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A CRISE BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO

Sud Mennucci

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A Crise Brasileira de Educação
Prof. Sud Mennucci

Versão para eBook
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Fonte digital
digitalização da 2a. edição em papel de 1934
Editora Piratininga - São Paulo - SP
USO NÃO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL
©2006 Sud Mennucci


 

O Autor

[imagem]

 

Sud Mennucci, nasceu na cidade de Piracicaba em 20 de janeiro de 1892. Foi educador, geógrafo, sociólogo, jornalista e escritor.

Em 1910 iniciou sua carreira no magistério, lecionando numa escola rural, e entre 1913 e 1914 reorganizou as Escolas de Aprendizes de Marinheiros de Belém do Pará. Mais tarde, atuou como professor público em Porto Ferreira e fundou o Ginásio Paulistano, na capital.

No ano de 1920, comandou o recenseamento escolar em São Paulo, a partir do qual foi possível localizar os núcleos de analfabetismo do Estado e dividir o território paulista em quinze delegacias regionais de ensino. Em seguida, assumiu a Chefia da Delegacia Regional de Ensino de Campinas.

Entre 1925 e 1931, Sud Mennucci iniciou sua carreira como redator e crítico literário do jornal “O Estado de S.Paulo”.

Em 1931, assumiu pela primeira vez a Diretoria-Geral de Ensino de São Paulo.

Além de suas atividades na administração do sistema paulista e como jornalista e escritor, Sud destacou-se no comando do Centro do Professorado Paulista, criado em 1930, e que atualmente é uma das principais associações docentes de São Paulo.

Além de ter participado da Fundação do Centro, Mennucci presidiu a entidade entre 1931 e 1948.

Dos vários livros que publicou, um dos maiores destaques, foi o livro A Crise Brasileira de Educação, premiado pela Academia Brasileira de Letras.

Faleceu na cidade de São Paulo em 23 de julho de 1948.


 

ÍNDICE

Prefácio
A crise universal de educação
A crise educativa nacional
A profundidade do mal
A escola brasileira
A conquista do meio físico
À guisa de resposta
Apêndice da 1a. edição
O ensino particular e o nacionalismo
Apêndice da 2a. edição
A reforma do ensino rural
Como seriam as Normais Rurais
A organização do curso primário rural
A guerra à zona rural
O começo da vitória
Opiniões alheias
Notas


 

Crise de caráter, crise de ensino, crise desintegradora, tudo são reflexos de um fenômeno só: a crise da escola primária”.

PANDIÁ CALOGERAS.
(“Problemas de Governo”, pag. 136).


 

OBRAS DO MESMO AUTOR

ALMA CONTEMPORÂNEA — São Paulo, 1918 — 2a. edição no prelo — Edit. Piratininga.
HUMOR — São Paulo, 1923 — 2a. edição no prelo — Editora Piratininga.
RODAPÉS — São Paulo, 1927 — 2a. edição no prelo — Editora Piratininga.
A ESCOLA PAULISTA — 1930 — 1 vol. (esgot.)
CEM ANOS DE INSTRUÇÃO PÚBLICA (1822-1922) — Tipografia Siqueira, São Paulo, 1932 — 1 vol.
BRASIL DESUNIDO — Tipografia Siqueira, São Paulo, 1932 — 1 vol.
O QUE FIZ E PRETENDIA FAZER — Editora Piratininga S/A — São Paulo, 1932 — 1 vol.

Separadas da Revista Educação:

O vertiginoso crescimento de São Paulo — 1929. (2a. edição em preparo)
O ensino do vernáculo nas escolas primárias — 1929.
A SAIR:
HISTÓRIA DO DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO — 1934.


 

PREFÁCIO

 

A Academia Brasileira de Letras, em sessão de 8 de junho de 1933, concedeu a este livro o 1.° prêmio no concurso da série “Francisco Alves”, subordinada ao título “Qual o melhor meio de disseminar o ensino primário no Brasil”.

É o seguinte o teor do parecer:

O livro de Sud Mennucci é o mais claro, o mais lógico, o mais prático. É também o mais original no modo de encarar o problema e na solução que propõe. Principia o autor tratando da crise universal da educação. A ciência transformou as condições da vida ocidental. Todos os valores de tempo e distância passaram a ter outra significação. A escola antiga ficou fora de fase, atrasou-se tanto mais quanto já não encontra o apoio que sempre lhe deram a família de tipo romano e a oficina. O trabalho moderno é outro; outras são as condições da família em que o pátrio poder já não tem a extensão de outrora, em que a mulher vive e trabalha fora do lar. O surto da “escola nova” corresponde a tais circunstâncias. A escola nova quer ser de preferência internato, quer instalar-se em zona de campo, valendo-se do ar puro, do sol e do cenário. Ela faz do treino sensorial o expediente máximo da sua pedagogia e se organiza com a preocupação do estudo psicológico e fisiológico do educando, do seu gênio, das suas aptidões, das suas preferências, dos seus interesses imediatos. Ela procura reunir tudo quanto cabia à família e à oficina, complemento histórico dos antigos centros de educação. Condicionado o sistema educativo de cada época pela organização do trabalho então dominante, tivemos no Brasil, o que o autor chama “saldo negativo” proporcionado pelo trabalho escravo. No segundo capítulo do seu livro o autor demonstra que a mentalidade nacional foi influenciada pelo preconceito do trabalho manual. Veio a república e com ela a obra de reconstrução educativa. Mas foram copiados os modelos clássicos, inspirados no que se via nos países industriais da Europa. O país ansiava por uma legislação educativa essencialmente rural; deram-lhe escolas urbanistas. E quando pensaram em fundar escolas rurais foi pior. Fizeram-se escolas de cidade localizadas no campo. Alberto Torres por isso mesmo escreveu que a nossa instrução pública era um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo. Em vez de promover o progresso do campo, a escola oficial despovoa as lavouras. Delas o filho do lavrador não sai aperfeiçoado lavrador que o pai deseja... Passa depois o autor a definir o que lhe parece deva ser a escola brasileira, sempre de acordo com o ambiente regional. Só com a segmentação dos latifúndios, sustenta ele, será possível o nosso verdadeiro surto educativo. O êxodo dos campos desaparecerá. A posse da terra seria capaz de anular os resíduos psíquicos da velha prevenção contra as trabalhos de amanho da lavoura.

Como retalhar os latifúndios, uma vez que a solução russa, violenta e imprópria, ou a rumáica, baseada no consenso dos possuidores, ou a francesa, baseada na herança — não podem ser propostas? A solução de Sud Mennucci é a campanha pelas oportunidades de repartir a terra. Juntem-se a União, os Estados, os Municípios, às Associações particulares nesse objetivo. “Conheço clubes comerciais, escreve o autor, para inúmeros fins, que entregam aos seus prestamistas as coisas mais disparatadas que eles possam desejar. Nunca ouvi falar de nenhum que sorteasse glebas de terras para o estabelecimento de uma família... Sei de homens pios que deixam avultadas quantias para aumentar patrimônios de todos os gêneros... Nunca me constou... que alguém houvesse doado a casas de caridade grandes lavouras, sob a condição de apurar o espólio mediante a venda a longos prazos desses terrenos a numerosas famílias de caboclos...”

Depois o autor considera o problema do professor. “O professor não gosta do campo, porque o campo é atrasado... mas o campo não progride porque o professor não lhe dá o seu entusiasmo”. Se ele foi feito para a cidade...

O sistema de Sud Mennucci para divulgar o ensino primário no Brasil é, destarte, um todo harmônico, antes social que pedagógico, cheio de originalidade e de clareza. A posse da terra, a conquista do meio às comodidades humanas, a formução do professor são as faces mais salientes do seu edifício. “No terreno da prática, escreve Sud Mennucci, a primeira dádiva a conceder ao meio rural seria destruir-lhe o isolamento... Um simples aparelho de rádio obtido das administrações públicas ou mediante subscrição popular, colocado no ponto central do bairro, dar-lhe-á o informante minucioso e quotidiano das coisas e acontecimentos da terra, ao mesmo tempo o recreio costumeiro dos habitantes —O rádio substitui o jornal com vantagem, — Sud Mennucci é jornalista... — alcança a população analfabeta, chega na mesma hora aos pontos onde os jornais levam dias a chegar; junto com o rádio, a energia elétrica”.

Sud Mennucci no seu livro, indica, pois, de maneira realmente superior, todas as condições sociais em que se define o problema considerado. E indica, com clareza, simplicidade, entusiasmo, de maneira prática, soluções modernas e possíveis. Deve receber o primeiro prêmio Alves”.

(a. a.)
ROQUETE PINTO, relator.
MIGUEL COUTO
ALOYSIO DE CASTRO.


 

A CRISE UNIVERSAL
DE
EDUCAÇÃO


 

Há cerca de quarenta anos, senhores, que a educação universal entrou em crise. Sem querer penetrar muito fundo no estudo das causas múltiplas que a determinaram, estudo que me levaria muito longe e muito fora do programa que aqui me trouxe, pode dizer-se, com toda segurança, que essa crise nasceu no dia em que começou a utilização industrial intensiva das inúmeras descobertas científicas, pressentidas, às vezes, séculos antes, mas só efetivamente realizadas, para a prática, na segunda metade do século passado.

À medida que essas descobertas se aperfeiçoavam e que a sua exploração industrial se ia simplificando, crescia e se acentuava a crise educativa. Lance-se um olhar para o percurso da última trajetória do homem sobre a terra. Num prazo relativamente curto, que, na maioria dos casos, não ultrapassou o da duração média da vida humana, nós fomos das primitivas locomotivas ronceiras ao possante comboio elétrico; do balão cativo e do aerostato errante ao dirigível das grandes carreiras e ao hidroplano de quinhentos quilômetros à hora; da berlinda pesada ao automóvel concorrente das estradas de ferro; do navio de rodas, caricatura do “steam-boat” de Fulton, aos gigantescos navios motores modernos. Fomos do telégrafo e telefone comuns à radiotelegrafia e à radiotelefonia e, já agora, à televisão; da lanterna mágica, imóvel como um sorriso idiota de bailarina, ao cinema mudo e ao animatógrafo sincronizado; do lampião de querosene às lâmpadas de Edison; da morosa tipografia de distribuição lenta para as rapidíssimas monotipos de destruição diária; da caixa de música, a moer sempre a mesma peça, à panatrope elétrica, que toca trinta discos sozinha. E não contentes com isso, suprimimos a caligrafia com a máquina de escrever e aposentamos o cérebro com a máquina de calcular.

Cito, senhores, propositadamente, apenas o que de mais forte e impressivo abalou a mentalidade popular e mais facilmente se incorporou à sua maneira de viver. Deixo, por isso mesmo, de lado as mil outras descobertas que por inacessíveis à compreensão exata do vulgo, permanecem por assim dizer obumbradas, ainda que a sua influência real pese sobre os nossos dias com maior intensidade que as de maior aparato.

É que aquelas bastam ao ponto de vista que desejo fixar neste ligeiro ensaio: dar a sensação nítida de que a nossa vida não se parece em nada com a que existia, sobre os mesmíssimos pontos do globo, cinqüenta anos atrás, para concluir que esta nova maneira de viver devia, necessariamente, ter modificado as condições econômicas do mundo e feito variar, pelos aspectos novos dos mesmos ambientes, a sensibilidade geral e a capacidade de julgar da nossa geração.

O DIREITO AO CONFORTO

A industrialização das descobertas científicas criou o conceito de que todos devem gozar das conquistas do saber e do engenho humano. Todos os homens têm direito ao conforto que a ciência, nas suas aplicações práticas, proporciona. Toda gente deve poder permitir-se o luxo de usar meias de seda e roupas de casimira, ir ao cinema, utilizar-se do telefone, servir-se do aeroplano. E, se nós fôssemos os Estados Unidos, também poderíamos possuir um automóvel para cada quatro pessoas.

Duas conseqüências imediatas se desdobraram desse conceito: o aumento das necessidades dos homens, decorrentes naturais do acréscimo de conforto, e, portanto, racionalmente, o aumento do custo da vida; e a obrigatoriedade da produção em larga escala para atender à procura das vantagens que as descobertas permitiam.

A primeira providência, pois, que se fez indispensável, no intuito de vulgarizar as novas comodidades, tornando-as posse e condomínio da espécie, foi a reorganização do trabalho. A produção intensa era e é incompatível com o sistema dos ofícios e profissões que existia, porque ela assenta sobre um princípio diverso, chamado “da eficiência” e exige “o maior rendimento dentro do menor tempo e da menor despesa possível”.

Ora, tal eficiência só se obtém com a subdivisão do trabalho, isto é, com o parcelamento das tarefas. Este parcelamento, por sua vez, demandava se mobilizassem exércitos cada vez maiores de operários, problema, aliás, relativamente fácil de resolver porque as novas tarefas, reduzidas a puros movimentos primários, indecomponíveis, automáticos, permitiam a entrada nas fábricas e oficinas a elementos tidos por inferiores, que antes não poderiam legitimamente aspirar ao artesanato por lhes falecerem as qualidades requeridas à formação de um bom ou mesmo de um médio profissional.

Entre as vantagens, pois, da nova ordem de cousas, arrolava-se essa de valorizar, como massa obreira, uma população nova, normalmente desocupada, que vinha aumentar o capital humano e enriquecer o patrimônio da espécie, envolvendo a própria mulher na batalha econômica do mundo.

EQUILÍBRIO NOVO, FÓRMULAS NOVAS

O contragolpe não podia faltar. A situação recém criada, modificadora por excelência das normas consuetudinárias da vida, rebentou em efeitos que desequilibraram o metabolismo social e tenderam à transformação das noções correntes e preconceitos seculares. Dois desses efeitos costumam atrair de preferência a atenção do público, ferido nos seus inatos sentimentos de justiça: um é o que transparece lucidamente na singular preponderância que veio a adquirir, nestes últimos vinte ou trinta anos, a chamada “questão social” e que envolve as justas, justíssimas reivindicações da classe obreira, abandonada, quando não comprimida, universalmente, por uma legislação a que falta inteligência e descortino. A outra é o nascimento das aspirações femininas à igualdade civil.

Não eram eles, contudo, os únicos efeitos da mudança de regime de trabalho e, a sermos justos, não eram mesmo os mais importantes. Outro havia que se não apresentava com o mesmo estardalhaço e que, ao contrário, na maior parte das vezes, surdia apenas como um mal-estar vago, quase inconsciente a torturar os preceptores do fim do século passado e do começo do atual: era a questão educativa. Ia-se percebendo o pouco, o pouquíssimo com que a escola (e de ordinário todo o aparelhamento pedagógico) estava contribuindo para o gozo pleno da vida em comum.

Os mais atilados e sagazes, esses que são como que as antenas da humanidade e pressentem, muito antes que os outros, as metamorfoses que se estão elaborando no complexo da sensibilidade geral, haviam intuído, divinatoriamente por certo, o sentido em que elas se iam orientar. Verificavam que a atividade mental do homem cem-dobrara sem que houvessem aparecido as aptidões necessárias ao seu treino e sem que se houvessem multiplicado os expedientes indispensáveis para adquiri-la. Para as novidades que enchiam e revolucionavam o mundo, não existia ainda a memória social, memória que é uma espécie de cadinho coletivo, em que toda a gente deposita o pouco de sua experiência anterior, organizando assim o lastro capaz de criar, pela repetição das gerações, aqueles reflexos indispensáveis ao exercício soberano de cada faculdade nova que a vida estava a exigir de nós.

Vivíamos já no regime do caos, da insegurança, da transição forçada, servindo-nos, para essas modalidades da atividade mental recém surgida e, concomitantemente, para as suas paralelas atitudes espirituais, do mesmo velho instrumental que nos haviam legado os homens que tinham vivido sob tão diversa disciplina constitucional, Mas não havia outro, e esse, inadequado e imperfeito às funções que lhe destinávamos, era tudo com que podíamos contar como auxílio e cooperação do passado. Começávamos a nos fatigar numa extenuante tarefa de adaptação diária, que forçava a onipresença da consciência na efetivação de nossos atos quotidianos, quando a vida é, para o comum dos seres — e logicamente para a estabilidade da vida social — um simples conjunto de treinos e de hábitos, de atos e gestos estereotipados que conduzem ao automatismo, o verdadeiro nome da rotina. E ao asserto é fácil verificar-lhe a veracidade nesses museus vivos, que são para os cientistas, os hospitais e manicômios, onde a vida aparece exagerada como através de vidros de aumento, mas nem por isso menos estereotipada.

O ELOGIO DA ESCOLA ANTIGA

Esse caos e essa insegurança haviam quebrado a harmonia entre a escola e o organismo social. Temos ouvido, nestes últimos tempos, uma série de queixas, de recriminações, de objurgatórias contra a escola antiga, a escola clássica, a escola tradicional, a escola régia, enfim. É desassisada a grita e principalmente injusta. Julgamo-la nos seus efeitos do passado com os nossos critérios do presente. E esquecemos, por isso, o meio em que a escola antiga se gerou e cresceu. Se a localizarmos exatamente no tempo e no espaço, veremos que ela agia, então, a contento, e satisfazia, à sua moda, aquele luminoso conceito de Durkheim na sua “Educação e Sociologia”: “os sistemas educativos são conjuntos de atividades e instituições lentamente organizadas no tempo, solidárias com todas as outras instituições sociais, que a educação exprime ou reflete, instituições essas que, por conseqüência, não podem ser mudadas à vontade mas só com a estrutura mesma da sociedade”.

Não existem, senhores, anacronismos sociais senão nas épocas de transição e Oswald Spengler já mostrou, na sua admirável “Decadência do Ocidente”, o caráter permanente e fatal da interdependência dos fenômenos e a intercadência das invenções e criações de uma época. O subconsciente elabora formas de vida social aparentemente díspares, mas, na verdade, partidas de um fundo comum que as relaciona insofismavelmente com as idéias mestras do tempo. E as idéias mestras de uma época não são pontos de vista de retóricos ou sofistas, de ideólogos ou sonhadores. São aquelas que a organização social permite se deduzam do cotejo, confronto e paralelo das instituições entre si. Por isso, a sociologia será sempre uma ciência em perpétua evolução e a filosofia, como metafísica da experiência, será variável e volúvel como o homem.

Ora, a escola antiga, exatamente como a de hoje. tinha por lema principal, ainda que in-expresso, “a socialização da criança”, isto é, integrá-la ao meio em que devia obrar, preparando-a a ingressar na sociedade em que devia viver. Apenas, aquele tipo de instituição contava, desde séculos, com o apoio de outras duas, a que se ajustava cabalmente, e só considerava a sua tarefa preenchida quando lhe não faltasse o amparo das outras: a família e a oficina.

A escola era a ponte que ligava a tarefa da primeira a estabelecer contacto com a última. A família tradicional nunca abriu mão desse seu ponto de honra de estar vigilante durante toda a fase preparatória da criança, e que ia do berço à posse de um ofício. Por isso mesmo, ostentava aquela brilhante fachada patriarcal de vida calma e serena, em que a paz caía sobre os espíritos, em que as necessidades eram relativamente poucas e pequenas, justamente porque o horizonte mental do universo era, na média, de reduzido círculo.

A cooperação social não ia além de um restrito limite, que se fechava, de ordinário, nas divisas da cidade. As comunicações difíceis — e para o volume das transações habituais, perfeitamente inúteis mesmo — simplificavam o trabalho de encurralar o mundo no estreito âmbito dos insignificantes aglomerados urbanos, em que a humanidade vegetava, circunscrita ao teto de suas casas e à largura de suas ruas. A própria idéia de pátria, que nos legaram, e que deveria imitar um instinto profundo como o das abelhas, era acanhado e egoísta. Faziam-lhes falta aos nossos avós as asas com que o inseto perambulava, tonto de luz e de sol, pela esfera azul do firmamento. O regionalismo, ou, mais acentuadamente, o campanilismo, era, pela força do hábito, das tradições, da educação, o sentimento patriótico mais bem vincado, e, muitas vezes, o mais perigoso da espécie. A função da família, portanto, não era nem pesada nem difícil, asfixiada por uma série de praxes disciplinares, que o lazer da existência autorizava a realizar com toda a calma.

Quando a obra oficial da escola entrava em vigor, contava ela, além do apoio permanente da família, com outro auxiliar poderoso: o período do aprendizado profissional de seus ex-alunos. Era o complemento lógico, natural, indispensável e fatal de sua obra. Todo o currículo escolar tendia para esse remate. E o tempo gasto pelo aluno, munido do certificado de ensino primário, no seu noviciado nas fábricas ou nas oficinas, podia computar-se como estágio escolar ainda. Aí a sua formação recebia os retoques precisos, como os de uma peça saída da forja que a lima ajusta ao encaixe conveniente. Fechava-se o ciclo: o que a educação popular, vulgarmente chamada primária, podia dar, estava feito.

O ESGOTAMENTO DA FÓRMULA

Foi esse estado de organização social que, a certo ponto do século passado, as descobertas científicas destruíram.

Durante os primeiros tempos, tentou-se obviar ao mal com paliativos e sucedâneos. É isso da essência humana e não há que deblaterar, O homem, por efeito mesmo da educação que lhe hão secularmente ministrado, não gosta de destruir o que está de pé e prestou serviços. Daí o seu amor pelas ruínas e pelos museus. E enquanto algumas vozes começavam a erguer-se no bruaá do universo, conclamando pelas mudanças salutares e radicais, ele tentava evitar a reforma e adiava o termo da entrada em vigor do novo regime.

Eis senão quando, um acontecimento extraordinário, cujos efeitos desastrosos pesam ainda dolorosamente sobre nós, focalizou, de maneira imprevista, os fenômenos que a massa ignorava. Foi a guerra. O turbilhão da tremenda carnificina de 1914 ensinou, em menos de cinco anos, pelo esforço titânico em que o mundo se esgotara, mais do que a espécie havia aprendido num século.

A primeira certeza, que ressaltou logo à evidência, foi a de que a escola “não socializava mais a criança”, isto é, não era mais capaz de pô-la em diapasão afinado com a sociedade, a que teria de pertencer ativamente, dentro de pouco, como um membro treinado e perfeitamente ao par de seu mecanismo. Não respondia mais às necessidades das multidões que careciam — e cada vez mais carecem — de educação segura e rápida.

O mundo inaugurara a era da velocidade, mas a escola continuava a ensinar sem a menor preocupação de aproveitar convenientemente o tempo. Desambientava, pois, o educando. E como na sociedade a atmosfera é uma só, porque existe um clima da época, que a ninguém é dado ignorar sem declarar-se fora da comunidade e, portanto, fora da lei, clima formado por uma complicada trama de fatores, cujas raízes afundam, história a dentro, na fisiologia e na psicologia racial, a escola perdera nitidamente o controle de sua tarefa e navegava serenamente em seu navio a vela, enquanto, por cima dos mastros e das enxárcias, passavam, trepidando de gasolina, os aeroplanos e hidroaviões.

A INDÚSTRIA CONTRA A ESCOLA

A escola esquecera o contacto com a realidade. Depois da tremenda prova que fora a guerra, ainda ignorava que dois óbices formidáveis lhe invalidavam os princípios em que se baseara antes:

O primeiro porque o trabalho perdera, de maneira quase absoluta, o seu valor educativo intrínseco. Parcelado até onde o permitiam as experiências de laboratório, em que se notabilizara Taylor, o fundador da Psicotécnica, substituído pelas máquinas nas suas tarefas mais pesadas e exaustivas, ao mesmo tempo que concedia melhor remuneração pelos serviços mais leves, fruto da produção intensiva, ia-se fazendo cada vez mais simples, mais banal, mais enfadonho, torturante e alucinante de monotonia.

A função da análise e do raciocínio, a única que põe alerta a consciência, relegava-se para segundo plano, talvez mesmo para terceiro, ínfimo e insignificante. Não havia mais que esperar dela para alargar a esfera cultural do operariado ou para aumentar-lhe o acervo de conhecimentos. A série de movimentos com que se iniciava um homem numa fábrica, era a mesma que poderia estar repetindo dez anos depois. O trabalho estava, pois, e está, devido a uma seleção científica rigorosa, sem as suas fontes de mais subido valor educativo, e, industrial e socialmente, reduzido ao mesquinho papel de ganha-pão.

O ESFACELAMENTO DA FAMÍLIA

O segundo residia na desagregação da família. Tudo concorreu para mudar-lhe o aspecto e a força de influência, mas nada tanto quanto a incorporação da mulher às fileiras dos trabalhadores. Onde a mulher abandonava o lar para prover-lhe ao sustento, onde ela deixava de ser integralmente, como mãe, esposa, filha ou irmã, a flor que perfuma a existência nas alegrias e o bálsamo que pensa as feridas nas horas de desconforto, para ser também um soldado na grande batalha pela conquista do pão, seria ridículo o lirismo e o romanticismo ultrapassado das “cadeias de ouro”. Ela não era mais, e unicamente, a companheira carinhosa, a guia sorridente, a abrir mão, na sua resignada generosidade, da própria independência em benefício exclusivo do núcleo humano que formava em seu redor. Nivelara-se ao homem, cuja insuficiência econômica completava e corrigia. Era-lhe igual, portanto. Se legalmente esse direito não lhe fora logo reconhecido, de fato, ele existia à base da nova organização e independia de cânones para afirmar-se.

O princípio fundamental da constituição da família antiga — o pátrio poder romano — diluído pelas vicissitudes e pelas transformações sucessivas da economia do mundo, acabava de desaparecer, chocado de encontro a esse novo conceito social do “direito ao conforto”.

O afastamento da mulher do lar ficou praxe e sistema. E crescendo desmesuradamente as cidades, empurravam-se as residências das classes populares para zonas cada vez mais distantes dos centros de trabalho, criando-se assim o hábito da viagem diária. E esse fenômeno geral, se era um fator educativo por excelência, era também um motivo mais de retardo na entrada para o lar. Os filhos permaneciam cada vez mais abandonados.

Para o antigo conceito da sociedade, tudo isso se afiguravam desgraças. Infelizmente, porém, de nada valia carpir sobre elas e descabelar-se em queixumes e impropérios, em lástimas e lamentos, exalçando as virtudes de antanho. Valia e urgia muito mais repetir, com a educação, a lenda da Fênix, que renascia das suas próprias cinzas. Era mister encontrar um caminho, pelo menos uma pista, que levasse ao restabelecimento do equilíbrio perdido.

AMPLIANDO A ESFERA DA LIBERDADE

Uma das primeiras e mais longínquas manifestações da busca desse caminho, reside na progressiva preocupação pela maior liberdade do aluno, regra que acabou postulado e já hoje mania obsidente. Foi surgindo aos poucos, na consciência coletiva, a idéia imperiosa do alargamento do quadro disciplinar do educando. Veio, antes de tudo, a eliminação de todos os castigos físicos, condenados como expedientes ferozes e inutilmente cruéis, o que, aliás, estava perfeitamente conforme com o espírifo da hora, para o qual o idealismo do Quatorze de Julho continuava em franca evolução. Isso, contudo, era apenas uma forma de violência exteriorizada. Havia outras, mais sutis e menos ponderáveis. Assistimos, destarte, nestes decênios mais chegados, à campanha em que se empenharam todos para abolir da escola toda e qualquer manifestação de coação e de constrangimento.

Essa rebeldia estava na lógica do tempo. Era uma das respostas de aberta e declarada oposição, que o fim do século XIX dava ao seu maior filosofo, ao solitário pensador de Sils-Marie, o grande Nietzsche, que, pouco antes de penetrar os umbrais da noite trágica da loucura para transpor os definitivos da morte, afirmava ainda a dor como única e verdadeira memória da humanidade.

A INICIATIVA CONTRA A DISCIPLINA

A vida provara e provava o contrário, A criança, que deixavam sem guia, entregue a si mesma e à sua própria argúcia, precisou de uma qualidade nova para resolver os problemas numerosos que lhe propunham diariamente, enquanto os pais se achavam fora. Precisou da iniciativa, qualidade completamente dispensável antes, quando as mulheres ficavam em casa.

Por uma naturalíssima lei de harmonia psicológica, o espírito de iniciativa só se desenvolveria à custa da noção anterior da disciplina. Dês que se animava e incentivava a faculdade de resolução pronta, a virtude da obediência entrava em declínio, porque a iniciativa, em cérebros tão pequenos, teria de viver em atmosfera propícia que não devera e não pudera ser a que lhe proporcionava o exercício do pátrio poder em voga, prolongado pela disciplina férrea, asfixiante, prussiana, em uso nas escolas e dimanada diretamente daquele. O antigo sistema, sólida e fortemente conjugado em todas as suas peças, não sobreviveria, contudo, se uma só lhe faltasse. E a falha, que lhe apareceu, era curial para o funcionamento: faltou-lhe a submissão do infante, assiduamente vigilado nos seus gestos e continuamente adestrado no uso do cérebro alheio para pensar e resolver. O sistema tinha que cair.

Frise-se, entretanto, que a liberdade do aluno era apenas um aspecto de um problema muito mais complexo, e que, por muito grande que fosse na sua outorga, não podia degenerar em licença. Tinha a sua esfera limitada por um ideal de educação humana, a que a ciência coeva condicionava a extensão, através dos conhecimentos atuais. A liberdade só não podia aspirar ao papel de sucedâneo da família e de substituta do treino educativo do trabalho. E os homens precisavam e andavam justamente atrás de elementos capazes de se tornarem esses substitutos, que a obra de criação e preparação dos filhos exigia.

AS NOVAS ESCOLAS

Foi, então, mister imaginar um aparelhamento completo e orgânico, não apenas lógica, mas naturalmente encadeado, próprio a realizar esse penoso e lerdo empreendimento de “socializar a criança”.

Nasceram daí esses tipos de escolas novas, que iniciam a criança no jardim de infância, acompanham-na pelo estágio primário afora, pretendem guiar-lhe os passos nos institutos orientadores da vocação e nas casas de formação profissional, para só depois dizer ao operário ou artífice que está apto, isto é, socializado.

Essas escolas aproveitam-se da atividade normal da criança, apanhada tanto quanto possível nas mesmas condições que no seu estado natural em casa, para encaminhá-la suavemente à sua própria direção. Por isso, a escola nova quer ser de preferência um internato, quer instalar-se em zona de campo ou a ele limítrofe, valendo-se do seu ar puro, da sua insolação demorada e do seu cenário; faz do treino sensorial o expediente máximo de sua pedagogia e se organiza com a preocupação do estudo psicológico e fisiológico do infante, de seu gênio, de sua índole, de suas aptidões e preferências, de seus interesses imediatos e da duração desses interesses.

Quem não está vendo que ela pretende suceder a uma instituição desaparecida, com suas tarefas não impostas, mas sugeridas ao espírito imitativo da criança? Quem não verifica que todas essas novas funções escolares pertenciam de direito à família tradicional e que foram absorvidas pela escola nova, incorporadas à sua disciplina, que, como naquela, é a mais branda e patriarcal possível? E quem não adquire a certeza de que tais institutos de ensino se organizam para suprir uma soma de conhecimentos que outrora as oficinas forneciam, através de um tirocínio longo, gasto para formar o artífice completo, que ficava senhor de todos os segredos de uma determinada profissão? Para quê esse absorvente empenho do trabalho manual, nas escolas primárias, e para quê a disseminação dos estabelecimentos profissionais, se as oficinas e fábricas pudessem, como antigamente, proporcionar um longo período de aprendizado, muito mais fecundo para o intelecto infantil que quanta dissertação didática?

Mas as oficinas e as fábricas, constituídas hoje sob o ponto de vista da eficiência, não têm tempo a perder nem material a desperdiçar. E estes dois fatores são essenciais em toda aprendizagem.

CONCEITO NOVO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

Se se quiser, contudo, a prova decisiva das modificações profundas que o critério recente do “direito ao conforto” imprimiu à obra de preparação dos nossos filhos, examine-se a evolução por que passaram todas as iniciativas de assistência à infância.

Por ela, a obra da moderna socialização da criança, por isso mesmo que tem de substituir a família e as oficinas, isto é, a tarefa educativa do lar e a tarefa educativa do trabalho, terá de iniciar-se nas creches e escolas maternais para terminar nas escolas e liceus de artes e ofícios, no ano que o aluno os abandona para dedicar-se à luta da existência, colocando-se no lugar que as suas aptidões lhe reservam, frente a frente com a vida. Todas as variadas instituições, que gravitam em torno dessa obra, entendida como o ciclo da educação popular, são satélites de um único pensamento central.

Ninguém, portanto, as considera mais obra à parte, mas indissoluvelmente ligadas à tarefa educativa, e, o que é mais significativo — não se aceitam mais envolvendo as idéias conexas de piedade e caridade, que se afiguram laivos ou resíduos pejorativos de uma mentalidade que pretende enfeitar-se, ainda neste século, com o aparato dos sentimentos altruísticos. A maior organização que existe nessa matéria, a da cidade de Viena, capital da Áustria, mostra bem qual é o espírito que a ditou e como está ultrapassada aquela mentalidade: um país que bem entende a sua missão na terra, máxime se é uma democracia, tem de fazer da eficiência o lema da sua trajetória no ciclo da história e não pode desperdiçar, sob nenhum pretexto e de nenhuma forma, a menor parcela de capital humano. Todas as existências aproveitáveis, total ou parcialmente educáveis, são preciosas e necessárias e é pela colaboração e pela cooperação de todas as energias disponíveis que o globo poderá aspirar à perfectibilidade crescente.

Ora, numa organização como essa — e força será aceitá-la doravante, coagidos pela luta da hegemonia internacional — a piedade e a caridade não são apenas ingredientes indesejáveis, porque humilhantes — e a humilhação não cabe numa obra que quer valorizar a energia humana — mas são mesmo fatores contrários à corrente geral, que divisa na assistência apenas dever e obrigação social. Assistência passa, assim, à categoria de obra de previdência. É por patriotismo, é por um crescente aproveitamento da raça e da espécie que os departamentos da assistência se hão de criar e se estão criando. Com o aplauso da massa, se lhes intuir o alcance, contra ela ou mesmo contra certas classes, se entenderem mudar o significado de uma responsabilidade inalienável, transformando em gesto de desprendimento o que é simples tarefa de cooperação e que terá de processar-se no globo como um imperativo categórico da consciência coletiva. Se o homem volta a ser, como nos bons tempos de Protágoras, a medida de todas as cousas, o nosso sonho e o nosso empenho será fazê-lo cada vez mais homem, no amplo sentido que a palavra comporta.

A ESCOLA E A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

Todos os rótulos, portanto, com que as escolas modernas vêm sendo apresentadas, não poderão esconder nunca, ao observador perspicaz e arguto, os dois pernos sobre que assentam. E as teorias filosóficas e os vistosos postulados sociológicos com que nos enchem a cabeça, para explicar-lhes a origem, não passam de justificações posteriores, surgidas lentamente da análise dos fatos e fenômenos sociais na hora em que se estão desenrolando. A verdade, porém, fica sempre no fundo: o sistema educativo, em vigor numa época determinada, é fruto e reflexo da organização do trabalho da sociedade a que serve. Quando este se modifica, a escola, isto é, aquele aparelhamento a que incumbe o preparo adaptativo da massa maior dos membros da comunhão, não pode fugir à fatalidade de transformar-se.

E foi exatamente isso que aconteceu, no fim do século XIX e no começo do atual, naquela parte do globo que convencionou chamar-se a si mesma “o mundo civilizado”.


 

A CRISE EDUCATIVA NACIONAL


 

A existência real, positiva, de uma crise universal de educação, cujo quadro esbocei no capítulo anterior, levou os nossos homens a verificar que também havia uma crise educativa brasileira.

Inúmeros efeitos da nossa eram ou pareciam idênticos aos que se apontavam lá fora; numerosos aspectos da de cá se nos afiguravam decalques dos de lá. Que é que havíamos de concluir? Aquele velho e traiçoeiro processo dialético da analogia induziu-nos a pensar que as causas determinantes das duas crises eram justissimamente as mesmas. Seria verdade de fato ou estávamos apenas repetindo aquilo que acontece diariamente a bons clínicos: diante da semelhança, às vezes da identidade dos sintomas, formulam o mesmo diagnóstico para casos de essência absolutamente diversa?

O exame sereno e desapaixonado do problema mostra que nós fomos vítimas de um erro de generalização apressada. Cometido de boa fé e no melhor dos intuitos, mas erro apesar de tudo.

Em primeiro lugar, o caráter de universalidade que reconhecíamos à crise alienígena não era tão veemente assim que autorizasse a aplicação exata ou mesmo adequada do qualificativo. A crise não era universal porque somente abrangia os países que mais rápida e valentemente se haviam industrializado na América e na Europa. Se a nós a característica de universalidade nos aparecia indiscutível, partia isso de uma razão diferente: é que esses eram os povos que mais em contacto estavam conosco, essas eram as nações que mais cultura possuíam e delas recebíamos mercadorias, luzes e ensinamentos.

Entretanto, mesmo abstraindo-se todo o imenso peso de três continentes, a Ásia, a África e a Oceania, na própria Europa ficava uma larga parte — e por sinal que a maior parte — que não padecia da crise naquele aspecto. Abra-se um livro moderno, vindo à luz em 1929, de um notável economista francês, “Les deux Europes”, de Francis Delaisi, e veja-se como ele divide a península da Eurásia em duas secções perfeitamente distintas, como se constata do mapa que o citado autor apresenta: industrial, compreendendo a França, a Bélgica, a Suíça, a Holanda, a Alemanha, a Dinamarca, a Áustria, a Tchecoslováquia, a Suécia, a Noruega, a Inglaterra e uma parte da Escócia, um trecho da Polônia, metade da Hungria, o norte da Itália e uma pequena área da Espanha, ao todo perfazendo 230 milhõçs de habitantes sobre um território de 2 milhões e meio de quilômetros quadrados; e a outra, agrícola, compreendendo todas as terras que faltam naquele quadro, com um total de 240 milhões de almas, vivendo num território de mais de sete milhões de quilômetros quadrados. O direito, pois, de estender o epíteto até o limite de “universal” parece-me excessivo e infundado, desde que a própria Europa, pelo seu maior quinhão, não participa dele.

Em segundo lugar — é o que verdadeiramente importa — a crise brasileira é mais grave, mais profunda e mais velha que a dos países para os quais nos voltamos em busca de remédios.

O fenômeno social que mais espalhafato e mais alarde provocou em todo o planeta, mercê dos novos e poderosos meios de comunicação e vulgarização que esses países possuíam, foi justamente a crise que atacou os povos mais diretamente empolgados pela preocupação industrial. Foram eles decerto que sentiram, em toda a sua plenitude, o peso da reorganização do trabalho, da produção, do esfacelamento da família e da perda do valor educativo do esforço individual. Isso não prova, porém, que seja ela a mais interessante, a mais curiosa ou a mais atraente ou mesmo a mais notável das crises recentes. Há outras que se estão, como aquela, processando até agora, e tão dignas, ou talvez mais, por um sem número de motivos, da atenção humana: a hindu, a russa, a chinesa... E mais que todas, sem dúvida, a nossa.

DEMOLINDO O EDIFÍCIO ECONÔMICO

Quando os primeiros albores surgiram no horizonte da Europa industrial, anunciando a aproximação de mudanças e metamorfoses que a guerra tornaria agudas, nós já havíamos chegado ao apogeu da crise nacional. Abolíramos a escravatura, ponto crítico de um perigoso movimento interno, que submetera a estrutura do organismo pátrio à mais violenta, e, quiçá, à mais desarrazoada revolução legal que o Brasil ainda sofreu.

Todo o edifício econômico do nosso passado, pela conjunção de dois fatores incontornáveis, a desmesurada extensão territorial e a pequena densidade demográfica, baseara-se no latifúndio. E o latifúndio descansava há séculos sobre o lombo do negro.

Quando a tormenta estalou e derrubou o edifício, verificamos que havíamos cometido este absurdo e este crime: havíamos desonrado a única forma de energia verdadeiramente nobre do planeta, a energia humana.

O SALDO NEGATIVO DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

E encontrávamo-nos de repente, sem preparação prévia, com um “déficit” tremendo: faltava-nos um conceito mais alto e mais amplo da superioridade do trabalho e ignorávamos, por completo, a profunda ação educativa que ele exerce sobre as massas. Viciara-o e inquinara-o o nosso, durante mais de dois séculos de colônia e mais de meio de vida independente, o interregno das duas escravidões: a negra e a vermelha. Tendo organizado a fortuna pública a golpes de força, a lei áurea punha, sob os nossos olhos atônitos e assombrados, a figura torva da herança que a violência escravagista nos legara: a antipatia pelo trabalho, antipatia que se encanzinava particularmente contra todas as fainas agrícolas. Havíamos criado no espírito das classes menos cultas, e que constituem, em toda a parte, o cerne das nacionalidades, o horror pelas atividades mais rendosas e nas quais se baseia, invariavelmente, a riqueza do mundo. Desmoralizando e mesmo ridicularizando, no seio das camadas populares, as virtudes supremas do trabalho, atingíramos em cheio, nos seus centros vitais, o patrimônio da economia brasileira, desonrando-lhe as fontes de produção.

Duas tarefas, portanto, e cada qual mais formidável, se nos apresentavam a um tempo. A Europa industrial precisava de, celeremente, reajustar-se às inovações científicas, reorganizando o trabalho. Mas a nós, ao mesmo passo que essa esmagante “corvée” nos impunham as vicissitudes históricas, agigantava-se, premente e indeclinável, a necessidade, de antes de tudo, reabilitar o trabalho. Porque havia, por baixo da tempestade econômica, uma crise psicológica subterrânea, mais devastadora nas suas conseqüências e contendendo com a nossa formação espiritual. Era essa de haver-se o brasileiro habituado, desde os primórdios colonizadores, a separar completamente as duas formas de trabalho que o mundo lhe parecia comportar: a aristocrática e a servil, a que era digna dos homens livres e a que era o ferrete do escravo, acabando por confundir no mesmo inenarrável desprezo, o homem-cousa, o homem-propriedade com as atividades manuais a que se dedicava. E como de preferência o negro ia para a lavoura, as profissões urbanas viram-se isentas desse labéu.

E se se quiser um exemplo bem nítido, bem vivo, bem característico da força com que esse preconceito hostil à atividade agrícola atuou sobre a nossa mentalidade, é só volver, ainda hoje, as nossas vistas para certos núcleos da população nativa. No tão falado pendor do nosso caboclo pela vadiagem, cuidam uns encontrar mamparrice pura e outros, moléstia apenas. Será, não duvidemos, doença em muitos casos, mas para mim, muito mais que propriamente indolência ou preguiça, no sentido fisiológico do termo, há, quase sempre, um resíduo da psicologia coletiva, oriundo dessa antipatia pelo trabalho, que se cristalizou em três séculos de tradição.

O nosso horror por tudo quanto pudesse relembrar a pena infamante de escravos foi tão sensível, tão doentio e, humanamente, tão agudo que persistem ainda, por esse enorme Brasil afora, certas aparentes idiossincrasias, às quais debalde se encontraria explicação razoável. A ojeriza pelo milho, apesar de seu grande valor nutritivo, substituído pela mandioca inferior, que o caboclo de inúmeras regiões manifesta até hoje, só tem como motivo verdadeiro o haver sido o angu a base da alimentação do negro do eito.

INÍCIO DE RECONSTRUÇÃO

Pois bem, senhores, que fizemos nós para acudir a essa contingência penosa, quando milhares e centenas de milhares de infelizes, embriagados pela volúpia da liberdade, abandonavam as lavouras? Não podíamos contar com os inúmeros aderentes e agregados que, de todas as castas e cores, viviam normalmente às sopas da família senhoril e não eram capazes de substituir os trânsfugas, educados que tinham sido. secularmente, no horror e no desprezo do trabalho?

Promovemos, antes de mais nada, em muitos pontos do país, a imigração estrangeira, Já há quem se sinta disposto a malsinar esse gesto, depois que certo autor norte-americano provou, ou asseverou, que as correntes alienígenas não aceleram em nada o crescimento dos povos, desde que aumentando o coeficiente externo, diminuem o quociente de acréscimo vegetativo interno e de tal modo que, no balanço final, o país que sofreu o processo imigratório, mais perdeu do que ganhou. Há outros que apenas vêm, na chegada dessas levas, os homens que, num dado momento, vieram substituir o escravo, salvando-nos de um aperto transitório. Outros ainda apenas reconhecem o tributo que essa gente pagou ao processo de arianização e clarificação da raça, porque, isenta de preconceitos da cor, não trepidou em cruzar-se com os descendente de Cã.

O mais belo e mais fecundo significado desse gesto está inscrito no concurso que as levas imigratórias trouxeram à obra de reabilitar o conceito do trabalho e de enobrecer o sentido da labuta. Esse é o seu galardão incontestável, mais importante que a soma de atividade desenvolvida, mais vigoroso que a injeção de glóbulos vermelhos, mais expressivo que a fortuna reerguida, O imigrante trazia o exemplo do valor do esforço individual e como ia para as fazendas e como esse exemplo não lhe custava nada, porque naturalmente adstrito à sua psicologia, representou um benefício para nós, na quadra insegura e mal-firme que atravessamos, bem maior que a própria opulência. Nunca se gabará, por isso, suficientemente, a inteligência e o descortino dos homens que promoveram a imigração.

Não se esqueça, contudo, para não perder o hábito da serenidade e da imparcialidade, que essas levas só se dirigiram para determinadas porções do território nacional. E mais ainda que o grosso dessas correntes nos veio daquelas zonas que Delaisi inclui na Europa agrícola, onde é maior a porcentagem do in-preparo individual. Complicávamos o problema já de si difícil, criando duas zonas distintas no país: uma em que a luta pela reabilitação do trabalho não gozara do benefício do exemplo dos homens de outras terras e que se estendia do paralelo de 20 graus para o norte; outra, ao sul do mesmo paralelo, em que se iniciara a cura da crise psicológica, mas em que se criava uma necessidade nova: a de nacionalizar as turmas estrangeiras (1). Tudo, enfim, retornava ao problema fundamental. reeducar as massas, dentro das premissas e dos antecedentes históricos do fenômeno contemporâneo.

Fizemo-lo? Dói ter de declará-lo assim em público, mas eu só posso, com honestidade, responder de uma maneira: “Integralmente, eficazmente ou mesmo suficientemente, não”.

Aparo aqui a exclamação do auditório, que vejo a pingar-lhe dos lábios:

— Mas, então, estes quarenta anos de lutas obstinadas, de trabalhos tenazes, de reformas contínuas não foram despendidos no intuito de restabelecer o equilíbrio perdido? O Brasil não trabalhou só para isso?

— Sim, trabalhou. Partimos, contudo, de premissas erradas e generalizamos fatos por aparências enganosas. Para deixar bem claro o meu pensamento, tenho de retomar o tema no ponto em que o larguei no começo deste capítulo.

OBSESSÃO DA CÓPIA

A existência de uma crise educativa brasileira, paralela a uma crise por nós chamada de universal, induziu-nos a ir pedir aos países europeus, regras e conselhos para a nossa conduta. Ora, todos esses povos, avassalados pela crescente industrialização de suas atividades, por força de circunstâncias inexistentes aqui, eram justamente aqueles que nada poderiam oferecer de sua própria experiência capaz de aproveitar, na realidade, aos nossos problemas. Se não bastasse a contingência, por eles ignorada, de que nos incumbia reabilitar o esforço no conceito popular, para que nos afastássemos do seu exemplo, era suficiente o fato de que a nossa reorganização do trabalho não se parecia em cousa nenhuma com a que eles pleiteavam e precisavam. A deles era na indústria, a nossa era na agricultura, porque é indispensável não olvidar que. em última análise, esta é que fora a única atingida pela revolução triunfante a 13 de maio de 1888.

A lógica mandava, portanto, que, a ter de escolher modelos, nos voltássemos de preferência para os países da Europa agrícola, nunca para os da industrial. Não o vimos; nem sequer o pressentimos. Por que? Não será difícil explicá-lo:

País novo, sem tradições fundamente vincadas e, por conseguinte, sem originalidades retumbantes que cultivar, acompanhámos a corrente que nos pareceu ser a tradicional: havíamos sido descobertos por uma raça européia, falávamos uma língua latina, fôramos educados por uma mentalidade de empréstimo, a portuguesa, que nos exportou os critérios com que ela própria erradamente se orientava e que tanto serviam à península, como serviriam ao Brasil ou a uma tribo do Estreito de Torres. As nossas produções iam para essa Europa, de onde nos vinham os artigos que nos faltavam, desde as batatas e o trigo às idéias e sistemas filosóficos. Porque não imitaríamos os modelos de organização de onde nos vinham as mercadorias de luxo e os gêneros de primeira necessidade?

O uso inveterado, entretanto, de examinar o que se fazia lá fora, para o aplicar fielmente aqui, nos fez esquecer, para além de um limite razoável, o nosso próprio ambiente. Mesmo tal fato até um certo ponto se compreende: Ratzel ainda não aparecera e a geografia humana era, como ainda é hoje, uma ciência desprezada de que os nossos pró-homens tiram argumentos de mofa e zombaria. E aconteceu que os próprios remédios e mezinhas prescritos e religiosamente seguidos, imitados por força de fórmulas e receitas que se haviam revelado heróicas em várias oportunidades, só lograram agravar o nosso estado de saúde.

Dito assim, nesse ar doutrinário e generalizador, parecem essas frases carregadas de pessimismo. Fique, entretanto, claro, de uma vez para todas, que nada disso há aqui e que o meu pessimismo é o de um homem que acredita no futuro de seu país. O que quero fazer, é apontar fatos e dados concretos e propor soluções práticas, rápidas, realizáveis.

O IRRESISTÍVEL ENCANTO DO URBANISMO

O pior de todos os achaques do Brasil tem sido essa mania da cópia servil e inconsciente sem consulta aos dados dos nossos problemas. E por isso, enquanto o país ansiava por uma legislação visceralmente rural, imbuída até a medula dos ossos do critério da assistência à lavoura, a cópia fez nascer e crescer e desenvolver um quadro de leis caracteristicamente urbanistas, de proteção escancarada e deslavada às cidades, de incompreensível incremento à expansão das grandes urbes.

E isso no meio dos nossos ditirambos à vida rural, de nossas palinódias ao “rumo à terra”, de nossos versos eloqüentes e bombásticos ao “sertão em flor”, de nossa grita, de nossos alarmes, de nossas tiradas bíblicas contra o êxodo dos campos. Mas, na elaboração das leis, na constituição de nossa disciplina social, é sempre a cidade que leva a melhor. Toda a organização de nossos serviços públicos ou de utilidade coletiva é feita e processada à revelia da zona rural e como se ela não existisse. E os nossos reformadores estão tão fortemente imbuídos desse conceito fundamental da “polis” que nem sequer chegam a percebê-lo. É-lhes uma segunda natureza, tal qual a dos gregos dos bons tempos de Alcebíades. Estarei exagerando? (2).

EXEMPLOS CONCRETOS

Examine-se, então, o caso do Distrito Federal. A Constituição prevê que ele não permaneça onde se acha e estabelece que, quando a mudança se efetuar para o Planalto Goiano, o atual município do Rio de Janeiro passe a constituir um Estado à parte. Praza aos céus que o atual Distrito nunca deixe de ser a nossa Capital da República, mas se um dia tal acontecer, que Estado será esse que só possui cabeça? Um Estado reduzido a uma única cidade, com uma pequeníssima zona rural anexa e que, dia a dia, mingua e se retrai diante do natural e indetenível avanço dos subúrbios. Terá de viver do concurso dos seus vizinhos e será, por isso. um Estado “sui generis”. Não haveria sido mais racional que o antigo Município Neutro, justamente porque compreendia a cidade do Rio de Janeiro, viesse, com a mudança, a ocupar o lugar de capital do Estado do mesmo nome?

Não seria, de certa forma, devolver àquela unidade da República a cidade que lhe fora arrancada, ao mesmo tempo que dar à grande urbe o complemento rural que lhe justificasse a existência?

Mas não quero ir buscar tão longe os exemplos. Prefiro servir-me da prata da casa paulista e não pretendo esgotar o assunto. Muito pelo contrário. E confio em que a memória dos ouvintes saberá juntar-lhe as achegas de sua experiência pessoal, dando os retoques que avivem o colorido do quadro.

Comece o balanço pela justiça e certifique-se cada qual em como a divisão em entrâncias consulta o critério urbanista: à medida que os juízes vão subindo de categoria, vão sendo removidos para cidades cada vez melhores e com honorários cada vez maiores. De maneira que as comarcas em que o predomínio rural é absoluto, os juízes têm menor retribuição e são, por conseqüência, os novatos no ofício. Os habitantes das zonas rurais levam assim duas desvantagens: funcionários sem grande experiência, mal pagos, vivendo em núcleos em que a incultura do meio os coloca em situação manifesta de inferioridade e que alimentam o desejo de neles permanecer o menor tempo possível.

Ninguém afirmará que seja melhor a situação da saúde pública. O que haveria a realizar em matéria de saneamento rural é tamanho que os administradores recuam diante do volume de despesas que o caso exigiria. Entretanto, nas capitais e nas cidades mais importantes, existe sempre um aparelhamento que custa boa soma ao erário e que, de fato, se movimenta e age beneficamente a favor das populações urbanas.

De passagem, pode ver-se como é aperfeiçoado o critério urbanista num simples detalhe: nos concursos de candidatos a educadoras sanitárias, constitui motivo para as mais baixas colocações o fato de ser a candidata professora de escola rural. É, ou melhor, parece uma niquice essa, mas denuncia um estado de espírito elucidativo.

Passando à organização bancária, o aspecto não será mais animador. Inúmeros publicistas e economistas não se fartam de demonstrar o mal que advém ao país da falta de institutos de crédito de feição popular, cooperativas mais que bancos, a juros baixos e prazos longos, que incentivem e insuflem a vontade da compra de terras de cultura para a exploração agrícola. São bancos que, nos países novos e pobres, proporcionam, aos que desejam trabalhar por conta própria, crédito prolongado. Que há disso por aqui? Pouco, quase nada. Não faltam, contudo, nas grandes cidades, os institutos que permitem hoje a qualquer cidadão a posse paulatina de seu lar, construído ao gosto e ao sabor do possuidor. E o próprio governo não se olvidou de fazer idêntica concessão aos seus funcionários para a conquista do lar... urbano.

Os serviços de utilidade coletiva, energia elétrica, luz, telefones dão a impressão de que foram inventados só para as cidades. É muito rara a Câmara Municipal que trata de salvaguardar convenientemente os interesses da zona rural para a fácil e cômoda implantação desses melhoramentos. Ainda recentemente, a Câmara de São Paulo encampou, na sua lei para a renovação do contrato com a Companhia Telefônica, um dispositivo caracteristicamente urbanista: delimitou uma área central com seis quilômetros de raio, estabelecendo assim uma zona privilegiada dentro da qual as ligações se podem obter sem a cobrança de taxas adicionais. Criou, destarte, municípios dentro do município, prejudicando a zona rural, que é a que habitualmente fica para além do raio fixado. Índice mais claro das nossas tendências abertamente urbanistas, não será dado encontrá-lo. E mui provavelmente o dispositivo vai ser imitado pelas câmaras das cidades mais importantes do Brasil. E isso, naturalmente, dará direito a que todas as demais empresas de serviços públicos pleiteiem obter cláusulas idênticas nos seus futuros contratos.

E nós a gritarmos, depois, que os campos se despovoam. Mas evidentemente que se hão de despovoar. Somos nós, os homens das cidades, que os estamos coagindo a essa prática, impondo-lhes medidas proibitivas na obtenção desse conforto que todos reclamam para viver.

E agora, respondam a uma pergunta sintomática: desde quando existe, em São Paulo, uma política rodoviária, honestamente seguida de acordo com um plano inteligente? A resposta é simples: desde 1920. Quer isto dizer que, até dez anos atrás, as administrações ignoravam legalmente que o crescimento de um país depende, em primeiríssimo lugar, da existência de bons meios de comunicação. A verdade não é essa: elas não o ignoravam, mas é que as rodovias beneficiam, de preferência, os núcleos rurais. E a política era outra.

O BALANÇO EDUCACIONAL

Em educação pública, se não bastasse o fato de que municípios ricos e prósperos, como Campinas, que tem uma arrecadação de mais de seis mil contos anuais, só possuem — quando possuem — serviço escolar na sede, não existindo uma única escola municipal nos bairros rurais, poderíamos apelar para o outro vício de só se haverem criado escolas profissionais, no Estado, com a orientação fidalgamente industrial. Só a última escola, a de Sorocaba, que mal tem um ano de instalada, pode ostentar algo que se pareça com o desejo de também acudir às fainas agrícolas daquele adiantadíssimo município. Ora, as indústrias crescem e proliferam nas cidades, de ordinário nas cidades grandes.

Observe-se ainda outro fenômeno, que reproduz o caso da justiça: os professores que vão para o campo são os que menores vencimentos têm. A regra é perceberem um terço menos, advindo desse fato que a zona rural é que recebe os neófitos, isto é, os noviços mal-saídos das escolas normais.

E registre-se ainda para pasmo do auditório: o esforço em prol do ensino rural é de ontem, representa quase uma novidade em nossas rodas pedagógicas, porque, durante trinta anos de República, a zona dos campos ficou literalmente abandonada. Iam para ela os poucos e pobres mestres sem a proteção de ninguém e sem jeito para arranjar padrinho. E nunca existiu um plano de conjunto, bem articulado na sua estrutura, que acudisse efetivamente as populações mais necessitadas. Parece-lhes incrível?

O primeiro movimento de nossos republicanos históricos foi organizar a escola citadina. Lendo-se a lei e o regulamento paulista do tempo, sente-se que há nele uma idéia fixa, dominante, soberana: a escola da cidade. E durante trinta anos, as tendências marcadas de todas as sucessivas administrações, não pensam e não cuidam em outra cousa.

O sonho é o alfabeto. É ele que, no verbo inflamado dos nossos e alheios poetas, fecha uma cadeia para cada escola que se abre. Sobrevém a onda dos grupos escolares. Esses estabelecimentos só eram criados nas cidades mais importantes, isto é, nas cabeças de comarca. Mais tarde, as sedes de município começaram a receber o régio presente da escola que não era régia. E mais tarde ainda é que surgiram, timidamente, as “escolas reunidas”, espécie de grupo escolar em escala reduzida. E, assim mesmo, estas só se localizavam nas sedes de município de menor relevância e nas sedes de distrito de paz que apresentassem densos aglomerados urbanos.

Em 1920, senhores, enquanto as escolas reunidas não iam além de 52, com menos de 250 classes ao todo, já os grupos escolares eram 195, com mais de três mil classes. E as escolas isoladas, se lhes diminuirmos as de sede de municípios e distritos de paz e as escolas e cursos noturnos para a alfabetização de adultos, que sempre se localizaram nas cidades, não chegavam a mil.

Estávamos, entretanto, no ano do recenseamento federal, que acusou, para São Paulo, 4.600.000 habitantes, dos quais apenas um milhão e meio residiriam nas cidades e vilas do território do Estado. De modo que, das quatro mil classes de ensino oficial existentes, mais de três quartas partes cabiam a uma população que mal chegaria a um terço da população geral, destinando-se o escasso quarto restante das escolas aos dois terços da população não urbana.

E tenho ainda de fazer uma restrição ponderável a este último número. É o de lembrar que as chamadas escolas rurais, que permaneciam realmente em funcionamento ativo (porque a praxe era funcionarem poucos meses por ano) se localizavam de preferência nas estações das estradas de ferro e em os núcleos de campo próximos às cidades e, portanto, de fácil acesso com as viagens de ida e volta diárias do mestre-escola. Imagine-se, pois, a que se reduziria, na realidade, a insignificante minoria de escolas verdadeiramente rurais, situadas em núcleos de zonas afastadas.

A CULPA DO FIGURINO

O primeiro ímpeto de espíritos desprevenidos seria o de condenar essa política como lesiva aos interesses do país e como visivelmente injusta, porque, afinal de contas, é a terra a alma-mater da vida do planeta. Há, entretanto, que ponderar.

Foi a esse afã exclusivista em prol da cidade que, não só o aparelhamento do ensino paulista, mas toda a engrenagem social do país, deveu as características de organismo definitivamente constituído que hoje tem. Cidades sempre existiram e hão de sempre existir, enquanto no globo permanecer esse animal gregário que é o homem. Justo será que elas usufruam das regalias e proventos que a sua privilegiada posição de densos aglomerados torna fáceis de conceder e a que têm incontestável e legítimo direito.

O que há a condenar, portanto, não é a preocupação de beneficiar as cidades, mas a de beneficiar só a elas, esquecendo toda a imensa área que lhes fica em volta e que não é desabitada, que não pode ser desabitada, sob pena de desaparecerem também as urbes. Se as cidades, para usar uma velhíssima imagem, a que a idade não diminui o poder de expressão, são como as pedras preciosas de uma gema, não se engastam elas, contudo, no vácuo, mas sobre as peças da jóia, e essas peças serão sempre de ouro ou de platina, para que a gema tenha preço. Esquecê-lo equivale a esquecer que, se é verdade que as flores e os frutos dessa árvore gigantesca, que é um povo, se alojam, de preferência, nos meios urbanos, também não é o menos que o tronco e as raízes, isto é, o cerne das nacionalidades, permanecem, precisam fielmente permanecer no campo.

Não é exato, porém, que o hajamos esquecido. Faço essa justiça à inteligência brasileira. O culpado de todo esse movimento parcial foi o figurino que adotámos. Quisemo-lo copiar com todas as minúcias do modelo. O modelo era a cidade industrial européia ou norte-americana. E nós, para sermos bem fiéis e para merecer os elogios dos mestres, inventamos até uma indústria brasileira. Quer dizer que inventamos, nas palavras incisivas e sarcásticas de Vivaldo Coaracy, essa cousa em que “o capital é, regra geral, estrangeiro; a máquina é estrangeira; os industriais, estrangeiros; a matéria prima, em grande parte, é estrangeira; os técnicos são estrangeiros; o operário é estrangeiro. Nacional só é o consumidor”. (3)


 

A PROFUNDIDADE DO MAL


 

Aquele preceito de equidade e de serenidade para que. seguidamente, tenho apelado nestas palestras, obriga-me a agregar um codicilo à minha última análise.

Na crítica, por mim feita, e a que, sem retórica balofa, se pode chamar implacável, das diretrizes urbanistas de nossa legislação, não fiz restrições algumas quanto ao trabalho destes derradeiros anos. E a justiça manda declarar que, de 1920 para cá, pelo menos no capítulo da educação popular, a obra realizada é a maior de quantas há notícias na história do país.

Como jornalista não o asseverei e não o afirmaria nunca. A ética profissional obrigava-me a dizer sempre que, enquanto se não atingisse o ponto máximo, a tarefa estaria ainda atrasada. O ponto de vista é de quem se põe fora da nação e examina o concerto universal. Como crítico, que vem analisando imparcialmente as fases intensas de nosso crescimento interno, não posso negar-me a constatar um fenômeno que se passa ao alcance dos meus olhos.

E para não abandonar a praxe de servir-me da prata da casa, tenho de avançar ainda o exemplo de São Paulo.

A política que se vinha seguindo, de só proteger as cidades, teve ainda outros resultados, além daqueles que assinalei em minha anterior parlanda: permitiu se incorporassem à faina civilizadora as mais longínquas sentinelas postadas à boca do sertão bruto, com o que, à medida que auxiliava a tarefa árdua e penosa da expansão geográfica e administrativa do Brasil, ia integrando cada vez maiores tratos de gleba ao patrimônio agrícola nacional.

E tudo junto serviu para mostrar, com flagrante e palpável injustiça, que se ia afundando cada vez mais o sulco natural existente entre a cidade e o campo. O sulco alargou-se em valeta, acabou virando vala e ameaçava transformar-se em abismo intransponível. Não era mais um caminho o que trilhávamos. Era o descaminho.

Houve a necessidade de uma reversão completa no modo de agir, acudindo à zona rural esquecida. Um reformador previdente, Sampaio Doria, e um administrador de consciência, Guilherme Kuhlmann, foram os homens que, ao lado de Alarico Silveira, iniciaram, no quatriênio Washington Luis, o movimento de reação. E as necessidades eram tamanhas que duas mil escolas lançadas aos campos paulistas foram insuficientes para contentar a ânsia das populações.

Veio, porém, em 1925, um refluxo. Tentaram fazer-nos regredir ao ponto de vista que vigorara cinco anos antes e, até certo ponto, lograram prejudicar o que já estava feito. Era, contudo, impossível deter o impulso dos acontecimentos e impraticável a contramarcha desejada. De 1927 para cá, reatou-se o fio do bom senso com a semeadura de mais de duas mil escolas para a zona rural de São Paulo. E apesar de tudo, quem refletir um bocado sobre os números que apresentei, relativos aos anos de 1920, terá de concluir que, em matéria da quantidade das escolas, as necessidades ainda persistem.

A INSÍDIA ORGANIZADA

Mas — e aqui vamos tocar dolorosamente na chaga — depois de haver criado e instalado escolas pelos núcleos campesinos, depois da natural alegria que esse acontecimento determinava em quantos sentiam a tragédia muda dos homens da roça, um novo mal principiou a aparecer, pior, muito pior nos seus efeitos, que o analfabetismo. Começaram a se revelar proféticas as palavras da maior cabeça que o Brasil produziu no século passado, as palavras iluminadas de Alberto Torres, o vidente que denunciara, já em 1915, no seu “Problema Nacional Brasileiro”, o novo, o grande perigo a que estávamos expostos:

“Organizámos — dissera ele — uma “instrução pública” que, da escola primária às academias, não é senão um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo”.

A disseminação intensiva das escolas rurais já nos levou a verificar este assombro: estamos furtando da lavoura, por meio do ensino oficial, aquilo com que de mais sólido poderá ela contar para o seu desenvolvimento.

As classes primárias transformaram-se em polvos sugadores da energia rural, porque envenenam a alma dos filhos dos nossos lavradores, criando-lhes no íntimo a enganosa e perigosa miragem da cidade. O alfabeto, em vez de ser um auxiliar, um amparo, um sustentador da lavoura, virou um tóxico poderosíssimo e violento. Põe na cabeça da juventude aldeã o desejo louco de aprender para se libertar do fardo agrícola.

Como se explica o imprevisto fenômeno? Facilmente: levamos às regiões do campo uma organização escolar que está profundamente, visceralmente eivada do preconceito urbanista. São simples “escolas de cidade” implantadas ou enxertadas à força em núcleos rurais. Trazem, apesar do vistoso aparato cultural com que se apresentam, uma irraciocinada animosidade contra tudo o que relembra o trabalho dos campos, resíduo ainda da campanha abolicionista, e que transparece no desdém superior e absoluto com que as escolas ignoram os labores rurais.

Tudo nelas conspira contra o menino incauto que o meio lhe entrega... para perdê-lo.

Os lavradores, com esse instinto de conservação que jaz no fundo da espécie, pressentiram-no imediatamente e opuseram-lhe uma guerra tenaz e contínua, como só as sabe fazer a sua proverbial testarudez.

Pode encarnar-se a luta sustentada pelo bairro contra a sua escola, nas queixas e lamúrias dos campônios a propósito da organização das aulas. Reclamaram, desde longa data, contra o horário de funcionamento, contra a duração do estágio diário, contra o regime de férias, contra o ensino de disciplinas, cujas vantagens não intuíam. Tivemo-las sempre em conta de futilidades esses protestos, mas o certo é que exprimiam um mal-estar vago e impreciso, que se refletia contra a obra educativa, invalidando-lhe os melhores esforços pela atmosfera hostil que criava contra o mestre-escola. Devia ter uma causa profunda, diversa da apontada, que nos incumbia estudar. Infelizmente, o mal só se mostrou em toda a sua pujança recentemente e, apesar de todas as tentativas e experiências, ainda continua à espera de solução. Com as antigas administrações não havia que contar. Não percebiam o alcance dessas queixas nem desconfiavam que pudessem ser um sintoma de moléstia grave.

A INCAPACIDADE DE COMPREENDER

Lembro-me, a propósito, do que me disse um inspetor escolar ambulante, no tempo em que todos eles residiam na Capital e faziam, às vezes, um reide pelo interior, tempo em que eu era um modesto adjunto de um grupo escolar de poucas classes.

Chamara-lhe eu a atenção para o fracasso das escolas rurais e dava ele a culpa, como de regra, ao descaso dos campônios, cuja ignorância não lhes permitia ver os lucros que seus filhos teriam com o ensino.

Eu, já imbuído de idéias pragmatistas, lhe obtemperava que isso se dava por motivos vários, entre os quais avultavam os das queixas dos homens da roça. Talvez fosse melhor que as escolas funcionassem só três horas, pela manhã ou à tardinha ou à noite, de acordo com o desejo dos habitantes, com regime de férias de acordo com as necessidades regionais. Seria uma forma hábil de fazer criar um hábito que não havia.

O velho professor, minha autoridade hierárquica, redargüiu-me, severo, com todo o peso e com toda a importância de seu alto cargo:

— Como, professor? Pois, então, o senhor não sabe que isso é da lei e que ninguém pode opor-se a que ela se execute tão rigorosamente como está escrita? Todos, absolutamente todos, têm de cumpri-la e respeitá-la.

Olhei o inspetor, espantado. Meus olhos disseram-lhe o que eu não disse:

“Porque a lei era uma obrigação geral, ninguém a cumpria. Porque incumbia a todos aceitar-lhe os ditames, ninguém a respeitava e a população agrícola jazia no mais doloroso abandono”.

Tive o ímpeto de contrariá-lo e mostrar-lhe que o erro era justamente da lei. Não adiantava nada. O bom do homem, que eu conhecia de longos anos, não chegara a entender que só é lei legítima a que representa codificação de costumes e que sempre fora redondamente inútil legislar sem a existência de hábitos. O velho inspetor organizara para seu uso, nas grandes cidades em que vivera, o conceito íntimo da lei como um tabu legal, indiscutível, intangível, “intouchable”. Malentendera a função dos congressos e não chegara a intuir que entre os deveres mais enérgicos da sociedade, figurava esse da reforma das leis omissas, das leis incompletas, das leis peremptas, das leis inaplicadas e inaplicáveis.

O professor não era um ignorante. O ponto de vista citadino é que lhe amoldara o cérebro às idéias urbanistas. Para ele, como para tantos outros, o Brasil, estes oito milhões e meio de quilômetros quadrados, só se entendiam cheios de ruas, de praças, de casas alinhadas.

O RECRUTAMENTO DO PROFESSOR RURAL

E tanto se entende assim, isto é, que o núcleo rural é apenas uma cidade em esboço que ainda não teve o lazer de desenvolver-se, que, juntamente com a escola urbana, mandamos para o campo o professor bisonho.

Há quarenta anos, senhores, que o recrutamento do magistério rural prejudica o país. Já o frisei mais de uma vez e torno a repeti-lo, porque é preciso que haja alguém com a coragem necessária de cumprir as tarefas ingratas de desagradar os outros e de protestar contra o prejudicial. Coube-me a mim esta parte indesejável.

Vai para o campo, de acordo com as nossas leis, o mestre novato, apenas saído da forja das Normais, inexperiente e inexperto, treinado em estabelecimentos de ensino urbano, onde tudo é fácil e cômodo e onde pode pôr em jogo, com uma certa probabilidade de sucesso, aquela psicologia de laboratório que nos chega empacotadinha de fora e que, bem que mal, se ajusta ao estudo das crianças que freqüentam grupos escolares.

Tendo quase sempre menos de vinte anos, sobram-lhe, na mente e na fantasia, uma porção de caraminholas e ilusões, que o trato duro com a realidade fará desaparecer nos primeiros dias de aula. Porque essa criança, por força da educação recebida, é absolutamente imprópria a entender as almas incultas que a sorte lhe pôs entre as mãos e menos ainda de fazer-se o seu guia e mentor espiritual, e seu amigo. Falta-lhe tudo para tanto: falta-lhe a idade, falta-lhe o preparo, a capacidade de adaptação, o “savoir faire”, o entusiasmo, a fé, e principalmente aquela qualidade que só a experiência da vida concede: a diplomacia, que é a aura de irradiação pessoal do mestre em volta de si mesmo à conquista da simpatia e da confiança alheias.

O resultado só pode e só tem sido um: essa criança nunca será o professor que os meios rurais reclamam. Sentir-se-á num inferno, de que precisa sair o mais depressa, custe o que custar. Ali ele se estiola, atrasa e azeda.

Mas enquanto espera a oportunidade de remoção, que lhe restituirá a liberdade, vai difundindo como um portador de bacilos insidiosos, idéias de hostilidade e combate à vida rural, mostrando-lhe as imperfeições, as inferioridades, a incultura, todos os lados feios. E dramatizando, quanto puder, o seu apostolado negativo com exemplos que calam fundo nas almas ignaras que doutrina, ou escudando-se na prática do ridículo constante e do motejo impiedoso, levará a cabo uma tremenda campanha cujas desastrosas conseqüências ele, o mestre, é incapaz de prever.

Um livro existe, senhores, escrito por uma professora de São Paulo, que põe em relevo esse estado de alma. É um livro vivido e que, pretendendo narrar um “calvário” (4) dos sofrimentos do mestre-escola, apenas, conseguiu traçar a dolorosa odisséia da inadaptação do professor ao seu meio. E sem querer, talvez, desvendou, aos olhos dos mais desavisados, que nós, pensando organizar um plano eficiente que elevasse o nível mental do homem das glebas, apenas tínhamos levantado contra ele uma arma traiçoeira, porque embaindo-o e tornando-o confiante, lhe vamos arrancando o que ele possui de mais precioso: a mocidade de seu filho para prolongar, no tempo, a sua labuta no amanho da terra, constituindo assim o pundonor tradicional da família.

A PROPOSTA DE UM REMÉDIO

Evidentemente, esse estado de cousas não pode continuar. O Brasil não suporta uma sangria das suas forças rurais, que o leve à situação das nações industrializadas, possuidoras de 60 ou 70% de sua população nas cidades.

Não suporta, mas nós vamos indo para lá e muito mais rapidamente do que se pensa. Reflita-se sobre estes dados: no decênio 1910-1920, o Brasil cresceu 14,9% sobre sua população geral. Mas a população urbana aumentou, nesse mesmo tempo, de 18,8% sobre o total anterior, ao passo que a população rural teve o mesquinho acréscimo de 3,2%.

O flagelo urbanista delineia-se em toda a pujança de seus tremendos perigos.

Que é que nos propõem se constitua em freio desse rodar vertiginoso?

Propõem-nos, recentemente, com uma insistência pasmosa, a adoção da escola ativa.

A lembrança parte de um raciocínio simplista, que, verdadeiro num aspecto, um só e bem pequeno, é absurdo para todos os outros que efetivamente importam à solução do problema brasileiro. Os argumentos, no fundo, reduzem-se a isto:

“Há, no mundo, uma crise educativa geral que é, como a nossa, uma crise da qualidade das escolas e do tipo de educação ministrado. A Europa e os Estados Unidos já o verificaram e acabaram preconizando a escola ativa como o ideal que a resolve. Porque não os imitamos?”

A analogia pura e simples inspira esse raciocínio. É a mania da cópia que dita o alvitre, é o desconhecimento das nossas necessidades e singularidades que orienta o prurido das reformas sociais; é a preocupação urbanista, herdada com o sangue dos antepassados, que nos tolhe o juízo crítico. Queremos imitar. Mas vale a pena?

A escola ativa é a última “trouvaille” dos meios adiantados, admirável de concepção, magnífica de bom senso, genial mesmo, se quiserem, pela inteligência com que resolve um gravíssimo impasse econômico. Mas de onde nos vem? De inúmeros focos, centros de indústria: da Suíça, da Bélgica, da Alemanha, da Itália, da Inglaterra, dos Estados Unidos. Cada um desses países pode ser representado no quadro da pedagogia moderna, por um nome: Claparéde, Decroly, Kerschensteiner, Montessori, Parkhurst, Dewey.

Os dois primeiros, então, desses países, ficaram mesmo — e nem sempre a justo título — como os índices, os estalões do progresso da nova pedagogia científica. São eles, de regra, os imitados e copiados em toda a parte.

OS MODELOS ACEITOS

E, no entretanto, ninguém cogitou de que são eles também dois expoentes da industrialização do globo. Baste relembrar, ligeiramente, os dados da sua geografia física e econômica para verificar que eles tanto nos servem para modelos como as ilhas de Hawai.

A Suíça tem pouco mais de quarenta mil quilômetros quadrados de superfície e quatro milhões de habitantes, o que dá mais de noventa pessoas por quilômetro quadrado. Isso mesmo é fantasia estatística, que joga com algarismos globais e abstrai do cálculo os maciços gelados dos Alpes, onde a vida é impossível, mas que se computa como terra habitável. Na realidade, uma quarta parte do território helvético é de terras inaproveitáveis; outra quarta parte é constituída de florestas e a metade restante destina-se a pastagens.

Isso explica, sem mais delongas, porque a Suíça tem uma produção essencialmente industrial: fazendas e sedas manufaturadas; relógios, jóias, doces, máquinas e, sobretudo, a conhecida indústria dos hotéis. Quando a Suíça se volta para o campo, tem de adstringir-se à pecuária e à indústria pastoril: couros e derivados, leite condensado, queijo e manteiga.

Agricultura propriamente dita não existe na terra de Guilherme Tell. Ou melhor, para ser rigorosamente exato, existe o empenho oficial de vir a criar uma agricultura suíça, o qual, para tanto, vem incrementando, de todas as formas, o aumento das lavouras. Até agora, que se saiba, com a política seguida de amparar o produto nacional, só conseguiu a modelar República aumentar sensivelmente o custo da vida no país, originado pelo alteamento das tarifas aduaneiras.

Compreende-se tal fato perfeitamente: país sem matéria prima, situado em tão elevadas altitudes, só o engenho humano desfaria as dificuldades que a natureza armazenou contra a vida do homem. E só a indústria o salvaria. E a prova está nos seus cinco mil quilômetros de vias férreas, cortando um país que é a sexta parte do Estado de São Paulo, que parece modelado fisiograficamente só para pôr em destaque a habilidade dos fabricantes de mapas em relevo e onde as condições técnicas do tráfego exigiram obras audazes, arrojadas, dispendiosíssimas.

A Bélgica é ainda melhor exemplo que a Suíça: tem trinta mil quilômetros quadrados e sete milhões e meio de habitantes, isto é, 250 almas em cada quilômetro. Isso quer dizer: a superfície do Estado de Alagoas com a população de Minas Gerais. Embora seja um modelo de organização agrícola, essa própria densidade demográfica denuncia a causa pela qual pode manter um tão exagerado número de habitantes em tão minúsculo território: a indústria. Num país agrícola, uma proporção como essa, entre a terra e o homem, determinaria o regime da fome permanente, como acontece, em condições infinitamente melhores, na China, por exemplo. Só as indústrias concederiam se estabelecesse esse recorde da aglomeração humana.

E os meios de transporte servem de contraprova ao asserto: a Bélgica possui mais de um quilômetro de estrada de ferro para cada três quilômetros quadrados de superfície, porcentagem que não existe, e é duvidoso venha a existir, em qualquer outro canto do planeta. E isso sem falar na intricada rede de canais navegáveis interiores, entre o mar, o Escalda, o Mosa e os seus afluentes.

Ambos aparecem tipicamente como países em que a reorganização do trabalho modificou estruturalmente o regime social. E foi para acudir às populações, desorientadas com as conseqüências dos inventos modernos e da desagregação da família, que nasceram as escolas chamadas ativas. Aliás, essas escolas novas são tão fruto do organismo industrial que, mesmo remontando o curso de sua curtíssima história, para alcançar as primeiras manifestações, tateantes e indecisas, de seu aparecimento, não conseguiremos sair da zona fortemente industrializada da Europa e teremos de nos defrontar com as duas precursoras italianas, as irmãs Agazzi, de Milão.

São, conseqüentemente, como já mostrei no primeiro capítulo, escolas nascidas da preocupação de ministrar os ensinamentos que a família não pode mais fornecer e os conhecimentos que as fábricas e oficinas são incapazes de cultivar com aquela harmonia exigível em toda obra eminentemente educativa. Pressupõem a existência de situações idênticas ou aproximadas, para que o seu emprego dê o resultado que se espera: uma indústria em franco florescimento, família em decadência, cidades solidamente organizadas, agricultura em declínio ou pelo menos insuficiente para sustento da massa da população.

O PARALELO INDISPENSÁVEL

Será esse, senhores, o nosso caso? Examine-se desapaixonadamente, imparcialmente o problema, e verifique-se que estamos em situação quando não oposta, pelo menos muitíssimo diversa.

Toda a estrutura econômica do Brasil é fundamentalmente agrícola. A sua riqueza se exprime comercialmente por intermédio de produtos que se obtêm na faina das lavouras: o café, a cana de açúcar, o milho, o feijão, o arroz, o algodão, o mate, o cacau, a borracha, o fumo, as frutas, num total que não anda longe de 90% da produção global. E entre todas as novas possibilidades, são ainda outros produtos agrícolas que ocupam a primazia.

Toda a nossa constituição social repousa ainda sobre o conceito da família antiga. Certo, está modificada pelos agentes psicológicos das correntes filosóficas, mas, na essência, ainda apresenta os caracteres de unidade daquela.

É ainda tão profundo e arraigado esse conceito que as nossas instituições de assistência não puderam encadear-se e menos ainda harmonizar-se em plano de conjunto articulado. E que lhes falta, strictu sensu, o caráter de indispensável. A família ainda impera no Brasil e pode estabelecer aqueles elos que administrativamente não se soldaram.

A nossa indústria é um simulacro rudimentar do que se faz nos grandes centros, pobre e pequeno esboço mal-armado de organismo embrionário. O que existe de real, espalhado pelo país, inteiro, são, de ordinário, as pequenas oficinas, onde se formam os artesãos, espécie de “bonnes á tout faire”, que percorrem, demoradamente e pedagogicamente, a escala das variadas tarefas de uma profissão, até serem declarados oficiais completos. Quer dizer, regime patriarcal ainda, que, no campo, roça pelo primitivismo.

As cidades brasileiras... O grosso delas, num regime latifundiário como é o nosso, não passam de lobinhos que vivem à sombra das fazendas e estâncias circunvizinhas. Poder-se-iam citar centenas e centenas de núcleos urbanos assim, vegetando sem vida própria.

Ninguém nega que haja algumas cidades importantes e reais. Mas são poucas e basta um retrospecto sobre a população local para concluir que o brasileiro mora, de preferência, no campo. Temos duas únicas cidades de mais de um milhão de habitantes: Rio e São Paulo. Quatro outras ficam entre os duzentos e trezentos mil: Porto Alegre, Salvador da Baía, Recife e Belém. Outras tantas de cem mil, se não mentem as estatísticas e não incorporam ao total da cidade os habitantes do município; outra meia dúzia ou dúzia e meia de trinta a oitenta mil e vem depois a miuçalha, que vai de cinco a vinte e tantos. Tudo somado, não perfará uma população urbana de sete milhões. Num país de 40 milhões certos, como somos hoje, isso representa apenas uma sexta parte. Uma quinta ou mesmo uma quarta que representasse, e seria sempre uma minoria incapaz de enfrentar numericamente a outra, a que mora nos campos e nas zonas agrícolas, que teria sempre a seu favor, na pior das hipóteses, um saldo de trinta milhões de habitantes.

AS PEQUENAS EXCEÇÕES

O quadro descrito obriga a concluir que a escola ativa só serviria naquelas cidades que pudessem ostentar um aparelhamento industrial, que justificasse a aprendizagem orientada para esse lado. Por certo que nessas condições estaria, visivelmente, o nosso Distrito Federal.

O seu edifício econômico é o da especialização de funções, decorrente não apenas de ser uma cidade industrial, mas também a capital da República e porto comercial e militar. Tudo, destarte, concorre para dar-lhe um lugar à parte no Brasil, e, principalmente, a sua insignificante área territorial, que não atinge a 1.200 quilômetros quadrados, contando-se as ilhas desabitadas, os espaços ocupados pelas serras, pelos alagadiços e pelos pantanais.

A escola ativa — desde que o queiram — resolveria o problema educativo carioca. Porque lá o ensino rural está reduzido a um mínimo inapreciável, sem vulto para criar a necessidade de uma política escolar e — o que é pior — sofrendo diminuições constantes pela função desagregadora da cidade. A Capital da República alarga-se de ano para ano e os seus subúrbios, como um Moloch, exigem sempre novos lotes de terra para construir as casas em que os operários se irão alojando. As glebas rurais, por conseguinte, as mais próximas dos núcleos já urbanizados, têm de ceder terreno ao avanço citadino e terão de cedê-lo até o seu definitivo desaparecimento. Não andará muito longe o dia em que os alunos do Distrito Federal, para que possam formar uma idéia clara do que seja uma lavoura, na perfeita acepção do termo, tenham que ir visitar as terras do Estado vizinho do Rio de Janeiro.

Ainda se poderia incluir nesse quadro, a cidade de São Paulo e mais uma ou outra das maiores do país.

O CASO GERAL

E para o resto? Sim, para os outros trinta e muitos milhões de habitantes? Bastará o argumento de que tendo provado bem a escola ativa em toda a parte — assertiva apressada e possivelmente inexata — provará também aqui, embora os meios em que deva atuar sejam completamente outros? Há quem pense e afirme que sim. Eu penso que não.

O problema educativo é como o da visão. Todos sabemos que os defeituosos da vista — e são-no, no mais alto grau, os que carecem de cultura — precisam de óculos e lentes.

O vidro corrige o defeito, normaliza as acomodações do cristalino e ajusta assim a visada, fazendo as imagens se refletirem na retina no ponto conveniente. A lente é, portanto, o supremo bem.

Estabelece, contudo, uma condição fundamental de êxito: para que dê resultados, é mister seja adequada. Nenhum médico iria aplicar a um míope as lentes de um homem de vista cansada. E, para um astigmático, são inúteis os óculos que servem ao presbita.

Ora, a educação é como as lentes: corrige os defeitos da vista, desde que sejam as indicadas para cada caso. Mal adaptadas, não só não servem, mas desservem, porque complicam e impossibilitam o exercício do órgão.

Eu, de mim, não estou convencido de que as lentes da chamada escola ativa, pelo menos como a apresentam entre nós, sirvam ao caso clínico nacional. Tenho muito medo — e medo razoável — de que nos venha a acontecer o sucedido ao menino que quis salvar um peixe recém-vindo do mercado e que respirava ainda no fundo da cesta da criada.

Arrumou a vasilha, despejou-lhe água — a água é elemento essencial à vida desses animais — e colocou o peixe dentro. E o peixe morreu.

O bom menino, na sua ânsia e na sua pressa de salvá-lo, não pusera reparo em que a água era fervida.

Tenho, pois, que procurar a solução em outra parte. E a solução só pode vir, no meu entender, da “escola brasileira”.


 

A ESCOLA BRASILEIRA


 

Quando se fala da organização da escola brasileira, cuidam muitos entrever, debaixo desse antifaz, um mal disfarçado jacobinismo, um estreito “chauvinisme”, cujo intuito recôndito, inegável mas sonegado para efeitos de platéia, reside numa difusa e generalizada antipatia pelo elemento alienígena, tendente a afastá-lo, cada vez mais, da possibilidade de continuar a fazer enxertos e contaminações sobre o nosso feitio.

Poder-se-ia, se se quisesse, dar até a esse pretendido sentimento nativista, a justificação de premissas históricas: o espírito nacional, cansado do secular domínio estrangeiro, traria essa hostilidade em fermentação latente, a repontar a miúdo em manifestações várias e mal dissimuladas, como o protesto vivo das consciências comprimidas pela influência das civilizações de além-mar, pleiteando a livre expansão dos caracteres indígenas.

Em que pese, contudo, aos criadores de teses sociológicas mais ou menos brilhantes e sedutoras, não há no caso a menor parcela de verdade. A necessidade da escola brasileira obedece a critérios, direi mesmo a imperativos categóricos, oriundos de experiências e observações estranhas ao nosso meio. São deduções da lógica e da sabedoria alheias.

CARATERÍSTICAS FUNDAMENTAIS

O que se quer e se pretende, com a escola brasileira, é dar-lhe o cunho de instituição natural ao ambiente a que serve. E para isso não basta que a escola seja uma forma de adaptação de nossa gente à sua terra. É preciso que seja a forma. Não basta que a nossa escola pareça harmoniosa com o quadro social. É indispensável que só ela possa estabelecer essa harmonia.

E nossa escola, máxime a do campo, não tem sido, como vimos, integralmente brasileira desse jeito. Procede ainda mui diretamente de correntes filosóficas, espalhadas pelo mundo inteiro, como aspirações universais da alma humana e, por isso mesmo, não se presta a caracterizar as nossas singularidades específicas e não respeita — e quando respeita, não o faz como deve — as diferenciações regionais, impossíveis de evitar em países da vastidão do nosso.

Diferenciações impossíveis de evitar, não só. Desejáveis e recomendáveis também. A política, em certo sentido, corrigiu a obra da natureza. Se nós, num afã científico, felizmente hipotético, nos houvéssemos metido a respeitar em nossas divisões humanas, para a vida, em sociedade, na organização das Pátrias e dos Estados, as fronteiras naturais que o meio físico impõe pelas suas diversidades biológicas, certo que haveríamos criado nacionalidades homogêneas, talhadas num só bloco, maravilhosas de unidade, mas haveríamos dado também nascimento a uma série de pequenos mundos impenetráveis uns aos outros, o que teria, mui provavelmente, impedido a obra de concórdia universal.

As diferenças das regiões, dentro de um mesmo país, falando a mesma língua, fundidas num mesmo plano, amalgamadas num mesmo sonho, coagiram ao entendimento mútuo, aos esforços pela compreensão de ideais diversos, englobados num ideal superior comum, estabeleceram a interpenetração das almas e das consciências e abriram a inteligência a procurar, dentro dessas modalidades e diversidades, os pontos de contacto mais altos, as afinidades mais puras, que entremostram nos homens o seu estreito parentesco.

Ora, essas características, a que chamarei brasílicas e não nacionalizantes para evitar toda interpretação dúbia de sentido e todo significado jacobino, não se obtêm apenas com o culto da terra, da língua e das tradições. Seria absurdo, porque equivaleria a um legítimo suicídio, que as nossas escolas não ministrassem tais ensinamentos, que estão à base do mais rudimentar esboço de uma pátria. Isso só, contudo, é pouco. O que se me afigura indispensável, é mais e é diverso.

É preciso que a escola, pela sua maneira especial de atuar sobre a mentalidade do educando, faça dele um nativo típico, capaz de ser reconhecido, pelo modo de agir, pelo modo de pensar, pelo modo particular de sentir, como membro de um determinado povo num momento histórico determinado. Deve defini-lo, e, dentro das múltiplas modalidades que uma personalidade pode apresentar, deve classificá-lo como pertencendo a uma espécie inconfundível. Uma raça bem constituída se revela até nos traços fisionômicos e nós podemos sempre decidir, pela simples inspeção visual, a que nacionalidade conhecida pertence um indivíduo desconhecido. Uma escola brasileira deve realizar o mesmo milagre no campo intelectual.

Trata-se de um formidável trabalho de individualização educativa, que visa a fixação de caracteres psíquicos, tendentes, dentro de certo limite, ao estabelecimento de um particular equilíbrio passional coletivo — equilíbrio ideal, já se vê, como a razão, como a saúde — em volta do qual todos os indivíduos flutuem.

Escola brasileira assim não se improvisa, não pode nascer do acaso e menos ainda da cópia de fórmulas alheias. Por isso mesmo que se propõe fazer do brasileiro o homem mais solidamente e mais sabiamente adaptado ao seu meio, essa escola tem de brotar do conhecimento seguro e completo de toda a série de fatores econômicos, antropológicos, psicológicos a que estamos submetidos para que se cuide de organizar, ou de modificar dentro do humanamente possível, aquela mentalidade capaz de dar à raça a sensação de sua força criadora e o anseio de uma crescente melhoria da vida, em qualquer que seja o seu aspecto.

Teremos de procurar, por intermédio de estudos profundos, reconhecer as qualidades e aptidões raciais mais vincadas, fazê-las ressaltar, automatizá-las, tirando delas o máximo proveito. E, do mesmo passo e com igual ou maior cuidado, precisaremos descobrir os nossos defeitos mais graves, as nossas imperfeições mais danosas, para inventar os artifícios e expedientes humanos capazes de os transformar. habilmente, em elementos de utilidade geral.

Tudo isso requer uma série de inquéritos prudentes e sagazes, que consigam evidenciar — mesmo nesse cadinho em efervescência que, mercê das levas imigratórias, ainda somos e continuaremos, por muito tempo, a ser — os índices de nosso temperamento e de nossa índole, para deles extrair aquelas características, senão definitivas, permanentes de nossa individualidade e para discernir, com o cálculo de probabilidade que a matéria comporte, em que sentido se vão orientar as nossas preferências.

A ECONOMIA E OS DESEJOS HUMANOS

Encarado dessa altitude, o problema se engasta naquela diretriz sociológica que deixei bem clara e patente no fecho do primeiro capítulo, isto é, “o sistema educativo de uma época e de uma sociedade é fruto e reflexo da sua organização de trabalho”. Teremos, assim, de encaminhar-lhe a solução dentro desse espírito, começando por analisar, em conjunto, a situação agrícola brasileira.

Não será preciso que eu repita aqui a descrição desse quadro, já feita por Alberto Torres e, mais recentemente, por Oliveira Viana, nas suas “Populações Meridionais do Brasil”. O regime nacional é francamente latifundiário.

Contra essa base econômica estável e inegável, se exerce, entretanto, um elemento poderoso: a ação transformadora das tendências psicológicas do homem, influenciado pelo clima mental do século.

Há, pelo mundo, o grande erro comum de fazer depender a formação dos quadros sociais exclusivamente dos seus aspectos econômicos. Quem lhe negará preponderância? Ninguém. Mas existe também a influência das idéias, que são fatores de força e agem cada vez mais desassombradamente, depois que o globo ficou um âmbito pequenino para a sua divulgação e repercussão. Bem o salientou Lucien Febvre, no seu “A Terra e a evolução humana”, observando que “o homem é conduzido pelas suas idéias tanto quanto pelas suas necessidades”. Ninguém despreza as necessidades, que são essenciais, mas isso não justifica se esqueça o cérebro, que focaliza sentimentos profundos.

As tendências ideológicas recentes vão para a socialização do mundo. Há quem pense que foram os comunistas que inventaram esse modo de pensar, mas isso só em parte é exato. Quem lhe deu origem foi o capitalismo, com a sua ânsia de vulgarizar, prática e industrialmente, os inventos científicos. A sede do lucro fácil e rápido trouxe a produção intensiva. Esta fez o produto barato, que determinou a maior capacidade de aquisição, e, conseqüentemente, a sua introdução nas classes sociais mais pobres, soerguidas elas mesmas em seu nível econômico, pelo aumento dos salários.

Generalizar, dessas verificações diárias, a teoria decorrente de que todos os homens deveriam gozar indistintamente de todos os benefícios e vantagens, e que essas regalias deviam ser concedidas como um direito inalienável, igual para todos, só havia um passo. As classes populares, justamente porque menos favorecidas e porque excitadas pelos pregadores e doutrinários, não se recusaram a dá-lo e formaram esse ambiente universal de aspirações avançadas que se condena mais ou menos em toda a parte. Mas condenar e negar-lhe foros de cidade não basta para fazê-lo desaparecer. Incumbe-nos, ao contrário, estudar-lhe, serena e conscienciosamente, a gênese e a expressão dos desejos para prevenir-lhe os maus resultados e os descaminhos. Cumpre-nos mostrar aos iconoclastas e apressados que a situação hodierna é fruto da ciência e não de teoristas sectários e exaltados. Cabe-nos dizer-lhe que só a ciência poderá ir resolvendo os problemas humanos e que contra ela é inútil deblaterar ou clamar porque a ciência não se desenvolve nem avança de acordo com os nossos interesses e apetites, mas calcando-se apenas sobre os dados concretos da realidade.

A CONTRADIÇÃO NACIONAL

Ora bem, a contradição mais aparente e mais indesejável que se observa entre nós, registra-se neste contra-senso: o homem brasileiro, sem possuir uma organização industrial que se possa apresentar decentemente como um chamariz autêntico das suas atividades, começou a fugir do campo. Não é isso, não pode ser um fato normal, perfeitamente admissível. É, ao contrário, aberrante da regra comum e deve ter causas sérias na sua origem. Como são as idéias e as necessidades que conduzem o homem, estas hão de explicar o fenômeno imprevisível.

O êxodo dos campos prende-se, em última análise, à dificuldade de obter a posse da terra. Só ela seria capaz de anular as conseqüências do estado de alma do nosso lavrador, que sente no âmago de sua personalidade, bem no fundo de sua psique, os resíduos da velha prevenção contra as fainas da lavoura, remanescentes seculares daquele conceito infamante do amanho da terra, quando ela era trabalhada unicamente pelo escravo.

Trabalhar para outrem, debaixo dos olhares de um fiscal, é, em certo sentido, para ele, substituir o negro desprezível, que apesar de toda a sua miséria, conseguira libertar-se da ignomínia.

Nada adiantaria dizer a esses homens que é um preconceito absurdo porque o trabalho é a condição da vida no planeta e que esfalfar-se numa oficina da cidade não faz diferença de engajar-se com um fazendeiro na lavoura. Contra prejuízos sentimentais, a lógica é impotente. E o nacional tem todo um passado que lhe desmente o asserto. Mas já o não será a posse da terra. A propriedade da gleba destrói a ojeriza porque, na aparência, muda radicalmente o aspecto da situação. Trabalhar para si não relembra a senzala.

Infelizmente, nos regimes latifundiários existe sempre, não se sabe bem porque nem com que vantagens, a obsessão do possuir enormes superfícies que jazem, quase sempre, senão total, parcialmente inexploradas e existe, do mesmo passo, a mania de não quererem os seus donos desfazer-se nem mesmo das partes inaproveitáveis.

A SOLUÇÃO A ADOTAR

O acertado seria, na opinião de todos, uma distribuição mais eqüitativa desses milhões de hectares cultiváveis, de modo a radicar o homem ao seu “habitat”. A grandeza dos países depende desse estado de cousas. Mas como se chegará até lá, sem fazer violência aos atuais possuidores dessas terras?

Ninguém se lembrará de pleitear a solução draconiana de que a Rússia se fez o protótipo, querendo dar ao Estado o domínio absoluto das glebas para que sejam lavradas em comum. É um método que repugna ao nosso espírito contemporâneo e que a própria Rússia não pôde, até hoje, pôr inteiramente em prática. Eu sei que nos dizem que a ciência está socializando o mundo, mas sei também que se não vai de um salto da propriedade individual à propriedade coletiva.

Também é exato que da propriedade coletiva viemos nós, quando por aqui erravam as tribos indígenas, aliás mui pouco agricultoras, e é mui provável que voltemos para o mesmo regime, desde que os historiadores não se cansam de aludir à fatalidade cíclica da civilização. Entretanto, não será desarrazoado observar que esse ciclo fatal e iniludível, ao contrário do que parece a muitos, de olhos postos na velha máxima salomônica do “nihil novi sub sole”, não implica rigorosamente o fechamento da curva histórica dentro do mesmo plano. Os fatos mostram que a civilização é cíclica no sentido da espiral: torna, é certo, a passar pelos mesmos pontos, mas quase sempre em nível diferente.

Também não há que contar com a solução sentimental de que se fez exemplo esporádico a Rumânia. Ali os senhores latifundiários entregaram espontaneamente as suas propriedades agrícolas aos seus camponeses para evitar uma revolução de que seriam promotores e protagonistas esses mesmos homens do campo que, na guerra européia, haviam dado generosamente o seu sangue pela manutenção da integridade nacional e haviam, mais que os outros, sofrido os horrores do domínio estrangeiro.

Resta, portanto, a solução usual de que seria a França, picada e repartida em pequenos lotes, o modelo mais convincente, porque insufla no agricultor o apego quase doentio pelo torrão que lhe dá o sustento e, por contragolpe, fixa a estabilidade da vida nacional. E esse processo de desagregar e multiplicar a propriedade se firma no preceito jurídico da transmissão hereditária dos bens, consignado em todos os códigos civis dos países cultos.

PRECIPITANDO OS FENÔMENOS

O processo, é, porém, vagaroso, ultrapassa a existência do homem e acaba, por isso, acarretando a formação de mais um elemento de hostilidade contra vida do campo. E os fatores existentes: desmoralização do conceito do trabalho, desconhecimento do valor educativo do esforço individual, preocupação absorvente da cópia na legislação orgânica do país, erros no encaminhamento do processo educativo, regime latifundiário, influência contraditória das correntes ideológicas em voga, já são, em nosso caso. demais para alimentar essa mentalidade inimiga de quase horror à vida rural. Urge um corretivo, um expediente que precipite a evolução que a saúde nacional reclama, porque o campo é, nos países como o nosso, o centro do sistema. Nele, e só nele, reside o ponto crítico de sua possível e provável expansão. Há uma lei de Mariotte também para a física social.

O expediente está nas nossas mãos e não requer minúcias de técnica nem conhecimentos especiais. Basta multiplicar as oportunidades de adquirir a terra. Vão dizer que é processo consuetudinário do ramerrão quotidiano. Existe desde que o Brasil é Brasil.

Certo que existe, mas deixado sempre à iniciativa particular ou apenas tentado, por uma ou outra administração, em ensaios que se podem classificar de insignificantes, diante da enormidade da tarefa.

CAPITAL EMPATADO

Não existe, e não existiu nunca, em nossa terra como um plano organizado, como uma política sistemática, pertinaz, sem soluções de continuidade, visando incorporar à atividade geral uma grande população de nativos, que vive por aí deserdada, de déu em déu, sem eira nem beira, errante e nômade e pesando sobre o valor da economia nacional com um contributo desprezível, que nos abaixa o coeficiente de produção per capita a um limite que nos envergonha lá fora, na hora das comparações e dos paralelos. Um cubano vale, economicamente, por seis brasileiros. E Cuba não será o melhor padrão para o confronto.

E, no entanto, essa população brasileira é válida, validíssima. Possui qualidades que ninguém mais nega e os seus índices antropológicos, pelos estudos de Roquette-Pinto e do dr. Artur Lobo (5), não a desmerecem em nada perante os seus irmãos mais bem dotados do planeta. Mas não produz. Uma parte, a grande maioria, vegeta no regime da meia ração ou mesmo do jejum, consumindo-se por inanição habitual, que a transforma em pasto predileto de todas as endemias tropicais. A outra atira-se às cidades para aumentar-lhes o número dos párias e desocupados ou entregue aos labores mais humildes.

Tradicionalmente agricultores, falta-lhes a posse da terra, falta-lhes o estímulo que os radicaria ao torrão, fazendo deles células vivas e ativas, criando-lhes na alma o prazer de trabalhar independentes para si e para a prole.

A política, portanto, seria fazê-los pequenos proprietários e lavradores, empreendimento esse que não caberia apenas aos governos, isto é, à União, aos Estados e aos Municípios, mas também aos indivíduos, às associações e corporações. (6)

EXPEDIENTES POSSÍVEIS

Conheço clubes comerciais para inúmeros fins, que entregam aos seus prestamistas as cousas mais disparatadas que eles possam desejar. Nunca ouvi falar de nenhum que sorteasse glebas de terras para o estabelecimento de uma família, E não se argua o preço de empecilho, quando muita mercadoria rica e fina custa incomparavelmente mais caro que um trato de terreno cultivável.

Sei de homens pios que deixam, benemeritamente, em herança, avultadas quantias para aumentar patrimônios de instituições de todos os gêneros. Nunca me constou, por exemplo, que alguém houvesse doado, a casas de caridade, grandes lavouras, sob a condição de apurar o espólio mediante a venda, a longos prazos, desses terrenos a numerosas famílias de caboclos, conseguindo, assim, dois proveitos.

Tais iniciativas seriam contagiosas, como o são em geral todos os belos gestos. Se as administrações públicas se mostrassem inclinadas e aplaudi-las e a insinuá-las, dentro de um prazo muito menor do que se imagina, o número de pequenos proprietários estaria elevado a formigueiro. Não faltam os exemplos: Piracicaba e Tietê foram os municípios em que, em São Paulo, mais largamente se exerceu esse trabalho de retalhamento. E a iniciativa partiu de particulares, interessados, sem dúvida, no ganho certo e rápido, mas que acabou virando obra de patriotismo e descortino pelas fontes novas de produção que criou. E o fato mesmo de existirem esses exemplos, quando não existe a atmosfera propícia a incentivá-los, prova bem o que se poderia fazer de extraordinário, quando todos se empenhassem seriamente na tarefa.

OBJEÇÃO FUNDADA

Não podem faltar entre os meus ouvintes os espíritos cépticos que estão mentalmente a sorrir de minha ingenuidade e de minha cândida fé nesse simples expediente de organização econômica. Compreendo que esse sorriso não vem da mofa ou do motejo e brota, ao contrário, da verificação de inúmeros casos de êxodo dos campos, sucedidos com famílias proprietárias de terras. Ou se desfazem da sua posse ou as entregam à meação ou ao arrendamento, contanto que as possam abandonar para poder engrossar as fileiras dos que demandam as cidades.

O êxodo rural, portanto, é um fenômeno que sobrepaira às preocupações e aos argumentos de feição tipicamente econômica. A simples posse da terra não destrói o estado de espírito reinante, que é o encanto, a paixão pela cidade.

Não serei eu quem vá fazer alegações em contrário e quem impugne o asserto. Há, de fato, uma quantidade ponderável de agricultores que abandonam as suas propriedades para se abalançarem aos azares de uma mudança de profissão e de ambiente. Mas aqui a causa do movimento é obra das correntes de opinião que trabalham a mentalidade da época e que põem em evidência esta verdade elementar, e por isso mesmo, fundamental: o êxodo do homem do campo não é propriamente uma fuga para a cidade, é muito mais a busca do conforto.

Porque, evidentemente, não basta que o homem seja senhor do seu casal para que se lhe feche o horizonte dos desejos. Ele quer prosperar e crescer, quer dar à sua prole a educação que ele não teve, quer ter direito a gozar de regalias simples que o campo lhe não oferece, mas que qualquer operário, por mais humilde e modesto, usufrui ou parece usufruir nos centros urbanos. E nasce-lhe a ambição e surge-lhe a luta interior entre a vontade de ficar e o ímpeto de partir e tentar melhor sorte.

A FÉ QUE NÃO SALVA

Quem, nesses momentos de incerteza, entre a ansiedade do novo e do desconhecido e a atração do passado, poderia decidir da contenda íntima, é a obra educativa, simbolizada no professor. O lado para que ele pendesse, deslindaria a incógnita e decidiria do seu destino. Mas, invariavelmente, o mestre-escola rural, neófito, bisonho, inexperiente, eivado do preconceito urbanista, comete, quase sempre inconscientemente, o seu maior crime, empurrando o agricultor para fora do campo.

Não o faz por perversidade; fá-lo convencido de que assim é que está certo. Falta ao mestre primário, como, de ordinário, a todo o país, a consciência agrícola, o senso superior da necessidade vital que há em manter, por longos anos ainda, o brasileiro dentro das fainas rurais, como o único e verdadeiro meio em que deve trabalhar e produzir para poder exportar. País que não exporta, é país que não existe.

O professor foi educado na admiração muçulmana da cidade, só a ela ama e compreende, venera e cultua. Lá estão os homens de prol da nacionalidade, os que pensam, os que falam, os que deliberam. A cidade dá, em ponto pequeno, a síntese da alma nacional e lá os menores choques e movimentos têm repercussão visível, tangível, imediata. Sofre o mestre assim de um fenômeno típico de “transfert”: a cidade não é uma redução da vida nacional. A vida nacional é que passa à categoria de uma ampliação da vida da cidade. Por isso mesmo, há de chegar a duvidar — se é que nisso alguma vez pensou — em como todas as suas belezas, os seus melhoramentos, os seus progressos só possam subsistir e aparecer porque, atrás das cidades, um exército de trabalhadores obscuros e anônimos formiga nas labutas agrícolas, de sol a sol, produzindo cada vez mais para aumentar o círculo das transações comerciais em que os centros urbanos descarregam a sua febril atividade.

Não é, pois, por maldade que o mestre se declara contra o campo. Haverá talvez uma difusa e inconfessada vingança contra a atmosfera desagradável em que trabalha, tão avessa à sua índole e às suas tendências. O nosso professor rural sente-se mal no campo. Quer sair, quer que todos saíam. E enquanto espera que o retirem do degredo e do suplício, promove a campanha negativista e perniciosa que combate o amor pela vida campesina.

Quarenta anos de república, de esforços reais e inegáveis pela elevação da cultura brasileira, não mudaram em nada as premissas do problema. O homem do campo continua a ter tudo contra si: falta-lhe, na maioria dos casos, a posse da terra; falta-lhe o conforto do ambiente; falta-lhe a educação necessária a realizar, sozinho, a conquista desse conforto. E falta-lhe, já não digo o entusiasmo consciente pela faina pesada a que se entrega, mas a simples simpatia pelo seu esforço denodado em dotar o Brasil das únicas fontes de riqueza a que ele pode legitimamente aspirar.


 

A CONQUISTA DO MEIO FÍSICO


 

Haveria um meio de modificar o estado de cousas em que se debate a nossa zona rural, erguendo-a, pela sua preparação conveniente, ao lugar que lhe compete na estrutura da sociedade brasileira?

Certo que sim. Será um empreendimento gigantesco, não o contesto, exigindo lustros de orientação uniforme e de esforços racionalmente mantidos, mas que têm de ser feitos, custe o que custar, se nós queremos, de fato, que o Brasil seja, no concerto do mundo, alguma cousa a mais do que uma simples expressão geográfica.

O problema formula-se claramente: há no país, o Distrito Federal excetuado, uma obra de reconquista a fazer, muito mais séria que a epopéia dos antigos bandeirantes: é a conquista do meio físico às comodidades humanas. Não havemos de querer, e mesmo não podemos crescer só pelo lado urbano. Primeiro, porque a terra será sempre, enquanto nela viverem os primatas superiores, a fonte única da alimentação do homem. A lavra dos campos, sua exploração sistemática e intensiva é uma “corvée” de que a espécie não poderá libertar-se. Segundo, porque o Brasil, não pode e não deve aspirar, tão cedo, a equiparar-se aos países de alta indústria, quando entre estes próprios a competência dos mercados já se estabeleceu, ferozmente, pelo abarrotamento da produção em variadíssimos artigos manufaturados.

As atividades agrícolas são, por conseguinte, aquelas que nos reservaram as vicissitudes do momento histórico, e é dar prova de inteligência transformar esse círculo aparentemente fechado num motivo de grandeza. Para tanto, seria preciso criar, entre a nossa gente, uma consciência agrícola contra o sentimento urbanista dominante. Mas não basta querer criá-lo verbalmente. É indispensável criá-lo realmente, pelo preparo do meio físico e pela tarefa educativa das escolas primárias rurais.

Os cépticos dirão, como de costume, que é impossível, que o problema é formidável, que é desanimador, que esse espírito não se improvisa.

Não se improvisa, certamente, nem eu quero que uma obra desse tomo nasça do improvisar de uma atitude. Deve surgir, serena e maduramente, primeiro, como uma simples conjugação de vontades equilibradas e atiladas. Depois, como uma política decorrente desse conluio de vontades, segura, sabiamente dirigida, de quem sabe o que quer e onde pretende chegar.

INÍCIO DO PLANO

O plano seria, aproximadamente, o que se vem delineando através destas páginas: estimular a posse da terra, oferecendo ensanchas e oportunidades à desagregação dos latifúndios, modo de ver que tem a seu favor todas as mentes esclarecidas. Já em 1920, o dr. Washington Luis, candidato, na época, à presidência de São Paulo, aludira a essa necessidade na sua plataforma. Todos apreendem o que representa, para nós, o formar-se desses exércitos de lavradores miúdos, que se sintam integrados à comunhão nacional pela identidade dos interesses econômicos.

As maneiras e formas de efetivar o plano são múltiplas e várias. Ainda que não coubesse indicá-las num trabalho de síntese, como este, já consignei algumas e outras darei para que se me não argua de teórico que foge às particularidades da técnica.

Já mostrei o meio comum, ensaiado em pequenina escala, de venderem os Estados, e talvez mesmo a União, lotes de terras cultiváveis em prestações demoradas(7). Foram, e são ainda, ensaios titubeantes e vacilantes que, aliás, não incumbiriam tanto aos Estados e sim, às Câmaras Municipais. Estas é que deveriam aplicar a medida com a amplitude que a área de seus municípios comportasse, adquirindo de preferência aquelas propriedades desmesuradas, como as há em quase toda a parte e que não adiantam ao surto local, para subdividi-las e revendê-las, a longo prazo, com juros ínfimos, que apenas compensassem a demora do reembolso. Se tal processo fosse uma política, já de há muito haveríamos assistido — e evidentemente aplaudido — ao lançamento de empréstimos para realizar operações desse feitio.

Esse método da compra e revenda é o que habitualmente emprega a iniciativa privada, inclinando-se, porém, para os lotes urbanos ou para aqueles que, mesmo rurais, pretende transformar em cidades. Não há nele, de ordinário, senão o fito do lucro rápido e avultado, quando, no outro, o intuito seria o de valorizar o nosso capital humano. Desde que pressentisse a metamorfose das correntes de opinião, a própria iniciativa particular mudaria de rumo. Não havia de causar pasmo o aparecer de algum clube, com sorteios mensais de glebas, não para construir um bangalô ou um palacete, mas para preparar um campo de cultura. E menor espanto provocaria, sem dúvida, a constituição de associações cooperativas de homens bons, funcionando como loterias que oferecessem sortes grandes de terrenos de tantos alqueires.

Mas para que estar imaginar e a fantasiar modos e jeitos de ação, quando, para tornar vitoriosa e triunfante essa política, bastará que o homem, empolgado pela idéia, lhe adicione um pouco da dialética de sua lógica sentimental?

UM TIPO NOVO DE PROFESSOR

Galgada a etapa da posse da terra, será o momento de criar o tipo do professor rural, com mentalidade oposta à que tem hoje, isto é, com um perfil psicológico voltado diretamente para o campo, indiferente, senão mesmo quase antipático, à cidade, tipo de homem que se proponha incentivar, através do prestígio de sua irradiação pessoal, o conforto do campo e a formação de uma consciência agrícola. Problema difícil? Difícil, sim. Insolúvel, não.

Tudo tem conserto na vida, dês que se não queiram favorecer soluções no ar. O caso hodierno do mestre-escola do campo precisa ser analisado minuciosamente, pacientemente, mais do que isso, pachorrentamente. A regra é limitar-nos a fazer tiradas declamatórias e lamentações bíblicas, constatando apenas o fato de que o professor desama o campo. Há de haver um ou mais porquês. Removidos, talvez consigamos os homens de que o país precisa. Pesquisemos, pois, todas as possíveis causas dessa repulsa, mesmo as que se nos afiguram pequenas, ínfimas, insignificantes, incapazes de provocar grandes efeitos. Inúmeros erros brotam dessa atitude de negativa às indagações que nos parecem ociosas ou indignas do exame de homens de estudo, quando muitos resultados enormes saem de minúsculos, às vezes, imperceptíveis acontecimentos. E no ignorá-los, e, pior, no desprezá-los, não há sabedoria.

Encaremos a questão com boa vontade.

O CÍRCULO VICIOSO

O impasse está preso nas malhas de um círculo vicioso: o professor não gosta do campo porque o campo é atrasado. E o campo não progride e não melhora porque não há quem o impulsione, quem lhe dê anseios de perfeição, enfim, porque o professor não lhe dá o seu entusiasmo.

Quarto se indaga de um mestre-escola porque a vida rural não o atrai, a resposta é sensivelmente sempre a mesma: “O ambiente o abafa. Falta o conforto, o meio é inculto, o homem é hostil. Aquilo não foi feito para ele”.

É uma frase vaga, que reflete desejos irrealizados. Aprofundemos a pesquisa, apurando as afirmativas imprecisas em exemplos concretos.

Falta o conforto, isto é, não há casa habitável, digna desse nome, em todo o bairro. Não há médico, freqüentemente não há farmácia. Não há condução fácil à cidade mais próxima nem há outros meios de comunicação com ela. Não há luz. Não há jornais. Não há cinema. Falta tudo.

O homem é hostil, isto é, não entende essas necessidades que os outros sentem, tão imperiosas como a do pão; protesta quando lhas preconizam, tachando-as de luxo inútil; indigna-se quando o ridicularizam porque não as reclama, revolta-se quando o professor se aborrece com as suas preocupações exclusivas, ditadas pelo ambiente.

O meio é inculto, isto é, jaz abandonado, esquecido e ignorado dos outros que moram, às vezes, a poucos quilômetros de distância, nem se apercebe do desamparo e afastamento em que vive do resto do país e do planeta. Não lhe pesa essa atmosfera de relegação e de presídio, em que só se cuida da marcha das searas e das colheitas, do bom e do mau tempo, das pragas e das moléstias caseiras e, eventualmente, nas horas de lazer dominicais, da bebida e do jogo.

O HOMEM IMPRÓPRIO

De seguro, aquilo não foi feito para ele, professor diplomado, com um curso “snob” de psicologia experimental, recheado de teorias e de citações. O diabo, contudo, é que ele também não foi feito para aquilo.

O meio reclama, urgentemente, educação. Mas o homem que lhe mandam para realizá-la, não entende o aluno que o espera, porque está desambientado. E está, naturalmente, desambientado porque se não cuidou a sério de o preparar para o mister. Encheram-lhe a cabeça de cousas importantes, pelo menos para o efeito das notas nas sabatinas e nos exames, mas com um tal contacto com a realidade das cousas rurais que o novo mestre dá a impressão de que vai lecionar no mundo da lua.

Usualmente — e contra um dispositivo de lei até hoje não revogado — o professor não reside em o núcleo em que trabalha(8). E mesmo que incidentemente resida, não se incorpora à sociedade. Vive isolado, satisfazendo estritamente os deveres de seu cargo, convicto de que está com a consciência em paz dando as aulas regulamentares.

Regra geral, desconhece o modo de vida de seus alunos, a sua formação espiritual, os seus antecedentes psicológicos, a atmosfera moral em que respiram. E como norma de atuação, trata de pintar às almas ignaras de seus discípulos, as belezas das cousas do mundo e do país, que, por certo, são um frisante contraste com o que os rodeia. Ensina a ler, a escrever, a contar, valendo-se de compêndios e material didático, que, noventa vezes sobre cem, não têm a menor relação ou mesmo a menor referência para com a vida rural e com a zona em que se utilizam. Os livros de leitura, então, como os instrumentos de mais largo e demorado emprego diário, são as nossas baterias urbanistas mais aperfeiçoadas. Não há metralhadoras militares com um poder destrutivo igual ao deles. (9)

O professor ministra noções de geografia livresca. que, apesar de se referirem exclusivamente ao Basil, parecem dizer respeito a país de existência duvidosa, de tal maneira são abstratas, essas noções. E dá ainda lições de história e de educação cívica piores que livrescas, porque pedantes, e quiçá inacessíveis. Junto com perfuntórios conhecimentos de higiene que, de regra, não criam um hábito e não suprimem um vício, ensina ginástica sem plano e sem atender a preceitos rudimentares, talvez para fazer respondência aos trabalhos manuais fora do ambiente e redondamente inúteis à formação da criança.

Dois, três anos desse tipo escolar, e está pronto o futuro candidato a engrossar as classes obreiras das fábricas e oficinas.(10)

Dez anos que permaneça no degredo, e o professor não terá intuído esta cousa elementaríssima, que o assombrará se lha disserem: na zona rural, a parte mais inexpressiva, verdadeiramente desprezível da obra do mestre-escola, é o ensino das disciplinas formais. O que vale nele, a sua faina rendosa e eficaz, é a sua atuação social. Vale como um despertador de consciências adormecidas, de energias latentes, de possibilidades encobertas. É um descobridor de mundos e um revelador de intermúndios subjetivos. É seu exemplo, seu guia, seu conselho, nos mais variados momentos da atividade local, que constituem o lucro ponderável, verificável de seu esforço.

Mas como poderá realizá-la, essa tarefa, se ignora literalmente o que se faz em seu redor? Se é justamente ele o que teria de aprender, e não de ensinar, ali? Como há de aperfeiçoar e de criar anseios, se é ele o aprendiz?

CULPAS INAPURÁVEIS

Sejamos justos, senhores, e imparciais, ressalvando a responsabilidade dos mestres que estão, a estas horas, no campo, batalhando pela cultura pátria. Se realizam um trabalho, que pode simbolizar-se como o do desperdício prodigioso de energia de uma barata de costas, não é porque o queiram. A culpa não é deles. Também fui, aos dezoito anos, um professor rural e cometi as mesmas faltas que estou a catalogar aqui. Ninguém se espante de minha confissão, quando eu afirmar que muito do que atrás ficou dito, é quase autobiografia.

E se nós quiséssemos apurar culpas e responsabilidades, verificaríamos que elas se iriam parcelando infinitesimalmente, reduzidas, para cada um, a quantidades dinamizadas, como na homeopatia. É que a culpa verdadeira cabe à orientação da época.

Para que o atual professor do campo fosse o educador conveniente, seriam mister escolas preparadoras do pessoal, organizadas em outros moldes. E antes que se induza de minhas palavras a condenação formal às normais brasileiras, fique aqui consignado que eu seria incapaz de cometer tamanha injustiça. A obra das nossas normais, do ponto de vista das cidades, só merece elogios. Quisemos e soubemos criar o professorado urbano. Ele deu conta da tarefa que lhe cometeram e continuará a fazê-lo, dentro dessa esfera, com honestidade e competência. E se São Paulo, por exemplo, ostenta hoje o aspecto consolador de sua riqueza, de sua atividade, de sua pertinácia, do progresso de que se fez padrão nestes últimos tempos, não será descabido nem será levado à conta de louvor em boca própria que, como na Alemanha de Bismarck, se releve o papel preponderante do mestre primário nestes quarenta anos de organização escolar e de campanha educativa.

Mas não quisemos, ou não soubemos, criar o tipo do professor rural. A inteligência que revelamos de um lado, não foi luz bastante a que víssemos as insuficiências do outro. Esquecemos de formar, para o campo, o mestre treinado e preparado a satisfazer, em os núcleos em que deviam trabalhar, a estas três ordens de fatores: às necessidades econômicas, que se prendem à subsistência; às necessidades higiênicas, que entendem com a saúde; às necessidades espirituais, que dizem respeito à ambição.

A NORMAL RURAL

Basta esse enunciado para deixar patente o tipo de normal que se haveria de estabelecer. Se o sistema educativo de um povo reflete a sua organização do trabalho, que mestres são esses que não percebem das fainas agrícolas? Se o nível de higidez individual figura como preocupação saliente entre os cuidados humanos, como será professor de campo, em lugar sem médico, quem não entenda de medicina de urgência? E se o desejo de crescer e prosperar é a mola que impulsiona os homens, como se compreende mandemos ao campo quem vai roubar energias, em lugar de aplicar-se a fazê-las aparecer e estabilizar no próprio meio em que se encontram?

Uma escola normal, portanto, para a formação de professores rurais, deve ter estas três diretrizes básicas: formar um profissional entendido de agricultura, formar um professor que seja ao mesmo tempo um enfermeiro, formar um mestre que entre para o campo com a convicção inabalável de que precisa ser ali um incentivador de progresso, seja qual for o atraso, a desconfiança ou a hostilidade do meio.

Sem o conhecimento razoável das fainas agrícolas mais comuns, sem um curso de higiene rigorosamente feito, sem o pensamento central e definitivo de que o campo é o “habitat” da esmagadora maioria da população brasileira e que ali precisa permanecer, um mestre rural falhou antecipadamente à sua missão.

E é porque o nosso professor vai ao campo receber lições, em vez de as dar, que os nossos processos usuais de trabalho agrícola são primitivos, quando não mesmo pré-históricos. É porque ele não tem autoridade moral para aconselhar mudanças e para demonstrar-lhes o alcance, que numerosas tentativas de inovar métodos seculares e ineficazes não logram generalizar-se, e colocam o país em posição de inferioridade diante dos concorrentes. Ora, um aparelhamento educativo que não apresta a nação com as armas que lhe outorguem enfrentar facilmente a luta econômica, já se lavrou a si mesmo a sentença condenatória.

É ainda porque o nosso professor não é um enfermeiro, que se eternizam aqui as endemias reinantes, se alastram as enfermidades de fácil cura e os vícios de rápida extirpação; e, mais ainda, que se não aproveitam as cruzadas médicas, que curam, de fato, os males atuais, mas são impotentes para evitar a reincidência. Falta-lhes o estabelecimento de hábitos duradouros, que o médico não pode inventar, mas que o mestre pode criar, modificando a essência da mentalidade do habitante rural. Na situação em que nos vemos, o mais que um professor pode fazer, com o preparo que tem, é impressionar, com seus sermões parológicos, a curiosidade de seus alunos, com historietas cujo interesse durará alguns minutos, algumas horas ou, excepcionalmente, alguns dias. De verdadeiramente aproveitável nada fica. Tudo entrará para o rol das cantigas e dos estribilhos costumeiros e inexpressivos do mestre.

Nada irá além da percepção intelectual, sem afetar o patrimônio sensível. Falta o exemplo continuado que ponha a mente em contacto com as cousas.

É, finalmente, porque o mestre não tem consciência plena de sua missão nem das necessidades reais da economia do país, que ele é incapaz de, pela sua palavra e pelo seu conselho, deter a onda irrazoável de homens que demandam as cidades, apesar de ser certo que eles lá viverão em condições sociais infinitamente piores e que, impreparados até para o campo, serão simples rebotalho humano, num ambiente muito mais vertiginoso que aquele que conhecem.

MAIS OBJEÇÕES

Objetar-se-á que, conseguida a posse da terra, obtido o professor identificado ao seu meio, nem por isso, dentro de minha própria tese, a fonte do êxodo rural estará estancada. A carência do conforto, a que venho aludindo desde o início, é o suficiente para determinar o recrudescimento desse êxodo e fazer ruir todo o meu castelo de cartas.

Decerto, e, por isso mesmo, a solução que aconselho, não pode ser levada a efeito parceladamente. É de si mesma triangular: a existência de um vértice pressupõe a dos outros dois. A conquista do meio físico às comodidades humanas é, assim, a conseqüência da posse da terra, que dá a estabilidade, e da obra educativa, que dá a inquietude. É da conformação mental do homem o só saber viver entre esses dois pólos, para encher o espaço, que entre ambos medeia, com a sua atividade febril. E essa energia normal, que há de despender de qualquer forma, deverá ser encaminhada pelo professor na busca do conforto. As recentes descobertas científicas não vieram ao mundo só para as cidades.

NO TERRENO DA PRÁTICA

A primeira dádiva a conceder, nesse capítulo, ao meio rural seria destruir-lhe o isolamento e o abandono em que parece estar desligado do mundo circundante. Um simples aparelho de rádio, obtido ou graciosamente das administrações públicas ou por subscrição popular, colocado no ponto central do bairro, dar-lhe-á o informante minucioso e quotidiano das cousas e acontecimentos da terra, ao mesmo tempo que o recreio costumeiro dos habitantes. O rádio substitui o jornal com vantagens: alcança a população analfabeta, que não sabe ler, mas que sabe ouvir; chega instantaneamente a pontos a que os jornais não atingiriam senão com dias e dias de trajeto; educa o gosto musical, o que o outro não pode fazer; e destrói, muito mais que os diários, o sentimento da distância pela sua presença constante, solícita, habitual. O rádio, sozinho, será o mais aperfeiçoado instrumento de aproximação patriótica e humana. Cada homem, perdido no mais longínquo e deserto e inóspito rincão da terra, pode sentir-se, pelo alto-falante, integrado à comunhão da Pátria. Elo espiritual, elo imponderável, quase místico pelo seu aspecto enigmático, será, sem dúvida, um elo indissolúvel. Através dele, passariam todas as vibrações e todas as palpitações da vida nacional, e, nos momentos de angústias ou nos momentos supremos, seria ele, de norte a sul, o polarizador de todas as vontades e de todos os corações.

Junto com o rádio — que não constitui nem pode constituir propriamente um problema, tal a insignificância de seu custo, hoje em dia — outras duas concessões um bocado mais difíceis: a luz e a força elétricas.

Nunca pude entender a pouca ou nenhuma importância que as câmaras municipais ligam à extensão desses benefícios aos seus núcleos rurais. Ainda que se possam citar dezenas de exemplos em contrário, a regra é esse desprezo, que atravanca o melhoramento de nossos processos de trabalho. Eu sei que todos se dizem amigos e incentivadores do progresso, nos momentos solenes dos discursos, mas na prática, se diferem nos métodos, a verdade é que, se não atrapalham, pouco ou nada fazem para que o trabalho humano se execute cada vez mais suavemente. Nos tempos de hoje, é inconcebível que esses dois inventos continuem sonegados à zona rural, principalmente com o moderno critério de produzir muito, bem e barato.

Não vou aqui demorar-me em fazer a apologia da luz e da força elétricas, o que seria uma demonstração redundante. Baste relembrar que a luz resolveria o problema trágico das noites do campo, que é o seu aspecto mais desagradável, e que ambas, luz e força, tornariam possível o aparecimento de outro elemento eminentemente educativo: o cinema. Seria o complemento indispensável do rádio: o que este realiza pelo ouvido, encontraria no outro a exemplificação pela imagem. E como o atlas visual é o que domina o mundo, porque nós todos estamos jungidos, como tipos mentais, à preponderância avassaladora da vista, em nossa noção da natureza, a obra educativa se exerceria em toda a sua eficácia, valendo-se de todos os elementos de treino que a ciência vem pondo a nosso dispor e que substituem, nos meios acanhados, pelas sínteses e miniaturas vividas, o desenrolar dos fenômenos sociais.

E, obtidas a luz e a força elétricas, será um contra-senso pensar no telefone? Antolhar-se-á um trabalho de Hércules conseguir que todos os núcleos, de certo vulto demográfico, possuam ao menos um aparelho, localizado, por exemplo, na sede da escola do bairro? A existência dos postes, para a condução da energia elétrica, não, leva a crer que, como se faz nas capitais, também pudessem eles suportar os fios telefônicos?

AINDA O “HUMOR OBJETANTE”

Compreendo perfeitamente — e chego quase a justificá-la — que a incredulidade sorria mais uma vez diante desses planos. A pergunta que essa descrença, ou como melhor a definia Alberto Torres, que esse nosso “humor objetante” fará, parece naturalíssima:

— Onde se arranjaria tanto dinheiro para dotar os nossos bairros rurais desses e outros melhoramentos, como água encanada, casas ou habitações decentes, médico, farmácia?

A resposta, que julgam penosa e embaraçante, não tem nada disso.

A casa... Eu poderia apelar para o cumprimento dos dispositivos da reforma de 1920, que cometeu ao Estado a obrigatoriedade de desapropriar terras nos núcleos rurais, a fim de nelas construir a casa da escola e do professor, disposição incumprida e certamente incumprível. Mas se o Estado não o pode fazer, podem-no, quase sempre as câmaras municipais. E algumas, apesar de tudo, já o fazem, sem que lho peçam. Pederneiras, por exemplo, que anualmente consigna dotações orçamentárias com esse fito. E se outras não a imitam, é porque não se nota empenho constante do alto e porque, mui provavelmente, como está acontecendo a Pederneiras, as casas ficariam largo tempo fechadas, à espera dos mestres que lhe não mandam.

A água... Não quero relembrar as passagens do “Pioneiro” de Basil Mathews, narrando como Livingstone resolveu esse problema, em algumas aldeias dos makololos, próximas ao deserto de Kalahari, o que mostraria a força e o valor das iniciativas. Mas um cientista como Oliveira Filho, poderia dizer-nos como simplificou a tarefa da obtenção do precioso líquido até para os morros da capital da República. Tudo é questão de vontade, de vontade firme, férrea, inabalável.

ACUSAÇÃO INFUNDADA

Por isso, em todos esses empreendimentos, deverá ter larga parte o professor, pois a ele incumbe desenvolver nos seus educandos, e por ação reflexa, na sua roda, aquela qualidade que dizem inexistente no brasileiro: o espírito de cooperação.

Estou de há muito convencido que é mais uma calúnia que andamos a assacar contra o temperamento nacional, essa de imputar-lhe falta de estímulo cooperativo. Parece-me muito mais que esse sentimento, que tanto lamentamos não possuir, está apenas abafado nas suas manifestações.

Pondere-se, antes de tudo, que a cooperação, como fenômeno social por excelência, é faculdade congênita de um animal gregário como o homem. Estará, portanto, sempre em função do meio. Onde o trabalho se reveste ainda dos aspectos individuais marcados, que dão ao obreiro — às vezes, errônea e falazmente — a impressão do valor de seu esforço isolado e, conseguintemente, da onipresença de sua força criadora, a cooperação terá raízes fracas. E só aparecerá, num outro estádio da evolução, ou pelo parcelamento das tarefas ou pela necessidade inadiável de acometer um grande empreendimento em comum: a luta contra o mar, na Holanda; a defesa contra um flagelo, uma enchente, uma seca, uma epidemia de efeitos desastrosos e imediatos.

Enquanto o regime nosso for o latifúndio, isto é, o do comando único, que vem do alto, onipotente e inacessível e, às vezes mesmo, invisível, a ação humana será apenas promovida pela disciplina. Nela não entrará a solidariedade, desde que é cumprimento de ordens indiscutíveis e, portanto, indiscutidas. O obreiro não concorre com a sua experiência, com os seus pontos de vista, com a sua feição peculiar de encarar os assuntos. Executa apenas o trabalho e pouco se lhe dá que o resultado seja este ou aquele.

Mas se a posse da terra multiplicar os comandantes, estabelecer-se-á a confusão das vontades e, logicamente, a necessidade de discipliná-las de outra forma. Surge aí o debate dos melhores meios, a escolha do mais apto pelo consenso unânime ou pela maioria, e cria-se a cooperação.

E, ademais, o brasileiro está perdendo hábitos associacionistas que já teve: o da construção das estradas de rodagem chamadas de “mão-comum”, tarefa que as Câmaras Municipais absorveram e que os Estados, ao depois, encamparam. Exigiram-lhe ao nosso homem, em troca desse trabalho, de que o libertavam sem que o houvesse solicitado, taxas em moeda corrente, substituindo, pelo imposto em dinheiro, o que era um imposto manual, que tinha por si, além do valor educativo intrínseco, uma alta afirmação de solidariedade.

Outra manifestação idêntica, que está a delir-se, a festa do mutirão, não será uma prova palpável de que, apesar de tudo, subsistem, no íntimo brasileiro, as tendências de mútuo amparo e da reunião de esforços?

E além disso, quando foi que faltou dinheiro para a construção de igrejas e capelas, estejam elas situadas no mais apartado sertão do país? Alegar-se-á agora o caráter místico dessas iniciativas? Mas, o fato de se poder congregar em movimentos que tais, a boa vontade de toda uma população, não estará mostrando que essa faculdade mestra vive recôndita e que só aparece em forma intercorrente porque não lhe sabem estimular a eclosão integral?

A FUNÇÃO COOPERATIVA DA ALEGRIA

Não posso acreditar, sem maior análise, nessa acusação de que carecemos de espírito cooperativo e, muito menos, que certos melhoramentos só se conquistam com o amparo oficial. Teria de acreditar que a alegria desapareceu de meu país ou que, então, aqui, nesta linda terra, cheia de sol e cheia de luz. a alegria perdeu a sua virtude suprema de arco de aliança entre os homens, símbolo eterno do espírito de solidariedade e de associação da espécie. Só aqui ela não comunicaria às nossas almas a corrente magnética da coragem sorridente, da coragem simples, da coragem serena.

E teria de negar os casos inúmeros que conheço e que proclamam alto o nosso espírito cooperativo.

Sei como se instalou a luz elétrica numa modesta localidade do litoral, em Vila Bela, que não podia contar com os recursos da administração pública, tão pobre era. E isso não obstou a que o aglomerado urbano, se esse nome lhe cabe, usufruísse do benefício. Sei como se implantaram a água e os esgotos em Porto Ferreira, obra decidida de uma pequena população de pouco mais de mil habitantes, que não teve o lucro por alvo, mas a melhoria das suas condições higiênicas. Acompanhei o nascimento e acompanho o desabrochar de institutos de caridade que vieram do nada: a Santa Casa de Bauru, a de Agudos, a nova de Piracicaba. E verifico que em todos esses cometimentos, o impulso inicial é dado por um homem cheio de fé. Onde esse homem existe, teimoso, telhudo, voluntarioso, a obra se faz.

Eu quero que, nos núcleos rurais, esse cabeçudo, esse obstinado que não verga e não recua, seja o mestre-escola.

Terá de realizá-la essa obra como um apostolado ou como um ponto de honra profissional. E quando a força do hábito tenha feito dele o homem-providência, o homem insubstituível, há de ver que todos os grandes problemas, cuja equação aterra os menos audazes e os mais tímidos, serão folguedos de criança em suas mãos de mágico(11). Um, por exemplo, que assusta a todos os nossos naturalistas, estudiosos e pensadores(12) pela extensão de legítimo, insanável desastre que vem assumindo, vejo-o resolvido: é o reflorestamento do Brasil. O professor e seus alunos saberão sustar — se é verdadeira a causa apontada das bruscas mudanças climatológicas — as forças desenfreadas da natureza. E o nosso caboclo, fazedor de desertos, destruidor contumaz, “dendroclasta por índole”, na frase de Artur Neiva, passará a dendrófilo por educação, e encherá de bosques e capões de mato, de chuvas e de bênçãos estes infindáveis milhões de quilômetros quadrados.


 

À GUISA DE RESPOSTA


 

Ainda que eu não o haja, até este momento, declarado, percebe-se claramente que este estudo se inspirou no inquérito que a Associação Brasileira de Educação promoveu para a sua 4a. Conferência Nacional, a realizar-se proximamente em Recife(13), e que ele pretende ser uma espécie de resposta aos quesitos que João de Toledo, como um dos relatores gerais, organizou sobre a tese “Como preparar o professor rural e como fixá-lo ao meio em que deve atuar?”

Por isso mesmo, chegados a este ponto da discussão, hão de ocorrer aos meus pacientíssimos ouvintes algumas interrogações de ordem técnica sobre a “mise-en-oeuvre” do plano.

Plano que se não possa levar imediatamente ao terreno da realidade e que, sem exigir modificações radicais e gastos extraordinários, não possa entrosar-se no patrimônio geral, não deve ser apresentado. Pura dialética ou hipótese brilhante, servirá apenas para aumentar a babel dos espíritos e para atrapalhar as idéias boas que podem surgir sobre o mesmo debate.

Ora, no meu plano, embora as soluções sociológicas tenham incontestável primazia, a verdade é que o centro do sistema é a obra educativa e, portanto, o professor.

Ele é que é o prestímano que deve transformar o fato concreto da simples posse e exploração da terra(14) — existente até entre as tribos de primitivos — numa base estável da grandeza do país, dentro das possibilidades naturais que lhe condicionam e lhe legitimam as aspirações.

Bem de caso pensado, coloquei este meu ensaio sob a égide do pensamento do ilustre patrício Pandiá Calógeras: “Crise de caráter, crise de ensino, crise desintegradora, tudo são reflexos de um fenômeno só: a crise da escola primária”. Ele veio aí para deixar impresso na consciência que o aspecto social da questão brasileira é inseparável do aspecto pedagógico. São intimamente conexos. O apelo que se fizesse isoladamente a qualquer um deles, implicaria se invalidassem e aniquilassem os resultados.

Ora, se o nosso professor contemporâneo não é o que se reclama para essa obra e se há mister criar um novo tipo de escola formadora desse pessoal inexistente, cabem mui a propósito as perguntas: “Onde se localizariam as normais rurais? Como se organizariam? Como se escolheria o seu professorado? Como se recrutariam os seus alunos?”

Onde se localizariam as normais? Mas onde quisesse a administração pública, onde houvesse aglomeração de candidatos, de preferência nas cidades do interior em que já existissem normais urbanas. Porque, nessa matéria, o gosto e a inclinação do aluno é que deve decidir soberanamente. Por isso mesmo, não vejo desvantagens em que até a Capital venha a ter o seu instituto do gênero, uma vez fique evidenciado não faltarem aqui aspirantes a tal espécie de magistério.

E se não avento a idéia, que me parece perfeitamente defensável, de que, numa mesma cidade, as duas escolas funcionem em conjunto, é porque às normais já instaladas falece um requisito imprescindível: as áreas para o ensino agrícola. Sim, porque nisso é impossível transigir: se as nossas normais existentes têm o seu grupo ou escola-modelo para campo de experiência e de treino dos futuros mestres, uma normal rural deve ter anexo o seu aprendizado agrícola.

É o tipo escolar que está fadado a ser, dentro de um futuro muito próximo, muito mais próximo do que se cuida, o de todos os núcleos rurais bem desenvolvidos do Brasil, porque só neles a infância e a mocidade do campo encontrarão a fórmula de adaptação à vida que o destino lhes reservou. Haverá, ne­ces­sa­ria­mente, es­ta­be­le­ci­men­tos mais simples ou mais amplos, como há escolas isoladas, escolas reunidas e grupos escolares — orientados, preferencialmente, neste ou naquele sentido, para a agricultura propriamente dita, para a pecuária, para as indústrias agrícolas ou para as pastoris, mas será, não o duvidemos, o padrão ideal de nossas escolas rurais.

Por isso mesmo, só um professor, efetiva e eficazmente treinado num aprendizado agrícola, estará apto a adquirir aquela mentalidade, aquele espírito de iniciativa que faça dele um homem útil, um homem empreendedor, um homem manancial de energia mesmo nos bairros de mais baixa densidade demográfica.

A QUESTÃO LITORÂNEA

Sinto-me no dever de abrir aqui espaço a uma explanação. Tenho falado com insistência em núcleos agrícolas. Não quer isso dizer, entretanto, haja esquecido o problema do litoral, a que nos junge a fatalidade geográfica deste oito ou nove mil quilômetros de costas. Se prefiro referir-me, em bloco e em tese, aos núcleos rurais é porque não se pode negar que o grosso da população nacional se localiza nos campos, longe da orla do mar, e também porque, mesmo na faixa litorânea, não é incomum nem raro, o encontrarem-se populações unicamente agrícolas ou agrícolas e pescadoras a um tempo. Esta última até, com a nossa incipiente indústria marinha, deverá ser a regra geral.

Não saberia, por isso, desprezar esse outro aspecto da questão educativa, num país com um litoral do tamanho do nosso, porque compreendo o valor que as fainas marítimas têm sobre o globo. Para avivar-lhe a importância, bastaria este raciocínio simples: se o crescimento da população da terra vier a determinar — como não é improvável que aconteça — a eliminação de todos os ramos da pecuária a fim de transformar as pastagens em campos de cultura para poder atender às necessidades da nutrição do homem, o peixe permanecerá como o último alimento animal da espécie. O peixe é e será, pois, um gênero de necessidade fundamental.

Tornar dominante esse tipo alimentício, alargar-lhe a zona de alcance, tanto em extensão quanto em profundidade, isto é, fazendo-o penetrar em populações situadas cada vez mais afastadas da costa e em camadas sociais cada vez mais pobres — o que se obtém pela rapidez do transporte e pela abundância e pelo pequeno custo do produto — fará crescer, ao certo, o número de pessoas ocupadas nos misteres da pesca e derivados, criando novas formas de riqueza.

Ora, as novas escolas normais, e seus aprendizados anexos, não podem fugir a esses imutáveis aspectos regionais, o que logicamente, vai acrescer de complicações a questão rural, já de si complexa.

SIMPLIFICANDO A TAREFA

Como importa, entretanto, e urgentemente, à nacionalidade resolver a crise depressa, pelo restabelecimento do equilíbrio indispensável entre a cultura dos meios urbanos e o preparo da zona campesina — equilíbrio rompido pela absurda desproporção entre os cuidados e solicitudes que se prodigalizaram àqueles em detrimento desta — vamos nos encontrar pela frente com o terrível espantalho da capacidade orçamentária dos Estados.

Podem eles acudir, a um só tempo, às necessidades globais deste país enorme? A resposta do bom senso será pela negativa.

Podem, contudo, valer-se do mesmo processo de equiparação empregado com as normais livres e que é muito mais geral e comum, no país, do que se julga.

As administrações instalariam escolas modelo para os diversos tipos e autorizariam a iniciativa privada a que fundasse outras ou transformasse algumas das que já possui, sotopondo-as a um severíssimo regime de fiscalização.

Esta medida seria até aconselhável para as próprias normais oficiais, que pudessem permitir a metamorfose. Evitaria o alargamento de um fenômeno grave, que todos percebem, que vai engrossando rapidamente, mas que ninguém, até agora, teve a coragem de encarar.

Refiro-me ao fato visível de só desejarem os professores normalistas escolas de cidade, para lecionar. Ninguém alegará que o fenômeno não é alarmante. Se o não fora, as administrações, apesar dos sensíveis progressos da pedagogia e da didática, que tornaram indispensável a especialização profissional, não haveriam aceito o tipo híbrido do professor leigo, improvisado para as populações que, de outra forma, não conseguiriam quem lhes ministrasse os elementos de instrução mais rudimentar.

É uma solução de emergência, que compreendo e justifico. Mas não vejo em como se extinguirá esse estado de cousas, desde que o Brasil, só conta, para isso, com as normais urbanas. E estas só produzem o professor citadino.

Dentro de pouco, as cinqüenta e tantas normais paulistas e as setenta mineiras, — só para citar os dois Estados mais populosos — terão fornecido vários milhares mais de mestres que hão de reclamar lugares nos grupos escolares e nas escolas citadinas.

Vão dizer-me que aos alunos saídos desses estabelecimentos estatui a lei o servirem, por certo tempo, nas zonas agrícolas. É exato, mas ainda que esses professores não realizassem a obra deletéria a que me hei referido nos capítulos anteriores, todos nós sentimos que a lei considera esse estágio quase como um castigo e, por isso mesmo, trata de abreviá-lo o mais que pode. Se o não aboliu de vez, é porque os agricultores persistem no mau vezo de morar no campo. E como esse estágio é curto e breve, em poucos anos terão crescido as levas dos que têm direito às escolas urbanas, enquanto as turmas anuais de mestres temporários da zona rural continuarão sensivelmente as mesmas, se mesmo não decrescerem, diante da pletora de professores desocupados.

A NEGAÇÃO DE UMA LEI DE ECONOMIA

Surgiria aqui, correlatamente, o erro vulgar da forma de remuneração do magistério: nós, em todo o país, pagamos menor ordenado aos funcionários que temos maior dificuldade de obter. Há um argumento especioso para sustentar esse estranho critério. Parece que nos empenhamos paradoxalmente em forjar um desmentido cabal àquela célebre lei da oferta e da procura: sustentamos, sem oposição, que o professor que vive nas cidades deve ganhar mais que os outros, porque aqui o custo da vida é mais alto. Entretanto, professores para as cidades não faltam, tanto assim que se submetem a perceber estipêndios irrisórios no ensino particular. E para os meios rurais ninguém quer ir.

Este meu argumento, ainda que de uma verdade meridiana, não implica a opinião de que se devem baixar os vencimentos dos professores urbanos. Acho os atuais insuficientes e tanto basta para mostrar o que penso a respeito dos ordenados dos mestres da roça: julgo-os ridículos. Parece que nunca nos ocorreu a idéia de que a perda voluntária do conforto, para ir realizar uma obra de elevação cultural, merece maiores recompensas. E porque nunca nos ocorreu, erigimos em dogma, tácito mas real, em nossos quadros legislativos, este princípio de clamorosa injustiça: que os meios mais atrasados não têm o direito de aspirar ao trabalho dos tipos de elite, pois que, atraídos pelos ambientes mais cultos, que remuneram melhor, esses homens não terão nem o desejo nem a oportunidade de abandoná-los.

O PERIGO DE UMA NOVA BUROCRACIA

Será, contudo, de extrema prudência não se deixar iludir pelo brilho do argumento e sacrificar-lhe toda uma orientação. Vejo por aí aconselhada a praxe de se concederem vantagens especiais, de toda a casta, aos mestres que pretendem fixar-se no campo. Eu mesmo, respondendo, em 1926, ao inquérito do “Estado de São Paulo”, me enfileirei entre os adeptos da medida, que reputo boa. Mas não deve apelar-se para ela pura e simplesmente, sem a adoção das medidas complementares.

Poderíamos vir a criar uma burocracia no magistério rural. O professor, então, se fixaria no campo para pilhar as vantagens e aproveitar-se dos bons dispositivos que o favorecem, mas não lhe daria a sua alma. E de burocracias está cheio o país, mais do que convém à sua capacidade de alimentar parasitas.

Daí o cuidado, antes de tudo, na seleção dos candidatos às normais rurais. A sua entrada deverá depender de informações e provas que autorizem a crença num decisivo pendor pelo mister. E ainda aqui, as câmaras municipais poderiam trazer um notável auxílio só com o enviarem, anualmente, à sua custa, certo número de alunos a essas escolas, escolhendo-os entre os tipos mentais de escol que houvessem revelado vocação pelo magistério agrícola e colhidos no seu meio próprio.

E se os governos estaduais se dispusessem a criar ou a incentivar a criação das escolas-internatos, a mesma prática, em mais larga escala, apanharia os mais bem dotados dos numerosos núcleos rurais brasileiros.

O RECRUTAMENTO DO PROFESSORADO

Restaria sempre um ponto difícil a resolver: o do professorado das normais. Recrutá-lo como. se em nosso aparelhamento pedagógico não existe o instituto formador do magistério secundário?

E desde que a corrente urbanista é tão universal, que influiu sobre toda a nossa existência, não equivaleria a ameaçar as normais rurais no nascedouro, admitir, em seu quadro docente, mestres, entendidos sim da matéria que lecionam, mas com mentalidade avessa às tendências das escolas?

Sem dúvida, e ficaria aos governos o dever de selecionar os professores das normais novas. Para as disciplinas comuns, aquelas que todo o homem, more onde morar, deve conhecer, não se exigiria mais do que simpatia e entusiasmo pela obra. Para as matérias, que passariam, pelo meu plano, a tão profissionais como a pedagogia, isto é, agricultura e higiene, as cadeiras caberiam, em boa razão, aos médicos e aos agrônomos.

Os agrônomos, por força de sua própria formação profissional, são os homens que possuem a visada clara das necessidades da vida rural. São os que lhe conhecem os defeitos, os senões, as insuficiências e os únicos que se interessam seriamente por ela.

Os médicos, exceto, está bem visto, os das grandes cidades, vivem em contacto quotidiano com a gente do campo e sabem, de ciência própria, até onde vai a carência de educação sanitária.

Não haveria de ser difícil encontrar, entre esses dois núcleos de especialistas, os autodidatas que se transformem nos hábeis professores necessários. E, ademais, o expediente alvitrado teria, em primeiro lugar, o condão de romper com os pontos de vista excessivamente normalistas que reinam em nossos estabelecimentos. Não é uma exclusividade nem privilégio nosso esse defeito. Todos os ramos de atividade sofrem dessa doença, que vem do ângulo de visão estritamente profissional. E são essas maneiras fechadas de pensar que complicam, a miúdo, os problemas e impedem soluções acertadas. A interferência de elementos estranhos nas escolas, formados em ambientes mentais muito diferentes, traria a troca das idéias e mesmo o choque das opiniões, necessários a agitar e a dar vivacidade e vibratilidade às instituições humanas.

Depois, o médico e o engenheiro agrônomo incorporariam, à esfera habitual das preocupações do professor, problemas de que este tem noção vaga e imperfeita, quase sempre de simples relato jornalístico ou de perfuntórios cursos atamancados.

O engenheiro agrônomo dar-lhe-ia que pensar nas questões econômicas da produção e iria fazendo, provavelmente, estabelecer as correntes mentais, capazes de transformar-se, mais tarde, em idéias-forças, a propósito do perigo de nossa monocultura. Ensinar-lhe-ia que não há justaposição de músculos sem tecido conjuntivo que encha as cavidades e que não há construção alguma sem argamassa para as juntas. Que ninguém pretende substituir o café, cujas lavouras são as pedras do edifício econômico brasileiro, mas, sim, que o cimento de suas juntas deve ser de outros gêneros cultiváveis, possivelmente de primeira necessidade, desde que uma casa não se faz exclusivamente de pedras.

O médico ensinar-lhe-ia a que fuja dos decalques e das cópias, que acabam, invariavelmente, em meras contrafações. E a natureza, como as leis penais, pune e persegue os falsificadores. Apontar-lhe-ia os avisos gritantes de nossa fisiologia, mostrando-lhe que nós somos diversos e diferentes dos outros, pondo-lhe sob os olhos índices curiais, como esses da medicina alienígena que, no aplicar a sua terapêutica entre nós, faz mais mal do que bem. E. por contraposição, o reverso da medalha de nossos sistemas curativos, o de uma simples gripe, por exemplo, considerados prejudiciais e perniciosos e, portanto, contra-indicados em todos os meios que não o nosso.

Ensinar-lhe-ia a precariedade e o valor relativo de todas as fórmulas e expedientes alheios, como essa de Pignet, por exemplo, sobre o índice de robustez humano, para deixar-lhe, no fundo da alma, a certeza de que há todo um mundo de cousas a fazer em nosso país e que, da experiência dos outros, nós só podemos aproveitar as indicações e nunca os resultados.

E ensinar-lhe-á que nós, no afã de imitar os homens de fora que nos parecem deuses, esquecemos o conselho e o exemplo do índio, a respeito da vida ao ar livre, para importar em troca a civilização européia, através de Portugal, mal saído ainda da Idade Média. E que só agora nos voltamos para esse exemplo, que tínhamos em casa, porque lá longe, de onde nos vem tudo, vestimenta para o corpo e vestimenta para o cérebro, chegaram a concluir que essa vida é que mais convém ao homem. Nós não fomos capazes de vê-lo, apesar da escandalosa insolação e da iluminação que a natureza nos oferecia perdulariamente. Foi preciso que gritassem pelo perigo da tuberculose, nos ambientes fechados das escolas primárias, para que surgissem as escolas ao ar livre; foi preciso se constatasse a porcentagem dos doentes do coração, criados pela vida sedentária em casas úmidas, para que houvesse vontade de mandar os nossos filhos para a rua.

O nosso clima, que parece feito expressamente para evitar as despesas inúteis com as luxuosas instalações escolares, não servira de nada. Não tínhamos olhos para nós.

E o professor aprenderá por fim e fixará em seu subconsciente, como uma baliza fatal de referência, para a qual terá de volver-se toda a vez que uma dúvida o assalte, que, nas obras humanas, só a observação sagaz e a cultura são capazes de resolver casos que a vida apresenta.

O PREPARO DO MESTRE PRIMÁRIO

Mas isso pressupõe o professor de grande cultura. Será isso que eu estou aqui a propor?

Não, meus senhores. Eu não quero nem pretendo o professor rural, como nenhum professor primário, de alta cultura. Seria inútil, se antes não fosse impossível. Eu quero neles observadores argutos e não cientistas. Gente que aumenta o cabedal dos fatos adquiridos, não os homens superiores que deduzem regras, descobrem relações inéditas, formulam hipóteses audazes e implantam conceitos que revolucionam a ciência, e, portanto, a vida.

É preciso que nos vamos habituando à idéia de que, nos empreendimentos do vulto da educação, é indispensável separar, em qualidade e em preparo, o seu pessoal. Há os dirigentes e há os executores.

A cultura deve ser para os que superintendem ao movimento geral e são diretamente responsáveis pelo êxito ou pelo fracasso do trabalho, Não é absolutamente certo que, numa fábrica ou numa usina, todos sejam engenheiros ou que um exército se componha de oficiais unicamente.

O Brasil, de uma feita, já se deu ao luxo de criar uma milícia decorativa, em que o menor posto era o de alferes. Mas teve, ao depois, o bom senso de aboli-la, reintegrando-se nas direitas normas militares.

Entretanto, no ensino do país, há muitos anos que andamos imitando essa guarda-nacional, pois que ainda não possuímos verdadeiras escolas de oficiais. E acontece, por isso, que no preenchimento dos cargos de responsabilidade, como todos saem da mesma oficina e têm o mesmo certificado de habilitação, todos se julgam no direito de pleiteá-los e de obtê-los. E, fatalmente, nem sempre “the right man” vai para “the right place”.

Como professor que sou, e que sente toda a tragédia dessa anomalia, não posso desejar que tal situação se mantenha. Faço até, neste passo final de minha contribuição, o voto ardente para que se realize, em São Paulo, o projeto de transformar em Normal Superior, Faculdade de Educação ou de Filosofia e Letras, esta escola, cujo cinqüentenário se comemora neste ano, e que ela receba, como presente de aniversário, pelos seus trabalhos de meio século, o justo prêmio das suas aspirações.

Só assim teremos, nesse portentoso trabalho educativo brasileiro, a separação das funções e cada homem, de acordo, com as suas aptitudes, no seu lugar. E só assim, o nosso campo virá a possuir, com a previdência e presciência que a sua supremacia econômica impõe iniludivelmente, a organização completa e perfeita de que carece para dar o máximo de rendimento, em benefício do gozo pleno da vida social.

“O ENIGMA SEM SEGREDO”

Porque parece-me haver demonstrado que a verdadeira crise brasileira está no campo e que ou nós a resolvemos com inteligência e clarividência, enquadrando-a no plano de nosso ideal nacional, ou ela se resolverá de per si, da maneira que lhe for possível, mesmo contra nós.

Pôde sempre representar-se uma nacionalidade como um homem ereto sobre um monólito triangular, cujas arestas seriam saúde, educação e comunicações.

O homem sentir-se-ia sobre o bloco como sobre uma peanha. Mas a peça, para que tenha estabilidade e garanta o equilíbrio do homem, terá sempre que apoiar-se sobre a terra.

Nesse símbolo claro, de alegoria transparente, a terra é a produção.


 

Apêndice da 1a. edição

 

O ENSINO PARTICULAR
E O NACIONALISMO


 

No meio do segundo capítulo, ao referir-me à crise determinada pela escravatura no Brasil, toquei no concurso prestado pelas correntes imigratórias, demonstrando que, se elas nos favoreciam com a benéfica influência do seu conceito do trabalho, eram, do mesmo passo, uma desvantagem pelo problema educativo que criavam.

Não pude abordá-lo, no texto da conferência, porque escapava à alçada do meu plano. O problema visado era o da crise brasileira integral e a questão imigratória apenas alcançava uma parte do território nacional, pois só alguns Estados a possuem: São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, uma pequena parte de Minas Gerais e do Espírito Santo.

O caso, porém, já me havia preocupado há anos. Descendente de estrangeiros, ele impressionara-me com a circunstância de que eu conhecia os dois estados de espírito que se defrontavam, o brasileiro e o alienígena, e estava ao par das duas psicologias. Abordei-o numa conferência realizada em julho, de 1921, no Jardim de Infância, anexo à Escola Normal da Praça da República, por ocasião de uma das sessões plenas do Conselho de Educação, de que fazia parte como Delegado Regional do Ensino, em Campinas.

É esse trabalho que aparece aqui porque se me afigura que os dados da questão não mudaram e que a maneira mais fácil de assimilar a prole descendente de estrangeiros ainda é a que eu preconizo:

..............................

“Sr. Presidente.

Eu disse que a lei 1750 reformou, de alto a baixo, a instrução pública. Entre os pontos a que estendeu a sua alçada, um abordou, que é de uma delicadeza extrema, capaz de suscitar os mais desagradáveis melindres. Refiro-me ao ensino particular, e, em um país novo como o nosso, alimentado pelas correntes imigratórias de toda a origem, ensino particular é quase sinônimo do ensino estrangeiro.

Não existe, pois, para nós brasileiros, e muito especialmente para nós paulistas, um problema mais suscetível do que esse, nem questão mais melindrosa. Demanda a sua observação de um tato fino e percuciente, que saiba perceber, instantaneamente, as mais ligeiras contrações do sentimento patriótico de cada povo, aqui representado, e, ao mesmo tempo, uma habilidade quase divina para satisfazer os reclamos da opinião pública nacional.

FACA DE DOIS CORTES

O estrangeiro é uma necessidade absoluta em nosso Estado, cujo progresso atual e cuja expansão econômica tem nele, iucontestavelmente, um dos seus poderosos fatores. É ainda uma necessidade pelo benéfico influxo que exerce sobre a constituição de nossa raça, a que infunde valiosos elementos de sangue, sendo, como é, a nossa um produto direto da civilização européia.

Mas, se representa um “bem”, encarado desses pontos de vista, o estrangeiro, é, par e passo, um “mal”, sob o aspecto da conservação de nossas tradições nacionais, a que se acresce a desvantagem de que nos somos apenas um povo em vias de fixação e ele é, regra geral, a síntese definitiva de uma civilização cristalizada.

A entrada, pois, das correntes migratórias, em nosso país, apresenta-se como um problema de duas pontas: a do progresso e da civilização, em que o estrangeiro é imprescindível, e a das tradições, em que é um indesejável.

EMBOTANDO UM DOS GUMES

O remédio para uma tal contingência só pode ser, portanto, um único: aproveitar todo o bem que dele se espera e neutralizar-lhe o mal que pode fazer, atraí-lo à terra e vinculá-lo à gleba, afeiçoar-lhe a alma e amalgamá-lo ao povo, em última análise, chamá-lo e absorvê-lo.

Mas absorvê-lo como? Os meios adotados até hoje têm dado resultados apreciáveis e duradouros: bom acolhimento, facilidade de vida e de enriquecimento rápido, liberdade e garantias de trabalho, possibilidade de alcançar regalias iguais às dos cidadãos brasileiros, com o direito de acesso a todas as carreiras oficiais; tratamento de igualdade, senão de superioridade, no tocante aos tributos que o Estado impõe, enfim, todas as liberdades que lhe outorga a nossa ampla constituição política.

Ultimamente, num impulso nativista, que é decerto generoso e nobilíssimo na atitude, mas que é falaz na prática, resolveu-se acrescentar àqueles meios, mais um: o da obrigatoriedade de saberem os filhos de estrangeiros o português antes de qualquer língua, dispositivo criado pela lei n. 1750, que estabeleceu a proibição taxativa de se não poderem ensinar outros idiomas a crianças menores de dez anos.

FALSA ANALOGIA

A escola, disseram quando se pediu a aprovação dos preceitos em vigor, é a forja máxima da nacionalidade. Na primeira infância, o cérebro é cera mole que recebe, a fogo, as impressões de uma nacionalidade e nunca mais o espírito se libertará dessas marcas indeléveis.

Eu poderia dizer que é isso ilusão que as palavras sugerem. Se fora verdade absoluta e incontrastada que tais marcas não desaparecem eu — perdoem, os colegas a vaidade desta cita pessoal — eu, com quatro anos de escola italiana, dos 6 aos 10 anos de idade, tendo aprendido a soletrar sobre jornais italianos, lendo diariamente notícias e panegíricos da Itália, eu, que recebi, como primeira lição de geografia, os limites da Itália, que tive como lição inaugural de “História de meu país”, a legenda da fundação de Roma, de “Roma, a Eterna”, de “Roma, capus-mundi”, eu, repito, não estaria, hoje aqui, fazendo ponto de honra em ser considerado, pelo meu nascimento, pela minha educação, pelo meu passado enfim, tão bom, tão sincero, tão legítimo brasileiro como os melhores representantes da genealogia nacional.

Não é meu intuito, contudo, encaminhar o problema por esse lado. Limito-me apenas a ponderar que as teorias são uma cousa e a realidade da vida outra muitíssimo diversa.

AS DUAS ATITUDES

O estrangeiro que para aqui se dirige e que o Brasil recebe, cordialmente, de braços abertos, não está animado das nossas mesmas intenções. Não tem o desejo de aqui permanecer. Julga-se um exilado e se isola. No seu íntimo. Pátria só há uma, a “sua”; potência admirável só há uma, a “sua”; país onde se vive, só há um, o “seu”. De longe, de além-mar, pela boca de seus parentes, pelas cartas de seus amigos, pelas notícias de seus jornais, a Pátria acena-lhe ininterruptamente e lhe sussura ao ouvido, com extremos de mãe carinhosa: — “Não te esqueças da terra onde nasceste. Teus filhos são meus filhos, que têm teu sangue e o teu sangue é meu. Ama-me. Tu me deves amor e obediência”.

E o estrangeiro que traz, no seio, o desejo de enriquecer e de voltar, diante das atrações de sua terra, apresta-se a dar à sua prole, que nasceu aqui, que é nossa conterrânea, uma educação de acordo com os reclamos e aspirações de seu país.

Nessa hora, o Brasil, na defesa mais alta de seus interesses, põe-lhe à frente os dispositivos constitucionais que visam garantir a estabilidade de sua raça. O estrangeiro alarma-se e, como não pode lutar contra a aplicação da lei territorial da nação que o hospeda, ele — que se sente constrangido e se considera lesado em sua liberdade individual, de acordo com suas teorias e leis que regem o seu país de origem, que ele julga legítimas e são-no para seu ponto de vista — entra francamente no terreno da chicana e da resistência pacífica.

A BURLA DA LEI

E chegamos a este resultado:

Na 5a. Região de Ensino, que tenho a alta honra de dirigir, um pnofessor estrangeiro, para legalizar o funcionamento de sua escola, contratou uma professora a fim de reger as aulas de português e geografia e história nacional.

A preceptora, que é brasileira nata e que é, aliás, idônea, fala malíssimo a língua de seu país, educada que foi na Europa. Era um subterfúgio, incontestavelmente; mas com tal subterfúgio a escola foi autorizada a funcionar.

Quantos casos idênticos não haverá pelo Estado?

Ademais, releva notar que a lei 1.750 dá para a obrigatoriedade escolar as idades de 9 a 10 anos. mas. no seu §4.° do art. 5.°, não exige, às crianças menores de 10 anos, a prova legal para que possam receber o ensino de línguas estrangeiras. Segue-se daí que, doravante, nenhuma criança, filha de estrangeiro, terá menos de 10 anos e receberão todas ou a maioria, a instrução e, o que é pior, a educação que mais convier aos seus pais. Por que?

Porque entrou em cena um fator que é mister não esquecer nunca na fabricação das leis humanas: o elemento sentimental e afetivo.

Em havendo a proibição taxativa da lei, nos espíritos de contradição nasce o desejo de a burlar. Punido o infrator, o gesto eleva-o à altura de novo mártir e o estrangeiro passará a julgar-se uma vítima e, na ânsia de salvar o que acredita seja a dignidade de sua pátria, apelará, conscientemente, para todos os subterfúgios, para todas as cavilações, para todos os sofismas que cabem dentro da lei.

O FATOR ESQUECIDO

Sr. Presidente,

Nós temos, para o fundamento completo de nossa nacionalidade, alguns problemas sociais de complicado aspecto e de solução difícil.

Mas difícil, não quer dizer impossível. Tudo depende da forma por que tais questões serão plantadas. Um problema não convenientemente armado, cuja equação não se enquadre às verdades contidas no seu enunciado, é sempre insolúvel.

Quer-me parecer que este da regulamentação do ensino estrangeiro é um deles. Quisemos resolvê-lo a frio, esquivando-nos às suas dificuldades, em marchas de flanco. que nos deram a impressão de o haver vencido, quando apenas o havíamos rodeado.

Urge, sem sair da lei, formulá-lo de novo e ordenar-lhe os termos da equação com os olhos abertos para todos os fatores que podem modificar-lhe a solução. Um problema de sociologia não se parece em nada com um gambito de xadrez.

O elemento que transforma, presentemente, os cálculos governativos é de ordem afetiva e sentimental. Há uma suposta diminuição do prestígio e da dignidade das Pátrias estrangeiras, diante dos dispositivos das leis em vigor. Poder-se-ia mostrar, serena e imparcialmente, que não existiu tal intuito, nem disso se cogitou, mas é inútil. Com sentimentos não se discute, porque nós, os homens, só consideramos como verdades indiscutíveis aqueles conceitos que sensibilizam a nossa alma. Uma verdade humana é um sentimento intelectualizado, e um raciocínio profundamente sentido, mais que pensado, é uma verdade bem mais indestrutível que todas as leis da física.

Para dominar um sentimento, só enfrentando-o com outro sentimento, que justapondo-se ao primeiro, seja capaz de lhe modificar as conclusões. Vou mostrar que, sem sair do terreno sentimental, nós possuímos argumentos capazes de desfazer a inesperada impressão que a lei causou.

A DIFÍCIL ESCOLHA

Os estrangeiros, na maioria europeus, que habitam São Paulo, são extraordinariamente prolíficos. Raro será aquele que não tenha, pelo menos, um filho brasileiro. É a esses, evidentemente, que se dirige este meu pálido estudo.

O estrangeiro, pai de crianças nacionais, a certa altura de existência, encontra-se diante do problema da educação dos filhos, como diante de um bívio: é o dilema da nacionalidade. A sua, dele, está perfeitamente definida. Qual será a dos filhos?

De um lado, prende-o todo fundo moral hereditário de sua raça, as suas aspirações, a sua educação, o seu sangue, o seu passado. A Pátria reclama-lhe a prole. Considera-a sua.

Do outro, o país de adoção, que o ecolheu benignamente, que lhe deu o que lhe faltava no seu, exige-lhe, em troca, que seus filhos sejam nacionais.

O PASSO DECISIVO

Há, deve haver, no espírito de todos os homens, em situação idêntica, dias de hesitação e de perturbação. Nós poderíamos abreviar-lh’a ou mesmo não a fazer surgir, se, numa contínua e ininterrupta campanha, soubéssemos dizer-lhes estas palavras de convicção e de fé:

“Estrangeiro, tu o és só de nome. Na verdade estás, agora, incorporado ao país. Preso à gleba, jungido às nossas leis, amarrado às facilidades de tua nova vida, estás vinculado ao Brasil pelos filhos que te nasceram aqui. Quando abandonaste a tua terra, não pensaste que virias forjar, com tuas próprias mãos, um conflito de soberanias. E esse conflito, que não sabes resolver, que ninguém pode resolver, é o teu maior tormento. É inútil que fujas ao dilema: A tua Pátria não é a Pátria de teus filhos, porque diz-te a tua velha canção nacional que “Pátria é a terra onde se nasce”. Não sabes resolver-te. Entre o sangue e o nascimento, teu espírito vacila e não sabes escolher.

Digo-to eu. A Pátria de teus filhos é esta. Poderias, talvez, pensar de outra forma, se lhes pudesses dar, na tua, o conforto que eles têm aqui. Mas não podes e, dado mesmo que simplesmente o pudesses, não o farias. Estás tão habituado a esta nossa vida, estás tão acostumado às nossas liberdades, que te não amoldarias mais às exigências de tua terra, onde, já, hoje, a tantos anos de distância de tua partida, se para lá voltasses, serias, como teus próprios filhos, um forasteiro. Logo, não tens o direito, que te arrogam os teus patrícios de além mar, de te considerares o supremo árbitro do destino de teus filhos.

Não tens o direito de transformar teus filhos em verdadeiros produtos híbrido-sociais, fazendo-os estrangeiros na sua Pátria de origem porque os educas pelas tradições da tua, e fazendo-os, ao mesmo tempo, estrangeiros na tua, porque, não a conhecendo, não a podem amar com o mesmo carinho com que amariam a esta.

Não tens o direito de cortar a carreira de teus filhos, criando-lhes duas Pátrias, nas quais terão, apenas e unicamente, deveres a cumprir, sem poder auferir as regalias e os direitos que lhes cabem: na sua, pela recusa ostensiva de fruí-los; na tua, pela impossibilidade de os alcançar, tão longe estão.

Não tens o direito de evitar que teus filhos venham a ser, naturalmente, no organismo vivo da nação, células atuantes em todo o sentido e em toda a extensão da palavra, colaborando na vida desta Pátria, com todos os meios ao seu alcance, que são os mesmos de todos os outros brasileiros.

E, principalmente, não tens o direito de impedir que teus filhes, aqui, neste país, de largo acesso a todas as iniciativas e a todas as inteligências, venham a ser aquilo que eles nunca, absolutamente nunca conseguiriam ser no teu país”.

CONTRAPROVANDO AS AFIRMAÇÕES

Sr. Presidente,

Isso que aí fica dito nessas linhas inexpressivas, não são meras palavras decorativas, vazias de sentido. São verdades flagrantes, às quais se pode trazer o testemunho das provas irrefragáveis.

É de comezinha observação verificar que a grande maioria de estrangeiros residentes em São Paulo nunca mais voltará para o seu país de origem. Há centenas de exemplos de gente que o tentou, e regressou convencida de que lá se encontra muito mais deslocada do que aqui.

É ainda uma verdade palpável que os pais estrangeiros não têm o direito de se considerar os supremos árbitros do destino de seus filhos e de lhes cortarem, assim, como têm feito até há pouco, todas as vias de acesso.

Há uns bons três lastros, quando a população do Estado de São Paulo era avaliada, aproximadamente, em 2 milhões e meio de habitantes, uma estatística oficial afirmava, numa notícia que correu pelos jornais da época, existir aqui um milhão de estrangeiros. Era evidente que no milhão e meio restante estavam computados, como brasileiros de lei, boa soma de filhos e netos desses mesmos estrangeiros e que, portanto, não seria exagero nem descabido afirmar-se que a metade da população do Estado era de fundo imediato originariamente alienígena. Ainda há pouco, o recenseamento escolar de 1920 confirmava o asserto, acusando 280 mil filhos de estrangeiros num total de 650 mil crianças.

Dando para um cálculo grosseiro e apenas para fazer ressaltar a justeza do conceito, que dois quintos da atual população paulista sejam de origem estrangeira, e isso em segunda geração, eu me espanto, diante da resposta a esta pergunta que se impõe: Onde estão esses dois quintos proporcionais representados, em destaque, na vida ativa da circunscrição e principalmente nas elites de cultura que o estado oficializou?

Onde estão os vinte deputados e dez senadores a que tal soma de habitantes teria direito como representação no Congresso do Estado? Onde estão esses mesmos representantes na magistratura? E na Marinha? E no Exército? E nas Câmaras Municipais? Não os há.

Como se compreende um tal afastamento, num país destes, dotado das leis mais liberais do mundo, onde o acesso à inteligência, à competência, ao esforço, à antiguidade, está consagrado nas praxes administrativas? Nós não temos leis de exceção. Nunca as tivemos. Desde o império, abolimos as regalias e os privilégios.

UM CONCEITO ERRÔNEO DE PÁTRIA

Onde, pois, a chave do enigma?

Na renúncia ostensiva, premeditada e consciente, aos direitos dos filhos, na recusa formal de colaborar conosco na vida política da nação. Daí, essa disparidade que ninguém impõe, senão o próprio forasteiro à sua prole.

Admira tal fato. Colaboradores sinceros e denodados na vida econômica do país, os estrangeiros, os italianos, em especial — falo por experiência pessoal — recusaram as regalias da vida política e cortaram a seus filhos as vias de acesso, que lhes oferecem as nossas leis escandalosamente liberais. Por que? Questão de um mal entendido patriotismo, porque, neste caso, o patriotismo dos pais não pode, não deve ser, não é o mesmo dos filhos.

O patriotismo paterno é respeitável e sagrado. Rendamos-lhes o preito de nossas homenagens, porque é sinceramente admirável verificar que, após tantos anos de existência em terra estranha, tendo abandonado a sua, ordinariamente, por dificuldades de vida, esse homem conserve, intacta e pura, a mais comovida e enternecida veneração pela sua Pátria, tão forte, tão veemente, tão desinteressada que se propõe dedicar-lhe também o amor de sua prole.

Mas o patriotismo dos filhos pela terra de seus pais, é falso e de arremedo. Poi forjado de empréstimo e não tem o cunho generoso do outro, Falta-lhe tudo. Falta-lhe a sinceridade, falta-lhe a fé, falta-lhe a visão objetiva da terra, falta-lhe a paisagem em que pulsam as vibrações seculares das tradições nacionais, falta-lhe o cenário e a atmosfera em que essas mesmas tradições se perpetuam e se conservam, falta-lhe a língua, a sociedade, a alma. Falta-lhe absolutamente tudo. Chega ao contra-senso de se pôr de encontro às próprias leis do egoísmo humano, que é imanente e necessário a todo indivíduo.

Do próprio egoísmo humano, sem dúvida. Porque meu cérebro não alcança compreender que vantagens possam advir a um homem que se destina a ser duplamente estrangeiro, sendo ao mesmo tempo, cidadão de duas pátrias: estrangeiro, no país em que nasceu e que renega; estrangeiro, na terra de seu pai, que não conhece e que o ignora.

Não chego a compreender que lucro possa resultar a um homem, que se vota à abstenção de seus direitos políticos, porque a renúncia aos que lhe outorga a nossa constituição, importa na perda dos do país de seu pai, onde os não pode exercer. Um tal patriotismo dos filhos é o suicídio de seu futuro político, cujo alcance não intuo.

Só se, por uma aberração de esnobismo contemporâneo, tenha esse fato a intenção de dar o exemplo curioso e extravagante de criar cidadãos excepcionais, que devem obrigações a duas Pátrias, sem receber favores de nenhuma, verdadeiras formigas operárias que têm deveres a cumprir, sem ter direitos a fruir.

A CAMPANHA IMPRESCINDÍVEL

Nesse curioso e interessante fenômeno social, característico de todos os povos que se alimentam e continuarão a se alimentar por muito tempo, de correntes migratórias, há, pois, um erro de ponto de vista que uma bem orientada e, preliminarmente, delicada campanha poderia corrigir, a nosso favor.

Parece-me de suma facilidade demonstrar, maneirosa e habilmente, aos estrangeiros, que a integração de sua prole à terra em que nasceu, é um acontecimento fatal, que está na rudimentar lógica das cousas. Nenhum outro país oferecerá a seus filhos as vantagens e regalias que este lhes oferece; em nenhum outro país, as leis os ampararão de fato, como os amparam aqui. Cidadãos desta terra, todas as ambições ser-lhes-ão permitidas, todas as portas lhes serão franqueadas, e, para todos os lados para que se voltem, poderão abrir caminho e, a golpes de talento, forjar o próprio futuro, o bem estar, o próprio nome.

Que perde o estrangeiro com isso? Dirá que seu país perde um súdito e um patriota. É engano, perde um súdito inútil e um patriota platônico. Em compensação, ganha sempre um amigo, um amigo raro e entusiasta, um amigo sincero e desinteressado, porque no coração dos filhos existe sempre, imperecedoura e imarcescível, uma ardente simpatia pela terra que é o berço de seus pais.

E o amigo desinteressado pode sempre prestar maiores serviços que o patriota longínquo. Porque se, um dia, o filho do estrangeiro alcança aqui, posição política de destaque, desse simples acontecimento podem resultar, à terra de seu pai, benefícios de tal monta que esse mesmo filho nunca poderá prestar, se renunciar à sua Pátria verdadeira, que é esta.

Que um homem sem direitos políticos, que recusou o exercício de suas mais altas prerrogativas cívicas, mesmo que economicamente possa chegar à suprema altura, é sempre, para a vida ativa de uma nação, um corpo morto. É menos ainda, é um zero.

E ademais, para a gloria de um país que forneceu correntes imigratórias, há sempre maior brilho em ter fomentado o progresso, a cultura, a expansão, em ter colaborado, enfim, na civilização de um outro povo, do que na simples verificação do número de súditos que ele possui nesse mesmo país.

Para fazer culminar a justiça do princípio num exemplo concreto, eu pergunto que adiantará à gloria da Itália saber que o Chile possui, em suas províncias, um milhão de italianos? Servirá apenas para provar que a Itália tem superabundância de população.

Mas para fazer ressaltar o valor de sua gente, para fazer fulgir o brilho de sua cultura, pode ela, com justíssimo orgulho e justificada vaidade, apontar para o exemplo desse mesmo Chile, onde o seu atual presidente da República(15), sem deixar de ser um legítimo chileno, é descendente, em linha reta, de uma família de italianos.

OS RESULTADOS PROVÁVEIS

Aí fica, Sr. Presidente, gizada em suas linhas mestras, a campanha que eu, como filho de estrangeiro, desejaria ver iniciada em São Paulo e dirigida pela Diretoria Geral da Instrução Pública. Tenho a firme convicção de que tal linguagem operaria conversões em bem maior número do que qualquer lei coerciva. No próprio mestre-escola estrangeiro encontraríamos o nosso melhor e mais eficaz auxiliar, convencido da inutilidade prática de tentar arrebatar ao Brasil cidadãos brasileiros, que aqui nasceram, convencido de que tal tentativa representaria um grande desserviço ao seu próprio país. Mais do que isso, ele se convenceria de que tal tentativa constituiria um crime: o crime de cortar as asas das pobres crianças ignaras das condições sociais em que vivem, porque responsável direto pela educação desses frutos inocentes do conflito de soberanias e de nacionalidades, é seu dever sacrossanto fazer-lhes tirar o melhor partido dessa luta, de que não têm culpa, mas que suscitaram. A adaptação ao meio não é apenas uma lei biológica. É antes que tudo, uma lei sociológica. Contrariá-la, seria mentir à ciência, mentir à natureza, mentir à própria vida.

No dia em que fosse isso integralmente sentido, o aparelho da regulamentação do ensino particular se reduziria a instrumento de meros efeitos estatísticos para o cômputo geral da grande cultura do país.

Porque, nesse dia, poderíamos dizer ao estrangeiro, pai de crianças brasileiras:

“Agiste bem e cumpriste o teu dever. Compreendeste que estava no interesse de teus próprios filhos, incorporá-los à massa viva do país. Compreendeste, enfim, que, no dia em que abandonavas o teu torrão natal, partias a tua vida em dois blocos diferentes e distintos e que, como um símbolo, punhas o mar de permeio entre o teu Futuro e o teu Passado.

Nós te saudamos, ó estrangeiro, que, além do suor do teu rosto, da força de teus braços, do vigor da tua iniciativa, nos ofertaste a luz do teu espírito, a carne da tua carne, o sangue do teu sangue, com que fundámos, para a grandeza e para a glória, o esplendor fulgurante desta Pátria Nova”.


 

Apêndice da 2a. edição

 

A REFORMA DO ENSINO RURAL


 

O plano educativo previsto neste livro, publicado em 1930, esteve a pique de realizar-se, na prática, em 1932, quando fui chamado a dirigir o ensino paulista, na Interventoria do General Rabelo.

Os sucessos políticos, contudo, interromperam a marcha da reforma que organizara, e isso me levou a escrever, no livro “O que fiz e pretendia fazer”, que viu a luz em fins de 1932, os seguintes capítulos, explicando como estava planejada por mim a reorganização do ensino rural. Esses capítulos cabem perfeitamente neste apêndice:

A REFORMA DO ENSINO RURAL

Ao assumir a direção geral do ensino de meu grande Estado, os que acompanham as questões educativas nacionais, não podiam desconhecer meu modo de pensar a respeito da organização escolar existente e não apenas quanto a São Paulo, mas em referência a todo o Brasil. Além de sistemática campanha jornalística, sustentada por longos anos no “Estado de São Paulo”, meu último livro, “A Crise Brasileira de Educação”, deixara bem clara minha atitude em relação ao problema.

Entendo que é indispensável uma profunda modificação no aparelhamento escolar primário, normal e profissional, de maneira a estabelecer três quadros de professores inteiramentes distintos, exercendo funções perfeitamente diferentes e apesar de tudo complementares. Temos de separar o ensino das cidades do ensino dos meios rurais e do ensino da zona litorânea. É mister diferenciá-los quanto à sua orientação e ao seu alcance, cindi-los para que produzam três mentalidades absolutamente diversas e que, no entanto, reciprocamente se completem para o equilíbrio social do organismo nacional. Em última análise, temos de criar, com características próprias e intrínsecas, o homem da cidade, o homem do campo, o homem do mar. E criá-los sem que um inveje a sorte do outro e se julge em plano inferior na escala social.

Essa idéia não me nascera no cérebro como brotam os sonhos e as fantasias literárias ou como uma criação de gabinete que surgisse inteiramente desligada da realidade. Aparecera-me como a conseqüência natural do exame a que minha vida e minha carreira profissional, em dezoito anos de magistério ininterrupto (quase todo exercido no interior de São Paulo) tinham podido submeter os resultados palpáveis da obra educativa oficial, nos vários meios da população paulista.

Verificara, em primeiro lugar, o fracasso completo da escola rural comum, tal como ainda se organiza entre nós, fracasso decorrente do fato de ser ela uma simples escola de cidade transportada e enxertada nas atividades rurais, enxerto realizado sem a menor dose de inteligência e de observação e no qual dominou exclusivamente o simplista e traiçoeiro critério da analogia. Se a escola comum dava resultados apreciáveis na cidade, havia de dá-los também no campo. Tal era a maneira de pensar geral, esquecidos os seus propugnadores de que a escola da cidade estava em harmonia com as aspirações citadinas, mas em oposição formal aos desejos dos meios campesinos. Teria bastado para condená-la, a verificação quotidiana de que o mestre era um estranho ao meio rural, que não lhe conhecia e menos lhe compreendia as mais elementares necessidades. Se os alunos não podiam admitir no professor superioridade alguma, desde que lhe eram manifestamente superiores no conhecimento até das mais rudimentares fainas agrícolas, o fator principal da obra educativa, que é a ascendência moral e cultural do mestre, estava destruído e anulada na sua base a tarefa do ensino. O professor passava, como acontece ainda agora diariamente, e a todas as horas, à categoria de aprendiz e de aprendiz bisonho.

A conseqüência mais dolorosa e mais funda desse sistema foi a escola acabar sofrendo a repulsa de todos: do mestre, que a aceita como o castigo inicial de sua carreira e que a ela se resigna como a um pesado fardo, tributo inelutável que lhe impõem as leis da instrução pública; do aluno, que a ela não se afeiçoa e menos ao mestre, enfadado pelos conhecimentos fora do ambiente que lhe ministram; do pai do aluno e do fazendeiro, enfim, porque pressentem nesse tipo escolar um inimigo, um dissolvente social, um desagregador do núcleo porquanto o professor, diante da hostilidade do meio, aplica-lhe em revide e em represália, a campanha constante de decantar as belezas da cidade, a superioridade dos aglomerados citadinos e iludindo e envenenando as almas ignaras das crianças, acaba furtando-as às atividades agrícolas para carreá-las, como bois para o corte, para a geena das cidades.

Foi a esse fenômeno que eu chamei “a insídia organizada”.

Quero citar apenas um caso, um só, da comprovada ineficiência das nossas escolas rurais e um caso que se prende à educação higiênica, com a agravante de ter acontecido ainda neste ano de 1932:

Em populosíssimo bairro de adiantadíssimo município do Estado, zona rural afastada cerca de duas léguas da cidade e que possui Escolas Reunidas oficiais há mais de dez anos, não se encontrou uma única pessoa que fosse capaz de aplicar umas ventosas simples num doente. As Escolas — hoje Grupo Escolar de 4a. classe — que conta com seis professores efetivos, que vão diariamente ao bairro e dele regressam uma vez terminadas as aulas — não tiveram oportunidade, em tão largo lapso de tempo, de ministrar aos jovens camponeses da região esse rudimentar conhecimento de medicina de urgência, que não requer nenhuma técnica especial e que é de emprego comezinho na terapêutica caseira.

É um exemplo típico de que a escola rural se nega a si mesma.

CAUSAS HISTÓRICAS

Uma situação tão visivelmente contristadora não podia depender de um simples erro de interpretação humana. Deve ter causas muito mais profundas que cumpre estudar e desvencilhar dos meros aspectos exteriores a fim de proporcionar-lhe o remédio adequado. De mezinhas inócuas e inofensivas, de pequenas providências de detalhe, invariavelmente superficiais, pouco havia que esperar. Há quarenta anos que seguimos, na matéria, a política de aplicar paliativos sem maior proveito que aquele a que estamos assistindo.

O fato da existência de um tal tipo de escola contra todas as indicações do meio ambiente, muitíssimo pior que ineficaz porque nociva, prende-se ao modo por que se formou a nacionalidade e à maneira por que se processou a evolução espiritual brasileira.

O Brasil, pelos motivos que se sabe, teve sua colonização iniciada da costa para o interior. Durante muito tempo, ficaram os primeiros colonos “caranguejando pelas praias”, impedidos nos seus surtos aventureiros pelos perigos do sertão que eles não haviam ainda aprendido a dominar. Mas enquanto não sabiam os pioneiros varejar, a seu bel-prazer, como ao depois fizeram, as inóspitas plagas brasilianas, ao assentarem pouso, neste ou naquele porto da costa, iam regularmente fundando uma cidade, marcando-lhe o rossio, levantando-lhe o pelourinho e construindo logo os edifícios para o exercício da autoridade local, em volta dos quais se aglomeravam os habitantes em construções alinhadas de feição caracteristicamente urbanista,

Numa tal contingência, a agricultura, indispensável à manutenção do núcleo, teria de nascer e de aumentar no regime do simples alargamento: as lavouras se iam formando em roda desses esboços de cidade e como as necessidades dos habitantes eram minguadas, as searas cresceriam devagarinho, por simples aglutinação. O âmbito agrícola se ampliava lentamente, pois que as áreas das culturas refletiam o crescimento demográfico, e cresciam sempre presas ao ponto de intersecção de todas as atividades locais, que era e não podia deixar de ser o centro da cidade.

Há depoimentos curiosíssimos, de que nos dão conta historiadores, como esse ilustre Afonso de Taunay, a quem o Brasil tanto deve, e que revelam o aspecto visceralmente citadino da agricultura do tempo. A cultura do trigo, por exemplo, largamente difundida em São Paulo, devido ao pequeno volume das colheitas, o que lhes facilitava a fiscalização e o amanho, teve sua vitalidade garantida até o dia em que, premida pelas circunstâncias, diante do aumento da população, que exigia outras condições de cultura extensiva, passou para a história e desapareceu praticamente dos produtos agrícolas paulistanos.

Explica-se facilmente o acontecimento: é que os nossos agricultores eram jornaleiros na mais perfeita acepção do termo; eram homens de cidade, como aquele boníssimo Coriolano dos tempos romanos, que saíam pela manhã de suas casas para cuidar das lavouras e regressavam à tarde à cidade em que moravam, centralizando nesta todas as preocupações de conforto e de melhoria a que a vida lhes permitia aspirar. Tudo o que pudessem fazer para aperfeiçoar e suavizar as condições de existência seria feito exclusivamente na cidade e para a cidade, núcleo único habitável em toda a vastidão do território nacional.

Quando, uma vez iniciada a conquista sertaneja, a certa altura da história, o crescimento da população foi exigindo o aproveitamento de terras cada vez mais distantes do paço municipal e não permitiu mais que os lavradores se ausentassem de casa, para a labuta dos campos, ao romper da aurora, regressando à noitinha aos seus lares urbanos, impondo assim a obrigação de fixar-se o lavrador na zona rural, junto de suas culturas, uma desgraça nova surgiu para o Brasil. Se o processo de nossa formação social houvesse tido o ritmo seguido em outros países mais afortunados, esse era justamente o momento crítico que haveria determinado a mudança de nossa estrutura econômica, orientando-nos para uma organização mais racional do trabalho e, logicamente, para um sistema educativo que não compreendesse exclusivamente e abusivamente a cidade.

O desenrolar dos fatos não consentiu que isso se realizasse aqui. Quando o instante chegou de fixar o lavrador no campo, os colonos apelaram para o infame recurso da escravidão. Em vez de mandar o homem da cidade para o campo, mandamos buscar o negro na África e reconduzimos assim o problema ao ponto do qual saíra. Os brancos e mamelucos (e logo depois também os indígenas porque não se submetiam com facilidade) ficaram na cidade, cuidando do trabalho, que se poderia chamar nobre ou pelo menos não humilhante. Na zona rural ficou o escravo, animal desprezível, em nada melhor no trato que os semoventes, indigno, portanto, de receber educação e de gozar de maiores cuidados que os estritamente indispensáveis à sua vida vegetativa.

O problema cultural brasileiro não tinha, pois, mudado de face. Permanecia o mesmo de antes da escravatura, circunscrito ao âmbito dos núcleos urbanos e, nas grandes propriedades rurais, ao das sedes das fazendas. Os brasileiros, isto é, os habitantes livres que precisavam de cultura, eram os que se localizavam num desses pontos, porque no campo propriamente dito só se encontravam os escravos, isto é, a ralé ínfima, os párias sociais, que havia vantagem, e mesmo caridade, em manter no mais completo atraso.

Esse estado de cousas perdurou até quase nossos dias, isto é, até 1888 e o mal que fez à evolução espiritual brasileira é muito mais violento e muito mais profundo do que vulgarmente se pensa. Desonrou as fontes de produção nacional, marcando-a com o labéu de produto do trabalho escravo; inquinou o conceito do valor do trabalho, negando-lhe o que tem de mais nobre e mais alto, que é justamente o seu valor educativo; insinuou no mais íntimo da consciência coletiva o errôneo julgamento de que os labores agrícolas são de sua própria natureza desprezíveis e humilhantes, pensamento que domina ainda o subconsciente de uma boa parte da população indígena, principalmente nos caboclos e caipiras. Determinou destarte uma crise psicológica de horror e de antipatia pelo trabalho dos mais maléficos efeitos e das mais deploráveis conseqüências, que nós nem chegamos a entender, pois livros relativamente modernos, como os de Monteiro Lobato, insistem em crismar, ingenuamente, de preguiça ou de moléstia um fenômeno normal de puro psiquismo coletivo. E, por cima de tudo, deixou-nos a falsa ilusão de que tínhamos uma base econômica estável — trezentos anos de escravidão! — e que sobre ela podíamos descansar o edifício social brasileiro.

Quando a campanha abolicionista, jugulando as desesperadas e inúteis resistências políticas e a teimosia imprevidente de estadistas sem visão e sem sagacidade, enveredou pela arrancada triunfal que, de 1882 a 1888, liquidou com a cruel instituição da escravatura, o país não se encontrava em condições de prever o tremendo desastre que esse ato de generosidade representava para ele. Embriagado de felicidade por haver dado mostras de seu espírito liberal, extinguindo o que se convencionou chamar “a mancha negra”, excitado pela lógica sentimental que lhe exaltava a beleza de sua atitude, não atinou de pronto que, dali por diante, estaria colocado, frente a frente com outros países, em condições de absoluta inferioridade comercial. Era a organização do trabalho que ele mudava do dia para a noite, sem preparo prévio, com um gesto olímpico de desprendimento que fazia relembrar Cirano de Bergerac.

Não percebemos que nos incumbia agora refundir rapidamente todo o nosso sistema de trabalho. Não entendemos que a mudança do braço escravo para o braço livre, trazia consigo o encarecimento da mão de obra e necessariamente a obrigação de torná-la mais eficaz e mais rendosa. Havia uma fórmula de compensação entre as duas maneiras de trabalhar, mas uma única apenas: o que perdíamos em preço, por isso que o braço escravo era quase gratuito, teríamos de ressarci-lo em rendimento e em qualidade.

Mas a transformação só seria passível de êxito desde que se alteasse o nível cultural do campo, desde, portanto, que mudássemos todo o nosso sistema educativo. Inteiramente voltado para a cidade, para as atividades nobres, o aparelhamento educacional existente visava preocupações de índole diversa das que teria de encarar daí por diante. O lado agrícola, que a escravidão eliminara das cogitações administrativas, teria de obter a primazia do tratamento, abandonando o país a praxe multissecular de relegação e de desamparo a que havia votado a zona rural.

Não o vimos. Não o estamos vendo depois de quarenta anos de transformação forçada de nossa base econômica. A agricultura, que se elevou a preocupação de primeira plana em toda a parte, mesmo em países que chamávamos de bárbaros, como o Japão, continuou aqui os seus métodos ronceiros e primitivos. A crise havia durado mais do que era mister, pois que meio século depois do desastre não dá sinais de que pretenda cessar. Continuam a supor que os trabalhos agrícolas independem de conhecimentos mais fortes que os da rotina e que os meios rurais não carecem de cultura mais sólida da que possuem e que não é sensivelmente melhor que a do tempo da escravidão. Durante toda a Primeira República, os nossos educadores e reformadores, criados no vício e na volúpia da cópia, habituados a se agacharem diante das descobertas alienígenas, nada mais fizeram do que tentar adaptar ao organismo nacional os processos que se recomendavam lá fora. E em lugar de atender aos sinais e aos apelos dos tempos, inaugurando a política educativa de reconstrução, abrindo fundações novas para lançar novos alicerces, limitaram-se a pintar de cores diferentes a enferrujada e tosca traquitana do aparelhamento educativo que encontraram e que foram legando de uns para outros sem outras novidades a mais que uma maior camada de esmalte.

Chegamos ao ano de 1932 sem uma tentativa séria de reorganização do ensino que fixasse cada professor a seu meio, preparando-lhe com antecedência a mentalidade indispensável ao êxito de sua missão. E a desgraça maior é que os nossos pró-homens, aqueles que por esta ou aquela circunstância empunham o poder, não chegaram nem sequer a desconfiar de que essa reforma é necessária, de que o Brasil precisa mais dela que de pão, mais dela que de luz e que tem diante de si um apavorante dilema: ou reorganiza a sua estrutura econômica ou vai para o protetorado.(16)

Todo o segredo de minha reforma do ensino repousava sobre essa verdade. Ela visava os pontos capitais da reestruturação econômica do Brasil.

Há, como vimos, dois alvos imediatos e importantíssimos a alcançar: destruir o preconceito que marca os labores agrícolas com o ferrete infamante, reabilitando e enobrecendo o conceito fundamental do valor do trabalho no espírito da massa popular; preparar, ao mesmo tempo, essas massas para que saibam realizar um trabalho eficiente e rendoso pelos métodos que exige a luta comercial.

Esses dois fatores conjugados abolirão, por sua vez, o êxodo dos campos, que é simples conseqüência daquelas duas insuficiências, e farão o conforto do campo, que só pode resultar do amor à terra, do apego ao torrão, da paixão pela gleba que se trabalha e se amanha. E isso fará acabar com aquele doloroso estado de alma que Alberto Torres anatematizava nos homens deste país, estado de alma que se vem eternizando no Brasil e que fez sempre com que os nossos lavradores se entregassem à exploração da terra com a sanha de um verdadeiro saque à natureza, como legítimos preadores de fazendas e de propriedades agrícolas, depois de haverem sido preadores de índios e de negros, de ouro e de pedras preciosas. A preocupação do conforto do campo só pode nascer em quem o ame e venere e cultue. E só pode nascer através de uma constante obra educativa, persistente e tenaz como um apostolado.

Só o professor poderá fazê-lo, mas só o fará o professor que também tenha profunda devoção pelo campo, que lhe conheça as belezas e as riquezas que encerra e também as mazelas que esconde. Assim se explica a minha insistência pela criação das Escolas Normais Rurais, formadoras do mestre com consciência agrícola, conhecedor das necessidades da agricultura, a cavaleiro de seu meio como cultura e como nível mental, capaz de vulgarizar a ciência e de pô-la em evidência pelos resultados imediatos. Será do mesmo passo um conhecedor das inferioridades locais, um defensor incansável do nível médio da higidez coletiva, através de sua experiência individual. E será um pregador sistemático da necessidade da fixação do homem à terra e da formação das sociedades perfeitamente integradas ao seu meio, produtos das determinantes geográficas a reagir sobre as características biológicas.

Esse professor não terá a ciência infusa das discussões e dos debates livrescos e bizantinos, mas as noções bastantes e suficientes colhidas ao contacto com a natureza e com a realidade ambiente. Sua escola refletirá esse seu feitio espiritual: tudo se orientará nesse sentido e suas lições hão de repontar naturalmente de dentro da realidade viva e do mundo circundante. Não teremos mais escolas da Praça da Sé implantadas à força em pleno reino do café, nas mais longínquas fazendas de Ribeirão Preto ou de Mirassol ou de Pirajuí, como não teremos mais aulas de urbanismo ministradas nas mais abandonadas paragens do litoral indígena.

COMO SERIAM AS ESCOLAS NORMAIS RURAIS

Transcrevo aqui as palavras por mim pronunciadas nos estúdios do Radio Club do Brasil, no Rio de Janeiro, quando foi da 4a. Conferência Nacional de Educação, em dezembro de 1931. É uma citação longa, mas indispensável:

“As Normais Rurais se organizarão sob um tríplice ponto de vista: o pedagógico, o higiênico ou, talvez melhor, o sanitário, e o agrícola. isso quer dizer que terão professores propriamente ditos, professores-médicos e professores-agrônomos. Todos nessa casa, desde a cabeça diretora até o mais humilde servente, devem ter “mentalidade agrícola”, isto é, de quem sabe que o campo é a esperança atual única do Brasil e de que mesmo que o nosso país, através do ferro-esponja e do petróleo, venha a ser uma grande potência industrial, nunca se libertará dos trabalhos agrários e que deles o seu povo precisará sempre, porque só a terra cria produtos. A indústria, por muito que faça, apenas os modifica.

Tais escolas têm de formar professores quase hostis à vida citadina, perenemente preocupados com a maior eficiência do campo e de tal modo que se constituam em leaders do núcleo em que vão servir.

Terão noções amplas e claras das atividades agrícolas e das necessidades higiênicas e sanitárias de seus habitantes. Devem estar, sob qualquer aspecto, a cavaleiro do meio circundante, uma espécie de consultor técnico de toda a população a respeito dos mil problemas da vida rural.

Para que realizem esse tipo de mentor terão em primeiro lugar conhecimentos de agricultura. E como esses não se improvisam pelos discursos e divagações, as Normais Rurais possuirão não só professores das principais cadeiras do ramo, como os campos de cultura e as várias dependências indispensáveis para que o aluno saia da escola, depois de quatro anos de curso, com a idoneidade técnica de um verdadeiro capataz.

Não receberá assim, como acontece hoje em dia, quinaus de seus alunos a respeito das culturas mais comezinhas e triviais, mas, ao contrário, ensinará outras maneiras de aumentar o rendimento agrícola, pondo à mostra os males decorrentes do vício inveterado da rotina. Será um incentivador de experiências inovadoras. Guiará os pequenos, que se destinam a substituir, amanhã, seus pais nas labutas campesinas, para que estes obtenham conhecimentos melhores que os seus antecessores. E todos esses ensinamentos se farão exclusivamente por intermédio do trabalho, pela aplicação do esforço individual, pois é um erro, e erro grave, querer separar, em nossos tempos, o ensino primário do ensino profissional.

Como “leader” de seu meio, será ainda procurado para intervir em questões que dizem respeito à medicina. O grande prestígio dos charlatães e curandeiros dos nossos bairros reside nessa ilusão, tornada mística pela crendice popular, de que eles lhes dão a saúde. A conquista de força idêntica sobre a opinião pública do seu núcleo dependerá, portanto, para o professor, da sua habilidade em prestar socorros de medicina de urgência. Uma vez que saiba acudir a um acidente de ofidismo ou à picada de um aracnídeo venoso, pensar uma ferida, tomar as primeiras providências no caso de fratura óssea, aplicar uma injeção, ensinar a maneira de combater as endemias mais comuns, encaminhar ao médico os doentes de moléstias graves, acudindo, enfim, em todos os pequenos acidentes quotidianos que põem, freqüentemente, a vida em perigo por simples ignorância, terá estabelecido aquela corrente de simpatia entre ele e o seu bairro, que o torne o gênio tutelar da população a que serve.

Isso tudo sem quebra nem diminuição de sua obra de professor, alfabetizando os pequenos a cuja guarda o governo o colocou, e sem descurar de seu labor propriamente cívico, tendente a homogeneizar as aspirações das raças que formam o substrato da população brasileira. Vários Estados do Brasil apresentam esse problema, albergando em seu seio núcleos de população alienígena, que são naturalmente discordantes do interesse geral.

Colaboram conosco eco­no­mi­ca­mente, mas man­têm-se arredios do ponto de vista social. É um mal deixá-los à margem, esperando que o tempo cumpra seu trabalho lento de incorporação. Preferível será que o professor vá ao seu encontro, e, uma vez que se não pode fundi-los antropologicamente aos nossos índices dominantes, amalgamemo-los, ao menos intelectualmente, desvendando-lhes os ideais nacionais e incentivando-os a que os aceitem, preguem e pratiquem.

Está bem visto que para formar professores desse feitio, as Normais Rurais terão de funcionar em regime de tempo integral. Exigem trabalho de campo, secções de zootecnia, laboratórios não só agrícolas como outros para a parte de higiene, e ligados a dispensários e outras instituições congêneres, que ponham o ensino a coberto do risco de vir a ser mero conhecimento livresco, sem alcance prático na vida real.

A maior dificuldade, aliás, na criação das Normais Rurais, vai encontrar-se na escolha do seu professorado. Porque nelas o que fundamentalmente importa ê a mudança, a transformação radical da mentalidade. Se abarrotássemos as escolas com professores à moda comum, citadinos por índole, por temperamento, por educação, viciados, ou melhor, cultivados por estes quatro séculos de formação nacional urbanista, tão arraigados nessa feição que nem sequer percebem a existência da outra que se lhes antepõe, fadaríamos a tentativa a um fracasso inevitável.

Confesso lealmente que, na “mise-en-oeuvre” da reforma o maior temor da Diretoria Geral do Ensino, quase o terror pânico, está aí.

Se não soubermos selecionar um corpo de mestres capaz de modelar e afeiçoar ao ideal visado a cera virgem dos moços que procuram a carreira, se não soubermos eleger, na massa do magistério, aqueles poucos que possuem as qualidades requeridas para engendrar e fixar de modo indelével essa consciência agrícola que se almeja, a obra já falhou antes de começar.

Aqui é que reside o tremendo x da tentativa.

Não me abalançaria, contudo, a essa experiência, com a responsabilidade de meu cargo, se não me animasse a esperança de consegui-los esses primeiros lentes, esses precursores da grande metamorfose do ensino rural.

Com os professores agrônomos parece-me mais simples o trabalho da escolha. Essa classe é a que, pela própria definição, deve fornecer o maior contingente de especialistas com a feição anti-urbanista. Não será sempre exato que agrônomo quer dizer homem voltado para o campo, mesmo porque há muitos deles cujo título tem valor apenas decorativo, quando a sua verdadeira vocação é a burocracia. Mas os incentivos que a Diretoria Geral do Ensino de São Paulo recebeu dessa classe, fazem-me crer que nela terei o mais sólido ponto de apoio da reforma. Nem eu a ensaiaria se ele me faltasse. E a prova de que os agrônomos se empenham vivamente pelo êxito da iniciativa vai verificar-se, dentro de breves dias, menos de uma semana, com a inauguração do “Curso de Férias sobre Agricultura” promovido pelo Centro do Professorado Paulista, uma associação com perto de seis mil sócios, e que o abrirá no próximo dia 21 do corrente, em São Paulo.

O curso de férias contará quase que exclusivamente com a ajuda dos técnicos dos vários e importantes departamentos da Secretaria da Agricultura: a Diretoria de Indústria Animal e Escola de Medicina Veterinária, a Diretoria do Fomento e Inspeção Agrícola, a Escola Agrícola Superior “Luiz de Queiroz”, de Piracicaba.

Bastante mais difícil será a escolha dos professores-médicos. Porque não basta se trate de higienistas, mas de técnicos condoídos da triste sorte dos nossos patrícios dos campos, do abandono a que, regra geral, estão votadas, em matéria sanitária, as zonas rurais, e mais ainda, com a visão lúcida e lógica de seus problemas mais prementes.

Fica-nos ainda a esperança de encontrá-los esses homens providenciais entre aqueles médicos que, embora residindo em pequenas cidades do interior, mantêm contratos de serviço anual com as fazendas das redondezas, recebendo os seus honorários pela contribuição mensal das famílias dos colonos, arrecadada sob o controle dos administradores das estâncias.

Nessa categoria de médicos, cujo número cresce constantemente, hão de estar os professores de que as Normais Rurais precisam. Só eles serão capazes de trazer ao empreendimento aquele contributo de experiência pessoal de quem sentiu a vida pulsando a seu lado e lhe auscultou todos os sofrimentos, todas as misérias, todas as insuficiências e só eles serão capazes de descobrir as fórmulas adequadas que limitem, a princípio, o descalabro do mal que encontraram e examinaram, e vençam-no depois, quando a consciência nacional se abrir, enfim, integralmente, à luz desta cruzada.

Restaria, por fim, a escolha dos lentes das cadeiras formais, das disciplinas que escapam ao círculo agrícola e ao círculo sanitário. E aqui é o caos. Não há, como nos outros dois casos, uma indicação que oriente para evitar se repita, indefinidamente, o erro palmar destes quarenta anos de após-escravidão.

As Normais que existem em São Paulo, desde 1880, só têm produzido o mesmo tipo estandardizado de professor, aquele que a monarquia, fidalga, aristocrata e escravocrata, reclamava: o mestre da cidade.

Dir-se-á, talvez, que não há mal em que essa espécie de professores, como não têm função especializada, possa figurar, sem dano, nos quadros docentes das futuras Normais Rurais.

Puro engano. Eles não têm, de fato, função aparentemente especializada, desde que ensinam disciplinas a que se convencionou dar um certo cunho de universalidade. Mas há ensinar e ensinar, conforme a causa que se defende. Se a forma do ensino, a maneira de apreciação dos fatos, a sua interpretação não fosse o essencial no mundo, não existiriam, a propósito dos mesmíssimos fenômenos, tantas doutrinas divergentes, tantas escolas antagônicas em todos os ramos da atividade humana.

E esses professores têm de realizar, nas Normais Rurais, uma tarefa formidável: fazer a atmosfera, criar aquilo que se pode chamar, com toda a propriedade, o clima mental da Escola.

Se um só deles se divorciasse dessa orientação geral, opondo-se ao alvo a atingir, as conseqüências seriam incalculáveis.

Iria, por certo, estabelecendo a dúvida no cérebro dos educandos, propiciaria a entrada do desânimo e um ou outro acabaria desambientado, indo fazer uma campanha de impugnação lá fora.

Ora, em todas as iniciativas que devam sobre-exceder essa espessa cortina de preconceitos seculares, como é a nossa, o entusiasmo inicial é-lhes a pedra de toque. Sem o desejo voluntarioso, sem a certeza “a priori”, cega, irraciocinada, que vem mais das profundidades do instinto que do pensamento sereno, sem a convicção inabalável, superior e desdenhosa, na vitória da causa, não conseguiremos implantar esse novo regime educativo, por que anseia inconscientemente o país.

O entusiasmo não nos faltará. Os oferecimentos que de todos os cantos do Estado de São Paulo chegaram nestes últimos quinze dias, uma vez divulgado o plano da Diretoria Geral do Ensino, são alvíssaras expressivas e significativas.

Só de uma região do Estado, que não é das mais ricas, a que a Estrada de Ferro Sorocabana atravessa, nada menos de seis cidades pleitearam a honra de possuir a primeira Normal Rural de São Paulo: Tatuí, Itapetininga, Avaré, Assis, Presidente Prudente e Presidente Wenceslau, oferecendo ou por intermédio de suas câmaras municipais, ou por meio de subscrições públicas ou ainda pela generosidade de seus homens opulentos, a dádiva do prédio onde o novo estabelecimento irá funcionar e uma área de terras de cultura que variou entre 17 e 73 alqueires.

Quer isto dizer que o primeiro toque de clarim da Diretoria do Ensino já foi ouvido e que nas quebradas das serras mais longínquas, a quase mil quilômetros da Capital, os atalaias, vigiles da nacionalidade, responderam, em clangor, ao apelo vibrante. As bandeiras de São Paulo mudam de objetivo, mas não cessam de agitar aquela colmeia viva de trabalho e de fé.

Possa o Brasil reproduzir, com o mesmo calor e a mesma pronta solicitude, pelos páramos intérminos de seu enorme território, o exemplo magnífico que lhe dá o eterno bandeirante e dentro de dez anos, “este inferno de impaludados e verminosos”, este “vasto hospital” pobre e descrente, se transformará como por encanto, como nos contos embaladores das “Histórias da Carochinha”, na mais feliz, na mais contente, na mais abençoada das terras do Universo”.

A ORGANIZAÇÃO DO CURSO PRIMÁRIO RURAL

As escolas normais do tipo acima só produziriam a primeira leva de mestres, contudo, ao cabo de quatro ou no mínimo, três anos e era mister acudir à zona imediatamente.

Ocorreu-me a medida de transição de aproveitar as poucas vocações isoladas — que as há dispersas pelo Estado — pondo em evidência aqueles poucos professores que têm noção clara do que é necessário a São Paulo nesse ramo. Para isso, tinha decidido criar os grupos escolares rurais e as escolas isoladas vocacionais rurais, nas quais os professores se especializariam, ministrando aulas pelas matérias e não por ano de curso, exatamente como se faz no curso secundário. O professor seria o especialista de determinada disciplina, lecionando-as a todos os alunos, de acordo com o grau de seus conhecimentos. E essas escolas requeriam fatalmente tempo integral e seria fácil obter tal regime desde que os mestres fossem obrigados a residir na sede do estabelecimento escolar, bastando que a administração pública se decidisse a adotar, com as escolas rurais, o procedimento que venho de há longo tempo reclamando: dar aos seus mestres vencimentos maiores que aos das escolas urbanas.

Seria um procedimento rigorosamente justo, sob qualquer ponto de vista: obrigado a manter-se maior número de horas em contacto com os seus alunos, obrigado a possuir conhecimentos mais amplos que os dos seus colegas citadinos, o mestre teria ainda, a perda do conforto peculiar às nossas zonas roceiras. Acresce que sem o chamariz de melhor remuneração econômica ficaria sempre o Estado na mesma situação em que se há visto até hoje: excesso de oferta para as escolas de cidade, penúria completa para a roça.

Assentadas essas idéias dominantes, apresentei em fins de março ao Secretário da Educação e Saúde Pública o seguinte projeto de decreto, já divulgado pela imprensa:

DECRETO N.°....de....de 1932
Reorganiza o ensino rural

O senhor F..., Interventor Federal no Estado de São Paulo, usando das atribuições que lhe são conferidas pelo art. 11, § 1.° do Decreto Federal n.° 19.398 de 11 de Novembro de 1930, considerando:

que há necessidade inadiável de formar um quadro de professores normalistas aptos a exercerem o magistério primário da zona rural;

que a preparação de tais professores exige um curso especializado, onde se exponham, além das matérias habituais das Escolas Normais, conhecimentos gerais de agronomia e higiene rural;

que, além da formação desses professores, urge iniciar a preparação de uma nova mentalidade escolar, francamente voltada para as lides agrícolas, despertando na criança o amor pelas cousas da terra;

que tais objetivos consultam os vitais interesses do Estado e respondem às necessidades econômico-sociais da nacionalidade, evitando o êxodo dos campos e combatendo a desorganização da vida agrária que ora se processa principal e inicialmente pelas escolas urbanistas que foram localizadas na zona rural; e

que essas medidas não trazem aumento de despesas, conforme prevê o artigo 16 do Decreto n.° 5.335, de 7 de Janeiro de 1932, em cumprimento do disposto no artigo 15 do mesmo decreto,

DECRETA:

Artigo 1.° — O Governo do Estado de São Paulo instalará 5 Escolas Normais Rurais no interior do Estado e destinadas a formar professores especializados para o magistério rural.

Artigo 2.° — As Escolas Normais Rurais compreenderão um curso complementar de três anos e um normal de quatro, com as seguintes cadeiras:

a) para o curso complementar:

1a., Português; 2a., Francês; 3a., Matemática (compreendendo aritmética, álgebra e geometria); 4a., Geografia e História do Brasil; 5a., Ciências físicas e naturais; 6a., Agricultura prática; 7a., Desenho; 8a., Música; 9a., Educação física;

b) para o curso normal:

1a., Português; 2a., Matemática (compreendendo trigonometria retilínea e esférica e mecânica); 3a., Física; 4a., Química; 5a., Botânica; 6a., Geografia Econômica e História da Civilização; 7a., Psicologia, pedagogia e didática; 8a., Tecnologia agrícola; 9a., Zootecnia; 10a., Agricultura geral; 11a. Agricultura especial; 12a., Economia rural; 13a., Higiene, puericultura e profilaxia rural; 14a., Desenho; 15a., Música; 16a., Educação física.

Artigo 3.° — Haverá um professor para cada cadeira do curso normal e um para cada cadeira do curso complementar, exceto nas cadeiras de Desenho (14a.), Música (15a.) e Educação Física (16a.) em que os professores do curso normal servirão também no curso complementar, e um assistente para cada uma das cadeiras de Química (4a.), Agricultura Especial (11a.) e Psicologia, pedagogia e didática (7a.) do curso normal.

Artigo 4.° — O Governo fará livremente a primeira nomeação dos professores das cadeiras das Escolas Normais Rurais, que gozarão dos mesmos direitos e regalias ora concedido aos professores e lentes das demais Escolas Normais do interior do Estado.

§1.° — Excetuam-se do dispositivo anterior as cadeiras de Física (3a.), Química (4a.), Botânica (5a.), Tecnologia (8a.), Zootecnia (9a.), Agricultura geral (10a.), Agricultura especial (11a.) e Economia rural (12a.) que serão postas em concurso, seguindo-se neste as regras em vigor para os concursos nas Escolas Normais.

§ 2.° — O Governo poderá nomear livremente para as cadeiras citadas no § 1.° professores catedráticos de Escolas Superiores de Agricultura do Estado, que lecionem nestas as mesmas cadeiras a que se candidatem nas Escolas Normais Rurais.

Artigo 5.° — As Escolas Normais Rurais terão o seguinte pessoal administrativo: diretor; vice-diretor; secretário; escriturário; inspetora — professora de trabalhos; porteiro; dois contínuos e 8 serventes, que auxiliarão em todas as fainas agrícolas e de laboratório.

Artigo 6.° — Os vencimentos do pessoal das Escolas Normais são os mesmos das Escolas Normais Oficiais, regulando-se a forma de pagamento de acordo com o decreto n.° 5.306 de 24 de Dezembro de 1931.

§ único — Se não houver prejuízo para o ensino ou não estiverem definitivamente constituídas todas as classes, poderão os professores do curso normal lecionar cadeiras idênticas ou afins no curso complementar, mediante uma gratificação “pró-labore“, de dez mil réis, por aula.

Artigo 7.° — As Escolas Normais Rurais dividirão os trabalhos escolares em dois períodos, a juízo do Diretor da Escola, de maneira que haja uma parte prática, com aulas no campo e nos laboratórios e outra de aulas teóricas, em classe.

Artigo 8.° — Para inscrever-se candidato ao exame de admissão ao 1.° ano do curso normal é condição indispensável ter 14 anos completos no dia da abertura das aulas.

§ 1.° — O exame versará sobre matérias do curso complementar acrescido de provas que revelem a vocação do candidato para a especialidade de professor rural.

§ 2.° — Nesse exame as provas de português e aritmética são eliminatórias e a prova de vocação terá um coeficiente de julgamento nunca superior a 25% sobre o total apurado.

§ 3.° — Como medida transitória, durante os anos de 1932 e 1933, poderá o Governo ordenar desde logo a formação, nas escolas normais rurais, de segundos e terceiros anos, desde que existam vinte ou mais candidatos à transferência, provenientes dos mesmos anos, de outras escolas normais oficiais do Estado, matriculando-se, entretanto, os quartanistas no terceiro ano da normal rural, e submetendo-se uns e outros à prova vocacional, a juízo da Diretoria Geral do Ensino.

Artigo 9.° — Aplicam-se aos candidatos ao exame de admissão ao 1.° ano do curso complementar, que deverão ter onze anos de idade completos no dia da abertura das aulas e cujo exame constará de português, aritmética, geografia do Brasil, história do Brasil, noções comuns e prova vocacional, as disposições do § 2.° do artigo 8.°.

Artigo 10.° — Para a prática e observação dos normalistas, as Escolas Normais Rurais terão um grupo rural, como escola de aplicação, constituído de duas ou mais classes até um máximo de oito, escola que possuirá um diretor privativo, sob a superintendência do Diretor da Escola.

§ 1.° — Os vencimentos do diretor da escola de aplicação serão os mesmos dos diretores de grupos escolares rurais, constantes do § 4.° do artigo 11.

§ 2.° — Além da escola de aplicação e ainda para a prática e observação dos alunos, as Escolas Normais Rurais poderão ter sob sua imediata dependência de duas a quatro escolas vocacionais rurais disseminadas pelo município, servindo de preferência a zonas de produções diferentes.

Artigo 11.° — O Governo instalará grupos escolares e escolas isoladas vocacionais rurais, tendo em mira a formação de uma mentalidade escolar francamente voltada para as atividades agrícolas e pastoris, e, na zona marítima, para as fainas marinhas e ribeirinhas.

§ 1.° — Em tais grupos escolares e escolas isoladas o ensino será ministrado com horários e programas especiais, determinados pela Diretoria Geral do Ensino.

§ 2.° — As nomeações para os cargos de diretores e professores desses grupos escolares e escolas vocacionais, ficam reservadas aos professores diplomados pelas Escolas Normais Rurais.

§ 3.° — Os professores diplomados por essas Escolas Normais, que passarem a exercer cargo efetivo em estabelecimentos de outra categoria, terão os vencimentos estatuídos pelo decreto 5.432, de 5 de março de 1932.

§ 4.° — Enquanto não houver professores diplomados por essas Escolas Normais, poderá o Governo nomear, para os cargos constantes do artigo 10 e seu § 2.° e do artigo 11, professores diplomados por outras Escolas Normais do Estado, que provem, a juízo da Diretoria Geral do Ensino, decidido pendor para o ensino rural.

§ 5.° — Os professores assim nomeados só poderão abandonar o quadro rural por solicitação própria ou nos casos gerais previstos em lei.

§ 6.° — Os professores nomeados em virtude do § 3.° deste decreto e que voltarem ou passarem a exercer a sua atividade em estabelecimentos de ensino primário de outra categoria, terão automaticamente os vencimentos estatuídos pelo decreto n.° 5.432, de 5 de março de 1932.

§ 7° — Os vencimentos dos professores e diretores de grupos escolares rurais e escolas vocacionais rurais serão, desde já, os constantes da tabela anexa.

§ 8.° — Fica imediatamente transformado em Grupo Rural do Butantã, o atual grupo escolar de 1a. ordem, localizado no Instituto do Butantã, da Capital do Estado, ficando o diretor e os professores com os vencimentos previstos no § 7.° deste artigo.

Artigo 12.° — Para efeito da fiscalização e da inspeção do serviço criado por este decreto, tanto para o ensino primário rural como para o normal rural, fica criada a Inspeção Técnica do Ensino Rural, que compreenderá um inspetor-agrônomo, um inspetor-médico e um inspetor-escolar para cada grupo de dez grupos escolares.

§ 1.° — Os inspetores-agrônomos, inspetores-médicos e inspetores-escolares podem ser comissionados de outras repartições ou de outras Secretarias de Estado, caso em que além dos seus vencimentos farão jus à gratificação adicional, paga pela Secretaria da Educação e da Saúde Pública, calculada de forma que recebam os vencimentos a que teria direito como tempo integral.

§ 2.° — A inspetoria Técnica do Ensino Rural terá um inspetor-chefe, obrigatoriamente diplomado em agronomia, cujos vencimentos serão idênticos aos de Assistentes Técnicos.

§ 3.° — A Secretaria da Educação e da Saúde Pública poderá também contratar os inspetores técnicos acima citados.

Artigo 13,° — Entre as funções dos inspetores técnicos do ensino rural inclui-se a de facilitar os meios de transformar as escolas rurais atuais, de tipo comum, em escolas vocacionais rurais, propondo ao Diretor Geral do Ensino, as medidas que, nesse particular lhe pareçam mais adequadas à realização desse fim.

Artigo 14.° — Pica oficializado em todos os grupos escolares do Estado a “Horta no Lar”, instituição destinada em todos os aglomerados urbanos, a despertar nas crianças o gosto e o respeito pelas fainas agrícolas e a compreender os esforços realizados pelos nossos cultivadores e agricultores no amanho da terra e sua colaboração na riqueza do país.

§ único — A fiscalização do cumprimento deste dispositivo incumbe aos inspetores do ensino rural.

Artigo 15.° — Poderá o Governo do Estado transformar outros estabelecimentos de ensino, dando-lhes uma orientação rural ou rural-profissional, de acordo com os ensinamentos que a prática aconselhar.

Artigo 16.° — O aumento das despesas decorrente da execução deste decreto corre por conta da receita prevista pelo artigo 15 do Decreto n.° 5.335, de 7 de janeiro de 1932, em cumprimento do disposto no art. n.° 16 do mesmo decreto.

Artigo 17.° — Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

TABELA DE VENCIMENTOS

Diretor de grupo escolar rural...1:200$000 mensais

Professores:

De 0 a 5 anos de exercício.....500$000
De 5 a 10 anos.....600$000
De 10 a 15 anos.....700$000
De 15 a 20 anos.....800$000
De 20 a 25 anos.....850$000
De mais de 25 anos.....900$000

PROGRAMA DAS CADEIRAS ESPECIALIZADAS DA ESCOLA NORMAL RURAL

1.° ANO

Matemática — Revisão de aritmética — Álgebra — Geometria.

Física — Física Geral — Meteorologia e Climatologia.

Botânica — Botânica — Noções de Sistemática — Noções de Fitopatologia.

Agricultura Geral — Agrologia — Máquinas Agrícolas — Irrigação e Drenagem (noções) — Noções de mecânica rural.

Química — Mineral — inclusive analítica — Orgânica.

2.° ANO

Economia Rural — 1a. parte — Introdução ao estudo — Contabilidade.

Zootecnia — Zoologia — Avicultura — Apicultura — Sericicultura — Insetos úteis e nocivos.

Agricultura Geral — Noções de biologia — Química Agrícola.

3.° ANO

Economia Rural — Transportes — Mercados — Escrituração rural.

Zootecnia — Criação dos pequenos animais domésticos em geral.

Agricultura especial — Horticultura — Pomicultura ou fruticultura — Jardinocultura — Silvicultura — Floricultura.

Higiene Rural — Higiene pessoal e domiciliar — Fossas e proteção contra as infecções.

4.° ANO

Economia Rural — Aplicações aos problemas agrícolas — Estatísticas — Previsões — Cálculos orçamentários — Técnica da exploração lucrativa.

Agricultura especial — Café — Milho — Arroz — Algodão — Cana de açúcar — Feijão — Batata — Trigo — Centeio — Aveia — Fumo — Plantas forrageiras.

Tecnologia Agrícola — Açúcar — Indústrias de fermentação (Álcool, Vinho, Vinagres) — Fecularia e amidonaria — Conservação de substâncias alimentícias — Elaiotecnia.

Puericultura — Proteção à vida da criança — Eugenia, noções — Alimentação dietética — Medicina de urgência.

Profilaxia rural — Cuidados imunizantes — Extinção de focos — Vacinas e sua utilidade e aplicação — Preservação — Epidemiologia prática.


 

 

A GUERRA À ZONA RURAL


 

 

Conferência realizada, no dia 8 de maio de 1933, no salão nobre da Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, a convite da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres.

_________________________

É a 2a. da série de quatro conferências para encerramento do Curso da Escola Regional, que aquela sociedade manteve no período de 10 de abril a 10 de maio de 1933, na Capital da República, conferências que foram, pronunciadas pelos srs. dr. Celso Kelly, diretor geral da Instrução Pública do Estado do Rio de Janeiro, no dia 7; professor Sud Mennucci, no dia 8; dr. Anisio Teixeira Spinola, diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal, no dia 9; e dr. Fernando de Azevedo, diretor geral do Departamento de Educação de São Paulo, no dia 10.

_________________________

Atendo ao honrosíssimo convite da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres. Embora colhido no fragor de uma batalha eleitoral, a mais bela e a mais ardorosa de quantas o Brasil teve neste primeiro terço do século, e na qual jogamos, os mestres-escolas de São Paulo, todo o nosso idealismo de homens e todo o nosso entusiasmo de profissionais, a distinção era alta e tentadora demais para que eu pudesse fechar-me numa recusa irrevogável. Cedi, assim, à sedução deste encontro que me propiciava o ensejo e a felicidade de cavaquear com um luzido grupo de professores, vindos dos quatro cantos do país e me ofertava a alegria incomparável de sentir-me no meio de uma denodada plêiade de mestres “ruralistas”, isto é, de homens que têm a consciência nítida da importância que representa para a nacionalidade o problema do ensino rural.

Não há pieguice alguma, senhores, em salientar esse caráter significativo da reunião, que assume, a meus olhos, o cunho de um acontecimento novo, inteiramente inédito nos anais da pedagogia brasileira.

O Brasil não entendeu ainda, a não ser por uma pequena e escassa minoria, o terrível enigma que a sua própria vida lhe está propondo nestes últimos quarenta e cinco anos de existência democrática, enigma tão temeroso, e, no fundo, tão claro, quanto o que a Esfinge propôs, nas cândidas eras mitológicas, ao argutíssimo Édipo. É o enigma que brota de dentro de sua produção e da maneira de obtê-la: ou ele salva e reabilita as regiões onde se forma e se cria a quase totalidade de sua riqueza nacional, ou ele caminha, fatalmente, para a desagregação, quiçá mesmo para o esfacelamento.

É o dilema terrível em que a vida, depois de 1888, colocou o Brasil. Parece, entretanto, que falta à consciência nacional a sagacidade e a perspicácia que distinguia o decifrador de outros tempos e que nós teimamos em resolver o problema angustiante, adotando soluções ineficazes.

Falemos com clareza, porque esta é uma reunião de educadores e nela não cabem as meias-verdades, as apreciações unilaterais, os panos quentes e os falsos pudores. Digamos energicamente a verdade inteira.

Vítima de uma antiga orientação pedagógica, perfeitamente normal com sua evolução histórica até a proclamação da Lei Áurea, o Brasil continuou depois disso, a cuidar, exclusivamente e abusivamente, do ensino das cidades, ignorando, com a mais enternecedora inocência, todas as vastíssimas e intermináveis zonas de nosso “hinterland”. Não o preocupam, senão mui superficialmente e quase que só para a exploração de motivos literários, as regiões de população rarefeita, onde se criam os elementos que saciam a fome das grandes capitais e dos núcleos urbanos. Só estes lhe merecem zelos e atenções, porque só estes, pela própria força de sua aglomeração demográfica, se organizam de forma a exigir dos poderes públicos os cuidados indispensáveis ao surto e à expansão de suas múltiplas atividades.

As zonas rurais, colocadas fora do círculo de ressonância geral, longe do bulício das cidades, ignaras de sua força e de suas próprias necessidades, continuam relegadas ao desamparo e ao esquecimento.

* * *

Vistes, meus caros colegas, durante todo este mês que vem se prolongando o curso da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, a prática do ensino rural, a sua didática estadeada ao vivo, pilhada no flagrante de sua execução. É ponto básico e essencial saber como se trabalha, propício à probabilidade de resultados fecundos, impossíveis de colher se o mestre não possui uma técnica segura, absoluto senhor da orientação que deve seguir na aprendizagem.

Mas, outra altíssima função cabe ao mestre do campo e em geral a todos os educadores perfeitamente informados, e que é, talvez, neste momento, muito mais importante que o detalhe técnico: é a reabilitação da zona rural na alma popular, reabilitação que inclui entre os seus grandes tentames, como a maior das conquistas, o fazer cessar, quanto antes, a guerra implacável que se move ao campo e a todas as atividades que ali se exercem.

Olhais-me, por certo, cheios de pasmo desconfiado, com a dúvida de que estou a avançar um paradoxo.

— Guerra ao campo? O campo elogiado dos poetas, cantado em prosa e verso por todos os escritores que afetam conhecimento das nossas necessidades, alçapremado nos discursos de nossos estadistas, saudado em todas as festas escolares, ditirambizado em todas as manifestações públicas... Guerra ao campo?

— Sua, senhores, guerra legítima, contínua, persistente, sem quartel. Não é — não o imagineis — uma particularidade específica de nossa terra. O Brasil herdou-a, como todas as cousas boas e más que lhe vieram da Europa, sua mestra e guia, e nem sempre guia feliz e desinteressada. A guerra ao campo é uma tradição da espécie, pelo menos das raças que, na bacia do Mediterrâneo, criaram as civilizações de que descendemos.

É fácil encontrar os sinais inequívocos dessa hostilidade e dessa luta nos escritores e historiadores da mais remota antiguidade, nos medievais ou mesmo nos mais chegados de nós. É uma cadeia de que se distinguem os elos evidentes através de todos os espíritos que examinaram o problema sem prevenções e com ânimo frio. Em todos esses escritores percebe-se claro o conflito existente entre o campo e a cidade e as vantagens que esta, invariavelmente, leva nesse embate secular, orientado como o homem está, desde as mais longínquas eras, em preferir a organização urbana à organização campesina.

Diz-se por aí, hoje em dia, que o fenômeno se liga ao princípio da concentração industrial, fator inelutável do espírito gregário da espécie, que encontra na residência em comum as facilidades e o conforto que o afastamento e o isolamento tornam impossíveis. Não sei se será bem a verdade e, embora possa admitir-se que o seja em parte, não será nunca a verdade toda, porque a guerra à zona rural, a luta entre esta e a cidade afigura-se-me muito mais o resultado de uma mentalidade criada pela organização social. E efetivamente o êxodo dos campos, que é a conseqüência mais indesejável dessa hostilidade constante, encontramo-lo sempre, como fenômeno de causa a efeito, ou, quando nada, como fenômeno de mútua dependência, em todas as civilizações que adotaram a escravidão entre as suas instituições normais.

Não me hei cansado de chamar a atenção dos estudiosos para esse fato que já salientei, a propósito de nossa terra, num livro meu de 1930, intitulado “A Crise Brasileira de Educação”: o inimigo mortal do campo sempre foi a escravidão. Foi ela que liquidou com o esplendor das cidades gregas, criando, até numa civilização rígida e militar como a de Esparta, os vícios da moleza e o culto dos prazeres que produziram a decadência e a morte.

Foi ela que conseguiu derruir a maior construção política de todos os tempos: o Império de Roma. E aqui, então, é soberano e concludente o contraste. A força de expansão das águias romanas manteve-se ativa e vigilante sobre todos os quadrantes da terra conhecida enquanto a sua gens nobre se dedicava ao cultivo e ao amanho das terras e era a agricultura, com nos povos do Oriente, a profissão honrosa e honrada por excelência. Depois, com as conquistas felizes, que trouxeram a abundância das riquezas, com a entrada contínua de prisioneiros destinados à escravidão, a preciosa presa de guerra de todos os conquistadores, a atração do campo começa a sua fase de declínio no conceito público. O avolumar-se incessante das levas de escravos, trazidos dos mais variados pontos do globo, fez com que a estes se confiassem os labores agrícolas, prática que, em se generalizando, determinou a formação, a exemplo do que já houvera na Grécia, de uma mentalidade comum que estabelecia o trabalho rural como função exclusiva dos servos.

No início da era cristã, um escritor eminente. Columela, que metodizou, nos seus quatorze livros do “De Agricultura”, os conhecimentos mais adiantados da época, anatematizava os seus contemporâneos porque haviam transformado a nobilíssima arte agrícola em puro trabalho servil e clamava que esse trabalho é infecundo, pois, o escravo é o verdugo do solo.

O alarme de Columela, como o de Tremelio, como o de Plínio, o Velho, não teve o mínimo eco. A escravidão continuou a crescer e a alastrar-se e a decadência de Roma foi-lhe em paralelo. Nada deteve o curso dos acontecimentos. A derrota da civilização romana estava pré-traçada e preestabelecida. Não podia falhar. E não falhou. Quando os bárbaros chegaram, não vinham vencer um gigante. Vieram tripudiar sobre um cadáver. A migração dos camponeses para as cidades, empurrados por um preconceito sentimental, havia sido completa: grandes latifúndios se haviam formado nos mesmos locais em que antes floresciam aldeias cheias de vida e de alacridade, vitalizadas pelo trabalho livre. A zona rural verdadeira desaparecera. Roma estava morta.

Se eu quisesse prolongar e multiplicar os exemplos, senhores, para demonstrar que a formação da mentalidade urbanista dos povos é uma conseqüência lógica da instituição legal da escravatura, bastar-me-ia remontar o curso dos séculos, numa inspeção aos arquivos e trazer para aqui o resultado dessas pesquisas, através do abundante material existente nas bibliotecas.

Poderia, então, salientar, por exemplo, que a celebrada Fisiocracia, a conhecida escola econômica francesa, escola de característica defesa agrária, é ainda uma reação contra a mentalidade inimiga do campo, em pleno viço e vigor na época.

E que se a ela se aliou Adam Smith, foi porque ele sentiu, na grei em que pontificava Quesnay, com seu agrarismo “á outrance”, a sua mesma revolta contra a orientação econômica que ameaçava a civilização européia. E essa revolta de onde lhe viria, ao grande pai da economia política? De considerações objetivas sabre a situação social da humanidade.

Quando Adam Smith publicou, em 1776, o seu célebre “Ensaio acerca da riqueza das nações”, e no qual condenava irremissivelmente, como um desvio histórico, como um perigosíssimo precronismo, o desenvolvimento da indústria antes do da agricultura, desvio que ele considerava “contrário aos desejos da Natureza e da razão”, a sua atitude decorria da influência que sobre seu altíssimo espírito exercera o fato de ainda existir a servidão em vários pontos da Inglaterra e principalmente no fato de em seu próprio país natal, na Escócia, trazerem ainda os escravos ao pescoço, como bestas de carga, colares que tinham gravado o nome do senhor.

Ao iniciar o último quartel do século XVIII, o país mais liberal do mundo, a nação que foi sempre o homizio de todos liberais e políticos perseguidos, dava ao mundo esse triste exemplo de desumanidade.

Destarte, como lograr convencer a alma popular de que a agricultura era uma atividade normal do homem, se todos a tinham, bem gravada no subconsciente, como uma tarefa humilhante que a sociedade reservava exclusivamente aos indivíduos que não eram donos de si mesmos?

E se quisermos terminar por um exemplo bem brasileiro, lembremo-nos do ilustre patrono desta casa.

As frases que notabilizaram Alberto Torres, através das inúmeras citações que delas se fizeram, aquelas em que estigmatiza os defeitos cardiais de nossa organização, condenando “nossa instrução pública, da escola primária às academias, como um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo”; quando, novo Columela, a 20 séculos de distância, clamava pela exata compreensão da lei de restituição, pedindo que iniciássemos a política de uma verdadeira economia de nossos bens, principalmente de nosso solo, amaldiçoando o sistema de saque e de dilapidação sobre o qual haviam os colonizadores e nós mesmos, seus descendentes, baseado a exploração de terra; toda a obra, enfim, do mais eminente sociólogo que o país teve, prova que ele procurava contra-arrestar os tremendos efeitos da mentalidade inimiga da zona rural. Alberto Torres vivera a mocidade no período agudo da escravatura, no mais aceso da campanha abolicionista, sentira como poucos, talvez como ninguém, dado o seu privilegiadíssimo cérebro, quanto danificava o Brasil essa atitude de habitual desprezo pelas fainas agrícolas, desprezo que se originava do abandono da agricultura às mãos servis. E, recuando, aterrorizado, diante do fenômeno psicológico, erguia a bandeira da reabilitação da terra e da política agrícola.

Os nossos administradores e dirigentes, contudo, gente afastada dos estudos da economia política e da sociologia, não chegavam a perceber os fenômenos e nem sequer compreendiam o seu perigoso enlaçamento: a escravidão engendrava a repugnância pelas labutas rurais, reduzidas estas ao primitivismo educativo compatível com a condição servil, e isso, por sua vez, incentivava, por contragolpe, o aparecer de um sentimento urbanista, profundo e inalterável, levando as massas em ânsia para as cidades. E para o interesse exclusivo destas, se voltavam todos, enquanto se formava o sentimento ostensivamente contrário ao interesse do campo.

Dir-se-á que a situação mudou depois de 88. A abolição suprimira, do mesmo passo, a desumanidade a ela inerente e os sentimentos hostis à lavoura. Puro engano, senhores. Se Vilfredo Pareto precisasse de confirmação para a sua teoria da persistência dos resíduos sentimentais nos indivíduos, orientando, de maneira incontornável, a ação dos homens, encontrá-la-ia de seguro em nossas bandas e, ainda agora, na Rússia. São dois exemplos típicos.

A Rússia de hoje não quis entender que ela é, como não poderia deixar de ser, uma simples conseqüência da Rússia de ontem, da Rússia dos servos e das glebas, que Gogol satirizou naquelas suas admiráveis páginas das “Almas Mortas”. No fenômeno russo, que nós, colocados do lado de cá, não chegamos a entender claramente, há um colapso econômico mais que político, e se o pudéssemos examinar de perto e com a máxima isenção, verificaríamos que as causas mais profundas e mais reais do seu lento processo, entrosam diretamente com o conflito entre duas mentalidades a respeito do valor da agricultura. De um lado, o Soviet, urbanista, formado de operários e soldados, do outro, o kulak, teimoso, conservador de uma velha tradição rural. E o erro dos Soviets, que Trotzsky desvendou numa análise percuciente, nos estudos penetrantes de “Para onde vai a Rússia?”, reside em querer seguir à risca um preceito do criador do bolchevismo quanto à solução do problema agrário para o efeito do equilíbrio social. Marx, nascido, criado, formado na cidade, era um espírito eminentemente citadino e urbanista. Entendeu assim que a concentração industrial, que lhe parecera o ideal da vida em comum nos grandes centros, serviria, da mesma forma, a resolver o problema da vida rural. E cuidou que reunindo em determinados pontos, os núcleos de população campesina, para que os trabalhadores daí se dirigissem quotidianamente para as suas fainas regulares, dar-lhes-ia as vantagens da vida coletiva das cidades, sem as tristezas do isolamento e do desconforto do campo. E errou.

A solução repugna aos obreiros rurais, que amam a sua gleba com um amor diverso daquele com que o operário industrial ama a cidade. A vida em comum universaliza, em certo sentido, as concepções da solidariedade humana. O isolamento, a solidão as restringe. E o impasse, o verdadeiro impasse da administração bolchevista consiste hoje, como consistia, dez anos atrás, em não haverem os seus pró-homens compreendido a formidável diferença que existe entre as duas psicologias. Dessa luta nasceram as perseguições a que a cidade submeteu a população campônia, certa de que esmagaria essas resistências e essas veleidades, que se lhe afiguravam de caráter pretensamente político. Mas o plano qüinqüenal, que se pode considerar vitorioso na indústria, nos meios urbanos, portanto, falhou inteiramente na agricultura... É que não haveria sido mui desarrazoado um passeio dos políticos através da páginas de Kretschmer na “Estrutura do corpo e o caráter.”...

No Brasil, bem que a forma seja diferente, o fundo do exemplo é o mesmo. A escravidão daqui desapareceu há quarenta e cinco anos, mas o conflito permanece e a hostilidade ambiente, a antipatia, a ojeriza, a guerra, enfim, ao campo continua mais forte e mais intensa do que nunca. Apenas agora, essa tendência se manifesta sub-repticiamente, talvez mesmo inconscientemente, por intermédio dos quadros de nossa legislação ordinária. São as nossas leis, senhores, que bradam aos céus a guerra de extermínio às populações campesinas. De entre as suas frestas e comissuras, pingam as gotas do veneno urbanista, emparedando os anseios mais comezinhos do homem do campo, cortando-lhe cerce as aspirações mais rasteiras e mais elementares.

Num país que precisaria de uma legislação visceralmente rural, de proteção agrária franca e desassombrada, para acudir a essa maioria de 80% de sua população, que mora nos campos, organizamos o mais puro corpo de medidas de favoritismo às cidades. Todas as nossas preferências, os nossos mimos, os nossos afagos são para elas. Para as zonas rurais, quando não é uma medida que as prejudique, é o silêncio tumular.

No meu citado livro “A Crise Brasileira de Educação”, no segundo capítulo, estudei alguns desses aspectos, mas não há mal que se repitam aqui, acrescentando-lhes alguns novos. A imaginação de nossos legisladores é fértil e fecunda em descobrir outras formas de protecionismo. Um admirável e edificante livro faria, sem dúvida, quem se propusesse ler todas as leis brasileiras e apurar tudo quanto elas contêm de dispositivos hostis e danosos à vida rural. Porque, a impressão que se colhe, ao passar em revista ligeira e apressada esses quadros, é a de que os congressos e casas legislativas do Brasil, querem à viva força, arrancar do campo, todos os seus habitantes. E se o não conseguiram é porque o homem da roça é teimoso e telhudo. Mas aos congressos não lhes têm faltado persistência e continuidade, nessa obra infeliz.

Toda a nossa legislação sanitária é urbanista. Embora questões incontroversas, as do saneamento e profilaxia rurais, reclamadas por todos os entendidos e estudiosos, a verdade é que, no Brasil inteiro, os aparelhamentos de saúde pública e assistência social só existem nas capitais e nos grandes centros. Fora disso, aqui ou ali, surge esporadicamente uma ou outra tentativa de organização sanitária rural, em núcleos invariavelmente ineficazes e insuficientes e o mais das vezes efêmeros. Dessas tentativas, há um longo registro em S. Paulo. Mas, da sua atuação... só há memória.

Não quero furtar-me ao dever de contar-vos um detalhe dessas organizações urbanistas, detalhe que atesta o estado de espírito reinante.

Até bem pouco tempo atrás, nos exames de admissão ao curso de educadores sanitários, que se processa regularmente todos os anos no Instituto de Higiene, em S. Paulo, constituía motivo para obter as mais baixas colocações o fato de ser o candidato professor rural. O cargo ocupado pelo professor — pois só podem fazer o curso de educadores sanitários os professores normalistas em exercício — concorria, para a nota de aprovação, com um coeficiente que se escalonava da seguinte maneira: adjunto de grupo escolar, professor de escola urbana, professor da escola rural.

E assim, as possibilidades de entrada para o curso eram as menores justamente para os mestres que lecionavam nas regiões mais necessitadas das luzes dos educadores sanitários e que precisavam dos professores mais competentes. Felizmente, o erro foi sanado. Bastou uma nota do “Estado de São Paulo”, redigida por mim, que nesse jornal trabalhava, para que o ilustre diretor do Instituto, na reforma do regulamento, eliminasse o senão, dando aos professores rurais a primazia na preferência de colocação.

Toda a nossa legislação escolar é urbanista, como urbanistas, têm sido até hoje, todos os nossos reformadores pedagógicos. Apelo para os últimos dados, ainda desconhecidos do grande público e referentes ao Estado de São Paulo de 1932. O Estado possuía em dezembro, 7.979 docentes do curso primário oficial. Desses apenas 1.712 regiam escolas isoladas, o que quer dizer que nem 1.500 se destinavam à zoma rural, porque há centenas de escolas urbanas, localizadas não só nas sedes de município, como nas sedes de distritos de paz e nos povoados já desenvolvidos, em franca evolução para a cidade.

Ora, a população urbana do Estado não vai além de um quinto da população total. O que demonstra que o Estado serve os seus contribuintes na proporção inversa de suas necessidades: dá 4/5 do seu aparelhamento escolar a 20% da população, isto é, à que reside nas cidades, e dá o quinto restante a 80% de almas que moram na zona rural.

A mentalidade que esses números refletem é clamorosa demais para que eu faça um comentário. Seria acrescentar palavras inúteis à desoladora eloqüência desses dados.

Todo o nosso aparelhamento de ensino profissional — notem bem os meus colegas, do ensino profissional! — é urbanista. São Paulo, o Estado líder da agricultura nacional e que deve possuir, entre oficiais e particulares, cerca de três dezenas de institutos profissionais, não tem um só, um único que se dedique aos labores agrícolas. Ainda ultimamente, quatro aprendizados agrícolas federais que existiam disseminados pelo seu território, foram suprimidos sumariamente, ao mesmo tempo que se extinguia a Escola de Aprendizes Marinheiros de Santos. Só ficaram, como estabelecimentos dependentes da União, em nosso Estado, a Faculdade de Direito e a Escola de Aprendizes Artífices da Capital. Urbanismo puro!

Concomitantemente, em toda a parte — excetuando-se o Estado de S. Paulo, e isso mesmo só depois do decreto 5.432, de 4 de março de 1932, promulgado no meu tempo de Diretor Geral do Ensino — os professores que menos ganham são os da zona rural. Isso implica que a roça se torna o início da carreira profissional — e desta verdade não escapa nem São Paulo de 1933 — para onde vão, necessariamente, os mestres novatos, os bisonhos, aqueles que mal saem das escolas e não têm o mínimo treino do seu ofício. Não quero repetir palavras minhas de condenação a esse desgraçado sistema. Eu já disse dele, em ocasião propícia, todo o mal que podia.

Toda a nossa legislação referente ao aparelhamento da justiça e da segurança pública, é urbanista. A divisão das comarcas em entrâncias, classificadas pela importância das cidades, obriga os núcleos mais incultos a receber funcionários de minguada ou mesmo nula experiência, sem o menor apego ao meio e que eles têm como mero degredo a que os coage a lei de acesso, unicamente preocupados com a rápida promoção que, além de melhorar-lhes as condições econômicas, ainda os recambia para localidades de maior conforto. É nas cidades mais adiantadas que os nossos juízes, promotores, delegados de polícia percebem os mais altos vencimentos do cargo. Ainda urbanismo puro e indisfarçado!

Toda a nossa organização bancária é urbanista e só se preocupa com o comércio e com a indústria. O crédito fundiário, que alvoroça os pequenos proprietários, fazendo fervilhar os campos, pelo regime dos juros diminutos e dos prazos longos, não interessa os nossos pró-homens do mundo das finanças. E o Estado, que já devera ter intervido nessa angustiosa conjuntura, só agora, depois da Revolução, é que estuda — e não com muita pressa — a forma de amparo e de incremento à lavoura, que nunca prosperará sem um sistema de bancos do tipo que é comum em toda a parte, mas que é uma simples suspeita no Brasil. Parece que nunca se desconfiou, neste nosso delicioso país, que a agricultura só consegue viver com duas redes de viação a escorá-la: a material, que transporta as mercadorias já produzidas, e a imponderável, que transporta as mercadorias que ainda vão ser produzidas. Por baixo, a rede das vias que levam ao consumidor, por cima as que chegam ao produtor. E como produzir sem existirem ambas essas redes? Ninguém sabe. Mas, o Brasil cuida que é possível...

Toda a nossa legislação municipal é urbanista, cinicamente, deslavadamente, — deixai-me dizer a verdade toda — despudoradamente urbanista. Nem se cuida de a mascarar, de a adoçar, de a simular. Faz-se às escancaras, sem o menor resquício de acanhamento.

Tudo quanto os municípios fazem em melhoramentos locais, destina-se egoisticamente à sede, mesmo quando o município tenha dois, três ou mais distritos de paz...

Regra geral, as sedes — e só elas — possuem os serviços de utilidade pública: energia elétrica, luz, telefones, água, esgotos. E as suas empresas concessionárias, na sua grande, na sua esmagadora maioria, criam as mais absurdas dificuldades para dotar as zonas rurais dos mesmos melhoramentos. Propriedades situadas fora do perímetro urbano alguns quilômetros, lutam desesperadamente para obter alguns quilowatts de força a fim de tocar os seus engenhos. E muitas, muitíssimas vezes — quantas! — não o conseguem.

Quando eu era delegado regional do ensino numa das cidades mais importantes de meu Estado, cidade cujo nome peço licença para não declinar, fiz um pedido à Prefeitura. Como estivessem próximos a se renovar os contratos com as empresas de energia elétrica e dos telefones, desejava eu que o município exigisse, numa cláusula, a obrigatoriedade de fornecerem estas um aparelho telefônico e algumas lâmpadas de luz elétrica aos edifícios das escolas dos vários bairros rurais do município. A pretensão nada tinha de irrealizável nem de estulta. O território do município estava cortado em muitos sentidos pelas linhas de transmissão, tanto de energia elétrica como telefônicas, que se dirigiam a vários municípios vizinhos.

Fui recebido com um sorriso, misto de espanto e de incredulidade. Havia mesmo um bocado de zombaria na resposta que me foi dada:

— Para que diabo queria eu essas cousas, nos prédios das escolas?

E mesmo depois das explicações exaustivas de que era para servir aos bairros, principiando a política da criação do conforto do campo, provocando assim nos seus habitantes a preocupação do progresso e da melhoria da vida, não logrei ser entendido. A pergunta permanecia a mesma, mas desta vez com um ressaibo de desapontamento:

— Conforto dos bairros, para quê, se eles não estavam reclamando nada?

Não creiam os meus ouvintes, entretanto, que essas cousas mirabolantes e maravilhosas se passam apenas nas cidades de província. Cousas piores acontecem nesta mui nobre Sebastianópolis, isto é, neste antigo Município Neutro, que foi a sede da Corte, no Reino e nos dois Impérios, e que continua a ser Capital da Segunda República, como já o foi da Primeira.

Deixai que vos leia, extraído do interessantíssimo trabalho “Sertão Carioca”, que Magalhães Corrêa publicou, ainda neste ano, no “Correio da Manhã”, o trecho referente à vida dos aguadeiros do Distrito Federal. Aqui está:

“Infelizmente a nossa gente da zona rural, tão laboriosa, é sempre sacrificada, pois lhe falta o principal alimento mineral: a água.

No largo da Taquara existe uma bica pública, poste cilíndrico com uma torneira, onde pela manhã, crianças, homens e mulheres vão buscar o precioso líquido, em latas de querosene, potes, barriletes, barris em carros puxados por bois e mesmo barricas transformadas em rodo ou rolo, conduzidas por um só boi. As crianças, mulheres e os homens transportam a vasilha na cabeça e muitas vezes aos ombros, ou por meio de um pau tendo em cada extremidade uma lata; no entanto, os canos adutores passam por toda essa região.

Os homens abastecem os lares antes de partir para o trabalho, as crianças antes ou depois de ir à escola. Vivem assim os moradores da redondeza da bica, que estão relativamente bem. Mas os que moram na Pavuna? Fazem três a quatro quilômetros para obtê-la. É assim quase toda a zona rural.

O mais irritante é o que sucede em Camorim, onde está situado o rio, o açude, a represa e a caixa d’água, que abastece a zona suburbana, enviando as águas para o reservatório da Reunião, no Tanque: a população local apanha água nos salgados, nos poços, e o turista se quiser, que beba água mineral, pois o precioso líquido não é encanado. No entanto, os canos adutores passam a 250 metros da localidade!”

Suplício de Tântalo aplicado a toda uma densa população, que ainda não desceu aos círculos dantescos. O grande florentino pensou exagerar, sem dúvida, o que viu nos reinos de Satã, mas não precisava esforço tamanho para ter cousas mais arrepiantes. A vida, a existência quotidiana das nossas sociedades dar-lhe-ia material mais interessante que o da sua própria fantasia.

E não suponham os meus ouvintes que este inventário acabou. Quanto mais se avança por ele adentro, mais pronunciada aparece a nota da perseguição à zona rural.

Nesse capítulo dos serviços públicos de utilidade coletiva, fomos progredindo tanto que em 1927 a Câmara Municipal da cidade de São Paulo aprovou a renovação do contrato com a Companhia Telefônica, incluindo um estranho dispositivo que, aberra de toda a legislação brasileira e que exorbita do espírito da Constituição de 91. Foi o que delimitou como área em que a Companhia teria de colocar aparelhos e fazer as ligações sem cobrar mais que o estabelecido na tabela, o círculo de seis quilômetros de raio em volta do edifício da Prefeitura Municipal. Fora daí, fora dessa zona privilegiada, enquanto o número de aparelhos não atingisse a 500, em cada bairro contíguo à linha divisória da área central, teriam os assinantes de pagar uma sobretaxa adicional para fazer jus às ligações comuns, como se fossem ligações interurbanas.

O município, portanto, havia sido dividido em outros tantos municípios quantos conviessem aos interesses da Companhia. E assim, sem autorização expressa do Congresso Estadual, o município de São Paulo era parcelado, para o efeito do serviço telefônico, em inúmeras outras circunscrições territoriais. Reformava-se, com uma penada, a Constituição da República, que fez do município a célula mater de sua organização e punha-se a vida e o conforto de seus habitantes ao arbítrio de uma dúzia de legisladores urbanistas. Tudo isso por que? Só para proteger à área mais densamente povoada e para prejudicar a zona rural, que é a que normalmente fica depois desse raio de seis quilômetros. À zona que se ressente da maior falta de comunicações, aplicava-se o último escárnio: cobrar-lhe mais caro, desde que não era possível proibi-lo, o serviço de que tem mais necessidade.

Poder-se-á inventar dispositivo mais descaradamente urbanista do que esse? A mim parece-me que não. Em todo o caso é bom não afirmar de afogadilho. A inventiva dos legisladores é uma cousa monstruosa. Pode aparecer cousa pior.

O expediente encontrou logo o eco que merecia. Várias empresas, e não só telefônicas, de cidades in­com­pa­ra­vel­mente menores — que não podiam sequer alegar a dirimente do vertiginoso crescimento da Capital, o que tornaria, no dizer dos defensores do estranho privilégio, o dispositivo quase letra morta — se apressaram em solicitar a mesma regalia, apontando o precedente de São Paulo como uma garantia da concessão.

Senhores, e houve Câmaras que se renderam ao argumento convincente!

Reconheço, lealmente, que os meus pacientes ouvintes já devem estar maçados com esta fatigante enumeração. Mas eu tenho ainda algo para contar na matéria. Por exemplo, esta prática generalizada em toda administração municipal:

Está assente, de há muito, em todo o país, o preceito que manda taxar muito mais fortemente os estabelecimentos comerciais localizados na zona rural que os fixados na cidade. Para as farmácias, então, o expediente não tem medida. Sofrem impostos, três, cinco, dez vezes mais altos que as suas congêneres citadinas, impostos verdadeiramente proibitivos como se se tratasse de circo de touros ou de combates de gladiadores.

Firma-se destarte a doutrina de que é um crime ou pelo menos uma contravenção, o instalar alguém uma farmácia na roça. Os campônios que vão procurar remédios e drogas na cidade. Isso de ser longe e de não chegar a tempo, às vezes, o medicamento, tem pouco valor. Salvar-se uma vida humana nunca será tão importante como salvar-se o privilégio. O privilégio tem de ser mantido a favor da cidade, que explora os seus distritos rurais, cobrando-lhes os impostos que pode, enfeitando-se, com esse dinheiro, alindando-se, empavonando-se, e não lhes dando em troca nem sequer os meios de transporte mais indispensáveis ao escoamento de sua produção e em sofríveis condições de trânsito.

Porque, senhores — digamos mais esta verdade — se não foram os governos estaduais, inaugurando, na esteira de São Paulo, de 1920 para cá, a política rodoviária, ainda hoje seriam impossíveis não apenas as longas viagens, que se podem fazer sem sobressaltos de Santos às divisas de Minas Gerais, no Rio Grande, como bem menores tráfegos internos, que essas mesmas rodovias do Estado alimentam e sustentam, em concorrência vitoriosa com as próprias estradas de ferro. A política urbanista municipal não os haveria permitido.

Que não faria essa política para se assanhar, para se encanzinar contra a zona rural?

Pois se até a nossa tão decantada Constituição de 1891 é urbanista! Não admitiu ela a hipótese de vir o Distrito Federal, assim como é, a ser um Estado? Não acreditou inocentemente que uma única cidade — tal qual a Viena dos nossos dias — pudesse vir a ser uma das circunscrições estaduais da República, firmando a doutrina de que pode haver Estado sem zona rural anexa e sem proporções que possam garantir o abastecimento da cidade? Praza à Providência que esse crime nunca se perpetre. Mas, se tal viesse a acontecer, a que triste papel de Mônaco da República fadaríamos o mais lindo trecho de nossa terra, e justamente aquele que Deus parece haver reservado para almoxarifado das belezas do Universo?

Tanto pôde a obsessão urbanista!

* * *

Mas, senhores, será justificável essa orientação firme e marcada, essa atitude decidida e enérgica de guerra à zona do campo, que é afinal o produtor de toda a alimentação do globo? Poder-se-á dar-lhe motivos ponderáveis de razão suficiente que acalmem a nossa indignação, em que começam a surgir os primeiros pruridos de revolta?

Não os há. Eu, pelo menos, depois de demorado exame, não n'os achei. Encontrei sempre motivos em sentido contrário, isto é, motivos que nos levariam a uma política de franca e aberta proteção à roça. No Brasil, então, essas razões crescem. Porque a zona rural não é apenas a que reabastece o resto do país em mercadorias de consumo, em matéria prima para o grosso das manufaturas e das indústrias e em artigos para a nossa exportação. É também a única zona, onde se podem serenamente alojar as nossas sobras anuais do crescimento demográfico. As nossas cidades, todas elas juntas, têm uma indústria incipiente, incapaz de absorver um número mui elevado de operários e empregados. Nem mesmo o tão gabado parque industrial de São Paulo, ainda que alçapremado às alturas de primeiro da América do Sul e que não passa de um esboço relativamente insignificante, comparado às de outras nações verdadeiramente industriais, nem mesmo esse parque pode dar vazão ao êxodo dos campos nas proporções do que já existe entre nós. É um gigante do tipo baleia: falta-lhe capacidade de deglutição. E as levas dos procuradores de trabalho rondam o templo sem o poder penetrar. Evitar, pois, por meio da zona rural, que essas levas venham a avolumar-se ainda mais e que as populações abandonem as fainas campesinas, demandando, na miragem, quase sempre vã, da busca do conforto, os males urbanos, seria fazer obra de puro, de avisado, de solícito patriotismo e de sábia previsão social.

Essa função já seria importantíssima, principalmente numa quadra terrível da história do mundo como esta que estamos palmilhando e na qual as crises se amiúdam, parece que para contrariar e invalidar as teorias levantadas e construídas pelos economistas mais precatados e mais cautos.

Mas não basta. Há ainda a acrescentar toda a série de argumentos deduzidos dos fatos que a Ciência vem examinando e catalogando e que nos fazem chegar a conclusões diametralmente opostas a essa atitude de hostilidade, de antipatia, de repugnância pelo campo.

A primeira constatação positiva à que a ciência nos leva, é a de que o reabastecimento operado pela zona rural quanto às cidades, não é apenas de ordem material. É total, pois da densidade demográfica das regiões campesinas depende o crescimento da população urbana como a própria manutenção em plena forma das suas elites de cultura.

Frisava ainda recentemente uma das mais altas autoridades em assuntos de biologia, o professor Erwin Bauer, o diretor do Instituto Nacional Alemão de Estudos Biológicos de Berlim, numa das conferências realizadas na Sociedade Alemã de Buenos Aires, que as cidades modernas não têm natalidade capaz de manter constante a sua atual população. Precisariam, para tanto, de uma natalidade infantil nunca inferior a 18 crianças por 1.000 habitantes, quando a regra, na Europa, é a de apresentarem o nascimento de 10.

Quem arca com o déficit provindo desse saldo negativo e não só o destrói, equilibrando-o, mas o transforma em saldo positivo, pois que ninguém ignora andarem as cidades dos países europeus em franco florescimento, são as negregadas zonas rurais. São elas que carreiam para as colossais urbes de nosso tempo as levas indispensáveis a esse aumento permanente. E são elas que fazem afluir o sangue novo de que as cidades carecem, exercendo o papel de sistema arterial na circulação do mundo, a amparar e a proteger o sistema venoso, a que se pode racionalmente comparar o conjunto das cidades de uma nação.

Não acreditem os meus ouvintes que haja em minha imagem apenas o gosto bem brasileiro da hipérbole. Não. São incontestavelmente as zonas rurais as que arcam com o dever de dar ao organismo social, combalido e depauperado pela obsessão urbanista, o sangue cruórico de que ele necessita para manter o seu tonus vital. E esse dever é duplo, faço questão de insistir nesse ponto. Não se trata somente do afluxo de elementos sadios, com os pulmões mais bem oxigenados, com os músculos mais rijos e com o sangue mais rico em hemoglobina. Trata-se do fornecimento de material de inteligência superior para as várias atividades humanas, recrutando-se nos meios e nas classes rurais. É de lá, da roça, da velha e inesgotável campanha, que esse material chega, fresquinho e virgem, para o desgaste e para a dissipação perdulária desse Moloch, que é a cidade tentacular.

Esse fato, isto é, o concurso poderoso com que as classes rurais contribuem à substituição contínua dos elementos superiores das cidades, é daqueles que ninguém ainda explicou razoavelmente, porque sobrepaira às tentativas de explicação que se formularam. Mas se a teoria falha, o fato permanece. E são inúmeros os escritores que lhe acentuaram a importância, desde Oto Amon, no seu “Ordre Social” até Vilfredo Pareto com a sua teoria da circulação das elites. Este último sociólogo chega mesmo a sustentar que Roma foi uma devoradora de elites rurais de todo o império. São dele, no livro “Les systemes socialistes”, estas palavras: “A história de Roma nos mostra um grande número de elites que chegam sucessivamente ao poder. Elas surgem, primeiro, das classes rurais de Roma e do Lácio; após, quando estas se esgotam, do resto da Itália, das Gálias, da Espanha, e, enfim, são os próprios bárbaros os que são chamados a contribuição”.

E nós bem que o sabemos no Brasil, cuja vida política decorreu, no regime monárquico, sob o predomínio e sob o patrocínio da classe rural, pois, dela vinham os seus maiores condutores de homens. Foi só quando a classe, perdendo o senso da realidade, se erriçou contra a tormenta abolicionista, oferecendo-lhe, em lugar do clássico plano inclinado de que nos falam os hábeis estadistas ingleses, a muralha chinesa de convicções contrárias à onda de sentimentalismo popular, foi só quando esses homens, perdendo o “aplomb” e a desenvoltura com que se haviam mantido, por mais de meio século, sagazmente no poder, não souberam encaminhar e contornar o problema máximo da nacionalidade, que era a questão escravocrata, dando-lhe a solução inteligente que a nação reclamava, foi só então e justissimamente que eles caíram. A decadência já havia começado e por isso entregaram a máquina administrativa aos espíritos impregnados de urbanismo, esses mesmos que fizeram estes erradíssimos quarenta anos da Primeira República.

E essa função notabilíssima das zonas rurais, concorrendo para a manutenção das elites de cultura das cidades, tem ainda um alcance muito mais profundo na vida nacional, porque com ela a zona rural exerce o papel de freio da decadência dos povos.

Quando um povo chega a um certo grau de civilização — é ainda o ilustre professor Erwin Bauer quem apresenta a tese — começa a sofrer uma “seleção às avessas”. Os seus elementos de elite, os seus líderes restringem a procriação, enquanto proliferam os tipos inferiores. O fenômeno é normal e constante e sua ação é tão violenta que se pode apanhar nestes dois exemplos esquemáticos, apresentados pelo professor alemão.

Num povo qualquer, com os dois tipos raciais, o A e o B, e no qual o primeiro tipo só tenha, em média, três filhos por família e o outro, 4, admitindo-se que hajam partido de uma situação de equilíbrio quantitativo, isto é, com 50% de representantes para cada um, chega-se a estes resultados: Cem anos depois, A estará reduzido a 28% e B estará com os restantes 72%. Trezentos anos depois, A apenas terá 7%, enquanto B acumulará os 93% que faltam.

Se além desse fator único da diversidade de número de filhos, admitirmos que a idade matrimonial em A é mais tardia que em B, os resultados ainda são mais desastrosos:

Cem anos depois, A apenas estará com 17,5% e B com 85,5%.

Trezentos anos depois, A praticamente desapareceu, pois só restarão 0,9%, ao passo que B absorveu a população com 99,1%(17)

Como são os inteligentes que restringem a natalidade, é fácil apanhar toda a gravidade do processo. Bauer tem toda a razão de apelidá-lo “seleção às avessas”, isto é, seleção em regressão de inferioridade.

Entretanto, uma pergunta se impõe: O processo, deduzido de uma série de experiências sobre raças de coelhos, não é uma criação de gabinete, nem um plano literário. É real, e por ele se explica facilmente a decadência de Roma. Como se explicará, contudo, que essa decadência não tenha sido um fenômeno histórico muito mais freqüente e não o hajam padecido inúmeros outros povos?

Antevê-se a resposta: pela zona rural. Nela, o processo de seleção sofre as restrições e as oposições naturais do meio, pois que a natalidade é sensivelmente maior que nas cidades, dadas as condições do ambiente, e nela não faltam os tipos de elite e superiormente dotados.

O freio da decadência está, portanto, ali.

* * *

Que concluir de toda esta série de considerações, senhores, senão que a zona rural é a única que verdadeiramente importa à nacionalidade? É a reserva da nação e da raça, logicamente, da espécie. É ela que alimenta, no sentido mais largo e mais amplo do vocábulo, a nação inteira. E quando lhe atingem, por ignorância e estolidez, as fontes vitais, morto está o povo.

É preciso repetir isso ao Brasil e repeti-lo bem alto, sem cessar, até perder a voz; mostrar-lhe que há uma automutilação nos seus quadros legislativos e que há visivelmente um caso de desnutrição voluntária, que o levará fatalmente ao colapso fatal por inanição, nesse regime estúpido e absurdo a que condenamos a nossa zona rural. Tudo conspira contra essa atitude: a justiça e a equidade; a economia política e a previsão social; a ética e a própria ciência. E da ciência, como vistes há pouco, a própria biologia. É esta quem aponta o caminho reto e o caminho honesto.

Temos de abandonar essas práticas primitivas, que nos vêm como resíduos sentimentais de um longínquo passado, como recordação dolorida de uma civilização ultrapassada.

O de que o Brasil precisa, urgentissimamente, é de reabilitar a sua roça. Mas só o fará hoje em dia, se souber dar-lhe conforto idêntico ao que concedeu às cidades, se adotar uma política diversa, tenaz e imutável, de incorporar, de uma vez por todas, a zona rural à nação, dando-lhe o mesmo grau de cultura que almeja para os meios urbanos.

E bastará que comece, como uma legislação sábia, por conceder-lhe a energia elétrica. Com isso lhe dará o essencial: força para os engenhos, luz para a noite, energia para o rádio e para o telefone. A conquista do meio físico estará realizada.

A conquista sentimental, essa, fá-la-á outro obreiro, mais lento, mas mais seguro: o mestre-escola. Não esse, por certo, perigoso e pernicioso, que lhe hemos mandado até hoje e que, saído das Normais Urbanas, vai continuar, às vezes, sem o sentir, e, não raro, sem o saber, a atitude de guerra ao campo de que está imbuída a população citadina e que caracterizou este meio século de vida brasileira. Mas outro professor, o que é preciso formar nas Normais Rurais, com mentalidade e com consciência agrícola e com a noção sociológica de que o campo é, na realidade e não apenas nos discursos, o cerne da nacionalidade. E esse mestre não se improvisa, porque não se improvisam as Escolas Normais que o devem formar.

Eu teria de entrar aqui numa outra série de considerações de outra ordem, das que já abordei na “Crise Brasileira de Educação” e em minha conferência do Rádio Clube do Brasil, publicada em o número de agosto-setembro de 1931 na revista “Educação” e subordinada ao título “A Reforma do Ensino Rural em São Paulo”.

O assunto é palpitante... Mas eu sou mestre-escola. Tenho de ser sensato, justo e comedido. E reconheço-o: já fatiguei demais”.


 

 

O COMEÇO DA VITÓRIA


 

Premiado este livro pela Academia Brasileira de Letras, na sessão de 8 de junho de 1933, com o 1.° prêmio da série Francisco Alves — “Obras sobre o melhor meio de difusão do ensino primário no Brasil” — o seu plano focalizou-se imediatamente.

Chamado de novo à direção do ensino em São Paulo, nos poucos dias da interventoria do General Daltro Filho, obtive a publicação do decreto citado à pag. 215, o qual, com pequenas modificações, tomou o número 6.047, de 19 de agosto de 1933.

A primeira Escola Normal Rural do Brasil estava criada.

A idéia em marcha já não encontrará quem a detenha.


 

 

OPINIÕES ALHEIAS


 

De OLIVEIRA VIANNA:

“Niterói, 29 de outubro de 1930

Meu ilustre confrade sr. Sud Mennuci

Li seu belo livro — A Crise Brasileira de Educação — onde defende com talento e bravura um ponto de vista que não pode ser o de muita gente, mas que é o mais razoável e mais lógico, na orientação geral dos nossos métodos pedagógicos. Pela lucidez da sua demonstração, pela lógica da sua dialética, pela erudição especializada que revela, penso que este livro vai exercer uma grande influência nos nossos centros de cultura pedagógica e modificar muito a orientação dos nossos regimes de cultura. É o que lhe prenuncia e espera testemunhar muito em breve o grande admirador e colega grato

Oliveira Vianna”.

De PANDIÁ CALOGERAS:

(Excerto de uma carta de 1.° de setembro de 1930).

“E aí, passo à segunda parte de seu livro com a qual concordo tanto, quanto discordo da primeira.

Realmente, em nossos reformadores domina a noção do “pastiche”, “à la maniére de...”. Quando compreenderemos que cada uma das nossas regiões precisa ser “se stessa”? e que a única força de propulsão e de progresso está na originalidade e nos corolários desta? O mal nosso não está só em copiar programa de tais e quais países estrangeiros; também reside em zonas agrícolas nossas copiarem programas urbanos nossos, em que tudo varia das condições existenciais do meio a que se vão aplicar. Este aspecto do problema, o am.° desenvolveu-o admiravelmente e, a meu ver, convincentemente. Assim tenhamos quem saiba realizar tarefa tão alta, tão difícil e, entretanto, tão essencial para o futuro do país. É coisa de vida ou de morte para nós.

Envio-lhe um exemplar de um trabalho meu, já antigo (1911), do qual discordo eu mesmo, em parte, hoje em dia. Nele procurei traçar o lineamento de uma organização de ensino, visando ao mesmo tempo curar da unidade nacional e das diferenciações locais, com aproveitamento de todas as forças vivas do país.

Faço ponto aqui, pois estou parecendo conferencista que não sabe sair do cipoal do assunto. Minha desculpa é que este é um mundo, e que eu sou apaixonado dele.

É ainda a prova do quanto me interessou seu livro. Dele se pode repetir o conceito de Miguel Ângelo: “ei dice cose”.

Renovando meus agradecimentos, subscrevo-me amo. gr. e admor. — Calógeras”.

De BENJAMIN LIMA:

(Trecho do artigo “A radiofonia e o problema educacional”, publicado em “O PAIZ”, do Rio, de 4 de outubro de 1930).

Outro especialista consagrado que da matéria se ocupou em páginas admiráveis, foi o Sr. Sud Mennucci, parecendo-me que lhe cabe a prioridade no focalizar esse instrumento de irradiação espiritual em face das condições especialíssimas da geografia e sociologia brasileiras.

Foi lendo Humor, ensaio filosófico e literário dos melhores publicados até hoje entre nós, que me relacionei com o escritor paulista, e desse primeiro contacto guardei recordação imperecível. Não é que sua teoria sobre tão controvertido assunto se me afigure a mais defensável e aceitável de quantas — e são inúmeras — têm surgido. Fiz-lhe ato contínuo, mentalmente, objeções no gênero das que mais tarde se me depararam sob a pena de Fernando de Azevedo. Que importa, porém, a exatidão das doutrinas em geral e, muito especialmente, das erigidas no terreno claudicante da psicologia e da estética? O que se deve e pode logicamente, sabiamente exigir dos doutrinadores, é que revelem graça, engenho, subtileza, na defesa de suas convicções. E, bem considerando, mais dignos se mostram de nossa admiração, de nossa intelectual simpatia, os que, ao invés de se bater por uma verdade velha, pelejam por um erro novo, por um equívoco próprio, exclusivamente seu, desassombradamente original.

Sabia que o esteta e pensador com quem me tinha familiarizado através da leitura do referido livro, pertence ao escol do professorado paulista, é um dos baluartes da indiscutível hegemonia daquele Estado em matéria de educacionismo. Foi, todavia, há pouco, em horas para mim de grande alvoroço espiritual, que o seu volume intitulado A crise brasileira de educação me inteirou da clarividência, positivamente excepcional, com que ele encara diversos dos magnos problemas ligados à formação mental da nossa gente. E digo “horas”, visto como, ao revés do habitualmente sucedido a quantos dividem o tempo entre o ler e o escrever, e ainda precisam subdividir por vários livros a parte reservada à leitura, não deixei a mencionada obra, enquanto lhe não virei a derradeira página. Devo, aliás, confessar que dela me aproximara vagamente apreensivo, receando encontrar-lhe o tédio para que, via de regra, resvalam as pesquisas em torno a questão de muita complexidade e magnitude. É o tecnismo, quase sempre, adversário irredutível da delectatio que os gourmets das letras fazem questão de descobrir mesmo no trato das coisas mais transcendentes ou áridas. Mas reúne Sud Mennucci duas seduções que raramente se conjugam: a de saber pensar e a de saber escrever. Francamente, nunca vira discretear-se com tanta segurança, feita, ao mesmo tempo, de cultura e de bom senso, a respeito do problema brasileiro em que, na conformidade de um asserto inolvidável do professor Miguel Couto, todos os restantes se acham virtualmente contidos. Esse educador é, simultaneamente, um grande psicólogo e um sociólogo notável. E, porque as conquistas de seu espírito não o fazem ficar cego para as nossas realidades, traça, com firmeza inexcedível, o plano da campanha a empreender-se.

Não foi, entretanto, para fazer pretensa crítica desse livro que o evoquei. Penso, mesmo, que trabalhos de tal natureza ficarão irremissivelmente sacrificados pela tentativa de síntese a que não podem fugir os exegetas. Trata-se de um repositório considerável e precioso de sugestões e alvitres, que os remexedores de idéias integrarão no seu patrimônio, assegurando-se reservas inestimáveis para os dias de disette cerebral, e garantindo-se pontos de partida excelentes, quando lhes vier a gana de interferir nos debates dos educacionistas.

DE PLÍNIO BARRETO:

(Do “Estado de São Paulo” — da secção “Livros Novos”, em 16 de setembro de 1930).

“O sr. Sud Mennucci, sabem-no os leitores desta folha, é uma inteligência cheia de cintilações e um escritor de pulso firme. Crítico dos mais seguros com que conta a imprensa brasileira, espírito adereçado de todas as jóias da cultura, nenhum predicado lhe falta para arregimentar sob a bandeira que empunha, uma coorte numerosa de leitores”.

De NEWTON BELLEZA:

(Trechos do artigo “Estudos brasileiros e a crise de educação”, publicado no “Estado de São Paulo”, em 8 de março de 1931)

”O ano de 1930 foi fértil em livros de estudos brasileiros: Ainda me conserva a memória, entre outros: “Problemas nacionais”, de Vivaldo Coaracy; “Introdução à economia moderna”, de Tristão de Athayde; “Política objetiva”, de Oliveira Vianna; “Ensaios brasileiros”, de Azevedo Amaral; “A crise brasileira de educação”, de Sud Mennucci. Como a função surge para um órgão, de acordo com o moderno pensamento da biologia aplicada, é este o melhor sintoma de que já existe uma consciência nacional, o que deve constituir motivo de justo regozijo a todos os brasileiros, cada qual no seu feitio, as obras citadas são indícios de amadurecimento do nosso organismo social. Ainda que para uso próprio, irei coligindo os comentários que todas elas me têm despertado.

Nesse valioso conjunto, o livro de Sud Mennucci, mais singelo e mais conciso, destaca-se, todavia, pelo seu enorme fundamento experimental. Sente-se que a certa altura de sua existência, num exame interior e retrospectivo, filmou as impressões colhidas pelo aparelho de experimentação do próprio “eu” em contacto vivo com o meio humano mais característico da formação brasileira — o povo rural. Fez assim obra de sinceridade, acima de tudo. O caráter acentuadamente técnico na objetivação dos problemas, a brasilidade intensiva e a adaptação ao nosso ambiente são particularidades que muito se notam na “Crise de educação”.

Se a sua brasilidade intensiva o faz algumas vezes talvez fugir à segurança de descortino, o cunho técnico de seu trabalho tem o valor e a amplitude do fundamento experimental. Constituem os dois traços mais vigorosos do livro, que por eles se embutirá na galeria nobre dos estudos atinentes à realidade brasileira”.

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“Esclarecida a tese que se propõe defender, fá-lo de modo a deixar-nos convicção. Com excelentes qualidades de analista, já reveladas na crítica literária, em cujo exercício Sud Mennucci é uma das penas mais seguras com que a imprensa brasileira pode contar, segundo a opinião muitas vezes autorizada de Plínio Barreto, justamente nas passagens em que escalpela os vícios de nossa organização pública é que o seu livro se reveste de certezas irrefutáveis. Quando se cogita de lançar os fundamentos de uma Pátria nova, “A crise brasileira de educação” é um repositório de observações acertadas em vários assuntos além deste”.

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Sobre ser útil, escrito na ágil elegância literária tão Sud Mennucci, “A crise brasileira de educação” vale como um exemplo forte de emprego dos processos técnicos e experimentais na própria elaboração de um livro, o que representa uma conquista mais à introdução de um sistema educativo que conduzirá a nossa Pátria aos seus verdadeiros destinos“.

De ANTÔNIO DOS SANTOS FIGUEIREDO:

(Trechos do artigo “A Crise Brasileira de Educação”, publicado em “A Platéa”, de São Paulo, de 16 de setembro de 1930).

“À palavra CRISE esteve sempre em ordem do dia. Quando o café está alto, os cépticos e desiludidos teimam em afirmar que os nossos male advêm da “crise” política e “crise” do caráter; quando o nosso produto deixa de ser uma fonte de receita considerável, então falamos em “crise” financeira e em “crise” econômica. A verdade é que, em todos os tempos, principalmente nestes últimos cinqüenta anos, sofremos de todas aquelas crises. Entendo mesmo que a única “crise” visceral, que entrava o nosso desenvolvimento que se revela vagaroso e emperrado, é de natureza econômica.

Mas há criaturas de eleição que pensam de modo diverso. E entre elas está o ilustre professor Sud Mennucci, um espírito sagaz e culto, que não querendo conhecer limites para a sua atividade mental, sai resolutamente do seu ambiente e divulga as idéias que lhe borbulham no cérebro. Não é apenas um mestre escola, aferrado aos seus hábitos austeros e sisudos; é também, sobretudo, um jornalista, que diz “sim” à realidade com uma intrepidez, que não é vulgar entre os de sua grei. Por isso é lido, meditado, e insultado talvez. Mas o brilhante colega não se dá por achado, mesmo diante de contrariedades. E prossegue na sua obra, desferindo e recebendo golpes, com a mesma confiança e a mesma serenidade. Há pouco tempo, realizou uma série de conferências no Jardim da Infância desta cidade, em que abordou o problemas sérios de pedagogia. As conferências foram agora reunidas em um volume, de que cuidarei com simpatia e também com as cautelas próprias de um leigo no assunto.

Sempre supus que tínhamos apenas uma educação de fachada. Não o dizia abertamente para não desagradar aos que se ofuscam com o artificialismo de hoje. Pois Sud Mennucci é da mesma opinião. Insurge-se contra a mania da cópia, que se manifesta em todos os ramos da nossa atividade intelectual. Não pode compreender o A. da “Crise Brasileira de Educação” que se desdenhe de tudo aquilo que nos é peculiar, que está de acordo com a nossa índole e as nossas tradições”.

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“Sud Mennucci tem carradas de razão. Para empreender uma obra educacional de vulto, que abranja toda a nação, torna-se indispensável criar um novo tipo de professor, que não se deixe influenciar pelo que lêem em livros e compêndios de pedagogos, possivelmente talentosos e eruditos, mas que desconhecem as nossas necessidades imediatas. Reabilitando o mestre-escola do campo, Sud julga que reabilita o trabalho e que se formará uma nova geração; mais simples e mais rendosa para a nossa coletividade. O que está na cidade, no tocante à educação, não é nosso; é uma mentira, é uma impostura. O nacionalismo está naquilo que chamarei (e que o A. me releve a ousadia) “pedagogia agrária”. E neste particular o ilustre colega, com todas as suas idéias mais ou menos conservadoras, se confunde com os espíritos mais avançados do Brasil”.

De VIVALDO COARACY:

(Trechos do artigo “Aspectos do Dia” “A Crise de Educação”, publicado no “Estado de São Paulo” em 10 de setembro de 1930) .

“Porque a verdade é, não nos cansemos nunca de repeti-lo que o grande mal do Brasil, as suas moléstias e misérias, a sua tristeza e o seu raquitismo, têm uma origem social e não política. Não é de corrigir instituições que necessitamos; é de extirpar vícios profundos, erros tradicionais, deformações congênitas da nossa organização social.

O único processo eficaz de que o homem possa lançar mão para emendar e modificar diretrizes sociais, relembremos a lição de Leibnitz, é educar. A Revolução Social, que tanta literatura tem inspirado, apenas virá emprestar novos aspectos aos mesmos vícios, vestir de outras roupagens os mesmos erros. Enquanto não for modificada a mentalidade de um povo, não serão alteradas suas atitudes e a sua orientação. A Rússia aí está com a sua tremenda experiência.

No Brasil, tudo quanto se refere à educação em geral e sobre tudo à educação popular está fundamentalmente errado. É edifício a ser arrasado para ser reconstruído, porque os defeitos e lesões se acham nos alicerces.

Sentem-no quantos hajam estudado com amor e imparcialidade este assunto. Alguns já o têm dito e repetido. Ninguém, porém, creio, ainda de forma tão incisiva, com tão preciso rigor de análise e tão impiedoso escalpelar das realidades, como o fez, neste livro que acabo de ler, Sud Mennucci.

A tese em torno da qual gravita “A Crise Brasileira de Educação” é a da inadaptabilidade dos processos e métodos que temos adotado, copiado e seguido, às nossas populações. Esta tese, o autor a expõe com luminosa clareza e demonstra com exuberante fartura de documentação.

Sud Mennucci mostra de maneira clara e evidente a origem do mal. Incidimos e reincidimos, com pertinácia digna de melhor aplicação, no mesmo erro, que seria crime se fosse consciente e que não é menos deplorável por ser irrefletido, de copiar processos, instituições, sistemas criados por povos com os quais andamos em contacto econômico e intelectual. mas cuja equação social é essencialmente divergente da nossa. E com a nossa aparelhagem de educação vamos concorrendo para transplantar para esta terra um dos mais graves problemas da Europa Industrial, problema que pela sua natureza e pelas nossas contingências nos devera ser desconhecido, o do abandono da terra, o da desruralização das populações.

Esta sucção centrípeta dos núcleos urbanos é hoje fenômeno universal. Sud Mennucci vê a sua gênese no sentimento do “direito ao conforto”; Bertrand de Jouvenel descortina as suas raízes na substituição da velha disciplina de previdência pela superstição do rendimento. Ambos concordam em que o abandono da terra assume o caráter psicológico de uma evasão.

É fenômeno natural nos países superpopulosos de economia industrial intensa. A sua transferência artificial para terras que revelam, à perquirição do censo, a desolação do deserto, atinge as proporções trágicas de um suicídio.

É o que estamos fazendo. É o que as páginas deste livro patenteiam que estamos a realizar com todas as peças da nossa aparelhagem de educação, mal compreendida em seus princípios diretores, mal copiada na impropriedade dos seus objetivos.

Sud Mennucci, na necessidade de encerrar numa série de sínteses luminosas, matéria tão ampla e extensa, não quis mencionar que os próprios países onde predomina o urbanismo espontâneo das populações, já começam a se preocupar com os perigos contidos na generalização dos métodos educativos criados pelas necessidades da civilização industrial.

..............................

O que neste livro mais concorre para que as suas páginas se gravem impressionadoramente no espírito de quem as lê, não é apenas ser um livro sincero e sentido. É um livro vivido. O drama emocionante do professor urbano, exilado no meio rural, o autor o viveu; os erros, os vícios, os defeitos apontados foram estudados, não nas folhas de relatórios e informações, mas no contacto imediato da realidade clamante. Daí o poder de convicção que de cada um dos seus períodos emana.

É livro a ser lido por todos os que pretendem estudar o amargo problema brasileiro. A ser lido, guardado e freqüentes vezes recorrido.

Sendo a educação, incontestavelmente, a argamassa para o edifício da organização social, Sud Mennucci é levado forçosamente a semear através do livro reflexões e observações, rápidas mas sempre positivas e claras, sobre muitos outros aspectos do problema nacional. E muitas vezes, num traço apenas, ficam estes nitidamente postos em relevo. Não me permite, porém, o espaço de que disponho acompanhar o autor nessas incursões que não são das partes menos interessantes de seu trabalho. Nem seria justo que roubasse ao leitor o direito e o prazer de colher de primeira mão essas impressões.

Em minha estante, o livro de Sud toma lugar vizinho ao “Saneamento do Brasil”, de Belizário Penna. São dois documentos dolorosos, dois tristes relatos da realidade nacional, que precisamos ter sempre sob os olhos, sempre presentes à mente. A miséria mental ao lado da miséria física.

São, porém, ao mesmo tempo, dois documentos a nos relembrar que a reconstrução do Brasil não é obra que se classifique entre as impossíveis. É questão de trabalho, de fé, de amor e de perseverança.

E é bastante sedutora para constituir o ideal de uma geração.

De CECÍLIA MEIRELLES:

(Trecho da “Página de Educação”, secção habitual do “Diário de Noticias”, do Rio de Janeiro, em 10 de abril de 1931)

“O professor Sud Mennucci publicou há tempos, sob o título “A CRISE BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO”, uma série de conferências importantíssimas, realizadas em São Paulo, sobre a função do professor brasileiro na formação da Pátria.

Ora, neste momento em que São Paulo é um foco de esperanças, em matéria de ensino, e quando nos debatemos aqui num regime de estagnação que faz prever as mais tristes conseqüências para a obra magnífica que a Revolução encontrou, faz-se oportuno recordar as palavras do ilustre professor paulista, de tão clara visão e de tão decidida energia, neste livro que o Brasil inteiro devia conhecer e meditar”.

De GALEÃO COUTINHO:

(Apreciação da “A Gazeta”; de S. Paulo, de 30 de Setembro de 1930)

“Antes de estudar “in loco” a crise de educação que se acentua, de ano para ano, em nosso país, Sud Mennucci, neste seu livro admirável, remonta às origens da era industrial, passando em revista as profundas transformações operadas no mundo nestes últimos quarenta anos. Em verdade, para a apreciação dos fatos, esse lapso de tempo é insignificante. A decadência dos costumes já se vinha observando de mais longe; mas não se trata aqui senão de abranger o período em que a crise se apresenta nitidamente caracterizada.

Ela atinge o ponto culminante e calamitoso a partir de 1914 para cá. A conflagração européia derruiu o edifício secularmente carcomido da velha sociedade, abalada de um lado pelo racionalismo agudo dos séculos XVIII e XIX, que se denuncia pelo desprestígio pronunciadíssimo do poder espiritual, e de outro pelas reivindicações proletárias, fruto do industrialismo emergente, que vinha constituindo séria e permanente ameaça ao poder político.

Aí ficam apenas gisadas as causas da situação contemporânea, que é objeto de uma análise vigorosa e lúcida por parte do autor d'“A crise brasileira de educação”, livro que encerra uma série de conferências realizadas nos dias 26, 27 e 28 de junho deste ano, no Jardim da Infância, anexo à Escola Normal, quando ali se inaugurou o curso de Cultura do Centro do Professorado Paulista.

Para mostrar a inanidade dos velhos processos de ensino ainda vigorantes, o autor escreve, no capítulo “A indústria contra a escola”: — “A Escola esquecera o contacto com a realidade. Depois da tremenda prova que fora a guerra, ainda ignorava que dois óbices formidáveis lhe invalidavam os princípios em que se baseara antes: — 1° porque o trabalho perdera, o seu valor educativo intrínseco. Parcelado até onde o permitiam as experiências de laboratório, em que se notabilizara Taylor, o fundador da Psicotécnica, substituído pelas máquinas nas suas tarefas mais pesadas e exaustivas, ao mesmo tempo que concedia melhor remuneração pelos serviços mais leves, fruto da produção intensiva, ia-se fazendo cada vez mais simples e banal, mais enfadonho, torturante e alucinante de monotonia”.

O autor demonstra a mecanização do operário, cujas funções intelectuais ficam irremediavelmente limitadas. O segundo obstáculo é a desagregação da família. Desde que a mulher se incorpora ao exército operário nas fábricas, o lar perde a sua profunda influência na formação moral e mesmo intelectual do homem.

Extingue-se o regime patriarcal. É o crepúsculo da mais bela instituição humana que estamos assistindo.

Vejamos, porém, o caso brasileiro. Este é mais grave, mais complexo, talvez, do que o problema defrontado pelas velhas nações da Europa. Sud Mennucci toca o dente dolorido da questão quando aponta o estigma que o cativeiro nos legou, e cujos vestígios ainda permanecem indeléveis na organização nacional — o horror ao trabalho. Nós somos, com efeito, um povo que encara essa nobilitadora disciplina como qualquer cousa de repugnante. Dai o vício da burocracia. No Brasil, a tendência das famílias é para transformar os filhos em bacharéis ou funcionários públicos, porque foram essas as posições não acessíveis ao elemento servil. Por isso, o labor agrário ainda é visto com desprezo pelos próprios lavradores, que esperam sempre o ensejo de vir incorporar-se às populações urbanas. O urbanismo é o nosso mal. Todas as leis são elaboradas, tendo em vista a cidade. O campo raramente recebe um benefício qualquer. O lavrador, não lhe dão conta da existência os legisladores que vivem nas grandes cidades. Falta-nos uma “legislação visceralmente rural”, uma legislação capaz de integrar o país nos destinos que a sua estupenda configuração geográfica e formação histórica lhe assinalam. Que resulta de tudo isso? Resulta que, preparado para as cidades, com uma cultura que exclui toda e qualquer matéria capaz de interessar ao meio para o qual se transporta, o professor rural se converte no mais perigoso e inconsciente instrumento de desintegração nacional. O conflito desse educador com a gente da lavoura é inevitável. A sua linguagem jamais será entendida pelos homens do campo, receosos de confiar-lhe os filhos. Avisado instinto segreda a essas criaturas broncas que as noções que seus descendentes receberem na escola acabarão por torná-los incompatíveis com o meio em que nasceram.

E aí temos a instrução pública produzindo efeitos diametralmente opostos aos que dela se esperava. Impõe-se, por conseguinte, a sua reforma.

Sud Mennucci, que exerceu o magistério rural, depõe com a autoridade da sua confirmada experiência. O seu livro redobra de interesse por isso mesmo”.

Outras questões ai são abordadas com superior clarividência, tais como a da propriedade latifundiária e da assimilação dos colonos estrangeiros e sua descendência.

Para todos esses casos o autor indica soluções que devem ser objeto de estudos da parte dos nossos homens de governo.

A “Crise brasileira de educação”, vazada como está em linguagem reveladora de profunda convicção patriótica, é, incontestavelmente, uma das mais valiosas contribuições ultimamente trazidas ao estudo das questões nacionais“.

De ALFREDO ELLIS JÚNIOR:

(Trecho de um discurso pronunciado na Câmara dos Deputados de São Paulo, na sessão de 17 de setembro de 1930).

“........................

“Civilizamos o rural, mas com o lustre que lhe devemos, inoculamos-lhe o vírus de uma cultura daninha. Urbanizamos assim a massa agrícola que aos poucos foi deixando o arado e a enxada para se pôr de colarinho e gravata.

Instruímos o nosso homem do interior, a quem abrimos os horizontes, no burburinho cintilante das aglomerações e a quem mostramos novos caminhos no labutar rumoroso das indústrias, bem como a quem antolhamos novas perspectivas, no conforto e no luxo sibarita das cidades.

Modificamos inteiramente a mentalidade rural da nossa gente. Com o alfabeto que lhe demos, à custa de tanto dinheiro, fornecemos-lhe a passagem para as cidades.

A conseqüência tinha que ser fatal.

Mas será isso, sr. presidente, uma objurgatória contra a instrução? Será isso um anátema contra a civilização? Será isso uma apologia do analfabetismo? Será isso acerba crítica ao que temos feito?

Não. Nada disso. Aliás, sr. presidente, essa tese não é nova, não a inventei, pois que a vemos lindamente defendida por Sud Mennucci, o intelectual que todo São Paulo aplaude e admira, o sociólogo arguto que homenageio com as minhas palavras efusivas. Ninguém mais do que eu, aprecia a obra gigantesca dos governos paulistas na educação da nossa população. Ninguém mais do que eu se entusiasma, ante o monumento que é nossa instrução pública estadual, que culminou em 1929, escolando 550 mil alunos.

Quero frisar que não compreendemos bem a _função social da educação, só a encarando por um prisma: o primeiro que se nos apresenta. Desprezamos os demais; não tivemos vistas para as outras conseqüências, nem todas benéficas, as quais poderiam ter sido corrigidas.

Desejo mostrar que nos fez falta uma ação paralela, a instrução do povo, ação paralela essa que não era necessária nos Estados Unidos ou na Argentina, mas imprescindível entre nós.

Nós demos à população o aperfeiçoamento mental, sr. presidente, nos esquecemos de dar-lhe o progresso material.

Fizemos os passos para a frente, na evolução intelectual e foi enorme a caminhada nesse terreno, mas não saímos do lugar no tocante à evolução material.

Continuamos nos processos rotineiros da indústria agrícola dos nossos avós de há cem anos atrás. Sr. presidente, são ainda os mesmos métodos empíricos da derrubada da mata, das plantações de café, do seu cultivo, da sua colheita, bem como do benefício e do acondicionamento do seu produto. Estamos nesse ponto como estávamos, há um longo século. Não saímos do lugar. O regime rural da divisão da propriedade, também não é muito diferente do que imperava nos tempos negros da escravidão.

Ainda há a predominância do latifúndio. Ainda reina a grande propriedade, com todo o seu séqüito aparatoso de desvantagens, hoje postas a nu, pela economia moderna, que tudo revolucionou, e por ninguém mais contestadas. É, aliás, o que ensina a visão soberba de Sud Mennucci.

Do “JORNAL DO COMMERCIO”, do Rio, em 14 de Setembro de 1930.

O sr. Sud Mennucci é um dos espíritos mais esclarecidos em questões de educação no nosso meio, e tem tomado na última campanha sobre este problema básico da nossa vida nacional uma participação constante e eficiente.

É um autor que escreve sentindo profundamente o assunto que ele versa, pois vive nele, percebendo, na prática diária do ensino, todas as necessidades, todas as falhas, todos os defeitos da organização atual.

Conhecedor da questão como técnico, não faz obra puramente retórica, em que o tema principal é censurar, atacar e criticar. Ele sabe comparar o sistema antigo com o conceito moderno da educação e tanto justifica a escola antiga, como defende a escola nova, porque ambas decorrem do mesmo conceito: o sistema educativo, em vigor numa época determinada, é fruto e reflexo da organização do trabalho da sociedade a que serve.

Não se pode, pois, separar a questão do ensino das condições de trabalho dominantes no momento. Assim, estuda o autor o que era a velha escola e como seus métodos correspondiam à organização social da época, em que predominava a influência da família na formação da criança, terminada na experiência longa e completa da oficina. Hoje, desapareceram esses dois apoios — a família e a oficina. A mulher, com os direitos que conquistou, passou a ser uma concorrente do homem e as condições de vida levaram-na a procurar trabalho fora de casa, deixando cada vez mais os filhos despojados da velha influência familiar na sua educação; par outro lado, o desenvolvimento das grandes indústrias, com a aplicação de máquinas aperfeiçoadas e repartição excessiva das tarefas, tirou à oficina o seu caráter de escola profissional, passando cada operário a fazer um trabalho simples, monótono e mecânico. Desaparecendo esses dois fatores de tanta influência na obra da escola antiga, não podia ela mais cumprir seu objetivo, que era outrora, como é hoje, o de “socializar a criança”, isto é, prepará-la para viver no meio em que tem de agir e se desenvolver.

É, assim, estudando o problema objetivamente, com uma clara noção das coisas, perfeito conhecimento do nosso meio, que o sr. Sud Mennucci encara, em três conferências, realizadas em Junho último, o problema urgente e nacional da educação. Depois de estudar a crise universal da educação, mostrando a transformação que sofreu o mundo, tornando o velho sistema incapaz de realizar os objetivos da escola, trata da crise nacional, encarando-a em todos os seus aspectos, abordando a questão da escola brasileira, sempre com uma farta messe de fatos observados, vendo o problema com a clareza objetiva de quem pode doutrinar porque tem larga experiência no aplicar.

É um trabalho bem feito, fortemente raciocinado, excelente contribuição à tese proposta pelo Congresso Nacional de Educação, a realizar-se em Recife, sobre a formação dos professores rurais e sua fixação no meio em que têm de exercitar sua ação.

Para esse fim, aborda o sr. Sud Mennucci as questões ligadas ao problema da nossa educação, que mais rápida solução estão exigindo e ressalta os erros e efeitos de reformas feitas sob o influxo de doutrinas bem arquitetadas, mas falazes, e traz a contribuição valiosa de seu conhecimento e prática dos assuntos de ensino. Fez, assim, um excelente livro, de grande oportunidade no momento em que estes assuntos estão atraindo a atenção de todas as classes esclarecidas do Brasil”.

Do “DIÁRIO NACIONAL”, de São Paulo, em 28 de agosto de 1930.

“O sr. Sud Mennucci, que às suas qualidades de crítico literário alia as de pedagogista, acaba de reunir em volume as conferências que pronunciou recentemente sobre “A crise brasileira de educação”. São duzentas páginas que merecem leitura não apenas de parte dos que mourejam nas lides do magistério, mas daqueles que têm responsabilidades no governo e na orientação da coletividade. Não é dissertação pedantesca, em que procure o autor fazer praça de erudição livresca, sestro de muito pretenso sociologista. Muito menos, arenga com pretensões de literatura como muita que por aí têm aparecido e que no final das contas, nada mais são do que páginas muito bem penteadinhas, mas longe, muito longe de exprimirem a realidade que julgaram tais escribas objetivar.

Pragmatista, acostumado a jogar com os fatos, sempre guiado pelas lições que colhe nos livros, mas procurando corrigi-las ou ampliá-las pela observação do meio ambiente, apresenta-se capacitado para dar ao leitor o panorama exato da realidade brasileira em matéria de educação.

E o faz sem ambages, escalpelando impiedosamente as mazelas do nosso programa educativo. É um verdadeiro libelo, que convence aos mais otimistas, mesmo àqueles que se consagram a deitar elogios à obra educativa que ai ostentamos, notável por sem dúvida à primeira vista, mas iniciada sob bases falsíssimas, como no-lo mostra.

“Crise de caráter, crise de ensino, crise desintegradora, tudo são reflexos de um fenômeno só: a crise de escola primária”. Estas palavras de Calógeras, antepostas ao trabalho do autor, bem lhe resumem a obra, cuja primeira parte é um retrospecto do problema universal de educação, após o que passa o autor a colocar nos seus devidos termos o problema brasileiro. Generalizamos apressadamente — prova-o de sobejo. Premissas erradas não poderiam levar-nos senão a erro maior. E foi o que aconteceu. Extinta a escravatura, verificamos pávidos que “havíamos desonrado a única forma de energia verdadeiramente nobre do trabalho, a energia humana. E encontrávamo-nos, de repente, sem preparação prévia, com um déficit tremendo: faltava-nos um conceito mais alto e mais amplo da superioridade do trabalho e ignorávamos, por completo, a profunda ação educativa que ele exerce sobre as massas”. Era preciso, pois, reabilitar o trabalho, principalmente o agrícola. As profissões urbanas doiravam-se de prestígio, enquanto a outra, a única verdadeiramente nobre, se cobria de baldões.

Tarefa primacial, não n'a executamos, porém. Nossas escolas, nossa legislação, nossos empreendimentos todos favorecem a cidade, esquecendo a zona rural, relegada a plano secundário. Resultado: o fascínio do urbanismo.

Como remediar o mal?

Mostra-o Sud Mennucci, com profunda acuidade, no capítulo sobre “A escola brasileira”, para, ao depois, positivar a maneira como se deve conquistar o meio físico, parte essa em que se revela profundo conhecedor das necessidades do nosso país.

Livro, pois, como dissemos, que deve ser lido e meditado por professores, magistrados, legisladores, governantes, por todos os estudiosos, enfim. E com ele, o nosso ilustre colega de imprensa se firma à vanguarda dos nossos pedagogistas, ao lado de uns poucos que fazem honra à nossa cultura. Nenhum destes, porém, não há mal em dizê-lo, conseguiu tão nítida visão do problema. E por muito simples motivo: ele foi professor rural, foi professor de cidade, foi professor de cursos adiantados, passou a inspetor escolar, a delegado regional de ensino, de sorte que conheceu o problema sob todos as aspectos. E a sua observação, lastreada da cultura que o tornou um dos nossos mais autorizados publicistas, não podia resultar senão nessa obra, que reputamos notável”


 

Notas

(1) Veja, no fim do volume, a conferência “O ensino particular e o racionalismo”.

(2) Veja, no fim do volume, a conferência “A Guerra à zona rural”.

(3) V. Coaracy — Problemas Nacionais, pag. 90.

(4) “O calvário de uma professora”, de Doralice.

(5) Veja “Arquivos do Museu Nacional”, vol. XXX.

(6) Aqui só se fala dos caboclos nacionais, que se dedicam à agricultura rudimentar como uma espécie de ciganos agrícolas, que assentam pouso provisório, na certeza de abandonar as terras na primeira oportunidade.

Ficaria de pé, contudo, ainda o problema de encaminhar à iniciativa individual aquela outra grande massa de lavradores que trabalham no regime do colonato, como se faz nas lavouras de café.

Para estes conviria, talvez, a solução proposta, recentemente por um agricultor paulista, o sr. Valentim Lopes: o fazendeiro daria ao colono casa para morada, terras para que este as explorasse por sua própria conta, auxílios diversos, como o empréstimo de máquinas, utensílios e animais. Em troca obrigar-se-ia a cuidar dos cafezais, quando o proprietário o chamasse para efetuar as carpas e a colheita e recebendo pagamento pelas tarefas realizadas. Isso libertaria o fazendeiro de pagamentos avultados com a manutenção de um operariado nem sempre útil, e daria ao colono a oportunidade de ensaiar a sua própria iniciativa. Seria, portanto, claramente um excelente regime de transição, preparando-o à posse completa da gleba.

Infelizmente, o tentame não pode ser empregado em larga escala, pelo menos em São Paulo. Em várias regiões do Estado, são raras as fazendas que possuem terras disponíveis.

(7) Já se cuidou, no Brasil, muito mais empenhadamente do que hoje, de fomentar esse processo de subdivisão da terra. Mas enquanto nós o vamos esquecendo, os nossos vizinhos o incentivam até para incorporar os índios ao trabalho nacional. Esta notícia, transmitida pelos jornais, merece alguns minutos de atenção:

“Na fazenda de Pauranga, província de Castrovirreyna, no Peru, será brevemente organizada uma colônia agrícola, de que participarão 2.000 índios, sendo cada um deles dono de uma boa parcela de terreno. A fazenda Pauranga é uma das cinco grandes propriedades rurais, adquiridas pelo governo peruano, com o propósito de instalar os índios em pequenos núcleos, mediante o pagamento de prestações regulares. Não só terão os índios a oportunidade de comprar facilmente as suas propriedades, como lhes será ensinado o meio mais prático e conveniente de cultivar a terra.

O governo peruano já construiu estradas de rodagem, que facilitarão o acesso dos pontos mais afastados da fazenda, cuja extensão é de 116.295 hectares, aos mercados consumidores”.

Isto não vem para lembrar se imite a prática a favor dos índios, que, no Brasil, não constituem propriamente um problema, desde que não chegam, pelo cálculo do cel. Alipio Bandeira, autoridade no assunto, a meio milhão. Mas vem para recordar que algo de parecido poderia ser tentado para outros indígenas... não selvagens. E o momento seria propicio, dada a atual desvalorização das terras.

(8) É uma felicidade para os habitantes, na generalidade dos casos, que o professor não resida em o núcleo rural. A sua propaganda se exerce com muito menor virulência porque permanece muito menos tempo entre os seus alunos e porque a sua antipatia é atenuada pelo próprio fato de não ser obrigado a conviver com a gente que não entende.

(9) Abra-se uma exceção à corrente de escritores didáticos que perceberam o absurdo dessa leitura e aponte-se o nome de Tales de Andrade, o autor da admirável “Saudade”, como o daquele que encabeçou a reação, em São Paulo. Atrás vieram Rodolfo von Ihering, com “As férias no Pontal”; F. Faria Neto, com o “Coração Brasileiro”; Túlio Espínola, com “Campos e Arrebóis”.

(10) Lembraram-me, durante as conferências, a ação do serviço militar, que também concorre para chamar a gente do campo às cidades. De regra, o camponês sorteado e convocado às armas, não volta mais para o seu meio de origem. A observação é exata, mas disso não cabe a culpa ao serviço militar, e, sim, à obra educativa, que não soube fixar os alunos ao ambiente em que nasceram.

(11) Não quis, na conferência, fazer a alusão, mas, todos percebem a influência decisiva que teria, na tarefa educativa, como a imagino, o casal de professores. Permitiria, antes de tudo, a divisão das funções: a mulher seria, de preferência, a enfermeira; o homem, o orientador da labuta agrícola. E ambos dariam, com o exemplo de seu casal, uma lição duradoura e perene de organização doméstica.

(12) Leia “As Fontes da Vida no Brasil”, de Alberto Torres.

(13) Realizou-se no Rio de Janeiro em dezembro de 1931.

(14) Toda a vez que me referi à posse da terra, é evidente que só a compreendia do ponto de vista da produção. Facilitar a posse pura e simples seria apenas mudar os proprietários. Logo, posse da terra queria dizer: facilitar o domínio, uso e gozo, ou, mais claro, aquisição da propriedade, máquinas e utensílios, numerário ou crédito até a primeira colheita.

(15) Era presidente do Chile, na época, o sr. Alessandri, descendente de italianos.

(16) É essa uma frase que esteve invariavelmente, em todos os meus trabalhos sobre a reforma do ensino rural, de 1930, para cá, a pingar-me dos lábios, mas que um compreensível pudor de brasileiro reteve sempre em minha boca. Doía-me lançá-la... e esperava que os meus patrícios me entendessem.

Hoje é impossível que eu a guarde comigo, diante da teimosia dos responsáveis em não querer nem mesmo estudar o problema.

(17) A lei de Erwin Bauer já era uma verdade reconhecida na economia política. É a chamada “lei de Gresham”, pela qual quando num mesmo mercado, concorrem livremente duas moedas, uma boa e outra má, esta expulsa a primeira.

A manutenção de sanidade monetária depende, pois, de fatores que encontram o seu símile nos fenômenos biológicos.


 

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