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O Supremo Apedeuta

Janer Cristaldo


 

 

O Supremo Apedeuta
Janer Cristaldo

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©2012 — Janer Cristaldo

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O Supremo
Apedeuta

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Janer Cristaldo


 

Índice

Sobre Maimônides
A afetos e desafetos
A interlocutores e leitores
A extinção do mulato
Biólogo manipula pingüins
A eficácia do terror
Hipocrisia muçulmana
Legislando em terra alheia
Civilização é rir
O direito de ofender
Em defesa do direito ao estupro
As esquerdas e o ódio aos eucaliptos
A prostituição do mercado livreiro
Che ressuscita do lixo
1º de Abril
Quem traiu quem?
O Supremo Apedeuta
Volta às trevas
Aiatolices ameaçam Europa
Até lá, morreu o Neves
Clotilde
A farsa do toque de recolher
Quando verdade é crime
Testemunha do Além absolve na Terra
Saudades do Obdulio
Cavacos do ofício
As três vias de acesso
Ontem heróis, hoje leprosos
Bento, Franco e Vicente
Nazismo negro e guilda branca
A impropriedade dos marasmos
O bode eletrônico
PCC e PT, o mesmo combate
Azaléias de agosto
Armadilha para homossexuais
Sobre conceitos
Nós, os imorais
Maomé, espada e Cristo
Os croissants e a arrogância dos sarracenos
A memória do burro
Não minta, presidente!
A carne é forte
Ad usum Delphini
Triste país este meu
Ridículo se instala na Casa Branca
Com a nonchalance de um Deus
Dia da Suequinna
De Ratramno a Radberto
Santiago segundo Littín
Herói é quem mata mais
Marta, Marta...


 

Sobre Maimônides

12/12/2005

 

Vivo em Higienópolis, bairro judeu, cujos costumes e rituais me soam bastante estranhos.

Aos sábados, quando chove, senhores e senhoras elegantes se cobrem com capinhas vagabundas de plástico, dessas que se compra a cinco reais nas bancas de revista. Casais nunca se dão as mãos. Em um determinado dia do ano, homens engravatados e bem postos não usam sapatos, apenas tênis. Aos poucos, comecei a descobrir as firulas da ortodoxia judaica. Usam capas no sábado, porque no sábado um judeu não pode portar um guarda-chuva. A rigor, não pode nem apertar um botão de elevador. O que faz com que apartamentos de primeiro andar sejam muito valorizados. Há inclusive no bairro um prédio com um elevador casher: aos sábados, ele pára em todos os andares sem que nenhum botão precise ser acionado.

Judeu não dá a mão a uma mulher porque ela pode estar impura, isto é, menstruada. Neste sentido, no ano passado, quando ainda prefeita, Marta Suplicy pagou uma gafe monumental. Num encontro com rabinos, foi logo estendendo a mão. Que restou inútil, balançando no ar. Henry Sobel, mais diplomático, ousou responder ao gesto da pustulenta.

Quanto ao uso de tênis, ocorre no Yom Kipur, quando um judeu não pode usar sapatos de couro.

Com essa moda de espalhar vacas em fibra de vidro pela cidade, uma delas esteve plantada frente à praça Buenos Aires, tendo no corpo o desenho dos cortes casher da carne.

Olhando-a mais detidamente, vi que nela não existiam filé nem picanha. Consultei amiga entendida nesta estranha gastronomia, que rejeita o melhor do boi. Não pode, me disse ela. São carnes que ficam perto do nervo ciático. Como palavra puxa palavra, fiquei sabendo ainda que judeu não come crustáceos. Nada de lagosta, camarão, ostras ou mexilhões. Nem mesmo polvos. Vá lá se entender por quê. À ortodoxia, o bem bom sempre soa como pecaminoso.

Vivendo e aprendendo. Estes senhores hebreus, que parecem tão modernos e civilizados, no fundo não se distinguem muito, em suas práticas, de seus primos muçulmanos e obsoletos.

Enfim, para entender a estirpe, consultei amiga judia. Que me recomendou ler Maimônides, um dos rabinos e teóricos mais prestigiados da história do judaísmo. Médico sefardita, conhecido entre os muçulmanos como Abu Imram Musa ben Maimun Ibn Abdala, Maimônides nasceu em Córdoba, em 1135 e morreu em 1204. Também conhecido como Rambam, escreveu vários ensaios, médicos e religiosos, desde um tratado sobre as hemorróidas até o que é considerado sua obra maior, o Guia dos Perplexos.

Mas um de seus livros me atraiu de cara: Os 613 Mandamentos.

Só o título já intriga. Se lembrar dez já é às vezes difícil para muito cristão, imagine lembrar 613. São 248 preceitos positivos e 365 negativos. Suponho que o judeu temente ao Enaltecido deve andar sempre com um no bolso, para consultar o que pode ou não pode fazer. Colho algumas pérolas entre as 365, para deleite dos leitores goyin. Começo pelos preceitos positivos.

185 - Destruir todo tipo de idolatria na terra de Israel

Por este preceito somos ordenados a destruir todo tipo de idolatria e seus templos por todas as maneiras possíveis de destruição e aniquilação: quebrar, queimar, demolir e rasgar, usando, para cada objeto, o meio apropriado para que a destruição seja feita o mais completa e rapidamente possível, pois a intenção é que não reste nem traço dele. Isso está expresso em Suas palavras, enaltecido seja Ele, "Certamente destruíreis dos lugares" (Deuteronômio, 12:2), em "Mas assim fareis com elas: seus altares derrubareis etc." (Ibid. 7:5) e novamente em "Porém seus altares derrubareis" (Êxodo, 34:13).

186 - A lei da Cidade Apóstata

Por este preceito somos ordenados a matar todos os habitantes de uma Cidade Apóstata e a queimá-la com tudo que houver nela. Esta é a Lei da Cidade Apóstata, e ela está expressa em Suas palavras, enaltecido seja Ele, "E queimarás no fogo, a cidade e todo o seu despojo, inteiramente" (Deuteronômio, 13:17). As normas deste preceito estão explicadas no Tratado Sanhedrin.

187 - A guerra contra as Sete Nações hereges

Por este preceito somos ordenados a exterminar as Sete Nações que habitavam a terra de Canaã, porque eles constituíram a raiz e primeiro fundamento da idolatria. Este preceito está expresso em Suas palavras, Enaltecido seja Ele, "Mas destrui-los-ás". (Deuteronômio 20:17). Está explicado em vários textos que o objetivo disso era evitar que imitássemos sua heresia. Há vários trechos nas Escrituras que nos incitam e insistem veementemente para que os exterminemos, e a guerra contra eles é obrigatória.

190 – A lei da guerra não obrigatória

Por este preceito somos ordenados quanto a guerras não obrigatórias contra nações. Caso entremos em guerra contra eles, somos obrigados a fazer um acordo com eles para poupar suas vidas se eles fizerem as pazes conosco e nos entregarem suas terras, e nesse caso eles deverão nos pagar tributos e ser nossos súditos. Este preceito está expresso em Suas palavras, enaltecido seja Ele, “Te será tributário ou te servirá” (Deuteronômio 20:11). A esse respeito, diz o Sifrei: “Se eles disserem ‘nós concordamos com os tributos mas recusamos a servidão’, ou ‘concordamos com a servidão, mas nos recusamos a pagar os tributos’, não devemos concordar: eles devem aceitar as duas condições” (...) Contudo, se eles não fizerem a paz conosco, somos ordenados a matar toda a população masculina, jovens e velhos, e a tomar tudo que lhes pertence, inclusive suas mulheres. Este preceito está expresso em Suas palavras, enaltecido seja Ele.

235 – A lei sobre o escravo cananeu

Por este preceito somos ordenados quanto à lei sobre um escravo cananeu; ela diz que ele deve ser escravo para sempre e que não pode adquirir sua liberdade a não ser por causa de um dente ou um olho (se o dono do escravo lhe causar a perda de um dente ou de um olho), ou por causa de qualquer outro órgão do corpo que não torne a crescer, de acordo com a interpretação tradicional. Este preceito está expresso em Suas palavras “Perpetuamente vos farei servir deles” (Levítico 25:46) e, “E quando ferir um homem o olho de seu escravo etc.” (Êxodo 21:26).

Vejamos alguns preceitos negativos.

49 - Não poupar a vida de um homem das Sete Nações Idólatras

Por esta proibição somos proibidos de poupar a vida de qualquer homem que pertença a uma das Sete Nações para evitar que eles corrompam as pessoas e as levem para o caminho errôneo da idolatria. Esta proibição está expressa em Suas palavras, enaltecido seja Ele, "Não deixarás com vida todo que tiver alma" (Deuteronômio, 20:16). Matá-los constitui um preceito positivo, como explicamos ao tratar do preceito positivo 187. Todo aquele que transgredir esta proibição, deixando de matar todo aquele que ele poderia ter morto estará infringindo um preceito negativo.

257 – Não utilizar um servo hebreu para executar tarefas degradantes

Por esta proibição somos proibidos de utilizar um escravo hebreu para executar tarefas domésticas degradantes, como as que são executadas pelos escravos cananeus. Ela está expressa em Suas palavras, enaltecido seja Ele, “Não o farás servir com serviço de escravo” (Levítico 25:39).

Curiosamente, mais adiante lemos:

289 – Não matar um ser humano

Por esta proibição somos proibidos de matar-nos uns aos outros. Ela está expressa em Suas Palavras “Não matarás” (Êxodo 20:13), e todo aquele que violar este preceito negativo será decapitado. O Enaltecido diz: “Do meu altar o tirarás, para que morra” (Ibid., 21:14)

O sábio rabino parecia ser curto de memória. Vejamos outro preceito, logo adiante:

310 – Não deixar viver um feiticeiro

Por esta proibição somos proibidos de permitir que um feiticeiro viva. Ela está expressa em Suas palavras “Feiticeira não deixarás viver” (Êxodo 22:17), Permiti-lo é quebrar um preceito negativo, e não somente um preceito positivo, como no caso de perdoar um malfeitor que esteja sujeito à morte por sentença judicial.

E por aí vai. Grande humanista, o santo e sábio Maimônides. Que o Enaltecido o tenha em sua glória. Verdade que não é muito original. Estes preceitos sanguinolentos emanam dos livros da Torá, sempre citada pelo magnânimo rabino. E depois os judeus se queixam de ser uma raça perseguida.


 

A afetos e desafetos

03/01/2006

 

Nasci no campo e só fui conhecer cidade aos dez anos. Para chegar até a cidade, percorri de bicicleta 60 km de uma estrada de barro e areia. Verdade que a cidade decepcionou-me um pouco. Por influência de contos de fadas, fantasias orientais, eu imaginava a cidade como algo dourado e cheio de luzes. À medida que pedalava, fui entrando num conglomerado de casas mais ou menos cinza e com ruas poeirentas. Então aquilo era a cidade? Paciência.

Nem sempre se come pão quente. As cidades douradas e cheias de luzes, tive a ventura de conhecê-las mais tarde.

A imobilidade sempre me assustou. Antes de conhecer as cidades douradas e cheias de luzes, quando ainda existia trem no Brasil, fiz várias vezes o trajeto entre Dom Pedrito e Porto Alegre. Nessas viagens, eu procurava o último vagão, abria a última porta e me sentava nas escadinhas que davam para os trilhos. A paisagem ia fugindo, entremeada de casebres ao longo da ferrovia, casebres frente aos quais o trem jamais parava. Eu tentava imaginar a vida daqueles tristes seres, sempre imóveis, vendo o trem passar todos os dias e sem ambição alguma de viajar. Sentia-me um privilegiado, passando, enquanto eles eternamente ficavam.

Os contos de infância são poderosos. Mal saí da faculdade, qual um Schliemann em busca de Tróia, fui à conquista das cidades douradas. O pai de Heinrich Schliemann costumava ler para o filho os versos de Homero, mas jamais lhe passou pela cabeça que Tróia existisse. O pequeno Heinrich acreditava em Tróia. O pai dizia que tudo não passava de lenda. Certo dia, quando Heinrich trabalhava em um bar, ouviu estudantes recitando Homero em grego antigo. E lembrou-se: “eu preciso descobrir Tróia”. (A propósito: se alguém anda com vontade de ler algo fascinante, procure em algum sebo Schliemann – História de um buscador de ouro, de Emil Ludwig. É uma das mais fascinantes aventuras do espírito humano). E acabou descobrindo-a. Mais ainda: reuniu um grupo de gregas e escolheu entre elas sua mulher, a que mais se parecia com Helena. Ela aproximou-se de Heinrich recitando Homero em grego antigo. Ao casar, engalanou-a com as jóias de Helena.

Divago. Comecei a viajar e não parei mais. Em Estocolmo, fui contaminado por uma insidiosa doença nórdica, a resfeber. Febre de viagens, em bom português. É doença que não tem cura. Uma vez contraído o vírus, você acaba viajando até morrer. Bem entendido, nunca consegui amealhar patrimônio sólido. Pedra que rola não cria limo, diz-se na fronteira gaúcha. Mas resta sempre um patrimônio mais valioso.

Aprendi isto com uma amiga sueca. Era guia de turismo, profissão reprovada por sua família, já que não levava a grandes ganhos. Estávamos nos anos 70, quando o fantasma soviético ainda rondava a Europa. “Meus pais reclamam” – me dizia Lena – “Mas se os russos invadirem a Suécia, podem tomar minhas posses. Mas minhas viagens eles não levam”.

Não que as cidades fossem exatamente douradas. Mas eram cheias de cores durante o dia e cheias de luzes à noite. Brancas de neve, ocres e vermelho-salmão, com cúpulas douradas com a pátina verde do tempo, e de um dourado esplendoroso no outono. As estações são pouco pronunciadas entre nós e quem nunca saiu do Brasil nunca viu um outono. Como também nunca viu um inverno. Nem talvez uma primavera. No Brasil, em verdade, só existe verão.

Há quem inveje – no bom sentido – minha vida errante. Em vez de invejar, melhor seguir-me. O deslocamento no planetinha democratizou-se nas últimas décadas. Se você deixar de lado veleidades como casa na praia, carro próprio e outros sinais de status, toda viagem é viável.

Desde que você não viva de salário mínimo, bem entendido. Sempre que pensei em comprar carro, ao mesmo tempo ponderava: mas isso dá dois meses na Europa. Assim sendo, até hoje não tenho carro. Nem idéia do valor de IPVA, multas, flanelinhas, preços de parking.

Minha memória só retém matéria nobre: o sabor de um cochinillo no Sobrino de Botín, o bouquet de um Rioja no El Espejo, o odor acre de uma andouillete no Charpentiers, o chapéu encantador de uma menina no Relais de l’Odéon, uma brisa de primavera em Budapest arrepiando os braços, uma noite explodindo de estrelas nas montanhas de El Assekrem, o silêncio divino junto aos ventisqueros na Patagônia, cachoeiras caindo em Geiranger, um sol paranóico brilhando à meia-noite em Tromsø.

Memória é para guardar lembranças boas. O fisco me extorque, é verdade. Mas minhas viagens, não há Lula que as roube.

Se há quem me inveje, eu invejo não poucos leitores. Invejo, devo confessar, todo aquele que ainda não viajou. Este ainda tem preservada a excitação da descoberta, emoção que perdi para sempre. As cidades douradas me calaram tão fundo na alma que quando viajo tenho a sensação de estar voltando para casa. Como as cidades têm sempre uma estrutura semelhante, todo novo para mim é déjà-vu.

Ano novo, grandes propósitos. Aos leitores que invejo – aqueles que ainda não partiram – minha sugestão: partam logo. Se a meta for Europa, partam com urgência. Neste réveillon, 425 carros foram queimados na grande Paris. Segundo o Le Monde, “apesar dos temores, a noite do réveillon ocorreu sem maiores incidentes”.

Quando o mais importante jornal francês considera que 425 carros queimados em uma noite não constitui maior incidente, está na hora de partir antes que a França vire um Iraque.

Dispense excursões. Salvo para certos países ou regiões para onde é impossível viajar só, excursão é recurso de covardes, de quem teme enfrentar uma língua estrangeira ou renuncia ao prazer de perder-se nas vielas e meandros de cidades milenares. Nada mais prazeroso do que perder-se em uma noite silente nas ruela de Veneza ou Amsterdã, sem ter para quem perguntar qualquer coisa, tentando achar uma rua e sempre caindo nos canais.

Não se assuste com línguas que mais parecem doenças da garganta. Mesmo que você não entenda a língua do país onde está, a arquitetura, o traçado das ruas, os transportes, a gastronomia, os incidentes do dia-a-dia vão ensinar-lhe alguma coisa. Mesmo um analfabeto, ao voltar de uma viagem, volta menos analfabeto. Leve uma bibliografia mínima sobre as cidades que pretende visitar. Ler é inerente à viagem e torna o anecúmeno compreensível.

E fuja de cidades que não têm bares nem restaurantes nem álcool nem jornais. Bares e restaurantes são as salas de estar com que um país o recebe. Se não há salas de estar, é porque você não é bem-vindo.

Viajar é o mais requintado dos prazeres do espírito. Não permaneça imóvel na beira da ferrovia olhando os trens que passam. Parta, que a vida é curta. E a Indesejada das Gentes sempre é imprevisível. Viagem é patrimônio inalienável. Se o país afundar, se você entrar em falência, sua memória guardará um amplo acervo de bens que não podem ser alienados ou embargados.

A meus leitores, afetos e desafetos, bom 2006 e muita água sob a quilha.


 

A interlocutores e leitores

10/01/2006

 

Senhores Avraham Zajac, André Cardon, Sérgio Kalmus, senhora Marcella Becker e rabinos do Colel Iavne; meu caro Olavo de Carvalho; leitores que me escrevem dos Estados Unidos, Israel e Brasil:

Honrado por receber resposta de tão ilustres interlocutores e de tão digno colegiado.

Espanta-me, no entanto, ser considerado anti-semita. Logo eu, que já fui considerado sionista por condenar Arafat e a intifada, por condenar as pretensões árabes a Jerusalém e por defender, em meus artigos sobre o Oriente Médio, a política de Israel. Em 1989, fui o único jornalista gaúcho a protestar contra o estande da OLP na 2ª Bienal do Livro no Rio de Janeiro.

O estande da OLP – entidade que nada tem a ver com livros e muito tem a ver com fuzis e metralhadoras – tinha mais posters e camisetas de Arafat do que livros, e mantinha um vídeo reproduzindo permanentemente cenas da intifada. O mesmo estande esteve na Bienal do Livro de São Paulo, no ano anterior, e não vi jornalista algum falar em anti-semitismo.

Não é justo, senhores, desqualificar-me com a pecha de anti-semita. Ao longo de minha vida errante, cultivei e ainda cultivo não poucas amigas e amigos judeus, pelos quais tenho grande apreço. Diga-se de passagem, admiro duas características na comunidade judia: são pessoas sempre cultas e não fazem proselitismo. Há ainda dois ou três meses, em uma entrevista no Orkut, eu declarava: A recente retirada dos judeus dos territórios ocupados é uma rara demonstração de bom senso de Israel. Mas de pouco ou nada servirá para conter o ódio muçulmano. Os muçulmanos fundamentalistas têm por objetivo o fim de Israel e jamais cederão em seus propósitos. O muro que ora está sendo construído me parece ser, infelizmente, outra solução sensata. Tampouco vai resolver o problema, já que os dois povos estão profundamente entremesclados, mas impede em parte os ataques terroristas.

Uma pergunta se impõe: porque os vizinhos árabes, de área bem mais extensa que Israel, não oferecem território aos palestinos? Os palestinos lembram um pouco o MST. Eles não querem apenas terra, querem o poder. Terras, os palestinos já as têm. Por que continuam na miséria? Por que não conseguem a prosperidade de Israel?

Há ódios eternos. Eu suponho que daqui a mil anos os muçulmanos ainda estarão em guerra com Israel. É difícil encarar uma democracia triunfante – a única do Oriente Médio no pátio do vizinho. Os árabes teriam de chegar ao século XXI para se pensar em algum tipo de paz permanente. Mas eles correm com 400 anos de atraso.

Em 2002, Marilene Felinto, então cronista da Folha de São Paulo, glorificou as palestinas terroristas que se explodiam em Israel: “As mulheres-bombas muçulmanas são a glorificação do suicídio pelo estoicismo, pelo auto-sacrifício - elas agem no intuito de que a justa defesa do bem público prevaleça sobre o direito do agressor ao corpo e à vida”. O único jornalista brasileiro a denunciar a cumplicidade da colunista com o terror fui eu.

Em meu artigo, “Terror explode Ventres”, publicado em 05/04/2002, escrevi: “Gerar mortes, ao longo da história, sempre foi ofício masculino. Gerar vida, por natureza e definição, é atributo feminino. Os terroristas palestinos, em sua insânia, passaram a usar ventres como bombas. Até aí, nada de espantar. Terror não tem ética nem limites. O que causa espécie, em um jornal que se pretende defensor dos direitos humanos, é ouvir uma jornalista glorificando o terror. Logo agora que o terror passou a explodir mulheres”.

Isso sem falar no artigo citado pelos senhores e publicado no De Olho na Mídia, onde manifesto minha condenação ao terrorismo palestino que fustiga Israel. Causa espécie a meus interlocutores que o mesmo articulista que escreveu “Mídia canoniza Nobel terrorista”, a propósito de Arafat, tenha escrito a crônica “Sobre Maimônides”. Posso assegurar-lhes, senhores, que o articulista é o mesmo. Continua condenando o terrorismo de Arafat, ao mesmo tempo em que não aceita as proposições de Maimônides. Ou da Torá, como quisermos.

Deixo os ataques pessoais de lado e vou ao cerne da questão, os hábitos da comunidade judaica de Higienópolis e os preceitos de Maimônides. Escrevem meus contestadores: “O articulista do Mídia critica os judeus por não apertarem botões aos sábados, e por andarem de capas de chuva “vagabundas”, ao invés de guarda-chuvas. Se sente incomodado por eles não darem mãos a mulheres em público e por andarem de tênis no dia mais santo judaico, o Dia do Perdão, o Yom Kipur”. (...) “Agora são apontados e menosprezados por usarem ‘capas de chuva vagabundas’ e ‘tênis em lugar de sapato’”

Ora, em momento algum critiquei os judeus por não apertarem botões nem declarei sentir-me incomodado por não darem as mãos às suas mulheres. Em momento algum menosprezei alguém por usar capas de chuva ou tênis. Tênis é calçado que uso quase diariamente. Como cidadão do Ocidente, apenas manifestei minha estranheza em relação a tais comportamentos (por exemplo, usar tênis com terno e gravata), e nada mais que isso.

Considerei-os obsoletos, e não me parece que considerar obsoletas determinadas práticas possa constituir anti-semitismo. Considero estratégia mesquinha colocar palavras ou intenções na boca de um interlocutor para melhor atacá-lo.

“Um homem, mesmo tendo 100% de certeza de que uma mulher não está menstruada – escrevem meus contestadores – e ainda que seja sua esposa; mesmo assim, pelas leis mais estritas judaicas, não pode cumprimentá-la em público. E porque? Por questão de recato. Para preservar carinhos e troca de afagos para os momentos íntimos e particulares com a sua amada”.

Ora, não vejo nenhuma falta ao recato em dar a mão a uma mulher. Assim fosse, todos os cristãos deste país seriam despudorados irremediáveis. Meus interlocutores parecem não ter lido a Torá. Lá está, em Levítico 15:19-24: “E mulher, quando tiver fluxo, e o fluxo da sua carne for de cor sangüínea, sete dias ficará separada na sua impureza; e todo aquele que tocar nela será impuro até a tarde. E tudo sobre o que se deitar na sua impureza será impuro, e tudo sobre o que ela se sentar será impuro. E todo que tocar no seu leito, lavará suas vestes, se banhará em água e será impuro até a tarde. E quem tocar sobre o leito ou sobre o objeto em que ela está sentada, tocando neles, será impuro até a tarde. E se um homem deitar com ela, a sua impureza passará sobre ele, e ficará impuro sete dias; e toda cama em que ele se deitar, se fará impura”. Ora, para mim, cidadão ocidental e vivendo neste século, soa muito estranho considerar impura uma mulher em seus dias de menstruação.

Como não quero estender-me em uma discussão que já se arrasta por demasiado tempo, vou ater-me apenas a dois tópicos mais. Segundo meus interlocutores, não mencionei que a cidade apóstata era um local onde o assassinato e o roubo eram institucionalizados, e onde 100% dos habitantes eram idólatras, que faziam sacrifícios humanos, de crianças e virgens para seus deuses?”. Logo após afirmam: “o Talmud diz que nunca houve uma cidade apóstata no mundo, onde 100% das pessoas eram idólatras, ficando o preceito válido apenas como norma dissuasória, e não para aplicação na prática”.

Assim sendo, o preceito 186 era ocioso e não precisava ter sido escrito.

Para concluir, meus interlocutores afirmam: “Curioso é notar, que na verdade, os ataques do articulista não são contra o rabino, como ele faz parecer. São contra a bíblia em si, já que tudo que Maimônides fez foi compilar estas leis”. Bingo! Descobriram a América. Ora, desde meus 17 anos venho expondo minhas objeções à Bíblia e, neste nosso mundo ocidental, por enquanto pelo menos, não é crime tecer críticas à Bíblia. Afinal, não vivemos em sociedades como a islâmica, onde a menor crítica ao Corão é respondida com uma fatwa.

E já que da Bíblia se trata, quero transcrever este momento que encontro em minha Torá, em Deut. 7:1-5: "Quando te levar o Eterno, teu Deus, à terra à qual tu vais para herdá-la, e lançar fora muitas nações de diante de ti: o Hiteu, o Guirgasheu, o Emoreu, o Cananeu, o Periseu, o Hiveu e Jebuseu - sete nações numerosas e mais fortes do que tu -, e as dará o Eterno, teu Deus, diante de ti e tu as ferirás; tu as destruirás totalmente, não farás aliança alguma com elas e não lhes darás pousada na terra. (...) Mas assim fareis com elas: seus altares derrubareis, suas Matsevot quebrareis, suas árvores idolatradas cortareis e seus ídolos queimareis no fogo".

Minha pergunta: por que destruir as cidades dos heteus, dos gergeseus, dos amorreus, dos cananeus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus? Por que derrubar seus altares, quebrar suas Matsevot, cortar suas árvores idolatradas e queimar seus ídolos?

Há alguma diferença entre este propósito e as declarações do presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad, do dia 26 de outubro passado: “O Estado sionista ocupante de Jerusalém deve ser varrido do mapa”? Pelas mesmas razões que não aceito os propósitos de Ahmadinejad não posso aceitar estas prescrições da Torá.

Last but not least, em seu último artigo, Olavo de Carvalho escreve: “nós aqui assumimos a plena responsabilidade moral do que publicamos, e não nos sentimos isentos de culpa pelo que Janer Cristaldo escreveu. Ao contrário, assumimos essa culpa”. Ora, caro editor, não precisa assumir. Ao pé de cada artigo do MSM está escrito: “Os artigos publicados com assinaturas no MSM são de responsabilidade exclusiva de seus autores”.


 

A extinção do mulato

17/01/2006

 

Movimentos ecologistas estão preocupados com a extinção de baleias, ursos polares, micos-leões-dourados e outras espécies. Pessoalmente, estou preocupado com outra espécie bem mais próxima e mais valiosa, os mulatos e as mulatas. Que, dependendo da inépcia de nossos legisladores, em breve será extinta. Pelo menos do ponto de vista legal. É o que propõe um monstrengo jurídico, de autoria do senador Paulo Paim, o projeto de lei n° 3.198/2000, também chamado de Estatuto da Igualdade Racial. Já foi aprovado pelo Senado e tramita em regime de prioridade na Câmara dos Deputados. De uma só tacada, Paulo Paim extermina legalmente os mulatos do território pátrio: “Para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”.

Demorou mas chegou até nós. Está sendo introduzida legalmente no Brasil a classificação ianque, que só consegue ver pretos e brancos em sua sociedade e nega a miscigenização.

Este sórdido projeto é antigo, fruto da exportação dos conflitos raciais dos Estados Unidos para um país onde o negro sempre conviveu bem com o branco, tanto que o mulato constitui um contingente considerável da população. Mal foi eleito, o Supremo Apedeuta saiu arrotando urbi et orbi que o Brasil era a segunda nação negra do mundo, depois da Nigéria.

Até mesmo uma pessoa aparentemente culta, como Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, prestou-se a corroborar o sofisma safado: “Como declarou o presidente Lula, o estreitamento das relações com a África constitui para o Brasil uma obrigação política, moral e histórica. Com 76 milhões de afrodescendentes, somos a segunda maior nação negra do mundo, atrás da Nigéria, e o governo está empenhado em refletir essa circunstância”. Ao colocar todos afrodescendentes no mesmo saco dos negros, o ministro demonstra que, nos círculos do poder, mesmo homens cultos se dobram à bajulação.

Ora, segundo o IBGE, a população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus.

Com o projeto do senador, não teremos mais mulatos (ou pardos, no jargão do IBGE), mas apenas afro-brasileiros. O que os ativistas negros esquecem é que o mulato pode denominar-se tanto afro-brasileiro como euro-brasileiro. A tônica no afro tem intenções óbvias: aumentada artificialmente a população negra, torna-se fácil pressionar os legisladores para obter mais vantagens para os que não são brancos.

Os ativistas negros no Congresso querem ganhar privilégios no tapetão da semântica.

Sensível ao apelo dos votos, Geraldo Alckmin está encaminhando à Assembléia Legislativa projeto de lei que estabelece o acréscimo de pontuação aos afrodescendentes no concurso público para a Defensoria do Estado. Após os Estados Unidos estarem abandonando a política das ações afirmativas, o governador paulista, em um gesto de mimetismo terceiro-mundista tardio, afirma: "Estamos fortalecendo nossa proposta de ações afirmativas". É um modo de dizer. O que Alckmin parece ignorar é o artigo 5° da Constituição, que reza: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Alckmin é hoje visto como uma alternativa à permanência do Supremo Apedeuta no poder. Triste alternativa, a de um político que, em sua ambição de votos, começa sua campanha rasgando de uma penada a Constituição brasileira. Se já rasga a Carta Magna enquanto candidato a candidato, podemos imaginar o que ousaria quando no poder.

Nas últimas décadas, os movimentos negros insistiram na idéia de que raça não existe, ser negro seria apenas uma questão de melanina. Quando começou a surgir no Brasil a infeliz idéia ianque de cotas, tanto para a universidade como para admissão em empregos públicos, assistimos a uma súbita reviravolta: raça agora existe e deve ser declarada. O malsinado projeto do senador gaúcho determina que, em várias circunstâncias – no Sistema Único de Saúde, nos sistemas de informação da Seguridade Social, em todos os registros administrativos direcionados aos empregadores e aos trabalhadores do setor privado e do setor público – o quesito raça/cor será obrigatoriamente introduzido e coletado, de acordo com a autoclassificação.

Se até bem pouco afirmar a existência de raças era sinônimo de racismo, a noção de raça agora passou a ser algo bom, digno e justo. Para a advogada Flavia Lima, coordenadora do Programa de Justiça da ONG Núcleo de Estudos Negros, em Florianópolis (SC), a classificação dos indivíduos segundo a raça pode ser um instrumento na luta contra o racismo.

A obrigatoriedade de registro da cor seria um ponto positivo do Estatuto, já que permite investigações sobre racismo em diversas esferas da sociedade.

Ó tempora, ó mores!O que ontem era estigma, o registro da cor, passa hoje a ser virtude. Os movimentos negros, ao que tudo indica, terão de jogar ao lixo suas velhas bandeiras. Para o Supremo Apedeuta, por exemplo, até os nigerianos já são afrodescendentes.

Como observa Demétrio Magnoli, na Folha de São Paulo, “os modelos são a África do Sul do apartheid e a Ruanda dos belgas, com suas carteiras de identidade etno-raciais. A nação deixará de ser um contrato entre indivíduos para se tornar uma confederação de raças". Se aprovado na Câmara este projeto infame, os negros e mulatos terão carteirinha única, e esta jamais será a de mulato. Imagine o leitor se um deputado branco sugerisse a instituição da carteirinha de negro. Seria imediatamente comparado a Hitler, que identificou os judeus com a tecnologia Hollerith de cartões perfurados da IBM.

Como os deputados hoje estão mais preocupados em salvar a própria pele do que em discutir quesitos de raça ou cor, corremos o sério risco de que o absurdo estatuto adquira força de lei. Os políticos sentem-se tão à vontade para praticar este estupro, que já o incluem em suas promessas de campanha, como o fez Alckmin. Se a Constituição já foi violada mediante compra de votos, violação a mais violação a menos tanto faz. E assim desaparecerá, banida por lei, a prova mais incontestável do caldeamento de raças no Brasil, o mulato.

Os velhos comunistas podem ter perdido a guerra, mas não perderam os vícios. Luta de classes morta, luta racial posta.


 

Biólogo manipula pinguins

24/01/2006

 

Sou fascinado por tudo que diz respeito a gelo, neves, glaciares, fiordes, paisagens árticas ou antárticas. Já vi filmes absolutamente bobos, só porque se passavam em montanhas nevadas ou nos desertos polares. Desligava da história e curtia apenas a paisagem. Adoro documentários sobre estas regiões do planetinha e penso ainda, qualquer dia destes, rumar às neves de Svalbard. Conta-me uma amiga que, em Longyearbyen, capital do arquipélago, há um bar onde a gente pode deixar o fuzil na entrada, afinal não há ursos por perto. É para lá que quero ir. Claro que não me agradaria viver em meio àquelas solidões, mas visitá-las me faz bem. Não por acaso, viajo sempre rumo a invernos. Verão, deixo para turistas. Assim sendo, foi com entusiasmo que li sobre o lançamento do filme A marcha do imperador, do cineasta e biólogo Luc Jacquet, anunciado como um documentário sobre a vida desta espécie de pingüins na Antártica. Como não vou ao cinema só para ver se o filme é bom, busquei informar-me um pouco sobre o documentário. Pelo que li, cheguei a algumas conclusões.

Para começar, o documentário é um bestseller, cuja bilheteria tem suplantado até mesmo filmes de ficção. Entre os créditos do filme consta este moderno atestado de valor estético: foi produzido com apenas US$ 8 milhões e teria arrecadado mais de US$ 75 milhões nos Estados Unidos, número extraordinário para um título estrangeiro. Minha primeira dúvida: nunca vi documentário vendendo mais que filmes de ficção. Esta foi logo esclarecida: A Marcha do Imperador é tão documentário quanto a ficção travestida de documentário de Michael Moore, Tiros em Columbine. Segunda dúvida: se é bestseller, não pode ser filme inteligente. Jamais assisti a bestseller que preste. Tais filmes são feitos para agradar às massas. Massas, por definição, não primam pela inteligência.

Continuando, o filme agradou muito a fundamentalistas católicos americanos. E por que agradou? Porque seria um manifesto em defesa da família, da monogamia e contra o aborto. Não sei se Luc Jacquet assim o pretendeu, mas quem monta uma ficção sabe onde quer chegar. Terceira dúvida: filme que agrada a fundamentalistas católicos não pode prestar. Quarta dúvida: que têm a ver pingüins com monogamia e aborto? Só faltava os pingüins serem contra o sexo pré-matrimonial e votarem no Bush.

Li ainda que os pingüins têm voz, isto é, pensamentos, devidamente dublados. No Brasil, pelos abomináveis “globais” Antonio Fagundes e Patrícia Pillar. Quinta dúvida: pingüins pensam? O único pingüim pensante que conheço é aquele arqui-inimigo do Batman. Mas história em quadrinhos é coisa de criança. A menos que tenha virado lazer de adultos e não me avisaram. Sexta dúvida: serei capaz de assistir a um filme dublado? Conclui que não sou capaz de engolir o engodo de pingüins pensantes e, pior ainda, falando brasileiro, com o sotaque infame da rede Globo. Assim sendo, não fui nem vou ver o filme.

Sem tê-lo visto, posso deduzir que A marcha do imperador é embuste dos bons. Para começar, pertence a essa vigarice cada vez mais corriqueira de chamar ficção de documentário. Ora, documentário deveria documentar. Quando documenta pensamentos de pingüim, é claro que de documentário não se trata, mas da mais reles ficção. Continuando, em nada difere dos desenhos animados de Disney, ficções sublimes que fazem apelo aos “nobres” sentimentos humanos, deixando de lado o inelutável fato de que o ser humano não é apenas nobre, mas também vil. Nos filmes e histórias em quadrinhos de Disney não há sequer uma pitada de sexo, essa vil necessidade – vil pelo menos para Disney – que, apesar de ser inerente à perpetuação da espécie, é vista como pecado por crentes de todas as latitudes. Passo a palavra a quem entende do assunto. Segundo o cientista Yvon le Maho, do Centro de Ecologia e Fisiologia Energética de Strasbourg, o filme “não é bem um documentário. É como se fosse Disney. É feito para chorar. A vontade de fazer o público chorar é tanta que eles mentem”.

O filme pode comover pais fracassados, com complexo de culpa em relação a filhos, mais uma malta de mães chorosas ou candidatas à mãe, dessas que se comovem até com pingüins de geladeira. Só estes já são milhões. Mas a natureza é mais brutal que nossas ficções antropológicas. Assim como Disney omite a sexualidade de seus personagens, Jacquet esconde ao leitor certos fatos deste universo. Ainda segundo le Maho, os pingüins têm um mecanismo fisiológico que os alerta quando suas reservas energéticas chegam a um limite, que lhes permite andar ainda 180 quilômetros. “É quando partem para o mar e, se for o caso, deixam os filhotes abandonados à própria sorte”. Além do mais, a suposta monogamia dos pingüins em geral dura apenas um ciclo reprodutivo, isto é, um ano. “A taxa de separação entre eles após um ano é de 85%”. Claro que isto Luc Jacquet não conta. Seu filme deixaria de faturar bons milhões de dólares. O homem-massa gosta de fantasias e tem horror à realidade.

O filme é mais uma desastrada tentativa de antropomorfização da vida animal, esse detestável vício de não poucos documentaristas, que pretendem atribuir características humanas a seres irracionais. Mesmo que, por contingências biológicas, os pingüins tivessem de ser monógamos – o que está longe ser o caso – o homem nada tem a ver com isso. Nem com qualquer outro animal. Nosso antepassado simiesco, ao erguer-se apoiado nas patas traseiras e utilizar seu polegar preênsil para brandir um osso como arma, abandonou definitivamente seu destino de símio e adquiriu o status de Homo sapiens. Por que escolher os castos pingüins como arquétipo de organização social? Se é para buscar padrões na vida animal, proponho os bonobos, que vivem em orgia perpétua e cujas fêmeas inclusive descobriram as delícias do lesbianismo, ou como quer que se chame a prática no universo dos símios. Diferentemente das demais espécies, as fêmeas bonobo não precisam estar no cio para entregar-se ao bom folgar. Ou seja, fogem à condição animal e assumem atitudes mais condizentes com a espécie humana. Monogamia, fidelidade ou aborto são opções que o ser humano se permite ou não se permite, não uma fatalidade da espécie. Só Estados totalitários ou com propensão ao totalitarismo as impõem ou proíbem. Deixem os pingüins em paz, senhores moralistas.

Filme que é anunciado como fenômeno mundial de público – vai por mim, leitor! – não pode prestar. O número de espectadores é inversamente proporcional à qualidade de um filme. Quando A Marcha do Imperador estiver em DVD, compro ou alugo um, retiro o som e me deleito com as paisagens nevadas que tanto me fascinam. Quem quiser aumentar as estatísticas maravilhosas de borderô do filme, que vá. Estou fora. Quando os jornais anunciarem os milhões de deslumbrados que viram o filme no Brasil, por favor, não me incluam nesse número.


 

A eficácia do terror

31/01/2006

 

Quinta-feira passada, a Folha de São Paulo noticiava em manchete: Fatah vence Hamas por pequena margem

A linha fina era um pouco mais cautelosa:

Coligações do partido de Abbas podem deixar o grupo terrorista na oposição; projeção dá 100% de Gaza ao Hamas

Na sexta-feira, o jornal anunciava em primeira página:

Hamas vence eleições palestinas

Diz o texto da primeira página: “O Movimento de Resistência Islâmica (Hamas), organização terrorista que cometeu atentados suicidas contra civis de Israel, obteve surpreendente e histórica vitória nas eleições legislativas palestinas. O resultado contrariou as pesquisas ao longo da campanha e as de boca-de-urna”.

E contrariou também o wishful thinking da Folha. Vou à coluna onde o jornal se penitencia de seus lapsos: nenhuma notinha. O editor de “Erramos” é tão meticuloso que chega a corrigir até mesmo um pequeno erro de digitação: “A área do lago Lucerna (região central da Suíça) é de 114 km2, e não de 114 m2, como publicado à pág. D8 (Esporte) em 16 de janeiro”. Mas nada sobre a tremenda barriga do dia anterior.

Esse whisful thinking tem feito a Folha pagar não poucas gafes. Quando a URSS estava desmoronando, o editor de Internacional, que ainda não perdoara Ieltsin por aquele canhonaço na Duma, mal Ieltsin deu um chá de sumiço, mancheteou, com um raio de esperança:

GOLPE DERRUBA IELTSIN

Só que a manchete não se sustentou nem 24 horas. No dia seguinte, para salvar a cara, a Folha titulou:

IELTSIN DERRUBA GOLPE

Nenhum “Erramos”. O “Erramos” é para redatores que cometem um lapso menor. Quando o editor entra em choque com a realidade, caluda! Volto à Palestina. O Estado de São Paulo também embarcou na canoa furada. Na edição de quinta-feira, temos na primeira página:

Fatah vence Hamas e buscará coalizão

No texto, uma colher de chá para o Hamas, mas não a vitória: “A forte votação obtida pelo movimento fundamentalista islâmico Hamas, na eleição parlamentar de ontem, mudará significativamente o panorama político na Autoridade Palestina. O partido no poder, a Fatah, manteve a supremacia, mas terá de formar coalizão com grupos minoritários laicos para não ter de recorrer ao Hamas. A julgar pela boca-de-urna, a Fatah vencerá por 42% a 35%”.

A julgar pela boca-de-urna, diz o texto. Mas para o redator de primeira página, que é sempre um jornalista de alto nível e muito bem-remunerado, não há dúvidas: o Fatah venceu. Todos os demais redatores têm de dançar conforme a música. A correspondente Daniela Kresch, que está em Ramallah, no centro dos acontecimentos, escreve: “O partido no poder, a Fatah, parece ter vencido com um número suficiente de votos para formar um governo de coalizão com grupos minoritários laicos, com os quais tem afinidades políticas, sem precisar recorrer ao Hamas, seu principal rival”. Reali Júnior, fiel cão de guarda do jornal, pergunta a Mahmud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina: “A Fatah está disposta a uma divisão do poder com o Hamas?” Dia seguinte, sem o menor pudor, e sem pedido algum de desculpas ao leitor, o jornal mancheteia em primeira página:

Hamas surpreende e vence eleição palestina

Ou seja, os jornalistas se deixaram levar pela pesquisa boca-de-urna e afirmaram o que não podiam afirmar. Impelidos pelo fato de que seus jornais já haviam decidido que o Hamas era um movimento terrorista, foram movidos pelo secreto desejo de não ter de noticiar a tomada do poder pelo terror. Ocorre que a realidade não está nem aí para secretos desejos. As recentes eleições na Palestina mostram que a via democrática ocidental não consegue impedir que organizações absolutamente antidemocráticas assumam as rédeas de um Estado. Como disse Bassem Eid, diretor-executivo do Grupo Palestino de Monitoramento de Direitos Humanos: “O povão sempre é atraído pela coisa dogmática, pelo apelo emocional da religião, deixando de lado a razão, o racionalismo e a ciência”. Dois mil e trezentos anos antes, Platão já analisava o resultado das atuais eleições palestinas: “a massa popular (hoi polloi) é assimilável por natureza a um animal escravo de suas paixões e seus interesses passageiros, sensível à adulação, sem constância em seus amores e ódios; confiar-lhe o poder é aceitar a tirania de um ser incapaz da menor reflexão e rigor”. Brasileiros, acabamos de ver este filme.

Os homens-bomba do Hamas chegaram ao controle do Estado, ou disso que eufemisticamente se chama Autoridade Nacional Palestina. Pois a ANP nasceu com vocação para Estado, é só ingênuos – ou demagogos – não viam esta tendência. O IRA e o Sinn Fein, que já optaram pelo desarmamento, devem estar se arrancando os cabelos. O ETA, que começava a pensar em paz, talvez pense mais um pouco antes de tomar qualquer decisão. Não é a primeira vez que o terror conquista votos. Os atentados aos trens em Madri, que mataram 198 pessoas em março de 2004, provocaram uma reviravolta de última hora nas últimas eleições espanholas. O resultado destas eleições no Oriente Médio será um poderoso estímulo às carnificinas da Al Qaeda.

“Não há diálogo se o Hamas não reconhecer Israel”, diz Ehud Olmert , o primeiro-ministro interino de Israel. Seu país não fará contato com os palestinos até que o Hamas renuncie explicitamente ao caminho do terrorismo e reconheça Israel e todos os acordos assinados entre ambas as partes. O Hamas, não só não renuncia ao terrorismo, como acha que Israel deve ser exterminado do mapa. Já fala na construção de um Exército, vocação natural da polícia palestina. Israel não aceita um Exército na Palestina. O cenário está preparado para uma guerra ainda mais sangrenta.

Os palestinos tiveram de escolher entre a corrupção generalizada do Fatah e a mescla de homens-bomba e assistencialismo do Hamas. Democracia na Palestina não consegue fugir desta opção. O Ocidente tenta exportar seus valores ao mundo muçulmano. Esquece que, para existir democracia, é necessário antes educar o ser humano para a democracia. E que Islã é incompatível com democracia. Teocracias são inimigas da liberdade. A Europa só chegou à democracia após a Igreja ter renunciado ao poder temporal.

As eleições na Palestina nos deixam uma trágica lição. O terror pode não ser um meio legítimo para se chegar ao poder. Mas é eficaz. Dias piores virão.


 

Hipocrisia muçulmana

07/02/2006

 

Tudo começou em 1989, quando o indiano Salman Rushdie publicou Versículos Satânicos. Neste livro, Rushdie reproduziu os versículos Gharanigh, não aceitos pelos canonistas do Corão. Trocando os queijos de bolso – ou mutatis mutandis, como preferem os juristas – é como se no Ocidente fossem publicados os evangelhos apócrifos ou gnósticos, não aceitos pela Igreja Católica, que aliás são publicados em várias línguas do Ocidente. Embora fosse indiano com nacionalidade britânica, Rushdie foi alvo de uma fatwa do aiatolá Khomeini, então todo-poderoso da “revolução” no Irã.

Eu informo o orgulhoso povo muçulmano do mundo inteiro que o autor do livro Os Versículos Satânicos, que é contrário ao Islã, ao Profeta e ao Corão, assim como todos os implicados em sua publicação e que conhecem seu conteúdo são condenados à morte. (...) Apelo a todo muçulmano zeloso a executá-los rapidamente, onde quer que eles estejam. (...) Todo aquele que for morto nessa empreitada será considerado mártir”.

A Europa aceitou tranqüilamente a sentença do aiatolá. Em vez de isolar o Irã, o Reino Unido passou a dar proteção a Rushdie. Os demais países da comunidade se mantiveram em silêncio obsequioso. Sem atinar que não se tratava apenas de proteger um escritor perseguido. Mas de repudiar a pretensão megalômana de um padre persa, que pretendeu legislar inclusive no estrangeiro. A apostasia, ou crime, segundo os muçulmanos, havia ocorrido em Londres, com a publicação do livro. Do alto dos minaretes de Teerã, Khomeiny ordenou não só a condenação à morte – como também a execução da sentença – de Rushdie, assim como todos os implicados na publicação do livro… em território europeu ou onde quer que estes “criminosos” estivessem. Em 1991, o tradutor do livro para o japonês foi assassinado e em 1993 o editor de Rushdie na Noruega foi atacado quando saía de casa.

Só a apatia dos países europeus, na época, pode explicar a reação desmesurada dos árabes às caricaturas anódinas de um obscuro jornal do sudoeste da Dinamarca. Se as democracias ocidentais cortassem relações com o regime do aiatolá naqueles dias, provavelmente não estaríamos vendo hoje as fogueiras histéricas em toda a Europa e países muçulmanos, onde se queimam bandeiras da Dinamarca e Noruega.

Reação tardia, diga-se de passagem. As doze caricaturas de Maomé foram publicadas dia 30 de setembro do ano passado, no Jyllands-Posten, e reeditadas no 10 de janeiro passado pelo jornal norueguês Magazinet. Jornais que não circulam no mundo árabe e muito menos na Europa, mas apenas na Dinamarca e Noruega, dois países de minorias lingüísticas. A reação muçulmana revelou-se uma estratégia de jerico. As charges publicadas no jornal da Jutlândia estão hoje reproduzidas na Internet e nos principais jornais do Ocidente.

Embora uma das charges mostre a cabeça de Maomé formada por uma bomba, não é isto o que preocupa os muçulmanos. Seria absurdo protestar contra caricaturas, um recurso rotineiro do jornalismo desde priscas eras. Alegam então que a religião islâmica proíbe imagens do profeta ou de Alá. O que não passa de um esfarrapado pretexto para agredir a Europa. Iconografia sobre Maomé é o que não falta no Ocidente e inclusive no mundo árabe. Enciclopédias, livros e jornais publicaram desde sempre imagens de Maomé e só hoje, em 2006, os muçulmanos houveram por bem manifestar indignação. Hipocrisia deslavada.

Sem ir muito longe, dou dois passos até minhas estantes e apanho o Diccionario Literario Bompiani, editado em Barcelona, 1963. No segundo volume de Autores, no verbete Mahoma, há nove gravuras do profeta, na maioria da Universidade de Edimburgo, desde seu nascimento até a colocação da pedra negra na Caaba e o encontro com o arcanjo Gabriel. Estas duas últimas gravuras estão em miniaturas de manuscritos árabes. Há também uma miniatura persa do século XV, na qual Maomé monta um camelo ante sua mulher Khadigia. Ou seja, mesmo em universo muçulmano a imagem do profeta já era reproduzida. Este soberbo dicionário (15 volumes) está publicado nas principais línguas da Europa e nunca vi muçulmano algum condená-lo por blasfêmia. A julgar-se pela escalada da violência, vão acabar pedindo a proibição da Divina Comédia, onde Dante joga o profeta no oitavo círculo do Inferno, destinado aos semeadores de discórdia.

Em vez de protestar contra os jornais, os muçulmanos queimam bandeiras e embaixadas dos países envolvidos na affaire. Dirigem-se não aos jornalistas, mas aos Estados.

Para um muçulmano, é óbvio que todo Estado tem controle da imprensa. Esta é a norma nas teocracias árabes, onde não há liberdade alguma de expressão. Estes senhores precisarão de mais alguns séculos para entender que, em países democráticos, a imprensa é uma instituição que limita inclusive os desmandos do Estado.

Se criticar religiões ou deuses fosse proibido no Ocidente, a Europa ainda chafurdaria nas trevas da Idade Média. O Ocidente sempre foi crítico em relação a seus deuses, e mesmo Jeová, o único, teve de ouvir poucas e boas de pensadores e poetas como Voltaire, Diderot, Guerra Junqueiro ou Nietzsche. Ainda há pouco, eu escrevia: na Europa de hoje você pode dizer o que quiser até mesmo da mãe do Cristo. Só não pode criticar Maomé.

Y a las pruebas me remito, como dizem os espanhóis. Ano passado, terminei a leitura de La Virgen María – Biografia no autorizada, do jornalista britânico Michael Jordan. Neste gordo ensaio de 400 páginas, com base nos evangelhos apócrifos, o autor sustenta a tese de que Maria teria sido uma das prostitutas sagradas. A tradução que tenho em mãos foi publicada em Barcelona e o texto original em Londres. Escândalo algum no Ocidente. Ora, na escatologia cristã Maria tem quase o status de uma deusa. Nem por isso alguém saiu a queimar embaixadas ou livros em protesto contra o autor. Imagine o leitor se alguém afirmar que Maomé seduziu e violou Zainab, a mulher de um pupilo. Ou que casou-se com Aisha, quando esta tinha nove anos.

Que a religião islâmica proíba imagens de Maomé, nada temos contra. Mas não venham estes cortadores de clitóris pretender que países não islâmicos proíbam a seus jornais, enciclopédias, bibliotecas publicar as ditas imagens. Os alaridos do mundo árabe não passam de mera farsa. Que acesso têm à imprensa habitantes de um universo majoritariamente analfabeto? Que acesso tem o mundo árabe a dois jornais da Escandinávia?

A onda de protestos não passa de uma agressão planejada à Europa, fruto do ressentimento de habitantes e imigrantes do Terceiro Mundo muçulmano.

Chefes de Estado europeus estão se desmanchando em salamaleques aos árabes, pedindo desculpas pelas ofensas ao Islã. No fundo, negam – ou propositadamente esquecem – o acórdão de Handyside, reconhecido pela Corte Européia de Direitos do Homem, em 1976. Que reza: “A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática”.

Mas de nada adianta falar de democracia para brutos.


 

Legislando em terra alheia

14/02/2006

 

Enquanto os taleban oferecem cem quilos de ouro a quem assassinar os chargistas responsáveis pelas caricaturas de Maomé, enquanto embaixadas ocidentais são atacadas e bandeiras são incendiadas no mundo árabe, enquanto 300 manifestantes muçulmanos invadem uma base militar norueguesa, o Jyllands Posten, responsável pela publicação das charges em setembro passado, pede desculpas. Enquanto diversos jornais em toda a Europa republicaram as charges, em solidariedade ao jornal dinamarquês, este recua e abdica do exercício da livre imprensa e da crítica. Diga-se de passagem, em nome das boas relações com seus imigrantes, a imprensa européia está omitindo os nomes e os países de origem dos estupradores. Uma onda de estupros cometidos por imigrantes está assolando a Noruega, Suécia, França e Austrália, conforme denunciou Sharon Lapkin, e a mídia permanece silente, sem ousar denunciar o caráter étnico da violência. A libertária imprensa do velho continente acabou por dobrar-se ao “politicamente correto” ianque. Enquanto isso, os países muçulmanos querem criar uma cláusula contra a blasfêmia nos estatutos do novo Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os 57 países que integram a OIC (Organização da Conferência Islâmica) pediram a inclusão de um parágrafo para "prevenir casos de intolerância, discriminação, incitação ao ódio e à violência, gerados por ações contra religiões e crenças". A blasfêmia, de pecado, infração que diz respeito a teólogos, passaria a ser crime punido pela legislação. Os muçulmanos, cujo calendário começou em 622 da era cristã, querem nada mais nada menos que arrastar a Europa de volta à Idade Média, onde discussões sobre o destino do prepúcio de Cristo podiam levar um homem à fogueira.

A ira dos árabes se fundamenta em dois pontos. Primeiro, a reprodução das imagens de Alá, o que o islamismo não permite. Poderiam começar censurando os mecanismos de buscas da Internet. O Google, por exemplo. Clique em Imagens e digite Maomé, Muhamad, Mahoma, Maometto, enfim, as diferentes variantes do santo nome. Sacrilégio!

Há milhares de imagens do profeta, em preto e branco ou a cores, algumas de origem ocidental, outras de fontes árabes. A infâmia é diariamente reiterada, ao menor clique de mouse, e mulá algum parece ter percebido este insulto constante e universal aos preceitos do Islã. Abaixo o Google. A menos que retire de seus arquivos as imagens heréticas. Afinal, se já aceitou retirar a palavra democracia de seus mecanismos de busca na China, por que não poderia fazer este gesto de cortesia ao Islã?

O segundo ponto é a imagem do profeta confundida com uma bomba. É curioso observar que quando bin Laden usou bombas humanas para destruir as duas torres de Nova York em nome de Alá, nenhum mulá ou aiatolá, nenhuma multidão de crentes, se pronunciou contra o uso indevido do santo nome. Os homens-bomba se explodem todos os dias, sempre em nome de Alá, o misericordioso, e ninguém os desautoriza quando invocam o deus do Islã. Ou seja, quem associou Islã a terror foram os próprios muçulmanos, não o Ocidente. Esta charge, em verdade, tem a assinatura do saudita bin Laden. E o patrocínio da Al Qaeda.

Verdade que nem as Nações Unidas nem os países ocidentais receberam favoravelmente a idéia da cláusula contra a blasfêmia, por considerarem que o respeito às religiões já está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas a pretensão dos muçulmanos de legislar nos países ocidentais existe. A Europa, minada pela quinta-coluna dos Direitos Humanos, já fez graves concessões. A França, por exemplo, em nome do multiculturalismo e do reagrupamento muçulmano, já aceitou a poligamia. Mas só para os árabes, bem entendido. Afinal, se Alá permite a seus fiéis até quatro mulheres, este preceito religioso não pode ser desrespeitado. Um francês, se casar com duas, comete crime. Estima-se que hoje, na França, vivam 30 mil famílias em regime poligâmico.

“Audace, encore d’audace, toujours d&lsqo;audace” – dizia Danton ante a Assembléia Legislativa, conclamando o povo francês a resistir à ameaça austríaca. Audácia, mais audácia, sempre audácia, senhores árabes. A Europa é um celeiro de ações contra a religião e crença muçulmanas. Os restaurantes de todos os países estão repletos de carnes desse animal imundo, o porco, em uma ofensa intolerável aos fiéis de Alá. Espanha, França e Itália ostentam seus sacrílegos presuntos como o supra-sumo da gastronomia. A Espanha – acinte supremo! – orgulha-se de seus cochinillos e mantém verdadeiros templos de abominação, os museos del jamón, onde a carne abominável pende das paredes e até mesmo dos tetos. A França – ignomínia! – oferece ao mundo seus boudins asquerosos, feitos de sangue de porco. Pior ainda, aproveita até as tripas do animal imundo para suas perversas andouilletes. As cochonailles constituem um ramo da cozinha francesa, que não nutre respeito algum pelos milhões de imigrantes que alimenta. Abaixo as cochonailles.

Alá-u-akbar!

Como todas as religiões merecem o mesmo e sagrado respeito, sejam abolidas também as carnes bovinas. A Europa pulula de hindus, para os quais a vaca é um animal sagrado.

Abaixo os filés à Chateaubriand, as bistecas fiorentinas, as picanhas argentinas, seja banido todo consumo dos nobres e divinos bovinos.

E abaixo sobretudo o vinho. Destruam-se os vinhedos, as caves, os recipientes, as lojas de distribuição da bebida infame. Abaixo também o uísque, as águas-de-vida, os conhaques e champanhes, abaixo tudo que embriaga. Abaixo também o turismo e os roteiros gastronômicos. A Europa que descubra outras fontes de divisas. Ou submeta-se também à aridez de falta de sabor do universo muçulmano. Se a Europa criminaliza o turismo sexual, por que permitir o obsceno turismo gastronômico? Verdade que o Corão promete ao crente rios de vinho. Mas só no paraíso. Abaixo o prazer aqui na terra. O vinho está reservado para os crentes que se explodem e explodem quantos podem em torno a si. Alá-u-akabar!

Nestes dias em que uma onda de moralismo varre certos países da Europa, seria talvez o caso de se substituir as casas de prostituição pelas casas de castidade, onde os casais teriam ambiente seguro e saudável. A patente é iraniana. Como é proibido, segundo o Islã, manter relações sexuais fora do casamento, em tais casas os castos muçulmanos podem praticar o sigheh, modalidade de matrimônio permitida pelo ramo xiita do Islã, predominante no Irã. Tais matrimônios podem durar poucos minutos ou 99 anos, e são especialmente recomendados para viúvas que precisam de suporte financeiro. O sigheh foi aprovado no início dos anos 90, como forma de canalizar o desejo sexual dos jovens sob a segregação sexual estrita da república islâmica.

Segundo o aiatolá Muhammad Moussavi Bojnourdi, defensor incondicional das casas de castidade, “se quisermos ser realistas e limparmos a cidade dessas mulheres, precisamos usar o caminho que o Islã nos oferece”. Para praticar o sigheh, basta recitar um versículo do Corão. O contrato oral não é registrado e o versículo pode ser lido por qualquer um. Uma contraprestação em dinheiro às mulheres casadas segundo este ritual é bem-vinda. E quando tudo estiver dominado, por que não acabar com essa burocracia idiota e demorada para a obtenção do divórcio? No mundo regido pelo Corão, tudo se resolve com a lei dos três talaqs. À menor insubmissão da mulher, o marido diz: talaq. É um aviso. Se ela insiste em não fazer a vontade de seu amo e senhor, o marido repete: talaq. Na terceira insubmissão, o terceiro e definitivo talaq. Está consumado o divórcio, sem essa tralha inútil de cartórios e advogados. Talaq, talaq, talaq e passar bem.

Alá-u-akbar!


 

Civilização é rir

21/02/2006

 

Tenho em meus arquivos a execução do jornalista americano Daniel Pearl, no Paquistão. É vídeo que não repassei a ninguém, para não perturbar estômagos fracos. Correspondente do Wall Street Journal no Sul da Ásia, Pearl foi morto não tanto por ser americano, mas principalmente por ser judeu. A execução, filmada em close, mostra a faca penetrando aos poucos a garganta do jornalista, o sangue jorrando e ouve-se inclusive um regougo de voz entrecortada pelos esguichos. Não contentes com a brutalidade da degola, os muçulmanos enviaram o vídeo para o Ocidente, à guisa de escarmento. Foi entregue na véspera do feriado da Aid el-Kebir, quando milhões de cabras e carneiros são degolados no mundo muçulmano. Se a morte horrenda de Pearl teve grande repercussão nos Estados Unidos e Europa, foi quase ignorada no Brasil.

De qualquer forma, não vimos judeus nem americanos ou europeus atacando embaixadas nem queimando bandeiras de países muçulmanos no Ocidente. Queimar embaixadas e bandeiras de países europeus foi a resposta muçulmana à publicação de inócuas charges de um obscuro jornal da pequena Dinamarca. Estratégia de jerico, comentei em crônica passada. As notícias a confirmam: até hoje, já morreram 35 pessoas de países muçulmanos nos protestos. Em Bengasi, na Líbia, na sexta-feira passada, dez pessoas morreram e 55 ficaram feridas, em uma manifestação frente ao edifício do consulado italiano. Neste sábado, morreram mais 15, em Maiduguri, norte da Nigéria. Enfim, enquanto eles se matarem entre eles mesmos, nada contra.

As ameaças muçulmanas já vinham surtindo efeito, bem antes das atuais manifestações. Em entrevista para o Der Spiegel, a deputada somali de nacionalidade holandesa, Ayaan Hirsi Ali, nos conta poucas e boas. Em 1980, uma rede de televisão privada britânica exibiu um documentário sobre o apedrejamento de uma princesa saudita que cometera adultério. O governo de Riad interveio e o governo britânico pediu desculpas. Em 1987, foi a vez de o governo alemão pedir desculpas, quando o holandês Rudi Carrell ridicularizou o aiatolá Khomeiny em uma peça, apresentada na TV alemã. Em 2000, uma peça sobre Aisha, a menina deflorada por Maomé aos nove anos, foi cancelada antes de estrear em Roterdã. Ou seja, antes de protestar contra charges, os muçulmanos já exerciam pressão sobre os meios de comunicação ocidentais, no sentido de proibir até mesmo fatos ocorridos no universo islâmico, fossem fatos atuais ou da época do profeta.

Ayaan está trabalhando na seqüência do filme Submission (tradução de Islã em inglês), de Theo Van Gogh, o cineasta holandês assassinado a tiros por um muçulmano de origem marroquina. O novo filme está sendo feito em completo anonimato e todos os envolvidos na filmagem serão irreconhecíveis. Pela primeira vez no Ocidente, um filme é feito na clandestinidade. Resta saber se algum cinema terá coragem de exibi-lo.

A arrogância muçulmana parece estar despertando ocultos e supostamente extintos vulcões no seio do velho continente. É o que nos conta o primeiro-ministro libanês, Fuad Saniora. Recebido quinta-feira passada por sua Santidade o papa Bento XVI, no Vaticano, o premiêo; libanês contou que o pontífice apoiou os protestos pacíficos realizados contra a publicação das charges. A posição do Vaticano é que os desenhos, alguns dos quais associam a imagem de Maomé – que a Folha de São Paulo grafa Muhammad, temendo ferir suscetibilidades – ao terrorismo, são uma “provocação inaceitável”.

Segundo Saniora, o papa disse que &ldqua liberdade não pode de maneira nenhuma ultrapassar a liberdade dos outros"rdquo;. Foi mais ou menos o que escreveu o sedizente jornal liberal Estado de São Paulo, em editorial, há poucos dias. Logo este jornal que se orgulha de ter lutado bravamente contra a censura nos idos de 64. O editorial coincide com a opinião do presidente americano, George Bush, que reclama “uma atitude responsável dos países europeus”, como se na Europa algum Estado fosse responsável pela opinião de seus jornais.

Ao proferir tamanho despautério, Bush assume a mesma atitude dos fanáticos orientais, que responsabilizam os Estados europeus pelas opiniões de suas mídias. No fundo, o Estadão defende proibir a liberdade de expressão, particularmente quando se trata de criticar religiões. Estadão, Vaticano e Bush, o mesmo combate. Fundamentalismo é altamente contagiante.

Navegando na esteira muçulmana de protestos, o Opus Dei espera que a edição final de O Código da Vinci seja alterada para não ofender os fiéis. A organização católica, com raízes na Espanha, disse em Roma que a Sony Pictures ainda tem tempo para fazer mudanças que seriam apreciadas pelos católicos, “principalmente nesses dias em que todos têm percebido as conseqüências dolorosas da intolerância”. O filme, baseado no best-seller de Dan Brown, tem estréia mundial marcada no próximo Festival de Cannes – o que, aliás, constitui uma desmoralização para o festival. É um conto de fadas para adultos, uma ficção boba sem maiores fundamentos históricos, que só pode ser vista como fútil entretenimento. O Vaticano e membros da hierarquia católica, que têm protestado contra o livro, portam-se como criançolas ao não perceber que os protestos só servem para divulgar uma obra medíocre.

No rastro dos sarracenos, o Ocidente católico aproveita para tirar sua casquinha. Já que não se pode criticar Maomé, que não se possa criticar Jeová. Nem em contos de fada. E muito menos a Opus Dei, que é vista na ficção de Brown como uma seita sedenta de poder. Um pouco de fundamentalismo – ainda que muçulmano - sempre vem bem para dogmáticos do Ocidente.

Está na hora de rever A Vida de Brian, dos Monty Python, filme de 1979, antes que seja proibido. Se você, leitor, é mais jovem e ainda não o viu, corra até uma locadora e delicie- se com uma das mais sarcásticas e inteligentes comédias do século passado. O filme mostra a vida paralela de um messias que não deu certo, mas as referências são todas ao Cristo. O deus encarnado do Ocidente é mostrado como um mosca-tonta que jamais percebe o que está ocorrendo em torno a si. Apesar da contundência da sátira, o filme foi exibido em todo o Ocidente. Foi proibido apenas na Noruega. Mesmo no Brasil, onde o anódino Je vous salue, Marie, do Godard, foi proibido (ou seja, foi promovido) por obra e graça de José Sarney, o filme dos Monty Python não teve censura alguma. Pessoalmente, acho que só deixei de rir quando o vi pela quinta vez, aí já conhecia de cor e salteado todos os episódios. Nada mais salutar para as nações do que rir dos próprios deuses.

Os deuses gregos morreram, dizia Nietzsche. Morreram de rir ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único. No dia em que os muçulmanos conseguirem rir de seu deus e seus profetas, terão chegado ao que convencionamos chamar de civilização.


 

O direito de ofender

01/03/2006

 

Já citei algumas vezes Ayaan Hirsi Ali, deputada do Parlamento holandês, de origem somáli, roteirista do filme Submissão, em função do qual o cineasta Theo Van Gogh foi assassinado por um muçulmano em novembro de 2004. Ao lado de Oriana Fallaci, é um dos raros intelectuais europeus com coragem de enfrentar a agressão muçulmana ao velho continente. Ela vive sob proteção policial. Convidada a Berlim dia 9 de fevereiro passado, Ayaan Hirsi Ali pronunciou um discurso sobre a affaire das caricaturas de Maomé, contra o islamismo e pela defesa da liberdade. Como a imprensa brasileira observou um silêncio obsequioso em torno ao pronunciamento da deputada holandesa, segue a tradução do mesmo.

Estou aqui para defender o direito de ofender. Tenho a convicção que esta empresa vulnerável que se chama democracia não pode existir sem livre expressão, em particular nas mídias. Os jornalistas não devem renunciar à obrigação de falar livremente, da qual são privados os homens de outros continentes.

Minha opinião é que o Jyllands Posten teve razão ao publicar as caricaturas de Maomé e que outros jornais na Europa fizeram bem em republicá-las. Permita-me retomar o histórico desta affaire. O autor de um livro infantil sobre o profeta Maomé não conseguia encontrar ilustrador. Ele declarou que os desenhistas se censuravam por medo de sofrer violências da parte dos muçulmanos, para os quais é proibido a qualquer um, onde quer que seja, representar o Profeta. O Jyllands Posten decidiu investigar a esse respeito, estimando – a justo título – que uma tal autocensura era portadora de graves conseqüências para a democracia. Era seu dever de jornalistas solicitar e publicar os desenhos do profeta Maomé.

Vergonha aos jornalistas e às cadeias de televisão que não tiveram a coragem de mostrar a seu público o que estava em causa na affaire das caricaturas! Estes intelectuais que vivem graças à liberdade de expressão, mas aceitam a censura, escondem sua mediocridade de espírito sob termos grandiloqüentes como responsabilidade ou sensibilidade.

Vergonha a estes homens políticos que declararam que ter publicado e republicado aqueles desenhos era “inútil”, era um “mal”, era “uma falta de respeito” ou “sensibilidade”! Minha opinião é que o primeiro-ministro da Dinamarca, Anders Fogh Rasmussen, agiu bem quando se recusou a encontrar os representantes de regimes tirânicos que exigiam dele que limitasse os poderes da imprensa. Hoje, nós deveríamos apoiá-lo moral e materialmente. Eu gostaria que meu primeiro-ministro tivesse tanto peito quanto Rasmussen.

Vergonha a estas empresas européias do Oriente Médio que puseram cartazes dizendo Nós não somos dinamarqueses, Aqui não vendemos produtos dinamarqueses! É covardia. Os chocolates Nestlé não terão o mesmo gosto depois disso, vocês não acham? Os Estados membros da União Européia deveriam indenizar as sociedades dinamarquesas pelas perdas sofridas pelo boicote.

A liberdade se paga caro. Pode-se muito bem despender alguns milhões de euros para defendê-la. Se nossos governos não vêm em ajuda a nossos amigos escandinavos, eu espero então que os cidadãos organizem coletas de doações em favor das empresas dinamarquesas.

Nós fomos submergidos em uma onda de opiniões nos explicando que as caricaturas eram ruins e de mau gosto. Disso resulta que estes desenhos não tinham trazido senão violência e discórdia. Muitos se perguntaram qual vantagem havia em publicá-los.

Bem, sua publicação permitiu confirmar que existe um sentimento de medo entre os escritores, cineastas, desenhistas e jornalistas que quisessem descrever, analisar ou criticar os aspectos intolerantes do Islã na Europa.

Esta publicação também revelou a presença de uma importante minoria na Europa que não compreende ou não está disposta a aceitar as regras da democracia liberal. Estas pessoas – cuja maior parte são cidadãos europeus – fizeram campanha em favor da censura, dos boicotes, da violência e de novas leis proibindo a “islamofobia”. Estes desenhos mostraram com evidência que há países que não hesitam em violar a imunidade diplomática por razões de oportunismo político. Vimos governos maléficos como o da Arábia Saudita organizar movimentos populares de boicote ao leite e iogurte dinamarqueses, enquanto esmagariam sem piedade todo movimento popular que reclamasse o direito de voto.

Estou aqui hoje para reclamar o direito de ofender nos limites da lei. Vocês talvez se perguntem: por que em Berlim? E por que eu?

Berlim é um lugar importante na história das lutas ideológicas em torno da liberdade. É a cidade onde um muro encerrava as pessoas no interior de um Estado comunista. É a cidade onde se concentrava a batalha pelos corações e mentes. Os que defendiam uma sociedade aberta mostravam os defeitos do comunismo. Mas a obra de Marx era discutida na universidade, nas rubricas de opinião dos jornais e nas escolas.Os dissidentes que tinham conseguido escapar podiam escrever, fazer filmes, desenhar, empregar toda sua criatividade para persuadir as pessoas do Oeste que o comunismo não era o paraíso na terra.

Apesar da autocensura de muitos no Ocidente, que idealizavam e defendiam o comunismo, apesar da censura brutal imposta ao Leste, esta batalha foi ganha.

Hoje, as sociedades livres estão ameaçadas pelo islamismo, que se refere a um homem chamado Muhammad Abdullah (Maomé) que viveu no século VII e é considerado como um profeta. A maioria dos muçulmanos são pessoas pacíficas, não são fanáticos. Eles têm perfeitamente o direito de serem fiéis às suas convicções. Mas, no seio do Islã, existe um movimento islâmico puro e duro que rejeita as liberdades democráticas e faz tudo para destruí-las. Estes islâmicos procuram convencer os outros muçulmanos que sua forma de viver é a melhor. Mas quando aqueles que se opõem ao islamismo denunciam os aspectos falaciosos dos ensinamentos de Maomé, eles são acusados de serem ofensivos, blasfemos, irresponsáveis – ou mesmo islamofóbos ou racistas.

Por que eu? Eu sou uma dissidente, como aqueles da parte leste desta cidade que foram para o Oeste. Eu nasci na Somália e passei minha juventude na Arábia Saudita e no Quênia. Eu fui fiel às regras editadas pelo profeta Maomé. Como os milhares de pessoas que manifestaram contra as caricaturas dinamarquesas, eu por longo tempo acreditei que Maomé era perfeito – que ele era a única fonte do bem, o único critério permitindo distinguir entre o bem e o mal. Em 1989, quando Khomeini lançou um apelo para matar Shalman Rushdie, eu pensava que ele tinha razão. Hoje, não penso mais assim.

Eu penso que o profeta Maomé errou em subordinar as mulheres aos homens.

Eu penso que o profeta Maomé errou ao decretar que é preciso assassinar os homossexuais.

Eu penso que o profeta Maomé errou ao dizer que é preciso matar os apóstatas.

Ele errou ao dizer que os adúlteros devem ser chicoteados e lapidados, e que os ladrões devem ter as mãos cortadas.

Ele errou ao dizer que os que morrem por Alá irão ao paraíso.

Ele errou ao pretender que uma sociedade justa possa ser construída sobre essas idéias.

O Profeta fazia e dizia boas coisas. Ele encorajava a caridade em relação aos outros. Mas eu sustento que ele também é irrespeitoso e insensível em relação àqueles que não concordavam com ele.

Eu penso que é bom fazer desenhos críticos e filmes sobre Maomé. É necessário escrever livros sobre ele. Tudo isto pela simples educação dos cidadãos.

Eu não procuro ofender os sentimentos religiosos, mas não posso me submeter à tirania. Exigir que os homens e as mulheres que não aceitam os ensinamentos do Profeta se abstenham de desenhar, não é um pedido de respeito, é um pedido de submissão.

Eu não sou a única dissidente do Islã, há muitos no Ocidente. E se eles não têm segurança pessoal, devem trabalhar com falsas identidades para se proteger da agressão. Mas ainda há muitos outros em Teerã, em Doha e Riad, em Amã e no Cairo, como em Cartum e Mogadiscio, Lahore e Cabul.

Os dissidentes do islamismo, como os do comunismo em outras épocas, não têm bombas atômicas nem nenhuma outra arma. Nós não temos o dinheiro do petróleo como os sauditas e não queimamos embaixadas nem bandeiras. Nós recusamos aderir a uma louca violência coletiva. Aliás, nós somos pouco numerosos e muito dispersos para tornar-se uma organização de qualquer coisa. Do ponto de vista eleitoral, aqui no Ocidente, não somos nada.

Nós temos apenas nossas idéias e não pedimos senão a oportunidade de expressá-las. Nossos inimigos utilizarão se necessário a violência para nos fazer calar; eles se dirão mortalmente ofendidos. Eles anunciarão por toda parte que nós somos seres mentalmente frágeis que não se deve levar a sério. Isto não é novo, os defensores do comunismo utilizaram à exaustão estes métodos.

Berlim é uma cidade marcada pelo otimismo. O comunismo fracassou, o Muro foi destruído. E mesmo se hoje as coisas parecem difíceis e confusas, estou certa que o muro virtual entre os amantes da liberdade e aqueles que sucumbem à sedução e ao conforto das idéias totalitárias, este muro também, um dia, desaparecerá.


 

Em defesa do direito ao estupro

07/03/2006

 

Hediondo, em espanhol, é aquilo que fede. Em nossa língua, a palavra adquiriu novas conotações. Além de fedorento, significa também depravado, vicioso, sórdido, repelente, imundo, pavoroso, medonho.

Em fevereiro passado, em Roma, os juízes da Suprema Corte de Cassação da Itália estabeleceram que a violação de uma jovem é menos grave se a ela não for virgem. O fato provocou polêmica. De acordo com a agência Ansa, o tribunal acredita que tais vítimas, do ponto de vista sexual, têm personalidade “mais desenvolvida do que se espera de uma garota de sua idade”. Ou seja, a gravidade do crime já não reside no ato do criminoso, mas na condição física da vítima. No fundo, o velho culto latino do jus prima nocte. Ou droit de cuissage, como preferiam os nobres franceses. Estuprando uma virgem, o estuprador rouba suas primícias ao futuro marido e senhor da jovem. Se ela já não é virgem, bom, já não é tão grave.

Marco T., 40 anos, havia estuprado em 2001 sua enteada de 14 anos. Segundo a defesa, a menina consentiu em fazer sexo oral depois de se negar a uma relação completa, exigida sob ameaça, considerando que o sexo oral seria menos arriscado. A Suprema Corte aceitou a alegação da defesa, para quem “a jovem já havia tido relações sexuais a partir dos 13 anos e, do ponto de vista sexual, já estava mais desenvolvida do que se espera de uma menina da sua idade”. Assim, foi aceito o recurso do acusado pedindo uma pena mais leve.

Em vários países da Europa, particularmente nos escandinavos, está ocorrendo uma onda de estupros, geralmente cometidos por árabes e africanos, tendo como vítimas suecas, finlandesas, dinarmaquesas, francesas e italianas. Os jornais, ao noticiar o fato, ocultam não só a identidade como também a etnia e o país de origem dos criminosos. Supostamente, para não caracterizar o crime como étnico. Em verdade, obedecendo à tirania do politicamente correto e dos grupos dos tais Direitos Humanos, que só defendem os direitos dos criminosos. Ou seja, o estupro tende a ser descriminalizado na Europa. Se não descriminalizado, pelo menos aceito como uma transgressão menor.

Há alguns anos, um cidadão sueco declarava ao vespertino Aftonbladet que não via nada de mal em estuprar uma sueca, afinal “são todas putas e podem casar depois de estupradas”.

Tabu continuava sendo estuprar uma muçulmana, que depois seria repudiada pela própria comunidade e não teria chance alguma de encontrar marido. Claro que este cidadão “sueco” não era exatamente um sueco, mas imigrante de origem árabe com passaporte sueco. O silêncio da imprensa sueca em relação aos estupros étnicos enche de razão os muçulmanos que estão ocupando – inclusive juridicamente – a Europa.

Pela Lei dos Crimes Hediondos, de 25 de julho de 1990, o estupro passou a ser considerado crime hediondo no Brasil. Ou seja: os condenados nela incursos são obrigados a cumprir pena integralmente em regime fechado, não têm direito à anistia, nem à liberdade provisória, nem à progressão do regime. A lei também impõe essas restrições a pessoas condenadas por homicídio qualificado, latrocínio, tráfico de drogas, tortura e terrorismo, entre outros crimes.

Ou melhor, impunha. Por recente decisão do Supremo Tribunal Federal , os presos por delitos graves poderão deixar a cadeia após terem cumprido um sexto da pena em regime fechado. Segundo o promotor Eduardo Araújo da Silva, em entrevista para o Estadão, o estuprador de uma criança ficaria hoje apenas um ano na cadeia, e mais um no regime semi-aberto. O pai ou a mãe de tal criança certamente se sentirão muito confortados com a instituição da progressão penal, ao ver o animal que violou seu filho rindo de suas caras apenas doze meses após ter entrado na prisão.

A bem da verdade, o estupro já foi descriminalizado no Brasil. Ou alguém ainda não lembra do homem que podia salvar a humanidade – como foi saudado pela imprensa americana – o cacique Paulinho Paiakan? Paiakan, em cumplicidade com sua mulher Irekran, estuprou barbaramente uma menina. Enquanto o processo se arrastava, Paulinho – são simpáticos os diminutivos! – avisou: se fosse condenado, não sairia de sua reserva. Ameaçou inclusive fazer rolar o sangue dos brancos, em caso de condenação. Pois bem: foi condenado. Não fez rolar o sangue dos brancos mas continua em sua reserva, livre como um passarinho. A Polícia Federal, única autorizada a agir em reservas indígenas, com todo seu poder de fogo, não ousou lá entrar para buscar o criminoso. Paulinho zombou do Estado brasileiro, zombou da Justiça brasileira, zombou de sua vítima. E não houve sequer uma feminista que protestasse contra o crime hediondo. A menos que a nação caiapó já constitua um Estado independente do brasileiro – onde estupro não é crime – e ainda não tenhamos sido avisados.

Estamos vivendo na época dos sem-terra e dos sem-teto. Invadir prédios ou terrenos alheios virou direito inalienável dos despossuídos. Quando José Rainha Júnior e mais quatro asseclas foram presos por ter invadido a fazenda Santa Maria, em junho de 2000, todos foram beneficiados por um habeas corpus. O ministro Paulo Medina, do Supremo Tribunal de Justiça, assim justificou seu voto: “Os pacientes são obreiros rurais integrantes do MST, que lutam e sacrificam-se por mais razoável meio de vida, onde a dignidade social somente pode ser restaurada no momento em que se fizer a verdadeira, necessária e indispensável reforma agrária no País.” Ou seja, invadir é legal, digno e justo.

Urge estender tais direitos a esta sofrida estirpe dos sem-mulheres. Verdadeiros excluídos sexuais, carecem de sexo e carinhos, logo nesta infame sociedade capitalista, onde a oferta sexual nos agride em cada esquina, em cada pôster, em cada capa de revista, em cada tela de televisão. Se a Itália já minimizou a invasão do corpo das mulheres, se a imprensa européia já não denuncia os estupros étnicos, se o Brasil confere a crimes hediondos a pena adequada a um ladrão de galinhas, se a nação caiapó tem como líder um estuprador confesso – e impune – está na hora de deixarmos de pruridos. Descriminalizemos de vez o estupro. Como um pobre diabo, sujo e fedorento, terá acesso a esses corpos esplêndidos que a mídia oferece em bandeja, senão pela força? Que o direito ao corpo e ao sexo alheios não seja concedido apenas a um bugre, e sim estendido aos brasileiros todos.

Crime hediondo já não fede tanto. Brasileiras de norte a sul do país: sede mais complacentes com estes pobres párias sexuais, estes injustiçados excluídos da humana volúpia. Abrí generosamente vossas pernas, que mais não seja para facilitar o exercício deste direito inalienável dos sem-mulheres. Se você não é virgem, nem vai doer. Deixe de lado seus preconceitos burgueses e contribua para a construção de uma sociedade mais humana e mais justa, cuja dignidade social somente poderá ser restaurada no momento em que se fizer a verdadeira, necessária e indispensável reforma sexual no País.


 

As esquerdas e o ódio aos eucaliptos

14/03/2006

 

As esquerdas odeiam eucaliptos. Descobri isto há uns bons trinta anos. Eu vivia em Florianópolis e passeava pela ilha com uma amiga que havia descoberto o marxismo, depois de velha, em Berlim. Ao passarmos por um “caliperal”, como dizem os ilhéus, ela me bombardeou com invectivas contra os eucaliptos. Que era uma árvore alienígena, que destruía a flora nativa, que destruía a agricultura, só faltou dizer que era uma árvore imperialista. Eu, que havia nascido sob frondes amigas de eucaliptos, que sinto cheiro de infância quando esmago folhas de eucalipto nas mãos, estava perplexo. Seu ódio aos eucaliptos nascera em Berlim, nos anos 70. Não por acaso, na época em que a pasta de celulose derivada do eucalipto surgira pela primeira vez em escala industrial. Em conversas ocasionais com gente de esquerda, sempre constatei esta ojeriza aos eucaliptos. Antes de a indústria da celulose tê-los descoberto, ninguém os odiava.

Duas mil mulheres de um movimento ligado ao MST, o tal de Via Campesina, comemoraram o Dia Internacional da Mulher destruindo um laboratório e um viveiro de mudas de eucaliptos da Aracruz Celulose em Barra do Ribeiro (RS). Vinte anos de pesquisa e alguns milhões de dólares foram jogados ao lixo. Último resquício aguerrido de um marxismo que já é cadáver em países desenvolvidos, o MST desde há muito tenta empurrar o País rumo às trevas dos regimes comunistas. As viúvas do comunismo alegam que o eucalipto estaria transformando o campo em um deserto verde. O oxímoro é típico de europeu, que não conhece a geografia do Sul. A pampa gaúcha, uruguaia e argentina sempre foi um deserto verde e jamais ocorreu a celerado algum destruir a pampa. Felizes os povos que desfrutam de desertos verdes.

Não por acaso, assessoravam as invasoras representantes da Noruega, Canadá e Indonésia, mais um representante do País Basco, que atende pelo basquíssimo nome de Paul Nicholson. Em Porto Alegre, planejaram a depredação hospedados no hotel Sheraton, sob as barbas do governo gaúcho, ora ocupado interinamente por um arrivista oriundo do PT, que nada fez nem nada fará para punir os apparatchicks estrangeiros. Mas que têm a ver estes senhores das antípodas com pesquisas sobre eucaliptos no Rio Grande do Sul? Antes da resposta, ouçamos o deputado marxista Roberto Freire, para quem o MST pode ser tudo, menos comunista. “O comunismo é filho do iluminismo, uma corrente de pensamento que acredita no progresso da ciência como forma de minorar os males da humanidade. Destruir lavouras experimentais e laboratórios científicos nada mais é do que obscurantismo.”

O deputado mente descaradamente. O marxismo sempre foi inimigo da ciência e do progresso da ciência. Roberto Freire não nasceu ontem e sabe muito bem quem foi Trofime Denisovitch Lyssenko, o agrônomo que pretendeu submeter os genes ao pensamento dialético de Marx. Através de experiências truncadas com pinheiros e rutabagas, proclamou que a aparição de caracteres novos transmitidos pelo organismo à sua descendência depende do meio, isto é, que os caracteres específicos adquiridos podem ser deliberadamente transmitidos. Sua ascensão foi imediata e ele se tornou presidente da Academia de Ciências Agronômicas. A ciência se divide então entre ciência burguesa e proletária. Finalmente a genética fora liberada do império da política reacionária. Os "mencheviques idealistas" que não aprovavam os resultados foram excluídos da Academia, transferidos e mesmo deportados para a Sibéria. A menos que reconhecessem publicamente seus erros. Stalin reconheceu o embuste como verdade de Estado e os comunistas de todos os países do mundo adotaram os absurdos de Lyssenko como artigos de fé. Pena que os gens não estavam de acordo com a doutrina de Lyssenko. A agricultura soviética nos anos 40 foi pras cucuias.

Filho do iluminismo terá sido também o marxismo de Mao Tse Tung, que promoveu nos anos 60 a “grande caçada aos pardais”. Segundo o Grande Timoneiro, o pardal seria o vilão das deficiências da agricultura chinesa. A brilhante mente científica de Mao ordenou a milhões de chineses que perseguissem os pardais batendo latas e tambores, para que não repousassem um segundo, o que os levou à morte por exaustão. Com o pássaro quase extinto, os insetos aproveitaram o campo livre e destruíram a lavoura. A fome se abateu sobre a China provocando a morte de milhões de chineses.

Que não venham velhos comunistas falar de filiações iluministas. O marxismo, como toda religião dogmática, sempre foi hostil à ciência. Prova disto são as constantes invasões e depredações de laboratórios e culturas transgênicas promovidas pelo MST. Métodos científicos sempre facilitarão a agricultura, exatamente o que os comunistas não querem, para não perder a bandeira.

Volto aos eucaliptos. Entre as espécies utilizadas para a produção de celulose, o eucalipto é hoje a mais rentável. Seu ciclo de crescimento é de sete anos, em contraposição às coníferas do litoral americano, que levam quase um século para amadurecer. O choupo, outra matéria-prima da celulose americana e canadense, só atinge sua altura plena após 15 anos. Se as florestas dos Estados Unidos rendem entre dois e três metros cúbicos madeira por ano, as cultivadas pela Aracruz rendem, no mesmo período, 45 metros cúbicos. Ou seja, a indústria da celulose a partir do eucalipto é extremamente competitiva.

Em outubro do ano passado, cerca de 300 índios tupiniquins e guaranis, reivindicando terras indígenas, ocuparam três fábricas da Aracruz Celulose S/A, em Aracruz, ES. Para dar apoio a justa causa índigena, um ônibus com estudantes saiu da Universidade Federal do Espírito Santo, entre eles – atenção! – dez noruegueses. Sobre a depredação do centro de pesquisas gaúcho, disse o “basco” Paul Nicholson: “As mulheres da Via Campesina se mobilizaram em Porto Alegre contra o modelo de agricultura neoliberal e da monocultura”. Vamos a alguns fatos. Segundo a FAO, a produção mundial de celulose atingiu 162 milhões de toneladas em 1999. Estados Unidos e o Canadá responderam com 52% do total produzido. A Noruega hoje exporta cerca de 90% de sua produção de celulose e papel. A Indonésia, principal exportador de celulose de fibra curta da Ásia, tem 70% de seu território coberto por florestas, num total de 143,9 milhões de hectares. Não me parece necessário ter a intuição de um Sherlock para perceber porque um “basco” chamado Paul Nicholson, mais representantes do Canadá, Noruega e Indonésia, coordenam a depredação do laboratório gaúcho. Desde há muito instituições católicas européias – Misereor e Caritas, entre outras – vêm financiando o MST para destruir a estrutura agrária do País. Agora são os cartéis do papel que injetam recursos na guerrilha católico-marxista brasileira para destruir uma indústria que representa cerca de 5% de nosso PIB e dá emprego a 2 milhões de pessoas. Segundo Aurélio Mendes Aguiar, pesquisador da Aracruz, foram destruídos no ataque dezesseis clones de alta produtividade, duas mil mudas de pesquisa que seriam testadas nos próximos quinze dias, cerca de 50 matrizes (as plantas de melhor qualidade genética, selecionadas para cruzamentos), além de um milhão de mudas comerciais. O banco de germoplasma do laboratório, biblioteca biológica onde são preservadas as sementes para uso em melhoramento, também foi destruído. “Se fôssemos realizar todos os cruzamentos de novo, levaria no mínimo cinco ou seis anos. Alguns nunca mais serão possíveis, porque as matrizes não existem mais”, diz Aguiar.

Antônio Hohlfeldt, governador em exercício do Rio Grande do Sul, qualificou o ato de “provocação e bandidagem”. E nisto ficamos. O pusilânime governador xinga os bandoleiros, aliás financiados por seu próprio governo e pelo governo federal, e dá por cumprido seu dever. Por este atentado contra a pesquisa científica ninguém será punido. Palavra de velho petista.

Os depredadores da Aracruz foram coerentes com a boa doutrina marxista. Abaixo a ciência! Longa vida – e muitas verbas estatais – ao obscurantismo!


 

Che ressuscita do lixo

28/03/2006

 

Em fevereiro de 2004, comentei Adeus, Lênin, este belo filme de Wolfgang Becker, raridade nestes dias de salas inundadas por bestsellers para consumo de pobres de espírito.

O drama gira em torno de uma cidadã da antiga Berlim Oriental, que caiu em coma um pouco antes da queda do Muro. Só sai do coma alguns meses depois, quando Berlim é uma cidade só. Para evitar que a mãe tenha algum infarto com a nova realidade, seu filho remonta o apartamento com os trastes da era socialista, que nesta altura já haviam sido jogados a um depósito. Toma o cuidado de fechar janelas e eliminar rádio e televisão. Dada a insistência da mãe em ter um aparelho de TV, o rapaz passa a produzir noticiários com um amigo cineasta, no melhor estilo da finada Alemanha Oriental. Ele produz uma RDA que não mais existe, para consumo da mãe em convalescença.

Um rápido detalhe, talvez despercebido aos olhos de muitos, mexeu comigo na ocasião: entre os trastes da era antiga, que o filho recupera de um depósito de objetos inúteis para manter a mãe na ilusão de que nada havia mudado, está um pôster do Che Guevara.

No filme de Becker, que reproduz uma Alemanha de 1991, Che é ícone jogado ao lixo.

Neste nosso país incrível, justo naqueles dias em que eu escrevia a crônica – isto é, treze anos após a queda do Muro – estava sendo ultimado Diários da Motocicleta, de Walter Salles, idílico panegírico ao assassino que tem no currículo, entre outros feitos, ter tornado Cuba um dos países mais pobres do continente, que só não é o mais o pobre porque ainda existe o Haiti.

Vi e revi o filme mais duas ou três vezes. Num destes sábados, dia 18 passado, encontrei-o na programação do Telecine. Vou deliciar-me de novo, pensei, com este irônico relato da derrocada da barbárie. Quando acabou o filme, senti uma lacuna em meu prazer. Não havia visto o momento em que o pôster do Che é retirado do lixo. Imaginei que talvez tivesse ido à cozinha ou ao banheiro e perdido a cena. Decidi então rever meu passado recente. Eu havia visto o filho retirando da parede a foto de Honecker, quando o campeão de tiro na nuca renuncia. Havia visto o rapaz repondo na estante um livro de Anna Seghers. Até ali não havia levantado do sofá. A cena do pôster teria de estar antes da chegada da mãe ao apartamento. Não estava. O episódio fora cortado.

Denunciei o fato em meu blog e recebi mensagens de pessoas que também não haviam visto a cena. Leitores incrédulos preferiram rever o filme, que seria reprisado na madrugada de terça-feira, dia 21. Sentei-me de novo ante a telinha e confirmei: a cena de fato fora cortada. Quando a mãe volta, em rápidos fotogramas vê-se o pôster reposto na parede de cabeceira da cama. Che ressurge do lixo, mas a cena em que foi retirado do lixo nos foi subtraída. É como se sempre estivesse estado naquela parede e jamais tivesse sido jogado ao lixo. A direção do Telecine – escrevi então – deve ter julgado a imagem por demais chocante para o público brasileiro.

Leitores que também curtiam o filme me alertaram: haviam-no visto em DVD e nada da cena do pôster no lixo. Para conferir, peguei um DVD na locadora. De fato, o filme estava censurado no próprio DVD. Quem julgou a imagem por demais chocante para o público brasileiro foi a distribuidora. Mas pode o Telecine distribuir um filme mutilado, só para agradar as viúvas do socialismo? A meu ver, tem a obrigação de reprisar, para o público brasileiro, o filme sem cortes.

Em pleno ano da graça de 2006, dezessete anos após a queda do Muro, quinze anos após a dissolução da União Soviética, temos ainda stalinistas de plantão preservando a imagem de um bandoleiro internacional a serviço do comunismo. Da mesma forma que Stalin mutilava fotos, para impor aos povos sua falsificação da História, mais de meio século depois da morte de Stalin temos neste Brasil censores mutilando filmes para salvar a imagem de Guevara. Se o filho da militante produzia uma RDA inexistente para manter sua mãe na ilusão de um mundo socialista, os distribuidores de Adeus, Lênin produzem um filme distinto do filme original, para manter o mito idílico de um apparatchik de gatilho fácil e sem escrúpulos.

Não por acaso, na Bolívia, Guevara é cultuado como San Ernesto de la Higuera. La Higuera é a aldeia onde Che foi preso. Um monumento ao assassino e um memorial na antiga escola são as principais atrações turísticas da área. Depois do filme de Walter Salles, a aldeia passou a fazer parte da “Ruta del Che”. Eficaz intermediário entre Deus e os seres humanos, o novo santo já tem operado milagres.

Associada a causas nobres, a imagem do Che pode circular. Na terça-feira passada, 21 de março, está presente na primeira página da Folha de São Paulo, numa foto de alunos de uma escola municipal em Itaquera, São Paulo. Discreto, como convém aos santos, Che está no canto inferior direito da foto, na capa de um caderno escolar. A reportagem sequer fala do guerrilheiro. Apenas denuncia o fato de que a escola está situada acima do forno da padaria de um supermercado. O Che, você engole sem perceber.

Dois dias depois, na quinta-feira, no mesmo jornal, em página interna, uma homenagem mais evidente. Em uma foto de indígenas equatorianos protestando contra as negociações para um tratado de comércio com os EUA, lá está de novo o Che, glorioso, sobressaindo da foto, como que liderando o protesto. Como se o homem que levou um país à miséria econômica tivesse qualquer autoridade para liderar protestos contra tratados comerciais.

Já não basta termos de ver na televisão uma deputada dançando para saudar a vitória da corrupção, já não basta vermos o Estado petista assestando toda sua máquina contra um pobre caseiro, temos ainda de consumir gato por lebre e engolir as mentiras piedosas de stalinistas instalados em distribuidoras de filmes. Nestes dias, quem quiser ver o filme na íntegra, terá de viajar a Paris, Berlim ou Roma. Enfim, a países onde Che já teve o destino que sempre mereceu, a famosa lata de lixo da História. Como fazíamos na época da ditadura militar. Quem podia, viajava à Europa para ver bom cinema. Quem não podia ir à Europa, ia a Montevidéu ou Buenos Aires. Neste sentido, os cidadãos de Santana do Livramento eram privilegiados, bastava atravessar a Calle Internacional e assistir ao filme em Rivera.

Não por acaso, um filme como La Palombella Rossa, de Nanni Moretti, jamais passou no Brasil. Estava muito perto da queda do Muro, as chagas das viúvas ainda continuavam abertas. East Side Story, produção alemã de 1997, dirigida por Dana Ranga, cineasta romena que vive em Berlim, saudado pela imprensa americana como um dos melhores da década, passou quase clandestinamente em uma sala no Rio, outra em São Paulo. A crítica, nem um pio. Hoje, a censura é mais sutil. O filme passa. Mas que nenhuma blasfêmia seja feita aos sagrados ícones do hagiológio das esquerdas.


 

A prostituição do mercado livreiro

21/03/2006

 

Você gosta da boa companhia dos livros? Então já terá observado que, nas vitrines e gôndolas das grandes livrarias, não há livro que preste. Você dá de cara com os paulos coelhos da vida, dans browns, harry potters, dalais lamas, livrecos de auto-ajuda, uns explorando o cadáver de Cristo, outros explorando os cadáveres de Platão, Nietzsche ou Schopenhauer, filosofia sucateada, enfim, puro lixo literário. Livro bom, talvez escondido nas estantes e, mesmo assim, olhe lá!

Em reportagem de uma semana atrás, a Folha de São Paulo traz à tona um segredo de polichinelo: as livrarias cobram para exibir livros nas vitrines. Os preços de um pedaço de vitrine ou de uma pilha de livros em destaque variam, conforme as negociações, de 700 a 2.000 reais, dependendo do local e tempo de exposição. Duas das mais prestigiosas redes livreiras do país, a Cultura e Fnac, confirmaram ao jornal este procedimento. A Folha inclusive relaciona os preços: para as prateleiras que ficam nos corredores, 2.000 reais por dez dias de exposição. Para os cubos de livros montados em lugares estratégicos, 1.300 reais por um mês de exposição. Nas vitrines, 900 reais por quinze dias. Quais editores podem pagar tais preços? Os editores de bestsellers. Não é pois de espantar que você sempre encontre os paulos coelhos da vida, dans browns, harry potters, dalais lamas, livrecos de auto-ajuda, uns explorando o cadáver de Cristo, outros explorando os cadáveres de Platão, Nietzsche ou Schopenhauer.

“Todas, todas (as livrarias) fazem” – diz Ivo Camargo, diretor de vendas da Ediouro –. “A Siciliano faz. Fnac faz. Laselva faz. A Laselva, inclusive, tem um departamento que cuida só disso. Acho que está certo. Tem que cuidar mesmo”. Ou seja, se você gosta de boa literatura, afaste-se das grandes redes do livro. Sem falar que o conceito que este tipo de livreiro tem do leitor é insultante. Ele considera que o leitor é uma besta quadrada, que compra um livro só porque este livro está bem exposto. O pior é que talvez tenha razão.

A discussão em torno à venda de livros – se é algo que possa se vender como sabonetes ou se é uma mercadoria especial – não é de hoje. Há editores e livreiros que julgam ser o livro uma mercadoria como qualquer outra. Também há os mais raros – se é que ainda existem – que consideram o livro uma mercadoria nobre. O fato é que os mercenários mandam no mercado. Eu, que sempre vivi cercado de livros, hoje tomo distância das grandes livrarias. E se, por necessidade, entro numa delas, a resposta é sempre uma só: o livro que o senhor procura, não temos no momento.

Em meus verdes anos, fui um defensor incondicional de tudo que se referisse a livro, campanhas pela leitura, feiras do livro, tardes de autógrafos. Em meus dias de jornalista em Porto Alegre, sempre incentivei a Feira do Livro, que acontecia na Praça da Alfândega quando os jacarandás começavam a florir. Abandonei Porto Alegre e, ao voltar, a feira tinha crescido. Começaram a surgir os convidados de honra, em geral autores de bestsellers, que nada tinham a ver com literatura. E quando tinham a ver, os freqüentadores da Praça não os procuravam exatamente por suas obras, mas por sua fama.

Em 95, fui convidado a fazer uma palestra na PUC gaúcha, sobre Camilo José Cela. Fui feliz a Porto Alegre, eu havia traduzido A Família de Pascual Duarte e Mazurca para Dois Mortos. O primeiro, a novela mais difundida na Espanha depois do Quixote, o segundo, um passeio pela Galícia espanhola, ao ritmo de uma estranha melodia, só ao alcance de quem curte a música das palavras. Cela, Nobel de 89, receberia um doutorado honoris causa na universidade e eu matava três ou quatro coelhos de uma só cajadada: revia meus amigos, revisitava a feira, conhecia o autor galego e fazia palestra sobre uma literatura que me fascinava.

Assim aconteceu. Mas um episódio empanou meu entusiasmo. Cela deu uma tarde de autógrafos na Feira. Formaram-se filas imensas ante o escritor, que teve de interromper os autógrafos, após duas ou três horas depois, por estar com câimbras nos dedos. Foi quando tive uma triste percepção do universo dos leitores. Aquela multidão toda, que fazia fila como russos diante de um McDonald’s, nem tinha idéia de quem fosse Cela. Estavam ali para receber o autógrafo de um prêmio Nobel. A feira havia transformado um grande autor em uma celebridade qualquer. Alguns anos mais tarde, Paulo Coelho poluiu a Praça da Alfândega. De novo, filas quilométricas. Há um tipo de leitor para quem Coelho ou Cela têm o mesmo peso. São famosos e basta. Não importa o que tenham escrito. Mesmo quando compra um bom livro, este leitor nem sabe o que está comprando.

Existe também o que chamo de perversão da leitura. Conheço não poucas pessoas que lêem com sofreguidão, em grandes doses, pelo tal prazer de ler. Lêem com o mesmo entusiasmo tanto Dostoievski como Danielle Steel, e ao final da leitura fazem tranqüilamente uma sinopse tanto de Crime e Castigo como de O Preço do Amor, não vendo diferença alguma entre uma obra e outra. Este hábito é doença das mais graves. Prazer de ler pelo prazer de ler é uma piada. Leitura é trabalho, e muitas vezes árduo. Mas falava de livros.

Leia a lista dos mais vendidos da Veja. Na liderança dos autores nacionais, ainda há pouco estavam estas sumidades das letras pátrias: Bruna Surfistinha e Danuza Leão. Na área da ficção, entre os dez mais vendidos pelo menos quatro são os Harry Potters da vida. Livros impostos ao leitor por uma publicidade agressiva, mas que nada tem a ver com boa literatura. Assim, por estas e outras razões, desde há muito mantenho distância das Bienais do livro. Não é ambiente dos melhores para um leitor exigente. Quando necessito comprar livros, busco alguma dessas livrarias pequenas, onde a bibliografia não está na memória de um disco rígido, mas na do livreiro.

Há muitos anos, passei em uma bienal. Rebanhos de criancinhas puxados por professoras, filas imensas para receber autógrafos de... Jô Soares, um calor infernal das luminárias, que não convidava ninguém a deter-se em um stand. Multidões zanzando como moscas tontas pelos corredores. Desde há muito cultivo uma filosofia, evitar qualquer coisa onde haja multidões. Naquele dia, fugi à minha filosofia. Só para voltar para casa irritado e de mãos vazias.

Emilio Calil foi à Bienal. O que Calil conta em seu blog só me reconforta: não perdi meu tempo indo até lá. Propaganda comunista, livros religiosos e de auto-ajuda, sempre em evidência. É óbvio que, garimpando, pode-se encontrar coisa boa. A verdade é que tais feiras são um fracasso total, os próprios exibidores admitem que não faturam o suficiente para cobrir o aluguel dos stands. Para que servem então tais eventos? Ao que tudo indica, para satisfazer vaidades e desovar bestsellers. Um livro com a credencial de bem vendido na Bienal tem suas vendas aceleradas.

O mercado livreiro, desde há muito, prostituiu-se. Cá e lá, restam alguns apóstolos, que inclusive se dão ao luxo de recusar vender lixo. Quando vivia em Curitiba, tirei o chapéu para o livreiro Chaim. Naqueles dias, o livro Zélia, uma paixão – fofocas em torno à ministra Zélia Cardoso de Mello – estava vendendo como pão quente. Era lucro certo para qualquer livreiro. Menos para o Chaim: “essa porcaria não entra em minha livraria”.

Seguidamente, leitores me pedem orientação para leituras. Aqui vai uma: afaste-se das feiras mercenárias. Fuja das grandes livrarias. Livro não é sabonete. Busque aquele livreiro que conhece suas exigências e é capaz de dizer: “não compra esse aí, não é bom”. E afaste-se, principalmente, dos “mais vendidos”. Só por milagre você vai encontrar algo que preste nessas listas.


 

1º de Abril

04/04/2006

 

Há turistas e turistas. Eu, que já residi bom tempo na Europa, não resisto a turismos ocasionais. Turismo é bom. As preocupações de um turista são o terrível dilema de em qual restaurante comer, qual ópera assistir, qual museu visitar e assim por diante. Ao voltar, volta com uma visão idílica do país visitado. Já o residente tem outros problemas, tipo encontrar apartamento para alugar, pagar taxas inerentes à residência, renovar visto de residente na polícia, enfim, uma série de pequenos aborrecimentos dos quais o turista está isento. A visão do residente sobre o país em que reside é sempre menos deslumbrada que a do turista do país em que visita. Residir tem seus desconfortos.

Morei na Europa e também fiz muito turismo por lá. Em geral, conciliando passeio com trabalho. Nos últimos anos, tenho me dado ao luxo de passear sem trabalhar. Já fui pago por Estados e instituições, sempre estrangeiras, insisto em salientar, pois do Brasil jamais recebi um vintém. Se já viajei como jornalista, bolsista ou convidado de colóquios ou festivais, hoje pago minhas viagens com meus dinheiros. Quando fui à Rússia em 2001, a agência de turismo com a qual negociava ofereceu-me vôos espaciais. Nada de estações orbitais, bem entendido, mas eu poderia dar-me ao luxo de “pilotar” MIGs (23, 25 ou 29, à minha escolha) ou de experimentar as sensações de gravidade zero, por vinte minutos, tudo isso por módicos 15 ou 20 mil dólares. Decolando de Baikonur. Com sua indústria espacial estagnada, a ex-todo poderosa Rússia resolveu reciclar em turismo sua sucata tecnológica. Declinei da oferta. Quinze ou 20 mil dólares me parecem muita grana para meia hora de lazer. Não pensa o mesmo o governo brasileiro, ao pagar dez milhões de dólares para mandar um garoto-propaganda ao espaço. O coronel Marcos César Pontes, nova estrela de uma mídia deslumbrada com futilidades, ficará oito dias em órbita. Ou seja, 1,25 milhão de dólares por dia de hospedagem. Confesso que jamais me ocorreu reservar hotel tão caro. Primeiro, porque não teria como pagar nem mesmo um dia. Se convidado fosse pelo rico e generoso Estado brasileiro, sentir-me-ia constrangido ao contemplar, em órbita, o traçado das favelas que o rico e generoso Estado brasileiro não consegue coibir e nem mesmo controlar. A título de comparação, uma noite no Burj Al Arab, no Dubai, talvez o hotel mais sofisticado do mundo, está custando a bagatela de 1.325 dólares. O Brasil está pagando, aproximadamente, mais de 7.500 noites num Burj Al Arab ao coronel Pontes. Há quem tenha vaidade suficiente para tanto. Dois milionários, o americano Dennis Tito e o sul-africano Mark Shuttleworth, desembolsaram 20 milhões de dólares cada um à Agência Espacial Russa para passar uma semana em órbita. Com duas ou três diferenças. Pagaram de seu próprio bolso, sem onerar seus Estados. Não serviram de garotos-propaganda para presidentes com ambições de reeleição. Nem voltaram como heróis. Apenas como milionários extravagantes, cuja fortuna lhes permitia tais luxos.

A velha Rússia comunista revelou-se exímia na busca de dinheiro privado para suas aventuras espaciais. Em 2000, da mesma Baikonur de onde decolou o coronel Pontes, subiu ao espaço uma Soyuz com propaganda de uma rede de pizzarias e usou seus cosmonautas – russo não é astronauta, é cosmonauta – para divulgar máquinas fotográficas. Mas tampouco recusa dinheiro público, preferentemente se não sair do falido Estado russo. O Brasil, esta esplêndida e próspera nação governada pelo PT, teve um desconto de camarada para camarada.

O tour – que poderia muito bem se chamar Cosmos Maravilhoso – ficou pela metade do preço, mas a Rússia levou um troco de não se jogar fora, a utilização da base de Alcântara para lançamentos espaciais. Cientistas que trabalham na incipiente indústria espacial brasileira estão estrilando, e com razão. Os dez milhões de dólares que seriam muito oportunos à pesquisa, estão sendo volatilizados para que o novo “herói” da pátria amada faça um aceno eleitoral ao Supremo Apedeuta da nação. Ora, direis, se o governo paga, que mal tem? Ocorre que governo não paga nada. Quem paga é o contribuinte.

Pontes voltará às terras de Pindorama como astronauta e herói. Não é nenhum dos dois. Ser astronauta é profissão, não turismo financiado por contribuintes. Astronauta é quem fica seis meses em órbita, com todos os riscos de vida e saúde inerentes à prolongada exposição à gravidade zero. O turista tupiniquim curtirá as emoções da viagem. Voltará com uma visão idílica do espaço. Dos desconfortos do residir, nem pensar.

Herói muito menos, ou teríamos de conferir o título a todo turista. (A imprensa brasileira tem fome de heróis. Até uma cadela, a Catita, já foi entronizada como heroína). A melhor definição para nosso subsidiado passageiro vem da ficção científica. Está mais para alien. Pegou carona numa nave de outra civilização, invadiu uma estação orbital sem ter porquê e logo será ejetado para não atrapalhar a vida a bordo.

Assim, leitor, quando assistir às imagens do coronel Pontes em gravidade zero, sinta também os dólares decolando de seu bolso rumo ao espaço sideral para financiar este turismo estúpido, que só serve para inflar a vaidade fátua de um país que não consegue mandar ao espaço e trazer de volta viva nem mesmo uma pulga. Mas astronauta nós já temos.

Quiseram os deuses do Acaso que nosso privilegiado turista espacial entrasse na estação orbital em uma data emblemática: 1° de abril. Dia dos bobos, espécimes que proliferam cada vez mais aceleradamente no Brasil. Nas últimas eleições, já eram 53 milhões.


 

Quem traiu quem?

11/04/2006

 

Justo no dia em que o presidente da CPI dos Correios, o senador petista Delcídio Amaral entrou com duas representações contra o deputado, também petista, Jorge Bittar, por ter sido chamado de Judas e traidor, entre outras delicadezas, as agências internacionais anunciaram a publicação, nos Estados Unidos, da tradução de mais um evangelho apócrifo, denominado O Evangelho de Judas. O texto original teria sido escrito há 17 séculos e está em copta, língua falada pelos egípcios no começo da era cristã. Segundo um dos especialistas que examinam o documento, ele seria por sua vez tradução de um original grego da metade do século II D.C.

Na esteira de bestsellers tipo O Código da Vinci, os jornais do mundo todo estão anunciando uma suposta novidade, a de que Judas teria um papel fundamental na lenda cristã da História da Salvação. Digo suposta novidade, pois todo leitor atento dos Evangelhos percebe que, sem Judas, nem a crucificação nem o suposto sacrifício do Cristo pela redenção dos pecadores teriam sentido. Sacrifício que, aliás, a parte interessada – os pecadores – jamais pediu. Pode-se até falar em traidor, mas a traição era imprescindível no projeto divino.

Segundo o recém-traduzido evangelho, enquanto os outros apóstolos são retratados como obtusos e incapazes de compreender o sacrifício de Cristo, Judas recebe instruções secretas e a ordem para trair Jesus. “Mas a todos excederás. Porque tu sacrificarás o homem que me reveste”, diz Cristo no texto. Se Judas recebeu ordens do deus emergente para traí-lo e as cumpriu, não mais podemos considerá-lo como traidor e sim como santo. A representação do senador Delcídio, pelo menos no que a Judas se refere, fica prejudicada. Mais apropriado seria conferir a comenda a Delúbio Soares, que exercia junto ao PT a mesma função de Judas junto aos apóstolos, a de tesoureiro. E que, segundo João, roubava a caixa comum.

A idéia de Judas como santo não era estranha aos homens do medievo. Em 1387, o inquisidor Nicolas Eymeric pediu a cabeça de São Vicente Ferrer, por este ter afirmado que o arrependimento de Judas fora sincero e salutar. Como, devido à multidão, não pudera se aproximar de Cristo para pedir seu perdão, teria se enforcado e obtido, no Céu, a remissão de seus pecados. São Vicente só não foi para a fogueira por ter a proteção de Pedro de Luna, então cardeal de Aragon. Em 1394, uma vez eleito papa, sob o nome de Bento XIII, Pedro de Luna exigiu de Eymeric a entrega do dossiê e o queimou sem mais cerimônias. Por vias outras que não o arrependimento, Judas começa a fazer carreira como eleito do Senhor.

Nestes dias da Paixão, convido o leitor a apreciar a prata de casa. Judas, traidor ou traído (1968, Gráfica Record Editora, Rio) é um desses raros estudos bíblicos de valor de autoria de um brasileiro. Seu autor, Danillo Nunes, cidadão de Santa Maria (RS) não é nenhum teólogo ou historiador de religiões. Foi ministro do Tribunal de Contas, general-de-divisão R1 e professor de História Militar, Blindados e Tática Geral na Escola de Estado-Maior do Exército. Segundo o autor, se houve um traidor naqueles dias dramáticos, este não foi Judas. E se houve algum herói, este não foi o Cristo.

Diz Lucas (22:22): “Porque, na verdade, o Filho do homem vai segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído!” Para Danillo Nunes, fica claro nesta sentença contraditória, que Judas é um instrumento da vontade divina. Muito antes da tradução do Evangelho de Judas, este versículo não deixa “a quem é cristão outra alternativa senão a de considerar que Judas, cumprindo seu destino por desígnio de Deus, contribuiu com seu gesto para a glória de Jesus, o Cristo”.

O autor nos mostra um Judas gradativamente decepcionado com o Cristo. Começa quando, na segunda-feira, 11 do Nisã, Cristo expulsa os camelôs do templo e instiga os mendigos ao saque generalizado. Para Judas, Cristo passou a ser um mistificador que se apresentava como Messias, um homem perigoso que incitava os miseráveis ao motim e à baderna e os deixava entregues à própria sorte. Sua conduta atrasaria de muito o irromper da Revolução, pois não só desencantaria as massas populares, que não mais creriam nele, como acenderia a desconfiança da classe dirigente, pronta, a partir daquele momento, a reprimir qualquer veleidade de insurreição.

Ao fugir para Betânia com os seus, Cristo teve uma frase infeliz: “Vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não será deixada aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada”.

Segundo Mateus, duas testemunhas assim depuseram: “Este disse: - Posso destruir o Templo de Deus e reedificá-lo em três dias”. É possível que o Cristo estivesse usando uma linguagem metafórica, escreve Nunes. Mas Judas interpretou a afirmação do Mestre em seu sentido literal e horrorizou-se, porque constituía imperdoável blasfêmia. Nunes lembra que Estevão, ao ser julgado pelo Sinédrio, dezoito dias após a crucificação do Cristo, atacou o Templo e o culto que nele celebravam. A indignação foi tão grande que a multidão o arrebatou e o levou para fora da cidade, matando-o a pedradas (Atos 7:54,60). A ofensa do Cristo fora bem mais grave.

A gota d’água para Judas seria o momento em que Cristo, interrogado se era ou não lícito pagar tributos a César, diz: “Daí, pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.

Ora, o que o povo mais odiava era a obrigação de pagamentos de impostos aos imperadores romanos. Não somente por serem extorsivos e permitirem os maiores abusos por parte dos publicanos, mas ainda por representarem o símbolo da escravização de Israel. Ao reconhecer a validade do imposto a César, Jesus se tornava um colaboracionista. Neste momento, Judas teria tomado sua resolução. Seu rompimento com o Cristo estava consumado.

Observemos a cronologia. Na segunda-feira, 11 do Nisã, Cristo havia bagunçado o Templo. Na terça-feira, 12, ocorre o episódio dos tributos a César. Dia seguinte, quarta-feira, 13 do Nisã, Judas se oferece para entregar o Mestre. O imaginário popular pretende que Judas teria entregue o Cristo por trinta dinheiros. Não é verdade. Marcos relata que Judas “foi ter com os principais sacerdotes para lhes entregar Jesus e eles, ouvindo-o, alegraram-se e prometeram-lhe dinheiro”. A motivação inicial de Judas era outra que não dinheiro. Por outro lado, o famoso beijo de Judas não teria a intenção de indicar o Cristo. Não seria difícil para os romanos reconhecerem quem havia depredado o Templo poucos dias atrás. O beijo seria para determinar o melhor momento para prender o Cristo sem provocar revolta popular. Judas era zelota, facção de nacionalismo extremado. Segundo Danillo Nunes, aos olhos de Judas, Cristo não passava de um embusteiro que, em nome de Deus, percorrera a Palestina arregimentando o povo para um levante, despertando na massa humilde a esperança, para depois desertar, deixando-a mergulhada na frustração. O inútil motim do 11 de Nizã, no Átrio dos Gentios, do qual resultara um massacre popular, trouxera descrédito à causa nacionalista. As heresias pronunciadas contra o Templo, de que poderia destruí-lo e reerguê-lo em três dias, mostravam o Cristo como um louco ou elemento perigoso. E o reconhecimento expresso de que os romanos tinham o direito de cobrar impostos, revelavam-no um traidor. Jesus – como disse Jacques Isorni, em Le Vrai Procès de Jésus – não seria um patriota, mas um apátrida de raça judia.

Para o autor, o gesto de Judas foi consciente. Quis não só punir Jesus por julgá-lo culpado de impostura, mas porque o julgava prejudicial à causa nacionalista. Se Cristo não tivesse sido condenado, provavelmente Judas o teria matado. Se conhecesse o juízo milenar e unânime da posteridade a seu respeito – conclui Danillo Nunes – quem sabe, tomado de horror, não exclamaria:

— Meu Deus, eles julgam-me um traidor!


 

O Supremo Apedeuta

20/04/2006

 

Estamos vivendo dias de madalenas arrependidas. Os jornais têm as páginas tomadas por críticos ferrenhos do PT. Olhamos suas biografias e... surpresa! São membros fundadores do PT, ativistas cujas barbas embranqueceram na militância, políticos que foram eleitos pela legenda do PT. Os ratos estão dando no pé, sinal inequívoco de que o barco está afundando. Que o diga a revista Veja, que na edição desta semana faz uma verdadeira necropsia do Partido dos Trabalhadores, aquele que se julgava o único portador autorizada da bandeira da ética.

— É que o partido, ao tomar o poder, mudou – gemem as madalenas.

Mudou coisa nenhuma.

Desde suas origens abrangeu um vasto leque de salafrários, que vai desde piedosos católicos a trotskistas, passando por marxistas soviéticos, maoístas, polpotistas, castristas, enfim, o rebotalho todo do século passado. A união de celerados de tão diferente extração só podia ocorrer em função de um objetivo único, a posse do poder. Eles chegaram lá. Encurralados, hoje não se pejam de acionar a máquina colossal do Estado para esmagar um coitado, que teve a desgraça de ser testemunha das reuniões da Máfia petista. O PT chegou ao poder e tudo fará para não largá-lo.

— Fomos enganados – lamuriam-se as carpideiras. Foram porque quiseram ser enganados. Votaram em um desqualificado, que passou boa parte de sua vida sustentado por um empresário, que como paga recebia favores das prefeituras petistas. Ninguém ignorava isto. Ninguém ignorava que o candidato à Suprema Magistratura da nação morava em uma cobertura, sem ter condições para tanto. Todos os eleitores de Lula fizeram ouvidos moucos às denúncias que salpicavam as páginas dos jornais. O resultado aí está: antes de terminar seu primeiro mandato, o Supremo Mandatário está indiciado como chefe de uma quadrilha jamais vista na História do país, a quadrilha do PT. A denúncia do procurador-geral da República pode não citar Lula nominalmente. Mas o indica em todas suas páginas. Eu não fui enganado. Antes de o PT existir, eu já o denunciava. Explico. Em meus dias de jornalista em Porto Alegre, em meados dos anos 70, dediquei não poucas linhas a comunistas como Marco Aurélio Garcia, Luís Fernando Verissimo, Pila Vares, Flávio Koutzi, Tarso Genro. O que escrevi contra este último senhor daria uma pequena antologia. Em 80, como bons comunistas sedentos de poder, eles se aglutinaram no sedizente Partido dos Trabalhadores. Salvo engano, fui pioneiro nas denúncias contra o partido quadrilheiro. A serpente, eu a denunciei ainda no ovo.

Há outras madalenas carpindo cadáveres, que não as petistas. São pessoas de minha geração que hoje atacam o marxismo com fúria. Basta uma olhadela em suas biografias e lá está: eram aguerridos militantes do Partido. Ocorre que pessoa de minha idade, se um dia foi comunista, não pode alegar que se enganou. As primeiras denúncias da tirania soviética surgiram em 1929, com Panaïti Istrati. Continuaram nos anos 30, com Koestler, Orwell, Camus, Gide, Sábato, Ignazio Silone, Richard Wright, Louis Fischer, Stephen Spender e outros tantos, que foram imediatamente denunciados pelos comunistas como agentes do imperialismo. A denúncia maior ocorreu em 1949, com a affaire Kravchenko. Em 1956, há precisos 50 anos, tivemos o relatório Kruschev. Donde concluímos que os comunistas de minha idade, em suas juventudes foram pessoas cegas ao óbvio ou agiram com dolo. Outra hipótese não há.

Em meus 15 ou 16 anos, tendo recém abandonado o catolicismo, fui cercado por comunistas, que queriam ganhar o ex-crente para a causa. Puseram em minhas mãos um novo catecismo, o Curso de Filosofia – Princípios Fundamentais, de Georges Politzer.

Em verdade, com filosofia nada tinha a ver, era um manual de marxismo. Nele vi uma doutrina filosoficamente muito tosca e naqueles dias mesmo recusei a doutrina. Só mais tarde fui tomar conhecimento das denúncias que acima citei. De qualquer forma, já estava vacinado.

Volto ao PT. O que melhor demonstra a ausência de escrúpulo dos petistas é o fato de, sendo composto majoritariamente por universitários, ter escolhido como líder um operário analfabeto. A escolha não é gratuita. Desde fins do século XIX vinha sendo criado o mito de uma classe operária redentora. Mitos são fortes. Os europeus sempre gostaram da idéia de um operário no poder. Longe deles, é claro. Là bas! Na América Latina, por exemplo. E manifestaram entusiasmo com a candidatura de Lula. Povos distantes são sempre ótimos laboratórios para experimentos sociais.

O sumo analfabeto, com o apoio da Igreja Católica e da universidade, acabou sendo eleito.

No ano mesmo de sua eleição, em crônica intitulada “Eu sou o que sou”, publicada no Baguete Diário, jornal eletrônico de Porto Alegre (29/03/2002), pareceu-me oportuno qualificá-lo como apedeuta: “Até hoje as esquerdas são pródigas em contar piadas sobre a falta de cultura de Costa e Silva. Mas Costa e Silva fez Escola Militar, cujo acesso não é para qualquer apedeuta”.

Em 19 de agosto do mesmo ano, no mesmo jornal, na crônica intitulada eoaparatchik, voltei ao tema: “Existe uma raça de apedeutas que se sentem muito eruditos quando usam proparoxítonas ou quadrissílabos. No debate organizado pela Folha de São Paulo, na segunda feira-passada, ele se superou. Lá pelas tantas, arrotou erudição: ‘Entretanto, há coisas a serem feitas concomitantemente’. Embriagado pelo próprio verbo, feliz pelo heptassílabo, perguntou ao interlocutor: ‘Gostou do concomitantemente?’"

Estas duas ocorrências estão registradas no ebook A Vitória dos Intelectuais, publicado em 2003 pela Ebooksbrasil e reunindo as crônicas de 2002.

Em 17 de março de 2003, no artigo “Armadilha para Negros”, publicado neste jornal, escrevi: “O atual presidente da República está longe de ser o primeiro apedeuta a assumir o poder neste país. Câmara e Senado estão repletos de analfabetos jurídicos, que nada entendem da confecção de leis nem sabem sequer distinguir lei maior de lei menor”.

Na tradução do artigo para o inglês, publicada na revista Brazzil, de Los Angeles, o tradutor teve um feliz achado: First Ignoramus.

Em “Fala, ó metamorfose ambulante”, publicado também no MSM, em 20 de setembro de 2004, lá está: “Durante solenidade em Brasília, o Supremo Apedeuta disse que ‘o ser humano não tem que ter medo de ser uma eterna metamorfose ambulante’, fazendo referência a um dos sublimes autores que embasam sua erudição”. Na Brazzil, a expressão foi traduzida como Supreme Ignoramus. Se alguém se der ao trabalho de pesquisar nos arquivos do MSM, verá que, de 2003 para cá, escrevi pelo menos 21 crônicas, onde uso as expressões apedeuta ou Supremo Apedeuta.

Em suma, para meu prazer, a expressão foi fazendo fortuna na mídia eletrônica. Tanto o Supremo Apedeuta como o Supreme Ignoramus. Nada lisonjeia tanto um jornalista como ver seus achados correndo mundo. Outro dia, lendo ao azar a revista Primeira Leitura, vi que um jornalista tucano chapa-branca a empregava várias vezes. Maravilha, pensei, minha trouvaille já é de conhecimento dos partidos de oposição. Ocorre que, conversando com outros jornalistas, fiquei sabendo que o autor do artigo está reivindicando a autoria da expressão.

Alto lá, senhor Reinaldo Azevedo. Supremo Apedeuta é cria minha, e isto qualquer pesquisa rápida no Google pode comprovar. Use e abuse da expressão, quantas vezes quiser, divulgue-a aos quatro ventos, isto só me faz feliz. Mas não pretenda tê-la criado. Isto é muito feio para um jornalista. Ou, para usarmos uma palavra da moda, é antiético. E não fica bem para o porta-voz de um partido que pretende dar um banho de ética no partido que se dizia dono da ética tomar atitudes assim antiéticas. O Supremo Apedeuta é meu.


 

Volta às trevas

25/04/2006

 

Há quase meio século, mais precisamente em 1958, Louis Malle dirigiu Os Amantes, filme que passou a ser conhecido por uma única cena, quando o personagem masculino descia os lábios pelo ventre da Jeanne Moreau. A cena terminava aí. Ao ser exibido em Porto Alegre, já nos anos 60, um grupo de espectadores criou a Turma do Apito. No momento da cena, a turma apitava em protesto ao gesto abominável. Isso que a câmera não descia além do umbigo! A Turma do Apito, talvez intuindo o próprio ridículo, se manteve sempre no anonimato. Soube-se mais tarde que era liderada por um ilustre jurista, o Dr. Rui Cirne Lima, diretor da Faculdade de Direito da URGS. Na época, apesar de séculos de literatura fescenina, sexo oral era tabu. Um criminalista como Washington de Barros Monteiro, por exemplo, em seus comentários ao Código Penal, falava do “asco indizível da felatio in ore”. Se bem me lembro de minhas aulas de Direito, ele também afirmava que “mesmo no tálamo conjugal, a esposa guarda resquícios de pudor”. Assim falavam os juristas há meio século.

Alguns anos depois, la Moreau novamente mexia com a moral vigente, com Jules et Jim, filme de François Truffaut, onde a personagem central, Catherine, vivia um tranqüilo triângulo com dois amigos, o Jules e o Jim do título. O ano de feitura do filme, 1962, é emblemático, foi quando chegou a pílula anticoncepcional no Brasil. O filme terá chegado alguns mais tarde, quando já se respirava melhor em termos de costumes. O idílico romance de Catherine – ambientado em Paris, em 1912, antes da primeira guerra – foi recebido sem escândalos e saudado como um hino à vida e ao prazer, que celebrava a amizade e a ternura.

Em 65, Luchino Visconti deu mais uma sacudida nas já complacentes estruturas do que então se chamava de família burguesa. Com Vagas Estrelas da Ursa, o conde cineasta abordava o incesto entre irmãos. A transgressão foi tranqüilamente absorvida. Que mais não fosse, não era fácil ter uma irmã como la Cardinale. Em 1968, Pier Paolo Pasolini faz mais uma investida contra a fortaleza assediada. Em Teorema, um estranho se hospeda na mansão do dono de uma fábrica e seduz a mãe, o pai, a filha, o filho e nem a empregada consegue escapar de seu fascínio. Em 71, Visconti ataca de novo com A Morte em Veneza, onde narra a paixão senil do compositor Gustav Von Aschenbach pelo belo e quase imberbe Tadzio. O filme era baseado no livro homônimo de Thomas Mann, de 1912, mesmo ano em que se situa a trama de Jules et Jim. Em 76, Nagisha Oshima mostra, em O Império dos Sentidos – com direito a detalhes – o que Louis Malle apenas insinuara em Os Amantes. Proibido no Japão, o filme muito deve ter contribuído para a indústria turística... francesa. Excursões de japoneses - e japonesas, principalmente - invadiam Paris para ver o filme de Oshima. Eu o assisti em uma sala da Champs Élysées, em meio aos risos histéricos dos japas. Não que o filme fosse divertido. Rir, no Japão, é uma forma de expressar nervosismo.

No Ocidente, respirava-se bastante bem naqueles dias. Estes filmes não provocaram escândalo, mas apenas o burburinho que um bom filme provocava então. A família não morreu, como temiam os puritanos da época. Apenas tornou-se mais aberta ao prazer. As esposas haviam perdido seus resquícios de pudor no tálamo conjugal, como diziam os juristas. Naqueles tempos, ter um filho homossexual era uma desgraça. Hoje, um pai ou mãe respiram aliviados se o filho não tem Aids.

Os universitários de hoje talvez nem saibam mais quem foi Hermann Hesse. Autores fundamentais desaparecem dos catálogos da livrarias. Hoje, para encontrá-los, só fuçando em sebos. Nos dias de minhas universidades, o escritor alemão foi uma espécie de guru. Para aqueles em fuga para o Oriente, Sidarta. Para os que queriam o melhor do Ocidente, O Lobo da Estepe. Para quem preferia especulações metafísicas, O Jogo das Pérolas de Vidro.

Harry Haller, o personagem central de O Lobo da Estepe, em princípio nada tem de atraente. É um pacato burguês que vive enclausurado em uma rotina absoluta. Lá pelas tantas, encontra um teatro "só para loucos” e sua vida se transforma. O romance começa a tornar-se interessante. Hermínia, Maria e Pablo o conduzem a uma outra vida e Harry Haller aprende a dançar, passa a conhecer o universo feminino e o mundo dos bares e restaurantes. O lobo arisco e solitário se torna bicho humano.

Uma pequena frase de Hesse foi uma bandeira para minha geração. Lá pelas tantas, Haller se interessa por &lquo;alegres jogos amorosos em três ou quatro”. Na época se lia muito Henry Miller - outro desaparecido dos catálogos - e em Paris os échangistes estavam em alta. Recém se havia descoberto a pílula e a Aids ainda não despontara no horizonte. Foi um interregno - como direi? - paradisíaco. Haller dava vazão à sua sensualidade adormecida por séculos de moral cristã. Hesse nos apontava um rumo, o do prazer sem peias. Em verdade, não era o primeiro a desfraldar esta bandeira. Nem seria o último.

Avanço cinco décadas após Os Amantes e a Turma do Apito. Isto é, meio século. Estamos em 2006. Uma universitária de 24 anos, estudante de Direito em Marília, no interior de São Paulo, teve de ser retirada de dentro da sala de aula pela Polícia Militar, por motivo de segurança, depois que fotos íntimas dela foram divulgadas na internet. A moça, que certamente jamais leu Herman Hesse, teria se entregado a um alegre folguedo em três. Àquele mesmo folguedo que em Jules et Jim nos soava a saudável utopia. A moça nega, diz que tudo foi montagem. Segundo o delegado Valter Bettio, responsável pelo inquérito, no depoimento a estudante disse que as roupas, acessórios e calçados que aparecem nas fotos não são dela, assim como o corpo é diferente do seu. Isto não importa. O que importa é a reação de seus colegas.

Ao chegar à faculdade onde estuda, foi ameaçada por alunos de vários cursos. Com ofensas e gritaria, os bravos guardiões da moral cristã formaram grupos do lado de fora da sala de aula onde ela estudava. Um dos professores trancou a moça na sala para protegê-la e chamou a polícia. Os PMs foram obrigados a usar gás de pimenta para desfazer o tumulto e retirar a garota da faculdade. É o que contam os jornais.

A universidade já foi arejada. Os tempos passados, também. Ao que tudo indica, estamos voltando à caça às bruxas e às trevas da Idade Média. Universitários, que constituem as futuras elites da nação, violaram a privacidade de uma colega e a agridem como a uma criminosa. Pior ainda, universitários de Direito, justo os que por ofício deveriam proteger a privacidade dos cidadãos. Como se uma boa partouse fosse prática tipificada como crime em nosso Código Penal. O ódio ao prazer, que havia sido conjurado nos anos 60, volta a imperar. Que se pode esperar no futuro desses brutos que pretendem proibir a uma menina a livre fruição de seu corpo?

Fosse um universitário flagrado com duas meninas, seria saudado como campeão. No Brasil, ao contrário da lei de Lavoisier, se nada se cria, tudo se perde e nada se transforma.


 

Aiatolices ameaçam Europa

03/05/2006

 

De uma amiga de Estocolmo, recebo notícias de que a maior associação de muçulmanos na Suécia está exigindo leis especiais para muçulmanos. A organização quer, entre outras coisas, que os divórcios entre muçulmanos sejam reconhecidos por um imã, o que seria uma mudança no direito de família sueco. “É função dos imãs decidir se a família continuará a viver junto", diz Mahamoud Aldebe, porta-voz da Sveriges Muslimka Förbund. Ou seja, como no Islã quem decide o divórcio é sempre o macho, as imigrantes muçulmanas podem abandonar qualquer veleidade de abandonar o marido e senhor. Se na Suécia as leis especiais para muçulmanos estão ainda na fase de exigência, no Reino Unido alguns quesitos já foram conquistados. Uma outra amiga me informa que as prisões inglesas já fornecem aos prisioneiros muçulmanos vasos sanitários especiais, dispostos de forma que o crente não defeque orientado para Meca. O Islã não só invade, como já domina a Europa. Seria interessante que os europeus lessem as obras mestras dos grandes líderes muçulmanos, antes de render-se incondicionalmente às crenças dos imigrantes árabes.

Entre as pérolas de minha biblioteca, tenho uma súmula do Valayaté-Faghih, do Kachfol- Astar e do Towzihol-Masael, os três livros-chave de um escritor que, em 1979, recebeu generoso asilo em terras de França, em cidade nas cercanias de Paris. Traduzindo, pela ordem: O Reino do Erudito, A Chave dos Mistérios e A Explicação dos Problemas. O livro foi publicado em Paris, em 1979, por ocasião do exílio do autor, pelas Éditions Libres-Hallier. Pinço cá e lá algumas reflexões do erudito pensador, principalmente no que diz respeito à higiene pessoal e direito matrimonial:

·No momento de urinar ou defecar, é preciso se agachar de modo a não ficar de frente nem dar as costas para Meca.

·Não é necessário limpar o ânus com três pedras ou três pedaços de pano, uma só pedra ou um só pedaço de pano bastam. Mas, se se o limpa com um osso ou com coisas sagradas como, por exemplo, um papel contendo o nome de Deus, não se pode fazer orações nesse estado.

· É preferível agachar-se num lugar isolado para urinar ou defecar. É igualmente preferível entrar nesse lugar com o pé esquerdo e dele sair com o pé direito. Recomenda-se cobrir a cabeça durante a evacuação e apoiar o peso do corpo no pé esquerdo.

·Durante a evacuação, a pessoa não deve se agachar de cara para o sol ou para a lua, a não ser que cubra o sexo. Para defecar, deve também evitar se agachar exposto ao vento, nos lugares públicos, na porta da casa ou sob uma árvore frutífera. Deve-se igualmente evitar, durante a evacuação, comer, demorar e lavar o ânus com a mão direita. Finalmente, deve-se evitar falar, a menos que se seja forçado, ou se eleve uma prece a Deus.

·A carne de cavalo, de mula e de burro não é recomendável. Fica estritamente proibido o seu consumo se o animal tiver sido sodomizado, quando vivo, por um homem. Nesse caso, é preciso levar o animal para fora da cidade e vendê-lo.

·Quando se comete um ato de sodomia com um boi, um carneiro ou um camelo, a sua urina e os seus excrementos ficam impuros e nem mesmo o seu leite pode ser consumido. Torna- se, pois, necessário matar o animal o mais depressa possível e queimá-lo, fazendo aquele que o sodomizou pagar o preço do animal a seu proprietário.

·Onze coisas são impuras: a urina, os excrementos, o esperma, as ossadas, o sangue, o cão, o porco, o homem e a mulher não-muçulmanos, o vinho, a cerveja, o suor do camelo comedor de porcarias.

·O vinho e todas as outras cervejas que embriagam são impuros, mas o ópio e o haxixe não o são.

·O homem que ejaculou após ter tido relações com uma mulher que não é sua e que de novo ejaculou ao ter relações com a legítima esposa, não tem o direito de fazer orações se estiver suado; mas, se primeiro tiver tido relações com a sua mulher legítima e depois com uma mulher ilegítima, poderá fazer as suas orações mesmo se estiver suado.

·Por ocasião do coito, se o pênis penetrar na vagina da mulher ou no ânus do homem completamente, ou até o anel da circuncisão, as duas pessoas ficarão impuras, mesmo sendo impúberes, e deverão fazer as suas abluções.

·No caso de o homem - que Deus o guarde disso! - fornicar com animal e ejacular, a ablução será necessária.

·Durante a menstruação da mulher, é preferível o homem evitar o coito, mesmo que não penetre completamente - ou seja, até o anel da circuncisão - e que não ejacule. É igualmente desaconselhável sodomizá-la.

·Dividindo o número de dias da menstruação da mulher por três, o marido que mantiver relações durante os dois primeiros dias deverá pagar o equivalente a 18 nokhod (três gramas) de ouro aos pobres; se tiver relações sexuais durante o terceiro e quarto dias, o eqüivalente a 9 nokhod e, nos dois últimos dias, o eqüivalente a 4½ nokhod.

·Sodomizar uma mulher menstruada não torna necessários esses pagamentos.

·Se o homem tiver relações sexuais com a sua mulher durante três períodos menstruais, deverá pagar o eqüivalente em ouro a 31½ nokhod. Caso o preço tiver se alterado entre o momento do coito e o do pagamento, deverá ser tomado como base o preço vigente no dia do pagamento.

·De duas maneiras a mulher poderá pertencer legalmente a um homem: pelo casamento contínuo e pelo casamento temporário. No primeiro, não é necessário precisar a duração do casamento. No segundo, deve-se indicar, por exemplo, se a duração será de uma hora, de um dia, de um mês, de um ano ou mais.

·Enquanto o homem e a mulher não estiverem casados, não terão o direito de se olhar.

·É proibido casar com a mãe, com a irmã ou com a sogra,

·O homem que cometeu adultério com a sua tia não deve casar com as filhas dela, isto é, como suas primas-irmãs.

·Se o homem que casou com uma prima-irmã cometer adultério com a mãe dela, o casamento não será anulado.

·Se o homem sodomizar o filho, o irmão ou o pai de sua esposa após o casamento, este permanece válido.

·O marido deve ter relações com a esposa pelo menos uma vez em cada quatro meses.

·Se, por motivos médicos, um homem ou uma mulher forem obrigados a olhar as partes genitais de outrem, deverão fazê-lo indiretamente, através de um espelho, salvo em caso de força maior.

·É aconselhável ter pressa em casar uma filha púbere. Um dos motivos de regozijo do homem está em que sua filha não tenha as primeiras regras na casa paterna, e sim na casa do marido.

·A mulher que tiver nove anos completos ou que ainda não tiver chegado à menopausa deverá esperar três períodos de regras após o divórcio para poder voltar a casar.

·Qualquer comércio de objetos de prazer, como os instrumentos musicais, por menores que sejam, é estritamente proibido.

·É proibido olhar para uma mulher que não a sua, para um animal ou uma estátua de maneira sensual ou lúbrica.

O autor destes eruditos preceitos não é nenhum doente mental - ou pelo menos assim não foi oficialmente considerado - nem, pelo que me conste, esteve algum dia sob camisa de força. Ao contrário, foi líder respeitado pelas esquerdas internacionais e um dos chefes de Estado que mais freqüentou as primeiras páginas da imprensa internacional no final do século passado. Do alto de sua sabedoria e humanismo, o grande estadista ousou reptar as potências e não há hoje cerimônia oficial no Irã em que sua imagem não sobrepaire acima das autoridades. Seus despojos estão hoje abrigados em um templo mil-e-uma-noitesco em Teerã, que atrai milhões de peregrinos. O autor de tão doutas prescrições é nada menos que o aiatolá Ruhollah Khomeiny. Excertos destas suas três obras foram publicadas em vários países, no Brasil inclusive, onde teve três edições, sob o título genérico de O Livro verde dos Princípios Políticos, Filosóficos, Sociais e Religiosos do Aiatolá Khomeini, Rio, Editora Record. As edições não têm data, mas creio serem dos anos 80.

Allah-u-Akbar!


 

Até lá, morreu o Neves!

09/05/2006

 

A justiça brasileira foi implacável na semana passada. O Tribunal Regional Federal condenou o ex-senador Luiz Estevão de Oliveira, os empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Corrêa Teixeira Ferraz, sócios da construtora Incal, e o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto a um total de 115 anos de prisão, pelo desvio de verbas na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. Os indigitados réus foram também condenados a mais de R$ 5 milhões em multas. Verdade que, considerando-se um desvio de R$ 169,5 milhões, o investimento destes senhores teve uma rentabilidade extraordinária, fora do alcance dos comuns mortais.

O juiz Nicolau, mais conhecido na imprensa por Lalau, já condenado a 22 anos, recebeu mais 26 anos de reclusão. O ex-senador Estevão foi condenado a 31 anos de prisão: 9 anos e 4 meses pelo crime de peculato-desvio; 8 anos por estelionato qualificado; 8 anos e 8 meses por corrupção ativa; 2 anos e 6 meses por documento falso e, igualmente, 2 anos e 6 meses por formação de quadrilha. O empresário Fábio Monteiro de Barros também recebeu penas semelhantes às de Estevão, no total de 31 anos de prisão. José Eduardo Teixeira Ferraz foi condenado a 27 anos e oito meses.

Nesta mesma semana, Antonio Marcos Pimenta Neves, ex-diretor de redação do Estadão, assassino frio e confesso da jornalista Sandra Gomide, editora de Economia do mesmo jornal, no dia 20 de agosto de 2000, foi condenado pelo tribunal do júri a dezenove anos, dois meses e doze dias de prisão. Jornalista senil, não conseguindo mais exercer o direito de pernada sobre uma subordinada, preferiu matá-la. Por unanimidade, o júri considerou o jornalista culpado de crime qualificado, o que o torna sujeito à Lei de Crimes Hediondos, que prevê o cumprimento integral da pena em regime integralmente fechado. Entre o crime e a decisão do júri, decorreram cinco anos, oito meses e quinze dias. O assassino, confesso, passou a maior parte deste tempo em liberdade.

Dura lex sed lex. Finalmente o martelo da justiça abate os poderosos, estará imaginando o cidadão desavisado. Em sua inocência, este cidadão deve estar supondo que o senador, o juiz, os empresários e o jornalista estão encerrados no cárcere a que foram condenados. Acontece que estamos neste Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal considera que criminosos devem responder a processo em liberdade, enquanto não forem esgotados os recursos a que têm direito. A situação do Lalau, 78 anos, não muda em nada. Já cumpria – e continuará cumprindo – prisão domiciliar, por problemas de saúde e de idade. A situação dos demais condenados no escândalo da construção do Fórum tampouco. Continuarão esperando o julgamento dos recursos.

Idem, Pimenta Neves, que já tem 69 anos e se aproxima da idade confortável da impunidade. A defesa vai apresentar recurso ao Tribunal de Justiça e o novo julgamento deve demorar pelo menos mais dois anos. Segundo o ex-juiz Luiz Flávio Gomes, que acompanha o caso, “até lá, Pimenta terá 70 anos e, se ficar comprovado que está doente, poderá ficar em prisão domiciliar mesmo condenado em definitivo". Considerando-se que cada instância demora cerca de três a cinco anos para julgar um recurso, o leitor já pode ter uma idéia muito precisa de quando estes senhores olharão o mundo por trás das grades: nunca.

Há alguns anos, o Estadão publicou artigo de uma ativista internacional que propunha a absolvição coletiva de todos os assassinos responsáveis pelo genocídio ocorrido em Ruanda, em 1994. Os criminosos eram tantos, de tão difícil identificação – alegava a generosa articulista – que qualquer processo se tornava impossível. No Brasil, parece que estamos rumando a esta solução proposta para Ruanda, embora os criminosos não sejam tantos e sejam perfeitamente identificáveis. O segredo da impunidade? Advogados caros e safados, que jamais discutem o mérito da questão, atendo-se aos arabescos colaterais do direito adjetivo. A persistir esta tendência do Judiciário, teremos uma privilegiada elite de megatérios, todos devidamente condenados pelo rigor das leis e gozando das delícias de suas posses, em meio à afável companhia de amigos e parentes. Com uma pequena restrição, a de não poder viajar ou sair de casa. Mas idade provecta é idade de ficar em casa mesmo. Principalmente quando lei alguma impede a entrada de bons vinhos e champanhes, boa trufa e bom caviar.

Cada vez que comento esta malandragem perfeitamente aceita nos tribunais, não resisto a citar Swift, que já no século XVIII via este recurso tão usual no século XXI. Em As Viagens de Gulliver, escreve o deão, a propósito da hipotética disputa de uma vaca:

Ao defender uma causa,os advogados evitam cuidadosamente entrar no mérito da questão. Mas são estrondosos, violentos e enfadonhos no discorrer sobre todas as circunstâncias que não vêm a pêlo. Por exemplo, no sobredito caso, não querem saber quais ou direitos ou títulos que tem o meu adversário à minha vaca, mas se a dita vaca era vermelha ou preta, se tinha os chifres curtos ou compridos, se o campo em que eu a apascentava era redondo ou quadrado, se era ordenhada dentro ou fora da casa, a que doenças estava sujeita, e assim por diante. Depois disso, consultam os precedentes, adiam a causa de tempos a tempos e chegam, dez, vinte ou trinta anos depois, a uma conclusão qualquer. (...) por maneira que são precisos trinta anos para decidir se o campo, que me legaram há seis gerações os meus antepassados, pertence a mim ou pertence a um estranho que mora a seis milhas de distância.

Enquanto isso, o ex-motorista e ex-mecânico Marcos Mariano da Silva, 57, conseguiu também na semana passada pensão indenizatória no valor de R$ 1.200 por mês, a partir de junho. A indenização foi concedida pelos dezenove anos em que esteve preso injustamente no Recife, acusado de homicídio. Foi preso por uma questão de homonímia: o criminoso se chamava Marcos Mariano Silva. Neste período, o outro Mariano perdeu sua frota de seis táxis, sua oficina, sua mulher e suas dez filhas. Não bastassem estas perdas todas, perdeu também a visão.

Dezenove anos de vida foram roubados deste pobre coitado, como também sua família e seus olhos. Mariano não teve a chance de ter advogado caro. Luiz Inácio Lula da Silva hoje recebe R$ 4.294 mensais, por ter passado... 31 dias na cadeia. O investimento do Supremo Apedeuta nada deixa a invejar ao investimento do Lalau e seus comparsas.

Gente fina é outra coisa. Dez, vinte, trinta anos depois..., como diz Swift. Até lá, morreu o Neves. Terão morrido também o Lalau, o Luiz Estevão, o Monteiro de Barros e o Teixeira Ferraz. Morrerão condenados, mas terão vivido até seus últimos dias como passarinhos em gaiolas douradas.

É preciso terminar com essa lenda de que o crime não compensa. As novas gerações estão arriscando perder uma velhice confortável, melhor que qualquer aposentadoria, caso continuem a acreditar nessas potocas.


 

Clotilde

16/05/2006

 

Lembras, Clotilde, daquele guri boca suja e sem respeito que fugia para o chircal quando chegavam visitas? E que só voltava do mato para exibir aos visitantes - especialmente se eram moças - seu vasto repertório de nomes feios? Eu já não lembro muito dele. Entre aquela época e hoje se passaram mais de trinta anos, que dão a impressão de trezentos. Mas sei que lembras dele melhor do que eu.

Me dá teu braço. Vamos passear pelos campos de Ponche Verde e Upamaruty. Rever a sanga onde pesquei minhas primeiras joaninhas. Os mundéus para onde mangueei perdizes. A sombra da parreira onde me ensinaste as primeiras letras. A cacimba em que me debrucei para beber a água gelada do manancial. Vamos passear em silêncio, não sou de muito falar. Sabes que no campo não se admite intimidades entre pais e filhos. Se hoje tenho a coragem de te falar, decerto é porque estou longe.

Olhando paras trás, tudo me parece sonho. Lembras de quando escarafunchavas meus pés arrancando rosetas e espinhos de tala e coronilha? Sinto saudades daqueles espinhos. Aquele cascão grosso que protegia meus pés é hoje uma pele fina, sensível até mesmo a grãos de areia. Forçado pelas convenções, ao pôr sapatos me sinto um pouco como cavalo ferrado. Mas a cidade assim o exige.

Me passa um mate. Vamos sentar na frente da Casa, ao lado da pedra onde Canário afiava facas e tesouras. Enquanto o sol vai caindo e as sombras avançam, como fantasmas tristes coxilha arriba, vamos corujar a primeira estrela, ouvir a canção dos grilos, ver as ovelhas se aprochegando em fila para o abrigo de uma canhada.

Não sei se imaginaste alguma vez as andanças futuras daquele guri xucro. Eu jamais imaginaria. Se, naquela época, me dissessem que há um país onde o sol não se põe, eu insultaria o mentiroso. E não é que um dia fui parar lá? E à meia-noite o sol ameaçava esconder-se, mas era só ameaça, continuava rodando quase paralelo ao horizonte.

Lembro de ti muitas vezes atrelando o tordilho à aranha. Li há algumas semanas, num jornal, a queixa de umas professoras rurais que tinham de ir à escola a cavalo. Gente boba, não é? Durante trinta anos, alfabetizaste duas gerações, graças ao tordilho. E nunca ouvi de ti queixa alguma.

Devo ter sido bom aluno, não é verdade? Uma das coisas que lembro muito foi daquele quinto ano primário. Tirei o primeiro lugar da aula. Foi barbada. Pra começar, só tinha dois alunos, eu e a Chica. Como viriam fiscais da cidade para os exames, e a turma não estava bem preparada, as professoras nos deram a prova num domingo, para decorar em casa. Não sou ruim de memória, respondi tudo em dois minutos.

Lembras da professora que pulou o alambrado atrás de nós, quando a aranha já descia o lançante da coxilha? “Espera, pára, o teu filho é um gênio, tens de mandar esse guri pra cidade”. Pois é! Mandaste o geninho pra cidade. Lá já foi mais difícil continuar sendo o primeiro da classe. As professoras jamais deram a alguém as provas antes do dia do exame. Resultado: no fim do ano, um monte de reprovações. Por isso que o ensino moderno anda em crise.

Mais um chimarrão antes de a gente terminar este passeio! Já está ficando tarde, tenho de voltar ao presente. Só há um lugar no mundo para onde sempre volto com o coração aos pulos: Ponche Verde. Qualquer dia estarei de novo aí. Não é por meu gosto que vivo nos povoados. Sabes, já faz alguns anos que não dou uma boa galopada nem vejo um nascer de sol. Há muito não ouço um galo cantar nem vejo galinhas ciscando o pátio depois de uma chuva. Já nem sei se formigas de asa existem ou são lenda. Esqueci o gosto de um tatu assado na casca. Bebo um leite de sabor desagradável que nada mais tem a ver com um apojo quentinho.

Virei bicho da cidade, mãe. Mas qualquer dia desses, o diabo sai de trás da porta, ato a mala nos tentos e me mando à la cria!


 

A farsa do toque de recolher

23/05/2006

 

Toque de recolher. Semana do terror. Estas são as manchetes de capas de caderno do Estadão deste último domingo. Para o visitante ou estrangeiro que estiver passando em São Paulo, fica a certeza de que houve um toque de recolher. E que a cidade viveu uma semana de terror. De fato, no prazo de uma semana houve 166 mortes, contados policiais e civis.

Ocorre que a média de assassinatos na grande São Paulo, nos fins-de-semana, produz entre 40 e 60 cadáveres. A rigor, todo fim-de-semana é de terror. Se com este terror o paulistano convive bem, não será com um ligeiro pico de mortes que a cidade vai entrar em pânico.

O que houve foi uma cidade esvaziada pela boataria irresponsável. Primeiro, surgiram os indefectíveis motoqueiros avisando o comércio para baixar as cortinas. Consciente ou inconscientemente, a polícia deu boa ajuda à bandidagem, também mandando lojas e restaurantes fecharem. O rádio e a televisão fizeram o resto. Bastou um jornalista da Record dizer: “parece um toque de recolher”, e a expressão correu a cidade. No fundo mesmo, quem decretou o toque de recolher não foi nenhuma autoridade constituída, mas a televisão.

Na segunda-feira dita negra, que de negra nada teve, a televisão descarregou imagens dos massacres de sexta-feira, sábado e domingo. O efeito foi assustador. No restaurante, o garçom me avisou que fora decretado toque de recolher na Avenida Paulista. Exagero de jornalista, pensei com meus botões. Ao pagar, fui avisado que o toque de recolher fora estendido a meu bairro, Higienópolis. Bom, aí já era mais grave. Na Angélica, algo estranho na rua. Tráfego nervoso, pessoas com ar de quem vai, não com ar de quem vem. Na altura da praça Buenos Aires, tropeço com duas amigas assustadas, que corriam para seus apartamentos. Me alertaram que estávamos sob toque de recolher e mais: que o toque de recolher fora decretado pelo PCC. “Palhaçada” – resmunguei, e continuei meu caminho despreocupadamente.

Resolvi observar melhor o mundo em torno. Bares, escolas, lojas e shopping fechando. Pelo jeito, era toque de recolher mesmo. Numa rara padaria ainda aberta, uma multidão fazendo fila, abastecendo-se como em tempo de guerra. Cheguei em casa resmungando contra a estupidez de um governo que, impotente ante a bandidagem, resolve decretar toque de recolher para fingir que está fazendo algo. Liguei a televisão, reportagens e entrevistas alarmantes, autoridades descobrindo o óbvio, que é preciso eliminar o uso de celulares por presidiários para acabar com este surto de terror em São Paulo, que naquelas últimas 48 horas já havia feito 86 cadáveres, mais da metade de policiais. Nada sobre toque de recolher. Fui então à Internet. Muito menos.

O mais parecido que encontrei foi uma notícia no Terra. As lojas da rua Teodoro Sampaio, zona oeste de São Paulo, e do Largo 13 de Maio, na zona sul, estavam de portas fechadas. Segundo os lojistas, a ordem de fechar as portas viera dos policiais que atuavam na região. Com o alarmismo do rádio e da televisão, o boato espalhou-se na cidade e as empresas começaram a liberar seus funcionários. Os ônibus deixaram de circular, as paradas ficaram lotadas de gente amedrontada com pressa de voltar para casa. O trânsito triplicou e atingiu engarrafamentos típicos de sexta-feira. As linhas de celulares congestionaram e os aparelhos ficaram mudos.

Nestes dias em que o PCC resolveu mostrar quem manda na cidade, se alguém ficou preocupado foram as autoridades. O paulistano ficou apenas apreensivo, afinal se nem a polícia tem mais segurança, com que segurança posso contar eu, cidadão comum? Num Estado que não dá garantias mínimas de segurança ao cidadão, crime já não é crime, mas fatalidade. Marcola, o delinqüente tido como líder dos ataques à polícia, em uma conversa com um delegado, foi claro: “Eu posso entrar numa delegacia e matar um policial, mas um policial não pode entrar na cadeia e me matar, pois é obrigação do Estado me proteger”.

Por trás de seu repto, está a tranqüilidade de um criminoso com salvo-conduto das ONGs e entidades dos tais de Direitos Humanos, mais a cumplicidade de políticos e a leniência dos juízes. Sabe que, ao melhor arranhão que sofrer, podem cair até secretários de Segurança, isso se não tiverem de enfrentar júri. Quanto a policiais, ele pode mandar matar à vontade. Nenhuma entidade de direitos humanos denunciará a morte de policiais. O paulistano convive bem com o medo. Quem ainda não aprendeu a conviver com o medo foi a polícia. Para partilhar seu pânico, sem ordem judicial alguma, constrangeu comerciantes a fechar suas lojas. Para honra e glória da bandidagem, São Paulo parou.

A segunda-feira foi pintada como um dia de terror. Em verdade, foi o dia do grande fiasco. São Paulo foi paralisada por boatos, nada mais que boatos. A imprensa mostrou multidões fugindo para abrigar-se em casa. Ora, uma vez fechados bares, lojas, shoppings, escolas, não há nada melhor a fazer senão voltar para casa. Os paulistanos, acovardados pelo sensacionalismo de rádios e TVs, conferiram ao PCC um poder que o grupo criminoso não tem, o de paralisar uma cidade de dezoito milhões de habitantes. São Paulo exagera. O terror sequer começou. Teremos terror quando começarem a explodir os primeiros carros- bomba. Quando chegar este dia, o PCC terá então de fato poder sobre a cidade.

Por enquanto, o poder do PCC se exerce em outras instâncias, junto às autoridades. Ao decidir negociar com o Senhor da Guerra, o tal de Marcola, Estado e polícia renderam-se vilmente à bandidagem. Quando o Senhor da Guerra ameaçou o delegado dizendo que poderia entrar numa delegacia e matar um policial, o delegado, com o rabo entre as pernas, engoliu a ameaça.

Não bastasse a arrogância do marginal todo-poderoso, o porta-voz do PCC, advogado Anselmo Neves, proferiu nova ameaça. Que se o governo estadual não acolhesse as reivindicações da facção e não abrandasse o rigor do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), a tensão aumentaria nos próximos dias. Atemorizadas, as autoridades foram voando – literalmente – até a cela do Marcola. O Estado, humildemente, negociou um cessar-fogo com o criminoso responsável pelas matanças. Com um simples telefonema, o Senhor da Guerra encerrou um conflito que duzentos mil homens armados não conseguiram controlar. Que podemos esperar nos próximos anos? À menor reivindicação não satisfeita dos presidiários, nova onda de matanças. Marcola está no melhor lugar em que poderia estar: em uma cela de alta segurança, protegido por centenas de policiais. Estivesse comandando a batalha no campo de batalha, correria o risco de ser ferido e mesmo morto. Encarcerado, não corre risco algum.

O Estado rendeu-se vergonhosamente. O PCC foi vitorioso em toda extensão. O que não é de espantar. Se uns comandam o crime a partir de um cárcere de São Paulo, outros comandam o crime a partir de um ministério em Brasília. Que se pode esperar de um país que teve recentemente como chefe da Casa Civil um terrorista treinado em Cuba e como ministro da Fazenda um chefe de quadrilha? E que hoje tem como ministra de Minas e Energia uma ex-assaltante de bancos e como ministro da Justiça um criminalista que fez fortuna defendendo narcotraficantes? Não dispondo da máquina estatal para roubar, Marcola faz o que pode a partir de seu cárcere.

Cláudio Lembo, o governador de São Paulo, negou com veemência a negociação óbvia: a violência só acabou depois que o Estado enviou interlocutores para parlamentar com o Senhor da Guerra. Não bastasse mentir à população, o governador teve arroubos de um Farrakhan inspirado por Lênin, ao responsabilizar a “minoria branca perversa”, a “burguesia má”, pela criminalidade. Esta mesma burguesia má que paga a uma faxineira o dobro do que o Estado paga a uma professora. O Explicador-Geral da República, Tarso Genro, acusou o governador de preferir negociar com o PCC do que aceitar a ajuda oferecida pelo governo federal. Tem toda razão o Explicador-Geral. O PT tem muito mais experiência quando se trata de negociar, vide as absolvições dos deputados mensaleiros.

Já o Supremo Apedeuta considerou que as ações do PCC eram decorrência da falta de investimentos na educação: “Na hora que você não investe em uma escola, você vai ter de investir depois em uma cadeia”. Vai ver que a quadrilha montada pelo PT em Brasília só existiu porque faltou escola ao José Dirceu, José Genoíno, Antônio Palloci, Delúbio Soares, Silvinho Pereira, Duda Mendonça, Marcos Valério e demais quadrilheiros.

Que se espera para entregar um ministério ao Marcola? Este pelo menos não brinca em serviço.


 

Quando verdade é crime

30/05/2006

 

Ao país dos Huyhnhnms ainda não fui. Bem que gostaria de ter ido. Lá não existe a palavra mentira. Se alguém diz algo que não confere com os fatos, diz-se que está dizendo a coisa que não é. Os Huyhnhnms não possuem na sua língua vocábulos para exprimir a verdade ou a mentira. Assim sendo, duvidar e não acreditar o que se ouve dizer é para os Huyhnhnms uma operação de espírito à qual não estão habituados. Quando são obrigados a isso, o espírito sai-lhes por assim dizer fora da órbita natural. Quem nos conta tais peculiaridades é o capitão Lemuel Gulliver.

“Recordo-me até de que, conversando algumas vezes com meu amo a respeito das propriedades da natureza humana – continua Gulliver – tal como existe nas outras partes do mundo, e havia ocasião para lhe falar da mentira e do engano, tinha muito custo em perceber o que lhe queria dizer, porque raciocinava assim: o uso da palavra foi-nos dado para comunicar uns aos outros o que pensamos e para sabermos o que ignoramos.Ora, se se diz a coisa que não é, não se procede conforme a intenção da natureza; faz-se um abusivo uso da palavra; fala-se e não se fala. Falar não é fazer compreender o que se pensa?

“- Ora, quando o senhor faz o que se chama mentir, dá-me a compreender o que não se pensa: em vez de me dizer o que é, não fala, só abre a boca para articular sons vãos, não me tira da ignorância, aumenta-a.

“Tal é a idéia que os Huyhnhnms têm da faculdade de mentir, que nós, homens, possuímos num grau tão perfeito e tão eminente”.

Estou falando, é claro, das Viagens de Gulliver, certamente o livro mais sarcástico já escrito sobre a espécie humana. Os Huyhnhnms são cavalos. Neste país vivem também os Yahoos, seres simiescos e vis, semelhantes aos humanos, que costumam subir nas árvores para jogar excrementos nos Huyhnhnms. Os nobres cavalos, ao se defrontarem com Gulliver, o associam imediatamente aos repelentes Yahoos. A cultura e nobreza dos Huyhnhnms impressionou a tal ponto Gulliver que, ao voltar à sua Inglaterra natal, tomou distância de seus familiares e passou a freqüentar sua estrebaria, onde passava longas horas conversando com os cavalos.

Conversar com cavalos não é má idéia, neste nosso país de Yahoos, onde a todo instante lemos e ouvimos “a coisa que não é”. Particularmente quando quem fala é um político. A começar pelo chefe da nação, Sua Excelência o Supremo Apedeuta, que consegue o milagre de transmitir, quando fala, onze mentiras em dez frases. A mentira é inerente ao político. Não há como ser eleito sem, pelo menos em algum momento, mentir. É inerente também aos advogados. Assistimos mentiras sórdidas todos os dias, proferidas por ilustres rábulas, vide os casos Richthofen, Pimenta Neves, Marcola. A advogada deste última, sem o menor resquício de pudor, afirma numa CPI que não sabia que seu cliente era líder do PCC. Não há, no entanto, como indignar-se pelo fato de que criminosos confessos mintam, quando mentem o presidente da República, o ministro da Justiça, o ministro da Fazenda, quando mentem os governistas e quando mente a oposição. A mentira se torna saúde e verdade insânia. Mente o pai para o filho, o filho para o pai, mente o marido à mulher e mente a mulher ao marido. Suponho que existam homens no mundo que não mintam para suas mulheres, mas por enquanto só encontrei um.

A própria história nasce da mentira. “A lenda é uma mentira que ao final se torna história”, dizia Jean Cocteau. A humanidade tem suas bases na mentira religiosa e hoje vivemos os séculos da mentira ideológica. Assim como o medievo teve sua sustentação na mentira eclesial, o século XX foi, de ponta a ponta, uma mentira só, a mentira do comunismo. Para desfraldar a bandeira de uma doutrina assassina, só havia um recurso: mentir. Enquanto milhões de pessoas morriam de fome ou morriam nos campos de “reeducação” na China e na URSS, os jornais do século nos mostravam regimes paradisíacos, que haviam superado todas as contradições da sociedade humana e construído o “homem novo”, antiqüíssimo chavão marxista, hoje retomado com ares de novidade por um bronco como Hugo Chávez. Que talvez já nem lembre que este chavão foi bandeira de um assassino recente, Che Guevara, hoje cultuado como santo, graças às mentiras que inundaram o século. “A mentira é um belo crepúsculo que realça cada objeto”, dizia Camus.

Nos dias de hoje, reproduzida pela imprensa, a mentira é tão avassaladora que pode passar por louco quem a nega. Por exemplo, o 14 de maio último, a “ segunda-feira do terror” em São Paulo. Não houve terror algum nesta cidade. Se havia alguém aterrorizado eram os policiais, que aliás são pagos para evitar o terror. A mentira do terror percorreu o país e o mundo e quem hoje negar este terror passa por insano. Digamos que os paulistanos tenham ficado apreensivos. Mas apreensão não rende primeira página. Terror vende mais.

A mentira é universal, só não existe no país dos Huyhnhnms. Só podia ser um país mítico, do reino do imaginário. Se é universal, neste Brasil foi promovida a direito inalienável.

Durante as CPIs, que são constituídas para chegar-se à verdade, habeas corpus preventivos são concedidos pelo Supremo Tribunal Federal para garantir aos depoentes o direito de mentir. O leitor pode procurar no universo das nações uma Suprema Corte garantindo o sagrado direito de mentir. Não vai encontrar. Se há países em que o prosaico hábito de mentir derruba presidentes, no Brasil é a mentira que os sustenta. A mentira tornou-se institucional.

Assim sendo, não surpreende fato ocorrido no Congresso na semana passada. Em sessão de acareamento no Congresso, o deputado Arnaldo Faria de Sá, disse a Sérgio Weslei dos Santos, um dos advogados do PCC: “Você aprendeu bem com a malandragem, hein”. A resposta do advogado foi um raro momento de verdade em meio a um festival de mentiras: “A gente aprende rápido aqui”.

Foi preso e algemado na hora. Cuidado com a língua, leitor! Em país em que a mentira se tornou norma, verdade é crime.


 

Testemunha do Além absolve na terra

06/06/2006

 

Nunca convivi com espíritas. Só conheci um há três anos. Quando morre alguém perto da gente, de onde mal se suspeita sempre salta um espírita vendendo suas muletas metafísicas. Minha mulher morrera há mais de mês e eu conversava com amigos comuns. Em dado momento, uma moça atalhou: “Eu conversei ontem com ela”. Nessas ocasiões, tomo uma atitude de crédulo. Se a moça afirmava com tanta convicção ter conversado com minha mulher, não seria eu quem iria contestá-la. Perguntei apenas o que ela havia dito. Ela deixou uma mensagem, disse a moça: “seja feliz”.

O que me lembrou a aparição de Maria aos três pastores em Fátima. Quando interrogada sobre quem era, teria dito a Virgem: “Eu sou a Nossa Senhora”. Ora, sendo Maria mais que santa, semideusa, não é de supor-se que tivesse domínio tão precário do português. Se se dirigia aos três pastores, o correto seria: “Eu sou a Vossa Senhora”. Por um descuido sintático do narrador, o milagre ficou prejudicado.

Da mesma forma, a mensagem de minha companheira. Éramos gaúchos. Depois de passarmos por Curitiba e São Paulo, ela passou a usar o você, mas apenas ao tratar com curitibanos e paulistanos. Jamais me trataria por você. Como a comunicação de Maria, a de minha mulher também ficou sob suspeita. Mas não neguei o testemunho da moça.

Aproveitei o ensejo para pedir-lhe que, quando falasse de novo com ela, pedisse o código do celular, que eu havia ficado sem.

A moça entrou em pane, achava que não ia dar, códigos são coisas confidenciais, começou a perguntar que horas são e logo deu as de Vila Diogo. Contei a história mais tarde a professores universitários e um deles, também espírita, prometeu-me perguntar às instâncias do Além sobre o código do celular. Mas me alertou que o médium teria de ser muito poderoso para descobri-lo. Bem entendido, nunca mais me falou no assunto. Nem eu precisava do código, afinal sempre o tive e queria apenas divertir-me com a capacidade comunicativa dos tais de médiuns.

Talvez código de celular seja matéria de pouca monta. Assuntos de mais gravidade, como a absolvição de um crime, têm imediata atenção do Além. Aconteceu em Viamão, RS. Uma mulher de 63 anos, acusada de matar um tabelião, com dois tiros na cabeça, foi inocentada, por 5 votos a 2, da acusação de mandante de homicídio. Inocentada por quê? Porque uma carta psicografada da vítima declarava: "O que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes (...). Um abraço fraterno do Ercy", leu o advogado de defesa, ouvido atentamente pelos sete jurados.

Vamos ao que diz a Folha de São Paulo sobre o fato:

Não consta das cartas, psicografadas pelo médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, a suposta real autoria do assassinato. O marido da ré, Alcides Chaves Barcelos, era amigo da vítima. A ele foi endereçada uma das cartas. A outra foi para a própria ré. Foi o marido quem buscou ajuda na sessão espírita. O advogado, que disse ter estudado a teoria espírita para a defesa (ele não professa a religião), define as cartas como "ponto de desequilíbrio do julgamento", atribuindo a elas valor fundamental para a absolvição. (...) Os jurados não fundamentam seus votos, o que dificulta uma avaliação sobre a influência dos textos na absolvição. Os documentos foram aceitos porque foram apresentados em tempo legal e a acusação não pediu a impugnação deles.

Curvem-se as nações mais uma vez ante este colosso, o Brasil. Glória ao Rio Grande do Sul, este Estado pioneiro em matéria de ciência jurídica. Viamão über alles. Que sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra, como diz o hino rio-grandense. Esta extraordinária inovação do tribunal do júri, verdadeiro ovo de Colombo ainda não intuído pelos sistemas judiciários dos demais países, dirime definitivamente quaisquer dúvidas que possam pairar sobre os veredictos dos jurados. Quem com mais autoridade para inocentar um réu senão a vítima? Está morta, é verdade. Mas se os espíritas consideram ser possível falar com os mortos, em nome do sagrado respeito a todas as profissões de fé, não seremos nós, ateus empedernidos, que contestaremos tal crença. Só nos resta esperar que este novo recurso jurídico se integre definitivamente ao Direito Processual e seja mais e mais utilizado pelos nossos tribunais.

Que estão esperando as autoridades que investigam os assassinatos dos prefeitos de Santo André e Campinas? Irão invocar os espíritos de Celso Daniel e Antonio da Costa Santos (o Toninho do PT) apenas ao final de algum júri, que só será realizado quando algum suspeito for indiciado? Por que não invocá-los já, na fase inicial do processo, para que determinem, com aquela veracidade que conferimos aos depoimentos de defuntos, quem de fato os assassinou? No caso do prefeito de Santo André, teríamos mais sete mortos a depor. Médiuns competentes bem que poderiam organizar uma coletiva no Além, invocando todos os espíritos na mesma data e hora. O que certamente não terá inconveniente algum, já que espíritos não devem ter agendas apertadas. Como é de supor-se que mortos não mintam e seus depoimentos sejam considerados de fé pública, os crimes seriam elucidados em um átimo.

Já que falamos de crimes momentosos, começa nesta semana o julgamento de Suzane von Richthofen e seus cúmplices no assassinato de seus pais, que tiveram seus crânios esfacelados com barras de ferro. Segundo os jornais, a acusação tentará provar que Suzane matou os pais para pôr as mãos na herança da família. Já a defesa pretende que a meiga Suzane era uma moça de conduta irretocável e temperamento doce, mas de cabeça virada por influência do rapaz que a iniciou na vida sexual e no uso de drogas. É espantoso que, tendo ciência do precedente de Viamão, o tribunal do júri ainda sequer tenha aventado a hipótese de invocar os espíritos de Manfred von Richthofen e particularmente o de sua mulher, Marísia. Quem sabe Suzane não era mesmo moça de conduta irretocável e temperamento doce. Coração de mãe nunca se engana.

Claro que problemas podem ocorrer. Digamos que haja divergências nos testemunhos do Além. Nada que não se resolva com a colaboração de um perito médium, que confrontará as afirmações dos protoplasmas. E se você, leitor, pelas circunstâncias da vida, algum dia se encontrar na condição de réu de homicídio, nem pense em advogados. Contrate logo um bom médium. Aliás, considerada a trouvaille gaúcha, está mais do que na hora de regulamentar a profissão.


 

Saudades do Obdulio

13/06/2006

 

Em 1971, residindo já há seis meses em Estocolmo, fui à polícia de Imigração renovar meu bosättningtillstånd. Melhor nem pronunciar a palavrinha, vai soar meio esquisito em português. Em todo caso, significa permissão de residência. Konstapel é o título que se dá ao policial. Registrei este momento em meu romance Ponche Verde.

— Nacionalidade?

— Brasileira.

— Ah! Então o senhor quer asilo político?

— Oh não, jag ska tacka nej, como pode muito bem ver Herr Konstapel, nesse formulário peço apenas uma permissão de estada, agradeço a generosa oferta, que aliás é pertinente. Meu país vive uma ditadura, sei disso, os dias não são os melhores para quem pensa e escreve o que pensa. Mas antes de fugir de ditaduras, Herr Konstapel, estou fugindo do país todo, fujo exatamente daquilo que para vossos patrícios é sinônimo de charme e exotismo, fujo do carnaval e do futebol, do samba e da miséria, da indigência mental e da corrupção, quero tirar umas férias do subdesenvolvimento, viver em um território onde o homem sofre os problemas da condição humana e não os da condição animal. Muito antes de os militares tomarem o poder, min Herr, eu já não suportava os civis. Veja o Sr., meu povo morre de fome e todos sorriem felizes e desdentados quando um time de futebol bate outro, se bem que a coisa não é assim tão tétrica como a pinto, veja bem, lá também existe luxo, requinte, hotéis que talvez fizessem inveja aos de vosso rico país, mansões de sonho isoladas da miséria que as envolve por arames farpados, guardas e cães, há cronistas sociais que acendem charutos com notas de cem dólares e homens catando no lixo restos de podridão para comer. E não fujo só do Brasil, Sr. Policial Superdesenvolvido, fujo também de minha condição de jornalista, pertenço a uma classe que se pretende de esquerda e entorpece multidões com doses cavalares de ... futebol.

Ou seja, não é de hoje que abomino o Brasil do futebol. Os suecos imaginavam que eu fugia do regime militar. Nada disso. Razões bem anteriores à ditadura me faziam detestar essa idiossincrasia de meu país. Em uma festa em Estocolmo, um Svenson puxou conversa comigo. Queria saber do Garincha, do Pelê, do Jairssinho. Disse-lhe que estava na Suécia exatamente para não ouvir falar dessa gente. “Então não temos mais nada a conversar”, disse-me. Varsågod, min kära! Como queira, meu caro. E fui juntar-me às tjejers, elas pelo menos não estavam interessadas em futebol. Não era a ditadura que me afastava do país. Ditaduras passam. O futebol é eterno.

Em outras viagens, sempre perambulei com a praga pregada às costas. No aeroporto de Bucareste, um guarda de fronteira, mal viu meu passaporte, abriu em um sorriso afável sua cara de laje e disse: “Pelê”. Ao entrar em Berlim oriental, outro cara de laje, após olhar um minuto para minha foto e mais um minuto para meu rosto (e aí você vê quanto custa a passar um minuto), também sorriu: “Pelê”. Nas montanhas de El Hoggar, no Saara argelino, senti nos olhos de um funcionário embuçado um brilho alegre ao ver que meu passaporte era do país de Pelé. Todos os esforços do Brasil para constituir-se como nação, toda a história nacional, todas as instituições brasileiras resumiam-se a uma palavrinha de quatro letras. Pelé passou. Em minhas últimas viagens, tive de suportar outra: Ronaldinho. Ora, direis, o cronista abomina o futebol. Nada disso. Considero o futebol um esporte muito plástico, bonito, inteligente e mesmo excitante. Joguei muito futebol em meus dias de guri. (Eu era bom. Certa vez, até mesmo fiz um gol). O que abomino é a passionalidade. Li em algum lugar que, no século passado, um time na Inglaterra aplaudiu uma jogada brilhante do adversário. Eu, que nunca em minha vida entrei em estádio algum, gostaria de estar lá nesse dia. Isto é civilização.

Mais que o fanatismo, abomino esta mania tupiniquim de associar o futebol à nação. Toda época de copa, vivo meus dias de nojo. Já não se pode ir a um restaurante sem ter de suportar os patrioteiros berrando a cada gol. O verde e amarelo torna-se emético. Pessoas aparentemente inteligentes viram de repente brutos fanatizados. Nem precisa o Brasil jogar. Qualquer jogo é aquecimento para o dia em que a pátria entrar de chuteiras no campo. E ai de você se pedir a um garçom para baixar o volume da TV. Passará por inimigo da nação. Isso se não for corrido do restaurante.

De uma forma que lógica alguma explica, cada vitória do Brasil é vista como uma vitória do governo no poder, seja lá qual governo for. Assim foi nos dias de Médici, assim é nestes dias do Supremo Apedeuta. É como se o presidente e seus ministros tivessem suado a camiseta nos estádios. Cientes deste vício deste povinho infame, os governantes se apressam em colar-se à seleção. A copa passa a ser um fator eleitoral. Nestes dias, ninguém mais lembrará que o PT montou a mais vasta quadrilha de toda a história do país, que o presidente acha algo perfeitamente normal o caixa dois, como nada vê de mal no fato de seus filhos enriquecerem com tráfico de influência. Ninguém mais lembrará dos assassinatos em série do PT, nem do financiamento estatal à guerrilha católico-marxista. Muito menos dos ministros escorraçados de seus ministérios por participação na quadrilha. Tudo será borrado da memória nacional. Depois da copa, começa-se de zero.

Pior é o espetáculo da imprensa. Jornalistas, que por questão de ofício deveriam ser profissionais lúcidos, transformam-se em palhaços abobalhados que só repetem lugares comuns e frases vazias. Passamos a viver em pleno império das nulidades. Os jornais passam a dedicar cadernos inteiros à crônica... do nada. Rádio e televisão ministram todos os dias doses colossais de anestésicos. Em falta de assunto, criam-se tragédias em torno às bolhas no pé de uma vedete qualquer, à lesão no menisco de outro analfabeto. Saudades dos anos 50. Outro dia, pesquisando jornais da época, tive o grato prazer de constatar que, naqueles dias, futebol não entrava na primeira página dos jornais.

O que me afasta do futebol é o fanatismo do povinho, dizia. Paradoxalmente, nestes dias de copa viro torcedor. Desde que me conheço por gente, em todas as copas, sempre torci... pela derrota do Brasil. Torço especialmente nas oitavas, quando uma derrota significa exclusão da competição. Mas também não me desagrada ver o Brasil goleado em uma semifinal ou final. Assim sendo, ergo minhas preces neste início de campeonato pela vitória da Croácia. Hrvatska, em croata. País com um nome assim bem merece uma vitória. Além do mais é país de fraldas, tem pouco mais de dez anos de vida. Que viva a Hrvatska! Uma taça lhe viria bem para apresentar-se ao mundo. Se a Hrvatska não contiver o Brasil, deposito minhas esperanças nos demais adversários pela frente. Se, na pior das hipóteses, o Brasil chegar à final, rezo para que um Obdulio Varela ressurja das cinzas para terminar a copa com fecho de ouro. Nestes dias de tão raras boas notícias, peço aos deuses um presente para mim mesmo. Uma derrota, de preferência humilhante, de meu país. Se ela ocorrer, o leitor já pode imaginar meu sorriso imenso e feliz.

Você conhece algum país que faça feriado em dia de jogo de sua seleção? Se disser que conhece, vou dizer que você se engana. Esta vergonha é nossa e exclusivamente nossa.

Você quer torcer pelo Brasil? Torça. Mas quando estiver gritando “pra frente, Brasil!” preste atenção ao eco: “Lula 2006”.


 

Cavacos do ofício

20/06/2006

 

Um amigo me pergunta sobre o que seria necessário para ser um bom jornalista. Em verdade, nunca pensei no assunto e minha resposta é mais ou menos aleatória. Enumero então alguns quesitos que me parecem fundamentais, sem pretender que sejam definitivos.

O jornalista deve ter uma qualidade que deveria ser inerente a todo ser humano. Jornalista que vende sua capacitação para ideologias ou partidos não passa de um venal. Conheço não poucos colegas que, em épocas de eleição, aproveitam para faturar alto. Prestam assessorias a partidos. Quem presta assessoria a um partido, seja lá qual partido for, é pessoa que vendeu sua independência e só escreve o que patrão manda. Ser chapa-branca não é crime. Mas nada tem de ético. O jornalista chapa-branca – aquele que vende seu talento para o poder ou para partidos – sempre empunha o famoso argumento do leite das criancinhas.

Não convence. A meu ver, uma vez que optou pela prostituição, deveria ser sumariamente excluído, e para sempre, das redações de jornal. Existe aliás uma tese de que a um jornalista não deveria ser permitido votar. É de se pensar no assunto.

Ora, direis, jornalista sempre tem patrão. De fato. Mas quando o dono de um jornal exige que seus redatores escrevam em franca oposição aos fatos, esse jornal não vai longe. Pode manter-se em ditaduras, onde os jornais são financiados pelo Estado. Em regime democrático, esse jornal morre. Neste sentido, a primeira qualidade de um jornalista deveria ser a mesma de todo cidadão decente: honestidade.

Dito isto, vamos a algumas qualificações específicas. Neste nosso mundinho globalizado, jornalista que não dominar pelo menos três línguas além da própria, nem deveria candidatar-se ao ofício. No caso do Brasil, considero o conhecimento do espanhol obrigatório. Do inglês, imprescindível. E do francês, muito oportuno. Conhecessem os jornalistas um mínimo de francês, não escreveriam bobagens com “um affaire” ou “um fondue”. Nem traduziriam – como invariavelmente traduzem – l’Arche de la Défense como o Arco de la Défense. Cada língua que dominamos é uma janela aberta para o mundo. Quanto mais janelas, melhor se vê.

Jornalista que hoje conhecer o russo, árabe ou chinês, está muito bem qualificado para entender política internacional. O Brasil jamais produziu sinólogos ou kremlinólogos. Os grandes jornais americanos e europeus sempre têm um profissional que tenha acesso a esses universos. O Brasil, que se nutre das agências de notícia, em geral não exige tais conhecimentos. Passa então a comer milho na mão das agências. O Monde, por exemplo, quando manda um correspondente ao Irã, envia alguém que saiba falar farsi. Os jornais brasileiros se contentam com alguém que arranhe o inglês. Não posso deixar de lembrar uma correspondente internacional da Folha de São Paulo, que mandou um despacho de Zagreb, noticiando que a marinha croata estava bombardeando Dubrovnik. Ela via emissões da TV iugoslava e nada entendia do que ouvia. Ora, a Croácia jamais teve Marinha, pelo menos nos dias de Iugoslávia, e jamais um militar croata bombardearia a mais linda cidade croata.

É bom que o jornalista viaje. Quanto mais países conhecer, mais apto estará para o ofício.

Todo jornalista deveria saber que o Irã não é país árabe e que mulheres árabes não usam chador. No entanto, lemos todos os dias que as árabes portam chador. Viajar também nos ajuda a conhecer nosso próprio país. O homem não conhece apenas vendo. Conhece comparando. Gosto muito de repetir uma frase de Chesterton: “não se conhece uma catedral permanecendo dentro dela”. Se alguém que jamais saiu do Brasil me diz conhecer o Brasil, não acredito. O país em que nascemos, só o conhecemos mesmo olhando de longe.

Vivemos dentro de uma cultura cristã. Para entendê-la, deve o jornalista ter sólidos conhecimentos do cristianismo. Não deposito muita confiança em jornalista que não saiba percorrer com segurança a Bíblia. Nem entendo como pessoa culta quem não a tenha lido. (Não estou falando, é claro, da leitura fanática dos crentes). Queiramos ou não, neste livro estão as bases da cultura ocidental, seus mitos e crendices, seus dogmas e ideais, seus horrores e suas virtudes. Conhecessem os jornalistas, já não digo a Bíblia, mas pelo menos os Evangelhos, não repetiriam essa solene bobagem que se repete – invariavelmente – em todos os natais e em todos os jornais do mundo, a crença absurda de que Cristo nasceu em Belém.

Certa vez, escrevi que os católicos, ao beber o vinho consagrado na Eucaristia, não estão bebendo um símbolo do sangue de Cristo, mas o próprio sangue. E ao ingerir a obreia de pão ázimo, não estão ingerindo um símbolo da carne de Cristo, mas a própria carne. Fui visto como demente. Ocorre que assim são os dogmas. Jornalista que não os conhece não entende nem mesmo uma missa, este ofício celebrado e repetido todos os dias, desde séculos. Diga-se de passagem, raríssimos são os católicos que entendem uma missa.

Estamos saindo de um século que foi dominado, de ponta a ponta, pelo marxismo. Não digo que seja necessário a um jornalista ter lido O Capital. Mas se não tiver boas noções da doutrina de Marx e – principalmente – se não conhecer a história do comunismo no século XX, não terá nem idéia do mundo em que vive. Aliás, se não conhecer a história do comunismo, não conhecerá nem mesmo o século XX. As redações estão cheias de jornalistas que são comunistas sem terem a mínima idéia de que o são. A universidade e a imprensa brasileira estão profundamente impregnadas de marxismo. Se o profissional não souber separar ideologia de informação, estará fazendo inocentemente o jogo da pior ditadura do século passado. Quando um maoísta histórico como Tarso Genro afirma que direito adquirido é um arcaísmo e a imprensa não reage, isto significa que os jornalistas engolem qualquer besteira que um ministro qualquer afirma.

É bom que o jornalista tenha razoáveis noções de Direito, principalmente de Direito Constitucional. Nestes dias em que o Congresso rasga a Constituição como quem rasga papel higiênico e os jornalistas aceitam a ruptura da Constituição com a mesma indiferença com que aceitam a ruptura de papel higiênico, não se pode apostar um vintém na confiabilidade da imprensa.

O jornalista há de ter coragem. Coragem é uma virtude sem a qual todas as demais perdem o sentido. Me dói o estômago quando vejo repórteres ouvindo mentiras óbvias e respostas incoerentes de autoridades, sem ao menos adverti-las que ultrapassaram todos os limites da boa lógica. Quando um presidente ou ministro diz uma besteira, que código de ética impõe ao jornalista o silêncio? Nenhum. Se o jornalista não pede explicações sobre uma impropriedade, é porque teme o poder. Se teme o poder, melhor faria que escolhesse outra profissão, para o bem geral da nação.

Um estudante de jornalismo pode achar que estou exigindo qualificações sobre-humanas de um comunicador. Nada disso. Estas qualificações necessárias a um jornalista em nada diferem das que julgo inerentes a um homem razoavelmente esclarecido. São matérias que um curso universitário não ensina. Por estas razões, em todos os países do Ocidente, é jornalista quem retira a maior parte de seus proventos do jornalismo. Ponto final. Só neste nosso país incrível, graças ao corporativismo de uma guilda corrompida, só é jornalista quem faz curso de jornalismo.

Para concluir, o jornalista tem de escrever com correção, clareza e precisão. Isto tampouco se aprende na escola. Escrever bem faz parte dos atributos de quem pensa com correção. Quem escreve mal não pensa bem. E mais uma vez o jornalista se confunde com o homem esclarecido.

Last but not least, boas noções de grego e latim não fazem mal a ninguém.


 

As três vias de acesso

27/06/2006

 

Após ler minha crônica sobre os cavacos do ofício do jornalismo, uma amiga me pergunta porque não estou lecionando numa universidade. Coincidentemente, a resposta está no artigo de Cláudio de Moura Castro, na Veja da semana passada: “Na UFRJ, um aluno brilhante de física foi mandado para o MIT antes de completar sua graduação. Lá chegando, foi guindado diretamente ao doutorado. Com seu reluzente Ph.D., ele voltou ao Brasil. Mas sua candidatura a professor foi recusada pela UFRJ, pois ele não tinha diploma de graduação. Luiz Laboriou foi um eminente botânico brasileiro, com Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Mas não pôde ensinar na USP, pois não tinha graduação”.

Estas peripécias, eu as conheço de perto. Começo pelo início. Nunca me ocorreu lecionar na universidade. Eu voltara da Suécia, cronicava em Porto Alegre e fui tomado pela resfeber, doença nórdica que contraí na Escandinávia. Traduzindo: febre de viagens.

Li nos jornais que estavam abertas inscrições para bolsas na França e me ocorreu passar alguns anos em Paris. A condição era desenvolver uma tese? Tudo bem. Paris vale bem uma tese. Tese em que área? Busquei algo que me agradasse. Na época, me fascinava a literatura de Ernesto Sábato. Vamos então a Paris estudar Sábato.

Mas eu não tinha o curso de Letras. O cônsul francês, ao me encontrar na rua, perguntou- me se eu não podia postular algo em outra área. Em Direito havia mais oferta de bolsas. Poder, podia. Eu cursara Direito. Mas do Direito só queria distância. Mantive minha postulação em Letras. Para minha surpresa, recebi a bolsa. A França me aceitava, em função de meu currículo, para um mestrado em Letras, curso que eu jamais havia feito. Nenhuma universidade brasileira teria essa abertura. Aliás, os componentes brasileiros da comissão franco-brasileira que examinava as candidaturas, tentaram barrar a minha. Fui salvo pelos franceses.

Fui, vi e fiz. Em função de meu currículo, aceito para mestrado, fui guindado diretamente ao doutorado. Tive o mesmo reconhecimento que o aluno do MIT. Acabei defendendo tese em Letras Francesas e Comparadas. Menção: Très bien. Não me movera nenhuma pretensão acadêmica, apenas o desejo de curtir Paris, suas ruelas, vinhos, queijos e mulheres. A tese não passou de diletantismo. De Paris, eu escrevia diariamente uma crônica para a Folha da Manhã, de Porto Alegre. Salário mais bolsa me propiciaram belos dias na França. Foi quando minha empresa faliu. Conversando com colegas, fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar. Voltei e enviei meu currículo para três universidades. Sei lá que loucura me havia acometido na época: um dos currículos enviei para o curso de Letras da Universidade de Brasília.

Fui a Brasília acompanhar meu currículo. Procurei o chefe do Departamento de Letras. Ele me cobriu de elogios, o que só ativou meu sistema de alarme. Que minha tese era brilhante, que meu currículo era excelente, que era um jovem doutor com um futuro pela frente. Etc. Mas... eu tinha apenas os cursos de Direito e Filosofia, não tinha o de Letras. Me sugeria enviar meu currículo ao Departamento de Filosofia, já que a tese tinha alguns componentes filosóficos.

Ingênuo, fui até o Departamento de Filosofia. O coordenador me recebeu muito bem, analisou minha tese, cobriu-a de elogios. Mas... eu não tinha o Doutorado em Filosofia. Apenas o curso. Considerando o grande número de artigos publicados em jornal, sugeria que eu fosse ao Departamento de Comunicações. Besta atroz, fui até lá. O coordenador considerou que meu currículo como jornalista era excelente. Mas... eu não tinha o Curso de Jornalismo.

Na Universidade Federal de Santa Catarina abriu um concurso para professor de Francês. Já que eu era Doutor em Letras Francesas, me pareceu que a ocasião era aquela. Duas vagas, dois candidatos. Fui solenemente reprovado. Uma das alegações foi que eu falava francês como um parisiense, e a universidade não precisava disso. A outra, e decisiva, era a de que eu tinha doutorado em Letras Francesas, mas não tinha curso de Letras.

Já estava desistindo de procurar emprego na área, quando fui convidado para lecionar Literatura Brasileira, na mesma UFSC que me recusara como professor de francês. Convidado como professor visitante, o que dispensa concurso. Mas o contrato é por prazo determinado, dois anos. O curso precisava de doutores para orientar teses e eu estava ali por perto, doutor fresquinho, recém-titulado e livre de laços com outra universidade. Fui contratado.

Acabei lecionando quatro anos, na graduação e pós-graduação. Findo meu contrato, foi aberto um concurso para professor de Literatura Brasileira. Me inscrevi imediatamente.

Uma vaga, um candidato. Me pareceram favas contadas. Ledo engano. Eu não tinha o curso de Letras. Fui de novo solenemente reprovado.

Na mesma época, abriu um concurso na mesma universidade para professor de espanhol. Ora, eu já havia traduzido doze obras dos melhores autores da América Latina e Espanha (Borges, Sábato, Bioy Casares, Robert Arlt, José Donoso, Camilo José Cela). Vou tentar, pensei. Tentei. Na banca, não havia um só professor que tivesse doutorado. Pelo que me consta, jamais haviam traduzido nem mesmo bula de remédio. Mais ainda: não tinham uma linha sequer publicada. Novamente reprovado. Minhas traduções poderiam ser brilhantes. Mas eu jamais havia feito um curso de espanhol.

Melhor voltar ao jornalismo. Foi o que fiz. Anos mais tarde, já em São Paulo, por duas vezes fui convidado para participar de uma banca na Universidade Federal de São Carlos, pelo professor Deonísio da Silva, então chefe de Departamento do Curso de Letras. Uma das bancas era para escolher uma professora de Literatura Espanhola, outra uma professora de Literatura Brasileira. Deonísio sugeriu-me participar, como candidato, de um futuro concurso. Impossível, eu não tinha o curso de Letras. Quanto a julgar a candidatura de um professor de Letras, isto me era plenamente permissível.

Por estas e por outras – e as outras são também importantes, mas agora não interessam – não estou lecionando. Diz a lenda que na universidade da Basiléia havia um dístico no pórtico, indicando as três vias de acesso à universidade: per bucam, per anum, per vaginam. Lenda ou não, o dístico é emblemático. A universidade brasileira, particularmente, é visceralmente endogâmica. Professores se acasalam com professoras e geram professorinhos e para estes sempre se encontra um jeito de integrá-los a universidade. A maior parte dos concursos são farsas com cartas marcadas. Pelo menos na área humanística. As exceções ocorrem na área tecnológica, onde muitas vezes a guilda não tem um membro com capacitação mínima para proteger. Contou-me uma professora da Universidade de Brasília: “eu tive muita sorte, os dez pontos da prova oral coincidiam com os dez capítulos de minha tese”. O marido dela era um dos componentes da banca. A ingênua atroz – ou talvez cínica – falava de coincidência.

Na universidade brasileira, nem um Cervantes seria aceito como professor de Letras, afinal só teria em seu currículo o ofício de soldado e coletor de impostos. Um Platão seria barrado no magistério de Filosofia e um Albert Camus jamais teria acesso a um curso de Jornalismo. No fundo, a universidade ainda vive no tempo das guildas medievais, que cercavam as profissões como quem cerca um couto de caça privado. Na Espanha e na França, desde há muito se discute publicamente a endogamia universitária. Aqui, nem um pio sobre o assunto. E ainda há quem se queixe quando os melhores cérebros nacionais buscam reconhecimento no Exterior.


 

Ontem heróis, hoje leprosos

04/07/2006

 

— Para quem você torce hoje? - perguntei no sábado a um motorista de táxi. O homem me olhou com estranheza e reagiu com certa hostilidade:

— Para o Brasil, ué! Sou brasileiro.

Pensei em perguntar-lhe em que código está escrito que brasileiro deve torcer pelo Brasil, mas preferi ficar calado. Com fanáticos, sejam religiosos, sejam futebolísticos, de nada adianta argumentar. O fanatismo do povinho, dizia em crônica passada, é o que me afasta do futebol. Fanatismo igual irracionalidade. Mesmo se você é daqueles leitores que ao pegar um jornal vai logo jogando fora o caderno de esportes, vale a pena dar uma olhadela nos suplementos esportivos deste domingo. É o império do irracional.

O Estadão, no sábado, titulava em primeira página:

A seleção em busca do erro zero

Bastaram 90 minutos de jogo para que, no domingo, a manchete fosse:

Um time para esquecer

A Folha de São Paulo, que no sábado cocoricava um ufanístico Ou vai ... ou racha, no domingo foi implacável: “sem mágica sem tática sem fôlego sem craque sem time sem raça sem hexa sem desculpa”. O melhor jogador do mundo em todas as épocas, do dia para a noite virou um Judas a ser malhado:

Ronaldinho Gaúcho fechou sua participação na Copa da Alemanha de forma melancólica. Jogou mal, não driblou, não deu nenhum chute na direção do gol, errou passes e, em nenhum momento, assumiu a responsabilidade. Decepcionou não só os brasileiros, mas todos na Alemanha. O melhor do mundo nas últimas duas temporadas teria de atuar melhor. Muito melhor. O confronto com a França foi um retrato de sua participação no Mundial: apático, burocrático, medíocre, com medo de decidir. Mesmo diante de seleções mais fracas, como Croácia, Austrália, Japão e Gana, o meia-atacante do Barcelona não foi capaz de pôr em prática seu talento. Esteve apagado do primeiro ao último jogo da competição.

Ontem heróis, hoje leprosos. Tivesse a seleção, por um mero golpe de sorte, ganho a partida, mesmo que tivessem jogado da forma canhestra como jogaram, os heróis continuariam sendo heróis. Mesmo que tivessem feito um gol com "la mano de Diós", não seriam hoje reles bodes a serem enviados para o deserto da mídia. A mão que afaga, dizia o poeta, é a mesma que apedreja. Que essa súbita mudança de humor ocorresse junto a esta escória que infesta as ruas com cornetas e bandeiras nos dias de Copa, se entende. Mais difícil se torna entendê-la quando ela parte de jornalistas, que passam a comportar-se como fanáticos torcedores.

Há duas semanas, manifestei o desejo de uma derrota, de preferência humilhante, para meu país. O leitor já pode imaginar o sorriso imenso e feliz que me iluminou o rosto no sábado passado. Poderia ter dito ao motorista de táxi que tenho sérias razões para torcer pela França. É país onde me sinto melhor que no Brasil, foi onde vivi meus melhores dias e país do qual recebi auxílios que o Brasil jamais me deu. Durante quatro anos, além de uma bolsa, o governo francês pagou religiosamente metade de meu aluguel. A cada início de mês, o carteiro batia em minha porta, abria a carteira e me repassava um generoso pacote de francos, estalando de novinhos. Apanhava depois um porte-monnaie e completava o montante até o último centime. Eu não precisava nem mesmo ir a um guichê para receber meu auxílio-família. Recebia-o em casa. Para isso, tinha de preencher algumas condições. Entre elas, meu apartamento deveria ter alguns requisitos básicos: uma confortável metragem mínima, banheiro e sanitários (o que nem sempre existe ao mesmo tempo em um apartamento em Paris) e determinadas condições de higiene. O governo completava meu aluguel não apenas para que morasse, mas para que morasse bem.

Bem entendido, esse auxílio não era para comprar meu voto. Estrangeiro, não votava na França. Tampouco é uma esmola jogada a quem nem casa tem. É um auxílio para residir. Isto meu país jamais me deu. Nem bolsa, nem complemento de aluguel. Por que torcer pelo Brasil? Torci pela França. Mas apenas mentalmente. Não imagine alguém que fiquei apalermado diante de uma TV gritando “Allez les bleus!” Pra falar a verdade, não consigo suportar uma partida de futebol por mais de cinco minutos. Me soa tão monótona como pornografia. Sempre a mesma coisa: disputa pela bola, arremetida contra o adversário, gol.

Não me é fácil entender como, nestes dias de Copa, milhões de pessoas permaneçam coladas ao televisor para ver, todos os dias... o mesmo filme. Haja pobreza mental.

Torci pela França não pelos benefícios que dela recebi. Desde a primeira Copa que vi, sempre torci por qualquer país que jogue contra o Brasil. Não porque tenha ódio a meu país, nada disso. Mas é preciso acabar com esse anestésico, ministrado de quatro em quatro anos, que faz com que uma nação inteira pare. Não só pare como esqueça as mazelas todas do país, a miséria, a corrupção, o desmando, o desrespeito generalizado às leis, a começar pelas próprias autoridades que por elas deveriam zelar. Há alguns meses, o candidato das oposições, o patético Geraldo Alckmin, fazendo piadinha com sua antiga profissão, dizia que o Brasil precisa de um anestesista. Ora, o candidato parece ignorar que anestésicos temos o ano todo. Quando não é futebol é carnaval, quando não é carnaval é loteria e se não é loteria é o jogo do bicho. A cada Copa, uma dose reforçada, cavalar, de anestesia. Se o Brasil ganha, o país todo, entorpecido, entra em euforia. O doping é geral. Vibram os ricos atrás de suas barricadas, a classe média em seu sufoco, vibra o favelado em sua miséria, o prisioneiro atrás das grades, o mendigo debaixo do viaduto. Se um extraterrestre de longa milhagem em anos-luz aqui chegasse após a conquista da Jules Rimet, não teria dúvidas de ter chegado ao planeta de maior índice de felicidade per capita entre as galáxias.

Quando digo isto, com a velocidade de uma bola rebatida, salta a pergunta: que estás fazendo no Brasil? A pergunta é feita de duas formas. Ora, de modo afável e por curiosidade. Ora, agressivamente, como quem ordena: rua deste país! A pergunta vem de longe, desde quando escrevi meus primeiros artigos, não contra o futebol, mas contra o fanatismo em futebol. Há mais de trinta anos ouço esta objeção e já estive perto de pugilatos em mesas de bar. Quando a pergunta vem em tom irado, tenho resposta pronta: "Meu passaporte é brasileiro, resido em qualquer lugar do Brasil sem pedir autorização a autoridade alguma, saio e entro neste país quando bem entendo e me reservo o sagrado direito de criticá-lo". Esta censura dos fanáticos é mais violenta que a censura das ditaduras. Nas ditaduras, criticar o país sempre é permissível. O que não se permite é a crítica ao poder. Os fanáticos - que nestes dias confundem futebol com pátria - não admitem crítica alguma.

Para os que perguntam com afabilidade, esclareço também com afabilidade. Há 35 anos, fiz minhas malas e saí para não voltar. Acabei voltando. Uma mulher me chamava e todo país é lindo quando há nele alguém que amamos. Fora isto, o preço do metro quadrado na Europa é um poderoso argumento para ficar por aqui. O Brasil, apesar dos pesares, é país para onde se volta. Os exilados de 64, que degustaram em Paris ou Londres o amargo caviar do exílio, juravam só voltar de metralhadora em punho. Mal foi decretada a anistia, em 79, voltaram sem armas nas mãos e com lágrimas nos olhos.

Minhas preces por uma derrota brasileira nesta Copa foram atendidas neste sábado. Obdulio Varela ressurgiu das cinzas, desta vez falando francês. Isto não significa uma ojeriza ao Brasil. No dia em que formos reconhecidos por feitos na área da ciência ou tecnologia, quando a moeda nacional for aceita no estrangeiro, no dia em que brasileiro não mais precisar lavar pratos no Primeiro Mundo, quando analfabetos forem para a escola e não para o poder, nesse dia torcerei pela seleção. Esse distante dia, suspeito que nem meus hipotéticos netos verão. Enquanto isso, é bom ver os leprosos voltando abaixo de vaias.


 

Bento, Franco e Vicente

12/07/2006

 

Você já imaginou a Espanha sem Francisco Franco? Com a Espanha dominada pela União Soviética, Stalin controlaria dois mares, o do Norte e o Mediterrâneo. Para derrubar Portugal bastaria um piparote e a resistência francesa seria estrangulada pelo domínio dos mares. Na esteira desta invasão, provavelmente cairia também a Inglaterra. Daí à conquista de toda a Europa Ocidental, seria questão de um ameno turismo blindado.Com Moscou imperando do estreito de Gibraltar ao de Bering, a tirania comunista teria vida bem mais longa. Europa e Ásia afundariam juntas na miséria inerente aos regimes socialistas e a praga se propagaria – como aliás se propagou, mesmo sem a vitória de Stalin – além do Atlântico. O Muro não teria caído em 89 e até hoje a Europa seria algo tão triste e pobre como foram – e ainda são – os países da União Soviética.

Pelo que lemos nos jornais, os europeus ainda não perceberam o óbvio. Em Estrasburgo, um eurodeputado polonês, Maciej Marian Giertych, elogiou em uma sessão do Parlamento Europeu, na terça-feira passada, os regimes liderados por Francisco Franco, na Espanha, e Antonio Salazar, em Portugal, por terem impedido a disseminação do que ele qualificou como a praga do comunismo. Giertych é pai do vice-primeiro-ministro da Polônia, Roman Giertych e, por sua idade, sabe do que está falando. As declarações de Giertych foram imediatamente rebatidas por Martin Schulz, líder da bancada socialista no Parlamento Europeu. Segundo Schulz, as declarações eram uma encarnação do espírito do general Franco. “O que acabamos de ouvir – disse o socialista – foi um discurso fascista para o qual não existe lugar no Parlamento Europeu”. O que Schulz não disse é que, sem Franco, a Europa não seria o que é hoje, um continente rico, livre e democrático.

Ao chegar em Valência, sábado último, o papa Bento XVI lembrou a tragédia que matou 42 pessoas na segunda-feira em um acidente de metrô na cidade. Os valencianos comovidos agradecem. Destacou também o caráter insubstituível que a família fundada no casamento tem para a Igreja. E neste destaque vai um recado à Espanha, que há um ano já permite o casamento de homossexuais, em virtude de lei sancionada pelo atual governo socialista. Sem falar que a idade de consenso sexual, desde há muito, é de doze anos. (Coincidentemente, mais ou menos a mesma idade em que Maria concebeu Cristo). Mas a Espanha de Zapatero está pouco preocupada com questões de família. A Asociación por la Recuperación de la Memória Histórica (ARMH) enviou uma carta a todos os bispos recomendando-os a aproveitar a visita de Ratzinger para tirar todas as placas falangistas de “caídos por Diós e por España” que ainda resistem em centenas de igrejas e pedir perdão por seu papel na guerra.

Os espanhóis estão querendo trocar a sotaina papal por uma saia justa. Verdade que Franco executou quatorze sacerdotes vascos. Acontece que o clero vasco se alinhava com as milícias republicanas que mataram cerca de sete mil religiosos católicos, entre membros do clero secular, sacerdotes, freiras e até treze bispos. Muitas freiras tiveram seus tímpanos estourados pela introdução de rosários e crucifixos. Bem ou mal, Franco tomou o partido da Igreja romana. Após ter reprovado as execuções de sacerdotes nas Provincias Vascongadas, Pio XI declarava, na encíclica Divini Redemptoris, datada de 19 de março de 1937: “Também ali, como em nossa queridíssima Espanha, o açoite comunista (...) não se contentou com derrubar uma ou outra igreja, um ou outro convento, senão que, quando lhe foi possível, destruiu todas as igrejas, todos os conventos e até mesmo todo rastro de religião cristã, por mais ligado que estivesse aos mais insignes monumentos da arte e da ciência. O furor comunista não se limitou a matar bispos e milhares de sacerdotes, de religiosos e religiosas, buscando de modo especial aqueles e aquelas que precisamente trabalhavam com maior zelo com pobres e operários, mas também fez um número maior de vítimas entre os seculares de toda classe e condição, que diariamente, pode-se dizer, são assassinados em massa pelo mero fato de ser bons cristãos ou apenas contrários ao ateísmo comunista. E uma destruição tão espantosa é levada a cabo com um ódio, uma barbárie e uma ferocidade que não se acreditaria ser possível em nosso século. Nenhum particular que tenha bom juízo, nenhum homem de Estado consciente de sua responsabilidade, pode menos que tremer de horror ao pensar que o que acontece hoje na Espanha talvez possa repetir-se em outras nações civilizadas”.

Quando se fala em Guerra Civil espanhola, ninguém mais lembra que os grandes assassinos de religiosos foram os comunistas. Na saída do metrô, o papa depositou uma coroa de flores brancas e, ajoelhado, pediu o descanso eterno e em paz das vítimas do acidente. Sobre a retirada das placas falangistas, Bento não disse água. Nem poderia. Estaria desautorizando seu antecessor. Em nossos dias, o Vaticano se contenta com vagos apelos pela paz, sem nominar vítima nem carrasco. É mais prudente.

Valência é a terra de San Vicente Ferrer (1350-1419), santo espanhol canonizado por Calixto III em 1455, que goza da fama de grande milagreiro. Segundo reza a tradição local, certa vez um bispo deveria visitar uma família de camponeses. A mulher, desejosa de agradar, perguntou ao santo que poderia oferecer ao prelado. “Ofereçam o que de melhor vocês têm” – respondeu o Vicente. Os camponeses prepararam então uma paella. Antes da chegada do bispo, o santo provou um pedacinho da paella, gostou e quis saber do que era feita. “É nosso filho – respondeu a mulher – é o melhor que nós temos”. Apavorado, Vicente desfez a paella e refez o filho. Menos o dedo mindinho. Era o pedacinho que havia degustado.

Tantos milagres fazia o santo, que um dia o alcaide o proibiu de fazê-los. Passava um dia Vicente por um prédio em construção, quando um operário caiu de um andaime. Proibido de operar milagres, o santo o deixou suspenso no ar, foi até a prefeitura e pediu que fosse revogada a proibição. Uma vez esta revogada, voltou ao prédio e fez descer suavemente o operário ao chão.

São Vicente tinha créditos junto ao todo-poderoso. O mesmo não parece ser o caso dos pastores da Igreja Universal. Em São Paulo, um fiel, encarregado de consertar o telhado de um templo, teve a garantia de um pastor evangélico de que, se tivesse fé, não cairia do telhado. Caiu e sofreu politraumatismo. Está requerendo na Justiça R$ 356.200 de indenização. O pedido foi julgado procedente. O pastor defende-se. Diz que o homem não tinha fé suficiente. Outros fiéis estão processando a mesma igreja, tanto por terem alienado bens tendo em vista uma prosperidade que não lhes foi concedida, como por terem quebrado a cabeça em sessões de “descarrego”, essa prática catártica da Universal.

Católicos e astrólogos já estão pondo as barbas de molho, afinal o consumidor brasileiro está cada vez mais ciente de seus direitos e a moda pode pegar. Fé está virando questão de Procon. E é bom que assim seja. Charlatanismo é crime.

Essas promessas de vida eterna, por exemplo. Quem pode provar que nossos entes queridos têm nos céus a prometida eternidade? Ou esses horóscopos maravilhosos, que nos prometem manhãs que cantam, dias radiosos e amor a mancheias. Está na hora de, em falta de entrega da mercadoria, entrar com ação indenizatória. Queremos a competência do santo homem de Valência... ou o dinheiro de volta. Mas isto já é outro assunto.


 

Nazismo negro e guilda branca

18/07/2006

 

Uma nuvem de estupidez parece pairar sobre o Congresso nacional nestes dias. Não que sobre o Congresso costumem pairar nuvens de inteligência. Mas agora a estupidez concentrou-se e ameaça cair como chuva sobre o país todo. Dois projetos, que pretendem mandar o Brasil de volta alguns séculos para trás, estão sendo discutidos em Brasília. Um deles, o do senador Paulo Paim, já aprovado no Senado, quer mandar o país de volta à América racista do tempo das leis Jim Crow, ou talvez à Alemanha hitlerista ou mesmo à África do Sul do apartheid.

Em verdade, nada de novo tenho a dizer sobre o assunto. Desde que se começou a falar de cotas, tenho denunciado esta manobra dos movimentos negros como algo que só servirá para estimular o racismo. A estupidez avança e cada vez com mais audácia. Se antes falava- se apenas em cotas, o projeto do senador Paim pretende agora identificar os brasileiros por raça, como se fazia com os judeus na Alemanha nazista. A estupidez se repete? O cronista se vê constrangido a repetir-se.

O Estatuto da Igualdade Racial, já o comentei recentemente ao denunciar a extinção do mulato. De uma penada, o senador pretende extirpar da história do país a prova mais evidente do bom convívio racial. O expediente é elementar. Como os negros constituem apenas 5,4 % da população nacional, o senador passa a chamar de negros todo o contingente de mulatos, que são 39,9%. Mais um pouco e o Brasil será definido como majoritariamente negro, aliás como já é visto por muitos americanos e europeus. Quer-se adotar o modelo americano, que não admite miscigenação. Ou é preto ou é branco. Alguns intelectuais, fugindo ao espírito de rebanho que caracteriza a espécie, apresentaram ao Congresso um documento com 114 assinaturas, com argumentos contrários ao Estatuto e às reservas de cotas raciais. O documento foi logo satanizado como o “Manifesto da Elite Branca”, como se os malvados brancos tivessem algum interesse em manter a população negra afastada de seus territórios.

O governo, que desde então vinha insistindo na manutenção das cotas universitárias, sentiu-se constrangido a recuar. Fala agora em cotas sociais. Se por um lado desvincula a reserva de vagas do elemento racial, por outro lado mantém o absurdo propósito de mandar para a universidade pessoas que não preenchem os requisitos básicos para nela entrar, enviando de vez para o brejo o ensino universitário, hoje já extremamente deficiente. Paulo Paim pôs um bode na sala. O governo retira o bode e deixa lá o resto dos animais. Isso sem falar que tal projeto é flagrantemente inconstitucional. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", reza o artigo 5º da Carta Magna. Se aprovado, alguns serão mais iguais que outros. Boa parte da população negra gostou da idéia de ganhar no tapetão e não percebe a armadilha em que os negros estão caindo: tendo entrado pela porta dos fundos na universidade, serão naturalmente rejeitados no mercado de trabalho.

Prevendo isso, o senador já garante em seu projeto a presença de ao menos 20% de atores e figurantes afro-brasileiros em programas e propagandas de TV. A seqüência lógica será impor estas mesmas cotas inclusive às empresas privadas em geral, acabando-se definitivamente com qualquer critério de capacitação. Embutida no projeto, vem uma disciplina obrigatória nos colégios, História Geral da África e do Negro no Brasil, como se a história da África e do negro fosse mais importante para o Brasil que a História da Grécia e dos gregos, de Portugal e dos portugueses, da Itália e dos italianos, da América e dos americanos. Seria interessante imaginar como será tratada na nova disciplina a venda de escravos aos brancos europeus pelos chefes tribais negros da África. Ou será um capítulo proibido da história, como a matança dos oficiais poloneses na floresta de Katyn pelas tropas de Stalin, como a matança de sete mil religiosos espanhóis pelos comunistas na Espanha?

O projeto do senador prevê ainda a identificação racial dos negros em documentos de identidade. Segundo o Estatuto, os negros passarão a ter carteirinha de negro. Curioso observar que nas décadas passadas os movimentos negros haviam concluído que raça não existia. Agora passou a existir e deve constar em documento. Como o branqueamento é bastante generalizado no Brasil, talvez fosse melhor uma tatuagem ou adereço bem visível, como Hitler instituiu na Alemanha para judeus e homossexuais. Se aprovado tal monstrengo, este país onde a miscigenação sempre foi regra passará a discriminar oficialmente por raça. Estamos caminhando a largos passos rumo a um nazismo negro. Não bastasse tal despautério, outro projeto, de iniciativa do deputado Pastor Amarildo, pretende mandar o país de volta mais longe ainda no tempo, para os dias da Idade Média, quando as guildas controlavam ferreamente o exercício das profissões. No fundo, a intenção é sufocar a liberdade de expressão, regulamentando uma profissão que não pode ser regulamentada, o jornalismo. Se antes apenas exigia-se curso para o exercício do jornalismo, em função de um decreto-lei promulgado por uma junta militar em 1969, o novo projeto, aprovado pelo Congresso na calada da Copa, pretende enquadrar até mesmo colunistas e comentaristas. Ora, este dispositivo ditatorial não encontra paralelo em nenhum regime democrático do mundo. Jornalista é quem tira seus proveitos do jornalismo e fim de papo.

O projeto do pastor é uma reação à rejeição da proposta de um Conselho Federal de Jornalismo, feita pela Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas) e encaminhada em 2004 ao Legislativo pelo Governo Federal. Devido à pressão de jornalistas e proprietários de veículos de comunicação, a tentativa de cercear ainda mais a liberdade de expressão foi retirada no mesmo ano. De novo, as cotas. A guilda branca quer proteger a corporação. Enquanto o país se empolgava com a Copa, o projeto passou quase clandestinamente no Congresso. Depende agora de veto ou aprovação do Supremo Apedeuta. O espantoso é que tal dispositivo surge precisamente nestes dias de Internet, em que qualquer cidadão pode montar seu blog e fazer jornalismo a seu gosto.

O Supremo Apedeuta, como é sabido, não tem maiores apreços pela imprensa. Não seria de duvidar que assumisse esta excrescência jurídica. Logo nestes dias em que a WEB libertou os jornalistas dos custos de papel, gráfica e distribuição. Os blogs constituem hoje jornalismo de alto nível e mais rápido que o jornalismo em papel. Os comunistas chineses já perceberam isto e estão censurando a Internet.

Se assumir esta excrescência, o Supremo Apedeuta estará lutando em vão contra o amanhecer.


 

A impropriedade dos marasmos

26/07/2006

 

Era Porto Alegre, 1968, final de curso de Filosofia. Como o curso não fornecia créditos suficientes para bacharelato, fui obrigado a fazer algumas cadeiras de Pedagogia no Colégio de Aplicação da UFRGS, considerado na época a mais avançada experiência educacional de Porto Alegre. No primeiro dia de aula, querendo impressionar os egressos da Filosofia, as pedagogas apresentaram um jogral, interpretado pelos alunos, sobre A Náusea, de Sartre.

O resultado era de doer no estômago. Adolescentes que não tinham idéia nenhuma de existencialismo, nem mesmo do clima que antecedera a Segunda Guerra, proferiam frases de efeito. De efeito, mas vazias de qualquer significação. Protestei. Aquilo era pura masturbação mental, quando aqueles jovens estavam na idade da masturbação física, apenas. Uma das pedagogas, que tinha o peito côncavo – talvez pelo esforço de esconder os seios quando estes surgiram – ficou indignada: “O sr. está refletindo problemas pessoais”.

— Claro – respondi. Quando adolescente, eu me masturbava, professora. A senhora não? Um silêncio mortal caiu sobre a sala. Anjos passavam por cima de nossas cabeças. Até parecia que eu havia dito alguma impropriedade. A pedagoga encerrou a aula. Disse que me dispensava das próximas, eu poderia trabalhar em casa. Recusei. Queria participar das aulas. A guerrilha estava deflagrada. Quando eu entrava na sala, o Côncavo Andando entrava em taquicardia. Tivemos outro conflito. Havia um livro proibido na mais avançada experiência educacional de Porto Alegre. Pasma, leitor: era o Dom Casmurro, do Machado. E por que proibido? Sempre sexo: deixava aberta a possibilidade de Capitu ter traído Bentinho. Ao saber da proibição do casto Machado, logo daquele autor que sempre baixava os reposteiros das alcovas quando algo iria acontecer, denunciei a censura aos jornais. Tomei a defesa do autor, logo eu que jamais tivera maior apreço por sua literatura. Resumo da ópera: recebi a primeira e única reprovação de minha vida. Fui ainda o único aluno reprovado na Filosofia, nos quatro anos de curso. E – não duvido – talvez o único aluno a ser reprovado em toda a história do curso.

Era Porto Alegre, 1968, dizia. No ano seguinte, comecei a trabalhar em jornal. Fiz uma reportagem sobre a prostituição, que intitulei de “Porque os homens pagam”. Foi para a cesta do lixo. Não se podia grafar a palavra prostituta em um jornal. Neste sentido, o Brasil em nada diferia dos países socialistas: como oficialmente não havia prostituição, jornal algum podia falar de algo que não existia. Até que entendo, com alguma boa vontade, os pudores da época. O difícil de entender é que, no ano da graça de 2006 – 38 anos após 1968 – alguém admitir na televisão que se masturba possa ainda causar escândalo. Na Idade Média, os teólogos discutiam abertamente a questão. Em latim, é verdade, mas discutiam. Teologia, a rigor, é a “ciência” que discute Deus. Mas os teólogos sempre preferiram discutir sexo.

Não assisto TV nacional. Do que ocorre nesse universo, só tenho notícia através dos jornais. O fato teria ocorrido em uma das novelas da rede Globo. Não lembro em que novela foi nem vou pesquisar para saber em qual. Me contento com o fato. Uma senhora, já de idade, afirmou que, através da masturbação, pela primeira vez teve um orgasmo. Aos 45 anos. Horror nacional! Como pode uma televisão transmitir confissão tão horrenda? A novela passará agora a ser controlada de perto pela emissora.

Hipocrisia nacional, diria eu. Você troca de canal, e lá está uma velhota canadense, a Sue Johanson, exibindo seu farto estoque de dildos e especificando as virtudes de cada um. Para quem assiste às sitcoms ianques, a impressão que fica é que cada americana carrega um vibrador na bolsa. Mas a casta Globo não pode permitir-se tais liberalidades. Você pode assistir ao que quiser na telinha, desde que a procedência desse “o que quiser” não seja nacional. O episódio nos remete à Romênia, na era dos Ceaucescu, quando a palavra orgasmo era proibida de ser grafada no país. Os escritores, para contornar a proibição, escreviam marasmos. Quando o leitor lia “Que marasmo!”, sabia que devia entender orgasmo. (Só não sei como se viravam os escritores quando queriam escrever marasmo mesmo).

Pessoas que não se masturbam ou não têm vida sexual são mais freqüentes do que se imagina. O insigne filósofo marxista Louis Althusser – aquele humanista que aos 62 anos estrangulou a própria mulher – só foi descobrir a masturbação aos 29, conforme confessa em L’avenir dure longtemps. Até lá, andava com aquela coisa rija entre as pernas sem saber o que fazer com ela. Salvador Dali foi iniciado por Gala, já em idade adulta. E o grande herói das esquerdas tupiniquins, Luís Carlos Prestes – o ídolo de Tarso Genro – esperou os 37 anos para ser deflorado por uma judia alemã, oficial do Exército Vermelho. Alguém concebe o Cavaleiro da Esperança só conhecendo mulher já >nel mezzo del camin di nostra vita? Curioso que tais anomalias a ninguém causem espécie.

Tenho em minha biblioteca um setor onde coleciono um tipo de livro que defino como “abortos literários”. São aquelas obras que excelem por seu alto teor de ridículo. Um dos pontos altos desta minha coleção é L’Onanisme, do Dr. Tissot. Tem como subtítulo: dissertation sur les maladies produites par la masturbation. O livro é de 1760 e teve, até 1905, 63 edições, em alemão, inglês, russo, italiano e espanhol. Pretende ser uma abordagem científica do mal de Onan. Segundo o Dr. Tissot, esta prática conduz à descoloração da pele, à magreza, à cor de chumbo da tez, os olhos perdem seu brilho, os lábios sua vermelhidão, os dentes sua brancura e a estatura se deforma com a curvatura da espinha. A cegueira e a morte são as conseqüências naturais da masturbação. “O masturbador põe em perigo a ordem da natureza, isto é, a ordem social. Os jovens se desvirilizam. Quanto às jovens, muitas delas não se contentam com a prática infame e se tornam tríbades, assumindo assim as funções viris. Dissipando as forças da juventude, comprometendo irremediavelmente o crescimento, toda uma geração se enfraquece e, a longo termo, a qualidade da raça é diminuída pelo flagelo”.

Três séculos após o Dr. Tissot, nesta era televisiva em que sexo tornou-se o pão de cada dia do espectador e a homossexualidade já é quase regra, a rede Globo decide censurar-se após a dolorida confissão de uma senhora que desconheceu o prazer sexual em sua juventude.

Mais um pouco e voltaremos aos dias do Colégio de Aplicação de Porto Alegre, quando as pedagogas não tinham orgasmos. Ou aos dias dos Ceaucescu, na Romênia, quando as mulheres tinham marasmos.


 

O bode eletrônico

08/08/2006

 

Um certo fatalismo parece dominar as mentes do homem contemporâneo, a ponto de fazê- lo sentir-se indefeso às tentações da publicidade, qual um Ulisses com medo ao canto das sereias. “Como posso não ser consumista” – perguntava-me recentemente uma leitora – “se este mundo capitalista me chama toda hora a consumir?”

Cantiga para ninar pardais – como dizem os lusos. A sociedade capitalista tem suas bases no consumo e chama os cidadãos ao consumo. Mas não obriga ninguém a consumir. Tenho uma amiga no Sul que hesita em visitar-me porque vivo ao lado de um shopping, e ela – Ulisses do século XXI – teme entrar no shopping e sair no vermelho. Cabe lembrar que este foi o primeiro shopping em que entrei em minha vida. Foi inaugurado no ano 2000. Entrei porque estava ali, a meu lado. Seria até preconceito não dar uma espiadela. Ou seja, só fui conhecer um shopping aos 53 anos de idade. Hoje, quando “tá sol”, como dizem os paulistanos, ou quando chove, eu o uso para atravessar a rua. Confesso que até me agrada olhar algumas vitrines, particularmente as de eletrônicos e delikatessen. No entanto, nestes últimos seis anos, nele comprei apenas um notebook, dois pares de lençóis e dois ou três pares de sapatos, coisas que necessito para viver.

Se o leitor me acompanha, desde há muito deve saber que nunca tive carro e não sei sequer dirigir. Certa vez, perguntava-me um interlocutor: mas como consegues viver em São Paulo sem um carro? Ora, vivo como os milhões de paulistanos que não têm carro. Se são milhões os motorizados, nós, os sem-carro, também somos milhões. Minha ignorância em matéria de carros é assustadora. Só reconheço a Kombi e o Fusca. Aí termina minha erudição automobilística. Depois destes, para mim todos os demais são a mesma coisa.

Vivo na mesma sociedade capitalista que minha amiga acusava. Sou submetido ao mesmo bombardeio publicitário que tanto a incomodava. No entanto, sou completamente cego ao que o mercado das futilidades oferece. Fora o comer, beber e vestir – coisas inerentes ao viver - meus gastos são em livros e música, pão para o espírito. Quando me interesso por um livro, preciso buscá-lo em uma dezena de livrarias, pois geralmente está fora de mercado. Eu, que sempre curti o que Mário Quintana chamava de “a ronda das lombadas”, hoje já quase não entro em livrarias. Nas superfícies mais expostas ao público, só encontro best-sellers, novelas idiotas americanas e livros de auto-ajuda.

Nunca precisei tapar com cera os ouvidos para não ouvir o chamado das sereias. Com os anos, adquiri um olhar seletivo que me protege de toda e qualquer publicidade. Se uma dessas maravilhas do universo do consumo for anunciada em página inteira em jornal, não a enxergo. “Propaganda para mim é preto” – disse certa vez à minha mulher, em um restaurante. Ela olhou em torno assustada, para ver se eu não ofendera algum negro. Mas não era a eles que me referia. Falava da fase do paste up nos jornais, quando os redatores recebem uma prova de página com os textos, títulos, fotos e ilustrações da edição a ser impressa, para uma última revisão. Todo o espaço reservado à publicidade fica em preto.

Era deste preto que eu falava.

Semana passada, comentei a pretensão das autoridades do Butão de eliminar a televisão do país, pois o aparelhinho estaria empanando o novo indicador de bem-estar proposto por Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck, a FIB, ou Felicidade Interna Bruta. O leitor Paulo Naparstek me escreve:

No seu último artigo fiquei um pouco confuso com a forma com a qual você traz sua opinião, afinal a própria pesquisa trazida fala que se por um lado dinheiro não traz felicidade, por outro ver seus filhos passando fome, também não ajuda. Aparentemente o ponto a ser destacado era que a excessiva busca material acaba por não trazer a felicidade pois a pessoa nunca se vê satisfeita, afinal sempre há algo novo a se buscar! É nesse conceito que entra a crítica à televisão, pois ela é certamente um veículo que traz ao espectador uma maciça quantidade de bens materiais que não podem ser alcançados pela maioria das pessoas! Não digo que a ignorância desses bens seja a solução, mas as pessoas serem bombardeadas todos os dias com a falsa sensação de necessidade desses bens com certeza não me parece ajudar!

O leitor não deixa de ter razão. O bombardeio é impiedoso. Mas não é exclusividade da televisão. Basta um ser vivente sair na rua e as tentações do consumo o assaltam por todos os lados. Não só em outdoors e capas de revista, mas também em vitrines e restaurantes, shopping centers e supermercados. Até mesmo o tráfego é uma vasta exposição de carros – de luxo ou nem tanto – eternamente aberta ao público. Nas ruas mais elegantes das cidades, o vestuário dos transeuntes já incita ao gasto com roupas de grife. Numa sociedade capitalista, da exposição à publicidade ninguém escapa. Assim, não vejo muito porque responsabilizar exclusivamente a telinha pelo consumo desbragado daqueles que se deixam iludir pelas miragens que o comércio oferece.

Pouco assisto televisão, mas sempre vejo algo. Nunca comprei absolutamente nada do que a propaganda televisiva oferece. Em minha casa não há um objeto sequer que seja imposição da publicidade. Se as pessoas são pobres de espírito a ponto de achar que tal tênis ou celular, tal Ipod ou tal automóvel vai torná-las mais felizes, a culpa não é exatamente da televisão. Além do mais, o controle remoto é um meio eficaz de fugir à propaganda. Os publicitários devem odiá-lo.

Seguidamente saem pesquisas culpando o cinema pelo tabagismo. Ora, me criei vendo seriados em que o mocinho fumava tanto ou mais do que o bandido. Todos os homens de meu clã fumavam. Isto é, me criei entre fumantes. No entanto, jamais pus um cigarro na boca. Estudiosos da mídia falam em propaganda subliminar, mensagens enviadas em fotogramas rapidíssimos imperceptíveis à visão, mas que influiriam poderosamente no inconsciente do espectador. Podem amarrar-me frente a uma tela de cinema ou televisão, emitindo toneladas da tal de propaganda subliminar, 24 horas por dia, que jamais sentirei o mais vago desejo de fumar.

Há uma tendência generalizada na sociedade de nossos dias a absolver todo crime ou comportamento nocivo, afinal os seres humanos – coitadinhos! – são produtos do meio em que vivem. Ninguém tem a menor culpa se esfaquear alguém para comprar um par de tênis, afinal a televisão martela incessantemente que ninguém pode ser feliz se não estiver usando aqueles tênis. Não consigo participar desta mentalidade. Sou dos tempos antigos, quando se acreditava que todo homem é responsável pelo que faz ou deixa de fazer.

Não consigo ver a televisão como o bode eletrônico de nossa época, que deve ser enviado ao deserto para expiar as culpas do ser humano. Confesso que o nível cultural da programação deixa muito a desejar. Mas todas as ditaduras, desde as comunistas às islâmicas, censuram a televisão. As democracias a controlam rigidamente. Então, algo de bom deve ter. Que mais não seja, tem dois botões, on e off.


 

PCC e PT, mesmo combate

15/08/2006

 

Meus temores se confirmaram. O domingo foi calmo em São Paulo. Nenhum ônibus queimado, nada de molotovs em bancos ou prédios públicos, nenhum atentado a policiais.

Não imagine o leitor que estou desejando domingos sangrentos para a cidade. Nada disso. Ocorre que, nesta situação de falência do Estado, o pior que poderia ter acontecido era um domingo sem violência. Isto significa que o pacto entre Estado e criminosos foi consagrado. Quando o Ministério Público Estadual pediu à Justiça a não-liberação dos apenados no Dia dos Pais, mais de cem atentados perturbaram a cidade. A Justiça entendeu corretamente a mensagem: liberou todo mundo. O MPE tentou ainda impedir pelo menos a liberação dos criminosos ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital). A Justiça foi além em sua benevolência. Chegou a oferecer tratamento privilegiado em São José do Rio Preto a cinco membros da guerrilha, transportando-os em viaturas policiais e com escolta até o aeroporto. Os cinco clientes VIP do sistema penitenciário sequer se preocuparam em comprar passagens de volta. O PCC agora já sabe como obter boas respostas às suas reivindicações. Basta incendiar algumas dezenas de ônibus, jogar algumas bombas cá e lá e sentar-se à espera dos resultados.

Antes do Dia dos Pais, o governador Cláudio Lembro pediu bom senso aos criminosos, como se tal virtude pudesse existir entre traficantes, assassinos e seqüestradores. “Estou convicto de que eles terão bom senso de se portarem de acordo com a data e de acordo com o momento”. Disse ainda esperar que os detentos pertencentes ao PCC tivessem compreensão com a sociedade e preservassem a integridade de cada um. “Acredito no ser humano. Se não acreditasse, eu estaria mal. Como acredito no ser humano, acredito ser possível que essas pessoas compreendam que há uma sociedade a ser preservada. E que há uma dignidade individual e integridade física de cada um de nós. O respeito à pessoa deve ser também observado por eles”.

A resposta do PCC a tão nobre crença no ser humano foi imediata. No sábado seqüestrou um jornalista e um técnico da rede Globo, para exigir a transmissão de um vídeo. O manifesto brande um discurso de esquerda, faz críticas ao sistema penitenciário, pede um mutirão para revisão de penas, melhores condições carcerárias e se posiciona contra o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Parte do texto é uma cópia ipsis litteris de um parecer do governo, assinado pelo criminalista Mariz de Oliveira. PCC e PT, mesmo combate. Quem o transcreveu deve ser um rábula de quinta categoria, pois troca iluminismo por ilusionismo. No final, o manifesto assume um estilo mais coerente com a bandidagem. “Não queremos e não podemos sermos (sic!) massacrados”. Ou seja, os presidiários se arrogam o direito de estabelecer seu próprio sistema carcerário. Mais um pouco e exigirão ser julgados por seus pares. Visando preservar a vida de seus funcionários, a Globo aceitou retransmitir o vídeo. O PCC agora já sabe como fazer relações públicas. Basta seqüestrar jornalistas e ameaçar matá-los caso suas reivindicações não sejam transmitidas urbi et orbi.

Ao seqüestrar pessoas para forçar a difusão de uma mensagem, o PCC nada mais fez senão seguir a escola das esquerdas, cujos líderes, hoje aboletados no poder, auto-intitulam-se salvadores da nação e gozam de aposentadorias milionárias como recompensa a seus passados criminosos. Talvez ninguém mais lembre, mas Fernando Gabeira, que hoje se destaca como herói sem jaça em meio ao lodaçal do Congresso, foi um dos precursores desta eficiente estratégia. Como reconhecimento de seus notáveis feitos, foi eleito deputado. Não seria de espantar que, em futuro próximo, o erudito Marcola, o homem que teria lido mais de três mil livros, se apresente para disputar junto ao eleitorado o mesmo reconhecimento da nação.

Mal se estabeleceu a relação entre os métodos das esquerdas dos anos 70 e os do PCC, Gabeira foi logo pondo as barbas de molho. “Nós não éramos bandidos” - diz o deputado em entrevista ao Estadão. Ninguém gosta de ser diminuído. Gabeira era um celerado com uma ideologia na cabeça, que alimentava o grandioso projeto de transformar o país numa republiqueta socialista. O PCC nunca sonhou tão alto. Quer apenas alguns privilégios para os seus.

Antes do seqüestro, o Jornal da Tarde havia recebido um e-mail no qual os novos defensores dos direitos humanos protestam contra “a injustiça, abuso de poder, maus tratos, espancamentos e violência há anos às classes pobres nesse País. (...) Buscamos entre nós o máximo de respeito e solidariedade e nos apoiamos entre si dividindo um pouco de tudo que temos entre materiais e carinho humano com projetos sociais, e nossa verdadeira luta é pela dignidade humana sem discriminação, não visamos nenhum tipo de lucro material dessa luta, e por ela nos sacrificamos sem medir as forças”. Para quem chega no meio da conversa, o texto transmite a idéia de uma carta de intenções de alguma entidade beneficente, quem sabe o regimento interno de uma cartuxa. Em sua sede de justiça social, os assassinos e traficantes do PCC já não se contentam em advogar em causa própria. Exigem a redenção dos pobres e oprimidos da nação.

Não é de hoje que os comunicados da guerrilha se assemelham aos chavões da Igreja Católica e do PT. Em um comunicado anterior, o “Grito dos Oprimidos Encarcerados”, proclamavam: “Somos presos oprimidos pagando por algum tipo de erro cometido perante a sociedade, alguns nem mesmo erraram, mas sofrem as injustiças do ser humano”. A linguagem é a mesma de Lula e do PT. Em momento algum fala-se de crimes, apenas de erros. O que sempre me lembra os pruridos de Tarso Genro quando fala de desvios do stalinismo. Stalin não cometeu crimes. Apenas ligeiros desvios.

Neste caldo cultural em que crime não é crime, mas erro, em que seqüestradores não são seqüestradores mas heróis nacionais, e por isso recompensados com gordas aposentadorias e cadeiras no Congresso, nada de espantar que o PCC fizesse sua fezinha. Dando um sentido político aos crimes, quem sabe dentro em breve não se consegue uma anistia, seguida de gordas aposentadorias e indenizações pelos anos injustamente passados no cárcere. Se pegar, pegou. Se não pegar, tentar não custa. Bem entendido, não vai pegar. Falta souche de esquerda aos integrantes do PCC.

Coisa que não falta a Oscar Niemeyer, por exemplo. Os jornais todos hoje vociferam contra a audácia do crime organizado. Em página nobre da Folha de São Paulo, nesta segunda-feira, o arquiteto stalinista chora a morte dos dois maiores criminosos da América Latina, Fidel Castro e Che Guevara. O que falta a Marcola é carteirinha do Partido.

Imprensa que dá página nobre à louvação de grandes assassinos, não tem moral algum para condenar os menores.


 

Azaléias de agosto

20/08/2006

 

Era agosto. Elas se abriam em meu jardim com essa obscenidade com que sempre se abrem as flores, cumprindo sua missão natural de flores. Quanto mais floresciam, mais fenecias. Todos as manhãs eu atravessava aquele festival orgíaco de vermelho, rosa, branco e roxo, rumo ao amarelo ictérico que começava a envelopar tua pele, essa pele que por tantas décadas acarinhei. “Onde estiver, vou sentir tua falta” - me disseste, com voz que jamais senti tão grave. Querendo afagar-me, suspeitando que pela última vez, te enganavas. Não estarás em parte alguma. Partiste para o grande nada, onde nada existe e ninguém sente falta de ninguém.

Quem vai sentir tua falta, todos os dias até o último deles, é este que fica e que em algum lugar sempre estará. Pelo menos até o dia em que não mais estiver. Quem parte descansa. Sofre quem fica. O que até me consola um pouco. Quem está sofrendo, pelo menos não és tu.

De novo é agosto e elas retomaram seu ritual exibicionista. Paranóicas, escondem-se nas primaveras e agora torturam meus invernos. Não apenas os meus, mas os de tantos outros cujos seres amados escolheram agosto para partir. Certa noite de setembro, eu conversava com jovens já contaminados pela resfeber, enfermidade nórdica que significa febre de viagens. Sedentos de vida, perguntaram a este ser tantas vezes acometido pela doença: qual é a mulher mais linda do mundo? Em que geografias pode ser encontrada?

Caí em prantos. A mulher mais linda do mundo, eu a conheci. E a tive. E agora não mais a tinha. Não a encontrara em distantes longitudes nem em países exóticos. Encontrei-a a meu lado, neste prosaico país, e nunca mais a abandonei. Quis a vida - ou talvez tenha quisto eu - que tivesse centenas de mulheres, algumas muitas queridas, outras nem tanto mas também desejadas, mais uma multidão de rostos mais ou menos anônimos, corpos sempre lembrados. Mentira da vida, mentira minha. Em verdade, tive só uma. Tu, que partiste no auge das azaléias.

“Eu não tenho medo da morte” - me disseste ainda, um pouco antes da passagem rumo ao nada. Mesmo desbotada pelo palor da vida que foge, estavas linda como nunca estiveste. Em tuas quase seis décadas, conservavas ainda aquele eterno rostinho de criança, que a passagem dos anos jamais conseguiu te roubar.

Sedada, já no torpor da morte, chamaste tuas últimas energias, te ergueste no leito. Levantando o dedinho, didática qual professora falando a seus pupilos, sussurraste com o que te restava de voz: “E se fizéssemos assim: eu assino um documento: eu, TKM, em pleno uso de minhas faculdades mentais, declaro que quero ter meus restos cremados no cemitério da Vila Alpina”. Reuni minhas forças e consegui balbuciar: não te preocupa, carnes. Tuas cinzas, vou jogá-las de alguma ponte em Paris, uma daquelas pontes que tanto amaste, para que saias navegando mares afora.

Passada a mensagem, te reclinaste em paz. Mas descumpri o trato. Não as joguei em Paris. Ficarias muito longe de mim, navegarias talvez por mares gelados e hostis, encalharias em geleiras e te perderias em fiordes, longe de meu calor. Com carinho, te plantei entre os rododendros e todas as manhãs passo entre ti e murmuro: adorada. É bom te cumprimentar.

Mas como dói.

A vida nos foi pródiga, e isso é talvez o que mais machuque. Nestes últimos meses, tenho sentido uma secreta inveja de homens que casam com megeras horrendas. Quando elas partem, começa a felicidade. Se morrer feliz é o almejo de todo homem, esta graça não mais está reservada a quem um dia foi feliz. É duro conjugar certos verbos no passado.

Dizia Pessoa:

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Bobagens de poeta, que tanto influenciaram meus dias de jovem. Verdade que sem ti correrá tudo sem ti. Mas isto vale para as azaléias - seres insensíveis que sequer perceberam a ausência de quem as adorava tanto - e para o resto da humanidade. Para quem perdeu o ser mais lindo da vida, é mero jogo de palavras.

As azaléias em breve irão perdendo seu sorriso orgíaco, suas cores fenecerão e agosto que vem estarão de novo florescendo, despudoradas. Tuas cores feneceram agosto passado e pelo resto de meus agostos não mais te verei florir.

(in memoriam 20 de agosto de 2003)


 

Armadilha para homossexuais

30/08/2006

 

Não é fácil ser entendido quando se foge aos padrões do pensamento vigente. Há leitor que se confunde quando digo que sou, em princípio, contra as drogas, mas a favor da liberação das drogas. Sou contra o aborto, mas sou pela descriminalização do aborto. Não vai nisto nenhum atentado à lógica. Se sou pela liberação das drogas, é porque penso que tal liberação servirá para diminuir o consumo das mesmas. E, principalmente, para exterminar o tráfico e todos os crimes dele decorrentes. Que mais não seja, o cigarro vem matando milhões desde que se tornou símbolo do homem que sabe o que quer e até hoje seu comércio não é proibido. Verdade que, na última década, os antitabagistas conseguiram grandes avanços como vetar o fumo em restaurantes e lugares públicos. A propósito, hoje é o Dia Nacional de Combate ao Fumo. Mas o cigarro está longe ainda de ser proibido. Tampouco acho que deva sê-lo. Por um lado, tudo que é proibido sempre atrai. Pelo outro, as pessoas são suficientemente adultas para consumir ou não consumir o que as mata. Quem quiser chupar câncer, que o chupe e boa sorte.

Sou contra o aborto. É absurdo abortar quando se tem ao alcance das mãos diversas alternativas anticoncepcionais. Há milhões de pessoas apelando ao aborto como anticoncepcional e isto é uma estupidez. Sou pela descriminalização do aborto porque ninguém deve ter um filho que não quis, concebido em um momento de descuido, embriaguez ou ignorância. Só é crime o que a lei define como crime. Se a lei não define aborto como crime, então não é crime. Há quem condene o aborto em nome de um tal de direito natural, como se direito fosse algo escrito em tábuas eternas pendendo em algum desvão da eternidade. Ora, direito é construção feita por homens e cada país a erige como bem entende. As atuais objeções ao aborto são quizílias de fundamentalistas, que até hoje não aceitaram a idéia de um Estado laico. Confundem preceito moral com preceito legal e querem impor, teocraticamente, sua visão de mundo a todos os cidadãos.

Da mesma forma, sempre defendi o comportamento homossexual. Se uma pessoa se sente melhor mantendo relações com outra do mesmo sexo, ninguém tem nada a ver com isso. “Viver e deixar viver”, esta era a divisa de Casanova. Faço-a minha também. A Bíblia condena? Que condene. Homossexualismo então é condenável para aqueles que têm a Bíblia como livro normativo. Judeus e cristãos devem abster-se do homossexualismo. A Igreja de Roma condena? Que condene. Isto significa que os católicos romanos também devem abster-se do homossexualismo. Mas nada lhes dá o direito de condenar o comportamento daqueles que não aceitam nem os princípios da Bíblia nem os preceitos de Roma.

Não faltam crentes hoje em dia que resumem o Ocidente a um legado judaico-cristão. A equação está incompleta. O Ocidente é também greco-romano. Quando se fala em judaico- cristão, estamos falando de dogma e de religião. Quando se fala em greco-romano, estamos falando de direito e filosofia. Se em um universo teológico homossexualismo é pecado, em um universo jurídico ou filosófico não vige a noção de pecado. Homossexualismo fazia parte da alegria do mundo pagão. Não fosse a emergência do cristianismo, ainda hoje constituiria algo perfeitamente permissível nos costumes da urbe. O cristianismo criminalizou o homossexualismo. Se sempre defendi este tipo de comportamento, não consigo defender palhaçadas como paradas gays – especialmente quando organizadas às custas do contribuinte – ou essa nova armadilha chamada casamento homossexual.

Carolyn Conrad e Kathlyn Peterson se divorciaram na semana passada. As duas foram o primeiro casal homossexual a unir-se civilmente nos Estados Unidos, após a promulgação da lei permitindo a união civil de homossexuais, em 01 de julho de 2000, no estado de Vermont. A cerimônia foi celebrada em todo o país como um marco na luta dos homossexuais para obter equiparação legal aos direitos adquiridos pelos casais heterossexuais no casamento. Em seu pedido de divórcio, Conrad afirmou que Peterson havia se tornado violenta, ao ponto de quebrar uma parede com um soco durante uma discussão, e havia ameaçado agredir uma de suas amigas. Peterson foi proibida pela Justiça de se aproximar de Conrad.

As uniões homossexuais sacramentadas pelo Estado não passam de um engodo para aprisionar pessoas que antes eram livres. Se Carolyn e Kathlyn não tivessem se unido perante a lei, ao menor sinal de agressão uma teria se separado da outra e estamos conversados. Com a nova lei, precisam solicitar oficialmente ao Estado permissão para separar-se.

Nesta matéria, a Espanha antecedeu os Estados Unidos. Em junho passado, dois homens iniciaram os trâmites legais de divórcio, quase um ano depois de entrar em vigor a lei que permitiu o casamento entre pessoas de mesmo sexo. Ambos viviam juntos desde 1993 e se casaram em outubro de 2005 na localidade madrilena de Rivas Vaciamadrid. Hoje, um dos parceiros reclama o direito de ficar com a casa, cuidar dos cachorros e uma pensão mensal de 7.000 euro. Alega que, durante anos, “se dedicou como uma dona-de-casa e teve de abandonar suas atividades profissionais”.

Bari Shamus, uma das fundadoras do Grupo Liberdade de Casamento em Vermont, disse que a separação do casal americano não deveria surpreender a população, pois “os casais homossexuais têm os mesmos problemas de relacionamento que os casais heterossexuais”.

Bingo, Bari! Os problemas são ainda mais agravados quando tais casais assinam um contrato sob chancela do Estado. Se antes uma separação não implicava partilha de bens nem demandas judiciais, hoje passou a implicar. Não estamos longe do dia em que, em função de um curto namorico, um dos parceiros pedirá indenização ao outro por ter gerado falsas expectativas. Tais processos já começam a pipocar em relações heteros. Daí a passarem para o campo das homossexuais é apenas um passo. Quem viver verá.

Em função de idéias estúpidas como feminismo ou politicamente correto, os homossexuais estão renunciando aos poucos à liberdade que sempre usufruíram e caindo na armadilha do casamento sacramentado em cartório. O relacionamento homossexual, que um dia foi regido pelo desejo ou mesmo pelo sentimento de companheirismo, submete-se agora ao Direito de Família. É o que chamo de saudades dos grilhões.


 

Sobre conceitos

05/09/2006

 

Em função de minha última crônica, fui bombardeado com mails que em boa parte confundem conceitos como ética ou moral, norma religiosa e norma jurídica, pecado e crime. Tentarei destrinçar o imbróglio.

Nos últimos vinte anos, os petistas começaram a encher a boca com palavras como “a moral e a ética”, assim juntas. Verdade que o Aurélio define moral como um conjunto de regras de condutas tidas como válidas e ética como o estudo dessas regras.

Prefiro Cícero: “posto que se refere aos costumes, que os gregos chamam ethos, nós costumamos chamar essa parte da filosofia uma filosofia dos costumes, mas convém enriquecer a língua latina e chamá-la moral”. No Dicionário de Filosofia, de Ferrater Mora, lá está: “moral deriva de mores, costume, da mesma forma que ética de ethos e por isso ética e moral são empregadas às vezes indistintamente. Ferrater Mora vê inclusive um significado mais amplo no conceito de moral que no de ética. Seja como for, quando adjetivamos a palavra, ao dizer que algo é ético ou moral, a diferença entre os termos desaparece. Não por acaso, o Supremo Apedeuta adora falar em “ética e moral”.

Quanto menos se conhece as palavras, mais se as maltrata.

Pretendem outros que moral – ou ética, como quiserem – coincida com lei. Assim, se aborto fere a moral, ipso facto é crime, mesmo que a lei o permita. Ora, tudo o que a lei não proíbe é permissível. Quando um Estado admite o aborto, qualquer cidadão até pode achar que é crime. Ocorre que, nessas circunstâncias, não é. Não é o palpite de qualquer cidadão que define algo como crime. Quem define o que é crime, pelo menos nas democracias ocidentais, é o Parlamento. Se os legisladores decidirem que esta ou aquela ação não é crime, permitida está. Para os que gostam de citar Aristóteles como um dos baluartes do pensamento cristão, é bom lembrar que o estagirita o recomendava como método eficaz para limitar os nascimentos e manter estáveis as populações das cidades gregas. Até mesmo para o insuspeito Santo Agostinho o aborto só seria crime quando o feto já tivesse recebido alma, o que deveria ocorrer após 40 ou 80 dias de sua concepção, conforme o feto fosse masculino ou feminino. Hoje, apenas 26% dos países não o consideram legal.

O mesmo diga-se do homossexualismo. Segundo a ONU, cerca de 80 países ainda tratam relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo como um crime punível com morte, em pelo menos sete Estados. Nestes 80 países, homossexualismo é crime. Nos demais 118, é fenômeno da órbita da ética.

Surge então outra pergunta: existe uma lei moral universal? Pode ser que exista em teoria. Na prática, não. Cada religião, cada nação, cada grupo social, cada época tem seus próprios preceitos morais. Que podem ter seus pontos comuns, mas também os divergentes. Não é crime ferir uma norma ética, a menos que esta coincida com a norma legal. Você pode até sofrer sanções de sua comunidade se ferir as regras morais nela vigentes. Mas ninguém pode condená-lo à prisão ou executá-lo por tais transgressões. Voltando ao aborto: se você vive em país em que abortar não é tipificado pela lei como crime, você pode até ser expulso de sua comunidade ou de seu círculo se tiver estimulado ou praticado aborto. Do ponto de vista legal, não cometeu crime algum.

Assim como não existe lei moral universal, tampouco existe lei jurídica universal. “Divertida justiça que um rio limita” – escrevia Montesquieu – “erro além, verdade aquém dos Pirineus”. Só crê que existe lei jurídica universal o homem de tapa-olhos, que jamais saiu de seu país e pouco ou nada leu.

Pretendem os religiosos que todo pecado seja crime. Não é. Pecado é conceito da área teológica. Crime é conceito da área jurídica. Para pecados, existe o perdão. Para o crime, a punição. Verdade que, depois de Stalin, foi criado um outro parâmetro. “Foram erros”, disse Stalin, ao referir-se ao massacre dos kulaks. O PT, reverente a suas origens, jamais fala de crime e punição. Nem de pecado ou perdão. Mas de erro e desculpa. Errou? Basta pedir desculpas e está redimido.

Mandamento é coisa de religião. Lei pertence à órbita do direito. Quem descumpre um mandamento peca e pode ser perdoado. Se o Marcola confessar seus crimes, basta que faça um sincero ato de contrição e está quite com a justiça divina. Com a dos homens é diferente. Quem infringe uma lei comete crime e deve ser condenado. Contrição não basta. Bastasse, não existiriam códigos penais nem prisões. Padre perdoa tudo. Dependesse dos padres, o Marcola estaria livre como um passarinho.

O “não matarás”, antes de ser preceito jurídico, foi preceito ético-religioso. Pertencia, inicialmente, ao universo teocrático. Mesmo assim, era muito relativo. Jeová, o redator das tábuas, matou à vontade antes de redigi-las. Continuou matando com gosto depois de promulgá-las. E promete matar mais quando vier o Cordeiro. Apanhe a Bíblia. Quantos homens, quantos povos, exterminou Satã? Nenhum. Jeová massacrou com entusiasmo. Existem leis morais objetivas? – me pergunta um leitor. Não existem – respondo. O “não matarás” é o mais perfeito exemplo.

O preceito só se torna objetivo quando toma a forma de lei. O Estado sente-se obrigado a definir, com precisão, quando se pode matar. Pode matar o soldado durante a guerra e este é seu dever. Pode matar um homem ameaçado, em sua legítima defesa ou de terceiro. Pode matar o Estado, quando pune um crime. Fora estas circunstâncias, matar é crime. Jeová não teve preocupação nenhuma em regulamentar o “não matarás”. O Estado tem. O preceito religioso concerne aos adeptos de uma religião. O preceito jurídico concerne a todos os cidadãos, quaisquer que sejam suas religiões. O preceito moral diz respeito a grupos que têm esta ou aquela visão de mundo. A lei enquadra todo cidadão, não importa o que este cidadão pense do mundo. O conflito surge nas teocracias, quando Igreja e Estado se confundem, o preceito religioso se impõe e o conceito de pecado acaba se tornando crime. Já cheguei a sugerir que cristãos deveriam ser punidos quando praticam aborto, afinal consideram o aborto um crime. Aos demais, seria permitido. Não faltou quem julgasse ser absurdo ter diferentes legislações para diferentes cidadãos.

De fato, é. Mas no Brasil já tem. Deputados e ministros têm foro privilegiado, inacessível aos demais cidadãos. Os sem-terra podem invadir terras e prédios, depredar, saquear e nenhuma sanção lhes é imposta. Índio pode matar, estuprar, interditar rodovias, manter reféns em cárcere privado e por isso não são punidos. Menores de 18 anos têm carteirinha de 007, podem matar à vontade e nenhuma prisão firme lhes será atribuída. Absurdo a mais, absurdo a menos, tanto faz como tanto fez.

Lei é sinônimo de justiça? Nem sempre. A lei sempre foi uma tentativa de se chegar à justiça. Por isso é sempre renovada e aperfeiçoada. Para o brasileiro contemporâneo, sem ir mais longe, matar uma mulher por razões passionais é crime. Nem sempre foi assim. Nestes dias, Doca Street está lançando um livro no qual relata o assassinato de Ângela Diniz, em 1976. Antes deste caso, os júris aceitavam a tese de legítima defesa da honra. Há trinta anos, matar a própria mulher era perfeitamente legal. Hoje já não é. No mundo muçulmano, matar a mulher que tem relações com outro homem, é não só ético, como também legal e justo.

Quando a legalidade se afasta irremediavelmente de qualquer ideal de justiça, surgem as revoluções. Mas as revoluções do século passado se revelaram remédio pior que a doença. Quando uma comunidade é doente, a doença passa a ser norma e a ninguém ocorre rebelar- se. Diga a um muçulmano que é criminoso cortar o clitóris de uma mulher. Ele vai achar muito estranha sua maneira de ver o mundo. A própria mulher talvez também a ache. Em meus dias de guri, transgredi com gosto os preceitos éticos da cidadezinha em que vivia. Nunca me agradou portar cilícios. Por tê-los transgredido, fui expulso da cidade. Até hoje porto esta expulsão como comenda, emblema de minha hybris juvenil. Me senti como um Cortez queimando suas naus e pronto para enfrentar qualquer adversidade. Teria uns 16 anos. Como cachorro que se sacode para secar-se, joguei para longe de meus ombros também os preceitos religiosos. Senti então uma extraordinária sensação de liberdade. Dos preceitos éticos ou religiosos, mantive apenas aqueles que coincidem com os códigos penal ou civil. Bem entendido, cultivo até hoje uma ética, particular e muito rigorosa, mas que pouco coincide com as éticas vigentes.

Resumindo: não temos porque aceitar qualquer ética que nos seja proposta. Nada impede que construamos a nossa. Homem sem religião é como peixe sem bicicleta. Quanto à lei, dela ninguém escapa. Pelo menos em país decente.


 

Nós, os imorais

12/09/2006

 

Não poucos articulistas trabalham com a falsa hipótese de que os comunistas são ateus. Nunca foram. Apenas trocaram o deus cristão por um outro. No caso, uma deusa, a História. Essa deusa teve uma encarnação humana, Stalin. Tanto que, em 1953, havia comunistas que não acreditavam em sua morte, afinal um deus não pode morrer. A fé absoluta na doutrina marxista era tal que um comunista sempre olhava com piedade para quem quer que dele discordasse: o coitado nada entendia do mundo. A Parusia proletária era dada como inelutável e a humanidade toda caminhava rumo ao comunismo. Poderíamos encher páginas e páginas listando os pensadores que perceberam este caráter religioso da nova doutrina. Vou ficar em apenas dois, Camus e Kazantzakis, que acompanharam de perto o grande embuste do século passado. Nada de novo no que segue. Apenas repito o que já escrevi, pois curta é a memória das gentes.

Escreve Camus, em O Homem Revoltado:

“O ateísmo marxista é absoluto. No entanto, ele restabelece o ser supremo ao nível do homem. A crítica da religião chega a esta doutrina na qual o homem é para o homem o ser supremo. Sob este ângulo, o socialismo é um empreendimento de divinização do homem e adquiriu certas características das religiões tradicionais”.

“...o socialismo autoritário, que vai dessacralizar o cristianismo e incorporá-lo a uma Igreja conquistadora”.

“O messianismo científico de Marx...”

O proletariado, “por suas dores e lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”.

“O movimento revolucionário, no final do século XIX e no começo do XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”.

“A revolução russa continua só, viva contra seu próprio sistema, longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia ainda está longe. A fé está intacta, mas se curva a uma enorme massa de problemas e descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo frente a Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”.

Um outro escritor do início de século, que viveu este confuso noivado bem antes que Camus, será ainda mais incisivo nesta aproximação. Em Voyages - Russie, Nikos Kazantzakis lembra como se fez a luz em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplória. Como em todas as religiões, tentavam difundir aquelas respostas tornando-as compreensíveis para a multidão. Kazantzakis fala da existência, na Rússia, de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos milhões de crianças e as instruía como bem entendia. Esse exército, continua o cretense, tinha seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin, e seus apóstolos fanatizados que pregavam a Boa Nova através do mundo. Esse exército possuía também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, hierarquia, liturgia e mesmo a excomunhão: “somos contemporâneos deste grande momento em que nasce uma nova religião”.

Ou seja, não estamos diante de ateus e sim de crentes que cultuam um novo deus. Não é pois de espantar que no passado de quase todos os antigos marxistas temos um cristão que renegou a própria religião. Tampouco causa espécie que o Partido Comunista sempre tenha sido forte em países católicos. A Rússia, é bom lembrar, era um dos maiores países católicos do mundo nos albores do século passado.

Que mais não seja, em O Idiota, através da boca do príncipe Mychkine, o ortodoxo Dostoievski há muito previra que o catolicismo romano originaria um socialismo ateu. Ateu em relação ao Deus dos céus e dos infernos, mas religioso em relação ao homem enfim divinizado. Morto o Deus judaico-cristão, deus nenhum outro à vista para sucedê-lo, o homem ocidental, órfão e carente de fé, irá criar um deus vivo.

Os russos, excitados pelo messianismo chauvinista e anti-semita de Dostoievski, já andavam procurando o seu. Por volta de 1850, Vladimir Soloviev erige o movimento revolucionário “Os Buscadores de Deus”, que acaba não achando nada. Mas a semente está lançada. Será após o fracasso da revolução de 1905, que Maxim Gorki e Lunatcharski (futuro escritor oficial da era staliniana) fundarão o movimento “Os Construtores de Deus”.

Gorki, que julgava a mentira necessária contra as “verdades nefastas”, diz em uma carta de 1908, dirigida a Gregor Alexinski, que o “socialismo deve se transformar em culto”. Em A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, um militante diz aos operários em cortejo: “nossa procissão agora marcha em nome de um deus novo”. Em uma novela de 1908, A Confissão, o incipiente deus já ensaia seus poderes: à passagem de uma manifestação de operários, um paralítico deitado em uma maca se levanta e anda. E antes de morrer envenenado por seu “Deus”), Gorki afirma: “Lá onde reina o proletariado não há lugar para uma querela entre o saber e a fé, pois a fé neste caso é o resultado do conhecimento pelo homem do poder da razão”.

Os tempos estão maduros para a emergência da nova fé. Marx e Engels fornecem o Livro, pois toda religião que se preze se fundamentará em um livro. Os revolucionários de 17 conquistam um território. Só faltava o Deus feito carne. Em Gori, na Geórgia, nasce o Menino.

Escreveu Ipojuca Pontes na semana passada: “Por se tratar de gente que não acredita em Deus, o intelectual de esquerda acha que para ele ‘tudo é permitido’: mentir, trair, caluniar, mistificar e - por que não? - através de artifícios diversos, tidos como legais, meter a mão no dinheiro do Estado. De ordinário, vivem pendurados em cátedras oficiais ou em polpudos empregos públicos, usufruindo parasitárias bolsas de estudos ou as benesses de projetos artísticos, cujos únicos atributos criativos têm sido a astúcia engendrada para convencer o burocrata de plantão a arranjar mais grana para o usufruto de ambos”. Nada dá mais prazer a um homem honesto do que falar de si mesmo, escreveu Dostoievski. Sou ateu desde meus verdes anos. Nunca fui isso que se chama de intelectual de esquerda, e muito menos de direita. Ateu sendo, nunca menti, nunca traí, nem caluniei nem mistifiquei e muito menos meti a mão no dinheiro do Estado. (Pelo contrário, o Estado me deve uma quantia polpuda em precatórios e até hoje está me caloteando. Se metesse a mão no dinheiro estatal, estaria apenas me ressarcindo). Nunca cometi sequer essas mentiras triviais que os machos usam para esconder suas infidelidades: tive não poucas mulheres e todas sabiam de todas. Mais ainda: nunca passei um cheque sem fundo, nunca furei uma fila, nunca joguei no bicho e nunca joguei papel nas ruas.

Meu círculo de relações, por uma questão de afinidades eletivas, é formado de modo geral por pessoas que não crêem em Deus. Não conheço nenhum que tenha mentido, traído, caluniado, mistificado ou posto a mão no dinheiro do Estado. Tivessem cometido qualquer dessas vilanias, não fariam parte de meu círculo. Exatamente por ter me libertado de qualquer veleidade religiosa, não procurei outra religião ao jogar ao lixo a antiga. Havia duas igrejas na cidadezinha em que me criei, a católica e a marxista. Mal larguei a católica, a outra me cercou, empunhando bibliografias e nobres ideais. Mas eu já começara minhas leituras filosóficas e o marxismo pareceu-me uma resposta muito rude a meu intelecto. Um amigo de longa data perguntou-me certa vez como eu podia ser honesto sem acreditar em Deus. Estava repetindo, talvez sem saber, a frase que Sartre um dia atribuiu a Dostoievski: “se Deus não existe, tudo é permitido”. (Digo que Sartre atribuiu porque Dostoievski jamais disse isso, pelo menos assim como está formulado). Mutatis mutandis, estava afirmando o que o articulista afirma: que nós, ateus, somos aéticos, imorais, desprovidos de escrúpulos. Ora, nunca precisei de deus algum para fundamentar minha ética. Não vejo como obrigatória a crença em um deus qualquer para que um homem seja honesto. Com Deus ou sem Deus, se tudo for permitido, a existência da comunidade humana é inviável.

Par contre, pergunte-se a qualquer um dos políticos que se beneficiaram de mensalões, propinas, esquema de sanguessugas, caixa 2, nepotismo, tráfico de influência ou tráfico de drogas, se ele acredita em Deus. Todos eles dirão que sim, pois não há no Brasil político que não acredite em Deus. Quem disser não, não será eleito. Quando interrogados, até mesmo o materialista dialético Fernando Henrique Cardoso e o Supremo Apedeuta vacilaram e saíram pela tangente. Hoje, os dois acreditam em Deus, lado a lado com a marxista desvairada, a Heloísa Helena.

Devagar nas pedras, meu caro Ipojuca. Não somos assim feios como nos pintam. Ateu mesmo não acredita nem nos deuses construídos pelo marxismo.


 

Maomé, espada e Cristo

19/09/2006

 

Em 13 de maio do ano passado, a TV da Autoridade Palestina transmitiu o sermão das sextas-feiras do xeque Ibrahim Mudeiris. Seleciono algumas pérolas do mesmo:

“Com o estabelecimento do Estado de Israel, a nação islâmica perdeu-se em sua totalidade, porque Israel é um câncer que se espalha por todo o corpo da nação islâmica e porque os judeus são um vírus semelhante ao da AIDS, da qual o mundo inteiro sofre as dores. (...) Vocês vão descobrir que os judeus estão por trás de todos os conflitos civis deste mundo. Os judeus estão por trás do sofrimento das nações.

“Nós já governamos o mundo antes e por Alá há de chegar o dia em que o dominaremos totalmente de novo. Há de chegar o dia em que dominaremos os Estados Unidos. Há de vir o dia em que governaremos a Inglaterra e o mundo todo - exceto para os judeus. Os judeus não gozarão de uma vida tranqüila debaixo do nosso domínio, porque são traiçoeiros por natureza, como têm sido por toda a história. Há de vir o dia em que todas as coisas ficarão livres dos judeus - até mesmo as pedras e as árvores que foram feridas por eles. Ouçam o Profeta Maomé que lhes fala sobre o maligno fim reservado para os judeus. As pedras e as árvores desejarão que os mulçumanos exterminem todo judeu.”

Alguns jornais do Ocidente noticiaram o sermão. Apesar do anti-semitismo e totalitarismo nele expressos, não houve escândalo maior na Europa e Estados Unidos. O pronunciamento do xeque foi absorvido como a manifestação de um fanático.

Terça-feira passada, o papa Bento XVI citou uma frase de um imperador do século XIV, Manuel II, o Paleólogo (1391-1425), dirigida a um estudioso persa: “Mostre-me então, o que Maomé trouxe de novo, e ali só encontrará coisas más e desumanas, como esta, de que ele determinou, que se propague através da espada a fé que ele prega”.

Continua o Sumo Pontífice: “Após ter atacado deste jeito, o imperador argumenta, então, pormenorizadamente, porque a propagação da fé através da violência é absurda. Ela está em contradição com a essência de Deus e da alma. ‘Deus não tem prazer no sangue’, diz ele, e agir de forma irracional contraria a essência de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Quem, portanto, pretende conduzir alguém à fé, precisa da habilidade do bom discurso e de um raciocínio correto, mas não de violência e ameaça... Para convencer uma alma sensata, necessita-se não de seu braço, não de instrumentos de agressão nem de outros meios pelos quais se pode ameaçar alguém de morte ...”

O Islã todo eriçou-se mundo afora. Bento XVI foi comparado com Hitler e Mussolini. Egito e Marrocos chamaram seus embaixadores no Vaticano de volta para avaliar as declarações do papa. Na Caxemira, Índia, protestos são organizados diariamente. Na Cisjordânia, homens armados atacaram cinco igreja católicas. Na Líbia, religiosos afirmam que o insulto nos leva de volta à era das Cruzadas contra os muçulmanos, liderados pelos políticos e religiosos ocidentais. Na cidade de Gaza, na Palestina, duas mil pessoas saíram às ruas para protestar contra o papa. Sábado passado, iraquianos membros do Khaiech al-Mujahedin prometeram lançar ataques contra Roma e o Vaticano, em resposta às palavras de Bento XVI. “Juramos destruir sua cruz no coração de Roma. E que o Vaticano será golpeado e irá chorar por seu papa”, anunciou o grupo, que qualificou Bento XVI como “cão dos cruzados”.

Contra o Manuel, o autor da frase, não se ouve restrição alguma. No fundo, os mulás estão agindo como agitprops entrincheirados nas mesquistas e querem reproduzir o escândalo de fevereiro passado, das charges dinamarquesas. Ora, nem o papa nem o imperador disseram uma inverdade. O Islã tem se expandido pela espada e não por acaso Maomé era um guerreiro. Mais ainda: o papa não disse nada. Apenas citou um diálogo transcorrido há mais de seis séculos. Obviamente, os muçulmanos não teriam nenhum ganho político xingando o Manuel. Xingue-se então o Bento. Imagine-se o escândalo se o papa citasse Dante, que na Divina Comédia colocou Maomé no oitavo círculo do inferno, destinado aos semeadores de discórdia.

Ora, Maomé não conduziu os árabes à fé através da habilidade do bom discurso e de um raciocínio correto, mas exatamente pela violência e ameaça. Homem de guerra, o profeta liderou sete anos de sangrentas batalhas entre Medina, muçulmana, e sua cidade natal, Meca, cujos principais representantes eram pagãos. No transcurso de sua vida, Maomé comandou 27 expedições militares e organizou outras tantas, lideradas por seus subordinados. Quem não se rendesse ao Islã e pagasse o dízimo poderia ser roubado, escravizado ou morto pelos crentes.

Na batalha dos muçulmanos contra a tribo judaica de Bani Qurayzah, todos os homens foram condenados à morte e as mulheres e crianças à escravidão. Setecentos judeus foram decapitados com um golpe de espada e tiveram seus corpos jogados em valas. A matança durou o dia todo e o último grupo foi executado à luz de tochas. Quem entra em Meca, em janeiro de 630, não é um profeta imbuído de mensagens de paz, mas um Maomé conquistador à frente de um exército vitorioso. Maomé conseguiu, antes de sua morte, unificar praticamente toda a Arábia sob uma só religião, o Islã... a golpes de espada. Não bastassem estes episódios históricos, o Alcorão concita os muçulmanos em várias de suas suras a exterminar os infiéis. Se algum dia estes fatos não puderem ser mencionados no Ocidente sob pena de guerra santa, nesse dia o Ocidente terá capitulado definitivamente frente ao islamismo.

Bento XVI voltou timidamente atrás em sua declaração, dizendo-se desolado porque seus propósitos tenham sido vistos como ofensivos à sensibilidade dos fiéis muçulmanos. Ora, ofensivos não foram, a menos que se considere a História como calúnia. Por outro lado, Sua Santidade parece ter esquecido daquele Cristo que um dia disse: “eu não vim trazer paz, mas espada”. A mesma espada que viajou junto com a cruz nas expedições dos conquistadores, a mesma que degolou cátaros e albigenses, a mesma que acompanhou os Cruzados em seus massacres no Oriente. Isso sem falar, é claro, na Inquisição, que obrigou os judeus da Europa, sob pena de morte, a converter-se ao catolicismo.

Isso sem falar que o Antigo Testamento começa com um pancídio, do qual só se salvam Noé e o seus. Jeová ordena Israel a matar os amorreus, heteus, ferezeus, cananeus, heveus, jebuseus, mais tribos do que massacrou Maomé. Coisas do livro antigo, dirão almas mais complacentes. Assim fosse. No Novo Testamento, no Apocalipse, o Cordeiro volta para exterminar o que sobrou da humanidade.

O monoteísmo surge da areia, diz Michel Onfray. As três grandes religiões contemporâneas nasceram no deserto. Não é de espantar que seus livros contenham prescrições bárbaras, que só serão amenizadas com o evento da urbe. Defendo a idéia de que estes livros antigos sejam preservados como documentos históricos, mas abandonados como corpus normativo de qualquer religião que se pretenda contemporânea.

Enquanto isso, graças a uma frase pronunciada seis séculos atrás, Roma encontra-se ameaçada pelo terror islâmico. É muita hipocrisia. Se os muçulmanos não manifestaram reprovação alguma à retórica belicista do xeque Mudeiris no ano passado, não têm hoje autoridade alguma para contestar a menção de Bento XVI a fatos históricos.


 

Os croissants e a arrogância dos sarracenos

26/09/ 2006

 

Ainda o Islã: o mundo muçulmano demonstrou uma arrogância insólita, ao protestar com violência contra um papa que nada mais fez senão citar fatos históricos. Os europeus continuam comendo croissants todos os dias e parecem não mais lembrar da História. Semana passada, um tribunal da Turquia inocentou a escritora Elif Shafak, de 35 anos, da acusação de insultar a identidade turca no romance O Bastardo de Istambul, lançado em março deste ano – dizem os jornais. Elif era acusada por promotores nacionalistas de infringir o Artigo 301 do Código Penal, segundo o qual um cidadão pode ser condenado a até três anos de prisão por denegrir a identidade nacional turca. Eles pediram a prisão dela porque personagens do livro usam a expressão “genocídio” ao se referir ao massacre de centenas de milhares de armênios nos anos finais do Império Otomano, durante a 1ª Guerra Mundial.

Que a escritora tenha sido absolvida é uma boa notícia. A má notícia é que tenha sido processada por palavras proferidas por personagens. O massacre de um milhão e meio de cristãos armênios por turcos muçulmanos é fato histórico incontestável. E ao massacre de uma etnia convencionou-se chamar genocídio. O espantoso nesta affaire é responsabilizar um ficcionista pelo crime do personagem. É como se o Estado levasse Dostoievski à barra dos tribunais pelo crime de Raskolnikoff, acusasse Gide pelo assassinato de Lafcadio ou responsabilizasse Camus pelo gesto de Meursault. Neste caso, com um agravante: a vítima de Meursault era um árabe. Racismo óbvio de Camus.

Imagine o leitor o drama de um historiador na atual Turquia. Sendo sua afirmação bem mais grave que a de um ficcionista, o historiador terá de pular o período entre 1894 e 1915, quando ocorreram as chacinas muçulmanas. Elif foi absolvida. Mas o artigo do Código Penal turco, no qual foi enquadrada, continua em vigor. “Se o artigo 301 for interpretado dessa maneira, ninguém mais poderá escrever romances na Turquia, ninguém mais poderá fazer filmes”, disse Elif. Outros escritores e jornalistas também estão sendo processados por promotores por acusações semelhantes. A Turquia é hoje um país partido em dois. Uma metade assume os valores ocidentais e a outra se refugia no Islã. O obscurantismo desta segunda parcela é o que até hoje dificulta a entrada da Turquia na comunidade européia. Terça-feira passada, Pervez Musharraf pediu para a ONU proibir a difamação do Islã, em discurso diante da 61ª Assembléia Geral das Nações Unidas. “É imperativo pôr fim à discriminação racial e religiosa contra os muçulmanos e proibir a difamação do Islã”, disse o presidente paquistanês. Por difamação do Islã, Musharraf entende as declarações do papa Bento XVI que vincularam a fé muçulmana à violência. Como se o papa tivesse dito alguma novidade.

Aproveitando o embalo, os países muçulmanos pediram na ONU a abertura de negociações diplomáticas para a criação de um acordo internacional que proíba a difamação religiosa. Para Doudou Diene, relator de assuntos sobre racismo, os comentários do papa foram profundamente preocupantes. O Irã, por sua vez, alerta que o direito de expressão não é absoluto quando se trata de um debate sobre as religiões. No fundo, o que estes senhores querem é que seja apagada da História a memória do Islã, pelo menos no que se refere a massacres, execuções, escravidão e intolerância.

Se alguma autoridade política ou religiosa muçulmana não acredita que o Islã se expande a fio de espada, melhor começar jogando à fogueira a obra toda de Al Tabari (839-923), o mais famoso historiador muçulmano, que compila 62 expedições guerreiras entre 624 e 632, comandadas ora por Maomé, ora por seus subordinados. Imagine-se o escândalo dos mulás se Bento XVI comentasse a crônica de ataques, pilhagens, execuções, decapitações, tomadas de escravos, degolas, matanças de judeus, raptos de mulheres e crianças e destruição de ídolos de outras religiões que marcaram a vida do profeta.

Isso sem falar nos massacres que se estenderam desde o século VIII ao XX, na Índia, Egito, Turquia, Armênia, Espanha, Grécia, Paquistão, Tunísia, Marrocos, Iêmen, judeus da África do Norte, perseguições de budistas, conversões forçadas de judeus no Irã e no Iraque, captura de cristãos na Grécia, Sérvia, Bulgária, Armênia e Albânia, massacres na Geórgia, expulsão de judeus da Arábia Saudita. Isso sem falar na invasão da Península Ibérica em 711, em mais de um milhão e meio de europeus feitos escravos entre os séculos XVI e XVII e no cerco à Viena, no século XVII, quando foram derrotados. Fosse eu Sua Santidade, eu desfiaria este rosário de horrores em resposta ao Islã. Se quiserem negar tais fatos, que neguem sua própria história e contratem novos escribas para reescrevê-la. Mas Sua Santidade, por dever de ofício, tem de usar diplomacia.

Eu não tenho. Não sou pontífice, nada tenho a ver com pontes e posso dizer o que penso. Defendo desde há muito a tese de que esta arrogância muçulmana teve suas origens em 1989, quando o indiano Salman Rushdie publicou no Ocidente Versículos Satânicos. Embora fosse indiano com nacionalidade britânica, Rushdie foi alvo de uma fatwa de Khomeini, então todo-poderoso da “revolução” no Irã. Do alto de um minarete, o aiatolá condenou um cidadão europeu à morte.

A Europa aceitou tranqüilamente a sentença do aiatolá. Em vez de isolar o Irã, o Reino Unido passou a dar proteção a Rushdie. Os demais países da comunidade se mantiveram em silêncio obsequioso. Ora, não se tratava apenas de proteger um escritor perseguido. Mas de repudiar a pretensão megalômana de um padre persa, que pretendeu legislar inclusive no estrangeiro. A apostasia, ou crime, segundo os muçulmanos, havia ocorrido em Londres, com a publicação do livro. Khomeiny ordenou não só a condenação à morte - como também a execução da sentença - de Rushdie, assim como de todos os implicados na publicação do livro, em território europeu ou onde quer que estes “criminosos” estivessem.

Só a apatia dos países europeus pode explicar a reação desmesurada dos árabes, tanto às caricaturas anódinas de um obscuro jornal do sudoeste da Dinamarca como à citação pelo papa de uma evidência histórica. Se naquele momento as democracias ocidentais tivessem cortado relações com Teerã, provavelmente não estaríamos vendo hoje este escândalo hipócrita do mundo muçulmano.

Os europeus continuam comendo seus croissants, dizia. Os croissants são decorrência do ataque do Islã à Europa. Por ocasião do cerco muçulmano à Viena, os padeiros da cidade combinaram uma senha. Quando os mouros, empunhando o crescente e as cimitarras, se aproximassem da cidade, os pães teriam a forma da lua crescente. Pela escassa reação do continente à arrogância dos sarracenos, deduzimos que os europeus contemporâneos já não conhecem História e esqueceram a origem do pão que comem.


 

A memória do burro

03/09/2006

 

Recebi não poucas mensagens nas últimas semanas, todas elas transbordando de indignação, contra Lula e o PT. Em uma delas, uma senhora diz ficar pasma “há mais de um ano” ao ligar o televisor. Mas e nos anos anteriores, minha senhora? Não tinha televisor ou tinha e não ficava pasma? Tais mensagens não me convencem. A indignação é tanta que não pode ser tanta. Mais me parecem lágrimas fingidas de quem um dia votou no PT e hoje não ousa confessar que votou.

Indignado, também estou. Mas não é de hoje. Estou indignado há uns bons trinta anos.

Antes mesmo de o PT existir, eu denunciava o PT.

Explico.

O PT nasceu em 1980. Ora, desde 75, quando colunista da Folha da Manhã, em Porto Alegre, eu desfechava minhas baterias contra senhores como Marco Aurélio Garcia, Tarso Genro, Flávio Koutzii, Luiz Pilla Vares, os pais fundadores do partido no Rio Grande do Sul. Sem falar no que escrevi contra a ideologia que os alimentava. Contra o Tarso, o que escrevi daria uma pequena antologia. Que eram todos comunistas, até as pedras da Rua da Praia sabiam. Mas ai de quem dissesse que eram comunistas! Era um infame delator, um reles dedo-duro. Em pleno regime militar, ser comunista servia como escudo protetor.

Entendo que um adolescente, lá pelos anos 80, votasse no PT. Um jovem ainda não teve tempo de ler o necessário para visualizar o DNA do partido. O PT é filho de uma partouse> entre a Igreja Católica e os diversos grupos comunistas e anarquistas que vicejavam no Brasil. Conseguiu consolidar-se uma década antes da queda do Muro. Tivesse surgido depois dos anos 90, não teria cacife para chegar ao poder.

Que pobres diabos que se beneficiam de esmolas estatais votem no PT, isto também entendo. O que não se entende é ver pessoas adultas e bem informadas, intelectuais, funcionários públicos e professores universitários votando em um partido que nasce obsoleto, em um candidato tosco e semi-analfabeto. Pior ainda, que ostenta como virtude sua falta de instrução. Verdade que desde fins do século XIX alimentou-se o mito da salvação pelo proletariado. Ora, os eleitores de hoje tiveram mais de um século para constatar que proletários não salvam ninguém. O PT nasceu no Estado mais politizado do país, embalado pela USP e pela Igreja. Por essa mesma USP que foi a grande difusora do marxismo no Brasil e por essa mesma Igreja que o adotou através da sedizente Teologia da Libertação. A eleição de Lula, apoiada pelas elites intelectuais do país em pleno século XXI, significou que estas elites ainda vivem espiritualmente no século XIX.

É corrente afirmar-se que Lula comprou o voto de milhões de miseráveis com a bolsa- família. Claro que comprou. Mas o bolsa-família é extensão e cópia dos programas assistencialistas de Fernando Henrique Cardoso, como o PETI, bolsa-escola, vale-gás. O aprendiz de caudilho gostou da idéia, ampliou-a e deu-lhe novo nome. Em vez de comprar deputados a varejo, preferiu comprar eleitores a granel. O povo tem a memória do burro, dizia Martín Fierro, que nunca olvida onde come. Fernando Henrique Cardoso engendrou Lula. As aposentadorias milionárias concedidas aos bandoleiros que tentaram um dia transformar o país em republiqueta soviética, se hoje oneram o Erário, não são criação de Lula, mas do Príncipe dos Sociólogos.

Lula tem um outro tipo de eleitorado que não ousa declinar o nome de seu candidato. São pessoas que, graças à política de juros do atual governo, enquanto sentam num bar sentem os reais pingando aos punhados em seus investimentos. Não por acaso, Lula foi chamado de pai dos pobres (por alusão a Getúlio Vargas, outro demagogo) e mãe dos banqueiros. Os banqueiros são minoria. Mas os investidores são muitos. Enquanto as bolsas do Ocidente e o Ibovespa gozam de boa saúde, é Lula na cabeça. Não importa que seja tosco. Se o que lucram são as migalhas que caem do banquete dos bancos, estas migalhas constituem razão mais do que suficiente para votar em Lula. É o voto envergonhado. Votar em Lula é feio para uma pessoa de bem. Mas o voto é secreto e ninguém fica sabendo em quem votou a pessoa de bem. Estes senhores quase liquidaram a fatura no primeiro turno.

Conheço não pouca gente que considera um acinte a reeleição de Lula. Penso diferente.

Acinte foi sua eleição. Bem ou mal, o Brasil é uma nação dinâmica, com pretensões à modernidade. E houve por bem eleger o rebotalho do socialismo. As eleições foram agora zeradas e assumem um caráter plebiscitário. Não me espantaria que o Supremo Apedeuta as ganhe. Mentir sempre deu mais lucros do que falar a verdade. Tanto que um presidente implicado em toda sorte de falcatruas, diariamente denunciadas na imprensa, conseguiu nada menos que 48 % dos votos. Lula mente a cada palavra que diz, se contradiz a cada dois períodos, se julga um Cristo redivivo a cada acesso de megalomania. Nada disso foi suficiente para que os eleitores o repudiassem. Há quem ache, antes do tempo, que Lula perdeu as eleições. Perdeu o primeiro turno. Por enquanto, continua na posição de vencedor.

Quem perdeu mesmo as eleições foram os institutos de pesquisa. Desde o início da campanha, atribuíram a Lula uma vitória inconteste. Ao acaso: entre 22 e 25 de agosto, em pesquisa feita em 24 Estados, o CNT/Sensus dava a Lula 62,3% das intenções de voto. A três dias das eleições, os institutos Datafolha e Ibope lhe conferiam 53% dos votos válidos. Alckmin, nas pesquisas, só com muito boa vontade chegou aos 30%. Os resultados aí estão: Lula, 48,60 % e Alckmin 41,63 %. As pesquisas, que se pretendem científicas, trabalham sempre com uma margem de erro de dois pontos percentuais. O resultado superou de longe as margens de erro.

Que ninguém se iluda. País que elegeu um analfabeto pode perfeitamente reelegê-lo. Que me conste, o nível de inteligência nacional não aumentou em nada de 2002 para cá. Não vejo vergonha maior na reeleição de Lula. Vergonha é este senhor ter chegado aonde chegou.


 

Não minta, presidente!

11/10/2006

 

Sexta-feira passada, eu escrevia em meu blogue:

Leio no noticiário que o presidente do PT, Ricardo Berzoini, anunciou nesta sexta-feira seu afastamento da presidência do partido. O anúncio foi feito por ele, assim que terminou a reunião da Executiva Nacional do PT. O motivo da renúncia, obviamente, foi a affaire do dossiê. Ué? Mas o caso do dossiê não era coisa do PT paulista, como afirmava Tarso Genro, o Explicador-Geral da República? A cada vez que os petistas tentam explicar o inexplicável, enredam-se cada vez mais. A grande pergunta é de onde surgiu o 1,7 milhão apreendido e destinado à paga do dossiê. Até o Supremo Apedeuta diz querer ver o caso esclarecido. Diz querer ver. Pois se quisesse realmente saber, bastaria uma atitude singela: perguntar aos petistas envolvidos de onde surgiu tanta grana. Domingo, temos debate entre Lula e Alckmin. Fosse eu Alckmin, esta seria a primeira questão que proporia a Lula. Se não propuser, terá sido por covardia ante o poder.

Alckmin não se acovardou. Propôs a pergunta e a propôs em primeiro lugar. Daí para frente, foi uma pancadaria só, que mal dava ao adversário tempo de respirar. O chamado Picolé de Chuchu, sempre com ar de aluno primeiro da classe, revelou-se um pugilista contundente e implacável. E foi desfilando diante de um Lula atônito, semiparalisado pelo estupor, todo o rol de patranhas do PT, mensalão, valerioduto, envolvimento do banco BMG. Verdade que faltaram muitas: o assassinato de Celso Daniel, do Toninho do PT, o favorecimento do Primeiro-Filho com 15 milhões de reais da Telemar e por aí vai. Golpeado e sempre se atrapalhando com as palavras, Lula respondeu que quer saber, mais do que ninguém, “quem arquitetou esse plano maquiavélico”, quer saber o conteúdo do dossiê e a origem do dinheiro. Ora, por maquiavélico se entende algo bem arquitetado, e não o um desastre montado por três ou quatro patetas. Lula está escandalizado porque o “plano maquiavélico” falhou. Não falhasse, estaria gozando os frutos da tramóia. Quanto ao conteúdo, está amplamente divulgado na Internet. Quanto à origem do dinheiro, que é o que agora realmente importa, nada impede que o presidente pergunte a seu banqueiro- churrasqueiro: “cá entre nós, companheiro, a picanha está no ponto. Mas de onde veio mesmo aquela grana toda?”

Tentando defender-se canhestramente, Lula disse não ser policial, mas presidente da República e garantiu que a Polícia Federal irá descobrir a origem do dinheiro. “Uma investigação séria é demorada”, concluiu. Ora, poderia ter recorrido aos préstimos de seu ex-ministro Antonio Palocci, que em 24 horas descobriu a colossal fortuna amealhada por um humilde caseiro nordestino. 25 mil reais se descobre na hora. 1,75 milhão, com um pacote de dólares no meio, é bem mais demorado.

“Não minta, Lula!” – disse Alckmin. Estou entrando nos 60 anos e pela primeira vez em minha vida tive o prazer de ver um opositor dizer isso a um presidente da República. Lula mentiu desde sempre, desde os dias de sindicalista até hoje. Mentiu quando vociferava contra o FMI. Hoje paga até mesmo o que nem é cobrado. Mentiu quando vociferava contras as medidas provisórias e hoje tornou-se campeão na emissão de medidas provisórias. Mentiu quando dizia defender o funcionalismo público. Mal subiu ao poder, enfiou a mão no bolso dos aposentados. Mentiu desde sempre porque está envolto em uma mentira maior, o Partido dos Trabalhadores, onde trabalhadores mesmo é o que mais falta.

O PT é um partido organizado por intelectuais saudosos do bolchevismo. Precisavam de um operário como ícone e apanharam o que estava mais à mão, o mais dócil, o mais manipulável. Ocorre que o operário mais à mão estava cansado de ser operário e quando foi eleito já vivia por duas décadas escorado no mecenato de um empresário. O PT pretende que um operário chegou ao poder em 2003. Nada disso. Chegou ao poder um desocupado.

Em entrevistas televisivas, sempre vi os jornalistas engolindo as mentiras esfarrapadas de Lula, como se algum código deontológico determinasse que um jornalista tem de aceitar passivamente as potocas que um entrevistado lhe conta. Pela primeira vez em minha vida, tive a chance de ver e ouvir de um candidato aquilo que há muito deveria ter sido dito. “Não minta, Lula!” Lula recebeu a reprimenda como um menino envergonhado de suas artes. O problema é que não são artes, mas crimes.

Recorrendo a suas metáforas toscas, disse o Supremo Apedeuta: “Nem um presidente, nem um pai de família tem como saber de tudo. Quantas vezes, você está na cozinha, acontece algo na sala, e você não fica sabendo”. Sem falar que um pai de família precisa ser ceguinho de carteira para não saber o que acontece na sala, não se pode admitir que um presidente da República, que dispõe de serviços de informação muito bem equipados, não saiba o que acontece em seu partido ou nas salas contíguas à sua.

“Se os companheiros erraram, têm de pagar”, disse o Supremo. Sempre evitando cuidadosamente a palavra crime. Como fazia Josiph Vissarionovitch Djugatchivili após seus massacres. “Nós erramos”, dizia Stalin. Um erro se corrige com uma admoestação, um pedido de desculpas. Crime é mais grave. Os petistas têm cometido crimes em sua tentativa desesperada de manutenção do poder e contam com um capo complacente, sempre o primeiro a definir crimes como erros.

O PT está intuindo as futuras conseqüências de seus crimes. No dia 02 deste mês, antes mesmo do debate, um dos cães de guarda do regime, Ciro Gomes, ameaçava com guerra civil: “Se a população brasileira mais pobre sentir que, mesmo por dentro das instituições, uma prática golpista tirou a possibilidade de Lula se eleger, eu temo realmente pelo dia seguinte que o Brasil vai viver”. Ou seja, a oposição pode disputar uma eleição. Desde que não a ganhe. Se ganhar, é golpe. Os aprendizes de tirano aprendem rápido suas lições de casa e pensam mais longe que o próprio chefe.

Nesta segunda-feira, na Folha de São Paulo, Ciro volta a dizer que teme pelo que pode ocorrer caso Lula perca estas eleições devido às acusações de corrupção. “Imagine se esse povão achar que tomaram a eleição do Lula por manipulação de um escândalo pela televisão?” Ocorre que o escândalo não foi produzido por nenhum opositor e sim pelo próprio PT. Desconfortáveis com a idéia de ter dado um tiro – um canhonaço, eu diria – no próprio pé, os áulicos de Brasília pretendem que tenha sido a oposição quem puxou o gatilho. O PT está cheio de cadáveres no armário e não encontra um jeitinho plausível de trazê-los à luz do dia.

O debate de domingo deu novo alento ao eleitorado que está farto de um governo atolado até o pescoço em corrupção e que pode ser reeleito graças à corrupção miúda que promove entre os mais pobres. Fosse eu Alckmin, no próximo debate começaria com uma primeira pergunta: como é que é, presidente, ainda não conseguiu descobrir a origem daquele 1,7 milhão?

Somos todos ouvidos.


 

A carne é forte

17/10/2006

 

São Paulo tem mistérios. Acabo de ler um depoimento insólito, relato que imaginaríamos situado nalguma aldeia espanhola ou italiana, há uns dez séculos atrás, em plena Idade Média. No entanto, acontece nesta metrópole, em pleno século XXI. Falo do livro Memórias Sexuais no Opus Dei, de Antonio Carlos Brolezzi. Não é livro que eu recomende a quem anda em busca de boa literatura. Apenas para quem gosta de informar- se sobre os abismos da miséria humana.

Brolezzi, 40 anos, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP, casado pela segunda vez e pai de uma filha, é mais uma destas pessoas que, sem ter maiores conhecimentos de história ou filosofia, caiu nas mãos de uma seita de fanáticos. Pertence àquela estirpe de pessoas como Salvador Dali, Luiz Carlos Prestes e Louis Althusser, que só foram conhecer sexo tardiamente. No caso em questão, aos 30 anos. Convidado para um curso de Astronomia por professores da USP, foi aos poucos cooptado para a Opus Dei.

“Quando eu entrei na USP para cursar Matemática começaram a me ligar, não me deixavam em paz um segundo. Criaram uma crise artificial de vocação. Vendem que somos especiais, que temos uma luz na testa, e ficamos seduzidos. Passamos a ter acesso a uma porta secreta, mostram uma sala onde só eles se reúnem. Você passa a ter uma vida secreta, não pode contar a sua família”.

Brolezzi entrou para a Opus Dei aos 19 anos, sem jamais ter tido uma relação sexual, e logo chegou à condição de numerário, isto é, integrou-se oficialmente à organização. Uma vez nela, não podia olhar para mulheres, tinha de cuidar-se nos ônibus ou metrô para não roçar os seios de alguma mulher, suas leituras de jornais ou revistas eram previamente censuradas por seus superiores. Não estava autorizado nem mesmo a ler outdoors. Em tais confinamentos de jovens, a masturbação obviamente é a regra. Brolezzi tinha um curioso método para a prática, desenhava uma vagina em um caderno. Seu confessor ficou intrigado: como ele sabia desenhar a coisa, se nunca havia visto uma? “Eu disse que imaginei como se fosse uma boca, só que na vertical”.

As restrições à masturbação na comunidade nos fazem voltar ao século XVIII, mais precisamente a 1710, quando o Dr. Tissot escreveu um dos clássicos da literatura obscurantista, L’Onanisme – dissertation sur les maladies produites par la masturbation. Neste monumento à estupidez humana, o autor nos mostra diversos aparelhos para impedir o onanismo, entre eles um cinturão e um colete antimasturbação, que serviam para impedir o toque do pênis. Para mortificar a carne, todo numerário devia portar, duas horas por dia – e todos os dias, exceto domingos e festas – um cilício, uma malha pontiaguda amarrada na coxa, que fere a pele com pontas de metal. Aos 60 anos, lhes é concedido o privilégio de não mais tomar banhos frios. Para evitar os atos solitários, seu confessor recomendou-lhe costurar uma camisa de flanela a um jeans e vestir o conjunto com o lado posterior pela frente, de modo a não ter acesso ao próprio sexo. Como em 1710, a masturbação continuava a ser vista como doença mental.

Tais precauções obsessivas com a sexualidade só produzem uma coisa: comunidades de erotômanos. A masturbação era moeda corrente. Sendo pecado mortal, os numerários não podiam comungar sem antes serem absolvidos pela confissão. A imensa fila nos confessionários tornava-se algo humilhante, pois denunciava os pecadores. Para afastar as tentações, Brolezzi adormecia rezando o terço. Em certas ocasiões, acordava com o instrumento de preces enrolado no instrumento de pecado.

Brolezzi fez mestrado na USP, entrou em ano de doutorado e, apesar do contato diário com suas colegas, continuava sem saber o que fosse a tal de vagina. Neste ponto da leitura, uma pergunta me passou pela cabeça. Como pode alguém viver numa metrópole sem ter idéia do que seja uma vagina, afinal elas estão mais ou menos expostas em qualquer banca de jornais? Minha pergunta era pertinente. Os membros da Opus Dei estão proibidos de olhar bancas de jornais e mais ainda, devem desviar de calçada se vêem uma pela frente. As restrições à leitura são de tal ordem que a própria bibliografia do doutorado em matemática tinha antes de ser revisada pelo seu confessor. Aos 30 anos, virgem ainda, foi levado por uma menina a um motel. Aconteceu o que seria de esperar-se, não conseguiu consumar a coisa.

Fiz meu ginásio em um colégio de oblatos e entendo as angústias de Brolezzi. Cilício e macacão anti-masturbação à parte, vivi todas estas peripécias. Pecado, confissão, absolvição, contrição, estado de graça. E de novo a monótona sucessão: pecado, confissão, absolvição, contrição, estado de graça. Vivia em permanente tensão, sempre em pânico antes de cada confissão, sempre humilhado pelo confessor a cada fim-de-semana e sem nunca chegar a um equilíbrio entre mim e meu sexo. As piores noites eram as de tempestade. Direis que eu era um megalomaníaco. Até pode ser. O fato é que a cada raio que caía dos céus eu sentia que o Deus todo-poderoso os endereçava a este temeroso pecador.

Até que um dia decidi ler a Bíblia com espírito crítico. Encerrei-me por três dias em meu quarto e, ao sair do quarto, estava liberto de toda aquela tralha opressiva. Não havia nada na Bíblia que determinasse aquelas punições tremendas mencionadas nos catecismos. Minha sexualidade deixou de ser sofrimento, mas motivo de alegria. Abandonei a idéia de pecado e de ilhapa também a de Deus. Bem entendido, isso ocorreu há mais de meio século atrás. Libertei-me cedo dos grilhões e tratei de recuperar o tempo perdido.

Falei de início nos mistérios de São Paulo. É espantoso constatar que estas torturas se repetem hoje, 2006, no espaço de uma megalópole cosmopolita, onde o sexo é onipresente nas ruas, praias e parques, bancas de jornais, outdoors e mesmo no vestuário das transeuntes. Mas a Opus é algo muito maior e nada tem a ver, em suas origens, com São Paulo. Foi fundada em 1928, pelo espanhol Josemaria Escrivá de Balaguer, monsenhor recentemente canonizado por João Paulo II. Segundo o vaticanista John Allen Jr., a Obra tem 85 mil seguidores (1.700 no Brasil), um patrimônio na casa do 2,8 bilhões de dólares e milhões de admiradores. A Opus sempre procurou se manter oculta e, não fosse o depoimento de suas ovelhas desgarradas, não teríamos conhecimentos destas barbaridades inconcebíveis no Ocidente hodierno. Depois ainda há quem se escandalize quando os muçulmanos cortam o clitóris de suas mulheres ou quando fustigam os próprios corpos até brotar sangue. A estupidez, além de universal, parece ser eterna.

A carne é fraca – diziam os padres e moralistas de meus dias de colégio. Sempre discordei deste axioma. A carne é forte, penso, tanto que tem sido fator de libertação de milhares de pessoas da opressão do obscurantismo. Aconteceu comigo, aconteceu com seminaristas e padres que não suportaram viver em conflito com o próprio corpo. Expulso do ginásio dos oblatos, antes de abandonar definitivamente a crença nas coisas do Além, militei algum tempo em JEC e JUC. Tive contato com padres mais abertos e até hoje lembro com afeto do Carlos Pretto, que costumava dizer: “Mulher e religião não se discute, se abraça”. Era também dele a frase: “Se batina fosse bronze, que badaladas!”

Praticamente todos os padres que tiveram contato conosco – isto é, com jovens, moças e rapazes – acabaram largando a batina. Não conseguiram resistir à tentação daquelas militantes árdegas e todas hormoniosas que lhes confidenciavam seus pecados mais íntimos no silêncio das sacristias. “É vício qualquer tipo de antinatureza” – escreveu Nietzsche. “A mais viciosa espécie de homens é o padre: ele ensina a antinatureza”.

Brolezzi, o doutorando da USP que não sabia como era o sexo feminino, libertou-se. Graças à carne. Quantos de seus colegas de Opus ainda não se torturam com o cilício e a abstenção sexual? Difícil saber. O que importa saber é que esta nossa época, tão científica e tão cheia de luzes, ainda abriga monstros morais dos tempos de Tissot.


 

Ad usum Delphini

24/10/2006

 

Em minha última crônica, reproduzi trechos do livro Memórias Sexuais da Opus Dei, de Antonio Carlos Brolezzi, ex-numerário da organização. Tenho recebido, tanto neste jornal como em meu correio pessoal, não poucas mensagens de protesto, nas quais sou pichado ora como ateu, ora como herege, ora como infame. Houve até mesmo quem sugerisse que devia escrever em jornais bolcheviques. Ateu, creio que todos saibam que sou, e não vejo nenhum desvalor nisso. Vivemos em um Estado laico, não? Longe vão os tempos em que ser ateu era o caminho mais rápido para a fogueira. Ou alguém quer voltar àquela saudosa era?

Quanto a me recomendar para a imprensa comunista, creio que o leitor jamais deve ter lido as dezenas de crônicas que escrevi – já não digo ao longo de minha vida, mas pelo menos neste jornal – contra os bolches e seus compagnons de route. Nossa época está cheia de madalenas arrependidas, que um dia lutaram pela ideologia comunista e hoje fazem confiteor. Nunca fui madalena e muito menos arrependida. Quando havia abandonado o cristianismo, lá pelos 17 anos, fui cercado pelos camaradas. Perderam seu tempo. Eu já estudava filosofia e tinha elementos suficientes para julgar a precariedade do marxismo. Em meus dias de universidade, um amigo me definiu: “tu estás contra toda tua geração”.

Levei alguns anos para entender a frase. Ele queria dizer que eu não era marxista.

Curiosamente, não li uma palavra sequer contra o depoimento de Brolezzi, o cerne de minha crônica e autor das denúncias contra a Opus Dei. Verdade que, ao final da crônica, dei um rápido depoimento pessoal de meus dias de juventude, quando os padres queriam reprimir minha sexualidade. (O que foi muito oportuno, pois reagi e joguei fora a doutrina toda). Mas minhas considerações são apenas uma nota de pé de página ao livro do atormentado ex-numerário. Há quem fale, vagamente, em calúnias contra a Opus. Ora, se são calúnias, que se processe o autor. No entanto, pela reação de alguns leitores, parece que o autor do livro é este que vos escreve.

Isto é o de menos. O que me espanta nessas mensagens todas é o desejo expresso de expulsar-me deste jornal. “Sinceramente não consigo entender, não consigo captar, a razão da couraça de proteção que este MSM estende por sobre o tal Janer Cristaldo, o infame. Pela segunda vez uma minha mensagem de protesto contra um, digamos, artigo deste senhor não foi publicada, e nem sequer tive a delicadeza de receber uma resposta. Este site é conservador? É mesmo? Então por que vocês insistem em proteger as blasfêmias deste tal Cristaldo, o infame”. Sintomático que o leitor tenha me pespegado o adjetivo infame. Era o mesmo empregado por Voltaire, quando bradava: Écrasez l’infâme! (Esmaguem a infame).

Só que infame, para Voltaire, era a Igreja Católica.

Nada mais prazeroso para um homem honesto do que falar de si mesmo – diz um dos personagens de Dostoievski. É muito fácil soltar um insulto ao vento – fulano é infame.

Ainda mais quando não se explica porque. O leitor me acusa de blasfemo. Ao que tudo indica, porque teço críticas à Igreja Católica. Ora, se assim for, boa parte da humanidade é blasfema, pois críticas à Igreja é o que não falta ao longo da História. Blasfemos seriam também os judeus, os luteranos, os protestantes, os evangélicos, isso sem falar nos marxistas, pois houve época – antes que padres católicos optassem pelo marxismo – em que os comunistas eram inimigos declarados do Vaticano. Eu fui católico, conheço bem a doutrina católica, tenho toda uma estante em minha biblioteca sobre religiões, cristianismo e catolicismo e não costumo pregar prego sem estopa. Dessa estante constam várias bíblias, mais a Torá, mais a bíblia judaica (recentemente editada no Brasil) e também um Alcorão.

O leitor em questão, citando Gustavo Corção, me compara aos “cretinos de O Pasquim”.

Mais respeito, por favor. Eu conheço o tema sobre o qual escrevo e nada tenho a ver com aqueles moleques medíocres das esquerdas de Ipanema.

Que leitores discordem do que escrevo, entendo. Acho muito engraçado quando um leitor me escreve: “desculpe discordar, mas...” Ora, discordar é direito inalienável de todo leitor.

Ninguém precisa pedir desculpas para discordar. Diga-se de passagem, gosto quando leitores manifestam discordâncias. Caso contrário, estaria escrevendo para mim mesmo. Que me contestem e me xinguem, também entendo. Mais difícil de entender é que pretendam calar-me. A impressão que tais leitores me passam é que querem um jornal ad usum Delphini. Aos jovens que chegaram tarde – ou não chegaram – às aulas de latim, explico. A expressão tem suas origens na França, onde vinha estampada na capa dos textos clássicos destinados à instrução do filho do rei Luís XIV, herdeiro do trono, dito o Grande Delfim. A coleção ad usum Delphini compreendia 64 volumes, censurados pelo duque de Montausier, sob a supervisão de Bossuet, um dos principais teóricos do absolutismo por direito divino.

Neste sentido, os zelosos guardiões da fé cristã em nada se distinguem dos velhos marxistas. Após 64, surgiram vários jornalecos católicos ou marxistas – Brasil Urgente, Movimento, Opinião, Versus – nos quais a uniformidade de pensamento era de um tédio atroz. Os artigos todos desses jornais levavam sempre a uma só conclusão e quem lia uma edição havia lido todas. Seus leitores os liam apenas para reforçar o que já pensavam. Não encontrávamos surpresa alguma em seus textos, nenhuma idéia nova, ou pelo menos diferente, que mais não fosse. É o que parecem pretender certos leitores deste jornal: uma uniformidade de exército, uma proibição a qualquer olhar diferente. Mestre Corção – como diz o leitor – cita a epístola de São Paulo aos Gálatas: “Ainda que eu mesmo, ou um anjo descido dos céus, vos anunciasse outro evangelho e não este que vos anunciei, seja anátema”.

Seja anátema para os cristãos, meu caro. Vivemos em um mundo plural e não me parece que o MSM seja porta-voz de qualquer religião. Leio dois ou três jornais por dia e eles estão repletos de reportagens ou artigos que não me agradam. Não será por isso que deixarei de lê-los. Pelo contrário, é por isso que os leio. Preciso saber o que pensam apparatchiks como Frei Betto, Leonardo Boff, Marilena Chauí, Tarso Genro, Emir Sader, preciso saber até mesmo o que Lula pensa que pensa. Se desconheço o que pensam os velhos bolcheviques, não tenho argumentos para combatê-los. Minha biblioteca, além de abrigar centenas de obras cristãs ou católicas, concede também um largo espaço aos autores comunistas. A derrota é certa quando não se conhece o inimigo.

Meu fanático leitor me faz lembrar um colega marxista de jornal, em meus dias de Caldas Júnior, em Porto Alegre. Estávamos em 73, por ocasião do golpe no Chile e ele fazia plantão no Correio do Povo. Quando se tornou inevitável a queda de Salvador Allende, ele não teve dúvidas: desligou o telex. Estabeleceu seu próprio ad usum Delphini. Como se, interrompendo o fluxo de notícias, conseguisse desviar os rumos da História. Dia seguinte, o editor teve de pedir ao jornal concorrente os telegramas das agências internacionais.

Meus fanáticos leitores (falo no plural porque vocês são legião): esse desejo de um jornal de pensamento único em nada difere do sonho de tiranos do século passado, desde Stalin a Mao, passando por Envers Hodja, Pol Pot, Ceaucescu e Fidel Castro. Vocês caíram em país errado. Uniformidade de pensamento, hoje, só na Pravda, no Gramma, no Osservatore Romano. Vocês pedem uma imprensa que o PT adoraria ter. Neste Brasil de hoje, nem vocês nem o PT a terão.


 

Triste país este meu

31/10/2006

 

Sempre vivi em conflito com o Brasil. Em verdade, sou mais platino que brasileiro. Nasci na pampa, a mais ou menos um quilômetro da Linha Divisória entre Brasil e Uruguai. Com meus pais, falava português. Com minha ama, doña Catulina, falava espanhol. Na estrada, em frente a nosso rancho havia um desses marcos divisores de fronteira, em concreto. Meu pai costumava colocar-me nos ombros para que eu subisse até o topo do marco. Mandava que eu me virasse para o nascente e dizia: “fala para os homens do Uruguai, meu filho”.

Depois fazia virar-me para o poente: “Fala agora para os homens do Brasil”.

Nasci entre duas culturas e o primeiro grande poema de minha infância foi o Martín Fierro. Meu pai era camponês sem maiores luzes, mas conhecia de cor dezenas de sextilhas de Hernández.

Pergunte hoje a um professor universitário quem foi José Hernández. Poucos saberão responder.

Entender o mundo foi algo que sempre me fascinou. O aprendizado da leitura me absorveu a tal ponto que eu entrava noite adentro lendo à luz das brasas do fogão. As seleções do Reader’s Digest, não sei como, chegavam até aqueles rincões. Não sei se algum leitor ainda lembra delas. Tinham o formato de um pequeno livro e o texto era disposto em seis colunas. Em minha sofreguidão, eu lia as linhas na horizontal, pulando de uma coluna para outra. Não era tarefa fácil, após a leitura, ordenar o texto todo. Fiz o primário em escola rural. Minha alegria de fim de ano era saber que no ano seguinte eu receberia novos livros. Desde pequeno, tive a intuição de que um homem vale pelo que conhece. No ginásio, me fascinou o estudo de inglês, francês e latim. Sentia-me como que travestido falando uma língua estrangeira. Não o espanhol, é claro, que nunca foi estrangeira para mim. Enquanto meus colegas e parentes se dedicavam a projetos mais práticos, como o de ganhar dinheiro e comprar coisas, eu me preocupava em ler mais para entender melhor o universo que me cercava. Um dos apelidos que me pespegaram em meus dias de Porto Alegre foi “Pra-que- dinheiro?”. Eu não entendia muito bem para quê.

Os livros foram minhas armas para enfrentar o mundo. Com eles enfrentei a arrogância dos padres, dos marxistas, dos acadêmicos. Nos dias em que estava abandonando a fé cristã, que me fora enfiada a machado na cabeça, um padre foi enviado à minha cidadezinha para reconduzir ao rebanho a ovelha prestes a perder-se. Conversamos um dia inteiro, esvaziando várias jarras de água. “Com que autoridade - me perguntava o padre Firmino - ousas contestar o que homens ilustres afirmaram?” Contesto, padre, com a autoridade da razão, da lógica e de minhas leituras. Eu teria 17 anos. Graças a meus livros, enfrentava com serenidade aquele Torquemada cinqüentão. A leitura me havia salvo do obscurantismo.

O valor que mais cultivo é o conhecimento. Certa vez, em uma audiência judicial, um juiz me defendeu como me defenderia minha mãe. “Este homem nunca teve tempo de ganhar dinheiro, passou sua vida estudando”. Estudando, continuo até hoje. Não tenho maior apreço por quem ostenta fortuna ou poder. Vivemos dias em que sucesso é um valor. Conheço pessoas de bom nível cultural que invejam o Supremo Apedeuta: “Ele teve sucesso”. Tenha o sucesso que tiver, pessoa inculta para mim não vale um vintém.

Respeito o analfabeto que não teve condições de alfabetizar-se. Não tenho respeito algum por quem, tendo a chance de educar-se, não se educou. Tenho mais respeito por minha faxineira, que surpreendi outro dia lendo Machado de Assis. Quem me acompanha sabe que abomino aquele carioquinha. Mas melhor ler Machado que não ler nada. Urge acabar com esse mito de que alguém vale alguma coisa só porque é presidente da República, bispo de Roma ou sabe chutar uma bola.

Falava de meu conflito com o Brasil. Quando fugi para a Suécia, fugia de duas coisas: carnaval e futebol. Mas por mais que um homem fuja, sempre carrega nas costas seu passado. Os suecos me interrogavam sempre sobre ... carnaval e futebol. Em todas minhas viagens, a peste Brasil sempre viajou grudada à minha pele. Seja nas fronteiras políticas do mundo socialista, seja nas fronteiras hipotéticas do Saara, ao mostrar o passaporte verde nunca faltou um policial analfabeto que me dissesse: “Brassil? Pelê, cafê, sambá”.

Nunca tive razões para orgulhar-me de meu país. Tampouco encontro homens em sua história a quem possa conferir a comenda de herói. Tivemos alguns homens de visão, é verdade, Hipólito da Costa (que nasceu na Colônia do Sacramento, atual Uruguai), José Bonifácio, Silva Paranhos. É muito pouco para país tão grande. Santos Dumont? De acordo. Mas Dumont é fruto da cultura francesa, não da nossa. Meus heróis estão em outras culturas. Alexandre, Sócrates, Cervantes, Schliemann, Fernão de Magalhães, Nietzsche, Mozart, Pessoa, Hernández. Entre meus numes tutelares não há nenhum brasileiro.

Viajando, aprendi a gostar deste país. Gosto de repetir uma frase de Chesterton: “não se conhece uma catedral permanecendo dentro dela”. Precisei sair para entender melhor a terra em que nasci. Se aqui existem mares de burrice, há também ilhas de inteligência. Se há miséria, há também riqueza. Se há feiúra, há também beleza. Todo país é lindo quando nele existe uma mulher a quem amamos. Essa mulher eu a tive e era daqui. Tivesse eu nascido no Congo ou em Ruanda, teria fortes razões para partir e não mais voltar. Mas ao Brasil dá pra voltar. Que o digam os exilados de 64, que nos cafés de Paris ou Berlim juravam só voltar de metralhadora em punho. Mal Figueiredo decretou a anistia, voltaram chorando a cântaros. Quando passamos muito tempo longe do Brasil, sempre dá um nó na garganta ao voltar. Se choramos ao voltar, é porque o país é viável.

Sempre nos doem na alma as mazelas do país do qual gostamos. Gostar do Brasil é viver de alma machucada. Temos tudo para ser ricos e - ilhas à parte - vivemos atolados na miséria.

Eleições são momentos em que brota, no peito de quem gosta de sua pátria, um raminho de esperança: quem sabe, desta vez saímos do barro. Esse raminho, em meu peito há muito murchou. Faz hoje dezesseis anos que não voto, por não conseguir vislumbrar candidato em quem confiar meu voto. Se por um lado não voto, por outro sempre espero apreensivo o resultado das urnas.

Há quatro anos, foi eleito presidente da República um homem que se gaba de sua incultura.

Parafraseando Lula: nunca houve na história deste país tamanho acinte à inteligência. Sua eleição gerou um clima funesto no país. Para “ter sucesso” não era mais necessário ter cultura. Analfabeto mesmo serve, desde que minta à vontade, conforme o gosto das gentes.

Não bastassem suas demonstrações quase que diárias de analfabetismo, não bastasse a roubalheira institucionalizada de seu governo, não bastassem suas mentiras deslavadas e continuadas, candidatou-se novamente à Presidência da República.

Nos tempos d’antanho, para justificar suas vontades, os poderosos costumavam dizer: Deus quer, Deus quis, em nome de Deus. O tal de Deus parece andar um tanto fora de moda.

Hoje, os poderosos ou candidatos ao poder dizem: em nome do povo, o povo quer, o povo diz. Soaria um tanto obsoleto, tanto para Lula quanto para Alckmin, dizer: eu sou o candidato de Deus. Mas não têm maiores pudores em afirmar que são o candidato do povo.

As duas palavrinhas - Deus e povo - continuam sendo de difícil definição e têm tantas acepções quanto as bocas dos que as pronunciam. Jamais vi ou li uma definição de povo que satisfizesse a todas as mentes. Mas uma coisa é certa. Passe numa segunda-feira de manhã em um parque público ou em uma praia. Você pode não saber o que é povo. Mas é óbvio que o povo passou por ali. Nesta segunda-feira, Lula acordou reeleito presidente da República. Ontem, o povo passou pelas urnas.

Ainda na semana passada, o candidato derrotado dizia que o PT “está fazendo apologia da mentira. Os petistas podem mentir. Não, o brasileiro não gosta de mentiroso. Nada se sustenta em cima da mentira. Mentira é desvio”. Santa ingenuidade tucana. Esta coisa informe que se chama povo parece ter-se indignado com as palavras de Alckmin. E correu às urnas para desmenti-lo: “somos brasileiros e gostamos de mentirosos, sim senhor. Quem disse que nada se sustenta em cima da mentira? Mentira não é desvio. Mentira é direito sagrado de todo cidadão”.

Em um sistema democrático, bem ou mal o presidente representa as aspirações da nação toda. Triste país este meu, que elege e reelege um bronco sindicalista. Disse certa vez um político inglês que a Inglaterra era bem sucedida porque seus cidadãos honestos tinham a mesma audácia que os canalhas. Claro que no Brasil existirão não poucos homens honestos.

O problema é que carecem de audácia, virtude que nunca faltou aos canalhas.


 

Ridículo se instala na Casa Branca

07/11/2006

 

A gente morre e não vê tudo. No século passado, tive a ocasião de deslumbrar-me com não poucas novidades. Começou com o rádio, que já existia quando eu nasci. Mas não em minha geografia. O primeiro rádio que ouvi era para mim um poço de mistérios. (De certa forma, até hoje continua sendo). Descobri depois o cinema, a televisão e o computador. Quando já me parecia que não teria maiores novidades até o fim de meus dias, leio que o governo americano sugere que a população comece a ser sexualmente ativa aos 30 anos. O novo programa de educação para a abstinência, do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) dos Estados Unidos tem um orçamento de US$ 50 milhões, de acordo com as agências. Segundo os jornais, a mensagem é simples: se a pessoa não tem relações sexuais, não corre o risco de adquirir doenças, nem as mulheres o de engravidar sem desejá-lo. Para esta filosofia, nenhum outro método seria mais profilático e contraceptivo que a abstinência sexual.

Cinqüenta milhões de dólares investidos em marketing para a pregação da castidade! Esta meus olhos não esperavam ver nos dias que me restam de vida. Nem o Vaticano ousaria apostar tão alto. Autoridades do HHS dizem que não é uma obrigação, mas uma opinião para combater “um alarmante crescimento no número de nascimentos fora do casamento”.

A impressão que estes senhores nos passam é que nunca ouviram falar de métodos anticoncepcionais. No entanto, é óbvio que ouviram. O que o novo programa esconde é uma ideologia puritana e perversa de condenação ao prazer, típica destes dias de Bush.

O presidente americano quer nada menos que toda a população adulta dos Estados Unidos - até os 30 anos - se prive do mais intenso dos prazeres que tem o ser humano em sua curta existência. Que se privem deste prazer justamente nos anos de mais vigor sexual. Consegue o leitor imaginar, em pleno século XXI, um marmanjo de 30 anos que não tem idéia do que seja uma mulher na cama? Existem, é verdade. Comentei outro dia o caso de um numerário da Opus Dei que só conheceu mulher aos 30. Mas estes coitados são anomalias, pertencem ao mundo da exceção. O espécime mais próximo de nós, a quem Bush talvez erigisse um monumento, é o grande líder das esquerdas e guru de Tarso Genro, Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Foi desvirginado aos 37 anos, já no declínio de seu vigor sexual, por Olga Benario, oficial do Exército Vermelho. Outro exemplo destes anormais foi Louis Althousser, aquele senhor que já sexagenário estrangulou a própria mulher. Em suas memórias, o filósofo - também comunista, como Prestes - conta que aos 27 anos andava com aquela coisa ereta entre as pernas e não sabia que fazer com ela.

Pode-se imaginar uma mulher virgem até os 30 anos? Que insanas razões podem exigir que esta mulher desperdice o auge de sua sexualidade? Vai viver de autocarícias seus melhores dias? Pode-se imaginar alguém casto em uma sociedade onde os apelos sexuais infestam as ruas, jornais, revistas, filmes, publicidade?

A mesma filosofia de abstinência inspira o plano de 15 bilhões de dólares prometidos por Bush para combater a Aids na África. Lembro que há alguns anos, um desses presidentes africanos que nos parecem tão caricatos andou recomendando a castidade para os habitantes de seu país. A medida soou ao mundo como algo de um ridículo atroz. O ridículo instalou- se agora em Washington, na Casa Branca.

De nada adianta expulsar a natureza pela porta, diziam os antigos. Ela volta a galope pela janela. Sexo é um desejo imperioso. Tão imperioso que a ele sucumbem homens que, por seus ofícios, deveriam manter-se castos. Aí estão, e precisamente nos Estados Unidos, os milhares de casos de religiosos pedófilos, cujas indenizações milionárias estão esvaziando as burras das dioceses. Em todos os cantos do mundo, poderosos expostos à censura pública perdem cargos e têm suas carreiras destruídas por não conseguirem controlar o próprio desejo. Se pessoas que têm tudo a perder perdem tudo por alguns minutos de prazer, não será certamente uma multidão anônima, que nada tem a perder, que aceitará seguir os preceitos de Bush.

O puritanismo religioso condenou multidões, em décadas passadas, a uma vida insípida e assexuada. Quem reivindicasse sua sexualidade ou simplesmente a praticasse era ipso facto um fora-da-lei. Este puritanismo tornado lei gerava um fruto imediato, a hipocrisia. Os machos mantinham uma castidade de fachada e, na calada da noite, se refestelavam nos bordéis. As mulheres tinham de permanecer em casa e aquela que ousasse ter um orgasmo arriscava ser chamada de puta. Estes tempos já vão longe e Bush quer a eles retornar. A mentira sempre foi energicamente reprovada nas sociedades protestantes. Nixon caiu não pela invasão de Watergate, mas por ter mentido sobre a invasão. Clinton balançou não por seu apreço a uma felação, mas por ter tentado vender a idéia de que sexo oral não é necessariamente sexo. Mas algo mudou nos Estados Unidos nestes últimos anos. Bush mentiu para invadir o Iraque e permanece no cargo. Se das mentiras de Nixon ou Clinton não decorreu nenhuma morte, as mentiras de Bush provocaram a morte de dezenas de milhares de americanos e iraquianos.

Apoiado pela pior das direitas, a direita religiosa, Bush quer vender ao país todo uma mentira colossal, a mentira da castidade. Ora, homem algum é casto. Até pode ser que um anacoreta, à força de muito cilício e autoflagelação, consiga reprimir sua sexualidade. Mas aí não temos mais um homem e sim um aleijão psíquico.

Enquanto o presidente americano prega a castidade para os jovens, nem os velhos conseguem conter-se e os escândalos sexuais saltam como pipocas numa panela. Recentemente, o senador republicano pela Florida, Mark Foley, presidente do Comitê contra a Pedofilia, foi flagrado enviando mensagens pornográficas a meninos que trabalham no Congresso. O reverendo Ted Haggard, presidente da Associação Nacional de Evangélicos dos Estados Unidos, pai de cinco filhos e opositor ferrenho do casamento gay, teve de renunciar a seu cargo depois de ser acusado de pagar para ter relações sexuais com outro homem nos últimos três anos. Ah, estes senhores que investem ferozmente contra o homossexualismo... No fundo o que mais almejam é o afago de um efebo.

Nestes dias de dificuldades eleitorais, melhor faria Bush se propusesse uma ligeira modificação em seu plano. Que proibisse o sexo para maiores de 70. Aposto que o Partido Republicano arrebanharia o voto de toda a velharada do país. Digamos que um senhor de idade provecta se visse assediado por alguma eventual ancionófila. Temeroso ante seu desempenho, poderia alegar, aliviado: “Adoraria, filha, mas não posso. Sou um cidadão cumpridor das leis”.


 

Com a nonchalance de um deus

21/11/2006

 

Há mais de vinte anos não leio ficções. Já fui devoto do gênero e traduzi uma boa dezena delas ao brasileiro. Acabei cansando. O autor faz das tripas coração para criar um universo imaginário. Como este universo é de mentirinha, ele não está limitado pelas contingências da realidade. No entanto, a realidade acaba superando de longe todas as ficções.

Qual ficcionista conseguiria criar personagens como Hitler, Mao, Stalin, Pol Pot? Nenhum. Na hora de matar, embora possa matar e permanecer impune, o autor de ficções é tímido.

Verdade que o Hagiógrafo conseguiu criar um que matou todos menos um. Mas não é todos os dias que se escreve uma ficção como a Bíblia. “Quem mata um é assassino, quem mata milhões é conquistador, quem mata todos é Deus” – escreveu o biólogo Jean Rostand.

No século passado, assistimos a conquistadores que mataram com a nonchalance de um Deus. Costumamos empurrar a barbárie para épocas remotas da História. No entanto, o século em que mais se massacrou em todos os tempos foi o passado, este no qual todos nascemos. Outra característica do XX, é que estes grandes assassinos foram cultuados como heróis, modelos de virtude e mesmo como deuses. Quando surgiram as notícias da morte de Stalin, não poucos comunistas não acreditaram. Um deus não pode morrer.

Se você nada conhece de Josiph Vissarionovitch Djugatchivili, nada entendeu da história recente. Este senhor, conhecido também por Koba ou Stalin, “o de aço”, matou mais que Hitler e só não conseguiu matar mais que Mao. Ostenta em seu currículo a modesta cifra de 20 milhões de cadáveres. Houve época em que não era fácil encontrar uma biografia de Stalin no Brasil. A primeira biografia importante, a de Boris Souvarine, escrita originalmente em francês e editada em Paris em 1939, jamais chegou até nós. Consta ter existido uma tradução em russo, editada em único exemplar, para uso exclusivo de Stalin.

Ignora-se o destino do tradutor.

Outra importante biografia, a de Adam B. Ulam, em dois volumes e editada pela primeira vez nos Estados Unidos em 1973, tampouco chegou até nós. Tive acesso a elas porque vivia em Paris. Este ano, tivemos nas livrarias brasileiras pelo menos três biografias do ditador georgiano, a do britânico Simon Sebag Montefiore e a dos irmãos russos Roy e Zhores Medvedev e a de Isaac Deutscher.

Estão surgindo no Brasil biografias das mais completas destes grandes assassinos. Ainda há pouco, li uma outra de Stalin, assinada por Simon Sebag Montefiore, intitulada Stalin, a Corte do Czar Vermelho [*], 860 páginas. Editada originalmente em 2003, esta biografia é trabalho invejável de um jovem pesquisador (o autor nasceu em 1965), que narra o dia-a- dia, cada frase, cada gesto de Stalin. Montefiore parece ser um observador onisciente e onipresente. O livro é lido com o sabor de um romance. Com um detalhe: os horrores nele narrados - com fria objetividade - nada têm de fictícios. É leitura que recomendo vivamente, particularmente aos jovens, em especial àqueles que nunca ouviram falar de Stalin. Se você quiser entender o século passado, leia o livro de Montefiore. Voltarei ao assunto.

Mal larguei Stalin, foi lançado Mao, a História Desconhecida, 960 páginas, de Jung Chang e Jon Halliday. Estas duas obras, ambas lançadas pela Companhia das Letras, preenchem uma lacuna enorme no estudo dos tiranos do século passado. Decididamente, nenhuma mente seria capaz de conceber ficcionalmente a trajetória destes monstros que foram cultuados como deuses.

Em Mao, a História Desconhecida[*], vemos Stalin amplamente superado por seu discípulo chinês, Mao Tse Tung. O nome duplo Tse Tung significa “brilhar sobre o Leste”.

De início vemos uma diferença básica entre ambos. Se Stalin passou a matar uma vez instalado no poder, matar foi o método empregado por Mao para chegar ao poder. Nesta biografia, é interessante ver Mao lutando contra Chiang Kai-Shek, Stalin apoiando Mao e Chiang Kai-Shek ao mesmo tempo, os Estados Unidos apoiando Mao, e Chiang Kai-Shek permitindo a progressão da Longa Marcha, marcha tão exitosa que começou com 80 mil homens e acabou com dez mil.

O Livro Negro do Comunismo[*] debita a Mao 65 milhões de cadáveres em tempos de paz. Jung Chang fala em 70 milhões. 65 ou 70, não se tem notícia na História de homem que, sozinho, tenha matado tanto. Entre 58 e 61, no Grande Salto para a Frente, 28 milhões de chineses morreram de fome. Segundo a autora, foi a maior epidemia de fome do século XX – e de toda história registrada da humanidade. A China produzia carne e grãos, mas Mao exportava estes produtos para a União Soviética, em troca de armas e tecnologia nuclear. Segundo o homem que brilhava sobre o Leste, as pessoas “não estavam sem comida o ano todo – apenas seis ou quatro meses”.

Para Mao, morrer fazia parte da vida. É preciso que as pessoas partam para dar lugar às que chegam. Claro que jamais lhe ocorreu perguntar se alguma pessoa aceita partir antes do devido tempo. “Vamos considerar quantas pessoas morreriam se irrompesse uma guerra – diz Mao –. Há 2,7 bilhões de pessoas no mundo. Um terço poderia se perder; ou um pouco mais, poderia ser a metade. Eu digo que, levando em conta a situação extrema, metade morre, metade fica viva, mas o imperialismo seria arrasado e o mundo inteiro se tornaria socialista”.

A partir de 1953, foi imposto o confisco em todo o país, a fim de extrair mais alimentos para financiar o Programa de Superpotência. A estratégia era simples: deixar para a população apenas o suficiente para que permanecesse viva e tomar todo o resto. Segundo Chang, Mao via vantagem práticas nas mortes em massa. “As mortes trazem benefícios” disse em 1958. “Elas podem fertilizar o solo”. Os camponeses receberam ordens para plantar sobre os túmulos. Usar luto foi proibido e até mesmo derramar lágrimas, pois segundo Mao a morte deveria ser celebrada.

O homem que brilha sobre o Leste não se contentou em matar e torturar. Procurou também humilhar a inteligência. Em 1966, durante o Grande Expurgo, fez arrastar e maltratar professores e funcionários da universidade de Pequim diante da multidão. “Seus rostos foram pintados de preto e puseram chapéus de burros em suas cabeças. Forçaram-nos a ajoelhar-se, alguns foram espancados e as mulheres foram sexualmente molestadas. Episódios semelhantes se repetiram em toda a China, provocando uma cascata de suicídios”.

Os Guardas Vermelhos invadiram casas onde queimaram livros, cortaram pinturas, pisotearam discos e instrumentos musicais – conta-nos Yung Chang – destruindo tudo em geral que tivesse a ver com cultura. Confiscaram objetos valiosos e espancaram seus donos. Ataques sangrentos a residências varreram a China, fato que o Diário do Povo saudou como “simplesmente esplêndido”. Muitos dos que sofreram os ataques foram torturados até a morte em seus lares. Alguns foram levados para câmaras de tortura improvisadas em antigos cinemas, teatros e estádios. Guardas Vermelhos vagando pelas ruas, fogueiras de destruição e gritos das vítimas: esses eram os sons e as cenas das noites do verão de 1966. Que um tirano mate, isto nada tem de original. Faz parte de sua estratégia para manter-se no poder. O que mais me causa espécie em Mao foi um episódio de seu regime que bem demonstra a insanidade de homens que se atribuem poderes absolutos. Sigo ainda o relato de Yung Chang. “Um dia, Mao teve a brilhante idéia de que uma boa maneira de manter os alimentos seguros era se livrar dos pardais, pois eles comiam grãos. Então designou esses passarinhos como uma das Quatro Pragas que deveriam ser eliminadas, junto com ratos, mosquitos e moscas, e mobilizou toda a população para sacudir paus e vassouras e fazer uma algazarra gigantesca, a fim de assustar os pardais e impedi-los de pousar, de tal modo que eles cairiam de fadiga, seriam capturados e mortos pelas multidões”.

Vi certa vez um documentário sobre esta insânia. Milhares de chineses perseguiam pardais por ruas, árvores e telhados, businando, batendo latas e tambores. Que Mao matasse, até que se entende. O mais difícil de entender é ver um líder levando milhões de chineses a matar pássaros... no grito. O problema é que estes pássaros, além de comer grãos, eliminavam muitas pragas, “e não é preciso dizer que muitas outras aves morreram na farra da matança. Pragas que eram mantidas sob controle pelos pardais e outros pássaros floresceram, com resultados catastróficos. Os argumentos dos cientistas de que o equilíbrio ecológico seria afetado foram ignorados”.

Resultado da Grande Matança de Pardais: o governo chinês acabou pedindo, em nome do internacionalismo socialista, que os russos enviassem 200 mil pardais do leste da União Soviética assim que possível. E durante anos houve quem cultuasse no mundo todo, como salvador da humanidade, este senhor ridículo.


 

Dia da Suequinha

28/11/2006

 

Diga-se o que quiser de Marx, não podemos negar que fosse um intuitivo. Viu o universo de ricos e pobres de suas época e nesta dicotomia encontrou as bases de seu pensamento.

Deu-lhes nomes mais solenes – proletariado e burguesia – e criou a ideologia mais assassina do século XIX, que produziu no século seguinte nadas menos que cem milhões de cadáveres. A humanidade tomou vergonha, o Muro foi derrubado, a União Soviética desmoronou e o comunismo passou a ser cultuado apenas em ilhotas do Terceiro Mundo. Operários se deram conta de que era melhor conviver com patrões que lutar contra eles. Desmoralizada a luta de classes, os velhos apparatchiks se sentiram desempregados. Uma nova luta precisava ser criada.

O leitor que tiver acesso a bancos de dados de jornais poderá comprovar facilmente.

Depois de 89, palavras como proletariado e burguesia começaram a minguar nos noticiários. Ao mesmo tempo, aumentou espantosamente a incidência de palavras como racismo, racista, ódio racial. Ou uma nova luta se estabelecia ou os velhos apparatchiks morriam de fome.

Neste Brasil inculto, que elegeu e reelegeu um analfabeto como presidente, estes profissionais que só encontram lugar em países que vivem a reboque da História investiram tudo na nova luta. O senador Paim Filho, por exemplo, restabeleceu o conceito de raça, conceito este sempre negado pelos movimentos negros, e pretendeu instituir a carteirinha de negro. Não bastasse isso, a lei 10.639, de 2003, instituiu o Dia da Consciência Negra e fez desta data um feriado nacional. O feriado mal havia sido notado por coincidir com sábados e domingos. Assim foi que, somente neste ano da graça de 2006 acabamos descobrindo que o racismo foi oficializado no Brasil. O racismo negro, bem entendido, pois jamais ocorreria aos brancos criar um Dia da Consciência Branca. E se o criassem, seriam imediatamente denunciados na Justiça como racistas.

Pouco de novo se tem a dizer a respeito desta história antiga. Mas a cada vez que a estupidez emerge, urge denunciá-la. O dia é uma homenagem a um dos símbolos da resistência negra no país: Zumbi de Palmares, que foi degolado em 20 de novembro de 1695. Até há bem pouco, a data celebrada pelos negros era o 13 de maio, quando, em 1888,a princesa Isabel decretou a libertação dos escravos. Isso de branca libertar negros, ainda mais quando se tratava de uma princesa, não gera luta racial. Era preciso encontrar um negro, de preferência um mártir. Mesmo que nos quilombos existissem escravas brancas. Mas este dado, stalinisticamente, deve ser apagado da História. Não fica bem à imagem de um herói libertador de negros ter escravas brancas. Por outro lado, não vejo porque não unificar a grande Parada Negra às paradas gays de São Paulo. Afinal, Zumbi era chegado às práticas nefandas, como se dizia na época, tanto que mereceu o apelido de Suequinha.

Cerca de doze mil pessoas participaram, nesta última segunda-feira, da primeira Parada Negra, na avenida Paulista, região central de São Paulo. Após a parada ocorreu a 3ª Marcha da Consciência Negra. A festa já acontece em 232 municípios brasileiros. Agências bancárias e dos correios permaneceram fechadas nos municípios que decretaram feriado devido à data. Ai daqueles que um dia pensarem em uma parada branca. Serão imediatamente anatematizados e jogados no rol dos racistas, nazistas e fascistas. Esta manifestação só serve para incentivar o racismo no país. Bem entendido, jamais teremos um dia da consciência mulata. Os negros racistas brasileiros, à semelhança dos negros racistas americanos, não aceitam a idéia de mulato. Aceitar o conceito de mulato significa admitir que no Brasil negros e brancos se miscigenaram sem maiores problemas, e isto significa dizer que no Brasil não há racismo, ou pelo menos não hás um racismo mais pronunciado. Isto não serve aos velhos comunistas, sempre entrincheirados na antiga idéia de luta de classes.

É sempre bom lembrar que os negros não chegam a constituir seis por cento da população nacional. Os mulatos chegam a 38%. Até o Supremo Apedeuta já assumiu esta idéia de que estes mulatos não existem, e andou colocando o Brasil como segundo país negro do mundo, depois da Nigéria. Chamem como quiserem o 20 de novembro. Eu prefiro chamá-lo de dia da Suequinha. Quem quiser empunhar Zumbi como herói da libertação dos negros, terá também de empunhar outras bandeiras, que não sei se todo o pequeno contingente negro da população terá coragem de empunhar.


 

De Ratramno a Radberto

12/12/2006

 

Nunca imaginei que teologia pudesse suscitar maiores discussões nos dias que correm. No entanto, meu artigo sobre o filioque rendeu-me não poucos mails. Como me dizia uma leitora, nada como uma querela teológica para esquentar os tamborins. O que mais preocupou os leitores não foi a questão do Espírito Santo proceder do Pai ou do Pai e do Filho, e sim o fato de o comungante comer carne e não pão, beber sangue e não vinho, durante o sacramento da Eucaristia. O leitor Douglas Ferreira Gonçalves não aceita a definição de dogma da transubstanciação da carne, mas sim da transubstanciação do pão e do vinho. Bom, depende do ponto de vista. Olhando de aquém, o pão se transubstancia em carne. Olhando de além, a carne se transubstancia em pão. Dá no mesmo. Bonnet blanc, blanc bonnet, como dizem os franceses.

Mas não vamos nos perder em bizantinices. Ok! Aceito a definição do leitor. O que não dá para aceitar é o que segue: “Transubstanciação não significa ‘a conversão literal do pão e do vinho na carne e no sangue de Cristo’, mas sim a conversão da substância (transubstanciação) do pão e do vinho no próprio Cristo, que está presente de forma real sob as espécies do pão e do vinho, que continuam a mesma. Mudança de substância, e não de espécie. Portanto não faz sentido em falar em ‘ato de canibalismo’, pois o que o fiel recebe é pão e vinho em espécie, e não carne. Como pode ver, nós Católicos não só aceitamos o Dogma da Transubstanciação como o compreendemos, ao contrário do senhor que não o aceita e nem o compreende”.

O leitor incorreu em heresia e não está sabendo disso. Vamos às origens do dogma.

Recorro a meus dicionários de teologia e de heresias. Desde a antiguidade, os crentes mantinham que Cristo estava presente na eucaristia mas poucos haviam tentado definir exatamente o que significava a “presença de Cristo”. Muitos se conformavam com crer que de alguma forma comungavam com o Salvador. Em meados do século IX, um abade de Corbie (norte da França), Radberto, sentiu a necessidade de entender com maior exatidão o sacramento em questão. Radberto decidiu que a tradicional referência ao pão e ao vinho da comunhão como “carne e sangue” de Cristo não era meramente simbólica, e que na missa os comungantes consumiam realmente a carne humana e o sangue de Jesus. O pão e o vinho, embora não mudassem em aparência, convertiam-se milagrosamente em substância e tornavam-se os elementos materiais do corpo do filho de Maria. Os cristãos somente receberiam os benefícios espirituais de sua participação no sacramento se acreditavam que esta transformação invisível se havia operado durante a cerimônia.

Quando Radberto publicou esta interpretação canibalística da missa houve um clamor de protestos entre os teólogos de toda Europa. O rei Carlos, o Calvo, solicitou ao monge Ratramno um exame da doutrina de Radberto e um comentário da mesma. Ratramno rechaçou a doutrina do abade sobre a missa. Como todos os cristãos de sua época, não via inconveniente em admitir que Cristo estivesse presente na eucaristia, mas acreditava que a natureza desta presença era um mistério divino que não podia reduzir-se à transformação literal do pão e do vinho. Além disso, continuava a argumentação, o Cristo presente na eucaristia é seu corpo divino, não a encarnação nascida em Belém (sic!) muitos séculos antes. No entanto, foi a noção de Radberto que se converteu no dogma da Igreja católica romana. O vago “mistério” da presença de Cristo que Ratramno ensinava era mais difícil de entender, para as massas populares que a idéia chocante, mas simples, de que “presença de Cristo” significava presença corporal.

Ratramno, que expôs sua doutrina no livro De Corpore et Sanguinis Domini, não foi condenado por herege em vida. Pelo contrário, continuou sendo um teólogo respeitado e até sua morte, em 868, participou de outras controvérsias da época. No entanto, quando se reacendeu o debate sobre a eucaristia no século XI, a maioria se inclinou em favor das proposições de Radberto. A obra de Ratramno foi condenada e queimada no Sínodo de Vercelli (1050). Na época, sua autoria já fora esquecida e os conciliares a atribuíram a João Escoto Erígena, um contemporâneo de Ratramno.

Ou seja: na missa come-se a carne de Cristo e não um símbolo da carne de Cristo. Bebe-se o sangue de Cristo e não um símbolo do sangue de Cristo. E quem nisto não crer é herege.

A hipótese que o leitor aventa, a de que “o que o fiel recebe é pão e vinho em espécie, e não carne”, é herética. Mais precisamente, provém de Lutero, que rejeitava explicitamente a transubstanciação, ao afirmar que o pão e o vinho continuavam sendo plenamente pão e vinho, sendo ao mesmo tempo plenamente carne e sangue de Jesus. Se, para Lutero, os fiéis participam verdadeira e literalmente do corpo de Cristo durante a comunhão, isto não quer dizer que o pão se converta em corpo, e o vinho em sangue. O pão continua sendo pão, e o vinho, vinho – esta é a tese do leitor – mas agora estão também neles o corpo e o sangue do Senhor, e o crente se alimenta deles ao tomar o pão e o vinho. A esta tese deu-se o nome de consubstanciação.

Vamos aos textos do magistério da Santa Madre. O dogma da transubstanciação, se foi aventado no concílio de Latrão (1215), só toma corpo no concílio de Trento (1551). Na encíclica Ecclesia de Eucharistia, no capítulo 1 § 15, lemos: “Pela consagração do pão e do vinho se opera a transformação de toda substância do pão na substância do corpo do Cristo nosso Senhor e de toda a substância do vinho na substância de seu sangue; esta transformação, a Igreja católica a chamou justa e exatamente de transubstanciação”.

Que mais não seja, o cânon 1° da 13ª sessão do concílio assim proclama: “Se alguém nega que o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, com sua Alma, e a Divindade, e conseqüentemente Jesus Cristo todo inteiro, estão contidos verdadeiramente, realmente, e substancialmente no Sacramento da Muito Santa Eucaristia; mas diz que eles lá estão somente como em símbolo, ou ainda em forma, ou em virtude: seja anátema.”

O leitor que se pretende católico está assumindo uma doutrina luterana. Vamos ao significado da palavra anátema. No Novo Testamento, o anátema é uma sentença de maldição em relação a uma doutrina ou pessoa, especialmente no quadro de uma heresia. O anátema é suprimido da comunidade dos fiéis. Para os católicos e ortodoxos, o anátema se traduz pela excomunhão dita “maior”, ou seja, a de maior força e solenidade que os outros tipos de excomunhão.

O leitor está confundindo consubstanciação com transubstanciação. Ocorre que, para o católico, o problema tem apenas duas faces: canibalismo ou heresia. Tertius non datur.

Houvesse ainda algum rigor no magistério da Santa Madre, Douglas já estaria excomungado. O que me espanta nisto tudo, é que caiba a um apóstata ministrar lições de boa teologia a quem se diz católico.

Há outros dogmas divertidos na mitologia cristã. Segundo a Igreja, só três personagens bíblicos subiram aos céus. Elias, no Antigo Testamento, e Cristo e Maria no Novo. A ascensão de Elias, em um carro de fogo, não gerou dogma. Dogmas foram a Assunção de Maria, curiosamente só oficializado em 1950, pelo papa Pio XII. A virgem, toda gloriosa, sobe aos céus, e a Igreja só reconhece o fato dois mil anos depois. Um outro dogma mais complicado é a Ascensão de Cristo, que “ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu em Corpo e Alma.” Os teólogos, especialistas em filigranas, tiveram de discutir um grave problema. Cristo era judeu. Como todo judeu, havia sido circuncidado. Ao subir aos céus, teria deixado o prepúcio na terra?

Volto a meus tratados históricos. Não foi decretado dogma algum em torno ao prepúcio de Cristo, mas o assunto foi muito discutido na Idade Média. Em 1351, argumentava-se que o sangue versado pelo Cristo durante a Paixão havia perdido toda divindade, havia se separado do Verbo e restado sobre a terra. Clemente VI ouviu com horror esta assertiva. Reunindo uma assembléia de teólogos, combateu esta doutrina e conseguiu que ela fosse condenada. Os inquisidores receberam em toda parte a ordem de abrir procedimentos contra aqueles que tivessem a audácia de sustentar esta heresia. Ocorre que os franciscanos discordavam do papa e diziam que o sangue de Cristo podia muito bem ter ficado na terra., pois o prepúcio extirpado por ocasião da circuncisão fora conservado na igreja de Latrão e era venerado como relíquia, sobre os próprios olhos do papa e dos cardeais e mesmo as gotas de sangue e água que corriam sobre a cruz estavam expostas aos fiéis em Mantova, Bruges e em outros lugares. Mais de um século depois, em 1448, o franciscano Jean Bretonelle, professor de teologia na Universidade de Paris, submeteu a affaire à faculdade, declarando que esta questão provocava discussões em La Rochelle e em outros lugares. Uma comissão de teólogos foi nomeada e, após graves debates, tomaram uma solene decisão, declarando que não era contrário à fé crer que o sangue versado durante a Paixão tivesse ficado sobre a terra. Por analogia, o prepúcio também. Ou seja, se Cristo foi aos céus, o Sagrado Prepúcio ficou entre nós.

Mas isto já é outro assunto.


 

Santiago, Segundo Littin

14/12/2006

 

Santiago do Chile - A cidade é feia, pobre e suja. Pelos buracos e lixo acumulado nas amplas avenidas, adivinha-se uma capital que um dia foi próspera e cujos habitantes desfrutaram, em passado pouco distante, um alto nível de vida. Cidadãos pobremente vestidos, em seus ternos ainda restam farrapos de dignidade - e nada mais triste do que ver um homem cheio de remendos, mas elegantemente vestido, estendendo a mão súplice para pedir alguns centavos. Lojas vazias, de vazias e tristes vitrines, restaurantes entregues às moscas, garçons olhando para nada. Mal o sol se põe sobre o Pacífico, a capital escurece e os raros privilegiados da tirania se escondem em suas tocas, temerosos da fome e da justa violência dos deserdados. Mesmo durante o dia, nota-se tensão e medo nos rostos e gestos, como se alguém que agora circula livremente pelas ruas, no momento seguinte, sabe Deus lá por que razões, pudesse estar algemado nos porões da ditadura. Um exército parece ter postos suas patas sobre a cidade. Estou em Santiago do Chile. Do Chile de Pinochet.

O poder do tirano é onipresente. Em um país privilegiado pelos deuses, que por sua geografia se permite quatro estações simultâneas, mar e montanha, deserto e neve, os tentáculos da ditadura envolvem o território todo, manifestando-se principalmente na capital. Raríssimas bancas de jornais exibem apenas a imprensa laudatória ao regime. Jornais de oposição, nem em sonhos. A imprensa internacional está banida do país e só pode ser adquirida em hotéis de luxo, onde o cidadão comum só pode entrar se estiver disposto a sérios interrogatórios pela polícia do regime ao sair, mesmo que saia sem jornal algum. As raríssimas livrarias, de paupérrimas estantes, exibem não mais que literatura técnica e alguma ficção de escritores coniventes com a ditadura.

Miséria, lixo, decadência, medo, opressão, silêncio, desconfiança: estes são os odores que todo visitante, isento de quaisquer preconceitos ideológicos, respira em um rápido giro por Santiago. Mas as cidades são como árvores, quem quiser destruí-las terá de cortar-lhes as raízes. Estão vivas as raízes de Santiago. Que um dia será Salvador. Salvador Allende. Terminasse eu aqui esta crônica, sem ajuntar sequer uma linha a mais, conquistaria platéias e simpatias, sem falar em tribunas, lugar ao sol e quem sabe até mesmo uma sinecura num órgão público qualquer. Acontece que estaria mentindo, transmitindo, é verdade, uma mentira que todos gostam de ouvir. Como não gosto de mentir, renuncio a eventuais simpatias e passo a contar o que vi.

Para quem está acostumado a bater pernas pelas ruas de cidades como Porto Alegre ou São Paulo, Santiago exerce um poderoso impacto pela conservação e limpeza de suas ruas e passeios. Nas capitais brasileiras, há muito resignei-me a enfrentar ruas sujas e esburacadas, sem falar no lixo cotidiano nelas jogado por transeuntes sem noção alguma de cidadania, meros habitantes, nefastos usuários da cidade. Passear pelas margens do Mapocho - rio que atravessa um aglomerado de cinco milhões de almas - respirar milagre, suas águas preservam a limpidez com que descem da Cordilheira. Para quem sofre a Beira-Mar Norte de Florianópolis - já nem falo do riacho Ipiranga ou Tietê - o Mapocho mais parece miragem de viajante perturbado pela travessia dos Andes.

Pelo Paseo de la Ahumada, rua Estado, Huérfanos, uma fauna humana e bem vestida (insisto em dizê-la humana, pois os transeuntes das ruas centrais do Rio ou São Paulo, sem ir mais longe, mais parecem animais machucados na luta pela vida) que há muito não se vê nas metrópoles da América Latina. Antes de Santiago, estive em Buenos Aires e a outrora elegante Florida, hoje, proporções à parte, mais parece rua Direita ou Nossa Senhora de Copacabana. Deixada de lado a agressão idiota - mas não perigosa - de cambistas à cata de divisas fortes, senti no centro de Santiago sensação que brasileiro algum pode hoje sentir em nossas capitais: a sensação de segurança. As ruas da capital chilena têm um ar de praça; nela vi velhos, jovens e crianças sentados, degustando sorvetes e o espetáculo da rua em si, tanto à tarde como à noite, sem preocupação alguma com assaltos ou violência gratuita. Para mim, que já penso duas vezes quando em Porto Alegre ao atravessar a Borges e a Praça XV para freqüentar o Chalé à noite, Santiago me fez evocar a Praça da Alfândega dos anos 60, quando filosofávamos madrugada adentro preocupados com a enteléquia aristotélica ou o ser em Sartre, jamais com punhais ou revólveres.

Outra surpresa, e das melhores, os quiosques de jornais e revistas. Penso que tais quiosques são uma excelente amostragem da cultura e liberdade de expressão de um país, neles podemos auscultar que tipo de informação consomem os cidadãos e, ao mesmo tempo, que qualidade ou quantidade de informação não proíbe o Estado de ser consumida. Pois bem: nesta Santiago que imaginava cidade sitiada e sob censura, vi nas bancas uma profusão e diversidade de jornais que sequer encontrei em Paris ou Madri. Jornais em cirílico do Leste europeu, imprensa de toda Europa, Escandinávia, Alemanha, França, Itália, Espanha, Estados Unidos, América Latina, Brasil. Sabendo como esta imprensa toda é gentil a Pinochet, o espanto do turista vira perplexidade. E mais: jornais chilenos malhando, em primeira página, a ditadura. Ocorre-me evocar os quiosques tristes e monocórdios que vi em cidades do Leste europeu, mas nem preciso ir tão longe. Nenhuma banca do Rio ou São Paulo, neste Brasil 88, me oferece tal quantidade e diversidade de informação.

Livrarias imensas, bem sortidas, onde não faltam livros de Fidel Castro ou Garcia Márquez, o mais ferrenho adversário de Pinochet e, curiosamente, defensor incondicional do ditador cubano. Tampouco faltam nas prateleiras obras de José Donoso ou Isabel Allende, isso para citar apenas dois opositores do regime chileno já conhecidos do leitor brasileiro. O que é no mínimo insólito em uma ditadura.

Nas vitrines e gôndolas das mercearias, víveres e bebidas do mundo todo, desde arenques do Báltico a foie gras trufado, dos mais diversos uísques da Escócia a vinhos alemães, franceses, italianos, espanhóis. E chilenos, naturalmente. Preços? Abordáveis. Para se ter uma idéia, pode-se comprar um scotch - com a certeza de que não são da reserva Stroessner - a partir de dez dólares, ou seja, o preço de um Natu Nobilis hoje. Que mais não seja, qual intelectual de esquerda não gostaria de viver em uma sociedade onde uma dose de um bom escocês custa, em bares, um dólar? Conheço não poucos exilados traumatizados com a democrática França de Mitterrand, onde um gole de uísque só é viável a partir dos cinco dólares. Piadas à parte, a farta oferta de tais produtos evidencia uma sociedade habituada a comer bem e com requinte, afinal comerciante algum seria insano a ponto de importar iguarias para turista ver.

Contava eu estas e outra coisas a uma moça ilhoa e bem-nascida, cidadã da Santa e Bela Catarina, dessas que julgam ser todo empresário um canalha, mas que jamais recusam uma cobertura facilitada por um pai empresário, dessas que jamais subiram o morro do Mocotó mas estão preocupadas com a colheita do café na Nicarágua, em suma, falava eu com um espécime típico da raça que chamo de os Novos Cafeicultores, e a objeção - a primeira objeção - caiu como um raio:

— E a miséria? Aposto que não foste visitar os bairros pobres, a periferia de Santiago.

Tinha razão em parte a jovem cafeicultora. Não visitei os bairros pobres de Santiago, afinal se troco as margens do Atlântico pelas do Pacífico, não será para ver miséria que conto meus parcos dólares. Não tenho a psicologia do francês médio, por exemplo, que mal chega ao Brasil, quer visitar favelas. Este comportamento, a meu ver doentio, parece-me ser vício de europeu inculto e de consciência pesada, que insiste em ver a miséria do Terceiro Mundo que explora, para depois contribuir com avos de seu bem-estar para guerrilhas suicidas. Se junto meus trocados para visitar um país, quero receber o que de melhor esse país tem a me oferecer. Nos anos que vivi em Paris, descia certa vez de Montmartre e enveredei pelas ruelas da Goutte d’Or, encrave árabe e paupérrimo que se alastra na cidade como mancha de óleo. Senti-me, de repente, em um território miserável para o qual jamais teria pensado em viajar, que mais não seja não será minha indignação ou revolta que resolverá o problema árabe na França. Dei meia volta, enfurnei-me na primeira boca de metrô e só voltei à superfície na Rive Gauche, a margem que mais me fascina do Sena.

Não, não vi a miséria de Santiago. Mas consolei a cafeicultora: podes estar certa de que miséria existe, pois miséria está presente em qualquer metrópole do mundo.

Ela sorriu por dentro, parecia dizer: que bom que existe miséria em Santiago. O que me deixou um tanto perplexo, eu sorriria intimamente se soubesse que não existe miséria em lugar algum do mundo, independentemente de regimes políticos ou ideológicos. Ela, por sua vez, admitia a veracidade de meu relato. Ajuntei que a inflação era de seis por cento.

Quando digo isto a um brasileiro, a reação normal é: “seis por cento ao mês?” Acontece que é seis por cento ao ano. Isto é sonho que, brasileiros, já nem ousamos sonhar. Se eu passar a alguém os preços de um restaurante que visitei em Santiago no mês passado, e se este alguém visitar o Chile no ano que vem, é provável que os preços continuem os mesmos ou, no máximo, tenham variado em torno de uns dez por cento a mais. Cá entre nós, não conseguimos recomendar para amanhã um restaurante no qual comemos ontem. Caiu, então, fulminante, a segunda objeção:

— Sim. Mas que preço pagaram os chilenos por este bem-estar?

Houve, no Chile, um assalto marxista e armado ao Estado e negá-lo é paranóia. Deste confronto resultaram, segundo alguns, dez mil mortes. Segundo outros, quarenta mil [*].

De qualquer forma, um preço infinitamente inferior ao preço pago pelos russos a Josiph Vissarionovitch Djugatchivili - que oscila entre vinte e sessenta milhões de cadáveres - para dar no que deu: uma confederação forçada de países pobres, alguns convivendo com a fome, como a Romênia e a Albânia. Bem mais barato que o preço pago pelos cambojanos a Pol Pot: dois milhões e meio de mortos, em um país de cinco milhões de habitantes, e disto não mais se fala. Sem falar que os que ficaram se jogam ao mar em jangadas, enfrentando tempestades, tubarões e piratas, ou já esquecemos os boatpeople? Sem falar nos que matou Castro - número que nenhum Garcia Márquez aventa - para instalar no Caribe seu gulag tropical. Em Cuba também há farta escolha de bebidas e gêneros alimentícios. Mas só o turista pode comprá-los, e com dólar. O cidadão cubano fica chupando no dedo. Nas praias, cheias de peixe, não há atividade pesqueira alguma, pois quem tem barco vai pra Miami. - Justificas então tais mortes? - quis saber a moça - referindo-se, é claro, aos mortos do Chile, já que tornou-se tácito, para os fanáticos contemporâneos, que é lícito fazer correr sangue de certas pessoas e criminoso o de outras. Em suma, para usar dois conceitos que não me agradam, porque multívocos, é perfeitamente permissível fazer jorrar sangue da assim chamada direita e constitui sacrilégio, quase tabu, sangrar a assim chamada esquerda. Não justifico morte alguma, a humanidade tem pelo menos uns três mil anos de experiência histórica, milênios suficiente, parece-me, para concluirmos que não é matando que se chega a erigir a cidade humana.

— Cristaldices! - jogou-me na cara minha cafeicultora, digo, interlocutora. Pode ser. Chamo então um cineasta exilado que voltou clandestinamente ao Chile, em depoimento tomado por Gabriel Garcia Márquez, intitulado A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile, já traduzido ao brasileiro por Eric Nepomuceno e encontradiço em qualquer livraria. No capítulo significativamente intitulado “Primeira desilusão: o esplendor da cidade”, depõe Littín:

Eu atravessei o salão quase deserto seguindo o carregador que recebeu minha bagagem na saída, e ali sofri o primeiro impacto do regresso. Não notava em nenhuma parte a militarização que esperava, nem o menor traço de miséria. (...) Não encontrava em nenhuma parte o aparato armado que eu tinha imaginado, sobretudo naquela época, com o estado de sítio. Tudo no aeroporto era limpo e luminoso, com anúncios em cores alegres e lojas grandes e bem sortidas de artigos importados, e não havia à vista nenhum guarda para dar informação a um viajante extraviado. Os táxis que esperavam lá fora não eram os decrépitos de antes, e sim modelos japoneses recentes, todos iguais e ordenados.

Mais adiante:

Na medida em que chegávamos perto da cidade, o júbilo com lágrimas que eu tinha previsto para o regresso ia sendo substituído por um sentimento de incerteza. Na verdade o acesso ao antigo aeroporto de Los Cerrillos era uma estrada antiga, através de cortiços operários e quarteirões pobres, que sofreram uma repressão sangrenta durante o golpe militar. O acesso ao atual aeroporto internacional, em compensação, é uma auto-estrada iluminada como nos países mais desenvolvidos do mundo, e isto era um mau princípio para alguém como eu, que não só estava convencido da maldade da ditadura, como necessitava ver seus fracassos na rua, na vida diária, nos hábitos das pessoas, para filmá-los e divulgá-los pelo mundo. Mas a cada metro que avançávamos, o desassossego original ia se transformando numa franca desilusão. Elena (militante da esquerda chilena que acompanha Littín) me confessou mais tarde que ela também, ainda que estivesse estado no Chile várias vezes em épocas recentes, tinha padecido o mesmo desconcerto.

Coragem, leitor de esquerda. Adelante! Leiamos Littín, só mais um pouquinho:

Não era para menos. Santiago, ao contrário do que contavam no exílio, aparecia como uma cidade radiante, com seus veneráveis monumentos iluminados e muita ordem e limpeza nas ruas. Os instrumentos de repressão eram menos visíveis do que em Paris ou Nova York. A interminável Alameda Bernardo O’Higgins abria-se frente a nossos olhos como uma corrente de luz, vinda lá da histórica Estação Central, construída pelo mesmo Gustavo Eiffel que fez a torre de Paris. Até as putinhas sonolentas na calçada oposta eram menos indigentes e tristes do que em outros tempos. De repente, do mesmo lado em que eu viajava, apareceu o Palácio de La Moneda, como um fantasma indesejado. Na última vez que eu o tinha visto, era uma carcaça coberta de cinzas. Agora, restaurado e outra vez em uso, parecia uma mansão de sonho ao fundo de um jardim francês.

Fico por aqui. Se o leitor ainda alimenta dúvidas, que visite o Chile, preferentemente após ter deambulado por Havana. O homem só conhece comparando. Para finalizar, apenas mais uma observação, não minha, mas de Littín, que talvez elucide a prosperidade atual de seu país.

Uma das primeiras medidas que ele (Allende) tomou no governo foi a nacionalização das minas. Uma das primeiras medidas de Pinochet foi privatizá-las outra vez, como fez com todos os cemitérios, os trens, os portos e até o recolhimento do lixo.

O que esclarece, a meu ver, o fascínio das ruas de Santiago.

 

[*] Este artigo foi publicado em Joinville, em A Notícia, 27.11.88. E em Porto Alegre, no RS, 10.12.88. Os números de mortes citados eram as estimativas de então. Hoje considera- se que o total de mortes ao longo da ditadura de Pinochet foi em torno de três mil.


 

Herói é quem mata mais

19/12/2006

 

Nas últimas décadas, a história da América Latina foi marcada por uma polarização emblemática, Fidel Castro e Augusto Pinochet. O continente teve muitos golpes, contragolpes e ditaduras, na Bolívia, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela, Nicarágua. Mas a discussão sempre girou em torno dos ditadores de Cuba e Chile. Bastava alguém acusar Castro, o interlocutor logo brandia Pinochet. E vice-versa. Os debates, seja na antiga imprensa como na Internet, tornaram-se monótonos e previsíveis.

Castro e Pinochet tomaram o poder pelas armas – e pelas armas o mantiveram. Mataram, aprisionaram e torturaram seus opositores. Pinochet morreu na semana passada. Castro pode morrer semana que vem. E aqui terminam as semelhanças. Começam então as diferenças.

Pinochet se manteve 17 anos no poder e o entregou após ter sido derrotado em eleições que tiveram um caráter plebiscitário. Castro se mantém há 47 anos no poder e, pelo menos teoricamente, só o largará ao morrer. Responsabiliza-se Pinochet por três mil mortes. A Castro, são debitadas 17 mil. Pinochet construiu as bases de um Chile rico, hoje a economia mais próspera da América Latina. Castro levou Cuba a uma miséria humilhante, só superada pelo Haiti no continente. Pinochet foi relegado ao círculo dos infames. Castro foi entronizado no panteão dos heróis.

Não tem muito a ver com a história, mas não posso deixar de lembrar a clarividência de Eça de Queiroz, quando escreveu, em 1890: “Sempre haverá Chiles ricos e Nicaráguas grotescos”. Volto a Pinochet. Pelo jeito, não é herói por ter matado tão poucos. Castro, mais ousado, que matou mais de cinco vezes mais, é o líder inconteste das esquerdas latino- americanas. Stalin, que matou vinte milhões, foi adorado no mundo todo como um deus e mereceu, no século passado, a comenda de “Paizinho dos Povos”. Quando morreu, os comunistas não conseguiam acreditar em sua morte, afinal um deus não pode morrer.

Apesar de seus crimes terem sido sobejamente denunciados, a partir de 1949 – e sobretudo no 20º Congresso do Partido Comunista Soviético, em 54 – até hoje, 2006, goza da admiração de ilustres intelectuais brasileiros, como Oscar Niemeyer e Ariano Suassuna. Mao, após ter matado 70 milhões de chineses, ainda é adorado na China. E não só na China. Jung Chang e seu marido, o britânico Jon Hallliday, em recente visita ao Brasil, nos contam uma história emblemática. Depois da visita de Nixon à China, em 1972, o pintor americano Andy Warhol decidiu que “arte é moda. Mao está na moda. Então Mao é moda”.

Pintou então um quadro que o celebrava como herói, obra que foi vendida por 17 milhões de dólares. Quando a casa de leilões Christie’s vendeu esse quadro, um jornalista telefonou aos leiloeiros, oferecendo uma foto de Stalin. “Desculpe – respondeu uma funcionária – não trabalhamos com Hitler ou Stalin”. Pelo jeito, não mataram o suficiente para merecer a glória no mundo das artes.

Como dizia Jean Rostand, biólogo francês: “quem mata um é assassino, quem mata milhões e conquistador, quem mata todos é deus”. A questão parece ser de dígitos. Matar algo em torno a três quatro dígitos não rende culto. Os militares brasileiros só mataram 300. São uns assassinos. Castro chegou aos cinco dígitos. Líder Máximo. Pol Pot conseguiu seis dígitos. Herói. Stalin e Mao alcançaram os oitos dígitos. Divinos.

Castro e Pinochet são seqüelas da Guerra Fria, quando Moscou e Washington disputavam a hegemonia do planeta e, como não poderia deixar de ser, da América Latina. O século passado foi encerrado com um fecho de ouro, a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da URSS. Com a China comunista rumando a uma espécie de ditadura capitalista e o Leste europeu liberto da tirania de Moscou, só restaram dois países obsoletos regidos por um sistema comunista. Era de esperar-se que, com o século, morresse também a Guerra Fria. No entanto ela sobrevive neste nosso continente que vive a reboque da História e parece não ter ainda chegado ao século XXI.

A morte de Pinochet foi comemorada com muita alegria. “O diabo terá um dia ruim, pois vão tomar dele a presidência do inferno”, disse o escritor mexicano Carlos Fuentes.

“A morte ganhou da justiça”, disse o escritor comunista uruguaio Mario Benedetti. Para Massimo d’Alema, ministro italiano das Relações Exteriores, “o que nos faz diferentes em relação a Pinochet e às pessoas que pensam como ele é que nós respeitamos a vida humana, incluindo a vida de Pinochet”. O que não parece ser o caso.

Para Fernando Henrique Cardoso, “o julgamento da História será implacável com Pinochet”. Para Lula, Pinochet representou “um período sombrio”. Para José Serra, “foi-se alguém que não vai deixar nenhuma saudade. É um homem identificado com a repressão, identificado com a tortura e também com a corrupção, pois revelou-se um grande corrupto, além de um grande repressor. Um ditador implacável que infelicitou a nação chilena e deu um mau exemplo para a América Latina e para o resto do mundo”.

Deus não joga mas fiscaliza. Quis o Senhor que, nestes dias da morte de Pinochet, Fidel Castro esteja perto da sua. Será interessante ver o que têm a dizer Lula, Fernando Henrique, José Serra, e demais personalidades bafejadas pela mídia, sobre a morte do homem que matou 17 mil de seus compatriotas, manteve a ferro e fogo o poder por 47 anos, suprimiu a liberdade de expressão e de imprensa, governou sua ilha como um déspota e levou seu país à miséria.

Conseguirá FHC dizer que o julgamento da História será implacável com Castro? Dirá Lula que seu amigo representou um período sombrio? Ousará Serra afirmar que Castro não deixa saudades?

Quem viver, verá. E verá – disto estou certo – que estes senhores no fundo continuam enamorados das ditaduras comunistas.


 

Marta, Marta...

27/12/2006

 

Convencionou-se no Ocidente, desde há muito, que Natal é época de presentes. Se um dia a data teve algum significado religioso, hoje é sinônima fundamentalmente de comércio. Ora, o significado religioso é falso. Se o Natal pretende marcar o nascimento do Cristo, a Bíblia não fixa data alguma para este nascimento. A data só foi fixada no ano 350, pelo papa Júlio I ou, segundo outros historiadores, em 354, pelo papa Liberius. A intenção era cobrir as comemorações pagãs, pelos povos do hemisfério Norte, do solstício de inverno e de adoração do sol. E principalmente o Dia do Nascimento do Sol Invicto, proclamado no 25 de dezembro, no ano de 274, pelo imperador Aureliano.

Assim, se algum cristão acha que está comemorando o nascimento do Cristo, em verdade está participando de uma farsa. Os cronistas choramingas de final de ano, que deploram o festival de consumo justo no dia em que nasceu aquele pobre menino numa manjedoura, podem tirar seus cavalinhos da chuva, porque naquele dia, se nasceu algum Jesus na Galiléia, nada tem a ver com aquele da cruz. E tem mais: não nasceu em Belém, como repete toda a grande imprensa e até mesmo jornais sérios. Nasceu em Nazaré. E só mais um pouquinho: não nasceu no ano em que a Igreja diz ter nascido. Segundo Renan, o grande historiador do cristianismo, o nascimento “teve lugar durante o reino de Augusto, em torno do ano 750 de Roma, provavelmente alguns anos antes do ano 1 da era que todos os povos civilizados fazem datar a partir do dia em que ele nasceu”.

Em nossos dias, Natal está mais relacionado a TVs, DVDs, PCs, notebooks, MP3, celulares e máquinas de fotografia digitais do que ao nazareno. Só que isto não é farsa. É fato. Natal é a grande festa, não da cristandade, mas dos shoppings. Ganhar presentes é bom? Quem ganha sempre gosta. Dar presentes é bom? Também. Existe um inegável prazer em dar.

Pelo menos para quem pode dar-se a este luxo. Até mesmo pessoas pobres reservam seu 13º salário – quando o recebem – para investir em presentes. Não gosto de shoppings. Ocorre que um deles instalou-se a uma quadra de meu prédio e, nestes dias, tenho visto multidões saindo de lá com um ar de beatífica felicidade no rosto.

Felicidade besta? Pode ser. Mas felicidade. Neste país em que um governo demagogo enfia a mão no bolso de pobres e ricos – e muito mais no dos pobres que no dos ricos – para entregar seus suados ou não suados ganhos a deputados e senadores corruptos, a bugres ociosos e bandoleiros do MST, a quilombolas e invasores de prédios, melhor que o contribuinte consuma seus trocados em futilidades. Ao menos está tendo algum prazer.

O cronista é um defensor do consumismo, já estará pensando o leitor que não me conhece.

Sem me conhecer, tem toda a razão. Defendo a sociedade de consumo. Todo consumo, por idiota que seja, gera empregos. Você quer este Natal regado a bons vinhos, champanhes e perus? Não se iniba, só porque a grande maioria do país não tem acesso a vinhos, champanhes e perus. Ao fazer sua festa, você está dando trabalho a todos os profissionais do ramo, tanto aos que produzem tais mercadorias como aos que as embalam, transportam e comercializam. As sociedades de consumo vão muito bem, obrigado. O que vai mal são as sociedades onde não há consumo algum. Cristo? Ah! Se os jornais não insistissem cada ano em lembrar – erroneamente – que ele nasceu no 25, ninguém lembrava mais.

O cronista é um consumista, já estará pensando aquele mesmo leitor que não me conhece.

Por não me conhecer, não tem razão alguma. Nunca tive carro, nem jamais senti necessidade de tais geringonças. Não tenho sítio nem casa de praia, adereço de todo profissional bem sucedido. Diga-se de passagem, detesto sítios. Quando algum amigo me convida para visitar o seu, peço que o ponha em CD-Rom, e eu o visitarei na tela de meu computador. Nunca usei relógios caros e, nos últimos anos, desisti de qualquer relógio. Não freqüento restaurantes de luxo nem consumo bebidas na faixa dos três, quatro ou mais dígitos. Se um assaltante passar algum dia aqui em casa, sentirá a desagradável sensação de ter perdido seu tempo. Sim, tenho computador. É meu instrumento de comunicação e trabalho.

Fora comer e beber, sem o que não existo, meu consumo nada tem de supérfluo. Meus gastos são geralmente em livros e música, e não vejo isto como consumismo. Livros, compro para estudar e tentar entender o mundo que me cerca. Música, para tornar a vida um pouco mais alegre. Gosto de ópera. (Mas também de Inesita Barroso e Miguel Aceves Mejía). Fora isto, não compro quase nada. Conheço pessoas que se sentem no nirvana quando saem a comprar roupas. Para mim, é uma tortura. Enfim, mais dia menos dia, alguma roupa tenho de comprar. É meu dia aziago do ano. Gosto de dar presentes, mas jamais dou presente algum no Natal. Tampouco recebo presentes no Natal. Nenhum amigo seria tão indelicado para cometer tal gafe. Por que dar presentes em um dia preciso, quando o bom do presente é o imprevisto?

Quando vejo essas multidões natalinas, correndo como formigas ante a ameaça de um temporal, não posso deixar de deplorar a miséria humana. São pobres diabos que, por força da propaganda, se sentem compelidos a comprar e comprar e comprar. Que mania é essa de ter de comer peru no Natal, quando se pode comê-lo o ano todo? Que tem a ver o peru com Cristo? A instituição do Papai Noel é significativa. Parece que a cristandade, envergonhada de associar o consumo ao nascimento do filho de Deus, delegou esta função ao Santa Klaus.

Se isto os faz felizes, que direito temos de condená-los? Sejam felizes, caros. Natal é isso mesmo. Não estão cometendo nenhum crime. Pelo contrário, estão azeitando a economia do país. O Natal rega os sistemas vasculares de todo o Ocidente. Mas se faço a defesa do capitalismo, nos natais sou o anticapitalista por excelência. Nestes dias, o sistema não recebe um vintém a mais de meus bolsos.

Enquanto os cristãos compram desesperadamente, eu, o ateu, me dedico ao recolhimento. Nas últimas décadas, sempre estive em algum distante lugar do mundo, com minha Baixinha adorada. Como não é fácil jantar nessa data, geralmente nos muníamos de um bom vinho, pão, queijo e patês e os degustávamos no quarto do hotel. Foram certamente os melhores vinhos e os melhores pães e queijos que tive em minha vida. Foram também os melhores natais. Hoje, sem Baixinha, gosto de ficar sozinho ou com pessoas muito próximas. Mas o vinho não tem aquele mesmo sabor, nem mesmo o pão.

Nestes dias, não posso deixar de lembrar o homenageado da data: “Marta, Marta, estás ansiosa e perturbada com muitas coisas; entretanto poucas são necessárias, ou mesmo uma só”.

Dito isto, boas festas a todos!


 

©2012 Janer Cristaldo

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Setembro 2012

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