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RESSENTIDOS DO MUNDO TODO, UNI-VOS

Janer Cristaldo

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Ressentidos do Mundo Todo, Uni-vos — Janer Cristaldo

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Copyright:
© 2002 Janer Cristaldo


 

ÍNDICE

 

Sobre o autor
Assim se perdem as perdizes
Terror e Tortura
A Seita que Deu Certo
Iurd, Icar e Handyside
Civilização e Mcdonald's
Anistia fabrica Neonazistas
Rãs em Fogo Lento
Antropólogo pode
Apocalipse up to date
O Francês e o Futuro
Europeus no Exílio
O Zorro Chiapaneco
Intolerância Talebã
PC domina PT
Condenados à Pré-história
Coisa de Pobre
Sobre Massacres
Lá na Linha
O Titio Torturador
O Novo Passaporte
Ótica Talebã
Em Defesa do Baiano
Quando TV Liberta
A Velhinha de Havana
A Ditadura do Milhão
Meus Dois Turcos
O Crime da 5ª Turma
Suomi: sem Sexo nem Futuro
O PC e o Imperativo Categórico
Lunes sin Postre
Ex-cholo Ressuscita Apus
Morre Madalena Tardia
Marta, Marta
O Índex das Esquerdas
A Confraternização no Naufrágio
Dias Piores Virão
O Terror Segundo as Viúvas
Ocidente e Amnésia
Islã e Aiatolices
Ressentidos de Todo Mundo, uni-vos!
Leituras Edificantes
As Criancinhas
Sobre Sovietes e Kulaks
A Guilda e os Três Patetas
Puc vira Madrassa
Nigra Sum sed Formosa
Canabis Kantate
O Projeto de Maury
Calvos reagem
PT, CLT e Acarajés de Jesus
Europa reage


 

RESSENTIDOS
DO MUNDO TODO,
UNI-VOS

Janer Cristaldo


 

Sobre o autor

 

Janer Cristaldo nasceu em 1947, em Santana do Livramento (RS). Formou-se em Direito e Filosofia e doutorou-se em Letras Francesas e Comparadas pela Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III). Morou na Suécia, França e Espanha. Lecionou Literatura Comparada e Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e trabalhou como redator de Internacional na Folha de São Paulo e no Estado de São Paulo. Atualmente, reside em São Paulo e assina crônica semanal no jornal eletrônico Baguete (www.baguete.com.br). Ressentidos do Mundo Todo, Uni-vos é uma compilação das crônicas publicadas neste jornal em 2001.

E-mail: cristaldojaner@hotmail.com.

Outras obras publicadas pela ebooksbrasil:

Ponche Verde, romance
Laputa, romance
Mensageiros das Fúrias, ensaio
Engenheiros de Almas, ensaio
Qorpo Santo de Corpo Inteiro, ensaio
Ianoblefe, ensaio
A Indústria Textil, ensaios
Crônicas da Guerra Fria, crônicas
EleCrônicas, crônicas
Flechas Contra o Tempo, crônicas


 

Assim se perdem as perdizes

5/1/2001

 

Um leitor pergunta porque gosto de escrever sobre mim mesmo. Não é verdade. Prefiro escrever sobre uma escrivaninha, que é bem mais cômodo. Pergunta-me também como desenvolvo esta crônica.

Honestamente, não sei. Me dou por feliz, quando, ao sentar na mesa, já tenho o tema escolhido. Isto é, metade da crônica está feita. Uma vez sentado, não tenho idéia muito precisa do ponto de chegada. Muitas vezes penso ir a Paris e acabo chegando a Ponche Verde. Às vezes me preocupa uma reflexão sobre a História e acabo entrando num bar. E ao sair do bar o rumo é sempre incerto, como o é o desfecho da crônica. Como a desenvolvo?

Prefiro falar de perdizes.

O leitor já ouviu falar de mundéus? Se não nasceu no campo, mais precisamente na Campanha, certamente desconhece o que seja mundéu. É uma armadilha para perdizes. Sobre uma trilha de ovelhas faz-se uma pequena muralha de pedras, esterco, mio-mio ou chirca, de um palmo de altura e uns dois braços de homem de comprimento. Nas pontas da cerca, dois braços laterais saem um para cada lado, formando assim uma espécie de T, cortado por cima e por baixo. No centro do mundéu, por onde passa a trilha, há uma porteirinha. Da porteira pende uma trança de rabo de cavalo, trançada de três ou torcida, mas sempre em forma de forca. A torcida é melhor, se fecha mais fácil. O mesmo não diria a perdiz, mas quem ocupa este espaço é o cronista e não ela. Só posso falar de meus pontos de vista.

Primeiro é necessário levantar a perdiz. A melhor hora é o nascer do sol, quando seus raios tornam brilhantes as babas-de-boi que se estendem de cardo a cardo. Não pode ser dia de vento. Nesses dias, a perdiz se amoita no primeiro alho-bravo que encontra e não quer saber de passeios, já se levanta voando. Outra hora boa é depois de um temporal, quando um cheiro de terra se ergue da terra e fica para sempre nas narinas de quem na infância com esse cheiro se embriagou. Outro cheiro que também marca para sempre é o cheiro de sanga ao entardecer. Mas falava de perdizes.

Para levantar a perdiz, basta passear pelo campo, de preferência a pé, assobiando em seu ritmo assustadiço. Ela ouve. Se está aninhada, levanta. Espicha o pescoço e responde. Está perdida.

Cabe agora ao caçador mangueá-la para o mundéu, o que exige grande conhecimento da psicologia das perdizes. As perdizes são desconfiadas por natureza. Para ganhar-lhes a confiança, o assobiador tem de ser melífluo, insinuante. Quando a perdiz assobia, o assobiador cala. Quando ela cala, eu respondo. Se ela está à direita do mundéu, vou caminhando de longe, para a esquerda. Como quem não quer nada, sempre assobiando, como se o mundéu nem existisse. Um bom expediente é dar as costas para a perdiz, de mãos no bolso. A perdiz vê o assobiador de costas para ela e fica até despeitada. Ele não quer nada comigo, me deu as costas, pensa a perdiz. São ingênuas, as perdizes.

Se ela vai para a esquerda, sigo assobiando pela direita. A perdiz se desespera. Ele nem me quer. Eu assobio para um lado, ele assobia para o outro. E aí se perde a perdiz, pois o assobiador a ama e o amor é guerra. A perdiz entra na trilha. Logo adiante, está o mundéu. E a trança. Torcida.

Uma vez na trilha, mais amorosamente assobia o assobiador. Com tanto amor que a perdiz chega a assustar-se. Assobia agora nervosa, qual virgem se abrindo ao amado. Mulheres e perdizes em muito se parecem.

Entrou nos braços do mundéu. Só há uma saída, a trança, branca e redonda. Próximo à forca, o assobiador sempre deixa alguns grãos de trigo ou milho, tanto que ama a perdiz. Gorda é a laçada da trança. Magro é o pescoço da perdiz.

O assobiador abre os braços e grita, a perdiz voa e se enforca. Salvo engano, escrevi uma crônica. Ou algo parecido.


 

Terror e Tortura

12/1/2001

 

Um escritor até pode parecer original. Vinte escritores reunidos, e temos a uniformidade de um exército. Imagine então que imenso bocejo pode provocar o depoimento de 53 intelectuais franceses num mesmo dia. Foi o que reuniu o jornal Libération, em suplemento deste fim de ano. Boa parte dos depoentes se sentiram na obrigação de baixar a lenha em Pinochet e Milosevic e sobrou até mesmo para Putin.

Ora, justo em novembro passado, os jornais denunciavam as torturas cometidas pelos franceses na Argélia, quando era ministro da Justiça François Mitterrand, o mais prestigioso líder socialista da Europa. Em uma só batalha, a de Argel, os franceses fuzilaram 3.024 argelinos, a mesma cifra de vítimas, em números redondos, que é atribuída aos 17 anos da ditadura de Pinochet. Dois velhos generais, Jacques Massu, 92 anos, e Paul Aussaresses, 82, resolveram confessar seus assassinatos e torturas durante a guerra. Este último contou, inclusive, ter matado 24 prisioneiros com as próprias mãos. De fato, nos executávamos os prisioneiros — disse Aussaresses ao jornal Figaro —. A tortura nunca me proporcionou prazer mas eu tomei esta decisão quando cheguei a Argel. Na época, ela era generalizada. Se fosse para refazer tudo, isso me aborreceria, mas eu faria de novo a mesma coisa pois não acho que se pudesse agir de outra maneira.

As denúncias sobre matanças e torturas surgiram na imprensa francesa durante a própria guerra da Argélia. Nos anos 70, lembro ter lido uma entrevista de Massu na revista Lui, onde o general francês relatava suas habilidades com a gégène, espécie de gerador de campanha. Este tipo de tortura, dizia, nada tinha demais, ele próprio a havia experimentado em si mesmo e a dor era perfeitamente suportável. Talvez pensasse diferente se encarregasse um árabe de torturá-lo. Esta experiência, Massu preferiu não tentar.

Os dois generais, que agora confessam com a serenidade dos justos seus assassinatos e torturas, continuam livres como passarinhos nesta França tão desejosa de punir Pinochet e Milosevic. Nenhum dos 53 intelectuais ousou escrever uma linha sequer sobre os massacres e torturas cometidos sob a responsabilidade de Mitterrand. Nenhum grupo de direitos humanos, nenhum tribunal internacional, nenhum juiz Garzón, pede qualquer punição para os torturadores confessos. Que mais não seja, o buraco é mais encima. Empanaria a imagem de um dos mais sagrados ícones da hagiologia gálica contemporânea, o general De Gaulle. General latino-americano, quando mata e tortura, é ditador abominável. General francês, quando faz o mesmo e com mais eficácia, é grande estadista.

Em recente editorial, Jean Daniel, diretor do Nouvel Observateur, não diz um pio sobre Mitterrand. Afirma que o horror estava presente nos dois campos. Esta parece ser a opinião do francês médio. Se os argelinos torturavam, não é lá assim tão horrível torturar de volta. Era a fórmula mais eficaz, senão a única, de combater o terror argelino, que estava matando franceses como moscas. François Mitterrand, fato que ninguém gosta de lembrar, antes de administrar a tortura na Argélia, fora condecorado com a francisque, medalha concedida pelo governo de Vichy, do marechal Pétain, aos colaboradores do nazismo. Mas Mitterrand molhou o dedo na boca, auscultou os ventos da história e tornou-se socialista. Foi absolvido.

Nestes dias, a tortura volta à baila também no Brasil. Com a coragem e lucidez que lhe são próprias, Olavo de Carvalho escreveu, sábado passado, em O Globo, que toda a Humanidade compreende intuitivamente que o torturador, por cruel e asqueroso que seja, é apenas um agressor, ao passo que o terrorista, por belo e idealista que se anuncie, é um homicida por atacado, virtualmente um genocida. As diferenças não param aí. Maus tratos a um prisioneiro podem resultar do súbito impulso de fazer justiça com as próprias mãos, enquanto o ato terrorista supõe premeditação fria, planejamento racional, execução precisa. A tortura admite graus, que vão de um tapa na cara até os requintes de perversidade dos carrascos chineses e norte-coreanos, ao passo que um homicídio não pode ser meio homicídio, um quinto de homicídio, um-dezesseis-avos de homicídio.

Saltaram de todos os lados os eternos defensores do terror, que passaram a acusar Olavo de defender a tortura. Apesar de sua veemente condenação da mesma, expressa com todas as letras. Velha técnica das esquerdas. Quando não se pode negar uma evidência, atribui-se ao interlocutor frases que ele não disse, mas de fácil contestação.

Os senhores que, com tanta ênfase, condenam à tortura no Brasil jamais disseram uma palavra que fosse contra atos de terrorismo. Pelo contrário, defenderam os militantes do terror. Sem ir mais longe, o cardeal Evaristo Arns, que assina o relatório Tortura Nunca Mais, foi um dos primeiros a defender e pedir a libertação dos terroristas que seqüestraram Abílio Diniz. O governo petista gaúcho, tão preocupado em indenizar as vítimas da tortura no Rio Grande do Sul, recebeu com honras de chanceler um representante das FARC, que estão seqüestrando e assassinando à granel na Colômbia.

Nunca ouvi, de líderes sempre tão pressurosos em condenar a tortura, como José Dirceu, José Genoíno, Lula ou Tarso Genro, a mais leve condenação a grupos como as Brigadas Vermelhas, Sendero Luminoso, FARC, IRA ou ETA. Muito menos a Che Guevara, assassino do gatilho fácil, que tentou levar países de três continentes à miséria socialista e só conseguiu contribuir para que Cuba chegasse lá.

Olavo de Carvalho mexeu com os brios dos defensores incondicionais do terror, que hoje ocupam altos cargos no governo e gozam de pensões milionárias. Jamais será perdoado pela Nomenklatura tupiniquim.


 

A Seita que Deu Certo

19/1/2001

 

A primeira peste que a França legou à América Latina foi a sífilis. Depois passou a exportar marxismo, estruturalismo, sartrismo, lacanismo e outras moléstias gálicas. Na fronteira gaúcha, até hoje se chama a sífilis de galiqueira, por influência das prostitutas francesas que a aristocracia rural gaúcha importava para os bordéis de Porto Alegre. Verdade que muitas eram polacas com passagem por Paris, mas para o imaginário porto-alegrense passavam por parisienses. De uma pessoa com sífilis, dizia-se que estava engalicada. Como engalicada está toda a área humanística da universidade brasileira, cujos mestres e doutores adoram papaguear teorias elaboradas au bord'elle, la Seine.

Mas o Brasil reage e manda o elevador de volta. Como não temos maiores produções teóricas, vai religião mesmo. A Igreja Universal do Reino de Deus, criada em 1977 por um apóstolo tupiniquim, o bispo Edir Macedo, já conta com oito milhões de adeptos no mundo. E três mil na França. O bem sucedido bispo, para quem templo é dinheiro, está encontrando obstáculos na terra de Descartes para instalar sua igreja. Pela terceira vez, acaba de ter recusada a permissão para construir um templo na sala de cinema Scala, no 10º arrondissement, da qual é proprietário há mais de ano. O bispo foi barrado por uma célula de vigilância anti-seitas. Aqui em Pindorama, o bispo além de ter televisão goza do prestígio de liderar uma religião. Mas para os franceses a IURD não passa de uma seita pentecostista que promete curas em troca de preces e oferendas.

A igreja do bispo Macedo já tem dois templos em Paris, para escândalo dos franceses: Não é por acaso que os dirigentes desta seita buscam se implantar nos bairros populares — diz um analista do fenômeno sectário —. Pois esses bairros constituem um excelente terreno para seus recrutadores. Mediante moeda sonante, sob a cobertura de sessões coletivas onde seus gurus entram em transe, eles prometem milagres. Como curar a Aids!

Para defender-se de vigaristas místicos, os franceses criaram em 98 uma Missão Interministerial de Luta contra as Seitas (MILS). A França defende-se bem — disse recentemente seu presidente, Alain Vivien. — O sectarismo não avança mais.

Existe na França uma proposta parlamentar da criação do delito de "manipulação mental". Que, evidentemente, não é bem vista pelas autoridades religiosas. Dentro deste espírito, Alain Vivien, que já denunciou como "seita absoluta" a cientologia, preocupa-se também com a infiltração dos movimentos sectários no universo das ONGs, que escapam, em toda legalidade, ao controle dos Estados. E agora está atacando o movimento da antroposofia, doutrina baseada na filosofia do polígrafo austríaco Rudolf Steiner. A nova denúncia de Vivien não está encontrando acolhida nos tribunais, já que as escolas Steiner são centenas no mundo todo e recebem subsídios governamentais na Holanda, Alemanha e países escandinavos. O último relatório da MILS mostra também sua preocupação com a infiltração sectária que começaria a existir na profissão dos psicoterapeutas. Que, só na França, são 15 mil.

O Brasil, que adora importar males gálicos, certamente não manifestará interesse algum em imitar os franceses na salutar criação de uma entidade de prevenção anti-seitas. Muito menos ocorrerá a nossos parlamentares criar a figura do delito de manipulação mental. Imagine então o escândalo nacional, se as autoridades tupiniquins investissem contra as ONGs e os psicoterapeutas! São centenas de milhares. Além de crescerem como cogumelos após a chuva neste país de crédulos, enchem seus bolsos por conta das angústias humanas.

Os franceses, com sua precaução contra vigarices, estão tentando conter os avanços da seita do bispo Macedo. Preocupam-se com manipulação mental. Mas jamais ocorrerá à fille aînée de l'Eglise, que é como o Vaticano chama a França, investir contra a manipulação mental destes senhores que há dois mil anos oram para um deus que não existe e prometem aos pobres de espírito um paraíso também inexistente, além da humana existência.

Pois se o cristianismo pode hoje dar-se ao luxo de administrar até mesmo um Estado, época houve em que foi seita. Tácito, 115 anos depois de Cristo, escreve:

Nero apontou como culpados e castigou com a mais refinada crueldade uma classe de pessoas destacadas por seus vícios, às quais a multidão chamava de cristãos. Este nome vem de Cristo, que havia sofrido a pena de morte sob o reino de Tibério, após ter sido condenado pelo procurador Pôncio Pilatos. Aquela perniciosa superstição havia sido detida, para voltar a eclodir de novo não só na Judéia, mas também na própria capital (ou seja, Roma), na qual haviam confluído e encontrado grande aceitação todos os feitos horríveis e vergonhosos do mundo. Assim, pois, foram presos todos os membros confessos da seita; depois, por suas declarações, provou-se que muitos membros foram culpados, não tanto do delito de incêndio (de Roma), mas por seu ódio à raça humana. E entregaram sua vida em meio ao escárnio: foram cobertos com peles de animais e despedaçados por cães, ou atados a cadáveres e incendiados, como lâmpadas noturnas, quando caía a escuridão.

O cristianismo é seita que deu certo. A Igreja romana e demais igrejas cristãs adquiriram, ao longo dos séculos, prestígio histórico e o direito de manipular mentes à vontade. O bispo Macedo, com a amplitude de visão típica de todo grande vigarista, continua na luta para chegar ao mesmo status.


 

Iurd, Icar e Handyside

26/1/2001

 

Falei, semana passada, do bispo Edir Macedo, este senhor que em vinte e poucos anos criou uma religião com oito milhões de adeptos. Falei dos instrumentos de que se mune a França para combater a nova crença. Um leitor estrila contra a "utilização da palavra seita para as igrejas ou grupos de religiões". Que vá estrilar junto aos franceses. Pessoalmente, não considero seita um movimento com oito milhões de fiéis. Houve ainda quem pensasse que apóio os franceses em sua tentativa de coibir a nova religião. Nada disso. Faço minhas as palavras de Guerra Junqueiro:

Não insulto quem bebe a droga venenosa;

Acuso simplesmente o charlatão que a faz.

Não é por acaso que falo de Junqueiro. De Portugal, um leitor me remete a sites que condenam a obra do bispo brasileiro em terras lusitanas. Este moribundo século XX — diz um dos textos — foi marcado pelo aparecimento de uma série de movimentos religiosos e de seitas sem paralelo na história da Humanidade. Curiosamente, à medida em que se desenvolvem as capacidades do Homem para dar resposta aos desafios com que se vê confrontado, igualmente vão ficando a descoberto as suas fragilidades, designadamente as que o levam a passar ao lado da razão quando se vê confrontado com problemas de difícil resolução. Embora sentindo-se cada vez mais dependente de um mundo materialista, o indivíduo acaba por ser tentado a recorrer ao sobrenatural, sempre que as contrariedades do dia-a-dia o arrastam para estados de angústia e de desespero. Está, assim, aberto o caminho à irracionalidade, que o leva a acreditar em que, com a ajuda dos deuses da fortuna, poderá ser beneficiário de um milagre...

O articulista, ao qual jamais ocorreria taxar como irracional o catolicismo português, condena a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), por suas práticas milagreiras e exorcismos. Parece esquecer que Cristo, além de milagreiro, foi também exorcista. E que Portugal deve boa parte de sua receita turística às três crianças que um dia teriam visto a Virgem. Fátima não é embuste. O pastor Edir Macedo, que pelo menos por enquanto ainda não falou com a Virgem, é.

Todos devem estar lembrados quando, em 1917, a Virgem apareceu em Fátima, na cova de Iria, aos três pastores. O sol, como uma roda de fogo, girou então sobre si mesmo durante dez minutos. Curiosamente, não se constatou efeito algum no clima da Terra destes movimentos anômalos do sol. Claro que, para os devotos de Fátima, isto pouco importa. Tampouco jamais considerariam que sol rodando é manipulação mental.

Abro um parêntese: um amigo, recém-vindo de Lisboa, me conta que um padre desmascarou a aparição a partir de uma análise gramatical dos fatos. Uma das pastoras perguntou à Virgem: Quem sois? Ora, é de espantar que naquela época uma criança camponesa conjugasse assim tão à vontade a segunda pessoa do plural, coisa que hoje muito jornalista sequer conhece. Mas a santa, muito apedeuta, também se trai em seu discurso. Diz a Virgem: eu sou a Nossa Senhora. Como Nossa? Se se dirigia a terceiros, teria de dizer: eu sou a Vossa Senhora.

Volto ao bispo. Condena-se também a Iurd por suas cobranças de dízimos. Mas esta sagrada propina, caríssimos, já está no Levítico: Quanto a todo dízimo do gado e do rebanho, de tudo o que passar debaixo da vara, esse dízimo será santo ao Senhor. E quem recolhe o dízimo? O sacerdote, é claro, que o Senhor não tempo nem mãos para tais mixarias seculares.

Aliás, a própria França que investe contra a Iurd, também investe firme no mercado sobrenatural. Lourdes rende anualmente milhões de francos à Icar (assim chamam os portugueses a Igreja Católica Apostólica Romana) e uma substancial parte das divisas turísticas do país. Claro que jamais passaria pela cabeça de Alain Vivien, o ativo presidente da Missão Interministerial de Luta contra as Seitas, condenar como manipulação mental o rentável comércio místico de Lourdes. Como tampouco o da última virgem que ousou mostrar as caras neste final de século, a de Medgorje, na ex-Iugoslávia.

Quando os autoproclamados bispos e pastores da intitulada Igreja Universal do Reino de Deus partiram de terras de Vera Cruz à descoberta do caminho para a Ocidental Praia Lusitana — diz o texto português — , a primeira sensação que devem ter tido, ao arribarem ao seu porto seguro, foi a de que encontraram um paraíso com portas abertas para o céu.

Não terá sido diferente a sensação dos descobridores quando partiram da Ocidental Praia Lusitana e chegaram a Vera Cruz, vendendo o deus de Roma a tribos ágrafas. Os lusos são inclusive tímidos em suas invectivas ao bispo Edir e parecem esquecer o metro furioso de Guerra Junqueiro, quando xingava o vice-deus católico:

Quem é o Papa? Um Deus inventado à socapa,

Um Deus para fazer o qual bastam apenas

Quatro coisas: cardeal, papel, tinteiro e penas.

Tampouco Jeová era poupado, para alegria de meus dias de guri:

Espalhou pelo mundo lívidos terrores,

Inventou Satanás; do amor fez um pecado...

Malditos sejais vós, ó bíblicos doutores!

Maldito sejas tu, ó velho deus castrado!

Reclamações, favor encaminhá-las ao poeta de Freixo-de-Espada-à-Cinta. Sempre que comento temas religiosos, não faltam meigos corações de pomba mansa a protestar, alegando que firo íntimas convicções dos leitores. Ora, estou apenas exercitando faculdade reconhecida pela Corte Européia de Direitos do Homem. Que, no acórdão dito Handyside, de 1976, declara:

A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática.

Amém?


 

Civilização e Mcdonald's

1/2/2001

 

Quando vim pela primeira vez a São Paulo, um editor convidou-me para uma cerveja em uma lanchonete. Pela cerveja, agradeci. Mas não em lanchonete, adverti. Entendi, disse o editor, você tem hábitos europeus.

Nada disso. Meus hábitos eram gaúchos. As lanchonetes recém começavam a dominar a paisagem porto-alegrense e ainda não haviam contaminado a restauração no Brasil. Eu as via como uma espécie de baias, onde os ruminantes urbanos enfiavam a cabeça no bornal e mastigavam rápido e em silêncio sua triste ração. Por sempre ter abominado as lanchonetes, também abomino essa excrescência ianque, os Mcdonald's.

Não freqüento pessoas que freqüentam tais ambientes. Certa vez, perguntei a uma colega de magistério que voltava de Madri quais restaurantes visitara. Ah, me disse a moça, lá eu só comia em Mcdonald's. Risquei a fulana de minha agenda. Não consigo privar com alguém que vai à Espanha, de cozinha tão generosa, e envereda pelos bretes da fast food. Daí a invadir e depredar Mcdonald's, vai uma longa distância.

Em verdade, já comi em tais cocheiras. Fora surpreendido na avenida Paulista por um destes torós costumeiros do verão paulistano e me abriguei sob a marquise de um Mc. Mas as águas insistiam em subir e cercar-me. O homem é o homem e suas circunstâncias, dizia Ortega y Gasset. Entre ficar com água pela canela e ferir meus princípios, preferi entrar. Acabei pedindo um sanduíche qualquer e um suco de laranja, naqueles horrendos copos de plástico. Pequei, confesso, contra a civilização. Mas é preciso que um temporal me pegue de jeito para que eu entre em tais antros.

O encontro franco-petista em Porto Alegre, dito Fórum Social Mundial — modestamente autointitulado anti-Davos — me lembra em muito o Unabomber, o terrorista americano que enviava bombas a pessoas ligadas à tecnologia. Para parar, exigia a publicação de um manifesto antitecnologia... na primeira página de jornais editados com tecnologia de ponta. As ressentidas viúvas do socialismo reunidas em Porto Alegre manifestam-se contra a globalização... através dos instrumentos por excelência da globalização: teleconferências via satélite, imprensa informatizada, Internet. Uma das vedetes do festival de utópicos tardios é o francês José Bové, que do dia para a noite virou ícone da mídia internacional por ter saqueado um Mcdonald's no sul da França.

Não defendo depredações. Mas protestar contra tais biroscas na França não deixa de ter sentido. O fast food é a antípoda da lenta restauração francesa, de pratos regionais, ancestral e sofisticada. Os Mcdonald's, à medida que começam a ocupar esquinas prestigiosas, constituem uma ameaça àquela gastronomia que faz o renome da França. Ameaça pouco preocupante, é verdade, pois só uma besta irracional é capaz de trocar um daqueles restaurantes aconchegantes, nos quais dá vontade de sentar e não mais levantar, pelo ambiente clean e frio desses refeitórios luteranos onde não se bebe vinho nem cerveja. E quando se bebe algo, é em copos de plástico.

Em Nova York, depois de anos de bom convívio com a cerveja, quase virei abstêmio. Nos botecos em que entrava, as bebidas eram servidas em copos de plástico. E tinham ainda o desplante de chamar aquilo de glass. Beber, sim. Mas com dignidade. Saí a percorrer a cidade, marcando no mapa os bares onde os copos eram de fato glass. A beber em plástico, prefiro a abstinência. Em francês, copo é verre, que também quer dizer vidro. Mas já começam a surgir, por influência ianque, os de plástico. Verre en plastique, dizem os franceses. Pior ainda, são as flûtes à champagne de plástico. Você já imaginou degustar um Laurent-Perrier numa flûte plástica? De fato, a globalização é perversa.

Em meus dias de universidade, a representação do mal era a Coca ou Pepsi. Hoje, com os contestadores e seus rebentos entupidos de xaropes ianques, melhor esquecer o antigo símbolo. Contesta-se os Mcdonald's. Bové, cachimbador inveterado, ao posar destruindo uma lavoura experimental de transgênicos, me lembra um ecologista com automóvel. Curiosa lógica: todos os carros do mundo são poluentes, menos o meu. Se o tabaco mata, os transgênicos até hoje não mataram ninguém. Mas Bové jamais dirá qualquer coisa contra o tabaco. Seria negar seu cachimbo. Tampouco iria destruir as lavouras de fumo do Rio Grande do Sul. O tabagismo é a mais bem sucedida herança indígena que nos foi legada, e não é politicamente correto denunciar práticas ancestrais dos bugres. Mesmo que sejam mortíferas.

No antigo Império do Mal, as multidões que antes faziam fila para ver a múmia de Lênin, agora se apinham frente aos Mcdonald's. Em São Petersburgo, onde os Mc's já constam como pontos de referência nos mapas turísticos, junto a eles encontrei filas só comparáveis às do Hermitage. Na Rússia, os sobreviventes do stalinismo disputam no braço os hambúrgueres ianques com sabor de plástico. Em Porto Alegre, os neostalinistas picham os Mc's.

Na Folha de São Paulo, vejo o outdoor de um Mcdonald's sobre o qual manifestantes escrevem: isso é merda. Ora, merda por merda, os Mc's são mais higiênicos e confortáveis que milhares de lanchonetes Brasil afora. Ao ver a invasão dos Mc's em Paris, penso: os bárbaros estão chegando. Mas se chegasse em uma villaya na Argélia e visse aquele M divino, diria: enfin, civilisation.

Os franceses legaram ao mundo o conceito de sabotagem. A palavra data de 1880 e vem de sabot (tamanco). Temendo o desemprego, os luditas da época jogavam tamancos nas poleias das recém-surgidas máquinas agrícolas. Honrando a boa tradição gálica e gozando da impunidade que a mídia lhe confere, o neoludita Bové se encarniçou em sabotar uma pesquisa agrícola no país anfitrião. Mereceu os aplausos histéricos das viúvas reunidas em Porto Alegre, que adorariam voltar aos tempos de Galileu, quando ciência era pecado. Como disse alguém, estas são as esquerdas que a direita pediu a Deus.


 

Anistia fabrica Neonazistas

9/2/2001

 

Comentei, há semanas, a facilidade com que a imprensa fabrica racismo. Já contei o caso de um "neonazista' que, segundo a imprensa, andava pichando centros nordestinos. Descobriu-se mais tarde que o neonazista em questão era nordestino e os jornais abandonaram o assunto: nordestino não pode ser neonazista. Confunde o leitor. Ano passado, tivemos um exemplo lapidar de como esta fábrica produz. Me restrinjo às notícias de um só jornal. No dia 06 de setembro, a Folha de São Paulo mancheteava:

ANISTIA SOFRE NOVO ATENTADO A BOMBA EM SP

Uma bomba de fabricação caseira foi entregue pelo correio na casa de um funcionário da Anistia Internacional em São Paulo. O alvo era o apartamento do professor de educação física José Eduardo Bernardes da Silva, 40, militante da entidade e que vinha recebendo ameaças pelo telefone. É o segundo atentado em menos de um ano contra a Anistia no Estado, que fechou sua sede na capital, em março passado, em razão de sucessivos incidentes com grupos neonazistas.

Neonazis atentam contra um funcionário da Anistia. Se em países desenvolvidos há neonazistas, o Brasil tem de ter os seus. Se não existe, se fabrica. Ainda segundo a Folha, Bernardes da Silva, professor de educação física com mais de 130 quilos de massa, é o mesmo funcionário que encontrara, em setembro de 99, uma bomba de fabricação caseira no escritório da Anistia em São Paulo. Na época, a entidade recebera uma carta com a foto de um travesti nu com a mensagem: Vocês defendem homossexuais e negros, nós os matamos. Vocês são nossos inimigos. Morte a vocês.

O jornal registra depoimento do rabino Henry Sobel: "A covardia demonstrada pelo remetente que se manteve anônimo, e se escondeu indicando um endereço fictício, é tão deplorável quanto o ódio e o preconceito que motivaram o ato".

No dia seguinte, lemos que a Justiça Global Ação e Capacitação em Direitos Humanos irá levar o caso das ameaças à ONU. Em Londres, a Anistia Internacional anuncia que há quase um ano a polícia de São Paulo sabe das ameaças contra Bernardes da Silva, mas não resolveram o problema.

Uma outra carta de ameaça foi entregue no escritório da Anistia em Porto Alegre, onde Silva refugiou-se, depois de ser ameaçado em São Paulo. Poucas pessoas sabiam de sua transferência, uma tentativa de escapar da perseguição dos neonazistas. Vemos então que os neonazistas têm uma organização de âmbito nacional, muito bem informada, que persegue suas vítimas onde quer que elas se escondam.

Ainda no dia 07, os neonazis continuam agindo. Diz a Folha:

GRUPO GAY RECEBE PACOTE-BOMBA EM SP

O artefato, similar ao enviado dois dias antes à Anistia, poderia matar; diz o jornal. Bernardes da Silva, que diz ter escapado de três emboscadas nos últimos doze meses, descreve os agressores: bem arianos, pele e olhos claros, andam em carros bons e têm conhecimento de tecnologia.

Fazem as ameaças por telefone e desligam antes de o número de origem ser rastreado. O grupo que faz ameaças por telefone também fala inglês, alemão e francês, além do português. Eles afirmam que têm ligações internacionais muito fortes e que, aqui no Brasil, têm gente muito poderosa que os patrocina, afirmou Silva.

Os neonazistas são poliglotas e falam línguas européias. Sob o título "Ameaças Covardes", a Folha faz incisivo editorial contra o perigo neonazista:

Não poderia ser mais trágica a aplicação da tese das idéias fora de lugar a que tem sido levada a termo por autoproclamados grupos neonazistas na cidade de São Paulo. Anteontem, José Eduardo Bernardes da Silva, da Anistia Internacional, recebeu em sua casa uma carta-bomba, que só não lhe causou danos porque, calejado por outras ameaças inclusive de mesmo porte, Silva teve o cuidado de não destampar o pacote e de chamar a polícia.

O professor de educação física manifesta medo: Eu ando nas ruas olhando para os lados, não faço o mesmo caminho para chegar em casa, evito freqüentar os mesmos lugares e sair com minha família. O medo me faz ser mais cauteloso.

Dia 09 de setembro, o atentado assume proporções internacionais:

ANISTIA FAZ CAMPANHA MUNDIAL CONTRA ATENTADOS DE SKINHEADS EM SÃO PAULO

A Anistia Internacional deu início ontem a uma campanha mundial contra os atentados de grupos que se autodenominam skinheads em São Paulo. Um comunicado do secretariado da entidade, em Londres, foi enviado às sedes nacionais da Anistia, espalhadas pelo mundo, onde as mensagens serão traduzidas e redistribuídas.

Dia 10, a Folha faz uma sinopse sobre

A ESCALADA DO RACISMO

Ainda no mesmo dia:

PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO, CRIMES DE GRUPOS NEONAZISTAS ERAM TRATADOS DE FORMA BUROCRÁTICA

O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, da USP, é taxativo: as duas bombas deveriam ser interpretadas como atentados à democracia. A Alemanha só conseguiu desbaratar os grupos neonazistas nos últimos dez anos quando começou a ter uma coordenação nacional. Enquanto cada Estado agia por conta, foi um fracasso.

Dia 15, a aposta aumenta:

ENTIDADES VÃO À ONU CONTRA ATENTADOS

Nove entidades de defesa dos direitos humanos e de minorias encaminharam ontem um documento a Asma Jahangir, relatora especial da ONU (Organização das Nações Unidas), pedindo que a entidade pressione o governo brasileiro a esclarecer os atentados a bomba em São Paulo.

Para fugir aos atentados neonazis, o professor Bernardes da Silva refugiou-se na Espanha. Desde então, os movimentos negros ou gays não receberam mais bombas.

Fevereiro de 2001: a caligrafia de Bernardes da Silva bate com a dos bilhetes enviados para entidades de direitos humanos na primeira semana de setembro. O professor, funcionário da Anistia, é indiciado pelos atentados ocorridos no ano passado.


 

Rãs em Fogo Lento

16/2/2001

 

Morreu o Valdir. Não procurem sua morte nos jornais. A imprensa reserva suas primeiras páginas para cadáveres ilustres, tipo ditadores, serial killers ou grandes vigaristas. Valdir não oprimiu ninguém, não matou ninguém, não enganou multidões. Não mereceu nem mesmo algumas linhas em páginas internas. Sua morte, domingo passado, não tem a repercussão da morte, por exemplo, de um só soldado de Israel, que sempre faz manchete na imprensa nacional, mesmo que nada tenhamos a ver com Israel. Valdir ficará no rol anônimo e esquecido dos cinqüenta assassinados a cada fim-de-semana em São Paulo. Os jornais estão mais preocupados com a agonia de um filhinho de papai irresponsável, que matou a própria mulher em exibicionismos acrobáticos com uma avioneta importada. Os fãs que me perdoem, não é nada pessoal. Mas sempre pensei que a morte de um roqueiro fizesse com que o nível médio de inteligência humana subisse vários pontos.

Valdir era um dos homens de minha vida. Por homens de minha vida entendo os garçons, estes misteriosos personagens com quem, há décadas, converso diariamente. Que estão eternamente à minha espera, sempre prestimosos e de bandeja em punho, em todas as cidades de qualquer país do Ocidente. Dizer que Valdir morreu não corresponde bem aos fatos. Foi assassinado, enquanto jantava num balcão de lanchonete. Um vagabundo, desses que os senhores defensores dos direitos humanos chamam eufemisticamente de excluídos, perseguia a tiros outro vagabundo, que se escondeu no banheiro da lanchonete... e sobrou uma bala para a cabeça do Valdir. Caiu de cara sobre o prato em que comia, segundo testemunhas.

Nesta semana, passou a faltar alguém em minha vida, aquela figura afável e de olhar cansado, que sempre me brindava com um simpático vai um chorinho, Dr.? As cinqüenta mortes semanais na periferia jamais me tocaram, como não tocam às pessoas que me cercam. São rostos desconhecidos, de pessoas desconhecidas, que não temos razões para lamentar. Agora, a Indesejada das Gentes passou por perto. Mas a vida continua e o bar também. Melhor conclamar outro emérito freqüentador de bares, Pessoa:

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!

Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Sem ti, tudo correrá sem ti.

São Paulo está com medo, dizia há dois anos uma pesquisa do Estado de São Paulo. Na rua, no carro, num restaurante, num bar ou mesmo em casa, não há lugar estritamente seguro. Na maior cidade do país, mata-se por um relógio barato, por portar pouco dinheiro. Ou por nada, como foi o caso de meu garçom. O pai de família isola-se em casa. As crianças brincam em condomínios e desconhecem o lado exterior. Pessoas freqüentam bares protegidos por grades. Lá fora, do outro lado das grades, livres como passarinhos, circulam os assassinos.

Um diretor de teatro tenta explicar a falta de público para suas peças. Segundo ele, que fizera carreira xingando a ditadura, era o medo que afastava os paulistanos do teatro. Não propriamente o medo de ir até o teatro, saliente-se. Mas o medo de ver retratada nas peças a violência da cidade. Para supor que os paulistanos precisem ir ao teatro para tomar contato com a violência, o renomado teatrólogo deve viver em alguma torre de marfim pairando acima da Paulicéia, de onde só sai para encenar suas peças sobre a violência que vê lá do alto.

Vejamos alguns dados sobre o medo em São Paulo. 55% das pessoas têm medo de serem atropeladas e 24% de andar a pé, à noite. 65% têm medo de dar carona e 47% de pedi-la. 60% têm medo de serem assaltadas ao chegar em casa e 69% de ficarem doentes sem ter dinheiro para as despesas. 37% têm medo de falar com estranhos na rua. Seis em cada dez pessoas têm medo de serem assaltadas, e sete em dez, de serem presas pela polícia. O sentimento de medo é tão genérico que 79% têm medo de cobras, réptil que só conhecem através de cinema, TV ou Instituto Butantã.

Medos de hoje, de 2001? Nada disso. Propositadamente, misturei as pesquisas. O suplemento sobre o medo saiu nas bancas em abril de 1999. Os percentuais que transcrevo, são de uma outra pesquisa, feita pelo Instituto Gallup, em 1975. Como medo não é sentimento que se instale do dia para a noite, podemos concluir que São Paulo vive imersa no medo há mais de quarto de século. Na época, os jornais mancheteavam: "A Capital do Medo". Este título vem sendo repetido década após década, como se cada geração de jornalistas, sem ter lido a imprensa anterior, estivesse descobrindo a América.

Mas os homens de imprensa, por questão de ofício, têm de "esquentar a matéria". O paulistano sente, de fato, medo? Apesar das pesquisas, eu diria que não. O ser humano se adapta a tudo, até mesmo ao medo. Quando o medo passa a ser companheiro de mesa, não é mais medo, mas companheiro de mesa. Volto ao bar. Comentários contristados sobre a morte de Valdir. Absurdo, é a palavra em todas as bocas. Mas a vida é maior que a vida do garçom. Logo o assunto se desvia para dissabores com o condomínio, burocracia de bancos e as mancadas da Marta. O assassinato foi esconjurado. Valdir ainda será tema de discussão na semana e aos poucos sua imagem irá sumindo, restando apenas como patrimônio da memória dos habitués.

Descansa: pouco te chorarão...

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco.

Há primeiro em todos um alívio

Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...

Depois a conversa aligeira-se cotidianamente,

E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Que mais não seja, a morte tornou-se banal na capital do medo. Consta que uma rã, se for jogada numa panela de água fervente, mal toca a água pula fora. Mas se estiver na panela e a água for esquentando aos poucos, acaba sendo cozida sem dar-se conta. Se o leitor acha que, freqüentadores do bar do Valdir, sentimos algum medo com a proximidade da morte, engana-se. Cidadãos da Paulicéia, há muito estamos fritos.


 

Antropólogo pode

23/2/2001

 

O Politicamente Correto, versão hodierna do stalinismo, gerado nas universidades ianques, chegou — quem diria? — ao próprio carnaval. No irreverente Rio de Janeiro, a escola Unidos do Viradouro decidiu excluir do desfile a 20ª ala, com a fantasia "Índio, o bicho preguiça". José Carlos Monassa, presidente da escola, teme a reação das entidades indígenas contra o enredo "Os sete pecados capitais", que associa o índio à preguiça. A Ala do Arranco traria a fantasia de um índio com uma preguiça no colo. A Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) ameaçam levar a escola à Justiça.

Ora, se é crime associar índio à preguiça, vamos então proibir já Macunaíma. O "herói de nossa gente", que nasceu no fundo da mata virgem, era uma criança feia parida pela índia tapanhumas.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis meses não falando. Si o incitavam a falar, exclamava:

— Ai que preguiça!...

e não dizia mais nada.

Para Mário de Andrade, preguiça é a virtude básica, brasileira e nativa, do filho da mata virgem, em oposição ao dinamismo branco e europeu de Venceslau Pietro Pietra. Macunaíma, por obra e graça uspianas, tornou-se um clássico nacional e hoje é enfiado goela abaixo de todo estudante que presta vestibular. Pensarão a Funai e o Cimi ameaçar na Justiça a universidade brasileira, por mostrar o índio como preguiçoso, em obras de consumo forçado? Duvido.

Das cem pessoas previstas para integrar a ala, quarenta já tinham comprado a fantasia, mas ninguém terá prejuízo. Mais cinqüenta vagas foram acrescidas às duas outras alas do setor da preguiça, nas quais virão representados dorminhocos e malandros. Quem já pagou será remanejado e a Ala do Arranco será indenizada pela escola em R$ 200 por fantasia.

Segundo Monassa, em nenhum outro pecado seria prudente incluir a ala de índios. Índio não pode ser associado a pecado algum. O único setor para onde a ala poderia ser transferida seria o último, que traz a Viradouro e o carnaval como a redenção dos pecados. À salvação da humanidade, índio pode ser associado.

Poder-se-ia, por exemplo, homenagear "o homem que pode salvar a humanidade", aposto que a imprensa americana atribuiu ao caiapó Paiakan. Verdade que estuprou barbaramente uma menina. Mas, multiculturalismo oblige, temos de respeitar as tradições imemoriais das civilizações primitivas. Este tipo de herói, forte e lúbrico, já teve quem o cantasse no Brasil. Todos conhecemos o casto romance Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, outro livro obrigatório nos currículos escolares. Mas o autor também escreveu O Elixir do Pajé, pouco recomendável a alminhas mais delicadas. Um velho pajé, já impotente, encontra um elixir maravilhoso e retorna a sua faina.

Se acaso ecoando / na mata sombria, / medonho se ouvia / o som do boré, / dizendo: — "Guerreiros, / ó vinde ligeiros, / que à guerra voz chama / feroz aimoré", /— assim respondia o velho pajé, brandindo o caralho, batendo co'o pé:

— "Mas neste trabalho, / dizei, minha gente, / quem é mais valente, / mais forte quem é? / Quem vibra o marzapo / com mais valentia? / Quem conas enfia / com tanta destreza? / Quem fura cabaços / com mais gentileza?"

E ao som das inúbias, / ao som do boré, / na taba ou na brenha, / deitado ou de pé, / no macho ou na fêmea, / fodia o pajé.

E por aí vai, nas pegadas de O Canto do Guerreiro, de Gonçalves Dias. Paulinho Paiakan avant la lettre. Mas suponho que os carnavalescos do Rio, sempre tão preocupados na adaptação de clássicos a seus enredos, nada vão querer com esta bela sátira à poesia indianista, ecos em Pindorama da ópera L'Elisir d'Amore, de Gaetano Donizetti. Se você quiser ler esta obra prima, passe em www.eBooksBrasil.org, procure no catálogo e faça download. É um dos bons momentos da literatura nacional, ciosamente escondido dos universitários pelos donos da cultura tupiniquim.

Por falar em índios, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Marcos Rolim, apresentou semana passada um relatório sobre suposto aliciamento sexual de índias por militares dos pelotões do Exército instalados na reserva dos também supostos ianomâmis, em Roraima. Soldados teriam tido relações sexuais com várias índias, com o devido consentimento delas, conforme atesta o relatório do deputado. Algumas teriam recebido presentinhos em troca de seus favores. Onde o crime? Mesmo que os ditos presentes configurassem uma vaga prostituição, prostituição não é crime em nosso código penal.

Coitados dos pracinhas. Como não gozam da mesma reputação de ilustres antropólogos, arriscam a ser punidos pela satisfação de seus humanos desejos. Sinto-me obrigado a repetir declarações que já publiquei nesta coluna, feitas por Darcy Ribeiro:

Hoje em dia é que as moças começaram a dar para os índios, as antropólogas dão para os índios, gostam de transar com eles, para fazer intimidades. Tão dando mesmo, dão para eles também. Coitado, índio também é gente. Então, dão. E como elas dão, os homens também começaram a comer as índias, antropólogos da nova geração.

Isso, para nós, sempre foi tabu e por uma razão muito séria, se você come uma índia é evidente que vocês têm uma relação de pessoas fudíveis e ela passa a ser sua mulher, o irmão dela passa a ser seu cunhado, o pai dela passa a ser seu sogro, o primo dela passa a ser seu primo e você passa a ter obrigações. Você fica obrigado a servir àquele povo e fica limitado. Eu passei meses com os índios, arranjava um jeito de ter uma. Por exemplo, eu não comia as índias Urubu-Kaapor porque eu estava trabalhando com os Kaapor, mas comia índia Tembé, que eram umas índias decadentes que havia lá.

Antropólogo pode. Pracinha, não. Que teria a dizer o deputado Rolim sobre estas confissões do falecido senador?


 

Apocalipse up to date

2/3/2001

 

O leitor já deve ter visto pastores pregando nas ruas. Se prestar atenção, verá o que o livro predileto do pastor não é o Gênesis ou o Cântico dos Cânticos, mas o livro de João de Patmos. O apocalipse é a arma por excelência dos profetas. O medo é mais pedagógico que a esperança. Melhor atemorizar gentes com o fim do mundo e fogo eterno que convidá-las a participar da Parusia. O cristianismo, religião de fracos e ressentidos, só podia ser coroado por uma destruição final. Mas atenção: o apocalipse não pode ter data próxima, sob risco de desmoralizar o profeta. Se o profeta marcou data, a única maneira de não passar por fraudulento é organizar seu apocalipse particular, vide Jim Jones e seu massacre na Guiana, ou a seita de David Koresh em Waco, Texas.

Um dos mais belos estudos que já li sobre o assunto é Apocalypse, de D. H. Lawrence, aquele mesmo que o leitor deve estar pensando, o autor de O Amante de Lady Chaterley. Para Lawrence, o Apocalipse, apesar de nada ter a ver com o Cristo real, revela-se o livro mais eficaz da Bíblia e sempre exerceu, sobre pessoas de segunda classe, uma influência maior que todos os outros livros sagrados. É em si mesmo a obra de um espírito de segunda classe. Ele seduz intensamente todos os espíritos de segunda classe, de todos os países, de todos os séculos.

Lawrence vê no apocalipse um desejo frustrado de poder absoluto. O filho do Homem vem à terra para trazer um novo e terrível poder, maior que o de qualquer Pompeu, Alexandre ou César. Quando seu louvor é celebrado, o Hino ao Filho do Homem, é para imputar-lhe o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e a graça — todos os atributos dos grandes reis e faraós da Terra, mas que não convém a um Jesus crucificado.

Apesar de seus substratos pagãos, o texto final do livro traduz todo o ódio cristão a uma Roma triunfante, a prostituta magnífica que tem na mão uma taça de ouro cheia do vinho do prazer dos sentidos. Como os autores gostariam de beber nesta taça! Não o podendo, como gostariam de quebrá-la! A Babilônia maldita é Roma, o último grande império do mundo. Pela primeira vez nos textos bíblicos, o Filho do Homem surge montado em um cavalo, arma de guerra romana. Não vem para salvar, mas para embeber-se no sangue dos inimigos. No texto de João, Lawrence vê um desejo frenético não só de fim de mundo, mas de toda humanidade junto. É o livro das massas medíocres. E ressentidas, acrescentaria eu.

Mais que filosofia, o marxismo foi religião. Deus foi substituído pela história, a nova Parusia é o advento da sociedade comunista e o Cristo crucificado é o proletariado. Camus, que falava do messianismo científico de Marx, escreveu que o movimento revolucionário, no final do século XIX e no começo do XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário. Em seus Carnets, será incisivo: O comunismo é uma continuidade lógica do cristianismo. É uma história de cristãos.

Mal os russos haviam decretado oficialmente o fim do teísmo, logo surgiu na Rússia o movimento Construtores de Deus. Foi fundado por Maxim Gorki e Lunatcharski, que propuseram um novo Pai Nosso: Proletariado nosso que estás na terra, bendito seja teu nome, seja feita tua vontade, venha a nós o teu poder. Em A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, Gorki mostra um militante que diz aos operários em cortejo: nossa procissão agora marcha em nome de um deus novo. Em uma novela de 1908, A Confissão, o incipiente deus já ensaia seus poderes: à passagem de uma manifestação de operários, um paralítico deitado em uma maca se levanta e anda.

Como toda religião que se preza, os joões de patmos marxistas também brandiam seus apocalipses. No plano nacional, a guerra civil. Se você tem 50 anos, já deve ter cansado de ouvir de um comunista, quando uma eleição contrariava o "sentido da História": vai ser guerra civil. No plano internacional, a catástrofe nuclear. Se os povos não seguissem os ditames do novo Salvador alemão, a humanidade seria consumida no fogo atômico. E por décadas vivemos sob a sombra da guerra nuclear.

A nova religião teve vida curta. Sobreviventes deste século que passou, somos os observadores privilegiados de um grande momento histórico, a morte de uma religião. Mas um deus não morre assim de repente, do dia para a noite. Nietzsche já nos alertava sobre o quanto fede o cadáver de um deus morto.

Morto o marxismo, os antigos crentes precisavam de um ersatz. Que foi prontamente encontrado nos movimentos ecológicos. Aos quais também não havia de faltar um bom apocalipse. Assim, seguindo o exemplo de Gorki e Lunacharski, modestamente proponho um novo Credo aos ressentidos profetas de segunda classe da nova crença. Le voilá:

Creio no Efeito Estufa todo-poderoso, destruidor do céu e da terra, e no Aquecimento Global, seu único filho nosso Provedor, que foi concebido pelo poder do Santo Espírito Ecológico; nasceu da globalização, padeceu sob o poder dos Estados Unidos, foi imposto nas universidades e na mídia entronizado; desceu às gráficas, subiu às antenas televisivas; está sentado à direita do Efeito Estufa todo-poderoso, donde há de vir a julgar os jornalistas cépticos. Creio firmemente na ONU, na influência dos CFC na redução da camada de ozônio, no derretimento de geleiras e calotas polares, na extinção de espécies animais e vegetais, na desertificação de terras aráveis, na destruição dos recifes de coral, na submersão de países do Caribe do Pacífico, nas enchentes, fomes e epidemias, na crise no abastecimento de água potável, na diminuição da irrigação das lavouras e no colapso na geração de energia elétrica. Creio também na Santa Madre Gaia, na remissão da dívida externa, na ressurreição dos dinossauros, na comunhão das verbas estatais, nas isenções fiscais, viagens internacionais e eternas mordomias.

Per omnia saecula saeculorum. Amen.


 

O Francês e o Futuro

9/3/2001

 

Em Porto Alegre, conheci um cinegrafista que resolveu mudar-se de mala e cuia para os States. Queria conforto profissional, salário digno e um futuro à vista. Foi cair em Utah, se bem me lembro. Como só acontece nessas aventuras, não encontrou trabalho em sua área. Com muita sorte, conseguiu empregar-se como coletor de lixo hospitalar, ofício sem maiores relações com quem um dia se propôs a enfrentar o mundo com uma câmera na mão. Sonhava talvez ombrear com Francis Coppola ou Sam Peckinpah. Para não passar fome, teve de transportar tripas, fetos e cânceres.

Mas os deuses do Acaso por ele nutriam simpatia. Um belo dia, faltou cinegrafista para filmar uma cirurgia. Isso eu posso fazer, disse o gaúcho aos médicos. Como pode? Você não é lixeiro? Sim, era. Mas antes de ser lixeiro fora cinegrafista. Empunhou a câmera e, para espanto de seus interlocutores, deu conta do recado. Foi promovido a cinegrafista.

Ganhando melhor do que quando lixeiro, pensou em morar melhor. Quando sua mulher encantou-se com um sobradão de esquina, tratou logo de dissuadi-la, isso não é para nosso bico. Ora, perguntar pelo preço não custa nada, alegou a cara-metade. Perguntaram e... surpresa: tinham condições de comprar a casa. Compraram. Mais tarde, no inverno, souberam porque tiveram condições de comprá-la. Sendo de esquina, a neve caía pelos dois lados. E ai deles se não a limpassem. Um acidente qualquer com um transeunte poderia levá-los à falência do dia para a noite. Paraíso tem dessas coisas.

Mesmo tendo de enfiar a pá na neve todo santo dia de inverno, o gaúcho transportou o resto de sua família para os States. Trabalhando como prosaico cinegrafista de hospital, conseguira comprar uma mansão que cineasta brasileiro só consegue as custas do contribuinte e com muito pistolão em Brasília. Na semana passada, soube que este gaúcho já morreu. Deve ter morrido feliz. Em terra estranha, sem lenço nem documento, conquistou para os seus um futuro decente. Um futuro com o qual jamais poderia contar neste Brasil que o viu nascer. Muito menos em Porto Alegre, onde fazer cinema é ofício de quem tem vocação para mártir.

Uma das coisas que invejo, em minhas incursões pela Europa, é o futuro de seus cidadãos. Você pode penetrar no fundo de um fiorde na Noruega, naquelas aldeiazinhas de vinte ou trinta habitantes, isolados do mundo pelo mar e montanha hostis. Qualquer criança que ali viva, filha de um pastor de ovelhas ou dono de uma pequena estalagem, tem seu futuro garantido. Faça chuva ou faça sol — que só faz de vez em quando — de manhã cedo um ônibus à leva a uma escola no litoral. O mesmo vale para um menino samer na Lapônia, para um suíço isolado nalgum cantão dos Alpes, ou para o filho de um habitante da periferia de Paris. Na hora da competição, é claro, alguns atributos de souche vão pesar decisivamente na balança. As novas gerações européias tampouco poderão almejar, na aposentadoria, o conforto que tiveram seus avós, filhos do baby boom. Mas o futuro está assegurado.

Quem migra está abandonando um presente em busca de um futuro. Que o digam os magrebinos que morrem em pateras tentando atravessar o estreito de Gibraltar em busca de dias melhores na Espanha. Ou os hindus que morrem sufocados em furgões tentando chegar à Inglaterra. Ou os tantos brasileiros que são barrados nas fronteiras americanas ou européias. O imigrante, armado com seu pênis, tentará procriar no novo país, de preferência com uma nacional, para garantir progênie e direito a um futuro melhor.

Por estas e outras razões, muito me espanta ler no Estadão as declarações de Sebastien Pelletier, turista francês em vilegiatura no Rio, neste passado carnaval. Opinando sobre o Brasil, disse o rapaz: Aqui você tem todas as cores, raças. As pessoas gostam de viver o momento de forma prazerosa, não ficam pensando em futuro.

As viagens ilustram, disse alguém. Mas por mais voltas que dêem no planetinha, há quem não aprenda nada. Sebastien toma a parte pelo todo. Chegou no Rio e deita verbo sobre o Brasil. Aliás, nem no Rio esteve. Terá passado apenas por Ipanema ou Leblon. Chegou no carnaval, quando os foliões não pensam nem mesmo na manhã seguinte. E já ousa definir o brasileiro como alguém que não pensa no futuro. Logo o brasileiro, cuja angústia mais premente seja talvez a ausência de qualquer perspectiva de um futuro decente.

Uma de minhas primeiras descobertas na França foi este luxo europeu, a agenda. Ao entrar em contato com um professor, ele puxava do bolso sua agenda e marcava rendez-vous comigo num dia e hora precisos... do ano seguinte. Sua vida toda estava agendada, vários anos à frente. Tinha uma palestra na Iugoslávia dali a dois anos, um congresso na Tchecoslováquia três anos depois, uma viagem a Berlim ano que vem, etc. Sua agenda, em verdade, era mais duradoura que os próprios países. A Iugoslávia desmembrou-se, muitos iugoslavos agora são, quem diria, croatas, eslovenos ou macedônios. A Tchecoslováquia também, seus cidadãos hoje são ou tchecos ou eslovacos. Berlim unificou-se, os orientais já não são mais orientais, mas simplesmente berlinenses. Problema dos iugoslavos, tchecos e berlinenses. Em sua agenda de francês, cidadão para o qual nada mais certo que o futuro, os compromissos de meu professor continuavam vigendo.

Escutei o murmúrio dos povos e era como o rumor do mar, diz Isaías. Um tumulto de nações como o das águas impetuosas invade a Europa em busca de futuro e vem um europeu nos dizer que gosta deste Brasil — onde o futuro para muita gente não vai além da semana que vem — porque aqui ninguém fica pensando no futuro.

Que um francês diga bobagens, nada de surpreender. Em minhas viagens, aprendi que a estupidez é universal. Mas a imprensa nacional não precisava fazer eco desse besteirol.


 

Europeus no Exílio

16/3/2001

 

Minha mania de dizer o que penso já me valeu não poucas inimizades. Nos dias de universidade, recebi epítetos como reacionário, burguês, agente do imperialismo e por aí afora. Fui chamado desde Gustavo Corção lúbrico a Robin Hood às avessas — o que tira de todos e não dá nada a ninguém. Outro que achei simpático foi o de Savonarola às avessas — aquele que nos condena por não pecarmos. No curso de Filosofia, onde ser marxista era obrigação, fui considerado agente do DOPS, pelo simples fato de não ser marxista. No DOPS, eu tinha de explicar porque participava das passeatas organizadas pelo pessoal da Filosofia.

No DOPS fui tratado com muita cortesia. Como não participava de nenhum grupo político, público ou clandestino, não passei pelos maus momentos a que foram submetidos colegas de universidade. Comecei então a viajar. As esquerdas gaúchas me promoveram imediatamente a agente da CIA. O que muito me honrava, a nova titulação me dava uma aura internacional. Pena que não me dava os salários que deve ganhar um funcionário da CIA. Eu portava o ônus do cargo, sem nenhuma de suas mordomias.

O tempo passa, os homens mudam e o jargão também. Palavras como reacionário e burguês caíram em desuso, particularmente depois da década de 90 e do desmoronamento da entidade mantenedora dos insultos. Subitamente, surgiram novas pechas infamantes, como neoliberalismo, globalização, darwinismo social. Os antigos reacionários passaram a ser chamados de racistas, supremacistas ou neonazistas. Em 93, sete entidades reunindo antropólogos, sociólogos e outros óologos pediram para mim cinco anos de prisão, por crime de racismo. Bem entendido, não levaram.

O leitor atento já terá observado que a palavra racismo, na última década, multiplicou-se por mil nos jornais. Basta alguém afirmar que uma cultura inferior é inferior e está, ipso facto, enquadrado como racista. Vivemos os dias cantados por Discépolo, em Cambalache: nada es mejor, todo es igual. Minha trajetória evoluiu de reacionário e burguês para racista e supremacista. Hoje, pelo fato de manifestar meu apreço por algumas instituições européias, tenho feito jus ao sofisticado insulto de eurocêntrico.

O insulto tem suas origens nas universidades americanas e com ele fui brindado, pela primeira vez, por universitários brasileiros que lá estudam. Se você é marxista, freudiano ou lacaniano, você não é eurocêntrico. Afinal, para estes senhores, tanto Marx como Freud ou Lacan constituem ciência. No caso, você está indo a reboque do pensamento europeu, mas pelo menos acha que está pensando cientificamente. Você é eurocêntrico, por exemplo, se afirma que a Europa deu maiores contribuições à humanidade que uma tribo de bugres perdida na Amazônia. Ou se confessa preferir uma ária de Mozart às percussões afros dos sambistas cariocas.

Somos irremediavelmente europeus. Tanto o marxista que deita verbo na universidade e na imprensa como o católico que vai comungar em uma missa estão rendendo tributo ao velho continente. Ao entrar em uma igreja, você está entrando na Europa, não na Ásia ou África. Neste sentido, o mais analfabeto cidadão da mais recôndita das grotas do Brasil, de alguma forma está participando do ethos europeu. O cristianismo é, em suas origens, uma religião de homens do deserto. Mas sua formatação definitiva ocorre graças ao império romano.

Ao defender a democracia, você está defendendo valores europeus, herdados de uma Grécia que já existia quando Europa ainda era ficção, é verdade, mas que hoje constitui Europa. Você vai à universidade, de novo está indo à Europa. Pois o conceito de universidade não surge em Samarcanda, Irkutsk ou Uagadugu, mas em Paris, Bolonha, Estocolmo. Ao falar português ou espanhol, você está sendo europeu, está falando um idioma derivado de uma língua imperial européia. Latino-americanos, dizia Borges, somos europeus no exílio. O negro brasileiro pode cultuar ritos africanos, mas ele não fala ioruba ou swahili, e sim o português trazido pelo colonizador. Brasileiros ou latino-americanos, da Europa não escapamos. Mesmo se decidíssemos morar entre malgaxes ou esquimós, para lá levaríamos nossa língua e cultura.

Se herdeiros somos da Europa, que aconteceu então com este Brasil, tão pobre e bagunçado? Em algum momento, a herança foi dilapidada. Estudiosos da idiossincrasia tupiniquim tentam situar este momento, mas até hoje não se tem resposta satisfatória. Cristovam Buarque, em recente artigo, tentava uma: Se os latifúndios tivessem sido colocados à disposição dos braços dos ex-escravos, a riqueza criada teria chegado aos ricos de hoje, que viveriam em cidades sem o peso da imigração descontrolada e com uma população sem miséria. Este raciocínio não serve. Assim fosse, os Estados Unidos estariam imersos em nossa mesma miséria.

Falava do novo insulto. Geralmente é empunhado por sociólogos, etnólogos e antropólogos, como se sociologia, etnologia e antropologia não tivessem suas origens exatamente na Europa. Ora, desde que me conheço por gente, venho lutando contra essas três pragas européias: cristianismo, marxismo e freudismo. Meu primeiro livro, O Paraíso Sexual Democrata, foi uma das raras diatribes publicadas no Brasil contra a social-democracia européia. Durante os quatro anos que vivi em Paris, xinguei quase que diariamente, na imprensa gaúcha, as instituições francesas. Em minha vida universitária, sempre denunciei as metodologias desvairadas surgidas às margens do Sena. E ainda há quem me julgue eurocêntrico.

Que dizer então dos que papam hóstias, papagueiam Marx ou exploram almas simplórias deitadas em divãs? Dito isto, o Brasil me pesa nos ombros cada vez que viajo. Até hoje não encontrei razão alguma para orgulhar-me deste país. Mas disto a Europa não tem culpa.


 

O Zorro Chiapaneco

23/3/2001

 

Essa excursão dos zapatistas à Cidade do México — escreve um leitor de Uruguaiana — somada à revelação da simbiose da guerrilha colombiana (festejada nos clubinhos esquerdistas, universidades, pastorais católicas e mídia em geral) com o narcotráfico sul-americano te obriga a responder a pergunta: até quando nosso continente vai acreditar num esquizofrênico-salvador desses?

Respondo: até o dia em que jogarmos no lixo os desvarios utópicos oriundos do velho continente. A Europa sempre considerou a América Latina um excelente laboratório para experimentos sociais. A Cuba de Castro e Che Guevara, dos anos 60 aos 90, teve total apoio das sociais-democracias européias, desde Berlim a Paris. De Sartre a Régis Debray, passando por Althusser e Alain Touraine, os intelectuais parisienses aplaudiram a ditadura cubana. Comunismo numa ilha do Caribe é louvável, digno e justo. Na França, o PC francês não conseguia nem um décimo do eleitorado. Na ótica destes senhores que, como dizia Camus, assestavam suas poltronas no sentido da História, utopias socialistas são ótimas, desde que longe da Rive Gauche.

A ditadura cubana tornou-se óbvia e Castro virou mala sem alça. Mas o laboratório continuava vago para novas experiências. Foi a vez dos irmãos Ortega e sandinistas, saudados na Europa como os novos arautos da revolução na América Latina. Os irmãos Ortega levaram a Nicarágua ao caos, o que nos lembra a visão profética de Eça de Queiroz, no final do século XIX: "sempre haverá Chiles ricos e Nicaráguas grotescos". O sandinismo também tornou-se mala sem alça. O muro caiu, a URSS afundou, marxismo virou palavrão. Mas o desejo europeu de monitorar utopias em geografias distantes não morreu.

Gastas as causas operárias, surge uma nova bandeira, a defesa dos direitos indígenas. Na Guatemala, os franceses construíram um novo mito, a vigarista Rigoberta Menchú. A venezuelana Elisabeth Burgos-Debray, mulher de Régis Debray, criou uma biografia fictícia da líder guerrilheira marxista Rigoberta Menchú, embuste que mereceu o prêmio Nobel da Paz de 92. Coube ao antropólogo americano David Stoll desmascar a farsa. Em Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans, o autor mostra que a prestigiada militante em pouco ou nada difere de outros vigaristas já galardoados com os prêmios Nobel da Literatura ou da Paz, essas duas láureas jogadas de vez em quando pelos louros nórdicos aos nativos e mestiços do Terceiro Mundo. A recepção do prêmio foi celebrada na casa de Tomás Borge, o chefe da polícia secreta sandinista.

A Europa alimenta agora um novo mito, Rafael Sebastián Guillén, graduado em Filosofia, filho de próspera família burguesa no México. Entre Havana e Manágua, nutriu-se de castrismo e sandinismo e embrenhou-se em Chiapas, uma das regiões mais pobres do país. Mascarado com um passe-montagne, para esconder sua origem branca e bom berço, intitulou-se subcomandante de uma guerrilha, adotando o codinome de Marcos. E por que subcomandante? É simples, o rosto pode ser escondido. O mesmo não se pode fazer com sua retórica marxista eivada de chavões terceiro-mundistas, que jamais poderia ter surgido do bestunto dos chiapanecos. Os comandantes seriam ocultos líderes indígenas, dos quais jamais tivemos notícias. Marcos seria apenas uma espécie de intérprete dos anseios nativos. O agitprop branco, travestido de líder indígena, está tão contaminado pelas modas parisienses, que ao comandar seus guerrilheiros grita: Atención, insurgentes e insurgentas!

A imprensa internacional endossou a máscara e o codinome. Mas mesmo na imprensa subserviente sempre é possível encontrar alguns hereges, ao estilo do antropólogo David Stoll. Maite Rico, do jornal espanhol El País, e Bertrand de la Grange, do Le Monde, acabam de tirar a máscara do menino burguês, no livro lançado mês passado em Paris, Sous-Commandant Marcos, la Géniale Imposture. Sob o disfarce de lutas indígenas, a agonizante utopia marxista.

O novo Zorro das esquerdas tem apoio total de ilustres senhores que fazem fortuna no Ocidente condenando o Ocidente, como Noam Chomsky, Eduardo Galeano, Saramago, Rigoberta Menchú, Régis Debray, Danielle Mitterrand. A viúva Mitterrand, que foi esposa de um torturador e tem um filho envolvido em tráfico de armas na África, parece querer redimir-se de sua saga familiar apoiando o que de pior a América Latina produz.

Ano passado, Debray lançou em Paris o livro I. F. suite e fin. Por I.F., entenda-se Intelectual Francês. Neste ensaio, o delator de Che Guevara na Bolívia pretende diagnosticar a morte dos pensadores da Rive Gauche. Para o autor, o I.F. é um paciente em estado terminal. Não poucos críticos viram no livro uma alusão autobiográfica. Seja como for, mesmo moribundos, os IFs continuam determinando o que deve ser mais adequado ao continente latino-americano.

Numa demonstração definitiva da submissão das esquerdas gaúchas aos ucasses da Rive Gauche, o alcaide porto-alegrense já teria feito contato com Bernard Cassen, diretor do Le Monde Diplomatique (não confundir com Le Monde, jornal sério) para trazer o "subcomandante" à capital gaúcha. A notícia não me espanta. Depois de assumir o governo do Estado e da capital, além de receber com tapete vermelho os chanceleres da narcoguerrilha colombiana, o PT tem se esforçado em reunir a elite do obscurantismo contemporâneo. No Fórum Social Mundial, não por acaso, estavam convidados Chomsky, Menchú e Saramago. Talvez poucos gaúchos lembrem, mas Tarso Genro foi maoísta em sua juventude e até hoje manifesta sua admiração incondicional pelo mais ilustre stalinista gaúcho, Luiz Carlos Prestes.

Porto Alegre, graças ao PT, está se tornando laboratório privilegiado de experimentos sociais para os europeus. Quando o Zorro chiapaneco lá chegar, suponho que Tarso Genro não se eximirá de fazer o papel de Tonto.


 

Intolerância Talebã

30/3/2001

 

Teve início ontem em São Paulo, no palco do SESC Pompéia, o evento Rota de Abraão — Sob o Signo da Tolerância. Para o espetáculo, foram selecionados artistas do Egito, Irã, Iraque, Israel, Líbano, Síria e Turquia, países hoje localizados na região atravessada por aquele que é considerado o pai do monoteísmo, pelo menos por jornalistas que nunca ouviram falar de Akhenaton. Segundo o curador do evento, a idéia foi reunir diferentes tradições culturais para discutir a tolerância na região. Nada mais oportuno nestes dias em que o Ocidente cristão se sente chocado com a intolerância dos bárbaros talebãs, que destruíram duas estátuas gigantescas de Buda esculpidas em uma montanha em Bamiyan, Afeganistão, mais todas suas representações existentes no museu de Cabul.

Imbuído do espírito ecumênico do evento, resolvi reler o livro que traça a rota de Abraão. Já no Êxodo, Jeová alerta seu povo:

Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.

No Levítico, o deus de Abraão reitera sua índole ciumenta:

Não fareis para vós ídolos, nem para vós levantareis imagem esculpida, nem coluna, nem poreis na vossa terra pedra com figuras, para vos inclinardes a ela; porque eu sou o Senhor vosso Deus.

No mesmo livro, mais adiante, Jeová não se contenta em condenar ídolos. Quem os cultua será punido:

E comereis a carne de vossos filhos e a carne de vossas filhas. Destruirei os vossos altos lugares, derrubarei as vossas imagens do sol, e lançarei os vossos cadáveres sobre os destroços dos vossos ídolos; e a minha alma vos abominará. Reduzirei as vossas cidades a deserto, e assolarei os vossos santuários, e não cheirarei o vosso cheiro suave. Assolarei a terra, e sobre ela pasmarão os vossos inimigos que nela habitam. Espalhar-vos-ei por entre as nações e, desembainhando a espada, vos perseguirei; a vossa terra será assolada, e as vossas cidades se tornarão em deserto.

Para Isaías, os ídolos desaparecerão completamente.

Naquele dia o homem lançará às toupeiras e aos morcegos os seus ídolos de prata, e os seus ídolos de ouro, que fizeram para ante eles se prostrarem. (...) Pois naquele dia cada um lançará fora os seus ídolos de prata, e os seus ídolos de ouro, que vos fabricaram as vossas mãos para pecardes.

Oséias, Miquéias e Zacarias tampouco gostam de ídolos. Diz Oséias:

E agora pecam mais e mais, e da sua prata fazem imagens fundidas, ídolos segundo o seu entendimento, todos eles obra de artífices, e dizem: oferecei sacrifícios a estes. Homens beijam bezerros! Por isso serão como a nuvem de manhã, e como o orvalho que cedo passa; como a palha que se lança fora da eira, e como a fumaça que sai pela janela.

Miquéias:

Todas as suas imagens esculpidas serão despedaçadas, todos os seus salários serão queimados pelo fogo, e de todos os seus ídolos farei uma assolação; porque pelo salário de prostituta os ajuntou, e em salário de prostituta se tornarão.

Zacarias:

Naquele dia, diz o Senhor dos exércitos, cortarei da terra os nomes dos ídolos, e deles não haverá mais memória.

Ezequiel não deixa por menos:

E porei os cadáveres dos filhos de Israel diante dos seus ídolos, e espalharei os vossos ossos em redor dos vossos altares. (...) Em todos os vossos lugares habitáveis as cidades serão destruídas, e os altos assolados; para que os vossos altares sejam destruídos e assolados, e os vossos ídolos se quebrem e sejam destruídos, e os altares de incenso sejam cortados, e desfeitas as vossas obras.

Para que não haja dúvidas sobre quem manda, diz Jeová pela boca do profeta:

Então sabereis que eu sou o Senhor, quando os seus mortos estiverem estendidos no meio dos seus ídolos, em redor dos seus altares, em todo outeiro alto, em todos os cumes dos montes, e debaixo de toda árvore verde, e debaixo de todo carvalho frondoso, lugares onde ofereciam suave cheiro a todos os seus ídolos.

Jeová ordena dizer à casa de Israel:

Assim diz o Senhor Deus: convertei-vos, e deixai os vossos ídolos; e desviai os vossos rostos de todas as vossas abominações. Lançai de vós, cada um, as coisas abomináveis que encantam os seus olhos, e não vos contamineis com os ídolos do Egito; eu sou o Senhor vosso Deus.

Mas os israelitas em fuga do Egito rebelam-se contra Jeová e não o querem ouvir. Não lançaram de si as coisas abomináveis que encantavam os seus olhos, nem deixaram os antigos ídolos de Egito. Então Jeová, por amor de seu próprio nome, derrama sobre eles o seu furor:

Também destruirei os ídolos, e farei cessar de Mênfis as imagens; e não mais haverá um príncipe na terra do Egito; e porei o temor na terra do Egito. E assolarei a Patros, e porei fogo a Zoã, e executarei juízos em Tebas; e derramarei o meu furor sobre Pelúsio, a fortaleza do Egito, e exterminarei a multidão de Tebas; também atearei um fogo no Egito; Pelúsio terá angústia, Tebas será destruída, e Mênfis terá adversários em pleno dia. Os mancebos de Om e Pi-Besete cairão à espada, e estas cidades irão ao cativeiro. E em Tapanes se escurecerá o dia, quando eu quebrar ali os jugos do Egito, e nela cessar a soberba do seu poder; quanto a ela, uma nuvem a cobrirá, e suas filhas irão ao cativeiro. Assim executarei juízos no Egito, e saberão que eu sou o Senhor.

Após as nações saberem que Jeová é o Senhor, ele os conduzirá à terra prometida:

Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias, e de todos os vossos ídolos, vos purificarei.

Era meu intento, ao iniciar esta crônica, falar da abominável intolerância dos talebãs. Me distrai perseguindo na Bíblia a rota tolerante do Deus de Abraão e vejo que meu espaço acabou. Perdão, leitores.


 

PC domina PT

6/4/2001

 

Costumo afirmar que o Brasil tem o hábito de importar as piores práticas do Primeiro Mundo. Pior, as importa com atraso. Pior ainda, com décadas de atraso.

Quase sete milhões de norte-americanos, pela primeira vez, foram autorizados a identificar-se como integrantes de mais de uma raça, conforme mostram dados do censo de 2000. As categorias inter-raciais mais comuns citadas foram branco e negro, branco e asiático, branco e indígena americano ou nativo do Alasca e branco e "alguma outra raça". Os Estados Unidos deixam de lado a onedrope rule, pela qual um cidadão é considerado negro mesmo que tenha uma única gota de sangue negro em sua ascendência, e acabam de descobrir o mulato.

Em Michigan, o juiz federal Bernard Friedman determinou o fim da política de ação afirmativa da faculdade de direito da Universidade de Michigan. A estudante branca Barbara Grutter abriu processo depois de não ter sido aceita pela faculdade de Direito, em 1997. Para Friedman, levar em consideração a raça dos estudantes como fator para decidir se os aceita ou não é inconstitucional. Segundo o juiz, a política de ação afirmativa da faculdade assemelha-se ao sistema de cotas, que determina que uma certa porcentagem de estudantes pertença a grupos minoritários. Ao ordenar que a faculdade deixe de praticar essa política, escreveu: Aproximadamente 10% das vagas em cada turma são reservadas para membros de uma raça específica, e essas vagas são retiradas da competição.

Ainda há pouco, o programa 60 Minutes entrevistou um professor que mostrava a injustiça do sistema. De 51 estudantes brancos candidatos a um programa da faculdade, apenas um foi aceito. Entre dez candidatos negros, foram aceitos os dez. A universidade adota uma espécie de leis Jim Crow às avessas, aceitando qualquer candidato negro e recusando brancos.

As chamadas leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte em 1954, constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça. No Alabama, nenhum hospital podia contratar uma enfermeira branca se nele estivesse sendo tratado um negro. As estações de ônibus tinham de ter salas de espera e guichês de bilhetes separados para cada raça. Os ônibus tinham assentos também separados. E os restaurantes deveriam providenciar separações de pelo menos sete pés de altura para negros e brancos.

No Arizona, eram nulos casamento de qualquer pessoa de sangue caucasiano com outras de sangue negro, mongol, malaio ou hindu. Na Florida, proibia-se o casamento de brancos com negros, mesmo descendentes de quarta geração. Neste mesmo Estado, quando um negro compartilhasse por uma noite o mesmo quarto que uma mulher branca, ambos seriam punidos com prisão que não deveria exceder 12 meses e multa até 500 dólares. Na Geórgia, cerveja ou vinho tinham de ser vendidos exclusivamente a brancos ou a negros, mas jamais às duas raças no mesmo local. No Mississipi, mesmo as prisões tinham refeitórios e dormitórios separados para prisioneiros de cada raça. No Texas, cabia ao Estado providenciar escolas para crianças brancas e para negras. As leis Jim Crow explicam a mauvaise conscience ianque, que se traduziu na ação afirmativa.

O Brasil costuma importar as piores práticas do Primeiro Mundo, dizia. Quando os Estados Unidos reconhecem a multi-racialidade, alguns movimentos negros no Brasil pretendem que até os mulatos se declarem negros no censo. O propósito é óbvio. A população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus.

Quando os americanos descobrem que a política de afirmação positiva não constituiu uma idéia boa ou justa, autoridades brasileiras aderem a esta política infame. Em setembro próximo, o Brasil deve defender uma forma de ação afirmativa na conferência internacional sobre o racismo, que será realizada em Durban, na África do Sul. O ministro da Educação já anunciou cursos pré-vestibulares exclusivos para os negros, como se a falta de recursos para seguir um destes cursos fosse característica exclusiva dos negros. A USP, universidade pioneira no obscurantismo, há horas vem sendo tentada a reservar cotas para os negros. Mas o melhor mesmo foi o projeto do deputado gaúcho Paulo Paim, aprovado no dia 28 do mês passado, pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal. Pelo projeto, deverão ser escalados 25% de atores negros ou mulatos em peças de teatro, filmes e programas de televisão.

Só no teatro, o leitor já pode imaginar as peripécias de um diretor. Se pensa em encenar Ibsen ou Tchekov, como inserir negros em contextos eslavos ou nórdicos? E se a peça tiver um só personagem? Pelo menos um quarto do monólogo terá de ser feito por um negro? Só mesmo no bestunto de um petista poderia ocorrer esta pérola do politicamente correto. Quando os EUA passam a abandonar o sistema de cotas, o PT quer adotá-lo até mesmo no universo do lazer.

Seguindo a tendência de eliminar o mulato do panorama nacional, o deputado petista usa o termo afrodescendente para definir a população que o IBGE classifica como negra ou parda. Mas se um negro é obviamente afrodescendente, o pardo é tanto afro como eurodescendente, ora bolas. Quando os EUA reconhecem o mulato, o PT quer eliminá-lo do mapa.

Se o PT tem suas raízes nas esquerdas ligadas ao socialismo soviético, o PC (politicamente correto) é achado das universidades ianques. O que só prova que totalitarismo não tem pátria. Seja soviético, seja ianque, serve aos propósitos das viúvas.


 

Condenados à Pré-história

12/4/2001

 

Os apaches mescaleros, tribo indígena de quatro mil almas no sul do Novo México, EUA, montaram no ano passado uma companhia telefônica para promover o desenvolvimento econômico de sua reserva, que já possui pistas de esqui, cassinos, parques de caça de alces, uma companhia madeireira e um resort com campos de golfe. Godfrey Enjady, o administrador da nova companhia, a Mescalero Apache Telecom, pensa não apenas expandir o serviço de telefonia básica além dos 40% das famílias da tribo com telefone, mas também cercar a reserva com uma rede de fibras óticas e introduzir conexões à Internet de alta velocidade. É o que nos diz The New York Times.

Voltemos ao Brasil. Segundo antropólogos da Funai, cerca de trinta indígenas, os tsohon-djapa, vivem em uma aldeia de palafitas na cabeceira do rio Jutaí, um dos lugares mais inacessíveis do sudoeste do Amazonas. Na semana passada, os tsohon-djapa se encontraram pela primeira vez com um grupo branco. Eles são dominados por outros índios, os vizinhos canamaris, de quem recebem roupas velhas e poucos mantimentos em troca de trabalho e caça. Uma equipe liderada pelo sertanista Sydney Possuelo, o diretor do Departamento de Índios Isolados da Funai, visitou a aldeia por cerca de uma hora. Foi a primeira vez que os funcionários da Funai encontraram os tsohon-djapa. É o que nos diz a Folha de São Paulo.

Volto à imprensa americana. Segundo Godfrey Enjady, a tribalização das telecomunicações vai além de distribuir carteado aos turistas do Texas. "Trata-se de criar a infra-estrutura para atrair investimentos, como um mercado emergente necessita para atrair capital estrangeiro". Os apaches mescaleros, tribo à qual pertencia o legendário guerreiro Geronimo, não estão sós no projeto de formar uma companhia de telecomunicações, com posse e gerenciamento tribal. Uma meia dúzia de companhias telefônicas, de propriedade dos índios norte-americanos, já está operando nas terras indígenas. Este número tende a crescer, devido à recente decisão da Federal Communications Commission (FCC) de aumentar de U$ 35 milhões para U$ 550 milhões a verba federal disponível para expandir o acesso ao serviço de telefonia básica nas reservas indígenas.

Fora a roupa maltrapilha — diz a imprensa nossa — a vida dos tsohon-djapa é completamente isolada do mundo tecnológico. Oficialmente, o que houve ontem não foi um contato. "Embora eles nunca tenham tido contato com brancos, não podem ser considerados isolados, pois através dos canamaris recebem informações e instrumentos do mundo exterior. Sem conhecer a nossa cultura, eles sofreram o pior tipo de contato, a exploração do homem pelo homem", explica Sydney Possuelo.

Segundo o New York Times, apenas 47% de uma nação de 720 mil lares indígenas possuem um serviço de telefonia comum, comparados a uma taxa nacional de 94%. Em algumas tribos, o serviço é mesmo raro. Na reserva Navajo, o maior território indígena do país, que circunda partes do Novo México, Arizona e Utah, apenas uma em cada cinco famílias possuí telefone. Como uma linha telefônica é fundamental para o acesso à Internet, autoridades indígenas e federais vêem a eletrificação das reserva como o passo básico para trazer os índios à Nova Economia. "Os povos indígenas estão no topo da lista dos grupos de maior risco de serem deixados fora da emergente economia ponto.com", diz William Kennard, o presidente da FCC.

Em março de 99, a frente de contato Guaporé, da Funai, pretendeu ter encontrado uma tribo de um homem só em Rondônia. O que provocou a interdição, pela Justiça, de uma área de 60 km2, equivalente ao município de Osasco, onde vivem 623 mil habitantes. Segundo a entidade, o "isolado ermitão" é o último remanescente de uma etnia ainda não identificada. Os 60 km² que a Justiça interditou abrangem duas fazendas inteiras, que somam 40 km², e mais 20 km² de uma terceira, todas voltadas à criação de gado. A Justiça entende assim proteger o índio dando tempo à Funai para avaliar se convém desapropriar a área para convertê-la em reserva indígena.

No segundo semestre de 1995, a Funai achou dois grupos desconhecidos no sul de Rondônia. Um, de quatro pessoas, que se expressa em canoê e outro, de sete, que fala um idioma do tronco tupi. A descoberta repercutiu internacionalmente e provocou a interdição de 510 km2 de terra — um terço do município de São Paulo — englobando oito fazendas.

"Quando um governo tribal estabelece sua própria companhia telefônica, ele está criando um núcleo de desenvolvimento econômico", diz William Kennard. Outras tribos nos Estados Unidos estão considerando desenvolver suas próprias companhias telefônicas, entre elas os Navajos e os Hopis do Arizona.

Sidney Possuelo é radicalmente contra o contato com grupos que não conhecem a cultura branca. Sobre os djapas, disse: "Só visitamos a aldeia porque estão dominados pelos canamaris e vamos ver o que podemos fazer."

Esta tem sido a política da Funai e dos sedizentes antropólogos que a assessoram: isolar ainda mais os índios já isolados pela selva. Se o pobre coitado vive em uma solidão atroz, talvez até mesmo desejoso de entrar em contato com outros seres, a Funai expande esta solidão por centenas de quilômetros. Enquanto os americanos estimulam e financiam a entrada de seus índios no mercado de tecnologias de ponta, conduzindo-os serenamente ao século XXI, as autoridades brasileiras os proíbem de chegar ao presente. Melhor mantê-los encurralados em uma espécie de zoológico neolítico, para contemplação dos homens do futuro.

A Funai e seus indigenistas, sob a capa de proteção ao índio, estão cometendo um crime de lesa-humanidade. Navajos, mescaleros, hopis e demais tribos americanas pisam no futuro com pé firme, futuro com o qual sequer podem sonhar milhões de brancos, negros ou mulatos brasileiros. Quanto a nossos índios, estão condenados, por seus supostos defensores, a chafurdar em uma eterna pré-história.


 

Coisa de Pobre

20/4/2001

 

Um novo país rico está surgindo na Europa. Não se trata de Portugal ou Espanha, que recuperam a largos passos o século desperdiçado. Mas a católica Irlanda. A mesma Irlanda que, no século XVIII, produziu Jonathan Swift. E com Swift, uma das mais contundentes sátiras da história da literatura, a Modesta Proposta para impedir que as crianças pobres da Irlanda sejam um fardo para seus pais ou para o País e se tornem úteis ao público.

"É melancólico para aqueles que passeiam por esta grande cidade ou viajam pelo campo" — escrevia o deão de Dublin em 1729 — "ver as ruas, as estradas e as portas dos casebres repletos de mendigas, seguidas de três, quatro ou seis crianças esfarrapadas importunando o viajante em busca de esmolas. Essas mães, em vez de trabalhar para ganhar a vida honestamente, se vêem obrigadas a perder seu tempo na vagabundagem, mendigando para seus filhos desamparados que, ao crescerem, se tornam ladrões por falta de trabalho ou abandonam seu querido país natal para lutar como mercenários na Espanha ou serem vendidos na Ilha Barbada".

Nesta pérola do humor negro, endereçada aos prolíficos papistas, Swift propunha que as crianças do país fossem bem cuidadas e nutridas, para serem vendidas por quilo no mercado e servidas em lautas refeições aos irlandeses abastados. O deão enumera as múltiplas vantagens de tal comércio, entre elas o grande estímulo que constituiria ao casamento, aumentando o cuidado e a ternura das mães para com seus filhos, cientes de que as pobres crianças teriam uma colocação segura na vida, e que lhes dariam lucros em vez de despesas. "Logo veríamos uma honesta competição entre as mulheres casadas para mostrar qual delas leva ao mercado a criança mais gorda. Os homens passariam a gostar de suas esposas durante a gravidez, tanto quanto agora gostam de suas éguas, vacas prenhes ou porcas quando estão prontas para parir, e não ameaçariam de bater nelas ou dar pontapés por medo de um aborto". Para Swift, nada se compara em sabor ou suntuosidade como uma criança de um ano completo, gorda e bem desenvolvida a qual, assada inteira, faria considerável figura num banquete do senhor prefeito ou em qualquer outra recepção pública.

De Swift para cá, a Irlanda padeceu quase três séculos de pobreza. Ainda nos anos 50, estava mais para país de Terceiro Mundo que para Europa. Seus nacionais migravam para a Inglaterra ou Estados Unidos fugindo da miséria, em busca de comida e trabalho. Hoje, o país entrou em um surto de enriquecimento com o qual nem sonham as economias emergentes de Espanha e Portugal. Jovens irlandeses, na faixa dos vinte anos, quando pensam em carro, pensam em BMWs. Apesar de cada unidade custar U$ 60 mil, a demanda é tal que o tempo de espera é de seis meses.

Estamos longe dos tempos da agricultura e da cerveja. A Irlanda produz agora chips e componentes eletrônicos. Irlandeses são recrutados nos EUA por empresários irlandeses para voltarem a trabalhar no chão que os viu nascer. Há necessidade de braços em todas as áreas: informática, hotelaria, restauração, turismo, hospitais. Também são necessários braços para colher batatas? Sim, mas para isso são chamados imigrantes dos países do leste. A construção civil necessita peões? A Irlanda os traz da Inglaterra. Onde, até bem pouco tempo, os irlandeses iam implorar trabalho como mão-de-obra.

A católica Irlanda, dizia eu ... Ainda em 92, o World Almanac atribuía ao país um contingente de 95% de católicos romanos. Em uma edição do 60 Minutes, da qual extraio estes dados, o repórter pergunta a um irlandês se a Irlanda ainda é católica. Não, diz o entrevistado, agora não é mais. Na Irlanda já existe o divórcio, aborto, pílulas anticoncepcionais, distribuição de preservativos. O número de padres, monges e freiras que o país produz aproxima-se de zero. Ricos, os irlandeses abandonam o catolicismo.

Enquanto isso, o cristianismo avança em países mais pobres. É o que nos conta Kenneth Woodward, na Newsweek. Só na Nigéria, há mais de vinte templos — católicos, anglicanos e protestantes — no espaço de 1 km2. O mesmo ocorre em todo o subcontinente africano, onde o cristianismo faz parte da vida de quase um terço da população. Não por acaso, João Paulo II visitou a África dez vezes. Lá, o cristianismo está se espalhando mais rapidamente do que em qualquer outra época ou lugar, diz Woodward. E nos fornece outros dados: em 1900, 80% dos cristãos eram europeus ou norte-americanos. Hoje, 60% deles são cidadãos da África, Ásia e América Latina. Na Escócia, menos de 10% dos cristãos vão regularmente à igreja, enquanto nas Filipinas esse número é de quase 70%. Só na Nigéria, os anglicanos são sete vezes mais numerosos do que os episcopalianos nos EUA. O cristianismo, que nasceu no Oriente Médio e invadiu o norte rico, está agora rumando ao sul pobre.

Ora, direis, mas os evangélicos tupiniquins estão entrando com força tanto nos EUA como na França, a ponto de os franceses já esboçarem reações legais ao proseletismo do bispo Edir Macedo. De fato, o bispo brasileiro está comendo gordas fatias da clientela da igreja católica. Mas o evangelismo só contamina a periferia, os imigrantes hispânicos e portugueses, isto é, os pobres cuja mão-de-obra confecciona o bolo dos ricos.

O cristianismo, como as duas outras grandes religiões contemporâneas, surge entre homens do deserto. De seita intolerante, que condenava a liberdade de crenças no tolerante império romano, tornou-se religião de Estado. Sempre intolerante e, desta vez, com poderes de mandar para fogueira. Que serviu para a estruturação e unificação da Europa, isto não se pode negar. Antes de ser Europa, o continente chamou-se Res Publica Christiana.

A Europa civiliza-se. Seus cidadãos, mais realistas, passam a dispensar muletas metafísicas, mensagens de milagre e salvação eterna. Religião, como cigarro e marxismo, está virando coisa de país pobre. Que o digam os irlandeses.


 

Sobre Massacres

27/4/2001

 

Entre os muitos livros que tão cedo não serão traduzidos no Brasil, está Kriminalgeschichte des Christentums, do ensaísta alemão Karlheinz Deschner. Em bom português, História Criminal do Cristianismo. Tenho em mãos a tradução espanhola, que vem sendo publicada pelas Ediciones Martinez Roca, de Barcelona. Cada vez que passo em Madri, visito uma livraria na Puerta del Sol e compro um novo tomo. Tenho em mãos o sétimo e recém estamos no auge da dinastia carolíngia. A história não é curta.

Já no primeiro tomo, Karlheinz relata os massacres autorizados por Jeová, que nenhum leitor atento da Bíblia desconhece. É exemplar, por exemplo, esta delegação de Samuel, o primeiro profeta, a Saul: "Vai agora e destrói Amalec e arrasa tudo quanto existe: não o perdoes nem cobices nada de seus bens, mas mata tudo, homens e mulheres, jovens e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e asnos". Elias mandando degolar 450 sacerdotes de Baal, as perseguições de São Constantino, São Gregório arrasando o paganismo armênio e criando o primeiro Estado cristão do mundo, que desfecha uma guerra depois da outra, sempre em nome de Cristo, os rios de sangue sob o católico Valentiniano I ... et j'en passe.

Tenho já sete volumes da obra, dizia. Mas não os li todos. A sucessão de guerras, massacres e assassinatos, todos em nome da fé cristã, torna-se monótona. Mais monótono que este interminável desfile de crimes, só mesmo o que está narrado em Le Livre Noir du Communisme (Stéphane Courtois et allia), relação dos cem milhões de cadáveres feitos pelos comunistas no passado. As 846 páginas do livro tornam o relato cansativo. Basta, a meu ver, o resumo: URSS — 20 milhões de mortos; China — 65 milhões; Vietnã — 1 milhão; Coréia do Norte — 2 milhões; Cambodja — 2 milhões; Europa do Leste — 1 milhão; América Latina — 150 mil; África — 1,7 milhão, Afeganistão — 1,5 milhão; movimento comunista internacional e PCs fora do poder — uma dezena de milhar de mortos.

Salvo engano meu, os comunistas não ousaram institucionalizar em texto legal a tortura. A Igreja Católica, ciente de que pela tortura se podia salvar almas, produziu dois manuais memoráveis sobre a prática, o Malleus Maleficarum (O Martelo dos Feiticeiros), dos dominicanos Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger, em 1846, e o Directorium Inquisitorum (O Manual dos Inquisidores), do também dominicano Nicolau Emérico (1320-1399), grande inquisidor de Aragão. Não por acaso, os dominicanos se tornaram conhecidos na história como domini canis, cães de deus. (No Fórum, reproduzo um capítulo sobre a tortura, do Manual).

Em recente artigo, O holocausto contínuo, o sempre lúcido Olavo de Carvalho afirma que desde 1789 "praticamente todas as perseguições em massa, todos os genocídios do mundo seguiram o mesmo esquema, obsessivamente repetitivo e invariável: o sacrifício dos crentes pelos ateus militantes. O quadro é aterrador. França, México, Espanha: matança dos católicos. Rússia e países satélites: matança dos cristãos ortodoxos (católicos, na Polônia, na Croácia e na Hungria). Alemanha: matança dos judeus. China, Tibete, Indonésia etc.: matança dos budistas e muçulmanos. Total: mais de cem milhões de mortos. Em todos esses casos, a vítima é religiosa, o assassino é ateu, materialista, progressista, darwinista, portador do projeto de 'um mundo melhor' em qualquer de suas inúmeras versões".

De fato. Mas eu faria um adendo ao Olavo. Até que ponto são realmente ateus os responsáveis pelo massacre dos cem milhões? Que os marxistas são ateus em relação ao deus hebraico-cristão, exceto o Olívio Dutra, disto todos sabemos. Mas que construíram uma outra religião, com hagiologia e dogmas próprios, disto tampouco há dúvidas. Em Testamento para el Greco, Kazantzakis falava da existência, na Rússia, de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos milhões de crianças e as instruía como bem entendia. Esse exército, continua o cretense, tinha seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin, e seus apóstolos fanatizados que pregavam a Boa Nova através do mundo. Esse exército possuía também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, hierarquia, liturgia e mesmo a excomunhão: "somos contemporâneos deste grande momento em que nasce uma nova religião".

Em 1950, seis trânsfugas do marxismo — Arthur Koestler, Ignazio Silone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender — escreveram um livro intitulado Le Dieu des ténèbres. O livro quase foi traduzido no Brasil, devido ao entusiasmo de Ruth Leão, com o título O Deus que falhou. Mas, pelo que me consta, não encontrou editora. Ali já estava tipificado o marxismo como nova religião. Como dizia Silone, "o Partido torna-se família, escola, igreja, caserna; fora dele, o resto do mundo estava para ser destruído. O mecanismo psicológico de identificação progressiva do militante comunista com a organização coletiva é agora conhecido: é aquele que dá resultados mais ou menos análogos em certas ordens religiosas e certas escolas militares".

O marxista é antes de tudo um homem de fé. Trocou Deus pela História, Cristo pelo proletariado, a Parusia católica pela sociedade comunista, culminância inevitável da luta de classes. Gorki e Lunatcharski, ao fundarem o movimento Construtores de Deus, criaram uma prece que assim iniciava: "Proletariado nosso que estás na terra, bendito seja teu nome, seja feita tua vontade, venha a nós o teu poder". Todo comunista via com profunda piedade os não-comunistas, estes pobres diabos que nada entendiam do mundo e precisavam ser educados para as verdades eternas.

Olavo de Carvalho fala do sacrifício de crentes por ateus militantes. Pessoalmente, vejo crentes de um deus novo massacrando os crentes de deuses antigos. Sem falar que a nova religião era autofágica: ninguém no mundo matou mais comunistas do que os sumos sacerdotes Stalin e Mao.


 

Lá na Linha

4/5/2001

 

Depois que Bertrand Delanoë, homossexual assumido, foi eleito prefeito de Paris, a França passou a gabar-se na imprensa de sua mentalidade liberal. Neste mesmo ano da eleição de Delanoë, Veja nos informa que o Estado que reúne a maior quantidade de piadas machistas assumiu a dianteira na defesa dos direitos dos homossexuais. A revista paulistana refere-se ao fato de a Justiça do Rio Grande do Sul ter emitido julgamentos favoráveis em causas relacionadas a reivindicações dos gays.

A ausência de preconceitos da gauchada, no que se refere à homossexualidade, não é atitude de hoje, nem mesmo de ontem, mas data de muito mais longe. Antes mesmo que os parisienses ousassem eleger um prefeito homossexual, o Rio Grande do Sul já teve um, e dos mais queridos por seus conterrâneos. Ora, direis, Dom Pedrito não é Paris. Claro que não é. Dom Pedrito é uma pequena comuna isolada do mundo. Já Paris é uma das capitais deste mesmo mundo, com todo cosmopolitismo que isto implica.

Feliz de quem tem uma província no coração, disse alguém. Final dos anos 50, há quase meio século, portanto. Naquela cidadezinha da fronteira gaúcha, nos confins da fronteira seca entre Brasil e Uruguai, então com 13 mil habitantes, tive minhas primeiras lições de tolerância. Um dos líderes políticos locais, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses.

Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" — confessou-me um dia Bastide —. "Mas que vou fazer? É a minha natureza." Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide.

Sua detenção pelos militares virou folclore. O vereador estava prestando seus serviços ao Brasil, quando batem na porta de seu apartamento. Ainda pelado, entreabriu a porta. Três militares o procuravam, um oficial e dois soldados, de metralhadoras em punho. O senhor é o Rui Bastide? — perguntou o oficial. Sou. Então o senhor está convidado a comparecer às dependências do 14º Regimento de Cavalaria. Acho que vou declinar do gentil convite — respondeu Bastide. Ocorre que não é bem um convite. O senhor terá de ir. Agora e como está. Então me levem — disse o Rui — abrindo a porta e os braços, em plena glória de sua nudez. "Os soldadinhos enrubesceram, não sabiam para onde apontar as metralhadoras. Aí, me deram tempo. Tomei banho, me perfumei, me despedi do Brasil, não sabia quanto tempo ia ficar preso".

Pelo jeito, a prisão foi produtiva. Em vez de xingar a ditadura, Rui encenou um balé, onde bravos lanceiros do Ponche Verde, envergando diáfanas bombachas brancas, executavam impecáveis pas de deux enquanto cantavam uma ode ao 14 º RC: Querido Exército...

A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados.

Há fatos que na infância nos marcam a memória e só depois de muito viver lhes conferimos a verdadeira dimensão. Ocorreu no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira com o Uruguai, onde vivi meus dias de guri. Torrão de gente rude, onde qualquer adulto tinha de cuidar-se com a língua. Lá na Linha Divisória — como era mais conhecida a região — uma palavra mal empregada, ou mal entendida, podia custar uma vida. Lá, conheci Seu Alvarino.

Fora trazido da cidade, como cozinheiro do Peixoto, um bolicheiro local. Negro, enorme, espadaúdo, durante o dia cuidava da cozinha e das coisas do Peixoto. Nas tardes de domingo, cumpridas suas tarefas caseiras, vestia uma blusinha de rendas cor-de-rosa, punha sua mais rodada saia longa e sentava na porta do bolicho, munido de agulhas e novelos. A gauchada ia chegando, boleando a perna e atando os cavalos no alambrado. Em meio àquela gente armada, revólveres e facões pendendo da guaiaca, seu Alvarino, indiferente às charlas e ruídos de esporas, permanecia absorto em seu crochê, como se ali estivesse tricotando desde o início dos tempos.

Jamais ouvi qualquer piada a respeito das prendas domésticas de Seu Alvarino. Também, pudera! Seria uma empreitada um tanto arriscada dirigir qualquer comentário desairoso àquele par de munhecas. Seria homossexual? Ou o travestir-se seria apenas uma prosopopéia que o acometia aos domingos? Fosse como fosse, se gostava de usar saias e fazer crochê, isto era algo que só a ele dizia respeito.

"A principal explicação para o Rio Grande do Sul estar na vanguarda da defesa dos gays encontra-se no bom nível educacional da população do Estado", diz o redator de Veja, que certamente jamais teve notícias do Bastide ou do seu Alvarino. "Uma classe média instruída e formada com base na imigração européia tende a ser mais crítica e aberta a atitudes liberais", afirma o historiador Luiz Roberto Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pura conversa fiada de acadêmicos. Lá na Linha, não era hábito local imiscuir-se na vida de ninguém. O preconceito veio através dos padres europeus, que lá introduziram as noções de pecado e culpa entre gaúchos que viviam imersos em uma espécie de paganismo crioulo pré-cristão.


 

O Titio Torturador

12/5/2001

 

Ontem à noite, em Paris, na Place de la Bastille, nostálgicos de François Mitterrand o homenagearam com um concerto.

Fez vinte anos, ontem. Eu voltava da Inglaterra com uma amiga. Seriam seis da tarde. Em Paris, mal cheguei em casa, liguei a televisão. Na tela, aos poucos foi surgindo uma imagem. Começou pela testa e foi descendo, em fatias. Antes que tivesse chegado aos cílios, percebi que não era a careca de Giscard d’Estaing. O vencedor das eleições na França, naquele 10 de maio, era Mitterrand. Mesmo a imprensa internacional foi surpreendida. Havia apostado na vitória de Giscard. Só quando caminhões de champanhe começaram a abandonar o QG de Giscard, os jornalistas perceberam que a notícia estava ailleurs.

Minha amiga, gaúcha em trânsito pela Europa, apavorou-se. Confundida pela associação que a imprensa brasileira fazia entre o socialismo francês e o socialismo soviético, queria pegar passaporte e voltar ao Brasil antes que o novo governo fechasse as fronteiras. Verdade que nem só ela se confundiu. Empresários franceses empacotaram seus dinheiros e tentaram sair do país através de discretas fronteiras suíças. Medo bobo. Como bom francês, Mitterrand não iria sacrificar o bem-estar de seus conterrâneos em nome de um ideal besta. Socialismo mesmo — le vrai — a França só recomenda para o Terceiro Mundo.

A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Mitterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".

Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro. No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité. Este último, jornal oficial do PC francês, pede a dissolução das "quadrilhas fascistas". O que não deixa de ser surpreendente. No ano anterior, como candidato às eleições em Nièvre, Mitterrand se apresentava como um baluarte contra o comunismo: "Posso afirmar, sob o controle dos nivernais, que fiz o comunismo recuar neste departamento. Eu lutarei sem fraquejar para economizar à França os horrores de uma ditadura coletivista".

Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio candidato que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus "agressores".

Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88. Seu ar bonachão lhe valeu o apodo de Tonton (titio). Seu estilo e suas obras faraônicas mudaram um pouco o simpático apelido. Passou a ser chamado, por obra do Canard Enchainé, de Tontonkhamon. Como faraó viveu e como faraó morreu, dando-se ao luxo de organizar o cerimonial de sua própria morte, dispondo até mesmo a posição, na foto oficial das exéquias, da mulher e da filha de uma amante.

Faz vinte anos, dizia. Se o anticomunista ferrenho e o colaborador pró-nazista, foram esquecidos, o mesmo não se pode dizer do torturador. No final do ano passado, os generais Aussaresses e Massu vieram a público testemunhar as torturas praticadas pelo Exército francês na guerra da Argélia. O que era novidade só para jovens ou desmemoriados, pois trinta ou mais anos antes, Massu já confessava estas torturas. Quanto a Aussarresses, parece ter esperado esta efeméride, os vinte anos da morte de Tonton, para lançar, na semana passada, suas memórias, Services spéciaux, Algérie 1955-1957. O autor não hesita em reafirmar o que há muito se sabia mas que todos fingiam ignorar: "Quanto à utilização da tortura, ela não só era tolerada, mas recomendada. François Mitterrand mantinha um emissário junto ao general Massu, o juiz Jean Bérard, que nos dava cobertura e tinha total conhecimento do que se passava à noite, transmitindo as informações para o gabinete do ministro, em Paris."

Tonton morreu em janeiro de 96. Naquele dia eu me despedia de Paris, com uma Leffe radieuse no Vieux Colombier. Nenhuma comoção no café. Mal passaram cinco anos, e o monumento laboriosamente construído veio abaixo. Tonton é acusado de ser o mandante das atrocidades cometidas na Argélia. Sua viúva se envolve com o rebotalho da guerrilha marxista da América Latina e o filho celebrou o último Natal na cadeia, acusado de tráfico de armas na África.

Na Place de la Bastille, os franceses continuam homenageando o titio torturador.


 

O Novo Passaporte

18/5/2001

 

Cigarro, marxismo e religião estão se tornando coisas de país pobre, afirmei outro dia. No que diz respeito a cigarro e marxismo, se não houve consenso entre leitores, reclamação muito menos. Estas surgiram ao se falar de religião. O cristianismo e suas diversas seitas começam a abandonar a Europa e buscam países do Terceiro Mundo, particularmente os africanos, dizia. Esta afirmação não era decorrente de intuições minhas, mas de pesquisas feitas nos diversos continentes. Na última edição de Veja, uma reportagem reforça esta constatação:

"Sessenta e sete por cento dos jovens espanhóis jamais vão a uma missa. Na França, na Bélgica e na Alemanha, apenas 10% dos católicos freqüentam a igreja. A cada ano, diminui em 50.000 a quantidade de ingleses que assistem às missas de domingo. Em vários países faltam padres por causa da queda do número de ordenações. Entre os protestantes, o cenário é igualmente desolador. Somente 3% da população comparece aos cultos nos países escandinavos. A cúpula da Igreja Reformada Holandesa está transformando parte de seus complexos religiosos em hotel para pagar despesas de manutenção. A Catedral de Canterbury, de importância central na fé anglicana, fica vazia na manhã de domingo, o dia mais movimentado em qualquer templo cristão. O sínodo de bispos europeus convocado pelo Vaticano para discutir o assunto, há dois anos, observou, com alarme, que são batizados menos da metade dos recém-nascidos nas grandes cidades da Europa". Para o reverendo anglicano Timothy Bradshaw, professor de teologia da Universidade de Oxford, os europeus são agora uma das populações menos religiosas do mundo.

Mas se os ricos europeus vão deixando de lado superstições milenares, pobres de todos os quadrantes buscam a Europa, com as suas a tiracolo. Devido à imigração africana, o islamismo vai lentamente contaminando o continente, com suas mesquitas e práticas, algumas delas inconcebíveis em país que nutra algum respeito pelo ser humano. Na Itália, berço do catolicismo, a segunda religião em número de praticantes já é a muçulmana, com um milhão de fiéis. Fiéis que não se contentam em virar o traseiro pra lua e invocar Alá, mas querem impor modificações na legislação vigente. Entre outras, o Consiglio Islamico d’Italia requer o ensino do Corão nas escolas ou, como alternativa, a criação de escolas muçulmanas; o direito de a mulher ser fotografada com véu nos documentos de identidade; a sexta-feira livre e o direito de participar das preces do meio-dia. Famintos, mas exigentes.

O leitor pode imaginar o valor identificador que pode ter um documento, no qual do rosto de uma mulher só aparecem os olhos. A França viveu o mesmo impasse nas escolas, com alunas muçulmanas que se recusavam a entrar na sala de aula sem o véu. No mundo árabe, tudo é mais fácil: como a mulher não existe, não precisa de identidade.

A sexta-feira livre é outro achado. Como as empresas ocidentais não irão funcionar aos sábados ou domingos apenas para compensar a folga dos funcionários árabes, todo muçulmano teria uma semana de quatro dias, enquanto os "infiéis’ cristãos continuariam mourejando na semana de cinco.

O Consiglio não ousou insistir em duas instituições nada ocidentais, a poligamia e a infibulação da vagina. Se não ousou, isto não quer dizer que os muçulmanos, uma vez na Europa, as tenham abandonado. Pelo menos no que diz respeito às mutilações genitais femininas, só na Itália as vítimas já são 50 mil. Uma bagatela, se as compararmos às 130 milhões de mulheres que têm o clitóris extirpado e a vagina costurada no mundo islâmico. O problema é que se a ablação do clitóris faz parte do jus consuetidinis no mundo árabe, na Europa constitui crime.

A praga, que há muito já afetava a França, dado o grande contingente argelino que o país acolhe em virtude do passado colonial, começa a espalhar-se pelos demais países mediterrâneos. Com as novas rotas de entrada de imigrantes árabes na Europa, a infibulação chegou à Espanha. Se na França era comum as famílias árabes receberem um dia a visita de uma sage femme (parteira), vinda expressamente da África para executar o trabalho infame, na Espanha ocorre um fenômeno inverso: mais dia menos dia as meninas árabes são levadas por seus pais aos países de origem, em uma viagem de férias — "para visitar a vovó" —, da qual voltam sexualmente mutiladas. Segundo médicos, algumas dessas mutilações ocorrem na própria Espanha.

Canadá, Suécia e Estados Unidos já estão concedendo asilo a mães e filhas árabes, quando estas últimas sentem-se ameaçadas pela ablação do clitóris em seus países de origem. Segundo El País, o governo espanhol parece disposto a seguir o mesmo caminho para combater a prática. Enrique Fernández-Miranda, delegado para a Imigração, afirma que estas pessoas devem ser protegidas. "Temos em nossa legislação figuras com suporte jurídico suficiente para dar uma especial proteção e acolhida a estas mulheres". As medidas se aplicariam não só às mães, mas também às filhas, e a conseqüência seria algo como o direito de asilo, apenas com outro nome.

Até há pouco, os migrantes econômicos alegavam perseguições políticas para entrar no paraíso. A migração árabe está prestes a instituir um novo passaporte, o clitóris. Se hoje são 130 milhões as mulheres mutiladas no mundo muçulmano, a Europa, se persistir em seus pruridos humanitários, já pode ter uma idéia da invasão que a espera na porta do novo milênio. Se Canadá, Suécia e Estados Unidos estão longe do universo das mutiladas, Espanha, França e Itália estão ao lado. Junto com as mulheres que fogem para não ter o clitóris cortado, virão os cortadores de clitóris, afinal integração familiar oblige.

O velho continente, que começa a libertar-se dos dogmas de uma religião criada por homens do deserto, cai agora na armadilha de uma outra.


 

Ótica Talebã

25/5/2001

 

Em visita a Dom Pedrito, reencontrei um velho amigo, um daqueles jornalistas heróicos de cidade do interior, que no exercício da profissão assumem todas as funções de um jornal. Factotum, o Pacase foi editor, repórter, redator e — estou falando de tempos passados — até mesmo linotipista do vibrante matutino local, o Ponche Verde. E tudo isto ao mesmo tempo, cabe salientar. Pois Pacase é agora radialista, editor, redator e locutor da Rádio Sulina. Perguntei-lhe se não estava conectado à Internet.

— Não, — disse o factótum —. A Internet não me interessa. Quero conversar com a Dona Maria, lá na Vila da Lata.

O que Pacase talvez não suspeitasse, é que a Dona Maria da Vila da Lata, nesta altura, deve estar munida de antena parabólica, olimpicamente distanciada das fofocas pedritenses, com os olhos grudados em inuits do Ártico ou tuaregues do Sahara. Ou passeando seu lazer pelas Champs Elysées ou pela Quinta Avenida. O que Pacase, o resistente, parecia não ter entendido, é que Dom Pedrito não existe mais.

Como tampouco existe Rio Grande do Sul. Ou mesmo o Brasil. Depois da televisão a cabo ou satélite, o que existe mesmo é esse universo informe, sem fronteiras nem limites, ao alcance dos olhos de qualquer mortal. Há universitários em Santa Maria que não têm idéia de quem foi Caldas Júnior, mas viajam a São Paulo para uma apresentação do U2. De Dom Pedrito, recebo às vezes gravações em vídeo. Nenhuma delas trata de exposições bovinas, da Caixa d’Água ou da paz de Ponche Verde, mas mostram balés no gelo em pleno sol da meia noite ou castelos medievais na Europa. A televisão, apesar dos pesares, libertou o indivíduo dos limites de sua geografia.

Os descendentes do lendário centauro das pampas cultuam ícones como o dalai-lama ou Che Guevara, que a rigor nada têm a ver com gauchidade ou brasilidade. Nenhum jovem no Rio Grande do Sul desconhece quem sejam os Beatles ou Rolling Stones. Poucos saberão quem foi Pedro Raimundo ou, para ficarmos mais perto no tempo, Noel Guarani. Tampouco seria de espantar que as gerações mais novas desconheçam até mesmo Teixeirinha. Há gaúchos que já não mais lembram de Getúlio Vargas. Mas duvido que alguém ignore que um presidente dos Estados Unidos era chegado a uma genuflexão compulsória de suas estagiárias. O planeta virou aldeia. Alguns aldeões parecem ainda não ter percebido o fenômeno.

Muito brasileiro nem sabe o que foi Canudos ou Farrapos, nem tem idéia de quem foram Conselheiro ou Bento Gonçalves. Mas tem ainda na retina a Guerra do Golfo, os bigodes de Saddam Hussein, sabe que há uma guerra entre Israel e palestinos, e já deve ter ouvido falar de Iugoslávia, Bósnia e Macedônia. O muro de Berlim é algo mais familiar a qualquer brasileiro que a ponte sobre o Guaíba ou o Porto das Galinhas. Muito gaúcho talvez desconheça o monumento ao gaúcho, na avenida Farrapos, em Porto Alegre. Mas sabe muito bem onde fica a torre Eiffel.

Um insipiente leitor escondido por pseudônimo, de uma estreiteza mental que me soa a déjà-vu, interpela-me no Fórum: "E perdoe-me a indiferença, mas que raios tenho eu a ver com as meninas de véu nas escolas da França?" A pergunta, típica de quem jamais saiu da aldeia, é de uma ignorância tão pedagógica que merece uma reflexão.

É como perguntar que temos a ver com um judeu que foi crucificado em Jerusalém. Ou com um intelectual alemão desempregado, que escrevia sobre relações de produção no Ocidente numa biblioteca em Londres. Ou com um médico vienense com mais vocação para a literatura que para a medicina. Todos estes senhores — o crucificado inclusive — fizeram sua fortuna na Europa. E até hoje oprimem o pensamento latino-americano. Costumo afirmar que sempre importamos o pior do Primeiro Mundo. Não tenham dúvidas, caríssimos: se algum dia, em nome do multiculturalismo, os europeus aceitarem a infibulação, no dia seguinte o Brasil admitirá legalmente a prática infame. Em 1990, havia nos EUA 168 mil meninas e mulheres expostas ao risco de FMG (female genital mutilation). Não será o Brasil que permanecerá imune à peste.

As meninas de véu na França e as meninas infibuladas na África e na Europa são duas faces de uma mesma moeda. Achar que nada temos a ver com elas é afirmar que nada temos a ver com 130 milhões de mulheres veladas e mutiladas em pleno século XXI. A partir do mesmo raciocínio, tampouco nada temos a ver com a escravidão ou discriminação racial, com as ditaduras cubana ou russa, líbia ou iraniana. Os jornais brasileiros, segundo esta peculiar Weltanschaaung, deveriam ater-se a escrever sobre carnaval e futebol, orçamento participativo, corrupção no Congresso e apagão.

Ignorar o que ocorre além da esquina é comportar-se como os zelotas dos dias de Cristo, que se enroscavam como caramujos em sua própria cultura, evitando qualquer contato com o mundo exterior. Ou, se quisermos parâmetros contemporâneos, como os talebãs, que pretendem isolar o Afeganistão do tempo presente. Ao irritado leitor, sugiro que jogue fora as páginas internacionais dos jornais, que só trazem ao leitor brasileiro coisas que em nada lhe dizem respeito. Desligue a televisão quando o noticiário sair do Brasil. Fuja de filmes sobre crianças no Irã, escaramuças nos Balcãs, guerras na Europa ou na Ásia. Nada temos a ver com isso.

Muito menos com estudantes russos que assassinam velhotas. Ou com personagens que acordam transformados em baratas. Ou com espanhóis desvairados que saem pelo mundo, de lança em riste, a desfazer tortos. Leia Machado e José de Alencar, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Assista apenas cinema nacional, feito com o dinheiro do contribuinte. Cultive a música tupiniquim. Exija cotas de difusão obrigatória do que é nosso, nas salas de aula e de cinema, nas emissoras de rádio e TV.

Evite ler cronistas que procuram ver além da circunferência de dois metros de raio em torno a seu nariz, que você confunde com a realidade. Prefira os que sintonizam com seu bestunto de aldeão. Para informar-se, ouça o boré da taba. O mundo é mau, lá fora.


 

Em Defesa do Baiano

1/6/2001

 

Em São Paulo, a palavra baiano tem uma conotação delicada. Ao tentar grafá-la em jornais paulistanos, para referir-me a figuras como Jorge Amado ou Caetano Veloso, sempre houve um colega gentil que me alertasse: "não ousa, gaúcho". Ocorre que a palavrinha adquiriu um sentido fortemente pejorativo. E nada tem a ver com os baianos propriamente ditos. Para o paulistano, baiano é eufemismo para nordestino. Os paulistanos têm os nordestinos em tão baixo conceito, que para não ofendê-los nem mesmo os chamam de nordestinos. Assim, quando você ouvir dois paulistanos falando sobre "os baianos", saiba que eles provavelmente falam dos nordestinos. Este eufemismo é uma forma espontânea, quase intuitiva, do famigerado politicamente correto.

Foi preciso Antônio Carlos Magalhães expor-se à execração da mídia, violando o painel de votações do Congresso, para que a Folha de São Paulo ousasse ferir o dogma. Se o leitor é bom observador, terá visto que o jornal nem sempre fala do "senador baiano" ou do "pefelista", mas já grafa "o baiano". Tal depreciação ao referir-se a ACM seria inadmissível há uns três ou quatro meses. Sinal que o senador já andava mal das pernas.

Havia, até quarta-feira passada, uma guerra santa na imprensa, pedindo a cabeça do baiano. Como se uma vez cassado o grande corruptor, a corrupção fosse exorcizada. Em verdade, a cassação de ACM seria apenas uma espécie de catarse. Os demais corruptos do Congresso, que posam de cassadores, teriam — como continuam tendo — longa sobrevida. O senador antecipou-se à hipocrisia de seus pares e optou pela fuga, renunciando à sua curul. Aproveita uma brecha na lei para evitar a punição e voltar ao cargo, reconduzido pelo eleitorado baiano.

Costumo afirmar que corrupção, no Brasil, não é apanágio de ricos ou poderosos. Comentando a corrupção da gestão municipal passada em São Paulo, afirmei que economia da cidade é vasta reserva de caça, para repasto de predadores. Fartam-se primeiro os leões e mamíferos de maior porte. O resto da carniça é disputado por abutres, hienas e chacais. O que cai do palitar de dentes destes predadores menores vai nutrir ratos e bagrinhos, formigas e baratas. A grande massa de eleitores paulistanos jamais cometeria a insensatez de eleger representantes que interrompessem esta lubrificada cadeia alimentar.

O mesmo diga-se dos baianos — e aqui não me refiro aos nordestinos. A imprensa nacional foi inundada de fotos, nos últimos dias, mostrando ACM rodeado de mães e pais-de-santo, que com suas crendices primitivas pretendiam fechar-lhe o corpo. Se alguém acha que os devotos de orixás assim manifestam seu amor pelo ex-senador, é bom lembrar que amor também tem preço.

Em setembro do ano passado, aposentou-se como sacerdotisa religiosa a mãe Nitinha de Oxum (batizada Benedita Maria do Nascimento), de 67 anos, a primeira mãe-de-santo da Bahia a receber este benefício previdenciário. Ocorre que um dos mandaletes de ACM, o senador Waldeck Ornélas, aproveitou sua passagem pelo ministério da Previdência, para estender ao culto afro os benefícios previstos no item "assistência cultural" do INSS, através do qual é pago um salário mínimo para padres e pastores aposentados. Ora, na Bahia existem 5.800 terreiros de candomblé cadastrados na federação, dos quais 2.800 funcionam em Salvador. Uma vez regulamentado o candomblé como religião, junto ao INSS — informa-nos a Folha —, mães e filhas de santo, ogãs e ekedês (espécies de mestres de cerimônias e organizadores nos terreiros de candomblé) podem requerer aposentadoria. Eleitor pode ser burro. Mas coerência é o que não lhe falta. Longa vida a ACM.

Mas o baiano não compra só no atacado. Agradam-lhe também as compras a varejo. Numa carta a Roberto Romano, sugere ao professor ouvir "os escritores da terra. No meu caso, nomes como Jorge Amado e João Ubaldo; ou os compositores da terra, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jerônimo, Vevé Calazans e dezenas de outros; ou os artistas plásticos, todos eles". Zélia Gattai e Gal Costa, nem foi preciso nominar. Acorreram voando em defesa do ex-senador. Jorge Amado, velho e doente, não se manifestou. Mas de quem escreveu para jornais ligados a Hitler, apoiou Stalin e foi o primeiro escritor brasileiro a saudar Collor de Mello como presidente, outra coisa não se poderia esperar senão o apoio ao poderoso de plantão. Caetano já tentou tirar o seu da reta, em entrevista ao Globo. Mas sua mamãe não foi ingrata, juntou-se ao hagiológio de Zélia e Gal Costa. Consumista compulsivo, ACM comprou até mesmo um intelectual de esquerda para fazer sua biografia, Fernando de Morais, jornalista que publicou no Brasil a primeira reportagem idílica sobre Cuba e uma biografia romanceada de Olga Benario.

ACM e Arruda mentiram no Senado, escabelam-se as vestais, acompanhadas em coro pela imprensa. O espanto é de um cinismo sem par. Político que mente é tautologia. Ou alguém conhece algum que não minta? Político algum se elege neste Brasil sem mentir. O eleitor pede para ser enganado? O candidato engana com gosto.

Em meio a este desapreço geral, uma coisa diga-se em favor do ex-senador: canalhice não é flor que brote sozinha, por geração espontânea. O ilustre baiano é o somatório da canalhice de seus eleitores. Quer voltar ao poder: "Serei candidato a uma das coisas que os baianos quiserem. Pode ser ao Governo ou ao Senado. Hoje, diria que seria ao Senado, mas tudo pode acontecer. É a Bahia que vai dirigir meu destino". Em seu discurso de renúncia, eivado de rancor, não descarta sequer a presidência da República.

Ontem, o ex-senador foi recebido como herói em Salvador, por uma multidão de fiéis bajuladores. Já é um indicativo. Nas próximas eleições, saberemos se na Bahia existe um só canalha, alguns canalhas ou milhões de canalhas. ACM, conhecedor dos bois com que lavra, tem certeza de que são milhões.


 

Quando TV liberta

8/6/2001

 

Sempre fui hostil à televisão. Mesmo quando séria, é um meio de comunicação muito rápido. Mal estamos deglutindo uma informação, lá vem outra. Não dá para recortar, sublinhar, reler a frase antes de aceitá-la. Meu meio de informação preferencial sempre foi e continua sendo o livro e o jornal. Em meus dias de Porto Alegre, por não ter TV nem rádio em casa, muitas vezes fui tido como psicopata.

Minha primeira TV, comprei-a aos 30 anos. Em Paris. Lá, ela me parecia útil, tanto para praticar o idioma como para entender os debates, políticos ou literários, da nova sociedade onde começava a viver. Com mais uma vantagem: na França não havia rede Globo. Em vez de Sílvio Santos, Bernard Pivot.

Quem são os campeões de audiência da TV brasileira? Sílvio Santos, Gugu Liberato, Ratinho... De vez em quando, dou uma zapeada nos canais nacionais, para ver a quantas anda o nível mental das gentes. Sendo estes três senhores os líderes de audiência, podemos ter uma idéia do povinho que nos cerca. Assim, posso auscultar a cultura média nacional, sem nem mesmo sair de casa.

Nada contra mulheres peladas, bundas ou seios, adultérios ou trocas de casais. Nisso nada há de novo. O que machuca é o desrespeito à inteligência do espectador, a presunção de que quem está do outro lado da tela é uma solene toupeira. O pior é que esta presunção não é mera presunção. Se estes senhores, por suas audiências, faturam por mês o que milhares de escritores não recebem em uma vida, é porque do outro lado da tela milhões de toupeiras os assistem. Ratinho, sem ir mais longe, ganha um prêmio Nobel por mês para humilhar pessoas e estupidificar seus espectadores. Alfim, a vida é assim mesmo. Cada cidadão cultua o que melhor lhe apraz e cada país tem os ídolos que merece.

Fora esta minha mania mórbida, a de auscultar o nível médio de ignorância ambiente, a televisão nacional nem precisava existir. (Exceptus excipiendis, a TV Cultura). Se hoje assisto a televisão, é porque os satélites me trazem alguns momentos de bom jornalismo e boa programação. O que nem sempre é evidente. Muitas vezes você zapeia por cinqüenta canais e não encontra sinal de vida inteligente em nenhum deles.

No dia 1º de maio passado, passou despercebida uma campanha dos bispos da Igreja Metodista no Paraná e em Santa Catarina, que queriam forçar a televisão a mudar sua programação, por considerá-la escandalosa. Em um rompante de aiatolás, eles propuseram um dia de abstinência, durante o qual os fiéis deveriam manter a telinha desligada. Os bispos falavam de "programas de baixo nível, com ratinhos e leões, tiazinhas e feiticeiras". Mas não estavam preocupados com o desrespeito à inteligência dos espectadores. E sim com a preservação da clientela.

O Colégio de Bispos criticava o destaque dado pela televisão a opções religiosas que não são cristãs. "Na maioria das vezes, há uma ênfase demasiada no sexo barato, na desvalorização do ser humano como criatura de Deus, no incentivo à violência, na quebra dos valores familiares, na desvalorização da mulher como pessoa, na ridicularização do casamento", afirmam. "Uma novela exalta o candomblé e o culto a Iemanjá", afirmavam os bispos. "Outra, promove o esoterismo".

O que estava em jogo no boicote proposto era a preservação de uma determinada visão religiosa, logo neste país que é laico e não impõe restrições à religião alguma. Para os pastores, os atores das novelas são muito queridos pela população e acabam influenciando milhares de pessoas a aceitarem uma espiritualidade radicalmente oposta ao Evangelho de Jesus, "iludindo o povo brasileiro ao considerar o candomblé como religião e o esoterismo como espiritualidade". Como se candomblé não fosse religião e esoterismo, bem ou mal, não fosse uma forma de espiritualidade.

Nestes momentos, para mim, a televisão se redime. Se perturba os propósitos proseletistas de pastores puritanos, para algo servem até mesmo os ratinhos e tiazinhas. Em vários países muçulmanos, proíbem-se as antenas parabólicas, para que os fiéis não sejam contaminados por essas idéias malsãs de mulheres sem véus, passeando sozinhas pelas ruas, dirigindo carros e gerindo com independência o próprio nariz e a própria vida. Aqui, pode-se observar o poder deletério do Islã. A cultura árabe gerou as Mil e uma Noites, este poema imortal onde a mulher é também guerreira e luta ombro a ombro com o homem. Depois de Maomé gera uma sociologia onde a mulher é menos que zero. Nestas geografias, até mesmo as Tiazinhas da vida seriam revolucionárias.

Falei outro dia da ótica talebã, esta ótica zelota de quem se encaramuja sobre si mesmo e não quer ouvir falar do mundo exterior. Pois em Kandahar, no Afeganistão, uma das profissões mais perigosas é ser técnico em televisão. É o que me conta o The New York Times. Se os talebãs flagrarem um destes profissionais no exercício de seu ofício, ele será considerado inimigo do Islã, espancado na rua e trancafiado. Se para os metodistas brasileiros a televisão é corruptora, no Afeganistão ela é ilegal. Não se pode ter aparelhos de televisão, muito menos consertá-los. Os talebãs, que não só proibiram a música, como também as mulheres de dirigir carros e de irem à escola, controlam 90% do Afeganistão e se recusam a permitir a existência de uma estação de TV em qualquer parte do território. Mesmo assim, consta que algo entre 15 e 80% da população, desafiando o regime, vê televisão.

Em um primeiro momento, tanto a proposta dos metodistas como a determinação dos talebãs me parece simpática. Não seria mau, pelo menos por algum tempo, viver fora da órbita da intoxicação televisiva. Mas, partindo de quem parte, tais interdições soam como recomendação. Se metodistas e talebãs querem proibir a televisão é porque, apesar dos pesares, TV liberta. Se tiazinhas e ratinhos é o preço a pagar-se, paciência. E longa vida aos técnicos de televisão.


 

A Velhinha de Havana

15/6/2001

 

Jorge Furtado andou pela Disneylândia das Esquerdas e dela traz notícias. Ao chegar no quarto do hotel, o cineasta gaúcho notou que a privada não tinha assento. Considerou que sem assento não se pode sentar numa privada. Reclamou com a camareira e dela ouviu:

Se puede, se puede...

Quem nos conta esta aventura de Furtado é um outro gaúcho, o Luís Fernando Verissimo, cronista predileto das esquerdas e garoto-propaganda das utopias socialistas, desde que longe de seu conforto e bem-estar. Como a Velhinha de Taubaté, a Velhinha de Havana não vê maiores problemas em uma privada sem assento. (Estou supondo que seja uma velhinha. Fosse jovem, não seria camareira, mas uma das tantas stakanovistas do amor que carreiam dólares para a ilha de Castro). "Até onde o anteparo entre as nádegas e o frio da louça — pergunta-se o cronista — é realmente uma necessidade básica, com trocadilho?"

O que Verissimo está dizendo, em verdade, é que há um grave problema no regime cubano: as privadas não têm assento. Observação nenhuma sobre liberdade de imprensa e de opinião, direitos humanos, eleições livres e outras ridicularias de um Estado contemporâneo. A grande falha do socialismo tropical parece ser as privadas sem assento. Pode-se viver em um país onde as privadas não têm assento?

Pode-se, diria eu, em uníssono com a Velhinha de Havana. Pode-se viver sem muita coisa, até mesmo sem privada. Henfil, outro dileto das esquerdas, ao voltar de uma viagem iniciática à China, louvava a ausência de sanitários. Para Henfil, obrar de cócoras era até salutar, higiênico e a posição era a ideal para os intestinos. Na China, é claro. Em Paris, onde Henfil fez escala antes de ir para Pequim, boa parte dos bares tem fossa, e ninguém apresenta a contingência das cócoras como uma saudável conquista de 1789. Henfil deve ter freqüentado apenas restaurantes de alto padrão na capitalista Paris, ou teria passado pelas desconfortáveis fossas, encontráveis mesmo em cafés de bom nível. Claro que as veria como decadência do capitalismo.

Pode-se viver sem muitas coisas. Sem assento na privada, sem privada e mesmo sem papel higiênico. Não sei porque misteriosas razões, a falta de papel higiênico sempre foi uma marca de grife do socialismo. As esquerdas burguesas, em peregrinação a Moscou, nos tempos da finada União Soviética, devem estar lembradas das recomendações das agências de turismo: leve papel higiênico. Você podia se hospedar em hotel de primeira classe (na URSS havia apenas duas classes de hotéis, os de primeira e os de segunda), mas o problema do papel higiênico era sempre crítico. O que talvez explique as fabulosas tiragens da Pravda.

Em minhas deambulações pelos países socialistas, sempre levei honestos rolos de papel higiênico do bom e velho Ocidente. Na Romênia, me descuidei. Em um passeio por Sulina, porto sobre o delta do Danúbio, esqueci meus rolos em Mangalia. Hospedei-me num hotel imponente, onde ao chegar fui recebido por um quarteto de violinos magiares e transatlânticos quase enfiavam a quilha em meu quarto. Só um pequeno detalhe: nem sombra de papel higiênico nos quartos. Fui reclamar. Uma funcionária, com ar de comissário de povo, me atendeu na portaria. Que é que você quer? Papel higiênico. Quantos dias vai ficar aqui? Dois dias. A sargentona me olhou com olhar de quem avalia meu metabolismo, puxou um precioso rolo de suas gavetas e me deu uns dois metros de papel.

Sim, pode-se viver sem assentos nas privadas, sem privadas, sem papel higiênico. E mesmo sem lagostas. Milhões de cubanos vivem sem lagostas. Não que o mar que os cerca não tenha lagostas. É que as lagostas são para consumo exclusivo dos turistas que levam dólares ao paraíso socialista. São consumidas em restaurantes onde — serviçais à parte — os cubanos estão proibidos de entrar. É perfeitamente possível viver sem lagostas. O mesmo não dirão os turistas da utopia, que adoram degustar lagostas na Disneylândia das Esquerdas, mesmo que para isso tenham de usar privadas sem assento.

Pode-se viver sem liberdade? Se puede, diria a Velhinha de Havana, por supuesto que se puede. Claro que se pode. Milhões de cubanos vivem sem liberdade, centenas de milhões de seres humanos viveram — e ainda vivem — sem liberdade sob o jugo do socialismo, sem por isso recorrer ao suicídio. Enquanto não se morre, sempre se pode ir vivendo. Pergunte a um mendigo se é possível viver debaixo de um viaduto. Ele dirá que se pode, tanto que ele vive lá. O ser humano tem uma insuspeita capacidade de adaptação. Você já ouviu falar em suicídio de mendigos? Eu jamais ouvi. Se não se suicida, é porque dá para ir vivendo. Pode-se viver em um campo de concentração? Claro que se pode, dirão os sobreviventes do Holocausto. Em verdade, até mesmo em gulags se pode viver. Aleksandr Solzhenitsyn que o diga. A vida é teimosa.

Quando se fala dos horrores do socialismo, temos a idéia imediata de países onde ninguém ri, ninguém se diverte, ninguém tem um mínimo de gratificações. Só quem não conhece tais países pode alimentar tal visão. Nos países socialistas, como em qualquer país do mundo, as pessoas sofrem e gozam, riem e choram, têm momentos de euforia e depressão, ou humanos não seriam. Que mais não seja, o álcool sempre alegra. Sexo também. Álcool e sexo, ainda que precários, sempre estão ao alcance de qualquer pobre diabo.

Para Verissimo, se alguma objeção fosse feita à eternização de Castro no poder, a camareira cubana poderia muito bem ter respondido: "Mas você precisa ver o nosso serviço de saúde pública". A Velhinha de Havana é séria candidata à personagem do cronista, para trocar idéias com a crédula de Taubaté.

Alvíssaras! O grande problema de Cuba é a ausência de um anteparo entre as nádegas e o frio da louça. E nós imaginávamos que fosse quatro décadas de ditadura, fuzilamentos, prisioneiros políticos, falta de liberdade, boat-people, escassez de comida. Somos reacionários irremediáveis.


 

A Ditadura do Milhão

22/6/2001

 

"Coloquei como meta arrumar um namorado até amanhã — dizia Ligiane Ferreira, jornalista paulistana de 25 anos —. Mas até as 16 horas de ontem, nada". Esta queixa, eu a li no Jornal da Tarde.

O amanhã da jornalista era o dia dos namorados, há duas semanas. Confesso jamais ter visto confissão tão patética de submissão às datas. Se era o dia dos namorados, a moça queria um para comemorá-lo. Mesmo que não o tivesse. "Fiquei com uns meninos, mas nada que resolvesse o meu problema. Essa data perturba a cabeça de quem está só". Me pergunto como reagirá Ligiane ao dia das mães. Colocaria como meta arrumar um filho até amanhã?

Ou as datas perturbam a cabeça de quem está contaminado pelas campanhas da mídia? Se a imprensa diz que amanhã você deve estar ao lado de um namorado, urge arranjá-lo ainda hoje. Os jornalistas criam mitos e — o que é pior — passam depois a neles acreditar. A moça solitária, que milita na classe que cria datas a partir do nada, passou a acreditar na ficção criada por seus colegas. E se desespera por estar só. Mas Ligiane não desistia da luta. Iria batalhar numa danceteria. Ainda na segunda-feira, dizia: "Vou à L.O.V.E. Já me dou por vencida. Mas não me preocupo".

O Jornal da Tarde não nos conta se Ligiane venceu ou perdeu a batalha. Ela não se sentia só porque estava só. Sentia-se só porque a imprensa dizia que estava só. Jornalista crédula, acreditava nas patranhas do próprio ofício. E rumou às boates para esconjurar a suposta solidão. A moça não entendeu o espírito da coisa. Os homens que cozinham angústias e as jogam quentinhas na mídia não estão em nada preocupados que ela esteja só ou acompanhada. O que importa é comprar, mesmo que não tenha namorado. Se comprar, está absolvida.

Se fores só, serás todo teu, disse um poeta italiano. O homem contemporâneo parece há muito ter perdido a capacidade de ser só. Pior ainda, a de pensar só. Se não pensar em uníssono com a massa, sente-se de passo errado. Se se descobre original, corre aos psicanalistas em busca de socorro. Estamos longe da fibra de um Nietzsche, que encontrou sete leitores para Assim falava Zaratustra. Ou de Pessoa, que só publicou uma plaquete em vida, jogando toda sua obra em baús, para a contemplação dos pósteros. Ou de um Swift, que tinha uma elevada consciência de seu valor: "é fácil reconhecer o gênio, todos os imbecis da época se unem contra ele."

Outro dia, eu discutia com esses distantes amigos via Internet, que se tornam nossos íntimos sem que lhes conheçamos o rosto. Quando morre um roqueiro — afirmava eu — o QI da humanidade se eleva. Um de meus interlocutores disse não ser bem assim, afinal se o rapaz agradava a milhares de pessoas, algum mérito deveria ter. Este parece ser, em nossos dias, o critério do mérito. Se agradou a milhares, algum mérito terá. Se agradou milhões, maiores ainda serão seus méritos. O critério é arriscado. Enaltece desde Stalin e Hitler a Ratinho e Sílvio Santos. O curioso é que as pessoas que estenderiam prazerosamente esse critério ao roqueiro, se retorceriam em ressalvas se o conferíssemos a Hitler. E Hitler foi um dos homens mais amados pelos alemães de sua época.

Todo líder ou simulacro de líder quer reunir a cifra mágica. O papa, no melhor estilo de Hitler, Stalin ou Mao, adora recitar slogans para multidões de milhões. Padre Marcelo se sente até sem graça se oficia missa para menos de cem mil pessoas. Nelson Rodrigues já ridicularizava as passeatas dos cem mil. Urge atualizar a cifra de Nelson. Passeata que se preze, hoje, precisa ter um milhão.

Desconfio das grandes cifras. Abomino milhões. Se um milhão de pessoas ruma ao norte, vou para o sul. Tenho perdido belos espetáculos com minha ojeriza aos milhões. Certa vez, num 14 de julho, eu me dirigia a Torre Eiffel para ver a exibição de fogos. Já no metrô, a multidão começou a engrossar. Voltei. Num réveillon em Madri, amigos me puxavam à Puerta del Sol, para ver as doze badaladas do relógio do Ayuntamiento e comer as doze uvas rituais. Já na Etchegaray, dei meia volta. O milhão me assustava. Descobri algo óbvio nessas ocasiões: no conforto do hotel, pela televisão, tem-se uma visão mais detalhada e ao mesmo tempo mais global, do que estando no epicentro dos acontecimentos. Sem curtir futebol, até hoje não entendi porque as pessoas vão a estádios, se os detalhes do jogo são melhor vistos na TV. A câmera vê mais que o próprio juiz, que está no meio de campo.

Se alguém quiser desrecomendar-me um livro ou filme, basta dizer que foi consumido por milhões. Não vejo, não leio. Excetue-se o que deve ser excetuado: as obras que, ao longo dos séculos, seduziram milhões de pessoas. Platão, Mozart, Quixote, tudo bem. O que não consigo tragar é o sucesso instantâneo.

Domingo passado, ocorreu em São Paulo uma manifestação do GLBT, ex-GLS. Explico: o que antes era o movimento dos gays, lésbicas e similares, tornou mais detalhista. Agora, é o movimento dos gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Segundo os organizadores, teria tido 300 mil participantes. Segundo a imprensa, no máximo 200 mil, talvez 180 mil. Quanto a mim, que tropecei na passeata em plena Paulista, diria que não havia nem 100 mil. Mas isto é o de menos.

O desfile foi colorido, mais variegado que as manifestações respingadas de vermelho do PT. Aliás, havia uma representação do PT, com as indefectíveis estrelinhas e — pasmem — uma representação zapatista. Não faltou o toque de Primeiro Mundo. Um dos carros alegóricos anunciava uma exótica associação de gays, lésbicas e professores de língua portuguesa de Toronto, Canadá. As boates do gênero aproveitaram para divulgar a prostituição masculina e o silicone teve seus momentos de apoteose.

Tais manifestações me parecem, em princípio, salutares. É bom que quem sempre foi discriminado possa manifestar-se em público, sem sentir-se criminoso. Meu medo é que, quando forem um milhão, as Ligianes da vida estejam se torturando por não serem homossexuais.


 

Meus Dois Turcos

29/6/2001

 

Em meus vinte e poucos anos, eu julgava que o bem-estar europeu era fruto de trabalho exclusivo dos europeus. Em Estocolmo, quando meus professores de sueco me perguntaram em que diska eu trabalhava, achei que havia um mal-entendido. Tinha eu cara de diskare (lavador de pratos)? Já nas primeiras semanas de Suécia, entendi que era visto não como um jornalista que estava lá para observar a vida no paraíso, e sim como mão-de-obra potencial. Observei meus colegas de curso: polacos, gregos, iugoslavos, turcos, árabes. Todos estavam ali tentando adquirir um conhecimento mínimo do idioma ... para trabalhar. Quanto a mim, que buscava apenas conhecer um idioma e um país novo, me sentia peixe fora d'água naquelas aulas. Quando descobri que dificilmente teria chances de trabalhar em minha área, fiz minhas malas... e voltei.

Quando alguém me fala que mobilidade social não existe no Brasil, costumo puxar da memória dois turcos de minha infância. Aconteceu há mais de quarenta anos, quando eu ainda vivia nos campos de Upamaruty. Eles chegaram de Dom Pedrito, cidade que eu ainda não conhecia, aliás não conhecia cidade nenhuma. Vinham em duas precárias bicicletas, enfrentando estradas de areia e barro, os porta-cargas repletos de espelhos, pentes, isqueiros, carretéis, agulhas, alfinetes, baralhos. Uma orgia de consumo para aqueles camponeses, separados da cidade por léguas de solidão. As mulheres da região recebiam os turcos com festa, eram as coisas da cidade que chegavam até seus modestos desejos. Ainda piá, eu os observava com espanto. Entre si, usavam uma algaravia incompreensível. Conosco, falavam com sotaque carregado. Hospitalidade oblige, sempre encontravam pernoite e comida em nosso rancho. À noite, me ensinavam, com o auxílio de grãos de feijão e milho, mistérios da matemática. Se mal se conseguiam fazer entender com palavras, eram exímios nesta linguagem universal, a dos números.

Os dois turcos voltaram muitas vezes em suas bicicletas àqueles pagos inóspitos. Até o dia em que chegaram de jipe, desta vez com tecidos, colchas, cobertores, toalhas e utensílios de cozinha, uma orgia aos olhos do mulherio lá da campanha. Voltaram muitas outras vezes, até o dia em que não voltaram mais. Quando fui conhecer cidade, encontrei-os em Dom Pedrito. Descobri então que sequer eram turcos, mas sírios. Tinham uma loja de tecidos, com três ou quatro funcionários. Quando abandonei a cidade, já tinham duas lojas e o dobro de funcionários. Bem mais tarde, quando me dei conta do que significava ser sírio, meus dois turcos me voltaram à lembrança. Haja pertinácia para sair de longínquos desertos das Arábias, atravessar um oceano, viver em país novo, outra língua, cultura distinta, e enfrentá-lo com duas bicicletas e algumas bugigangas de mascate no cargueiro.

Nasci entre gente pobre, que trabalhava na lavoura de sol a sol, fazendo uma agricultura de mão pra boca. Não tenho notícias de que alguém tenha prosperado como os dois "turcos" de minha infância. Claro que nenhum brasileiro de cepa se disporia a sair pedalando pampa afora, como os sírios, para juntar algum pecúlio de centavo em centavo.

Na Suécia, reencontrei os turcos — estes turcos de verdade — mais árabes, eslavos e mesmo latinos, encarregando-se do trabalho pesado ou sujo, que os hiperbóreos Svensons não se dignavam a enfrentar. Fui reencontrá-los mais tarde em Paris, nas mesmas tarefas. Certa noite, voltando para o Grand Hotel Saint Michel, aquele conhecido hotelzinho da folclórica madame Salvage, que abrigou brasileiros e latinos durante décadas e de grand só tinha o nome, tive surpresa insólita. Pedi minha chave ao porteiro da noite. Do catre instalado na portaria ergueu-se uma calva ilustre, inconfundível, a solene calva de um de meus professores de filosofia em Porto Alegre. Para ele, naquele momento, era melhor ser porteiro de hotel em Paris que catedrático no Brasil.

Destas andanças, algo aprendi sobre eles: imigrantes não se enganam. Só rumam rumo ao melhor. Um árabe que quebra pedras ou junta lixo em Berlim ou Estocolmo, vive evidentemente melhor que em sua villaya na Argélia. E ainda manda algum dinheiro aos que ficaram no deserto. Na época em que Giscard d'Estaing ofereceu passagem e mais dez mil francos aos migrantes que quisessem voltar a seus países, Slimane, um amigo argelino, me dizia: "Não volto. Podem me dar a França inteira. Não posso levá-la no bolso".

Imigrantes são seres diferenciados. Ousam deixar para trás pátria, família, passado, em busca de um futuro melhor. Nestes dias que correm, há pessoas morrendo no mar ou sufocadas em furgões, tentando entrar clandestinamente na Europa, via Itália, Espanha ou Inglaterra. Mas não vemos hoje — nem vimos em dias passados — alguém arriscando a vida para entrar em Angola, Cuba, Congo ou países da finada União Soviética.

O Brasil pode ser pesado de carregar-se às costas. Pessoalmente, nunca encontrei motivos para orgulhar-me deste país. Mas horrível também não é. Estes seres que não se enganam, os imigrantes, vêm para cá de todos os continentes, e inclusive do nosso. Isto atesta que o país é viável. Os italianos e alemães que um dia chegaram de mãos abanando no Brasil, construíram as cidades mais prósperas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Japoneses e coreanos que aportam nesta São Paulo vão muito bem. O mesmo diga-se de árabes e judeus.

Você conhece nome e sobrenome de algum mendigo? Eu não. Deles só tomo conhecimento nos meses de inverno, quando repórteres saem a entrevistar moradores de ruas. Só tenho lido sobrenomes como Vieira, Soares, Santos, Silva, Silveira e por aí afora. Jamais ouvi falar de algum mendigo chamado Isaac ou Jacó, Abdul ou Tanako, Gert ou Salvatore.

Assim, quando intelectuais de classe média afirmam que este nosso sistema capitalista — que aliás nem chegou ao capitalismo — não dá chances a ninguém, costumo evocar meus dois turcos. Trabalhando, dá. Estendendo a mão para pedir, não dá.


 

O Crime da 5ª Turma

6/7/2001

 

Em A Farsa Ianomâmi (Rio, Biblioteca do Exército Editora, 1995), o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto manifestava seu espanto por jamais ter ouvido falar, em suas leituras históricas, sobre os ianomâmis. Segundo Menna Barreto, "Manoel da Gama, Lobo D'Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos que cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome". A fotógrafa romena Claudia Andujar — para a qual boa parte das terras de Roraima seriam de posse "imemorial" dos ianomãmis — teria em verdade ianomamizado uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os "ianomâmis" passaram a "existir". Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação.

A própria CCPY (Comissão Pró-Yanomami) parece não crer muito na imemorialidade desta posse. Em documento interno da comissão, A Prática do Yanomami, de autoria do lingüista Henri Ramirez, lemos que "não se sabe absolutamente nada sobre o passado remoto do povo yanomami". Para quem falava em povos imemoriais, já é um avanço. A única certeza que o lingüista encontra é que, no século XVIII, viviam confinados nas florestas montanhosas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Ao dar a descrição da região ocupada, o autor cita vários rios, todos eles situados na Venezuela. Segundo Ramirez, uma primeira vaga de ianomâmis invade o Brasil em 1915, alcançando o Marauiá e o Cauburi, no norte do Estado do Amazonas, fronteira com a Venezuela. Ou seja, os ianomâmis no Brasil são menos imemoriais que meus avós, que aqui chegaram em fins do século XIX.

Ainda segundo Ramirez, uma segunda leva de ianomâmis teria chegado aqui em 1945, fixando-se no Marari, nas cabeceiras do Padauari e no Demini. Ou seja, são tão imemoriais quanto eu, que nasci em 47. Em nome desta curtíssima imemorialidade, Andujar e seus asseclas isolaram do Brasil 10 milhões de hectares.Em 1992, por um punhado de linhas na mídia internacional, o então presidente Fernando Collor de Mello avalizou a ficção de Andujar, entregando três Bélgicas a dez mil índios (ou talvez menos da metade disso).

Mas não era disso que pretendia falar. E sim de uma decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, proferida no final de maio, que reafirmou sentença da Justiça Federal de Roraima, condenando cinco garimpeiros por crime de genocídio contra índios ianomâmis. Conhecido como Massacre do Haximu, o crime teria acontecido em 1993, quando 16 índios teriam sido mortos em um ataque de 22 garimpeiros. Condenados a 19 anos de prisão, os garimpeiros recorreram pela primeira vez alegando que o crime era de morte e não genocídio e, portanto, deveriam ser julgados por um tribunal de júri. A apelação foi aceita pelo Tribunal Regional Federal, mas revista após recurso do Ministério Público Federal. A defesa entrou com embargos alegando que, ao analisar o pedido do Ministério Público, o STJ não teria se manifestado sobre questões constitucionais referentes ao julgamento do crime de genocídio.

É o que nos conta o Estado de São Paulo, em sua edição eletrônica do último 8 de junho. Parece ter existido um certo pudor na divulgação da notícia, pois não a vi na edição em papel do jornal. Nem no Estadão, nem nos demais jornais do dia. O Judiciário brasileiro, sabe-se lá em virtude de quais pressões, está inovando. Pela primeira vez, na Justiça brasileira, réus são condenados por um crime sem cadáver.

Em verdade, a nota diz o contrário. A redatora Maura Campanili assim fecha a notícia: "Os yanomamis, de uma comunidade denominada Haximu, foram atacados pelos garimpeiros em um refúgio na floresta Amazônica, para onde haviam fugido após a ocorrência de vários outros conflitos com os garimpeiros. Os corpos foram encontrados com perfurações de balas de revólveres, golpes de facão e inúmeros cortes".

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Que corpos? É o próprio Estadão que, em 28 de agosto de 93, em sua primeira página exibe a única prova material do suposto massacre, quatro escassos

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dentes expostos na mão de um funcionário da Funai. Wilk Fernandes, da Funai, mostra dentes encontrados em restos de fogueira em Homoxi: polícia procura provas do massacre, diz o texto-legenda. A jornalista, pelo jeito, não se preocupou em consultar os arquivos do próprio jornal onde trabalha. O desejo de acreditar no massacre era tão imperioso na época, que o editor não se pejou em exibir um punhado de dentes, em três colunas, como prova de um genocídio.

Em edição de 07 de setembro 1993, a Folha de São Paulo exibe a prova definitiva dos acontecimentos. Índios portam as cabaças

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onde, segundo o antropólogo Bruce Albert, estão as cinzas das vítimas. Segundo ritual ancestral, os ianomâmis queimam os cadáveres de seus mortos. Pode-se ver as cinzas? Não, estão dentro das cabaças. Pode-se examinar as cabaças? Não, são sagradas. Se um antropólogo foi chamado às pressas para atestar a queima dos corpos, que cadáveres são esses do qual fala a notícia sobre a sentença da 5ª Turma? Sobreviventes mostram cabaças com cinzas dos mortos, diz o texto-legenda.

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Não existe crime sem cadáver. O verdadeiro crime é o que está sendo cometido contra estes cinco homens, sem que entidade alguma dos ditos Direitos Humanos proteste. Em matéria de aberrações jurídicas, do universo entre as nações, resplandecem as do Brasil. Divulgue esta matéria.


 

Suomi: Sem Sexo Nem Futuro

13/7/2001

 

Sempre nutri um certo fascínio pela Finlândia. Há uns bons trinta anos, de passagem por Buenos Aires, comprei um livrinho, Cartas Finlandesas, do diplomata espanhol Angel Ganivet. Por três décadas o relato de Ganivet dormiu em minhas estantes e só fui reabri-lo ano passado, no barco de Umeå para Vaasa, quando navegava rumo à Finlândia. Uma das características do país — diz o autor — é o entusiasmo com que se aceitam todas as inovações de utilidade prática, a rapidez e a perfeição com que todo mundo as assimila. "O telefone é aqui tão usual como os trastes de cozinha; é uma pessoa mais em qualquer conversação. Muitas vezes surge uma dúvida que só pode ser resolvida por alguém que está ausente: tem-se a resposta na hora, quase como se o consulado estivesse reunido".

Mas de que Finlândia este senhor fala? — perguntei-me. Voltei ao colofão do livro: fora escrito em 1898. Há mais de século, a telefonia era moeda corrente naqueles nortes. O relato de Ganivet é da época em que na Finlândia ainda se falava predominantemente o sueco. O finlandês é uma língua nova, cujos primeiros textos escritos só surgem a partir do século XVI. Os fundamentos da língua escrita foram lançados por um bispo protestante de Turku, Michael Agricola, para pregar sua fé. O bispo decalcou vocábulos do sueco, latim e alemão, adaptando-os aos dialetos locais. Em 1809, após seis séculos de dominação sueca, o território passou a depender da coroa do Czar. Os patriotas locais reagiram: "não podíamos mais ser suecos; não queríamos ser russos, só restava tornarmo-nos finlandeses". E deram continuidade ao trabalho de Agrícola, transformando o incipiente finês em língua que expressasse o sentimento de um povo.

Nada de estrangeirismos. Quando surge um fenômeno novo em qualquer campo, a Academia de Letras se reúne para criar a palavra que vai designá-lo. O nome do autor fica registrado nos dicionários ao lado da palavra. Se quase todos os idiomas do mundo designam telefone por vocábulos mais ou menos parecidos entre si, na Finlândia criou-se o termo puhelin (de puhella, conversar), sugerido por um jornal de Porvoo em 1897.

Intransigentes na defesa do idioma, nem por isso os finlandeses deixam de abrir-se ao estrangeiro, seja no tempo, seja no espaço. Boa parte da população fala sueco e inglês. Enquanto no país da última flor do Lácio, inculta e bela, discute-se se nossa língua-mãe deve ou não voltar aos bancos escolares, desde 1989 a Rádiodifusão-Televisão Finlandesa dá-se ao luxo de oferecer uma retrospectiva do noticiário internacional da semana em latim, sob o título Nuntii Latini. Se você quiser ouvi-la directe colligatio, isto é, on line, basta clicar em www.yle.fi/fbc/latini. Novissima emissio Nuntiorum Latinorum per rete informaticum Internet audiri potest, si in apparatu phonocharta et quoddam audioprogramma (e.g. RealAudio) inest. E-mails, isto é, inscriptio cursualis electronica, podem ser enviados para nuntii.latini@yle.fi.

Uma outra característica do finês é a ausência de gênero. As palavras não são masculinas nem femininas. Tampouco existem artigos. Nos tempos verbais, não há futuro. O que deve exigir muita acrobacia dos políticos locais, pois não há como dizer, por exemplo, "eu farei isto ou aquilo".

Em meus dias de Escandinávia, encontrei uma finlandesa peculiar, professora da Universidade de Helsinque, de sobrenome Rautavaara. Já que vivemos em dias de Internet, tentei encontrá-la na rede. Sem saber se ainda estaria viva ou não, saí a procurá-la através dos Altavistas da vida. Em resumo: não encontrei a moça, mas fui cair em Rautavaara, aldeia de 16 mil habitantes no extremo norte da Finlândia. Fuça daqui, fuça dali, descobri naqueles pagos um clube de cultores de tango. Mais ainda, encontrei letras de tango em finlandês. O país é pequeno, a aldeia menor ainda, mas em seus mais recônditos rincões há um punhado de aldeões, sob o sol irreal da meia-noite ou dentro da noite eterna, dançando e cantando ritmos das antípodas.

Pois este pequeno país de cinco milhões de habitantes — um terço da população da cidade de São Paulo — sem sexo nem futuro, foi contemplado nesta semana pela ONU com o primeiro lugar no Índice de Avanço Tecnológico. Os Estados Unidos, com todo seu poderio econômico, constam em segundo. Na falta de razões para orgulhar-me deste colosso de 170 milhões de habitantes, me congratulo com os distantes finlandeses. A propósito, o Brasil obteve, a caro custo, um modesto 43º lugar, depois da Tailândia, África do Sul, Uruguai e Panamá.

País pioneiro em telefonia, hoje em Suomi (assim se chama o país em finlandês) você pode ver pessoas que já nem falam, mas lêem no visor de seus telefones. Todos da Nokia, orgulho da tecnologia dos celulares. Aliás, no início deste ano, universitários da USP invadiram e destruíram uma tenda montada na frente do Museu de Arte Contemporânea para protestar contra a realização de um evento da Nokia no campus. Quando a elite universitária brasileira toma uma atitude xenófoba e neoludita ante tecnologias novas, entende-se porque o país está na rabeira do ranking tecnológico.


 

O PC e o Imperativo Categórico

21/7/2001

 

Age de forma que tua máxima possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal — assim formula Kant seu imperativo categórico, em a Crítica da Razão Prática. Esta rígida ética impõe ao cidadão uma conduta correta e transparente. Os filósofos, sempre imersos na episteme, talvez ainda não tenham percebido as decorrências da existência deste aparelhinho do mundo da doxa, o computador. Pois o ser humano, ao saber que uma ação sua jamais poderá valer como princípio de uma legislação universal, procura escondê-la. O computador permite cada vez menos esta ocultação.

Quando vivi na Suécia, para o Estado eu era o cidadão nº 4707029916. As seis primeiras cifras indicam a data de nascimento. O número pertence a um homem, pois as três cifras seguintes são ímpares. Para uma mulher, teríamos, por exemplo, 864. A última cifra é dada por um computador e estabelece a univocidade do número pessoal. Para conferir-se se o número está correto, dobra-se alternadamente suas cifras, começando pela primeira, o que dá 08 7 00 7 00 2 18 9 02 6

Somadas estas cifras uma a uma, temos 50, o que indica estar correto o número, pois a soma é divisível por 10. Relatei estes fatos em meu primeiro livro, O Paraíso Sexual Democrata, publicado há quase trinta anos. Até aí, tudo muito prático. Ocorre que o cidadão é interrogado sobre seu número pessoal, em quase todas as circunstâncias de sua vida. Ao se matricular na universidade, comprar a crédito, solicitar auxílios sociais, internar-se em hospital, pagar multas de trânsito, casar ou divorciar-se, está alimento um banco de dados. Não existem limitações para o tipo de dados que podem ser registrados num computador, sejam verdadeiros ou falsos. A Suécia, na época, era um dos países mais informatizados do mundo e o problema começava a causar inquietações. O alerta foi dado por Harry Björk, na antologia Kontrol av Individen (Controle do Indivíduo), publicada em Lund, 72. "A limitação prática dos dias atuais — dizia o autor na época — é que as informações devem ser expressas em letras e cifras". Hoje, nem esta limitação existe.

Björk sugeria um exemplo no qual dados inocentes, uma vez combinados, produziriam novos efeitos: a compra de um casaco de pele para senhora, nº 42. Ora, A é casado com a senhora A, que veste 38. "Os que dispõem destes dados combinados, dando apenas asas à fantasia e talvez se informando um pouco sobre a vida da família, têm elementos para tudo, entre a difamação, calúnia e chantagem". Se considerarmos que nos bancos de dados das associações estudantis suecas constam desde os certificados obtidos até eventuais contribuições para movimentos guerrilheiros no exterior, temos uma pálida idéia do que o Estado sabe a respeito do cidadão. Na época, lei nenhuma regulava o comércio de informações.

O Senado Federal aprovou, em 96, lei de autoria do senador Pedro Simon, que instituía um número único para cada cidadão brasileiro, composto de letras e algarismos. Com a nova regra, serão extintos todos os atuais cartórios de registro civil. Tudo será centralizado num único cartório, responsável pelo Cadastro Nacional de Registro Civil. Em abril de 97, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou o projeto. Esta lei, que de certa forma regulamenta o imperativo categórico kantiano, devia entrar em vigor cinco anos depois, ou seja, em 2002. Quem viver, verá.

Número pessoal mais informática mais bancos de dados, além de prevenir e permitir a punição de não poucas falcatruas, tornam mais clara a administração pública. Mas invadem inexoravelmente a vida de cada um. Na época em que se aprovou este projeto, não li em lugar algum denúncias em torno ao Big Brother orwelliano. É comum citar-se George Orwell e 1984 quando pairam ameaças à privacidade do cidadão. Isso porque tiveram pouca fortuna em língua portuguesa livros anteriores, como o magnífico Kalocain, de Karin Boye (que tive a honra de traduzir do sueco e talvez possa ser encontrado em algum sebo) e o menos conhecido Nós, de Evguéni Zamiatine. Na distopia do autor russo, as paredes dos edifícios são de vidro, pois afinal cada cidadão nada tem — ou não deve ter — a esconder do Estado. No livro da autora sueca, mediante a injeção da droga kalocain, todo cidadão confessa alegremente qualquer pensamento ou ação contra o Estado. O desejo kantiano de transparência, por parte dos ideólogos destas sociedades, torna-se hoje cada vez mais factível graças ao computador. Não por acaso, um dos movimentos que contribuiu para a derrocada do comunismo chamava-se glasnost. Em russo, transparência.

Assim sendo, me parece um tanto quanto tardio o alarido feito recentemente pela imprensa em torno à Medida Provisória 2.200, chamada a MP dos Cartórios Virtuais, editada pelo Governo Federal em junho passado. Por esta medida, cria-se um Comitê Gestor da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira, que daria certificação eletrônica aos documentos que circulam na rede. Isto permitiria ao governo, segundo os opositores da medida, controlar cadastros e transações privadas. A Folha de São Paulo, em editorial pouco inspirado, brandiu logo a ameaça do Grande Irmão.

Ora, o Grande Irmão toma posse de seu cargo a partir do número pessoal. Uma vez identificado por um número e inserido em bancos de dados, você tem uma privacidade muito próxima de zero. E o computador e a Internet vieram para ficar. Sem falar que aquela cautela de arcaicos humanistas ante câmeras vigiando transeuntes já caiu por terra, ante outros imperativos, os da violência urbana. Uma vez liberado o gênio da lâmpada, não há como empurrá-lo de volta. O que ainda pode ser feito é tratar-se de uma legislação que proteja minimamente o indivíduo nestes dias informáticos.

Deitado eternamente em berço esplêndido, o Brasil entra no milênio travando discussões que eram atuais ... há três décadas.


 

Lunes sin Postre

27/7/2001

 

"El país más lindo del mundo", escreve o escritor galego Camilo José Cela, prêmio Nobel de Literatura, em San Camilo, 1936, ao referir-se a Espanha. Esta opinião, partindo de um espanhol, pode parecer ufanista e suspeita. Eu, que não sou espanhol nem galego, muito menos Nobel, assino embaixo. Conheço os mais lindos países do mundo e posso afirmar, isento de qualquer parcialidade: de fato, é o mais lindo entre todos. Se me perguntarem pela mais linda cidade, não direi Madri ou Barcelona. Afinal, aí estão Paris, Estocolmo, Amsterdã. Mas o país continua sendo o mais lindo. Não tanto por suas cidades, mas por seus habitantes.

Eu os conheci de perto em Madri. Mais que a arquitetura, mais que os museus, cafés ou gastronomia, são os madriles que fazem a festa da cidade. Seu estilo de vida confunde a Comunidade Européia. A cidade acorda às nove da manhã, se espreguiça às dez, e o meio-dia tem pelo menos três momentos bem distintos. De las doce del mediodía hasta la una, toma-se um aperitivo, que ninguém é de ferro. O almoço mesmo fica para las dos del mediodía. Na saída do trabalho, sempre se pode continuar com mais una copita, entre las seis y las nueve de la tarde. Janta mesmo é para las once — aí sim — de la noche. Os madrilenhos são fundamentalmente callejeros, isto é, fazem sua vida social na rua. Como se sabem atores de um espetáculo público, capricham na representação. Comer bem, para o espanhol, é uma questão de honra, um gesto público. A Espanha era assim antes de Franco, foi assim durante Franco e continua sendo assim sem Franco. Hoje, graças a Franco. Sem o caudillo, o país teria mergulhado na miséria inerente ao socialismo.

Faz tempo já. Em Florianópolis, aquela ilha cuja universidade conferiu o título de Dr. Honoris Causa a Fidel Ruz Castro, um grupo de universitários homenageava os déspotas menores da Nicarágua, os irmãos Ortega. Era uma efeméride qualquer da dita Revolução dos nicas (alguém ainda lembra dela?) e os bravos e lúcidos universitários me convidaram, creio que como em uma espécie de repto, para o evento, em um dos restaurantes mais prestigiados da ilha, como sói acontecer em tais comemorações de esquerda. Lá pelas tantas, um poeta jovem e barbudo, empunhou o verbo e declamou, em forte e bom som, um poema cujo refrão era: "Cara al sol, compañeros!"

Jovem, barbudo e analfabeto. Os que não conhecem a história estão condenados a repeti-la. Não resisti e tomei a palavra. Congratulei-me com o poeta, que naquela confraternização evocava Franco, o homem que havia salvo a Espanha da barbárie. Pasmo na platéia: que tinha a ver Nicarágua com Franco? Pois naquela reunião de universitários, não havia um só acadêmico, minimamente informado, que soubesse que Cara al Sol era o hino da Falange Espanhola das JONS. Declarado por decreto de 1937 de Francisco Franco canto nacional, deveria ser assistido nos atos oficiais com "consideración, respeto y alta estima" e escutado sempre "em pé, como homenagem à Pátria e em lembrança dos gloriosos espanhóis por ela caídos na Cruzada". Entusiasmado pelo som das palavras, o iletrado agitprop sandinista enchia a boca com palavras de ordens franquistas. Também iletrados, os universitários aplaudiam com entusiasmo o que foi mote dominante da zona nacionalista durante a Guerra Civil espanhola. A revolução, dizia Roberto Arlt, deve ser feita pelos jovens: são estúpidos e entusiastas.

Ainda na ilha, tive outro encontro emblemático com outro agitprop, um folclórico comunista gaúcho — também poeta, pra variar — refugiado em uma prebenda na prefeitura da ilha, como sói acontecer com os militantes do Partido. Estávamos em 88, eu voltava do Chile. Do Chile de Pinochet, bem entendido. Vi um país rico e deslumbrante, sem sinais visíveis de miséria, onde havia total liberdade de expressão, a ponto de o secretário do PC chileno dar entrevista na primeira página do conservador El Mercúrio. Esta visão não era apenas a deste reacionário que vos escreve, mas também era compartilhada pelo cineasta Miguel Littín, que entrara clandestino no país e dera entrevista a Gabriel Garcia Márquez, mais tarde publicada em livro, A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile. Comentei estes fatos com o poeta gaúcho. Podia talvez discordar de mim. De Littín era mais difícil. Comentou, meio sem graça:

— É! Mas a que preço...

— A violência é o fórceps da história — respondi.

O velho comunossauro subiu em seus tamancos:

— Ei! Essa frase é nossa.

E daí, companheiro? Para mim, era de domínio público. Que soubesse, não estava registrada em cartório, como tampouco se pagava direito autoral para usá-la. O sandinista podia usar a vontade o hino franquista. Eu não podia sequer citar um apotegma marxista.

Leio que o PT assumiu um antigo projeto franquista. Que Lula, o candidato profissional à presidência da República, seja um cultor de Hitler, isto não espanta. Schickelgruber sempre fascinou quem é fascinado pelo poder. "O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer", dizia em julho de 79. Tampouco espanta sua admiração por Khomeiny: "Eu não conheço muita coisa sobre o Irã, mas a força que o Khomeiny mostrou, a determinação de acabar com aquele regime do xá foi um negócio sério", disse na mesma ocasião. O que me surpreende é sua proposta de taxar as refeições em restaurantes de luxo. Confesso que desconhecia seu pendor pelos métodos franquistas. Pois durante a Guerra Civil, para financiar a luta, Franco instituiu o chamado "lunes sin postre". Às segundas-feiras, os espanhóis dispensavam a sobremesa, para colaborar com o esforço de guerra.

Que um poeta analfabeto branda um hino franquista como bandeira de esquerda, até se entende. Que universitários o aplaudam também se entende. A universidade, hoje, é um forno onde se forjam ideologias quentinhas. Mas o inculto pentacandidato podia ter ao menos alguém em sua assessoria para alertá-lo das origens históricas de sua brilhante proposta.


 

Ex-Cholo Ressuscita Apus

3/8/2001

 

Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo. Salvo engano meu, esta frase é de Voltaire. O bicho homem é um bicho místico por excelência. Tentar libertá-lo de idéias de transcendência é como enxugar gelo. Demagogos sabem muito bem disso. Quanto mais inculta a clientela, mais chances tem de vingar o apelo ao divino.

"Saber cada vez menos, poder cada vez menos conduz naturalmente a crer cada vez mais", escreve Claude Roy, em Les Chercheurs de Dieux. Segundo o autor, se o consumo do tabaco na França passou de um milhão de consumidores em 1900 para 82 milhões em 1978, o consumo de crenças, mais difícil de ser mesurado, provavelmente aumentou mais ainda. "A fé se fragmentou e disseminou em mil microcrenças ou substitutos de igrejas, da vaga divindade do progresso à astrologia, do partido político como instrumento da salvação coletiva às panacéias dietéticas, da religião da História ao culto das vedetes transmutadas em ídolos, da fé na medicina à fé na virtude de enzimas ou vitaminas. O cidadão das sociedades modernas, que sabe cada vez menos, é forçado a crer cada vez mais".

Claude Roy nos conta episódio pouco conhecido dos primórdios da Revolução Russa. Por volta de 1850, se constitui em torno de Vladimir Soloviev o movimento revolucionário cristão "Os Buscadores de Deus". Com o fracasso da Revolução de 1905 — ensaio geral para a de 17 — Lunacharski e Gorki retomam o movimento, que passa a chamar-se "Construtores de Deus". Em uma carta de 1908, Gorki escreve que o "socialismo deve se transformar em culto". No romance A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, um militante diz aos operários em cortejo: "Nossa procissão marcha agora em nome de um deus novo". Lunacharski chegou inclusive a redigir um pai-nosso, que citei em crônica passada, tendo como personagem o novo deus: "Proletariado nosso que estás na terra, bendito seja teu nome, seja feita tua vontade", etc. Para Lunacharski, "lá onde reina o proletariado, não há lugar para uma querela entre o saber e a fé, pois a fé é o resultado do conhecimento pelo homem do poder da razão".

Esta deificação do proletariado, tão em voga no final do século XIX, ainda vige entre as esquerdas brasileiras. Em seu obsoletismo, intelectuais ligados à universidade e os setores ditos progressistas da Igreja Católica querem a todo custo impor ao país um presidente operário. Verdade que este candidato feito a martelo há mais de vinte anos não trabalha e já nem deve querer lembrar do torno mecânico onde começou sua bem sucedida carreira de viagens internacionais e freqüência a hotéis cinco estrelas. Mas ainda resta a mística do ex-operário, que com sua langue de bois repete palavras de ordem que nem ele mesmo entende.

O deus proposto por Gorki e Lunacharski não emplacou. Em verdade, teve vida curta para um deus: não chegou a varar um século. Defunto o deus, a nova religião caiu por terra, embora tenha ainda não poucos cultores neste Brasil sempre a reboque da História.

Se criar deuses não é tarefa fácil, talvez seja melhor ressuscitá-los. Ou, pelo menos, tentar ressuscitá-los. É o que pretendeu fazer Alejandro Toledo, o recém-empossado presidente peruano. Um dia depois de prestar juramento, o novo presidente participou de uma cerimônia simbólica nas ruínas da cidade inca de Machu Picchu. É o que nos contam os jornais. Por meia hora, sacerdotes ofereceram flores e folhas queimadas a Pachamama, a Mãe Terra, e aos apus, deuses das montanhas, para pedir-lhes prosperidade. Providências muito oportunas, para não dizer oportunistas, nestes dias em que as viúvas do Kremlin, exaustas dos dias de nojo, tentam ressuscitar o antigo panteísmo greco-romano, invocando a deusa Gaia.

Toledo é o primeiro descendente de índios eleito presidente do Peru, o que tem provocado alvoroço entre antropólogos e outros óologos, para os quais finalmente um indígena chegou ao poder na América Latina. Se nos fins do século XIX endeusava-se o proletariado, hoje o candidato à deidade é o indígena, a ponto de uma revista americana saudar, em sua capa, o reles estuprador Paiakan como "o homem que pode salvar a humanidade". São as ondas concêntricas que ainda não morreram do mito rousseauniano do bon sauvage.

Toledo diz ter sido inclusive engraxate, depoimento que não goza de maior consenso entre os que o conheceram na infância. Seu passado surge envolto no mesmo tipo de mentiras que proporcionaram a Rigoberta Menchú o prêmio Nobel da Paz. El Cholo, como é chamado, doutorou-se em Economia por Stanford e lecionou em Harvard. Ora, um cholo com PhD por Stanford não é mais um cholo. É um homem impregnado da cultura acadêmica branca, titulado por uma das mais prestigiadas universidades americanas. Não terá sido Pachamama ou os apus que o salvaram no momento da defesa de tese. Obviamente, não terão lugar em sua formação crenças primitivas em mães-terra ou deuses da montanha. Toledo sabe muito bem que sua vitória se deve, não a divindades incas, mas à corrupção do governo de Fujimori e Montesinos. Mas, demagogo experiente, faz seu apelo ao divino.

Mesmo para os cholos aqueles deuses estão há muito mortos e sepultados. Se quisermos entender porque Toledo decidiu ressuscitar os defuntos apus, cherchons la femme. No caso, Eliane Karp, a nova primeira-dama peruana. Belga, etnóloga de formação, Karp diz ter-se casado com o objeto de suas pesquisas. Ao invocar os apus, durante o culto em Machu Picchu, chamando-os um a um pelo nome, Karp faz um aceno à antropologia, isto é, à mauvaise conscience européia, e a uma imprensa que adora crer em crendices tribais como uma forma superior de civilização.

Quando o dólar estiver corroendo os intis, Toledo se munirá de uma assessoria do Além para negociar com o FMI e bancos internacionais? Enquanto isso, os jornais publicam fotos suas entoando preces em Machu Picchu. Para inglês ver. A nós, que conhecemos os bois com que aramos, El Cholo não consegue enganar.


 

Morre Madalena Tardia

10/8/2001

 

Morreu, virou santo. No caso, gênio. Indiscutivelmente o mais vendido — nos dois sentidos da palavra — autor brasileiro, Jorge Amado sempre foi visto com desdém pela crítica acadêmica. Alfredo Bosi nele reprovava a "pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez da captação estética do meio, tipos folclóricos em vez de pessoas, descuido formal a respeito da oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano." Para Flora Sussekind, Amado tinha virado um "cacoete de si mesmo para agradar o grande público e vender mais". Segundo Carlos Guilherme Mota, o escritor baiano não fazia outra coisa senão repetir-se.

Mal virou cinzas, transformou-se no maior escritor nacional. Não sobram críticas à Real Academia Sueca, que teria cometido uma suma injustiça não lhe concedendo o Nobel de Literatura. O que não seria de espantar. Se os olímpicos hiperbóreos já premiaram vigaristas notórios como Cholokov e Neruda, um a mais um a menos em pouco ou nada contribuiria para o galopante desprestígio do prêmio.

Minha reconciliação com a literatura brasileira, devo a este vigarista do verbo fácil. Na escola secundária, meus professores não pouparam esforços para afastar-me das letras. Éramos obrigados a ler as xaropadas costumeiras que constam das antologias colegiais, desde José de Alencar a Machado de Assis, passando por algum soneto de Camões. Foi quando me caiu nas mãos Dona Flor e Seus Dois Maridos. As comadres de Dona Flor queriam saber "quem tinha a melhor chupiça, a estrovenga mais forçuda e doce". Quer dizer que literatura podia também ser sensual, divertida? Estávamos longe dos tálamos machadianos, sempre velados por pudicos reposteiros. Li Amado com gosto, como quem redescobre a alegria da leitura. Li A Morte e A Morte de Quincas Berro d'Água e Os Velhos Marinheiros, certamente os melhores momentos do autor. Li também Gabriela, mais alguns dos títulos seguintes, Tenda dos Milagres, Teresa Batista e aí cansei. Amado descobrira uma fórmula de grande vendagem e a repetia sem pudor algum. Literatura nada tem a ver com isso.

O agitprop comunista, vim a conhecer melhor mais tarde, em Paris. Lá, mergulhei em pesquisas sobre o stalinismo, este conto sinistro em que caíram os mais ativos cérebros do Ocidente. Estudei escritores franceses e europeus, pesquisei o zdanovismo e, ao entrar no capítulo América Latina, lá estava, brilhando entre seus pares, o baiano.

Contemporâneo de Stalin, Amado não poupou elogios ao Paizinho dos Povos, no baboso O Mundo da Paz, em virtude do qual lhe foi conferido o Prêmio Stalin de Literatura. Stalin delega Luís Carlos Prestes para instaurar uma ditadura ao estilo soviético no Brasil? Amado, discípulo obediente, faz a apologia de Prestes em O Cavaleiro da Esperança. Não bastassem estes dois panfletos escritos com a ênfase de um fanático, Amado esboça o que pretendia ser uma espécie de Guerra e Paz tupiniquim, Os Subterrâneos da Liberdade. Do que fora concebido para nove volumes, com as denúncias de Kruschev no XX Congresso dos PCUS, acaba sobrando uma trilogia, onde o grande personagem é o Partido Comunista.

Stalin faz um pacto com Hitler? Amado não hesita em editar uma página cultural no jornal nazista Meio-Dia, e tenta inclusive cooptar Oswald de Andrade como colaborador. Acena com trinta contos ao escritor paulista, caso este se disponha a escrever um livro em defesa da Alemanha. Oswald se recusa, exige que o baiano se retire de São Paulo e o denuncia como espião barato do nazismo. Ainda há poucos anos, Amado dizia não lembrar mais de ter colaborado com o Meio-Dia. Santa amnésia. Fica a lembrança de Oswald.

Em 1956, Amado faz um tímido mea-culpa, após a denúncia de Kruschev, dois anos antes, dos crimes stalinistas. Madalena tardia, ignorou solenemente as denúncias dos gulags que há muito vinham sendo feitas por Istrati, Gide, Camus, Koestler, Orwell. Ignorá-las rendia prestígio e direitos autorais. Isto sem falar na affaire Kravchenko, cujo processo, em 49, em Paris, foi considerado o "julgamento do século". Amado, que lá já residia desde 48, não poderia ignorar os fatos que comprovaram à exaustão a natureza tirânica do regime do Paizinho dos Povos.

De nazista e stalinista, virou roteirista da Rede Globo. Já nesta fase, encontrei-o em Paris, nos anos 70. Justo quando eu folheava uma de suas traduções, na Hachette do Boulevard Saint Germain, entra o próprio autor na livraria. Nos cumprimentamos, ele quis saber o que eu fazia por lá. Elaborava uma tese em torno a Sábato, respondi. Lembrei que Amado, em seus dias de exílio na Argentina, vivera na mesma casinha de Santos Lugares em que até hoje mora Sábato. Ingênuo, lembrei também que Sábato, naquele ano, fora indicado para o prêmio Nobel. Melhor não lembrasse. Amado fechou a cara e despediu-me com frieza. Nobelizáveis são susceptíveis.

Em 94, ao expor a um repórter da Folha de São Paulo a mansão comprada com os dólares da Metro Goldwin Mayer, diz a grande prostituta: "Passei a vida a xingar os americanos, mas tudo o que temos é graças ao dinheiro dos imperialistas ianques. Compramos essa casa em 63 com a venda dos direitos de Gabriela para a MGM, rodado 21 anos depois. Cobrei barato, só US$ 100 mil".

Venal, Amado confessa ao que veio.

R.I.P.


 

Marta, Marta

24/8/2001

 

Ter muitas mulheres, no mundo das artes, jamais é opróbrio ou execração, mas condição de extrema ventura, fator de sadia inveja da parte dos comuns mortais. Adoramos ouvir Leporello gabar as conquistas de Don Juan, as mile e tre espanholas, isso sem falar nas outras. Em Don Giovanni, para satisfazer os pruridos morais de uma casta Viena, Mozart o joga aos infernos. Mas até a queda do conquistador, já estamos irremediavelmente encantados com sua lábia. Ninguém dirá que as platéias que aplaudem Mozart são constituídas por milhões de devassos.

Don Juan pertence ao mundo dos mitos. Já Giacomo Casanova de Seingalt, veneziano de carne e osso, revirou a Europa, de Madri e Londres a Moscou, em época que nem trem existia. A cavalo ou em diligências, sempre atrás das saias, infatigável em sua busca de prazer, Casanova virou epônimo de conquistador. Já velho, empregado como bibliotecário no castelo de Dux, escreveu: "agora que não posso mais viver, sento e escrevo sobre o que vivi". Ao narrar suas lides de cama em dez gordos volumes, entrou na História. Pela porta dos fundos.

Teria tido em torno de duas mil mulheres. É a mesma cifra que George Simenon admitia em uma entrevista concedida a Federico Fellini. Henry Miller fez fortuna evocando seus embates sexuais na Paris dos anos 30 e teve morte digna de um fauno aposentado, cercado por fãs tardias, na Califórnia. Claro que o grosso desta contabilidade decorre do amor pago. Mas uma prostituta, nas mãos de um escritor, torna-se uma figura emblemática, Dostoievski e Kuprin que o digam. Neste mundo tudo é permissível. O senil Aschenbach pode enamorar-se pela juventude de Tadzio, em seus doze ou treze anos. Nem por isso vamos acusar o livro de Mann ou o filme de Visconti de incentivo à pedofilia.

Este privilégio de ser louvado por transgredir normas não é exclusivo do macho. Às mulheres também é permissível colecionar amores, desde que as colecionadoras também trafeguem no território da arte. Sem ir mais longe, aí estão Anaïs Nin ou Simone de Beauvoir. Na pena de Miller, Nin transforma-se num être etoilique. Para gerações e gerações de mulheres do pós-guerra, Simone virou ícone das lutas femininas. Sua vida erótica era, em verdade, mais diversificada que imaginávamos. Como a abertura da época era um tanto limitada, Simone deixou o relato de suas conquistas femininas para as memórias póstumas. A lista das mulheres beneficiadas por este sursis só aumenta quando saímos do campo das letras e entramos no do teatro ou cinema: Greta Garbo, Marlene Dietrich, Edith Piaf et j’en passe. Entre nós, Patrícia Galvão, a Pagu, virou lenda. Amante de Oswald de Andrade, foi a musa dos sedizentes modernistas de 22. Pelo menos até o dia em que, tendo conhecido Moscou, passou a contestar o socialismo. Modernismo tem limite.

Mas isto só vale se você trafega no Olimpo das deidades. No mundinho dos pobres mortais, estas stakhanovistas do amor não passam de reles galinhas. É mais ou menos o que está acontecendo com Marta Suplicy, nesta Paulicéia subitamente pudica. Assumiu a prefeitura de São Paulo financiada por empresas de tratamento de lixo indiciadas por corrupção na gestão anterior. Em pagamento ao financiamento da campanha, contratou sem licitação as empresas denunciadas pelo próprio PT. Isto já não mais importa. O que interessa agora aos jornais é o romance temporão da alcaidessa com um agitprop argentino de passaporte francês.

Se tudo é permissível no mundo das artes, o mesmo não ocorre no mundo da política. Clinton que o diga. Por travessuras que fizeram a glória de um Henry Miller, quase perdeu o poder. O escritor dispensa votos e lida com a utopia. O político, além de precisar de votos, depende da simpatia de uma classe média que perdeu a inocência dos pobres e não assumiu o cinismo dos ricos. Quando sexóloga, Marta podia acenar com comportamentos pouco ou nada ortodoxos. Poderia inclusive assumi-los, que isto a ninguém diria respeito. Prefeita, tem de vestir a saia justa que lhe impõe o cargo.

Os cornos são como Deus — costumo afirmar — só existem para quem neles crê. Em Estocolmo, uma tradutora perguntou-me como traduzir um livro de Camilo José Cela, Rol de Cornudos, obra que pretende ajuntar aos 144 tipos clássicos de cornos, listados pelo utopista francês Charles Fourier, a generosa contribuição ibérica. Na cultura sueca não existia a noção de corno, cornatura ou cornificação. Sugeri que mantivesse a palavra, com uma nota explicativa. Cada idioma tem suas peculiaridades. Assim como não encontramos tradução perfeita nas línguas latinas para o sueco längtan, não espanta que certos conceitos latinos não encontrem guarida no idioma dos Sveas. Na época, a Volvo havia lançado um carro, que tinha como propaganda um viquingue, com os cornos do elmo sobressaindo da capota. Na Escandinávia, tudo bem. Na Itália, a propaganda foi tida como contraproducente. Corno é espécime que prolifera em culturas católicas, onde a mulher pertence a seu amo e senhor e ai dela se pretender que em seu corpo só ela manda.

Amor é mito literário, surgido entre os gregos, com surpreendente fortuna no Ocidente. Dona Marta sabe muito bem que amor não existe. Mas vive imersa num universo católico. Não lhe ocorreu descasar primeiro, para depois recomeçar nova parceria. Aos olhos deste universo católico, de cujo voto precisa, ela é adúltera. O Brasil não é uma Suécia, onde foi abolida a noção de chifre. A Igreja Católica, que do nada criou Lula, apóia o PT. Defensora irredutível do matrimônio indissolúvel, até hoje não aceitou o divórcio. Não poderá recomendar o voto de sua clientela a uma adúltera.

Cristo, em sua divina onisciência, antecipou o drama da alcaidessa: "Marta, Marta, estás ansiosa e perturbada com muitas coisas, e no entanto tão pouco é necessário".

Marta, para desgraça do PT, prefere ouvir outras vozes.


 

O Índex das Esquerdas

31/8/2001

 

Em meus anos de França, tive acesso a livros fundamentais, títulos há muito publicados e jamais traduzidos no Brasil. Tivessem os universitários brasileiros conhecimento destas bibliografias, não estariam hoje louvando Che, Castro ou os neocomunistas do PT.

Olavo de Carvalho comentava há pouco um desses livros que provavelmente jamais será traduzido por estas plagas. É Le Terrorisme Intellectuel de 1945 à Nos Jours, de Jean Sévillia, publicado em Paris, há algumas semanas. Olavo escolhe este momento significativo de Sartre como mostragem: "Um regime revolucionário tem de se desembaraçar de um certo número de indivíduos que o ameaçam, e não vejo outro meio de fazer isso senão a morte. Da prisão, sempre se pode sair. Os revolucionários de 1793 provavelmente não mataram o bastante". Claro que um livro desses não pode ser publicado em Pindorama. Como salvariam a face os doutos humanistas que fizeram suas carreiras universitárias louvando o celerado?

Assim como a Igreja teve seu Index Prohibitorum, as esquerdas tinham também sua listinha de autores proibidos. L'Homme révolté, o mais importante ensaio de Camus, publicado em 51, só surgiu no Brasil no final dos 90, quase meio século depois de editado em Paris, após a Queda do Muro e o desmoronamento do comunismo. Ao chegar ao leitor brasileiro, havia perdido muito de seu sentido, pois já caíra a mais longa ditadura do século. Hoje, mais que uma obra de combate, L'Homme révolté é o testemunho histórico de um escritor que não se deixou enganar pela utopia soviética. Em todo caso, a polêmica de Camus com d'Astier de la Vigerie, um dos mais vibrantes textos do autor argelino, publicado em suas obras completas, sob o título Ni Victimes, ni bourreaux, continua solenemente ignorado no Brasil.

Muitos outros foram os livros subtraídos ao leitor brasileiro. Livros que teriam modificado substancialmente os rumos do país, se tivéssemos editores de coragem. Arrolo alguns títulos para o leitor mais curioso. Como passei alguns anos no exterior — sem falar dos que vivia no interior gaúcho, onde raros livros chegam, e sem falar dos anos em que eu sequer vivia — posso cometer algum lapso. Que o leitor melhor informado me corrija.

Um dos mais significativos foi Vers l'autre flamme, do escritor romeno de expressão francesa, Panaïti Istrati. Primeira denúncia do stalinismo, foi publicado na França em 1929 e só reeditado em 1980. Suas Obras Completas foram publicadas pela Gallimard, exceto Vers l'autre flamme, cujos originais levam Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo: "Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais". Claro que tal livro jamais seria publicado no Brasil.

Um dos livros mais importantes da história do comunismo, The God that Failed, publicado em 1950 na França, chegou a ter sua tradução anunciada por Raquel de Queirós, mas não me consta que tenha sido publicado. Nele estão as razões que fizeram Arthur Koestler, Ignazio Sillone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender renunciar à nova religião. Por falar em Koestler, uma outra lacuna injustificável nas edições nacionais, são os volumes de sua autobiografia intelectual, Arrow in the Blue e The Invisible Writing. Koestler, judeu húngaro de cultura cosmopolita, militante sionista e marxista, viveu em Israel, Moscou, Viena, Paris, Berlim e inclusive participou da Guerra Civil Espanhola. Leituras fundamentais para entender-se o debate ideológico da Europa na primeira metade do século passado, jamais chegaram ao leitor brasileiro.

A biografia clássica do ditador russo, Staline, de Boris Souvarine, publicada em 1939, nem pensar. Outra biografia não menos importante, em dois volumes, é a de Alam B. Ulam, publicada em 1973, nos Estados Unidos. No Brasil, quase criou-se um gênero literário, a literatura laudatória de Castro e Che, que chegava a ter estantes especiais nas livrarias. Passou-se mais de quarto de século, no entanto, e os editores brasileiros sequer se dignaram a publicar o livro de Ulam. A Nova Fronteira, diga-se de passagem, publicou Os Bolcheviques, em 76. Mas esta obra, que deveria fazer parte dos currículos universitários, hoje você só a encontra em sebos e olhe lá.

De David Caute, que elaborou importantes ensaios como The Great Fear, Communism and the french intellectuals (1914-1966), The Fellow Travellers (1917-1968) ou Sixty-Eight, nada sabemos. Le stalinisme, de Roy Medvedev, publicado em 71, nos EUA, com o título Let History Judge, ainda não deu as caras em nossas livrarias. Les Staliniens, de Dominique Desanti, de 1975, muito menos. Les Origines intellectueles du leninisme, de Alain Bensançon, nem falar. L'Affaire Kravchenko, de Guillaume Malaurie, nem sombra. Se nossos universitários nem sabem quem foi Pol Pot, podemos imaginar o que devem conhecer de Kravchenko. Me consta que o livro do dissidente russo, que desmitificou definitivamente o stalinismo, J'ai choisi la liberté, foi traduzido nos anos 50 entre nós. O título virou motivo de derrisão entre a intelligentsia tupiniquim. Toda vez que alguém criticava Moscou e seus ucasses, não faltava quem perguntasse ironicamente: ah, você também escolheu a liberdade?

Quando as denúncias se referem ao nazismo, as notícias chegam mais depressa até nós. Mais depressa, mas não muito, para não perturbar carreiras de ilustres filosofadores tupiniquins. É o caso de Martin Heidegger. Heidegger and Nazism, do chileno Victor Farias, data de 1987, mas só foi traduzido em 98 por aqui. Em 1994, foi publicado em Munique, Ein Meister aus Deutschland — Martin Heidegger und seine Zeit. Louvemos o que deve ser louvado. Acaba de ser traduzido pela Geração Editorial, como Heidegger, um mestre da Alemanha. Antes sete anos depois do que nunca.


 

A Confraternização no Naufrágio

8/9/2001

 

Logo que comecei a brincar com computador, fiz um cartaz que pensei em colar em minha sala:

É PROIBIDA A ENTRADA DE CÃES, COMUNISTAS, PETISTAS,
SOCIÓLOGOS, ANTROPÓLOGOS, PSICANALISTAS
E CRENTES EM QUALQUER DEUS

Claro que não saiu da telinha. Pra começar, um amigo de infância, com o qual convivo até hoje, foi do PCdoB, fez guerrilha urbana, levou quatro anos de prisão militar. Brincamos juntos quando vivíamos no campo, fizemos ginásio em Dom Pedrito, científico em Santa Maria, filosofia em Porto Alegre e hoje confraternizamos em São Paulo. Nossa relação sobreviveu inclusive a visões filosóficas completamente opostas.

Aliás, se olho para trás, a maior parte de meus amigos militou no Partido. Um deles me dizia: "tu és contra tua geração". O problema é que minha geração era — foi — marxista. Como estudava História da Filosofia já em meus 15 anos, eu não podia aceitar uma filosofia tão tosca.

Um outro amigo, e dos melhores, historiador e cosmopolita, que já lecionou na Europa e Estados Unidos, acredita piamente no deus cristão, vai à missa e papa hóstias com fervor. Sinto que o machuco quando falo dos católicos como hematófagos profissionais. Ocorre que assim penso.

Petistas eram boa parte de meus colegas de jornal e inclusive algumas amigas. Antropólogas, uma delas foi boa interlocutora em São Paulo. Depois, os ianomâmis nos separaram. Mas que fazer? Nos dias de universidade, perdi namoradas em função dos vietcongues. Hoje são os bugres que nos afastam. Mudam os tempos, persistem os dogmas.

Sociólogos, eu não tinha amigo algum, mas não estava livre de. Quanto a psicanalistas, reencontrei aqui uma antiga amiga de Porto Alegre que se iniciava no ofício. Não seria por isso que deixaria de recebê-la. Quanto a cães, continuam não entrando em minha casa. Mas... tenho uma tia muito querida e ela é inseparável de seu cãozinho. E fã do padre Marcelo. Se vier me visitar, minha última barreira cairá por terra.

Meu cartaz era um projeto sem futuro. Converso com todo mundo e aceito todas as posições e pontos de vista. Posso até ser áspero na discussão, mas isso é coisa de gaúcho. Sempre tento me colocar no lugar do interlocutor. Se for católico ou cristão, é fácil, eu já o fui e conheço bem a crença. Se for comunista já complica. Apesar de conhecer bem a ideologia, jamais a assumi nem militei no Partido. Não tenho, portanto, os reflexos da raça. Se aceito outrem, pense como pensar, isso não me impede de tecer críticas ao seu modo de ver o mundo. Defendo o direito de qualquer pessoa acreditar em Deus ou em Marx, em Freud ou no efeito estufa. Mas me reservo o também sagrado direito de criticar essas posturas.

Os garçons são os homens de minha vida, disso já sabe quem me acompanha nesta coluna. Pois um dia destes, me perguntava um desses meus homens:

— Você é católico?

Não. Não era.

— Acredita em Deus?

Não.

— Vota em quem? No PT?

Não votava em ninguém.

— É corintiano ou palmeirense?

Nem um nem outro. Futebol, a meu ver, não existe.

— Mas então você não acredita em nada!

No bestunto do garçom, se não tenho uma religião, um partido político ou um time de futebol, descreio de tudo. Ele tinha e não tinha razão. Pertenço àquela raça da qual falava Panaïti Istrati, a dos homens que não crêem em nada. Mas minha descrença nada tem a ver com Deus, PT ou Corinthians.

Desde que me conheço por gente, jamais cultivei qualquer filosofia ou ideologia. A primeira e última crença que alimentei foi o catolicismo que me foi enfiado a machado na cabeça por padres oblatos no ginásio. Dela me libertei bem cedo, lá pelos 15 ou 16 anos. De lá para cá, não aderi à nenhuma visão estanque de mundo. Em meus dias de universidade, no curso de Filosofia, vivi cercado de marxistas. Como não fechava com seus dogmas, logo vinha a pergunta: mas qual é tua ideologia? Ora, eu não tinha ideologia alguma.

Meus colegas me olhavam com aquele olhar de superioridade piedosa, com o qual todo marxista olha quem ainda não descobriu a Verdade. Para os marxistas, todo e qualquer ser humano tem uma ideologia, mesmo que afirme não tê-la. Como eu negava adotar qualquer ideologia, isso significava simplesmente que uma ideologia eu tinha: a burguesa.

Aqueles tempos são passados. Ou eram passados? Não passa dia em que não me atribuam uma ideologia, embora ninguém saiba dizer bem qual seja. Reitero: não tenho ideologia alguma nem defendo nenhuma filosofia. Minha visão de mundo é a daquele personagem do poema Tabacaria, de Pessoa, que olha o universo ambiente com a indiferença de uma pedra pensante.

Crer em mim? Não, em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Depois de Platão, os pensadores complicaram demais o que é muito simples. De pouco ou nada adianta dizer que o homem é isto ou aquilo, vai para lá ou para cá, a vida tem este ou aquele sentido. A filosofia, por basear-se na razão, é uma sucessão de idéias que nascem, vigem, se contrapõem e morrem, ao sabor de modas. Vista sob este aspecto, mais parece gênero literário, já exausto pelos séculos. Tomás via o homem assim, Kant assado, Spinoza por um certo viés, Hegel por outro. Nenhum destes pensadores mudou a realidade imutável: o homem é ser que nasce, cresce e morre. A Suma Teológica, que foi a compilação do saber de uma época, é hoje um livro de humor refinado. Em meus dias de magistério, deitava no tapete com minhas alunas e rolávamos de rir lendo o aquinata. Aliás, era Borges quem dizia ser a teologia um gênero literário, ao mesmo título que a literatura fantástica. Descartes, se visto sem concessões, é de um ridículo atroz. Existe porque é francês. Você já imaginou um carioca ou gaúcho escrevendo um tratado para concluir: penso, logo existo? Seria tratado como louco manso.

Heidegger e Sartre, dois grafômanos desvairados. Em suas memórias, Simone conta que um dia Sartre a interpelou, feliz consigo mesmo: "hoje, escrevi um período que nem eu consegui entender". Tentando entender estes períodos, que nem o autor entendia, sisudos intelectuais construíram sólidas carreiras universitárias.

Nesse ínterim — nascer e morrer — o bicho-homem pode dedicar-se a alguns sonhos e projetos. Rumamos todos ao naufrágio. Só nos resta confraternizar enquanto o abismo não chega. Mas, se aceito todos os pontos de vista, algo exijo: coerência. Ninguém pode ser cristão e marxista ao mesmo tempo, como pretendem ilustres petistas. Ou teísta e ateu, julgando isto muito lógico.

A falta de coerência, não suporto. Esta é minha única filosofia. O resto é veleidade ideológica.


 

Dias Piores Virão

14/9/2001

 

Nada de novo em Manhattan. Tanto que a televisão americana, na terça-feira passada, precisava alertar repetidamente que as cenas reproduzidas na telinha não eram de filme. Os cineastas americanos destruíram Nova York dezenas de vezes. Quem não lembra os cacos da estátua da Liberdade caídos numa praia, no primeiro Planeta dos Macacos? Ou da metrópole arrasada em Independence Day? Estamos tão contaminados pelo cinema, que o comentário inicial dos espectadores foi: "parece filme". Parecia mesmo. Só que nos filmes, o presidente americano monta num caça e sai em combate sem quartel ao Mal. No caso, o herói preferiu ficar voando como mosca tonta no Air Force One. A realidade carece de bons roteiristas.

Ante a ficção, o ataque foi tímido. World Trade Center à parte, a cidade continua em pé. No caso, não cabe a pergunta clássica: a quem o crime aproveita? Este não aproveita a ninguém e prejudica a todos. A começar pelos terroristas que, se dispunham de súbitos malucos — remember Gore Vidal — capazes de defendê-los, agora terão mais dificuldades para encontrar simpatizantes. Como retaliação, os Estados Unidos terão de destruir alguns centros de terrorismo, com os inevitáveis danos colaterais, eufemismo para matança de civis que nada têm a ver com o peixe. Não seria de espantar que uma nova onda de maccarthismo tomasse conta do país. Perdem também os Estados Unidos, pois milhares de mortos são sempre milhares de mortos, isso sem falar no orgulho nacional ferido.

Se não cabe perguntar a quem o crime aproveita, é pertinente perguntar a quem o crime alegra. Se alguém acha que o atentado mereceu repúdio universal, muito se engana. Milhares, senão milhões de pessoas, estão celebrando o feito. Não é a celebração compungida da vitória em uma guerra, na qual os celebrantes têm consciência do custo em sangue da vitória. Nada disso. É a alegria histérica de bárbaros, de cujos rostos parece ter desertado qualquer vestígio de humanidade. São os palestinos em Jerusalém, Nablus e arredores de Beirute. Para estes animais, para os quais morrer é uma honra mesmo quando se morre matando no varejo, morrer matando no atacado deve ser a suprema glória. Sem este caldo cultural, o terror islâmico perde boa parte de sua eficácia.

Também devem estar contentes os intelectuais de esquerda que fazem do anti-americanismo uma profissão de fé. Ostentarão uma alegria entre dentes, um regozijo que não ousa dizer seu nome. No Ocidente, na hora de defender o indefensável, há um certo pudor. Ou uma hipocrisia abissal, como quisermos. Se você acha que cultura humaniza, não se iluda. Neste momento, milhares de universitários, nos campi do mundo todo, portam um discreto sorriso interior.

Uma vez confirmado o dedo do saudita Bin Laden no ataque, quem mais sofrerá suas conseqüências serão os palestinos — estes mesmos que hoje cantam e dançam de metralhadoras em punho — e as comunidades árabes no Ocidente. Se a palavra árabe já era associada a terrorismo, agora virou sinônimo. Mas isto Hollywood também já previu. Quem não lembra de New York Sitiada, onde os árabes são catados como moscas em Nova York por Bruce Willis? A propósito, há três semanas a Fox lançou um seriado, Lone Gunmen, no qual terroristas tentam lançar um avião contra ... o World Trade Center. Fácil ser profeta do apocalipse nos dias que passam. Prever o pior sempre foi aposta segura. Nada de novo sob o sol.

Os grandes beneficiários da tragédia serão, ironicamente, os Estados Unidos. Neste sinistro jogo de perde-ganha, se algo perderam, os lucros são maiores. Por um lado, a condição de vítima sempre é comovente. Por outro, o país já está acostumado a perder milhares de homens. Mais um milhar, menos um milhar, a grande nação absorve. Terceiro, terrorismo só abala democracias incipientes. Um Estado forte tem suficientes quadros para substituir seus mortos. Mesmo se fosse Bush uma das vítimas, a máquina estatal em nada seria abalada. Faz-se um panteão para os mártires, trocam-se as peças e a vida continua. Em Washington e Nova York, a vida — teimosa como ela só — já voltou a seu ramerrão.

Segundo a imprensa, daqui para a frente nada será igual e a organização política do planeta será modificada. Esta é a percepção mais imediata dos analistas internacionais. Mas são passados os tempos em que um tiro num arquiduque jogava um continente numa guerra. Passada a emoção inicial, já mais distante das ondas concêntricas das explosões, parece que alguma coisa mudará. Mas não muito.

Os Estados Unidos se fortalecerão em sua arrogância de donos do mundo e enrijecerão sua política externa. Algumas liberdades domésticas terão de ser sacrificadas, que se vai fazer? Mas não há mal que a alguém não aproveite. Até mesmo o desacreditado Bush será respingado por alguma parcela de carisma, já que terá o consenso nacional em uma retaliação. Diante da progressão do terror, os bombardeios de Clinton e Blair nos Bálcãs passarão a ser tidos como inevitáveis acidentes de trabalho. E o Dr. Kissinger, prêmio Nobel da Paz, em cujas pegadas já andavam os judiciários de pelo menos três países, será visto como um cidadão benemérito.

Nada seria igual, se o atentado tivesse o condão para mudar a natureza do ser humano. Ora, a natureza do ser humano não muda. O que ocorreu em Manhattan só nos mostra que as reservas de ódio do bicho-homem são inesgotáveis. Estadista que não souber lidar com esta constante será soterrado por futuros escombros.

O distinto público teve, resumidos em coisa de uma hora, desde Inferno na Torre a Apocalypse Now. O show poderia ser menos espetacular e muito mais devastador. Armas químicas e biológicas são quase portáteis e bem mais letais. Isso sem falar no arsenal nuclear sucateado da finada União Soviética. "Isso é apenas o começo de uma coisa terrível", disse o crítico literário Harold Bloom.

Dias piores virão. Se isto serve de consolo, nada que os ficcionistas já não tenham anunciado. A cada dia que passa, o apocalipse tem um ar de déjà-vu.


 

O Terror Segundo as Viúvas

21/9/2001

 

Existe a guerra de Bush, ou dos Estados Unidos, como quisermos, contra o terrorismo. E a guerra de palavras. Os atentados contra o World Trade Center e o Pentágono dividiram águas. Mesmo para os sedizentes humanistas, não fica fácil apoiar um ato que roubou milhares de vidas inocentes. É preciso então buscar insuspeitos sentidos nas palavras, para de alguma forma justificar o terror. Durante a Guerra Fria, os agitprops marxistas difundiram no Ocidente a idéia da existência de dois mundos antagônicos, o Primeiro e o Terceiro. O Primeiro seria o Ocidente decadente e fadado ao extermínio, leia-se Europa e Estados Unidos. O Terceiro seria o fiel depositário das esperanças de uma sociedade mais justa, destinado à vitória final no combate entre o Bem e o Mal. Leia-se África, Ásia e América Latina. O Segundo, bem entendido, era o fiel da balança, a União Soviética. Leia-se a Santa Madre Rússia.

Esta visão maniqueísta da história caiu definitivamente por terra há dez anos precisos, com o desmoronamento do comunismo. Finda a desinformação conduzida por Moscou, viu-se que o dito Segundo Mundo não passava de um Terceiro Mundo infame, aliás mais miserável e faminto do que muitos países, entre eles o Brasil, jogados por razões ideológicas no Terceiro. Mas se caíram por terra estes conceitos, não morreu, pelo menos na mente das viúvas do Kremlin, esta tosca Weltanschaaung. Para estas senhoras, acometidas por um surto de terceiro-mundismo, ainda existe um Primeiro Mundo rico e malvado, em oposição a um Terceiro, pobre e cheio de virtudes. Na mente destes remanescentes da Guerra Fria, o terror não pode provir daquela parte nobre do planeta, encarregada da "revolução". Faz-se então uma ginástica mental extenuante para provar que o terror não é terror. Ou, se é, é merecido, digno e justo.

Logo após o atentado, sutis exegetas correram à televisão para explicar que jihad não quer dizer necessariamente guerra santa, mas empenho. Estes cabeças de toalha subestimam a inteligência do telespectador. Ou pretendem fazer crer que quando um mulá empunhando uma metralhadora declara jihad ao Ocidente, está em verdade conclamando os crentes a um empenho contra o Ocidente? Mas se Bush emprega a palavra cruzada, termo que hoje adquiriu o sentido de campanha, não falta quem se preocupe com o risco de magoar as meigas alminhas muçulmanas, como se os americanos reencarnassem os templários em luta pela libertação de Jerusalém.

Até um terrorista confesso que defendeu na ONU, em 74, a tese de que um povo que luta pela própria independência tem o direito de apelar para atos terroristas — Yasser Arafat — deplorou os atentados em Washington e Nova York. Mas no Brasil não faltou padre vociferando que os Estados Unidos colheram o que plantaram. Deputados do PT gaúcho não demoraram a encontrar o responsável pela tragédia, os Estados Unidos. E José Dirceu e José Genoíno, guerrilheiros que apelaram às armas para transformar o Brasil em uma Cuba gigantesca, se apressam agora em afirmar o valor de uma vida humana. (As armas que empunharam serviriam para quê? Como suportes de flores?) Mas o pico do surto terceiro-mundista dificilmente será superado após o pronunciamento de Celso Furtado, economista gagá que viu no ato terrorista a mão da extrema direita americana.

Se algo se perdeu definitivamente neste atentado, parece ter sido a boa lógica. Em defesa do terror, um outro José, o Saramago, empunha hindus atados à boca de canhões. "No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá ver cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes".

O prêmio Nobel evoca também Angola, onde algures "dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro".

Isto é: se ingleses explodem hindus, se portugueses decapitam angolanos, é perfeitamente permissível que um saudita, homiziado no Afeganistão e imbuído da missão de vingador universal, detone dois prédios em Nova York matando não só malvados civis americanos, mas também cidadãos de 62 países do planetinha. Em um grotesco recurso retórico, Saramago joga a culpa no "fator Deus", como se não fossem os homens que criam e nutrem o tal de fator Deus. Em seu desvario, chega a atribuir a Nietzsche frase que Sartre atribui a Dostoievski, tentando interpretar o pensamento do escritor russo: "Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse...". Ora, este aforismo só pode nascer no bestunto de um católico e de católico Nietzsche nada tinha. Ao fazer tal afirmação Saramago só demonstra que a Kungsliga Akademie de Estocolmo não tem maiores pudores em premiar analfabetos.

Fritz Utzeri, do Jornal do Brasil, ao comentar o fato começa evocando uma tragédia africana: "Mamãezinha, minhas mãozinhas vão crescer de novo?'' Jamais esquecerei acena que vi, na TV francesa, de uma menina da Costa do Marfim falando com a enfermeira que trocava os curativos de seus dois cotos de braços. Era uma criança linda, de quatro anos, a face da inocência martirizada e que em seu sofrimento não conseguia imaginar a extensão do mal que lhe haviam feito".

As mutilações dos marfinenses, decorrentes de lutas entre etnias rivais, passam a ser "resultado tardio do colonialismo". Massacram-se com "armas que sua gente não produz, vendidas por americanos, russos, europeus, israelenses e outros civilizados de boa consciência e que avaliam seus lucros em lugares como o World Trade Center". Em um passe de mágica, ou melhor, de retórica, o World Trade Center passa a ser o responsável pelas mãos cortadas de uma criança ebúrnea. Ninguém lembra hoje, ou prefere não lembrar, os vinte milhões de dólares que um Bill Gates doa por semana — um bilhão de dólares a cada ano — a serviços de saúde e educação no Terceiro Mundo..

Segundo Utzeri, "uma bomba em Nova Iorque, em Londres ou em Paris desperta a dor do mundo. Mas quando tutsis e hutus se trucidam em Ruanda, e morre um milhão de africanos numa guerra, o assunto é pé de página dos jornais". Editor, ele sabe muito bem que a morte de um milhão de hutus ou tutsis não venderia jornal algum. Para começar, o leitor brasileiro não tem idéia alguma do que sejam hutus ou tutsis. Continuando, deles só tomamos conhecimento quando a imprensa americana chega ao palco de guerra. Porque jornalista brasileiro é que não vai lá. Melhor ficar no conforto da redação traduzindo telegramas. Se algo se sabe de hutus ou tutsis no Brasil, devemos agradecer às agências noticiosas ianques ou européias.

"A verdade verdadeira é que não somos todos iguais", diz o jornalista em tom de quem reclama. É verdade verdadeira mesmo, pois bem ou mal, brasileiros (bugres à parte) não vivemos mais em tribos, e sequer conseguimos entender guerras tribais. Mas lá em Nova York estão nossos semelhantes. Sequer imaginamos como possa ser o dia-a-dia de um ruandês, mas o de um nova-iorquino em nada difere da rotina de um paulistano ou porto-alegrense. Utzeri foi editor do Jornal do Brasil. Poderia ter colocado os tutsis e hutus em primeira página. Colocou? Nunca vi.

Claro que não somos todos iguais. Também é claro que a morte de meu semelhante me comove, enquanto não consigo comover-me com a morte de quem para mim é um ilustre desconhecido. Em sua ojeriza aos fortes, Utzeri não poupa sequer Alexandre. "Ali, ao longo dos séculos, desapareceram impérios inteiros. Foi nessas terras quase lunares que Alexandre enlouqueceu e morreu acreditando-se um deus". Como Saramago, o jornalista é outro que fez gazeta nas aulas de história. Alexandre, guerreiro e civilizador, não enlouqueceu nem morreu acreditando-se deus. Foi cultuado como deus, o que é diferente.

Cultiva-se na imprensa a absurda idéia de que os males dos países pobres são conseqüência da maldade dos países ricos. Isto me faz lembrar A Vida de Brian, dos Monty Python. Reunidos os conspiradores judeus, o líder pergunta: que nos trouxeram os romanos? Estradas, responde alguém. Certo. Mas além das estradas, que nos deram? Hospitais, responde outro. É! Mas que mais além das estradas e hospitais? Aquedutos, sugere um terceiro. E assim continua a discussão, até que sai um manifesto: apesar de nos terem trazido estradas, hospitais, aquedutos, escolas, esgotos, romanos go Rome!

Neste festival de manifestações politicamente corretas — a versão up to date do stalinismo — faço minhas as palavras de Dan Rather, âncora do Evening News: "Eles odeiam o que representamos. Não querem tomar conta do nosso país nem do nosso dinheiro. Querem nossa extinção em troca de valores medievais. São os seguidores do culto do ódio".

Violência é fruto do ódio impotente. Para os marxistas, o ódio é o motor da história. Daí a excitação das viúvas.


 

Ocidente e Amnésia

28/9/2001

 

Que um leitor desatento, sem mais preocupações com o noticiário internacional, não lembre, entende-se. O que não se entende é que jornalistas não mais lembrem. Ou talvez não queiram lembrar?

Pois eu lembro. Posso não lembrar as datas, mas lembro os fatos que os jornais nos traziam do Afeganistão. Entre outros, os objetos em forma de canetas e brinquedos que eram lançados de helicópteros, com um alvo certo, as crianças. Só que não eram exatamente canetinhas ou brinquedos, mas bombas que mutilavam quem as pegasse. O objetivo não era matar combatentes, mas minar o moral do inimigo, aleijando seus filhos. Quem jogava os brinquedos-bomba? Não era o Grande Satã americano. Mas os soldados soviéticos. Os mesmos soldados que, além de mutilar crianças e civis, deixaram um milhão de mortos em território afegão. Um milhão de mortos afegãos, é bom lembrar. Isso sem falar na mais hedionda arma de guerra, as minas deixadas pelos soviéticos que até hoje, passados dez anos da invasão, ainda mutilam e matam.

"A luta pela memória é a eterna luta do homem contra o poder", escreveu Milan Kundera. Gosto de repetir a frase, particularmente nestes dias em jornalistas esquecem fatos recentes, cujas coberturas foram feitas por eles mesmos. Cuidado, Tio Sam! — alertam intelectuais subitamente acometidos de amnésia — o Afeganistão humilhou o poderoso Exército Vermelho e o fez bater em retirada. Parecem ter esquecido as fotos repetidas à exaustão pelos jornais, de guerrilheiros quase em farrapos com um disparador de mísseis Stinger ao ombro. Derrubar um caça ou helicóptero tornou-se tão banal quanto matar um pássaro com estilingue. Os bombardeiros e caças soviéticos viram-se de repente vulneráveis ao disparo de um combatente montado numa mula. Foi este gadget bélico o fator que virou a guerra naquela geografia. Quem forneceu os Stingers? O Grande Satã.

Para o líder supremo do talebã, o mulá Mohamed Omar, o governo americano "comete toda sorte de atrocidades nos países muçulmanos e, em lugar de apoiá-lo, os americanos deviam convocar seus governantes a rever essas políticas más e cruéis". Pelo jeito, também o mulá foi acometido pelo mesmo surto de amnésia que grassa no Ocidente. O milhão de mortos produzido pelos russos, mais as centenas de milhares de mutilados entre 79 e 89 — há apenas uma década — seria o quê? O resultado da política externa benemérita dos bravos soldados soviéticos? Até hoje, uma mulher ou criança corre o risco de perder as pernas ou a própria vida ao buscar um balde de água barrenta num poço. Mas a vingança atinge os maus e cruéis americanos.

Que Mohamed Omar diga isto, entende-se. Senhor da guerra, precisa satanizar o inimigo. O espantoso é que intelectuais no mundo todo, de Paris a São Paulo, endossem a lógica absurda do mulá. Vemos repetir-se no Ocidente o mesmo alarido que saudou, em 75, a entrada dos khmers rouges em Phnom Penh. Em menos de uma hora, a cidade foi esvaziada. Tudo que representava luxo, conforto, cultura, educação, arte ou requinte, foi banido a ferro e fogo pelos purificadores do povo cambojano. Quem usasse óculos era, ipso facto, suspeito e fuzilado ou remetido a campos de concentração. "A cidade foi liberada", disse na ocasião o prestigioso Le Monde. Liberação foi a palavra mais ouvida, na época, em jornais, rádio e televisão. Balanço: uma cifra até hoje indefinida entre dois e três milhões de mortos.

A mesma alegria invadiu corações e mentes quando Khomeiny entrou em Teerã com seus pasdarans, metralhando e destruindo tudo que lembrasse Ocidente. A libertária França deu generoso abrigo ao futuro tirano. Sentado em seu tapete em Neauphle le Chateau, o aiatolá recebia iranianos e simpatizantes de toda a Europa. Reza Palhevi não era, bem entendido, o que se chama de um democrata. Mas, como dizem os espanhóis, el que vendrá, bueno te hará. O aiatolá, além de levar o Irã a uma guerra com o Iraque, fez um dos raros Estados muçulmanos com ares de modernidade retornar à Idade Média. Em pouco tempo, as mulheres, que gozavam de total liberdade durante o regime do Xá, perderam o direito de exercer uma profissão, foram proibidas até mesmo de dirigir e tiveram de portar o chador.

Causa escândalo entre as vestais, nestes dias, a vontade de Bush querer bin Laden vivo ou morto. Não escandalizou ninguém, na época, a afirmativa de Khomeiny: "criminosos não devem ser julgados. Criminosos devem ser executados". O aiatolá fuzilou homossexuais e prostitutas e proibiu desde o cinema até a música. Um médico, ao examinar o sexo de uma mulher, não podia olhá-lo diretamente, tinha de usar um espelho. As esquerdas no mundo todo — e particularmente no Brasil — vibraram: era mais uma derrota do Grande Satã. Se bem me lembro, até Paulo Francis saudou a tomada do poder por Khomeiny. Balanço: um milhão de mortos.

"A religião nas mãos de um fundamentalista é dinamite nas mãos de uma criança", disse o rabino Henry Sobel. Eu diria: o Estado nas mãos de um religioso é dinamite nas mãos de um terrorista. As teocracias são sempre baseadas no monoteísmo e quando um deus se pretende único, ai de quem ousar cultuar outro. A Igreja Católica matou a gosto quando dispunha do braço estatal. Se hoje diz-se ecumênica, é porque em dado momento histórico os europeus houveram por bem separar Igreja e Estado. No mundo muçulmano, predominam os Estados teocráticos. A dinamite está nas mãos do terrorista. Basta acender o pavio. A humanidade não terá dias melhores enquanto o mundo árabe tiver sacerdotes como dirigentes ou eminências pardas.

"Abater um europeu — dizia um filósofo muito querido da universidade brasileira — é matar dois coelhos de uma só cajadada, suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido; restam um homem morto e um homem livre". O filósofo se chamava Jean-Paul Sartre e este nobre propósito está no prefácio de Les Damnés de la terre, de Frantz Fanon. Substitua europeu por americano, e o pensamento do grande humanista continua vivo e influente.

O atentado nos Estados Unidos teve um efeito curioso entre as esquerdas. O universo muçulmano, que há muito vinha sendo denunciado por atentados aos direitos humanos, de repente virou modelo de humanidade. Esta tendência entrópica da intelectualidade ocidental me faz lembrar uma afirmação do Front homosexuel d’action révolutionnaire, publicada em abril de 1971, na revista Tout!: "Nous nous sommes fait enculer par les Arabes. Nous en sommes fiers et nous recommencerons".

Traduzindo: fomos fodidos pelos árabes. Temos orgulho disto e recomeçaremos.


 

Islã e Aiatolices

5/10/2001

 

Em meus verdes anos, alimentei o hábito de falar em "sifilização ocidental e cristã". O cristianismo era para mim um jugo opressor, eu o identificava com Ocidente e insultava os dois fenômenos com este trocadilho, que devo ter colhido em algum autor anarquista português. Viajando e aprendendo. Percorrendo países socialistas e muçulmanos, vi que este nosso universo não é de se jogar fora. Ao voltar do mundo socialista, tive vontade de me ajoelhar, como o vice-Deus polaco, e beijar o bom solo capitalista, ocidental ... e cristão. Pior foi voltar de países muçulmanos: vontade de beijar até mesmo o solo socialista.

Quando me falam das excelências do Islã, costumo puxar do coldre três ensaios, escritos por um eminente estadista muçulmano do final do século passado, Valayaté-Faghih, Kachfol-Astar e Towzihol-Masael. Traduzindo, pela ordem: O Reino do Erudito, A Chave dos Mistérios e A Explicação dos Problemas. Se já falei do assunto, nunca é demais repetir. Pinço cá e lá algumas pérolas do erudito autor:

— No momento de urinar ou defecar, é preciso se agachar de modo a não ficar de frente nem dar as costas para Meca.

— Não é necessário limpar o ânus com três pedras ou três pedaços de pano, uma só pedra ou um só pedaço de pano bastam. Mas, se se o limpa com um osso ou com coisas sagradas como, por exemplo, um papel contendo o nome de Deus, não se pode fazer orações nesse estado.

— É preferível agachar-se num lugar isolado para urinar ou defecar. É igualmente preferível entrar nesse lugar com o pé esquerdo e dele sair com o pé direito. Recomenda-se cobrir a cabeça durante a evacuação e apoiar o peso do corpo no pé esquerdo.

— Durante a evacuação, a pessoa não deve se agachar de cara para o sol ou para a lua, a não ser que cubra o sexo. Para defecar, deve também evitar se agachar exposto ao vento, nos lugares públicos, na porta da casa ou sob uma árvore frutífera. Deve-se igualmente evitar, durante a evacuação, comer, demorar e lavar o ânus com a mão direita. Finalmente, deve-se evitar falar, a menos que se seja forçado, ou se eleve uma prece a Deus.

— A carne de cavalo, de mula e de burro não é recomendável. Fica estritamente proibido o seu consumo se o animal tiver sido sodomizado, quando vivo, por um homem. Nesse caso, é preciso levar o animal para fora da cidade e vendê-lo.

— Quando se comete um ato de sodomia com um boi, um carneiro ou um camelo, a sua urina e os seus excrementos ficam impuros e nem mesmo o seu leite pode ser consumido. Torna-se, pois, necessário matar o animal o mais depressa possível e queimá-lo, fazendo aquele que o sodomizou pagar o preço do animal a seu proprietário.

— Onze coisas são impuras: a urina, os excrementos, o esperma, as ossadas, o sangue, o cão, o porco, o homem e a mulher não-muçulmanos, o vinho, a cerveja, o suor do camelo comedor de porcarias.

— O vinho e todas as outras cervejas que embriagam são impuros, mas o ópio e o haxixe não o são.

— O homem que ejaculou após ter tido relações com uma mulher que não é sua e que de novo ejaculou ao ter relações com a legítima esposa, não tem o direito de fazer orações se estiver suado; mas, se primeiro tiver tido relações com a sua mulher legítima e depois com uma mulher ilegítima, poderá fazer as suas orações mesmo se estiver suado.

— Por ocasião do coito, se o pênis penetrar na vagina da mulher ou no ânus do homem completamente, ou até o anel da circuncisão, as duas pessoas ficarão impuras, mesmo sendo impúberes, e deverão fazer as suas abluções.

— No caso de o homem — que Deus o guarde disso! — fornicar com animal e ejacular, a ablução será necessária.

— Dividindo o número de dias da menstruação da mulher por três, o marido que mantiver relações durante os dois primeiros dias deverá pagar o equivalente a 18 nokhod (três gramas) de ouro aos pobres; se tiver relações sexuais durante o terceiro e quarto dias, o equivalente a 9 nokhod e, nos dois últimos dias, o equivalente a 4½ nokhod.

— Sodomizar uma mulher menstruada não torna necessários esses pagamentos.

— De duas maneiras a mulher poderá pertencer legalmente a um homem: pelo casamento contínuo e pelo casamento temporário. No primeiro, não é necessário precisar a duração do casamento. No segundo, deve-se indicar, por exemplo, se a duração será de uma hora, de um dia, de um mês, de um ano ou mais.

— Enquanto o homem e a mulher não estiverem casados, não terão o direito de se olhar.

— É proibido casar com a mãe, com a irmã ou com a sogra,

— O homem que cometeu adultério com a sua tia não deve casar com as filhas dela, isto é, como suas primas-irmãs.

— Se o homem que casou com uma prima-irmã cometer adultério com a mãe dela, o casamento não será anulado.

— Se o homem sodomizar o filho, o irmão ou o pai de sua esposa após o casamento, este permanece válido.

— O marido deve ter relações com a esposa pelo menos uma vez em cada quatro meses.

— Se, por motivos médicos, um homem ou uma mulher forem obrigados a olhar as partes genitais de outrem, deverão fazê-lo indiretamente, através de um espelho, salvo em caso de força maior.

— É aconselhável ter pressa em casar uma filha púbere. Um dos motivos de regozijo do homem está em que sua filha não tenha as primeiras regras na casa paterna, e sim na casa do marido.

— A mulher que tiver nove anos completos ou que ainda não tiver chegado à menopausa deverá esperar três períodos de regras após o divórcio para poder voltar a casar.

— Qualquer comércio de objetos de prazer, como os instrumentos musicais, por menores que sejam, é estritamente proibido.

— É proibido olhar para uma mulher que não a sua, para um animal ou uma estátua de maneira sensual ou lúbrica.

Cansei. O autor de tão doutas prescrições é o aiatolá Ruhollah Khomeiny. Excertos destas obras foram publicados no Brasil, sob o título genérico de O Livro Verde dos Princípios Políticos, Filosóficos, Sociais e Religiosos do Aiatolá Khomeini.

"Não se pode pôr no mesmo nível todas as civilizações, é preciso ter consciência da superioridade ocidental", disse Silvio Berlusconi, a quem coube a constrangedora tarefa de denunciar a nudez do rei. Segundo o premiê italiano, a civilização ocidental "garantiu o respeito aos direitos humanos, políticos e de liberdade religiosa, o que não sucede nos países islâmicos". Se tal afirmação era óbvia até inícios do mês passado, tornou-se subitamente herética após o atentado do 11 de setembro. Pressionado por líderes árabes e europeus, Berlusconi teve de negar a evidência. Disse que foi mal interpretado.

O persa Khomeiny até hoje é venerado como um dos líderes incontestes do Islã contemporâneo. Se alguém acha que tais aiatolices podem ser superiores ou equiparáveis à cultura ocidental, está na hora de cumprir o ramadã, virar o traseiro pra lua e repetir a ladainha: Allah-u-akbar.


 

Ressentidos do Mundo Todo, Uni-vos! (*)

12/10/2001

 

Tanto Bush como Blair não se cansam de insistir ante a mídia que a guerra ora deflagrada no Afeganistão não é contra o Islã, mas contra o terror. Estadistas, têm de usar de diplomacia. Uma outra guerra, surda e constante, desde há muito vem sendo travada no Ocidente. Perdoem-me os diplomatas, profissionais politicamente corretos por ofício, mas o inimigo é o Islã. Expulsos da Ibéria no século XVI, rechaçados na Europa onde chegaram perto de Paris e Viena, os mouros agora voltam. Voltam armados não mais de punhais e cimitarras, mas com arsenal mais sutil e eficaz: direitos humanos, respeito às diferenças culturais, reagrupamento familiar. Como conquistadores, os árabes tiveram de recuar em séculos passados. Como imigrantes, estão invadindo, pouco a pouco, o continente. Esta guerra, a Europa está perdendo.

Há umas boas três décadas venho escrevendo contra o Islã. Não por intolerância. Aceito todas as crenças. Que cada um cultue seu deus e boa sorte a todos. Ocorre que o Islã tem uma incontrolável vocação teocrática. Mescla-se com o Estado e o que seria preceito religioso ou, no máximo, preceito ético, vira lei e passa a regular a vida de todo cidadão, crente ou não crente. Creia ou não creia em Alá e seu profeta, em Estados islâmicos você tem de submeter-se a suas diretrizes. E — o que pior — aos preceitos de seus intérpretes, imãs, mulás, aiatolás. A Igreja católica, apesar de manter reflexos teocráticos herdados do Medievo, pelo menos separou-se há séculos do Estado e não mais ameaça com torturas ou fogueiras quando não consegue gerir a vida de todo cidadão. Aliás, até a idéia de inferno anda pouco cotada nos dias que passam.

Para quem aqui vive e daqui nunca saiu, Islã é apenas uma palavra que designa uma religião como tantas outras. O Brasil é um grande caldeirão que absorve todas as raças, religiões e diferenças. Mas se você viveu um dia em países europeus, onde os árabes se encerram em colônias e usam a religião como carapaça protetora, lá terá tropeçado com o ramadã, o muezim, as cinco chamadas às preces, as restrições ao álcool, a ablação do clitóris e infibulação da vagina. E se você teve um dia a chance de visitar países muçulmanos, aquelas cidades onde as mulheres são fantasmas tristes que se esgueiram, lívidas e veladas, pelas ruelas das casbás, você terá visto que Islã não é apenas uma palavra que designa uma religião como tantas outras.

Muitos fossos separam Ocidente e Islã: democracia, voto, liberdade de expressão, direitos do indivíduo. Mas o fosso maior é a mulher. Maior e insuperável. Nenhum diálogo é possível com povos que insistem em proibir o prazer à mulher, mutilando-a sexualmente. Impossível conviver com bárbaros que não permitem que uma mulher saia sozinha às ruas. Tampouco se pode conversar com uma cultura que proíbe a mulher de trabalhar e mesmo de educar-se. Segundo Fouad Ajami, diretor de estudos do Oriente Médio da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, cerca de 260 milhões de indivíduos que vivem, do Marrocos ao Irã, exportam atualmente menos produtos manufaturados do que a Finlândia, que tem apenas cinco milhões de habitantes. Desenvolvimento tecnológico à parte, virtualmente metade da mão de obra de um país é excluída de sua construção. Mas a responsabilidade de suas misérias é debitada ao Ocidente, onde a mulher trabalha ombro a ombro com o homem na confecção do bolo nacional.

Uma voz ergueu-se na Europa, com hombridade, para lembrar algumas verdades que os mais delicados preferem não ouvir: "Que sentido tem respeitar quem não nos respeita?" — pergunta a jornalista Oriana Fallaci, florentina de cepa. — "Que sentido tem defender sua cultura ou sua presumida cultura, quando eles desprezam a nossa?"

Os muçulmanos dividem o mundo em fiéis e infiéis. Não é muçulmano? É infiel. Ecumenismo é palavra que desconhecem. Só a partir desta ótica pode-se entender a alegria histérica de palestinos e libaneses festejando o massacre brutal de seis mil civis americanos. Os súbitos defensores do Islã, para justificar o ódio terrorista, logo lembram as Cruzadas. Mas o Islã, escreve Paul Johnson, "não só dominou e erradicou o cristianismo no Oriente Médio e norte da África, como também chegou até perto de Paris e dominou a maior parte da Espanha durante séculos. Devastou a Sicília e muitas vezes tentou conquistar a Itália".

É esta Itália, contemporânea e esplendorosa, que Fallaci defende com unhas e dentes em seu panfleto soberbo, A Raiva e o Orgulho. Em verdade, a jornalista defende não só sua Itália, mas a Europa, Estados Unidos e todo o Ocidente. "Vocês não se dão conta de que os Osama bin Laden se crêem autorizados a matá-los, a vocês e a seus filhos, porque vocês bebem vinho ou cerveja, porque vocês não usam barba comprida ou chador, porque vocês vão ao teatro e ao cinema, porque vocês escutam música e cantam canções, porque vocês dançam nas discotecas ou em casa, porque vestem minissaias ou calças curtas, porque vocês estão nus ou quase no mar e nas piscinas e porque vocês fazem o amor quando bem lhes apetece, onde lhes apetece e com quem lhes apetece? Nada disto lhes importa, estúpidos? Eu sou atéia, graças a Deus. Mas não tenho nenhuma intenção de deixar-me matar por sê-lo".

Multidões de árabes estão invadindo a Europa, da Itália à Suécia, da Espanha à Áustria, com suas crenças, mesquitas e idiossincrasias. Onde chegam, já vão exigindo a sexta-feira livre para descanso, pausas diárias no trabalho para as preces, o direito de obrigarem suas mulheres a portar véus — inclusive em fotos de carteiras de identidade —, assistência social para suas quatro mulheres e quinze ou vinte filhos. Fallaci não suporta vê-los acampados nas ruas, profanando com fezes e urina os lugares sagrados de sua Florença natal e transformando as demais cidades italianas, Roma, Gênova, Milão, Veneza, em souks orientais. Prolíficos, a tomada da Europa é uma questão apenas de tempo. "Impossível dialogar com eles" — diz Fallaci — "Raciocinar, nem pensar. Tratá-los com indulgência ou tolerância ou esperança, um suicídio. E quem acredita no contrário é um iludido".

Desde séculos, odeia-se a idéia de Europa. Este ódio está escancarado na primeira frase do Manifesto: "um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo". Este fantasma foi exorcizado em menos de um século. O fantasma agora é outro. Ronda sem manifesto, sem ideologia, armado de dogmas. Os Boeings que destruíram as torres de Nova York são acidentes, comparados com a bomba que, lenta e inexoravelmente, ameaça a Europa: a bomba islâmica.

Ressentidos do mundo todo, uni-vos! Marx não conseguiu destruir a Europa. Maomé ainda tem chances.

(*) Esta crônica foi publicada com o título “A Bomba Maomé”


 

Leituras Edificantes

19/10/2001

 

Em crônica passada, citei alguns ordenamentos de um eminente teólogo do Islã, o aiatolá Khomeiny. Não é fácil entender como quem escreveu tais despautérios possa ter sido saudado pela imprensa internacional como um libertador. Ou talvez seja fácil entender, eu é que não entendo a imprensa. Afinal, o livro que cimenta a cultura ocidental pouco fica a dever ao aiatolá persa. Podemos ler, por exemplo, no Levítico:

E o homem que se deitar com a mulher de seu pai descobriu a nudez de seu pai; ambos certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.

Semelhantemente, quando um homem se deitar com a sua nora, ambos certamente morrerão; fizeram confusão; o seu sangue será sobre eles.

Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.

Também a mulher que se chegar a algum animal, para ajuntar-se com ele, aquela mulher matarás bem assim como o animal; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.

E, quando um homem se deitar com uma mulher no tempo da sua enfermidade, e descobrir a sua nudez, descobrindo a sua fonte, e ela descobrir a fonte do seu sangue, ambos serão extirpados do meio do seu povo.

Se o leitor ainda lembra das aiatolices de Khomeiny, verá no texto bíblico uma notável simetria com os preceitos islâmicos. Se o aiatolá é mais detalhista, o diapasão é o mesmo. Pois o Islã bebeu em fontes hebraicas. Homens do século XXI, seguidamente esquecemos que as três grandes religiões contemporâneas foram criadas por rudes caudilhos de tribos do deserto. Maomé era um analfabeto que teve a fortuna de casar com uma viúva rica.

A Bíblia começa com um genocídio dos bons, o dilúvio. Os cristãos pretendem tê-la amenizado com o Novo Testamento. Ora, este culmina com o Apocalipse, a destruição total do gênero humano com a vinda do Cordeiro. Não por acaso, Tácito via os cristãos como pessoas que odiavam a humanidade. O cristianismo pode ter-se integrado ao Ocidente. Mas tem suas origens bárbaras no Oriente.

A Bíblia é livro que justifica a escravidão, o incesto, a poligamia, assassinatos e massacres. Josué aprisiona os filhos e as filhas de Acam, seu gado e ovelhas e os apedreja até a morte. Ora, se Acam esconde o tesouro pilhado na cidade de Ai, seus filhos e filhas não cometeram crime algum. Em Juízes, o levita de Efraim pega um cutelo, corta sua concubina em doze pedaços e os remete a todo território de Israel. Quando moleques chamam o profeta Eliseu de careca em Bethel, este os amaldiçoa em nome do Senhor. Duas ursas saem do mato e devoram 42 crianças. Hoje, se você arranha um pivete que lhe aponta um revólver, os hodiernos seguidores do Livro fazem de tudo para jogá-lo na prisão.

Ao morrer, o sábio rei Davi pede a seu filho, Salomão, para matar Joab. Antes do último suspiro, manda o filho trazer a cabeça de Shimei para o túmulo com sangue. Só então consegue morrer em paz. No livro de Ester, Haman prepara uma forca para Mordecai, mas Ester faz com que Haman e seus dez filhos fossem enforcados na forca construída por Haman. Os judeus foram então autorizados a assassinar mais de 75 mil súditos do rei. A Bíblia está encharcada de sangue, do Gênesis ao Apocalipse. Um padre católico, ao ingerir o pão da hóstia, não está comendo pão, mas carne humana. Ao beber o vinho consagrado, não está mais bebendo vinho, mas sangue. É uma religião de canibais e hematófagos profissionais, costumo afirmar. Em pleno século XXI, os sacerdotes de Roma ainda não conseguiram libertar-se de sangrentos ritos tribais.

Pois é este terno e amoroso livrinho, a Bíblia, que o deputado Luís Carlos Gondim (PV), propôs que seja lido no plenário da Câmara Federal. "Temos que pregar a paz mundial e nada melhor do que darmos o exemplo", argumenta. "Precisamos começar acalmando os ânimos aqui na Casa." Para evitar guerra no plenário, cada deputado leria em voz alta um versículo da Bíblia por três minutos, antes do início das sessões. Leitor assíduo do Livro, me permito sugerir a suas excelências alguns de seus grandes momentos.

Jader Barbalho, por exemplo, talvez aplacasse a ira de seus pares, se tivesse a lembrança de recitar estes oportunos versículos do Gênesis:

E o rio criará rãs, que subirão e virão à tua casa, e ao teu dormitório, e sobre a tua cama, e as casas dos teus servos, e sobre o teu povo, e aos teus fornos, e às tuas amassadeiras. E as rãs subirão sobre ti, e sobre o teu povo, e sobre todos os teus servos. E disse Moisés a Faraó: Digna-te dizer-me quando é que hei de rogar por ti, e pelos teus servos, e por teu povo, para tirar as rãs de ti, e das tuas casas, e fiquem somente no rio? E as rãs apartar-se-ão de ti, das tuas casas, dos teus servos, e do teu povo; somente ficarão no rio.

Em discussões sobre legislação do trabalho, não seria demais repetir o Levítico:

Os servos e servas que tiverdes deverão vir das nações que vos circundam; delas podereis adquirir servos e servas. Também podeis adquiri-los dentre os filhos dos hóspedes que habitam entre vós, bem como das suas famílias que vivem conosco e que nasceram na vossa terra: serão vossa propriedade e deixá-los-eis como herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam como propriedade perpétua.

Ainda o Levítico oferece uma bela fórmula de conjuração, caso algum ilustre deputado queira defender um colega da sanha dos procuradores públicos:

E perseguireis os vossos inimigos, e cairão à espada diante de vós. Cinco de vós perseguirão a um cento deles, e cem de vós perseguirão a dez mil; e os vossos inimigos cairão à espada diante de vós.

Toda vez que Ongs ou Zildas Arns da vida propuserem leis referentes a menores abandonados, um deputado poderia ler esta singela proposta de Jeremias:

Entrega seus filhos à fome, e entrega-os ao poder da espada, e sejam suas mulheres roubadas dos filhos, e fiquem viúvas; e sejam seus maridos feridos de morte, e os seus jovens mortos à espada na peleja.

As pragas que Jeremias roga à Jerusalém, bem poderiam servir de alerta aos deputados mais agressivos nas CPIs:

Morrerão de enfermidades dolorosas, e não serão pranteados nem sepultados; servirão de esterco sobre a face da terra; e pela espada e pela fome serão consumidos, e os seus cadáveres servirão de mantimento para as aves do céu e para os animais da terra.

A Bíblia é leitura sempre edificante e certamente ungirá os nobres deputados com inefáveis sentimentos de paz e amor. Recomendo vivamente.


 

As Criancinhas

26/10/2001

 

Viste as criancinhas? — me pergunta uma amiga ao telefone. Quais criancinhas? — quis saber. Ela perguntava pelas criancinhas do Afeganistão. Antes mesmo de começarem os bombardeios americanos, a imprensa nacional foi invadida por fotos de criancinhas, fotos imensas, até mesmo em quatro colunas, ou fotos menores, repetidas à exaustão. Crianças lindinhas, envoltas em roupas coloridas, com predominância do verde, a cor do Islã. Meninas de rostos angelicais, sempre impúberes, já que se púberes fossem, não mais poderiam mostrá-los.

Sim, eu havia visto as criancinhas. É recurso ao qual os editores apelam mal surge uma guerra. São fotos sem nenhuma relação com fatos. Tiradas antes dos bombardeios, não têm valor algum como notícia, já que com eles nada têm a ver. Sua função é comover. Quando as criancinhas invadem as páginas dos jornais, isto significa que o editor já decidiu quem é a vítima e quem é o agressor. As criancinhas sempre estarão na página das vítimas.

O leitor viu alguma foto das mais de duas mil criancinhas americanas que ficaram órfãos, do dia para a noite, com o atentado ao World Trade Center? Eu não vi nenhuma. Seriam fotos após os fatos bélicos, não antes deles, como é o caso das crianças afegãs. São crianças que ficarão marcadas por um trauma severo, e os psicólogos hoje ainda nem sabem como enfrentar o problema. Mas não servem para comover o leitor. Se nem todas são filhas de ricos, de pobres é que não são. Mesmo sem pai ou mãe, têm futuro assegurado pela frente. Têm um sorriso bonito, dentes saudáveis e, pior ainda, são lourinhas. Pertencem à raça que destrói tudo por onde passa, como dizia Darcy Ribeiro, a raça branca. Decididamente, não servem para vítimas. Pior ainda: são americanas.

A página das criancinhas é preferentemente a página ímpar, embora isto não seja um dogma. Os editores sabem que, por um movimento instintivo, a primeira página que o olhar do leitor procura é a ímpar. Como contraponto, a página par será dedicada ao agressor. Muitos quepes, muitas estrelas nos ombros, e o arsenal: bombardeiros fantásticos, de milhões de dólares, mísseis inteligentes, porta-aviões, fragatas, helicópteros, super-soldados equipados com tralhas eletrônicas, declarações de autoridades engravatadas.

A mensagem subliminar do editor é clara: aquelas criancinhas que você vê à sua direita constituem, em promessa, o capital humano que aqueles monstros à esquerda vão massacrar. O editor não quer que você incorra no risco de pensar errado. Pode acontecer que algum irreverente escreva um artigo mostrando que a realidade não é assim tão simples. O editor insiste então em conduzi-lo pela mão ao que você deve pensar, através de uma diagramação didática. Leia o que bem entender, leitor. Mas que fique claro que as vítimas são aquelas que o editor escolheu para a página das criancinhas. Quanto aos monstros, estão na página oposta.

Se você ainda não captou o espírito da coisa, fixe isto em sua memória: na página das criancinhas, está o Bem. Na dos militares, o Mal. O Bem sempre estará do lado dos pobres. Rico, por definição, é o Mal. Logo, criancinha americana não serve. Não comove. Sem falar que confundiria o leitor. A religião fundada por Mani, na Babilônia, no terceiro século da era cristã, continua sendo uma espécie de manual do jornalismo contemporâneo.

Junto com as criancinhas, as mulheres. De preferência mães, com a criancinha ao colo. No caso do Afeganistão, o leitor não terá visto muitas mulheres. É que as afegãs não têm rosto, a burka iguala a todas. Publicar fotos de mulheres afegãs seria, na verdade, repetir sempre a mesma foto.

O recurso é eterno, e ainda funciona. Já tivemos criancinhas ianomâmis, mulheres ianomâmis, anciãs ianomâmis. Filho ou mulher de garimpeiros você não viu. Garimpeiro é o mal, o da página esquerda. Tivemos criancinhas bósnias, mulheres bósnias, anciãs bósnias. Criancinha sérvia, não. Os sérvios são o mal. Mesmo quando massacrados pelo kosovares. O leitor deve também estar farto de criancinha palestina, mãe palestina, anciã palestina. Quantos aos israelitas, nada de criancinhas, mesmo que estas tenham seus pais despedaçados por homens-bomba. Criancinha israelita não passa fome, tem futuro, é saudável, logo não comove. Eventualmente a imprensa deixa passar a foto de uma mãe israelita, consumida pela dor. Se for uma soldada, destaque para ela. É do mal.

Mas atenção: soldado é do mal só quando pertence a um exército regular. O guerrilheiro, em geral, vai para a página do bem. Terroristas também, afinal a ONU até agora não decidiu o que distingue um guerrilheiro de um terrorista. Bin Laden, é claro, exagerou na dose. Seus depoimentos não permitem dissociá-lo do terror. Nem mesmo um Kofi Annan, com sua autoridade de Nobel fresquinho, ousaria ungi-lo com a palavra que, para a grande imprensa, virou sinônima de herói. Guerrilheiro é o Che Guevara, que só não matou mais porque não pôde. Na Bolívia, é cultuado como santo, San Ernesto de la Higuera.

Mas falava de fotos. Enquanto os jornais publicam rostos de criancinhas meigas e desprotegidas, antes mesmo de os bombardeios terem sido desfechados, faltam-nos as fotos das alegadas vítimas civis dos bombardeios. Em meados deste, os taleban convidaram a imprensa estrangeira a entrar no país, em áreas controladas pelas milícias fundamentalistas, para ver a destruição provocada pelos ataques aéreos. De acordo com os taleban, cerca de 200 civis morreram durante um ataque aéreo noturno, no dia 12 de outubro, no povoado de Karam, perto de Jalalabad.

Jornais do mundo todo noticiaram as 200 mortes, mas os jornalistas viram apenas uma dúzia de túmulos novos, além de carcaças de dezenas de animais mortos. E por que não viram os cadáveres? Ah, porque segundo os ditames corânicos, os muçulmanos enterram seus cadáveres antes do próximo pôr do sol. Como não lembrar aquele suposto massacre de ianomâmis de 1993, no qual não se viu um mísero cadáver? E por que não havia cadáveres? Porque os ianomâmis queimam seus mortos e guardam suas cinzas em cumbucas. Pode-se ver as cinzas? Não pode, são sagradas.

Mas, como testemunhou um repórter que esteve em Karam, "o cheiro da morte envolvia o lugarejo". Exatamente as mesmas palavras usadas por um jornalista brasileiro durante o "massacre" dos bugres. Este, só trocou lugasrejo por aldeia. Pena que cheiro não dá foto. Foi muita pressa dos taleban em mostrar os feitos do Grande Satã. Pois cadáveres de civis não vão faltar. Como não faltam em nenhuma guerra.

Em falta de mortos, criancinha serve. Fotografa bem e comove muito mais que cadáver.


 

Sobre Sovietes e Kulaks

2/11/2001

 

Em janeiro de 1969, publiquei no Correio do Povo, de Porto Alegre, artigo intitulado "Marxismo Gaúcho Contemporâneo". A sátira tinha como alvo os militantes do Pecebão gaúcho, em geral estudantes de Filosofia ou Ciências Sociais, que conspiravam nas caves noturnas da Independência, sob os eflúvios de uísque e vinho importados. O artigo rendeu-me duas noites na cadeia. Um delegado de Dom Pedrito leu apenas o título e considerou minha piada uma ameaça ao Estado constituído. Quando, após um longo e tenso interrogatório, fiquei sabendo o motivo da prisão, cai na gargalhada. Eu malhava os comunistas e era preso por suspeita de ser comunista.

Os universitários que ridicularizei nos anos 60 estão hoje no poder e fingem ignorar que até mesmo o mundo socialista já esconjurou o pesadelo. Pesadelo que durou três quartos de século e produziu cem milhões de mortos.

Que o PT gaúcho havia ressuscitado os sovietes, mesmo após a dissolução das repúblicas dos sovietes, sob o eufemismo de orçamento participativo, disto já sabíamos. Mas o bolchevismo avança e o clima que se respira no Piratini parece contaminar a magistratura. Temos agora um juiz em Passo Fundo que, de uma penada, decidiu abolir a propriedade privada. De Passo Fundo para o mundo. Só falta o Lênin dos pampas pendurar em postes os kulaks gaúchos, como escarmento. Como dizia uma escritora carioca, em uma das Jornadas Literárias lá realizadas: "pena que Platão não conheceu Passo Fundo".

Quem acompanha o que escrevo sabe que não morro de amores pelo Brasil. No entanto, perambulando pelo planetinha, houve momentos em que tive de convir com meus botões: sorte a minha ter nascido lá. Foi quando viajava por países socialistas, tanto antes como depois da Queda do Muro. Antes da queda, estive na Alemanha Oriental, Romênia e Bulgária. Em todo esses países, onde os produtores privados eram vistos como inimigos de classe, havia miséria e escassez generalizada de bens.

O episódio mais caricatural desta escassez, vivi em pleno verão na Mangália, balneário romeno às margens do Mar Negro. Estou na praia, é quase meio-dia, dois garçons abrem um bar. Pensei cerveja, fui lá buscar. Santa ingenuidade. Não havia cerveja, nem água mineral, nem coca-cola, nem uísque ou vodca, nem mesmo o haidouc, a cachaça típica do país.

Não há nada para beber, então? Nada. E para comer, o que é que tem? Nada. Nada não entendia eu. Era aquilo um bar? Era, disse o garçom. Estava aberto? Claro que estava, o senhor não está vendo? Eu estava vendo. Mas não há nada para comer ou beber? Não. E por que não há? Porque o distribuidor não trouxe, ora bolas! E por que o bar está aberto? Por que eu sou funcionário, tenho de abri-lo, disse o garçom.

Onde não há propriedade, não há lucro nem comércio. Ao abolir a propriedade privada, os bolcheviques apostaram num desprendimento inato do ser humano, que o capacitaria a trabalhar sem pensar em lucro. Deu no que deu: tirania, o massacre de milhões de pessoas, para se chegar a um conglomerado de países à beira da fome.

Ora, direis, faltar cerveja não condena um sistema. O problema é que quando falta bebida, falta também comida. Vi gente se pegando aos tapas em Mangália, disputando um pedaço de carne, quando o pedaço de carne dava o ar de sua graça. A Romênia tinha grandes plantações de batatas. Mais da metade apodrecia na lavoura. Como quem a colhia não tinha lucro algum, pouco estímulo havia para a colheita. A interdição da propriedade privada e do lucro afundou o mundo socialista. Não há graça alguma em produzir qualquer coisa a troco de nada.

Falei de kulaks. Em russo, a palavra significa punho fechado, e foi usada pejorativamente para designar os proprietários de terra prósperos que se opunham à coletivização forçada dos anos 30 na finada União Soviética. Centenas de milhares de famílias foram expropriadas e seus responsáveis foram deportados, encarcerados ou executados. Stalin admitiu para Churchill a liquidação de dez milhões de ucranianos e casaques. Quatro milhões foram executados. Quase 60 % da produção de gado foi destruída entre 28 e 32. As colheitas catastróficas de 32 e 33 provocaram uma situação de fome na qual morreram sete milhões de pessoas nos anos seguintes. Tudo isto em função do combate ao pecado mortal "capitalista", a propriedade privada. Este massacre, aliado mais tarde às concepções genéticas de Lyssenko, provocou um estrago na agricultura do qual a URSS jamais se recuperou.

Os remanescentes do stalinismo tupiniquim, reunidos no MST, já apontaram quem são nossos kulaks. São os grandes e médios proprietários, sejam suas terras produtivas ou improdutivas. Os sem-terra as invadem com a consciência dos justos e com a nonchalance de quem vai a um piquenique. Em suas hostes, há um ódio manifesto a quem quer que tenha uma propriedade rural. (Exceto os membros do MST, é claro). O proprietário rural é hoje a representação do Mal. Nos dias que correm, não há clima para fuzilamento. Mas as reintegrações de posse decretadas por juizes são geralmente ignoradas pelas polícias estaduais. Sentença judicial passa a ter o mesmo valor que papel higiênico. Salvo, é claro, quando a fazenda ameaçada é do presidente da República ou de seus rebentos.

O dia 17 do mês passado tem vocação para data histórica. Pela primeira vez na história do país, um juiz revoga o direito de propriedade. Luís Christiano Enger Aires, da 1ª Vara Cível de Passo Fundo, contaminado pelos ares da época, negou a reintegração de posse de uma fazenda invadida pelo MST, sob a alegação de que não havia provas da função social do imóvel.

De uma penada, estão revogadas também a Constituição e o Código civil nacionais. É o famigerado Direito Alternativo, esdrúxula criação fermentada nos sovietes do PT gaúcho. Juizes se arvoram em legisladores e prolatam sentenças ao arrepio da lei. Como disse um destes senhores, o juiz Márcio de Oliveira Puggina, em 1990, ao justificar uma sentença: "A lei era claramente institucional. Eu a mandei à puta que a pariu e autorizei o município a pagar."

Quando em um Estado um magistrado assim se refere à lei e permanece magistrado, esse Estado se exclui do país legal. Os separatistas estão chovendo no molhado. A República Socialista Gaúcha já é juridicamente independente. Morte aos kulaks. Todo poder aos sovietes.


 

A Guilda e os Três Patetas

9/11/2001

 

Em meus dias de Folha de São Paulo, escrevendo sobre uma escaramuça qualquer no planeta, fiz uma manchetinha mais ou menos assim: OBUS MATA UM E FERE TRÊS.

Mal viu o título na rede, um jovem editor, desses formados em escola de jornalismo, pegou meu pé:

— Obus? O que é isso, Janer?

Obus, expliquei pacientemente, é uma peça pequena de artilharia, um tipo de morteiro. Também chama-se obus a granada ou bala lançada por esse morteiro.

— Ah, mas o leitor não vai entender. Ninguém sabe o que é obus.

Então, tá. Eu só queria ver como encontrar palavra mais concisa que obus para dizer tiro de morteiro. Surgiu a turma do deixa-disso, entre eles um editor que fizera serviço militar. Sim, é isso mesmo, é obus. "Mas vocês fizeram serviço militar, disse o jovem. O leitor, nem sempre". O que, pelo menos no que a mim dizia respeito, era falso. Nunca fiz serviço militar. Quando guri eu fazia, isto sim, palavras cruzadas. Projétil de morteiro, quatro letras? Obus.

Meses mais tarde, novo conflito com os meninos hostis ao vernáculo. Me caíra nas mãos um TL (texto-legenda) para titular. Na foto, uma mulher de mãos postas e cabeça inclinada manifestava sua adoração por algo ou alguém. Nem hesitei: EM SINAL DE PREITO. Mal o texto chegou em sua tela, o editor, sempre alerta, gritou de sua baia:

— Preito, Janer? O que é isso?

Juntei minhas mãos, inclinei a cabeça e disse:

— Preito é isto.

— Ah, mas então deve ser uma palavra muito antiga.

De fato, era bem mais antiga que eu. Como aliás a maioria das palavras que eu ou você usamos. Lembrei-me do obus e fui tomado de súbita iluminação. Para aquele menino, formado na reputadíssima ECA, palavra que ele não conhecia certamente o leitor também não a conhecia. Os leitores do jornal eram nivelados pelo padrão do que ele ignorava.

Quem passou por jornais nas últimas décadas, terá dezenas destas histórias para contar. Mas no dia 03 de outubro passado, a Folha superou todos seus feitos.

A entrevista com Fernando Henrique Cardoso versava sobre o abate de aviões clandestinos sobre o território nacional. "Precisamos fazer um esforço grande para controlar o terrorismo, que é um inimigo suez" — assim redigiu a repórter a declaração do presidente. A moça, que desconhecia o adjetivo soez, escreveu como pensou ter ouvido e resolveu esclarecer o leitor, que talvez não soubesse o que significava suez: "FHC se referia aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes por meio de túneis subterrâneos abandonados, de surpresa: ninguém sabe de onde vem". Explicação mais que oportuna, já que nem mesmo eu saberia dizer o que significa suez como adjetivo.

Ora, diria o jovem editor, o presidente se permite tais palavras porque é um erudito. Acontece que não se exige erudição de ninguém para falar em soez. As gerações novas, hostis à leitura e viciadas pelo parco vocabulário televisivo, não mais conhecem palavras elementares do vernáculo e ainda se julgam no dever de elucidar para o leitor vocábulos de cujo significado apenas suspeitam. Com este material humano, que sequer conhece a própria língua, faz-se jornalismo. Pois jornalismo, hoje, só pode exercer quem faz curso de jornalismo.

Melhor mesmo, só a história dos perdigotos, já incluída no ror dos clássicos da Folha. A notícia era sobre a epidemia de uma gripe, que se disseminava por perdigotos. O repórter, ciente de sua ignorância, fez o que deveria fazer: consultou o dicionário. Só que ficou na primeira acepção da palavra. Os leitores foram então informados que a gripe era transmitida por filhotes de perdiz. O cidadão urbano foi tranqüilizado. Como nas urbes não existem perdizes, muitos menos filhotes das ditas, não havia porque temer a gripe.

Em meio a isso, a juíza Carla Arantkoski Rister, da 16.ª Vara Cível da Justiça Federal em São Paulo, concedeu liminar que acaba com a exigência do diploma específico para o exercício da profissão de jornalista, em todo território nacional. O ofício volta a ser como era antes de 1969, isto é, poderá ser exercido não por quem faz curso mas por quem tem competência para exercê-lo. Volta a ser como é em todo o resto do mundo ocidental, onde não se exige curso algum para jornalistas. A exigência de curso específico para o exercício do jornalismo é uma excrescência que só existe no Brasil. Este ato de uma junta militar, editado por um espúrio decreto-lei, o de nº 972, curiosamente hoje é defendido com unhas e dentes pelas esquerdas brasileiras. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) já entrou com um agravo de instrumento para tentar derrubar a liminar. A guilda toda, tanto nos sindicatos como na universidade, se mobiliza para defender o arbítrio da junta militar, que passou para a História como a Junta dos Três Patetas.

O diretor da Faculdade Cásper Líbero, Erasmo de Freitas Nuzzi, disse estar surpreso com a sentença. "Eu duvido que um administrador de empresas ou um advogado vá se submeter às exigências da profissão do jornalista. O diploma é a qualificação mínima exigida". É preciso um diretor de faculdade ser muito analfabeto — ou agir com má-fé incomensurável — para ignorar que em todos os países civilizados jornalista é quem quer sê-lo. Segundo a lei francesa, por exemplo, é jornalista todo aquele que provar que retira do jornalismo a maior parte de seus proventos. Não há país livre que não siga este modelo.

Claro que a guilda faz vista grossa para um insipiente de pai e mãe como Lula, que exerce a profissão — sem diploma algum, cabe salientar — escorado na figura desonesta do ghost writer. Estranho país, o nosso. Este senhor, que começa mentindo que sabe escrever, hoje lidera as preferências como candidato à suprema magistratura da república.

Segundo a presidente da Fenaj, Beth Costa, a liminar coloca em risco não só a profissão de jornalista, mas de todos os profissionais da área de Humanas. "Seguindo o raciocínio da liminar, um historiador não precisaria cursar História", disse. Ou seja, um Hélio Silva jamais poderia ser considerado historiador, afinal era proctologista. Historiador é o Marco Aurélio Garcia, secretário de Cultura da prefeitura de São Paulo, do qual não se conhece uma mísera obra histórica que tenha escrito, nem me consta que um dia tenha cursado História. Mas é do PT. Então, pode.

Seria interessante sabermos se os defensores incondicionais do diploma para o exercício da profissão o exigiriam de um Luis Fernando Verissimo. Ora, o filho do Erico sequer tem curso superior. No que aliás não vai nenhum demérito, dado o atual nível das ditas Humanas. Mas Verissimo é homem da guilda, macaca de auditório do Che, Fidel e Lula. Defende idéias obsoletas e sanguinolentas, bem ao gosto das esquerdas nativas. Não precisa de papeluchos.


 

PUC vira Madrassa

16/11/2001

 

Entre as muitas anomalias da universidade brasileira, estão os mestrandos quarentões. Aquela iniciação à pesquisa, pela qual o candidato deveria optar tão logo terminasse o curso superior, é adiada para uma idade em que do acadêmico já se espera obra consolidada. Pior mesmo, só os doutorados de terceira idade. Marmanjos de cinqüenta e mais anos, em idade de aposentar-se, postulando um título que só vai servir para pendurar junto com as chuteiras.

Estas pós-graduações temporãs são mais umas das tantas “coisas nossas”. Como a jabuticaba, só existem no Brasil. Estudei em três universidades de três países no Exterior, e jamais vi — pelo menos em minhas cercanias — vetustos adquirindo formação própria de jovens. Mestrado não é para carecas. Já um doutorando, este deveria defender sua tese no máximo aos trinta e poucos, para que sua experiência em pesquisa possa ser útil ao ensino e à sociedade. Que mais não seja, é patético ver um homem já maduro humilhando-se, ao tentar iniciar-se em metodologias que devia desde jovem dominar. Na universidade brasileira, o doutorado nem sempre é visto como início de uma carreira, mas como louro a coroar a calva do acadêmico quando este está prestes a usar pijamas. Quem paga tais vaidades senis? Como sempre, o contribuinte.

Mês passado, um fato insólito perturbou o mundo acadêmico. Francisco Wanderley Rohrer, 47 anos, tentou apresentar — pela quarta vez — sua tese de mestrado, A Identidade do Policial Militar Comunitário: Metamorfose e Emancipação, a uma banca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tentou, apenas. Pois foi impedido por um tal de Comitê da PUC de Ação Global contra o Capitalismo, onde se abrigam os derrotados do século. (Depois da Queda do Muro, das prestigiosas bandeiras socialistas só restou um antiamericanismo pueril). Os universitários, além de insultá-lo, jogaram-lhe uma torta na cabeça. Mas os jovens acadêmicos não estavam protestando contra a idade provecta do candidato. Protestavam porque Rohrer era capitão da Polícia Militar e, nesta condição, teria comandado uma tropa chamada a “reprimir” protesto antiglobalização na Avenida Paulista, em abril passado.

Rohrer nega ter comandado qualquer tropa na ocasião. E, se a comandasse, nada mais faria senão cumprir seu ofício, a manutenção da ordem, que a imprensa convencionou chamar de repressão. Os meninos da PUC paulista são incondicionais defensores dos Direitos Humanos, sempre prontos a denunciar qualquer indício de discriminação ou preconceito. Mas não aceitam que um policial militar exerça seu direito de defender uma tese na universidade que está cursando normalmente. Tentam fazer da PUC uma madrassa, onde todo seminarista deve seguir os mesmos dogmas.

Capitão não pode. A menos que fosse, por exemplo, um capitão Lamarca, terrorista em prosa e filme cantado, que assassinou friamente um colega de armas indefeso e hoje é matéria de muitos currículos. Enfim, a reação dos taleban da PUC não é incompatível com uma universidade que tem como chanceler um cardeal que apóia a ditadura de Castro. Em 89 o cardeal Evaristo Arns via em Cuba “um exemplo de justiça social. A fé cristã descobre nas conquistas da Revolução, os sinais do Reino de Deus que se manifestam em nossos corações e nas estruturas que permitem fazer da convivência política uma obra de amor".

Quem vê sinais de amor numa tirania que fuzilou 17 mil cubanos e levou um país à miséria é chanceler da PUC. Um oficial da PM que quer fazer uma reflexão sobre seu ofício, recebe tortas na cara. Enfim, nada incoerente com a universidade tupiniquim. Fidel Ruz Castro é Dr. Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Catarina. E esta é nossa trágica realidade.

Desde os primórdios da USP, centro irradiador do marxismo no país, a universidade tem sido a vanguarda do obscurantismo tupiniquim. Seus cursos de humanidades, em vez de centros de elaboração de cultura, viraram laboratórios de utopias desvairadas. É graças aos acadêmicos que o país todo está contaminado de marxismo, castrismo, maoísmo. E isto vem de longe.

“Nos anos 50, dourados segundo alguns — escreve o ensaísta José Arthur Rios, em Raízes do Marxismo Universitário — a instituição universitária entrou em cheio na polêmica do desenvolvimento, virou presa fácil dos ideólogos de Esquerda. (...) Foi então que espíritos ardentes descobriram a luta de classes dentro do campus, sua submissão ao capital estrangeiro e aos agentes do Imperialismo. A Academia seria, ela própria, agente de alienação. E confundia-se espírito crítico com politização. Esses chavões marxistas não eram brandidos apenas por estudantes incipientes, mas por professores que não se pejavam de tentar coagir ou intimidar colegas quando esposavam pontos de vista contrários”.

Ainda segundo Arthur Rios, os anos 70 viram a tranqüila ocupação da Universidade brasileira por esse marxismo faccioso. “A penetração marxista em nosso ensino universitário deixou marcas indeléveis. (...) Persiste, sob a fachada da democracia liberal ou debaixo das tênues maquilagens do socialismo caboclo — nas invasões de propriedades, nas ocupações de gabinetes de Reitores e Ministros; no sindicalismo tumultuário que não mais se limita a reivindicações de classe, mas se arroga o direito de mudar o regime político e exigir a renúncia do Presidente, em marchas e demonstrações de cunho fascista; no convívio fronteiriço com movimentos subversivos tais como o Sendero Luminoso, a guerrilha e o narcotráfico colombiano; na ternura com que acolhe o ditador cubano”.

E nisto estamos. Uma década depois da Queda do Muro e do desmoronamento da URSS, a elite intelectual deste país que se pretende moderno reivindica uma filosofia assassina do século XIX. Professores que fizeram suas carreiras sentados em cima do marxismo jamais irão jogar no lixo seus livros e papers. Por um movimento de inércia, repassam às novas gerações suas ideologias obsoletas e temos então os taleban da PUC censurando uma defesa de tese só porque o candidato é policial.

E não faltam castas alminhas que ainda acham que o marxismo já morreu. Morreu lá na Europa. Cá nas terras de Cabral, continua vivo e vibrante.


 

Nigra Sum sed Formosa

23/11/2001

 

Luta de classes morta, luta racial posta. Comemorou-se, na terça-feira passada, o Dia Nacional da Consciência Negra. Nesta semana os ativistas negros estão comemorando uma vitória de Pirro, a lei que estabelece a reserva de 40% das vagas nas universidades estaduais para negros e pardos da rede pública de ensino, no Estado do Rio de Janeiro.

Digo vitória de Pirro, pois se aparentemente é uma conquista, a longo prazo a reserva de vagas só servirá para discriminar o profissional negro. Se hoje vou consultar um médico ou advogado e descubro tratar-se de um negro, tanto faz como tanto fez, afinal ele submeteu-se a todas as provas exigidas para quem quer que entre na universidade. Amanhã será diferente. Com a nova lei, o profissional negro fica marcado na testa. Se deparar-me com um deles, minha tendência será dar meia volta, pois ele não entrou na universidade por mérito próprio, mas amparado por uma lei racista.

Os negros não poderão então queixar-se de racismo quando a clientela preferir profissionais brancos, que entraram na universidade sem apelar a nenhuma lei de Gérson. Em meio a esta euforia boba, decorrente da lei fluminense, recebo mensagem em meu correio pedindo: ajude-nos a mudar isso. Que é isso que se quer mudar? Nada menos que o vernáculo nacional. A mensagem, enviada por um certo Projeto Aurélio, não se conforma com as acepções dadas por dicionários à palavra negro. Cito algumas:

1 Que recebe a luz e não a reflete; preto. 2 Escuro. 3 Sombrio. 4 Denegrido, requeimado do tempo, do sol. 5 Lutuoso; fúnebre. 6 Que causa sombra; que traz escuridão. 7 Tenebroso, caliginoso. 8 Tempestuoso. 9 Tétrico, horrível, lúgubre. 10 Que pertence à raça ou ramo negro. 11 Ameaçador, medonho. 12 Condenado, maldito. 13 Que anuncia infortúnios; funesto, nefasto. 14 Horrendo, pavoroso. 15 Pervertido. 16 Adverso, inimigo. 17 Execrável, nefando, odioso.

"Alterar o significado do termo negro não é somente mudar um valor literário, mas sim resgatar a dignidade de fato do que é ser brasileiro” diz a mensagem. Um dos propósitos do movimento é “banir de nossos dicionários de Língua Portuguesa todos os adjetivos e substantivos pejorativos que acompanham o termo negro”.

Se algo que recebe a luz e não a reflete é chamado de negro, esta acepção soa como ofensa. Se chamarmos de negro o que é escuro ou sombrio, estamos sendo no mínimo racistas. Se, por alusão ao mau tempo, quando o sol desaparece, associamos a palavra negro a tempestuoso, tétrico, horrível, lúgubre, estamos cometendo crime de lesa-negritude. Se os ativistas dos movimentos negros exigiam ainda há pouco a censura de obras literárias, agora pedem nada menos que a censura da língua. Desta língua que é criada pelo povo. Pois lexicógrafo não cria nada, apenas transmite o que ouve. Em nome desta filosofia tacanha, um dicionarista não pode mais registrar as vozes populares. Deve, antes de mais nada, deformá-las para que não firam as veleidades dos stalinistas da língua.

Há três anos, numa prova de língua portuguesa no vestibular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ocorreu um caso caricatural deste novo tipo de racismo. As frases "ela é bonita, mas é negra" e "embora negra, ela é bonita" provocaram indignação de entidades ligadas aos direitos dos negros no Estado. O Instituto e Casa de Cultura Afro-Brasileira (Icab) ingressou com representação criminal junto ao Ministério Público Federal e registrou queixa na Secretaria da Segurança Pública, pedindo que fosse apurada denúncia de crime de racismo por parte da UFMS. O grupo Trabalhos e Estudo Zumbi (Tez) pediu a anulação da questão e uma retratação pública da UFMS. Para Aparício Xavier, presidente do Icab, a questão era uma aberração, feita para a época medieval. "Se eu estivesse fazendo a prova, a rasgaria e botaria fogo."

A partir de duas frases, o candidato deveria indicar as respostas corretas. Uma das respostas considerada certa afirmava que na frase "a" ("Ela é bonita, mas é negra") a cor da moça era argumento desfavorável à sua beleza. Outra resposta considerada correta, na frase "b" ("Embora negra, ela é bonita"), dizia que a cor da moça era uma restrição superável pela beleza. Para o presidente da Comissão Permanente de Vestibular, responsável pela elaboração da prova, Odonias Silva, a questão foi "uma escorregada infeliz". O presidente do Icab pediu ao chefe do Departamento de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Ivair Augusto dos Santos, que oficializasse a indignação dos negros junto ao Grupo Interministerial da Presidência da República pela Valorização da População Negra, criado pelo presidente Fernando Henrique. Tanto o Icab como o Grupo Tez informaram que representantes das entidades ligadas aos direitos dos negros pediriam uma indenização por danos morais.

Não sei em que deram tão histéricas providências, pois nossos jornais têm a péssima mania de não acompanhar certos fatos até o desfecho. Só sei que a nenhum representante de entidades ou professor ou reitor ocorreu lembrar, que se alguém quisesse queimar e rasgar a provas em razão da frase, teria de começar rasgando e queimando a Bíblia. Pois lá está, na abertura de seu mais belo livro, o Cântico dos Cânticos: “Eu sou negra, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão”.

O politicamente correto parece ser mais antigo do que imaginamos. Se o leitor procurar este versículo nas traduções portuguesas da Bíblia, não encontrará a palavra negra, e sim morena. Mas se formos às fontes, isto é, à Vulgata Latina, tradução da qual deriva a maior parte das traduções atuais, lá está: nigra sum, sed formosa. A Vulgata, por sua vez, deriva da tradução dos Septuaginta — feita a partir do original hebraico — onde está, em grego: Melaina eimi kai kale.

São estas referências que favorecem a existência de uma Madona Negra em certos países da Europa. Neste caso, não falamos de Madona Morena. A nenhum comentarista bíblico ocorreu que uma conjunção alternativa pudesse ferir a auto-estima da noiva do Cântico dos Cânticos. No que depender da profunda ignorância dos responsáveis pela cultura no Brasil, não seria de espantar que dentro em breve se peça, não a censura ao vernáculo, como pede o tal de Projeto Aurélio, mas à própria Bíblia.


 

Canabis Kantate

30/11/2001

 

Em 1692, após o cerco de Viena, o moca da Arábia fazia furor no norte da Europa. Mas não era de bom tom ser tomado por mulheres, pelo menos por moças de boa família. Atitude pouco recomendável, tomar café passou a ser um símbolo de emancipação feminina. Em 1732, em Leipzig, Johan Sebastian Bach compôs sua Kaffee Kantate (BWV 211), a Cantata do Café. Nela, um certo Monsieur Traintrain ameaça de não fazer casar sua filha caso ela insistisse em continuar bebendo café três vezes por dia. A filha protesta, que se não o bebesse três vezes por dia teria as feições tão tristes como um rôti de cabra passado demais. E se apega a seu café como um "gato a seu rato". As mulheres que hoje empunham suas taças nos aconchegantes cafés de Viena — e de Paris, Roma ou Madri — certamente sequer imaginam que a conquista deste singelo direito foi uma das primeiras vitórias femininas da história. O escândalo dos dias de Bach repetiu-se há duas semanas, quando uma apresentadora de TV ousou confessar que fuma maconha, hábito hoje tão rotineiro quanto o consumo de tabaco ou álcool.

A primeira reportagem sobre a maconha, eu a li numa edição da revista O Cruzeiro, no final dos anos 50. O repórter, para entrar no "tenebroso mundo da droga", travestiu-se de marginal, isto é, deixou crescer a barba. Na época, a "erva do diabo", como era conhecida a canabis, era consumida por ladrões e assassinos e consumida no "inferno" das prisões. Na década seguinte, os universitários americanos passaram a importá-la do México — daí o nome marijuana — e a erva adquiriu prestígio. Das prisões, a erva migrou para as instituições de ensino. Bons macaquitos, os universitários de Pindorama passaram a cultivá-la com fervor. Nesta mesma época, a barba também mudou de status. Após a tomada do poder em Cuba pelos barbudos de Sierra Maestra, as barbas, que eram atributo de marginais, passaram a ser logotipo de revolucionários. Logotipo fugaz, é verdade. Os revolucionários só não lembraram que barba fica branca. Bastaram três décadas para que o símbolo de juventude revelasse sua face oculta: uma gerontocracia encanecida.

Enfim, com a mudança de status da canabis e das barbas, operou-se uma curiosa fusão entre esquerdas e mascadores de ervas. Com a complacência da universidade, cujos produtos mais consumidos são marxismo e canabis. Hoje, se você curte a dita e não quer complicações legais, faça vestibular. Polícia não entra nos campi, e lá você goza da cumplicidade dos professores e reitores. Pois nenhum professor ou reitor ignora que os meninos da classe média preferem a paz dos campi para fumar em segurança.

O importante era o gesto de rebeldia. Em meus dias de repórter em Porto Alegre, acompanhei caso dos mais emblemáticos. Em outubro de 71, um cidadão porto-alegrense, Otacílio de Oliveira Escobar, residente na vila Cai n'Água, foi preso por tráfico de maconha. Os policiais que foram apreender a muamba no barraco do traficante, encontraram quilos e quilos de esterco bovino, seco e esfarelado. Segundo Otacílio, os clientes nunca reclamaram da mercadoria. Todo mundo ficava muito louco. Um deles estranhou o cheiro da erva, considerado fora do comum. Otacílio tranqüilizava: "é erva nordestina. Da boa. Muito mais forte".

Não lembro se Otacílio foi em cana, que mais não seja vender esterco nunca foi crime. À guisa de colaboração com as autoridades, sugeri fornecer alfafa aos jovens rebeldes, já que a maconha estava proibida. Se não distinguiam entre maconha e esterco, certamente não veriam diferença alguma entre Canabis sativa e Medicago sativa. Sem falar que a medida seria um incentivo à agricultura gaúcha. Minha sugestão provocou profundo mal-estar. Não é de bom tom criticar jovens.

Os tempos mudaram, os cafés já não são os mesmos. Em Stockport, subúrbio de Manchester, Reino Unido, foi inaugurado neste outono (europeu) o café Dutch Experience, que em vez de café ou cerveja serve maconha. Nada de novo sob o sol. A casa segue modelo já consagrado pelos holandeses em Amsterdã. Esses cafés, encontrei-os nos anos 70, em Estocolmo, financiados pela prefeitura local. Em um deles, fui barrado ao entrar: era destinado a menores de 18 anos.

Num desses locais, traguei duas ou três vezes um baseado, passado por alguns brasileiros que se julgavam no paraíso pelo simples fato de fumar maconha sem maiores restrições. Não achei graça alguma. Muito menos nos fumantes, uma meninada que parecia ter perdido o dom da fala. Havia três suecas na sala, que não entendiam aqueles brasileiros que não falavam com ninguém e se compraziam na contemplação do próprio umbigo. "Vocês, brasileiros, não falam?" Eu falava. Convidei-as para meu quartinho de estudante, para degustarmos algo realmente proibido na Suécia: nos entregamos aos pecaminosos prazeres do vinho. Pois se havia algum pecado na Suécia dos anos 70, esse pecado era o álcool. Naquela noite irreal que de noite nada tinha, em que o sol cumpria uma rota paranóica paralela ao horizonte, pecamos e conversamos enquanto os chupadores de erva permaneciam encerrados em suas carapaças.

O que mais me desagrada na maconha são seus consumidores. Jamais encontrei vida inteligente entre eles e jamais consegui nutrir amizade, ou mesmo simpatia, por qualquer um deles. São sempre gregários e geralmente incultos, não sabem distinguir entre uma premissa maior e uma menor e têm escasso domínio do vernáculo. Nada a ver com os tempos da mescalina, defendida por escritores do porte de um Aldous Huxley. Não por acaso, a defesa da maconha vem sendo feita por roqueiros e vedetinhas de televisão.

Jamais curti a maconha. Seu consumo é hábito brega de gente inculta. Mesmo assim, sempre fui a favor da descriminalização da mesma. Autoridade alguma consegue justificar a interdição da canabis em sociedades onde são permitidos o álcool e o tabaco. Se a canabis puder ser comprada na farmácia da esquina, desaparecem o tráfico e todas suas seqüelas, como também este desafio que leva muito jovem às drogas, a sensação de estar transgredindo alguma regra.

Por onde anda o Bach que comporá a Canabis Kantate, sobre a nostálgica figura da moça que fumava maconha? Quando esta moça pertencer a um distante folclore, a humanidade terá se tornado um pouquinho mais inteligente.


 

O Projeto de Maury

7/12/2001

 

O anonimato na Internet tem suas vantagens: qualquer militante saudoso da luta de classes pode inventar qualquer teoria descabida e, se esta for de encontro a algum desejo difuso que paira no ar, ganha logo foros de veracidade. O boateiro permanece impune, protegido por pseudônimo.

Entre os tantos boatos que circulam na rede, volta e meia aparece e reaparece aquele que diz existirem nos Estados Unidos livros didáticos com mapas geográficos nos quais a Amazônia não faria mais parte do território brasileiro. Imediatamente ao boato, autoridades de lá e de cá, ongueiros cheios de nobres intenções e jornalistas supostamente bem informados correm aos jornais para desmenti-lo. O último é sobre um livro — Introduction to Geography, de um tal de David Norman — no qual existiria um mapa com a Amazônia está separada do Brasil.

Ano passado, teria sido uma brasileira residente em Austin, quem denunciou que os mapas usados nas escolas americanas dividiam o Brasil em duas partes: a do sul, o Brasil propriamente dito, e a do norte, como "zona internacional de preservação". Claro que ninguém sabe quem é a brasileira em questão, muito menos os livros citados. Mal circulou o boato, jornalistas se apressaram em atribuir a conspiradores de direita a difusão do mesmo. No caso deste último, o cronista americano Matthew Shirts, do Estadão, o atribui imediatamente a um site intitulado “Brasil, ame-o ou deixe-o”, onde você fica sabendo que “as reservas indígenas são grandes demais, que os cientistas não conseguem mais discutir a Amazônia direito por conta da pressão de grupos ecológicos e que foram os americanos que colocaram cocaína nos aviões da FAB, para desmoralizar as Forças Armadas brasileiras”. “É uma obra da extrema direita”, conclui o cronista.

Ora, se o boato desmoraliza quem o difunde, por sua tosca montagem, mais desmoraliza todos aqueles que estão cientes das pretensões internacionais à Amazônia. Desde François Mitterrand a Mikhail Gorbatchev, passando por Margareth Thatcher e John Major, os líderes internacionais manifestaram, sem papas na língua, as ambições de seus países. "O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia", disse Mitterrand, com todas as letras. Para Gorbatchev, "o Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes". John Major, ex-primeiro ministro da Inglaterra, por sua vez, chegou a acenar com “intervenções militares diretas sobre a região".

Para que servem tais boatos? No fundo, servem para desautorizar qualquer jornalista que afirme ser a Amazônia um território ameaçado de muito em breve não nos pertencer mais. Servem para minimizar as ameaças das tribos indígenas, que já se pretendem “nações”, como se uma nação pudesse abrigar outras dentro de si. Ora, a causa indígena nunca foi bandeira da chamada direita. Mas sim das sedizentes esquerdas que, não conseguindo mais atiçar operários contra patrões, para não deixar esmorecer a famosa luta de classes, querem agora jogar índios contra brancos. A causa indígena será, indubitavelmente, a conversa de lobo que um dia a ONU e países ricos do Ocidente usarão para cravar suas bandeiras no Brasil.

As pretensões americanas ao território brasileiro existem desde os primórdios da nação. Só as desconhecem aqueles jornalistas que adoram teorias mas dos fatos históricos só querem distância. Ou ninguém mais lembra daquele obeso senhor, Herman Khan, que há alguns anos queria transformar a bacia amazônica em um grande lago?

Mas há projetos mais antigos. Já comentei, nesta coluna, os planos de um outro Matthew, no caso o tenente Matthew Fontaine Maury, do qual o Matthew do Estadão, como cidadão americano, deveria pelo menos ter ouvido falar. Como os boatos se repetem, repito os fatos.

Entre 1840 e 1860, este obscuro tenente da Marinha dos Estados Unidos, pensou seriamente na anexação de parte do Brasil aos Estados Unidos. O projeto do oficial americano era simples e pragmático: uma vez alforriados os escravos negros de seu país, estes seriam enviados para colonizar a Amazônia brasileira. A república da Libéria, na África, resultou de um destes projetos.

Para Maury, só negros podiam colonizar a região: "Este vale é uma região para escravo. O europeu e o índio estiveram lutando com suas florestas por 300 anos e não lhe imprimiram a menor marca. Se algum dia a sua vegetação tiver de ser subjugada e aproveitada, se algum dia o solo tiver de ser retomado à floresta, aos répteis e aos animais selvagens e submetido ao arado e à enxada, deverá ser feito pelo africano. É a terra dos papagaios e macacos e só o africano está à altura da tarefa que o homem aí tem de realizar".

A pretensão não era nova. O projeto de Maury só tinha de original a insistência em colonizar a Amazônia com os negros libertos. Desde a década de 1830, os Estados Unidos pretendiam a abertura da navegação do rio Amazonas a todas as nações. Antes do oficial sonhador, um certo Joshua Dodge pretendia estabelecer 20 mil imigrantes norte-americanos nas margens do Amazonas. Todos se comprometendo a reconhecer a soberania brasileira, pelo menos nos primeiros anos de colonização.

No fundo, à semelhança do que foi feito com o Texas, pretendia-se anexar a região aos Estados Unidos. A estratégia era simples. Bastaria comprar alguns brasileiros em Manaus, que passariam a ser "legítimos representantes de uma República da Amazônia, que se declararia estado independente do Império do Brasil, inclusive por discordar da forma como o país era governado, com sua monarquia". Caso o governo brasileiro enviasse navios e tropas para restabelecer sua soberania, os cidadãos do novo estado amazônico independente apelariam para a proteção norte-americana, para "proteger a vida e os bens ameaçados dos cidadãos americanos".

Ou seja: se alguém quer discutir as pretensões americanas à Amazônia, não precisa fabricar boatos. Elas existiram desde sempre. Estes dados o leitor poderia encontrar no livro A Amazônia para os Negros Americanos, da pesquisadora Nícia Vilela Luz. Digo poderia, pois o livro não existe mais no mercado, nem em sebos. Mais útil seria reeditá-lo do que reproduzir boatos bobos, que só servem para negar uma evidência.


 

Calvos reagem

14/12/2001

 

Se algum dia tive uma percepção da fatuidade de um doutorado, foi na Aula Magna da Universidade de Salamanca. Naquela mesma universidade onde, em 1572, fray Luis de León foi preso pela Inquisição pelo fato de, entre outros crimes, ter traduzido ao castelhano o Cântico dos Cânticos. Minha epifania ocorreu naquela mesma sala onde o frei, após cinco anos de cárcere, retomou com verve a aula interrompida:

Como decíamos ayer ...

A sala ainda lá está, com os mesmos bancos toscos e nada confortáveis do século XIV. Quatro séculos mais tarde, em 1936, suas paredes foram testemunhas de outro episódio não menos marcante, quando o pensador basco, Miguel de Unamuno, representando o general Francisco Franco nas celebrações do Día de la Raza, enfrentou o general Millán Astray:

Este é o templo da inteligência. E eu sou seu sumo sacerdote. Estais profanando seu sagrado recinto. Eu sempre fui, diga o que diga o provérbio, um profeta em meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E para persuadir, necessitais algo que vos falta: razão e direito de luta.

Cinco décadas mais tarde, lá estava eu, na mesma sala, sentado nos mesmos bancos toscos, assistindo não um daqueles momentos épicos que celebrizaram aquela Aula Magna, mas uma prosaica conferição de grau. Prosaica, mas nem por isso menos pomposa. Atribuía-se a um aluno o grau de doutor. Muitas togas e barretes coloridos, trompas e clarins. O doutorando, enrolado em capas e rendas, parecia estar portando o traje de luces de um toureiro. Em meio à faena, por assim dizer, ao som das trompas, ajoelhou-se ante os luminares e foi consagrado Dr. Em latim, bem entendido. Só faltaram os picadores e banderilheiros. Estávamos já longe da postura heróica de fray Luis ou da hybris de Unamuno. A genuflexão do novel doutor era a submissão da juventude ao saber burocratizado dos gerontes.

Verdade que nossas universidades, mais ou menos isentas do ritual medieval da universidade espanhola, são mais sóbrias ao conferir títulos. Nada que lembre uma corrida de touros. Mas o título de doutor, se algum dia atestava alguma excelência em matéria de saber, hoje virou exigência burocrática de carreira, sem a qual não há progressão funcional. O acadêmico, em busca de aposentadoria melhor, é empurrado a postular o título, mesmo que não tenha nenhuma vocação — ou mesmo capacidade — para a pesquisa. As bibliotecas universitárias se lotam de teses inúteis, que talvez fossem melhor aproveitadas para erigir diques na Holanda.

Comentando em crônica passada a atitude dos talebã da PUC paulista, que impediram a defesa de dissertação de mestrado de um colega, só porque este era oficial da Polícia Militar, abordei acidentalmente um tema paralelo, o dos mestrandos carecas. As reações não se fizeram esperar. Um dos aludidos reagiu com pragmatismo. “Se mestrado não é para carecas, tudo bem, ponho peruca”.

O problema é mais grave e não se presta a piadas. Fernando Henrique que o diga. O que um colunista diz em sua tribuna, pouca ou nenhuma repercussão tem. O mesmo não ocorre quando fala o presidente da República. Bastou dizer que, na Universidade de Princeton, em matemática e física pura, as grandes invenções eram feitas por jovens PhDs de menos de trinta anos, e a comunidade senil — digo, científica — ergueu-se em protesto como um homem só. Fernando Henrique, em uma das escassas verdades proferidas nos últimos anos, afirmou ainda que os professores constituem uma classe especial de privilegiados. Pressionado pela comunidade senil, voltou atrás e disse, em nota oficial, que suas palavras foram mal interpretadas. Verdade que, desacostumado a dizer verdades, o presidente não poderia perder o azo de dizer besteiras. Afirmou que quem não consegue ser cientista vira professor, desprestigiando a classe à qual um dia pertenceu.

O problema nem é idade. É o absurdo das defesas de tese, que não passam de uma pomposa encenação teatral. Quando o doutorando chega lá, a tese já está aprovada. A defesa é uma oportunidade de os participantes da banca exibirem suas plumas. Podem até se dar ao luxo de xingar o candidato, pois este não pode revidar. Ora, se a tese já estava aprovada, para que o teatro?

A universidade brasileira está produzindo seis mil doutores por ano. Para quê? Fundamentalmente, para propiciar ao acadêmico uma progressão funcional e salarial. Onde estão as seis mil teses anuais destes senhores? Evidentemente, não tem muito sentido trazer ao grande público teses complexas, da área tecnológica ou científica, acessíveis somente a especialistas. Mas onde estão as teses da área humanística? Mofando em bancos de teses? No caso da universidade pública, se o ensino é subsidiado pelo contribuinte, porque estas teses não estão à disposição de quem as financia?

Não tenho preconceitos contra doutorandos idosos. Tenho pósconceitos, o que é diferente. Se alguém quer investir cem mil dólares em si mesmo, para depois pendurar um diploma na parede — ou no currículo — tudo bem. O problema é quando o contribuinte, e particularmente o contribuinte de país pobre, entra com esse montante para satisfazer uma vaidade. Se alguém quer pesquisar, pelo menos na área humanística, onde em princípio se dispensa caros laboratórios e equipamentos, pode fazê-lo por conta própria, sem postular diploma. Um dos grandes pesquisadores da história nacional, Hélio Silva, fez excelente trabalho de historiador sem jamais ter defendido tese. Diga-se de passagem, era proctologista de formação. Honestamente, não entendo alguém concluindo um doutorado em idade de aposentadoria.

Depois, a humilhação da metodologia. Tenho amigos, nessa idade, fazendo doutorado. Vivem em pane, estressados com as exigências metodológicas de doutores jovens que sequer aprenderam a pensar e se apegam a modas importadas da Rive Gauche, modas que acabam passando, pois para nada servem. Ora, um homem na fase dos 50, se já não adquiriu uma sólida visão de mundo, com pleno domínio de métodos de raciocínio e pesquisa ... é melhor desistir.


 

PT, CLT e acarajés de Jesus

21/12/2001

 

Os dramas do PT gaúcho em relação ao jogo do bicho me lembram as peripécias de Bill Clinton com Monica Lewinski. Imagine se Clinton afirmasse, alto e bom som, que teve relações com a moça e ninguém — senão ele, ela e eventualmente Hillary — tinha nada a ver com o caso. Sexo é bom, louvável, digno e justo, poderia ter dito o presidente, e gosto de sexo como gostavam os Kennedys, como gostava Giscard ou Mitterrand, como gosta Chirac. Ou nós, presidentes, não podemos usufruir os singelos prazeres que usufrui o comum dos mortais?

Clinton preferiu a evasiva: sexo oral não é sexo. E amargou um processo que, além de custar milhões de dólares ao Erário, quase lhe custou a cabeça. Diga-se o mesmo de Olívio Dutra. Poderia simplesmente ter afirmado: temos com o jogo do bicho as mesmas relações que têm os demais partidos e governos. Sem bicho, não há carnaval nem financiamento de campanha. O jogo é tolerado em qualquer capital ou cidade interiorana do país, por que não o seria em Porto Alegre? Se em qualquer esquina do Rio ou São Paulo o jogo tem quiosques fixos, seus apontadores percorrem bares, bancos, repartições públicas e universidades, por que não teria livre circulação no Rio Grande do Sul?

Mas o PT sofre de um complexo de vestal, precisa parecer mais honesto que a própria mulher de César. Caiu na armadilha do combate ao jogo. Olívio preferiu a saída de Clinton: na boca não é sexo. Como Clinton, está hoje arriscando seu pescoço.

A mesma atitude está agora tendo o PT em relação à reforma da Consolidação das Leis do Trabalho, legislação que tem mais de meio de século de existência e já não mais se adapta ao universo contemporâneo do trabalho. Não faz muitos anos, os bravos sindicalistas do partido denunciavam as origens fascistas da CLT. Agora, alegando que a CLT é intocável, um de seus clowns rasga a Constituição em plenário, em protesto contra qualquer reforma. O que me lembra meus dias nos jornais de São Paulo. Num deles, um indignado redator mancheteou:

CEM ÍNDIOS TRABALHAM SEM CARTEIRA ASSINADA

Ora, só naquele jornal trabalhariam outros tantos jornalistas sem carteira assinada, muito felizes por pelo menos ter um trabalho onde podiam protestar contra o fato de que índios trabalhavam sem carteira. Mas eram brancos, não renderiam manchetes. Para disfarçar a situação, criou-se um eufemismo nas redações, o frila fixo. Isto é, na condição de free-lancer, o profissional não tem direito à carteira assinada. Mas como seu trabalho é exigido diariamente, é um frila fixo. Claro que nenhum jornal vai citar, nestas discussões sobre legislação trabalhista, a exótica figura do frila fixo. Fica feio.

Carteira de trabalho está virando peça de museu. Hoje, em São Paulo, se você postular um emprego junto a uma pequena ou média empresa, provavelmente vai receber a seguinte proposta obscena. Obscena mas sensata: crie sua própria empresa e empregue a você mesmo como funcionário dela. Feito isto, faça um contrato entre sua empresa e a empresa em que você vai trabalhar, no qual você, pessoa jurídica, oferece os serviços de sua pessoinha física. Se você acha muito complicado criar uma empresa — e no Brasil é complicado criar uma empresa — há uma outra alternativa: compre notas frias de prestação de serviços de uma das milhares de empresas frias que pululam no mercado. Tudo, menos CLT.

Nesta São Paulo de milhões de almas, que habitam e trabalham clandestinamente, à margem de e contra qualquer lei, soa como hipocrisia atroz ver sindicalistas defendendo um diploma caduco, datado de 1943. O mundo mudou, mudou o universo do trabalho, só não mudou o bestunto das esquerdas. O PT, como todos os utópicos, insiste em querer viver num mundo de faz-de-conta.

Um amigo, juiz do trabalho, me manifestava certo dia seu espanto ante a facilidade com que se criam profissões no Brasil. O que ele talvez não notasse, é que ele era, em parte, a resposta ao enigma. Há tantas profissões regulamentadas no Brasil porque existe uma Justiça do Trabalho, existe uma CLT e existem juízes trabalhistas que, de alguma forma, precisam mostrar serviço. Em países desenvolvidos, os conflitos trabalhistas são regidos por acordos ou pela legislação ordinária, o que evita os desperdícios colossais de uma máquina milionária, que acaba gerando os Lalaus da vida. A reforma que urge não é flexibilizar a CLT, mas pura e simplesmente acabar com esse monstrengo de país subdesenvolvido que se chama Justiça do Trabalho.

Em meio a este festival, vem da Bahia a contribuição mais exótica à legislação trabalhista. O acarajé, aquele bolo de feijão-fradinho recheado e temperado, costuma ser vendido por baianas consideradas filhas de Iansã, mulher de Xangô, o deus do raio e do fogo. As vendedoras vestem saias brancas rodadas e blusas de rendas como as mães-de-santo. Suas barracas seriam montadas em lugares escolhidos, depois de consulta às divindades. Ocorre que, nos últimos anos, os evangelistas estão invadindo a seara dos deuses afros. E crentes de cabelos soltos — o que é herético para as filhas de Iansã — passaram a vender o “acarajé de Jesus”. Convertidas a religiões evangélicas, as novas vendedoras se recusam a usar o vestuário tradicional completo, associado às mães-de-santo, especialmente os turbantes e adereços que simbolizam orixás ou divindades.

As baianas ligadas ao candomblé se ergueram em santo e irado protesto. "Que os evangélicos vendam cachorro-quente ou milho, mas não acarajé — diz um estivador pai-de-santo —. Se consideram comida do demônio, por que estão tão ansiosos por vender acarajé?" Para defenderem seu faturamento, as vendedoras persuadiram uma vereadora a apresentar projeto de lei que proíbe o preparo ou venda de acarajé por qualquer "estabelecimento comercial", incluindo shoppings, restaurantes e bares.

No rumo em que vão as coisas no país da CLT, muito em breve teremos mais uma profissão com reserva de mercado. Já somos detentores desta láurea ridícula, inconcebível em país democrático, a exigência de diploma universitário para o exercício do jornalismo. Mais um esforço, senhores defensores da legislação do trabalho, e até para vender bolinhos será necessário professar uma fé.


 

Europa Reage

28/12/2001

 

Numa noite dessas, investi meu tempo em um filme bobo, Sex, Lies and Obsessions, creio que era este o título. O personagem central era um cirurgião jovem e bem casado há quinze anos, com uma dessas beldades hollywoodescas de farto peito e lábios carnudos. Ocorre que o marido era dotado de uma sexualidade imperiosa. Entre um plantão e outro, se jogava à caça de mais sexo, pago ou gratuito. Quando a ingênua beldade descobre a outra face de seu Mr. Jekyll, estabelece-se o drama: choro e ranger de dentes, pedido de divórcio, conflitos com a prole. Justo neste momento, Mr. Hyde está fretando uma prostituta, que logo descobre ser uma policial disfarçada. Nosso fauno acaba preso e algemado, para horror e desonra da casta esposa.

Resumindo a ópera: para evitar um tribunal, o médico tem de freqüentar um grupo de tratamento para sexo compulsivo, no melhor estilo dos Alcoólatras Anônimos. Mais ainda, tem de ir junto com a esposa, que concede acompanhá-lo, numa tentativa de salvá-lo do Mal. E pior ainda: de três em três meses, é interrogado por um psiquiatra, acoplado a um detector de mentiras.

Sem ter maiores virtudes, o filme é dos mais significativos, nesse estranho país do norte, tão liberal e ao mesmo tempo infestado de encraves puritanos. Não sei se o leitor sabe, mas em quase todos os Estados americanos buscar profissionais é considerado crime e o cliente vai em cana. O mesmo ocorre hoje na Suécia, justo na Suécia onde ainda há pouco anos a prostituta era vista como espécie de psicoterapeuta, ou melhor, socioterapeuta, imbuída da nobre função de proporcionar algum prazer aos excluídos sexuais, se me permitem a expressão.

O psiquiatra, na presença da mulher do médico, o interroga: com quantas mulheres você saiu depois de casado? Mais de dez? Saíra. Mais de vinte? Sim. Mais de cinqüenta? Sim. A casta esposa quase desmaia e sai da sala. O marido está gravemente doente. O cirurgião é enviado para o grupo de cura. Lá estão os demais compulsivos, fazendo um esforço heróico para não olhar nem propaganda de lingerie. Playboy, nem pensar. "É como um alcoólatra, diz um deles. Um copo de vinho no jantar não faz mal. Isto é, não faz mal para quem não é alcoólatra. Para quem é, é um incentivo a voltar ao vício". Se o “enfermo” conseguir ficar noventa dias em abstinência, recebe um diploma em companhia dos demais castos, em festa para a qual são convidadas as respectivas esposas e familiares.

Ora, cinqüenta mulheres em quinze anos de casamento dá uma média medíocre de três vírgula uma dízima periódica de mulher por ano. Sim, há casais fidelíssimos, sei disso. Minoria à parte, o Brasil, nesta ótica ianque, é uma nação de psicopatas. Segundo pesquisa feita pela antropóloga Mirian Goldenberg, da UFRJ, os homens brasileiros têm, em média, doze parceiras sexuais ao longo da vida. As mulheres, três parceiros. A professora entrevistou 835 mulheres e 444 homens de 20 a 50 anos, renda acima de R$ 2.000, da zona sul do Rio. Entre eles, seis disseram ter feito amor com mais de cem mulheres; 71, com "muitas"; dez, com mais de 50; a grande maioria, com cerca de dez. A média ficou em 12. Entre as mulheres, a recordista teve 37 parceiros; só 15 declararam que já fizeram amor com mais de 20 homens; 109 delas só tiveram dois parceiros. A média ficou em três.

A mostragem nacional constituiria uma festa para a psiquiatria lá do Norte. No filme, para contrapor o sexo devasso ao amor sublime, a esposa disserta em suas aulas — ela é professora — sobre Romeu e Julieta. O produtor deveria ter mais cuidado na escolha do roteirista. Julieta, no drama de Shakespeare, tinha 13 anos. Romeu, segundo os padrões contemporâneos, estaria incurso no crime de pedofilia.

No ritmo em que evoluem os costumes na grande pátria, mais dia menos dia Mozart entrará nalguma lista de autores proibidos, ou pelo menos desaconselhados. As conquistas de Don Giovanni — só na Espanha, são “mille e tre” —, aplaudidas durante séculos por platéias de todos os países, devem denotar profunda perturbação psíquica. Tudo bem, Don Giovanni pertence ao mundo da ficção. Mas Lorenzo da Ponte, o libretista de Mozart, conta em sua biografia ter conhecido Giacomo Casanova di Seingalt, cidadão de carne e osso da Sereníssima República de Veneza. Em suas Memórias, Casanova lista algo em torno de duas mil mulheres, que perseguiu a cavalo e em diligência, de Madri e Londres a Moscou, na segunda metade do século XVIII.

Don Juan, ao oferecer amor, magoa suas mulheres. Cada conquista é uma vitória sua — e derrota para a conquistada. Casanova oferece apenas sexo. Não humilha ninguém. As mulheres que passam por sua cama procuram trazer outras, mesmo filhas, irmãs ou sobrinhas, para partilhar do prazer. Personagens da história ou dos domínios da lenda, ambos seriam doentes terminais na ótica proposta pelo filme americano. Henry Miller, que fascinou gerações com suas lides de leito em Paris, seria tratado certamente com choques elétricos, lobotomia e provável castração. Saindo do mundo das artes: Kennedy e Clinton hoje estariam em camisas de força. O novo puritanismo ianque está transformando o sexo em doença e a prostituição em crime. Felizmente, para quem ainda cultiva as coisas boas da vida, a Europa reage.

Na França, uma conhecida editora de artes, Catherine Millet, resolveu contar um pouco de sua vida. Seu livro, La Vie Sexuelle de Catherine M., vendeu mais de 300.000 exemplares em seis meses e foi traduzido em vinte países, no Brasil inclusive. Catherine, que dirige há 29 anos a prestigiosa revista parisiense Art Press, diz ter transado com centenas de homens, mas não lembra quantos. Só consegue identificar 49.

Já na Alemanha, a Câmara Baixa do Parlamento Federal (Bundestag) aprovou o direito a pensão e o uso do sistema nacional de saúde para as prostitutas que completem 60 anos. Pessoas que dedicaram suas juventudes ao prazer alheio, terão agora um mínimo de conforto e segurança na velhice. Acredita-se que trabalhem no país pelo menos 400 mil profissionais. Pela nova lei, válida a partir de janeiro, a prostituição deixa de ser contrária aos bons costumes e seus praticantes têm os mesmos direitos e deveres dos demais cidadãos.

E na Suíça, em Leibstadt, pequena cidade próxima da fronteira alemã, foi aberto nestes dias o primeiro bordel exclusivamente para mulheres. O estabelecimento, cujo nome será "Angels", tem seis homens encarregados de distrair a clientela feminina com massagens, strip-teases e... outros serviços.

Nem tudo está perdido.


 

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