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Galileu Garcia

RÉQUIEM PARA UM RIO MORTO

“Prêmio Vladimir Herzog ano 2.000”

—Ridendo Castigat Mores—


 

Réquiem para um rio morto
Galileu Garcia
Prêmio Vladimir Herzog 2.000
Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
RocketEdition de 2.000 a partir de html em
www.jahr.org
Copyright ©
Autor: Galileu Garcia
Edição eletrônica:
Ed. Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)
“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)


ÍNDICE

O Autor
Poucas Palavras
Nélson Jahr Garcia

Prefácio
Lauro César Muniz


Réquiem Para Um Rio Morto
Universo do Viaduto
Personagens
Siglas
Apresentação
Abertura
Moradores do BV
Personagens do AV

CENAS
I   II   III   IV   V   VI   VII   VIII   IX   X

XI   XII   XIII   XIV   XV   XVI   XVII   XVIII   XIX   XX

XXI   XXII   XXIII   XXIV   XXV   XXVI   XXVII   XXVIII   XXIX   XXX

XXXI   XXXII   XXXIII   XXXIV   XXXV   XXXVI   XXXVII   XXXVIII   XXXIX


O AUTOR

GALILEU GARCIA — Nasceu em São Paulo, SP, em 1930. Começa como crítico de cinema em 1950 no jornal Notícias de Hoje. Ingressa na Vera Cruz no departamento de publicidade e passa a ser assistente de direção em SAI DA FRENTE (52), O CANGACEIRO (53), entre outros. Dirige um único longa-metragem, CARA DE FOGO (57). Como ator, participa de alguns filmes, entre eles A PRIMEIRA MISSA (60). Foi assistente de direção em Senda do Crime e uma série de importantes filmes da época, estreando como diretor em Cara de Fogo. Foi um dos pioneiros do cinema publicitário tendo realizado milhares de comerciais e institucionais técnicos. Atualmente [2.000-NE] prepara a realização do longa Veludinho, a ser rodado em Minas Gerais, dedica-se ao cinema publicitário e à formação de novos cineastas.


 

POUCAS PALAVRAS

 

Esta peça, escrita pelo Galileu, é uma obra shakespeareana. Nela se encontram conflitos de classe, preconceitos, dor, sofrimento, alegria e angústia. O Galileu é cineasta, e bom, dirigiu milhares de comerciais de propaganda, dezenas de longa-metragens. Para citar apenas o exemplo mais antigo, foi assistente de direção de “Os Cangaceiros”, o primeiro filme brasileiro a receber um prêmio internacional. Em verdade ele dirigiu quase o filme todo. Vale a pena ler o texto.

Nélson Jahr Garcia


 

RÉQUIEM PARA UM RIO MORTO

Prefácio de Lauro César Muniz

Uma lufada de vento podre varreu a cidade de São Paulo. Obras superfaturadas, gerando déficits or­ça­men­tá­rios fabulosos, criaram uma paisagem de falso desenvolvimento e pujança para iludir incautos cidadãos, eleitores inconscientes ou cínicos aproveitadores. Um esquema criminoso e eficiente desvia o dinheiro público para obras demagógicas e caixinhas eleitoreiras, enquanto sofre o atendimento nas áreas de segurança, educação, saúde, habitação. Essa paisagem de concreto, buquês de túneis, minhocões e cebolões, procura esconder uma triste condição humana: sobre os viadutos correm a riqueza, os carros, as empresas. Debaixo dos viadutos e das pontes, aglomeram-se os pobres miseráveis, esquecidos pelos políticos demagogos, a maioria ligada historicamente à ditadura... Foi observando essa realidade desumana que Galileu Garcia criou um forte libelo poético, uma comovente peça teatral, onde um grupo de lumpens procura sobreviver.

“Réquiem para um Rio Morto”, foi justamente reconhecida e premiada por organizações que têm uma presença forte no país e na cidade por serem atentas defensoras dos direitos humanos: a Ordem dos Advogados do Brasil, secção São Paulo, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, o Vicariato da Comunicação da Arquidiocese de São Paulo. O prêmio leva o nome de Vladimir Herzog, o jornalista que tornou-se símbolo da ação criminosa da ditadura em nosso país.

Um rio morto, cheio de fantasmas gloriosos, bandeirantes que navegavam no mesmo rio vivo; o viaduto, símbolo do estrato social, dividindo metaforicamente os pobres e os ricos, exploradores e explorados; o dia-a-dia, o sofrimento e os sonhos impossíveis de alguns marginais, sem-teto, que vivem debaixo de uma ponte do rio Tietê. Decaídos da sociedade, biscateiros, vítimas do desemprego, mendigos, doentes e loucos visionários que convivem com prostitutas e travestis que fazem ponto no alto da ponte. Apesar da condição de vida sub-humana, miserável, são vítimas de um violento explorador, um dono de rua que cobra “pedágio” com o pretexto de proteção e segurança para os que moram ali. E o falso policial está claramente sustentado por traficantes de drogas, tiras, um perfeito esquadrão da morte, autodenominado esquadrão do apocalipse. Como antagonista principal do dono de rua surge um padre católico, militante da OP, Opção pelos Pobres, que integra-se ao grupo, procurando alimentá-lo es­pi­ri­tual­men­te, dando-lhe forças para resistir à exploração e à violência. O personagem do padre vive uma rica e bem elaborada contradição humana: sente na pele que não conseguirá defender o grupo usando apenas a pregação religiosa e espiritual. Está aí configurada uma amostragem significativa das vítimas de nossa sociedade, do descaso das autoridades, da violência consentida.

Embora tenha sido jornalista, Galileu Garcia não faz, em sua peça teatral, uma reportagem sobre o submundo da marginal do Tietê. Não opta pelo caminho realista dos detalhes: prefere o painel mais amplo, poético, com personagens que resvalam o simbolismo, a metáfora. Mesmo partindo de uma situação absolutamente real, a peça não é um espelho fiel da realidade cotidiana em todas as suas minúcias: a linguagem não se preocupa em refletir os modismos e as gírias de rua, nem enfatizar a semântica popular que tanto fascina outros autores.

Isso é surpreendente, na medida em que Galileu Garcia é basicamente um cineasta: foi assistente de direção de “O Cangaceiro”, um dos filmes mais marcantes do cinema brasileiro. Trabalhou ainda como assistente em muitos filmes da Vera Cruz e de outras companhias, na década de 50. Consagrou-se depois como roteirista e diretor com “Cara de Fogo”, recebendo os prêmios mais importantes da época por essa realização. Foi sócio, diretor e roteirista da Lynxfilm, depois fundou a Documental, onde fez muitos documentários, filmes publicitários, curtas e vídeos, alguns premiados in­ter­na­cio­nal­men­te. Enfim, um poeta da imagem, um artista que imprimiu em celulóide o que seus olhos observaram. Era de se esperar, portanto, que seu teatro tivesse a mesma preocupação, mantendo a feitura realista do cinema...

Mas, não! Galileu não quis, em seu teatro, fotografar, flagrar a realidade crua de seus personagens, como fizera no cinema. Esquece as possibilidades da reportagem e da câmera e vê o submundo através de um filtro impressionista de poeta dramático. Consciente de que o teatro vale-se mais da palavra do que da imagem, ele intui que, na escrita, a captação da realidade é diferente. O palco vive de convenções, de regras próprias. A realidade mais contundente é expressa pela palavra. Mas o pobre vocabulário dos miseráveis, na vida real, não contém toda a força de expressividade que ele precisa para compor mais profundamente o quadro artístico que deseja. O autor parece ter plena consciência de que o sofrimento daquela gente só pode ser verdadeiramente sentido com o convívio ou a vivência. Como Galileu é um artista, pertence a outro meio, e não vive na pele todas as carências daquele universo, opta, honestamente, pela linguagem metafórica, poética, reelaborada, a partir da qual poderá exercer a sua visão. Importa mais sua impressão daquele mundo do que a tentativa de recriá-lo fielmente, como poderia fazer no cinema. Galileu rompe com a realidade mais imediata e a recria poeticamente. De certa forma, é a mesma postura estética que mobiliza um pintor impressionista, que filtra a paisagem humana observada.

Fica tão nítida a preocupação anti-realista do autor, que ele sugere uma apresentação inicial das personagens calcada nas operetas barrocas venezianas, num jogo cênico que coloca as personagens falando diretamente ao público. Ainda, na mesma apresentação, propõe uma linguagem-clipe, com cenas que se seguem, sem continuidade de tempo, alternando dia e noite através de efeitos de luz. Um encenador arrojado poderá, inclusive, usar o canto musical nessa introdução, reforçando a teatralidade. Está contida aí toda a filosofia estética de Galileu como autor teatral.

A partir dessa liberdade formal, fica superado todo o compromisso com o realismo. As personagens adquirem então, um tom em­ble­má­ti­co, incorporando mais idéias do que psi­co­lo­gis­mos. Com tudo isso, o painel ideológico, embora um tanto maniqueísta, resulta enriquecido. Aceitamos a convenção do teatro, estamos diante de uma recriação da realidade. As frases e situações que no cinema soariam deslocadas compõem um todo harmônico na ação teatral. E o espaço se abre para a alegoria, a parábola, e até mesmo a insinuação de transcendência espiritual de um personagem.

Galileu, com todo seu talento, dá o salto do cinema para o teatro, convivendo muito à vontade com a nova forma de expressão. Tenho certeza de que a prova maior do texto, que é o palco, confirmará isso. O universo poético de Galileu Garcia será assimilado com naturalidade, calando fundo na consciência dos espectadores.


 

RÉQUIEM PARA UM RIO MORTO
Galileu Garcia

UNIVERSO DO VIADUTO

O Baixo-Viaduto (BV) é um pequeno mundo, à margem do Rio Tietê, que serve de morada para 6 excluídos sociais que sobrevivem na grande cidade. — Papeleira, Professor (homem-san­duí­che), Tantã, Profeta, Zé do Minduim e Carregador (surdo-mudo), formam o grupo.

À noite, o Baixo-Viaduto (BV) é iluminado por um bico-de-luz (gambiarra).

No Alto-Viaduto (AV), em trecho da avenida, do bairro ajardinado, de classe média alta, as casas estão sendo transformadas em escritórios e sedes de firmas. Lá acontece o trottoir de prostitutas e travestis.

Alto e Baixo-Viaduto: espelho da sociedade, palco de luta pelo poder, direitos, traições, tráfico de drogas e de influência, corporativismo, lei do mais forte, exclusão, ódio.

Nos dois espaços também convivem valores positivos: solidariedade, amizade, lealdade, fé, amor, esperança.

A ação se desenvolve no Alto e Baixo-Viaduto, o que pode ser resolvido por fundos pintados e jogos de luz. Soluções simples, despojadas.

Chega-se ao Baixo Viaduto por uma rampa (escada) de terra.

O leito do Rio Tietê está numa lateral ou á frente do palco e a água não é visível. É preciso profundidade para que pessoas e coisas possam ser atiradas ao rio.

Atrás do lugar da Papeleira existe um grande engradado de madeira usado para pendurar objetos e roupas.


PERSONAGENS

Padre — Militante da OP, Opção pelos Pobres.
Madalena — prostituta de rua.
Coice-de-Mula — “dono” de rua.
Papeleira — moradora e “maioral”, do BV.
Professor (Homem-Sanduíche) — morador do BV.
Tantã — moradora do BV, mendiga.
Profeta — morador do BV.
Zé Dominduim — morador do BV, ambulante.
Marineide — prostituta, colega de Madalena.
Bicha — secretário e cobrador de Coice-de-Mula.
Travesti Leilá — homossexual de programa.
Carregador — o leva-e-traz de papéis. Surdo-mudo.
4 tiras do Esquadrão do Apocalipse.
Cupincha — guarda-costa de Coice de Mula.
Figuração eventual: prostitutas, travestis.

SIGLAS

AV Alto Viaduto
BV Baixo Viaduto
CdM Coice-de-Mula


APRESENTAÇÃO

 

Como nas operetas barrocas venezianas, antes de entrar em função cada Ator/Personagem se dirige ao público, explicando-se. Diz de onde e a que veio, a que família pertence, quem gosta/odeia, e qual seu objetivo na trama que participa.

Na apresentação deste texto, às vezes um Personagem fala diretamente ao público; noutra, participa de grupo cênico para situar o seu personagem para a platéia. Sem perder o estilo da apresentação da referida opereta.


 

ABERTURA

Em linguagem-clipe. As passagens de cena misturam noite, dia, Baixo e Alto-Viaduto. Da cena 1 à 11.

O tratamento é por mudança de cena e cortes de luz. O foco acende sobre um ou mais personagens que dão seus recados.

A intercalação inicial entre Alto e Baixo-Viaduto, é para acostumar a platéia com a geografia e a interação espacial.


MORADORES DO BV

A Papeleira trabalha sempre classificando papéis, papelão e plásticos, e formando amarrados que o Carregador leva embora.

O Professor permanece o tempo todo com a armadura de homem-sanduíche (duas placas de madeira compensada, ligadas por correias que se ajustam aos ombros), com os letreiros OURO/COMPRO/PAGO BEM. Ele sempre está com uma matraca que é tocada antes e depois da frase publicitária “Venda seu ouro e fique rico, venda seu ouro e fique rica.”

Zé Dominduim quando chega ou sai do BV está com seu equipamento de vendedor ambulante: tabuleiro com pernas em xis, banqueta de lona e fogareiro preso por uma alça. Uma lata redonda serve para acondicionar os cones de amendoim.

O Carregador é surdo-mudo e só “conversa” com a Papeleira que entende a sua linguagem mímica.

Todas as vezes que sai ou entra no BV, Tantã carrega uma bolsa de feira e um vaso (lata) com uma planta.

O Profeta faz jus ao nome: tem barba de profeta, usa terno escuro e está sempre com uma velha Bíblia.

PERSONAGENS DO AV

Madalena, Marineide, Coice-de-Mula, Bicha Leilá, Cupincha e os 4 tiras do Esquadrão do Apocalipse devem ser caracterizados de maneira ousada, mas estilizada. Para extrair toda a força visual que suas atividades possibilitam.


Cena 1

No BV, com os 6 moradores.

PROFESSOR
Apesar do mau cheiro, o Tietê tem serventia.

PAPELEIRA (arremessa algo ao rio)
É só pinchar n’água.

ZÉ DOMINDUIM
Isso lá é água? Caldo preto...

PAPELEIRA
Cada um tem o rio que pode.

PROFETA
O que você acha do nosso viaduto?

ZÉ DOMINDUIM
Pra quem vive neste miserê, não passa de uma ponte... do nada pra lugar nenhum.

TANTÃ
Não gosto que chamem ele de ponte. Viaduto tem mais tchan.

PROFESSOR (sonhador)
Temos uma margem de rio!

ZÉ DOMINDUIM
Um rio morto!

PAPELEIRA (com orgulho)
O Papa passou aqui em cima.

PROFETA
A rainha da Inglaterra também!

PAPELEIRA
Não somos pouca porcaria.

TANTÃ
Gosto do Tietê por causa dos bandeirantes.

PROFESSOR
Tantã, isso foi no começo de São Paulo...

PROFETA
Faz 500 anos!

TANTÃ
Ouço de madrugada... eles remam e cantam.

ZÉ DOMINDUIM
Por que não me chama?

TANTÃ
Só escuta quem é tantã.

Como em transe, ela ouve e declama, voltada para o público.

TANTÃ
“Rema rema, rema forte, remador (bis)

Da Ponte Pequena seguimos rio afora
Cruzamos a bela várzea da Casa Verde
Passaremos em Santana do Parnaíba
E empós, por Bom Jesus de Pirapora”

Alguém faz o gesto de “parafuso” com o dedo na fronte, lembrando que ela é desmiolada. O Carregador “fala” em linguagem de surdo-mudo com a Papeleira e sai, com amarrados de papelão. O Professor, só, apresenta-se para o público.


Cena 2

PROFESSOR (pomposo)
Eu praticava o ilícito penal por inspirada compulsão. Meu ramo: o estelionato, minha especialidade: falso fiscal. Embasbacava o mundo por falar bem. Caçoavam que o meu português era tão grande que ia daqui até a França. (risada). Hoje, sem eira nem beira, eis-me, um homem-sanduíche. Um marginal na marginal do Tietê, (declama) o cantado e decantado Anhembi.

Caminha batendo a matraca, diz o seu refrão.

PROFESSOR
Venda seu ouro e fique rico! Venda seu ouro e fique rica!


Cena 3

Leilá e Marineide andam e conversam.

MARINEIDE
Leilá, esse Padre é metido a besta. Não tem nada de profeta, não promete salvação, nem anuncia o fim do mundo. (desprezo) Diz que sua missão é pastoral, com os sofredores de rua...

LEILÁ (forçando a frescura)
Não sabia que eu era sofredor de rua. Adorei, Padre!


Cena 4

A Papeleira, com Tantã e Madalena no BV, lê no jornal.

PAPELEIRA (lendo)
“Taxista baleou o passageiro. O taxi chegou ao fim da corrida e como o dinheiro não dava pra pagar, o folgado mandou o motorista dar 5 reais de marcha-ré. Levou um tiro no pé”.

Risos.

TANTÃ (riso infantil)
Não entendi nada, tia, mas é lindo-maravilhoso.

MADALENA
Tia, conta a do cachorrão.

PAPELEIRA (trabalhando)
O cachorrão veio com idéia de montar uma boca-de-fumo neste pedaço. Desiludi o pilantra, mostrando que aqui é morada de sem-teto. Gente pobre, mas direita. (t) “Direita? Olha que eu te derrubo e te como.” Eu respondi: isso é outro assunto, podemos negociar...

Risos.


Cena 5

O Padre conversa com alguém fora de cena.

ALGUÉM
Peco muito, Padre, tenho vergonha.

PADRE
Todo ser humano está sujeito ao pecado.

ALGUÉM
Com o senhor é diferente.

PADRE
Não existe super-homem na Igreja, todos temos fraquezas. Não se mortifique. O maior pecado é de quem exclui e joga pessoas na rua. Por que você vive desse jeito?

ALGUÉM
Sou desempregado.

PADRE
A sociedade é injusta e afasta o pobre da sociedade formal. Tira emprego e não dá acesso a mínimos direitos e cidadania. Cristo está aqui, entre os moradores e sofredores de rua. E sofre junto.


Cena 6

Madalena conversa com Marineide. Fica de costas para ela, olha a platéia, como que vendo o movimento da rua

MADALENA
Tenho consciência que minha vida é um lixo. Apesar de ser prostituta, sei que um dia livro a cara. Não perco a fé, tenho muito amor para dar. Mas não topo amor-bandido, Marineide. Você adora desfilar com cafetão bem vestido e bem mantido. Exibir um traste!

MARINEIDE
Madalena, você só quer ser diferente!

MADALENA
E sou! Não aceito essa lei da rua. Teimo em viver sozinha, sem “proteção”. Eu e Deus.

MARINEIDE
É arriscado, Madá.

MADALENA
Pois corro o risco! Só acredito no amor, sem ele não somos nada. (t) Pra você, já passou o pior?

MARINEIDE
Parei com a droga. Aquele maldito me entupia de pó. Ele explorava a minha fraqueza. Acho que estou curada.

MADALENA
Tomara.


Cena 7

Tantã se apresenta. Está com uma lata/vaso de guiné.

TANTÃ
Me chamavam de Sem-Nada porque meu pai era sem-terra, minha mãe sem-saúde, minha irmã sem-juízo e minha avó sem-marido. Por isso, saí Sem-Nada. Tantã orna mais comigo, a turma diz que eu não bato bem da cachola. Será que é porque gosto de plantas e levo elas pra passear? (t) Sonho com um lote de terra para criar as minhas amigas: a guiné (beija a planta), arruda, espada-de-são-jorge, quebra-pedra, avenca e uma roseira... (feliz) já com botão!


Cena 8

Os 4 tiras do Apocalipse fazem a venda do ponto a Coice-de-Mula.

TIRA 1
O “pai de rua” passa a ser você, Coice-de-Mula, O “ponto” é teu, nós ficamos com suas boca-de-fumo.

TIRA 2
De agora em diante vai ter cobertura do Esquadrão do Apocalipse. Como já é o maioral, vire-se.

TIRA 3
Todos pagam a taxa, menos a tal Madalena.

TIRA 4
Que precisa de uma prensa.

TIRA 1
Mas o problema já é teu.

TIRA 2
O traveco Leilá também faz zoeira.


Cena 9

A notícia repercute no BV.

ZÉ DOMINDUIM (entra esbaforido)
Coice-de-Mula ficou dono do ponto!

PROFESSOR (vem do fundo, agitado)
Cuidado com o Coice-de-Mula! É um espécime que quando chafurda na lama, salpica os circunstantes.

PAPELEIRA
Professor, o que é espécime?

ZÉ DOMINDUIM
O que é chafurda?

TANTÃ
E salpica?

PROFETA
E circunstante?

PROFESSOR (paciente)
É um cara que quando mergulha na lama espirra merda em quem estiver perto.


Cena 10

COICE-DE-MULA (explica-se, para a platéia)
Sou Coice-de-Mula porque joguei muito boxe, dei muita porrada de 90 quilos. Patada de mula, igual o Joe Louis. (t) Trabalho sujo é coisa do mundo, alguém tem que fazer. Eu faço minha parte, e faço bem.

Cínico, tenta convencer Madalena.

COICE-DE-MULA
Não exploro ninguém, hoje vendo segurança, este é o meu negócio. Dinheiro de banco não paga juro? É o banqueiro cobrando pedágio da grana que empresta. (t) Quem fala mal dele? A diferença entre nós dois é que eu trabalho ao ar livre e boto minha cara pra bater!

BICHA (a Madalena)
Vai ter de pagar o pedágio, beleza. Quem protege o ponto é o Coice. Eu sou o cobrador.

COICE-DE-MULA (à Madalena)
Fica no pedaço e paga. Bonita e gostosa, atrai clientes. É um bom produto, valoriza o ponto. Todos ganham com isso.

MADALENA (ríspida)
Põe tua boneca de estimação pra fazer a vida... e cobra pedágio desta coisa!

BICHA (chilique)
Coisa é a mãe!
Madalena lhe dá um empurrão, vira as costas e sai. CdM gargalha, debochado. Ele fala para a platéia, como se falasse para o mundo.

COICE-DE-MULA
Ninguém mais vai sofrer o vexame de fugir de viatura, e passar grana por baixo do pano. Como dizem os bacanas: tudo na transparência. Pagar proteção é como pagar imposto. (para o Bicha) Madalena é boa puta, mas vai levar sua lição.

BICHA
Isso, Coice, impõe respeito! (t) Mas não esquece o padre!

COICE-DE-MULA
Esse babaca intrometido, sumindo do pedaço a gente lucra. Ponto badalado e pacífico, dá mais renda. (t) Para ter respeito é preciso falar grosso. E escalar alguém para cristo.

BICHA
Esta sua capacidade me arrepia, Coice.

O Bicha aproxima-se de CdM e tenta boliná-lo. CdM afasta-o, enfarado.

BICHA
Coicinho, às vezes você me quer, outras me repele, qualé?

COICE-DE-MULA
Não misturo trabalho com frescura.


Cena 11

O Profeta apresenta-se para a platéia. Voz fora do palco o incentiva.

VOZ
Fala, Profeta!

PROFETA
Arrependei-vos! O mundo precisa de fé, esperança e caridade para cortar o mal pela raiz. Por isso, escutai as trombetas de Jericó e lembrem-se: uma maçã podre contamina todo o cesto!


Cena 12

Alto Viaduto. Bicha e Leilá discutem com Marineide e outras meninas.

MARINEIDE
Pois eu nasci mulher e continuo mulher.

BICHA
Não vejo vantagem. É o mesmo que nascer cachorro e morrer cachorro! Pedra nasce pedra e fica sempre pedra. (t) Sou fêmea por opção.

LEILÁ
Mulher é artigo em declínio, estamos dominando. O freguês paga mais para sair com travesti. Puxa a boneca para o carro, “você é melhor que a panela de pressão que tenho em casa”.

BICHA
Chato é quando o cliente quer fazer o papel de mulher...

MARINEIDE (ri, caçoa)
Dou um caminhão de dinheiro para ver vocês no papel de homem...

Todos arreliam Leilá.

MADALENA (que só escutava)
Detesto esse papo brega. Sou mulher, não sou virago.

BICHA
Virago é a...

MADALENA
Vá lamber o seu Coice!

BICHA (fala e sai de cena)
É o que mais gosto de fazer, queridinha.

MADALENA
Detesto esse bicha Espião do Coice-de-Mula. Faz as cobranças e ganha em cima do pedágio, esfolando todos vocês.

LEILÁ (chama atenção)
Esfria, vem gente.

MARINEIDE
É o Padre que gosta de sofredor de rua.

LEILÁ
Bonitão! Faz o meu gênero.

MADALENA
Ele não é para o teu bico.

O Bicha volta.

BICHA
Eu e Coice estamos de olho nesse empata-foda. Com a mania de conscientizar, põe minhoca na cabeça de vocês. Logo vão querer sindicato.

MARINEIDE
Por que não?

BICHA
Aqui não é Itália e em vez de Ciociolinas vocês não passam de xexelentas!

O Bicha é recebido com vaia. As mulheres se afastam, indo cada qual para um lado. Madalena vai na direção que o Padre foi visto. Ficam Leilá e Bicha.

BICHA
Cuidado. Leilá! O Coice está esperando você acertar a grana da taxa.

LEILÁ
Ele que venha buscar!

BICHA
Quem avisa, amigo é...

LEILÁ
Tu é amigo de alguém? É só capacho dele.

BICHA
Me dedico ao meu homem!

LEILÁ
Que te faz de gato-e-sapato.

BICHA
Tá com dor de cotovelo porque só pega bofe?

LEILÁ
Pego o que me interessa, boneca mal-amada. Você gosta de ser pisada e mendigar carinho que nunca ninguém viu ele te dar.

BICHA
Em público, não! Respeito o jeito do meu homem.

LEILÁ
Você me dá nojo.

BICHA Fala da boca para fora, pra desviar o papo. (t) O que me interessa é o pedágio, beleza. (t) Vai pagar?

LEILÁ
Nem um centavo. E suma da minha frente! Você sabe bem que eu sou capaz de aprontar!

O Bicha, ante o ímpeto de Leilá, começa recuar.

BICHA
Deixa estar jacaré, a tua lagoa há de secar!

Leilá responde com um gesto obsceno.


Cena 13

Padre e Madalena. Ele passa, ela entra em cena, à espera de freguês e provoca.

MADALENA
Hei, não diz boa noite?

PADRE
Bo... boa... boa noite.

MADALENA
É o Padre vidrado em sofredor de rua?

Ele faz que sim. Ela ri, apresenta-se provocadora.

MADALENA
Pois aqui está uma sofredora.

O Padre fica sem jeito.

MADALENA (ri)
Não fica bem a um padre bater papo com mulher da vida. A prostituição é pegajosa. Contamina quem se aproxima. Entra no pecado...

PADRE
Prostituição não é pecado, muito menos pecado indivi-dual. (t) É um pecado social, moça.

MADALENA
Pra mim, padre, é profissão. (rindo) A mais antiga...

PADRE
Desculpe, não é profissão. Nós entendemos como um ganha-pão, que quando sustenta quem a pratica, tem que ser respeitado.

MADALENA
Uau! Então, não sou tão pecadora? Bate com que penso, não me flagelo nem me puno. Acho que vender meu corpo não atrai a bronca de Deus. E descarto quem diz que meretrício é... (com desprezo) ...contravenção.

PADRE
Crime é o lenocínio. Criminoso quem lucra com a prostituição. Como o “dono de rua”, que cobra pedágio das suas colegas e da senhora.

MADALENA
Tô fora disso, não pago nada a ninguém! Vou com quem paga... (provocante) ...mas só dou para quem gosto.

Embaraçado com a franqueza, o Padre pergunta.

PADRE
Qual é o seu nome?

MADALENA
Madalena.

PADRE
Apelido?

MADALENA
Eu nasci Madalena.

PADRE
Nome bíblico. Como começou nessa vida?

MADALENA
Fui doméstica, numa casa granfina. Os patrões não queriam que o júnior andasse com mulher da vida. Me escolheram como copeira por ser uma menina boba e atraente. Os pais queriam proteger o futuro doutor. “Rito de iniciação”, dizia a patroa que era socióloga, a doutora Rute. (ri)

PADRE
Não acredito!

MADALENA
Caí fora, porque o patrão, que era... não-sei-que-lá pólogo, também quis fazer iniciação comigo. (debocha, fala consigo, rindo) Ô sina, Madalena...

PADRE (sem jeito)
Vida difícil, dona...

MADALENA
Dizem que deitamos com qualquer um, por dinheiro ou fome de sexo. Fui jogada na vida porque tinha fome, fome mesmo.

O Padre não acha resposta.

PADRE (saindo)
Tenho que seguir. Prazer conhecê-la e boa noite. Cuide-se, dona Madalena.

O Padre sai, ela mal acredita no que ouviu.

MADALENA (fala sozinha)
Dona Madalena? Dona Madalena...

Depois da perplexidade, gargalha e se afasta.


Cena 14

Outro dia. Os moradores chegam ao BV como se fosse entrada em cena. Passam pela Papeleira. O Padre está sentado num caixote, em visita ao BV. Papeleira, Professor e Carregador estão com ele. Tantã chega com a sacola de lona cheia de coisas e uma lata/vaso, trazida pela alça de arame.

TANTÃ
Que bom voltar pra casa! A catação foi demais, tia. Peguei abacate pra senhora. Minha arrudinha se portou com tanta educação. (t) Recebeu elogio!

Larga a cesta, beija a arruda e vai guardá-la. Zé do Minduim vem do fundo. Tantã cruza com ele.

TANTÃ
Zé, diz-que tu vendeu amendoim às pampas.

ZÉ DOMINDUIM
Fofoca. O comércio tá ruço.

TANTÃ
Escondendo leite, Zé...

Madalena (outra roupa) chega, é recebida com alegria.

PAPELEIRA
Gente viva sempre aparece!

TANTÃ
Oi Madá!

PROFESSOR
Venda seu ouro e fique rica!

PROFETA
Conhece o Padre?

MADALENA
Claro! É o maior arroz-de-festa.

PADRE
Bem-vinda, dona Madalena.

MADALENA
Esquece o dona, pelo amor de Deus.


Cena 15

O Profeta chega e faz entrada triunfal.

PROFETA
Olá, vítimas da fome! Chegou o mensageiro! Com pão, vinho e carneiro assado!

TANTÃ
Onde tu conseguiu, Profeta?

PROFETA (teatral, fantasiando)
Eu passava de mansinho! A camioneta de entrega tava com a maior porta aberta! A sacola implorava “me pega, me pega!”

A sacola é aberta. Aparecem: perna de carneiro assado, uma garrafa de vinho e pães árabes.

ZÉ DOMINDUIM
Sempre que tem padre em boca-livre, ele benze a comida. Benze a nossa.

PADRE
Ela é roubada.

ZÉ DOMINDUIM
É, não, Padre, foi.

PROFESSOR
Agora é nossa.

TANTÃ
Por isso, pode benzer.

PAPELEIRA
E não foi roubada, foi pegada.

PROFESSO
Um causídico diria que não houve roubo, apenas furto. Melhor dizendo, justa expropriação. Se quiserem, um ato de direito natural.

PROFETA
Ela estava dando sopa e eu, faminto! (t) Quem inventou a fome não fui eu... (conclui, exaltado) Foi a mãe natureza!

TANTÃ (insiste).
Benze, Padre.

O Professor emite a sentença final.

PROFESSOR
Padre, acima de qualquer lei, está a lei da sobrevivência.

O Padre reluta, sabe que a decisão é grave. Levanta-se, anda, pensa. Defronta Madalena que também pede.

MADALENA (com charme)
Benze...

PADRE (decide-se, depois confidencia)
Estou impressionado. Parece que estamos numa missa. Assim os hebreus fizeram a refeição comemorativa da sua libertação do Egito: comeram cordeiro e tomaram vinho. Relembrando isso, Jesus reuniu os Apóstolos na Ceia. Para receber o corpo e o espírito.

TANTÃ
Missa é isso?

PAPELEIRA
Estamos numa missa?

PADRE
Missa é o encontro da comunidade com Deus e pode ser celebrada em qualquer lugar.

TANTÃ
A missa é alegre, né Padre?

PADRE
Bastante. A missa triste, devido ao sofrimento dos parentes e amigos, é a Missa de Réquiem, o ofício para os mortos. Ela é necessária para se encomendar as almas e hoje é chamada de Missa da Ressurreição.

O Padre benze o pão e o vinho.

PADRE
Permita-nos, Senhor, que este ofertório seja reconhecido como gesto de amor e reforce a união de todos, em torno do espírito de Deus. In nomine Dei, abençôo este repasto. O pão e o vinho serão distribuídos eqüitativamente e consumidos com devoção.

O Padre pega o assado de cordeiro que o Profeta lhe entrega.

PADRE
A carne também fica abençoada. Intercedo para que esta comunidade seja acolhida pelo Senhor, que ama os humildes e os excluídos, a quem tudo é negado, até o sal da terra.

TANTÃ (contente, reação infantil)
Bonito, Padre! (t) Por que tem tanto carneirinho nas coisas da igreja?

PADRE
O carneiro é símbolo de Cristo e da sua imolação, a morte na cruz. O Cordeiro de Deus é Jesus.

PROFESSOR (declama para o público e para o grupo)
Com a licença da distinta platéia: “A um carneiro morto”. Augusto dos Anjos!

“Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! Tu que no Perdão eu simbolizo
Se fosses Deus, no Dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!”

TANTÃ (exulta, bate palmas)
Puta que pariu, que bonito!

PAPELEIRA (repreende)
Filha, a missa!

Tantã bate na boca.

PADRE
Jesus perdoava seus algozes, sua misericórdia era infinita.

O vinho é servido numa lata, passada de mão em mão.

PADRE
O que fizemos, na missa chama-se ofertório. Outra parte bonita é a homilia. Nela, se explica um trecho do Evangelho. Isso pode ser feito pelo celebrante ou por alguém da comunidade.

PAPELEIRA
Deixa eu fazer isso, padre! Tenho uma história que tirei da revista. Não sei se é homilia mas é bonita. Quando leio, quase choro. Eu morava no interior e era mulher da vida. Graças a Deus, deixei a zona... (intencional) sempre conto para Madalena.

Madalena assente.

PAPELEIRA
Posso, padre?

PADRE
Claro.

A Papeleira pega um recorte de revista de um pequeno baú de tranqueiras. Levanta-se e caminha, misto de coreografia e mise-en-scène, em clima de encantamento.

PAPELEIRA

“Uma mulher da vida levou o filho nascido, não sabia ela de que pai, para batizá-lo no altar do santo de sua devoção, na paróquia da sua cidade. Mas esbarrou na regra que proibia prostitutas na igreja e condenava batismo e crisma de crianças que poderiam conviver com o meretrício.

Mesmo assim, ela insistiu várias vezes. Mas nunca conseguiu levar adiante o seu intento. Um dia, ela sonhou. Sonhou ou aconteceu?

Confiante, fez outra tentativa, levou o filho novamente. E mais uma vez foi escorraçada da igreja.

Ela voltava triste e chorosa pela estrada, quando encontrou um homem estranho. Alto, magro, barba longa, olhos azuis, usando um manto comprido e calçando sandálias.

Com voz doce e amorosa, ele perguntou.

— Por que choras, filha?

— Ah, senhor, há tanto tempo quero batizar meu filho, mas como sou puta, eles me expulsam da igreja.

— Console-se, filha. Há dois mil anos que eu também tento entrar em certas igrejas e não consigo.
     O homem colocou a mão na cabeça do menino, pronunciou umas palavras estranhas e por fim, disse.

— O teu filho João está batizado, em nome do Pai e do Espírito Santo. E do meu.

Ela ficou perturbada. Apertou a criança contra o peito.

— Como o senhor adivinhou o nome do meu filho?

Levantou os olhos para encarar o estranho e não viu mais ninguém.”

TANTÃ
Padre, isso é o quê?

PADRE
Uma parábola, Tantã. Podemos chamar “A Parábola da Papeleira”.

MADALENA
Sempre foi assim?

PADRE
Na maioria das igrejas, as prostituas eram retiradas das filas de confissão e de comunhão. Eram humilhadas diante de todos. Para a teologia moderna, a mulher da vida tem direito a todos os sacramentos e deve ser assistida pela igreja. A Pastoral da Libertação da Mulher orienta a prostituta, defende o seu direito àquele trabalho mas combate o lenocínio.

Madalena, quieta, acompanha o Padre com interesse.

PADRE
Entre as mulheres pobres, as prostitutas são as mais marginalizadas.

O Profeta tem seu repente.

PROFETA
Ai daquele que atirar a primeira pedra!

O Padre, sem perceber, comporta-se como oficiando a missa. Pega o pão que a Papeleira lhe entrega, benze e parte em vários pedaços.

PADRE
A comunhão é o principal ato da Missa. A partição do pão é como se o corpo de Deus fosse dividido em tantas partes quanto os que vão receber a hóstia.

O Padre dá um pedaço a cada um. Tantã ajoelha-se para receber sua porção. O Padre tenta impedir, ela insiste.

PADRE
Não, filha!

TANTÃ (implora)
Faz de conta que estamos na missa, porque não tenho mais coragem de entrar na igreja, tão suja que ando. As pessoas reparam. Tapam o nariz e viram a cara.

O pedido dobra o Padre. Tantã, ajoelhada, posta-se na posição de receber a hóstia. O Padre lhe dá o pão a modo de comunhão. Após recebê-la, Tantã ouve os bandei-rantes.

TANTÃ
Os bandeirantes!

O canto só é ouvido por ela. Extasiada, a mendiga vai para a beira do rio. Os moradores aceitam o fato como delírio e respeitam.

PAPELEIRA
Padre, porque só ela ouve?

PADRE
Porque entre nós, talvez ela seja a única pessoa que está em estado de graça.

TANTÃ (em êxtase, repete o que estaria ouvindo)
“Rema rema, rema forte, remador
Rema rema, rema forte, remador

Cante baixo, cante firme, com fervor
Não desperte as almas sofridas do mundo
Que dormem tranqüilas e silenciosas
No fundo claro do Anhembi, que horror!”

ESCURECIMENTO.


Cena 16

AV. O Padre está só, termina de fazer anotação num pequeno papel e guarda no breviário. Não percebe a chegada felina de CdM. Quando vai andar, o Padre dá por ele e procura se desviar. Chega o Cupincha, fechando o caminho. Faz nova tentativa e topa com o Bicha. O silêncio é pesado. CdM quebra o gelo, falando como se o Padre não existisse.

COICE-DE-MULA (aos asseclas)
Bom encontrar o padre, ele precisa de conselho... está indo por um caminho perigoso. Se misturando com puta. bêbedo, mendigo, gatuno, malucos.

Cupincha e Bicha reagem por mímica, apoiando o chefe. Faz-se novo silêncio, o Padre tenta sair da triangulação. mas eles fecham o cerco. O Padre se irrita.

PADRE
Isso é uma ameaça?

COICE-DE-MULA
É para lembrar a besteira do padre, se metendo com essa barra pesada.

PADRE
Cumpro minha missão.

COICE-DE-MULA
Se quiser cumprir neste território, faça isso durante o dia, que tem escritórios e empresas de gente bacana, cheia de grana. De noite, isto é zona, padre. É nosso... é meu!

CdM, enquanto fala, caminha em círculos, obrigando o Padre a girar.

COICE-DE-MULA
Ou faz sua missão lá no bem-bom, onde tudo é limpo. (t) Igreja, órgão tocando, cheiro de incenso... e perto de Deus! O que é melhor para um padre.

PADRE
Deus está em todo lugar.

COICE-DE-MULA
Menos aqui! E se aparecer, mando voltar na hora! Putaria é coisa do demonio, tem diabo em todo canto.

Pergunta a seus cupinchas.

COICE-DE-MULA (cínico, aos asseclas)
Tô falando bobagem?

Por mímica, eles cinicamente apoiam o chefe.

COICE-DE-MULA
Além de outros perigos: bandido, assassino, gente corrupta, violência, bafafá... Ah! e até bala perdida.

PADRE
Devolvo o conselho. O que é perigoso para mim, também é para os outros. Bala perdida pode pegar qualquer um... até um “dono de rua”.

COICE-DE-MULA
Negativo...

CdM tira da cintura um revólver 38 cano longo, aponta para a testa do padre. Silêncio pesado. CdM puxa o cão, ouve-se o estalido.

COICE-DE-MULA
...bala perdida onde eu mando, só tem quando eu quero. E bem entendido: por minha livre e espontânea vontade! Pra acertar o rabo de algum filha da puta, que eu quero ver pelas costas.

PADRE
Outra ameaça?

COICE-DE-MULA
Eu ameaçar um enviado de Deus? Longe de moá... Estou vindo como amigo, para dar conselho de amigo. (t) Entrar na guerra sem ter munição certa é foda, padre.

Novo silêncio. CdM continua com a arma apontada para o Padre que, de maneira natural, pega o cano do 38 com as pontas dos dedos e desvia da sua direção.

PADRE (calmamente)
Minha arma é Deus. Minha munição é o amor. Por Deus e por amor, enfrento tudo, até a morte. Se é o que o Coice-de-Mula deseja.

COICE-DE-MULA
Eu? Já vi tanto morto que não quero ver mais nenhum. Ou quero? (t) Esta é a minha dúvida... aquela dúvida filha da puta: matar ou não matar?

O Padre consegue sair do triângulo e caminha de costas.

COICE-DE-MULA (sempre cínico)
Não tenha medo, padre, eu sou o xerife, o John Wayne do pedaço. Como todo bamba do velho oeste, eu só ataco de frente...


Cena 17

AV, trottoir. Mulheres no aguardo da freguesia. Marineide e Leilá estão com elas. Madalena está ausente do papo.

MARINEIDE
O ponto está melando.

LEILÁ
Antes só dava nós. Agora, a concorrência ficou braba. Tem gente que faz vida na rodoviária, em motel, por telefone.

MARINEIDE
Meninas e rapazes atendendo a domicílio...

Madalena entra e junta-se a elas.

MADALENA
Fora as casadas.

MARINEIDE
E as que trabalham e batalham pra reforçar salário.

LEILÁ
Estudante fazendo michê...

MARINEIDE
E o fresco do padre embaçando.

MADALENA (defende)
Não é fresco!

MARINEIDE
Enche assim mesmo, emprenha pela orelha.

MADALENA
O que ele te fez?

MARINEIDE
Olha a gente morrendo de pena, isso chama o azar.

MADALENA
Implicam à-toa. O negócio dele é caridade.

MARINEIDE
Você também não gostava!

MADALENA
(puxa a amiga para um canto, fala baixo) Mudei... Ele conversou de novo comigo. Eu estava sozinha e garoava. O Padre procurava uma família, sei lá... tinha conseguido albergue... Perguntou porque eu não me abrigava daquela umidade. “Na garoa a senhora fica doente”. Esse foi o terceiro senhora que ele me jogou na cara. Isso é muito pra minha cabeça.

Piscada de luz. Leilá corre.

LEILÁ (aflito, corre)
Meu freguês!

Madalena e Marineide permanecem no ponto.

MARINEIDE
Onde se esconderam?

MADALENA
Debaixo da marquise.

MARINEIDE
Humm!

MADALENA
Ele grudou o olho no chão, morto de vergonha. Mesmo assim conversamos.

MARINEIDE
Fez pregação?

MADALENA
Disse que quando eu entrava num carro, rezava por mim. (t) Pintou um freguês! Fui andando, perdi o rebolado, querendo sumir na terra. É barra ter dois olhos fincados na nuca da gente.

MARINEIDE
Ao menos o programa valeu?

MADALENA
Impliquei com a cara, saltei no primeiro quarteirão, ele me xingou de piranha, mandei ele praquele lugar.

MARINEIDE
O Padre te tirou do sério...

MADALENA
Sei lá... (t) Sabe? Não agüento aquele olhar, ele me atrai. (t) Como um homem passa sem mulher?

MARINEIDE
Vai ver ele não precisa ou não gosta.

MADALENA
Que raiva! Ele diz cada coisa que confunde.

Marineide muda de assunto abruptamente.

MARINEIDE
Preciso começar a faturar bastante. Hoje fui cercada pelo Bicha e pelo guarda-costas do Coice. Entreguei a grana do pedágio à muque, fiquei dura. Eles disseram que você vai ser a próxima a levar prensa.

MADALENA
Cachorrada! Vão se ver comigo...


Cena 18

Coice-de-Mula chega com o Bicha e avança para Leilá.

COICE-DE-MULA
Mandou recado? Vim receber o atrasado, traveco. Você não é melhor que ninguém. Tem que pagar como todo mundo. E chega de dar mau exemplo no meu território.

BICHA (lavando as mãos)
Te avisei mil vezes que você ia se dar mal, Leilá.

LEILÁ
Pago porra nenhuma! A rua é pública, eu sou dono do meu corpo. Volte pra suas bocas-de-fumo. Não me torre!

COICE-DE-MULA
Se não pagar por bem, paga por mal.

LEILÁ (revoltado)
Vou convocar a cambada do viaduto, a gente se vira noutro lugar. Você fica na mão, com a tua boneca.

BICHA (faz menção de se atracar com o travesti
Peste!

Leilá pega uma gilete escondida debaixo na roupa, coloca entre os dedos médio e indicador e ameaça, como navalha. O Bicha se esconde atrás de CdM. Este tira da cintura um cabo de aço, aplica golpes decididos em Leilá.

COICE-DE-MULA
Não admito ser contrariado, putinho!

Leilá é desarmado, fica à mercê de CdM. Sente a violência dos golpes, geme e revolta-se.

LEILÁ
Bandido, covarde!

CdM obriga Leilá a calar-se, a poder dos golpes. O travesti procura proteger o rosto com mãos e braços;

COICE-DE-MULA
Sou como ministro: não tolero baderneiro. Bate bolsinha na rua e pensa que é o quê? Estudante, grevista?

CdM agarra Leilá pelo pescoço e aperta demais. O travesti desaba. O Bicha fica alarmado.

BICHA
Apagou ele, Coice!

COICE-DE-MULA
Pobre e vagabundo não faz falta. Morre um, nasce dois. Não fazem limpeza étnica? A minha é a escalafobética!

CdM e Bicha, verificam se não foram vistos e saem rapi-damente.

Madalena deixa o esconderijo de onde viu tudo. Chega, examina o corpo do travesti e chama baixo.

MADALENA
Leilá... Leilá...

Madalena percebe que ele morreu. Marineide aparece de supetão.

MARINEIDE
O que é isso, Madalena?

MADALENA
Coice-de-Mula matou o Leilá, por causa do pedágio. O Bicha estava junto.

MARINEIDE
Cachorrada!

MADALENA
Fala baixo! O bandido não perdoa.

Assustadas, as duas se abraçam e saem juntas.

ESCURECIMENTO.


Cena 19

Zé do Minduim entra correndo no BV e conta para a Papeleira.

ZÉ DOMINDUIM
Apagaram o Leilá no viaduto! O rabecão já levou o corpo! Parece que alguém viu o crime! A polícia está na captura da testemunha!

Tantã, Profeta e Professor vêm dos fundos, atraídos.


Cena 20

O bicha ouve no telefone celular, desliga.

BICHA
Os cupinchas da polícia não tiveram outro jeito. A saída foi dizer que alguém viu a morte do Leilá, para engrupir a imprensa e ganhar tempo. (t) Sempre tem um bosta xereteando.

COICE-DE-MULA
Tem que descobrir quem foi!

BICHA
Me empresta o estojo de uísque e dois papelotes. Alguém vai dar o serviço.

CdM atende.

COICE-DE-MULA
Se o teu jogo não der certo, espalha que já descobrimos e fica de olho. Aquele que sumir do pedaço, é ele. Ou ela!


Cena 21

Madalena conta ao Padre a morte do travesti.

MADALENA
Eu vi aquele assassino matar o Leilá. Padre, ele tem que ser denunciado, eu vou fazer isso!

PADRE
Não se precipite. Coice-de-Mula, é ex-tira do Esquadrão da Morte, mata com por prazer, é um celerado. Os policiais são tão corruptos quanto ele. Como são donos de muitos pontos de lenocínio da cidade, todos se protegem.

MADALENA
Tenho pavio curto e sangue quente, é vai ou racha! Perigo tem que ser enfrentado na lata!

PADRE
Mais importante que uma denuncia precipitada é todo mundo se unir e pedir justiça. Eu não quero vê-la em perigo.

MADALENA
Se ninguém me acompanhar, vou sozinha! Boto a boca no mundo. (t) Ele vai se danar!

Madalena vira-se para ir. O Padre segura-a pelo braço.

PADRE
Não faça isso, dona Madalena!

O Padre permanece um tempo a segurá-la pelo braço. Ela reage ao contato físico com o sacerdote e aos poucos se acalma, gosta do incidente. Fala manso.

MADALENA
Por quê, Padre?

PADRE
Me preocupo com a senhora.

MADALENA
É outro trabalho pastoral? Sou uma ovelha desgarrada? Escapei do redil?

Ela acha graça da própria pergunta.

MADALENA
Por falar nisso, o que é redil?

O Padre se embaraça, cai no mutismo, olha para o chão.

PADRE
Não quero que nada te aconteça, Madalena.

MADALENA
Que progresso, esqueceu o dona... Vou esquecer o padre.

Ela segura a mão do Padre.

MADALENA (provocadora)
E também não quero que nada de mal te aconteça. Me dê sua benção. (t) Obrigada pelo conselho.

Ela beija a mão do Padre, beijo prolongado. Traz a mão dele para junto do seu rosto, gesto mais provocador. E se afasta. O Padre fica aturdido.


Cena 22

Marineide está no ponto. Cambaleante, trôpega, bêbeda e dopada pelo pó. Tenta tirar da garrafa-estojo algumas gotas de uísque, sem sucesso. O Bicha entra.

BICHA (comenta, para ninguém)
Ninguém sabe quem apagou o Leilá. (cantarola) “Ele morreu... ninguém sabe ninguém viu... foi pra puta que pariu.”

Desestabilizada, ela fala.

MARINEIDE
Claro que sabe, seu besta. Foi o teu patrão, o Coice-de-Mula. Você estava junto, se esqueceu?

BICHA (ri fingidamente)
Quem contou essa babaquice?

MARINEIDE (fala engrolado)
Quem viu foi a Madalena, mas pra você eu não vou contar, asqueroso! Sabe por quê? Eu e ela somos carne-e-unha! Você não se envergonha de ajudar a matar um colega?

BICHA
Guerra é guerra.

MARINEIDE
Nojento.

BICHA
Cadê o estojo?

MARINEIDE
Está aqui, mas uísque mesmo... ó...

O Bicha arranca o estojo das mãos dela.

BICHA
Me dê! Isto é do Coice, estúpida.

Saindo, de longe.

BICHA
Você foi ótima, queridinha. (t) Me deve dois papelotes!

MARINEIDE (grita)
Filho da puta!


Cena 23

Marineide é encontrada pelo Padre, que procura lhe dar apoio. Ela fala de maneira confusa mas o Padre entende.

MARINEIDE (falando engrolado)
O puto do Bicha jogou verde em cima de mim, caí como uma besta! Queria saber quem viu o Leilá morrer. Entreguei Madalena, mas acho que o burro só queria a garrafinha de uísque do macho dele.


Cena 24

No BV, Madalena está sós com a Papeleira. Caminha e gesticula nervosamente.

MADALENA
Sabe, tia, está me dando medo. Perdi a coragem de aparecer no ponto. A polícia procura quem viu o crime para proteger o Coice. Se me descobrirem, estou ferrada.

PAPELEIRA
Fica esta noite aqui, Madalena, a gente te protege. Amanhã bem cedo você se manda e some, some mesmo!

Elas ouvem barulho de alguém descendo. A Papeleira faz sinal, Madalena corre para o fundo. A Papeleira finge que trabalha. O Padre chega.

PADRE
Oi, Papeleira, cadê Madalena?

PAPELEIRA
O que houve, Padre?

PADRE
Marineide entregou Madalena. Coice-de-Mula a esta hora já sabe que foi ela que viu a morte do Leilá.

Madalena aparece, mais assustada.

PADRE
Dona Madalena, a senhora corre perigo, não devia estar aqui. A senhora...

MADALENA
Pára com isso!

PADRE
Isso o quê?

MADALENA
Voltou a me chamar de dona e senhora? Senhora coisa nenhuma, sou uma puta. Pê, ú, tê á, entende? Pior do que isso, mulher! Uma fêmea num mundo macho. Só tem bandido em cima da gente, explorando, manobrando, querendo matar. E o homem com quem a gente simpatiza é o quê? Um cavalheiro que chama mulher da vida de dona e só pensa em caridade.

Ela cai em prantos e joga-se no chão, aninha-se na posição fetal e desencadeia no Padre grande compaixão. O Padre procura acudi-la, ela clama.

MADALENA
Não me olhe como alma, me olhe como fêmea, como bicho. Não quero ser senhora, quero ser mulher.

O Padre vira o rosto, não sabe o que responder.

MADALENA
Por que não me encara? Tem vergonha? Já viu um corpo de mulher? Um corpo assim, que há tanto tempo não recebe amor?

Num gesto abrupto, num só golpe, ela tira o vestido: está de calcinha e seios à mostra. O sapato alto é vermelho flamante. A Papeleira, surpresa, vai para o fundo. Madalena mostra- se ao Padre atônito.

MADALENA
Mulher é isto: teta para dar prazer ao homem que ela ama ou alimentar o filho que pode nascer. Coxas, pernas e braços para atracar quem ela deseja. Boca para beijar, morder. E o sexo, para o prazer dos dois. (t) Nem assim cria coragem?

PADRE
Madalena!

Ela cai em si. Joga-se no chão, numa crise de melancolia. Desorientada e sofrida, abraça o próprio corpo, chora.

MADALENA
Estou ficando louca. Vivendo nesta sordidez, às vezes bate o desespero. Será que esta miséria é um castigo sem fim? Para quem chega no fundo do poço, o melhor é morrer.

Em lágrimas, finaliza.

MADALENA
Pareço uma fortaleza, sou apenas mulher...

Cobre os seios com o vestido, chora baixo. O Padre olha-a com ternura. Ajoelha-se, afaga-lhe os cabelos. Ela puxa-o para si, aconchega-se. Eles se abraçam num gesto de entendimento e carinho.

MADALENA
Sou fêmea de todo mundo e mulher de ninguém. O único homem que me atrai é você.

Pé ante pé, a Papeleira vem do fundo e apaga o bico-de- luz. Na penumbra, os dois se beijam e se acariciam, no pré-ato do amor.

ESCURECIMENTO.


Cena 25

Madrugada, silêncio no BV. A Papeleira dorme entre seus papéis. Padre e Madalena vêm do fundo. A luz clareia lentamente. Na boca do palco, eles sentam-se e conversam baixo. Ela é a mais desinibida.

MADALENA
Como estou feliz. Desculpe o escândalo.

PADRE (desvia o olhar, disfarça)
Te procurei, Madalena, porque estava aflito para avisar do perigo que você corre.

MADALENA
Por que se preocupa comigo?

PADRE
Não quero que você seja a próxima vítima.

MADALENA (idéia fixa) Por que se preocupa comigo?

PADRE
Porque... (hesita) tenho que me preocupar. Você não pode mais aparecer por aqui.

MADALENA
Eu me escondo, fica comigo.

PADRE
Sou padre, Madalena.

MADALENA (brinca)
Não tenho preconceito!

Ele não pode deixar de sorrir e balança a cabeça.

PADRE
A Pastoral vai denunciar o crime diretamente ao Ministério Público, ninguém confia na polícia. (t) Eu contarei ao meu superior o que se passou entre nós.

MADALENA
Está encrencado, meu santo. Fez com sua Madalena o que Cristo não teve coragem de fazer com a minha xará.

O Padre fica em silêncio, segura a cabeça com as mãos, meditando sobre a atitude tomada.

MADALENA
Me ofereci por amor. Você correspondeu, por quê? Compaixão, piedade? Porque eu estava um trapo?

PADRE
Estou em conflito. Fiquei perturbado desde o primeiro momento que te vi, Madalena. Rompi um voto, isso é terrível. (t) Meu Pai, o que será de mim?

MADALENA (docemente)
Apenas um homem bem-amado.

Madalena, num gesto de amor, aperta as mãos do Padre.
Beija-as, leva-as ao seu rosto.

MADALENA
Vamos com cuidado. Vamos juntos.

Os dois saem.


Cena 26

Outro dia. Os moradores do BV saem para a vida, todos à mesma hora, de forma quase ritualística. Tantã fala ao sair.

TANTÃ
Tia, hoje quem passeia comigo é a rosinha-dos-anzóis-pereira. Olha quanto botão ela tem!

Sai orgulhosa, fala com a roseira como se ela fosse gente.

TANTÃ
Está ficando mocinha, dona rosinha...

ZÉ DO MINDUIM (sai, fazendo mesura à Papeleira)
Alguma coisa me diz que hoje eu faturo alto.

PAPELEIRA
Que o diabo te ouça.

O Carregador despeja um saco (papéis) e sai com amarrados de papelão. Despede-se por mímica. O Profeta diz à Papeleira.

PROFETA
Coragem, Papeleira! Mais um dia terrível precisa ser vivido.

E sai. A Papeleira fica um tempo sozinha, Madalena chega. Ela está com outra roupa, mais recatada e com pouca pintura.

PAPELEIRA
Arriscou voltar aqui, filha?

MADALENA
Saudades do lugar, tia.

PAPELEIRA
Naquela noite você estava doidona...

MADALENA
Me bateu os 5 segundos.

PAPELEIRA
Bateu bonito, você laçou o Padre.

MADALENA
Tia, ele é que me laçou. Faz tempo.

PAPELEIRA
É coisa séria?

Madalena faz que sim.

PAPELEIRA
Está feliz?

MADALENA
Não sei. Tenho medo que ele queira mais a minha alma do que eu inteira. (t) Será que fez amor comigo por piedade? Essa dúvida machuca, tia.

PAPELEIRA
Cabeça complicada a tua, hein Madalena?

MADALENA
É sina.

PAPELEIRA
Sina, não. É amor verdadeiro.

O Professor vem do fundo, pondo o “sanduíche” publicitário. Ouviu a última frase da Papeleira e diz em tom sentencioso.

PROFESSOR
Amor verdadeiro é como parafuso enferrujado. Perde a cabeça, não desenrosca do pensamento.

Bate a matraca e vai embora, brincando com Madalena.

PROFESSOR
Venda seu ouro e fique rica, Madalena! Venda seu ouro...


Cena 27

Chegam ao BV Coice-de-Mula, Cupincha e Bicha.

COICE-DE-MULA (à Madalena)
Fugindo de mim?

MADALENA (com desdém)
Existe coisa melhor do que pensar em você.

COICE-DE-MULA
Sempre petulante.

MADALENA
O que está querendo?

COICE-DE-MULA
Investigação sobre a morte do traveco. Vou te levar pra depor.

MADALENA
Você foi expulso da polícia, não é mais tira! E eu não tenho nada a ver com isso. Quem estrangulou o rapaz, que se ferre.

O Bicha assopra.

COICE-DE-MULA
Além da Marineide, contou mais para quem?

MADALENA
Para a tua mãe!

CdM, como um felino, acerca-se dela.

COICE-DE-MULA
Para quem mais, puta?

Madalena lhe cospe no rosto. E passa a ser espancada por CdM, enquanto é segura pelos dois asseclas. Madalena é algemada. A Papeleira vai socorrê-la, CdM a intimida.

COICE-DE-MULA
Se meter o focinho, vai se dar mal. Esta piranha é procurada pela polícia!

MADALENA (gritando)
Procurada o quê! Vou dizer a todo mundo que o assassino é você!

Começa nova sessão de violência. Eles procuram emba-ralhar o assunto.

COICE-DE-MULA
Tu qué encobrir o padre agitador que tocou fogo no pedaço e jogou um contra o outro.

BICHA
Todo mundo sabe que você tá a fim dele. Mas perde seu tempo, esse Padre leva jeito de veado.

MADALENA (protesta, veemente)
Ele é muito homem, dormiu comigo!

COICE-DE-MULA
Morreu pela boca, safada! Era isso que eu queria ouvir, vocês têm segredinhos! Agora o padre já está na minha alça de tiro, ele também vai pro bico do urubu.

Começa a arrastar Madalena na direção da rampa.

COICE-DE-MULA
Você vai ser punida por falso testemunho e me desafiar no pagamento do pedágio! Vai servir de exemplo pra toda putada!

De longe, faz à Papeleira um discurso ameaçador.

COICE-DE-MULA
E tu, infeliz, bico calado! Não viu nem ouviu nada! Não adianta ameaçar com polícia. A autoridade aqui sou eu! Ou estouro este muquifo!

CdM e Bicha arrastam Madalena, enquanto o Cupincha, de arma em punho, rende a Papeleira. Madalena é empurrada rampa acima.

MADALENA
Vai me acusar de quê, seu puto?

COICE-DE-MULA
Defunto não precisa ser acusado.

MADALENA
Defunto é a mãe!

BICHA
Fica fria, queridinha...

A luz do BV se apaga, acende a do AV. Eles já estão na rua.

MADALENA (grita desesperada)
Tão me levando pra onde?

COICE-DE-MULA
Você é que sabe, nojenta.

MADALENA (apavorada)
Me larguem! Me soltem!

BICHA
Não deixa escapar!

Apaga a luz do AV, volta a do BV. O Cupincha ainda rende a Papeleira que está transida de medo. Ela ouve as falas e ruídos do AV.

COICE-DE-MULA
“Segura!”

BICHA
“Empurra!”

COICE-DE-MULA
“Escapou!”

BICHA
“O carro vai pegar!”

RUIDOS DE BRECADAS, BUZINAS. UM GRITO.

A Papeleira faz o sinal-da-cruz. O Bicha volta ao BV com encenação.

BICHA
A maluca saiu correndo, o carro pegou!

A Papeleira avança com a faca na mão.

PAPELEIRA
Te corto, desgraçado!

Bicha e Cupincha fogem, rampa acima.

ESCURECIMENTO.


Cena 28

No AV o Bicha coopta Zé Dominduim, que chega.

BICHA
Se o padre aparecer liga pra nós, sem ninguém perceber.

ZÉ DOMINDUIM
Por que tenho de fazer isso?

BICHA
Ô Zé! Você é melhor do que todos aqueles babacas. Toma 20 pratas, o Coice sabe recompensar amigos. (entrega cartão telefônico) Aqui está o nosso número.

ZÉ DOMINDUIM
Isso não vai me prejudicar?

BICHA
Bobagem, Zé. Tu é cara de futuro.

ZÉ DOMINDUIM
Como vou encarar a turma?

BICHA
Não encara! Quando alguém te olhar, desvia o olho.

Zé Dominduim pensa bastante.

ZÉ DOMINDUIM
Só vinte?

BICHA
Tá, leva trinta, é só o que eu tenho. (t) Com trinta pratas dá para encarar qualquer um.

Zé Dominduim, vai sair. O Bicha adverte.

BICHA
Olha lá! Se der para trás vai se ver com o Coice!


Cena 29

No BV estão reunidos Papeleira, Professor, Profeta e Carregador. A Papeleira e os demais ouvem a notícia pelo rádio. Ou: a Papeleira lê em voz alta trecho de reportagem de um jornal popular.

LOCUTOR:
“No Viaduto sobre o Rio Tietê, poucos dias após a morte de um homossexual de programa, conhecido por Leilá, ocorre novo crime violento. Uma prostituta, de nome Madalena, foi atropelada e morta. E segundo testemunhas, empurrada contra os carros em movimento da avenida, por pessoas não identificados.”

Zé Dominduim vem dos fundos, ressabiado.

LOCUTOR:
“A polícia julga que tudo não passa de guerra de grupos pela posse de pontos de droga e lenocínio. A vítima estava algemada. Várias entidades insistem que o Ministério Público e a Corregedoria da Polícia assumam o inquérito.”

PROFESSOR
Se houver inquérito, Papeleira, vai falar?

PAPELEIRA
Conto tintim por tintim. Temos que dar apoio ao Padre.

O Professor gosta. O Profeta ouve calado.

PROFESSOR
Parabéns! Fala, Dominduim!

ZÉ DOMINDUIM
Atrás de Coice-de-Mula tem muita gente da polícia. Pobre abre o bico, se fode. Quando a gente consegue trabalhar por conta, vem sujeira! Sou pequeno, mas sou comerciante! Assim é duro tirar o pé da merda, não quero arriscar o meu futuro.

PROFESSOR
Amigo, está cada vez mais difícil ficar rico. Em com-pensação, mais fácil ficar pobre. E mais mole ainda cair na miséria. Estou com a Papeleira: denunciar o matador e apoiar o Padre que embarcou na utopia de optar pelos pobres.

A Papeleira “fala” com o Carregador por mímica. Ele responde, ela traduz.

PAPELEIRA
Ele queria de ter voz, para dizer que apoia. (t) Profeta?

PROFETA (brada, exaltado)
Quem com ferro fere, com ferro será ferido!

PROFESSOR
Ganhou a resistência. Com um voto contra.

Zé Dominduim abaixa a cabeça. O Professor fala com solenidade.

PROFESSOR
Um travesti esganado, Madalena jogada debaixo dos carros, é muito grave. Repito: Coice-de-Mula chafurda na lama e salpica os circunstantes. (t) Os circunstantes somos nós!


Cena 30

No meio da assembléia aparece o Padre. Ele está de calça jeans, tênis, camisa esporte e outra jaqueta, roupa mais civil. A mudança dá a idéia de que sua vida tomaria outro rumo.

Zé Dominduim sai de mansinho.

A Papeleira monta uma cruz tosca, com madeira e arame. À entrada do Padre, todos se calam. Ele está tenso.

PADRE
Quem viu Madalena?

Embaraço.

PAPELEIRA
Senta, Padre, estamos falando dela.

PROFESSOR
Madalena morreu.

PADRE
Como?

PAPELEIRA
Morreu...

PROFETA
Não foi de morte morrida.

PROFESSOR
Foi de morte matada.

O Padre sofre grande choque. Fala baixo, sussurrado.

PADRE
A mando do Coice?

PROFETA
Por ele mesmo.

PADRE
Meu Deus, como foi?

PAPELEIRA
Algemada, jogada debaixo dos carros...

PROFETA
Na avenida...

PAPELEIRA
Depois do Viaduto...

PROFESSOR
Perto do canteiro.

O Padre ajoelha-se, cobre o rosto com as mãos.

PADRE
Eu sou culpado...

PROFESSOR
Não, amigo, Foi bandidagem pura, para encobrir o assassino do Leilá.

O Padre pega a cruz improvisada da Papeleira.

PADRE
Tia, me dê esta cruz, quero fincar no lugar que ela morreu. Preciso rezar pela sua alma, é a única coisa que posso fazer.


Cena 31

Coice-de-Mula, Bicha e Cupincha chegam de supetão, quando o Padre recebe a cruz. O ex-policial vai direto ao assunto, ofendendo o Padre com sarcasmos.

COICE-DE-MULA
O idiota continua lambendo os moradores e sofredores de rua. (t) Tu não é governo, por que enche o saco? Vai rezar na igreja, absolve os caras da burguesia, que estão assim de pecado. (desdém, ironia) É esse o trabalho pastoral?

PADRE
A atividade pastoral incorpora cidadania, direitos humanos, respeito, amor.

CdM solta gargalhada longa e debochada.

BICHA
Coice, ensina o padre-nosso pro vigário!

COICE-DE-MULA
Quando não são veados... ficam no come-quieto.

PADRE
Não tem valor o julgamento de quem cobra pedágio de miseráveis.

COICE-DE-MULA
Esta cidade é, uma trolha, a iniciativa privada...

Ele ri alto, achando graça no próprio raciocínio.

COICE-DE-MULA
...é que põe ordem na bagunça. No meu território todo mundo tem que andar nos conformes. O padre fez uma agitação do diabo. Virou o Viaduto de perna pro ar.

PADRE
Cada vez encontrarão comunidades mais unidas.

COICE-DE-MULA
É bom de papo. Quero ver se é bom de briga.

PADRE
Minha briga é outra, senhor!

COICE-DE-MULA
Senhor é a puta que pariu! Sou democrata, quero ser chamado de você.

CdM anda em torno do Padre, obrigando-o a girar. Os moradores do BV ficam imóveis.

COICE-DE-MULA
Vamos jogar na valentona, mano a mano, taco a taco. E não venha com a lorota de dar o outro lado quando levar a primeira porrada na fuça, como mandava o seu jotacristo.

PADRE
Não blasfeme na minha presença!

Indignado, o Padre avança sobre CdM brandindo os punhos fechados, de maneira desajeitada.

COICE-DE-MULA
Falei briga de macho, não me venha com soquinho... Ô Bicha, será que o reverendo não é teu concorrente?

BICHA
Leva jeito, Coicinho.

O Padre vai à exasperação e procura atacar mais decidido. O resultado é o mesmo.

COICE-DE-MULA
Se brigar de novo com delicadeza, vai ser currado na frente de todo mundo.

O Padre continua com a cruz na mão. Os moradores do BV estão parados, em suspense. A Papeleira, que fazia amarrados e cortava barbante, pára a faca no ar.


Cena 32

Tantã desce ruidosamente a rampa de acesso. Ela está com uma sacola cheia.

TANTÃ (cantarola)
“As rosas não falam, elas só exalam o perfume que vem de você.” Aleluia! O fim de feira foi do cacete! Tem rango pra todo mundo!

Na outra mão ela traz o vaso. Um botão desabrochou, é rosa aberta.

TANTÃ
E aconteceu um milagre! NASCEU A PRIMEIRA ROSA!!

Tantã joga a cesta e dança com o vaso. Na sua alucinação, rodopia valsando, sem perceber o espetáculo tenso. Pára diante do Padre e mostra o vaso.

TANTÃ
Padre, a rosa não é linda? Não é milagre? Diga, Padre, diga, diga...

Irritado, CdM arranca o vaso da mão de Tantã e atira-o violentamente ao rio.

TANTÃ (grito)
Não!!!

Tantã avança para atacar CdM. Ele lhe dá um violento safanão, arremessando-a ao lado da Papeleira.

COICE-DE-MULA
Chega de bobagem! Quero ação, briga de macho, descontar no murro o prejuízo que o senhor padre me deu.

A Papeleira ampara Tantã e entrega-lhe a faca e lhe cochicha algo . Tantã esgueira-se, passa atrás do Padre e coloca a faca em sua mão. CdM aproveita o fato.

COICE-DE-MULA
Todos são testemunhas! Até agora eu estava de mãos limpas. O padre se armou, VOU ME DEFENDER!

O Padre fica com a faca numa mão e a cruz na outra, sem saber o que fazer. CdM tira o cabo de aço da cintura. A comunidade se entreolha. O Padre está com a faca desajeitadamente direcionada para o inimigo.

CdM aplica violentos golpes de cabo de aço no Padre.

COICE-DE-MULA
Toma, padreco de merda! Te corto no cabo de aço!

PADRE
Você matou Madalena!

COICE-DE-MULA (auge do cinismo)
Quem mata é Deus, eu só empurro!

Esta é a frase-estopim para a revolta. Todos fecham o círculo. O Professor joga-se contra o Padre, empurrando-o ao encontro de CdM.

PROFESSOR
Liqüida esse verme!

Arremessado para frente, o Padre atinge CdM com a faca. CdM cai morto. A comunidade exulta. Bicha e Cupincha fogem. O Padre se ajoelha, tem uma crise nervosa e chora.

PADRE
Senhor, perdão por tirar a vida de um ser humano, mesmo sendo o assassino de Madalena, a mulher que eu amei.

Os moradores não dão atenção ao Padre. Pegam corpo de CdM e sem ritual, jogam-no rio. O Professor esfrega as mãos, ato de dever cumprido.

PROFESSOR
O nosso rio morto, a serventia da casa.


Cena 33

Atônito, quase fora de si, o Padre pega a cruz do chão e prossegue seu monólogo.

PADRE
Senhor, vou fincar esta cruz que simboliza a tua morte, no lugar em que tombou a primeira e última mulher que conheci. Quero orar pela sua alma, pedir perdão pela sua morte, me sinto culpado. Releve a minha fraqueza. Eu o amo Senhor, como amei Madalena. Sinto remorso e um grande vazio.

Soluça, sofre.

PADRE
Ha, o amor... Quem põe amor no nosso coração, senão o próprio Deus?

O Padre faz ato de contrição.

PADRE
E Juro continuar minha missão eclesial, mas sempre vou recordar com carinho aquele momento de amor. O amor é Deus, o amor é Madalena,

ESCURECIMENTO.


Cena 34

O Padre vai para o AV. A luz do BV se apaga, do AV acende. O Padre está na boca do palco. Ajoelhado, ele finca a cruz.

Foco de luz acende sobre a primeira fila da platéia. Lá estão sentados os quatro tiras do Esquadrão do Apocalipse. Eles se levantam, colocam os chapéus de feltro que tipificam o policial civil, sacam suas armas e fazem mímica de atirar. Os tiros são ouvidos por efeito de contra-regra. Cada policial dá um tiro. O Padre reage a cada impacto, colocando as mãos nos pontos das 5 chagas de Cristo. O quinto tiro será dado pelo primeiro atirador.

Após o tiro, cada policial diz sua frase cínica.

TIRA 1
Ai de quem esquecer que para a vida continuar civilizada, é preciso escalar a raposa para cuidar do galinheiro.

OS OUTROS 3
Esta é a lei da ordem estabelecida.

TIRA 2
Ai de quem defender os fracos, oprimidos, marginais e excluídos, contrapondo o mesquinho interesse comunitário aos desígnios globais, dos fortes e poderosos.

OS OUTROS 3
Esta é a lei do mais forte.

TIRA 3
Ai de quem não sabe que desde o começo do mundo, a minoria privilegiada tem direito de abocanhar o que é reivindicado pela maioria incompetente e preguiçosa.

OS OUTROS 3
Esta é a lei da esperteza.

TIRA 4
Ai de quem contrapor a opinião das massas às prerrogativas do Príncipe, predestinado a ser o supremo em colônias, províncias, reinos e repúblicas.

OS 4 TIRAS (exortam em uníssono)
Esta é a lei de quem manda.

TIRA 1 (dá o último tiro)
A lei do Esquadrão do Apocalipse!

Eles soltam gargalhadas de deboche, se recompõem e saem, impávidos, pelo corredor da platéia.

A luz do AV apaga. Na penumbra, os moradores tendo à frente o Professor e a Papeleira, vêm, pegam o Padre e o levam para o BV.


Cena 35

Simbolicamente crucificado, o corpo do Padre é apoiado, de pé, no grande engradado que desde o início está no BV. O Padre é posicionado de maneira semelhante à que Jesus ficou na cruz. Os pés (de tênis) ficam no chão, sobrepostos. Os tiros deixaram manchas de sangue que correspondem às 5 chagas.


Cena 36

Zé do Minduim (com seu equipamento), chega temeroso e procura adivinhar o que aconteceu. Fala, desculpando-se.

ZÉ DOMINDUIM
Faturei 30 pratas extras, comprei pão e vinho para todos. Que esta noite, amigos, parece que vai ser longa e fria.

A Papeleira aponta o Padre.

PAPELEIRA
O Cordeiro de Deus, mais uma vez imolado.

Profeta, faz gesto teatral, lança o anátema.

PROFETA
Suportai o Judas que existe em cada um de nós!


Cena 37

Começa a Missa de Réquiem, em clima de total nonsense. Todos desfilam em volta do Padre, cada qual emitindo sua litania. Tantã deposita um vaso ao pé do Padre.

TANTÃ
Uma planta amiga para o amigo que foi embora.

Zé Dominduim fala de maneira dolorida.

ZÉ DOMINDUIM
Amendoim torrado para todos...

A Papeleira acende velas em torno do Padre.

PAPELEIRA
Vela para clarear o caminho das almas...

O Professor entra com o seu refrão e bate a matraca.

PROFESSOR
Venda seu ouro e fique rico! Venda seu ouro e fique rico!

O Carregador enquanto caminha “fala” com gestos de surdo-mudo. O Profeta manifesta-se com uma fala alucinada.

PROFETA
Arrependei-vos, irmãos, que o fim está próximo... As maçãs podres contaminaram as sadias... Não sobrará pedra sobre pedra! Adeus 1900 que a 2000 não chegarás!

Zé Dominduim assume a lamentação.

ZÉ DOMINDUIM
Chorarei o Judas que fez parte de mim! (bis)

O grupo caminha processionalmente. Cada qual repete sua estrofe. A Papeleira continua a acender velas.


Cena 38

O Professor tira o pequeno livro de orações do bolso do Padre e folheia até encontrar o Ofício para os Mortos.

PROFESSOR
O ofício para os mortos.

O Professor caminha folheando o pequeno livro até encontrar o que procurava. Fala, olhando a platéia.

PROFESSOR
Réquiem para o Padre imolado.
Réquiem para o rio morto.
Réquiem para os nossos sonhos dissipados.

Vira-se para o grupo.

PROFESSOR
Qual é o nome de batismo do falecido?

Ninguém sabe.

PAPELEIRA
A gente só chamava ele de Padre.

O Professor vai para as primeiras folhas do livro.

PROFESSOR
Aqui diz... (t) Não diz! Tem um jota e um ponto.

ZÉ DOMINDUIM
Será José... João?

PAPELEIRA
Jonas? Josué?

PROFETA
Jacó?

PROFESSOR
Jeremias..

PROFETA
Jubal...

ZÉ DOMINDUIM
Joaquim... Jônatas...

TANTÃ (tem um estalo)
Não será Je...

Tantã corta a fala, bate na boca. Todos param e se entreolham. Um temor percorre as expressões. Na sua alucinação, o Profeta exclama.

PROFETA
Bem-aventurados os excluídos, deles será o Reino dos Céus!

A Papeleira termina de acender velas e apaga a lâmpada. A atmosfera fica mais dramática. Tantã entra em transe.

TANTÃ
Os bandeirantes!

A partir dos sinais de Tantã, todos ouvem o canto dos bandeirantes. (O público inclusive).

O canto é recitado em solo; o estribilho, por um coro. Quando a cantoria começa, uma névoa branca sobe do rio. Se possível, envolver o palco.

O acompanhamento musical do canto é feito pelo som de uma rabeca, que toca uma melodia indígena, guarani.


Cena 39

Os 6 personagens vão para a beira do rio e ouvem.

Coro:
Rema rema, rema forte, remador
Rema rema, rema forte. remador

Solo:
Da Ponte Pequena, seguimos rio afora
Cruzamos a fresca várzea da Casa Verde
Passaremos em Santana do Parnaíba
E empós, por Bom Jesus do Pirapora

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Cante baixo, cante triste, com fervor
Não desperte as almas sofridas da vila
Que dormem tranqüilas e silenciosas
No fundo claro do Anhembi que horror!

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Embica a proa no caminho do sertão
Orando com fé e sempre a invocar
Ó meu santo patrono dos navegantes
Olhai por nós e nos dai a sua proteção

O canto prossegue. Os 6 do BV deixam a margem do rio, dão voltas em torno do Padre, sentam-se e tomam vinho numa lata que passa de mão em mão. Uma caneca, com um pedaço de pão emborcado, é posta ao lado do corpo.

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Sulcamos a água mansa do Anhembi
Adeus, belas lagoas do Tamanduateí
Adeus, chão moreno de Piratininga
Ó, quanta saudade nós teremos de ti

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Ó gente ribeirinha do Tamanduatei
Moradores e passantes do Anhembi
Atentem aos toques do campanário
Façam o em-nome-do-pai, por mim

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Deus comanda a escopeta contra o tacape
Nós subjugaremos todo o gentio pagão
Imporemos o nosso abençoado catecismo
Eles estarão a salvo, com a fé no coração

O grupo continua de costas. O Professor ainda lê, só movendo os lábios. A Papeleira reparte o pão.

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
E hão de suar o rosto na labuta que dignifica
Saberão a poder de chicote ser gente de bem
Largarão para sempre os deuses selvagens
E serão guiados pela santa estrela de Belém

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Quando voltarmos, com os alforjes de ouro
E pedras preciosas, repicarão os sinos da Sé
Da Matriz da Senhora do Carmo, os cânticos
De São Francisco, São Gonçalo e São José

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Traremos tanto ouro e pedras preciosas
Para o bem da Província, ajuda às viuvas
Proteção e consolo ao órfão, ao deserdado
De ouro, o santo padroeiro será recamado

Marineide e prostitutas da figuração entram e postam-se atrás do grupo do BV. A composição é de presépio).

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Flores amarelas nas margens do Anhembi
Rosas e lírios brancos nos vales a exalar
Haverá cabedal para pobre, doente e poeta
Em terra tão rica, socorro não pode faltar

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Ó, com tanto ouro e pedras preciosas
Saldaremos todas as dívidas da Coroa
Da garra da usura, o Império vai escapar
Terra tão dadivosa não precisa esmolar

Coro:
Rema rema, rema forte, remador

Solo:
Trigo para o pão, nos campos semearemos
No comando de Piratininga, homem capaz
De fruto e bom alimento as mesas fartaremos
A Província será plena de amor, justiça, paz.

No fundo do palco desce um grande painel com vista majestosa da cidade, transmitindo modernidade, pujança, riqueza, poder. Contrastando com a miséria do Baixo-Viaduto.

O coro transforma-se em canto-chão, o tom fica mais sombrio e permanece o suficiente para a memorização do contraste estabelecido.

Esta parte do coro pode ser acompanhada por todos personagens.

Coro:
Rema rema, rema forte, remador
Rema rema, rema forte, remador
Rema rema, rema forte, remador
Rema rema, rema forte, remador.

O canto desce a bg até sumir.

ESCURECIMENTO FINAL

Galileu Garcia
22/10/99


 

“Réquiem Para Um Rio Morto”, de Galileu Garcia, prêmio Vladimir Herzog do ano 2.000, foi lida na Bienal do Livro, dia 2.05.2000, às 19 horas, no Stand do IMESP/EDUSP, com os seguintes créditos:

Direção e Rubricas: Sérgio Mamberti

Elenco

Padre: Tadeu Di Pietro
Professor: Sérgio Mamberti
Madalena: Clara Machado
Coice-de-Mula: Cláudio Mamberti
Papeleira: Roberta Malta
Tantã: Salete Fracarolli
Zé Dominduim: Clóvis Gonçalves
Profeta: Carlos Meceni
Marineide: Lavínia Pannunzio
Bicha: Décio Pinto
Leilah: Carlos Capelleti
Solo: Carlos Capelleti
Apocalipse: Décio Pinto
Coro: Todo elenco

Réquiem Para Um Rio Morto, de Galileu Garcia, foi, na ocasião, lançada, em cola e papel, em edição IMESP/EDUSP.


Ridendo Castigat Mores
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Versão para eBook
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Janeiro — 2.000
Atualização
Maio — 2.000

Versões para pdf e eBookLibris
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© 2.000-2.005 Galileu Garcia

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