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A SOMBRA DE JÚLIO FRANK

Afonso Schmidt

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A Sombra de Júlio Frank (1942)
Afonso Schmidt (29-06-1890 – 3-04-1964)

Fonte digital
Digitalização da edição em papel
Editora Anchieta Ltda. - 1942

Afonso Schmidt e sua palheta azul
©2008 Rosani Abou Adal

Edição eBooksBrasil

© 2008 Afonso Schmidt

USO NÃO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL

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NOTA DE COPYRIGHT

Esta edição é feita em “fair use”, em benefício de um direito moral do autor infelizmente não contemplado pela Lei 9.610 de 19/02/1998 [Lei dos Direitos Autorais].

Ela não menciona, entre os Direitos Morais do Autor (Artigo 24) o mais importante dentre eles, como qualquer autor sabe: o de ter sua obra divulgada, em vida e, principalmente, após sua morte.

Caso haja, nesta publicação, a violação de qualquer direito patrimonial (o que não acreditamos, visto a obra não ter sido reeditada recentemente e a presente edição estar sendo disponibilizada com cessão pública, que aqui fica declarada, de todo e qualquer direito patrimonial sobre ela), os detentores legítimos de tal direito, caso se sentiam lesados, estão cordialmente convidados a enviar e-mail para livros@ebooksbrasil.org para que o presente título seja prontamente retirado da apreciação pública e possamos informar aos apreciadores da obra de Afonso Schmidt onde poderão adquiri-lo.

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Índice

Afonso Schmidt e sua palheta azul — Rosani Abou Adal
A Sombra de Júlio Frank 
I — Carlos Frederico e Carlota Frederica
II — A Infância de Frank
III — Estudante da Pá Virada
IV — Marinheiro de Primeira Viagem
V — Até as Pedras se Encontram
VI — Na Alta Roda
VII — Um Grito de Angústia
VIII — A Caminho do Brasil
IX — A Vida de Bordo
X — Ao Deus Dará
XI — O Caminho de São Paulo
XII — Em Ipanema
XIII — A Venda da Cobra
XIV — A Escolinha
XV — A Cidade da Garoa e das Mantilhas
XVI — O Segredo dos Estudantes
XVII — Professor de História
XVIII — Os Sinos
XIX — Morte de Frank
XX — Sob as Arcadas

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Afonso Schmidt e sua palheta azul
Crônica de Rosani Abou Adal

 

Não tive a satisfação e o privilégio de conhecer o escritor, intelectual, teatrólogo e jornalista Afonso Schmidt, portanto, não posso dar meu depoimento sobre sua pessoa. Dizem sê-lo tímido e que só começava a falar após o quarto cigarro. Mas creio que um escritor dotado de tanta sensibilidade em suas criações deve ter sido um homem de notáveis qualidades.

Afonso Schmidt nasceu em Cubatão, Estado de São Paulo, a 29 de junho de 1890. Aos 74 anos, na capital paulista, aos três de abril de 1964, partiu com as folhas secas do outono para o outro lado da vida, rumo ao desconhecido.

Iniciou suas primeiras letras na cidade natal e depois veio para São Paulo estudar no Grupo Escolar do Brás e no Grupo Escolar do Oriente. Brás e Bresser foram os bairros da cidade de São Paulo aonde residiu grande parte de sua vida.

Iniciou na imprensa aos 12 anos e montou uma tipografia artesanal para imprimir seu primeiro jornal intitulado de O Janota. Em 1905 ingressou na Faculdade de Direito e abandonou os estudos porque o repórter e o escritor falavam mais alto em sua verve. Com Oduvaldo Viana e outros editou o semanário Zig Zag. Depois fundou e dirigiu no Rio de Janeiro a Voz do Povo, matutino da Federação Operária.

Colaborou em vários jornais da capital e do interior do Estado de São Paulo. Foi redator do Jornal do Comércio de São Paulo, Diário de Santos, A Tribuna, de Santos, Folha da Manhã e de O Estado de São Paulo onde trabalhou por muito tempo publicando grande parte da sua obra literária.

Schmidt fez duas viagens à Europa. Na primeira, em 1907, conheceu as Canárias, Vigo, Lisboa e depois Paris. Foi com poucos recursos, passou por fome e miséria, e sua experiência foi narrada no romance A Primeira Viagem, editado em 1947. A segunda feita nas mesmas condições da anterior foi em 1913, trabalhando em Milão até 1914 e ao ser transferido para a França ficou bloqueado no alto do Mont Cénis e graças ao apelo do Príncipe Dom Luís de Bragança conseguiu sair dali e retornou ao Brasil antes de estourar a Primeira Grande Guerra em 1914. Esta sua passagem é contada no livro Bom Tempo.

Iniciou na literatura em 1904 com o folheto de versos Lírios Roxos. Em 1905 estampou Miniaturas. A primeira obra, editada por sua conta, foi o livro de poemas Janelas Abertas, em 1911. Até os 30 anos de idade não teve editor e foi ele quem custeou os seus livros. Nesta época era comum os poetas e romancistas editarem seus livros e muitos se encarregavam de vendê-los. Brutalidade, livro de contos, foi o primeiro publicado pela Star, de propriedade do poeta Paulo Gonçalves, em 1922. O livro surpreendeu as expectativas e vendeu mais que o esperado.

Outra obra que obteve uma boa vendagem foi O Dragão e as Virgens, lançado em 1925. Schmidt se pronunciou com ironia a respeito do sucesso de vendas dessa obra, disse o seguinte: “Por uma série de circunstâncias imprevistas, apareceu nos mostruários quase um ano depois da crítica ter se pronunciado. Esse livro foi muito vendido: os açougues do Brás compraram-no sem regatear, para embrulhar filés e alcatras...”

Destaco uma passagem curiosa na vida literária de Schmidt sobre um livro clandestino editado pela Hélio, em Lisboa, em 1948. O livro foi Os Melhores Contos de Afonso Schmidt. Mas foi em 1951 que tomou conhecimento do fato quando um leitor lhe telefonou pedindo autógrafo do mesmo. Depois o leitor ofereceu-o ao Schmidt com a seguinte dedicatória: “ Ao autor agradecido oferece o leitor admirado.” O fato foi muito comentado pela imprensa.

Outro episódio que merece atenção é o romance histórico A Sombra de Júlio Frank, editado em 1926, que só foi colocado à venda na segunda edição.

Foi agraciado com vários prêmios literários e para não me estender não citarei todos. Em 1924 publicou Os Impunes, contos, que foi premiado por La Novela Semanal, de Buenos Aires. Neste mesmo ano recebeu três prêmios de uma só vez da Academia Brasileira de Letras, com os livros A Marcha, romance, O Tesouro de Cananéia, contos, e com O irmão sem nome, trabalho inédito que foi publicado com o título de Reino do Céu. A novela O Menino Felipe, em 1948, venceu em primeiro lugar o concurso da revista O Cruzeiro. Foi detentor do Prêmio Intelectual do Ano, de 1963, promovido pela União Brasileira de Escritores e patrocinado pelo jornal A Folha de S. Paulo, e recebeu a estatueta Juca Pato de San Tiago Dantas, detentor do prêmio no ano anterior.

Iniciou sua carreira como poeta, mas depois enveredou para a prosa e deixou uma vasta obra com muitos livros traduzidos. Ele foi um dos escritores brasileiros mais lidos no exterior. Schmidt afirmou que só escreveu versos enquanto sua vida despreocupada de moço permitiu.

Atuou em várias gestões de diretorias da União Brasileira de Escritores, foi membro da Academia Paulista de Letras, cadeira n.º 10, em substituição a Gustavo Teixeira.

Schmidt foi muito elogiado pela crítica e são muitas as referências sobre sua obra. Destaco as seguintes:

“Enquanto fez poesia Afonso Schmidt não só cultivou o parnasianismo dominante, como ressuscitou a nota social que dormia nos livros desde o advento desse mesmo parnasianismo, embora fosse muito ativa no decênio de 1870 e no início de 1880. Sua contribuição mais séria ao neoparnasianismo foi a retomada da poesia social.” Péricles Eugênio da Silva Ramos.

Sobre a obra O Canudo, novela baseada na biografia de Raul Pompéia, Herculano Pires afirmou que “Tanto mais que Schmidt, além da afinidade literária com o biografado, conta a vantagem de ser o romancista de São Paulo e o historiador que todos conhecem, dotado de todos os recursos para oferecer-nos, como realmente nos oferece em O Canudo, uma perfeita evocação da cidade que Pompéia conheceu, e na qual viveu os anos curtos e agitados de estudante de direito, abolicionista e republicano.”

“Mas... encontrar, como leitor, tal ficcionista, é uma coisa, e boa. Basta lê-lo, e sentir-lhe a personalidade e acompanhar a delicada urdidura das suas histórias, e aprender humanidade, e sentir emoção; e fechar enfim o livro, lida a última página, com todas as suas personagens e todos os seus ambientes nos cercando, não saindo da nossa vida espiritual”. – Antônio D’Ella.

Em nota explicativa da edição Tempo das Águas, Raimundo de Menezes, afirma que “Estes três belos episódios que ides ler, leitores amigos do Clube do Livro. Melhor recomendação não poderão ter: trazem a chancela de Afonso Schmidt, consagrado por algumas dezenas de obras de primeira grandeza e por quatro prêmios da Academia Brasileira de Letras. Esse é o autor que já vos acostumastes a admirar, há tantos anos.”

“Tem Afonso Schmidt o privilégio, que redobra a sua invulgar bagagem literária, de trabalhar pela dignificação do ser humano. A força de sua narrativa e o segredo de sua prosa estão a serviço desse objetivo superior e nobre.” – Mário Graciotti.

“Em verdade, através do conjunto de trabalhos literários desse autêntico ficcionista, que tanto sabe dar sangue e nervos a criaturas imaginárias, como sabe reviver os mortos em romances de fundo histórico, a constante presença que avulta e se impõe, sempre sugestiva e complexa, evocativa e agitada, hoje ou outrora, é a da Paulicéia da ternura e das lembranças de Afonso Schmidt.” – Maria de Lourdes Teixeira.

Afonso Schmidt, um dos maiores escritores deste século, não deveria jamais cair no esquecimento. No entanto existem poucas citações sobre sua obra em livros didáticos embora tenha sido importante sua presença na literatura brasileira. Sua obra tanto na área da poesia, contos ou romance é marcada pelo seu estilo rico em linguagens, metalinguagens, plasticidade poética, conciso, preciso e dotado de um ritmo cadenciado. Com total domínio da língua portuguesa narrou a cidade de São Paulo com perfeição e lapidou seus personagens de realismo. Schmidt é um escritor que expõe suas idéias de forma limpa e clara sem ser redundante ou repetitivo mesmo que o faça para dar ênfase. As imagens que ele descreve são tão realistas que levam o leitor a viajar e entrar na estória como se fosse mais um personagem. Tornam-se cúmplices da narração e se envolvem tanto que é impossível ler apenas um livro. É impossível parar de ler porque a leitura dá prazer e as palavras entram dentro da gente e alcançam o nosso espírito.

Concordo com Péricles Eugênio da Silva Ramos quanto a sua obra poética ser parnasiana e neoparnasiana, mas os seus romances, contos e novelas são modernistas e realistas.

Devido a importância de sua obra na história da literatura brasileira, deveria ela ser reeditada e indicada para leitura complementar nas escolas e fazer parte dos exames de vestibular. É inaceitável o fato de seus livros serem encontrados apenas em sebos.

Finalizo com as palavras de Schmidt: “Já se observou que na minha palheta há muito azul. Vá lá... Deve ser o coração do antigo poeta lírico que, tendo deixado de cantar, dissolveu-se nestas páginas com a fécula da anileira nas poças de chuva que se formam ao seu redor.”

Então vamos usar as suas palhetas e fazer com que o azul do seu coração venha se expandir em todos os cantos deste Brasil. Vamos nos banhar nas poças de chuvas para resgatar sua obra. Vamos por mais um pouco de azul para despertar a memória literária. É nossa obrigação pintar de azul todos os brasileiros para não deixar que a obra de Afonso Schmidt fique restrita apenas a intelectuais.

 

Rosani Abou Adal é escritora, jornalista, membro da Academia Piracicabana de Letras e da Academia de Letras de Campos do Jordão. Editora do jornal Linguagem Viva — www.linguagemviva.com.br.

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Afonso Schmidt

A SOMBRA
DE
JÚLIO FRANK

1808-1941

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Desde 1827, a Faculdade de Direito dá uma nota característica ao hoje largo de São Francisco. Instalada no mosteiro dos franciscanos, com salas, corredores e arcadas conventuais, ouvindo por matinas e vésperas o badalar dos sinos, sentindo o cheiro adocicado do incenso queimado nas caçoulas, embalando-se na melopéia das ladainhas, seria natural que a casa de estudos se misturasse um pouco com a das orações e sobre ambas pairasse aquela indizível tristeza que nimba os claustros.

No entanto, um século de experiência demonstrou que tal infiltração não é possível: os estudantes ainda não viraram franciscanos. Do outro lado, embora escasseiem documentos, presume-se que houve a mesma impermeabilidade, pois a crônica da última centúria não regista que os frades, vizinhos dos estudantes, tivessem sido tomados de bruscos arroubos juvenis, desses que outrora se manifestavam por serenatas nas ladeiras ermas e hoje espoucam algumas vezes em chopadas ou competições esportivas. Nada disso, que se saiba, veio obscurecer a serenidade dos venerandos religiosos.

Os anos foram passando. À volta do mosteiro, São Paulo cresceu, atingiu o primeiro milhão de habitantes, a vida acelerou prodigiosamente o seu ritmo. E, no coração da cidade de ferro e cimento armado, o casarão de taipa guarda a sua saudade e o seu mistério. Sim, o seu mistério.

Muitos estudantes que transitaram pela Faculdade, de 1841 para cá, trouxeram no âmago de si mesmos o espinho de uma curiosidade, uma pergunta a que só agora se começou a responder, com palavras ainda bem vagas. Refiro-me àquele túmulo que lá se encontra — como escreve Spencer Vampré — “no claustro mais íntimo da Faculdade” e que foi conservado com carinho nas reformas por que está passando a velha casa. Nesse monumento há uma inscrição com o nome de quem ali repousa, que é Júlio Frank, dando-o como nascido em Gotha no ano de 1809.

Como se averiguou mais tarde, há engano nessa lápide: Júlio Frank nasceu não em 1809, como lá se acha escrito em algarismos romanos, mas em 1808, como consta dos assentamentos da igreja em que foi batizado. Muitos sabem tratar-se de um erudito estrangeiro que durante anos desempenhou o cargo de professor de História no Curso Anexo, aceito apenas pelo seu grande saber, e que um dia saiu de São Paulo pela morte, como havia entrado pela estrada de Sorocaba, sem apresentar papéis nem falar de si. Na terra escura desse mistério floresceu, com o correr do tempo, um canteiro de lendas cujo perfume chegou até nossos dias.

Quando alguém procura dar idéia de que sabe guardar segredo, diz: “Eu sou um túmulo”. Pois aquele túmulo à sombra das arcadas guardou o seu mistério durante quase um século. As últimas testemunhas falaram de Júlio Frank como de um homem singular, aparecido em São Paulo ali por 1830, calando avaramente tudo quanto se referia ao seu passado.

Espicaçadas pelo mistério, ou mesmo com o nobre intuito de fazer luz sobre aquela figura que brilhou no São Paulo de outras eras, algumas pessoas têm procurado saber já não quem ali se encontra enterrado e porque ali e não no adro de uma igreja, como era costume do tempo, mas quem de fato teria sido esse fulgurante espírito que, inesperadamente, aqui apareceu, viveu no meio de estudantes, chegou a ser professor apesar da vida irregularíssima que levava, deslumbrou os contemporâneos com o saber e, sem deixar maior vestígio da sua passagem, extinguiu-se aos 33 anos de idade, em razão de uma conduta que valia por lento suicídio.

Apesar de tudo, seu nome já se ia alastrando pelos meios intelectuais do país e, se não fora a morte prematura, grande relevo poderia ter alcançado. Não foi sem justiça, portanto, que o dr. Tomaz José Pinto Serqueira, sócio efetivo do Instituto Histórico do Rio de Janeiro, lhe fez em sessão solene, poucos dias depois de sua morte, este elogio fúnebre:

“O nome que agora me resta é o de um mancebo morto na flor dos anos, mas cuja breve passagem por este mundo deixou para sempre recordações saudosas; quero falar do sr. Júlio Frank. Quem era ele? Eu e os que no Brasil o conheceram — o ignoramos. Era esse o seu verdadeiro nome? Cuidamos que não. Que terra o viu nascer? Parece que a Alemanha, mas não se sabe que parte dessa vasta região. A que família pertencia? Ignora-se. Que motivos o trouxeram ao Brasil? Ainda a mesma obscuridade. Sabemos apenas que chegou ao Rio de Janeiro sem o mais pequeno recurso; e que o primeiro carinho que recebeu nesta terra hospitaleira foi uma ordem de prisão e sua primeira morada a fortaleza da Lage; e isso por uma queixa que dele deu o comandante do navio que o havia conduzido. Também Epiteto encontrou um senhor que lhe quebrou as pernas. Tendo obtido sua soltura, foi servir em uma estalagem. Quem diria, srs., ao ver esse mancebo reduzido a tal penúria, que nele se escondia um homem do mais raro merecimento? Que conhecia a fundo as línguas vivas da Europa e mesmo o latim e o grego; que era hábil geômetra e metafísico, que não era hóspede nos princípios de Direito Público e nos do Romano e que tinha perfeito conhecimento da História antiga e moderna. Pois tudo isso era, e o homem que tudo isso sabia era caixeiro de uma estalagem!”

O elogio do sócio do Instituto Histórico do Rio de Janeiro prossegue com o mesmo entusiasmo. Reproduzindo o trecho acima, só o fizemos para demonstrar quanto Júlio Frank era admirado e ignorado ainda no ano em que morreu.

Quase um século depois, em 1935, um jornalista carioca escreveu em artigo de fundo, e assinou, que: “no saguão do antigo edifício da Faculdade de Direito de São Paulo existe um único túmulo, que é o do judeu alemão, professor contratado de História, organizador da “Burschenschaft” no Brasil. Durante a revolução de 1930, esse túmulo foi misteriosamente violado, ao que dizem, para retirarem de lá os primitivos estatutos e atas de organização, a fim de que tais documentos ultra-secretos escapassem ao conhecimento do público”.

Essa ignorância da vida de Frank e das coisas que a ele se referem originou deliciosas lendas; elas só por si dariam mais do que uma novela — dariam um poema.

Não tendo passado pela Faculdade de Direito, como por nenhuma outra, só me apercebi da existência dessa figura do passado através da tradição oral que transpôs os muros do claustro e ainda hoje exaspera muita fantasia de voo fácil. A princípio essa história não despertou em mim maior interesse que a da famosa Dama Branca que, noite velha, subia pelo chão empedrado da rua da Casa Santa e cujo aparecimento, segundo as crônicas de antanho, era nefasto para os estudantes, ou ainda que a superstição registrada e confirmada por Álvares de Azevedo de que, todos os anos, a Faculdade de Direito pagava à morte o tributo de um de seus mais esperançosos quintanistas. Foi agora, depois de criada a Universidade, neste período de reformas por que está passando o casarão do largo do Capim, que eu deveras me senti atraído pelo túmulo e pelo passado do sábio, cujos ossos, segundo parece, ali repousam.

Como tenho nas veias mais de uma gota de antigo sangue alemão, as características da raça agiram sobre mim e fui levado a procurar e conhecer as abnegadas pessoas que, mediante aturado esforço, colheram aqui e ali a tradição oral que nos chega das brumas, colecionaram vagas referências da época, ou ainda recorreram a informações e arquivos da própria Alemanha e conseguiram reunir em artigos de jornais e revistas preciosos dados sobre a misteriosa personalidade.

Tais achegas são pouca coisa para uma obra de biografia e crítica... mas são até demais para esta novela, ou melhor, esta reportagem histórica, classifique-a o leitor como melhor lhe aprouver. Com um ou outro nome, o presente trabalho virá fixar, embora pobremente acabado, uma das mais lindas páginas da tradição estudantina de São Paulo.

A matéria prima com que urdi esta prosa foi pedida a uns e outros, entre os quais quero citar os escritores Frederico Sommer e Alexandre Haas, a quem devemos as melhores e mais completas informações históricas sobre o assunto, e ainda outros, cujos nomes escaparam ao interesse deste trabalho. Todos foram de encantadora gentileza diante da curiosidade abelhuda do repórter; abriram-se e deram quanto em si cabia. Por isso, o ouro que aqui se encontrar não é meu; meu será apenas o vil estanho empregado para reunir e dar forma ao alheio material. Meu, apenas, o fio de sonho em que enfiei as camândulas do peditório. A própria suposição de uma grada estirpe ao protagonista não é minha, é da lenda, e já foi por vezes escrita, negada, discutida.

Esclarecido que não me propus escrever peça histórica digna de ser tomada como tal, porque trabalho organizado e de paciência não é do meu feitio, vou argumentar por hipótese, ou melhor, por exclusão; quem dispuser de melhores elementos, que me corrija; antecipo aos insigníssimos colaboradores a minha gratidão.

Dito isto, figuro-me no florido alpendre de uma daquelas nossas vivendas de outros tempos, com grandes bolas de vidro, coloridas, a brilharem no teto; reúno os escassos leitores e principio assim a narrativa:

Foi em Gotha, no palácio ducal, ali por 1808...

* * *


 

I
CARLOS FREDERICO E CARLOTA FREDERICA

 

Imagina-se facilmente o que seria Gotha, capital do ducado, nos primeiros anos do século XIX. Essa cidadezinha, mais conhecida pelas obras de seus filhos do que pela importância econômica, situada nas margens do Leina, mesmo no sopé das elevações cobertas pela floresta da Turíngia, ainda não contava muito mais de 15.000 habitantes.

Apesar disso, já mantinha bancos e escolas de comércio que lhe davam uma certa influência. Ilustravam-na também a bonita catedral do século XVI, o castelo de Friedinstein no alto do morro, o Friedrichstal, o museu de numismática, a biblioteca da corte, que era uma das mais ricas da Alemanha, e floridos jardins à beira da água, onde estudantes e costureiras deixavam as iniciais gravadas a canivete na casca dos velhos troncos de tília.

Todo esse quadro era dominado pelo grave castelo ducal, à sombra de cujas torres ameiadas se extinguia a dinastia Ernestina de landgraves louros, de cabeça quadrada, com finos bigodes merovíngios que desciam pelos cantos da boca e vinham enrolar-se à altura do queixo. No passado, tinham sido exaltados amigos da caça e, nas primaveras de antanho, quando as suas cavalgadas atravessavam as poucas ruas da cidade, na direção da floresta, tudo se alarmava ao trote das montarias, ao soar das trompas, à festiva algazarra das matilhas. À noite, depois daquelas famosas correrias, ceiava-se no castelo.

As imensas salas de teto esculpido, alumiadas a candelabros de cem velas das cores mais delicadas, onde se viam afrescos de caça nas paredes nuas e galharias de veados no alto das portas, assistiam a compridas reuniões que iam pela noite a dentro.

O landgrave daqueles tempos, grisalho e taciturno, mais por praxe de séculos do que certamente pelo gosto de tais recepções, sentava-se no lugar de honra, rodeado pelos barões de seus domínios. Enquanto os criados iam alinhando as peças a mil molhos, saturados de especiarias, e reenchendo os cangirões de porcelana com figuras madrigalescas no bojo, aquela gente comia, contava anedotas, cantava em coro e fumava grandes cachimbadas. Quando os galos amiudavam, os convivas se punham a caminho, pela noite, tropeçando nas negruscas escadinhas de Scholossberg, em demanda de suas propriedades.

Mas isso tinha ficado muito distante, Ernesto II vivia num tempo de insegurança e de transformações; a revolta havia acendido várias fogueiras na Europa e os reinos estremeciam ao trote dos cavalos de guerra. Era um bom homem, amigo das doçuras do lar, da velha esposa e do seu povo. Tinha, porém, alguns fracos, como toda a gente de carne e osso. A menina de seus olhos era a biblioteca do castelo, uma das maiores do tempo, e, o que não era comum, interessava-se pelos livros e pelo que eles diziam.

Havia um recanto no amplo salão da biblioteca, com mesas negras de pés torneados, onde se alinhavam alfarrábios encadernados em couro. Eram os filósofos proibidos. Ali se guardavam, entre manuscritos anônimos desentranhados de poentos processos de magia, o Evangelho dos 12 Apóstolos, a correspondência do português Martines de Pasqualis e de outros sujeitos de má nota.

Essas obras envelheciam sob os cuidados do mestre Luiz Júlio Herrlau. Criatura comum e apagada, o chefe dos encadernadores da corte, no dizer de muitos, só contava um mérito: era pai de Carlota Frederica, trigueira de olhos tão azuis que se diria liricamente recortados de um céu de primavera.

Ele, a mulher e a filha moravam numa casa situada nos confins do parque, onde em outros tempos se alojava o superintendente das florestas do castelo, cargo abolido anos antes.

Construção de um andar, tinha a parte térrea soalhada por grandes ladrilhos vermelhos e loja repartida em duas alcovas alumiadas por janelas baixas, que pareciam estar deitadas. O teto era de ardósia cor de chumbo e bem ao meio, oval, abria-se a locarna de uma trapeira.

Estavam num estado próximo da ruína; as árvores de em redor tinham crescido a ponto de escondê-la. Embora dentro do parque, era servida por um portão exterior, seguido de velho caminho que serpeava pelo pendor do morro e ia perder-se próximo do povoado, numas escadinhas cobertas de arcaria de pedra. Era a Klenie Erfuter Gasse.

Carlota Frederica teve diversos pretendentes, todos dispostos a trabalhar para a sua felicidade. Mas era u’a moça difícil. A vizinhança do castelo lhe havia dado fumaças de grande dama. Foi nesse pé que ela despediu o filho do fornecedor de aspargos, assim como o usurário que perdera as estribeiras ao vender-lhe um dia as argolas de ouro e, por fim, o Benner, sacristão da igreja de Santa Margarida, um ruivo que parecia equilibrar as lunetas na ponta do nariz. Mas, afinal, ela deveria casar com alguém.

Esse feliz alguém foi Carlos Frederico Frank, o mais modesto dos encadernadores que trabalhavam sob as ordens de seu pai na biblioteca da corte. Era um moço como outro qualquer e, até certo ponto, assegurava-lhe a permanência no castelo o que era tanto de seu gosto.

Casaram-se, pois, num pálido dia de Novembro de 1808 em que o vento do outono com suas mãos invisíveis ia despindo as faias do parque e as tílias da beira da água; em que as ruas se atapetavam de folhas amarelas e nas cornijas das velhas casas as aves arripiadas piavam doloridamente. Casados, foram morar em companhia dos sogros e tudo levava a crer que os seus nomes e as suas vidas se perdessem no mar das coisas como as folhas daquelas faias, daquelas tílias...

Mas isso não se deu.

A pessoa de confiança de landgrave era o conselheiro Weishaupt. Orçava nesse tempo pelos 58 anos: tinha os cabelos grisalhos e algumas rugas na testa ampla. No entanto, ainda via o mundo com olhos limpos e claros; a boca, de corte horizontal, ainda não se tinha amolgado no rictus que tende para a caveira; o corpo parecia ágil e o traje elegante e sóbrio. Não demonstrava nenhuma idade; tinha a que lhe quisessem dar.

Sua vida era rica de estudos, de lutas, de sonhos, de profundas meditações sobre o efêmero das coisas humanas. Mas a verdade é que ele, ele próprio, se mantivera como espectador de pensamentos e emoções, confiando a luta a um outro “eu”, sempre dócil à sua vontade, e a quem ele, lá consigo, dava o nome de — combatente. Cercava-o uma espécie de atmosfera de serenidade que penetrava e adoçava homens e elementos ao seu redor.

Nasceu em Ingolstadt; ali fez os estudos, formou-se na Universidade e, três anos depois, passou a ser professor de Direito Natural e Canônico. Em 1776, dando largas a um imenso sonho de harmonia que lhe iluminava a alma, pensou em reunir os mortais numa sociedade fraternal e fundou, na Baviera, a Ordem dos Perfectibilistas, que mais tarde passou a chamar-se dos Iluminados, na qual eram recebidas pessoas de todas as categorias e confissões dentro de um programa lindo: aperfeiçoar-se moralmente, destruir em cada um o egoísmo que separa os homens. Esse movimento espiritual espalhou-se pela Europa, então mais inquieta do que nunca, pois no seu subsolo já inchava a semente daquela planta que poucos anos depois deveria abrir na França uma flor vermelha — a Grande Revolução.

Antes disso, porém, em 13 de Abril de 1784, o governo da Baviera, amedrontado talvez pelas forças que se desenvolviam na sombra, dissolveu as ordens místicas, prendendo e deportando nada menos de 2.000 dos seus filiados de todas as categorias. Foi, pois, em conseqüência dessa perseguição que, numa noite de primavera, o landgrave de Gotha, protetor de maçons e espiritualistas, viu Adão Weishaupt chegar ao seu castelo em busca de pousada e segurança. O duque, alma generosa também nimbada de grandes sonhos, não só lhe deu o pão e o teto por aquela noite de angústia, mas por toda a vida, que devia durar ainda mais de meio século.

Entre esse homem e o landgrave, numa tarde em que a neve embranquecia os telhados e as ruas, passou-se curiosa cena ao pé do fogão da biblioteca, em cuja lareira o fogo crepitava alegremente. Weishaupt estava enterrado na sua poltrona (ele tinha uma poltrona naquele lugar) e se havia abstraído nos prazeres da leitura. O duque, visivelmente inquieto, aproximou-se e sem dizer palavra, ficou a olhar as chamas que dançavam. Vendo-o ali perto, o conselheiro áulico fechou o livro, tendo o cuidado de marcar a página com uma fitinha azul, ergueu-se e foi cumprimentá-lo. Apertaram-se as mãos, quase sem dar por isso.

— Parece preocupado... Ainda há algumas horas estava de tão belo humor!

— São coisas que só a mim sucedem. Imagine o que acaba de me acontecer...

Nesse momento, Herrlau, arrastando as chinelas de cânhamo que usava sob as sapatorras para não fazer ruido nem riscar o verniz espelhante do soalho, passou por eles com uma escadinha ao ombro e dois volumes na mão. Estava na faina de sempre. O landgrave interrompeu o que ia dizer e levou o conselheiro para uma das largas janelas que olhavam para os vales e o rio. Foi o próprio duque, num gesto distraído, quem correu o reposteiro escuro. Então a paisagem se estendeu diante de seus olhos, num quadro de meias tintas. A neve que caíra durante toda a tarde havia cessado. O céu pálido se arqueava sobre a encosta onde apareciam telhados brancos e torres deformadas. Um carrilhão rezava Angelus. Em seguida, na caserna próxima ouviu-se prolongado toque de clarim. Quando cessou ali, foi repetido no outro extremo da cidade. Depois no horizonte, depois na floresta, depois no fim do mundo. As luzes começaram a acender-se no casario subjacente. Em voz baixa, a conversa continuou:

— São coisas que só a mim acontecem... Não ouviu ainda há pouco a chegada de uma carruagem? Veio de... Trouxe-me uma pesada incumbência de nossos irmãos.

— Tais incumbências são felicidade e honra.

— Bem o sei.

O landgrave parecia hesitar em prosseguir, mas o conselheiro tomou-lhe as mãos finas, nas quais sobressaiam-lhe os nós dos dedos. E o velho, tocado por aquela espontaneidade, não mais procurou disfarçar a sua angústia, exclamando:

— Mandaram-me nada menos do que uma criança que não devia nascer, mas nasceu. É de nobre estirpe e precisa ter pais, sejam eles quais forem, até o dia em que os verdadeiros possam aparecer. Como vê, não é o caso comum de entregar-se a uma família de camponeses. Os que a trouxeram aí estão. Acomodei-os até encontrar as pessoas que possam servir de pais. Mas quem? E como?

Torcia as mãos. Tais pedidos dos Mestres, que valiam por ordem, naquele tempo não eram tão raros e o landgrave ficou na história das sociedades místicas como um de seus maiores filhos. Weishaupt, por seu lado, também esteve a ponto de perder a serenidade. Foi nesse momento que Herrlau, já tendo acomodado o último livro na estante, passou por eles, pronto para sair. O landgrave teve uma súbita inspiração e chamou-o:

— Herrlau!

O encadernador perfilou-se diante do duque.

— Há quanto tempo sua filha está casada?

Herrlau fez rapidamente as contas.

— Há um mês, senhor.

O duque coçou o queixo.

— É cedo para ter um filho.

Herrlau agitou-se dentro das chinelas de cânhamo.

— Quererá ela ser mãe de uma criança nascida longe daqui, em circunstâncias fora do comum?

O mestre encadernador esteve a pique de cair fulminado. Mas o landgrave tomou-o pelo braço, familiarmente, acompanhando-o até o fim do salão. Não se sabe o que lhe disse, mas o fato é que logo depois Herrlau voltou com o genro e a filha sendo que esta última, ao regressar à casa, levava consigo um ser pequenino, róseo e manhoso, nascido não se sabe onde nem de quem, mas em cujas veias devia correr sangue azul, daqueles grandes nomes em que se havia especializado o almanaque da cidade, isto é, o Almanaque de Gotha.

Quando o pequeno no dia seguinte, uma gelada sexta-feira, foi levado à pia batismal, disseram que ele se chamava João Júlio Godofredo Luiz Frank, que havia nascido no dia 8 daquele mesmo mês de Dezembro do ano da graça de 1808, filho mais velho do encadernador Carlos Frederico Frank e de Carlota Frederica Herrlau, todos eles ao serviço da corte de Gotha. Pôs-lhe o sal na boca o arcidiácono Buddeus.

Benner, o sacristão de Santa Margarida, que havia assistido no mês anterior, com grande despeito, ao casamento de Carlos Frederico e Carlota Frederica, e que ainda não se havia reposto da tábua que pouco antes recebera, ao saber que já se tratava do batismo do primeiro filho, desconcertou-se tanto que perdeu de todo o equilíbrio das lunetas; estas saltaram da ponta do nariz para as lajes da nave e se desfizeram em estilhas. Diz a crônica que desde aquele dia o sacristão não mais usou lunetas nem tão pouco pensou em casar-se...

* * *


 

II
A INFÂNCIA DE FRANK

 

Por instância do sogro, em cujo coração simplório se misturavam sentimentos de todo gênero, Carlos Frederico consentiu em perfilhar aquela criança que, na sua opinião, deveria ser, pelo menos, um príncipe. Imaginou lá com os botões que as mais risonhas conseqüências adviriam daquele gesto: gordas comissões, cargo no governo, a consideração na corte. E, desnorteado pela ambição, começou por deixar o casebre em que vivia com os pais de Carlota, alugando a parte superior de um sobradinho em Gerbegasse n. 2, próximo aos jardins que beiravam o rio. Instalou-se o melhor que pôde e esperou.

Gotha, na primeira década do século, desabrochava. A atividade moderna agitava aquele cenário quase medievo: era o Instituto Geográfico, fundado nos fins do século anterior por Justus Perthes, com a mais completa coleção de mapas e cujas edições cartográficas abasteciam as escolas e os ministérios do mundo inteiro. O seu almanaque havia tornado universal o nome da cidade. Também já contava grandes estabelecimentos siderúrgicos, fábricas de objetos de porcelana, de brinquedos e de artefatos de couro.

De manhã e de tarde, enxames de trabalhadores, vestidos de azul e de barrete redondo, animavam as ruas, os templos, as lojas e as cervejarias. Formavam-se grupos debaixo dos toldos coloridos ou nos bancos dos jardins, debaixo das venerandas tílias.

Carlos Frederico não queria misturar-se com essa gente. Vivia da casa para a casa. Esperava grandes coisas. Mas os dias foram passando e nada de repontarem benefícios. Apenas um pequeno aumento de salários, com a justificação expressa nos assentamentos do castelo de que tal soma lhe tinha sido acrescentada em virtude de haver contraído matrimônio. Nada mais. O landgrave não alterou a atitude com que sempre o havia tratado, e que era de perfeita indiferença. A corte, tão pobre de aparatos, quase familiar, continuava a ignorá-lo.

Dentro de pouco, essas e outras decepções entraram de amargar-lhe a existência. Não foi das menos cruas a maledicência do sacristão. Benner parecia encontrar-se sempre nos lugares por onde Carlos Frederico era obrigado a passar. Um dia era no latoeiro da esquina, outro dia no largo da igreja, à porta do estanco de tabaco, ponto sabido como o quartel-general do mexerico. Sempre que o encadernador o via era numa roda de vadios, referindo misteriosamente qualquer cousa de risível que acabava por uma contagem nos dedos. Devia ser a história do nascimento de Júlio. Uns riam, outros, pelas suas costas, lançavam-lhe olhadelas de inveja; julgavam-no, certamente, metido numa dessas intrigas da corte que, amiúde, dão com o protagonista no Senado ou na cadeia. Carlos Frederico, virada a primeira esquina, parava, limpava o suor e refletia. Afinal, aquele lorpa bem podia estar inocente; ele é que andava com a pulga atrás da orelha e, concluía lá consigo: quem anda aos porcos...

Depois, a inferná-lo ainda mais, vieram as dívidas, visto que seus ganhos eram parcos e em rigor mal dariam para o sustento do casal sob o teto dos sogros; estavam longe de permitir casa própria e uns vestidos de sarja verde-malva para Carlota Frederica que, de fantasia leve, se tinha na conta de mãe de príncipe. E para completar o rol dos padecimentos, o pequerrucho começava a crescer, a precisar de sapatinhos, de toucas, de trajes próprios para passear de tarde nas umbrosas vielas do jardim.

Por essa altura o encadernador já se supunha roubado e se não fora o temor de que o pusessem no olho da rua, sem mais aquela, teria comparecido à presença augusta do landgrave para reclamar-lhe, com uma pontinha de ameaça de escândalo, as liberalidades a que se cria com direito. Afinal, era portador de um segredo da corte e toda a gente sabe que silêncio vale ouro...

Só uma pessoa parecia não haver esquecido a criança repudiada pelos pais: era o conselheiro Adão Weishaupt. Todos os meses, subia as escadas da residência de Carlos Frederico, a casaca de briche cor de pinhão abotoada até o colarinho, onde mal se via a gravata de seda preta de três voltas; o antiquado tricórnio de veludo escuro, os estreitos calções da cor da casaca e as meias pretas que lhe chegavam aos joelhos. Galgando o primeiro andar, batia no chão com a ponta da comprida e fina bengala cujo castão era uma esfera de ouro, onde se via, à ponta de buril, o compasso oposto ao esquadro, com uma data na parte inferior.

Quando tardavam em atendê-lo, entrava pela sala e ia varando para os fundos, onde, não raro, encontrava a dona da casa de touca e avental, braços à mostra, ocupada em tostar costeletas num fogareiro a carvão. Aí, tirava o tricórnio e se punha a refrescar-se com ele. Parecia gostar daquilo; encostava-se à porta e um amplo sorriso fraternal lhe iluminava a fisionomia. Perto desse homem absolutamente simples, com muito de infantil, tudo estava bem, tudo corria bem, os próprios objetos pareciam sentir-se bem. Sua presença inesperada, por vezes até inoportuna, acabou por não vexar a Carlota Frederica; Weishaupt era da corte e da família.

O conselheiro passava ali alguns momentos vendo o pequeno Júlio fazer travessuras, visto que, em verdade, ele só travessuras fazia. Segundo a expressão da mulher, “o pequeno largava de uma malfeitoria para entregar-se a outra, e não parava, a não ser para dormir”. Uma verdadeira peste. Essas palavras, no entanto, não inquietavam o velho; antes, pareciam embevecê-lo.

Ao sair, sem grandes mesuras, Carlota acompanhava-o até a escada. Já com o sapato de fivela de ouro pousado no primeiro degrau, voltava-se e, como se a idéia só então lhe tivesse ocorrido, metia os dedos no colete, pela abertura da casaca, tirava uma moeda reluzente e lha entregava, sempre com a mesma frase:

— Tome lá, minha senhora: é para os alfinetes.

Tudo isso podia ser muito simpático, mas não sastifazia às ambições do pai, que tinha sonhado usar calções de ganga cor de canário e manter dares e tomares com os morigerados cortesãos do landgrave. Vivia de boca amarga, envenenado. E as coisas foram piorando ao lento escoar dos anos, com o aparecimento dos verdadeiros filhos do casal. Uma ninhada; três homens e duas mulheres.

Aquela moeda que, talvez às escondidas, por iniciativa toda sua, o conselheiro ia levar-lhes com regularidade, para os alfinetes, como repetia a cada passo, era uma insignificância, uma contribuição ridícula diante das despesas com que o pequeno Júlio, por essa altura já de oito anos, salgava o orçamento da casa.

Pouco a pouco o menino se tornara demais na família. Quando faltava qualquer coisa não era para os outros, era para ele. Sua presença, de ano para ano, se fazia mais incomodativa: ia para a cama ou para a mesa com pragas e das cabeludas. Por qualquer motivo, saía de trás da porta a vara de marmelo que tinha na ponta uma pelota de cera. Tudo quanto acontecia, a culpa era dele: se chovia ou fazia sol, se o dia santo caía no domingo, ou se o bife tinha virado sola, a responsabilidade era do pequeno e, por isso, levava tunda. Era, pois, um caixão de pancadas.

Verdade é que ele fugia de casa e passava dias inteiros pelas ruas, atiçando os cachorros nos transeuntes, furtando bolos das cozinhas, saltando muros para colher cerejas, apedrejando os guardas dos jardins, reduzindo a cacos as vidraças das lojas, incendiando as medas das hortas, atirando os baldes no fundo das cisternas, amarrando latas na cauda dos cavalos, pregando rabichos de papel na casaca dos senhores circunspectos, enfim, fazendo tudo o que uma criança deve fazer, quando lhe não faltam saúde e vivacidade. Mas as queixas chegavam de todos os lados e Carlos Frederico tinha verdadeiros acessos de fúria contra o pobre garoto esganifrado, de cabelo de estopa e olhos vivos. Chegara mesmo a hora de tomar uma resolução que acabasse com aquilo. Não podia mais.

Num desses momentos, como se estivesse escondido atrás da porta e pudesse ter ouvido as lamúrias do encadernador, Weishaupt fez a sua visita do costume, mas, ao sair não deu a esperada moeda; em compensação, informou à família de que havia matriculado o pequeno na escola primária mais próxima. Indicou depois uma loja onde poderiam escolher a roupa necessária, adiantando que não se preocupassem com o preço, porque tudo estaria pago. E saiu, como sempre, absorto num pensamento.

A nova atitude abrandou um pouco as cóleras paternas. Afinal, pensava ele, o menino não estava de todo abandonado e, atrás da figura chã daquele conselheiro, amigo particular do landgrave, havia alguém, certamente um príncipe de sangue, que acompanhava de longe o destino da criança.

Novas perspectivas se abriram em sua alma. À noite, na mesa de jantar, alumiada por um candieiro de três bicos, Carlos Frederico, ao fazer a partilha do pudim de creme, depôs uma grossa talhada no prato de Júlio. Este, desacostumado de tais blandícias, ficou a olhá-lo com olhos interrogativos. Então o pai ordenou-lhe:

— Coma isso, menino!

Júlio, amedrontado arriscou:

— Eu não fiz nada...

No entanto não foi sem resmungo que as coisas se consumaram de acordo com as determinações do conselheiro. O encadernador não se conformava com a idéia de encontrar tudo pago. Então, para todos os efeitos, não era ele o pai? Desconfiariam dele? Por que motivo os verdadeiros pais de Júlio não o clamavam em casa e não lhe entregavam uma respeitável soma para que ele tratasse como devia da educação do menino?

Mas, apesar das objeções paternas, Júlio começou a freqüentar a escola e, o que ninguém esperava naquela casa, a fazer progressos. Já entrou sabendo ler, escrever e as quatro operações aritméticas sem que ninguém lhas tivesse ensinado, a não ser, naturalmente, a calaçaria das ruas. E a vizinhança toda sorriu ao ver o garoto de pasta debaixo do braço e gorro de veludo, a freqüentar uma boa escola primária, muito acima das posses do encadernador.

Decorridos os primeiros meses, a família não sabia se havia de rir ou de chorar diante das informações do estabelecimento, que eram invariavelmente estas: Júlio é o menino mais inteligente da escola, posto que o aluno mais endiabrado da Europa.

Foi, pois, um curso acidentadíssimo. As horas de glória em que ele, com uma precocidade genial, demonstrava conhecimentos superiores à sua idade, alternavam com as reprimendas, os castigos e as contínuas ameaças de expulsão. Nos últimos meses do curso, que havia levado quatro longos anos, as suas qualidades começaram francamente a ser sobrepujadas pelos defeitos. Mas, apesar de tudo, chegou a concluir o estudo primário com distinção e louvor, seguidos desta ressalva do diretor da escola: se tivesse de estudar mais um ano na casa, não o aturaríamos até o fim.

Logo depois, uma de suas diabruras chegou a torcer-lhe o destino:

No mesmo andar em que morava, Carlos Frederico havia sublocado dois quartos a um militar reformado que ali vivia em companhia da velha esposa. Os inquilinos, gente morigerada e silenciosa, contribuíam com a metade da importância do aluguel da casa, o que representava alívio para as aperturas financeiras do encadernador. Todas as manhãs, a velha tomava da cesta e saía para as compras. A porta da sua habitação ficava apenas cerrada, pois ninguém se atreveria a penetrar naquele augusto recinto.

Certa vez, porém, o pequeno Júlio, a quem a chuva impedia de sair, não resistiu à tentação de saber o que ali se passava. Sondou o ambiente, empurrou a porta e entrou. Na alcova, o rude militar dormia. Estava deitado ao comprido do leito, com um braço esticado para fora. Ressonava a sono solto. Júlio observou-o durante um momento e depois sorriu.

Tomou do cinturão dobrado sobre a credência, tirou um fio de elástico e, depois de queimar uma ponta, para torná-lo pegajoso, foi à cama e grudou-o no rubincundo nariz do dorminhoco. Em seguida, calçou um sapato de biqueira para cima, naquela mão que saía para fora do leito e, para completar a facécia, acendeu a extremidade do elástico, como se fora estopim. Terminada a obra foi esconder-se, à espera do resultado, que não deveria tardar.

Quando o fogo atingiu a penca, o dorminhoco, instintivamente, acudiu o lugar da queimadura, mas como a mão estivesse calçada com o sapato, o gesto valeu por tremenda bofetada que lhe ia vazando um olho. O militar, ainda tonto de sono, soltou um uivo de dor e saiu de cuecas pela casa, inteiramente fora de si, disposto a matar o autor da brincadeira.

Carlos Frederico, que a essa hora ia entrando da rua, quase rebentou de ódio. Não teve dúvidas sobre o autor. Depois de muitas voltas, foi encontrar Júlio escondido na trapeira. Tomou-o pela gola e, a tapas e ponta-pés, atirou-o na rua, onde chovia a cântaros. Depois, disso, fechou-lhe a porta para sempre.

Júlio Frank tinha então doze anos de idade.

* * *


 

III
ESTUDANTE DA PÁ VIRADA

 

Durante muitos dias Júlio perambulou pelas poucas ruas da cidadezinha natal, ora dormindo em uma casa ora em outra. Só quando de todo não encontrava pouso, ia bater à porta da família; mas para isso esperava hora em que o pai lá não estivesse. Carlota já havia preparado para tais ocasiões um velho canapé no sótão, mesmo diante da janelinha que dava para a rua e pela qual o rapaz, no dia seguinte, observava a saída do pai que ia para o serviço. Então, descia para o primeiro andar, fazia as abluções e, depois de refeito, saía antes do encadernador voltar para o almoço.

Um domingo de Janeiro em que as ruas e as casas estavam brancas de neve, ele não teve a felicidade de encontrar nenhum dos amigos que procurou. Até mesmo a cavalariça, em cujas baias forrradas de feno cheiroso muita vez dormira, estava fechada e deserta. A tasca da beirada do rio, onde também conseguia cochilar nas noites em que não tinha teto, estava-lhe vedada, desde que ali ficou devendo broa e salsicha, crédito que não tinha podido saldar. Nessa noite, entanguido, gelado, com o estômago vazio, encostou-se à porta do estanco e ficou de olho alerta para a casa da família. Em certo momento, o pai saiu com um dos irmãozinhos pela mão e dirigiu-se para o lado da botica. Assim que ele virou as costas, Júlio entrou e grimpou pela escada acima, indo encontrar a mãe inesperadamente alegre.

— Corra lá para cima, que eu já vou levar-lhe o caldo quente e as boas novidades...

Não se fez de rogado. Também já era tempo porque dali a pouco o encadernador chegava com a criança, resmungando, como sempre. Logo em seguida, Carlota apareceu no sótão com uma bela malga de caldo, fumegante, dentro da qual se viam nacos de carne e folhas de alho.

A novidade era esta: Weishaupt lá tinha estado à sua procura dizendo que já o havia matriculado no Ginásio Ilustre, freqüentado pelos filhos das nobres famílias da cidade, e que havia aberto um crédito em determinada loja, para o que fosse necessário. Diante do caldo e da notícia, Júlio mergulhou no canapé e dormiu como um bemaventurado. No dia seguinte, ao abrir os olhos, espiou pela janelinha; o pai saía para o serviço pela rua clara, batida por um sol de inverno tão dourado e macio que parecia de lã.

No Ginásio, a luta do estudante foi com seus colegas que, à primeira vista, se sentiram vexados pela presença daquele rapazola das ruas, vestido com desleixo, em seu aristocrático convívio; mas, dentro de pouco tempo, o novo aluno conquistou-os a todos, principalmente aos mestres, mercê da sua rara inteligência. Lá pelo terceiro ano já era a glória do Ginásio. É verdade que tal admiração, como mais tarde ele próprio havia de confessar em carta, foi a sua temerosa inimiga durante toda a existência.

O estranho temperamento manifestado desde os primeiros anos acentuava-se cada vez mais. Era o que os colegas chamavam um urso. Taciturno, espinhento, amigo de grossas farsas, barriguento e volúvel nas amizades. Quando um companheiro começava a tornar-se amigo, afastava-o logo de si com uma sencerimônia que roçava pela brutalidade. Quando um dos numerosos inimigos morria ou retirava-se da cidade, ele fazia mentalmente as contas e exclamava: “Tenho uma vaga de inimigo”. E tratava logo de substituí-lo, custasse o que custasse. Por outro lado, enquanto alguém estava nas suas graças, era de um devotamento apaixonado, capaz dos maiores sacrifícios, como demonstrou em diversas circunstâncias da vida.

Sua mordacidade era proverbial. Os ditos cortantes saíam das rodas escolares e penetravam nos salões. Repetiam-se por toda parte suas sátiras aos burgueses de Gotha, contra quem ele vivia numa contínua irritação. Como se o verso e a prosa não bastassem, recorria ao lápis e era de ver nos pátios escolares, verdadeiros mostruários de raridades, aquelas figuras nas quais se reconheciam Fulano, Sicrano e Beltrano; uns pela batata nasal, rica de pêlos e verrugas; outros pelas rochonchudas barrigas das pernas a rebentarem a costura das meias; os restantes, por traços característicos sabiamente exagerados que não deixavam dúvida sobre a identidade do paciente. Em baixo, legendas que valiam por navalhadas.

Mas, fora das aulas, corrido pelo pai, continuava naquela vidinha de vagabundo pela qual mostrava certa simpatia. Almoçava no quarto de um, jantava no quarto de outro, dormia não se sabe onde. Com esse modo de vida, passou muita manhã sem almoço, muita tarde sem jantar e não se sabe quantas noites de verão pelos bancos do jardim, ou na beira do rio, junto a concorridas e alegres fogueiras com rodadas de vinho fervido e cantigas.

É verdade que naquele tempo ainda se guardavam certos hábitos dos séculos passados. Conservava-se viva entre os estudantes uma romântica tradição de miséria. Outrora tinha sido praxe, em quase toda a Europa, os escolares se misturarem um pouco aos valdevinos, chegando mesmo a esmolarem pelas herdades, pescando aqui e ali o com que custearem os estudos. Conta-se que algumas famílias abastadas submetiam os filhos a tal regime a fim de endurecer-lhes a fibra, adestrando-os para a luta cotidiana.

Foi, pois, nessa existência incerta, auxiliado amiúde pelas contribuições de Weishaupt, que ele cursou o Ginásio.

A inteligência e a extrema pobreza tinham-lhe grangeado o apoio daquela providência que os estudantes alemães conhecem através dos séculos: uma associação de escolares, ramificada por todos os estabelecimentos de ensino, cujo fim principal é fornecer livros, roupa e matrícula aos rapazes pobres levados ao estudo por irresistível vocação. Essa sociedade tinha existência secreta menos para encobrir fins políticos do que para não vexar os pupilos. Era a “Burschenschaft”.

Júlio tornou-se logo a menina-dos-olhos daquela instituição; daí a relativa facilidade que de um dia para outro começou a encontrar na sua aventurosa existência: as “repúblicas” disputavam-no para pensionista gratuito; os livros de que necessitava entraram de aparecer milagrosamente em sua carteira e, de quando em quando, roupa e calçado lhe vinham ter misteriosamente às mãos.

Mas o rapaz não era precisamente o tipo ideal do estudante em condições de ser protegido. Os livros caíam nos “sebos”, as roupas nos adelos e os sapatos nos remendões, a troco de minguados cobres que ele tratava de gastar o mais largamente que podia.

Quando já não conseguia manter-se, ia bater devagarinho à porta da casa da família, nas horas em que sabia o pai ausente, fazendo jus à tigela de caldo que Carlota Frederica tão bem sabia preparar, e ao canapé do sótão, onde dormia com tanto gosto.

Foi uma vida incrível para Júlio. Os mestres aclamavam o seu talento e ele, animado de nobre orgulho, esforçava-se por merecer e sobrepujar cada vez mais os elogios. Tinha sido tomado de verdadeira febre de estudo. Trabalhava furiosamente. Trazia sempre os alfarrábios no bolso da niza de droguete felpudo e onde quer que se encontrasse, surgindo a oportunidade, mergulhava na leitura. Era nos quartos dos amigos, nos bancos dos jardins, nas embarcações encalhadas à beira da água, nas tascas do rio e, não raro, no desvão da porta de um palácio.

Nos dias quentes, quando o sol fazia fumegar as hortas, ele saía para os arredores da cidade e por lá ficava, deitado sobre o feno, forçando inextricáveis páginas de matemática. Enquanto durava a broa, não voltava à cidade. Nas “repúblicas”, quando o seu hospedeiro lho permitia, atravessava uma noite a estudar, sem vestígio de fadiga, quase sem dar pelo que fazia.

Nas tascas ribeirinhas estudava conversando, às vezes altercando com os trabalhadores das barcaças. Ali, onde passava os dias de maior penúria, aprendeu a fumar valentes cachimbadas entre a gargalhada divertida dos circunstantes. Metia-se também entre os farsistas, que em toda terra os há, e com eles entornava bojudos copázios pela noite a dentro.

A bodega do “Saco de Areia” era durante semanas seu ponto de parada, e o grumete conhecido pela alcunha de Andorinha, seu melhor companheiro. Ambos contavam cerca de 16 anos, andavam maltrapilhos e encaravam a vida por um delicioso prisma. Júlio já estava certo de que viria a ser grande homem e que aqueles trabalhosos dias não passavam do prefácio da futura obra. O Andorinha, por seu lado, era candidato a almirante em dias muito afastados, mas que certamente haveriam de soar. Enquanto, porém, os louros da glória não chegavam para o primeiro nem as estrelas do almirantado para o segundo, eles, com suas correrias noturnas, alarmavam o sono dos pacatíssimos habitantes de Gotha.

Tais coisas faziam os dois rapazes, que os burgueses, alta noite, apareciam à janela, de roupão, carapuça e vela acesa espetada na palmatória de madeira. Numa dessas noites de desvario, os dois rapazes pararam diante de certa residência iluminada, em cujo interior se ouvia animado falatório.

Convencidos de que ali se realizava festa e na esperança de serem convidados pelos donos da casa, iniciaram a mais lírica das serenatas debaixo das janelas discretamente cerradas. O Andorinha, que era baixo-profundo, cantou a ária báquica dos “Alegres bebedores de Goettingue” e logo em seguida Júlio, na sua voz de falsete, entoou a canção de vindima “Meninas, façam como eu!”

Nesse ponto, surgiu uma calvície à janela e gritou-lhes:

— Onde se viu fazer serenatas diante de uma casa onde morreu alguém? Vão cantar na cadeia ou no diabo que os carregue! Se persistirem, solto-lhes os cachorros em cima...

Outra noite de fome, os dois rapazes seguiam pela beira do canal, sem destino. Queriam apenas sair da cidade. Em certo ponto, o Andorinha parou e mostrou ao companheiro uma cabra que espiava pelo vão da cerca, mordiscando ervas.

— Você sabe o que é aquilo?

— Se não me engano é uma cabra.

— Pois vai ver... Bit, bit, bit...

Chegou-se à cabra, na atitude de quem lhe ia dar qualquer coisa e, inesperadamente, segurando-a pelos chifres, afundou-lhe a lâmina do canivete no sangradouro. Ao mesmo tempo, apertou-lhe o focinho. A pobre não tugiu. Olhou-o tristemente, como a censurá-lo pela traição, e caiu para o lado; estava morta.

Ambos carregaram-na para longe e, chegando a um local onde havia árvores e galharia seca pelo chão, fizeram uma fogueira.

Outros vadios farejaram o bródio e foram se chegando. Um concorreu com o sal, outro com os demais condimentos e o terceiro declarou-se perito nas artes de cozinha. Dentro de pouco, amarrada a um grande espeto giratório, a cabrinha foi assada e o perfume que se desprendia atraiu ainda mais gente, entre homens e mulheres. Com o correr do tempo até vinho apareceu. E como a noite era de verão, com um luar claro que nem dia, a ceia acabou num baile campestre que se prolongou pelo alvorecer.

Foi assim que Júlio Frank terminou o curso do Ginásio Ilustre da muito ilustre cidade de Gotha.

* * *


 

IV
MARINHEIRO DE PRIMEIRA VIAGEM

 

Apenas diplomado pela mais conspícua escola da sua cidade natal, Júlio Frank como desapareceu. Nem a família, nem os amigos, durante muitos dias, souberam notícias suas. Uma tarde, passava ele diante da casa do encadernador, quando foi alcançado por Fred, aliás Frederico Augusto Guilherme, seu irmãozinho, figura cheia de sestros e cacoetes, que lhe deu uma carta confiada por Weishaupt a Carlota, a fim de fazê-la chegar-lhe às mãos.

O bom velho, tendo desesperado de encontrar o protegido, acabava por escrever-lhe, pedindo que o procurasse. Nessa folha de papel, com as armas do ducado, escrita numa letra redondinha, com pena bem aparada, o conselheiro felicitava-o pela bonita conclusão do curso intermediário e convidava-o a comparecer ao castelo, a fim de comunicar-lhe novidades agradáveis.

Essa oportunidade que lhe caíra do céu, tão fácil, era ambição de muita gente. Pensando nisso, tomou-se de vivo contentamento e sua primeira idéia foi dirigir-se para lá. Mas, ao longo do caminho, reparou que a roupa estava no fio, os sapatos cambados, os cabelos compridos e a gravata, para falar a verdade, não era gravata, mas um “cachecol” cor de lagartixa. Já diante da subida do castelo desistiu da visita e achando aberta a porta da casa de um colega que há muito não via entrou por ela dentro.

Aquela “república” onde tantas vezes encontrara cama e ceia, estava sensivelmente melhorada. Novos móveis, uma estante guarnecida de poetas e dramaturgos e um fogo a crepitar na lareira. “Sibarita!” — pensou ele. Depois, tomando um livro da fileira impecável, leu o nome do autor “Wolfango Goethe — Hermann e Dorotéa”. E comentou num solilóquio: “Este rapaz está trabalhando; vai longe”. Repôs o livro na estante e, vendo na mesa um cachimbo de porcelana, foi à lareira, tomou uma brasa com a tenaz e acendeu-o. Calmamente ajeitou-se numa poltrona, abriu o Virgílio que sempre o acompanhava, e embebeu-se nos versos do poeta latino.

Momentos depois, a porta da alcova contígua abriu-se de leve e u’a moça que devia ter-se fechado ali para vestir-se fez menção de entrar na sala. Mas, ao primeiro passo, notou que havia um intruso. Parou à porta e, pelas costas do desconhecido, fez rápido exame. Era bem um tipo suspeito, cabeludo, de roupas largas, um trapo no pescoço e o geito reles com que empunhava aquele soberbo cachimbo... Teve um arrepio de medo e, em silêncio, evitando até o roçagar do largo vestido de veludo que se elevava nos flancos em dois puffs, passou pelo fundo da sala, entrou na escadaria e desceu para a rua.

Pouco adiante acercou-se de um guarda que passava encapotado, com as mãos para as costas, e, toda trêmula, contou-lhe o que vira. O gendarme cofiou a bigodeira com as duas mãos e acompanhou-a, irrompendo ambos bruscamente no salão, justamente no momento em que Júlio Frank começava a embalar-se no ritmo daqueles versos.

— Olá!

Frank voltou-se na poltrona, viu as duas figuras e não compreendeu o porque da intromissão. O militar interrogou:

— Que faz aí?

— Estou esperando o meu amigo Ernst.

— Quem é esse Ernst?

— O dono da casa.

— Pois esta senhora é que é a dona da casa.

Nessa altura Frank compreendeu que estava metido numa enrascada.

— Desculpem então; houve engano.

Mas o guarda não se deu por satisfeito:

— Essa de engano não pega; é a desculpa de todos os que são apanhados com a boca na botija. Venha comigo.

E levou-o para o comissário. Cordélia — a moça chamava-se Cordélia e era uma atriz de segunda ordem numa companhia de segunda classe que fazia temporada em Gotha — ficando só, pensou melhor no ocorrido e, como era rapariga de bom coração, acreditou que tudo aquilo sobreviera em razão de um engano e acabou por sentir dó do rapaz. Era evidente que ele se havia equivocado na porta, ou então o tal Ernst seria de fato o inquilino anterior.

Movida por sentimento de justiça, correu ao comissariado a fim de retirar a queixa. Na rua, como o tempo estivesse mau e ela não conhecesse a cidade, esperou que passasse um fiacre. Mas o veículo não aparecia; cansada de esperar, pediu informações a um transeunte e foi mesmo a pé, quebrando com o fino tacão de suas botinas a neve envidrada que cobria o empedramento da rua.

O comissariado era num prédio mais velho do que os outros e se distinguia pela lanterna vermelha pendente da porta, na extremidade de um arabesco de ferro. A sentinela disse-lhe que subisse e ela barafustou pela escada escura que tresandava a chichi de gato. Mas, a meia-subida, encontrou Júlio que descia ao lado de um velho de casaca cor de pinhão e antigo tricórnio de feltro escuro. Nunca teria imaginado que aquele pandorgas fosse tão bem relacionado... E assim pensando, encostou-se à parede, para lhes dar passagem. O velho era o conselheiro Weishaupt e dizia ao rapaz, na sua voz suave:

— Alguns momentos depois da sua prisão fui informado dela e corri satisfeito por encontrá-lo. Estava com receio de que pretendesse interromper o curso tão bem iniciado. Trago-lhe carta para um professor de Goettingue e dinheiro para matrícula e primeiros tempos de universidade. Parta pela primeira diligência e, de futuro, quando for visitar amigos, não deixe de verificar melhor o número das portas, pois enganos desse gênero às vezes trazem aborrecimentos.

Já na rua, despediram-se como velhos amigos. O conselheiro tomou o carro; à frente, o sota muito empertigado dirigia as parelhas, e atrás, como pendurados no tejadilho, iam os dois taboas, vestidos com aparato, talvez mais bem parados que o amigo particular de Ernesto II.

Ficando só na rua gelada, diante da casa sombria, Júlio pareceu não saber que fazer. Virava nas mãos o envelope com a chancela do landgrave e uma bolsa de couro empanturrada de pequeninas moedas de ouro. A perplexidade era tão profunda que para cair em si foi preciso uma mãozinha enluvada de amarelo pousar-lhe ligeiramente sobre o ombro.

— Sou eu!

— Eu quem?

— Cordélia Heintz.

— Dá no mesmo.

— A pessoa que o fez prender há pouco mais de uma hora.

— Ah! Prazer em conhecê-la... Ou, para ser franco...

— Vim pedir perdão, retirar a queixa, tratar de sua liberdade.

— Obrigado.

— Mas cheguei tarde.

— Que pena...

Ela riu. Não era bonita, mas tinha certa graça. E seguiram pela velha rua calçada de pedras chatas, ouvindo o gelo moer debaixo dos pés. Viraram uma esquina, depois outra, ainda uma terceira...

Lá em baixo, ela parou. Era a porta da sua casa. Olharam-se novamente e sorriram, lembrando talvez o que havia ocorrido pouco antes. O mesmo gendarme que continuava a passear pela rua, de mão nas costas, ao vê-los assim, levou apressadamente as mãos à bigodeira e se pôs a torcer as guias, para não mostrar o sorriso. Alhures alguém cantava uma canção em voga, de músico desconhecido, um certo Schubert.

Subiram de mãos dadas.

O resto da tarde decorreu numa doce intimidade, ao pé do fogão acolhedor e amável. Quando chegou a hora de Cordélia ir para o teatro, Frank recebeu uma poltrona de favor, com direito a ir à caixa, nos intervalos. Não se lembrava de ter ido a um teatro, mas havia lido tantas peças e discorria tão facilmente sobre autores, que não ocorreu à atriz perguntar-lhe sobre o assunto. Quando, porém, entre o segundo e o terceiro ato, o rapaz conseguiu romper a chusma dos corredores e alcançar o camarim, ela disse-lhe a rir:

— É a primeira vez que você entra aqui!

Ele não respondeu, mas corou.

Findo o espetáculo, saíram juntos: um fiacre levou-os a certo restaurante fora da cidade, famoso pelo vinho que cheirava a pétalas de rosas. Ah! A vida deveria ser assim, eternamente assim — pensava o estudante. Mas esse sonho de felicidade durou apenas 123 thalers, isto é, pouco mais de uma semana. Gasto o dinheiro, a companhia continuou na sua excursão por outras cidades e Cordélia Heintz, como despedida, deixou-lhe um bilhete a lápis, entregue pela mulher que alugara o quarto. Partia sem vê-lo para poupar-se da cena pungente dos adeuses, que toda noite fazia no palco, mas que não gostava de representar na vida cotidiana. Levava como recordação as últimas moedas que ele havia esquecido ao pé da estante e o botão do casaco que Frank, na véspera, lhe havia pedido para repregar, e que ela não fizera, por falta de agulha, de linha, de tempo, de préstimo e de vontade.

Afinal, Cordélia partiu com saudades e ele ficou sem dinheiro.

Foi preciso uma ginástica tremenda, uma verdadeira subscrição entre antigos camaradas, para que certa manhã, diante da Hospedaria das Sete Noivas, pudesse tomar a diligência de Goettingue.

Durante o dia inteiro foi sacolejado por estradas desertas e intermináveis. Pela portinhola, a cortina corrida, via desfilarem os burgos parecidos uns com os outros. O cocheiro descia, entrava numa casa de vinhos e voltava enxugando os beiços na manga da blusa. As mudas eram lentas, em praças encardidas, onde havia sempre o mestre ferrador e a tasca de nome pomposo. Depois, eram os compridos muros das quintas, o cheiro acre que subia das medas fermentando ao sol, o gemido das noras, o mugido das vacas nos estábulos escuros, os castelos grudados nas encostas, os vinhedos secos esgalhando-se no chão empedrado, as pontes com guardas a quem os viajantes mostravam os papéis. O envelope com as armas do ducado produzia sempre o melhor efeito.

Durante a viagem, os passageiros se iam substituindo na diligência; rendeiros e pequenos proprietários subiam aqui para descer além. Era impossível conversar com essa gente que dava a impressão de viver outra vida em outro mundo e exprimir-se em outra língua sobre assuntos que absolutamente não poderiam interessá-lo.

No fim da viagem faltou-lhe dinheiro para as refeições. Era com inveja que via o cocheiro peludo e o ajudante ruivo amesendarem-se nas bodegas das mudas e pedirem grandes pratos de salsichas, que eram devorados à claridade de bojudos jarros de cerveja. Na manhã seguinte, para que não suspeitassem da causa do jejum, declarou-se doente e não almoçou; à tarde continuava indisposto e, à noite, não podia mais de fome.

Foi quando tomou assento a seu lado uma repolhuda dama com a sua cesta de vime em cujo interior os olhos experimentados do estudante descobriram frangos de forno, presunto, geléias, queijos, um baltazar para quem se encontra de forçado jejum havia muitas horas. Embalde ele lhe sorriu amavelmente, afastou-se para lhe ceder maior parte do banco, suspirou, esboçou um namoro... Nada. Aquela mulher era de pedra. Mas, em certa altura, Frank lobrigou a palavra Altona em um de seus papéis. Meia hora depois, compondo o sorriso mais triste que encontrou à mão, exclamou como para si mesmo:

— Ah! Como tudo isto é diferente da minha querida, da minha inesquecível Altona!

Na dama gorda houve mutação à vista. A máscara severa amoleceu, os olhos ríspidos adoçaram. Um sorriso promissor iluminou-lhe a fisionomia:

— Como? É de Altona?

— Sim. E a senhora?

— Também.

— Que feliz coincidência. E de que família, poderei saber?

— Hoffer.

— Ah! Mas nesse caso somos parentes!

Exclamou e teve medo às conseqüências. Felizmente foi a mulher a primeira a falar, levada por uma grande satisfação. Sabia de quem se tratava; antes mesmo já havia suspeitado. Era o Gerald, não era? E ele não teve mais do que aceitar o nome que lhe era dado, atrás do qual não sabia se estava um santo ou um bandido. Nada disso, felizmente: estava um primo que de lá havia partido muitos anos antes, sem mais falar de si. Era primo para cá, prima para lá. E uma hora depois, dentro daquela diligência, houve um verdadeiro banquete em que o estudante levantou várias vezes o copo em honra dos Hoffers, de Altona.

Logo depois o cocheiro voltou-se para os viajantes e informou-os de que estavam próximos de Goettingue; os muros, as casas de campo que iam passando já eram os arredores da cidade: dentro de vinte minutos estariam no ponto de desembarque. Então Frank, para evitar possíveis encontros com indesejáveis parentes da mulher, que para o caso seriam também seus, resolveu tomar medidas enérgicas. Mais adiante disse-lhe em tom misterioso:

— Não conte a ninguém que me encontrou.

— Já sei, quer fazer uma surpresa aos nossos.

— Não; tenho medo...

— Aposto que é um caso de amor...

— Não, minha prima, coisa de maior monta...

— Duelo?

— Upa!

— Jogo?

— Upa!

Ela não atinava.

Então ele, em voz cavernosa:

— Eu me fiz ladrão de galinhas...

Desde aquele momento a dama gorda não mais deu mostras de conhecê-lo. Assim, refeito e em boa paz, entrou na douta cidade universitária de Goettingue.

* * *


 

V
ATÉ AS PEDRAS SE ENCONTRAM

 

Desembarcou em Goettingue numa tarde de inverno e com as mãos abanando. Não trazia consigo peça de roupa, objeto de valor, uma moeda que fosse. Em compensação era um nababo de esperanças. Apenas pôs pé em terra, seguiu pela rua que estava na sua frente e, depois de muito caminhar, parou por hábito diante de um “sebo”. Também por hábito, meteu a mão no bolso e de lá tirou o compêndio de demonologia, matéria que no momento muito o interessava. Ainda não tinha lido esse livro. Pensou em vendê-lo e ao mesmo tempo teve desejo de conhecer-lhe o misterioso conteúdo. Dentro de Frank estabeleceu-se então a luta: ler ou comer? O pão do espírito ou o pão do estômago? Como acontece sempre, venceu o estômago, pois a carne é fraca e o estômago é um nobre órgão. Assim, vendeu o livro e comprou o pão...

A noite caía. As avenidas cobertas de uma fina camada de neve estendiam-se diante de seus olhos, frouxamente alumiadas pelos lampiões pendentes das esquinas e de algumas frontarias. As janelas estavam claras e amiúde ouviam-se músicas e cânticos. Os carros passavam apressados, ao trote dos cavalos, conduzindo uma sociedade brilhante; aristocratas, oficiais, artistas, mulheres do grande mundo, burgueses abastados, sacerdotes e figuras suspeitas.

Nas sarjetas amontoava-se aquele povo escuro, calado, que se comprime contra a parede das casas para fugir à lama que as rodas atiram na passagem. Eram homens, mulheres e crianças. Uns vinham do trabalho, outros iam não se sabe para aonde. Vendedores de ramalhetes, de jornais, de brinquedos, de quinquilharias de toucador; gente de grossos sapatos orlados de pregos e com largas fivelas de metal. Músicos ambulantes contavam moedas debaixo de um lampião.

As casas de comércio tinham fechado as portas de vidro e pelos cristais toldados entreviam-se os interiores festivos, com linhas de candeias. O vento agitava as tabuletas fixadas em ângulo reto sobre as frontarias. Quando alguém entrava ou saía das casas viam-se, pelo vão das portas que se abriam e fechavam, as mesas dos restaurantes e confeitarias, cercadas de fregueses alegres. Então, um hálito quente com o perfume das viandas e dos molhos finos, acariciava o rosto do estudante. Mais adiante, eram os teatros, alguns dos quais iluminados “a giorno”, com fieiras de tijelinhas iluminosas.

Que fome! Que frio!...

E os carros passando...

Chegou, sem saber, ao bairro universitário. Conheceu-o logo pela população vistosa e folgazã, em contraste com o velho casario escuro, lazarento, empilhado como para mudança. As cervejarias estavam repletas e de dentro delas chegavam aos seus ouvidos cânticos em coro e risadas. Nas ruas estreitas, rapazolas de boné característico alternavam-se com moçoilas estouvadas e segurando as mãos uns dos outros, formavam longas cadeias que, numa espécie de quadrilha, cortavam bulhentamente a multidão, afastando uns, derrubando outros.

Júlio chegou-se a um rapaz que fumava encostado à porta e deu-lhe, como a falar consigo mesmo, a senha da “Burschenschaft”. O rapaz olhou-o inexpressivamente. Mais adiante, repetiu a palavra de passe quase ao ouvido de um escolar que seguia de livros debaixo do braço. Nada. Aproximou-se de uma daquelas moças e proferiu o sézamo... Ela voltou-se para ele, examinou-o e concluiu que estava ao pé de um maluco. Decididamente os escolares de Goettingue eram diferentes dos de Gotha. Mas, à porta de uma escura vivenda coletiva, encontrou certa cara que lhe pareceu já ter visto algures. Então, de modo firme, deu-lhe a senha; o interrogado respondeu sem pestanejar. Era mais ou menos conhecido; tinha feito os preparatórios em Gotha e de lá viera sem meios de subsistência. Júlio, ao encontrar aquele rapaz teve um suspiro de alívio:

— Pois eu preciso da “Burschenschaft”...

— E eu também...

— Ainda não se ligou?

— Depois que há pena de morte, a cousa está difícil.

Desde aquele momento já não era apenas um à procura de socorro; eram dois. Passaram ainda algumas horas a caminhar pelas ruas que pouco a pouco se iam despovoando. Por fim, os pés já estavam duros de frio e começavam a inchar. Os teatros permaneceram abertos até mais tarde, mas antes da meia-noite começavam a apagar as lâmpadas de azeite das frontarias, a recolher os grandes cartazes; as avenidas ficaram animadas de carros e de pessoas que demandavam os lares. Esse movimento logo cessou e a cidade caiu no silêncio; apenas se encontravam varredores, bêbados, bandos de estudantes que recolhiam, mulherzinhas embuçadas e cães assustadiços.

Andaram, andaram...

Exaustos, entraram numa larga porta encimada por dúbia lanterna, em cujo vidro se lia um número, e sentaram no primeiro degrau da escadaria interior. Queriam apenas descansar os pés. Dali a meia hora encostaram-se no segundo degrau; logo depois ressonavam a sono solto. Lá pelo alvorecer o porteiro encontrou-os a dormir e despejou-os, a socos, no meio da rua. Para não cair, Júlio agarrou-se a qualquer cousa de escuro, mole e cheiroso que encontrou na frente.

Era uma mulher que voltava de qualquer cervejaria; estava bêbada como um odre. Segura assim por Júlio, pôs-se a rir de um modo irritante. Só então, à luz mortiça daquela lanterna, reconheceu Cordélia. Parecia ter-se plantado no seu destino. Ria ainda mais irritantemente e com a língua pegajosa ia inquirindo:

— De onde vem você a esta hora?

— De uma reunião, no clube...

— Que vai fazer agora?

— Vou para a Hospedaria do Grande Frederico, onde a Universidade me reservou aposentos...

— Quer vir comigo?

— Já que você exige, faço-lhe essa concessão.

Então segurou-a pelo braço, a fim de ampará-la, e desse modo levou-a para onde ela quis ir e que era a sua casa. Antes de partirem, porém, pediu-lhe uma moeda para dar ao seu secretário, visto não ter dinheiro trocado. Ela abriu a bolsa e deu-lhe duas. Júlio passou-as ao estudante desconhecido e disse-lhe:

— Visconde, vá à Hospedaria do Grande Frederico e informe à Sua Alteza que só voltarei pela manhã.

Abertas as matrículas, Júlio entrou para a Faculdade de Filosofia da Universidade de Goettingue. Aclimatara-se logo naquela cidade. Dentro de pouco já havia recomeçado a sua antiga existência de Gotha, morando e fazendo as refeições por toda parte. Tudo, porém, começou logo a melhorar. Sua inteligência breve conquistou a colegas e professores e a Universidade inteira pareceu tomar a peito a tarefa de encaminhá-lo na vida.

Chegou a conhecer dias de abundância. Logo no começo do ano, organizou um serviço de apostilas; ouvia com a atenção de sempre as preleções dos mestres e, chegando a casa, resumia-as, tirando cópias que eram fornecidas a estudantes ricos, amigos das chinelas ou incapazes de apreenderem até ao fundo as exposições da cadeira. Por outro lado, os lentes encarregavam-no de pequenas tarefas remuneradas, de modo que no segundo ano letivo, Júlio Frank se dava a um extraordinário luxo; quarto mobiliado, fatiota nova, estante com obras escolhidas e longas horas de sossego para o estudo.

Mas ele não nascera para viver a pequena velocidade...

Uma das praxes mais respeitáveis da vida universitária alemã era o duelo. Um estudante batia-se todas as semanas e por qualquer motivo. Geralmente não era preciso motivo. Esse heróico costume que proveio da Idade Média e ainda hoje subsiste, era, há um século, a própria segurança da “vita universitatis”. O código de honra dos estudantes ainda era o mesmo da Tavola Rotonda. Quando algum escolar era suspeitado de haver tomado parte em repreensível aventura, conduziam-no à presença do juiz universitário — o único capaz de julgá-lo — e se afirmava sob palavra de honra estar inocente, ficava isento de punição.

Há poucos exemplos de que se tenha faltado à palavra para eximir-se da responsabilidade. Mas quando isso acontecia, o que era raríssimo, uma vez cada dez anos, o faltoso era segredado pelos colegas e expulso da Universidade. Tal código permitia que universidades com milhares de alunos, entre os quais temperamentos indisciplinados, agressivos e turbulentos, fossem mantidas em rigorosa ordem pela direção, mediante o débil policiamento dos bedéis.

Logo à entrada, Júlio viu que a Universidade era espontaneamente dividida em corporações, mais por afinidade dos membros do que por outro motivo. Cada corpo tinha um presidente, em cuja eleição não prevalecia nada: talento, força, idade, comportamento, nome de família ou serenidade de espírito. Não se sabia precisamente o que levava um determinado rapaz à chefia do grupo a que estava filiado.

Cada semestre de estudos começava e terminava por uma reunião conjunta. Era o que eles chamavam de “commers”. Tais “commers” eram bem diferentes entre si: o da entrada começava por grandes libações, como também o “commertium abeundi” do fim do ano. Neste último cessavam os desafios, esqueciam-se as rixas; havia uma confraternização geral.

Mas no “commers” do início dos estudos, qualquer coisa era uma provocação: a gravata de Fulano, o sorriso de Beltrano ou o bigodinho implicante de Sicrano.

Ninguém suportava ojerizas; não se levava desaforo para casa. Quando tais susceptibilidades não bastavam para assegurar estocadas a todos, a um sinal do presidente de cada corpo os rapazes trocavam doestos. Por esse meio, faziam uma provisão de duelos para o semestre. Os membros de cada corporação provocavam um número ilimitado de estudantes de outras e isso era conscienciosamente registado, comunicado ao respectivo presidente; este informava protocolarmente aos senhores presidentes dos demais corpos. O programa dos dias de encontro era organizado de modo a que cada estudante tivesse pelo menos um duelozinho por semana...

Desde que Júlio Frank transpôs o limiar da Universidade tornou-se alvo de desafios: ele, por seu lado, se indispunha com quantos encontrava no caminho. Por dá-cá-aquela-palha, trocava estocadas, acutilava, recebia “schmissen”, que eram os lanhos nas bochechas. Por isso, mais de uma vez por semana, ele e outros estudantes se dirigiam para um famoso albergue fora de portas. Antes de chegar, desmanchavam o grupo e cada qual seguia sozinho para o aprazamento, a fim de não alarmar a curiosidade da polícia. Como se tal precaução fosse pouca para não serem colhidos de surpresa, colocavam sentinelas em redor da granja aonde se realizavam os encontros.

Os estudantes repartiam-se em grupos de oito: o juiz que presidia a luta, escolhido entre os seniors dos corpos não representados no duelo; o médico, que ficava pronto para socorrer o ferido; os dois combatentes; as duas “secundanten” cujo fim era segurar as armas antes de começar os encontros ou durante os repetidos “halts” determinados pelo juiz, e as duas testemunhas escolhidas entre os amigos dos espadachins.

Os combatentes eram resguardados por peitorais e braçadeiras de couro e agasalhados de modo a apresentarem apenas a cara. O juiz colocava-se ao centro, o pé numa cadeira, e ia marcando os golpes com um pedaço de carvão no espaldar a que se apoiava. Tinha na mão um relógio para contar os quinze minutos regulamentares da peleja. Diante dele, um defronte do outro, ficavam os combatentes que, por sua vez, tinham aos lados as “secundanten” que lhes amparavam os braços, pois o espadim e a braçadeira só por si fatigavam rapidamente os contendores. Ainda ao lado dos combatentes ficavam as testemunhas. Numerosos estudantes constituíam a galeria. No meio deles, o “pankdoctor”, antecipadamente preparava esparadrapos, agulhas, desinfetantes, parches, todo o material destinado a pensar as cutiladas. Quando tudo estava pronto, o juiz dava o grito:

— Silentium! Auf mensur, fertig, los!

Os secundantes largam os braços dos combatentes, as testemunhas se aproximam... O corpo inclinado, o braço estendido, os longos e finos espadins de ponta para baixo, avançam... Começam os golpes... Os metais relampejam... Há sobre as cabeças uma chuva de relâmpagos; os ferros cruzam com tinidos finos de lâminas compridas, flébeis e trêmulas. Vergam em pontaços ou silvam em chicotadas. Durante o encontro os seniors tomam nota dos golpes dados ou recebidos pelos seus homens. Quando a espada dobra ou quando o sangue espirra, o juiz grita “halt” e tudo pára. Nos casos de ferimento, o médico é quem diz se o encontro pode continuar ou não. E isso se prolonga por longos quinze minutos, em que não são contados os altos.

Terminado um duelo, começa outro: há dez, quinze encontros por dia. Os que chegam envergam as braçadeiras ainda fumegantes e as armas ainda vermelhas do último duelo. Mas se a polícia é assinalada nas imediações, há uma fuga geral, ocultando-se os petrechos bélicos na gateiras da granja e quando há tempo de sobra, aparece o homem da gaita campesina e começa a tocar uma ária providencial. Os milicianos então encontram um baile de estudantes, em que não raro os contrários de há pouco aparecem dançando vertiginosamente nos compassos malucos de uma polca...

Júlio Frank ficou encantado com esse regime. Gostou tanto dele que, com o decorrer do tempo, já não se contentava em lanhar bochechas de colegas; ia para as cervejarias elegantes e desafiava todo bicho-careta que lhe passasse pela mesa sem pedir desculpas. E como os seus golpes eram um tanto desastrados “teve de comparecer três vezes perante o Conselho Universitário, duas por duelo e uma por excessos praticados num campo de tiro”.

* * *


 

VI
NA ALTA RODA

 

Assim, pelo talento, dedicação ao estudo e galhardia de atitudes, Júlio Frank conquistou a Universidade. Os professores não lhe regateavam elogios e os colegas disputavam-lhe a amizade, embora nem sempre fossem acolhidos de boa sombra. Tudo lhe era desculpado de envolta com um sorriso de simpatia.

Quando no fim de 1827 chegou a Goettingue o jovem duque de Coburgo para matricular-se na classe de Filosofia, o dr. S., a quem sua alteza vinha recomendado, chamou a Frank, seu aluno de um curso gratuito de aperfeiçoamento, e convidou-o para repetidor das lições ao fidalgo, declarando-o naturalmente indicado para desempenhar tão insigne tarefa que lhe abriria as portas da popularidade. Por acréscimo, pingues proventos lhe adviriam do trabalho.

O estudante aceitou, agradeceu, mostrou-se sensibilizado pela lembrança do professor. Mas o forte de Júlio Frank não era, precisamente, um espírito prático. Sentiu-se ao primeiro sorriso da fortuna no dever de preparar-se para uma vida esplêndida. Faria isto e mais aquilo. Teria carro e criados de libré. Uma linda biblioteca e uma primorosa adega. E, descendo as escadas do dr. S., depois da aula em que foi feita a animadora oferta, ele esboçava projetos, urdia planos, falava sozinho...

Com o trabalho de quase três anos, havia amealhado pecúlio suficiente para levar a cabo o curso. Economizara cerca de 1.500 thalers, soma fabulosa para qualquer estudante, notadamente para ele, familiar das noites ao relento e das gélidas horas de jejum. Mas com o rumo que ora tomava a vida — novo mas não inesperado, que ele tinha cega confiança no destino — bem poderia dispor do pecúlio, melhorando a apagada apresentação social que, amanhã, já não condiria com a sua situação de quase preceptor de príncipes. Além disso, dispunha de crédito, amigos ricos e poderosos...

Caminhava satisfeito, sorria para todas as coisas, devia estar resplandecente. Ao quebrar a primeira esquina, um mendigo caiu-lhe nos braços. Nada mais nada menos que o Andorinha. Esteve a pique de não reconhecê-lo. Se o diacho do rapaz não tivesse lembrado a serenata aos mortos e o rapto da cabrinha, talvez nunca o identificasse naquele vadio.

— Como! Você por aqui?

— Em carne e osso. Há cerca de um ano deixei Gotha.

— Para a Escola Naval, na conquista das estrelinhas de almirante?

— Não. Fugido da polícia. Numa noite de chuva dei várias tesouradas na barriga de um indivíduo.

— Ah!

— Vim a pé. Não sei há quanto tempo não durmo nem sento à mesa para comer.

— Dou-lhe emprego; você vai ser meu mordomo, até poder continuar os estudos navais...

Nesse mesmo dia comprou libré para o Andorinha, alugou um apartamento mobiliado, encheu o guarda-roupa de bem talhadas casacas. Daí por diante, pela mãos dos admiradores, que tinham crescido muito em número, penetrou nos salões literários em voga e onde o brilho de sua inteligência alcançou êxito.

À noite, paravam ricas carruagens à sua porta; eram gentis-homens que iam buscá-lo para concertos, bailes, passeios. Chegou a receber em casa já não a sociedade, que essa era por demais exigente, mas um número escolhido de estudantes, artistas, moças cultas e lindas. Passou a ser disputado e, mais do que nunca, a fazer leilão de amizades. Foi em tal meio que um desmedido orgulho desabrochou em sua alma, tornando-o irreconhecível.

Por esse tempo, supondo-o rico, os pais, que pouco se haviam interessado por ele, começaram a escrever-lhe comovidas cartas. Júlio nem as lia; atirava-as com tédio para o fogão.

O mordomo andava numa dobadoura.

O dinheiro em sua mão escoava-se, como água em cesto.

Esvaziava-se as­sus­ta­do­ra­men­te o cofre.

Por outro lado, o dr. S. demorava-se em apresentar-lhe o jovem duque; nos últimos tempos, sem ao menos uma desculpa, havia suspendido o curso gratuito que lhe ministrava em sua residência. Limitava-se a mandar dizer pelos criados que não estava em casa.

Sobrevieram as dívidas.

Era, pois, necessário acabar com aquilo; chamou o Andorinha e, com a largueza que era muito sua, com o desamor pelo ouro que levava os colegas a chamá-lo de Anárgiro, à semelhança de conceituado santo, passou-lhe para as mãos furadas o que restava da abundância dizendo:

— Salde todas as dívidas; dentro de pouco seremos ricos e célebres.

O Andorinha, nessa mesma noite, fugiu com o dinheiro.

Soube depois que, antes de partir, fora à polícia denunciá-lo como autor de não se sabe quantos crimes; queria, certamente, vê-lo preso para fugir mais à vontade.

Frank só acreditou na infâmia do amigo depois de inutilmente esperá-lo durante três dias. E desde esse momento, a miséria de casaca entrou-lhe pela vida, de onde haviam fugido o tempo e o gosto pelo estudo.

Naquele cenário quase de luxo, passava dias sem almoço. Fazia, às vezes, complicada ginástica a fim de obter a moeda indispensável para tomar o fiacre e apresentar-se no salão onde era esperado. Não raro, era o criado do vizinho quem lhe emprestava vinténs, sob régias promessas.

Pela última vez quis falar ao dr. S. e saber, afinal, quando o pequeno duque iniciaria as lições. Estava cansado de respostas vagas que valiam por evasivas. Chegando à sua casa teve de entender-se com os criados, no patamar da escada. Quando a porta se abriu, lobrigou no cabide chapéus e capas do professor e do duque; naturalmente estavam lá dentro a assentar o horário e a retribuição do seu trabalho. Pensava nisso quando o criado voltou e disse:

— O professor saiu.

— Mas o chapéu e a capa estão lá dentro...

— Não é verdade, digo-lhe eu.

— Está bem...

Retirou-se com um nó na garganta, ao mesmo tempo com vontade de esbofeteá-lo. Na mesma noite veio a saber que o professor S., talvez esclarecido sobre a importância de alcançar a intimidade do duque pelo aparato com que Frank se havia preparado para isso, achou que devia guardar para si honras e proventos. A cólera do estudante subiu então ao auge e, munido de um compasso, ficou horas inteiras rondando a residência do mestre, disposto a vingar-se.

Os amigos começavam a afastar-se de Frank, a princípio discretamente, em seguida sem a menor reserva; seu lugar foi sendo tomado por interesseiros e bajuladores. Despeitado pela ausência de uns e exacerbado pela insistência de outros, descarregou sobre os últimos o mau humor, submetendo-os a descabeladas fantasias. O pior é que eles tudo aceitavam de boa sombra. Era de exasperar. Ao fim de cada ceia, após copiosas libações, tinham de sair para a rua com a roupa pelo avesso, ou com os sapatos trocados, pisando ovos. Prestavam-se de boa mente, achando graça no que lhes era imposto. E o estudante, no paroxismo do desgosto, mordia os pulsos para não gritar.

Os credores entravam de fazer cauda diante da porta. Começaram os pedidos de espera por mais alguns dias, os protestos dos recalcitrantes, as desculpas esfarrapadas, as fugas pela porta de serviço, todo o drama do homem endividado. Adeus estudos, amizades, relações sociais; já não tinha tempo para nada.

No meio da aflição, escreveu uma carta a Weishaupt, lembrando o passado e pedindo-lhe dinheiro. A resposta não se fez esperar; mandou 20 thalers, quantia insignificante para as suas aperturas. Necessitava de muito mais! A seguir, expediu-lhe outra carta, enérgica, desesperada, a que o velho achou prudente não responder. Logo depois, uma terceira, em que lhe atirava em rosto supostos compromissos, supostos crimes. Mas Weishaupt se manteve ainda dessa vez e para sempre numa imperturbável mudez.

Certa manhã, recebeu do porteiro uma carta de Gotha, com as armas do castelo. Abriu-a sofregamente, na esperança de que o conselheiro tivesse resolvido atendê-lo. Mas a carta era de Carlos Frederico, tomado de súbito entusiasmo, congratulando-se com o êxito do filho em Goettingue e pedindo-lhe que, na abastança em que se encontrava, não esquecesse os velhos pais. O estudante primeiro empalideceu, depois escangalhou-se de rir.

Ele, que era o dono da casa, entrava e saía pela escada de serviço e ao longo do caminho topava com os serviçais do prédio que lhe mostravam os dentes com escárnio, como satisfeitos com o desastre. Na Universidade, o seu prestígio havia baixado muito. O professor S. urdia contra ele um enredo de descrédito, sem lhe dar quartel. Amigos e inimigos pareciam eclipsar-se à sua presença. Um ambiente de chumbo esmagava-lhe o derradeiro entusiasmo.

Murmuravam-se intrigas pelos corredores. Adiantava-se que o Conselho Universitário ia reunir-se para expulsá-lo. Que rebentaria um pavoroso escândalo. E o autor de toda a trama de calúnias era o professor do duque. Voltou desesperado para casa, a fim de munir-se de uma arma e ir procurá-lo. Mas quando transpôs o portão, viu as poucas coisas que lhe restavam empilhadas no centro do pátio do prédio; tinha sido despejado. Alguns ociosos, parados diante dos objetos, faziam comentários jocosos.

Desde aquela hora, como desapareceu a noção de si mesmo; tornou-se uma coisa perdida, rolando sem destino pela sarjeta...

Certa noite, ao ser posto fora de uma cervejaria, encontrou o estudante desconhecido, aquele a quem se dirigira pouco depois da chegada a Goettingue. Reconheceu-o logo. Ele tomou-o pelo braço, levou-o para outro lugar e disse-lhe:

— Estou encarregado de comunicar-lhe que você vai ser expulso da Universidade. Seus inimigos trabalham para isso. Acho melhor, portanto, retirar-se de Goettingue por algum tempo, pelo menos até saldar as dívidas, e depois voltar para concluir o curso. Compreende?

Júlio repuxou a boca, num rictus de vencido. O outro, continuou:

— Hoje você dorme no meu quarto, pois eu já tenho quarto; amanhã cedo, embarcará para Berlim e levará com que viver nos primeiros dias... Depois, com vagar, tudo se arranjará...

— E quem faz essas coisas por mim?

— Não sei. Quem me incumbiu da tarefa foi o conselheiro da Universidade.

No dia seguinte, pela manhã, Júlio Frank tomava a diligência e seguia para Berlim. Na praça ainda deserta àquela hora, só ficou uma pessoa a agitar o lenço num adeus — o estudante desconhecido.

* * *


 

VII
UM GRITO DE ANGÚSTIA

 

Em Janeiro de 1828, Júlio Frank contava vinte anos de idade, encontrava-se em Berlim e morava num pobre quarto da Grosse Friedrichstrasse. Tinha a alma aniquilada de um velho, embora de quando em quando, mercê da primavera de seus anos, repontasse uma flor de sonho sobre as ruínas.

Só alimentava um desejo: entrar na Universidade de Berlim e ali completar os estudos. Mas a época não lhe era propícia. O ambiente social e político trepidava; o futuro bem próximo estava grávido de acontecimentos e os estudantes eram tidos quase como inimigos.

A direção da Universidade exigia papéis, documentos, provas de boa conduta... E ele não estava em condições de satisfazer a tais exigências.

Para ganhar o pão, trabalhava como revisor de provas numa pequena tipografia. Dava também lições particulares. Poderia ir assim através da existência. Mas, com o seu talento e o seu temperamento, assustava-o a idéia de gastar a vida inteira naquilo. Nos raros momentos de descanso, atirava-se ao comprido do catre e punha-se a fazer arrojados planos de futuro. Se não fosse um grande homem — era essa a sua obsessão — daria um golpe arriscado, que para tanto lhe não faleciam habilidade e audácia. Mas não faria semelhante coisa; preferia o pão negro da miséria, a que já se havia acostumado.

De quando em quando, passava uma noite de vigília, a escrever versos repassados de profundo misticismo. Bruscamente resolvia partir para a África ou para a Índia, Nova York ou Paris. Mas logo lhe voltava o desejo dominador de prosseguir os estudos universitários. Numa dessas horas de angústia, veio-lhe certa idéia que lhe pareceu assaz razoável: escrever ao conselheiro da Universidade, que mostrara por ele tanta simpatia. Quem sabe lá... Primeiro foi à gaveta e, tomando diversas poesias, escolheu a que melhor dissesse dos seus mais recentes estados de alma. Depois de a ler com vagar, corrigindo aqui e ali, foi para a mesa e copiou-a numa folha de papel. Feita a cópia, pôs-se a caminhar de um lado para outro, pelo quarto, como a conversar consigo mesmo. Em seguida, assentou-se à mesa, molhou no tinteiro a comprida pena de pato e sobre o papel branco traçou com mão febril as palavras que se seguem:

“Venerando sr. conselheiro da Universidade — Há já muito tempo que eu vos devia dizer algo da minha situação e da minha vida. Te-lo-ia feito antes, se o pudesse. Sem dinheiro e sem recomendações, cheguei a Berlim quase sem recursos. Felizmente encontrei logo amigos, uns da Universidade de Leipzigue e outros da de Goettingue, os quais me foram ajudando até que minha situação melhorasse. Neste momento há ainda muito a desejar para que ela seja excelente. As lições que dou garantem-me cama e mesa. Com escritos, trabalhos de revisão, etc., ganho algum dinheiro que, espero, dará, pelo menos, para todo o necessário. Há, porém, um fato que ainda me priva do gozo tranqüilo desta situação: a incerteza de poder ficar aqui. Noutros tempos, para serem acolhidos aqui, os estudantes não precisavam trazer atestados. Depois, porém, que em grande número começaram a vir para cá estudantes exilados ou egressos, a minha matrícula tem esbarrado com muitas dificuldades, acrescendo que, ao chegar, também não dispunha de dinheiro para isso. Animei-me, portanto, a vir à vossa presença para vos pedir me faculteis um meio de obter os recursos de que preciso para saldar o que já devo a meus credores, podendo garantir-vos que tais recursos são principalmente pedidos para esse fim; quanto ao mais, se não fosse o respeito ao que é dos outros e que os outros me merecem, há muito que eu teria tomado outro “caminho”, cujo termo facilmente adivinhais.

Dignai-vos, portanto, vir mais uma vez em meu auxílio, agora com um “atestado” que virá decerto consolidar a minha permanência aqui, fato que por sua vez garantirá o que devo a meus credores, os quais, inteligentes que são, deixarão de parte o lado judicial e o paterno da questão, cientes desde logo de que meu pai, que não me vê com bons olhos desde que nasci, e que jamais dispendeu um vintém comigo, não irá agora dispendê-los em meu favor. Ficareis decerto admirado de ter eu tido a coragem de vir perante vós com este pedido. Mas é que, para mim, a nobreza de vossos sentimentos é penhor da vossa benevolência, não somente com qualquer infeliz, mas também para comigo que, em verdade, sou um desgraçado. Não há dúvida de que só eu sou o culpado da desgraça em que me vejo; mas se conhecêsseis as cousas que levaram a ela, se o meu íntimo fosse visível ao vosso olhar, vós não me condenaríeis “in totum”.

Mui duramente estou eu pagando pelo que pequei; porque, se há uma “vingança terrível”, onde ela está é na consciência de que provocamos nos outros o próprio sofrimento que nos punge. Pudesse eu ter pressentido que iria atolar-me nesse tremedal, não no de maldade (comparativamente menos fundo) mas de baixeza e de desprezo — certo não teria conservado a minha vida até hoje, porque sempre me horripilaram as idéias de maldade e de baixeza, é verdade; mas ainda há em mim um certo pudor congênito — pois se não deixei de praticar atos de que me envergonho, mais desprezível ainda seria eu se tentasse agora fugir-lhes às conseqüências.

Voluntariamente calo a culpabilidade dos outros no meu infortúnio, cujas origens datam da aurora da minha infância, porque cedo tive de passar pelas mais tristes provações. Transbordando em sentimentos de amizade, expus-me ao maior perigo em prol de um amigo, e foi esse amigo quem me denunciou e perdeu. O dinheiro que, para custear os meus estudos, penosamente ganhei na Escola, me foi tirado pelas pessoas mais chegadas. Enfureci-me, não pela perda do dinheiro, mas pelo assassínio do meu ideal. E então, precocemente desenvolvido em todos os sentidos, atirei-me à libertinagem para me vingar do que eu chamava o “meu destino”, esse assassino do meu belíssimo ideal. Sem exceção eu era ilimitadamente louvado por todos os mestres, e da minha parte esforçava-me por pagar-lhes em moeda dobrada. Então, a um indomável orgulho veio associar-se uma enorme ambição de glória que me abriu um caminho completamente errado. Meus pais, porém, o viam com prazer porque, ao palmilhá-lo, eu freqüentava casas de famílias ricas — pois desde os 12 anos de idade que fiquei sem mesa para comer nem roupa para vestir, tendo que adquirir tudo isso à minha custa. Esse o motivo por que me acostumei a uma vida mais livre do que a permitida pelas minhas condições. A ninguém queria eu obedecer, que o meu maior empenho estava em libertar o próximo, no menor lapso de tempo possível, de suas atribulações — pois no tempo em que eu devia estar aprendendo a religião, já o mundo se me afigurava um ridículo teatro de bonecos e o que eu mais queria era “não ser joão-minhoca”, mas simplesmente um “espectador”.

Daí, vieram-me as sátiras que eu aplicava a tudo, principalmente ao burguesismo, ao qual nunca pude submeter-me. Por isso o espírito que me movia era um espírito instável, esquisito e que só encontrava sossego no seu próprio desassossego — também daí o enfado que produziam em mim as minhas relações de amizade quando começava a perdurar sem esperanças de perturbação. Nesses casos, as mais vantajosas dessas relações eram por mim postas em risco de se romperem, não por inúteis, mas porque, oferecidas, me eram incômodas. Era, portanto, fatal o soçobro, tanto mais que fui indo até à zona dos bajuladores, os quais, por um jantar, (e eu lhos pagava diversos) faziam tudo que eu quisesse e até podiam “dançar” a meu gosto. Assim, debaixo de tempestades torrenciais, fi-los sair a cavalo, e o meu ridículo orgulho ficava satisfeito quando, em cumprimento de ordens minhas, praticavam toda espécie de extravagâncias. Mui caro me custou tudo isso e o meu orgulho está hoje horrivelmente abatido.

Eu vos descrevi tais excentricidades para que pudésseis ver até certo ponto o que vai pelo meu íntimo, e que às vezes ainda me domina diabolicamente.

A vossa benevolência me perdoará a extensão desta carta, pois sei que vos interessais por alguém que deseja sinceramente reparar o mal que fez. É por isso que, mais uma vez, me animo e pedir-vos o favor já enunciado, que me trará o sossego de que aqui preciso, que me impedirá que eu seja de novo enxotado como há pouco fui de Goettingue, onde, fiado nas melhores promessas do dr. S., tudo perdi só para o servir. Fiquei sem as suas lições e ele me abandonou, tendo eu caído na triste vida que passei nos últimos dias de minha estada lá. Gratíssimo ser-vos-ei por tamanha bondade. Não a desejo, porém, se entenderdes que não a mereço.

Para obter esse sossego apelei para a Poesia, que é a grande consoladora, e como também rendeis preito às Musas animo-me a vos mandar alguns versos, para verdes que o meu espírito tomou pelo menos outro rumo. Decerto não têm esses versos a vibração que eu lhes daria em melhores tempos. Apesar disso, aí vão eles na falta de coisa melhor, para vos provar que sou grato à vossa indulgência. Escolhi um assunto religioso por ser o que mais corresponde à minha tendência atual. Mas se isso vos desagradar, então permaneça em vós ao menos a lembrança de que o meu pensamento já visa coisas diversas das que visava outrora. No mês vindouro poderei mandar algum dinheiro para Goettingue. Com devotamento. — J. Frank, da Classe de Filosofia — Berlim, 24 de Janeiro de 1828. — Grosse Friedrichstrasse, 174”.

 

Meteu carta e poesia num grande envelope e foi levá-las à estação da posta. E, desde esse momento, começou a sua dolorosa espera. Andava de um lado para outro, falava, gesticulava, sorria, ou ainda passava sarabandas em ignotos interlocutores.

Meses depois, recebeu uma carta que não o alegrou; dentro dela vinha outra, dirigida a um armador de Hamburgo, na qual se pedia que facilitasse o transporte do portador até o Rio de Janeiro. Junto, também vinha uma ordem de 70 thalers em seu nome.

Era o que o conselheiro da Universidade lhe podia fazer.

Pouco tempo depois, tomou a diligência e partiu para Hamburgo. Naquele tempo, quem procurava o Brasil era como quem metia uma só bala no revólver e depois de virar o tambor, até perdê-la de vista, disparava a arma no ouvido. Se a bala estivesse na agulha, era um homem morto; se não estivesse, tinha ainda cinco probabilidades a seu favor.

* * *


 

VIII
A CAMINHO DO BRASIL

 

Em 1828, ainda havia em Hamburgo, no bairro de Saint Pauli, de armadores e embarcadiços, uma esconsa viela que tinha o pitoresco nome de rua do Caçador de Patos. Era estreita, calçada de pedras, sem passeios laterais e descia dos arruinados bastiões para perder-se nos cais do Elba.

De lés a lés, esforçando-se por manter o alinhamento, uniam-se barrigudos sobrados de um andar, com a janela do sótão plantada a meio da platibanda. Nessas trapeiras, geralmente habitadas por trabalhadores do mar, viam-se roupas grosseiras estendidas pelas locarnas, na inútil espera de um raio de sol.

Aquelas casas não eram pintadas e o tempo se encarregava de lhes dar a patina verdoenga tão característica do velho bairro, entalado entre os bastiões e o porto. A rua, por seu lado, não figurava entre as mais freqüentadas. Durante o dia, os transeuntes eram quase sempre os mesmos e poderiam ser contados a dedo: a mulher de lenço na cabeça, xale escuro e cesta debaixo do braço; muitas vezes, um palmipede levantava a tampa da cesta e escancarando as colheres do bico soltava gritos agudos. A segunda figura indefectível dessa ruazinha era o camponês à cata de condução fluvial para o lugarejo ribeirinho; vestia roupa de veludo cosida ao corpo, chapéu enorme e suas pernas arqueadas terminavam em botas de couro, ainda sujas pelas relhas do arado. Mas ainda eram encontradiços por ali o gordo estalajadeiro, de avental e gorro, a espairecer na porta da locanda; o adelo, que costurava sentado numa banqueta defronte do negócio; o caldeireiro, que montava a minúscula oficina diante de cada freguês, soldando bules e frigideiras; o mendigo, sentado no frade-de-pedra, o amolador, postado na esquina, fazendo as lâminas faulharem e cantarem ao ser comidas pelo rebolo e, como encanto da vizinhança, a bonita senhora Helm, na florida varanda de sua casa, distribuindo migalhas de pão aos pássaros — diziam que para mostrar a alvura alpina dos braços.

À noite, porém, o movimento era mais animador. É que a ladeira contava numerosas tavernas em cujas insígnias de lata os mestres pintores se haviam apurado a ilustrar o nome do estabelecimento. Lá estavam “O Rei de Thule”, “A Bela Segadora”, “A Moça de Fukien”, tantas outras casas onde o patesca entrava, tomava uma fieira de copázios de cerveja e comia salsichas a discrição.

Nesses lugares, a “pilsen”, além de gostosa e substancial, era servida por moças de penteado alto, colete de veludo escuro muito justo, e vestidos claros e rodados que mal chegavam aos joelhos, deixando ver botinhas de camurça que se prolongavam perna-a-cima em fitas entrelaçadas. Tais caixeiras não eram absolutamente ferozes, principalmente para os marujos que chegavam do outro lado do mundo e traziam um punhado de moedinhas de ouro amarradas na ponta do lenço de ramagens.

Bebia-se e cantava-se. Da meia-noite para o dia, garganteava-se o coro do “Grumete que foi colher campânulas”. Quando Deus era servido e aparecia o velho do realejo, dançava-se também. Os embarcadiços eram grandes, pesados e lentos como ursos; as caixeiras, para disfarçar as pisadelas, riam como malucas. Uma patuscada de alto lá com ela! Mas à hora de fechar a casa, se o taverneiro encontrava um bêbado debaixo da mesa, tomava-o ao colo como se fora uma criança e, chegando à porta, atirava-o para a sarjeta. Depois, fechava a tasca, corria as tramelas, desligava o martelo da aldrava e ia dormir com Deus e a Virgem Santíssima.

Certa manhã de Outubro, um jovem de vinte e poucos anos, com cara de estudante, segundo a opinião da mulher da cesta que, àquela hora, conversava com o caldeireiro, subiu pela rua do Caçador de Patos, olhando freqüentemente para cima, a fim de ler as tabuletas. Deparando o estalajadeiro que, como de costume, parecia petrificado à porta do seu estabelecimento, desbarretou-se e aventurou um pedido de informação. O homenzarrão levantou o braço de presunto e indicou-lhe uma casa próxima:

— É ali, mas nos fundos.

O transeunte dirigiu-se para o local indicado, que era a “Vaca Lunada”, e viu-se diante de uma sala escura e deserta. Espiou para o interior. Não havia ninguém. As grandes mesas toscas e quadradas tomavam todo o recinto. Junto a elas, alinhavam-se os mochos. Atrás do balcão, erguiam-se os barris de vinho e cerveja. No fundo, em medalhão de terracota, uma cabeça de vaca tendo fino crescente de ouro a servir-lhe de aspas. Era aquela, certamente, a vaca lunada que dava o nome à casa.

— Que quer?

O intruso — que era Júlio Frank — estremeceu. Mas, como observou logo, a voz não saía da cabeça de vaca; quem o interrogava era um rapazelho encarapitado no alto duma pipa, como um gnomo, a trincar maçãs. Então Frank perguntou pela pessoa que procurava e o garoto, sem mesmo olhar para ele, tão habituado parecia a essa pergunta informou:

— No fundo; suba a escada.

O estudante obedeceu. Por cima da tasca havia um escritório. Subia-se pela escadaria de madeira, dum só lance, que começava no fundo da sala, com uma pinha azul na ponta do corrimão, e se esgueirava unida à parede em direção à frente do prédio.

A casa cheirava a cevada podre. O ambiente enjoava de escuro e úmido. Frank teve de parar um pouco diante do primeiro degrau para averiguar se havia ali uma escada ou um poço. Subiu por ela acima, fazendo-a estalar nas traves. Chegando ao patamar, estacou diante de uma porta cerrada sobre a qual se alinhavam os dizeres: “H. B. Schwartz — Agente e fornecedor de navios”. Depois de ligeira hesitação, empurrou a porta e espiou para dentro.

Na sua frente, sentado à mesa, de costas para a janela da rua e visivelmente à espera da pessoa cuja aproximação acompanhara pelo ouvido desde a porta da rua, estava Herr Schwartz. Não podia deixar de ser ele. Era um velho de cara redonda, cercada de um colar de barba grisalha; o cabelo, que começava depois da calva, erguia-se em famoso topete. Vestia rabona cor de rapé e tinha o pescoço envolto numa gravata de seda de três voltas. A pena de pato aparecia por trás da orelha, com a aguçada ponta para a frente. Enquanto esperava, ia calmamente limpando os óculos de aros de chumbo, grandes e redondos, no lenço tabaqueiro.

— Que quer?

— Trago-lhe esta carta da parte de...

— Ah! Sim... Como vai o conselheiro?

— Dando tratos às Musas.

— É o seu fraco — e riu, sem graça.

Schwartz recebeu a missiva, quebrou o sinete verde e leu-a pachorrentamente, até mesmo as saudações protocolares abreviadas. Depois, fincou os olhos em Frank e começou a fazer-lhe perguntas desnecessárias, naturalmente para assegurar-se de que não havia engano de pessoa:

— Como é mesmo seu nome?

— Júlio Frank.

— Judeu?

— Não; meus pais estão ao serviço da corte de Gotha.

— Estudante?

— Sim, senhor.

— Entrou em alguma sarrafuscada?

Frank sorriu discretamente.

— Agora quer mudar de clima, hein?

Novo sorriso.

O velho chamou por um nome qualquer. Um sujeito ruivo, comido pelas sardas, espiou detrás do monte de caixas. Então, recomendou-lhe que conduzisse a Frank e o apresentasse em seu nome ao comandante do barco que ia sair nessa mesma tarde, para transportá-lo até o Rio de Janeiro. O estudante estendeu-lhe a mão, mas Schwartz estava ocupado a cavar uma pitada esquiva no fundo da boceta de rapé.

E os dois jovens se perderam atrás da porta, na treva úmida, que era durante o dia o ambiente da “Vaca Lunada”.

Em St. Pauli o casario escuro se abria diante do rio coalhado de grandes e pequenas embarcações. O homem ruivo levou-o até a beira da água, onde se empilhavam mercadorias. Eram fardos de fazendas, caixas de ferragens, objetos de louça e de vidro, tabaco, bebidas e tudo quanto a longínqua América do Sul comprava aos mercadores da cidade livre de Hamburgo. Apresentou-o ao comandante. Chamava-se Keller, tinha a cabeça embrulhada num lenço de ramagens e quando falava parecia que a ponta do nariz ia tocar no queixo de rabeca. Diante das palavras do ruivo, Keller inspecionou-o de alto a baixo e como o resultado fosse favorável, deu-lhe uma palmada amistosa nas costas:

— Estudante?

— Sim.

— Comprometido?

— Um pouco.

— Em Jena?

— Não; em Goettingue.

— Está bem. Já viajou?

— Nunca.

— Vai gostar. Mas sabe o que o espera?

— Mais ou menos.

— Calor, mosquitos, febre, varíola, escarlatina, uma facada por causa de uma negra...

O estudante pareceu gostar do programa. Então, como um escaler estivesse lotado e pronto para desatracar, Keller mandou que ele embarcasse. Foi assim que Júlio Frank, numa tarde de Outubro, quando os ventos do Mar do Norte varriam as folhas que o outono espalhava à beira dos bastiões, embarcou para o Brasil.

O escaler penetrou na floresta de mastros e foi atracar junto ao costado dum velho lugre. À meia nau, havia uma escada de corda e um braço de verga que servia de guindaste. Enquanto a mercadoria era metida na lona e a lingada içada para o convés, Frank entreteve-se em examinar o navio em que devia seguir viagem. Chamava-se “Alsterbeck”, como, de passagem, vira na popa, em letras brancas. Veleiro de linhas pesadas, para correr à ventura nos mares do sul. Na proa, sob o gurupés, havia uma ondina branca, com as mãos postas na nuca. A seus pés, um tritão em forma de crescente. O casco do navio era coberto de grandes chapas de cobre, unidas por fileiras de rebites. Havia muitos anos fora pintado duma cor cinzenta, mas as junturas das placas estavam azinhavradas, formando listas verticais de cor escura, que morriam na água. No alto, sobre os bordos, apareciam punhos de vergas. E tudo isso balouçava docemente às aragens que enrugavam as águas do rio.

— Ó lá de baixo! Você sobe ou não sobe?

— Está à espera de que o vão buscar?

Ouviram-se grandes risadas. Eram uns homens que fumavam debruçados na amurada. Frank encalistrou com a risota e se pôs a subir canhestramente pela escadinha de cordas. A operação era mais difícil do que se lhe afigurava. Mas era moço. Tinha uns pulsos sólidos. Pôs toda sua força e subiu, chegando lá acima a botar a alma pela boca. Viu-se logo numa roda de marujos alegres e que lhe davam punhadas nas costas como se fossem velhos amigos. No mar, era assim: o convés irmanava os homens com maior facilidade que o leite materno. Deram-lhe logo a maca, o cangirão e o prato de folha. E ele se perdeu entre os moços de bordo.

À tarde estava de um azul pálido quando o comandante deu ordens para levantar as amarras. Os marinheiros subiram como gatos pelas escadinhas das vergas, até os joanetes, largando pano, e breve com um ruido de correntes que entram pelos escovens e se enrolam no paiol da amarra, o navio girou um pouco sobre si mesmo e foi descendo o rio. Das outras embarcações partiram gritos de boa viagem e o “Alsterbeck” desceu por entre as velhas construções ribeirinhas, oscilou às primeiras marolas e se perdeu em direção do Mar do Norte, cujas águas salobras deveria encontrar a uns vinte quilômetros. Depois anoiteceu. Uma lanterna subiu para o topo da mezena. E alta noite, quando Frank acordou, tinha sonhado que estava comendo toucinho cru. E quanto mais comia, mais enjoava. Foi o tempo de correr para a amurada e destripar conscienciosamente o seu mico.

* * *


 

IX
A VIDA DE BORDO

 

A longa viagem foi das melhores, cumprindo o veleiro a maior parte da derrota com ventos propícios e mar chão. Somente cá em baixo, depois da linha equatorial, sobrevieram ponteiros pela noite e o “Alsterbeck” teve de bordejar, de gávea-baixa e papa-figos. A água se encarneirou e nos movimentos de arfagem a crista dos banzeiros cobria de escuma o convés. Mas foi obra de poucas horas; com o amadurecer da manhã, os ventos amainaram, mudando-se em aragens de feição, e o lugre foi docemente conduzido por um mar plano como se sobre ele houvessem vazado pipas de azeite.

Júlio Frank, não obstante, fez má viagem. À partida de Hamburgo seguiram dias de torturante enjoo. Mal se havia reposto, começaram as exigências do mestre, que devendo transportá-lo ao Rio de Janeiro, por uma ordem recebida do capitão, subentendera pesadas condições, reservando ao passageiro duros trabalhos da faxina.

Ainda o sol andava pela casa de Deus e já o mestre ia acordá-lo com palavras que pareciam pedras, metendo-lhe nas mãos endurecidas pelo frio o cabo de uma vassoura, para que baldeasse o convés. Ele subia para a coberta, a tiritar, com as calças arregaçadas até os joelhos e sem camisa, que a sua estava em frangalhos. Ali, espalhava pelo chão punhados de areia grossa e, tomando de um balde, ia colher água salgada que jorrava das mangueiras, ao encontro da amurada, para despejá-la em todos os sentidos, no pavimento. Então, retomava a vassoura e punha-se a esfregar tábua por tábua, até que ficassem espelhantes como para uma festa.

As mãos se lhe empolaram de calos de água que, com o esforço, viraram outras tantas feridas. Passava todo o tempo de mãos fechadas, sem poder abrí-las, nem mesmo para pegar numa daquelas bolachas que mais pareciam rodelas de madeira. Chegou mesmo a hora em que mais doce lhe pareceu o castigo correspondente a uma recusa, do que a submissão a tal regime. Na manhã seguinte, quando o mestre lhe apareceu à beira da tarimba com a ordem e a vassoura, mostrou-lhe as mãos enclavinhadas e disse que não podia fazer a lavagem. A cólera daquele homem endurecido explodiu. O estudante não havia imaginado que à sua primeira recusa desabasse tamanha tempestade. Mas estava por tudo. E como continuasse a recalcitrar, mostrando as mãos deformadas, que sangravam a qualquer movimento, o mestre correu à cabina do capitão, e tais coisas certamente lhe disse que, à volta, trazia ordem de degradá-lo no porão.

— Menos mal... — pensou o estudante, descendo a escada escorregadia à frente do marinheiro.

Lá em baixo, quase às palpadelas, caminharam para a roda-de-proa e, chegando a uma porta baixa e estreita, abriu-a, atirou o rapaz para dentro e fechou-a novamente a chave. Frank deu dois passos e ficou em pé logo adiante, na esperança de acostumar-se à falta de luz para melhor se orientar. Foi bem difícil. Por pouco que o navio balouçasse, ali, à proa, se sentia mais do que em outro ponto.

Quase não se podia suster de pé e a cada balando era atirado para a frente, num chão que lhe fugia, cortado e recortado pelo madeiramente do cavername. Ao alto furava a treva o disco luminoso de uma vigia, mas essa claridade só servia para acentuar a treva da prisão. O ar que respirava era escasso, quente, envenenado de salsugem. Assim mesmo, procurou deitar-se o melhor que pôde, instando para reconciliar o sono tão abrutamente interrompido. Por mais que o cenário o tivesse impressionado, acabou por convir que ainda assim a vida ali era melhor do que passar horas esfregando a carne-viva das mãos no aro do balde e no cabo de vassoura. E nisso pensava quando os olhos se lhe cerraram e pouco a pouco se foi passando da vigília para o sono...

Ainda a dormir, deu um grito; sentira que dentes finos e aguçados tinham começado a comer-lhe a barriga de uma perna. Apalpou o lugar ofendido e sentiu nos dedos a umidade viscosa e quente do sangue. Percebeu ruidos leves, deslizantes, quase imperceptíveis que se perderam no extremo da proa. Ao mesmo tempo, no móvel disco de ouro que a espia atirava sobre o fundo do porão viu passar de fugida um animal escuro e rasteiro. Era uma ratazana que ali morava, talvez o único ser vivo daquela noite, que tinha sido criada juntamente com o navio, na mesma hora em que, no estaleiro de Hamburgo, bateram os últimos curvatões da proa.

Horas depois, já um tanto habituado à treva, observou que essa ratazana era alentada e magra a ponto de se tornar irreconhecível. Deslizava incessantemente pelos cantos, arrastando a cauda, que era do mesmo comprimento do corpo. De quando em quando sentava-se nas patas traseiras e punha-se a espreitá-lo, de olhar guloso. Era ele imobilizar-se um momento e ela se aproximava, esfregando o focinho gélido nas suas pernas nuas. Dava-lhe um ponta-pé, tirando-a para longe, e a cena se interrompia para recomeçar logo depois.

Tinha perdido a noção das horas. Não conseguia fazer cálculo aproximado do tempo que ali estava encerrado. Veio a sede. Veio a fome Sentia brasas na garganta e uma dor pesada no estômago, dor que ia e voltava, como a assinalar as horas das refeições que não fazia. Mais adiante, um suorzinho gelado umedeceu-lhe as fontes e entrou numa espécie de modorra de que só despertava para atirar ponta-pés à ratazana.

Numa hora dum dia qualquer, a porta abriu-se e o mestre apareceu; trazia-lhe a malfadada vassoura e ele a aceitou de boamente, sem tugir nem mugir. Subindo à coberta, viu que amanhecia. A caixa de areia tinha sido levada para o convés e as mangueiras jorravam água do mar. Então, com uma energia de que nunca se julgaria capaz, retomou o trabalho, com fúria, ensanguentando as mãos. Mas o ódio pelo mestre do barco, esse lhe ficara espetado no coração, como um espinho.

Foi aquela a sua vida durante cerca de dois meses, que tanto durou o resto da viagem. O mestre, que se tornara seu solerte inimigo, sem que para tal houvesse motivo, inventou novos trabalhos, reputados ligeiros, como besuntar de graxa os gualdropes, elo por elo, ou desfazer para refazer os rolos de viradores E nessa faina pesada, depois da qual só tinha fôlego para dormir, caindo no sono como pedra em poço, foi assistindo como único aprazimento daquela vida, à mutação rápida de cenário, das cinzas do Mar do Norte à palheta borrada do Equador, do frio anavalhante da Europa batida pelo inverno à torreira dos trópicos ignizados pelo sol.

Mas ainda assim surdiam rixas a bordo e quando o mestre surgia, topava Júlio engalfinhado com o cozinheiro na claridade encardida do paiol da bolacha. À fama de madraço acrescentava a de querençoso e brigão. E quando certa manhã de Janeiro, sob um céu pesado de cumulus, que semelhavam grandes massas arredondadas de algodão debruadas de ouro pelo sol, o navio entrou pela baía, ele julgou que havia chegado ao cabo de seus padecimentos. Teve um profundo suspiro. Mas nesse interim sentiu fundo a ponta daquele ódio do mestre, que lhe feria o coração. Foi procurar o perseguidor. Ele estava chefiando os homens que aparelhavam a verga grande em guindaste, para a descarga. Plantou-se diante do marujo e perguntou-lhe:

— Então, chegamos?

— Como vê...

— Pois então, tome lá!

E atirou naquelas bochechas polpudas uma tão famosa bofetada, que o mestre deu dois passos para trás e caiu sentado num monte de cordas. Foi uma bulha. Os seus homens se atiraram contra o estudante e moeram-no de socos, recolhendo-o novamente ao porão; dessa vez de pernas e braços amarrados, de modo a não poder mover-se. Dali a pouco, descida a tampa do tombadilho, fechada a porta da proa, começou a sua luta com a ratazana.

A princípio, o bicho fugia todas as vezes que ele, mesmo deitado e amarrado, fazia um brusco movimento com o corpo. Mas pouco a pouco deu mostras de compreender que tais movimentos não chegavam a ser uma defesa e se foi desacovardando, tornando-se mais agressiva, a ponto do estudante ter de defender-se com as mesmas armas, voltando-se para o animal e, dentes à mostra, procurar apanhá-lo pelas costas. A cada mordida, ele chiava, saltava, mas para voltar de novo, cada vez com maior voracidade. E a luta prosseguiu sem que ao preso fosse dado contar o tempo.

Na coberta havia ruidos surdos, descarga de mercadorias.

Horas adiante, um bote procedente do outro lado da baía atracou a bombordo do “Alsterbeck”. Pela escadinha de corda subiram um alferes e a sua escolta de três milicianos. O oficial apresentou uma carta ao capitão. Este chamou o mestre e deu-lhe ordem para que entregasse o marinheiro insubordinado. O velho retirou-se e dali a pouco voltou, apresentando Júlio Frank. O preso estava visivelmente satisfeito; respirava a plenos pulmões e enquanto os homens falavam entre si, parecia encantar-se na contemplação, ao longe, do casario branco, de telhados escuros, sobre o qual emergiam as torres das igrejas, tudo batido de chapa pelo sol.

Em virtude de uma queixa do capitão, ia ser recolhido preso à fortaleza da Lage. E, quase satisfeito com a sorte que de um lado o perseguia e de outro o amparava, de um modo misterioso, inexplicável, partiu à frente dos milicianos, descendo pela escadinha, desta vez mais hábil em fazê-lo, para tomar o seu lugar no centro do bote que, a um sinal do alferes, rumou para um penhasco redondo à flor das águas.

Não foi maltratado; o penhasco era extraordinariamente maior do que havia calculado ao aproximar-se, e dentro daquela imensa tartaruga lhe deram uma certa liberdade. Almoçava, jantava e dormia com as praças. Nos primeiros dias sentiu-se embaraçado para se fazer compreender, usando para isso de todas as línguas em que era mestre. Mas, ao escoar das semanas, com a facilidade que era só sua para tais estudos, foi-se apropriando das duzentas palavras com que se exprime o povo e passou a falar com relativa facilidade.

Seu primeiro cuidado foi informar-se do motivo por que estava preso e como lhe disseram que era por insubordinação, respondeu que não sendo marujo, mas passageiro, como se poderia verificar pelos assentamentos do porto, não lhe cabia tal culpa, antes reagira contra violências de que fora vítima. Tais palavras pareceram interessar o oficial que o escutava e que as comunicou aos demais da guarnição e a sua presença foi notada. Condoeram-se do estudante que parecia esquecido, sem roupa, sem dinheiro, naturalmente sem destino. Aproximando-se do preso, verificaram logo tratar-se de um sábio e não faltou quem por ele intercedesse.

Júlio Frank, debruçado na muralha, ouvindo as ondas a cantarem aos pés, passava horas a fio a contemplar a cidade que lhe parecia distribuída em três grandes núcleos, em tudo iguais, tendo ao fundo o decor suntuoso das serras. Nos dias serenos, quando o vento era favorável, chegavam a seus ouvidos os diálogos dos sinos que, em todos os tons, pareciam conversar sobre o casario escuro.

De um dia para outro, trasferiram-no para a mesa dos sargentos e lhe franquearam a entrada na pequena biblioteca da fortaleza, onde, ao lado de obras militares e de legislação, encontrou almanaques, relatórios e livros de viagens. A seguir foram os oficiais que o chamaram para a roda e ele, com a sua vasta cultura, encantou a todos, respondendo primorosamente nos idiomas em que se lhe dirigiam, tornando-se, dentro de pouco, íntimo daquela galharda mocidade.

E a sua situação foi melhorando de tal maneira, que pôde realizar, em parte, um dos seus melhores sonhos: ler à vontade, sem outras preocupações. Passava dias inteiros deitado à sombra da muralha interna, de livro aberto, mergulhado em conspícuos in-folios. Quando o sol, girando, o alcançava, mudava-se para outro posto e estirava-se na veludosa alfombra dos musgos, prosseguindo na leitura. Dentro do forte, o silêncio era completo, a não ser nas horas em que o corneteiro subia para a muralha e com largo fôlego respondia aos toques que chegavam de outras fortalezas. Em cima, um céu escampo; em baixo, um mar caricioso, repetindo uma queixa suave, que devia ter a idade da terra.

Não foi, pois, de boa sombra que ele recebeu a notícia de que se tratava de mandá-lo em liberdade; já se havia habituado àquele monastério. Um sábado, teve ordem de retirar-se. Sobre a tarde, um escaler tomou-o no último degrau da escada verdoenga, talhada na rocha, lixenta de pararangas, que parecia descer até o fundo do mar, e, depois de grandes voltas que pareceram inúteis, foi desembarcá-lo do outro lado da baía, num trapiche do Valongo, entre o outeiro da Saúde e o morro do Livramento.

Estava solto...

Mas para que?

Pôs a mão no bolso e lá encontrou algumas moedas que lhe causaram uma certa repulsa. Sorriu. Era por causa dessa invencível repugnância ao contacto do dinheiro que os seus colegas de Goettingue o chamavam de Anárgiro. Que seria feito desses colegas? Estavam tão longe, tão longe...

* * *


 

X
AO DEUS DARÁ

 

Quando desembarcou anoitecia.

Da terra adusta alava-se o rescaldo da soalheira. Os sinos cantavam Ave-Maria e as primeiras estrelas espiavam, muito pálidas, num céu lavado.

Não foi sem pesar que se despediu daqueles homens chãos que durante a prisão se haviam tornado seus amigos. Depois, como perdido que estava, tomou um caminho em direção da cidade. Nada esperava, a não ser o prazer de andar um pouco em terra solta. Logo adiante, ao lado do trilho riscado na erva rasteira e esturricada, lobrigou, à meia luz, construções baixas e escuras, onde, pelo vozerio, devia estar muita gente reunida e, quando menos esperava, subiu daquelas bandas um coro bárbaro, numa toada estranha, imensamente triste.

Parou. Que seria aquilo? Então, na primeira encruzilhada, leu numa tábua estas palavras mal debuxadas: “Negros bons moços e fortes; os chegados pela última nau com abatimentos”. E compreendeu a melancolia infinita daquele cântico.

Aos poucos, o caminho se tornava rua; ao centro corria uma valeta destinada ao escoamento das enxurradas, mas onde, ao contrário, ela empoçava, cobrindo-se de caniços à cuja sombra as rãs coaxavam e sapos inchados pareciam martelar, como tanoeiros.

Surgiram as primeiras casas de moradia; eram geralmente assobradadas, de portas e janelas estreitas, com qualquer coisa de árabe. Quase todas brancas, com portas de azul ultramar. Mas tudo aquilo lhe pareceu velho, velho de nascença. Como único adorno, no alto da fachada, óculo com roseta de ferro; umas tinham portas com rótulas, outras grosseira armação de madeira, pintada de negro, protegendo as janelas. Mas a sua característica estava nos telhados negros, de quatro águas, como capuzes achatados. Beirais largos, ondulados, quase horizontais, mostravam em cada ângulo uma ponta arrebitada. Em algumas daquelas casas vicejavam plantas nos encontros dos telhados.

Mais adiante começou a aparecer gente; primeiro, negros quase nus, carregando ao ombro vasos de três palmos de altura, à feição de ânforas. Caminhavam em fila, silenciosos. O alemão não se conteve e perguntou o que eram aquelas vasilhas. Um preto respondeu curto:

— É tigre.

— Para que serve? — insistiu ele.

Então o preto mostrou todos os dentes numa risada; chamou os parceiros e trocou língua com eles. Depois, a rua se desmandibulou numa risada, porque o marinheiro não sabia o que ia dentro dos tigres. Afinal, parando para ouvir, o cheiro que se desprendia das vasilhas acabou por esclarecê-lo e Frank compreendeu por que os negros riam.

Mais adiante, à luz dos candieiros alimentados com azeite de peixe, começaram a aparecer as lojas: barbeiros, latoeiros, curtidores, boticas, estancos para a venda de tabaco e, já entrando na cidade, armarinhos, chapelarias, bazares. O centro era mais populoso. Cruzava, andando, por padres, frades, figurões da governança, caixeiros de tamancos, burgueses, pelintras, tipos populares, mendigos, cães sem dono, a ralé das ruas. Passavam por ele as seges, os fiacres e, de raro em raro, um bangüê que chegava de fora; um homem amarrava o cavalo à porta de uma casa de negócio.

Nas esquinas viu nichos de santos. Diante desses oratórios, muitos passantes dobravam um joelho fazendo o pelo-sinal. As casas estavam iluminadas, mas da rua só se percebia a luz pelas frinchas das portas e das janelas.

Depois de dar muitas voltas, cosido às paredes, Júlio Frank, escapou de ficar com a cara amolgada; foi quando um homem, para sair de casa, escancarou a porta; aquelas portas se abriam para fora. Mais tarde, começou a encontrar pretas quitandeiras postadas com seus tabuleiros nas escadinhas das igrejas e nos portões dos teatros. Comprou uma pasta de farinha escura, ardida, onde apareciam postas de peixe.

— Como se chama isto? — perguntou.

— Cuscuz, nhô-nhô.

— Cuscuz, nhô-nhô, — repetiu ele, sem compreender. E seguiu. Quando já não podia mais de fadiga, parou numa casa, diante da qual estavam amarrados alguns cavalos. Tinha porta larga e cortinas ramalhudas nas amplas janelas. No alto um dístico: “Hospedaria”. Ainda não se usavam nomes nas estalagens. Entrou e pediu alojamento. Como a paga fosse adiantada, meteu a mão no bolso s tirou as moedas que trazia consigo, passando-as sem contar às mãos do empregado, que se pôs a rir. Estava muito longe do que se cobrava por uma cama.

O dono quis saber do que se tratava e apareceu. Vendo que o forasteiro não tinha mais, propôs-lhe um serviço:

— Recolhes a lenha, carpes o quintal, lavas a louça e terás casa e comida. Que tal?

Frank aceitou.

Trabalhou nessa casa durante algum tempo.

Era uma das poucas hospedarias da cidade, num tempo em que família que se prezasse não punha os pés em tais estabelecimentos. Ficava na rua dos Barbonos e dava pouso a tropeiros que chegavam das províncias. O salão térreo era uma tasca que funcionava até tarde da noite, com freqüentes rixas nas quais os capoeiras faziam figurações de navalha.

Todas as noites, depois do serviço, Júlio Frank abria a porta do pátio e ia sentar-se ao fundo, encontrando sempre alguém que, a troco de um pouco de conversa, o chamava para a sua mesa. O salão era vasto e de terra batida. Mesas quadradas e mochos de madeira. Do teto escuro, onde panos de vela esticados fingiam de forro, descia um candieiro de seis bicos, alimentado a azeite de peixe, que alumiava frouxamente o recinto. Muita gente, fumaça espessa, um cheiro penetrante de álcool, suor e imundície.

Nas bonitas noites do Rio de Janeiro, chegavam até lá viajantes curiosos. Frank os distinguia no salão, ao primeiro olhar; insinuava-se logo na sua simpatia. Certa noite, abrindo a porta do pátio e esquadrinhando todo o salão, descobriu lá num canto dois jovens que ali deveriam ter chegado movidos pela curiosidade. Encaminhou-se para o local, sentando à mesa mais próxima. Sua presença interessou-os desde logo:

— É marinheiro...

— É comerciante...

— Aposto!

— Pois eu topo a parada!

Então o primeiro que havia falado inclinou-se para Júlio e perguntou-lhe com ar amigável:

— Fala português?

Júlio sorriu.

— Meia dúzia de palavras.

— É marinheiro?

— Não, senhor.

O outro apressou em indagar:

— Então é comerciante?

— Também não.

Os rapazes ficaram curiosos. Júlio Frank disse:

— Na minha terra era estudante; fiz até o terceiro ano da classe de Filosofia da Universidade de Goettingue. Depois abandonei os estudos. Aqui não sei que destino me espera.

Fizeram-no passar para a sua mesa. E como falassem diversas línguas, breve a conversa ficou animada e os estudantes paulistas Oliveira e Aranha mostraram-se contentes de encontrar um tal homem naquela casa em que haviam entrado por desfastio, à cata de sensações novas. Foi precisamente no momento em que faziam essa delicada confissão a Frank, que um capoeira deles se aproximou, gingando, um riso de desafio nos beiços descolados, oferecendo-lhes o copo:

— Bebam, seus moços!

— Obrigado, já estamos servidos.

— Bebam, estou mandando...

Frank, já conhecedor de tais cenas e familiarizado com a topografia da tasca, disse-lhes à socapa:

— Messieurs, suivez moi; il y a une porte à gauche!

Ao mesmo tempo, Oliveira, num gesto brusco, virou a mesa sobre o capoeira, ficando os três rapazes barricados atrás dela. Completando a manobra, Frank, que já havia sofrido em Goettingue as conseqüências de ter boa pontaria, atirou um mocho no lampião, que caiu em cacos, espargindo azeite sobre a assembléia.

Deu-se o tumulto; gritos, pragas, cacetadas, tiros... E aproveitando a confusão que se estabelecera na sala, os jovens saíram guiados por Júlio que, tateando, encontrou a porta lateral, abriu-a cautamente, deu saída aos amigos, fechando-a novamente, pelo lado de fora, para que ninguém viesse no seu encalço.

Atravessaram o pátio deserto, barafustaram para a parte posterior do prédio, saíram para o quintal e de lá saltaram o muro dos fundos, caindo numa rua silente, banhada por um luar a cuja claridade se poderia contar as folhas das árvores. Escutava-se longe o vozerio, o “aqui-del-rei” dos feridos, o tropel da milícia que chegava para restabelecer a ordem.

Assim, dirigiram-se calmamente para a residência em que os dois amigos estavam hospedados. Era fora do centro. Caminhando, Aranha e Oliveira trocaram algumas palavras sobre Júlio Frank. Concordaram em qualquer coisa a seu respeito. Depois, já no portão da chácara, debaixo das trepadeiras em flor que desciam aos cachos do arco de pedra, perguntaram-lhe:

— Onde está hospedado?

Ele riu.

— Perguntamos onde quer que o acompanhemos.

Frank explicou a sua situação.

— Quer ir conosco?

— Quero.

— Mas deve saber que é para muito longe.

— Para mim é o mesmo.

— Um mês a cavalo...

— Melhor. Posso ir buscar a bagagem?

— É muito grande?

Frank achou graça na pergunta.

— Olhe que é para São Paulo...

O estrangeiro parecia não ter uma idéia muito clara a esse respeito. Mas não importava. O que desejava era seguir para a frente. E, com o assentimento dos novos amigos, correu à hospedaria e de lá voltou meia hora depois trazendo uma trouxinha de roupa, livros e manuscritos.

À sua chegada já encontrou homens e cavalos reunidos no portão. Em 1830, os filhos de algo, residentes nas províncias, organizavam verdadeiras caravanas para visitar a corte, onde mantinham casa que só se abria durante as suas visitas. Oliveira e Aranha faziam parte de uma dessas caravanas. Foi justamente na véspera da partida que esses dois rapazes quiseram levar da corte uma impressão mais duradoura e, depois de muitas voltas, foram ter à hospedaria onde o acaso os apresentou a Frank. Enquanto o estudante fora buscar o que lhe pertencia, acordaram os demais componentes do bando jovial; entre eles estava um irmão de Oliveira. Quando lhe contaram a história do novo companheiro de viagem, o jovem riu e disse:

— Pois eu também arranjei outro viajante; chama-se Karl Boerg e é sueco. Quer ir para São Paulo...

— Como se chama mesmo?

— Vamos simplificar: chama-se Carlos Borges.

E Carlos Borges ficou se chamando para o resto da vida.

Enquanto Ditinho e Ditão entregaram-se ao trabalho de preparar um volumoso farnel, a cavalgada partiu; estava entendido que os dois pajens os alcançariam à beira do rio Santa Cruz, por onde passava a estrada real.

A cidade dormia.

Nos nichos das esquinas velava serenamente um pingo de luz.

As casas senhoriais estendiam sombras oblíquas.

Ao passarem pela Candelária, observando que o templo estava aberto e iluminado, consoante costume da época, alguns deles resolveram apear e fazer ali curta encomendação de boa-viagem.

— O Oliveira não vem? — perguntou um do bando.

— Não; o Oliveira é herege... — respondeu Aranha.

Dirigiram-se ao altar-mor, ajoelharam-se, fizeram o pelo-sinal, murmuraram preces. Já à saída, Júlio Frank mostrou-lhes no ângulo da nave um vulto branco deitado entre quatro tocheiros.

— É um defunto; daqui a pouco será enterrado.

— Quero ver.

Os amigos se entreolharam, mas acederam ao pedido. Chegando ao pé do catafalco, levantaram a ponta da mortalha. Um hálito enjoativo tocou-lhes no rosto. O cadáver parecia uma figura de cera, mas apresentava o rosto picado de pequenas borbulhas negras, muito unidas.

— Que é isto? perguntou o alemão, quase tocando com o dedo aqueles pontinhos arroxeados.

O interrogado, com um calafrio que lhe sacudiu todo o corpo respondeu:

— É bexiga.

— Bexiga-pele-de-lixa! ajuntou Aranha.

E logo depois os rapazes partiram no chouto dos cavalos ao longo da estrada batida pelo plenilúnio que parecia acompanhá-los, num céu limpo, sem nuvens nem estrelas.

* * *


 

XI
O CAMINHO DE SÃO PAULO

 

A viagem, como Oliveira havia previsto, foi morosa.

Os cavaleiros não descansaram durante a noite e quando amanheceu estavam nos terrenos alagados do rio Santa Cruz, próximos do primeiro pouso. Como tivesse chovido abundantemente nas serras, as águas rolavam revoltas e barrentas, exceto nas corredeiras, onde a massa líquida se alargava num leque sobre muralhas de pedras soltas. Numa e noutra margem, havia cavaleiros e bangüês retardados pelas dificuldades da travessia.

Júlio Frank, ao invés de procurar, como os demais, os pontos rasos, quis à força vadear o rio na sua montaria, com água pelo pescoço do animal e pelas ilhargas do cavaleiro. Assim, lutando contra a corrente e sempre à espera de perder pé, salvou a outra margem, ante a ansiosa espectativa dos companheiros, cujos cavalos cabritavam sobre os pedregulhos. Nada da vida lhe teria agradado tanto como essa façanha.

Nascido e criado no centro da Europa, manifestava acessos de ternura pela natureza que o agasalhava. Ao longo daquela velha estrada que serpeava pelos valados, grimpava pelas encostas ou se perdia no verde uniforme das planícies, tinha devaneios de namorado e incontidas alegrias de colegial.

Na subida da serra de Itaguaí, que por trabalhosa foi realizada de dia, tantas coisas fez que, por pouco, ficava para sempre abandonado nos grotões.

Depois de muitas vezes apartar-se dos companheiros de viagem, abandonou a estrada real, cheia de barrocas alfombradas de avencas e foi procurar um daqueles olhos de água tão leve e fresca que dá gosto beber e refrescar com ela o rosto afogueado pelo mormaço. Nem se dava ao trabalho de colher a água na concha das mãos unidas, como faziam os outros; deitava-se de bruços à beira da corrente e bebia-a que nem gato, num leito de agriões. Não raro, quando tirava a boca, uma rã fugia; o inexperiente excursionista havia sugado a água nas costas do batráquio, julgando-o pedra coberta de limo...

Num desses extravios perdeu-se.

Os jovens ficaram aflitos com a sua ausência e, desesperados de alcançar ainda aquela tarde o pouso do Arrosal, improvisaram, à meia subida da serra, um rancho onde passarem a noite. Sobre quatro forquilhas de urucurana, com caibros e cercas de taquarussu, uma coberta de palmas. Dentro, sobre alcatifas de folhas de embaúba e de velame, ponches, mantas e palas constituíam as camas. Ao centro, um fogo estralejante. Os animais estavam amarrados pouco adiante, sob a vigilância dos pajens que, mais afeitos àquela vida, se contentaram com fazer fogo, amontoar os arreios e preparar-se para uma noite quase ao relento. Ao anoitecer, saíram pela encosta e deram alguns tiros ao acaso, na esperança de orientarem o extraviado; mas foi tudo inútil.

Com as primeiras estrelas, subiu dos vales uma neblina tenuíssima, mas gélida.

Depois de discutirem sobre a sorte do alemão, já bem arrependidos de o haverem trazido da corte para perdê-lo no matagal bravio, acomodaram-se se ao pé do fogo e, como estavam cansados, foram adormecendo. Noite adiante, porém, os cavalos deram mostras de inquietação, escarvando, forçando as rédeas, sacudindo a árvore a que estavam amarrados. Um dos Oliveiras sentou-se e chamou o Aranha que, por sua vez, arregalara os olhos inquirindo do que havia.

— Está ouvindo?

— Estou.

— Que será?

— Algum morcego que está chupando os animais.

Nesse momento, como para desmentir as suas palavras, escutou-se no pesado silêncio da noite um angustioso miado que tanto podia vir de longe como da brenha escura que rodeava o improvisado rancho. Os cavalos bufaram e ouviu-se o rascar das ferraduras no chão pedregoso. Ao mesmo tempo, a folhagem abriu-se dando passagem a Ditinho e Ditão que se precipitaram no interior do rancho. À luz inquieta da fogueira, seus olhos branquearam:

— Onça!

Começaram então os trabalhos de defesa. Os cavalos foram levados para perto do rancho e os homens escorvaram as lazarinas. Depois, sentados ao redor da fogueira, costas voltadas para as chamas, trabuco entre os joelhos, prontos para levar à cara e disparar, ficaram à espera.

Durante a comprida noite de vigília, escutou-se ora de uma banda ora de outra o miado confrangedor que se elevava no mistério da mata, enchendo céus e terras; a cada uivo a brenha como se recolhia, quedando-se de respiração suspensa, em angustiosa espectativa. Os cavalos pareciam querer fugir deixando a queixada no freio.

Os rapazes só tinham uma preocupação: o companheiro perdido na noite. Houvesse uma só probabilidade de encontrá-lo, eles teriam partido sem hesitar para socorrê-lo. Mas onde se encontraria ele, desarmado e ignorante de tudo que o cercava? Talvez àquela hora já estivesse servindo de pasto à onça esfomeada...

Júlio Frank subiu a um morro; julgando voltar pelo mesmo caminho, na realidade desceu para o lado oposto. Fez novas subidas e descidas. Desorientou-se. E quando deu conta de si achava-se à beira dum vale deserto, sem saber a que distância dos companheiros. Passaram-se horas. O sol descaiu. Uma cheirosa umidade subiu da terra fofa e dos penhascos escuros que se erguiam debaixo de árvores recurvadas, ricas de parasitas. Quando o sol já estava a meia braça do horizonte e as sombras compridas dos morros se alastravam pelo vale, ouviu, alhures, o estalido seco de um tiro. Eram os companheiros, para orientá-lo. Correspondeu com um prolongado grito. Dali a pouco, nova detonação. Gritou pela segunda vez e com redobrada força, pois o pesado silêncio da serra começava a assustá-lo.

Caminhou para as bandas em que se ouviam os tiros. Mas a noite descia muito rápida. As últimas claridades se coagulavam lá embaixo, no vale, em metálicas superfícies de águas. Ainda um disparo que lhe pareceu mais próximo e a que ele correspondeu com aflição. E, à derradeira luz do ocaso, pôde ver sobre o recorte escuro do espigão fronteiro um penacho de fumaça azulada que subia. Então respirou com alívio e para lá se dirigiu numa desabalada carreira, escorregando nos limosos barrancos, tropeçando em pedras e troncos, enredando-se na trama inextricável dos cipós. Durante a noite inteira procurou assim os companheiros.

Ao primeiro arrepio da manhã, no rancho, os viajantes ouviram raspar do lado de fora e os canos das armas voltaram-se rapidamente para aquele ponto; mais um sinal e os tiros partiriam. Foi quando se ouviu uma tossezinha seca, já conhecida de todos, e a cara risonha de Frank apareceu à luz da fogueira, espiando por entre a folhagem.

— O frio pregou-me um resfriado!

— Mas salvou-lhe a vida! — ajuntou Aranha. Se você não tivesse pigarreado, seria fuzilado com seis balázios.

Após os abraços e a enumeração dos perigos a que inutilmente se havia exposto, perdido na serra durante uma noite inteira, negaceado pela gula das onças, o alemão recebeu das mãos de Ditinho uma caneca de café, bem quente, para restaurar-lhe as forças. Riu, conversou, depois sentou-se a um canto e quando já se faziam os arranjos da partida, começou a tremer que nem varas verdes.

— Que tem, Lamão?

— Estou com medo.

— Medo de que? Já passou o perigo...

— Eu sou assim; meu medo vem depois.

Quando o dia dourou as cristas dos morros azuis que se viam na distância e a serra ergueu o hino matinal feito de cantos de aves, de gazarreios de cigarras, de cicios de aragens e de queixumes de fontes, os viajantes partiram por estradas vermelhas. À hora do almoço já estavam no Arrosal. Ali, refeitos e esquecidos dos trabalhos da noite, estiraram-se à sombra de uma jaqueira e dormiram até o entardecer.

Frank foi o primeiro a deixar o pouso e ir para a estrada. Ao pé dos cavalos aparelhados e prontos para a partida, encontrou Ditinho e Ditão, que pareciam mariscar na enxurrada.

— Que é que vocês estão catando?

— Ouro.

— Ouro?

Ditinho juntou um punhado de terra e levou-a ao alemão. Este recebeu-a, escura e gotejante, e ficou-se a admirar as minúsculas palhetas que faiscavam à derradeira claridade do sol. Absorveu-se na contemplação, depois falou:

— O Absoluto manifesta-se em ritmos. Vocês compreendem?

Ditão arreganhou-se num sorriso.

— É assim mesmo. O dia e a noite, o fluxo e o refluxo das marés, as estações e as luas, tudo isso é a expressão de uma lei que mal compreendemos. A involução correspondendo a um pensamento do Absoluto, desceu até o reino mineral, até o ouro. No fim de cada involução está uma palheta de ouro. O universo material está como numa caixa de ouro. Não é isso?

Ditinho fez um gesto de pleno acordo...

— Do ouro, último limite da expansão que criou os mundos, inicia-se a evolução, a onda que sobe de reino a reino, chega ao homem, ultrapassa o homem e perde-se na ascenção para reintegrar-se no Absoluto. O ouro, porém...

Os outros rapazes chegaram, palradores, como um bando de maitacas. Júlio Frank perdeu o fio das considerações, montou a cavalo e partiu com os demais. No entanto, desde aquele dia, os dois pajens passaram a espreitá-lo com olhos ressabiados...

Próximo a Silveiras, Júlio Frank esteve a pique de ficar. À beira da estrada havia uma vendola de sitiante das vizinhanças. Nas prateleiras vazias, as aranhas teciam felpudas teias. Uma gradezinha, na extremidade do balcão, defendia meia dúzia de garrafas e copos oitavados. Pelos cantos, alguns mantimentos. Mas na frente da casa tinham serrado duas árvores, a três palmos do chão, e corrido sobre os troncos larga tábua, formando um banco. Ali, enquanto os companheiros dormiam, no fundo da casa, sobre os pelegos, os pajens trabalhavam na cozinha e os cavalos pastavam no campo, ele se deitou e abriu um livro.

Mas não conseguiu ler uma só página. Perto, corria um riacho e as águas cantavam tão docemente... Mil variedades de passarinhos gritavam, cantavam, arrulhavam, chiavam, gemiam, trinavam, ciciavam, chamavam pelas companheiras nas copas ressoantes, batidas pelo sol... Nas extremidades da casa havia laranjeiras, mamoeiros, bananeiras, toda uma paisagem tropical que o enchia de preguiça e de sonho. E daí, a tranqüilidade, a frescura, o prazer que se respirava naquele cantinho perdido do mundo. Esteve longo tempo embebido na contemplação, até que o livro caiu para o lado.

Entrava suavemente no sono quando “seu” Joaquim, o dono da venda, que havia gostado do viajante, lhe trouxe um martelo de aguardente com limão e açúcar. Ele agradeceu e enquanto o homenzinho se sentava a seu lado, talvez para matar a curiosidade, pôs-se a chuchurrear a bebida. E a conversa se foi animando. Contou-lhe as peripécias em que tinha tomado parte.

Confessou ter desejos de acabar os dias num lugar como aquele, entre a riqueza das paisagens e a alegria das églogas. Por seu lado, o vendeiro dedicava-se a outros negócios e era prejudicado pelas horas gastas atrás do balcão, que por sinal quase nada rendia. Depois dessa conversa o viajante já estava resolvido a quedar-se ali, tomando conta do negócio, enquanto “seu” Joaquim andasse a tratar da vida...

Quando o almoço foi servido na mesa da cozinha e os companheiros se reuniram diante da paçoca com arroz, Júlio Frank estava outro. Tiveram um trabalhão para arrancar-lhe a idéia de ficar ali; foi, pois a contragosto que logo depois montou a cavalo e partiu com os demais.

Uma tarde em que a sombra azulada da Mantiqueira se estendia sobre o caminho, ele, filósofo e poeta, deixou-se empolgar pela beleza grave da hora e, dando de esporas no cavalo, adiantou-se cerca de meia légua dos companheiros. Sentia um imenso prazer em tais correrias; engolfava-se em altos pensamentos e de quando em quando repetia com delícia versos que havia muito lhe cantavam nos ouvidos. A solidão exaltava-o. Foi num desses momentos que, numa encruzilhada, teve curioso encontro. Olhando para o lado da serra, já envolta no sudário das sombras, viu que um cavaleiro se aproximava, seguido de diversas pessoas a pé. Esse cavaleiro, porém, apresentava algo de diferente. Que seria aquilo? O animal parecia trotar sob a ação do pavor, meio arqueado e forçando as pontas dos cascos. Um homem de lenço na cabeça, puxava-o fortemente pelo cabresto. E o grupo se aproximava. Observou ainda mais que o viajante não segurava a rédea e mantinha os braços meio abertos; só se sustentava erguido porque lhe haviam amarrado os pés por baixo da barriga do animal. Com a andadura, ele, muito rígido, oscilava para diante e para trás. Então, Júlio Frank afastou-se para o lado, a fim de dar passagem àquela gente. Mas os cabelos se lhe arrepiaram e um suor frio lhe umedeceu as têmporas. O cavaleiro era um defunto. Frank tirou o chapéu à sua passagem e, dirigindo-se à última pessoa da comitiva, indagou:

— Que é isso, meu amigo?

O outro deu-lhe uma explicação banal:

— Ele morreu na serra, a vinte léguas daqui; nós o trazemos para enterrar no sagrado.

E, na outra curva da estrada, o estranho bando foi engulido pela noite.

Chegaram a São Paulo num enevoado entardecer. Os amigos foram visitar os parentes, apresentando-o nas salas dos nobres sobradões, onde pelo brilho da inteligência e profundo saber encantou a quantos o ouviram. Por esse tempo já se esforçava em falar a língua da terra, pela qual sempre deu preferência, o que não era explicável num tempo em que a idéia da criação dos cursos jurídicos em São Paulo tinha merecido severas críticas pelo fato — segundo se alegava — de que os paulistas falavam uma língua detestável.

Regressando à chácara do Ferrão, onde os cavalos tinham ficado a pastar sob a figueira, o grupo se repartiu. Os Oliveiras e Frank seguiram para a vila de Sorocaba e Aranha com outros rapazes tomaram a direção de Campinas. Assim, despediram-se à margem do Tamanduateí. Os de Campinas tomaram pela ponte de Miguel Carlos. Já longe, voltavam-se para trás e agitavam no ar os chapéus de abas largas, que usavam em viagem, e os outros da mesma forma correspondiam ao cumprimento.

Carlos Boerg ficou em São Paulo, integrou-se na população, desapareceu. Nunca mais se falou nele. Os Borges louros e de olhos claros que às vezes encontramos devem ser seus descendentes.

* * *


 

XII
EM IPANEMA

 

No dia seguinte chegaram a Sorocaba. Frank acompanhou o amigo até a fazenda e hospedou-se em sua casa. Nas conversas da noite, num largo alpendre todo estrelado de jasmins, concertaram o meio mais viável de encaminhar o jovem em sua nova existência. Ficou assentado que muito cedo ele partiria para Ipanema, a poucas léguas dali, onde a mineração e a fundição de ferro estavam em plena atividade, dirigidas por empregados alemães trazidos pelo capitão Varnhagen.

Ao alvorecer, Oliveira foi acordar Frank no “quarto dos hóspedes”. Todas as casas tinham quartos destinados às visitas. Não raro, um hóspede demorava-se meses, com a família, as mucamas e os cavalos. Observavam-se algumas semelhanças de vida entre a antiga fazenda e o castelo; é que nossos avós, em suas propriedades, dispunham de uma verdadeira corte com os tipos correspondentes à famulagem dos senhores medievos, encontrando-se até mesmo o bobo, que, para o caso, era o mumbava, sujeito exótico, atilado, espirituoso ou abobado, que aderia à casa e gozava de certas regalias.

Levantando-se, Frank tomou café com sequilhos e outras misturas e declarou-se pronto. Oliveira levou-o até o portão, onde estavam dois cavalos encilhados. Um era para o estudante, outro para o Ditinho, que lhe ensinaria a estrada e, na volta, traria o cavalo. Nesse momento o dono da casa lembrou-se de que o rapaz estava muito pobre de roupas e quis dar-lhe algumas das suas, mas observou logo que ambos eram de físico assaz diferente; enquanto ele era gordo e alto, Frank era de estatura média. Não lhe transmitiu, pois, o seu pensamento.

Depois das despedidas, Oliveira deu-lhe uma carta para um dos diretores de mineração e o estudante e seu escudeiro partiram na direção do Morro do Ferro. A viagem a princípio foi muito boa, sob a umidade do sereno, mas, com o passar do tempo, desceu sobre a estrada um sol causticante que lhe queimava as mãos e o rosto. Cerca de meio-dia, já à vista das pedreiras e dos fornos, desceram à porta de uma venda, amarraram os cavalos e pediram alguma coisa para comer. O vendeiro levou o alemão para a sua mesa e mandou o pajem para a cozinha, onde havia outros parceiros.

Frank estava com um belo apetite. Saboreou o quibebe, o virado com torresmo e uma famosa galinha afogada que ainda por muito tempo ficou na sua memória.

— Quer uma uvaia?

— Bebe-se?

— Bebe-se.

— Então quero.

O vendeiro trouxe um cális da infusão. Depois perguntou-lhe se queria um com limão. Queria. A seguir, mostrou-lhe caiapiá, sucupira e pau-pr’a-tudo. Frank quis saber o nome daquela sinfonia degustativa e o vendeiro, timidamente, arriscou:

— É mata-bicho.

— Mata-bicho — repetiu Frank — e depois de traduzir e de meditar sobre o assunto, declarou que em quase todas as línguas da Europa há a mesma expressão, correspondente a usos e crenças da Idade Média.

O vendeiro não lhe quis cobrar o almoço; não gostou mesmo que falasse em preço.

Chegando a Ipanema, procurou um diretor do serviço e entregou-lhe a carta que trazia consigo. Depois de algumas consultas, declarou-lhe que estava aceito, para modesto serviço e minguado salário, pois no momento nada havia de melhor. Frank passou o seu dinheiro para o escravo, despediu-se e enquanto o preto se afastava levando um cavalo pelo cabresto, foi tomar posse do alojamento que lhe haviam indicado.

Era uma das muitas casinhas que bordavam a encosta do morro; de taipa, constituída dum só compartimento, com um fogo no centro e um catre de cada lado. Seu companheiro era também alemão, um homem baixo e escuro, endurecido pelo serviço. Contra toda a espectativa, não simpatizou com Frank e passava dias sem lhe dar palavra. Por seu lado, Frank não gostou dele e durante todo o tempo que lá esteve viveram em franca hostilidade.

Um dia, chamado ao escritório por intrigas do companheiro de casa, o mestre-fundidor perguntou-lhe:

— Por que motivo o Fred não gosta de você?

— É uma questão antiga.

— Então já se conheciam?

— Já. Em 1399, ele foi meu carcereiro. Uma noite, porém, quando todos dormiam, eu lhe tomei a chave da prisão, amarrei-o e fugi. No dia seguinte, enforcaram-no. Desde essa aventura, ocorrida há mais de 400 anos, ele nunca mais me pôde ver com bons olhos...

O mestre examinou-o atentamente e mandou-o para o serviço.

A vida em Ipanema sufocava-o. Os negros, quase nus, trabalhavam de sol a sol, arrancando blocos da pedreira e conduzindo-os para a usina; ali, outros escravos, munidos de sócos, transformavam a pedra férrea em cascalhos; em seguida, nos vastos carumbés equilibrados na cabeça, sobre rodilhas de pano, levavam o material para os fornos que permaneciam acesos dia e noite. Por bicas laterais era descarregado o metal ígneo sobre formas de terra, que o moldavam em barras, mais tarde forjadas e laminadas. Havia também os lenhadores que lombavam bosques inteiros reduzidos a carvão, para alimentar a gula das fornalhas. O povo que lá trabalhava era calado e áspero. Os próprios patrícios de Frank, com a mesma desconfiança do companheiro de quarto, olhavam-no de atravessado, achando a sua presença ali um tanto suspeita.

O poeta exilado inclinou-se para os pretos, afetivos e sofredores. Tratava-os de igual para igual, com desaprovação dos chefes.

Muita vez foi surpreendido lá embaixo, no outro grupo de casas que formavam quadrado à beira do riacho, apresentando uma única entrada para o pátio sobre o qual davam todas as portas. Era a senzala. Gostava de lá penetrar, sentar-se num pilão, à beira do fogo, e escutar horas a fio a queixa lamurienta dos escravos. Um dos feitores não simpatizava com aquela aproximação e ia buscá-lo sob pretextos mal alinhavados. E, no caminho, explicando-lhe o que havia de ruim em tais amizades, sentenciava:

— Lé com lé, cré com cré...

Isso, porém, não impediu que a senzala dedicasse desde logo ao Lamão uma cálida simpatia de animal acarinhado. Mas uma tarde de primeiro de Novembro aquilo devia acabar. Era dia santo, véspera de dia santo. Os trabalhos estavam suspensos, as pedreiras, tão movimentadas durante a semana, apareciam desertas e dos fornos quase extintos elevava-se um penacho de fumaça azul que as brisas esgarçavam a duas braças de altura. Desde pela manhã o pessoal andava à solta.

Sobre a tarde, depois de uma jornada de calor intenso, os morros e os matagais pareciam tomar um banho de azul. Ventos das várzeas ciciavam nas folhas; um cheiro agradável subia dos pastos esturricados. Então, como deliciados pela doçura da hora, os trabalhadores se foram espalhando pelos capões escuros, onde haviam iscado mundéus; as mulheres desciam ao córrego para recolher a roupa enxaguada que coarava nas guanchumas. Por seu lado, Frank também desapareceu. Esse fato aguçou a curiosidade malévola dos feitores, que o sabiam de dares e tomares com a senzala. Andavam de olho nele; estavam certos de achá-lo nalgum zungu.

Não andavam longe da verdade. O místico, o protegido de Weishaupt, tinha a fascinação dos ritos índios e africanos, como se observa em mais dum passo da sua biografia. Filósofo e enamorado de seus estudos, fez o que mais tarde fizeram Nina Rodrigues e outros; procurou conhecer o estrelado mistério da alma africana. Por isso, naquela tarde, a convite de uma preta velha, foi assistir ao recebimento de um ogan, ou protetor de terreiro. Havia semanas que ele não pensava noutra coisa. Quando escureceu de todo e a bolha imensa do plenilúnio se elevou por trás dos morros, homens e mulheres, isoladamente ou em pequenos grupos, começaram a escoar-se na direção do Monjolo, onde ficava o sítio de Pai Florêncio. Era ali o cangerê. Acompanhou-os.

Depois de quase uma hora de caminho, começaram a ouvir o rumor compassado e suave, na distância, dos atambaques, acompanhados por canzás, tambús e egogôs e pelos gemidos das puitas. O alemão era conduzido pela velha, uma preta nagô, cuja idade parecia impossível precisar, mas que contava ter sido apresada na África quando já era avó, chegando ao Rio de Janeiro ainda no tempo dos vice-reis. À proporção que se adiantavam, aquele ruido se foi tornando mais forte até distinguirem também, como num fundo vocal, o alarido que o acompanhava de vozes e cânticos.

Breve chegaram a uma tapera sobre cujas taipas felpudas de gramíneas havia crescido e esgalhado uma árvore. Ali era o terreiro de Pai Florêncio, numa área limpa e enxuta sobre a qual árvores velhas debruçavam a ramaria espessa. Cerca de quarenta homens e mulheres, quase todos conhecidos de Frank, encontravam-se reunidos, enquanto à beira dos esborcinados paredões alguns homens percutiam gravemente nos seus instrumentos. Entre os últimos chegados estava o ogan, um certo Damião, plantador de fumo em Sorocaba. A aproximação do aspirante foi recebida com bulhentas demonstrações de alegria.

A toada cessou. Fez-se um grande silêncio. A velha tomou a mão de Damião e conduziu-o ao centro do terreiro, onde crepitava um grande fogo, e fê-lo sentar-se numa tripeça sobre a qual haviam arcado um ramo de flores silvestres; depois atirou-lhe sobre os ombros um pano da Costa, repetindo sempre, em melopeia, palavras africanas. Terminada a oração, convidou-o a levantar-se, cobriu-o com um grande pano quadrado de gorgorão com franjas douradas; quatro pretinhas seguraram nas pontas desse manto e, assim, num passo grave, o neófito e as filhas de santo fizeram, sob uma alegria doida dos circunstantes, a volta do terreiro. Ao passar pelos músicos, a mulher que dirigia a cerimônia fez o ogan atirar um punhado de vinténs, símbolo de auxílio.

Depois desse ritual, Damião foi levado à presença de Pai Florêncio, um preto velho que de tão mirrado mais parecia anão; tinha enrolado à cabeça um lenço vermelho, de ramagens, e mostrava a tiracolo um picuá de couro de coatí, ressecado como madeira. Estava de cócoras, ao pé de uma armação de panos, alumiado por uma vela de cera virgem cor de tabaco. Quando ele se ergueu para abraçar e beijar Damião, a guaiaca chocalhou, mostrando que estava cheia de pequenos objetos.

Terminados os cumprimentos de recepção, Pai Florêncio abriu a patrona e do meio de ervas tirou uma imagem de São Jorge, talhada em pedra negra, proferiu palavras ininteligíveis, encarando o céu com olhos cerrados e entregou a imagem a Damião com estas palavras:

— É Ogun, o Santo do terreiro; que feche o corpo e traga bênção.

Só então, acostumando à escuridade reinante ao pé do cirio, Frank viu que estava diante do pegi, ou altar; sobre o pai de santo e a linha de umbandas, erguia-se uma bandeira com o emblema do arixá e os dourados rebrilhavam à inquieta claridade.

Uma pretinha que até ali estivera sentada a um canto, com a cabeça fincada entre os joelhos ósseos, ergueu-se de súbito, esticou-se toda, levantou o queixo para o céu e, sonambulando, avançou para o terreiro; girou sobre si mesma, inteiriçou-se ainda mais e começou a dança que pouco a pouco se foi tornando clownesca. A véstia que lhe cobria o dorso rasgou-se de alto a baixo e depois caiu em trapos, mostrando o torso esquelético e um peito cavo onde, apesar disso, erguiam-se as frutas negras dos seios. Dali a pouco, foi a saia de chita listada que descaiu ao longo das pernas finas e ágeis, amontoando-se nos pés. Cobrindo-lhe o esqueleto só ficou uma veste curta e branca, muito branca, através da qual se via a sombra da epiderme; nas voltas malucas, apegava-se às carnes lavadas e com os bruscos movimentos se foi dilacerando, até desaparecer num bocado de trapo amarfanhado, a gotejar suor.

Em seguida a filha-de-santo começou a dizer farrapos de frases, como presa de um sonho agitado. Depois esses balbucios se foram transformando num canto em língua misteriosa e quando a camisa acabou de desaparecer de todo em seu corpo, e ela ficou toda nua, rígida e angulosa, ouviram-se gritos roucos pela noite:

— Exú! Exú!

A preta ainda quis dar alguns passos, mas os membros se lhe tornaram de pau, os olhos vidraram no fundo das órbitas, a magreza aumentou; então, mais reta, com os braços grudados ao longo do corpo, ergueu-se nas extremidades dos pés, talvez nas pontas dos dedões, cresceu desmesuradamente e caiu para a frente, com um estalido seco, como tábua desamparada.

As vozes repetiam, soturnas:

— Exú! Exú !

Cada preto gritava pelo nome do seu arixá e na balbúrdia que se fez, só os umbandas, de cócoras, de barrete para a frente, pareciam mergulhados no silêncio do outro mundo. E assim que Exú, o príncipe das forças contrárias, desceu sobre a filha-de-santo que o havia invocado com seus cânticos e danças, para retê-lo preso, Pai Florêncio recebeu o santo protetor. Ergueu-se, ficou como cego por ignotas claridades, e, enrolando a língua, pôs-se a falar na sua fala africana. Em rigor não dizia nada; eram palavras descosidas, exclamações, cochichos. Era uma linguagem de sonho em que cada negro ouvia e compreendia aquilo que mais desejava. E as dores foram desfilando diante do pai-de-santo, numa angústia, para ouvir de sua boca a palavra de conforto, a única que restava na terra onde tudo lhes era tirado, até mesmo a religião que haviam mamado no leite e que não é mais ingênua do que qualquer outra das muitas que, desde que mundo é mundo, fazem a felicidade dos homens.

Quando o último sofredor teve o seu quinhão de consolo, os homens rodearam a fogueira e trataram de fazer assados no espeto em honra do santo. Enquanto a carne chiava, a caneca de cachaça com gengibre corria de boca em boca; dançava-se e amava-se ao clarão sobrenatural daquela fogueira, numa cálida noite de Todos-os-Santos.

Ao primeiro albor da manhã, quando se ouvia nas copas o despertar das aves e a carícia das brisas, todos dormiam a sono solto, um sono pesado, irmão da morte. Foi nessa hora que alguns latidos de cachorro-de-boiadeiro alarmaram o silêncio da tapera e logo depois os molossos se atiraram de presas à mostra contra os corpos inanimados e em mistura, que dormiam. Atrás dos cães apareceram os capitães-de-mato, munidos de anginhos, chicotes e trabucos, dando cerco ao zungu. Negros e negras foram presos, amarrados e conduzidos para Ipanema, onde os esperava o castigo.

Frank havia partido antes de amanhecer, mas quando lá chegou já estavam as contas feitas e a ordem de sumir-se imediatamente. Nessa mesma tarde, seguiu a pé para Sorocaba, por um caminho em que havia onças e a cada curva um passarinho diabólico chamava os andantes pelo nome, ou então com aflitos apelos:

— Psiu! Psiu!

Júlio Frank voltava-se e não via ninguém.

Ao passar pelas santas-cruzes, tirava o chapéu, entrava e punha uma moeda no cofre das almas. Aquele filósofo tinha todas as superstições.

* * *


 

XIII
A VENDA DA COBRA

 

Tomando o caminho de Sorocaba, Frank pensava em procurar um dos dois Oliveiras que três meses antes, em companhia de outros amigos, o trouxeram da corte. Antes de chegar à vila dirigiu-se à sua fazenda, que não era próxima, e lá chegando inteirou-se de que o seu protetor já se havia reposto da trabalhosa visita ao Rio de Janeiro e àquela hora — segundo lhe contaram pessoas da família — já se encontrava de viagem para as Missões.

Ao saber de tais coisas o rapaz ficou apreensivo e resolveu prosseguir imediatamente para a vila, que julgava próxima. Tomou uma estrada qualquer. Na primeira encruzilhada virou à esquerda. Depois desorientou-se. E ao alcançar as primeiras casas contaram-lhe que se havia enganado, em lugar de dirigir-se para Sorocaba, descera para Campo Largo, lugarejo que distava cerca de três léguas da vila e onde também havia ranchos de tropeiros e pastos para descanso de animais.

Desciam as sombras da noite. As pessoas que topava pelo caminho pareciam-lhe hostis. Se ao menos encontrasse por ali uma daquelas festivas hospedarias da corte! Fazendo tais reflexões caminhou para o largo de São Benedito, que era muito extenso, quase inteiramente tomado pelos ranchos de pouso, onde os tropeiros passavam os dias, enquanto os animais eram reunidos nas mangueiras, preparando-se para a partida. Os tropeiros de Sorocaba eram conhecidos em todo o país.

Aquela noite era véspera de uma das periódicas partidas de tropas e o largo estava movimentadíssimo. Diante de cada rancho ardia uma fogueira. À roda delas, aquecidos e alumiados pelas chamas, sentavam-se tropeiros. Havia os que cantavam, os que pontilhavam na viola, os que contavam histórias, os que jogavam búzio, os que atalhavam cangalhas e ainda os que não faziam coisa alguma, na muda contemplação das brasas, que são alegres ou tristes, sempre de acordo com o que vai na alma de cada um.

Dentro dos ranchos, havia outros fogos. Da trempe descia uma corrente aguentando o caldeirão. Sobre o tacurú, que era um fogão feito com três pedras, a chaleira do café. Ao pé dos giraus, enquanto os caldeirões ferviam, os piás, meninos de 13 a 15 anos que acompanhavam a tropa, contavam bravatas e esgrimiam com os cambitos. Durante a noite, nos ranchos de pouso, ao longo das estradas, esses futuros tropeiros cozinhavam o almoço e o jantar para o dia seguinte.

Júlio gostou do que via e foi-se chegando. A princípio, manteve-se afastado, ao pé de uma fogueira deserta, como a observar o movimento que ia pelos ranchos. Depois, lá no fundo, alguém se interessou por ele e chamou-o para a roda. Agradeceu, já na língua da terra, que ele, durante o resto da vida havia de preferir ao português, e acocorou-se entre aqueles homens requeimados e duros, que pareciam de aço. Nesse momento, o piá trouxe uma caneca de quentão e lha entregou. Provou, saboreou e como a língua desemperrasse, começou a falar de Ipanema, donde acabava de chegar. Não queria fazer de noite o estirão entre Campo Largo e a vila. Procurava pouso.

— Se vancê não percisa mais que teiado e fogo, fique no rancho; isto aqui é de Deus e dos tropero...

Meia hora depois já havia conquistado a confiança difícil mas larga dos sorocabanos. Era Lamão prá cá, Lamão prá lá... À hora de dormir proporcionaram-lhe um canto e muito mais do que fogo e teto, que haviam oferecido. Deram-lhe uma grande caneca de café com quitanda, um pelego para forrar o chão e um ponche para que se embrulhasse, por causa do frio que se fazia sentir e que aumentaria com o abrir da manhã. Como a canseira lhe partisse os ossos e o sono pesasse que nem chumbo nas pálpebras, não esperou mais e foi acomodar-se. De quando em quando, acordava e via do seu posto o movimento noturno dos tropeiros que se aprestavam para a partida e as fogueiras que lentamente se iam extinguindo na noite alvacenta de neblina.

Acordou alta madrugada com o ruido que faziam aqueles homens arrastando bruacas. As esporas riscavam o chão socado. Ainda estava escuro e os tropeiros já reuniam os animais. Ouvia-se por toda parte o cincerro das madrinhas. As mulas chegavam ariscas, batendo os cascos, corcoveando a qualquer contato; formavam em tropa na embocadura do caminho que deveriam seguir, enquanto os capatazes, a cavalo, galopavam duma banda para outra, gritavam, enchiam a praça com as asas esvoaçantes dos seus palas. Eram uns homens geralmente altos, magros e bronzeados; vestiam calça larga, de droguete escuro, botas de couro de veado, chapéu de aba larga, lenço róseo ou azul-claro no pescoço e, por cima da véstia, traziam o pala listado de tons amarelados com as franjas esgarçadas.

Enquanto uns se preparavam para a partida, outros iam para a venda do Bernardo, que ficava na esquina da igreja, tomar um gole de pinga, abastecer-se de fumo, palhas de cigarro, iscas e trem de fogo. O dono era um velho ituano que conhecia toda gente, toda, e nisso punha sua vaidade. Quando Júlio Frank transpôs a porta, ele esquadrinhou-o e disse:

— Esse é que é o Lamão.

— Vancê me conhece?

— Não. Nunca tinha visto, mas já me falaram dum lamão letrado, amigo dos Oliveiras... Eu assim que olhei atinei logo.

— Pois é.

— Veio de Ipanema?

— Cheguei ontem, à noitinha.

— Não se deu bem com aquilo?

— Malemá.

O vendeiro sabia tudo. Então, pediu-lhe que indicasse o caminho da vila, o que ele fez com gosto. Nas despedidas, porém, chamou-o de parte e preveniu-o de que estava sendo reparado como dado a valentias...

— Eu? — admirou-se Frank — pois se até nem uso faca na cinta!

— É por isso mesmo; tão dizendo que é prá intimá. É como quem diz assim: prá esses quiréra nem faca perciso.

Seguiu a pé para a vila. Palmilhou caminhos quentes, vermelhos e fundos como navalhadas. Eram três léguas de campos, onde rareavam as árvores, encontrando de longe a longe um escuro capão batido pelo sol.

Profundamente cavado pelos carros-de-bois e pelas enxurradas, o caminho dava infinitas voltas pelas colinas, parecendo ter pena de chegar. Horas depois, começaram a aparecer as roças, os pequenos sítios se foram amiudando; ao contornar um daqueles morros baixos, apareceu uma cruz no horizonte; debaixo da cruz estava a torre e debaixo da torre o casario alvejando.

O centro urbano espalhava-se desordenamente: eram casas baixas, caiadas, de telhado escuro, na sua maior parte de quatro águas e alguns sobrados. O madeiramento das portas e janelas parecia excessivamente largo, dadas as proporções dos edifícios, e era pintado de azul ultramar ou castanho. Muitos apresentavam na frontaria, em baixo, uma barra pintada a óca ou roxo-rei, dum metro de altura.

Por toda parte esgueiravam-se ladeiras mansas, sulcadas pelas enxurradas. Erguiam-se barrancos desmoronados pelas chuvas, onde vicejavam capins e cipós. Nessas plantas silvestres, havia bailes de borboletas. Entre as vivendas, estendiam-se taipas e sobre estas apareciam copas de mamoeiros e largas folhas de bananeiras e de muito arvoredo. Abundavam flores de maracujá; nas corolas zumbiam esvoaçando as abelhas. A qualquer hora do dia que se atentasse o ouvido, escutavam-se o cantar dum galo, o latir dum cão, o rinchar dum cavalo, o tinir de guizos ou o prolongado e triste chiar dum carro-de-bois.

Antes de chegar ao centro, Júlio Frank entrou numa venda. Era a Venda da Cobra. Nem viv’alma. O andante esperou. Dali a meia hora entrou o dono da casa, desculpando-se:

— Perdoe a demora, que só estou eu para servir a gente.

— Não tem caixeiro?

— Tinha; desde já hoje não tenho mais.

— Que é feito dele?

— Foi-se embora.

— Se precisa de outro, estou às ordens.

O dono da casa atirou-lhe uma olhadela perquiridora. Depois de esquadrinhá-lo da cabeça aos pés, aventurou:

— Percisar, perciso; mas isso depende... Vê-se logo que não tem prática do ramo, mas, em tendo caráter e boa vontade, com o tempo irá desasnando...

Ficou como caixeiro. O serviço não requeria grande aprendizado e, no mesmo dia, tomou conta da venda. Dormia nos fundos, numa cama de tábuas sobre caixões. Enquanto seu Balbino — era assim que se chamava o vendeiro — ia a São Paulo e por lá ficava, uns diziam que a negócios, outros que para arrulhar ao colo de uma tal Rosalina da Conceição ou matar o tempo na orelha da sota, ele atendia à escassa freguesia.

A Venda da Cobra era uma casa de esquina com três degraus de pedra para a rua que descia. Do outro lado não tinha portas, estendia-se a parede branqueada a tabatinga, onde pintor canhestro havia brochado o nome do estabelecimento. Depois dessa parede, estendia-se carcomida taipa destelhada que, adiante, terminava num terreno encapoeirado. Pastavam ali cabras, porcos e galinhas; crianças de camisa de chita florada trepavam pelas cercas.

A venda era muito pobre: barril de cachaça, rolo de fumo, garrafas, botijas, latas de pólvora, saquinhos de chumbo, caixa de tampa com diversos compartimentos de mantimento. Nas prateleiras, viam-se também miudezas. O balcão era escuro, alisado pelo uso, com cobres pregados ao redor da fenda por onde caía o dinheiro na gaveta.

A freguesia era vasqueira. De quando em quando, um caipira que descia a rua, apeava e amarrava o animal na argola do oitão e ia tomar um gole, para limpar o pigarro, dando dois dedos de prosa fiada. O Lamão, como passou a ser tratado o caixeiro, continuava a ter escrúpulos de pegar em dinheiro; quando o freguês lhe dava o preço certo da bebida, mostrava-lhe a fenda do balcão, entre as moedas pregadas, e dizia-lhe:

— Ponha aí.

E o cobre caía com tinido peculiar. Mas quando era preciso dar trocos, ele ficava atarantado; abria a gaveta e catava os vinténs com as pontas dos dedos, alinhando-os no balcão, como se fossem coisas repelentes. Em seguida, ía lavar as mãos.

Essas e outras singularidades do caixeiro causaram muita estranheza nos primeiros dias, mas com o correr do tempo, os freqüentadores da venda manifestavam até um certo prazer em assistir a tais micagens. Outra praxe do Lamão era compartilhar dos pedidos dos fregueses. Entrava alguém e pedia um vintém de pinga. Ele punha dois martelos pelo meio — um para o freguês, outro para o caixeiro. Entrava outra pessoa e, apalpando a barriga, lamentava-se:

— A móde que tô doente. A gente véve morrê-morrendo. Bote aí uma pinga com genebra...

A cena se repetia; dois goles, um gole para o recém-chegado, outro para ele.

Frank andava de chinelas de liga; a barba e os cabelos compridos desciam em mechas pelas fontes e na nuca, por cima da camisa. Vestia calça e camisa de algodãozinho riscado. O estudante de Goettingue desaparecera completamente; daquele tempo só lhe havia ficado o gosto pela leitura. Por isso continuava a trazer sempre consigo um alfarrábio e, sentando-se nos degraus de pedra da escada da rua, enquanto a vila dormia ao sol, sem outro ruido além do carro de boi que passava ao longe, ele mergulhava em gregos e latinos.

Em frente, morava o boticário Anacleto. Era considerado o sábio da vila e, com o aparecimento de Júlio Frank, cujo saber se fazia conhecido, o homenzinho azedou de ciúme e passou a fazer-lhe picuinhas. “Seu” Anacleto era o fabricante duma famosa garrafada que curava todas feridas, mesmo quando apostemadas. Na porta de sua casa havia um papagaio que, à passagem de alguém, gritava para a rua:

— Tem ferida? Tem ferida?

Uma pajem da casa do Anacleto chamava-se Serelepe. Era parda-clara, de cabelo quase liso e contava cerca de 18 anos. Engraçara-se com o caixeiro desde que, indo à venda comprar agulhas, fora servida por ele. Serelepe pajeava um pequerrucho, netinho do Anacleto. Passava o dia inteiro na janela defronte da venda, com a criança nos braços. Era ver Júlio e começava a beijar de tal modo o pequenino que este, depois de defender-se com unhas e dentes, acabava por gritar com desespero.

Sempre que Serelepe arranjava um pretexto, corria à venda:

— Seu Lamão, um cruzado de chá da Índia...

Ele que estava a ler, encarava-a com ódio, fechava o livro e ia servi-la. Mas a pequena animava-se toda diante do rapaz. Os grandes olhos pestanhudos velavam-se de sonhos, a boca polpuda sorria, os seios de fruta verde arfavam. Tinha um fraco dolorido pelo caixeiro. Mas Júlio não percebia aquilo, antes se amofinava com tais compras justamente na hora em que a leitura mais interessante se lhe tornava.

Mas o namoro, pelo menos do lado dela, foi progredindo. De quando em quando, ao comprar dez réis de sal, atirava-lhe uma flor do mato. Outra vez, era um botão de rosa, que ela mesma lhe espetava na casa da camisa. O moço agradecia inexpressivamente, com uma cara tão chata que fazia dó. Mais tarde, ela atravessava a rua, correndo, e lhe oferecia um pé-de-moleque, em forma de coração, que trazia escondido numa dobra do avental.

— Tome, cabelo-de-mio; fui eu que fiz prá você!

Mas a indiferença do caixeiro continuava tão dolorosa que, certa vez, enquanto ele media farinha de mandioca, Serelepe perguntou-lhe animada:

— Seu Lamão, por que que vassuncê não gosta da gente?

Estava diante dele, entregue; de braços caídos, amarfanhava com os dedos a roupa estreita, de chita riscada, que lhe acentuava as formas de âmbar.

Frank sorriu. Sorriu melancolicamente, compreendendo que ela era a felicidade, a felicidade de qualquer rapaz da vila, menos a dele. A moça, de seu lado sentiu que tinha feito tolice e correu envergonhada para casa, onde Anacleto já havia notado a assiduidade com que ela ia à venda da Cobra.

Desde aquele dia, o namoro infeliz de Serelepe tornou-se paixão. Ela entristeceu, adoeceu. O caixeiro vivia indiferente a tudo que não fossem os livros. E ela a cercá-lo por toda parte, a mandar-lhe pelos moleques, recados, flores, cocadas-mulatinhas, fitas, recortes de figuras nas quais se viam pombinhas voando, com um coração pendente do bico...

Dentro de pouco tempo, os estudantes da cidade já conheciam a cultura daquele homem. Todas as tardes, ao sair da escola, vinham pedir que lhes ensinasse a resolver problemas de álgebra, conjugar verbos, ou verter frases para o latim. Ele os atendia com gosto; estava mesmo no seu elemento. E, com o passar dos dias, a Venda da Cobra foi ficando às moscas. Só era procurada pela juventude das escolas. O balcão encheu-se de livros, cadernos, apontamentos, uma coisa horrível que afugentou os bebedores da vila.

Um dia Balbino chegou de São Paulo, fugindo dos braços morenos da Rosalina da Conceição e do baralho, e declarou que ia liquidar a Venda da Cobra; Júlio Frank fez um embrulho dos oito livros, que eram tudo quanto possuía, e lá se foi... A venda já estava liquidada antes da decisão do vendeiro.

* * *


 

XIV
A ESCOLINHA

 

“Tem ferida? Tem ferida?”

Era o papagaio que gritava na porta do Anacleto.

Júlio Frank abandonou a contragosto a Venda da Cobra, onde havia passado tão boas horas; sentiu uma certa tristeza ao escutar aquela arenga do papagaio, a que se havia habituado e que, certamente, não mais ouviria. Já na esquina, voltou-se para trás; “seu” Balbino estava de martelo em punho, pregando a porta. Na casa fronteira, com a criança no colo, Serelepe pendurava-se na janela para acompanhá-lo com os olhos ansiosos. Paixão de cabocla. E Frank sorriu embevecido.

Caminhando em direção do centro da vila, foi encontrando seus amigos e lhes contou tudo o que havia ocorrido. E como souberam da sua desdita, puseram-se logo a procurar o meio de ampará-lo, não somente pelos nobres sentimentos que floriam seus jovens corações, mas também para não perderem, com a ausência daquele homem, um douto e dedicado mestre.

Um deles alvitrou a criação de uma escola, pois assim o professor ganharia a vida na sua profissão e os alunos, freqüentando-a, aproveitariam. A idéia foi logo aceita, embora inçada de dificuldades. A principal, com certeza, era o estado de penúria em que ele se encontrava e a falta duma sala adequada à nova escola. Quanto a dinheiro, arranja-se — disseram alguns dos rapazes — mas a sala?

Foi então lembrada a casa do Anacleto, onde havia uma sala desocupada. Discutiu-se acaloradamente o assunto. A seguir, enquanto alguns rapazes iam ter com as suas famílias, a fim de pedirem dinheiro para a escola e manter na cidade o professor, que já se havia tornado indispensável, ele em pessoa se dirigiu à casa do boticário. Quando lá chegou, o papagaio saudou-o com a frase de sempre, a única do repertório.

Frank bateu palmas. Serelepe veio atender e ficou atarantada quando, ao abrir a porta, deparou com o rapaz diante dela, a virar o chapéu nas mãos e ainda mais perturbada se sentiu quando ele disse que desejava entender-se com o Anacleto. Foi preciso chamá-la à realidade, repetindo o pedido com acento de ordem. A pardinha desapareceu no corredor e logo depois ouviu-se um pigarro e um pausado arrastar de chinelas. Era o dono da casa. Ao ver Frank em pé diante de sua porta, sungou para a testa os aros de chumbo e fixou no rapaz olhos piscos.

Anacleto devia andar pelos sessenta anos; era baixo, encardido, de cabelos cinzentos e raros. Usava calças de enfiar que caíam sobre as chinelas destripadas. A camisa de chita estava sempre aberta no peito, mostrando copiosa capilaridade; dum lado, as fraldas sungadas desciam por sobre a cinta de couro com fivela de metal. Uma das suas características era andar sempre a “vender farinha”, como se dizia então.

Regozijou-se ao ver que seu competidor o procurava e num rápido pensamento resolveu deslumbrá-lo naquela visita.

— “Seu” Anacleto: eu estou tratando de instalar uma escola e preciso arrendar uma sala. Como me informaram que o senhor tem um cômodo desocupado, vim até aqui para ver se fazemos um acordo.

— Entre para conversar.

Só então a porta se abriu de todo e Frank transpôs o limiar. Um cheiro de ervas fervidas em xarope entrou-lhe pelas narinas. Apesar do dia resplandecente, a casa estava na penumbra. Quando se habituou à escuridão, viu que se encontrava num largo corredor com portas sem folhas, dum lado para a sala de visitas e de outro para o quarto de dormir.

Móveis quase nenhuns. No quarto, aparecia a cama do casal, coberta por fina colcha de crivos sobre cobertor vermelho. Ao lado a cômoda, com três ordens de gavetas; sobre o paninho de ramagens que a cobria, viam-se bugigangas coloridas. No fundo, pousado sobre uma cantoneira, o oratório com suas flores e fitas e, dentro do nicho, perenemente a arder, a luz de uma lamparina. Pelas paredes, imagens, palmas bentas, o histórico véu de noivado já um tanto ruço pela fumaça e a poeira.

Na sala fronteira, justamente aquela em que Serelepe ficava o dia inteiro debruçada à janela, com o pequerrucho nos braços, havia um grande sofá de braços retorcidos para fora e assento esgarçado, de palhinha amarela; dois consolos com vasos viuvos de corolas, folhinhas de parede, um ramo de flores de pano, já descoradas, e uma pequena estante onde apareciam lombadas escuras.

Toda a casa era de chão batido, tornado negro com o tempo. A cozinha parecia o maior compartimento da residência. Era telha-vã, mostrando o esqueleto da cumieira, das vigas, dos pés-direitos, dos caibros e das ripas. Mas tudo aquilo era negro como se fora pintado a alcatrão; o madeiramento estava revestido de uma grossa craca de picumã e pelos cantos desciam teias-de-aranha que mais pareciam farrapos de crepe.

— Venha ver como se faz a minha garrafada...

Frank aproximou-se do fogão que tomava boa parte da cozinha; era construído de pedra, com chapa de ferro e provido de várias bocas-de-fogo. A fornalha estava atulhada de troncos, aveludados de musgos; os mais verdes chiavam e crepitavam, descochando cordas de fumaça. Lambido pelas labaredas, fervia um largo tacho de cobre, de bojo amolachado e reluzente, onde se apurava o xarope. Duas pretas da casa, de saias rodadas e ramalhudas, mas apenas em corpinho, desfaziam molhos de ervas, punhados de cascas, cipós cortados em rodelas, na calda de açúcar mascavo.

De tempo a tempo, a fervura inchava e uma onda ruiva que parecia cuspir queimaduras ameaçava escalar os bordos da vasilha. Então, uma das pretas tirava a escumadeira, que estava pendurada no canto da janela, e passava-a pelo espesso líquido, levantando resíduos negros e bolhas irisadas que atirava para o quintal. E a fervura abaixava no fundo do tacho.

Na mesa encardida, que tomava quase todo o outro lado da cozinha alinhavam-se garrafas limpas, com rolhas de madeira, muito bem aparadas. Era nessas garrafas que Anacleto vendia o específico contra as perebas. E explicava:

— São rolhas de caixeta do brejo. Corto-as pelo minguante e entalho-as a canivete, nos dias de chuva.

Naquele momento, defronte da casa, um viajante apeou do cavalo e bateu à porta com o cabo do relho. Serelepe, que andava se trançando pela visitas, atendeu-o. Era um doente chegado de longe, trazido pela fama da garrafada que, como afirmava o boticário, corria mundo. Contavam-se curas assombrosas, milagres. O enfermo era homem alto, magro, cor de azeitona, com um lenço vermelho, de ramagens, enrolado na cabeça, e pontas caídas nos ombros. Caminhava vagarosamente e empestava o ar com cheiro de botica. Parou na porta do corredor e saudou os dois homens que o esperavam ao fundo, perto do fogão. Anacleto caminhou para ele e cumulou-o de perguntas:

— Donde é vassuncê?

— De Parnaíba.

— E quem lhe falou no meu remédio?

— O Maneco da Bandeira do Divino.

— Sei quem é. Curei a filha, que tinha um cupim no joelho. Mas vamos ver isso...

O visitante arregaçou a calça e mostrou a canela avermelhada, com listas roxas, tendo ao meio uma crosta escura, como placa de terra. Anacleto abaixou-se e com uma unha comprida e suja raspou a crosta. O doente torceu-se de dor.

— É um panelão. Mas com três garrafadas das minhas vassuncê está bom dentro de pouco tempo. Quer levar as garrafas? São dois mil e quatrocentos.

— Pois que vá, já tenho gasto tanto...

Enquanto Anacleto foi ao quarto buscar as garrafas já prontas, o viajante realizou a operação de tirar o dinheiro, amarrado numa das pontas de outro lenço que trazia no fundo da algibeira. Contou miudamente as moedas e deu-as a Anacleto, que por sua vez repetiu a contagem.

Depois que o doente se foi, entre votos de melhoras e de boa viagem, Anacleto levou Frank ao quarto dos fundos, que havia muitos anos se destinava a guardar arreios, palhas de milho, graxa de carro e móveis fora de uso. Tinha entrada livre, ao lado da casa, por um caminho de granxumas que ia dar na cerca.

Frank agradou-se do compartimento; para transformar aquilo numa sala de aula bem pouco precisaria. Já lá estavam a mesa e os mochos, embora alguns deles manquejassem. O boticário pediu-lhe mil e duzentos mensais pelo aluguel do quarto, uma extorsão, mas ele aceitou.

No dia seguinte já havia ali uma estante pregada à parede, tinteiros, penas de pato, livros, cadernos de papel. Frank continuava a não pegar em dinheiro. Fazia a lista do que precisava e quando algum dos alunos fazia questão de lhe dar uns cobres, tinha de acrescentar que era para as despesas da escola. Ele mandava o ofertante colocar as moedas numa cuia que se achava no alto, entre a parede e o telhado.

Dava lições metade do dia; os estudantes chegavam aos grupos de três e quatro e sentavam-se à porta, a recordar a matéria, enquanto outros recebiam explicações diante da mesa. No teto de telha-vã havia ninhos e os filhotes faziam um chiado ensurdecedor. Não raro, por esse motivo, ele cortava o fio da lição e se punha a rir, olhando para cima.

Então, pela claridade da janela, via-se a sua figura como num quadro: era de estatura mediana, cabelos louros, olhos azuis e, naquele tempo, uma barbinha rala que se adensava ao chegar ao queixo. Durante as aulas, andava sempre de mãos cruzadas sobre as costas, palmas abertas, dedos retesados. Falava descansadamente, empregando o mais que podia expressões paulistas. Quando alguém lhe perguntava pelo lugar da província em que havia nascido, mostrava-se contente por se haver de todo confundido com o nosso povo. Ao lado disso, quando o chamavam de Lamão, também não conseguia esconder um grande contentamento.

A escola prosseguiu até o fim do ano e os alunos já se preparavam para ir a São Paulo prestar exames no Curso Anexo à Faculdade de Direito, quando alguém observou que, dessa maneira, iam perder o professor. Os estudantes não estavam dispostos a isso e, depois de cada um deles conversar com os pais, chegaram a uma conclusão: levar consigo o mestre.

Mas Frank, tão esquisito, desejaria ir para São Paulo? Consultaram-no e ele aceitou. A partida deveria dar-se logo depois.

Serelepe, meses atrás, quando soube que Júlio ia morar naquele quarto, foi tomada de grande satisfação. Na hora em que o Anacleto a mandou retirar as velharias do compartimento e limpá-lo o melhor que pudesse, ela tomou da vassoura de piassaba e pôs mão à obra. Deixou que nem um brinco. A seguir, sob as ordens de Frank, organizou a escolinha, tão rústica e bonita, a ponto dos estudantes que por lá passaram nunca mais se terem esquecido dela. Serelepe, todas as manhãs, levava uma caneca de café com biscoitos para o professor, que era muito dorminhoco.

Lia até tarde, e, no dia seguinte, para acordar, era preciso a moça bater à porta com uma acha de lenha. Ela fazia-o a rir, um tanto penalizada, mas cumprindo ordens que ele próprio lhe havia dado. A verdade, porém, é que a paixão de Serelepe continuava na mesma; o alemão ignorava completamente aquele sentimento, embora ela lhe desse demonstrações e até mesmo lho tivesse dito logo no começo, quando Frank ainda trabalhava na Venda da Cobra.

Uma noite, Anacleto recebeu visitas. Quando Serelepe apareceu na varanda com a bandeja de café, ouviu esta frase inesperada: “Amanhã os moços vão para São Paulo e levam consigo o professor alemão”. As xícaras tiniram na bandeja. As visitas pareceram gastar um ano para beber o café. Uma ansiedade angustiosa pesou-lhe no peito, como pedra. Assim que pôde, recebeu as xícaras, botou a bandeja na mesa da cozinha e correu para o quintal, a fim de perguntar a Frank se ele ia de fato para São Paulo. Mas, ao chegar na escola, já quando ia bater à porta, estacou. Não tinha forças para tanto. E ali ficou, banzando, entre o amor que sentia e a inutilidade de ir dizer-lhe que não a deixasse para sempre.

A noite estava que era um dia. As árvores dormiam. Não se ouvia nada, nem o aflar de uma asa perdida. O vago olor das flores silvestres embalsamava o ambiente. E Serelepe, não tendo forças para segui-lo, quis ao menos vê-lo pela última vez; acercou-se da porta e, pelo buraco da fechadura, espiou para dentro, na esperança de encontrá-lo à mesa, com um livro aberto à luz da vela de sebo...

Todos os móveis do quarto tinham sido amontoados a um canto, Frank, envergando uma camisola alvíssima que lhe chegava ao pés, acercou-se do quadro e, tirando a pedra de giz, traçou no chão um grande círculo. Orientando-se pelos pontos cardeais, fez quatro pequenos círculos nas margens da circunferência, inscrevendo nomes nessas rodinhas. Depois, no centro do grande círculo traçou um menor, rabiscando ainda qualquer coisa. Parecia um padre na missa. Acendeu quatro velas e, a dizer baixinho qualquer coisa, colocou-as em cruz nos pontos assinalados da circunferência. Desapareceu um momento da vista de Serelepe para voltar com um espadim debaixo do braço, a ponta para trás. Então, postando-se na roda do centro, começou a falar em voz baixa. Das velas subiam cordões de fumaça escura. Em pé, de braços cruzados, continuou a falar até que, de repente, tomando a espada, começou a espetar qualquer coisa que devia estar diante dele, ameaçando-o, mas que Serelepe não via. Vencido o inimigo, fincou a espada, no chão, ao seu lado, talvez à espera de novo assalto, e começou a conversar em tom natural com alguém que devia estar ali, mas que ela também não via.

De repente, como assaltado à traição, deu um grito e levou a mão à espada, mas esta resvalou e foi cair fora do círculo, derrubando duas velas. Então dentro do quarto parece que se fez o caos, porque as duas velas restantes também se apagaram e Serelepe passou a ouvir o barulho da luta de um homem, não contra outro homem, mas contra cem. A moça deu um grito e caiu desmaiada junto à porta da escola. Nunca soube quanto tempo ali ficou. Pela madrugada voltou para a casa de Anacleto e não mais quis ver o diabólico rapaz.

Dois dias depois, ao alvorecer, estudantes e professor partiram para São Paulo em numerosa e alegre cavalgada.

* * *


 

XV
A CIDADE DA GAROA E DAS MANTILHAS

 

Depois de haverem jantado na povoação de Pinheiros, os viajantes montaram novamente e se fizeram a passo pelos altos do Caguassú, em direção da cidade. Passaram por sítios e chácaras e, já ao escurecer, encontraram os primeiros sobrados da rua do Paredão. Desceram para o Piques. A Pirâmide, cuja cantaria ainda não havia sido escurecida pelo tempo, aparecia muito branca, debaixo de árvores esgalhadas e nuas. Ao lado, ficava o chafariz; da carranca de pedra descia um fio de água.

Estavam, afinal, na cidade, mas uma cidade de 11.000 almas, de casas velhas e compridas taipas, onde cerca de 300 estudantes, apesar da sua boa vontade, não bastavam para fazê-la alegre.

Ali os viajantes apearam para matar a sede. E ainda estavam a afrouxar os cigarros de palha quando viram aproximar-se alguns sentenciados que, dois a dois, ligados por grilhetas, acendiam os revérberos. Atravessaram a ponte sobre o Anhangabaú, chegaram à esquina dum velho sobrado, desceram o lampião por meio da corda que corria sobre carretilha e o acenderam. Depois daquela luzinha, a noite pareceu ficar mais escura. É que naquele tempo, conta o velho Vieira Bueno, a iluminação pública era deficientíssima. “Uma enorme geringonça de ferro pendurada, pregada na parede de uma esquina, estendia por cima da rua um longo braço em cuja extremidade estava pendurado um lampião. Colocados de longe em longe, e só nas ruas principais, a luz desses lampiões, alimentada com azeite de peixe, difundia uma claridade mortiça que só iluminava um pequeno espaço, projetando longas sombras movediças quando o vento os balouçava”. E só eram acendidos quando a lua, a lua enevoada das noites paulistanas, dava ponto.

Do Anhangabaú subia o coro melancólico da saparia.

Já era, pois, noite fechada quando os rapazes retomaram o caminho do centro; atravessaram a ponte, entraram na ladeira e subiram até o largo do Ouvidor. Na esquina de baixo havia uma venda aberta, iluminada, com homens encostados ao balcão e cavalos amarrados à porta. Júlio Frank esteve para apear do cavalo, mas um dos companheiros aproximou-se e conseguiu demovê-lo dessa idéia, mostrando-lhe à direita com a ponta do chicote:

— Venha ver a Academia!

Ele adiantou-se e, do fundo do largo do Ouvidor, viu uma entrada de convento que, da torre para a esquerda, se estendia num prédio baixo de beiral mais escuro, com duas ordens de janelas. Diante da porta do convento era o largo do Capim e, no meio desse pequeno pátio, erguia-se a sombra de um cruzeiro a cujos pés tremeluziam dezenas de velas.

Entrando na rua de São José, passaram pela relação do “Observador Constitucional”. Frank voltou-se para trás e perguntou:

— Este é que era o jornal do médico italiano?

— É sim, do Botas.

Cruzaram a rua de Santo Antônio, que passava diante do convento, a Direita, e prosseguiram em direção do pátio de São Bento. Mas, antes de chegar, apenas atravessada a ladeira do Acú, pararam diante da casa de Joaquim Elias, que dava fundos para o Anhangabaú. A frente era baixa, com uma porta e três janelas; o fundo, assobradado.

Era uma das muitas “repúblicas” de estudantes. Alugada por um que podia dar ao proprietário as garantias exigidas, era sustentada mediante quotizações mensais: cada um dos hóspedes entrava com a sua parte não só para pagar o aluguel como também para a compra de mantimento e a paga à preta velha que se encarregava da cozinha. Júlio Frank vinha na companhia de estudantes sorocabanos, quase todos de famílias de prol, e a sua chegada já era esperada. Por isso, apenas apeou e passou as rédeas ao moleque que devia recolher o cavalo à cocheira, foi levado ao seu pequeno quarto, situado nos fundos.

Sobre a cama, estavam o robição de briche, as calças de ganga amarela, as meias de seda, os sapatos de fivela prateada e o chapéu alto de abas reviradas, que era o luxo dos acadêmicos. Experimentou. Tudo aquilo lhe ia que nem uma luva. Deu uns passos pelo quarto, mirou-se no espelho que se equilibrava sobre o lavatório e foi para a janela, a ver o que havia lá para os fundos.

Um quadro cheio de tristeza, a que o coaxar das rãs ainda tornava mais lúgubre. Na noite viam-se distantes e raros os fogos-fátuos dos lampiões. Algumas portas e rótulas cerradas do beco do Sapo, que lhe ficava debaixo da vista, deixavam aparecer fitas de claridade. Havia também diversas portas quebrando a escuridão, que deviam ser casas de negócio. À direita passava o córrego cujas águas se distinguiam apenas por serem mais escuras do que a noite. O resto era um casario baixo que ia rareando e desaparecendo à medida que se afastava.

Nesse ponto, um dos rapazes da “república”, o Ourique, aliás Antônio Alexandrino Passos Ourique, chegou-se por detrás e assustou-o com a sua voz:

— Isso tudo é muito feio, mas quando a gente chega a conhecer acaba por gostar. Há mesmo os que nunca mais deixam esta cidade, e os que um dia se vão passam a vida inteira com saudades.

Debruçou-se também à janela e com um dedo sábio descreveu o que se via:

— Isto aqui é o que nós chamamos a Cidade Nova, não sei porque. Ali, depois da ladeira do Acú, segue a ladeira de São João Batista. Aquelas ruas que mal se vêem são as do Tanque e de Santa Ifigênia. Há também a rua Triste e a rua Alegre que, como na vida, correm paralelamente. Lá está o largo do Zuniga, onde nascem as águas más do Yacuba.

— E do outro lado?

— O centro habitado vai ali do largo de São Bento até o largo de São Gonçalo; aqui da rua de São José até a rua de Santa Teresa, entre o largo do Carmo e a rua Tabatinguera. Mas o centro mesmo da cidade é ainda o largo da Sé. O pátio de São Francisco, onde ainda há pouco você devia ter visto a Academia, é rodeado por quarteirões cortados pela rua do Jogo da Bola e pelo beco da Casa Santa. Ali pelas imediações há ainda outra rua: a do Padre Capão. Depois, lá para cima, há a rua da Glória, a Estrada do Carro que vai para Santo Amaro, etc., etc....

— Passei por aqui no ano passado, mas não vi coisa alguma.

— Vamos sair um pouco?

— Vamos.

Lado a lado, como velhos amigos, Frank e Ourique saíram de casa, subiram a ladeira de São João Batista, cortaram a rua de São Bento, ladearam uns casebres e entraram no pequeno largo do Rosário, onde havia um chafariz. Depois, tomaram a rua do Rosário dos Homens Pretos em direção à Sé. Muitas casas eram tão baixas que, nas procissões, as pessoas que estavam na rua da Boa Vista viam dos sótãos, por cima dos telhados, os santos que passavam carregados nos andores. Eram nove horas. Um sino quebrou o silêncio com lentas batidas. Ao mesmo tempo, no largo do Carmo, onde estava o quartel do Corpo de Permanentes, ouviu-se uma corneta. Era o toque de recolher. Como atendendo a essa ordem, começaram a aparecer por toda parte negros, mestiços, mulatos e homens do povo que, apressados, voltavam a suas casas. Alguns traziam lanterna. Aproveitando o desusado movimento, as quitandeiras dos degraus da Misericórdia começaram a apregoar seus bolinhos de mandioca-puba e de lambari, cuscuz de bagre, pinhão-cozido, cocada, geléia, pé-de-moleque.

Uma cadeirinha desceu a rua São Gonçalo e virou a rua Direita, escoltada por dois cavaleiros; os pretos iam roncando uma toada embaladora. Parecia muito tarde. Os sobradões vizinhos da Sé e a igreja de São Pedro estavam adormecidos; nem pelas frestas se lobrigava sinal de vida lá dentro. Então os dois rapazes seguiram a rua que vai para Santa Teresa e, a meio caminho, tomaram para direita: era o beco das Minas.

Talvez não medisse cem metros de comprimento; era estreito, escuro e se compunha de casebres onde o paulistano retardatário sempre encontrava virado com torresmo, bolinhos, caramurú e gengibirra. Havia também o Vira-Copos, cujo vinho gozava fama entre os estróinas e as moças que viviam de ser erradas. Mais adiante estava a casa das Cigarras, mas essa era de propriedade de duas velhas e para lá entrar precisava-se pelo menos envergar uma opa. Claro que preferiam o Vira. A larga porta de uma só folha abriu-se e os dois entraram.

Como sempre, o corredor terminando na sala de chão batido; algumas mesas com os respectivos mochos, meia porta para a cozinha onde se via o poial aceso e duas pretas que iam e vinham. Ao lado, um estrado de madeira sobre o qual se alinhavam três barris com as torneiras pingando em canecas. Havia pouca gente. Conversava-se mais do que se gastava. O Vira parecia habituado àquilo e, sem dar trela aos fregueses, andava de um lado para outro. Assim que entraram foram saudados por dois estudantes que estavam sentados à mesa do fundo. Um era o famoso Boi, que deixou nome na crônica; outro era Augusto Cândido da Silveira Pinto, professor de Francês no Curso Anexo, de quem Rendon dzia: “Não é mau homem, mas propende para a relaxação...” Nas horas vagas, dirigia a sua estalagem no beco dos Mosquitos. E noutra mesa conversavam três jogadores: Siqueira Moleque, João Caldas Viana e Pedro Rodrigues Fernandes Chaves.

Ourique fez as apresentações. Silveira Pinto prosseguiu na anedota que estava contando:

— O Brousson quis dar à sua alfaiataria, na rua da Freira, o nome de Agulha de Ouro. Chamou um mestre pintor, disse-lhe o nome e não apareceu dois dias em casa. Quando voltou, leu estarrecido sobre a porta: “Alfaiataria da Agúia de Ouro”. Mas o título pegou... Hoje é a “Alfaiataria da Águia de Ouro”...

O Vira trouxe quatro canecas de vinho verde e a conversa prosseguiu animada.

Outros estudantes foram chegando e dentro de pouco a prosa se havia generalizado; discutiu-se matéria de estudos e literatura, fez-se crítica dos lentes e lá pelas onze o botiquineiro preveniu que já era tarde e precisava fechar a casa. Mais uma rodada de canecas de vinho e os quatro rapazes, já íntimos, na maré das confidências, deixaram a taverna e foram para o pátio da Sé. A tasca do Chico Ilhéu já estava fechada. Tudo escuro e silente. Apenas um homem que se havia deitado nos degraus da escadaria, altercava com a sombra. Era o Zé Prequeté. O Pinto e o Boi despediram-se e sumiram na noite.

Como não sentissem sono e aquele passeio a horas mortas estivesse agradável, Ourique e Frank dirigiram-se para o pátio da Misericórdia; de lá seguiram pelo beco da Caixa d’Água e rua do Ouvidor, à toa, em direção das bandas do Capim. Antes, porém, de lá chegar, ouviram no silêncio uma música muito distante, seguida de vozes. Onde seria? Pararam, orientaram-se. Era no alto da rua da Cruz Preta, quase ao chegar no largo de São Gonçalo. Voltaram e subiram rua acima. Ao passarem pela esquina da rua do Jogo da Bola, onde morava o conselheiro Silveira da Mota, Ourique explicou a Frank:

— Aqui existia ainda há pouco uma grande cruz, mas os rapazes, uma noite, carregaram-na, atirando-a lá no Piques...

— E não sabem quem fez isso?

— Mais ou menos; parece que se trata da súcia do nosso amigo Boi. É um estudante levado da breca. Foi ele quem introduziu o uso do cacete, por aí. Há dias meteu-se numa enrascada e como se recusasse a atender ao convite do juiz de paz, que é o nosso colega Pires da Mota, para comparecer à sua presença, foi amarrado na vara e carregado como se fora um porco; mas a verdade é que ninguém pode com ele. A estas horas, já deve andar por aí, a raptar leitões e cabritos que encontra pelas ruas de fora...

Júlio Frank sorriu misteriosamente, lembrando-se talvez do Andorinha. Depois entristeceu. Aquele Andorinha tinha-o roubado e traído; foi uma topada na sua vida, uma topada que o fez mudar de caminho. Aproximavam-se dum sobrado, já nas proximidades da esquina, onde a claridade de muitas velas se filtrava pelas cortinas de crivo, tão finas e alvas que pareciam a bruma da manhã. Das sacadas pendiam colchas de damasco. Lá dentro, ouvia-se o sussurro de vozes de moças. Súbito, o terceto de rabeca, flauta e violão iniciou uma polca e tudo cessou por encanto para só se ouvir o rodopiar dos sapatinhos nas tábuas do salão.

Ourique logo encontrou conhecidos: manifestando o desejo de penetrar no baile, os rapazes que lá estavam começaram logo a trabalhar para introduzí-los sem convite, ignorados do dono da casa. Levaram os chapéus o mais ocultamente que puderam e, lá em cima, foram ao quarto e os deixaram sobre um leito, entre dezenas de outros. Depois voltaram à rua e tendo distribuído os recém-chegados por diversos grupos que tomavam a fresca, foram entrando na casa, como se lá tivessem chegado com todas as honras de um convite especial. Tais trabalhos se prestavam de boa-mente uns aos outros, porque a sabedoria é velha e conhecida; hoje por mim, amanhã por ti. E todos aqueles rapazes tinham um pequenino delicioso caso de namoro lá consigo; sabiam que de um dia para outro teriam necessidade de penetrar numa casa cujo dono desconheciam.

O vasto salão estava rodeado de cadeiras de estado e de bancos, e aí, numa parada inesquecível, se viam as moças mais bonitas duma terra que deslumbrava os viajantes com a beleza de suas filhas. Vestiam sem luxo, quase com severidade. Eram saias-balão de sarja verde, azul, ouro, granada ou violeta; punhos e golas de renda; penteados polca, cabelos soltos ou então enrolados ao alto, deixando escapar cachos cor de asa de andorinha, por trás das orelhas finas e brancas. De quando em quando, uma avozinha, de vestido negro e cabelos que pareciam empoados, dava ao conjunto um ar de quadro muito antigo, como só se via nas caixinhas de música. Os homens ficavam nos corredores, a conversar e a rir, e só entravam no salão quando a música irrompia, para tirar o seu par.

Frank, apesar da vida que tinha levado, era de maneiras distintas e não destoou dos demais jovens. Os que dele se acercaram dentro de pouco sentiram-se encantados com o seu trato, o seu espírito fulgurante, a facilidade com que falava dos mais diversos assuntos. Não dançou. Ou melhor, quando se formou a fila de uma quadrilha que serpeou através de alcovas e corredores, em que damas e cavalheiros trocavam de pares, ele percebeu-se notado por certa lourinha que, talvez num procurado acaso, o arrastou no giro vertiginoso e furtivamente, com uma vozinha que de tímida mais parecia segredo, perguntou-lhe:

— Por que não dança?

E, durante muito tempo, ficou com aquela frasa a cantar-lhe no ouvido: Por que não dança? Mas lá dentro, na sala de jantar, havia o grupo dos que bebiam e ele dentro de pouco lá estava, esvaziando copázios de Porto. Ali ficou. Insinuou-se de tal maneira nas boas graças do dono da casa, que este quis saber quem era e onde morava, para que, sempre que houvesse um daqueles saraus, muito freqüentes, porque a família era numerosa e quase todos os meses alguém fazia anos, mandasse convidá-lo muito particularmente. E a festa só terminou ao alvorecer. Os outros rapazes foram buscar o alemão, que não manifestou muita pressa em sair. Na escada perguntou a Ourique:

— Quem é aquela loura?

— É d. Filipina. É alemã, filha duma senhora viúva e mora no beco da Lapa, entre as ruas São Bento e São José...

Frank pareceu não ligar maior importância ao relatório com que o amigo respondeu à sua ociosa pergunta.

Na rua não se via um palmo a diante do nariz. Uma garoa espessa e gélida amortalhava a cidade. Os galos amiudavam alegremente pelos quintais. O horizonte amarelava. E, quando desciam a rua de São Gonçalo, começou a alegria dos sinos, uma matinada gloriosa de badaladas: São Francisco, São Bento, São Gonçalo, Nossa dos Remédios, Santo Antônio, São Pedro, Misericórdia, todos os sinos da religiosa cidade de S. Paulo, baralhadamente, em diversos tons, cantavam a aleluia da madrugada.

— Que dia será hoje?

— Ontem era sábado: se a folhinha não está errada, hoje deve ser domingo.

E Frank, um tanto cético, ajeitando o chapéu alto que descia para a nuca:

— Pode bem ser.

Com os ventos da manhã a garoa virou neblina que foi atirada para as várzeas. Quando entraram na rua de São José, um sol ainda medroso alumiava as cumieiras. Magotes de fiéis passavam para as missas. À frente, vinha a mucama com o caçula ao colo; em seguida, por ordem crescente de idade, os filhos da casa; depois, vinha a sinhá-moça, de saia redonda e botinhas de camurça, penteado alto, coifa e mantilha de serafina. Atrás dela, a sinhá, com vestidos adamascados e, atrás de todos, o chefe da família, de robição, calça de ganga e sapato de fivela; usava chapéu de Braga, de copa baixa e abas larguíssimas. Andando, batia com a ponteira do bastão nas pedras da rua.

* * *


 

XVI
O SEGREDO DOS ESTUDANTES

 

Com o vir da noite as “repúblicas” animavam-se. Estudava-se pouco e conversava-se muito. Havia os que declamavam e os que decoravam futuros improvisos. Quase todos tinham uma pequena história que começava diante do ralo de uma rótula e continuava na missa dominical da Sé.

Foi num desses serões que o segundo-anista Vincente Pires da Mota, havia pouco nomeado juiz de paz e que iniciara os seus trabalhos conciliatórios praticando a sabida e comentada violência contra o famoso Boi, seu colega de ano, lamentou que a fundação dos Cursos Jurídicos estivesse atraindo para São Paulo centenas de rapazes inteligentes mas pobres, que lutavam com dificuldades para estudar, contando-se nas suas odisséias dias de fome e noites de favor, nas “repúblicas” dos amigos. Daí concluía ele, treinando já para vice-presidente da Província, as tropelias e o desassosego em que vivia a gente ordeira.

O Mestrinho, que estava presente, sentiu a sua sensibilidade amachucada pelo quadro evocado e perguntou logo se não seria possível fazer-se alguma coisa em favor desses pobres cujo único crime, afinal de contas, era ter desejo de estudar. Como sempre, surgiram disparatadas opiniões. Pimenta Bueno, secretário do governo e que ganhava 250$000 mensais, Manoel Alves Alvim e outros filhos de algo apresentaram judiciosos alvitres, mas nada disso, como insistiu Pires da Mota, resolveria o problema do estudante necessitado. Se a assistência fosse pública, aumentaria o número dos que chegavam do país inteiro; se fosse particular, cairia no terreno da caridade que, além de só beneficiar aos que mais gritassem, deixando na penúria os reservados e tímidos ficaria para sempre a pesar na vida daqueles homens a quem mais tarde o destino encheria de responsabilidade.

Júlio Frank, que estava a um canto e sem dizer palavra havia escutado até o fim os comentários, achou de bom aviso interceder:

— Na Alemanha — disse ele — como em muitos países da Europa, a assistência ao estudante pobre está mais ou menos assegurada pelos próprios colegas. Nas Universidades temos associações de estudantes a que chamamos de “burschenschaften”.

— Como? — perguntou o Mestrinho.

— Burschenschaften. Essas associações datam de tempos muito afastados e dispõem de um código moral e uma espécie de ritual que, em rigor, servem para atrair pelo exoterismo os rapazes das escolas, mas cujo intuito principal é este: formar uma caixa e assistir aos que necessitem de auxílio.

— Mas os fundos para isso?

— A contribuição apenas dos abastados ou, quando possível, de todos.

— Para nós não serve. Aqui todos somos pobres. Além disso, vexaria um rapaz ser auxiliado publicamente por todos os companheiros. O regime da “facada” ainda é mais consentâneo com a moral e o meio...

— Mas para evitar isso a sociedade é secreta.

Acrescentou-se logo o interesse entre os conversadores.

— Mas como é mesmo que chama a sociedade? — reperguntou o Mestrinho, que, havendo lecionado latim aos 13 anos, era decididamente avesso à língua alemã.

— Burschenschaft.

— Arre, que nome difícil... Escreva aqui...

Frank escreveu no papel que o Mestrinho colocou à sua frente. E desde aquele momento, a não serem as restrições de Pires da Mota, que temia tomasse ela com o tempo uma atitude política, nociva à ordem pública, sua única preocupação, os demais desde logo se mostraram favoráveis à idéia. Foi assim que, depois de longas horas de discussão, assentou-se a escolha de nome adequado à sociedade; devia ser, como desejavam, um nome brasileiro, sugestivo, capaz de exasperar a fantasia dos estudantes. Um deles lembrou o nome de chafariz.

— Por que?

— Porque dá de beber a quem tem sede.

— Mas a nossa sociedade não é precisamente para dar de beber, ao contrário...

Houve risadas. Outro lembrou — a luva. E explicou:

— A luva esconde a mão que socorre.

Discutiu-se. Nos debates, a palavra alemã se fez ouvir muitas vezes e, por fim, se havia tornado familiar, familiaríssima, dos presentes. E tanto a repetiram que a sociedade, mesmo antes de ser fundada, já tinha o nome de “Burschenschaft”. Então, os fundadores concluíram que a designação estrangeira oferecia maior interesse que qualquer outra, pois quase todos a ignoravam e o seu significado tão comum aparecia nimbado de mistério. Nessa noite, pelo menos em conversa, ficou fundada a Burschenschaft que, com o decorrer do tempo, devia passar a ser designada abreviadamente por “Bucha”.

Júlio Frank, como conhecedor do assunto ficou naturalmente encarregado de organizar os estatutos e o código moral, enfim, de resolver sobre todos os assuntos relativos a uma sociedade secreta que se preza.

Estava-se em Janeiro de 1830. Ele escreveu longas cartas aos amigos de Gotha e de Goettingue, nas quais comunicava a sua presença em terra tão distante, a situação invejável em que se encontrava no meio dos estudantes e invocava o seu auxílio para melhor desempenhar-se da missão que aqui lhe fora atribuída.

Uma carta gastava cerca de três meses para ir e outros tantos para o recebimento da resposta. Não raro o navio que a levava ou que a trazia era tragado pelas ondas ou se espatifava num ilhéu. Por isso, enquanto a correspondência morosamente ia e vinha, o alemão prosseguiu no trabalho, escrevendo até alta madrugada, à luz de um coto de vela.

Com o tempo, os rapazes passaram a reunir-se na casa de Pimenta Bueno que, estudante e solteiro, apesar de seus cargos, residia com a família, à rua da Constituição n. 12, mesmo ao pé do mosteiro de São Bento. Ele ocupava dois vastos aposentos na parte baixa do prédio, com janelas para o quintal. Um era dormitório, outro sala de visitas, biblioteca e gabinete de trabalho.

Uma noite em que Júlio Frank foi o primeiro a chegar, Pimenta Bueno, que mantinha com ele uma familiaridade pouco comum em ambos, fez-lhe perguntas de que certamente não cogitaria diante de outras pessoas:

— Frank, me diga uma coisa, você é religioso?

— Nasci protestante, mas não me interesso em particular por nenhuma religião.

— Contaram-me que você... não sei como dizer...

— Disseram-lhe que eu era feiticeiro.

— Foi isso mesmo.

— Eu sou um filósofo e estudo com isenção de ânimo as ciências chamadas ocultas.

— As ciências malditas...

Frank sorriu. Pimenta Bueno continuou a olhá-lo sem dizer nada.

— Fui protegido desde o nascimento pelo fundador do iluminismo, que, certamente, esperava em mim o advento de um apóstolo, quem sabe mesmo se o continuador de sua obra, mas eu falhei...

— Dizem que você adivinha.

— Não; às vezes, eu vejo.

— Você vê o meu futuro?

— Não vejo, prevejo.

— Que serei eu um dia?

— Você não é Pimenta Bueno, como se julga, mas terá mesmo uma coroa de ouro sobre o nome.

Pimenta Bueno pôs-se a rir.

— Nesse dia, lhe darei o que você me pedir.

— Leve uma flor à minha sepultura.

— Na Alemanha?

— Não; na Academia de Direito.

Pimenta Bueno levantou-se e abraçou Júlio Frank.

Chegou um grupo de estudantes e a conversa foi interrompida. Formou-se a roda, falou-se de diversos assuntos e por fim, como não chegasse mais ninguém dos que eram esperados, passou-se a tratar da “Bucha”. Júlio Frank leu algumas páginas do código, em que se regulamentava o duelo...

— Inútil! Inútil!

— Por que?

— Porque nós não nos batemos; ou existe o Direito que estudamos, ou...

— Mas o duelo é uma instituição religiosa; batendo-se, o homem entrega à divindade a distribuição da justiça.

— Não, não!

— Eu prefiro a justiça do nosso colega Pires da Mota!

Todos riram. Júlio Frank foi à mesa e com duas penadas inutilizou meia página do seu escrito. Voltando, parou no meio da sala e prosseguiu:

— No próximo encontro discutiremos outros capítulos. Por hoje insisto na necessidade de criarmos uma instituição civil, aparentemente alheia à Burschenschaft, mas mediante a qual a sociedade secreta possa agir em público, angariando os meios necessários à sua obra, ou realizando, na medida do possível, seus desígnios.

— Não compreendo.

— Fundamos, por exemplo, um gabinete de leitura. Entregamos a sua diretoria a cavalheiros prestantes que, em rigor, não precisam conhecer os segundos fins da instituição. Por meio desse gabinete de leitura, ou coisa que o valha, realizaremos a parte pública de nossa obra: bailes, festas, tudo quanto possa fornecer meios para beneficiar os nossos necessitados.

— E como exerceremos a nossa influência numa diretoria da qual constarão figuras de posição na sociedade?

— Está tudo previsto. Os conselheiros serão nossos e agirão orientados por dois representantes da Burschenschaft.

Passou-se, então, a procurar uma fórmula que correspondesse às necessidade presentes e futuras da sociedade secreta em organização. Foi aventada a idéia de um clube de xadrez, jogo muito em moda naqueles dias; depois, alguns dos presentes se mostraram favoráveis a uma liga patriótica, mas a idéia foi combatida por Pires da Mota, que lembrou a situação daqueles dias em que os exaltados andavam engalfinhando-se pelas ruas com os reinóis. Para ele, falar de patriotismo em tal momento equivalia a encorajar a súcia do Boi. Era uma idéia fixa, aquele Vasconcelos. A proposta de um clube “11 de Agosto”, data da fundação dos Cursos Jurídicos, não teve melhor sorte, pois limitava a sua ação aos meios acadêmicos. Era preciso interessar a sociedade paulistana, toda ela.

Cerca de 10 horas os rapazes se retiraram sem haver resolvido coisa alguma.

Na semana seguinte, na “república” da rua de São José, houve nova reunião. Cada um dos estudantes trouxe a sua sugestão e entre tantas que foram apresentadas, uma vingou. Era, no consenso geral, a que melhor condizia com a índole do povo paulistano e oferecia possibilidades de reunir maior número de sócios, de interessar a gente de prol, de merecer o apoio dos grandes e, ao mesmo tempo, de mostrar praticamente a função do advogado no seio de uma nação culta. Era a “Sociedade Filantrópica”.

Fundou-se oficialmente no dia 4 de Julho de 1830. Compunha-se de professores, alunos e filhos de algo. A não ser meia dúzia de membros, os demais ignoravam os fins, aliás louváveis, dessa instituição. O número de sócios elevou-se logo a mais de duzentos. As mensalidades e jóias ficaram a critério dos doadores.

Aparentemente, seu departamento principal, aquele que a identificava com a Academia, era o de assistência jurídica. Basta dizer que no mesmo dia da instalação, por esforços da diretoria provisória, foram soltos quatro presos da cadeia e, dois meses mais tarde, a 7 de Setembro, quatro meninas pobres foram recolhidas, à custa da associação, ao Seminário das Educandas da Glória. A 28 de Novembro, em assembléia geral, foi eleita a primeira diretoria que, segundo ofício dirigido ao vice-presidente da Província, ficou da seguinte maneira organizada: Diogo Antônio Feijó, presidente; Antônio Mariano de Azevedo Marques, secretário; Luiz Monteiro de Ornellas, tesoureiro; José Inácio Silveira da Mota e Antônio Carlos Nogueira, coletores; Manoel Alves Alvim e Joaquim José Pacheco, agentes, isto é, intermediários entre a sociedade pública e a sociedade secreta.

Essa diretoria tomou posse no dia 30 de Novembro e tal foi o êxito alcançado pela nova instituição que, no mês seguinte, era recebido um ofício firmado pelas mais gradas donas da família paulistana, aderindo ao caridoso movimento.

A Burschenschaft estava, pois, fundada e com uma poderosa associação para representá-la à luz do dia. Seu êxito foi tal, que Vicente Pires da Mota mostrou-se assustado. Numa das últimas reuniões a que compareceu, pôs-se a andar dum lado para outro, esmagado pelas possíveis conseqüências. Em certo ponto estacou e olhando Júlio Frank argüiu-o:

— E depois? E depois?

O alemão respondeu:

— Os que estiverem na Academia continuarão a obra de assistência; os que terminarem o curso terão nela uma sociedade de ex-alunos, tão útil, e se auxiliarão mutuamente através do tempo. E, ainda mais tarde, se quiser, poderá governar o país...

* * *


 

XVII
PROFESSOR DE HISTÓRIA

 

As aulas de Júlio Frank prosseguiam na “república” da rua São José. Quando, no ano seguinte, chegou a época dos exames ele, mais como colega do que professor, acompanhou os alunos até a porta do Curso Anexo e ali passou ansiosos momentos à espera do resultado. Mas, como sempre acontece, aquela sincera dedicação não podia ser infrutífera: seus alunos brilharam em todas as cadeiras.

Foi então que o tenente-general Rendon, diretor dos Cursos Jurídicos, ouvindo falar tanto em Júlio Frank, quis conhecer esse alemão que havia empolgado a mocidade estudantina. Manifestado o desejo numa roda de escolares, viu-o logo satisfeito. Certa manhã, o bom velho foi procurado pelo acadêmico Pimenta Bueno que lhe apresentou o homem de quem os colegas tanto falavam.

Como as aulas estivessem para começar, o diretor convidou-o a entrar um pouco e, na sua sala, conversa-vai conversa-vem, ficaram juntos até a tarde. No domingo seguinte Frank foi à sua chácara. Desde aquele momento firmou-se entre ambos uma viva simpatia.

Com essa e outras relações de amizade que pouco a pouco obteve naquele meio tão fechado, teria conseguido assegurar um futuro, se fosse esse o desejo do jovem ao embarcar um dia para o Brasil. Mas, como tantos fatos o demonstraram, não era um ambicioso de haveres nem de glórias; era um homem que ninguém compreendia, nem mesmo ele próprio. Como havia confessado anos antes — fazia o seu sossego do próprio desassossego. Dentro desse modo de entender e de agir, no dia em que se viu estimado, requestado, com todas as portas abertas diante da sua cultura e do seu trabalho, sentiu a nostalgia da queda e uma grande inquietação começou a perturbá-lo.

Um dos motivos aparentes dessa inquietação, que ele procurava acalmar o melhor que podia com o famoso vinho do Chico Ilhéu, no pátio da Sé, era uma coisa bem simples: o banho. Contado aos seus camaradas nenhum acreditaria. A verdade é que dum dia para outro, deu-lhe uma imperiosa vontade de tomar banho, mas banho que estivesse à sua disposição tanto de dia como de noite. E isso a “república” não lhe podia dar.

Naquele tempo, as mulheres e os velhos tomavam banho em casa, utilizando-se de alguidares de barro vidrado. Os moços, de todas as classes, resolviam o problema do asseio em umas visitas que faziam ao Tamanduateí, para lá das várzeas. Ele, porém, não queria submeter-se ao regime dos banhos difíceis, tanto mais que as aulas, sucedendo-se uma às outras, não lhe davam tempo bastante para tais processos.

Foi num desses dias que, arremangando a camisa, tomou dum martelo e desceu para o quintal. Auxiliado pelos pajens dos outros inquilinos da “república”, fincou duas estacas de um lado do ribeiro e duas de outro e, mesmo à altura da corrente, levantou três paredes de tábuas, deixando a última para servir de porta, que vedou com espessas cortinas. Estava feito desse modo um rudimentar mas útil quarto de banho.

Então, passou a fazer diversas abluções por dia. Quando levantava de manhã ou quando alta madrugada entrava em casa, embrulhava-se no chambre e lá ia para o Anhangabaú. Não raro, em plena aula, interrompia a exposição que estava fazendo, pedia licença aos alunos e descia para o quintal; dali a pouco regressava com os cabelos empastados e a pele avermelhada pelo mergulho. E retomava o fio da explicação.

Numa tarde de 1833 um dos rapazes entrou na sala, todo afogueado, e disse-lhe:

— Frank, estivemos falando a seu respeito. No Curso Anexo há um lugar de professor de História e ninguém melhor do que você poderá preenchê-lo. Que diz a isso?

Ele agradeceu a lembrança, sem entusiasmo.

Estava atravessando no momento um daqueles períodos mornos em que o vício, cada vez mais exigente, parecia embotá-lo; sua grande inteligência aparecia velada por densos fumos e, nas aulas, para que a palavra retomasse o brilho e a persuassão que eram o mistério da sua pedagogia, tinha de retirar-se para o quarto alguns momentos e quando de lá voltava, parecia mais animado. Por esse tempo, já se lhe havia manifestado leve tremor nas pontas dos dedos que, todas as manhãs, o impedia de escrever. Os íntimos previam para breve o agravamento do mal e por isso instaram para que aceitasse concorrer à cadeira que fácil lhe seria conquistar.

A idéia foi logo comunicada aos demais amigos e a roda de Frank iniciou um persistente trabalho de persuassão, de sugestão. Ele deveria comparecer ao concurso, dentro de pouco, e para isso — os amigos procuravam palavras escolhidas — Frank precisava abster-se das suas noites em claro. até mesmo do “cognac” e do “rum da Jamaica” de que tanto gostava.

Abriu-se a inscrição para o concurso.

Os rapazes foram buscá-lo na “república” e só faltou colocarem-lhe a pena entre os dedos para que se candidatasse. Frank, no seu crescente período de abulia, inscreveu-se.

Trouxeram-lhe a lista dos pontos; tomou o papel com as mãos trêmulas e, depois de lançar uma vista apagada no escrito, depôs a folha sobre a mesa, deixando os braços cair ao longo do corpo. Era preciso acabar aquilo — pensaram os companheiros — e com esse intuito organizaram à volta do professor um verdadeiro corpo de guarda que se revezava dia e noite. Acompanhavam-no ao almoço, ao jantar, ao passeio e às visitas à noite. Preveniam aos amigos de que ele estava de dieta. Todos atendiam ao pedido, até mesmo o Chico Ilhéu, que se desobrigou com voz triste, dizendo que o vinho havia acabado e que em Santos já estavam desembarcando outras pipas. Era questão de dias.

Durante a noite, um dos amigos deitava-se na esteira, próximo à cama do professor, e ali ficava atento, para que o sábio não se envenenasse, ao menos por uns quantos dias, até comparecer ao concurso.

A decadência prosseguia, desanimadora. Passou a ter longos períodos de imobilidade. Durante as lições, que não havia interrompido, estacava ao meio duma frase e ficava imóvel a olhar os alunos como quem perdeu de todo a faculdade de pensar e não sabe que ali está, nem para que. Os olhos se apagaram nas órbitas. O afogueamento do rosto transformou-se em lividez. O cabelo caiu para a testa em mechas louras e as mãos se fizeram mais compridas, na estremidade de braços que pareciam bater pelos joelhos. Frank extinguia-se.

Por esse tempo já os amigos mais íntimos se haviam arrependido de o haver inscrito para o concurso, pressentindo a possibilidade duma derrota, justamente na matéria que lhe era mais familiar; se o exame não correspondesse ao que dele se esperava, estaria aniquilada a fama que havia conquistado com tanto trabalho e, talvez, até os próprios alunos que no seu saber tinham confiança plena começassem abandonar-lhe as disputadas aulas.

A tais pensamento se opunham outros não menos razoáveis; se era verdade que ele ia progressivamente se embotando, mais um motivo para assegurar-lhe emprego em que o trabalho se tornasse mais bem remunerado, pondo-o a salvo da miséria que, com a doença, certamente o alcançaria. Assim, já sem as reservas dos primeiros dias, os estudantes se empenharam na sua dieta. Era preciso levá-lo, tal como estivesse, mas levá-lo consciente até à banca examinadora.

A véspera do exame chegou. Frank ainda não tinha tomado conhecimento do programa. O papel ainda lá estava como haviam deixado, no canto da mesa, com um livro por cima. Apesar da abstinência forçada, o embotamento ia crescendo, crescendo... seu estado roçava pela inconsciência. Não reagia a coisa nenhuma, nem mesmo demonstrava desejo de reagir. Quando o contrariavam, sorria, um sorriso triste, ausente, de sonâmbulo... Ao menos se recalcitrasse, se argüisse os seus amigos transformados dum momento para outro em guardas, pois não o deixavam ficar sozinho um momento que fosse, talvez dessa reação ressuscitasse o belo espírito que ia mergulhado na noite da inconsciência. Mas nada. Absolutamente nada.

Chegou a noite. A “república” encheu-se de pessoas que iam cumprimentá-lo, dizer-lhe palavras de conforto e animação. Mas encontraram-no sentado à cabeceira da mesa, com os cotovelos fincados na tábua e as mãos distraídas a arripiar os cabelos despenteados. O lábio inferior parecia descido, como descolado. Os olhos mal se abriam naquela sonolência. Quando andava era com o busto arriado e as pontas dos pés para fora. Diante dessa figura tão diferente daquela outra, viva e galharda, que os estudantes conheciam, os rapazes que o haviam inscrito já eram apontados como autores do crime de atirá-lo às incertezas dum desastre. E, noite adiante, os que lá ficaram na missão de vigiá-lo, já tinham perdido a alegria e se acostavam pelos ângulos, como se se tratasse de um velório.

Frank não dormiu; não dormia nunca. Cerca de meia noite, vendo-o ali, na mesma posição, com um movimento de maxilares como se estivesse perenemente a mastigar borracha, forçaram-no a deitar, no que foram atendidos, com uma submissão de criança doente. Mas deitado, com um braço por debaixo da cabeça, ficou a olhar para cima, sem ver, ausente de si mesmo. E nessa posição permaneceu durante muitas horas, sem ouvir o cuco da sala de jantar. Não dormiu nem falou. Parecia haver perdido a palavra. Diante desse homem cuja inteligência se apagava, os que lhe estavam próximos compreenderam o erro de apresentá-lo em tal concurso. Mas já era tarde, visto que o exame deveria realizar-se dali a pouco.

Quando o sino de São Bento tocou a matinas, ele teve um sobressalto. Desenhou-se na sua fisionomia, até ali parada, a luta que lhe ia no interior. Viram-no invocar os últimos lampejos da vontade e sentar-se à beira da cama. Hesitou muito tempo em levantar-se, como se temesse arrastar pernas feitas se chumbo. Mas, com um novo arranco, levou mais longe o sacrifício: ergueu-se, despiu-se, tomou o roupão sobre a credência e desceu pesadamente a escada do quintal.

Um dos rapazes correu à janela e viu-o entrar na cabina de banho. Assaltou-o logo o receio... E se ele morresse lá dentro? Comunicou logo o temor aos companheiros e ia descer quando a sarapilheira que servia de cortina se abriu e o professor voltou a escorrer água. Já no quarto, ainda sem ânimo para falar, calçou-se, vestiu-se, tomou do pente, postou-se diante do espelhinho quadrado do consolo, que servia de toucador. Parecia ter esgotado em si todo o ânimo de que se aprovisionara ao levantar.

Nesse momento ouviu-se lá em baixo, na rua clara e fresca, o vozerio alegre dos que vinham buscá-lo para o exame. Foi preciso que alguém o apressasse:

— Penteie-se logo, Frank, que já estamos na hora.

Só então pareceu despertar da modorra, alisou os cabelos e deu-se por pronto para sair. A cozinheira, que havia sido avisada, trouxe-lhe uma caneca fumegante de café com beijus de tapioca. Ele, porém, recusou, mal dissimulando a repugnância que aquilo lhe causava. Instado para que quebrasse o jejum, esforçou-se por beber, mas o líquido parava na garganta; não conseguia engulir.

Os de fora batiam à porta. Então, um dos rapazes foi à sala e, debruçando sobre a rua, avisou que estavam para sair. Quando voltou ao quarto, viu Frank, já de chapéu, que lhe perguntou:

— Quem são eles?

— O Ourique, o Alvim, o Ildefonso, o Ribas e quase todos os nossos.

Caminharam devagar pelo corredor escuro. Ao saírem da porta, houve muitos cumprimentos. Frank lutava desesperadamente. Na hora em que necessitava de todo o seu saber, fugia-lhe o entendimento, deixando-o como vazio e morno. Sentia-se de madeira. No meio daquela bizarra gente, caminhava a dormir. Vendo-o assim, os amigos perguntavam lá consigo: — Que fará ele? E, depois desse malfadado concurso, em que situação se encontraria ante os que o admiravam, os que o haviam transformado numa espécie de bandeira?

Passaram o Acú. Dali por diante a rua de São José, até o beco da Lapa, só apresentava casinhas baixas, muros de taipa, fundos de quintais da rua de São Bento. À sua passagem, cachorros arremetiam por detrás das cercas de pau-a-pique. Um leitão assustado grunhiu e barafustou pelas guanxumas do terreno aberto. Assim atravessaram a rua direita de Santo Antônio, que descia para as barrocas. Chegaram à rua do Ouvidor e tomaram por ela acima, em caminho da Faculdade.

Frank continuava largado, alheio, inútil.

Foi já ao entrarem no largo do Ouvidor que se passou aquela cena de todo inesperada, que deveria ficar histórica. Na esquina da rua com o largo havia uma venda freqüentada por tropeiros e caipiras que subiam ou desciam para o Piques. Na argola da porta estava amarrado um cavalo. Dentro, o dono da tasca, ainda estremunhado, enchia um martelo de aguardente para o único freguês, que era um tropeiro e estava a conversar, debruçado sobre o balcão.

Frank, num relance, viu tudo aquilo. E com energia e vivacidade de que ninguém o julgaria capaz, saiu da roda, entrou na venda, bebeu o copo de aguardente até a última gota e saiu estalando a língua, como se o que havia feito nenhuma importância tivesse. O vendeiro assustou-se, o tropeiro levou a mão à cinta, julgando-se provocado, e os companheiros do jovem não sabiam se rir ou lamentar o ocorrido. Ourique compreendeu logo que dali podia sair uma rixa, entrou na venda, pediu desculpas ao tropeiro, dizendo que se tratava de um maluco, e pagou os vinténs ao dono da casa. Assim, tudo voltou às boas.

Então o grupo tomou para o lado do Capim, onde à frente da igreja o cruzeiro abria os braços, atravessaram de viés o deserto largo de São Francisco e chegaram ao prédio do Curso Anexo, do lado esquerdo da Academia, quase na esquina da bitesga que ia ter à Sé. Àquela horas os professores iam chegando; alguns deles apeavam do cavalo e davam a rédea ao bedel Mendonça que — segundo a pragmática — também usava casaca e chapéu alto. Em frente à escola, o mestre ferrador malhava descompassadamente na bigorna.

O dr. Carlos Carneiro de Campos, então diretor, que também chegava no momento, recebeu Júlio Frank à porta. Quando todos julgavam que o aniquilamento do concorrente surpreendesse o novo diretor da Academia, deu-se o que ninguém esperava: Frank ressuscitou. Seus olhos tornaram-se penetrantes, os gestos vivos, a palavra fácil, a inteligência aguda, com faúlhas de genialidade...

Fez o exame. Foi aprovado e abraçado. O decreto de sua nomeação tem a data de 7 de Julho de 1834. Foi uma grande alegria para os amigos. A saída teve a indefectível manifestação joco-séria de calouros e preparatorianos, que o aclamavam:

— Viva Júlio Frank!

— Viva o Curral dos Bichos!

— Viva o capoeira alemão!

E a festa — segundo reza o memorial do Vira Copos — durou sete dias e sete noites, como nas histórias de Fadas.

* * *


 

XVIII
OS SINOS

 

Professor do Curso Anexo, o inquieto Júlio Frank deu aos amigos uma esperança de regeneração. Sua vida aplainou, descoloriu, entrou no quotidiano ramerrão da cidade que cheirava a sacristia, num tempo em que a crônica das gazetas era vantajosamente desempenhada pelo comadrio mexeriqueiro. Integrou-se de todo naquela provinciana existência; acabou pedindo naturalização.

Há quem diga que aquela vida pautada de Júlio Frank, depois da entrada para o Curso Anexo, continuava a ter de quando em quando umas descaídas lá para as bandas do Chico Ilhéu. Os documentos não confirmam tal presunção. Mas quando fossem verdade, tais escapulas se dariam numa roda de alegres professores, que os havia na época, e divertidos estudantes, que os há em todos os tempos. Não deixavam vestígios, a não ser nos seus pobres nervos cansados. Os escolares, a Faculdade, os 11.000 paulistanos, contando mesmo a rançosa parte dos futricas, que tinha invencível pavor das “repúblicas”, estavam ao par da inteligência e da bondade desse homem que — mais do que qualquer outro — era uma multidão. A mocidade admirava-o e, como sempre acontece, até mesmo nos seus defeitos.

Quando não fazia visitas aos amigos das outras “repúblicas” nem estendia o passeio ao Chico Ilhéu, passava as horas sem sono a escrever lições de História que, no dia seguinte, durante as aulas, repetia aos alunos. Assim, dentro de pouco, quase sem dar por isso, já havia acumulado matéria para um compêndio. Então, lembrando-se talvez do tempo do Goettingue, teve idéia de publicá-lo.

Com esse intuito dirigiu-se em 1837 ao governo, explicando, na petição, que o fazia para remediar a carência de livros sobre a matéria, com que lutavam os estudantes. O primeiro volume do compêndio foi enfim publicado e trazia na capa os seguintes dizeres: “Resumo de História Universal — Para uso da Aula de História e Geografia da Academia de Ciências Jurídicas e Sociais desta Cidade de S. Paulo — Vol. I — Contendo a História Antiga e da Idade Média — Impresso na Tipografia de M. F. Costa Silveira — Rua S. Gonçalo n. 14 — S. Paulo — 1839”.

As lições contidas nesse volume eram adaptadas do historiador alemão H. L. Poelitz, por isso nele não figurava o nome de Júlio Frank, que era de inacreditável modéstia. O volume seguinte, de matéria original, foi publicado logo depois, sendo vendido aos estudantes a 2$900, o suficiente para o governo ressarcir as despesas da publicação.

Se Frank mudara, a vida na estudiosa “república” da rua de São José nem por isso sofrera sensíveis alterações. Todos os anos um daqueles moços terminava o curso e os colegas, incorporados, iam levá-lo até a estrada real. Aos do interior acompanhavam até o obelisco do Piques; aos de serra-a-baixo, até o Ipiranga, trocando-se então melancólicos adeuses à sombra da Árvore das Lágrimas.

Uma tarde subia ele o beco da Lapa, quando ao passar por uma casa baixa, de rótulas verdes, ouviu uma risadinha de cristal. Parou. Sentiu que alguém o espiava por trás do ralo. Sorriu amavelmente, sem ver ninguém. Então, uma vozinha meiga se fez ouvir lá dentro:

— Por que não dança?

Instantaneamente um mundo de lembranças lhe veio à mente.

— Boa tarde, dona Filipina!

Então o ralo se abriu e, lá dentro, apareceu o rosto risonho da alemanzinha que atraira a sua atenção no baile da rua da Cruz Preta, no mesmo dia em que chegara a S. Paulo.

— Como sabe meu nome?

— Perguntei.

Ele do lado de fora, com o cotovelo fincado à parede e o chapéu um pouco para trás; ela na penumbra da casa, batendo os bilros de um crivo interminável, iniciaram uma palestra que não devia ter mais fim. Daquele dia em diante, todas as tardes, Frank se preparava e saía, dizendo aos amigos:

— Vou estudar as Ordenações...

E os outros acrescentavam, sorrindo:

— Filipinas...

Desde a sua primeira aula, notou que entre os clérigos e a Escola havia certo azedume; dum lado os frades martelavam desabridamente os sinos durante as aulas e de outro, ele, um herege, era aceito como professor de História e examinador de Matemáticas, à sombra do mesmo teto. Não pôde deixar de sorrir ao fazer tal observação.

Talvez mania de perseguição, mas até certo ponto julgou-se agravador dessa pendência. E, dando um balanço nas recordações dos primeiros dias, ainda mais se convencia da suspeita. E parafusava, parafusava...

Na igreja contígua ao convento transformado em escola, havia a Irmandade de São Francisco de Assis, da qual só podiam fazer parte lentes, estudantes, bedéis e empregados da Faculdade. Todos os anos cabia a um quintanista fazer a festa do padroeiro, que era uma das mais pomposas de São Paulo. Nos seus primeiros dias de aula, fora insistentemente auscultado sobre a sua atitude religiosa. A cada passo faziam-lhe esta pergunta:

— Já entrou para a Irmandade?

Ou esta observação:

— O senhor é bem feliz; já pode fazer parte da Irmandade de São Francisco de Assis, onde só há gente boa.

Ouvindo aquelas palavras, ele sorria e passava a outro assunto. Mas um dia, ao sair da aula, já no comprido e escuro corredor, o acaso lhe pôs na frente a figura magra e escorrida de um fraciscano. O frade parou diante dele e com o melhor sorriso saudou-o:

— É o professor Júlio Frank?

— Sim, senhor.

— Pois eu bendigo o acaso que me fez encontrá-lo neste momento, visto que há dias o meu desejo é falar-lhe...

— Estou ao seu dispor.

Sairam juntos, a passos lentos, estacando amiúde.

O frade continuou:

— Não sei se me conhece, meu caro professor; eu sou Frei Targino e também me dedico a lecionar. Ensino latim na Escola do Rabecão. Já ouviu falar? Pois, para ser franco, digo-lhe que o meu espírito também liberal tem-me acarretado desgostos, a ponto de já não ser bem visto pelo padre-mestre. Compreende?

Frank não compreendeu, mas o frade prosseguiu:

— Quando me informaram de que no Curral — desculpe a expressão — havia um novo professor e homem de largos conhecimentos, senti logo um forte desejo de conhecê-lo. A princípio tive a intenção vir procurá-lo, mas como é usança muito arraigada das pessoas da Faculdade pertencerem à Irmandade de São Francisco de Assis, calculei que logo depois tivéssemos a sua visita e então eu aproveitaria para ficar conhecendo-o.

— É uma usança?

— Rigorosa. Quem não se submeter a ela passará naturalmente a ser mal visto pela Ordem e a cidade inteira. Mas eu atribui a sua falta a esquecimento ou mesmo desconhecimento, tanto mais que se trata de um estrangeiro...

— Já pedi a minha naturalização.

— ... de um estrangeiro que nos chegava com a só apresentação da sua cultura e simpatia pessoal, mas cuja presença é claro que nos honra. Só mais tarde me informaram que é de origem huguenote, mas que, bondoso e inteligentíssimo, acredito, suponho...

— Nasci de fato protestante, mas preferi a filosofia à religião.

— Houve até mesmo quem afirmasse que o professor era — olhou em redor e como não visse ninguém, disse-lhe a palavra ao ouvido — judeu...

— Por causa do nome? Não tenho nada com o meu homônimo polaco; sou Frank, mas não sou frankista.

Depois de estudar na fisionomia do professor a impressão que lhe iam causando as palavras, o frade continuou:

— Também tenho as minhas leituras proibidas. Está vendo isto?

Tirou um livro das dobras do burel; era o “Candide”, de Voltaire.

E prosseguiu:

— Juguei, pois, que quisesse se recolher à segurança do nosso seio para, com maior liberdade, pensar como lhe aprouver. A primeira preocupação do herege tem sido o burel; é por isso que a ciência e as reformas saem dos conventos. Claro que não lhe proponho o noviciado — e riu de bom humor, mostrando os dentes — mas não custa nada a observação de uma praxe a que os nossos superiores ligam tamanha importância. E eles são severos...

Disse e esperou. O professor conservou-se calado. Então, com a mesma versatilidade, voltou às boas maneiras e, depois de um cavaco esfusiante, despediu-se confessando-se encantado com o seu conhecimento. Mas desde aquele momento Frank sentiu — talvez mania de perseguição — uma surda hostilidade, que ia da intempestiva bulha dos sinos até... até... quem sabe lá... E se não passava daí era porque, naquele tempo, agia nas sombras outra força, a Maçonaria, tão poderosa que, segundo parece, fizera a independência do Brasil.

Júlio Frank lembrava-se de que, numa tarde de Junho de 1834, ao fazer a última visita ao tenente-general José Arouche de Toledo Rendon, na sua chácara do Morro do Chá, toda cercada de plantações, o velho diretor da Faculdade lhe contara com pormenores o caso dos sinos.

Rendon estava sentado no poial de pedra, com azulejos, e fê-lo entrar. Trajava no momento “um chambre de cores vivas e apresentava a cabeleira empoada, provida do competente rabicho, com laçadas de fita preta”. Na ampla varanda foi servido o café e ali conversaram durante uma hora. Referindo-se às suas plantações, o velho estendeu o bastão pela janela aberta e, desenhando com ele as culturas que cercavam a chácara, manifestou a confiança que tinha no chá:

— Senhor Frank, dentro de um século São Paulo será o maior exportador de chá do mundo inteiro!

Foi nessa visita que ele ouviu de Rendon a movimentada história. Aquilo vinha de muito longe, dos primeiros dias da Faculdade.

Em 1828 — explicou ele — ainda não existia o largo de São Francisco. O terreno que ora ocupa fazia parte do quintal fronteiro ao convento, todo cercado, com árvores frutíferas, horta e o chafariz dos frades. Só apresentava uma aberta, que era o adro da igreja. Encravado nesse quintal, pegado ao convento e com porta para o pátio, havia um casebre em que, pelo Natal, os franciscanos expunham visitadíssimo presépio.

No fim de Outubro daquele ano, Rendon dirigiu-se a José Clemente Pereira, presidente da Província, pedindo-lhe mandasse cortar o quintal por duas ruas que, no seu entender, acrescentariam valor ao terreno tão extenso que “ocupava metade da cidade”. O mesmo Rendon, compreendendo também a necessidade de um chafariz no local, escreveu-lhe outra carta, no mês seguinte, solicitando que “a água, tirada com as molas, para comodidade dos frades” de São Francisco, fosse franqueada ao público. E o senador Rafael Tobias de Aguiar não só aceitou tais sugestões como também manifestou à Camara a necessidade de se fazerem ali uma praça e chafariz, “deitando-se abaixo para esse fim os muros do quintal que fica em frente” da Faculdade.

Mas as ligações entre a Faculdade e a Igreja continuavam muito estreitas; durante os anos que se seguiram os estudantes entravam para as aulas pela porta da igreja, juntamente com os fiéis que iam para a missa.

Com a adaptação do convento à escola, o sino que estava situado nas gerais, isto é, no centro do claustro, continuou a chamar os fiéis para os ofícios religiosos, ao mesmo tempo que dava as horas e os sinais de início e terminação das aulas. Daí, os primeiros desaguisados entre Rendon e o guardião do convento, por causa do excesso de toques.

“Às sete e meia, dobra o sino grande por espaço de dez minutos; às oito horas, tocam-se outras oito badaladas no mesmo sino grande para a entrada das aulas, as quais se repetem às nove e meia, em que se acaba a lição. À noite tocam-se os tristes ou silêncio, um pouco depois das Ave-Marias e, às nove horas, tocam-se os alegres e ambos os coros nos sinos pequenos”.

O donato Francisco de Paula Leme dava ordens a Rendon; exigia-lhe em carta que mandasse tocar os sinos à hora que ele quisesse, ou que lhe devolvesse as chaves. Rendon remetia a carta ao presidente da Província e chamava o guardião de fanático e fanático façanhoso. “Parece que pretende arraigar-se na sacristia, porém não convém que ali germine tão peçonhenta semente”.

E os sinos prosseguiram martelando...

O sineiro chamava-se Carlos Luiz Godinho; usava cabelos compridos e tinha cara de coruja. Absolutamente de coruja. Sua única paixão na vida eram os sinos. Badalava com inspiração e encantamento. Levava mesmo o zelo para além das linhas divisórias do dever, acabando por tornar-se verdugo de quantos moravam pelas vizinhanças. O guardião dava-lhe assentimento e ele puxava as cordas, de dia para dia com maior convicção.

Embalde vieram as queixas; o diretor da Escola mandou-lhe ordens enérgicas e o governo se movimentou. Tudo inútil. O homenzinho, em vendo um sino, ficava maluco. Dia e noite era déngondém, déngondém...

Certa manhã, porém, ele passou pela mais dura das decepções. Às sete horas e meia, quando o sino deveria repicar durante dez minutos, não se ouviu o toque habitual. Foi um pasmo, um corre-corre, uma bulha. Godinho desceu aos pulos a escada das gerais e parando diante dos estudantes aglomerados, levou as mãos abertas à cabeça arripiada, bradando:

— Furtaram o badalo!

E inteiramente fora de si, ganhou a porta e despencou pelo Piques, à procura da peça que faltava ao sino. Foi um sucesso que encheu São Paulo. Dois dias depois, como não se encontrasse o badalo nem se agatanhasse o seu desencaminhador, a Fazenda comprou outro e o sineiro pôde recomeçar na sua faina. Fácil de imaginar a sede com que voltou ao pote. A terra estremeceu ao som das badaladas. Data daqueles dias a “cidade sínica”, expressão que fez época.

Mas o Godinho tantas fez que, em Setembro de 1834, morto Rendon, Brotero na direção da Faculdade, recebeu um aviso do presidente da Província dizendo constar-lhe que o sineiro do Curso Jurídico costumava, a seu arbítrio, usar dos sinos em atos não públicos ou próprios do estabelecimento, e recomendava que tais abusos fossem coibidos. A verdade, porém, é que o presidente não age desse modo por amor dos tímpanos paulistanos, mas “porque a conservação dos referidos sinos está a cargo da Fazenda, com despesas de consertos ou novos sinos, quando continue tal abuso”.

Como se deduz desse aviso, Carlos Luiz Godinho tocava tanto que ameaçava rachar os sinos.

Naquele quartinho com janela escancarada sobre o Anhangabaú, Frank ia vivendo apagadamente. Quando ali pelas sete horas os sinos de São Bento acordavam a cristandade, ele virava para o canto e retomava o fio do sonho. Mas a preta velha que estava a coar café na cozinha, chegava à porta acordava-o de novo, dessa vez para levantar-se. Então saltava da cama, vestia um roupão e descia para o quintal, onde a cabine de banho construída havia tanto tempo já estava bem melhorada. Dava o mergulho matinal. Depois, subia ao quarto, vestia-se com apuro, tomava café e, fazendo molinetes com a comprida bengala, saía para o Curso Anexo, onde dava aulas das 8 às 10 horas.

Normalmente ia pela rua de São José, cheia de barrocas e despovoada; mas quando o tempo estava de chuva mudava de caminho para fugir à lama viscosa que se lhe apegava aos sapatos. Subia a ladeira de São João Batista, entrava na rua de São Bento e seguia para a Faculdade.

A rua de São Bento, outrora era muito animada; desde pela manhã os latoeiros martelavam nas folhas de Flandres; os sapateiros, diante das mesas, adelgaçavam a sola a marteladas e, plantados com suas banquetas no meio da rua, cantando ou assobiando festivamente, os alfaiates se entregavam desde cedo ao seu mister.

Frank era uma figura benquista e popular mesmo fora da Faculdade. Caminhando, desbarretava-se para a direita e para a esquerda. Nas casas de moradia, as velhas que espiavam pelo ralo das rótulas já se haviam habituado à sua simpática presença. Conhecia também os cachorros pelos respectivos nomes e parecia conversar com eles. Chegava à Faculdade e logo à entrada trocava dois dedos de prosa com o padre Mimim, que não ia para a sala sem dar definição de tudo o que se passava e do que se dizia.

Só então chegava ao Curso e, ao entrar na sala de aula, já encontrava numerosos estudantes à espera; cumprimentava-os com um belo sorriso, deitava a bengala sobre a mesa e o chapéu sobre a bengala. Tirava do bolso alguns papéis, passava por eles a vista e guardava-os de novo. Em seguida, passeando dum lado para outro, com as mãos para trás, cruzadas, e os dedos abertos, iniciava a preleção:

— Como vocês sabem, os fenícios...

Nesse momento, como de propósito, os sinos de São Francisco botavam a boca no mundo. Dén gon-dém, déngondém... E a sonora revoada caía sobre o carunchoso edifício já de si assombrado de rumores particulares e de ecos; entrava pelas janelas, reboava pelos pátios, enchia de ruídos de asas os telhados onde apareciam, por dentro, as descarnadas traves e as finas résteas de sol apunhalavam de alto a baixo a sombra. Ele parava a exposição, fechava os olhos e, perfilado, equilibrando-se, punha-se a erguer nas pontas dos pés juntos, para encolher o tempo. Dez minutos depois dessa expectativa, as badaladas fugiam como espavoridas... Então, voltando a si, recomeçava:

— Os fenícios, como vocês sabem...

E os sinos lá vinham como garotos que estão dando uma assuada; a bulha recrudescia, a lição era novamente interrompida. Dessa vez Frank ficava pálido, de mãos trêmulas e de quando em quando aproximava-se da porta do corredor, como quem vai sair para tomar séria resolução. Mas voltava, passeava, batia com a régua sobre a mesa. Só muito tempo depois os sinos silenciavam nas gerais e ele podia completar a lição do dia. Mas não estava tranqüilo; todas as vezes que chegava a um ponto interessante da exposição, olhava aflito para a janela, perseguido pelo receio de que os sinos recomeçassem a vaia.

Só em 1836, graças à coação de novo aviso redigido em termos ainda mais enérgicos, o dr. Brotero determinou que “os sinos da igreja ao lado só tocassem em festas acadêmicas ou nacionais” e nas da Ordem Terceira de São Francisco. E já nas últimas linhas esclarecia “que todos os toques devem ser em tempo que não perturbem as Aulas”.

O sineiro sofreu muito com a regulamentação. Passava horas inteiras sentado no mocho das gerais, namorando a corda do sino. Depois, como “aguado”, entrou a definhar, caminhando melancolicamente para a morte, uma morte que só devia completar-se trinta anos depois...

* * *


 

XIX
MORTE DE FRANK

 

Junho de 1841...

Céu pálido, manhãs frias; um vento anavalhante vinha das várzeas, despia as jaboticabeiras, rachava os lábios, avermelhava o rosto, endurecia os dedos, provocava sessões de tosse entre os estudantes, na sombra úmida das arcadas. Uma tarde, Júlio Frank sentiu-se doente. Não jantou nem escreveu. Passou a noite numa vigília agitada. Ao amanhecer, não foi preciso que a velha preta o chamasse; quando bimbalharam os sinos de São Bento já se ouviam os seus passos no quarto dos fundos. Levantou-se, fez a ablução matinal, tomou contra a vontade dois goles de café e seguiu para o Curso Anexo.

Nos últimos anos, tinha adquirido o hábito de fazer, sempre que por ali passava, uma visita ao beco da Lapa. Chegando à casa das rótulas verdes, batia à porta com o castão da bengala. Filipina vinha recebê-lo, com alegria. Esperava-o de manhã e à tarde com alguma quitanda, que ele saboreava de bom humor, antes de ir para a aula ou de voltar para casa.

Logo depois de conhecer sua linda e prendada patrícia, quis casar-se com ela. Mas a velha mãe recusou-se a pés juntos, invocando o passado do professor, que não julgava assaz recomendável. Os namorados se conformaram com a recusa, mas nem por isso deixaram de amar-se. O idílio seguiu o seu curso normal. Há cem anos, o paulista era avesso ao matrimônio. A nossa porcentagem de casamentos não dava para alarmar ninguém. Quem estuda aquela época encontra aspectos inesperados. Muitas uniões só se regularizavam à hora da morte. Esse, naturalmente, devia ser o caso de Júlio Frank e Filipina.

Aquela manhã ele demorou-se pouco na casa da jovem. Antes de retirar-se, porém, foi ao quarto contíguo e debruçou-se sobre um pequeno catre de couro, com guardas muito altas, de onde caía um véu branco que mais parecia um par de asas angélicas. Abriu o tênue cortinado e inclinou-se sobre a figurinha loura que dormia.

— Bárbara!

Era a filha, de dois anos. Acordou-a, disse-lhe bobices para a fazer sorrir, mirou-se no azul puríssimo de seus olhos e só então saiu para a Escola.

Mas a aula desse dia foi dada com visível esforço; uma preleção sem brilho, quase por dever de ofício. E quando o relógio grande da sala vizinha pingou as dez horas, não esperou mais e foi-se. Tinha calafrios.

Àquela hora descia sobre a cidade uma garoa triste. O largo estava molhado e deserto. A árvore que ficava mesmo à porta da ferraria encolhia-se ainda mais nua que de ordinário. Nela, amarrado, de cabeça baixa, o cavalo do padre Mimim, contraído o hábito do dono, meditava Kant. Um só estudante encostava-se à parede da Faculdade: era Hilário Gomes Barbosa Nogueira, que toda gente sabia ter lido a História Universal de César Cantu de ponta a ponta, inclusive as anotações. Seus esquecimentos eram famosos, se ali estava, naquele momento, era porque, naturalmente, se havia esquecido de voltar para casa.

Saiu pela garoa. Aspirou o cheiro característico das forjas da ferraria. Olhou para dentro dela e viu um menino pendurado na correia do fole, a dançar que nem mangrizó. Sentiu os pés de gelo e a cabeça a pegar fogo. Os calafrios se repetiam com maior freqüência. E aquele desejo invencível de deitar-se, de não pensar, de não falar com ninguém.

— Estou frito... — pensou.

Chegando à “república”, os rapazes se inteiraram do seu estado e foi um alvoroço. A preta cozinheira trouxe-lhe o alguidar de barro com água quase a ferver, pôs dentro um punhado de sal — e, ela própria, a mãe-preta de todos os estudantes, aquela a quem a história nunca pergunta o nome porque é a raça inteira — propinou-lhe pousadamente o escalda-pés. Dava amiúde uma fugida da cozinha e ia ao quarto de Júlio Frank. Só então pareceu lembrar-se de que falava; ela, que nunca havia pronunciado palavra diante do professor, queria saber onde é que doia, como estava passando, se o remédio fazia bem. E trazia as mezinhas, os chás de capim-cidrão, de folhas de guaco, toda a medicina caseira dos resfriados. Mas a febre crescia.

Uma vez Frank perguntou:

— Como é mesmo que você se chama?

— Rita.

— Rita de quê?

— Eh, eh! Preta véia tem um nome só.

Frank olhou-a com infinita ternura. Em quase dez anos não havia percebido, ali, a seu lado, aquela grande alma silenciosa, que parecia se ter feito feia e humilde para melhor esconder o tesouro de afetividade que dentro de si cabia. Como não tinha ele adivinhado aquilo?

Ao entardecer entrou numa espécie de modorra, de respiração ofegante, que se prolongou pela noite. Os amigos chegavam, acercavam-se do leito, diziam-lhe palavras de conforto; abria então os olhos vagos, agradecia com um sorriso a bondade dos que o visitavam e cerrava-os de novo, querente de morrer.

Alta noite, o Rezende foi bater à porta do dr. Justiniano de Melo Franco, que prometeu visitar o enfermo. Foi uma efêmera esperança. Aguardaram-no meia hora, uma hora... E, como Frank se fosse extinguindo, correram à janela e puseram-se a perscrutar a noite, ansiosos da sua chegada. Muito tempo depois, lá para as bandas de Santo Antônio, apareceu uma luzinha que, oscilante, se foi pouco a pouco aproximando; era uma lanterna. E como ela hesitasse duas portas antes da “república”, Rezende debruçou-se sobre a rua e gritou:

— É aqui, doutor!

O médico acertou a casa. Deu ao doente uma sangria, prescreveu suador, sinapismo de mostarda, chá-de-bico, rigoroso jejum. Rezende e Ourique cercaram-no à porta, para ouvir-lhe a opinião.

— Pneumonia; e ele está tão debilitado, que se o organismo não reagir será um caso perdido.

O médico perdeu-se na noite da rua. Rezende foi para o quarto do enfermo e Ourique dirigiu-se apressadamente à janela, numa crise de soluços. Outros rapazes entraram de repente pelo comprido corredor, num falatório. Ourique, enxugando rapidamente os olhos, correu ao seu encontro e levou o dedo aos lábios:

— Psiu! O Frank está mal!

Então as visitas viraram sombras. Durante o dia e a noite chegavam de todos os pontos da cidade, entravam na ponta dos pés, formavam pequenos grupos pelos corredores e conversavam em voz baixa. De quando em quando, iam à porta do quarto e olhavam para dentro, onde o amigo, já muito pálido, de pálpebras descidas, parecia esperar serenamente por alguma coisa.

Sobrevieram-lhe dores lancinantes nas costas e, depois de gemer e ofegar por algumas horas, pareceu entrar em calma.

A preta, que passava os dias a cozinhar e a lavar, quando chegava a noite, ia para o quarto do doente e ali ficava atenta aos seus gestos, dando-lhe remédios, cobrindo-o, apalpando-lhe os pés, que nunca mais haviam esquentado.

Na madrugada do dia 19 de junho, as dores cessaram, a febre amainou e uma animadora lucidez alumiou-lhe a fisionomia.

— Rita!

— Tô aqui, nhonhô.

Tomou-lhe as mãos pretas, retorcidas de reumatismo.

— Rita, ninguém lhe disse ainda, mas você é uma santa.

A preta ficou hirta, mas duas lágrimas correram pelo rosto.

— Chame os moços.

Ela afastou-se depressa, talvez para esconder o dó e voltou com Ourique, Vieira Bueno, Ribas, Joaquim e Mariano Galvão.

— Então que é isso, Frank?

— O fim.

— Mas você está melhor...

— É a visita da saúde. Fechem aquela porta. Agora venham cá. Sentem-se por aí. Tenho a dizer-lhes que...

Contou-lhes então a história de Filipina, que em parte os rapazes já sabiam, e pediu-lhes que a fossem chamar. Ribas saiu apressadamente, para satisfazer ao pedido. E, enquanto os demais esperavam pela jovem, falou-lhes da vida na Faculdade, da sua obra, esclarecendo-os sobre diversos pontos e, já com a voz apagada, recomendou-lhes a mais estreita solidariedade através dos anos.

Mais tarde, no quadro escuro da porta, apareceu Filipina embrulhada num xale, com mechas de fios de ouro a escorrerem pela testa pálida. No colo, trazia uma criança. Parou à porta, mas vendo-o assim prostrado no leito de morte, adiantou-se sem dizer palavra. Frank, com esforço, estendeu-lhe as mãos e falou:

— Minha boa amiga, chamei-a para dizer-lhe adeus...

Momentos depois prosseguiu:

— Pensei que seria melhor confiar a nossa pequena à família do Mariano. Já me entendi com ele a esse respeito. Ela será tratada como filha e você ficará livre, para viver nesse abandono em que vou deixá-la...

— Não.

— Mas Filipina...

— Não, já disse.

Passaram a falar em alemão Durante essa cena os rapazes, discretamente, haviam-se afastado um a um. Momentos após, a moça, talvez convencida pelos argumentos de Júlio Frank, deixou a criança sentadinha ao pé da cama e saiu do quarto, com o xale pelo rosto, a soluçar convulsivamente. Os estudantes que se encontravam no corredor, esconderam-se ainda mais na sombra; ela passou sem vê-los, ganhou a porta e seguiu pela rua de São José.

Tendo adivinhado tudo, Mariano Galvão entrou no quarto, tomou a menina no colo, fê-la beijar o rosto imóvel do pai e levou-a consigo. Mas à porta voltou-se para o professor e perguntou:

— Como se chama?

— Bárbara.

— Está bem; será mais uma irmãzinha em nossa casa.

E não pôde dizer mais nada.

Na rua havia magotes de estudantes. O céu estava baixo e escuro. O vento das várzeas sacudia as copas das árvores. Não chovia, mas dos larguíssimos beirais pingavam grossas gotas de garoa.

No seu leito, Frank entrava em delírio. Discutia com as sombras:

— Mas, Andorinha, por que foi que me traiu? Não, não foi por causa do dinheiro, foi pelo desgosto que você me causou, pela desilusão que senti dos homens. Não sabia que já tinha morrido. Coitado. Umas tesouradas na barriga. Mas que cabrinha é essa que o acompanha sempre? Não entendo, não entendo, não entendo...

Ou então:

— Pai Florêncio! Pai Florêncio! Ogun está batalhando com sua lança; venha dizer o segredo dos arixás!

Nova descaída: os olhos se perderam nas órbitas, o nariz afilou, a boca desceu nos cantos e pela testa de cera uma ruga foi escurecendo, escurecendo... Súbito, esforçou-se por sentar, olhando fixo para os pés da cama.

— Mas então vossa alteza é que é meu pai?

Caiu para trás e virou o rosto para o canto. Ourique entrava naquele momento: chegou-se a ele e passou-lhe a mão pela fronte. Depois, sentindo algo de estranho, debruçou sobre o leito e procurou ajeitar melhor o enfermo; achou-o largado. Com as mãos trêmulas, tomou a vela que ardia sobre a mesa e examinou-lhe o rosto; os olhos estavam extintos e o queixo começava a descair. Então, voltou-se para os colegas agrupados à porta, que já haviam pressentido qualquer coisa, e disse-lhes com voz abafada:

— Foi-se!

Não disse mais, com um nó na garganta. Saiu de cabeça baixa para esconder os olhos molhados e entrou num quarto próximo, fechando-se por dentro, e aí, sem testemunhas, pôde dar largas ao pranto.

Na balbúrdia que se fez, os rapazes chamaram a preta velha, que não respondeu. Foram procurá-la e a encontraram na cozinha, sentada no pilão, com a cabeça metida entre os joelhos, a soluçar num choro humilde, dolorido, de criança.

Dali a pouco ouviram-se umas topadas pelo corredor; era a gamela de lavar defundos, a única que existia, guardada pelo sacristão Ponciano, na igreja da Boa Morte. Lavado e vestido, foi o corpo colocado na sala, sobre uma grande mesa, com quatro tocheiros a arder em volta.

A casa continuou aberta, como sem dono. Magotes de estudantes, de livros debaixo do braço, entravam e saíam. Na cozinha havia uma azáfama. Mulheres da vizinhança faziam café, e crianças, sentadas pelos cantos, brincavam com tampas de panela.

Junto ao cadáver ficaram os moços da intimidade do morto; entre esses, muitos, formados na primeira turma, já desempenhavam cargos de relevo, como o Mestrinho e o Pires da Mota. Os que não estavam presos por amizade mais estreita, formaram rodas nos quartos, nos corredores e até mesmo na escada e aí, depois das conversas tristes, passaram aos fatos comuns e, por fim, chegaram às anedotas. Ouvíam-se de quando em quando risotas abafadas.

Os Galvões, que embora jovens, eram muito circunspetos e dispunham de meios, chamaram logo a si a tarefa de prestar ao professor as últimas homenagens. Então, na roda dos íntimos, começou-se a falar de como e onde Júlio Frank seria enterrado. Disse alguém:

— Poderá ir para o cemitério da Glória.

— Não — disse o Ourique — nosso professor e amigo não deverá ser enterrado no cemitério dos pobres, como os mendigos, os enforcados, os escravos e as peças. Acho que devemos dar-lhe condigna sepultura.

— Será difícil — objetou Antônio Joaquim Ribas — porque sendo ele de origem protestante não permitirão o enterramento numa igreja.

Nesse ponto, José Antônio Pimenta Bueno, que já havia iniciado a sua luminosa carreira e, de passagem por São Paulo, fora fazer uma última visita ao amigo, lembrou-se daquela noite, na rua da Constituição, em que Júlio Frank, talvez por pilhéria, fizera uma melancólica profecia. Assim, de acordo com as palavras que ainda ecoavam em seus ouvidos, sugeriu:

— Vamos sepultá-lo na Faculdade; sei que ali existem outros mortos, do tempo em que ainda era convento.

A idéia foi logo aceita. Ourique seguiu em comissão à casa do dr. Brotero, na rua das Flores, esquina Santa Teresa. O diretor interino da Faculdade, que por uma das suas caturrices embeiçara pelo estrangeiro, só então soube da sua morte e aprovou a idéia de sepultá-lo num dos pátios internos da escola.

A casa havia sido tomada pelos estudantes e à discreção dos primeiros momentos sucedera a algazarra habitual dos velórios. Por pouco não virava festa.

O Ribas voltou ao beco da Lapa, a fim de avisar a Filipina de que Frank havia morrido, mas encontrou fechada a casa das rótulas verdes. Uma vizinha solícita pôs a cabeça para fora de sua adufa e informou que mãe e filha haviam partido para Santo Amaro, de mudança.

Ao anoitecer, sabedor de que os estudantes, com o consentimento do diretor interino da Faculdade, visto que o senador Vergueiro estava na Corte, iam inumar Júlio Frank naquele estabelecimento, o bispo d. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade mandou avisar ao dr. Brotero de que tal coisa não seria permitida. Ao saber dessa resolução da autoridade eclesiástica, o conselheiro teve um dos seus repentes e saiu quase a correr para a rua Alegre, onde era situado o palácio episcopal.

Brotero dividia os homens em amigos e inimigos; desconhecia a numerosa classe dos indiferentes. Aos amigos dava a camisa se lha pedissem; aos inimigos movia guerra sem tréguas, passando a vida numa luta exaustiva. Foi assim que, com uma solicitude que Ourique estava longe de esperar, acompanhou-o à rua de São José e se incorporou aos que, na sala, diante da mesa, velavam o cadáver. Por essa altura, já se havia resolvido que o enterro se realizasse às 10 horas, depois do toque de recolher, como era de costume.

Esse conselheiro, só por si, daria um livro. Nasceu em Lisboa no ano de 1798, filho de um governador da África e sobrinho do grande botânico que tem estátua em Coimbra. Ali estudou e doutorou-se em Direito. Envolvendo-se em 1824 numa conspiração anti-miguelista, refugiou-se na ilha do Faial, onde se casou com d. Ana Dabney, nascida em Paris, de nobre família inglesa domiciliada em Boston. Como um seu tio, dr. Mamede, fosse médico do Paço Imperial e pessoa muito conceituada, não lhe foi difícil, ao que parece, obter, em 1827, a nomeação para primeiro lente da Faculdade de Direito de São Paulo, pelo mesmo decreto que nomeava Rendon diretor.

Sua figura encheu São Paulo durante cerca de quarenta anos. Era o que se poderia chamar um homem espinhento, mas boníssimo. No trato com as pessoas que dele se aproximavam fazia logo sentir essa particularidade. As suas lutas com Rendon, com Carneiro de Campos, com Baltazar Lisboa, até mesmo com os presidentes da Província aí estão documentadas. Nas austeras palavras de um ofício ou de um relatório ao governo ele armava conflitos. Com os estudantes e empregados da Escola, então, nem se fala.

Uma vez o bedel Mendonça chegou a dizer-lhe:

— Senhor conselheiro, eu suplico a v. exa. que não me persiga; eu também sou maluco...

Essa versão de uma aduela de menos era corrente.

Dotado de exuberante verborragia, as suas lições eram comícios que dividiam a classe em prós e contras. Mas do meio para o fim ele se atrapalhava e dizia frases como esta, ao descrever um amanhecer no campo:

“O gado a saltar de galho em galho; os passarinhos a pastar pelo prado”.

Em 1846, quando o imperador esteve em São Paulo e a Academia se preparava para recebê-lo, o dr. Brotero, dirigindo os trabalhos, deu ordem ao Mendonça:

— Sr. imperador! Sr. imperador! Apague estas mendoncinhas das paredes que o Garatuja aí vem!

Em quase todas as frases intercalava um “por conseqüência”, que, às vezes, dava pitoresco e inesperado sentido ao que dizia.

Quando lhe subia a mostarda ao nariz, o conselheiro baralhava as palavras, dizendo, por exemplo, “questosa espinhão”, por questão espinhosa. Os alunos, que sabiam disso, comentavam:

— Quando o Brotanga zero, bola as trocas...

O bispo conhecia-o de sobra e esperava a sua visita. Ambos portugueses, de sangue na guelra, andavam sempre de pontas, mas acabavam entendendo-se.

Chegando à casa do bispo, o conselheiro entrou pela porta armoriada. Ao lado, na sala, viu gente à espera. Lá estava a pesada mesa de jacarandá, finamente entalhada, sob os grandes livros de assento. As cadeiras de altos espaldares de couro alinhavam-se na sombra, mostrando arabescos de pregaria dourada. Um cônego de cabelos brancos contava pousadamente qualquer coisa a coroinhas atentos. Objetos de culto resplandeciam sobre arcas lisas. Num rápido olhar inteirou-se de que o bispo não estava na sala e se um escravo vestido de amarelo com punhos agaloados de azul não o tivesse impedido, iria pelo corredor até à varanda, onde o príncipe da igreja fazia a sua refeição da tarde. Ao saber de quem se tratava, mandou entrar o diretor da Faculdade.

— Senhor conselheiro José Maria de Avelar Brotero, a sua presença sempre será agradável nesta casa e eu tomo a liberdade de convidá-lo a participar deste peru com farófias, que está uma delícia.

— Obrigado senhor dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, mas o assunto que cá me traz é daqueles que exigem decisão e rapidez; tenho os minutos contados.

— Nesse caso, fale vossência.

— Estou certo de que o senhor bispo já sabe do motivo desta minha visita: trata-se do enterro do professor Júlio Frank, na Faculdade, a que vossência apôs o seu embargo.

— Pois está claro...

Brotero sentiu um repelão nos nervos, mas dominou-se.

— Com que então vossências da Faculdade querem enterrar lá o judeu?

— Ele não é judeu.

— Ou o huguenote, que para mim tanto se me dá.

— Também não professava a Reforma.

— Ou ainda o pedreiro-livre, tenha lá o nome que tiver, mas o que vossência não quererá dizer-me é que ele era dos meus.

— Dos nossos, poderia vossência dizer.

— Aí está...

— Concordo com a pouca religiosidade do morto, contra quem não se pode articular ofensas à fé, mas ao contrário, uma doçura toda cristã, um esmoler como Nosso Senhor queria as almas.

— Isso não basta; ovelha tresmalhada enterra-se fora do aprisco.

Brotero sentiu outro repelão nos nervos.

— Mas nós pretendemos enterrá-lo na Faculdade não na Igreja.

— Dá na mesma. Aquele chão é sagrado; já foi convento, já recebeu despojos de homens tementes a Deus e cujos ossos se sentiriam mal ao pé do herege.

— Mas eu sou o diretor da Faculdade...

— E eu sou o quinto bispo de São Paulo.

— Pois ainda que pese a vossência, eu o farei enterrar à sombra das arcadas!

O bispo, nos olhos injetados e na mãos trêmulas de Brotero, viu que o conselheiro já não tinha mão em si e, antes que estalasse a “broterada”, como se dizia então, tocou a sineta e uma preta apareceu com a bandeja de café.

— O conselheiro prefere café com muito ou com pouco açúcar?

Brotero sofria por conter-se.

— Pouco. Agradeço a vossência.

Engoliu nervosamente o café, estalou a língua, e mais apaziguado:

— Que diacho... Nós bem poderíamos entender-nos para evitar estes desaguisados... Pois eu, afinal, tenho a felicidade de contar-me entre as mais humildes ovelhas de vossência.

— Ovelha um tanto arisca, valha-me Deus!

E riu com gosto.

— Não haverá uma esperançazinha de entender-nos?

— Há; vossência manda o marrano para o cemitério dos pobres.

Brotero mostrou-se vencido; era o que mais desejava o bispo. Então, depois de haver-lhe quebrado a castanha, como havia prometido aos íntimos, mostrou-se mais conciliador:

— Vamos lá... Sei o que são essas coisas... Vossência tem os seus compromissos com a tal... Nunca chegaria a pronunciar semelhante nome... Pois enterre lá na sua escola o bangalafumengas, não como cristão, mas fazendo constar que por ser huguenote não no receberam em sagrado...

— E vossência não se oporá?

— Ora, eu não tenho tempo para tratar de nonadas: ignorarei. Está tudo acabado.

Brotero, impulsivo, teria estrangulado o bispo dois minutos antes; mas ao ouvir aquelas palavras sentiu ímpetos de rojar a seus pés. Foi então o príncipe da cristandade quem lhe encheu um copo de vinho e lho serviu, dizendo:

— Beba, conselheiro, que este é dos nossos e Deus lho descontará no Paraíso.

Era a permissão para que Júlio Frank fosse enterrado na Faculdade; soube-se que houvera um bate-barbas entre o diretor-interino e o bispo, mas ninguém até hoje poderia contar com precisão como aquilo foi. A verdade, no entanto, é que o professor de História pôde ali ser enterrado nessa noite, não por protestante, mas apesar de protestante.

* * *


 

XX
SOB AS ARCADAS

 

Já noite fechada, o dr. Brotero ainda não tinha voltado da casa do bispo e os rapazes que velavam o morto, por não saberem o destino que lhe deviam dar, mostravam-se apreensivos. A casa tinha sido tomada pelos estudantes. Uns entravam, outros saíam. Mais parecia abarracamento de recrutas.

O quarto em que Júlio havia vivido muitos anos e cerrado os olhos à luz do mundo achava-se fechado. Em certo momento, quiseram os amigos lá entrar e não o conseguiram. A chave estava por dentro. Alguém, portanto, lá se havia encerrado. Quem seria? Que estaria fazendo? Uma aguda curiosidade entrou de espicaçar os estudantes. Estevam de Rezende, mais inquieto do que os outros, arrastou um console até a porta, trepou sobre ele e espiou pela bandeira a que faltavam vidros. Em baixo, de nariz para o ar, a súcia esperava o resultado. Nem bem espiou, perguntaram-lhe logo:

— Quem é?

— É o Ourique.

— Que faz ele, fechado por dentro?

— Não sei.

— Está dormindo?

— Não. Vejo-o à luz de uma vela; está sentado a mesa, a pena de pato em punho, e vergado sobre o papel escreve linhas tortas que não chegam ao fim da página.

Houve um sussurro na súcia.

— Agora, que faz ele?

— Olha para cima, como a procurar palavras escritas no teto; faz caretas.

Novos comentários, em voz baixa.

— Agora ele abriu a mão e vai batendo com os dedos, um por um, sobre a mesa, como a contar qualquer coisa que não existe. Repete palavras a meia voz...

Em baixo, discutia-se o caso. Surgindo mesmo entre os rapazes a suspeita de que o Ourique houvesse ensandecido, pediram ao Rezende o interrogasse a fim de que, se fosse verdade aquilo, lhe prestassem auxílio. Então, botando a cabeça pelo buraco da bandeira, o Rezende chamou:

— Ourique!

O interpelado, lá dentro, deu um pulo e espiou para a cama onde havia morrido Frank e na qual ainda se notava a forma de um corpo sobre o colchão amassado. Cheio de susto, olhou em roda de si e, como nada justificasse ter ouvido alto e próximo o seu nome, ia para levar a mão trêmula à chave, quando Rezende, sempre lá de cima, insistiu:

— Você está sentindo-se mal?

Só então o colega o viu.

— Ora bolas, era você? Que mal, que nada...

— Mas então que fazia naquela suspeita atitude?

— Eu? Olhe...

Mostrou-lhe a página escrita.

— Que é isso?

— São versos.

Nesse momento chegava entre aclamações um emissário do dr. Brotero com a autorização de enterrar Júlio Frank num pátio interno da Faculdade, acrescentando que para isso estavam sendo tomadas providências. Ao mesmo tempo emergiu do corredor, alumiado por um candieiro suspenso ao teto, o rabecão da Misericórdia, caixão preto no qual era conduzido o defunto até a beira da cova e que, depois de descarregar o fardo, voltava para a Santa Casa.

A sala estava quente e abafada; o calor e o fumo das tochas, misturados ao odor da cera e às mil exalações da morte, davam tonturas. Mestrinho, já pouco habituado àquelas coisas que iam ficando muito remotas no seu passado, foi para a janela. A noite estava escura como breu e na esquina da ladeira ardia o único lampião da vizinhança. Não se via viva alma. E ainda estava nessa melancólica postura quando lá para as bandas do Colégio se ouviu, remoto e grave, o prolongado toque de recolher. Ao mesmo tempo, a janela do Pires da Mota, na esquina do largo de São Bento, onde ainda havia um pouco de luz, apagou-se.

Dali a pouco começaram a sair da “república” estudantes empunhando tocheiros. Contou-os: dez, vinte, quarenta...

Ao meio deles, carregado por seis dos mais fortes, desembocou da porta o rabecão da Misericórdia. Após pequena parada, o cortejo encaminhou-se para a banda da ladeira de São João Batista e de lá seguiu pelas barrocas da rua São José. O vento do Anhangabaú deitava e espichava as chamas, torcendo cordas de fumo. Prosseguiu lento e silencioso até Santo Antônio e de lá para o Ouvidor. À passagem, em toda a extensão do caminho, os sapos saltavam entre as pernas dos estudantes; bichos assustados barafustavam na capoeira dos terrenos abertos e, pelas hortas cercadas de pau-a-pique os cachorros davam uivos lancinantes.

Chegaram ao largo de São Francisco. A porta da igreja, que era a serventia comum da Faculdade, estava trancada. Viraram então para a esquerda, encaminharam-se para as portas do beco da Casa Santa e por elas desceram ao escuro corredor em que morcegos raspavam com as asas a cara dos rapazes, ou se batiam pelas paredes, como petecas. Assim, o cortejo chegou ao “claustro mais íntimo da Faculdade” onde, à luz das lanternas, dois pretos sem camisa, lavados de suor, acabavam de abrir a cova. Aí, o morto foi tirado da caixa e estendido sobre a terra solta que se amontoava no chão. Estava embrulhado num lençol e a luz parecia dar-lhe movimentos. Desimpedidos, os gatos pingados, fartos de ver aquilo, tomaram do rabecão e se dissolveram na noite.

Galvão perguntou:

— Vocês acham que já se pode enterrar?

Foi quando Ourique, encostado à muralha, levantou a mão, pedindo a palavra. Todos se voltaram para ele. Estava pálido, com os longos cabelos a escorrer pelo rosto e, a cada gesto que fazia, a ampla capa preta acompanhava o braço. A sombra dançava atrás dele, na parede. Declamou uma longa nenia, ora lamentando a perda do amigo, ora invocando os filósofos seus familiares. Em certo ponto fazia mesmo amarga referência às disposições do bispo:

 

Ilustre Blumenbach, o teu amigo,
O sábio Júlio, o Júlio sem igual,
Existe no jazigo;
E da ciência a estrada, eis sem fanal!
Morreu desconhecido; e do bonzo a fanática virtude
Não quis, compadecida,
Dar-lhe asilo sagrado ao ataúde.

Mas, que sepulcro existe mais ditoso
Que nossos corações?
Que lugar mais sagrado, mais honroso,
Que cantos, que asperções,
Equivalem ao pranto, aos ais, ao luto!
E negaram-lhe os homens tal tributo!
Oh! não! Que infâmia era,
Nem os humanos têm alma tão fera!

Oh! tu, Júlio feliz, benquisto Júlio,
Que desfrutas na plácida mansão
De seres virtuoso
Divinal compensação,
Acolhe os sentimentos de amizade,
A sã posteridade
De respeito e de amor, com que teu nome
Há de ser transmitido com renome!

 

Terminada a poesia, os colegas foram levar-lhe um silencioso aperto de mão. Alguns chegaram mesmo a abraçá-lo. Nese interim, os coveiros deitaram o corpo de Frank no fundo da cova, e começaram a cobri-lo com pasadas de terra. Ouvia-se o rascar da ferramenta no chão vidrado, seguido do pof-pof característico dos torrões amolgando a carne morta que se fizera cera.

Em grupos, os rapazes foram saindo e perdendo-se no beco da Casa Santa povoado de sapos.

Os últimos, depois de fazerem o mesmo, alcançaram o largo de São Francisco e ficaram debaixo do lampião pendurado à esquina. Cavaquearam sobre cousas alheias à morte. Mas de um momento para outro, no meio do silêncio imperturbável daquela hora, ouviram com arrepios a toada característica com que os escravos, alta noite, enterravam os mortos. Repetiam uma melopeia, cadenciando-a com o bater da mão-de-pilão sobre a terra fofa:

 

Zóio que tanto viu,
Zi boca que tanto falô,
Que tanto comeu,
Zi perna que andô
Zi cropo que trabaiô
Zi pé que pizô,
Zi braço que abraçô;
Zi coração que gostô,
Que bateu
E zi’squeceu...

 

Os três rapazes sabiam do que se tratava, pois esse era hábito comum na cidade; mas naquela noite, depois de tantas emoções, produzia-lhes tal angústia que eles atiraram a capa para o ombro, puxaram o chapéu à frente e lá se foram, atravessando o largo para as bandas do Ouvidor e do Piques, na esperança, talvez, de encontrar uma serenata que lhes desanuviasse a alma.

***

E o tempo se foi escoando. Na cadeira de História e Geografia, do Curso Anexo, Júlio Frank foi substituído pelo seu ex-aluno Antônio Joaquim Ribas. Filipina, levada por sua mãe para Santo Amaro, casou-se ali com um bravo carpinteiro alemão, chamado Matias, de quem houve muitos filhos. Bárbara, acolhida como filha na casa dos Galvões, recebeu primorosa educação.

Certo dia, o Mendonça ficou seriamente atrapalhado; é que Joaquim e José Mariano apareceram na Faculdade com o retrato de Frank, pintado a óleo por um artista, sob indicações muito justas dos amigos. Depois de várias consultas, o retrato foi colocado na sala do diretor, donde com o tempo passou para a de leitura da Biblioteca, e aí entre muitos outros, ainda se encontra há alguns anos.

E mais atrapalhado ficou o Mendonça quando pelas portas da Faculdade começaram a entrar as peças de um túmulo que, para o tempo, representava cousa nunca vista. Ainda lá se encontra. É um catafalco sobre plataforma quadrilátera, à qual dão acesso alguns degraus, encimado por um obelisco de cerca de quatro metros de altura. Todo o monumento, de cantaria, está amparado por gradil de ferro, preso nos ângulos a quatro pilastras, adornadas por simbólicos mochos. Numa das faces do pedestal ainda hoje se pode ler o dístico:

 

HIC JACET JULIUS FRANK — IN HAC PAULOPOL. ACADEM. PUBLIC. PROF. — NATUS GOTHAS — ANN. MDCCCIX — OBIIT XIX JUNII ANN. MDCCCXLI — AETATE SUAE XXXII — SIT EI TERRA LEVIS.

 

Fica situado defronte da sala, agora reformada, em que ele lecionava. A obra custou 4:000$000, soma considerável ainda hoje para bolsas de estudantes e muito mais naquela época, em que boa parte deles era composta de pensionistas gratuitos dos conventos, das famílias abastadas ou que de todo não contavam meios de subsistência.

Conta-se que muitos anos depois, ao cair da tarde, um padre chegou à Escola e, entrando pelo beco da Casa Santa, tomou o corredor e foi ter ao pátio onde se encontra o túmulo. Diante do monumento de cantaria, ajoelhou-se, concentrou-se e depois deu a benção ao morto que ali se ia pouco a pouco transformando em pó.

Era o padre Ourique. Depois de formar-se pelo Gabinete Topográfico, precursor da Escola de Engenharia, acabara recebendo ordens e, talvez movido pela saudade daquele que tanto estimara, não resistiu ao desejo de levar-lhe as únicas cousas que lhe podia oferecer: lágrimas e bênçãos.

A Burschenschaft sobreviveu ao fundador e, embora desvirtuada, ainda hoje existe. Com o decorrer do tempo, como Júlio Frank previra, tornou-se principalmente uma associação de ex-alunos, cuja força foi crescendo com o prestígio das posições ocupadas pelos seus membros, a ponto de encontrarem-se marcas da sua atividade nos fatos mais importantes da nossa História. Mas este livro não aspira a ser mais do que uma novela; o resto fica para os historiadores.

* * *


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