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As Reminiscências da Infância de Cócoras, Menino do Mato & Outras Histórias

Mauro Gonçalves Rueda

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As Reminiscências da Infância de Cócoras,
Menino do Mato & Outras Histórias
Mauro Gonçalves Rueda

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Fonte Digital
Documento do Autor
maurorueda5@hotmail.com

©2003 — Mauro Gonçalves Rueda


 

Índice

As Reminiscências Da Infância De Cócoras
(Primeira Parte)

   Fragmento número um
   Fragmento número dois
   Fragmento número três
   Fragmento número quatro
   Fragmento número cinco

As Reminiscências Da Infância De Cócoras
(Segunda Parte)

   Retalho número um
   O ACOCORADO
   Retalho Número Dois:
   AIOU, SILVER! AQUI VAMOS NÓS!
   Retalho número três:
   O NÓ DA QUESTÃO
   Retalho número quatro:
   LUA SANGRENTA DO MEIO DIA
   Retalho número cinco:
   AMOR DE RINHA
   Retalho número seis:
   DA NATUREZA DO SERTÃO DA INFÂNCIA
   Retalho número sete:
   JAGUNÇO
   Retalho número oito:
   SINA
   Retalho número nove:
   DE PAUTA COM O TINHOSO
   Retalho número dez:
   MARIA RITA

TERCEIRA PARTE
   MENINO DO MATO

   LUA
   A MÃE E OS ANJOS
   SERENO
   TOCO
   O QUE RESTA É O QUE É!
   TERREIRO E VIOLA
   ASSOMBRAÇÃO
   BOBINHO
   PIÁ
   O CAUSO DO FAZ DE CONTA

EM TEMPO:


 

AS REMINISCÊNCIAS
DA INFÂNCIA DE CÓCORAS
MENINO DO MATO
&
OUTRAS HISTÓRIAS

(Contos — Reminiscências)
Para: Maricy & Joyce.

Mauro Gonçalves Rueda.
São José do Rio Preto — Barretos, 1.999.


 

 

Pra minha mãe,
meus irmãos,
meus avós (in memoriam),
meu pai (in memoriam)
e,
para o pessoal das Vilas “Pereira e Poéra”, em Barretos

 


 

As Reminiscências Da Infância De Cócoras
(Primeira Parte)

Fragmento número um

 

Vazio, silêncio e solidão. Menino descalço, o vento varre os meus cabelos empurrando-me pela estrada boiadeira. Poeira vermelha impregnando a pele fustigada pelo sol causticante. Roubo da paisagem as cercas, cancelas, mata-burros, barrancões, pés-de-ipê coloridos, coqueiros retorcidos, os buracos cavados pela erosão do tempo e, rumo para o “Barro Branco”.

Vou em busca do saibro. Manuseio o barro e faço dúzias de bolinhas disformes. Menino-Deus modelando os fragmentos das reminiscências da infância de cócoras. De cócoras, observo a Criação. Manancial secando ao sol. Saco do embornal o cigarro “Das Américas” e fumo tranqüilo junto ao mato rasteiro e empoeirado.

Nunca vou à cidade. Bem, às vezes, resolvo surripiar uns gibís e assistir ao treino do Barretos Futebol Clube. Não sei porque exatamente, mas veio-me à mente que não sei onde vai dar essa estrada. Colina? Jaborandi? Guaíra? Guarací? Terra Roxa? Olímpia é a terra do folclore. Será que Barretos é a terra de rodeios? Somente isso? Tenho nove anos e minhas retinas fixas nos murunduns de cupins; nas casas de marimbondos de meio metro de altura, aproximadamente. Foram construídas no chão vermelho, em meio aos galhos e folhas caatingueiros. Tudo é sertão. O papa-vento é uma espécie de lagarto, camaleônico. Gruda na gente. Solta se trovejar. É o bicho que mais tenho medo depois do homem. E essa praga que chamam “capitão do mato”? Cobra ligeira. Corre atrás feito o vento, dizem. Nunca vi. Nem desejo. Jibóia amarro corda no pescoço e arrasto pela estrada velha. Não deixo soprar. O sopro dela é feito um jato de tinta e deixa a pele da gente toda manchada. Cobra-d’água, a gente pesca no anzol com isca de lambari. Põe num vidro com álcool. Com uma lâmina, abro esses bichos todos. Lagarto, cobra, rã, sapo, taturana-do-fogo. Escorpião e tarântula somente espiar. O correto é nem se chegar perto. Descuidado, deixei a mão sobre uma dessas taturanas. Vermelha. Dor infernal, acompanhada de febre, vômito, íngua...Cachorro-doido também é ruim. O pai meteu duas balas na cabeça da Baía. Tava babando de doida. O casal era policial: Baião e Baia. Pai acabou o serviço com o detrás do machado. O Baião ficou solitário, jururú. Um baita dum canzarrão daqueles! Um macho sem a fêmea não é um macho. Vira rótulo. Cumpadre Tião entrou no quintal sem chamar. O cachorro bateu com as duas patas no peito troncudo do crioulo e ficou em cima rosnando. Se mãe não grita intervindo, o cumpadre do pai teria se lascado. Ah, isso lá é verdade! O bicho era manso. Só que tinha que chamar do lado de lá da porteira do quintal. Dali para dentro já era nosso território marcado, delimitado e vigiado pelos Apaches e Sioux. Lagarto Tiú que bate e lacera feito chicote é bicho besta pra correr. A vó tinha lá suas primícias: enfiava o dedo no cu das galinhas antes de matar. Pensava fosse sacanagem. Era pra ver, sentir se tava pra botar. Depois rodava a bichinha e crau! Era só soltar pelo chão, rodopiando agônica e dando adeus à vida. Um dia fiz o mesmo e fiquei com a cabeça na mão esquerda e o corpo estertorando e botando sangue na mão direita. Nunca mais. Vai matar, desapareço porque, a “Chiquinha”, foi criada na porta da cozinha. Comia numa bacia velha de alumínio. Tinha horário e tudo. De grande, mansa e pachorrenta, já nem andava mais. Os meninos não deixaram matar. Pai vendeu. Ainda tá na lembrança. É por isso que a gente sofre. Porque Deus fez a gente com coração de sofrer as coisas lembradas e já mortas lá atrás, pelas curvas das estradas de pó. Feito carretão de bois chiando, lamuriento, moroso, dolente..Canga no pescoço. Elomar disse que Deus ponhô a canga no pescoço da gente pro mó de Adão. Pomo-de-Adão. Vinícius perguntou se foi pra desfazer, porque é que fez? Nada não! Que ninguém mastigava hóstia por causa do sangue. Confessar? Eu? Mentia para o padre. Que nóis nunca que encostou égua nos barranco. Nem cabra. Mas, galinha, foi uma vezinha só. Deu arrependimento. Depois o “Estenga” mais o “Cotô”, mataram a cadela de tanto que... Estragaram a pobre. Ia contar? Não contei porque apanhava. Eles eram maiores e eu franzino. O Estenga tinha duas irmãs. Uma delas parecida com a cantora Simone: toda bonitona, sacudida. Emprestamos a bicicleta pra elas. Depois não quiseram dar. Ir traz das moitas de colonião. Só ergueram as saias, puxaram as calcinhas prum lado e mostraram. A gente nem tinha porra ainda. Nos conformes da idade a gente já vem aperreado pra vida com tento de animal. Instinto. Molecada mais besta! Ouriçando as menininhas que nem brincar de casinha ou de médico já nem. Elas queriam era uns maiores que elas e a gente tudo juntos. Um dia, um sujeito atoleimado, casmurro, fez merda. Foi preso. O pai da menina jurou que matava. Matou? Qual o quê! Por isso ela nem me olhava: gostava de coisa grande. Eu queria virar peixe. Debaixo d’água ninguém mais que eu. Só era lerdo de braçada. Cada um tinha um jeito de ser bom nalguma coisa, ara! O Carlinho macaco nadava igualzinho o Tarzã. O Estenga era o melhor no campo de terra com a bola de meia costurada. Tinha lá um abestado que plantava bananeira, ia abaixando, abaixando, até pegar a bituca de cigarro com a boca, no chão. Tava marelento, ruim dos peito. O Burro-Véio pensava que eu fosse saco de pancadas. E eu, muito que do sonso acabava sempre levando uns cascudos todos os dias do tal. Uma vez, acabei com aquela merda. Foi um tranco só que ele quebrou o braço e teve que pôr gesso. Aí, dei nele até ele sarar. Quando sarou eu caí fora. O cara era um animal. E eu queria saber até onde a velha estrada ia. Até o fim do mundo? Eu queria ser quenêm “Os Sobrinhos do Capitão”. O “Fantasma” que era imortal e morava numa caverna. Pigmeus. Zorro e Tonto. Aiôu, Silver! Mas eu fiquei mesmo foi um Brucutu. Um dinossauro. Gato de botas. Quanto dá sete léguas? Da vila Pereira até o Barro Branco? Ou até a fábrica de doces que jogava o que não prestava e a gente, com aquelas lombrigas todas, mandava pro papo: maria-mole, pé-de-moleque, paçoquinha, doce-de-abóbora e batata em formato de coração; cocada das brancas e das pretas que, estômago nunca foi racista, preconceituoso. E mais um monte de coiseiraiada que nem me lembro mais.

Até despacho de encruzilhada a gente roubava as garrafas de “marafo” para vender. Ficava perebento, com as pernas marcadas. Porque jatobá e macauba limpavam o sangue. Os mais velhos diziam. Tinha nojo de chouriço. Era sangue de porco dentro de tripa. Tripa é uma coisa nojenta, igual moela de galinha e pés e pescoço com cabeça, bico e tudo. Lembrava-me de frieira, bicho-de-pé, pereba, boi esturrando no pasto em putrefação e os urubus em círculos. Lembrava fossa onde todo o mundo cagava agachado. Ficava embromando, o sol ia descambando, vermelho, no poente. Tinha que voltar porque oito e meia da noite, as ruas viravam deserto umbralino e crepuscular. Perdiam a vida, a alegria, os nomes. A vila encolhia-se, recolhendo-se em segredos e mistérios de horas sombrias e mortas.

Certa feita, um tal de Cal morrera ao tentar consertar o elevador do reservatório e ficara com os miolos espalhados pelas paredes e chão. Então, começara a aparecer com aquele pano feito atadura enrolado na cabeça sangrando. A menininha estava no caixão. Coisinha de nada. Vira anjo. Mas, quando a noite descamba, quem vai lembrar-se dessas coisas? Saci-pererê não tinha medo. No entanto, lobisomem rolando na bosta de galinha, nem pensar. Tinha um sujeito amarelo, doentio, espectral, que diziam que era. A gente dava um jeito, durante o dia claro, para entrar no quintal e bisbilhotar o alheio. Uma zinha qualquer lá, por poucas, andava espaiando que vira o homem com pedaços de panos de fraldas nos dentes disformes. Se vira, então era porque era. Lobisomem ataca as criancinhas miudinhas nas horas mortas para deixar de rastro, somente vestígios tais quais.

Não era feito o Pedro-babão, empurrando carriola com gelo. Ele sofria de uns ataques, crises estranhas, caindo pelo chão de terra vermelha a estrebuchar com os olhos opáceos, esbugalhados e a baba correndo pelos cantos labiais tal qual cachorro-doido escumando.

Caceta! Um dia quase me borrei todo por causa desse fato esquerdo para minha compreensão. Lembro-me ainda de um sujeito alto, moreno, de raríssimas falas, alcunhado por Jerômo e que cortava capim para os cavalos. Pai fazia o pagamento trocando pela pinga com café e cigarros. Um dia o tal desapareceu do mapa. Contavam que sucuri havia engolido. Na beira do rio, agarrado nas barrancas, com a foice, atarracado no capim gordura que era lá muito do bom para os animais ruminantes da fazenda. Além do que, tratava-se de um rio sujo, de águas polutas do esgoto e sebo do Frigorífico Anglo, do ingleses.

O pai dizia que não adiantava lutar com sucuri. Tinha um punhal de ponta aguda. Era ir cutucando por baixo, com jeitinho que, a bicha afrouxava os nós e laços já feitos. Eu que nunca acreditei em tal conversa de que. Se aquele bichão engolia um bezerro, não ia rebentar de uma forçada só, todos os ossos de um homem magricela com seu punhalzinho? Nem queria saber desse bicho do cão que só faltava bufar durante labuta. Bicho que na terra seca, firme, era molóide, mas nas barranca de um rio, puxava para dentro da água e adeus, hein? Que punhal, que nada!

Bornal abarrotado com bolinhas de saibro, descambava de volta para casa. Tão longe, do outro lado do mundo! Berrante no tôoouummmm!, que era pra mó de a boiada não dispersar em estouro que se, nem o demo segurava aqueles bichos atropelados. No que pensava ia apertando nos passos, puxando no fôlego, disparando no galope e levantando poeira com os cascos do cavalo invisível do sonhos de criança. Eita saudade desassossegante que maior, sem caber dentro do peito mirradinho de pardal e tisiu!

Deus me livre e guarde, mas crescer para quê? Envelhecer pururucando as peles, ficando lerdo feito bicho preguiça, lesma, pamonhão que nem se sustenta sem o apoio de uma bengala? Pra-mó-de-quê? Essas e outras desfeitas mais? Desaforo, desafio das coisas de Deus. Do destino em desatino. Escorpião no meio da roda de fogo, sem saída, cravando o ferrão no lombo e injetando o próprio veneno. “Tudo o que não presta, morre por si mesmo”. Não foi Jesus quem disse?

Eu, bicho do mato, indiozinho quase civilizado mas, de muito mal com a civilização e suas modernitudes ainda em pequenino. Eu, maledicente das ciências e seus progressos tecnológicos a correr pelas estradas e campos com os peitos chiando a espera do soro antiasmático nas nádegas sem carnes que pareciam tábua de passar roupa com ferro preto de brasa e carvão assoprado pela mãe? Logo eu?

Tomava banho na tina d’água e comia de colher em riste. Acocorado, a marmita de arroz, feijão, ovo e bife. Plantava capim na roça (fazenda dos Cavallini), levava a marmita, a cuia, água, café, cigarros e, após o rancho, esparramava-me à sombra do umbuzeiro. Feliz quenêm uma besta. O chapelão na cabeça para não fritar os miolos que, uma vez, uma senhora lá, deixou a menina, ainda bebê de seio dentro de uma bacia, debaixo de uma sombrinha mixuruca e foi panhá café e nem se deu que o sol foi trocando de posição, trocando, e esquentando a bacia de alumínio e, quando a dona foi tomar uns gole d’água na moringa e pitá um cigarro paiêro de fumo de corda, encontrou o anjinho esturricado, mortinho ali na bacia pelando de quente e que deu um dó desesperado de uma cena sem piedade, comiseração, partindo a gente ao meio e os mais velhos nas idades e sabença, tudo acudindo porque, a mulher endoidou, esperneou, berrou, gemeu, virou os olhos e ficou estirada no pó desacordada feito um bicho abatido. Endoidou atarracada naquela coisinha de nada empretada pelo sol escaldante, modorrento que, até hoje, sonho uns pesadelos de pular da cama e feito um burro de arado, molhando as cuecas de botar suor em bicas.

Que Jesus nos livre e guarde dessas e outras. Porque a pobreza, parece que vive de mãos dadas com as desgrameiras, as fatalidades, campeando por tudo quanto é canto, feito gata que pare e se roubam-lhe a ninhada a bichinha fica miando de uma lado para outro, num desespero lamuriento, chamando, implorando dolente que as tetinhas empedram o leite e nas muitas das vezes, o bichinho endoida ou adoece e fenece pra morrer distante, nalgum canto ermo! Quem dirá do ser humano gente, então, pois? Gente que, quando perde um anjinho, se não dá de variar pro resto da vida? Eu sei e afirmo porque já vi com esses olhos que a terra há de um dia. Tanto que, então, nos conformes do causo, dava-se uma boneca de pano, feita em casa, com trapos e a pobre criatura embalava a bichinha pensando ou nem pensando no ente perdido porque quem pode afirmar que numa tristeza dessas alguém é capaz de pensar em alguma coisa que não seja mais que a ruminação da própria dor? Mas embalava. Na tessitura do pano sem vida, e os peitos que até, uma vez oferendados, acabavam criando leite e molhando tudo o corpo, a roupa e, ai meu Jesuscristinho!. Que é até pecado pensar nisso porque parece desfeita mas, me explicaram nos pormenores que tudo tem um porque da causa e efeito de outras vidas muitas, já vividas antes dessa.

É por isso também que uns nascem que dá pena e outros tão saudáveis que sobra tudo, de um tudo um tanto e mais, beleza, saúde, dinheiro, inteligência. Uns cabras bonzinhos das moleiras e feito rochas que das mais das vezes, senão, sabe-se lá por quantas, têm uns derrame num repente e acabam ficando tudo dos tortos, retorcidos, babando, escumando, cagando e mijando sem botar tento porque tão vivos e parece que não.

Apois, que tivesse fulminado feito descarga elétrica dos deuses de Thor ou de Iansã comandando na direção o raio que o parta e pronto! Foi pras picas chamuscado feito churrasco mal passado e adeus viola. Mas não, ficam penando, penando, desmilinguindo, todo inválido no definhar, desvalido e sem tento no viver de vegetal. Abóbora oca, melancia podre, até que um dia, de fatigada, enfarada, a alma vira passarinho iridescente e ascende, arriba para o céu, com ou sem asas. Tem dessas nas ciências do viver a existência e se ter memórias de puxar relembrando dos acontecimentos idos mas que parecem nunca ser uma só vez e tão sempre se repetindo na mente, no cotidianiar de tudo quanto é canto desse mundão sem eira que vai, vai, chega na Etiópia, África, Índia, Afeganistão, ou no sertão caatingueiro da Bahia, Minas, Pernambuco, Alagoas, São Paulo e pra tudo quanto é canto que se possa ter sabença e não que é causo de mangues, favelas, cortiços, barracos, debaixo de pontes, hospícios, manicômios e alas de isolamento e trincheiras de guerras e guerrilhas porque tudo é a mesma natureza animalizada, na autodestruição e na piedade de padecimentos insondáveis, quase inenarráveis, meio absurdos...É..às vezes, desespera saber coisas, lembrar, sentir, ver, ouvir....


 

Fragmento número dois

 

.......ouvia as histórias que vô contava e não é, pois, que Deus o tenha e perdoe porque, numa refrega da captura de contra os cangaceiros, eis que, no trincheirar e no espocar de bala que vai e bala que vem e mais, no dá nas percatas, amontado num cavalo, vô meteu o facão no braço de um abestado lerdo? Pedi se era do bando de Lampião, Virgulino, vô disse que não porque tinha virado praga o cangaço no sertão e mais, que já não tinha sabença se as volantes, os cangaceiros ou os coronéis que acoitavam Virgulino mais seu bando, no pensar da razão, quem era quem que mais fazia estrago com marvadezas nas pelejas de uns contra os outros e no meio deles, as famílias tudo inocentes que se pendurava e se sangrava de peixeira, mesmo grunhindo e berrando feito porcos, numa chacina de ódio e vinganças coaguladas nas almas mais empedernidas. Foi assim que, em 32, o Governo recrutou todas as forças e milícias e com a revolução vô viu a coisa preta quenêm Divo viu a uvas do Ivo ledo engano se o velho tinha orgulho lá dessas coisas e proezas anômalas! Vê lá que, como deixou de pitar e tragar cana no gargalo e ficou só mascando fumo em nacos, metodicamente cusparando feito cu de pato inté a morte. Além disso, vô tinha cultura. Lia o Evangelho de Cardeque e sabia de tudo mais, um tiquinho disso e coisa e tal. Dumas prosas que narrava coisas lá do sertões e proezas das restingas e ermos caatingueiros, quando já noitinha, sob o sereno de Barretos, abancado na cadeira de palhinha e o ar morno de vaga-lumes pintalgado, sobre padim padre Cíço e até Antonio Conselheiro, enquanto o tempo ia mudando, ficando feito as carrancas do sertão, das espinheiras no coração e forrando e rameando de nuvens pesadas que vinham baixando sopradas pelos ventos com prenunciação aziaga e, de repente, no mais, era se aquartelar na cozinha do casarão que o trem descambava ribombando e mandava era de pedra vazando o telhado e caindo no chão da cozinha que, já por aqueles tempos, havia recebido uma camada de cimento rústico e ficava ali, derretendo e a mãe e os manos tudo debaixo da mesa se protegendo e o pai roncando no quarto e o avô lá, paciente, de uma serenidade quase angelical, coçando os cabelos feito capucho de algodão tanta a brancura embelezando que, somente a função do tempo apraz em, com mãos diligentes, tingir por merecimento. E, não é que se espichava, apanhava umas pedrinhas levando-as aos lábios, com um sorriso mágico, de calmaria e naturalidade? Sem a fatalidade do medo de coisas que somente acontecem quando tem carência e, com isso, a gente ia tomando um cadinho de coragem e acabava assussegando o tropé de dentro do peito e da mente e experimentando as pedrinha de gelo que vazavam pelo telhado provindas qual canhonaços das nuvens nervosas que pareciam nunca mais se dissiparem.

O vô nasceu e se foi daqui de junto de nós herói. Mais que Capitão Márvel ou Batman. Vixe se não muito mais! Tanto que nem de natal gosto mais e fico aperreado, macambúzio e enxavido com tudo porque foi numa noite de natal que ele criou asas e deixou o corpo aos noventa e tantos, quase cem anos, num leito de hospital da P. M., na capital paulista. Que eu molecão, pra cabo do Serviço Militar, rasguei inscrição de exame para seguir carreira buscando graduação para sargento e subtenente, nas portas da FADIR, em Rio Preto!

É essa vida besta que dizia Drummond, que as coisas iam passando, bonde, pernas e o coração nem perguntando a Deus para que tantas pernas se ele lá, com todo respeito e devoção de minha parte, já traça, com sua Plêiade superior e iluminada, os destinos dos viventes dessa terra e do Universo todo para todo o sempre eterno devir do “Niche”, aquele filósofo do Zaratustra?!

Arre que, nesse proseado, diferenço provando e comprovando nas misturanças da inspiração e o escarafunchamento de muitas culturas aprendidas de vivência da infância fragmentada, no ouvir, ver e sentir e do chafurdar nos livros em muitas noites reviradas, um caminho para essa minha alma insaciável e penitente, repito, um caminho por entre as memórias e os sentimentos para o encontro da tal paz que, desde menino, até essa idade de lobo, nem sei o que há que, daqui uns segundos adiante se não me foi dado poderes para prever nada e muito menos, iniciado nos domínios das faculdades mediúnicas com tento para ver, ouvir, sensitivamente e inspiradamente, comunicar-me com os que já deixaram o plano físico e, ainda assim, pelas graças concedidas e recebidas, poderem voltar para umas e outras tarefas e regozijos, eu tenho procurado. Friso que a paz que tenho buscado e escarafunchado qual porco na lama, da infância e memórias resgatadas até os quarenta da idade licantrofóbica de homem lobo, nem de raspa sei se verdade ou ilusão.

Nas contradições irrelevantes e de somenos, forjo a incredulidade no credo não menos forjado que, nós lobos, poetas desajustadamente insatisfeitos, jamais encontraremos a paz. Que isso dói, deveras, é fato inconteste! Ah, como dói e expurga ao mesmo tempo e fode a paciência e descolore os cabelos tornando-os brancos e as fibras frouxas e os nervos estriados, relapsos, sobrecarregados pelo peso do anos e aflições e momentos poucos gozosos e prazenteiros! Contudo, no porém de tantas vias duvidosas, sei que vai ser assim até o fim. E essa misturança de sangue espanhol, português, mulato, cafuzo, negróide com, Deus sabe lá dessas raízes que, cientificamente rebuscam a procedência e comprovam a tal árvore genealógica, com o que mais de definitivo, dá, no mais das vezes, toda essa garrancheira e embaraço de atazanar e disparatar a mente de uma criança que no chegar aos quarenta, já pega-se que meio borozão, troncho das moleiras. Eu não tô me fiando nalgumas desculpas esfrangalhadas, destrinchadas pela incapacidade de ser um escritor ou poeta de razoável prosear ou versejar. Foda-se a rotulatória criticóidica, cancromecanizada! Mesmo porque, apesar das aparências fantasiosas das memórias da infância de cócoras, eu sei o quão são reais.....Reais e conflitantes.


 

Fragmento número três

 

Arrebanhando os carneiros da paciência, rastejo-me pelas sendas das memórias do introspecto moleque da caixa de engraxate e caboclo de roça num vir culminar de homem sem profissão definida e inconvicto, vou cerzindo estas reminiscências de cócoras.

Hérculeas empreitadas. As vezes fadadas a nada. Noutras, a mero pieguismo do lugar comum; do meio termo; do sem sal; do esquecimento, enfim. Mas a catarse é uma doença imbatível que nunca saciada. Impregna cada poro e destila seu veneno com prazer tão intenso que o falso torna-se real. E, sobretudo que (e isso é preponderante), lava-nos a alma macerada e necrosada pelas purulentas feridas.

Os loucos são filhos das paixões.

As paixões geram os loucos.

A premissa é: eu jamais fui louco nesta existência. Ou fui? Eu sei que não. Eu sei que nada sei ao certo. E tudo isso, tais conclusões, tornam as memórias mais instigantes. Chegarei a bom termo? O final, o que é? Será que há um final? Onde e como? Quando? Seguindo-se em frente sempre e sempre. Mesmo porque, o tempo é parco, viu moço?! E dele, roemos até os ossos. Dou-me ao luxo do lixo. Na modorra do dia escaldante, pachorrento, cismarento, enterneço-me com a simetria de versos concêntricos, do círculos do fumo que desfazem-se no ar. Feito pensamentos rasgando o invólucro do dia, no feitio da fantasia e de todos os fantasmas e desejos mortos. No entanto, por ser um, continuo sendo tantos. Chilreio de pássaros mansos, vozes serenas, risos de crianças, panelas batidas, sarilhos chiando nas cisternas, refocilamento de porcos, cacarejos de galinhas, ao longe uma via, carro de bois bufando, rangindo, rezingando sacolejantes nas subidas que são a própria existência vencida...Ah!, dia casmurro, sanguinolento! O ancião revolve num velho baú, decrépitas memórias. A moça passa. Mostra o que tem para dar. Os cachos de bananas brasileiramente ao vento e todo esse auê que é sonhar sem ter como viver. Somente eu nunca contento-me. Ensarilho os fuzis e entrego-me aos tormentos. Minha dor e minha sede são meus próprios sustentos. Espaventado no bulício desses tantos tontos dias e seus chinfrins de esquinas, trago-te em minhas retinas cansadas, estioladas. Tudo é cidade e sertão. Tudo é saudade e solidão. E, do andaime de construção, penso que posso alçar vôo e encontrar nas nuvens, a paz de coração.

Poeta amador, muito mais, bem mais de dor do que de amar, um dia eu sei, fui criança e brasileiramente, sul-americanamente, sonhador. Hoje resta tão pouco. Quase nada que, bem sei o quanto valho pela promessa desfeita. O compromisso quebrado. Das desfeitas do destino para com a própria vida. E essas chagas que jamais cicatrizam....

.......dessas coisas de fera enjaulada que, sem graça, perde o gosto do viver e deixa de ser fera. E, mal se dá que, um dia resta feito um ruminante, quadrúpede, lambendo os pés dessa gente que manda e desmanda. Comendo nas mãos. Perdida a identidade, a naturalidade do bicho na atrocidade, na profanação de todos os direitos do ser. Esse desrespeito da sociedade para com o que carece ser livre. Que, de lobo, há muito deixei-me em carneirinho. E das asas cortadas, engoli cada pena. E esse desassossego, essa revolta, às vezes raiva de cão danado que, são uns sentimentos desajustados porque entreguei-me. E hoje, cá estou, alimentando-me das sobras do Sistema. Das migalhas do patrão. Do porcos políticos boçais e senhores donos de tudo. Desses políticos estúpidos: idiotas que sentam-se à mesa e “decidem por nós, negociações”. Homens enfadonhos que, nós mesmos, por ironia, elegemos para que se transformem em nossos verdugos mais tarde. É uma porra de uma insensatez desmedida! Esse fadário, opiário de lamuriações sem fim. Como se fossemos as prestativas e infatigáveis mulheres de Atenas sobre as quais Chico Buarque de Hollanda discorreu em sua canção. Mas qual, nem de longe que nossa estupidez e ignorância não sossegam jamais. É uma atrocidade, uma violência contra o próximo que, daí é que, trincamos os ferros no saber que se trata gente feito gado que Vandré queria dizer: “tange, ferra, engorda e mata”, mas com gente não vejo muita diferença que não seja o engordar. Verbo roto e um tanto quanto amorfo para nossos ouvidos latino-americanos. Por aqui usa-se o tal como se fosse realidade. E, por Deus, eis toda a diferença! Que se vá perguntar a Taiguara dessas coisas de perseguição/perseguir “um lugar que me dê tréguas e sorria/ uma gente que não viva só pra si”. É que de tanto, se morre bebum, caído pelas sarjetas, loucos. Fausto Wolff foi quem contou-me. Se foi! E eu que de vergonha e avexamento, no mais das vezes, cavoucando mais e mais reminiscências, quiçá nem se me desse ao trabalho de lembrar de tantas desfeitas e descasos que me restaram magoando no peito dentro, a alma canora! E deu-se que, de criança barroca e de pés no chão de terra, acabei em lobo acuado, patético, ranheta e pulguento. E não? Só no bascuiá de soslaio, qualquer já se dá conta e me aponta com segurança e sabença de que fiquei atoleimado, macambúzio, mata-borrão de sede de justiça e mais, eis que, de desatento aprendiz de anarquista, pego-me encarcerado para todo o sempre pelo esquemão e o diz-que-diz que, esquerda e direita são de uma única natura porque tudo já vem dessa petulância do homem querer ser Deus e pôr coisinha de nada, botar seu semelhante na canga. Mas, na realidade, o que mais me deixa angustiado é saber a infância assassinada nalgum canto da memória de menino acocorado no terreiro lá da casa de fazenda que restou numa página virada ao avesso, esquecida nalgum beco sem saída, dando para lugar algum. Isso sim, amiúde corrói feito broca, ou caruncho dentro no fundo mais profundo da gente esgotando-se moroso e cismarento a mirar as estrelas pelo céu esparramadas por mãos diletas e companheiras desses chegantes e viajores de muitas dimensões. Aí é que está o dilema de se viver de memórias, perdido pelos ermos e de corpo, capengando no arrastar o madeiro nos ombros, sob um sol sanguinolento de cidade de concreto e cimento e ferros, erguida como quem querendo chegar às nuvens numa babilônica torre sem farol para guiar os perdidos por estas searas de nosso Pai.


 

Fragmento número quatro

 

........no mais, tudo se me parece de uma loucura só, sem par, para quem já viveu e nem se deu que, a vida e o tempo, impõem limites e a gente fica numa querência de refocilar o que já morto mas nem de todo sepulto que, mais se parece com aqueles causos de vudú ou zumbi que se desencova para vagar na penúria sem o descanso merecido de uma morte bem assentada nos conformes da natureza do Sapiente. Por isso que se tem por obrigação, a função do conhecimento na pertinência do outro lado da moeda da vida: que o que é de César, se tá cunhado, como Jesus já dizia, “daí pois, então, a César”. Que eu de menino abestalhado no pensar demasiado desde os cueiros (ou sabe-se lá se não, nas entranhas de minha mãe?), já tinha por mais ou menos (e não?), meus próprios princípios de ser, pensar, agir, viver, sentir e assentar tento nas coisas todas e fatos desta, feito um cristão, nos deveres, direitos e percalços da intempérie que se tem que labutar desde os primórdios do testículos do macho à concepção da fêmea. E não? Diga, pois, se....

Palavrões indecorosos engrossando a saliva da língua e aprendidos pelo mundaréu é que sempre fui ligeiro no soltar sem vergonha ou decoro. Falo, digo e assino porque, porra, foda-se quem não quiser ouvir que se espavente pra outras bandas. Ou no caso, se mui moralista de conservadorismo decadentoso, que vá ler estórias da carochinha que tem cucaracha com sapatos de veludo e cu cabeludo quenêm macho desmunhecado. E eu estou pouco lá e cá me lixando se a sociedade deu de ter cabaço nas moleiras e uma titica de indignação pra poder reprochar palavreado sem frescura. Tô não! Que de respeito e diligência, sem negligência, nem impor, nos respeitos devidos, sempre fui meio que arretado num vocabulário lexicográfico tanto que filhadaputa de sujeita que sai sem cancela pela boca fora que não atenho-me em negar e nem pedir desculpas por assim ser o que sou que muito me dou ao respeito para com meus semelhantes de acordo com a natureza de cada um.

Se bem não me destoa a memória quarentona, mas aos nove anos já de atirado e boca suja, levei tanta reguada do diretor do grupo escolar que, meu velho meteu-lhe o trabuco nas fuças e intimô que em filho do outros não se batia, porra! E o diretor afinou. E ai se não afina! Tudo por causa de uma intragável prova em que levei uma alarmante nota vermelha muito aquém do esperado. A nota abaixo da média e no ferver do sangue arretado da gota, virei-me para uma cafumanga da classe e tasquei em seus ouvidos que a biscate da professora havia me ferrado todo com aquela notinha mixa. Num é que a gazela perebenta de bunda amassada e cambitos de cabritinha se encorpondo não pensou duas vezes em dedurar-me para a “fessora”? Caguetazinha da moléstia. Raça ruim. Garrancheira espinhenta do quintos! Cheguei em casa todo lanhado de régua. Deu no que deu que infernizei tanto a boba alegre enchendo a bolsinha dela com os tacões velhos da classe, bosta de vaca e outras porcarias no período do recreio que, por fim, ela teve que cair fora numa transferência forjada para outra classe. Se nóis num era tudo uns danados de tripudiar e aprontar das muitas das vezes, mais safadezas que gente grande naqueles tempos idos? Ah!, se era! Vi lá meu irmão “Pelé” no galpão da escola, num chororô de cortar o coração, arrodeado de alunos e o inspetor de cinto na mão só nas ordenanças, que era pra mó de que, meu mano, plantasse “bananeira” bem ali, no cimento cru do pátio que ele estava na grama fazendo palhaçada de mau exemplo e coisa e tal e eu olhei pro mano choramingando e deu raiva das braba, de jararaca bater continência pra eu naquele momento angustiento. Fui entrando na roda já meio alterado, pra lá de e disse que não e não e finquei pé, ou melhor finquei com as quatro, feito burro chucro, arrastando meu consangüíneo das troças e abusado, plantei eu a maladeta da bananeira inda dando umas caminhadas de equilibrista nas forças poucas do braços franzinos e perguntei se o filho de uma égua tava por satisfeito de ficar humilhando criança. Daí, fui eu e o mano pra diretoria e a coisa pegou, engrossou-se o caldo porque, o diretor não era de somenos palavras quando podia aplicar a droga do corretivo.

De outras eu sei que estava de castigo no canto da sala de aula, junto da porta, olhando para a parede feito uma anta sem mais o que fazer, a cara bem enfiada na cal da parede e a classe inteira na risadinha de escárnio e a mestra lá, durona e carantonha feito uma fanchona, mulher paraíba, muito da macha mas que, era e não porque, se havia atributo nela, era o de ser muito da gostosa que eu mais uns colegas, num cansávamos de espiar por debaixo da mesa, suas calcinhas e tarraqueta arreganhada num tal de deixar cair borracha, lápis, caneta e o que mais houvesse no jeito pra agachar e demorar um tempo sem tempo pra arribá de volta na posição de sentido da carteira escolar. Arribá os dois olhão esbugaiados da racha da mestra não era assim, assim não! Custava um tempo sem fim, té que, deu aquela buzanfa toda. Puta estardalhaço e chinfrim de classe que a zoeira foi o castigo. Permaneci atordoado, de pé, feito um dromedário, um berduega, trocando pernas pra descansar feito cavalo manco dormindo em pé. E o tempo não passava e a aula se estendendo-se e o risinho incontido de alguma retardada lá do fundo irritando-me e fazendo com que eu passasse a transpirar aos cântaros. A coisa foi se passando mais ou menos dessa forma arrastada, molemolente, vexante, até que, a bexiga passou a importunar-me, deveras, de forma incontrolável. Pedi licença com educação que, isso lá pai e mãe sempre nos deram. Ir lá fora aliviar. Promessa de não pular muro e adeus porque “pernas para que as quero?” é o que sempre ocorria nas devidas circunstâncias necessitadas de soluções emergentes. Voltava para o castigo merecido sem carência de inspetor policiá que eu havia dado palavra de homem que racha mas não torna e além disso, o trem tava no molha não molha, estuporando, capengando de sofrimento feito um balão prestes a explodir na pontinha, biquinho de fimose queimando, ardendo, comichando...

Fiquei ali naquela agonia sem tino mas a jaguatirica tava com o demo no cangote, ficando pé sem perdão, sem condescendência, sem piedade, sem desconto. Foi um não sonoro, violento, de vingança em hora imprópria. A gostosona! Ah muié do quintos! Peste de ruim. Urtiga. Tiririca. Sem solução, trinquei os dentes, rangi tudo, segurando, arroxeando, suspirando que, não deu mais que minuto, minuto e meio e a coisa forçou e veio vindo, saindo, conta gotas desgovernado num jato que deixou-me mais frouxo que colarinho de palhaço, folguei e botei pirraça na obra de moleque com o saco cheio e bexiga estourando, vaziando como deveria ter há algum tempo. Soltei a respiração e a urina desceu pelas pernas e vazou e escorreu e empoçou e cheirou e, foi um estrondo de gargalhadas que somente me sai com dignidade porque virei-me, tirei o mastruço para fora e chacoalhei pra classe inteira, o que culminou numa desastrosa suspensão e um zero antes mesmo da prova do mês.

Pensei : dane-se! E convoquei minha tribo de Apaches e Sioux para acabar com o forte daqueles fardas azuis. Besteira porque, nunca que repeti um ano escolar e sequer fazia tarefa. No mais, faltava, fugia, arranjava encrenca mas eu tinha lá minha cabeça muito da boa pra discorrer e fazer prova. Me ferrava mesmo nas aritméticas que de números eu nunca fui parceiro, inda mais que tinha, com o tempo, no evoluir do anos, raiz-quadrada, redonda, cálculos abestantes de tira aqui e põe acolá um x que era igual y e não sei que inhaca de soma de quadrado do catetos dava a baitola da hipotenusa que eu sempre confundia com hipoteca do que se usa e abusa....Me pipocava na cabeça a loiríssima Vanusa misturada com a medusa e seus cabelos e os pentelhos das xerecas que o Carlos Zéfiro desenhava nos catecismos suecos. Mas, com tudo isso e mais uma lufada de desinteresse, sempre fui um aluno de chegar junto. De teimoso cheguei e até hoje continuo dando com a cabeça nas paredes para ver se consigo fazer parar essa legião de pensamentos que atormentam minha alma.

Já no ginasial, pura pirraça, fui o melhor em matemática de todo o estabelecimento de ensino e o que me intrigava é que de tão desligado, nem sequer percebi que a menina mais gostosa e bonita do ginásio, tinha uma foto 3X4 minha que, mesmo depois de casada, fumando unzinho lá com o Samuca, veio contar-me tais e eu doido pra furunfar naquela coisinha dodoizinho da mamãe que a pariu! Impressão que seria capaz de soltar o fiofó somente para refestelar-me com aquela princesa do meus calos e noites solitárias....Sei lá! E a misse punheta de meus colhões com uma foto minha guardada na tarraqueta cheia de pentelhos! Cada coisa que nos acontece nesta!

Daí? Daí que nunca fui flor que se cheirasse sem um espirro alérgico. Não por tempo alongando-se feito sair dos nove anos até aportar nos quarenta. Lobo grisalhando até cabelos do saco e ainda doido para tornar e descabaçar o que nunca fiz de sonso meio romântico e desatento. Lerdo, com tesão reprimido de paranóia que os ensinamentos nos castram porque vivem de olho nas mãos da gente criando pelo e a cara cheia de espinhas: “Seu punheteiro-pecador que nem o capeta aceita com receio de perder as pregas do lordo!”. É assim a educação sexual burrificada dos calhordas enrustidos e fodidos pelos cornos que afloram do dia para a noite ou, da noite para o dia, conforme...

Com todas essas lambanças, ainda pergunto se não era, pois, um inteiramente acocorado lá no fundo do terreiro, vendo a infância sendo apagada das memórias por causa da criação meio que conservadora e castrante? Sem referência ao jeito muito do caipira de ser e viver e ver as coisas da vida e do mundinho que me rodeava e me sufocava com seus percalços conflitantes. Inda hoje pego-me o menino acocorado lá pelos ermos empoeirados das caatingas e sonhos de porteiras e currais. E não?..


 

Fragmento número cinco

 

E foi (se não?), que nunca se dá por acaso desse tanto me entregar às estradas numa sede desesperada mas de pouca valia que tanto me perdi e vim pelas searas sem jamais encontrar prumo nos tantos desatinos até chegar aqui, feito um estropiado de trincheiras muitas, nos destroços da idade sem paz no coração empedernido por muitas que passei.

Talvez seja por isso, essas e outras mais, que se o menino sustenta até os quarenta e que se dá por pura birra o haver tantos conflitos contra o destino. Adepois, assunta lá se destino se modela e qual o tacho de barro, faz-se com as próprias mãos?! Eu é quem sei! Mas destá que inda respiro e penso, apesar de aparentemente morto, torto e já fraquejando das moleiras e “banzé” das pernas.

Que o sol ainda continua nascendo lá e descambando pras bandas do contra e tudo se transforma no constante movimento do planeta e por mais do muito que se saiba e se aprenda nesta vivência, é de pouca valia ou serventia nos tropeços e quedas que se tem que suportar à esmo.

É também, por conta dos padecimentos que se vira bicho pra, um dia, se deixar amansado. E de velho, se põe o coração de criança dentro do peito amofinado e tampouco, se muito, dando crédito nas alegrias tontas de momentos poucos que se dissipam feito sonhos cultivados pelas sendas do labutar e ser o que se é dada a natureza de cada um de nós outros.

Daí, acrescento e sustento, porque tem que se ter sustança na sustentação das idéias, atos e palavras de homem que se, no mais das vezes, nem é de bom senso aprender das muitas dessa vida pra não se atoleimá e se deixar morrer por causa de que, os que muita sapiência juntam, estão por aí, nas malvadezas de contra os mais desvalidos. Ou então, se acabam pelos hospícios e manicômios e sarjetas já não tendo controle dessa febre de espiá esse mundo pelos avesso que, Deus me livre, mas se eu pudesse acabava com essa raça feladaputa de políticos e gente poderosa nas riquezas das matérias e influências compradas que só sabem explorá e cometê injustiça, matando o povo numa tortura mais pió que os carrascos do AI-5 ou das putas das Inquisições.

Deu-se que, fiquei meio estrupiado e de tanto me vexar, lamuriento quenêm mendigo sob a intempérie, deixei tudo de lado que mal posso me confrontá com as sociedades sem me sentir roendo as próprias entranhas e pedindo pra tudo se apagar de vez e sem tardança antes que eu cometa disparate escabroso contra os preceitos das Leis Divinas. E tem gente que ainda me chama de vagabundo e fujão. Mas eu é que não me ponho de quatro encangado pra uns e outros que nem tem ciência nos orgulhos e que não passam de uns toletes de bosta em riba dessa terra.

Agora me diga se não que, essa raça queda-se tinhosa no esquecer que, se a vida dá, a vida também tira? E isso, é de valia para tudo e para todos que, ninguém é mais do que o outro por isso ou aquilo. Mas vai dizer tais filosofanças preles lá que se imaginam de Deus, arvoram-se donos do destino da gente. Irra!, que me apoquento e somente num meto umas descargas nos bucho duns fidumaéguas porque, de violência e atrapalhos, o planeta já nem se agüenta mais.

Então se espia no que foi e veio de revés de que de meus olhos já num se percebe nem sequer um restiazinha de brilho que as esperanças de eu criançola, bacurizinho, já me fizeram de muito lerdo e saracotearam escarranchados por riba feito catira nos arraiá em noites de São João. Depois, nem que eu force um de sorrir amarelando porque, nunca tive sorte com essas arcadas, se me rio numa sengraceza de mais dia, menos dia, mandasse colar duas alvas cintilantes e ainda assim, não de haver o que me faça sorrir até a morte. E veja o derramamento nessa angustia que é ter que se viver sem ter um que de nada por dentro, nos peito... Vazio feito as mentes dessa gente ignorante porque, a ignorância da sabença divina é a pior doença do ser humano e daí é que viceja o orgulho, a cobiça, a inveja, o ódio e toda uma plêiade de demônios nos interiores d’alma que carece de bondade e respeito e amor ao próximo.

Foi assim, deveras, que de menino vim vindo e vindo e acabei caindo no letárgico do sonhar e querer que, somente vivo por minha companheira e minha filha nos causos que aqui, tenho eu que honrar os compromissos que nenhum pedaço de papel impõe, mas a própria consciência de lobo espezinhado uivando e berrando mais forte e mais alto que os inimigos todos pra criar coragem e não esmorecer de vez e, quem sabe, um dia, deixá de ser sonso e conivente com tudo o que se não é de natureza nos conforme da criação da gente.

No mais, vou costurando, cerzindo essas memórias aqui, acocorado com meus lapsos de gente miúda e perecendo nas saudades cismarentas que mais ninguém pode sentir e sequer avaliar de tanto que o menino acocorado no rememorar se pega com os olhos miudinhos de águas rolando pelas faces sulcadas e numa ataraxia, indiferença, arraigada na alma amorfa pela dromomania que é um pendor para esta vida errante e que no “Aurélio” é feito uma impulsão à fuga. Mas não se foge de si próprio, pois! Por isso, nesse arrefecimento, apanho meus escolhos de náufrago e prófugo e concordo com Garcia Marquez: “O coração tem mais quartos que uma pensão de putas”. Sou mesmo um prófugo, fugindo não sei bem do que, porque e para onde......


 

As Reminiscências Da Infância De Cócoras
(Segunda Parte)

Retalho número um
O ACOCORADO

 

Ficava lá, de cócoras, observando não se sabe o que, no meio do quintal de terra socado. Pressentimento besta: treinando para cair de quatro. Criando coragem. De quatro, passar o resto da vida. Quadrúpede que tem quatro patas. Ou pernas? Ah!, isso é de somenos importância. O pai falou porque o avô havia contado que o bisavô do tataravô dos ancestrais lá das conchinchinas que, um dia, o homem andou que meio de quatro. Meio homem, meio macaco. Vê lá se tem cabimento!? Vai ver, se pastava naqueles tempos idos, hã? E seu Alcebíades ainda escarnecia:

— Se cair de quatro, sai pastando. Nunca mais levanta.

E ria às bandeiras despregadas porque, embora nem todos entendessem, faziam o jogo do faz de conta e riam juntos. Ninguém quer se deixar passar por burro. Professor de Gramática, seu Alcebíades era um caboclo arretado. Óculos de aros de tartaruga na carona bexiguenta de boldogue, tratava-se de um mestre atípico. Sempre mangando de algum lerdo da classe. Hoje em dia, nesta vida besta, nem se pode ser lerdo, nem afobado. Os lerdos a vida atropela. Morrem macambúzios, enfastiados. Os afobados, comem cru. Acabam enfartados. Pressão alta. Derrame. O lerdo é sedentário, acho. Então ele era um sedentário. Pacato. Lerdo nos modos. Até no dialogar parecia preguiçoso. Cansado.

— Famoso túnel do tempo. O balão atmosférico. Sempre no ar.—, diziam os irmãos.

Contudo, o correto seria fora do ar. Igual aparelho de televisão. Nem sei se naqueles tempos já havia essa praga. Parece praga. Pobre em barraco fodido, favelão miserável e, com antena parabólica. Um milhão e meio de canais. Globalização geral. Deve ser o governo que, tem na televisão, uma aliada sem concorrentes. Por exemplo, o livro. Ninguém mais cria e desenvolve o hábito da leitura. Nem jornais. O livro é caro e aí é que não se compra. Jornal é acessível. Só que mente muito. É igual propaganda na televisão.

Seu Alcebíades já dizia que, a tendência seria o emburrecimento generalizado das gerações vindouras dado os veículos de comunicação. Ninguém entendia bem o que ele queria dizer com aqueles patatis e patatás.

E o de cócoras, no quintalzão que tinha um casarão de fazenda; pés de milho; laranjas; mexericas; umbuzeiro; criação de porcos; galinhas; cachorros; gatos; coelhos; cobras; escorpiões; aranhas; taturanas; (de fogo, igual aos marimbondos daquele presidente que continua pensando que inventou o Cruzado. O Éder Jofre já sabia mais sobre cruzados, diretas, ganchos e esparringues do que esses políticos metidos a sociologistas da Sorborne)...e muito mais.

O acocorado mirava um ponto indefinido. Os irmãos e o pai miravam o tal. Tão diferente do outros! Vai ver, já era “Spilbergueano”: ET mirando as estrelas, o céu imensurável do interiorzão: “Minha casa!”.

Depois, nem se sabe se não seria remanescente de um daqueles “Exilados de Capela”. O Pequeno Príncipe também ficava horas mirando o espaço. Buda, idem. Dizem que Lucrécio, Alcebíades, Pitágoras, Jesus, Gandhi, Raul Seixas e o Tonhão inspiravam-se procurando coisas escondidas pelo céu. Discos voadores e outros tarecos assim. Com exceção do Tonhão que nunca entrou para a história e nem sei quem era o tal, todos possuíam tais manias.

O acocorado era quase filósofo. Ou meio. Um Platão, Sócrates, Sêneca do arraial. Via mais, acho. Balões de fogueiras em noites de São João, arribando para o céu em eterna benquerência e louvações mil. Tanto perscrutava a linha do horizonte que, algures, havia criado calos no olhar de boi sonolento, manso, triste de dar nó e dó. Pelejava no bascuiá de um tanto que, somente se presenciando incruél contenda para se avaliar o disparate. Passava pela cerca de taboca, vazava cancelas, porteiras, matas, descampados e indo, indo..de não saber em que outra dimensão pousava manso aquele olhar dolente.

No calção surrado e ralado nos fundilhos, tanto sentar em barrancões de estrada boiadeira ou campinho de futebol, o tempo que nunca passava para ele, o acocorado. As pernas e braços, cambitos de gravetos perebentos tanta macauba, gravatá, jatobá e outras frutas nativas. Bem, não sei ao certo se frutas são nativas mas para ele, o acocorado e lerdo, eram. Da mesma forma que não importava se a mula mancasse, desde que o barranco fosse na medida. Que não fosse mula sem cabeça em noite de lua cheia. E o danado do mirradinho barrigudo, ramelento, perebento, todo fedidozinho, asmático, lá de cócoras. Parecia estar cagando as lombrigas na nação, o coitado! Que não era altista, isso lá não, porque, dava-se-lhe um empurrão, pegava no tranco e desembestava a zanzar pelo mato, pelas estradas boiadeiras que cortavam as vilas Pereira e Poéra, vindo de Minas, das Gerais para Barretos, indo parar no Frigorífico Anglo daqueles ingleses danados com suas colônias, campo de golfe, clube de dança, cinema, escola e os mais que careciam os colonos, empregados descartáveis das multinacionais.

As vezes lembrava galinha chocando. Mas era somente um garoto acocorado no terreiro, perto da tina d’água mais o batedouro de roupas. Absorto, viajando sem marijuana ou “boing”, nem se apercebia o mundo à sua volta. Tanto que, lagarto verde passava sobre seu pé descalço e fincado na terra, feito raiz e ele nem se dava. Dia botou mão numa taturana que queima, veneno, dá febre e faz mijar de dor com íngua debaixo do sovaco. Atarantado quenêm e feito papa-vento, imóvel esperando troar de nuvens para largar quando pega no corpo dum infeliz. Era o que se dizia. Como era de fato que o lerdo acocorado, enfrentara caixa de marimbondos Exú. Puxa, Zé! O espavento custou-lhe uma semana de cegueira total sem poder mirar linha do horizonte para lá de seus horizontes tantos. Roubava garrafa de despacho de encruzilhada só pra vender e comprar revistas em quadrinhos. Colecionava caixas delas. Sobrinhos do Capitão, Zorro.,Família Marvel, Brucutu e tantos. Vai ver puxara ao pai com suas caixas de livros de bolso de bangue-bangue e guerra e no meio, escondidos, os “catecismos” que era para se ver xóta e tocar punheta no pasto de colonhão nos fundos do casario.

Que coisa obstinadamente sem nexo! De cócoras conheceu o mundo. Drummond, Fernando Pessoa, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, Beatles, Chico Buarque, Caetano, Gil, Vinícius, Toquinho. Constelação sem fim. Como podia? Ou melhor, porque uns lerdos desses, acabam inteligentes mas não conseguem voltar ao normal e vão tocando a vida toda de cócoras como se tivessem um madeiro nas costas? Fardo que Jesus logrou deixar? Nem Elomar Figueira de Mello explica. Nem Freud. Nem Chacrinha e que Deus o tenha com buzina e chapéu!.

— Quem não se comunica sistrumbica!

— Ó, tô comunicando que tô acocorado e divagando feito besta.

Qual o quê? Nem comunica, nem se explica. Ficou lá acocorado. Deve tá lá ainda. O menino morto, acocorado, perdido nas reminiscências do eterno porvir niethischiano. Sabe-se lá quanta água do corguinho passou por debaixo da pinguela!? O mundo girando, o tempo passando; passou e tudo transformou-se e ele nem viu. Carolina na janelas. Ponteio de viola., Catira. Festa de peão. Chão. Raiz. Coisas que nunca mudam. Ou mudam?

O que ou quem saiu do terreiro, ganhou as estradas, perdeu-se pelo mundo, foi ao fundo, desceu, subiu, trepou, caiu, vive de quatro a rezingar o menino perdido e acocorado da infância ida, consumida, largada num terreiro sem cortar cordão umbilical, cordão perispiritual de viver entre dois mundos antagônicos, sem homogenia, mas sim, hegemônico no pensar e agir diferentes e baralhar tudo no cérebro e no peito raquítico de menino franzino, poetinha da roça quando nascido em meio ao concreto da cidade grande e cheirando fumaça de óleo diesel e chaminé das fábricas e bosta de burros puxando bonde ladeira acima?

É engraçado ou irônico como o tempo passa e os acocorados, os lerdos, nem percebem que chega um dia em que passam a ser estorvos. Meio “gauche” e sempre no meio do caminho, atravancando o progresso, atrapalhando os apressados. As vezes, parecem crescidos os acocorados e lerdos mas, como afirmar se, continuam berrando “Krig-há-bandolo!” ou, “Shazam!” e sempre lutando ao lado dos Sioux, Apaches, Miniconjours? Parecem “Touros Sentados”, mas são somente “Patinhos Feios”, “Pequenos Polegares”, vagando, divagando, chafurdando velhos baús. E é assim: até que a terra seja rasgada e faz-se dela cova rasa e, daí então, diz-se “descanse em paz, acocorado”. Mas, será que algum acocorado encontra a paz, um dia? Por sobre ou debaixo dessa terra em que seus pés pisaram o pó e encardidos, pareciam uma espécie de segmento, continuação da natura?

— Disso não sei não! Por enquanto ainda continuo acocorado lá no distante, num cantinho de terreiro, mirando nem sei bem o que e ao mesmo tempo, sofrendo por ser somente estorvo, “gauche” no meio do caminho dessa gente estranha que passa apressada como que um trem, o último para o sertão da solidão. É isso, o problema de ser um acocorado, além de lerdo e estorvo, é a solidão. O duro mesmo, é a solidão. O que fica sangrando doendo dentro é a porcaria da solidão. A solidão virando saudade, crescendo e com os olhos pregados no acocorado que deixamos lá atrás, nalgum pedaço de terreiro, sob um céu de estrelas e pio de assombração que mete medo e arrepia até hoje com esta vida que finda e não onde tudo se inicia. Ou inicia-se e não, onde tudo se finda.

— Sei não!?...........


 

Retalho Número Dois:
AIOU, SILVER! AQUI VAMOS NÓS!

 

Decerto que se ia ficar na tocaia de espia pra constatar se Sara pegava mesmo na minhoca do Déde, junto à porteira do terreiro do casario! Negaceava que não e tal e coisa, mas ia.

— Por mim pode pegar. Se quiser pode até, sei lá!—, rezingava fornido pelos ciúmes a fomentar umas idéias lá um tanto quanto esquerdas e abestadas. A coroca era quem percebia meus desassossegos interiores e intervinha zombeteira:

— Pode até fazer o quê, seu hospedeiro do pasasitário nacional?—, emendava dona Maria já com umas par delas na cachola, zanzando pelo terreiro, por perto da tina d’água e do batedouro.

Eu lá ia retrucar com a velha? De besta e falta de sabença da mãe, fui o primogênito de uma carreira, escadinha de dez. A torturante escadinha dos bons tempos! Decerto, naqueles tempos idos não havia televisor. Como de fato. Ao menos em casa de pobre. E nesses conformes, dormir sem calcinhas era, deveras, um tanto arriscoso. Se dizia. E se diz até hoje, tanto tempo passado. Quero dizer, deveria ser dito, não fosse a boiolagem que assola o mundo machista da modernidade e às vésperas do Terceiro Milênio.

A velha dava uma baforada no cigarro de fumo picado e enrolado no papel de pão, fazia cu de pato com os beiços emurchecidos, desdentados e, cusparava inquirindo:

— Não tem coragem, fauna e flora intestinais de suíno? Fala, seu lambido!

— Num zucrina, sô!

— Vai aprendê a se limpá nos fundilho que cê inda nem saiu dos cueiros ainda, seu largado!.

Não sei onde a velhota analfabeta e recendendo à poeira ancestral e a formol aprendera tão complexo palavreado. Era franzina, muito corcunda e aluada feito todos os desgringolados das caixolas. Contudo, era pior que galo de rinha. Desarmava a gente ali, na horinha. Meia dúzia de frases e a gente enfiava o rabo pelos desvãos das pernas e saía pra cantar n’outra freguesia. D. Maria era porreta de arretada que só! E a gente respeitava porque, apesar das bandalheiras da caninha de engenho talagada, além de mais velha, assentava respeito de sabença.

Comumente se via ela lá, a deitar um dos bacuris no colo, a catar lêndeas dos mininus e menininhas mulher com a paciência e a doçura da velha matrona que sempre fora. Na hora do “vamo vê”, não havia passo de gente lengando pelo caminho sem vontade de cumprir com seus deveres e obrigações. Muito da ligeira na enxada, pelejando com o machado, na foice a ceifar o capim colonião, no fardo de madeira e feixe de gravetos na cacunda, no batedouro, pelando porcos, sangrando, fazendo chouriço, dando pisa nos manos, talagando cachaça que, a velha mais parecia um sorvedouro insaciável, sempre, sem pertucho nenhum pra mó de desviá das tarefas por cumprir, lá tava ela: mulher de brios e coração mais límpido que brilho de constelação para os olhinhos miúdos de todos nós conviventes. No mais, somente parava com o sol que, para ela, quem gostava da noite ou era coruja ou assombração. Aliás, assombração era o que mais se nos apoquentava por aquelas paragens e tempos que a memória forceja em rebuscar. Dizia querendo tripudiar, mangando de safado que já era derná daqueles tempos:

— Mas, D. Maria, assunta só e num bésta com o que firmo no dizer: assombração nem existe e se existe não mata gente não. Muito, dos mais abusados que se desencarnam e nem tem ciência de tanto, ficam por aqui zucrinando feito u’as almas penadas sem tento de fazer não mais que estripulias. Apois, que me diz?

— E ocê acha que tô falando do que, afinal? Quem mata a gente, senão a gente mesmo? A assombração assombra e a gente se mata. Ou melhor, no pió dos causo, se morre, seu estrupiado das idéias.—, dizia e ria um riso puro e de dulçor infantil soterrado nas catacumbas das esfingies faraônicas de um corpo que mal se sustinha.

Então não? Nessas horas é que se percebia o quanto a velha de humor inato dos bons cristãos, diletos do Pai Grande, somente envelhecem por fora, nas parecenças do corpo cativeiro de alma passarinheira.

Um dia, já muito transida e de pernas trocadas pelas bebedeiras, chamou-me pelos cantos e segredou-me em juramentação ferrenha que eu concordara com os dedos cruzados trás das costas de não sair dando com a língua nos dentes:

— Pegá, inté que a Sara pega. Mas, e daí? Vai ficar matraqueando e fuxicando sobre a vida alheia com que tenção? Escuita essa que te conselha de coração aberto.—, pinicava a velha e boa senhora, D. Maria, já saindo de banda numa caçoada que deixava a coisa sem tino porque de tanta seriedade e sinceridade quase fazia a gente chorar pra, em seguida, nem mal apagadas as palavras carregadas pelo vento poeirento, já se punha a caçoar e mangar dos mais lerdos, dos acocorados e “gauches” desta vida que, por mais das vezes, acaba desacorçoando a gente de tudo. Mesmo quando em criança.

Questão de honra que, era feio ficar purrinhando todo o mundo com aquelas falas de sonso, com tentos vexantes cerca da vida alheia da pobre da Sara, lá isso era, de fato.

Com razão, tomei tento nas falas da velha e desarretei-me de comentar vida alheia. Não mangava maldizente mais não. Bem, era o que eu pretendia o desvincilhar das maledicências da mente que cabam viltantes encontra o próximo. Tentava e, mas, cadê de dar conta? Cadê de botar sucesso nesses intentos mal convictos por falta de perseverança? Não falava pensando.

— Qué pegá, pega, merda!—, saia rezingando pelos cantos ensizudando carantonha, amontando meu Silver que eu raptara do Zorro, aquele lerdo. Escarranchado e invocado, escalpelava metade da Cavalaria dos fardas azuis do Exército dos EUA que, para nós, sangue meio Sioux, meio Apache e caboclo, não era digno — o tal exército —, de penetrar em nosso território. Também, por isso, tínhamos muitos escalpos de Comancheiros que era uma raça desarvorada e sem orgulho, vendilhola dos princípios indígenas. Tanta selvageria e desgosto que, Touro Sentado, por muito que cansado, acabava levantando-se, mugia e, paulistanamente, sapecava um sonoro:

— Dá licença, meu!.

Permanecia por ali, atribulado, desinquieto, descorçoado da vida......Da varanda do casario, avistava a porteira. O sol moroso, borra de sangue coagulando, espreguiçando-se bocejante no poente. Tafuiava-se-me maloca de taba dentro, panhando arco, flechas, tacape, minha faca de sangrar búfalos e botava ali no jeito, ao lado da rede, deitado, consultando a minha velha tábua Ouija e por irritação e desconforto, enfiava o pé no rabo do Capeto, cachorro do Fantasma e mais uns pigmeus que, não tinham nada que invadir minhas histórias e meu território.

Deitado na rede, num enfezamento ranheta, matutava se deveria ou não, sangrar o cabra da peste. Se o “macaco da Volante” vinha bulir mulher pelas caatingas, então que se vexasse porque na ponta do fuzil e da minha lapa de faca e punhais, a morte não demandava e nem mandava recado. De forma que, fincava percatas no chão esturricado, arribava um carcará ao longe restinguento, na tocaia é que mochava o fiodeu’aégua com sua farda de milicia do governo, puliça só o nosso vô que era baiano arretado e sargento de patente com cabelos nevados e cumpade de padim pade Ciço. No resto, “macaco” era volante e com ou sem Lampião, Corisco, Cobra-Choca ou Garoto por perto, a gente continuava sendo um bando de um só que dava no mesmo pra brigar uma boa briga em meio às garranchas daqueles sertões das almas esquecidas.

Lá vinha o Dedé assobiando uma moda de capiau, meio almofadinha, meio domingueiro no vestir, pentear cabelos e de butinão, relógio de bolso preso por correntinha de bunginganga marcando hora e minutos, pras bandas de cá. Passava pela velha paineira, o corpo gingando no caminhar lengado, um sorriso à caminho, de bobo alegre aluado, treinado frente ao espelho, com um picolé de limão e balinha de caramelo pra agradar Sara e deixar os lábios mais doces, sem contar com minhas indiferenças azedando a bilis e mofinando o cérebro turbilhonado.

— Destá que te boto no compasso e te faço dançar conforme se toca, desinfeliz aluado!—, regurgitei entredentes o veneno tragado e de olhos pregados no capiau que botava os documentos nas mão de Sara.

Também, que ela tinha que ser toda oferecida de se deixar beijar com a boca aberta feito uma mulher da vida, rameira desavergonhada? Eita sessão de cinema! Um tal de mão naquilo, aquilo na mão, as pernas bambeando, uma zoeira zunindo nos ouvidos e eu com vontade de esbodegá os dois de bofete nos escutadô de novela. E não é que o safado lá, no esfrega-esfrega, com as bola explodindo em dor? Tanto que voltava pra sua birosca de tapera sem conseguir andar com decência, o suor banhando o carão de ai que me esbodego todo na légua, légua e meia em passo amiudado, sofrido, rindo e querendo chorar duma peste de sofrimento ruim e gostoso de uma só té que, botava pra fora, criando calo nas mão. Bicho desgovernado! Arriscando perder o escalpo sem mais o que!.

Fosse Lucéia, minha companheira de planos imortais, insubstituível pela Lei dos Apaches e Sioux e do Grande Guerreiro, Pai de todas as Tribos, eu já tinha feito desgrameira cachorra da moléstia. Inda me continha no ferver do sangue, causo que era com Sara que o tinhoso vinha bulir. Sara era da casa, do paiol de milho, de cabaninha professora, mas não era juramentada e nem prometida. Mas era de umas ancas e maminhas que, balançava e amolecia as pernas sem mais nem menos, só na maginação. Sei lá se porca torcia o rabo ou se as bambeiras nas pernas era pela falta de aguinha que nem saía ainda ou se do frio que corria pela espinha naquela afobação irrefreável de dar siricotico e se querer morrer no regaço dela lá que já se ia pros lados da porteira com seu vestido de chita e sandalhinhas nos pés. Os cabelos molhados, o corpo banhado, rescendendo almíscar selvagem, alfazema, alecrim, gata e potranca no cio. E eu, eu sei lá! Dava uns comichão de orgulho ferido e ouriçava feito porco espinho acuado. Ouriço soltando farpas espinhosas. Garrancheira danada de espinho agulha penetrando carne macia, ferindo, sangrando. A porteira e a primeira estrela por testemunhos. Pio de coruja se desentocando; inhambu se arrecolhendo no arrefecimento e mais o chororó e as codorninhas aos bandos e as curruíras e os passopreto, tudo dando lugar pra os uivar das matilhas de lobos das matas derredor e os curiango de caminho se embodocando pelos espaços lhes reservados pela natureza, mais meus dois zoião estatelados bascuiando nos pormenores as cenas amiúdes que se suscediam. Quéde a cartucheira? É agora que boto as entranhas dum por terra. Acode que já não me pego nos meus juizos!

Fosse com Lucéia, matava na hora! E não? Ah capiau abestado de mãos macias! Ah cria pelos avesso, pisoteando as entranhas da mãe que o pariu! Bichão de parte com o capeta se rindo num riso de safado com o coração aos solavancos dentro do peito. Pai corre, me dá a espingarda, o chumbo, a porva, a buchinha, a espoleta e mais varetinha. Trancada a sete chaves caso das crianças. Que serventia num momento de precisão urgente?

Fosse com Lucéia, nem me dava conta do escarcéu, banzé! Com Sara era meio que aula visual pra se praticar no depois. Mas sempre se abusa. Capiau quando passa dos limites perde a sensatez e vai diante até fazer afronta pra moça. E, se passando dos limites, pras bandas de cá da porteira do tempo, invade meu território demarcado. Aí, ninguém me segura. Se atiço o “Baião”, dá em riba que Dedé se fode por inteiro. Baião dá de cima e faz estrago. Seu Tião, compadre do pai que o diga. As duas patas no peito do homem, só esperando ordem pra completá danura mal cabada. Não fosse mãe raiá com o animal, seu Tião passava a noite vendo a arcada dentária do bitelo bem alí, olho no olho. Isso não é pastor alemão! É um pônei de avantajado! Arre! E o Dedé com aquele bisnagão futucando a Sara bem no meio da pentelheira?

Tem coisa que bole com os princípios da gente. Ah!, isso lá tem! Tanto que, ajoelhado por detrás do monte de achas de lenha, com minhas bolas de saibro de munição, o estilingue, o bornal, acabei esquecendo-me completamente da missão de emboscada e reconhecimento do inimigo. O vestido de chita aberto mesmo ali. Botão estrategicamente cerzido. A bisnaga trincando bem no meio, buscando a toca feito cobra cega. Roçando afobada e eu no coito já não mais cangaceiro ou apache ou sioux. Mandando tudo pros quintos dos inferno.

Foi quando Sara começou a escorregar, roçando, se ajeitando de costas pro bruto que se lhe amassava as corcovas gêmeas do peito em flor e as mãos baixando cheia de dedos, buscando caminho até que......

Té que, ela arribou uma perna descansando na primeira trave da porteira e aí eu vi! Vi porque a grama tava desprotegida de panos íntimos e a sucuri parecendo garrote na marrada, às cegas, buscando esconder-se e tanto deu marradas e futucou de cabeça que abriu caminho lanhando, rasgando, se escondendo e foi e voltou e tornou a encabeçar com uma fúria e determinação que só ouvi um ai seguido dum gemido meio abafado e suspiroso que me peguei em pecado mortal de tapar com viseiras os olhos para não ver o estrago feito e o sangue correndo moroso pelas pernas......

Bem, se fosse com Lucéia, eu havia feito o diabo! Agora, com Sara, isso não que, D. Maria podia ser uma velhota que bebia, baforava seu cigarro fedorento, catinguento e zanzava pelo terreiro de um lado para outro, miudinha de bisa que era ancestral mas, sabia tudo da vida, do mundo, e, sobretudo, das gentes todas.

Agora, sei lá, quando Sara passou a embarrigar e o capiauzão passou a frequentar o alpendre da casa com um baita alianção no dedo, é que me vem o remorso. Porque foi justamente no dia que se fazia em noite, naquele episódio da cobra que, o inimigo invadia território inimigo e que eu de tocaia, acoitado, deixei de cumprir com a missão e descobri que, finalmente, com o frio na espinha, juntinho na justeza de tudo, que se me vinha aquela aguinha rala, querendo virar leite viscoso que cobra regurgita quando entra por rachadura e boca vermelha de cabelo mijada. Além disso, terra Deus deu foi à todos com igualdade de direitos, sem demarcações, limites ou fronteiras. Aprendi.

Passo pelos dois ali no fazer planos que Sara já, prendada por natureza, costura cueiros e o capiau tá no batente feito um doido varrido pra juntar economias e comprar os tarecos da casa que Sara merece. Passo e dou uma espiada de soslaio, enviezado no olhar. Os dois observam-me cúmplices, sorrio e ganho as veredas montado no Silver que é o cavalo que roubei do Zorro, aquele lerdo e, toco pra casa de Lucéia pra guardar o terreno que um dia ainda transformo em propriedade nem que seja para enfrentar todos os regimentos de cavalarias e volantes deste mundão de Deus!.

Aiôu, Silver!—, porque, de tonto, tonto mesmo, somente o coração dentro do peito franzino de passarinho, viu D. Maria?!....


 

Retalho número três:
O NÓ DA QUESTÃO

 

O caboclo fica ali, se amofinando, escarafunchando na memória, num rebuscamento sem tréguas, anuindo para o ninguém com a cabeça já desbotando. Mais pelos percalços que pela idade, na ânsia de encontrar uma saída; saber onde o quisto tinhoso do erro cometido; da situação degradante no ver as criançinhas todas sem um amanhã, com os vazios sem um que de gororoba nas panelas para espicaçar a medonha que dói enquanto os patrões lá, refestelando-se feito uns porcos chafurdados nos lamaçais.

De um lado para outro, espezinhado, sem dignidade de gente humana. Querendo e refugando botar tento em idéia e proeza quando se faz justiça com parte metade em conclúio com o demo que, só se vendo um cristão trabalhador encasquetado numa situação da desgrama pra se saber o que é sofrimento sem atinar nos porques de tais e coisa e loisa desenxavidos são uns tantos de terninhos e gravatas, com falas amaciando nas horas de pechinchar votos que até prometem pedaço do céu e dão de troco a própria genitora nos casos de faltar um Xís pra assentar poder e depois?

É como se diz de um cristão dos bons viventes destas paragens, que nunca se lhe dê esmolas, apois sim que, ou se lhe mata de vergonha ou acaba por viciar o cidadão. Vai e labora daqui, peleja dacolá capinando e nos finais, acaba frouxando os músculos do querer, entregando-se ao desespero, à maledicência, à bebida, até finar-se nalguma sarjeta ou pelos vezos dos campos feito bicho quando se dá por vias de que chegou sua hora. Tudo uma bosta só! Uma desgrameira desatada que não há paciência e nem sabença que se agüente tanto aborrecimento.

E parece que não mas, desgraceira de pouca monta é bobageira que vem de gole em gole feito fel em gotas contadas. Melhor cair tudo de vez pela cacunda e se vê no que vai dar. Quando se pega no descompasso de pé-ante-pé com uma praga por riba d’outra feito urucubaca mandada desgringola tudo e aí não tem um que pra dar jeito nos reveses que se sucedem feito contas de rosário. Um nunca chegar-se à termo os defeitos e ajuntar-se que as moleiras já dão de variar e só se mais complica e não se encontra-se saída. Tem nada não!

— Destá praga dos quintos!.

E o caboclo bate o olhar abotecando de ódio, de boi muado causa dos pequerruchos mais a companheira e sente no sangue fervente uma coisa ruim, uma danura sem preceito na sengraceza e já se lá vai de volta pro terreiro, acocora ao pé do moirão, desfeiteado, assuntando a espiar a paisagem caatingueira, então, rebusca o fumo, a palhinha, canivete, binga e desdobra-se pelas veredas ressequidas e empoeiradas. Os zóios miudinho, numa tenção de se alagar, escalavrando nos peito as mágoas tantas, que umas baforadas, té que caem bem. Amirando formigão com folhas às costas, cuspara e erra fazendo uma bola vermelha de terra de chão repisado e esturricando. Enquanto, o sol muda de posição.

O que dói: é o alarido lamentoso das crianças. Ah isso lá magoa de um tanto que! Se não foi cadela, galinha, caruru, tanajura, nambu e té mesmo lagarto pras panelas ora vazias? E não era de se? Mas até cobra tá tinhosa de arisca. A seca num estirão malvado afugenta mais que assombração. É um Deus-nos-acuda que só vendo! Se ficá teso, parado, urubu cai matando. Cacimba d’água nem pra remédio. Assim que se aparece uma ave agourenta, passa-se-lhe nos chumbos, que munição ainda tem um bornal, vai pros vazio das crainça. Mas qual! Se nem dessas pestes trazendo agouro se encontra pruessas paragens?! Vai ver esses coronéis, mancumonados com a raça safada desses políticos abestados, mandou fazer limpeza de tudo que é bichos do céu e da terra só mandando poupar umas saúvas pretas, mandacaru de pouca monta, uns diabo duns matos espinheiros, garrancheira, lacráia, e capitão do mato. Quem vai tocaiar umas cobra dessas? Jararaca, urutu cruzeira, cascavél? Tudo bicho ruim! Tatu, nem peba se lhe dá. E os forro que relampeiam e se espargem e adeus que chuva nem carece. Parece birra!.

Mas a trama de pauta com as misérias todas é, deveras, esse bicho roendo, pinicando dentro, no sustentar idéias esquerdas e espaventadas. Sorumbático, lamurioso, o caboclo se magina passando aqueles lá, crias de cadelas rampeiras, nos ferros. Essa é que é!

Vontade de fazer estouvação e arribá por ai, caí nas marva. Sangria desatada de porco de colarinho engomado, apois não? É no que mais, se tretêm as divagações. Capiau quando mordido, se invoca e não preza mais nada, dando com muque e marrada em moirão, levando cerca, saroba, quiçaça, cipoal, chumbo e ferro de ponta nos peito dilacerado pela vergonha e pelo sofrimento. Isso é que é! E os féledaputa num botam tento que tão futucando gata pintada com vara curta, sendo que, o papão tá acuado e, de macho, escumando baba pelos cantos da boca, arregaçando as presas numa afoiteza de soltar o bote por sobre e estraçalhar os coiteiros rescendendo a espavento de galhadas, zombeteiros du’a peste!

Vixe, seu mininu, se não cresce por dentro do cabra uma labareda no não tem fogo-pagô que apague, tanto a murrinha que, revira em febre terçã e s’ispalha por todo o corpo de formigamento té a nuca? Daí o desmolambado sem medo de cara enfarruscada e tanta velhacaria se volta lengando nuns passico mole sem grande valimento quando se escarseou de tudo nas despensa sem ter um como recursar mais e mais encasquetado, enfezando de formas tais que, num espavento só rodamoinhando, solapando dentro, já se vê pondo termo em tanta judiação.

Todo vexado, não é que o cabra se esgueira pra um canto desassossegado e as criança tudo sem trégua que dava u’as vontade de esbordeá, soltar uns safanão, sopapeando a escadinha? Por via dessas, hai uns safardanas que se intrigam com os pobrezinhos e desconta nos inocentes! Esbodega os cacareco da casa, escorraça e dá de tresvairá té cabá numa alegria de aluado sem mais recuperá os juízo.

Mas pra capiau que cumpre seus assento, num paga inocente por descaso de coroné nem político. Nem azuá os seus. Vai aquilatando os solavancos, medindo nos conforme e se dá que, decisão tomada num se volta tráis de fasto que, palavra ou tenção de home rácha mas num vareia. Portanto, sem mais, se conteve nuns preparo dos petrechos que a mulher botô reparo conhecendo seu companheiro e sentindo uns pressentimentos abestados de que, dali não saía coisa boa não. Tanto que arrastou conversa de apascentamento, com umas ramas nas panelas e coisa e tal que, manhã era-se outro dia. Ele só escarvando o chão de sertão restinguento, anuindo que sim e que não, porque inda gorica mesmo tinha topado lá com uns casal de anum e que dava em tempo de fornir as panelas, caso botasse um pé pós outro no rumo certo.

A companheira desconfiando daquele desconversado de gente desarvorada que muito do pacato quando a natureza é virá um bicho fera com o caldo engrossando. Desses, ela se amofinava, num se pode descuidar nessas horas. E o caboclo nem se dava que, forniu bem a espingarda c’ôa munição, panhô facão e bornal, os óio estirando de um para outro dos capiauzinho e té logo que se tô me indo.

Foi. Voltá, necas!. Manheceu todo carcomido de carabina e um lapa de buraco de projétil de chimite treisoitão que, os capanga e a jagunçada de mando do coroné Barduino num espiantaram as ordem mandada. Logo que o caboclo se achegou coitando e, d’uma posição de privilégio, carcô fogo nos vazio d’um político abestado que só fazia dá risada abancado de junto de uma mesa, talagando u’as cachaça e petiscando pelanquinha de leitão mal encorpado. No acode daqui, refrega dacolá, descobriram o baita e fizeram o serviço.

Cuidaram de untar as cissuras todas lá do tal político mas o marelento deu de esgarzeiá os óios e botá sangue pelas beiça inté que se finô quando mal se chegava doutor Lourenço um tiquinho tardio.

O causo correu pelas veredas e se deu que se tinha porque, de ajutório um home não sustenta família e nem bota brios nos seus pequenos. Inté se fala de literatura de Cordel por via desses sucessos que o capiau Norberto ficou conhecido pra tudo que é canto e cantado em tudo que é feira. A companheira só não perdoa aquela desconversa de casal de anum mal explicada que, parecia que seu finado, tava era querendo mangá lá dela antes de acometê a danura. Aí é que tá o nó da questão.


 

Retalho número quatro:
LUA SANGRENTA DO MEIO DIA

 

Com aquela lua, lua sangrenta do meio dia do sertão, houvesse cacunda pra suportar que, o astro rei, nem carecia de tanta rudeza que, sem parcimônia, acabava fritando os miolos dos viventes todos cá deste chão esturricando que, fazia um estrago inenarrável assim no palavrear, palrar desconexo.

De modos que, dos muitos casos, repetiam-se de um tanto que, nem para guardar-se de memória, na acuidade, se mais dava. Se não se dava-se que, pelas invernadas, uns bois nelores, catravos e zebús se desmilinguindo, estrunchando-se pelos pastos restinguentos, dum tanto que, confundiam-se com garranchas e poeira meio que avermelhadas e duns tons de muitas Eras perdidas.

E não se dava que, nos conformes, aquelas desgramas de aves agourentas se vinham se chegando, avoândo em círculos concêntricos, baixando de altitude, cada vez mais próximas e, nem bem os ruminantes novinhos mal sustendo-se nas pernas, com as ancas e traseiros que só pele e ossatura, se vinham para a vivência desta e já lá estavam entregues, agonizantes, à morte.

E os carniceiros punham tento de um tanto no realizar proezas dos quintos que, dava um dó tanta danura feita, pois. Era de assuntá naqueles causos porque aquelas aves agourentas davam num rancar de olhos, puxando nos bicos recurvos, disputando as entranhas dum infeliz ainda nem de todo passado desta e, Deus me livre!, desdobrando-se a agonia do vivente nas dores e aflições daquele sofrer sem tino. Isso lá se via muito pelas terras dos confins do interiorzão sertanejo de lua sangrenta do meio dia!.

De tanto se via que, o fardo se abrandava nas rotinas e retinas enfastiadas. Era com criação ou gente de almas e coração; cristão contristado pela seca, fome e desgraceiras que, parcas, era de somenos.

Criancinhas, menino homem e meninazinha mulher então, nem se me fale no azougue de tenção que, é perdido e sem conta os causos dados. Eia pois, que se abanque e nem se véxe pra ouvir destas lamúrias sem pecar bambeando nas bases dos cambitos, sustentáculos de corpo mal fornido. Nem tampouco se agonie dessas e outras que, somente quem já presenciou os tais, com os olhos marejantes que a terra e bichos um dia hão de comer é que, pode criar calos e rusgas na sabença do contar a doideira de degrameira que hái nessas paragens.

Tanta porqueira que nem criança se poupa ou se deixa safar. Pega no espezinhar, derná de o vir ao mundo, té o finar-se para arribar pros céus que, criança, se não tudo anjo, então não existe tento no sofrer já nas entranhas progenitoras.

Assim, nos conformes destas, os perebentos, ramelentos, macérrimos feito uns mindinhos de dedos tão pouca as carnes recobrindo ossos e por baixo das peles amarelecidas e esbranquidas de marelão dos daninhos causados pelas floras e faunas intestinais dos vazios em meio às costelas à mostra, bem nos intestinos que, as bichas tomam conta e não escapolem somente por baixo, pelo cu das crianças, mas por cima, no dormir sobressaltado dos espantos, elas lá, se esgueiram-se pela boca ou pelas ventas, num disparate que, sem propósito, acabam levando uns tantos quantos engasgados e sufocados.

Isso tudo quando não, daquelas tais taênias, solitárias que, vão escarafunchando os vezos dos bacurizinhos por dentro, solapando feito barrancos salobros que, no mais, dão de botar umas oveira parasitária que chafurdam num alastramento pelos órgãos que, acabam desembocando pelo meio dos miolos e danando a se infurnar cérebro adentro que, uma vez aí, não tem reza nem benzeira que acuda.

O bacuri dá de ficá troncho, aperreado, macambúzio, lerdo que só lá se vendo a desgranha da coisa aprontada. Mesmo porque, lerdeza causada por esses bichos tinhosos e imundos, é uma coisa triste que só! Diabo vexante pra os pais que, vendo seus bem-querentes debulhando-se pelo quintal a espernear num esgarçar de olhos, escumando pelos cantos dos beiços feito cachorros avariados pela raiva; num retorcimento dos pés à cabeça e aquele acode não acode por causa dos espasmos que danam em resultar num desespero de sofrimento que somente Deus lá sabe. E vá lá que é um “nos acode meu JesusCristo” porque, nessas horas é que se apega o desamparado e sem valia, nas forças do oculto, rogando como se não bastassem os lapsos de memória, o torpor no pensar divagando lento e criando um vezo, velhacouto de habitar mundos apartados dos demais seus iguais lá!.......

É desses conhecimento, causa desses tais que digo que, somente quem já presenciou proezas tão esquerdas do destino mofino, espezinhento e desconforme para, não se chocar no botar reparo nas lágrimas que tantos cristãos já debulharam no padecimento desta, ora benventurada; doutras, nos mais das contas, de um tanto que, muita da ingrata!.

Coisas lá da infância de um lerdo acocorado que me espicaça ´té hoje, nos termos da velhice se chegando meio que dorida na desfaçatez de u’a existência que se me foi legada, penso eu, mó de fazê registro dos tantos percalços e fatos d’outras naturezas correntes pelos sertões e ermos carantonhos.

De fato e sem mais tardança de rodeios nas falas, já narro o sucedido da Vila Pereira em Barretos que, muito me estropiou por dentro que, carrego cá comigo pra debaixo das terras com fins nos propósitos de perquerir lá do outro lado, pra quê umas coisas dessas, sem compaixão, descalabro e tanto desatino? Ah!, isso lá questiono e que me arresponda um lá porque, não sou de carregar fardo de injuriações sem saber os porquantos das desfeitas nem dos homens meus iguais, nem do Pai Supremo e Senhor de tudo.

Mas, dizia eu, assim meio que mais arrodeando, no que vou botar sucesso assentado e sabido que, foi fato acontecido naqueles tempos de infância ida nos causos de uma criança, bebezinho ainda de seio, que se finou cumas passagens adversas e de muito pouco conhecimento da medicina e daqueles que se põem-se a atestar que o paciente, já moribundo, tá finado no desengano de que, nem carece perda de tempo com o gastar atenção e medicamentos mas, recomenda-se a alma muito que bem que, o corpo, somente merece tento no translado para o casario, com tenção de se esmorecer definhando pra que, as alma, se despreenda da matéria, tendo ao lado, os seus!.

Vai daí que, não havia médico de competência comprovada e, muito de menos, quem se arriscasse a botar tempero naquele causo enfermiço. A criança se desgranhou — Deus me livre pelo só lembrar! —, foi se murchando, definhando que se transfigurou numa coisa sem cabimento (vê lá!), e já com as peles garradas nos ossos, miudica de nada, no colo da mãe, mais parecia (cruz em credo!), um saguizinho inerme de olhinhos esbranquiçados a espiá do outro lado da vida como se amirasse “a véia da foice” a se lhe acenar zombeteira.

Hoje se sabe o nome daquela coisa ruim que é um tal de mal de simioto, de símio, doença de macaco que, sem licença, nem se adesculpando, se chega, vai desfigurando, desmilingüindo no tresnoitá inté que, só resta um bicho em lugar de criancinha de colo nos braços da mãe. Daí, se toca benzê, despachá nas encruzilhada, botá sustança em promessas mais variadas que, medicina, famacêutico, desenganam logo de cara o mirar o fardozinho entregue, dado como já ido, nos braços amorosos de quem deu-se-lhe à luz.

Da promessa, se me lembro, os cabelos alongaram-se num espichamento de ouro, feito milho sob os raios de sol, resultando numas caras rosadas e, meu mano, arribou de um tanto que, se tornou-se num homenzarrão bem fornido, encorpado, sacudido e nas graças de saúde, regalias de bondade e riso ancho.

Bem se dizia nos ditos dos mais idosos e de sabença de pauta com o Bem que, “os causo é que, se um vai, outro se chega e vem e acaba por aqui se abancando no criar raizes té o bascuiá os termos da velhice”. De acocorado e lerdo, prendi a botá tento nas falas dos mais vividos que, no sabê ouvi, é uma das virtude das mais carecentes de se praticar. E foi tal qual se lhes confio nesta porquanto de fiar-me nas reminiscências que me fiz presente naquele velório dos mais sofridos que um num caixãozinho que mais parecia um caixote de madeira das muito ruim, todo encovado, chupado feito caroço de manga que, mesmo morto morrido, parecia de zanga, cizanhando com a vida e os presentes. Dá uma coisa ruim e um pertucho por dentro só no lembrar que penso, essa coisa de ficá rebuscando contecimento ruim nas memórias não é de bom termo, não!.

Agora, já nos causos do mano, mãe que é mãe, escarva o chão do sertão, das sendas e ermos, severosa com o destino, aquilatando os solavancos do viver malfadado e se injuria com tais judiações mesmo praquelas brenhas enfarruscadas e, mãe bota sucesso na labuta com desdobramento e sabe-se lá, se não, um cadinho de revolta pelo tanto sofrer sem explicação?!.

E assim foi, mãe praqui, pracolá, meio aluada, vexada dum tanto que, numa noite de sexta-feira, pelas horas sombrias no cantar da coruja e de muito mau agouro, sangrou-se uma galinha encorpada, das pretas de terreiro criada, lá, bem no pescoço e se espargiu o sangue pelo corpo mirrado e ressequido do mano.

— Arreda pé, diabo dos quintos! —, pensei comigo nessas e outras sentenças de expurgamento, feito qual e tal nalgum exorcismo.

Pensei sem sonoridade porque, me arrepio e me benzo três vezes no quando vi e, me vem na visão agora, uns bicho desmolambados e nojentos começaram a botar as fuças pra fora, saindo de dentro do corpo, pelos poros da pele do corpo entregue do mano e a mulher lá, só benzendo e passando uma navalha como se fizesse barba ou raspasse porco pelado em água fervente. Simpatia mais besta de gente aluada mas que, pra expulsá o capeta dum vivente, só se tendo laços com tudo quanto é santo e entidades de valia. E foi de um trabalho estafante, no esfalfar de correr a navalha pelo corpo todinho, com cuidado, pinchando aquelas coisas nojentas que pareciam bernes em animal que já nem se me alembro se num cabei, de cocorado, tresnoitando ou deixando-me levar pelo sono e cansaço. Se curou o mano ali, na horinha mesmo, não posso firmá palavra de fé. Que sei é que, nas incompetência da medicina que desengana e descarta o que desconhece, mano taria noutras paragens hoje em dia. No entanto, naquele se apega daqui, destrambelha dali, mãe continuô foi é se indo em tudo quanto é lugar. De médico passou uns tantos. Farmacêuticos, mulhé rezeira, simpatia, macumba, um fardo de taréco que nem me alembro mais de tanto.

Dessas, no dobrar das horas sombrias e já mortas, é que me escarvo, cavucando nas memórias de lerdo acocorado. Dessas e d’outras judiação de lua sangrenta do meio dia do sertão de restinga é que meu coração, feito uma criança, ajoelha e se pega na flição, encafuado e lerdo, lengando feito retirante sem forças, estaca pelo meio e se me põe de cócoras a aboiar os sonhos e assombramentos das lembranças que, por vias de meio azoado que já ando, já nem se me dou de rebuscamento e coisa e loisa pra garranchar, sem safardanismo, tantos apuros e danuras dum tempo de antanho que é um jamais se findar-se!.


 

Retalho número cinco:
AMOR DE RINHA

 

Tomei peçonhas, mas de ficá gasturado, desgostando e mais ainda do muito cismoso por vias duns sucessos que se deu lá praquelas bandas de muitas estradas poeirentas dos sertões de Barretos. Encasquetado, de cócoras, esgravatando o chão do terreiro ressequido, muito do moroso, ouvia o escarcéu. Um diacho de coisa estabanada lá dos quintos que, pai de cabeça gacha, muito jururu, só ficava corujando vê no que ia dá tanto espavento.

Alembro bem dumas passagens meio adversas dum lazarento que, de tanta muqueta nos pé da venta, por tiquinho, não estrupiava a companheira. Era um sortimento de palavrão, num descalabro e sopapo no comedô de lavagem, bordoada, escoiceio, que, a esfola, a refrega, num findava em coisa das boa não. Mormente, a estrupiada, cabava carregada de charrete té a cidade, num estirão só, pra sê medicada e, nas muitas, costurada feito um bicho, causo dos ferimento que, lanhavam a carne de tanto que, o estouvado masgalhava-lhe a mão de sopapo que a bichinha saía de catacavaco indo dá de fuça na cancela do quintal vizinho ao nosso.

Peste de homem ruim tava ali. Sujeitinho tarracado, de parmo e meio, de vento virado se dizendo de trêis bagos no saco e que, sem tardança, nem remedo, lido e treslido, na sua malevolência de tribufu, dava no primeiro que, se arremetesse nas suas diferenças para com a mulher que, ninguém tinha nada que vê e tal e coisa, num falatório engrolado que fastiolava qualquer vivente ou chegante para assuntá o sucedido. Pai era, deverasmente pacificioso, de ceitá forria sem ficá remorseado com o que cada um fazia da sua e nem de se tafuiá, ensofregadamente, nas diferenças alheia. Não obstante, pai sim, lido e treslido, de muitas culturas e estirões pressas brenhas, além duma inteligência desigual, com denodo mui, se assentava arrenegando tais contendas e, resignava paciência que, em vida dos outros ou desavença de marido e mulher, num se mete colher. Mas se percebia que, suarento, pai ia se desgostando daquele sujeitinho beócio qual bicho sem preceito.

A coisa ia-se, num falar sem destampatório, m’ei que debochado, soçobrando sempre em polvorosa. E a polícia pasmascenta, só notava nuns papel de folha sem valimento algum, uns poucos nomes de testemunhas, horas e coisa e tal, pra, nos finais, dar em coisa alguma. Já encafuado se babando-se enfarado, o dito, largava-se num sono de estremeções e repios de caboclo encangado de muitos espíritos trevosos enquanto a polícia se ia, inútil. O povaréu se espaiava desjuntando. Pai se arrecolhia e, dava por encerrada aquela duvidação rançosa nas falas:

— Desconvenho, mas esse abestado tá precisando de uma tunda e das boa!

— No devortêio é que, esses acometidos vão sê pesado e bem pago.—, dizia mãe, já meio fegante, asseverando e anuindo que o capiau era muito do carnegão, boca suja e parvo.

No dia seguinte, do terreiro de casa, dava pra se adivinhá o mal assombro da pobre nos seus gemeres de dor e padecimento. D. Maria, já trocando nas pernas, pitando seu cigarrinho de junto do batedouro, chiqueirando porcos ou fazendo ringir o sarilho da cisterna, punha truculência nas falas:

— Tunda, ou vicia, ou fastia! De modos que, na meremerência lá dela, apruma e assunta que, taboca logo estraleja acometida de ódio. Dá-se que, dia desses, acaba indo pra riba do abusado numa refrega que, finda em morte. O cabra fica jazido ali e ela nem remorseada tem carência de se pegá, apois!

— Deverasmente e sem tardança, uma boa refrega bem que o disgramado carece. —, anuía mãe de em posse da bassora de piaçaba.

— Tão não?. Fico em vias de tê um tróço o maginá Tião se abestando pra riba d’eu com tenção de espancamento. —, assentava opinião D. Dijanira, mulher do compadre Tião.

Enquanto a muierada proseava desembestando nas falas, eu mais Cotô, Estenga e Carlinho macaco, de curiosos, a gente morgava nas galharias do umbuzeiro frondoso, butucando o casebre da vizinha esbodegada que, pobre, té hoje não sei o nome. Nem dela, nem do marido algoz e safardana. Mas a empreitada pouco se durava porque, a gente já ia logo se desentendendo:

— Vai caçoar da espancada, conto pro seu pai.—, já arrotava o Cotô, negão dedo-duro.

— Vai enfiá sabugo no cu, parmente com seus mais chegados, sujeito sem brios de homem!—, redargüia eu, já pegando ojeriza daquela converseira sem pé nem cabeça do Cotô em ficá naquela vigiação pra, por coisica, corrê me entregá pro pai.

O disgramado sabia que a vara de marmelo comia de marcá as pernas. Aí me encasquetei daquelas mutretas e fui atrás de murunduns, pé-de-pau em que trepar, lengar pelas estradas e pelas matas só pra ficá bem de longe do esmolambado. Dava de cipó de aroeira na cacunda daquele aparvalhado, mó de vê se parava de caçá no meu rastro e de me grudá feito visgo e carrapato estrela sem precisão. Eita, diabo dum negão safado da gota! Bom mesmo, só pra fazê arapuca pra pegá codorninha e pardal e puxá inchada nas empreita de café.

O Estenga, no apoquentamento, sengraceza, se ensizudava, descia do umbuzeiro com jeito danado de custoso e ia fazê senvergonhice no paiól. Cada um prum lado, dando encontroadas feito bode velho, nas idéias e sentimentos aziagos e sem gomitório que desse jeito de tirá o mal estar das entranhas que, se enfronhava causa das desavenças. Carlinho macaco, já trotava ao longe, descambando pra casa, mó de lê gibi. E, apesar de num sê coisa que se fizesse, no fundo, no fundo, nas maginações esquerdas, a gente só ficava esperando o dia s’ispriguiçá pra, no cair da noitinha, assuntá as desavenças do casal do lado.

Bem da verdade, credito que a vizinhança toda já (coisa mais besta, sô), tomara gosto por aquelas tripudiações circenses de início de noite. E não demorava muito não que, mal o sol se punha, lá vinha o desgranhado trançando as pernas, cara ensizudada, os petrechos de carpina nos ombros, a moringa de água que, nóis postava que nunca vira água senão, daquela que matou o guarda e que passarinho num bébe e no que cruzava o porteiral, a sarabanda já tava mei’ caminho andado. Entrava soltando os braços nuns cascudos e pescoções que, diacho, ninguém entendia!. Vai vê o fid’ua égua gostava de espancá e esbordeá. Mais de ruim era se aquela lambança toda não era coisa de gente pervertida das idéia. Vê lá se tem cabimento u’as coisas dessas?. Num tem. Mas, muitos espalhavam que era tudo de combinação e que ela lá, a mulher, gostava de entrar nas bordoadas e sentia prazer naquelas proezas desnaturadas. É uma coisa de se pensá muito bem antes de botá pra fora do comedô de lavagem porque, maledicência de tais, Deus inté castiga. O fuzuê ia se dando. Noitinha pós noitinha. As bordoadas comendo sorta. Os berros de “Me acóde, Jesus, que esse hóme inda me mata. O bruto me tirô sangue!”. E o chororô parecia novela de rádio.

A vizinhança té pelidara aquelas porqueras todas de: “Repórter Esso”, “A Voz do Brasil” e outras tantas. Única diferença é que, todo mundo ligava o rádio pra ouvir, sem botar tento numa única palavra do que o rádio ia gomitando. Já, a audiência do casal “Rinha de galo” andava batendo na única televisão da Vila Pereira, instalada no bar e mercearia do “Boa Vida”, donde a gente costumava se juntar pra assistir porcariada, chupá picolé feito em forminha, comê pé de moleque e contá causos de lobisomem e mula sem cabeça.

Vigia cá, pois, no botá tento, se num dava para casquetá os miolo com aquelas idéias parvas e esquerdas de que a tal mulher té viciara de entrá no porrete? De tanto que, causo um dia o tal sujeito não se lhe esbodegasse de pancadas, a atordoada capaz sentisse falta. Mas tais divagações sem tino, não passavam lá de especulações. Tanto que, no restante desta história que se deu de fato, vô botá sucesso e sustento cada palavra da tal danura corrida.

Noitando numa modorra tal o mormaço calorento, pós um dia dos muito dos velhaco, pai num mofinamento sem medidas em seu escritoriozinho da granja, lendo um de seus muitos livros de bolso, aperetivando uma caipirinha de caninha de engenho com limão galego e açúcar mascavo pru vias de num se deixá batê pelo desespero, causo que uma peste cabô matando todos os pintinhos de uma lanhada só que nóis só assuntava no de longe. Nos causo do pai em quando nervoso, melhor mesmo era campeá proutras bandas. Se perdia as estribeira, dava-se que, severoso que era, nem mandava recado e nem botava adiamento pra escangalhá com os que na reta.

De fato, tava lá, no sossego, espaireando as purrinhações dos tormentos quando, sem varêio, a baderna se deu na casa do vizinho, indo num crescendo de palavrórios e berros e “acódes” e “salve-mês” que se escutava de léguas. Contésse que, o endemoninhado do marido da mulher lá, já saturado de disbrituí sopapos e bordoadas naqueles solavancos rotineiros, limentou nas idéia de botá termo na novela; cabá de vez com a lenga-lenga e, de posse dum cabo de machado, rumô pra riba da companhera no “Vô te matá, sua vaca”, pós pinchar a fulana dum canto pra outro numa variação de muqueta que só se vendo pra creditá.

A mulhé se arribou custosa, mei que tordoada e viu o cabo do machado nas mão do marido. Madeira de lei, tréco pesado que, numa porretada só, desancava um boi de botá o bichão muado e largado, pedindo pra se finar-se de vez. Foi daí que ela se apercebeu-se que, se lengasse naquela hora, era uma vida sem valia. O abestado prumô o cabo de pau, amirou e, na primeira bordoada, escangalhou com a mesa da cozinha. A mulher saiu de banda sem muito entendê mais aquela, querendo dá no pé, as perna faiando sem sustantaça, o desgranhado crescendo-lhe à frente e, quando ele baixou os braço, ela se alongou e ganhô a porta do terreiro e descambô pro meio da rua num griteiro e o cabra atrás, se aprumando causo da cachaça, rumando nos encalço da outra e aquilo foi tormentando nos ouvido e nas vista de um tanto que, dava nos nervo de qualquer cristão de paz. Acho que foi por isso que pai bufô e mugiu e se alevantô e meteu o trabuco nas cinta e, sem camisa, saiu pro terreiro, passou pela cerca de arame de farpa e se foi pro lado do caboclo que tava em vias de mandá a mulher pros quintos com uma porretada daquelas.

No que pai se meteu-se no alheio, a barafunda tava formada. Foi daí que, mãe correu pra de junto da cerca com uma lasca de madeirama que, no mínimo, dava u’as três da que o parvo do desajuizado trazia consigo. Nóis só ali, assuntando no que ia dá toda aquela buzanfa degrenhada. Nisso, a “espancada”, vendo o pai, fiou-se em seu acudimento e se mandou para o lado do velho e atarracou-se-lhe pelo pescoço num papeiro que só. Pai bestô que meio atordoado, sem sabê mais o que fazê, meio lengando no tomá atitude na mergência enquanto, o baixinho troncudo se vinha rumando e bufando de cabo de machado em riste:

— Mando os dois pros quinto é gorica mesmo!—, bradou confiante e escarvando o chão de terra feito boi tinhoso i’antes de se arremetê de contra o desafiante.

— Vai mandá o cacete!—, foi o que ouvi o pai trucá naquela hora para, logo em seguida, ato contínuo, num empurrão medonho, mandá a acudida pra um lado, livrando-se daquele fardo e apreparando-se pra desgranhá o bichão que vinha.

A outra, a “vítima” nos causo, foi estatelar-se de perto do pé de paineira, se acomodando em seu tremer e debulhar-se em lágrimas quando, botei tento, pai saía de lado que o desgovernado já tinha arremetido a primeira bordoada que passou triscando as moleira do velho. Caso disso, nem deu tempo do pai sacá do trezoitão na cinta. Foi quando mãe se revelou de todo valimento que um companheiro carecia naquela hora de necessidade extremente. Sortô um berro de índio em pé de guerra e jogou o porrete que pai panhô no ar. O estrugente que, já tinha se aprumado, arremeteu de vorta e amirando no cocoruto do pai, nem se deu que, mais uma vez, tinha perdido os rumo e dado com o cabo de machado no vento. Aí foi uma, e mais a segunda pra botá termo na labuta. A primeira que pai deu, pegou justinho nos costado do enfezado. A segunda eliminou a tribo dos inimigo: a cana do braço do sem rumo virou uma paçoca com a cacetada. O besta largô o cabo do machado e grudô na cana do braço escangaiada e de cabeça gacha ficô alí, atarantado, esperando o gorpe de misericórdia. Parecia um frangote acovardado com cara de sofrimento dorido e arrependimento causa de botá tento e querê assentá no que não era. Se amofinô cordato com a perda de dono do galinheiro e a gente também naquele esperá sem fim.

Pai baxô o porrete, virou-lhe as costas e passou por todos, indo de vorta pro seu escritoriozinho, como se nada daquilo tivesse se dado. Mãe foi tráiz pra mó de vê se pai tinha percisão de alguma coisa. A salvada se ergueu-se aprumada por umas muierada que rodeavam com pena daquele fato desavergonhado e vexante enquanto, o galudo, saco de três bago se amontava numa charrete e tocava pra cidade. Poliça nem se deu ao trabalho que, vai vê, se cansou daquelas purrinhação de casal desentendido.

Pra nóis, molecada, foi contecimento de se trinchá no vará da noite, baixo da paineira só pra tirá dúvidas dos movimentos, dos apreparativos, das fintas de corpo, das bordoadas e de quem tinha levado vantagem no confronto. E, no mais, era sanar aquela curiosidade de acocorado, lerdo e, sobretudo, filho do único que tivera coragem pra encará a besta fera da vila. Tanto que, apesar da gente se assentá na espera do esculhambado e molambento, o desgramado só foi parecê no dia seguinte, já com o sol se rindo. Vinha lengando pela estrada de poeira como quem nunca quisesse chegar-se, comiserando-se da auto-piedade de si, pós untar as cissuras do braço na tipóia e com gesso novinho que, dava té gosto de sê o primeiro a “tografá” que, nos causo, adespôis do pai, eu tinha por direito. O desenxavido passou por .nóis que, nos contivemo e, acabamo poupando o safardana de uma sonora váia de perdedô da contenda causo que vinha macambúzio, atarantado, cabeça gacha de perdedô vencido.

Após todos aqueles fatos ocorridos e registrados pelas memórias de um lerdo acocorado de fundo de terreiro, era de se colocar termo em tais, uma vez que, reduzido à frango de galinheiro, o bicho papão, espancadô de muié, a novela havia perdido toda a graça e ninguém mais tocava naquele assunto sequer para maldizer vida alheia. Tanto que, os dois, meante os fatos, baixô a crista e se assossegô em seu vezo, devéras.

E o tempo se foi, meio que num estirão, custoso de passar; lengando, canso de um nada de novo que, chamasse a atenção dos viventes daquelas brenhas. Daqueles ermos sertanejos da infância ida. Danado de custoso, dava aquela gastura contrafeita; no torpor e modorra que, a gente acabava se encasquetando num tal de agourá que, por vias, Deus té se zangava arrenegado. Gosto travoso na boca, olhar de parecença com tição de fogo sem mais, a mulher do tal pareceu toda pestiada de molambenta, parecendo acometida por danuras e de pauta com doença ruim dos peito, entisicando, aluada, fegante, pinchando gravetos e torrão de barranco e pedras por riba da cerca que, me sustive té no respirar e, vê lá se ia permanecer ali, feito um aparvalhado frente àquela tresvariada que, mais se parecia com assombração? Dei nas canelas batendo calcanhar nos fundilhos da bunda e fui baixá noutra freguesia. D. Maria foi a primeira a botar tento no meu jeito desinquieto e perqueriu:

— Tá parecendo que viu o Tinhoso de meia-noite numa encruzilhada, seu lerdo.? Desempaca de vez, sem ficá rodeando. O que conteceu?

— Sei não, mas alguma coisa conteceu com o casal do lado.—, arrisquei ainda atoleimado com o que vira e com o que minha mente de malassombrado podia processar e no presumir o que poderia estar acontecendo ou, por acontecer.

— Quantas vezes tenho que advertir que em vida dos outros não se deve ficá campeando pra não encontrá o que não se perdeu?—, rezingou D. Maria, já passando um pito meio estrugente pra meus ouvidos.

— Num tava.—, arrespondi entristando, sem querê dá corda pra alongá a especulação.

Mas, D. Maria aquilatou as palavras, sopesou o soçobrar das informações recebidas e sem mangar d’eu, tascou:

— Cê num é um desses bichos sem preceito que sei. Tão conta o que de fato se passou pra evitá cativeiro de idéias mofinas.

E não é que D. Maria sempre sabia como dar um jeitinho de, rancá de dentro da gente, por mais truncado que se fizesse ou, se botasse nos temos de aluado ou esquecido, o que desejasse? Apois, vigia cá se num se chegô, foi cocorando junto, do meu lado, sacou da binga, acendeu o pito, deu uma baforada longa, cusparou como de costume e, pôs-se na espera, amirando meu semblante como se estudasse meus pensamentos.

A velhinha era danada na perspicácia e paciência quando, encafifava que, tinha que conseguir rancá de alguém, determinadas informações ou confissão. Mais esperta que padre ou policia de governo ditador.

Escafedia-me com os pensamentos divagando e, os olhos bascuiando na plantação de milho. Mesmo assim, ela não redava pé e, continuava guardando numa competência de botá sucesso nas proezas que se lhe pertiniam. Té que, descorçoei e fui detaiando o que vira. Por fim, acrescentei:

— Deve de tá duente, acho.

— É...parece que coisa boa não deve de sê. Mió se apartá. Bascuiá de mais de légua que, com essas coisas de gente meio aluada, num se brinca e nem se espera que sorte venha dá jeito. Arreda pr’outras brenhas mas não fica de redor da casa daqueles lá!.

Anuí que sim, balangando a cabeça. Pelo olhar de D. Maria, percebi que não havia afiançado no meu concordar e, se foi rastando as percatas pelo chão de terra, rezingando com seus fantasmas e conselheiros de guia de além vida que, ela tinha bem uns par deles. A véia tinha. Causo que vô era vidente e contava que nóis tudo tinha um protetor de além desta. Já D. Maria, tinha os seus guias de proteção dos muito iluminados, que tavam o tempo todo em derredor dela lá, dum lado pra outro. Vô dizia que ficam conselhando e ranjando-lhe as idéias com tento de ser, cada dia, mais caridosa e das cheia de paz e serenidade.

Do que vô disse, certa feita, perguntei se não tava mangando porque, se D. Maria vivia tomando umas cachacinha, pitando e soltando umas palavras cabeludas, como podia de sê que, tinha guia de luz?. Aí, vô explicô com detalhes que, era por meremerência e que, ela mesma, D. Maria, era de sabença e de valores muito bem aquilatados do outro lado. Disse té que, quando dormia, se retirava do corpo físico, “fardo velho por carregar” e, do outro lado, se ia pra trabalhá e fazê de tudo um pouco por parte do Bem, com Jesus no coração.

Lá creditei? Num ia falá pro vô que, causo era tido herói por todos nós, escada de manos que num se perdia a conta, causo da convivência diária e das purrinhações e diferenças que, mormente, se destrambelhavam em porcariada de palavrões e brigas que mãe botava fim, com vara de marmelo e tunda em cada um, por ordem de idade.

Bem, ali se pareceu-me que o caso se dava por encerrado, já que, de minha parte, continuei acocorado por muito tempo evitando chegar perto do quintal do casario daqueles dois lá. De parte de D. Maria, como era de se esperar, deveras, não saiu-se nenhuma palavra sobre o ocorrido, então?.....

Então que, passaram-se mais uns dias desassossegantes causo do marasmo e da mesmice té que, numa manhã em que o sol já se espaiava banhando ramas e capim ressequidos, ouviu-se uns berreiro de rupiá té as almas. Mesmo porque, pelo deduzido e constatado, os clangores haviam-se assomados da casa, feito uns bichos malassombrados que dão de se mostrá pelas horas sombrias, em lugares ermos com tento de assustá uns tantos cristãos despreparados para estes acontecimentos.

Como de fato, foi-se o que se viu e se deu-se no que tinha que. Por isso, té hoje credito que deve de tá registrado na memória daqueles que se foram chegando, especulando e, sobretudo, biservando com os olhos que um dia a terra há que. A mulher danou-se a berrar, errando pelo quintal de um lado para outro toda ensanguentada e com uma lapa de faca na mão que, olhá, todo mundo fazia questão, mas se chegá de perto e sabê dos contecimentos, isso lá não que, não havia bicho desmiolado pra botá assento em tais proezas.

Quando a polícia se chegou, uns numa furreca véia, outros de cavalo marchadô, espaiando o povaréu todo e de armas empunhadas, arrodeando a doida com a faca e se rindo e chorando tudo duma vez só é que, viu-se que, de aluada e adoentada das moleira, mais parecia uma criança. Se deixou-se dominar sem botar resistência, entregando a arma, braçando soldado, rindo, brincando num jeito de dar pena e dali, direto pro hospício. Sobrou que nóis sabemo, foi o cadáver, morto quiçá, pelas estocadas sem conta de faca. Jazido lá, na cama, o defunto todo encolhido, pelo jeito, sequer soltara um ai de implicância com seu destino e se foi desta pra outra sem ver a luz do sol e pagando, deverasmente, as judiações e desgrameiras todas que havia botado proeza até então.

No mais, as mulheres rezeiras que se lhes contem o restante que, se não me falha a memória de acocorado e lerdo de fundo de terreiro de quintal, aquela alma contrafeita, deu de vagar pelas paragens e, vez em quando, empedernido o coração, encontrava o casario pra mó de fazê arruaça como se ainda tivesse vivendo cá na terra, parmente com a mulher e no meio dos encarnados todos. Nem petece contá que, custoso foi, enfiá no cocoruto do desgramado que, nos causo de querê encontrá paz, tinha que pedir perdão e perdoá e, no mais, era campeá pr’outras brenhas porque, lugar de finado, num é tentando quem tá cocorado ou laborando com a vida de junto de batedouro de roupas, conforme D. Maria botava sentença quando se tocava naqueles fatos encafuados nas lembranças.


 

Retalho número seis:
DA NATUREZA DO SERTÃO DA INFÂNCIA

 

Das muitas coisas do sertão da infância que, por natureza, tinha seu não sei lá o que de encantamento, tal qual estórias de contos sobre causos de assombração,lobisomens, mula sem cabeça, saci-pererê, bruxas amontadas em bassouras avoândo pelos campos, almas em perdição carecendo de missa e preces muitas, despachos de encruzilhadas, o homem do saco que passava pelas estradas panhando criancinha pra fazê sabão, cachorro variando causa de doideira e que a gente, uma vez tacado e mordido pelo tal, tinha que tomar u’as par de injeção ao derredor do umbigo, folia de reis que, no encontrar das bandeiras e louvações que tomavam o casario todo numas cantoria de fazê gosto, inda se vê té hoje, sopro de cobra pinchando bafo de a gente ficá todo pintado, sucuri engolindo boi, coruja piando de mau agouro na cerca do curral, uma das que mais me deixou espaventado e rupiando só no pensar, foi o causo de uma cobra das muito das tinhosa que, té hoje, no bascuiá de lembrança, inda busco um convencimento para tal. De formas que, se não foram de montoeiras minhas aprendizagens, de tão poucas e sem muito conhecimento ou valia por u’as carretadas de caboclos, é que não se pode aquilatar ou, botar termos tais porque, se já não há mais confins, ermos, paragens e brenhas no que compreende os sertões caipiras neste Estado de São Paulo — causo da migração e dos progressos e monoculturas que rancaram raízes de famílias inteiras, deixando para trás só saudade e sofrimento no lembrar—, por este país sem igual nas dimensões e diversificações de terras, cerrados, caatingas, matas, aluviões, rios, restingas, secas, alagados, serras, montes e muito mais, sei que ainda existem muitos ermos em que, caboclos, sertanejos, capiaus, paus de araras, capinadores, roceiros, meeiros, jagunçada e gente de sangue regado pela simplicidade característica do nosso povo, continuam na lida do viver com tenção de, jamais deixar-se esmorecer ou apagar-se da história, os fragmentos de suas contribuições. É por isso que, tais naturezas, por força deste destino, continuam fustigando-me as memórias e os causos que entrelaçados são marrados por nó que jamais se desata, assentando sucesso sem termos de jamais se findar-se feito que parecendo as próprias narrativas.....

Mas, como dizia eu, causo dos mais escrabosos e que inda hoje me aperrêia e ao mesmo tempo, me entrista sorumbático, é dessa tal cobra de pauta com coisa ruim, credo em cruz!. Mesmo porque, nessas estremeções e ressabios, carpindo o medo que, desconvenho, narro sem açulerá e pelejando com as palavras que se me gasturam pela malsonância. De rupêio em rupêio, lengando erroso, custoso no botar sucesso e assento, nem me deixo de carantonha, nem me toco fegante por tão pouco. Vigia então se, não era de, ensofregadamente, pinchar pra um canto trevoso das memórias, u’as porquera dessas e me guardar encafuado no silêncio?. Bote tento, pois!.

Deu-se que, Dolores, menina-moça ainda, briosa e de muito respeito, causo sua criação, de muito denodo e candura de bondade, era companheira de um caboclo matuto. Desses de se virar na lida, escangalhando-se no cabo de uma enxada de, antes do sol nascer com o cantar dos galos, até no descambar no poente. A menina Dolores, num repente, fez-se mulher e engravidou, mal botara aliança de casamento. Pelos nove meses corridos e bem contados, deu à luz, um capiauzinho dos mais arrelias, esbodegando-se no choro de ‘morto de fome’ e no borrar os cueiros agitando-se todo, feito quem tem sarna nas popas sem ter como coçar.

Eita! que, o capiauzinho do Zé Gomes, era uma criança de meter inveja em muitos pais!. De beleza, puxando pra mãe, formosa e sacudida; no agitado e desinquieto, era quenêm o pai. Cuspido, escarrado e conferido no bater de olhos e se botar reparo nas energias do danado que, não desgrudava (feito carrapato estrela), dos seios da mãe. Mamando de se estrupiá, arrotando, regurgitando, soltando vento e se esperneando todo.

De forma que, era só contentamento naquele lar onde ‘o Divino’ abençoara com José João — José era causo do pai e o João, da parte do avô paterno —. Assim ficando, sem nem mesmo batizar e passar resgistro em Cartório que, era caso de premência e não, alegava o pai. Duas coisas que se ia protelando por falta de tempo e de tento.

De tempo porque o fardo, para os dois, era dos pesados. De tento porque, mesmo as muierada fustigando que, a carecência era das mais severosas da igreja no batismo e crisma da criança que, assim protegia e demovia pecado original. Dolores retrucava enfarruscando-se que, não apetecia o desvario de tanta correria no que se podia esperar.

E foram se espichando os dias que, mais fizeram-se semanas até que, em pouco, era transcorrido mês ali, no sem mais, nem menos. Acontece que o bebê José João, já não era o mesmo. Se via que. O arreliado, prumoso e de muita saúde, deu de se aquietar, marelando, mirrando adoentado. A mãe refutando e refugando das idéias e pensamentos avessos, emboramente passasse a viver de rixa e apoquentos com aquela duvidação rançosa. Chamada na chincha pelo marido que se apercebia daquela situação meio adversa e que, do dia para a noite, deu tento que, a casa passou a ficar pejada daquela gente sem nadaquefazer, comadreando conversa desatinada e malsonante e, já se lá via, nos causos de ter que, por força das necessidades, desfeitear escorraçando com as palpiteiras de uma vez por todas. Isso lá, Zé já vinha de há muito encasquetado, evitando na sengraceza o que lhe mazelava as idéias e a alma. Mas, no dobrar das horas sombrias, já canso da contenda, tomou decisão resoluto que, de tanto espavento, vinha até sofrendo de insônia. Tinha que ser, pois tinha, ara!. Os primeiros solavancos caíram mesmo sobre Dolores que, “sequer botava tento que, aquelas comadres tavam era de caçoada, maldando deles!”. Abriu destampatório no falar zangado, com tenção de esbordear, sopapear, desfeitear, cativo de suas próprias aflições.

— Tão é mangando da gente e zucrinando com tuas idéias.—, afirmava o José, simplicidade sertaneja e sem malícia.

— Você já tomou foi peçonha, ojeriza, Zé. Ninguém vem aqui com tenção de mangar da gente não, ô bicho trevoso!.—, apascentava a mulher.

O cismoso fazia-se de lerdo, ralhava, entristava, abarotado por ojeriza que fincava-lhe raizes e sem tato, nem sequer especulava o porque de tais, já querendo danar-se pelas veredas erroso feito um bicho. A mulher via a cizânia feita no coração empedernido do companheiro trôncho e apaniguava:

— Muitas, um conselho, uma prosa de nada.. Ou então, mó de ver Zé João e se oferecer pralgum préstimo. ’ce conhece essa gente, homem de Deus!—, trucava Dolores que, à exemplo do filho, também já não era a mesma e de olhos abotecados, faces encovadas, ia perdendo o viço d’outrora.

O capiau continuava com idéias de escorraçar aquelas comadres fofoqueiras pelas brenhas e se apaziguar com a mulher e filho que, mais uma semana trescorrida, haviam piorado feito gente com doença ruim que, médico já ia desenganando num assento de olhos.

— Desconvenho mas, isso tem que ser campeado de forma tais que, se ponha fim nessas coisas parvas de futricas. Quem não desgosta dessas desgrameiras, pois?.—, resmungava Zé em seu apoquentamento, saindo para o terreiro, indo picar fumo no cercado dos porcos, atrepando-se numa trave de madeira rústica. Aí, dava raias ao mofino das idéias e pensamentos que se lhe vinham estrugentes na cabeça, como se fossem bordoadas de trovejos e aquele ‘tum-tum-tum’ da dor que crescia, encorpando, refocilando por dentro que firmava de um tanto que botava o cabra zoró e pronto a cometer besteira.

Para ele, o que vinha se sucedendo era coisa ruim. Não bastasse a toca da lavoura, num ano de pouca valia, coisa de quase nenhuma monta... Lavoura temporã de milho. E concludente butucava com aquela idéia parva de que o destino tava era maldando de seu coração simplista, de homem sem prumo nas sabenças desta vida mofina.

Enquanto aquilatava os solavancos, Zé deu de esmorecer meante aqueles fatos que grassavam feito mato rasteiro pela lavoura. Solapando a alma, feito bicho sem preceito em barranco salobro, despencando tudo por riba, fuzuando de estrugente sem nem carecer, causo de tirar conclusões adversas em antes e parmente sofrendo por antecedência. Desarvorava só no imaginar perder o prumo em recursar o que escarseado nas despensas que, caso endoidasse, saía erroso pelas brenhas e veredas dos confins, a babar de rezingar com os fantasmas dos mortos jazidos de corpo, mas vagantes de almas.

Isso tudo se lhe passava pela mente mofina, ia entristando, deixando a enxada, pinchando pro lado a marmita e talagando no gargalo umas canas brabas. Por fim, já derreado da zoeira que a cachaça causava-lhe, acabava mangando da própria desgranha no tornar-se cativo dos ressabios e medos desta vida custosa.

A companheira, tantas e quantas explicações sem vingar, acabara de cara enfarruscada, espichada e largada na cama, sem forças pra mais. O menino ao lado, mirradinho meante os fatos e acontecidos, no comparar do que fora e no que restara. E mais, aquele bando espaventado cizanhando vida alheia?. Aquilo sim, era coisa do tinhoso!. Sondando e campeando o insondável, Zé tornava-se severoso para com tudo e com todos especulando: Que tinham que ver com vida sua?. Que se botasse tento na casa dos quintos e deixassem ele mais a mulher e o filho em paz porque, na visita do pároco Venâncio, com aquelas conversas malsonantes de castigo de Deus e o raio que o partisse, causo não batizassem o menino no sem demora do já-já-que, pagando nadica quase, pela salvação da alma e o livramento da família de coisa pior que, era visto e sentido, estava por acontecer. Foi quando Zé perdeu a compostura e acabou escomungando padre e igreja, escarvando o chão de terra da cozinha simplezinha e apertada.

Umas conversas de gasturá paciência que, era coisa que Zé já não alimentava de ter mais. Daí, perder as estribeiras, de picuá abarrotado de tudo. Apois assunta que, deu de ralhar até mesmo com o menino, causo parecia sororoca, murmúrio de moribundo largado e espichado na cama, já entregando a alma sem lutar; de mal com a vida e a sina que Deus dá e petece cumprir, pois não?!...

Não via e nem botava tento quem não quisesse ou não tivesse bom juízo e têmperas assentados que, naquela casa, ‘a véia da foice’ já se abancava no intento de levar logo três almas de vez para as profundas. Isso pregavam não somente as futriqueiras, mas afiançava mulher de certos poderes de rezas e mandingas de terreiro. A coisa ia, deverasmente, se espichando, virando sururu, carnegão na sina daqueles três viventes metidos em cafua, tanto desgosto e mofinamentos passados. Deram de viver de caridade contrafeitos, cansos, sem sustança de corpo e idéias tanto devortêio que, tavam era em vias de ter um troço causa daqueles lazarentos de pauta com tantos agouros.

De boa esfola é que careciam aquelas peçonhentas!. Bastasse de malevolência. Por isso, Zé labutou com sua resignação, carregou espingarda com chumbo, buchinha, socou bem, caprichando na pólvora, cuidando assentá espoleta e se aquartelou na janela de frente pra porteira do terreiro. Arfante, no ouvir o vozerio e arrastar de alpercatas daqueles tribufus de saias, mal e mal se sustendo nas pernas, deu no gatilho e foi chumbo pra tudo quanto é lado. Fuzuê no corre-que-pernas-pra-quê, com poeira levantando no rastro e os vultos tudo se sumindo pelas sarobas e quiçaças no lá-longe. Disso se ria prazeroso o Zé que, chegou a ficar com os olhos marejando de tanto. A mulher nem se lhe dava que, para ela tanto fazia como não. O menino ruinzinho ali do lado, pedindo somente para descansar, preso pela metade às carnes do corpo mirrado e mal fornido.

Tudo isso e mais, pensava Zé, era coisa de olho gordo e tanto escarcéu de entra e sai pelas portas dentro e uma palração sem termo que, injuriava gasturando... Vai ver se não?!. O menino era um baita capiau de botar inveja, não era?. Então, não era pra desconfiar e botar aquela gente toda pra correr?.

O menino febrento e a mulher se “toxicando” dumas porcarias de gomitórios lá que em nada acudia na doença. Os seios murchando. Pele e osso. Um diacho de coisa ruim que, Zé se zangou de uma forma tão rancorosa que, deu de variar num destampatório de conversa com sabe-se lá quem ou o que via no seu nada-ver de sujeito aluado e sem valimento algum pra sustento do lar.

Masgalhava folha de boldo nas palmas das mãos, já pelas horas mortas e sombrias, pelejando com aqueles dois lá, entregues à Deus, o menino sugando manso, lerdo o seio já de — todo-quase —, sem o que quando, à luz do lampião, Zé viu a sombra esgueirando-se pela parede. Descia do caibro rústico do teto da casa, fazendo curva em repartindo-se em duas, uma enorme cobra.

Mesmo jururu e aparvalhado, Zé não se mexeu. Deixou como que encantado feito bicho abestalhado pelo poder no inimigo na hora da morte. A peçonhenta desceu a cabeçorra por um lado da travessa e o rabo pelo outro. De manso, feito enfeitiçamento, meteu o rabo na boca do menino que, mal se alarmou e continuou mamando sem mamar e, a cabeçorra, de boca escancarada, baixou no seio exposto da mulher, sugando-lhe as últimas gotas do leite já consumido.

O coitado do Zé pegou-se mirando aquilo sem ter como acreditar no que via, nem de como se levantar do banco ou que atitude tomar. Ficou tempo sem conta, olhando fixo a cena. Então era aquilo?. Mas o que era aquilo, afinal?. Lembrou-se de passagem que se contava pelos sertões carantonhos de causo parecido porque, pegou-se com a mente embotada, estiolando-se, dificultosa no pensar. Mas tinha lá sim, um causo desses, da tal cobra. Se era encanto ou não, isso já era de somenos importância naquele momento de tensão e apavoramento custoso de manter a calma. A foice bem ali, no esticar o braço e, de um salto, Zé decepou-lhe bem perto da cabeça que, antes de separar-se do corpo, mirou-o com dois olhos avermelhando, os dentes muito miúdos, com leite respingando com sangue por seu braço.

No mais, acudiu de tirar aquele trambolho de riba do menino em antes que, no contorcer-se, acabasse fazendo danura com o capiauzinho. A mulher despertou malassombrada, sem um que de discernimento, pensando em sonhos e pesadelos. Zé apanhou a bichona, estirou no terreiro e fez picado. Não tinha dentes com bolsas de veneno. Pinchou a cabeça pelo mato. O mesmo fez com a parte do rabo e, o resto, picou, arrancou o espinhaço, limpou as entranhas, do couro fez bornal e da carne, ensopado. Foi daí que a mulher arribou, criou sustança e voltou a viver. O menino, criado com leite de cabra e papinha que já, voltou a criar vida, arribando devagar, moroso, tomando cor e nunca ninguém soube do caso. Nem o filho, nem a mulher porque, o Zé, coitado, passada a peleja da desforra e do susto, o choque foi tamanho que, deu para variar que, quando via minhoca ou fio de corda pelo caminho já se desgringolava e se espavoria todo num carreirão sem fim que, vez em quando, um compadre lá — batizaram o menino, afinal —, somente conseguia trazer o abestado para casa era no laço e, bem laçado.

Dia disseram o nome da tal tinhosa lá, numa roda em derredor da fogueira, após causo contado, mas, de tempos que rebusco, escarafuncho pelo baú das reminiscências sem ter como de lembrar. Que o causo de deu, afirmavam que sim. Tanto que o Zé, quando em vez, parecia lá pelo terreiro do casario da fazenda, caçando cobra ou fugindo delas, numa maledicência de contra o pároco Venâncio que, o ouvinte que conhecia a história, já ia logo pensando que, o maior culpado de tais, não poderia ter sido outro senão... Pois cê veja como são!....


 

Retalho número sete:
JAGUNÇO

 

Se praquelas bandas não se corria risco de ser vítima “tocaiada” com bala de fuzil nos costados?. Eia, pois!. Então que se vá “bascuiá” as histórias, trinchando passado de tempos idos e soterrados feito boi solapando beira de barranco salobro!. Tinha que, afirmo e assino em sob o que narro. Somente de “jagunçada” que, fazia de tirar vidas inocentes a mando de coronéis e senhores de terras, profissão sem preceito, já nem se dava de contar mais. Tantos eram que!.

As coisas se sucediam de tais que era botar tento e fazer comparação com tempo de cangaço de contra a captura que era lá uma polícia do governo e, somente não era tal e qual porque jagunço não faz serviço parmente com outros. Gosta é de vagar de “déu em déu”, sem rumo pelos sertões e vai que vai no atravessar paragens, confins, estados e nem tem sossego de dormir em paz.

Muitos, causo das vidas tiradas em tocaia, com o passamento dos anos impetuosos, de bichos valentes, acabam frouxando nos miolos e dando de variar meio aluados e desconfiados de tudo. De tais que, um farfalhar na mata, na restinga, já tá, de um salto, com armas nas mãos ou de crucifixo, mó de espantá almas vingativas, implorando por justiça no arrepender-se e suplicar perdão pelos desregramentos.

Conto que sei. Seu Tião, compadre lá do pai, é quem firmô palavra. No mais, o vô que, sargento da polícia da Bahia, correndo atrás de cangaceiro sem nem ter tenção de matar gente que, aquilo era coisa que não se fazia por nada neste mundo, de espiá e botá reparo num caboclo que baixasse praqueles cantos, já tinha radiografia do sujeito prontinha, tal e qual. Dizia: “esse não é de pauta com coisa boa, não!”. Severoso que era quando carecia, botava carantonha, enfarruscava os cenhos e já se ia resguardando pé na frente, outro atrás que, a “mauser”, um diacho de arma alemã, ainda valia-lhe nas horas de carecência.

Avô era assim, bom que feito um bichinho de estimação. Mas, tinha lá seu sangue de baiano que, fugia à pachorra e, requentava nas veias, ensizudando e tomando peçonhas a ponto de meter logo um balaço nalgum abestalhado. Não era tal qual pai que, por coisica de nada, já apanhava seu trezoitão num alarde espalhafatoso de que nego ia engolir chumbo e, na hora, acabava ferrando no braço, dando e levando que, era macho de encarar bicho brabo de mãos limpas. Causo contado, sustento palavra que, conforme já disse, sei. Além que vi com esses olhos que a terra há de um dia, u’a dessas pragas de jagunço se achegando, batendo palmas com toda educação e respeito, adentrando, pós a porteira, o terreiro do quintalzão lá do casario da infância.

Até que, à bem da verdade, modo de dizer, não era lá daqueles que pareciam do tipo cruel e sanguinário. Ferrabrás e tinhoso como se costumava pintar e lorotar pinchando prosa sem conhecimento. Veio vindo, espiando, se chegando nuns passos lengados, com ares de “marelento abatido”. Olheiras que se via quando tirava o chapéu da cabeça gacha e chata. Com denodo, esmero, amiúde, cumprimentava até os cachorros da casa. Sujeito mais estranho aquele!.

Era dia de matança de porcos. A casa pejada de gente. Os “chegantes” espalhando-se pelo terreiro, acudindo nos preparativos; pinchando conversa fora e a molecada tudo em derredor. Querendo e não, ver a matança de sangria desatada. Tinham dó.

— Se tem dó, arreda pé, pois que, nesses causos de destempero da alma, o bicho grunhe, berra e fica se estorcendo num agonizar sem fim. Difícil de se entregar-se!—, explicava seu Tião amolando as facas no fuzil e nas pedras próprias.

Coisa que, nem se gostava; nem desgostava causo que, parecia dia de festança. Pai botava moringa na sombra. De água, nem pra remédio. Cachaça de engenho que, os homens iam talagando em antes, durante e no pós trabalho.

A água no fogo, fervendo. A mesa era pra quase vinte metros, lavada e atulhada de petrechos carecentes para as tarefas exigidas. Adepois, vinha o pelar os bichos, lavar, limpar tripas, cortar pedaços, separar carne e banha, fazer chouriço e aquilo, mal o sol despontava madrugador, já se ia pondo mãos à obra e espichava-se até o crepúsculo, mergulhando pelas horas mortas e sombrias, sabendo-se lá, quando dava-se por encerrada a peleja na lida, tanto que fazer!.

O sangue brotava aos borbotões com os bichos dependurados e devidamente sangrados baixo do sobaco, com a bacia de tacho aparando e se enchendo do líquido avermelhado, separado para o chouriço. Seu Tião, sangrador oficial dos arredores, se desdobrava com o suor correndo-lhe pelas faces brilhantes de neguinho de metro e meio mas, de força pra dez, enquanto pai mais Dedé, acudiam daqui e dacolá no desossar e limpar, juntamente com as mulheres, espertas naquelas tarefas esquerdas e de judiação para nós, crianças. E a coisa, uma vez começada, ia que ia. Avô só espiava da cadeira de palhinha, à sombra do umbuzeiro, mascando nacos de fumo e cusparando feito pato quando caga. Se ria manso, dócil, feito um menino a divertir-se com a balbúrdia e o espalhafato da peleja. Decerto, no seu tempo, as coisas eram meio diferentes?. Vai saber, hã?!.

O pai levava na canequinha, um bom trago da cachaça que compadre Tião tragava num gole, sem fazer careta, mó de disfarçar das mulheres. E, não é que, insuspeito se firmava que, parecia que estava era tomando água mesmo?!. A gente se ria que, as moscas, bichos asquerosos e folgados se vinham e pousavam justo na cara concentrada de compadre Tião que, num tabefe se esbordeava sozinho, deixando a marca do sangue estampada. Por fim, riam-se eram todos. Até mesmo a avó e os cachorros pareciam mangar de compadre Tião com suas façanhas e proezas estabanadas e de muitas alegrias transmitidas à todos.

Ali pelas dez da manhã, já de carreira e sem-tréguas naquela labuta, mãe anunciava a hora da bóia. Lavava-se cacunda, mãos e caras num escarcéu que só vendo. Sujavam a água das bacias de alumínio e da tina, que era motivo pra mãe mais Dona Dejanira e Dona Maria se enfarruscarem e amargar o toucinho que era pra os abusados e abestados deixarem de ser folgados e safardanas.

A bóia nem se assentava nos vazios dos homens e eles garravam, pós um cigarro, um café, nos afazeres sem fim. Era também, nessas horas que a cachorrada disputava entranhas e coisas pinchadas fora. Baião e Baía mandavam no terreiro e davam coça em um bando de vira-latas que apareceria nos dias de matança de porcos. Caso era que, botar ordem na casa, com tantos cães, era perder-se tempo precioso e deixar de lado as refeições merecidas. Baião e Baía eram de raça nobre, dos pastores-alemães muito desenvolvidos na altura e no corpanzil. No fim, a coisa andava e aquietava um cadinho. O sol esturricava e vinha a molemolência do corpo pedindo rede e sombra, e nisso, nem havia tempo para a sesta.

A gente mais atrapalhava que ajudava. Meninada era tudo uns bichos arruaceiros, curiosos. Tanto que, descuido qualquer, lá estava um, com uma daquelas facas mais afiadas que navalha de barbeiro, querendo botar preceito de gente e talhar toucinho que, era uma coisa lá que, até eu tinha vontade de fazer. E nisso, sem mais delongas ou caprichos de criar lerdeza nos afazeres, já se iam voltando e pondo recomeço no que havia muito o que fazer.

Enquanto, de curioso, eu só de mei’olho, espreitando de soslaio o dito jagunço que, todo encolhidinho lá, na sombra de uma laranjeira, refocilava feito porco esganado numa marmita que mãe preparara para o tal. Comia de fazer gosto, tuchando de colher sem mais tempo de completar mastigação e já ia engolindo a maçaroca e metendo outro bocado na bocarra sem nem parar para respirar. O esganado, morto-de-fome, capaz de morrer engasgado e esturricado tanto que ia forçando pros buchos!. Considerei um despropósito, um cabra daqueles ali, naquela situação de cão danado, como que mendigando adjutório para poder saciar a malvada da fome.

Nisso se voltou à labutação e o cabra lá pelejando com sua marmita e eu, mei’que sem jeito, me acheguei e fui botando reparo na desgrama do homem que nem arma parecia carregar. Devia de ser um desses que, no abandonar vida de pauta com o Tinhoso, trazia no bornal era mais, bíblia e conta de rosário, espiando os pecados com rezaria e mendicância. Mas fiquei do curioso e atarantado rodeando. Enquanto, o bichão lá, concentrado no forrar o bucho com a comida que mãe preparara sem nem se dar que, de olho nele tinha pois, não somente avô com seu jeito de “nem te ligo”, mas, já se posicionando pra cumprir função, uns cabras provenientes d’outras paragens distantes. Tocaia. Coisa que a gente viria a saber e conferir, pouco tempo depois.

Foi indo que, perdi o interesse pela função da matança dos porcos e, de cócoras, passei a rodear o tal jagunço e a sondar, escarvando as memórias em busca de causos contados por avô. Fui bestando naquela modorra, o sujeito já enrolava um cigarro na palha. Eu tropeçava naquela amontoeira de causos de Virgulino Ferreira, o Lampião, mais Corisco, Maria Bonita, Dadá, Cobra Choca, e outros. Me alembrando até das cantorias dos cabras de Lampião com sua “Mulé Rendeira” e o “Se entrega Corisco/ Eu não me entrego não/ Que não sou passarinho pra viver lá na prisão”...

U’as coisas assim, bulindo com imaginação e de tocaia não haviam posto fim no rei do Cangaço?. Os “macacos” de farda rondando o coito e armando estratégia até com metralhadora. Então?!. Deixei-me embrenhar pelos sertões das caatingas, dando nas alpercatas com polícia d’um lado e cangaceiro do outro no meu rastro. E eu mais meus subordinados — que pra bando eu tinha mesmo era que ser o chefe, ara! —, demos a volta, separando em dois o bando e pegamos os “Macacos” tudo desprevenidos e despejamos um fogo cruzado pra riba deles que, não restou um pra contar o sucesso. Já da parte dos cangaceiros, acabamos aumentando o bando, fazendo aliança e Lampião continuou rei mas eu, tinha lá meu posto de destaque. Foi em meio a um saque numa cidadezinha lá pelos cafundós dos sertões que, me espichei na sombra já dormitando e garrei a sonhar....

..No que sonhava, deixei-me num emaranhado, enveredando pelas quiçaças e sarobas de meus sonhos, numa refrega dos quintos!.. Dando e levando tunda e coça com uns cabras endiabrados. Esbordeava um no sapapo; estrebuchava com outro na peixeira de ponta e lá se me vinham de quatro, cinco, pra riba. Feito uns cães danados, na afoiteza de me mandar pros quintos que, me via fornido de tiro, bordoadas, rasteiras e, no “pulo do macaco” que, era um golpe lá, de capoeirista, mandei um pros diacho e ninguém pra acudir que eu já tava fatigado e enfarado de tanta porquera. Que aquilo só era, pois!.

No toma lá, dá cá! No arreda pé, seu cão sarnento, era um nunca chegar à termo que, quanto mais eu dava nos cabras, mais se me caíam por riba, surgindo de detrás dos cactos, das pedras e restingas... E foi aí...

..Bem, foi aí que, se me veio aquela zoeira de berreiro, tiros, acode-me, valei-me meu “Padim Pade Ciço”, até que, incônscio do que se assentava ao meu derredor, despertei dum pesadelo para a pior: a realidade dos cabras que, vieram de galope fincado, atirando, berrando e o jagunço mirrado, de repente, mal tinha assentado a bóia nos vazios e virou um bicho que dava de “rupiá” qualquer vivente que botasse tento no tal biltre desbrioso.

Saltava de banda, pinchando-se na poeira do terreiro, atirando com duas armas que, saíram, não se sabe de onde e, o fogo cuspido zunia e troava naquela espandongada dos quintos. O esmulambado rolava para lá e para cá, ligeiro — que de esperteza convinha —, de pontaria apurada que eu só via uns estabanados voando pelos ares, de riba das montarias.

Enquanto tudo isso se dava num átimo, saí de catacavaco pra junto do mangueirão dos porcos. Dali assuntei espiando o avô e o pai na varanda, de armas nas mãos, prudenciando nos conformes. A mulherada e as crianças, já se tinham escafedidos para debaixo das camas. Seu Tião se meteu-se para dentro da tina d’água, segurava uma faca de desossar porcos e ficou lá: meio escondido — meio que exposto porque, de onde eu posicionara-me, via-lhe o cocoruto de carapinha preta soçobrando para fora da tina, pronta para levar um balaço perdido ou ricocheteado. A coisa foi se estendendo, parecendo que eu havia-me embrenhado pelas veredas dos sonhos novamente, enquanto já contava quatro corpos esparramados pelo terreiro. Isso, afora dois cães vagabundos e um cavalo que estremunhava nos estertores da morte certa.

Um atropelado recebeu um projétil no meio da testa e foi mergulhar dentro do tacho de água fervente, ali ficando, sem nem se dar conta do que... Pelando feito porco e os estragos, via-se, mais que feito.

Os desassossegos começaram a amainarem-se somente quando o jagunço, segurando as entranhas, deu de revirar os olhos e de olhos garços, passou a atirar sem mais tenção de nada, no seja o que Deus quiser. Havia levado uma descarga de chumbo nos ventre por onde vazava de tudo um tanto. Rodopiou feito carrapeta, sem sustentação, aprumando-se à custo e, foi ficando alvo fácil dos caçadores que, fizeram o cerco e despejaram uma carga pós outra e o mirrado do encapetado bateu de cara e fuças na poeira, saracoteando, esperneando, estrugente feito briga de bicho na mata, até que, sem mais, entregou a alma e se deixou lá: espichado e bem morto matado.

Deu um dó de ver o rufião estendido, mirrado, mais furado que peneira, naquela sina tirana, pagando pelos seus atos descomedidos de outrora. Deu dó e não que, quem não tem meremerência, não se safa assim-assim, sem mais. Foram se aquietando os espaventos e ânimos. Veio o chinfrim. No conferir se o “peste ruim” tava mesmo liquidado. Meteram-lhe um bico de bota no meio das costelas, o corpo sacudiu-se e o rosto ficou voltado com o olhar esgazeado, amirando os céus rameando-se lentamente, querendo desovar chuva pra riba daquele quadro funesto. Assuntando bem, no botar tento perspicaz, percebia-se que, o desgranhado do sujeito parecia era quedar-se a espiar o outro lado desta, pra donde as almas se vão no passamento e, benzi-me, pois. Dito e feito porque, o cabra parecia ter um sorriso de parvoíce nos lábios escumados e porejando sangue. Mas os olhos pareciam eram marejantes. Uma coisa que lá só se vendo para se tirar conclusão bem.

Os cabras — dos mais estranhos, diga-se —, eram agentes da polícia disfarçados de vaqueiros e capiaus comuns na região, como se narrou-se após cumprida a função. Havia perdido, o tal Destacamento, quatro de seus homens e um cavalo. De casa, somente as imundícies e o susto porque, por proteção divinal, ninguém saíra ferido em meio àquela desgrameira toda.

Ali, de sonso, rodeando e bascuiando os resultados, percebi que Seu Tião, compadre do pai, só saiu de dentro da tina d’água à muque. Ressabiado se, no meio daquela gente, não haveria algum facínora tresloucado. Perdeu-se a maior parte dos serviços, carnes, banha e, sobretudo, da vontade. Causo que, ninguém mais queria ver sangue e entranhas quanto mais lidar com aquilo.

Juntou mais polícia, gente da vizinhança e o fato foi sendo espichado, adentrando o lusco-fusco, derreado o sol no poente crepuscular, prenunciando a noite sombria, querendo vazar madrugada com regalia de cachaça e comensais.. Uns capiaus amarfanhados dos miolos, sem informações dos acontecimentos, inventando coisas, acrescendo o que não havia na história e seu Tião já com umas par delas, passou a botar banca de valente, roncando papo grosso sem, no suceder desses somenos, deixar de emborcar uma talagada por riba da outra. Finalmente, havia parado de sofrer aqueles ataques de estremeções pelos quais fora acometido, alegando ter ficado por muito dentro da água fria. Qual o quê?!. Lorota!.

Rodeando sem fala, Dedé restara branco, descolorido num amuo de parecência — mal se comparando —, com uma mula manca empacada. No mais, as horas iam avançando com aquela gente toda em volta do fogo. A casa pejada de tudo quanto era tipo, nuns tetetês que parecia, jamais teriam um findar-se, tanta balbúrdia e a intragável valentia que sobrava em histórias e causos de tempos remotos e novos, inventados ali, na horica mesmo, sem o menor desplante e sensatez. Um parvos duns cagalhões que a gente nunca via, mas que estavam ali se ensombrando, de cenhos ensizudados, pelejando nas falas tanta cachaça e mentindo mais que político em véspera de eleições. E foi-se correndo o tempo, atropelando as horas e canso de ouvir aquelas besteiras e lenga-lengas, eu já tava me entregando de sono encangado no lombo.

Já lá pelas tantas, rondando as horas avançadas e sombrias, todos os presentes dando de abrir e fechar bocas feito quebranto, foi que me lembrei que, o jagunço, inda segurando a barrigada que saltava para fora, antes de se entregar de vez, dera de berrar umas frases sem nexo, de pauta com o Demo e as coisas ruins das trevas, como se estivesse invocando Sassafráz e rogando praga em tudo à sua volta. Então, somente então, o avô me disse que, aquela praga tinha lá nos costados, pra mais de vinte mortes por vias de encomenda.

— De parte com coisa ruim!—, acrescentou avô cusparando feito cagada de pato na poeira do terreiro e riu-se, mangando do medo que eu, seguramente, já demonstrava.

Foi nada. Daquele dia em diante, garrei a rezar e a evitar o terreiro pelas horas avançadas que, foi uma verdadeira porqueira. Nem avô me tirava da cabeça abarrotada de caraminholas que o tal jagunço, bem morto de morte matada, não fosse assim, num repente, aparecer por ali, todo estrupiado, de assombração, buscando por vingança de contra nós que, até de comer, lhe demos como se, de pauta com os que o haviam justiçado na tocaia.

— E se o tal vem pedir acudimento, já canso das almas vingativas que encontrou do outro lado?—, perguntei-me, com meus botões e rememorando aqueles olhos garços... Senti um rupio pelo corpo todo, estremeci e me benzi da cabeça aos pés, invocando proteção. E não era pra?!...

Causos de jagunços, de coiteiros, de morte e assombração, naqueles tempos idos e corridos, era o que mais de ouvia contar por aquelas brenhas. Quando juntava roda, era tocar no assunto, eu dava de enfarado, fatigado e desconversava, indo buscar proteção e segurança perto do avô que, ele sim, sabia de tudo aquilo e mais. Sabia mas, não perguntando, avô não contava. Em não contando, então?... Eu é quem sei o que!...


 

Retalho número oito:
SINA

 

O homem dizia desdizendo. Não fiançava decisão nas parcas palavras em muxoxo. Ficava um que sim e outro que não à um só tempo. Negaceando. Arrodeando num pinchar conversa sem tento algum naquelas vergonhas de caboclo pai de família. Os outros em volta, só assuntando, especulando vê se o sujeito se revelava.

Nem carecia destampatório que todos, de tudo sabiam: das judiações e malsinada sorte do caboclo carpina daquelas brenhas sertanejas. E Belarmino dava de fasto, cabeça gacha, vergonhoso. Era u’a penúria que só se vendo para se aquilatar tamanha a proporção da zanha.

***

É pois, no mais das vezes, mãe e pai quem mais padecem pru’essas brenhas do viver. É certo que os pais, garram de sonhar. No mais, até carecem. Convêm, que a vida, às vezes, é u’a coisa por demais tirana. De muitas cissuras na peleja. Injuría e põe jeriza n’alma. Se não se alimenta-se de sonhos, com que garrar-se no viver, então?!.

Dá-se que, família sem alardeamento e nenhuma estrugência pela casa, acaba mofinando as almas ali confinadas na sengraceza e, de macambúzias, vão se desquerendo e perdendo a tenção no seguir avante, enfaradas, vergastadas pelos algozes-atrozes da melancolia e do vazio abissal.

Causo então de se firmar família de verdade, é trazendo ao mundo — inda que duas vezes pensado e repensado —, os bacurís e as guriazinhas, mó de ir forrando os espaços todos da casa, do terreiro, da mente e do coração com as lambanças, apoquentamentos, birras e preocupações diversas.

— Aí sim, família é família de verdade e de acordo com a natureza.—. Pensava Belarmino. E pensava sem estouvação na sua simplicidade das idéias e conseqüências — desde menino.

Mais, muito — não somente pensava, como dizia e firmava porque, de menino — mesmo em sendo do mato —, se não se lhe atormentava a sanha de curioso, provocava-lhe erosão e solapava o coração tais questões. E mais, acrescia no que se dispunha atento às coisas da vida, é que, não obstante pobreza e miséria, com as dificuldades dos tempos idos, na gangorra da lida, muitos pais e mães de oito, dez, doze, criavam. E ele, menino só. Filho único, sem com quem dividir-se.

No mais, pensava lá, na meninice, “Quem se fia em Deus, de resto se arranja”. Acrescia; “Não há dificuldade — por mais tirana que se nos ponha pelas sendas do viver que, não se possa com ela — dificuldade —, no enfrentamento, se se pelejar com denodo mui e tento e tanto na tenção de se vencer”.

Causo que perdera os pais ainda em criança, Belarmino vivera desgarrado, cismoso e casmurro a sua solidão de boi entristecido, distante no pasto, baixo de sol acirrado, olhar marejante de mirar léguas e confins sem distância que desse conta de medir.

Decerto que, não fora mais infeliz, falta de espaço em seu jeito de ser bicho cismando nos porquês de tais. Ora criado por um, ora por outro. Vivia de passagem, trançando destino, encangado sob o fardo dos pensamentos esquerdos. Desejoso de respostas para tantas inquietações dentro do peito mirrado e na mente aquele horizonte de coisas malesplicadas que fucinhavam-lhe dentro e conflitavam com o que pouco sabia.

Sequer sabia porque perdera os pais. Mas que, comentava-se às sombras e mesmo à sorrelfa que, acabaram se desgostando caso de tédio e desentendimentos, dado as dificuldades e nenhuma alegria de viver. Se somente havia ele, Belarmino — menino arredio e sem um riso nos lábios para alegrar a casa sem vida, os pais, decerto já enfarados daquela existência de muitas penúrias e judiações, sem onde garrarem-se no criar sonhos e ilusões que, esta vida é um tanto de cada, deram de se embriagarem-se parmente e de se vampirizarem naquelas intrigas e desgovernos que acabaram em muito ódio, deveras.

Causa disso, o menino Belarmino — ao léu abandonado, que pai de cirrose se fora e mãe de desgosto acompanhara-o — amor e ódio entrelaçados —, jurara que, nos causos de um dia se formar homem já e traçar destino de à meia com companheira, muitos filhos haveria de ter. Filhos eram o sustentáculo, alicerce e arrimo de sonhos; manutenção das parcas alegrias no viver-se tirana vida. Muitos, portanto, ansiava. E já de mãos calejadas pelo cabo da enxada, pelos campos áridos e ressequidos, na carpina virando mestre, enviezava os olhares alongados para os lados da “menina-caboclinha” Rutinha.

Humildezinha, ela correspondia e punha gosto no rapaz trabalhador e bem afeiçoado que era, como ela o tinha em juízo, lá seu. Deram de se gostar que, hora da bóia, na roça, campeavam uma sombra e de junto trocavam mistura e se riam feito crianças lambuzando-se em mel. Mesmo porque, queira ou não, esse negócio de amor é feito mel — de início. Depois, com o passar dos anos, abelhas operárias cumprem obrigação no viver esta passagem. No amor a tendência natural, é sentimento aumentando de um tanto que, chega dado momento já nem se sabe mais, sem sequer caber dentro do peito. Foi assim: a sina e a vida tem dessas.

Melhor do que tanto amor é que, pais de Rutinha, gente da mesma simplicidade e de puros corações e sentimentos, botaram gosto no rapaz e consentiram, sem nuanças de porquês e tais, o namoro que bem pouco chegaria a durar, avançando de vez para o selo em cartório e igreja do vilarejo. Festa miúda, rala, de pouca abastança, mas que vicejava em rara beleza e contentamento. Tanto que chegada a noitinha, as estrelas sarapintavam o céu feito um manto de prata, mãos dadas com a lua alvíssima e de raro clarão. Sinal dos anjos que, modorrentos, assistiam cupido frechando corações enamorados. Dançou-se, bebeu-se e festejou-se até altas horas. Dentro dos conformes e das possibilidades. Daí o casal juntou suas cangalhas e tarecos e foi para sua humilde casinha recém construída com muito esforço e perseverança nos finais de semana e, até tarde da noite sob a luz de lampião.

O rapaz Belarmino pouco ganhava na roça. Já de pouco tempo a mulher botara barriga e passara a cuidar somente da casa, sem poder acompanhar o mesmo ritmo do companheiro. E veio o primeiro rebento. E logo em seguida, o segundo e o terceiro. A escadinha se alongando, espichando feito noite sem fim que quarto e quinto nasceram juntos — gêmeos. Aí a mulher, parecendo assustada tanta fuzarca e responsabilidade ao mesmo tempo, resolveu de ter uma conversa séria com Belarmino que, sem tento, desatento no laborar ia proliferando a prole em um por ano.

A contragosto, muita conversa e conselhos. Murchou-se e botou-se macambúzio num canto ruminando motivos e senhas para tais apartes. Caboclo duro, sem tréguas dava na terra quase que improdutiva, ralando-se de sol a sol sem descanso e sem tréguas, cismando somente aos domingos no entardecer quando, orgulhoso ficava mirando os cinco filhos: três machos e duas meninas que, de boca cheia pavoneava-se: “puxaram à mãe, tão belas e saudáveis!”.

Se a vida não era das melhores, não havia do que se queixar. Mantinha sob controle os recursos da casa e as crianças tendo os vazios forrados e os corpos vestidos, para ele, pai, estava dentro do planejado. Muita luta compensada pelo grande alvoroço de uma casinha humilde e pejada de crianças saudáveis. Com isso, vieram o sexto, o sétimo e o oitavo. Somente não completou a dezena — tal era seu intento —, causo que, alertados foram, ele e a companheira Rutinha que, carecia — melhor que remediar —, botarem termo na procria. Mais, era sacrifício: risco de vida para a mulher e o filho, caso viesse a engravidar. Palavra de médico da cidade. Homem de sabedoria e conhecimentos mui. Fazer o quê?. Farruscou a carantonha e mascando ramo de capim, foi aos poucos conformando-se com os oito, tendo o mais velho não mais que onze anos e mal e mal ajudando na roça. As meninas de pouca valia para no acudimento de tantas tarefas que Rutinha se escangalhava e já começava, ainda em moça de tudo, a dar os primeiros sinais de cansaço e fraqueza. Parecia coisa de instinto. Passarinho com excesso de filhotes no ninho, acaba se finando tanto se entregar sem tréguas ao trabalho de sustentação. Coisa da natureza que, sem que se dê atenção, muito tem para ensinar aos homens-bichos de pouco preceito.

Mas não Belarmino mais Rutinha que esses, mais pareciam um casal de periquitos. Tanto no trazer ao mundo quanto no cuidar de um por um até à beira do esgotamento de todas as forças possíveis e impossíveis que, somente Deus sabia lá onde conseguiam dar conta de tantas crianças ainda em fase de somente reivindicar cuidados o tempo todo. Mas era. E se ia levando que a vida e o tempo não carecem de muito pensar, mas de muito labor.

Deu-se que, não tardou e o fardo foi pesando. Criança não cresce e acode os pais do dia para a noite assim-assim. Foi cismando Belarmino com o trabalho rareando no campo e a comida escarseando nas despensas sem ter como resursar. Foi o que, no devagar, tornando o mel em gosto amaro, meio que fel, meio que fé. Já se apelando e se pondo de pauta com Deus, única via capaz para safar-se de uma enrascada tamanha. Já se ouvia rezingar e choro de barriga vazia. Já se apercebia os humores transmudando em sua companheira que, mirrara à olhos vistos. Aliás ele, Belarmino, por acaso, não era outro já então? Não havia definhado e de faces encovadas e muito do ranheta, dera para maldizer a sina e a má sorte tida nos últimos tempos?. Foi que arranjou mão atrás e outra na frente finda a colheita da laranja, a carpina e o corte da cana. De gado mal entendia, mas garrou o primeiro emprego. Coisa de pouca monta. Conserto de cercas; capando porcos; acudindo animal em face de parasitas pelos pastos num serviço porco bulindo com suas entranhas. Mas foi. Cavando fossa de merda e cortando capim em beira de corgo para alimentar cavalos de senhores de algumas poucas posses que, por aquelas brenhas, um ou outro lá tinham suas terras e mesmo em tempos obscuros e passagens ruins, haviam constituído base para suportarem intempérie e contratempos.

Justo com ele que, todo o tempo sonhara com sua numerosa prole cuidando de suas terrinhas que, com os anos, estender-se-iam em derredor da casinha até que, de pasto; chiqueiro na criação de porcos; plantação de milho e mandioca, dava dez, no máximo doze anos, assentaria escritura de suas terras e, gozaria então, de junto da companheira, à sombra da varanda da casa transformada em casario, da velhice?.

Amargou por uns tempos a sina tirana. Bufou na peleja de contra adversários invisíveis que lhe punham olho ruim e má sorte. Dizia que se era castigo, um dia findava porque, afinal, Deus não castiga ninguém mas sim, a gente é quem — sem unha para se coçar, vive arranjando sarna nas popas. A mulher muito da miudinha já, entristando de fazer dó, se ria com olhos marejando e derramando luz pelo casebre tanto o coração puro e branco, límpido e sem mácula; de uma beleza feito capucho de algodão. Bondade angelical no trato com os meninos e as meninas crias suas e de seu homem. Bom homem, por sinal — lembrava à Virgem Puríssima, durante suas preces que já não careciam de ter hora e, mal percebia estava de reza à todo momento. Mulher de fé inabalável.

Dia faltou arroz. Feijão faltou. Mandioca nem era tempo. No empório do “Boa Vida”, crédito cortado. Conta colossal pra muitos mil réis que, penhorasse palavra de honra, casa e terreiro, não saudavam. Desconversado, humilhado e sem mais apelo, danou na cana de engenho — alambique de fundo-de-terreiro de um lá que vivia da desgraça alheia. Fincou pé pelas estradas e brenhas e chafurdou-se pelas matas num zanzar de um canto para outro sem rumo e sem tino do que pretendia com tal intento, retornando somente quando o dia já amanhecia. Encontrou a companheira e os filhos tudo amontoados à porta do casebre, esperando. Entrou sem dizer palavra. Nem carecia, pois.

A família dela de tudo um tanto fez que mais não podia. Família sem recursos e com vida de muito custo no sustentar-se. Orgulho também possui limite. A vergonha também mata. Pedir não é roubar. Coisas que cismava mas, muito distante de convencer sua mente e alma inquietas e fustigadas, iam mais era amofinando e espezinhando de um tanto que, insuportável. Garrou a pensar nos pais. Queria entender com seu raciocínio baralhado e de muito pouco conhecimento desta existência de malogros e soçobro. Nunca que ia. Turrão feito burro chucro empacado em meio ao caminho.

Foi indo, já perdendo gosto pela lida e muito de mal com a vida e o mundo todo, encontraram-no largado beira de estrada, pensando que o infeliz havia ali se finado. Curtia era uma ressaca sem tamanho que, somente poderia ser aquilatada se alguém pudesse saber da dor que empedernia e macerava-lhe o coração sem ter como mitigar.

***

O homem dizia desdizendo. Não fiançava decisão nas parcas palavras em muxoxo. Ficava um que sim e um que não à um só tempo. Negaceando. Arrodeando num pinchar conversa sem tempo algum naquelas vergonhas de caboclo pai de família. Os outros em volta só assuntando, especulando, vê se o sujeito se revelava.

Nem carecia destampatório que todos, de tudo sabiam: das judiações e malsinada sorte do caboclo carpina daquelas brenhas sertanejas. E Belarmino dava de fasto, cabeça gacha, vergonhoso. Era u’a penúria que só vendo pra se aquilatar tamanha proporção.......

Arrastou-se em direção ao seu pedaço de chão e nunca mais voltou a emitir uma única palavra, o sonhador Belarmino. Não que houvesse desistido de viver e continuar pelejando. Havia um tempo para tudo e bem sabia. Jamais chegou ao tempo sonhado de colher. Apenas semeara e plantara. Em sonhos que, não conseguindo chegar à conclusão plausível, foram-lhe arrancados com raízes e tudo para serem carregados pelo vento do destino. No resto, era cumprir sua sina. Desde menino. Voltou a sentir-se o menino solitário que, em sonhos e empreitadas, tentara burlar um dia. Mesmo vendo os meninos e as meninas crescendo, garrando nas enxadas e foices. Mesmo quando, eles começaram a partir, um casando, outro botando pé nas estradas desta vida em busca de melhora. Mesmo quando veio o primeiro neto. Uma única palavra nunca mais se ouviu daqueles lábios emurchecidos e gretados. Ressequidos feito seu próprio coração.

Nem mesmo quando a companheira, cabelos nevados, as faces sulcadas pelos percalços, o corpo mirrado, sentada ao seu lado na varanda da casinha, num gesto de carinho, feito uma criança, deixara os dedos das mãos maltratadas deslizarem por suas faces endurecidas, transmitindo-lhe um pouco daquela paz que, somente os anjos guardam para desfrutarem em seus derradeiros dias nesta existência quando, com o coração em paz, dão por cumprida sua sina..... Nem assim..


 

Retalho número nove:
DE PAUTA COM O TINHOSO

 

De magro, franzino, os olhos miudicos, opáceos, no rosto de faces encovadas e sem cor, o menino causava comiseração à primeira espiadela. Coisa que, mormente, incorremos nos erros da primeira impressão causada por algo ou alguma coisa. Sobretudo, se tal coisa, trata-se de um menino.

A bem dizer, muito bem narrado, nascera assim. Tal e qual, nem acrescendo, nem se tirando, de criança, moleque — menino do mato —, já era pois, todo encovado, mal sustido e mal fornido, aparentando aspecto doentio, com a pele macilenta, perebento, de cambitos de gravetos, sem nenhuma “querência” no sustentar-se e vicejar para a vida.

Tanto era menino, quanto do mato, isso lá se via, num bater de olhos. E não?. Deu-se que, de quebra, de muito molecote, já míope, os óculos de lentes “fundos-de-garrafa”, maior que a cara, acentuando no enxavido, sua frágil constituição física de feiúra concentrada em tão pouco. Ainda de quebra, somava um tanto de lerdo acentuado nos modos e jeito de ser, pensar e conversar que, para arrancar uma frase completa daquela criatura, era missão sem tino e de muito tato.

Não obstante tantos desarranjos e disparates naturais, nem se lhe dava que, certo, vivia ele lá, sua aparente e malsinada existência, tal qual bicho que apartado dos demais, sequer carecia das atenções que, todos nós, por via dos sentimentos tantos, nos tornamos “pidonchos”, em causo de desfeitas. Ele, no entanto, era um desses que, cismosos, de entranhas aziagas, na “parecência”, lembrava nos pormenores e coisas de somenos importância, aqueles bois sonsos a ruminarem pelos pastos com olhar entristecido e perdido em lugar algum.

Cresceu, é força — na marra —, de expressão. Foi mesmo, é atropelando e sendo atropelado pela vida. Sem nem espichar; muito menos encorpar feito gente. Somando anos e Eras sem o menino querer virar homem.

O que contrastava, é que não herdara do pai, um quê de coisa alguma. E isso, nem se lhe carecia buscar raízes, posto que, o pai, homenzarrão, de campo e roçado, dos bem fornidos, sempre fora de meter inveja em muitos caboclos daquelas paragens. De forma que, nada tinha a ver com o velho.

Mãe não que, mulher miúda, de baixa estatura, surrada pela labuta; pela lida sem fim desta vida tirana, recursando ao lado do pai os provimentos e o que escasseasse nas despensas, muito e mal percebera, passarem-se-lhe os anos, à galope indômito, pelas sendas e searas deste viver trôpego e de muita cizânia.

E não que tal fizesse alguma diferença que, sem vaidade, já desde os tempos de menina-moleca, de enxada nas mãos, sequer tivera tempo para descobrir coisas de mulher, senão o estritamente essencial que era um tal de procriar e tratar de cuidar das cissuras da vida e jamais abandonar pelo meio do caminho restinguento seu fardo que, era causo de cumprir sina por Deus legada e, portanto, de meremerência. Assim pensava, assim agia, nos conformes das Leis Maiores que um cristão tem por obrigação respeitar e seguir à regra.

Com isso, oito filhos, um pós outro. E o peso dos anos vergastando-lhe os ombros e a cacunda de mãe e companheira de muito que prendada e guerreira que, nem carece pôr tento, tanto sempre fora, incondicionalmente.

Mas se falava era de Tiquinho, o menino que, nem era o mais velho, nem se dera em ser o dos mais novos: rebento de meio da prole numerosa. Desses meio esquecidos e mal situados. Sem lugar de destaque e, muito mal lembrado. Carente das minguadas e raras atenções, caso houvessem.

Nem se dava com os mais velhos. Nem cultivava paciência para com os pequerruchos, os mais novos que, de pauta com as inquietações da idade, careciam — ao seu ver —, era de boas lambadas de vara de marmelo, ou correia de couro cru que, isso o pai lá tinha, em meio a seus petrechos e tarecos de junto do paiol.

De fato, arrastou-se pela infância nesses pormenores já narrados. Arremetendo-se de encontroadas contra os reveses, num dar e levar aos trancos, aquilatando solavancos que a vida nos fustiga sem tréguas e, se batendo da poeira das quedas muitas que, de muito cabeça dura, criara calos não somente nas peles e ossos, mas também na alma e consciência empedernidas.

A coroca e rezeira D. Maria, a rezingar pelo terreiro da casa grande é quem de fato chegara a conhecer-lhe as entranhas aziagas de menino das searas e sertões. Uma pitada no cigarro de fumo de corda e, de cócoras de junto do batedouro de roupas, se lhe podia, no arrefecimento que a cachaça proporcionava, bascuiá alma e palavras desses causos restinguentos.

— Coisa assim, boa é que não dá na vida.—, dizia rezingando D. Maria, no atropelo das frases que a gente mal retinha ou, conseguia pôr tento na tenção de interpretá-las corretamente.

Como era-se previsto e predito, que a natureza das coisas e pessoas se conhece desde os primórdios, o menino foi ficando homem e peçonhento por dentro, na alma, enquanto que, por fora, nas aparências, mantivera-se à meio caminho. Justinhamente onde deixara de crescer de corpo e com sucesso assentado mesmo, era no agigantar-se de ruim e bicho turro de brabo, o lazarento!.

Que me perdoem a expressão incontida se assim debuio feito espiga de milho e inda quebro sabugo pelo meio no só-pensar em que deu e nas danuras e desgramas que o pestilento espalhou por aquelas brenhas e sendas.

Se de bezerro desmamado já comprazia-se com suas contendas e pelejas no maltratar as criações, ora mergulhando gato sarnento no óleo queimado; ora banhando a cachorrada com verniz e tuchando bomba, rojão e busca-pé nos bichos sem uma ponta desfiada de remorso, quem se arriscaria em prever o que não faria quando em idade já de forria?. Se o parvo, naquela idade, já despinguelava pras bandas da cidade e trazia aquela tralha no mocó, com tenção de maldade, que se esperar no mais adiante, acolá dos anos idos?. Não tinha razão D. Maria no rupiar-se toda, rezingando a maldizer a sina do desassossegado?. Inda benzia-se no credo em cruz e “vá de retro” quando referência ao tal Tiquinho, botava da boca fora.

Deu-se que, nem chegara a completar idade de homem posto, muito do folgazão e desgovernado das idéias, mandava os pais praqueles lugares imundos sem remorso e, quem dava-lhe tunda?. De raquítico e macilento, mesmo tanto — sem acrescentar nem tirar um que —, era a maldade e o desdém para com os demais, o que se lhe fornia a alma de pauta com o Tinhoso!. Deus-me-livre!, mas era o que afirmavam já, os viventes daquelas brenhas sertanejas, por aqueles tempos idos.

Feito cão danado, ferrou-se naquela vida de descalabros e desregramentos, incônscio dos males que vinha causando e das mágoas semeadas que, eram tantas e tanto para os familiares quanto para as gentes daquelas paragens. Deu de embriagar-se e passar noites em más companhias, encafuado por vezos e lugares de má índole, desaprovados pelas famílias e os viventes do benquerer das Leis Maiores.

Até a mãe se ensombrara, criando animosidade de contra seu rebento causo daquele sucesso que vinha assentando o pestilento e arruaceiro de amanhecer caído pelos atalhos e caminhos sem rumo na vida. Sem contar, quando não, dava de folgar em casas de mulheres vadias no bem-bom — pelo avesso. Somente pedindo, mandando e esbodegando com os tarecos das casas. No mais, mormente, ia parar na cadeia, esfarrapado, botando sangue pelas narinas e de olho roxo de briga, feito um animal. Havia virado era o capeta em forma de gente. Se é que tinha!...forma lá de gente.

De parte do pai, homem bom mas, severoso quando espezinhado, botado insizudado e macambúzio de desgosto, de contra a sua natureza e índole, já se lá tinha apartado e bem. Adeus e até nunca!

Havia sido excomungado o Tiquinho que, o seu progenitor queria ver o Cão, contanto que não se lhe pusesse frente dos olhos o filho ingrato e desordeiro.

De forma que, quando alguém neste mundo dá-se conta que já nem contar com os seus pode mais, quem dirá com os outros? Não havia posto zanga e derramado fel no coração do pai e da mãe? Dos manos ele é quem pedia aparto. E bem apartado, acentuava dando a saber que, irmãos não os possuía nesta.

Mal e perdidamente completou dezoito anos, baixou no presídio com pena grave de quinze primaveras contadas e com atenuante em sentença julgado. Pois que, de zoeira num botequim, entornando cachaça pelo gargalo, se desentendeu com um tal de Thomé-não-se-sabe-das-quantas que, também não era de engavetar desaforo e malentendidos. Foi o basta!

Partiram pras vias no tirar as diferenças e se sopapos, solavancos e encontroadas, se perdeu as contas. Thomé era bom no muque e na muqueta. E Tiquinho, de traiçoeiro, puxou uma lapa de faca e tuchou nos vazios do seu adversário: uma, duas e não cavocou o outro de ponta à ponta porque, uma cadeira, surgida de onde não se sabe, botou-o esparramado por riba do outro já mergulhado e gemendo numa bacia do próprio sangue, esvaído.

Sorte que o Capiau não bateu com as botas, nem chegara a sua hora de trajar-se com paletó de madeira, o que em julgamento, procedeu-se na atenuação da pena do parvo que, já adentrou a cela arranjando confusão e desfeiteando uns cabras turrões e malencarados, embezerrados, de carantonhas enfarruscadas que, muito de mal com a vida e a humanidade, só podiam ser.

Não deu muito que, dois dias depois, por umas besteiras, levou umas bordoadas de um matuto lá que, deixou todo escangalhado e derreado no cimento da cela. Pareceu muito conformado, dando conta das cissuras, com o estrupício da coça que levara. Permaneceu amuado, avesso e alheio ao seu redor. Deu uma semana, o matuto amanheceu com os olhos esgazeados, vendo o capeta se rindo. Contaram pra umas vinte e poucas perfurações de estilete, ou mais.

Bicho ruim tem que apartar enquanto há tempo. Dois galos de rinha, não se encerra no mesmo terreiro. Apesar do tamanho e da força medida. De astúcia e traição, a serpente abate um touro. E assim foi.

Naqueles tempos, de uma cidade para outra, cortando as restingas e estradões, uns cabras daqueles eram transferidosl no “vamo à pé”, puxado por cavalos de marcha, de corda de laço bem atado e três soldados bem equipados com função de escolta destinada e sentença passada: “se tentar proeza, passa chumbo!”.

Percurso num estirão pra quatro, cinco dias, pernoitando e puxando na marcha, deixando o condenado com a língua de fora e carecendo, arrastado por riba da saroba de mato rasteiro e arranha-gato que, era pra mó de desmoralizar o fi’duma égua.

E lá se foi o mirrado, forçando umas carreiras bestas, acompanhando a marcha que, por vezes, virava trote só por judiação. Mas iam lentos na cadência dos cavalos que o levavam atado pelos punhos, os pés no chão, lanhados e feridos já nas primeiras horas de estrada. Função de muitos percalços e agonia para todos. O primeiro dia foi consumido à larga e sem malassombros. Noitando já, pararam para o pouso e o escoltado não implorou por mais do que água. Se espichou desmaiando sob as vistas dos três fardados. Estes, em concluio, arquitetavam idéias tanto parvas, caso que vinham lá, alimentando uns pensamentos esquerdos de entregar a desgrama do prisioneiro, inteiramente esfolado e não somente esfalfado. Havia ainda um lá que, pretendia entregar mesmo, era somente a carcaça do filho da mãe.

Aquele intento era de fácil arquitetura e consumação: simulava-se uma fuga com resistência e toma aí o corpo do malquisto, fujão-lazarento!. Fazer o quê?. Ordens são ordens. Bicho treteiro, tinhoso.. Danado de ruim, o cabra! Então?. Não teve como e o jeito foi pinicar nos gatilhos. Está aí a encomenda e adeus, viola. O infeliz largado chegava a roncar de masgalhado que tava daquele dia de labuta no acompanhar a marcha dos cavalos. Os soldados prepararam a bóia, o céu forrando de estrelas, coruja piando agourenta num pé de pau ao longe. O céu estrugente lá pros confins, anunciando pancadas de chuva naquele mormaço e modorra incomodando. Revezaram a guarda, mas o caboclinho tinhoso nem se mexeu do lugar a noite toda.

No segundo dia, mal amanhecido, lá se iam. A disgrama do sujeito acompanhando a marcha com os pés que eram pura carne. Cortaram por uma trilha picada, iam que iam, um soldado olhou proutro e sem mais, fincaram esporas nos machos e soltaram rédea. Deu de galope e o mirrado ralando a cara no chão, deixando sangue e pele fazendo rastro. Não mais que cinqüenta metros de necessidade. O terceiro soldado veio atrás, galopando, afoito, apeou e correu a ver o sujeito, rezingando os diabos para os outros dois subalternos.

Dava pena, comiseração de olhar pra o cabra todo ralado que nem sangue botava de seu corpo mirrado. Permaneceu estirado, feito morto. O cabo tomou-lhe o pulso. Batia lento o coração ruim. Passou descompostura nos outros dois; mandou que cuidassem as feridas sob a sombra de arvoredo, dessem água e preparassem a bóia que o prisioneiro tava mal nutrido e sem forças para continuar marcha. Tinha na alma e na consciência o dever a ser cumprido. Não era cabo por acaso. E os dois soldados haviam dado azo às diabruras do ódio resguardado. Por pouco não deram cabo do sujeito.

Por ordem do cabo Ramiro, resguardou-se o resto do dia e aquela noite que, era pra o prisioneiro se recompor. Amanhecer, amanheceu somente o cabo. Os outros dois, com as gargantas rasgadas, deviam de estar galopando pelas searas do outro lado desta. O cabo bascuiô em volta, sem encontrar os animais e as armas, caiu de joelhos socando o chão de mato rasteiro e se perguntando se aquilo era gente ou era o diacho do cão. Enquanto Tiquinho entrava numa propriedade modesta, descarregando o tambor do trezoitão pra riba duns pobres diabos que ficaram lá, por cima do sangue e da própria sombra.

Dentro do casario, deu com uma preta e uma moleca na cozinha. A senhora dona patroa tinha-lhe apontado uma cartucheira sem cartucho e acabou levando um projétil no ventre, se debuiando em agonia no meio da sala de entrada. Não havia mais ninguém. Tinha dado cabo da família reduzido somente àquela moleca de seus doze anos e a preta velha de cozinheira e ama. Fez-se de rei do cangaço. Banqueteou-se e tomou aguardente. Forrou bornal e os petrechos, ficando com os dois melhores cavalos e tomou rumo pelo mundo, deixando a preta velha a enterrar os seus mortos. Mesmo porque, a menina moleca ele assentou, muito na marra, na sela e ia apertando-a de encontro ao seu corpo mirrado de endemoninhado.

Seus feitos e proezas já corriam léguas. Deu de largar perna pelo mundo perseguido por polícia e jagunçada contratada pelas famílias desfeiteadas e por onde passava, deixava rastro de sangue. A menina virou mulher sem querer e sem nem saber. Acabou coisa ruim, igual e de pauta com o Tinhoso do seu raptor. Pegou nas armas e enfrentou tocaia e milícia de à meia com Tiquinho ganhando fama que, já eram comparados com casais famosos de matadores da história nossa e de outras paragens assentadas noutros continentes. D. Maria é quem contava do “coisa ruim”. Tantas fez e não foram poucas as almas que enviou para o outro lado que, somente podia ter vindo pra esta existência de pauta com o Capeta.

No mais, após uma cusparada que bateu no pó do terreiro e fez uma bola avermelhada, D. Maria disse que, os dois foram encontradados, já pra outros estados de muitas brenhas restinguentas, pendurados em forca com metro de língua pra fora da boca, roxos e ressequidos. Não se sabe ao certo. Contam coisas e causos que, botaram assento em paragens distantes e cansados de tantas desfeitas, deram de criar umas cabras, umas hortaliças e uma penca de filhos. Cada um mais desgranhado que o outro de ruim, causo que era para pagarem os pecados de contra seus pais, cometidos em suas trajetórias. Na verdade, pelo que se registra é que, ela, por nome Cida, havia perecido de picada de cobra, botando sangue pela boca e narinas no meio do mato que não tinha como acudir, fugitivos que eram. Causo disso, perdido e aluado, ele se enforcara e acabara virando comida de urubu. De qualquer forma, nem se afirma que sim, nem que não quanto ao destino daqueles dois. O que restou na mente dos mais ancianíssimos é que, Tiquinho era de pauta com o Tinhoso. Isso, lá sim, era!... Que se pergunte praquelas brenhas a confirmar o causo que é narrado e contado, tintin por tintin.....


 

Retalho número dez:
MARIA RITA

 

Sujeito cismoso, empedernido ali jazia na sua sengraceza já se ensizudando pro vias de umas quaisquer! Meante tais, ia-se tomando peçonhas do quem era. Pressas brenhas do sertão caatingueiro, o que se afiança não é o mofino, de semblante enfarruscado e trevoso. Desses tais, se toma apoquentamento, desgostando assim-assim, pois!.

Dá-se que, de um tipo desses, marelento, molambento e carantonho, de muita pouca ou nenhuma valia algo se pode esperar?. Pura mazela! Pois, é nesse ir e devir da vida que, por coisas de somenos importância que no mais das vezes, a gente se véxa de que o que somos, é. Nem tantinho mais, nem tiquinho de menos. E se já não pregava tais filosofias, meu avô?!. E D. Maria, apois não?!....

Aí é que manga o destino desses tais atarantados que, já vêm pra esta de picuá virado nos ovo e se lhes põe cabrestos, arreios e ferraduras num tempo de se tomar sentença e sabença de que, no tirar das viseiras, ninguém é mais do que o seu vivente mais próximo, que tudo Deus fez d’uma mesma levada e num assopro só.

Por vias dessas é que o que se auto-intitutalava “Coroné Salustiano” que, de coroné, nem botas se lhe punha e, mal assim, umas percatas surradas, folgava umas terrinhas de palmos a mais que nossotros de divisas de cercas e moirão. Das suas propriedades se podia valorar e com denodo, mais e mais, era Maria Rita. Jazida de diamante, pura nos seus quatorze anos de menina-moça e mulher quase já que, uns lerdos pasmacentos, viviam campeando e deitando uns olhares de boi manso e entristecido nas pastagens...

Era aí que, torcia-se o rabo da porca! E se não era pra pior?!. O tal lá. coroné Salustiano, já tocaiando de escumá pelas ventas, aqueles marrudos tribufuzados e se babando por Ritinha. Era de cartucheira de cano duplo e uma coisa lá, pendurada nas cintas, pior que parabelo. Coisa de botar inveja que, certa ocasião, um compadre seu — lá dele —, meio borracho, alemão, todo vermelho dos cabelos até os fundilhos, se lhe presenteara. Carregava com pente com um tanto e meio de balas que, violência no disparo, estava era ali. Pior que coice de mula desarvorada da vida. Se a veloz batia nos vazio d’um cabra era recomendar-se as alma que, corpo já se finava antes de bater no pó. Desgrameira de se arrespeitar e se valer no quero dumas pragas dessas!

A coisa era ali: Maria Rita em ponto de se descobrir e o safardana do coronel — que, bate bocas firmavam, nem pai legítimo era e coisa e tal que, tava somente era tratando praquelas histórias das primícias que corriam pelas veredas restingueiras —, feito jagunço, carrapato estrela, sem desgrudar, nem descuidar um tiquinho fosse.

Compadre do pai, Tiãozinho, se achegava no lengado de seus modos, as falas mansas, picando um fino goiano pra pitá na palha:

— Compadre... —, dizia suspirando feito aluado.

— Ah diga, pois, compadre Tião.—, botava sustança o pai, pra mó de assuntá té onde desvariava o outro em seus sonhos e devaneios.

— Ah!... Tá c’ôa binga aí?—, perquiria desajeitado. O pai passava-lhe o fogo como que adivinhando as tenções esquerdas do compadre e se fechava dando rédeas soltas pro bichão.

— Coisa, né?..—, suspirava Tião.

— Falando de quê?—, assuntava pai, campeando a conversa, se passando de desentendido.

— Essa “tal’e” de Ritinha...—, forçava o outro.

— Que têm Maria Rita?—, futucava direto nos brios do compadre Tião, o velho pai.

— Taí —, acendia o mastrodonte, carcando com as unhas do dedão, baforando, puxando na brasa, negaceando, sem jeito de dar explicação nos pormenores, lengando no palavreado, té que desatava:

— Puta la merda!, catso!, a bichinha tá que é uma sanha sem tino!. Cio chegou ali, fez morada e... Sei lá!.. Aquele morfético do coroné de butuca, feito um cão tinhoso nas armas...

— Tome tento compadre!. Azar não vem por via de falta de cuidado. Bestô, s’istrepa e aí, nos conforme das leis, a menina de menor, tu já pai, nem xilindró te salva. É a veloz que bate e onde, trincha o cabra que é uma desgrameira só. Toma tento, homem!.

— É... Tem razão. Mas que essa inda leva um cabra pro reino das almas, ah, isso lá, não tenha dúvida!.

— Ou então vira nos miolo, que o parvo passa dessa e, aluado acocóra num canto e dá de se ri pras estrelas e pra lua —, fomentava o pai que, sabe-se lá se, já não havia tido os mesmos pensamentos esquerdos do seu compadre e daquela homarada toda daquelas brenhas e paragens?!...

Bicho mulher é o dêmo!. Quanto menos de pode, mais se lhe espezinha. Como diz o dito bem, desgraceira de pouca monta nem vale um tostão de réis!...

— Eeeiboilá! Oi, oi! Eêêee, boi marrudo!

— Arreda pé, catravo dos quintos!.

— E toca esse berrante que tá se esperçando, puxadô de cabrita prenha!..

— Eita!, vai pro terreiro espiantá os gambá que o milho é pras galinhas e os ovos pras panelas!

— Vai, vai que, quem é do chão não se atrepa, compadre!.

— Segura. Segura que esse vem é de marrada!.

— Sai pra lá boi Lubião!. Brigadeiro!.. Arremete de banda que ele amira, bufa e dá de cornos pra riba do cristão.

— Vam’s gente! Vam’u que, légua e meia a gente se esbodega numa rancharia e alavanta as poeira num rala-bucho arretado!...

— Arre!, mas que desgrama de misturança nos palavreado, sinhozinho!.

— É tudo das fronteira desse mundão. Minas, Goiás, Bahia, Mato Grosso... Vai indo, indo, tem capiau e cabra de peste, tudo misturado nessas andanças de abôio. Destá que, sangue bão e ruim, não dão chouriço que não desate nó de intestino.

E lá vinha boiada de tudo quanto era ermo, pela estrada velha. O Frigorifico Anglo, loguinho ali. Boiada com destino selado. Entregue. Uns pares de homenzarro sem muito dos bons modos. Peonada se escumando pra cair numas farras, esbodegar-se de tomar no gargalo, metê as percatas e botas nos arraiá de chão pisado com palha de arroz e ralá os vazi’.. numas caboclinhas de saiazinhas de pano de chita, cabelos trançados, recendendo à alecrim do campo, alfazema, almiscar selvagem e cio de espera e “gonia” nas entranhas.

Pai, mãe, namorado, noivo, tudo uns bicho banzaró, banzé, mané da vida com gente de fora botando banca em terreiro alheio. Volta e meia, um mais perreado, por coisica de nada, já rasgava os ventre dum mais espalhafatoso por causa da caninha excessiva e a sengraceza pras bandas de mulher compromissada e uns pou!, pou!, pou! de trezoitão pipocando ou aquele catapum de “pica-pau”, umas velharias cumbeiras de carregar pela boca, mas indispensável. No mais da vezes, nas caçadas e noutras que, estrupiava qualquer estouvado com duas cargas nas ventas....

Tá hoje tenho a minha guardada e cuidada nos dois canos com vareta, pólvora, buchinha, chumbo e espoleta. Dos poucos, fui um dos que se entrincheiraram com um fuzil de guerra carregado por pente e passei fogo pra outra banda sem nem amirar que era um amontoado de animal enfezado que bala vazava de dois, três num único estirão.

Se meu avô era sargento, fui cabo, pois se não?! E somente não segui carreira pra mó de não estreitá laço e de muito menos, botá gosto em farda de exército contra civil. Gente sem valimento que, desconhece as brutalidades e malvadezas dos desgrenhados quando de farda, fuzil, metralha, bazuca, granada e baioneta. Baioneta calada é os quintos! O infeliz, se empalado, travessado, bota sangue e tripa e merda pra tudo quanto é lado. Isso é ruim. Praga. Guerra e luta é coisa do cão. Sassafráz...

Mas, como dizia, tenho minha espingardinha até hoje. Derná de então, menino ainda, pai me presenteou. Té hoje. E me vale umas boas tranças de versar na boca da noite, ao pé d’uma fogueira em beira de rancho. Pois sim!...

Mas, repito, dizia eu, um bando de capiau se misturando com uns bozós, mais uns perdidos, outros encapetados, uns tantos acanhados, afora os almofadinhas, os jagunços e os baderneiros de natureza espaventada. Tudo se chegando. Padre-pároco Gonzalez, um espanhol de sangue requentado nas brasas, acolhia dos todos em suas festanças de ano, em prol da igreja e do seu debaixo do colchão, à bem da verdade.

Tudo nas alegrias. Uns aluados se rindo feito bestas e o povaréu nas barraquinhas que as paroquianas e devotas da padroeira de Aparecida, montavam e s’incumbiam de arrebanhar fundos para fins caridosos de parte com a paróquia. E a coisa ia. Da cana, nem bagaço se perdia. Do boi, té berro se grava nos dias de hoje. De formas tais que, nego trocando as pernas, tirando queda de braço, chamando urubu de “meu louro”, nem se contava mais.

Corria solta a pelejança que uns mais bocózão ferravam num carteado de truco enquanto suas digníssimas, ficavam por ali e acolá, num tititís e tetetês de comadres à ver navios e regurgitando causos de vidas alheias té que se ouvia as sanfonas, bumbos, pandeiros, violões, violas e rabecas num espocar de valsas, baiões, xotes e arrasta-pé que, alegrava até mesmo os que já desiludidos c’ôa vida, haviam passado a corda na trave e enganchado o laço no grogomilo. E a poeira se alevantando. Um cheiro tomando conta do outro. E misturando-se. E uns abusados, folgando com mulher alheia.

Pouco mais afastados, uns já desarvorados emborcando com as fuças nas ramas de batatas; fucinhando no próprio botar tudo de volta; se acocorando trás de moitas pra se aliviar; passando chapéu; butucando a caboclinha... Enquanto, uns almofadinhas querendo mas não podendo com os empurrões e os pisões de bota de merda de vaca que, boiadeiro e tabaréu são tudo uns folgazões destrambelhados e nesse vai que vai, deu as horas dos repertórios mais amenos, dolentes, morosos.

A rabeca deu uma guinada em sol maior, bordão de violão rabiscando e chorando de à meia com o correr dos dedos nas cordas da violinha quando a sanfona resfolegou solfejando uma valsa lá de hum mil e não tenho idade que, e então, foi só suspiro e ah, ui! pra tudo quanto é canto.

Seguida por um silêncio inquebrantável, a dolente valsa encorpando, sustendo-se com o violão baixando na escala em sustenidos e bemóis e a vozes molemolentes dos dois pareceiros oficiais das festas, Clodomiro e Alvarenga puxando os fôlego e no diafragma solfejando também uns versos de rachar tabóca e rancar calo de coração empedernido que só se ouvindo para se crer a belezura dos modões valseados e romanceados que sucediam uns pós outros pra rancá pica-pau do toco e botá coruja nos ninho a ressonar e as estrelas sarapintadas no alto, nos forros límpidos, com uma lua que somente quem já morou na roça e já se pegou a cismar junto à cancela, pra sentir tais coisas!...

Aí sim, é que se vem o depois. Pai e compadre Tião talagando umas daquelas que matou o guarda mas, sem desenrabichar os farolzão, já feito tições, da menina Rita com sua formosura de querendo virar mulher de vez. Só que ali, do ladinho da dita, o coronel, aquartelado com sua mauser na cinta, bascuiava o terreno feito um doberman. Eita!, Maria Rita doida pra sentir um calor, se girando no ritmo lengado da valsa que falava em versos nuns casos de amor dorido e o desgranhento ali, carrapato estrela no pé do saco!

Com isso, quem se atrevia? A mauser com o cabo se mostrando pra que todos botassem reparo e respeito. Bem que se tinha vontade de despachá um caboclo daquele pros quintos. Mas, assim, assim?.. Aí é que não!. Tanto que, cabo Ambrósio e mais um destacamento de subalternos rondavam por ali, de um lado para outro, tudo de butuca com uns fuzis niquelados e azeitados que dava gosto de se ver..

Gosto e desgosto porque, de coronhada, chumbo e grade, nem doido aluado gosta. E dali, daquelas paragens, todos sabiam que cabo Ambrósio mais seus subalternos, não eram alecrins doirados, nem favos de mel sem ferroada. Escancaravam e botavam trela nos caboclos só no espichar os olhos esgazeado de Legião de alma d’outro mundo. Arrepiasse pra ver e sentir. Esbodegavam, espancavam, furavam tanto de bala quanto de baioneta que, era depois, arrastar pro meio da saroba e esperar que, no dia vindo, havia serviço pra coveiro. Então ia-se mangar ou abusar da sorte?.

Então?!.. Ara, então, pai e compadre Tião se mancaram, espiavam de soslaio que aí, não tira naco de carne de virgem e ferraram na “mardita” só ruminando o desgosto e a sanha mal contida. Pareciam dois adolescentes enfarruscados mas de corações trinchados feito peru em dia de natal, os pobrezinhos dos safardanas desassossegados.

Lá pelas horas sombrias e já mortas, quando as últimas valsas arrastavam-se para seus termos e Maria Rita, pós dançar, mal da vida, umas duas com o seu protetor, o coronel, é que se deu o fato. Já lhes narro nos pormenores e nuanças.

O sucesso, quem assentou, foi um estouvado lá das bandas de Goiás que veio com a boiada recém entregue no Frigorífico Anglo. Do muito abusado e cara de desentendido, se chegou, lançou mãos pros lados da menina Rita sem convidar, sem nada, já ajeitando o corpo dela no seu e preparando as botas pra levar no compasso quando o coronel Salustiano, já de mauser em punho e com a outra mão garrando nos cangotes do folgado ia, no mínimo, humilhar o sujeito botando o cabra de joelhos e coisa e loisa, como de costume quando, no virar, o tal, já meteu-lhe uma lapa de faca nos vazi’ que foi sangue e buchada pra casa do cacete e o coronel Salustiano arreganhou dois olhos esbugaiados, querendo falar e não achando, grunhindo feito porco e o outro, o estranho, empurrando a faca com cabo, mão e tudo pra dentro do homem quando, de um salto, cabo Ambrósio, adentrou em cena feito cão danado com sua pistola de mais de seis tiros e passou fogo e fogo cruzou dos dois lados, fechando pelos quatro cantos que, antes de bater as costas no chão pisado, o coronel Salustiano apertou o gatilho e a porra da mauser parecia o cão, deu de soltar uma atrás da outra. Tanto que, a testa do cabo, virou um sarapaté de miolo e o tampo detrás foi parar não se sabe onde. E os subalternos, pregaram fogo à esmo, sapecando tudo: coronel, cabo, estranho, Maria Rita, sanfoneiro e quem mais soçobrou pela frente. Tava feita a danura!.

Finda a fuzarca, no corre-que-corre, o que mais se deu trabalho foi o amontoar de corpos e socorrer feridos. Finados foram pra uns nove, contando com o coronel, o cabo, o estouvado, mais três homens do destacamento e, aí muita gente se chorou e se apoquentou porque, Maria Rita era que só buraco de bala de fuzil... Ficou feito uma peneira e baixou uma tristeza, uma melancolia, uma saudade repentina que Deus me livre!...

Nunca mais se fez festança por parte da paróquia e pai mais seu compadre, té hoje, se destramelam numas lamúrias que faz pena presenciar. Só porque o que era da terra, homem nenhum comeu. Compadre Tião é o mais desinconformado com a desgrameira e, vez por outra, se ouve alguma valsa dolente, vira uma espécie de bicho mofino a zanzar pelas brenhas, ribando olhar pro céu, trupicando em garrancheiras, variando aluado, choramingando e rezingando baixinho, num destampatório de falação sem tino, desconexo que, já té pensaram em internar o infeliz. Fazer o quê?! Amor é coisa de doido e o destino, pra mangar de gente apaixonada, é um já-já que, não tem por onde.... Tem não!.


 

TERCEIRA PARTE

MENINO DO MATO

“Vivemos de sonhos; somos impelidos por eles e atrás deles, corremos!.
Infeliz daquele que diz:
— Já não tenho mais com o que sonhar—,
é um sujeito morto.”
Maury de Castro.

 

O menino, decerto que era lerdo. De pequeno, mirrado e amarelo, labutando contra seus estorvos da fauna intestinal, passava os dias da infância acocorado pelos cantos do terreiro do casario de fazenda, reduzida aos poucos. Restara quase nada do que fora. Contudo, era um mundo que, nem cabia no coração do menino do mato. Embora, sequer o coração do menino, coubesse no próprio peito, tanto que crescera sem que ninguém atentasse para o fato.

Ficava por lá: escarafunchando cismarento, divagoso, sem pressa ou urgência, seus próprios pensamentos. Se insizudava feito bicho escarvando o chão, a ruminar idéias no divagar infindo. Sequer jogar prosa fora; pinchar conversa de gente, ousava. Bicho sem preceito, panhado à laço, aboiando sua manada de sonhos catravos. Esgaravatando formigueiro na terra vermelha do chão; espiando sob a modorra do sol febricitante da metade do dia, os lagartos que ele esperava amadurecer. A cobra de duas cabeças; as tanajuras, taturana; marimbondo-exú; papa-vento nos galhos das árvores ressequidos.

Pelo caminho de terra batido, em meio aos pastos de capim e mato rasteiro, a jibóia lenta, espichada, nem soprava, nem enrolava-se para bote ou, sequer, dar-lhe importância que, já havia saciado a fome. O menino perambulava, lengando nos passos; o sol cozinhando os miolos e estalando mamona. Os bois e cavalos buscando sombra, macérrimos. Urubus sobrevoando em círculos concêntricos. Das nuvens quase, até os murunduns e pés de pau de junto das porteiras, cancelas e cercas de arame. Bicho orgulhoso, abarrotado de empáfia. Rei sem coroa e sem trono. Feito carcará, abutre...

Caminhava espiando sete-léguas e tanto. Nunca que chegar lugar algum. Nem jamais, sair do vezo. De menino, já cativo da carantonha sertaneja. Da canequinha de alumínio. Água puxada do poço, pelo sarilho. De junto do batedouro de roupas, da tina d’água e do mangueirão de porcos. Sob o frondoso umbuzeiro, deliciando-se com frutos verdes ou já maduros que, esse prazer, lá tinha em seu mundo. Macaúba, gabiroba, azedinha, fruta-do-conde, gravatá, jaca, melão de São Caetano na cerca, escarranchado de fora à fora. Do jatobá no céu da boca, as calorias que estouravam em perebas pelas pernas de gravetos. Cabeça de prego e furúnculos de comunhão com a pele já marcada, tostando ao sol.

Desaparecia, escafedendo-se das vistas dos mais velhos. Largava-se pelas estradas boiadeiras, vindas das Gerais, Mato Grosso e Goiás, passando pela ‘Vila Poéra’, findando no Frigorifico ‘Anglo’, um estirão de casa. Pelo caminho, o calção puído e mais remendos que... Deixava beira de barranco e pulava “de bomba” no poço mais fundo que, conhecia palmo a palmo o rio. Na lagoa não se ia que, sucuri botava medo. Bichão medonho que dava pés de comprimento.

No mergulho já era bom feito Carlinho macaco, parentesco com Chita e Tarzã no nadar e trepar em árvores. Com o Estenga, na bola-de-meia, campinho de terra, driblava o adversário imaginário estufando as redes para delírio da torcida não menos imaginária. Pés no chão, cascudo, com bicho de pé coçando que era uma praga. Gostava e desgostava a um só tempo. E era mato que nunca findava. Estradas que findavam, eram só lá pelos cafundós, onde Judas havia perdido botas. Escarseando a munição de bolinhas de saibro no bornal, recursava no “Barro branco”. Empreitada de um dia, dali do terreiro.

Enfarava. Dava hora que, sentado no chão, cobrindo os pés com a areia branca, quente, já não tinha mais o que fazer ou porque continuar. Então desligava-se desta. Criava asas e batia em retirada. Pelas veredas de outros mundos desconhecidos dos pais e dos manos.

A modorra dos dias sem tenção nenhuma da existência amorfa. Atrofiava a mente?. Nem por isso. Sem escola que ninguém dava jeito no seu aparte: sabia mais que menino estudando. Lia como quem houvesse completado estudos. Mangava dos manos, causo que eram tudo de trela e canga no pescoço. Espiava o carretão de bois com aquele mundo de espigas de milho para o paiol. Os bois puxando, as rodas ringindo, dolentes. A canga no pescoço não era coisa de gente. Nascera para ser livre. Vento sem porteira. Os irmãos ainda brincavam de criar curral e bois com buchinha e pau de graveto seco. Não havia graça. Por isso, difícil enturmar.

Preferia ser Sioux!. Apache ou Miniconjours. Índio de palavra e honra. Não homem branco, esperto mas sem dignidade de gente. As estrelas sabiam tanto quanto o vento. De junto da fogueira, butucava a lua alvíssima boiando no céu, banhando em prata olho d’água. Sondava São Jorge na eterna batalha contra o feroz dragão. Vinham pachorrentas as horas mortas e sombrias. O uivar dos lobos da mata da fazenda, anunciavam que era hora de panhá petrechos, sela, e voltar para a aldeia no galope emergente. Pouco, quase hora, lobisomens passariam a desentocar-se, buscando crianças. De ruim é que, naqueles tempos, os mortos vagavam pelas brenhas e sendas, buscando sabe-se lá o que. Imploravam acolhida. Acoitavam a gente assim, assim.. Bulindo na mente, fornecendo tentação para cometer coisa ruim. As carpideiras fiavam preces sem fim. Coisa de somenos importância para os desviados, de têmperas e natureza de pauta com o mal. Isso era lá o que era!

Nos conformes que, ia crescendo, mas não deixava de ser menino do mato. Pensava-se por birra. Bicho pirracento. Encardido. Arruaceiro. Insolente. Era não!. Nem maldade conhecia ou carecia: coração de algodão, tão puro era. É que ele era o que era e pronto. Cuspido e escarrado à quem puxara, afinal?. Mãe perquiria pai que bascuiava idéias do avô que, confidenciava com os fantasmas dos mortos já idos desta para outras. Não se chegava a “conclusões concludentes”. A porca torcia o rabo. O pato cusparava feito vô mascando nacos de fumo e, as estrelas forravam o manto negro que estendia-se do poente ao nascente. Aí o menino recolhia-se enfarado e alquebrado. Era o que se pensava.

Mormente, rolava na cama até horas suspensas. O sono negaceando. Cochilava ouvindo vozes e ruídos. Despertava dormindo para ver coisas do outro mundo. Fantasmas arrastando coisas pelo casarão. Gemidos lamurientos dos pecadores em sofrimento. Contava, à custo, para o vô e, de tanto, já havia perdido medo das almas. O avô sabia muito. Coisas todas da vida com seus cabelos nevados pelo tempo. Era o número um dos heróis. Encabeçava a galeria sem esforço algum. Pai também que, era pai. Mãe possuía era trono no coração. De bondade, perseverança, serenidade frente a adversidade e as tramas do destino. Conformava com um nada. Se não na cozinha, no batedouro, na carpina... Sempre na labuta, na peleja. Mãe era recompensa e aconchego. E a avó?. Quem tem, não carece de anjo da guarda, oras!.

Açulerava nos passos pelas quiçaça e sarobas, da vida espaventada, maldando destino de gente grande que desconvinha. Ressabiado nas estremeções que punham-no sorumbático a solapar a paciência de menino meio aluado, queria distância daquilo tudo. A casa pejada de gente e ele mofino, troncho, cara enfarruscada, por vias de tantos sucessos assentados pelas conversas dos mais idosos. Botava tento naqueles malsoantes causos, aquilatando os solavancos do destino por cumprir. Entristava meante severoso vir a ser. Gente cizanhando o tempo todo, esquerdas no pensar e agir, de corações empedernidos.. Aquilo lá era vida?. Pura desgrameira!. Isso sim, é o que era!.

De tanto que, criara peçonhas de tudo aquilo e, cabeça gacha, desviava os pensamentos daqueles espaventos. Desacoroçoava de um tanto que, muito jururu, embezerrado causo daquelas minudências, punha-se truculento, mó de não se deixar malassombrado e ainda mais encasquetado do que já. Canso de tais palrações e porfias, desembestava pelas estradas e matas. Escapulia dos verdugos com suas encontroadas de bodes velhos. Buscava afiançar-se, era na natureza que, criada pelo Pai, não havia carecência de botar desconfiança. Com a distância daquela converseira sem tento, voltava a encontrar a paz e a segurança. Era menino do mato novamente. E isso era o que se lhe aprazia, deveras. Amiúde, entregava-se de tais formas que, tornava à casa, esbodegado e, sequer dava importância a tunda, coça ou refrega. Apanhava calado. Botava medo no pai que, já danava a pensar que, o marelento parecia que gostava de ser lanhado pelas varas de marmelo. Nada. Era mesmo do casmurro e turrão que, chibata alguma lanharia sua natureza.

Um dia lá, após muitas contendas e aporrinhações com os pais, o menino se destrambelhou pelas veredas fora e dentro. Tinha lá consigo, de não tornar ao casario. Para o meio daquela gente cativa de princípios tinhosos. Olhar marejando, esconjurava tanta lorota. Embrenhou-se pela mata em sua forria, cuidando de untar as cissuras da alma e das idéias de bicho erroso. Bascuiô pela mata cerrada, sororoca, onça pintada que, desafiar e caçoar. Não encontrou. Dia ruim!. Desassossego no peito. Pegou-se enxugando no pulso, as lágrimas que floravam aos borbotões. Nunca fora daquilo mas, sentimento cissurado, não teve como evitar. Duvidação rançosa. Viesse o tinhoso, dava-lhe uma moqueta nas ventas e virava-o pelo avesso!. Andou até afrouxar os músculos. Voltava para casa mais não. E foi nadar no poção...

Sentia aquele pertucho na goela, proveniente do coração passarinheiro. Um sentimento avesso à todos os seus princípios. Logo de cara, sem pinchar calção para o lado, veio correndo e, do alto do barranco, deu três, quatro bombas com raiva. Daí, deixou o calção de esmolambado secando ao sol. Mediu forgo contando até não mais suportar, imerso nas águas que deslizavam morosas como que paradas. Descontente, enfezado, trepou-se na árvore suspensa e pendendo sobre o poço. De lá mergulhou. O Carlinho também mergulhava. Então, não conferia-lhe grandes méritos. Hão havia meremerência alguma naquela proeza. Deitou-se um pouco sob o sol, estafado. O sol ardia-lhe no rosto. Ele escumava de raiva e desgosto, ainda. Passou a achar tudo uma porquera só. A questão martelando sua mente, cavoucando, criando raiz. Não entendiam seu jeito de ser, pensar, agir. Na realidade, nunca se esforçaram. Pensava com seus picuás e aquela coisa, crescia-lhe mais por dentro. Mirou o topo da árvore. Não, dali nem Carlinho macaco, nem sô ninguém!.

De um salto, pôs-se de pé, caminhou lento para a árvore, decidido, intimorato. Foi se atrepando, passando de um galho para outro, até o topo. Mediu a lonjura lá do alto até a água do poço. Permaneceu atônito, cismando se valia o risco. Valia. Aprumou-se ajeitando o corpo, calculou o mergulho. Não ia dar bomba. Ia era mergulhar: proeza inaudita, sem precedentes. Proeza sem testemunha. Ninguém acreditaria. Mas isso era de somenos. Importava que ele sim, acreditasse em si mesmo. E mergulhou.

Veio descendo. Por um átimo, pensou que pudesse parar no ar, voltar atrás. Mas desceu veloz, atroz, feito um bicho ferido, uma rocha. Bateu com estrondo na água. Sentiu o impacto. Primeiro no meio da moleira. Continuou sentindo o solavanco percorrendo-lhe a espinha, espalhando-se pelas pernas. Bateu o coco em alguma coisa. Talvez o fundo do poção. Apagou. Desligou-se...

Sentia-se leve, voltou à tona, passou a flutuar acima da água. Havia conseguido, afinal!. Mas continuava arribando, subindo lento, passou pela copa da árvore, passou a ver lá de cima. O rio, a barranca, os campos ressequidos, as matas ciliares, porteiras e cancelas diminuindo. Um urubu passou-lhe triscando a cabeça..

Sentia-se leve. Corpo, sentimentos, pensamentos... Alma de passarinho. Menino do mato. Já não tinha zanga no coração. Somente uma alegria abafada, soltando-se aos poucos. Crescendo. Ficando maior do que ele e o mundo todo. Não percebeu quando atravessou uma nuvem. Não percebeu que sorria. Não percebeu que, lentamente, tudo foi se apagando de suas memórias de criança panhada à laço. Liberto, livre, em sua forria de bicho do mato, o menino espiou o sol que descia lerdo, modorrento, avermelhando o poente, tingindo um mundo de horizonte sem fim com o seu vermelho sangue. Logo a noite firmar-se-ia sarapintada pelas estrelas. Foi indo, foi indo, até que passou a não lembrar-se de mais nada. Sequer quando tudo apagou-se de vez....

A noite escorreu à custo obedecendo ampulheta sem pressa. A manhã veio com o cantar dos galos e o sol já ardendo, esturricando aqueles confins restinguentos, de mato rasteiro e pó de estradas avermelhadas pela poeira. A família esperava. Na beira do barranco, o calção puído, surrado e remendado do “Menino do Mato”, secava ao sol implacável, cumprindo sua tarefa e sina de astro rei.........


 

LUA

 

Mas, são tantos causos e histórias dos tempos de criança acocorada no terreiro que, vai se puxando pelo fio da memória, tomando fôlego e se ponhando muito tento, causo de não confundir um com o outro, tão parecidos e diversos ao mesmo tempo.

Noitando, já um vento sibilante varrendo e soprando tantico com força, prenunciando tempo virado pelo avesso e, nós tudo em volta da fogueira.

Durante o dia, o sol esturricando os pastos de capim avermelhados pela poeira sertaneja. A gente, de férias da escola, solapando a paciência dos mais velhos em meio aos afazeres cotidianos.

Quando o sol descambava no poente, agachando trás da linha do horizonte, a noite se vinha com seus pios de solidão e gemidos de assombração.

Despertava então, nalgum canto, encafuada dentro da gente, uma melancolia tamanha; parmente com outros sentimentos sem explicação que, a gente se garrava numa vontade de chorar sem tino que só vendo.

Então, a modorra dividia espaço de languidez com o vento ciciante da brisa fresca, adocicada com o cheiro do mato, olor do capim-gordura das barrancas dos rios e o ar, aos poucos, tornava-se ameno, sob o céu de estrelas.

Bom era que, noites de frio, já se montava fogueira no terreiro, a gente em volta pra assar batatas, doce e milho. Eu, os manos, mais algumas crianças da vila. Na cozinha, mãe mais as outras mulheres: Dona Dijanira, Dona Maria, Dona Laura, a Avó, a Sara que era casadoura já de idade e corpo, todas numas risadas cúmplices, no preparo do quentão, nos quitutes e chocolate que a gente esperava impacientes tanto quanto a fauna intestinal que, remoía-se dentro de cada um.

Não menos cúmplices que as mulheres, eram os homens: pai (galo dono do terreiro), compadre Tião, Dedé que fora batizado na roda, de aliança no dedo, com casamento marcado e, um outro compadre do pai, o tenente Aroldo, da polícia militar. Por essa época, meu tio Nenzinho havia mudado com a família para Barretos e, puxava moda de viola e violão com as duas vozes duetando e perdendo-se ao longe. A dupla Nenzão e Nenzinho, tios nossos e manos da mãe, cuidavam das funções de instrumentos e cantorias.

Além do quentão, corria a pinga de engenho. Era uma misturança que, dava um pouco, tavam tudo banzé, levantando poeira do chão, com a catira de pé e palmas, como se fosse festa no arraiá da roça. Ali, se esquecia dos reveses e percalços da vida.

Mais apartados, nas cadeiras de palhinha, avô Herminio, seu João da dona Maria e véio Tinoco, punham conversações de pauta dos tempos remotos da Revolução de Trinta e dois, da Captura e do Cangaço que, vô era sargento da polícia da Bahia, nascido em Lagoa Clara. Do lado deles, o casal “Baião e Baía”, dois canzarrões sem medidas, se espichavam feito anjos da guarda.

Aí, já era noite feita. Pelos lados do Norte, o céu carregava com os forros tudo rameados, soltando uns riscos elétricos que, parecia que, à qualquer momento, desabaria céu e escarcéu por riba de nós. Já pras bandas do Centro-oeste e Sul, estrelas iam trocando assim-assim, de lugar, com a lua brincando no esconde que esconde, por detrás de uma ou outra nuvem desgarrada, completando o quadro dos contrastes, o que era de uma belezura que chegava a doer dentro da alma da gente no se ver.

Nos conformes que, a noite se posicionava. Se definia. Os homens, já sapecados, calmavam os ânimos exaltados e, mais saudosos, faziam “releituras” do velho e riquíssimo cancioneiro do sertão. Puxavam umas toadas, umas modinhas amenas que, mormente, iam serenando as inquietações das almas. Prisioneiros dos sonhos confrangedores, ai! que, o mundo, a sina cabocla, as raízes sertanejas, vingavam-se dos corações frechados por mil lanças de cupidos em Plêiades invisíveis, de passagem por aquelas brenhas e confins!.

No derredor da fogueira, as primeiras batatas, nas brasas arrastadas para o lado, estalavam no ponto. Muito pouco se perdia em pinchar conversa fora. Ocupados, os maxilares remoíam sem trégua, pipoca, pés-de-moleque, paçocas e batatas. Milho e chouriço já se haviam assentados de tempos nas entranhas ávidas. Um ou outro (já se misturavam, na mesma roda, os meninos e a meninazinhas-mulheres), ousava contar vantagem. Levava peia, ali, no ato. Pra deixar de ser papudo, gabola, almofadinha. Desses, nem as meninas gostavam. Nutriam simpatia era pelos instrospectos; os casmurros no silêncio e nos modos de se portarem.

Minhas irmãs, futricavam com as primas e as colegas de escola. Meus irmãos, tudo uns bichos sem preceito algum, ou se desligavam delas, ou desfaziam-se de seus fardos parmente com as invejas, resolvendo as diferenças com o puxar de cabelos, o difamar com uma ou outra e, não apelavam mais, para tabefes porque, Dona Maria, de olhares e ouvidos afiados, mal se iniciava uma contenda, uma diferença, implicância, propunha-se a colocar termo nos tititís com uns bons trancos e solavancos. Por último, em caso de necessidade, valia-se das varas de marmelo.

E alguém desfeiteava?!. Dona Maria já velhinha, miudinha, cusparando pelo terreiro, trançando nas pernas, pitando uns cigarros catinguentos de fumo picado, era quenêm mãe. Era da família, a bem dizer. Com licença do pai, mais a mãe pra, chegar a vara de marmelo nos perebentos da prole. E Dona Maria, nas horas de precisão, carecendo dos devidos corretivos, não se vexava na tunda, na coça e, ai! que vara de marmelo é pior que vexame de choro!.

O trem zumbia no ar, descia, lanhava os cambitos magros de gravetos, muito dos mal fornidos pelas carnes que, só ossatura e peles, marcando de vergões pra dois ou três dias. Se não, pra mais. Dependendo do jeito e da força medida e empregada durante o corretivo.

De forma que, antes de apelar, soltar alguma cabeluda, de mandar alguém praqueles lugares sujos, pensava-se duas, três vezes, espiando ao derredor e, mesmo assim, se Dona Maria não estava acocorada à boa distância, corujando, espiando de curiango o olhar, as meninas tinham o disparatado hábito de, saindo da roda com tenção enganosa de irem na privada, irem mais era, dedurar as desfeitas sofridas.

Nesses conformes, mantinha-se o bom comportamento e relacionamento no grupo. Por vias desses assentos, os laços pacificiosos na convivência difícil entre meninos e meninas, foram mantidos ao galope dos anos e no descambar do tempo da infância ida.

LUA era quem menos participava. Nem tava do lado dos meninos, nem das meninas. Não se juntava às mulheres, nem aos homens. Vez ou outra, tava de junto dos velhos, babando com os cachorros.

Na realidade, Lua não era nem de uma família, nem de outra. Se um dia tava num rancho, morando de favores ou em troca de pequenos serviços e prestações de somenos importância, no outro, Deus é quem lá sabia de seu paradeiro. Naquelas férias, andava cortando capim para os cavalos, rachando lenha e ajudando pai a cuidar dos porcos. Na serralharia que pai e tio Nenzinho tocavam de à meia, o Lua não prestava pra nada. Tinha medo de solda elétrica.

Apesar de grandalhão, com força de dois homens marrudos e rachar lenha como ninguém, vô dizia que Lua havia mais era brigado contra a natureza do ser humano, deixando de crescer mentalmente.

A gente entendia e não a um só tempo. Causo que, Lua, parecia criança com os cachorros, os porcos, os cavalos e as galinhas soltas pelo terreiro do casario. Ao mesmo tempo, quando trabalhando de ordem recebida, parecia um touro, bichão de forte e, determinado a jamais descansar com obrigação pelo meio. Sem cumprir tarefa no seu todo.

Naquela noite, Lua ficou rondando. Encostado na porteira da cerca do quintal, espiava coisa nenhuma; sem nem entrar; sem nem se mandar pelas estradas. Ficava lá, tempão, escarafunchando mundo da lua. Nem se rindo, nem de cara enfarruscada, botando carantonha. Figura desenhada, era uma expressão de enigmático aluado: doido manso e sem tento da vida e das coisas todas dela.

Nós, tudo criança, fazíamos de conta que, Lua era conta fora do rosário. Nenhum de nós tinha receio declarado do Lua, mas todos cortavam volta daquela desgrama de sujeito mal resolvido.

Do muito safardana e fidu’égua, Zé Antonho dizia que gente quenêm o Lua, era um problema grave. Perigoso, muito. E explicava as minudências pra vingar medo em nós que, acreditávamos em tudo quando era porquera. De lobisomem a bruxas. De saci-pererê a mula-sem-cabeça.

Com isso, Zé Antonho se valia de muitas artimanhas, sem o menor escrúpulo. Dizia que Lua era dos avesso. Que mais dia, menos dia, acabava cometendo doideira com um de nós. Espichava um beiço de mulato desdenhoso e perguntava pra nós, o que um sujeito feito Lua poderia ter na cabeça, além de vento?. Que aquilo, era um brutamontes com Q.I. de porco-espinho e talecoisa e coisaetal.

Encompridava conversa de sabichão dizendo que Lua, com aquele jeito de lerdo, arvoado, era feito lobo em pele de carneiro. Bicho tinhoso, o Zé Antonho!. Perguntava tudinho e o fazia com ares de reticente absurdo, como podiam, os pais, deixar aquele tribufu, com machado de rachar lenha por perto de nós, crianças?!

Tudo isso e mais, pregava Zé Antonho, o mais velho de nós e vizinho de quadra e meia de casa. A gente se encasquetava e punha desconfiança em Lua e, não era pra menos, pois?.

Avô dizia que Lua era tal e qual, cuspido e escarrado, um animalzinho de estimação. Tratado de forma decente, era bom que se deixava montar de manso e pacato. Se se maltratasse Lua com judiação e porrete, de mágoa e desgosto, era capaz de esganar um, sem tino no desatino dos sentimentos envenenados. Cometeria tal ato porque, capaz, ficava cego do coração.

Então, Lua não pensava como os outros porque, não tinha cabeça para tanto. Pensava era com o coração. E conforme vô explicou certa feita, o Lua, tinha o coração maior do que ele mesmo. De um tanto que, nem se lhe cabia no peito, tão bom que era.

Por via das dúvidas, a gente tava sempre com um pé na frente, outro atrás, em se tratando do Lua. De formas tais que, ninguém mangava dele.

O pai e a mãe já haviam dirigido-se até a porteira, convidado Lua para entrar, comer pipoca. Ele se riu manso, acanhado. Aceitou bacia de pipoca com chocolate na canequinha de alumínio mas não arredou pé de junto da porteira.

— Fazer o quê? —, perguntou pai a mãe.

— Deixa ele, ara! —, respondeu mãe, dando o caso por encerrado.

— O “Lua” tá de lua, hoje. —, mangou baixinho o pai.

Nisso a mãe olhou enviesado, ensizudando, enfarruscando cenho para o pai que, gachando a cabeça, por sua vez, se embezerrou-se todo, voltando murcho pra roda dos homens. Mãe juntou-se com as mulheres que, por estas horas, afazeres cumpridos, formaram grupo no terreiro, assentadas em cadeiras, num converseiro de comadres que deixasse, varavam noite sem repetir assunto.

Nesse entretempo, sem que ninguém se apercebesse, Zé Antonho garrô a mangá do Lua que tava lá, quieto, de junto da porteira.

Os homens, tudo concentrados numa valsa dolente, de corações feridos pelos espinhos da ingratidão duma caboclinha que, pelo jeito, não havia abandonado somente o autor da música e sua personagem, mas, aquela tropa toda ali no terreiro, com sua vozes destoando no tanger das mágoas e no turvar das idéias, causo do excesso de cachaça que rodava às escondidas das mulheres.

Já, as mulheres, conhecedoras de seus homens com o sangue fervente a borbulhar-lhes pelas veias de capiaus machistas mas carentes; daqueles corações que, duas ou três doses, punham-se merencórios, a transbordar sentimentos inconfessos, centravam-se nos seus assuntos particulares, de mulheres sem tempo para sonhos, devaneios ou luxos da mocidade ida, na pelejança da administração da vida, na lida e labuta para com a administração dos lares; da criação e educação da prole que, naqueles tempos, parecia uma escadaria com degraus sem fim no pagamento de promessas...

Os idosos, enfarados e exauridos pelas horas corridas, bocejavam, entreolhavam-se, rezingavam sobre uma quantas dores nas juntas e aquele tempo abestado para, sem mais porfia, voltarem a cabecear sonolentos. Os cães, pachorrentos, ressonavam a sonhar com pernis, ossos e pulgas.

Estava tudo dentro dos conformes, com o sono já assentando na criançada quando, sem ninguém entender nadica de coisa alguma, o Zé Antonho irrompeu pro centro do terreiro aos berros de “Me acode, Jesus!”.

Foi então que se viu, à luz dos lampiões e do que restara da fogueira, o melaço vermelho brotando do nariz achatado por um soco no meio da cara de bicho abusado. Zé Antonho pranchou na terra, perto da fogueira. O sangue brotando e nós vimos o Lua avançando lentamente. Os punhos cerrados, a espuma aflorando dos lábios trêmulos..

— Vai matar! —, berrou mãe, pedindo acudimento por parte dos homens.

Seu Tião bem que tentou intervir. Levou um safanão e saiu catando cavaco pelo chão de terra pisado. Pai fez que ia mas, Dedé se meteu na frente, puxando conversa, querendo entreter o Lua. Nem avô apascentou a fúria do aluado. Iscaram o Baião mais a Baía no Lua. Os cães abanaram os rabos e feito os outros, passaram a espiar. Zé Antonho levou outro safanão, indo esbodegar-se pelo chão, beijando cavacos e bosta de porco.

Fez-se silêncio medonho. Sustido naqueles ares de horas avançando. Foi tempo contado, medido e certinho em que pai entrou e saiu de dentro da casa com a espingarda nas mãos. Vinha com tenção assentada de atirar nas pernas do bruto. Abriu roda, no que fez mira, todo o mundo quedou-se de queixo caído:

O Lua nunca havia dito, desde que aparecera por aquelas bandas, uma única frase que se entendesse. Foi de queixo caído e numa pasmaceira besta que todos quedaram-se quando Lua falou e, de forma fluente:

— Esse caboclinho aí, esbordoado, não presta. Presta não, o safado!.

O Lua falava. Zé Antonho choramingava desesperado. A gente fez roda pra ouvir e ninguém já nem pensava em intervir naquele causo ou apartar encontroadas. Pai baixou a arma. Zé Antonho cuspiu uma frase com sangue. Frase inesperadamente patética, para nós sem querência alguma de ser regurgitada com tamanha humilhação:

— Me adesculpe, Lua!.

O Lua deu um passo para o lado, cuspiu no chão fazendo bolinha na poeira, respirou fundo. Viu-se no seu semblante que não carecia de mais violência nem intervenção. Mesmo porque, Lua havia cuspido era de nojo de Zé Antonho.

Foi então que, enquanto todos nós bascuiávamos pelos vezos da mente, explicação para o fato, o Lua olhou por um tempo indefinido para a menina Margarete, de uns doze anos, filha do barbeiro daqueles cantões e, em seguida, deu as costas para todos...

Foi andando, lengando nos passos de homem jururu. Todos haviam visto as lágrimas brotando teimosas de seus grandes e melancólicos olhos de boi manso. Foi indo, arrastando os passos, soluçando, indo, até desaparecer lá no distante da escuridão, pelos confins. Na distração, o peçonhento do Zé Antonho também carpiu o rancho daquelas paragens. Nem ele, nem Lua, nunca mais puseram os pés por aquelas bandas. Somente a menina Margarete e os homens sabiam daquele causo e seus pormenores.

Foi avô quem contou que, os homens, desconfiados, encantoaram o Zé Antonho e, deram-lhe tantas bordoadas que, quase desancaram o lazarento. Nunca mais ninguém tocou naquele fato ocorrido e sucedido. E, quando se tocava no nome do Lua, aí sim, aí, todos botavam-se macambúzios, entristecidos, cismando, cismando... Então vinha uma saudade tamanha, sem tino que nem se dava para contar.....


 

A MÃE E OS ANJOS

 

Permanecia estático, meditabundo, cismarento, acocorado a mirar o céu e sua imensidão. As nuvens deslizavam morosas, tomando formas. Esculturadas por mãos diligentes, invisíveis, angelicais. De forma que, ainda menino, seus pais não haviam conseguido tirar-lhe da cabeça, aquela idéia maluca e disparata de que um dia, fosse alçar vôo e, uma vez liberto, planar pelas searas do imensurável. Jamais dissera uma palavra sequer.

Contudo, os pais deduziam que, toda aquela persistência em observar as aves no céu e o próprio céu em seu todo... Bem, daí que, o pai carrancudo e implacável, o vigiava de forma acirrada dia e noite. Fazia-o muito mais por intriga e curiosidade do que qualquer outro interesse quanto ao filho que, para ele, não passava de um galináceo subdesenvolvido, entisicado e, com titica no cérebro, ao invés de miolos.

A mãe, de palavras escassas e medo demasiado, sussurrava em sua imbatível tristeza, a observar de soslaio:

— Pobrezinho!, tão mirrado que parece um passarinho desamparado.—. Aquele tipo de observação, deixava o marido enfurecido, bufando feito um animal prestes a sair dando encontroadas e marradas em tudo o que encontrasse pela frente.

— Não torne a repetir tal frase dentro desta casa ou acabo cometendo um disparate, uma desgrameira!—, berrava o marido, impondo autoridade com seu vozerio grave e severoso.

Odiava ouvir a palavra “passarinho” que a companheira emitia como que soando de forma agourenta e com extremada piedade. Por fim, calavam-se na preocupação de, jamais deixar que o povo daqueles cantões e brenhas, percebesse que o menino, o único varão e, também, filho único fosse diferente, frágil das moleiras.

— Decerto que, não deve passar de um infeliz aluado que veio para este mundo cheio de provações e aporrinhações, sobremaneira.—, considerava o pai já, por demais enfarado e desgostoso de seus padecimentos inconsoláveis.

Ela, por sua vez, preparava a comida do menino, numa cumbuquinha. Coisa de nada. Como quem tratasse de um passarinho. O menino permanecia entristecido, macérrimo e ensimesmado. Emudecido. Macambúzio. Observava a mãe pronuncia-lhe as sílabas, palavras, frases. Contudo, parecia nada compreender. Desinteressava-se e voltava mirar o céu em sua obstinação desarrazoada. Ia para os cinco anos e, parecia um franguinho raquítico, tão mirradinho, o pobre!.

À bem da verdade, de início, fora quase que uma criança como outra qualquer: aninhada nos braços da mãe, sugando-lhe os seios com seus enormes e melancólicos olhos azuis que, encantavam e seduziam, tanta a singeleza. Tornar-se-ia, deduzira a mãe, um homem miúdo se, comparado ao pai. Todavia, saudável. Entretanto, o pai já o mirava com desconfiança e presságios agourentos, rabiscando-lhe a mente de homem “sem sorte na vida”. Tanto que, aos três anos, o menino continuava sem sequer ensaiar um pequeno, diminuto passo que fosse. Ainda para complementar seu extremado azar, tinha quase que certeza que, a criança era muda. Apesar de tais contratempos, a adversidade, o menino gatinhava perfeitamente de um lado para outro. Comendo terra, lambuzando-se com a própria titica que fazia, mas, sem esboçar um sorriso, alheio aos sentimentos e expectativas dos pais.

Quando completou cinco anos é que, dada alguma casualidade, o pai descobrira que, o garoto jamais fora e, pelo jeito, jamais seria como as outras crianças: normal. E, inconformado, ameaçou sacrificar a criatura que tivera participação em colocar neste mundo. Somente não levou à termo tal intento, por conta do desespero da mãe que, ameaçara pinchar-se cisterna adentro.

De qualquer forma, amarrou o rebento ao pé da mesa da cozinha e, angustiado, amolou a tesoura de poda. A partir de então, sem descuidar-se somente um segundo, a cada dois ou três dias, aparava as asas que, teimavam em brotar e crescer sobre o dorso do menino.

— Isso é coisa do tinhoso! —, dizia à mulher que, discordava veementemente. As penas, que nunca chegaram a crescer mais que alguns centímetros, eram brancas feito algodão. Portanto, para a mãe, era coisa de Deus. Embora, estranha. De qualquer forma, retrucava:

— Fosse coisa do tinhoso (Deus nos livre e guarde, amém!), certamente seriam negras ou vermelhas porque, são cores que simbolizam o mal.

Acocorado sempre, fazia sujeira por onde estivesse e, ultimamente, dera de ciscar feito um frangote. O pai, do alto de seus quarenta e nove anos de pura ignorância, precavido de tal maneira, percebera que, as penas dos cotos de asas, passaram a crescer mais rapidamente e, sobretudo que, ameaçavam espalhar-se feito penugem pelas costas, braços, ventre, pernas e “sabe-se lá, se não, pelo rabo!”. Desabafava, espiando de través, a cismar no que daria tudo aquilo. Às vezes, estiolado pelo enfaro de tudo, com a cabeça abarrotada pelas mais absurdas conjecturas da imaginação, imprecava desdenhosamente:

— Só me faltava piar, cacarejar ou algo parecido!.

Confrontava-se horas à fio com aquelas idéias desnaturadas que se lhe brotavam à socapa e, pedia que o Senhor o livrasse do sacrilégio de ter que, torcer o pescoço ou sangrar a criaturazinha que ele tanto esperara. Moroso, o tempo debandava. Até nisso, parecia haver uma conspiração para desarranjar-lhe as idéias no acabar atazanando-se de um tanto que, capaz trucidar, de hora para outra, seu rebento.

Aos dez anos, o menino continuava mirrado e ciscando na merda junto com as galinhas no fundo do quintal, preso por uma corda. Então, o velho pai, tratou de construir um cercado com tela reforçada e cobriu com pesadas folhas de zinco. Como o galinheiro fora erigido à sombra de frondosa árvore, não havia perigo do sol cozinhar os miolos do infeliz. Além disso, o velho passava, praticamente, todo o seu tempo, sentado em seu banquinho de madeira rústica, ali por perto, a cortar varetas e torcê-las, trançando-as em cestos que, vendia para o único armazém de comércio daqueles confins de sertão.

E o menino, cada vez mais franzino. Como se estivesse encolhendo com o passar dos anos, ao invés de crescer. Aparadas as asas, restavam penugens que espalhavam-se pelo corpo inteiro como se, ironicamente, zombassem dos esforços descomedidos do pai em preservar o pouco de aparência que o filho possuía de gente. Mesmo os olhos, do azul angelical dos primeiros dias no regaço da mãe, adquiriram cores mal delineadas e, tanto ficara de cócoras que, já não era possível resgatar-lhe a postura de ser humano. Bem que ele, o pai, tentara ao longo daqueles anos de penúria.

Não havia como, “uma vez frangote, eternamente!”. Rezingava desdenhoso e atribulado o coração de pai frustrado. Acabou enfarando-se de observar a mulher atirando milho dentro do galinheiro para o seu “anjo rejeitado e relegado àquelas condições miseráveis que, certamente, o Senhor de todos nós que, à tudo via, não deixaria passar em brancas nuvens aquela atitude desumana do pai”.

— Deixa de ladainha, mulher!. Isso lá é obra de Deus?.—, perqueria acintosamente, de saco cheio das lamúrias sem trelas da companheira.

— O que se planta é o que se colhe. Se Deus faz, tem seus propósitos em sua perfeição e bondade que, Ele, jamais castiga e nem rejeita o menor dos seus.. Acho que você deveria abrir o coração e os olhos para os sinais. Se ao menos você tivesse compaixão para aceitá-lo dentro das quatro paredes da cozinha.. Sequer isso!. tratar o próprio filho como se trata um animal, uma ave qualquer!..—, debulhava-se em prantos e lamentações infindáveis, a pobre que, perdera as esperanças de levar para dentro de casa o seu filho.

— Desconversa!. Arreda com a ladainha que desconvenho desse teu enviado dos céus que somente continua vivo porque você mesma sabe que não sou de infringir as Leis Divinas. Contanto que não perca a droga da paciência!.

Bem, ali estava um argumento de fazer calar qualquer pessoa que ainda mantivesse alguma lucidez e discernimento. Se o homem falava, já estufando as veias do pescoço e bufando feito um animal, melhor não abusar da sorte. De forma que, meante tais argumentos, anuía e calava-se resignada. Fazer o quê?. Bom marido, mas lerdo de idéias e duro de coração quando punha-se-lhe o sangue a ferver. Perdia o tento de tudo e capaz das mais disparatadas besteiras que, nem se queira imaginar. Tanto que, na realidade, deveria agradecer por não ter posto fim à vida do pobrezinho. Decerto que não?.

Quem pensa duas vezes não faz. Se era de conversas e palavras feito rochas, tinha seu porque e contratempos que, a vida também espicaçara de tal maneira que, acabara deixando seu coração empedernido. Melhor reconsiderar e confiar no tempo. A mulher pensava e agia. Adquirira a sabedoria através da simplicidade e da resignação. Do sofrimento e da fé nas palavras que lia nos Livros Santos que, desde meninazinha ainda, o pai ensinara-lhe a ler e interpretar. E não era de valia em tantos momentos de percalços em sua vida?!. Deixava o marido rezingando, soltando seus palavrões e terminava de cuidar do pequeno, calada, o coração magoado, confrangido e ao mesmo tempo, exultante de esperança e fé no que, mirava os olhos compassivos do pequeno de cócoras, com ares “pidonchos”.

Deu-se que, o pai nem mais sentava-se ali na varandinha. Abandonou o estranho filho de lado, deixou de vigiá-lo, de cortar-lhe as asas e, somente algum tempo mais tarde, percebeu assombrado, o garoto ensaiar pequenos vôos pelo quintal. Fez-se indiferente, como quem gostasse desgostando à um só tempo. Não interferiu. Não voltou a prender o menino que parecera-lhe querer avançar para a puberdade, muito embora, pela primeira vez, durante aqueles anos todos, pensasse sobre o assunto e, deu de ombros porque, não fazia diferença alguma se o “bichinho” possuía sexo ou não.

A mãe também não tecera qualquer comentário. Contudo, percebia-se que ela sentia-se feliz em ver seu pequerrucho dar aquelas corridinhas desengonçadas e, espaventado, tentar alçar vôo num bater de asas que mais parecia um “pé de vento” naquele escarcéu de revoada levantando poeira, atirando cocô de galinha para tudo quanto era lado e, finalmente, sem alçar o corpo mais do quatro ou cinco centímetros do solo, realizar aquelas vergonhosas aterrissagens, esbodegando-se nalgum canto da cerca, todo estiolado e soltando penas pelo ar.

De qualquer maneira, aquelas primeiras lições, por serem hilárias, acabavam divertindo mãe, pai e o cachorro que, vez em quando, danava correr no encalço do menino, estorvando-lhe a concentração ou atropelando-o quando, feito dois bodes velhos, davam algumas encontroadas, sem que houvesse tempo para o “pássaro” vingar na carreira, com simetria de asas e pegar impulso necessário para lançar-se pelo espaço. Ria-se à bandeiras despregadas porque, ambos desajeitados, pareciam entender-se muito bem sem a necessidade de desculpas ou algum traço de ressentimentos.

O primeiro a cansar-se do curioso espetáculo circense fora o pai. Voltara à velha casmurrice e desaprovação “daquelas palhaçadas”. Esforçou-se para não emitir palavras de baixo calão diante da companheira e, num muxoxo, resfolegou mais para si do que, para quem quer que estivesse à sua volta:

— Bicho mais atropelado, sô!. Se no chão de terra batido já se desengonça todo, imagine nesse diacho de intenção de querer ser o que não é?! Se arribar do chão, capaz esbodegar-se todo de encontro no primeiro pé de pau que encontrar pela frente!.

A mulher escutou tudo, fazendo de conta que não que, era uma coisa que ele percebera lá nela. Achou até que, ela tivesse astúcia naquele ato positivo em evitar discussão que não sanava nem atenuava o problema. Ela tinha dessas coisas de, quando menos se esperava, desentranhar sabedoria no resguardar-se silenciosa. Daquilo, até que ele sentia orgulho na mulher. Só não entendia porque tanto apego com o danado emplumado que ela esperara tanto e, carregara todo aquele tempo nas entranhas e que, de repente, como se fosse um ser abençoado, inventara de viver em seu mundinho e, nem acabara de sair dos cueiros, já lá estava inventando de virar pássaro e danar-se pelo mundo sem nem agradecer. Era isso o que invocava porque, de besta, se conseguisse realmente arribar um dia, desapareceria e nem uma benção mãe e pai!. Quanto mais, tornar ao lar!.

Voltou a desgostar das manobras do filho. O “passarinho” não era de se entregar meante tombos, capotadas, raladas, ferimentos e cabeçadas na cerca de mourão e arame farpado. Contou os meses de memória e, lá pelo oitavo, bem contado, não é que o alvoroçado conseguira dar um carreirão e, no impulso, já manejando e controlando as asas em de à meia com o vento, saiu do chão e arribou estabanado, uns quatro ou cinco metros com direito a manobras de curva no fim do terreiro, rente a cerca?!. Então?. Voltava na mesma toada do bater as asas e na hora de pousar, aí sim, perdia um pouco o prumo. Vinha com uma asa esquecida em ângulo de abertura estranho, planando, quando, a outra, deu de bater sem tento algum, descontrolada, juntando-se ao corpo e abrindo de forma abrupta que, ele estatelou-se pelo pó feito uma garça velha e abatida a tiros de chumbo.

A proeza fez com que a curiosidade do pai voltasse após o acesso de riso que o acometera com o atrapalho do pouso. Vira o suficiente para encafifar de querer descobrir até onde conseguiria chegar o danado do moleque. Disfarçou que era para não comprometer-se frente às vistas da mulher que, era só orgulho no juntar as mãos, levar aos lábios, escondendo o sorriso de contentamento, numa torcida que só vendo.

Dava um tempo pela cozinha, resmungava junto à cisterna, rodando o sarilho com o balde de água fresca, como se tivesse necessidade de puxar água!. Acocorava na varanda sondando o tempo e picando fumo para um cigarrinho que pitava lerdo, espargindo a fumaça fedorenta e, já calculando pelos movimentos do filho, sabia quando viria nova manobra. Daí, botava tento naquela proeza sem explicação que lhe fizesse apascentar alma e moleiras. Como podia ser?!.

A mulher resguardava-se menos, já sem grandes estardalhaços pelo sucesso do filho voador. Sabia, pois, que o marido tava de “butuca”, só espiando como quem não tivesse o mínimo interesse. Aquilo fez com que ela acendesse por dentro, a velha chama de carinho pelo seu velho e macambúzio companheiro desde há muito, nas dores e alegrias; pobreza e fartura, até que... Bem, fora mais ou menos o que o padre dissera. E deixou a chama arder. E, disfarçadamente, ambos apreciavam as novas acrobacias aéreas do filhote. Disfarçadamente, separados e mais unidos do que nunca. Esta era a verdade!.

Foram tantas as tentativas, ensaios, tombos e escarcéu que, apesar de já esvoaçar de um lado para outro do terreiro, teria muito o que aprender para arribar até o topo das árvores mais altas. Nesse meio tempo, o casal voltara a fazer o que, há muito havia relegado à segundo plano. Escarafuncharam pelos baús das memórias adormecidas e reencontraram o pacto da reconciliação.

Tanto fizeram que, ela passou a guardar um novo segredo. Não contaria quanto não tivesse certeza absoluta. Se haviam redescoberto alguma coisa esquecida, dois meses depois, voltaram a enterrar o tesouro e apagaram as labaredas ardentes daquela fogueira.

Dois meses e o pretenso anjo ou pássaro, não evoluíra em mais nada. parecera, tanto ao pai, quanto à mãe que, aprendera o suficiente necessário e, aquietara-se novamente em meio às galinhas do terreiro. O pai ressentiu-se, acreditando piamente que, “o desgramado deixara de realizar suas acrobacias somente para apoquentá-lo”

— No mínimo, está lá, ciscando, mangando da gente e se rindo por dentro, o empestiado.—, resmungava para a binga que, não acendia nem com reza braba.

A mãe, percebera o velho, parecia ter perdido aquele interesse tão aferrado, voltando a concentrar-se muito mais nos afazeres da casa. Não que houvesse abandonado por completo seu “pequeno pássaro”. Não seria capaz disso, jamais. Continuava tratando do bichinho com a mesma dedicação metódica. Vez ou outra, o jururu despinguelava num carreirão e alçava vôo. Ganhava altura batendo as asas de forma vigorosa, como se estivesse exercitando-se para não deixar-se atrofiar e, por fim, mais aquela, dera de empoleirar na cerca feito um anum desbotado, emitindo um sons estranhos feito uma gralha ruim da garganta e dos peitos.

Aquilo, sinceramente, começara a dar nos nervos. Se tinha que voar, que o fizesse de uma vez. Ou então, que limitasse suas proezas abaixo do nível da cerca. No caso de ficar lá, atarracado nos paus e arames, corujando e campeando com os olhos, já era abusar da paciência que, se durante todos aqueles anos, ninguém soubera da sua existência, não seria a partir de então e daquela forma debochada.

O pai foi ficando enfezado. Criando ojeriza, peçonha de alma maculada pelo ódio. De paciência exaurida no ver aquilo sem ter concerto que desse jeito, encontrava prestes a esbodegar e esbordoar com tudo. Além disso, se alguém descobrisse, ia virar caçoada. Antes que aquilo se desse, acabaria cometendo danura que, evitara no início, em consideração aos apelos da mãe. De forma que, já nem olhava mais para o filho e, quando o fazia, era para censurá-lo no jeito mudo, franzindo cenho e iracundo.

A mãe cumpria com seu dever e era o que podia. Amar o filho amava que, era mãe. Mas, parecia meio decepcionada com a falta de vontade do mesmo para com o dom e a graça recebidos ao nascer.

Enfarado e desiludido, o pai passou a arquitetar uns planos com determinação em dar cabo naquela situação e, sobretudo, no causador daquela problemática que, acabaria desgraçando com sua vida. Ou fazia aquilo ou acabaria maluco. Naquela noite de modorra, abafamento e mormaço, tanto pensou que quase acabou estourando com a própria cabeça, mandando miolos pelos ares. Matutava, cochilava, despertava e as idéias pareciam baralhadas, confundindo sua mente simplória. Pensou em matar o bicho e dizer para a mulher que o encontrara morto. Pelas quatro da madrugada, não suportando o fardo e carcomendo-se pelo ódio, saltou da rede empapado pelo suor e, saiu para a varanda tomar uma fresca. Foi aí que ouviu estarrecido, aquela imitação de galo cantando. Gelou e bufou. Tremeu e puxou os cabelos num ataque de nervos, à beira de um colapso total. Tudo, menos aquilo!. Correu esbaforido para a cozinha, determinado, espumando e, apanhou a machadinha.

Com o olhar marejando, marchou resolvido a “acabar com aquela anomalia de uma vez por todas!”. Procurou pelo galináceo escarranchado numa trave de poleiro, todo encolhido e, benzeu-se pedindo perdão e que Deus tivesse piedade da alma daquela pobre e agourenta criatura que o estava botando aluado. Foi se chegando manso. O bicho lá: parecia adormecido, sonhando...

Dentro da casa, a mulher dormia o sono dos justos. Havia resolvido contar ao marido tão logo o dia amanhecesse que, estava grávida. Tinha certeza porque, dera até de sonhar.... E, naquele momento, estava mergulhada em sonhos. Um lindo anjo de asas diáfanas, muito brancas, parecidas com as do irmão, esperava para, um dia, voar pelo céu, feito um pássaro. Era uma linda menina, apesar de mirradinha e possuir aquelas enormes asas brancas feito algodão.

A mãe sonhava com a menina que sorria e abria as asas, revolvendo-se em suas entranhas....

O dia principiava lá fora, com o sol espiando do poente. Seria mais um dia comum por aqueles sertões de caatinga e espinheiras. O sol resolveu-se de vez, o dia veio, firmou-se mas, não se ouviu nenhum cântico de galo. Não, não se ouviu. Havia um silêncio abissal, absurdo, quase pétreo.....

Apenas o vento assobiava lá fora, no terreiro...uma triste e merencória cantiga de ninar.....


 

SERENO

 

O grande problema do menino era o tempo perdido em sonhar. Passava horas pelos cantos do terreiro, inteiramente absorto.

O que ele pensava? O que ele sonhava? Ninguém sabia. Sereno jamais dizia.

Ficou sendo Sereno, tão pacato, cismando em seu mundo lá, somente dele. Um mundo que, somente ele possuía as chaves do hermético portão de entrada.

Seu nome era longo feito uma noite de insônia: Antônio Carlos Belchior da Fonseca. E, de noite de insônia, o avô João, transformara em harmonia e sossego. Por isso, o apelido “Sereno”, caiu-lhe como luva.

Tal qual outra criança qualquer, o garoto Sereno, curtia as suas fases. Aos quatro anos, não se sabe como realizara tal intento ou trapalhada, do silêncio de uma manhã domingueira, rompeu-se o lacre e, aos berros, expunha aflito ao avô, o anzol que fisgara-lhe o dedo anular da mão direita, vazando a polpa de lado a lado.

Logo ele que, de Sereno, traquinagens, somente depois de aprontadas, se descobria.

— Então, bota tento nesse menino que, é no silêncio que Sereno extrapola! —, dizia a mãe com seu jeito simples e sábio. De gente que vivia a vida da forma que a vida era para ser vivida. Sem um quê de mais, sem um pingo de menos..

E, Sereno pegou birra de pescaria. Aos cinco anos, “panhô tosse de cachorro doido!”. Zombavam os outros quatro irmãos. Tempo ruim, enregelando até “os ossos da alma”, naquele inverno sem fim, acabou no leito de um hospital, com direito a soro e chacotas: pneumonia.

— Quem não alimenta-se direito e, não faz fé em agasalhos, turrão de teimoso, acaba pagando pela desobediência, quer queira, quer não!—, chamuscou-lhe Norberto, o irmão de todos, o mais velho. Primogênito. O “senhor-sabe-tudo” da família!.

Apesar dos pesares, Antônio Carlos Belchior da Fonseca, o Sereno, serenamente sarou. Pulou o sexto ano a cismar pelo terreiro. Esgaravatando o chão de terra batido, desenterrando minhocas, caçando lagartos, espiando tiziu, ouvindo moda no radinho, colecionando figurinhas do escrete brasileiro e, atracando-se com outros meninos da vila, causo das bolinhas de gude.

Dia, sem mais nem porque, vestiu o calção, a camisa de botões, as chinelas, abraçou cadernos, lápis, cartilha, borracha, régua, tudo num pacote estranho e, cedo-cedo, mal amanhecido, lá se ia, atrás dos outros dois irmãos. Contando passo a passo, não querendo chegar nunca, buscando explicação porque, com o tempo que passa, outras coisas também se vão..

— Ninguém me perguntou se eu queria ou não estudar! Quem disse que quero?!—, questionava-se ante o embate, o inevitável conflito.

Mãe e pai diziam. Esperava no avô, a frase do aliado. Avô pulara para o lado dos adversários. Avó nem se contava. Os irmãos? Bem, os irmãos, às vezes, quando mais se necessita da presença deles, escafedem-se.

No primeiro dia de aula, chegara a decisão, “concludente mas nada convincente”, resposta para aquela questão:

— Não gosto de estudar!.

Tão peremptória assertiva, merecia de todos, até mesmo da avó, uma sonora e padronizada pergunta:

— Está pronto para o cabo da enxada?.

Não!. Decididamente não estava. Melhor estudar.

Sereno passou “triscando” do primeiro para o segundo ano. Não concentrava-se nas aulas. Ou melhor, em nada fora de seu mundo de devaneios e sonhos inconfessos.

Com isso, do segundo para o terceiro ano, acabou levando um tranco no último trimestre que, o fez parar para aquilatar o solavanco e os vexames de uma coça prometida pelo pai (em pendência, portanto), e, “de susto”, suas notas encorparam o necessário para evitar a refrega.

Foi nesse período que, já de posse de um novo desejo insaciável, brotara-se-lhe com o poder de domínio das palavras e frases, deixou-se vencer pela leitura fluente.

Sereno, pela primeira vez, aos nove anos, parecera à família, meio agitado. Meio ávido. Tanto que, no final do primeiro semestre, já lia feito gente grande.

Como não incentivar “o prodígio”?. O primeiro livro: “Histórias da Carochinha”. Meia dúzia de revistas em quadrinhos. Os famosos gibis dos tempos idos!. De forma que, passou para o quarto ano à larga dos portais: com média muito acima do esperado. Recompensado com uma incrível coleção — Tesouro da Infância —, gozou as férias mergulhado nas fantasias de uma ilha fantástica.

No último ano porém, lá estava Sereno a “viajar”. Se em gramática, redação, ditado e leitura não havia notas que lhe bastassem, em aritmética tropeçava, capengava, zerava sem o mínimo interesse.

O pai cortou-lhe, tardiamente, “O Tesouro da Infância” e os gibis. Ensinou-lhe o que era “Ação e Reação” com “Causa e Efeito”. Do livre arbítrio. Presente e futuro.

Aliás, nem percebeu o quanto gastara saliva. Serenamente, o filho ouvia sem ouvir. Certamente, travando suas batalhas interiores. Somente melhorou um pouco nas provas dado as sucessivas “perdas e danos” que, os castigos e os trancos, causavam-lhes. Passou empurrado. Ma marra. Pura comiseração dos professores.

Aos onze anos, no primeiro ginasial, passou a trabalhar durante o dia e, no período noturno, a cochilar durante as aulas. O pai desgostou. O avô choveu conselhos. A mãe bateu boca pela casa com tudo e com todos. A avó apenas contemplava. Contemplava e contemporizava a rezingar com velhos fantasmas das fotografias penduradas nas paredes da memória.

Os dois mais velhos, deixaram o ninho e foram fazer a vida. Restaram ele, a irmã e o caçula, temporão. O “senhor regalia e dono do pedaço”. Enfim, mal e penosamente, saltou aquele árduo ano de estréia.

Doze anos, no segundo do ginásio, franzino, meditabundo, acanhado, de nenhuma fala, mantinha-se serenamente obscuro na última carteira da sala de aula. Aos treze, no terceiro ginasial, em nada mudara. Aparentemente.

Aparentemente, não fossem as calças “rancheiras”, os botinões, os livros, e os primeiros discos que, ele mesmo comprava com o cuidar da horta do Seu Adamastor. No plantar capim na fazenda dos Cavallini ou, nos últimos tempos, convivendo pacificamente com o pai, auxiliá-lo na sapataria onde, lia mais do que pregava solas com taxinhas. Passou de ano com notas na média obrigatória e pronto. Lá se ia para o último ano ginasial sem grandes alardes ou traumas que, não havia perdido um ano sequer, apesar dos empecilhos. Quatorze anos.

— Agora, deu de escrever poesia!—, bradou o pai com um maço de folhas de caderno pautadas na mão. A mãe riu:

— Filho de peixe?.....

O pai caiu na real. A mãe é quem, embranquecendo os cabelos, não menos serena que o filho, relembrava os tempos em que ele, o pai, escrevia aos borbotões, em calhamaços e mais calhamaços, seus versos em quadrinhas e sonetos.

— Como o tempo voa!—, observou o velho pai, meio constrangido, devolvendo os versos do filho Sereno, ao seu vezo, dentro de uma caixa, ao lado da caminha de campanha.

Entrara na adolescência, o “até ontem”, Antônio Carlos Belchior da Fonseca. Último bimestre e, para espanto geral de todos (menos para ele, Sereno), teria que render-se às aulas de recuperação para uma nova e derradeira oportunidade em matemática.

Como se nada de extraordinário houvesse ocorrido, o filho pediu licença ao pai. Afastou-se “temporariamente” da sapataria, conforme dissera. Com determinação, trancou-se no quartinho do paiol com seus livros de matemática e, para preocupação da família, “mergulhou de cabeça” nas obrigações. Noite e dia numa peleja acirrada. Mal alimentava-se, mal dormia, não dirigia palavra à ninguém...

Pai e mãe preocupadíssimos com o filho. Talvez houvessem forçado a barra?. Exigido em demasia do garoto. Era um bom filho. Sempre fora! Meio lerdo, a divagar acocorado pelo terreiro amplo do casario. Fazer o quê?. Natureza lá dele, Sereno.

Havia emagrecido, o obstinado, cabeçudo!. Ia acabar míope e com aquela tosse?.... Que repetisse o ano, bolas! Daquele jeito também, era judiação. Nem tomava sol. O tempo todo sentado no banquinho de ordenha, com as fuças chafurdadas nos livros e cadernos sobre a mesinha de ripa, improvisada....

— Dois dias!...—, observou o avô coçando a cabeleira nevada.

— É, faltam dois dias..—, anuiu a mãe, meio absorta, preocupada.

Pai não proferiu única palavra. Avó se ria, enigmática, meio gagá. João Lucas e Lucinda entreolhavam-se sem entenderem o porque de tanta balbúrdia e porfia. Pareciam, na realidade, compartilhar segredo de “à meia”. Contudo, o pai descartou a possibilidade. João Lucas, sequer contava idade de gente. Lucinda mal saíra dos cueiros.. Então? Afugentou a idéia esquerda da mente. Não havia segredo. O filho Sereno, era feito uma mula quando se botava nas telhas de empacar. Isso lá o que era!.

— Não tem cristão que demove teimosia de bicho com birra!.. Ah, isso nem!..—, resmungava o pai para o vazio da sala silente, a tirar bicho de pé, encafuado de junto do calcanhar, numa coceira sem tento causo que havia botado larvinhas e dezenas de filhotes no local aberto com uma agulha de costura da mãe.

A noite espalhou seu manto bordado pelas estrelas luzentes. Coruja piou agourenta num pé-de-pau, do outro lado do pasto de capim. Curiango respondeu tristonho e dolente de algum trilho de terra cortando mato rasteiro. A lua firmou alva o seu assento por cumprir obrigação, banhando em prata aqueles sertões. Todos foram recolhendo-se tartamudos, cismosos, no sem-sono.

— É amanhã cedo?—, perqueriu o pai.

— É... é cedo.—, confirmou mãe, desfiando rosário, fiando prece, tecendo promessa pelo filho.

O pai ficou espiando uma sombra na parede, desenhada pela réstia de luz provinda do cômodo do meio. Deixava acesa uma lâmpada, causo de Lucinda com seus pesadelos e sonambulismo. A menina pelava-se de medo do escuro. De assombração. Dos mortos que passeavam pela casa arrastando correntes, tirando coisas do lugar, derrubando panelas, batendo nas paredes, cutucando “a gente na barriga”, puxando as cobertas.. Uma verdadeiro fadário. Uns causos mais bestas que, somente se ouvindo e sendo muito do toupeira pra botar medo na imaginação, pensava o pai.

Avô e avó roncavam no quarto ao lado. João Lucas ia pelas searas do terceiro sono. Lucinda custosa de pegar sono, contou um rebanho inteiro. Tornou a contar. Um carneiro teimava em não pular a cerca para o lado do sono. Ela, Lucinda, pulou a cerca, pegou a ovelha nos braços mirrados, salvou-a da insônia e, por fim, foi caminhando, deslizando morosa para as terras dos sonhos. Já estava brincando de boneca com um bando de anjos-crianças. Somente Sereno permaneceu corujando em seu quarto de estudos, os olhos congestionados pelo esforço...

Olhavam para os calhamaços de papel. A mesinha forrada pela papelada. Tudo poesia. Laudas e mais laudas de versos escritos de forma emergente. Como se o tempo, de parco, nunca que fosse bastar para jogar para fora o que sentia.

Nem lia, nem relia. Escrevia, pinchava para os cantos, afastava para o lado, partia para outro verso, outra folha. Por fim, esgotara-se. Pegava-se exaurido. A manhã viera com a cantoria dos galos. Era o dia crucial. A porta somente recostada. Pai, mãe e Lucinda vasculhavam a papelada. Não havia uma única conta. Um único esboço de exercício matemático. Sentaram-se por ali, lendo os poemas. Um mais belo, mais dolente e tocante que o outro. Não conseguiam entender nada até que Lucinda falou:

— Lucéia foi reprovada.

A mãe olhou para a filha, em seguida para o pai e, comentou com seu jeito tranqüilo e sábio de mulher simples e humilde:

— Sereno quer ser reprovado também......


 

TOCO

 

A menina mirava o arranjo de flores no caixão. Parecia um vaso todo branco, com pequenas alças de latão ou ferro. Fora depositado ali, bem no centro da sala, sobre a mesa. O chão era de terra batido, socado e regado feito canteiros de jardim para não levantar poeira. Mesmo assim, a casa vivia empoeirada. As paredes não haviam recebido o reboco e a caiação ainda. Gente pobre da vila, cercada pelas incontáveis terras de fazendas repartidas e que, tantas cissuras e cizânias, haviam causado ao longo dos anos. O pai era somente um carpina. A mãe lavava roupa para complementar no orçamento doméstico. Vida ruim, difícil, de judiação causo que, as despensas viviam vazias. “Escasseavam” e pai não tinha como “recursar”. O vendeiro não faria mais fiado, não pagasse o devido.

A menina ajudava no que suas forças possibilitavam. Mirrada, portanto, parecia aos olhos do mundo, somente mais uma boca para comer. Fome a ser suprimida pelo feijão, a farinha, a rapadura, os ovos. No mais, tirante o caruru que dava ali no terreiro da casa, tudo era supérfluo. Toco havia se finado de oito para nove meses. Anjinho açulado pelas necessidades e, pra mais de, sabe-se lá quantas privações, acarretando em doenças das mais parvas e cruéis. De forma que, nem carecia tantas lamúrias por um que, livre dos padecimentos desta, sequer chegara a tomar conhecimento das penúrias do mundo com sua carantonha enfarruscada de coisa ruim e desgrameiras tantas...

De qualquer forma, o arranjo de flores, lembrava à menina, um pequenino canteiro em plena primavera. Sobretudo, o cravo roxo que, exalava um odor adocicado, persistente e enjoativo. “Parmente”, misturava-se com algumas rosas murchas e umas flores lá, desconhecidas por ela. Provavelmente improvisadas, causando-lhe dor de cabeça e ânsia de vômito.

Queria mesmo, era ver de perto a carinha do Toco. Curiosidade amarfanhada e contida pelo medo de ver o que não supunha. Além disso, a mãe não recomendava. Havia dito que aquele, o que dormia dentro do caixão, não era o Toco, mas sim, algo que lembrava o irmão que, de há muito estava com Jesus, lá no alto, no céu, com asas e tudo. Não entendia a explicação da mãe que, explicando, chorava; chorando, explicava.

Não chorava somente a mãe. O pai estava com os olhos congestionados e vermelhos. Teria embriagado-se com tento de aquilatar a perda de Toco e sustentar o tranco?.

E aquelas mulheres sussurrando baixinho, parecendo zumbido de vespeiro?. Elas vinham puxando rezas e terços há horas sem conta. Parecia que, jamais iriam colocar termo naquilo. Por isso, ia cansando, deveras. Além disso, causava sono, enfastiava e bulia com as entranhas da gente. Decerto que, até o pobrezinho do Toco, quietinho de morto no caixão, já havia cansado de ouvir aquelas ladainhas repetitivas. Além disso, era anjo. Não carecia tanta reza e aquele estirão de lamúrias que jamais..

A menina lembrou-se de outro velório, do caixão lacrado. O homem havia trombado com uma árvore em seu velho e curioso “fordeco”. No acidente, sua cabeça fora decepada, disseram. Por isso, haviam lacrado o ataúde. O corpo havia sido “masgalhado” e, aquilo sim, era uma morte horrível. Além do que, deveria ser muito ruim se velar falecido sem, nem poder ver a cara do sujeito. Se ele parecia sereno e de bem com a morte. Ou, se rancoroso, “carantonho”, pusera-se de mal com os presentes.

Havia endoidecido. Muitas pessoas acabavam endoidando “pruaquelas” paragens em que, coisas das mais perversas, assentavam sucesso assim, assim, sem mais nem porque, à toa...

A mãe, mais o pai, diziam que era coisa da política. Nem era fome ou doença do corpo. Havia o desespero de não se ter como “recursar” o que “escarseando” nas prateleiras, mas nem isso era, dizia o pai. Doença da alma, era muito do pior. Pai não havia falado no acudir com despesas do aluguel, do empório, da farmácia. Era uma coisa besta de se pensar. Se era!. Sem um que de propósito! Da alma de “pauta” com a mente.

Até mesmo o Seu Perez, proprietário de umas terrinhas de pouca ou quase nenhuma valia, vivia discutindo com o pai sobre aquelas “besteraiadas” de perseguições políticas. Claro que a gente não entendia “lhufas”. Nem queria. Mãe também não tinha interesse naquilo que, quando se puxava pelo assunto, era um nunca ter fim. E mãe, no passar o café, servir as visitas, mandava a gente ir se “espiantando”, arredando no pé porque, conversa de gente grande, criança não botava tento de ficar “xereteando”. Já com o Toco não que, era de berço, nem ia entender se quisesse.

Muitas outras crianças, mais ou menos da idade do Toco que, sequer haviam completado um ano ainda, sucumbiram à “pestilência” daquele longo e infindável verão de sol causticante e abrasador feito fogo. Muitas famílias haviam perdido um rebento e, passado pelas mesmas provações. Parecia praga. Era o que comentava-se no espichar das conversas durante a sesta, na modorra do sol ou, no crepúsculo do fim do dia ido e consumido.

A menina mal percebera mas, sua mente fervilhava. Feito bicho que ganhando “forria”, desembestava pelas brenhas dos confins e lá se ia espaventada a levar tudo “nos peito”. De formas tais que, aos seis anos, ruminava, incessantemente, uma pergunta após outra. No entanto, sabia que, dos pais e dos vizinhos, não receberia qualquer resposta sobre a morte do irmãozinho Toco, ali jazido no caixão de madeira muito pobre, muito rústica que, quase o pai mesmo fizera no fundo do quintal, devido o desinteresse e a insensibilidade daquele povo da prefeitura que ficava na cidade, léguas dali.

Deu-se que, quanto mais o pai ia lá para pedir ajutório, mais nervoso voltava para casa. Já em vias de começar a fazer o caixão com tábuas, em casa mesmo, então apareceu um safardana todo engambelado, dizendo ser vereador e dizendo que já havia acertado tudo e que o carro funerário já estava lá fora, na estradinha, perto da porteira, esperando.

Por demais casmurros e de natureza simplória para atenderem a saciedade da menina — hora imprópria para palrar sobre assunto “desgranhento” —, nunca que iriam dar-lhe atenção a responder perguntas para tão complexo emaranhado e fatídico acontecimento. Somente que, Deus sabia o que fazia e, isso era tudo.

Ante tais premissas impostas pelos pais, a menina açulava a própria mente, escarafunchando pelo baú de perguntas sem respostas de convencimento. Cismava lá consigo: se Toco estava, pura e simplesmente, mergulhado numa espécie de sono profundo, ao qual denominavam morte, então porquê tanta balbúrdia, lamúrias e choramingo?. Se assim era, por mais sono que tivesse o irmãozinho, chegaria um momento em que, cansar-se-ia de tanto para, como todas as pessoas, despertar e voltar a rezingar com fome, sede ou cólicas, como o fazia naturalmente todo o tempo. Ia questionando e respondendo ao mesmo tempo, embora, suas respostas, não satisfizessem tão implacável curiosidade e anseio de saber mais acerca de assunto tão emaranhado.

A casa pejada de gente que espalhava-se até o terreiro. Se aquilo não parecia festa, vai vendo!. Voltou à sua ruminação tanto atabalhoada, quase lógica: se dormia, Toco nem parecia sonhar. Não o vira agitado uma vez sequer. E olha que o bichinho, mergulhado em sonhos, era agitadíssimo e, despertava por qualquer coisa. Algumas noites, montando vigília ao lado da mãe, quando o mano adoecera e febril, ficava naquele dorme, desperta sem fim, havia percebido que, o doentinho emitia uns grunhidos “solavancados”, de estertores, ronronando dialetos e tudo causa da febre conforme mãe explicara. Com isso, sabia que o pequeno não poderia, “conformemente” estar apenas dormindo.

Era fato que, ali, naquela situação, havia algo de errado. Algo do qual ela não estava gostando nem um pouco.. Por isso, concluíra que, Toco, havia mesmo morrido e que, não iria despertar de um momento para outro como vinha esperando. Será que o pai e a mãe também espiavam e vigiavam naquela dúvida “estrugente” dentro do peito em vias de, por tanto sofrimento, rebentar de hora para outra, deveras?.

De qualquer forma, ouvira dizer que, quando uma criança igual ao Toco, bebê ainda, morria, transformava-se em anjo na “horica” e ia direitinho para o céu. Então, porque Toco permanecia ali inerte; o rostinho pálido e chupado pela doença que o fizera definhar?. Imaginava o irmão como o vira pela vez derradeira. No mais — continuou pensando —, se Deus que, era bom e tudo podia, certamente não despenderia grandes esforços para fazer com que seu mano começasse a chorar e a buscar os seios da mãe, faminto e esganado à qualquer momento!. Ah, isso era coisa que sabia e que, poderia já ter acontecido se fosse para...

Se ao menos parassem com aquela ladainha incômoda e a deixassem segurá-lo um pouco em seu colo, diria para que Toco parasse de brincar de ser anjo e voltasse a ser somente um bebê chorão que, fazia xixi nos cueiros e vivia regurgitando na gente. Afinal, eram irmãos e, mesmo porque, sendo ela mais velha, teria que, obrigatoriamente, obedecê-la.

Divagava em pensamentos e o mormaço, o abafamento, tornavam o cheiro das velas, misturado com o das flores, terrivelmente enjoativos. Ademais, sequer deixavam-na chegar perto do caixão onde Toco encontrava-se indiferente e, provavelmente cansado de tudo aquilo que, não era de se duvidar mas, acabava causando mais enfaro e fazendo com que ele ferrasse, pura birra, em seu sono, com desdém e gosto porque, pelo menos, não ficava “gasturado” e “fastiolado” com todas aquelas chatices. Pensou com seu palavreado de idéias amorfas, como se fosse possível, pensar baixinho para que ninguém ouvisse seus pensamentos que, eram segredos lá dela e do irmão jazido no “vazinho de flores enjoativas”. Dizia no fazer força do pensamento:

— Vai, Toco, pára com isso e abre um daqueles berreiros danado de ardido que até eu já to ficando cansada de tanto esperar!....

Forçou a mente. Repetiu cadenciando as palavras mas, o irmão parecia não querer compartilhar de seus segredos. Permanecia muito, quieto quieto. Será que sabia ter adquirido o direito de virar anjo fazia um bom tempo?.

Certamente que não!. Se tivesse, não teria ficado ali, esperando e dormindo. Dormindo e esperando.

Nisso, acabou lembrando-se: bem, todas as crianças das quais ouvia contar, porque haviam sido crianças um dia, acabaram crescendo feito o pai e a mãe e, quando chagada a hora, lá estavam, esperando a cegonha trazer uma criança do céu para fazer barulho pela casa e, atrair a atenção de todos para si. A mãe dissera-lhe que, fora a cegonha.

Mas para esperar a chegada do Toco, tivera que engordar muito, com a barriga que parecia ter engolido um bezerro. Além do mais, tivera que buscar o irmãozinho no hospital. Às vezes, a cegonha não conseguia acertar a casa, errava pelos cafundós e sem mais forças, deixava o bebê na maternidade do hospital para que a mãe fosse buscá-lo. Em troca, levava a barrigona embora. Fora a mãe quem dissera tudo aquilo. Mãe sabia...

O pranto rolou manso pelas faces sulcadas da mãe. Ela queria beijar a mãe e dizer-lhe que havia sonhado com o Toco na noite anterior. Ele não sabia falar, mas, no sonho, falava igual e tal gente grande. Estava tão bonito e com um sorriso “ancho” de felicidade nos lábios que, dava gosto de se ver!.

Havia dito que precisava ir, mas que, um dia, voltariam a encontrar-se. Era como adormecer no hoje para, despertar no amanhã. Vira, durante o sonho, o caixão branquinho e o Toco dentro, os olhinhos cansados. Dormindo sem irriquietações como fazia. Nunca tinha visto nada parecido antes. Não sabia como era morrer, na realidade.

As crianças da cidade, aquelas que iam para as escolas, será que sabiam dessas coisas?. Ela havia nascido ali mesmo, na vila, de parto natural, entre pastos de fazendas, em seu quarto de casa sem reboco, sem caiação, sem nada. E, além do mais, nunca fora à cidade. Algumas crianças da vila iam. Ela não. Nem conhecia a igreja ou a praça da matriz. Diziam que havia santos. Vários. Que Jesus ficava no altar, com os braços abertos, pregado numa cruz de madeira e, apesar de sua aparência triste, jamais cansara-se. Talvez ela nunca soubesse se, realmente, aquilo tudo era verdade ou firula de conversa mole. Os pais, quando ela perguntava, não confirmavam, nem negavam. Que, certas coisas, melhor nem saber para não sofrer.

Sentiu as pálpebras pesadas. Do outro lado, sentada em uma cadeira de madeira rústica, uma senhora muito idosa, labutava contra o sono em rápidas dormitadas, parecendo que, a qualquer momento iria cair para o lado em que sua cabeça grisalha pendia. Despertava num repente, parecendo assustada para, em seguida, voltar a ressonar.

A madrugada passara a ser longa, demasiadamente longa. Na realidade, quase infinda. Lá fora, parecia que um grupo de pessoas acabara de chegar e a conversa voltou a fruir animada e acompanhada por algumas risadas contidas.

Apesar de parecer falta de respeito para com os sentimentos alheios, a conversação não referia-se ao irmão. Era como se Toco jamais houvesse existido. Um ou outro chegava (começavam a formar rodas apartadas), e podia-se ouvir novos risos estrangulados, irritantes. Um homem esquisito, parecendo embriagado falava em tom bastante alto, meio embaraçado porque, haviam-lhe chamado a atenção. Como quando se ralha com uma criança que, sem ser convidada, entra no meio da conversa de adultos. Tudo aquilo parecia-lhe, deveras, estranho...

A menina desligou-se dos grupos, voltou a concentrar-se em Toco e, cansada de tantas perguntas sem respostas convincentes, deitou a cabeça no colo da mãe. Cochilou um pouco, sonhando muito. Era como sonhar estando acordada, desperta. Ouvia vozes, sussurros, soluços entrecortados e, sobretudo, as orações de lamúrias. Aqueles “Glória ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo..”, que, tanto para ela, quanto para Toco, pareciam não possuir significado algum. Nada diziam. Não sabia do que se tratava porque, nunca aprendera a rezar corretamente.

De forma que, continuava cochilando, despertando, sonhando coisas desconexas e sentindo-se terrivelmente esgotada. Sinceramente acreditava que, toda aquela gente estava perturbando o sono de Toco. Que, se o Toco havia realmente morrido e afinal, já sabia que, crianças bebês, também morriam e era uma coisa peculiar e estranha de virar-se anjo, então, porquê não iam todos para suas casas dormir?..

Procurou pelo pai. O pai parecia muito abatido. Mas na hora certa, ele não deixaria que fechassem o seu pequeno naquela caixa e recendendo a flores de jardins. Ah!, duvidava que deixasse. Se conhecia bem o pai... Carrancudo, macambúzio; sempre cismando de cócoras nalgum canto do terreiro.. Mas tinha o coração bom quando dele se precisava. Era certo que não sabia bater porque, batia de qualquer jeito, estabanado, espalhafatoso. Mas, também não deveria ser o único porque, os pais são parecidos e meio destrambelhados quando na hora de aplicar uma tunda, um corretivo nos filhos. Sabia disso porque, já vira outras crianças apanhando dos pais..

E o dia que nunca chegava?.. E a fome então?. Puxa, que fome ele deveria estar sentindo!. Coitado do Toco. Voltou a aconchegar-se no colo da mãe e, desta feita, dormiu. Brincava com o irmão. Sonhou por muito tempo. Despertou em sua cama, no quarto solitário, silente, em meio às trevas da manhã mal madrugada. Não havia mais ninguém na casa. Quedou-se ali, deitada, imóvel.

A mãe arrastou os passos pela cozinha, tossiu. Então ela falou alto, muito alto — como se estivesse distante —, para que a mãe a ouvisse:

— Mãe, o Toco tá com fome!.

O Toco continuava no berço que ela jurava poder ver. Lá fora, o sol febril, derramou-se por sobre os telhados, os campos ressequidos, os pastos, os ermos e terras todas...

Era hora do almoço.


 

O QUE RESTA É O QUE É!

 

Um dia, sem que se perceba, o que restou afinal, do que, tempos idos, fora o menino do mato?. Já não viceja. Já nem os cafundós com seus segredos por brenhas restinguentas, atraem-no mais. Vai aquietando-se nalgum canto sem mais tenção, o menino. Mesmo porque, o menino — de menino mesmo —, guarda em seu alforje, no surrado bornal, tão somente lembranças. Sonhos empoeirados. Restingas. Mato rasteiro. Galhos ressequidos. Gravetos que um dia, foram ilusões.

Talvez, possa ser que ocorra de, o menino do mato, ainda continuar casmurro e turrão. De alma aflita e passarinheira, aprisionada a questionar-se, desejando explicações nos pormenores dos porquês sem explicações. É, às vezes, acontece. Nem se sabe se lhe concerne tanto aperrêio dentro, minudências pelos vezos da alma.

Alma que de tanto crescer, rebenta-se-lhe dentro do peito mirrado, surrado feito as alpercatas nos pés cascudos. Alma voeja, de arcanjo igualadas, talqualmente. Mas, como que surripiadas nalgum momento de descuido porque, já não há como carregá-las às costas, tanto o peso. Poucas as forças e disposição. Passarinho doentinho, menino do mato quando envelhece, é coisa tirana do destino mofinando os olhos — espelho-d’alma. Vai aquietando-se por fim. A vida, deveras, não será, acaso, ou necessidade, um pouco disso tudo, afinal?. Então, pois, se veja!.

Pode ser que, de ancião, espelho reflexo, somente no por fora. Jamais dentro. Também possível... E mais que, serenando, apascentado o rebanho dos sonhos, reste somente a quietude da madrugada silente. Ou, no mais das vezes, é fato ainda, a modorra de um dia claro, alvíssimo, à sombra de tempos idos, remotos, nem aborrecido nem alegre, esquecido somente e tão, à sombra de frondoso umbuzeiro que, sua árvore dileta e companheira do sertão, “muito–Mãe” —, umbuzeiro: acudindo nas aflições da seca quando a sede e a fome matam e espezinham. Árvore sagrada como sagrada a vida que se espicha causo de pôr termo no que tem que, até o último suspiro. Porque, até que se rompa o cordão, tudo é o mesmo halo do pagar-se contas, aprender e resignar-se para o regozijo prometido e merecido.

Que menino este, afinal?!....

Olhar sereno, de fasto, é o mesmo que mirar-se no avô. Não que endeusamento que, avô um dia, também, à exemplo de qualquer, foi homem de muita laboração e pelejas incontáveis contra a vida e seus próprios fantasmas em segredo. Daí, vem a lembrança, será que Jesus, por um momento, átimo, na fé fraquejou?. Que sim e que não, pode ser. Como dizer?. Então avô que de tudo, um pouco sabia, contava. Mãe e pai sabiam que, menino do mato, em boas batalhas encontrava-se de pauta com anjo leal e companheiro sem igual. Avô era tudo isso e muito mais.

De forma que, de tanto, podia emprestar ao menino, um pouco da serenidade que, somente com a idade, a sabedoria se ganha. Colheita na meremerência do bem.

— “Pasmacento”! —, diria aquele que, ignorância do saber, desconhecesse-lhe as passagens da féla vida do mato. Da alma lanhada tantas quantas, em vias de apascentar as mágoas e as zanhas, cissurando a revolta e o ódio mal contidos. Isso é o que é, no mais das vezes. Vai entender assim, assim, um qualquer que, jamais espiou as carantonhas desses tempos aziagos de há muito idos?!. Nada não!..

Dizia de si para si: “Quem na fé põe sustentação de pauta com Deus, por pouco não se entrega assim não!”. E com isso, tangia o velho rebanho pelas searas deste viver, conciliando. Fraquezas e momentos fastiantes no viver é o que mais se tem que. Causa da natureza da alma nas provações que, sem delongas ou porfia, se tem que ir-se cavandante, à muito labor, posto na empreitada. De forma que, no amainar dos percalços, envelhecendo-se-lhe as carnes e as vontades dos músculos e tenções, aquieta-se também dentro, a alma. Ao menos é o que se nos concerne à todos, desde o mais insignificante semovente na face desta em que pisamos por empréstimo maior....

— Mãe, que pai têm?!...

— Nada, ora.

— Então, porquê fica lá pelos cantos acocorado a cismar, bascuiando com um olhar de nada espiar sem tento algum, feito galinha choca?.

— Num manga que pai é pai e, além do mais, quem pode emitir parecer no que alheio e coisas de desconhecidas causas e natureza?..

Assim, assim: lá tá o velho tangendo gado em sonhos. Boiada ruminando nas remembranças que nunca jamais se findam. Filhos vão entender?. Que não, causo que menino mesmo, quando de seu tempo, não entendia o pai, nem o avô quando estes garravam de cismar por tempo infindo nalgum canto sem darem-se conta da vida e dos demais à volta.

— Não adianta querer entender, filho. Quando se envelhece é que se passa a ter algum juízo de validade sobre a existência e as coisas todas dela.

Então, mãe dizia ao menino do mato que, não encontrou tempo nem ocasião de passar aos seus, conhecimento de tão necessária monta na educação e compreensão do viver-se o bem viver na boa labuta de cada dia. E, no ensimesmamento, já posto fora o baú de querência, restando somente cacos, e farrapos da cangalha velha nas memórias, o menino fixa-se nalgum quadro e resta absorto. Um tanto roto. Outro, costurando com a linha da vida, o manto da existência. Mas sempremente, com o olhar posto no fim da estrada que, somente ele, dentre nós outros, sabe onde vai dar. Pode ser que não saiba, na realidade. Contudo, apesar da muita ignorância do saber, mormente, esses “meninos-do-mato”, assim, quenêm o tal, de há muito já tem, traçado e trançado, o destino com as mãos calejadas e o umbigo amarrado em cordão sempiterno.

O tempo é ligeiro. Não tarda jamais. Nem se vê, que pelo caminho, feito o bicho homem, ou o animal de canga, empaca de embirramento e teimosia, mesmo sabendo que nunca virá desvencilhar-se de seus contratempos e espezinhamentos. Tempo é tempo: dono e senhor. Irrevogável, peremptório e imarcecível. Nunca destoa do seu ser o que tem. Já nós não que, de fracos de vontade, por qualquer, feito uns burros chucros, por pouco nos enveredamos pelas sendas do botar resistência de contra aquilo que tem que ser. Falta de conhecimento, tino e tato. Um tanto de coerência é o que se nos falta. Para alguns, já sabedores de tais primícias, falta mais é vergonha. É o que falta, pois!. Já o menino do mato, este não que, de plúmbeas asas, tem seu rumo certo e, bem ou mal, vai, tropeçando, caindo, levantando, esperando, sofrendo, embora sabendo que — possível —, jamais alcance o que é de seu sonhar. Cumprimento dos desígneos do seu Senhor, seu Deus!. Afinal, envelhece-se. No mais, dentro do velho, o menino permanece assuntando, na espera que se lhe rompa o cordão e, de vez, deixe de ser cativo de corpo mal aprumado e desfibrado das vontades e sonhos.

’Stou firmando o que narro, por escola que a infância no mato concedeu-me em diploma de saber viver, sofrer, sonhar e esperar. Mesmo porque, de alguma forma, também envelheço e, não fujo à regra. Menino envelhecido e já pai, vislumbro além e aquém desta, por vias de ter tido mestre e confiado nos ensinamentos que Jesus deixou de quando, por sua passagem cá, em meio à nós, também foi menino e também foi peão na labuta e contendas. Maior orgulho, tenho não. Nem desejo. O peso do muito se querer e se desejar é o que, nos torna o fardo pesado em demasia e nos faz lengar nos passos e atrasar na marcha, na empreita.

No mais, muitos causos se dá que, até mesmo, faz com que a gente se perca pelo caminho, nem indo, nem vindo. Somente, pelo que botei tento, retardando a marcha do crescer-se interiormente para, atirar fora, o excesso na purificação da alma ainda maculada e agrilhoada aos prazeres mundanos. Isso digo e sei, pois que, vivo de pauta com o que é certo e correto de conformidade com os Mandamentos e a Justiça Maior.

De passagens muitas e causos diversos — como já firmei desde o início —, que, às vezes tão parecidos, confundem-se no esmaecimento das memórias cavoucadas e escarvadas feito “boi turuna” ou curraleiro antes do arremeter-se de encontroada contra seu desafiante. Mas se “de batalhas que se vive a vida”, mais de trinchar causos é que se pode aquilatar a passagem por esta no somar-se e pender-se para os dois lados da balança.

No glossário das reminiscências, provavelmente o que mais pesa é a natureza rústica de cada nuança. Pedra por ser lapidada é o que é. O que tem que ser nos termos postos em princípio e meio com tento do objetivo final. Num ressabio, destarte, é que enveredo-me mata adentro e campo afora. Pelas gerais e cafundós. Em cadência e compasso trelados e à curtas rédeas mó de não deixar disparar para não disparatar sem nem querer tornar a ser o que. De malungo alegre, alma maneira e peito aberto, estrada de muitas distâncias não desacorçoa quem a sina conhece e põe respeito no cumprimento de suas funções.

Envelheci. O menino ainda encontra-se de cócoras nalgum terreiro a esgaravatar o chão de terra com graveto, espiando horizontes postos para lá de todos os horizontes possíveis. Tal e qual animal ruminante ou passarinho regurgitando pensamentos e sonhos. Questionando e sendo frechado por mil lanças e ponta de ferro em brasa. Como que se marca gado ou se tange idéias desgovernadas. Assim é. Assim será sempre.

O que é, é o que tem que ser, considerando-se que, as coisas somente acontecem quando carecem. Nem mais, nem menos. Por muito, podemos, raramente, à custo e labor, bosquejar algumas pequenas mudanças no andamento da sina posta. Isso posto que, já disse, nem sempre. Porquanto, no mais, é deixar e seguir frente tocado boiada estrada no devir para ver o que será que da eternidade.

Não faço por menos. Nem cobro a mais. Se sustento, não volto atrás. Querendo ou não, com que meios evitar a mesma cova rasa e o mesmo desassossego dentro quando, hora chegada, nos tornamos sobre a face da terra ou, sob a mesma, matéria execrável?. Por isso firmo ferrenho que faca fere fundo feito fome e, dá-se então que, em bicho, transforma-se o homem. Por fraqueza ou falta de conhecimento. Por dentro e por fora. Por parte ou por inteiro. Se me torno repetitivo e chego a enfarar, quem, sabe-se lá por quantas, vem de me assuntá o que, mal e mal consigo narrar, é porque desconhece a natureza das coisas de parecença insignificantes. Coisas consideradas de somenos importância. Sem poder ou ter quinhão de seu para botar arreparo no que de meu. Mas que tudo uma coisa só, isso, vai-se chegando, com o tempo transcorrido, num transido de parvoíce, sem ter como evitar.

Já chego ao termo desta que, de enfarado, até eu mesmo, pego-me a fustigar-me dentro, a alma ensombrada pelas dúvidas do agora em diante. Causo que, de uns tempos para cá, escrevendo umas crônicas das muito sem inspiração alguma; compondo umas canções e toadas merencórias e, sentindo u’as coisas sobre as quais jamais conseguirei compreender — fibras da vontade, dos sonhos e do querer de alma e corpo sem estiramento mais —, garrei me ocupar nessas idéias de que está se chegando minha hora.

Nem sei se aqueles que de meu viver fazem parte ou acercam, botaram tento no que vem ocorrendo de fato. Tanto que, se botaram, é causa das palavras raras que tenho emitido; deste silêncio inarredável; da melancolia; e o desejo de estar à sós. Mudanças se nem percebe e elas ocorrem sempre. Mas, o que não tem ciência eles, são de meus sonhos. Tanto que até já fui atrás de uns documentos. Coisinhas de somenos, mó de não ficar dando trabalho à ninguém. Carece pois, mais explicações e pormenores?. É que, na cidade, o menino do mato torna, mesmo depois de envelhecido, reivindicando o seu lugar e suas posses. Seu quinhão. Mas não é, por destino, sete palmos de chão, o quinhão reservado? Não será “a parte que me cabe deste latifúndio”. Mais ancho “que estava no mundo”. Pra carne pouca, “pois à terra dada, não se abre a boca!”, disse o poeta.

Carece explicação mais não. O que resta, é o que é!.

Agora, já pai, cabelos nevando lentos, perscrutando este mundão de Deus, acocorado no terreiro da casinha — não mais o casario da infância perdida —, fico cismando, cismando. O jornal por ser feito, que fiz desta a minha profissão. As contas acumulando que, de trabalho honesto já não se vive o homem decentemente. Muitos tributos, encargos e judiações pra pouco ganho. Coisa disparatada de umas leis capengas e tortas que dão de favorecer somente aos mais abastados. Umas notícias de jornais e TV, que, piedade da raça sinto. Gente sem terra. Sem que comer. Morrendo das violências das ruas e da própria violência contra si e o seu próximo. Doenças das mais desgovernadas e sem tréguas dão-se as coisas sinistras causadas pelas intempéries... È um Deus nos acuda sem acudimento. E, por mais que já tenha visto e vivido, ultimamente, o que vem ocorrendo, roubou-me tudo: até mesmo o sonho do viver em paz e serenamente. Por isso, vivo de sonhar somente os sonhos de menino do mato acocorado pelo terreiro. Estando aqui, de corpo. De alma para muito distante. Alma e pensamentos. Fatigado.

Se perdi o sono e os sonhos. Dei também de pegar-me, por coisica de nada, jururu pelos cantos, sem querer conversar, com os olhos congestionados, segurando pranto e pedindo paz. Se rezo muito é porque a fé fraqueja. Nem carecia de tanta ladainha. Fui lá e comprei caixão e cova. Quero ser enterrado em Barretos, terra da alma criança. Não em Santo André, onde nasci. Nem nesta cidade que desconheço, que arrenego e na qual, sinto-me de passagem forçada e por missão já cumprida há muito, peguei peçonhas e ojeriza. Nem em Rio Preto, onde tenho família numerosa e muitos amigos tantos. Quero nada, senão, que meus despojos sejam adubo e semente nas terras lá distante, da Vila Pereira e Barretos. É isso!. Já findo, assim, sem mais nem menos. Nem pondo, nem tirando vírgula. Tão somente acocorado, com olhar posto no distante e esperando. É o menino que veio me buscar. Vamos para o mato, eia!. Pelas estradas do sem-fim. Pelo cafundó, lá onde Judas perdeu as botas e adeus!....

Afinal, o que é, é o que tem que ser.


 

TERREIRO E VIOLA

 

“Moda de viola, de um cego infeliz. Podre na raiz. Vivo sem futuro, num lugar escuro e o diabo diz, ah, ah!....”. Inhô mestre Delmiro que, de velho, carregava bem por aí, uma centena de anos nos costados, encurvado, enrugado, ares de cansaço mas, de u’as mãos e uns ouvidos abençoados por alguma espécie de coro angelical. Diziam uns que, era de parte com o demônio que tocava viola daquele jeito. Mas eu não posso creditar conversa dessas. Tinha parte era com os anjos, isso sim. Mesmo “ponhando” guizo de cascavel dentro da caixa da violinha de dez cordas. Arretado quenêm. Fazia a bichinha chorar. E não chorava, pois?.

Malemá noitava, no tardecer dessa passagem crepuscular, já os astros querendo espiá nóis aqui na terra e os vaga-lumes pisca-piscando pelos campos, os matutos mal cabavam de forrá os “vazio”, após empreitada pela roça, já picando fumo goiano, enrolando na palha pra pitá um cigarrinho fedorento, pelo terreiro acocorados na modorra e tomados pela lassidão de tudo; inda na boca o gosto bom do café passado na hora, canequinha de alumínio, aprumava-se os ouvidos açoitados pelo vento querendo chegar e trazendo consigo as afinações dos instrumentos.

Se era “Cebolão”, vinha pagode e modão. Se “Rio-Àcima” ou “Rio Abaixo”, em Sol Maior, modas de tristeza e melancolia. Coisa dolente e fornida de magia que somente ele lá, o velho centenário, mestre Delmiro, conhecia de outras existências. Das vezes, aparecia um parceiro, dois. Fazia-se parcelada. No desafio também recursava que, somente se ouvindo o improvisar dos versos. A Tirana, Moirão, Martelo, Coco, de versos pra trás, virados pelos avessos, metrificados e rimados em oito, sete ou nove pés que, lá pra ele, mestre que é mestre não se abanca, nem se entrista com a viola nas mãos. E triscava afinadinho.

Se havia algum lerdo, de violão de seis cordas nas mãos ainda inábeis, afinava-se a violinha no mesmo tom, parmente, os dois iam na mesma toada e o mestre Delmiro era quem segurava as rédeas, dava comando, alinhavando, costurando as falhas do violão, enriquecendo, “ponhando” uns solos danados de vexantes para o parceiro.. (Mas não era tenção do mestre vexar ninguém e isso todos sabiam. Era somente forma de encorpar a moda que o outro rabiscava no violão meio esquerdo nas batidas de ritmo, no dedilhado ou no riscado..). Era assim e no mais, que parceiro ia se sentir vexado com o mestre, afinal?. Dava era orgulho tocar com o malungo de muitas destrezas e de alma serena feito céu crepusculando.

Verdade, pouca voz, grave, nem se punha arriscoso em fiar-se em tom de altura muito exigente. Ia soltando aquele vozeirão de dentro do peito ancho e, embora prisioneiro da idade e do tempo, fazia inveja em muitos que se diziam cantadores.

Disso nunca se esquece, pois veja!. Assunta que, peleja de cantadores é coisa de muito tento, saber, perceber como vem inspiração e palavras, versos redondinhos, aparados sem arestas, quebrados, no momento exato, de muita serventia valendo-se de regras gramaticais e termos jamais ouvidos antes e que depois, especulados, lá vinha bomba: explicação disparatada, cabeluda, porque o que valia ali, na justeza, era não deixar travar a língua e a mente na hora do rimar.

Avô botava tento, meio apartado como sempre. Pai não era daquelas canções. Pai tinha gosto por tango, samba-canção, boleros. Eu gostava de tudo. Música pra mim era música. Não radicalizava. Era uns tempos de mudanças em que, já se introduziam as primeiras guitarras, e outros instrumentos elétricos nas composições e, a gente, que só ouvia rádio com muitas toadas, catiras, baladas, repentes ia, vez ou outra, acostumando-se com as novas tendências. No mais era ouvir “O Guarani”, do Villa Lobos, na “A Voz do Brasil”.

E as cantorias iam se espichando. Brotando naturalmente. Vinha um violão, uma sanfona, uma zabumba, um triângulo. Bem aceitos, eram também na roda, a rabeca, o violino, a flauta e os pífanos. Cada um na sua função. Dornado era na gaita que fazia a gente chorar por dentro. Pareciam que ficavam cravando espinhos nos corações dos meninos, aquelas notas que ele tirava daquela porquera de instrumento que, nem tamanho tinha, mas que, soprado e controlado ali, com ambas as mãos, era uma coisa doutro mundo.

E a flauta, então?. Transversal. Flauta doce não que, essa todos tiravam alguma modinha. Queria ver era o caboclo naquela transversal do Deosdato que, era o único que escrevia nas pautas as notas com tempos, valores, acidentes, numa garrancheira, uma gatafunha de rabisqueiro que, ninguém mais entendia. E o som tomava corpo e espaço.

Espalhava-se pelas brenhas e perdia-se pelas veredas do lugarejo. Tinha duas modas que eu era encasquetado: “Disco Voador” e “Poeira”. De versos e palavras muito sábias, deveras. Aquilo dilacerava dentro do peito, o coração de estremeções tantas. Era causo das meninas que, bem sei. Ou deduzo no hoje, após tanto tempo transcorrido. Nos mais velhos, eles lá sabiam. Nós, tudo molecada, era paixão precoce, acho. Coisa de criança mesmo. Ou seria a alma mais envelhecida que o corpo e cativa no ouvir aquelas cantorias, sentia-se magoada, distante de algum outro tempo e lugar?. Me aperrêio té hoje sem que haja explicação que dê jeito.

Nisso, o terreiro ia sendo forrado, os chegante pejando a varanda da casa. Já se assanhavam todos. Mãe já juntava as mulheres e punham-se a preparar, como sempre, os quentões e quitutes. A gente insistia até que pai, Dedé, seu Tião, os tios Nenzão e Nenzinho, armassem fogueira pra assar batatas e milho verde. A gente formava roda. A cachaça rolava lá entre os homens. Os corações fungavam e acendiam de assanhamentos. Sonhadores simplistas e matutos de bons sentimentos purificados e amolecidos pela lida da vida, garravam no chororô sentido de paixões perdidas pelas sendas do muito labutar. Correndo atrás de alegrias do bem viver. Pelo mundo sem rumo, batendo cancelas e pernas sem destino e as alegrias no encalço deles que, pensavam que, um não ter nada, era motivo de tristeza, mas que, no fim da toada, riqueza na pobreza é que se encontrava. Isso também disse Elomar, criador de bodes pelo sertão da Bahia e um dos maiores compositores e tocadores deste mundo de meu Deus. Não disse também, Vandré?. Então?. E o mestre na viola e a viola no mestre e ambos eram uma coisa só, bacia em lagoa prateada onde a lua ia se mirar, abismada e com denodo, formosa mui.

Ouvia-se, nos toma fôlego e emborcar a malvada, uns grilos rodeando e ao longe, distante, curiango na mata, mais a coruja de agouros que, de pousar numa casa lá da vila Pereira, por uma semana com seu canto sombrio, acabou levando um consigo para as veredas do outro lado desta. Não acredite não querendo, mas, desde que, a tal coruja passou a cumprir função, já se dizia, “um daquele solar vai e não demora”. Não foi?. Foi. Demorou?. Nem mais que uma semana. Contada, calculada e guardada de memória. Por isso, pai não gostava de coruja de maus bofes, agourenta, olhuda, secando a casa, o terreiro, as criação, os meninos e, principalmente os idosos que, já em tempo de ir se adesculpando e dando nas canelas, causo de haverem já cumprido a sina prescrita nos conformes desta existência.

Pai, às vezes, mangava. Ia lá dentro, panhava o “trezoitão” e cascava fogo numa delas, contando os sete anos de azar — feito quebrar espelho —, aos mais, quantos calculava de ter, por via de outras fuzarcas que, pai não era lá dos muitos que se assentavam imagem de provar ser um santo se não era. Era de muito raciocínio, muito pensar e calcular antes de agir. Mas, se era pra fazer, já ia que, tardança em demasia, era sinal de fraqueza. Mas isso já é outro causo que em nada liga nem desliga com as cantorias e a história do mestre Delmiro que, nessas alturas, já havia-se todo tomado pela inspiração, visto que, cada vez mais, a violinha parecia fazer rolar e brotar mágoas sem ter como arrefecer aquelas dores mal escondidas e muito amarfanhadas nas entranhas e vezos dos corações caboclos e tanto quanto muito dos judiados pelos pedecimentos desta.

O mestre havia chegado da região árida do Nordeste, trazendo dentro do peito árido e ressequido, o coração mais espezinhado e dorido que as próprias lembranças cativas das aflições tantas. Desconvenho os pormenores que, o homem viera escorraçado feito um cão danado, acossado pelas moléstias do coração. Cuidando de untar as cissuras, encasquetado, sorumbático, pasmacento, ressabiado e muito de zanha com a vida e com as gentes que maldavam seu destino.

Moço ainda. Moço bom, forte, gasturando suas energias nas terras ruins e empedernidas dequeles trechos de rincões mais afastados, sequer percebia estar sendo engambelado pelo destino e por uma caboclinha pela qual se esbodegava todo com tenção de um dia torná-la sua companheira. Fegante e masgalhado pela laboração, mestre mal e mal se aprontava e já, de violinha apertada ao peito, punha-se a tirar modas de um amor sem termo, cósmico, deverasmente profundo mui, pois que, nem petece aqui aquilatar o valor que aquela lá tinha para ele, o mestre.

Espiem pois, assuntem o que se passou em tempos idos e soterrados pelas mágoas e apoquentamentos de tanto soçobro. Labutando daqui e dacolá pelo sertão restinguento, mestre Delmiro moço muito ainda, sonhava, capinava e riscava viola feito um aluado tanto querer. Mal sobrava-lhe tempo para a amada. Ah, por mais que se rebusque palavras com nuanças, mal se comparam com a beleza de Da Santa, filha de homem enfarruscado, safardana, proprietário de pequena lavoura de cana e parcas cabeças de gado, mas que, julgava-se dono e senhor de tudo.

Desque descobrira o tal namoro e as intenções da filha mais o rapaz Delmiro, passara e escumar pelas ventas feito um bicho ruim, escarvando o chão em sua ruminância de fúria incontida. De velhacaria vivera toda a sua existência e, tinhoso que era, armou planos assentando sucesso no pôr termo naquele “causo de amor estapafúrdio sem tino e sem futuro para a filha”. Mandou-a para internato, em capital distante e de cizânia, ajuntou uns capangas-capachos para uma ordem de judiação.

Todo aparatoso, num domingo, o carpina Delmiro, de viola e botinas novas que ferroavam-lhes os pés, tomou rumo ao casario do tal senhor Vicenço. Ajuntara o que considerava suficiente para, sem ser refugado, ou considerado um desmolambado, estrupiado e molambento, dar as primeiras palavras com o pai da moça. Se ia num contentamento, numa ansiedade sem ter como conter e aquietar dentro do peito aqueles sentimentos de extensões e profundidades sem medidas. Doíam-lhe os pés, parava um cadinho, já sapecava a viola. Caminhava outro tanto e, repetia-se, já com os pés em frangalhos sem sequer fazer idéia da truculência do tribufu espichado na rede da varanda com as armas do lado a pitar um paieiro trás doutro e a binga rolando na mão boba. Severoso aguardava, embora soubesse que, ali ninguém chegava.

Deram-lhe tanto, de lanhar corpo e alma, tunda, coça, pisa, que o moço restou meio caminho, amiúde esbodegado, por pouco sem vida. Pacificioso que era, sequer tivera tempo de esboçar reação quando os quatro cabras caíram-lhe de chibata e mastruço de boi no lombo. De forma que, jazido ali, permaneceu tempo sem conta causo dos ferimentos causados pela refrega e, a esfola não fora de pouca monta. Arfava buscando prumo, as pernas sem justeza no arribar do chão de poeira. Havia recebido o recado, pois. Decerto era o que mais lhe causava aquele sarapateu, aquela ruaça nas idéias. Fosse lá, naquelas terras que chamavam de fazenda, era homem dentro de cova rasa. Palavras do pai da moça. E a moça, de compromisso com outro se arribara pelo mundo a mando do pai, estudar em capitais que, filha dele não ia se juntar com carpina safado. Fegante e dorido, remoía os recados. Pesava, aquilatava, se enfarruscava e, não chorava porque, podia não ser um doutor, mas homem era de brio muito e com denodo se aprumou. Deu meia-volta e largou-se pelas estradas do viver. Ele e sua viola.

Isso narrado, era o que se sabia do mestre que, passara a viver de déu em déu. Amirando as “Três Marias”, “Os Sete Estrelos” e a da “Guia”. Sem pousada, ao relento, feito aluado que somente não, porque, sua paixão passou a ser a viola. Cantando em feiras, beira de caminho, sombra de umbuzeiro e cajazeira, arrastou-se pela vida sem tenção nenhuma mais que não, cumprir sua malsinada sentença. Mendigo das estrelas e do amor de Da Santa.

Soube-se anos avante que, o tal coroné Vicenço havia sofrido um derrame e pagava seus mandos e desmandos pinchado numa cama, sem se mover sequer para as necessidades. Da menina nunca mais soube. Nem mais desejava. Ficaram as cissuras no para sempre. Era o causo do mestre que, por mais dolente e enlevada a moda, fechava os olhos numa concentração que, via-se, havia punhal cravado no peito abrindo sangria de dor. Mas lágrimas nunca. Vivia assim o mestre: indo e voltando. Ninguém sabia ao certo. Contavam que se metia em cafua, vezo por brenhas virgens, até apascentar o desassossego das lembranças e da alma. Então voltava a dar as fuças como se nada houvesse.

Centenário devia de ser, calculando-se pelas aparências. Se não, chegando muito ali, no faltar um tiquinho de nada para tanto. Sem zanga, via-se que o tempo solapara-lhe as entranhas da alma. Limpara-lhe o azedume e a desfeita. Mas, por vias da solidão, acrescera-lhe um bocado e tanto de sentimentos muitos de amor, compaixão, piedade e inspirações angélicas. Decerto havia perdoado o tal mandante e seus capachos. Mas e a moça?. Quem poderia botar fiança sobre o que sentia?. A vida tem dessas, certamente....

De forma que ia e vinha. Se assentava, proseava à custo que, caso seu era com a viola, e quem não respeitava e admirava mestre Delmiro. Tocou como jamais — decerto —, havia tocado em toda a sua vida de penitências muitas, naquela noite. Parecia noite derradeira. A gente percebia que, até mesmo as modas, pareciam sendo rebuscadas do mais profundo, arrancadas com raízes e tudo, estraçalhando por dentro, dilacerando e ferindo. Era o tocador em seu ápice. Átimo. Lapso de tempo naquele sopro de vida restante.

Os homens todos já começavam a se espichar pelos cantos, bambeando nas pernas; trançando; procurando canto para apaziguar os males da cachaça e mestre lá, firme: tocando, tocando, ponteando, repinicando. Já nem cantava. Somente tocava. Só. Imensurável solidão. Todos se recolhiam ou já se babavam. As horas mortas se iam findando. O céu passou a avermelhar-se e ele tocava parecendo ensofregadamente, tresvariando, febrento... Me aproximei pra assuntá melhor. Então vi as lágrimas. Grossas em bagas, caudalosas em quantidade, doridas e de sofrimento tanto que não tenho recurso para narrar. Disfarcei no compartilhar daquela dor, querendo e buscando segurar as lágrimas. Dividi com o mestre em meu ser criança ainda. Moleque de nenhuma vivência. E continuei chorando. Mirando o céu e o sol querendo rasgar o manto da noite ida e esparramar-se pelos campos ressequidos enquanto os primeiros pássaros cantavam acompanhando a sinfonia dos galos. Um canário parecia acompanhar os últimos solos da viola e feito passarinho, mestre Delmiro mirou-me com os olhos congestionados, embotados e estirando o braço disse:

— Toma, é tua.

Foi se espichando pelo chão, ali mesmo, no terreiro. Fechou os olhos após mirar o céu ou, vendo o que, somente ele poderia ver — talvez a tal moça, a Da Santa e se foi. Tentei. Bem que tentei lidar com aquele instrumento de alma leve e asas etéreas. Às vezes, parecia sentir mestre Delmiro catucando meus dedos, acertando um acorde, uma nota... Mas, era pegar na bichinha, riscar um som qualquer e, aí, vinha era uma vontade de chorar que parecia açude transbordando. Saudade e um jeito ameno de cismar. Guardei a viola. Que Deus guarde o mestre porque, coisa de valor que nos pertence e nos é de muita estima, jamais devemos pinchar fora ou nos desfazermos. Acho que Ele lá, o Pai Grande, sabe disso. Melhor que eu e que qualquer outro.

Decerto, ELE deve ter rezingado lá com o mestre e sua plêiade de anjos e arcanjos: “Menino danado!. Ganhou a viola e queria mais o quê?. O mestre com sua sabença e dom?. Era o que me faltava!.. Que fique lá, pelo terreiro, pelejando com a viola e mais, vai ter que muito labutar por fazer merecer!”.....


 

ASSOMBRAÇÃO

 

Dia bonito. De rara beleza sertaneja. O sol espiando lá do alto, cumprindo função mais estranha no esturricar lavouras e pastos com sua fúria e poderes imensuráveis. Fazendo judiação com as criações e as gentes todas. Parecia até que sentia orgulho em praticar tanta desgrameiras contra aquela gente sofrida e simples. Mas era coisa da natureza. Então, que mais fazer senão, conformar-se? Meio na marra — decerto —, contragostando e buscando forças nas idéias e no coração mó de não se deixar revoltado e arranjando peçonhas de contra as coisas de Deus e do sertão.

Meio baguá da vida, o pai tinha arriado o “Mastruço”, um cavalo de porte, marchador e se propusera a dar um estirão pras bandas da cidade, meio dia de pisada constante e bem medida.

Deu-se que, mal e mal findara-se a sesta, num domingo modorrento e de muita sengraceza, haviam-se todos desaparecidos. Até mesmo avó, D. Maria e o avô que não eram de muitas idas e vindas, tinham aderido àquela idéia de botar perna pelo mundo. Fiquei eu e mais eu. E nisso, já garrei a pensar numas besteiras desgranhentas sem conta que se me vinham aos cântaros em mente.

Bascuiei em derredor, mó de caçar garantia em Baião, mas qual! Se a família danava de desaparecer, ia era todo o mundo. E Baião, claro, era da família. De formas tais que o cão devia de ter acompanhado o avô. Senão, tava com mãe mais a molecada de junto do rio caçando e se esbaldando nas águas morosas do rio. Restei com minha solidão de malassombrado já querendo virar pé-de-vento e dar no rastro em busca do pessoal.

De verdade, firmo no que digo que, nunca fui de sentir medo em ficar sozinho com meus picuás e meus botões, mas naquele dia, sei lá, alguma coisa me parecia sussurrar nas entranhas para que eu me escafedesse dali que, de bom tento não era me fiar na coragem não. Encasquetei de um tanto que senti um rupio me correndo elétrico pelo corpo todo, botando cabelo em pé e agourando feito coisa ruim. Me benzi na horinha um “Padre Nosso” mais uma “Salve Rainha” e continuei meio zoró pelo terreiro de um canto pra outro. Indo e voltando. Entrando em casa e saindo que, tinha mais medo de ficar dentro de casa do que fora dela. E já me agoniava.

O medo foi tomando forma, encorpando, se pondo senhor da situação até que, sem mais, eu já tava me tremendo todo e querendo que alguém chegasse logo, antes que... Ô dia mais besta sô!..

De junto da cerca, no fundo do quintal, havia o umbuzeiro e a casinha debaixo. Pois foi ali mesmo, no pé da porta que se deu o caso da mulher senhora dona. Tardando, o sol poente, os grilos entoando cantoria no afinar desafinado de orquestra, a noite querendo espalhar seu manto por aquelas paragens quando a mulher adentrou a casa, tomou seu banho, se vestiu com a roupa domingueira, de ir à missa, e foi se sentar na cadeira de balanço, debaixo do frondoso pé de imbu....

Estava eu ali, junto da cerca, quando acorreu-me tais recordações contadas pelos moradores mais antigos. Não é que assim, sem mais, num repente, me veio um quarto de tijolo de barro e de pontaria certeira me atingiu justinhamente na nuca. Foi uma bordoada que eu fiquei meio passado, procurando de onde vinha aquela coisa sem tento e sem tino quando me lembrei da mulher. Foi um Deus me acuda que nem sei quantas dei com os calcanhares nos fundilhos correndo atordoado rumo à porta de casa.

No galope, com grito de medo entalado mas sem voz pra soltar, entrei foi com tudo, atropelando e dando de cara com parede e de topo com o que havia pela frente. Não atravessei parede porque mirrado que era, no que bati, voltei e passei alguns bons segundos esparramado no chão da sala, sem saber ao certo onde me encontrava. O coração é que não parecia querer cooperar de pauta com todo o resto porque, tremia-me todo o corpo e a mente era uma sarabanda que não havia jeito que desse jeito de organizar as idéias e botar tenção no pensar que não podia ser mais disparatado porque, Deus me livre, somente um doido varrido, parangolé das moleiras pra ruminar tantas besteiras como eu fazia naquele momento.

A primeira imagem que me surgira em mente é de que, no que pensava eu, acabei despertando a ira da tal finada. E imaginação não tem eira nem beira. Quanto mais porteira que segure: via a bichinha mirrada e caquética lá, debaixo do umbuzeiro, nas suas melhores roupas a balouçar naquele vai-e-vêm de cadeira ringindo feito assombração querendo criar peçonhas e puxar a alma da gente pra junto dela. Pois foi o que pensei. E garrei na reza que, não havia nada melhor e nem sequer em quem fiar em tais sucessos.

Na imaginação, a cadeira ia e vinha e a velha sorria um sorriso desgrenhado, sagaz, deveras, feito um convite de “vem cá menino bobo, vêm!”. Eu desconjurei um arreda, diabo e vá de retro quando ouvi a voz gutural:

— Tenho colinho e peitinho pra vosmicê, meu nenenzinho!.

Se não dei de topo com moringa de água no canto do cômodo, era certo que havia feito porqueira e me molhado todo porque senti. E não era água fresca de jarra de barro não, era quente e febril feito o sol escaldante e minha testa porejando e me adoecendo de hora pra outra, num bastar de susto. Amoleci e bambei das pernas e o corpo largado pedindo cama, avô, pai e mãe tudo de uma só imploração tanto o medo. Quanto isso, a mulher continuava se rindo e me chamando de “filhinho e minha criança do coração”, pejando o medo de tal forma no peito já saturado, abarrotado que, o que mais cabia naquela hora do valha-me Deus era, amiúde, somente reza e promessa de até comê bosta fosse o caso no caso de me livrar daquela coisa dos quintos!

Diz o velho ditado com sua sabedoria popular de que “quanto mais se reza, mais assombração aparece”. ’stava eu ali, de joelhos que, pernas já não havia mais que me sustinha, aproveitando e emendando numa reza sem fim quando me desperta na lembrança, da noite que o caboclo lá, de dentro da cabina da furreca véia, se virando e rosnando feito lobo, com os dentes arreganhados se rindo de mim e para. Naquela ocasião adversa que me põe de sobressalto até hoje, dei que dei nas canelas e num berreiro destravado que saltei cerca e fui parar debaixo da cama sem ter quem me tirasse de meu vezo.

Foi noite e tanto, de lua cheia, uivar de lobos pelas matas dos Cavalinis e ainda pra mais me deixar com a alma nas palmas das mãos, uma cadela que havia acabado de pôr cria neste mundo, garrô de arranhar nas portas do casario querendo entrar com filhote grudado pelo cangote na bocarra e eu atarracado em mãe firmando que era lobisomem e que o bicho estava era atrás de mim, causo que eu firmava pé não existia animal de tal natureza enquanto o Gil dizia que sim e deu no que tinha que dar. Quem disse que se me convenciam aquelas conversas de “deixa disso, menino!”. Nem avô com todo seu prestígio me concernia naquelas horas de agonia. Queria era entrar em toca de tatu e adeus viola!

Vinham eram casos assim e mais outros feito o cabra que morrera e, de alma sem sossego, sequer sabia ter se desencarnado desta, ficava zanzando de um lado para outro com aquele pano branco amarrado na cabeça ali, de junto da “caixa d’água” adonde a gente ia buscar de carrinho uns tambores pra abastecer a casa. E era uma lembrança remontando outra e eram tantas. Da menina no caixão. Do homens marelento e desgranhido que vivia rolando em bosta de galinha nas madrugadas de noite enluarada e uivando pelas brenhas e pelos quintais à cata de criança recém-nascida. Sei que, já não havia mais em que santo botar fiança tanto o desespero daquelas horas de solidão e agonia.

A imaginação tem asas? Pois é! Diziam os mais velhos que sim, a gente mangava que não e foi daí que botei fé naqueles apontamentos dos idosos. E quanto mais assustado mais presa se faz o infeliz. Já se me via todo molhado e pronto pra começar a abrir berreiro de choro convulso que, chega hora que, não há coragem nem macheza que sustente o medo. Remoendo e trinchando medo e arremedo, finquei reza destrambelhado.

Mas já não era mais caso de reza. Virara era caso de exorcismo porque a tal mulher, falecida e ida — que Deus a tivesse! —, se me vinha com seu riso, seus cabelos que se desprendiam finos e se desfaziam em pó pelo ar. As unhas rasgando as peles grudadas nos ossos mirrados e aquele riso das entranhas do Cão. Se debulhei lágrimas? Foi pouco, volto a repetir. E somente não endoidei porque, num átimo, despinguelei pela estrada de terra, numa carreira descontrolada e sem freios, indo dar na casa de D. Maria que, era lá que avô devia de estar e eu bem sabia. Intuição de criança é o que faz valer, na maioria das vezes.

Nos conformes e porem da coisa é que, já recuperando o fôlego, abandonado e todo mijado no colo do avô, contando aos solavancos o sucedido, apascentada a manada dentro do peito, fui me abandonando numa sonolência de não querer mas sendo forçado a se me ir que, escutava avô sussurrando umas frases avessas como quem pusesse encantamento e mandasse a mulher ir procurar caminho de luz que aqui, na terra, inda mais com criança, não tinha o que se prender e ficar atazanando porque lugar de morto era por Deus traçado e não forjado à vã revelia de alma empedernida e coisa e loisa e dormi.

Findo o dia, de volta pra casa, esconjurando o terreiro e a casinha ao lado, sob o meu confidente umbuzeiro, de mal com o resto da família toda, me atarraquei no avô feito carrapato. Passei tempo num estirão sem fim nos arredores da sombra daquele que me valera. Se avô ia pra um canto, lá estava eu. Os manos me apoquentando e eu de mal com a família toda que, nem mãe já não conseguia botar fora minha birra. Foram o medo e o susto. Dava-se que o tempo ia moroso, lengando, passando e eu esquecendo muito na marra e voltando a ser sem susto e sobressaltos repentinos quando, num fim de dia, tardando, esquecido dos fatos idos e soterrados pelas areias da memória, ouvi uma risadinha esgarçada de velha e foi a conta de me virar e lá estava: sentada na cadeirinha de palha, balançando pra frente e pra trás, com o olhar perdido nas trevas de sua sina, a tal defunta assombrando minha imaginação. Estaquei no padecimento do choque e firmei as vistas mesmo sem querer. Foi quando ela se virou-se me observando e rindo um riso de coisa maligna das entranhas do tinhoso provinda, apontando um dedo descarnado e me convidando no “vem cá, filhinho!”.

Se avô tivesse aqui, agora que já homem feito me pego, ele é quem poderia contar nos pormenores devidos, a trabalheira que dei porque a falecida dizia que eu havia sido filho seu em outra existência e que, somente estava ali era mesmo para não se finar de saudade. Penso até hoje: como ia finar uma coisa que já se havia partido desta para outra? Foi à custo que avô consertou aquele desarranjo todo. Mas ainda até hoje, quando em quando, parece que ouço uma risadinha besta e um convite dos quintos de “meu garotinho”, que, somente não faço o que fiz naquele dia de tempos idos e soterrados porque homem sou e.. Bem, às vezes, sinto falta do avô por perto, bem junto. Embora saiba que ele jamais me deixaria na mão.

Como diz mãe quando a gente pega a relembrar aqueles tempos crepusculares, “coisas do sertão da infância”. E pondo termo nas conversas avessas, me sacode com o seu, “toma tento de homem, seu!”. Sei bem o que quer dizer mas a imaginação, as lembranças e o medo, isso são coisas que, às vezes, no mais, por tanto que a gente se esforce, nos foge ao controle. Mas o que não gosto mesmo, de verdade, é ouvir aquela risadinha e aquele convite como quem espera um dia muito especial. E a mulher continua lá, de braços abertos, sem pressa, sem tempo, sem idade... Somente espera, ri e me convida... Mesmo quando digo que meu santo é forte, acabo me questionando: será que é tanto assim?. Sei lá!......


 

BOBINHO

 

Sol empedernido, esturricando o terreiro e aquele mundo sem fim de estrada poeirenta mais os campos de pastagens ressequidos. Urubus em proezas acrobáticas, formando círculos negros lá no alto, contrastando com a brancura das nuvens límpidas, sem forração e a vida se indo modorrenta, se indo...

De cócoras, o sol batendo nas moleiras, o menino cerrava os olhos miúdos a mirar a mãe na cisterna. O sarilho rangia na volta, com o balde de água salobra. A mãe girava lentamente o braço forte, ajeitando a corda a cada círculo completo. As galinhas e os porcos ciscando e refocilando pelo terreiro. Galinhas d’angola reclamavam da fraqueza em tribulação intermitente. Tudo aquilo recriava o quadro. Paisagem tingida por mãos diligentes de artista maior. O menino sentia.

O menino pensava e sentia aquela mistura de carinho e aquele nó em dó no peito: pela terra, a mãe, as criações, a vida toda se estendendo para distante, além e aquém de porteiras e confins. O menino sonhava cismando naquela idade sem tento e sem tino para botar reparo em coisas que nem os adultos entendiam lá muito bem. Mas tinha seu jeito de juntar e espalhar os pensamentos e idéias, feito rebanho pelos pastos.

Havia completado sete anos labutando contra a flora e a fauna intestinais — coisa comum por aquele mundão esquecido. Muito mirrado, divagando em sua solidão de bicho apanhado à laço, tornava-se cada vez mais arredio. Difícil de lidar. Bicho chucro, apartado. Na modorra dos dias febris, sarapintando seus devaneios de estrelas e cores desconhecidas pelas demais crianças da fazenda. Esgaravatando a terra com pau de graveto, desacoroçoado e inacessível. Não se lhe davam um tostão de réis, causo seu jeito. Diziam ser uma criança “altista”. Era isso? Não, não se lembravam o termo exato que o médico usara pronunciando sentença final:

— É somente uma criança diferente das outras.

— Como diferente? — Perguntara mãe, sem nada entender —, quer dizer o quê?

— É como se tivesse um mundo somente seu. Outro mundo, apartado da realidade o tempo todo. Ou quase. É preciso estar atento o máximo. Crianças tais são especiais de alguma forma. São sim!..

Então, para a mãe, ficou sendo especial. Feito um anjo. Para os outros, era o “lerdo”.

— João bobão!

— Patinho feito!

— Cabeça de minhoca. Comedô de bosta!

O pai não aceitara. Jamais conseguiria encarar o fato do filho ser... Bem, era um “retardado, não era?”. O que comentavam à sorrelfa. Filho único. Tantos anos esperando, sonhando, idealizando projetos para seu rebento. Não possuía a resignação, a fé e a coragem da mãe:

— Deus sabe o que faz.

— Sabe? Será que sabe, realmente?—. Indagava de forma enérgica, descontrolando-se amiúde, irado —. À merda! É o que é: merda! —, bradava furibundo.

Então, as lágrimas rebentavam juntamente com os soluços doridos. A mulher aconchegava seu homem no regaço, alisando-lhe os cabelos grisalhos, acarinhando-lhe a cabeça como quem afagasse o bebê doentio.

Do quarto contíguo, o menino ouvia. Compreendia e não a um só tempo, criando barafunda em sua mente conflitante. Era o pai! Deus na Terra. E a mãe, então? Bem, a mãe.. a mãe era estrela, bezerrinha, minhoca, passarinho, borboleta.. A mãe era pedacinho de céu e fatia de marmelada. De caneca de leite gostava não! Tragava na marra que mãe, de com jeitinho pedia e então, nem havia como negar.

Aí vinha avô, muito moroso, lengando nos passos arrastados pela idade avançada, cofiando as barbas hirsutas e o abraçava quente, dividindo energias, sondando-lhe a aura. Corpo astral sem mácula. Provação para a família. O menino era puro enlevo. De natureza abençoada pelo Pai Grande. Avô sabia. Via e sentia. Harmonizavam-se: a mesma sintonia que Deus empresta aos puros e simples de coração.

O menino se ria um riso dócil, de paz e harmonia. O avô beijando-lhe a face pálida, abatida e encovada pelo sofrimento secreto. Quem mais companheiro que avô? Desligava, caminhava uns passos e voltava a embrenhar-se pelas matas e sendas de seu mundo fornido por labirintos insondáveis. Avô espiava a luz radiante emanando-se lenta em feixes intermitentes da imensa alma apequenada dentro do corpinho franzino.

Estranho tempo que dá e tira; judia e ensina!.. Mas que, sobretudo, é capaz de tornar gigante a mais pequena e aparentemente ínfima semente sobre a face da terra. A vida de pauta com o tempo. Sanando feridas; cicatrizando cissuras; plantando o esquecimento nos aleijões das mentes perturbadas e sem paz...

O menino fincou pé, determinado, sem jamais ousar crescer por dentro. Esticou um pouco — bem pouco —, em estatura; muito magro e frágil. Aprendeu a soletrar uma ou outra frase, sem muito nexo, porém. Nunca fazia birra ou se deixava enraivecer. Apenas entristecia indo refugiar-se naquele mundo distante que era somente dele, o “Bocó”. Bobinho de alma imensa!

O pai não chegou a contar causos para os netos e sequer os teve. Antes que endoidecesse, meteu uma bala no céu da boca e se foi finado, cheio de mágoas e de alma lacerada. A mãe passou a carregar mais um fardo, arrastando pelo terreiro, o madeiro nos ombros curvados pelo sofrimento. O avô aparecia vez em quando, no meio das madrugadas silentes, para brincar com o menino. Bonito, radiante, o avô que também se fora um dia.

A vida ia-se indo. Capengando, em frente, determinada pelas sendas do se retirar.. A mãe foi se tornando tênue, diáfana, fragilzinha, miudica na peleja contra intempérie e contratempos tantos. Ria para o menino com idade de homem feito já. E era tudo o que lhe restara, então..

O menino “bascuiava” na mãe até encontrar aquela da cisterna, cheia de energias e coragem. Encontrava e, somente então, devolvia um riso acanhado, com o olhar brilhando, como se houvesse encontrado a paz, o vezo, a explicação e o significado da existência e seus percalços.

De forma que, a vida ia-se indo. Tangendo e sendo tangida. Algumas lágrimas secavam com a ajuda do tempo. Outras, bem.. outras até hoje, descuidadas, brotam e correm pelos sulcos das faces marcadas sob o sol escaldante. Ou ainda, sob a luz fulgurante das estrelas e astros que alumiam o manto negro do céu quando a saudade e a insônia garram de esgaravatar o chão de terra do coração ressequido..........


 

PIÁ

 

Mãe olhou pra o Piá e sorriu. Coisa por demais estranha. Função de alegria pra riso? Nunca que se vira, pois!. Não que mãe fosse de-sem-sentimentos!. Nada disso. Era que era do jeito dela. Comedida, cismosa, sem tempo para arrelia com crianças. Que, diga-se de passagem, eram tantos de se perder as contas.

Tantas!. Tontas que, feito baratas, zanzavam pelo terreiro da casa. Creio que mãe já nem discernir cria sua das outras, dava-se mais. Tanto a casa pejada de gente! E mais. Muito!. Que a vilazinha parecia ter-se mudado era para o terreiro lá de casa e por ali se abancara. Eram crianças, as comadres, os compadres do pai, os amigos do avô.. Afora os animais de criação que, mormente folgavam privilégios de à meia com a gente. A “Chiquinha” mais o “Baião”, — porquinha e canzarrão —, eram quenêm da família. Já Piá era praga!

No que mãe riu pra Piá, o estabanado se estremeu e esbodegou arregalando duas claras de olhos assim — assim: estrelados.

Deu jeriza, anseio de sopapeá o parvo, causo daquela cara farruscada de gente-bicho atoleimado. É que mãe percebeu minha cisma e tenção e piscou, deixando pra eu, o melhor do sorriso dos tantos que conhecia. Aquietei.

Fiquei lerdando por ali, sem o que fazer. Feito sonso, esgaravatando o chão de terra com meus projetos esquerdos no pensar até que mãe descuidô. Fui lá e preguei um sopapo no pé da venta do Piá que, o porqueira saiu catando cavaco, fucinhando pelo terreiro. Então foi um fuzuê dos quintos. Pregou boca no mundo, emitindo um berreiro chorado, dorido que, mesmo sabendo da tunda que eu iria levar, acabei me apiedando do safardana.

Aquilo era encenação, pura birra de gente manhosa que eu bem sabia. Não deu muito, tomei de volta uns cascudos e uns cróques nas moleiras que fiquei zureta, borocochô, espiando estrelas debaixo de um sol da rachar taboca e estalar mamona. E o estabanado lá, se rindo do sucesso assentado!.

Mas a gente era tudo assim mesmo. Feito uns bichos do mato, panhados à laço e muito dos malagradecidos para com a vida e as coisas todas. Até para crescer, a gente embirrava, fusquinhava, dava do contra. Somente quando de zanha com algum lá maior, então queria ser gente grande para ir à desforra. Como se alguém pudesse açulerá ou retardá o processo evolutivo ou da própria existência. Se tem cabimento coisas dessas?!...

Se me recordo bem, forcejando no repuxo das memórias encafuadas pelos vezos d’alma, Piá era um estrupício de desentendido. Vai ver, que foi panho para ser criado por mãe e pai. Pode ser que fosse essa a causa daquelas diferenças dos tempos de criança. De ciumeiras também se adoecia a alma. E a gente — mesmo sem entender —, cobrando o que julgava de ser somente nosso e que não poderia ser dividido com um qualquer feito o Piá.

— Aqui ninguém é mais que sô ninguém. Tudo farinha do mesmo saco. Deus é quem pode aquilatar e julgar. No mais, tudo uns ramelentos esmolambados!.

A mãe dizia e era de uma vez somente. Ninguém ousava redarguir de contra. Causo que mãe era de parcas, raras palavras às quais punha respeito e tornavam-se inquestionáveis, irretorquíveis. Era de bom senso e juízo, jamais ir de contra o dito. Com isso, somente cego não perceber que Piá se aprouvera e botara sustentáculo nas primícias que mãe pregava para folgazão, ficar mangando da gente.

Mangava mas, volta e meia, levava uns trancos dos manos. Vivia de sandice e gabola, fingindo de lerdo, criando futricas e lambança com suas picuinhas, nas más tenções encontrava comprazimento. A gente — eu e os manos —, mal e mal mãe dava as costas, acossávamos o besta e sapecava-se-lhe uns tabefes no comedô de lavagem e uns sopapos no escutadô de novela que era pra se lembrar-se que, não tinha nada que ser maricas futriqueiro e se pôr de senhor de terreiro que, lá no terreiro de casa, mandava mais o Baião que nóis tudo criança.

A avó, insuspeita em seu hermético ser, na cadeira de palhinha, da varanda espiava de soslaio. Pensava-se que aqueles olhos verdes-azuis, destoavam para fora da cena em pauta, quem sabe, perdidos por outras Eras e outros mundo apartados. Ledo engano! Avó via e ouvia melhor e mais profundamente do que muitos de nós outros.

Por isso mesmo, quando Piá, abusado que era, se gingava lengando moroso pra’os lados da avó, ela já se punha de cisma, ressabiando, sobressaltada e enfezava imprecando:

— Arreda, diabo! Arreda e dei’eu em paz!..

A gente se ria na hora, causo do jeito da avó que vivia de implicância com tudo e com todos, querendo paz. Mas já somando quanto péduvido Piá ia ter que sustentá pra mó-de aquietá aquele seu jeito destrambelhado de muita folgança e espivetado. E ele lá..

Lépido, arreliento, tinha costume de, mão-besta, fazer cócegas na velha; beijar-lhe a nuca; lamber-lhe as faces sulcadas pelos anos e mais umas variadas brincadeiras enervantes que, um dia, sabe-se lá onde avó arranjou ou foi reciclá tanta força que, sapecou uma tremenda bordoada nas ventas do infeliz que o melaço desceu.

Naquele dia, Piá armou barafunda. Chorou, berrou, proferiu palavras indecorosas e cabeludas, se rolou pelo chão e como ninguém lhe desse a mínima, baixou o calção molambento e mostrou aquela bunda branca e perebenta pra avó. Tal foi a bazófia que, se percebia que avó ria-se disfarçado daquele menino atentado. Ficou uns três dias de beiço inchado e ferido pelo tabefe, rodeando a avó de forma provocativa.

Foi indo, foi indo, até que deixou de implicância e desrespeito com a avó. Esquecia. De bom em Piá que, nunca guardava mágoa ou rancor de ninguém. Era atentado que só ele. Mas, na realidade, até que era de bom coração. Não se podia negar. Infernizado e inquieto ali pelos seus seis anos de idade e, apesar de marelento e raquítico, parecia uma fossa sem fundo de energias resguardadas quando metia-se de zuretar todo o mundo à sua volta, o peste.

Também, tinha hora pra tudo. Dava de se meter pelos cantos, palrando sozinho. Desafiando lagarto, escorpião, taturana e até cobra que, danado, enforcava num laço com forquilha de pau e aí, trinchava — de curiosidade e besta —, a vítima peçonhenta.

Das vezes, aquietava num “brumm-bruuummm”, com os beiços imitando caminhão forde na rampa de subida. Ou de imitar bem-te-vi; canário-da-terra; coruja; sapo; galo; lobo guará; boi no pasto e cavalo de relincho. Senão garrava imitar jumento que era uma porquera só. De forma que, seu sossego era de grandes, hérculeas empreitadas.

Se se punha macambúzio, enxavido, largado sob a sombra do umbuzeiro ou em sua toca de barranco com forro de palha, é que, de saúde não pegava-se bem. Aí, dona Maria tascava-lhe remédio pra vermes, mó de pinchá fora a fauna dos intestinos. Não rezingava. Se lhe ministrasse fel, ingeria calado. Com dona Maria e com o avô, tinha xodó e muito respeito, o estouvado.

Avô dizia que era de natureza vária. Sem paradeiro de concentração. Muito agito d’alma e da mente fervilhante. Mais, que era inteligente que só ele. Mas não sabia ainda, como desfrutar. Gasturava energias à toa. Que, com o amadurecimento, serenava. A gente ouvia mas, por trás daquela conversa, ficava botando aposta que pra “madurar”, aquele lá, tinha era que ser na base duns bons corretivos e muitas bordoadas.

Já no primeiro dia de aula, apareceu lá em casa todo desgrenhado; roupas esfarrapadas; um olho roxo e inchado. Havia engalfinhado-se com Tonho, filho dos Bernardes — raça de rinha!

— Causa de quê, foi se bater com aquele tribufú, hein, seu lambido?.

Mãe perguntava, Piá se encolhia-se todo, sem responder um que. Formou-se roda, chinfrim iniciando, mana se vinha chegando nuns passos firmes, decididos, e mal abriu o rodeio, pôs termo em tanto escarcéu e barafunda:

— Brigô com o Tonho causo que aquele um lá, me desacatô com nomes e palavras indecorosas.

O estrupício fez cara de lerdo-desentendido e se largou para outras bandas, curtir seus méritos com tento de herói humilde no seu um nadaquedizer. A gente ficou roendo as entranhas. No dia seguinte, juntamos os cinco manos homens e arriamos o cacete no Tonho, enquanto Piá, de olho zangado causa dum soco, se ria do outro como quem dissesse:

— Tá vendo, seu semovente estúpido?!. É no que dá bulir com a nossa gente lá de casa!—. Isso, no seu orgulho desajeitado de irmão adotivo.

E foi assim, o tempo passando, a gente acompanhando por obrigação. Sem muito prazer naquilo de ter que ir tomando ciência e responsabilidades que, à bem dizer, éramos todos, sem exceção, muito dos lambidos, folgazões. Piá então, nem se fala! Ô trem atropelado! Mas, crescia. Na marra. Nem madurando, nem serenando. Tão somente criando pouco mais de sustança por riba dos ossos e por baixo das peles.

Não se podia negar que, bom na escola ele era. Nem de dava como, mas era danado.

Sem levar bomba de repetência de ano algum. De forma que, somente poderia ser causo da inteligência mesmo, como avô dissera. Porque estudar, nunca se dera ao. Durante as aulas, sonhava, divagava ou dormia. No recreio, arranjava encrenca, o peste!. Tempo não soma mais, nem menos. É com precisão, exato e Piá ficou moço. Nisso a gente já o tinha por mais que irmão consangüíneo, e isso era visto e percebido por todos.

Mãe riu pra Piá. O desgovernado abria um sorriso ancho, de orelha à orelha, duro feito um espantalho no milharal; todo prumoso; as mãos calosas de puxar enxada e outros serviços brutos da roça mas que, naquele momento, parecia gente da cidade dentro daquele terno três vezes maior que ele. Passei perto, mirei olhos de Piá, abri um sorriso e tasquei:

— Afanou do morto?.

Mas Piá era somente contentamento e não aceitava provocação. Riu e piscou para nós, seus manos e, por fim, serenou. De feições contritas, deu-se o braço à noiva e foi se dirigindo todo pomposo e solene ao altar para a cerimônia.

Daí, foi uma festança só. E o que não me foge da memória foi que, dado momento, até avó deu de sorrir. Sorrir e chorar à um só tempo, causo que o danado do Piá, foi se chegando de mansinho, arrodeando a avó e num repente, segurou com suas calosas mãos, as rugosas da avó e, pedindo-lhe a benção, tascou-lhe um beijo nos lábios murchos de riso pouco, enchendo até os mais enregelecidos corações, daquela chama de amor e bondade que, somente ele, Piá, saberia como demonstrar em forma de agradecimento na hora certa e precisa... Piá continua nossos irmão. E nós, tios.


 

O CAUSO DO FAZ DE CONTA

 

Havia a casa. Dentro dela a velha. Anciã. Junto da velha, a menina. A mesa no centro da sala. A renda nas mãos da velha e a menina observando o piano. Havia o silêncio. Somente quebrado pelos ruídos naturais. Madeira estalando após o dia de sol abrasador; grilo cricrilando lá fora, no quintal cercado pelo mato já alto; pio de coruja; correr de ratos e vez ou outra, o relógio com seu pêndulo moroso. Havia o ruído das traças roendo, roendo. Havia um século transcorrido e registrado. Eras desconhecidas, imemoriais, resguardadas nalgum cofre antiquíssimo. Outras coisas de somenos importância, figuravam nos quadros pendurados nas paredes amalgamadas pelas rachaduras e teias de aranhas.

De fato, como se costumava dizer, ali sim, tudo era cidade e sertão. Sertão e cidade. Cemitério e civilização. Abandono e segredos. No povoado, cisma, receio e medo do desconhecido. Diziam que, tratava-se de um solar próprio, de almas ancestrais e intemporais. Dizia-se. Da mesma forma que dizia-se: as duas, a velha e a menina — não se sabia ao certo —, de merenda, alimentavam-se. Merenda que não havia. Jamais se vira.

A casa ficava fincada em um terreno amplo, cercado por estacas de madeira apodrecida, corroída pela intempérie e os séculos. Seculares também, eram suas sinas e almas. Diziam ser penadas. Almas esquecidas, perdidas, abandonadas. Por isso, jamais haviam dali, arredado um passo sequer. A velha e a menina. Na soledade e solitude da casa vazia. Era o que se dizia. Era o que se contava. Às vezes, era melhor fazer de conta que o que se contava, era somente um causo que não existia.

Diziam que a menina sorria. A velha jamais sorrira. Mas que o sorriso da menina era de tal melancolia que fazia sofrer e sofria lá, ela com sua sina tirana. Era um sorriso de saudade do que nem se sabia. Talvez do que jamais vivera em sua vida de reclusa. A velha não dava importância ao que se contava. A menina menos ainda, ao que se dizia. Permaneciam ao solar aprisionadas feito almas penadas. Que a casa, como se tivesse vida e coração, pulsava. Podia-se sentir as batidas medidas e compassadas. Diziam. Isto é, diziam, mas ninguém confirmava que, era coisa que, ao certo, ninguém sabia. Era assim que era. Assim que deveria. Caso de descaso do destino em desatino e fatias.

No mais, até mesmo Dona Maria que, do terreiro lá de casa, pouco saía, também, naquele causo, tento punha e dizia — igual e tal qual aos demais —, que, um cadinho daqueles fatos e desfeitas urgia saber para que se evitasse fosse, por ele enredado, caindo nas teias e poços abissais. Mas, qual o quê!. Saber mesmo, de fato, ninguém poderia afirmar ou dizer.

Mais, se dizia que de três crianças que pelo quintal um dia foram brincar, uma esperava-se há mais de um século e a criança, nada de voltar. Nem que cães ou gatos, por aquele quintal de mato, aventuravam-se porque isto feito, era certeza de jamais tornarem à luz do sol ou, de a própria lua espiar. Dizia-se que, somente uma coruja velha e agourenta, no portão deixava-se restar pelas horas avançadas. No mais, não mais se sabia contar. Ou, nem todos que, o “bobo” e aluado “Pedro Babão”, bicho sem tento e sem preceito, na casa não somente havia adentrado como, dizia-se, havia pernoitado. Coisa de louco encasquetado.

Todos especulavam esperançosos, o tal bobo. E Pedro, de esquerdo, se fazia desentendido. Não respondia coisa com coisa e loisa. Num muxoxo, já de zanha, enfarruscava, calado, não dizia nada. Fincava empacadado em seu amuo de sujeito das bolas e caraminholas, desgovernado.

Certa passagem, eu mais o Carlinho Macaco, irmão do Dedé, garramo a atazanar o malaprumado, numa caçoada premeditada, desfeiteando o encasquetado de formas tais que, deu-se-lhe umas estremeções e o resultado, do qual a gente maldava, debochados, foi quando o sujeito danou a falar num destampatório que, custante se entendia um nada daquele estabanado palrar aos clangores. Não nos foi de valimento algum, causo que, acabamos ficando foi é gasturado e cansos como se o bobo, tivesse a gente engambelado com aquela palração sem tino. Acabou-se transformando em cizânia e embezerramento.

Daquele dia em diante, uma década assentada pós, afianço, o bobo que muito do jururu, ainda sentia por nós, deverasmente, ojeriza e enfado. Também, não era pra ocorrer tal fato?.

De sina ou malsinada sorte, tinha eu que haver com a velha e a menina, afinal?. Foi que, se me lembrava, era por mero descuido. Danei a vagar erroso pelos matos. Crepusculando já, noitinha meio-posta, lengando nos passos, chegava em casa alheio, aluado, herói-bandido. E, lá vinha mãe:

— Menino, aonde é que ’cê foi?.

— Ah, mãe..Tava pelai, p’lo mato.

— Fazendo o quê, peste?.

— Zanzando à toa, uai!..

Diziam que, pra mãe não se mente vingando pecado é dobrado.

— De em tempo passado de garrá nu’a enxada. É isso que se lhe concerne e aquieta —, dizia mãe dando parecer final.

Já pai, cismoso que ele só, por certo que cavacava a mente — ciência do pensar, deduzir de encontro com a razão. Pelejava, sem estrugência, um cadinho aborrecido, deixava nos conformes e finalmentes.

E eu, rapidinho, lavava-se-me na tina. Água fria, enregelecendo-me a alma confrangida no peito mirrado. Pensava desdenhoso, um dia inda morro causa da asma. Fumava escondido, sem vergonha na cara que, nem carecia, de moleque que era ainda. Pensava na menina. Pensava na velha. Ia pensar pra mó-de-quê?. A menina crescia, a velha envelhecia e assim, a vida se ia. E não?!..

Na hora da janta, n’um canto mais afastado, sôfrego, o prato de alumínio e a colher nas mãos, cismava buscar explicação, porque as mangas haviam desaparecido assim-assim.. O pé carregado que era bom de se espiar. Nem carecia trepar pelo tronco custoso, indo pelos galhos arriscando ser traído e pinchado lá de riba. Nem de atirar pedra ou com vara futucar.

De uns tempos, manga era o que mais se panhava pelo chão forrado. Feito o umbuzeiro, de carga encorpado. De repente, lá estava, manga nenhuma, os galhos pelados. Coisa estranha!...

Naquela noite, caí cedo na cama. Meio enfarado de tudo. Peguei-me entrando pelas sendas dos sonhos. Parecia real. Mas eu sabia que sonho era. Sabia porque a menina mandava “beijim”, recostada ao portão corroído, secular. Não era mais menina não.

Era moça, já encorpada, de belezura jamais avistada pruaquelas bandas. Somente Maria Rita e Lucéia se comparavam, inda que, nos causos que estas, morenas. A do portão, os cabelos — madeixas, de muitos cachos enovelados, doirando ao sol. Cabelos de milho. Ouro em pó rebrilhando de cegar os olhos gulosos miramirando.

A menina sentada no centro da sala, roía a merenda e a velha c’ao renda: esquecida do tempo, dos anos, das eras, da vida perdida. Agora no portão, sorria alvissareira, amiúde, o contorno dos lábios era o que o sangue fervia. Mormente, evitava confronto de olhar no olhar dentro-fundo, sem fundo de poço, ringindo o sarilho com balde de água: matar a sede que queimava feito pimenta malagueta.

Mergulhado no sonho, do alto da mangueira, avistei um olho d’água, mãe!. Brotando, se transformando: bacia de prata refletindo o luar. O céu pintalgado de estrelinhas, o coaxar do sapo enamorado, embalde procurando a amada. Vaga-lume pelo campo pisca — piscando. Vêm cá, vaga-lume, vêm!. Tua mãe tá ’qui, teu pai também!...

Nisso, piava agourando a coruja olheira, bisbilhotando no seu sem pressa. O tempo não apressa, sempre o mesmo. A gente sim, atropela. Avô dizia. Porque a gente toda é de natureza estouvada. A moça mandando “beijim”.

Corri roubar bicota. Fechei os olhos e, quando abri, beijava múmia. A velha se ria um riso dorido, sem nexo. Perplexo, à medo, no chão de tábua da sala preso me via enveredando por sendas desconhecidas e por demais avassaladoramente assustadoras. A menina sentada ao lado da cadeira de palhinha roía a merenda, olhando para o além vida, nem se me via.

— Qué mais “beijim”, qué?!..

Era a desgranhida da velha com os lábios leporinos, ressequidos, ranços, gretados pelos séculos transcorridos. Se ria um riso nervoso, irado quase, desafiante e eu me apequenava com o coração aos saltos em disparada pelas invernadas e ermos restinguentos. Não queria “beijim”?. Fui, não fui?... Então, porquê negar?. Arrenego três vezes três!. De doido, até então nem não que nunca havia sido senão meio desligado da vida e do mundo. Mas...

Daí, não sei botar fiança no que digo se, nem eu me afianço mais. Coração atribulado, sem descanso, sem paz. Na mente, a dúvida: se já velho, ancião ou, se ainda menino?. Nem sei. Nem digo sim. Nem desdigo no não dizer. Atoleimado e imprecavido. Sem ter como botar sentido no que não faz.

Foi assim que, fui perdendo o tino das coisas todas. No que, ao invés de levar, sendo levado. Sem distinguir presente de passado. Mofino, destoando no viver que, somente tinha pensamento e sentimento agrilhoados pela moça do portão e de descorçôo, padecia malassombrado. Como se a velha, de junto de mim, passasse a viver me espiando das trevas de seu vezo ancestral, dando de me seguir de um lado pr’outro — ali, justinhamente —, no parecer que, de braços dados, cruz em credo!.

Isso se deu-se de formas tais que fui me gasturando e me pondo de cismarento e abestado para — de obsessão —, pávido, amedrontado. Era pensar na menina-que-moça, dava de topo com a velha anciãníssima em projeção mentalizada com suas feições de fungos, poeira e mofo...

E de mofo, via-me pejado e atulhado até o caroço da alma em alvoroço. Garnizé cisca-ciscando o terreiro, dava voltas e devoltas em derredor da casa imprecando os males da alma e anseios incontidos. Caso dado por vencido, causo que, um tanto da curiosidade, outro por amor mal — esclarecido e de pouco sucesso transcorrido. Fiquei mais foi é macambúzio e adoentado de coração frechado em sangria e mendicância dos males de cupido. Essa é que é a zanga da cissura incurada, pois!...

Desd’que tal foi o ocorrido, se me via perdido, nuns devortêios mentais que tais, punham-me inteiramente desgovernado a escarafunchar pelo baú da memória esmaecida e mal delineada se, fora realmente sonho. E se fora, sinal não seria?. Talvez, quem poderia me dizer?!. Bem que pensei partilhar segredo com Carlinho ou D. Maria. De pronto, descartei tais premissas em questão. Em pós um tempo, passei a rodear avô Hermínio que, ele sim, conhecia coisas desta e da outra vida como se uma somente fosse continuidade da outra, ligadas ambas, por tênue fio iridescente, causo do corpo físico, material e do corpo espiritual, perispirito, de matéria feito éter tão delicada e sem palavras como descrevê-lo, que tratava-se então da alma e coisas que somente o Criador tinha tento e sabença. Mas, quede coragem?. Deixei avô lá quieto a cismar e continuei a carregar meu fardo de aflições.

Se fora sonho, então não havia porque tanto acirramento e encasquetameto de alvoroçar os pensamentos sentidos que já nem pensados, como era de ser. Mas quem disse que havia como aquietar no peito o coração mal arranjado e talqualmente feito boi escarvando o chão, se arremetendo pelos pastos pra riba de sabe-se lá que bicho se via que, somente ele mesmo que não possuía os dons da fala, mugia, estrugia e despinguelava de carreirão, levando cerca de arame farpado no peito e ganhando mata fechada desaparecendo por tempo indefinido?.. Arre!, jamais havia-me sentido tão confuso e já entregue, perdido!.

E toquei rodear. Assuntando o portão e nada da moça-menina-anciã aparecer oferecendo “beijim”. Tava que, somente constatando de sentir o gosto de coisa secular nos lábios para arrancar de vez aquele mal contraído. Fui chegando. O portão rangeu doentio quando empurrei. Ganhei o terreiro de mato coberto e feito um zumbi direcionado e tocado por vontade alheia peguei-me a forçar a porta que, à custo e muitas palpitações no peito, cedeu com um gemido assombroso, espectral, ferindo meus tímpanos e sentidos.

Na primeira devastada de olhos percorrendo a ampla sala, pude ver como que nalgum quadro de fotografia, bem no meio do cômodo, a velha sentada na cadeira de palhinha a me sorrir desdenhosa. A menina, apenas mirava através de minha alma outra que eu, seguramente, desconhecia. Dei de tremer e baixou uma vontade arretada de sair de fasto e me desemendar pelo pasto em rumo de casa. Entretanto, as pernas travaram-se-me e permaneci ali, parado, estarrecido, atabalhoado, esquecido de tudo...

Firmei as retinas espiando e assuntando quando caí em meu pensar razoável para tanto espanto e já não havia senão a velha cadeira. Mais nada e nem sô ninguém naquela sala que, de luz, somente o que filtrava pelas frinchas e frestas muitas das paredes e janelas prejudicadas pelo abandono e a intempérie. Avancei dois ou três passos e a porta, atrás de mim, fechou-se batendo estrondosamente. Foi então que despertei com o avô me segurando uma das mãos e a outra, acarinhando minha cabeça. Fiquei quieto, parado, estático, preso ao leito, esperando. Uma eternidade. Até que avô falou com sua voz dulcíssima e pausada:

— É um causo pra você fazer de conta. Porquanto, apesar de, não se conta.

Fiquei sem entender nada. Continuava com o pensamento e o coração cativos da sala da casa. Vieram-me as imagens da velha e da menina à mente e aí, como se avô lesse pensamentos e sentimentos, segredou-me:

— Elas já se foram há muito, muito tempo. Tanto uma, quanto a outra. Então, melhor esquecê-las para que, descansem em paz.

Mais do que foi dito, avô não quis me contar. Forçou resistência que eu não ia entender caso entrasse em detalhes. Mandou eu jogar bola no campinho, nadar no rio, armar arapuca e plantar bananeira. Além do que, passou-me um sermão asseverando que, caso necessário, um corretivo até que caía-me bem naqueles intentos sem tento algum de deixar o coração e a mente iludidos por sonhos que acabariam transformando-se em pesadelos caso eu não botasse termo naquela obstinação de bicho turro e cabeçudo que era.

Segui conselho do avô que, era por quem eu mais tinha consideração e maior confiança depositava por sua sabedoria e personalidade de gente evoluída da mente, intelectualizado que era; do espírito mais puro e de elevado conceito lá com o Grande Pai e mais, de moral que, isso também, conforme avô ensinava, tinha que apurar pra mó de se ir depurando, num purgar dos maus costumes, fluídos e vícios da carne e da mente estouvadas pelas coisas mundanas. Fui me forçando, forcejando no fórceps da mente a deixar de lado aquele causo; dizendo-me que era tudo no faz de conta então, como era, não contava e comecei a esquecer. Até que um dia, quando o céu principiava a escurecer, espraiando seu manto negro, forrando todo o recanto sertanejo, brincando já, os anjos de colocar estrelas nos seus devidos lugares, se me veio uma melancolia sem tamanho, uma tristeza repentina, saudade vesga de nem sei que e aquietado, cismando a noite posta, ouvi — posso jurar —, um sussurro no ouvido:

— Qué mais “beijim”, não?!.

Gritei. Gritei e corri pra junto do avô. Avô me segurou, passou a mão por riba da minha cabeça, eu tremia e ele sorrindo me lembrou:

— Não era um causo do faz de conta?....

Era?.. Não sei. Não sabia responder. Até hoje não posso dizer que era ou que não era. Tudo o que sei, é que, vez em quando, ainda ouço o ruído da renda, o mastigamento da merenda e aquela voz infantil perguntando-me, voluptuosamente:

— Qué mais “beijim”, não?!..

*********

 

EM TEMPO:

 

Para: Joyce e Maricy. Moisés & Angela. Roberto Ferreira & Mara. Márcio Jacovani, Rô e Flora. Paulo e Patrícia Ferrari. Minha Mãe. Meus avós (In memoriam); meu pai (In memoriam); minha irmã Angela (In memoriam) e meu irmão Milton (In memoriam). Para Barretos-SP., a “Vila Pereira”. Lucéia Bottini. E o pessoal que fez parte da infância do “Menino do Mato”, lá em Barretos. Para Maurício, Ana e Fernanda. Para Dr. Miguel e D. Lila Chaddad. Para Maria José Gomes. Para a cambada de irmãos que tenho: Bete, Lia, Téia, Marcelo, Moisés e Pelé. Para todos os “capiauzinhos” deste Brasil, acocorados na simplicidade modorrenta e crepuscular dos sertões. (Especialmente para Natália...., flor, estrela, menina & canção. Pedra rara, jóia inocente que sorri e que, a mão do Senhor, através da natureza, lapida com amor, carinho e sabedoria no dia a dia dessa existência crepuscular...........).

 

(FIM)

 

Mauro Gonçalves Rueda
São José do Rio Preto / Barretos /1.999


 

©2003 — Mauro Gonçalves Rueda
maurorueda5@hotmail.com

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Janeiro 2003

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