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Friedrich Engels

DO SOCIALISMO UTÓPICO AO SOCIALISMO CIENTÍFICO

—Ridendo Castigat Mores—


 

Do socialismo utópico ao socialismo científico (1877)
Friedrich Engels (1820-1895)
Edição
Ridendo Castigat Mores

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Fonte Digital
RocketEdition de 1999 a partir de html em
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Para esta edição, incluídos Prefácios e notas.
Texto final resultante do confronto com as versões em espanhol, francês e inglês, disponíveis no Marxists Internet Archive
Fontes: www.vermelho.org.br
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Copyright ©
Autor: Friedrich Engels
Edição eletrônica:
Ed. Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


DO SOCIALISMO UTÓPICO
AO
SOCIALISMO CIENTÍFICO

[imagem]

Friedrich Engels


Índice

Prefácio à primeira edição alemã - 1882
Prefácio à quarta edição alemã - 1891
Prefácio à edição inglesa - 1892
Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico
I
II
III
Notas


PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ALEMÃ

 

O folheto que se vai ler tem por origem três capítulos de meu trabalho: M. E Dühring bouleverse la science (O Senhor E. Dühring subverte a ciência), Leipzig 1878. A compus para meu amigo Paul Lafargue para fins de tradução em francês e acrescentei alguns novos desenvolvimentos. A tradução francesa, que revi, apareceu inicialmente na Revue socialiste, depois em brochura sob o título Socialisme utopique et socialisme scientifique, Paris 1880. Uma versão em polonês, a partir da tradução francesa, acaba de ser lançada em Genebra sob o título Socyjalism utopijny a naukowy, Imprimerie de l'Aurore, Genève 1882.

O sucesso surpreendente da tradução de Lafargue nos países de língua francesa e particularmente na própria França iria mesmo necessariamente impor a questão: uma edição alemã separada destes três capítulos não seria igualmente útil? Então a redação do Sozialdemokrat de Zurich me fez saber que no partido social-democrata alemão reclamava-se de maneira geral a edição de novos folhetos de propaganda e me perguntava se não queria destinar para esse fim estes três capítulos. Concordei, naturalmente, e coloquei meu trabalho à disposição.

Mas, originalmente, não tinha sido redigido de modo algum tendo em vista a propaganda popular direta. Como um trabalho de primeira linha puramente científico prestar-se-ia a isso? Que modificações seriam necessárias, na forma e no conteúdo?

Quanto à forma, só as numerosas palavras estrangeiras poderiam incomodar. Mas o próprio Lassalle não economizara as palavras estrangeiras em seus discursos e escritos de propaganda, e, pelo que sei, não houve reclamações. Desde esta época nossos operários leram muito mais jornais e muito mais regularmente e estão assim bastante mais familiarizados com as palavras estrangeiras. Cuidei de descartar os termos estrangeiros inúteis. Quanto aos que são inevitáveis, abdiquei de acrescentar traduções ditas explicativas. Os termos estrangeiros inevitáveis, para a maioria das expressões científicas e técnicas geralmente usadas, não seriam precisamente inevitáveis se pudessem ser traduzidas. A tradução falseia então o sentido; em lugar de explicar, confunde. A informações oral é neste caso bem mais útil.

Ao contrário, o conteúdo — creio poder afirmá-lo — oferecerá pouca dificuldade aos trabalhadores alemães. Em princípio, só o terceiro capítulo é difícil, mas o é muito menos para os trabalhadores dos quais resumo as condições gerais de existência que para os burgueses “cultivados”. Nos numerosos comentários adicionais que aqui dei, pensei efetivamente menos nos operários do que nos leitores “cultivados”; a esses, digamos, como o Senhor Deputado von Eynern, o Senhor Conselheiro secreto Heinrich von Sybel e outros Treitschke, em benefício de seu cuidado irresistível de nos brindar sem cessar por escrito com sua atroz ignorância e colossal incompreensão do socialismo — uma explica a outra. Se Don Quixote atacou com lanças moínhos de vento, era sua função e seu papel; mas não podemos permitir tal coisa a Sancho Pança.

Este gênero de leitores espantar-se-á de encontrar em um esboço da história do desenvolvimento do socialismo a cosmogonia de Kant e de Laplace, as ciências modernas da natureza e Darwin, a filosofia clássica alemã e Hegel. Ora, acontece que o socialismo científico é um produto essencialmente alemão, e não poderia nascer senão na nação que manteve viva a tradição da dialética consciente: na Alemanha. A concepção materialista da história e sua aplicação particular à luta de classes moderna entre proletariado e burguesia não seria possível senão por meio da dialética. Mas se os mestres-escolas da burguesia alemã negaram os grandes filósofos alemães e a dialética de que eram os representantes em prol de um sinistro ecletismo, a ponto de sermos constrangidos a fazer apelo às ciências modernas da natureza para atestar a confirmação da dialética na realidade — nós, os socialistas alemães, temos orgulho de não descender apenas de Saint Simon, de Fourier e de Owen, mais também de Kant, de Fichte e de Hegel.

 

Londres, 21 de setembro de 1882.
Friedrich ENGELS.


PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO ALEMÃ

 

O que eu supunha — o conteúdo desta obra deveria oferecer poucas dificuldades para nossos trabalhadores alemães — verificou-se. Pelo menos, desde março de 1883, data de aparição da primeira edição, três tiragens num total de 10.000 exemplares esgotaram-se, e isso sob o reino da defunta lei anti-socialista — o que constitui ao mesmo tempo um novo exemplo da impotência das interdições policiais face a um movimento como o do proletariado moderno.

Desde a primeira edição, diversas traduções em línguas estrangeiras ainda apareceram: uma edição italiana de Pasquale Martignetti Il Socialismo utopico e il Socialismo scientifico, Bénévent 1883; uma edição russa: Razvitie naucznago Socializma, Genève 1884; uma edição dinamarquesa Socialismens Udvikling fra Utopi til Videnskab, na “Socialistik Bibliothek”, I. Bind, Copenhague 1885; uma edição espanhola: Socialismo utopico y Socialismo cientifico, Madri 1886; e uma edição holandesa: De Ontwikkeling van het Socialisme van Utopie tot Wetenschap, Haia 1886.

A presente edição sofreu diversas pequenas modificações: adições de alguma importância só foram feitas em dois lugares: no primeiro capítulo a respeito de Saint-Simon que estava um pouco em desvantagem em relação a Fourier e Owen, e ao fim do terceiro capítulo a propósito da forma de produção dos “trusts” que ganharam importância desde então.

 

Londres, 12 de maio de 1891. Friedrich ENGELS.


Prólogo à edição inglesa

 

O pequeno trabalho que o leitor tem diante de si fazia parte, originariamente, de uma obra maior. Em 1875, o Dr. E. Dühring, docente privado da Universidade de Berlim, anunciou inopinadamente e com bastante alarido sua conversão ao socialismo e apresentou ao público alemão não só uma teoria socialista minuciosamente elaborada, como também um plano prático completo para a reorganização da sociedade.

Lançou-se, naturalmente, sobre seus predecessores, distinguindo particularmente Marx, sobre quem derramou sua transbordante cólera.

Isso ocorria num momento em que os dois setores do Partido Socialista Alemão — os eisenachianos e os lassalianos(1) — acabavam de fundir-se, adquirindo assim não só um imenso fortalecimento, mas algo ainda mais importante: a possibilidade de desenvolver toda essa força contra o inimigo comum. O Partido Socialista da Alemanha convertia-se rapidamente numa potência. Mas para que se convertesse numa potência a condição essencial residia em que não fosse posta em perigo a unidade recém-conquistada. E o Dr. Dühring dispôs-se publicamente a formar em torno de sua pessoa uma seita — núcleo do que seria, no futuro, um partido à parte. Não havia, pois, outro remédio, senão aceitar a luva que nos atirava e entrar na luta, por menos agradável que isso nos fosse.

Certamente, ainda que não fosse muito difícil, a coisa haveria de ser, evidentemente; bastante pesada. É sabido que nós, os alemães, temos uma terrível e poderosa Gründlichkeit — um radicalismo profundo ou uma radical profundidade, como se queira chamar. Quando um de nós expõe algo que reputa ser uma nova doutrina, a primeira coisa que faz é elaborá-la sob a forma de um sistema universal. Tem que demonstrar que tanto os princípios básicos da lógica como as leis fundamentais do universo não existiram, desde toda uma eternidade, senão com o propósito de levar, afinal, a essa teoria recém-descoberta, que coroa então tudo quanto existe. A esse respeito, o Dr. Dühring estava talhado perfeitamente pelo padrão nacional. Nada menos que um Sistema Completo da Filosofia — filosofia intelectual, moral, natural e da história —, um Sistema Completo de Economia Política e de Socialismo e, finalmente, uma História Crítica de Economia Política — três gordos volumes In-8°, pesados por fora e por dentro, três corpos de exército de argumentos, mobilizados contra todos os filósofos e economistas anteriores, em geral, e contra Marx em particular; em realidade, uma tentativa de completa “subversão da ciência”. Tive que defrontar-me com tudo isso; tive que tratar todos os temas possíveis, desde as idéias sobre o tempo e o espaço até o bimetalismo(2); desde a eternidade da matéria e do movimento até a natureza perecível das idéias morais; desde a seleção natural de Darwin até a educação da juventude numa sociedade futura. É certo que a sistemática universalidade de meu contendor me oferecia a oportunidade para desenvolver diante dele, numa forma mais coerente do que até então se havia feito, as idéias sustentadas por Marx e por mim acerca de tão grande variedade de matérias. E foi essa a razão principal que me leva a empreender essa tarefa, ademais tão ingrata.

Minha réplica apareceu, primeiro, numa série de artigos publicados no Vorwärts(3) de Leipzig, órgão central do Partido Socialista, e mais tarde em forma de livro, com o título Herrn Eugen Dühring Umwalzung der Wissenschaft [A Subversão da Ciência Pelo Senhor E. Dühring], do qual foi publicado em Zurique a segunda edição em 1886.

A pedido de meu amigo Paul Lafargue, atual representante de Lille na Câmara dos Deputados da França, destaquei três capítulos desse livro para um folheto, que ele traduziu e publicou em 1880 com o título de Socialisme Utopique et Socialisme Scientifique. Desse texto francês foram feitas uma versão polonesa e outra espanhola. Em 1883 nossos amigos da Alemanha publicaram o folheto em seu idioma original. Desde então publicaram-se, à base do texto alemão, traduções para o italiano, o russo, o dinamarquês, o holandês e o romeno. Assim, incluindo a atual edição inglesa, este folheto foi difundido em dez línguas. Não sei de nenhuma outra publicação socialista, inclusive o nosso Manifesto Comunista de 1848 e O Capital de Marx, que tenha sido traduzida tantas vezes. Na Alemanha foram feitas quatro edições, com uma tiragem total de cerca de 20 mil exemplares.

O apêndice “A Marca”(4) foi escrito com o propósito de difundir entre o Partido Socialista Alemão algumas noções elementares a respeito da história e o desenvolvimento da propriedade rural na Alemanha. Naquele tempo isso era extremamente necessário, tanto mais que a incorporação dos operários urbanos ao Partido fizera já um grande progresso e já se colocava a tarefa de dedicar-se às massas de operários agrícolas e dos camponeses. Esse apêndice foi incluído na edição tendo em conta a circunstância de que as formas primitivas de posse da terra, comuns a todas as tribos teutônicas, assim como a história de sua decadência, são ainda menos conhecidas na Inglaterra do que na Alemanha. Deixei o texto na sua forma original, sem aludir à hipótese recentemente proposta por Maxim Kovalevski, segundo a qual a repartição das terras de cultivo e de pastagem entre os membros da Marca precedeu ao cultivo em comum dessas terras por uma grande comunidade familiar patriarcal, que compreendia várias gerações (pode servir de exemplo a zádruga do sul da Eslávia, até hoje existente). Logo porém que a comunidade cresceu e se tomou demasiado numerosa para administrar em comum a economia verificou-se a repartição da terra(5). É provável que Kovalevski tenha razão, mas o assunto ainda se encontra sub judice.

Os termos de economia empregados neste trabalho coincidem, sempre que novos, com os da edição inglesa de O Capital de Marx. Designamos como “produção de mercadorias” aquela fase econômica em que os objetos não são produzidos apenas para o uso do produtor, mas também para os fins de troca, isto é, como mercadorias e não valores de uso.

Essa fase vai dos albores da produção para a troca até os tempos presentes; mas só alcança seu pleno desenvolvimento sob a produção capitalista, isto é, sob as condições em que o capitalista, proprietário dos meios de produção, emprega, em troca de um salário, operários, homens despojados de todo meio de produção, com exceção de sua própria força de trabalho, e embolsa o excedente do preço de venda dos produtos sobre o seu custo de produção. Dividimos a história da produção industrial desde a Idade Média em três períodos: 1) indústria artesanal, pequenos mestres artesãos com alguns oficiais e aprendizes, em que cada operário elabora o artigo completo; 2) manufatura, em que se congrega num amplo estabelecimento um número considerável de operários, elaborando-se o artigo completo de acordo com o princípio da divisão do trabalho, onde cada operário só executa uma operação parcial, de tal modo que o produto só está completo e acabado quando tenha passado sucessivamente pelas mãos de todos; 3) indústria moderna, em que o produto é fabricado mediante a máquina movida pela força motriz e o trabalho do operário se limita a vigiar e retificar as operações do mecanismo.

Sei muito bem que o conteúdo deste livro indignará grande parte do público britânico. Mas se nós, os continentais, houvéssemos guardado a menor consideração aos preconceitos da “respeitabilidade” britânica, isto é, ao filisteísmo britânico, pior ainda teríamos saído. Esta obra defende o que nós chamamos o “materialismo-histórico” e para os ouvidos da imensa maioria dos leitores britânicos a palavra materialismo soa muito mal. “Agnosticismo” ainda poderia passar, mas materialismo é totalmente inadmissível.

E no entanto a pátria primitiva de todo o materialismo moderno, a partir do século XVII, é a Inglaterra.

“O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha. Já o escolástico britânico Duns Scot perguntava a si mesmo se a matéria não poderia pensar.

Para realizar esse milagre refugiava-se na onipotência divina, isto é, obrigava a própria teologia a pregar o materialismo. Duns Scot era, ademais, nominalista. O nominalismo(6) aparece como elemento primordial nos materialistas ingleses e é, em geral, a expressão primeira do materialismo.

O verdadeiro pai do materialismo inglês é Bacon. Para ele a ciência da natureza é a verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da ciência da natureza. Anaxágoras, com suas homoemerias(7) e Demócrito com seus átomos são as autoridades que cita com freqüência. Segundo, sua teoria os sentidos são infalíveis e constituem a fonte de todos os conhecimentos. Toda ciência se baseia na experiência e consiste em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a experimentação são as condições fundamentais desse método racional.

Entre as propriedades inerentes à matéria, a primeira e mais importante é o movimento, concebido não só como um movimento mecânico e matemático, porém ainda mais como impulso, como espírito vital, como tensão, como “Qual”(8) — para empregar a expressão de Jakob Böhme — da matéria.

As formas primitivas deste último são forças substanciais vivas, individualizantes, a ela inerentes, forças que produzem as diferenças específicas.

Em Bacon, como seu primeiro criador, o materialismo guarda ainda, de maneira ingênua, os germes de um desenvolvimento multilateral. A matéria sorri com um fulgor poeticamente sensorial a todo homem. Em troca, a doutrina aforística é ainda, por si mesma, um manancial de inconseqüências teológicas.

Em seu desenvolvimento posterior, o materialismo torna-se unilateral. Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e se converte na sensoriedade abstrata do geômetra. O movimento físico sacrifica-se ao movimento mecânico ou matemático, a geometria é proclamada a ciência fundamental. O materialismo toma-se misantropo.

Para poder dar combate em seu próprio terreno ao espírito misantrópico e descarnado, o materialismo se vê obrigado também a flagelar a sua carne e converter-se em asceta. Apresenta-se como entidade intelectual, mas desenvolve também a lógica impiedosa do intelecto.

Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos — argumenta Hobbes partindo de Bacon —, os conceitos, as idéias, as representações mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos despojado de sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que dar nomes a esses fantasmas. Um nome pode ser atribuído a vários fantasmas. Pode inclusive haver nomes de nomes. Mas seria uma contradição querer, de um lado, buscar a origem de todas as idéias no mundo dos sentidos e, de outro lado, afirmar que uma palavra é algo mais que uma palavra, que além dos seres concretos que nós nos representamos, existem seres universais. Uma substância incorpórea é um contra-senso igual a um corpo incorpóreo. Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma idéia real. Não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças. A palavra “infinito” carece de sentido, a não ser como expressão da capacidade do nosso espírito para acrescentar sem fim. Como só o material é perceptível, susceptível de ser conhecido, nada se conhece da existência de Deus. Só a minha própria existência é certa. Toda paixão humana é movimento mecânico que termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem. O homem acha-se sujeito às mesmas leis que a natureza. O poder e a liberdade são coisas idênticas.

Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor de seu princípio fundamental: o de que os conhecimentos e as idéias têm sua origem no mundo dos sentidos.

Locke, em sua obra Essay on the Human Understanding (Ensaio Sobre o Entendimento Humano) fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes.

Do mesmo modo que Hobbes destruiu os preconceitos teísticos do materialismo baconiano, Collins, Dodwell, Coward, Hartley, Priestley, etc, derrubaram a última barreira teológica do sensualismo de Locke. O deísmo(9) não é, pelo menos para os materialistas, mais do que uma maneira cômoda e indolente de desfazer-se da religião.”

[Karl Marx — A Sagrada Família N.E.(10) ]

Assim se expressava Karl Marx referindo-se às origens britânicas do materialismo moderno. E se aos ingleses de hoje não agrada muito essa homenagem prestada por Marx aos seus antepassados, lamentamos por eles. Mas é inegável, apesar de tudo, que Bacon, Hobbes e Locke foram os pais daquela brilhante escola de materialistas franceses que, apesar das derrotas que os alemães e ingleses infligiram à França por mar e por terra, fizeram do século XVIII um século eminentemente francês; e isso muito antes daquela revolução francesa que coroou o final do século e cujos resultados ainda hoje nos esforçamos por aclimatar na Inglaterra e na Alemanha.

Não se pode negar. Se em meados do século um estrangeiro culto se instalasse na Inglaterra, o que mais lhe causaria surpresa seria a beatice religiosa e a estupidez — assim teria ele que considerar — da “respeitável” classe média inglesa. Todos nós éramos, então, materialistas ou, pelo menos, livres-pensadores muito avançados, e nos parecia inconcebível que quase todos os homens cultos da Inglaterra acreditassem numa série de milagres impossíveis e que até geólogos como Buckland e Mantell tergiversassem os fatos de sua ciência, para não desmascarar muito frontalmente os mitos do Gênesis; inconcebível que, para encontrar pessoas que se atrevessem a servir-se de sua inteligência em matéria religiosa, tivessem que recorrer aos setores incultos, às “hordas dos que não se lavam”, como se dizia então, aos operários e, principalmente, aos socialistas owenianos.

Mas, de então para cá, a Inglaterra “civilizou-se”. A Exposição de 1851(11) foi o repique fúnebre do exclusivismo insular inglês. A Inglaterra foi, pouco a pouco, internacionalizando-se nas comidas e nas bebidas, nos costumes e nas idéias, até um ponto que me faz desejar que certos costumes ingleses encontrassem no continente uma acolhida tão geral como o têm encontrado outros hábitos continentais na Inglaterra. O que se pode assegurar é que a difusão do azeite para salada (que antes de 1851 só era conhecido pela aristocracia) foi acompanhada de uma fatal difusão do ceticismo continental em matéria religiosa, chegando-se até ao extremo de que o agnosticismo, embora ainda não considerado tão elegante como a igreja anglicana, está contudo, no que se refere à respeitabilidade, quase na mesma altura da seita anabatista, ocupando mesmo posição muito mais alta que o Exército de Salvação(12). Não posso deixar de pensar que, para muitos que deploram e amaldiçoam com toda sua alma tais progressos da descrença, será um consolo saber que essas idéias flamejantes não são de origem estrangeira, não circulam com a marca “Made in Germany” (fabricado na Alemanha), como tantos outros artigos de uso diário, mas têm, ao contrário, antiga e venerável origem inglesa e que os seus autores britânicos de há duzentos anos atrás iam muito mais longe do que os seus atuais descendentes.

Com efeito, que é o agnosticismo senão um materialismo envergonhado? A concepção agnóstica da natureza é inteiramente materialista. Todo o mundo natural é regido por leis e exclui por completo toda influência exterior. Mas nós, acrescenta cautelosamente o agnóstico, não estamos em condições de poder provar ou refutar a existência de um ser supremo fora do mundo por nós conhecido. Essa reserva podia ter sua razão de ser na época em que Laplace, como Napoleão lhe perguntasse por que na Mécanique Céleste(13) do grande astrônomo não se mencionava sequer o criador do mundo, respondia com estas palavras orgulhosas: “Je n’avais pas besoin de cette hypothèse”(14). Mas hoje a nossa idéia do universo em seu desenvolvimento não deixa o menor lugar nem para um criador nem para um regente do universo; e se quiséssemos admitir a existência de um ser supremo posto à margem de todo o mundo existente, incorreríamos numa contradição lógica e, além disso, parece-me, feriríamos desnecessariamente os sentimentos das pessoas religiosas.

Nosso agnóstico reconhece também que todos os nossos conhecimentos têm por base as comunicações que recebemos por intermédio dos sentidos. Mas, como sabemos — acrescenta — se nossos sentidos nos transmitem realmente a imagem exata dos objetos por eles percebidos? E continua dizendo: quando falo das coisas e das propriedades não me refiro, em verdade, a essas coisas e suas propriedades em si, acerca das quais nada posso saber de certo, mas apenas às impressões que deixam em meus sentidos. É, certamente, uma forma de conceber que parece difícil ser contestada através de simples argumentação. Mas os homens, antes de argumentar, haviam atuado.

“Im Anfang war die Tat”(15). E a ação humana havia resolvido a dificuldade muito antes de os sofismas humanos a inventarem. “The proof of the pudding ís in the eating”(16).

Desde o momento em que aplicamos essas coisas, de acordo com as qualidades que percebemos nelas, a nosso uso próprio, submetemos as percepções de nossos sentidos a uma prova infalível no que se refere à sua exatidão ou à sua falsidade. Se essas percepções fossem falsas, falso seria também nosso juízo acerca da possibilidade de empregar a coisa de que se trata, e nossa tentativa de empregá-la teria forçosamente de fracassar. Mas se conseguimos o fim desejado, se achamos que a coisa corresponde à idéia que dela fazemos, que nos dá o que dela esperávamos ao usá-la, teremos a prova positiva de que, dentro desses limites, nossas percepções acerca dessa coisa e de suas propriedades coincidem com a realidade existente fora de nós. Em troca, se acontece termos dado um golpe em falso, geralmente não tardamos muito em descobrir as causas do nosso engano; concluímos que a percepção em que se baseava a nossa ação era incompleta e superficial, ou se achava enlaçada com os resultados de outras percepções de um modo não justificado pela realidade das coisas; quer dizer: havíamos realizado o que chamamos um raciocínio defeituoso. Enquanto adestrarmos e empregarmos bem os nossos sentidos e ajustarmos o nosso modo de proceder aos limites traçados pelas observações bem feitas e bem utilizadas, veremos que os resultados dos nossos atos fornecerão a prova da conformidade de nossas percepções com a natureza objetiva das coisas percebidas. Em nenhum caso, segundo a experiência que possuímos até hoje, nos vimos obrigados a chegar à conclusão de que as percepções sensoriais cientificamente controladas originam em nosso cérebro idéias do mundo exterior que, por sua natureza, diferem da realidade, ou de que entre o mundo exterior e as percepções que nossos sentidos, dele nos transmitem medeia uma incompatibilidade inata.

Mas, ao chegar aqui, apresenta-se o agnóstico neo-kantiano e nos diz: Sim, poderemos talvez perceber exatamente as propriedades de uma coisa, porém nunca apreender a coisa em si por meio de nenhum processo sensorial ou discursivo. Essa “coisa em si” situa-se além de nossas possibilidades de conhecimento. Já Hegel, há muito tempo, respondeu a isso: desde o momento em que conhecemos todas as propriedades de uma coisa, conhecemos também a própria coisa; fica somente em pé o fato de que essa coisa existe fora de nós, e enquanto os nossos sentidos nos fornecerem esse fato, apreendemos até o último resíduo da coisa em si, a famosa o incognoscível Ding an sich(17) de Kant.

Hoje, só podemos acrescentar a isso que, na época de Kant, o conhecimento que ele tinha das coisas naturais era o bastante fragmentário para se poder suspeitar, por trás de cada uma delas, uma misteriosa “coisa em si”. Mas, de então para cá, essas coisas inapreensíveis foram apreendidas, analisadas e, mais ainda, reproduzidas uma após outra pelos gigantescos progressos da ciência. E desde o instante em que podemos produzir uma coisa, não há nenhuma razão para que seja ela considerada incognoscível. Para a química da primeira metade de nosso século, as substâncias orgânicas eram coisas misteriosas. Hoje, já aprendemos a fabricá-las uma após outra, à base dos elementos químicos e sem ajuda dos processos orgânicos. A química moderna nos diz que, logo que se conheça a constituição química de qualquer corpo, esse corpo pode integrar-se a partir de seus elementos.

Estamos atualmente muito longe ainda de conhecer exatamente a constituição das substâncias orgânicas superiores, os chamados corpos albuminóides, mas não existe absolutamente nenhuma razão para que não adquiramos, ainda que tal se dê dentro de vários séculos, esse conhecimento, e com sua ajuda possamos fabricar albumina artificial. E quando o conseguirmos teremos conseguido também produzir a vida orgânica, pois a vida, desde as suas formas mais inferiores às mais elevadas, não é senão a modalidade normal de existência dos corpos albuminóides.

Mas, depois de feitas essas reservas formais, nosso agnóstico faz e atua em tudo como o materialista empedernido, que no fundo é. Poderá dizer: a julgar pelo que nós sabemos, a matéria e o movimento ou, como agora se diz, a energia, não podem criar-se nem destruir-se, mas não temos provas de que ambas não tenham sido criadas em algum tempo remoto e desconhecido. E se tentardes dirigir contra ele essa confissão, num caso determinado, chamar-vos-á apressadamente à ordem e vos mandará calar. Se in abstracto reconhece a possibilidade do espiritualismo, in concreto nada quer saber sobre ele. Dir-vos-á: pelo que sabemos e podemos saber, não existe criador nem regente do universo; no que a nós se refere, a matéria e a energia são tão incriáveis como indestrutíveis; para nós o pensamento é uma forma da energia, uma função do cérebro. Tudo o que sabemos nos leva à conclusão de que o mundo material se acha regido por leis imutáveis, etc. etc. Portanto, na medida em que é um homem de ciência, na medida em que sabe algo, o agnóstico é materialista; fora dos confins de sua ciência, nos campos que não domina, traduz sua ignorância para o grego, chamando-a agnosticismo.

Em todo caso, o que se pode assegurar é que, ainda que eu fosse agnóstico, não poderia dar à concepção da história esboçada neste pequeno livro o nome de “agnosticismo histórico”. As pessoas de sentimentos religiosos se ririam de mim e os agnósticos me perguntariam, indignados, se pretendia zombar deles. Assim, confio em que a “respeitabilidade” britânica, que em alemão se chama filisteísmo, não se aborrecerá demasiado porque empregue em inglês, como em tantos outros idiomas, o nome de “materialismo histórico” para designar essa concepção dos roteiros da história universal que vê a causa final e a causa propulsora decisiva de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento econômico da sociedade, nas transformações do modo de produção e de troca, na conseqüente divisão da sociedade em diferentes classes e nas lutas dessas classes entre si.

Dispensar-me-ão talvez essa consideração, sobretudo se demonstro que o materialismo histórico pode inclusive ser útil para a respeitabilidade do filisteu britânico. Já aludi ao fato de que, há quarenta ou cinqüenta anos, o estrangeiro culto que se instalasse para viver na Inglaterra se veria desagradavelmente surpreendido pelo que necessariamente teria que considerar beatice e hipocrisia religiosa da respeitável classe média inglesa. Demonstrarei agora que a respeitável classe média inglesa, daquele tempo não era, contudo, tão estúpida como o estrangeiro inteligente imaginava. Suas tendências religiosas tinham sua explicação.

Quando a Europa saiu da Idade Média, a classe média urbana em ascensão era seu elemento revolucionário. A posição reconhecida que conquistara dentro do regime feudal da Idade Média era já demasiado estreita para sua força de expansão. O livre desenvolvimento dessa classe média, a burguesia, já não era compatível com o regime feudal; este tinha forçosamente de desmoronar.

Mas o grande centro internacional do feudalismo era a Igreja Católica Romana. Ela unia toda a Europa ocidental feudalizada, apesar de todas as suas guerras intestinas, numa grande unidade política, contraposta tanto ao mundo cismático grego como ao mundo maometano. Cercou as instituições feudais do halo da graça divina. Também ela havia levantado sua hierarquia segundo o modelo feudal e era, afinal de contas, o maior de todos os senhores feudais, pois possuía, pelo menos, a terça parte de toda a propriedade territorial do mundo católico. Antes de poder dar combate, em cada país e nos diversos terrenos, ao feudalismo secular seria necessário destruir a organização central santificada.

Passo a passo, com a ascenso da burguesia produzia-se o grande ressurgimento da ciência. Voltava-se a cultivar a astronomia, a mecânica, a física, a anatomia, a fisiologia. A burguesia necessitava, para o desenvolvimento de sua produção industrial, de uma ciência que investigasse as propriedades dos corpos físicos e o funcionamento das forças naturais. Mas, até então, a ciência não havia sido mais que a servidora humilde da Igreja, não lhe sendo permitido transpor as fronteiras estabelecidas pela fé; numa palavra, havia sido qualquer coisa menos uma ciência. Agora, a ciência se rebelava contra a Igreja; a burguesia precisava da ciência e se lançou com ela na rebelião.

Não toquei aqui senão em dois pontos em que a burguesia em ascensão tinha necessariamente que se chocar com a religião estabelecida. Mas isso bastará para provar: primeiro, que a classe mais empenhada na luta contra o poder da Igreja Católica era precisamente a burguesia e, segundo, que então toda luta contra o feudalismo tinha que vestir-se com uma roupagem religiosa e dirigir-se em primeira instância contra a Igreja.

Mas o grito de guerra lançado pelas universidades e os homens de negócios das cidades tinha inevitavelmente de encontrar, como com efeito encontrou, uma forte ressonância entre as massas do campo, entre os camponeses, que em toda parte estavam empenhados numa dura luta contra seus senhores feudais eclesiásticos e seculares, luta em que estava em foco a sua existência.

A grande campanha da burguesia européia contra o feudalismo culminou em três grandes batalhas decisivas.

A primeira foi a que chamamos Reforma protestante alemã. Ao grito de rebelião de Lutero contra a Igreja responderam duas insurreições políticas: primeiro, a da nobreza inferior, acaudilhada por Franz von Sickingen, em 1523, e logo a grande guerra camponesa em 1525. Ambas foram esmagadas, por causa principalmente da falta de decisão do partido mais interessado na luta: a burguesia das cidades — falta de decisão cujas causas não podemos analisar aqui. Desde esse instante a luta degenerou numa rixa entre os diversos príncipes e o poder central do Imperador, trazendo como conseqüência o afastamento da Alemanha por duzentos anos do concerto das nações politicamente ativas da Europa. É certo que a Reforma luterana conduziu a uma nova religião, aquela justamente de que a monarquia absoluta precisava. Mal abraçaram o luteranismo, viram-se os camponeses do nordeste da Alemanha rebaixados da condição de homens livres à de servos da gleba.

Mas, onde Lutero falhou, triunfou Calvino. O dogma calvinista servia aos mais intrépidos burgueses da época. Sua doutrina da predestinação era a expressão religiosa do fato de que no mundo comercial, no mundo da concorrência, o êxito ou a bancarrota não depende da atividade ou da aptidão do indivíduo, mas de circunstâncias independentes dele. “Ele não depende da vontade ou da fuga de ninguém, mas da misericórdia” de forças econômicas superiores, mas desconhecidas.

E isso era mais do que nunca uma verdade numa época de revolução econômica, em que todos os velhos centros e caminhos comerciais eram substituídos por outros novos, em que se abriam ao mundo a América e a Índia e em que vacilavam e vinham abaixo até os artigos econômicos de fé mais sagrados: os valores do ouro e da prata. Ademais, o regime da Igreja calvinista era absolutamente democrático e republicano; como podiam os reinos deste mundo continuar sendo súditos dos reis, dos bispos e dos senhores feudais onde o reino de Deus se havia republicanizado? Se o luteranismo alemão se converteu num instrumento submisso nas mãos dos pequenos príncipes alemães, o calvinismo fundou uma República na Holanda e fortes partidos republicanos na Inglaterra e, sobretudo, na Escócia.

No calvinismo a segunda grande insurreição da burguesia encontrou, acabada, sua teoria de luta. Essa insurreição verificou-se na Inglaterra. Foi posta em marcha pela burguesia das cidades, mas foram os camponeses médios (a yeomanry) dos distritos rurais que conseguiram o triunfo. Coisa singular: nas três grandes revoluções burguesas são os camponeses que fornecem as tropas de combate e são também eles, precisamente, a classe que, depois de alcançar o triunfo, sai arruinada infalivelmente pelas conseqüências econômicas desse triunfo. Cem anos depois de Cromwell, pode-se dizer que a yeomanry da Inglaterra quase desaparecera. Em todo caso, sem a intervenção dessa yeomanry e do elemento plebeu das cidades, a burguesia jamais teria podido conduzir a luta ao seu final vitorioso nem levado Carlos I ao cadafalso. Para que a burguesia embolsasse embora só os frutos mais maduros do triunfo, foi necessário levar a revolução muito além de sua meta; exatamente como haveria de ocorrer na França em 1793 e na Alemanha em 1848. Parece ser essa, com efeito, uma das leis que presidem a evolução da sociedade burguesa.

Após esse excesso de atividade revolucionária seguiu-se a inevitável reação que, por sua vez, também ultrapassou o ponto em que devia ter-se mantido. Depois de uma série de vacilações, conseguiu por fim fixar-se o novo centro de gravidade, que se converteu, por sua vez, em novo ponto de partida. O período grandioso da história inglesa, ao qual os filisteus dão o nome de “a grande rebelião” e as lutas que lhe seguiram, alcançam o seu coroamento no episódio relativamente insignificante de 1689, que os historiadores liberais assinalam com o nome de “revolução gloriosa”(18).

O novo ponto de partida foi uma transação entre a burguesia em ascensão e os antigos grandes latifundiários feudais. Estes, embora fossem conhecidos, então como hoje, pelo nome de aristocracia, estavam desde há muito tempo em vias de converter-se no que Luís Felipe havia de ser muito depois na França: nos primeiros burgueses da nação. Para felicidade da Inglaterra, os antigos barões feudais se haviam destroçado entre si nas guerras das Duas Rosas(19). Seus sucessores, embora em sua maioria descendentes das mesmas antigas famílias procediam já de linhas colaterais tão afastadas que formavam uma corporação completamente nova; seus costumes e tendências tinham muito mais de burgueses que de feudais; conheciam perfeitamente o valor do dinheiro e se dedicaram, em seguida, a aumentar as rendas de suas terras, delas expulsando centenas de pequenos arrendatários e substituindo-os por rebanhos de ovelhas. Henrique VIII criou uma massa de novos landlords burgueses, distribuindo e dilapidando os bens da Igreja; e a idêntico resultado levaram as confiscações de grandes propriedades territoriais, levadas a efeito sem interrupção até fins do século XVII, para logo entregá-las a indivíduos meio ou inteiramente adventícios. Por isso é que a “aristocracia” inglesa, desde Henrique VII, longe de opor-se ao desenvolvimento da produção industrial, procura tirar indiretamente proveito dela. Ademais, uma parte dos grandes latifundiários mostrou-se disposta a todo momento, por motivos econômicos ou políticos, a colaborar com os caudilhos da burguesia industrial ou financeira. A transação de 1869 não foi, pois, difícil de conseguir. Os troféus políticos — os cargos, as sinecuras, os elevados ordenados — das grandes famílias da aristocracia rural foram respeitados, com a condição de que defendessem cabalmente os interesses econômicos da classe média financeira, industrial e mercantil. E esses interesses econômicos já eram, então, bastante poderosos; eram eles que traçavam, em última análise, os rumos da política nacional. Poderia haver discrepâncias em torno de detalhes, mas a oligarquia aristocrática sabia demasiado bem quanto se achava a sua própria prosperidade econômica inseparavelmente unida à da burguesia industrial e comercial.

A partir desse momento a burguesia converteu-se em parte integrante, modesta mas reconhecida, das classes dominantes da Inglaterra.

Compartilhava com todas elas do interesse em manter oprimida a grande massa trabalhadora do povo. O comerciante ou fabricante mesmo ocupava, em relação a seu subordinado, a seus operários ou a seus criados, a posição de senhor, de seu “superior natural”, como se dizia até há pouco na Inglaterra. Tinha que sugar deles a maior quantidade e a melhor qualidade possível de trabalho; para consegui-lo, tinha de educá-los numa submissão adequada. Pessoalmente, era um homem religioso; sua religião lhe havia fornecido a bandeira sob a qual combateu o rei e os senhores; descobrira também, havia pouco, os recursos que essa religião lhe oferecia para trabalhar o espírito de seus inferiores naturais e torná-los submissos às ordens dos amos, que os desígnios imprescrutáveis de Deus lhe inspiravam. Numa palavra, o burguês da Inglaterra participava agora na empresa de oprimir as “classes inferiores”, a grande massa produtora da nação, e um dos meios empregados para isso era a influência da religião.

Mas a isso vinha acrescentar-se uma nova circunstância, que reforçava as inclinações religiosas da burguesia: o aparecimento do materialismo na Inglaterra. Essa nova doutrina não só feria os sentimentos piedosos da classe média mas, além disso, se anunciava como uma filosofia destinada apenas aos sábios e aos homens cultos do grande mundo; ao contrário da religião, boa para a grande massa não ilustrada, inclusive a burguesia. Com Hobbes, essa doutrina apareceu em cena como defensora das prerrogativas e da onipotência reais e convidou a monarquia absoluta a trazer em rédea curta aquele puer robustus sed malitiosus(20) que era o povo. Também nos continuadores de Hobbes, em Bolingbroke, em Shaftesbury, etc, a nova forma deística do materialismo continuava sendo uma doutrina aristocrática, esotérica e, portanto, odiada pela burguesia, não só por ser uma heresia religiosa, mas também por suas conexões políticas antiburguesas. Por isso, frente ao materialismo e ao deísmo da aristocracia, eram principalmente as seitas protestantes, que haviam fornecido a bandeira e os homens para a luta contra os Stuarts, que davam o contingente principal às forças da classe média progressista e que ainda formam a medula do “grande partido liberal”.

Entretanto, o materialismo transferiu-se da Inglaterra para a França, onde se encontrou com uma segunda escola materialista de filósofos, que havia surgido do cartesianismo(21) e com a qual se refundiu. Também na França continua sendo, a princípio, uma doutrina exclusivamente aristocrática. Mas seu caráter revolucionário não tardou a revelar-se. Os materialistas franceses não limitavam sua crítica simplesmente aos assuntos religiosos, mas a estendiam a todas as tradições científicas e a todas as instituições políticas do seu tempo; para demonstrar a possibilidade de aplicação universal de sua teoria seguiram o caminho mais curto: aplicaram-na audazmente a todos os ramos do saber na Encyclopédie — a obra gigantesca que lhes valeu o nome de “enciclopedistas”. Desse modo o materialismo, sob uma forma ou outra — como materialismo declarado ou como deísmo —, converteu-se no credo de toda a juventude culta da França; até tal ponto que durante a Grande Revolução a teoria criada pelos realistas ingleses serviu de bandeira teórica aos republicanos e terroristas franceses, e dela saiu o texto da “Declaração dos Direitos do Homem”(22).

A grande Revolução Francesa foi a terceira insurreição da burguesia, mas a primeira que se despojou totalmente do manto religioso, travando a batalha no campo político aberto. E foi a primeira que levou realmente o combate até à destruição de um dos dois combatentes, a aristocracia, e o triunfo completo do outro, a burguesia. Na Inglaterra, a continuidade ininterrupta das instituições pré-revolucionárias e pós-revolucionárias e a transação selada entre os grandes latifundiários e os capitalistas encontravam sua expressão na continuidade dos precedentes judiciais, assim como na respeitosa conservação das formas legais do feudalismo. Na França, a revolução rompeu plenamente com as tradições do passado, varreu os últimos vestígios do feudalismo e criou, com o Code civil(23), uma magistral adaptação do antigo direito romano às relações capitalistas modernas, daquela expressão quase perfeita das relações jurídicas derivadas da fase econômica que Marx chama a “produção de mercadorias”; tão magistral que esse código francês revolucionário serve ainda hoje em todos os países — sem excetuar a Inglaterra — de modelo para as reformas do direito de propriedade. Mas, nem por isso devemos perder de vista uma coisa. Embora o direito inglês continue expressando as relações econômicas da sociedade capitalista numa linguagem feudal bárbara, que guarda com a coisa exprimida a mesma relação que a ortografia com a fonética inglesa “vous écrivez Londres et vous prononcez Constantinople”(24), dizia um francês — esse direito inglês é o único que conservou indene através dos séculos e transplantou para a América do Norte e as colônias a melhor parte daquela liberdade pessoal, aquela autonomia local e aquela salvaguarda contra toda ingerência, fora da dos tribunais; numa palavra, aquelas antigas liberdades germânicas que haviam sido perdidas no Continente sob o regime da monarquia absoluta e que não foram até agora recobradas em parte alguma.

Voltemos porém ao nosso burguês britânico. A Revolução Francesa ofereceu-lhe uma magnífica oportunidade para arruinar, com a ajuda das monarquias constitucionais, o comércio marítimo francês, anexar as colônias francesas e reprimir as últimas pretensões francesas de fazer-lhe a concorrência por mar. Foi essa uma das razões de tê-la combatido. A segunda razão consistia em que os métodos dessa revolução eram muito pouco de seu agrado. Não já o seu “execrável” terrorismo, mas também a sua tentativa de implantar o regime burguês até suas últimas conseqüências. Que faria no mundo o burguês britânico sem sua aristocracia, que lhe ensinava maneiras (e que maneiras!) e inventava modas para ele, que lhe fornecia a oficialidade para o exército, garantia da ordem dentro do país, e para a marinha, conquistadora de novos domínios coloniais e de novos mercados no exterior? É certo que havia também dentro da burguesia uma minoria progressista, formada por pessoas cujos interesses não haviam sido bem sucedidos na transação; essa minoria, integrada pela classe média de posição mais modesta, simpatizava com a revolução, mas era impotente no Parlamento.

Portanto, quanto mais se convertia o materialismo no credo da Revolução Francesa, tanto mais se aferrava o piedoso burguês britânico à sua religião. Por acaso a época de terror em Paris não demonstrara o que se dá quando o povo perde a religião? A medida que se estendia o materialismo da França aos países vizinhos e recebia o reforço de outras correntes teóricas afins, principalmente da filosofia alemã; — à medida que, no Continente, o fato de ser materialista e livre-pensador era, em realidade, uma qualidade indispensável para ser pessoa culta — mais tenazmente se afirmava a classe média inglesa em suas diversas confissões religiosas. Por muito que variassem umas das outras, eram todas confissões decididamente religiosas, cristãs.

Enquanto que a revolução assegurava o triunfo político da burguesia na França, na Inglaterra Watt, Arkwright, Cartwright e outros iniciaram uma revolução industrial, que deslocou completamente o centro de gravidade do poder econômico. Agora, a burguesia enriquecia muito mais rapidamente do que a aristocracia latifundiária. E, dentro da própria burguesia, a aristocracia financeira, os banqueiros, etc., iam passando cada vez mais para o segundo plano em face dos fabricantes. A transação de 1869, mesmo com as emendas que foram sendo introduzidas pouco a pouco a favor da burguesia, já não correspondia à posição recíproca das duas partes interessadas. Mudara também o caráter destas: a burguesia de 1830 diferia muito da do século anterior. O poder político que a aristocracia ainda conservava e que punha em ação contra as pretensões da nova burguesia industrial tornou-se incompatível com os novos interesses econômicos. Colocava-se a necessidade de renovar a luta contra a aristocracia; e essa luta só podia terminar com o triunfo do novo poder econômico. Sob o impulso da revolução francesa de 1830, impôs-se em primeiro lugar, apesar de todas as resistências, a lei de reforma eleitoral(25), que assegurou à burguesia uma posição forte e prestigiosa no Parlamento. Em seguida, veio a derrogação das leis dos cereais(26), que instaurou de uma vez para sempre o predomínio da burguesia, sobretudo de sua parte mais ativa, os fabricantes, sobre a aristocracia da terra. Foi esse o maior triunfo da burguesia, mas foi também o último conseguido em seu interesse próprio e exclusivo. Todos os triunfos posteriores tiveram de ser por ela divididos com um novo poder social, seu aliado a princípio, mas logo depois seu rival.

A revolução industrial criara uma classe de grandes fabricantes capitalistas, mas criara também outra, muito mais numerosa, de operários fabris, classe que crescia constantemente em número, à medida que a revolução industrial se ia apoderando de um ramo industrial após outro. E com seu número crescia também sua força, demonstrada já em 1824, quando obrigou o Parlamento, rangendo os dentes, a revogar as leis contra a liberdade de coalizão(27). Durante a campanha de agitação pela reforma da lei eleitoral, os operários formavam a ala radical do partido da reforma; e quando a lei de 1832 os privou do direito de sufrágio sintetizaram suas reivindicações na Carta do Povo (People’s Charter)(28) e, em oposição ao grande partido burguês que combatia as leis cerealistas(29), constituíram-se em partido independente, o partido cartista, que foi o primeiro partido operário do nosso tempo.

Em seguida, vieram as revoluções continentais de fevereiro e março de 1848, nas quais os operários tiveram um papel tão importante e nas quais levanta pela primeira vez, em Paris, reivindicações que eram resolutamente inadmissíveis do ponto de vista da sociedade capitalista. E logo sobreveio a reação geral. Primeiro foi a derrota dos cartistas de 10 de abril de 1848(30); depois, o esmagamento da insurreição operária de Paris, em junho do mesmo ano, mais tarde, os descalabros de 1849 na Itália, Hungria e sul da Alemanha; por último, o triunfo de Luís Bonaparte sobre Paris, em 2 de dezembro de 1851(31). Desse modo, conseguira-se afugentar, pelo menos durante algum tempo, o espantalho das reivindicações operárias — mas a que preço! Portanto, se o burguês já se achava antes convencido da necessidade de manter no povo vil o espírito religioso, com que motivos muito mais fortes tinha que sentir essa necessidade depois de todas essas experiências! Por isso, sem fazer o menor caso das chacotas de seus colegas continentais, continuava anos após anos gastando milhares e dezenas de milhares na evangelização das classes baixas. Não satisfeito com sua própria maquinaria religiosa, dirigiu-se ao Irmão Jonathan(32), o maior organizador de negócios religiosos da época, e importou dos Estados Unidos os revivalistas, Moody e Sankey, etc.; por fim, aceitou até a perigosa ajuda do Exército de Salvação, que veio restaurar os recursos de propaganda do cristianismo primitivo, que se dirige tanto aos pobres como aos eleitos, combatendo o capitalismo à sua maneira religiosa e atiçando assim um elemento de luta de classes do cristianismo primitivo, que um bom dia pode chegar a ser fatal para as pessoas ricas que hoje oferecem do seu bolso o dinheiro para essa propaganda.

Parece ser uma lei do desenvolvimento histórico o fato de que a burguesia não possa deter em nenhum país da Europa o poder político — ao menos durante muito tempo — da mesma maneira exclusiva com que pôde fazê-lo a aristocracia feudal durante a Idade Média. Mesmo na França, onde se extirpou pela raiz o feudalismo, a burguesia, como classe global, apenas exerce o poder durante breves períodos de tempo. Sob Luís Felipe (1830/1848), só uma pequena parte da burguesia governava, pois outra parte muito mais considerável era excluída do exercício do sufrágio devido ao elevado censo de fortuna que se exigia para poder votar. Sob a Segunda República (1848/1851), governou toda a burguesia, mas só durante três anos; sua incapacidade abriu caminho ao Segundo Império. Só agora, sob a Terceira República(33), vemos a burguesia em bloco empunhar o leme por um espaço de vinte anos, mas nisso revela já graves sintomas de decadência. Até agora uma dominação mantida durante muitos anos pela burguesia só foi possível em países como a América do Norte, que jamais conheceram o feudalismo e onde a sociedade se construiu, desde o primeiro momento, sobre uma base burguesa. Mas até na França e na América do Norte já batem à porta com duros golpes os sucessores da burguesia: os operários.

Na Inglaterra, a burguesia jamais exerceu o poder indiviso. Até o triunfo de 1832 deixou a aristocracia no gozo quase exclusivo de todos os altos cargos públicos. Já não conseguia explicar a mim mesmo a submissão com que a classe média rica se resignava a tolerar essa situação, até que um dia o grande fabricante liberal senhor W. A. Forster, num discurso, suplicou aos jovens de Bradford que aprendessem francês se quisessem fazer carreira, narrando a propósito o triste papel que fizera ele quando, sendo ministro, se viu envolvido numa reunião em que o francês era pelo menos tão necessário quanto o inglês. Com efeito, os burgueses britânicos de então eram, uns mais outros menos, novos-ricos sem cultura, que tinham de ceder à aristocracia, quisessem ou não, todos aqueles altos postos de governo que exigiam outros dotes além da limitação e da fatuidade insulares, apimentadas pela astúcia para os negócios(34). Ainda hoje os debates intermináveis da imprensa sobre a middle-classe-education(35) revelam que a classe média inglesa não se considera ainda em condições suficientes para receber a melhor educação e procura algo mais modesto. Por isso, mesmo depois da revogação das leis cerealistas, considerou-se como coisa natural que os que haviam conseguido o triunfo, os Cobden, os Bright, os Forster, etc, ficassem privados de qualquer participação no governo oficial até que, por fim, vinte anos depois, uma nova lei de Reforma(36) abriu-lhes as portas do ministério. A burguesia inglesa acha-se até hoje tão imbuída de um sentimento de inferioridade social que, às suas custas e do povo, sustenta uma casta decorativa de folgazões que têm por ofício representar dignamente a nação em todos os atos solenes e se considera honradíssima quando é encontrado um burguês qualquer reconhecido como digno de ingressar nessa corporação seleta e privilegiada, que afinal foi fabricada pela própria burguesia.

Assim, a classe média industrial e comercial não havia conseguido ainda afastar por completo a aristocracia latifundiária do poder político, quando surgiu em cena o novo rival: a classe operária. A reação que adveio depois do movimento cartista e as revoluções continentais, juntamente com a expansão sem precedentes da indústria inglesa de 1848 a 1866 (expansão que se costuma atribuir apenas ao livre-câmbio, mas que resultou muito mais da gigantesca extensão das ferrovias, os transatlânticos e os meios de comunicação em geral) voltou a colocar os operários sob a dependência dos liberais, cuja ala radical formavam, como nos tempos anteriores ao cartismo. Mas, pouco a pouco, as exigências operárias quanto ao sufrágio universal foram tornando-se irresistíveis. Enquanto os “whigs”, os caudilhos dos liberais, tremiam de medo, Disraeli mostrava sua superioridade; soube aproveitar o momento propício para os “tories”, introduzindo nos distritos eleitorais urbanos o regime eleitoral do housebold suffrage(37) e, em relação com isso, uma nova distribuição dos distritos eleitorais.

Seguiu-se, pouco depois, o ballot(38), logo, em 1884, o household suffrage tomou-se extensivo a todos os distritos, inclusive aos dos condados, e se introduziu uma nova distribuição das circunscrições eleitorais, que até certo ponto as nivelava. Todas essas reformas aumentaram de tal modo a força da classe operária nas eleições, que ela representava já a maioria dos eleitores em 150 a 200 distritos. Não há, porém, melhor escola de respeito à tradição do que o sistema parlamentar! Se a classe média olha com devoção e veneração o grupo que lorde John Manners chama caçoando “nossa velha nobreza”, a massa dos operários olhava então com respeito e acatamento ao que na época se chamava “a classe melhor”, a burguesia. Em realidade, o operário britânico de há quinze anos era esse operário-modelo cuja consideração respeitosa pela posição de seu patrão e cuja timidez e humildade ao colocar as suas próprias reivindicações punham um pouco de bálsamo nas feridas que as incorrigíveis tendências comunistas e revolucionárias dos operários alemães provocavam entre os nossos socialistas de cátedra(39).

Contudo, os burgueses britânicos, como bons homens de negócios, viam mais que os professores alemães. Só contrafeitos é que haviam dividido o poder com os operários. Durante o período cartista haviam tido a oportunidade de aprender do que era capaz o povo, aquele puer robustus sed malitiosus. Desde então tiveram que aceitar e ver convertida em lei nacional a maior parte da Carta do Povo. Agora, mais do que nunca, era necessário manter o povo à distância mediante recursos morais; e o primeiro e mais importante recurso moral com que se podia influenciar as massas continua a ser a religião. Daí a maioria dos postos entregues aos padres nos organismos escolares e daí a burguesia impor-se a si mesma cada vez mais tributos para sustentar toda espécie de revivalismos, desde o ritualismo(40) até o Exército de Salvação.

E agora veio o triunfo da respeitabilidade britânica sobre a liberdade de pensamento e a indiferença em assuntos religiosos do burguês continental. Os operários da França e da Alemanha tornaram-se rebeldes. Estavam totalmente contaminados de socialismo e, além disso, por motivos muito fortes, não davam muita importância à legalidade dos meios empregados para conquistar o poder. Aqui, o puer robustus se tornara realmente cada dia mais malitiosus. E ao burguês francês ou alemão não restava outro recurso senão renunciar tacitamente a continuar sendo livre-pensador, como esses rapazes engraçados que, quando irremediavelmente atacados de enjôo, deixam cair o cigarro fumegante com que faziam palhaçadas a bordo. Os gracejadores foram adotando, um após outro, exteriormente, uma atitude devota e começaram a referir-se com respeito à Igreja, seus dogmas e ritos, chegando inclusive, quando não havia outra solução, a participar neles. Os burgueses franceses negavam-se a comer carne às sextas-feiras e os burgueses alemães suportavam, suando em seus genuflexórios, os intermináveis sermões protestantes. Haviam chegado com seu materialismo a uma situação embaraçosa. Die Religion muss dem Volk erhalten werden (“É preciso conservar-se a religião para o povo!”): era o último e único recurso para salvar a sociedade de sua ruína total. Por desgraça sua, não compreenderam isso senão depois de terem feito o humanamente possível para derrubar em definitivo a religião. Chegara, pois, o momento em que o burguês britânico podia rir-se deles, por sua vez, e gritar-lhes: “Ah, bobos, eu já poderia ter dito há duzentos anos!”

Entretanto, receio muito que nem a estupidez religiosa do burguês britânico nem a conversão post festum do burguês continental consigam pôr um dique à crescente maré proletária. A tradição é uma grande força frenadora; é a vis inertiæ da história. Mas é uma força meramente passiva, e por isso tem necessariamente que sucumbir. Daí não poder a religião servir por muito tempo de muralha protetora da sociedade capitalista. Se nossas idéias jurídicas, filosóficas e religiosas não são senão brotos mais próximos ou mais remotos das condições econômicas imperantes numa sociedade dada, a longo prazo essas idéias não podem manter-se havendo uma mudança fundamental daquelas condições. Das duas uma: ou acreditamos numa revelação sobrenatural, ou temos de reconhecer que não há pregação religiosa capaz de escorar uma sociedade em derrocada.

E a verdade é que também na Inglaterra começam os operários novamente a movimentar-se. Indiscutivelmente, o operário inglês está preso a uma série de tradições. Tradições burguesas, como a tão difundida crença de que não podem existir mais que dois partidos, o conservador e o liberal, e de que a classe operária tem de valer-se do grande partido liberal para trabalhar por sua emancipação. E tradições operárias, herdadas dos tempos de seus primeiros ensaios de atuação independente, como a eliminação, em numerosas e antigas trade-unions, de todos os operários que não tiveram um determinado período de aprendizagem; o que significa, a rigor, que cada um desses sindicatos cria seus próprios fura-greves. Mas, apesar de tudo isso e de muito mais, a classe operária avança, como o próprio professor Brentano se viu obrigado a comunicar, com grande pesar, a seus irmãos, os socialistas de cátedra. Avança, como tudo na Inglaterra, a passo lento e ritmado, vacilante aqui, e ali mediante ensaios, às vezes estéreis; avança aos poucos, com uma desconfiança excessivamente prudente, até quanto ao nome socialismo, mas assimilando gradualmente a essência. Avança, e seu avanço se vai transmitindo a uma camada operária após outra.

Sacudiu agora a apatia dos operários não qualificados do East End de Londres, e todos nós já vimos que magnífico impulso deram à classe operária, por sua vez, essas novas forças. E se o ritmo do movimento não está em consonância com a impaciência de uns e de outros, não devem esses esquecer que é a classe operária que mantém vivos os melhores traços do caráter nacional inglês e que, na Inglaterra, quando se dá um passo adiante, já não se recua mais. Se os filhos dos velhos cartistas não deram, pelos motivos indicados, tudo o que deles se podia esperar, parece que os netos serão dignos dos avós.

Ademais, o triunfo da classe operária não depende somente da Inglaterra. Esse triunfo só pode ser assegurado mediante a cooperação, pelo menos, da Inglaterra, França e Alemanha. Nos dois últimos países o movimento operário leva uma boa dianteira sobre o da Inglaterra. Os progressos alcançados aqui há vinte e cinco anos não têm precedente. O movimento operário alemão avança a uma velocidade acelerada. E se a burguesia alemã tem dado provas de sua ausência lamentável de capacidade política, de disciplina, de bravura, de energia e de perseverança, a classe operária da Alemanha demonstrou que possui em grau extraordinário todas essas qualidades. Já há quase quatrocentos anos que a Alemanha foi o ponto de partida do primeiro levante da classe média da Europa. No ponto em que se acham as coisas, será despropositado pensar que a Alemanha venha a se tornar também o cenário do primeiro grande triunfo do proletariado europeu?

20 de abril de 1892.
F. Engels.

Publicado pela primeira vez na edição inglesa da obra de Engels Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, que apareceu em Londres em 1892. Ao mesmo tempo foi publicado em alemão na revista Neue Zeit, correspondente aos anos 1892/1893. Publica-se de acordo com a edição soviética de 1952. Segundo o texto da edição inglesa de 1892, cotejado com o da revista. Traduzido do espanhol. — Fonte do texto base: www.vermelho.org.br — Versão final confrontada com as versões em espanhol, francês e inglês disponíveis no Marxists Internet Archive.


Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico

Friedrich Engels

I

 

O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, de um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, de outro lado, da anarquia que reina na produção. Por sua forma teórica, porém, o socialismo começa apresentando-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais conseqüente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, embora tivesse suas raízes nos fatos materiais econômicos, teve de ligar-se, ao nascer, às idéias existentes. Os grandes homens que, na França, iluminaram os cérebros para a revolução que se havia de desencadear, adotaram uma atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam autoridade exterior de nenhuma espécie. A religião, a concepção da natureza, a sociedade, a ordem estatal: tudo eles submetiam à crítica mais impiedosa; tudo quanto existia devia justificar os títulos de sua existência ante o foro da razão, ou renunciar a continuar existindo. A tudo se aplicava como rasoura única a razão pensante. Era a época em que, segundo Hegel, “o mundo girava sobre a cabeça”(1), primeiro no sentido de que a cabeça humana e os princípios estabelecidos por sua especulação reclamavam o direito de ser acatados como base de todos os atos humanos e toda relação social, e logo também, no sentido mais amplo de que a realidade que não se ajustava a essas conclusões se via subvertida, de fato, desde os alicerces até à cumieira. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as leis tradicionais, foram atiradas no monturo como irracionais; até então o mundo se deixara governar por puros preconceitos; todo o passado não merecia senão comiseração e desprezo, Só agora despontava a aurora, o reino da razão; daqui por diante a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e pelos direitos inalienáveis do homem.

Já sabemos, hoje, que esse império da razão não era mais que o império idealizado pela burguesia; que a justiça eterna tomou corpo na justiça burguesa; que a igualdade se reduziu à igualdade burguesa em face da lei; que como um dos direitos mais essenciais do homem foi proclamada a propriedade burguesa; e que o Estado da razão, o “contrato social” de Rousseau, pisou e somente podia pisar o terreno da realidade, convertido na república democrática burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, como todos os seus Predecessores, não podiam romper as fronteiras que sua própria época lhes impunha.

Mas, ao lado do antagonismo entre a nobreza feudal e a burguesia, que se erigia em representante de todo o resto da sociedade, mantinha-se de pé o antagonismo geral entre exploradores e explorados, entre ricos gozadores e pobres que trabalhavam. E esse fato exatamente é que permitia aos representantes da burguesia arrogar-se a representação, não de uma classe determinada, mas de toda a humanidade sofredora. Mais ainda: desde o momento mesmo em que nasceu, a burguesia conduzia em suas entranhas sua própria antítese, pois os capitalistas não podem existir sem os operários assalariados, e na mesma proporção em que os mestres de ofícios das corporações medievais se convertiam em burgueses modernos, os oficiais e os jornaleiros não agremiados transformavam-se em proletários. E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha. a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer; na grande Revolução Inglesa, os “niveladores”, e na Revolução Francesa, Babeuf. Essas sublevações revolucionárias de uma classe incipiente são acompanhadas, por sua vez, pelas correspondentes manifestações teóricas: nos séculos XVI e XVII aparecem as descrições utópicas de um regime ideal da sociedade; no século XVIII, teorias já abertamente comunistas, como as de Morelly e Mably. A reivindicação da igualdade não se limitava aos direitos políticos, mas se estendia às condições sociais de vida de cada indivíduo; já não se tratava de abolir os privilégios de classe, mas de destruir as próprias diferenças de classe. Um comunismo ascético, ao modo espartano, que renunciava a todos os gozos da vida: tal foi a primeira forma de manifestação da nova teoria. Mais tarde vieram os três grandes utopistas: Saint-Simon, em que a tendência continua ainda a se afirmar, até certo ponto, junto à tendência proletária; Fourier e Owen, este último, num pais onde a produção capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressão engendrada por ela, expondo em forma sistemática uma série de medidas orientadas rio sentido de abolir as diferenças de classe, em relação direta com o materialismo francês.

Traço comum aos três é que não atuavam como representantes dos interesses do proletariado, que entretanto surgira como um produto histórico. Da mesma maneira que os enciclopedistas, não se propõem emancipar primeiramente uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade. E assim como eles, pretendem instaurar o império da razão e da justiça eterna. Mas entre o seu império e o dos enciclopedistas medeia um abismo. Também o mundo burguês, instaurado segundo os princípios dos enciclopedistas, é injusto e irracional e merece, portanto, ser jogado entre os trastes inservíveis, tanto quanto o feudalismo e as formas sociais que o antecederam. Se até agora a verdadeira razão e a verdadeira justiça não governaram o mundo é simplesmente porque ninguém soube penetrar devidamente nelas. Faltava o homem genial, que agora se ergue ante a humanidade com a verdade, por fim descoberta. O fato de que esse homem tenha aparecido agora, e não antes, o fato de que a verdade tenha sido por fim descoberta agora, e não antes, não é, segundo eles, um acontecimento inevitável, imposto pela concatenação do desenvolvimento histórico, e sim porque o simples acaso assim o quis. Poderia ter aparecido quinhentos anos antes, poupando assim à humanidade quinhentos anos de erros, de lutas e de sofrimentos.

Vimos como os filósofos franceses do século XVIII, que abriram o caminho à revolução, apelavam para a razão como o juiz único de tudo o que existe. Pretendia-se instaurar um Estado racional, uma sociedade ajustada à razão, e tudo quanto contradissesse a razão eterna deveria ser rechaçado sem nenhuma piedade. Vimos também que, em realidade, essa razão não era mais que o senso comum do homem idealizado da classe média que, precisamente então, se convertia em burguês. Por isso, quando a Revolução Francesa empreendeu a construção dessa sociedade e desse Estado da razão, redundou que as novas instituições, por mais racionais que fossem em comparação com as antigas, distavam bastante da razão absoluta. O Estado da razão falira completamente. O contrato social de Rousseau tomara corpo na época do terror, e a burguesia, perdida a fé em sua própria habilidade política, refugiou-se, primeiro na corrupção do Diretório e, por último, sob a égide do despotismo napoleônico. A prometida paz eterna convertera-se numa interminável guerra de conquistas. Tampouco teve melhor sorte a sociedade da razão. O antagonismo entre pobres e ricos, longe de dissolver-se no bem-estar geral, aguçara-se com o desaparecimento dos privilégios das corporações e outros, que estendiam uma ponte sobre ele, e os estabelecimentos eclesiásticos de beneficência, que o atenuavam. A “liberação da propriedade” dos entraves feudais, que agora se convertia em realidade, vinha a ser para o pequeno burguês e o pequeno camponês a liberdade de vender a esses mesmos poderosos senhores sua pequena propriedade, esgotada pela esmagadora concorrência do grande capital e da grande propriedade latifundiária; com o que se transformava na “liberação” do pequeno burguês e do pequeno camponês de toda propriedade. O ascenso da indústria sobre bases capitalistas converteu a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras em condição de vida da sociedade. O pagamento à vista transformava-se, cada vez mais, segundo a expressão de Carlyle, no único elo que unia a sociedade. A estatística criminal crescia de ano para ano. Os vícios feudais, que até então eram exibidos impudicamente, à luz do dia, não desapareceram, mas se recolheram, por um momento, um pouco ao fundo do cenário; em troca, floresciam exuberantemente os vícios burgueses, até então superficialmente ocultos. O comércio foi degenerando, cada vez mais, em trapaça. A “fraternidade” do lema revolucionário tomou corpo nas deslealdades e na inveja da luta de concorrência. A opressão violenta cedeu lugar à corrupção, e a espada, como principal alavanca do poder social, foi substituída pelo dinheiro. O direito de pernada passou do senhor feudal ao fabricante burguês. A prostituição desenvolveu-se em proporções até então desconhecidas. O próprio casamento continuou sendo o que já era: a forma reconhecida pela lei, o manto com que se cobria a prostituição, completado ademais com uma abundância de adultérios. Numa palavra, comparadas com as brilhantes promessas dos pensadores, as instituições sociais e políticas instauradas pelo “triunfo da razão” redundaram em tristes e decepcionantes caricaturas. Faltavam apenas os homens que pusessem em relevo o desengano, e esses homens surgiram nos primeiros anos do século XIX. Em 1802, vieram à luz as Cartas de Genebra de Saint-Simon; em 1808, Fourier publicou a sua primeira obra, embora as bases de sua teoria datassem já de 1799; a 1° de janeiro de 1800, Robert Owen assumiu a direção da empresa de New Lanark.

No entanto, naquela época, o modo capitalista de produção, e com ele o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, achava-se ainda muito pouco desenvolvido. A grande indústria, que acabava de nascer na Inglaterra, era ainda desconhecida na França. E só a grande indústria desenvolve, de uma parte, os conflitos que transformam numa necessidade imperiosa a subversão do modo de produção e a eliminação de seu caráter capitalista — conflitos que eclodem não só entre as classes engendradas por essa grande indústria, mas também entre as forças produtivas e as formas de distribuição por ela criadas — e, de outra parte, desenvolve também nessas gigantescas forças produtivas os meios para solucionar esses conflitos. Às vésperas do século XIX, os conflitos que brotavam da nova ordem social mal começavam a desenvolver-se, e menos ainda, naturalmente, os meios que levam à sua solução. Se as massas despossuídas de Paris conseguiram dominar por um momento o poder durante o regime de terror, e assim levar ao triunfo a revolução burguesa, inclusive contra a burguesia, foi só para demonstrar até que ponto era impossível manter por muito tempo esse poder nas condições da época. O proletariado, que apenas começava a destacar-se no seio das massas que nada possuem, como tronco de uma nova classe, totalmente incapaz ainda para desenvolver uma ação política própria, não representava mais que um estrato social oprimido, castigado, incapaz de valer-se por si mesmo. A ajuda, no melhor dos casos, tinha que vir de fora, do alto.

Essa situação histórica informa também as doutrinas dos fundadores do socialismo. Suas teorias incipientes não fazem mais do que refletir o estado incipiente da produção capitalista, a incipiente condição de classe. Pretendia-se tirar da cabeça a solução dos problemas sociais, latentes ainda nas condições econômicas pouco desenvolvidas da época. A sociedade não encerrava senão males, que a razão pensante era chamada a remediar.

Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e mais perfeito de ordem social, para implantá-lo na sociedade vindo de fora, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelo. Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia; quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras fantasias.

Assentado isso, não há por que nos determos nem um momento mais nesse aspecto, já definitivamente incorporado ao passado. Deixemos que os trapeiros literários revolvam solenemente nessas fantasias, que parecem hoje provocar o riso, para ressaltar sobre o fundo desse “cúmulo de disparates” a superioridade de seu raciocínio sereno. Quanto a nós, admiramos os germes geniais de idéias e as idéias geniais que brotam por toda parte sob essa envoltura de fantasia que os filisteus são incapazes de ver.

Saint-Simon era filho da grande Revolução Francesa, que estalou quando ele não contava ainda trinta anos. A Revolução foi o triunfo do terceiro estado, isto é, da grande massa ativa da nação, a cujo cargo corriam a produção e o comércio, sobre os estados até então ociosos e privilegiados da sociedade: a nobreza e o clero. Mas logo se viu que o triunfo do terceiro estado não era mais que o triunfo de uma parte muito pequena dele, a conquista do poder político pelo setor socialmente privilegiado dessa classe: a burguesia possuidora. Essa burguesia desenvolvia-se rapidamente já no processo da revolução, especulando com as terras confiscadas e logo vendidas da aristocracia e da Igreja, e lesando a nação por meio das verbas destinadas ao exército. Foi precisamente o governo desses negocistas que, sob o Diretório, levou à França e a Revolução à beira da ruína, dando com isso a Napoleão o pretexto para o golpe de Estado. Por isso, na idéia de Saint-Simon, o antagonismo entre o terceiro estado e os estados privilegiados da sociedade tomou a forma de um antagonismo entre “trabalhadores” e “ociosos”. Os “ociosos” eram não só os antigos privilegiados, mas todos aqueles que viviam de suas rendas, cem intervir na produção nem no comércio. No conceito de “trabalhadores” não entravam somente os operários assalariados, mas também os fabricantes, os comerciantes e os banqueiros. Que os ociosos haviam perdido a capacidade para dirigir espiritualmente e governar politicamente era um fato indisfarçável, selado em definitivo pela Revolução. E, para Saint-Simon, as experiências da época do terror haviam demonstrado, por sua vez, que os descamisados não possuíam tampouco essa capacidade. Então, quem haveria de dirigir e governar? Segundo Saint-Simon, a ciência e a indústria, unidas por um novo laço religioso, um “novo cristianismo”, forçosamente místico e rigorosamente hierárquico, chamado a restaurar a unidade das idéias religiosas, destruída desde a Reforma. Mas a ciência eram os sábios acadêmicos; e a indústria eram, em primeiro lugar, os burgueses ativos, os fabricantes, os comerciantes, os banqueiros. E embora esses burgueses tivessem de transformar-se numa espécie de funcionários públicos, de homens da confiança de toda a sociedade, sempre conservariam frente aos operários uma posição autoritária e economicamente privilegiada. Os banqueiros seriam os chamados em primeiro lugar para regular toda a produção social por meio de uma regulamentação do crédito. Esse modo de conceber correspondia perfeitamente a uma época em que a grande indústria, e com ela o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, mal começava a despontar na França. Mas Saint-Simon insiste muito especialmente neste ponto: o que o preocupa, sempre e em primeiro lugar, é a sorte da “classe mais numerosa e mais pobre” ela sociedade (“la classe la plus nombreuse et la plus paurre&edquo;).

Em suas Cartas de Genebra, Saint-Simon formula a tese de que “todos os homens devem trabalhar”. Na mesma obra já se expressa a idéia de que o reinado do terror era o governo das massas despossuídas. “Vede — grita-lhes — o que se passou na França quando vossos camaradas subiram ao poder: provocaram a fome”. Mas conceber a Revolução Francesa como uma luta de classes, e não só entre a nobreza e a burguesia, mas entre a nobreza, a burguesia e os despossuídos, era, em 1802, uma descoberta verdadeiramente genial.

Em 1816, Saint-Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz já a total absorção da política pela economia. E se aqui não faz senão aparecer em germe a idéia de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama já claramente a transformação do governo político sobre os homens numa administração das coisas e na direção dos processos da produção, que não é senão a idéia da “abolição do Estado”, que tanto alarde levanta ultimamente. E, elevando-se ao mesmo plano de superioridade sobre os seus contemporâneos, declara, em 1814, imediatamente, depois da entrada das tropas coligadas em Paris, e reitera em 1815, durante a Guerra dos Cem Dias, que a aliança da França com a Inglaterra e, em segundo lugar, a destes países com a Alemanha é a única garantia do desenvolvimento próspero e da paz na Europa. A fim de aconselhar aos franceses de 1815 uma aliança com os vencedores de Waterloo era necessário possuir tanto valentia quanto capacidade para ver longe na história.

O que em Saint-Simon é amplitude genial de visão, que lhe permite conter já, em germe, quase todas as idéias não estritamente econômicas dos socialistas posteriores, em Fourier é a critica engenhosa autenticamente francesa, mas nem por isso menos profunda, das condições sociais existentes. Fourier pega a burguesia pela palavra, por seus inflamados profetas de antes e seus interesseiros aduladores de depois da revolução. Põe a nu, impiedosamente, a miséria material e moral do mundo burguês, e a compara com as fascinantes promessas dos velhos enciclopedistas, com a imagem que eles faziam da sociedade em que a razão reinaria sozinha, de uma civilização que faria felizes todos os homens e de uma ilimitada capacidade humana de perfeição. Desmascara as brilhantes frases dos ideólogos burgueses da época, demonstra como a essas frases grandiloqüentes corresponde, por toda parte, a mais cruel das realidades e derrama sua sátira mordaz sobre esse ruidoso fracasso da fraseologia. Fourier não é apenas um crítico; seu espírito sempre jovial faz dele um satírico, um dos maiores satíricos de todos os tempos. A especulação criminosa desencadeada com o refluxo da onda revolucionária e o espírito mesquinho do comércio francês naqueles anos aparecem pintados em suas obras com traços magistrais e encantadores. Mas é ainda mais magistral nele a crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade burguesa. É ele o primeiro a proclamar que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral. Contudo, onde mais sobressai Fourier é na maneira como concebe a história da sociedade. Fourier divide toda a história anterior em quatro fases ou etapas de desenvolvimento:o selvagismo, a barbárie, o patriarcado e a civilização, esta última fase coincidindo com o que chamamos hoje sociedade burguesa, isto é, com o regime social implantado desde o século XVI, e demonstra que a “ordem civilizada eleva a uma forma complexa, ambígua, equívoca e hipócrita todos aqueles vícios que a barbárie praticava em meio à maior simplicidade”. Para ele a civilização move-se num “círculo vicioso”, num ciclo de contradições, que reproduz constantemente sem poder superá-las, conseguindo sempre precisamente o contrário do que deseja ou alega querer conseguir. E assim nos encontramos, por exemplo, com o fato de que “na civilização, a pobreza brota da própria abundância”. Como se vê, Fourier maneja a dialética com a mesma mestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que enchem a boca falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, põe em relevo, com igual dialética, que toda fase histórica tem sua vertente ascensional, mas também sua ladeira descendente, e projeta essa concepção sobre o futuro de toda a humanidade. E assim como Kant introduziu na ciência da natureza o desaparecimento futuro da Terra, Fourier introduz em seu estudo da história a idéia do futuro desaparecimento da humanidade.

Enquanto o vendaval da revolução varria o solo da França, desenvolvia-se na Inglaterra um processo revolucionário, mais tranqüilo, porém nem por isso menos poderoso. O vapor e as máquinas-ferramenta converteram a manufatura na grande indústria moderna, revolucionando com isso todos os fundamentos da sociedade burguesa. O ritmo vagaroso do desenvolvimento do período da manufatura converteu-se num verdadeiro período de luta e embate da produção. Com uma velocidade cada vez mais acelerada, ia-se dando a divisão da sociedade em grandes capitalistas e proletários que nada possuem e, entre eles, em lugar da antiga classe média tranqüila e estável, uma massa instável de artesãos e pequenos comerciantes, a parte mais flutuante da população, levava uma existência sem nenhuma segurança. O novo modo de produção apenas começava a galgar a vertente ascensional; era ainda o modo de produção normal, regular, o único possível, naquelas circunstâncias. E no entanto deu origem a toda uma série de graves calamidades sociais: amontoamento, nos bairros mais sórdidos das grandes cidades, de uma população arrancada do seu solo; dissolução de todos os laços tradicionais dos costumes, da submissão patriarcal e da família; prolongação abusiva do trabalho, que sobretudo entre as mulheres e as crianças assumia proporções aterradoras; desmoralização em massa da classe trabalhadora, lançada de súbito a condições de vida totalmente novas — do campo para a cidade, da agricultura para a indústria, de uma situação estável para outra constantemente variável e insegura. Em tais circunstâncias, ergue-se como reformador um fabricante de 29 anos, um homem cuja pureza quase infantil tocava às raias do sublime e que era, ao lado disso, um condutor de homens como poucos. Robert Owen assimilara os ensinamentos dos filósofos materialistas do século XVIII, segundo os quais o caráter do homem é, de um lado, produto de sua organização inata e, de outro, fruto das circunstâncias que envolvem o homem durante. sua vida, sobretudo durante o período de seu desenvolvimento. A maioria dos homens de sua classe não via na revolução industrial senão caos e confusão, uma ocasião propícia para pescar no rio revolto e enriquecer depressa. Owen, porém, viu nela o terreno adequado para pôr em prática a sua tese favorita, introduzindo ordem no caos. Já em Manchester, dirigindo uma fábrica de mais de 500 operários, tentara, não sem êxito, aplicar praticamente a sua teoria. De 1800 a 1829 orientou no mesmo sentido, embora com maior liberdade de iniciativa e com um êxito que lhe valeu fama na Europa, a grande fábrica de fios de algodão de New Lanark, na Escócia, da qual era sócio e gerente. Uma população operária que foi crescendo paulatinamente até 2 500 almas, recrutada a princípio entre os elementos mais heterogêneos, a maioria dos quais muito desmoralizados, converteu-se em suas mãos numa colônia-modelo, na qual não se conheciam a embriaguez, a polícia, os juízes de paz, os processos, os asilos para pobres nem a beneficência pública Para isso bastou, tão somente, colocar seus operários em condições mais humanas de vida, consagrando um cuidado especial à educação da prole. Owen foi o criador dos jardins-de-infância, que funcionaram pela primeira vez em New Lanark. As crianças eram enviadas às escolas desde os dois anos, e nelas se sentiam tão bem que só com dificuldade eram levadas para casa. Enquanto nas fábricas de seus concorrentes os operários trabalhavam treze e quatorze horas diárias, em New Lanark a jornada de trabalho era de dez horas e meia. Quando uma crise algodoeira obrigou o fechamento da fábrica por quatro meses, os operários de New Lanark, que ficaram sem trabalho, continuaram recebendo suas diárias integrais. E contudo a empresa incrementara ao dobro o seu valor e rendeu a seus proprietários, até o último dia, enormes lucros.

Owen, entretanto, não estava satisfeito com o que conseguira. A existência que se propusera dar a seus operários distava muito ainda de ser, a seus olhos, uma existência digna de um ser humano. “Aqueles homens eram meus escravos”. As circunstâncias relativamente favoráveis em que os colocara estavam ainda muito longe de permitir-lhes desenvolver racionalmente e em todos os aspectos o caráter e a inteligência, e muito menos desenvolver livremente suas energias. “E, contudo, a parte produtora daquela população de 2.500 almas dava à sociedade uma soma de riqueza real que, apenas meio século antes, teria exigido o trabalho de 600.000 homens juntos. Eu me perguntava: onde vai parar a diferença entre a riqueza consumida por essas 2.500 pessoas e a que precisaria ser consumida pelas 600.000?” A resposta era clara: essa diferença era invertida em abonar os proprietários da empresa com 5 por cento de juros sobre o capital de instalação, ao qual vinham somar-se mais de 300.000 libras esterlinas de lucros. E o caso de New Lanark era, só que em proporções maiores, o de todas as fábricas da Inglaterra. “Sem essa nova fonte de riqueza criada pelas máquinas, teria sido impossível levar adiante as guerras travadas para derrubar Napoleão e manter de pé os princípios da sociedade aristocrática. E, no entanto, esse novo poder era obra da classe operária.”(2) A ela deviam pertencer também, portanto, os seus frutos. As novas e gigantescas forças produtivas, que até ali só haviam servido para que alguns enriquecessem e as massas fossem escravizadas, lançavam, segundo Owen, as bases para uma reconstrução social e estavam fadadas a trabalhar somente para o bem-estar coletivo, como propriedade coletiva de todos os membros da sociedade.

Foi assim, por esse caminho puramente prático — resultado, por dizê-lo, dos cálculos de um homem de negócios — que surgiu o comunismo oweniano, conservando sempre esse caráter prático Assim, em 1823, Owen propõe um sistema de colônias comunistas para combater a miséria reinante na Irlanda e apresenta, em apoio de sua proposta, um orçamento completo de despesas de instalação, desembolsos anuais e rendas prováveis. E assim também em seus planos definitivos da sociedade do futuro, os detalhes técnicos são calculados com um domínio tal da matéria, incluindo até projetos, desenhos de frente, de perfil e do alto que, uma vez aceito o método oweniano de reforma da sociedade, pouco se poderia objetar, mesmo um técnico experimentado, contra os pormenores de sua organização.

O avanço para o comunismo constitui um momento crucial na vida de Owen. Enquanto se limitara a atuar só como filantropo, não colhera senão riquezas, aplausos, honra e fama. Era o homem mais popular da Europa. Não só os homens de sua classe e posição social, mas também os governantes e os príncipes o escutavam e o aprovavam. No momento, porém, em que formulou suas teorias comunistas, virou-se a página. Eram precisamente três grandes obstáculos os que, segundo ele, se erguiam em seu caminho da reforma social: a propriedade privada, a religião e a forma atual do casamento. E não ignorava ao que se expunha atacando-os: à execração de toda a sociedade oficial e à perda de sua posição social. Mas isso não o deteve em seus ataques implacáveis contra aquelas instituições, e ocorreu o que ele previa. Desterrado pela sociedade oficial, ignorado completamente pela imprensa, arruinado por suas fracassadas experiências comunistas na América, às quais sacrificou toda a sua fortuna, dirigiu-se à classe operária, no seio da qual atuou ainda durante trinta anos. Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra em interesse da classe trabalhadora, estão ligados ao nome de Owen. Assim, em 1819, depois de cinco anos de grandes esforços, conseguiu que fosse votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e da criança nas fábricas. Foi ele quem presidiu o primeiro congresso em que as trade-unions de toda a Inglaterra fundiram-se numa grande organização sindical única. E foi também ele quem criou, como medidas de transição, para que a sociedade pudesse organizar-se de maneira integralmente comunista, de um lado, as cooperativas de consumo e de produção — que serviram, pelo menos, para demonstrar na prática que o comerciante e o fabricante não são indispensáveis —, e de outro lado, os mercados operários, estabelecimentos de troca dos produtos do trabalho por meio de bônus de trabalho e cuja unidade é a hora de trabalho produzido; esses estabelecimentos tinham necessariamente que fracassar, mas se antecipam muito aos bancos proudhonianos de troca, diferenciando-se deles somente em que não pretendem ser a panacéia universal para todos os males sociais, mas pura e simplesmente um primeiro passo para uma transformação muito mais radical da sociedade.

As concepções dos utopistas dominaram durante muito tempo as idéias socialistas do século XIX, e em parte ainda hoje as dominam. Rendiam-lhes homenagens, até há muito pouco tempo, todos os socialistas franceses e ingleses e a eles se deve também o incipiente comunismo alemão, incluindo Weitling. Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça variam com os fundadores de cada escola; e como o caráter específico da verdade absoluta, da razão e da justiça está condicionado, por sua vez, em cada um deles, pela inteligência pessoal, condições de vida, estado de cultura e disciplina mental, resulta que nesse conflito de verdades absolutas a única solução é que elas vão acomodando-se umas às outras. E, assim, era inevitável que surgisse uma espécie de socialismo eclético e medíocre, como o que, com efeito, continua imperando ainda nas cabeças da maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra: uma mistura extraordinariamente variegada e cheia de matizes, compostas de desabafos críticos, princípios econômicos e as imagens sociais do futuro menos discutíveis dos diversos fundadores de seitas, mistura tanto mais fácil de compor quanto mais os ingredientes individuais iam perdendo, na torrente da discussão, os seus contornos sutis e agudos, como as pedras limadas pela corrente de um rio. Para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade.


II

 

Entretanto, junto à filosofia francesa do século XVIII, e por trás dela, surgira a moderna filosofia alemã, cujo ponto culminante foi Hegel. O principal mérito dessa filosofia é a restauração da dialética, como forma suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos inatos, espontâneos, e a cabeça mais universal de todos eles — Aristóteles — chegara já a estudar as formas mais substanciais do pensamento dialético. Em troca, a nova filosofia, embora tendo um ou outro brilhante defensor da dialética (como por exemplo, Descartes e Spinoza) caía cada vez mais, sob a influência principalmente dos ingleses, na chamada maneira metafísica de pensar, que também dominou quase totalmente entre os franceses do século XVIII, ao menos em suas obras especificamente filosóficas. Fora do campo estritamente filosófico, eles criaram também obras-primas de dialética; como prova, basta citar “O Sobrinho de Rameau”, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens. Resumiremos aqui, sucintamente, os traços mais essenciais de ambos os métodos discursivos.

Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, ou sobre a história humana, ou sobre nossa própria atividade espiritual, deparamo-nos, em primeiro plano, com a imagem de uma trama infinita de concatenações e influências recíprocas, em que nada permanece o que era, nem como e onde era, mas tudo se move e se transforma, nasce e morre. Vemos, pois, antes de tudo, a imagem de conjunto, na qual os detalhes passam ainda mais ou menos para o segundo plano; fixamo-nos mais no movimento, nas transições, na concatenação, do que no que se move, se transforma e se concatena. Essa concepção do mundo, primitiva, ingênua, mas essencialmente exata, é a dos filósofos gregos antigos, e aparece claramente expressa pela primeira vez em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo se acha sujeito a um processo constante de transformação, de incessante nascimento e caducidade. Mas essa concepção, por mais exatamente que reflita o caráter geral do quadro que nos é oferecido pelos fenômenos, não basta para explicar os elementos isolados que formam esse quadro total; sem conhecê-los a imagem geral não adquirirá tampouco um sentido claro. Para penetrar nesses detalhes temos de despregá-los do seu tronco histórico ou natural e investigá-los separadamente, cada qual por si, em seu caráter, causas e efeitos especiais, etc. Tal é a missão primordial das ciências naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos situavam, por motivos muito justificados, num plano puramente secundário, pois primariamente deviam dedicar-se a acumular os materiais científicos necessários. Enquanto não se reúne uma certa quantidade de materiais naturais e históricos não se pode proceder ao exame crítico, à comparação e, conseqüentemente, à divisão em classes, ordens e espécies. Por isso, os rudimentos das ciências naturais exatas não foram desenvolvidos senão a partir dos gregos do período alexandrino e, mais tarde, na Idade Média, pelos árabes; a ciência autêntica da natureza data somente da segunda metade do século XV e, desde então, não fez senão progredir a ritmo acelerado. A análise da natureza em suas diversas partes, a classificação dos diversos processos e objetos naturais em determinadas categorias, a pesquisa interna dos corpos orgânicos segundo sua diversa estrutura anatômica, foram outras tantas condições fundamentais a que obedeceram os gigantescos progressos realizados, durante os últimos quatrocentos anos, no conhecimento científico da natureza. Esse método de investigação, porém, nos transmitiu, ao lado disso, o hábito de enfocar as coisas e os processos da natureza isoladamente, subtraídos à concatenação do grande todo; portanto, não em sua dinâmica, mas estaticamente; não como substancialmente variáveis, mas como consistências fixas; não em sua vida, mas em sua morte. Por isso, esse método de observação, ao transplantar-se, com Bacon e Locke, das ciências naturais para a filosofia, determinou a estreiteza específica característica dos últimos séculos: o método metafísico de especulação.

Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos de investigação isolados, fixos, rígidos, focalizados um após o outro, de per si, como algo dado e perene. Pensa só em antíteses, sem meio-termo possível; para ele, das duas uma: sim, sim; não, não; o que for além disso, sobra. Para ele, uma coisa existe ou não existe; um objeto não pode ser ao mesmo tempo o que é e outro diferente. O positivo e o negativo se excluem em absoluto. A causa e o efeito revestem também, a seus olhos, a forma de uma rígida antítese. À primeira vista, esse método discursivo parece-nos extremamente razoável, porque é o do chamado senso comum. Mas o próprio senso comum — personagem muito respeitável dentro de casa, entre quatro paredes — vive peripécias verdadeiramente maravilhosas quando se aventura pelos caminhos amplos da investigação; e o método metafísico de pensar, por muito justificado e até necessário que seja em muitas zonas do pensamento, mais ou menos extensas segundo a natureza do objeto de que se trate, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira, ultrapassada a qual converte-se num método unilateral, limitado, abstrato, e se perde em insolúveis contradições, pois, absorvido pelos objetos concretos, não consegue perceber sua concatenação; preocupado com sua existência, não atenta em sua origem nem em sua caducidade; obcecado pelas árvores, não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e podemos dizer com toda certeza se um animal existe ou não; porém, pesquisando mais detidamente, verificamos que às vezes o problema se complica consideravelmente, como sabem muito bem os juristas, que tanto e tão inutilmente têm-se atormentado por descobrir um limite racional a partir do qual deva a morte do filho no ventre materno ser considerada um assassinato; nem é fácil tampouco determinar rigidamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não é um fenômeno repentino, instantâneo, mas um processo muito longo. Do mesmo modo, todo ser orgânico é, a qualquer instante, ele mesmo e outro; a todo instante, assimila matérias absorvidas do exterior e elimina outras do seu interior; a todo instante, morrem certas células e nascem outras em seu organismo; e no transcurso de um período mais ou menos demorado a matéria de que é formado renova-se totalmente, e novos átomos de matérias vêm ocupar o lugar dos antigos, por onde todo o seu ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e outro diferente. Da mesma maneira, observando as coisas detidamente, verificamos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são tão inseparáveis quanto antitéticos um do outro e que, apesar de todo o seu antagonismo, se penetram reciprocamente; e vemos que a causa e o efeito são representações que somente regem, como tais, em sua aplicação ao caso concreto, mas que, examinando o caso concreto em sua concatenação com a imagem total do universo, se juntam e se diluem na idéia de uma trama universal de ações e reações, em que as causas e os efeitos mudam constantemente de lugar e em que o que agora ou aqui é efeito adquire em seguida ou ali o caráter de causa, e vice-versa.

Nenhum desses fenômenos e métodos discursivos se encaixa no quadro das especulações metafísicas. Ao contrário, para a dialética, que focaliza as coisas e suas imagens conceituais substancialmente em suas conexões, em sua concatenação, em sua dinâmica, em seu processo de nascimento e caducidade, fenômenos como os expostos não são mais que outras tantas confirmações de seu modo genuíno de proceder. A natureza é a pedra de toque da dialética, e as modernas ciências naturais nos oferecem para essa prova um acervo de dados extraordinariamente copiosos e enriquecido cada dia que passa, demonstrando com isso que a natureza se move, em última instância, pelos caminhos dialéticos e não pelas veredas metafísicas, que não se move na eterna monotonia de um ciclo constantemente repetido, mas percorre uma verdadeira história. Aqui é necessário citar Darwin, em primeiro lugar, quem, com sua prova de que toda a natureza orgânica existente, plantas e animais, e entre eles, como é lógico, o homem, é o produto de um processo de desenvolvimento de milhões de anos, assestou na concepção metafísica da natureza o mais rude golpe. Até hoje, porém, os naturalistas que souberam pensar dialeticamente podem ser contados com os dedos, e esse conflito entre os resultados descobertos e o método discursivo tradicional põe a nu a ilimitada confusão que reina presentemente na teoria das ciências naturais e que constitui o desespero de mestres e discípulos, de autores e leitores.

Somente seguindo o caminho da dialética, não perdendo jamais de vista as inumeráveis ações e reações gerais do devenir e do perecer, das mudanças de avanço e retrocesso, chegamos a uma concepção exata do universo, do seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade, assim como da imagem projetada por esse desenvolvimento nas cabeças dos homens. E foi esse, com efeito, o sentido em que começou a trabalhar, desde o primeiro momento, a moderna filosofia alemã. Kant iniciou sua carreira de filósofo dissolvendo o sistema solar estável de Newton e sua duração eterna — depois de recebido o primeiro impulso — num processo histórico: no nascimento do Sol e de todos os planetas a partir de uma massa nebulosa em rotação. Daí, deduziu que essa origem implicava também, necessariamente, a morte futura do sistema solar. Meio século depois sua teoria foi confirmada matematicamente por Laplace e, ao fim de outro meio século, o espectroscópio veio demonstrar a existência no espaço daquelas massas ígneas de gás, em diferente grau de condensação.

A filosofia alemã moderna encontrou sua culminância no sistema de Hegel, em que pela primeira vez — e aí está seu grande mérito — se concebe todo o mundo da natureza, da história e do espírito como um processo, isto é, em constante movimento, mudança, transformação e desenvolvimento, tentando além disso ressaltar a íntima conexão que preside esse processo de movimento e desenvolvimento. Contemplada desse ponto de vista, a história da humanidade já não aparecia como um caos inóspito de violências absurdas, todas igualmente condenáveis diante do foro da razão filosófica hoje já madura, e boas para serem esquecidas quanto antes, mas como o processo de desenvolvimento da própria humanidade, que cabia agora ao pensamento acompanhar em suas etapas graduais e através de todos os desvios, e demonstrar a existência de leis internas que orientam tudo aquilo que à primeira vista poderia parecer obra do acaso cego.

Não importava que o sistema de Hegel não resolvesse o problema que se propunha. Seu mérito, que marca época. consistiu em tê-lo proposto. Não em vão, trata-se de um problema que nenhum homem sozinho pôde resolver. E embora fosse Hegel, como Saint-Simon, a cabeça mais universal. de seu tempo, seu horizonte achava-se circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável de seus próprios conhecimentos e, em segundo lugar, pelos conhecimentos e concepções de sua época, limitados também em extensão e profundidade. Deve-se acrescentar a isso uma terceira circunstância. Hegel era idealista; isto é, para ele as idéias de sua cabeça não eram imagens mais ou menos abstratas dos objetos ou fenômenos da realidade, mas essas coisas e seu desenvolvimento se lhe afiguravam, ao contrário, como projeções realizadas da “idéia”, que já existia, não se sabe como, antes de existir o mundo. Assim, foi tudo posto de cabeça para baixo, e a concatenação real do universal apresentava-se completamente às avessas. E por mais exatas e mesmo geniais que fossem várias das conexões concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pelos motivos que acabamos de apontar, que muitos dos seus detalhes tivessem um caráter amaneirado, artificial, construído; em uma palavra, falso. O sistema de Hegel foi um aborto gigantesco, mas o último de seu gênero. De fato, continuava sofrendo de uma contradição interna incurável; pois, enquanto de um lado partia como pressuposto inicial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, por sua natureza, encontrar o arremate intelectual na descoberta disso que chamam verdade absoluta, de outro lado nos é apresentado exatamente como a soma e a síntese dessa verdade absoluta. Um sistema universal e definitivamente plasmado do conhecimento da natureza e da história é incompatível com as leis fundamentais do pensamento dialético — que não exclui, mas longe disso implica que o conhecimento sistemático do mundo exterior em sua totalidade possa progredir gigantescamente de geração em geração.

A consciência da total inversão em que incorria o idealismo alemão levou necessariamente ao materialismo; mas não, veja-se bem, àquele materialismo puramente metafísico e exclusivamente mecânico do século XVIII. Em oposição à simples repulsa, ingenuamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo moderno vê na história o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas leis dinâmicas é missão sua descobrir. Contrariamente à idéia da natureza que imperava entre os franceses do século XVIII, assim como em Hegel, em que esta era concebida como um todo permanente e invariável, que se movia dentro de ciclos estreitos, com corpos celestes eternos, tal como Newton os representava, e com espécies invariáveis de seres orgânicos, como ensinara Linneu, o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas. Tanto em um como em outro caso, o materialismo moderno é substancialmente dialético e já não precisa de uma filosofia superior às demais ciências. Desde o momento em que cada ciência tem que prestar contas da posição que ocupa no quadro universal das coisas e do conhecimento dessas coisas, já não há margem para uma ciência especialmente consagrada ao estudo das concatenações universais. Da filosofia anterior, com existência própria, só permanece de pé a teoria do pensar e de suas leis: a lógica formal e a dialética. O demais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.

No entanto, enquanto que essa revolução na concepção da natureza só se pôde impor na medida em que a pesquisa fornecia à ciência os materiais positivos correspondentes, já há muito tempo se haviam revelado certos fatos históricos que imprimiram uma reviravolta decisiva no modo de focalizar a história. Em 1831, estala em Lyon a primeira insurreição operária, e de 1838 a 1842 atinge o auge o primeiro movimento operário nacional: o dos cartistas ingleses. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro plano da história dos países europeus mais avançados, ao mesmo ritmo em que se desenvolvia neles, de um lado, a grande indústria, e de outro lado, a dominação política recém-conquistada da burguesia. Os fatos refutavam cada vez mais rotundamente as doutrinas burguesas da identidade de interesses entre o capital e o trabalho e da harmonia universal e o bem-estar geral das nações, como fruto da livre concorrência. Não havia como passar por alto esses fatos, nem era tampouco possível ignorar o socialismo francês e inglês, expressão teórica sua, por mais imperfeita que fosse. Mas a velha concepção idealista da história, que ainda não havia sido removida, não conhecia lutas de classes baseadas em interesses materiais, nem conhecia interesses materiais de qualquer espécie; para ela a produção, bem como todas as relações econômicas, só existiam acessoriamente, como um elemento secundário dentro da “história cultural”. Os novos fatos obrigaram à revisão de toda a história anterior, e então se viu que, com exceção do estado primitivo, toda a história anterior era a história das lutas de classes, e que essas classes sociais em luta entre si eram em todas as épocas fruto das relações de produção e de troca, isto é, das relações econômicas de sua época; que a estrutura econômica da sociedade em cada época da história constitui, portanto, a base real cujas propriedades explicam, em última análise, toda a superestrutura integrada pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pela ideologia religiosa, filosófica, etc., de cada período histórico. Hegel libertara da metafísica a concepção da história, tornando-a dialética; mas sua interpretação da história era essencialmente idealista. Agora, o idealismo fora despejado do seu último reduto: a concepção da história —, substituída por uma concepção materialista da história, com o que se abria o caminho para explicar a consciência do homem por sua existência, e não esta por sua consciência, que era até então o tradicional.

Desse modo o socialismo já não aparecia como a descoberta casual de tal ou qual intelecto genial, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas historicamente: o proletariado e a burguesia. Sua missão já não era elaborar um sistema o mais perfeito possível da sociedade, mas investigar o processo histórico econômico de que, forçosamente, tinham que brotar essas classes e seu conflito, descobrindo os meios para a solução desse conflito na situação econômica assim criada. Mas o socialismo tradicional era incompatível com essa nova concepção materialista da história, tanto quanto a concepção da natureza do materialismo francês não podia ajustar-se à dialética e às novas ciências naturais. Com efeito, o socialismo anterior criticava o modo de produção capitalista existente e suas conseqüências, mas não conseguia explicá-lo nem podia, portanto, destrui-lo ideologicamente; nada mais lhe restava senão repudiá-lo, pura o simplesmente, como mau. Quanto mais violentamente clamava contra a exploração da classe operária, inseparável desse modo de produção, menos estava em condições de indicar claramente em que consistia e como nascia essa exploração. Mas do que se tratava era, por um lado, de expor esse modo capitalista de produção em suas conexões históricas e como necessário para uma determinada época da história, demonstrando com isso também a necessidade de sua queda e, por outro lado, pôr a nu o seu caráter interno, ainda oculto. Isso se tornou evidente com a descoberta da mais-valia. Descoberta que veio revelar que o regime capitalista de produção e a exploração do operário, que dele se deriva, tinham por forma fundamental a apropriação de trabalho não pago; que o capitalista, mesmo quando compra a força de trabalho de seu operário por todo o seu valor, por todo o valor que representa como mercadoria no mercado, dela retira sempre mais valor do que lhe custa e que essa mais-valia é, em última análise, a soma de valor de onde provém a massa cada vez maior do capital acumulado em mãos das classes possuidoras. O processo da produção capitalista e o da produção de capital estavam assim explicados.

Essas duas grandes descobertas — a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista através da mais-valia — nós as devemos a Karl Marx. Graças a elas o materialismo converte-se em uma ciência, que só nos resta desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações.


III

 

A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a bênção em praga, isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram-se silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se — mais ou menos desenvolvidos — os meios necessários para pôr termo aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobrí-los nos fatos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece.

Qual é, nesse aspecto, a posição do socialismo moderno?

A ordem social vigente — verdade reconhecida hoje por quase todo o mundo — é obra das classes dominantes dos tempos modernos, da burguesia. O modo de produção característico da burguesia, ao qual desde Marx se dá o nome de modo capitalista de produção, era incompatível com os privilégios locais e dos estados, como o era com os vínculos interpessoais da ordem feudal. A burguesia lançou por terra a ordem feudal e levantou sobre suas ruínas o regime da sociedade burguesa, o império da livre concorrência, da liberdade de domicílio, da igualdade de direitos dos possuidores de mercadorias, e tantas outras maravilhas burguesas. Agora já podia desenvolver-se livremente o modo capitalista de produção. E ao chegarem o vapor e a nova maquinaria ferramental, transformando a antiga manufatura na grande indústria, as forças produtivas criadas e postas em movimento sob o comando da burguesia desenvolveram-se com uma velocidade inaudita e em proporções até então desconhecidas. Mas, do mesmo modo que em seu tempo a manufatura e o artesanato, que continuava desenvolvendo-se sob sua influência, se chocavam com os entraves feudais das corporações, a grande indústria, ao chegar a um uivei de desenvolvimento mais alto, já não cabe no estreito marco em que é contida pelo modo de produção capitalista. As novas forças produtivas transbordam já da forma burguesa em que são exploradas, e esse conflito entre as forças produtivas e o modo de produção não é precisamente nascido na cabeça do homem — algo assim como o conflito entre o pecado original do homem e a Justiça divina — mas tem suas raízes nos fatos, na realidade objetiva, fora de nós, independentemente da vontade ou da atividade dos próprios homens que o provocaram. O socialismo moderno não é mais que o reflexo desse conflito material na consciência, sua projeção ideal nas cabeças, a começar pelas da classe que sofre diretamente suas conseqüências: a classe operária.

Em que consiste esse conflito? Antes de sobrevir a produção capitalista, isto é, na Idade Média, dominava, com caráter geral, a pequena indústria, baseada na propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção: no campo, a agricultura corria a cargo de pequenos lavradores, livres ou vassalos; nas cidades, a indústria achava-se em mãos dos artesãos. Os meios de trabalho — a terra, os instrumentos agrícolas, a oficina, as ferramentas — eram meios de trabalho individual, destinados unicamente ao uso individual e, portanto, forçosamente, mesquinhos, diminutos, limitados. — Mas isso mesmo levava a que pertencessem, em geral, ao próprio produtor. O papel histórico do modo capitalista de produção e seu portador — a burguesia — consistiu precisamente em concentrar e desenvolver esses dispersos e mesquinhos meios de produção, transformando-os nas poderosas alavancas produtoras dos tempos atuais. Esse processo, que a burguesia vem desenvolvendo desde o século XV e que passa historicamente pelas três etapas da cooperação simples, a manufatura e a grande indústria, é minuciosamente exposto por Marx na seção quarta de O Capital. Mas a burguesia, como fica também demonstrado nessa obra, não podia converter aqueles primitivos meios de produção em poderosas forças produtivas sem transformá-los de meios individuais de produção em meios sociais, só manejáveis por uma coletividade de homens. A roca, O tear manual e o martelo do ferreiro foram substituídos pela máquina de fiar, pelo tear mecânico, pelo martelo movido a vapor; a oficina individual deu o lugar à fábrica, que impõe a cooperação de centenas e milhares de operários. E, com os meios de produção, transformou-se a própria produção, deixando de ser uma cadeia de atos individuais para converter-se numa cadeia de atos sociais, e os produtos transformaram-se de produtos individuais em produtos sociais. O fio, as telas, os artigos de metal que agora safam da fábrica eram produto do trabalho coletivo de um grande número de operários, por cujas mãos tinha que passar sucessivamente para sua elaboração. Já ninguém podia dizer: isso foi feito por mim, esse produto é meu.

Mas onde a produção tem por forma principal um regime de divisão social do trabalho criado paulatinamente, por impulso elementar, sem sujeição a plano algum, a produção imprime aos produtos a forma de mercadoria, cuja troca, compra e venda permitem aos diferentes produtores individuais satisfazer suas diversas necessidades. E isso era o que acontecia na Idade Média. O camponês, por exemplo, vendia ao artesão os produtos da terra, comprando-lhe em troca os artigos elaborados em sua oficina. Nessa sociedade de produtores isolados, de produtores de mercadorias, veio a introduzir-se mais tarde o novo modo de produção. Em meio àquela divisão elementar do trabalho, sem plano nem sistema, que imperava no seio de toda a sociedade, o novo modo de produção implantou a divisão planificada do trabalho dentro de cada fábrica; ao lado da produção individual surgiu a produção social Os produtos de ambas eram vendidos no mesmo mercado e, portanto, a preços aproximadamente iguais. Mas a organização planificada podia mais que a divisão elementar do trabalho; as fábricas em que o trabalho estava organizado socialmente elaboravam seus produtos mais baratos que os pequenos produtores isolados. A produção individual foi pouco a pouco sucumbindo em todos os campos e a produção social revolucionou todo o antigo modo de produção. Contudo, esse caráter revolucionário passava despercebido; tão despercebido que, pelo contrário, se implantava com a única e exclusiva finalidade de aumentar e fomentar a produção de mercadorias. Nasceu diretamente ligada a certos setores de produção e troca de mercadorias que já vinham funcionando: o capital comercial, a indústria artesanal e o trabalho assalariado. E já que surgia como uma nova forma de produção de mercadorias, mantiveram-se em pleno vigor sob ela as formas de apropriação da produção de mercadorias.

Na produção de mercadorias, tal como se havia desenvolvido na Idade Média, não podia surgir o problema de a quem pertencer os produtos do trabalho. O produtor individual criava-os, geralmente, com matérias-primas de sua propriedade, produzidas não poucas vezes por ele mesmo, com seus próprios meios de trabalho e elaborados com seu próprio trabalho manual ou de sua família. Não necessitava, portanto, apropriar-se deles, pois já eram seus pelo simples fato de produzi-los. A propriedade dos produtos baseava-se, pois, no trabalho pessoal. E mesmo naqueles casos em que se empregava a ajuda alheia, esta era, em regra, acessória, e recebia freqüentemente, além do salário, outra compensação: o aprendiz e o oficial das corporações não trabalhavam menos pelo salário e pela comida do que para aprender a chegar a ser mestres algum dia. Sobrevêm a concentração dos meios de produção em grandes oficinas e manufaturas, sua transformação em meios de produção realmente sociais. Entretanto, esses meios de produção e seus produtos sociais foram considerados como se continuassem a ser o que eram antes: meios de produção e produtos individuais. E se até aqui o proprietário dos meios de trabalho se apropriara dos produtos, porque eram, geralmente, produtos seus e a ajuda constituía uma exceção, agora o proprietário dos meios de trabalho continuava apoderando-se do produto, embora já não fosse um produto seu, mas fruto exclusivo do trabalho alheio. Desse modo, os produtos, criados agora socialmente, não passavam a ser propriedade daqueles que haviam posto realmente em marcha os meios de produção e eram realmente seus criadores, mas do capitalista. Os meios de produção e a produção foram convertidos essencialmente em fatores sociais. E, no entanto, viam-se submetidos a uma forma do apropriação que pressupõe a produção privada individual, isto é, aquela em que cada qual é dono de seu próprio produto e, como tal, comparece com ele ao mercado. O modo de produção se vê sujeito a essa forma de apropriação apesar de destruir o pressuposto sobre o qual repousa(3). Nessa contradição, que imprime ao novo modo de produção o seu caráter capitalista, encerra-se em germe, todo o conflito dos tempos atuais. E quanto mais o novo modo de produção se impõe e impera em todos os campos fundamentais da produção e em todos os países economicamente importantes, afastando a produção individual, salvo vestígios insignificantes, maior é a evidência com que se revela a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação capitalista.

Os primeiros capitalistas já se encontraram, como ficou dito, com a forma do trabalho assalariado. Mas como exceção, como ocupação secundária, como simples ajuda, como ponto de transição. O lavrador que saía de quando em vez para ganhar uma diária, tinha seus dois palmos de terra própria, graças às quais, em caso extremo, podia viver. Os regulamentos das corporações velavam para que os oficiais de hoje se convertessem amanhã em mestres. Mas, logo que os meios de produção adquiriram um caráter social e se concentraram em mãos dos capitalistas, as coisas mudaram. Os meios de produção e os produtos do pequeno produtor individual foram sendo cada vez mais depreciados, até que a esse pequeno produtor não ficou outro recurso senão ganhar um salário pago pelo capitalista. O trabalho assalariado, que era antes exceção e mera ajuda, passou a ser regra e forma fundamental de toda a produção, e o que era antes ocupação acessória se converte em ocupação exclusiva do operário. O operário assalariado temporário transformou-se em operário assalariado para toda a vida. Ademais, a multidão desses para sempre assalariados vê-se engrossada em proporções gigantescas pela derrocada simultânea da ordem feudal, pela dissolução das mesnadas (NE: tropas mercenárias) dos senhores feudais, a expulsão dos camponeses de suas terras, etc. Realizara-se o completo divórcio entre os meios de produção concentrados nas mãos dos capitalistas, de um lado, e, de outro lado, os produtores que nada possuíam além de sua própria força de trabalho. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista reveste a forma de antagonismo entre o proletariado e a burguesia.

Vimos que o modo de produção capitalista introduziu-se numa sociedade de produtores de mercadorias, de produtores individuais, cujo vinculo social era o intercâmbio de seus produtos. Mas toda sociedade baseada na produção de mercadorias apresenta a particularidade de que nela os produtores perdem o comando sobre suas próprias relações sociais. Cada qual produz para si, com os meios de produção de que consegue dispor, e para as necessidades de seu intercâmbio privado. Ninguém sabe qual a quantidade de artigos do mesmo tipo que os demais lançam no mercado, nem da quantidade que o mercado necessita; ninguém sabe se seu produto individual corresponde a uma demanda efetiva, nem se poderá cobrir os gastos, nem sequer, em geral, se poderá vendê-lo. A anarquia impera na produção social. Mas a produção de mercadorias tem, como toda forma de produção, suas leis características, próprias e inseparáveis dela; e essas leis abrem caminho apesar da anarquia, na própria anarquia e através dela. Tomam corpo na única forma de enlace social que subsiste: na troca, e se impõem aos produtores individuais sob a forma das leis imperativas da concorrência. A princípio, esses produtores as ignoram, e é preciso que uma larga experiência vá revelando-as, pouco a pouco. Impõem-se, pois, sem os produtores, e mesmo contra eles, como leis naturais cegas que presidem essa forma de produção. O produto impera sobre o produtor.

Na sociedade medieval, e sobretudo em seus primeiros séculos, a produção destinava-se principalmente ao consumo próprio, a satisfazer apenas às necessidades do produtor e sua família. E onde, como acontecia no campo, subsistiam relações pessoais de vassalagem, contribuía também para satisfazer às necessidades do senhor feudal. Não se produzia, pois, nenhuma troca, nem os produtos revestiam, portanto, o caráter de mercadorias. A família do lavrador produzia quase todos os objetos de que necessitava: utensílios, roupas e viveres. Só começou a produzir mercadorias quando começou a criar um excedente de produtos, depois de cobrir suas próprias necessidades e os tributos em espécie que devia pagar ao senhor feudal; esse excedente, lançado no intercâmbio social, no mercado, para sua venda, converteu-se em mercadoria. Os artesãos das cidades, por certo, tiveram que produzir para o mercado desde o primeiro momento. Mas também elaboravam eles próprios a maior parte dos produtos de que necessitavam para seu consumo; tinham suas hortas e seus pequenos campos, apascentavam seu gado nos campos comunais, que lhes forneciam também madeira e lenha; suas mulheres fiavam o linho e a lã, etc. A produção para a troca, a produção de mercadorias, achava-se em seu inicio. Por isso o intercâmbio era limitado, o mercado era reduzido, o modo de produção era estável. Em face do exterior imperava o exclusivismo local; no interior, a associação local: a Marca no campo, as corporações nas cidades.

Mas ao estender-se a produção de mercadorias e, sobretudo, ao aparecer o modo capitalista de produção, as leis da produção de mercadorias, que até aqui haviam apenas dado sinais de vida, passam a funcionar de maneira aberta e poderosa. As antigas associações começam a perder força, as antigas fronteiras vão caindo por terra, os produtores vão convertendo-se mais e mais em produtores de mercadorias independentes e isolados. A anarquia da produção social sai à luz e se aguça cada vez mais. Mas o instrumento principal com que o modo de produção capitalista fomenta essa anarquia na produção social é precisamente o inverso da anarquia: a crescente organização da produção com caráter social, dentro de cada estabelecimento de produção. Por esse meio, põe fim à velha estabilidade pacifica. Onde se implanta num ramo industrial, não tolera a seu lado nenhum dos velhos métodos. Onde se apodera da indústria artesanal, ela a destrói e aniquila. O terreno de trabalho transforma-se num campo de batalha. As grandes descobertas geográficas e as empresas de colonização que as acompanham multiplicam os mercados e aceleram o processo de transformação de oficina do artesão em manufatura. E a luta não eclode somente entre os produtores locais isolados; as contendas locais não adquirem envergadura nacional, e surgem as guerras comerciais dos séculos XVII e XVIII. Até que, por fim, a grande indústria e a implantação do mercado mundial dão caráter universal à luta, ao mesmo tempo que lhe imprimem uma inaudita violência. Tanto entre os capitalistas individuais como entre industriais e países inteiros, a primazia das condições — natural ou artificialmente criadas — da produção decide a luta pela existência. O que sucumbe é esmagado sem piedade. É a luta darwinista da existência individual transplantada, com redobrada fúria, da natureza para a sociedade. As condições naturais de vida da besta convertem-se no ponto culminante do desenvolvimento humano. A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista manifesta-se agora como antagonismo entre a organização da produção dentro de cada fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade.

O modo capitalista de produção move-se nessas duas formas da contradição a ele inerente por suas próprias origens, descrevendo sem apelação aquele “círculo vicioso” já revelado por Fourier. Mas o que Fourier não podia ver ainda em sua época é que esse círculo se vai reduzindo gradualmente, que o movimento se desenvolve em espiral e tem de chegar necessariamente ao seu fira, como o movimento dos planetas. chocando-se com o centro. É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a imensa maioria dos homens, cada vez mais marcadamente, em proletários, e essas massas proletárias serão, por sua vez, as que, afinal, porão fim à anarquia da produção É a força propulsora da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano. E assim como a implantação e o aumento quantitativo da maquinaria trouxeram consigo a substituição de milhões de operários manuais por um número reduzido de operários mecânicos, seu aperfeiçoamento determina a eliminação de um número cada vez maior de operários das máquinas e, em última instância, a criação de uma massa de operários disponíveis que ultrapassa a necessidade média de ocupação do capital, de um verdadeiro exército industrial de reserva, como eu já o chamara em 1845(4), de um exército de trabalhadores disponíveis para as épocas em que a indústria trabalha a pleno vapor e que logo nas crises que sobrevêm necessariamente depois desses períodos, é lançado às ruas, constituindo a todo momento uma grilheta amarrada aos pés da classe trabalhadora em sua luta pela existência contra o capital e um regulador para manter os salários no nível baixo correspondente às necessidades do capitalista. Assim, para dizê-lo com Marx, a maquinaria converteu-se na mais poderosa arma do capital contra a classe operária, um meio de trabalho que arranca constantemente os meios de vida das mãos do operário, acontecendo que o produto do próprio operário passa a ser o instrumento de sua escravização. Desse modo, a economia nos meios de trabalho leva consigo, desde o primeiro momento, o mais impiedoso desperdício da força de trabalho e a espoliação das condições normais da função mesma do trabalho. E a maquinaria, o recurso mais poderoso que se pôde criar para reduzir a jornada de trabalho, converte-se no mais infalível recurso para converter a vida inteira do operário e de sua família numa grande jornada disponível para a valorização do capital; ocorre, assim, que o excesso de trabalho de uns é a condição determinante da carência de trabalho de outros, e que a grande indústria, lançando-se pelo mundo inteiro, em desabalada carreira, à conquista de novos consumidores, reduz em sua própria casa o consumo das massas a um mínimo de fome e mina com isso o seu próprio mercado interno. “A lei que mantém constantemente o excesso relativo de população ou exército industrial de reserva em equilíbrio com o volume e a intensidade da acumulação do capital amarra o operário ao capital com ataduras mais fortes do que as cunhas com que Vulcano cravou Prometeu no rochedo. Isso dá origem a que a acumulação do capital corresponda a uma acumulação igual de miséria. A acumulação de riqueza em um dos pólos determina no pólo oposto, no pólo da classe que produz o seu próprio produto como capital, uma acumulação igual de miséria, de tormentos de trabalho, de escravidão, de ignorância, de embrutecimento e de degradação moral.” (Marx, O Capital, t. 1, cap. XXIII) E esperar do modo capitalista de produção uma distribuição diferente dos produtos seria o mesmo que esperar que os dois eletrodos de uma bateria, enquanto conectados com ela, não decomponham a água nem engendrem oxigênio no pólo positivo e hidrogênio no pólo negativo.

Vimos que a capacidade de aperfeiçoamento da maquinaria moderna, levada a seu limite máximo, converte-se, em virtude da anarquia da produção dentro da sociedade num preceito imperativo que obriga os capitalistas industriais, cada qual por si, a melhorar incessantemente a sua maquinaria, a tornar sempre mais poderosa a sua força de produção. Não menos imperativo é o preceito em que se converte para ele a mera possibilidade efetiva de dilatar sua órbita de produção. A enorme força de expansão da grande indústria, a cujo lado a expansão dos gases é uma brincadeira de crianças, revela-se hoje diante de nossos olhos como uma necessidade qualitativa e quantitativa de expansão, que zomba de todos os obstáculos que se lhe deparam. Esses obstáculos são os que lhe opõem o consumo, a saída, os mercados de que os produtos da grande indústria necessitam. Mas a capacidade extensiva e intensiva de expansão dos mercados obedece, por sua vez, a leis muito diferentes e que atuam de uma maneira muito menos enérgica. A expansão dos mercados não podo desenvolver-se ao mesmo ritmo que a da produção. A colisão torna-se inevitável, e como é impossível qualquer solução senão fazendo-se saltar o próprio modo capitalista de produção, essa colisão torna-se periódica. A produção capitalista engendra um novo “círculo vicioso”.

Com efeito, desde 1825, ano em que estalou a primeira crise geral, não se passam dez anos seguidos sem que todo o mundo industrial e comercial, a distribuição e a troca de todos os povos civilizados e de seu séquito de países mais ou menos bárbaros, saia dos eixos. O comércio é paralisado, os mercados são saturados de mercadorias, os produtos apodrecem nos armazéns abarrotados, sem encontrar saída; o dinheiro torna-se invisível; o crédito desaparece; as fábricas param; as massas operárias carecem de meios de subsistência precisamente por tê-los produzido em excesso, as bancarrotas e falências se sucedem. O paradeiro dura anos inteiros, as forças produtivas e os produtos são malbaratados e destruidos em massa até que, por fim, os estoques de mercadorias acumuladas, mais ou menos depreciadas, encontram saída, e a produção e a troca se vão reanimando pouco a pouco. Paulatinamente, a marcha se acelera, a andadura converte-se em trote, o trote industrial em galope e, finalmente, em carreira desenfreada, numa corrida de obstáculos da indústria, do comércio, do crédito, da especulação, para terminar, por fim, depois dos saltos mais arriscados, na fossa de um crack. E assim, sucessivamente. Cinco vezes repete-se a mesma história desde 1825, e presentemente (1877) estamos vivendo-a pela sexta vez. E o caráter dessas crises é tão nítido e tão marcante que Fourier as abrangia todas ao descrever a primeira, dizendo que era uma crise plétorique, uma crise nascida da superabundância.

Nas crises estala em explosões violentas a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista. A circulação de mercadoria fica, por um momento, paralisada. O meio de circulação, o dinheiro, converte-se num obstáculo para a circulação; todas as leis da produção e da circulação das mercadorias viram pelo avesso. O conflito econômico atinge seu ponto culminante: o modo de produção rebela-se contra o modo de distribuição.

O fato de que a organização social da produção dentro das fábricas se tenha desenvolvido até chegar a um ponto em que passou a ser inconciliável com a anarquia — coexistente com ela e acima dela — da produção na sociedade é um rato que se revela palpavelmente aos próprios capitalistas pela concentração violenta dos capitais, produzida durante as crises à custa da ruína de numerosos grandes e, sobretudo, pequenos capitalistas. Todo o mecanismo do modo de produção falha, esgotado pelas forças produtivas que ele mesmo engendrou. Já não consegue transformar em capital essa massa de meios de produção, que permanecem inativos, e por isso precisamente deve permanecer também inativo o exército industrial de reserva. Meios de produção, meios de vida, operários em disponibilidade: todos os elementos da produção e da riqueza geral existem em excesso. Mas a “superabundância converte-se em fonte de miséria e de penúria” (Fourier), já que é ela, exatamente, que impede a transformação dos meios de produção e de vida em capital, pois na sociedade capitalista os meios de produção não podem pôr-se em movimento senão transformando-se previamente em capital, em meio de exploração da força humana de trabalho. Esse imprescindível caráter de capital dos meios de produção ergue-se como um espectro entre eles e a classe operária. É isso o que impede que se engrenem a alavanca material e a alavanca pessoal da produção; é o que não permite aos meios de produção funcionar nem aos operários trabalhar e viver. De um lado, o modo capitalista de produção revela, pois, sua própria incapacidade para continuar dirigindo suas forças produtivas. De outro lado, essas forças produtivas compelem com uma intensidade cada vez maior no sentido de que resolva a contradição, de que sejam redimidas de sua condição de capital, de que seja efetivamente reconhecido o seu caráter de forças produtivas sociais.

É essa rebelião das forças de produção, cada vez mais imponentes, contra a sua qualidade de capital, essa necessidade cada vez mais imperiosa de que se reconheça o seu caráter social, que obriga a própria classe capitalista a considerá-las cada vez mais abertamente como forças produtivas sociais, na medida em que é possível dentro das relações capitalistas. Tanto os períodos de elevada pressão industrial, com sua desmedida expansão do crédito, como o próprio crack, com o desmoronamento de grandes empresas capitalistas, estimulam essa forma de socialização de grandes massas de meios de produção que encontramos nas diferentes categorias de sociedades anônimas. Alguns desses meios de produção e de comunicação já são por si tão gigantescos que excluem, como ocorre com as ferrovias, qualquer outra forma de exploração capitalista. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento já não basta tampouco essa forma; os grandes produtores nacionais de um ramo industrial unem-se para formar um truste, um consórcio destinado a regular a produção; determinam a quantidade total que deve ser produzida, dividem-na entre eles e impõem, desse modo, um preço de venda de antemão fixado. Como, porém, esses trustes se desmoronam ao sobrevirem os primeiros ventos maus nos negócios, conduzem com isso a uma socialização ainda mais concentrada; todo o ramo industrial converte-se numa única grande sociedade anônima, e a concorrência interna dá lugar ao monopólio interno dessa sociedade única; assim aconteceu já em 1890 com a produção inglesa de álcalis, que na atualidade, depois da fusão de todas as quarenta e oito grandes fábricas do país, é explorada por uma só sociedade com direção única e um capital de 120 milhões de marcos.

Nos trustes, a livre concorrência transforma-se em monopólio e a produção sem plano da sociedade capitalista capitula ante a produção planificada e organizada da nascente sociedade socialista. É claro que, no momento, em proveito e benefício dos capitalistas. Mas aqui a exploração torna-se tão patente, que tem forçosamente de ser derrubada. Nenhum povo toleraria uma produção dirigida pelos trustes, uma exploração tão descarada da coletividade por uma pequena quadrilha de cortadores de cupões.

De um modo ou de outro, com ou sem trustes, o representante oficial da sociedade capitalista, o Estado, tem que acabar tomando a seu cargo o comando da produção(5). A necessidade a que corresponde essa transformação de certas empresas em propriedade do Estado começa a manifestar-se nas. grandes empresas de transportes e comunicações, tais como o correio, o telégrafo e as ferrovias.

Além da incapacidade da burguesia para continuar dirigindo as forças produtivas modernas que as crises revelam, a transformação das grandes empresas de produção e transporte em sociedades anônimas, trustes e em propriedade do' Estado demonstra que a burguesia já não é indispensável para o desempenho dessas funções. Hoje, as funções sociais do capitalista estão todas a cargo de empregados assalariados, e toda a atividade social do capitalista se reduz a cobrar suas rendas, cortar seus cupões e jogar na bolsa, onde os capitalistas de toda espécie arrebatam, uns aos outro, os seus capitais. E se antes o modo capitalista de produção deslocava os operários, agora desloca também os capitalistas, lançando-os, do mesmo modo que aos operários, entre a população excedente; embora, por enquanto ainda não no exército industrial de reserva.

Mas as forças produtivas não perdem sua condição de capital ao converter-se em propriedade das sociedades anônimas e dos trustes ou em propriedade do Estado. No que se refere aos trustes e sociedades anônimas, é palpavelmente claro. Por sua parte, o Estado moderno não é tampouco mais que uma organização criada pela sociedade burguesa para defender as condições exteriores gerais do modo capitalista de produção contra os atentados, tanto dos operários como dos capitalistas isolados. O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo ideal. E quanto mais forças produtivas passe à sua propriedade tanto mais se converterá em capitalista coletivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo operários assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, se aguça. Mas, ao chegar ao cume, esboroa-se. A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é solução do conflito, mas abriga já em seu seio o meio formal, o instrumento para chegar à solução.

Essa solução só pode residir em ser reconhecido de um modo efetivo o caráter social das forças produtivas modernas e, portanto, em harmonizar o modo de produção, de apropriação e de troca com o caráter social dos meios de produção. Para isso, não há senão um caminho: que a sociedade, abertamente e sem rodeios, tome posse dessas forças produtivas, que já não admitem outra direção a não ser a sua. Assim procedendo, o caráter social dos meios de produção e dos produtos, que hoje se volta contra os próprios produtores, rompendo periodicamente as fronteiras do modo de produção e de troca, e só pode impor-se com uma força e eficácia tão destruidoras como o impulso cego das leis naturais, será posto em vigor com plena consciência pelos produtores e se converterá, de causa constante de perturbações e cataclismas periódicos, na alavanca mais poderosa da própria produção.

As forças ativas da sociedade atuam, enquanto não as conhecemos e contamos com elas, exatamente como as forças da natureza: de modo cego violento e destruidor. Mas, uma vez conhecidas, logo que se saiba compreender sua ação, suas tendências e seus efeitos, está em nossas mãos o sujeitá-las cada vez mais à nossa vontade e, por meio delas, alcançar os fins propostos. Tal é o que ocorre, muito especialmente, com as gigantescas forças modernas da produção. Enquanto resistirmos obstinadamente a compreender sua natureza e seu caráter — e a essa compreensão se opõem o modo capitalista de produção e seus defensores —, essas forças atuarão apesar de nós, e nos dominarão, como bem ressaltamos. Em troca, assim que penetramos em sua natureza, essas forças, postas em mãos dos produtores associados, se converterão de tiranos demoníacos em servas submissas. É a mesma diferença que há entre o poder maléfico da eletricidade nos raios da tempestade e o poder benéfico da força elétrica dominada no telégrafo e no arco voltaico; a diferença que há entre o fogo destruidor e o fogo posto a serviço do homem. O dia em que as forças produtivas da sociedade moderna se submeterem ao regime congruente com a sua natureza por fim conhecida, a anarquia social da produção deixará o seu posto à regulamentação coletiva e organizada da produção, de acordo com as necessidades da sociedade e do indivíduo. E o regime capitalista de apropriação, em que o produto escraviza primeiro quem o cria e, em seguida, a quem dele se apropria, será substituído pelo regime de apropriação do produto que o caráter dos modernos meios de produção está reclamando: de um lado, apropriação diretamente social, como meio para manter e ampliar a produção; de outro lado, apropriação diretamente individual, como meio de vida e de proveito.

O modo capitalista de produção, ao converter mais e mais em proletários a imensa maioria dos indivíduos de cada pais, cria a força que, se não quiser perecer, está obrigada a fazer essa revolução. E, ao forçar cada vez mais a conversão dos grandes meios socializados de produção em propriedade do Estado, já indica por si mesmo o caminho pelo qual deve produzir-se essa revolução. O proletariado toma em suas mãos o Poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, nesse mesmo ato, destrói-se a si próprio como proletariado, destruindo toda diferença e todo antagonismo de classes, e com isso o Estado como tal. A sociedade, que se movera até então entre antagonismos de classe, precisou do Estado, ou seja, de uma organização da classe exploradora correspondente para manter as condições externas de produção e, portanto, particularmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e o trabalho assalariado), determinadas pelo modo de produção existente. O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, sua síntese num corpo social visível; mas o era só como Estado que, em sua época, representava toda a sociedade: na antiguidade era o Estado dos cidadãos escravistas, na Idade Média o da nobreza feudal; em nossos tempos, da burguesia. Quando o Estado se converter, finalmente, em representante efetivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise ser submetida; quando desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta pela existência individual, engendrada pela atual anarquia da produção, os choques e os excessos resultantes dessa luta, nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado.

O primeiro ato em que o Estado se manifesta efetivamente como representante de toda a sociedade — a posse dos meios de produção em nome da sociedade — é ao mesmo tempo o seu último ato independente como Estado. A intervenção da autoridade do Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num campo após outro da vida social e cessará por si mesma. O governo sobre as pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção. O Estado não será “abolido”, extingue-se. É partindo daí que se pode julgar o valor do falado “Estado popular livre” no que diz respeito à sua justificação provisória como palavra de ordem de agitação e no que se refere à sua falta de fundamento científico. É também partindo daí que deve ser considerada a exigência dos chamados anarquistas de que o Estado seja abolido da noite para o dia.

Desde que existe historicamente o modo capitalista de produção, houve indivíduos e seitas inteiras diante dos quais se projetou mais ou menos vagamente, como ideal futuro, a apropriação de todos os meios de produção pela sociedade. Mas, para que isso fosse realizável, para que se convertesse numa necessidade histórica, fazia-se preciso que se dessem antes as condições efetivas para a sua realização. A fim de que esse progresso, como todos os progressos sociais, seja viável, não basta ser compreendido pela razão que a existência de classes é incompatível com os ditames da justiça, da igualdade, etc.; não basta a simples vontade de abolir essas classes — mas são necessárias determinadas condições econômicas novas. A divisão da sociedade em uma classe exploradora e outra explorada, em uma classe dominante e outra oprimida, era uma conseqüência necessária do anterior desenvolvimento incipiente da produção. Enquanto o trabalho global da sociedade der apenas o estritamente necessário para cobrir as necessidades mais elementares de todos, e talvez um pouco mais; enquanto, por isso, o trabalho absorver todo o tempo, ou quase todo o tempo, da imensa maioria dos membros da sociedade, esta se divide, necessariamente, em classes. Junto à grande maioria constrangida a não fazer outra coisa senão suportar a carga do trabalho, forma-se uma classe que se exime do trabalho diretamente produtivo e a cujo cargo correm os assuntos gerais da sociedade: a direção dos trabalhos, os negócios públicos, a justiça, as ciências, as artes, etc., É, pois, a lei da divisão do trabalho que serve de base à divisão da sociedade em classes. O que não impede que essa divisão da sociedade em classes se realize por meio da violência e a espoliação, a astúcia e o logro; nem quer dizer que a classe dominante, uma vez entronizada, se abstenha de consolidar o seu poderio à custa da classe trabalhadora, transformando seu papel social de direção numa maior exploração das massas.

Vemos, pois, que a divisão da sociedade em classes tem sua razão histórica de ser, mas só dentro de determinados limites de tempo, sob determinadas condições sociais. Era condicionada pela insuficiência da produção, e será varrida quando se desenvolverem plenamente as modernas forças produtivas. Com efeito, a abolição das classes sociais pressupõe um grau histórico de desenvolvimento tal que a existência, já não dessa ou daquela classe dominante concreta, mas de uma classe dominante qualquer que seja ela, e, portanto, das próprias diferenças de classe representa um anacronismo. Pressupõe, por conseguinte, um grau culminante no deseno1vimento da produção em que a apropriação dos meios de produção e dos produtos e, portanto, do poder político, do monopólio da cultura e da direção espiritual por uma determinada classe da sociedade, não só se tornou de fato supérfluo, mas constitui econômica, política e intelectualmente uma barreira levantada ante o progresso. Pois bem, já se chegou a esse ponto. Hoje, a bancarrota política e intelectual da burguesia não é mais um segredo nem para ela mesma e sua bancarrota econômica é um fenômeno que se repete periodicamente de dez em dez anos. Em cada uma dessas crises a sociedade se asfixia, afogada pela massa de suas próprias forças produtivas e de seus produtos, aos quais não pode aproveitar e, impotente, vê-se diante da absurda contradição de que os seus produtores não tenham o que consumir, por falta precisamente de consumidores. A força expansiva dos meios de produção rompe as ataduras com que são submetidos pelo modo capitalista de produção, Só essa libertação dos meios de produção é que pode permitir o desenvolvimento ininterrupto e cada vez mais rápido das forças produtivas e, com isso, o crescimento praticamente ilimitado da produção. Mas não é apenas isso. A apropriação social dos meios de produção não só elimina os obstáculos artificiais hoje antepostos à produção, mas põe termo também ao desperdício e à devastação das forças produtivas e dos produtos, uma das conseqüências inevitáveis da produção atual e que alcança seu ponto culminante durante as crises. Ademais, acabando-se com o parvo desperdício do luxo das classes dominantes e seus representantes políticos, será posta em circulação para a coletividade toda uma massa de meios de produção e de produtos. Pela primeira vez, surge agora, e surge de um modo efetivo, a possibilidade de assegurar a todos os membros da sociedade, através de um sistema de produção social, uma existência que, além de satisfazer plenamente e ceda dia mais abundantemente suas necessidades materiais, lhes assegura o livre e completo desenvolvimento e exercício de suas capacidades físicas e intelectuais(6).

Ao apossar-se a sociedade dos meios de produção cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede o lugar a uma organização planejada e consciente. Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o homem sal definitivamente do reino animal e se sobrepõe às condições animais de existência, para submeter-se a condições de vida verdadeiramente humanas. As condições que cerca o homem e até agora o dominam, colocam-se, a partir desse instante, sob seu domínio e seu comando e o homem, ao tomar-se dono e senhor de suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efetivo da natureza. As leis de sua própria atividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam a seu império, são agora aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidas a seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é de agora em diante obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade.

***

Resumamos, brevemente, para terminar, nossa trajetória de desenvolvimento:

1. — Sociedade medieval: Pequena produção individual. Meios de produção adaptados ao uso individual e, portanto, primitivos, torpes, mesquinhos, de eficácia mínima. Produção para o consumo imediato, seja do próprio produtor, seja de seu senhor feudal. Só nos casos em que fica um excedente de produtos, depois de ser coberto aquele consumo, é posto à venda e lançado no mercado esse excedente. Portanto, a produção de mercadorias acha-se ainda em seus albores, mas já encerra, em potencial, a anarquia da produção social

2. — Revolução capitalista: Transformação da indústria, iniciada por meio da cooperação simples e da manufatura. Concentração dos meios de produção, até então dispersos, em grande oficinas, com o que se convertem de meios de produção do indivíduo em meios de produção sociais, metamorfose que não afeta, em geral, a forma de troca. Ficam de pé as velhas formas de apropriação, Aparece o capitalista: em sua qualidade de proprietário dos meios de produção, apropria-se também dos produtos e os converte em mercadorias. A produção transforma-se num ato social; a troca e, com ela, a apropriação continuam sendo atos individuais: o produto social é apropriado pelo capitalista individual. Contradição fundamental, da qual se derivam todas as contradições em que se move a sociedade atual e que a grande indústria evidencia claramente:

A. Divórcio do produtor com os meios de produção. Condenação do operário a ser assalariado por toda a vida. Antítese de burguesia e proletariado.

B. Relevo crescente e eficácia acentuada das leis que presidem a produção de mercadorias. Concorrência desenfreada. Contradição entre a organização social dentro de cada fábrica e a anarquia social na produção total.

C. De um lado, aperfeiçoamento da maquinaria, que a concorrência transforma num preceito imperativo para cada fabricante e que equivale a um afastamento cada dia maior de operários: exército industrial de reserva. De outro lado, extensão ilimitada da produção, que a concorrência impõe também como norma incoercível a todos os fabricantes. De ambos os lados, um desenvolvimento inaudito das forças produtivas, excesso da oferta sobre a procura, superprodução, abarrotamento dos mercados, crise cada dez anos, círculo vicioso: superabundância, aqui, de meios de produção e de produtos e, ali, de operários sem trabalho e sem meios de vida. Mas essas duas alavancas da produção e do bem-estar social não podem combinar-se, porque a forma capitalista da produção impede que as forças produtivas atuem e os produtos circulem, a não ser que se convertam previamente em capital, o que lhes é vedado precisamente por sua própria superabundância. A contradição se aguça até converter-se em contra-senso: o modo de produção revolta-se contra a forma de troca. A burguesia revela-se incapaz para continuar dirigindo suas próprias forças sociais produtivas.

D. Reconhecimento parcial do caráter social das forças produtivas, arrancado aos próprios capitalistas. Apropriação dos grandes organismos de produção e de transporte, primeiro por sociedades anônimas, em seguida pelos trustes, e mais tarde pelo Estado. A burguesia revela-se uma classe supérflua; todas as suas funções sociais são executadas agora por empregados assalariados.

3. — Revolução proletária, solução das contradições: o proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse ato redime os meios de produção da condição de capital, que tinham até então, e dá a seu caráter social plena liberdade para impor-se, A partir de agora já é possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transforma num anacronismo a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornam-se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres.

A realização desse ato, que redimirá o mundo, é a missão histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico, expressão teórica do movimento proletário, destina-se a pesquisar as condições históricas e, com isso, a natureza mesma desse ato, infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza de sua própria ação.

Escrito por F. Engels em 1877. Publicado como folheto, em francês, em Paris (1880), em alemão, em Zurique (1882) e em Berlim (1891), e em inglês, em Londres (1892). Publica-se segundo a edição soviética de 1952, de acordo com o texto da edição alemã de 1891. Traduzido do espanhol.


NOTAS

Prefácio

1. No “Congresso de Gotha”, celebrado de 22 a 25 de maio de 1875, uniram-se as duas correntes do movimento operário alemão: o Partido Operário Social-democrata (os eisenachianos), dirigido por A. Bebel e W. Liebknecht, e a lassalleana Associação Geral de Operários Alemães. O partido unificado adotou a denominação de Partido Operário Socialista da Alemanha. Assim se conseguiu superar a cisão nas fileiras da classe operária alemã. O projeto de programa do partido unificado, proposto ao Congresso de Gotha, apesar da dura crítica que lhe haviam feito Marx e Engels (v. Crítica ao Programa de Gotha), foi aprovado no Congresso com modificações insignificantes.

(2) Bimetalismo: sistema monetário, no qual as funções de dinheiro são cumpridas simultaneamente pelo ouro e pela prata.

(3) “Vorwärts” (Avante): órgão central do Partido Operário Socialista Alemão, foi publicado em Leipzig de 1 de outubro de 1876 a 27 de outubro de 1878. A obra de Engels “Anti-Dühring” foi publicada nele de 3 de janeiro de 1877 a 7 de julho de 1878.

(4) Não incluído nesta edição.

(5) Engels se refere aos trabalhos de M. Kovalevski “Tableau des origines et de l’évolution de la famille et de la proprieté” (“Ensaio acerca da origem da família e da propriedade”) publicado em 1890 em Estocolmo, e “Pervobytnoye pravo” (“Direito primitivo”) fascículo 1, “La Gens”, Moscou, 1886.

(6) Nominalistas: representantes de uma tendência da filosofia medieval que considerava que os conceitos generais genéricos eram nomes, engendrados pelo pensamento e pela linguagem e só serviam para designar objetos soltos, existentes na realidade. Em oposição aos realistas medievais, os nominalistas negavam a existência de conceitos como protótipos e fontes criadoras das cosas. Deste modo reconheciam o carácter primário da realidade e secundário do conceito. Neste sentido, o nominalismo era a primeira expressão do materialismo na Idade Média.

(7) Nomoiomerias: minúsculas partículas qualitativamente determinadas e divisíveis infinitamente. Anaxágoras considerava que as homoiomerias constituíam a base inicial de todo o existente e que suas combinações davam origem à diversidade das coisas.

(8) “Qual” é um jogo filosófico de palavras. “Qual” significa, literalmente, tortura, dor que incita a realizar uma ação qualquer. Ao mesmo tempo, o místico Böhme transfere à palavra alemã algo do termo latino qualitas (qualidade). Seu “Qual“ era, por oposição à dor produzido exteriormente, um princípio ativo, nascido do desenvolvimento espontâneo da coisa, da relação ou da personalidade submetida a su influxo e que, por su vez, provocava este desenvolvimento.

(9) Deismo: doutrina filosófico-religiosa que reconhece Deus como causa primeira racional impessoal do mundo, mas nega sua intervenção na vida da natureza e da sociedade.

(10) K. Marx und F. Engels, “Die heilige Familie”, Frankfurt am M., 1845, S. 201-204. (K. Marx e F. Engels. A Sagrada Família, Francfort do Meno, 1845, págs. 201-204.) (N. Edit.)

(11) Refere-se á primeira exposição comercial e industrial mundial que aconteceu em Londres de maio a outubro de 1851.

(12) Exército da Salvação: organização reacionária religioso-filantrópica fundada em 1865 na Inglaterra e reorganizada em 1880 adotando o modelo militar (de onde vem seu nome). Apoiada em grande parte pela burguesia, esta organização fundou em muitos países uma rede de instituições beneficentes, com a finalidade de afastas as massas trabalhadoras da luta contra os exploradores.

(13) P. Laplace, Traité de mécanique céleste (“Tratado de mecânica celeste”) Vols. I—V, Paris, 1799-1825. (N. Edit).

(14) “Não tive necesidade de recorrer a esta hipótese”. (N. Edit.)

(15) “No princípio era a ação”. Goethe, Fausto, parte I, cena III. (N. Edit.)

(16) “O pudim se prova comendo”. (N. Edit).

(17) Coisa em si

(18) A historiografia burguesa inglesa chama de “revolução gloriosa” o golpe de Estado de 1688 com que se acabou na Inglaterra com a dinastia dos Stuards e se instaurou a monarquia constitucional (1689) encabeçada por Guilherme de Orange e baseada no compromisso entre a aristocracia agrária a a grande burguesia.

(19) A guerra das Duas Rosas (1455-1485): guerra entre duas famílias feudais inglesas que lutavam pelo trono: os York, em cujo escudo figurava uma rosa branca, e os Lancaster, que tinham no escudo uma rosa vermelha. Em torno dos York se agrupava uma parte dos grandes feudais do Sul (mais desenvolvido economicamente), os cavaleiros e os cidadãos; os Lancaster eram apoiados pela aristocracia feudal dos condados do Norte. A guerra quase levou ao total extermínio das antigas famílias feudais e terminou com a subida ao trono da nova dinastia dos Tudor que implantou o absolutismo na Inglaterra.

(20) Criança robusta mas maliciosa. (NT)

(21) Filosofia cartesiana: doutrina dos seguidores do filósofo francês do século XVII Descartes (em latim Cartesius), que deduziram conclusões materialistas de sua filosofia.

(22) A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi aprovada pela Assembléia Constituinte em 1789. Nela se proclamavam os princípios políticos do novo regime burguês. A Declaração foi incluída na Constituição francesa de 1791; serviu de base aos jacobinos quando redigiram a Declaração dos Direitos do Homem de 1793, que figurou como prefácio à primeira Constituição republicana da França adotada pela Convenção Nacional em 1793.

(23) Aqui e a partir daqui, Engels não entende por Código de Napoleão unicamente o Code civil (Código civil) de Napoleão adotado em 1804 e conhecido por este nome, mas, no sentido lato da palavra, todo o sistema do Direito burguês, representado pelos cinco códigos (civil, de processo civil, comercial, penal e de processo penal) adotados sob Napoleão I de 1804 a 1810. Tais códigos foram implantados nas regiões Oeste e Sudoeste da Alemanha conquistadas pela França de Napoleão e permaneceram vigindo na província do Reno inclusive depois de sua anexação pela Prússia em 1815.

(24) Escreve-se Londres e se pronuncia Constantinopla. (N. Edit.)

(25) O projeto de lei da primeira reforma eleitoral na Inglaterra foi apresentado ao Parlamento em março de 1831 e aprovado em junho de 1832. A reforma abriu as portas do Parlamento apenas aos representantes da burguesia industrial. O proletariado e a pequena burguesia, que eram a principal força na luta pela reforma, foram enganados pela burguesia liberal e ficaram, como antes da reforma, sem direitos eleitorais.

(26) A lei de abolição das leis cerealistas foi aprovado em junho de 1846. As chamadas leis cerealistas, aprovadas visando restringir ou proibir a importação de trigo do exterior, foram promulgadas na Inglaterra em benefício dos grandes proprietários rurais (landlords). A aprovação da lei de 1846 foi um triunfo da burguesia industrial, que lutava contra as leis cerealistas sob a consigna de liberdade de comércio.

(27) Em 1824, o Parlamento inglês, pressionado pelo movimento operário, tevo que promulgar um ato abolindo a proibição das uniões operárias (as tradeunions).

(28) A Carta do Povo, que continha as exigências dos cartistas, foi publicada em 8 de maio de 1838 como projeto de lei a ser apresentado no Parlamento; continha seis pontos; direito eleitoral universal (para os homens acima dos 21 anos de idade), eleições anuais para o Parlamento, votação secreta, igualdade das circunscrições eleitorais, abolição do requisito de propriedade para os candidatos a deputado no Parlamento, remuneração dos deputados. As três petições dos cartistas com a exigência da aprovação da Carta do Povo, entregues ao Parlamento, foram recusadas por este em 1839, 1842 e 1849.

(29) A Liga anti-cerealista: organização da burguesia industrial inglesa, fundada em 1838 pelos fabricantes Cobden e Bright, de Manchester. Ao apresentar a exigência da liberdade completa de comércio, a Liga propugnava pela abolição das leis cerealistas com o fim de abaixar os salários dos operários e debilitar as posições econômicas e políticas da aristocracia agrária. Depois da abolição das leis cerealistas (1846), a Liga deixou de existir.

(30) A manifestação de massas que os cartistas anunciaram para 10 de abril de 1848 em Londres, com a finalidade de entregar ao Parlamento a petição sobre a aprovação da Carta popular, fracassou devido à indecisão e as vacilações de seus organizadores. O fracasso da manifestação foi utilizado pelas forças da reação para retomar a ofensiva contra os trabalhadores e as represálias contra os cartistas.

(31) Trata-se do golpe de Estado organizado por Luís Bonaparte em 2 de dezembro de 1851, que deu início ao regime bonapartista do Segundo Império.

(32) Irmão Jonathan: mote dado pelos ingleses aos norte-americanos durante a guerra das colônias norte-americanas da Inglaterra pela independência (1775-1783).

(33) O Segundo Império de Napoleão III existiu na Francia de 1852 a 1870, e a Terceira República, de 1870 a 1940.

(34) E até em matéria de negócios a fatuidade do chauvinismo nacional é um mal conselho. Até recentemente, o fabricante inglês corrente considerava indigno para um inglês falar outro idioma que não fosse o seu e se orgulhava de certo modo que esses “pobres diabos” dos estrangeiros viessem viver na Inglaterra, aliviando-lo com isso do trabalho de vender seus produtos no exterior. Não se dava conta sequer que estes estrangeiros, alemães em sua maioria, se apossavam deste modo de uma grande parte do comércio exterior da Inglaterra — quer do de importação como do de exportação — e que o comércio direto dos ingleses com o exterior ia circunscrevendo-se quase exclusivamente às colônias, à China, aos Estados Unidos e à América do Sul. E tão pouco se dava conta de que estes alemães comerciavam com outros alemães do estrangeiro, que com o tempo iam organizando uma rede completa de colônias comerciais por todo o mundo. E quando, há uns quarenta anos, a Alemanha começou seriamente a fabricar para exportar, encontrou nestas colônias comerciais alemãs um instrumento que lhe prestou maravilhosos serviços na empresa de transformar, em tão pouco tempo, um país exportador de cereais em um país industrial de primeira grandeza. Por fim, faz uns dez anos, os fabricantes ingleses começaram a se inquietar e a perguntar a seus embaixadores e cônsules como era que já não podiam reter todos os seus clientes. A resposta unânime foi esta: 1° porque não vos preocupais em aprender a língua de vossos clientes e exigis que eles aprendam a vossa, e 2° porque não intentais sequer satisfazer às necessidades, os costumes e os gostos de vossos clientes, mas que quereis que se atenham aos vossos, aos da Inglaterra.

(35) Educação da classe média (N. Edit.)

(36) Em 1867, na Inglaterra, sob a influência do movimento operário de massas, se levou a cabo a segunda reforma parlamentar. O Conselho Geral da I Internacional tomou parte ativa no movimento que reivindicava esta reforma. Como resultado dela, o número de eleitores na Inglaterra aumentou em mais do dobro e uma parcela dos operários qualificados conquistou o direito de votar.

(37) O household suffrage estabelecia o direito de voto para todos que vivessem em casa independente. (N. Edit.)

(38) Votação secreta. (N. Edit.)

(39) Socialismo de cátedra: corrente da ideologia burguesa dos anos 70-90 do século XIX. Seus representantes, na maioria professores de universidades alemãs, pregavam de suas cátedras o reformismo burguês, tratando de apresentá-lo como socialismo. Afirmavam (entre outros A. Wagner, H. Schmoller, L. Brentano e W. Sombart) que o Estado era uma instituição situada acima das classes, podia reconciliar as classes inimigas e implantar gradualmente o “socialismo” sem afetar os interesses dos capitalistas. Seu programa se reduzia à organização dos seguros dos operários contra enfermidades e acidentes e à aplicação de certas medidas na esfera da legislação fabril. Os socialistas de cátedra estimavam que, havendo sindicatos bem organizados, não havia necessidade de luta política, nem de partido político da classe operária. O socialismo de cátedra constituiu uma das fontes ideológicas do revisionismo.

(40) Ritualismo: corrente surgida na Igreja anglicana nos anos 30 do século XIX. Seus adeptos pregavam a restauração dos ritos católicos (daí a denominação) e de certos dogmas do catolicismo na Igreja anglicana.

 

Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico

 

1. É a seguinte a passagem de Hegel referente à Revolução Francesa: “A idéia, o conceito de direito, fez-se valer de chofre, sem que lhe pudesse opor qualquer resistência a velha armação da injustiça. Sobre a idéia do direito baseou-se agora, portanto, uma Constituição, e sobre esse fundamento deve basear-se tudo mais no futuro. Desde que o Sol ilumina o firmamento e os planetas giram em torno daquele ninguém havia percebido que o homem se ergue sobre a cabeça, isto é, sobre a idéia, construindo de acordo com ela a realidade. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o noûs, a razão, governa o mundo: mas só agora o homem acabou de compreender que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Era, pois, uma esplêndida aurora. Todos os seres pensantes celebraram a nova época. Uma sublime emoção reinava naquela época a um entusiasmo do espírito abalava o mundo, como se pela primeira vez se conseguisse a reconciliação do mundo com a divindade”. Hegel Philosophie der Geschichte. 1840, pág. 535 [Hegel, Filosofia da História, 1840 pág. 535]. Não terá chegado o momento de aplicar a essas doutrinas subversivas e atentatórias à sociedade, do finado professor Hegel, a lei contra os socialistas?

2. De The Revolution in Mind and Practice [A Revolução no Espírito e na Prática], um memorial dirigido a todos os republicanos vermelhos. comunistas e socialistas da Europa, e enviado ao governo provisório francês de 1848. mas também à rainha Vitória e seus conselheiros responsáveis.

3. Não precisamos explicar que, ainda quando a forma de apropriação permaneça invariável, o caráter da apropriação sofre uma revolução pelo processo que descrevemos, em não menor grau que a própria produção. A apropriação de um produto próprio e a apropriação de um produto alheio são, evidentemente, duas formas muito diferentes de apropriação. E advertimos de passagem que o trabalho assalariado, no qual se contém já o germe de todo o modo capitalista de produção, é muito antigo; coexistiu durante séculos inteiros, em casos isolados e dispersos, com a escravidão. Contudo, esse germe só pode desenvolver-se até formar o modo capitalista de produção quando surgiram as premissas históricas adequadas.

4. A Situação da Classe Operária na Inglaterra pg. 109.

5. E digo que tem de tomar a seu cargo, pois a nacionalização só representará um progresso econômico, um passo adiante para a conquista pela sociedade de todas as forças produtivas, embora essa medida seja levada a cabo pelo Estado atual, quando os meios de produção ou de transporte superarem já efetivamente os marcos diretores de uma sociedade anônima, quando, portanto, a medida da nacionalização já for economicamente inevitável. Contudo, recentemente, desde que Bismarck empreendeu o caminho da nacionalização, surgiu uma espécie de falso socialismo, que degenera de quando em vez num tipo especial de socialismo, submisso e servil, que em todo ato de nacionalização, mesmo nos adotados por Bismarck, vã uma medida socialista. Se a nacionalização da indústria do fumo fosse socialismo, seria necessário inclui, Napoleão e Metternich entre os fundadores do socialismo. Quando o Estado belga, por motivos políticos e financeiros perfeitamente vulgares decidiu construir por sua conta as principais linhas térreas do pais, eu quando Bismarck, sem que nenhuma necessidade econômica o levasse a isso, nacionalizou as linhas mais importantes da rede ferroviária da Prússia, pura e simplesmente para assim poder manejá-las e aproveitá-las melhor em caso de guerra, para converter o pessoal das ferrovias em gado eleitoral submisso ao Governo e, sobretudo, para encontrar uma nova fonte de rendas isenta de fiscalização pelo Parlamento, todas essas medidas não tinham, nem direta nem indiretamente, nem consciente nem inconscientemente, nada de socialistas. De outro modo, seria necessário também classificar entre as instituições socialistas a Real Companhia de Comércio Marítimo, a Real Manufatura de Porcelanas e até os alfaiates do exército, sem esquecer a nacionalização dos prostíbulos, proposta muito seriamente, ai por volta do ano 34, sob Frederico Guilherme III, por um homem muito esperto.

6. Algumas cifras darão ao leitor uma noção aproximada da enorme força expansiva que, mesmo sob a pressão capitalista, os modernos meios de produção desenvolvem. Segundo os cálculos de Giffen, a riqueza global da Grã Bretanha e Irlanda ascendia, em números redondos, a

1865 — 6.100 milhões de libras esterlinas — 122.000 milhões de marcos
1875 — 8.500 milhões de libras esterlinas — 170.000 milhões de marcos

Para dar uma idéia do que representa a dilapidação dos meios de produção e de produtos desperdiçados durante a crise, direi que no segundo congresso dos industriais alemães, realizado em Berlim, em 21 de fevereiro de 1878, calculou-se em 455 milhões de marcos as perdas globais representadas pelo último crack, somente para a indústria siderúrgica alemã.


 

Texto:
[Contribuição enviada por e-mail por Nélson Jahr Garcia (njahr@atinet.com.br) — Versão eletrônica disponível em http://www.jahr.org]

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