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A DIVINA COMÉDIA
— PURGATÓRIO —
Dante Alighieri

Tradução
José Pedro Xavier Pinheiro

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A DIVINA COMÉDIA
— PURGATÓRIO —
DANTE ALIGHIERI

Tradução
José Pedro Xavier Pinheiro
1822-1882
Ilustrações de Gustave Doré
1832-1883

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Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DE
D. GIOSA - INDÚSTRIAS GRÁFICAS S/A
SEÇÃO: ATENA EDITORA
RUA JAVAÉS, 465 - SÃO PAULO
MARÇO - 1955

© 2003 — Dante Alighieri


 

A DIVINA
COMÉDIA

Dante Alighieri

—PURGATÓRIO—


 

Índice

Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Canto VI
Canto VII
Canto VIII
Canto IX
Canto X
Canto XI
Canto XII
Canto XIII
Canto XIV
Canto XV
Canto XVI
Canto XVII
Canto XVIII
Canto XIX
Canto XX
Canto XXI
Canto XXII
Canto XXIII
Canto XXIV
Canto XXV
Canto XXVI
Canto XXVII
Canto XXVIII
Canto XXIX
Canto XXX
Canto XXXI
Canto XXXII
Canto XXXIII


PURGATÓRIO

 

CANTO I

 

Saindo do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas. Encontra-se na ilha do Purgatório. O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta aos dois Poetas qual é o motivo da sua jornada. Ele os instrui, depois, relativamente ao que devem fazer, antes de iniciar a subida do monte.

 

DO engenho meu a barca as velas solta
Para correr agora em mar jucundo,
3 E ao despiedoso pego a popa volta.

Aquele reino cantarei segundo,
Onde pela alma a dita é merecida
6 De ir ao céu livre do pecado imundo.

Ressurja ora a poesia amortecida,
Ó Santas Musas, a quem sou votado;
9 Unir ao canto meu seja servida

Calíope o som alto e sublimado,
Que às Pegas esperar não permitira
12 Lhes fosse o atrevimento perdoado.

Suave cor de oriental safira,
Que se esparzia no sereno aspeito
15 Do ar até onde o céu primeiro gira,

Recreia a vista; e eu ledo me deleito
Em surdindo da estância tenebrosa,
18 Que tanto os olhos contristara e o peito.

A bela estrela, a amor auspiciosa
Sorrir alegre faz todo o Oriente,
21 Vela os Peixes, que a seguem, luminosa.

Ao outro pólo endereçando a mente,
Volto-me à destra, e os astros quatro vejo,
24 Que vira só a primitiva gente.

Folgar o céu parece ao seu lampejo.
Do Norte, ó região, viúva hás sido,
27 De os contemplar te não foi dado ensejo.

Depois de os remirar, já dirigido
Olhos havia para o pólo oposto,
30 Donde a Carroça havia-se partido,

Eis noto um velho, perto de mim posto,
Que reverência tanta merecia,
33 Que mais do pai não deve o filho ao rosto.

Nas longas barbas nívea cor saía,
Sendo na coma sua semelhante,
36 Que em dupla trança ao peito lhe caía.

A luz dos santos astros rutilante
De fulgor tanto lhe aclarava o gesto,
39 Que o vi, como se o sol lhe fosse adiante.

— “Quem sois que em contra o rio escuro e mesto
Do eterno cárcere heis fugido os laços?” —
42 Movendo as nobres plumas, disse presto.

“Quem vos guiou alumiando os passos
Para a profunda noite haver deixado,
45 Que enluta sempre os infernais espaços?

“As leis do abismo acaso se hão quebrado?
O céu dá, seus decretos revogando,
48 Que dos maus seja o meu domínio entrado?” —

Travou de mim Virgílio, me exortando
Por voz, aceno e mãos: como queria
51 Os joelhos curvei, olhos baixando.

— “De motu meu não vim” — lhe respondia —
De Dama aos rogos, que do céu descera
54 Socorro este homem, sirvo-lhe de guia.

Pois que é desejo teu que a nossa vera
Condição definida mais te seja,
57 Prestar me cumpro explicação sincera.

“Aura da vida este home’inda bafeja,
Mas tanto, de imprudente, se arriscara,
60 Que é maravilha vivo ainda esteja.

“Disse como a salvá-lo me apressara:
Por onde os passos dirigir pudesse
63 Essa vereda só se deparara.

“Mostrei-lhe a gente, que por má padece;
Mostrar-lhe intento os que ora estão purgando
66 Pecados no lugar, que te obedece.

“Longo seria como o vou guiando
Dizer-te: é força do alto a que me impele,
69 Para te ver e ouvir o encaminhando,

Digna-te, pois, bení’no ser com ele:
A liberdade anela, que é tão cara:
72 Sabe-o bem quem por ela a vida expele.

“Por ela a morte não te há sido amara
Em Útica, onde a veste foi deixada,
75 Que em Juízo há de ser de luz tão clara.

“Por nós eterna lei não é violada:
Ele inda vive; Minos não me empece;
78 No círc’lo estou, onde acha-se encerrada

“Tua Márcia, que em casto olhar parece
Rogar-te ainda que por tua a tenhas:
81 Lembrando-a em favor nosso te enternece.

“Ir deixa aos reinos teus, não nos retenhas;
Hei de a Márcia dizê-lo agradecido,
84 Se lá de ti falar-se não desdenhas.” —

— “Márcia, a meus olhos tão jucunda há sido
Que — tornou-lhe Catão — eu de bom grado
87 No mundo quanto quis lhe hei concedido.

“Estando além do rio detestado,
Mover-me ora não pode: este preceito
90 Me foi, deixando o Limbo, decretado.

“Se por dama celeste hás sido eleito,
Como disseste, é vã lisonja agora;
93 O que requeres em seu nome aceito.

“Vai, pois: cingindo este homem sem demora
De liso junco, lava-lhe o semblante;
96 Toda a impureza seja posta fora.

“Cumpre que, quando ele estiver perante
O anjo, que do céu vier primeiro,
99 Névoa nenhuma os olhos lhe quebrante.

“Lá onde baixa o ponto derradeiro
Do mar batido, esta ilha tem viçoso
102 Juncal que alastra todo o seu nateiro.

“Não pode vegetal rijo ou frondoso
Ter vida ali; porque não dobraria
105 Ao embate das ondas caprichoso.

“Aqui tornar inútil vos seria.
Vereis ao sol, que surge, o melhor passo
108 Para subir do monte à penedia.” —

Sumiu-se. Ergui-me, então, sem mais espaço,
E em silêncio; olhos fitos no semblante
111 De Virgílio, amparei-me com seu braço.

— “Comigo, ó filho” — diz-me — “segue avante.
Atrás voltemos; pois daqui se inclina
114 O plano para o mar, que jaz distante.” —

Fugia ante a alva a sombra matutina;
Já nos ficava aos olhos descoberta,
117 Posto remota, a oscilação marina.

Pela planície andávamos deserta,
Como quem trilha a estrada, que perdera,
120 E teme não achar vereda certa.

Chegando à parte, onde não pudera
Do rocio triunfar o sol nascente,
123 Porque à sombra o frescor pouco modera,

Sobre a relva meu Mestre brandamente
As mãos ambas abriu: o movimento
126 Lhe noto e, o compreendo, diligente,

As lacrimosas faces lhe apresento.
Virgílio as cores restaurou-me ao gesto,
129 Que desbotara o inferno nevoento.

Vimos à erma praia a passo lesto:
Nunca sobre águas suas navegara
132 Homem que o mundo torne a ver molesto.

Cingido fui, como Catão mandara.
Portento! A humilde planta renascida,
Qual antes vi no solo, onde a arrancara,

136 Sem diferença, de súbito crescida.

 

10. Calíope — Musa da epopéia. — 11. Pegas, as filhas de Pierio, desafiaram as Musas para cantarem com elas e, vencidas, foram transformadas em pegas. — 19. A bela estrela, Vênus. — 21. Os Peixes, a constelação dos Peixes. — 31. Um velho etc., Catão Uticense, que, para não entregar-se a Júlio César, suicidou-se em Útica. — 40. Rio escuro e mesto, o Aqueronte. — 79. Márcia, esposa de Catão.


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Os joelhos curvei, olhos baixando


 

CANTO II

 

Estão os Poetas ainda na praia, incertos em relação ao caminho, quando chega uma barca, guiada por um Anjo, da qual saem almas destinadas ao Purgatório. Uma delas, o músico Casella, amigo de Dante, a convite do Poeta, começa a cantar uma sua canção. Os dois Poetas e as almas ficam a ouvir o canto harmonioso. Sobrevém. porém, o severo Catão, que as repreende, e as almas fogem para o monte.

 

RESPLENDECIA o sol já no horizonte
Que tem meridiano, onde iminente
3 O zênite fica de Solima ao monte.

Na parte oposta a noite diligente
Do Ganges co’as Balanças se elevava,
6 Que lhe caem da mão, quando é excedente.

Já nesse tempo a idade transformava
A branca e rósea cor da bela Aurora
9 Noutra, que a de áureos pomos simulava.

Do mar ao longo inda éramos nessa hora,
Como quem, na jornada embevecido,
12 Se apressa em mente, os pés, porém, demora:

Eis, qual sobre manhã, enrubescido,
Das névoas através, Marte chameja
15 No ponente das ondas refletido,

Uma luz (praza a Deus de novo a veja!)
Tão veloz pelo mar vi deslizando,
18 Que não há vôo de ave, que igual seja.

Maior mostrou-se e mais fulgente, quando,
Depois de ter-me ao Guia meu voltado,
21 De novo olhei o seu brilho contemplando.

Nívea forma também, a cada lado,
Lhe divisei; abaixo aparecia
24 De igual cor outro vulto assinalado.

Té asas discernir permanecia
O sábio Mestre meu silencioso.
27 Mas então, como o nauta conhecia,

Bradou: “Curva os joelhos respeitoso,
Junta as mãos: eis de Deus um mensageiro!
30 De ora avante hás de ver outros ditoso.

“Vê que, aos humanos meios sobranceiro,
Para vir de tão longe velas, remos
33 Possui das asas no volver ligeiro.

“Como ele as alça para o céu já vemos,
Eternas plumas suas agitando;
36 Não mudam como dos mortais sabemos.” —

Em tanto, mais e mais se apropinquando,
Mais clara sobressai a ave divina:
39 Olhos abaixo à luz me deslumbrando.

O anjo logo à riba a nave inclina,
Tão rápida, tão leve, que parece
42 Voar somente na amplidão marina.

Na popa erguido o nauta resplendece:
Feliz quanto é lhe está na fronte escrito;
45 Das almas turba ao mando lhe obedece.

In exitu Israel de Egypto
A uma voz cantavam juntamente
48 E o mais, que foi no santo salmo dito.

Sinal da Cruz lhes fez devotamente:
Todos então à riba se lançaram
51 E tornou, como veio, incontinente.

Em volta remirando, os que ficaram
Pareciam de espanto apoderados,
54 Como quem a estranheza se acercaram.

O sol frechava os lumes seus dourados,
Lá do meio do céu tendo expelido
57 O Capricórnio a tiros reiterados,

Quando as almas, que haviam descendido,
Perguntam-nos: — “Sabeis, para indicar-nos,
60 Por onde o monte pode ser subido?”

Tornou Virgílio: — “Vos apraz julgar-nos
Do lugar sabedores; mas viandantes,
63 Como sois vós, deveis considerar-nos.

Chegáramos aqui, de vós, pouco antes,
Por estrada tão árdua e temerosa,
66 Que esta subida a par, jogo é de infantes.” —

Notando aquela turba, curiosa,
Que eu, pelo respirar, era homem vivo,
69 Enfiou ante a vista portentosa.

E como, a quem da paz ramo expressivo
Presenta, o povo acerca-se cuidoso
72 Em tropel de notícias por motivo:

O bando assim das almas venturoso
Em meu rosto atentava alvoroçado,
75 Quase esquecido de ir a ser formoso.

Uma, tendo-se às mais adiantado
A me abraçar correu com tanto afeito,
78 Que fui de impulso igual arrebatado.

Sombras vãs, verdadeiras só no aspeito!
Três vezes quis nos braços estreitá-la,
81 Só as três vezes estreitei ao peito.

Ante o espanto, que o gesto me assinala,
Sorriu-se; e, como já se retirasse,
84 Avançando, eu tentei acompanhá-la.

Suavemente disse que eu parasse,
Pedi-lhe, com certeza a conhecendo,
87 Que um pouco a praticar se demorasse:

— “Como te amei” — me respondeu — “vivendo
No mortal corpo, assim eu te amo agora.
90 Por que vais? Dize: ao teu desejo atendo.” —

“Caro Casella” — disse-lhe — “hei de embora
Tornar, ao fim desta jornada, à vida.
93 Por que de vir hás delongado a hora?” —

“Se a passagem negou-me requerida
Anjo, que as almas, quando apraz-lhe, guia,
96 Ofensa não me fez imerecida;

“Pois a justo querer obedecia.
Na barca em paz, três meses há somente,
99 A todos dá a entrada apetecida.

“Eu, que na plaga então era presente,
Onde no mar o Tibre as águas deita
102 Por ele aceito fui benignamente,

“A essa foz seus vôos endireita;
Pois sempre ali a grei stá reunida,
105 Às penas do Aqueronte não sujeita.” —

— “Se não é por lei nova proibida
Memória e usança do amoroso canto,
108 Que as mágoas todas me adoçou da vida,

“Praza-te amigo, confortar um tanto
Minha alma, que molesta, que amofina
111 Star envolta no corpóreo manto.” —

— “Amor que em minha mente raciocina” —
Entoou ele então com tal doçura,
114 Que o som donoso inda alma me domina.

Ao Mestre, a mim, a todos a brandura
Do saudoso cantar tanto elevava,
117 Que de ai a mente nossa então não cura.

Na toada, absorvida, se engolfava,
Eis de repente o velho venerando:
120 — “Que fazeis, descuidosos?” — nos bradava.

“Pois estais na indolência assim ficando?
Ide ao monte, a despir essa impureza,
123 Que a vista vos está de Deus vedando!” —

Quais pombos, que dos agros na largueza,
Em desejado pascigo embebidos,
126 Como olvidada a natural braveza,

Súbito arrancaram, de temor pungidos,
Se algum mal iminente lhes parece,
129 De cuidados maiores possuídos:

Tal a recente grei o canto esquece,
E, como homem, que vai sem ter roteiro,
Corre à costa, que aos olhos se oferece:

133 Não foi nosso partir menos ligeiro.

 

1-3. Resplendecia etc., colocando o Purgatório num hemisfério antípoda àquele da terra, o Poeta nota que onde ele estava o sol despontava e na mesma hora em Jerusalém (Solima) descia a noite. — 46. In exitu, etc., primeiro verso do Salmo 114. — 91. Casella, músico florentino amigo de Dante e que havia musicado algumas canções dele. — 119. O Velho, Catão.


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Na popa erguido o nauta resplendece


 

CANTO III

 

Os dois Poetas se aprestam a subir o monte. Enquanto estão procurando o lugar onde a subida seja mais fácil, vêem um grupo de almas que lhes vêm ao encontro. Perguntam a elas onde seja a subida. Uma das almas se dá a conhecer a Dante. É Manfredo, rei de Nápoles e da Sicília. Ele narra como morreu, pedindo a Deus, na hora extrema. Estão juntas com ele, as almas dos que foram inimigos da Santa Igreja.

 

ENQUANTO aquela fuga repentina
Pela planície as sombras impelia
3 Ao monte, que a razão a amar ensina,

Ao sócio meu fiel eu me cingia:
Como sem ele houvera prosseguido?
6 Quem para alçar-me esforço me daria?

De remorsos parece possuído.
Ó consciência pura e sublimada,
9 Leve falta pesar te dá subido!

Quando atalhava a pressa, que é vedada
A quem dos atos no decoro atente,
12 Eu, que sentira a mente angustiada,

Tornando ao meu intento afoutamente
Os olhos à eminência levantava,
15 Que para o céu mais alto eleva a frente.

Nas espaldas o sol nos dardejava
Rubra luz, que o meu corpo interrompia,
18 Pois aos seus raios óbice formava.

Escuro ante mim só aparecia
O solo: eu, de abandono receoso,
21 Voltei-me ao lado onde era o sábio Guia.

Virgílio então me encara. — “Suspeitoso
Te mostras?” — diz — “Cuidavas, porventura,
24 Que eu não mais te acompanhe cuidadoso?

“Surge Vésper lá onde a sepultura
Guarda o corpo em que sombra já fizera
27 Tomando-o a Brindes, Nápole o assegura.

“Se ante mim não a vês, não te devera
Dar pasmo como lá no firmamento
30 Se a luz a luz não tolhe e não movera.

“Para calma sentir, frio ou tormento
Dispôs-nos corpo a suma Potestade.
33 Como o fez? Não nos deu conhecimento.

“Fátuo é quem julga à humana faculdade
Franco o infindo caminho e sempiterno,
36 Por onde segue o Ente Uno em Trindade.

“Homem, vos baste o quia: se ao superno
Saber alevantar-vos fosse dado,
39 Da Virgem ao seio não baixara o Eterno.

“Já viste porfiar sem resultado
Os que, cevar podendo seu desejo,
42 Em perpétua aflição o têm tornado.

“De Aristóteles falo neste ensejo,
De Platão, de outros mais.” — Baixando a fronte,
45 Calou; mostrava torvação e pejo.

Chegamos nós em tanto ao pé do monte
Onde era a rocha de tal modo erguida,
48 Que de subir capaz ninguém se conte.

A vereda mais erma e desabrida,
Que de Léria a Túrbia se encaminha,
51 Dá, confrontada, cômoda subida.

E o Mestre, assim falando, os pés detinha:
“Quem sabe onde a este monte o passo ascende?
54 Como aqui sem ter asas se caminha?”

Enquanto, baixo o rosto, o Mestre entende
Na jornada, em sua mente interrogando,
57 E pela altura a vista se me estende,

Divisei turba a nós endireitando
Da mão destra; o seu passo era tão lento,
60 Que não me parecia estar andando.

— “Aos que vêm” — disse ao Mestre — “mira atento;
Por eles pode ser conselho dado,
63 Se o não te of’rece o próprio pensamento...” —

Olhou-me, e com semblante asserenado
— “À turba vagarosa” — tornou — “vamos,
66 E a esperança te esforce, ó filho amado!” —

Passos mil para a grei nos caminhamos
E de tiro de pedra inda à distância,
69 Por mão destra arrojada, nos chamamos

Quando aqueles espíritos estância
Junto aos penhascos vi fazer, cerrados,
72 Qual transviado da incerteza em ânsia.

“Vós, eleitos ao bem, no bem finados” —
Disse Virgílio — “pela paz ditosa,
75 Em que sois todos, creio, esperançados,

“Dizei-me onde a montanha alta e fragosa
Subir permite, um pouco se inclinando:
78 Do tempo a perda ao sábio é desgostosa.” —

Como as ovelhas o redil deixando
A uma, duas, três e a cerviz tendo
81 Baixa as outras vão tímidas ficando;

Todas como a primeira, se movendo,
Conchegam-se-lhe ao dorso, se ela pára,
84 O porque, simples, quietas não sabendo:

Assim a demandar-nos se apressara
A venturosa grei, que no meneio
87 Traz a moléstia e o pudor na cara.

Tomada foi, porém, de tanto enleio,
Por minha sombra em vendo a luz cortada
90 A destra, em direção da rocha ao seio,

Que a vanguarda parou, como torvada:
Pelos mais sem detença foi seguida,
93 Mas sem lhes star a causa revelada.

— “A explicação previno apetecida:
Que um vivo corpo vedes confesso
96 E a luz do sol por este interrompida.

“Não haja em vós de maravilha excesso;
Do céu pela virtude socorrido,
99 Da montanha atingir quer o cabeço.” —

Disse Virgílio. — E foi-lhe respondido:
— “Voltai-vos; caminhai de nós diante.” —
102 E o lugar indicavam referido.

— “Sem que um momento deixes ir avante,
Quem quer que sejas, olha-me e declara”, —
105 Disse um deles, — “se hás visto o meu semblante.” —

Volvi-me, olhos fitando em quem falara.
Formoso e louro, tinha heróico aspeito;
108 Um golpe o seu sobrolho separara.

Tornei-lhe — “não” — tomado de respeito.
— “Olha!” — falou a sombra me indicando
111 Larga ferida no alto do seu peito.

“Vês Manfredo — sorriu-se me falando —
Que neto foi da Imperatriz Constança.
114 A minha bela filha diz, voltando,

(Mãe daqueles por quem tanta honra alcança
Aragão com Sicília) o que hás sabido,
117 Qual a verdade seja lhe afiança.

“Depois que foi o corpo meu ferido
De golpes dois mortais, a Deus piedoso
120 Alma entreguei, chorando arrependido.

“Fui de horrendos pecados criminoso,
Mas a Bondade Infinda acolhe e abraça
123 Quem perdão lhe suplica pesaroso.

“Se o Bispo que enviou Clemente à caça
Do meu cadáver, respeitado houvesse
126 Esse preceito da Divina Graça,

“Do corpo meu os ossos me parece,
Que em frente à ponte, ao pé de Benevento,
129 Em guarda o grave acervo inda tivesse.

“Agora os banha a chuva e açouta o vento,
Do reino meu distantes, junto ao Verde,
132 Onde os lançou sem luz, sem saimento.

“Mas anátema tanto alma não perde
Que, quando verde a esp’rança lhe floresce,
135 Do eterno amor do Criador deserde.

“Por certo, em contumácia o que fenece
Contra a Igreja, ainda quando se arrependa
138 Na hora extrema sua, aqui padece

“Tempo, que trinta vezes compreenda
Da impenitência o espaço, se ao decreto
141 Preces não trazem benfazeja emenda.

“Vês, pois, que podes me tornar quieto:
Revelando à piedade de Constança
Que interdito me hás visto ainda exceto

145 Pelas preces de lá muito se alcança.” —

 

25. Surge Vésper etc., o cadáver de Virgílio de Brindes foi transportado para Nápoles, onde, neste momento, descia a noite. — 37. Vos baste o guia, chega saber o que é, sem procurar a razão. — 50. De Léria a Túrbia, o caminho entre estas duas aldeias da Ligúria. — 112. Manfredo, filho do imperador Frederico II e neto da imperatriz Constança. — 114-16. Minha bela filha, Constança, esposa de Pedro III de Aragão teve dois filhos: Jaime que sucedeu ao pai em Aragão e Frederico, rei de Sicília. — 124. Se o bispo etc., Bartolomeu Pignatelli, bispo de Cosenza, por ordem do papa Clemente IV, desenterrou o corpo de Manfredo, que era excomungado, e o mandou jogar no Rio Verde. — 133. Anátema, excomunhão dos papas.


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Divisei turba a nós endireitando...


 

CANTO IV

 

Seguindo os conselhos recebidos, os Poetas, através de um caminho apertado e difícil, sobem ao primeiro salto. Virgílio explica a Dante que, encontrando-se em hemisfério antípoda àquela terra, o Sol gira em direção contrária. Vendo muitas almas recolhidas à sombra de um rochedo, e aproximando-se a elas, Dante reconhece o seu amigo Belacqua. Ai estão os espíritos preguiçosos dos que esperaram para arrepender-se o termo da vida.

 

QUANDO ou pelo prazer ou por desgosto
Das faculdades uma é possuída,
3 Concentrando-se, o espírito indisposto

Se mostra à ação, de outra qualquer nascida;
Verdade, que refuta a crença errada
6 — Quem em nós uma alma está noutra acendida.

E, pois, se vendo, ouvindo, alma engolfada,
Lia-se à cousa, que a atenção cativa,
9 Sem sentir vai-lhe o tempo à desfilada.

Pois faculdade só no ouvir ativa
Difere dessa, em que alma se domina:
12 Uma presa, outra a vínculos se esquiva.

Experiência ao claro isto me ensina.
Aquela sombra atônito escutando,
15 Já com cinqüenta graus o sol se empina,

Sem que eu me apercebido houvesse, quando
Ao ponto fomos, onde a turba, unida,
18 — “Haveis o que anelais!” — disse, bradando.

Estando a vinha já madurecida,
Pelo aldeão de espinhos com braçada
21 Da sebe a estreita aberta é defendida.

Mais larga é que a vereda alcantilada
Por onde fui subindo após meu Guia,
24 Quando a grei nos deixou abençoada.

A Noli e a San-Leo por árdua via
Com pés se vai, Bismântua assim se alcança;
27 Ter asas de ave aqui mister seria;

Ou asas de um desejo, que não cansa,
Para o vate seguir que, desvelado,
30 Me servia de luz, me dava esp’rança.

Por carreiro entre penhas escavado,
Sempre de agudas pontas empecido,
33 Pelas mãos cada passo era ajudado.

Chegados da alta escarpa ao topo erguido
Da eminência no dorso descoberto,
36 — “Por onde ir”— disse então —“Mestre querido?”

— “Eia!” — tornou — “não dês um passo incerto!
Vai subindo após mim pela montanha;
39 Guia acharemos no caminho esperto.” —

Não mede a vista elevação tamanha:
Linha que o centro corte de um quadrante,
42 Por certo a ingrimidez não lhe acompanha.

Sem forças já, falei-lhe titubante:
— “Volve a face, pai meu: olha piedoso
45 Que só me deixas, indo por diante” —

— “Para ali, filho” — diz — “te alça animoso!” —
E o seu braço indicava uma planura,
48 Que torneia o declive temeroso.

Dessas vozes esforça-me a doçura
Tanto, que a rastos lhe seguia o passo
51 Até meus pés tocarem nessa altura.

Sentamo-nos a par, então, de espaço
Ao nascente voltados, qual viageiro
54 A estrada olhando, que calcara lasso;

Abaixo os olhos dirigi primeiro,
Ao sol voltei depois; notei pasmado
57 Da esquerda o lume vir desse luzeiro.

Disse Virgílio ao ver quanto enleado
Stava, o carro da luz considerando
60 Que era entre nós e o Aquilão entrado:

— “Se um e outro hemisfério alumiando,
Castor e Pólux junto a si tivera
63 O vasto espelho, que ora está brilhando,

“Da Ursa ainda mais propínqua à esfera,
A roda do Zodíaco observaras,
66 Se a costumada estrela não perdera.

“Meditando, a verdade logo acharas,
Se colocados de Sião o monte,
69 E este outro na terra imaginaras,

“Ambos guardando idêntico horizonte
E hemisférios diversos, onde passa
72 Estrada, em que tão mal correu Fetonte,

“E se a razão em ti não for escassa,
Verás que, enquanto a um vai por um lado,
75 Ao outro pelo oposto o sol perpassa.” —

— “Tanto ao claro jamais, ó Mestre amado,
Como ora, o meu esp’rito compreendera,
78 Quando estava por dúvida nublado.

“Que o círc’lo médio da mais alta esfera,
Que sempre Equador chama-se em certa arte
81 Entre o inverno e o sol se considera,

“Deve (se pude a mente penetrar-te)
Para o norte volver-se, e, no entretanto,
84 Viam-no Hebreus de Áustro pela parte.

“Agora, se te apraz, dize-me quanto
Hemos de andar; que os olhos, da eminência
87 Não atingindo o fim, se enchem de espanto.” —

— “Da montanha” — responde — “é a excelência
Fadiga no começo causar grave;
90 Quem mais sobe acha menos resistência.

“Ao tempo, em que te parecer suave
Tanto, que a subas ágil e ligeiro,
93 Como descendo da água o curso a nave,

“No termo te acharás deste carreiro:
Após afã desfrutarás repouso:
96 Quanto digo hás de ver que é verdadeiro” —

Mal acabando o Mestre carinhoso,
Perto soa uma voz: — “Talvez te seja,
99 Antes de lá chegar, preciso um pouso.” —

Volveu-se cada qual para que veja
Quem falara; alta penha deparamos;
102 Então só vemos que à mão sestra esteja.

Multidão, cercando-nos, achamos
Que à sombra demorava quietamente;
105 Por desídia detidos os julgamos.

Mostra-se um mais que os outros negligente:
Sentado abraça as pernas, tendo o rosto
108 Recostado aos joelhos, qual dormente.

Disse então: — “Vê senhor, quanto disposto
É à inércia o que ali stá parecendo:
111 Como irmão da preguiça fica posto.” —

Ele um pouco voltou-se olhos movendo
Para o meu lado, sem mudar postura,
114 — “Pois vai tu, que és valente!” — me dizendo.

Reconheci quem era. Inda me dura
Da agra ascensão em parte o grande ofêgo;
117 Mas endereço os passos à figura.

A fronte mal ergueu, quando me achego.
— “Como conduz o sol carro à esquerda
120 Tens reparado?” — disse com sossego.

Por meneio tão lento e voz tão lerda
Fui algum tanto a riso provocado.
123 — “Belacqua” — disse eu — “mas a tua perda

Não choro. Por que estás aqui sentado?
Esperas guia? Acaso, como outrora,
126 Da preguiça te sentes cativado?” —

Tornou-me: — “Irmão, subir que importa agora?
De Deus o anjo, que defende a entrada,
129 Me deixaria dos martírios fora.

“Tanto a porta me tem de ser vedada,
Quanto no mundo me durara a vida:
132 Pesei-me só a morte ao ver chegada.

“Mas antes ser me pode permitida
Pela oração de quem da Graça goza;
135 Que vai outra, do céu desatendida?” —

Mas o Vate seguia na penosa
Jornada. — “Vem!” — dizia — “Resplandece
O sol no meio-dia; e tenebrosa

139 Sobre Marrocos ora a Noite desce.” —

 

5. A crença errada etc., de atribuir ao homem diversas almas, crença dos platônicos e dos maniqueus. — 15. Já com cinqüenta graus etc., o Sol percorre 15 graus por hora; portanto haviam passado quase 3 horas e meia. — 25-26. Noli, na Ligúria; São Leo, perto de Urbino; Bismântua, perto de Urbino. — 57. Da esquerda etc., o Purgatório se encontra num hemisfério antípoda, e portanto o sol aparecia a Dante pela esquerda quando no nosso hemisfério parece levantar-se à direita e caminhar à esquerda. — 68. Sião, Jerusalém, que é o lugar antípoda ao Purgatório. — 123. Belacqua, florentino, fabricante de instrumentos musicais, amigo de Dante. — 139. Sobre Marrocos, sendo meio-dia no Purgatório, em Jerusalém, no hemisfério oposto, era meia-noite, e a noite começava em Marrocos.


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Por onde fui subindo após meu Guia...


 

CANTO V

 

Prosseguindo os dois Poetas a sua viagem, encontram uma multidão de almas que se aproximam deles, depois de ter percebido que Dante é vivo. São espíritos de pessoas que saíram da vida por morte violenta, mas no fim se arrependeram e perdoaram a seus inimigos.

 

OS passos do meu Guia acompanhando,
Dessas almas um pouco era distante,
3 Quando uma, atrás de nós, o dedo alçando,

— “Vede! A luz” — exclamou — “não é brilhante
À sestra do que vai mais demorado;
6 Pelo meneio a um vivo é semelhante.”

Olhos volvi daquela voz ao brado,
E as vi notar, de maravilha cheias,
9 Como eu, andando, a sombra tinha ao lado.

— “Por que tanto, ó meu filho, assim te enleias?”
Disse o Mestre. — “Por que deténs o passo?
12 Acaso o murmurar daqui receias?

“Segue-me: a vozes vãs ouvido escasso!
Qual torre, inabalável sê, dos ventos
15 À fúria opondo válido embaraço;

“Quem firmeza não tem nos pensamentos,
Do fim se aparta, a que alma se endereça
18 E, assim, malogra, instável, seus intentos.

— “Sigo-te!” — ao Mestre meu tornei depressa.
Cumpria assim falar; meu voto incende
21 O rubor, que ao perdão a falta apressa.

Entanto por atalho a costa ascende
Adiante de nós turba cantando
24 Devota Miserere, e ao cimo tende.

Ao ver que estava o corpo meu vedando
Dos luminosos raios a passagem
27 O canto suspendeu, rouco “oh!” soltando

E dois dos seus em forma de mensagem
Correndo contra nós assim falaram:
30 “Quem sois, que assim fazeis esta viagem?”

Disse Virgílio: — “Aos que vos enviaram
Tornai que ao corpo do homem que estais vendo
33 Vitais alentos inda não deixaram.

“Se os passos, como cuido, estão detendo,
Por ver-lhe a sombra, a causa é conhecida;
36 Terão proveito, as honras lhe fazendo.” —

Mais prontos que os vapores à descida
Da noite, o ar sereno aluminando,
39 Ou névoa, ao pôr do sol, do céu varrida,

Partem, à grei de novo se ajuntando;
Como esquadrão, que corre à desfilada,
42 Voltam todos, a nós se arremessando.

“Ao nosso encontro vem turba avultada;
Pretensões todos têm” — disse-me o Guia
45 — “Andando, os ouve; não convém parada.”

— “Ó alma, que do céu vais à alegria
No próprio corpo, em que feliz nasceste,
48 Demora o passo um pouco” — a grei dizia,

“De entre nós vê se alguém reconheceste
Para ao mundo levares a notícia;
51 Por que deter-te ainda não quiseste?

“Morte a todos causou cruel nequícia;
Pecamos sempre até que à final hora
54 Do céu a luz se nos mostrou propícia.

“Assim, contritos, perdoando, fora
Fomos da vida, a paz com Deus já feita;
57 De o ver desejo nos acende agora.”

— “A feição vossa” — eu disse — “é tão desfeita,
Que nenhum reconheço; mas, se acaso
60 Ser útil posso no que a vós respeita,

“Pela paz, a servir-vos já me emprazo,
Que busco, deste sábio acompanhado,
63 De mundo em mundo, no mais breve prazo.”

“Cada qual” — me tornou — “está confiado
Em ti, mister não há teu juramento,
66 Se não faltar poder ao teu bom grado.

“Aos outros me antecipo: ao rogo atento,
Tu se fores à terra que demora
69 Entre a Romanha e a que é de Carlo assento,

“Aos meus em Fano compassivo exora
Que com preces sufraguem-me piedosos
72 Para o mal expurgar que fiz outrora.

“Nasci lá, sofri golpes espantosos,
Que a existência cortaram-me tão cara,
75 De Antenórios nos planos pantanosos,

“Onde o funesto fim nunca esperara.
Assim o quis do Marquês d’Este a ira,
78 Que o exício meu injusto aparelhara.

“Ah! se, fugindo, me acolhesse a Mira
Quando alcançou-me de Oriais perto,
81 Eu fora inda hoje aonde se respira.

“Mas, correndo ao paul, sem rumo certo,
Caí, no ceno e juncos enleado:
84 De sangue um lago fez meu peito aberto.”

“Se for” — outro então disse — “executado
Desejo que te impele ao alto monte,
87 Sê por mim de piedade impressionado.

“De Montefeltro fui e fui Buonconte;
De mim Joana, e ninguém mais, não cura;
90 Entre todos por isso abaixo a fronte.”

— “Que força — que má ventura
Tão longe te arrastou de Campaldino,
93 Que se ignora onde tens a sepultura?”

— “Oh!” — replicou-me — “Ao pé de Casentino
Um rio passa que se chama Arquiano,
96 Nascido lá sobre o Ermo, no Apenino.

“De dor lá onde o perde o nome, insano,
Cheguei: ao pé fugia, e, traspassado,
99 O colo meu ensangüentava o plano.

“Da vista e fala ao ser desamparado,
No suspiro final bradei — Maria! —
102 E o corpo meu tombou, da alma deixado.

“Direi verdade: aos vivos o anuncia.
De Deus anjo tomando-me, o do inferno
105 — “Servo do Céu, mo tomas?” lhe bramia.

“Dele me usurpas o princípio eterno
Por uma tênue lágrima fingida;
108 Mas do seu corpo cabe-me o governo.

“Bem sabes que nos ares recolhida
Vaporosa umidade em chuva desce,
111 Quando é do frio às regiões subida

“Como quem com maldade o engenho tece,
Névoas e vento acumulava, usando
114 Da pujança infernal que lhe obedece.

“Depois, o dia terminado estando,
Do Pratomagno à serra, o vale envolve
117 Em treva, ao céu a abóbada enlutando.

“Túmido o ar, em catadupas volve,
E a água que na terra não se entranha,
120 Espumosa em torrentes se revolve.

“Veloz os álveos aos arroios ganha,
E para o régio rio se arrojando,
123 Os óbices abate, que se assanha.

“Junto à foz meu cadáver encontrando
Levanta-o Arquiano impetuoso
126 Ao Arno o impele, os braços desligando

“Da cruz que fiz no transe doloroso.
Por fundo e margens rola-o, sepultado
129 Na areia o deixa, que arrastara iroso.” —

— “Ah! quando à luz do mundo hajas tornado,
Quando repouses da jornada extensa” —
132 Foi por terceiro espírito impetrado:

“De Pia recordando-te, em mim pensa;
Siena fizera o que desfez Marema.
Sabe-o quem me esposara e em recompensa

136 No dedo pôs-me anel com rica gema.” —

 

24. Miserere, o salmo que começa com essa palavra. — 68-69. A terra que demora etc., a Marca de Ancona. — 73. Nasci lá etc. Quem fala é Jacopo de Cassero, de Fano, que foi assassinado pelos sicários do Marquês Azzo III d’Este, quando se dirigia a Milão, em 1298. — 75. De Antenórios etc. no território de Pádua (cidade que se diz fundada por Antenor). — 88. Buonconte de Montefeltro, filho de Guido (Inf. XXVII), capitão gibelino, morreu na batalha de Campaldino. — 89. Joana, sua esposa. — 96. Ermo de Camaldoli. — 122. Regio rio, o Arno. — 133. Pia del Guastelloni. Casada com um gentil-homem da família Tolomei, ficou viúva e casou novamente com Nello Pannocchieschi, que a fez matar, talvez desconfiado da sua fidelidade, num castelo da Marema, em 1295.


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De Montefeltro fui e fui Buonconte...


 

CANTO VI

 

Dante promete às almas que a eles se recomendaram que não se esquecerá delas quando voltar ao mundo dos vivos. Os dois Poetas encontram o poeta Sordello, o qual, ao ouvir o nome da sua pátria, Mântua, abraça o mantuano Virgílio. Esse espisódio move Dante a uma violenta invectiva contra as divisões e as guerras internas que devastam a Itália.

 

QUANDO o jogo da zara é terminado,
Na amargura, o que perde, só ficando,
3 Os bons lances ensaia contristado.

A turba o vencedor acompanhando,
Qual vai diante qual por trás o prende,
6 Ao lado qual se está recomendando:

A este e àquele sem deter-se atende;
O que lhe alcança a mão parte se apressa;
9 De importunos desta arte se defende.

Cerca-me assim a multidão espessa,
Ora a uns ora a outros me volvendo,
12 De cada qual me livro por promessa.

O Aretino aqui stava: golpe horrendo,
De Ghin Tacco por mau, cortou-lhe a vida,
15 E o que na fuga se afogou, horrendo.

Aqui rogou-me em súplica sentida,
Frederico Novello e esse Pisano
18 Por quem Mazucco ação fez tão subida.

Vi o Conde Orso e aquele que o seu dano
Mortal, pelo ódio e inveja, recebera,
21 Como dizia, não por feito insano.

Aludo a Pedro Brosse. A que ora impera,
Do Brabante, se apressa a ter cautela,
24 Se não, da grei maldita a estância a espera.

Quando enfim, pude me esquivar àquela
Turba, que preces sôfrega pedia
27 Para a entrada apressar na mansão bela,

— “Em texto expresso” — eu disse — “ó douto Guia,
Do teu livro afirmaste que a vontade
30 Do céu por orações não se movia.

“Mas pede-as essa grei com ansiedade:
Seria acaso vã sua esperança?
33 Ou compreender não pude essa verdade?” —

— “Seu sentido a tua mente” — disse — “alcança;
Por vã essa esperança não falece;
36 Quanto é certa a razão nô-lo afiança:

“A Justiça do céu não desfalece,
Porque flama de amor num só momento
39 O devedor redime, que padece.

“Lá onde expus aquele pensamento
Não podia oração solver pecado,
42 Pois distante de Deus estava o intento.

“Porém neste problema sublimado
À mente por que há suma ciência
45 Te será puro lume revelado.

“Por quem? Por Beatriz. A continência
Feliz ridente lhe verás, ao viso
48 Quando houveres subido da eminência.” —

Tornei: — “Andar mais presto ora é preciso;
Como de antes, não sinto mor fadiga,
51 E da montanha a sombra já diviso.” —

— “Como podemos, é mister prossiga
O passo, enquanto o dia não se finda;
54 Mas te engana o desejo que te instiga.

“Antes do cimo aguardarás a vinda
Desse astro oculto agora pela encosta;
57 Não refranges os raios seus ainda.

“Aquela sombra vê, de parte posta,
Que, em soledade, atenta nos esguarda:
60 A vereda dirá melhor disposta.” —

Chegamo-nos. Ó nobre alma lombarda,
Como estavas altiva e desdenhosa.
63 Dos olhos no meneio grave e tarda!

Ela em nós encarou silenciosa,
Mas deixava-nos vir, nos observando,
66 Qual leão no repouso, majestosa.

Virgílio apropinquou-se, lhe rogando
Nos mostrasse a mais cômoda subida:
69 Respondeu-lhe, somente perguntando

Qual fora a pátria nossa e a nossa vida.
A falar o meu Guia começava:
72 “Em Mântua...” quando a sombra, comovida,

A ele se enviou donde se achava,
“Sordello sou” — dizendo — “em Mântua amada
75 Nasci também.” — E amplexo os estreitava.

Ah! serva Itália, da aflição morada!
Nau sem piloto em pego tormentoso!
78 Rainha outrora em lupanar tornada!

Esse espírito nobre e deleitoso
Nome escutando só da doce terra,
81 Logo o patrício acolhe carinhoso:

Os vivos raivam no teu solo em guerra;
Se encarniça um no outro ferozmente
84 Os que um só muro, uma só cava encerra.

Busca, ó mísera Itália, diligente
No mantimo teu, busca em teu seio:
87 Onde acha paz a tua infausta gente?

Justiniano em vão te ajeitar veio
A brida; a sela fica abandonada:
90 Maior vergonha te há causado o freio.

Ah! Cúria! Aos teus deveres dedicada
Deixar-te cumpre a César todo o mundo,
93 Como a lei quer por Cristo decretada!

Vê como, aos maus instintos se entregando
Ira-se a fera por faltar-lhe espora,
96 Depois que inábil mão stá governando.

Alberto de Germânia! Atente agora
Que é tornada indômita e bravia:
99 Cavalgado a deveras ter outrora!

Do céu justo castigo deveria
Os teus ferir — tão novo e tão sabido,
102 Que espante o sucessor da monarquia!

Tu e o teu genitor heis consentido,
Distantes, por cobiça, em terra estranha,
105 Que do Império o jardim steja esquecido.

Vê, descuidoso, na aflição tamanha,
Capelletti e Montecchi entristecidos.
108 Monaldi e Filippeschi, alvo de sanha.

Vem, cruel, ver fiéis teus suprimidos:
De tanto opróbrio seu toma vingança.
111 Vê como em Santaflor estão regidos!

Vem ver tua Roma! De carpir não cansa!
Viúva e só a todo o instante clama:
114 Vem, César! Vem! Não mates minha esp’rança!

Vem ver como a si próprio o povo se ama!
E se por nós piedade não te move,
117 Mova-te o zelo pela tua fama!

Se me é dado dizer, Supremo Jove,
Dos homens por amor sacrificado,
120 Mal tanto a nos olhar não te comove?

Ou tens ao nosso mal aparelhado,
Lá dos conselhos teus no abismo imenso,
123 Algum bem, ao saber nosso vedado?

As cidades de Itália um tropel denso
De tiranos subjuga e, qual Marcelo
126 Se aclama o faccioso, à pátria infenso.

Hás de, Florença minha, haver por belo
Este episódio a ti não referente,
129 Mercê do povo teu, de outros modelo.

Muitos, justiça tendo em peito e mente,
Por desfechar seu arco ensejo aguardam:
132 Teu povo a tem nos lábios permanente.

Muitos de encargos públicos se guardam;
Mas teu povo solícito se of’rece,
135 Gritando: — ”Pronto estou! em darmos tardam!” —

Exulta! A causa o mundo bem conhece:
Tens prudência, tens paz, possuis riqueza.
138 Falo a verdade, e o efeito transparece.

Atenas, Sparta, que a tão suma alteza
Por leis e instituições se sublimaram,
141 Sem governo viveram na incerteza,

Se, Florença, contigo se comparam,
Que em novembro tens visto revogadas
144 Leis sutis, que em outubro se forjaram.

Quantas vezes hão sido transformadas,
Em breve tempo, lei, moeda, usança?
147 Quantas índoles e forma renovadas?

Se vês ao claro e tens viva a lembrança,
Ao enfermo hás de achar que és semelhante,
Que, no leito jazendo, não descansa;

151 Em vão se agita, a dor vai por diante.

 

1. Jogo da zara — jogo de dados. — 13. O Aretino etc., o juiz Benincasa de Laterina, que foi assassinado pelo famoso bandoleiro Ghino del Tacco. — 15. E o que etc., Guccio Tarlati, de Pietramala, morreu afogado no Arno, perseguindo os inimigos derrotados numa batalha. — 17. Frederico Novello, morto ao socorrer os Tarlati de Pietramala. — Esse Pisano, Farinata degli Scornegiani, morto a traição. Seu pai Mazucco, que se fizera frade, perdoou ao assassino do filho. — 19. Conde Orso degli Alberti, assassinado por um seu primo. — E aquele, Pedro Brosse, médico de Filipe III de França, enforcado sob falsas acusações. — 28-30. Em texto expresso etc. Virgílio na “Eneida” (livro VI) negou que pudessem modificar-se os decretos do Céu. — 42. Pois distante etc., a prece só foi aceita depois do advento do Cristianismo. — 74. Sordello de’ Visconti de Mântua, poeta, jurisconsulto e guerreiro do século XIII. — 88. Justiniano, que consolidou a legislação romana. — 97. Alberto de Germânia, Alberto I, filho do imperador Rodolfo, eleito em 1296. — 107-8. Cappelletti e Montecchi, famílias de Verona. Monaldi e Filippeschi, famílias de Orvieto. — 111. Santaflor, feudo imperial nas vizinhanças de Siena. — 118. Supremo Jove, Jesus Cristo. — 125. Qual Marcelo, Cláudio Marcelo, adversário de Júlio César.


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Quando o jogo de zara...


 

CANTO VII

 

Sordello, ao saber que aquele que abraçou é Virgílio, lhe faz novas e ainda maiores demonstrações de afeto. O Sol está próximo ao ocaso e ao Purgatório não se pode subir à noite. Guiados por Sordello, os dois Poetas param num vale, onde residem os espíritos de personagens que no mundo desfrutaram de grande consideração e que somente no fim da vida elevaram o seu pensamento a Deus.

 

DE doce afeto as mútuas mostras sendo
Por três ou quatro vezes reiterado
3 — “Quem sois?” — se retraiu Sordel dizendo.

— “Tinha Otávio os meus ossos sepultado
Já quando a este monte se elevaram
6 Almas que ao bem havia Deus chamado.

Virgílio sou: do céu não me afastaram
Pecados; me faltava a fé somente.” —
9 Do meu Guia estas vozes lhe tornaram.

Como quem ante si vê de repente
Maravilha: ora crê, ora duvida,
12 E diz: — É certo ou minha vista mente? —

Assim essa alma. Dobra a frente erguida
Humildemente, ao Vate se avizinha
15 E lhe abraça os joelhos comovida.

— “Ó glória dos Latinos!” — disse asinha —
Que ergueste a língua nossa a tanta altura!
18 Honra eterna da amada pátria minha!

“De ver-te o que me dá graça e ventura?
Dize, se di’no de te ouvir hei sido,
21 De qual círculo vens da estância escura.”

— “Tenho aqui” — Virgílio diz — “subido,
Do triste reino os círc’los visitando,
24 Sou do céu por virtude conduzido.

“Não por fazer, mas de fazer deixando,
Ver o sol, que desejas, me é vedado:
27 Conheci-o já tarde — ai miserando!

“Lá embaixo um lugar foi destinado
Não a martírio, à treva onde há somente
30 Suspiros, não gemer de angustiado.

“Ali stou eu, no meio da inocente
Grei, que a morte cruel mordeu, enquanto
33 Da culpa humana inda era dependente.

“Com aqueles stou eu, em quem seu manto
Três celestes virtudes não lançaram,
36 Lhes dando à vista o mais suave encanto.

“Mas sabes se veredas se deparam
Que ao Purgatório a entrada facilitem?
39 Os indícios nos diz, se te constaram.” —

Tornou: — “Lugar não há, que almas habitem
Aqui; na direção vou, que me agrada;
42 Guiarei quanto os passos me permitem.

“Mas vê: declina o dia; na jornada,
Que fazeis, caminhar a noite veda:
45 Busquemos sítio a cômoda pousada.

“À destra e à parte multidão stá queda:
Iremos até lá, se acaso o queres,
48 Talvez te seja a sua vida leda.” —

E o Mestre: — “Como? Pelo que proferes,
Impossível será subir sem dia?
51 Ou a alguém, que o proíba, te referes?” —

Com seu dedo Sordel linha fazia
No chão e disse: — “Além ninguém passara
54 Se, ausente o sol, a noite principia.

“Mas óbice qualquer não deparara
Quem caminhar, subindo, pretendesse:
57 Para tolhê-lo a noite já bastara.

“Bem pudera baixar, se lhe aprouvesse,
Pelo declive em volta da montanha:
60 Enquanto o sol sob o horizonte desce.” —

Torna Virgílio, então, que ouvindo estranha:
— “Ao lugar, que nos dizes, pois, nos guia,
63 Onde a demora o júbilo acompanha.” —

Pouco longe dali notei que havia
Depressão na montanha, semelhante
66 À que na terra um vale formaria.

— “Iremos” — disse a sombra — “um pouco avante
Té onde a encosta encurva, se escavando:
69 De lá voltar vereis a luz brilhante.” —

Entre a escarpa e o plano se inclinando
Trilha ao vale conduz obliquamente,
72 O pendor mais que ao meio, se adoçando.

Prata, alvaiade, grão, ouro fulgente,
Índico lenho límpido e lustroso,
75 Pura esmeralda, ao lapidar, luzente,

Por flores e ervas desse val formoso
Se achariam na cor escurecidos
78 Como cede o mais fraco ao mais forçoso.

Aos donosos males espargidos
Mil suaves aromas se ajuntavam,
81 Em peregrino muito reunidos.

Sobre a relva entre as flores entoavam
Salve Regina, as almas, que da vista
84 Externa no recinto se ocultavam.

“Do sol enquanto a luz inda persista” —
O Mantuano disse, que nos guia,
87 “Ir não queiras à grei que de nós dista.

“Gestos e vultos seus conheceria
Qualquer de vós daqui mais claramente
90 Do que, de perto os vendo, o poderia.

“O que parece, aos outros, eminente.
Da quebra em seus deveres pesaroso
93 E a geral melodia ouve silente,

“É Rodolfo que fora poderoso.
Conta o mal que já tem a Itália morta:
96 Quem lhe dará porvir esperançoso?

“O que com seu semblante ora o conforta
Governava esse reino onde a água brota,
99 Que o Molta ao Álbia, o Álbia ao mar transporta.

“É Otocar: na infância melhor nota
Teve que o filho, Venceslau barbudo,
102 Na luxúria e preguiça a vida esgota.

“Morrendo, o que não tem nariz agudo
E fala a esse outro de benino aspeito,
105 Deixou dos lizes deslustrado o escudo.

“Atentai: como bate ele no peito!
Vede aquele que ao ar suspiros lança
108 Da mão fazendo à sua face um leito.

“Sogro e pai do flagelo são da França;
Cientes do viver seu vergonhoso,
111 Dor stão sentindo, que ora não descansa.

“Esse membrudo, que o cantar piedoso
Segue do que nariz tem desmarcado,
114 Das virtudes no culto foi zeloso.

“Se o mancebo, ora atrás dele assentado,
Ao trono sucedera-lhe, subira
117 Valor de um Rei por outro fora herdado.

“Dos maus herdeiros qual pôs nisso a mira?
Jaime Fred’rico havendo o reino tido,
120 Nenhum a melhor parte possuíra.

“Rara vez tem nas ramas ressurgido
Primor alto da estirpe; assim o ordena
123 Aquele, a quem ser deve o bem pedido.

“Ao narigudo aplicação tem plena
Meu dito e a Pedro, que ao seu lado canta:
126 Apúlia com Provença, geme e pena.

“Tanto ao seu fruto excede em preço a planta,
Quanto, mais que Beatriz e Margarida,
129 Constança ações do esposo seu decanta.

“Ali vedes o Rei de simples vida
Sentado à parte, Henrique de Inglaterra:
132 Teve este em ramos seus melhor saída.

“Mais abaixo notai sentado em terra
Marquês Guilherme e para o alto olhando,
Por quem, sofrendo Alexandria guerra,

136 Montferrat, Canavese estão chorando.” —

 

4. Otávio, o imperador Augusto. — 94. Rodolfo, de Habsburgo, imperador de 1273 a 1291. — 96. Quem etc., o imperador Henrique VII, que tentou pôr ordem na Itália. — 98. Esse reino etc., a Boêmia, onde nasce o rio Moldava (Molta), que desemboca no Elba (Albia). — 100. Otocar II, adversário de Rodolfo, foi de melhor índole que seu filho Venceslau. — 103. O que não tem nariz agudo, Filipe III de França, pai de Filipe o Belo e de Carlos de Valois. — 104. Esse outro, Henrique I de Navarra, sogro de Filipe o Belo e pai de Joana I. — 109. Do flagelo da França, Filipe o Belo. — 112. Esse membrudo, Pedro III de Aragão, que, depois da revolução das Vésperas, conquistou a Sicília. — 113. Ao que nariz tem desmarcado, Carlos I de Ànjou que, vencendo Manfredo, conquistou a Sicília. — 115-20. Se o mancebo, Afonso III, primogênito de Pedro de Aragão, que morreu moço, foi melhor príncipe do que os seus sucessores, Jaime II no reino de Aragão e Frederico na Sicília. — 126. Apúlia etc., os reinos de Provença e de Nápoles lamentam a morte de Carlos I, pois são mal governados pelo seu sucessor Carlos II. — 127-29. O fruto etc., tão inferior é Carlo II de Anjou a Carlos I, quanto este foi inferior a Pedro III. — 131. Henrique III, da Inglaterra, o qual teve um bom sucessor na pessoa de Eduardo I. — 134. Marquês Guilherme, senhor de Monferrato, cuja morte originou uma guerra desastrosa para os seus súditos.


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E lhe abraça os joelhos...


 

CANTO VIII

 

No começo da noite dois anjos descem do Céu para expelir a serpe maligna que quer entrar no vale. Entre as sombras que se aproximam dos Poetas, Dante reconhece Nino Visconti, de Pisa. Conrado Malaspina pede a Dante notícias de Lunigiana, sua pátria; Dante responde elogiando a sua família.

 

ERA o tempo, em que mais saudade sente
Do navegante o coração no dia
3 Do adeus a amigos, que relembra ausente;

E ao novel peregrino amor crucia,
Distante a voz do campanário ouvindo,
6 Que ao dia a morte, flébil, denuncia.

Não mais ouvia os olhos dirigindo
Perto um espírito vi que levantado,
9 Acenava, que ouvissem-no pedindo.

E, havendo as duas mãos juntas alçado,
Parecia, olhos fitos no Oriente,
12 A Deus dizer: És todo o meu cuidado!

Te lucis entoou devotamente
Com tão suave, tão piedoso canto,
15 Que me enlevava em êxtase a mente.

Com igual devoção e igual encanto,
Nas supernas esferas engolfados,
18 Repetiram os outros o hino santo.

Leitor, tem da alma os olhos afiados
Para os véus da verdade penetrares:
21 Fácil é, tão sutis são, tão delgados.

A nobre turba, após os seus cantares,
Calou-se; então notei que, como à espera,
24 Pálida e humilde a vista erguia aos ares.

E vi sair descendo, da alta esfera
Anjos dois, empunhando flamejantes
27 Gládios a que truncada a ponta era.

Verdes quais folhas novas vicejantes
As vestes suas são, as agitando
30 As plumas das suas asas viridantes.

Um acima de nós se colocando,
Baixara o outro sobre o lado oposto,
33 Desta arte as almas de permeio estando.

A flava coma via-lhes: seu rosto
Contemplar impossível me seria:
36 Confunde a vista o lúcido composto.

“Do sólio ambos descendem de Maria”
Sordelo diz — “a do vale por amparo,
39 Onde a serpente vai chegar ímpia.”

Por onde ela viesse estando ignaro
Em torno olhei e, do terror tomado,
42 Busquei refúgio ao pé do amigo caro.

Sordel prossegue: — “É de falar chegado
Àqueles grandes spíritos o instante:
45 Ledos serão de ver-vos ao seu lado.” —

Para baixar ao val me foi bastante
Três passos dar: um spírito fitava
48 Perscrutadora vista em meu semblante.

Já de sombras o ar se carregava;
Mas aos seus e aos meus olhos embaraço
51 Não era para ver-se o que ali stava.

A mim vem, eu para ele aperto o passo:
— “Nino exímio juiz quanto me agrada
54 Ver-te liberto do infernal regaço!”

De afeto após a mostra reiterada,
Inquiriu: — “Por longínquas águas quando
57 Chegaste ao pé da altura alcantilada?”

— “Oh!” — lhe tornei — “esta manhã, passando
Pela triste mansão: ainda a vida
60 Primeiro gozo e a outra vou buscando.” —

Mal fora esta resposta proferida,
Nino e Sordel, de pasmo, recuaram;
63 Como se fora maravilha ouvida.

Ao Vate este volveu-se; e se escutaram
Vozes de Nino a outro: — “Vem, Conrado, —
66 De Deus ver o que as leis determinaram!”

— “Por essa gratidão” — a mim voltado
Disse — “que ao Ente deves invisível,
69 Cuja ação compreender nos é vedado.

“Te imploro que, em passando o mar temível,
Digas à filha minha que suplique
72 Por mim: Deus à inocência é tão sensível!

“Não creio que em prol meu a mãe se aplique
Depois que os brancos véus trocou demente:
75 Dor terá infeliz! — que mortifique.

“Se conhece, por ela, facilmente
Quanto em mulher de amor fogo perdura
78 Se o caminho falece e o olhar freqüente.

“Não lhe fará tão bela sepultura
A víbora com que Milão se ostenta,
81 Como a fizera o galo de Galura.” —

Assim dizia Nino. Ainda o alenta
O justo zelo, que traduz no rosto,
84 Que brando ardendo, o ânimo aviventa.

Ávido os olhos tinha eu no céu posto,
À parte em que os luzeiros são mais lentos,
87 Qual roda onde o seu eixo está disposto.

E o Mestre: — “Os olhos ao que tens atentos?” —
Respondi-lhe: — “Aos três astros luminosos,
90 Que o pólo acendem, célicos portentos.” —

— “As quatro estrelas” — me tornou — “formosas,
Que por manhã já vimos, se ocultaram.
93 Aí mesmo estas surgem fulgurosas.” —

Sordel, quando estas vozes me voaram,
O tira a si dizendo: — “eis o inimigo!” —
96 Os olhos o seu dedo acompanharam.

Do val na parte exposta ver consigo
Uma serpe, que a rastos coleava:
99 Talvez o pomo deu, de Eva perigo.

Entre as ervas e flores avançava,
A um lado e a outro a fronte volteando;
102 Lambendo o dorso, a língua dilatava.

Não pude ver como ao réptil nefando
Os celestes açores se enviaram;
105 Mas atônito os vi ambos pairando.

O sussurro que as asas no ar formaram,
Em sentido, fugiu presto a serpente:
108 Os anjos logo aos postos seus tornaram.

A sombra, que viera incontinênti
Do juizo ao chamado enquanto o assalto
111 Durou, me estava olhando atentamente

— “Tenha o fanal, que te conduz ao alto
No teu desejo válido alimento!
114 De luz para subir não sejas falto!

“Mas se houveste” — me diz — “conhecimento
De Valdimagra ou terra que confina,
117 Declara: eu de poder lá tive aumento.

“Chamado fui Conrado Malaspina;
Não o antigo, porém seu descendente:
120 Amor, que tive aos meus aqui se afina.” —

— “Lá não fui” — respondi-lhe reverente —
“Mas da Europa em que parte a excelsa fama
123 Dos feitos vossos não tem eco ingente?

“A glória que o solar vosso proclama,
Honra o domínio, honra os seus senhores
126 Quem nunca os viu louvores seus aclama.

“Juro, e tão certo eu veja os esplendores
Do céu, que a vossa raça guarda intatos
129 Da opulência e bravura altos primores.

“Por sua índole egrégia, por seus atos,
Enquanto ao mundo um chefe mau transvia,
132 Só ela segue o bem e o prova em fatos.” —

— “Vai!” — disse — “Antes que o belo astro do dia
Sete vezes penetre nesse espaço,
135 Que o Áries cobre na celeste via,

“Tão boa opinião com fundo traço
Melhor será na tua fronte impressa
Do que de outro por voz a cada passo,

139 Se do Sumo Querer ordem não cessa.” —

 

1. Era o tempo etc., começava a cair a noite. — 13. Te lucis etc., começo de um hino da Igreja. — 19-21. Leitor etc., o Poeta adverte que além do sentido literal o que vai dizer tem um sentido alegórico. — 53. Nino exímio juiz, Ugolino Visconti, juiz de Galura, na Sardenha. — 65. Conrado, Conrado Malaspina, marquês de Lunigiana. — 71. À filha minha, Joana, filha de Nino. — 73. A mãe, Beatriz d’Este, viúva de Nino, desposara em segundas núpcias a Galeazzo Visconti. — 80. A víbora, brasão da família Visconti. — 119. O antigo, o avô de Conrado Malaspina, do mesmo nome. — 136. Tão boa opinião etc., em 1306 Dante teve boa acolhida nos Castelos dos Malaspina, em Lunigiana.


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...fugiu presto a serpente...


 

CANTO IX

 

Ao despontar do novo dia Dante adormece e, no sono é transportado por Luzia até a Porta do Purgatório. Aproximam-se da entrada e aqui um anjo abre-lhes a porta, depois de ter gravado na testa de Dante sete PP.

 

JÁ clareava de Titão antigo
A concubina as fímbrias do oriente,
3 Deixando os braços do seu doce amigo;

Era-lhe a fronte de astros refulgente,
Figura do animal frio formando,
6 Que vibra a cauda contra a humana gente.

No lugar, em que estávamos, se alçando
Dos passos seus havia a Noite andado,
9 E o terceiro ia as asas inclinando,

Quando eu, tendo o que Adam nos há legado,
De sono sobre a relva fui vencido,
12 Lá onde junto aos quatro era sentado.

Ante-manhã, na hora, em que gemido
Triste a andorinha a soluçar começa,
15 Talvez na antiga dor pondo o sentido;

Já não stando da carne mais opressa
A mente e livre do pensar terreno,
18 Quase divina por visões pareça,

Pairar sonhei que via no ar sereno
De áureas plumas uma águia, que mostrava
21 Querer baixar, das asas pelo aceno.

Estar eu na montanha imaginava,
Onde os seus Ganimede abandonara
24 Alado à corte excelsa, que o esperava.

E eu pensava: talvez esta ave rara,
Caçar aqui soindo, a nédia preia
27 Fazer noutros lugares desdenhara;

A traçar giros vários avistei-a:
Eis, terrível, qual raio, a mim se envia,
30 E lá do fogo à região me alteia.

Esta águia, então julguei, comigo ardia
Tanto, que foi o sonho meu quebrado
33 Pelo fingido incêndio, que eu sentia.

Como, acordando, Aquiles espantado
Ficou por não saber onde se achava
36 No lugar aos seus olhos devassado,

Quando a mãe que a Quíron o arrebatava,
O transportou a Sciro adormecido,
39 Donde astúcia depois lho retirava:

Assim fiquei ao ser desvanecido
Das pálpebras o sono, semelhante
42 A quem desmaia em cor de horror transido.

Junto a mim eu só vi naquele instante
Virgílio; o sol duas horas já media;
45 Ao mar tinha eu voltado inda o semblante.

— “Não teme!” — estas palavras proferia —
“Sê tranqüilo, o bom porto não mais dista,
48 Alarga o coração, não entibia;

“O Purgatório já daqui se avista.
Onde a rocha é fendida está a entrada,
51 A rocha o cinge e tolhe o aspeto à vista.

“Ao romper da alva ao dia antecipada,
Quando no vale em sono eras jazendo
54 Sobre a ervinha de flores esmaltada,

“Eis mostrou-se uma Dama nos dizendo:
Sou Luzia; pois dorme, vou trazê-lo,
57 Leve assim a jornada lhe fazendo —

“Ficando as nobres almas com Sordelo,
Tomou-te; e como já raiasse o dia
60 Subiu: seguiu seus passos, com desvelo

“Depôs-te; e por seus olhos me dizia
Que próxima ali stava a entrada aberta.
63 Ela se foi e o sono te fugia.” —

Como quem stando em dúvida, se acerta,
Converte o seu temor em confiança,
66 Logo em sendo a verdade descoberta:

Assim me achei mudado. Ele que alcança
Que esforçado já stou, vai por diante
69 Pela altura; o meu passo após avança.

Vês, leitor, que assunto altissonante
Se faz; e não estranhes se mais arte
72 Mor lustre lhe acrescenta de ora avante.

Acercamo-nos, pois, da rocha à parte,
Onde eu antes rotura divisava
75 Como em muralha fenda que reparte;

Ora uma porta e degraus três notava
Para entrar, cada qual de cor dif’rente,
78 E um porteiro que tácito ficava.

E, de mais perto olhando, claramente
No mais alto degrau o vi sentado:
81 Ofuscava-me a face refulgente.

Na destra um gládio eu tinha empunhado,
que tão vivos lampejos refletia,
84 Que em vão fitava os olhos deslumbrado.

— “Parai e respondei-me” — principia —
“Que intentais? Quem vos guia na jornada?
87 Efeitos não temeis dessa ousadia?” —

— “Dama do céu, de tudo isso inteirada”
— Falou Virgílio — “disse-nos: — Avante!
90 Não longe fica a porta desejada.” —

— “Seja ela aos vossos passos luz brilhante”
— Logo beni’no o anjo nos tornava —
93 “Aos degraus nossos vinde por diante.” —

Chegamos: o degrau primeiro estava
De alvo mármor tão terso, tão polido,
96 Que a minha imagem nele se espelhava.

Era escuro o segundo e não brunido,
Tosca pedra o formava e calcinada;
99 Ao longo a via e de través fendido.

De pórfiro o terceiro e carregada
Tinha a cor de vermelho flamejante,
102 Qual sangue, que da veia flui rasgada.

Neste firmava o anjo rutilante
Os pés, ao limiar sentado estando,
105 Que ser me pareceu de um só diamante.

Tirado por Virgílio vou-me alçando
Jubiloso. Ele disse — “Humildemente
108 Requer, que te abra a porta deprecando.” —

Aos sacros pés dobrei devoto a frente;
Misericórdia, vezes três batendo
111 Nos peitos, para abrir pedi fervente.

Da espada a ponta sete PP me havendo
Na testa aberto, disse o anjo: — “Lava
114 Lá dentro estes sinais te arrependendo.” —

Chaves duas tomou quando acabava,
De sob as vestes, onde a cor, atento
117 De terra seca eu cinzas observava.

Uma era de ouro, a outra era de argento.
Primeiro a branca, após a flava aplica
120 À porta: foi completo o meu contento.

— “Se emperrada das duas uma fica
E não dá volta” — disse — “à fechadura,
123 Isto entrada defesa significa.

“Se mais preço um tem, noutra se apura
Mais arte para abrir e mais engenho,
126 Das molas cede-lhe a prisão mais dura.

“Mandou Pedro de quem as chaves tenho
Que em abri-la antes erre que em cerrá-la
129 Aos que a exoram com ardente empenho.” —

Tocando a santa entrada, ainda nos fala:
— “Penetrai; mas, de agora, vos previno,
132 Quem olha para trás pra fora abala.” —

Os portões já se movem do divino
Recinto, e os espigões, rangendo, giram
135 Nos gonzos de metal sonoro e fino:

Quando, vãos de Metelo os esforços, viram
Roubado o erário, com estrondo tanto
138 As portas de Tarpéia não se abriram.

Aos rumores atento, doce canto —
Te Deum laudamus escutar julgava,
141 De conceitos unido ao meigo encanto.

Ouvindo, em mim a sensação calava,
Que a voz bem modulada nos motiva,
Quando com ternos sons de órgão se trava;

145 Que uma voz emudece, outra se esquiva.

 

1. De Titão antigo etc., a concubina do velho Titão é a aurora. — 5-6. Animal frio etc., talvez a constelação dos Peixes ou do Escorpião. — 23. Onde os seus Ganimede abandonara, quando Júpiter o fez raptar para servir de copeiro aos deuses, no Olimpo. — 34. Aquiles espantado etc., Tétis, mãe de Aquiles, o transportou para a ilha de Sciro, de onde os gregos Ulisses e Diômedes o conduziram à guerra de Tróia. — 56. Luzia, Santa Luzia. — 112. Sete PP, os sete pecados mortais. — 136. Quando vãos de Metelo os esforços etc., as portas do Purgatório se abriram com maior estrondo do que se abriram as portas da rocha Tarpéia, quando, apesar da resistência de Cecílio Metelo, Júlio César as abriu para apossar-se do dinheiro público.


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E lá do fogo à região me alteia


 

CANTO X

 

Os dois Poetas sobem ao primeiro compartimento do Purgatório, cuja escarpa é de mármore, no qual estão esculpidos vários espisódios de humildade. Eles os observam e no entanto vêem em sua direção várias almas curvadas sob o peso de grandes pedras. São as almas dos que no mundo foram soberbos.

 

PASSADO estando o limiar da porta,
Das paixões pelo excesso desusada,
3 Que reta faz supor a estrada torta,

Pelo estrondo senti que era cerrada.
Se atrás volvesse os olhos, qual seria
6 A desculpa da falta perpetrada?

Subíamos por fenda que se abria
Na rocha, a um lado e ao outro serpeando,
9 Qual onda, que ora acerca, ora desvia.

“Aqui ser destro cumpre, acompanhando” —
Disse o Mestre — “o caminho árduo, fragoso,
12 Que as sinuosas voltas vai formando.” —

A passo íamos, pois, tão vagaroso,
Que a lua o crescente reclinado
15 Era já no seu leito de repouso,

Quando aquela estreiteza hemos deixado
Espaços livres alcançando e abertos,
18 Onde o monte pra trás era inclinado;

Eu inanido e ambos nós incertos
Da vereda, em planura enfim paramos,
21 Mais solitária que áridos desertos.

Do precipício a borda calculamos
Distar da oposta, em que o rochedo alteia,
24 Comprimento que em homens três achamos.

Na extensão, que ante mim se patenteia,
Da direita ou da esquerda igual largura
27 Nessa cornija aos olhos se franqueia.

Não déramos um passo na planura,
Quando notei que a escarpa sobranceira,
30 Que ascender não permite a sua altura,

Era alvo mármor, tendo a face inteira
Talhada com primor, que a Policleto
33 Tomara e à natureza a dianteira.

O anjo, que da paz trouxe o decreto,
Tantos séc’los com lágrimas pedido,
36 Que o céu abriu, donde o homem stava exceto,

Ao vivo ali mostrava-se insculpido,
No gesto e no meneio tão suave,
39 Que em pedra não parece estar fingido.

Quem não jurara que profere o Ave,
Pois juntamente figurada estava
42 Quem do supremo amor volvera a chave?

Seu semblante estas vozes expressava
Ecce ancilla tão propriamente,
45 Como na cera imagem, que se grava.

— “Num ponto só não prendas tanto a mente” —
Virgílio me falou, tendo-me ao lado,
48 Aonde o coração bater se sente.

Para mais longe olhei: maravilhado
Após Maria então vi que disposta,
51 Da parte, em que era o Mestre colocado,

Fora outra história em mármore composta.
Ao sábio adiantei-me: de mais perto
54 Aos meus olhos melhor ficara exposta.

O carro com seus bois na rocha aberto
E a Arca santa que conduz, mirava:
57 Lembra aos profanos o castigo certo.

Em coros sete o povo ali cantava:
Do olhar em mim o ouvido dissentia,
60 Pois se um dizia sim, outro negava;

De igual modo na pedra percebia
Ao ar o fumo se elevar do incenso:
63 Da vista o asserto o olfato desmentia.

Da Arca adiante, com fervor imenso,
Dançando humilde via-se o salmista,
66 Mais e menos que um Rei no zelo intenso.

Mícol, do régio paço, em frente, a vista
No Rei fitava, o ato lhe estranhando,
69 Que lhe move desgosto e que a contrista.

Desse lugar depois eu me afastando,
De perto contemplar fui outra história,
72 Que além um pouco, estava branquejando.

Aqui brilhava a preminente glória
Desse famoso Imperador romano,
75 Por quem Gregório obteve alta vitória.

Ao natural tirado era Trajano:
Do freio do corcel mulher tratava;
78 Dizia o pranto sua dor, seu dano.

De cavalheiros tropa se apinhava,
E nas bandeiras a águia de ouro alçada
81 Acima dele aos ventos tremulava.

A infeliz, dos guerreiros rodeada,
Parecia dizer: — “Senhor, vingança!
84 Morto é meu filho e eu gemo atribulada.”

E Trajano tornar: — “Toma esperança
Até que eu volte.” — E a mísera pungida
87 Da dor que, em mãe, a tudo se abalança:

— “Senhor, se não voltares?” — “Deferida
Serás de herdeiro meu.” — “Bem que outro faça
90 Que val’, se a obrigação tens esquecida?” —

E ele: — “Ânimo esforça na desgraça.
Meu dever cumprirei sem mais espera,
93 Justiça o exige, compaixão me enlaça.” —

Quem novas cousas nunca vê, fizera
Visível sobre a pedra esta linguagem:
96 Arte não sobe a tão sublime esfera.

Enquanto me enleava em cada imagem,
Em que há dado aos extremos da humildade
99 De operário a perícia mor vantagem,

— “Eis almas lentamente em quantidade
Acercam-se; a mais alta” — disse o Guia —
102 “Nos pode encaminhar sua bondade.” —

A vista, que em portentos se embebia,
De olhar outros já sôfrega, volvendo,
105 Atentei no que o Mestre me advertia.

Mas, leitor, que esmoreças não pretendo,
Nem que os bons pensamentos te faleçam,
108 Como os pecados pune Deus sabendo.

Nem os martírios nímios te pareçam;
Pensa bem no porvir; pois, em chegando,
111 O grão Juízo, em caso extremo, cessam.

E eu disse: — “O que ora a nós vem caminhando
Não creio sombras ser: o que é portanto?
114 Não sei, a percepção turbada estando.” —

— “Do seu tormento, que te movo espanto
É condição à terra irem curvados:
117 Também a vista duvidou-me um tanto.

“Olhos fita; imagina levantados
Os que vêm dessas pedras oprimidos:
120 Já vês quanto eles são atormentados.”

Cristãos soberbos, míseros, perdidos,
Cegos da alma, que haveis pra trás andado,
123 De tanta confiança possuídos,

Que vermes somos não vos stá provado,
De que surge a celeste borboleta,
126 Que incerta voa ao tribunal sagrado?

Por que do orgulho assim passais a meta,
Se sois insetos no embrião somente,
129 Vermes de formação inda incompleta?

A modo de pilar ver-se é freqüente,
Joelhos, peito unindo, uma figura
132 Cornija ou teto a sustentar ingente.

Da dor mera ficção move tristura
Em quem olha: senti então notando
135 Das almas penitentes a postura.

Mais umas, outras menos, se dobrando
Iam, segundo o fardo, que traziam;
E as que eram mais sofridas, pranteando,

139 Não posso mais! — dizer me pareciam.

 

32. Policleto, célebre escultor grego. — 34. O anjo, Gabriel. — 42. Quem, etc., a virgem Maria. — 57. Lembra aos profanos o castigo certo, Oza caiu fulminado por ter-se aproximado da Arca, que ameaçava cair (Samuel II-6). — 65-66. Dançando humilde via-se o salmista, Davi dançava precedendo a Arca. — 67. Mícol, esposa de Davi manifestava censura pelo ato humilde do esposo. — 74-75. Desse famoso imperador, Trajano, que, segundo uma lenda, o papa Gregório I conseguiu, com suas preces, voltasse à vida terrena e, batizado, fosse para o Céu. — 124-126. Que vermes somos etc., como do verme nasce a borboleta, assim nós homens outra coisa não somos senão vermes dos quais devem surgir as borboletas dignas de subir ao Céu.


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Fora outra história em mármore composta


 

CANTO XI

 

Virgílio pergunta às almas que purgam o pecado da soberbia qual é o caminho para subir ao segundo compartimento, e uma delas dá a indicação requerida. Umberto Aldobrandeschi dá-se a conhecer e fala com Dante, que, depois, reconhece Oderisi de Gubbio, pintor e gravador. Oderisi dá-lhe notícia de Provenzano Salvani, que está junto com eles.

 

VÓS, que nos céus estais, ó Padre nosso,
Não circunscrito, mas porque haveis dado
3 Mais aos primeiros seres o amor vosso,

“Vosso nome e poder seja louvado!
Graças à criatura jubilosa
6 Ao saber vosso renda sublimado!

“Do reino vosso a paz venha ditosa!
Que vão de havê-la o empenho nos seria,
9 Se não vier da vossa mão piedosa.

“Como a vós a vontade se humilia
Dos vossos anjos, entoando hosana,
12 Façam assim os homens cada dia!

“A substância nos dai quotidiana
Hoje: sem ela em áspero deserto
15 Se atrasa quem por ir além se afana!

“E como a quem nos faz mal descoberto
Damos perdão, nos perdoai clemente,
18 Indi’nos sendo nós, Senhor, por certo.

“Oh! não deixeis cair a defidente
Virtude nossa em tentação do imigo!
21 Livrai-nos dele, em nos pungir ardente!

“Não mais somos, Senhor, nesse perigo,
Em que precisa esta oração nos seja;
24 Mas não os que hão mister na terra abrigo.” —

Ao céu rogando que ao seu bem proveja
E ao nosso, as almas sob o peso andavam,
27 Como o que oprime a quem sonhando esteja.

Com desigual gravame se arrastavam
Ofegantes no círculo primeiro,
30 E do pecado as névoas expurgavam,

Se em bem nosso com zelo verdadeiro,
Oram, como em seu prol fará no mundo
33 Quem tem no bem querer seu peito useiro?

Ajudemo-las, pois, vestígio imundo
A lavar, por que leves, puras sejam,
36 Do céu se alando ao brilho sem segundo.

“Ah! compaixão, justiça vos consigam
Presto alívio, e possais, o vôo erguendo,
39 Ir até onde os desejos vos instigam!

“Valei-nos a vereda nos dizendo
Mais curta ou a que é menos escarpada,
42 Mais de um caminho a se ascender havendo.

“Ao companheiro meu assaz pesada
É a carne de Adam, que inda o reveste:
45 Por mais que esforce, o afana esta jornada.” —

A voz, que respondeu ao Mestre a este
Dizer, não sei a que alma pertencia
48 Por indício qualquer, que o manifeste:

— “Vinde à direita em nossa companhia
Pela encosta, e vereis o passo estreito,
51 Que uma pessoa viva subiria.

“Se este penedo não tolhesse o jeito,
A cerviz orgulhosa me domando
54 E obrigando a juntar o rosto ao peito,

“Deste homem para a face, atento olhando,
(Não sei quem é) talvez o conhecera,
57 E assim me fora compassivo e brando.

“Toscano fui, ilustre pai tivera.
Guilherme Aldobrandeschi se chamava:
60 O nome seu algum de vós soubera?

“Tanta arrogância a glória me inspirava
Do meu solar e os feitos valorosos,
63 Que a nossa mãe comum não mais pensava,

“Olhos volvendo a todos desdenhosos.
Perdi-me assim; os atos meus em Siena
66 Foram em Campagnatico famosos.

“Chamei-me Umberto; da soberba a pena
A mim não coube só: de igual desgraça
69 Vem a causa que aos meus todos condena.

“Este fardo, que os passos me embaraça
Mereço, por cumprir-se a lei divina:
72 Vivo o não fiz, é justo que ora o faça.” —

Enquanto, ouvindo, a fronte se me inclina,
Uma das almas (não a que falava)
75 Sob o peso se torce, que a amofina.

E viu-me e, conhecendo-me, chamava,
Os olhos seus fitando esbaforida
78 Em mim, que, recurvado a acompanhava.

— “Oderisi não foste” — eu disse — “em vida,
Honra de Agubbio, honra daquela arte
81 Que iluminar Paris ora apelida?” —

— Tornou-me: — “Hoje o pincel (cumpre informar-te)
De Franco de Bolonha mais agrada:
84 A honra é toda sua, minha em parte.

“Por mim não fora em vida proclamada
Esta verdade, quando esta alma ardia
87 Na ambição de primar nessa arte amada.

“Aqui de tal soberba o mal se expia;
Staria alhures; mas a Deus eu pude
90 Mostrar que de pecar me arrependia.

“Quanto a vaidade o peito humano ilude!
Dessa flor como esvai-se a formosura,
93 Se não seguir-se um séc’lo inculto e rude!

Cimabue cuidou ter na pintura
A liça dominado: mas vencido
96 Ficou: a glória Giotto fez-lhe escura.

Assim de estilo na arte cede um Guido,
A palma a outro: agora é bem provável
99 Seja de ambos o mestre já nascido.

“Rumor mundano é como vento instável
Que a direção varia de repente:
102 Conforme o lado, o nome tem mudável.

“De ti que fama ficará manente,
Se da velhice cais no extremo passo,
105 Ou se findas na infância inconsciente,

“De hoje a mil anos, tempo mais escasso,
Da eternidade em face, que um momento
108 Ante a esfera a mais tarda lá no espaço?

“Quem me precede e vai assim tão lento
Na Toscana entre todos foi famoso:
111 Apenas salvo está do esquecimento.

“Em Siena, que há regido poderoso,
Quando perdeu-se a raiva florentina.
114 Soberba então, objeto hoje asqueroso.

“A fama vossa iguala-se à bonina,
Que flore e morre: o sol, por quem nascera
117 Na terra a prostra e a cor cresta à mofina.” —

Respondi-lhe: — “O dizer teu em mim gera
Saudável humildade e o orgulho mata.
120 Esse, que apontas, conta-me quem era.” —

“De Provenzan Salvani” — diz — “se trata:
Aqui stá, porque Siena ele cuidara
123 Ter nas mãos — presunção de alma insensata!

“Caminha assim curvado, e nunca pára
Dês que a vida perdeu eis o castigo
126 De quem tanto à soberba se entregara!” —

— “Se o que demora até final perigo
A penitência” — eu disse — “e errado corre,
129 Subir não pode e aqui não acha abrigo,

“Se uma oração piedosa o não socorre,
Durante prazo igual ao da existência,
132 Como ao martírio Provenzan concorre?” —

— “Quando era” — torna — “no auge da influência,
Sobre a praça de Siena, suplicando,
135 Ter ante o povo humilde continência,

“De um amigo o resgate procurando,
Que era por Carlos em prisão detido,
138 Tremeu angustiado e miserando.

“Não mais: não sou, de obscuro, compreendido,
Mas te há de ser em breve isto explicado
Por filhos dessa terra em que hás nascido. —

142 “Por tão bom feito o ingresso lhe foi dado.”

 

59. Guilherme Aldobrandeschi, senhor de Grosseto. Quem fala é o filho Umberto, que guerreou contra Pisa. — 79. Oderisi de Gubbio, excelente pintor e miniaturista. — 83. Franco de Bolonha, célebre miniaturista. — 94-96. Giotto e Cimabue, célebres pintores. Giotto, discípulo de Cimabue, superou o mestre na sua arte. — 97-98. Um Guido e outro, Guido Cavalcanti superou a Guido Guinicelli na arte da poesia. — 121. Provenzano Salvani, de Siena, senhor muito poderoso, morto na batalha de Colle em 1269. — 133-138. Quando era etc., para obter a libertação de um amigo prisioneiro de Carlos d’Anjou, ele se humilhou a pedir a esmola aos seus concidadãos.


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...as almas sob o peso andavam...


 

CANTO XII

 

Os dois Poetas continuam a viagem. No pavimento do círculo estão pintados vários exemplos de soberbia castigada. Um anjo vem junto dos Poetas e os guia até a escada que sobe ao compartimento sucessivo. Com a asa, depois, apaga da testa de Dante um dos PP.

 

A PAR, como dois bois, que o jugo unira,
Eu com essa alma opressa e titubeante
3 Ia, enquanto Virgílio permitira.

Eis disse-me: — “Deixando-a, segue avante:
Deve fazer de vela e remos força
6 Quem quer à parca impulso dar constante.” —

A caminhar dispus-me à voz, que esforça,
Erguendo logo o corpo, inda que a mente
9 Na humildade a modéstia acurve e estorça.

Já os pés acelero e facilmente
A Virgílio acompanho: de porfia,
12 Se mostra cada qual mais diligente.

— “À terra olhos inclina” — então dizia —
“Para a jornada aligeirar atenta
15 No solo, onde o meu passo aos teus é guia.”

Assim como na campa se aviventa
A memória dos mortos, insculpindo
18 Imagem, que a existência representa,

Que de saudade os corações ferindo,
À piedade propensos e à ternura,
21 Os vai ao pranto muita vez pungindo:

Assim, com perfeição sublime e pura,
Figuras via sobre aquela estrada,
24 Que sobe, serpeando, pela altura.

Via, a um lado, dos céus precipitada
Das criaturas a mais bela e nobre,
27 Qual raio, pelo espaço arremessada.

A vista, o outro, Briaréu descobre
De projétil celeste transpassado:
30 Gélido a terra desmedido cobre.

Com Marte e Palas stava figurado
Timbreu, em torno ao pai de armas fornidos,
33 Vendo o campo de imigos alastrado.

Nemrod olhos volvia espavoridos,
Junto à feitura imensa, aos companheiros,
36 Que a Sanaar seguiram-no, descridos.

Ó Níobe, com braços verdadeiros
Que dor nos olhos teus aparecia,
39 Os filhos mortos vendo, quais cordeiros!

Saul, a própria espada te extinguia
Sobre a montanha Gelboé — maldita,
42 Orvalho ou chuva ali não mais caía.

Ó louca Aracne, tua face aflita,
De aranha parte entre os destroços stava
45 Da teia, origem da fatal desdita.

Não mais a tua imagem cominava;
Num carro foges, Roboam cruento,
48 À fúria popular, que te assombrava.

Amostrava ainda o duro pavimento
Como fez Alcmeon pagar tão caro
51 À mãe o funestíssimo ornamento.

Mostrava mais como flagício raro
Senaqueribe no templo assassinado
54 Por filhos, que deveram ser-lhe amparo.

Mostrava também Ciro degolado
E Tamíris dizendo acesa em ira
57 — Sede tinhas de sangue, sê saciado! —

A multidão de Assírios que fugira,
Mostrava ao verem de Holoferne a morte,
60 E o castigo que os passos lhes seguira.

Via no pó, nas cinzas Tróia forte:
Ó soberba Ílion, a pedra dura
63 Mostrava a tua lamentável sorte!

Que mestre no pincel ou na escultura
Posturas, sombras tais traçar pudera,
66 Pasmo ao gênio, que atinja a suma altura?

Real ou morte ou vida aos olhos era:
A verdade não viu na própria cena
69 Melhor que eu quando a efígie a olhar stivera.

A fronte entonai, pois, de orgulho plena,
Ó filhos de Eva, os olhos não baixando
72 Ao caminho, onde achais devida pena!

Mais íamos no monte caminhando
E no seu giro o Sol mais avançara
75 Do que eu cuidava, absorto contemplando,

Quando aquele, que sempre me guiara
Desvelado, me disse: — “Alça a cabeça!
78 Não te engolfes! atento sê! repara!

“Olha aquele anjo que caminha à pressa
Ao nosso encontro: acaba a terra sexta
81 Do dia o lavor certo e outra começa.

“Reverência em teu gesto manifesta
Para o anjo à viagem ser propício,
84 Não volta o dia de que pouco resta.” —

Aproveitar do tempo o benefício
Era do Mestre a regra; e, pois, naquela
87 Matéria não lhe achei de obscuro o indício.

Já nos demanda a criatura bela:
Trajava branco, a face resplendia,
90 Qual, tremulando, matutina estrela.

Braços abria e asas estendia,
Dizendo: — “Vinde! que os degraus stão perto:
93 A jornada já fácil se anuncia.” —

Raros escutam essa voz, por certo:
Ó gente humana, para o céu nascida,
96 Por que decaís do vento a um sopro incerto?

Imos à rocha, por degraus partida:
De uma das asas me roçou na fronte,
99 Prometendo-me próspera subida.

Como à direita quem se erguer ao monte,
Donde se avista a igreja que domina
102 A bem regida ao pé de Rubaconte,

Sente que aos pés a ingremidade inclina
Pela escada talhada antes que houvesse
105 Em livros e medidas a rapina:

Adoça-se o pendor assim; pois desce
De um círc’lo a outro a rocha que alterosa
108 A um lado e ao outro augusto passo of’rece.

Subindo em melodia tão donosa
Beati pauperes spiritu escutamos,
111 Que a voz, que o diga é pouco vigorosa

Quão dif’rentes os áditos que entramos,
Dos infernais! Aqui suave canto,
114 Lá gritos de ira ouvindo caminhamos.

Vencendo esses degraus do monte santo
Mais ágil me sentia: lá no plano
117 Fácil nunca a jornada fora tanto.

Eu disse: — “Ó Mestre, de que peso insano
Sinto-me livre, pois no estreito passo,
120 Como de antes agora não afano!” —

— “Quando os PP que inda tens em vivo traço
Sobre a fronte” — tornou-me — “se apagarem,
123 Como não hás de ter mais embaraço,

“Segundo o teu desejo os pés andarem
Sentirás sem fadiga, e até gozando
126 Deleite, para a altura ao caminharem.”

Como o que traz, na praça passeando,
Cousa, que ignora, na cabeça posta,
129 E, por ver sinais de outrem, suspeitando,

À mão pede socorro; ela, em resposta,
Procura, acha, um serviço assim rendendo,
132 A que a vista não pode ser disposta:

Assim, da destra os dedos estendendo,
Conheci que das letras, que o anjo abrira,
Stavam somente seis remanescendo.

136 Sorriu-se o Mestre, que o meu gesto vira.

 

25-27. Via, a um lado etc., Lúcifer, o anjo que se rebelou contra Deus. — 28. Briareu, gigante que se rebelou contra Júpiter e foi fulminado. — 31. Marte, Palas e Timbreu (Apolo), que dominaram os gigantes rebeldes. — 34-35. Nemrod etc., que na planície de Senaar, começou a construção da torre de Babel. — 37. Níobe, desprezando Latona por ter esta somente dois filhos, quando ela tinha doze, por castigo foram todos mortos por Apolo e Diana. — 40-41. Saul, rei de Israel, derrotado em Gelboé, suicidou-se. — 43-45. Aracne, tendo desafiado Minerva para saber quem melhor tecia, foi por esta transformada em aranha. — 47. Roboam, filho de Salomão, oprimiu o povo de Israel no seu reinado e foi obrigado a fugir em conseqüência de revolta popular. — 50. Alcmeon, matou a própria mãe Erifiles, pois esta, para ganhar um colar de ouro, havia revelado o esconderijo do seu marido Anfiarau aos inimigos. — 53. Senaqueribe, rei dos Assírios, foi morto pelos filhos. — 55-57. Tamíris, rainha dos Massagetas, tendo vencido Ciro, o mandou matar num odre cheio de sangue, dizendo: Sacia-te de sangue, monstro. — 59-60. Holofernes, general assírio, morto por Judite durante o sítio da cidade de Betúlia. — 61-63. Tróia ou Ílion, destruída pelos gregos. — 80. A terra sexta, a hora sexta, meio-dia. — 102. Rubaconte, ponte de Florença.


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Ó louca Aracne...


 

CANTO XIII

 

Chegam os Poetas ao segundo compartimento, no qual estão os pecadores que expiam o pecado da inveja. Os invejosos têm os olhos cosidos com fio de arame. Entre eles está Sápia, senhora de Siena, com a qual Dante fala.

 

DA escada ao topo havíamos chegado,
Onde, outra vez cortado, o monte estreita,
3 Que alma sobe, expiando o seu pecado.

Como a primeira, outra cornija feita
Circundava a colina, só dif’rente
6 Em que a um arco menor ela se ajeita.

Relevo, formas, como a precedente,
Não mostra: e, lisa sobre a escarpa a entrada,
9 Lívida cor a pedra tem somente.

— “Se a presença de alguém fosse esperada,
Que nos preste conselho” — diz meu Guia —
12 “Temo que fique a escolha retardada.” —

Os olhos para o sol depois erguia,
E, sobre o pé direito se firmando,
15 Para a esquerda girava e se volvia.

— “Tu, de quem tudo fio, ó lume brando
No caminho conduz-nos que se of’rece
18 Como o exige o lugar” — disse — “guiando!

“Raiando, o teu calor o mundo aquece:
Se motivo não surge de embaraço,
21 De conduzir-nos teu fulgor não cesse!”

Vencido em breve tínhamos espaço,
Que por milha na terra calculamos,
24 Porque o desejo estimulava o passo:

Em direitura a nós voar julgamos
Invisíveis espíritos, chamando
27 De amor à mesa em lépidos reclamos.

A voz primeira que passou voando,
Vinum non habent proferiu sonora
30 E ainda muito além foi reiterando.

Mas antes de perder-se pelo ar fora,
Outra acercou-se. — “Orestes sou!” — dizia;
33 E apartou-se igualmente sem demora.

— “Que vozes estas são, Mestre?” — inquiria.
Mas, apenas falara, eis vem terceira.
36 — “Amai imigos vossos!” — eu lhe ouvia.

— “Pune este círc’lo a culpa traiçoeira” —
O Mestre diz — “da inveja; o açoite aplica
39 O amor, que os rigores lhe aligeira.

“Contrário som, porém, o freio indica.
Antes que atinjas do perdão a entrada,
42 Terás de ouvi-lo; e disto certo fica.

“Tem ora a vista para além fitada;
De espíritos, ao longo do alto muro,
45 Assentados verás soma avultada.” —

Mais que de antes então a vista apuro;
Almas distingo, que envolviam mantos,
48 Que a cor imitam do penhasco duro.

Um pouco avante ouvi de esp’ritos tantos
A voz bradar: — “Por nós orai, Maria,
51 Pedro, Miguel e todos os mais Santos!”

Na terra homem tão fero não seria,
Que não sentisse o coração pungido
54 Em vendo o que aos meus olhos se of’recia.

Acerquei-me por ser mais distinguido
De cada sombra o menear e o gesto:
57 Pelos olhos à dor alívio hei tido.

Então foi claramente manifesto
Que entre si, uns aos outros se arrimavam,
60 Todos à pedra, em seu cilício mesto.

Assim os pobres cegos mendigavam
Nos dias de Perdão da igreja à porta,
63 Mutuamente as cabeças encostavam;

Pois a piedade o coração nos corta,
Quando ao som das palavras se acrescenta
66 Da vista a ação que o peito desconforta

E como o sol aos cegos não se ostenta,
Assim também às sombras que alivia,
69 Não mais do céu a luz olhos alenta.

Fio de ferro as pálpebras prendia
A todas, como ao gavião selvage
72 Para domar-lhe a condição bravia.

Cuidei, se andasse, lhes fazer ultraje,
Lhes vendo as faces e ocultando a minha:
75 E o Mestre olhei em tácita linguage.

E o Mestre, bem sabendo o que convinha,
Antecipou-se logo ao meu desejo
78 E disse: — “Arguto sê, e fala asinha.” —

Virgílio caminhava neste ensejo
Do lado, onde à cornija falta amparo;
81 Dali cair se pode e o risco eu vejo.

As almas do outro lado eram; reparo
Que dos olhos a hórrida costura
84 Provoca pranto copioso e amaro.

Voltei-me e disse: — “Ó almas, que a ventura
De ver tereis ao certo o excelso Lume;
87 De que somente o vosso anelo cura,

“Dissolva a Graça em vós todo o negrume
Da consciência e nela manar faça
90 Da mente o rio em límpido corrume!

“Concedei-me o que mais me satisfaça:
Dizei-me qual de vós latina há sido;
93 De eu sabê-lo algum bem talvez lhe nasça.” —

— “Por pátria, irmão, só hemos conhecido
A cidade de Deus: dizer quiseste
96 Peregrina na Itália haja vivido.” —

De mim remota a voz parece deste,
Que assim disse; e portanto, passo avante
99 Por saber certo a quem atenção preste.

E uma senhora entre as mais vi, que, distante,
Aguardava-me. E como eu a distinguia?
102 Qual cego, alçava o mento pra diante.

— “Tu, que para subir penas” — dizia —
“Quem foste, onde nasceste diz: te imploro,
105 Se é tua voz que, há pouco, respondia.”

— “Fui de Siena” — tornou — “com este choro
Os graves erros de perversa vida,
108 E a Deus que se nos dê, clemente, exoro.

“Chamei-me Sápia, mas não fui sabida.
Mais deleite me deu o alheio dano
111 Do que a dita a mim própria concedida.

“E por que não presumas que te engano,
Se fui louca verás pelo que digo.
114 Já no declínio do viver humano

“Eu era, quando a rebater o inimigo
Em Colle os meus patrícios campearam;
117 A Deus roguei que lhes não fosse amigo.

“Destroçados, à fuga se lançaram,
E a mim, que estava aquele transe vendo,
120 Indizíveis prazeres me tornaram,

“Em modo, que atrevida, olhos erguendo,
— “Não mais Deus tenho!” — contra o céu gritava
123 Qual melro, instantes de bonança tendo.

“Com Deus quis paz, mas quando já tocava
Da vida o termo; e ainda não pudera
126 A dívida solver, que me onerava,

“Se Pedro Pettinanho não se houvera,
Nas santas operações de mim lembrado:
129 Em prol meu, caridade o comovera.

“Mas quem és, que nos tens interrogado,
Que estando, creio, de olhos não tolhidos
132 E respirando indagas nosso estado?” —

— “Olhos” — disse — “terei também cerzidos,
Porém por pouco tempo; que da inveja
135 No mundo hão sido rara vez torcidos,

“Maior receio o peito me dardeja
De outro tormento; e tanto me angustia,
138 Que o seu fardo a sentir cuido já steja.” —

— “Mas quem ao monte” — me tornou — “te guia,
Pois de voltar ao mundo tens certeza?” —
141 — “Quem tenho ao lado e voz não pronuncia.

“Inda vivo; e, pois fala com franqueza,
Alma eleita, se queres que os pés mova
144 Em prol teu lá na terra com presteza.” —

— “O que dizendo estás, cousa é tão nova
Que por mim rogues fervorosa peço,
147 Pois da divina dileção dás prova.

“E pelo que te merecer mais preço
Suplico-te: ao pisar terra toscana
150 Ao meu nome entre os meus aviva o apreço.

“Terás de vê-los entre a gente insana,
Que espera em Talamone, mas como antes,
Quando buscava as águas do Diana:

154 Mor engano há de ser dos almirantes.” —

 

29. Vinum non habent, é a frase que Maria disse a Jesus para incitá-lo a fazer o milagre da transformação da água em vinho. — 32. Orestes sou, Orestes para salvar Pílades, condenado à morte, apresentou-se em seu lugar. — 36. Amai imigos vossos, v. Evang. S. Mateus V. — 44-51. Por nós orais etc., prece. — 109. Sápia, senense, casada com Ghinigaldo Saraceni. — 116. Em Colle, onde os senenses foram derrotados pelo florentinos. Sápia rejubilou-se disso, pois era inimiga do senhor de Siena, Provenzano Salvani. — 127. Pedro Pettinanho, morto em fama de santidade. — 151-154. A gente insana, os senenses. Tendo eles comprado Telamone, queriam transformar essa cidade em porto de mar, mas não foi possível devido à insalubridade do clima. Não tiveram êxito também na descoberta de um rio subterrâneo que devia passar debaixo de Siena e que chamaram Diana. Mais do que outros serão enganados os almirantes.


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Chamei-me Sápia, mas não fui sabida.


 

CANTO XIV

 

Dante conversa com outras almas de invejosos. Respondendo o Poeta a uma pergunta de Rinieri de Calboli, intervém Guido del Duca, imprecando contra as cidades de Toscana e lamentando, depois, a degeneração das famílias nobres de Romanha. Os Poetas ouvem vozes que lembram episódios nos quais o pecado da inveja foi castigado.

 

“ESTE quem é ao nosso monte vindo,
Sem ter-lhe a morte as asas desatado,
3 Os olhos, quando quer, fechando e abrindo?” —

— “Ignoro; mas vem de outro acompanhado.
Tu, que és mais perto, a perguntar começa,
6 E, para nos falar, mostra-lhe agrado.” —

De dois esp’ritos junto se endereça
A mim desta arte a voz: stão-me a direita,
9 Cada um para trás alça a cabeça.

— “Ó alma” — disse-me uma — “que, na estreita
Prisão corpórea ainda, aos céus ascende,
12 Dá-nos consolo, à caridade afeita.

“Quem és e donde vens? Porque nos prende
Pasmo notando a Graça, que te ampara,
15 Portento que ninguém viu, nem compreende.” —

Tornei-lhe: — “Na Toscana se depara
Rio, que brota em Falterona escasso
18 E nunca, milhas cem correndo, pára:

“Este corpo dali conduzo lasso.
Dizer quem sou discurso vão seria:
21 Meu nome inda não soa em largo espaço.” —

— “Se bem te entendo” — assim me respondia
A sombra, que antes de outra eu tinha ouvido —
24 “Ao Arno o dizer teu se referia.” —

— “Por que” — lhe atalha a outra — “ele escondido
Nos tem do rio o nome verdadeiro?
27 Cousa horrível se encerra em seu sentido?” —

Disse-lhe a sombra, que falou primeiro:
— “Não sei; mas fora bem feliz o instante,
30 Em que o nome pereça ao vale inteiro:

“Dês que nasce lá onde é redundante
De águas a serra que o Peloro unira,
33 Noutras partes, porém, pouco abundante,

“Até que o mar do seu tributo aufira
Reparo ao que no seio o céu lhe suga,
36 E vida assim pra novos rios tira,

“Todos ali virtude hão posto em fuga,
Qual víbora inimiga, ou por efeito
39 Do clima, ou por moral, que o bem refuga.

“Natureza por vícios se há desfeito
Na gente desse vale impuro,
42 Como de Circe apascentada a jeito.

“Cava o rio primeiro o leito escuro
Entre porcos mais di’nos de bolota
45 Do que de cibo, em que haja humano apuro.

“Baixando, acha de gozos mó abjeta,
Em que o furor à força não se iguala,
48 E, como por desdém, busca outra meta.

“Essa maldita e desgraçada vala
Tantos mais cães em lobos vê tornados
51 Quanto mais corre e mais caudal resvala.

“Imerge em princípios mais rasgados,
Onde encontra raposas tão manhosas,
54 Que os laços mais sutis ficam frustrados.

“Do porvir direi cousas espantosas,
E quem me ouvir conserve na lembrança
57 Verdades que há de ver bem dolorosas.

“Teu neto os lobos a caçar se lança
Desse rio maldito sobre a riva:
60 Enquanto os não destroça não descansa.

“A carne sua vende, estando viva,
Como reses depois mata-os cruento;
63 Muitos da vida e a si da glória priva.

“Da triste selva sai sanguinolento
E a deixa, tal que ainda após mil anos
66 Tornar não há de ao primitivo assento.” —

Como, ao presságio de futuros danos,
Merencório se mostra o interessado,
69 Onde quer que a fortuna urda os enganos;

Assim o outro espírito: voltado
Para escutar se havendo, se entristece,
72 Depois que teve o sócio terminado.

Como saber seus nomes eu quisesse,
Ouvindo aquele, ao outro o gesto vendo,
75 A pergunta entre rogos se oferece.

O que falara respondeu dizendo:
“Pedes que eu, pronto, quanto anelas faça,
78 A instância minha em pouco apreço tendo.

“Mas como em ti de Deus transluz a Graça,
Não te há de ser Guido del Duca esquivo
81 Tanto, que o teu querer não satisfaça.

“Da inveja o fogo ardeu em mim tão vivo,
Que ao ver sorriso de outrem no semblante,
84 Em meu rosto o libor era expressivo.

“Semeei: colho o fruto repugnante.
Oh! por que, raça humana, o que repele
87 Qualquer partilha almejas ofegante?

“Este foi Rinieri: estava nele
Dos Calboli o primor: ao nome honrado
90 Herdeiro não deixou que a glória zele.

“Não só à prole sua tem faltado,
Entre o Pó e a montanha, o mar e o Reno
93 O bem para a verdade e o prazer dado;

“Pela extensa amplidão desse terreno
Alastram tudo abrolhos perigosos:
96 Quando extirpar se pode um tal veneno?

“Onde Mainardi e Lizio estão famosos?
Qual de Carpigna e Traversaro o fado?
99 Ó Romanhóis bastardos desbriosos!

“Quando um Fabro se tem nobilitado,
Como em Faenza um Fosco Bernardino,
102 Varas gentis de tronco definhado!

“O pranto meu não julgues pouco di’no,
Se com Guido de Prata rememoro
105 O companheiro nosso, Azzo Ugolino;

“Se Fred’rico Tignoso e a prole choro;
Solares de Anastagi e Traversara,
108 Sem herdeiros extintos, se eu deploro,

“Cavaleiros e damas, glória rara,
Que inspiravam amor e cortesia
111 Na terra, que a virtude desampara!

“Cai em ruínas, Brettinoro ímpia!
Em ti viver tua gente não quisera;
114 Com mais outras, temendo o mal, fugia.

“Bem faz Bagnacaval: prole não gera,
Castrocaro faz mal e pior Cônio
117 Que a tais condes da vida o lume dera.

“Os Pagani irão bem, quando o Demônio
Deixá-los; mais não podem nome puro
120 Já nunca possuir no solo ausônio.”

Ugolin Fantolin, ficou seguro
Da fama tua o lustre; pois já agora
123 Não terás filhos pra torná-lo escuro.

“Podes, Toscano, prosseguir embora:
Pranto, mais que discursos, me deleita;
126 Lembrando a pátria, o coração me chora.” —

O passo as almas na vereda estreita
Ouviam-nos, silêncio elas guardando.
129 Era a jornada com certeza feita.

Já ficaríamos sós, avante andando,
Eis brada voz nos ares de repente;
132 Veloz, qual raio, vinha a nós chamando:

— “Quem me encontrar me mate incontinênti” —
E fugiu qual trovão que distancia
135 Se o vento a nuvem rasga de repente.

O terrível clamor cessado havia,
Com medonho fracasso eis outra brada,
138 Como um trovão que a outro sucedia:

— “Aglauro sou, em rocha transformada” —
E a Virgílio acercar-me então querendo,
141 Dei, não avante, um passo atrás na estrada.

Tranqüilo o ar por toda parte vendo,
— “Este é” — falou-me o Mestre — “o duro freio,
144 Que os homens deve estar sempre contendo:

“Mas vós mordeis a isca em triste enleio
E o prístino inimigo do anzol tira:
147 De conter ou pungir que vale o meio?

“O céu vos chama, em torno de vós gira,
Esplendores eternos vos mostrando;
Mas a vista, enlevada, a terra mira,

151 “E quem vê tudo então vai castigando.” —

 

17. Rio que brota em Falterona, o Arno. — 32. Peloro, promontório siciliano. — 42. Circe, sereia que transformava os homens em animais. — 58. Teu neto, Fulcieri de Calboli, neto de Rinieri, que foi “podestà” de Florença perseguiu o partido dos Bancos, ao qual Dante pertencia. — 80. Guido del Duca, senhor de Bertinoro, na Romanha. — 88. Rinieri dei Paolucci, senhor de Calboli. — 97 e seg. Mainardi e Lizio, Carpigna e Troversaro, Fabbro, Fosco Bernardino, Guido de Prata, Azzo Ugolino, Frederico Tignoso, Anastagi e Traversara, senhores e famílias da Romanha notáveis por cortesia e generosidade. — 115-117. Bagnacaval, Castrocaro, Cônio, cidades da Romanha cujos senhores eram maus. — 118. Pagani, nobre família de Faenza, da qual fazia parte Mainardo (Inf. XXVI, 49-51) alcunhado o demônio pelas suas crueldades. — 121. Ugolin Fantolin, gentil-homem de Faenza. — 133. Quem me encontrar me mate incontinênti, palavras pronunciadas por Caim depois de ter assassinado o irmão Abel. — 139. Aglauro, filha de Eretero rei de Atenas, foi transformada em pedra por Mercúrio, por ter inveja da irmã Erse que era amada pelo deus.


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Cada um para trás alça a cabeça


 

CANTO XV

 

Caindo a noite, os dois Poetas chegam ao terceiro compartimento. Aí Dante, em êxtase, vê exemplos de mansuetude e misericórdia. Voltando a si, encontra-se imerso num fumo que obscurece o ar e impede a visão.

 

QUANTO caminho faz da tércia hora,
No giro seu, a luminosa esfera,
3 — Sempre a mover-se qual criança — à aurora,

Tanto, para acabar o curso, espera
O sol, e para dar à tarde entrada:
6 Lá vésperas, aqui meia-noite era.

De luz me estava a face então banhada;
Porque, em torno à montanha prosseguindo,
9 Do ocaso em direção ia a jornada,

Quando, mais vivo resplendor fulgindo,
Ofuscado fiquei mais do que dantes:
12 Desse portento a ação pasmei sentindo.

Acima de meus olhos, por instantes,
As mãos alcei — sombreiro, que antepara
15 O mor excesso aos raios deslumbrantes.

Assim como de espelho ou linfa clara
Ressalta a luz de encontro à oposta parte,
18 Subindo logo após, como baixara;

Da linha vertical não se disparte,
Uma distância igual sempre mantendo,
21 Como nos mostra experiência e arte:

Em frente à luz, assim, se refrangendo,
Tão penetrante a vista me feria,
24 Que a dirigi a um lado, olhos volvendo.

“Qual é” — ao Mestre amado então dizia —
Aquele objeto, que me ofusca tanto
27 E ao nosso encontro, ao parecer, se envia?” —

— “Que inda te ofusque não te mova espanto
A celeste família” — me há tornado: —
30 “Falar-te vem um mensageiro santo.

“A veres com delícia aparelhado
Serás em breve um lume refulgente,
33 Quanto ser pode ao ente humano dado.” —

Acercados ao anjo, alegremente
Nos disse: — “Aqui passai, menos penosa
36 Subida nesta escada está patente.”

Andando, atrás cantar em voz donosa
Beati Misericordes nós ouvimos
39 E “Exulta na vitória gloriosa”,

Para cima, portanto, nós subimos;
E eu das vozes do Vate cogitava
42 Colher proveito, enquanto sós nos imos.

E, me voltando, assim lhe perguntava:
“O que Guido del Duca nos dizia,
45 Quando em bens não partíveis nos falava?” —

— “Do seu vício pior” — tornou — “sabia
Os danos; não se estranhe, se o acusando,
48 Do mal que fazer possa prevenia;

“Porque, do mundo os bens vós desejando,
A que partilha todo o apreço tira,
51 Arde a inveja, suspiros provocando.

Mas, se a esfera imortal vossa alma aspira,
Levantando-se o anelo àquela altura,
54 Esse temor no peito voz expira.

“Tanto mais lá cad’um goza ventura,
Quanto por muitos ela mais se estende,
57 Quanto mais caridade lá se apura.” —

— “O entendimento” — eu digo — “ora compreende
Menos do que antes de eu te haver falado;
60 À mente ora mor dúvida descende.

“Como um bem, que é de muitos partilhado,
A cada possessor dá mais riqueza
63 Do que se a posse fora apropriado?” —

— “Teu spírito” — replica — “na rudeza
Das cousas terreais stando imergido,
66 Vê trevas onde a luz tem mais clareza,

“Esse inefável bem, no céu fruído,
Infindo, para o amor, correndo desce,
69 Qual raio a corpo lúcido e polido.

“Se ardor acha mais vivo, mais se of’rece;
Quanto mais caridade está fulgindo,
72 Virtude eterna mais sobre ela cresce.

“Quanto mais vai a multidão subindo,
Mais amar podem, mais a amor se aplicam,
75 Bem como espelho, um no outro refletindo.

“Se persistindo as dúvidas te ficam,
Hás de ver Beatriz: da sábia mente
78 Razão escutarás, que tudo explicam.

“Para apagares, pois, sê diligente.
As chagas cinco, que inda em ti stou vendo:
81 Há de cerrá-las contrição pungente.” —

Quando eu ia dizer — Mestre, compreendo —
No círculo eis penetro imediato:
84 Calei-me, a vista alucinada tendo.

Julgava então, de uma visão no rapto,
Extático, que em templo se mostrava
87 Multidão grande, de oração no ato.

Com piedoso semblante, à entrada estava
Meiga matrona. — “Ó filho meu querido,
90 Por que assim procedeste?” — interrogava.

“Eu e teu pai, com ânimo dorido,
Te buscamos.” — E como se calara,
93 Logo a visão fugiu-me do sentido.

Depois de outra no rosto se depara
Pranto acerbo, que mágoas anuncia
96 De quem de ira no incêndio se inflamara.

“Se mandas na cidade” — assim dizia —
“Por cujo nome os deuses contenderam
99 E onde a luz da ciência se irradia,

“Pune os braços, que ímpios, se atreveram,
Pisístrato, a estreitar a filha tua!” —
102 Ele, a quem vozes tais não comoveram,

Tranqüilo respondia à esposa sua:
“O que faremos a quem mal nos queira,
105 Se ira ao amor corresponder tão crua?”

Vi depois multidão, que a raiva aceira:
A pedradas mancebo assassinava,
108 Bradando — morra! morra! — carniceira.

A dolorida fronte debruçava,
Já mal ferido, o mártir para a terra:
111 Portas ao céu os olhos seus tornava,

Pedindo a Deus, naquela horrível guerra,
Que aos seus perseguidores perdoasse:
114 Riso piedoso os olhos lhe descerra.

Quando em minha alma o êxtase desfaz-se,
Conheci que no sonho aparecia,
117 Não da ficção mas da verdade a face.

Virgílio, a quem talvez eu parecia
Homem, que o sono deixa de repente,
120 — “Por que estás vacilante?” — me inquiria.

“Tens meia légua andado certamente
Com titubante pé, de olhos caídos,
123 Como quem desse ao vinho ou sono a mente.” —

— “Vou expor, meu bom mestre, aos teus ouvidos” —
Tornei — “quanto os meus olhos contemplaram,
126 Quando os joelhos tinha enfraquecidos.”

— “Se másc’ras cento a face te ocultaram” —
Disse Virgílio — “ocultos não seriam
129 Pensamentos, que, há pouco, te enlevaram.

“As imagens, que hás visto, te induziam
Águas da paz a receber no peito,
132 Que as fontes perenais dos céus enviam.

“Não perguntara, como quem de feito
Somente vê por olhos, obcecados
135 Quando o corpo da morte jaz no leito;

“Mas por serem teus pés mais apressados:
Excitar assim cumpre os preguiçosos,
138 Que se esquivam à ação stando acordados.” —

Nas horas vespertinas pressurosos
Andávamos, os olhos alongando,
141 Do sol cadente aos raios luminosos,

Eis pouco a pouco, um fumo se elevando.
Se condensa ante nós, qual noite, escuro;
Abrigo ali de todo nos faltando,

145 A vista nos tolheu, tolhendo o ar puro.

 

1-5. Quanto caminho etc., faltavam três horas para o ocaso, pois o Poeta nota que deveria transcorrer tanto tempo para o pôr do sol quanto transcorre entre o princípio do dia até a hora terça. — 6. Lá vésperas etc., no Purgatório faltavam três horas para o ocaso, eram vésperas; na Itália era meia-noite. — 16-21. Assim como etc., o poeta descreve o refletir-se da luz que bate sobre um espelho ou na água, no qual o ângulo de refração é igual ao ângulo de incidência. — 38. Beati misericordes, Evang. S. Mateus V, 7. — 80. As chagas cinco, os cinco PP, que ainda Dante tem na testa. — 89. Meiga matrona, Maria Virgem, a qual tendo perdido o seu filho, encontrando-o depois de três dias, o repreende com mansuetude. — 94. De outra etc., a mulher de Pisístrato, príncipe de Atenas, pediu ao marido vingança contra um jovem que beijara publicamente a sua filha. — 107. A pedrada mancebo assassinava, Santo Estevão que foi apedrejado pela multidão.


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A pedradas mancebo assassinava...


 

CANTO XVI

 

Sempre ao lado de Virgílio, Dante continua a viagem. Denso fumo envolve os iracundos. Entre eles está Marco Lombardo, o qual lamenta os tempos, que eram bons e agora ficaram maus. Dante pergunta de que depende essa mutação, e Marco responde que a corrupção dos tempos novos procede do mau governo do mundo e especialmente da confusão entre o poder espiritual e o poder temporal.

 

SOMBRA de inferno e noite carregada,
Em que o céu de um só astro não se aclara,
3 De nuvens, quanto o pode ser, toldada,

Véu tão grosso ao meu rosto não lançara,
Nem, ao contacto, fora tão pungente,
6 Como o fumo, que ali nos rodeara.

Fechados tinha os olhos totalmente:
Fiel o sábio sócio, me acudindo,
9 Deu-me em seu ombro arrimo diligente.

Qual cego, que ao seu guia vai seguindo
Por se não transviar, correr perigo,
12 Ou sofrer morte, de encontrão caindo,

Tal eu por aquele ar escuro sigo,
Atento ao Mestre meu, que repetia:
15 — “Cuidado! Não te afastes! Vem comigo!” —

Então vozes ouvi; me parecia,
Que paz, misericórdia suplicavam
18 Ao Cordeiro, que as culpas alivia.

Por Agnus Dei suaves começavam,
A letra era uma só como a toada,
21 Consonância entre si todas as guardavam.

— “Por quem esta oração, que ouço, é cantada?” —
Perguntei. Disse o Mestre: — “É bom que o aprendas:
24 Assim da ira a culpa é mitigada.” —

— “Quem és para que a névoa nossa fendas
E assim fales, qual viva criatura,
27 Que inda o tempo calcula por calendas?” —

Disse uma voz do fundo na negrura.
E Virgílio falou: — “Responde e exora
30 Se por aqui se sobe para a altura.” —

— “Ó alma, que” — disse eu — “a graça implora
De ir a Quem te criou mais pura e bela,
33 Maravilha ouvirás, segue-me embora.” —

— “Até onde for dado” — tornou-me ela —
“Irei, e, se te ver não deixa o fumo,
36 Nos tornará propínquos a loquela.” —

— “Nas mantilhas, que a morte acaba, ao sumo
Assento” — comecei — “ora me alteio,
39 Do inferno tendo vindo pelo rumo.

“Se Deus permite, de bondade cheio,
Que a dita eu goze de lhe ver a corte
42 Por este, hoje de todo estranho, meio,

“Revela-me quem foste antes da morte
E qual nos deva ser a melhor via:
45 Guiarás nossos passos desta sorte.” —

— “Fui Lombardo e de Marco o nome havia;
O mundo exp’rimentei, feitos amando,
48 Pelos quais ninguém mais hoje porfia.

A subir bom caminho vais trilhando.” —
Falou-me assim e acrescentou: — “E rogo
51 Intercedas por mim, ao céu chegando.” —

— “Quanto me pedes” — lhe replico logo —
“Juro fazer, mas acho-me oprimido
54 Por dúvida a que anelo desafogo.

“Era simples; te ouvindo, tem subido
A duplo grau, e assim me torna certo
57 Do que hei aqui e noutra parte ouvido.

“O mundo de virtude está deserto;
Tens sobeja razão, quando o lamentas,
60 Impa de mal, de vícios é coberto.

Dize-me a causa, se na causa atentas?
Sabendo-a, aos outros revelá-la quero;
63 Virá do céu ou lá na terra a assentas?”

Suspiro em que se exprime dó sincero
Com hui, do peito exala. — “Irmão — prossegue —
66 Que o mundo é cego em ti bem considero.

“Vós, os vivos, julgais o céu entregue
De toda causa, a tudo assim movendo
69 Por necessária lei, que o mundo segue.

“Desta arte o livre arbítrio fenecendo,
Ao homem não coubera o que merece,
72 No bem prazer, no mal dor recebendo.

“Primeira inspiração aos atos desce
Do alto; a todos não; mas quando o diga,
75 No mal, no bem a luz não vos falece.

“Livre sendo o querer, quem se afadiga
E a primeira vitória do céu goza,
78 Vencerá tudo, se em querer prossiga.

“Natureza melhor, mais poderosa
Vos sujeita — a que cria e vos concede
81 Mente, que ao céu não prende-se humildosa.

“Se a causa, que do bom caminho arrede
O mundo em vós a tendes persistente;
84 Explorarei, fiel, o que sucede.

“Alma surge das mãos do Onipotente
Que, inda antes de nascida, lhe sorria
87 Qual menina, que ri, chora, inocente.

“Ingênua e simples, ela só sabia
De um Deus beni’no ser meiga feitura,
90 E a tudo, que a deleita, se volvia.

“Dos mais frívolos bens prende-a a doçura,
E, deles namorada, após lhes corre,
93 Se guia ou freio o amor lhe não segura.

“Nas leis consiste o freio, que a socorre;
Rei foi mister, que, ao menos, acertasse
96 Da cidade de Deus em ver a torre.

“Leis há, mas não quem leis executasse;
Rumina esse pastor que os mais precede,
99 Mas a unha fendida não lhe nasce.

“E vendo a grei que o próprio guia a excede
Em almejar os bens que mais deseja,
102 Nestes se engolfa e mais nem quer nem pede.

“Portanto, porque mau governo veja,
Fica o mundo de culpas inquinado,
105 Não porque em vós a corrupção esteja.

“Bens sobre o mundo havendo derramado,
Tinha Roma dois sóis, que alumiaram
108 O caminho de Deus e o do Estado.

“Um ao outro apagou, e se ajuntaram
Do Bispo o bago e do guerreiro a espada:
111 Por viva força unidos, mal andaram.

“Não mais se temem na junção forçada:
Vê a espiga que prova estes efeitos;
114 Pela semente é a planta avaliada.

“Valor e cortesia altos proveitos
Deram na terra que Ádige e Pó lavam,
117 Antes que visse de Fred’rico os feitos.

“Por ali os que outrora se pejavam
De entrar dos bons na prática e na liga,
120 Livres passam do quanto receavam.

“Só três velhos opõe a idade antiga,
Como censura, à nova: é-lhe já tardo
123 Que Deus os chame dessa terra imiga:

“Conrado de Palazzo, o bom Gherardo
E Guido de Castel, que foi chamado,
126 Ao estilo francês simples Lombardo.

“De Roma a Igreja fique proclamado,
Cai no ceno os poderes confundido,
129 Se enloda a si e o fardo seu pesado.”

— “Tuas sábias razões, Marcos, ouvindo,
Vejo” — disse — “por que a Lei da herança
132 Partiu, de Levi os filhos excluindo.

“Mas qual Gherardo trazes à lembrança,
Como glória e brasão da antiga gente,
135 Que censura a este séc’lo impuro lança?” —

— “Queres” — tornou — “tentar-me ou certamente
Iludir-me? Em toscano me falando
138 Do bom Gherardo dizes-te insciente?

“Sobrenome de todo lhe ignorando,
Dou-lhe o de Gaia, sua filha cara.
141 Guarde-vos Deus, que eu vou-me, vos deixando.

“Do fumo a densidão se torna rara,
Branqueja o dia: devo já partir-me,
Que a apresentar-se o anjo se prepara.” —

145 Assim falando, mais não quis ouvir-me.

 

19. Agnus dei, Jesus símbolo de mansuetude, virtude contrária ao vício da ira. — 27. Calendas, uma das três partes em que o mês era dividido pelos romanos. — 46. Fui Lombardo e de Marco o nome havia, Marco de Veneza, chamado o Lombardo, homem sábio e prudente. — 98. Rumina esse pastor etc. A imagem deriva da lei mosaica pela qual se proibia se comessem os animais não ruminantes e que não tivessem a unha partida. O ruminar exprime a sabedoria, a unha partida a ação. — 116. Na terra etc., a Lombardia e o Marca Trevisana. — 117. De Frederico os feitos, as guerras entre os papas e Frederico II da Suábia. — 124-25. Conrado de Palazzo, da Brescia; Gherardo de Camino; e Guido de Castello, de Reggio — 131-132. Lei da herança etc., segundo a lei mosaica os descendentes de Levi, isto é, os levitas (os sacerdotes) não podiam possuir bens temporais.


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“Fui Lombardo e de Marco o nome havia...”


 

CANTO XVII

 

Saindo do denso fumo, Dante, novamente em êxtase, vê exemplos de ira punida. Tornando a si, vê um anjo que está perto da escada do quarto compartimento. Os dois Poetas continuam a subir. Sobrevindo, porém, a noite, param e Virgílio explica ao discípulo que o amor é o princípio de todas as virtudes e de todos os vícios.

 

LEITOR, se lá na alpina cordilheira
Te colheu névoa, que de ver tolhia,
3 Como se olhos tivemos de toupeira,

Lembra que, quando a úmida e sombria
Cortina a delgaçar começa, a esfera
6 Do sol escassa luz ao ar envia.

E mal tua mente imaginar pudera
Como de novo à vista se mostrava
9 O sol, que ao seu poente descendera.

Ao lume, que nos planos se finava,
Do Mestre os passos fido acompanhando
12 Saí da cerração, que me cercava.

Fantasia que, o espírito enlevando,
Tanto o homem dominas, que não sente
15 Clangor de tubas mil, juntas soando,

O que te move, estando o siso ausente?
Luz que desce por si, no céu formada,
18 Ou por querer do céu onipotente.

Cuidei súbito ver a que mudada,
Dos crimes seus em pena, foi nessa ave,
21 Que em trinar mais se mostra deleitada.

Tanto minha alma, na visão suave,
Extática ficou, que não sentia
24 Outra impressão qualquer que a prenda e trave.

Naquele êxtase logo após eu via
Em cruz um homem de feroz semblante:
27 Nem a morte a arrogância lhe abatia:

Stava o grande Assuero não distante,
Ester, a esposa e Mardoqueu prudente,
30 Justo nos feitos, no dizer prestante.

E fugiu-me esta imagem prontamente,
Como a bolha, que de água se formara
33 E à falta de água esvai-se de repente.

Donzela eis na visão se me depara
Que em prantos exclamava: — “Ó mãe querida
36 Por que tomaste irosa a morte amara?

“Perdes, por não perder Lavínia, a vida
E perdida me tens: teu fim deplora,
39 Mas não o de outro, a filha dolorida.” —

Como se rompe o sono, se de fora
Luz repentina às pálpebras nos desce;
42 Não morre logo, em luta se demora:

Minha visão assim se desvanece,
Quando as faces clarão tão vivo lava,
45 Que na terra outro igual nunca esclarece.

Volvi-me para ver onde me achava;
Mas, ouvindo uma voz — “Sobe esta escada” —
48 De qualquer outro intento me apartava.

Por saber quem falara foi tomada
Minha alma de um desejo tão veemente,
51 Que fora, se o não viesse, conturbada.

Como ao sol, que deslumbra em dia ardente,
Sendo-lhe véu seu lume flamejante,
54 Senti perdida a força incontinênti.

— “Espírito é celeste: vigilante
Sem rogos, o caminho nos indica:
57 O próprio brilho esconde-o fulgurante.

“Como o homem consigo, assim pratica;
Quem, mal extremo vendo, só rogado
60 Acode, esquivo ser já significa.

“A tal convite o pé seja apressado!
Antes da noite rápidos subamos;
63 Depois somente quando o sol for nado.” —

Disse o meu Guia; e logo encaminhamos
Os passos, de uma escada em direitura.
66 Ao primeiro degrau quando chegamos

Mover de asas ao perto se afigura,
Bafejo sinto; e ouço: — “É venturoso
69 Quem ama a paz, isento de ira impura!” —

No alto já do céu o luminoso
Rasto, da noite precursor, surgira,
72 De astros assoma o exército formoso.

— “Ai de mim! Por que a força minha expira?”
Disse, entre mim, sentindo que, esgotada,
75 Súbito às pernas o vigor fugira.

Tendo alcançado o topo já da escada,
Imóveis nos quedamos, imitando
78 A nau, que aferra a praia desejada.

A escutar stive um pouco, interrogando
Daquele novo círc’lo algum sonido;
81 Depois ao Mestre me voltei falando:

— “No lugar em que estamos, pai querido,
Que pecado recebe a pena sua?
84 Parando os pés, teu verbo seja ouvido.”

Tornou-me: — “Se do bem o amor recua
No seu dever, aqui se retempera;
87 Sobre o remisso a expiação atua.

“Por melhor compreenderes, considera
No que digo: a detença, porventura,
90 Dará o fruto, que tua mente espera.

“Ao Criador, meu filho, e à criatura
Nunca falece amor — tens já sabido —
93 Ou venha da alma ou venha da natura.

“O amor natural de erro é despido;
Pode pecar o outro pelo objeto,
96 Por nímio ardor, por star arrefecido.

“Quando aos bens principais ele é direto
E nos bens secundários moderado,
99 Causar não pode criminoso afeto.

“Se ao mal, porém, se torce ou, desregrado,
De menos ou de mais ao bem se move,
102 Ofende ao Criador quem foi criado.

“Tens, pois, o necessário, que te prove
Que amor em vós semente é de virtude,
105 Como é dos feitos, que o céu mais reprove.

“E como o amor o bem somente estude
Do seu sujeito, quando o amor domina,
108 Não pode ser que em ódio a si se mude.

“E porque nenhum ente se imagina
Sem ter no que criou a causa sua,
111 Ódio em nenhum contra este se origina:

“Contra o próximo é, pois, que se insinua
Do mal o amor, pecaminoso.
114 No humano limo em modos três atua.

“Qual, da grandeza, e glória cobiçoso,
As espera em ruína de outro, e anela
117 Vê-lo em terra prostrado e desditoso;

“Qual, temor de perder, triste, revela
Valia, honra e poder, se outro os partilha
120 E em querer-lhe o contrário se desvela;

“Mágoa sentindo de uma injúria filha,
Qual porfia em vingar-se, e, de ira ardendo,
123 De mal fazer os meios esmerilha.

“Do mal este amor tríplice nascendo,
Lá embaixo se expia; mas atende
126 Ao que vai desregrado, ao bem correndo.

“Confusamente cada qual se acende
Por certo bem e sôfrego o deseja:
129 Por ter-lhe a posse, afana-se e contende.

“O que do bem no amor inerte seja
Depois que do pesar sofrerá agrura,
132 É justo que em martírio aqui se veja.

“Há outro bem; não dá, porém, ventura.
Felicidade não é, não é a essência
135 De todo o bem, o fruto, a raiz pura.

“O amor, que a tal bem vota a existência,
Acima em círc’los três há seu tormento:
Por que assim se divide, a inteligência,

139 Sem te eu dizer, dar-te-á conhecimento.” —

 

20. Nessa ave etc., Filomena, por vingar-se de ter sido ultrajada por Teseu, deu-lhe de comer os próprios filhos e foi por isso transformada pelos deuses em rouxinol. — 26. Em cruz um homem etc. Aman, ministro do rei Assuero, foi crucificado na cruz que ele havia mandado levantar para o inocente Mardoqueu (Ester II, 5). — 34. Donzela, Lavínia, filha do rei Latino e da rainha Amata. — 37-39. Perdes etc., A rainha Amata supondo que Turno, noivo de Lavínia, tivesse sido morto por Enéias, suicidou-se.


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...o caminho nos indica


 

CANTO XVIII

 

Virgílio continua a falar sobre o amor. No entanto as almas dos preguiçosos vão passando diante dos Poetas, lembrando exemplos da virtude contrária à preguiça, e, depois, de punição da preguiça. Uma das almas dá-se a conhecer a Dante. É o abade de S. Zeno, em Verona. Dante cai em profundo sono.

 

PALAVRAS tais já proferido havia
O Vate excelso e, atento, me observava
3 Por ver se eu satisfeito parecia;

E eu, em maior sede me inflamava,
Calando-me, entre mim dizia: “O excesso,
6 Que nas perguntas há, talvez o agrava.” —

Mas o sincero pai, sempre indefeso,
Meu silêncio notando e o que o motiva
9 Logo animou-me a lho fazer expresso.

— “Minha vista” — falei — “tanto se aviva
À luz do verbo teu, Mestre, que ao claro
12 Vejo o que da razão tua deriva.

— “Rogo-te, pois, ó pai beni’no e caro,
Me ensines esse amor, de que descende
15 Todo o mal, todo o bem ao mundo ignaro.” —

— “Volve a mim” — disse — “a luz, que mais se acende
No espírito e há de ser-te bem patente
18 Quanto erra o cego que guiar pretende.

“Alma criada para amar ardente,
A tudo corre, que lhe dá contento,
21 Se despertada do prazer se sente.

“Do que é real o vosso entendimento
Colhe imagens que em modo tal desprega,
24 Que alma pra elas sente atraimento.

“Se alma, enlevada, ao seu pendor se entrega,
Esse efeito é amor, própria natura,
27 Em que o prazer novo liame emprega.

“E, como o fogo se ala para a altura
Por sua forma, que a elevar-se tende
30 Ao foco, onde o elemento seu mais dura,

Assim pelo desejo a alma se acende,
Ação esp’ritual que não se aquieta,
33 Se não consegue a posse, que pretende.

“Vê, pois, que da verdade excede a meta
Quem acredita e aos outros assevera
36 Que todo o amor de si é cousa reta.

“Em gênero talvez se considera
O amor sempre bom; mas todo selo
39 É bom, inda que seja boa a cera?

— “Se, te ouvindo” — tornei — “com mor desvelo
Do que ser pode o amor fico inteirado,
42 Dúvidas hei, que esclarecer anelo.

“Pois que amor é de fora derivado,
Pois que a alma de outra sorte não procede,
45 No bem, no mal o mérito é frustrado.” —

— “Dizer-te posso o que a razão concede” —
Tornou — “do mais a Beatriz somente,
48 Por ser ato de fé, solução pede.

“Forma substancial, não depende
Da matéria, porém com ela unida,
51 Specífica virtude tem latente.

“Só, quando atua, pode ser sentida;
Denúncia do que seja dá no efeito,
54 Como em planta a verdura indica a vida.

“Das primeiras noções onde o conceito
Nasceu? Donde apetites vêm primeiros,
57 A que o homem no mundo está sujeito?

“Como o instinto do mel na abelha, inteiros
Em vós estão, louvor não merecendo,
60 Nem censura também, ínscios obreiros.

“Tudo desses pendores dependendo,
Inata a faculdade é que aconselha,
63 A porta do consenso em guarda tendo.

“Em tal princípio a causa se aparelha,
De que procede em vós merecimento:
66 Repele o mau amor, no bom se espelha.

“Os sábios, estudando o fundamento
Das cousas, vendo inata a liberdade,
69 Da moral vos tem dado o ensinamento.

“E, supondo que por necessidade
Nascesse todo o amor, que vos incende,
72 Tendes para contê-lo potestade.

“Nobre virtude ser Beatriz entende
O livre arbítrio; e, quando lhe falares,
75 A isto mesma a memória atento prende.” —

Como alcanzia a flamejar nos ares,
A lua à meia-noite, já tardia,
78 Escurecia os outros luminares;

E, contra o céu, caminho percorria,
Por onde o sol vai pôr-se, quando a Roma,
81 Entre Sardenha e Córsega, alumia.

Havia a sombra ilustre, por quem toma
A fama Ande à cidade mantuana,
84 Do peso meu aliviado a soma:

Quando eu, que explicação lúcida e plana
Sobre as minhas questões tinha alcançado,
87 Sinto que a mente sonolência empana.

Desse quebranto súbito arrancado
Por turba fui, que, após se encaminhando,
90 A nós vinha com passo acelerado.

E como o Ismeno e Asopo, outrora, em bando,
Correr viam Tebanos ofegantes,
93 Por noite Baco em alta voz cantando,

A multidão, assim, dos caminhantes,
De bom querer e justo amor tocados
96 Pelo círc’lo apressavam-se anelantes.

E, pois, tinham-se em breve apropinquado;
Na carreira chorando afadigosa,
99 Assim gritavam dois mais avançados:

— “Maria corre ao monte pressurosa;
César rende Marselha, e contra Ilerda
102 Rápido voa à Espanha revoltosa. —

— “Pressa; pressa! De tempo já sem perda!
Pouco zelo não haja!” — outros clamaram —
105 “Não refloresce a Graça nalma lerda!” —

— “Vós, em que tais fervores se deparam,
Que talvez negligência ides remindo
108 Dos tempos, que no bem não se empregaram,

“Dizei a um vivo (estais verdade ouvindo),
Que partir-se pretende à nova aurora.
111 Se é perto a entrada, donde vá subindo.”

A voz do Mestre meu desta arte exora.
Dos espíritos um lhe respondia:
114 — “Vem conosco: não longe ela demora.

“Anelo de ir avante nos desvia
De detença: perdoa, por bondade,
117 Se há, cumprindo um dever, descortesia.

“De S. Zeno em Verona fui abade
De Barba-roxa, o bom, sob o reinado
120 De quem Milão se lembra sem saudade.

“Alguém que à sepultura está curvado
Há de em breve chorar esse mosteiro
123 E o poder, com que o tinha dominado;

“Pois, em dano ao pastor seu verdadeiro,
Ao filho mal nascido, o cometera,
126 No corpo horrendo, na maldade useiro.”

Não sei se inda falou, se emudecera,
De nós já velozmente se alongara,
129 Mas ouvi-lo e notá-lo me aprazara.

Então disse-me quem me guia e ampara:
— “Volve-te, atenta nestes dois: correndo
132 Nos lentos mordem com censura amara.” —

— “Avante!” — os dois no couce vêm dizendo —
Os que se abrir o mar viram, morreram,
135 A herança do Jordão não recebendo,

“E os que o filho de Anquises não quiseram
Seguir até seu fim nas árdua jornada
138 Fama e glória por gosto seu perderam.” —

Depois, daquela grei stando afastada
Tanto, que eu divisá-la não podia,
141 De nova idéia a mente foi tomada,

Outras surgindo após de romaria;
E tanto de uma em outra vagueava.
Que pouco a pouco o sono me invadia,

145 E o pensamento em sonho se mudava.

 

76. Alcanzia, bola de barro. — 77. A lua a meia noite, etc., a lua que demorava a surgir até quase meia-noite, com o seu fulgor escurecia as outras estrelas. — 79. E contra o céu etc., corria de ponente para o levante por aquele caminho do Zodíaco no qual está o sol quando o habitante de Roma o vê descer entre a Sardenha e a Córsega. — 83. Ande (depois Pietola) aldeia perto de Mântua, na qual Virgílio nasceu. — 91. Ismeno e Asopo, rios da Beócia. — 100. Maria corre ao monte etc., a Virgem Maria, logo depois do anúncio do nascimento de Jesus, correu a visitar a sua prima Isabel (Evang. S. Lucas I, 39). — 101. César rende etc., Júlio César, com grande celeridade, deixando parte do seu exército no assédio de Marselha, com a outra parte dirige-se para Ilerda. — 118. De S. Zeno em Verona etc., Geraldo, abade de S. Zeno. — 119. Barba-roxa o imperador Frederico I, que em 1162 destruiu a cidade de Milão. — 121. Alguém que à sepultura está curvado etc., o velho Alberto della Scala, que destituiu Geraldo do seu cargo de abade, substituindo-o por um seu filho bastardo que, além de coxo, era malvado. — 134-135. Os que se abrir o mar viram etc., os filhos de Israel que, pela sua preguiça, morreram no deserto, não alcançando a Terra Prometida. — 136. E os que o filho de Anquise etc., os Troianos que não tiveram a coragem de seguir a Enéias (Eneida V, 604).


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...Por turba fui, que, após se caminhando...


 

CANTO XIX

 

No sono, Dante tem uma visão misteriosa. Acordando, conta-a a Virgílio, o qual a explica. Sobem, depois, os Poetas ao quinto compartimento, no qual se purificam os avarentos, debruçados no chão. Entre eles está o papa Adriano V, Ottobuono de Fieschi, que lhe pede que a recomende à sua sobrinha Alagia.

 

CHEGADA essa hora, em que o calor diurno
Não mais da lua a frigidez aquece,
3 Pela terra vencido ou por Saturno,

Quando ao geomante fúlgida aparece
A Fortuna Maior lá no Oriente,
6 Donde rápida a noite se esvaece,

Sonhando vi mulher balbuciente,
Que vesga era nos olhos, nos pés torta,
9 De mãos truncadas e de tez palente.

Eu a encarava; e como o sol conforta
Os membros a que a noite o frio agrava,
12 Ao meu olhar assim a quase morta

Língua movia; o corpo já se alçava,
E no terreno e lívido semblante
15 A cor, que amor estima, se mostrava.

Soltando a voz, há pouco titubante,
Doce canto entoava tão donosa,
18 Que me absorvia o enlevo inebriante.

— “Sereia sou” — cantava — “deleitosa,
Que da rota desvia os mareantes,
21 Tanto prazer lhes movo poderosa.

“Detiveram meus cantos fascinantes
Ulisses vago; e raros me deixaram,
24 A todos prende o som dos meus descantes.” —

Junto a mim, mal seus lábios se fecharam,
Eis se mostrava dama santa e presta:
27 A sereia os seus olhos conturbaram.

— “Dize, ó Virgílio: que mulher é esta?” —
Bradava irosa; e o Vate lhe acorria.
30 Respeitoso ante aquela face honesta.

Dela a dama travava e prosseguia,
Seus véus rasgava, o ventre desnudando:
33 Desperto ao cheiro infando que saía.

Olhos abri. Virgílio, me falando:
— “Três vezes te chamei” — disse — “eia! asinha
36 Vamos, o passo onde entres, procurando.” —

Ergui-me logo. Alumiados tinha
O dia os círculos todos do alto monte;
39 Pelas costas surgindo o sol nos vinha.

Após o Mestre se me inclina a fronte,
Como a quem, de cuidados oprimido,
42 Curva a cerviz, semelha arco de ponte,

— “Aqui se passa: vinde!” — proferido
Foi por voz tão suave, tão beni’na,
45 Que não fora igual som na terra ouvido.

Da rocha entre os dois muros nos desi’na
Quem falara, o caminho, asas abrindo,
48 Que tem do cisne a alvura purpurina.

Depois as níveas plumas sacudindo,
— “Os que choram” — bradou — “são venturosos
51 De consolo a esperança possuindo!” —

— “Por que os olhos no chão fitas cuidosos?” —
O Mestre perguntou, depois que alçou-se
54 Voando o anjo aos ares luminosos.

— “Em recente visão, Senhor, mostrou-se
Imagem” — respondi — “que tanto instiga
57 Que inda a sua impressão não mitigou-se.” —

— “A mágica” — me disse — “viste antiga,
Que lá mais alto tanta dor motiva?
60 Como o homem viste dela se desliga?

“Não mais! Avante segue, o alento aviva!
Olhos volve ao reclamo, com que gira
63 Do Rei Eterno cada esfera altiva.” —

Como faz o falcão, que os pés remira,
Depois ao grito acode e, acelerado,
66 Contra a ralé, que avista, ao ar se atira:

Assim eu; e por onde era cortado,
Para trânsito dar ao monte erguido,
69 Corri té outro círculo, apressado.

Tendo ao círculo quinto já subido,
Jazer vi turba inúmera em lamento:
72 Para baixo era o rosto seu volvido.

Adhaesit anima mea pavimento” —
Com tanta dor diziam suspirando,
75 Que da voz mal caí no entendimento.

— “Dizei, de Deus eleitos, que, penando,
Colheis alívio na justiça e esp’rança,
78 Por onde ao cimo iremos caminhando.” —

— “Se a nossa punição não vos alcança
E mais pronta quereis ter a subida,
81 À direita e por fora que se avança.” —

Do meu Guia a pergunta respondida
Foi por uma alma, que adiante estava:
84 Ser outra idéia eu cri nisso escondida.

Então, olhos voltando, interrogava
Virgílio, que aprovou com ledo gesto
87 O desejo, que o rosto denotava.

Da permissão do Mestre usando presto,
Daquele ente acerquei-me doloroso,
90 Que se fez por palavras manifesto.

— “Tu, que, expiando as culpas lacrimoso,
Apressas de te erguer à glória o dia,
93 Por mim pára em teu pranto fervoroso.

“Quem foste? Por que assim jazeis?” — dizia
“No mundo, donde venho vivo, impetre
96 Por teu bem querer cousa da valia?” —

— “Convém que o teu espírito penetre
Desta pena a razão; porém primeiro
99 Scias quod ego fui sucessor Petri.

“Do meu solar o título altaneiro
Origem teve nesse rio belo,
102 Que entre Chiaveri e Siestre flui ligeiro

“Em pouco mais de um mês vi que desvelo
Custa guardar o grande manto puro:
105 Todo outro fardo é pluma em paralelo.

“Quanto — ai de mim! — de converter fui duro!
Mas, apenas Pastor em Roma eleito,
108 Eu soube quanto mente o mundo impuro.

“Não gozou paz, nem quietação meu peito;
Mais alto já subir se não pudera:
111 Então da vida eterna ardi no afeito.

“Minha alma, triste e mísera, perdera
De Deus o amor em sórdida avareza:
114 Esta pena, que vês, bem merecera

“De tal pecado mostra-se a graveza
Aqui pelo castigo, em que se expia:
117 No monte outro não há de mor asp’reza.

“Como ao céu nossa vista não se erguia,
Nas cousas terreais embevecida,
120 Assim justiça à terra a prende e lia.

“Como a avareza em nós tinha extinguida
A propensão ao bem, aos santos feitos,
123 Assim nos tem justiça a ação tolhida.

“Pés e mãos ata em vínculos estreitos:
Enquanto a Deus prouver, nós, estendidos,
126 Imóveis estaremos nesses leitos.” —

De joelhos e de olhos abatidos
Quis falar-lhe; mas ele, conhecendo
129 Esse meu ato só pelos ouvidos,

— “Por que te curvas?” — me atalhou dizendo.
— “Em reverência à vossa dignidade:
132 Cumpro um dever dessa arte procedendo.” —

— “Ergue-te, irmão! Não erres! Em verdade,
Eu como tu, e o universo inteiro
135 A lei seguimos de uma só vontade.

“Do Evangelho o sentido verdadeiro
Que disse — neque nubente — se entendeste,
138 Verás o meu pensar quanto é certeiro.

“Vai-te agora, demais te detiveste.
Saudável pranto empece a tua estada:
141 Perdão apressam lágrimas, disseste.

“Sobrinha tenho, Alagia foi chamada:
É boa, se da raça tão funesta
Não pervertê-la a tradição danada.

145 Somente esta no mundo ora me resta.” —

 

1. Essa hora etc., a manhã, pouco antes do alvorecer. — 5. A Fortuna maior, uma das combinações que os geomantes desenhavam para adivinhar a sorte e que se parecia à constelação do Aquário e, em parte, à dos Peixes. — 7. Mulher balbuciente etc., símbolo dos vícios. — 19-26. Dama Santa, símbolo da prudência e das virtudes — Sereia — metade mulher e metade peixe. — 62. Reclamo, instrumento com o qual o caçador atrai as aves. — 73. Adhaesit anima mea pavimento, a minha alma esteve pregada ao chão (às coisas materiais), Salmo C XIX, 25. — 99. Scias quod ego fui sucessor Petri, saibas que fui sucessor de Pedro. É o espírito do papa Adriano V, Ottobuono dei Fieschi, conde de Lavagna. — 137. Neque nubent, palavras de Jesus aos saduceus; no Céu não há núpcias. Com essa expressão Adriano V quer que Dante entenda que ele não deve mais considerá-lo esposo ou chefe da Igreja. — 142. Alagia dei Fieschi, casada com Moroello Malaspína.


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Scias quod ego fui sucessor Petri


 

CANTO XX

 

Os dois poetas ouvem uma alma recordar exemplos de pobreza honesta e da generosidade benfazeja. É Hugo Capeto, fundador da casa dos reis da França, o qual censura asperamente os seus descendentes. Ouve-se, no entanto, tremer o monte e cantar “Gloria in excelsis Deo.”

 

EM luta, o bem querer ao mau se alteia.
Por contentar essa alma, eu, descontente,
3 Da água tirei a esponja, inda cheia.

Sigo os passos do guia diligente,
Do monte à extrema borda caminhando,
6 Como em muro entre ameias, cautamente.

O espaço mais largo enchia o bando,
Que a avareza, do mundo atroz imiga,
9 Expurga, pranto em fio derramando.

Maldita sempre seja, Loba antiga,
Mais do que as outras feras cobiçosas!
12 Jamais a fome tua se mitiga!

Ó céu, cuja carreira portentosa
As condições se crê reger da vida,
15 Quando virá quem lance a besta ascosa?

A passo lento e escasso era a subida,
Atento eu indo à turba, que exprimia
18 Por carpir lamentoso a dor sentida.

Eis ante nós dizer: — “Doce Maria!” —
Uma voz escutei no amargo pranto,
21 Qual mulher que no parto a dor crucia.

Acrescentou: — “Bem pobre foste e tanto,
Que à luz trouxeste lá no humilde hospício
24 Do seio virginal o fruto santo.” —

E logo após ainda: — “Ó bom Fabrício,
Com virtude antes pobre ser quiseste
27 Do que a opulência possuir com vício.” —

De tal prazer meu coração se veste
Ouvindo, que avançava pressuroso
30 Por que ao perto, maior atenção preste.

Também contava esse ato generoso,
Que em prol das virgens Nicolau fizera
33 Para guardar-lhes puro o estado honroso.

— “Alma, que tão bem falas, diz sincera,
Quem foste?” — lhe disse eu — “Por que somente
36 A tua voz a virtude aqui venera?

“Se eu à vida tornar, que brevemente
Levar-me deve ao suspirado porto,
39 Em te ser grato ficarei contente.” —

E ele: — “Falarei, não por conforto
Lá do mundo esperar, mas porque tanta
42 Graça refulge em ti antes de morto.

“Estirpe fui dessa maligna planta
Que o solo esteriliza à cristandade:
45 Se frutos bons produz, fato é que espanta.

“A vingança, se houvessem faculdade,
Lilla, Bruges, Conai, Grandja tomaram;
48 Férvido a peço à Suma Potestade.

“Na terra Hugo Capeto me chamaram:
Dos Filipes fui tronco e dos Luíses,
51 Que novamente a França dominaram.

“Foi meu pai carniceiro. Os infelizes
Antigos Reis progênie não deixando,
54 Exceto um monge, às minhas mãos felizes,

“Parar daquele reino veio o mando.
Tanto prestígio tinha, tal pujança
57 Dos povos na vontade fui ganhando,

“Que a c’roa o meu querer cingir alcança
Do filho meu à fronte, em que começa
60 A prole ungida desses Reis de França.

“O provençal grã dote havendo, cessa
Na raça minha a prístina vergonha:
63 Somenos, mas aos bons não fora avessa.

“Rapinas pela força e ardis, que sonha
Começando, invadiu por penitência
66 Pontois, Normandia com Gasconha.

“Carlos, Itália entrando, em penitência
Vitimou Conradino; e triunfante
69 Ao céu mandou Tomás, por penitência.

“Em tempo, do presente não distante,
Inda outro Carlos vir de França vejo
72 E fama a si e aos seus dar mais sonante.

“Sai sem armas; traz só naquele ensejo
Lança de Judas, que a Florença aponta:
75 Rasga-lhe o peito, como é seu desejo.

“Terás não terras, mas pecado e afronta,
Que se lhe há de tornar tanto mais grave,
78 Quanto ele a tem de pouco preço em conta.

“Outro, que preso sai da própria nave,
Vejo a filha vender, como fizera
81 Aos escravos pirata: ó pai suave!

“Avareza! o que mais de ti se espera,
Se o meu sangue a tal raiva hás arrastado,
84 Que te deu sua carne em pasto, ó fera?

“Para o mal igualar, porvir, passado,
Entrando Alagni flor-de-lis se ostenta,
87 E Cristo em seu Vigário é cativado.

“Injúrias vejo novas que exp’rimenta,
Fel, vinagre sorver o vejo ainda
90 E entre vivos ladrões ter morte lenta.

“Vejo o novo Pilatos, que, não finda
A sanha sua, sem decreto assalta
93 O Templo aceso na cobiça infinda.

“Senhor meu! Pois que excesso nenhum falta,
Quando ante a punição serei ditoso,
96 Que oculta, o teu juízo adoça e exalta?

“Quanto ao que me inquiriste curioso,
As palavras, que, há pouco, eu dirigia
99 Do Spírito Santo à Esposa fervoroso,

“São nossas orações enquanto é dia.
Mas contrários exemplos invocamos,
102 Quando a sombra da noite principia.

“Então Pigmalião nós recordamos
Que foi traidor, ladrão e parricida
105 A sua sede de ouro condenamos.

“E a miserável condição de Mida,
Do rogo seu estulto resultado,
108 Sempre do mundo inteiro escarnecida.

“De Acam o louco feito é memorado.
Que os despojos roubara, e ainda a ira
111 De Josué receia amendrontado.

“Com seu marido acusa-se Safira
E louva-se o mau fim de Heliodoro.
114 Por todo o monte imenso brado gira

“Contra o que tirou vida a Polidoro.
— Dize do ouro o sabor, Crasso avarento! —
117 Também clamamos todo nós em coro.

“Qual murmura, qual grita em seu lamento,
Segundo o afeto que o estimula e agita,
120 Segundo é fraco ou forte o sentimento.

“Eu único não era, pois, que em grita
O bem, que ao dia é próprio ia dizendo:
123 Não alçava outro perto a voz bendita.” —

Essa alma já deixáramos, fazendo
Esforço por vencer a altura ingente,
126 Que adiante se estava oferecendo,

Eis tremer sinto o monte de repente.
O coração no peito se me esfria,
129 Qual réu, que à morte arrasta-se palente.

Delos, por certo, assim não se movia,
Quando por ninho a preferiu Latona,
132 Que os dois olhos do céu parir queria.

De toda parte um brado então ressona
Tanto, que o Mestre, para mim voltando,
135 — “Não há risco” — me diz — “teu Guia o abona!”

Gloria in excelsis Deo — era entoado,
Quanto a voz perceber foi permitido
138 Do ponto, a que o rumor me foi levado.

Quedos, como os pastores tendo ouvido
À vez primeira outrora aquele canto,
141 Ficamos té findar moto e soído.

Depois seguimos no caminho santo,
Vendo as almas prostradas sobre a terra,
144 Sempre a verter o costumado pranto.

E se a memória nisto em mim não erra,
Jamais desejo, que a ignorância acende,
147 Na mente me excitara tanta guerra,

Quanto naquele instante em mim contende.
Nem pela pressa, eu perguntar ousava,
Nem o que ouvia o espírito compreende.

151 Tímido assim e pensativo andava.

 

10. Loba antiga, a avareza. — 23. Humilde hospício, a gruta de Belém, onde nasceu Jesus. — 25. Bom Fabrício, C. Fabrício, general romano, que recusou o dinheiro que o inimigo de Roma lhe oferecia. — 32. Nicolau, S. Nicolau, bispo de Mira, que dotou várias jovens pobres. — 43. Estirpe fui, Hugo Capeto, fundador da dinastia dos de França. — 52. Foi meu pai, etc. Segundo a tradição, Hugo Capeto, filho de um carniceiro, desposou a filha do último rei carlovíngio. — 61. O provençal, Carlos I de Anjou por casamento herdou a Provença. — 67. Carlos, Itália entrando, Carlos I de Anjou, conquistou o reino de Nápoles, mandou matar a Conradino de Suábia e, segundo uma tradição, fez envenenar a S. Tomás de Aquino, quando este se dirigia para o concilio de Lião. — 71. Outro Carlos, de Valois, que foi a Florença em veste de pacificador e expulsou os Brancos, entre os quais Dante. — 86. Entrando Alagni etc., o papa Bonifácio VIII, em 1303, por ordem de Filipe o Belo, foi aprisionado em Alagni. — 103. Pigmalião, matou a traição seu tio Siqueu para roubá-lo. — 106. Mida, rei mitológico, recebeu a faculdade de transformar em ouro tudo o que tocava, morreu de fome. — 109. Acam, guerreiro israelita, depois da conquista de Jericó, desobedecendo às ordens de Josué, escondeu o que saqueou e foi condenado à morte. — 112. Safira e seu marido Ananias, querendo roubar o dinheiro pertencente à comunidade cristã, foram fulminados. — 113. Heliodoro, entrara no templo de Jerusalém para roubar, mas foi expulso por um cavalo a patadas. — 115. O que tirou a vida a Polidoro, Polinestor, rei da Trácia matou a Polidoro, filho de Príamo, para roubá-lo. — 116. Crasso, romano, homem muito rico e avarento. — 130. Delos, ilha do mar Egeu. Segundo a mitologia, era instável, antes que nela se estabelecesse Latona, que deu à luz Apolo e Diana. — 136. Glória in excelsis Deo, é o canto dos anjos na noite em que nasceu Jesus.


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...a avareza, do mundo atroz imiga...


 

CANTO XXI

 

Enquanto os dois Poetas continuam no seu caminho, uma alma se aproxima deles. É o poeta latino Estácio, o qual explica que o abalo do monte que se deu pouco antes foi o sinal de que, purificado dos seus pecados, ele pode subir ao Céu. Sabendo que está falando com Virgílio, Estácio demonstra-lhe o seu afeto.

 

A SEDE natural, que não sacia
Senão a água, que, súplice, implorava
3 Ao senhor a mulher de Samaria,

Molestando-me, os passos me apressava
Após meu Guia na impedida estrada,
6 E do justo castigo o dó me entrava.

Eis, como escreve Lucas na sagrada
História que Jesus aparecera,
9 Ressurgido, aos dois sócios na jornada,

Uma sombra surgiu; trás nós viera.
Andando aquela turba contemplava:
12 Dela fé nem o Mestre, nem eu dera.

— “Deus vos dê paz, irmãos!” — assim falava.
Voltamo-nos de súbito, e Virgílio,
15 Cortês no gesto, a saudação tornava

Logo dizendo: — “Do feliz concílio
Te receba na paz a santa corte,
18 Que a mim me desterrou no eterno exílio!”

— “Como andais” — respondeu — “com passo forte.
Se Deus no céu vos não permite a entrada?
21 Quem vos conduz na altura desta sorte?” —

— “Os sinais de que a fronte está marcada
Deste homem por um anjo” — diz meu Guia —
24 “To mostram di’no da eternal morada,

“Mas, como aquela, que, incessante fia,
Não lhe havia inda a estriga consumido,
27 Que impõe Cloto ao que a vida principia,

“Subir só não teria ao céu podido
A sua alma, irmã tua, como é minha,
30 Pois não há, como nós, ver conseguido.

“Do inferno às fauces fui tirado asinha
Para guiá-lo, e o guiarei contente
33 No que do meu saber não passe a linha.

“Se puderes, me diz, por que o eminente
Monte, há pouco, tremeu, e desde a c’roa
36 À base retumbou clamor ingente.” —

A pergunta ao desejo tão boa soa,
Que ouvi-la a sede ardente me alivia,
39 Somente uma esperança mitigou-a.

— “Quanto hás notado” — a sombra respondia —
“Em nada os ritos da montanha altera:
42 De estranheza motivo não seria.

“Mudança aqui supor se não pudera:
Subindo ao céu quem pertencer-lhe deve,
45 A causa dá-se que esse efeito opera.

“Nunca saraiva, chuva, orvalho ou neve
Nesta montanha cai, passando a altura
48 Dos três degraus que estão na escada breve.

“Aqui não vê-se nuvem clara ou escura,
Relâmpago não luz, nem de Taumante
51 Mostra-se a filha, que tão pouco dura.

“Jamais daqueles três degraus avante,
Em que de Pedro o sucessor domina,
54 Seco vapor se eleva um só instante.

“Tremor talvez a sua base inclina;
Mas não atua no alto oculto vento,
57 Que não sei como dentro se amotina.

“Quando já de estar puro o sentimento
Uma alma tem e se ala ao céu, que a chama,
60 Segue o tremor e o grito ao movimento.

“Seu querer a pureza lhe proclama,
Prova que tem de alçar-se a liberdade
63 Por força do desejo, em que se inflama.

“Antes o tem; mas contra essa vontade
A divina justiça ardor lhe inspira
66 Por pena, como o teve por maldade.

“Eu que em martírio decorridos vira
Anos quinhentos, à melhor morada,
69 Momentos poucos há, pus livre a mira.

“Eis do tremor a causa declarada!
Do Senhor eis por que, louvor cantando,
72 Rogou cada alma em breve ser chamada!” —

Calou-se. E como, a tanto mais gozando
Está quem bebe, quanto é mor a sede,
75 Indizível prazer tive escutando.

— “Vejo” — disse Virgílio — “agora a rede,
Que vos prende e depois dá liberdade,
78 Donde o tremor e o júbilo procede.

“Explicar-me te praza ainda, em verdade,
Quem tu foste e a razão por que hás jazido
81 Séc’los tantos em tanta asperidade.” —

— “No tempo em que o bom Tito, protegido
Por Deus, vingou as chagas que verteram
84 Sangue, por Judas” — replicou — “vendido,

“Na terra o nobre título me deram,
Que mais honra perdura, e fui famoso:
87 Inda os lumes da fé me não vieram.

“Dos meus cantos o som foi tão donoso,
Que de Tolosa a si me atraiu Roma:
90 C’roas me deu de mirto glorioso.

“De Estácio o nome ainda o tempo doma;
Tebas cantei e Aquiles esforçado:
93 Este das forças me exauriu a soma.

“Do vivo ardor, que a mente me há tomado,
Na flama divinal a causa estava,
96 Que em milhares de engenhos há brilhado.

“Mãe e nutriz a Eneida me alentava;
Estro bebi caudal no seio puro;
99 Quanto vali da Eneida derivava.

“Para viver no tempo (te asseguro)
Em que existiu Virgílio, mais um ano
102 Passara no, que deixo, exílio duro.” —

Estas vozes ouvindo, o Mantuano
Olhou-me. — Cala-te! — sem falar dizia;
105 Mas a vontade está sujeita a engano.

Ou no pranto ou no riso se anuncia
Tão rápida a paixão, quando se acende,
108 Que o querer nos sinceros prende e lia.

Sorri-me, como que sagaz, compreende.
Calou-se o esp’rito; e me encarava atento
111 Nos olhos onde a mente mais se entende.

— “Sejas” — disse — “feliz no excelso intento!
Explica-me, porém, por que em teu rosto
114 Lampejar vi sorriso de momento.” —

Entre os extremos dois estava eu posto:
Um diz — silêncio! — outro a falar me instiga.
117 Suspiro, e o Mestre atenta em meu desgosto.

Responde, que ao silêncio nada obriga,
“Fique” — disse — “a verdade bem patente,
120 O que anela saber ele consiga.” —

— “Maravilha causou provavelmente” —
Tornei-lhe — “antigo espírito, o meu riso;
123 Maior será me ouvindo, certamente.

“Virgílio é quem me guia ao Paraíso:
Para deuses e heróis cantar tiveste
126 Por ele o esforço que lhe foi preciso.

“Se outra causa em meu riso supuseste,
Te enganaste: o motivo declarado
129 Nas palavras está que lhe disseste.” —

Quer os pés abraçar do Mestre amado,
E o Mestre: — “Irmão, que fazes?” — lhe dizia —
132 “Vê que és sombra e de sombra estás ao lado!”

Erguendo-se ele: — “Tanto me extasia
O amor” — disse — “em que por ti me acendo,
Que da nossa vaidade me esquecia,

136 Tratar sombras, quais corpos, pretendendo.” —

 

2-3. Água que suplica etc., a água simbólica que a Samaritana pediu a Jesus, isto é, a verdade. — 7. Como escreve Lucas, Evang. XXIV, 13-15. — 25. Aquela que, incessante fia etc., Laquesis não fiara ainda todo o fio que Cloto ajuntou e que representa o decorrer da vida dos homens. — 48. Dos três degraus, onde está a porta do Purgatório. — 50. De Taumante a filha, Íris, mensageira de Juno, foi transformada em arco-íris. — 53. O sucessor de Pedro, o anjo. — 82-83. O Bom Tito, vingou as chagas etc., Tito, destruindo Jerusalém, vingou a morte de Jesus Cristo. — 91. Estácio, o poeta latino Papinio Estácio, autor de “Tebaida”, morto no ano 96, d.C.


 

CANTO XXII

 

Subindo ao sexto compartimento, Estácio diz a Virgílio que, não pelo pecado da avareza, mas pela sua prodigalidade, teve de ficar muito tempo no quinto compartimento; e, por não ter declarado publicamente a sua conversão ao cristianismo, precisou ficar muito tempo no quarto compartimento. Virgílio o informa a respeito de muitos ilustres personagens da antigüidade que estão no Limbo. Chegando os Poetas no sexto compartimento, encontram uma árvore cheia de pomos perfumados, da qual saem vozes que louvam a virtude da temperança.

 

O ANJO atrás já tínhamos deixado,
Que para o sexto círc’lo nos guiava,
3 Um P na fronte havendo-me apagado.

E à turba, que a justiça desejava,
Tinha dito Beati docemente
6 Com sitio e, após tais vozes, se calava.

Mais que em toda a jornada antecedente
Eu, ligeiro, seguia sem fadiga
9 Os Vates, que subiam velozmente.

— “Aquele amor, com que virtude instiga,
Reproduz” — disse o Mestre — “a própria chama
12 Mostras de si apenas dar consiga.

“Dês que, da vida terminada a trama,
Do inferno ao limbo, Juvenal descendo,
15 Saber me fez o afeto, que te inflama,

“Tão vivo bem-querer sabe te rendo,
Quanto haver pode a incógnita pessoa,
18 Contigo ora suave andar me sendo.

“Mas dize (e como amigo me perdoa,
Se em falar há nímia confiança
21 E em prática amigável arrazoa):

“Como avareza fez em ti liança
Com ciência, que o estudo te alcançava
24 E em que punhas cuidados e esperança?”

Às palavras do Mestre pronto estava
Estácio, e lhe sorrindo: — “O que me hás dito
27 Penhor caro é de afeto” — lhe tornava.

“Muitas vezes da dúvida o conflito
Por aparência errônea é suscitado,
30 Até que a exata causa surja ao esp’rito.

“Fica em tua pergunta declarado
Creres que eu fora avaro noutra vida,
33 Por ser no círc’lo a avaros destinado.

“Pois sabe que a avareza repelida
Por mim foi nimiamente, e a demasia
36 De luas em milhares foi punida.

“Minha alma eterno fardo volveria,
Se atenção tanta em mim não despertasse
39 A indi’nação, que nos teus versos via,

“Quando lançaste dos mortais à face:
— “A que extremos impeles os humanos,
42 Fome de ouro sacrílega e rapace!” —

“Então do excesso em despender, os danos
Aprender pude, agro pesar sentindo
45 Desse pecado e de outros tantos insanos.

“Chorarão, tosquiados ressurgindo,
Quantos não têm sabido à penitência
48 Dar-se em vida ou sua hora extrema em vindo!

“Cada culpa e a que tem contrária essência
Aqui a pena dão conjuntamente,
51 No martírio expurgando a virulência.

“Estive entre essa turba penitente,
Que o desvario chora da avareza
54 Por ter sido no oposto renitente.” —

— “Quando cantaste de armas a crueza,
Que duplamente molestou Jocasta” —
57 Disse o cantor da pastoril simpleza —

“Pois que de Clio então o ardor te arrasta,
Inda o fervor da fé não te incendia,
60 E o bem sem fé para salvar não basta:

“Que sol, que estrela, em treva tão sombria
Te aclarou e dessa arte alçar pudeste
63 Velas após o pescador, que se ia?” —

— “Primeiro” — disse Estácio — “tu me deste
Do Parnaso a beber na doce fonte
66 E de Deus santa luz ver me fizeste.

“Hás sido, como à noite o guia insonte,
Que leva a luz, mas o seu bem não prova,
69 E aqueles serve, de quem vai na fronte,

“Quando disseste — “O séc’lo se renova,
Volta a justiça, volta a idade de ouro,
72 E progênie do céu descende nova.” —

“Por ti ganhei a fé, de vate o louro:
Isto deve, porém, ser-te explicado;
75 Dê ao desenho a cor de claro o foro,

“Já stava o mundo inteiro alumiado
Da vera crença que do reino eterno
78 Os mensageiros tinham propagado.

“O vaticínio teu, Mestre superno,
Aos predicantes novos se adatava;
81 Por isso, os freqüentando, o bem discerne.

“Tanto a virtude sua me enlevava,
Que, quando os perseguiu Domiciano,
84 Ao pranto seu meu pranto acompanhava.

“Enquanto estiver no viver humano,
Dei-lhes socorro e o seu exemplo austero
87 Ódio inspirou-me às seitas do erro insano.

“Antes já de cantar o cerco fero
De Tebas no batismo renascera:
90 Mas, de medo, ocultei meu crer sincero.

“Gentio largo tempo eu parecera;
Por isso hei tantos séc’los padecido
93 No círc’lo quarto; a pena merecera.

“Tu a quem devo, pois, ter conseguido
O véu rasgar, que tanto bem cobria.
96 Pois que tempo em subir é concedido,

“Onde Terêncio diz-me ora estancia?
Onde está Plauto Varro com Cecílio?
99 À qual parte do inferno a culpa os lia?” —

— “Aqueles, Pérsio e eu” — tornou Virgílio —
E os outros mais o Grego acompanhamos
102 Predileto das Musas; lá no exílio

“Do círculo primeiro demoramos
Vezes freqüentes do famoso monte,
105 Das Camenas assento praticamos.

“Eurípede é conosco e Anacreonte,
Simônide, Agaton e outros inda
108 Gregos, que cingem de laurel a fronte.

“Stão heroínas, que cantaste: a linda
Antígone, Deifile com Argia,
112 Ismênia, em quem tristeza nunca finda;

“Vê-se também a que mostrou Langia,
Tétis se vê e de Tirésia a filha,
114 E das irmãs Deidama em companhia” —

Os dois, da poesia maravilha,
Calaram-se, ao que os cerca atentos stando,
117 Vencida sendo da subida a trilha.

Das ancilas do dia atrás ficando
A quarta, logo a quinta se jungia
120 Ao carro ardente, ao alto o encaminhando,

“Quando o Mestre — “Eu suponho” — nos dizia
“Que nós à destra caminhar devemos,
123 Volteando, como antes se fazia.” —

Desta arte na exp’riência a mestra havemos,
E no andar prosseguimos confiados,
126 Porque de Estácio o assenso recebemos.

Iam diante os Vates afamados,
E eu logo após, nas vozes escutando
129 Arcanos da poesia sublimados,

Eis rompe esse colóquio doce e brando
Uma árvore, que à estrada em meio achamos:
132 Lindos pomos na fronde estão cheirando.

Vão para cima decrescendo os ramos
De abeto; estes descendo diminuem:
135 Para alguém não subir — acreditamos.

Límpidos jorros do penedo ruem
Da parte, em que a montanha a entrada mura;
138 Sobre as folhas em rocio as gotas fluem.

Estácio com Virgílio se apressura
Para essa árvore, quando voz, da fronde,
141 Gritou: — “Não gozareis desta doçura!

“Maria (e o seu desejo não se esconde)
Atende mais das bodas à grandeza
144 Que ao seu gosto; e por vós ora responde.

“Das Romanas à antiga singeleza
Água bastava; e Daniel ciência
147 Logrou, tendo em desprezo a régia mesa.

“Chamou-se de ouro a idade da inocência;
Fez as glandes a fome saborosas;
150 Água em néctar tornou da sede a ardência.

“Ao Batista iguarias bem gostosas
Mel, gafanhotos foram no deserto:
Assim fez grandes obras gloriosas,

154 “Como pelo Evangelho ficou certo.” —

 

5-6. Beati etc., S. Mateus V, 6: “Beati qui esurient et sitium justitiam.” — 14. Juvenal, poeta satírico latino. — 56. Jocasta, mãe de Eteocles e Polinices, irmãos inimigos que originaram a guerra de Tebas. — 58. Clio, musa da história. — 63. O pescador, S. Pedro. — 83. Domiciano, imperador romano que reinou do ano 81 ao 96. d.C. — 97-100. Terêncio, Plauto, Varro, Cecilio, Pérsio, poetas latinos. — 101-102. O grego... predileto das Musas, Homero.— 106-107. Euripedes, Simônides, Anacreonte, Agaton, poetas gregos. — 110. Antígone, filha de Édipo, rei de Tebas; Deifile, esposa de Tideo; Argia, esposa de Polinice. — 111. Ismênia, filha de Édipo. — 112. A que mostrou Langia, Isifiles, que mostrou o rio Langia às tropas sedentas de Adrastro. — 113. Tétís, mãe de Aquiles; de Tirésia a filha, Dafne. — 114. Deidama, filha do rei Licomedes. — 142-144. Maria etc., a mãe de Jesus para honrar a festa dos noivos de Caná, pediu ao filho que transformasse a água em vinho. — 146-147. Daniel etc., o profeta Daniel que adquiriu sabedoria pela sua abstinência.


 

CANTO XXIII

 

No sexto compartimento estão as almas dos gulosos. Elas são atormentadas pela fome e pela sede; Dante descreve a sua horrível magreza. O Poeta reconhece o seu parente Forense Donati, o qual louva a sua viúva, Nella, e repreende a impudicícia das mulheres florentinas.

 

FITAVA os olhos sobre a rama verde,
Qual caçador, que após um passarinho,
3 Correndo, parte da existência perde.

Quando o que me era mais que pai: — “Filhinho,
O tempo” — disse — “que nos está marcado,
6 Quer mais útil emprego. Eia! a caminho!” —

Voltando o rosto, a passo acelerado
Os sábios sigo e, atento ao que falavam,
9 Não me sentia, andando, fatigado.

Plangentes vozes súbito entoavam
Labia, Domine, mea por maneira,
12 Que piedade e prazer me provocaram.

— “Do que ouço”— disse então — “ó Pai, me inteira.”—
— “Almas” — tornou — “talvez que o meio tentam,
15 Que o peso à sua dívida aligeira.” —

Peregrinos solícitos que atentam
Só na jornada, achando estranha gente,
18 Vontam-se apenas, mas o passo alentam:

Tal após nós vem turba diligente;
Em devoto silêncio se acercava;
21 Olhou-nos e afastou-se prestamente.

Os olhos encovados nos mostrava,
Pálida a face e o rosto descarnado,
24 Sobre os ossos a pele se estirava.

Não creio que Erisicton devastado
Tanto da fome horrível estivesse
27 Quando das forças viu-se abandonado.

Eu cogitava: — “O povo aqui padece,
Que Solima perdeu, quando Maria
30 Carnes comeu ao filho, que perece.” —

Cad’olho anel sem pedra parecia:
O que na humana face lesse “omo
33 Bem claro o M aqui distinguiria.

Quem crer pudera, não sabendo como,
Efeito de desejo ser, nascido
36 Do frescor de água, junto a odor de pomo?

Atônito inquiria o que haja sido
De tal fome a razão, não manifesta,
39 Que tal magreza tenha produzido,

Eis lá da profundez da sua testa
Uma alma olhos volvia e me encarava,
42 Gritando: — “Mereci graça como esta?” —

Quem fora o gesto seu não me indicava;
Mas tive pela voz prova segura
45 Do que o aspecto seu não revelava.

Foi súbito clarão em noite escura,
Do rosto avivou traços deformados
48 Forese conheci nessa figura.

— “Ai! não fiquem teus olhos assombrados”
— Dizia — “a lepra ao ver que me descora,
51 E estes ossos mesquinhos, descarnados!

“Dize a verdade de ti próprio agora:
De quais almas te vejo companheiro?
54 Não haja, rogo, em responder demora.” —

— “Como outrora é meu dó tão verdadeiro,
Vendo-te o vulto que chorei já morto,
57 Tão dif’rente do que era de primeiro,

“Dize, por Deus, por que és tão sem conforto:
Tolhe-me a fala a vista, que me espanta;
60 Responder-te não posso, em mágoa absorto.” —

— “De tal poder” — tornou — “essa água e planta
Sabedoria eterna tem dotado,
63 Que consumação em mim produziu tanta.

“Os que o rosto, cantando, têm banhado
De pranto, havendo entregue à gula a vida,
66 Sobem, na fome e sede, o santo estado.

“A fome, a sede sente-se incendida
Dos pomos pelo aroma e por frescura
69 Das águas, sobre as ramas espargida.

“Cada vez que giramos na fragura,
Revive nossa pena e mais agrava;
72 Erro chamando pena o que é doçura.

“Esse desejo ardente de nós trava,
Que fez Cristo dizer — Eli! contente,
75 Quando o sangue em prol nosso na Cruz dava.” —

— “Forese” — hei respondido incontinênti —
“Dês que deixaste a terreal morada
78 Passaram-se anos cinco escassamente;

“Se a força de pecar stava esgotada
Antes de vir da dor bendita a hora,
81 Em que alma é com seu Deus conciliada,

“Como te vejo nesta altura agora?
Lá embaixo encontrar-te acreditara,
84 Onde o tempo com tempo se melhora.” —

— “Conduziu-me tão cedo Nela cara,
Por pranto, que incessante há derramado,
87 Do martírio a tragar doçura amara.

“De orações e suspiros sufragado
Assim, me alcei da encosta, onde se espera,
90 E fui dos outros círc’los resgatado.

“Tanto mais Deus com dileção esmera
Aquela, que extremoso amei na terra,
93 Quanto, só, em virtude ela é sincera.

“Pois a Barbagia de Sardenha encerra
Mulheres por pudor bem mais notadas,
96 Que a Barbagia, onde o vício acende guerra.

“Queres tu, doce irmão, manifestadas
Idéias minhas? Pouco dista o dia
99 Das vozes nesta prática empregadas,

“Em que proíba o púlpito a ousadia
Das impudentes damas florentinas,
102 Que têm, mostrando os seios, ufania.

“Morais ou quaisquer outras disciplinas
Hão mister para andarem bem cobertas
105 As mulheres pagãs ou marroquinas?

“Mas, se tais despejadas foram certas
Do castigo, que está-lhes iminente,
108 Bocas teriam para urrar abertas.

“E, se, antevendo, não me engana a mente,
Grande angústia hão de ter antes que nasça
111 Barba ao que em berço embala-se inocente.

“Ah! de dizer quem sejas faz-me a graça!
Não por mim; mas a turba atenta mira
114 Teu corpo e a sombra, que com ele passa.” —

— “Se agora à mente” — eu disse — “te surgira
O que outrora um pra o outro havemos sido,
117 Desprazer inda agudo te pungira.

“Há pouco, me há do mundo conduzido
Quem me precede; havia então rotunda
120 A irmã do que vês aparecido.” —

E o sol mostrei — “Por noite a mais profunda
Dos verdadeiros mortos me há guiado,
123 Quando a carne inda os ossos me circunda.

“Tenho depois, por ele confortado,
Desta montanha pelos círc’los vindo,
126 Que em vós corrige o que trazeis errado.

“Quanto disse, acompanha-me, cumprindo
Té onde a Beatriz veja o semblante:
129 Então sem ele avante irei seguindo.

“Ei-lo! É Virgílio o guia meu constante!
É aquele outro a sombra venturosa
Por quem o vosso reino, vacilante,

133 Tremeu, quando partiu-se jubilosa.” —

 

11. Labia mea etc., verso 17 do Salmo 50: “Abre-me os lábios, ó Senhor, e a minha boca te louvará.” — 25. Erisiton, tendo injuriado a Geres foi punido com fome insaciável. — 28-29. O povo aqui padece çue Solima perdeu etc., o povo de Jerusalém sofreu tanto a fome, que, segundo o historiador hebreu Flavio José, uma mulher chamada Maria comeu o seu próprio filho. — 32. O que na humana face lesse “omo“, na face humana está escrita a palavra “omo“ (homem), os olhos representando os dois o e o nariz com as sobrancelhas o m. — 48. Forese Donati, parente de Dante, morto em 1296. — 74. Cristo dizer: Eli!, Cristo crucificado, pouco antes de morrer, disse: “Eli, Eli, lamma sabactani”, isto é: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?”


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Forese conheci nessa figura.


 

CANTO XXIV

 

Forese mostra a Dante outras almas de gulosos, entre as quais a de Bonagiunta de Lucca, que prediz ao Poeta que se enamorará de uma mulher da sua cidade, e lhe louva o estilo da poesia. Procedendo, os Poetas encontram outra árvore e ouvem outros exemplos de intemperança castigada.

 

NÃO era o passo e o praticar mais lento
Um do que outro; igualmente prosseguiam,
3 Qual nau servida por galerno vento.

As sombras, que duas vezes pareciam
Mortas, nos cavos olhos grande espanto,
6 De estar eu vivo certas, exprimiam.

Eu, a falar continuando, entanto,
Disse: — “Conosco para ir retarda
9 Sua ascensão essa alma ao reino santo.

Mas, rogo-te declara: onde é Picarda?
Afamada por feitos há pessoa
12 Entre a gente, que sôfrega me esguarda?” —

— “Tanto era minha irmã gentil e boa
Que não sei qual foi mais: triunfa leda
15 No Olimpo, onde alcançou formosa c’roa.

“Nomes dizer de mortos não se veda
Aqui” — Forese torna; e logo ajunta: —
18 “Tanto a fome as feições nossas depreda!”

“Este que vês de Lucca é Bonagiunta;
E aquela alma (seu dedo ia apontando),
21 Mais que todas desfeita, que lhe é junta,

“Foi Tours; já na Igreja exerceu mando.
Stá, por jejuns, anguilas de Bolsena,
24 Ver na ceia, afogadas, expurgando.” —

Muitos mais nomeou, que sofrem pena;
E todos demonstravam star contentes
27 De ouvir dizer Forese o que os condena.

Em vão de fome vi mover os dentes
Ubaldino de Pila e Bonifaço,
30 Que regeu com seu bago muitas gentes.

Misser Marchese vi, que largo espaço
Com menos sede em Forli consumia.
33 Em beber; mas julgava-o inda escasso.

Mas, como o que repara e que aprecia
Escolhendo, ao de Lucca eu me inclinava,
36 Porque mais conhecer-me parecia.

Submissa voz da boca lhe soava,
Causa do mal, que trouxe-lhe o castigo:
39 “Gentucca” ou não sei que pronunciava.

— “Ó alma” — disse — “que falar comigo
Queres, ao claro te explicar procura:
42 Satisfeita serás como contigo.

— “Mulher nasceu, mas inda é virgem pura,
Por quem” — torna — “hás de amar minha cidade,
45 Posto assunto haja sido de censura.

“Este prenúncio levas da verdade;
Se por meu murmurar te hás enganado,
48 Trazer-te há de o porvir à claridade,

“Se vejo aquele diz, que à luz há dado
Versos novos, que assim têm seu começo:
51 Damas que haveis de amor na mente entrado.

— “Que vês em mim” — lhe respondi — “confesso
Quem screve o que somente Amor lhe inspira:
54 O que em meu peito diz falando expresso.

“O óbice ora vejo que eu não vira
Que ao Notário a Guittone a mim tolhia
57 O doce estilo da moderna lira.

“As vossas plumas vejo que à porfia
Seguem de perto o inspirador potente;
60 Tanto alcançar às nossas não cabia.

“Quem, por mais agradar, mais alto a mente
Erguer que, não discerne um do outro estilo.”
63 Disse e calou-se de o dizer contente.

Como aves, que no inverno o noto asilo
Buscando ora num bando incorporadas,
66 Ora em fila apressadas vão-se ao Nilo,

Essas almas assim já demoradas,
Volvendo o rosto rápidas fugiram,
69 Da magreza e vontade auxiliadas.

Como aquele a quem forças se esvaíram
Correndo afrouxa os passos para o alento
72 Cobrar, em quanto os sócios se retiram;

Forese assim que a passo andava lento
Deixou passar a santa grei dizendo:
75 — “Quando de ver-te inda terei contento?” —

— “Quanto haja de viver” — fui respondendo —
“Não sei; por menos que me dure a vida
78 Mais ao seu termo os meus desejos tendo.

“Que onde foi a existência concedida
Mais escassa a virtude é cada dia:
81 Ruína espera triste e desmedida.

— “O que mor culpa tem” — me retorquia —
“À cauda de um corcel vejo arrastado
84 Ao vale, onde o pecado não se expia:

“Vai sempre, sempre mais acelerado
Aquele bruto na carreira fera:
87 Fica vilmente o corpo lacerado.

“Não há de girar muito cada espera
(Para o céu se voltava) antes que seja
90 Claro o que te explicar eu não pudera.

“Adeus, porém: quem neste reino esteja
Ao tempo dê seu preço verdadeiro;
93 O que eu perco ao teu lado já sobeja.”

Como a campanha deixa um cavaleiro,
A galope veloz se arremessando,
96 Por ter na liça as honras de primeiro:

Forese assim de nós foi-se alongando.
Fiquei dos dois espíritos ao lado,
99 Que o mundo está por mestres proclamando.

Quando em distância tanta era apartado,
Que as vistas nesse andar o acompanharam,
102 Como a mente ao que havia revelado.

Eis perto aos olhos meus, que se voltaram,
De outra árvore de pomos carregada
105 Os ramos vicejantes se mostraram.

As mãos alçava multidão cerrada
À fronde em brados; turba semelhava
108 De infantes, por desejos vãos turbada,

Um objeto implorando a quem negava,
E que o mostrando ainda mais acende
111 Desejo, que a cobiça lhes agrava.

Foi-se, porém, porque ninguém a atende.
Da grande árvore então nos acercamos,
114 Que a todo o rogo e pranto desatende.

Uma voz de entre as folhas escutamos:
— “Ide-vos logo; não chegueis ao perto!
117 Eva o fruto há mordido de outros ramos:

“Stão longe estes de lá provêm de certo.” —
Então de lado os passos dirigimos,
120 Unidos no caminho, que era aberto.

— “Lembrai esses malditos” — inda ouvimos —
“Filhos das nuvens, duplos na figura,
123 Que atacaram Teseus, ébrios cadimos;

“E os que em beber acharam tal doçura,
Que os não quis Gedeão na companhia,
126 A Madiã marchando lá da altura.”

Por junto à borda o passo se volvia,
E as penas escutamos dos pecados
129 Mortais, que outrora a gula cometia.

Já pela estrada solitária entrados,
Demos mais de mil passos inda avante,
132 Contemplando, em silêncio mergulhados.

— “Em que cismais vós outros?” — retumbante
Soou voz. — Fiquei logo em sobressalto
135 Como o corcel de medo titubante.

Para ver levantei a fronte ao alto:
Aos olhos, dera em fusão, no forno ardente,
138 Vidro ou metal não dera igual assalto,

Como o anjo que eu vi resplendecente.
Dizia: — “A volta dai para a subida!
141 Quem quer paz para aqui vai certamente.” —

Daquele aspecto a vista foi tolhida:
Como quem pelo ouvido os passos guia,
144 Fui caminhando, aos Vates em seguida.

E qual aura de maio, que anuncia
A alvorada, das flores espalhando
147 E das ervas o aroma, que extasia,

Tal sobre a fronte um sopro senti brando,
Senti mover-se a pluma: então rescende
150 Odor celeste, o olfato me enlevando

Dizer senti: — “Feliz o que se acende
Na Graça o que, da gula desligado,
Ao sabor do apetite não se prende,

154 Comendo quanto é justo sem pecado!” —

 

10. Picarda, irmã de Forese Donati. — 19. Bonagiunta degli Orbicciani, poeta contemporâneo de Dante. — 22. Tours, o papa Martinho IV, que foi cônego da catedral de Tours. — 29. Ubaldino de Pila, de nobre família pisana. — Bonifaço, Bonifazio dei Fieschi, arcebispo de Ravenna. — 31. Messer Marchese de Rigogliosi, gentil-homem de Forli. — 39-43 Gentucca, senhora de Lucca, que Dante amou, quando em 1314 esteve em Lucca na casa do seu amigo Uguccione della Faggiuola. — 51. Damas etc., primeiro verso de uma canção de Dante em louvor de Beatriz. — 56. O notário, Jacopo de Lentini. — Guittone de Arezzo. — 82. O que mor culpa tem, Corso Donati, irmão de Forese, chefe do partido dos Pretos, foi assassinado em 1308. — 121-123. Esses malditos... filhos das nuvens etc., os Centauros, que foram mortos por Teseu quando tentavam raptar Ipodamia. — 124-126. Os que não quis Gedeão etc., os soldados hebreus que Gedeão, seguindo os conselhos de Deus, não quis por companheiros, porque beberam avidamente, ajoelhando-se na fonte.


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Em vão de fome vi mover os dentes...


 

CANTO XXV

 

Subindo por estreita senda, do sexto ao sétimo e último compartimento, Dante pergunta a Virgílio como podem emagrecer as almas, que não precisam de alimento. Respondem-lhe Virgílio, antes, e depois Estácio. Este fala da geração do corpo do homem, da alma que nele Deus infunde, e da maneira de existência depois da morte. O compartimento no qual acabam de chegar está cheio de flamas, nas quais estão se purificando as almas dos luxuriosos.

 

PARA subir o tempo nos urgia;
Meridiano ao Tauro o sol já dera,
3 Bem como a noite ao Scorpião cedia

Qual viajor, que o passo não modera,
Que em nada atenta e sempre segue avante,
6 Se em seu querer necessidade impera,

Nós penetramos no rochedo hiante,
Por escada estreitíssima subindo,
9 Que obriga um ir atrás outro adiante.

Da cegonha o filhinho, asas abrindo,
Por voar logo, encolhe-as e não tenta
12 Deixar o ninho, esforço não sentindo:

Tal o desejo em mim ferve e arrefenta
De perguntar chegando quase ao ato
15 De quem para dizer se experimenta.

O Mestre, sem parar, pressente o fato:
— “Tens da palavra o arco” — diz — “tendido,
18 Deixa a seta partir; não sê coato“. —

De confiança então já possuído,
Falei, — “Como é possível fique magro
21 Quem não precisa mais de ser nutrido?” —

— “Se recordaras” — torna — “Meleagro
Que, em ardendo um tição se consumia
24 Isso não fora de entender tão agro.

“Também de fácil crença te seria,
Se no espelho notaras que o teu rosto,
27 Segundo te movesses, se movia.

“Por dissipar-se a dúvida ao teu gosto,
Eis Estácio, a quem rogo fervoroso
30 Seja a dar-te o remédio bem disposto.” —

— “Se eu o eterno conselho explicar ouso”
— Disse Estácio — “quando és, Mestre, presente,
33 Ao teu querer me curvo respeitoso.

“Se, filho, o que eu disser guardas na mente,
Hás de ter — prosseguiu — “esclarecidas
36 Essas dúvidas tuas prontamente.

“Sangue puro, que as veias ressequidas
Não bebem, que de parte permanece
39 Quais viandas em mesas bem providas,

“Do coração tomou que lhe oferece
Virtude de que a forma aos membros veio,
42 Como o que às veias por fazê-los desce;

“Ainda, elaborado, desce ao seio
De canal que não digo; após, unido
45 Em vaso é natural com sangue alheio.

“É ali com outro confundido,
Paciente sendo um, sendo outro ativo,
48 Pela perfeita sede, em que há nascido.

“Trabalho então começa produtivo
Coagulando e depois vivificando
51 O condensado efeito primitivo:

“Em alma a força ativa se tornando,
Como em planta, é, no entanto, diferente:
54 Pára a planta, vai a alma caminhando.

“Prosseguindo, já move-se, já sente,
Como o fungo marinho; e logo emprende
57 Os sentidos, que em si tem qual semente.

“Ora contrai-se, filho, ora se estende
A força genetriz, do peito vinda,
60 Donde natura em todo o corpo entende.

“Mas, filho meu, não sabes certo ainda
Como a ser vem um ente cogitante:
63 É ponto em que um mais sábio no erro finda;

“Pois, na doutrina sua extravagante,
Distinto da alma fez o entendimento
66 Possível, não lhe vendo órgão bastante.

“Abre à luz da verdade o pensamento:
Vê que, no feto os órgãos em chegando
69 Do cérebro ao perfeito acabamento,

“O Primeiro Motor, ledo encarando
Da natureza tal primor, lhe inspira ,
72 Esp’rito, em que virtudes stão brilhando,

“E que ativo alimento dali tira
Para a própria substância; e alma se forma,
75 Que vive e sente e pensa e em si regira.

“Com meu dizer tua mente se conforma,
Notando que do sol calor em vinho,
78 Da uva ao sumo unido, se transforma.

“O esp’rito, se Laquésis não tem linho,
Deixa a carne e virtude, traz consigo
81 Dotes, que teve no corpóreo ninho.

“Sobem de ponto no valor antigo
A memória, a vontade, o entendimento,
84 Da mudez o mais fica no jazigo.

“Cai logo, de espontâneo movimento,
Por maravilha, numa ou noutra riba,
87 Onde há do rumo seu conhecimento.

“Vindo a lugar, que o circunscreva e iniba,
Da força informativa é rodeado,
90 Como em membros que a morte nos derriba.

“Bem como o ar de chuva carregado,
Se dos raios solares é ferido,
93 De cores várias mostra-se adornado,

“O ar vizinho assim fica inserido
Nessa forma, que desde logo amanha
96 Virtualmente o esp’rito ali contido;

“E semelhante ao fogo, que acompanha
Labareda, com ele se movendo,
99 Cada alma segue aquela forma estranha.

“Aparência de forma nela havendo
Sombra se chama; e, após, ela organiza
102 Sentidos, o da vista compreendendo.

“Fala, ri-se, ama, odeia ou simpatiza,
Exala dor, carpindo ou suspirando:
105 Neste monte já tens prova precisa.

“Segundo está sofrendo ou desejando,
Da alma também altera-se a figura:
108 Vê, pois, o que a magreza está causando.” —

Voltando à mão direita, da tortura
Entramos pela estância derradeira:
111 Então preocupou-nos outra cura.

Flamas brotava aqui a ribanceira,
Aura ativa da estrada respirava:
114 Subindo, as rechaçava subranceira.

Ao longe da árdua borda caminhava
Um por um: precipício temoroso
117 De um lado, e do outro o fogo eu receava.

Disse Virgílio: — “Aqui bem cauteloso
Deve aplicar aos olhos seus o freio
120 Quem não quiser dar passo perigoso.” —

Summae clementiae Deus stavam no seio
Do grande incêndio as almas entoando,
123 E de voltar-me o ardor então me veio.

Vi nas chamas espíritos andando:
Aos movimentos seus, aos meus estava
126 Atento, a vista a uns e a outros dando.

E quando aquele cântico findava
Virum non cognosco alto se ouvia,
129 E o cântico em tom baixo renovava.

E, terminando, o coro repetia:
“Diana expulsa da floresta Helice
132 Que o veneno de amor tragado havia.” —

Cantaram; cada qual como antes disse
Esposas e maridos, que hão guardado
135 A fé, que Deus mandou sempre os unisse:

Este modo há de ser, creio, alternado,
Enquanto os rodear a chama ardente:
A chaga por tal bálsamo e cuidado

139 Há de ser guarnecida finalmente.

 

2-3. Meridiano ao Touro, etc. No hemisfério do Purgatório eram duas horas da tarde e no hemisfério antípoda eram duas horas depois da meia-noite. — 22. Meleagro, personagem de Ovídio ao qual, ao nascer, as fadas predisseram que a sua vida estava ligada a um tição. Sua mãe Altéia guardou o tição para preservar-lhe a vida; mas, depois, irada contra o filho, o lançou ao fogo no qual se consumiu, e Meleagro morreu. — 37-57. Nestes tercetos é descrita a forma da geração humana. — 63. Um mais sábio, o filósofo Averroes que não encontrando no homem um órgão especial para o pensamento, como os olhos para ver, as orelhas para ouvir etc., concluiu que o intelecto era disjunto da alma do homem. — 70. O Primeiro Motor, Deus. — 79. Laquesis, a Parca que fia o estame da vida. — 121. Summae Deus clementiae, hino eclesiástico com o qual se roga a Deus que nos livre da luxúria. — 128. Virum non cognosco, palavras da Virgem Maria ao arcanjo Gabriel. — 131. Helice, ou Calixto, que foi expulsa da sua companhia por Diana, que sempre se manteve virgem, por ter sido seduzida por Júpiter.


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Vi nas chamas espíritos andando...


 

CANTO XXVI

 

Entre os luxuriosos e os que pecaram contra a natureza Dante encontra o poeta Guido Guinicelli, ao qual exprime a sua profunda admiração. Guido lhe aponta o poeta provençal Arnaud Daniel, que o saúda em versos provençais.

 

ENQUANTO imos a borda costeando.
Um após outro, o Mestre repetia:
3 “Eu te previno, vai com tento andando!’

O sol pela direita me feria;
Purpureava a luz todo o poente:
6 Do céu o azul de branco se tingia.

Co’a sombra minha ainda mais rubente
Parece a flama; e as almas, que passavam,
9 Notando-a davam-me atenção ingente.

Nessa estianheza ensejo deparavam
Para, entre si, conversação travarem.
12 “Não é fictício o corpo seu” — falavam.

Quando podiam, mas tendo cuidado
Avançavam por mais certificarem,
15 O fogo expiatório em não deixarem.

— “Tu, que vais após outros colocado,
Mostrando ser, não tardo, respeitoso,
18 Responde: em fogo e sede ardo, abrasado.

“Não sou eu só de ouvir-te desejoso:
Quantos vês da resposta sentem sede
21 Mais que Etíope da água cobiçoso.

“Diz-nos como o corpo teu parede
Oponha desta sorte à luz do dia:
24 Não te colheu da morte acaso a rede?” —

Uma sombra falou-me. Eu pretendia
Logo explicar; porém fui distraído
27 Pelo que então de novo aparecia.

Pelo caminho andando escandecido,
Outra grei ao encontro veio desta:
30 Atalhei-me, em mirar pondo o sentido.

De parte a parte se dirige presta
Uma alma a outra; osculam-se e em seguida
33 Vão-se, contentes dessa breve festa.

Assim da negra legião saída,
Em marcha, toca em uma outra formiga,
36 Por saber do caminho ou sorte havida.

Separando-se após a mostra amiga,
Antes que o giro sólito transcorra
39 Cada uma grei em brados se afadiga.

— “Sodoma!” — clama a última — “Gomorra!”
E a outra: — “Entrou Pasifae na vaca,
42 Por que à luxúria sua touro acorra.” —

Como grous, de que um bando se destaca
Para os Rifeus e o outro pra o deserto,
45 Pois calma ali e frio aqui se aplaca,

Uns se vão, outros vêm; voltando, ao perto
O hino se renova, e o pranto e o brado,
48 Que tem, qual mais convém, efeito certo.

Os mesmos, que me haviam perguntado,
De mim como inda há pouco, se acercaram:
51 Stá desejo nos gestos desenhado.

Vendo ainda o que já manifestaram,
— “Sabeis vós, que tereis de glória em dia,
54 Paz que os vossos martírios vos preparam,

“Que inda não jaz meu corpo em terra fria;
Comigo vem na própria compostura,
57 Com seu sangue e seus membros” — lhe dizia.

“Minha cegueira aqui a luz procura:
Lá no céu santa Dama há conseguido
60 Que eu, vivo, por aqui me eleve à altura.

“Dizei-me (e seja em breve concedido)
Quanto anelais, no céu, que é de amor cheio
63 E em que espaço mais amplo está contido!

“Para que eu tenha de narrá-lo o meio,
Quem fostes e também que turba é aquela,
66 Que como hei visto ao vosso encontro veio.” —

Se o pasmo seu o montanhês revela,
Quando rude e boçal vê de repente
69 Quanto pode encerrar cidade bela,

Na grei não foi o efeito diferente.
Tornando sobre si, porém, do espanto,
72 Que se esvai logo em peito preminente,

— “Ditoso tu, que vendo o nosso pranto” —
Respondeu quem primeiro há perguntado —
75 “Alcanças ao viver ensino santo!

“Inquinaram-se aqueles no pecado,
Porque César outrora, triunfando,
78 Rainha, em vitupério, foi chamado.

“Eis por que se acusavam se apartando,
Contra si de — Sodoma! alçando o brado,
81 Do fogo à pena o opróbrio acrescentando.

“Hermafrodito foi nosso pecado;
Mas tendo as leis humanas transgredido
84 De brutos no apetite desregrado,

“Por nossa injúria o nome é repetido,
Quando partimos, da mulher impura,
87 Que em bestial figura besta há sido.

“Se queres, vendo a nossa nódoa escura,
Do nome de cada um ser instruído,
90 Não sei, nem tempo para tal nos dura.

“Mas o meu te farei bem conhecido;
Vês Guido Guinicelli: o crime expia
93 Por se haver inda a tempo arrependido.” —

Quais, ante a fúria em que Licurgo ardia,
Os filhos dois achando a mãe, ficaram,
96 Tal senti, sem correr viva alegria,

Quando o nome essas vozes declararam
Do pai meu e do pai de outros melhores,
99 Que em doce metro amores decantaram.

Sem falar, sem ouvir perscrutadores
Longamente olhos meus o contemplaram:
102 Vedavam-me acercar do fogo ardores.

Depois que em remirá-lo se enlevaram,
Ao seu serviço declarei-me presto,
105 E solenes promessas o afirmaram.

— “Imprimiu tal vestígio o teu protesto” —
Tornou — “no peito meu agradecido,
108 Que fora além do Letes manifesto.

“Se hei de ti a verdade agora ouvido,
O que di’no me fez do sentimento,
111 Que tens na voz, nos olhos insculpidos?” —

E eu: — “Das rimas vossas o concento,
Que, enquanto usar-se do falar moderno,
114 Salvas hão de viver do esquecimento.” —

— “O que te indico, irmão” — tornou-me terno
(E seu dedo outra sombra me apontava)
117 Mais primor teve no falar materno.

“Nos versos, nos romances superava
A todos: stultos só dizer ousaram
120 Que o Limosim aquele avantajava.

“Pelo rumor verdade desprezaram,
E, como arte e razão desconheceram,
123 Sem fundamento opinião formaram.

“Assim muitos outrora procederam
Com Guittone e o seu nome hão proclamado;
126 Mas verdade alfim todos conheceram.

“E pois que o privilégio hás alcançado
De entrar nesse mosteiro portentoso,
129 Por Cristo, como abade governado,

“Um Pater Noster diz por mim piedoso;
Quanto mister havemos neste mundo,
132 Onde ato algum não há pecaminoso.” —

“Por dar lugar ao spírito segundo,
Já próximo, no fogo desparece.
135 Qual peixe, quando imerge de água ao fundo.

Acerquei-me da sombra que aparece,
E disse que ao seu nome apercebia
138 Meu desejo o lugar que assaz merece.

Logo assim livremente me dizia:
— “Tão cortês vosso rogo é, que escutando,
141 Me encobrir não quisera ou poderia.

“Arnaldo sou, que choro e vou cantando,
Triste os erros passados meus lamento,
144 E o fausto dia estou ledo esperando.

“E peço-vos pelo alto valimento,
Que da escada a eminência ora vos guia,
Que em tempo vos lembreis do meu tormento.”

148 E, após, ao fogo apurador se envia.

 

40. Sodoma... Gomorra, V. Inferno, canto XI, 50; cidades que Deus destruiu por pecarem contra a natureza. — 41. Pasifae, V. Inferno, canto XII, 13; mulher do rei de Creta, para unir-se com um touro se colocou numa vaca de madeira; e desta união nasceu o Minotauro. — 44. Rifeus, montanhas da Moscóvia boreal. — 77. César... rainha, em vitupério, foi chamado, conta Suetônio que os soldados de César, no triunfo que lhe foi concedido por ter vencido os Galos, cantavam: “César submeteu as Gálias, Nicomedes a César”, aludindo às suas relações com o rei Nicomedes. — 92. Guido Guinicelli, célebre poeta bolonhês n. em 1230 e m. em 1276. — 94-95. Quais, ante a fúria etc., Ipsifile condenada à morte por Licurgo, rei da Neméida, mas foi salva pelos dois filhos que, antes, não a conheciam. — 115. O que te indico etc., o trovador Arnaud Daniel, que viveu na metade do século XII. — 120. O limosim, Gerault de Berneil de Limonges, outro trovador provençal. — 125. Guittone de Arezzo, poeta aretino do sécuio XII.


 

CANTO XXVII

 

Para chegar à escada que do sétimo e último compartimento leva ao cimo do monte, Dante é obrigado por um Anjo a atravessar as flamas. Pouco depois de ter começado a subir, o ar escurece e sobrevém a noite. Param e Dante, cansado, adormece. Despertado pela madrugada, os Poetas recomeçam a subir, chegando ao Paraíso Terrestre.

 

COMO, quando os primeiros raios vibra
Lá onde Cristo sangue derramara,
3 Sotopondo-se o Ebro à excelsa Libra,

E, ao meio-dia, o Gange aquece e aclara
Stava o sol; declinando a luz já se ia:
6 Eis ledo o anjo de Deus se nos depara.

Fora da flama, à borda ele se erguia,
Beati mundo corde modulando.
9 Em tom de voz, que a humana precedia.

“Para avante passar” — acrescentando —
“Apurai-vos no fogo, almas piedosas!
12 Entrai, de além nos hinos atentando.”

Lhe ouvindo ao perto as vozes sonorosas,
Sossobrei, como quem, perdido o alento,
15 Da tumba às trevas desce pavorosas.

Mãos cruzadas, quedei sem movimento;
De olhos na chama, os vivos relembrava,
18 Que das fogueiras vira no tormento.

A mim cada um dos Vates se voltava.
— “Não temas, filho! Aqui dor se padece,
21 Mas não morte” — Virgílio me exortava.

“Lembra! Lembra ou memória em ti falece?
Já sobre Gerião levei-te a salvo:
24 De Deus mais perto, em mim virtude cresce.

“Se destas chamas, crê, tu foras alvo
Em todo o espaço de um milheiro de anos,
27 De um só cabelo ficarias calvo.

“Se cuidas no que digo haver enganos,
Te acerca e por ti próprio experimenta,
30 Ao fogo expondo de tua veste os panos.

“Todo o temor do ânimo afugenta!
Vem, pois! Mostra que tens peito seguro!” —
33 Ouvi, mas o valor meu não se aumenta.

Vendo-me ainda pertinace e duro,
Merencório me disse: — “Ó filho amado,
36 De Beatriz a ti só este muro!” —

De Tisbe ao nome, Píramo chegado
À morte, os olhos para vê-la abria,
39 Quando há seu sangue à amora cor mudado;

A resistência minha assim cedia.
A Virgílio volvi-me, o nome ouvindo,
42 Que sempre o pensamento me alumia.

Então a fronte meneou; sorrindo,
Como a infante, que um pomo há seduzido,
45 Disse: — “Aqui ficaremos persistindo?” —

Sou por ele no fogo antecedido;
Estácio, que antes sempre caminhara,
48 Depois de mim seguia a seu pedido.

Eu pelo fogo apenas penetrara,
Ardor tanto senti, que, pra recreio,
51 Em vidro derretido me lançara.

De confortar-me procurando o meio,
De Beatriz Virgílio assim falava:
54 — “Seu gesto julgo ver de fulgor cheio.” —

Voz peregrina ouvi, que ali cantava:
Fora saímos nós, dos sons guiados,
57 Na parte, onde a subida se mostrava.

— “Vinde, ó vós de meu Pai abençoado!” —-
Do seio de um luzeiro retinia,
60 Tal que os olhos cerram-se ofuscados.

“Transmonta o sol, a noite segue ao dia,
Não vos detende; a passo andai ligeiro,
63 Que o Ponente já trevas anuncia.” —

A trilha no penhasco sobranceiro
Direita sobe à parte em que tolhia
66 A sombra minha o lume derradeiro.

Vencido apenas nosso passo havia
Alguns degraus, a sombra, que fenece,
69 Mostra que o sol já luz não difundia.

Antes que em todo apresentado houvesse
O imenso horizonte igual aspeito,
72 E a noite os seus véus todos estendesse,

Um degrau cada qual tomou por leito;
Que nos tirara da montanha a agrura,
75 Mais que o desejo de subir o jeito.

Como as cabras das penhas sobre a altura,
Antes de fartas, rápidas e ardentes,
78 Têm, ruminando, mansidão, brandura;

Pousam à sombra, enquanto o sol candentes
Lumes despede, e as guarda o pegureiro
81 Com seu cajado e os olhos previdentes;

E como o guardador, que no terreiro
Quedo pernoita em sentinela aos gados
84 Contra assaltos do lobo carniceiro:

Assim nós três estávamos pousados,
Eu como cabra, os Vates quais pastores,
87 Da rocha a um lado e a outro conchegados.

Escassa aberta deixa ver fulgores
De estrelas, que do céu naquela parte,
90 Contemplava mais lúcidas, maiores.

Nessa vista engolfei-me por tal arte,
Que o sono me prendeu, sono que à mente
93 Do que há de ser a provisão comparte.

Naquela hora em que Vênus do Oriente
Seus lumes sobre o monte difundia,
96 Parecendo de amor star sempre ardente,

Jovem formosa em sonho ver eu cria,
Dama que em veiga amena passeando,
99 Flores colhendo, a modular dizia:

— “Quem meu nome pedir, vá me escutando:
Sou Lia e uma grinalda, cuidadosa,
102 Co’as minhas belas mãos a tecer ando.

“Mirar-me, hei-de no espelho mais garbosa:
De sua mana, Raquel se não separa,
105 Sentada o inteiro dia descuidosa.

“De ver os belos olhos seus não pára,
Como eu em me adornar sou diligente:
108 Ela contempla, eu trabalhar tornara!”

Já vem do dia o precursor splendente,
Que tanto alenta a esp’rança ao peregrino,
111 Quando o seu lar já próximo pressente.

Fugia a treva ao lume matutino
— E com ela o meu sono: ergui-me ativo,
114 Dos mestres tendo no exemplo o ensino.

— “O pomo, que é tão doce, quanto esquivo,
Que a ambição dos mortais procura ansiosa,
117 Hoje à fome há de dar-te o lenitivo.” —

Estas palavras proferiu donosa
Do Mestre a voz: janeiras não dariam
120 Jamais satisfação tão graciosa.

Tão vividos anelos me pungiam
De alar-me ao cimo excelso, que julgava
123 Que asas o passo meu favoreciam.

Quando a comprida escada terminava
E o pé firmamos no degrau superno,
126 Virgílio, me encarando, assim falava:

— “O fogo temporário e o fogo eterno
Tens visto, filho, e a altura hás atingido.
129 Além de cuja extrema não discerno:

“Te hei com engenho e arte conduzido:
Seja-te agora o teu querer o guia;
132 Angústias e fraguras tens vencido.

“Olha: o semblante o sol já te alumia;
Flores, ervinhas, árvores virentes
135 Vê que a terra espontânea brota e cria.

“Antes que os olhos venham refulgentes,
Que em teu prol me enviaram por seu pranto,
138 Repousa, ou pelos prados vai florentes.

“Não mais te falo, nem te aceno, entanto;
Possuis vontade livre, reta e boa,
Cumpre os ditames seus: a ti, portanto,

142 Pois de ti és senhor, dou mitra e c’roa.

 

1-5. Como, quando os primeiros raios etc. O sol surgia em Jerusalém; na Espanha era meia-noite. No Purgatório o sol tramontava. — 8. Beati etc., bem-aventurados os limpos de coração porque eles verão a Deus (S. Mateus, Evang. V, 8). — 23. Gerião etc., v. Inf XVII. — 101. Lia, filha de Labão e primeira mulher de Jacó, símbolo da vida ativa. — 104. Raquel, irmã de Lia e segunda mulher de Jacó, símbolo da vida contemplativa.


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Sou Lia e uma grinalda cuidadosa...


 

CANTO XXVIII

 

O Poeta descreve a beleza do Paraíso Terrestre. Chegam Dante, Virgílio e Estácio perto de um rio que os impede de prosseguir. Do outro lado do rio aparece uma mulher de maravilhosa beleza que discorre a respeito da condição do lugar, resolvendo as dúvidas que Dante lhe propõe.

 

VAGAR já nos recessos desejando
Da selva divinal, vivida espessa,
3 Que ao novo dia o lume faz mais brando,

Daquela encosta a me afastar dou pressa.
Pela veiga me interno a passo lento,
6 Doce aroma sentindo, que não cessa.

Do ar, que circulava, o doce alento,
Mas sempre igual, a fronte me afagando,
9 Tinha o bafejo de suave vento.

As folhas, molemente balouçando,
Do santo monte à parte se inclinavam,
12 A que a sombra primeira vai baixando.

Mas, no meneio seu, não se acurvavam
Em modo, que na rama aos passarinhos
15 Os hinos perturbassem, que entoavam.

Pousados ledamente entre os raminhos
Saudavam com seus cantos a alvorada
18 Da fronde os acordando aos murmurinhos;

Assim de Chiassi no pinhal soada
De ramo em ramo corre quando a amara
21 Prisão, abre ao mestre Eolo a entrada.

Com demorado andar eu caminhara
Na selva antiga tanto, que não via
24 Mais o lugar, por onde penetrara.

Eis andar um ribeiro me tolhia,
Que, à sestra deslizando-se, beijava
27 A ervinha, que às margens lhe crescia:

O cristal dessa linfa superava
Da terra água a mais pura e transparente;
30 Quanto continha em si patente estava.

Entanto, pela sombra permanente,
Que luz da lua ou sol nunca atravessa,
33 Negreja aquela plácida corrente.

O pé detenho, e a vista se arremessa
Além do humilde rio, contemplando
36 Primores, com que maio se adereça,

Então se of’rece aos olhos, como quando
De súbito um portento surge à mente,
39 De outro pensar qualquer a desviando,

Uma dama sozinha de repente,
Que, cantando, escolhia, de entre as flores,
42 Que o chão cobriam de matiz ridente.

— “Bela dama, que sentes os fervores
Do amor divino, se por teu semblante
45 Da tua alma julgar devo os ardores” —

Assim falei — “se caminhar avante
Até perto do rio te aprouvera,
48 Te entendera esse canto inebriante.

“Tão linda, em tal lugar, lembras qual era
Prosérpina, ao perdê-la a mãe querida
51 E ao perder também ela a primavera.” —

Qual menina, que em danças entretida,
Gira ligeira em terra deslizando,
54 Os passos troca e volve-se garrida,

Sobre o esmalte das flores se voltando,
A mim se dirigiu, como donzela
57 Que vai, modesta, os olhos abaixando.

Quanto o desejo meu sôfrego anela
Acercou-se e da angélica toada
60 Distinta pude ouvir a letra bela.

Logo em chegando à borda em que banhada
A erva era da linfa cristalina,
63 De olhar-me fez a graça assinalada.

Não creio que na vista peregrina
De Vênus lume tal resplandecesse
66 Ao feri-la de amor seta mali’na.

De fronte aos olhos a sorrir se of’rece.
As mãos de lindas flores tendo plenas,
69 De que espontâneo o solo se guarnece.

A nós três passos interpõem apenas:
O Helesponto que Xerxes transcendera,
72 Lição em que há para os soberbos penas,

Em Leandro mais ódio não movera,
Quando entre Sesto e Ábidos nadava,
75 Do que o rio que tanto estorvo me era.

— “Sois recém-vindos” — ela assim falava —
“Meu riso ao ver-vos no lugar eleito
78 À humana raça, quando à luz brotava,

“Talvez vos maravilhe por suspeito.
Se lembrado o salmo Delectasti,
81 De todo o engano vos será desfeito.

“Tu, que estás adiante e me falaste
Que mais ouvir desejas? Eis-me presta
84 Explicação a dar-te, quanto baste.” —

— “Esta água” — torno — “e o som desta floresta
Opõem-se à minha fé na maravilha.
87 Que eu tinha ouvido e que é contrária a esta.” —

— “Eu te direi a causa, de que é filha
A razão que te move essa estranheza;
90 Terás, em vez de névoa, a luz que brilha.

“O Bem, que em si somente se embeleza,
Apto ao bem fez o home’; em arras deu-lhe
93 De eterna paz à edênica riqueza.

“A culpa sua este alto dom tolheu-lhe;
A culpa sua em prantos, em desgostos
96 Os prazeres, os risos converteu-lhe.

“A fim de que efeitos, que, compostos
São de eflúvios das águas e da terra,
99 Para o calor acompanhar dispostos,

“Ao homem não fizessem qualquer guerra,
Tão alta há se elevado esta montanha,
102 Que é livre desde o ponto onde se encerra.

“E porque todo o ar, por força manha,
Roda ao impulso do motor primeiro,
105 Quando estorvo nenhum seu giro acanha,

“Este cimo elevado e sobranceiro
Pelo éter vivo ao moto é tão batido,
108 Que o denso bosque remurmura inteiro:

“E sendo em cada um tronco percutido,
A virtude transmite fecundamente
111 Ao ar, que a esparge, em torno revolvido.

“A terra, como é apta, circunstante
Por si ou por seu céu plantas concebe
114 De gênero e virtude variante.

“E pois, já claramente se percebe
Como planta há viçosa e florescente,
117 Quando o germe a terra não recebe.

“Sabe que até jardim toda semente
Do que a terra produz em si compreende
120 E contém fruto inoto à humana gente.

“Esta água de uma origem não depende,
Que alimente vapor que em chuva desça,
123 Como rio que seca ou que se estende.

“De fonte certa vem que nunca cessa,
Pois por querer que Deus tanta dimana,
126 Quanta aqui por canais dois se arremessa.

“A que neste álveo que ora vês, se encana
Memória do pecado desvanece,
129 Aviva a outra a da virtude humana.

“É Letes, se por ela o mal se esquece,
Eunoé quando lembra: atuam quando
132 O gosto de uma e de outro homem conhece.

“Saber igual aos outros comparando
Não existe ao desta água. Ao teu pedido
135 Satisfação hei dado assim falando.

“Corolário, porém, lhe seja adido:
Não receio que assim te desagrade,
138 Indo além do que fora prometido.

“Poetas que cantavam de ouro a idade
E sua dita, em Parnaso, certamente
141 Sonharam desta estância a f’licidade.

“Estirpe humana aqui fora inocente;
Eterna primavera aqui domina;
144 Foi este néctar, que inventou sua mente.” —

Então a vista aos Vates se me inclina.
Um sorriso em seus lábios se revela,
Esse conceito ouvindo, em que termina.

148 Rosto volvi depois à dama bela.

 

19. Chiassi, localidade (hoje destruída) perto de Ravena, onde ainda há um grande pinheiral. — 21. Éolo, rei dos ventos. — 40 Uma dama, Matelda, como Dante dirá no Canto XXXIII, v. 119. Para a maior parte dos comentadores é Matilde, condessa de Canossa. — 50. Prosérpina, filha de Ceres que foi raptada por Pluto quando colhia flores no vale do Etna. — 71. O Helesponto, o estreito dos Dardanelos que Xerxes, rei da Pérsia, atravessara com uma ponte de barcos para invadir a Grécia, e que, derrotado, teve de atravessar novamente. — 73. Leandro, etc. Leandro todas as noites atravessava a nado o Helesponto, da sua cidade Ábido a Sesto, onde morava a sua amante Heros. — 80. Delectasti etc., Salmo XCI, 5. — 130. Letes, o rio do esquecimento. — 131. Eunoé, o rio da boa recordação.


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O pé detenho e a vista se arremessa...


 

CANTO XXIX

 

Da floresta aparece um súbito esplendor. Dante vê avançar uma procissão de espíritos bem-aventurados em cândidas vestes, e, no fim da procissão, um carro tirado por um grifo. Ouve-se um trovão e o carro e o grifo param.

 

AS vozes, que eu lhe ouvia, ela remata,
Qual dama namorada, assim cantando:
3 Beati quorum tecta sunt peccata!

Como das ninfas o formoso bando,
Que nas umbrosas selvas sós andavam,
6 Qual ver, qual evitar o sol buscando:

Contra o ribeiro os passos a levavam,
Sobre a margem seguindo lentamente;
9 E pelos seus os meus se regulavam.

Cinqüenta assim andáramos somente,
Quando o álveo curvou a linfa pura,
12 E, pois, da banda achei-me do oriente.

Pouco éramos avante na espessura,
Eis, voltando-se, a dama desta sorte
15 Falou-me: — “Escuta, irmão, e ver procura.” —

Refulge de repente uma luz forte,
Por todo o espaço imenso da floresta.
18 Relâmpago julguei, que os ares corte.

Mas luz após relâmpagos não resta;
E o fulgor mais e mais resplendecia.
21 Disse entre mim: — “Que maravilha é esta?” —

Pelo ar luminoso se esparzia
Dulcíssima harmonia: e em zelo ardendo
24 De Eva o feito imprudente eu repreendia,

Pois, céu e terra a Deus humildes vendo,
A mulher só, que a vida começara,
27 Violava o preceito, os véus rompendo.

Se fiel fora e as ordens respeitara,
Mais cedo e por mais tempo essa morada,
30 Em delícia inefável, eu gozara.

Prosseguia, tendo a alma transportada
Nas primícias da eterna f’licidade,
33 Em desejos mais vivos abrasada,

Quando vimos de intensa claridade
Sob a rama tornar-se o ar brilhante
36 E o som tomou de um hino a suavidade.

Ó Musas, santas virgens, se, constante
Fome, frio, vigílias hei sofrido,
39 Da mercê vos rogar assoma o instante:

Das águas de Hipocrene bem provido
Para em metro cantar idéia imensa
42 De Urânia e das irmãs seja eu valido!

De ver, um tanto além, eu tive a crença
Árvores sete de ouro: era aparência,
45 Emprestava a distância parecença.

Mas, quando me acerquei, quando a evidência
Provou-me quanto a semelhança engana,
48 Dando das cousas falsa inteligência,

A faculdade, que à razão aplana
O discurso, fez ver distintamente
51 Candelabros e ouvir no hino: Hosana!

Cada qual flamejava refulgente,
Mais que no azul do céu rebrilha a lua
54 Da noite em meio, em seu maior crescente.

De pasmo, que no espírito me atua,
A Virgílio me volto; ele me encara:
57 Também revela espanto a vista sua.

Tornei-me ao lampadário, que não pára,
Prosseguindo, porém, solene e lento:
60 Noiva ao altar mais presta caminhara.

Eis a dama gritou-me: — “Por que atento
Às vivas luzes stás com tanto excesso,
63 Que desvias do mais o pensamento?” —

Trajadas de alva cor a ver começo
Pessoas, que os luzeiros têm por guia:
66 Candor igual na terra não conheço.

Do rio a linfa à sestra resplendia:
Espelho, minha imagem, desse lado,
69 Oscilando, aos meus olhos refletia.

Dos lumes tanto estava apropinquado,
Que pelo rio só fiquei distante:
72 Parei, por ver melhor, maravilhado.

Esses clarões eu vi passar avante;
Trás si no ar matiz vário espalhavam,
75 A pendões desfraldados semelhante.

Sete listras bem claras desenhavam,
As cores que contém de Delia o cinto
78 Ou stão do sol no arco, figuravam.

Cada estandarte, atrás asas distinto,
Se perdia â vista; entre eles pareciam
81 Dez passos se no cálculo não minto.

Por baixo de tão belo céu seguiam
Vinte e quatro anciões emparelhados:
84 Brancos lírios as frontes lhes cingiam.

Todos cantavam juntos: compassados
— “Entre as filhas de Adam sejas bendita!
87 Benditos teus excelsos predicados.” —

Quando da margem bem de fronte sita,
De fresca relva e flores guarnecida,
90 A grei se foi que alcançava a santa grita,

Como no céu a luz de outro é seguida,
Quatro animais após se apresentavam,
93 Coroados de fronde entretecida:

A cada qual seis asas adornavam,
Cobertas de olhos tantos, quantos Argo
96 Tinha, quando os seus vida gozavam.

De descrevê-los não faço cargo,
Leitor; a tanto ora me falta ensejo:
99 Nem posso neste ponto ser mais largo.

Contenta Ezequiel o teu desejo:
Ele os viu, que, do norte se arrojando,
102 Vinham com vento, nuve’, ígneo lampejo.

Como os pintou, estava os contemplando:
Dif’rença quanto às asas há somente;
105 João eu sigo, Ezequiel deixando.

Entre os quatro volvia resplendente
Com dupla roda um carro triunfante,
108 Por um grifo tirado altivamente,

As asas estendendo ia pujante;
No meio às listras três de cada lado,
111 Sem nenhuma empecer seguia avante.

Não sobe a vista ao ponto sublimado
A que se erguem; são d’ouro os membros d’ave
114 No mais o róseo e o níveo misturado.

Roma um plaustro não viu tão belo e grave
Do Africano em triunfo ou no de Augusto;
117 O do sol fora ante ele humilde trave:

Esse que, transviado foi combusto,
Da Terra quando as súplicas bradaram
120 E em seus arcanos Júpiter foi justo.

Dançando à destra aos olhos se mostraram
Três damas: tão rubente uma parece,
123 Que chamas se a cercassem a ocultaram.

A segunda tão verde resplandece,
Como composta de esmeralda bela;
126 A candura da neve outra escurece.

A dança dirigindo, se desvela
Ora a branca ora a rubra: o canto desta
129 Detém, apressa o passo ao querer dela,

À sestra fazem outras quatro festa
De púrpura vestidas: uma guia
132 As outras e três olhos tem na testa.

Dous anciões no couce depois via
Dif’rentes no vestir; mas igualdade
135 Nos gestos seus e acatamento havia.

Aluno um parecia na verdade
De Hipócrates sublime que criado
138 Natura tem por bem da humanidade.

Mostrava o companheiro outro cuidado
Trazendo espada tão aguda e clara,
141 Que onde eu stava de susto fui tomado.

De humilde aspeito a vista me depara
Mais quatro: segue o velho, que, distante,
144 Cerra os olhos mas luz a face aclara.

Os sete como os quatro de diante
Trajando a fronte sua têm cingida,
147 Não de c’roa de lírios alvejante,

Mas de purpúreas flores rubescida:
Um tanto longe ao vê-los me parece,
150 Que a testa a cada qual stava incendida.

E, quando o carro em face me aparece,
Rompe um trovão e a santa companhia,
Atendendo ao sinal pronta obedece:

154 Pára o cortejo e quanto o antecedia.

 

3. Beati quorum tecta sunt peccata, Salmo XXX, l: “Bem-aventurados aqueles cujos pecados são perdoados.” — 42. Urânia, a musa da astronomia. — 51. Candelabros, S. João no Apocalipse vê sete candelabros de ouro; símbolos dos sete sacramentos ou dos sete dons do Espírito Santo. — 83-84. Vinte e quatro anciões, v. Apocalipse IV, 4; símbolo dos vinte e quatro livros do Velho Testamento. — 92-93. Quatro animais, símbolo dos quatro evangelhos. — 95. Argo, monstro mitológico, que possuía cem olhos. — 100. Ezequiel, profeta de Israel, autor de um livro do Velho Testamento, v. I, 4. — 105. João, Apocalipse IV, 6-8. — 107. Com dupla roda um carro, a Igreja Católica; as duas rodas simbolizam o Velho e o Novo Testamento. — 108 Grifo, animal mitológico, metade leão e metade águia; símbolo de Jesus Cristo, com as duas naturezas, humana e divina. — 118-120 Esse que, transviado, foi combusto, Fetonte que tentou guiar o carro do Sol, porém, a rogos da Terra, foi fulminado por Júpiter. — 122-129. Três damas, as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. — 130-132. Outras quatro, as quatro virtudes cardiais: justiça, fortaleza, temperança e prudência. A prudência tem três olhos (como diz Sêneca, vigia o presente, prevê o futuro e lembra o passado). — 133-135. Dois anciões, S. Lucas e S. Paulo. — 143. Mais quatro, S. Pedro, S. João, S. Tiago e S. Judas, escritores das Epístolas canônicas. — 143-144. O velho, S. João que, parece, quando escreveu o Apocalipse estava perto dos noventa anos. (É preciso notar que os escritores sacros são apresentados em vários aspectos, conforme os seus livros; por isso alguns entre eles são repetidos).


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...nas umbrosas selvas sós andavam...


 

CANTO XXX

 

Acolhida festivamente pelos anjos e pelos bem-aventurados, desce do Céu, Beatriz (a divina sabedoria) e pousa no carro. Nisto Virgílio (a humana sabedoria) desaparece. Ela dirige-se a Dante e lhe exprobra os seus desvios. Dante chora; e os anjos se compadecem dele. Beatriz, dirigindo-se a eles, expõe mais particularmente quais foram as suas faltas depois da sua morte.

 

QUANDO o setentrião do céu primeiro,
Que, jamais tendo ocaso, nem nascente,
3 Da culpa só nublou-se em nevoeiro,

E ali fazia cada qual ciente
Do dever seu, bem como o deste mundo
6 Do nauta ao porto é guia permanente,

Parou, a santa grei, que ia em segundo
Lugar antes do Grifo, dirigia,
9 Como à paz sua ao carro olhar profundo.

Um, que do céu arauto parecia,
Veni, sponsa de Libano — cantando,
12 Três vezes disse, e a turba repetia.

Como, ao soar o derradeiro bando,
Hão de os eleitos ressurgir ligeiros,
15 Com renovada voz aleluiando,

Assim, da vida eterna mensageiros,
Cem anjos, ad vocem tanti senis
18 Elevaram-se ao carro sobranceiros.

Diziam todos: — Benedictus qui venis!
Modulavam, lançando em torno flores:
21 Manibus, oh, date lilia plenis!

Já vi do dia aos lúcidos albores
Em parte o céu de rosicler tingido,
24 Estando em parte azul e sem vapores,

E o sol, nascendo em nuvens envolvido,
Permitir que se encare em seu semblante,
27 Entre véus nebulosos escondido:

Tal, em nuvem de flores odorante,
Que de angélicas mãos sobe fagueira
30 E cai no carro e em torno a cada instante,

De véu neves cingida e de oliveira,
Uma dama esguardei com verde manto
33 E veste em cor igual à da fogueira.

E o espírito meu que, tempo tanto
Havia já, não fora ao seu conspeito,
36 Trêmulo, entrando de soçobro e espanto,

Antes que aos olhos se mostrasse o aspeito,
Sentiu, por força oculta que desprende,
39 Do antigo amor, o poderoso efeito.

Quando essa alta influência em mim descende,
Que desde o alvor primeiro da existência
42 Da alma as potências me avassala e rende,

À sestra me voltei com diligência,
Qual infante da mãe correndo ao seio,
45 Se dor ou medo assalta-lhe a inocência,

Por dizer a Virgílio: — “Neste enleio,
Meu sangue em cada gota é convulsado,
48 De amor na antiga flama eu me incendeio.”

Mas ai! Virgílio havia-se ausentado,
Virgílio, o pai dulcíssimo e amoroso,
51 Virgílio, a quem, por me salvar, fui dado!

Quanto perdeu neste lugar formoso
Eva, não tolhe as lágrimas no rosto,
54 Que o rocio me lavara milagroso.

— “Não haja por Virgílio ir-se, desgosto;
Não te entregues ao pranto agora, ó Dante;
57 Por dor mais viva ao pranto sê disposto.” —

Como em revista às naus sábio almirante
Nas manobras feroz a dura gente
60 E os corações esforça vigilante,

Do carro à borda, à esquerda, incontinênti,
Quando voltei-me ao nome proferido,
63 Que por ser dito aqui vem simplesmente,

A dama vi que tinha aparecido
Velada em meio da divina festa,
66 Tendo, além-rio, o gesto a mim volvido.

Conquanto o véu, que lhe cingia a testa,
Que de Minerva fronde coroava,
69 A face não deixasse manifesta,

No régio continente que ostentava
Desta arte prosseguiu; porém dizendo
72 O mais acerto para o fim guardava:

— “Oh! Sou eu! Sim! Beatriz stás vendo!
Pois te hás dignado de ascender ao monte
75 Ter aqui dita o homem já sabendo?” —

Os olhos inclinando à pura fonte
Vi minha imagem; logo os volto a um lado,
78 Tanta vergonha me acendia a fronte!

Qual mãe, que o filho increpa em tom maguado,
Pareceu-me: porque se torna amara,
81 A piedade que pune, ao castigado.

Calou-se ela e dos anjos a voz clara
— “In te, Domine, speravi” — de repente
84 Entoa, mas em pedes meos pára.

Da terra italiana em serra ingente
Da esclavônia por ventos contraída
87 Entre as selvas congela a neve algente;

Depois liquesce e corre derretida
Ao quente sopro, que do sul procede,
90 Como cera de flamas aquecida;

Tal o soçobro as lágrimas me impede
Antes de ouvir a angélica toada,
93 Que o hino dos eternos orbes mede.

Mas quando, em seus concentos expressada,
Compaixão vejo mais do que se houvessem
96 Dito: — “Senhora, por que és tanto irada?”,

No peito meu os gelos se amolecem;
Dos lábios e dos olhos irrompendo,
99 Com lágrimas soluços aparecem.

Firme no carro, à destra se volvendo,
Ela aos pios espíritos dizia,
102 Do cântico às palavras respondendo:

— “Vigilantes estais no eterno dia;
Jamais por noite ou sono distraída,
105 Do tempo os passos vossa vista espia.

“Minha resposta, pois, vai dirigida
Àquele, que ora ao pranto os olhos solta:
108 A culpa seja pela dor medida.

“Dos céus, não pela ação, na imensa volta,
Que para um fim conduz cada semente,
111 Segundo os astros, que lhe vão na escolta,

“Se não de graças por divina enchente,
Que chovem sobre nós dessa eminência,
114 A que se alar nem pode a nossa mente,

“Este homem foi na aurora da existência,
De tais dotes ornado, que pudera
117 Da virtude alcançar toda a excelência.

“Se, porém, a incultura se apodera
Ou semente ruim do bom terreno,
120 Plantas mali’nas, peçonhentas gera.

“Conservou-se ante mim puro e sereno:
Meus olhos, em menina, o conduziram
123 Pelo caminho mais seguro e ameno.

“Tanto que umbrais à vista se me abriram
Da idade segunda e desta vida,
126 Deixou-me; outros enlevos o atraíram.

“Quando em espírito eu fora convertida
E beleza e virtude em mim crescera,
129 Em menos preço fui por ele havida.

“Por fraguras fugiu da estrada vera,
Em fingidas imagens enlevado,
132 De que jamais se alcança o que se espera.

“Inspirações em vão hei-lhe impetrado
Em sonhos, em vigília o bem mostrando:
135 Cego, correu pelo caminho errado.

“Já todo o esforço meu se malogrando,
Para salvá-lo do perigo eterno
138 Quis que baixasse ao reino miserando.

“Foi neste empenho que desci ao inferno,
E à sombra, que de guia lhe há servido,
141 Fiz o meu rogo lacrimoso eterno.

“O preceito de Deus fora infringido,
Se ele do Letes transcendesse as águas,
Se lhe fosse prová-las permitido,

145 Sem seu preço pagar em pranto e mágoas.” —

 

11. Veni, sponsa, etc., convite do esposo à esposa no Cântico dos Cânticos de Salomão. — 17. Ad vocem tanti senis, à voz de velho tão venerando como era Salomão. — 19. Benedictus qui venis, cantavam os hebreus a Jesus quando entrou em Jerusalém, S. Mateus, Evang. XXI, 9. — 21. Manibus, oh, date lilia plenis, espalhai lírios às mãos cheias. — 39. Do antigo amor etc., Dante se enamorou de Beatriz, quando tinha a idade de nove anos. — 83. In te, Domine, speravi, Salmo XXX, até às palavras: pedes meus, exprime o arrependimento e a esperança na misericórdia de Deus.


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“Oh! Sou eu! Sim! Beatriz estás vendo!...


 

CANTO XXXI

 

Beatriz continua repreendendo a Dante, o qual confessa os seus pecados. Matilde o mergulha, então, no rio Letes. Depois as sete damas que participavam da procissão (as quatro virtudes cardiais e as três virtudes teologais) o levam até Beatriz, pedindo a ela que se desvele diante do seu fiel. Beatriz tira o véu.

 

“Ó TU que estás além da água sagrada”
— Prosseguiu Beatriz incontinênti,
3 A ponta a mim voltando dessa espada,

Que de revés já fora assaz pungente —
“Diz se é verdade, diz! À culpa unida
6 Esteja a confissão do penitente.” —

Tanta a força mental foi confrangida,
Que a voz desfaleceu, se erguer tentando,
9 Expirou-me nas fauces inanida.

Esperou; disse após: — “Que estás pensando?
Responde: inda não tens nágua apagado
12 Lembranças do passado miserando?” —

No meu enleio, de temor travado,
Um tão confuso sim, trêmulo, expresso,
15 Que houve mister dos olhos ajudado.

Como em besta entesada em grande excesso,
Quebrando-se arco e corda, parte a seta
18 E no alvo dá sem força do arremesso,

Stando minha alma em tanto extremo inquieta
E em suspiros e lágrimas rompendo,
21 Perdeu a voz o som, que a língua enceta.

— “Se ao meu querer” — prossegue — “obedecendo
Tinhas fanal, que ao bem te conduzisse,
24 De anelos teus a mira ser devendo,

“Onde o poder de estorvos, que impedisse
Teus passos? Quais grilhões que os retivessem
27 Na vereda, que avante ir permitisse?

“Houve encantos, que a outros te prendessem,
E delícias, que tanto te atraíram,
30 Que a tua alma enlear assim pudessem?” —

Do peito agros suspiros me saíram;
Para falar-lhe apenas tive alento,
33 E a voz a custo os lábios exprimiram.

Tornei chorando: — “O engano, o fingimento
Ao terreno prazer me hão transviado,
36 Em vos nublando a face o passamento.” —

— “Se ocultaras” — falou-me — “o teu pecado,
A graveza da culpa ao claro vira
39 Aquele, por quem deves ser julgado.

“Mas se o réu, confessando, tem na mira
O pesar do mau feito, em nossa corte
42 Contra o fio da espada a mó se vira.

“Entanto, por que seja em ti mais forte
De errar o pejo e, no porvir ouvindo
45 Sereias, não procedas de igual sorte,

“Escuta-me, os teus prantos consumindo:
Verás que, inda sepulta, eu te guiara,
48 Pela contrária rota conduzindo.

“Jamais arte ou natura te mostrara
Enlevo, quanto a rara formosura
51 Do corpo, em pó tornado, em que eu morara.

“Se comigo baixara à sepultura
Teu supremo prazer, como arrastar-te
54 Pôde, após si, mortal delícia impura?

“Enganos tais sentindo saltear-te,
Aos céus alçando a mente deverias
57 Té minha eternidade sublimar-te,

“E não baixar do vôo, em que subias
Te expondo a novos tiros, atraída
60 Por jovem, por vaidades fugidias.

“Será duas, três vezes iludida
Ave inexperta; mas a seta, o laço
63 Pássaro velho esquiva, apercebido.” —

Qual menino, que a mãe por largo espaço
Increpa; e, baixa a fronte, envergonhado
66 Reconhece em silêncio o errado passo,

Tal me achava. — “De ouvir se estás magoado.
Levanta a barba!” — ainda prosseguia —
69 “Olhando-me, hás de ser mais castigado!” —

Com menos resistência abateria
De Europa o vendaval carvalho altivo
72 Ou da terra, que a Jarba obedecia,

Do que eu alcei o rosto pensativo;
Quando ela disse barba e não semblante
75 A malícia notei e o seu motivo.

Olhos erguendo alfim, do mesmo instante
Aos ares vi que flores não lançava
78 A falange dos anjos radiante.

Tímida a vista a Beatriz achava
Voltada ao Grifo, que uma só pessoa
81 Em naturezas duas encerrava.

Além do rio sob o véu e a c’roa
Tanto excede a beleza sua antiga
84 Quanto em vida as que mais fama apregoa.

E do pesar pungiu-me tanto a urtiga,
Que das cousas, que mais na terra amara
87 A mais cara odiei como inimiga.

Remorso tal a mente me assaltara,
Que vencido tombei: qual fiquei sendo
90 Sabe quem dor tão viva motivara.

Ao coração a força me volvendo
Notei a dama, que primeiro eu vira
93 Ao lado meu, — “Abraçai-me!” — dizendo.

Té ao colo no rio me imergira;
E correndo, qual leve lançadeira,
96 Das águas sobre a tona a si me tira.

Já próximo à beatífica ribeira,
Ouvi Asperges me tão docemente,
99 Que o não descrevo ou lembro, inda que o queira.

Matilde, abrindo os braços de repente,
Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me;
102 Era dessa água haurir conveniente.

Assim purificado, ela guiou-me
Das damas quatro para a dança bela,
105 E cada uma nos braços estreitou-me.

— “Cada qual, ninfa aqui, nos céus estrela,
Antes que Beatriz descesse ao mundo,
108 Servas de ordem suprema somos dela.

“Os seus olhos verás; mas no jucundo
Lume interno hás de ter vista aguçada
111 Pelas três cujo olhar é mais profundo.” —

Modulando na angélica toada,
Ante o Grifo consigo me levaram:
114 Lá Beatriz para nós era voltada.

— “Em contemplar sacia-te!” — falaram —
“As esmeraldas que ora tens presentes,
117 Donde os farpões de amor te vulneraram.” —

Mais que a flama desejos mil ardentes
Prenderam olhos meus aos seus formosos,
120 Na adoração do Grifo persistentes.

Qual sol no espelho, nesses luminosos
Astros o Grifo se alternando, eu via
123 Seres dois refletir misteriosos:

Meu espanto, ó leitor, qual não seria
Vendo o objeto na imagem transmutado,
126 Quando constante em si permanecia?

Enquanto eu de prazer e pasmo entrado,
Esse doce manjar stava gozando,
129 Que sacia mas sempre é desejado,

De ordem mais alta ser manifestando
Pelo meneio, as três se adiantaram,
132 Por angélico estilo modulando.

“Os olhos santos, Beatriz” — cantaram —
“Oh! volve ao servo teu leal constante
135 A quem por ver-te os passos não custaram.

“Nos dá por grã mercê que o fido amante
Sem véu segunda formosura
138 Contemple nesse divinal semblante!” —

Ó resplendor da luz eterna e pura!
Quem do Parnaso à sombra descorando
141 E da água sua haurindo alma doçura,

Aturdido não fora, se arrojando
A tentar descrever qual te mostraste,
Quando o céu de harmonias te cercando,

145 Ao ar patente a face revelaste?

 

71-72. De Europa etc. Ao vento boreal que sopra na nossa região, ou ao vento meridional que sopra na África, onde reinou Jarbas. — 75. A malícia notei etc., Beatriz disse “barba” e não semblante, querendo referir-se à idade madura de Dante.


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Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me


 

CANTO XXXII

 

Dante olha com amor a Beatriz. No entanto o carro, seguido pela procissão dos bem-aventurados, se move em direção a um árvore elevadíssima e despida de folhagem. O grifo ata o carro à árvore e esta logo cobre-se de flores. O Poeta adormece. Ao despertar vê Beatriz, rodeada das sete damas, sentada ao pé da árvore. Acontecem, depois, no carro fatos maravilhosos que causam ao Poeta surpresa e medo.

 

COM tão sôfregos olhos saciava
A sede, em que anos dez eu me incendia,
3 Que aos mais sentidos toda a ação cessava.

Quase murada a vista se imergia
No santo riso ao mais indiferente,
6 E nos laços de outrora me prendia.

Desse êxtase arrancou-me de repente
A voz das santas, que da esquerda soa:
9 — “Demais contemplativa tens a mente!” —

Os ofuscados olhos me nevoa
Torvação semelhante ao vivo efeito,
12 Que do sol causa a face em quem fitou-a.

Mas quando à pouco luz estive afeito
(Pouca em confronto ao lume deslumbrante,
15 Que por força deixara e a meu despeito),

Vi que à destra volvia o triunfante
Exército celeste à frente estando
18 Os candelabros sete e o sol flamante.

Qual hoste a se salvar broquéis alçando,
Se volta, e co’a bandeira não prossegue
21 Senão mudada a direção, girando;

A celeste milícia avante segue,
Na marcha procedendo desfilava
24 Antes que o santo carro a volver chegue.

Cada coréia as rodas escoltava,
E o Grifo a carga santa removia
27 Sem parecer que as penas agitava.

Quem pelo rio me arrastado havia,
Estácio e eu a roda acompanhamos,
30 Que por arco menor volta fazia.

Na alta floresta caminhando vamos,
Erma por culpa da que a serpe ouvira:
33 Pelo cântico os passos regulamos.

Andáramos espaço que medira
Uma seta três vezes disparada:
36 Desceu Beatriz do carro, em que eu a vira.

“Adam!” — disse em murmúrio a grei sagrada,
Todos depois uma árvore cercaram,
39 De folhas e de flores despojada.

Tanto aos lados seus ramos se alargaram,
Quanto erguiam-se ao céu: como portento
42 índios nas selvas suas os mostrariam.

“Ó Grifo! Glória a ti! De culpa isento,
Não provaste do lenho doce ao gosto,
45 Que tanta dor causou, tão cru tormento!” —

Daquele tronco excelso em torno posto,
Diz o préstito; e o Grifo lhe contesta:
48 — “Assim justiça é sempre no seu posto.” —

E ao carro que tirara na floresta,
Voltou-se e o conduziu ao tronco anoso:
51 Dele foi parte, a ele atado resta.

Quando o astro rebrilha poderoso,
Juntando os seus clarões aos que desprende,
54 Depois do Peixe o signo luminoso,

Brotando as plantas cada qual resplende
De esmalte novo, e ainda de outra estrela
57 Abaixo os seus frisões o sol não prende:

Súbito assim refloresceu aquela
Árvore nua, gradações formando
60 Entre rosa e violeta em cópia bela.

Então de um hino as notas escutando,
Quais nunca sobre a terra se cantaram,
63 Não pude resistir a som tão brando.

Se eu narrasse como olhos se fecharam
De Argo impiedosos, de Sírius ao conto
66 Que o seu nímio velar caro pagaram,

Pintor, tirara ao natural e em ponto
O sono em que engolfei-me docemente;
69 Mas faça-o quem nessa arte forma pronto!

Passo ao momento em que espertou-se a mente:
Fulgor ao sono intenso o véu rompia,
72 — “Eia! que fazes?” — ouço incontinênti.

Quais vendo que de flores se cobria
O linho cujo pomo apetecido
75 Na boda eterna os anjos extasia,

João, Pedro e Tiago ao seu sentido,
Depois da prostração à voz tornaram,
78 Que sono inda maior tinha vencido,

E a companhia decrescida acharam
De Elias e Moisés enquanto as cores
81 Sobre a estola do Mestre se mudaram:

Tal despertei da luz aos esplendores,
Vi perto a dama que me fora guia
84 Do rio à margem sobre a relva e as flores.

— “Onde é Beatriz?” — cuidoso lhe dizia.
— “Da fronde nova à sombra a vês sentada,
87 Junto à raiz” — Matilde respondia.

“Da companhia sua é rodeada;
Ao céu após o Grifo os mais subiram,
90 Com mais doce canção, mais sublimada.” —

Não sei se as vozes suas prosseguiram
Pois aquela aos meus olhos se mostrara,
93 Em quem meus pensamentos se imergiram.

Sobre a terra bendita se assentara,
Só, como em guarda ao plaustro portentoso,
96 Que ao tronco antigo o Grifo vinculara.

Rodeiam-na, com círculo formoso,
As ninfas sete, os lumes empunhando,
99 Seguros de Austro e de Aquilão ruidoso.

— “Na selva a tua estada abreviando,
Serás comigo na eternal morada
102 Da Roma, onde tem Cristo o régio mando.

“Do mundo em prol, perdido em rota errada,
O carro observa e cada cousa atento
105 Guarda, por ser ao mundo registrada.” —

Falou Beatriz; e eu, pois, que o entendimento
Do seu querer aos pés tinha prostrado,
108 Fitei no carro a vista e o pensamento.

Dos etéreos confins arremessado,
Não rasga o raio à densa nuve, o seio,
111 Com tanta rapidez precipitado,

Como da alta ramada pelo meio,
Córtice fronde, flores destruindo,
114 O pássaro de Jove irado veio.

Com força imane o carro foi ferindo,
Que aos golpes, qual navio, se agitava,
117 Que o mar combate os bordos lhe investindo.

E logo após eu vi que se enviava
Ao carro triunfal uma raposa,
120 Que bom cibo não ter manifestava.

Increpando-lhe a vida criminosa,
Beatriz pô-la em fuga, e em tanta pressa,
123 Quanto sofreu-lhe a ossada cavernosa.

Depois do carro à caixa a Águia se apressa
A vir por onde, há pouco, descendera;
126 De inçar de plumas seus coxins não cessa.

Qual gemido que a dor no peito gera,
Ouvi do céu baixar voz, que dizia:
129 — “Ó barca! bem má carga ora se onera!” —

A terra então me pareceu se abria,
Entre as rodas um drago arrevessando
132 Que pelo carro a cauda introduzia.

Depois a cauda atroce retirando,
Qual vespa o seu ferrão, feita a ferida,
135 Arranca o fundo e vai-se coleando.

Como em terra vivaz relva crescida,
Cobre o resto plumagem de repente,
138 Com tenção casta e pura oferecida;

Timão e rodas vestem-se igualmente
Tão presto, que um suspiro vem lançado
141 À flor dos lábios menos prontamente.

Daquele plaustro santo, assim mudado,
Nos ângulos cabeças irromperam,
144 Três no timão e uma em cada lado.

Essas, como as de boi, armadas eram;
Uma só ponta as quatro guarnecia:
147 Monstros iguais já nunca apareceram.

Qual penhasco em montanha excelsa, eu via
No carro nua meretriz sentada,
150 Lascivos olhos em redor volvia.

Como para não ser-lhe arrebatada
Em pé ao lado seu stava um gigante,
153 Com quem trocava beijos despejada.

Que os olhos requebrava a torpe amante
Pra mim notando, fero a flagelava
156 Dos pés a fronte o barregão farfante.

No ciúme e na ira, que o inflamava
Desprende o carro e à selva o vai tirando,
Que depressa aos meus olhos ocultava

160 A prostituta e o novo monstro infando.

 

38-39. Uma árvore etc., a árvore do bem e do mal, cujo fruto Adam comera, pelo que foi expulso do Paraíso. — 64-66. Como os olhos se fecharam etc., como adormeceu e se fecharam os olhos de Argos ao ouvir o conto de Mercúrio a respeito de Sírio, — 73-81. Quais vendo etc., como os apóstolos João, Pedro e Tiago, ao assistirem à transfiguração de Jesus Cristo, no monte Tabor, e ao vê-lo em companhia de Moisés e Elias, desmaiaram e despertando, depois, o viram em sua forma natural havendo os dois profetas desaparecido, etc. — 102. Da Roma onde tem Cristo o régio mando, o Paraíso. — 114. O pássaro de Jove, a águia, símbolo do império. — 119. Uma raposa, símbolo da heresia. — 126. De inçar de plumas seus coxins não cessa, provável alusão ao poder temporal outorgado por Constantino à Igreja Romana. — 142-147. Daquele clastro etc., Dante nesta visão, que imita as visões do Apocalipse, pretende simbolizar os funestos efeitos das riquezas que foram oferecidas à Igreja. As sete cabeças do monstro provavelmente simbolizam os sete pecados capitais originados pela corrupção. — 149. Meretriz, a Cúria Romana. — 152. Um gigante, a casa real de França e, talvez, mais particularmente, Felipe o Belo que umas vezes foi amigo, outras inimigo dos Papas, conseguindo que o Papa Clemente V, em 1305, transportasse a Santa Sé para Avinhão.


imagem

A prostituta e o novo monstro infando


 

CANTO XXXIII

 

Beatriz anuncia, com linguagem misteriosa, que brevemente aparecerá quem libertará a Igreja e a Itália da servidão e da corrupção. Impõe-lhe que escreva o que viu. Pede, depois, a Matilde que o mergulhe nas águas do rio Eunoé. Dante, depois da imersão, sente-se mais forte e disposto a subir às estrelas.

 

DEUS, venerunt gentes, alternando,
Em coros dois, suave melodia
3 Cantam as ninfas, pranto derramando.

E Beatriz, a suspirar, ouvia
Tão dorida, que pouco mais, outrora
6 Junto da Cruz mostrara-se Maria.

Quando lhe coube alçar a voz canora,
Entre as formosas virgens posta em pé,
9 Com santo ardor, que as faces lhe colora:

Modicum et non videbitis me,
Caras irmãs, et iterum” — tornava —
12Modicum et vos videbitis me”.

Depois, antes de si as colocava,
E a mim e a dama e ao Vate, que restara,
15 Pra seguir os seus passos acenava.

Ia assim: que ela houvesse eu não julgara
O seu décimo passo em terra posto,
18 Eis sua vista na minha se depara.

— “Mais perto” — disse com sereno rosto —
“Caminha; pois falar quero contigo,
21 E o leves a me ouvir star bem disposto.” —

Beatriz, logo em tendo-me contigo,
— “Por que” — prossegue —“irmão não hás querido
24 Me inquirir, quando vens assim comigo?” —

Fiquei, como o que o espírito aturdido,
Ao seu superior falando sente,
27 E apenas balbucia confundido.

Falei, com voz cortada, reverente:
— “Quanto hei mister sabeis mui bem, senhora,
30 O que seja em prol meu sabeis prudente.” —

— “De temor e vergonha desde agora” —
Tornou — “isento sê, stando ao meu lado:
33 Como quem sonha as vozes não demora!

“A caixa, que a serpente há devastado,
Já foi: de Deus castigo aos criminosos
36 Ser não pode por sopa obliterada.

“Não faltarão herdeiros cuidadosos
Da águia, que ao carro as suas plumas dera,
39 E o tornou monstro e presa aos cobiçosos.

“Vejo o porvir e a voz minha assevera
O que propínquos astros anunciam:
42 Nada os estorva, nem seu curso altera.

“Um quinhentos dez cinco prenunciam,
Que o céu manda a punir a depravada
45 E o gigante: ambos juntos delinquiam.

“A narração, talvez, de treva inçada,
Como as do Esfinge e Têmis não a entendas,
48 Por parecer-te ao spírito enleada.

“Farão, porém, os fatos que a compreendas;
Quais Náiades, darão do enigma a chave,
51 Sem dano ao trigo, ao gado, sem contendas

“Que na memória tua isto se grave:
Como te falo, assim o ensina aos vivos
54 Que se afanam em buscar morte insuave.

“Lembra os que hás visto feitos aflitivos.
Da árvore o stado narra, que te espanta,
57 Quanto sofreu assaltos dois esquivos.

“Quem despoja ou mutila a sacra planta
Blasfema a Deus, de fato o ofende ousado:
60 Para o seu uso só a criou santa.

“Sperou a primeira alma, que há provado
Do seu fruto, anos mil cinco gemendo
63 Por quem penas em si deu do pecado.

“Tua alma dorme, se não stá sabendo
A causa singular, que a planta há feito
66 Tão alta, o cimo tal largura tendo.

“Se da água d’Elsa não trouxesse o efeito
O teu vão cogitar sobre essa mente,
69 Que escurece, qual sangue à amora o aspeito

“Fora o que eu disse já suficiente
Para o justo preceito compreenderes,
72 Que Deus há posto sobre o tronco ingente.

“Como te ofusca a luz dos meus dizeres.
Porque de pedra tens o entendimento,
75 Que, afeito à culpa, não permite veres,

“Uma imagem te guarde o pensamento,
Como palma ao bordão junta, voltando,
78 Peregrino, em remédio ao esquecimento.” —

— “No cérebro, qual cera conservando” —
Tornei — “a marca do sinete impresso,
81 Vosso verbo se irá perpetuando.

“Mas por que se sublima em tanto excesso
Vossa palavra, sempre apetecida,
84 Que, alcançá-la tentando, desfaleço?” —

— “Por veres” — diz — “que escola pervertida,
Hás cursado, o que, pois, sua doutrina
87 Ao verbo meu não pode ser erguida;

“Pois a vereda vossa da divina
É tão remota, quanto está distante
90 Da terra o céu que ao alto mais se empina” —

— “Não me lembro” — respondo à excelsa amante
“De ter-me às vossas leis nunca esquivado:
93 Não diz-mo a consciência vigilante.” —

— “Possível é que estejas olvidado” —
Respondeu-me a sorrir — “tem na lembrança
96 Que inda há pouco, hás do Lete água tragado,

“E se de flama o fumo dá fiança,
Que o teu querer no erro andou perdido
99 Demonstra o olvido teu com segurança.

“Será da minha voz claro o sentido,
Por que mais facilmente de ora avante
102 Da rude mente seja percebido.” —

Mais demorado, entanto, e coruscante
No círc’lo entrava o sol do meio-dia,
105 Como os climas diversos variante,

Quando as damas, bem como astuto espia,
Que, precedendo a tropa, de andar cessa,
108 Se acaso novidade se anuncia,

Paravam, ao sair da sombra espessa,
Qual aos frios arroios murmurantes
111 Dos Alpes bosque verde-negro of’reça.

Julguei ver Tigre e Eufrates não distantes
Brotar da mesma fonte juntamente
114 E separar-se lentos, quais amantes.

— “Ó glória! ó esplendor da humana gente!
Qual é, dizei-me, essa água, bipartida
117 Depois de proceder de uma nascente?” —

— “Ser-te deve a pergunta respondida
Por Matilde” — tornou-me então, falando
120 Em tom de quem por falta fosse argüida,

A dama disse: — “Tudo lhe explicando
Já stive: não podia haver efeito
123 Do Letes, a lembrança lhe apagando.” —

E falou Beatriz: — “Pode ter feito
Escura a mente sua o mor cuidado,
126 Que o entendimento às vezes torna estreito.

“Eis Eunoé, que o curso há derivado:
Conduze-o e, como sabes, o imergindo,
129 Seu coração alenta desmaiado.” —

Como alma nobre, ao bem nunca fugindo,
Faz do estranho querer própria vontade,
132 Quando um simples sinal o está pedindo,

A gentil dama, usando alta bondade,
Guiou-me e a Estácio disse, que atendia:
135 — “Segue-o também” — com garbo e majestade

Esse doce licor, que não sacia,
Eu cantara, leitor, se desse ensejo
138 Da página uma parte inda vazia.

Mas, porque todas ocupadas vejo
E ao meu segundo Cântico aplicadas
141 Da arte o freio me tolhe esse desejo.

Como de planta as folhas renovadas
Mais frescas na hástea mostram-se, mais belas,
Puro saí das águas consagradas

145 Pronto a me alar às lúcidas estrelas.

 

1. Deus venerunt gentes, Salmo 78, no qual David lamenta a contaminação do templo de Jerusalém: “Senhor, as nações entraram no teu domínio e contaminaram o teu templo.” — 10. Modicus et non videbitis me, “pouco tempo passará e não me vereis mais”, S. João Ev. XVI, 16; Beatriz responde: “e novamente passará pouco tempo e me vereis.” Provável alusão ao pouco tempo que a Santa Sé teria ficado em Avinhão. — 36. Sopa, a sopa que, em sinal de expiação, o homicida comia sobre o túmulo do assassinado. — 43. Um quinhentos dez cinco, um DVX, isto é, um chefe, um capitão, enviado de Deus, o qual punirá a Cúria Romana e o rei da França. — 47. Esfinge, que propôs o enigma a Édipo. — Têmis, que respondeu em forma obscura a Deucalião, que a foi consultar. — 49-51. Náiades, ninfas das fontes. — 61. A primeira alma, etc. Adam esperou cinco mil anos a vinda de Jesus Cristo, que tomou sobre si o seu pecado. — 67. Elsa, confluente do Arno. — 112. Tigre e Eufrates etc., o Letes e o Eunoé pareciam esses dois rios; pois nasciam na mesma fonte e, depois, se afastavam, aos poucos, um do outro.


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Eis Eunoé, que o curso há derivado


 

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