, provocará certos pruridos no leitor comum, o que faz com que até hoje Cela seja "un gran escritor, pero..." Como o livro ainda não foi traduzido no Brasil, não resisto à tentação de transcrever algumas prescrições desta terapia celiana:

"... llama por teléfono a cualquier novia que tengas e invitala a acostar-se contigo, da rienda suelta al amor cabalgando a la primera moza que se deje, a las otras ni saludes siquiera, a los veinte años se deve ser pródigo con el amor, sobrino, el amor no es un bien atesorable, el amor que hoy no brindas o no recibes no podrás recuperarlo nunca, el de mañana es otro, el amor es un mar abierto a diferencia del odio que es un claustro cerrado, déjame a solas con mi vejez y con mi aburrimiento y llama a cualquier moza que esté deseando amar y dejar-se amar, tiene que haber muchar porque la naturaleza todavía sigue produciendo porventura más amor que odio".

Em uma Espanha marcada pela ojeriza cristã ao prazer, tio Jerónimo considera que "el fuego de las hogueras inquisitoriales se apaga con semen, a Miguel Servet lo quemaron en la hoguera porque los calvinistas tampoco joden ni jodieran jamás a gusto ni lo suficiente".

Em meio à crônica do verão madrilenho de 36, após comentar o assassinato da prostituta a navalhadas, Cela introduz o assassinato de Calvo Sotelo, que dará a Franco e demais militares sublevados o pretexto para a rebelião.

O sangue chama sangue, escreve Cela. A Espanha partiu-se em dois. Machado já tivera a sinistra intuição:

Españolito que vienes al mundo, te guarde Dios,

una de las dos Españas ha de helarte el corazón".

E César Vallejo já advertira:

"Cuídate, España, de tu propia España!"

O general Mola envia telegramas às unidades militares dizendo: "El pasado dia 15, a las 4 de la mañana, Elena dió a luz un hermoso niño. É a senha que, decodificada, significa que o levante começaria em Marrocos, dia 18 de julho, dia de San Camilo de Lelis, celestial patrono dos hospitais, às cinco horas da manhã. Camilo José Cela, cujo pai se chama Cela e cuja mãe se chama Camila, não seria insensível à data.

 

Em suma — Estamos pois ante um autor preocupado tanto com a gravidade da história de seu país e da época que lhe foi dado viver como com o trivial problema da cornatura. Com o romancista convivem o lexicógrafo e o humorista, o andarilho e o cronista de viagens, o escritor telúrico e o acadêmico, o cornólogo e o putanheiro, o cosmopolita e o galego empedernido, o prêmio Nobel e o mais importante escritor espanhol vivo... que ainda não recebeu o prêmio Cervantes!

Talvez certos segmentos da intelligentsia — ou burritsia — espanhola não tenham se dado conta do que ocorreu naquele 9 de novembro de 1989. É a meu ver a única explicação para não conceder a láurea máxima espanhola ao mais representativo escritor espanhol. Enquanto isso, renovo meus parabéns à iniciativa gaúcha.

 

(Palestra proferida na Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande Sul (PUCRS), em Porto Alegre, outubro 95)


 

 

 

A Indústria Textil

 

Homens deste final de século, costumamos olhar para nomes como Cervantes, Swift, Voltaire com uma admiração desmesurada. Considerados as expressões máximas da literatura satírica universal, a posteridade conferiu-lhes — por unanimidade — a condição de gênios. O mesmo já não diriam seus contemporâneos.

Cervantes, por exemplo, escreveu o Quixote na prisão. Sua prisão nada teve a ver com sua literatura. Mas na frase inicial de seu grande poema, notamos um certo ressentimento: “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor”. Hoje sabemos que este lugar é Argamasilla de Alba. Em função de certas cobranças de impostos em Argamasilla, Cervantes foi preso. Na solidão do cárcere, concebeu as andanças do Quixote. Antes disso, fora prisioneiro durante cinco anos e meio em Argel e perdera a mão esquerda na batalha de Lepanto.

No prólogo a “Novelas Ejemplares”, Cervantes faz seu auto-retrato. Nesta confissão de um homem machucado pela vida, lamenta seus dentes, “ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis y son mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros”. Também glorifica a mão perdida em Lepanto, “herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los pasados siglos ni esperan ver los venideros”. Ali está o homem, mutilado pela vida, mas inteiro e orgulhoso de seus feitos. Mais tarde, ciente da grandeza de sua obra, Cervantes dirá de Cervantes:

“tú, que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para gloria de la diestra!”

Swift, que curiosamente é mais conhecido no Brasil como um autor de histórinhas infantis, não foi exatamente um homem benquisto pelos seus contemporâneos. Deão de Saint Patrick, em Dublin, Irlanda, escreveu anonimamente a maior parte de suas obras. Diz a lenda que sua obra maior, As Viagens de Gulliver, teria sido jogada de uma carruagem pela janela adentro do editor. Mas seu estilo era inconfundível. Para que se tenha uma idéia do humor do deão e de seu conflito com a própria época, bastaria citar esta reflexão sua: “Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, podeis conhecê-lo por este sinal: todos os cretinos se aliam contra ele”.

As Viagens de Gulliver é certamente a mais virulenta denúncia do gênero humano jamais feita por um escritor. Sua atualidade é espantosa: nos anos 70, publiquei em Porto Alegre uma sátira de Swift aos advogados, que encontramos na viagem ao País dos Houynhnhms. Minha crônica, na qual eu citava devidamente o autor, foi republicada sem minha permissão em um jornal de Peruíbe, São Paulo, em 1983. Algum tempo depois, os editores do jornal andavam à minha procura, me implorando que escrevesse uma carta ao juiz local, dizendo ser a crônica de minha autoria, sem nenhuma alusão a personagens vivos ou mortos de Peruíbe. Ocorreu que três advogados de Peruíbe se sentiram difamados com o texto e julgaram que Janer Cristaldo fosse um pseudônimo do editor da Tribuna de Peruíbe. Um juiz, demonstrando nada dever em matéria de cultura aos três advogados, aceitou a denúncia e processou o diretor do jornal. Que também jamais havia ouvido falar de Swift. Imagino que, naqueles dias, o deão deve ter dado boas gargalhadas em sua tumba na catedral de Saint Patrick.

Swift escreveu As Viagens em 1726. Dois séculos e meio mais tarde, foi processado por calúnia em Peruíbe.(1)  Entrincheirado em sua catedral, isolado do mundo e distante até mesmo de suas duas amadas, Stella e Vanessa, o deão passou seus dez últimos anos mergulhado na loucura. Certa vez, ao ver uma árvore cuja copa fenecia, disse: “morrerei como aquela árvore”. Assim feneceu.

Voltaire, outro expoente maior da literatura satírica, esteve por duas vezes preso na Bastilha e teve de desterrar-se na Inglaterra, onde aliás conheceu Swift. Refugiado em Ferney, o “monastério filosófico do século”, passou os últimos anos de sua vida defendendo os direitos da razão, sempre polemizando contra “l’infâme”, ou seja, a Igreja Católica, segundo ele a fonte dos piores abusos e superstições.

Voltaire morreu em 1778. O arcebispo de Paris e o clérigo de Saint Sulpice lhe negaram sepultura. Quase dois séculos mais tarde, tínhamos de ler A Revolta dos Anjos às escondidas, pois sua leitura era proibida aqui no Rio Grande do Sul, no ginásio de Dom Pedrito, dirigido por padres oblatos europeus.

Enfim, me atenho a estes três rápidos exemplos para demonstrar que a grande literatura satírica sempre foi de denúncia, sempre foi incômoda, e sempre expôs seus cultores à execração de seus contemporâneos. Foram homens que lutaram contra a própria época. É bom lembrar que o Quixote foi escrito sob a Inquisição.

Se Espanha, Inglaterra e França, berços de artistas, santos e hereges, produziram estes livres pensadores, o mesmo já não ocorre nesta nossa pátria nascida sob o signo do cartorialismo. Machado de Assis, tido como o humorista por excelência das letras tupiniquins, parece não ter entendido a mensagem desses mestres. Ao tecer sua carreira, seu primeiro passo foi criar um cartório particular, a Academia Brasileira de Letras, para que suas obras permanecessem esclerosadas pela eternidade. Antes que os pósteros o elegessem como clássico, Machado fundou seu clubinho e se auto-intitulou imortal.

 

A grande prostituta — Até mesmo um crítico feroz da Academia, como Jorge Amado — que chegou a apedrejá-la em seus dias de juventude — acabou por vestir o fardão. O que não é de surpreender: Amado vestiu não só o fardão, mas todas as camisetas do poder, antecipando a imperiosa compulsão dos escritores contemporâneos pelas mordomias estatais. Quando jovem, aproveitando a ascensão de Hitler, foi colaborador do jornal nazista Meio Dia, e disto nos dá testemunho Oswald de Andrade, em entrevista republicada em Os Dentes do Dragão.

Já maduro, e intuindo que Hitler não tinha futuro, Amado foi militante stalinista tão devotado a ponto de receber o Prêmio Stalin da Paz. Não bastasse militar em jornal nazista e louvar o maior assassino do século, depois de velho Amado assumiu o papel de roteirista predileto de Roberto Marinho ao vender suas noveletas “ao gosto popular” para a Rede Globo e foi ainda o primeiro escritor de renome a saudar Fernando Collor de Mello por sua eleição. Não bastasse toda esta trajetória sinuosa — mas de rumo sempre certo, o poder — candidatou-se a uma cadeira na Casa de Machado, a mesma casa que insultara quando nela não estava. Claro que lhe foi conferida, por demais cúmplices, a glória da “imortalidade”.

Escorados intelectualmente no exemplo de Machado, o assim chamado “pai da literatura brasileira”, grande parte dos escritores tupiniquins seguiram sua estratégia: escrever para agradar o grande público e, de preferência, o poder. Temos hoje, em plena vigência de um Estado democrático, três excrescências que poluem o mundo literário

A primeira é o livro estatal.

A segunda são as mordomias recebidas por escritores amigos do rei.

E a terceira é a neocensura stalinista exercida pelos amigos do rei a quem quer que tente criticá-los.

Estas três excrescências são o subproduto do que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento circunflexo. Nada a ver com a indústria têxtil, esta honesta e necessária.

 

O livro estatal — O suporte da indústria do livro, hoje, é a universidade. Se um dia o livro foi um instrumento sem o qual a universidade não podia existir, hoje a universidade é um instrumento sem o qual a indústria do livro perde seu vigor. O que era fim, a aquisição de saber através da universidade, se tornou meio para sustentação de um comércio. E o que era meio, o livro como instrumento de deleite espiritual ou comunicação do saber, tornou-se fim, uma mercadoria como qualquer outra, para alegria de editores e massagens no ego de escritores com boas relações junto ao MEC e crítica acadêmica. Quanto à boa literatura, aquela que nos foi legada por poetas como Cervantes, Hernández ou Pessoa, criadores como Swift ou Nietzsche, esta deve andar escondida nalguma tasca qualquer. Se é que já não se suicidou de nojo do século. Leiamos esta manchete da Folha de São Paulo:

MACHADO É ELEITO AUTOR IMPRESCINDÍVEL

Comissão vai formar lista de 300 títulos nacionais: livro pouco conhecido do autor modernista foi indicado

Na reportagem que anunciou a lista dos trezentos títulos, os editores esfregaram as mãos de ganância. O aumento das verbas do MEC com obras não-didáticas, segundo a Folha de São Paulo, era uma antiga reivindicação das editoras e a decisão do governo “deve chacoalhar o mercado”. “Vamos comprar milhares de volumes de cada obra”, disse na ocasião José Antônio Carletti, presidente do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação. Cada autor selecionado tem uma edição mínima de 20 mil exemplares, tiragem de sonho mesmo em países de Primeiro Mundo. Multiplique-se esta cota mínima de 20 mil por trezentos, e já se tem uma pálida idéia do montante da mutreta: seis milhões de exemplares financiados com dinheiro do contribuinte.

Mas que obras? Para começar Machado de Assis — mortal que se autoelegeu imortal ainda em vida —, seguido por uma caterva de autores da preferência de uma comissão de “notáveis, filósofos, sociólogos, escritores e educadores”. Neste país incrível, onde notável virou profissão, onde qualquer diplomado em filosofia é chamado de filósofo, esta comissão determina a seu bel prazer qual é o cânon tupiniquim. A única escritora a participar desta comissão foi Lygia Fagundes Telles. Naturalmente, teve um livro seu, Ciranda de Pedra, classificado na lista dos trezentos. Do dia para a noite, sua cotação subiu nesta suspeita bolsa de valores. Segundo a revista Veja, seu passe foi comprado pela editora Rocco, para a publicação de doze livros, por 500 mil reais.

Quem, aqui no Rio Grande do Sul, ouviu falar de Eduardo Portela, ou conhece alguma obra sua? É até mesmo possível que seu nome seja conhecido por alguns gaúchos, afinal foi aquele ex-ministrinho obscuro, de obra desconhecida, que barrou este poeta maior, o gaúcho Mário Quintana, em sua candidatura à Academia de Letras. Por um livro que ninguém conhece, A Literatura e a Realidade Nacional, Portela recebeu 30 mil reais. Por esta rápida mostragem já se vê que ser imortal ainda em vida é investimento dos mais lucrativos.

Em meio a estes trezentos — ou fora deles — estão os livros obrigatórios em vestibulares. Uma indicação para vestibular em São Paulo, por exemplo, significa tiragens milionárias, a tal ponto que inclusive os principais jornais do país entraram nesta guerra, oferecendo uma vez por semana títulos a preço de picolé. O que poderia ser muito bom para a literatura. Não fossem estes títulos obras insípidas, obsoletas, obscuras e muitas vezes ininteligíveis, que jamais levam o leitor àquela função maior da literatura, a contestação da própria época. Quando um autor entra nas listas oficiais de vestibular, é porque já envelheceu.

Me atenho a um único exemplo, Clarice Lispector, cujas obras também estão sendo negociadas por uma soma que os editores preferem não divulgar. Durante meus anos de magistério, coagido pelas ementas do currículo, tentei em vão fazer com que meus alunos lessem Lispector. Era uma tentativa absurda, já que nem mesmo eu suportava lê-la. Clarice é uma imposição curricular que vem de insondáveis instâncias do poder e só serve para afastar um aluno da literatura. Em 95, falei deste impasse em uma palestra sobre Camilo José Cela, na PUC de Porto Alegre. Ao final da palestra, uma professora me procurou e confessou aliviada: “Fiquei confortada, professor. Eu também não suporto Clarice, meus alunos não suportam Clarice e somos obrigados a ler Clarice”.

Os exemplos destas leituras indigestas e obrigatórias são centenas. Fico nestas, já que temos outros problemas a abordar nestes escassos vinte minutos.

 

Os amigos do rei — Em junho passado, um quarteto de escritores brasileiros — Rubem Fonseca, Patrícia Mello, João Gilberto Noll e Chico Buarque — desembarcaram em Londres, onde fizeram leituras públicas de suas obras e lançaram livros não só na capital britânica, como também na Escócia e no País de Gales. Em um primeiro momento, poderíamos pensar: que maravilha, o Reino Unido se interessa por nossa literatura. Nada disso. É o Ministério da Cultura brasileiro que promove tais turismos e financia as traduções dos autores brasileiros. Vejamos estas manchetes, todas da Folha de São Paulo:

BRASILEIROS LANÇAM LIVROS NA GRÃ-BRETANHA

Autores promovem suas obras dentro de projeto patrocinado pelo Ministério da Cultura

RUBEM FONSECA LÊ CONTO EM LONDRES

Segundo Eric Nepomuceno, secretário de Intercâmbio e Projetos Especiais do Ministério da Cultura, “a essa ação do Reino Unido devem ser somadas outras, já em andamento, que compõem o programa de apoio à difusão de nossa literatura no exterior, elaborado pelo Ministério da Cultura. Este programa já tem comprometido o lançamento de pelo menos 42 títulos de literatura contemporânea até 1998 em cinco países, além do programa do escritor-residente em cinco universidades norte-americanas e mesas-redondas em vários países. Acho que é justo solicitar menção a essas iniciativas. Afinal, tudo isto está sendo pago por fundos públicos, geridos por este ministério, e creio que é nosso dever informar devidamente o uso dado a esses recursos”.

Ou seja: quem paga o turismo destes escritores, todos amigos do poder, sejam vivos ou mortos, é o contribuinte. Nesta brincadeira, apenas para a tradução dos livros, foram gastos US$ 35 mil, financiados pelo Ministério da Cultura. O governo brasileiro, isto é, o contribuinte brasileiro, também contribui com parte dos custos de viagem. Ou seja, este país cheio de mendigos atirados nas ruas de suas capitais se dá ao luxo de usar dinheiro público para que alguns amigos do rei — ou, dizendo melhor, amigos de Francisco Weffort, o atual ministro da Cultura — editem suas obras na Europa. Mas será que este contribuinte foi consultado na hora de financiar edições e mordomias a estes escritores que nem conhece? A propósito, quem é Patrícia Mello? Alguém conhece quais títulos de vulto esta senhora escreveu para julgar-se capaz de representar a literatura brasileira na Europa?

 

A neocensura stalinista — Falar de sátira é falar de crítica. Antes de concluir esta comunicação, quero denunciar três casos de uma neocensura que se instalou depois de 64, tão ou mais eficaz que a antiga.

Caso 1: em 1994, em São Paulo, o poeta Bruno Tolentino criticou uma tradução de um poema de Hart Crane, feita por Augusto de Campos. Recebeu como resposta um abaixo-assinado de uma centena de escritores, poetas e estrelas do showbusiness, exigindo sua cabeça. No abaixo-assinado, em momento algum se discutia o mérito da tradução ou o mérito da crítica à tradução. Os abaixo-assinantes apenas demonstravam sua indignação ante a crítica de Tolentino ao PhDeus uspiano Augusto de Campos. Entre esta centena de neocensores estão nomes que sempre se manifestaram pela liberdade de expressão e pensamento, como João Alexandre Barbosa, Roberto Romano, Júlio Bressane, João Cabral de Melo Neto, Miriam Chnaiderman, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Lúcia Santaella, Marilena Chauí, Gal Costa. Da centena de assinantes do manifesto, talvez quatro ou cinco conheçam os poemas de Hart Crane e certamente nenhum entende pivicas de tradução. Mas todos assumiram, com unanimidade albanesa, a defesa de Augusto Campos. Entrincheirado no Olimpo uspiano, Campos está acima de qualquer crítica. E seus sequazes apedrejam quem quer que o critique.

Caso 2: em 1996, em Porto Alegre, o jornalista Juremir Machado da Silva, escritor e doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V, fez uma ligeira crítica a seu colega de jornalismo na Zero Hora, o cronista Luiz Fernando Veríssimo este outro senhor que se julga acima de qualquer crítica. Reunido com Juremir, Veríssimo impôs uma condição: “ou o Juremir se retrata, ou eu saio do jornal”. Pois Veríssimo não aceita críticas. O Sindicato dos Jornalistas apoiou Veríssimo e, pela primeira vez na história do jornalismo brasileiro, vimos um sindicato apoiando a decapitação de um colega. Veríssimo, o humorista gaúcho de renome nacional, adora rir e fazer rir seus leitores. Desde que não lhe teçam a mínima crítica. Com sua atitude stalinista, teve uma vitória de Pirro: do alto de sua prepotência de ginasiano, jogou no ostracismo um jovem doutor pela Universidade de Paris V.

Caso 3: No mês passado, entre outras obras, foi apreendido na Feira do Livro do Rio Janeiro, A História Secreta do Brasil, de um imortal morto, Gustavo Barroso, membro da Academia Brasileira de Letras. Não ouvi um só chiado de nenhum imortal vivo, ou mesmo moribundo, contra este gesto hitlerista de um juiz carioca.

Concluindo: houve época em que sátira significava prisão, exílio, repúdio dos contemporâneos. Neste país tropical, abençoado por Deus, o gênero adquiriu novos significados: imortalidade avant la lettre, mordomias estatais, tiragens divinas, turismo financiado pelo erário, saque ao bolso do contribuinte e mais: censura, ostracismo e desemprego a quem ousar denunciar esta corrupção. Está inaugurada, neste Brasil, a indústria textil.

 

NOTA:

 

(1) ACORDAM, em Décima Primeira Câmara do Tribunal de Alçada Criminal, por votação unânime conceder a ordem para determinar o trancamento de ação penal instaurada contra os pacientes.

Os doutores Plínio Pinto Teixeira e Ary Oswaldo Mattos impetraram habeas corpus em favor de Félix Pinheiro Rodrigues e Helena Pereira, afirmando estarem estes sofrendo coação ilegal por parte do Juízo de Primeira Vara Criminal e de Menores da Comarca de São Vicente, ao receber queixa-crime que lhes é movida, inicialmente dirigida a Solon Borges dos Reis, pelos advogados Drs. Sérgio Miranda Amaral, Nelson Egídio Novi e Eli da Glória Camargo. Em síntese, com fulcro nos artigos 21 e 22 da Lei 5.250. de 1967, expõem os querelantes terem sido atingidos em sua honorabilidade pessoal e decoro, na condição de militantes da advocacia, ante a publicação de matéria no jornal “TRIBUNA DE PERUÍBE”, da qual são os suplicantes diretores, edição nº 15 da primeira quinzena de agosto de 1983, intitulada “Piedade, Excelência”, da autoria do professor catarinense Janer Cristaldo, inspirada na obra “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift. Pleiteiam o trancamento da ação penal, por faltar-lhe justa causa, desde que ausente o elemento subjetivo dos apontados crimes contra a honra. Alegam não haver expressões que possam identificar os querelantes como alvos de difamação ou injúria, ter havido posterior retratação no número seguinte do jornal, estarem seus responsáveis dispostos a publicar qualquer resposta e ser bom o relacionamento que desfrutam junto a advogados.

Prestadas as informações, a douta Procuradoria Geral da Justiça opinou pela concessão de ordem.

É o breve relatório.

Merece acolhida a súplica, porquanto inexiste justa causa a lastrear a referida ação penal.

Como diretores do periódico “Tribuna da Imprensa”, os pacientes fizeram nesta reprodução do artigo sob título “Piedade Excelência”, por acharem-no curioso e interessante. Fora o mesmo já divulgado anteriormente por outro jornal (fls.18). Trata-se de mera crônica, em que o autor, o professor Janer Cristaldo, devidamente indicado, externa o seu desencanto pelo exercício da advocacia, após completado o curso de bacharelato, certamente devido a problemas vocacionais. Emoldurou-o com toques de erudição, trazendo à baila uma passagem da obra universal de Jonathan Swift, “Viagem de Gulliver”. E o trecho a calhar ao propósito do cronista, refere-se à narrativa que o personagem principal transmitia a um monarca, tudo sob o manto da ficção, sobre a aplicação das leis positivas em seu país, com exemplos em que se inserem a conduta de certos advogados e a submissão do povo aos éditos judiciais.

Ora, trata-se de referência sob o color literário e em estilo elevado, notadamente quando se sabe ter sido aquela obra-prima, que deu nome ao escritor irlandês do século XVIII, a par de seus encantos a todas idades e gerações, indisfarçável sátira arremetida à sociedade inglesa e à civilização da época. Como muitos então deveriam ter torcido o nariz, em desaprovação, por seguro não receberá o professor Janer aplausos de todos os seus leitores. Entretanto, manda o bom senso eximir-nos de atitudes desapropriadas, como os querelantes, vez que ali tudo se quedou em idéias, esboços e no plano singelamente hipotético, de conformidade com a criatividade do seu autor.

 

Tribuna de Peruíbe, 1ª quinzena de março de 1985

(Comunicação feita na 7ª Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo, RS, 05.09.97)


 

 

 

Como um vigarista constrói seu pedestal

 

O ano de 1997 viu desmoronar no Brasil um dos mitos mais frágeis criado pela intelligentsia brasileira. Ou talvez fosse melhor falarmos de burritzia. O mito em questão é o senador monoglota Darcy Ribeiro, que construiu toda sua vida e carreira sobre mentiras. Morreu em fevereiro deste ano e deixou um lixo póstumo, “Mestiço é que é bom” (Editora Revan, Rio, 97). Antes de entrarmos nas falcatruas do senador, leiamos algumas pérolas de seu pensamento. Neste livro, Darcy é entrevistado pelos mais ilustres comunossauros tupiniquins, como Antonio Callado, Antonio Houaiss, Eric Nepomuceno, Ferreira Gullar, Oscar Niemeyer, Zelito Viana e Zuenir Ventura. A relação destes nomes é importante. Não fosse o testemunho destes seus amigos, seria difícil de acreditar nos parágrafos seguintes.

 

O terror das virgens — Uma das revelações surpreendentes de sua obra póstuma, é o prazer cultivado pelo ilustre humanista de Minas Gerais em espancar mulheres. Oscar Niemeyer, um dos mais sólidos bastiões do stalinismo no Brasil, levanta a bola e Darcy chuta em gol:

 

OSCAR NIEMEYER — Teve uma história que você me contou uma vez que era mais complicada, que jogaram você numa estrada de ferro.

DARCY — Foi em Paris, na primeira vez que eu fui a Paris, em 54. Lá, encontrei uma coisa incrível, uma menina, de família turca, libanesa, de Rio Claro, em São Paulo. Ela tinha ganho, aos dezoito anos, o prêmio de língua francesa, era estudante. Eu cheguei lá, vindo da Suíça, tinha passado um mês na Suíça, trabalhando. Quando cheguei em Paris, por acaso encontrei com a menina, gostei da companhia, fiquei andando com ela.

Ela estava com uma vergonha enorme de ser virgem — a francesa é muito mais cuidadosa da virgindade que a brasileira, a francesa de família burguesa — mas ela, vivendo na Rive Gauche, lá ela estava com vergonha de ser virgem, porque os meninos namoravam e queriam trepar. Eu também quis trepar e ela não trepou. Eu já estava enjoado dela e ela me procurando como um carrapato, agarrada em mim, mas não me dava. Ia na minha pensão e não me dava. Pensão daquele tempo, em Paris! Essa menina estava com muita vergonha de ser virgem, mas com muito medo.

Então, fiquei passeando com ela em Paris. Num certo momento, nós fomos pegar o último metrô, tínhamos que pegar ou andaríamos quarteirões. Fomos para o metrô, estávamos na beira do metrô, esperando, e ela sabia que, quando chegássemos, ela ia ser comida, porque senão eu quebrava a cara dela. Logo depois eu iria embora, então era o dia dela ser comida, ela estava muito nervosa. Então, a filha da puta, num certo momento, me jogou na linha do metrô, lá embaixo. Aquele negócio é eletrificado, eu podia ter morrido! Eu fiquei querendo levantar, apoiado com a mão na beirada da plataforma, e ela pisando na minha mão. Eu fiquei com uma raiva danada e dei uma surra nela.

HOUAISS — Você conseguiu se levantar e sair de lá?

DARCY — Consegui levantar — hoje, não conseguiria —, ela pisando na minha mão. Dei uma surra nela, rapaz! Ela ficou quietinha, chorou muito e depois me deu.

Por isso é que eu estava, agora, faz pouco, andando com minha chefe de gabinete, que é uma mulher muito bonita, e com o marido dela na feira de Montes Claros e eu cheguei e disse para uma daquelas feirantes — muitas delas me conhecem:

— Como vai?

Ela perguntou:

— Quem é essa, é sua mulher?

— Não, trabalha comigo e não me dá.

— Bate nela que ela dá.

 

O Don Juan da aldeia — Não satisfeito em proclamar seus dotes de espancador emérito, o senador passa a gabar-se de suas aventuras sexuais como etnólogo, quando faturava algumas “índias decadentes”. Quem levanta a bola, desta vez, é o também finado Antônio Callado:

 

CALLADO — Darcy, a primeira vez que eu fui ver os índios, em 50 ou 51, já estava muito estabelecido que índia não se comia, para não bagunçar muito o coreto, era mais ou menos tradicional, para não começarem a comer as índias todas. Tanto é assim que, quando eu estive lá, o Leonardo Villas-Boas já estava na Fundação Brasil Central, sendo forçado a deixar o Serviço de Proteção ao Índio porque ele tinha comido uma índia, com quem se casou. Quando é que você chegou lá pela primeira vez? Nessa época já tinha essa lei?

DARCY — É verdade. Eu comecei com os índios em 46. Essa lei existe até hoje, por causa do Rondon e da antropologia clássica. Eu fui educado para não trepar com índia porque, para o antropólogo, no meu caso específico, pesquisas longas eram difíceis. Hoje em dia é que as moças começaram a dar para os índios, as antropólogas dão para os índios, gostam de transar com eles, para fazer intimidades. Tão dando mesmo, dão para eles também. Coitado, índio também é gente. Então, dão. E como elas dão, os homens também começaram a comer as índias, antropólogos de primeira geração. (...) Eu passei meses com os índios, arranjava um jeito de ter uma. Por exemplo, eu não comia as índias Urubus-Kaapor porque eu estava trabalhando com os Kaapor, mas comia índia Tembé, que eram umas índias decadentes que havia lá.

 

Teologia barata e anti-semitismo — Vejamos esta brilhante interpretação do “Gênesis” proposta pelo senador:

 

DARCY — Aliás, eu preciso contar para vocês uma coisa muito interessante que eu desenvolvi ultimamente, meio literária mas muito bonita. E uma história sobre Eva, eu estive meditando sobre Eva e descobri que Eva é trotskista. É a primeira revolucionária da história. Nós devemos coisas fundamentais a Eva.

Primeiro, Eva fundou a foda. Adão era um bestão, estava lá, com aquele penduricalho dele e não sabia o que fazer. Eva disse:

— Vem cá Adãozinho.

Ele pôs dentro dela e foi aquele gozo, ele teve o orgasmo e, quando deu aquele gozo, o anjão desceu e disse:

— Deus não gosta, Deus está puto com vocês, fora!

E os pôs para fora do Paraíso. O Paraíso era uma merda, não era de matéria plástica porque não existia matéria plástica, era de papel crepom. Porque a flor é o órgão genital das plantas, fode, não poderia ter no paraíso flor fodendo. Era de papel crepom. Quando o anjão pôs eles para fora, obrigou o seguinte:

— Vamos fazer o comunismo, vamos fazer o Paraíso lá fora.

Eva também foi fazer o comunismo.

 

E já que falamos de temas bíblicos, cabe dar uma olhadela na concepção que tem Darcy Ribeiro dos judeus:

 

DARCY — Os judeus são tão filhos da puta que, de vez em quando, colocam na menina o nome de Lilith. Lilith é a Eva pecaminosa, a que dá a bocetinha ambulante, fogosa.

 

Racismo anti-branco — Admitamos que estas confissões sejam produto de muito álcool na cuca. O que aliás as torna mais graves: in vino, veritas. Mas é de supor-se que o senador monoglota não estaria bêbado quando escreveu na Folha de São Paulo: "A expansão do homem branco foi a maior catástrofe da história humana”.

Fosse esta afirmação feita por um analfabeto qualquer, sem maiores noções de história ou geografia, a frase passaria como mais uma das tantas bobagens reproduzidas diariamente pela mídia. Ocorre que ela foi proferida por um senador da República, cujo pensamento, profissão, vida e carreira — apesar de seu monoglotismo e carência de cultura universitária — foram nutridos pela Europa. Partindo de quem parte, tal bobagem merece algumas considerações.

Que os brancos europeus mataram, tanto em seu continente como nos que conquistaram, ninguém em sã consciência vai negar. Mas também mataram os chineses, os mongóis, os turcos, os árabes, os japoneses. Também negros e índios mataram e continuam matando. Em se tratando de seres humanos, a única afirmação abrangente que podemos fazer, sem incorrer em falácia, é que os homens verdes, como também os azuis, jamais mataram seus semelhantes. Pelo singelo fato de que não existem homens verdes nem azuis.

O primeiro homem a criar embriões de universidade mundo a fora — e isso 300 anos antes de Cristo — saiu matando e conquistando, a patas de cavalo, desde a Macedônia até a Ásia. Não fosse Alexandre, o diálogo entre Oriente e Ocidente se atrasaria por séculos. Houve tempos em que a cultura seguia a espada e estes tempos não estão muito distantes de nós. O conquistador europeu abafou o neolítico de Pindorama? Que bom! Não fosse isso, Darcy Ribeiro não teria acesso à bomba de cobalto que, nos anos 70, lhe deu longa sobrevida.

 

Virando o cocho — O branco europeu matou e destruiu, como matam e destróem todos os homens, exceto os homens verdes e azuis. Mas também descobriu a penicilina e a fissão nuclear, foi à Lua, já está pensando em Marte e seus olhos eletrônicos já se aproximam de Plutão. Nos deu Mozart e Vivaldi, a ópera e o cinema, as comunicações e o computador. O próprio cristianismo, apesar de sua fúria assassina medieval, nos legou uma estética que não pode ser jogada na famosa lata de lixo da história. Não há termos de comparação entre a Notre Dame e um terreiro de umbanda. Nem se pode confundir uma oca de bugres com a torre Eiffel. Muito menos o cacique caiapó Paiakan com Casanova.

Rechaçar a expansão do branco, ou seja, a cultura européia, é negar Sócrates e Platão, Cervantes e Shakespeare, Dante e da Vinci, Schliemann e Champolion, Fernão de Magalhães e Armstrong, Pasteur e Einstein. Sem falar em Hegel e Marx, que no fundo embasam a "Weltanschaaung" de Darcy Ribeiro. Se aceitamos sua ótica fundamentalista, que as telas de Van Gogh ou Bosch sejam largadas aos papeleiros, para reciclagem industrial. Os grandes acervos dos museus poderiam servir para construir diques na Holanda. Que sejam fechados o Louvre e o Hermitage, queimadas as bibliotecas, hemerotecas e filmotecas, e proibidos os computadores e as antenas parabólicas, como aliás já está ocorrendo no mundo islâmico. A primeira providência dos fanáticos talebans, ao entrar em Cabul, no Afeganistão, foi destruir os aparelhos de televisão.

A tecnologia branca transportou Darcy Ribeiro com seus jatos aos países onde degustou “o amargo caviar do exílio”. Na hora de escolher refúgio, optou por países de cultura branca, a cultura que, ao expandir-se, segundo sua acusação, foi a maior catástrofe da história. Já perto da morte, Darcy decidiu virar o cocho em que se nutriu.

Hierático, gozando da absolvição que a morte confere, morreu em aura de santidade. Nem por isso podem ser perdoadas as infâmias que proferiu postumamente, graças ao esforço editorial de seus “compagnons de route”. Tantas besteiras proferidas por um intelectual de renome internacional têm uma explicação: Darcy foi toda sua vida um embuste.

 

O escroc acadêmico — Além de gabar-se de ser monoglota, exibia como titulação universitária um diploma da Escola de Sociologia e Política, de São Paulo, curso que jamais foi reconhecido pelo Ministério de Educação e Cultura. Em seu currículo enviado ao Senado, espertamente se intitulou etnólogo, ofício que, como o de antropólogo, prostituta ou psicanalista, ainda não foi regulamentado no Brasil. Gozou de três aposentadorias federais, uma delas pela Universidade de Brasília, com a qual jamais teve vínculo de emprego. Sua carreira é a de um escroc acadêmico.

Não bastasse isto, dizia ter fundado a Universidade de Brasília. Não fundou. Nem nela lecionou, embora tenha por ela se aposentado. Segundo o Dr. José Carlos de Almeida Azevedo, ex-reitor da UnB, Darcy nela jamais teve um só aluno e foi “reintegrado” para “aposentar-se”, sem jamais ter vínculo de emprego com a universidade, já que era “requisitado”. A propósito, cito artigo do ex-reitor, publicado em 24/06/96 na Folha de São Paulo:

 

ldquo;Servidor do antigo SPI, hoje Funai, e da UFRJ, Darcy apareceu na comissão convocada pelo então ministro da Educação, Clovis Salgado, para cumprir determinação de JK, no sentido de “...fundar Universidade Brasília... em moldes rigorosamente modernos...”. Na comissão, presidida por Pedro Calmon, Darcy era o único que jamais havia concluído, ou iniciado, um curso superior, mas foi Reitor da UnB e ministro da Educação, poucos meses em cada lugar, sem deixar qualquer vestígio do que fez”.

 

A citação será longa, mas pertinente. Continua Azevedo:

 

“No final de 1968, cinco anos depois que Darcy deixou a reitoria, os esgotos da UnB eram a céu aberto; não havia galeria de águas pluviais, e tudo inundava; porque só havia uns mil metros de asfalto, era um lamaçal; havia uns cinco telefones, um computador de 6k nunca usado; uma só quadra de esportes, simples chão cimentado e dita “polivalente”; nenhum curso reconhecido havia, além de Direito e Economia. Toda a administração era na “munheca”, nada mecanizado. Em uns seis barracos de madeira, amontoavam-se o restaurante, o alojamento estudantil, algumas unidades de ensino e os serviços gerais. À beira do lago, outros três barracos, malocas de índios e sebastianistas. Era ver para crer. Os alunos, uns 2.000, amontoavam-se em três prédios de dois andares, com uns 2.000 m² cada um, com a pequena biblioteca e laboratórios. (...) Nem as escrituras do imóveis tinha e, por isso, perdeu uma centena de terrenos comerciais e um enorme prédio”.

 

Concluí o ex-reitor:

 

“Ao autoproclamar-se “fundador” e “criador” da UnB, beneficiando-se disso ad perpetuam, o Darcy usurpa méritos exclusivos de Juscelino Kubitschek, de seu ministro Clovis Salgado e de Anísio Teixeira, comprovados em relatório oficial do MEC e em depoimento do ministro. O primeiro mandou criar a universidade, compreendendo sua importância; o segundo criou todas as condições, e Anísio a organizou. (...) A construção, institucionalização e consolidação da UnB devem-se aos reitores Caio Benjamin Dias, Amadeu Cury e, em escala menor, a este modesto escriba, que a ela serviram, a convite exclusivo do Conselho da Fundação UnB”.

 

O senador monoglota dizia ainda ter fundado a Universidade Nacional de Costa Rica. Tampouco a fundou. Aliás, nem existe tal universidade. Conforme nos informa o professor Augostinus Staub, “existe, sim, a Universidade Nacional, na cidade de Herédia, criada em 1970, pelo presbítero Benjamin Nuñez Gutierrez, e não por Darcy Ribeiro”.

Gabava-se de ter um diploma de Dr. Honoris Causa pela Sorbonne. Pura fraude intelectual. O Honoris Causa, Darcy o recebeu em 1978, quando não mais existia a Sorbonne. O diploma foi conferido pela Universidade de Paris VII e entregue em uma sala do prédio da antiga Sorbonne, o que é muito diferente. Sem falar que diploma Honoris Causa só serve para enfeitar cartão de visita e não confere nenhuma capacitação acadêmica a seu portador.

 

Rumo à lata de lixo — Darcy sabia muito bem que, neste país sem maiores critérios de avaliação da inteligência, enganar é o recurso mais ao alcance do homem inculto para subir na vida. Mentindo sempre, foi guindado a um ministério e ao Senado. Uma vez no poder, do alto de seu cursinho secundário, o senador monoglota condenou, em uma só frase, a cultura na qual nasceu e mamou.

Ao tentar fugir da morte espiritual, Ribeiro não optou pelo tantã ou pelo relato oral sob a sombra de um baobá, mas por gráficas modernas montadas pelo branco que tanto abomina. Tentando fugir da morte física, reação instintiva de todo ser humano, o antropólogo não recorreu a pajelanças, mas a hospitais de primeira linha. Quando Jesus estava chamando, não buscou salvação junto a xamãs. Preferiu pedir água a representantes da cultura que o gerou e, depois, virando o cocho, passou a abominar.

A maior catástrofe da história humana, "a expansão do homem branco", gerou este país que gerou Darcy Ribeiro, temperou este caldo cultural no qual o senador, com suas manhas de mineiro, fez sua carreira e prestígio. Antes de morrer, organizou uma fundação, para que seu “pensamento” não morresse. Grafômano contumaz, tem obra tão vasta que já nem sabe quantos livros escreveu nem em quantos idiomas está traduzido. Graças a quem? A um europeu chamado Gutenberg.

É moda entre antropólogos, sociólogos, psicólogos e outros óologos, negar sistematicamente os valores da cultura ocidental, ou seja, da cultura branca, cujas bases estão na Grécia e em Roma, em favor de culturas primitivas, que muitas vezes nem chegaram a um alfabeto e, se lá chegaram, hoje vivem encharcadas no sangue de guerras tribais. Mais que moda, esta tendência é uma verdadeira conspiração dos derrotados da História, que assestam seu ressentimento surdo contra o que de melhor a humanidade produziu.

Em vida, o senador Darcy Ribeiro chutou neste imenso time de ressentidos.

Morto, virou estátua. Por mais monumentos e salas com seu nome que lhe outorguem seus amigos e compagnons de route, sua trajetória é a de um escroc acadêmico. Quando a burritzia tupiniquim receber notícias de que o Muro de Berlim já caiu, Darcy assumirá seu merecido espaço, a famosa lata de lixo da história.

 

(Publicado sob título “The Adventures of a Brazilian Cheat or How Darcy Ribeiro Built His Own Pedestal”, in Brazzil, Los Angeles, outubro 1997)


 

 

 

O Visionário de Taubaté

 

Quando nos deparamos com algum evento insólito na sociedade ou na área da tecnologia, logo saímos à busca de precursores ou anunciadores. Em geral os buscamos entre os ficcionistas anglo-saxões ou germânicos, afinal toda literatura de antecipação tem suas raízes nos Estados Unidos ou Europa. No entanto, nestas terras de Pindorama, já em 1926, um visionário de Taubaté antevia nada menos que a radicalização da questão negra nos Estados Unidos, a discussão separatista no Brasil, o voto eletrônico, o teletrabalho, a Internet e suas conseqüências. Falamos de Monteiro Lobato, é claro, e de sua obra mais premonitória, O Presidente Negro ou O Choque das Raças. Como este livro hoje só pode ser encontrado em sebos ou bibliotecas, não seremos mesquinhos em citações.

Estamos no ano 2.228. Nos Estados Unidos, a elite governante está alarmada: as estatísticas apontam uma população de 108 milhões de negros para 206 milhões de brancos. Como o coeficiente de natalidade negra continua subindo, o instinto de preservação dos brancos se eriça em legítima defesa. Fala-se em uma “solução branca” e uma “solução negra”. A solução branca é, obviamente, expatriar os negros. Quem propõe este panorama é Miss Jane, personagem de Lobato na ficção já citada.

Na mesma época, o antigo Brasil está cindido em dois países, um centralizador de toda a grandeza sul-americana, filho que era do imenso foco industrial surgido às margens do rio Paraná e o outro, uma república tropical, agitando-se ainda em velhas convulsões políticas e filológicas, discutindo sistemas de voto e a colocação dos pronomes da semimorta língua portuguesa. De clima temperado, o Brasil branco fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Os portugueses, aclimatados na zona quente, haviam-se mesclado com o negro, formando um povo de mentalidade incompatível com a do sul.

Miss Jane é filha de um cientista de origem americana radicado no Brasil, o professor Benson, que pode obter um corte anatômico do futuro através de uma espécie de globo cristalino chamado porviroscópio. (Esta idéia será retomada por Jorge Luís Borges, como veremos adiante). Através deste aparelho Jane perscruta o mundo do século 23. A ação do romance transcorre em 1926. O Sr. Ayrton, seu interlocutor brasileiro, manifesta tristeza ante o futuro do país. Jane, pelo contrário, considera um erro inicial a mistura de raças e acha que a divisão do país constituí uma solução ótima, a melhor possível. Pois “a muita terra não é o que faz a grandeza de um povo e sim a qualidade de seus habitantes”.

Esta idéia de um fracionamento territorial do Brasil não é nova nos dias de Lobato. Em Cartas Inéditas de Fradique Mendes, escritas nos estertores do século passado, Eça de Queiroz já antecipava esta possibilidade, em texto intitulado “A Revolução no Brasil”. Para o escritor português, com o Império acaba também o Brasil, que ficaria fragmentado em Repúblicas independentes, em virtude da divisão histórica das províncias, das rivalidades entre elas, da diversidade do clima, do carácter e dos interesses e a força das ambições locais. Uma vez separados, os estados não poderão manter paz entre si, em função das delimitações de fronteira, questões hidrográficas e alfândegas. “Cada estado, abandonado a si, desenvolverá uma história própria, sob uma bandeira própria, segundo o seu clima, a especialidade de sua zona agrícola, os seus interesses, os seus homens, a sua educação e a sua imigração. Uns prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande Império!”

Se o Brasil ainda não se dividiu — apesar de todos os anos surgirem “nações” indígenas, com pretensões de autonomia —, aí estão os Chiles ricos e os Nicaráguas grotescos, confirmando a aguda intuição de Eça. Mas voltemos a O Presidente Negro.

 

A inflação do pigmento — Para Miss Jane, a América seria a privilegiada zona que havia atraído os elementos mais eugênicos das melhores raças européias. O Mayflower trouxera homens de uma têmpera superior que não hesitaram um segundo “entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto”. As leis de imigração se tornam seletivas e as massas que procuravam a América, já em si boas, são peneiradas. A Europa é drenada de seus melhores elementos e no novo mundo resta a flor dos imigrantes. Ocorre então o que Miss Jane chama de “o erro inicial”: entra no país, à força, o negro arrancado da África. O Sr. Ayrton observa que o mesmo erro foi cometido no Brasil, mas nossa solução foi admirável: em cem ou duzentos anos teria desaparecido o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco.

Miss Jane não julga admirável tal solução, mas medíocre, pois estraga as duas raças ao fundi-las. Prefere que ambas se desenvolvam paralelas dentro do mesmo território, separadas por uma barreira de ódio, a mais profunda das profilaxias. Para ela, o ódio impede mantém as raças em estado de relativa pureza.

— Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódio desabrocha tantas maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano...

Os exemplares mais belos, fortes e inteligentes eram descobertos onde quer que se encontrassem e atraídos para a Canaã americana. Estando o país bastante povoado, fecha-se as portas ao fluxo europeu e a nação passa a crescer apenas vegetativamente. É quando surge a inflação do pigmento. As elites pensantes haviam-se convencido que a restrição da natalidade se impunha, pois qualidade vale mais que quantidade. Rompe-se então o equilíbrio: “Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto os negros persistiam em avultar em quantidade. Mais tarde, quando a eugenia venceu em toda a linha e se criou o Ministério da Seleção Artificial, o surto negro já era imenso”.

Urge desembaraçar-se dos negros. A solução branca é simples: exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no Vale do Amazonas. O que não era fácil “não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de face a Constituição Americana”.

Monteiro Lobato escreveu seu romance — ou ensaio, como quisermos — no início deste século. Ao transportar a ação da obra para três séculos depois, fazia ficção. Mas, bom conhecedor da história dos Estados Unidos, escorava-se em projetos nada ficcionais já alimentados pelos americanos.

 

Um país para os negros americanos — Entre 1840 e 1860, um obscuro tenente da Marinha dos Estados Unidos, Matthew Fontaine Maury, funcionário do Departamento de Cartas e Instrumentos do Departamento da Marinha de Washington, pensou seriamente no assunto. O projeto do oficial americano era simples e pragmático: uma vez alforriados os escravos negros de seu país, estes seriam enviados para colonizar a Amazônia brasileira. A república da Libéria, na África, resultou de um destes projetos.

E por que não colonizar a região amazônica com brancos? Maury empunhava argumentos de ordem geográfica, Se o europeu e o índio haviam lutado com suas florestas por 300 anos sem imprimir-lhe a menor marca, sua vegetação só poderia ser subjugada e aproveitada, seu solo só poderia ser retomado à floresta, aos répteis e aos animais selvagens e submetido ao arado e à enxada, pela mão-de-obra do africano. “É a terra dos papagaios e macacos e só o africano está à altura da tarefa que o homem aí tem de realizar".

O projeto de Maury, em verdade, só tinha de original a insistência em colonizar a Amazônia com os negros libertos. Desde os últimos anos da década de 1830, os Estados Unidos pretendiam a abertura da navegação do rio Amazonas a todas as nações. Antes do oficial sonhador, um certo Joshua Dodge pretendia estabelecer 20 mil imigrantes norte-americanos nas margens do Amazonas. Todos se comprometendo a reconhecer a soberania brasileira, pelo menos nos primeiros anos de colonização.

No fundo, à semelhança do que foi feito com o Texas, pretendia-se anexar a região aos Estados Unidos. A estratégia era simples. Bastaria comprar alguns brasileiros em Manaus, que passariam a ser "legítimos representantes de uma República da Amazônia, que se declararia estado independente do Império do Brasil, inclusive por discordar da forma como o país era governado, com sua monarquia".

Caso o governo brasileiro enviasse navios e tropas para restabelecer sua soberania, os cidadãos do novo estado amazônico independente apelariam para a proteção norte-americana. E uma força de proto-capacetes azuis se apresentaria na foz do Amazonas para "proteger a vida e os bens ameaçados dos cidadãos americanos".

Quem nos conta este quase desconhecido projeto de expansão americana é a professora Nícia Vilela Luz, em A Amazônia para os Negros Americanos. Neste ensaio, a autora mostra que muitos americanos, bem antes da eclosão da Guerra Civil, achavam ser mais interessante libertar todos os escravos e enviá-los para fora da América. O intérprete maior desta vontade é o tenente Maury:

"Preocupava-o o problema do negro nos Estados Unidos, tendo em vista a abolição da escravidão que se aproximava inexoravelmente. Convencido da superioridade do branco, só podia admitir o negro na condição de escravo e nunca numa posição de igualdade com o branco. Que fazer então com essa população negra uma vez posta em liberdade e cuja multiplicação ainda poderia submergir a raça branca?"

Para Maury, "Deus em Sua própria e sábia providência ditará o destino a ser cumprido pelas raças preta e branca, seja ele qual for".

"E Deus preservara a Amazônia deserta e desocupada para que os problemas do Sul pudessem ser resolvidos — prossegue Vilela Luz —. Acuados ao Norte onde não encontrariam mais terras do Mississipi por desbravar nem mais campos de algodão por subjugar, os sulistas, para se livrarem do seu excesso de população negra, salvando ao mesmo tempo sua economia e sua "peculiar" instituição, encontrariam a safety valve mais ao Sul, no vale amazônico. Era "o único raio de esperança" a iluminá-los naquele momento dramático em que se discutia o destino do regime da escravidão nos Estados Unidos".

 

Estados desunidos — Voltemos à ficção de Lobato. Para Miss Jane, os negros se batiam por uma solução muito mais viável: queriam a divisão do país em dois, o sul para os negros e o norte para os brancos, já que a América surgira do esforço conjunto de ambas as raças. Se não era possível gozar juntas da obra feita em comum, o razoável seria dividir o território em dois pedaços. Temos então, já no início deste século, um escritor brasileiro antecipando as propostas de líderes negros contemporâneos como Farrakhan. É bom lembrar que nessa época Lobato ainda não havia viajado para os Estados Unidos.

Os brancos nada queriam ceder de seu status quo e o problema tornava-se ameaçador. É quando surge um candidato capaz de unir o eleitorado negro: Jim Roy, de tez levemente acobreada, parecendo um mestiço de senegalês e pele-vermelha. A cor de sua pele em nada lembrava os negros de hoje (isto é, 1926). Na época, a ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento. Jim Roy, negro de raça puríssima e cabelo carapinha, era “horrivelmente esbranquiçado”. O espírito visionário de Lobato antecipa, en passant, a tendência negra americana que gerou um Michael Jackson, por exemplo. Inaugurando, já no início do século, a atual categoria do “politicamente incorreto”, diz o estupefato sr. Ayrton:

— Barata descascada, sei...

No entanto, nem os recursos da ciência faziam os negros deixarem de ser negros na América. Os brancos não lhes perdoavam aquela camouflage da despigmentação.

Jim Roy, líder do partido Associação Negra, não chega a ser uma ameaça para o poder. Representa cem milhões de negros, contra 200 milhões de brancos. Ocorre que entre os brancos surge uma séria dissidência, um partido de mulheres. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se fundido num forte bloco sob a denominação de Partido Masculino, liderado por Kerlog, presidente em exercício e candidato à reeleição. Este bloco não tinha certeza da vitória, pois o partido contrário, o Feminino, dispunha de maior número de vozes, lideradas por miss Evelyn Astor. As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de votos; ao Feminino 51,5 milhões e à Associação Negra, 54 milhões. A eleição dependia pois da atitude de Jim Roy.

Aproximam-se as eleições. Que, no ano da graça de 2.228, ocorrem em poucos minutos, em função de avanços tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam nosso mundo de hoje, 1998.

 

A vitória negra — É esta possibilidade de “radio-transportar” os dados que opera uma reviravolta nas eleições de 2.228, nos Estados Unidos. Jim Roy vai explorar com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições haviam sido marcadas para as 11h da manhã e durariam apenas 30 minutos. O candidato da Associação Negra avisa os agentes distritais que só às 10h anunciará o nome em que os negros devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável surpresa: Jim Roy se anuncia como candidato.

Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de sangue. Os partidos Masculino e Feminino haviam mais ou menos empatado, com algo em torno de 50 milhões e meio de votos. Passada a perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia seguinte. Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado, surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória negra a América transformada num vulcão e ameaçada de morte. Considera que se não forem mantidas presas as rédeas dos dois monstros — a ebriedade negra e o orgulho branco —, a chacina será espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se em convenção e discutem uma solução para o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita por unanimidade. Na época, John Dudley, inventor e um dos membros da convenção, descobrira os raios Omega, que tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o tratamento, o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no folículo e eliminavam o encarapinhamento, último estigma da raça negra, que já havia resolvido o problema da pigmentação.

 

A solução branca — Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea.

Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao desencarapinhamento da América Negra no menor espaço de tempo possível.

Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma, ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que chamavam de “a segunda camouflage do negro”, acabaram se divertindo com o espetáculo da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas.

Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de “um homem branco natural”. Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota.

— Tua raça morreu, Jim...

Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente em crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e Kerlog foi reeleito por 100 milhões de votos. A vida da América voltou à normalidade.

Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se num crepúsculo indolor.

Nem exportação para a Amazônia, nem divisão do país, nem esbranquiçamento com a eliminação do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples de uma raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização Ariana. Monteiro Lobato, criador sensível, sentia aproximar-se a catástrofe, o mais colossal empreendimento de extermínio em massa já ousado na História. Antes de morrer, ainda viu o bisturi germânico tentando extirpar uma etnia. Só enganou-se quanto à geografia.

Nestes dias de junho de 98, a imprensa internacional nos traz uma espantosa confirmação da hipótese de Lobato. Dan Goosen, cientista responsável por um laboratório secreto durante o apartheid na África do Sul, revela que o governo daquele país tentou desenvolver uma bactéria que poderia ser mortal ou causar infertilidade somente em pessoas com pigmentação de pele escura. Em declarações à Comissão da Verdade e Reconciliação para a África do Sul (CVR), disse um outro pesquisador, o dr. Daan Jordan: “Meu trabalho era desenvolver um produto que reduzisse a taxa de natalidade da população negra”. Este produto, que não chegou a ser desenvolvido, seria distribuído entre os negros, possivelmente misturado à cerveja de sorgo ou à farinha de milho (consumidos basicamente pela população negra) ou usado em uma campanha de vacinação. Por pouco, a vida não imitou a arte.

 

Taubateano antecipa a Internet — Além de aventar uma possível evolução da questão negra nos Estados Unidos, Lobato angustiava-se com o desperdício de energia e “os milhões de veículos atravancadores de espaço” — e isso nos primórdios do século — necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Via a salvação na “fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins”. O trabalho, o teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais começam a ser feitas de longe pelo que Lobato chama de “rádio-transporte".

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e antecipava o que hoje é rotina em qualquer redação deste final de milênio. Através de miss Jane, o escritor de Taubaté começa a descrever a sociedade americana do futuro:

“Pelo sistema atual — Lobato refere-se a 1926 — o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escrevê-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe, passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; este tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá início à nova cadeia que desfecha no leitor — correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo".

Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador do Remember, jornal criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes.

Numa época em que computador, fibras óticas e satélites pertenciam ao universo mental de visionários, Lobato fala de rádio-transporte. Se substituirmos esta expressão por fax/modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes há muito enviam seus "caracteres luminosos" para suas redações. Daí ao leitor recebê-los numa tela em sua casa, basta uma decisão administrativa, já tomada por centenas de empresas no Brasil e no mundo ocidental. E quando o acervo da literatura universal estiver digitalizado, poderá consultar, de sua casa, todas as bibliotecas do mundo.

 

Além da era da roda — "As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego" — continua Lobato —. "Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado."

Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico do escritor, que não chegou a vislumbrar este lado provinciano do brasileiro, que se sente despido e humilhado se não tiver uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não se paga imposto. Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda. Segundo a moça, "o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância".

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho — trabalho "radiado" para o escritório, como diria Lobato — já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução hoje em curso é muito mais ampla que a de Gutenberg, de 1455, "pois transforma as próprias formas de transmissão do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico, como os conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas materiais do texto escrito. A única comparação histórica possível é a revolução no início do cristianismo, nos séculos II e III, quando o livro da Antiguidade, em forma de rolo, deu lugar ao livro herdado por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas em cadernos".

Habitantes deste final de milênio, somos testemunhas privilegiados da revolução intuída por Lobato. Revolução das boas, sem sangue e sem volta. Sem sequer imaginar a existência de computadores, o escritor paulista anuncia a Internet. Cabe lembrar que, em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a instituir o voto informatizado, instituição já em funcionamento nesta ficção escrita há sete décadas.

 

A biblioteca de Borges — Também ao sul do Equador, um vizinho nosso, situado às margens do Prata, imaginava um acervo que hoje começa a tomar corpo com a Internet. Falava de uma biblioteca em forma de esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono. Sua circunferência é inacessível. Existe ab aeterno e nela não há dois livros idênticos. É ilimitada e periódica. Assim definia o Jorge Luis Borges, em um conto datado de 1941, a Biblioteca de Babel. Em alguma prateleira de algum hexágono existiria um livro que era a chave e o compêndio de todos os demais. "Algum bibliotecário o terá percorrido e é análogo a um deus".

Na Babel de Borges, há um grave problema de comunicação. A Biblioteca abarca todos os livros. Todo conhecimento humano está disperso pelos hexágonos. O problema é encontrar o que se busca. Milhares de funcionários lutam, se estrangulam e morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas vezes derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem. O autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em muitas bibliotecas contemporâneas os funcionários já usam bicicletas ou patins para buscar os livros.

Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar, subir escadas ou cair em poços sem fundo. Hoje, um leitor de qualquer parte do mundo, com uma placa modem em seu computador, pode acessar a Congress Library em Washington, a Bibliothèque Nationale em Paris ou a Biblioteca Nacional de Madri. Ou as bibliotecas da USP, Unesp e Unicamp em São Paulo. Por enquanto, apenas bibliografia, é bom salientar. Mas a tendência é colocar o próprio livro à disposição do usuário, o que está sendo feito pelo projeto Gutenberg, entre outros sites. Nestes últimos, estão a seu alcance, desde Plutarco e Platão, até Descartes ou Marx, passando pela Bíblia, Voltaire ou Dostoievski. Por enquanto em francês e inglês, mas já estão sendo digitalizados acervos em português e espanhol.

Teoricamente, já se pode pensar na biblioteca total de Borges. Chegar lá é uma questão de tempo. A biblioteca faraônica iniciada por François Mitterrand — Tontonkhamon, para os inimigos íntimos — em Paris, concebida para armazenar acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos em forma de livro, já nasce mais ou menos obsoleta. Seu design pertence ao passado.

A pergunta “quantos livros tem sua biblioteca?” inclusive perdeu o sentido e não mais permite uma resposta precisa. Vivemos uma época em que ninguém sabe de quantos livros dispõe em seu gabinete de trabalho. Os livros ao alcance de sua mão — ou de seu mouse — são tantos quanto os que estão digitalizados e disponíveis na grande rede, esteja você morando em qualquer aldeia do fim do mundo. Desde, é claro, que tenha uma linha telefônica por perto.

 

Aleph, porviroscópio e webcams — Borges, sonhador irrecuperável, antecipa em suas ficções a biblioteca sonhada por todo bibliófilo, hoje em construção. Mas o autor vai mais longe em seu desejo de futuro. Em Aleph, conto publicado em 1949, Borges nos fala do peculiar poeta Carlos Argentino, que se propõe nada menos que “versificar toda a redondez do planeta”. Carlos, que está construindo sua obra a partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe noticiam a demolição de sua velha casa na Calle Garay. Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão, existe um aleph, “o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os lugares do mundo”. A partir daquela pequena esfera, de dois ou três centímetros de diâmetro, Carlos Argentino perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal. Vejamos a descrição do aleph, feita por Borges em 1949.

 

O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, maremotos e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte, vi o Aleph, desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.

 

Contemporaneamente, não falaríamos em aleph, mas em webcams, a rede incipiente de câmeras onde, se não podemos ver o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar cada vez mais seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha mesa de trabalho, posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão no norte da Noruega e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Monteiro Lobato, para consultar o futuro, cria em O Presidente Negro um aparelho semelhante, o porviroscópio, uma espécie de globo cristalino, através do qual Miss Jane perscruta o mundo do século 23. O professor Benson obtem, neste aparelho,

 

(...) uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucocito a envolver um microbio malevolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota d’água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...

 

A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph, publicada 23 anos mais tarde. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se consideramos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de El Aleph, é bastante pertinente supormos que o autor argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Enquanto os sedizentes modernistas de 22 papagueavam Marinetti, Marx e outros doutrinadores totalitários europeus, Lobato, o escritor excluído do universo intelectual pelos seus contemporâneos, olhava meio século adiante.

 

(Publicado sob título “The Black Dead End”, in Brazzil, Los Angeles, janeiro 98)


 

 

 

Paris Homenageia a Grande Prostituta

 

A palavra bordel, já comentei, nasce em Paris. Na época em que as "maisons closes" ficavam às margens do Sena, quando alguém ia em busca de mulheres, dizia eufemisticamente: "j'vais au bord'elle". O Sena não é "un fleuve", mas "une rivière", ou seja, é feminino, la Seine. Portanto, quando alguém dizia "au bord'elle", queria dizer "au bord de la Seine". Daí, bordel. Não é de espantar que a capital que deu ao mundo esta palavra queira homenagear, nos dias 20 e 25 de março próximos, no 18º Salão do Livro de Paris, a prostituta maior das letras contemporâneas.

O Brasil será o país homenageado do Salão e terá como convidado de honra e representante de nossas Letras, Jorge Amado, o mais vendido escritor nacional, que começou sua carreira como estafeta do nazismo, continuou como agente do stalinismo e hoje é roteirista oficioso de Roberto Marinho. Amado ainda receberá, na ocasião, o título de Dr. Honoris Causa por uma universidade parisiense. Nada de espantar: os parisienses, de longa tradição colaboracionista e stalinista, não perderiam esta oportunidade de homenagear, neste século que finda, o colega que desde a juventude militou nas mesmas hostes.

 

Do nazismo ao stalinismo — Autor brasileiro mais divulgado no exterior, com traduções em mais de 40 idiomas, colaborador de publicações nazistas, ex-militante do Partido Comunista, deputado constituinte em 46, Oba Otum Arolu do candomblé Axé Opô Afonjá na Bahia, membro da Academia Brasileira de Letras, Amado nasceu em uma fazenda de cacau, em 10 de agosto de 1912, no então recém-criado município de Itabuna, na Bahia, filho de pai sergipano e mãe baiana de ascendência indígena.

Em 1936, é preso no Rio, em conseqüência da Intentona de 35, tentativa de tomada do poder ordenada pelo Kremlin e liderada no Brasil por Luís Carlos Prestes. Em 1940, durante a vigência do pacto de não-agressão germano-soviético, assinado por Stalin e Von Ribbentrop, assume a edição da página de cultura do jornal pró-nazista Meio-Dia. Em uma reunião do Partido Comunista, é denunciado por Oswald de Andrade como "espião barato do nazismo" e instado pelo escritor paulista a retirar-se de São Paulo. Quando interrogado sobre o trabalho sujo deste período, Amado diz simploriamente: “Não me lembro”. Mas Oswald de Andrade lembra. Em antiga entrevista, republicada mais recentemente, em Os Dentes do Dragão, dizia Oswald:

 

“Diante de tantos erros e mistificações, retirei a minha inscrição do partido. Numa reunião da comissão de escritores, diante de quinze pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo, antigo redator qualificado do Meio Dia. Contei então, sem que Jorge ousasse defender-se, pois tudo é rigorosamente verdadeiro, que em 1940 Jorge convidou-me no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Jorge, depois me informou que esse livro iria render-me 30 contos. Recusei, e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas do mesmo alemão”.

 

Em 45, Amado é eleito deputado federal pelo Partido Comunista e publica Vida de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, uma apologia ao líder comunista gaúcho e membro do Komintern. O panfleto, encomendado pelo Kremlin, foi traduzido e publicado nas democracias ocidentais e nas ditaduras comunistas, como parte de uma campanha para libertar Prestes da prisão, após sua sangrenta tentativa, em 1935, de impor ao Brasil uma tirania no melhor estilo de seu guru, o Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, mais conhecido como Stalin. Para Amado, Prestes, é o “Herói, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou, sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro.”

Prestes preso, segundo o escritor baiano, é o próprio povo brasileiro oprimido:

“Como ele o povo está preso e perseguido, ultrajado e ferido. Mas como ele o povo se levantará, uma, duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade sairá mais forte de entre as grades. ‘Todas as noites têm uma aurora’, disse o Poeta do povo, amiga, em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra, essa noite do Brasil tem sua estrela iluminando os homens, Luís Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã de liberdade e quando chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza”.

Em 46, como constituinte, Amado assina a quarta Constituição Brasileira. Dois anos depois, seu mandato é cassado em virtude do cancelamento do registro do PC. Neste mesmo ano, 1948, fixa residência em Paris, onde convive, entre outros, com Sartre, Aragon e Picasso. Em 1950, passa a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreve O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro é publicado, recebe em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias. Esta década é marcada por longas viagens, entre outras, à China continental, Mongólia, Europa ocidental e central, à ex-União Soviética e ao Extremo Oriente.

 

“Vós sabeis, amigos, o ódio que eles têm — os homens de dinheiro, os donos da vida, os opressores dos povos, os exploradores do trabalho humano — a Stalin. Esse nome os faz tremer, esse nome os inquieta, enche de fantasmas suas noites, impede-lhes o sono e transforma seus sonhos em pesadelos. Sobre esse nome as mais vis calúnias, as infâmias maiores, as mais sórdidas mentiras. ‘O Tzar Vermelho’, leio na manchete de um jornal. E sorrio porque penso que, no Kremlin, ele trabalha incansavelmente para seu povo soviético e para todos nós, paras toda a humanidade, pela felicidade de todos os povos. Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu nome foi saudado na China e no Líbano, na Rumânia e no Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso”.

 

Em função de sua militância no PC, no início de sua trajetória foi traduzido na China, Coréia, Vietnã e ex-União Soviética. Só depois então é puxado para os países ocidentais, pelas mãos de seu tradutor para o alemão. Em Munique, em 1978, entrevistei Curt Meyer-Clason, o responsável pela introdução de Amado na Europa ocidental. O baiano invade com sua literatura o mundo livre, que tanto caluniou, através da finada República Democrática Alemã. “Devido à proteção do PC, a RDA incumbiu-se da publicação de todos os seus livros, já nos anos 50” — disse-me Meyer-Clason —. “Depois, por meu intermédio, passou diretamente à República Federal da Alemanha”. Não por acaso, Meyer-Clason acaba de ser denunciado, pela revista alemã Der Spiegel, como espião do Terceiro Reich no Brasil.

Da mesma forma que nega seu passado nazista, Amado não comenta seu passado stalinista. Em seu último livro, Navegação de Cabotagem, declara:

 

“Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüências, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações, morrem comigo”.

 

Realismo Socialista — Em 1954, julgando talvez insuficiente a defesa do stalinismo feita em O Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz, Amado publica os três tomos de Subterrâneos da Liberdade, onde pretende narrar a saga do Partido Comunista no Brasil. Só em 58, com Gabriela, Cravo e Canela, deixará de lado sua militância comunista e passará a fazer uma literatura eivada de tipos folclóricos baianos, que mais tarde será transposta em filmes nacionais e novelas da Rede Globo.

O romancista baiano foi o introdutor nas letras brasileiras do realismo socialista, também conhecido como zdanovismo, fórmula de confecção literária para a pregação do ideário comunista, concebida pelos escritores russos Maxim Gorki, Anatoli Lunacharski, Alexander Fadéev, e sistematizada pelo coronel-general Andrei Zdanov. Nos países em que foi traduzido, Amado é visto como um escritor que faz literatura brasileira. Em verdade, obedecia a uma fórmula tosca, mais panfletária que estética, produzida por teóricos em Moscou.

Wilson Martins, em A História da Inteligência Brasileira, traduz em bom português as características do novo gênero:

“... de um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na “chave” mística do “trabalhador”, do “operário”; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros mas, em particular, o “proprietário” e a “polícia”, as duas entidades arimânicas deste singular universo. Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos delicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados), imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões violências (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O “trabalhador” é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula.

“Já o “proprietário” é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada “capitalismo”, onde, como todos sabem, é invulnerável a solidariedade existente entre seus membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.”

Wilson Martins continua enumerando detalhadamente os demais estereótipos utilizados neste tipo de romance, entre eles a polícia, o tabelião, o posseiro, o governador, o latifundiário, o camponês. Seria por demais monótono continuar a descrição deste universo maniqueísta, como tampouco teria sentido acompanhar a repetição — ad nauseam — de uma fórmula primária de fabricar livros. Vamos então enfiar logo as mãos no lixo.

Os Subterrâneos também foi escrito em Dobris, no mesmo castelo da União de Escritores Tchecoeslovacos onde Amado produzira O Mundo da Paz, de março de 1952 a novembro de 1953, ou seja, no período imediatamente posterior à obtenção do Prêmio Stalin. Como pano de fundo histórico temos, como não poderia deixar de ser, a Revolução de 1917. Outras datas e fatos posteriores determinarão poderosamente a construção dos personagens.

Em 1935, ocorre no Brasil a Intentona Comunista. Em 36, Prestes é preso, e sua mulher Olga Benário, judia alemã que é oficial do Exército Vermelho, é deportada para a Alemanha de Hitler. Getúlio Vargas consegue persuadir o Congresso e criar um Tribunal de Segurança Nacional para punir os insurgentes. Ainda neste ano de 36, eclode na Espanha a Guerra Civil, confronto que envolveu todas as nações européias e constituiu uma espécie de ensaio geral para a Segunda Guerra, detonada em 1939, circunstância amplamente explorada por Amado.

Em 1937, os integralistas lançam Plínio Salgado como candidato às eleições presidenciais de janeiro do ano seguinte, abortadas a 10 de novembro pelo golpe com que Getúlio consolida o Estado Novo. Para desenvolver sua história, Amado fixará um dos mais turbulentos períodos deste século, que até hoje continua gerando rios de bibliografia. A ação de Os Subterrâneos situa-se precisamente entre outubro de 37 (às vésperas do Estado Novo e em meio à Guerra Civil Espanhola) e finda aos 7 de novembro de 39, 23º aniversário da proclamação do regime soviético na Rússia.

Amado, escritor e militante, tem por incumbência várias missões. A primeira consiste na defesa dos ideais de 17, encarnado em Lênin e Stalin, potestades várias vezes invocadas ao longo dos três volumes. Segunda, fazer a defesa do Messias que salvará o Brasil, Luís Carlos Prestes, e não por acaso a trilogia encerra-se com seu julgamento. Missões secundárias, mas não menos vitais: denunciar o imperialismo ianque, condenar a dissidência trotskista, pintar Franco com as cores do demônio e fustigar Getúlio por ter esmagado a atividade comunista a partir de 35.

Seus personagens são títeres inverossímeis e sem vontade própria, embebidos em álcool se são burgueses, ou imbuídos de certezas absolutas, mais água mineral, se são operários ou militantes, estes sempre obedientes aos ucasses emitidos às margens do Volga.

A obra, composta por três volumes — Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Túnel — constituiria apenas a primeira parte de uma trilogia mais vasta, com pretensões a ser o Guerra e Paz brasileiro. Os três tomos são publicados em maio de 1954, um ano após a morte de Stalin e dois antes do XX Congresso dos PCURSS, o que obriga o autor a interromper seu projeto. Pela segunda vez, na trajetória literária de Amado, sua ficção será determinada não por uma análise da realidade brasileira, mas por decisões tomadas em Moscou.

 

A onipresença do novo Deus — O personagem por excelência do romance é o Partido Comunista, onipresente como o antigo deus cristão e feito carne na figura de Stalin. A luta do PC é a luta — na ótica do autor — do povo brasileiro contra a tirania, no caso, Getúlio Vargas. Externamente, os inimigos são os Estados Unidos da América, a Alemanha, Franco e Salazar. Sem falar, é claro, na IV Internacional e nos trotskistas. O PC está infiltrado na classe dominante, disperso na classe média e fervilha nos meios operários. Invade as cidades e o campo, a pampa e a floresta, os salões burgueses, as fábricas e os portos, corações e mentes.

“Quantos outros, do Amazonas ao Rio Grande do Sul”, — reflete o militante Gonçalo — “não se encontravam nesse momento na mesma situação que ele, ante problemas complicados e difíceis, devendo resolvê-los, sem poder discutir com as direções, sem poder consultar os camaradas? Gonçalo sabe que os quadros do Partido não são muitos, alguns mil homens apenas na extensão imensa do país, alguns poucos milhares de militantes para atender à multidão incomensurável de problemas, para manter acesa a luta nos quatro cantos da pátria, separados por distâncias colossais, vencendo obstáculos infinitos, perseguidos e caçados como feras pelas polícias especializadas, torturados, presos, assassinados. Um punhado de homens, o seu Partido Comunista, mas este punhado de homens era o próprio coração da pátria, sua fonte de força vital, seu cérebro poderoso, seu potente braço.”

Esta onipresença extrapola o país, manifesta-se onde quer que andem os personagens, no Uruguai, França, Espanha, no planeta todo. Inevitáveis as referências à foice e ao martelo. E a Stalin, naturalmente, guia, mestre e pai. A litania dirigida ao grande assassino tem por vezes características de humor negro:

“— Quantos mais formos” — diz a militante Mariana — “mais trabalho terão os dirigentes. Pense em Stalin. Quem trabalha no mundo mais que ele? Ele é responsável pela vida de dezenas de milhões de homens. Outro dia li um poema sobre ele: o poeta dizia que quando todos já dormem, tarde da noite, uma janela continua iluminada no Kremlin, é a de Stalin. Os destinos de sua pátria e de seu povo não lhe dão repouso. Era mais ou menos isto que dizia o poeta, em palavras mais bonitas, é claro...”

O poeta em questão é Pablo Neruda, já citado em O Mundo da Paz: “Tarde se apaga a luz de seu gabinete. O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.” Consta de uma ode a Stalin, subtraída às Obras Completas do poeta chileno, onde, por enquanto, ainda se pode encontrar uma “Oda a Lenin”. Hoje, temos uma idéia precisa do que planejava Stalin nas madrugadas tardias de seu gabinete.

Quando Apolinário Rodrigues, por exemplo, (personagem calcado em Apolônio de Carvalho, oficial brasileiro exilado que participara da Intentona de 35) chega a Madri, sente-se em casa pois, para onde quer que se vire, lá está o Partido. A única cor local da capital espanhola parece ser a luta pela libertação de Prestes:

“Quando chegara à Espanha, vindo de Montevidéu, vivera dias de intensa emoção, ao encontrar por toda a parte, no país em guerra, nas ruas bombardeadas das cidades e aldeias, nos muros da irredutível Madri, as inscrições pedindo a liberdade de Prestes. Cercava-o o calor da intensa solidariedade desenvolvida pelos trabalhadores e combatentes espanhóis para com os antifascistas brasileiros presos e, em particular, para com Prestes. (...) Era uma única luta em todo o mundo, pensava Apolinário, ante essas inscrições, o povo espanhol o sabia, e em meio às suas pesadas tarefas e múltiplos sofrimentos, estendia a mão solidária ao povo brasileiro.”

A coincidência da instituição do Estado Novo com a explosão da Guerra Civil Espanhola é uma oportunidade única para Amado de inserir seus personagens no conflito internacional que redundaria na II Guerra, expondo ao mesmo tempo a linha do Partido. Tão única é esta oportunidade e tanto o autor quer aproveitá-la, que chega a deslocar para 1938 uma greve dos portuários de Santos, efetivamente ocorrida em 1946, o que aliás provocou um certo debate. Estaria Amado realmente sendo fiel ao método que “exige do artista uma representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário”, conforme proclamavam os estatutos da União de Escritores Soviéticos? Ao autor isto pouco importa. Deslocando a greve para 38, pode criar um navio alemão que vem buscar, no Brasil, café para a Espanha. De uma só tacada, Amado fustiga Hitler, Getúlio e Franco:

“Em algumas palavras (o velho Gregório) historiou o motivo por que a direção do sindicato havia convocado essa sessão: o governo oferecera ao general Franco, comandante dos rebeldes espanhóis (“um traidor”, gritou uma voz na sala), uma grande partida de café. Agora se encontrava no porto um navio alemão (“nazista”, gritou uma voz na sala) para levar o café.”

Na Guerra Civil Espanhola, segundo Amado, há apenas “nazistas alemães e fascistas italianos”. Tão pródigo em elogios à Stalin e à União Soviética, em sua trilogia o autor silencia sobre a presença russa na Espanha, constituída por pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais. A primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca das três quartas partes (7800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente. Silêncio de Amado: a representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário pode esperar mais um pouco.

A presença do Partido permeará a trilogia das primeiras páginas de Os Ásperos Tempos às últimas de A Luz no Túnel. Nestas, a militante Mariana, antes de presa, assiste ao julgamento de Prestes. A voz do líder comunista é “a voz vitoriosa do Partido sobre a reação e o terror”:

“Eu quero aproveitar a ocasião que me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa que libertou um povo da tirania...”

Seria monótono e redundante perseguir esta onipresença do Partido na trilogia de Amado. Neste universo imperam o bem e o mal absolutos. O bem, evidentemente, é representado pelo novo Deus, o proletariado. O mal, pela burguesia detentora do capital. Entre um universo e outro transitam eventualmente seres camaleônicos, “traidores de classe” ou traidores do Partido.

Dividir o universo em duas metades, uma boa e outra má, nada tem de novo e original. Tal princípio vem do século III, através da doutrina do persa Mani. O espantoso é que continue a viger em pleno século XX, e mais: impondo gostos, comportamentos e até mesmo filiação partidária aos personagens de um romance. Os representantes do Bem amam. Os representantes do Mal têm amantes. Os bons bebem café ou água mineral. Os maus bebem cachaça ou uísque. Os bons são magros e idealistas. Os maus são gordos e mesquinhos. Os bons têm gargalhar sadio, os maus têm dentes podres. Os bons não têm posses. Os maus são proprietários. Os bons são pobres, os maus ricos. Os bons pertencem ao Partido ou com ele colaboram. Os demais são maus. Os bons, diga-se de passagem, estão aprisionados em tal camisa-de-força ideológica que sequer podem se dar ao luxo de gostar de pintura surrealista ou naïve.

Até 1954, Amado traduzirá em sua literatura as determinações do Partido Comunista russo. Em entrevista para Istoé (18/11/81), Amado reconhece seu stalinismo:

“— Não sei se o termo “realismo socialista” se aplica a todos os meus livros daquela época. Estariam em face do realismo socialista, mas o fato é que Jubiabá (1935) Mar Morto (1936) e Capitães de Areia (1937), do período ao qual você se refere, só puderam ser publicados em russo depois da morte de Stalin. Acredito que a classificação seja justa para Terras do Sem Fim (1943), Seara Vermelha (1946) e Subterrâneos da Liberdade (1954). Se existe um livro meu totalmente influenciado pelo stalinismo, é Subterrâneos da Liberdade, que reflete uma posição totalmente maniqueísta.”

Denunciados os crimes do stalinismo por Kruschov, em 1956, Amado molha o dedinho na língua e o ergue ao ar, para sentir de onde sopram os ventos: o sentido da História é agora uma literatura popularesca, ao estilo da rede Globo. Passa então a produzir uma literatura de evasão em torno de motivos baianos. Não sem antes fazer um tímido e discreto mea culpa, publicado em 10 de outubro do mesmo ano pela Imprensa Popular:

“Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato.

“Creio que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos, sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós, nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos crimes e dos erros.”

Como se o simples fato de sentir “a lama e o sangue” em torno a si o redimisse das cumplicidades passadas. Mas as denúncias dos crimes do stalinismo não geraram nenhum tribunal de Nuremberg e Jorge Amado sente-se como um ingênuo, enganado pelos ventos do século. No entanto, não mais permite a reedição de O Mundo da Paz. Quanto à sua obra ficcional, embasada no realismo socialista, esta continua sendo reeditada e traduzida. Mas o agitprop baiano se vê obrigado a mudar de rumos e publica, em 1958, Gabriela, Cravo e Canela. Em 61, lança Os Velhos Marinheiros, considerado um dos melhores momentos de sua literatura. Neste mesmo ano, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras, instituição que havia apedrejado e insultado em sua juventude. No discurso de posse, com a inocência de um moleque que relembra travessuras passadas, reitera sua oposição à Casa que o recebe:

"Chego à vossa ilustre companhia com a tranqüila satisfação de ter sido intransigente adversário desta instituição naquela fase da vida em que devemos ser necessária e obrigatoriamente contra o assentado e o definitivo. Ai daquele jovem, ai daquele moço aprendiz de escritor que no início de seu caminho, não venha, quixotesco e sincero, arremeter contra as paredes e a glória desta Casa. Quanto a mim, felizmente, muita pedra atirei contra vossas vidraças, muito adjetivo grosso gastei contra vossa indiferença, muitas vaias gritei contra vossa compostura, muito combate travei contra vossa força".

Em resposta aos que o condenam, diz o escritor: "Mas tudo na vida obedece a formalidades e se eu sou socialista não quer dizer que ignoro o mundo formal que me rodeia". De Moscou, recebe o apoio de Ilya Ehremburg: "Amamos Jorge Amado e temos confiança nele. Eu só o vi numa fotografia levemente mais gordo, em fardão de acadêmico. Olhei e sorri. Aos acadêmicos brasileiros dão um luxuoso fardão. Além disso usam espadas como seus colegas franceses. Não há nada de mal em que o homem simples de ontem apareça uma vez por ano na roupagem de imortal".

 

De amores com o imperialismo ianque — Com a transposição de seus romances para as novelas televisivas, o revolucionário aposentado torna-se uma espécie de roteirista da Rede Globo. Gaba-se até hoje de seu passado esquerdista. Mas foi o primeiro escritor brasileiro a felicitar pessoalmente Fernando Collor de Mello por sua vitória. Claro que não foi apoiá-lo durante o impeachment.

Com a nova guinada, seus livros começam a ser publicados nos Estados Unidos. Em depoimento autobiográfico, concedido em 1985 à tradutora francesa Alice Raillard, em sua mansão na Bahia, de inimigo incondicional do capitalismo, Amado vira sócio: "Sim, esta casa... Esta casa, eu digo sempre que foi o imperialismo americano que me permitiu construí-la! Era um velho sonho meu ter uma casa na Bahia. (...) Construir uma casa na Bahia? Eu tinha vontade, mas não o dinheiro. Foi então que vendi os direitos para o cinema de Gabriela à Metro Goldwin Mayer".

Em uma entrevista concedida a Folha de São Paulo, em dezembro de 94, expõe ao repórter a mansão comprada graças aos dólares da Metro Goldwin Mayer: "Esse é o quarto do casal. Passei a vida a xingar os americanos, mas tudo o que temos é graças ao dinheiro dos imperialistas ianques. Compramos essa casa em 63 com a venda dos direitos de Gabriela para a MGM, rodado 21 anos depois. Cobrei barato, só US$ 100 mil”.

A parceria com o inimigo capitalista se revela lucrativa e permite a Amado a realização de outro sonho, morar na Paris que tanto insultou quando marxista:

“Em 86, os americanos me pagaram um adiantamento alto pelos direitos de tradução de Tocaia Grande: US$ 250 mil. Juntamos com os guardados de Zélia e compramos nossa mansarda no Marais, em Paris”.

Pois este senhor, que empunhou com entusiasmo as piores e mais assassinas bandeiras do século, que no final da vida confessa sem nenhum pudor seu venalismo, é quem hoje representa o Brasil no Salão do Livro em Paris. Em verdade, tal fato não é espantar: Amado vende à Europa uma imagem que a Europa aceita como sendo a do Brasil. Ainda segundo Wilson Martins:

“A verdade é que a nossa literatura é sempre encarada como algo de exótico, de tropical. É por isso que Jorge Amado é extremamente popular nos outros países, ele oferece esse estereótipo da violência, da conquista da terra, da luta de classes e da opressão racial. Essa idéia exótica, uma espécie de ilha dos mares do sul, todos de tanga pelas ruas, armados de arco e flecha, e caçando onças na Avenida Rio Branco. Quando aparece um brasileiro branco e com grande cultura internacional, ele causa um espanto extraordinário. Nós alimentamos esse preconceito com todas as forças. Fazemos questão de mostrar que somos tropicalistas, que isto aqui é um país tropical, que somos mestiços, que branco aqui não tem vez. Quem defende tudo isso são esses grupos dos baianos e dos novos baianos, dos trios elétricos. É até um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico da palavra”.

Interrogado recentemente sobre como gostaria de ser lembrado em uma enciclopédia daqui a 50 anos, a grande cortesã responde com a candura dos inocentes: "Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens — às vezes também com as mulheres". E talvez seja um de seus personagens femininos o que melhor representa a ambivalência do “baiano romântico e sensual”: Dona Flor, a que administrava tranqüilamente dois maridos. Ao homenagear Amado, em verdade Paris está condecorando um escritor venal, que prestou os piores desserviços ao Brasil ao lutar para transformá-lo em mais uma republiqueta soviética, em nome de uma rápida ascensão literária e fortuna pessoal.

 

(Publicada sob título “The darker side of author Jorge Amado”, in Brazzil, Los Angeles, abril 98)


 

 

 

A Difícil Travessia do Uruguai

 

Em dezembro passado, Otavio Frias Filho escrevia na Folha de São Paulo que a região mais desenvolvida do país, do ponto de vista social e político, o Sul, transformou-se em “nordeste”, por sua escassa contribuição cultural e artística (“Na Fronteira do Sul” (FSP, 11/12/97). O jornalista enfiava o dedo numa chaga que há décadas vem corroendo os gaúchos. Mais precisamente, desde o início do século. Como Porto Alegre sempre foi o maior pólo gerador de cultura dos três Estados ao sul de São Paulo, para efeitos de argumentação, considero Sul como sinônimo de Rio Grande do Sul.

Pelas contraditórias reações que provocou, o artigo foi obviamente mal interpretado. Gaúchos eriçaram-se em brios ao ver o Sul comparado com o Nordeste e nordestinos não gostaram de ver seu gentílico transformado em uma metáfora de aridez cultural. Frias, em verdade, havia transposto a imagem econômica que temos do Nordeste para o plano cultural e, no fundo, deplorava a ausência de vozes do Sul no panorama artístico nacional.

No ensaio “O Nordeste cultural” (FSP, 01/03/98), eu afirmava em resposta a Otavio Frias que a intelligentsia paulistana não era inocente neste imbroglio. Por seu potencial econômico, por sua tradição universitária, São Paulo sempre determinou o que é ou não é literatura nacional. O critério não é dos mais complexos: o que se escreve e publica no eixo Rio-São Paulo é literatura nacional. O resto... é o resto: é regional, a menos que seja traduzido no exterior. Por exemplo, Graciliano Ramos. Quando ensaiava seus primeiros passos nas letras, era escritor nordestino. Quando se tornou um dos referenciais da literatura brasileira na Europa e Estados Unidos, foi promovido a escritor brasileiro.

Para equacionar o problema, alguns elementos devem ser levados em conta: os critérios dos construtores do cânone literário nacional, que não vêm o Sul como representativo do Brasil; nosso pendor platino, que nos faz mais irmãos de uruguaios ou argentinos que de um baiano ou nordestino; e o poder das imagens sobre o Brasil que a Europa impõe aos produtores culturais do eixo Rio/São Paulo.

 

Alguns critérios do cânone — Ao estabelecer o cânone tupiniquim, São Paulo, através da USP e historiadores como Antonio Candido e Alfredo Bosi, privilegiou o chamado “romance de 30”. Romance de profundo cunho social, como rezam eufemisticamente os catecismos para vestibulandos. Quais eram seus expoentes? Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dyonelio Machado. Coincidentemente, todos militantes comunistas. Noves fora Os Ratos, o Rio Grande do Sul nada mais tinha a oferecer para competir com os zdanovistas avant la lettre.

Um lembrete aos mais jovens sobre zdanovismo: é uma tosca teoria literária, também conhecida por realismo socialista, elaborada pelo teórico russo Andrei Zdanov e importada ao Brasil por Jorge Amado. Foi o único estilo de arte permitido na URSS após a subida de Stalin ao poder e no fundo transformava a literatura em um panfleto a serviço da revolução socialista. O exemplo mais acabado desta perversão literária é a trilogia Subterrâneos da Liberdade, de Amado.

Mesmo sem ter aderido ao zdanovismo, Dyonelio oferecia aos construtores do cânone um personagem compatível com o gosto de então: Naziazeno é um pobre diabo que não consegue colar pestana com medo de que os ratos roam os últimos centavos que tem para pagar um litro de leite. Servia para exportação.

Na época, Erico Verissimo fora salvo da morte como escritor por um incêndio providencial que incinerou toda uma edição de Fantoches, infeliz exercício literário cometido em 1932, mais tarde ridicularizado com certa ternura pelo próprio Érico, em reedição facsimilar e comentada. Em 33, Érico entrega Clarissa, e em 35, Música ao Longe, ambos contra-indicados para diabéticos em geral. O grande poema gaúcho, Antônio Chimango, estava proibido pelos áulicos de Borges de Medeiros. O grande romance, Memórias do Coronel Falcão, fora recomendado às traças: durante três décadas e meia, esta obra de Aureliano Figueiredo Pinto permaneceu inédita, pois os donos da cultura gaúcha, arrinconados em Porto Alegre, o consideravam eivado de espanholismos. Escrito em 1937, só foi publicado em 1973. Sem falar que o personagem de Aureliano nada tem de miserável. O romance narra a trajetória de um fazendeiro pressionado por dívidas bancárias. Quando cai, cai em pé, não provoca a mesma comiseração que os personagens de um Graciliano. Não serve para o cânone. O campo, ou melhor, o campus, estava aberto às letras do Nordeste.

Já em 22, os paulistas pretenderam definir o que seria literatura brasileira, com a famigerada Semana de Arte Moderna. Semana que pouco ou nada repercutiu na época em que ocorreu, mas cresceu e foi tomando corpo, décadas mais tarde, graças à construção ensaística montada pelos acadêmicos da USP. Pretendendo estabelecer um arquétipo nacional, Mário de Andrade volta-se para o Brasil indígena e seus mitos. Acaba por construir Macunaíma, personagem moldado não a partir do Brasil que começava a pôr timidamente um pé no século XX, mas um espécie de bon sauvage ao gosto dos europeus: preguiçoso, indolente, sem nenhum caráter, em suma, um ser tropical. Em vez de dar continuidade à cultura européia trazida pelos colonizadores, os “modernistas” voltam-se para o Brasil Carahiba.

Meio século antes, um gaúcho antecipava o que hoje se convencionou chamar de “teatro do absurdo”. Mas era gaúcho, não freqüentava os círculos da burguesia cafeeira nem escrevia sobre mitos indígenas. Qorpo Santo foi relegado ao pó das bibliotecas, acusado de louco e só teve suas primeiras peças encenadas exatamente um século após tê-las escrito. Mesmo assim, na época em que foi descoberto, graças ao trabalho de sapa de Aníbal Damasceno Ferreira, Qorpo Santo não foi valorizado. Foi preciso que a crítica do eixo Rio/São Paulo referendasse a descoberta, para que o esquecido dramaturgo adquirisse estatura nacional, o que só aconteceu quando Yan Michalski, em artigo para o Jornal do Brasil, o proclamou precursor do teatro do absurdo.

O ano de 22 também marca, para os paulistas, a criação do Partido Comunista em São Paulo. Em verdade, já em 1918, três anos antes da fundação do PC francês em Paris, em Santana do Livramento já tínhamos uma célula comunista. O que demonstra que o gaúcho é pioneiro até mesmo no obscurantismo.

São Paulo, culturalmente, sempre esteve voltada para a Europa. É aqui na Paulicéia que brotam, através do dandy Oswald de Andrade, as primeiras simpatias pelo fascismo e pelo stalinismo, manifestas tanto no Manifesto Antropófago como em O Homem e o Cavalo. Nestes panfletos, Oswald louva tanto o belicismo mussoliniano de Marinetti, quanto o otimismo utópico de Stalin. O próprio Macunaíma, suposto herói nacional, é fruto da imagem que a Europa nutre em relação ao Brasil, praga que nos foi rogada por Rousseau, com seu mito de um homem puro nos trópicos, não contaminado pela civilização. Mesmo o reconhecimento de Qorpo Santo paga tributo ao paladar europeu: não existissem autores como Becket ou Ionesco, o esquisito dramaturgo porto-alegrense não teria de quem ser precursor, nem seria reconhecido pelo Eixo.

 

Sob a sombra de Fierro — Os gaúchos, no início deste século, estão ainda voltados para o Plata. Há algo de hernandiano nos personagens de Aureliano Figueiredo Pinto e mesmo nos gaúchos estereotipados de Erico Verissimo. Não poderia ser diferente, já que gaúchos do Brasil e Argentina estão mais próximos entre si, tanto pelo meio geográfico como pela cultura, do que um rio-grandense e um nordestino, por exemplo.

Que é o Antonio Chimango senão uma onda distante, mas concêntrica, provocada pelo Martín Fierro? Também nas canções de Teixeirinha como na poesia produzida pelos poetas ligados ao movimento tradicionalista, lá está a caricatura contemporânea do gaúcho de Hernández. Até mesmo em manifestações literárias mais populares, encontramos o dedo do poeta argentino. Circulou subterraneamente no Rio Grande do Sul um conhecido poema pornográfico, “Comendo égua e outros bichos”. Vejamos uma de suas coplas:

Ó poetas que cantais
velhas cópulas eqüinas
olvidando outras vaginas
que numa escala crescente
vos deram gozos candentes
no lupanar das campinas

Temos a reprodução rítmica exata de uma sextilha do Martín Fierro, com os versos rimando no esquema ABBCCB. Sabemos que esta pérola da fescenina gaúcha foi criada coletivamente por poetas tradicionalistas, que não gostam muito de citar Hernández. Mas a influência é inegável:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,
que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela
.

A propósito, este poema argentino — mas também nosso —, que tanto mexe com a alma do homem da fronteira rio-grandense, começou a ser escrito por José Hernández em Santana do Livramento. Não por acaso, o poema maior que a América Latina legou à literatura universal é praticamente desconhecido nos cursos de Letras do país. Mas já participei de uma “Semana Martín Fierro” em Berlim, onde Hernández foi comparado a Homero, e já o ouvi declamado nas ilhas Canárias, geografia que nada tem a ver com a pampa onde perambula Fierro. Em Paris, um dos professores que participou de minha defesa de tese, Paul Verdevoye, o traduziu ao francês. Herdeiros de Fierro, pertencentes a uma outra geografia, pouco dizemos aos paulistas, mais voltados para o agreste ou para a selva, conforme o que deles esperam os europeus. Para estes, gaúcho é coisa de argentinos. Europa dixit: São Paulo, submissa, obedece.

A propósito, em setembro do ano passado, ministrei um curso sobre o poema de Hernández, em Passo Fundo, durante a VII Jornada Nacional de Literatura. Neste cidade, famosa por suas tradições gaúchas, meus alunos praticamente desconheciam Fierro. Está na hora, parece-me, de a universidade gaúcha esquecer um pouco as confusas teorias literárias geradas às margens do Sena e olhar com mais carinho para a riqueza cultural do Plata.

 

O poder das imagens — As imagens que o centro do país emite para o exterior obedecem a uma procura, são aquelas que a Europa convencionou serem definidoras do Brasil. Estas imagens são poderosas. Me permito citar duas anedotas (no sentido europeu da palavra). Transportemo-nos para os anos 70, Lyon, França. Um bolsista gaúcho, para mostrar um pouco do Sul brasileiro, reunia seus trocados e a cada mês oferecia um churrasco a seus professores e colegas de curso. Logo foi chamado pela instituição que o financiava. Teria de acabar com os churrascos ou abandonar o curso. Surpreso, o gaúcho queria saber as razões da alternativa: não haviam gostado do churrasco? Nada disso. O churrasco estava excelente. Mas ao apresentar um churrasco como prato típico do Sul do Brasil, para pessoas que só se permitiam consumir no dia-a-dia um transparente bifinho de boi, dava aos franceses uma imagem contraproducente do país.

— “Te convidamos para que possas comover a burguesia francesa falando sobre a miséria no Brasil” — disseram seus anfitriões —. “Mas como vamos convencer um francês de que se passa fome no Brasil, quando apresentas o churrasco como prato nacional?” O gaúcho foi devolvido a Porto Alegre. Em seu lugar, receberam bolsa dois nordestinos, bem ao estilo morte-e-vida-severina. Assador emérito, o amigo que protagonizou este episódio se chamava João Carlos Barbosa. Era gaúcho daqueles que não se fazem mais, e sua memória ainda vaga pelas ruas de Porto Alegre.

Alguns anos mais tarde, quando lecionava na UFSC, recebi a visita de um professor francês na ilha. Através de uma amiga, encaminhei-o à Califórnia da Canção Gaúcha, para conhecer um pouco de nosso folclore, música e culinária. Voltou perplexo. Não entendia os espetos de churrasco girando durante o festival, aquele esbanjamento de carne com o qual francês algum sonha em seu dia-a-dia. “Et la famine, où est la famine?” queria saber o francês. Associava Brasil com Nordeste e miséria e não conseguia entender o Sul e o churrasco. João Carlos sentira o outro lado do problema em sua estada em Lyon. Após ter ido duas ou três vezes a uma casa de carnes providenciar seu churrasco, o açougueiro não se conteve: “Desculpe a pergunta, Monsieur, mas o senhor tem um hotel?”. Para o francês, o modesto churrasco que nosso gaúcho oferecia a amigos, só era concebível para consumo de um hotel.

Estes episódios nos mostram a imagem que o francês — e, por extensão, o europeu — tem de nós. Nordeste, sertão, cangaço, miséria, matança de índios, favelas, infância abandonada, tudo isto é compatível com Brasil. Esta imagem não é nutrida apenas pelo europeu médio, mas também por seus intelectuais e produtores culturais. Um carioca publicou no ano passado Cidade de Deus, um amontoado de anotações sobre a vida na favela, ao qual deu o nome de romance. Era seu primeiro livro e já tem contratos com editoras alemãs e francesas. Um dos organizadores do último Salão do Livro em Paris inclusive declarou aos jornais que este era o tipo de literatura que se esperava do Brasil.

Não por acaso, recentemente recebeu o Urso de Prata em Berlim, o filme Central do Brasil, relato choramingoso da infância de um menino pobre...nordestino. Tudo fecha: miséria, infância abandonada, analfabetismo, nordeste. Décadas após Vidas Secas, de Graciliano, e de O Cangaceiro, de Lima Barreto, continuamos alimentando na Europa a imagem do Brasil como sendo um imenso sertão. A premiação de Titanic no mesmo ano nos permite uma oportuna comparação: enquanto a indústria cinematográfica do Primeiro Mundo apela ao recurso de um transatlântico de luxo para arrancar lágrimas e dólares das platéias, tentamos comover com o que temos de esteticamente mais exportável, a miséria.

O “Sul maravilha” pouco diz a um europeu como parte integrante do Brasil. O exemplo mais sintomático desta exclusão do Sul no imaginário europeu, encontrei-a em uma declaração de um repórter do Monde, que acompanhava o Papa em sua primeira visita ao Brasil. Quando João Paulo se dirige a Porto Alegre, não interessa mais ao jornalista. “Segundo meus colegas brasileiros, lá não é mais Brasil”, disse. Ou seja, eram jornalistas brasileiros que reforçavam, no correspondente francês, o preconceito que este já nutria em relação ao país.

Para cúmulo das desgraças, em relação ao Brasil mais ao norte, os gaúchos são cultos e predominantemente brancos. Tais características não cabem no conceito de um país imaginado como negro, exótico, tropical. Quem viu isto muito bem foi Wilson Martins, crítico e historiador execrado nos meios acadêmicos, et pour cause. Ainda há pouco, dizia o autor paranaense:

“A verdade é que a nossa literatura é sempre encarada como algo de exótico, de tropical. É por isso que Jorge Amado é extremamente popular nos outros países, ele oferece esse estereótipo da violência, da conquista da terra, da luta de classes e da opressão racial. Essa idéia exótica, uma espécie de ilha dos mares do sul, todos de tanga pelas ruas, armados de arco e flecha, e caçando onças na Avenida Rio Branco. Quando aparece um brasileiro branco e com grande cultura internacional, ele causa um espanto extraordinário. Nós alimentamos esse preconceito com todas as forças. Fazemos questão de mostrar que somos tropicalistas, que isto aqui é um país tropical, que somos mestiços, que branco aqui não tem vez. Quem defende tudo isso são esses grupos dos baianos e dos novos baianos, dos trios elétricos. É até um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico da palavra”.

Talvez por estar sempre voltada para a Europa, talvez magoada pela mão rude com que a tratou Getúlio Vargas, São Paulo sempre marginalizou a cultura feita no Rio Grande do Sul. Um episódio ocorrido na redação de um jornal paulista explica às maravilhas esse desdém. O enxadrista Mequinho havia sido derrotado em uma final de campeonato. O redator titulou: CAMPEÃO BRASILEIRO É DERROTADO EM FINAL DE XADREZ. O editor trocou brasileiro por gaúcho. Mequinho era campeão brasileiro quando ganhava. Quando perdia, era gaúcho.

 

A affaire Quintana — Se há, para os gaúchos, uma injustiça que clama aos céus reparação, esta foi a recusa por duas vezes, da candidatura de Mário Quintana à Academia Brasileira de Letras, instituição dominada e controlada pelos escritores do Eixo Rio/São Paulo. Que o poeta gaúcho tenha se candidatado, já foi um erro. Picado por alguma mosca azul, Quintana pensou que poderia ser aceito pelos sedizentes imortais da Academia. Foi preterido por um ex-presidente da República, cujo nome provoca mal-estar entre escritores, e por um ex-ministro da ditadura militar, de obra praticamente desconhecida. Quintana, em sua ingenuidade de nefelibata, talvez tenha imaginado que para participar dos chás dos imortais bastava seu gênio como credencial. Enganou-se feio e foi humilhado em praça pública. Ninguém entra na Academia sem os rapapés de praxe aos medíocres que a habitam. Em seu lugar, foi aceito Carlos Nejar, o escrevinhador hermético que, como Neruda, julga que fazer poesia é alinhar palavras na vertical.

Comentando meu artigo “O Nordeste Cultural”, Carlos Nejar (Folha de São Paulo, 21/03) fez a defesa, como seria de se esperar, dos colegas de fardão que escantearam Quintana, José Sarney e Eduardo Portella. Poeta urbano, Nejar ainda reivindicava, estranhamente, a condição de “homem do pampa”. Mas alguma verdade havia naquela auto-definição: apesar de ter nascido em meio ao concreto de Porto Alegre, certamente foi contaminado por uma virtude típica dos homens da pampa, a coragem. Pois muita coragem intelectual é necessária para saudar Sarney como “admirável ficcionista” e um ex-ministro da ditadura, Eduardo Portella, como “uma das grandes personalidades do Brasil contemporâneo”.

Nejar, imortal sem ter consultado a posteridade, fez bem em defender seus amigos de fardão e, entre estes, o amigo das fardas. Mas não precisava concluir sua carta com tamanho cinismo, ao afirmar que ingressou na Academia “apenas pelo poder silencioso e humilde da poesia”. Terá sido este poder silencioso da poesia que levou à Academia sumidades literárias como Getúlio Vargas, o general Aurélio de Lira Tavares (assinado Adelita) e Roberto Marinho, entre outros. A Academia tem três vias de acesso: imposições do poder, disposição para fazer rapapés aos imortais e, ultimamente, a ideologia marxista. Mário Quintana carecia de qualquer uma destas três “virtudes”. Era apenas um poeta maior: nada de espantar que fosse ignorado.

E só poderia ser assim. Se saudar Sarney como admirável ficcionista é condição necessária para pertencer ao sodalício dos supostos imortais, temos de convir que o sedizente “homem do pampa” fez o necessário para merecer sua cadeira. Quem conheceu Quintana, sabe que o poeta da Rua da Praia jamais se submeteria a tais salamaleques.

 

A travessia do Uruguai — Me ative, nestas reflexões, a um enfoque estritamente literário do isolamento cultural do Rio Grande do Sul. Outras abordagens poderiam ser feitas no que diz respeito à música, cinema ou pintura, se é que se pode chamar de cinema o que se faz em Porto Alegre, e se é que a pintura contemporânea ainda tem a ver algo com arte. Se bem que os gaúchos choram de barriga cheia: o Rio Grande do Sul conseguiu criar um invejável circuito próprio de difusão de sua literatura, que permite a existência de um aquecido mercado editorial, sem depender do resto do país.

Além deste dar-de-ombros do Eixo Rio/São Paulo em relação ao Sul, um outro fator elementar impede a literatura gaúcha de atravessar o rio Uruguai: a distância dos autores do Sul em relação aos centros decisórios de política cultural. É preciso estar perto do MEC, da USP, das historiografias por ela produzidas, das cúpulas brasilienses que decidem os currículos do ensino secundário e universitário. Se os escritores gaúchos quiserem divulgação nacional, precisarão infiltrar-se junto a essas instâncias. Pois neste Brasil de final de século, ainda impregnado de um ranço marxista, arte é uma questão de Estado.

O suporte da indústria do livro, hoje, é a universidade. Se um dia o livro foi um instrumento sem o qual a universidade não podia existir, hoje a universidade é um instrumento sem o qual a indústria do livro perde seu vigor. O que era fim, a aquisição de saber através da universidade, se tornou meio para sustentação de um comércio. E o que era meio, o livro como instrumento de deleite espiritual ou comunicação do saber, tornou-se fim, uma mercadoria como qualquer outra, para alegria de editores e massagens no ego de escritores com boas relações junto ao MEC e crítica acadêmica.

Determinados autores e editores há muito descobriram isto e buscaram refúgio na universidade, não só no Brasil como até mesmo onde impera o livre mercado, como Estados Unidos e França. Burlar as leis da oferta e procura torna-se fácil: para vender um autor, não é necessário que este seja buscado pelos leitores. Basta impor seu nomes e sua obra nas listas de vestibulares e nos currículos colegiais e universitários. Nisto consiste o obsceno mercado do livro paradidático. Ou, como prefiro chamá-lo, do livro estatal.

Esta imposição gera uma indústria paralela de estudos, monografias e análises, que criam uma fortuna literária artificial para o autor: ele passa a fazer parte da cultura nacional, não por preferência de uma coletividade, mas por imposição de um pequeno número de autores e editores íntimos do poder. Resultado: os coitados dos estudantes passam a odiar literatura, quando são obrigados a ler obras indigestas como as de Mário ou Oswald de Andrade, de Clarice Lispector ou Guimarães Rosa. Aliás, este mineiro é hoje, indubitavelmente, o mais encombrant elefante branco adotado pela universidade brasileira. Grande Sertão: Veredas goza entre nós do mesmo status do Ulisses, de Joyce: é muito citado e raramente lido. Mas como foi adaptado como noveleta para a Rede Globo, mesmo o leigo em literatura pode se permitir alguns palpites sobre os conflitos de Riobaldo e Diadorim.

Se os gaúchos quiserem renome nacional, não se preocupando com métodos, este é o caminho mais fácil de difusão de sua literatura: conseguir padrinhos junto à USP ou ao MEC, e impor suas obras através de determinações do Estado. Prestarão um desserviço à literatura, mas conseguirão divulgar seus nomes. Aliás, não poucos autores gaúchos já utilizam os instrumentos locais do Estado para impor suas obras no Rio Grande do Sul. Para estes, que já conhecem o caminho das pedras, basta apenas ampliar seu raio de ação.

Há uma outra hipótese, que não implica promiscuidade com o poder. Os escritores contemporâneos parecem esquecer que vivemos dias de Internet. Com um computador e um fax/modem, um escritor pode editar e divulgar sua obra, eliminando aqueles intermediários sem os quais até hoje o livro era impensável: gráficos, editores, distribuidores e livreiros. Qualquer internauta pode ter hoje cinco ou dez megabytes na geocities ou em outras praias, sem despender nenhum vintém. Se quiser mais megabytes, pagará algo em torno a 15 dólares ao ano. Ou seja, hoje um gaúcho pode atravessar o Uruguai e colocar seu trabalho à disposição não só do público brasileiro, mas do planeta todo, sem sequer sair de sua mesa de trabalho. Entre os participantes de newsgroups, há horas se fala na criação de um forum, a soc.culture.gaucho, que englobaria três países, Brasil, Uruguai e Argentina. Como o gaúcho é gaudério, e sua cultura não se limita a um só país, a Internet poderá fornecer uma pátria espiritual a este tipo humano em vias de extinção.

Com as editoras virtuais surgindo em toda a parte, a Internet não pode mais ser ignorada como uma nova mídia. Como tampouco os CD-ROMs. Na recente Feira do Livro de São Paulo, estavam sendo vendidos CD-ROMs com a ficção completa de Machado por R$ 10,00, e disquetes com seus romances por R$ 2,50. A edição e difusão da obra literária tornam-se inacreditavelmente baratas. O que é quase um milagre neste Brasil onde o preço do livro em papel é um dos mais caros do mundo, a ponto de os editores nacionais, para ter algum lucro, estarem imprimindo na Espanha, Itália, Chile e Colômbia.

Os direitos de autor praticamente vão pras cucuias. Mas, fora os amigos do Rei, quantos escritores vivem de direitos autorais neste país? Estamos nos encaminhando para uma sociedade em que computador será tão comum como qualquer eletrodoméstico, e editores e escritores terão de levar em conta este mundo novo. Permanece, por enquanto, a velha questão: não é mais agradável ler no papel que na telinha? Pode ser. Nos dias de Gutenberg, certamente não faltaram leitores para alegar saudades do pergaminho. Claro que é pouco prático usar o computador para ler na cama. Mas a Internet permitirá ao escritor — aliás, já permite — uma liberdade com a qual não pode sonhar quem depende do papel impresso. A utopia está ao alcance de nossas mãos: hoje, cada escritor pode ser próprio editor.

Há evidentemente a solução mais radical: a criação de um Estado à parte do Brasil. Seria como dar um tapa num cego: da noite para o dia os autores estaduais seriam promovidos a nacionais. Esta idéia separatista, sempre viva no inconsciente coletivo gaúcho, é mal vista ao norte do Sul. Quando indígenas querem um território para si, estão lutando pelos seus direitos. Mas ocorre que somos brancos: quando gaúcho sonha em separar-se, é logo tachado de nazista.

 

(Inédito)


 

 

 

Ianoblefe e Outros Mitos Dos Povos da Floresta*

 

O século está findando, as utopias desvairadas que o assolaram estão agonizando, a Internet transformou finalmente o planeta em uma aldeia, a URSS se desintegrou, a Europa se unifica. Em meio a isso, o Brasil se prepara para comemorar os quinhentos anos do descobrimento, sem ter ainda resolvido, em seu meio milênio de existência, a questão indígena. O ego nacional se infla ao ter um brasileiro escolhido pela NASA para uma viagem espacial, enquanto tribos de silvícolas vivem ainda no paleolítico, dependendo da caça, pesca, coleta... e caridade estatal.

Segundo lenda amplamente divulgada por antropólogos e outros ólogos, seriam seis milhões os habitantes do território brasileiro, por ocasião da chegada dos portugueses. O número é absurdo e ao mesmo tempo emblemático. Absurdo, pois tal censo jamais poderia ser feito pelos gatos pingados que aportaram em nossas costas. Se com os recursos atuais ainda não se sabe se os supostos ianomâmis são três ou dez mil, impossível imaginar como os escassos marujos trazidos por Cabral poderiam ter mapeado um continente de cujas dimensões nem tinham idéia. Emblemático, porque nos remete a um outro número redondo, os seis milhões de judeus. A cifra aponta imediatamente para genocídio. Provocado por quem? Pelo homem branco, é claro. Segundo Darcy Ribeiro — um dos entusiastas da tese dos seis milhões — "a expansão do homem branco foi a maior catástrofe da história humana".

Deixemos a lenda de lado e meçamos o que é mensurável. Segundo o último censo realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1995, há hoje no Brasil 325 mil indígenas, que detêm 11% do território nacional. Ainda segundo a Funai, cerca de 174 mil índios só sobrevivem graças ao repasse de 40 mil cestas básicas do governo, distribuídas pelo Programa de Distribuição de Alimentos. Cada cesta básica contém cinco quilos de arroz, cinco quilos de feijão, cinco quilos de macarrão, três quilos de flocos de milho, um quilo de farinha de mandioca e duas latas de óleo de soja. Custo médio de cada unidade: 12 reais. Detentores de fabulosos latifúndios, inimagináveis no mundo contemporâneo, metade da população indígena brasileira está na miséria e se alimenta às custas do governo. Ou seja, do contribuinte. Pois governo não produz nada. Apenas arrecada.

“Eu nun queru nada du brancu. Nun queru motô di barcu, nun quero panela, nun queru ispingarda, nun queru machado. Queru vivê comu meu pai e meu avô”, disse um dia o txucarramãe Raoni, garoto-propaganda das entidades internacionais que infestam o universo indígena brasileiro. Se seu discurso satisfaz ao mais rousseauniano dos antrópologos, nem todos os íncolas brasileiros pretendem continuar vivendo como primitivos. Os índios que tomaram contato com a civilização branca têm consciência do que é ser visto como bichos e não querem mais ser considerados como tais. O depoimento mais dramático neste sentido foi feito à revista Veja, em janeiro de 1990, por Marcelo Ianomâmi, residente em Boa Vista, Roraima.

Como as reservas repousam sobre ouro, nióbio, diamantes e cassiterita, quem quer que pretenda explorar o subsolo nacional passa a ser o inimigo natural das “nações” dos povos da floresta. O predador por excelência será o garimpeiro, a cabeça de ponte estabelecida entre brancos e índios. Embora seja mais um pobre diabo que enfrenta a selva premido pela miséria, será eleito bode expiatório da questão indígena. O mesmo não pensa Marcelo:

"Sou ianomâmi e defendo a permanência dos garimpeiros nas terras indígenas. Isso pode parecer estranho, mas acontece que duvido muito que a vida dos índios vá melhorar com a saída dos garimpeiros, enquanto os ecologistas, os missionários e o governo continuarem a nos ver como bichos-do-mato, sem decidir coisa alguma, sem direito à água encanada, luz elétrica ou televisão, sem direito a explorar as riquezas minerais das terras ianomâmis, das quais nenhum civilizado hesitaria em tirar partido se elas estivessem no subsolo de suas casas. Não sou o único índio a ter estas idéias".

Marcelo tornou-se órfão de mãe aos oito anos, fato que o aproximou da civilização. Segundo suas próprias declarações, entre os ianomâmis, quando a mãe morre, o filho fica abandonado na aldeia. Adotado por um delegado da Funai, tem hoje uma visão comparativa de mundo:

"Há muito tempo acabou aquela história de índio se contentar apenas com apito. E não foram só os garimpeiros que tiveram influência nessa mudança. Os missionários, o pessoal da Funai, os pesquisadores e até os jornalistas não deixaram mais o índio pensar que o mundo acabava em suas terras. O índio não quer mais viver como se estivesse preso num grande jardim zoológico para ser fotografado pelos turistas".

Esquecidos pelas autoridades brasileiras durante meio milênio, relegados à condição de mais um bicho qualquer da floresta, os índios se defrontam, nos albores do século 21, com uma encruzilhada. Os depoimentos de Marcelo e Raoni são emblemáticos e definem dois rumos possíveis: ou os indígenas se integram à civilização que os envolve, destino normal de toda cultura ágrafa e portanto sem história, ou optam pelos critérios de uma certa antropologia, que os prefere ver encerrados em uma espécie de zoológico espaço-temporal, para contemplação dos homens do futuro.

E é precisamente nesta certa antropologia — a mauvaise conscience do Ocidente —, que residem os entraves à ascensão das populações indígenas ao século XX. Em nome dela, criam-se nações artificiais, forjam-se massacres que denigrem o Brasil internacionalmente, corta-se o país em pedaços e absolvem-se assassinos e estupradores, que além de permanecerem livres na selva como passarinhos, são saudados pela mídia como heróis.

 

Raoni, o assassino — Nas duas últimas décadas, dois líderes indígenas tornaram-se mais conhecidos na imprensa internacional do que qualquer escritor ou político brasileiro. Raoni, o cacique txucarramãe, desfilou seus botoques ante o papa, reis e chefes de Estado. Paiakan, o cacique caiapó, foi capa de uma revista nos Estados Unidos, que o saudou como “o homem que pode salvar a humanidade”. Atrás das imagens destas duas estrelas do show business, escondem-se um assassino e um estuprador.

Em 1980 foram massacrados pelo menos trinta peões pelos índios, em duas chacinas distintas, uma delas no Parque Nacional do Xingu, liderada por Raoni. Na ocasião, o botocudo exibiu nos jornais a borduna que "ajudou a matar 11 peões de uma fazenda". Nenhum índio foi processado pelos crimes cometidos. Raoni chegou a ensaiar golpes de borduna no então presidente da Funai, Carlos Nobre da Veiga, ao ser indagado sobre o massacre. Não só permaneceu impune, totalmente alheio à legislação brasileira, como foi recebido com honras de chefe de Estado na Europa. O papa João Paulo II, François Mitterrand e os reis da Espanha, entre outros, o receberam como líder indigena. Deu-se inclusive ao luxo de expor sua pintura em Paris. Um dos quadros do assassino atingiu US$ 1.600 em uma lista de preços que começava a partir de mil dólares.

Não bastasse o sucesso do vernissage de Raoni, a empresa K-Way Internacional lançou uma linha de roupas com a grife Raoni e encomendou ao "novo artista um trabalho que ele jamais ousara: transpor para o papel as pinturas corporais de sua tribo, as pinturas geométricas que mulheres e homens ostentam, como uma imensa tatuagem, quando participam das cerimônias de purificação, quando a temporada de caça começa, ou quando precisam espantar para longe os maus espíritos".

O patrono de Raoni neste périplo pelo Ocidente foi Sting, que criou em 1989 a Rainforest Foundation e levantou 1,5 milhão de dólares para a demarcação da tribo dos caiapós, no sul do Pará. Raoni na verdade é txucarramãe, mas seus belfos e seu apelo rousseauniano serviam para comover o "colonizador" branco. Em abril de 93, em entrevista à Veja, o roqueiro inglês recua:

"Os índios tentam enganar você o tempo todo e podem ser muito frustrantes. Eles vêem os brancos mais como uma fonte de recursos do que como amigos. Eu era muito ingênuo. Estou deixando para trás os meus dias de selva".

Tarde piou Sting: o assassino, graças a seus esforços, já fora entronizado como herói.

 

Paiakan, o estuprador — A mesma aura foi conferida pelas mídias européia e americana a outro de nossos heróis for export, Paulinho Paiakan. Se estupro, em algum dia distante no tempo foi esporte de tribos primitivas, hoje é violência física penalizada universalmente. Exceto no Brasil e quando cometida por índios, é claro. Em maio de 1992, Paulinho Paiakan, o cacique caiapó, saudado pela imprensa americana como o "homem que pode salvar a humanidade", violentou uma menina de 18 anos com a cumplicidade de sua mulher, Irekran, e até hoje ambos permanecem livres em seus feudos. Os estupradores confessaram inclusive ter enfiado as mãos na vagina da vítima. O processo arrastou-se por mais de ano e Paulinho — são simpáticos os diminutivos! — avisou: se fosse condenado, não sairia de sua reserva. Em caso de condenação, ameaçou fazer rolar o sangue dos brancos. E pensávamos que limpeza étnica era estratégia de sérvios.

Quando uma ordem judicial de prisão foi emitida contra o rousseauniano guru estuprador, em fins de maio de 93, a Polícia Militar paraense recusou-se a enviar tropas à reserva caiapó, no sul do Pará, para cumprir o mandato de prisão contra o líder dos adoradores americanos do bon sauvage tupiniquim. Área indígena é território onde a PM não tem competência para atuar, disse o comandante. "Se ele sair de lá nós o prenderemos".

A ordem de prisão foi emitida porque Paulinho não compareceu a uma audiência em Redenção, no Pará, do processo em que era acusado de estupro. Foi emitida, mas não cumprida. Quando o réu é um silvícola, particularmente se for estrela das ditas Organizações Não-Governamentais — este novo reduto das viúvas do Kremlin — ordem judicial vira piada. Não se cumpre e estamos conversados. A desobediência à magistratura rolou por um mês e o Tribunal de Justiça do Pará acabou revogando o pedido de prisão.

Paiakan foi mais tarde absolvido, por um juiz acovardado, durante julgamento ao qual compareceu respaldado por centenas de caiapós armados de bordunas. O juiz alegou falta de provas e considerou Irekran como não integrada à cultura dos não-índios, sendo inimputável perante a lei. A defesa alegou que as lesões na vagina da vítima foram causadas pelas mãos e unhas de Irekran. Com o que discordava o perito, ao afirmar que “a ruptura do hímen só poderia ter sido provocada por um pênis”. Segundo a promotora, Irekran também não poderia ser considerada inimputável por não estar integrada aos não-índios. Uma prova disso, afirmou, é que ela entendia português.

É espantoso o poder do “homem que pode salvar a humanidade”: por muito menos que isso, Clinton arriscou ter seus dias contados na Presidência dos Estados Unidos. Mas Paulinho Paiakan é índio e pode estuprar à vontade. Apesar de ter confessado espontaneamente seu crime a jornalistas, o bravo guerreiro optou por esconder-se atrás das saias de sua mulher. Continua livre e exportando mogno de sua reserva, o mesmo mogno cuja exportação constitui crime quando feita por empresários brancos.

Estes dois episódios — a chacina comandada por Raoni e o estupro cometido por Paiakan — merecem algumas reflexões. O grave em tudo isto não é propriamente o estupro ou assassinato, crimes comuns capitulados no Código Penal e ocorrentes em qualquer civilização. Temos agora um cidadão brasileiro — ou a que país pertencerão os caiapós? — com carisma de salvador da humanidade, que afirma com todas as letras não aceitar a lei do país em que vive. Para Paiakan,

a vida é combate,
que os fracos abate,
e os fortes e bravos
só pode exaltar

como cantou Gonçalves Dias, em A Canção do Tamoio. (Em verdade, Paiakan foi melhor antecipado por Bernardo Guimarães, em O Elixir do Pajé, saborosa paródia da poesia indianista de Gonçalves Dias).

Autoridade alguma condenou a rebelião civil da "nação" caiapó. Muito menos a chacina da qual se orgulha Raoni. Tampouco o Ministério do Exército se preocupou com estes senhores que, com todas as letras, negam os sistemas legislativo e judiciário nacionais. Por ocasião destes crimes, os eternos defensores dos Direitos Humanos permaneceram silentes. Como também as feministas, tão aguerridas em denunciar o assédio sexual e tão complacentes quando um "cidadão dos povos da selva" se outorga o direito de praticar fistsex — esta modalidade mórbida tão apreciada pelos cultores de hardcore — com uma menina indefesa. A Bill Clinton, não se perdoa um charuto.

A "nação" caiapó, que já faturou dez milhões de dólares nos últimos anos exportando madeira de mogno para a Europa, não só não aceita o sistema judiciário nacional, como ainda alberga e protege os estupradores. Segundo o Direito, acobertar criminoso também constitui crime. Exceto no país caiapó, onde as leis são outras e estupro não é crime.

Em dezembro passado, Paiakan foi submetido a novo julgamento e desta vez condenado, juntamente com sua mulher Irekran, por unanimidade, pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Pará. De acordo com a sentença judicial, Paiakan terá de cumprir pena de seis anos em regime fechado, enquanto Irekran cumprirá quatro anos em regime semi-aberto. No entanto, devem recorrer ao Supremo Tribunal Federal e continuam livres como passarinhos. Ninguém acredita, no Brasil, que um dia estejam atrás das grades, condição à qual parecem estar imunes os índios, mesmo quando assassinos ou estupradores.

 

Ianoblefe — O ano de 1993 ficará na história do jornalismo como o do maior blefe já registrado na imprensa nacional e internacional, o “massacre” dos ianomâmis pelos malvados garimpeiros. Mesmo sem ter ocorrido, a ampla divulgação da farsa provocou lesões irremediáveis na imagem do Brasil no exterior. A farsa teve duplo efeito. Em primeiro lugar, chamou a atenção internacional para uma chacina que simplesmente não aconteceu. Em segundo lugar, mesmo não tendo ocorrido, confirmava a existência de uma tribo que no Brasil não existe. Pois a nação ianomâmi, embora já pertença à História do Brasil, em alguns manuais didáticos irresponsáveis, não passa de uma criação ficcional de uma romena de passaporte suíço, Claudia Andujar, que nos anos 70 andou em Roraima fotografando, vacinando e rebatizando índios de diversas tribos distintas entre si, falando dialetos também distintos. As lesões à imagem do país atingiram ainda o público nacional: hoje, dificilmente algum brasileiro aceitaria a hipótese de que os ianomâmis não existem.

A Justiça brasileira demorou um ano e alguns dias para oficializar a morte do deputado Ulysses Guimarães, ocorrida em 12 de outubro de 1992. Há foto do parlamentar entrando no helicóptero que caiu no mar, foram encontrados os corpos do piloto e de sua mulher, há uma evidência absoluta de sua morte. No entanto, ela somente foi reconhecida em 24 de setembro de 1993, pelo juiz Paulo César de Almeida Sodré. Mesmo assim, Ulysses só foi considerado oficialmente morto em 15 de outubro de 1993, quando o despacho do juiz foi publicado no Diário Oficial da União. Esta demora de um ano para o reconhecimento de uma morte evidente deveu-se ao fato de que o cadáver do deputado não havia sido encontrado.

Mas bastaram 24 horas para que as autoridades brasileiras definissem como genocídio um suposto massacre sem cadáver algum, “ocorrido”... na Venezuela. Já foram encontrados os corpos do czar Nicolau II e da família imperial russa, assassinados pelos bolcheviques em 1918, e até hoje não se teve notícia de um único indício de uma chacina ocorrida em 1993, com repercussões internacionais que ameaçam a soberania do Brasil sobre seu território. Tivemos inicialmente 19 mortos, depois 40, depois 73, depois 89, depois 120, depois 16, quando de fato não houve cadáver nenhum. Enfim, achou-se uma ossada, de data incerta, que não evidenciava massacre nem dava indícios de assassino algum.

O então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, contentou-se com esta ossada antiga para denunciar, de imediato, genocídio. A Polícia Federal, apesar das continuadas declarações de que não havia prova do crime, não hesitou em fazer um relatório, mais de dois meses depois da data da “chacina”, denunciando 23 garimpeiros pelo assassinato de 16 índios, dos quais não se achou sequer um pedaço de osso. A imprensa mostrou fotos de cabaças que conteriam as cinzas dos corpos cremados. Que não puderam ser examinadas, pois são “sagradas”.

Sem prova alguma de nada, a Procuradoria da República denunciou por crime de genocídio 24 garimpeiros, acrescentando mais um aos relacionados pela Polícia Federal. Pela primeira vez o Ministério Público apresentou à Justiça brasileira este tipo de denúncia, revelando uma notável falta de que fazer. Os 24 indiciados — em geral por apelidos — passaram a arriscar uma condenação de 30 anos de prisão. Parlamentares, bispos e cardeais, diplomatas, policiais, militares, jornalistas, todos foram envolvidos pela “chacina” e dela se tornaram cúmplices. Congresso Nacional, Forças Armadas, Conselho de Defesa Nacional, Igreja Católica, imprensa nacional e internacional, enviados especiais e correspondentes do exterior, governo brasileiro e governos estrangeiros, todos caíram no conto do genocídio.

 

A vida imita a tese — Segundo o procurador Aurélio Rios, entrevistado por ocasião da “chacina”, o crime de genocídio é “do tipo que exige a comprovação de sua materialidade. O assassinato de seis ianomâmis no final de julho não resultou em abertura de inquérito porque os corpos não foram encontrados”.

Segundo o coordenador regional judiciário da Polícia Federal de Manaus, Lacerda Carlos Júnior, que acompanhava em Boa Vista as investigações, “enquanto não forem localizados os corpos dos índios mortos, não se poderá admitir a hipótese de uma chacina que, segundo a versão da Funai e da Procuradoria-Geral da República, matou 73 pessoas”.

Na falta de cadáveres, recorreu-se ao testemunho do antropólogo norte-americano Bruce Albert, para dar um fecho de ouro à affaire. Não que Bruce Albert tivesse testemunhado os fatos. Ele apenas traduziu o relato de índios que “teriam” sobrevivido à chacina. Com exclusividade, a “Folha de São Paulo” (03/10/93) contou a “história secreta do massacre”.

Bruce Albert defendeu sua tese de doutorado, “Temps du Sang, Temps des Cendres”, na universidade de Paris-Nanterre. O título é sugestivamente aliterativo: sang, cendres. Mais uma vez a vida imita a arte: tempo de sangue, tempo de cinzas. O olhar premonitório do antropólogo, que na época estava elaborando a biografia de Davi Kopenawa — que pretendia se candidatar a deputado federal em 94 — antecipou a chacina. “Houve muita imprudência com os números”, disse Bruce Albert. “Não vejo a possibilidade de terem morrido mais de 70 índios na região”, declarou então. Mais tarde, desmentindo inclusive seu potencial biografado, que ouviu falar de 19 mortos na Rádio Nacional, reduziu para 16 o número de mortos e dividiu o massacre em dois anos. Mas jamais se viu um único cadáver tangível, fotografável.

Bruce Albert teve então a ocasião de brandir sua tese: “Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças, cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos”.

Ou seja: não havia cadáveres porque foram reduzidos a cinzas. Estas não podiam ser examinadas porque seriam destruídas em ritos funerários. E os assassinos — ou seja, os garimpeiros em geral — deviam ser impedidos de entrar em “território ianomâmi”, conclui o cidadão norte-americano que, pelo jeito, goza de fé pública ante as autoridades brasileiras.

Que foi feito das pernas, braços, cabeças cortadas e fetos arrancados de ventres de mulheres grávidas, denunciados à agência de notícias “Ansa”, pelo então Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira? Por mais perversos que fossem os garimpeiros — e por que o seriam? — quem tem estômago para cortar pernas, braços, cabeças e arrancar fetos de seres humanos? Os 19, 40, 73, 89, 120 e finalmente 16 cadáveres dos chacinados, anunciados nas primeiras páginas dos jornais do mundo todo, jamais foram encontrados. Nem mesmo os míseros três corpos “encontrados” inicialmente pela Polícia Federal.

O monte de cadáveres de ashaninkas, massacrados pelo Sendero Luminoso, na mesma época, não comoveu a imprensa nacional e internacional. Este massacre no Peru não foi denunciado pelas ONGs à ONU e à Corte de Haia. Quando índios matam dezenas de brancos no Brasil, entre estes os funcionários da entidade da qual recebem assistência, jamais se fala em massacre.

Quando o sertanista Gilberto Pinto foi trucidado pelos waimiris-atroaris em 1974, descobriu-se que até então os índios haviam matado nada menos que 62 funcionários da Funai. Toda vez que ocorria uma chacina — com cadáveres reais, tangíveis —, a Funai oferecia novos presentes aos índios. Em declaração ao Estado de São Paulo, disse um major-engenheiro do Sexto Batalhão de Engenharia: "o índio passa a acreditar que o mal que ele praticou é um bem para os brancos. E volta a praticar novas chacinas, novos assaltos".

Mas estes cadáveres não merecem manchetes internacionais. São cadáveres de brancos, os causadores da “maior catástrofe da história humana”.

 

Genocídio ou panelocídio? — A Polícia Federal brasileira investigou supostos crimes que, se tivessem ocorrido, teriam ocorrido na Venezuela. Este imbroglio — nem o ministro da Justiça sabia em que país estava quando visitou o local do “crime” — gera algumas indagações. Desde quando um crime cometido em país estrangeiro é tipificado pela legislação brasileira e investigado por policiais brasileiros? Qual legislação julgaria os 23 garimpeiros denunciados pela PF brasileira por um crime que — se tivesse ocorrido — teria sido cometido fora do Brasil? Desde quando fotos de cabaças que conteriam cinzas constituiram provas para qualquer tribunal?

Como cremar cadáveres — que em fornos modernos exigem 1360 graus centígrados durante duas horas, deixando resíduos de dois quilos de ossos misturados com resíduos de carne — em fogueiras rápidas no solo úmido de uma floresta tropical?

Dia 19 de dezembro de 1996, o juiz federal Itagiba Catta Preta, de Boa Vista, Roraima, fechou com chave de ouro a ficção alimentada durante três anos pela imprensa: condenou a vinte anos de prisão cinco garimpeiros, por genocídio praticado contra ianomâmis em 93. Dois garimpeiros responderam o processo em liberdade e três à revelia.

Cadáveres, nenhum. Mas o juiz Catta Preta não tem dúvidas de que houve o massacre. Como prova do crime, aceitou laudos de antropólogos sobre os hábitos culturais dos ianomâmis — a história das cinzas, formulada por Bruce Albert —, além do depoimento de sobreviventes. “Pelos depoimentos colhidos, não tenho dúvida de que pelo menos doze índios foram mortos”.

Se morreram na Venezuela, para Catta Preta tanto faz. Segundo ele, o código penal prevê que o genocídio, quando praticado por brasileiros, fica sujeito à lei brasileira. Seria interessante sabermos o que pensam disto os venezuelanos.

Sem cadáver não há crime, diz a boa doutrina jurídica. Os garimpeiros foram condenados por um crime que não houve. Pior ainda, pelo assassinato de índios de uma tribo que não existe. Tão flagrante foi a farsa que até hoje não se tem notícias de nenhum garimpeiro preso. Naquele dia, em Roraima, foi atada com nó de tope a maior farsa jornalística, política e jurídica jamais ocorrida no Brasil, com sérias conseqüências para a integridade territorial do país.

A imprensa registrou alguns sinais de violência na aldeia venezuelana onde teria ocorrido o massacre, várias panelas perfuradas por tiros. E só. Teríamos então um panelocídio, figura que jamais foi contemplada por qualquer código penal.

 

A ficção da fotógrafa — Se o antropólogo Napoleon Chagnon constatou a existência de uma tribo de ianomâmis na Venezuela, a extensão desta etnia a territórios brasileiros está longe de ser uma evidência. O blefe do massacre de ianomâmis em 93 repousa sobre um blefe anterior, ou seja, a existência de uma tribo ianomâmi no Brasil. Quem faz esta denúncia é o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, em A Farsa Ianomâmi (Rio, Biblioteca do Exército Editora, 1995). Em função de seu ofício, o militar gaúcho trabalhou em Roraima desde 1969, onde teve estreito contato com a população da região e jamais ouviu falar em ianomâmis, palavra que invade a imprensa brasileira e internacional somente a partir de 1973.

Segundo Menna Barreto, Manoel da Gama Lobo D’Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos que cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome”.

Tampouco o leitor que hoje tenha 40 ou 50 anos jamais terá ouvido falar, em seus bancos escolares, da tal de tribo, que recebeu um território equivalente a três Bélgicas, como sendo suas “terras imemoriais”. Imemoriais desde quando? Desde há duas décadas?

O cerne do problema não é a preservação do índio e suas tradições. Nas últimas discussões sobre a questão no Brasil, geralmente omite-se um item, nada menos que o essencial: os protochanceleres da suposta nação ianomâmi reivindicam para seus protegidos um território de subsolo riquíssimo em ouro, diamantes, nióbio e cassiterita. Nenhuma ONG se preocuparia tão enfaticamente com as culturas dos miskitos na Nicarágua ou dos ashaninkas no Peru.

Para o coronel Menna Barreto, nada melhor que o idioma para definir a linhagem e contar a história dos grupos humanos. Em suas primeiras missões na região, encontrou os maiongongues — classificados no grupo Caribe — e os xirianás, uaicás e macus, falando línguas isoladas. Como os primeiros exploradores e cientistas estrangeiros, jamais ouviu falar de ianomâmis.

“É preciso ficar claro antes de tudo que os índios supostamente encontrados por Claudia Andujar são os mesmos de quando estive lá, em 1969, 1970 e 1971. Pode ser que, seduzidos com promessas, tenham concordado em renegar o próprio nome, deixando de ser os valentes que sempre foram, para se prestarem agora a esse triste papel. Ou, quem sabe, podem ter sido convencidos a vestir o apelido de “ianomâmis” por cima dos antigos nomes, numa forma de fantasia menos nociva aos valores e tradições indígenas... Entretanto, não é de se duvidar que, para cúmulo do desprezo pelos antropólogos nacionais, nada tenha sido feito para disfarçar a mentira e que, com exceção dos mais sabidos, eles continuem a ser os xirianás, os uaicás, os macus e os maiongongues de sempre, ficando essa história de “ianomâmis” só para brasileiros e venezuelanos”.

“Mas os índios tidos como ianomâmis são os mesmos que lá estavam de 1969 a 1971. Tenho certeza porque voltei à região em 1985, 1986, 1987 e 1988, como Secretário de Segurança, e vi as malocas nos mesmos lugares e os índios com as mesmas caras de antes. E, muito embora essa afirmação possa parecer temerária, pela dificuldade de distinguir-se um índio do outro na mesma tribo, é fácil de ver que, se nesses vinte anos não se registrou nenhuma ampliação de malocas, nem há notícia da ocorrência de epidemias ou guerras entre eles, os atuais habitantes são os mesmos visitados por mim, quando Comandante da Fronteira ou, então, são descendentes deles”.

Para este gaúcho que conheceu de perto — e de longa data — as tribos de Roraima, não é permissível enquadrar grupos tão distintos em uma única nação, “apagando-lhes as diferenças e variações culturais, quando a Antropologia tem como objetivo, ao contrário, salientá-las”. Segundo Menna Barreto, as diferentes tribos hoje designadas genericamente pelo gentílico ianomâmi, são bem definidas e distintas entre si.

 

Ianomamização — Prossegue Menna Barreto: “os uaicás, por exemplo, têm conseguido, ao contrário dos demais, manter-se praticamente imunes a influências estranhas, seja pelo terror que sua ferocidade infunde, seja pela precaução instintiva de se retraírem para evitar a própria degeneração e o ocaso no convívio com culturas mais avançadas. Os xirianás, no entanto, não puderam evitá-las em suas tribos do Alto Uraricaá, do Motomotó e do Matacuni, mais sujeitas à força do gregarismo humano nas condições singulares que viveram. Os primeiros mantém estreito relacionamento com seus vassalos auaqués e um rudimentar comércio com vizinhos do grupo caribe. Os do Matacuni, por sua vez, vinculam-se cultural e comercialmente aos iecuanás do Alto Auari”.

Os xirianás do Matacuni e do Uraricaá, segundo o autor, após terem exterminados os maracanãs, os purucotós e os auaqués, tornaram-se mansos e sedentários. Já seus irmãos do Motomotó, em sua limitada parceria com os macus, só alcançaram uma certa habilidade artesanal e uma relativa moderação da brutalidade primitiva. Outra parcela da tribo, das nascentes do Orenoco e do Médio Mucajaí, conservam o nomadismo e hábitos selvagens, sendo incapazes de construir malocas com troncos fazer canoas ou plantar roças. Ainda na mesma reserva ianomâmi, estariam os iecuanás-caribe, apelidados de maiongongues pelos macuxis e de maquiritares pelos venezuelanos, mais os remanescentes das tribos guinaú e iauaraná.

“Com tamanha profusão de línguas, raças e culturas, é indevido e absurdo” — escreve Menna Barreto — “classificar-se todos de ianomâmis. Fechar os olhos a esta evidente farsa para favorecer interesses escusos de outros países, em detrimento do Brasil, mais do que escândalo é traição”.

Claudia Andujar, em verdade, ianomamizou uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os “ianomâmis” passaram a “existir”. Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação. Cabe lembrar que a profissão de antropólogo, como a de prostituta ou psicanalista, não estão regulamentadas por lei no Brasil.

Mesmo assim, em 1992, por um punhado de linhas na mídia internacional, o então presidente Fernando Collor de Mello avalizou a ficção de Andujar, entregando três Bélgicas a dez mil índios (ou talvez menos da metade disso), que só passaram a ser ianomâmis a partir de 1973. Milagre do jornalismo eletrônico: jamais se construiu uma nação em tão pouco tempo.

 

A visão do antropólogo — Com suas fotografias, Claudia Andujar transmite urbi et orbi uma visão idílica de seus índios ianomamizados: seres quase etéreos, angelicais, em perfeita harmonia consigo próprios, com os seus e com a natureza. À ficção da fotógrafa opõe-se a visão de um antropólogo, o americano Napoleon Chagnon, que estuda o problema há mais de 30 anos e viveu 60 meses em aldeias ianomâmis na Venezuela, precisamente o país onde teria ocorrido — caso tivesse ocorrido — a "chacina".

Em Yanomamö (Stanford University, 1992), Chagnon descreve um povo primitivo que faz a guerra para obter as mulheres do inimigo morto. Seu estudo em nada fecha com as imagens edênicas da fotógrafa. Falando de sua experiência junto ao grupo do ianomâmi Kaobawa, diz o antropólogo:

“Among the more significant results of my analysis were the following facts, which put the nature and extent of violence among Kaobawä’s people into regional perspective:

1. Approximately 40% of the adult males participated in the killing of another Yanomamö. The majority of them (60%) killed only one person, but some men were repetitively succesfull warriors and participated in the killing of up to 16 other people.

2. Approximately 25% of all deaths among adult males was due to violence.

3. Approximately two-thirds of all people aged 40 or older had lost, through violence, at least one of the following kinds of very close biological relatives: a parent, a sibling, or a child. Most of them (57%) have lost two or more such close relatives. This helps explain why large numbers of individuals are motivated by revenge.

“The most unusual and impressive finding, one that has been subsequently discussed and debated in the press and in academic journals, is the correlation between military sucess and reproductive success among the Yanomamö. Unokais (men who have killed) are more successful at obtaining wives and, as a consequence, have more offspring than men their own age who are not unokais.

“The most pausible explanation for this correlation seems to be that unokais are soccialy rewarded and have greater prestige than other men and, for these reasons, are more often able to obtain extra wives by whom they have larger than average number of children. Thus, ‘cultural success’ leads, in this cultural/historical circunstance, to biological success.”

Chagnon nos mostra um agrupamento de indivíduos no qual a violência física, o assassinato e mesmo o infanticídio fazem parte do cotidiano. A criança não desejada é morta após o parto. As mulheres são continuamente espancadas e mesmo cortadas com facões e machados e inclusive recebem flechadas em áreas não vitais, como as nádegas ou pernas. Isso quando não são assassinadas. O autor nos narra o diálogo entre duas mulheres, que discutem suas cicatrizes no couro cabeludo. Uma considera que o marido da outra deve gostar muito dela, já que a espanca tão freqüentemente.

Os ataques a aldeias vizinhas para matar um ou mais habitantes e raptar mulheres constituem práticas normais para os guerreiros. No decorrer do livro de Chagnon, temos um desfile de assassinatos e massacres de índios por índios, narrados ao autor com a naturalidade de quem faz uma crônica social da oca.

 

Uma Cuba para latifundiários — Os uaicás, xirianás, iecuanás, macus e maiongongues, segundo Menna Barreto — ou ianomâmis, como os rebatizou Andujar — têm hoje a posse de 9,4 milhões de hectares, uma extensão territorial que jamais conseguirão controlar. Não bastasse esta imensidão de terras entregue por Collor de Mello a um punhado de seres primitivos, incapazes de constituir ou gerir um Estado, o presidente Fernando Henrique Cardoso acaba de demarcar uma área ainda maior, de 10,6 milhões de hectares (território equivalente a Cuba) na região conhecida como Cabeça do Cachorro, no noroeste do Amazonas. A demarcação, feita com patrocínio do G-7 (grupo formado por EUA, Japão, Canadá, Alemanha, França, Grã-Bretanha e Itália) revoga e engloba 14 "ilhas" descontínuas, criadas durante o governo Sarney (1985-90). Antes da nova demarcação, as 14 "ilhas" tinham apenas 2,6 milhões de hectares. Esta Cuba será entregue a cerca de 30 mil índios, quase 10% da população indígena do Brasil, espalhados em 600 comunidades de 23 etnias, como baré, suriana, maku, baniwa e tucano, entre outras.

Detentores de 11% do território nacional, os 325 mil índios brasileiros se candidatam fortemente à condição de maiores latifundiários do planeta. Ironicamente, habitam o mesmo país em que o Movimento dos Sem-terra (grupos armados de fuzis, foices e facões, organizados pela Igreja Católica) invade e desmonta propriedades produtivas, com técnicas de guerrilha e sob as bandeiras de Mao Tse Tung e Che Guevara. Alegam os defensores dos “povos da floresta” que todo o território brasileiro lhes pertencia, antes da chegada dos portugueses. Ocorre que os nativos não pediram passaporte a Cabral, nem lhe exigiram visto de entrada. Ora, sem Estado constituído, povo algum pode pretender a posse de qualquer território.

Postos em quarentena pela antropologia militante, isolados deste século por uma política oficial de Brasília, uma merencória opção é deixada aos autóctones de Pindorama: morrer de fome ou depender da caridade pública. Integrar-se ao século XX, jamais: os antropólogos precisam preservar, congelados no tempo, seus objetos de estudo.

E assim prepara-se o Brasil para entrar no terceiro milênio. Deixando para trás, perdidos no passado, seus primeiros habitantes.

 

* Leia Ianoblefe, em ebooksbrasil.org

(Publicada sob título “The Yanomami Bluff and other Myths”, in Brazzil, Los Angeles, março 99)


 

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