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O REI LEPROSO

[O Santo Sepulcro]

Zofia Kossak

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O Rei Leproso (1936) - Zofia Kossak (10.08.1890 - 9 April 1968)
Título Original: Król trędowaty

Fontes digitais

Tradução base
O Santo Sepulcro
Isa Silveira Leal e Miroel da Silveira
Coleção Saraiva
= 23 =
Maio 1950 - Tiragem: 45.000 exemplares
“Título do original inglês: The Leper King”

Edição eBooksBrasil

© 2008 Zofia Kossak-Szczucka

USO NÃO COMERCIAL - VEDADO USO COMERCIAL


 

Índice

A Autora
O Rei Leproso
  1. A Liteira Dourada
  2. O Terror do Rei
  3. As Mãos Denunciadoras
  4. Notícias de Ascalão
  5. Um Marido para Sibila
  6. Piores que os Pagãos
  7. A Paz do Santo Sepulcro
  8. Neto da Serpente
  9. A Vida ou o Céu
10. Nem que lhe Fizessem Rei!
11. Relutante Auxílio a Antioquia
12. O Escudeiro de Godofredo de Bouillon
13. “Perdoa, Irmão”
14. “Eu Sou o Rei”
15. A Vitória do Santo Lenho
16. Sibila, a Feiticeira
17. O Monte do Pecado
18. O Templo de Vênus
19. Entre o Amor e o Reino
20. A Derrota de Sibila
21. Guy, Rei de Jerusalém
22. Embaixador do Sultão
23. O Arco-Íris Despedaçado
24. A Paciência de Saladino
25. Traição a Deus


 

 

[imagem]

Zofia Kossak-Szczucka

 

Embora se dê como data de seu nascimento 8 de agosto, o que ela mesma fazia, sua certidão de nascimento, recém encontrada, como noticia a Wikipedia, consigna o dia 10 de agosto. Como quer que seja, nasceu Zofia Kossak no mês de agosto, na Polônia e estava destinada a ser uma das mais importantes escritoras polonesas e um exemplo de vida.

Neta do pintor Juliusz Kossak, contraiu dois casamentos, mantendo no segundo o sobrenome do primeiro: Szczucka. Mas é mundialmente conhecida como Zofia Kossak, seu nome de solteira.

Antes da II Guerra, participou do grupo literário Czartak, fundado por Emil Zegadłowicz, e escreveu para a imprensa católica. É deste período o livro Conflagração, sobre a Revolução Russa de 1917. Em 1936 recebeu a Láurea de Ouro (Zloty Wawrzyn).

Destaca-se entre os melhores autores de romances históricos poloneses. O que não é pouca coisa, se lembrarmos que entre eles figuram Henryk Sienkiewicz (autor de Quo Vadis e prêmio Nobel de literatura) e Józef Ignacy Kraszewski, autor de mais de 200 obras.

Entre suas livros mais conhecidos: Krzyżowcy (Cruzados, 1935), Król trędowatu (Rei Leproso, traduzido ao inglês como The Leper King e ao português como O Santo Sepulcro, 1936), sobre as cruzadas; e Bez oręża (Sem Exército, traduzido ao inglês como Blessed are the Meek e ao português como Bem-Aventurados os Humildes, 1937), sobre Francisco de Assis.

Quando sobreveio a II Guerra Mundial, Zofia Kossak já era um nome de expressão na cena cultural polaca. E continuou sendo... na imprensa clandestina. De 1939 a 1941 co-editou Polska zyje (Poland Lives - A Polônia Vive) e em 1941 co-fundou a organização católica Frente para o Renascimento da Polônia e editou seu jornal, Prawda (Verdade). Usava o codignome de Weronika.

Apesar de ser procurada pela Gestapo, expôs-se ao ajudar os judeus, motivada por seus valores morais, humanitários e patrióticos. Encarava as ações alemãs, disse, “como uma ofensa contra o homem e Deus, e suas políticas como uma afronta aos ideais que esposava para uma Polônia independente”.

No verão de 1942, quando começou a liquidação do Gueto de Varsóvia, Zofia publicou um documento que se tornou histórico: Protesto — impresso clandestinamente e do qual foram distribuídas 5.000 cópias. Nele descrevia, em termos candentes, as condições de vida no gueto, as circunstâncias horríficas em que as deportações estavam a se dar. “Todos perecerão”, escreveu. “Pobres e ricos, velhos, mulheres, os mais jovens, infantes, católicos morrendo com o nome de Jesus e Maria junto com judeus. Sua única culpa é que nasceram na nação judia condenada ao extermínio por Hitler.”

O mundo, apontava Zofia, estava silente face a esta atrocidade. “A Inglaterra está silente, bem como a América, mesmo a influente comunidade judaica internacional, tão sensível em suas reações a qualquer transgressão contra seu povo, está silente. A Polônia está silente... Judeus moribundos estão cercados apenas por uma hoste de Pilatos lavando suas mãos em sinal de inocência”. Os que se silenciavam frente ao assassino, escreveu, tornavam-se cúmplices do crime.

Zofia Kossak não se silenciou.

Em 1943, foi presa. Levada primeiro para a prisão de Pawiak, dali para Auschwitz, onde foi mantida no campo de concentração adjacente àquele para o qual os judeus eram enviados, condenados ao extermínio. Foi liberada graças aos esforços da resistência. Voltou para Varsóvia e para a resistência. Em fins de 1944, participou do Levante de Varsóvia. Após a guerra, preferiu emigrar para a Inglaterra a viver sob o regime comunista polonês instaurado. Em 1957, ao término do período estalinista, voltou à sua pátria.

Após a guerra, Zofia publicou Z otchłani: Wspomnienia z lagru (Em inglês: From Abyss: Memories from the Camp - Do Abismo: Memórias do Campo), descrevendo suas experiências em Auschwitz; Dziedzictwo, sobre a família Kossak e em 1952 Przymierze (Alliance) com temas bíblicos. Escreveu também livros para crianças e adolescentes.

Faleceu em abril de 1968 e foi enterrada no cemitério de Górki Wielkie, vilarejo histórico em que viveu boa parte de sua vida.

Pudemos conhecer, da obra de Zofia, em português, Król trędowatu, traduzido do inglês e incluído na saudosa Coleção Saraiva, cuja digitalização constituiu a base desta edição; e Bez oręża, em tradução de Godofredo Rangel [Biblioteca do Espírito Moderno, Série 4ª - Cia. Editora Nacional, SP, 1945], edições que podem ser encontradas em papel nos bons sebos pela internet, mas há muito esgotadas.

Nesta edição, optou-se pelo título O Rei Leproso, mais próximo do original polaco e do título em inglês, mantendo-se, por fidelidade à fonte digital e em respeito à memória dos leitores mais idosos, entre os quais me incluo, a menção a O Santo Sepulcro, livro cuja leitura, com certeza, faz parte das memória de muitos dos leitores, que não hesitariam em, como o faço, recomendá-la às novas gerações. Boa leitura!

 

Dados biográficos colhidos na Internet, basicamente na Wikipedia. Pela ajuda nos caracteres polacos, Jennifer Kyrnin, webdesign.about.com - Por qualquer deslize, peço desculpa aos poloneses. Ainda estou a aprender o português. - Teotonio Simões - eBooksBrasil


 

 

O REI LEPROSO
Zofia Kossak


 

 

 

I
A LITEIRA DOURADA

 

Terminara a missa na Igreja do Santo Sepulcro, construída e consagrada vinte e oito anos antes, no quinquagésimo aniversário da conquista de Jerusalém. Extinguiam-se as luzes, e das velas subiam para a alta abóbada volutas finas de fumaça azul. No pálido crepúsculo do interior cheio de frescura brilhavam ricos altares, os túmulos dos seis Reis de Jerusalém, e pinturas e oferendas votivas. O séquito real transbordou para fora como uma onda, para a luz deslumbrante do sol, através das portas duplas abertas de par em par, e se dispôs na ordem devida sobre as lajes de mármore do adro.

O Rei Balduíno não espreitou por entre as cortinas totalmente corridas de sua liteira dourada. Não tinha vontade de ver o muro, em parte demolido, que dividia em dois o lindo pátio. Era um muro feio, de tijolos e pedras amontoados sem arte, e sua história era ainda mais feia. O Rei não passava de um menino, quando os costumeiros choques entre o clero secular e as poderosas ordens militares haviam rompido em guerra aberta. Os Cavaleiros da Ordem de S. João — os Hospitaleiros — tinham construído aquele muro que bloqueava a entrada para o templo, e escondendo-se por trás dele, lançavam flechas contra os sacerdotes e monges que tentassem chegar até a Basílica. O Patriarca em pessoa lhes implorara que recuperassem o bom senso, mas eles também o alvejaram com flechas. O venerável padre juntara as flechas — que ainda pendiam acima do Sepulcro como triste recordação — e enviara queixas a Roma. Mas Roma ficava longe, e a Ordem próxima. E o santo Patriarca morrera de desgosto. Verdade que o Rei, pai de Balduíno, havia tomado resolutamente seu partido, ordenando aos Hospitaleiros que derrubassem o muro, mas também ele havia morrido antes que a ordem fosse executada. Nessa ocasião, Balduíno contava apenas catorze anos, e os cavaleiros não se tinham apressado em obedecer. Agora tinha dezessete e o muro continuava quase intato, com uma brecha no centro servindo de estreita passagem.

O Rei fechou os olhos com um suspiro de cansaço. A procissão começou a movimentar-se, indo à frente os Hospitaleiros, de capas negras marcadas com grandes cruzes brancas, a precederem altivamente todo o séquito. Apesar de serem menos poderosos que os Cavaleiros Templários, tinham precedência sobre eles porque sua ordem era mais antiga. Fora fundada quando Jerusalém ainda estava em mãos dos infiéis. Nada podia alterar a antigüidade, de modo que os orgulhosos Templários tinham de contentar-se com o segundo lugar na procissão. Em contraste com os Hospitaleiros, usavam capas brancas com uma cruz negra, armadura e capacete negros. Precedendo o Grão Mestre, carregavam uma bandeira branca e preta com a inscrição: Domine, non nobis, sed Nomine Tuo ad gloriam. A bandeira se chamava Beaucéant, e precedia o próprio estandarte real. Os cavaleiros monásticos faziam votos de pobreza, abstinência, castidade, humildade, obediência e coragem. De todas estas virtudes, apenas duas prevaleciam ainda: obediência ao superior da Ordem, e coragem sem igual. Um Templário não tinha o direito de render-se; nem de pagar resgate por si mesmo; nem de entregar um palmo de muro, uma polegada de terra, ainda que fosse para salvar a vida. Só podia vencer ou morrer.

Outrora, essas coortes de aço, brancas e negras, tinham prestado grandes serviços ao nascente reinado. Mas, à medida que enfraquecia a autoridade real, a delas aumentara. Agora, meditava Balduíno, seria impossível saber qual o maior perigo para o Estado: se os sarracenos ou os Hospitaleiros e os Templários.

Atrás dos Templários, e antes da liteira dourada na qual o jovem Rei meditava, um porta-estandarte carregava a bandeira real. Ao redor da liteira estavam reunidos os principais cavaleiros. Imediatamente atrás, montados em cavalos esplêndidos, cobertos com inestimáveis gualdrapas, que se arrastavam ao longo das lajes, vinham a irmã do Rei, Sibila, e o jovem Guilherme de Montferrat, também alcunhado Espada-Longa, que a desposara um mês antes. Guilherme era largo de espáduas, de elevada estatura e tinha o rosto firme e dominador. Seu cavalo curveteou, escumando, empinou e fez um recuo. O cavaleiro refreou as rédeas com displicência, contemplando altivamente a multidão. Já se sentia dono da cidade, como inevitável sucessor do Rei. Sua jovem esposa virava o rosto de um lado para outro, e seus lábios muito pintados não escondiam sorrisos. Até o dia do casamento, Sibila tinha vivido no convento de Betânia, no Monte das Oliveiras, sob a guarda de sua avó, a Abadessa Ivette, e de uma santa tia cujo nome herdara. A influência das duas piedosas e dedicadas mulheres não lhe sufocara a ânsia de viver. Dava a impressão de agarrar-se com toda a sofreguidão à vida que agora principiava a conhecer.

Depois dos jovens recém-casados e de sua comitiva, vinha o venerável Guilherme, Arcebispo de Tiro, historiador erudito e preceptor do Rei; era seguido pelas comitivas das duas rainhas, viúvas do falecido Amalrico. A primeira era a corpulenta e irrequieta Inês de Courtenay, cujo casamento com Amalrico fora anulado por serem primos em quarto grau. Entretanto, seus filhos, Balduíno e Sibila, haviam sido proclamados legítimos. Ao ser forçado a deixar Inês, o Rei tinha desposado Teodora, filha de Emanuel Basileu. Esta dama, ainda jovem e bonita, dedicava seu tempo à educação de uma filha, Isabel, mantendo-se afastada dos assuntos do governo e das intrigas da corte. Seu séquito se distinguia pela riqueza elegante mas inofensiva. Atrás das rainhas vinha numeroso grupo de cavaleiros, e, finalmente, a infantaria que guardava a cidade.

Do adro inundado de luz, a procissão passou para a escuridão das ruas íngremes e estreitas, calçadas de mármore, onde os cascos dos cavalos soavam como se batessem em aço. A cidade não fora muito modificada naqueles últimos setenta e oito anos, depois que os Cruzados a tinham tomado; o mesmo labirinto, de ruas secundárias, escuras e escorregadias, mais escuras ainda por causa das pedras que amparavam no topo os edifícios contra os terremotos. Esses edifícios de pedra, sem adornos, cinzentos, com telhados chatos ou arqueados, não revelavam se estavam de pé havia um século ou se tinham sido erigidos na véspera. As ruas fervilhavam de povo, apinhado para ver a procissão real voltar da igreja. Apesar do número de habitantes de Jerusalém estar reduzido a menos da metade, a cidade rumorosa não parecia despovoada. Entre a multidão havia muitos novos habitantes atraídos pelo decreto de Balduíno III que outorgara àqueles que ocupassem uma casa deserta, assim como uma vinha ou fazenda e a mantivessem durante um ano, a propriedade legítima, podendo transmiti-la em herança. Misturados com estes, havia muitos velhacos de turbante que haviam voltado depois da suspensão do exílio para os muçulmanos. Também havia latinos, sírios, gregos, genoveses, judeus, amontoados uns contra os outros para darem passagem à procissão.

Mendigos clamavam por esmolas, exibindo feridas, batendo muletas e lutando entre si. A Rainha Mãe, Inês, riu ao atirar-lhes moedas, ao passo que a Rainha Viúva, Teodora, fez o mesmo gesto com mais discreção, quase envergonhada. Sibila, enlevada com seu lindo esposo, não lhes deu atenção. Leprosos, gritando, gemendo e choramingando, se atiravam com especial importunidade em direção ao Rei. Quando se acercaram para tocar as cortinas de seda, os quatro irmãos Lazaristas que acompanhavam a liteira os afastaram com varas.

Os recém-chegados da França se distinguiam entre a multidão devido à pele mais pálida e ao vestuário de peregrinos. Alguns, não contentes com o chapéu largo, o bastão e a cabaça, estavam vestidos com capas esquisitas, cobertas de conchas. Eram peregrinos profissionais, substitutos que completavam a viagem para outros. Alguns ali estavam pela quinta ou sexta vez. Mas eram exceções; a maioria vinha arrastada por verdadeira devoção, pelo desejo de toda uma vida. Desde as portas da cidade até a Basílica, eles se arrastavam ajoelhados, em longa linha, ferindo os joelhos na calçada áspera, esquecidos de tudo, sem terem conhecimento, sequer, do séquito que passava. Tinham vindo para Cristo, esperavam Cristo, ansiavam por ver a Cristo. Mas a presença dos mercenários árabes de turbante os deixava estupefatos e transtornados. Que significava aquilo? Ainda havia pagãos em Jerusalém?

Saindo das sombras mal cheirosas das ruas laterais, a procissão torcicolante subiu para o grande espaço aberto do Monte Moriah, passando através dos quatro portões que levavam ao seu grande planalto, todo calçado. Passou além da Mesquita de Omar, que ficava ao centro, no mesmo lugar em que se havia erguido outrora o Templo de Salomão e de Herodes, cuja destruição fora profetizada pelo Senhor. Na ocasião, a mesquita era uma igreja, a Igreja do Rochedo. Templum Domini, pois nela se encontrava a enorme pedra cinzenta da qual, de acordo com a tradição, Elias subira ao céu num rodamoinho de vento e sobre a qual Abraão estivera prestes a sacrificar Isaac em holocausto. Pequeno em relação às vastas proporções do planalto, o templo, resplandecente de pedras preciosas, multicoloridas de vidros e esmalte, era como uma brilhante borboleta que tivesse descido sobre a ponta de uma mesa. Nem mesmo o Deus Padre, cujo rosto alcançava o teto, nem efígies douradas da Mãe de Deus e os santos das capelas laterais, podiam esconder suas características orientais. A igreja não tinha cessado de ser o santuário de uma fé estranha, não podia despertar devoção nem fervor.

No lado oposto do grande largo ficava El-Aksa, o palácio do Rei. Também fora mesquita, mas, construída por arquitetos bizantinos, tinha aparência mais cristã. O enorme edifício acomodava toda a corte real. Sob o palácio ficavam as cozinhas e os estábulos reais, em antigas cavernas de tetos altos, sustentados por filas de colunas de granito (dizia a lenda que estas cavernas haviam sido abandonadas pelos espíritos da terra, os Jinns, a uma ordem de Salomão). A princípio os cavalos se assustavam e ficavam ariscos quando eram conduzidos para baixo por um declive escuro, mas logo se acostumavam. As cavernas davam boas cavalariças por terem frescura e não serem infestadas pelas moscas.

O espaço entre o palácio de El-Aksa e o Templum Domini era fechado pelo claustro e pela capela dos Cavaleiros Templários, que deviam o nome a essa localização. Em contraste com o esplendor oriental do Templum, sua capela era simples e severa. Um regulamento dos cavaleiros não permitia enfeites na igreja, a não ser armas capturadas aos inimigos, de modo que estandartes, escudos e lanças partidas pendiam da cruz. Do lado de fora, o claustro dos cavaleiros também tinha aparência pobre; mas havia murmúrios de que o bem estar e o luxo reinavam lá dentro. Longos anos haviam passado depois que Godofredo, primeiro Rei de Jerusalém, recebera os enviados do Sultão, sentado no chão de sua tenda, respondendo aos seus atônitos olhares com a afirmativa de que o pó de onde provinha o homem, o pó para o qual ele voltaria, era o mais apropriado meio para sua vida. A simplicidade dos primeiros cavaleiros desaparecera, havia muito. Balduíno I de Edessa fora o primeiro a cercar-se dos bizantinos esplendores do Oriente, e seus sucessores haviam seguido o mesmo caminho.

Via-se toda a cidade da área plana que cercava o Templum Domini e o palácio do Rei. Os muros, esburacados e em parte destruídos na época do cerco, haviam sido restaurados, aumentados e fortalecidos. Como um anel denteado, cercavam as colinas. Na cidade e para além dos muros se erguiam os campanários de inúmeras igrejas.

A comitiva real parou diante do palácio de El-Aksa, onde o Rei devia dar um banquete. O sol ofuscante brilhava nas cores dos mantos. Apesar da regra do Ocidente, que exigia usassem os cavaleiros cores escuras e sombrias, aqui elas eram claras e vivas. Nisto, como em tantas outras coisas, o Oriente havia imposto novas idéias, novas modas.

A festa desse dia era a despedida do jovem casal, que partia no dia seguinte, a cavalo, para uma viagem de dois meses às cidades marítimas. Não constituía segredo para ninguém que o Rei transferiria o reino ao cunhado, assim que regressasse. Já havia muitos que se curvavam mais obsequiosamente diante de Montferrat do que diante do próprio Rei.

Balduíno IV, fraco e magro rapazinho de dezessete anos, com a pele de uma brancura fora do comum, desceu da liteira auxiliado pelos Lazaristas. Era impressionante o contraste entre seu rosto quase infantil e seus olhos perscrutadores, firmes, sensatos e varonis, cheios de dor mas também de excepcional dignidade. Trazia um gorro de veludo com uma coroa dourada, insígnia da real autoridade. Do barrete pendia um lenço de seda, cobrindo o pescoço, o queixo e as orelhas, preso debaixo do queixo como um véu monástico. As roupas escuras faziam-no parecer mais magro ainda. As mangas eram consideravelmente mais longas que seus braços. Quando preocupado, ou certo de que ninguém o estava olhando, costumava puxar para trás as mangas e olhar com atenção para as palmas das mãos, examinando cada dedo por vez. Era um gesto característico nele. Falava muito raramente. Apoiando-se ao braço de um dos irmãos Lazaristas, encaminhou-se lentamente para a sala do banquete. Atrás, seguiam os convidados, na mesma ordem em que tinham vindo desde a igreja.

A gigantesca sala — antiga mesquita — era dividida em cinco naves paralelas. Quatro fileiras de pilares de simples mármore amarelo sustentavam o teto. Cinco mesas compridas estavam cobertas de alimentos. Cansados pela demorada missa, os convidados tomaram seus assentos com satisfação. Na corte de Jerusalém, a pompa bizantina se misturava à liberdade latina e ao sentimento de importância que cabia a cada qual. Todos os que se tinham reunido ali, com exceção de uma pessoa — a Rainha Teodora, filha de Basileu — eram iguais e o tinham presente na memória. Não ficavam impressionados demais com a presença do Rei, que, com seu rosto branco de menino doente, permanecia silencioso e imóvel em baixo do real docel. Ali, podia olhar em paz para suas mãos — ninguém lhe prestava atenção.

Assim que a fome foi saciada, um murmúrio vivo e confuso encheu a sala. A presença de eminentes damas no banquete — coisa desconhecida no Ocidente — dava mais encanto à ocasião e inspirava, não menos do que o vinho, uma alegria comunicativa. Com exceção da rechonchuda Rainha-Mãe, Inês de Courtenay, que já não era jovem, mulher alguma, ali, deixava de ser, pelo menos, graciosa. Não havia lugar para mulheres feias, no Reino de Jerusalém. Ambas as irmãs do Rei, a mais velha, Sibila, e a muito jovem Isabel, a Rainha-Viúva Teodora, suas damas de companhia, suas aias, todas eram jovens e bonitas, tinham a pele brilhante como pérolas, olhos que sabiam tornar-se doces, e lábios vermelhos como flores. Descendentes de mulheres simples e corretas, ocultas em roupas feitas de grosseiro linho, ignorantes na arte de agradar e incapazes de frisar o cabelo ou de pintar os lábios, elas se tinham transformado com espantosa rapidez em sereias conscientes de suas graças e de seus artifícios. Uma rica infusão de sangue sírio, árabe mesmo, lhes dera sensualismo; e o velho sangue vermelho dos cavaleiros lhes comunicava coragem e candura. A influência que às mulheres da Grécia tinham obtido, despertava nelas o desejo de se cultivarem. Todos os cronistas concordam em que aquela terra nunca vira mulheres mais bonitas nem que devessem ser mais temidas do que as nobres damas de Jerusalém.

Eram lindas, na verdade, e bem o sabiam. Conheciam seu poderio e falavam com toda a liberdade, rindo e movendo o pescoço como pássaros quando bebem água. Vingavam-se com alegria da sujeição e do silêncio forçado de suas mães, avós e bisavós. Por momentos, suas vozes se elevavam acima da dos homens. Então, o Grão Mestre dos Templários, Odo de St. Amand, geralmente conhecido como inimigo das mulheres, franzia o sobrolho com indisfarçável desagrado. Olhava o Rei como para atrair sua justa cólera. Entretanto, o Rei contemplava as mãos, perdido em seus pensamentos. O Grão Mestre olhava então para o Arcebispo de Tiro, que observava o Rei com paternal ansiedade. O Patriarca Heráclio, belo homem de sociedade, conversava animadamente com Inês, a mãe do Rei. A corpulenta matrona ria como uma menina, e seus amplos seios tremiam. Em lugar algum o olhar severo e duro do Grão Mestre encontrava compreensão amiga.

Criados vestidos alegremente com roupas meio sarracenas, e pajens com vestimentas de púrpura pintalgadas de sequins, serviam vinho e continuamente traziam novos pratos. Os vapores do vinho e o pesado aroma picante da pimenta, da canela, do gengibre e do assafrão tornavam sufocante o ar da enorme sala. Os convivas já começavam a fazer bulha. Das mesas se elevavam gargalhadas fortes, vozes em tom de briga, e até cantos. A Rainha-Viúva, Teodora, baixava os olhos, fingindo não prestar atenção.

De súbito, passos apressados de alguém que chegava armado ressoaram junto às portas. Uma espada de batalha, segura com duas mãos, bateu no chão de mármore. Os convivas silenciaram e ergueram a cabeça. Quem era o que chegava por último? Era du Gray, um dos cavaleiros em guarda no posto próximo ao vau do Jordão, chamado “vau de Jacó”.

Dirigiu-se diretamente ao Rei, diante de quem se inclinou profundamente.

— Deus proteja o Santo Sepulcro!

— Que Deus o ampare! — respondeu Balduíno. — Seja benvindo, du Gray! Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu, Majestade. El Malek atacou com duzentos cavalos. Mal pudemos suportar o choque.

— Como? Ele violou as fronteiras! — exclamou o Rei, atônito.

— Não, ele não. De la Haye invadiu o vale primeiro.

— De novo! Sempre a mesma coisa! Sempre! De la Haye responderá por isso! Perdas grandes?

— Dez homens da infantaria mortos. Uma porção de feridos, Broyes entre eles; e Ibelin de Ramlah foi feito prisioneiro.

— Deus proteja o Santo Sepulcro! Ibelin?

— Sim, Senhor. Ficou aturdido ao cair debaixo do cavalo, que o prendeu ao chão.

— Ibelin de Ramlah, cativo! — Um murmúrio de pasmo correu pela sala. — Um cavaleiro do valor de Ibelin permitir que o fizessem prisioneiro?

— Grande espanto! Ele já estava aturdido quando saiu de Jerusalém — gritou Reinaldo de Sidon. — Preferiu apodrecer entre os infiéis a contemplar a felicidade de outrém, aqui!

Uma gargalhada geral acolheu este gracejo, porque a paixão do cavaleiro de Ramlah pela irmã do Rei era do conhecimento geral. Claro! Naturalmente! Na verdade, assim era! Todos os olhares se voltaram para Sibila, que em vaidosa confusão inclinou a cabeça, na aparência envergonhada, mas no íntimo radiante. Seu marido deu um murro na perna:

— Pela minha longa espada! Serei o primeiro a por-me em campo para ajudar o bom Cavaleiro!

— É melhor deixá-lo onde está. Deixá-lo sofrer à distância — garantiu-lhe Reinaldo.

Balduíno ergueu a cabeça.

— Não há soma que eu não gaste para resgatar Ibelin — disse. — Tire a armadura, Gray, e tome parte no banquete.

— Tenho outra informação ainda, Majestade.

— Diga!

— Atendendo à ordem do Sultão Aleppo Imad al Din, o xeique Gumushtekin restituiu a liberdade ao cavaleiro Reinaldo de Chatillon.

— Que Deus proteja o Santo Sepulcro! — exclamou o Rei pela terceira vez.

— O bom cavaleiro Reinaldo de Chatillon, antigo Príncipe de Antioquia, foi posto em liberdade. Dentro de duas semanas, o mais tardar, ele apresentará seus respeitos ao nosso gracioso Senhor.

— Bem. Pode sentar-se.

Balduíno IV baixou o olhar para as mãos e ficou absorto em seus pensamentos. Uma grande ruga franzia sua testa de uma brancura excepcional. As novas inesperadas provocaram silêncio na mesa. O Grão Mestre olhou triunfalmente em direção ao Rei.

— Reinaldo de Chatillon livre — isto põe fim à política de contemporização! — disse alto.

Montferrat debruçou-se na mesa, fixando nele seus pálidos olhos azuis.

— Então julga o senhor que a presença de um barão possa modificar a política real para este ou para aquele lado?

Sua voz cortou como um chicote. O Grão Mestre franziu os lábios com desprezo, mas, com espanto de todos, não deu resposta. O Rei olhou para seu cunhado com gratidão.

— Reinaldo de Chatillon livre! — admirou-se Reinaldo de Sidon. — Afinal, vamos vê-lo. Quantos anos esteve nas mãos dos maometanos?

— Dezesseis. Mais, ainda!

— Deve ter envelhecido!

— E talvez perdido a fibra?

— Vamos beber, irmãos, ao cavaleiro ressuscitado! Dezesseis anos!

— Que irá ele fazer agora? Onde irá o órfão encontrar um lar?

— Sua mulher morreu! O povo de Antioquia nem sequer o deixará entrar na cidade.

— Oh, quanto a isso, não o deixará! Ainda se lembra demais dele!

— Talvez em atenção a recordações agradáveis, Stefania de Milly queira tomá-lo sob seu teto?

— Psiu! O filho dela está sentado aqui perto.

— Que foi que eu disse de mal? Você verá que aqueles dois ainda se casarão e que Reinaldo se tornará dono do Krak.

— Nesse caso, ele não daria a Saladino sequer tempo de respirar.

— Imad al Din o soltou apenas para aborrecer o Rei e Saladino.

— Pelas Santas Escrituras! Pode muito bem ser isso! Deve ser isso!


 

2
O TERROR DO REI

 

Quem é o cavaleiro libertado de que tanto falam? — perguntou Amalrico de Lusignan, jovem cavaleiro que se achava na Terra Santa fazia poucos meses.

— Não sei — respondeu indiferentemente seu vizinho, Humphrey de Thoron. O rapaz não podia arrancar os olhos da princesa real, Isabel, sentada à sua frente.

O Cavaleiro de Grandpré, um dos mais velhos homens à mesa, debruçou-se por trás dos ombros de Thoron e disse a Amalrico:

— Não pergunte a um moço que estava nos cueiros quando de Chatillon entrou para o cativeiro. Mude de lugar, e eu lhe contarei.

— Poderia por gentileza, senhor, trocar de lugar comigo? — perguntou Amalrico ao seu vizinho. Apesar de não ter uma aparência especialmente atraente, tinha simpatia e certa confiança em si mesmo. Seus movimentos eram resolutos; suas palavras revelavam pensamento.

Em resposta aos olhares inquisidores de Amalrico, o velho cavaleiro disse:

— Este Reinaldo de Chatillon veio de sua terra, há uns vinte anos. Lá pelo ano de Nosso Senhor 1155. Durante o reinado de Balduíno III, tio daquele pobre moço que ali está no trono, Reinaldo chegou, belo como uma imagem, mas cabeça oca. Família? Toda sem dinheiro. Ousado sem dúvida ele era, e corajoso como quem mais o fosse. Partiu para Antioquia tentado pela luta contra os sarracenos e atraído pela cobiça do saque, pois é tão voraz quanto um corvo. Um ano antes, mais ou menos, a Princesa Constança, neta de Bohemundo o Grande de Tarento, primeiro senhor latino de Antioquia, ficara viúva. Seu marido fora morto em combate. O principado de Antioquia, como sabe, tem mais importância e vale mais do que todo o reino. Sem Antioquia, Jerusalém não duraria muito tempo. Por isso, o Rei apressou um Conselho para escolher novo marido para ela. Um homem forte para dirigir. Durante seis meses, pelo menos, ele ficou presidindo o Conselho em Antioquia — apresentando os mais nobres e mais valorosos cavaleiros — primeiro um, depois outro — sem o menor resultado. Sabe como são as mulheres, ela insistiu em que nenhum lhe era agradável, e que saberia governar o principado sozinha...

— É difícil acreditar — disse Amalrico — que as mulheres tenham aqui tanta liberdade. O Rei não podia dar-lhe ordens?

— Talvez entre vocês, na terra natal, as mulheres ainda recebam ordens. Aqui elas fazem o que querem. Sem resultado o Rei advertiu-a de que não poderia governar sozinha porque Nur-al-ed-Din estava às portas, e Antioquia precisava de um príncipe que envergasse a armadura. Não, não e não! O Rei voltara sem ter conseguido coisa alguma quando, por acaso, o olhar dela recaiu sobre esse Reinaldo. Veja bem, ela que tinha rejeitado os mais notáveis cavaleiros, apaixonou-se à primeira vista pelo recém-chegado. Só depois de ter casado com ele — sem licença do Rei — mandou mensagens a Jerusalém contando o que tinha feito. Que escândalo! Que escândalo! Ninguém queria acreditar que uma dama tão grande, de tão alto nascimento tivesse desposado um aventureiro. Pelo Sagrado Lenho! O Rei quase enlouqueceu! E logo, também, Chatillon mostrou sua verdadeira personalidade. Quando o Patriarca procurou adverti-lo, ele mandou fustigar o santo homem, lambuzá-lo de mel e expô-lo nu e amarrado como banquete às moscas. O que um pagão não teria feito, ele, um cristão, ousou fazer! Depois disso, não se passou um ano sem que não provocasse distúrbios. Não obedecia ao Rei nem temia a Deus. Brigava com todos e jamais cumpria uma promessa. Não podia viver sem roubar. Eu poderia falar um dia inteiro sobre os males que ele praticava. Batia na mulher, mantinha uma amante, mas quanto a isto Constança apenas recebia o que merecia — e não foi poupada, absolutamente. Mas que fazer? O mal estava feito.

— Amalrico abanou a cabeça e Grandpré continuou:

— Então, lá entre vocês, as mulheres ainda conhecem seu lugar? Vocês têm sorte, na verdade. Nós temos aborrecimentos incessantes com as mulheres, aqui. Já ouviu falar da tia de Constança, a Rainha Melisande, mulher de Fulk de Anjou, que foi secretamente amante do Cavaleiro Hugo du Puiset até que o enteado dela os traiu? O reino todo entrou em guerra porque Puiset fugiu para junto dos infiéis e com eles se aliou contra o Rei. Também não ouviu falar da loura Alix, a quem chamavam Perna de Ouro porque andava de sandálias douradas? Houve mais aborrecimentos por causa dela do que por causa de Saladino.

— Até parece — observou Amalrico sarcasticamente, — que este reino é governado pelas mulheres.

— E parece mesmo! Bem que parece! Elas têm sempre opinião, e muita opinião lamentável.

— Que mais aconteceu com Reinaldo? — perguntou novamente Lusignan.

— Depois daquilo, nada mais. Deus seja louvado, Gumushtekin o fez prisioneiro. Quando foi levado para o cativeiro, a alegria em todo o reino seria coisa difícil de descrever. O Rei já teria resgatado qualquer outro Cavaleiro há muito tempo, mas não teve pressa em fazer coisa alguma por esse. Teria até pago para que o guardassem bem. Ficou cativo durante dezesseis anos. Nós todos já o tínhamos esquecido. E agora veja, livre! Não é de admirar que o nosso homenzinho ficasse atônito, apesar de o conhecer apenas de nome.

— Nestes anos todos, quem sabe se não se modificou?

— Ele é um demônio, não é um homem. Nunca se modificará, até morrer, se é que então...

Interrompeu-se porque os convivas já se erguiam das mesas. A tarde havia insensivelmente passado, e o sol já declinava para o ocidente. Os criados ajudaram alguns cavaleiros que não estavam firmes das pernas. Cadeiras viradas caíram com estrondo. O rosto das mulheres e dos homens estava vermelho e corado pelo vinho, brilhante de suor. Antes de sair, o Rei olhou para o Arcebispo de Tiro.

— Que quereis, gracioso Senhor? — perguntou o prelado rapidamente, aproximando-se.

— Quero que minha irmã e seu marido venham ver-me. Vós também, mas ninguém mais. Só os três.

E se afastou, encostando-se cansadamente em seus Lazaristas. Eles o levaram para seus quartos, despiram-no e o banharam em água perfumada com essências e ervas. Ele se entregava debilmente aos cuidados daquelas mãos fortes e hábeis, sem fazer nenhum movimento. Mantinha os olhos fechados. Tinha medo de olhar seu próprio corpo. Os Lazaristas eram quatro, chamados Mateus, Marcos, Lucas e João, de modo que eram denominados os evangelistas. Depois deixaram o Rei, tendo feito tudo quanto ele precisava.

A ordem de S. Lázaro era mais antiga do que qualquer outra ordem em Jerusalém. Fora fundada por Heráclio, o César romano que recuperou o Lenho da Sagrada Cruz que estivera perdido, com a finalidade expressa de cuidar de doentes, e em particular daqueles que ninguém ousava tocar. Durante séculos os Lazaristas haviam cumprido esta tarefa de boa vontade, executando-a com grande destreza e abnegação — assim contam os cronistas da época — para obter como única recompensa dos seus serviços o céu. Não tinham influência política e a nada aspiravam; nem sequer juntavam riquezas. Eram queridos, tanto quanto os Hospitaleiros e os Templários eram odiados. Os quatro irmãos vestiram o Rei com roupas interiores de linho, deitaram-no na cama e puxaram as cobertas sobre ele. E lá ficou o monarca como morto — mais branco do que os lençóis.

— Nosso gracioso Senhor deseja mais alguma coisa? — perguntou Irmão João, inclinando-se para ele.

— Não, podem ir.

Abrindo os olhos, fixou, quase sem querer, as fortes mãos morenas dos Lazaristas que alisavam as rugas da coberta, e perguntou, como movido por um pensamento súbito:

— Todos vocês estão bem?

— Sim, gracioso Senhor — replicou Irmão João, surpreso.

— Como pode ser, depois de estarem aqui comigo durante tanto tempo?

O Lazarista abriu os braços.

— Na nossa ordem, é muito raro alguém ficar contaminado.

— Por que?

— Como vou saber? Talvez porque não tenhamos medo. O serviço de nosso gracioso Senhor é leve... o ar é puro... nós tomamos cuidado. Mas nossos irmãos que ficam nos asilos e nos abrigos com os mais pobres! Por causa do mau cheiro, quase não se pode respirar. O alimento não desce pela garganta. No entanto, é raro algum ficar doente.

— Talvez saibam algum modo de evitar a doença? O Irmão João deu risada, cordialmente.

— Se soubéssemos, certamente não guardaríamos o segredo para nós. Apenas isto: estamos acostumados. E como somos muito necessários — pois quem cuidaria da maior miséria se a nossa ordem não existisse? — Jesus Cristo, nosso misericordioso Senhor, nos protege.

— Pensa, irmão, que Deus protege aqueles que são necessários?

— Poderia ser de outra maneira?

Inclinou-se mais sobre o moço deitado e acrescentou com naturalidade:

— Ontem, de novo, entre os peregrinos que vêm ao Santo Sepulcro, um foi curado.

Endireitou-se e se afastou da cama, porque soavam passos junto à porta. O Arcebispo de Tiro e os dois Montferrats se aproximavam. Os Irmãos Lazaristas se retiraram.

— Desejava ver-nos, gracioso Senhor? — perguntou Montferrat alegremente. Sentou-se à vontade num banco, junto à cama, encarnação viva de saúde e vigor. Sibila ficou de pé junto à porta, com má vontade e ansiosa por afastar-se o mais depressa possível. Sentia uma repugnância invencível pelo irmão.

— Eu queria perguntar se não poderiam adiar a viagem de amanhã.

— Adiar a viagem de amanhã? Por que? — perguntou Montferrat, admirado.

— Eu mesmo não sei... tenho um pressentimento... Talvez seja por causa das notícias que chegaram hoje.

— De que Chatillon foi posto em liberdade? Majestade! Que importância tem isso?

— Eu mesmo não sei — disse o doente, indeciso. — É difícil explicar, mas...

Seu cunhado olhou-o com a indulgência que a força sente pela fraqueza.

— Sua vontade é uma ordem, para nós, mas não compreendo muito bem porque diz isso. Muito antes de que Chatillon possa causar transtornos já teremos voltado. Além do mais, o homem está velho. Estão fazendo dele um fantasma, lembrando-se do que foi, mas ninguém pensa no que ele deve ser agora. Um velho que não tem onde cair morto... A quem pode ele ameaçar? Basta pensar que não está aqui ainda, que só chegará dentro de algumas semanas, pelo menos.

— Não estou preocupado com Reinaldo de Chatillon — respondeu o Rei.

— Com que, então? Mas eu já disse que seu desejo é uma ordem para nós. Se deseja que fiquemos, ficaremos.

— Não! Eu não quero ficar — exclamou Sibila, caprichosamente. — Gracioso irmão! Eu não quero ficar. Já não foi dada a sua permissão, para a viagem? Por que retirá-la, agora? Tudo está pronto, a bagagem está feita... Eu estava tão contente... Estou farta deste lugar, destas pedras, deste deserto... Eu sufoco, aqui... Viajar durante umas semanas! Algumas semanas... Que significa isto? Que aconteceu? Por favor, diga por que não podemos ir?

— Eu mesmo não sei — repetiu o Rei.

Na verdade, ele não sabia. Era qualquer coisa intangível. O clarão no olhar do Grão Mestre dos Templários quando tinha discutido com Montferrat. Um clarão que o tinha transpassado, a ele, Balduíno, de terror. Mas como traduzir isto em palavras?

— Bem, se não sabe, não há razão — insistiu Sibila. — Só por um capricho quer prejudicar-me de novo! Sempre a me prejudicar! Fiquei presa num convento durante tanto tempo!

— Não fui eu que a prendi lá, mas a sua mãe.

— Com o seu consentimento. Devia ter intercedido por mim. Num convento! Desperdiçando a mocidade! Que espécie de vida levei até agora? E que fiz, para merecer isso?

Com a veemência de seus sentimentos, ela se aproximara da cama.

— Mas a sua mocidade foi melhor que a minha — notou Balduíno com profundo suspiro. Ela recuou. Tinha sentido a fétida respiração do Rei.

Montferrat ficou calado, sem tomar parte na discussão de família. Ele mesmo não sabia de que lado estava. Sem dúvida, Balduíno queria que ficasse para lhe transferir antes a autoridade real. Nesse caso, conviria aceder. Seria agradável sentir-se rei dois meses mais cedo. Mas Sibila! Estava loucamente apaixonado por ela! Inflamado era o seu amor, e desejava uma viagem despreocupada com ela pelas alegres cidades marítimas, cheias de laranjais e de vinhas. Assim que se tornasse rei, tal despreocupação não seria mais possível. Coberto pela armadura, com a espada na mão, teria de ir de uma fronteira a outra, contender com os barões, com os Templários, com os Hospitaleiros, com todos aqueles demônios piores do que os sarracenos.

— Eu não quero ficar! Eu não quero ficar! — chorou Sibila, batendo o pé. — Se houvesse alguma razão qualquer. Mas só para me aborrecer!

Montferrat ficou mais grave, de súbito.

— Talvez se sinta pior, gracioso cunhado?

— Não — respondeu Balduíno. — Não. Pelo contrário. Sinto-me mais forte. Passo sempre melhor no verão.

Fechou os olhos e pensou. A voz de Sibila era intolerável! Por que, exatamente, queria que eles ficassem? Por que St. Amand — de quem se dizia ter o diabo por padrinho — fizera um olhar feio? Que significava aquilo? Razão séria, na verdade, não tinha. Talvez sua irmã falasse a verdade, quem sabe se era apenas o capricho de um homem doente?

— Vão, se assim o desejam — disse alto — e voltem com boa saúde. Deus proteja o Santo Sepulcro!

Deu-lhes licença para se retirarem com um gesto da mão. Ambos saíram, Sibila com uma pressa indisfarçável, seu marido com lentidão, como se hesitasse. Do limiar, voltou os olhos, expectantes, para o cunhado. O Rei estava imóvel, olhando o teto. Um fantasma lívido. Guilherme de Montferrat fechou as portas cuidadosamente. Sibila agarrou-lhe o braço.

— Finalmente! — exclamou. — Se não fosse eu, você teria deixado que ele nos prendesse aqui! Graças a mim! Ui, como ele está horrível! Ai... Eu tenho medo de entrar lá. Esperemos que quando você for rei, ele se retire para um claustro e não precisemos vê-lo!

— Por que teria desejado que ficássemos? — respondeu o marido, perdido em seus pensamentos.

Na câmara real havia silêncio. Silencioso até aquele momento, o Arcebispo se aproximou do leito serenamente.

— Dois meses passarão depressa — disse, confortadoramente.

Balduíno voltou lentamente o olhar para ele.

— Talvez, talvez... não tem importância... O irmão João me contou que outro peregrino doente foi curado no Santo Sepulcro...


 

3
AS MÃOS DENUNCIADORAS

 

— O Irmão João contou que foi curado outro peregrino no Santo Sepulcro — repetiu o Rei, num tom de reprovação. — Por que sempre e só peregrinos, e nunca um de nós? Somos infiéis, acaso?

O erudito Guilherme, Arcebispo de Tiro, ergueu os braços num lastimoso gesto de ignorância.

— Por que? — insistiu Balduíno. — Eles arrastam seus doentes do outro lado do mar para cá, e os doentes ficam íntegros; mas nós que estamos aqui, nós que temos o Santo Sepulcro, nada recebemos de suas bênçãos. Por que, quando eu era criança, não me levastes até o Sepulcro como os peregrinos carregam os seus? Talvez eu me tivesse curado? Cristo curou a lepra!

— Psiu... Psiu... — sussurrou o Arcebispo, olhando ao redor.

Balduíno riu com amargura.

— Isso ainda é segredo? Ora, toda a gente sabe. Leproso, leproso! Pensais então, meu pai, que todos sejam cegos? Que alguém que me veja possa duvidar da natureza de minha doença?

— O bem do Estado exige que esse infortúnio seja mantido secreto durante o maior tempo possível.

Balduíno sentou no leito e olhou com dureza para o interlocutor.

— Pelo bem do Estado — disse com voz áspera, — teria sido melhor matar-me secretamente na infância e colocar em meu lugar algum menino robusto de nobre família. Era isto o que exigia o bem do Estado, e não que eu fosse educado como Rei. O Rei Leproso! Para escárnio e desolação!

— O Arcebispo, comovido, baixou a cabeça.

— O falecido Rei vos amava muito.

— Sei que ele me amava... assim como vós, padre.

— Duvidais de minha amizade, hoje?

— Não, mas vossa amizade foi perniciosa. Um inimigo não teria agido pior. Quando descobristes que eu estava leproso, deveríeis ter-me matado e atirado fora, como uma coisa imunda!

— Houve alguém que deu tal conselho ao Rei — confessou o Arcebispo. — Mas, assim que foram pronunciadas essas palavras, lembro-me que ele procurou sua espada.

— Há muito tempo? — perguntou o Rei. Estava de novo deitado e não tinha os olhos totalmente fechados. — Contai-me.

— É melhor dormir, gracioso Senhor, meu querido filho. Por que acrescentar mais tristeza inútil com a repetição de uma história antiga?

— Contai-me. — ordenou o Rei.

— É tolice repetir isto, mas se assim o desejais... Vossa idade era então de quase dez anos. Pela Paixão de Nosso Senhor. Nunca houve um menino mais vivo, mais bonito, nem mais saudável. Todos diziam com alegria: será um verdadeiro rei — seu governo será uma glória para o reino... Nem encontrei quem tivesse espírito mais agudo para aprender. Mas, por que dizer tudo isto? Vós vos lembrais... Aprender era um brinquedo... Todos os dias eu agradecia a Deus por ter dado ao nosso Estado, tão batido pelas tempestades, um tal herdeiro. Foi então que...

— Foi então que? — insistiu Balduíno, com impaciência.

— Todos os dias, eu observava do balcão o vosso brinquedo com os outros meninos, no pátio, com bordões em vez de espadas no duelo. Como acontece às vezes em jogos de meninos, um deles dava uma pancada nas mãos ou nas costas do outro para que ele soltasse um grito, e depois, levantando o bordão, se precipitava para golpear. Assim observava eu todos os dias, e muitas vezes ficava pensando porque, naquele tumulto, a voz de meu príncipe nunca se ouvia, apesar de receber fortes golpes. Eles não poupavam o filho do Rei, não! E eu pensava: será tão orgulhoso ou não sentirá dor? Certa vez não pude conter-me; tive que perguntar-vos. Lembrai-vos do que perguntei?

— Não.

— Perguntei porque motivo nunca vos ouvia gritar, e vós respondestes: “Por que gritar? Não dói.” “Nem mesmo quando vos batem com uma vara?” “Não. Também não dói.” Eu vos agarrei pela mão e vos puxei até a luz. Olhei para vossa pele. Na aparência, era normal, mas, ao comprimi-la, vi que não ficava vermelha. Procurei arranhar com a unha — nem uma marca... Que Deus proteja o Santo Sepulcro! Senti minha carne arrepiar-se. Tremendo da cabeça aos pés, corri a procurar vosso pai. Implorei-lhe que mandasse vir um médico, mas que fosse prudente e digno de confiança, para que não tagarelasse depois. A princípio o Rei deu risada, mas mandou buscar um médico...

— Disso me lembro — observou Balduíno, abrindo os olhos.

— E o médico viu imediatamente o que era. Disse ao nosso gracioso Senhor que já não havia cura para vós, que seria melhor não criar um filho assim.

— Ele tinha razão. Devíeis ter-me envenenado... ter-me poupado esta miséria e ao reino esta vergonha. Que disse meu pai?

— Ameaçou o médico com a espada por ousar aquela sugestão. Sob pena de morte proibiu-lhe falasse a quem quer que fosse do que tinha visto; fechou-se neste quarto durante três dias, sem receber ninguém. E chorou. Seus escudeiros escutaram às portas e ouviram. Ele chorava alto... Durante três dias, ninguém o viu. A corte andava num rodamoinho pois não se sabia a razão da ausência do Rei. E ninguém a soube. A própria Rainha não soube... A verdade ficou sabida apenas pelo Rei, pelo médico e por mim.

— Devíeis ter-me envenenado — repetiu Balduíno, com voz reprovadora. — Se meu pai se recusou a fazê-lo, vós devíeis tê-lo feito.

— Que Deus proteja o Santo Sepulcro! Se de boa vontade eu teria dado minha vida por vós, como haveria de vos envenenar?

Suspirou penosamente e continuou:

— Dessa ocasião em diante, o Rei foi outro homem. Eu sei que esse desgosto apressou sua morte precoce. Afinal, ele não era velho. Poderia ainda estar reinando ditosamente... Mas aquilo destruiu sua alma. Quando todos, o próprio Sultão, se congratulavam com ele por ter tal herdeiro, ele olhava para vós — olhava... Ah! que olhar! Eu, que sabia, tinha a impressão de que meu coração se despedaçava.

— Eu me lembro de seu olhar ansioso — disse Balduíno, pensativamente. — Oh, por que escondestes o segredo de mim? Eu mesmo me teria retirado para um mosteiro, ou me atirado ao mar, antes que tivésseis colocado a coroa em minha cabeça. Eu nada sabia, nada. Pela primeira vez, uma espécie de pressentimento aziago me abalou, depois da batalha de Ain Anzar. O último dia de minha vida em que fui feliz.

— Como pode ser? Em Ain Anzar? Já não sabíeis, então?

— Não, mas comecei a desconfiar... na verdade, toda minha vida foi vivida naquele primeiro ano de reinado... Na luta contra os infiéis... Depois, três estações mais tarde, novamente... De cada vez uma vitória. No movimento de atravessar o Jordão, passar além dos oásis de Paneas, das colinas de Hermon cobertas de neve, em marchas forçadas até as muralhas de Damasco. Conseguimos atrair o inimigo — que estava fechado na cidade — para o campo aberto. Conquistamos Dareja, que é na verdade subúrbio de Damasco. Voltando com o resultado do saque e com prisioneiros, ocupamos a fortaleza de Beit-Djin, ao pé do Líbano. A fortaleza ficava num vale, cheia de grama e de flores que chamamos de Domum Voluptatis... Acorria gente de toda parte, gritando. O Rei! O Rei!... E os próprios sarracenos gritavam “Al Malik” sempre que eu dava uma boa estocada com a espada, durante as escaramuças. Voltei através de minhas terras pensando em como fortificar, melhorar e alargar aquele solo que me fora confiado por Deus. Eu forçaria Saladino a recuar para além das fronteiras estipuladas. Eu tinha catorze anos, e era Rei! A vida se agrandava à minha frente.

— Menos de um ano mais tarde, outra expedição. Dessa vez por terra, beirando o mar até Sidon; de lá atravessamos o Líbano, e as terras de Meshgar transbordantes de leite e mel. Sob Ain Anzar, o irmão de Saladino, Turan Shah, nos cortou o caminho. Foi uma batalha... A primeira batalha de verdade — não foi escaramuça, nem cerco.

As recordações se apossaram dele. Sentou-se no leito, todo ereto, com os olhos escancarados e chamejantes.

— Minha primeira batalha... Primeira e última... Uma vitória! Oh, eu bem sei que tio Raimundo deu todas as ordens, planejou tudo, preparou tudo — que era ele o verdadeiro comandante, e não eu. Mas, quando tudo ficou pronto, ele voltou para seus homens, dizendo-me: — Guie! — e eu guiei a batalha... Pela Sagrada Lança! Só mais uma vez, guiar bons cavaleiros no combate! Só mais uma vez, sentir de novo o que senti uma vez na vida... Padre, não podeis imaginar! A alegria... Sentir-se uma força que se choca, que retine, que palpita, que estrondeia. Uma força que se atira como uma lança. Que alegria! Cavalgar à frente de todos, como na crista de uma onda. O cavalo relincha com ardor, atravessando tudo, pedras, regos, fossos. O vento zune nos ouvidos. E o encontro! O choque das armas que nos tira o fôlego. Quando já não se é mais uma criatura viva, mas um relâmpago.

Parou, respirando com dificuldade e abateu-se, pesadamente, nos travesseiros. O Arcebispo escondeu o rosto nas mãos. Chorava.

— Meu último dia, meu lindo último dia — sussurrou Balduíno, febrilmente. —No dia seguinte, os enviados de Turan Shah vieram pedir trégua. Vieram prestar-me obediência — a mim, o vencedor! Vestindo um peitoral, eu esperei diante de minha tenda — sem luvas, mas com minha espada. Tio Raimundo estava ao meu lado, soprando-me as respostas quando fosse preciso, porque afinal de contas eu era apenas um rapazinho. Mas eu estava orgulhoso e feliz. E notei então que um dos xeiques ficou olhando para minhas mãos. Olhou tanto que esqueceu o que ia dizer. Como se tivesse visto um fantasma... Confuso quanto a qualquer coisa, parecia, no entanto, satisfeito... Meus olhos seguiram seu olhar. Pela primeira vez notei manchas azuis em minhas mãos. Talvez já estivessem nelas antes, mas eu não tinha reparado. Até aquele olhar do pagão... Aquele olhar! Quando voltei para casa, mostrei-vos minhas mãos e vos perguntei o que era. Vós respondesteis que, era, provavelmente, o frio.

— Deus, meu Deus! — gemeu o Arcebispo.

— Eu teria acreditado se ele não tivesse olhado com tanta insistência. Um dia, caminhei até o guarda, mas ele não estava no lugar. No portão estava um velhinho. Talvez um peregrino, talvez um vagabundo ou mendigo, que não sabia quem eu era, que não me conhecia. De novo, mostrei minhas mãos, de novo perguntei.

— Deus de Misericórdia, moço, o que tens é lepra!

— E vós... vós dissesteis que era apenas o frio!

— Que vos podia dizer? — falou o prelado com desespero. — Como podia dizer a verdade? Ela não passaria por meus lábios.

— Sempre é melhor dizer a verdade! Seria melhor que, na batalha, mandassem que algum homem caridoso me transpassasse com a lança ou me golpeasse com a espada. Eu teria perecido em combate como um cavaleiro — e defrontaria a morte com felicidade. É o que deveríeis ter feito, se desejásseis o meu bem. Em vez disto, os cavaleiros me protegiam! Ibelin de Ramlah, o velho Thoron, Gray e outros... Não tinham preocupação com sua própria segurança, mantendo guarda ao meu redor... para que? Para que agora eu apodreça em vida e cheire mal?

— Que teria acontecido ao reino? — interpôs Guilherme de Tiro, timidamente.

— E que acontecerá agora? Que adiantou o adiamento?

— Agora aí está o vosso cunhado, que trouxesteis da França.

— É verdade — disse Balduíno, acalmando-se. — Aí está Montferrat... Se ele voltar... Porque, não sei o motivo, mas tenho a impressão de que alguma coisa o ameaça... Pressentimento absurdo... Sei que é absurdo. A doença faz que tudo pareça mais importante, na minha cabeça... Montferrat é corajoso, prudente, inflexível. O reino nada perderá, só aproveitará com a substituição, mas eu... eu?

Lágrimas de agonia brilhavam em seus olhos.

— Tenho medo de olhar para mim mesmo — murmurou. — Depois, fico de olhos parados durante horas, observando o progresso desta maldição. Minhas mãos! Minhas mãos! Tenho horror a tocar seja o que for... nunca deixo de vê-las... nunca as esqueço, nem por um momento... Agora, a carne decadente ainda está presa ao osso; mas que acontecerá dentro de um mês? Dentro de um ano? Quando voltei da igreja, vi entre as cortinas da minha liteira um homem sem rosto, apenas um vazio podre. Não tinha olhos, nem nariz, nem boca. Assim serei eu em breve! Assim serei eu!

— Não deveis pensar nisso. Deus é misericordioso — um milagre, quem sabe?

Balduíno empertigou-se de novo.

— Um milagre? — exclamou, zangado. — Por que? Quem fala de milagres, entre nós? Os milagres são para os peregrinos. O Irmão João disse... que houve outro... Mas nunca, nunca entre nós.

O Arcebispo ergueu a cabeça.

— Fazei a pergunta a vós mesmo — disse, quase com severidade. — Vós me censurais por não vos haver levado ao Sepulcro de nosso Senhor quando criança — por não vos termos deitado no sagrado leito de pedra. Por que não o fazeis agora, vós mesmo? O milagre que poderia ter acontecido então poderá dar-se agora.

Balduíno olhou-o com perplexidade.

— É verdade — concordou. — Eu poderia... eu poderia. Não sei porque não. Nosso Senhor Jesus curou a lepra. Talvez ele me curasse. Às vezes, eu penso que teria ido à procura dele há muito tempo, se o Santo Sepulcro estivesse muito longe e eu fosse um humilde peregrino. Seria estranho ser carregado até lá numa liteira... Se eu conseguisse ir lá a pé, sem ser observado e disfarçado! Para que ninguém reparasse em mim... Se ao menos eu pudesse não ouvir na igreja as incessantes brigas entre os latinos e os sírios, entre os Hospitaleiros e os Templários. Quando estou no Sepulcro, tenho a impressão de que a multidão de peregrinos que lá se comprime está mais à vontade do que nós, de que o Santo Sepulcro é mais deles do que nosso. É como se possuíssemos uma luz que ilumina o mundo inteiro, deixando-nos no escuro, só a nós. Eu não sei como exprimir isto, e não sei porque isso acontece.

O Arcebispo ouviu atentamente, depois falou:

— Compreendo o que quereis dizer, gracioso Senhor. Na verdade nossa devoção declinou. Falta-nos zelo e simplicidade. Talvez seja porque um Santuário não deva pertencer a ninguém. Por possuir um Santuário ninguém deveria ter títulos nem glória. Nem sentir-se dono de algo que em breve perderá. Porque o Santuário viverá para todos, exceto para a criatura que criou uma fonte de poder temporal, construindo uma muralha entre o Santuário e ele mesmo. Nós nos tornamos possuidores do Santo Sepulcro, e os Santuários não admitem posse. Jerusalém não devia pertencer a ninguém. Seria melhor que todos os homens pudessem vir aqui para rezar. Seria melhor que o Santo Sepulcro fosse guardado por pobres monges como os Lazaristas, que nada têm, a não ser mérito no céu. Os peregrinos vêm ao Santo Sepulcro procurar, não alguma vantagem, mas o perdão dos pecados, palmas de Jericó e água do Jordão. Eles não desejam possuir o Santo Sepulcro; portanto, levam consigo o Santuário quando partem. Com esses sentimentos, nossos pais e avós, os Cruzados, vieram para cá... Mas nós, não. Nós nos sentimos donos, aqui. E Deus não gosta disto. Não há lugar, aqui, para o Rei dos céus e para um Rei terreno. Godofredo de Lorena bem o compreendeu. Não quis a coroa. Foi cognominado o Guardião do Santo Sepulcro e viveu na pobreza.

— Godofredo? — perguntou Balduíno, surpreso. — Vós mesmo me ensinastes, padre, que Godofredo foi um rei fraco, que foi Balduíno o primeiro a estabelecer o poderio de Jerusalém.

Perplexo, o sábio prelado esfregou o queixo.

— Claro — concordou apressadamente. — Tudo depende, caro menino, de que ponto se julga um assunto. Balduíno foi um dirigente insuperável, sensato, de larga visão, talvez carnal demais e cheio de luxúria, mas um verdadeiro rei. Ele fundou o Estado de Jerusalém, mas ao mesmo tempo prejudicou o Santo Sepulcro. Criou um Estado, um Estado armado, de sangue e ferro como os outros. E onde existe um Estado com todas as suas exigências, pouco lugar sobra para as coisas sagradas. O reino do espírito se perdeu.

— Então, que podemos fazer? — perguntou Balduíno. — Transferir a capital para Ascalão ou Jafa?

— Que adiantaria? O mal está entre nós. Às vezes, vejo abominações ao redor de mim, e pergunto a mim mesmo com horror: é justo que exista o Reino de Jerusalém?

— Pela Sagrada Lança! — exclamou o Rei, estupefato. — Quereis que voltem os pagãos?

— Não permita Deus! Não! Não se pode cogitar de tal coisa! Falo do Estado. Jerusalém não devia pertencer a ninguém. Deveria ser de todos e de ninguém. Só Cristo devia reinar aqui.

— Não sei como se poderia fazer isso — suspirou o Rei.

— Nem eu. Até me parece impossível. É por isto que nós, os guardas, as sentinelas do Santo Sepulcro, somos desdenhados pela graça de Cristo. Estamos perto demais para O ver.

— Se ao menos eu tivesse saúde! — murmurou o Rei. — Talvez pudesse ser tanto Balduíno como Godofredo?

Guilherme de Tiro olhou-o com infinito carinho.

— Sim, meu filho, poderíeis ser... Oh, Senhor! Sua voz baixou num soluço, logo reprimido.

— Os galos estão cantando. Não ouvistes? Conversamos a metade da noite. Horas de dormir, meu gracioso Senhor.

Fez o sinal da cruz sobre Balduíno e preparou-se para sair. Junto à porta, voltou-se de súbito e disse.

— Se alguma vez desejardes ir à Basílica — sem serdes notado por ninguém — sem que vos reconheçam — eu cuidarei disso...

Balduíno cerrou os lábios, orgulhosamente.

— Não vos preocupeis, padre. Se eu for, ninguém saberá, nem sequer vós. É na verdade hora de descansar. Deus proteja o Santo Sepulcro!

— Que Deus proteja o Santo Sepulcro! — repetiu o Arcebispo, fechando suavemente as pesadas portas.


 

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NOTÍCIAS DE ASCALÃO

 

Como a maioria dos edifícios erguidos em Jerusalém pelos Cruzados, o palácio de Inês de Courtenay, mãe do Rei, era de arquitetura oriental mas conservava traços ocidentais. Construído ao redor de um pátio central e de uma fonte, tinha no lado exterior janelas que davam para a rua e dominavam os muros da cidade. Rente a estes se estendia o vale de Josafá, profundo e estreito, coberto de pedras e de sepulturas.

— Não sei de que modo caberemos todos ali — pensava Inês de Courtenay sempre que olhava naquela direção. — Mesmo que a canalha seja colocada em outro lugar, não haverá lugar nem para os nobres. Talvez o vale se alargue miraculosamente?

Essas meditações sobre a eternidade não transtornavam a complacência com que encarava a vida em todas as suas formas. Era, por natureza, alegre, plácida, e extremamente suscetível à lisonja. Quando elogiada, fechava olhos e parecia um gatinho rosnando de satisfação. Tinha uma corte numerosa e bem provida, mas dentro de seu palácio a desordem se casava ao desleixo. Peregrinos, mendigos, vagabundos que ninguém conhecia ali entravam à vontade, punham a mão em tudo, eram bem recebidos a qualquer hora e alimentados. Por causa disso Inês era considerada exemplo de humildade e caridade cristãs, apesar de ser, de fato, completamente mercenária e egoísta. Sua indulgente simpatia por todos os vagabundos era mais devida ao amor às histórias que eles contavam do que à verdadeira caridade. Um dos vagabundos que infestavam o pátio devia ter levado sua lepra àqueles muros, e o jovem Rei guardava contra a mãe profundo ressentimento por não ter ela conseguido preservá-lo da terrível doença. Ninguém sabia quando ou como fora ele infetado.

Além dessa multidão faminta e voraz, alguns hóspedes mais distintos freqüentavam o palácio de Inês: o Patriarca Heráclio, o Grão Mestre dos Templários, Josselin de Courtenay, irmão da viúva e tio do Rei, Reinaldo de Sidon, Amalrico de Lusignan, Humphrey de Thoron, e muitos outros cavaleiros. Reinaldo de Sidon, alegre e loquaz, era o cabeça. Seus trajes meio árabes e sua espessa barba negra davam aspecto oriental às suas belas feições latinas. Na mocidade, tinha passado vários anos cativo entre os muçulmanos, aprendera o árabe, que falava fluentemente, e se tornara constantemente endividado. Sua mulher era uma síria bonita mas indolente, chamada Marfa. O pai dela, Abiram, tão mesquinho quanto rico, só auxiliava o genro com enorme relutância. Mas Reinaldo sabia como lidar com ele, e vivia sempre imaginando novos expedientes para desatar-lhe os cordões da bolsa.

Naquele dia, em pé junto à fonte, no pátio de mármore, estava regalando a nobre companhia sentada ao redor com a narrativa de sua última façanha.

— E os judeus me afligiam tanto que eu não podia nem respirar, e Abiram tinha jurado por sua honra que não me daria nem mais uma moeda. Seria mais fácil tirar pão de uma pedra que dinheiro dele, mas em todo o caso convidei-o para jantar. Durante o jantar, eu suspirei, pus de lado a comida, e fiquei passando a mão na minha barba e olhando-a pensativamente... assim. Afinal, Abiram me perguntou por que estava cofiando tanto a barba. “E uma despedida”, disse eu. “Amanhã, terei de cortá-la”. Ele olhou para mim com tamanha consternação que quase se engasgou num osso. Precisei dar-lhe pancadas nas costas. Recuperada a respiração, cuspiu o osso e me disse que esses gracejos eram indecentes. Cortar minha barba! Porque sabeis, nobres senhoras, que entre nossos amigos sírios um homem sem barba é tomado por eunuco. É uma grande desgraça. Não era de admirar que meu honrado sogro tenha ficado sufocado com a idéia de me ver sem barba.

— Infelizmente não é gracejo, mas a pura verdade, e nada mais posso fazer. Amanhã minha barba não existirá.

— Que tolice é essa? Por que não pode conservar sua barba? Que aconteceu?

— Eu a empenhei aos judeus por mil ducados. Não tenho dinheiro e não posso pagar minha dívida, de modo que amanhã vão ficar com ela.

— Nem fale com eles. Mande essa gente embora! Como é que têm essa ousadia! — berrou o velho, vermelho de raiva.

Suspirei e olhei para minha barba.

— Mandá-los embora... Como? A palavra de um cavaleiro é sagrada. Eu prometi pagar; não posso pagar. A barba pertence-lhes.

— Então, pague! Pague! — exclamou ele.

Ri amargamente.

— Como vou pagar, pergunto eu a vossa senhoria? Só possuo uma espada honrada e uma cara aceitável. Mesmo que eu desse a cabeça junto com a barba, não conseguiria dinheiro suficiente.

— Quanto é?

— Dois mil ducados.

— Mas dissestes, há um momento, que eram mil ducados!

— Eu estava tão abalado que só me lembrei da metade da soma.

— Dois mil ducados por uma barba... Dois mil ducados por uma barba?

— Pouco, não acha vossa senhoria? Foi uma tolice, confesso, empenhar minha barba por soma tão insignificante.

— Não podeis ficar sem barba! Não podeis! Dois mil! Dois mil!

E ele se precipitou de um lado para outro do quarto, apelando para todos os santos do calendário, e finalmente me deu o dinheiro. E apenas graças a isso, nobres senhoras, vós me vedes, como sempre, com toda a barba.

Todos escutavam, divertidos. A linda Marfa sorria aereamente, como sempre, sem se importar que a história dissesse respeito a seu próprio pai. Inês de Courtenay riu até chorar. Enxugou as lágrimas com os punhos, e depois riu de novo.

Lindas moças passavam vinho, frutos secos e pequenos bolos de mel, em grandes bandejas.

Feral de Thouars, recém-chegado de França, debruçou-se para Amalrico de Lusignan:

— Lindas mulheres! São sírias?

— Duvido muito! Mais provável que sejam descendentes das sicilianas importadas durante o período do Rei Fulk.

— Importaram sicilianas?

— Assim me disseram. Estou aqui há um ano, de modo que não sei bem. Os da terra dizem que há uns cinqüenta anos o Rei Fulk ordenou que importassem donzelas da Sicília, porque havia muito poucas mulheres em Jerusalém, e o país estava despovoado. É claro que os mensageiros deram mais atenção à beleza do que à virtude, e é por isso que...

— É por isso que suas filhas não parecem freiras? — Não faz muito tempo, duas delas deixaram a corte da Rainha, e não se sabe para onde foram.

Inês ouvia esta conversa e depressa negou o fato:

— Essas moças não fugiram por amor; com certeza lhes aconteceu alguma infelicidade. Acredito firmemente que os pagãos as raptaram.

— Pagãos? Mas, Alteza, não há pagãos por aqui!

— Ladrões, talvez. Eram moças corretas e virtuosas, calmas, modestas e comportadas, é certo que não fugiram com nenhuma intenção pecaminosa.

— Não deveis confiar em aparências, graciosa Senhora — disse o Grão Mestre com aspereza. — Julgais tudo de acordo com vosso puro coração! Mas o mundo é muito diferente. Muita mulher ordinária aparenta virtude.

— Quando voltarão os Montferrats? — interrompeu Josselin de Courtenay.

— Dentro de pouco tempo — garantiu-lhe Inês. — Sibila me escreve que o tempo tem voado, e que se preparam para voltar. Minha queridinha já está de esperanças.

Um murmúrio aprovador recebeu notícias de tamanha importância para o reino.

— É certo? — perguntou Josselin.

— Absolutamente certo. — A mãe estava cheia de orgulho. — E não é de admirar. Ela saiu a mim. Se o fosse da vontade do falecido Amalrico, eu poderia ter tido dez filhos.

— Podemos esperar que, dentro de alguns anos, sempre que se atirar uma flecha ela encontre um Montferrat.

— Não haverá castelos suficientes.

— É verdade! O número de castelos é restrito, e o vigor de Montferrat ilimitado.

— Ele será um crédito para o reino.

As últimas palavras haviam sido pronunciadas por de St. Amand, que pela primeira vez falava de Montferrat sem maldade. Seguindo sua atitude, todos os presentes procuraram ultrapassar-se uns aos outros no elogio a Montferrat, relembrando os méritos do genro da Rainha, seu alto nascimento, seus laços de sangue com o rei francês e com o imperador germânico. Inês piscava de satisfação.

— Sim, sim, a minha queridinha não tem razões para se queixar.

Um rumor súbito na porta exterior, um tinir de cascos, uns gritos interromperam a conversa. Reinaldo de Sidon saiu para ver o que acontecia. Voltou um momento mais tarde — visivelmente alterado, lívido. Puxava a barba como se realmente fosse perdê-la no dia seguinte. Sentou-se pesadamente e tomou um gole de vinho.

— Que aconteceu? — perguntou Inês, do outro lado da fonte.

— Nada, Senhora, nada. Dois criados que brigavam.

O Grão Mestre se encaminhou para ele.

— Que aconteceu? — disse em tom abafado. — Conte-me!

— Montferrat morreu — disse Reinaldo, com voz abalada.

De St. Amand deu um passo atrás, numa estupefação completa:

— Não será apenas um boato? Montferrat! Quem disse? Onde dizem que morreu?

— Numa garganta. Um penedo o esmagou.

Sem ouvir mais, o Grão Mestre saiu em grandes passadas para interrogar o mensageiro, mas este já tinha montado a cavalo para ir contar ao Rei a notícia. Reinaldo enxugou a testa cheia de suor. Os outros já tinham percebido que alguma coisa acontecera. Assaltaram-no com perguntas. Dessa vez ele não pôde dar um gracejo como explicação. Disse a verdade — a espantosa, incrível verdade: Montferrat, alcunhado Espada Longa, tinha morrido. Seu corpo vinha sendo trazido de Ascalão com toda a pompa. A real viúva estava fora de si com a dor, desmaiando, lamentando-se, rasgando as vestes, arrepelando o cabelo... O acidente acontecera na garganta de uma montanha. Montferrat tinha, provavelmente, galopado até lá durante uma caçada. Sozinho. O rochedo despencara e um fragmento havia sepultado o cavaleiro e seu cavalo. Já não havia sucessor para o trono, já não existia o real cunhado.

— Minha queridinha! Minha pobre queridinha! — Inês chorava com o tom mais elevado de voz. — Minha doçura de menina! Onde está ela? Levem-me para junto dela! Socorro! Socorro! Onde está o mensageiro? Como foi que aconteceu? Talvez ele tivesse mentido? Eu estou dizendo que mentiu! É impossível! Oh, Deus!

As damas a levaram, gritando e soluçando, para seus aposentos. Os outros ficaram, entreolhando-se em silêncio.

— Seria realmente um acidente? — murmurou Reinaldo, sombriamente. — O rochedo não poderia ter atingido qualquer outro que não Montferrat, justamente quando ele vinha voltando para ser Rei?

— Mas quem faria abalar o rochedo? Estamos em tréguas com os Ismaelitas. E Saladino não é homem para assassínios. É um cavaleiro de honra.

— Na verdade o é.

— Vai ser um golpe para o Rei. Ele ia dar-lhe o reino.

— Pelos ossos dos Santos Mártires! Dizem que não queria que o cunhado partisse, como se tivesse um pressentimento.

— Vai haver novas dificuldades quanto à sucessão ao trono. Estou pensando em quem recairá a escolha.

— Afinal, não podem dar Sibila em casamento, agora. Dizem que está a espera de um filho.

— Mas precisam dar-lhe marido. O Rei viverá um ano — dois, no máximo.

— Deus proteja o Santo Sepulcro! Quem lhe darão por marido?

— Ibelin de Ramlah, com certeza.

— Ibelin está no cativeiro.

— Que tem isso? Poderão resgatá-lo. O Rei não poupará soma alguma, podeis ter certeza.

— Haverá mais dificuldades além do resgate, apenas. Oh, isto vai trazer complicações em quantidade. A história se repete. Sibila ainda poderá entregar o coração a alguém, exatamente como a Princesa Constança de Antioquia... Haveis de ver!

— Qual! Estais grasnando como um corvo!

— Não estou; eu digo, simplesmente, que a história se repete.

* * *

Para Balduíno, foi um golpe terrível, na verdade. Incapaz de juntar duas idéias, deu ordens para que preparassem um magnífico funeral e para que se enviassem mensageiros ao Príncipe Raimundo de Trípoli. Só quando chegasse Raimundo, o Rei reuniria o Conselho dos barões. Naquele instante, queria apenas ficar só.

E ficou. Deitado em sua câmara, torturado, lutava contra uma sensação de irreprimível desgraça. Por que, por que não dera atenção ao seu pressentimento? Por que cedera diante da irmã? Os quatro Irmãos Lazaristas de nomes evangélicos estavam de pé num dos cantos do quarto, tão impessoais e vagos como sombras. Como seus sentimentos a respeito do acidente não interessavam a ninguém, não os exprimiam, mas se mestravam sinceramente solícitos. A paz e o repouso, que esperavam para seu doente dentro em breves dias, tinham que ser relegados a um futuro distante. Eram apegados a seu Rei, e aceitavam o fato com tristeza. Os mendigos leprosos das ruas viviam, apesar da doença, até uma idade avançada. No entanto, a constante tensão de vontade com que o jovem Rei mortificava sua malfadada carne havia minado suas energias e apressado a marcha da doença.

Balduíno era indiferente às preocupações dos Lazaristas. Certamente, nada faria para prolongar sua miserável vida. Pensava no cavaleiro morto. A morte, zombeteira e cruel, se apossara dele no momento exato em que estava a ponto de libertar o infeliz monarca dos trabalhos e atribulações do reino, de todas as responsabilidades e vicissitudes do governo. Montferrat estava morto. Balduíno repetia isto para si mesmo, e não conseguia acreditar. Pouco mais de oito semanas haviam passado desde que Montferrat se tinha sentado ao lado da cama da Rei, naquele mesmo quarto, fraternalmente, radiante de vigor, alegria e saúde. Tivera para o cunhado indulgente solicitude e bondade. Era tão forte, o Rei tão frágil. E ali estava aquele frágil corpo, aquele débil caniço, suportando todo o peso da coroa, enquanto o vigoroso cavaleiro era trazido à cidade num caixão, para ser enterrado com pompa na igreja de Santo Estêvão.

Durante o verão a decomposição começa logo, e era horrível pensar como deviam estar, naquele momento, os restos do belo Guilherme. No entanto, o leproso moribundo continuava a viver. Deplorável ironia do destino!

Raimundo de Trípoli chegou mais depressa do que se esperava. Tendo sabido do acidente, havia partido para Jerusalém sem esperar o chamado do Rei. Mal descera do cavalo, coberto de pó, dirigiu-se ao Rei para falar-lhe antes da reunião do Conselho.

Raimundo III era alto e magro, levemente curvo. Tinha feições proeminentes e um grande nariz aquilino. Como Reinaldo de Sidon e muitos outros, passara muitos anos da mocidade sob cativeiro entre os muçulmanos.

Apesar de lembrar pelo rosto o seu avô Raimundo, Conde de S. Gil, Senhor de Tolosa, não havia herdado o temperamento deste. O avô fora impulsivo, o neto ezra senhor de si mesmo, sóbrio, circunspeto. Sua permanência entre os muçulmanos lhe dera características desconhecidas entre os antigos Cruzados. Para os que tinham uma mentalidade ampla, e Raimundo era destes, a compulsória associação com os árabes era boa escola quanto à ciência da vida e aos conhecimentos gerais. Apesar de cativos, os cavaleiros cruzados nunca eram tratados como prisioneiros, de modo que muitos recordavam os dias de prisão sem rancor e continuavam a manter relações amistosas com os muçulmanos com quem tinham feito conhecimento.

— Então, meu rapaz — disse Raimundo no limiar — novas preocupações caíram sobre nossas cabeças?

— Uma calamidade! Uma verdadeira calamidade! — lamentou-se Balduíno. — Que vamos fazer agora?

— Oh, não devemos exagerar. Sem dúvida grande mal caiu sobre nós, e podeis estar certo de que farei todos os sacrifícios para descobrir quem prejudicou deste modo o reino.

Os olhos de Balduíno se abriram muito:

— Julgais, tio, que alguém — deliberadamente?

— Só uma criança acredita em acidente. Não há acidentes no mundo. Lembrai-vos disso, meu rapaz. Tal seria, acidente! Mas não falemos disso agora. Ainda nada sabemos. Pensemos no que virá agora.

— Tenho a impressão de que alguém tirou o chão que eu pisava. Não consigo juntar as idéias, não consigo aceitar o que aconteceu.

— Não devemos exagerar — repetiu Raimundo com aparente rudeza. — Precisamos achar outro marido para Sibila. Só isso.

— Ela está grávida. Se der à luz um filho, eu preferia fazer do filho póstumo o meu herdeiro e dar-vos, tio, o governo até que ele chegasse à idade. Nada de melhor podia ser feito pelo reino.

Raimundo riu amargamente e começou a andar abaixo e acima do quarto. Suas botas, empoeiradas da viagem, deixavam uma trilha no tapete escuro.

— Nada melhor, dizeis? Bem, certamente eu governaria melhor que os outros. Entretanto, não adianta falar disso. Vós mesmo sabeis que os Templários não concordariam. St. Amand gosta de mim como de veneno. Imediatamente, incitaria os outros. Por que há de ser Raimundo? Até parece que os ouço falar. Por que S. Gil? Por que não o bufão do Courtenay; antes de tudo, por que não as irmãs reais? Estão mais próximas do trono! Elas! E que haveis de dizer-lhes? Bem sei que uma lei pode ser anulada ou violada, mas nós não temos a liberdade de o fazer. Compreendeis? A única coisa que, de certo modo, mantém unido este reino é a lei. Se não a respeitarmos, tão pouco a respeitarão os outros. É por isso que eles estão esperando. A herança do trono veio em linha reta desde Godofredo até hoje, sem uma falha, e isso é uma força que não devemos desprezar. Que aconteceria então? Só a idéia é de arrepiar... Deus proteja o Santo Sepulcro! Por que não seria franco convosco? Eu gostaria de ser Rei. Eu saberia ser Rei. Eu seguiria as pegadas de Balduíno III e de vosso pai Amalrico. Mas não podemos modificar a lei, e, legalmente, eu não tenho direito ao trono, nem sequer como regente.

— Mas vós governastes por mim, quando eu era pequeno!

— As moças ainda eram crianças naquela época, não se contava com elas.

Continuou a andar com impaciência pelo quarto. Estava agitado por suas próprias palavras. A coroa! A coroa que outrora pertencera a seu avô Raimundo, a coroa que, tão injustamente, fora negada ao verdadeiro vencedor de Jerusalém, não cessara de ser o sonho de sua vida. Mas havia um abismo entre o Senhor de Trípoli dessa época e seu avô. Raimundo III conhecia suas limitações, sabia como pesar seus objetivos, e, se necessário, como restringi-los. Teria força bastante para aniquilar os Templários, para lhes impor seu governo, para dominar os barões com toda a energia? Era certo que não o poderia fazer e, portanto, era melhor não pensar nisso e ficar satisfeito com o principado de Trípoli e com o dote de sua mulher, a Galiléia com Tiberíade.

Balduíno, olhando com desalento para o cavalheiro que andava silenciosamente pelo quarto, disse com tristeza:

— Não podemos dar Sibila em casamento antes de um ano, pelo menos. Afinal, ela precisa dar à luz a criança, precisa completar seu luto... Mas eu viverei até o fim deste ano? Cada hora que passa é mais penosa para mim... Eu me alegrava por estar a ponto de me libertar de toda essa responsabilidade e de poder retirar-me para algum mosteiro onde ninguém visse minha desgraça. Lá, pedindo a Deus que apressasse o meu fim, eu teria esperado a morte em paz. Faz muitos meses que os médicos e os meus Lazaristas me aconselham a ficar quieto e a deixar todas essas preocupações a outrem. Querem que eu deixe que os outros se arranjem como possam... Que Deus não me permita seguir tais conselhos: eu sou o Rei. Devo entregar este reino íntegro e bem protegido. Já foi forte e famoso no mundo todo, e não será degradado por nenhum ato meu. Assim como meu pai o passou ao meu poder, assim o entregarei ao meu sucessor.

— Se eu não fosse casado, desposaria Sibila e tudo ficaria arranjado — observou Raimundo, parando. — Mas que se há de fazer, eu não posso pôr de lado minha boa Echiwa, nem vossa irmã gostaria de um velho como eu. É essa a dificuldade. Nunca encontraremos outro Montferrat, ligado pelo sangue a três reis. É inútil procurar. Quando vinha a caminho para cá, pensei em todos os príncipes da Europa. Todos são, como Felipe de Flandres, que está aqui em peregrinação, tolos ou homens de pouco valor. Seja como for, antes que qualquer deles viesse até aqui e se pusesse a par dos assuntos locais, seriam necessários três anos. De modo que é uma perda de tempo pensar em príncipes estrangeiros. Dos que estão aqui, só vejo um que possa servir.

— Ibelin de Ramlah? Já pensei nele.

— Isso, Ibelin. Deveis mandar mensageiros ao Sultão, imediatamente, para entrar em acordo quanto ao resgate. Ele não entregará Ibelin por preço baixo, mas mesmo que tenhamos de sobrecarregar o reino de dívidas ou até entrar no tesouro do Santo Sepulcro, precisamos libertar Ibelin... Ainda vivereis um ano... Que diabo! Os leprosos vivem, às vezes, mais do que os sadios.

— Eu não viverei muito... Graças a Deus... Bem, teremos de libertar Ibelin... Talvez tudo dê certo... Quero acreditar nisso... Apesar de que, para dizer toda a verdade, não acredite. Às vezes tenho a sensação de que alguma maldição está suspensa sobre nós, algum sortilégio maléfico... Não porque eu seja leproso. Que importância tem a minha pessoa! Mas de modo geral... O reino existe há apenas oitenta e sete anos, e eu já sou o sétimo Rei. Em outros lugares, os monarcas reinam durante vinte ou trinta anos. Deus permite que tenham saúde e vigor. Nós, não. E estes constantes ultrages, estas lutas, estes cavaleiros insubordinados, esta diminuição de religiosidade! Só os peregrinos, aqui, pensam com sinceridade no Santo Sepulcro. Quando o perigo nos ameaça, conduzimos diante de nossas hostes o Lenho da Santa Cruz, mas, à sua sombra, nossas discussões continuam como sempre... Pecado, tudo é pecado... Falei certa vez sobre isto com o Arcebispo Guilherme... Ele diz que tudo provém do seguinte: de termos tomado posse do Santo Sepulcro, pois as coisas sagradas não toleram posse. Julga ele que não devia haver dois reis em Jerusalém, um rei terreno e um rei celeste, que esta cidade devia ser livre — sem outro senhor que não Cristo, aberta para quem quisesse orar.

A princípio Raimundo ouviu com atenção o que seu sobrinho dizia, depois bocejou.

— Tagarelice de prelado. Se estivésseis bem de saúde, havíeis de rir disso tudo. Mas estais doente, e o tempo se arrasta lentamente. Não fazeis outra coisa senão pensar... pensar, até que idéias esquisitas vos entrem na cabeça. Dizeis que há pecado entre nós? E onde, dizei-me, não se encontra o mal? Em toda a parte é a mesma coisa. Jerusalém não deveria pertencer a ninguém? Como pode deixar de pertencer a alguém? Quem a guardaria? Quem a protegeria contra os ladrões? Quem olharia para que os habitantes não se exterminassem uns aos outros? Seria preciso que a levantásseis da terra e a colocásseis nas nuvens. Mas então, como chegaríamos até lá?

— Talvez pudéssemos cercar a cidade por guardas e não permitir que entrasse ninguém armado! — sugeriu Balduíno.

Raimundo encolheu os ombros com impaciência.

— Armado ou desarmado? E os dentes, as unhas e os punhos? Achais que os homens não sabem lutar sem espadas, que não sabem atirar pedras?... Não! Meu rapaz, isso é uma ridícula fantasia. Os homens são homens; têm que viver e pensar como homens. De outro modo não realizariam nada. A idéia do Arcebispo não é viável. É verdade que nosso Estado é tudo menos seráfico, mas Deus nos criou criaturas humanas e não anjos. Já não será mérito bastante que montemos guarda ao Santo Sepulcro, que tenhamos expulsado os pagãos, que os peregrinos possam vir aqui a salvo para orar? Será bastante para nós, se formos capazes de manter tudo isso, pelo menos.

— É muito pouco — murmurou o Rei.


 

5
UM MARIDO PARA SIBILA

 

Reinaldo de Chatillon, o cavaleiro recém-chegado do cativeiro, curvou-se perante o Rei, que entrava na sala do Conselho.

— É numa triste oportunidade que tenho a honra de render-vos homenagem, Senhor, mas o destino não permitiu a escolha do tempo.

Fazendo um sinal à distância, como se quisesse, segundo o costume, abraçar o cavaleiro, Balduíno IV olhou com curiosidade o famoso barão que seus olhos ainda não tinham visto. Ficou decepcionado. Chatillon não se distinguia pela estatura excepcional nem pela força. Nada conservava da bela aparência que, anos antes, conquistara a frívola Princesa Constança de Antioquia. De compleição maciça e largo de ombros, sua pele rosada era cortada por veias azuis. Quando falava, seu grande bigode grisalho ficava de pé como o de um gato. Em contraste com as ricas e coloridas roupas dos outros cavaleiros, vestia um gibão gasto de couro, e tinha um ar guerreiro, simples e desconfiador.

— Deus proteja o Santo Sepulcro!

O Rei assim cumprimentou a Assembléia e tomou seu lugar sob o docel.

Erguendo-se, todos responderam a uma voz:

— Deus proteja o Santo Sepulcro!

Sentaram-se de novo, com um roçar de mantos e um retinir de espadas. A reunião era excepcionalmente concorrida, porque a escolha de um novo sucessor ao trono era de vital interesse para todos. Apenas o Grão Mestre dos Hospitaleiros se achava ausente, preso em casa por um ataque de gota. Até Bohemundo III, Príncipe de Antioquia, tinha vindo, assim como o venerável Condestável Humphrey de Thoron, um dos mais respeitáveis cavaleiros do reino, avô do jovem que, no banquete, ficara perdido de admiração pela princesinha Isabel. Além dos cavaleiros de Jerusalém, outros haviam sido convidados para o Conselho. Entre estes, o Príncipe de Flandres, neto do Cruzado Roberto, mas totalmente diferente dele. Quando Raimundo de Trípoli havia chamado Felipe de tolo, não andara muito errado. Felipe era vaidoso, frívolo, preguiçoso e desconfiado. Várias semanas antes tinha desembarcado na Terra Santa, acompanhado por um esplêndido corpo de soldados flamengos. A vista desta força armada tinha despertado no coração do Rei a esperança de que aquele belo primo viesse a tornar-se ativo aliado. Nessa ocasião havia a oportunidade para realizar o sonho de Balduíno III e de Amalrico: cair sobre Saladino pela retaguarda, atacando o Egito. Mas Felipe tinha comunicado a todos que viera apenas para visitar o Santo Sepulcro. Apesar de já ter completado sua peregrinação continuava por ali, e a manutenção de seus homens de armas não era fardo leve para o tesouro vazio do Rei.

Felipe, naquele momento, apesar de sentado no lugar que lhe cabia, estava sombrio e triste. Achava que o Conselho devia oferecer-lhe, e a mais ninguém, a mão da Princesa Sibila, assim como o trono; é certo que teria recusado, não tendo a menor intenção de deixar sua Flandres, mas que satisfação não seria! Como nada parecia prenunciar tal reviravolta nos acontecimentos, olhava todos os presentes com manifesta aversão. Que gente! Quase todos barbudos como turcos ou judeus. Bonitos e elegantes, mas diferentes, decididamente diferentes!

Não há dúvida de que os cáusticos comentários de Felipe eram em grande parte verdadeiros. Os cavaleiros de Jerusalém, na terceira geração, já estavam extraordinariamente transformados. Os sírio-francos, como eram chamados, netos dos Cruzados, homens fortes que alcançavam sempre os setenta anos, eram de ossos pequenos e ofereciam pouca resistência às doenças. Facilmente se entregavam aos vícios e tinham vida curta. Suas almas haviam absorvido a atmosfera do Oriente. Era triste, por exemplo, olhar o irmão da Rainha, Josselin de Courtenay, glutão, beberrão e mentiroso, cujo pai fora um valoroso cavaleiro admirado por todos, igual aos heróis de Homero. Depois, havia Bohemundo III de Antioquia, que não era respeitado por ninguém, nem pelos súditos nem pelos inimigos. Só uma virtude conservavam ainda: a coragem.

O Rei, para quem falar durante muito tempo era uma tortura, entregou a direção do Conselho a Raimundo III. O Príncipe de Trípoli, em poucas e concisas palavras, informou aos presentes o motivo daquela reunião. Era um conselho extraordinário no qual se devia tomar uma decisão, sem adiamento. Certamente nenhum perigo ameaçava o país, e até então só nessas circunstâncias se havia reunido o Conselho Extraordinário; no entanto, não era menos importante a escolha do sucessor ao trono. O gracioso Senhor temia não poder governar o Reino Santo. Era necessário achar um marido para Sibila de Jerusalém, viúva de Montferrat, e escolher, o mais depressa possível, um cavaleiro ao qual se entregasse o trono com toda a confiança. Antes de proceder àquela escolha, insistia com o Conselho para que considerasse as qualidades que devia possuir o futuro Rei.

— Ardor na luta contra os infiéis! — gritaram Reinaldo de Chatillon e o Grão Mestre dos Templários, simultaneamente.

Raimundo sorriu por baixo do bigode.

— Penso que se deveria acrescentar a essa virtude o bom senso?

— Qualquer bom cavaleiro é sensato, porque é bom cavaleiro. Qualquer um manterá sua honra imaculada, e é nisso que consiste a sabedoria necessária a um Rei.

— Falais corretamente, nobre senhor. A sabedoria consiste em manter a própra honra imaculada. No entanto, pode haver diferenças quanto àquilo que constitua a honra.

A maioria dos cavaleiros pulou dos bancos com um grito:

— Só há uma espécie de honra para o cavaleiro! Só uma!

— Devia haver só uma, mas não é assim. Para mim a honra, por exemplo, exige que os penhores dados aos infiéis sejam mantidos e respeitadas as combinações feitas com eles.

— Para mim, não! — gritou de Chatillon.

— Todos sabemos disso, pelo seu passado. Vedes assim, nobres senhores, que já aparece uma diferença. Para que um Rei seja capaz de manter a honra do reino imaculada, precisa ter boa cabeça, tanto como espada pronta a combater.

— Isso é pura retórica! — explodiu de Chatillon. — Que má compreensão do que seja honra! Pura retórica! Ter honra é não cair na infâmia.

— E que é que traz a infâmia? — interrompeu Reinaldo de Sidon.

O velho barão, lívido de raiva, dirigiu-se com veemência ao temerário jovem.

— É mais do que evidente! — resmungou. — Fugir acarreta a infâmia.

— E perder o reino, traria infâmia?

— O reino nunca se perderá, se à sua frente estiver um homem valente.

— O reino quase se perdeu já, por várias vezes, devido ao valor excessivo — trovejou Raimundo. — Mas deixemos esta disputa. Nos últimos dez anos cometemos uma multidão de erros. A situação é tal, hoje, que não podemos cometer outros erros. O Islam, até há pouco desmembrado em vários estados em luta uns contra os outros, se unificou. Um erro imperdoável. Devido ao excesso de valor, a uma política de guerra contra quem quer que usasse um turbante, nós, simplesmente, auxiliamos Saladino. Destruimos seus inimigos quando eles se voltavam para nós, pedindo auxílio. Nosso gracioso Senhor sabe que, ao falar disto, não penso em seus nobres predecessores. Em vão Amalrico, pai de nosso Rei, desejou apoiar o Egito quando de lá nos enviaram mensageiros e mais mensageiros. Vós vos opusestes a isto. Sob nossos olhos, Saladino conquistou o Egito. Na verdade, ele nos deve gratidão; graças a nós, unificou Bagdá, Cairo e Damasco. Se Mossul e Aleppo também caírem, teremos que enfrentar um poderio que nada igualará. Nosso gracioso Senhor está fazendo o máximo para apoiar o último esforço dos Zengis contra os Ayyubitas, e o sucessor do trono deveria compreender esta política. É forçoso que ele conheça bem o Oriente, e faça o jogo com habilidade.

Felipe de Flandres não fez esforços para esconder sua decepção. Era evidente que nem sequer iam pensar nele!

— Não posso crer no que ouço. Estais confessando, Príncipe, que é necessário apoiar infiéis? Pagãos? Devemos nós, os cristãos, fazer tal coisa? Não é nosso primeiro e único dever combatê-los?

— Ouvi! Ouvi! — gritaram de Chatillon e Odo de St. Amand, saltando de seus lugares.

Raimundo, sem se mover, observou friamente:

— Para lutar contra todos, é preciso ter suficiente poderio.

— Nossos avós não pensavam em poderio.

— Não falemos de nossos avós. Outra gente, outros tempos.

Inesperadamente, o velho Humphrey de Thoron, de barba grisalha, começou a falar.

— Falamos pouco demais neles — contradisse. — Pouco demais! Eles foram Cruzados, e nós? Não sei o que somos, mas somos muito diferentes. Eles gritavam: — Deus o quer! — E nós fazemos pactos com inimigos... Fazemos planos. Planos... é uma palavra feia. No meu modo de pensar, um cavaleiro não faz planos, luta... Não dêm atenção às minhas palavras. Sou um velho que não compreende os tempos atuais.

— Vossas palavras, senhor, sempre têm ponderação, mas por favor, escutai! Nossos avós vieram para cá de países do outro lado do mar. Nada tinham que perder senão suas vidas, que haviam oferecido ao Senhor. Vós nos censurais por não raciocinarmos do mesmo modo, mas é que desejamos permanecer aqui. Somos responsáveis pela segurança do Santo Sepulcro. Morrer é mais fácil do que viver, e escolhemos o mais difícil. Somos responsáveis, não só por nós mesmos, mas por todo o reino, pelas igrejas que seriam profanadas, pela vida cristã que aqui se desenvolveu com tanta beleza e esplendor. Vem gente de longe para cá, sabendo que, enquanto aqui estivermos, nada lhes acontecerá. É esta a diferença, a tremenda diferença!

— Sou velho e não compreendo os tempos atuais, — repetiu de Thoron, teimosamente.

— Não quereis compreender, senhor: não quereis! A fé e a espada já não bastam. Nossos aliados precisam ser deixados em paz!

— Todo infiel é um inimigo — exclamou Felipe, apaixonadamente.

— Ontem era assim, hoje não. Por que não confiais em nós? Há cem anos, os infiéis tomaram posse do Santo Sepulcro. Chegaram até às portas de Bizâncio; ameaçaram apossar-se da Europa. Nós os empurramos para longe. Agora somos donos dos caminhos do Islam. E com um pouco de apoio sensato — falo francamente — poderíamos tornar-nos um poderio igual ao de Saladino.

— Mas tudo aquilo de que falais foi feito por nossos avós, os Cruzados!

— Ah, não, foi feito pela sábia política do Rei Balduíno I. Sem ele, a conquista de Jerusalém teria terminado no dia seguinte ao da vitória. Mas para que digo estas coisas, se é inútil falar, inútil explicar! Todos parecem pensar que é bastante manejar a espada. Para enfrentar Saladino, é necessário saber manejar o cérebro. Eu estive em cativeiro entre os muçulmanos durante oito anos, e conheço-os. Eles têm inteligência, têm visão, e, o que é mais importante, têm unidade de vistas.

— E eu fiquei entre eles durante dezesseis anos! — gritou Chatillon. — Não sou tolo, graças a Deus, e não penso assim. Os pagãos são idiotas, cheiram a cabras e a almíscar. Não estão à nossa altura! E não é de admirar que não sejam mais esclarecidos, quando sabemos que a sabedoria nos vem somente através do Espírito Santo!

O Príncipe de Trípoli olhou para o que falava com uma expressão irônica.

— Na verdade, passastes dezesseis anos lá e nada notastes de interessante? Nada aprendestes?

— Nada — insistiu Reinaldo. — Eu não preciso estudar. Creio em nosso Senhor Jesus Cristo e na minha boa espada. Tolo é o homem que diz que um cavaleiro precisa de mais alguma coisa!

— Invejo vossa leveza de espírito. Só Deus sabe porque, mas lá estive menos tempo e vi mais do que vós.

— Vê muito aquele que tem os olhos escancarados pelo medo.

Raimundo ficou lívido. Sua calma desapareceu. Tornara-se, de súbito, violento como seu avô, Raimundo de Tolosa. As veias de seu pescoço incharam. Inclinou-se para a frente como quem ia saltar.

— Vós me acusais de covardia? — bradou num assomo de cólera.

Mas antes que pudesse vir a resposta, o Rei, até então silencioso, bateu vigorosamente no chão com a bengala dourada que segurava na mão.

— Nada de brigas — disse com sua voz incolor mas firme. Podeis debater isso em outra ocasião e noutro lugar. Que o Príncipe de Trípoli continui. O Príncipe de Trípoli fala por mim, e não pode ser atingido por insultos atirados por quem não os pensou, é o que desejo crer.

Raimundo III respirava forte, numa raiva violenta. De Chatillon olhava-o, desafiadoramente. Momentos após, entretanto, Raimundo se dominou e continuou:

— Fosse o que fosse que abriu meus olhos, o certo é que vi muito. Vi como bolorentos estados e califas impotentes se renderam às mãos de um vitorioso que soube estabelecer a autoridade. Aprendei, aprendei com ele! Durante séculos, pequenas diferenças separaram a fé dos califas de Bagdá da dos califas do Egito, mas hoje um único estandarte do Profeta reina em toda a parte. Reina a unidade. O djihad atual, a guerra santa dos muçulmanas, será dirigida exclusivamente contra nós. Eles não conhecem outro inimigo.

— Será sensato dedicar tanto tempo aos nojentos assuntos dos pagãos? — suspirou o Bispo de Beauvais, que tinha vindo com o Conde de Flandres.

— É necessário, Eminência. Conhecimento sobre o inimigo significa força. E repito que devíamos aprender a arte de governar com os muçulmanos. No grande poderio de Saladino, só uma cabeça dirige tudo. Uma vontade apenas! Lá, nunca sucede que os indivíduos, criando estados dentro do próprio estado, prejudiquem os melhores planos.

— Dizeis isso a nosso respeito? — perguntou o Grão Mestre Odo, batendo a espada.

— Estou estupefato, senhor, com vossa argúcia. De vós, precisamente. Pergunto como é possível para nós enfrentar Saladino, quando ambas as ordens militares sempre ficam numa posição de desconfiança perante a real administração?

— Nosso único objetivo é defender o Santo Sepulcro, — replicou o Grão Mestre.

— Tendes uma estranha compreensão dos fatos.

— De acordo com nossas luzes. Nosso gracioso Senhor sempre pode contar com nossas espadas. Somos monges humildes e pacíficos.

— Não nos reunimos aqui para gracejos, Reverência! Ainda não faz muito tempo aprisionastes os mensageiros que voltavam para Saladino com um pacto assinado pelo Rei, e vos recusastes a libertá-los, até que eu mesmo tive que dirigir contra vós um exército?

— Tal como o nobre cavaleiro, Reinaldo de Chatillon, nós nos opomos à conclusão de pactos com os infiéis.

— Devíeis ter dito isso no Conselho e não terdes rompido em armas contra os mensageiros.

— Não tolero que nos acuseis de desonra. Gracioso Senhor! Eu protesto!

Entretanto, todos estavam contra o Grão Mestre. O ódio geral contra os Templários era tanto, que criou uma rara unanimidade. A sala toda estrugia em gritos. Os barões se disputavam a primazia de censurar ao Grão Mestre toda espécie de escândalos. Acostumado a tais ataques, o grande Templário ficou em silêncio, medindo os cavaleiros com um olhar frio e desprezivo. Depois que se acalmaram um pouco, disse, num encolher de ombros.

— Deus não pode abençoar um reino no qual seus mais fiéis servidores são expostos à calúnia. Não estamos habituados a defender-nos e deixamos nossa honra entregue à custódia de Cristo, nosso Senhor. Que Ele nos julgue.

— Não tendes o hábito de vos defenderdes! — berrou du Gray, ironicamente. — Mas a vida de ninguém tem segurança em vossas mãos. É melhor lutar contra os Ismaelitas do que contra vós, assassinos!

— Gracioso Senhor! — apelou o Grão Mestre, mas sua voz ficou perdida no renovado tumulto. Era impossível perceber uma voz individual. Por mais longe que estivessem aqueles sírio-francos da honesta simplicidade de seus antepassados, aquela evidente hipocrisia os inflamava como ferro em brasa. — Humildes, pobres monges — aqueles homens malvados, impiedosos, endinheirados, que tinham fama de fazer pacto com o diabo! Cristo, guardião de sua honra! Sua honra!

Fuzilavam olhares, espadas retiniam. Havia luta no ar. Felipe de Flandres olhou à sua volta, alarmado. Escudeiros curiosos mostravam a cabeça por detrás dos pilares. O culto Guilherme, Arcebispo de Tiro, levantou os braços. O Patriarca Heráclio correu os olhos em todas as direções como se desejasse fugir com a pele inteira. O Rei Balduíno tentou falar, e como, naquele tumulto, ninguém o ouvisse, atirou sua bengala contra o chão, com toda a força.

— Silêncio! — gritou. — Isto é um Conselho, e não uma briga de rua. Estamos reunidos por causa de um luto recente, e para tomarmos importantes decisões. Ficai calados e sentai-vos!

Eles se acalmaram, olhando-o com desconfiança. Quem sabe — talvez lhe entrasse na cabeça vir até eles para os tocar e desarmar? Além do mais, sua voz os impressionara. No rosto pálido e inexpressivo os olhos chamejavam selvagemente. Eles se acalmaram, portanto, sentando-se. O Rei ficou de pé, apoiando-se pesadamente sobre a bengala.

— O Grão Mestre apelou para mim; portanto, eu lhe responderei que, tal como uma ferida em carne viva, assim é a Ordem dos Cavaleiros Templários no Reino de Jerusalém. Meu pai, se Deus lhe tivesse permitido vida mais longa, teria obtido em Roma a dissolução da Ordem. Ele lutou por isso com todas as forças. Eu não tenho forças... eu apenas tolero a Ordem... e espero que meu sucessor não a tolere.

— Nem eu tolerarei isto! — gritou o Grão Mestre, e, murmurando palavrão brutal, saiu em grandes passos da sala. O Patriarca Heráclio o acompanhou, ostentando uma atitude conciliatória, mas na verdade para se pôr ao lado daquele poderoso dignitário.

Sem se preocupar com a saída deles, o Rei continuou: — Devemos escolher um cavaleiro que não se assuste com monges armados, que não tenha medo de ninguém. Porque, na verdade, nenhuma Ordem é pior do que alguns cavaleiros. Ouvi muitos ofenderem o Grão Mestre e, no entanto, não são melhores do que ele. Em toda a parte, em toda a parte a mesma coisa! Vós censurais aos Templários sua velhacaria, e se eu relembrasse a vossa? Vós destruireis o reino com vosso desprezo pela lei? Já por causa de vossa egoísta avareza. E essa, a mais preciosa pérola do Estado, caiu. Assim tudo mais se perderá devido à vossa desumana ambição e discórdia pouco cristã.

O Rei parou e sentou-se, exausto, enquanto eles, com os olhos luzentes de raiva, torciam as mãos até os ossos estalarem, remexendo com os pés num movimento de mau agouro. Aquele leproso, aquele cadáver vivo, ousava censurá-los, a eles, bravos cavaleiros e principais barões do reino! Aquele moço! Provavelmente, por saber que ninguém ousaria tocá-lo. Fosse como fosse, ele é que era o ungido. Mas, com os diabos, falara a verdade. Não se podia negar... A verdade... Edessa caíra porque Raimundo, então Príncipe de Antioquia, se recusara a ir em auxílio do velho Courtenay, dizendo: — “Prefiro ajudar os turcos!” Certa vez tinham brigado por causa de uma mulher... Na verdade, fora lamentável o caso de Edessa.

Encostando a cabeça nas costas da cadeira, o Rei fez sinal ao Príncipe de Trípoli, que retomou o fio de seu discurso interrompido pela discussão.

— Tudo quanto se disse até agora, mesmo estas escandalosas brigas, provam da maneira mais convincente que o herdeiro do trono não pode ser nenhum príncipe vindo do outro lado do oceano, por mais proeminente que seja. Devemos escolher um de nós, um de nossos bons cavaleiros, que compreenda as condições locais e as dificuldades com que nos defrontamos.

— De acordo! — aplaudiram todos. Tais palavras não podiam despertar objeções. — De acordo!

— Eu concordo! — gritou Chatillon, como se somente ele pudesse ser escolhido para Rei.

— Conseqüentemente, nobres senhores, nosso Rei, com a maior diligência, ponderou cada nobre família por sua vez. Entre os barões, nenhum encontrou mais digno do que Ibelin de Ramlah, que no momento está no cativeiro. Saladino exige por ele alto preço. Oitenta mil besantes. Nosso gracioso Senhor deseja enviar o dinheiro e depois consentir no casamento de Ibelin de Ramlah com Sibila de Jerusalém, a viúva de Montferrat. É isto que ele submete à vossa consideração.

Caiu um pesado silêncio. Ibelin de Ramlah? Pena que a escolha tivesse recaído sobre ele. Involuntariamente, cada qual, em seu íntimo, sentiu decepção. Todos teriam de boa vontade desposado a Princesa, ou chamado a atenção para um irmão, filho, ou primo. Mas não ficava bem cada qual fazer seu próprio elogio. Isso teria apenas provocado gargalhadas. Talvez fosse melhor escolher um estrangeiro. Pelo menos, nenhum entre eles seria elevado acima dos outros. Nem para mim, nem para ti. Igualdade entre os cavaleiros.

Silenciosamente, rebuscaram na memória para achar alguma coisa em que pudessem basear uma oposição. Não era fácil, pois Ibelin era de nobre sangue, um espelho de irrepreensível virtude como cavaleiro, o primeiro no combate e no Conselho. Era favorito do Rei e todos sabiam que Ibelin amava a Princesa.

Se o Grão Mestre tivesse ficado, teria movido céus e terras para impedir essa escolha, sem outra razão além da de desgostar o Rei. Ele teria convencido pelo menos metade dos cavaleiros — todos os que se aborreciam com a idéia de precisarem inclinar-se diante de Ibelin. Mas Odo de St. Amand estava ausente. Ocorreu a Balduíno a idéia de que talvez fosse para conseguir esse resultado que Raimundo tinha, propositadamente, causado a discussão precedente. Não era a primeira vez que ficava admirado com a argúcia de seu tio em política.


 

6
PIORES QUE OS PAGÃOS

 

A proposta passara com inesperada facilidade. O velho Humphrey de Thoron fora o primeiro a consentir. Josselin de Courtenay bocejou. Que importância tinha aquilo para ele? Começou uma animada conversa sobre caçadas com o Príncipe Bohemundo de Antioquia. Reinaldo de Chatillon não fez a menor oposição. Reinaldo de Sidon consentiu com satisfação, acenando com a cabeça. Era amigo de Ibelin; com autorização do Rei, iria de boa vontade resgatá-lo. Tudo ficou arranjado: faltava somente o consentimento da Princesa, viúva de Montferrat.

— Eu vos agradeço, nobres senhores, — disse o Rei com evidente satisfação. — Deus proteja o Santo Sepulcro! Fizemos uma excelente escolha. Ibelin saberá assumir o lugar do falecido Guilherme de Montferrat.

— Que ele também saiba vingá-lo — resmungou o velho Thoron com sua voz profunda.

Silêncio. As palavras caíram sobre eles, dispersando seus pensamentos como bolas num jogo de crianças. Da boca daquele honradíssimo cavaleiro viera a confirmação das vagas suspeitas que todos sentiam. O inesperado acontecimento que havia levado à morte o jovem príncipe não fora obra do acaso. Penedos não rolam pela encosta abaixo todos os dias. Justamente no momento em que o Príncipe passava pela garganta, era pouco provável que a própria morte estivesse à espreita para levá-lo.

— Foi esse o primeiro acidente? — exclamou Geraldo d’Avesnes. — O mordomo-mor de Milly também não fora assassinado, há anos, sem que o assassino tivesse sido descoberto?

— Eu o descobrirei e vingarei o morto — prometeu Reinaldo de Chatillon. — Se nosso gracioso Senhor não recusar sua bênção, eu me casarei com a viúva do mordomo-mor.

— Não é a mim que compete recusar — disse o Rei com hesitação. Sua satisfação anterior já havia desaparecido. Seu rosto ficara carrancudo. Se Reinaldo de Chatillon desposasse Estefânia de Milly, ele se tornaria o senhor da Transjordânia. Administraria a Fortaleza Kerak, que dominava os limites de Moab... Mas, como impedir aquilo? Cruzou os olhares com Raimundo III. Este cofiou impacientemente o bigode.

O Arcebispo Guilherme deixou pender a cabeça sobre o peito. Não sabia se devia alegrar-se porque o sacramento do matrimônio ia afinal redimir antigos pecados — todos sabiam que Reinaldo e Estefânia haviam sido amantes, anos atrás — ou tremer pelas conseqüências dessa união que poria entre as mãos de um velhaco a mais importante cidadela do Estado. Deus proteja o Santo Sepulcro!

Raimundo III continuou como se nada tivesse acontecido:

— Ninguém acredita que a morte de Montferrat tenha sido causada por um acidente. Nem pomos a culpa sobre os ismaelitas como fazemos sempre quando não compreendemos qualquer coisa, porque Sinon, o Velho da Montanha, está em guerra contra Saladino, e certamente, não procuraria enfraquecer-nos. Não foi ele portanto. Mas quem foi? Estou desorientado... desorientado e perplexo.

O Bispo Aubert de Belém, tão perdido em seus pensamentos que não levantara a voz uma só vez, ergueu-se e disse timidamente:

— Permiti, senhores, que eu diga algumas palavras. Na presença de nossos hóspedes que vieram de além-mar, eu preferia não tocar nesses tristes assuntos, mas já que foram trazidos à discussão, eu me encorajo... Quem é que faz o mal, aqui? Quem mata à traição? Ninguém, a não ser esse Satã que se enrosca entre nós, abertamente. Pelo menos, passamos pela trilha que ele deixa, a todo momento.

— Deus proteja o Santo Sepulcro! Que quer dizer vossa Eminência?

— Apenas o que todos sabemos, apesar de que ninguém ouse falar. Às vezes, tenho a impressão de que existe entre nós uma Irmandade do Mal, organizada e secreta — inspirada pelo próprio demônio. Esta irmandade perpetra crimes ocultamente. É horrível falar nisto, mas há, entre nós, alguns que me lembram Simão Magus e Marcos, o Feiticeiro. Eles não têm medo. É provável que os Irmãos da Serpente, os adoradores de Caim, tenham seguidores entre os cristãos. É horrível falar disto. À sombra dos muros sagrados pululam os vermes, e os demônios se rejubilam.

Todos ouviam atentamente, não compreendendo completamente o que perturbava o santo velho. Alguns, assustados, fizeram o sinal da cruz e espreitaram por trás dos ombros.

Josselin de Courtenay riu alto, brutalmente.

— Se há alguém em Jerusalém que tenha pacto com o diabo, só pode ser St. Amand. Dizem que ele tem todo o ouro que deseja. Por mais que gaste, nunca tem menos.

— Deus misericordioso! — exclamou Reinaldo de Sidon. — Imediatamente, para essa maravilhosa irmandade preciso entrar! Poderia vossa Eminência dar mais pormenores?

O velho suspirou, escandalizado voltou ao silêncio contemplativo de antes. Os olhos caçoístas de seu interlocutor varreram a assembléia.

— Sua Eminência despreza a possibilidade de divulgar um precioso segredo. Que pena! Seria muito útil para mim, muito útil.

O Arcebispo Guilherme ficou abertamente zangado.

— Parai de blasfemar, senhor, de evocar o mal. Tal como está, já se acha próximo demais.

O Rei levantou-se para encerrar o Conselho. Mas o Bispo de Beauvais, do rosto delicado e pensativo, ergueu os braços.

— Permiti, gracioso Senhor, que eu diga mais uma palavra! Há duas horas que me torço numa agonia, sem ousar fazer esta pergunta — mas desde que o Bispo Aubert...

— Falai, Eminência, sem temor.

Balduíno sentou-se de novo. Os Lazaristas, que se tinham aproximado para ajudá-lo a descer, retiraram-se para trás. Todos olharam com curiosidade para o bispo estrangeiro que lutava contra a timidez. Afinal, quase chorando, disse:

— Meu gracioso Senhor e nobres barões! Não falarei do sentimento com que viemos procurar-vos. Na verdade, para nós, vós éreis como arcanjos guardiões do mais sagrado dos lugares santos. Mas agora que aqui estamos, não posso crer no que vejo. É lamentável, lamentável. Certamente, não ousarei contar em minha terra o que vi e ouvi aqui. Quero fazer-vos uma pergunta, muito gracioso Senhor, e a vós também, nobres do Conselho. Respondei como cristãos, como cavaleiros — se isso é verdade ou calúnia...

— Falai com mais clareza, Eminência. De que se trata? Nós vos daremos uma resposta honesta.

O Bispo torceu as mãos. As palavras estavam presas na garganta:

— Então eu terei coragem. Não vos aborreçais com minha honestidade. É com tristeza que vejo que não odiais a presença dos pagãos — a cidade está cheia deles — mas dizem que numa certa cidade, não me lembro qual...

— São João d’Acre! — ajudou Thouars.

— Sim, São João d’Acre! Sim, nessa cidade se encontram uma igreja e uma mesquita, um templo cristão e ídolos pagãos sob o mesmo teto!

Cobriu o rosto com as mãos, esperando a resposta. O Rei abanou as mãos, num gesto de mortal cansaço.

— É verdade. O Príncipe de Trípoli explicará tudo.

— É verdade? — disse em tom lamentoso o Bispo, olhando com desespero para o clero presente. Todos estavam silenciosos. Raimundo começou a explicar com sua voz habitual, cheia de autodomínio.

— Escutai, Eminência! Tendo acabado de chegar da Mãe-Pátria vós não podeis compreender ainda muitas coisas que são claras para nós. Estamos, aqui, em guerra constante com os muçulmanos. Dois ou três anos de tréguas para dez de guerra. Na guerra, tudo acontece. Quem é vitorioso hoje, amanhã é vencido. Algumas das cidades marítimas estão constantemente mudando de dono. Por isso fizemos há muito tempo uma combinação para que — com a exceção de Jerusalém, onde só pode haver o templo de nosso Senhor — para que em cada cidade subsista uma mesquita na qual os maometanos possam cumprir suas devoções. Em troca, quando a sorte muda e eles ocupam uma cidade, não destroem nossas igrejas nem impedem nelas a entrada dos fiéis. Foi essa a combinação que fizemos. Em São João d’Acre não havia mesquitas, pois todas tinham sido queimadas durante o cerco. Por outro lado, a catedral era grande — na verdade não passava de uma mesquita remodelada. Cedemos uma nave para os muçulmanos, construindo uma entrada separada. Os cristãos e pagãos absolutamente não se encontram; uns nada têm que ver com outros. Pensamos que isto não fosse pecado nem ofensa a nosso Senhor.

O Bispo de Beauvais não tirou as mãos do rosto, mas murmurou :

— Deus, Deus! E eu não queria acreditar nisso. Eu não podia acreditar nisso. Igreja e mesquita, como se fossem iguais. A verdadeira Fé e uma abominável idolatria!

— Os muçulmanos não são idólatras — interrompeu Ramundo sem conter sua impaciência. — Eles acreditam em Deus, e não em ídolos.

O Rei bateu com sua bengala dourada.

— Está encerrado o Conselho. Que Deus proteja o Santo Sepulcro!

Todos responderam alto, erguendo-se com alívio dos lugares. Saíram ruidosamente, distendendo os membros entorpecidos, batendo as espadas que retiniam no chão de mármore. O Bispo de Beauvais caminhava, irrequieto, ao lado do enraivecido Conde de Flandres.

— Deus, Deus! — repetia. — Mas estes homens não são cristãos, absolutamente — são piores que pagãos. Igreja e mesquita, chegaram a esse ponto! Vamos voltar para nossa terra, Alteza! Vamos voltar!

— Eles deviam ter-me oferecido a coroa — murmurou Felipe, zangado. — É claro que eu não teria aceito, mas seria a única coisa decente que eles poderiam fazer.


 

7
A PAZ DO SANTO SEPULCRO

 

Inês juntou as mãos, espantada, e andou mais depressa.

A liteira do Rei estava no pátio! Os lacaios que a carregavam e os quatro irmãos Lazaristas se retiraram na direção dos portões. Invisível por trás das cortinas, Balduíno disse:

— Saudações, minha Senhora. Que Deus proteja o Santo Sepulcro!

— Desejo-vos boa saúde, gracioso Senhor, meu filho, — replicou ela, confusa e zangada consigo mesma. Que tolice ter falado em saúde! Certas coisas, era melhor não dizer!

Apesar de ser do conhecimento geral que o Rei não entrava senão em sua própria casa, ela começou por convidá-lo a dar-lhe a honra de visitar as salas que há tanto não via.

— Isso não vos daria pouco aborrecimento, se eu consentisse, Senhora. — interrompeu ele, friamente. — Eu desejo falar com Sibila. Que ela venha cá.

— Sibila? Minha pobre desamparada! Queridinha! Deus não tem piedade dela... É tão sensível, tão amorosa e tão sofredora! Ela não vai sobreviver a isto... Que justiça é essa, quando Deus leva um cordeiro para o sacrifício? Eu não poderia repetir vossas ordens, gracioso Senhor? Ela está grávida e...

— E a vista de minha liteira poderia produzir-lhe um choque? Mesmo estando eu completamente escondido por esta cortina?

— Eu não estava pensando nisso... Deus me livre! É só porque ela é tão sensível e qualquer alteração...

— Eu quero vê-la — respondeu o Rei.

Mandando uma criada buscar a filha, a ofendida Inês ficou imóvel. Todos seus sentimentos maternais estavam concentrados em Sibila. Pelo filho, sentia o mesmo desamor que lhe inspirava. Era um rapazinho caprichoso que nutria eterno rancor por ser leproso, como se isso fosse culpa de sua mãe e não uma provação divina!

Sibila aproximou-se da liteira, com os véus de viúva a flutuarem ao redor. Ela os agitava ao andar, balançando os quadris com afetada graça. Atrás dela vinha uma pessoa raramente vista na cidade: sua avó Ivette, venerável Abadessa do Monte das Oliveiras, que se sentou num banco de mármore para esperar o fim daquela conversa em família.

Balduíno olhou atentamente para sua irmã através da estreita fresta entre as cortinas da liteira. Não a via desde o dia dos funerais de seu cunhado, em que suas lamentações haviam sido altas e violentas. Ela havia dilacerado vestes e repuxado cabelos, atirando-se ao chão. Várias semanas haviam passado. Ainda estava triste, mas as maçãs do rosto haviam sido cuidadosamente pintadas, e os lábios escarlates. Seria possível falar-lhe sobre o novo casamento.

Às primeiras palavras, um lampejo de curiosidade que cedeu lugar à indignação, correu por todo seu rosto.

— Deixai-me em paz! Por que não podem deixar-me em paz? Só desejo a morte. Se eu não morrer de parto, tomarei o véu. Mas com toda a certeza morrerei de parto. É melhor. Deixai-me em paz.

— Não acredito nessa possibilidade de morte. Entretanto, se isso acontecesse, o marido escolhido para vós seria dado a Isabel, que logo terá idade para casar.

Ela teve um sobressalto de reação.

— Então já me enterrais sem mais nada? — gritou. — Oh, é isso que desejais! Eu sei! Vós preferis Isabel. Assim como preferis vossa madrasta à vossa mãe! Não tendes coração! Mas sois o Rei! Podeis torturar-nos! Continuai! A quem me dareis? Quando? Hoje? A quem? A alguém como vós?

— É a vós mesma que estais fazendo sofrer, e não a mim — respondeu ele, por trás das cortinas.

Sibila chorou de raiva. Inês tomou-a nos braços.

— Para que atormentar minha queridinha? Ela diz a verdade. Vós não tendes piedade. Falar de outro marido antes que suas lágrimas sequem pelo primeiro!

— Até aqui não vi lágrimas — só vi pintura. De boa vontade a deixaria em paz, mas o reino não pode esperar. Estou fazendo esforços por conservar toda a saúde que me resta. Além do mais, ela não entrará no novo leito conjugal antes de um ano. Eu apenas peço o seu consentimento para a escolha que fizemos.

— Quem foi que escolhestes? — exclamou Inês com interesse.

— Ibelin de Ramlah.

Sibila enxugou os olhos e ergueu a cabeça.

— Um simples cavaleiro? — perguntou com desdém. — Ibelin? Não há mais príncipes na Europa? Meu pobre Guilherme podia falar no Rei francês, seu tio, e no Imperador alemão, seu primo materno...

Abalada pelas recordações, soluçou histericamente. Inês procurou acalmá-la e lançou olhares de reprovação para a liteira.

— Não pode haver melhor escolha — declarou Balduíno, categoricamente. Ibelin é um dos nossos cavaleiros mais notáveis. Um bom cavaleiro de Jerusalém tem mais importância para nós do que qualquer título europeu. Ele vos ama e será um digno consorte, assim como protetor de vosso filho. Pensai sobretudo nesse filho. Se for homem, será Rei quando tiver idade.

— Eu vou morrer, tenho certeza!... Oh, meu pobre Guilherme! — chorou Sibila.

— Parai de atormentá-la. Permiti que ela se retire, intercedeu Inês, zangada. — Tanta comoção pode produzir um mau sucesso.

— Ela poderá retirar-se assim que me disser que concorda com a escolha. Quero mandar resgatar Ibelin.

— Concordo! Concordo! Afinal de contas, sou vossa serva, vossa súdita! Ordenai! Há mais alguma coisa? Basta isso?

— Desejo que procureis compreender que a mesma responsabilidade pelo futuro do Reino que pesa sobre mim, pesa sobre vós, e que esta questão não é insignificante. É necessário sacrificar-se muito. Mas nenhuma de vós compreenderá isto, nunca — nenhuma de vós. Adeus. Que Deus proteja o Santo Sepulcro!

Mostrou o bastão com um sinal aos Lazaristas. Antes que eles pudessem aproximar-se, no entanto, a Abadessa Ivette se ergueu do banco e os fez parar com um gesto resoluto. Ela já tinha quase setenta anos. Seu rosto era vincado pela idade, severo mas bonito. Com passos firmes se encaminhou até a liteira e puxou para o lado as cortinas. De súbito, Balduíno se achou frente a frente com sua avó. O olhar dela era amigo e sem repugnância.

— Já não vos via há muito, meu rapaz, mas rezo por vós todos os dias.

— Não me toqueis, Reverência! — balbuciou ele, com medo, porque as mãos dela se haviam erguido como para acariciar sua cabeça.

— Meu filho, eu não tenho medo. Além do mais, já vaguei demais por este mundo.

Indiferente à oposição dele, abraçou-o e beijou-o. Ele baixou muito a cabeça, para esconder as lágrimas que era incapaz de conter.

— Vovó! Vovó!

— Deus vos abençoe, meu filho.

— Ela fez o sinal da cruz sobre ele. Como recuasse, o Rei puxou a cortina com um movimento que era quase grosseiro. Os lacaios agarraram as alças da liteira. Inês e Sibila, de pé junto dela, olharam a velha abadessa com certo constrangimento.

— Não temais — garantiu-lhes, compreendendo seus olhares. — Não entrarei mais no palácio. Vou voltar para mnha casa.

Procurou com os olhos sua companheira, uma freira, até então escondida na folhagem que rodeava a fonte, e se encaminhou para fora, amparando-se num longo bordão. A liteira já tinha desaparecido.

— Afinal, ele foi embora! — disse Inês, agradando a filha. — Não te atormentes, meu amor, não te atormentes. Ibelin é um homem forte e sadio. E apaixonado! Vais fazer dele o que quiseres. Além do mais, ainda falta um ano. Dentro de um ano, bem sabes que pode acontecer muita coisa. Não te atormentes. Ah, tomara que tenhas um filho! Como o pai, ele seria primo do Rei de França e do Imperador. Poderias visitá-los, ou talvez eles viessem fazer uma peregrinação aqui! Ser mãe do primo do Imperador! Ibelin. não imporá sua vontade. É um bom coração.

— Sim, ele é bom — admitiu Sibila, já meio consolada.

Ao balanço da liteira, Balduíno seguia, rangendo os dentes para conter o choro. Teria roído as unhas, se elas não lhe inspirassem nojo. Não por causa da dor física, não. Havia muito que estava insensível. O encontro com a avó, sua voz afetuosa, seu beijo o tinham comovido profundamente, libertando seu incontido desespero. Um desespero tal, que ele se teria retorcido no chão, urrando. A máscara do orgulho inalterável e da dignidade, nunca tirada e mantida com sobre-humano esforço, cobrindo o firme e honesto rosto, aquela máscara se despedaçara sob a impressão de uma coisa tão simples: aquelas palavras de bondade, aquele contato amigo. Sentiu que não podia mais, que precisava chorar e soluçar. Oh, fugir, fugir de tudo, fugir a si mesmo! Para onde? Para onde? Meu Deus! Para onde fugir?... Só para Deus.

Assim, com grande pasmo e discreta alegria fala aos evangelistas: ordenou-lhes que o carregassem até a Igreja do Santo Sepulcro. Provavelmente estaria vazia, pois não havia serviço àquela hora. Irmão João e Irmão Mateus foram à frente para fazerem sair qualquer fiel que lá estivesse. O Rei desejava ficar só. Os lacaios da liteira e eles próprios, os irmãos Lazaristas, ficariam do lado de fora, esperando.

Os grandes e belos portais rendilhados se fecharam por trás do Rei com um profundo ruído metálico. Uma névoa enchia o santuário, uma névoa dourada. Balduíno adiantou-se lentamente, cautelosamente, com a sensação de entrar ali pela primeira vez. Apoiava-se pesadamente ao bastão. Tinha dificuldade em caminhar sem auxílio. Suas hesitantes passadas se perdiam sem eco no vazio do enorme templo. A igreja era circular, profunda, majestosa, cercada por capelas que se uniam com a nave por arcadas.

No centro, sob a fosca lanterna da abóbada dourada, ficava o Santo Sepulcro, bloco cinzento de pedra que tinha o exterior coberto de mármore, ouro e oferendas votivas. Jóias pendiam em pencas, ao lado de fios de pérolas lustrosas, lágrimas de mães e de apaixonadas. Amarradas num maço, oscilavam as setas com que os rebeldes Hospitaleiros haviam alvejado o Patriarca; ali estavam pendentes as espadas de Godofredo de Bouillon, de Tancredo, de Raimundo St. Gilles; também os grilhões com que o heróico Josselin de Courtenay, avô materno do Rei Leproso, tinha fugido ao cativeiro, atravessando o Eufrates a nado, e chegado por milagre à sua terra. Havia ainda estandartes capturados aos sarracenos, e bandeiras muçulmanas, capacetes e lanças. Havia uma estátua de ouro, de cinco pés de altura, representando uma criança, oferecida pelo Rei Balduíno II quando havia dado sua adorada filha mais nova, Ivette (mais tarde a venerável Abadessa), como refém a Nur-ed-Din.

Em seguimento às oferendas votivas, os túmulos reais. Todos os reis de Jerusalém, talhados em pedra, ali estavam, vigilantes e numa atitude guerreira, ou dormiam, com leões aos pés; o canonizado Godofredo; seu sábio irmão Balduíno I; o primo e companheiro de ambos, Balduíno II du Bourg; Fulco, o angevino; seu genro, Balduíno III; e por fim Amalrico. O testemunho dos últimos setenta e nove anos ali estava no Santo Sepulcro, num eloqüente silêncio.

Mas o filho e neto de reis não pensava na história. Não olhava os túmulos nem o lugar onde seria o seu. Perdido na imensidade silenciosa, tinha consciência de uma coisa, apenas: a presença de Deus e sua própria solidão — a inatingível grandeza de Deus, a total miséria do homem.

— Deus e a obra de Suas mãos.

Sua eterna presença é sentida, às vezes, no deserto augusto, ou entre cimos de montanhas, ou na vasta imensidão do mar, ou num templo como aquele; sempre que algum homem, perdido e indefeso, se sente só.

É então que o homem fica face a face com seu Senhor. Fala-lhe como Moisés no Monte Sinai. Lamenta-se e queixa-se como Jó — criação imortal da infindável tortura do homem.

Deus e Jó.

Prostrado, impotente, diante do Santo Sepulcro, Balduíno IV se sente Jó. Queixa-se com as palavras de Jó: — “Maldito seja o dia em que eu nasci, e a noite em que disseram: Foi concebido um filho varão”.

— Que a escuridão se aposse daquela noite... que as estrelas daquele crepúsculo fiquem obscurecidas para sempre... que elas nunca vejam o alvorecer do dia.

— Por que ela não cerrou o ventre de minha mãe, nem afastou o sofrimento dos meus olhos?

— Por que não morri no ventre, por que não entreguei a Alma quando saí do ventre?

— Por que razão se dá luz ao que está na miséria e vida ao que está com a alma torturada!

— Senhor que me criastes apenas para me destruir!

— Minha carne está vestida de vermes e torrões de lama, minha pele está rachada e nojenta.

— Oh, que meus pecados sejam pesados juntamente com meu sofrimento, na mesma balança.

— Terei merecido esta aflição? Minha alma está cansada da minha vida.

— Meu sofrimento não será grande demais para suportar?

— Minha resistência será a resistência da pedra ou minha carne será de bronze?

— Isto é o limite da minha resistência.

— Tal como um prisioneiro deseja a sombra e o nada, eu desprezo minha vida. Estou cercado pela corrupção e pela sujeira do pó. Minha pele cai dos meus ossos. Meus dias são mais rápidos que a lançadeira de um tecelão e correm sem esperança.

— Como pode minha alma elevar-se? Os juncos ficam verdes sem umidade ou crescem sem água?

— Onde está Vossa misericórdia?

Às palavras do Rei veio a resposta do espaço cheio de Deus. Uma voz vinda do rodamoinho cresceu como onda invisível. E se transformou em trovão. Precipitou-se da distância, como tempestade. Uma tempestade de escarnecedora cólera se bateu sobre o miserável monarca.

— Quem é esse que obscurece o senso com palavras sem conhecimento?

— Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? Dize, se tens compreensão?

— Quem lançou as medidas dela, se é que o sabes? ou quem estendeu uma linha sobre elas?

— Quem fechou o mar dentro de portas, quando ele rolou como caído do ventre, quando fiz das nuvens ornamentos, e envolvi tudo na amplidão profunda?

— Foste tu que ordenaste os dias, desde aquele tempo, e fizeste que a alvorada soubesse seu lugar?

— Entraste nas fontes do mar ou andaste pesquisando o abismo?

— As portas da Morte se abriram para ti ou viste as portas da sombra da Morte?

— Soubeste isto por que tinhas nascido? ou por que o número de teus dias é grande? Entraste nos tesouros da neve ou viste os tesouros da chuva?

— Tem pai a chuva? ou quem gerou as gotas de orvalho?

— De que ventre saiu o gelo e a branca geada do céu, quem a engendrou?

— Não conheces as leis do Céu? Não vês o seu domínio sobre a terra?

— Não podes mandar relâmpagos para que eles vão e digam: Aqui estamos?

— Queres anular meu julgamento, queres condenar-me, para que sejas justo?

O espaço se encheu de Deus. Na presença de Deus o Rei Leproso tremeu e seus sentidos ficaram amortecidos. Que tinha ousado, vil e tolo homem? Que era seu desespero, sem padecer?... Onde estejas, aí está o Senhor... O Senhor que lançou os fundamentos da terra. O Rei tremeu, como haviam tremido interiormente Moisés, Elias, Jó, quando tinham falado a Deus.

...e o Filho do Homem no Jardim das Oliveiras.

...Filho do Homem.

Como inspiração súbita, Balduíno ergueu-se do chão e entrou na abertura sombria da rocha. Dentro, no estreito recinto fechado ardia uma eterna lâmpada. Um banco de pedra estava talhado na rocha maciça. O leproso agarrou-se a ele e gritou: — Cristo! Cristo sofredor! Só tu! Tu, Deus, que estremeceste e tiveste medo! Tu que conheceste o sofrimento humano! Tem misericórdia tem msericórdia de mim! Tu criaste o mundo e no entanto sofreste a dor! Tua carne sofreu como a de um homem! Como a minha! Tu sofreste uma dor infinita!... Exaltaste os humildes e deste saúde aos aflitos... Cristo que dás saúde!

Chorando, atirou-se ao banco de pedra. Tiritava com a sensação violenta de sua impotência.

— Troca minha carne suja! Deixa-me nascer de novo! Cura-me! Ó querido Cristo.

Ficou à espera, escutando. O óleo da lâmpada crepitava baixinho. Ficou à espera. O banco de pedra enregelava-o até a medula. Ficou à espera... Então, vinda da abóbada ou da profundeza de seu angustiado coração, uma voz lhe chegou, que já não era um rodamoinho de terror, mas uma cansada voz humana.

— Por que choras? Já não fiz o que me imploraste? Um suor sangrento correu por essa pedra. Sobre esse mesmo banco, meu corpo dolorido e largado ficou numa impotente inércia até o terceiro dia em que ressuscitei dos mortos.

— Fui visto pelas mulheres e pelos discípulos que iam a Emaús e pelos onze que se tinham reunido para a ceia e mais tarde por quinhentas pessoas juntas, e por Tomé que, por Me haver visto, acreditou.

— Quem quer que creia em Mim nunca morrerá.

— Aquele que viveu na fraqueza ressuscitará na força. Imaculado será o que foi contaminado, por causa do Meu amor e da Minha união. Estas são Minhas palavras, que nunca mudarão ainda que se extingam os mundos.

— Por que choras? Tu nascerás de novo!

— É isto o que te dou. Haverá maior milagre que me pudesses implorar? Queres comprar alguns miseráveis momentos de vida que ainda te separam da glória eterna? Não chores, mas alegra-te! Tu ressuscitarás dos mortos! Tu ressuscitarás!

Apesar da severa ordem em contrário, os irmãos Mateus, Marcos, Lucas e João, preocupados pela prolongada ausência do Rei, entraram no templo. Acharam-no no Santo Sepulcro. Estava meio inconsciente e ficou inerte em seus braços cuidadosos, mas brilhava em seus olhos uma paz que havia muito tempo desconheciam.


 

8
NETO DA SERPENTE

 

— O Rei esteve aqui, hoje; já o sabias? — sussurrou du Gray no ouvido de Amalrico de Lusignan. — Ao que parece, a Princesa consentiu em aceitar Ibelin, e Reinaldo vai buscá-lo. Será preciso pedir dinheiro emprestado a mercadores bizantinos. Dentro de um ano, haverá outro banquete de núpcias.

— Ibelin tem sorte — observou Amalrico, distraidamente.

Fazia algum tempo que estava assim — incerto, absorto por algum secreto objetivo ou cuidado. Mais cedo que habitualmente voltou para casa. Fechou cautelosamente as portas de seu quarto, sentou-se a uma mesa, tirou uma carta do peito, desdobrou-a, e começou a ler com atenção. Quando estava no meio, franziu a testa e amarrotou o papel na mão.

— Tudo errado, não serve.

Ante um quadro da Mãe de Deus, pendente ao canto do quarto, ardia uma pequena lâmpada de óleo. Chegou o papel à chama e o segurou até que toda a folha ficasse consumida. Esfregou laboriosamente os restos queimados no chão com o pé, depois, sentando-se de novo à mesa, procurou mais papel e tinta.

— S. Mamede, patrono, inspira-me!

A pena estalou no papel, correndo agilmente. Essa carta, como a anterior, cujas cinzas escureciam o chão de mármore, se destinava à sua mãe, a nobre senhora Benigna de Lusignan. Amalrico escreveu durante muito tempo. Ao ouvir o mais leve ruído, erguia a cabeça, ansiosamente. Afinal, terminou, leu-a toda, e bateu na testa com desespero.

— Não! Não! Errado, outra vez!

Pôs-se de pé num movimento e, zangado, deu largas passadas pelo quarto. Parava de vez em quando, relia o que tinha escrito e de novo dava grandes passadas. Errado, completamente errado!

E então? Então?

Se eu esclarecer demais o que penso e a carta cair nas mãos de alguém — isso pode acontecer facilmente — dizem que é assim que os Templários se inteiram de tudo — eu não precisarei de ficar aqui nem uma hora a mais. Se eu escrever obscuramente, com idéias figuradas, ninguém, lá em casa, adivinhará o que desejo. A primeira carta estava clara demais. Fiz bem em queimá-la. Esta outra, está obscura demais. Também não presta. Talvez seja melhor não escrever mas enviar alguém que diga tudo de viva voz.

O que está escrito e selado não se pode renegar, é mais fácil chamar mentira à palavra falada. Que é isso que ele está dizendo? Ele mente como um cão! Ele diz que não mente? Que prove o que diz! O vento não guarda a palavra falada.

Mas confiar a um homem qualquer semelhante segredo?

Amalrico andou de um lado para outro do quarto até ficar com a cabeça doendo. Desalentado, pensou algumas vezes que seria melhor desistir da idéia e não correr o risco do exílio e do ridículo. Depois, ficava de novo preso de inquietação. Por que desistir? Que oportunidade, aquela, que oportunidade maravilhosa! Deixá-la escorregar entre as mãos? Nem sequer tentar? Era uma pena!

Desaferrolhou a porta e bateu palmas. Quando o pajem acorreu, ordenou-lhe que chamasse seu velho escudeiro, Mateus de Guerce.

Guerce, de boa nobreza empobrecida, tivera pouca oportunidade para tornar-se cavaleiro. Desde a infância estivera ao serviço da família Lusignan e viera para Jerusalém com o jovem cavaleiro. Com os Lusignans tinha labutado na pobreza; com eles, procurava melhorar de sorte. A sorte tinha sorrido a Amalrico. Já tinha alguma importância na corte e um belo rendimento. Mateus também podia ter conseguido êxito, se fosse capaz de ajustar-se ao novo ambiente. Mas era velho e sentia tanta saudade de sua terra que estava ficando consumido. Arrastava-se, acabrunhado, indiferente a tudo.

Quando o velho escudeiro entrou, Amalrico trancou de novo as portas e só então disse:

— Guerce, gostarias de voltar?

— Vossa Graça me despede? Incapaz, eu sei...

— Não és de grande auxílio, é verdade, mas não te despeço. Tenho uma mensagem secreta, importante, para casa. Uma coisa que não posso escrever... Quero que a leves.

— Vossa Graça!

Antes que Amalrico pudesse impedi-lo, o velho tinha ajoelhado aos pés do jovem cavaleiro. Soluçava de alegria. Voltar, voltar! Fugir daquela maldita terra em que os pagãos eram iguais aos cristãos. Voltar!

— Fica calado, porque ninguém deve saber que te envio. Fica calado e escuta. O que te vou dizer é importante. Se revelares uma palavra a caminho, se divulgares uma palavra, eu negarei tudo. Direi que me roubaste e que fugiste. Serei forçado a sacrificar-te. Está claro?

— Pelo meu desejo de ter a compaixão de Deus na hora da morte, juro que nem um sopro sairá de minha boca.

— Lembra-te! O que vou dizer-te, só o deves repetir à senhora minha mãe. Só a ela. O dinheiro que te darei, deves entregá-lo a ela. Dize a todos que te deixei ir porque não suportavas a saudade.

— Oh, é verdade, vossa Graça; nunca suportei.

— Podes partir a cavalo amanhã. A cavalo até Jafa, e de lá pelo primeiro navio genovês.

— Compreendo, vossa Graça. Que Deus pague a vossa Graça. E que devo repetir à nobre senhora Benigna?

— Escuta...

Amalrico mordeu os lábios e olhou em redor, nervosamente. Mais uma vez experimentou as portas, empurrou as persianas e se debruçou para o pátio. Ninguém à vista.

— Pela salvação de tua alma, juras não repetir isto a ninguém, além da senhora minha mãe?

— Pela salvação de minha alma. Pelo Santo Sepulcro!

— Então escuta...

Amalrico inclinou-se para o velho e sussurrou lentamente, durante muito tempo. Enquanto ouvia suas palavras, os olhos do escudeiro iam ficando redondos.

— Compreendestes?

— Compreendi.

— Repete.

Mateus de Guerce repetiu.

— Não esquecerás?

— Como poderia esquecer?

— Então vai. Que os santos patronos de Poitou te mantenham sob sua proteção!

Depois que os passos do escudeiro de Guerce se afastaram, retinindo no pátio, Amalrico deixou-se cair na cadeira, junto à janela, e fechou os olhos. Fosse bem, fosse mal, estava feito. Seu coração não estava atormentado de saudade ao pensar nas folhas amareladas que deviam estar caindo das fileiras de tílias e castanheiros, ao redor do pátio do velho castelo escondido num canto de Poitou. A vida se coava com excessiva parcimônia por suas salas. Mas pensou em sua mãe com ternura. Amava-a e compreendia-a, e por seu amor tinha planejado ajudá-la na obra à qual ela dedicara sua vida estreita.

Que estaria ela fazendo naquele instante? pensou. Talvez, tirando as chinelas de veludo e enfiando os pés nos tamancos de madeira que sempre ficavam na soleira, ou com a larga saia repuxada energicamente sob o cinto, se estivesse preparando para fazer a ronda vesperal do castelo. O suave nome de Benigna era desmentido por sua aparência e até pelo seu caráter, pensou Amalrico com um sorriso oblíquo. A mulher de Hugo, o Castanho, vigésima descendente em linha reta e herdeira da castelania de Lusignan, tinha sempre uma carranca no rosto largo e ossudo, e seus lábios finos e apertados eram duros. Aos seus olhos agudos nenhum erro escapava, e ante seu fluxo de palavras ninguém ousava arriscar uma palavra. Era cuidadosa, poupada, econômica, tudo isto ele sabia, mas amava seus filhos e sua mesquinhez havia dado a Amalrico a oportunidade de um lugar em Jerusalém.

O jovem cavaleiro tinha a impressão de ver tudo perfeitamente. Naquele instante, sua mãe patinhava na lama espessa com seus tamancos de madeira, apoiando-se na bengala. Atravessava o pátio olhando para cima, para um dos torreões pontudos do castelo, ao redor do qual giravam gralhas barulhentas, no crepúsculo cor de chumbo. Não olhava as gralhas, mas o teto. Até de longe o péssimo estado dele era visível. Antes que chegassem as rajadas de vento do inverno, seria necessário consertá-lo. Senão, seria preciso fazer um teto novo, na primavera. A ala do sul agüentaria um pouco, mas a de leste! A torre de Melusina é que estava pior.

Estremecia, sem querer, e apressava o passo, apesar de continuar a olhar de esguelha a torre. Melusina, a feiticeira, a meio lendária bisavó da família Lusignan! A filha de Elenas, Rei de Albânia, mulher de Raimundo de Forez, primeiro senhor daquelas terras, fora a mãe dos Lusignans, mère des Lusignans, depois, por contração, mère Lusignan e finalmente Merlusina, Melusina. O verdadeiro nome a posteridade não havia conservado. Sob a maldição de um encantamento, ela se transformava em serpente, nas noites de sábado. Gnomos e anões lhe obedeciam. Ela falava com os demônios. O castelo, um dos mais belos da região, assim como muitos outros, havia sido construído por ela. Os castelos de Parthenay, Marvaux, Mormonde, Ossoudun, eram todos feitos por ela — isto é, pelos espíritos que lhe obedeciam. Erguiam-se edifícios no segredo da noite. Os pedreiros deixavam o trabalho à tarde, ficando prontas três jardas de muro; voltavam pela manhã e encontravam dez jardas. Nunca falavam muito a esse respeito, satisfeitos porque a feiticeira não fazia nenhum mal e porque ganhavam dinheiro sem esforço. E assim acontecia sempre. Os artesãos eram elogiados e pagos, enquanto Melusina trabalhava à noite. Cada castelo era mais belo que o anterior. Os anões moldavam a pedra com os dedos como se fosse gesso. Só que nunca punham o crucifixo em lugar algum. Nem o crucifixo, nem qualquer figura sagrada. Estes eram acrescentados pelos pedreiros durante o dia.

Assim iam as coisas até que uma noite o marido viu a esposa transformar-se numa serpente (ela guardara tão bem o segredo, que era a primeira vez que ele suspeitava de suas mágicas). Tal terror se apossou dele, que mandou emparedá-la numa torre — naquela mesma torre chamada de Melusina. Alguns diziam que ela havia morrido, outros que, com sua magia negra, tinha fugido e continuava ainda a freqüentar a região.

Benigna estremeceu. Nada havia, nela, de feiticeira. Larga e forte, não se assemelhava a uma serpente ágil mas a um tronco de árvore, grosso e nodoso. Apesar de que os anões não construíam milagrosamente muros esculpidos à sua ordem, conjurava suas próprias feitiçarias — penosas mágicas de economia: “o olho do dono engorda o cavalo”; era assim que o pior tempo não a impedia de fazer sua ronda diária pelo pátio e pelos edifícios, principalmente quando a tarde estava fria assim e os empregados entanguidos matavam o trabalho. Quem, melhor do que ela, podia certificar-se de que as bolotas tinham sido colhidas, as tinas preparadas, de que as mulheres preguiçosas não tivessem esquecido de fechar os galinheiros para que as martas não roubassem os frangos?

Saindo da boca escura da estrebaria, o pastor, Braz, se dirigiu para ela. Baixo, gordo, cor de terra, o cheiro de esterco o precedia sempre. Seus pés descalços estavam cobertos por placas de lama e imundície como as que ficam presas ao traseiro das vacas mal cuidadas. Abaixou-se muito para cumprimentar a senhora Benigna.

— O réptil maligno aqui esteve outra vez — disse num sussurro.

Benigna conseguiu não demonstrar medo, mas fez o sinal da cruz.

— Viste a serpente? — perguntou em voz igualmente baixa.

Ele acenou afirmativamente. Sim, tinha-a visto — com seus próprios olhos. Havia dias que desconfiava, porque a vaca preta não dava leite. Era claro que só podia ser uma feiticeira ou uma cobra. Só na noite anterior a tinha visto: era o réptil maligno! Estava bebendo o leite da vaca. Pela manhã o animal não tinha uma gota de leite.

— Mais aborrecimentos! Mais aborrecimentos! — suspirou Benigna.

— Uma vez, na casa do velho Pedro, uma cobra ficou maníaca por uma vaca e bebia o leite dela todas as noites. O animal ficara tão acostumado que guardava todo o leite para a cobra. Todos diziam que já era tempo de queimar uma vaca que tinha pacto com Satã, mas Pedro não deu atenção a esses falatórios. Matou a cobra, e até hoje tira leite da vaca. Se minha senhora permitisse?...

— Não! Não! — proibiu ela, depressa. — É melhor não fazer isso... Afinal de contas, já sabes... Que S. Mamede nos proteja!

O pastor cuspiu longe, em completa compreensão. Por que não havia de saber? Podia ser apenas uma cobra comum do rio, uma cobra dágua — mas não se podia ter certeza. Sem querer, qualquer homem podia trazer desgraça ao castelo.

Mas, também, como ficar calma enquanto se desperdiçava uma vaca?

— Vou perguntar ao padre Gaudêncio — disse Benigna. — Enquanto isso, tapa o buraco com uma pedra ou um tapume. Talvez ela não possa passar.

— Como se só houvesse um buraco neste abrigo! — respondeu ele, dubiamente, e continuou seu caminho.

Tendo assim remediado o mal com meias medidas, coisa incompatível com sua natureza, a senhora do castelo voltou para atravessar de novo o pátio.

— Mais preocupações — suspirou enquanto se salpicava toda de lama, caminhando energicamente. — A melhor vaca! Como se já não tivéssemos aborrecimentos bastantes!

Na verdade, tinha fartura de preocupações. Apesar de que os Lusignans tinham o direito de se julgarem das melhores famílias, sua fortuna havia declinado consideravelmente nos últimos dez anos. Duas expedições guerreiras mal sucedidas, a irrestrita prodigalidade de Hugo, o Castanho, e duas ou três colheitas más, tinham despido a castelania de todos os seus recursos. A grande caixa do castelo, tesouraria do lar, continuava a ocupar um lugar proeminente na câmara. A chave nunca saía das mãos do senhor do castelo, e às portas da câmara, noite e dia, um dos criados montava guarda. Entretanto, era do conhecimento de todos que ela não passava de uma forma vazia, porque nem um único ducado, uma única jóia, breche ou fivela, permanecia ainda no fundo da caixa forte do castelo.

Isto não alterava visivelmente o costumeiro modo de vida no castelo, porque só se precisaria de dinheiro para uma expedição, um torneio ou alguma grande festa de familia em que fosse preciso pagar generosamente para distrair toda a vizinhança. Mas dinheiro para uso diário? Tudo quanto a família e os criados necessitavam era feito ali mesmo, de produtos do feudo. Vinho e velas, lãs, linhos, utensílios, louça — na realidade, tudo quanto era preciso à vida. Só o sal, as armas e as roupas finas precisavam vir de regiões distantes, mas mesmo destas coisas o castelo possuía velhas provisões que durariam muito tempo.

Assim, cada dia comum se passava como antigamente, mas com a sensação de que nunca se transformaria num feriado! E se um dos filhos decidisse casar? Que aconteceria? Filhos! Eram sua maior preocupação. Como Melusina, Benigna era a mãe de Lusignans. Tivera quatro, quatro filhos que precisaram ser encarreirados, mandados pelo mundo a fim de providenciarem sua própria sorte, para suprirem a herança mesquinha.

Um menestrel vagabundo não precisa de uma moeda na bolsa. Mas um Lusignan que saísse de casa devia ter dinheiro.

Dinheiro! Durante muitos anos, Benigna tinha poupado ferozmente. Os criados resmungavam por causa das roupas miseráveis, os vizinhos gracejavam, porém ela não dava atenção. Que importância tinham os outros, para ela! Trabalhava como uma abelha, economizava como uma formiga, juntava provisões de farinha, peles, cera, linho, toucinho e mel, que trocava por boa moeda na Praça de Santa Radegunda, na ocasião da feira anual do Bispo, em Poitiers.

Graças à sua infatigável operosidade, já tinha mandado para fora os dois rapazes mais velhos, bem munidos de criados, cavalos, roupas e uma boa bolsa. O mais velho, Hugo, tinha ido para a corte do Rei inglês, Henrique de Anjou, então marido da Princesa Eleonora, mulher divorciada do Rei francês, herdeira de todo o Poitou e da Aquitânia. O segundo, Amalrico, tinha embarcado para a Terra Santa na comitiva do Senhor de Courtenay. O esplêndido começo da vida de ambos se devia exclusivamente à inegável dedicação de Benigna — e era seu triunfo e sua alegria. Dois Lusignans já tinham a posição merecida. Mas seu trabalho ainda não havia terminado.

Na verdade o terceiro, Bertrando, era aleijado; na infância tinha caído da escada — e estava destinado ao sacerdócio; não precisaria tanto quanto os outros, que eram cavaleiros. Mas o quarto! Guy, seu bem amado, a menina de seus olhos, o predileto! Belo como um quadro, esbelto como uma moça, altivo como um príncipe! Era preciso mandá-lo para a corte francesa o mais depressa possível. Mas com que? Com que? Quanto tempo tinha levado para juntar dinheiro para os outros dois! Quanto tempo levaria agora? Entretanto, os anos passavam. E, como de propósito, só havia perdas no feudo. No domingo anterior um lobo havia morto quatro carneiros. E aquela cobra — que se podia fazer? Iria ela — que Deus não o permitisse! — trazer mais infelicidade?

Suspirando fortemente, subiu a escada de pedra. Zangada, sacudiu os tamancos cheios de placas de lama. Elas rolaram. Ficou a olhar para elas com sarcasmo, como se personificassem a sorte amarga da mulher nobre e empobrecida, que não conseguia garantir uma posição adequada na sociedade para seus filhos. Nem sequer para Bertrando, o menos querido. Ele seria padre, mas se tivesse dinheiro, poderia tornar-se cônego dentro de pouco tempo — talvez bispo. Lusignan! Um Lusignan não podia ser menos do que bispo. O nome valia mais do que ouro. Entretanto, só o nome não podia substituir o ouro.

Não restava ao rapaz outra alternativa senão entrar para um mosteiro e ser monge — para esconder sua indigência sob os votos de pobreza. Não era de admirar que Bertrando não tivesse pressa. Preferia ficar em casa e ajudar sua mãe a dirigir o feudo — apesar de estar sempre de mau humor e com inveja do irmão, do lindo irmão, favorito da mãe.

Sim, o seu predileto. Um sorriso adejou no rosto de Benigna quando pensou no caçula. Pobrezinho! Sua mocidade se passava na solidão daquela casa antiga e tristonha, em vez de freqüentar torneios cavaleirescos.

O castelo era triste, na verdade. Quem vivia ali que se regozijasse com a vida e com o mundo? O velho Hugo, o Castanho, agora surdo, não era mais alegre do que uma venerável coruja. Aborrecia-se mortalmente, e trancado num feudo que sua imprevidente generosidade havia arruinado, tornava-se dia a dia mais excêntrico. Velho demais para partir de novo em arriscadas expedições militares, orgulhoso demais para fazer parte de outra corte mais rica, ali ficava parado. Nem sua mulher era alegre, com suas perpétuas preocupações. Quanto ao inválido Bertrando, destinado a ser padre ou monge, não sentia a menor alegria de viver. Nenhum conviva era bem recebido pelos Lusignans, porque isso acarretava despesa. Nem visitavam seus vizinhos, pois como aceitar a hospitalidade sem retribuí-la? Sepultavam-se em seu orgulho e em sua pobreza. Até mesmo os menestréis, que seguiam pelos caminhos de cidade em cidade, de feira em feira, eram admitidos com relutância por Benigna.

— A gente pode viver sem esses fazedores de baladas — dizia. — Eles cantam, mas não de graça.

Se alguém ria no castelo dos Lusignans, só podia ser Guy, o caçula com quem a mãe tanto se preocupava. Ele não compartilhava de suas preocupações. Juntamente com sua aparência atraente, recebera da natureza uma dádiva sem par: a alegria de viver, um constante encantamento diante da vida, fosse o que fosse que ela lhe trouxesse. Regozijava-se pelo fato de estar vivo, de comer, de sentir o sol quente e o vento, de ouvir os pássaros cantar e a água escorrer do moinho. Uma imaginação pouco vivaz o impedia de desejar o impossível. As cortes de príncipes e reis, em que era preciso estar sempre alerta, com o espírito mais agudo que uma espada, em que um simples rapaz do Poitou seria ridicularizado e escarnecido, não tinham atrações para ele. Sentindo que seria alvo fácil para os mais sofisticados, estava satisfeito em casa. De boa vontade iria guerrear, mas, na ocasião, não havia guerra. Mas as caçadas nas florestas de seu pai eram excelentes, e doces os lábios das moças de Poitou. Nenhuma resistia ao lindo rapaz. Nunca ocorreu à severa Benigna, tão temente a Deus, que seu caçula achasse ótimos divertimentos nas excursões diárias pelas florestas e pelos pantanais.

Tais experiências não eram profundas nem dignas de serem cantadas por algum trovador andejo. Não, eram reações instintivas que se fundiam no crespúsculo com a fragrância do feno, a agitação da folhagem de outono quando eram colhidas as uvas. Eram parte da própria terra, da rica e fértil terra do Poitou.

Durante o jantar, depois que o capelão do castelo, padre Gaudêncio, disse a oração de graças, repetida por todos os presentes, Benigna começou a contar a história da cobra. Ao falar, apertava os lábios e fazia pausas significativas. O padre Gaudêncio sabia em que pé estavam as coisas — concluiu ela. Que lhe aconselhava a fazer?

Olhando-a de esguelha, padre Gaudêncio cofiou o rosto barbudo. O senhor e a senhora estavam sentados, um em frente ao outro, em cadeiras de braços com altos espaldares entalhados. Junto deles estavam sentados os dois filhos, em cadeiras sem espaldar mas com braços. Depois deles ficava um largo espaço, pois a mesa era comprida. Na ponta, em bancos comuns, ficava uma porção de empregados e criados. Diante destes, como diante do patrão e da patroa, havia pratos de galinha assada e bolos de cevada, e frascos de vinho. O vinho, na cabeceira da mesa, era velho e sazonado, mas os criados bebiam uma qualidade ácida, produto da última vindima.

— Então, que pensais, Reverendo Padre — indagou Benigna — é uma cobra comum... ou o que?

Olhando ao redor, constrangida, ela se calou.

— Irei amanhã benzer o estábulo — prometeu padre Gaudêncio, evitando uma resposta direta. — Se for uma cobra comum, a água santa não a afastará, mas se for um bicho do mal...

— Pensais que voltará?

— Não, certamente. Pelos ossos de Santa Radegunda! Sei os exorcismos apropriados, os mais poderosos exorcismos. Ela não poderá suportá-los.

— Deus o permita! — suspirou ela, ardentemente.

— Como, minha mãe, estais com medo dessa cobra? — perguntou Guy, atirando um osso aos cachorros. Nas margens do rio as cobras são tão numerosas como se tivessem sido semeadas. Não é estranho que essa se tenha esgueirado até o estábulo. As cobras são loucas por leite. E esses contos de fada? Durante muitas noites andei ao redor da torre, esperando que vovó Melusina aparecesse, e nada...

— Benze-te e não tagareles assim — ralhou a mãe.

— Não! Não! Nunca se devem evocar os espíritos do mal. Sobretudo ao cair da noite — acrescentou o capelão.

— Ela não era um espírito do mal — defendeu Guy. — Ela nunca fez mal a ninguém.

— Ela tomava a forma de serpente, que é a forma de Satã. Prova clara de que estava em pacto com o demo.

— Eu não tenho medo. Gostaria de a ver.

— Oh, fica quieto! — disse Benigna, com furor. — Acabarás por atrair desgraça sobre tua cabeça.

— Não deveis ter medo, Mamãe. Melusina não faria nenhum malefício a um rapaz bonito.

Sem se intimidar, riu de seu próprio gracejo. Bertrando ergueu o olhar zangado para ele.

— Asno! — murmurou. — Gaba-se de ser bonito! Convencido!

— Meta-se com a sua vida! Eu não direi uma palavra — replicou Guy.

O Senhor Hugo, até então calado, rodeou o ouvido com a mão aberta e perguntou: — De que estão falando?

Os dois filhos se calaram. O capelão lhe respondeu.

— Nada de mais, vossa Graça. A mocidade fala demais, como sempre.

— De quê? — persistiu o velho.

— De... de caçadas.

Eles começaram a falar-lhe alguma coisa sobre caça. Benigna cruzou as mãos e olhou para seus filhos. Sim, Bertrando, pobrezinho, não podia orgulhar-se da formosura. Tudo por causa do malfadado acidente que fizera dele um inválido. Apesar de não ser muito aleijado, tinha o rosto comprido e os ombros erguidos de um corcunda. Nem sequer chegava aos pés do irmão. Pobrezinho!

Ao transferir o olhar para o caçula, teve a sensação de sair da sombra para o sol. Poderia uma mulher, fosse senhora ou feiticeira, ser capaz de fazer algum malefício àquele rapaz maravilhoso? Uma sensação de orgulho e de encantamento enchia Benigna sempre que o olhava. Ela havia gerado aquele esplêndido homem. Seu ventre, já deformado e pendente, tinha carregado aquelas costas retas, aquelas espáduas largas e aqueles quadris esbeltos. Inconscientemente, sua boca ficava mais suave, enquanto contemplava cada pormenor daquela forma tão cara ao seu coração: a boca maravilhosamente bonita, ainda não ensombrecida por nenhuma penugem, o nariz senhorilmente fino, as sobrancelhas altas e arqueadas, os infantis olhos azuis, os dentes imaculadamente brancos, iguais, brilhantes!

Guy, interrompendo seu brinquedo com o cachorro que subia aos seus joelhos, ergueu a cabeça e correspondeu ao seu olhar com um sorriso que ainda o tornou mais bonito. Na verdade um arcanjo, pensou Benigna, o Arcanjo Gabriel — seu lugar é na corte real, e não aqui. Ou talvez com Amalrico na Terra Santa. Que havia dito o filho ausente na carta trazida por um viajante, havia um mês?

— Dentro de um ou dois anos, se Deus quiser, terei o bastante para as roupas de Guy e para sua viagem, se for da vontade de meus amados pais e benfeitores permitir que o rapaz veja um pouco o mundo. De toda a depravação eu o preservarei; de modo que, muito amada mãe, não vos alarmeis sem razão.

Havia muito mais coisas na carta. Benigna não podia compreender tudo. Amalrico dizia que tinha obtido o favor da Rainha-mãe Inês. — Os italianos e franceses de ontem se tornam agora galileus e homens da Palestina, Condes de Samaria, Príncipes de Tiberíade, Senhores de Belém... Ora, há alguns que desposaram sarracenas, batizadas pouco antes do casamento... Na verdade a riqueza aqui é grande... Crescem pedras nos campos, em vez de trigo... As mulheres têm grande poderio e muitas coisas se fazem devido a elas... Sem repreensão por parte de ninguém, fazem coisas que, entre nós, as levariam ao pelourinho ou ao exílio de uma cidade... Saladino, se quisesse, poderia esmagar o Reino de Jerusalém, mas é um ser humano e, apesar de infiel, amigo dos cristãos.

Benigna pensava que os cristãos estavam na Terra Santa para combater os infiéis. Depravação, amizade com os infiéis — tudo aquilo era muito confuso. Distraidamente, olhava o velho Hugo tirar pedacinhos de carne dos dentes com a ponta fina do punhal. Seus olhos se voltaram, amorosamente, para Guy.

— Não posso esquecer o que Amalrico escreveu sobre ti — disse ela. — Seria uma oportunidade para veres o mundo.

— Mas eu prefiro ficar — respondeu ele, com sinceridade completa. — Quereis ficar livre de mim, mamãe?

— Eu... de ti? Pelo amor de Deus! Eu morreria de saudade!

Ela parou, aborrecida consigo mesma. Não era impróprio externar tais pensamentos? Mas o filho não dava atenção às suas palavras. Sua adorada floresta, os pântanos verdes, os álamos que acompanhavam o riacho, os carvalhos surgiam em sua mente, assim como os cães, as moças e o canto dos segadores. Seus dentes brilharam num sorriso admirável.

— Mesmo que quisessem fazer-me Rei, eu não iria!

— É cedo demais para nos preocuparmos com isso — disse a mãe. — Veremos o que dirás daqui a um ano. Apaga a luz, que está muito tarde. Onde vais?

— Vou com Braz esperar a cobra.

— Não ouses fazer isso! Já sabes que amanhã padre Gaudêncio vai exorcizar o estábulo. Lá não vás antes disso! Não excites o bicho!

— Mas eu não vou excitá-lo, só quero ver se o velho andou sonhando. Não vos assusteis, minha mãe, Melusina não me fará mal, nem eu a ela.

Rindo contagiosamente, saiu em grandes passos. Bertrando, coxeando e queixando-se, criatura de que ninguém precisava, destinado ao mosteiro, fechou a porta.

Benigna dormiu mal nessa noite, atormentada por estranhos sonhos. A serpente avistada por Braz tinha abandonado o estábulo. Ela fugiu! Fugiu! — gritava o velho pastor. — Está no castelo. Benigna corria depressa, com os pés presos ao chão pelo medo. A serpente estava na sala do castelo, e sua cabeça alcançava a abóbada. E se transformava em mulher. O monstro cingia alguém nos braços. Amalrico? Não; Guy! Seu adorado Guy!

Empapada em suor frio, Benigna despertou com um grito.

— São Mamede! Santa Radegunda! Protegei-nos!

Para não pensar na serpente, começou a enumerar o que Guy precisaria para levar na viagem à Terra Santa. Benigna, por trás das cortinas velhas de seu leito com docel, no Poitou, e Amalrico, no esplêndido palácio da Rainha-mãe Inês, em Jerusalém, planejavam ao mesmo tempo a sorte do belo Guy.


 

9
A VIDA OU O CÉU

 

Mais um mês se passou enquanto Reinaldo de Sidon ficou à espera, ociosamente, em Damasco; primeiro a aceitação do resgate por Saladino, que estava no Egito, para onde Turan Shah, filho de Ayyub e irmão do Comendador dos Crentes, havia mandado mensageiros; depois, quando recebeu de Saladino a ordem de soltura, o cavaleiro teve de ser trazido de uma fortaleza distante, onde haviam detido tão valioso prisioneiro.

Reinaldo não ficou aborrecido com o adiamento. Estava morando no palácio do velho Emir Abdullah, da família al Bara, e apreciava o conforto de que ali gozava. O emir desfrutava do maior respeito por ser amigo e ex-tutor dos filhos do falecido Nain al Din Ayyub, na época em que Ayyub havia comandado a guarda do Sultão Nur-ed-Din, quando Saladino e Turan Shah ainda eram rapazolas. Ambos tinham por ele a mais grata amizade, e Saladino, depois de se tornar Comendador dos Crentes, o visitava sempre que ia àquela cidade.

Nessa ocasião, entretanto, o emir estava ausente. Apesar de sua idade adiantada, tinha partido, meses antes, numa peregrinação a Meca. Os deveres da hospedagem ao conviva latino eram preenchidos por seu filho, Nain al Bara. O jovem árabe era extremamente culto e cavalheiresco. Reinaldo tinha lhaneza de trato e estava familiarizado com a linguagem e os costumes do Oriente. Bem depressa se haviam tornado amigos, passando juntos horas muito felizes.

Mas quem deixaria de ser feliz em Damasco? Aquela cidade encantadora era famosa em toda Ásia por seu esplendor e beleza. Abundantemente provida de água, ostentava uma profusão de jardins. Ali floriam as mais belas rosas do mundo, das quais se faziam maravilhosos perfumes. Ali eram produzidas as mais lindas espadas e armaduras, sonho de todo cavaleiro. Ali vicejavam as mais formosas mulheres. Damasco era um paraíso. Desacostumado de ver vegetação, cansado da monotonia cinzenta da pedra, seus olhos contemplavam com encanto o esplendor e a frescura dos jardins. Reinaldo nem se lembrava da esposa, nem do sogro, o rico avarento que tanto tremera por sua barba. Com al Bara, passava a maior parte do tempo na caça com falcão ou com leopardo. Quando o animal feroz, especialmente adestrado para isso, o leopardo de músculos de aço, de ombros de cachorro e cabeça de gato, era solto para saltar em perseguição da gazela fugitiva, os dois amigos se precipitavam atrás dele numa velocidade desesperada. Observavam-se mutuamente, enquanto saltavam fendas nos rochedos, sofreavam os cavalos e atiravam azagaias — empenhados numa silenciosa competição que não podia ser confessada para que não se arriscasse a perfeita cortesia exigida entre cavaleiros.

Depois da caçada, quando o fulgor do sol cessava de cozinhar as muralhas da cidade, vinha o repouso. Uma bela escrava, bem mais ardente que a afetada e lânguida Marfa, se esgueirava na câmara sombria do conviva. Depois da ceia, quando as mágicas noites de verão luziam miríades de estrelas sobre Damasco, quando a lua dourada navegava na translúcida escuridão dos vastos céus, quando subia dos jardins a embriagadora fragrância das rosas, dos trevos e do sândalo, os dois amigos sentavam junto à balaustrada esculpida, no terraço do palácio, e bebiam vinho gelado enquanto tagarelavam.

— Uma fragrante frescura vem dos pomares — dizia Nain — e meu pai se queima ao pó dos caminhos. Fico triste ao pensar nele.

— Voltará logo? — perguntava Reinaldo delicadamente.

— Não, deve ficar algum tempo na cidade sagrada. Meu pai é muito devoto. Quanto a mim, não acredito em peregrinações. “A língua da espada é bastante eloqüente para obter o perdão dos pecados”, disse o Profeta, e por Alá, prefiro ganhar a salvação pela espada do que me arrastar na sujeira e no aperto, entre os peregrinos. Mas meu pai tem outra mentalidade. Ama Deus como Ele era amado no tempo antigo e vive constantemente preocupado por não O amar bastante.

Reinaldo girava nos dedos uma folha da roseira que se enroscara na balaustrada. Aquele verde sombrio brilhava ao luar como se houvesse sido mergulhado na água.

— No tempo antigo Deus era mais amado? — perguntou, cheio de pasmo.

Al Bara hesitou um momento. — Assim me parece — confessou. — Veja meu pai e eu... E não somos só nós... Nossos pais só pensavam na “Djihad” a guerra santa, e no ódio pelo infiel, e nós aqui, estamos agora, sentados juntos como se tivéssemos o mesmo sangue. Nem sequer sei se isto é um bem ou um mal. Uma coisa é certa: antigamente a felicidade consistia em morrer por Alá e pelo Profeta, mas hoje não. Todos dão mais valor à vida, e menos valor ao Céu.

— Entre nós é a mesma coisa — disse Reinaldo, um pouco envergonhado.

— Nós sabemos. Vós também dais maior valor à vida.

Numa voz baixa e sonora, al Bara começou a recitar um antigo poema árabe:

Um cavalo de raça, a espada chamejante,
A carne da mulher, suave como a seda,
A riqueza, e a doçura de uma harpa que canta.
São só estes os dons de nossa vida breve.
O tempo dá e toma, e somos seu joguete.
A riqueza, a miséria, a fartura e a penúria
Passarão. Mas a Morte é o quinhão para todos.

— Desgraçadamente — suspirou o marido de Marfa.

Quase como num sonho andamos pelo mundo
Mas os olhos da Morte ignoram o repouso.
Ela apenas aguarda, e nós, de passo incerto,
É que a vamos buscando, àquela que nos fere
Como faz o falcão a um pássaro indefeso.

— Dizem o mesmo, entre nós. A vida do homem é a mesma, em toda parte.

Ambos ficaram calados, sentindo irresistível ânsia de abrir seus corações, de ir mais fundo do que habitualmente em seus próprios pensamentos, de procurar qualquer coisa esquecida que vinha à superfície, pedindo para ser ouvida, qualquer coisa mais exigente e importante do que a caçada ou o amor.

Para além das muralhas que brilhavam, brancas, ao luar, se estendia a estrada romana sobre a qual, havia cento e vinte anos, o Senhor havia iluminado um altivo cavaleiro para o transformar em Seu maior Apóstolo. O conteúdo espiritual daquele grande momento vibrava talvez, indestrutível, no espaço, e despertava aquela estranha inquietação no espírito dos jovens cavaleiros.

— A vida do homem é a mesma, em toda parte — repetiu Reinaldo, cheirando a folha que tinha na mão, meditativamente. Seu perfume era picante e fresco.

— Deus também é o mesmo. — E, como alarmado por suas próprias palavras, Nain al Bara deixou pender a cabeça e voltou ao seu recitativo rítmico e musical:

...Só Ele, o eterno, formidável como o deserto sob as estrelas da noite.
Sua palavra, que desperta para a vida aquilo que antes não era.
Ele contempla um punhado de poeira sem vida, e ela se transforma em alma.
Ele acena ao sol, e este fulgura.
Ele acena à rosa, e ela floresce.
Ele chama a si a terra
E ela pergunta, tremendo,
— Que deseja meu senhor...

Reinaldo mudou de posição, todo constrangido.

— Quem disse isso?

— O Profeta.

— Nossos profetas escreveram exatamente o mesmo... Quase exatamente... Espera um minuto vou procurar lembrar-me.

Esfregou a testa com impaciência mas inutilmente, pois não era versado nas Escrituras. Nain al Bara o olhava com interesse.

— Esqueci — admitiu Reinaldo. — Mas sei que é a mesma coisa, a mesma coisa.

— Como se adorássemos o mesmo Deus?

— Sim.

Ficaram de novo em silêncio. O céu se estendia lá em cima numa claridade cristalina, vasto, infinito.

— Meu pai. — continuou Nain — sempre diz que Deus é um, que as diferenças de fé não deviam existir, que vossa fé é tão boa quanto a nossa. Os imans ficam indignados com essas idéias e as chamam de blasfêmias, mas ninguém ousa dizer coisa alguma a meu pai porque o Comendador dos Crentes gosta dele. Vou confessar-lhe uma coisa (olhou ao redor, quase sem querer): se meu pai não se tivesse arrependido a tempo, teria ficado cristão.

— Achas que se arrependeria? — perguntou Reinaldo, com certo calor.

Nain, deliberadamente, deixou de ouvir uma pergunta à qual não podia dar uma resposta sincera.

— Quando vosso povo conquistou Trípoli — observou com relutância — queimou a biblioteca... Essa biblioteca continha trezentas mil obras, e cem escribas as copiavam, mandando exemplares para outras bibliotecas. Cem homens letrados, pagos pela cidade, viajavam pelo mundo, procurando escritos desconhecidos e valiosos para a biblioteca... Tudo foi queimado... Meu pai chorou e rasgou as roupas, arrancando o cabelo... Mais tarde, e não faz muito tempo, quando mercadores italianos, em Alexandria, humilhando-se ante o Comendador dos Crentes, abandonaram seu Deus, meu pai disse:

— Louvado seja o Profeta porque eu não me tornei cristão!

— Teu pai errou — disse Reinaldo, zangado. — Nossa fé é melhor, mais digna e mais honrosa para um cavaleiro.

— Pelos seguidores, podemos julgar a fé.

— Tu mesmo disseste há pouco que todos os povos são iguais.

— Seja como for, os francos de antigamente eram diferentes... Estranhas coisas se contam sobre eles. Parece que houve maiores milagres entre eles do que entre os derviches.

— Os milagres ocorrem raramente, hoje em dia — admitiu Reinaldo com tristeza — mas porque ninguém os solicita.

— E por que ninguém os pede? O Profeta disse: — Os caminhos do Senhor me apareceram. — Não apareceram a vós?

— Nós conhecemos melhor que ninguém os caminhos do Senhor. Por que não pedimos milagres? é o que não sei... Ah, que perfume, o destas rosas! A própria alegria da vida... Que é que eu estava dizendo?... Que nós não procuramos Deus, e Ele, suponho, deseja ser constantemente procurado... Temos dormido. Aqui, nessa estrada, certo homem foi fulminado por uma visão do Senhor. Quando se ergueu estava, cego e perguntou: — “Senhor, que devo fazer?” — Na verdade, era um digno guerreiro, digno apesar de que eu não sei se fora armado cavaleiro. Tais homens são amados por Deus. A eles, concede milagres. Aos que não se importam com nada, aos que apenas perguntam: — “Senhor, que devo fazer?”

— Esse homem se chamava Paulo!

— Como sabes?

— Minha avó, sempre que olhava para essa estrada, falava de Paulo de Tarso.

— Ela era cristã?

— Sim — replicou Nain com orgulho — uma cativa latina, de sangue nobre.

— Qual o nome dela? — perguntou Reinaldo, intrigado.

— Na vossa língua, não sei. Ela nunca disse seu nome. — Uma escrava não tem nome — costumava dizer. Meu avô a chamava “luz dos meus olhos”. Amava-a mais do que um homem deve amar a uma mulher.

— Onde foi ela capturada? Quando?

— Perto de Mamistra, ao tempo de vossa primeira invasão. De lá, ela foi levada para Aleppo, e de Aleppo para cá. Estava destinada ao próprio Sultão. Havia mulheres que a vigiavam dia e noite, pois ela implorava a morte. Forçavam-na a comer. Mas apesar de todos os cuidados ela definhava como uma semente abandonada no deserto. Quando foi levada perante o Comendador dos Crentes, ele disse com desprezo: — Que vou fazer com esta sombra? Que a leve aquele que a quiser. — Ao ouvir isto, meu avô caiu aos pés do Sultão e lhe implorou a cativa. O Sultão riu: — Mesmo sem a ter quase visto, Hassan, já te apossaste dela com os olhos? Esses ossos são teus, já que o queres. — E meu avô, Hassan al Bara, filho de Nain, levou a mulher para seu harém. Levou-a mas não se aproximou dela. Era caçador de pássaros, e sabia que, quanto mais nobres, mais difíceis de domesticar. Esperou.

— Esperou até que lhe contaram, certa manhã, que a cativa tinha fugido. Como é que ela conseguira isso, com que tinha limado a janela, como tinha saltado o muro é coisa que permanece um mistério até hoje. Mas fugiu. Meu avô perseguiu-a com cães e a descobriu no deserto, desmaiada, quase sem vida. Ela havia caminhado dez milhas e desmaiara na areia. Podia ter sido devorada por um leão. Os guerreiros que acompanhavam Hassan acharam que ela devia ter esse destino, como justo castigo para tão ingrata escrava. Mas para meu avô ela já era a “luz dos seus olhos”. Colocou-a cuidadosamente à sua frente, no selim, e levou-a para casa.

— Ela ficou doente durante muito tempo. A febre se apossou de seu corpo, e delirou confusamente em seu idioma. Afinal, quando melhorou o suficiente para deslizar pelos quartos como uma sombra muda, meu avô lhe disse (ela já compreendia nosso idioma, mas se recusava a falar) que, se se casasse com ele, lhe contaria onde estavam os francos. Pálida como a morte, ela se afastou. E chorou um dia inteiro, uma noite inteira. No dia seguinte voltou, e pela primeira vez desde sua captura falou, implorando-lhe que contasse a verdade a respeito dos francos. Mas Hassan, filho de Nain, apesar de se achar consumido e sequioso, era teimoso e jurou sobre as setenta e sete mil seiscentas e trinta e nove letras do Corão que não contaria enquanto ela não se casasse com ele. E ela foi embora.

— Pela manhã, apesar do orgulho ferido ela lhe implorou de novo que lhe contasse. Ele recusou. — Jurei pelo Corão e tal jura não quebrei até agora. — Dizendo isto virava o rosto, para que, olhando-a, não ficasse compadecido.

— E pela terceira vez ela veio, vencida, dizendo: — Farei tudo que quiseres, mas dize-me onde estão eles, que aconteceu aos francos?

— Ouvindo, isto, meu avô cobriu o rosto para esconder sua emoção e disse: — Desgraça para nós. Iblis ajuda os vossos. Tomaram Antioquia. Derrotaram o emir de Moçul. Em breve se dirigirão diretamente para Jerusalém. Nada pode impedir sua marcha.

Ouvindo isto, ela caiu aos seus pés, exclamando:

— Que Deus te recompense, meu senhor, por estas felizes novas!

E ele a tomou por mulher, e ela teve um filho que foi meu pai.

— Depois, ela voltou a ver seu povo? — perguntou Reinaldo, comovido.

— Não. Quando o Comendador dos Crentes concluiu os primeiros pactos com o Reino de Jerusalém e foram mensageiros ao encontro do Rei Godofredo, meu avô indagou se ela queria mandar uma mensagem ou mesmo fazer uma visita. Ao dizer isto, tremia de ansiedade. Ela porém o olhou com seu modo calmo e abanou a cabeça. Não escreveu carta alguma, nessa ocasião nem depois; não mandou o menor sinal de vida a seus parentes. Nunca cheguei sequer a saber seu nome. Bastava, entretanto, olhar para ela para saber que descendia de sangue nobre.

— Com certeza ela teria um marido, talvez filhos; não sabes nada?

— Ela nunca pronunciou uma só palavra sobre si mesma. Era uma mulher estranha. Diferente de todas as outras. Nunca se queixava nem tagarelava como fazem as mulheres. Apesar de modesta inspirava o respeito ao qual só os homens têm direito. Nunca discutia e sorria raramente. Gostava dos netos. Lembro-me bem dela. Uma estranha mulher. Dizia sempre — também disso me lembro — que não devia haver duas fés, nem guerras entre nações, que todas as criaturas deviam amar-se... Que Deus é um só e que ninguém pode adorar deuses diferentes, mesmo que queira. De vós, os cristãos, ela falava como de cavaleiros afamados por sua virtude. Já te contei que meu pai quase se tornou cristão por causa dela. E é também por causa dela que Sal-ed-Din, filho de Ayyub, que foi criado sob o olhar de meu pai e dele ouviu falar tanta coisa a esse respeito, tem diante de vós uma atitude de simpatia.

— É por isso? — exclamou Reinaldo. — Entre nós, todos dizem que o Sultão quer bem os cristãos, e nunca soubemos porque.

Nain al Bara fez um gesto de desaprovação.

— Sultão, não! O Comendador dos Crentes não permite que assim o chamem. O verdadeiro sultão é o herdeiro do Zengi, Ismael.

— O senhorzinho de Aleppo? Quem é ele, comparado a Saladino?

— Nada mais que a poeira comparada com a montanha, mas o Comendador dos Crentes não deseja tomar coisa alguma que não lhe pertença por direito.

Reinaldo esboçou um sorriso imperceptível. Respeitar uma dinastia? Absurdo escrúpulo num homem que se apossara pela força de um povo inteiro. Nain al Bara viu e compreendeu o significado daquele sorriso.

— Foi a lei da espada! — explicou.

— Quem é que, depois de obter o manto real pela espada, hesita em envergar o turbante?

— O poder pode ser conquistado pela espada; o título, entretanto, é sagrado, e seria inútil alcançá-lo pela força. O Comendador dos Crentes o aceitará, mas apenas como dom voluntário do Zengi.

— Não duvido de que sabereis levá-lo a fazer isso de boa vontade — observou Reinaldo, estupefato diante daquele súbito respeito pela lei. O senhor do Egito e da Ásia Menor esperava que um inválido lhe conferisse o título de Sultão. Quando estava despojado de suas posses e dependia inteiramente das boas graças de Saladino.

Entretanto Nain, de certo modo perturbado pelas últimas palavras do amigo, observou que a hora era tardia e se levantou. Separaram-se, indo cada qual para seu quarto. Reinaldo mandou embora a escrava que estava à espera, e ficou longo tempo deitado, incapaz de dormir. Lamentava não ter conseguido saber mais a respeito da avó latina de Nain. Quem era ela? Qual o nome daquela escrava a cuja suave influência se devia a paciência de Saladino e sua caridade? Ela não desejara escrever aos seus. Mulher altiva. Preferiu que a julgassem morta. Mesmo ante a morte, não havia quebrado o silêncio. Morrera sem os Sacramentos para não admitir que se havia tornado mulher de um árabe e predileta de um harém... Havia pecado com altivez ou com misericórdia? Deus a teria perdoado?

A idéia de Deus o fez recordar sua recente conversa com Nain. Tinha a impressão de que ele e Nain não se haviam dito o mais importante, de que se tinham aproximado e não tocado o fundo do problema. Talvez a oportunidade estivesse perdida para sempre. Finalmente, adormeceu. Pela manhã foi despertado com boas notícias: Ibelin estava em Damasco.

O resgate do prisioneiro foi cerimoniosamente realizado na presença do próprio Turan Shah. A soma, oitenta mil dinares, era enorme, inacreditável, fantástica. Era certo que os muçulmanos em geral faziam exigências excessivas e após muito regatear as reduziam a menos de metade. Mas daquela vez Balduíno IV não estava com vontade de regatear. Afinal de contas, tratava-se do homem que devia tornar-se seu cunhado e sucessor do trono. Havia pedido emprestado pesadas quantias aos mercadores bizantinos e genoveses, e naquele momento o latino olhava com calmo orgulho para seus escudeiros, que deitavam a prata nas balanças. Turan Shah mordia os lábios com evidente satisfação. Ibelin de Ramlah estava escandalizado. Perguntou a Reinaldo:

— Teria a Rainha de Sabá ressuscitado dos mortos para trazer galeras carregadas de prata?

— Nada disso — respondeu Reinaldo com uma risada. — O tesouro está vazio como sempre. Isto foi pedido emprestado.

— Por que pediu ele essa quantia?... Tanto dinheiro só por mim! Tens que regatear com esses cães! Eles cortariam o resgate pela metade. Ora, que estou dizendo! Para um terço... Por que não regateias com eles?

— Eu te contarei mais tarde. Então compreenderás.

Ibelin encolheu os ombros. Era alto e forte, tinha traços proeminentes. A falta de dois dentes na frente desfigurava seu sorriso franco, seu rosto másculo, e fazia que suas palavras sibilassem.

— Quem arrancou teus dentes? — perguntou Reinaldo, quando terminou a cerimônia, e já tinha chegado com Ibelin ao palácio dos al Baras.

— Quem? Os pagãos, naturalmente, no último ataque em que me capturaram. Eu tinha agarrado um dos velhacos pela garganta, e ele, soltando o último suspiro, golpeou meus dentes com o cabo do punhal. Não tem importância — ainda sou capaz de morder o inimigo. Conta-me agora que há de novo? Passei seis meses perdidos, num tédio mortal. Eles me prenderam na maior solidão, nem sequer me deixavam caçar com medo que eu fugisse. Ficaram cuidadosos, depois que o velho de Courtenay fugiu da prisão. Estavam dispostos a deixar-me em liberdade, mas só sob juramento de que eu não fugiria. Como eu não desse minha palavra, fiquei fechado como num túmulo. Passei dias terríveis de tédio, resmungando. Um bandido, Ali, um canalha negro como Satã e estúpido como uma pedra, me seguia passo a passo — como guarda. É estranho que não me tivesse preso por uma correia.

— A culpa é tua. Devias ter dado tua palavra. Quando me prenderam, eu dei minha palavra e passeei pacificamente por Damasco, caçando sempre que queria.

— A palavra de um cavaleiro não é para pagãos — murmurou Ibelin. — Mas conta-me! Conta-me! Que acontece na corte? Como está o Rei?

— Vou contar-te tudo a tempo e não é insignificante o que tenho para dizer. Meio ano se passou depois que foste preso... Talvez não saibas que Montferrat morreu?

— Bem Deus! Eu não sabia! Montferrat morto! Que aconteceu?

— Um rochedo que escorregou numa garganta, perto de Ascalão, o esmagou. E talvez alguém tivesse ajudado?... Ninguém sabe. Seja como for, está morto. Aconteceu em junho. A Princesa ficou viúva depois de dez semanas de casamento e com um filho por nascer. De novo, não há sucessor para o trono. O pobre Rei está ficando pior e mal se pode arrastar. De modo que decidiram dar-te a viúva. É por isto que o Rei se individou para o resgate, e é por isso que não discutiu sobre a quantia. Que os pagãos vejam que não és somente um cavaleiro... Assim que terminar o luto, arranjaremos um banquete de núpcias para ti... Então, que dizes? Não são boas notícias?

— Deus proteja o Santo Sepulcro! — sussurrou Ibelin, atordoado. Profundamente comovido, estava incapaz de dizer outra palavra.

— Espantosas notícias — disse, afinal, sobrepujando sua emoção. — Certamente são boas, mas espantosas... Não estás gracejando?

— Seria um gracejo caro. Oitenta mil dinares!

— É verdade, é verdade... Não sei como agradecer ao nosso gracioso Senhor e ao Conselho por essa honra... Como pagar... E ela? Ela? Fala-me dela!

— Sibila? A princípio, ela ficou fora de si pelo desespero de perder o marido. Depois recuperou a calma. Agora está com sua mãe, à espera do parto.

— Mas quanto a mim... ela concorda?

— Se não concordasse, eu não seria enviado para cá com o dinheiro. Tudo está arranjado.

— Ela concorda... Pobre querida, sabe que eu serei bom... Ela concorda... Sou um simples cavaleiro, e Montferrat era de sangue nobre. Mas, por minha honra, ela não perderá nada comigo! Não terá decepções! Que Deus me ajude! Ela concorda...

— Amanhã faremos as despedidas ao meu anfitrião e no dia seguinte partiremos para Jerusalém.

— Sim, sim, no dia seguinte... Só que eu não irei diretamente para Jerusalém. Ficarei em Ramlah.

— Para que? Por que?

Ibelin cruzou as mãos.

— Como posso explicar? Pelo túmulo de Lázaro ressuscitado dos mortos! Não me parece correto que eu vá pedir a mão da Princesa antes que ela tenha o filho de seu falecido marido. Que é que eu pareceria? Um intruso, olhando para o leito nupcial ainda quente, nem sequer dando tempo para que ela recobre alento... Não me compreendes? Por mim, eu voaria para junto dela como um pássaro, como uma flecha, mas não seria direito. Não, não seria direito... Para meu gracioso Senhor eu enviarei uma carta de agradecimento e também para os barões, e esperarei em Ramlah até ser avisado, depois de terminar o luto.

Reinaldo olhou pasmado para o amigo.

— Francamente, não vejo por que impões a ti mesmo uma tal pena! Sibila poderá pensar que não estás com pressa.

— Eu? — exclamou Ibelin. — Eu? Sem pressa? Mas ela sabe que eu daria minha alma, meu sangue, minha vida por ela... Ela sabe disso há muito tempo... Ela compreenderá... compreenderá que eu lhe respeito a dor.

Reinaldo abanou a cabeça, cheio de dúvida.

— Dor?... Tenho a impressão de que, há já algum tempo, ela não sente dor.

— Não a conheces! Ela esconde tudo em seu íntimo. Tem um nobre coração. Como pode ter acabado a dor, quando só passaram alguns meses? E ela o amava! Ela só tinha olhos para Guilherme... Nunca olhou para mim... E agora...

Levantou-se e deu longas passadas pelo quarto para esconder a emoção. O olhar de Reinaldo o seguiu. Que sujeito engraçado! Todos os Ibelins eram assim: antiquados, cheios de escrúpulos incompreensíveis, levando tudo a sério. Um homem adulto que nada sabia ainda sobre as mulheres!

— Eu daria dez anos de vida para vê-la agora — continuou Ibelin, parando de súbito. — Minha... minha noiva! Deus! Minha noiva!... Mas não seria direito... É preciso respeitar o luto!

— Faze como quiseres — replicou Reinaldo, com indiferença.


 

10
NEM QUE LHE FIZESSEM REI!

 

O ano de 1179 chegava ao fim. Vira guerras cruas entre Frederico Barbarroxa, o Imperador, e o Príncipe Henrique, o Leão, entre o antipapa Honório e o papa Alexandre, entre romanos e lombardos, entre os Reis da Inglaterra e da França. Mas não trouxera modificação alguma à vida cotidiana no remoto castelo dos Lusignans.

Como em todo outono, o pátio, coberto de lama pegajosa, só podia ser atravessado com altas botas de couro ou tamancos de madeira. As vacas que iam beber tinham marcado o chão de sulcos iguais e estreitos. Braz tirava água do poço. Gralhas barulhentas faziam círculos ao redor das torres. Na sala dos criados, à luz de um fogo minguado, moças cantavam, fiando. Junto à lareira da grande sala, o velho senhor estava sentado numa cadeira de braços e dormitava, com seu cão aos pés. Nada tinha mudado; o escudeiro de Guerce, recém-chegado, notara essa constância com indescritível felicidade. Como antigamente, Deus era Deus, o senhor era o senhor, e o súdito era o súdito. Até o próprio alimento, habitualmente pobre, e o vinho novo e ácido, eram provas agradáveis daquela imutabilidade.

O velho escudeiro, de pé à porta de uma ala do castelo, olhava ao redor com olhos enternecidos de viajante que volta à terra natal. Atrás dele, passos apressados chapinharam na lama. A senhora Benigna passava apressadamente, sem se dirigir nem para o galinheiro nem para o estábulo, nem para o chiqueiro dos porcos, mas em linha reta, através da lama, sem olhar à direita ou à esquerda. Guerce abanou a cabeça e suspirou, e ela apressou o passo sem o ver.

Naquele ponto, numa curva do rio Yonne, os finos ramos nus dos salgueiros faziam sulcos na água e suas folhas caídas formavam montes baixos ao longo das margens. Subiam da água um nevoeiro e um perfume de outono, e a ponte sobre o rio luzia de umidade.

Benigna parou na ponte, olhando para a outra margem. No crepúsculo já quase fechado, aguardava o filho mais moço que voltava da caça. Esperava-o; e esperava-o com tanta ansiedade que, incapaz de ficar parada num lugar só, andava de um lado para o outro, à margem do rio. Apesar de não estar cansada, ofegava. Esquisita a sua figura quadrada, ainda mais larga pelas saias duras e arrepanhadas. Seu capuz estava caído de um lado. Ela esperou muito tempo. Afinal, no outro lado da ponte apareceu uma figura sombria que se aproximava. Guy!

Assobiando baixinho, ele caminhava com firmeza nas pranchas escorregadias. Quando desceu para o atalho, sua mãe o defrontou com tanta violência que ficou assustado.

— Deus! Que aconteceu, mãe?

Excitada, sem fôlego, ela só conseguiu bater-lhe no ombro e no peito, murmurando:

— Querido... querido...

— Que aconteceu? — repetiu o jovem, mais alarmado ainda.

— Nada, nada, de Guerce voltou da Terra Santa.

— Ótimo! Eu sentia falta dele. E como foi que voltou? De uma vez? Ficou cansado do estrangeiro?

— Amalrico o mandou... Trouxe dinheiro para ti... um monte de dinheiro... Para a viagem... Vais encontrar-te com ele, sabes?

Guy riu de todo o coração.

— Guarda o dinheiro, mamãe, ou dá-o a Bertrando. O coitadinho só pensa em partir. Eu prefiro ficar.

— Amalrico precisa de ti, não de Bertrando.

— Mas eu não quero ir!

— Hás de ir — garantiu ela, simplesmente.

Ele sacudiu a cabeça numa gargalhada:

— Pelo túmulo de Santa Radegunda! É verdade, Mamãe, que quereis ver-vos livre de mim? Desde quando perdi vossa amizade?

— Perdeste minha amizade? — Ela olhou-o com infinito amor. Mas repetiu categoricamente:

— Deves ir imediatamente. Amalrico insiste nisso.

— Meu irmão terá enlouquecido, ou estará doente?

— Apenas deseja ter-te a seu lado.

— Como está ficando carinhoso! Pois que venha para cá!

E riu de novo com a idéia de partir naquele momento — sobretudo naquele momento. Quando Mamãe souber, certamente não insistirá. Quem sabe se devo contar-lhe imediatamente? Oh, não, ainda, não. Seja como for, ela se convencerá.

— Não é sensato perder a oportunidade — argumentou ela, cheia de calor. — Amalrico deseja assegurar teu futuro. É um bom irmão; manda-te dinheiro. Não irás como um mendigo, mas como um senhor. Recusar é coisa que está fora de discussão.

Baixando um pouco a cabeça, ele olhou-a com um sorriso. Cheio de calorosa emoção, pensou se deveria contar-lhe os freqüentes encontros daqueles dois meses com a jovem e linda Lúcia de Sainte-Croix, filha do Senhor de Issoudan. Os avós da moça haviam outrora mantido relações de amizade com os Lusignans, mas as excentricidades de Hugo, o Castanho e sua conseqüente pobreza tinham afrouxado tais laços, levando-os afinal à ruptura de relações. Os senhores de Issoudan nunca eram mencionados no castelo de Lusignan, e o jovem par se tinha conhecido por acaso, durante as caçadas do verão. Nada sabiam um do outro, a não ser que eram belos e jovens. O primeiro encontro havia provocado outros — todos aparentemente ocasionais. Os apaixonados haviam conseguido a silenciosa aquiescência de dona Margarida, inseparável acompanhante de Lúcia. Sob seus olhos que fingiam nada ver, eles gozavam seu primeiro amor — tão diferente das fáceis aventuras de Guy, até então. Sentiam o súbito afluir de sangue ao rosto, as ansiedades, o irromper de alegrias ou tristezas inexplicadas, a tremura de membros e a insônia de todos os apaixonados, e a si mesmos perguntavam, no íntimo, porque seria que o mundo não via tais sintomas.

— Eu te amo e só me casarei contigo — dissera Lúcia naquele dia, passando os braços ao redor do pescoço de seu amado. Ficando sério de repente, ele lhe havia tomado as mãos, beijando-as como se fossem sagradas. Os dedos tímidos, meio roxos pelo frio, eram longos e finos.

— Nossos pais jamais consentirão — suspirou. — Eu sou pobre demais. Por falta de um cavalo decente, sou forçado a andar este longo caminho a pé, na floresta.

— Se eles nos recusarem sua bênção, deverás raptar-me — resolveu ela, com a audaciosa coragem de seus dezessete anos.

— Minha querida! Não casarás com mais ninguém?

— Não, não, nunca!

Os escuros olhos de Lúcia chamejaram. Tomou-a nos braços, cuidadosamente, como uma coisa de incomensurável valor, como nunca tinha abraçado mulher alguma. Olhou-a com êxtase e orgulho. A jaqueta curta, orlada com peles de marta, pelada e desbotada, herdada da avó, fazia-a parecer aos seus olhos mais bonita do que com os brocados de ouro famosos nas canções dos menestréis. Os pezinhos minúsculos, dentro das volumosas botas de couro, caminhavam com mais leveza e firmeza do que os de outras mulheres em sapatos de cetim.

— Deverás raptar-me. — repetiu ela. — Eu providenciarei tudo.

— Será como quiseres, minha adorada.

Dona Margarida, gelada e entediada, resmungou que era hora de partir. Eles se haviam separado com dificuldade, prometendo encontrar-se de novo durante a semana seguinte. Guy voltava como se tivesse asas. E em tal momento sua mãe lhe falava numa partida imediata! Amalrico escolhia um momento apropriado para chamá-lo à Terra Santa!

Continuava a ouvir, absorto, meio divertido. Se mencionasse o nome de Lúcia, sua mãe seria a primeira a interrompê-lo. Os dinares enviados por Amalrico seriam empregados nos preparativos alegres do casamento. Apesar de não ser calculista, Guy sabia de que maneira sua mãe veria o casamento de um filho com a filha do senhor de Sainte-Croix. Seria a realização de suas mais secretas aspirações. Seria a volta ao antigo prestígio e influência da família. Bastava que ela ficasse sabendo!

Certo de que tinha em mãos as rédeas do carro, não sentia pressa em submeter seus sentimentos ao exame da família. Portanto, continuou a gracejar com a mãe:

— Deixai que vá o Bertrando. Ele bem que merece.

— — Oh, chega de falar em Bertrando! — exclamou Benigna, zangada. — Tu é que deves ir. Amalrico precisa de ti.

— Ele que se arranje sem mim.

— Irás porque é essa a nossa vontade. Compreendes?

— Vós me obrigareis, minha senhora? — perguntou ele, incrédulo.

— Sendo necessário eu te obrigarei — replicou ela.

— Devo partir imediatamente? Hoje?

Ela bateu o pé.

— Hoje não, mas dentro de duas semanas, o mais tardar.

Ele riu alto e tomou-a nos braços. Querida mãezinha, como estava zangada! Mas não tinha importância. Quando lhe passasse a zanga, tudo lhe contaria. Então, ambos dariam risada juntos.

A carícia do filho não desarmou Benigna. Deu um passo para trás.

— Irás dentro de duas semanas — garantiu-lhe. — Tudo será providenciado — armas, roupas... Podemos comprar um bom cavalo na feira de Martinmas, em Poitiers.

Os olhos do rapaz pestanejaram. Um cavalo! Talvez fosse melhor não contar nada, enquanto ela não o comprasse? No encontro seguinte com Lúcia, iria montado, como um cavaleiro... Ah!

— E onde está o bom de Guerce? — perguntou ele, como se só então se lembrasse do escudeiro. — Preciso perguntar-lhe como vão as coisas na Terra Santa.

Começou a andar com vivacidade. Benigna ficou para trás — mas em absoluto não estava triste. Guy não queria ir? Que importava? Sua opinião não valia coisa alguma. Eles lhe ordenariam que fosse. Graças a Deus, os pais não precisavam contar com os caprichos dos filhos. Mesmo que ele chorasse, caísse a seus pés, não cederia... nunca... Afinal, era para o bem dele... Guy podia tornar-se rei... rei!

Ela murmurava estas palavras para si mesma, embriagando-se com o som. O crepúsculo se adensava. Precisava ir para casa. Hora do jantar. Mas como podia ir? Amalrico lhe ordenara que não se traísse diante de ninguém, mas seu rosto devia revelar qualquer coisa fora do comum. Antes de entrar no pátio, parou sob o muro, encostando o corpo quente aos tijolos frios, para acalmar-se. Nem reparou que era aquela a torre de Melusina, que sempre evitava. Melusina, répteis, encantamentos, tudo havia desaparecido de sua mente, diante daquela única idéia maravilhosa: rei!... rei... Seu filho, um rei... um rei...

Ungido de Deus, dirigente de destinos humanos, uma vida sem espinhos, sem cuidados, semeada de rosas, mesa coberta de ouro, luzes cintilantes, exércitos de ferro, florestas de galhardetes, gritos tempestuosos, histórias de menestréis, coroa e cetro, trajos dourados, arminhos, multidões de súditos, cortesãos leais, valorosos cavaleiros, uma adorável rainha, salas resplandecentes de riquezas, cavalos em carapaças com franjas douradas, falcões, torneios e caçadas, buzinas e trombetas, sinos da coroação, cozinha engenhosa e banquetes e divertimentos, aplausos gerais e fama ... era essa a vida de um rei... de um rei.

Respirou profundamente e levando a fresca palma das mãos às faces cheias de febre, voltou-se, com um andar aparentemente calmo em direção da casa.

Na escura e tristonha sala do castelo, Guy, afável e radiante, falava a Bertrando:

— Vai, vai, eu insisto em que vás. Eu não irei por coisa nenhuma. Além do mais, tu o mereces.

— Achas que mereço alguma coisa? — perguntou Bertrando, amargamente. — E para que falar nisso? Alguém vai perguntar-te se queres ir ou não?

— Ora, eu acharei um meio de aplacar Mamãe, e por intermédio dela, Papai.

— Talvez fiques, mas em qualquer caso eu só irei para ser monge, e quanto a isso prefiro ficar aqui — murmurou Bertrando. Parecia estar mais amargo e deformado que no ano anterior. Para que fazia o esforço de se manter reto? Nunca, nunca seria um cavaleiro.

Benigna entrou e todos se sentaram à mesa. De Guerce teve que abandonar a comida para contar sua história em voz mais alta, para que o Senhor de Lusignan ouvisse. O velho Hugo, o Castanho, perguntou a respeito do Rei e do exército; o capelão, pelas igrejas e Lugares Santos; Benigna, pela jovem princesa viúva; Guy, se Amalrico ia casar-se. O escudeiro não respondia sem um pouco de embaraço. Amalrico lhe havia dito que pintasse tudo com as cores mais brilhantes para encorajar o jovem senhor, mas suas verdadeiras opiniões eram tão diferentes! O pior era falar do Rei. Todo cavaleiro e escudeiro, em Jerusalém, havia jurado por sua honra nunca divulgar a verdade sobre a doença que consumia Balduíno IV. Como era a primeira vez que a maldição caíra sobre um soberano, os de sangue nobre guardavam silêncio, ao passo que a plebe — os criados, peregrinos, mercadores — não estando ligados por nenhum juramento, tagarelavam, de modo que a verdadeira situação se tornara do conhecimento geral. O isolado castelo de Lusignan era um dos poucos lugares onde estas notícias não haviam chegado e Guerce coçava a cabeça, sem saber se devia revelar o segredo ou não.

Com alívio, ele se aplicou a uma descrição da Igreja do Santo Sepulcro, do Templum Domini, do palácio do Rei e das cavalariças nas cavernas do Rei Salomão, dos sagrados lagos de Bethesda e de Siloan, do Monte das Oliveiras, e do Vale de Josafá. Todos ouviam com interesse. Benigna não tirava os olhos fascinados do orador. Entre o cenário dos muros do templo dourado ela via somente a cabeça de seu querido Guy, sob uma coroa refulgente de jóias. Dos seus ombros pendia o manto real.

* * *

— Então já tens um cavalo! — exclamou Lúcia alegremente, ao ver o jovem Lusignan saindo da floresta num grande cavalo de combate. Cavalo, arreios, sela, a roupa do cavaleiro, tudo brilhava. Ele saltou graciosamente ao chão e se dirigiu para ela. Seu rosto resplandecia.

— Salve, minha bem amada! Salve, dona Margarida! Eu tenho um cavalo de verdade! E não só o cavalo. Não vês como estou vestido?

Com vaidade infantil rodou sobre os calcanhares. Lúcia bateu as mãos, alegremente; achava-o tão bonito.

— Agora, parecemos príncipe e súdita. Na semana próxima eu também me enfeitarei... Hás de ver! Dize-me, onde arranjaste o cavalo?

— Ah, é uma história estranha — começou ele, misteriosamente. — Sabes — sim, deves saber — que temos uma feiticeira na nossa família, Melusina. Ela...

Estupefata, ela agarrou sua mão e benzeu-se depressa. Ele soltou uma gargalhada feliz.

— Não te assustes, minha amada, isto é história. É claro que não arranjei este baio com Melusina nem com nenhuma feiticeira. Meu irmão mais velho, que está na corte de Jerusalém, mandou uma bolsa de dinheiro, e minha mãe comprou isto, anteontem, no mercado do Bispo, em Poitiers.

— E para o nosso casamento? — E ela corou ao perguntar.

— Para o casamento ela me comprará roupas ainda mais bonitas! — gabou-se ele. Tomaram-se as mãos, como se já estivessem caminhando juntos para o altar.

* * *

— Para que pusera as roupas novas? Que idéia de andar pela floresta com roupa tão fina? — resmungou Benigna.

Como dez dias antes, ela andava de um lado para o outro, à espera da volta do filho. Desta vez, ele não atravessou a ponte, mas precipitou-se com o cavalo dentro da água. O baio, resfolegante, saltou na margem enlameada. Era um bom e forte cavalo, todo arreiado de branco até os cascos.

O cavaleiro puxou as rédeas ao ouvir a inesperada voz da mãe e desmontou, mas não tão depressa como há pouco, na floresta.

— Deixa teu cavalo com o menino da cavalariça; muda tuas roupas e vem ao meu quarto — disse ela.

— Ele está todo cheio de espuma; eu mesmo vou levá-lo e esfregá-lo com palha.

— Deixa-o. Esfregar cavalos não é trabalho para ti.

— Desde quando? — esteve quase a perguntar o rapaz. Não costumava trabalhar com os criados quando havia serviço para fazer? Por que não devia cuidar daquele novo tesouro, daquele cavalo?

— Entrega-o a Nicolau — ordenou ela — e vem imediatamente. Quero conversar contigo.

Ele ficou de espírito abatido quando se afastou, puxando o baio pelas rédeas. Já começava tudo, outra vez! Com certeza a viagem, de novo. Não havia outro caminho, precisava confessar o que havia em relação a Lúcia, imediatamente. Lúcia! — Essas roupas são para o casamento? — tinha perguntado — queridinha!

— Não te atrevas a sujar as roupas novas antes de ir, — começou Benigna quando ele entrou em sua alcova abafada. — Além do mais, não vamos adiar mais a partida. Tudo está pronto. Acho que será melhor partires na terça-feira. Bom dia, dos Anjos da Guarda. No domingo, o Capelão rezará uma missa votiva em tua intenção.

Falava com exagerada firmeza para dominar suas emoções, pois não imaginava como ia viver sem o filho mais moço, e no entanto desejava sua partida com todas as forças.

Guy abraçou-a com ternura:

— Escuta o que tenho para dizer, Mamãe, é verdade que eu devia ter confessado isto antes, mas é que... enfim, não confessei! Perdoai-me... Eu não irei para a Terra Santa nem para outro lugar qualquer, porque desejo casar com Lúcia de Sainte-Croix de Issoudan. Gosto dela e ela me olha com simpatia.

Deu um passo atrás, olhando, cheio de expectativa para a mãe. Benigna ficou cor de púrpura.

— Enlouqueceste? — disse numa voz ciciante. — Queres casar-te? Sem nossa aprovação? Sem nossa bênção? Damos-te ordem de partir, e queres casar-te?

Ele pensou que ela não tinha ouvido. Repetiu distintamente: — Com Lúcia de Sainte-Croix.

— Não vais casar-te. Vais partir! — guinchou ela.

— Lúcia... Lúcia... Que importa Lúcia! Que me importa a família de Sainte-Croix! Uns tolos, idiotas, convencidos! Pensam que isto é uma honra para nós! Não é essa a mulher para você! Na verdade, não é! Quem é Lúcia? Uma moça iletrada e rude de Issoudan!

(Era evidente que sua mãe estava indignada. Que tinha acontecido? Grande Deus!)

— Minha senhora — e a voz de Guy tremia de medo — por que me mandais para um mundo desconhecido, em vez de permitir que eu me case com a mulher que amo e que fique por aqui?

— Cala-te! Cala-te! Que sabes? — Ela cobriu o rosto com as mãos, tremendo de zanga e sofrimento. Era verdade, verdade. Se não fosse a mensagem de Amalrico, o amor de Guy e Lúcia a teria enchido de alegria. Era verdade...! Mas desde que existiam outras possibilidades não podia consentir naquilo. Nunca. Guy precisava partir. E partiria. Ela não desistiria. Ela se consumiria de tristeza, mas seu filho seria rei.

Olhou-o imperiosamente. Ele ficou parado, pasmado diante da inesperada oposição. Seus lábios tremiam, como os de uma criança quando vai chorar. Juntando suas forças, ela dominou o desejo de abraçar e consolar o rapaz.

— Partirás na terça-feira — disse, inflexivelmente.

— Por que desejais que eu seja infeliz? Que fiz eu?

— Eu, tu... infeliz?... Tolinho!

— Mas tende piedade, Mamãe! Eu vos peço de joelhos! Lá eu nunca serei feliz! Pelos Santos Mártires, pelos Santos Patronos, tende piedade! Não me mandeis para uma terra estranha.

Ela estava quase cedendo. Talvez fosse melhor contar-lhe? Era melhor que soubesse. Então compreenderia.

— Jura por tua honra que não repetirás a ninguém o que te vou dizer.

Ele jurou.

— Aproxima-te.

Ele se inclinou e ela sussurrou em sua orelha:

— Amalrico mandou buscar-te porque podes tornar-te rei, lá!

— Que é isso? — exclamou, estupefato apesar de sua tristeza.

— Quieto, quieto, fica calado! Já o juraste! Podes ser rei... Não é gracejo... A viúva, Princesa Sibila, de quem de Guerce falou, te tomará por marido se ela se apaixonar por ti. Lá, as mulheres escolhem os maridos. É o costume. E o que ela escolher será o rei. Já aconteceu uma vez... Um jovem cavaleiro, pobre mas bonito, lá chegou e casou com uma princesa.

Seu olhar amoroso acariciou o filho, e acrescentou num tom mais baixo:

— E certamente ele não tinha nem a metade da tua beleza.

Ele escutava, num crescente pasmo. Não podia ser verdade! Era mentira, pura mentira! Então sua mãe não via o quanto era tola aquela idéia?

— Papai sabe disto? — perguntou, cautelosamente.

— Ninguém, exceto Amalrico, eu, Guerce e tu. E lembra-te de que juraste! Teu pai está contente porque vais conquistar tuas esporas de cavaleiro. Ele não compreenderá nunca tua louca oposição.

— Eu não conto a ninguém, mas não quero essa princesa nem qualquer outra. Vou me casar com Lúcia de Sainte-Croix — repetiu, com uma determinação de que nunca dera provas.

A raiva que ela sentiu se enrodilhava lá dentro, como uma cobra.

— Basta! Não te atrevas a falar de novo em Lúcia! Vais partir na terça-feira, e farás o que Amalrico mandar. Agora podes ir embora.

— Mamãe! Mamãe! — exclamou procurando agarrar-lhe as mãos.

Ela o empurrou com rudeza. Não, não; ela não permitiria que seu coração fraquejasse.

— Mamãe, lá eu seria infeliz.

Ela o empurrou para fora da soleira e bateu a porta. Depois chorou.

Guy ficou um momento junto à porta — petrificado e mudo de dor. A vida, até então simples e fácil, de súbito se voltava contra ele, ameaçadora, fazendo pressão com inesperado peso. Amalrico devia ter enlouquecido. E a mãe também. E Lúcia, que lhe diria? Por causa dessa loucura, ia perdê-la. Que podia fazer, S. Mamede, que podia fazer?

— Eu não irei — murmurou — eu não irei! — Rebelava-se contra a violência que lhe faziam; mas em sua natureza suave, de certo modo passiva, a rebelião se confundia com tristeza. Não sabia como opor vontade contra vontade.

O escudeiro de Guerce ouviu as tristezas do jovem cavaleiro com honesta simpatia.

— O nobre cavaleiro Amalrico me disse que só lhe contasse boas coisas daquela terra — confessou. — Apesar de ser pecado, digo-vos que uma sexta-feira, aqui, é melhor do que um domingo, lá. E melhor viver um dia aqui do que um ano lá, apesar de todas as riquezas...

— Que vou fazer? Que vou fazer? — e o rapaz torcia as mãos.

— Partir, meu senhor, pois tal é a sagrada vontade de vossos pais. Ao chegar, podeis pedir ao vosso irmão que vos mande de volta. É sempre mais fácil falar com um irmão do que com os pais. O cavaleiro Amalrico há de compreender... Ganhareis vossas esporas e voltareis cavaleiro.

— Mas Lúcia, Lúcia — repetia Guy — que pensará ela de mim? Que estou fugindo dela?... Eu, fugindo dela! Ela quer que eu a rapte!... Ela mesma me disse isso... Em vez de o fazer, vou partir.

— Deveis dizer-lhe, meu senhor, que, para ter o consentimento do Senhor de Sainte-Croix vós ganhareis as esporas, para vós tornardes um cavaleiro.

— Eles a darão em casamento a outro.

— Talvez não. Voltareis logo.

— Que Deus vos recompense, de Guerce, por vossas sábias palavra. Vou seguí-las. E a Princesa poderá arder no inferno, antes que eu olhe para ela!

— Ora, ora! Essas falas não ficam bem a um cristão: — murmurou o velho reprovadoramente, mas sem muito entusiasmo.


 

11
RELUTANTE AUXÍLIO A ANTIOQUIA

 

O Castelo Kerak, o Krak Transjordânico ou Moabita, como Krak dos Cavaleiros Hospitaleiros que guardava o principado de Trípoli, era uma fortaleza inexpugnável. O nome Krak era uma corrupção da palavra árabe “akrad”, que significa “fortaleza”. Apesar de o Krak Transjordânico ser o menor dos dois e não se jactar de possuir refeitórios de sessenta pés, calabouços que se aprofundavam pelo chão abaixo em vários andares, ou maravilhosas arcadas, delicadas como renda, sua solidez, desenho e beleza eram admirados por todos. Aquela barreira carrancuda se erguia na fronteira do deserto, construída apenas para a defesa; tinha proporções perfeitas e arcos graciosos, portais esculpidos e capitéis trabalhados nas colunas que cercavam o pátio interno. Sob o sopro cálido do Oriente a severa simplicidade da arquitetura pré-gótica — o arco arredondado romano, que os Cruzados haviam trazido consigo — fora enriquecido com muitos embelezamentos. Pesados pilares floriam em folhas de pedra, cujas hastes neles se enrodilhavam, criando transparências. As janelas haviam sido aumentadas para deixarem entrar mais luz. Os pesados arcos arredondados e os monótonos pedestais quadrados de peças maciças haviam sido transformados em ogivas e bases arqueadas, suportando figuras esbeltas. Os peregrinos que chegavam à Terra Santa levavam estas formas de volta à Europa. E assim aquela arquitetura voltava à pátria nativa enriquecida por novos elementos que floriram no estilo gótico, contribuição ignorada mas inapreciável dos peregrinos.

O novo senhor do Krak Moabita, Reinaldo de Chatillon, era indiferente a tais assuntos. Ao tomar posse do castelo, seu primeiro pensamento foi fortalecer os muros, acumular provisões e armas, e verificar a quantidade de água nos profundos poços. Não deu a menor atenção aos adornos esculpidos em pedra.

— Até parece, meu senhor, que vos preparais para a guerra.

Estefânia, que desposara recentemente, falava com gracioso desagrado, enquanto o acompanhava numa volta pelo recinto.

— Para a guerra sempre se deve estar preparado, — respondeu ele com impaciência.

Não escondia seu rancor ao ver a desordem que ali encontrara. Que adiantava ser a guarnição de mil homens ou mais, se aquela canalha fazia o que queria, esquecendo totalmente a profissão das armas? O enérgico mordomo-mor Planton de Milly, último senhor do castelo, havia morrido dois anos antes, em misteriosas circunstâncias: desde sua morte, Estefânia tinha dirigido tudo, ajudada por um filho do primeiro casamento, Humphrey de Thoron, jovem de rosto imberbe e de espírito fraco. Não era de admirar que tudo estivesse em mísero estado, sob tal direção! Iam agora sentir o pulso do dono! Os sarracenos também o sentiriam. Era uma desgraça ver caravanas pagãs passar tão perto daqueles muros. Das torres altas podiam ver-se, pormenorizadamente, e contar, o número de cavalos e de camelos. Quase não havia uma semana em que não passasse uma longa linha de camelos do norte para o Sul, do sul para o norte, indo para Meca ou dela voltando. As narinas do novo comandante se agitavam, seu bigode curto e grisalho se eriçava. Por enquanto, devia dominar-se com paciência e fingir que não via os pagãos, mas quando tivesse a guarnição em condições, quando tivesse transformado em soldados, novamente, aqueles parasitas que dormitavam junto ao fogo, quando tivesse mostrado que era realmente o dono, então sim!

Estefânia observava-o com o canto dos olhos. Era uma mulher pesadona, de loiro cabelo que ia ficando grisalho, e possuidora de uns restos de grande beleza. Fora outrora a escrava apaixonada deste Reinaldo e ele havia sido um amante belo e fervoroso. Ela recordava seu abraço de ferro, a sua ousadia em vir vê-la. Cansada da viuvez, ela havia aguardado com ansiosa curiosidade o homem que o Rei lhe escolheria para marido e para senhor do Krak Moabita, quando, inesperadamente, Reinaldo havia regressado do cativeiro. Mesmo antes de o ver, assim que soubera a notícia, seu amor havia renascido, despertando nela a ânsia pelo antigo apaixonado. O Grão Mestre dos Templários havia arranjado tudo para eles. Tinham ficado noivos, haviam casado tão depressa que ela não tivera tempo de notar o quanto estava mudado Reinaldo, depois daqueles dezesseis anos.

Pensando em tudo aquilo, ela se entregava a um sentimento bem parecido com o arrependimento. Havia agido com precipitação demasiada. Odo de St. Amand fora o culpado. Ele é que a tinha ajudado. Que a tinha persuadido. Começava a ver que não fora amizade por ela, mas por ódio a Raimundo de Trípoli, que não suportava Chatillon. Reinaldo havia casado com ela para se apossar do castelo, porque estava sem lar e não era desejado em parte alguma. Sim, sim, ela, Estefânia, que tinha gozado toda a doçura da vida com ele, fora ludibriada, deixara que aqueles dois homens se servissem dela como de um instrumento. Aqueles dois homens pouco se importavam com sua felicidade. E todas as mulheres anseiam pela felicidade. As idéias que assim a entristeciam de tal modo a envenenavam, que ela não ouvia o que dizia o marido, e só o escutou quando ele, perdendo a paciência, a repreendeu :

— Acorde! Não é de admirar que os criados não prestem para nada, quando a própria dona vive dormindo... Mas eu vou mudar tudo isto!... vou mudar tudo!...

Ela olhou-o com um olhar lacrimejante.

— Houve tempo em que meus sonhos não vos eram desagradáveis.

Ele abanou a mão, com desprezivo desinteresse.

— Ora! tempo! houve! Que adianta falar nisso agora? Acho que não pretendeis que vos tome nos braços e que nos amemos como naquele tempo?

Ela deixou pender a cabeça, ofendida e humilhada. Claro que sim — era exatamente o que desejava. Só com aquilo se importava, era o que havia esperado. Por aquilo, por aquilo somente havia casado com ele, dando-lhe como dote uma das mais importantes fortalezas do reino. Mas como lhe poderia dizer isto?

— Faz muito tempo que já não tenho dessas tolices, falou ele, grosseiramente.

Ela quase rompeu em choro. Por que não lhe havia dito antes? Um amargo arrependimento a envolveu toda. Ali tinha dirigido pacificamente, senhora de seus direitos. E mesmo que aquele terceiro casamento fosse indispensável? O Rei e o Príncipe de Trípoli podiam ter escolhido algum bravo e nobre cavaleiro que a teria honrado e respeitado. A vida com Reinaldo seria amarga — amarga, certamente, e sem as doçuras do amor. — Ele já não tinha dessas tolices. Quem teria imaginado? Sua única consolação era que, provavelmente, viveria mais do que ele, e no declínio da vida ainda conheceria o amor. De acordo com as leis do Reino de Jerusalém, uma herdeira nobre podia aceitar marido até os sessenta anos, desde que ele tivesse capacidade para guerrear. E tinha apenas quarenta e cinco. As mulheres, quando têm a sorte de ultrapassar a idade da maternidade, vivem mais do que os homens. Não se expõem à guerra, não desperdiçam a saúde, não brigam com os outros por causa de qualquer palavra azeda. Reinaldo, o fanfarrão barulhento, o roncador de vantagens, morreria na primeira grande batalha. O cativeiro, apenas, lhe dera oportunidade para viver tanto.

Meditando sobre esses assuntos, ela perguntou:

— Dizem que os barões vão em auxílio de Bohemundo de Antioquia... Penso que ireis com eles?

— Que rematada tolice! — respondeu ele, rudemente — Eu, ajudar os vagabundos de Antioquia e o seu Bohemundo? Antes do mais, preciso pôr em ordem este castelo, ensinar estes dorminhocos a se mexerem. Já bastam os sarracenos que há aqui. Não preciso de ir em busca deles em Aleppo.

Ela suspirou, silenciosa e triste.

* * *

O Rei chegou à reunião do Conselho, enfileirado sob seus olhos. Reinaldo de Sidon cotucou Amalrico, sentado ao seu lado.

— Olha, o nariz dele já deve estar podre, para usar aquelas ataduras.

Amalrico, mal humorado e azedo, como sempre nos últimos tempos, não deu resposta. Todos os cavaleiros já estavam reunidos na grande sala. Ambos os Grãos Mestres das ordens de cavaleiros, o Arcebispo de Tiro, o Patriarca Heráclio cheirando a almíscar, o Bispo Aubert de Belém, o Príncipe Raimundo de Trípoli, Josselin de Courtenay, Ibelin de Ramlah e seu irmão Ibelin Baian, Broyes que tinha desposado uma muçulmana. Raul de Mouzon de quem se dizia que possuía um harém, Roger de Grandpré, e outros, estavam presentes.

A razão para aquela reunião do Conselho era o caso de Bohemundo III de Antioquia. Dois meses antes aquele príncipe, naturalmente preguiçoso mas frívolo e impetuoso, tinha declarado guerra ao Sultão Imad-al-Din de Aleppo. Gesto infeliz, pois o Sultão era da linhagem Zengid e inimigo furioso do usurpador Saladino. Era o aliado natural dos francos, e seria sensato apoiá-lo, e não guerreá-lo. Tal era a opinião do Rei e do Príncipe Raimundo, mas Antioquia era um principado independente, e Bohemundo podia fazer o que julgasse melhor. Consolavam-se com a idéia de que a sua natural indolência o levaria a abandonar o projeto de uma expedição, quando chegasse a ocasião de o levar a efeito. No entanto, ele tinha encontrado um inesperado aliado em Felipe de Flandres. O peregrino-hóspede, profundamente ressentido pela omissão de seu nome entre os candidatos à mão da Princesa Sibila, aproveitou a primeira oportunidade para se opor ao Rei. Condenando o que chamava a classificação anticristã de pagãos aliados e pagãos inimigos, ele se dirigiu com suas tropas em auxílio do Príncipe de Antioquia. A guerra ia começar de verdade. Em auxílio de Imad-al-Din veio seu irmão, o Atabeg de Moçul, Iz-al-Din. Com estes reforços, os exércitos dos francos eram ainda bastante grandes para se apoderarem de Aleppo se algum dos príncipes tivesse as virtudes requeridas para um comandante.

Infelizmente, confiando demais em si mesmos, passavam a maior parte do tempo caçando, jogando dados, ou banqueteando-se — com certeza o cerco se faria sozinho e eles entrariam triunfalmente em Aleppo. O Sultão, com uma hábil sortida, quase os fez prisioneiros a ambos. Os exércitos latinos suportaram uma dolorosa derrota. Longe estavam os dias heróicos em que cinqüenta mil muçulmanos fugiam diante de mil francos. De assaltantes, os que faziam cerco, Bohemundo e Felipe, haviam passado a sitiados. Totalmente em pânico, seu ardor belicoso tinha desaparecido. Haviam enviado mensageiros ao Rei implorando socorro, logo que fosse possível. Este apelo desesperado tinha provocado a reunião do Conselho.

Na verdade, não havia lugar para discussão. Bons cavaleiros cristãos apelavam por um auxílio contra os pagãos, e ante tal apelo toda política devia ser esquecida. Pela primeira vez, Raimundo de Trípoli e Odo de St. Amand pensavam do mesmo modo. A honra da cavalaria e da própria cruz estavam em jogo.

Além do mais, Felipe de Flandres, se deixado entregue a si mesmo, agitaria toda a Europa! Como não se soltaria a língua contra os barões de Jerusalém! Não havia alternativa. Era necessário tragar a beberagem preparada pelos dois pobres de espírito e ir salvá-los — imediatamente e com todas as forças, para terminar a batalha de Aleppo.

Com todas as forças...

Era esse o âmago do problema. Se todos os cavaleiros e homens de armas partissem, o Rei de Jerusalém ficaria sem defesa alguma.

— Só Saladino é quem pode constituir perigo para o reino e nós estamos em paz com ele — argumentou Raimundo de Trípoli.

— Saladino em pessoa não violará a trégua — respondeu o Rei numa voz abafada pelo lenço que lhe cobria o rosto. — Mas que acontecerá se um de nossos nobres barões violar os limites, como fizeram na primavera passada, no vau de Jacó, quando Ibelin foi preso?

— Se todos forem, não ficará ninguém para violar fronteiras.

— Raimundo de Chatillon vai ficar, não vai?

— Que Deus proteja o Santo Sepulcro! resmungou Raimundo de Trípoli. — É certo?

— Certo.

— Então, na verdade, não sei o que aconselhar.

— Eu posso dar uma sugestão — disse Guilherme, Arcebispo de Tiro. — Eu irei para Kerak lá permanecerei enquanto dure a expedição. Talvez minha presença e uma explicação adequada da posição do reino contenham Chatillon, impedindo que se atire a qualquer louca iniciativa.

— Sem dúvida alguma. Deus abençoe Vossa Eminência. Dez cavaleiros ficarão para guardar a pessoa do Rei; os outros irão com ambas as ordens militares. Que Deus proteja o Santo Sepulcro!

— Que Deus proteja o Santo Sepulcro! — gritaram todos em réplica, levantando-se.

Só restavam os pormenores da expedição. A época, o lugar de reunião, e — o que era o mais difícil — a escolha dos que deviam ficar. Ninguém estava ansioso por ficar. Ficar ociosamente em Jerusalém quando todos iam guerrear! A paz durava já três anos (se não se contassem os incessantes ataques da fronteira) e o tempo pesava sobre os cavaleiros. Estavam ávidos por lutar. Seus olhos faiscavam à perspectiva de uma expedição. Ninguém queria sacrificar-se, ficando.

Ninguém tentou sequer induzir algum Templário ou Hospitaleiro a ficar. Seu elemento era a guerra, nada além da guerra. Finalmente, após repetidos apelos, Reinaldo de Sidon, Mouzon, Grandpré, o velho Thoron e Amalrico de Lusignan concordaram em ficar.

— Considero uma honra guardar a pessoa de meu gracioso Senhor — falou Amalrico, sempre dono de boas maneiras. — Mas implorarei ao Príncipe de Trípoli que aceite meu irmão em sua comitiva.

— Tens um irmão? — Raimundo de Trípoli ficou surpreso.

— Chegou há alguns dias. Um moço digno. Está ansioso por conquistar suas esporas e a honra de cavaleiro.

— Terei prazer em levá-lo comigo.

Amalrico baixou a cabeça em resposta. Estava aborrecido e preocupado. No fundo da alma amaldiçoava o dia em que havia enviado o escudeiro de Guerce à sua mãe. Privara-se de dinheiro economizado com dificuldade, e para que? Guy tinha chegado no domingo anterior, compulsoriamente, contrariado, pensando apenas em voltar e abertamente hostil aos planos que sua mãe (essas mulheres!) lhe devia ter comunicado. O primeiro encontro dos irmãos havia sido tempestuoso.

— Não sou nenhum conquistador de mulheres! — gritara Guy. — Também não sou nenhum trovador que se ofereça a qualquer nobre senhora, nem sou um vagabundo... É isso que queres fazer de mim?! Ora!

— Fala baixo, fala baixo, pelo amor de Deus! — Amalrico estava frenético. — Podem escutar! Há criados no pátio!

— Que me importa.

— Cala-te, maluquinho, e escuta-me, eu posso explicar tudo. Disseram-te bobagens, em que acreditaste. Deve ter sido aquele bobo do meu velho escudeiro.

— Então foi isso? — berrou Guy ameaçadoramente. — Então Guerce falou por conta própria? Não foi por tua ordem?

— Inteiramente, não... de outro modo... eu...

— Nada de subterfúgios! Disseste-lhe aquilo ou não? Se não, ele me responderá por isto!

— Responderá nada! Oh, tolo que és! Oh, essas línguas de mulheres! Eu pensei que tivesses um pouco de miolos... Eu queria fazer de ti um homem. Mas estás gritando como uma pega! Deixa que eu explico.

— Explicar o que! Mandaste-me vir para que a Princesa tivesse um capricho por mim, para que abandonasse o noivo por mim! Vês que já sei que ela tem um noivo, e...

Interrompeu-se, porque Amalrico, pálido, fora de si, de tanta raiva, tinha saltado sobre o irmão.

— Será preciso que eu te enfie um punhal? Afinal, vais calar-te? Queres perder-nos a ambos? Há pessoas, aqui, em todo o lugar. Gente! A qualquer momento podem escutar... Tudo isso é mentira! Eu não mandei dizer nada. Não mandei buscar-te. Guerce fugiu porque estava aborrecido aqui, e tagarelou sobre tudo que quis. Mamãe acreditou, tu também... Ah! Ah! Ah!... Depois ele te trouxe para que eu o perdoasse.

— E o dinheiro que mandaste? — perguntou Guy.

Amalrico fingiu não ouvir a pergunta:

— Nunca mais quero ver-te! Nem saber nada de ti! Se não queres ficar, então volta imediatamente, amanhã...

— Nem se fale nisso — replicou o irmão. — Agora estou aqui e preciso conquistar as esporas. Sem elas, não voltarei para casa.

— Mas precisas voltar para casa, mesmo que eu tenha de te forçar a isso. Não vou deixar que fiques tagarelando por aqui!

— Tagarelar? Eu? Pensas que desejo encher-nos de ridículo?

— É o que parece — resmungou Amalrico. — Arre! Minha camisa está gotejando suor... Se jurares que não dirás uma palavra a ninguém, eu sei de uma oportunidade excepcional para ganhares tuas esporas. O Príncipe de Antioquia mandou pedir auxílio. Vão todos os cavaleiros. Poderás ir com eles, distinguir-te e até juntar alguma coisa no saque.

— Faz que me levem, e eu te perdoarei por me haveres trazido cá. Nada mais quero, só minhas esporas e o nome de cavaleiro; depois voltarei para casa.

— O que quiseres, desde que eu não te veja nem te ouça.

— Não tenhas medo. Não ficarei um dia a mais do que o necessário. E desde já te advirto que, se me enredares na corte real ou com qualquer mulher, eu contarei tudo. Compreendes?

— Eu, mostrar um tolo como tu a quem quer que seja? Grande Deus! Ficarei contente quando fores embora.

— Ambos ficaremos contentes.

Terminou a discussão. Nem um dos dois voltou ao assunto, pois ambos se sentiam ofendidos. O escudeiro de Guerce também devia receber o seu quinhão.

— Devias estar louco para contar-lhe tudo — disse-lhe Amalrico, enfurecido. — Bem podes ver quanto mal ele pode causar agora!

— Eu não, vossa Graça; foi a nobre senhora Benigna quem contou.

— Devias ter repetido o que eu disse: que só ela devia saber, mais ninguém!

— Mas eu repeti isso. É que, como o jovem senhor não quisesse vir, a nobre senhora revelou tudo.

— Não queria vir! Não queria vir: — resmungou Amalrico, andando abaixo e acima, na sala. — Quem pergunta a uma criança o que quer? Ela devia tê-lo enviado sem dizer uma palavra. Não terei agora um só momento de paz. Guerce!

— Às ordens.

— Tenho razões para esperar que poderei conseguir que o Príncipe de Trípoli o leve consigo. Irás com ele. O menino nunca esteve em combate, até agora. Olha para que ele não envergonhe a família.

— Não envergonhará, certamente.

— Se possível, não o deixes nem por um instante. Observa todos os seus passos, todas as suas palavras. É capaz de contar tudo. O primeiro que se aproximar e que tiver um pouco de miolo, conseguirá saber tudo desse meu irmão maluco. Ele é capaz de falar. É de teu dever impedir isto.

Tendo dado essas ordens, Amalrico se acalmou um pouco, e quando Raimundo consentiu em levar Guy, dignou-se até a falar calmamente com o desmiolado.

— Não sabes manejar uma espada nem uma lança, mas acho que não levarás muito tempo para aprender. Tens nas veias o sangue de nossa família. Mas deves prestar atenção a tudo quanto o escudeiro de Guerce te disser. Escuta-o como a teu pai. É a ordem que te dou. No começo, quando agitares a lança como se estivesses juntando o gado, esconde-te dos olhos alheios; só depois que adquirires habilidade é que deves ficar à frente, e sempre de modo que os mais importantes cavaleiros te vejam. Então conquistarás as esporas com facilidade. Depois, volta o mais depressa possível. Não respirarei livremente enquanto não souber que estás em casa. Aprendi uma lição para toda a vida: nunca mais ajudar minha família. Gastei muito dinheiro, muito dinheiro! E aí está a tua gratidão. Cada qual deve olhar por si, e por ninguém mais.

Guy ouvia com certo embaraço. Aborrecia-o não poder corresponder aos bons desejos do irmão.

— Por que não casas tu com ela?

— Cala-te! — gritou Amalrico, ameaçadoramente.

— Mas eu não mencionei o nome. Este medo interminável é tolo. Eu perguntei por que não a cortejas tu mesmo? És um cavaleiro, bonito, sensato, polido e muito mais inteligente do que eu.

— Ah! — e Amalrico encolheu os ombros. — Tudo isso não tem relação alguma com aquilo.

Calou-se. Era inútil explicar ao irmão. Aquele menino nunca entenderia o que ele, Amalrico, tinha pensado tantas vezes. Conquistar a coroa para ele próprio? Não haveria o que não fizesse por isso. Aquele homem sóbrio, calculista, tinha enormes ambições. Mas o juízo sólido era o elemento fundamental de seu caráter. Conhecia suas limitações. Não aspirava ao que sabia ser impossível. Podia ter havido um tempo em que os loucos procuravam o impossível e o atingiam; mas isso já acontecera havia muito, muito tempo. Agora era preciso planejar tudo. Tudo na vida precisava ser pesado, prós e contras.

Tal avaliação tinha convencido Amalrico de que seria inútil tentar qualquer coisa, pessoalmente para conseguir a mão de Sibila. Era bonito, sim, mas nada fora do comum. Estava longe de ser belo como Guy, cuja estatura elevada, cujos claros olhos azuis e tez fresca atraíam a atenção em toda parte. Além do mais, Amalrico estivera ali durante anos, era conhecido — era um entre os demais. Nada havia, em sua pessoa, de novo ou de inesperado. Sibila estava acostumada a vê-lo na corte de sua mãe. Nessas circunstâncias era difícil fazer uma mulher paixonar-se.

Mas se Guy quisesse... Não seria má coisa, ser irmão de um rei... Ele, Amalrico, dirigiria seu Conselho, determinaria a política. Quem sabe? Talvez pudesse esposar a viúva Maria Teodora?! Tão agradável e bonita mulher. Ela devia estar enfadada de sua longa viuvez. Não desposaria um cavaleiro comum, mas o irmão do rei, seria diferente... Sobretudo se gostasse de Amalrico — se gostasse de suas boas maneiras. Ele não era bêbedo nem gabola. Ela consentiria. Os Lusignans ficariam aparentados com dois Porfirogenetas reais... Um irmão do Rei, o outro marido da filha de Basileu.

Se ao menos Guy quisesse — tudo seria possível. A história já tinha visto coisas mais estranhas. Tudo seria possível.

E pensar que tudo continuaria a ser apenas sonho, devido à pouca inteligência de um moço inexperiente!


 

12
O ESCUDEIRO DE GODOFREDO DE BOUILLON

 

O patriarca Heráclio abençoou os cavaleiros que partiam com o Lenho da Santa Cruz. O enorme relicário de ouro, engastado de pedras preciosas, fulgurava e resplandecia ao sol. Os Hospitaleiros, como de costume, iam à frente. Beaucéant, o grande estandarte branco e preto dos Cavaleiros Templários, vinha imediatamente em seguida, flutuando junto aos capacetes do Grão Mestre de St. Amand e de seu assistente, Geraldo de Ridefort. Os cascos dos cavalos, golpeando o calçamento, despertavam o eco sob o arco da ponte de Jafa. Alguns dos cavaleiros iam com as ordens militares, mas a maioria devia seguir atrás. As portas de Jerusalém foram fechadas depois que todos saíram, ficando aberta apenas a portinhola lateral.

Geraldo d’Avesnes, guardião de Jerusalém, reuniu dez dos cavaleiros remanescentes e fez uma passeata a cavalo pela cidade, a fim de provar à ralé, pronta sempre para desordens, que ainda haviam ficado forças suficientes para manter a ordem. Tendo feito esta ronda, voltou ao seu posto na torre de Davi. Estendeu-se o silêncio sobre a cidade, interrompido apenas pelos gritos dos mercadores e pelas preces em voz alta dos peregrinos, que, indiferentes a tudo, seguiam o Caminho da Cruz, de joelhos. O Arcebispo, de Tiro tinha partido para o Castelo Kerak, na terra de Moab. O Rei permanecia em seus aposentos e não recebia ninguém; os quatro evangelistas eram o único traço de união entre ele e o mundo. No palácio da Rainha-mãe Inês, cujas janelas davam para o Vale de Josafá, o filho póstumo do falecido Guilherme de Montferrat chorava no berço sob o terno olhar da avó.

Sibila, bela como sempre, já completamente restabelecida, vagava, entediada pelo palácio. Na verdade, a vida a tinha tratado abominavelmente! A vida, pela qual tivera ânsia e desejo, com que sonhara durante a infância no convento, a vida — que lhe dera? Três meses de felicidades, três meses passados com um marido belo, brilhante e apaixonado. Três meses que tinham passado num pestanejar de olhos. Depois, que mais? O luto de viúva, a reclusão forçada, o parto. E dentro de alguns meses, quando terminasse o luto, viria o casamento com aquele Ibelin, correto mas enfadonho. E assim devia ser a sua vida. Ibelin... Já tinha gostado dele, mas agora que era seu noivo, inspirava-lhe apenas aversão. Uma coisa dele se podia dizer: não era importuno. Só o tinha visto duas vezes; na última ele viera, calmo e com inalterável dignidade, dizer-lhe adeus antes de partir. Seus olhos contavam sua fidelidade, sua voz estava cheia de uma honesta emoção, mas aqueles dentes que faltavam, aqueles dentes! Sibila havia achado horrível o infeliz. Ele falava com um som ciciado, e às vezes a saliva saltava através da fenda... E aquele ia ser o seu marido! O seu marido! Dentro de três meses, seu marido! O irmão, aquele desprezível leproso, tinha dito: — “É necessário sacrificar tudo pelo bem do reino”. Mas que lhe importava o reino? Ela queria viver — viver como qualquer mulher. — viver como tinha vivido durante os três meses com Guilherme. Tinha dezenove anos, era bela, e queria viver!

Cansada de ficar em pé, sentou-se por um momento ao lado das damas de companhia que estavam bordando em teares, tal como faziam na França. Falavam na partida da expedição, nos lindos cavalos e nos relicários de ouro.

— E o cavaleiro Ibelin olhava constantemente na direção do palácio — disse a linda e alegre Catarina de la Haye. — O cavaleiro de Lusignan cavalgava ao seu lado.

— O cavaleiro de Lusignan absolutamente não partiu — e Sibila deu risada. — Ele está na cidade. Teus olhos são fracos, Catarina.

— Oh, não, minha Senhora, eu bem vi. O Cavaleiro Amalrico ficou, quem partiu foi o seu irmão que acaba de chegar.

— Irmão? Outro Lusignan? Nunca ouvi falar nele. Que tal é?

— Muito agradável de se ver. Lindo como um querubim! Todo armado, parecia São Jorge. Não havia outro como ele.

— Realmente? Como é que Amalrico nunca o apresentou?

— Talvez por ciúme — sugeriu a morena Mônica d’Avesnes. — Porque ele não é tão bonito.

— Ah, esses homens!

Sibila bocejou alto. A Rainha Inês, com o neto nos braços, entrou na sala. As faixas da criança, soltas, se arrastavam pelo chão. A criança gritava, e a avó lhe falava cariciosamente, sacudindo a cabeça e franzindo os lábios para a frente.

— Olha. Não é uma maravilha? — disse à filha. — Qualquer pessoa vê que, tanto pelo lado materno como pelo lado paterno, tem sangue de reis. Meu queridinho. Meu príncipe de ouro. Meu pequenininho.

— Onde estão as amas? — perguntou Sibila com impaciência. — Não suporto essa gritaria incessante.

— Dá-lhe o peito, minha linda, que ele cessa de chorar. Vê, ele está com fome. Está chupando a mãozinha. Meu benzinho, meu queridinho. Eu trouxe o meu tesouro aqui para que lhe dês de mamar.

Sentando-se num sofá baixo, Sibila pegou com resignação a criança. Tirando o seio redondo e branco com a mão, sentiu todas as tristezas voltarem. Não valia a pena ser bela! Para Ibelin? Para amamentar outros filhos? Vida detestável! Gente insuportável, abominável! Lusignan, por exemplo: importava um irmão bonito e o escondia, apesar de saber que ela estava louca de tédio, de tédio, de tédio.

O menestrel, erguendo alto a cabeça, com o olhar posto no teto de cedro entalhado, cantava como em transe. Não era um menestrel comum, mas um estudante, um poeta vagabundo que sabia muito bem o latim e conhecia o mundo ainda melhor. Gabava-se de não haver uma corte principesca na França em que não tivesse cantado. Dava a entender que não era mal recebido até no próprio palácio real. À sua viola estavam presas fitas, e com um acompanhamento queixoso, cantava um poema antigo. A viúva, princesa Sibila, sua meia-irmã, a princesinha Isabel, Marfa de Reinaldo, Catarina de la Haye, Mônica d’Avesnes, e várias outras senhoras nobres da corte escutavam, ainda mais curiosas porque o poeta relatava as histórias de amor, bem conhecidas, do Cavaleiro Rudo de Blai com a linda Hodierna, Princesa de Trípoli, mãe de Raimundo III e filha do Rei Balduíno II.

— Quando o valoroso cavaleiro — cantava o menestrel numa voz trêmula de emoção — depois de cortar a cabeça de dois dragões e de arrancar as entranhas a cem inimigos, quando, em cento e vinte das maiores cidades já tinha proclamado e estabelecido que não havia nenhuma mais bela que a Princesa de Trípoli, vestiu um gibão de cor brilhante e disse ao seu escudero: Chegou a hora em que eu, o indigno, conquistei o direito de ver seu rosto maravilhoso. — Porque, apesar de amá-la havia vários anos, nunca tinha visto sua dama e só a conhecia através das histórias dos que tinham estado na Terra Santa.

— Na verdade o haveis merecido, muito nobre cavaleiro — concordou o honesto escudeiro.

— Então o fiel de Blai embarcou. Todos ficaram pasmados ao ver que, quase sem ajuda do timoneiro, o navio velejou diretamente para Trípoli. Os ventos, favoráveis aos apaixonados, enfunavam as velas, e alegres delfins nadavam atrás do navio. Assim, toda a natureza se alegra ao ver o verdadeiro amor.

— Chegando à terra, o cavaleiro esperou junto aos muros da cidade. Seu coração ardia com chama mais clara que a cor de seu gibão. E disse ao escudeiro: — Ainda não ouso ver seu rosto. Vai, dize-lhe que aqui estou e que lhe imploro que me envie, como dádiva, a fímbria de seu véu.

— O escudeiro partiu e de Blai ficou sentado junto à mureta, esperando. — Impaciente, seu coração batia como o martelo bate na bigorna. Os que passavam paravam para lhe perguntar: — És um peregrino, estrangeiro, e por que tremes assim?

— E ele respondeu: — O coração me bate no peito de ansiedade, e sou realmente um peregrino — um peregrino do amor.

— A quem amas?

— Àquela que é a mais bela, a mais virtuosa, a mais inatingível.

— Só podes estar falando de nossa princesa — disse aquela gente. — Porque é sabido que nunca foi nascida outra mais linda do que ela.

De Blai empalideceu de alegria e disse: — Falai-me de vossa princesa.

— E eles disseram: — Suas mãos são como o alabastro; suas faces, como o rosado da aurora distante; sua modéstia é uma torre de marfim; sua dignidade é mais alta que as nuvens, a bondade de seu coração mais radiante que o sol.

E o viajante, escutando, ficou arrebatado. Ali estava reclinado, sonhando, quando o escudeiro acorreu, puxou-o pela manga, e gritou:

— Erguei-vos, nobre cavaleiro! Vossa dama se aproxima! Ela, em pessoa, vem ao vosso encontro! Mas faltou ao cavaleiro força para se levantar; mal pôde erguer as cansadas pálpebras.

— Olhai, ela se aproxima — ela se aproxima rapidamente entre suas damas. Não caminha, mas desliza como um esbelto cisne. A testa branca, sob o turbante, resplandece como a lua. O olhar de seus olhos altivos é bondoso. Oh, linda! Oh! inatingível! Oh, perfeita! Mais bela do que em meus sonhos.

— A princesa se inclina para depositar um terno beijo na testa do cavaleiro. Oh, como é fria essa testa. Tal como o rosto, imóvel... O cavaleiro-poeta estava morto. O beijo o matara...

O estudante hesitou, interrompido no meio da frase por um risinho curto e sonoro. Era a princesinha Isabel procurando em vão conter o riso que fazia esvoaçar o véu diante de seus lábios. Sibila olhou-a e riu por sua vez. As outras acompanharam. O riso contagioso da mocidade dominou-as. Todas riram, mesmo a sonolenta Marfa. O cantor ficou cor de púrpura.

— Por Deus, que aconteceu com vossas senhorias? Que aconteceu?

Sacudindo as cabeças, rindo a ponto de lhe rolarem lágrimas pelas faces, elas não puderam responder. O rosto estupefato do cantor despertou novas ondas de alegria. O desesperado menestrel agarrou sua viola e partiu a toda pressa.

— Ela beijou sua testa... e ele... morreu! — ria Sibila.

Inês de Courtenay, que escutava a canção de um aposento vizinho, parou à porta numa atitude de censura.

— Esta brincadeira não fica bem — disse, olhando para Isabel e franzindo o rosto. Só Deus sabe o que ele não vai dizer a vosso respeito. É melhor ter cuidado com os menestréis.

— Oh, minha senhora! — exclamou Sibila. — Como era possível ficar séra? Ele disse que minha avó Hodierna era “tão inacessível quanto as nuvens”.

— Uma torre de marfim.

Inês riu, sem querer,

— É verdade — concordou — que a boa Hodierna dançou mais de uma dança. Assim como o resto de suas irmãs, com exceção de Ivette. E dizem que Raimundo III mandou embora de Blai, secretamente, para evitar escândalo maior.

— Nesse caso, devia haver mais de um de Blai para mandar embora.

— Ele era mais importante do que os outros porque escrevia versos e os teria levado por toda a Europa. Mas parai agora com tanto alarido; a criança precisa dormir.

Ela se afastou. Entrou na sala Reinaldo de Sidon, alegre e sorridente como sempre. Era ele que tinha achado e trazido o menestrel, e apesar de que a sensação produzida pelo canto não fosse a esperada, estava satisfeito por ter divertido as senhoras.

— O pobre moço nunca se conformará — garantiu-lhes. — Queixou-se a mim de que em toda sua vida, jamais encontrou tanto desrespeito. Em regra, quando o ouvem, as nobres senhoras choram ou até desmaiam de emoção.

— Nós também choramos, mas de tanto rir. Dizei-nos, cavaleiro, é possível que as mulheres fossem assim na antiga França.

Ele cofiou a barba, pensativamente.

— Duvido. As criaturas são as mesmas em toda a parte. O sangue é quente em toda a parte. Só os maridos que desejam manter castas as esposas é que lhes põem belos exemplos diante dos olhos.

— Exemplos bem escolhidos... E em que pensareis amanhã para nós, cavaleiro? Afinal, prometestes fornecer-nos divertimento até a volta dos combatentes.

— Que Deus me ajude, eu prometi isso? Que farei se Imad-al-Din oferecer uma longa resistência? Não sei. Entretanto, sede caridosas. Porque amanhã eu tenho uma coisa realmente fora do comum: um homem que tem cento e seis anos de idade.

— Oh, isso é realmente uma coisa bem extraordinária! Um velho de cento e seis anos? Onde o achastes?

— Vós o conheceis bem, minhas senhoras. O venerável velho de barba até a cintura que carrega a espada, atrás do Patriarca, nas procissões cerimoniais.

— A espada de Godofredo de Lorena! Dizem que o velho foi seu escudeiro! Mas também dizem que não passa de um sacristão disfarçado.

— Eu mesmo esfolhei esse gracejo, mas agora sei que fiz mal. O velho não usa disfarce algum. Tem, na verdade, cento e seis anos. Foi outrora escudeiro de Godofredo de Bouillon, nosso primeiro rei. Seu nome é Roberto de Corbier. Amanhã eu o trarei aqui. O velhinho ainda é muito vivo, tem boa memória, e poderá contar-vos muita coisa da história antiga.

— E depois de amanhã?

Ele suspirou profundamente:

— Até agora, ainda não sei. Se até amanhã alguma feliz idéia não me ocorrer, morrerei de vergonha, assim como de Blai morreu de alegria. Adeus, minhas senhoras!

* * *

Roberto de Corbier tinha realmente uma excelente memória. Como acontece com freqüência aos velhos, os acontecimentos mais recentes se confundiam em seu espírito, mas o desenho das recordações mais antigas se tornara mais claro e mais forte. Dispostas num quadro duradouro, escapavam à destruição.

Bem acolhido com vinho, sentou-se numa confortável cadeira de braços e olhou ao redor com curiosidade. Seu rosto trazia um sorriso meio esperto, meio infantil. As mulheres jovens que o cercavam lhe despertavam lembranças apagadas. Mulheres...

— Contai-nos como conquistastes Jerusalém. — facilitou Reinaldo.

— Ahn, que se pode contar, nobres senhoras? Está tudo escrito nos livros. Homens eruditos escreveram tudo. O reverendo Cônego d’Aguilers e o Cônego Foucher de Chartres. O Arcebispo de Tiro também muitas vezes me fez perguntas, e depois assentou tudo.

— O que está escrito, nós sabemos. Entretanto, é sempre interessante ouvir falar alguém que viu tudo com seus próprios olhos. Contai-nos o assalto.

— Ahn, como contar? Estava muito quente, como em geral é aqui no verão, mas ainda não estávamos acostumados. E a água era escassa. Pagávamos dois dinares por meia canada bem me lembro. Andávamos ao redor dos muros em procissão, cantando. Os pagãos, nos muros, gritavam e atiravam sujeiras à cruz. Isto despertava tal horror, tanta raiva e tristeza, que estávamos prontos a morder os muros com os dentes, a derrubá-los com as mãos nuas, só para alcançar os blasfemadores. E no segundo dia fomos ao ataque. Havia três grandes torres. Sobre uma estava o senhor Godofredo com seu irmão, o senhor Eustáquio, e eu com eles. Assim também a princesa da Borgonha com seu marido, o príncipe dinamarquês.

— Contai-nos da Princesa. — disseram as senhoras em coro.

Ele encolheu os ombros, preocupado.

— Não sei grande coisa a respeito dela. Chamava-se Florina; era filha do Duque de Borgonha.

— Nós lemos isso, mas o que mais? Como era ela?

Ele encolheu de novo os ombros. Sabia lá como era ela? Lembrava-se, naturalmente, da pira chamejante, da torre, do capacete caindo de uma minúscula cabeça e da corrente dourada de cabelo derramando-se para fora do capacete... Mas não sabia como contar aquilo. Tinha uma linguagem simples, menos expressiva que sua memória.

— Ela morreu queimada — disse, laconicamente. — A torre estava estalando. Nós todos teríamos morrido queimados, pois não se respirava no fogaréu, se Deus não nos tivesse ajudado com a presença dos mortos.

— Dos mortos?

— Sim. Um exército de fantasmas apareceu na montanha e os muçulmanos fugiram.

— Vistes esse exército de fantasmas?

— Como vos estou vendo, nobres senhoras. E mesmo que eu viva outros cem anos, nunca esquecerei. Nós todos vimos... todos... nós e os sarracenos. Formavam uma hoste. Estendiam-se por toda a colina. O bispo os conduzia. E assim, graças ao seu auxílio, conquistamos a cidade!

Tornando-se grave, parou de falar. O sorrisinho de boba esperteza desapareceu de seu rosto enrugado. Roberto de Corbier ficou olhando, através da janela, o Monte das Oliveiras, visível, à distância, como se estivesse procurando nele os sinais daquele exército de sombras que havia outrora vindo em auxílio dos Cruzados.

Involuntariamente sérias, as mulheres também se haviam calado. A habitual expressão irônica de Reinaldo de Sidon tinha desaparecido. Havia caído numa profunda meditação, como se através de sua consciência passasse a premonição de que menos de sete anos mais tarde, ele, alegre gracejador sofreria morte heróica em defesa da cruz — morte pior, na verdade, que a de seu avô.

O velho bebeu um pouco de vinho, limpou a barba com a mão, e foi o primeiro a quebrar o silêncio:

— Quando entramos na cidade, começou o massacre! Não sei se o Cônego d’Aguilers escreveu a esse respeito, porque era um homem moderado. Certamente nunca houve outro massacre igual... O sangue corria como uma torrente pelas ruas, alcançando o peito dos cavalos. De medo e desespero, os pagãos uivavam como lobos. Uivavam com vozes desumanas. Fugiam para onde podiam, mas não havia salvação para eles. Só alguns foram perdoados no Templum Domini pelo Cavaleiro Tancredo, que mais tarde se tornou Príncipe da Galiléia.

— Tancredo, pelo que sabemos, era um cavaleiro muito bonito? — perguntou Isabel com interesse.

— Nenhum como ele, e forte como um leão. Eu o via sempre, quando passava tempos com o Príncipe Godofredo. Estava com ele quando Belém foi conquistada... E também estive no Monte do Pecado.

— Oh, falai-nos no Monte do Pecado!

— Que posso falar? — O velho careteou, com má vontade. — Demos com ele à nossa volta de Belém. O Cavaleiro Tancredo olhou e mandou que se destruísse aquela sujeira, e nós a destruímos, deixando-a em ruínas desde aquele tempo.

— Que foi que ele viu? Que havia lá?

— Imundície, — repetiu o velho, sem vontade de contar mais.

Em vão as princesas imploraram. O Monte do Pecado lhes interessava mais do que o resto. Aquele estranho lugar estava cercado de escândalo e de temor supersticioso. Segundo a tradição, naquela colina, que não ficava longe de Jerusalém, havia outrora sido elevado um templo erigido por Salomão para suas concubinas. O monumento esquecido e meio arruinado em que o grande monarca tinha passado seus momentos de pecaminosa fraqueza fora erguido e restaurado por Herodes, Rei da Judéia. Ele o havia cercado por um alto muro, para além do qual ninguém passava, a não ser chamado. O próprio Herodes lá estava sempre. Dizia a tradição que, depois do aparecimento da Estrela de Belém, ele se fechara naquele templo para esperar a volta dos três Magos. Também se dizia que foram levadas para lá, durante o Massacre dos Inocentes, as crianças arrancadas às mães, a fim de serem assassinadas. Não era de admirar que pesasse uma maldição sobre um lugar condenado pelo mais horrível crime conhecido na História.

Gente digna de confiança garantia que o acesso à colina era guardado, dia e noite, por demônios. Portanto, era evitada à distância por muçulmanos, sírios, gregos e até mesmo pelos descuidados pastores árabes. Os cavaleiros latinos que tinham vindo com Tancredo haviam feito mais do que destruir o edifício. Haviam serrado os pilares, e todo o teto tinha estalado, bloqueando a entrada sob uma muralha de alvenaria. Desde então as ruínas assim tinham ficado, escondendo o segredo de todos.

E aquele Roberto de Corbier, aquele corcovado e encarquilhado velho, lá tinha estado! E podia contar-lhes tudo! Mas não queria contar. Nem sequer a visão de uma bolsa recheada de dinares pôde tentá-lo. Sacudiu a cabeça numa teimosa recusa.

— Não me lembro — repetiu, abrigando-se por trás de uma declaração impossível de desmentir.

— Mas vos lembrais de outras coisas? — insistiu Reinaldo.

— Lembro-me de outras coisas, mas não dessa.

— Por que?

— Como hei de saber? — O velho refletiu um momento e depois, cheio de convicção, disse de novo: — Imundície. — Imundície — continuou a repetir, ao mesmo tempo que implorava humildemente ao cavaleiro que lhe permitisse ir embora. Viria de boa vontade outra vez, e contaria do Rei Balduíno I. Mas já estava muito cansado. Deixaram-no ir, mas não esconderam seu desagrado pela sua recusa em falar da coisa que mais interessava a todos.

— Por que esses segredos? — queixou-se Sibila. — Estou inclinada a ir a cavalo até lá, qualquer dia, e ver pelo menos a aparência das ruínas. Durante o dia, antes de cair a tarde, quando tocam os sinos, com certeza não há demônios.

— Eu irei contigo! — exclamou Isabel. — E Cavaleiro Reinaldo irá conosco para nos proteger.

— Oh, não! — ele foi muito positivo. — Se as senhoras desejarem absolutamente, eu irei e vos contarei o que vi. Mas hoje em dia, lá só há destroços. Com as senhoras — não.

— Por que? — exclamaram elas, indignadas.

— Não seria correto. Nosso monarca não ficaria satisfeito. É um lugar amaldiçoado, e não fica bem a filhas de reis estarem interessadas em coisas de que nem os guerreiros falam.

— O Rei não precisará saber!

— Nem Ibelin de Ramlah aprovaria tal coisa.

— Eu não pretendo pedir a licença de ninguém, ainda menos de Ibelin!

Reinaldo de Sidon foi incapaz de conter a risada. — Dignas palavras de uma esposa ciente de seus deveres! Seja como for, não posso levar lá vossas senhorias. Como já vos disse, irei só.

— Então, nós iremos sem vós. Eu quero ver aquilo, e verei. Não posso imaginar como é que nunca pensei nisso.

— Poderemos levar Humphrey de Thoron — sugeriu Isabel. — Ele fará tudo que pedirmos e não contará a ninguém.

— Ótimo, Humphrey! Pobrezinho, ficará assustado!

Reinaldo amaciou sua inestimável barba.

— Vejo que apesar de tudo terei que ir convosco — disse, de mau humor. — Sei por experiência que até agora não se achou remédio para os caprichos femininos, e Thoron seria uma proteção insuficiente. Eu não tenho medo de demônios, sobretudo durante o dia, mas pode haver bandidos escondidos nas ruínas.

Elas bateram palmas de alegria.

— Iremos nós quatro! Excelente! Quando?

— Antes que os cavaleiros voltem, para que não haja ninguém de quem nos tenhamos que esconder.

— Mas eu estou amamentando uma criança! — exclamou Sibila com impaciência. — Mamãe nunca me deixará ir! Eu tinha esquecido completamente! Que vou fazer?

— Nada, na verdade — respondeu Reinaldo com alívio. — Vamos adiar a excursão por alguns meses até que sua Alteza possa sair durante metade do dia. Não será preciso mais para a viagem. O Mente do Pecado não fugirá do lugar.

— O monte não fugirá, mas qualquer outra coisa pode acontecer. Todos estarão de volta. Então não poderei ir. É o meu destino! Sempre assim... Sempre perverso. Na verdade, sou a criatura mais infeliz do mundo!


 

13
“PERDOA, IRMÃO”

 

Moab é uma terra estéril. O mar Morto se estende para o Oeste, cercado e coroado de colinas. Num penhasco proeminente, acima das silenciosas ondas salgadas, ergue-se a figura petrificada da mulher de Ló, mãe excessivamente curiosa de Moab. Nesta região, mais do que em qualquer outra, torna-se evidente que Deus não tolera que se espionem seus negócios. A paisagem é árida, ameaçadora, e não afina pelo diapasão das coisas humanas. Tudo que aconteceu nesta terra, através dos séculos, deixou traços. Emim, a raça de gigantes, viveu aqui outrora, arou esses estranhos sulcos e esculpiu essas colinas íngremes. Diz-se que Baal Peor, também chamado Belfegor, sombrio ídolo sedento de sangue humano, trazido pelos assírios, tingiu essas colinas de um vermelho escuro, cor de ferrugem que parecem empapadas de sangue coalhado. Os gigantes partiram há muito e o próprio nome do ídolo Baal foi esquecido, mas as colinas se erguem ameaçadoramente acima da solidão e o vento varre a poeira vermelha, que arde nos olhos dos que seguem nas caravanas. Até mesmo as torres do novo Krak dos francos, surgindo para além das colinas, parecem parte do solo, indestrutíveis para toda a eternidade.

Para quem passa por essa terra, Deus nunca está ausente do pensamento. Como o oceano, o deserto é um elemento, e todos os elementos falam de Deus. Nada existe, além da presença de Deus. Assim pensava o Emir al Bara, voltando de sua peregrinação. Apesar de que seus muitos criados conduzissem camelos ricamente carregados, o velho emir seguia a pé com o resto dos peregrinos. Mergulhado em profunda meditação, não sentia o cansaço. Seu corpo cambaleava de fadiga, seus olhos sofriam intoleravelmente com o resplendor do sol, mas sua alma estava leve, preparada para a Libertação... — Que me prende, ainda, a esta terra? Haverá alguma coisa que eu não tenha experimentado? Meu tempo está cumprido.

Em vão, como a personificação visível dos encantos terrestres e ilusórias e belas imagens tremulavam no ar palpitante de sol, tentavam atrair seu olhar. Bosques sombreados, fontes, tetos e torres, a cidade encantada de Irém, no país de Hadramout, se erguia no ar por obra dos espíritos. O velho Emir olhava a miragem com indiferença. Já não podia seduzi-lo. O único bem de uma vida realizada é o conhecimento de que tudo, com exceção de Deus, vem do nada, é cercado pelo nada, e conduz ao nada. A sabedoria consiste em fechar os olhos e o pensamento, em não se preocupar com coisa alguma deste mundo.

Em redor do Emir, num cordão longo e infindável, seguiam os peregrinos. Seus pensamentos se debatiam sob brancos turbantes: talvez preocupados com Deus, como al Bara, talvez com os rebanhos deixados durante tanto tempo sem proteção, talvez com os lares e as colheitas. Suas atitudes eram graves. Nos dedos, traziam curtos rosários de âmbar. Não sofriam o peso de coisa alguma, pois nada carregavam. Os opulentos tinham as roupas carregadas por camelos e burros; os pobres carregavam-nas as esposas e parentes. Muitas destas humildes mulheres de carga se arrastavam atrás dos peregrinos, curvados sob o peso de pesados fardos de lenha e alimentos, jarras de água, e, freqüentemente, crianças. Todas usavam as mesmas vestes negras, e seus rostos estavam velados. A peregrinação não tinha elevado seus corações, porque apesar de terem estado presentes, dela não participavam. Não era permitido às mulheres entrar no templo. Bastava que vissem de fora, do pátio externo, o teto da mesquita sagrada que ocultava Kaaba, a pedra.

Era mais do que suficiente. Elas não tinham alma. Não tinham responsabilidade, e o Profeta não lhes concedia a capacidade de distinguir o bem do mal. Não compreendiam o que faziam mais do que o burro ou o camelo, e consideravelmente menos que o cavalo.

O sol, descambando para o Ocidente, iluminou as torres do Castelo Kerak com um resplendor de luz sem nuvens. No claro ar das montanhas, elas eram avistadas de longe bem quanto de perto. Os peregrinos ainda caminhariam durante muito tempo, antes de as alcançarem, e muito tempo, depois, antes que tivessem desaparecido da sua visão.

O Emir al Bara olhou para as torres chamejantes de sol com sentimentos difíceis de definir. Seu sangue meio latino o atraía para aqueles francos de que tanto tinha ouvido falar. Não era a primeira vez que isso acontecia. Durante a vida toda tinha desejado secretamente aproximar-se deles. Entretanto, não o fizera, e provavelmente nunca o faria, pois já estava na idade em que o homem procura o repouso eterno. Um momento atrás, tinha pensado que já fizera tudo quanto podia ter feito. Mas tudo, não. Ainda faltava aquilo.

Por que tinha afastado as freqüentes oportunidades para se encontrar com eles? Poderia facilmente ter ido até os francos com uma embaixada, ou com mercadores, ou diretamente, só por curiosidade. Por que não o fizera? Seria por secreto temor ao desencantamento? Seria por medo que não fossem o que sua mãe dizia que eram?

Mãe! O castelo latino no horizonte, a tagarelice sussurrada das mulheres de carga lá atrás, deviam ter trazido a imagem dela aos seus pensamentos. Diferente de qualquer outra, altiva, sensata, exercendo influência sobre quem quer que se aproximasse dela... Uma mulher. Aquelas que se arrastavam lá atrás também eram mulheres. Mas que abismo! Mãe! Ela lhe dissera, certa vez:

— Pensa, meu filho: o desprezo com que tratais as mulheres não é a melhor prova de que vossa fé é inferior à minha? Olha-me e dize: não tenho uma alma igual à vossa?

Na verdade tinha — não só igual, mas superior à de muitos homens. Uma alma valorosa, cavalheiresca. Mas o rebanho de mulheres que se curvava sob os fardos, tropeçando lá atrás da caravana, não se compunha de almas. O Profeta não podia errar.

— O Profeta errou — costumava dizer sua mãe, abertamente. — Conhece minha fé, filho; conhece minha fé! Depois compara ambas, e convence-te.

Ao morrer, ela lhe havia implorado que conhecesse a fé dos francos, e ele tinha prometido. Até então, ainda não cumprira sua promessa.

O sol escondeu-se, caindo lá adiante, no cinzento do mar. As cores amareladas expiraram, ficaram lívidas, frias, cadavéricas. Os peregrinos se estenderam para dormir no chão, aconchegando-se bem perto dos animais para sentirem mais calor, pois as noites eram frias. Os criados do emir enrolaram o patrão em cobertores três vezes dobrados, e deixaram-no só, como desejava. Deitado de costas, ficou contemplando as profundezas de um céu tecido de estrelas, esperando o sono, tecendo o fio de seus pensamentos. Mãe... Quem era ela, afinal? Qual fora seu nome? Como a chamariam os parentes? Podia ser que alguém de sua família vivesse no castelo. Como seria bom poder dirigir-se a esse homem, de mãos estendidas, e dizer:

— Irmão, o mesmo sangue corre em nossas veias.

Sentiu de repente que não havia palavra mais bela no mundo do que “Irmão!” Era mais doce do que “amada” ou “filho”. Era mais nobre do que “ouro”. Como o mundo todo se engrandeceria miraculosamente se cada qual recebesse os outros como irmãos!

O Corão diz (e talvez os sagrados livros dos cristãos digam o mesmo) que todas as criaturas que adoram a Deus são irmãos... Um só Deus... E podia haver dois Deuses? Não podia haver — claro, não podia haver, e a Mãe tinha razão quando dizia que, mesmo que alguém quisesse adorar a outro Deus, não poderia. Sim, sim na verdade, todas as criaturas que adoram a Deus e desejam o Seu reino na terra, são irmãs.

Mesmo que o senhor do castelo não seja do mesmo sangue que o meu, irei procurá-lo amanhã e lhe direi:

— Irmão, fala-me da tua fé.

* * *

É o que farei, pensou o emir al Bara no dia seguinte, quando, ao calor escaldante do sol, entre as nuvens de poeira erguidas pelos peregrinos, eles se adiantaram e as torres do Castelo Kerak se aproximaram cada vez mais. Os peregrinos que caminhavam à frente cantavam o quarto sura do Corão; os derviches, descansados pela noite, erguiam as vozes agudas, cada qual se contrapondo à outra. O idoso emir teve a impressão de que seus gritos estavam mais agudos que de costume; seus guinchos dilaceravam o ouvido dos outros. Eles torciam os corpos, erguendo as mãos com as palmas para cima, agitando-se à esquerda e à direita. Com certeza os guinchos eram contagiosos, porque de súbito todos começaram a gritar como os derviches.

O emir parou, mau grado seu. Não gostava dos derviches. Entretanto, havia qualquer coisa estranha naqueles guinchos. Já se haviam apossado de toda a extensão da caravana. Já eram um horrível lamento. De repente, as primeiras fileiras se movimentaram para a retaguarda, acumulando-se e empurrando os que vinham atrás. Que tinha acontecido? Teria um leão atacado? Parecia que alguém estava atacando pela frente.

Não só pela frente, emir al Bara! Toma cuidado, já por trás e pelos flancos os lamentos aumentam! Na poeira vermelha aparecem cabeças de cavalos, homens de capacetes de aço, o luzir de armas, o som de uma linguagem estranha. Pela espada do Profeta! Não são leões! São os francos!

Os cristãos se precipitavam sobre a multidão de peregrinos desarmados, transpassavam-nos com lanças, espancavam-nos com chuços, lançavam-se para o centro da multidão para separá-la dos camelos e impedir a fuga. As mulheres, atirando os fardos, berravam de medo. Seus véus eram arrancados do rosto pelos assaltantes. Para as mais moças, cativeiro, para as mais velhas, um chuço transpassando o esqueleto. Criancinhas eram arrancadas aos braços das mães.

Mudo de assombro, a princípio, o emir gritou de cólera.

— Traidores, assassinos, carrascos! La Alá el Alá Mohammed Rasul Alá! — Gritando o velho grito da fé que sempre seria a sua, atirou-se contra o mais próximo assaltante. Arrancou a lança e atacou com fúria. Seu exemplo foi seguido. Alguns dos peregrinos, voltando a si do pânico, tinham principiado a lutar contra o inimigo. Lutavam com impetuosa coragem. Mas seus esforços eram inúteis! Que podia um punhado de condenados fazer com as mãos nuas contra espadas de aço? Já al Bara tinha caído. Em breve os remanescentes foram vencidos. A luta terminara. Só haviam ficado mortos e os prisioneiros em grilhões.

A luz se apagava nos olhos de al Bara; entretanto, ainda estava consciente. Total, assustadoramente consciente. Olhou ao redor e o peito do qual se exalava o último suspiro foi agitado por um riso colérico. Durante toda a sua vida, desejara encontrar os francos, e os tinha encontrado, afinal. Agora os conhecia perfeitamente. Eles haviam mostrado o que realmente eram. Não muito longe, estava o comandante do nobre exército que tinha atacado peregrinos desarmados. Sem dúvida, o comandante. Acima dele a bandeira, e, na bandeira, a Cruz.

Se eu tivesse forças bastantes, pensou al Bara, eu me levantaria e cuspiria nela. Oh, Mãe, Mãe; é esta a tua fé?

Como continuava a olhar com desprezo, com tristeza altiva e incomensurável, viu que um homem abria caminho através da multidão. Era evidente que acabava de chegar. Velho, cansado, falava rouco. Tão velho quanto al Bara, com uma barba grisalha. Torceu as mãos, chorou e ameaçou o indiferente cavaleiro que estava sob o estandarte. Corria dos mortos para os feridos e se ajoelhava ao lado deles. Os soldados que atavam os camelos olharam-no, encolhendo os ombros.

As feições manchadas de lágrimas do velho se debruçaram sobre a forma expirante do emir al Bara.

— Irmão! — soluçou, em árabe. — Irmão, perdoa.

— Irmão? — o emir ergueu a cabeça com um esforço. — Irmão?... Tinha sonhado com aquilo durante a noite... Cruel era o despertar.

— Perdoa, irmão — repetiu o velho, como se não soubesse mais nada para dizer. Suas lágrimas caíram no rosto do moribundo, cujos lábios azulados estavam torcidos num sorriso amargo.

— Eu tive mãe cristã... Ela dizia que vossa fé era melhor... Ela mentiu.

— Não! Não! Ela disse a verdade! Irmão, a verdade!

— Por que sois tão vis?

— Oh, irmão, não sei porque... Nossa fé nada tem a ver com isto... Os homens é que são vis, e não Deus!

Guilherme, o Arcebispo de Tiro (pois era ele), poderia falar e argumentar quanto quisesse. O emir Al Bara já não o ouvia.


 

14
“EU SOU O REI”

 

Simultaneamente com a volta do Arcebispo Guilherme a Jerusalém chegou a notícia de uma declaração de guerra, feita por Saladino. O Sultão (assim era chamado entre os francos), revoltado até o íntimo pelo ataque de Reinaldo de Chatillon e pela morte de seu antigo preceptor, tinha ordenado que seu estandarte, o rabo de cavalo de sete tufos, fosse levado diante do palácio e agitado na direção do Ocidente.

— Chega de perfídia! — exclamou. — Darei cabo do reino dos giaours.

Imediatamente, uma “Djihad”, ou guerra santa contra os infiéis, fora anunciada por clarins aos quatro ventos, e todas as forças a pé e a cavalo reunidas em todo o Islam.

Nunca, até então, Jerusalém estivera em tal perigo. Apesar de haverem enviado mensageiros para o norte, a fim de que voltassem de Aleppo os cavaleiros e as ordens militares, parecia certo que, antes de poderem voltar, Jerusalém teria caído. A cidade entrou em pânico. Infindáveis filas de mercadores italianos começaram a fugir com suas riquezas para Jafa. Foram imitados pelos peregrinos. Já tinham rezado bastante e temiam a escravidão. Só a gente do povo ficou a vagar sem rumo pela cidade, a lamentar-se, pois para ela não havia salvação.

Entretanto, o Rei Balduíno IV não perdera a coragem. Durante vários domingos tinha permanecido inerte, afastado do mundo, até ser despertado pelas notícias da tempestade próxima. E se tinha erguido. O cadáver voltara à vida. Com a própria mão imprimiu o grande selo real em inúmeras cartas — editos reais chamando às armas! Para assinar o nome, já não podia usar a mão que se putrefazia, mas aplicava o selo, e por baixo o Arcebispo de Tiro escrevia: — “Dou como testemunho o Inocente Tormento de Nosso Senhor Jesus Cristo de que nosso Monarca selou pessoalmente esta carta”.

Correios levaram as ordens reais a todas as cidades, a todas as fortalezas avançadas do reino. Que todo homem válido se dirigisse para Jerusalém, imediatamente! Que não ficasse em sua terra ninguém da guarnição! Que não se prestasse atenção a coisa alguma, senão ao edito do Rei! O Santo Sepulcro estava em perigo! Chamado do Rei! Chamado do Rei! Às armas, quem quer que tivesse músculos de aço! Deus e o Rei os recompensariam! O plebeu se tornaria nobre! O homem do povo receberia as esporas! Francos, a postos para salvar o Santo Sepulcro! O Santo Sepulcro!

As armas! Às armas! Todos se dirigiriam com o Rei contra o inimigo. Nem sequer se deixaria guarnição em Jerusalém. Não havia necessidade. Em caso de cerco essa força nada significaria, e quem sabe se Deus permitiria a vitória sobre os muçulmanos antes que eles chegassem aos muros da cidade? À toda pressa, as hostes se reuniram, vindas de Belém, de Lida, de Ramlah, de Nablus, de Tiberíade, de Hebron, de Emaús.

Ao Castelo de Kerak, na terra de Moab, nenhum correio foi enviado. O Rei considerava Chatillon um traidor, cujo auxílio não invocaria mesmo naquela terrível situação.

Enquanto esperava a reunião de suas forças, Balduíno mandava que lhe trouxessem da biblioteca volumes sobre a guerra e sobre assuntos militares. O Irmão Lucas sabia ler bem, e mesmo quando ficava rouco, continuava a ler sem parar. Um volume, depois outro.

— Ponha esse de lado — exclamava o Rei. — Não adianta. Pegue outro!

A cabeça do pobre irmão girava. Lentamente, em tom nasal, admirado intimamente e sem compreender que valor tinha aquilo para o Rei, lia César e Tácito, descrições das marchas forçadas de Basil Bulgaroktonos, Nicephorus Phocas, ou João Tzimisces — os imperadores — os feitos de Carlos Magno, a história do Reino de Jerusalém até aquele dia, escritas pelo Arcebispo Guilherme. Talvez o monarca doente e sem experiência, quisesse ao menos saber como tinham os outros guerreado.

Irmão Lucas interrompeu a leitura com um suspiro de alívio quando o Patriarca Heráclio veio pedir uma audiência. Vinha elegante como sempre, mas pálido e alarmado. O Rei cobriu o rosto, porque seu nariz tinha inchado e estava caindo, antes de permitir que entrasse o dignitário.

— Gracioso Senhor — disse o Patriarca — nós resolvemos com sua Alteza, a Rainha-mãe, e com o restante dos cavaleiros, que é necessário ir imediatamente ao encontro de Saladino para dizer-lhe que Jerusalém está sem proteção e entregue à sua mercê, e para pedir-lhe que espere a volta de nossos cavaleiros, pois não seria grande honra ocupar uma cidade sem defesa. Esse pagão é um cavaleiro. Talvez queira esperar. Como não prezo muito minha vida, estou pronto a levar a mensagem.

O Rei ergueu-se da cama.

— Estaria ouvindo bem? Quem resolve sem mim? Que significa isto?

— Gracioso Senhor, sabendo o vosso estado...

— Quem resolve sem mim? — Balduíno estava furioso. — Eu não consinto em embaixada alguma. Orações e e bênçãos com o Santo Lenho são as únicas coisas que necessitarei de Vossa Eminência!

— Pretendeis lutar, gracioso Senhor? Perdoai minha ousadia, mas é loucura! Afinal, sois...

— Leproso? Isso não é da conta de ninguém. Eu sou o Rei. E só eu. Enquanto viver, o reino não ficará sem proteção nem precisará da mercê de ninguém.

— Gracioso Senhor, pensai... onde estão os homens?

— Eu já vos disse que necessito apenas de vossa bênção e não de vosso conselho. Depois de amanhã, com as forças que puder reunir, partirei contra Saladino. O Santo Lenho irá conosco. Vossa Eminência o carregará?

O Patriarca torcia as mãos.

— O Santo Lenho da Cruz? Desejais que ele conheça a desonra? Dá-lo como presa de guerra aos pagãos?

— Não conhecerá desonra, e com ele seremos vitoriosos. Ele nos dará forças, assim como deu a Godofredo e a Balduíno. Pergunto de novo: vossa Eminência o carregará?

— Eu? Eu não me sinto bem. Sabeis, meu gracioso Senhor, que meu fígado doente não me permite andar a cavalo. Na verdade, não posso. Por mais que o deseje, não posso.

— Então ficai. O Bispo Aubert carregará o Santo Lenho. Ele é velho e fraco, mas não se esquivará.

— Não estou procurando esquivar-me — protestou o Patriarca — mas é que não posso. Para ir ao campo de luta é preciso saúde.

— Sim, Eminência, sim! é preciso saúde. Dou graças a Deus por me haver concedido saúde. Passe bem, Eminência. Continuai a ler, Irmão Lucas.

O Patriarca Heráclio, cheio de raiva, se afastou, rangendo os dentes. Aquele louco os perderia a todos!

De novo o Rei interrompeu a leitura.

— Isso não, isso não. Já sabia aquilo de cor. Nada adiantava, naquela crise. — Lede mais alguma coisa, irmão.

— Mas o que, gracioso Senhor?

— Não sei. Procurai.

O Irmão Lucas pesquisou no monte de manuscritos. Como podia saber o que auxiliaria naquele momento?

Confiando na sorte, abriu o primeiro volume que lhe veio às mãos.

— Sobre a morte do bom cavaleiro Josselin de Courtenay — disse ao Rei.

— Lede.

O Rei, tendo recuperado a paciência, estendeu-se de costas e escutou.

— Quando a torre vacilante — leu o irmão Lucas, lentamente — caiu e esmagou o bom cavaleiro Josselin de Courtenay, quebrando-lhe a espinha de modo que nem sequer podia mover-se, ele ordenou que o colocassem numa padiola e o carregassem para o combate. Insistiu com os carregadores para que corressem, pois desejava dirigir o ataque. Assim o carregaram seus cavaleiros, com a bandeira atrás. E à vista da bandeira, os pagãos se retiraram, pois tinham ouvido falar que era o emblema de um guerreiro invencível. Então o bom cavaleiro ordenou que colocassem a padiola no chão e, juntando as mãos ao peito, disse:

— Eu vos agradeço, ó amado Senhor Cristo, pelo que fizestes, forçando os inimigos de Vosso Nome a fugir diante de mim, quando já sou quase cadáver e não me posso mover. Pelo Vosso Socorro na hora da necessidade, por Vossa grande bondade, benevolência eu Vos agradeço de todo o coração.

E, dito isto, o bom cavaleiro morreu.

— Era meu avô — disse o Rei, fechando os olhos.

* * *

Quinhentos cavaleiros, outros tantos escudeiros e homens de armas, com alguns vagabundos e voluntários, juntos quase mil e trezentas pessoas. A cabeça grisalha de Humphrey de Thoron brilhava branca, entre a multidão. Reinaldo de Sidon estava compenetrado. Amalrico de Lusignan se arrependia, no íntimo, por não ter ido para Aleppo. Nada de bom se podia esperar daquela aventura louca. O Rei estava invisível na liteira, pendurada sobre correias entre dois cavalos.

Os irmãos lazaristas, com os hábitos arregaçados, corriam vivamente de um lado para outro transmitindo as ordens que o Rei dava. O grande relicário de ouro do Santo Lenho da Cruz estava erguido bem alto, velado pelo Bispo Aubert de Belém. Por trás dos soldados não seguiam carros nem colunas de provisões. Nada devia retardar a marcha. A galope, os cavaleiros partiriam para cair sobre Saladino antes que ele entrasse nas estreitas gargantas das montanhas da Judéia. Lá, nos limites do reino, parariam. Nos muros da cidade toda a população, com lágrimas e lamentações, se tinha reunido para dizer adeus às hostes que partiam. Só os pobres. Todos os que tinham recursos estavam refugiados em Jafa e lá, a salvo nos tombadilhos de galeras italianas, aguardavam o desenlace da guerra.

Quando o relicário dourado baixou para passar sob o arco dos portões, e saiu da cidade para a poeira do caminho, as lamentações do povo se ergueram num grito de desespero. Algumas pessoas saltaram dos muros para seguir os homens armados. Não queriam ficar sós numa cidade da qual até Deus partia!

— Saladino jamais permitirá que as mulheres sejam tocadas — garantiu Sibila às suas damas de companhia. — Não tendes que temer. Se acontecer o pior, a vida num harém não seria impossível. E dizem que os sarracenos são muito ardentes.

* * *

Os mil e trezentos defensores tinham saído das gargantas da montanha e entrado na que fora outrora terra dos filisteus, e ainda não havia sarracenos à vista. O Rei forçou o avanço. — Para a frente! Para a frente! Vamos combater longe de Jerusalém! — Parando apenas o bastante para descansar os cavalos, chegaram a Ascalão. Lá diante da cidade, viram finalmente o exército de Saladino. Estendia-se num largo crescente desde atrás dos planaltos, desde as gargantas em que Montferrat tinha encontrado a morte; a linha de soldados oscilava com sua floresta de estandartes de caudas de cavalos; uma nuvem de lanças escurecia o brilho do sol. Eram pelo menos cinqüenta mil sarracenos, e quase todos montados em esplêndidos cavalos árabes.

No centro das fileiras, o grande estandarte do profeta luzia como enorme folha verde, ao sol. Lá estava Saladino com seu irmão Turan Shah, com seu primo Farun Shah, e com aquele cabeça oca, seu querido sobrinho Taki-al-Din. Contemplavam com desprezivo pasmo o punhado de cavaleiros no vale. Era aquela a vanguarda dos francos? Onde estava o resto?

Quando os espiões armênios (nunca faltavam, sempre prontos a servir qualquer dos lados) trouxeram a notícia de que aquilo não era a vanguarda, mas o grosso do exército, e que o próprio Rei vinha ali, os comandantes muçulmanos riram alto, mas Saladino ficou pensativo.

— Alegro-me porque reconquistaremos nossa antiga terra com tão pouco derrame de sangue, mas não será uma honra para mim vencer forças tão inferiores. Taki-al-Din, filho de minha irmã, dou-te o comando do exército. Conduze a batalha como quiseres.

Ao ver o olhar admirado de seu irmão e de Farun Shah, acrescentou:

— É bom que os jovens aprendam sob a direção dos velhos.

Taki-al-Din ficou radiante. Saladino retirou-se para sua tenda, pois era hora da oração. O exército preparou-se para a noite. Entretanto, os francos entraram na cidade, fecharam os portões e se prepararam para defendê-la. O jovem Taki-al-Din riu, quando soube destes preparativos:

— Só um louco perderia tempo em fazer cerco contra uma fortaleza sem valor. O tempo é aliado do guerreiro, ou seu inimigo. O tempo está do nosso lado. Deixarei uma pequena parte das forças para observar esses francos, que já armaram uma armadilha a si mesmos, e ocuparei o país que eles deixaram sem defensores.

— Comendador dos Crentes — disse a Saladino que tinha terminado suas preces — permiti que Turan Shah faça cerco aos francos em Ascalão enquanto eu me dirijo rapidamente contra Jerusalém, para a capturar antes da volta do exército que luta contra Imad-al-Din.

— Eu permiti que dirigisses a campanha como quisesses — suspirou Saladino. — Podes fazer isso, se achas que será melhor,

— Estou tão certo da vitória como de que cada letra do Corão é verdadeira.

— Assim seja.

* * *

Turan Shah, governador de Damasco e irmão do Comendador dos Crentes, sentiu-se profundamente insultado. Durante o dia todo ficou sentado em sua tenda, amaldiçoando o sobrinho que o deixara, a ele, velho e experimentado guerreiro, vigiando os francos encerrados em Ascalão, como um cão a vigiar um galinheiro. Como se qualquer outro não pudesse ter feito aquilo — alguém mais jovem. Era inútil pensar num verdadeiro cerco sem catapultas ou escadas de corda. Os muros de Ascalão haviam sido atacados mais de uma vez no passado, e depois de cada cerco tinham sido reforçados e alteados. Eram defesas poderosas. E para que destruí-las quando, dentro de algumas semanas, o mais tardar, todo o reino estaria nas mãos dos discípulos do Profeta?

Bastava apenas cercar a cidade e impedir que recebesse reforços do exterior. Seria aquela missão digna de Turan Shah?


 

15
A VITÓRIA DO SANTO LENHO

 

Aquela terra era tão sem defesa quanto um campo aberto. Os exércitos de Saladino se adiantaram sem a menor oposição. Taki-al-Din estendeu suas forças como uma grande foice, chegando quase a ir de limite a limite; e permitiu que seus soldados saqueassem, pilhassem, destruíssem e fizessem cativos. Saladino manteve sua palavra. Não interveio na direção da campanha. Acompanhava o exército mas não o conduzia. Taki-al-Din era jovem. Ficou envenenado pelo êxito. Não se preocupou ao ver que, distanciando-se dos outros, alguns dos destacamentos perdiam contato com o grosso do exército. Avançava sem sentinelas de reconhecimento, nem patrulhas. Para que patrulhas? O Rei de Jerusalém e seus cavaleiros estavam encerrados em Ascalão, e contra a retaguarda das principais forças dos francos, que lutavam em Aleppo Saladino tinha enviado um exército completamente descansado. Ambos os Zengites, o Sultão de Aleppo e o Atabeg de Moçul, tinham concordado em reconhecer Saladino, já que os defendia contra os francos. De modo que em todo o reino não havia ninguém — ninguém que pudesse colocar-se contra ele; à noite todos se sentavam nos acampamentos, relembrando com gargalhadas a fabulosa lenda dos francos invencíveis.

Ramlah, dos Ibelins, estava deserta. A população tinha fugido. Em Lida, um punhado de pessoas se havia refugiado dentro dos muros fortificados da igreja de São Jorge, a primeira igreja erguida pelos Cruzados na Terra Santa. Todos foram assassinados, e a igreja arrasada. Os muçulmanos continuavam. Alcançaram Tel-Dhar, que os francos chamavam Montgisard. Ali era necessário atravessar a garganta Wadi-al-Dar. Já as primeiras fileiras iam entrando. Por Alá, que arte mágica era aquela? Nos declives, acima de Wadi-al-Kabra, estavam os francos! O relicário dourado do Santo Lenho se elevava acima deles. A pequena guarnição real, cercada em Ascalão, ali estava, impedindo a passagem!

Taki-al-Din, sem poder acreditar nos seus olhos, deu ordens apressadas e confusas. À luta! À luta! Juntar os exércitos! Formá-los em colunas compactas! Ordem fácil de dar, mas difícil de executar. Reunir rapidamente um exército estendido por toda a região, era quase impossível. Roucos apelos de trombetas e agudos assobios encontraram pouca resposta.

Mas como teria vindo o exército de Balduíno IV? Os muçulmanos tinham superestimado a vigilância de Turan Shah, ou antes de seu representante, pois o velho comandante nem sequer se dignou olhar uma vez para a cidade. O povo da cidade simulou preparativos numa parte dos muros, como se estivessem prontos para uma sortida, e quando a atenção dos sitiantes se concentrara naquele segmento, o exército com o Rei e o Santo Lenho se haviam esgueirado, à noite, pela porta sul. Eram tão poucos que puderam fazê-lo sem serem pressentidos. Assim que ultrapassaram as incautas sentinelas de Turan Shah, os cavaleiros tinham esporeado os cavalos na trilha do Sultão. Não deixaram a sela durante toda à noite e todo o dia seguinte.

Para ter a certeza de que o Rei continuava vivo, os irmãos lazaristas, de vez em quando, se debruçavam das montarias para espiar dentro da liteira, violentamente sacolejada entre dois cavalos, e perguntavam:

— Que ordem dá o meu gracioso Senhor?

Mas Balduíno, lutando para emitir a respiração difícil, insistia com eles:

— Mais depressa, mais depressa! Precisamos cortar-lhes o caminho!

E ali estavam, cortando o caminho. Para impedir que os sarracenos os pressentissem cedo demais, haviam virado a oeste, feito um rodeio que aumentara dez léguas ao caminho, mas haviam chegado a Montgisard primeiro. No caminho, encontraram os dois Ibelins com duzentos cavaleiros que vinham correndo em seu auxílio. Apoio inapreciável. Agora, à luta! À luta! Sob a ordem do Rei, as trombetas soavam. Já os lazaristas tinham vestido o Rei com a armadura e fechado a viseira de seu capacete. E o amparavam dos dois lados, porque, abalado pela longa cavalgada, ele não pedia manter-se nas pernas.

— Um cavalo! Um cavalo! Depressa! — gritou. — Não! Esse velho, não! Meu bom cavalo! O de Ain Anjar! Mandei que o trouxessem. Não me digam que ele não veio!

— Gracioso Senhor, é um cavalo bravo. Nunca podereis contê-lo.

— Não vou contê-lo. Quero um cavalo que vá reto até o inimigo! Dêm-me o cavalo de batalha do Rei!

Tremia de impaciência. O irmão Mateus, furtivamente, enxugou os olhos com a manga. Os escudeiros acorreram. As trombetas soaram. Os assobios nas fileiras muçulmanas responderam. Trouxeram o cavalo de batalha, de olhos chamejantes e narinas dilatadas. Um cavalo para um Rei. A sela, preparada de antemão, tinha a parte detrás mais alta. Os irmãos lazaristas, cuidadosamente, sentaram o Rei na sela e com tiras de correia o amarraram ao arção. Colocaram suas pernas impotentes nos estribos e prenderam estes com cordas debaixo da barriga do cavalo. O Rei não podia cair; mesmo que fosse transpassado por uma lança, não podia ser tirado do cavalo.

Em seu capacete havia uma coroa dourada. A mão sem dedos, que se desfazia, não podia agarrar a espada que os lazaristas ataram fortemente à luva de ferro para que formasse uma rígida extensão do antebraço. Ele ainda podia erguer a espada. Olhou para o Bispo que segurava bem alto o Santo Lenho. O tímido velho parecia intrépido, naquele momento. Apegava-se à sagrada relíquia com ambas as mãos. O relicário, apesar de muito pesado, estava preso de tal modo que ficava apoiado pelos estribos e pela garupa do cavalo. Além do mais, o portador do Santo Lenho o havia amarrado ao seu corpo com um cinto. E pelo cérebro de Balduíno relampejou a idéia de que aquele velho amarrado ao Lenho da Santa Cruz, e seu próprio corpo carcomido lutando contra forças dez vezes superiores, tinham grande importância e provavam o poder do espírito, talvez o poder de alguma coisa mais.

Contudo o momento não era para pensar. Não! Balduíno fixou o olhar no Santo Lenho, que tinha carregado o corpo do Redentor. Seus olhos, desacostumados com a claridade, estavam sofrendo com os raios de sol que se coavam através da viseira. À luz clara, o Lenho da Cruz parecia chegar aos céus. As hostes muçulmanas surgiam pequenas, às vezes, outras vezes enormes; primeiro próximas, depois distantes. Os cavaleiros já estavam em ordem de batalha. O Bispo Aubert abençoou as fileiras, inclinando com esforço o relicário sobre elas. Balduíno orava como rezam os homens no momento da morte.

— Senhor, não permitais que o reino pereça em minhas mãos. À Vossa Misericórdia me entrego. Não me falteis, Senhor! Davi não passava de um rapazinho; Golias era um gigante. Senhor, fazei de mim um novo Davi!

Acenando com a cabeça para Balian Ibelin e para Reinaldo de Sidon, que, de cada lado, seguravam as rédeas soltas de seu cavalo, ele ergueu a espada. Atirou-se para a frente com o grito de guerra dos Cruzados, o grito de guerra de Godofredo de Bouillon:

Christus vincit! Christus vincit! Christus imperat!

— Gracioso Senhor! — gritou Ibelin. — Estamos lutando nas minhas terras! Imploro a honra do primeiro choque! — E sem esperar resposta, galopou à frente com seus homens, para onde a massa do inimigo era mais densa, onde adejava o grande estandarte verde. Atravessou as fileiras, rodeou-as, e atravessou-as de novo.

Esta proeza encorajou os outros. E a coroa dourada do Rei luzia na refrega, onde quer que estivesse mais acesa a luta. Era felonia deixar de igualar o Rei em coragem. Os cavaleiros sentiam afluir seus mais íntimos instintos, em que havia o valor de seus antepassados. Lutavam como Cruzados. Lutavam como lutou o Arcanjo. O Santo Lenho resplandecia ao sol, sinal manifesto da graça divina.

Desesperado, Taki-al-Din se atirou como um louco para todos os lados, mas era tarde demais para fazer alguma coisa. Seus guerreiros se tinham acostumado demais à idéia de que nenhum inimigo os defrontaria, e estavam indecisos. Fora impossível reunir mais do que metade do exército disperso, e como, por um toque mágico, os francos haviam chegado até ali, não lhes seria também possível duplicar, triplicar seu número, como diziam ter feito os primeiros francos, nas antigas baladas?

Apesar dos esforços de seus comandantes, as fileiras muçulmanas começaram a bater em retirada; retirada cada vez mais violenta e confusa. Transformou-se a luta em desbarato. Precipitavam-se todos os sarracenos para trás, de encontro às colunas de abastecimento, carregadas de coisas saqueadas e de prisioneiros. Alguns cavaleiros cristãos já tinham lutado até chegar junto dos prisioneiros, haviam cortado seus laços, distribuído armas. A confusão aumentava. Além de tudo, começava a preparar-se um temporal. Um nevoeiro cobria o campo de batalha. O vento uivava; erguia-se a poeira.

Saladino mordia o lábio, montado em seu cavalo. Seria um sonho? Seria ele o vencido? Não havia dúvida de que era uma derrota. Taki-al-Din, infortunado dirigente e amado sobrinho, tinha morrido. Cortado em pedaços pelos cavaleiros. Seu irmão Ahmed tinha desaparecido. Farun Shah tinha morrido. Os francos lutavam como demônios. E quem dizia que o Rei já estava consumido pela doença? Sua flâmula estava visível onde quer que a luta fosse mais encarniçada. Como tinha saído de Ascalão? Maldita, estranha raça! Às vezes impotente, traidora, venal, depois, de súbito, corajosa como um leão, inflamada como o fogo.

Em meio à fuga geral, só o corpo dos guardas mamelucos, de kaftans de cetim amarelo, cercavam Saladino e opunham resistência. Não tentavam fugir. Esses filhos de antigos cativos cristãos, criados à sombra do Sultão, eram homens selecionados cuidadosamente. Leais mastins que sabiam como morrer pelo dono. Nunca bateriam em retirada.

Mas o exército dos francos se voltava agora contra o destacamento mameluco. Balian Ibelin conseguiu abrir uma cunha, isolando o Sultão e seus guardas do grosso do exército desorganizado. Balian Ibelin e Reinaldo de Sidon, segurando ainda as rédeas do cavalo real, dirigindo seus cavalos com os joelhos e as esporas, golpeavam em todas as direções com as espadas. O venerável Thoron, recuperado o vigor juvenil, cavalgava juntamente com eles. Em sua desiludida velhice, nunca pensara que Deus lhe permitiria ainda tomar parte em tal batalha. Nunca imaginara que, naquele mundo baixo e degenerado, tal oportunidade se lhe apresentaria. Seriam os cavaleiros que o rodeavam os mesmos que julgara débeis de vontade e de espírito?

A guarda do Sultão estava sendo despedaçada. O cetim amarelo se transformava em carmesim. O estupefato filho de Ayyub via os olhos chamejantes de cavaleiros francos e suas espadas ameaçadoras. Um pouco mais e seria feito prisioneiro. Saladino, Dominador do Oriente, prisioneiro de Balduíno, o Leproso? Por Alá! Era melhor fugir! E assim, pela primeira vez na vida, o invencível Saladino esporeou o cavalo para fugir. Metade dos mamelucos remanescentes ficou para cobrir sua retirada, a outra metade formou em torno do Sultão, enrolou sua bandeira e, abrindo caminho por uma ala, foi tragada pelo nevoeiro do temporal e pelo crepúsculo que caía. O Comendador dos Crentes salvo pela noite! Galvanizado por um único propósito: fugir à perseguição, mergulhou no deserto sem sulcos da antiga província da Amalek, terra da raça de Simeão.

Nas colinas de Ard-al-Ramlah e Wadi-al-Kabra a batalha continuava, apesar da escuridão e do começo de um aguaceiro. Os francos procuravam liquidar grupos dispersos. Os muçulmanos se deixavam conduzir como rebanhos de carneiros. Saladino fora derrotado — e ninguém sabia o que fora feito dele. Estava morto ou prisioneiro? Taki-al-Din e Farun Shah tinham morrido. Os muçulmanos já não tinham quem os dirigisse. Que é um exército sem dirigente? Nada mais que uma folha seca!

Os que não haviam sido capturados fugiam tão depressa quanto podiam — numa fuga inconsiderada, desordenada, que consumia distâncias — buscando qualquer coisa que pusesse espaço entre eles e o inimigo. Ao se retirarem abandonavam armas e tudo que fazia peso. No dia seguinte, com varas, os francos pescariam nos pântanos de Al Has armaduras atiradas, capacetes, lanças, escudos e carcases.

No campo de batalha, sob um dilúvio de água, à luz das tochas os lazaristas tiram o Rei do cavalo, como outrora os discípulos do Senhor haviam tirado Seu corpo da Cruz. O Bispo Aubert, soluçando, caiu aos seus pés:

— Senhor! Nunca houve uma vitória igual a esta!

Christus vincit — sussurrou o Rei, dentro do gradeado de sua viseira. O irmão Mateus tomou Balduíno pela cintura, atirou seu braço inerte sobre o ombro, enquanto os outros soltaram as cordas que prendiam o Rei à sela. Privado de apoio, ele cambaleou, e estava a ponto de escorregar das mãos de Mateus. Vai cair, o Rei! Próximo, Guy de Lusignan, que tinha vindo com os Ibelins, instintivamente saltou para o amparar.

— Não me toques! — gritou Balduíno. Não era preciso auxílio, pois o irmão Marcos já estava ao seu lado. Os lazaristas colocaram delicadamente o Rei numa padiola. Desprenderam sua espada mas não tiraram a luva nem o capacete. Respeitavam sua vergonha. Havia outros que poderiam ver.

Ecce homo, pensou o Bispo. Cadáver impotente que só despertava piedade, mas a grande vitória era sua, exclusivamente sua. Como é insignificante o homem, e como é grande!

Guy de Lusignan, confuso, ficou de pé a um lado, zangado consigo mesmo. Tinha saltado à frente, instintivamente, esquecendo que o Rei era leproso. Mas poderia um contato através da armadura fazer mal? Certamente que não.

A chuva caía torrencialmente sobre os penedos. Tendo começado naquele temporal, caiu durante dez dias, coisa nunca vista na árida Palestina. Os muçulmanos fugitivos se perderam pelas colinas da Judéia, empapados, com frio e com medo. Vagaram desorientados, no meio de torrentes que se haviam tornado caudalosas e de súbito formavam novos regatos. Esconderam-se em cavernas. Quando raiava a madrugada, alguns deles, duvidando da possibilidade de salvação, se entregavam aos francos.

Saladino, filho de Ayyub, com seus poucos mamelucos fiéis, estava em plena fuga, não para Damasco, onde os francos poderiam facilmente cercá-los, mas para o Egito. Longo caminho, na verdade, para um fugitivo sem alimentos, sem forragem para o cavalo, e que atravessava as areias brancas do deserto. Os cavalos tropeçavam e caíam. O Comendador dos Crentes continuou a pé. E ao passo que caminhava, ia meditando. Naquela ocasião, manifestara-se um poder divino, poder tão terrível quanto os elementos e aos elementos aliados. O poder que diziam ser apenas uma lenda, uma ficção do espírito! Manifestara-se ante seus próprios olhos — mas por que acontecia tão raramente? Por que, possuindo aquele poder divino, o Reino de Jerusalém não era o mais poderoso da terra?

Gritos ferozes interromperam as meditações de Saladino. Nômades beduínos faziam círculo ao grupo minúsculo de fugitivos. Era inútil proclamar quem ali estava ante eles, inútil dar por testemunha o Profeta. Aves de rapina pouco se importam com o Sultão ou com Maomé. Só se importam com o saque. Os enfraquecidos fugitivos estavam ricamente vestidos. Os beduínos pairavam ao redor deles, como gaviões e o grande Saladino teve que puxar a cimitarra e lutar em defesa própria, até derrotá-los.

Finalmente, não longe de Suez, Saladino chegou aos seus postos avançados. Mandou mensagem para o Cairo e parou para esperar a chegada dos cavalos e da comitiva. Turan Shah veio ao seu encontro. O velho capitão se tinha retirado de Ascalão descendo a linha da costa. Estava abatido e com o espírito conturbado, censurando-se pela derrota. Esperava uma justa indignação e uma punição severa. Mas Saladino não disse uma palavra de censura.

— Oh, Turan Shah, filho de Ayyub, as forças contra as quais lutamos não eram deste mundo.

Meio consolado com isto, Turan Shah partiu para o Cairo. De pé, no largo, diante da Mesquita Ibu Tulun, dirigiu uma proclamação à turba ali reunida:

— Alegrai-vos porque o Comendador dos Crentes voltou são e salvo!

O povo ficou calado. Um derviche de voz metálica subiu ao muro esculpido de um poço:

— Por Alá! A salvação de sua vida é a única vitória que o Comendador dos Crentes tem para nos oferecer? Por que não reconhecer honestamente que fostes vencidos?

Turan Shah teve um olhar fulminante para o audacioso homem, mas não era permitido punir um derviche. Evidentemente o povo estava ao lado do gritador. Turan Shah não pôde senão voltar a Saladino e informá-lo do sentimento que havia na cidade.

— Teus inimigos, Comendador dos Crentes, não perderam tempo. Devemos estar em guarda contra eles. O Egito é mais importante do que qualquer outra coisa. Faze a paz com os francos e dedica toda a tua atenção ao Egito.

— É o que farei, Turan Shah.

* * *

Os cavaleiros voltaram triunfalmente para Jerusalém. O Príncipe Raimundo de Trípoli já tinha chegado com o grosso do exército, a tempo de assistir à entrada solene dos vencedores. Os grandes sinos repicavam. A população estava frenética de alegria. Os Hospitaleiros e os Templários não tentavam sequer esconder a tristeza. Não haviam sido igualmente felizes. A expedição a Aleppo tinha terminado em retirada. O Grão Mestre Odo de St. Amand fora morto. Para seu lugar, fora eleito Geraldo de Ridefort (—Lúcifer em lugar de Belzebu — dizia o povo).

Que malfadada expedição! Nada haviam conquistado, tinham perdido bom número de Cavaleiros, e no entanto a carcaça real tinha obtido uma gloriosa, uma esplendorosa vitória. Saladino fugira ante ele!

Encerrado em sua liteira, Balduíno não via os rostos dos triunfadores nem os dos que vinham deprimidos. Uma névoa, mais espessa que as cortinas da liteira, velava seus olhos. Mal podia distinguir os contornos das figuras individuais. Não se refizera do esforço sobre-humano da batalha de Montgisard. Meio cego, mais fraco do que nunca, mas ainda vivo e consciente, estendia-se no leito do qual só se ergueria mais uma vez, quando os irmãos lazaristas o sentariam no trono a fim de receber os enviados de Saladino a quem difereria uma paz de vencedor.

* * *

Balduíno mandou chamar Ibelin de Ramlah.

— Bom camarada, dentro de oito semanas termina o luto de Sibila. Arranja tudo para que possas casar com ela nessa época. Eu ficaria satisfeitíssimo por vê-la casada agora, e tu com as rédeas do governo. Afinal de contas, estou prestes a partir. Fiquei cego. Nem sequer posso ver-te. Mas Deus permitiu que eu te entregasse o reino, não com desonra, e sim com glória.

— Senhor, não há um só de nós que pudesse fazer o que fizestes.

— Foi Deus que o fez, e não eu. Deus teve misericórdia de nós. Apesar dessa vitória, teu governo não será fácil. Há muita preocupação. No Krak Moabita, lá está Chatillon. Ridefort é Grão Mestre dos Templários. Ele é pior do que St. Amand, mais esperto. E, infelizmente, há tão poucos dos nossos! Tão poucos bons cavaleiros! Cada vez ficam menos, daqueles que vieram da terra natal.

Exausto o Rei parou de falar. Ibelin, naturalmente reticente, não disse uma palavra. Depois de um momento, o Rei voltou a falar:

— Que cavaleiro foi aquele que procurou auxiliar-me, depois da batalha? Deve ser novo, pois não estava com medo de me tocar.

— O jovem irmão de Amalrico de Lusignan. Veio para cá, não faz muito tempo, para conquistar as esporas. Ele estava comigo em Aleppo, tem bom sangue, lutou bem.

— Dá-lhe as esporas e o cinto — dize-lhe que eu as mando. O Príncipe de Trípoli pode providenciar a cerimônia. Espera que esse cavaleiro fique aqui, como Amalrico?!

— Ele não deseja ficar meu Senhor. Ele me disse que, assim que ganhasse as esporas, preferia voitar para sua noiva. Ele é muito bonito, e suponho que essa moça tenha medo que alguém o roube.

— Não reparei na sua aparência. É tão bonito assim?

— Oh, muito! — Ibelin chegou a ciciar, no exagero da expressão: —É raro, realmente, ver homem tão belo. E, ao mesmo tempo é um moço bom, de ótimo coração.

— Pena que ele não fique.


 

16
SIBILA, A FEITICEIRA

 

— Por favor, Senhoras, não deveis pedir-me o impossível — protestou Reinaldo de Sidon, zangado.

Mas as princesas não tinham a menor idéia de ceder.

— Vós prometestes, cavaleiro!

— Destes vossa palavra!

— Isso foi há muito tempo. Hoje essa promessa não tem mais significado.

— Como pode não ter significado? Naquela ocasião eu estava amamentando meu filho e não podia ir. Vós prometestes que iríamos assim que ele estivesse desmamado. Vós prometestes. Agora iremos.

— O pequeno príncipe já está desmamado? — Reinaldo ficou estupefato. — Não foi cedo demais?

— Esses assuntos não são da conta de um homem. Que sabeis sobre isso? Desmamei a criança porque gritava o dia inteiro.

— E agora não grita mais?

— Ainda grita, mas pelo menos ninguém me pode censurar por isso. Antes, Mamãe estava sempre a me aborrecer: “Teu leite não é bom, a culpa é tua, não tomas cuidado”, e mais isto e mais aquilo! Sempre era eu... Então, quando vamos?

— Já disse e repito humildemente — não iremos a não ser com o consentimento do Rei ou do Senhor Ibelin.

— Isso é absurdo! Nenhum dos dois o permitiria.

— Eu sei, mas não irei sem o consentimento deles.

— Covarde! Covarde! Tendes medo!

Reinaldo corou, tocado no mais íntimo.

— Não sou covarde, mas devo obedecer à minha consciência.

A disputa era sobre a excursão, planejada havia tempos, ao Monte do Pecado. De vez em quando as princesas voltavam ao plano inicial. Isabel passava cada vez mais tempo com sua meia-irmã. A corte de sua mãe era cerimoniosa e monótona, ao passo que os preparativos para o casamento de Sibila eram extremamente excitantes, curiosos, e, o que ainda era mais importante, Humphrey de Thoron podia encontrar-se com sua querida ali, no palácio de Inês, onde era sempre bem recebido, o que não se dava na corte da Rainha-Viúva Maria Teodora.

Nesse dia, por acaso, Humphrey estava ausente. Havia vários dias que se achava doente, com febre dos dez dias. As princesas, na ausência de seu companheiro habitual, insistiram ainda mais com Reinaldo para que mantivesse sua promessa.

— Se não nos acompanhardes — ameaçou Sibila — vereis o que acontecerá quando formos sozinhas. E nós iremos, juro pelo amor de Deus! Bandidos nos prenderão, exigirão resgate, talvez nos desonrem. O reino perecerá por isso. O reino cairá. Ouvistes? Pelo reino devemos sacrificar tudo, como diz meu irmão leproso. Então é preciso que vos sacrifiqueis! Se recusardes e alguma aventura desastrosa nos acontecer, diremos que a culpa é vossa, exclusivamente. Diremos que trouxestes o escudeiro de Godofredo para nos falar do Monte do Pecado, para agitar nossa curiosidade, e depois, grosseiramente, nos recusastes vossa proteção.

— É provável que estas duas façam tudo isso — pensou Reinaldo. Então, disse: — Fazei o que quiserdes, mas não irei.

Sibila chorou de exasperação. As lágrimas não a desfiguravam. Sabia disso e não tentava escondê-las.

— É assim a minha vida. É assim a minha vida! Sempre a mesma coisa. E por que? Por uma ninharia, um capricho, um capricho tolo, admito, mas nem sequer isto me é permitido. Que foi que a vida me deu? Aqueles três meses com Guilherme... Foi só... Que me espera agora? Tédio, tédio, tédio! Não tenho licença para fazer coisa alguma! Coisa alguma! Quero ir a cavalo até uma milha e meia de distância para ver umas ruínas, e nem sequer isso posso fazer.

Enxugou os olhos com um lenço branco e perfumado. Reinaldo imaginou-a ao lado do rude Ibelin, e sentiu que havia mais do que um pouco de verdade nos lamentos da princesa. Fariam um par bem mal combinado. Pobre mulher! Sua piedade fê-lo abrandar-se.

— Se tendes certeza de que poderíamos ir sem atrair a atenção de ninguém — suspirou ele.

As duas irmãs soltaram gritos de alegria com essa retirada:

— Podemos conseguir isso, claro que podemos. Já planejamos tudo.

— Ninguém descobrirá, nunca?

— Bem cedo, sairemos a cavalo para ir ao convento, visitar vovó Ivette e rezar pelo êxito do casamento de Sibila. No portão, mandaremos embora nossas damas de companhia e pajens, dizendo-lhes que venham buscar-nos antes da noite. Em vez de entrar, iremos ao vosso encontro, sob o muro, onde tereis cavalos à nossa espera. Voltaremos para o convento à tarde. Então, que achais? O plano não é bom?

— Não muito. A segunda volta dará que pensar a todas, no convento.

— Oh, já previmos isso! Uma de nós deixará sua bolsa de esmolas ou qualquer outra bobagem, e voltaremos para buscá-la.

Que esperteza! Não era de admirar que os homens sempre fossem levados pelas senhoras. Os homens são criaturas tão simples de alma! Reinaldo estava começando a acreditar na possibilidade da empresa. Achava melhor, no entanto, que se esperasse até que Humphrey ficasse bom.

— Eu não quero esperar! — exclamou Sibila. — Quem sabe durante quanto tempo Humphrey ficará doente, e o meu casamento será dentro de poucas semanas! Vamos amanhã! Sem mais adiamentos!

— Eu não irei sozinho por coisa nenhuma deste mundo. Deve haver pelo menos dois homens para defender as senhoras em caso de ataque.

— Leve um dos cavaleiros!

— Quem sugeris?

— Plebanus de Boutron!

— Plebanus? Seria mais fácil para mim levar Ibelin numa excursão dessas. A simples menção do diabo é bastante para que ele comece a persignar-se e a olhar por trás das costas.

— O Brise-Barre! É capaz de dar conta de cem bandidos, sozinho.

— Que adianta? um pulso de ferro, mas uma língua de mulher. Ele contaria a todos.

— Amalrico de Lusignan!

— Aquele enjoado! Seria o primeiro a contar tudo ao nosso monarca. Mas esperai. Quem sabe? Tenho uma idéia.

— Que é? Que é?

— Se eu encontrar um cavaleiro adequado, vós, senhoras, jurareis que não revelareis vossa identidade a ele? Eu poderia dizer que sois minhas primas em peregrinação ao Santo Sepulcro.

— Oh, perfeito! Nós vos damos nossa real palavra!

— Então penso que poderei achar um companheiro. Só o que lamento é que ficareis terrivelmente decepcionadas, pois não há o que ver naquelas ruínas.

Despedindo-se das duas princesas, Reinaldo de Sidon se encaminhou tristemente para a casa ocupada por Amalrico de Lusignan. Estava zangado consigo mesmo por ter cedido ante as persuasivas princesas. Por minha própria vontade meti-me numa bela enrascada, pensou, ao deixar cair a pesada aldraba de metal. O porteiro espiou para fora. Reinaldo ficou satisfeito ao saber que Amalrico tinha saído a cavalo para caçar e que o jovem senhor estava só.

Guy não tinha acompanhado seu irmão, pois se preparava para voltar. A fortuna lhe sorrira e ele se sentia alegre como um pássaro. Uma semana antes, tinha ajoelhado diante de Raimundo de Trípoli, que lhe batera no ombro com uma espada! — Ergue-te, Senhor Cavaleiro! — Tinha recebido o abraço do príncipe, e os escudeiros lhe haviam posto as esporas douradas e o cinto prateado. Guy, como os outros, tinha ganho ricos despojos em Montgisard. Sozinho, ele não teria sabido o que escolher, mas o prudente e calculista Amalrico havia pensado pelos dois. Ele e Mateus de Guerce haviam escolhido sete magníficos cavalos árabes, ricamente ajaezados, e quatro carros cheios de coisas de toda a espécie, armas de Damasco, apetrechos de ouro e prata, roupas luxuosas. Guy, pela primeira vez na vida, tinha visto o esplendor do Oriente, a fabulosa riqueza da tenda do Sultão; ficara tonto, maravilhado. Da venda dos despojos, Amalrico deduziu o dinheiro que tinha enviado para a viagem do irmão. Do resto, dera metade a Guy, sem esquecer o escudeiro.

Inesperadamente, Guy se achou dono de uma soma considerável. Isto só lhe aumentava a satisfação. Perdoou a Amalrico por tê-lo feito vir. Estava agora sinceramente grato e o reconhecia abertamente.

Na verdade, a sorte estivera do seu lado! Voltava armado cavaleiro, e com um tesouro. Podia defrontar sem medo o Senhor de Sainte-Croix e pedir a mão de Lúcia. Fora armado cavaleiro por ordem do próprio Rei. Tomara parte na mais gloriosa vitória que o Reino de Jerusalém tinha visto. Tivera ocasião de distinguir-se. E tudo isso graças ao irmão!

— Vai assim que puderes — respondera Amalrico. Tinha esquecido o ressentimento para com sua família e sentia-se mais alegre por ter recuperado o dinheiro. Mas estava ansioso por ver Guy num navio assim que fosse possível. Atormentava-o a constante apreensão de que aquele meninote simplório tagarelasse sobre a verdadeira razão de sua vinda a Jerusalém.

— Partirei depois de amanhã — disse Guy ao irmão, que saía para caçar com Josselin de Courtenay. — As galeras partem de Jafa na quinta-feira.

— Estarei de volta antes, de modo que nos veremos mais uma vez. Que Deus proteja o Santo Sepulcro!

Guy repetiu a saudação, e cantarolando, contente, pôs-se a empacotar a sua parte dos tesouros. Agradável ocupação! Tinha vindo sem nada, com uma única roupa e agora tinha tanta coisa! Ficava especialmente fascinado pelos copos de cristal em que brilhavam as cores do arco-íris, trabalho até então desconhecido na Europa. Empacotou-os cuidadosamente, pensando na alegria de Lúcia quando os visse. Oh, tão querida! Dentro de um mês, com a graça de Deus, estaria ao lado dela. Tinha partido de lá havia três meses e meio. Assim seriam quase cinco meses sem a ver. Ela não tivera tempo de esquecê-lo. Com certeza, não o tinha esquecido. Para ela, aqueles copos de cristal e o broche de pedras preciosas. Para a mãe, usaria aquele turbante com fecho de diamante e diria: — Eu sou um sultão! Ainda é mais do que rei! Então é que haveria gargalhadas! Se ao menos os cristais não quebrassem! Com que arte mágica tinham os pagãos posto o arco-íris dentro deles? Oh, como Lúcia se alegraria! Como ficaria maravilhada!

Absorvido em sua tarefa, não ouviu Reinaldo de Sidon entrar, e se voltou apenas quando o genro do rico Abiram lhe bateu nos ombros.

— Desejo pedir-lhe um favor — disse Reinaldo, imediatamente.

Guy respondeu delicadamente:

— Eu teria grande prazer em servi-lo, nobre cavaleiro, mas vou partir para minha terra depois de amanhã.

— Depois de amanhã? Então, conceda-me o dia de amanhã — implorou Reinaldo. No íntimo, pensou: excelente. Irá embora sem ter tempo de mexericar...

— De boa vontade — apressou-se em dizer Guy. Sentia-se tão feliz e próspero que tinha vontade de ser agradável para com todos. — Que posso fazer?

Reinaldo cofiou sua inestimável barba. Mesmo para um gracejador como ele, não era fácil dizer mentiras a um cavaleiro digno. Que o inferno consumisse todas as mulheres! Por sorte, o jovem Lusignan partiria e nunca descobriria haver sido enganado.

— É um assunto sem importância — começou. — Nem vale a pena, quase, falar nisso. Duas de minhas primas, que aqui vieram em peregrinação, querem ver as ruínas do Monte do Pecado. Já ouviste falar nelas?

Guy não ouvira.

— Não tem importância. Poderei falar-lhe delas a caminho. Ninguém vai até lá por que se diz que são mal assombradas. E não é coisa que as mulheres devam ter curiosidade de ver. Dizem que houve lá, outrora, orgias infamantes. Mas mulher é mulher. Elas dizem que não partirão sem terem visto aquelas ruínas. Prometi levá-las até lá, amanhã.

Guy ficou interessado. Mas em que poderia ser útil se nunca tinha visto as ruínas?

Reinaldo apressou-se a explicar:

— Tenho medo de ir sozinho com as moças, não por causa de fantasmas, mas de bandidos comuns, É preciso que haja pelo menos dois de nós. Humphrey de Thoron devia ir, mas está doente, e as duas moças não querem deixar-me em paz.

— Quer que vá em lugar de Humphrey — exclamou Guy. — Com o maior prazer! Pensei já ter visto tudo em Jerusalém, mas aí está uma novidade para mim.

— Estou tão grato pela sua boa vontade, mas... — disse Reinaldo, mostrando preocupação — não quero que ninguém saiba disto. Mais tarde lhe contarei por que. Como já disse, não fica bem às mulheres nem sequer falar naquele monte; quanto mais ir vê-lo! Minhas pobres primas seriam arrasadas pelas más línguas.

— Dou-lhe minha palavra de cavaleiro que não contarei a ninguém — disse Guy, quase comovedor em sua atitude de nobre firmeza. Era a primeira vez que dava sua palavra, desde que recebera as esporas. No entanto, estava de certo modo admirado diante do segredo pedido pelo senhor de Sidon. Apesar de não ter saído muito, tinha notado que as senhoras de Jerusalém não eram tímidas nem excessivamente preocupadas com o temor do pecado.

Mas, que lhe importava aquilo? — Dou-lhe minha palavra de cavaleiro que não direi isso a ninguém — repetiu, estendendo a mão.

Reinaldo, aliviado, correspondeu ao aperto de mão.

— Presta-me um grande serviço, Senhor Cavaleiro. Quando as mulheres metem alguma coisa na cabeça, não há meio de dissuadir.

* * *

Os cascos dos cavalos retiniam pela estrada. Como era cedo, o calor ainda não estava muito desagradável. Cavalgavam aos pares: Isabel à frente com Reinaldo, Sibila e Lusignan atrás. Isabel olhava decepcionada para o Monte do Pecado. Era uma colina comum, e parecia estar coberta de lixo. Igual a todas as colinas vizinhas. À distância, era difícil distinguir se as ruínas que ali se erguiam haviam sido obra de mãos humanas ou eram enormes pedras ali amontoadas pelos anjos, na época da Criação.

— Garanto a vossa senhoria que, quando nos aproximarmos, não vereis mais do que agora — disse Reinaldo.

Sibila não prestou atenção às exclamações da irmã, pois não estava olhando para o Monte do Pecado. Em vez disso observava cuidadosamente Guy de Lusignan, que vinha ao seu lado. Cathy de la Haye tinha razão: era tão belo quanto um anjo. Mas em que estaria pensando, não dissera uma palavra... Por que?

Em resposta às suas perguntas diretas, Guy respondera com seu sorriso agradável e jovem.

— Vou embora amanhã e já estou com desesperadas saudades de casa — disse, sem olhar para ela. Ficava tímido diante dela. Até então, nunca falara com uma mulher assim. Deviam ser grandes damas, aquelas primas de Reinaldo! Estavam perfumadíssimas. Tinham o resto pintado e as unhas coloridas. A que cavalgava adiante não passava de uma meninota, mas a outra era mais velha. Olhava-o de modo tão estranho, e tinha gestos tão sutis, tão perturbadores. Nem sequer sabia se ela era bonita ou não. Achava que sim, mas tinha a certeza de que, acima de tudo era diferente. Diferente de sua mãe, diferente de Lúcia, diferente de todas as moças que tinha beijado até então. Não era possível compará-la a nenhuma.

Cavalgavam sem falar. Lá na frente, Isabel ria e tagarelava com Reinaldo. Apesar de o Monte do Pecado prometer ser uma decepção, estava satisfeita com o passeio. Ficava divertida com a idéia de que, lá no palácio, todos imaginavam que ambas estavam no convento, orando devotamente pela futura felicidade de Sibila.

— Ouviste, Irmã? Pela felicidade de tua futura vida! Sibila encolheu os ombros bem feitos. Para Isabel, o riso era fácil. O que a esperava na vida era um casamento com um homem aborrecido. O primeiro entusiasmo de Sibila diluía-se em tristeza. Começava a pensar por que fora tão teimosa, em relação àquele passeio. Que poderia dar-lhe? O Monte do Pecado não lhe proporcionaria nada de interessante. Já via que ali não encontraria nada mais do que um amontoado de pedras. O belo rapaz indiferente que cavalgava ao seu lado era como a própria vida — uma vida que ela nunca conheceria, que lhe passava ao lado, apenas. Ia partir no dia seguinte... que felizardo! Que privilegiado! Na terra natal, sua amada o esperava. Amavam-se. Era por isso que, ao falar na partida, surgia tal sorriso em seu rosto.

De mau humor, amargurada, ela baixou os olhos e fixou o olhar nas pedras da estrada cinzenta. Guy aproveitou-se disso para examiná-la cuidadosamente, por sua vez. Viu que era bonita — indiscutivelmente bonita. Como eram delicadas as linhas de seu rosto, como eram longas as pestanas, que pescoço fino! Mas por que estaria tão triste? Também sofreria por alguém que estava longe?

Sibila, erguendo a cabeça, encontrou seu olhar. Ele corou como um menino. Ela não percebera por que, mas o certo é que isso a fez recuperar o bom humor.

— Há muito estais em Jerusalém, Senhor Cavaleiro? — perguntou.

— Quase três meses.

— Tendes gostado daqui?

— Não sois daqui, nobre senhora; portanto, posso dizer-vos francamente que absolutamente não gosto. Nem do lugar nem do povo. Estou contente por ir embora. é difícil acostumar-se a este lugar. O Senhor deve tê-lo escolhido exatamente para aumentar Seus sofrimentos. É um verdadeiro deserto! Nada me poderia convencer a permanecer mais tempo aqui.

— Não gostais daqui — disse ela, lentamente, como se fosse uma decepção.

Ele teve medo que ela não o tivesse compreendido bem.

— Não me queixo, nem o permita Deus — explicou calorosamente. — Eu seria um ingrato se me queixasse. Muito bem me veio daqui. É verdade que Aleppo foi uma oportunidade tola e sem significado: mas Montgisard! Ter tomado parte numa batalha como aquela! É raro, mesmo para um velho soldado, ter essa sorte, e eu que sou moço a tive... Já recebi as esporas. E por ordem do próprio Rei! Estive no Santo Sepulcro e vi a coisa mais sagrada do mundo. E depois da batalha, recebi minha parte nos despojos. Saí de casa sem nada e volto para lá como um cavaleiro de certa posse. Tive sorte em tudo.

— Suponho que devam esperar-vos com impaciência?

— Oh, sim — respondeu ele, ingenuamente. — Minha mãe e minha noiva.

— Tendes uma noiva?

— Tenho! Isto é... — e corou de novo. — Eu não devia chamá-la minha noiva, porque nossos pais ainda não sabem e não deram seu consentimento. Apesar de que isso não seja correto, ficamos noivos em segredo. Mas nossos pais certamente não recusarão, agora que sou cavaleiro.

— Eu ficaria admirada se o fizessem. Vossa noiva é tão bonita como vós?

Ele ficou tão estupefato e confuso que não soube que dizer. Corou a ponto de ficar carmesim, de vergonha. Naturalmente, sabia que era bonito. Tinha visto que o era, nos olhos encantados de muitas moças, de Lúcia, de sua mãe. Entretanto, nunca ouvira uma nobre senhora falar disso com tanta ousadia. Desejou que o par lá da frente voltasse atrás e entrasse também na conversa. Mas, como de propósito, eles não tinham essa intenção. Reinaldo gracejava com sua companheira, dizendo que o padrasto de Humphrey, Reinaldo de Chatillon, não deixaria o moço casar enquanto não tivesse cortado uma centena de cabeças. E, como o pobre rapaz já tinha perdido a sua, não poderia, com certeza, cortar as demais.

Isabel, zangada, refutava a calúnia. Humphrey era tão valente como qualquer outro de sua família — como o pai ou o avô. Não o demonstrava porque tinha disposições pacíficas, mas que aparecesse a ocasião!

Reinaldo abanou a cabeça e aventurou-se a dizer que, se o leão da família Thoron habitava o coração de Humphrey, devia ter sido alimentado com sementes de papoula, pois dormia tão profundamente que nada o fazia despertar.

— Eu adoro minha noiva — disse Guy afinal, sem saber o que falar e achando necessário dar uma resposta.

Sibila não tirava os olhos dele.

— Ambos vos amais, logo vos casareis, e depois?

Ele ficou confuso, novamente. Que pretendia aquela mulher?

— Viveremos no castelo de meu pai. Dos meus irmãos, o mais velho está na corte inglesa, o segundo aqui, o terceiro é aleijado e deve entrar para alguma ordem sacra. Competirá a mim cuidar da nossa propriedade. Como somos quatro...

— E assim passareis toda a vossa vida?

— Se Deus quiser, toda a minha vida.

— E nunca lamentareis nada?

Os olhos de Guy se abriram muito.

— Eu não desejo outra vida. Que poderia eu ter para lamentar?

— Tudo! Terras nunca vistas, aventuras que jamais conhecereis, todas as vidas não vividas!

— Não — respondeu ele, convictamente. — Isso é bom para os menestréis e os cavaleiros errantes que andam pelo mundo todo — não para mim.

— Só as coisas novas, as alegrias desconhecidas merecem que se viva por elas! — exclamou Sibila, apaixonadamente.

Benigna, sem dúvida, não teria concordado, Lúcia não teria compreendido. De modo que Guy se manteve firme nos pontos de vista de sua mãe e de sua noiva.

— Para mim, basta a minha vida. Tal como meus antepassados viveram no castelo, assim viverei eu... nada mais quero.

Sibila deu-lhe um olhar caçoísta.

— Estou admirada de que, com tais idéias, estejais cavalgando conosco. Nesta colina, qualquer malefício nos pode acontecer. Provavelmente, o Cavaleiro Reinaldo esqueceu-se de vos contar que este lugar é mal assombrado?

Guy tinha gênio bom demais para ver malícia em sua pergunta.

— Na verdade, ele falou nisso mas eu não tenho medo de fantasmas. Na nossa família, temos uma tataravó, uma feiticeira, cuja torre está de pé até hoje. Dizem que ela passeia por lá de noite, mas eu nunca tive medo dela.

— Uma avó feiticeira? Contai-me! — exclamou ela, deixando que seu ressentimento, provocado pela frieza dele, cedesse à curiosidade.

Rapidamente, ele contou-lhe tudo que sabia sobre a história de Melusina, a bela mulher-serpente.

— Nunca a vistes? — insistiu ela.

— Nunca. Muitas noites passei por baixo de sua torre, esperando que ela aparecesse, mas isso nunca aconteceu.

— Sabeis como era ela? Sabeis com quem se parecia?

— Acho que ela devia parecer-se convosco — disse ele, sem querer, e ficou apavorado com suas próprias palavras. Tinham escapado. Como fizera aquilo! Tinha comparado uma nobre senhora a uma feiticeira! Reinaldo ficaria ofendido, e com toda a razão... E ela? Não ousava olhar para ela. Mas, na verdade, de todas as mulheres que tinha conhecido, era a única que poderia comparar a Melusina. Tinha uma figura sinuosa, movimentos ágeis, olhos de longos cílios que escondiam um audacioso olhar — olhos que não se sabia se eram pretos ou dourados.

Ao contrário do que temia, Sibila não ficou ofendida.

— Parecia comigo? — e deu risada. — Comigo? Que divertido! Só que eu com toda a certeza vos atenderia, se me chamásseis de baixo da torre.

De novo, ele ficou tão embaraçado que virou a cabeça. Por sorte, Reinaldo puxou as rédeas e disse:

— É melhor desmontar e puxar os cavalos. O caminho está começando a ficar difícil.

Saltou do cavalo e ajudou a companheira a descer, tirando as rédeas de seu palafrém. Lusignan fez o mesmo. Quando ergueu Sibila, ela encostou os seios ao seu peito — leve, ágil, deslizante como uma serpente... Sim! como uma serpente! Subiram a colina, puxando os cavalos e pisando com cuidado para evitar tropeços nas pedras agudas e soltas, que cobriam o declive. Todos tinham ficado silenciosos.


 

17
O MONTE DO PECADO

 

Ao se aproximarem do objetivo, foi-lhes fácil ver que os rochedos que cobriam o Monte do Pecado não eram um acidental amontoado de pedras. No ar claro se viam pedaços de estátuas quebradas, belos capitéis e fragmentos de colunas, dispersos como se tivessem sido arremessados por um terremoto.

Os cavaleiros, afinal, chegaram ao cimo e lentamente começaram a fazer a volta às ruínas, procurando uma brecha pela qual pudessem entrar. Reinaldo se alegrou. Na verdade, não havia o menor motivo para entusiasmo ali. Os fantasmas do Monte do Pecado eram uma fábula. Aquela pilha de caliça não era mal assombrada. Ninguém caminhava ali por fora. Entrar, atravessar os muros caídos, seria tarefa para um gigante.

— Não há nada! Nem fantasmas, nem ladrões! — queixou-se Isabel.

— Isso é porque eu estou aqui e nada sai certo para mim — disse Sibila.

O cavalo de Reinaldo relinchou. Levantou as orelhas. Os dois cavaleiros pararam abruptamente e ficaram em absoluta imobilidade, entreolhando-se. Parecera-lhes que, em resposta àquele relincho, num lugar qualquer, ali por perto, outro relincho abafado respondera.

Um cavalo ali, naquelas ruínas de pedra? Impossível! Seria antes uma alucinação demoníaca. E no entanto Sibila e Isabel sentiram a mão gelada de medo, e ao mesmo tempo emudeceram de alegria, porque alguma coisa ia acontecer.

Reinaldo, que ficara sério, havia tirado a espada. Guy fez o mesmo. Adiantaram-se cautelosamente, olhando em todas as direções. Entretanto, nada ouviram. O silêncio era quebrado apenas pelo som de seus passos e pela batida dos cascos dos cavalos.

Entretanto, não fora uma ilusão. Um cavalo tinha relinchado, pensava Reinaldo, e fantasmas não precisam de cavalo. Um diabo se transformaria num galo, numa cabra, numa velha, numa cobra, nunca num cavalo. Devia haver gente por ali. Bandidos comuns, ou talvez... ismaelitas?

A possibilidade da presença de ismaelitas era bastante para fazer com que Reinaldo tremesse ao pensar em sua loucura. Tinha consentido que as irmãs do Rei viessem ali e as expusera ao perigo. Deviam voltar enquanto era tempo. Voltar o mais depressa possível!

Mas as princesas não quiseram saber de voltar, de modo que continuaram a caminhar com dificuldade. À mão direita tinham um declive íngreme, à esquerda, os muros desmoronados, aparentemente impenetráveis. Outrora, aqueles muros haviam sido cobertos de ricos baixos-relevos e nas lajes dispersas olhavam os rostos cruéis, vigilantes e sorridentes de deuses que ali haviam sido adorados, e que hoje estavam amaldiçoados e esquecidos. Fragmentos de mãos e pernas, ancas de cavalos, jubas de leões, chifres de touros, e finos ornamentos semelhantes a renda sobressaíam dos montes de ruínas.

Tinham chegado quase ao cimo quando acharam uma abertura. Apesar de estreita, aquela fenda nas ruínas empilhadas era suficientemente larga para deixar passar um homem a cavalo. Isabel se precipitou para dentro, antes que Reinaldo pudesse impedi-la.

— Nem um passo avante, Alteza! — gritou, adiantando-se para ela com a espada preparada.

Lusignan amarrou os cavalos apressadamente ao tronco de uma coluna partida, e com Sibila se pôs a correr atrás deles. Mas, antes que pudessem adiantar-se para olhar, um profundo rumor subterrâneo ressoou. Repercutiu como um trovão, baixando e depois explodindo de novo. Vinha acompanhado por prolongados suspiros e movimentos de vôo, que não pareciam humanos mas sim qualquer coisa imunda, infernal, e tão aterrorizante que os quatro fugiram sem uma palavra, as mulheres à frente e os homens atrás, para cobrir-lhes a retirada. O barulho intensificou-se e depois cessou. Pálidos de medo, eles agarraram as rédeas dos cavalos e correram até ao meio do declive, antes de saltarem para a sela.

Sem pensar no íngreme declive, cavalgaram a toda velocidade até em baixo, quando pararam.

— Que foi aquilo? Que foi? — disse Sibila, sem fôlego.

— O diabo, sem dúvida — disse Reinaldo convictamente. — Espero que estejais satisfeita?

— Não! Corremos depressa demais. Quero voltar.

— Eu também. É tão divertido, ficar com medo!

— Voltai, mas não conteis conosco. Nós dois ainda amamos a vida. Não tenho razão, Senhor Cavaleiro?

Continuaram a cavalgar apressadamente, sem falar muito, porque já era tarde.

Levando as duas “primas” até os portões do convento no Monte das Oliveiras, os dois cavaleiros voltaram à cidade.

— Há algum terrível mistério naquele monte — disse Reinaldo. — Com as mulheres para tomar conta, não se podia fazer outra coisa senão sair o mais depressa possível, mas preciso arranjar algumas pessoas, um dia destes, e remexer no meio daquelas pedras. Aquela fenda me pareceu ter sido feita intencionalmente, e um cavalo relinchou. Pelo Santo Lenho, um cavalo relinchou! Onde há um cavalo, há gente e não fantasmas.

— Mas, aquele barulho? — perguntou Guy, cheio de dúvida.

— Num deserto como aquele, o mais leve rumor parece um trovão. Sem dúvida alguma é absolutamente necessário voltar lá.

— Eu gostaria de ir também, se não partisse amanhã — replicou Lusignan alegremente.

* * *

Guy não embarcou em Jafa. No dia seguinte cedo, um estranho pajem lhe entregou uma carta, sem revelar quem a mandava. A carta não trazia selo, mas era perfumada e seu perfume lhe relembrou a excursão do dia anterior. O papel era fino, caro. A caligrafia era audaciosa, nítida:

“Não vos apresseis, cavaleiro, em partir, pois nenhuma galera velejará, saindo de Jafa, nestas duas semanas. Encontrai-vos comigo hoje, no Jardim das Oliveiras”.

Estava assinado: Melusina.

Desta estranha mensagem Guy só compreendeu uma coisa: que a partida tão longamente esperada estava suspensa. Por que? Quem impediria as galeras de partir? E que sabia a prima de Reinaldo a esse respeito, pois era ela, sem dúvida alguma, que havia mandado a carta?

Triste e perturbado, dirigiu-se ao quarto do irmão para lhe perguntar se tinha sabido de semelhantes notícias.

— Como já sabes disso?

Amalrico ficou estupefato. Ainda estava deitado na cama, com dor de cabeça. Tinha chegado em casa tarde, depois de comer e beber em excesso. Não agüentava beber, mas na companhia de Josselin de Courtenay era impossível deixar de o fazer.

— Como o sabes? — repetiu com mal disfarçado aborrecimento. — Como é que tudo se sabe, antes ainda de sair do palácio? Nós voltamos de Jericó na tarde de ontem. De Courtenay nos levou à sua casa para um banquete, para compensar a caçada que foi pobre. Mal nos havíamos sentado à mesa, quando ele foi chamado por Inês — quero dizer — pela Rainha-Mãe. Voltou dali a menos de uma hora e contou-nos que, pela madrugada, devia despachar um correio para o senhor inspetor do porto de Jafa, a fim de que não permitisse que velejasse nenhuma galera até que os coletores estivessem certos de que todas as taxas do porto estavam pagas. Parece que alguém havia contado que alguns navios se faziam ao mar sem fazer os pagamentos. Nós comentamos que os mercadores ficariam loucos de raiva, porque os coletores nunca tinham pressa e mais de um carregamento se estragaria. De Courtenay disse: — Ora, que arrebentem de raiva! Eu não estarei lá!

— Com toda a certeza eles apelarão para o Rei, e o Rei lhes dará razão, mas vai levar pelo menos duas semanas. Como ouviste falar nisto? Conta-me!

— Alguém, na cidade, me contou — disse Guy.

Se mostrasse a carta, teria que narrar a excursão do dia anterior. Para evitar as importunidades de Amalrico, saiu de casa e começou a vagar, sem rumo, pela cidade, entediado e aborrecido. Nos últimos dias tinha começado a olhar a cidade e sua vida à distância, como se já estivesse embarcado. Com o adiamento da partida, não sabia que fazer do tempo. Duas semanas de espera! Davam a impressão de que eram cem. Procurou dominar seus sentimentos, repetindo para si mesmo que não era um tempo muito longo, coisa que certamente não dava motivo a lamentação. Mas um estranho pressentimento, opondo-se à razão, tornava esse adiamento um desastre. Ora, um pressentimento! Tudo por causa de sua saudade.

A prima de Reinaldo, cujo nome nem sequer sabia, e que se assinava Melusina (São Mamede! Ela não teria medo? Não se envergonhava de o fazer?) que escrevia com mais desembaraço do que um homem — melhor do que ele mesmo — lhe ordenara que esperasse por ela ao crepúsculo no Jardim das Oliveiras. Iria? Recusar seria grosseiro; além do mais, valia a pena descobrir como é que ela sabia a respeito das galeras e perguntar-lhe se também sabia em que data o porto ficaria desimpedido.

Encontrá-la no Jardim das Oliveiras? Por que teria ela escolhido aquele lugar sagrado? Naquele Jardim, Nosso Senhor tinha chorado. Ali, Seu suor fora sangrento. Lugar bem pouco conveniente para aquele encontro.

Prometeu a si mesmo que lhe diria tudo isso simplesmente, sem disfarces. Fosse porque fosse, quando, rosada à luz do sol poente, ágil e esbelta, ela se aproximou à sombra das árvores, ele esqueceu sua resolução e observou timidamente que o Jardim não era lugar para outra coisa que não as orações.

Ela riu, descuidadamente.

— Se tivéssemos de recordar todas as coisas que aconteceram, não poderíamos viver em Jerusalém. Escolhi este lugar porque é fresco e tem um pouco de sombra.

Fez um gesto. Ao acompanhá-la, ele teve de admitir que o Monte das Oliveiras e o Jardim eram as únicas coisas verdes naquele cenário de um cinzento pétreo, Além daquelas ali, não havia árvores a não ser em Belém, Emaús, ou Ain-Karim, terra de São João Batista.

O Jardim tinha uma centena de oliveiras, velhas, nodosas e torcidas. Quem olhasse para suas raízes poderosas, corcovadas, enroladas em si mesmas como corpos de dragões, ou para os troncos nodosos, cuja cor e cuja casca faziam lembrar a pedra, acreditaria com facilidade que ali já estavam nos dias de Cristo Nosso Senhor. Sua decrepitude cheia de musgo tinha o imutável das coisas eternas. Um solene silêncio pairava no ar. O chão do Jardim estava coberto por espessa grama verde, salpicada aqui e ali de minúsculas flores vermelhas. A cada passo, havia qualquer coisa para se respeitar e venerar. Sentando-se confortavelmente na curva de uma raiz, Sibila fez gesto a Guy para que se sentasse na grama ao seu lado, e continuou:

— Vós, que viestes aqui por pouco tempo, não podeis imaginar como isto é cansativo! Nem um momento para se viver livremente, para se respirar livremente... compulsão, sempre compulsão. A história sagrada nos esmaga. O mundo desejaria que fôssemos arcanjos porque vivemos junto ao Santo Sepulcro. E não passamos de simples seres humanos. Precisaríamos andar sobre pernas de pau para atingirmos a expectativa dos que vêm da França. Eu não posso suportar pernas de pau (com impaciência, ela bateu com o pé, calçado de marroquim dourado). Quero viver por mim mesma, Deus nos deu só esta vida, e ela foge tão depressa! Quando vejo como passa a vida, estremeço. Antes que eu olhe ao redor, estarei velha, feia. Ninguém me fará recuperar a juventude. E aqui é preciso sempre recordar alguma coisa, sempre lutar contra os próprios desejos. É por isso que não suporto Jerusalém. Nas cidades marítimas, é mais fácil respirar livremente.

Ele escutava, com indisfarçado pasmo.

— Falais como se fôsseis uma nativa, nobre senhora.

Ela corou — criança pilhada ao dizer uma mentira.

— Não, não. Mas como já moro aqui há quase um ano, tenho a impressão de ser nativa. As notícias sobre as galeras o decepcionaram muito?

— Muito, — admitiu ele, francamente. — Nada mais desagradável poderia ter acontecido.

Ela lançou-lhe um olhar de esguelha através dos longos cílios. — Ora, diga-me por que está com tanta pressa de partir? Por que?

Ele se agitou, cheio de impaciência.

— Não vos contei ontem que...

— Vossa mãe, vossa noiva? Eu sei. Mas não vão desaparecer, e durante essa espera podereis passar um tempo delicioso.

— Que me importa!

Ela deu risada.

— Nunca deveis dizer isso antes de saber, Senhor Cavaleiro! Nunca se pode dizer. Antigamente, andáveis à noite, chamando uma avó-serpente. Imaginai que uma feiticeira de verdade apareceu à vossa frente?

Ele ficou olhando, pasmado e, sem saber porque, pensou em Lúcia. Viu à sua frente o rosto rosado, as longas tranças, a jaqueta de marta já gasta, cheirando a campo e a floresta.

— De que me adiantaria uma feiticeira? — gaguejou ele.

— Ainda perguntais? Com sua mágica, ela poderia fazer que as galeras velejassem imediatamente.

Um riso tremia em sua voz. Ela caçoava dele. Era claro. Claro e desagradável.

— Onde está essa feiticeira?

 — À vossa frente.

Ele olhou ao redor, alarmado. Sibila riu até chorar. As lágrimas e o riso nela eram fáceis e vinham muitas vezes confundidos.

— À vossa frente, digo, e não atrás. Não sabeis ainda. Sou eu. Ora, vós mesmo o dissestes ontem. Eu posso transformar-me em serpente. Posso fazer qualquer coisa que eu queira. Como serpente, poderei enroscar-me e estrangular-vos.

Ele se afastou, totalmente apavorado. Seria realmente Melusina que viera procurá-lo? Sibila ergueu-se. Agil, elegante, andava balançando os quadris e agitando a cabeça como a de uma serpente venenosa.

— Como não acreditais, eu vos convencerei. Farei com que as galeras velejem dentro de uma semana, e então puderás embarcar... se quiserdes.

Olhou-o de modo tão tentador e tão cheio de desejo que ele, incerto e totalmente confuso, baixou a cabeça.

— Agora, preciso ir — disse ela. — Vinde aqui amanhã à mesma hora. Poderemos conversar mais tempo.


 

18
O TEMPLO DE VÊNUS

 

Se as duas princesas e os cavaleiros que as acompanhavam tivessem vencido o alarme causado pelo tumulto sonoro que havia rompido inesperadamente o silêncio; se, em vez de fugirem ao Monte do Pecado, tivessem procurado cuidadosamente ao redor, teriam visto uma estreita e bem confortável passagem que descia pelas ruínas abaixo, torcicolando. Seguindo esse atalho, teriam alcançado o coração da caverna e poderiam ficar satisfeitos ao ver que nem uma pedra deixara de ser virada. Nem um único muro fora preservado. O zelo aniquilador dos cavaleiros de Tancredo fora completo.

Vendo isso, os investigadores teriam ido embota satisfeitos e ao mesmo tempo decepcionados. Se pesquisassem mais acuradamente, teriam descoberto uma pequena abertura escura que levava a um templo subterrâneo, mais espaçoso, mais importante que a própria estrutura. Os ardorosos companheiros de Tancredo não tinham descoberto o caminho que descia, ou haviam julgado suficiente cobri-lo com ruínas? Daquela abertura, uma escadaria levava a uma sala vasta e baixa, no centro da qual havia um poço profundo. Devia ser realmente muito profundo, pois uma pedra, atirada lá dentro, caía durante muito tempo antes de quebrar o espelho negro da água. Com uma tocha, era possível debruçar-se sobre ele e, na escuridão vertiginosa, ver rebrilhar o reflexo de uma luz trêmula sobre a superfície despertada.

Ao fundo da sala havia cavalariças com estábulos, provisões de feno e tinas de água. Naquele momento os estábulos estavam vazios, mas sua aparência mostrava que eram freqüentemente usados, e que o relincho ouvido por Reinaldo de Sidon e Guy de Lusignan não fora ilusório. Do teto baixo pendia um estranho objeto, qualquer coisa como uma roda de moinho posta em movimento por uma primitiva maquinaria. À primeira vista era difícil determinar o objetivo daquela invenção. Ao redor da parte externa do poço uma espécie de cilindro talhado na pedra, formando estreita escadaria em caracol que, a intervalos regulares, se alargava em patamares. Desses patamares, longos corredores saíam como raios, conduzindo a celas subterrâneas, e quartos e salas. Havia muitos compartimentos, em intrincada confusão, descendo ao redor do poço até em baixo.

As paredes dos corredores, assim como as das câmaras, eram cobertas por baixos-relevos e pinturas. Naquele eterno crepúsculo as cores não haviam perdido a vivacidade, e iluminadas à luz das tochas, o açafrão vivo, o índigo e o carmim apareciam. Alguns quartos eram estreitos, baixos, provavelmente feitos para servirem como túmulos, ao passo que outros eram espaçosos, com tetos altos, amparados por colunas maravilhosamente esculpidas. Nestas últimas havia bancos de pedra e mesas, assim como altares baixos e redondos com escoamento para levarem além o sangue dos sacrifícios. E se em vez de cavaleiros ingênuos, lá estivessem eruditos ou pesquisadores de fés desaparecidas e de histórias passadas, como o culto Arcebispo de Tiro, teriam verificado imediatamente que o templo subterrâneo não pertencia à época de Salomão, e sim à de Herodes; que era o santuário da deusa da lua, conhecida como Urânia, Ishtar, Isis ou Astartéia, que representava a natureza, a luxúria, a aparência terrena do homem, a cega e fértil vitalidade, e depravação dos sentidos, o abraço com a morte. Teria verificado isto pela ornamentação das paredes em que, entre símbolos astronômicos, no meio de esfinges representando o Conhecimento, a Vontade, o Silêncio, a Áudacia, entre touros e leões, ofereciam repetidas e infindáveis procissões de mulheres, oferendas à Deusa do Amor. Todas essas figuras, lindamente esculpidas e pintadas, tinham idênticas feições e roupas. Suas cabeças estavam dobradas para trás, os pequenos seios mantidos altos, os olhos, à moda egípcia, alongados para as têmporas. Suas longas túnicas estavam abertas desde o pescoço até os tornozelos. Sob essa abertura aparecia um fino avental que caía dos quadris. À medida que as figuras esculpidas se aproximavam do altar, no final do gigantesco friso, jogavam para trás os corpos, como se entregassem a alma e a vida à deusa invisível. A pecaminosa procissão deslizava de parede a parede. Nos planos mais baixos essas figuras cediam lugar a anômalas representações de homens e de bichos. Sua degradação era um desafio. Tudo isso explicava o medo com que Herodes, o adorador da decadente fé greco-egípcia, vira a Estrela de Belém erguer-se e ouvira dizer que Uma Virgem dera à luz o Messias. Também explicava porque os seguidores de Cristo tinham varrido da superfície da terra aquele templo da obscenidade.

Era difícil determinar quantos andares havia naquela estrutura subterrânea à medida que desciam, desciam, cruzavam-se, e os degraus mais baixos desapareciam dentro de um espelho inanimado de água adormecida. Na Judéia, terra tão pobre em água, em que toda fonte era conhecida e guardada, aquele poço esquecido, de que ninguém se servia, causava estranha impressão.

Os andares mais baixos, povoados por aquele mundo de imagens gravadas, estavam cheios de eterna morte e solidão. Nos de cima, um investigador atento teria descoberto traços de freqüentes e talvez constantes presenças humanas, como poeira trazida de fora por botas e tochas meio queimadas. Finalmente, na maior das salas abobadadas, havia bancos confortáveis e com almofadas, uma mesa posta para um banquete e candelabros acesos. Longo e estreito corredor, precedido por um vestíbulo circular, conduzia à sala. Nas paredes se repetiam, infindavelmente, as mesmas oferendas femininas, os mesmos sinais astronômicos e símbolos. Acima da entrada havia uma inscrição gravada de pouco:

Igne Natura Renovatur Integra.

Várias vezes por ano, naquela sala, preparada para a receber, reunia-se uma grande multidão. Esses homens vinham à noite, em pequenos grupos, ou isolados. De rosto coberto, vinham vestidos em capas cinzentas, soltas. No vestíbulo, eram recebidos por um homem alto, coberto como os outros por uma capa, com o capuz caído sobre o rosto. Como os dos penitentes, seus capuzes tinham aberturas para a boca e os olhos. Um grotesco corcunda, carregando uma tocha acesa, ficava por trás do homem alto, que numa voz parecida com a de Geraldo Ridefort, perguntava a todos que se aproximavam:

— Que procuras?

— A flor da acácia.

— Que é a flor da acácia?

— A que está acima é como a que está em baixo.

— Como sabes?

— Fui ensinado pela sagrada letra Gama.

— Quem foi teu predecessor?

— Jasão, o amante de Medéia.

— Que procurava Jasão ao embarcar para a Ásia?

— O Velocino de Ouro.

— Que é o Velocino de Ouro?

— O ornamento dourado dos iniciados, o ornamento de Aetes.

As perguntas e respostas caíam rápidas, sonoras, sem hesitação. Satisfeito, o Mestre do templo subterrâneo permitia aos convivas que entrassem na sala do banquete. De dez a cinqüenta entravam e ocupavam seus lugares, pois nem todos conseguiam comparecer a todas as reuniões. Alguns vinham de longe, de terras estrangeiras, distantes. Freqüentemente, não se conheciam uns aos outros. Quando surgia alguma necessidade, davam-se a conhecer pelo sinal do triângulo que tinham escolhido entre os símbolos que cobriam as paredes do templo. Era fácil de fazer e não atraia a atenção dos não iniciados. Os iniciados formavam um grupo compacto e disciplinado que colocava sua unidade acima das diferenças de fé ou de linguagem. Era segredo, e um segredo bem guardado. Estes homens se reuniam por um comum androginismo do espírito, do qual emanava uma aversão pelas religiões puramente masculinas e monoteístas dos judeus, cristãos e maometanos: o desejo intenso do próprio rebaixamento; o horror aos exercícios e esforços espirituais para chegar à perfeição exigida pela religião. Sua religião era uma revolta contra qualquer coisa criadora, ou compulsória, tudo quanto levava um homem para o alto e o afastava da concupiscência. Uma revolta contra a restrição a todos os desejos conscientes. Acima de todas as coisas, odiavam a Cristo. Odiavam-nO porque, sendo homem, Ele continuava a ser Deus e ordenava à humanidade que aspirasse à divindade. Odiavam-nO porque fora o Redentor, sem que eles o quisessem. Preferindo voltar ao pó nas delícias do amor, não aspiravam à divindade. O bode, encarnação da concupiscência, era-lhes mais caro que o Cordeiro de Deus.

Rejeitando a rigorosa masculinidade na religião, eram inimigos de tudo que daí provinha: organização ordem, legislação, costumes. Consciente ou inconscientemente, ansiavam por destruir. Gabavam-se entre si de serem os vingadores de credos esquecidos, de que o homem faria melhor em permanecer dono da matéria, em vez de ser mortificado pelo espírito. Era por isto que, para todos, a própria pátria era uma abominação, por isto que desejavam abolir todos os limites que dividiam os homens e criar uma irmandade universal — não do espírito, mas da carne.

Chamavam-se a si mesmos a Irmandade do Templo. Como provinham de muitas nacionalidades, seus diversos costumes e cerimônias contribuíam todos para o ritual. Os mais numerosos nas listas da irmandade eram os cristãos e os ismaelitas. Os últimos eram sujeitos ao Velho da Montanha, o terrível dono de Alamut, O Ninho da Águia. Traziam consigo o indispensável hashish, cozimento de cânhamo que dava maravilhosos sonhos e visões. Traziam também uma cega disciplina que, a um aceno do Mestre, não vacilava diante da morte. Os cristãos contribuíam com maior inteligência, maior senso de organização, a consciência mais completa de suas blasfêmias, e tudo isto contribuía para aumentar o sabor do ritual.

Durante mais de vinte anos se mantivera o costume de que o Grão Mestre dos Templários fosse o chefe da irmandade. Desconhecido por todos, muitas vezes sem conhecerem uns aos outros, eram capazes de, pela palavra hábil ou pelo dinheiro bem distribuído, influenciarem em cada eleição da ordem militar, de modo que o cargo sempre recaísse sobre o homem que tinham escolhido. A junção, numa só pessoa, dos cargos de Grão Mestre e de chefe da irmandade, era de enorme vantagem para ambas as organizações.

Além disso, a sensação de que uma irmandade dirigida contra Cristo criara raízes e se desenvolvera ali, ao lado do Santo Sepulcro, numa terra marcada pelos Seus passos, lhes dava um prazer fora do comum. Seu primeiro objetivo era apagar aqueles passos, obscurecê-los com a sombra do esquecimento. Queriam também dominar até a Europa, lá afundar raízes e lutar contra a cristandade em Roma, na França, na Espanha, onde quer que estivesse firmemente estabelecida. Para isso, o apoio dos Cavaleiros Templários era indispensável.

As consultas ainda não haviam começado. O grotesco anão, guarda do subterrâneo, disse qualquer coisa a Geraldo de Ridefort. Gaguejava, e o Grão Mestre se inclinou para perceber suas palavras.

— Andou gente por aqui há dois dias.

— Gente? Quem? — o Grão Mestre ficou perturbado.

— As duas princesas, Reinaldo de Sidon, e outro cavaleiro que eu não conheço.

— Que queriam? Até onde chegaram?

— Chegaram até o pátio, mas eu fiz rodar o maquinismo — e eles fugiram correndo.

O rosto do Grão Mestre se anuviou.

— Fugiram mas podem voltar para descobrir a razão do barulho. Reinaldo de Sidon não é uma velha.

Ficou meditando. Depois disse:

— Amanhã, cobrirás a entrada com caliça e irás para casa, até que eu ordene outra coisa. Eu falarei com o cavaleiro de Sidon e o convencerei para vir aqui, revistar as ruínas.

Acalmado, sentou-se confortavelmente e fez um sinal para que começassem as deliberações. O assunto era a recente vitória do Rei em Montgisard. Causara grande aborrecimento entre os membros da irmandade. O fortalecimento da decadente autoridade do Rei pelo inesperado resultado da batalha havia frustrado seus planos.

— Isso aconteceu durante uma época em que eu estava ausente — explicou o Grão Mestre. — Quem poderia imaginar que ainda houvesse tanta energia naquele corpo pútrido? Não tenhais medo, entretanto. Isso não acontecerá de novo.

— Não deve repetir-se — a assembléia tinha um só pensamento.

Depois, consideraram as dificuldades que Ibelin poderia causar-lhes. Ele procuraria tornar-se um rei bom e sensato. Isso não era satisfatório. Afastá-lo como Montferrat fora afastado não se podia fazer. Despertaria suspeitas. Um acidente é possível. Dois, não. Tudo devia parecer normal, parte do natural curso dos acontecimentos. O fio com que os acontecimentos eram tecidos não devia aparecer. Todos os membros deviam lembrar-se desse princípio, e também de que nem sequer o mínimo pormenor devia ser desprezado, porque o mais insignificante passo poderia aproximar a irmandade da realização de seu objetivo.

Quando terminaram os trabalhos, o banquete começou e com ele a segunda e mais agradável parte da reunião. Geraldo de Ridefort esvaziou de um gole seu copo de vinho, e depois, baixando as pálpebras, esperou o começo. O Rei Balduíno errara ao acusá-lo de esperteza. Na verdade, de Ridefort era um homem tolo e rude, que devia sua reputação de inteligência à irmandade e não a si mesmo. Era atraído para os “irmãos”, não tanto pelos profundos objetivos de destruição mas por uma viciosa e irreprimida conduta.

Naquele instante, com o cérebro vazio, esperava o momento em que as mulheres entrariam, afinal. Havia tantas, no subterrâneo, quantos eram os membros da irmandade. Roubadas entre as mais lindas moças da terra, ali ficavam para sempre. Quando, devido ao abuso, à falta de ar fresco, à exaustão, cessavam de agradar, seus restos eram escondidos entre as pedras e seus lugares preenchidos por novas virgens. Já chegavam, enlouquecidas pelo hashish, numa longa fileira. Como as mulheres esculpidas na pedra, seus rostos eram repuxados, seus olhos alongados, suas vestes abertas desde a garganta até o tornozelo. Eram o friso que tomara vida.


 

19
ENTRE O AMOR E O REINO

 

Invisível por trás das finas cortinas pendentes do alto docel, o Rei estava estendido no leito. Não queria ser visto por ninguém. Seus olhos já estavam fechados para o mundo, mas imaginava como seu rosto devia estar horrível. Já não podia tocá-lo com os dedos insensíveis, mas muitas vezes, durante as longas horas das noites insones e aterrorizadoras, surgiam diante dele monstruosas imagens do rosto que não devia mais ver. Nunca teria confessado a ninguém que isso o torturava. Já se assemelharia ao espectro que vira outrora, um espectro sem rosto humano tendo uma caverna pútrida por boca? Ninguém lhe diria. Os lazaristas, piedosos lhe mentiriam. Privado da visão e do tato, continuava a ter ouvido perfeito e inteira consciência.

— Que Deus proteja o Santo Sepulcro! — saudou Inês.

— Bem-vinda, senhora! Como vai o pequenino?

Ela suspirou profundamente, sentando-se na cadeira que o Irmão Lucas tinha levado mais perto.

— Não está muito bem — admitiu ela — apesar do meu cuidado! Francamente, se não fosse o meu constante cuidado, o pobrezinho não estaria vivo. Nasceu fraco. Não é de admirar, depois de tudo que a pobre mãe passou. Mas agora o menino está mais forte — acrescentou, apressadamente. — Está quase bem, apesar de continuar magro.

— Sua saúde é imensamente importante — respondeu o Rei, com cansaço. Talvez este clima não lhe convenha? Sei o quanto estais ocupada com os preparativos para o casamento, mas assim que Sibila estiver casada, desejo, senhora, que leveis o menino convosco para a praia. Dizem que é mais saudável para as crianças.

— Depois do casamento de Sibila! — Inês agitou-se, nervosamente. Era justamente aquilo. Como dizer? Na dúvida, ela escolheu o meio mais fácil: desatou em pranto.

Balduíno ficou perturbado. Que mais acontecia? Por que choraria ela? Que estaria acontecendo, sem seu conhecimento? Oh, aquela escuridão que o envolvia!

— Por que estais chorando? — perguntou de mau humor.

— Por causa de Sibila... minha queridinha... minha queridinha filhinha adorada.

— Ela também está doente? Ele estava apavorado.

— — Oh, não, tem a melhor saúde possível, graças a Deus, mas... — Inês engoliu as lágrimas e continuou. — Ela não pode casar com Ibelin.

Houve um silêncio completo. Inês parou de chorar e prendeu a respiração para ver o que o filho faria. Estava aliviada por ter desempenhado sua missão. Ele continuava imóvel, estupefato, mas afinal disse, em voz descolorida:

— Não compreendo. Por que?

— Porque ela gosta de outro.

E depressa, antes que ele pudesse responder, ela continuou:

— Ela está apaixonada por um cavaleiro; um cavaleiro melhor do que Ibelin de Ramlah. E é um bom e digno cavaleiro, bravo e...

— Chega de palavras vazias — interrompeu ele, rispidamente. — Sibila desposará Ibelin e mais ninguém. Quem é esse outro cavaleiro?

— Lusignan. Guy: o irmão mais moço de Amalrico. Lusignan. Aquele que se precipitara para o impedir de cair. Essa lembrança lhe atravessou o cérebro.

— Que ela venha a mim, senhora.

— Quem? — perguntou Inês, num fingido espanto.

— Quem? Sibila, é claro.

— Por que? Por que? Ela detesta vir. Sabeis quanto ela é sensível. Desde a infância, sempre foi delicada. Eu lhe direi tudo que ordenardes. Além do mais, que mais pode ela contar-vos? Eles se amam e...

— Chega de palavras vazias — repetiu ele energicamente. — Enviai-me minha irmã imediatamente, ou mandarei a guarda buscá-la.

Inês saiu em grandes passadas, num tempestuoso revoluteio de roupas. Balduíno ficou imóvel, tentando em vão reunir suas idéias dispersas. Aquela notícia havia sido um grande golpe para ele, um golpe esmagador. Por onde começar? Com que palavras impedir àquela louca de destruir o futuro do reino?

Sibila tinha chegado. Imediatamente, percebera sua presença hostil e rebelde. — Calma! — Ordenou no íntimo a si próprio. — Calma!

Ela ficou à distância do leito.

— Este quarto devia ser fumigado — disse, dilatando as narinas com nojo.

— Sei que cheiro mal — replicou ele. — Nós todos cheiramos mal depois da morte. Eu me decomponho em vida. É a única diferença.

O silêncio de Sibila era desdenhoso. Ele esforçou-se por tornar bem distinta sua voz.

— Ainda há pouco, a Rainha-Mãe me disse uma coisa impossível; que, em vez de Ibelin, desejas casar com outro cavaleiro que escolheste. Não posso acreditar que penses seriamente em tal coisa. Deves ver que isso é absolutamente impossível! Pelas chagas de Cristo! Impossível! Tu não te pertences. Tua mão em casamento significa o trono. Ibelin foi escolhido por mim e pelo Conselho de barões. É um homem que todos sabemos à altura. Eu, o Rei, recuso-me a dar permissão para que desposes qualquer outro. Dentro de duas semanas estarás casada com Ibelin.

Os negros olhos de Sibila flamejaram.

— Não me casarei com Ibelin! — ergueu a voz. — Dissestes que não me pertenço? E a quem, se não a mim mesma? Quem vai forçar-me? Quem tem algum direito sobre minha vida? Ninguém! Ouvistes, ninguém! Nem vós, nem o Conselho de barões! Podeis por-me na prisão, podeis matar-me, mas não podeis forçar-me a esse casamento! Pretendeis mandar-me levar presa a grilhões? Eu não suporto Ibelin. Não posso olhar para ele! Já gostei dele, mas agora o odeio. Ele não tem dentes; cospe ao falar; é enfadonho; é repelente. E o outro é bonito... belo... Se ao menos pudésseis vê-lo! Parece S. Jorge! E corajoso, inteligente, valente! Será um rei cem vezes melhor do que Ibelin. Todos o adorarão... e eu o amo! Mais do que amei Guilherme. Eu entraria no fogo por ele. Não podeis fazer com que eu desista dele. Como podeis saber o que significa o amor? Compreendeis essas coisas? E fácil dizer: Casarás com Ibelin. Fácil de dizer! Nunca fostes um homem vivo. Vossos rins nunca foram fortes. Nunca foste forte. Nunca soubestes o que é a paixão! Dizei a uma mulher — uma mulher saudável como eu: desiste do homem que amas, casa com outro, mesmo que seja repelente, porque o Conselho o escolheu. Vamos! Dizei isso!

Abatido pelas palavras arrebatadas de Sibila, ele calou-se. O amor era, na verdade, coisa que nunca tinha conhecido — a doença havia consumido seu desejo antes que ele tivesse despertado — o amor lhe parecia uma força toda poderosa e insensata que podia destruir o Reino e pôr a perder o Santo Sepulcro.

— Escuta — disse com esforço — se soubesses que a tua decisão seria a ruína do reino, ainda persistirias?

— O reino só pode beneficiar-se com a troca — exclamou ela, convictamente. — Que diferença entre Guy — o nome dele é Guy — e Ibelin! Como ele ficaria maravilhoso, usando a coroa! Se ao menos pudésseis vê-lo, ficaríeis convencido, vós mesmo!

— Responde à minha pergunta — interrompeu ele.

— Responderei, desde que insistis. Responderei honestamente. Mesmo que isso significasse a ruína do Reino, eu não me casaria com Ibelin, ouvistes? Minha vida é minha, e ninguém a estragará!

Ele ficou silencioso durante muito tempo e depois disse:

— Irmão João, mandai vir o Cavaleiro Amalrico de Lusignan.

As sandálias do Irmão João retiniram quando saiu correndo. Sibila, exausta, caiu numa cadeira. Fechou os olhos. Apertando o lenço perfumado no rosto, procurou parar de pensar e esquecer aquele cheiro, evocando a visão de seu amado. Isso lhe daria forças para novos combates. Forças para não desanimar! As velas estalavam baixinho. Os três irmãos lazaristas estavam ao redor do leito, mudos, imóveis, testemunhas do drama que se desenrolava.

Amalrico veio imediatamente, honrado e pasmado ante o chamado real. Curvou-se diante de Sibila e olhou com curiosidade em direção ao leito.

— Cavaleiro de Lusignan? — perguntou o Rei.

— Aqui estou, Senhor.

— Cavaleiro de Lusignan, sabeis que minha irmã, Sibila de Jerusalém, a viúva de Montferrat, de acordo com meu desejo e o do Conselho, deve desposar o Cavaleiro Ibelin de Ramlah?

— Sei, gracioso Senhor — respondeu Amalrico, numa estupefação ainda maior.

— Como acontece, então que ela se encontrou com vosso irmão e se apaixonou por ele? Desde quando o código da cavalaria permite a um cavaleiro roubar o coração da noiva de outrem?

— Meu irmão nem sequer conhece a Princesa Sibila! — exclamou Amalrico.

— Não? No entanto, há um momento, ela me disse que deseja casar-se com ele.

— Pela minha honra de cavaleiro, juro que não sabia que os dois se tivessem alguma vez encontrado.

Havia tal sinceridade na voz de Amalrico que Balduíno nele acreditou imediatamente. Sibila levantou-se da cadeira.

— O Cavaleiro Amalrico diz a verdade — confirmou, triunfalmente. — Seu irmão não conhece a Princesa. Ele me ama sem saber quem eu sou. Se soubesse, nem se acercaria de mim.

— Então, quando ele souber a verdade, irá embora.

— Oh, não. Agora é meu, nunca me abandonará. Nada nos pode separar. Tirai essa idéia da cabeça. E não vos aborreçais, porque Guy será um rei perfeito. O melhor dos reis. Haveis de ver! Haveis de ver!

— Podeis ir embora, ambos. Cavaleiro Amalrico, mandai aqui vosso irmão.

— Eu ficarei — protestou Sibila.

— Não! Ide embora, ambos.

Eles saíram do quarto. Amalrico cambaleava de estupefação, completamente perplexo pelo acontecimento inesperado: Guy e Sibila se conheciam e se amavam! Era verdade que, já havia algum tempo, vinha desconfiando que o irmão tivesse alguma aventura. Deixara de falar em voltar para casa, e quando Amalrico a isso se referia, mudava logo de assunto. Sua bagagem, toda pronta e coberta de poeira, estava no pátio. O moço vivia constantemente excitado, completamente fora de si. Amalrico havia pensado que o doce amor de alguma armênia o tinha seduzido, mas durante todo aquele tempo fora a princesa... a princesa!

O destino realizara as audaciosas esperanças que ele, Amalrico, tinha tirado do pensamento, e abandonado havia muito. O Destino!

Sentiu que Sibila lhe repuxava a manga com impaciência. Transtornado como estava, tinha esquecido sua presença, e se apressou em pedir desculpas.

— Não tenho tempo para tolices — interrompeu ela. — Penso, Cavaleiro, que neste assunto ficareis ao lado de vosso irmão e ao meu lado.

— Certamente, Alteza, desde que — acrescentou cautelosamente — isso não esteja em desacordo com minha honra de cavaleiro.

— Não haverá desacordo nenhum. Então, podemos contar convosco. Agora, pensai, como poderemos salvar Guy?

— Salvá-lo de que?

— Não compreendeis? Oh, Deus! Pois, para separar-nos, Balduíno mandará que ele seja preso ou exilado. Precisamos defendê-lo. Precisamos vigiá-lo.

Ele concordou com a cabeça. Sibila tinha razão. Uma mulher apaixonada é mais perspicaz do que o mais prudente dos homens. O Rei ou Raimundo de Trípoli afastaria Guy, com ou sem o seu consentimento. Aquele miraculoso golpe do destino podia ser desfeito tão subitamente como fora armado.

— Não devemos deixar que ele vá falar com o Rei, — exclamou ela.

— Isso é impossível — respondeu Amalrico. — Ele se desgraçaria perante todos. Além do mais, eles não o matarão, nem o guardarão no palácio, preso. Isso é certo. Qualquer coisa semelhante só acontecerá mais tarde.

— Vamos procurar minha mãe! Vamos pedir-lhe conselho!

Foram juntos. Inês estava à espera da filha, muito nervosa. Como sempre, o Patriarca Heráclio e o Grão Mestre de Ridefort estavam com ela. Incapaz de esconder fosse o que fosse, já lhes havia contado tudo sobre o romance de Sibila, e a Princesa foi recebida com simpatia e compreensão.

— Mãe, dize-me o que devo fazer! O rei não consentirá. Nunca. Ele já deu ordens para que Guy fosse levado à sua presença. É certo que vai mandá-lo para a prisão. Ajuda-me!

Amalrico interpôs-se, judiciosamente: — Não creio que nosso gracioso Senhor prive da liberdade um cavaleiro que não tenha transgredido nenhuma prescrição. Temo, entretanto, que lhe ordene que saia do reino, ao que certamente meu irmão obedecerá.

— É a mesma coisa. Se o afastarem de mim, eu morrerei! Morrerei! Oh, meu Deus! meu Deus!

Ela escondeu o rosto no amplo peito da mãe e ambas desataram em lágrimas. Do outro lado da parede, o filho de Sibila chorava com a monotonia dolorosa de uma criatura doente. O Patriarca Heráclio suspirou, ante essa nova e imprevista preocupação. Detestava as complicações da vida. Já estava preparando um serviço solene e bonito para o casamento de Sibila. Haveria novo adiamento. Amalrico nada dizia, revirando na cabeça toda espécie de planos, nenhum dos quais parecia realizável. Com surpresa, viu que o rosto habitualmente sombrio do Grão Mestre se coroava de sorrisos. Ridefort dizia:

— Quem não se apiedaria de um casal tão jovem e tão apaixonado? Não choreis, Princesa. Tomarei vosso amado sob minha proteção.

Fez um sinal a Amalrico, e juntos saíram do palácio.

* * *

Já fazia algum tempo que Guy estava de pé, no centro do quarto, mas o Rei continuava calado. Não se importava, pois aquilo lhe dava a oportunidade de examinar o lugar que via pela primeira vez. Lindas e ricas salas, mas aquele cheiro! Cheiro de carne pútrida! No leito encortinado jazia um cadáver, que envenenava o ar.

Mas o cadáver estava pensando. A poucos passos está o homem que Sibila ama... Ela diz que, se eu pudesse vê-lo, acharia que sua escolha é boa. Dizem que é bonito. Todo homem saudável é bonito, ainda que seja apenas por não estar apodrecendo. Uma pele sadia é rija; tem um cheiro viril, agradável. Gente saudável se ama, tem força e alegria. — Tão bonito, tão belo — tinha Sibila repetido. Que faria esse belo cavaleiro se eu lhe dissesse para se aproximar e tocar-me com as mãos? Obedeceria? Quem sabe? Talvez. Seria em breve leproso como eu. Sibila desistiria dele imediatamente. Ela o desprezaria como me despreza. Que fácil saída! Não! Os lazaristas o impediriam de fazer isso, apesar de minhas ordens. E mesmo que não o impedissem... teria eu... coragem para tanto?

Finalmente, o longo silêncio se tornou penoso demais. O cadáver mexeu-se e falou.

— Depois da batalha de Montgisard, quando me tiravam do cavalo, vós acorrestes para mim, Cavaleiro, esquecendo minha doença. Foi um ato generoso, apesar de imprudente. Por tal, sabendo que Vos havíeis portado bem no combate, pedi ao Príncipe de Trípoli para vos armar cavaleiro. Pelo que sei, estais conosco apenas há poucas semanas. E já estais armado cavaleiro, coisa pela qual alguns esperam anos.

— Por isso vos serei sempre grato, meu Senhor — afirmou o moço calorosamente.

— Após receberdes as esporas de cavaleiro, não devíeis deixar o país?

— Assim devia ser, meu Senhor, mas as galeras adiaram a viagem.

— De então para cá, a interdição foi afastada. Que vos prende agora?

E como o jovem cavaleiro corou-se e não respondeu, o Rei continuou:

— Estais apaixonado? Qual o nome dela?

Guy continuou em silêncio. Pelos ossos de São Mamede! Não podia expor a honra de uma mulher que nele havia confiado! O Rei que perguntasse quanto quisesse. Nada ficaria sabendo.

— A mulher que amais esteve aqui há um momento. Ela me contou que deseja casar convosco. Eu a conheço bem. Bem demais! Podeis falar abertamente. Estou ouvindo.

— A prima de Reinaldo de Sidon — gaguejou Guy, de má vontade.

— Onde vos encontrastes?

— Não posso dizer-vos.

— Como é o nome dela?

— Não sei.

— Estais apaixonado por ela e não sabeis seu nome?

— Ela me ordenou... me ordenou que a chamasse Melusina.

— Que significa isso?

— É o nome de mãe dos Lusignans, que...

— Que mais sabeis a respeito dessa mulher?

— Ela chegou aqui há uns seis meses... Um irmão cruel quer dá-la em casamento a um homem que ela não ama.

— Ah! Suponho que prometeste salvá-la desse destino?

— Sim, meu Senhor.

— Pois sou eu o irmão, e essa mulher é minha irmã, a Princesa Sibila.

— Pela Inocente Paixão do Senhor!

O pasmo de Amalrico não fora menor que o de seu irmão. Melusina, tentadora, feiticeira por quem tinha esquecido Lúcia, e a volta ao lar; Melusina dos lábios chamejantes, de atitudes ágeis, dos olhares audaciosos — era a Princesa! A Princesa com quem Amalrico havia desejado casá-lo, a Princesa que estava noiva de Ibelin... Sibila!

— Eu não sabia — gemeu, desesperado.

— Eu sei. Ela vos mentiu. Agora já o sabeis. Sabeis também que o marido de minha irmã deverá ser rei e governar este país em tempos verdadeiramente difíceis... Dizei-me, por vossa honra, por vossa consciência: sentis que sois capaz de reinar?

— Não! Não! — exclamou Guy. — Eu não saberia! Eu não quero!

— Também sou da mesmo opinião. É uma tarefa ingrata, que exige anos de preparação e o conhecimento das criaturas. Agora, que pretendeis fazer?

Guy não podia falar. Compreendia o que o Rei desejava. Devia partir! Partir imediatamente. Apagar da memória as três últimas semanas e voltar para casa. Mas como poderia fazê-lo? Penoso, penoso, penoso.

Melusina era Sibila. Ibelin era seu noivo. Ibelin de Ramlah que o tinha tomado sob sua proteção, quando se dirigiam para Aleppo. Juntamente com Mateus de Guerce, ele é que lhe havia ensinado a arte da cavalaria. Ibelin, cavaleiro inatacável, honrado... Era preciso partir.

— Eu voltarei para minha terra. — disse com grande esforço.

— Eu vos agradeço. Sois um bom cavaleiro. Parti para Jafa hoje. Eu vos darei criados, cavalos, carroças... tantos quantos necessitardes. A galera velejará assim que lá chegardes.

— Posso despedir-me... dela? — perguntou Guy, com hesitação.

— Não! Ela vos impediria de partir. Nunca vos deixaria partir. Ide, imediatamente. Não temais por ela. Nada a ameaça. Ela sofrerá durante alguns dias, depois esquecerá.

— Como posso partir sem dizer adeus? — protestou Guy, fazendo beicinho como criança.

— Não saireis deste quarto enquanto não me prometerdes, como cavaleiro, que não a vereis e que partireis hoje. Se cavalgardes a noite toda, alcançareis Jafa pela manhã. Embarcai no porto, imediatamente. Em qualquer caso, eu darei as ordens necessárias.

— E se... se ela?

— Tendes medo que ela morra de desespero? Não temais isso, eu conheço minha irmã. Dai-me vossa palavra, Cavaleiro.

— Eu partirei hoje sem falar com ninguém.

— Que Deus vos pague por isto!

O Rei, exausto, cessou de falar, mas Guy, dominado por seus pensamentos, ficou parado. Tinha a impressão de que seu sofrimento ultrapassava tudo que pudesse suportar, que precisava chorar alto, angustiado, que nunca seria capaz de cumprir o juramento... Depois, teve de novo a sensação de estar saindo de um pesadelo. Teve consciência de um sentimento de alívio. Naquele instante, amava apenas Sibila-Melusina, pensava só nela, pertencia-lhe completamente. Mas, quem sabe se, quando partisse, e se libertasse, viesse a amar Lúcia de novo. Os ventos do mar lhe clareariam a mente.

— O Cavaleiro de Lusignan ainda está aí? — perguntou de súbito o Rei.

— Estou, meu Senhor.

— Determinei vossa partida, mas provavelmente precisais de dinheiro? Falai abertamente. Vós me fazeis um favor e eu terei alegria em ajudar-vos.

— De nada preciso, meu Senhor. — Era claro que Guy estava ofendido. — Eu não aceitaria coisa alguma... para... para...

— Não tive a intenção de ofender-vos. Agradeço-vos mais uma vez. Que Deus proteja o Santo Sepulcro!

Guy saiu, tropeçando, para fora dos aposentos reais, para fora do palácio. Mal tinha dado alguns passos quando gritou, porque alguém tinha passado os braços por trás de seu corpo. Fora atirado ao chão e coberto com um lençol. Agitou-se, debateu-se e pulou como um bicho bravo; tentou pegar a espada mas sem resultado. Seus desconhecidos assaltantes o ataram e amordaçaram, levantaram-no do chão e o carregaram para fora. Estava sendo levado para algum lugar. Para onde? Como um raio, atravessou-lhe o espírito a idéia de que o Rei, não acreditando em sua palavra, tinha dado ordens para que o amarrassem e levassem para bordo de uma galera. Ao pensar em tal afronta, seu sangue ferveu. Então ouviu o estalido de portas que se abriam, sentiu-se esfregado de encontro a paredes. Finalmente, foi depositado no chão, desamarrado e despojado de sua espada. Antes de poder saltar nos pés, e atirar longe o lençol com um grito — Danação! — já estava só. Sozinho num quarto alto e espaçoso, mal iluminado por uma solitária lâmpada a óleo. Atirou-se de encontro às portas. Eram fortes e estavam trancadas pelo lado de fora. Bateu com os punhos e com os pés, gritou e ficou à escuta. Nada, completo silêncio. Olhou a janela que ficava acima de seu alcance e estava barrada de ferro. Berrou, ao ter a sensação de sua impotência. Não podia ficar ali! Devia embarcar para sua terra, precisava embarcar! Tinha dado sua palavra de que o faria! Quem o teria aprisionado? O Rei não, pois desejava sua partida. Então, quem? Tinha dado sua palavra. O Rei pensaria que era um mentiroso, um traidor...

— Deixem-me sair ime­dia­ta­men­te! Deixem-se sair! — gritou.

Gritou até ficar rouco. Bateu nas portas até ficar com as mãos inchadas e entorpecidas. Exausto, sentou-se, desanimado. A sensação de que tudo quanto lhe acontecia era um feio pesadelo lhe vinha de vez em quando. Oh, por que alguém não o despertava, para que pudesse sair daquele país? Sem saber como, dormitou, mas não tão profundamente que não saltasse quando as portas se abriram docemente. Afinal! Alguém tinha entrado. Uma fragrância leve e um sussurro:

— Sou eu, meu amado... Melusina...

Ele já se aproximara.

— Já soube de tudo. Deixa-me sair! Deixa-me sair imediatamente!

Ela sorriu, e seus olhos brilharam, mas não respondeu imediatamente. Ele correu para as portas. Estavam trancadas como antes.

— Como é que vou libertar-te — disse ela, afinal, — se também estou presa? Estamos ambos trancados aqui dentro.

— Por que? Eu dei ao Rei minha palavra de que partiria, de que nunca mais te veria. Eu enlouqueço. Vou atirar-me sobre minha espada.

— Foi uma sorte terem-na tirado — observou ela, alegremente.

Ela quis pegar-lhe a mão, mas, recuando, ele sentou e escondeu o rosto nas mãos.

— Tu me enganaste. Não me disseste a verdade.

— Como te enganei? Por que não te contei que era princesa? Isso nada significa para mim. E eu sou realmente feiticeira. Não acreditas? Eu sou Melusina. Nunca penses em te libertares de mim. És meu... meu... meu... Por que estás assustado? Sou tão feia assim? Tens medo de mim?... Meu amor!

Ele não tinha palavras. Sua cabeça martelava. Devia ter partido, devia ter-se libertado. O navio ia velejar sem ele. Dentro dele estavam Lúcia, todo seu passado, a terra que amava. E ele ficava ali — prisioneiro de uma mulher que ria de seu desespero.

— Não rias — implorou ele. — O Rei... Minha palavra...

— Que culpa tens, se não podes cumprir tua palavra? Estás prisioneiro... Ambos estamos... Estamos juntos aqui. Só Deus sabe durante quanto tempo.

— Onde estamos? Quem ousou fazer isto?

— Se estivesses em Jerusalém há mais tempo, saberias por esta inscrição. — Ela apontou para uma inscrição gravada na pedra, acima das portas, onde se liam as palavras: Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini Tuo ad Gloriam. — Certamente que a verdade é exatamente o contrário disso, mas não tem importância. Estamos no domínio dos Cavaleiros Templários. Eles nos ajudam. Não nos esqueçamos disso. O Rei pode querer prender-nos à força. Ele que experimente. Antes que sua gente possa entrar, estaremos casados.

— Eu não me quero casar — gritou Guy. — Não posso!

Ela se aproximou bem dele.

— Não me queres? Dize outra vez que não me queres.


 

20
A DERROTA DE SIBILA

 

O erudito Guilherme, Arcebispo de Tiro, meditava diante do vigésimo quarto volume da história do Reino de Jerusalém. Era a obra mais importante de sua vida e fora iniciada muitos anos antes, a pedido de Balduíno III. Nada fora omitido desde o Concílio de Clermont, em 1095, quando, instigados pelos apelos de Pedro o Eremita e do Papa Urbano II, os cristãos se tinham precipitado como uma onda, em direção ao Oriente. Desejando ansiosamente escrever com a maior precisão sobre aqueles acontecimentos antigos e complicados, o erudito havia lido todas as crônicas daqueles tempos. As freqüentes contradições lhe dificultavam apurar e apresentar a verdade. Por ser consciencioso, não se limitou às fontes latinas, mas mergulhou em narrativas gregas, sírias e até árabes. Com certa freqüência a tradição oral mantida por certas famílias nobres provavam ter maior valor do que a palavra escrita. Tudo era minuciosamente assentado. Já no fim, escrevia sobre épocas que seus olhos tinham visto, que podia analisar com conhecimento direto. Às vezes, quando olhava para a fila de volumes em constante aumento, ficava dominado pelo pasmo por ver que tinha vivido tanto tempo, que tinha aprendido tanta coisa. Que mais devia ver, ainda? E suspirava profundamente, porque o futuro não se apresentava promissor. Cansado, pôs de lado a pena.

Brilhava a areia na caixa de prata. Zumbiam moscas. O dia estava sufocante. Em outros dias, sempre tivera tempo de pesar cada acontecimento, de olhar por todos os lados, de anotar seu ponto de vista justo e moderado, pelo menos tão justo e moderado quanto permitia a fragilidade humana. Agora, estava incapaz de manter aquele ritmo. Seria por estar envelhecido e porque seu trabalho já não caminhava depressa, ou porque os acontecimentos apostavam corrida, como cavalos que se precipitassem num ataque? Ele mesmo não sabia. Por exemplo, aquelas brigas a respeito do contrato de casamento entre Sibila e Ibelin de Ramlah! A memorável reunião do Conselho para tratar daquele assunto ainda perdurava no espírito do Arcebispo, e ele continuava horrorizado.

Todos lá haviam estado. O Príncipe Raimundo de Trípoli tinha presidido. Ele, Arcebispo, levara o tempo todo, atarefado, levando recados da sala do Conselho ao quarto do Rei acamado. Ibelin de Ramlah lá estivera, ao lado do irmão, Balian Ibelin. Sua posição era particularmente difícil. Se não fosse a loucura da Princesa, Ibelin seria agora rei.

— Tu te alegraste cedo demais, meu rapaz, — murmurara alguém.

Du Gray tinha repetido, o tempo todo: “Eu bem disse! Lembrai-vos de que eu disse que aconteceria o mesmo que aconteceu com Constança?”

Amalrico de Lusignan estava abatido e desajeitado, devido ao possível resultado final da situação. Suspeitando que ele estivesse de secreta conivência com os Cavaleiros Templários, a maioria da Assembléia o tinha evitado. Josselin de Courtenay, piscando os olhos injetados de sangue, gracejava com ele sem piedade. Reinaldo de Sidon era quem estava mais abatido. Fora por seu intermédio — apesar de que, graças a Deus, ninguém sabia disso — que Sibila ficara conhecendo Guy e aquele caso lamentável tinha começado. Ele é que havia procurado Lusignan, quando o moço estava prestes a partir. Pelo Sagrado Lenho! Quem poderia ter previsto aquilo? Pena que o inferno não tivesse engolido o Monte do Pecado antes que tivessem lá chegado. O alegre cavaleiro havia perdido sua habitual fanfarronice, e, silenciosamente, ponderava se seria melhor revelar tudo, ele mesmo, ou deixar que alguém fizesse luz sobre o assunto. Naquele momento, nada dizia.

Raimundo de Trípoli havia descrito ao Conselho a perfídia dos Templários que, violando todas as leis da autoridade real, se haviam apoderado de Guy de Lusignan e ainda o mantinham cativo, quando este já se preparava para deixar o país.

Mas o Grão Mestre não ficara perturbado, em absoluto, por essa acusação.

— Eu não me apoderei de ninguém. Dei abrigo aos oprimidos como é dever de todo bom monge. Libertarei o bom cavaleiro Guy de Lusignan, no momento em que ele não estiver mais em perigo, assim que tiverdes consentido em seu casamento com a princesa.

— Nunca consentiremos, e nenhum perigo ameaça Lusignan, a não ser a simples volta à casa paterna.

— Como? Não é a separação de uma criatura amada igual ao exílio, e não é o exílio o maior castigo para um homem? O Grão Mestre falava com sentimento. — Eu peço licença para este casamento. A sorte desses apaixonados toca meu coração.

Risadas acolheram esta inesperada revelação da suscetibilidade do Grão Mestre ao sentimento, coisa que ninguém adivinharia.

Quando todos se acalmaram, Ridefort perguntou agressivamente:

— Em que ponto será Lusignan pior do que Ibelin?

Toda a sala se agitou. Em que ponto? Um rapazola! Um meninote! Quase uma criança! Não fazia dois meses que tinha ganho as esporas de cavaleiro! Ninguém o conhecia! Ele não sabia coisa alguma! Pois se fora em Aleppo que tinha aprendido a usar uma lança! Imaginem, Rei! Absurdo! Ridículo!

— Se o apoiais — gritou Mouzon ao Grão Mestre, — é apenas para governar através dele.

— Com qualquer Rei, nós governamos — replicara altivamente o Grão Mestre.

Mas todos estavam contra ele. Todos, exceto Reinaldo de Chatillon. O senhor do Krak moabita, por despeito contra Raimundo, que havia denunciado como velhacaria seu ataque à caravana que voltava de Meca, se declarou a favor de Lusignan. E tendo definido sua posição, não deu mais atenção ao resto das deliberações, continuando a revelar seus últimos planos ao Senhor du Gray, que estava sentado ao seu lado.

— Vou desaparelhar seis navios, pôr o carregamento em camelos e atravessar o deserto até o Mar Vermelho! Lá, reuniremos as galeras e atacaremos o Sultão pela retaguarda... Aquele Belzebu ficará louco de raiva e de surpresa... Pelo amor que tenho a Deus, juro que vou até Meca. Já pensei em tudo. Antes que os muçulmanos tenham tempo de correr os olhos em torno, cairemos em cima deles assim que sairmos do mar.

— Mas nós estamos em paz com Saladino — objetou du Gray.

— Um bom cavaleiro não admite paz com os pagãos.

Pararam de falar, porque o velho condestável Humphrey de Thoron se erguera, fazendo sinal que desejava falar. Arrastara-se da cama, doente, para ir ao Conselho. Aquele homem de irrepreensível integridade, do qual o historiador árabe Ibn al Atyr tinha escrito: “Seu nome é sinônimo de honra e coragem”. — Merecia tanto respeito que a sala havia ficado perfeitamente calma e silenciosa.

— Não compreendo estes tempos — disse o velho. — Tenho a impressão de que estamos todos atacados por uma febre ou de que tomamos meimendro em vez de vinho. Antigamente, perguntava alguém a uma mulher quem é que ela queria desposar? Seu pai lhe escolhia o marido, ou se não houvesse pai, seu irmão. Que há aqui para decidir? Os Templários aprisionaram Lusignan? Que o guardem até o dia do juízo! Para que precisamos de Lusignan? Com a permissão do Rei, decidimos que Sibila desposará Ibelin. É o que deve ser feito imediatamente. Para que falar sobre isso?

O venerável de la Haye apoiou calorosamente os argumentos do condestável:

— Nunca, até agora, aconteceu coisa semelhante. Não devia acontecer agora. As mulheres não sabem o que é o sacrifício de si mesmas pelo bem comum, e tudo que lhes concerne pessoalmente é a coisa mais importante do mundo. E isto vem acontecendo desde a primeira cruzada. Lembro o que dizia meu pai. As que saíram de seu país calmas, modestas e tementes a Deus, se tornaram pecadoras pelo caminho. As maneiras imodestas se tornaram hábitos de todas. Agora chegamos a isto. Todos estamos vendo... Não é assim, na nossa terra natal. Como antigamente, lá as mulheres ficam junto à roca de fiar e não causam confusão no mundo!

— Ele diz a verdade! Ele diz a verdade! — Ressoavam as afirmativas concordantes. — Chamai a Princesa! Nós lhe diremos que ela tem que desposar o homem que escolhemos!

Ibelin de Ramlah, pálido como a morte, saltou do lugar.

— Isso eu não permitirei! — gritou. — Nunca levarei ao altar uma mulher contra sua vontade. Não deve haver compulsão!

— Ah, cala-te. Ninguém te pergunta nada. Para que criar novas dificuldades?

— Por bem ou por mal, o Patriarca deve casá-los amanhã!

— Não! Não! — A voz de Ibelin se erguia acima do tumulto.

Mas ninguém o escutava. Todos gritavam: — A Princesa! A Princesa!

Enviaram um cavaleiro para buscá-la, e ele voltou um momento depois, anunciando que Sua Alteza estava a caminho. Então todos silenciaram, à espera. O Grão Mestre mostrava seu aborrecimento. Ibelin continuava a repetir, teimosamente:

— Não deve haver compulsão!

As portas foram empurradas. Sibila, elegantemente vestida, entrou, mas não só. Segurando-o pela mão, trazia ou arrastava Guy de Lusignan. A Princesa tinha uma atitude régia — movimentos seguros, olhar desafiador. Mas o jovem cavaleiro estava tão envergonhado quanto uma menina, procurando furtivamente um meio para fugir. Corando, quase trêmulo, baixou os olhos para evitar os dos cavaleiros e deixou-se levar para dentro da sala. Sentia-se ridículo, e isso o deixava desamparado. Ali estavam o Príncipe Raimundo, que o armara cavaleiro; Ibelin, que lhe ensinara o manejo da lança e da espada; adiante o velho condestável de Thoron... Que pensavam dele? Compreenderiam que tudo quanto desejava era ser um bom e correto cavaleiro? Desejava agir lisamente. Por que viera para aquela terra maldita?

Sibila conduziu-o arrogantemente para o docel sob o qual estava Raimundo. Foi preciso que abrissem caminho entre os cavaleiros que estavam sentados ao redor.

— Que diabo! Levanta a cabeça! — sussurrou Amalrico, quando seu irmão lhe passou ao lado. Ao encararem o Conselho, Sibila continuava a segurar a mão de Guy, como se tivesse medo que ele fugisse. Guy era alvo de todos os olhares. Os cavaleiros o fixavam com curiosidade, pois poucos o conheciam. Bonito, sim. Tão gracioso como uma donzela, mas para rei não servia, não servia.

— Cavaleiro, vós vos tornastes motivo de confusão dentro do Estado — disse asperamente Raimundo.

— Pela minha honra de cavaleiro, a culpa não é minha — exclamou Guy com tanta sinceridade que todos riram. Todos menos Amalrico, que ficou lívido de raiva.

— Poderias pelo menos aceitar a responsabilidade — grunhiu Amalrico. A sala verberava gritos e exclamações de irrisão:

— Maricas! Maricas! Queridinho da mamãe! Sem miolos! Uma mulher o domina. Violado! Seduzido!

— Silêncio! — gritou Sibila, ameaçadoramente. — O futuro rei está diante de vós!

— Futuro rei! Futuro rei! Ah! Ah!

— Silêncio! — Ibelin viera em seu auxílio. — Não tendes o direito de insultar um cavaleiro.

— Olhai! Olhai! O defensor!

— Não concordaremos nunca com esse casamento!

— Nunca! Nunca!

Os olhos chamejantes de Sibila correram a sala do Conselho. Estava bela e ameaçadora. Desafiava a todos. Sentia-se mais forte que todos eles. Em face de qualquer acontecimento, ela acharia um caminho.

Tinha o rosto branco, com exceção de duas marcas febris nas maçãs do rosto. Suas narinas minúsculas se dilatavam de indignação. De longe, Ibelin a contemplava num êxtase religioso.

— Nunca? — ela repetia a exclamação de todos. — Nunca? Escutai, cavaleiros, durante duas semanas Lusignan foi prisioneiro dos Templários. Durante esse tempo fiquei trancada com ele. Se o Rei quiser que sua irmã dê à luz um bastardo, que ele se oponha ao nosso casamento!

— Ah! — soluçou Ibelin em voz estrangulada. Cobriu o rosto com as mãos.

Silêncio mortal invadiu a sala depois dessa incrível confissão. Inclinando-se para a frente, o escandalizado Raimundo olhou fixamente para Sibila, pasmado. Josselin de Courtenay riu com desprezo. Guy implorou ao Céu que lhe mandasse um raio para o aniquilar.

— Vergonha! Vergonha! — Erguendo os punhos fechados o velho de Thoron quebrou o silêncio. — Açoitai esse, esse... e exilai-a! Eis a que ponto chegamos!

Era inútil procurar acalmá-lo. O Arcebispo Guilherme correu para junto do Rei. Amalrico lançou ao irmão um olhar penetrante, num esforço para recuperar o domínio de si mesmo. Mas interiormente estava ardendo de raiva. Guy nunca saberia ser rei, nunca. Nunca os barões o perdoariam, nunca esqueceriam que ele estivera ali, diante deles, protegido pela amante, como se fosse o seduzido e não o sedutor!

— Ponde de lado essa mulher vil! — continuava a gritar de Thoron. — O reino perecerá se a pouca decência de uma mulher sobrepujar uma decisão do Conselho!

— E vós? — retorquiu Sibila. — Ouvis o Conselho?

O Arcebispo voltou. Parou diante de Raimundo.

— Sua Majestade anuncia que, em vista do escandaloso procedimento de Sibila de Jerusalém, viúva de Montferrat, retira de sua pessoa a sucessão ao trono e a transfere para Isabel de Jerusalém.

— Sim, Sim! Muito bem! Concordamos!

Sibila estava sobre brasas. Não esperava por aquilo. Resfolegou de raiva e depois riu, pronta a lutar até o fim.

— Isabel? Ela deverá desposar Ibelin? Haveis de ver! Isabel se prometeu a Humphrey de Thoron, e não aceitará mais ninguém. Se não quiserdes meu marido para rei, tereis então Humphrey!

Houve uma algazarra na sala. Era uma insanidade, aquilo! O velho de Thoron subiu a um banco para ser melhor ouvido. Sacudindo a barba grisalha, gritou:

— Nobres cavaleiros! Meu neto é incapaz de ser rei! Ainda seria pior do que este!

— Com vossa permissão! — interrompeu Reinaldo de Chatillon. — Humphrey é meu enteado! Tem todas as qualidades de um rei! Responsabilizo-me por ele.

O Grão Mestre explodiu em gritos. Aquele idiota ainda levaria seus planos ao aniquilamento. O Conselho estava desgovernado. O Arcebispo correu de novo para junto do Rei.

— Sibila — disse Raimundo a meia voz — dominai-vos! Por vossa causa isto se tornou uma farsa — e não um Conselho! Isto interessa ao reino! Ao reino!

— Eu não cederei. É tarde demais para ceder — murmurou ela, rangendo os dentes.

— A culpa não é minha — choramingou Guy.

O Arcebispo voltou. Sua atitude grave indicava que trazia notícias importantes.

— Sua Majestade retira a sucessão ao trono de suas irmãs, e pede ao Conselho que reconheça como Rei o filho do falecido Guilherme de Montferrat e de Sibila de Jerusalém, que o coroe imediatamente, e que, durante sua menoridade, indique como regente o Príncipe de Trípoli. Sua Majestade deseja isto profundamente, entregando o assunto à decisão de todos que lhe desejam um fim tranqüilo.

A voz do erudito velho quebrou-se nas últimas palavras. Mas sua mensagem caíra em bom solo. Quase toda a Assembléia aplaudiu.

— Aceito! Aceito! Longa vida a Balduíno V! Longa vida! Vamos coroá-lo!

— Voto contra! — gritaram o Grão Mestre e o Senhor de Chatillon, mas ninguém os escutou. Além do mais, estavam divididos. Um gritava: — Longa vida para Isabel! — O outro: — Longa vida para Sibila!

Isto concorreu para que se chegasse a uma decisão quase unânime. E apesar de que, entre os presentes, muitos não fossem entusiastas de Raimundo, não fizeram objeção. Qualquer coisa era melhor do que o governo de um fraco, imposto por uma mulher apaixonada:

— Abaixo Lusignan! Longa vida a Balduíno V!

Desta vez Sibila estava derrotada. Corando e empalidecendo, ela saiu da sala, arrastando Guy. Amalrico olhou com ódio para o irmão e gritou mais alto que os demais:

— Longa vida a Balduíno V!

* * *

Relendo o que escrevera, o Arcebispo de Tiro relembrava a memorável reunião. Alguns dias mais tarde, na Igreja do Sepulcro, o casamento de Sibila com Guy de Lusignan, agora Tenente do Rei, Conde de Ascalão e Jafa, se realizara. Libertado da ameaça da Coroa, o jovem cavaleiro voltara a ser o que era, adquirira confiança, chegara a fazer amigos. Sibila continuava inconsolável com a derrota.

Dez dias após o casamento de Lusignan se fizera a coroação de Balduíno V, o Infante. Balduíno IV, o Leproso! Balduíno V, o Infante! Foi uma estranha coroação. O Príncipe Raimundo de Trípoli tinha carregado a criança consagrada nos braços. A criaturinha pálida e fraca, que nunca saíra do palácio, desatara em altos gritos à vista da multidão. Havia chorado durante toda a longa e complicada cerimônia, pois o ritual fora seguido com solenidade incomum e grande suntuosidade. Moedas de ouro foram atiradas à multidão e toneladas de vinho colocadas nas praças da cidade. O povo se rejubilava e aplaudia de boa vontade em honra de ambos os reis, pois Balduíno IV ainda vivia.

— Mesmo somando os dois, ainda não temos um rei de verdade — suspirou de la Haye.

Era verdade. Um moribundo e uma criança — frágil soma. Os fios que os ligavam à vida eram bem fracos. E que mais, depois deles? O rosto anuviado do Regente Raimundo, durante a coroação, revelava que tinha consciência disso. Estava mais acabrunhado que de costume. Se a criança que chorava em seus braços morresse, o trono voltaria para Sibila, a não ser que as leis sobre herança fossem alteradas. Isto ainda seria pior, porque alguém como Chatillon ou Ridefort poderia aspirar à coroa. O futuro era sombrio, na verdade!

O Arcebispo estava perdido em meditações. Se Sibila tivesse desposado Ibelin, tudo seria diferente. O reino encararia a perspectiva de um futuro relativamente calmo. E isso não acontecera porque ela pusera sua felicidade pessoal acima de tudo, até do reino!

— Eu quero viver! Eu tenho direito a viver! — gritara a Princesa rebelde.

Direito a viver? Quem o tinha? E existiria esse direito? Não era a vida, em suma, apenas um serviço que cada qual precisa prestar? Era impossível que a humanidade não servisse. O homem nascia para servir, vivia para servir, e morria para servir. Sua única liberdade era a escolha do senhor: poderia servir a Deus, ao demônio, ou a si mesmo. De todos, o pior era o último.

A lembrança desses acontecimentos fazia que o Arcebispo tiritasse. Alguém bateu à porta. Ele se ergueu e abriu. O irmão João, profundamente abatido, estava no limiar.

— Eminência, nosso monarca vos chama com urgência.

— Que aconteceu? — perguntou Guilherme, ansiosamente.

— O pior. Parece que chegou a hora... — disse o irmão João, sufocando um soluço. Voltou-se para ir embora, sem esperar.

O Arcebispo foi apressadamente ao seu encalço. O Patriarca e o velho de La Haye tinham chegado aos aposentos do Rei antes dele. Um momento mais tarde, chegou Raimundo. Apesar de se estar queimando incenso, o mau cheiro era quase intolerável. Sobre o leito jazia uma forma que havia muito cessara de ser a de um homem. Carne putrefata. Mas da boca sem dentes, que apodrecia, ainda saía a respiração e por trás dos olhos mortos um espírito sensível e consciente ainda pensava no reino.

Deus meus, in Te confido — rezavam alto os lazaristas.

— Quem está aí? — perguntou o Rei, quase inaudivelmente.

— Eu, meu querido filho.

— E eu, Raimundo, estou aqui.

O Rei não respondeu. Eles não ficaram sabendo se tinha ouvido. Raimundo atirou-se pesadamente a uma cadeira, e repuxou os bigodes. A regência que lhe fora confiada alguns meses antes, prometia terminar logo, pois a criança estava sempre doente. Du Gray o mantinha informado sobre o que se passava na corte de Inês. Sibila nunca se incomodava com o menino, na verdade ela nunca se tinha preocupado com ele. Estava inteiramente entregue aos cuidados da avó. Todos bem sabiam como é que Inês criava uma criança! Nunca o lavava, mas o enchia de doces da manhã à noite, não tinha ordem alguma. Adorava seu Reizinho, mas certamente não sabia criá-lo. O estômago do menino vivia estragado; tinha diarréia constantemente, estava amarelo e transparente; as perninhas fracas não podiam agüentá-lo.

— Alteza — havia du Gray sugerido a Raimundo — levai-o para Trípoli, onde o ar é melhor, e deixai-o sob o cuidado de vossa esposa. Aqui, se ele ficar, não sobreviverá muito tempo.

— Se eu tivesse previsto os acontecimentos — respondera Raimundo, — eu teria feito isso. Minha Echuwa criou quatro filhos sadios. Nenhum teve lepra, nenhum teve cólicas. Mas agora é tarde demais. Se a viagem fosse penosa demais para o menino e ele morresse, todos me censurariam. Diriam que eu o envenenei para obter o trono para mim! Que aconteça o que tem de acontecer.

Entretanto, a amargura lhe corroía a alma. Cheio de dor, olhava para o sobrinho moribundo. Oh, aquele seria um verdadeiro homem, um verdadeiro rei, se não fosse a lepra! Um santuário de honra, de espírito cavalheiresco, da coragem mais intrépida! Pobre coitado, caía aos pedaços. Assim também o Reino de Jerusalém, que poderia ser grande, forte e cavalheiresco. Caía aos pedaços, minado por um mal desconhecido para o qual ele não encontrava remédio.

— Tio? — sussurrou o Rei.

— Estou aqui, Balduíno.

— O irmão João vos dará o anel do sinete. O anel real. Tomai-o sem medo. Eu não o usei. Algum dia, entregai-o ao pequenino. Falai-me dele. Está bem? Alguém disse que estava doente.

Raimundo hesitou mo­men­ta­nea­men­te.

— Quem o disse, mentiu — respondeu finalmente. — Está tão forte como um animalzinho. Parece ter quatro anos, e não dois.

— Ficareis com ele até que chegue à idade adulta?

— Ficarei.

O Rei moribundo parou de falar. Todos o olharam, sem saber se estava vivo ou morto. E rezaram. De súbito, a mão do cadáver estremeceu. Um som ininteligível emergiu da sua boca putrefata. O Arcebispo de Tiro debruçou-se muito para apanhar estas palavras:

— Cristo... Cristo... eu fui um cadáver. Apodreci em vida. Por isso, agora, ressuscitarei dos mortos.


 

21
GUY, REI DE JERUSALÉM

 

O homem gosta de acreditar no que deseja se torne realidade. Benigna acreditava tão firmemente no êxito de seu caçula que a carta de Amalrico a encheu de alegria, mas não a surpreendeu. Tinha aguardado dois anos por aquelas notícias. Nunca esperara outra coisa.

Essa carta, como a outra, havia tanto tempo, chegou em novembro. Era a época habitual de se receberem cartas do Oriente. As galeras mercantes partiam para a Terra Santa na primavera e voltavam para seus portos de origem no fim do verão ou no começo do inverno. As cartas que elas conduziam não podiam chegar ao destino muito antes de novembro.

As geadas do inverno ainda não tinham caído, e a castelania de Lusignan era um charco de lama pegajosa. O senhor do castelo, Hugo, o Castanho (que havia muito se tornara Hugo, o Branco), já estava completamente surdo. Suas pernas fracas raramente lhe permitiam abandonar a cadeira de braços junto à enorme chaminé da sala. O filho mais velho, Hugo, continuava na corte inglesa e não tinha a menor idéia de voltar para casa. Só permanecia ali o aleijado Bertrando. Benigna deixara de insistir para que ele seguisse a vida monástica, pois sozinha não podia dirigir tudo. Juntos, a velha e o filho cuidavam do patrimônio economizando e poupando — enquanto altercavam um com o outro, sempre.

Como de costume nessa estação, as madrugadas preguiçosas vinham tarde e o crepúsculo cedo. Pela manhã e à tarde era preciso mungir as vacas à luz de tochas. Por sorte, havia tempo que nenhuma cobra se mostrava na estrebaria. Acima das grandes árvores que sombreavam o pátio pairava um nevoeiro denso, cinzento. O ar rescendia a folhas em decomposição, a trufas e água. O rio estava negro, como se por seu leito corresse tinta. Junto à orla da floresta faziam círculo um rumoroso bando de corvos. Gralhas adejavam ao redor da torre de Melusina. No castelo, as noites infindavelmente longas alumiadas com avareza por gravetos (pois Benigna considerava cada varinha de larico uma extravagância), se arrastavam com monotonia, sem variedades nem distrações. A mesquinhez dos Lusignans era tão conhecida que os menestréis, malabaristas, contadores de histórias itinerantes e peregrinos nunca chegavam até lá. Nada interrompia o triste vazio das noites solitárias. O próprio capelão, incapaz de suportar aquela monotonia, se esgueirava secretamente até a estalagem da aldeia, onde, junto a um fogo crepitante, podia jogar dados com algum camponês e escutar mexericos. Benigna, apesar de escandalizada pela falta de reserva do capelão, ouvia ansiosamente todas as histórias que ele trazia. Chegava até a procurar sabê-las, satisfeita interiormente de que o capelão fizesse aquelas excursões. Perguntava:

— Que há de novo pelo mundo, padre Gaudêncio?

Aquele “mundo” no qual até a próxima Poitiers parecia distante e inatingível, fornecia-lhe poucas notícias de interesse. Entretanto, assim mesmo, fornecia-lhe matéria para ocupar seus pensamentos, alegrava-a e produzia novo sabor em seus infindáveis sonhos: os filhos da velha Paulina a expulsaram de casa, deixando-a a esmolar o pão (meu filho não me expulsará... quando for rei!). Na casa de Mateus estavam malhando o trigo, e a produção era boa (como serão as colheitas na Terra Santa?). Em casa de Braz viviam um grande dia: um escriba tinha levado o filho deles para estudar, pois o rapaz mostrava possibilidades e a mãe estava frenética de alegria (que é a alegria dessa mãe comparada com a minha, meu filho não partiu para ser escriba, mas para ser rei). Em casa do aleijado Pedro, todos se preparavam para o casamento de uma filha (para Guy já devem estar preparando a princesa).

Bertrando capengava pela casa, eternamente tristonho e em desacordo com a mãe. Sobre aquilo que o cercava, tinha começado a olhar com olhos de proprietário. Se os irmãos não voltassem de além mar, talvez herdasse a castelania; talvez recusasse tomar ordens, se a mãe voltasse aos planos de o fazer entrar para um mosteiro. Ele se casaria. Sim, desafiando tudo e todos, ele se casaria e ficaria ali.

Tais eram os pensamentos que adejavam no cérebro dos dois, quando ficavam sentados, frente à frente, na luz mortiça. Hugo, o Castanho roncava. O vento gemia e assobiava nas chaminés.

Foi numa noite assim que chegou a carta de Amalrico. Benigna quase ficou fora de si de impaciência, pois, como sempre, o capelão estava ausente e não havia ninguém para ler. Finalmente ele chegou, esbaforido e um pouco vermelho de bebida. Sentou-se à mesa e puxou para perto de si a vela que fora acesa para a grande ocasião. Recuperou o fôlego. Ninguém se preocupou em despertar o senhor Hugo, pois de qualquer jeito ele não escutaria.

— Que Deus proteja o Santo Sepulcro! — começou o capelão cerimoniosamente.

— Muito gracioso Senhor, meu benfeitor, muito graciosa Senhora, minha benfeitora, e tu, caro irmão Bertrando! Para principiar desejo recomendar-vos à proteção de Deus, e informar-vos de que tanto Guy como eu continuamos em boa saúde e sob o cuidado da Divina Providência. Eu não escrevi durante muito tempo porque houve aqui grandes preocupações e dificuldades que, pela graça de Deus, estão agora felizmente resolvidas. Há três dias, na Igreja do Sepulcro, Guy e a princesa Sibila, que é sua esposa há seis meses, foram coroados.

— São Mamede! — exclamou o padre Gaudêncio, pondo a carta de lado. Olhou para a senhora Benigna com pasmo. Que era aquilo? Ela não ficava estupefata? Não ficava surpreendida? Tinha coberto o rosto com as mãos. Corriam-lhe lágrimas entre os dedos. Oh, Mãe de Deus, chegou a ser realidade... chegou a ser realidade... Suas orações haviam sido ouvidas. Sua intuição não a traíra; sua confiança não a decepcionara. Oh, bendita severidade com que lhe ordenara que partisse!

— Guy é Rei? — repetiu o atarantado capelão. — Mas deve ser algum milagre! Como pôde acontecer isso, assim de repente?

— Não é milagre e não aconteceu de repente! — exclamou Benigna. — Eu sabia que aconteceria, assim que Amalrico mandou buscá-lo. Oh, santos padroeiros!

Ela caiu de joelhos. Juntou as mãos. Mas não podia rezar, e se levantou imediatamente.

— Teu irmão é Rei! — gritou para Bertrando, fazendo-o ter um estremeção.

— Já sei — resmungou ele — não sou surdo como meu pai.

— Alegra-te!

— Oh, estou louco de alegria — replicou com indisfarçado sarcasmo.

— Agora podes ser bispo, cardeal; sei lá, talvez papa?

— Agradeço humildemente o favor — murmurou Bertrando. Estava sufocado de inveja e raiva. Rei! Aquele idiota se tornara Rei! Devia ser verdade porque senão Amalrico não perderia palavras com o assunto. Como ele devia estar contente! Comparar a vida cheia de esplendor, divertimento e prazeres de Guy, com a sua existência apagada no castelo cinzento e melancólico! E afinal eram irmãos. E isso era a justiça, a justiça?!

— Guy se tornou Rei — gritou Benigna ao ouvido do marido. O velho senhor abriu os olhos, sonolento.

— Ahn? Que foi?

— Guy, Guy subiu ao trono!

— Dono? De que?

— Trono! Já houve a coroação!

— Do ruão?... Animal ruim... Ele que se livre desse animal.

— Não é isso! Guy é Rei de Jerusalém!

— Está passando bem? Ótimo, excelente!

Satisfeito, dormitou de novo.

— Talvez devêssemos dar vinho aos criados? — sugeriu padre Gaudêncio.

Bertrando franziu o rosto.

— Por que? Quem sabe se também não devíamos tocar os sinos?

— Que tens a dizer contra isso? — atalhou a mãe. — Padre Gaudêncio tem razão. Dá-lhes vinho imediatamente, e toucinho também, para o pão.

Ela correu até a sala dos criados e bateu palmas.

— Escutai, todos vós! Nosso jovem barão, nosso Guy é Rei de Jerusalém! Ele desposou a Princesa! Ele subiu ao trono!

Todos ficaram boquiabertos, sem nada compreender.

— Todos vós ganhareis um galão de vinho! E toucinho! E amanhã será feriado!

Agora compreendiam que qualquer coisa fora do comum havia acontecido, e se dirigiram para ela, em conjunto para beijar seus pés, agradecer-lhe e desejar ao jovem senhor todas as prosperidades.

Ela os ouviu com impaciência e depois voltou apressadamente para a sala. O capelão não tinha lido o resto da carta! Sentou-se em seu lugar. Seu rosto tristonho, iluminado por um sorriso, ficara mais suave, mais doce. Ficou olhando a luz da vela, enquanto o Padre Gaudêncio lia de novo, rapidamente.

— E assim, Guy é Rei, tal como vos prometi, senhora. É uma grande honra para nossa família, mas também causou não pouca inveja a toda gente. Tudo teria saído bem, se Guy tivesse seguido meu conselho. Se o tivesse, pouparia a si mesmo e a mim uma boa dose de preocupações.

— E por que devia ele aceitar o conselho de Amalrico? — disse com violência a senhora Benigna. — Graças a Deus, ele não precisa escutar ninguém.

— A situação aqui é difícil, sendo mais fácil tornar-se rei do que permanecer rei. São necessárias uma cabeça equilibrada, sabedoria e grande experiência. Guy não tem nada disso. Francamente, eu não sei se o mundo produziu algum dia imbecil tão completo.

— Como? — Benigna estava estupefata.

— Quanto a isso, ele tem razão. — aprovou Bertrando.

Benigna bateu na mesa com o punho fechado.

— Cala-te! Amalrico é tão invejoso quanto tu. Tem inveja e ciúme porque não foi o escolhido. É evidente. Como é que ele ousa chamar Guy de “imbecil”? Onde está escrito isso, Padre Gaudêncio?

— Aqui — apontou o capelão, depressa. Com dificuldade, ela soletrou a palavra: i-m-b-e-c-i-1. Correu o dedo sobre a sacrílega palavra como se desejasse eliminá-la, raspá-la dali.

— Um irmão ousar escrever tal coisa sobre seu irmão, um Rei! Inveja! Pura inveja! Guy é tão belo, tão sensato, tão encantador que Amalrico está fora de si de inveja. Guy, escutar Amalrico? Que tolice! Se Amalrico fosse mais sensato que Guy, a princesa teria casado com ele.

O capelão assoou o nariz bem alto.

— Eu mesmo estou pasmado — observou — de que Amalrico escreva de tal modo a respeito de um Rei.

— Tendes razão. Afinal de contas, se fosse tão imbecil não o teriam escolhido — exclamou ela, alegremente. — Meu querido, meu adorado filho! Eu fui a primeira a ver quanto ele era maravilhoso. Eu soube isso desde que ele era criança. Como Amalrico é invejoso. Ele e Bertrando são iguais. Não tem importância. Devemos cantar uma missa de graças, Padre Gaudêncio.

— Eu já tinha pensado — respondeu ele — que, no domingo, devíamos dizer uma missa votiva, solene, à qual comparecesse toda a aldeia. E eu podia pregar um sermão para demonstrar como a virtude é recompensada... até por um trono. Mas é impossível.

— Por que? — perguntou Benigna.

— Porque minha casula está tão esfarrapada, que tenho vergonha de a mostrar a estranhos.

— Pode ser remendada?

— Até domingo? Naturalmente, claro que sim. Um dia bastaria. Mas será preciso comprar um pouco de seda.

— Eu vos darei quatro dinares — murmurou ela, a contragosto.

Ele abriu os braços, desanimado.

— Não basta.

— Então poderei dar seis... oito... eu lhe darei dez, — decidiu ela heroicamente. — Dez dinares dados pelo Rei.

— Deus vos abençoe, magnânima senhora. Emprestai-me um cavalo para ir a Poitiers. Lá poderei comprar um pouco de pano e ao mesmo tempo descer no palácio do Bispo e contar a sua Eminência as boas notícias.

Benigna concordou em fornecer o cavalo e, depois de nova insistência, concedeu mais um dinar para linha. Era tarde quando se separaram. A feliz mãe não podia dormir. Agitou-se na cama, levantou-se, olhou pela janela para ver o que causava o incessante latido dos cães, voltou para a cama, ficou estendida sem sono, olhando com olhos muito abertos para a escuridão. Tinham-no coroado na igreja do Santo Sepulcro! Como devia ter sido bonito! Exatamente como havia sonhado. Oh, como gostaria de vê-lo! Dois anos, desde sua partida.

E se for até lá? A idéia lhe adejou pela mente.

A princípio, ela a rejeitou como louca e impossível, mas à medida que se recusava a partir, começou a considerar o projeto com mais atenção. Impossível? Seria realmente impossível? Algumas mulheres iam em peregrinação à Terra Santa. Por que não ela também, a mãe de um Rei? Que vida tinha levado durante todos aqueles anos? Tinha dinheiro para a viagem — dinheiro que havia amealhado para Guy. Agora ele não precisaria mais das moedas da mãe. Um país inteiro e tudo que nele havia lhe pertenciam, e Guy certamente não lhe negaria aquela pequena soma para uma visita. Bertrando ficaria carrancudo, devia contar com isso. Talvez não gastasse tudo, era preciso deixar alguma coisa para ele. Precisaria tirar os velhos vestidos de viagem das arcas. Seriam suficientes, desde que fossem limpos e arrumados. Seria preciso comprar sapatos, pois não seria conveniente ir à corte do filho de tamancos de madeira, e suas botas de veludo estavam em pedaços.

À hora em que a madrugada retardatária empalideceu o horizonte para além das árvores, ela já tinha planejado a viagem com todos os pormenores. Levaria padre Gaudêncio consigo. Seria sempre um conforto ter um acompanhante clerical. Além disso, o capelão era um homem experiente, capaz, ao passo que ela nunca fora além de Poitiers. Partiriam juntos. Bertrando ficaria na castelania. Ainda estavam no inverno, estação imprópria para viagens, mas assim que chegasse a primavera, a mãe de Guy partiria ao encontro do rapaz.


 

22
EMBAIXADOR DO SULTÃO

 

Sibila ergueu-se ante o toucador e olhou com satisfação para o espelho. Cathy de la Haye e Mônica d’Avesnes, suas aias prediletas, olharam-na com uma admiração ingênua e indisfarçada. Nesse período da vida, Sibila, mãe e irmã dos dois últimos reis de Jerusalém, estava gloriosamente bela. Saciados seus desejos, realizada sua ambição, tinha adquirido um pouco mais de corpo — não tanto que perdesse sua linha, mas apenas o bastante para dar ao seu porte maior majestade. Rainha dos pés à cabeça — tinha orgulho de si mesma. Depois de arranjar na cabeça a coroa leve e admiravelmente trabalhada, dirigiu-se para a sala do Conselho onde o Rei a esperava. As duas camareiras caminhavam ao lado de sua senhora. Quatro pajens a precediam e dois a seguiam, carregando a longa cauda de veludo do seu vestido. Nessa ordem, a procissão deslizou pelas numerosas salas que, no ano anterior, haviam sido pintadas e redecoradas. Apenas o quarto do falecido Balduíno IV permanecia trancado, no abandono.

Nenhuma reunião do Conselho de barões se realizava sem Sibila. Ela simulava, às vezes, que isso a aborrecia, mas o honesto e escrupuloso Guy não dava um passo sem ela.

Entrou majestosamente na sala, e ficou sabendo que o Rei ainda não tinha chegado. Onde estava ele? Dois escudeiros, um carregando a espada e outro o cetro, estavam de pé junto ao trono, o que significava que ele havia estado ali mas saíra. Sibila procurou esconder seu descontentamento. Aonde teria ido ele? Que homem!

Com exceção do Rei e dos dois Grãos Mestres das ordens militares, todos os cavaleiros ali estavam reunidos. Mas faltavam alguns dos velhos rostos: o velho de Thoron, de la Haye, o Arcebispo Guilherme e o Bispo Aubert. Outros haviam tomado seus lugares. O antigo regente, Raimundo de Trípoli, também estava ausente.

Raimundo partira de Jerusalém imediatamente após os funerais de Balduíno, o Infante. Antes de partir, tivera uma conversa curta e franca com Sibila.

— Conseguiste o que desejavas. Cuidado para não perderes o reino! Acautela-te contra o Grão Mestre.

— Ele é nosso amigo! — respondera ela, na defensiva.

— Amigo, enquanto fizeres o que ele quiser. Mas se tentares fazer aquilo que quiseres, ele será teu inimigo.

E acrescentou com um gesto de desdém, quase de nojo:

— Teu marido nunca terá vontade própria... Que Deus vos conserve em Sua proteção. Se as coisas estiverem indo mal, manda chamar-me. Eu virei sempre. É difícil para mim partir, Sibila, muito difícil. Teu marido é feito de estanho, e não de aço. Tu tens bastante vontade e energia, mas nunca enxergas um palmo além da ponta do teu nariz.

Ela se sentiu insultada. Raimundo partira. A coroação se fizera. Até o último momento, os barões se opuseram à coração de Lusignan. O Conselho decidiu que o Patriarca ungiria apenas Sibila. Quando a coroa foi colocada sobre sua cabeça, ela a agarrou e a pôs, à força, sobre a testa do marido, que protestava. O Patriarca, influenciado por Inês, não interveio. O Grão Mestre gritou:

— A sagrada coroa de Balduíno I pousou sobre a cabeça dele! Já aconteceu! Fiat voluntas Tua!

E Lusignan se tornara Rei.

Após esses acontecimentos um ano se passara. Correra depressa, entre incessantes festas e divertimentos. Desde a época da Rainha Melisanda não houvera tanta alegria na corte de Jerusalém.

Mas, quem atrasava o Rei? Do outro lado das portas fechadas que levavam para o exterior do palácio, vinha o som de vozes altas. Impaciente, Sibila acenou para Reinaldo de Sidon, que, alegre e descuidado como antigamente, se aproximou logo.

— Onde está nosso gracioso Senhor?

— Atrás daquelas portas — informou ele, polidamente. — O Grão Mestre dos Templários e o Grão Mestre dos Hospitaleiros tiveram uma discussão sobre quem devia entrar na sala primeiro. Nosso gracioso Senhor foi até lá para apaziguá-los.

Ela franziu a testa, zangada.

— Mas isso não lhe diz respeito! Ele devia ter mandado outra pessoa qualquer.

— Certamente, mas nosso gracioso Monarca é sempre tão bondoso!

Havia a suspeita de um gracejo em seu riso bem humorado. Ele podia tomar atitudes mais ousadas com Sibila, porque ela não passava sem ele.

— Armai-vos de paciência, graciosa Senhora. Essa disputa durará algum tempo. Quando Ridefort e Roger de Moulins começam a discutir, é difícil fazê-los parar. Temo que nem mesmo a intervenção de Sua Majestade adiante. Eles precisam falar até cansar. Meu Deus, como foi feliz a nossa vida nestes últimos anos em que o Grande Hospitaleiro estava doente e não havia discussões sobre precedências! De Moulins está recuperando o tempo perdido. Este mundo seria um paraíso se o Criador mandasse uma praga contra os dois Grãos Mestres.

Sibila bocejou.

— Contai-me qualquer coisa interessante, bem divertida.

— O último mexerico? Lá vai... Sobre a Senhora Patriarca.

— Sobre quem?

— A Senhora Patriarca — a concubina do santo Heráclio.

— Ah, sim! Como é o nome dela? Pascalina, disseram-me.

— Pascalina Rivette de Nablus. Bem, ontem, quando o Patriarca ia atravessando a Praça da Basílica, um contador de histórias, de passagem por aqui, o chamou: — Olá, eminente Patriarca! Atirai-me um ducado, e eu vos darei boas notícias! — Que espécie de notícias? — perguntou o interessado, e recebeu esta resposta: — Notícias que são como ouro, importantes para toda a gente, mas atirai-me o ducado. — Primeiro contai-me, depois o tereis. — Não, pagai primeiro! — Enquanto assim tratavam, uma curiosa multidão se juntara ao redor deles. O homem deu o ducado. O contador de histórias gritou: — Hoje, voltei de Nablus! Vossa mulher deu à luz uma filha, que não se parece nada convosco...

Sibila deu risada.

— Eu gostaria de ter visto a cara dele!

— Acho — disse Reinaldo, inesperadamente sério — que o Patriarca faz mal em criar tal escândalo. É horrível ouvir o que os peregrinos dizem sobre ele. As coisas vão mal, sem o Arcebispo Guilherme! Enquanto ele viveu, Heráclio teve cuidado; pelo menos, o que fazia se mantinha em segredo.

— Pena que o Arcebispo morresse.

— Ah! O velho ainda era forte. Fez uma viagem a Roma e nem sequer sentiu cansaço. Depois, de repente...

— Dizem que ele foi envenenado?

— É o que dizem, mas não há provas.

— É verdade que foi a Roma a fim de implorar a saída de Heráclio?

— É verdade. Sei isso por Plebanus, que estava com ele. Dizem que ele caiu aos pés do Santo Padre e chorou. E dizia: — Um Heráclio recuperou o Santo Lenho, e outro Heráclio o perderá! Vereis! — E o Papa lhe deu uma ordem escrita removendo o Patriarca do cargo.

— Que aconteceu com essa ordem?

— Desapareceu. Nunca foi encontrada. Mas Plebanus é capaz de jurar que ela existiu.

— Ah, ah! — exclamou Sibila, compreendendo. — É fácil adivinhar quem...

— Não, não é fácil, nada fácil. Podia ter sido a idéia de uma pessoa e as mãos de outra. Acontecem coisas estranhas, misteriosas, inexplicáveis demais, que a gente não pode perscrutar. Quase se tem vontade de acreditar em fantasmas e em demônios, como os camponeses. Veja, por exemplo, graciosa Senhora, nossa indiscreta mas importante excursão ao Monte do Pecado. Alguns dias mais tarde eu tive uma conversa com o Grão Mestre a respeito dessas ruínas, e lhe contei o que tinha visto e ouvido. Isso o interessou muito e fomos juntos até lá, levando algumas pessoas conosco, por precaução. Rebuscamos toda a colina e nada achamos, senão espaços vazios e pedras partidas... Afinal de contas, eu seria capaz de jurar que ouvi um cavalo relinchar, e também aqueles ruídos subterrâneos.

— Até hoje me lembro disso.

— Quem sabe? Talvez o velho Bispo Aubert tivesse razão? Como sabeis, no último ano de vida, ele estava quase completamente louco. Levava a repetir a todo momento que havia traição entre nós, que o diabo semeava joio entre os fiéis.

— Ele via o diabo? Isso é interessante!

— Não sei se o via, mas dizia sempre: “Abri os olhos! Dominai-vos! Eu o sinto! Eu o escuto!”

Ambos riram. Mas Reinaldo ficou sério de novo.

— Pondo de lado o gracejo, não achais, minha Senhora, que seria melhor levar Roma mais a peito do que o temos feito ultimamente, e ao mesmo tempo impor certo comedimento a esse Patriarca? Talvez Vossa Majestade pudesse convocá-lo e censurar-lhe o procedimento escandaloso.

Ela o olhou, boquiaberta.

— Mamãe ficaria indignada! Bem sabeis quanto ela admira Heráclio.

— É claro, eu sei. Todos sabem. Afinal de contas, houve ocasiões em que, se não fosse por causa dela, Heráclio teria sido exilado. Mas agora ele se está degradando de modo público.

— Não — respondeu ela, enfaticamente. — Não podemos ofender mamãe. Além do que, Roma exige demais desses pobres sacerdotes.

— O Patriarca Amalrico de Nesle, de quem todos nos lembramos, pôs de lado todos os prazeres humanos e por causa disso sua influência igualou à do Rei. Tendes de escolher o que preferis. Se...

Interromperam a conversa, pois as portas abruptamente se abriram. Entraram, ou por outra, quase que se precipitaram, primeiro Geraldo de Ridefort, depois Roger de Moulins, Grão Mestre dos Hospitaleiros, vermelho como um peru. Atrás deles vinha Guy de Lusignan, o Rei, de coroa e túnica real. Os dois pajens, que deviam precedê-lo, o seguiam, acotovelando-se de satisfação.

Sibila voltou-se para Guy num sussurro cheio de censura:

— Preciso continuar a ensinar-te como se porta um Rei? É teu lugar atrás das portas, escutando discussões?

— Pensei que podia reconciliá-los.

— E permites que entrem à tua frente! Inaudito! Mas não tem importância. Graças a Deus eles chegaram, afinal. A embaixada está esperando há uma hora.

Ele se aconchegou no trono, limpou o suor da testa, e ordenou a Reinaldo de Sidon que introduzisse a embaixada do Sultão.

O embaixador era o digno Emir Ibn al Imad, de longa barba. Vinha acompanhado por vários xeiques. Todos estavam com esplêndidas roupas. Parando no centro da sala, curvaram-se profundamente ante o Rei.

— Sua Majestade pede que vos aproximeis mais — disse Reinaldo que atuava como intérprete.

Eles sentaram em banquinhos especialmente preparados, em frente ao trono. Guy ergueu-se ligeiramente e perguntou pela saúde de seu amigo Saladino.

— A saúde do Comendador dos Crentes é boa — respondeu o emir. Falava lentamente para permitir que Reinaldo traduzisse cada palavra. — Mas a alma do Comendador dos Crentes está acabrunhada por tão grande tristeza que os anjos se lamentam.

— Qual a causa da grande tristeza do Sultão? — perguntou Guy com um suspiro involuntário, pois adivinhava o que se seguiria.

— Vós, grande Rei, podeis facilmente anular-lhe a causa. O Comendador dos Crentes tem esperança em vós. Despachando-me a mim, indigno que sou, ante esta augusta Assembléia, ele disse: — É o terceiro Rei dos francos a quem mando palavras amigas. O primeiro, Murri (assim chamam os muçulmanos a Amalrico), era um adversário cavalheiresco e irrepreensível. O Rei Leproso foi um leão. Ele me derrotou, a mim, Saladino. Não tenho dúvidas de que o terceiro não é inferior aos outros em virtudes.

— Eu me alegrarei por satisfazer os desejos do Sultão — garantiu-lhe Guy.

— Grande Rei dos francos! Entre vosso povo há um lobo voraz. É ele a causa de incessantes disputas entre o Comendador dos Crentes e o vosso Reino. Sabeis que falo do cavaleiro do Castelo de Al-Akra, chamado por nós a Pedra do Deserto. Recentemente, invadiu com perfídia as margens do Mar Vermelho, devastou os estabelecimentos marítimos, e arrogantemente se aproximou dos muros de Meca! Rei dos francos! A sagrada Kaaba ameaçada pelas mãos do ateu! Apesar de ter o agressor sido repelido, persiste a ameaça. Os fiéis temem cumprir o sagrado dever da peregrinação. Ninguém mais pode sentir-se em segurança em sua própria terra? Ninguém pode cuidar de seus rebanhos? Em tempo de paz, jurada por vós, ó Rei, não há lugar em que os seguidores do Profeta possam viver e trabalhar sem perigo! Lamentando a sorte de seus súditos, o Comendador dos Crentes rezou durante três dias e três noites, implorando ao Profeta que o esclarecesse. E foi isto o que ele lhe inspirou...

— A incursão do Senhor de Chatillon, realizada sem meu conhecimento, me causou grande dor — respondeu-lhe Guy.

— O Comendador dos Crentes não duvida que o Rei dos francos estivesse ignorante desse ataque! O Profeta inspirou ao Comendador dos Crentes isto: que o Rei dos francos, para demonstrar sua sincera amizade, dê ao Senhor de Chatillon outro castelo e coloque na Pedra do Deserto algum cavaleiro digno, que saiba respeitar juramentos.

— O Sultão resolve quem deve mandar em nossos castelos? — gritou de Ridefort com arrogância.

— O Sultão pede isso ao Rei, de amigo para amigo. Se não levardes em consideração seu justo apelo, ele não acreditará mais em vosso sentimento de amizade. O Comendador dos Crentes tem um coração paternal. Não pode suportar que seus súditos fiquem entregues, sem proteção, à pilhagem de um lobo voraz. Se de vós, não receber auxílio ele garantirá sua segurança pelas armas.

— O Sultão ameaça violar nosso tratado? — perguntou Guy.

— Por Alá! O tratado já está violado, e não pelo Comendador dos Crentes! Eu declarei as condições sob as quais o Comendador dos Crentes consentirá em esquecer as repetidas falhas de palavra do cavaleiro de Al-Akra.

— O Cavaleiro de Chatillon não concordará em deixar Kerak! — exclamou Guy. O emir Ibn al Imad sorriu com indulgência.

— Não sabemos se ele ouviu sequer uma palavra de censura! Se emitirdes uma ordem e ele não der atenção, podereis declará-lo rebelde. Então o Comendador dos Crentes poderá dirigir guerra contra ele, sem violar a paz selada convosco. Isto foi tudo quanto me ordenaram que dissesse.

Guy olhou, interrogativamente, para sua mulher. Quase imperceptivelmente, ela abanou a cabeça. Não concordes! Acima das cabeças dos componentes da embaixada, olhou para os rostos dos barões. O Grão Mestre sacudia o punho numa ameaça: Não concordeis! Não concordeis!

O preocupado Rei baixou a cabeça.

— Emir Ibn al Imad — disse afinal — recebereis uma resposta até amanhã.

O emir curvou-se profundamente, como da primeira vez.

— Que essa resposta seja amigável! O Comendador dos Crentes é lento no desembainhar a espada, mas quando o faz, não tem repouso enquanto não chega à vitória!

A embaixada saiu. Reinaldo de Sidon escoltou-a. Assim que as portas se fecharam por trás deles, irrompeu tumulto na sala.

— Escândalo! Um pagão ousa ameaçar! — berrava o Grão Mestre.

— Não podemos começar uma guerra! — gritava Balian Ibelin. — Não estamos preparados!

— Um bom cavaleiro está sempre preparado! Que direito tem um infiel de resolver quem é que deve mandar em nossos castelos?

Roger de Moulins, fiel ao princípio de que devia sempre combater os Templários, apoiou Balian.

— É uma exigência justa, já que não podemos manter a paz dentro de nossos limites.

— Paz... coisa deprimente!

Com surpresa de todos, o Rei falou.

— Saladino tem razão — disse resolutamente. — O Senhor de Chatillon agiu mal.

— Não posso concordar com a opinião de meu gracioso Senhor — gritou de Ridefort. — O Cavaleiro de Chatillon glorificou a espada franca! O terror de que encheu os pagãos está evidente nas palavras do emir! Nada de censuras, mas sim elogios para ele!

— Ele violou uma paz jurada! — insistiu o Rei.

— Ele será causa de guerra! — repetiu Balian Ibelin.

— A guerra não nos assusta! Nós os derrotamos em Montgisard!

Guy de Lusignan considerou. E pensava — é exatamente como se eu tivesse combinado com um vizinho manter meus cães longe de suas matas, e depois, calmamente, observasse os cães a caçar e a assustar a caça do vizinho. Como se ele gritasse: Chama teus cães! E eu os açulasse... É o que acontece aqui.

Fortalecido por esse simples raciocínio, repetiu com veemência:

— Uma agressão não provocada, sem declaração de guerra, é coisa contrária às leis da cavalaria e constitui procedimento vergonhoso. Eu direi isto ao senhor de Chatillon em qualquer lugar e perante qualquer audiência!

Sibila, que durante todo esse tempo escutou o debate, sussurrou de repente:

— Enlouqueceste? Dentro de duas semanas vamos partir para Kerak a fim de assistir ao casamento de Isabel, e antes disso pretendes insultar nosso hospedeiro?

— Eu não irei ao casamento — disse Guy.

Ela ficou pasmada. Olhou-o fixamente, e continuou em tom baixo:

— Para que dizer essa tolice, se sabe que irás? Não ir! Eu me preparei para isto durante meses! Minhas roupas estão prontas! Os músicos e cantores já foram todos chamados. Dançaremos durante um mês inteiro. Não ir? Ah! Mas é claro que iremos. Que a embaixada leve de volta o que trouxe.

Mas Guy estava rebelde nesse dia.

— Repito que o Cavaleiro de Chatillon agiu contra as regras da virtude, e não irei ao casamento de seu enteado. Devemos apaziguar Saladino.

— Talvez devamos implorar também o seu perdão? — disse numa risada o Grão Mestre dos Templários.

— Ele tem razão.

— Um pagão nunca a tem.

— Esse pagão é tão bom cavaleiro como qualquer de nós! Eu, o Rei, não consinto!

O Grão Mestre saltou de seu lugar.

— Rei? — disse com desprezo. — Que vos acontece? Só pelo meu favor chegaste ao trono, e amanhã, se eu estalar os dedos, não haverá nem sinal de vós.

Sua arrogância deixou o Conselho mudo de espanto. Lusignan, por um momento, se transformou em pedra.

— Renuncio a tudo agora! — gritou, agarrando a coroa para atirá-la ao chão, mas Sibila segurou seu braço a tempo. Não! Ela não permitiria isso. À sua moda, amava o belo marido criançola, e não tinha a intenção de deixar que ele lhe fugisse. Ridefort, também, lamentou as palavras ásperas; Lusignan, como Rei, era conveniente aos Templários. Sua abdicação poderia colocar Raimundo de Trípoli em cena.

— Perdoai, Majestade, minhas palavras loucas, ásperas e apressadas. Eu mesmo me infligirei uma severa penalidade. Por vos ter ofendido, meu Senhor, eu me prosternarei perante o altar e mandarei que me açoitem. Perdoai-me.

— Bem, tudo está arranjado. Senta-te. — E Sibila obrigou-o a sentar.

Guy olhou, incerto, ao redor da sala. Os barões tentavam esconder seu divertimento. O Grão Mestre havia falado o que sabiam ser a verdade.

— Eu devia abdicar — pensou Guy, mas nesse momento as portas se abriram e de Guerce se precipitou na sala.

— Majestade! — exclamou ele — nossa dama chegou!

— Quem? — perguntou Guy, sem compreender.

— Nossa dama! A nobre senhora Benigna!

— Mamãe! — gritou o Rei, e esquecendo tudo precipitou-se atrás do escudeiro. Sibila mordeu os lábios. Os barões riram alto.

O Grão Mestre começou a falar:

— Sua Majestade resolvera abandonar o Conselho devido aos seus deveres filiais. Era grande alegria para todos verificar que o Soberano era bom filho. Deviam, entretanto, terminar este Conselho. Talvez Sua Majestade quisesse ter a bondade de presidir?

Sibila acenou com a cabeça, em assentimento.

— Que resposta devemos dar a Saladino? — perguntou o Grão Mestre.

— Dizei-lhe o que quiserdes, contanto que nada perturbe o casamento de Isabel.


 

23
O ARCO-ÍRIS DESPEDAÇADO

 

Benigna estava de pé no centro da sala. Só agora começava a sentir constrangimento. Como tudo aquilo era lindo, rico, esplêndido! Como se sentia pobre, naquele ambiente! Fizera bem em vir? Talvez devesse ter escrito, pedindo licença, primeiro? Tinha vindo procurar o filho como mãe, mas talvez não fosse direito, porque o filho era rei. Seu embaraço aumentava por não ter o padre Gaudêncio ao lado. Assim que haviam entrado na cidade, ele fora ao Sepulcro cumprir uma promessa. Ela fora levada até o palácio em que Amalrico vivia. Uma habitação de monarca! Ela mal tinha coragem de andar sobre o soalho. Em toda a sua vida, nunca vira nada igual. Amalrico não estava em casa. O Rei o havia mandado para Ascalão. Mas Guerce lá estava para levá-la até junto do Rei. Não tivera oportunidade de interrogar o velho escudeiro, e por isso ali estava, tremendo de felicidade, susto e temor. Talvez o Rei não se dignasse reconhecer sua pobre mãe? Talvez se envergonhasse dela? Oh, se assim fosse, seu coração se partiria!

Ela comprimiu o peito anelante com as mãos e esperou. Ouviu passos do lado de fora da sala. Passos apressados, impacientes! Era ele. Era Guy. Vestido tal como sonhara. Ele entrou como um pé de vento, puxou a coroa, arrancou o manto, jogou uma e outro num banco e tomou a mãe nos braços.

— Mamãe! Mamãe! Mamãe!

Ambos choravam. Ele ajoelhou-se para abraçar seus velhos joelhos trêmulos. Querida mamãe! A mesma. A mesma de sempre: as mãos ásperas, velhas amigas do trabalho; os fiapos grisalhos de cabelo caindo do capuz fora da moda; o rosto enrugado — Mamãe!

Tudo de seu feliz passado, tudo de sua terra natal tinha entrado com ela. Abraçando-a, levou-a até um sofá baixo.

— É desse modo que te vestes sempre? Mesmo nos dias comuns? — ela perguntou, apontando timidamente para a coroa e a túnica.

— Não! Felizmente, não. Mas hoje recebemos a embaixada do Sultão. Neste momento há uma reunião dos barões. Eu devia voltar, mas não irei. Estou louco de alegria por vos ver, minha senhora! É o primeiro momento feliz desde que vim para cá!

Ela não compreendeu. Como, toda sua vida devia ser de alegria!

As portas se abriram de novo. Sibila entrou, precedida por seus pajens e pelas aias de honra. Olhou friamente para o marido.

— Esta é minha esposa. — Erguendo-se, Guy apresentou-a.

Benigna juntou as mãos:

— A Rainha... Tua mulher? Como é linda!

A simples e sincera admiração da velha conquistou Sibila. Condescendeu em sorrir e, aproximando-se, inclinou-se diante da mãe de seu marido.

— Oh, minha linda! — exclamou Benigna com emoção. — Eu vos beijaria, mas não ouso. Que Deus vos abençoe, Senhora, que escolheste meu Guy! Não sei como dirigir-me a vós! Não quero ofender-vos.

— Deveis dirigir-vos a mim como: muito graciosa nora. — Sibila falava com certa amabilidade.

— Muito graciosa nora! Sim! Sim! Perdoai-me por vir até aqui, mas eu tinha tanta saudade do meu caçula. Ele é o meu preferido. Desde a infância... Fui a primeira a ver quem ele era.

— Estamos felizes por receber-vos. Sede nossa hóspede pela duração de vossa estada. Minhas damas vos levarão aos vossos aposentos. Cathy, tomai conta da mãe de nosso gracioso Senhor. Mas perdoai-me agora por afastar meu marido por um momento. Tenho uma coisa para dizer-lhe.

Sibila e Guy saíram da sala. Benigna seguiu-os com um olhar de feliz admiração.

— Que aconteceu contigo? — começou a dizer Sibila, rapidamente. — Por que te precipitaste para fora, antes do fim do Conselho?

— Tens razão. Eu não devia ter feito isso. Tens toda a razão. Fiquei tão contente com a chegada de Mamãe que esqueci tudo.

— Tua mãe podia ter esperado. Mas quem a vestiu? Dá-lhe dinheiro imediatamente para que ela se vista como uma criatura humana. É uma vergonha apresentá-la a quem quer que seja. Acabamos a deliberação sem ti. Eu tomei teu lugar.

— Que é que ficou decidido? — perguntou ele, preocupado.

— A única coisa possível. Que não devemos ceder às exigências do Sultão.

Guy agarrou a cabeça com as duas mãos.

— É uma desonra, e significa a guerra!

— Não te assustes. Não haverá guerra — garantiu Sibila. — Todos dizem que o Sultão está apenas querendo intimidar-nos. Que sua pele ainda lateja com a dor de Montgisard. Isso é certo.

— Deus o permita. — suspirou ele.

— Outra coisa me aborrece — observou ela, baixando a voz. — A resposta do Grão Mestre. Como ousou ele falar assim contigo? E não respondeste uma palavra! Eu não admitirei isso!

— Que posso fazer? A única solução é partir.

Ela bateu o pé:

— Não farás tal coisa. Pára de pensar nisso. Temos de lutar. Eu não permitirei que o Grão Mestre te trate como o fez. Talvez possamos recorrer aos ismaelitas?

— Para que?

— Nunca compreendes coisa alguma! Não sabes como se fazem essas coisas? Eles mandam seu...

Erguendo-se até as pontas dos pés ela sussurrou o resto em seu ouvido. Ele deu um pulo, como se as palavras o tivessem queimado.

— Não! Não! Em circunstância alguma!

— Não há outro jeito.

— Não! Não! Fizeste de mim um tolo, mas não podes tornar-me assassino!

Ela encostou-lhe a mão na boca:

— Silêncio! Quieto, idiota! Ninguém poderia fazer de ti um tolo, porque assim já nasceste!

Encolheu os ombros, e com um agitado movimento da cauda deixou-o só. Guy voltou para junto de sua mãe. Ela o recebeu com o mesmo sorriso feliz.

— Tua esposa é ma­ra­vi­lho­sa­men­te linda, e deve ser tão boa quanto bonita. Estais muito apaixonados um pelo outro?

— Falai-me de casa, minha senhora — disse ele, fugindo à pergunta.

— Que posso contar? Nada mudou. Tudo está como quando partiste. Teu pai, completamente surdo. Bertrando ainda se tornou mais excêntrico. Nada mudou. Tudo está como era. Só a cobra não tem mais voltado à estrebaria, e certa vez, quando eu me sentia muito só, o padre Gaudêncio, para me alegrar, disse que até Melusina ficou com tanta saudade que veio atrás de ti.

Ele se afastou à distância de um braço.

— Lá entre vós também se diz isso?

— Foi só um gracejo do padre Gaudêncio. Ele está com esperança que lhe dês um cálice novo — de prata. O nosso, de estanho, está todo estragado.

— Eu lhe darei um de ouro, e tudo que ele precisar para a capela. Mas contai mais, minha senhora. Então tudo está como antigamente? Como Bertrando tem sorte por lá estar! Ele compreenderá isto? Ele vive em paz. Senhor de seu domínio. O rio corre como sempre correu. A floresta canta. — E os cães? Ficaram muito velhos? Há alguém lá que os leve a caçar? Eu gostaria de ter um dos cães lá de casa — meu mesmo. E as árvores estão como antes? E os passarinhos chilream? Aqui não há passarinhos... — Era demais. Prorrompeu em soluços. Benigna ficou estupefata, comovida até o fundo do coração.

— Que foi, meu filho? Que foi?

Ele dominou-se. Pobre mulher. Ela lhe fizera um grande mal, mas só porque o amava. Por que roubar-lhe a paz? Ela desejava que fosse o mais feliz dos homens. Não adiantaria contar-lhe tudo. Que ela se alegrasse. E já não chorava ao falar:

— Foi minha alegria por vos ver, Mamãe. Alegria.

* * *

Benigna estava de partida e o padre Gaudêncio, juntamente com Mateus de Guerce, fiscalizava a colocação das cobertas sobre os carros abundantemente carregados que deviam ir com ela para Jafa. Os dois filhos haviam sido generosos para com a mãe. Guy por bom coração, Amalrico por interesse. Que as notícias do poderio e da riqueza dos Lusignans se espalhasse por todo o Poitou... Ora! Por toda a Aquitânia. Que todos soubessem que poderoso monarca um deles se tornara. E por isso o padre Gaudêncio, incapaz de esconder sua alegria, repetia sem cessar:

— Hosana! Nem o Bispo de Poitiers tem vasos assim, paramentos assim!

Benigna examinava todas aquelas riquezas com estupefação e de coração sombrio. A partida deixava-a triste. Que indefinível ansiedade era aquela? Tudo ali era tão estranho, tão igual e tão diferente de tudo quanto havia imaginado! Começava a ter dúvidas.

— Que pensas? — perguntou a Amalrico em particular. — Ele será capaz de dirigir este reino?

— É bom que façais pelo menos uma pergunta sensata antes de vossa partida! Até agora, todas as vezes que eu queria falar-vos nisto, a única coisa que dizíeis era: — Estás com inveja, tens inveja dele! — Eu, com inveja? Fui eu que o trouxe para cá. Mas pensei que ele fosse mais inteligente do que é. Não será capaz de conservar o que possui. Não sabe governar. Ninguém tem a menor consideração por ele, a menor. Vós tendes olhos. Deveis ter reparado como todos o conduzem pelo beiço. A mulher, os Grãos Mestres, os barões. Ele nada faz. Assim não irá tão longe.

— Oh, meu Deus! — lamentou-se ela. — Ele é um anjo e os outros são tão mesquinhos.

O “anjo” estava naquele momento andando a cavalo. Apesar de que o adeus cerimonioso da corte já se fizera, ele desejava dar um último abraço na mãe. Saltou do cavalo e precipitou-se para ela. Sua partida significava para ele a separação final de todas as coisas que o haviam prendido à Mãe-Pátria.

Ela o abraçou nervosamente e disse:

— Amalrico me contou que tudo é difícil para ti. Que não te respeitam.

Ele sorriu, dolorosamente: — Eles não honram a Deus, então por que me haviam de respeitar?

Mudou de assunto, e, olhando os carros, continuou:

— Precisais de mais alguma coisa, minha senhora? Algum vestuário, vaso, ou tapete?

De repente bateu na testa com a mão e exclamou:

— Por Deus! E onde está o que ganhei em Montgisard e que ia levar para casa?

Ninguém sabia. Sim, todos se lembravam de que durante muito tempo grandes embrulhos, preparados para a viagem, haviam estado encostados junto à casa. Alguém os tinha recolhido. Quem? Para onde? Ninguém sabia.

— Que pena — suspirou Guy. — Que pena. Na verdade levais aqui coisas melhores, Mamãe, mas aquelas eram minhas mesmo, ganhas por mim e não provas do favor de uma mulher. Eu pretendia levá-las para vós e para...

Parou. Até então não tivera coragem de perguntar por Lúcia. Sua mãe também evitara o assunto. Mas, por que perguntar? Nada se modificaria. Pobre Mamãe! Ela teria chamado Lúcia “minha filha” e não “graciosa nora”. Pensou naqueles maravilhosos cristais que tinha empacotado com tanto cuidado para sua Lúcia. Alguém os tinha jogado longe, alguém os partira. Seria inútil pesquisar, procurar consertá-los. O arco-íris que neles resplandescia fora despedaçado para sempre.


 

24
A PACIÊNCIA DE SALADINO

 

Na verdade, Saladino, o filho de Ayyub, relutava em desembainhar a espada, exceto como último recurso. Os barões erravam ao pensar que seu autodomínio em relação a Jerusalém fosse devido a Montgisard. Ele tinha outras razões. O grande soldado e estadista não era apenas um guerreiro, mas também um sábio. Tinha perfeita consciência de que, como o maior e mais poderoso chefe do Oriente, seu nome se tornaria lendário. Ficaria ao lado de Salomão e de Harun-al-Raschid. Salomão, Harun-al-Rashid, Saladino — Esplendor, Orgulho, Poderio — um trio de chefes que inflamaria a imaginação do Oriente. Mas, consciente de todo este poderio, Saladino não se embriagava com ele. Bem diferente de outros guerreiros, lembrava-se de que um dia morreria. Esta certeza, que a maioria da humanidade procura eliminar, sempre a trazia consigo. Não duvidava de que o filho de Ayyub encontraria o fim que espera todo mortal. Por excepcional que fosse sua vida, sua morte seria a de todos os homens.

E então, que aconteceria ao seu domínio? A área que cobria desde o Tigre e o Eufrates até o Nilo, abarcando os estados de Moçul, Aleppo, Damasco, Bagdá e Cairo — conseguiria manter-se dentro da unidade que seu governo sensato e bondoso lhe dera? Sabia que não. Seus filhos, os filhos de seus irmãos, os filhos de suas irmãs, cairiam sobre ele como falcões esfaimados. Nenhum deles cederia. E nenhum tinha as qualidades necessárias a um homem para submeter os outros à sua lei.

Desanimado ante a previsão do futuro, Saladino pensava muitas vezes se valia a pena ter tanto trabalho, fazer tantos sacrifícios, pôr tanto pensamento construtivo na organização e união daqueles estados desmembrados. Que sobraria daquilo, quando ele morresse? Inevitavelmente, todo seu império desmoronaria.

Esses pensamentos certamente não o inclinavam a novas guerras contra os francos. Saladino hesitava. Nunca negara perante si mesmo ou perante outras pessoas, que não tivesse animosidade nenhuma contra a fé dos cristãos. Muito pelo contrário, admitia ter por ela uma curiosidade simpática. Seu protetor, Emir al Bara, filho de uma mulher cristã, o tinha convencido de que a fé dos giaours tinha uma virtude que nenhuma outra podia sobrepujar: a união íntima com Deus; a graça de obter dons superabundantes no tesouro da misericórdia divina.

— Graças a isso — dizia o emir al Bara — os cristãos são melhores e mais fortes do que os outros. Porque podem, quando querem, viver com seu Deus!

Saladino, freqüentemente, pesava as opiniões de seu preceptor. Às vezes estava pronto a reconhecer sua exatidão, outras vezes as rejeitava como absolutamente errôneas. Pensava do primeiro modo quando se lembrava da batalha de Montgisard, ou dos homens como Balduíno IV, o Arcebispo Guilherme, ou o velho Humphrey de Thoron. Mas esses eram exceções. A maioria dos francos só podia despertar desprezo por sua religião. Eram fúteis, cruéis, ambiciosos e briguentos. Nada havia neles que provasse que viviam com Deus ou que estavam santificados pela Sua presença.

O Sultão hesitava entre as emoções despertadas pelo velho emir e as sugeridas pelos acontecimentos diários. Entretanto, a declaração de guerra aguardava. Ele preferia ter certeza, terminar suas dúvidas. A perplexidade do sábio ansioso pela melhor forma de união com Deus, punha freio à cólera do chefe exasperado. Calmo na consciência de sua superioridade em número e recursos, indiferente aos constantes ataques e impensadas agressões dos nobres, estava parado perto de Damasco como um grande leão que meditasse se devia saltar sobre a presa ou permitir-lhe mais um pouco de vida.

Ouvia com interesse todas as notícias que vinham sobre a corte de Jerusalém. Os armênios, mantendo relações amigáveis com ambos os lados, viviam ansiosos por fornecê-las. A maioria das notícias não era promissora. O Rei e a Rainha faziam um belo par, mas era a única boa coisa que se podia dizer sobre eles. A Rainha pensava apenas em diversões. O Rei não tinha nem vontade nem opinião própria. Era um instrumento fraco e dócil nas mãos dos Templários. O Grão Mestre dessa ordem era o verdadeiro chefe do Estado.

— Nesse caso, desgraça para o reino — dissera Saladino, que sabia muita coisa a respeito de Geraldo de Ridefort.

Havia também muitas histórias chocantes sobre os diretores espirituais de Jerusalém. Os velhos santos bispos haviam morrido, assim como a maioria dos antigos cavaleiros; os que os haviam substituído não podiam ser comparados a eles. Despidos de dignidade e de todo senso de responsabilidade, passavam a vida de maneira a menos edificante.

— Por Alá, esse reino cairá em pedaços, por si mesmo! — dissera o Sultão com tristeza.

Inquestionavelmente, teria permanecido como espectador pacífico se não fosse uma nova agressão, particularmente violenta, do Cavaleiro de Chatillon. O dono de Kerak tinha de novo atravessado as fronteiras do estado do Sultão para roubar uma rica caravana que se destinava a Meca. Entre os peregrinos estava uma das irmãs de Saladino. Atada a uma longa corda juntamente com outras mulheres e arrastada atrás do cavalo de Chatillon, a coitada morrera de medo. Diante disso, todos os Ayyubs haviam saltado. Tinham procurado o Sultão pedindo vingança e punição. Saladino havia enviado uma embaixada, como da primeira vez, pedindo a remoção do senhor de Kerak dos limites do estado. Como antes, a embaixada voltara de mãos vazias.

— Por Alá! — exclamara o Sultão! — A posteridade não terá outro nome para mim que não o de Saladino, o Paciente. Basta. Minha paciência está esgotada. Morte aos francos!

— Morte aos francos! — ecoaram os Ayyubs. — Morte aos francos! Que seus ossos sejam colhidos pelos gaviões. Que o mínimo sinal deles desapareça da terra para sempre!

Guerra! Guerra! Os seguidores do Profeta vieram de todas as direções. Mamelucos do Egito, Janízaros de Bagdá, negros do alto Nilo, torrentes correndo para o mar. Durante quase cem anos nunca se reunira tanta força. Guerra Santa! Que morressem os infiéis!

No Reino de Jerusalém tudo era nervosismo e confusão. A longa condescendência do Sultão havia esmorecido a vigilância dos barões. Ignorantes de sua verdadeira causa, julgavam que o grande Saladino temia a derrota. Não o haviam repelido antes, recusado suas exigências — não fora cada negativa mais audaciosa e ofensiva do que as outras — e não fingira ele que não as percebia? Para os latinos, seu incompreensível amor à paz só podia ser uma expressão de medo. Eles mesmos tinham a sensação bastante desconfortável de que fora melhor não ter provocado o Sultão inutilmente. Seria melhor ter tratado seus embaixadores com mais cortesia. Dizia-se que vinte mil soldados estavam reunidos na fronteira. Que Deus protegesse o Santo Sepulcro!

Os cavaleiros se apressaram a vir de toda parte. Bohemundo de Antioquia enviou homens sob o comando do filho mais velho, Raimundo. Os Hospitaleiros esqueceram sua habitual mesquinharia e para ajudar a recrutar soldados doaram o tesouro expiatório de Enrique Plantagenet. Raimundo de Trípoli chegou com um excelente exército. Juntos, depois que todos os castelos e guarnições das cidades foram convocados, as forças cristãs somavam alguns dois mil e quinhentos cavaleiros e não menos de vinte mil homens em armas.

Se ao menos o comando desse exército fosse entregue ao antigo regente! Mas era inútil pensar nisso. Os dois Grãos Mestres se interpuseram imediatamente. Sempre adversários, tinham uma coisa em comum: o ódio a Raimundo de Trípoli. Convenceram Sibila de que, se Raimundo fosse indicado, ele a exilaria imediatamente assim como a seu marido, para se aclamar Rei. Foi o bastante. Sibila, apoiada por Inês e pelo Patriarca Heráclio, forçou seu marido a conduzir o exército como competia a um Rei. Guy de Lusignan, comandante! O pobre rapaz protestou, explicando que nada conhecia da arte da guerra. Podia lutar, sim. Comandar, não. Sibila foi inflexível. O Rei devia comandar. Quanto à falta de conhecimentos, não se preocupasse. O Grão Mestre nunca sairia de junto dele, e lhe diria o que devia fazer.

Sim! O Grão Mestre diria o que devia fazer.

Os exércitos cristãos se reuniram no oásis de Saffuriya. Esse vale sombreado era rico em poços e pastagens. Cerca de dois dias de viagem separavam Saffuriya de Tiberíade, e era de lá que se esperava Saladino.

Em atenção ao desejo do Rei — às vezes o Rei exprimia um desejo — o Patriarca, carregando a Santa Cruz, acompanhava o exército. Heráclio fazia isso a contragosto, resmungando que era pecado mortal pôr em perigo de modo tão temerário a mais sagrada das relíquias.

Primeiro dia de julho do ano de 1187. Julho é um mês escaldante na Terra Santa. Época em que nuvens de pó seco ficam suspensas no ar, parecendo que línguas de fogo vivo descem dos céus para lamber a terra. A mulher de Raimundo, Echiwa, tinha mandado um correio de Tiberíade com a mensagem de que Saladino se tinha aproximado e cercado a cidade. Suas forças eram tão numerosas que ocupavam ambas as margens do lago e parte delas ficava nas colinas, pois não havia espaço suficiente. A Princesa de Trípoli e da Galiléia, seus filhos e cavaleiros se tinham retirado para dentro da cidadela que pretendiam defender.

— Minha corajosa mulher! — exultara Raimundo.

No pavilhão real se formara um Conselho. Os Grãos Mestres, com incomum unanimidade, tinham concordado com o Rei que era necessário ir em auxílio de Tiberíade.

Raimundo repuxava seu longo bigode.

— É claro que, se interesses pessoais me movessem, eu estaria de acordo convosco. Em Tiberíade minha família se defende a si mesma. Entretanto, não posso aconselhar nenhum movimento para fora de Saffuriya. Aqui temos água e pastagens. Em toda a extensão da estrada, daqui até Tiberíade, não há um único poço.

— Daremos água aos cavalos no lago Tiberíade! — respondera altivamente o Grão Mestre.

— Se lá chegarmos! Já sabeis que Saladino cercou o lago. Suas forças têm dez vezes o número das nossas. Não será fácil atravessá-las. Poderíamos morrer de sede ou voltar para Saffuriya derrotados.

— Bem, então que sugeris? — interrompeu o Rei.

— Esperai aqui. Que Saladino tome Tiberíade. Isso não lhe dará vantagem alguma. Ele não ficará lá muito tempo. Se vier para cá, então aceitaremos combate, forçando-o a ficar no deserto escaldante, sem água, ao passo que nós estaremos acampados no oásis. Se ele resolver retirar-se poderemos atirar-nos à sua retaguarda e escolher o campo de batalha que melhor nos convier.

O bom senso de Lusignan lhe dizia que a opinião de Raimundo era razoável. Mas sem resultado, pois os dois Grãos Mestres explodiram em violenta discórdia. Suas roucas discussões atordoaram o jovem Rei. Ficou incapaz de decidir quem tinha razão. Que acontecera ao seu irmão? Talvez ele pudesse ajudá-lo. Mas Sibila havia conservado Amalrico junto de si. Ele a ajudava a guardar Jerusalém. Ela tentou fazer com que Reinaldo de Sidon também ficasse, mas o bom cavaleiro não havia consentido. Ela ficara muito indignada.

— Eu me lembrarei disso quando voltardes — dissera, com raiva.

— Temo, graciosa Senhora, que nosso próximo encontro seja em outro mundo, onde teremos ainda maiores preocupações — respondera ele alegre como sempre, antes de partir com o exército. No momento estava ausente, pois tinha cavalgado até São João d’Acre.

— Deixar nossa inexpugnável posição aqui e procurar as forças de Saladino, dez vezes maiores que as nossas, é pedir destruição! — persistia Raimundo.

Ridefort escarnecera:

— Falais dessas forças como se desejásseis aterrorizar-nos. Não temos medo. Há muitos deles? Que tem isso? O fogo tem medo ao ver a quantidade de madeira que deve queimar?

— Os epigramas são bons para as mulheres! Mas nós seremos consumidos pelo sol do deserto.

— Discutis como se desejásseis que Saladino tome Tiberíade.

O insulto deixou Raimundo lívido de raiva.

— Respondereis por isso! Depois do combate, se ainda estivermos vivos! Senhor! Eu sei que é inútil que eu abra minha boca se não prestardes ouvido às minhas palavras, mas eu vos imploro pelas chagas de Cristo que não permitais que vos induzam em erro! Não abandoneis Saffuriya! Se eu estivesse pensando em mim mesmo, como me acusam, eu correria para salvar Tiberíade. É o meu lar, é a minha família que está cercada. Amanhã ou no dia seguinte, o mais tardar, ela cairá sob o poder de Saladino. Minha gente morrerá no combate, ou mais tarde eu terei que pagar resgate. Mas que Deus resolva como quiser. Prefiro perder Tiberíade e minha família, a perder o reino! Gracioso Senhor! Daqui até Tiberíade não há um poço nem uma gota de água! Neste calor os cavalos não podem sobreviver mais do que vinte e quatro horas sem água. Que acontecerá se tivermos de acampar? Se Saladino se recusar a combater imediatamente? Ele adiará, não permitirá que alcancemos o lago. Morreremos todos e o reino desaparecerá!

Guy ponderou:

— Tendes razão — disse, afinal, com completa convicção, levantando-se para indicar que estava terminado o Conselho.

Os Grãos Mestres saíram. Ridefort estava louco de cólera. Raimundo foi para seu acampamento. Estava nervoso e preocupado. Graças a Deus, aquele plano louco tinha caído completamente; mas que faria a pobre Echiwa? Ela mandara dizer pelo correio que se defenderia. Coragem inútil! O castelo era pobre e mal fortificado; a guarnição não era grande. Os muçulmanos o tomariam com facilidade. Oxalá não lhe fizessem nada, nem aos seus filhos. — pensou, inquieto. Amava a mulher, apesar dela ser mais velha e nada bonita. Quando a desposara, era viúva de St. Omer e tinha quatro filhos. Ele não tinha filhos seus, e dava todo o amor àqueles enteados. Juntamente com o patrimônio da Galiléia, eles deviam herdar Trípoli.

— Desde que os poupem, eu lhes darei qualquer resgate que queiram. Se Saladino ou Turan Shah souberem que ela é minha mulher, certamente não lhe farão mal algum. Mas a dificuldade é que não podem adivinhar, e se a ralé irromper no castelo tudo pode acontecer...

Essas idéias torturavam seu espirito enquanto ficou sentado na tenda. Conhecia pouco Saladino, mas conhecia bem Turan Shah. Haviam sido íntimos amigos durante o seu cativeiro entre os árabes. Ocorreu ao príncipe de Trípoli que devia escrever-lhe, de cavaleiro para cavaleiro, implorando proteção para sua mulher e filhos.

Era uma boa idéia. Começou a escrever uma carta em árabe:

— A Turan Shah, Filho de Ayyub, honra e saudações cavalheirescas!

— Os homens se guerreiam uns aos outros mas não arrastam as mulheres para suas lutas. As mulheres não estão incluídas nas leis da guerra. Minha mulher, Princesa de Trípoli e de Galiléia, está na cidadela de Tiberíade. Seus dois filhos mais novos estão com ela. Confio em que ela repila com êxito vossas forças. Se, entretanto, a sorte da guerra lhe for contrária, peço-vos, Filho de Ayyub, que a cerqueis de vossa proteção.

Leu a carta prazenteiramente reconhecendo para si mesmo que estava bem redigida, aplicou nela o selo, depois chamou um escudeiro de nome Nicolau.

— Toma uma vasilha cheia de água, monta num camelo e parta para Tiberíade imediatamente! Basta acenares com esta carta à distância; portanto não precisas ter medo dos sarracenos. Pede-lhes que te levem até onde se encontrar Turan Shah. Não te esquecerás? Esse meu amigo é irmão do Sultão. Não esqueças. Turan Shah. Entregarás esta carta e depois voltarás. Se eles perguntarem onde está o exército, não lhes digas nada. Dize que eu te dei a carta em Jerusalém e que nada sabes quanto ao paradeiro do Rei e do exército. Compreendeste?

— Compreendi, alteza.

— Bem, então vai com Deus.

O moço saiu, coçando a cabeça. A mensagem não era do seu gosto, mas não ousava confessar isso ao príncipe. Cavalgar até os pagãos? Céus! E se a carta não o protegesse?

Sem nenhum entusiasmo, dirigiu-se aos condutores de camelos para arranjar vasilhas de couro para a água e uma boa montaria. Para aumentar ainda o seu aborrecimento, os camelos não estavam no lugar habitual. Procurando grama fresca, com certeza tinham rumado para a outra ponta do oásis. Assim, amaldiçoando sua sina, pôs-se a procurá-los, tropeçando sobre as cordas das tendas na neblina. Os criados ainda estavam sentados ao redor da fogueira, no campo dos Templários. Parou por um momento para se queixar da penosa missão que seu senhor lhe confiara e para descobrir o que fosse possível a respeito dos costumes sarracenos. Eles não o matariam?

* * *

A madrugada se insinuava na tenda do Rei adormecido quando o Grão Mestre empurrou violentamente a entrada.

— Senhor! Traição!

— Como? — Guy acordou e esfregou os olhos.

— Traição! Há muito que eu suspeitava! Acabei de pegar um escudeiro do Príncipe de Trípoli que ia levar uma carta para Saladino ou para seu irmão!

— Uma carta? Para Saladino? Por que?

— Aí é que está! O traidor escreveu em árabe! Ele informa o inimigo de nossa decisão de esperar aqui. Traição!

Guy, ainda mal desperto, olhou para a incompreensível escrita árabe, e à vista do papel, encheu-se de temor.

— Onde está Reinaldo de Sidon? Ele a lerá para nós.

— Reinaldo não está aqui — disse o Grão Mestre. Sabia que Reinaldo tinha voltado, mas não queria que a carta fosse lida. O mensageiro de Raimundo tinha divulgado que lhe haviam ordenado não contasse a posição do exército, Ridefort tinha a certeza, portanto, de que a carta não continha traição. Mas aquele fraco Rei acreditaria em qualquer coisa.

— Que vamos fazer? Que vamos fazer? — choramingou Guy. Estava quase chorando. Como eram baixos, todos! O Príncipe de Trípoli tinha falado com tanta convicção, com tanta sinceridade, e agora... Escrevia cartas em árabe!

— Para esconder sua perfídia mandou a mensagem, secretamente durante a noite — disse o Grão Mestre.

— Que vamos fazer? — lamentou-se o Rei.

— Fazer? O que é evidente! Ordenar o ataque imediatamente! Fazer o contrário das recomendações do traidor. Partamos já para Tiberíade.

— Ordenai que soem as trombetas — concordou Guy, desesperado. Já não sabia nem compreendia coisa alguma. Se ao menos Reinaldo de Sidon ou Amalrico, ou Ibelin de Ramlah ali estivessem! Sim, se ao menos Ibelin de Ramlah ali estivesse. Podia acreditar nele. Mas o cavaleiro de Ramlah estava ausente fazia muito tempo. Ainda antes da morte do Rei Leproso, fora viver permanentemente em França.

No acampamento se formara um pandemônio. As trombetas soavam.

Os tambores batiam. Um vulcânico toque de alvorada havia irrompido na noite que já branquejava.

— Aos cavalos! Aos cavalos! Morte aos pagãos!

Despertado pelo alarido, Raimundo saltou da cama. Que significava aquilo? Que havia acontecido? Apressou-se a correr até o pavilhão do Rei. Guy olhou-o com má catadura.

— O Grão Mestre me trouxe vossa carta — disse o atarantado Guy, mostrando a carta a Raimundo.

— Minha carta para Turan Shah! Então o correio não foi! Por que?

— Por que escrevestes para Turan Shah? — perguntou Guy, com desprezo.

— Para que, ao tomar o castelo, ele poupasse minha mulher e enteados. Deixai-me ler, Majestade.

E leu o conteúdo, traduzindo cada palavra. De novo Guy estava a ponto de chorar. Em quem devia acreditar? Quem tinha razão? O que o Príncipe de Trípoli dizia, parecia razoável; por outro lado, o Grão Mestre...

— Eles fizeram de mim um traidor — de mim, um cavaleiro honrado! — Raimundo estava enraivecido. — A traição está em outro lugar! O traidor é esse Satanás que vos conduz à ruína. Pela misericórdia divina, não deveis ir para Tiberíade! Ficai aqui, como estava decidido!

— Eu já dei a ordem.

— É melhor revogar essa ordem do que perder o exército e o reino.

Guy ponderou. Hesitava. Talvez devesse seguir este conselho, mas tinha vergonha. Já haviam soado as trombetas. Caçoariam dele por nem sequer saber se queria ir ou ficar. Além do mais, temia a ira do Grão Mestre. Simplesmente, estava assustado. Com a teimosia peculiar aos fracos e irresolutos, disse:

— Eu dei a ordem, e não a retirarei.

— Mas ela significa destruição!

— Isso é o que resta saber. Recusai-vos ir conosco?

— Um bom cavaleiro não recusa mesmo quando a morte que o encara é insensata — respondeu Raimundo, e saiu do pavilhão.

Já era madrugada. O campo desperto estava numa ativa desordem. Raimundo observou esses preparativos com um desespero cínico, frio. Era claro que se preparavam para a morte. Não compreendia o objetivo do Grão Mestre! Com toda a certeza devia ter consciência das conseqüências.

Raimundo lutava com seus pensamentos. Talvez devesse ordenar àqueles homens que não fossem. Pôr de lado o boneco sem cabeça, afastar o Grão Mestre, dominar tudo com pulso forte e salvar o reino? Corriam homens à sua volta, não lhe dando a menor atenção. Ouvia pedaços de conversa.

— Leva água, Mateus, bastante água...

— Em que? Só tenho uma bolsa, e está cheia de buracos.

— Alguns têm várias bolsas; pede, pode ser que te emprestem uma.

— Emprestar? Não há perigo! Quem tem, guarda para si...

— Dizem que ficaremos sem água durante dois dias, neste maldito calor.

— Ouviste dizer que o Príncipe de Trípoli nos traiu? O Grão Mestre interceptou sua carta para o Sultão.

— Céus! O Príncipe de Trípoli? Um cavaleiro como ele! E escreveu ao Sultão! O Grão Mestre também não é coisa melhor.

— Claro que não. Todos esses senhores são os mesmos. Eles se esquivam sempre que podem, e nós, pobres homens, é que morremos.

— Traição em toda parte, Jesus de Nazaré! Dizem que vamos indo para a morte certa no deserto.

— Por que irmos então? Por que não ficarmos aqui?

— Ficar? Com quem? Não há ninguém em quem se possa confiar, moço, ninguém...

Raimundo se afastou da árvore à qual se encostara, e voltou para seu acampamento. Era inútil apelar para os homens de armas. Era inútil provocar rebelião. Que o destino seguisse seu curso.


 

25
TRAIÇÃO A DEUS

 

O solo árido e pedregoso ressoava sob o casco dos cavalos. Em parte alguma se via sinal de verdura. Dos regos cheios de mato emergiam os talos secos. O sol queimava como fogo vivo. A armadura escaldante fechava os corpos num calor inclemente. A poeira enchia bocas e olhos. O ar vibrava de calor. Arrastava-se o dia tórrido em lentas, longas horas. Pendiam as cabeças dos cavalos. Miragens decepcionavam os olhos dos cavaleiros. Além, no ar avermelhado pelo calor, flutuava Tiberíade, tão próxima que se poderia atirar uma pedra. Palácios brancos, erva fresca, as profundezas de safira do lago. Ele tremulava, piscava, tentava, aumentando o tormento das sofredoras forças cristãs.

À hora em que o exército havia subido, tropeçando, as colinas do Monte Hattin, o crepúsculo chegava. O cimo era um planalto em forma de sela, bastante grande para acomodar todo o exército. Os cavalos começavam a fraquejar. Os lábios dos homens estavam ressequidos. Deram água aos cavalos e depois tomaram gulosamente sua parte do fresco fluido, sem esquecer de deixar um pouco para a manhã seguinte.

— Não vamos parar aqui — implorou o Príncipe Raimundo. — Fica mais fácil andar com a fresca da noite. Agora que alcançamos o cume, vamos continuar imediatamente. Talvez possamos surpreender Saladino e abrir caminho até o lago. Não percamos uma hora!

Suas palavras caíram em orelhas surdas. Todos estavam loucos por se atirar e dormir no chão fresco! Continuar pela noite, depois de todo um dia de marcha? Se o Príncipe Raimundo estava com tal pressa, que fosse. Estaria tão ansioso por se encontrar na presença de Saladino?

A noite sufocante e sem estrelas era um sombrio presságio de condenação. No escuro, qualquer coisa parecia estar em movimento; havia sussurro e rumores apagados, Seria o vento roçando as ondas do lago? A madrugada se retirou ante o grande disco vermelho do sol, que apontava no horizonte com um desperdício de raios. Imediatamente seu calor tórrido fez lembrar os sofrimentos da véspera. O exército montou a cavalo. Avançar!

Avançar para onde, francos? Já não havia nenhum caminho à frente. Não era vento, o que tinham ouvido na noite anterior. Não haviam sido as ondas do lago. Saladino, com suas poderosas hostes, tinha realizado um movimento na escuridão e estava cercando Hattin. Corpos e mais corpos de soldados muçulmanos se haviam movimentado, partindo de Tiberíade, do Monte Ruran, do Monte al Shan Djar, de Loubiya, de Mescana, de Khan Madin. Os cristãos se defrontavam com muçulmanos por todos os lados! Não podiam retirar-se para Saffuriya, e era inútil sonhar em alcançar o lago! Cercado por todos os pontos, estavam no maldito monte em forma de sela como um sacrifício colocado em altar, como uma oferenda votiva ao sol devorador.

Um lamento de terror, um grito de desespero varreu as fileiras. O Rei Lusignan torceu as mãos. O Grão Mestre ficou sem fala, com seus verdadeiros pensamentos escondidos de todos. Raimundo abanou a cabeça dolorosamente. Aquilo era pior ainda do que tinha profetizado, e acontecera antes do que esperava.

Já houvera ocasiões em que os guerreiros latinos tinham superado situações mais difíceis do que aquela, saindo vitoriosos. Morrendo de fome e sede, haviam esmagado poderosos exércitos muitas vezes mais numerosos. Houvera ocasiões em que hostes de mortos tinham vindo em seu auxílio. Houvera tais coisas, outrora. Mas nunca mais se repetiriam!

Fosse como fosse, o exército cercado começou a lutar, começou a procurar passagem. Sem pedir licença a ninguém, Raimundo assumiu o comando. Fortificou o monte com um muro de infantaria. Enfiando as lanças em terra, e nelas encostando as couraças, formaram uma forte paliçada defensiva. Neste muro deixaram abertura pelas quais os cavaleiros fizeram quatro sortidas. Forçando os cavalos fracos com esporas agudas, atiraram-se contra os muçulmanos, penetrando fundo nas fileiras inimigas. Mas as forças de Saladino eram tão compactas que essa carga se esgotou antes que pudesse chegar ao meio da coluna inimiga. Novas ondas de inimigos faziam pressão contra eles, empurrando-os para o lado, forçando-os a voltar para a colina maldita que devia transformar-se em túmulo dos francos.

A fim de impedir que fugissem de Hattin, os sarracenos tocaram fogo à grama seca que crescia nas vertentes. Uma mortalha de fumaça e de fogo cercou os cristãos.

Guy de Lusignan olhava aquilo cheio de horror. Lágrimas lhe enchiam os olhos avermelhados. Através delas, na fumaça, via o castelo de seu pai, a floresta, o rio La Yonne. Não se sentia rei, não se sentia responsável, não compreendia a magnitude da desgraça nem o que significava. Era simplesmente um pobre moço do Poitou arrastado, sem querer, numa terrível aventura.

Alguém o empurrou. Era Gray. O cavaleiro gritou em voz rouca: — Onde está o Sagrado Lenho? Por que não o erguem?

Era verdade. Onde estava o Santo Lenho? Todos o tinham esquecido. Onde estava o Patriarca? Heráclio tinha desaparecido. Tinha fugido de Saffuriya, aproveitando-se da confusão geral na ocasião da partida do exército. Provavelmente já estava em Nablus, aninhado junto de sua Pascalina, a salvo. Mas o grande relicário tinha ficado. O Irmão Benedito, quase fora de si de susto, também tinha ficado. Estava guardando o Lenho. Ao comando do Rei, montou a cavalo e colocou o relicário diante de si. O Santo Lenho resplandeceu, bem alto, acima da multidão.

A Cruz! Seu signo tinha uma força incomensurável; era bastante traçá-lo no ar com os dedos e as forças do inferno se desintegravam. Ela aproximava do céu; afastava o inferno; desde o começo do mundo o signo havia sido, primeiro a premonição, depois a recordação da verdadeira Cruz.

Quanta força não devia estar escondida na própria Cruz, se o sinal, apenas, possuía tal poder? O próprio Lenho em que pendera o Redentor da humanidade?

O Lenho da Cruz do Salvador! Nunca fora como outras madeiras — como carvalho ou cedro. No começo dos tempos o solo que deveria alimentá-la fora escolhido; já era bendito o vento que devia dispersar a minúscula semente e depositá-la delicadamente no solo. Sábio era o instinto que levara a humanidade a honrar e adorar aquela árvore. Esperando o momento em que toda a flora seria glorificada pelo Divino toque, aquela plantinha nova, exaltada entre todas as árvores, tinha crescido. Ao contato com Deus, descera uma bênção ao verde da folha, à resina da polpa, à rugosidade da casca. Porque, na verdade, Deus tinha abençoado toda a natureza — os animais na mangedoura do Nascimento, as pedras em Seu Sepulcro. Mas a árvore fora favorecida acima de tudo. O sangue e o suor do Senhor haviam descido por sua extensão. Ela havia estremecido com Seu último suspiro. As mãos de João, da Virgem Maria e de Madalena a haviam tocado. Encerrado dentro dela, havia mais do poderio de Deus, do que em outra qualquer coisa no mundo.

Oh, Santo Lenho, milagrosamente conservado num poço, achado pela devota Helena, perdido de novo, recuperado pelo Imperador Heráclio, que continuava a ser o reservatório dos milagres, de invencível e eterna força! Por Sua causa, pode-se fazer que caiam montanhas, e se ergam vales, e se abra a terra. Os fracos são exaltados; os fortes humilhados. Nada é impossível à Sua força. Basta apenas pedir tais milagres, implorá-los, descansar em Deus e esperar! Basta que alguém confesse nela ter fé, e Sua benevolência precipitará os céus à terra!

Mas quem, naquela maldita colina em forma de sela, podia invocar Deus naquele quarto dia de julho, no ano de 1187? O Patriarca tinha fugido. O Irmão Benedito temia por sua vida. Medrosamente se escondia atrás do escudo, enfiava a cabeça no relicário para evitar as flechas. O Rei chorava. Seus cavaleiros, dominados pelo calor e pela sede, meio sufocados pelo fumo, só pensavam no fim próximo.

Apenas um homem, à distância, olhava o relicário resplandecente com expectante e secreta esperança! Saladino, o filho de Ayyub. Para ele, parecia impossível que a batalha terminasse tão depressa, com tão completo êxito. Eram conhecidas as forças secretas, aliadas dos francos! Mais de uma vez os latinos haviam sido salvos na hora da destruição, mais de uma vez um poder lhes fora dado que transformara a derrota em vitória. Aquela força lhes vinha do Lenho em que havia morrido o Profeta dos cristãos. Por isso o Sultão olhava, inquieto, para o relicário resplandecente, sem saber se temia o aparecimento desse poder ou se o desejava.

Seu filho, al Afdal, acorreu para junto dele, radiante:

— Comendador dos Crentes! É o fim dos francos!

— Não te alegres depressa demais, meu filho. A vitória não é certa enquanto aquela bandeira rebrilhar.

Saladino não sabia bem a linguagem dos francos, e empregava uma palavra errada para descrever o Santo Lenho. A bandeirola a que se referia era a bandeira do Rei, a bandeira de Godofredo de Bouillon com sua cruz num campo dourado. Era certo que o escudeiro que carregava essa bandeira cavalgava ao lado do Sagrado Lenho, e à distância os dois símbolos se fundiam num só.

— A vitória só será certa quando aquela bandeira cair — repetiu Saladino. Mas al Afdal se erguera e se afastara.

— Os francos estão procurando abrir uma brecha novamente — gritou, e se apressou em correr para os guerreiros. Raimundo de Trípoli, Reinaldo de Sidon, o jovem Raimundo de Antioquia, Balian Ibelin e um punhado de cavaleiros haviam feito carga contra a brecha ardente, tinham atravessado sem perdas, e estavam entrando nas fileiras muçulmanas. Atiravam para o lado os piques, abatiam-se sobre a massa, golpeando para a frente com um só pensamento: atravessar ou morrer. Nunca voltariam ao inferno vivo em que Hattin se transformara!

E, no frenesi da luta, cortavam, abriam caminho, varavam e martelavam. Seus golpes varriam à direita e à esquerda. O desespero redobrava suas forças. Cabeças separadas do corpo por terríveis golpes rolavam no chão; membros eram cortados, o sangue esguichava. Eles continuavam, palmo a palmo. Das alturas de Hattin, Raimundo resolvera qual era a parte mais fraca no círculo de ferro do inimigo, e fizera carga contra ela. Acima dele flutuava a bandeira de Raimundo St. Giles, a velha bandeira de Tolosa.

Abandonando a batalha, o jovem al Afdal se aproximou de novo do pai.

— Eles conseguiram passar, Comendador dos Crentes! É o Príncipe de Trípoli. Conseguiu passar antes que eu pudesse trazer as reservas. Mas já enviei homens no seu encalço. Os cavalos dos francos estão fraquejando; eles não poderão fugir.

— Abandona a perseguição, al Afdal. Que importância têm para nós uns poucos cavaleiros?

Insatisfeito, al Afdal afastou-se do pai. Os olhos de Saladino se voltaram para o campo de batalha. Devia alegrar-se. Por que não se alegrava? Os francos estavam vencidos. Nem sequer um milagre poderia salvá-los. Aniquilados pelo calor, os homens de armas caíam ao chão em magotes. Já não se importavam com nada. Os vencedores podiam amassá-los sem protestos, mas os pontapés e aguilhoadas dos muçulmanos eram inúteis, pois seus prisioneiros não se ergueriam. Afinal um dos vizires teve a idéia de os inundar de água. Água! Eles saltaram como se ressuscitassem de entre os mortos. Água? Onde? Atiraram-se para ela como um rebanho de carneiros. Aquele rebanho humano não precisava de grilhões.

O punhado de cavaleiros remanescentes não queria render-se. No cimo do monte, estavam eles juntos, num bloco, derretendo como neve na primavera, e no entanto ainda lutavam e ainda se defendiam. De todas as virtudes cavaleirescas só duas permaneciam vivas: coragem e desprezo pela morte. Eles não haviam sabido guardar o reino, não tinham conseguido salvar o Santo Sepulcro, mas não se abatiam ante a morte, não imploravam misericórdia. Morriam de espada na mão.

Eram cada vez menos, a cada instante. Um após outro sucumbia. O sangue escorria pela colina, traçando caminhos, cobrindo as ladeiras, entre os rochedos, como uma rede de mil filetes de riachos vermelhos.

— Dentro de um instante, tudo estará terminado! — gritou al Afdal para seu pai.

— Não te alegres, meu filho, enquanto...

— O estandarte caiu! — exclamou o filho.

O estandarte caiu!

— La Ilá-el-Alá, Mohamed rasul Alá! — Saladino puxou o véu do turbante para o rosto. Não queria ver. Agora, sabia. A Cruz do Profeta Jesus tinha ido ao chão. Deus não viera em defesa dos cristãos. Sua fé não era melhor do que outra qualquer.

E, numa voz diferente, disse:

— Termina tudo rapidamente, Afdal.

* * *

Apesar de se aproximar o fim do dia, o calor não diminuíra. O Monte Hattin estava cheio de pilhas de cadáveres, que nivelavam a depressão do cimo em forma de sela. À distância, o monte manchado de sangue parecia estar coberto de coral.

Havia silêncio no Monte Hattin. Todos os cavaleiros estavam mortos.

Só se haviam salvado aqueles que, com Raimundo, tinham aberto caminho, e mais três que estavam presos. O Rei, Reinaldo de Chatillon e o Grão Mestre dos Templários tinham ficado prisioneiros dos muçulmanos. Meio desmaiados, incapazes de erguer sequer a espada, foram levados à presença do Sultão.

Saladino já tinha deixado o campo de batalha e estava sentado à sombra de sua tenda. Dois escravos abanavam grandes leques de um lado para outro, acima de sua cabeça. Uma bandeja de gelo, sobre um banquinho baixo, estava junto do Sultão.

A um sinal de Saladino, um dos vizires tirou o capacete da cabeça do Rei e enxugou seu rosto com um lenço úmido. Os olhos de Guy estavam esgazeados; através dos lábios rachados, respirava com dificuldade. Nada compreendia do que se passava ao redor. Seus pensamentos continuavam presos à floresta e ao rio La Yonne.

Saladino alcançou uma taça cheia de gelo rosado e sem uma palavra a ofereceu a Guy. Com mãos trêmulas, o Rei agarrou a taça e a levou à boca. Guy não sabia ser Rei, nem comandar. Não era um herói. Mas continuava a ser o que sempre fora — moço de boa índole, apesar de sua ausência de energia. Não era o único que sofria sede. Mal umedecendo os lábios, Guy estendeu a taça ao Senhor de Chatillon que estava ao seu lado.

Então aconteceu uma coisa terrível. Saladino acompanhou o gesto do Rei e reconheceu o Senhor de Kerak. Era ele! Os bigodes eriçados, a atitude orgulhosa, altiva. Era ele! De Chatillon chupava gulosamente o sorvete. Saladino precipitou-se, de olhos chamejantes.

— Como ousas dar-lhe alimento sem minha permissão? É este o bandido de al-Akra! Eu jurei que ele morrerá, e nada pode salvá-lo.

Com um gesto tão rápido que o olhar mal pôde segui-lo, Saladino puxou um punhal do próprio cinto de Reinaldo e o enterrou até o cabo na garganta do cavaleiro. O sangue esguichou, quando de Chatillon caiu. Al Afdal, encantado, coadjuvou o golpe do pai, passando a espada no corpo do moribundo.

Puxando o capuz para a cabeça, o Sultão cobriu o rosto.

— Matei um prisioneiro indefeso — lamentou-se. — Matei um homem que partilhava a comida sob meu teto. Pequei contra a lei do Profeta. Mas ele tinha que morrer. Eu tinha jurado sua morte.

Atirou o capuz para fora do rosto e disse ao Rei, ameaçadoramente:

— Por que não fizeste isso? Não estarias diante de mim, neste momento! Esses dois... — deu um pontapé no cadáver, e apontou para Geraldo de Ridefort — esses dois puseram a perder o teu reino!

Saladino olhou com desprezo para o Grão Mestre, que se conservava numa indiferença suprema. Ele não tinha medo. Havia pouco, tinha conseguido trocar um sinal cabalístico, que não fora notado por mais ninguém, com um dos sobrinhos do Sultão...

* * *

Aquela noite, como a precedente, foi escura e parada. Saladino não conseguia dormir. A recompensa do vencedor devia ser um sono profundo e feliz. Era o que não tinha. Por que sofria ainda? Durante quase cem anos o estado latino havia sido um espinho intolerável para o coração do Islam. Agora, cessara de existir. Seu exército estava vencido; seu Rei no cativeiro. Suas cidades e castelos, indefesos, aguardavam os vencedores. Abençoado — mil vezes abençoado fora aquele dia!

Aproximou-se de Saladino o filho, al Afdal. Vinha radiante. Seus olhos brilhavam de rapacidade.

— Vi luz em tua tenda, Comendador dos Crentes, e vim dizer-te que tudo está resolvido. Já dividi os escravos. Podemos vender os melhores e estamos matando os aleijados e os feridos. Não acabaremos antes do amanhecer, provavelmente, pois metade deles não vale a pena guardar.

Saladino estremeceu de horror.

— Afdal, não me fales nisso.

— Para começar — continuou Afdal sem dar atenção ao protesto do pai — degolamos todos os criados dos Templários. Gente suja! Não pudemos fazer o mesmo com os cavaleiros porque nenhum ficou vivo. É verdade, Comendador dos Crentes, que poupaste a vida ao Grão Mestre?

— É verdade — disse o Sultão com relutância.

Afdal corou de raiva.

— Por que o fizeste, Comendador dos Crentes? Esse homem é indigno de misericórdia ou de respeito.

— Bem tenho consciência disso, Afdal. Foi teu primo, Abdula, que me procurou depois da ceia para implorar a vida do Grão Mestre. Eu tinha prometido a Abdula, há muito tempo, que lhe daria o que ele pedisse. Ele exigiu a cabeça do cavaleiro. Não pude recusar.

— Que significa o Grão Mestre para Abdula? Nem sequer se conhecem.

— Não sei dizer, meu filho. É bastante que tenha pedido, pois eu tinha que fazer o que ele pedisse. Além do mais, devemos a vitória de hoje ao Grão Mestre. O Rei contou-me que Ridefort o forçou a abandonar Saffuriya.

— Que ele viva, então. Devemos partir amanhã para a ocupação de Jerusalém, Comendador dos Crentes?

— Eu irei pessoalmente, mas não quero mais derramamento de sangue. Já correu bastante. Deixemos os habitantes de Jerusalém e das outras cidades em paz. Quem quer que seja culpado de violência ou roubo será severamente punido. As igrejas não deverão ser tocadas.

Al Afdal ouvia com crescente má vontade.

— Comendador dos Crentes — gaguejou — teu esplêndido coração já esqueceu a carnificina perpetrada pelos francos quando tomaram Jerusalém? Eles não pouparam ninguém, nem mulheres nem crianças. O sangue correu por todas as ruas.

— Lembro-me bem, meu filho, mas não pretendo imitar os francos. Eu declarei minha vontade. Não desejo ver mais sangue. Nem quero humilhar os vencidos. A Rainha e suas damas de honra serão livres para ir aonde quiserem. Anuncia aos mercadores cristãos que seu comércio não será estorvado. Permito que suas galeras velejem, entrando e saindo dos portos em paz. Não quero que este florescente país seja de novo transformado em deserto. E o que é mais importante: que cada qual adore a Deus segundo sua própria crença. Esta é minha vontade, Afdal.

O filho inclinou-se profundamente sem pronunciar uma palavra. No íntimo, achava que seu pai, o Comendador dos Crentes, devia ter começado a envelhecer, já que estremecia à vista de sangue.

O pai leu seus pensamentos.

Ele pensa que sou um velho tolo, e que ele saberia dirigir melhor. Quem sabe, talvez eu esteja mesmo ficando velho? Se eu fosse jovem, eu me alegraria com a vitória de hoje. Eu me alegraria.

Mas era inútil repetir aquilo para si mesmo, inútil lutar contra sua ausência de interesse. A tristeza era teimosa. O reino dos francos tinha caído; seus dias estavam terminados. O emir al Bara não tinha razão. A fé dos cristãos era tão imperfeita como a fé dos outros povos. A Cruz tinha caído, e Deus não a levantara. Nada restava a Saladino para aprender, nada para pesquisar.

Seria possível? Não! Não! Impossível! Se assim fosse, seria mil vezes melhor viver como os animais, sem pensamentos, sem rebuscar o coração, orar girando e uivando como um derviche, sem ponderar mais sobre a existência do que um camelo ou um chacal, renunciar a toda dignidade humana, e, à maneira das bestas feras, oprimir os fracos. Pois, se assim fosse, para que existiam as aspirações humanas?

Dignidade, sabedoria, bondade, altruísmo eram degraus da escada que deviam levar uma criatura bem alto. Até o pé de Deus. Mas se essa escada não levava a parte alguma, ficava interrompida abruptamente, perdida no espaço, então era inútil procurar escalá-la, inútil olhar para cima.

A noite ficara ainda mais sombria. As estrelas luziam com mais brilho. O Sultão continuou a pensar:

O Corão não encerra toda a Verdade. Contém apenas uma parte dela. (Era uma sorte que só a noite estivesse ouvindo os pensamentos blasfemos do Sultão). O Corão era apenas a antecâmara do conhecimento. Porque a perfeição, de acordo com o livro, se alcançava sem esforço. Para adquirir a virtude, bastava guerrear os infiéis e fazer peregrinação à Meca. Nenhum homem de bom senso poderia admitir isto. De que valor seria a virtude, se adquirida sem esforço?

Por que o Profeta não exigia esforço dos seus seguidores?

O Profeta Jesus parecia exigir muito. Desejava sacrifício total, completa devoção. Ele ansiava pelas almas. Ordenava às almas que se transformassem, de acordo com Sua vontade. Não era fácil satisfazê-lo.

Mas, apesar de tudo isso, o Profeta Maomé tinha vencido o Profeta Jesus!

Tinha vencido! A Cruz caíra por terra!

O Sultão suspirou fundamente, cheio de dor, no conflito de sua alma. Lamentava-se como um leão que ainda estivesse faminto. Olhava para a escuridão como se esperasse um sinal. Sentindo-se mais insignificante e mais pobre, que um mendigo vagabundo, o grande Sultão vitorioso implorou a Alá um sinal.

— Dize-me o que devo fazer, Alá!

— Por que Deus traiu e abandonou os Cristãos?

— Mas, talvez... talvez os cristãos é que tivessem abandonado seu Deus.

F I M


 

©2008 — Zofia Kossak

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Maio 2008

 

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