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Sobre os Prazeres da Teologia

Janer Cristaldo


 

Sobre os Prazeres da Teologia
Janer Cristaldo


Imagem da capa
O Jardim das Delícias Terrenas (1504)
Hieronymus Bosch (c. 1450-1516)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Jardim_das_Delícias_Terrenas

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© 2012 Janer Cristaldo


 

Sobre os
prazeres da
teologia

 

Janer Cristaldo

 


 

Índice

 

Escritores e covardes
A 65ª
O Santo Sudário e o Sagrado Prepúcio
Mais um prêmio Nobel desmoraliza o Nobel
Eu, estuprador
Olha e passa!
Historiador denuncia pitbullfobia
Anencéfalos católicos protestam contra aborto de anencéfalos
Divertida ciência, a contemporânea
A outra nuvem
Para quando o machocídio?
Vargas Llosa e a outra nuvem
Sobre feiras e vaidades
STF Oficializa racismo no Brasil
Schadenfreude nutre esquerdas
Não se fazem mais homossexuais como antigamente
Quando o amor vira inciso do Direito das Obrigações
Contribuinte paga tradução de Chico Buarque na Coréia
Esquerdas excitadas acham que algo mudou na França
Minhas corrupções prediletas
Ùltima religião do Ocidente tem futuro entre botocudos
Surge nova doença
Do cálculo renal à epifania
Facebook desgasta uma antiga palavra
Sobre amizade, amor e doença
Para quando travestis no Judiciário?
Juristas legalizam chuva
Se ainda sou gaúcho
Cadeia urgente para as vovós assassinas
Hula Garu
Gigolôs das angústias humanas ampliam mercado de trabalho
Aiatolás empurram homossexuais à prostituição
Católicos desconhecem catolicismo
Sobre sexo e cerejas
Viagem a Pequim e Moscou de uma prostituta gaúcha
PS francês quer enxugar gelo
Prepúcio divide Alemanha
A última prescrição de meu urologista
Esquerdas analfabetizam universidade
Quando calote vira oniomania
Sobre os prazeres da teologia
Fé remove mensalão
Onde me descobri tradutor
Kashrut, a cozinha que divide
Quando um I divide a Igreja
Sobre a humana mesquinharia, a gratidão e a generosidade
Poliamor soa melhor
Longo é o caminho de um Ribamar até o entendimento
Deus único? Onde?


 

 

 

ESCRITORES E COVARDES

 

 

Assisti ontem, na Globo News, entrevista de Sérgio Faraco, concedida a Geneton Moraes Neto. Velho comunista não tem cura. Só matando. Mais de duas décadas após a dissolução da União Soviética, Faraco “ousa” denunciar o regime comunista. E relembra episódios que viveu em Moscou, em 1964. Precisou de quase meio século para abrir o bico. Em verdade, sua denúncia não é de agora. Data de 2002, quando publicou Lágrimas na chuva: uma aventura na URSS. Sua coragem é de dez anos atrás. Mas só treze anos após a queda do Muro.

Já comentei, em 2004, a insólita coragem do escritor gaúcho. O livro relata período de pouco mais de ano vivido pelo autor em Moscou, entre 1963 e 64. “Depois de uma série de conflitos com chefetes políticos ligados aos partidos brasileiro e soviético” - diz-nos o editor na orelha - “Faraco foi internado em regime de reclusão, sob pesada bateria de medicamentos, numa clínica de reeducação. Era este, na época, um procedimento de rotina em relação àqueles que se rebelavam contra o ultra-esquerdismo do Partido”.

Ora, quais foram os gestos de rebeldia do heróico mártir gaúcho? Pelo que lemos em sua memória, foram basicamente duas atitudes: mantinha relações com uma russinha e insistia em escutar Wagner a todo volume em seu dormitório. Fora isso, em uma viagem à Armênia, demonstrou insólita coragem ao perguntar a um mandalete local como podiam avançar na automação do que quer que fosse, se as moradias não dispunham de vasos sanitários e as necessidades eram feitas nos quintais, em latrinas. A tradutora nem sabia o que era latrina. Ou seja, os armênios não haviam chegado sequer ao conceito de latrina. Em função disto, o rebelde escritor foi enviado a uma clínica de reeducação, onde dispunha de quarto individual, com chuveiro e vaso sanitário (um progresso em relação à Armênia) e mais uma enfermeira que vinha pegar-lhe a mãozinha quando deprimido. Gulag classe A, com direito a cafuné. Pra dissidente algum botar defeito.

Do alto desta omissão, quarenta anos nos contemplam. Há mais de quatro décadas, Faraco sentiu na carne o preço a ser pago, na União Soviética, por pequenas molecagens. Escritor, não lhe terá sido difícil imaginar o quanto custava qualquer discordância com a linha do Partido. Agora, já em idade provecta, a tardia madalena alegretense demonstra sua coragem denunciando fato ocorrido nos 60. Seu depoimento, se feito na época, seria de extraordinário valor para sua geração. Seria o relato insuspeito de um militante comunista que, em sua viagem iniciática ao paraíso soviético, fora tratado como doente mental apenas por escapadelas a uma disciplina absurda, típica de seminários católicos. Seria oportuníssimo, logo após 64.

Erico Verissimo pergunta a Faraco se não pensava escrever sobre sua estada na União Soviética. “Respondi que, de fato, tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante narrá-la, enquanto vivíamos, no Brasil, sob uma ditadura militar. Ele tinha razão” - diz Faraco. Ora, os militares lutavam para que o Brasil não virasse o imenso gulag que o futuro escritor então testemunhara. Em função de um regime que jamais o pôs na prisão, mesmo sendo comunista, Faraco silencia sobre o regime comunista que o internou em um hospital psiquiátrico, mesmo sendo comunista.

Em entrevista à TV Globo, interrogado sobre porque ficou tanto tempo em silêncio, Faraco omite o fator Erico Verissimo. E alega que, na época, tinha de optar entre capitalismo e socialismo. Ora, Faraco nasceu em 1940. Ou seja, teve sete anos a mais do que eu para entender o mundo. Pertencemos à mesma geração. Eu também tinha de optar entre capitalismo e socialismo. Jamais optei pela tirania. Por mais restrições que tivesse ao capitalismo, nele não havia ditadura, opressão, gulags ou clínicas de reeducação para dissidentes.

A história se repete. Em 1929, o escritor romeno Panaïti Istrati publicou Vers l'autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. Os originais deste livro levaram Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo: “Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais”. Istrati teve suas Obras Completas publicadas pela Gallimard, exceto Vers l'autre flamme. Que só foi republicado, na democrática Paris ... em 1980. Volto aos anos 60, Brasil. Erico Verissimo, conivente com a barbárie comunista, repassa a Faraco o covarde conselho.

Escritor, Faraco intuiu o que Erico há muito já intuíra. Se dissesse uma só palavrinha contra a Santa Madre Rússia, adeus editoras, adeus honras literárias, adeus imprensa amiga, adeus resenhas e teses universitárias. O gaúcho de Alegrete, que não teve sequer a hombridade de despedir-se da humilde moscovita que o aquecera nos seus dias cinzentos às margens do Volga, baixa a crista. Mas seu livro tem um grande mérito: nos revela a cumplicidade com a tirania do escritor gaúcho tido como campeão da liberdade. Não por acaso, a universidade e imprensa gaúchas idolatram Erico.

A História é um lago que seca. Ao descerem, suas águas trazem à tona monstros insuspeitos. Todos os escritores gaúchos foram cúmplices da peste marxista, sem exceção. Dyonélio, por exemplo, após a evidência dos gulags, passou a escrever sobre a antiga Grécia. Tive um bom convívio com Dyonélio, paradoxalmente foi ele, materialista e marxista convicto, quem me introduziu nos estudos bíblicos. Mas quando eu queria levá-lo a falar sobre stalinismo, ele se retraía em sua concha: “Não vou dar argumentos para eles”. Ou seja, Dyonélio tinha conhecimento do que estava acontecendo. Aliás, quem não tinha?

Foi o mesmo movimento espiritual de fuga de Faraco, que refugiou-se em Urartu, na Armênia. Josué Guimarães foi caixeiro-viajante a serviço de Pequim e Moscou. Até as pedras da Rua da Praia sabiam que estes senhores eram comunistas, mas ai de quem o dissesse em público. Seria execrado como delator e expulso do rol dos vivos.

Covardes e omissos foram também todos os demais que, sem pertencerem ao Partido, silenciaram sobre os crimes do comunismo. Mário Quintana, por exemplo, refugiava-se em uma frase cômoda: “eu não entendo de problemas sociais”. Moacyr Scliar foi premiado pela ditadura de Fidel Castro. Ou seja, desde há muito se preparava para entrar na Academia Brasileira de Letras, aprazível reduto de viúvas do stalinismo. Já que estamos comentando o assunto: filho de Verissimo, Verissiminho é. Luis Fernando, o rebento, apóia toda ditadura, desde que de esquerda. Apenas dois gaúchos, em todos os cem anos do século passado, ousaram escrever contra a barbárie. Um foi o jornalista Orlando Loureiro, que publicou A Sombra do Kremlin. Procure nos sebos: editora Globo, 1954, dez anos antes da viagem do alegretense deslumbrado.

O outro é este que vos escreve, que tem denunciado o marxismo desde os dias em que Faraco passeava pelas ruas da nova Jerusalém.

Domingo, Abril 01, 2012


 

 

 

A 65ª

 

Não sou de comemorar aniversários. Antigo hábito de infância. Em meus pagos, tais festas não existiam. Nos dois últimos anos, no entanto, inventei de fazer um rápido balanço, a cada bilhão de quilômetros que faço em torno ao sol. Parece muito, mas cada vivente faz este percurso. Estou fechando hoje os 64 bilhões.

Ao completar a 62ª volta – já contei – fui premiado com um carcinoma de garganta. Como presente de Natal. De palato, mais precisamente. Olho por todos os lados e só vejo câncer matando os meus. Levou minha mulher, mais uma amiga querida, mais vários companheiros de bar. Sem falar nos que tentou levar, mas não levou. Sou um deles. Para dar uma idéia de como a peste me cerca, do pequeno grupo de sete amigos do qual participava em meus dias de Paris, cinco foram acometidos pela doença. Dois partiram, entre eles minha Baixinha.

Coisas da vida. Ou da longevidade, como dizem os médicos. Se antes havia menos mortes por câncer, é porque as pessoas viviam menos. Segundo o pesquisador indiano Siddhartha Mukherjee, o aparecimento do câncer no mundo é produto de uma dupla negativa: “ele só se torna comum quando todas as outras doenças mortais são combatidas. Médicos do século XIX costumavam associar o câncer à civilização: o câncer, eles pensavam, era causado pela correria da vida moderna, que de alguma forma estimulava o crescimento patológico no corpo. A associação era correta, porém a causalidade não: a civilização não é a causa do câncer, mas, ao prolongar a vida humana, ela o desvela”.

Assim sendo, consolemo-nos. De modo geral, câncer é sinônimo de larga quilometragem. Se você soube bem viver cada bilhão de quilômetros, o caranguejo é lucro. Lucro não desejado. Mas, paradoxalmente, sinal de longa vida.

Como todo aquele que passou por esta peripécia sabe, a doença só é dada por curada após cinco anos, durante os quais o afortunado (?) passa por controles periódicos. Nos primeiros, você vai com o coração na mão. E se der recidiva? Com o tempo, você vai baixando a guarda. Se não deu até agora, não dá mais. Toc, toc, toc!

Nos últimos dois anos, cumpri religiosamente todos os controles. Ano passado, tinha um em outubro. Mas também uma viagem engatilhada, rumo ao norte e ao Leste europeu. Insensato aquele que faz tal controle antes da partida. Sabe-se lá que bicho vai dar. E não é confortável viajar na companhia de um fantasma.

Viajei, então. Peguei um outono magnífico em Berlim, outro também soberbo em Copenhague, mais um outono esfuziante em Karlovy Vary, outonos mais discretos – mas nem por isso menos generosos - em Praga, Budapeste e Paris. Tomei vinhos cujo rótulo até hoje não consigo pronunciar, e este era meu critério para pedir um vinho. Funcionou.

Tomei de todas as águas – águas-de-vida, bem entendido – que encontrei. Descobri, na República Checa, a indelével Becherovka. Tomei-a no berço, Karlovy Vary, e também fora do berço, em Praga. Mergulhei nas Šljivovicas, ao som de violinos magiares. Me refestelei no Nyhavn, em Copenhague, degustando akvavits e passei sete dias em um bar divino em Budapeste, o Café New York, onde me senti no Vaticano, cercado por baldaquinos que lembravam os de Bernini. Explico os sete dias. O boteco ficava no hotel em que me hospedava. Café da manhã todos os dias e um arremate à noite, com o sangue das uvas húngaras.

Fui, bebi e voltei. A Coisa me esperava de torna-viagem. De novo, no Natal. Não era recidiva, mas carcinoma novinho em folha. De hipofaringe. Para meu espanto, não me assustei. E tratei de fazer o que tinha de fazer. Já fiz.

Meu primeiro contato com a doença data de meus dias de Porto Alegre, onde tive a ventura de namorar uma oncologista. Mulher de fibra, é pessoa cuja ausência hoje me dói. Em seu apartamento, ela me mostrava livros de medicina com fotos. E aqui já vai uma recomendação ao leitor: se você não é médico nem estudante de medicina fuja desses livros, para evitar pesadelos. As fotos que mais me assustavam eram as de pênis com tumores. Segundo ela, era um câncer rápido e de grande letalidade. Até aí, tudo bem. O pior eram as fotos.

Certo dia, me ensaboando sob a ducha, descubro um caroço duro na glande. Quase desmaiei. Me segurei na torneira e tratei de sair do banho. Para refletir ante a dura presença da morte. Lá pelo meio-dia, tomei uma decisão. Não vou contar pra ninguém. Nem para ela. E vou convidar a Baixinha para uma viagem à Europa.

Antes, é claro, fui a um médico. Ele apalpou-me, me chamou à sua escrivaninha e desenhou um pênis. Se cortarmos aqui... – disse, e fez um risco transversal no papel, cortando a glande. De repente, uma sudorese surgida do nada me inundou a camisa toda. Juro que senti na carne o frio do bisturi. Eu pingava por todos os poros, a camisa me colava ao tronco. O sádico terminou então a frase:

— ... temos uma secção transversal do pênis.

Ah bom! Ressuscitei. Mas a camisa continuava empapada de suor. Ele desenhou então um grânulo na parte decepada:

— O que você tem se chama doença de Peyronie, uma espécie de calo, muito comum em adultos. Não tem causa conhecida. Pode ser causado por pequenos traumatismos durante o ato sexual. Ou vai desaparecer ou vai ficar assim. Você não precisa preocupar-se. Na pior das hipóteses, é coisa que se trata com injeções de cortisona.

Ok! Mas o homem tinha um sinistro senso de humor. Ele não precisava fazer aquele corte brutal com a caneta. E deixar ainda aquelas pesadas reticências no ar. A deontologia médica devia proibir tais gracinhas. Foi meu primeiro susto. Bom, deixei a viagem para mais tarde. Não era urgente. E procurei distanciar-me da peste. Pedi a minha amiga que não me falasse mais, em nossos fins de tarde no Chalé da Praça XV, sobre sua rotina de consultório. Ela também não a suportou e dela tomou distância. Optou pela clínica geral em Torres.

Eu era jovem e pouco calejado. Reagi em direção à vida. Minha estratégia imediata foi viajar. Gozar junto à Baixinha meus últimos dias de vida. Beber mais umas, degustar outras paisagens e cozinhas. De certa forma, foi a atitude que tomei ano passado. Morrer? Talvez. Mas antes vou viajar um pouco. Peguei a Primeira Namorada em Berlim e saímos a trotar pelo planetinha.

Para conforto de alguns leitores – e para desconforto de outros tantos – estou bem. A radioterapia terminou há três semanas e já começo a ingerir sólidos. Aos poucos, estou voltando a meus bares e amigos. Verdade que o bem-bom da vida ainda não passa pela garganta. Este ano penso ir à forra e celebrar a cura longe daqui, nos botecos que adoro, com uma boa amiga. Viajarei não para curtir meus últimos dias. Mas para curtir esta vida teimosa, que insiste em continuar vivendo.

Tim-tim, leitor. Foi só um solavanco antes de começar esta 65ª volta em torno ao sol e já passou. À la prochaine!

Segunda-feira, Abril 02, 2012


 

 

O SANTO SUDÁRIO E O SAGRADO PREPÚCIO

 

Matéria fria, no jargão jornalístico, não é sinônimo de matéria desimportante. É apenas aquela que não está vinculada a um acontecimento e pode ser publicada a qualquer momento do ano. Matéria quente, ao contrário, é aquela que deve ser publicada já. Assim, a morte de um Fidel ou Ratzinger, por exemplo, constituíriam matérias quentes. Não por acaso, o necrológio destes senhores está pronto em todos os jornais, só falta colocar dia e hora do passamento. A Veja desta semana oferece ao leitor, em matéria de capa, uma matéria geladérrima, o Santo Sudário. Verdade que anuncia um livro, O Sinal, de Thomas de Wesselow, historiador de arte inglês, que deve ser lançado no Brasil, na próxima semana, pela Cia. de Letras. Mesmo assim, continua sendo matéria fria. Particularmente em semana de tantos e suculentos escândalos no Planalto.

O Santo Sudário, visto como uma prova da ressurreição do Cristo, é aquela peça de linho que mostra a imagem de um homem nu, que aparentemente sofreu traumatismos físicos de maneira consistente com a crucificação. Segundo a lenda, a primeira menção não-evangélica a ele data de 544, quando um pedaço de tecido mostrando uma face que se acreditou ser a de Jesus foi encontrado escondido sob uma ponte em Edessa. De lá para cá, após muitas idas e vindas, o linho acabou caindo na Catedral de Turim, onde está guardado desde o século XIV.

Por que seria o linho que envolveu o cadáver do Cristo? Porque a imagem do negativo fotográfico do manto, vista pela primeira vez em maio de 1898, através da chapa inversa feita por um fotógrafo amador, seria semelhante ao rosto do Cristo. E aqui já vai a primeira prova – e prova cabal – de que se trata de uma farsa. Pois não existe momento algum nos Evangelhos que descreva o rosto ou corpo de Jesus. A imagem física do Cristo foi forjada, através dos séculos, pela iconografia católica.

O próprio Vaticano não o reconhece como autêntico. Mas os papas sabem que o dito manto sagrado atrai devotos e o toleram como se autêntico fosse. Em 1988, a peça foi submetida a exames com o carbono 14, que situou o tecido como sendo da época entre 1260 e 1390. O desejo de crer dos crentes, no entanto, contesta a eficácia de tais exames.

O historiador inglês pretende ressuscitar a fama do sudário, hoje abalada pelas pesquisas. Segundo Wesselow, a relíquia não pode ser dissociada da cena bíblica narrada por São João Evangelista. Segundo a revista, na condição de mistério, aquele lençol foi no decorrer dos milênios a fagulha que ajudou a incendiar a propagação da fé cristã. O culto do Santo Sudário ajudou o cristianismo a superar sua condição de seita minoritária confinada aos rincões do Império Romano para se transformar na maior religião do planeta.

Diz Wesselow: “Já para os apóstolos o sudário foi tomado como a prova da Ressurreição de Cristo, e disso deriva sua extraordinária força de convencimento”. Ou seja, um pedaço de pano encontrado em tempos perdidos da História comprovaria a ousada bravata de Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” Para Paulo, se Cristo não ressuscitou, “nossa pregação e nossa fé são em vão”.

Portanto, o sudário é autêntico. Tem de ser autêntico, ou o cristianismo é uma solene mentira. Curiosamente, há três anos, Veja era mais cética. Em reportagem sobre o sudário, publicada em 05 de outubro de 2009, a revista anunciava:

“Cientistas italianos afirmaram nesta segunda-feira ter reproduzido o Santo Sudário. Segundo Luigi Garlaschelli, professor de Química Orgânica da Universidade de Pavia e responsável pela recriação do manto que teria envolvido o corpo de Jesus Cristo, o feito pode ser considerado uma prova de que o Sudário é uma farsa”.

Pretendem os teólogos que os exames de carbono 14 são imprecisos. Que sejam. Está ao alcance de qualquer leitor comprovar esta farsa. Besunte um linho qualquer com algum óleo ou graxa e coloque-o sobre seu rosto. Você verá que jamais chegará a obter aquele desenho harmonioso de um rosto que vemos no sudário. Enfim, há a tese – pelo menos mais lógica – de que o desenho final seja derivado de um milagre. Pode ser... desde que você acredite em milagres.

Matéria fria por matéria fria, prefiro uma outra discussão, que percorreu toda a Idade Média, a crucial questão de saber se o prepúcio de Cristo ficou na terra. Por diversas vezes ao longo da história, houve várias igrejas ou catedrais a reclamar a sua posse, algumas ao mesmo tempo. Há inclusive vários milagres atribuídos a esta relíquia. O menino era um só, mas aparentemente tinha vários prepúcios.

Segundo a Bíblia, só três personagens bíblicos subiram aos céus. Elias, no Antigo Testamento, e Cristo e Maria no Novo. A ascensão de Elias, em um carro de fogo, não gerou dogma. Dogmas foram a Assunção de Maria, curiosamente só oficializado em 1950, pelo papa Pio XII. A virgem, toda gloriosa, sobe aos céus, e a Igreja só reconhece o fato dois mil anos depois. Um outro dogma mais complicado é a Ascensão de Cristo, que “ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu em Corpo e Alma.” Os teólogos, especialistas em filigranas, tiveram de discutir um grave problema. Cristo era judeu. Como todo judeu, havia sido circuncidado. Ao subir aos céus, teria deixado o prepúcio na terra?

Corria o ano da graça de 1351. Uma grave discussão tomou conta das mentes da época, o prepúcio de Cristo. A discussão de fundo, em verdade, era outra. Em Barcelona, um guardião franciscano levantou a tese, em um sermão público, que o sangue versado pelo Cristo durante a Paixão havia perdido toda divindade, havia se separado do Verbo e ficado na terra. A proposição era nova e de difícil demonstração.

Nicolas Roselli, inquisidor de Aragon, aproveitou a vaza para atacar os franciscanos, que detestava, e a transmitiu a Roma. O cardeal de Sainte-Sabine, sob as ordens de Clemente VI, escreveu que o papa havia recebido com horror esta odiosa asserção. Sua Santidade, tendo reunido uma assembléia de teólogos, combateu em pessoa esta doutrina e conseguiu que fosse condenada. Os inquisidores receberam em todos os lugares a ordem de abrir os procedimentos contra aqueles que tivessem a audácia de sustentar esta heresia. O triunfo de Roselli foi completo. O infeliz franciscano barceloneta teve de negar sua tese, do alto da mesma cátedra em que a havia proferido.

Restou o problema do prepúcio. Segundo os franciscanos, o sangue do Cristo podia ter ficado na terra, pois o prepúcio extirpado durante a circuncisão havia sido conservado na igreja de Latrão e era venerado como uma relíquia sob os olhos do próprio papa e do cardeal. Um século transcorreu quando, em 1448, o franciscano Jean Bretonelle, professor de teologia da Universidade de Paris, submeteu a affaire à faculdade. Uma comissão de teólogos foi nomeada. Após sérios debates, tomou uma decisão solene, declarando não ser contrário à fé crer que o sangue vertido durante a Paixão tivesse ficado na terra. Por analogia, o prepúcio também. Ou seja, se Cristo foi aos céus, o Sagrado Prepúcio ficou entre nós.

De inhapa, estava resolvida também a questão do prepúcio. Que não tenha subido aos céus, me parece fora de qualquer dúvida. Já o sudário é uma questão de fé.

Abril 05, 2012


 

 

MAIS UM PRÊMIO NOBEL DESMORALIZA O NOBEL

 

Há mais de década venho afirmando que os prêmios Nobel da Paz e Literatura estão reunindo os mais ilustres canalhas do século. Nas útimas décadas, a coleta de canalhas vem se acelerando. Oslo e Estocolmo estão organizando um seleto clubinho de celerados. Ainda há pouco eu comentava o caso da bióloga e ativista queniana Wangari Maathai. Após a entrega do Nobel da Paz, a bióloga reiterou sua opinião, muito divulgada na África subsaariana, de que o vírus da Aids foi criado por cientistas para a guerra biológica, para dizimar os negros africanos, como se alguma nação no mundo ganhasse algo com dizimar negros na África. Afirmou também que o uso do preservativo não é eficaz contra a transmissão do vírus.

Comentei também o caso da presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, que recebeu o prêmio da Paz em 2011, junto com mais uma conterrânea e outra iemenita. Em março passado, Sirleaf defendeu a legislação que pune a homossexualidade com cadeia em seu país. “Temos certos valores tradicionais em nossa sociedade que gostaríamos de preservar”, afirmou Ellen, em depoimento divulgado pelo site do jornal britânico The Guardian.

Ao ser questionada sobre se assinaria alguma proposta que descriminalize o homossexualismo, a resposta da presidente foi negativa. “Já tomei uma posição sobre isso. Não assinarei essa lei ou nenhuma lei que tenha a ver com essa área, de maneira nenhuma. Gostamos de nós mesmos exatamente da maneira que somos.”

Isso sem falar em vigaristas outros como Arafat, Neruda, Dalai Lama, Luther King, Rigoberta Menchú, madre Tereza de Calcutá. A ignomínia contaminou agora Günter Grass, Nobel de Literatura em 1999. Não que Grass já não tivesse mostrado ao que vinha. Dois anos após receber o prêmio, dizia sobre o 11 de setembro: “os americanos fazem muita história por causa de três mil brancos mortos pelos soldados da Al-Qaeda”. Sete anos depois, confessou sua participação na Waffen-SS, força de elite com critérios de seleção baseados em cega fidelidade a Hitler e ao regime nazista.

Se em 1938 esta força tinha tinha apenas 7000 integrantes, em 1945 contava com 900 mil homens, muitos deles então recrutados entre cidadãos fiéis ao regime nazista em outros países europeus. As divisões da Waffen-SS participaram de campanhas na Áustria, Tchecoslováquia, Polônia e em países nórdicos, balcânicos e bálticos. Mas afinal se até Sua Santidade Bento XVI foi militante da Juventude Hitlerista, não podemos negar a um escritor não-católico o direito de participar das forças de elite nazistas.

Mas o prêmio já fora conferido. Nesta semana, Grass recidivou em seu anti-semitismo. Quarta-feira passada, publicou no Süddeutsche Zeitung um “poema” em que faz a defesa do Irã acusa Israel e suas armas atômicas de ameaçar a paz mundial. Ponho poema entre aspas, porque seu texto não passa de um panfleto vagabundo, belicoso e delirante. É de espantar a facilidade com que a imprensa, tanto nacional como internacional, assumiu sem questionar a palavra poema. Vai ver que foi por ter sido escrito em frases curtas, colocadas uma abaixo da outra. Há quem pense que um texto assim disposto é um poema.

Ahmadnejad proclama aos quatro ventos que Israel deve ser varrido do mapa e o “poeta”, impertérrito, escreve:

É o suposto direito a um ataque preventivo,
que poderá exterminar o povo iraniano,
conduzido ao júbilo
e organizado por um fanfarrão,
porque na sua jurisdição se suspeita
da fabricação de uma bomba atômica.

Ora, as pretensões iranianas ao armamento nuclear desde há muito são conhecidas. Ano passado, o Irã se dizia disposto a abrir suas instalações nucleares à inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica. Em fevereiro último, a AIEA parece ter-se aproximado demais da caverna do tesouro. No mesmo dia em que o governo recusou a inspeção da usina nuclear em Parchin pela agência, o general Mohammed Hejazi ameaçou um ataque preventivo contra os inimigos do Irã, ou seja, Israel. Os explosivos nucleares e gatilhos são produzidos em Parchin, daí a recusa do Irã. No fundo, Günter Grass traduziu em “linguagem poética” a bravata do general. Prossegue o “poeta”:

Por que me calei até agora?
Porque acreditava que a minha origem,
marcada por um estigma indelével,
me impedia de atribuir esse fato, como evidente,
ao país de Israel, ao qual estou unido
e quero continuar a estar.

Está unido ao povo de Israel e defende o vizinho que proclama publicamente sua pretensão de varrer o país do mapa. E ainda se dá ao luxo de denunciar a “hipocrisia do Ocidente”. Com amigos assim, dispensa-se inimigos. Grass pretende que os governos de ambos os países permitam o controle permanente e sem entraves, por parte de uma instância internacional, do potencial nuclear israelita e das instalações nucleares iranianas.

Ora, sobre o potencial nuclear israelita não paira dúvida alguma. Desde há décadas se sabe que o país domina a arma nuclear. O que se pretende investigar é se o país que quer varrer Israel do mapa está chegando à bomba.

Ontem ainda, Grass deu entrevista a uma rede de televisão pública, na qual até parece acreditar que escreveu um poema: “O tom geral dos debates não é entrar no conteúdo do poema, mas realizar uma campanha contra mim para que minha reputação fique deteriorada até o fim dos tempos”. O homem cava sua própria cova e acusa a imprensa de fazer campanha contra ele.

De nazista a comunista e de comunista a defensor do Islã, Grass não surpreende. Muda de ideologia, mas não de propósitos. Sob peles cambiantes, o eterno desejo de totalitarismo. Não há comunista hoje – falo dos fósseis ambulantes que ainda perambulam por aí – que não defenda o Islã. Até mulheres, que têm tudo para abominar um sistema que as oprime, quando comunistas tomam sua defesa.

E assim marcham os Nobéis da Paz e Literatura, desmoralizando aceleradamente o prêmio.

Abril 06, 2012


 

EU,ESTUPRADOR

 

Pronunciamentos de altas autoridades sobre temas como aborto, estupro ou drogas me deixam perplexo. Parecem ver a árvore e ignoram o bosque. Fingem ignorar, diria, pois não se pode ignorar o bosque inteiro atrás da árvore. A prática de aborto ou o consumo de drogas é livre no Brasil e há quem fale em descriminalizar o aborto ou a droga. Dezenas de milhares de adolescentes de menos de 14 anos têm vida sexual escancarada neste país e há quem fale em estupro presumido.

Aconteceu no final do mês passado. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que nem sempre o ato sexual com menores de 14 anos poderá ser considerado estupro. A decisão livrou um homem da acusação de ter estuprado três meninas de 12 anos de idade e deve direcionar outras sentenças. Diante da informação de que as menores se prostituíam, antes de se relacionarem com o acusado, os ministros da 3.ª Seção do STJ concluíram que a presunção de violência no crime de estupro pode ser afastada diante de algumas circunstâncias.

Escândalo entre as autoridades. A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, manifestou sua indignação com o entendimento do STJ. Para Maria do Rosário, os direitos das crianças e dos adolescentes jamais poderiam ser relativizados. “Ao afirmar essa relativização usando o argumento de que as crianças de 12 anos já tinham vida sexual anterior, a sentença demonstra que quem foi julgada foi a vítima, mas não quem está respondendo pela prática de um crime”, disse a ministra à Agência Brasil.

Para a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a decisão é uma afronta ao princípio da proteção absoluta de crianças e adolescentes, garantido pela Constituição Federal. Em sessão na terça-feira, a Terceira Seção da Corte considerou que atos sexuais com menores de 14 anos podem não ser caracterizados como estupro, de acordo com o caso. Na opinião do presidente da associação, o procurador regional da República Alexandre Caminho de Assis, a decisão é um salvo-conduto à exploração sexual. “O tribunal pressupõe que uma menina de 12 anos estaria consciente da liberdade de seu corpo e, por isso, se prostitui. Isso é um absurdo”.

Até o alto comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos resolveu dar seu palpite sobre o assunto. Em um comunicado, o escritório da ONU para a América do Sul diz que a decisão do STJ abre um precedente perigoso e discrimina as vítimas.

Em que planeta vivem estes senhores? Ano passado, o Estado de São Paulo publicava dados do Censo Demográfico de 2010, segundo os quais existem ao menos 42.785 crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos casados no Brasil. O número refere-se a uniões informais, já que os recenseadores não checam documentos.

A maior parte dos casamentos de crianças registrados no Censo são informais, já que o Código Civil autoriza uniões apenas entre maiores de 16 anos - abaixo dessa idade, só podem se casar com autorização judicial. O Código Penal, por outro lado, proíbe qualquer tipo de união com menores de 14 anos.

“Isso constitui um crime chamado ‘estupro de vulnerável’, previsto no Código Penal e sujeito a detenção de oito a 15 anos”, diz Helen Sanches, presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP).

Segundo ela, o crime se refere diretamente às relações sexuais mantidas com crianças e adolescentes, algo implícito quando se fala em casamento. Helen conta que é cada vez mais comum encontrar famílias nos fóruns pedindo autorização para casar uma filha adolescente ou mesmo passar a guarda dela para o seu parceiro, sem saber da proibição legal. “Quando isso acontece e a menina tem menos de 14 anos, o promotor, além de não acatar o pedido, pode denunciar o rapaz por estupro de vulnerável, mesmo que a relação seja consentida ou que os pais concordem com ela”, explica.

Ou seja, temos 42.785 estupros presumidos. A máquina judiciária pretenderá por acaso pôr atrás das grades os 42.785 estupradores? Claro que não! Que termine então essa hipocrisia de pretender punir quem tem relações consensuais com menores de 14 anos. O mundo mudou e a lei permaneceu fossilizada no tempo. Não vai nisto uma defesa de relações com criancinhas, como pretendem os degenerados liderados por Aiatolavo de Carvalho. Mas uma menina de 14 anos, no Brasil, arrisca ter largo currículo sexual.

Já comentei várias vezes o caso de um encanador de Minas Gerais, que foi acusado nos anos 90 pelo estupro de uma menina de doze anos. Segundo a legislação vigente, relações com menores de quatorze anos, mesmo consensuais, são consideradas estupros. A menina afirmou em depoimento ter consentido com a relação sexual. “Pintou vontade” — disse. Uma legislação vetusta, que considera estupro toda relação — consentida ou não — com menores de quatorze anos, havia encerrado no cárcere o infeliz que aceitou a oferta.

Coube ao ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), absolver, em 96, o encanador. Na ocasião, o ministro foi visto como um inimigo da família e da moralidade pátria. Nosso Código Penal é defasado — disse o ministro — e os adolescentes de hoje são diferentes. Sugeriu um limite de doze anos para a aplicação da sentença de violência presumida. “Quando esse limite caiu de dezesseis para quatorze, na década de 40, a sociedade também escandalizou-se”, afirmou. O direito é o cadinho histórico dos costumes, aprendi em minhas universidades. A fundição é lenta. Enquanto o legislador dormia, os tempos mudaram.

Como condenar alguém por estupro alguém que se relaciona com meninas de doze anos que se prostituem? É óbvio que a relação foi consensual. Provavelmente terá sido procurada pelas meninas. É crime que clama aos céus justiça ver meninas de doze anos prostituídas? Claro que é. Mas que se procure outro réu, que se crie outra tipificação jurídica para punir este crime. Que não se puna um homem que cometeu o mesmo gesto que pelo menos 42.785 – e obviamente serão muito mais – outros brasileiros cometeram.

Há uns dois ou três anos, recebi mail de uma jovem, adorável e bem-sucedida vovó, que evocava nossas loucuras de juventude. “Fui uma de tuas namoradas mais precoces, não é verdade? Lembras que te disse que tinha 14 anos? Eu menti. Tinha treze. Não queria te assustar”.

Serei, por acaso, um estuprador?

Abril 07, 2012


 

 

OLHA E PASSA!

 

Quando me perguntam por minha cidade, tenho de explicar que nem em cidade nasci. Nasci no campo, em época em que não havia rádio nem televisão, e jornais obviamente não chegavam lá. Nasci longe de qualquer informação. As escassas notícias que recebíamos do mundo, tínhamos de buscá-las no município mais próximo, Dom Pedrito. Onde tampouco havia muitas notícias do mundo. Nasci, em verdade, em um deserto de informação.

Discutindo o tal de FIB, índice de Felicidade Interna Bruta, achado do Butão que está em célere implantação pela Fundação Getúlio Vargas, eu falava há algumas semanas das vantagens de morar em São Paulo em relação aos que habitam Santa Maria. Conheço as duas cidades e a mim não ocorreria compará-las. Se falei em ambas foi por ter sido o exemplo proposto pela FGV. Dizia um de meus interlocutores que, sendo cidadão do mundo, eu teria de aceitar que em Sampa me sinto mais confortável, mas se morasse em Santa Maria “não deixaria de ser o cara viajado e aberto aos bares do mundo como ele se declara”.

Sim e não. Nada impede que um santa-mariense seja um trota-mundos. Mas sempre lhe faltará informação. (Ou melhor, me corrijo: lhe faltava informação. Os tempos mudaram e a Internet nos transporta ao mundo todo. Ocorre que eu falava dos dias pré-internéticos, aqueles em que nasci e me criei). O grande drama da cidade pequena, como também do campo, sempre foi a falta de informação. E de comunicação, diria. Falo da comunicação entre pessoas. Os homens d'antanho buscavam as cidades para ouvir mais vozes.

Faltando informação, não há muito a comunicar. Neste sentido, a cidade pequena continua carente. A cidade grande tem mais opções e, conseqüentemente, amplia a mente de seus habitantes. E as ambições, é claro. Isso sem falar nas coisas que a Internet não transmite. Gastronomia, por exemplo. Para quem vive em São Paulo, sem ir mais longe, Santa Maria é um breve contra a gula. Restaurantes escassos e precários, que deixam de servir às duas da tarde e comida sem muita elaboração.

Aqui perto de casa, na praça Vilaboim, em uma extensão de cento e poucos metros, há um restaurante francês, dois italianos, um alemão, dois japoneses, um brasileiro, um mexicano, um americano, um árabe, uma sorveteria da Häagen Dazs. E mais uma padaria, lembrando que padaria em São Paulo é mais uma loja de delikatessen que padaria. Muitas são restaurantes. Ali, tenho oito opções de culinária a poucos metros de distância uma da outra. Isso sem falar em meu bairro e – last but not least – na São Paulo toda. Talvez daqui a um século, Santa Maria chegue lá. (Ao nível da Vilaboim, saliento).

Certo dia, em Santa Maria, fui almoçar no Augustus com uma sobrinha. Devo ter chegado lá pelas 13h30. Como não como sem antes aperitivar, lá pelas duas ainda não havia pedido o prato. A los dos en punto de la tarde, o restaurante se esvaziou. Um garçom me olhava angustiado no balcão. Chamei-o. Escuta aqui, companheiro, queres ir embora, não é isso? É! Então faz o seguinte: me serve, me abre um vinho, me passa a conta e vai tratar de tua vida. Eu fecho o restaurante. Ele topou. Gostei da fórmula. Dia seguinte, fui lá de novo, com outra amiga. Fiz a proposta já na chegada. Conversando, a gente se entende.

Se as pessoas podem ser felizes em Santa Maria? Claro que podem. Até em Dom Pedrito há pessoas felizes. Minha professora de francês dos dias de ginásio – hoje perto dos 80 e com uma vitalidade extraordinária – vive feliz em Dom Pedrito. Não diria que totalmente feliz, porque considera a cidade muito grande e muito agitada. Gostaria de se refugiar em cidade menor. Quando passo por lá, em três dias me entedio como uma ostra em sua concha. Preciso ir a Rivera para respirar um pouco e comer algo decente. O que estou afirmando, no fundo, é que é mais confortável viver em cidade grande. Abre mais os horizontes. Uma criança nascida e educada aqui, obviamente tem mais cancha que outra nascida e educada no interior do Rio Grande do Sul.

Se eu morasse em Santa Maria me sentiria muito desconfortável. Sem falar em gastronomia, não teria imprensa que preste. Hoje temos Internet, mas nem sempre foi assim. Muito menos a diversidade de livrarias, cinemas e teatros daqui. (Verdade que não vou a teatro, mas é bom que tenha). Filmes e livros que chegam aqui jamais chegarão em Santa Maria. Aí – onde aliás tenho dois ramos de minha família e amigos dos tempos de faculdade - a fauna humana tampouco é diversificada. Há algum tempo, em meu boteco, eu conversava com um correspondente internacional da Folha de São Paulo. Dali a pouco, chegou um professor de grego da USP. Mais alguns minutos, e reuniu-se ao grupo um professor de latim. Todos jovens. Perguntei ao professor de grego porque fizera aquela opção. “Porque queria ler Platão no original”. Temos de convir que encontros assim, ao sabor do acaso, são inviáveis em Santa Maria.

Outra grande vantagem de São Paulo é que não preciso ir a São Paulo para embarcar para Paris. Santa Maria está estrangulada pela escassez de transportes. Por avião, só aqueles teco-tecos da NHT, que fazem, creio, três vôos por semana. Os professores da UFSM se constrangidos quando, ao trazerem algum professor estrangeiro, têm de buscá-lo de carro em Porto Alegre. Ou jogá-lo em um ônibus. Para uma cidade que se pretende universitária, isso é muito pouco. Quando eu vivia aí, meu horizonte máximo era Porto Alegre. Talvez São Paulo. Depois, era o fim do mundo. Hoje, o mundo termina bem mais longe.

Sim, se eu morasse em Santa Maria, talvez tivesse viajado muito. Mas não tanto. Certamente seria aberto aos bares do mundo, mas esses bares estariam bem mais longe de mim do que estão hoje. Ainda há pouco, a Veja trazia em suas páginas amarelas entrevista com o urbanista Edward Glaeser, intitulada “Quanto mais gente melhor”. Entrevista que, obviamente, jamais seria feita por um repórter de A Razão, o vibrante matutino santa-mariense. Perguntava o repórter:

— Como o senhor rebate a turma que o considera um idealista do indefensável, a qualidade de vida nas grandes cidades?

Responde Glaeser:

— Ao contrário desses que se deixam levar por uma visão romanceada da vida longe das zonas urbanas, eu prefiro olhar os números. Eles mostram claramente que, sob diversos aspectos essenciais para a vida humana, não há lugar melhor para viver do que uma grande cidade. Pois é justamente em ambientes de enormes aglomerações que os mais variados talentos podem viver e aprender entre si, potencializando ao máximo sua capacidade criadora e inovadora. Aumentam assim, exponencialmente, as chances de ascender, ganhar mais e ter mais acesso ao que há de mais avançado. No passado, cidades como Nova York, Londres e Tóquio viviam de suas fábricas e de seu comércio. Hoje, são principalmente impulsionadas pelas idéias concebidas por seus milhões de habitantes. Jovens empreendedores de toda parte não querem fincar seus escritórios no campo ou em uma cidade bucólica, mas no Vale do Silício, para esbarrar com executivos do Google e se beneficiar da intensa rede de contatos que brotará daí. Nos formigueiros humanos é que está a riqueza.

Assino embaixo. Não pretendo negar as reservas de humanidade do homem que vive na cidade pequena. Nelas há mais tempo para a reflexão. Tampouco somos atocaiados pelos pássaros ávidos da fama. Há também mais tempo para a vida familiar, o que a mim pouco ou nada diz. Considero a família uma fortaleza de egoísmo, como dizia Alberto Moravia, onde os pais são os generais e os filhos são os soldados. Tenho uma acepção distinta de família. Para mim, são os amigos que reuni ao longo de minha vida, e hoje vivem mais esparramados que filhotes de perdiz. Minha família exige espaço para respirar.

Diga-se de passagem, encontro um encanto particular nas cidades pequenas. Não nas nossas, relativamente jovens e muito sem graça. Mas sempre procuro visitar, quando ando por perto, cidades como Toledo, Salamanca, Ronda, Cuenca, Siena, Amalfi, Taormina. São prenhes de história, o passado pinga de suas paredes.

Gosto de visitá-las, mas rapidinho. No máximo, esquento banco por dois dias. Mais do que isso, me entedio. Nas metrópoles, cada esquina é uma novidade. Em 86, morei por um curto período em Montparnasse, em Paris. Tentei um dia traduzir, em um texto, uma esquina do bairro. Não consegui. A diversidade era tal e tamanha que exigiria um livro.

Konstantinos Kaváfis (1863 – 1933) é um poeta grego, nascido na Alexandria, Egito. Tem obra curta, 154 poemas reelaborados durante a vida inteira, que unem citações eruditas à fala cotidiana. Pouco conheço da obra de Kaváfis, mas um verso dele para mim constitui divisa:

— A cidade pequena, olha e passa.

Abril 09, 2012


 

 

HISTORIADOR DENUNCIA PITBULLFOBIA

 

Estas histórias são aquelas que os cães contam quando as chamas das fogueiras sobem alto e o vento norte sopra. Então, os círculos familiares reúnem-se cada um em torno da sua lareira, e os cachorros sentam-se em silêncio e escutam. Quando a história chega ao fim fazem muitas perguntas:

— O que é o homem?

Ou talvez:

— O que é uma cidade?

Ou ainda:

— Que é uma guerra?

Não há nenhuma resposta concreta para qualquer destas perguntas. Há suposições, teorias e muitas hipóteses, mas respostas, não.

 

Trecho de City, de Clifford Simak, traduzido ao português como As Cidades Mortas. A Humanidade decide deixar a Terra, desistir da sua forma humana e viver transformada em uma espécie de lagarto na superfície de Júpiter, recuperando assim a felicidade de uma vida simples. O que sobrou dos humanos vai morrendo aos poucos.

Apanho uma sinopse na rede. Dez mil anos depois, a civilização canina se espalhara por toda a Terra, incluindo o resto dos animais que, pouco a pouco, foram incluídos pelos cães na sua civilização. Todos eles são muito inteligentes, e tinham sido assim durante todo o tempo, embora os seres humanos não tenham sido capazes de perceber isso. Esta civilização é pacifista e vegetariana. Nesta ficção, os narradores são cães, que formam uma sociedade pacífica, e regularmente contam as velhas lendas sobre sua origem para seus filhotes. A lenda que mais os intriga é aquela que fala de uma criatura conhecida como ”homem”.

Fosse eu concluir a narrativa de Simak, passaria a palavra ao pitbull decano dos historiadores caninos.

— Os homens, pelo que sabemos a partir da arqueologia, constituem uma raça patética, com muita vontade de acertar, é verdade, mas sempre com resultados desastrosos. Durante séculos, conviveram com a mais nobre das espécies, a canina. Até surgir a era simbiótica, quando os cães foram escravizados e utilizados para o trabalho, caça, defesa e mesmo lazer. Nossos antepassados, sem consciência de classe ou raça, aceitaram docilmente esta condição. Foi um humano, Bruce Webster, quem nos forneceu cirurgicamente um mecanismo para a fala e uma visão aperfeiçoada. Conquistada a fala, conquistamos nossos direitos, ignorados durante milênios pelos humanos. Nosso tipo de inteligência e raciocínio nos levou a pensar de forma diferente do homem, abrindo caminho para uma nova evolução.

— Naquela época de trevas, chegamos a ser vistos como inimigos dos humanos. Um obscuro líder religioso, de nome Maomé, decretou nossa morte. Os árabes nos consideravam impuros porque, em épocas de crise, comíamos restos e carniça. Entre eles, durante muito tempo causou espécie o hábito ocidental de dar nome a cães. Quando queriam insultar alguém, chamavam-no de “cão infiel”. Pediram nossa expulsão de várias cidades da Europa, onde tínhamos conquistado considerável status. Pior que ser cachorro, era ser cachorro preto. Se alguma misericórdia podia ser concedida aos cães, aos cães pretos misericórdia alguma era permissível. Tinham de ser mortos, prioritariamente. Na dita cultura ocidental, vivemos no entanto bom momentos.

— Ocupamos espaço em disciplinas que os humanos chamavam de arte e poesia, ganhamos monumentos e túmulos. Nos instalamos na mitologia e na literatura. No final do século XX, conseguimos desbancar os humanos na simpatia dos humanos. Parece que, decepcionados com o comportamento de seus semelhantes, passaram a nos dedicar mais estima do que a eles próprios. Nossa estratégia foi simples: bastava abanarmos o rabo quando nos afagavam. Os humanos, quando afagados, muitas vezes reagiam com violência.

— Passamos então a gozar de privilégios antes só concedidos a humanos: culinária especial, hotéis, institutos de beleza, médicos especializados, psicanalistas e cuidados hospitalares. Éramos submetidos a tomografias computadorizadas e ressonância magnética, ao mesmo título que os humanos. Não mais comíamos restos de cozinha, mas chefs tratavam de nossos estômagos. Não poucos humanos morriam nas ruas de doenças decorrentes da indigência e da fome, mas a nós, caninos, nunca faltaram cuidados. Passamos a ser sujeito das legislações. Abandonar uma criança era crime tolerado. Abandonar um canino, crime hediondo.

— No início do século XXI, alguns milênios antes do desaparecimento da raça humana, um fugaz fenômeno entusiasmou nossos antigos senhores, a Internet, uma rede eletrônica de comunicação que pretendia aproximar os humanos de si mesmo. O resultado foi paradoxal: afastou-os uns dos outros e aproximou-os ... dos cães. A morte de um canino passou a ser mais chorada que a de um humano. Fêmeas humanas sem filhotes passaram a adotar os nossos. Nosso padrão de vida subiu consideravelmente, muito além do padrão gozado por milhões de humanos no planeta. Os caninos tornaram-se o centro das atenções humanas, em detrimento do próprio ser humano. Havia inclusive mulheres que renunciavam a viagens e visitas a amigos para não ter de abandonar seus entes queridos.

— Alguns espécimes de nossa raça andaram, é verdade, em momentos de desequilíbrio emotivo, estraçalhando e mesmo comendo alguns humanos, preferentemente seus filhotes. Curiosamente, humano algum condenou estes ocasionais exageros. Pelo contrário, reuniam-se em redes sociais para condenar qualquer agressão humana, por mínima que fosse, a nossos semelhantes.

— Viciados por um maniqueísmo ancestral, os humanos nos dividiram em duas facções antagônicas, os cães do bem e os cães do mal. Por cães do bem, entendiam-se aqueles cãezinhos fofos e frágeis, que substituíam amigos e filhos para mulheres carentes. Os machos humanos eram de difícil trato, não se deixavam manipular nem domesticar. Os cãezinhos fofos e frágeis também tinham suas idiossincrasias, mas sabiam fingir docilidade. Na hora de passear pelas cidades, eram eles que decidiam seus rumos e arrastavam, altaneiros, seus donos pelas cordas que os conduziam. Sem nada exigir, impunham horários e ritmos de vida àqueles que julgavam controlá-los.

— Já os mais dotados e valentes de nossa raça, pitbulls, buldogs, schäferhunds, rotweillers, filas, fomos ostracizados e jogados nas hostes dos cães do mal. Só porque temos boas presas, fomos comparados a facínoras armados, motoristas bêbados, assassinos inveterados. Nossas raças passaram a carregar os estigmas de grupos religiosos extremados da época. Se um crente do Islã – religião que dominou o planeta antes que os humanos o abandonassem - em um momento de desvario, matava três ou quatro mil pessoas, todos os demais islamitas eram responsabilizados. Só porque algum pitbull, cá e lá, matou um humano, nossa estirpe toda foi estigmatizada. Não éramos mais cães. Passamos a ser feras. E como todas as feras, imprevisíveis, capazes de atacar pessoas e feri-las.

— Um episódio já quase esquecido pelos séculos serviu para resgatar nossa dignidade. Ocorreu nos primeiros lustros do XXI. Em uma capital de um ignoto país chamado Rio Grande do Sul – Porto Alegre, ou talvez Pouso Alegre, conforme os historiadores – um dos nossos morreu como mártir em um campus universitário. Dada nossa má reputação histórica, éramos obrigados por lei a portar focinheiras, enforcadores e guias. Uma pitbull, que passeava pelo gramado desprovida destes freios, foi mal interpretada quando dirigiu-se, um pouco entusiasticamente, a um vigia da universidade. Que a fuzilou sumariamente.

— O caso invadiu as ditas redes sociais. Humanas que jamais moveram um dedo em defesa de seus semelhantes, tomaram as dores de nossa mártir. Na época, minorias raciais, religiosas ou eróticas eram perseguidas por espécimes de outras raças, crenças ou preferências sexuais. Estes sentimentos tomaram denominações diversas, tais como preconceito, homofobia, xenofobia, islamofobia. Na hoje extinta Porto Alegre, ocorreu naqueles dias a percepção que tais sentimentos não se dirigiam apenas aos humanos, mas também aos caninos. Uma evidente pitbullfobia era alimentada pelos humanos extremados.

— Do episódio de Porto Alegre resultaram as leis antipitbullfobia, vigentes durante cerca de um milênio, último resquício de dignidade dos humanos antes de seu desaparecimento da face da terra.

Abril 10, 2012


 

 

ANENCÉFALOS CATÓLICOS PROTESTAM
CONTRA O ABORTO DE ANENCÉFALOS

 

Difícil entender as posições da Igreja Católica em duas questões em debate no Judiciário, aborto e homossexualismo. Difícil de entender porque não constituem dogmas para os católicos e muito menos ameaçam suas crenças. Ser homossexual faz parte do mundo contemporâneo, como também abortar, e nem por isso o Vaticano ou o cristianismo foram abalados. Lutar contra estes dois fenômenos é lutar contra o amanhecer. Não faz sentido, hoje, determinar com quem deve ter relações uma pessoa, ou pretender que uma mulher dê continuidade a uma gravidez não desejada.

Nada contra lutar por causas perdidas. O que se condena é lutar por causas injustas. O problema da Igreja parece ser a eterna saudade da teocracia. Daqueles radiosos tempos em que as leis de Deus e as leis humanas constituíam uma só e única coisa. Inveja do Islã, onde os sacerdotes determinam o que é ou não legal. Desde há muito, no Ocidente, o Estado separou-se da Igreja. Mas a Igreja tenta, sempre que pode, imiscuir-se nas coisas do Estado. A tentação é ancestral, está no gene de cada padre.

Em fevereiro de 2008, sob o lema “Escolhe, pois, a vida”, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou sua maior ofensiva contra a proposta de legalização do aborto no País. Também estão sendo combatidas quaisquer intenções de se permitir eutanásia e pesquisas com embriões humanos. Pouco ou nada tenho a acrescentar ao que escrevi na época.

Não por acaso, foi na primeira década de 2.000 que se intensificaram as denúncias de pedofilia na Igreja de Roma, quando acordos financeiros atingindo centenas de milhões de dólares foram feitos com muitas vítimas. A campanha generalizada contra o aborto soa como uma manobra de diversão, coluna de fumaça para acobertar as acusações de pedofilia. Acuada pelos abusos sexuais de seus ministros, a Igreja contra-ataca com o tal de “sim à vida”. Contra-ataque um tanto tardio, já que durante séculos a Santa Sé não teve objeção nenhuma ao aborto.

Que a Igreja seja contra aborto, eutanásia ou pesquisas com embriões humanos é perfeitamente admissível. O que a Igreja não se admite é pretender que todas as sociedades pensem da mesma forma. A Igreja um dia ameaçou com a fogueira o homem que disse não ser a Terra o centro do universo. Que a Igreja ache que a Terra é o centro do universo é um direito seu. Pode até achar que o Cristo nasceu de uma virgem e subiu aos tais de céus, que ninguém sabe onde ficam. O que a Igreja não pode é pretender que a humanidade toda participe de tais crendices.

Nossos purpurados parecem esquecer que a Igreja, durante séculos, admitiu o aborto. Que dois de seus campeões, são Tomás e santo Agostinho, não consideravam o aborto um assassinato. Segundo o aquinata, só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. Para o Doutor Angélico, como o chamam os católicos, a chegada da alma ao corpo só ocorre no 40º dia de gravidez. A posição de Aquino sobre o assunto foi aceita pela igreja no Concílio de Viena, em 1312.

Foi apenas em pleno século XIX, em 1869 mais precisamente, que o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize. O que me espanta neste debate é que não vemos, na grande imprensa, um mísero jornalista que contraponha a este episcopado analfabeto a doutrina clara dos santos da Igreja. Se os católicos se pretendem contra o aborto, deveriam começar destituindo seus santos da condição de sapiência e santidade.

Seja como for, pecado é conceito que diz respeito apenas aos crentes. A Igreja pretende hoje que o aborto seja crime. Ora, crime é o que a lei define como crime. Não é a Igreja quem elabora as leis de um Estado laico. Que a Igreja defina o que é pecado é direito seu. Lei é outro departamento. Se no Brasil o aborto hoje é crime, não o é na Itália, França, Espanha, Alemanha, Suíça, Reino Unido, Finlândia, Suécia, Dinamarca, Grécia, Portugal, Estados Unidos, Canadá, etc. E se amanhã o legislador brasileiro decidir que aborto não é crime, aborto não mais será crime. Quanto aos padres, que enfiem suas violas no saco. Brasil não é Irã ou Arábia Saudita, onde os religiosos fazem a lei.

O Supremo Tribunal Federal aprovou hoje a descriminalização da interrupção da gestação de anencéfalos. Até então, a regra era uma mulher ter de carregar no ventre um quase-cadáver, para vê-lo morrer logo após o parto. A mulher não dava à luz. Dava à morte. Se quisesse abortar, tinha de recorrer ao judiciário e muitas vezes o filho já havia nascido e morrido antes de qualquer decisão.

Imaginemos a tortura dessa mãe, que só parirá para ver o filho morto. Há quem alegue que os anencéfalos podem viver até um ano ou pouco mais. Pior ainda. Durante esse tempo todo, a mulher terá de sofrer a morte do filho a toda hora, a qualquer momento. Mais ainda, terá de acalentar todos os dias uma espécie de vegetal, sem perspectiva alguma de vida compatível com a vida.

Desde o dia anterior ao início do julgamento, um grupo de anencéfalos religiosos – que adquiriram a deficiência quando adultos, casos não muito raros na medicina, encontradiços em igrejas e templos - fez vigília em frente ao prédio do STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Os anencéfalos católicos se uniram a anencéfalos evangélicos e anencéfalos espíritas em orações, pedindo que os ministros do STF rejeitassem a descriminalização do aborto em caso de fetos similares. Os religiosos carregaram imagens de Nossa Senhora de Fátima e de Nossa Senhora Aparecida, além de crucifixos, cartazes com imagens de fetos e faixas apelando pelo direito à vida. Homens podem se dar a esse luxo. Não correm o risco de uma gravidez. Todo católico professa o amor. Mas se exige muita crueldade para defender a continuidade de vida de um ser humano reduzido à condição vegetal.

A solução é simples, caríssimos. Os cristãos consideram crime o aborto de anencéfalos? Que portem então os quase-cadáveres até o umbral da vida quando for o caso. Mas não pretendam obrigar ao sofrimento e à tortura quem não participa de suas crenças.

Abril 12, 2012


 

 

DIVERTIDA CIÊNCIA, A CONTEMPORÂNEA

 

Cientistas descobriram que as mulheres podem ter orgasmos apenas com relações sexuais, dispensando a estimulação do clitóris. E que estes dois orgasmos são totalmente diferentes. As informações são do jornal britânico Daily Mail. Mais um pouco os cientistas acabam descobrindo a América. Descobriram também que o ápice do prazer sexual da mulher acontece no cérebro, que transmite sensações no corpo. Mais um pouco e descobrirão que sem cérebro não há prazer sexual.

O que me lembra uma antiga piada, a do cientista português. Cortou as pernas de uma pulga e mandou a pulga pular. A pulga não pulou. Conclusão óbvia: as pulgas têm os ouvidos nas pernas. As pesquisas científicas contemporâneas – ou ditas científicas – me divertem. Que se pesquise o desconhecido, entendo. Daí a pesquisar o óbvio, vai uma longa distância.

Segundo o artigo, o primeiro anatomista a fazer referência a essa parte do corpo feminino foi Ronaldo Columbus, em 1559, quando o descreveu como a “cidade do amor”. Se assim foi, o Ocidente descobriu tarde a América. No Kama Sutra, escrito entre 100 e 400 d.C., Vatsyayana já conhecia esta cidade. Consta que o filósofo francês René Descartes, 100 anos depois de Columbus, achou que tivesse feito a descoberta. Não duvido. Para quem concluiu que só existia porque pensava, nada de espantar. Para ele, sem o prazer clitoriano, as mulheres não se submeteriam à maternidade. Ou seja, o pensador francês desconhecia aquele outro prazer, que alguns cientistas parecem ter redescoberto agora. Deve ter mantido uma respeitosa distância das mulheres em sua vida.

Depois disso, o clitóris teria caído no esquecimento por muitos anos, até que em 1884, George Cobald publicou uma série de desenhos que não poderiam mais ser negligenciados pela ciência. Ora, desenho não prova nada. Fosse uma foto, vá lá. Posso muito bem desenhar um centauro. Ou um anjo. Melhor seria observar o fenômeno in loco. O que não parece ter ocorrido a Cobald.

Mas deixemos a cidade do prazer em repouso. Os cientistas, infatigáveis, continuam afirmando bobagens. Leio no jornais de hoje que babuínos aprenderam a 'ler' em um experimento, isto é, conseguiram distinguir entre palavras verdadeiras e seqüências aleatórias de letras na tela do computador. Cientistas da universidade Aix-Marseille, na França, conseguiram treinar meia dúzia deles para que reconhecessem quando letras na tela de um computador formavam uma palavra de verdade e quando eram só sequência sem sentido.

Os babuínos foram treinados para usar telas de computador sensíveis ao toque. Diante deles apareciam palavras sempre com quatro letras (por exemplo: “wasp”, vespa) ou então combinações artificiais de quatro letras que não eram palavras. Os macacos passavam por sessões de teste que incluíam 25 apresentações de uma nova palavra, 25 palavras já aprendidas e 50 pseudopalavras. Se acertassem uma palavra, recebiam uma recompensa de comida. Após o treino, os bichos alcançaram precisão em torno de 75% nos testes.

Os babuínos, suponho que de boa cepa francesa, após treinamento de um mês e meio, receberam palavras em inglês, sendo algumas delas inexistentes. Surpreendentemente, os macacos souberam distinguir o que fazia ou não sentido. Os babuínos não estavam lendo, pois não sabiam o significado do que estava escrito. Mas os resultados mostram que eles dividem as palavras ao invés de apenas memorizar seu formato como um todo, explicou Grainger.

Perguntinha de quem não entendeu bem o teste: que é uma falsa palavra? A meu ver, palavra nenhuma é falsa. É palavra ou não é palavra. Um conceito pode ser falso, uma definição também. Mas toda palavra, por estranha que soe, é uma palavra. Pode ser desconhecida para quem a lê. Mas continua sendo palavra. Na Folha de São Paulo, tivemos o caso célebre, não de um símio, mas de uma jornalista, que desconhecia a palavra soez, pronunciada por Fernando Henrique. Nem por isso a palavra deixava de existir.

Jonathan Grainger, o principal autor do estudo, tenta estabelecer a principal diferença entre palavras e pseudopalavras. Reside no número de vezes que certas combinações de letras aparecem. Assim, por exemplo, a seqüência ‘wa’ pode ser vista mais várias vezes, em palavras como walk, ward e wall, diz o especialista. Já as seqüências ‘wr’ ou ‘wh’ são mais raras no inglês. Seriam então pseudopalavras?

Ora, não queiram os cientistas me convencer de que os babuínos franceses eram poliglotas. Se até mesmo Monsieur Dupont desconhece palavras rudimentares do inglês, me permito duvidar que um símio as reconheça. E se na telinha estiverem reproduzidas palavras como struldbrugs, tramecksan, slamecksan ou houyhnhnms? Duvido que os macacos as reconheçam, já que certamente milhões de franceses as ignoram. E no entanto existem.

Neste sentido, qualquer neologismo não seria palavra. Mas neologismo é palavra, ao mesmo título que as demais. Se um macaco reconhece uma seqüência de duas letras, isto não quer dizer que esteja reconhecendo uma palavra. Memorizou uma forma gráfica. Mais ou menos como mostrar círculos e quadrados e recompensar o reconhecimento de uma destas formas com alimento.

Há um secreto desejo, entre os cientistas contemporâneos, de conferir alguma parcela de humanidade a animais, particularmente aos símios. (Já nem falo dos cães, que hoje gozam de mais estima entre os seres humanos que os próprios seres humanos). Há campanhas internacionais querendo conferir personalidade jurídica aos grandes primatas. Nos anos 70, não faltou uma antropóloga desvairada que pretendia conferir personalidade jurídica aos gorilas. A meu ver, os gorilas não foram consultados. Não sei se prefeririam submeter-se aos direitos e deveres que uma personalidade jurídica implica, tais como trabalhar para ter direito a um salário, suar o topete para garantir saúde e habitação, submeter-se às normas do Direito de Família para constituir prole e incomodações outras típicas do Homo sapiens.

Sem ser gorila e portanto sem conseguir pensar como pensaria um gorila – se capaz de pensar fosse – intuo que aqueles primatas prefeririam continuar pastando tranqüilamente em suas selvas do que submeter-se à condição de um cidadão cercado por direitos, mas também por deveres.

A moda, como todas as modas que vêm do Primeiro Mundo, contaminou este nosso Terceiro. Entre nós, um certo Dr. Alfredo Migliore quer que nossos juízes reconheçam que os grandes primatas têm direitos básicos de serem respeitados e que de uma vez por todas devemos aceitar que o ser humano não é o único dono deste universo.

Pode até não ser, mas é o único que entendeu suas leis e o domina. Ao descobrir a palavra, o Homo sapiens passou a designar – e a reconhecer – objetos. Daí ao sujeito, predicado e objeto foi um passo. Um dia descobriu o alfabeto. Foi um upgrade eficacíssimo, as palavras podiam então ser registradas, permaneciam no tempo, e a comunicação dispensava a voz.

Os símios, por mais que pretendam os cientistas, não falam, não reconhecem palavras e continuam pendurados pelo rabo nas selvas, ou vivem de caridade pública nos zoológicos. Que tenham algumas habilidades, isto não se discute, todo animal tem seus instrumentos para sobreviver. Não se trata de negar inteligência aos animais. Mas é uma inteligência curta, pragmática, que serve para o comer e habitar. Em suma, para sobreviver. O homem vai mais longe. Quer arte, ciência, filosofia, tecnologia, conforto, gastronomia.

Não pretendam os cientistas de Marselha que um símio leia francês e inglês. Conhecemos – e de perto - homens de Estado que não chegaram lá. Divertida ciência esta nossa, que descobriu que o prazer sexual não é apenas clitoridiano e que símios memorizam grafismos.

Abril 13, 2012


 

 

A OUTRA NUVEM

 

Para quem já deu mais de sessenta voltas em torno ao Sol, os acontecimentos de infância e adolescência pertencem a um passado já distante, do qual as atuais gerações já nem têm idéia. Nasci na época da linotipia, tecnologia que há muito foi para os museus. Fiz curso de datilografia. Suponho que hoje muito jovem jamais tenha visto uma máquina de escrever. Sou da época pré-televisiva, em que as pessoas – no interior, pelo menos – saíam de suas casas para conversar e fazer o footing em torno à praça. Isto, hoje, é da alçada da História. O homem de mais idade sempre tem um pouco de historiador.

Com a passagem do tempo, observamos o tempo. Há as mudanças bruscas: o automóvel, a televisão, o computador. Esta última, a meu ver, foi a mais rápida e transformadora. Em meados de minha vida, isso de falar com alguém vendo seu rosto e movimentos em uma tela era tecnologia de Guerra nas Estrelas. Hoje faz parte da vida de cada um, como algo que sempre tivesse existido.

E há também as mudanças mais sutis, só ao alcance do observador mais atento. Se contemplo o mundo contemporâneo a partir de uma ótica de minha juventude, tenho de convir que, nas últimas décadas, não foi só a nuvem de poluição que aumentou sobre as cidades. Uma outra nuvem bem mais nefasta se instalou hoje sobre todas as urbes, a espessa nuvem da mediocridade e da conseqüente valorização do fútil.

Houve época em que admirávamos o homem de boas leituras, o cultor da boa música e da grande arte. Cada cidadezinha do interior sempre tinha um latinista, que podia ser o pároco, o juiz de direito ou algum advogado. Eram pessoas respeitadas, que gozavam de uma aura de sapiência. Hoje, nem os padres conhecem latim, a lingua franca da Igreja.

Na Dom Pedrito de meus dias de adolescente, então com 13 mil habitantes, tínhamos o Dr. Márcio Bazan. Cada um de seus artigos, publicados no Ponche Verde, o vibrante matutino local, como dizíamos ironicamente, tinha mais latim que português. Nós fingíamos que entendíamos e tínhamos pelo latinista um respeito sagrado.

Por osmose, arranhávamos um grego básico. As mulheres não tinham traseiro, mas lordo. Quando eram lindas, medíamos suas belezas em mili-helênios, isto é, a capacidade que tem uma mulher de fazer naufragar mil navios. E gostávamos de lascar uns quousques tandems de vez em quando. Ouvia-se rádio, mas a cultura era transmitida basicamente pelos livros. Não havia, naqueles dias, a indústria da literatura infanto-juvenil. No máximo, Monteiro Lobato. Não nos era estranho, lá pelos quinze anos, começar a ler os clássicos.

A época era da vitrola, mas se cultivava a boa música, tanto popular como erudita. Na época dos CDs e iPods, curte-se mais bate-estaca que outra coisa. A indústria do best-seller e do show business invadiu o mundo contemporâneo e hoje soa à heresia não gostar dos Beatles ou Rolling Stones. Multidões que nada ou quase nada entendem de inglês se aglomeram aos milhares, erguendo as mãos aos novos ídolos como os jovens alemães erguiam as suas para Hitler ou aplaudem o papa. Sou visto, por alguns de meus interlocutores, como elitista, por gostar de autores clássicos ou música erudita.

Pior ainda, a palavra elite passou a ter um conceito pejorativo. Se um dia elite significou o que é o mais desejável, hoje virou palavra sinônima de discriminação e preconceito. Ou você gosta do que a maioria gosta, ou está se pretendendo superior aos demais. Esta palavrinha também foi amaldiçoada. Se um dia falávamos em culturas superiores e culturas inferiores, hoje esta distinção virou crime. Como dizia Discépolo em Siglo XX Cambalache, nada es mejor, todo es igual.

Passei minha adolescência discutindo Platão e Aristóteles, Tomás de Aquino e Agostinho, Montaigne e Montesquieu. Não vivia em nenhuma metrópole, mas naquela cidadezinha de 13 mil habitantes. E se eu discutia, é porque tinha com quem discutir. Devorávamos os livros que nos chegavam às mãos e buscávamos em Rivera ou Montevidéu o que não havia em Dom Pedrito. Tive, na ocasião, um grave atrito com uma irmã do Colégio do Horto. Havia lido El Hombre Medíocre, de José Ingenieros, e me fascinei por um outro título, Hacia una Moral sin Dogmas. Encomendei-o de Montevidéu, pela irmã Helena. Mal ela voltou de viagem, fui voando ao Horto.

— Sim, eu trouxe o livro. Mas não posso te dar.
- Como disse, irmã?
- Não posso te dar. Esse livro é perverso, me queima nas mãos.

Sinal que o havia lido. Mais tarde irmã Helena largou o hábito, e creio ter dado uma modesta mãozinha à sua libertação. Aleguei que de nada adiantava sua recusa. Agora mesmo é que queria ler Ingenieros. A irmã cedeu a meus argumentos. O livro nada tinha de satânico. Mas para quem vive no claustro, tudo que o cerca cheira à perversão.

Não vejo mais esta busca desesperada por um livro, como se dele dependesse a vida. E a verdade é que depende. Há alguns anos, em Madri, recebi a visita de sobrinha muito querida, pessoa inteligente e capaz de grandes vôos. Mostrando a cidade para ela, levei-a à Plaza España, onde está aquela estátua clássica do Quijote e Sancho Panza. Aqueles dois, disse, não preciso te apresentar.

Precisava. Ela não tinha idéia de quem fossem. Isso não é culpa de uma pessoa inteligente. É culpa da escola, que subtraiu do ensino os clássicos universais e passou a fornecer medíocres autores nacionais. Fiquei pasmo. Não conseguia conceber como uma universitária, de seus vinte e tantos anos, jamais houvesse ouvido falar do Quixote. Em meus dias de ginásio, eu lia De Bello Gallico. No original. Não que eu julgue que todo jovem deve ter lido Cervantes. É leitura difícil e exige sofisticação. Mas a ninguém é permissível ignorar estes dois personagens.

Em compensação, ela acrescentou algo à minha erudição. Certa vez, veio de Santa Maria a São Paulo para assistir ao U2. O que é isso? – perguntei. Foi sua vez de ficar pasma. Posso ser obsoleto. Mas considero que se entende melhor o homem e o mundo lendo Cervantes ou Júlio César do que curtindo roqueiros.

Houve um livro que dividiu minha vida em dois, o Ecce Homo, do Nietzsche. Para um jovem sufocado pela propaganda de Roma, sorver Nietzsche era como beber água límpida, não poluída pelos construtores de mitos. Passei inclusive a estudar alemão, para degustar no original seus ditirambos. Mas a vida tem outros projetos para os que nela entram, e acabei aprendendo sueco. De qualquer forma, Nietzsche foi decisivo para minha libertação. É autor que deve ser lido quando se é jovem. Depois de maduros, de pouco ou nada adianta.

Quantos jovens, hoje, terão ouvido falar de Cervantes ou Nietzsche? Em compensação, demonstram extraordinária erudição quando discorrem sobre bandas de rock. Outros livros me ensinaram mais ainda sobre o homem, o mundo e sobre mim mesmo. Mas se hoje sou como sou, isto eu o devo ao pensador alemão. Em meus dias de magistério, me perguntava uma aluna:

— Professor, verdade que a leitura transforma?

Ou seja, já se perdera a idéia de que a leitura transforma. Uma doença ou uma viagem também transformam, mas a transformação mais vital sempre é dada pela leitura. Ninguém conhece o mundo sem ler. Mesmo quem viaja não o conhece bem, se não se fizer acompanhar de um bom autor. Minhas aluninhas gostavam de ler Clarice Lispector ou Graciliano Ramos. Não porque apreciassem seus livros. É que eram fininhos.

Em meus dias de guri, se encontrasse pessoa mais velha que me falasse de história, viagens, geografia ou literatura, eu calava a boca e era todo ouvidos. Hoje, velho e com conhecimento de mundo, raramente encontro jovens que queiram me ouvir. Meus interlocutores, salvo uma honrosa exceção, são quase todos de minha idade. A honrosa exceção está estudando alemão e quer ler Nietzsche no original. Um dia chega lá.

Estes dias de Internet são propícios à leitura. Qualquer um tem acesso aos clássicos mesmo em cidades onde não mais existem bibliotecas. Mas desconfio que a moçada, de modo geral, prefere baixar filmes ou música. Ou publicar abobrinhas no Facebook. Não digo que vá se discutir a enteléquia aristotélica nas redes sociais. Mas não precisavam publicar tanta bobagem.

Ainda há pouco, comentei reportagem de Veja sobre a leitura, na qual o repórter se congratulava com o fato de o brasileiro estar lendo mais. Mas está lendo o quê? Paulo Coelho ou padre Marcelo, Zíbia Gasparetto ou Lauro Trevisan, Thalita Rodrigues ou Gabriel Chalita. Melhor fossem os brasileiros analfabetos. Na época, leitores me contestaram, acusando-me de elitista por desprezar a leitura destes senhores. Ou seja, chegamos a um ponto em que denunciar a mediocridade é condenável.

Verdade que, neste blog, sempre pesco almas jovens que querem entender o mundo. Nem tudo está perdido. É minha paga, melhor que qualquer salário.

Abril 17, 2012


 

 

PARA QUANDO O MACHOCÍDIO?

 

Ativistas de todos os naipes têm-se dedicado, nos últimos anos, a criar neologismos para definir o que não existe ou amenizar palavras que, com o tempo, se tornaram pejorativas. Em falta do que fazer, adoram criar conceitos novos, que pouco ou nada têm a ver com a realidade. O pior é que geralmente são neologismos mal construídos, que demonstram desconhecimento do vernáculo e da etimologia.

Pior ainda, estes desvarios semânticos são acolhidos pelo Judiciário, que pretende inclusive criar língua, prerrogativa que sempre foi do povo. A tal de homoafetividade, por exemplo. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, homossexuais já não mais existem. Agora são todos homoafetivos.

Comentei ano passado. Em defesa da nova terminologia, o ministro dizia que o vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, de autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem: “Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais”.

Acontece que o neologismo está errado. O homo, de homossexual, é palavra grega que quer dizer mesmo. Homossexual, mesmo sexo. A palavra homoafetivo, se formos fiéis ao étimo, quer dizer mesmo afeto. Ora, mesmo afeto não quer dizer nada específico. Quer dizer apenas que você tem o mesmo afeto que outra pessoa tem por você. Mas homoafetivo, segundo a desembargadora desocupada, seria um eufemismo para homossexual. Não é. É palavra que foi construída errada.

Da mesma forma, homofobia. Pretendeu-se associar o homo a homossexual, quando homo continua tendo seu significado original, mesmo. Homofobia, etimologicamente, quer dizer “mesmo medo”. Ora, a palavrinha pretende ser sinônima de repulsa ao homossexualismo. Não é. Também foi construída errada. É espantoso ver jornalistas, profissionais que todos os dias lidam com as palavras, aceitarem conceitos sem pé nem cabeça, sem sequer questioná-los.

Os legisladores espanhóis querem agora brindar-nos com outra pérola: femicídio. Leio no El País que a Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade, na noite de ontem, o projeto que propõe incorporar a figura do femicídio no Código Penal como um tipo agravado de homicídio, que estabelece “agravantes pelo vínculo” e descarta o uso de atenuantes quando o homem tenha antecedentes por violência. Após um debate de quase duas horas, o projeto foi aprovado por 204 votos – o que reuniu o consenso da maioria das bancadas – e enviado ao Senado.

O projeto modifica vários incisos do Código Penal. O novo inciso 1 defende a pena de reclusão perpétua ou prisão perpétua a “quem matar sua ascendente, descendente, cônjuge, ex-cônjuge, ou a pessoa com quem mantém ou manteve uma relação de casal, mediante ou não convivência”. A partir de agora, o inciso 4 define o femicídio como “um crime em relação a uma mulher quando o feito seja perpetrado por um homem e mediante violência de gênero”.

Ainda segundo o jornal, a incorporação da figura do femicídio ao Código Penal é uma antiga reivindicação das organizações sociais e de direitos humanos, que exigem o reconhecimento como tais dos crimes em que as vítimas foram assassinadas por sua condição de mulher.

Matar uma mulher deixou de ser homicídio. Agora é femicídio. Desde que o assassino seja homem. Perguntinha que fica no ar: e se a vítima for assassinada por sua companheira, como é que ficamos? O novo inciso é claro: “quanto o feito seja perpetrado por um homem”. Mulher matando mulher volta a ser homicídio?

Ora, palavra puxa palavra. Se homem matando mulher mediante violência de gênero não é mais homicídio, mas femicídio, urge nova palavra para designar mulher que mata homem mediante violência de gênero. Pela lógica, teríamos machocídio. Pelo jeito, os bravos e percucientes legisladores espanhóis esqueceram de tipificar esta importante figura jurídica.

O Judiciário brasileiro, que já incorporou o exótico conceito de homoafetividade, certamente não tardará muito em propor ao Código Penal o crime de femicídio. Se alguém acha que estupidez é quinhão nosso, os deputados espanhóis se apressaram em desmentir esta calúnia. A estupidez é universal.

Abril 19, 2012


 

 

VARGAS LLOSA E A OUTRA NUVEM

 

Cultura é palavra abrangente, de difícil definição. Em seu sentido mais lato, eu diria que cultura é tudo o que o homem faz. Assim, tanto um anzol como a bomba atômica, um ábaco ou um computador, uma ópera ou show de rock, um tacape ou a pedra de Rosetta constituem cultura. Já num sentido restrito, para efeitos pessoais delimito a cultura àquela área das grandes produções do espírito. Neste sentido, fazem parte da cultura tanto a lei da gravidade como a da termodinâmica, a Bíblia ou o Quixote, tanto Mozart como Shakespeare, Platão ou Dante, Schliemann ou Champollion. Mas jamais Rowling ou Paulo Coelho, Madonna ou Lady Gaga, Roberto Carlos ou Chico Buarque, Beatles ou U2.

Falava há pouco da nuvem de mediocridade que paira sobre as cidades contemporâneas. Este fenômeno foi produzido em boa parte pelos jornais, particularmente por seus ditos suplementos culturais. Sob a rubrica cultura, joga-se tanto um concerto como um show de rock, uma obra literária de peso como um best-seller. É nessas páginas que você vai encontrar todo o lixo cultural oferecido pelo mercado das futilidades, desde novelas televisivas a BBBs, desde entrevistas com “celebridades” a confissões de vedetinhas do cinema ou demais artes. É lá que você encontra solenes bobagens como Rambo ou predadores do futuro, filmes piegas como Titanic ou cretinos como Avatar, vampiras lésbicas ou zumbis canibais. Para os jornais, hoje, tudo isto constitui cultura.

Não espanta pois a existência da nuvem. Para um leitor novato, para quem toda palavra impressa goza de autoridade, o estrago está feito. Ainda mais quando são jornais de prestígio que vendem este embuste. Quem vai duvidar que rock é cultura, quando Estadão ou Folha de São Paulo dão páginas e páginas em seus suplementos culturais aos drogados ianques, britânicos e escandinavos que vêm “fazer o Brasil”? Como ousar pensar – já nem digo afirmar – que estádios repletos, filas quilométricas para ingressos, endeusamento na imprensa, nada têm a ver com cultura?

Como se não bastasse esta acepção de cultura, há três anos o funk – antes uma questão de polícia – tornou-se oficialmente cultura. O ritmo foi reconhecido, em setembro de 2009, como patrimônio cultural pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. No mesmo dia, a Alerj revogou uma lei que restringia a realização de bailes funk e raves do Estado.

E ai de quem disser que funk nada tem a ver com cultura. Será estigmatizado como racista. Segundo Marcelo Freixo (PSOL), um dos autores do requerimento, “não tem por que calar o funk porque é som de preto e favelado que quando toca ninguém fica parado”. De notícia das páginas policiais a evento cultural. Só porque deputados à cata de votos assim o querem. Mais um pouco, e os bailes funks receberão – se é que já não recebem – subsídios da lei Rouanet.

— É possível que a cultura já não seja possível em nossa época – diz Mario Vargas Llosa, em entrevista para El Mundo -. E isso afeta também a educação, que se desnaturalizou. Queríamos acabar com a idéia de que a “cultura é das elites”, mas conseguimos uma vitória de Pirro, um remédio pior que a enfermidade: viver na confusão de um mundo que, paradoxalmente, ao democratizar a cultura propiciou seu empobrecimento.

Em seu último ensaio, La civilización del espetáculo, lançado recentemente pela Alfaguara, o autor peruano demonstra seu desalento com o que hoje se chama cultura. Em janeiro do ano passado, ao anunciar seu livro em entrevista para El País, dizia Llosa:

— Hoje, o que chamamos cultura é um mecanismo que permite ignorar os assuntos problemáticos, distrair-nos do que é sério, submergirnos em um momentâneo “paraíso artificial”, pouco menos que o sucedâneo de um baseado de maconha ou uma fileira de coca, isto é, umas pequenas férias da realidade.

— Todos estes são temas profundos e complexos que não cabem nas pretensões, muito mais limitadas, deste livro. Este só quer ser um testemunho pessoal, no qual aquelas questões se refletem na experiência de alguém que, desde que descobriu, através dos livros, a aventura espiritual, teve sempre por modelo aquelas pessoas cultas, que se moviam com desenvoltura no mundo das idéias e que tinham mais ou menos claros alguns valores estéticos que lhes permitiam opinar com segurança sobre o que era bom ou mau, original ou epígono, revolucionário ou rotineiro, na literatura, nas artes plásticas, na filosofia, na música.

— Muito consciente das deficiências de minha formação escolar e universitária, durante toda minha vida procurei suprir esses vazios, estudando, lendo, visitando museus e galerias, conferências e concertos. Não havia nisso sacrifício algum. Mas o imenso prazer de ir, pouco a pouco, descobrindo que se alargava meu horizonte intelectual, que entender Nietzsche ou Popper, ler Homero, decifrar o Ulisses, de Joyce, degustar a poesia de Góngora, de Baudelaire, de T. S. Elliot, explorar o universo de Goya, de Rembrandt, de Picasso, de Mozart, de Mahler, de Basrtók, de Tchekov, de O’Neil, de Ibsen, de Brecht, enriquecia extraordinariamente minha fantasia, meus apetites e minha sensibilidade.

— Até que, de repente, comecei a sentir que muitos artistas, pensadores e escritores contemporâneos estavam gozando com minha cara. E que não era um fato isolado, casual e transitivo, mas um verdadeiro processo do qual pareciam cúmplices, além de certos criadores, seus críticos, editores, galeristas, produtores, e um público de bobocas inconscientes manipulados a gosto por aqueles, fazendo-os comprar gato por lebre, por razões pecuniárias às vezes e às vezes por pura frivolidade.

Se na culta Europa – onde funk ainda não é cultura – Vargas Llosa se sente submergido pela nuvem de mediocridade que paira sobre o continente, certamente sufocaria se vivesse em Pindorama. O testemunho do prêmio Nobel podia muito bem servir como epitáfio ao último homem culto do século. Verdade que, cá e lá, encontramos quem resista heroicamente a este aviltamento da palavra cultura.

Mas somos cada vez mais raros. Apesar do ceticismo de Llosa, a cultura ainda é possível em nossa época. Enquanto não chega o dia em que ser culto será uma ofensa aos bons costumes, cultivemos o que resta de boa arte, boa música, boa literatura. Que ainda é muito, apesar dos avanços das hordas bárbaras.

Abril 20, 2012


 

 

SOBRE FEIRAS E VAIDADES

 

Lá pelos anos 70, fui quase um militante da Feira do Livro de Porto Alegre. Sempre a divulguei em minha coluna na Folha da Manhã, dela participei em tardes de autógrafo e sempre estava lá nos finais de tarde. Era uma feira pequena, sem som nem promoções outras que não o livro, que propiciava encontros entre escritor e leitor. Pessoas do interior do Estado vinham com malas para aprovisionar-se de leitura para o ano todo.

Minhas tardes de autógrafo tinham um encanto especial. Eu tinha muito carinho pelas profissionais que freqüentava e sempre as convidava para os meus lançamentos. Alheias àquele universo, elas não imaginavam que tinham de comprar o livro. Esperavam um presente. Resignado, eu sempre tinha uma boa dúzia de livros sob a mesa para regalos. Como as sessões eram geralmente à tardinha, elas vinham já vestidas para o trabalho, o que dava um colorido um tanto exótico à fila. Sentiam-se honradas sendo convidadas para um lançamento de livro e eu me sentia muito bem ao honrá-las.

Com o tempo, a feira foi crescendo. O número de lançamentos também. Fatores estranhos ao livro tomaram conta da praça. Foi instalado um arremedo de bar, que servia cerveja choca em copos de plástico. Mais um sistema de som. E um palco para apresentação de grupos e de teatro infantil. (Que tem a ver teatro infantil com livros?). Diversas organizações começaram a tirar casquinha da feira. Políticos a invadiram, em busca de visibilidade e votos. Eu já vivia longe de Porto Alegre, mas sempre voltava quando floriam os jacarandás da Praça da Alfândega. O gigantismo do que havia sido uma festa do livro afastou-me da feira. Deixei de voltar a Porto Alegre para visitá-la e mais: procuro evitar Porto Alegre nessas ocasiões. A cidade me traz recordações que machucam.

Em 95, fui convidado a fazer uma palestra na PUC gaúcha, sobre Camilo José Cela. Fui feliz a Porto Alegre, eu havia traduzido A Família de Pascual Duarte e Mazurca para Dois Mortos. O primeiro, a novela mais difundida na Espanha depois do Quixote, o segundo, um passeio pela Galícia espanhola, ao ritmo de uma estranha melodia, só ao alcance de quem curte a música das palavras. Cela, Nobel de 89, receberia um doutorado honoris causa na universidade e eu matava três ou quatro coelhos de uma só cajadada: revia meus amigos, revisitava a feira, conhecia o autor galego e fazia palestra sobre uma literatura que me fascinava.

Assim aconteceu. Mas um episódio empanou meu entusiasmo. Cela deu uma tarde de autógrafos na Feira. Formaram-se filas imensas ante o escritor, que teve de interromper os autógrafos, duas ou três horas depois, por estar com câimbras nos dedos. Foi quando tive uma triste percepção do universo dos leitores. Aquela multidão toda, que fazia fila como russos diante de um McDonald’s, não sabia se Cela era açougueiro ou alfaiate. Estavam ali para receber o autógrafo de um prêmio Nobel. A feira havia transformado um grande autor em uma celebridade qualquer. Alguns anos mais tarde, Paulo Coelho poluiu a Praça da Alfândega. De novo, filas quilométricas. Há um tipo de leitor para quem Coelho ou Cela têm o mesmo peso. São famosos e basta. Não importa o que tenham escrito. Mesmo quando compra um bom livro, este leitor nem sabe o que está comprando.

Soube, ano passado, que meu comunicado na PUC foi “esquecido” na edição da revista que reuniu as palestras do evento. Pelo jeito, até quando presto uma homenagem constranjo. Não sei exatamente quais foram as razões que levaram a esta censura. Mas suponho ter sido o fato de afirmar que Cela militou na Falange franquista. E jamais se arrependeu disso. Mas o Nobel transfigura seus contemplados. Na mesa coordenadora das palestras, havia até velhos comunistas prestigiando o soldado de Francisco Franco.

A moda das feiras se espalhou pelo Rio Grande do Sul e cada cidadezinha, mesmo não tendo livrarias, passou a ter uma feira do livro. Visitei algumas, por acaso. São tristes. Como não há livreiros locais que as abasteçam, encomendam livros de Porto Alegre. As livrarias mandam o que vende mais, os best-sellers. Nessas feiras, dificilmente você vai encontrar literatura que preste. De modo geral, só best-sellers e livrecos de autores locais. De algum advogado que se julga escritor só porque redige petições, ou de alguma poetisa que põe no papel suas angústias de menopausa. Mais um stand de livros evangélicos e outro de livros espíritas. E o resto é silêncio.

As feiras do livro viraram feiras de vaidades. Isto é herança de um passado ainda recente, no qual o escritor é um personagem mítico. Estes dias estão terminando. Há escritores que se gabam de ter escrito quarenta ou mais livros, e não somos capazes de citar um só título. Dois exemplos: alguém já ouviu falar de Josué Montelo? Pessoa da minha idade, talvez. Pois o homem escreveu mais de cem livros e dele não lembramos título algum.

Segundo exemplo: li há pouco que participou – ou participará – da feira do livro de Bogotá a escritora e imortal da Academia Brasiliense de Letras, Margarida Patriota, autora de 26 livros. Alguém consegue citar algum sem uma busca no Google? Duvido.

A profissão de escritor se dessacralizou, só não percebem isto escritores de província. Neste sentido, o ebook é bem-vindo. Hoje, se alguém quer publicar um livro, não precisa de editor, distribuidor ou livreiro. Basta colocar seu texto em formato eletrônico e jogá-lo na rede. O fetiche do livro publicado em papel só tem vez nas feiras do livro e programas governamentais de leitura.

A propósito, acabo de ler que a Fundação Biblioteca Nacional terá 330 milhões de reais para investir em programas do livro. Parte dessa grana servirá para a contratação de quatro mil agentes de leitura, realização de mais de 500 encontros com autores no projeto Caravana de Leitura, apoio a 200 pequenas e médias feiras.

Traduzindo: cabide de empregos, turismo gastronômico e financiamento de feiras onde pavões irão exibir suas plumas. Que faz um agente de leitura? Não tenho idéia. O máximo que posso conceber é alguém que segura o livro enquanto você lê.

Abril 23, 2012


 

 

STF OFICIALIZA RACISMO NO BRASIL

 

Hoje, 26 de abril de 2012, é uma data histórica. Hoje, a suprema corte judiciária do país oficializou, por unanimidade, o racismo no país. Hoje, o STF revogou, com a tranqüilidade dos justos, o art 5º da Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. A partir de hoje, oficializa-se a prática perversa instituída por várias universidades, de considerar que negros valem mais do que um branco na hora do vestibular. Parafraseando Pessoa: constituições são papéis pintados com tinta. Que podem ser rasgados ao sabor das ideologias.

No que não vai nada de novo. Em maio do ano passado, o STF revogou de uma penada o § 3º do art. 226 da Carta Magna: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Ao reconhecer a união estável para casais do mesmo sexo, o excelso pretório jogou no lixo a carta aprovada por uma Constituinte. Onde se lia homem e mulher, leia-se homem e homem, ou mulher e mulher e estamos conversados. A partir de hoje, onde se lia “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”, leia-se: todos são iguais perante a lei, exceto os negros, que valem mais. Simples assim.

Os considerandos a favor do racismo são vários. Segundo o ministro Cezar Peluso, “há graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso aos negros às fontes da educação”. Como se não houvesse barreiras institucionais também para os brancos. Se o vestibular barra negros, barra também brancos, amarelos, verdes ou azuis. “É preciso desfazer a injustiça histórica de que os negros são vítimas no Brasil”, continuou o ministro. Como se os milhões de brancos que vivem na miséria não fossem vítimas de injustiças históricas.

Segundo o ministro Joaquim Barbosa, as ações afirmativas tentam neutralizar o que chamou de “efeitos perversos” da discriminação racial: “As medidas visam a combater a discriminação de fato, de fundo cultural, como é a brasileira. Arraigada, estrutural, absolutamente enraizada na sociedade. De tão enraizada as pessoas nem a percebem, ela se normaliza e torna-se uma coisa natural”.

Barbosa é aquele ministro negro, que chegou a mais alta corte do país e ainda continua se queixando de racismo. Como Lula, que continua denunciando as elites depois de virar elite, esqueceu de virar o disco. Barbosa empunha as ações afirmativas, recurso racista dos negros americanos para ganhar no tapetão na hora de entrar na universidade. As tais de ações afirmativas tiveram certo prestígio quando surgiram. Hoje, o sistema de cotas é ilegal nos Estados Unidos. Sempre na rabeira da História, o Brasil adota hoje o que nos Estados Unidos foi jogado na famosa lata de lixo da História.

Para Rosa Weber, o país precisa reparar, por meio de políticas públicas, os danos causados pela escravidão de negros no Brasil. “O fato é que a disparidade racial é flagrante na sociedade Brasileira”, disse. “A pobreza tem cor no Brasil: negra, mestiça, amarela”. Ora, a escravatura foi abolida há mais de século. Comentei ontem as famigeradas leis Jim Crow nos Estados Unidos, que constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça. Só foram declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954, isto é, há pouco mais de meio século. Nunca tivemos leis semelhantes no Brasil, nem nunca um negro foi proibido de entrar numa escola, ônibus ou bar com base em um documento legal.

Ao afirmar que a pobreza tem três cores no Brasil, a negra, a mestiça e a amarela, a ministra parece padecer de uma estranha espécie de cegueira, que não reconhece a cor branca. Para a ministra, os negros têm menos perspectivas na sociedade brasileira. “Se os negros não chegam à universidade, não compartilham, com igualdades de condições, das mesmas chances que os brancos”, afirmou. Esquece que, com a lei de cotas, milhares de brancos não compartilharão, com igualdades de condições, das mesmas chances que os negros.

Celso de Mello citou, em seu voto, convenções internacionais que estabelecem formas de se combater o preconceito e garantir condições de igualdade. “As ações afirmativas são instrumentos compensatórios para concretizar o direito da pessoa de ter sua igualdade protegida contra práticas de discriminação étnico-racial”, disse. Pelo jeito, o arguto ministro não foi informado que as cotas hoje são ilegais no próprio país onde surgiram. “Uma sociedade que tolera práticas discriminatórias não pode qualificar-se como democrática”, continuou. Será democrática uma sociedade que discrimina em função da cor da pele?

Para Luís Fux, a sociedade precisa reparar o dano causado aos negros diante do histórico de escravidão no Brasil. O ministro acredita que é preciso implementar políticas afirmativas que levem à integração social dos negros no meio acadêmico. De novo as políticas afirmativas, que no Primeiro Mundo já demonstraram não dar certo. Segundo o ministro, “a opressão racial dos anos da sociedade escravocrata brasileira deixou cicatrizes que se refletem, sobretudo, no campo da escolaridade, revelando graus alarmantes de diferenciação entre alunos brancos e afrodescendentes. Por isso que, de escravos de um senhor, passaram a ser escravos de um sistema”. Pelo jeito, a opressão racial penetrou nos genes dos negros e hoje, mais de século após a abolição, continua se transmitindo de pai a filho. Se cicatrizes se refletem no campo da escolaridade, não será em função da escravatura, já que hoje qualquer negro recebe o ensino de qualquer branco. Negro pobre não tem acesso às melhores escolas? De fato, não tem. Mas branco pobre também não.

Quando entrei na universidade, nota de negro valia o mesmo que nota de branco. Tive colegas negros nos dois cursos que fiz, e aliás nem notava que eram negros. Imagine se eu prestasse vestibular hoje e fosse preterido em função das cotas. É claro que eu nutriria uma boa dose de hostilidade em relação àqueles que, por terem uma pele preta, tomaram meu justo lugar na universidade. Se alguém achava que o Brasil era um país racista, prepare-se para o que verá pela frente. A decisão do STF só vai estimular o ódio racial entre brasileiros.

Há mais de década venho afirmando que o sistema de cotas é uma armadilha. Antes das cotas, eu não teria restrição alguma em consultar um médico negro. Depois das cotas, não quero nem ver médicos negros perto de mim. Sei que entraram, de modo geral, pela porta dos fundos da universidade. E se entraram pela porta dos fundos, não será na porta da frente que serão barrados.

Negros honestos, que não querem favores na hora da competição, já estão sentindo o problema. Ainda hoje, recebi de mãos amigas o comentário de uma aluna negra do curso de engenharia eletrônica da UERJ: “Isso só vai nos prejudicar, a nós que enfrentamos o vestibular sem cotas. Quando alguém analisar o currículo e descobrir que sou negra, vai pensar: essa entrou na faculdade pelas cotas. Adeus emprego”.

Cá entre nós, penso que devia constar de todos os diplomas, daqui pela frente, se o diplomado entrou pelo sistema de cotas ou se disputou lealmente sua vaga na universidade. No diploma dos negros que entraram na universidade por este sistema, que conste em letras garrafais:

ADMITIDO NA UNIVERSIDADE
PELO SISTEMA DE COTAS

Afinal, se cotas é privilégio do qual nenhum beneficiado deve envergonhar-se, não deve ser infamante registrá-las no diploma.

Abril 26, 2012


 

 

SCHADENFREUDE NUTRE ESQUERDAS

 

O significado cambiante das palavras, que são empunhadas da forma que melhor convém a quem as empunha, me diverte. Triste sina a da direita no Brasil, escrevia eu em 2005. Em países mais civilizados, ser de direita é não concordar com as propostas da esquerda, direito legítimo de todo cidadão. No Brasil, direita significa portar toda a infâmia do mundo. Que o diga Clóvis Rossi, quando afirmou: “É um caso de estudo para a ciência política universal. Já escrevi neste espaço uma e outra vez que o PT fez a mais radical e rápida guinada para a direita de que se tem notícia na história partidária do planeta”.

Isto é: se o PT se revela corrupto, ele não é mais esquerda. É direita, porque só a direita é corrupta. Mesmo que o PT seja hoje o mesmo desde que nasceu, mesmo que os grandes implicados na corrupção – Genoíno, Mercadante, Zé Dirceu, Lula – sejam seus pais fundadores. Segundo Rossi, o PT guinou para a direita. E por que guinou para a direita? Porque suas falcatruas foram trazidas à tona. Permanecessem submersas, o partido continuaria sendo de esquerda.

É o que os franceses chamam de glissement idéologique. O conceito de esquerda sempre muda, à medida em que se corrompe. A direita é a caixa de Pandora, o repositório de todos os males do mundo, inclusive os das esquerdas. Pois quando as esquerdas cometem crimes – ou “erros”, como preferem seus líderes – é que não eram esquerda, mas direita.

Mas o conceito de direita também muda. Ou pelo menos muda no bestunto dos correspondentes tupiniquins na Europa. É o que deduzimos de artigo do correspondente Jamil Chade, do Estadão: “Considerada uma ameaça à democracia por incitar ao racismo e à xenofobia, a extrema direita adaptou seu discurso e, diante da crise financeira européia, chegou ao poder nos últimos anos em vários pontos da Europa. Nove países europeus já têm partidos de extrema direita em suas coalizões de governo central ou como peças fundamentais nos Parlamentos”.

O que um dia foi direita é hoje extrema direita. Trocando em miúdos: quando os líderes de direita têm votação inexpressiva e estão afastados do poder, a direita continua sendo direita. Mas se consegue captar um quinto do eleitorado, vira incontinenti extrema-direita. O articulista situa os partidos de extrema direita na Holanda, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Áustria, Hungria, Suíça, Suécia e Itália. Por que extrema direita? Existe algum partido propondo o extermínio de judeus ou árabes, campos de concentração ou segregação racial?

Pelo que sabemos, não. O que existe são cidadãos preocupados com a economia – e também com o sistema jurídico – de seus países, que pedem a repatriação dos imigrantes sem papéis e a limitação da imigração. Não há xenofobia, mas desejo de preservação da própria cultura e dos empregos. Muito menos racismo. Existe uma repulsa ao islamismo, mas Islã não é raça. É religião. Os muçulmanos, oriundos de países teocráticos, não entendem a divisão entre igreja e Estado e querem impor a sharia na Europa. Os europeus reagem e, a meu ver, reagiram muito tarde.

Aconteceu no primeiro turno destas eleições na França. Marine le Pen conseguiu quase vinte por cento dos votos. Marine era de direita. Agora, foi promovida à extrema direita, uma ameaça à democracia por incitar ao racismo e à xenofobia. Marine é filha de Jean Marie Le Pen, líder do Front National, tido como nazista. Ora, desconheço qualquer ligação de Le Pen com o nazismo ou com ideais nazistas. Nazista foi, isto sim, François Mitterrand, que recebeu uma condecoração do governo de Vichy, a Francisque. Mas ninguém ousa – nem ousou – rotular Mitterrand como nazista. Afinal, aderiu ao socialismo.

As esquerdas têm a Europa engasgada na garganta. O ódio à Europa está na primeira frase do Manifesto Comunista. Claro que as esquerdas adoram as cidades, a gastronomia, o luxo europeus. O problema é que os europeus chegaram lá não via marxismo, mas via capitalismo. Seria bem mais fácil, para as viúvas do Kremlin, gostar da Europa se a prosperidade do continente fosse decorrência da doutrina aquela que morreu no século passado.

Falar em prosperidade, uma discreta Schadenfreude tem alimentado as esquerdas nestes dias de crise européia. Schadenfreude é a palavra que os alemães usam para definir o sentimento de alegria ou prazer pelo sofrimento ou infelicidade dos outros. Ainda há pouco, Luís Fernando Verissimo via, no naufrágio do transatlântico Concordia, nas costas italianas, um símbolo da decadência do continente. Calma, companheiro. A Europa precisa ainda decair muito para um dia empatar com o Brasil.

Semana passada, o sóbrio Estadão publicou uma notícia insólita. Que muitos holandeses, para enfrentar a crise, estão vendendo o que sobra da comida feita em casa ou freqüentando bares onde se pode levar a própria refeição. Consegue alguém acreditar nisto? Quem vende restos de comida? Para começar, se a comida é escassa, cozinha-se de modo a não sobrar nada. Continuando, restos de comida nunca vão constituir fonte de renda. E quem vai bater de casa em casa para comprar restos de comida?

Mais insólita ainda é a idéia de freqüentar bares onde se pode levar a própria refeição. Se tenho comida em casa, por que iria deslocar-me até um bar para comê-la? Não faz sentido. Que mais não seja, algo o bar vai cobrar-me pelo uso de mesas, toalhas, pratos, talheres. Se me falta dinheiro para comer, por que iria eu encarecer o pouco de comida que me resta? O repórter fala de um bar no qual os clientes trazem sua própria comida, que é aquecida pelos funcionários de graça. Só é preciso pagar pelas bebidas. Até pode ser. Mas se trata de UM bar. Que encontrou uma fórmula de vender bebidas. É de supor-se que os holandeses tenham como aquecer a comida em casa.

Outro exemplo deste repúdio à Europa e suas instituições é o recente escândalo em torno ao rei da Espanha. De repente, Juan Carlos foi anatematizado por praticar um esporte perfeitamente legal, caçar elefantes, esporte que deve ter praticado desde que se conhece por gente. Mais ainda, a imprensa encontrou uma amante para o rei, enfeite que nenhum estadista dispensa. Na Espanha, já há quem fale em fim da monarquia e abdicação de Don Juan Carlos.

Não bastasse isto, li em algum jornal, já não lembro qual, que o rei teria tido 1.500 amantes. Por um lado, nada de surpreender. Para um homem que detém o mais alto poder de um país, a cifra é perfeitamente exeqüível. Mas como é que não sabíamos disto?

Alguém acredita que entre as 1.500 a nenhuma – nenhumazinha – ocorreu bater com a língua nos dentes? Ora, certamente centenas entre 1.500 não resistiriam a falar aos jornais sobre a real preferência. Strauss-Khan que o diga. Sem ter a visibilidade de um rei, por uma piguancha perdeu a chance de ocupar hoje o lugar do socialista François Hollande.

Leitores me perguntam o que acontecerá com a França caso vença Hollande. Ora, não vai acontecer nada. Como nada aconteceu na transição de Giscard d’Estaing para Mitterrand, nem na de Mitterrand para Chirac ou Sarkozy.

Desiludam-se as esquerdas. A França não muda.

Abril 29, 2012


 

 

NÃO SE FAZEM MAIS HOMOSSEXUAIS COMO ANTIGAMENTE

 

Leio que as ditas igrejas “inclusivas” — voltadas predominantemente para o público gay — vêm crescendo a um ritmo acelerado no Brasil, à revelia da oposição de alas religiosas mais conservadoras. Estimativas feitas por especialistas a pedido da BBC Brasil indicam que já existem pelo menos dez diferentes congregações de igrejas “gay-friendly” no Brasil, com mais de 40 missões e delegações espalhadas pelo país.

Ah! Não se fazem mais homossexuais como antigamente. Tanto que viraram gays, homoafetivos, tudo menos homossexuais. Convivi com eles desde o ginásio à universidade e mais tarde na vida profissional. Ostentavam uma certa aura, não digo de heróis, mas de rebeldes avessos à sociedade bem comportada, à ética vigente, ao casamento e à religião. Entre os homossexuais com os quais convivi – e alguns eram companheiros de bar – nunca vi casais nem pessoas com pendores religiosos. Todos tinham consciência de que as religiões vigentes condenavam seus comportamentos, e das igrejas só queriam distância. Eram geralmente pessoas cultas e sensíveis. Quando penso nos homossexuais de minha juventude, sempre me vem à mente o “non serviam” de Lucifer, a primeira afirmação de liberdade ante a arrogância do Altíssimo.

Eram também avessos ao convívio familiar e trocavam de parceiros como quem troca de roupa. Não havia namorinhos na época, nem mãozinhas dadas. Mas uma sexualidade intensa e diversificada. Dispensavam aquelas longas conversas que tínhamos de suportar, na época, para levar uma menina à cama. Bastava um olhar trocado na rua. O tempo entre o olhar e os fatos era igual ao tempo necessário para encontrar o quarto mais próximo. Não enganavam parceiro algum com promessas de amor duradouro, muito menos de casamento, aliás nem se cogitava disto na época.

Concentradas, principalmente, no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, as igrejas inclusivas somam em torno de 10 mil fiéis, ou 0,005% da população brasileira. A maioria dos membros (70%) é composta por homens, incluindo solteiros e casais, de diferentes níveis sociais. É o que diz a imprensa. O número ainda é baixo se comparado à quantidade de católicos e evangélicos, as duas principais religiões do país, que, em 2009, respondiam por 68,43% e 20,23% da população brasileira, respectivamente, segundo um estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O crescimento das igrejas inclusivas ganhou força com o surgimento de políticas de combate à homofobia, ao passo que o preconceito também diminuiu, alegam especialistas. Hoje, segundo o IBGE, há 60 mil casais homossexuais no Brasil. Para grupos militantes, o número de gays é estimado entre 6 a 10 milhões de pessoas.

Ao que tudo indica, o homossexualismo foi cooptado pelo sistema. Homossexuais agora constituem famílias, nos mesmos moldes dos heterossexuais e se submetem às mesmas regras de fidelidade destes. A qualquer infidelidade, o divórcio. A Suécia, sempre pioneira nestas questões, é talvez o país campeão em matéria de separações legais entre pessoas do mesmo sexo. Em maio de 2004, um estudo publicado pelo Institute for Marriage and Public Policy (IMAPP), mostrava o elevado índice de “divórcios” legais entre homossexuais que registraram uma união civil na Suécia.

Segundo o instituto, entre os anos de 1995 e 2002, houve na Suécia 1.526 uniões homossexuais, comparadas com as 280.000 heterossexuais. Em cada 1000 novos parceiros registrados na Suécia, cinco é entre pessoas do mesmo sexo. Dessas, 62% são entre homens do mesmo sexo. A pesquisa revelou uma elevada taxa de divórcios legais entre os os homossexuais suecos. Os homens homossexuais eram 50% mais susceptíveis de se divorciarem dentro dum período de 8 anos do que os heterossexuais, enquanto as lésbicas eram 167% mais susceptíveis de se “divorciarem” do que os heterossexuais.

O primeiro divórcio homossexual, cá no Sul, ocorreu na Argentina, o primeiro país da América Latina a aceitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo ao aprovar uma reforma do Código Civil. Duas mulheres, que estavam juntas há seis anos e se casaram em abril de 2011, iniciaram os trâmites de divórcio em junho do mesmo ano. A ruptura do casamento aconteceu por iniciativa de uma delas, alegando que a outra lhe era infiel. O casamento destruiu uma relação que prometia ser duradoura.

Em São Paulo ocorreu o segundo divórcio. Com a liberação do casamento homossexual pelo Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, uma verdadeira onda de casamentos do gênero se espalhou em todo país. Em agosto do mesmo ano, surgia o primeiro divórcio entre dois homens. Segundo o que tomou a iniciativa, o casamento foi muito bom enquanto durou, mas é difícil trabalhar o dia todo, chegar em casa e encontrar o marido, assistindo TV com a casa uma bagunça. A marida não gostou.

Casamento é fatal. Acabou a vida mansa. Acrescente a isto o aborrecimento de divisão de papéis, custos judiciais e advocatícios. Não bastassem optarem pelo casamento, agora os antigos rebeldes estão buscando os templos. Segundo a pesquisadora Fátima Weiss, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que mapeia o setor desde 2008, havia apenas uma única igreja inclusiva com sede fixa no Brasil dez anos atrás. “Com um discurso que prega a tolerância, essas igrejas permitem a manifestação da fé na tradição cristã independente da orientação sexual”, disse Weiss à BBC Brasil.

O número de frequentadores dessas igrejas - que são abertas a fiéis de qualquer orientação sexual - acompanhou também a emancipação das congregações. Se, há dez anos, os fiéis totalizavam menos de 500 pessoas; hoje, já são quase 10 mil - número que, segundo os fundadores dessas igrejas, deve dobrar nos próximos cinco anos.

É de perguntar-se que deus ou deuses cultuam estes novos crentes. O deus cristão não há de ser. Jeová é taxativo. No Levítico 20:13 lemos: “Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação; certamente serão mortos; o seu sangue será sobre eles”. As relações entre mulheres não são evocadas, porque aos olhos dos hebreus só há transgressão sexual quando há penetração.

Militantes de movimentos gays estão tentando transformar em crime a citação da Bíblia. Em maio de 2010, um pregador britânico foi preso depois de ter dito durante sermão na rua que homossexualismo é pecado. Segundo o jornal britânico The Daily Telegraph, Dale McAlpine foi acusado de causar “alarme, intimidação e angústia” depois que um policial comunitário ouviu o pastor batista mencionar vários “pecados” citados na Bíblia, inclusive blasfêmia, embriaguez e relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Segundo o Daily Mail, o policial Sam Adams avisou o pregador, que distribuía folhetos e conversava com as pessoas nas ruas, que ele estava violando a lei. Mas ele continuou pregando e foi levado para a prisão, onde permaneceu por sete horas.

Mais cedo ou mais tarde, a moda chega até nós, escrevi na ocasião. Já chegou. Recentemente, o pastor Silas Malafaia foi acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de incentivar a violência contra homossexuais na TV. A ação foi extinta pelo O juiz federal Victorio Giuzio Neto, da 24ª Vara Cível de São Paulo, que viu na acusação do MTF “uma clara intenção de ressuscitar a censura através deste Juízo.”

Remando contra toda lógica, padres e pastores estão conclamando pecadores de toda espécie. Templo é dinheiro. Os homossexuais, parece que domesticados pela mídia, estão se tornando de repente místicos. O que é uma lástima. Os antigos rebeldes estão desaparecendo. O non serviam luciferino virou “sum servus tuus, domine”.

Ó tempora, ó mores!

Maio 01, 2012


 

 

QUANDO O AMOR VIRA INCISO DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

 

Dichosos tiempos aquellos – como diria Alonso Quijano – em que se falava em fúria legiferante do Legislativo. Vivemos hoje dias de fúria legiferante ... do Judiciário. Em decisão inédita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), um pai foi condenado a pagar indenização de R$ 200 mil por abandono afetivo. De acordo com a assessoria de imprensa do STJ, a filha entrou com uma ação contra o pai após ter obtido reconhecimento judicial da paternidade e alegou ter sofrido abandono material e afetivo durante a infância e adolescência. A autora da ação argumentou que não recebeu os mesmos tratamentos que seus irmãos, filhos de outro casamento do pai. Como não existe lei que contemple este tipo de ação, a Terceira Turma decidiu legislar.

Judiciário legislar está virando moda, comentei há pouco. Alega-se que o Legislativo demora demais para elaborar leis, deixando vácuos legais. Pode ser. O fato é que elaborar leis nunca foi função do Judiciário. A Constituição de 88, que desde o berço foi concebida como uma colcha de retalhos, está virando um variegado patchwork. Casamento é entre homem e mulher? Pode ser. Mas pode também não ser. Todos são iguais perante a lei? Talvez sim. Mas talvez não. Tudo depende de interpretação. No caso das cotas, o STF tirou da manga o exótico conceito de “igualdade material”, para justificar a oficialização do racismo.

Na última década surgiu aos poucos, no seio do Judiciário, a tese do abandono afetivo. Que impõe a um pai a obrigação de amar seu filho, como se fosse possível amar por decreto. Várias ações provocaram o Judiciário. Mas atenção: sempre é o pai que tem obrigação de amar. Não vi, até hoje, esta ação impetrada contra uma mãe. A razão é simples. O filho que se julga abandonado, em vez de exigir carinho ou afeto, se contenta com uma gorda indenização. Como em geral o provedor é o pai, é sempre contra ele que se propõe a ação. Ainda mais se for um empresário bem sucedido. Filho algum vai acionar por abandono afetivo um pai que vive de salário mínimo.

No caso da moça que pediu indenização, uma professora de Votorantim (SP), a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, determinou uma indenização de 200 mil reais. O caso havia sido julgado improcedente em primeira instância, tendo o juiz entendido que o distanciamento se deveu ao comportamento agressivo da mãe em relação ao pai. A autora recorreu, e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reformou a sentença, reconhecendo o abandono afetivo e afirmando que o pai era “abastado e próspero”. Na ocasião, o TJ-SP condenou o pai a pagar o valor de R$ 415 mil como indenização à filha. A ministra Andrighi achou por bem tabelar o amor paterno pela metade do preço. Amor virou inciso do Direito das Obrigações.

O caso não é novo. Em setembro de 2003, o juiz Mário Romano Maggioni, da comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, condenou o advogado e vereador Daniel Viriato Afonso a reparar sua filha em R$ 48 mil por abandono afetivo. Esta teria sido a primeira ação brasileira de filho contra pai por abandono que transitou em julgado.

Pior ainda, a sentença obrigava o pai a “passar a visitar a filha, no mínimo a cada 15 dias, levando-a a passear consigo, comprometendo-se, também, em acompanhar seu desenvolvimento infanto-juvenil, prestando assistência, apresentando a criança aos parentes pelo lado paterno”. Imagine um pai que recusa o filho sendo obrigado a fingir que o adora. Se antes só havia uma recusa, a convivência forçada abre as portas para a raiva ou ódio.

Várias ações neste sentido foram impetradas de lá para cá, tendo os juízes se pronunciado ora a favor, ora contra a pretensão da parte impetrante. Leio na revista Consultor Jurídico que, ano passado, a juíza Laura de Mattos Almeida, da 22ª Vara Cível de São Paulo, negou uma indenização a uma filha que foi gerada fora do casamento.

Aos 37 anos, a recepcionista desempregada conta que, filha de pai “riquíssimo”, atravessou uma vida de privações. Enquanto seus irmãos viajavam à Europa, ela começou a trabalhar aos 14 anos para engrossar as finanças da casa. Na tentativa de reaver os prejuízos financeiros, psíquicos e morais causados pela ausência do pai, a mulher ajuizou um pedido de danos morais no valor de R$ 6 milhões. Valor que, certamente, cobre qualquer carência de afeto. Mas a recepcionista não levou. “Não há como obrigar uma pessoa a amar outra”, argumentou a juíza.

Os juízes que condenam pais por abandono afetivo estão contaminados pelo ranço cristão do “amai-vos uns aos outros”. Este é um dos mais perversos momentos do cristianismo. Ninguém pode obrigar ninguém a amar, como disse sensatamente Mattos Almeida. Sem falar que, como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, esta ordem exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.

Em 3 de março do ano passado, chegou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado o Projeto de Lei 700, 2007, que pretendia caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal, de autoria deste impoluto pastor evangélico, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). Até agora, a matéria aguarda julgamento e está sob a relatoria ... do também impoluto senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Ou seja, tão cedo o projeto não vira lei.

Tem um pai – ou mãe – obrigação de amar um filho? Esta seria a normalidade das coisas, mas os fatos são teimosos. E se o filho é um celerado, assassino ou drogado, como tantos que existem neste mundinho, apesar dos esforços paternos de educá-lo para a vida? E se o filho matou a mãe, como tantos matam? E se o filho – por uma ou outra razão – tornou-se inimigo do pai? Vivemos em um mundo em que milhares de adolescentes odeiam os pais. Devem os pais responder com amor e carinho?

Não sou pessoa competente para responder a tais questões, já que meu conceito de família não é carnal. Considero minha família as pessoas que elegi em minha vida e minhas andanças. Coincidentemente, minha filha pertence a esta família. Gosto dela não exatamente por ser filha, mas por ser como é. Considero este sentimento mais forte que qualquer laço de sangue.

Seja como for, a decisão da juíza da Terceira Turma deixa no ar algumas perguntas. Poderá uma mulher exigir indenização do marido por abandono afetivo? Ou por não cumprimento dos deveres de estado? Se a filha não legítima pode pedir indenização, fica outra pergunta pendente: pode uma amante, que se sente pouco considerada, exigir pagamento por falta de afeto? Pode um pai ou mãe exigir indenização por falta de afeto de um filho adulto?

A juíza da Terceira Turma, ao que tudo indica, não pensou nestas decorrências lógicas de sua sentença.

Maio 05, 2012


 

 

CONTRIBUINTE PAGA TRADUÇÃO DE CHICO BUARQUE NA CORÉIA

 

Está causando espécie entre alguns jornalistas, que parece terem nascido ontem, a notícia de que Chico Buarque vai receber financiamento da Biblioteca Nacional para a tradução de seu livro Leite Derramado para o coreano. Mais uma ajuda financeira indireta do Ministério da Cultura, comandado pela mana Ana de Hollanda. Chico quer empurrar sua “obra” ao mercado asiático.

Como se isto fosse novidade. Há mais de década venho denunciando a indústria estatal do livro, que chamei de indústria textil – assim mesmo, sem acento. Ou seja, a indústria do texto. Aquela mesma indústria que empurra goela abaixo para a juventude as produções intelectuais dos amigos do rei. Como o rei é de esquerda, leia-se as produções intelectuais das viúvas do Kremlin. Chico Buarque é apenas um dos queridinhos da corte. Há muitos outros mamando – e há muito tempo – nas tetas do Estado.

Em outubro de 1997 – há quinze anos, portanto – eu já denunciava esta farra obscena com o dinheiro do contribuinte, nas Jornadas Literárias de Passo Fundo. Em comunicado intitulado justamente de “A Indústria Textil”, dediquei um item aos amigos do rei.

 

Os amigos do rei — Em junho passado, um quarteto de escritores brasileiros — Rubem Fonseca, Patrícia Mello, João Gilberto Noll e Chico Buarque — desembarcaram em Londres, onde fizeram leituras públicas de suas obras e lançaram livros não só na capital britânica, como também na Escócia e no País de Gales. Em um primeiro momento, poderíamos pensar: que maravilha, o Reino Unido se interessa por nossa literatura. Nada disso. É o Ministério da Cultura brasileiro que promove tais turismos e financia as traduções dos autores brasileiros. Vejamos estas manchetes, todas da Folha de São Paulo:

BRASILEIROS LANÇAM LIVROS NA GRÃ-BRETANHA

Autores promovem suas obras dentro de projeto patrocinado pelo Ministério da Cultura

RUBEM FONSECA LÊ CONTO EM LONDRES

 

Segundo Eric Nepomuceno, secretário de Intercâmbio e Projetos Especiais do Ministério da Cultura, “a essa ação do Reino Unido devem ser somadas outras, já em andamento, que compõem o programa de apoio à difusão de nossa literatura no exterior, elaborado pelo Ministério da Cultura. Este programa já tem comprometido o lançamento de pelo menos 42 títulos de literatura contemporânea até 1998 em cinco países, além do programa do escritor-residente em cinco universidades norte-americanas e mesas-redondas em vários países. Acho que é justo solicitar menção a essas iniciativas. Afinal, tudo isto está sendo pago por fundos públicos, geridos por este ministério, e creio que é nosso dever informar devidamente o uso dado a esses recursos”.

Ou seja: quem paga o turismo destes escritores, todos amigos do poder, sejam vivos ou mortos, é o contribuinte. Nesta brincadeira, apenas para a tradução dos livros, foram gastos US$ 35 mil, financiados pelo Ministério da Cultura. O governo brasileiro, isto é, o contribuinte brasileiro, também contribui com parte dos custos de viagem. Ou seja, este país cheio de mendigos atirados nas ruas de suas capitais se dá ao luxo de usar dinheiro público para que alguns amigos do rei — ou, dizendo melhor, amigos de Francisco Weffort, o atual ministro da Cultura — editem suas obras na Europa.

Mas será que este contribuinte foi consultado na hora de financiar edições e mordomias a estes escritores que nem conhece? A propósito, quem é Patrícia Mello? Alguém conhece quais títulos de vulto esta senhora escreveu para julgar-se capaz de representar a literatura brasileira na Europa?

 

Foi um deus-nos-acuda. Tania Rösling, a pró-reitora da Universidade de Passo Fundo e organizadora das jornadas, que me havia convidado ao evento, ergueu-se em seus tamancos e, da platéia, brindou-me com um solene “filho-da-puta!” O coordenador do debate quis cortar-me a palavra, alegando que eu estava indo além do tempo que me fora concedido. Os universitários que me ouviam reagiram e exigiram que me permitissem continuar falando. O melhor veio depois.

Quando desci da tribuna, os alunos cercaram para abraçar-me. Quanto aos professores, que me haviam gentilmente recepcionado, se afastavam de mim como se eu estivesse leproso. Estávamos convidados para um churrasco no CTG local após os debates. Aceitei. Ao entrar no ônibus que me levaria até lá, dei-me conta de que cometera uma solene mancada. Não teria ninguém com quem sentar. Mas já havia embarcado. Fui salvo pelo gongo. Ao entrar no galpão, uma figura sorridente veio a meu encontro e saudou-me com alegria:

— Janer, seu subversivo, ainda não estás na cadeia?

Não, até então não haviam conseguido pegar-me. Era o prefeito de Passo Fundo, que fora meu companheiro de política estudantil em Santa Maria. O gelo se desfez e acabei bebendo e comendo sem maiores constrangimentos.

Ainda há pouco, Chico Buarque dizia ter descoberto que havia pessoas que não gostavam dele. É o milagre da Internet. Na rede, não há censura. Naqueles dias, era crime de lesa-literatura dizer qualquer coisa contra o vate. Tanto que tentaram censurar-me durante minha comunicação. Jornal algum aceitaria qualquer denúncia das relações nada éticas do menestrel com o poder. Mas o problema não é gostar ou não gostar dele. O fato é que Chico e seus cúmplices participam de uma corrupção que até hoje os jornais não ousam chamar de corrupção.

Em julho de 2009, a Fundação Biblioteca Nacional divulgava uma lista de bolsas de literatura, abrangendo pesquisa literária, conclusão de obras, co-edições e traduções. A seleção daquele ano, na área de tradução, deu bolsas de US$ 3 mil (R$ 6 mil) para a tradução de obras de autores brasileiros no Exterior. A maior parte dos autores são vivos. O Filho Eterno, do autor curitibano Cristóvão Tezza, foi premiado com uma publicação na Austrália, pela Scribe Publications. O Anjo do Adeus, de Ignácio de Loyola Brandão, nos Estados Unidos, pela Dalkey Archive Press. Escrita em contra-ponto: Ensaios Literários, de João Almino, na Argentina, pela Leviatan.

Mais ainda: o ensaísta e então curador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), José Roberto Teixeira Coelho, teve sua obra Dicionário crítico de política recomendada para publicação na Espanha, pela editora Gedisa. A Croácia foi contemplada com Laços de Família, de Clarice Lispector. Outros contemplados foram O Enigma de Qaf, de Alberto Mussa, que seria publicado na França; uma coletânea de textos de Sérgio Sant’Anna, que sairia na República Checa; e a obra Sem Dizer Adeus, de Heloneida Studart, em Israel.

Quer dizer: quando o normal no mercado livreiro é a editora do país estrangeiro pagar o tradutor, este magnífico país nosso se antecipa: nós pagamos a tradução. Mais ainda: nós escolhemos os escritores a serem traduzidos. Isso de oferta e procura é lei obsoleta do antigo capitalismo, que precisa ser revogada. Se nós já empurramos goela abaixo nossos campeões a nossos jovens, não nos custa internacionalizar este goela abaixo. O contribuinte brasileiro é dócil, não vai chiar se tiver de subsidiar a tradução de nossos escritores comportadinhos – aqueles que não criticam o PT nem o governo – em países ricos como os vossos. Recebam, senhores do Primeiro Mundo, esta modesta cortesia do Terceiro.

Se a maracutaia terminasse aqui, não seria cousa de espantar. Mas vai mais longe. Segundo o Estadão, oito autores com obras em fase de conclusão foram selecionados: Afonso Cláudio Machado do Carmo, Alexandre Jorge Marinho Ribeiro, Beatriz Antunes Onofre, Jorge Alan Pinheiro Guimarães, Manoel José de Miranda Neto, Priscila Costa Lopes, Rafael Mófreita Saldanha e Ronaldo Eduardo Ferrito Mendes.

Ou seja, os insígnes beletristas sequer haviam concluído suas obras e já tinham subsídios para serem traduzidos no exterior. O escritor ainda nem existe, mas já tem tradução garantida. O contribuinte brasileiro, que já paga turismo em Paris para senadores, putas em Miami para deputados, silicone para travestis, é chamado agora a pagar traduções de prostitutas literárias, que não se pejam em escorchar quem paga honestamente seus impostos, desde que seus egos sejam afagados no Exterior.

Financiamento estatal de livros é velha prática dos estados comunistas. Bolchevique da gema, Chico jamais declinaria de tais mimos. Se os coreanos não se interessarem por seus livros, a embaixada brasileira sempre pode comprar alguns milhares de exemplares e distribuí-los pelas bibliotecas do país.

Afinal, quem paga é você.

Maio 06, 2012


 

 

ESQUERDAS EXCITADAS ACHAM QUE ALGO MUDOU NA FRANÇA

 

França elege presidente socialista – mancheteiam os jornais. Para o leitor incauto, fica a impressão de que o campeão socialista, François Hollande, derrotou o malvado capitalista Nikolas Sarkozy. As esquerdas estão assanhadas. Já vi pessoinhas desinformadas vibrando com a vitória do bem sobre o mal. Ora, não é bem assim.

Há horas venho falando no que os franceses chamam de “glissement de mots”. As palavras vão escorregando e acabam adquirindo um sentido oposto ao que antes significavam. Claro que tais escorregadelas não são inocentes. No século passado ocorreu uma, e das mais graves. A Rússia criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E os europeus criaram a social-democracia. Os comunistas, num lampejo de marketing, associaram o socialismo europeu ao socialismo soviético. E toda Europa virou – pelo menos para os botocudos – socialista. Como se o socialismo comunista algo tivesse a ver com o socialismo social-democrata. Mas o sofisma pegou.

Hollande não é socialista. É social-democrata, o que é bastante diferente de ser socialista. E muito próximo de ser capitalista. Ou centro-direita, como preferem os mais delicados, já que a palavrinha capitalismo se tornou um tanto fora de moda após o desmoronamento do comunismo. Poucos ainda têm a coragem de usá-la. Entre estes, o cineasta Michael Moore, que permanece preso ao passado e ainda vê um conflito entre capitalismo e democracia. Democracia, para o cineasta, é obviamente o socialismo. Aquele das Repúblicas Socialistas Soviéticas, bem entendido.

“O dia 6 de maio marca um novo começo para a Europa”, afirmou Hollande, observando que os eleitores escolheram a mudança. Como político, só pode falar em mudança. O espantoso é que ainda há quem acredite nisso. Em todos os jornais que leio, vejo alminhas ingênuas achando que ontem a França deu uma guinada à esquerda.

Retornemos 31 anos atrás. Eu voltava da Inglaterra com uma amiga. Seriam seis da tarde. Em Paris, mal cheguei em casa, liguei a televisão. Na tela, aos poucos foi surgindo uma imagem. Começou pela testa e foi descendo, em fatias. Antes que tivesse chegado aos cílios, percebi que não era a careca de Giscard d’Estaing. O vencedor das eleições na França, naquele 10 de maio, era Mitterrand. Mesmo a imprensa internacional foi surpreendida. Havia apostado na vitória de Giscard. Só quando caminhões de champanhe começaram a abandonar o QG de Giscard, os jornalistas perceberam que a notícia estava ailleurs.

Minha amiga, gaúcha em trânsito pela Europa, apavorou-se. Confundida pela associação que a imprensa brasileira fazia entre o socialismo francês e o socialismo soviético, queria pegar passaporte e voltar ao Brasil antes que o novo governo fechasse as fronteiras. Verdade que nem só ela se confundiu. Empresários franceses empacotaram seus dinheiros e tentaram sair do país através de discretas fronteiras suíças. Medo bobo. Como bom francês, Mitterrand não iria sacrificar o bem-estar de seus conterrâneos em nome de um ideal besta. Socialismo mesmo - le vrai - a França só recomenda para o Terceiro Mundo.

A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: “Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política”. Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: “A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra”.

Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro. No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité, o jornal oficial do PC francês.

Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol, entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio Mitterrand que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus “agressores”.

Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88.

Empunhando a bandeira do socialismo, Mitterrand, político de extração nazista e queridinho de Pétain, enganou não só os franceses como o mundo todo. Na época, também se falou em mudanças. Mudou algo na França de 1981 para cá? Estruturalmente, nada. Mudaram apenas fatores que nada têm a ver com orientação política, mas dependem da economia e imigração, como maior desemprego e avanço do islamismo. Se algo novo ocorreu na França de lá para cá foi sua adesão ao euro, mas isso nada tem a ver com socialismo ou Mitterrand.

Hollande prometeu aumentar gastos públicos e impostos. Não vai conseguir. Isto não depende dele, mas do consenso dos 27 da Europa. Que são governados, em sua maioria, por conservadores. Se em algum momento o candidato teve algum propósito socializante, terá de voltar atrás, como fez Mitterrand.

Coincidentemente, nestes dias estou lendo Paris, a festa continuou, de Alan Riding, sobre a vida cultural na França durante a ocupação nazista, de 1940 a 44. O tema não é novo, e já foi abordado por vários autores, entre eles Gilles Ragache e Jean Robert Ragache, em Des Écrivains et des artistes sous l’occupation – 1940 – 1944. Nestas obras, vemos quase toda a intelectualidade francesa confraternizando com os generais alemães – entre outros Sartre e Simone de Beauvoir -, indiferentes às atrocidades do regime nazista. A hospitalidade dos franceses era tal que nos espetáculos de ópera eram fornecidos programas em alemão aos invasores. Se a França não mudou durante a ocupação alemã, por que mudaria agora?

Tire o cavalinho da chuva quem acha que a França mudará. A França é eterna. Não muda. Nem tem porque mudar, pelo menos rumo a um sistema que já morreu.

Maio 07, 2012


 

 

MINHAS CORRUPÇÕES PREDILETAS

 

Leitores querem saber por que não escrevo sobre as grandes corrupções nacionais. Ora, isto está na primeira página de todos os jornais. A crônica é tão vasta que já existem extensas compilações on line, para orientar o leitor no organograma da corrupção. Prefiro falar sobre o que os jornais não trazem. Por exemplo, o Chico Buarque sendo traduzido na Coréia às custas do contribuinte. Não sei se o leitor notou, mas a dita grande imprensa não disse um pio sobre isto. O que sabemos vem da blogosfera.

Prefiro falar de corrupções mais sutis, quase imperceptíveis, mas corrupções. A imprensa denuncia com entusiasmo a corrupção no congresso, na política, nos tribunais. Não diz uma palavrinha sobre a corrupção no santo dos santos, a universidade. Corrupção esta mais difícil de ser detectada, já que em geral foi legalizada. Mordomias para encontros literários internacionais inúteis, concursos com cartas marcadas, endogamia universitária, tudo isto se tornou rotina no mundo acadêmico e não é visto como corrupção.

Tampouco se fala sobre a corrupção no mundo literário, que há muito se prostituiu. Jorge Amado, que passou boa parte de sua vida escrevendo a soldo de Moscou, está sendo homenageado nestes dias no país todo. Devo ter sido o único jornalista que o denuncia – e isto há décadas – como a prostituta-mor das letras tupiniquins.

Corrupção só existe quando em uma ponta está o Estado. Se o dono de meu boteco me cobra 50 reais por uma cerveja e eu pago com meu dinheiro, pode ter ocorrido um abuso, mas jamais corrupção. O dinheiro é meu e a ele dou a destinação que quiser, por estúpida que seja. Mas se um fornecedor de cervejas as vende por 50 reais ao governo, está caracterizada a corrupção. Porque governo não tem dinheiro. Governo paga com os meus, os teus, os nossos impostos. E obviamente alguém do governo vai levar algo nessa negociata.

Escritores, esses curiosos profissionais que querem transformar suas inefáveis dores-de-cotovelo em fonte de renda, adoram subsídios do Estado. Não falta quem pretenda a regulamentação da profissão. O que não seria de espantar, neste país onde até a profissão de benzedeira acaba de ser reconhecida no Paraná.


Em 2002, Mário Prata, medíocre cronista do Estadão, pedia a Fernando Henrique Cardoso o reconhecimento da profissão de escritor: “O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor”. Claro que não era apenas a oficialização de uma profissão que estava em jogo. Mas o financiamento público da guilda. Cabe observar como o cronista, subserviente, se habilita ao privilégio: “meu presidente”.

Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pedia ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Citava a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tinha que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. “Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão”.

E quem perde? - seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares. O personagem mais venal que conheço é o escritor profissional. Ele segue os baixos instintos de sua clientela. O público quer medo? Ele oferece medo. O público quer lágrimas? Ele vende lágrimas. O público quer auto-ajuda? Ele a fornece. É preciso salvar o famoso leite das criancinhas.

No fundo, saudades da finada União Soviética, onde os escritores eram pagos pelo Estado comunista para louvar o Estado comunista. Seguidamente comento – e creio ser o único a comentar – o livro A Sombra do Kremlin, relato de viagem do jornalista gaúcho Orlando Loureiro, que viajou a Moscou em 1952, mais ou menos na mesma época que outro jornalista gaúcho, Josué Guimarães. Enquanto Josué, comunista de carteirinha, vê o paraíso na União Soviética em As Muralhas de Jericó, Loureiro vê uma rígida ditadura, que assume o controle de todo pensamento. Comentando a literatura na então gloriosa e triunfante URSS, escreve Loureiro:

— A União dos Escritores funciona como um Vaticano para a moderna literatura soviética. O julgamento das obras a serem lançadas obedece a um critério estreito e sectário de crítica literária. Esta função é exercida por um conselho reunido em assembléia, que discute os novos livros e sobre eles firma a opinião oficial da sociedade. A exegese não se restringe aos aspectos literários ou artísticos da obra julgada, senão que abrange com particular severidade seu conteúdo filosófico, que deve estar em harmonia absoluta com os conceitos de “realidade socialista” e guardar absoluta fidelidade aos princípios ideológicos da doutrina marxista. Se o livro apresentar méritos dentro do ponto de vista dessa moral convencionada, se resistir a esse teste de eliminatória, então passará por um rigoroso trabalho de equipe dentro dos órgãos técnicos da União, podendo vir a tornar-se num legítimo best-seller, com tiragens astronômicas de 2 a 3 milhões de exemplares. E o seu modesto e obscuro autor poderá ser um nouveau riche da literatura e será festejado e exaltado e terminará ganhando o cobiçado prêmio Stalin...

Foi o que aconteceu com a prostituta-mor das letras brasileiras. Em 1950, o ex-nazista e militante comunista Jorge Amado passou a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreveu O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro foi publicado, recebeu em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias.

Não que hoje se peça profissão de fé marxista ou louvores a Stalin. No Brasil, para ter sucesso, o escritor hoje tem de aderir ao esquerdismo governamental. Não precisa louvar abertamente o PT. Mas se tiver dito uma única palavrinha contra, não é convidado nem para tertúlia nos salões literários de Não-me-toques. Você jamais ouvirá um Luís Fernando Verissimo, Mário Prata, Inácio de Loyola Brandão ou Cristóvão Tezza fazendo o mínimo reproche às corrupções do PT. Perderiam as recomendações oficiais como leituras escolares e acadêmicas... e uma considerável fatia de seus direitos de autor. O livro de Loureiro não mais existe, só pode ser encontrado em sebos. Os de Josué continuam nas livrarias. Et pour cause...

Escritor financiado pelo Estado é escritor que vendeu sua alma ao poder. É o que acontece quando literatura vira profissão. Alguns se rendem aos baixos instintos do grande público e fazem fortuna considerável. Uma minoria consegue exercer honestamente a literatura e manter a cabeça acima da linha d'água.

Uma imensa maioria, que não consegue ganhar a vida nem honesta nem desonestamente, apela à cornucópia mais ao alcance de suas mãos, o bolso do contribuinte. É o caso de Chico Buarque, o talentoso escritor cujo talento maior parece ser descolar financiamento para sua “obra” junto ao contribuinte. Mas Chico está longe de ser o único. Está cometendo algum crime? Nenhum, seus subsídios são perfeitamente legais. Mas por que cargas eu ou você temos de pagar pelas traduções e viagens a congressos internacionais de um escritor que se dá ao luxo de ter uma maison secondaire às margens do Sena?

Ainda há pouco, eu comentava o absurdo de o contribuinte financiar a tradução de Chico na Coréia. Leio agora que o programa de bolsas de tradução da Biblioteca Nacional vai apoiar mais autores best-sellers no Brasil. O Diário de um Mago, de Paulo Coelho, será lançado na China pela editora Thinkingdom Media Group. Já As Esganadas, de Jô Soares, estará nas livrarias francesas. Ora, Coelho tornou-se milionário graças a suas obras de auto-ajuda, já traduzidas em quase 60 idiomas. Jô, que deve ganhar salário milionário na televisão, tem seus livros entre os mais vendidos, graças ao fator Rede Globo. Será que estes senhores precisam enfiar a mão em nosso bolso para pagarem seus tradutores na China e na França?

É destas corrupções, perfeitamente legais, que prefiro falar. Porque delas ninguém fala. Em verdade, nem mesmo os leitores. Não há quem não chie contra a carga tributária imposta ao contribuinte no Brasil. Mas todos pagam sem chiar as mordomias destas prostitutas das Letras.

Maio 11, 2012


 

 

ÚLTIMA RELIGIÃO DO OCIDENTE TEM FUTURO ENTRE BOTOCUDOS

 

As três grandes religiões contemporâneas, ditas abrâmicas, nasceram no deserto. O monoteísmo surge da areia, diz Michel Onfray. O nome do mais genial dos ficcionistas perdeu-se nos tempos. Foi aquele que criou este personagem universal, que até mesmo um mendigo analfabeto conhece: Deus. O judaísmo manteve-se mais ou menos uno e sempre fechado em si mesmo. O cristianismo optou pelo proselitismo e captação de fiéis e partiu-se em mil pedaços. O islamismo tem suas dissidências, mas mesmo assim é a religião que mais tem se expandido nos últimos séculos.

Século passado, um movimento laico e messiânico assumiu todas as características das antigas religiões. Freud o pressentiu e escreveu - em 1927 - em O Futuro de uma Ilusão: “Se quisermos expulsar de nossa civilização européia a religião, não se poderá chegar a isso senão com a ajuda de um novo sistema, e este sistema, desde sua origem, adotará todas as características psicológicas da religião: santidade, rigidez, intolerância e a mesma proibição de pensar, como autodefesa”.

Comentei a nova religião em meu ensaio Engenheiro de Almas, escrito em 1986 e publicado em 2.000, pela ebooksbrasil. Não foram muitos os escritores a intuir que não se estava precisamente ante uma revolução, mas ante uma nova religião. Entre estes, poucos foram tão precisos na denúncia do novo dogma como Nikos Kazantzakis. No relato de sua peregrinação à Rússia - Voyages - Russie, diz o cretense que pouco a pouco a luz se fazia em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplista. Como em todas as religiões, eles buscavam divulgar essas respostas, tentando torná-las compreensíveis para o povo. Kazantzakis reconhece então, na Rússia, a existência de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos e educava como bem entendia milhões de crianças.

Este exército, diz o cretense, possui seu evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin. E seus apóstolos fanatizados que pregam as Boas Novas a todas as gentes. Possui também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, sua hierarquia, sua liturgia e mesmo a excomunhão. E sobretudo a fé, que lhe assegurava deter a verdade e trazia a resposta definitiva aos problemas da vida.

Não há apenas um Livro - acrescentaríamos -, como também os livros apócrifos. Assim como a Igreja Romana censura os testemunhos gnósticos que não servem à sua ambição de poder, assim censurou-se até mesmo a obra de Marx na finada União Soviética. “Nós somos contemporâneos - diz Kazantzakis - deste grande momento em que nasce uma nova religião”.

Albert Camus é outra voz solitária a denunciar o caráter eclesial da nova idéia. O proletariado - diz Camus tentando entender o marxismo - “por suas dores e suas lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”. Sua percepção do caráter religioso do marxismo é continuamente retomada em seus ensaio mais ambicioso, L’Homme Revolté:

“O movimento revolucionário, ao final do século XIX e ao começo do século XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”.

“A revolução russa permanece só, viva contra seu próprio sistema, ainda longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia se afasta ainda mais. A fé resta intacta, mas ela se curva sob uma enorme massa de problemas e de descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo diante de Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”.

A nova religião nascera e os intelectuais do Ocidente, os lúcidos entre os lúcidos, caíram como patinhos no engodo. Este é o grande enigma que cerca o fenômeno Stalin: como foi possível que espíritos abertos e generosos da época se tornassem cúmplices e devotos deste formidável assassino? Ou talvez não fossem tão lúcidos, nem tão abertos nem tão generosos, e sim pobres crianças em busca de um novo pai? Não será por acaso que a ladainha mais freqüente entoada a Stalin é a de Paisinho dos Povos.

Nos anos 90, exaurida, a nova religião afunda. As três outras antigas religiões, que depositaram os prometidos castigos e recompensas no inexpugnável cofre do Além, persistem triunfantes. Afinal, o Além está sempre além. A nova fé prometeu o paraíso aquém. Marx colocou o paraíso duas ou três gerações logo adiante. Ora, você pode anunciar o paraíso até a geração de seus netos. Mas se o anunciado paraíso não ocorre, você não espera mais. O profeta era fajuto e a religião que pregava não chegou a durar um século.

Religião morta, religião posta. Há uns bons dez anos, escrevi que quem viu muito bem o vazio de fé que assolaria o Ocidente com a morte do comunismo foi o cineasta italiano Nanni Moretti, em Palombella Rossa. O filme é de 89, significativamente o ano em que caiu o Muro de Berlim. A história tem como personagem principal um deputado comunista que, do dia para a noite, perdeu a memória. A cena final é emblemática: em uma auto-estrada, centenas de jovens correm para saudar o sol.

Está inaugurada a nova religião, o culto da natureza. Em vez de anjos derramando taças sobre o planeta, que trazem fome, pestes, terremotos, maremotos, temos o aquecimento global e o efeito estufa. O que era Terra passa a chamar-se Gaia, um ser vivo com projetos próprios. O João de Patmos do novo apocalipse chama-se James Lovelock. O mínimo que prometia era o Saara invadindo a Europa e uma Berlim tão quente quanto Bagdá. Isso para as próximas três décadas. Em fins de 2007, Al Gore desembarcou em Sevilha para falar de seu movimento contra o câmbio climático. Em seu afã de chegar aos interlocutores, Gore, que é profundamente religioso, usa frases como: “A Noé foi dito que salvasse as espécies vivas e isto hoje continua sendo nossa obrigação”. A nova religião pretendia salvar a humanidade da entropia.

Mês passado, o profeta se retratou. O que é insólito. Jamais vi profetas se retratando. Os profetas bíblicos, cautelosos, anunciavam o fim dos tempos para quando não mais estariam na terra. Lovelock precipitou-se e, como o planeta teimava em não aquecer-se, teve de voltar atrás. Mesmo assim, fez acólitos no mundo todo com a sua Hipótese Gaia. Mas, para bom crente, tanto faz como tanto fez que o profeta se desdiga. A religião está em pleno desenvolvimento e a bicicleta tem de continuar andando.

Universidades, ONGs e instituições outras apostaram milhões de dólares em pesquisas que visavam não propriamente a estudar os fenômenos climáticos, mas a comprovar a tese do aquecimento global. Cientistas e pesquisadores comprometeram seus currículos e reputações. Agora é tarde para voltar atrás. Azar do Lovelock. Vai ver que está ficando caduco. Pois só velhotes caducos podem negar o aquecimento global. Está hoje acontecendo com os ecochatos o mesmo que aconteceu ontem com os velhos intelectuais bolcheviques. Produziram tantos ensaios e teses apostando na revolução do proletariado que hoje não podem mais negá-la. Seria algo como dizer: “tudo que escrevi era besteira e minha vida toda foi inútil”.

O homem que desenvolveu a tese idiota, mais própria de histórias em quadrinhos, acaba de renegá-la. A imprensa, como se nem tivesse ouvido falar da retratação de Lovelock, continua batendo na tecla do aquecimento global. No Rio Grande do Sul, nestes dias, está sendo incensado como santo um maluco que assumiu a Hipótese Gaia, o José Lutzenberger. Os gaúchos, que parecem só ler Zero Hora, ainda desconhecem as notícias do mês passado da imprensa internacional.

Nietzsche já nos alertava sobre o quanto fede o cadáver de um deus morto. É fácil construir religiões. Difícil é descontruí-las. Como aconteceu com o marxismo, a nova fé começará a morrer no mundo desenvolvido. Cá entre nós, botocudos, continuará a gozar de boa saúde pelas próximas décadas.

Maio 14, 2012


 

 

SURGE NOVA DOENÇA

 

Leio na Folha de São Paulo reportagem sintomaticamente intitulada “O novo melhor amigo do homem”. Seria o celular. Médicos já estão preocupados com a dependência do aparelhinho e o Hospital das Clínicas estuda criar um laboratório no próximo semestre para tratar da doença. Segundo uma psicóloga, na revisão do manual americano de transtornos mentais, no ano que vem será incluída a dependência de tecnologia.

Sou da época em que telefone era privilégio de abastados. Meu primeiro telefone – fixo, bem entendido –, eu o tive aos trinta anos. Em Paris. Porque no Brasil não tinha renda para comprar um. Naqueles dias, em causas judiciais que envolviam patrimônio, o telefone era arrolado como bem. Mais ainda, era declarado no Imposto de Renda. Havia inclusive uma bolsa de telefones, cujas cotações, assim como as do dólar, eram publicadas diariamente nos jornais. Hoje, um telefone no bairro tal era cotado a tantos mil dólares. Vivaldinos que jamais foram punidos, graças a relações com o poder compravam cem, duzentas ou trezentas linhas e viviam de vendê-las ou alugá-las. Era agiotagem das mais lucrativas e seus apaniguados se opunham com unhas e dentes a qualquer idéia de privatização da telefonia.

Verdade que, em Porto Alegre, jamais sentira necessidade de um. Talvez os jovens destes dias achem estranho, mas houve época na História em que era possível viver sem telefone. Em Paris, pensei no assunto. Sem muitas esperanças, devo confessar. No Brasil, o período de espera por uma linha era de cinco anos. Minha estada projetada na França era de quatro anos. Com sorte, pensei, terei telefone quando estiver partindo.

Chamei a telefônica lá deles. Meu primeiro choque foi com o preço, 300 francos, pagos em três vezes. Nestes dias de euro, já não sei quanto significaria 300 francos, mas eram perfeitamente compatíveis com minha magra bolsa de estudos. Isto aconteceu em 1977. Treze anos depois, em 1990, paguei quatro mil dólares por um telefone em São Paulo a um desses canalhas que operavam na bolsa de telefones. E atenção: eu disse dólares. Cruzeiros não eram aceitos em transações entre particulares.

Fiz então a pergunta que mais me preocupava: quando posso ter o telefone? Do outro lado da linha perguntaram por minha profissão. Jornalista, respondi. Não foi fácil acreditar na resposta: dentro de três dias. Para médicos e jornalistas o prazo é este. A França pode não ser o paraíso, pensei. Mas é a sua mais próxima versão.

De três milhões de anos para cá, nenhum de meus ancestrais teve telefone. Fui um pioneiro em minha linhagem. Meus pais, camponeses, teriam até medo de falar nestes aparelhos. Meu sogro, homem urbano e mais familiarizado com a modernidade, já ousava telefonar. Mesmo assim, ficava perplexo quando, em questão de segundos, estava falando com a filha, lá do outro lado do oceano. Vivi também a época do celular e acompanhei sua trajetória. O primeiro surgiu no Rio de Janeiro.

O aparelho parecia um daqueles rádios militares que vemos em antigos filmes de guerra, era imenso e custava 20 mil dólares. Exatamente, dólares. Prova evidente de que quem o possuía tinha cacife para pagar 20 mil dólares por um tijolo daqueles. Apesar de o preço diminuir, durante um bom tempo os celulares foram símbolos de status. Quem possuía um era pessoa de posses, se não rico pelo menos bem de vida. Vivi aqueles dias em que solenes bestas, ao chegar a um bar, esparramavam na mesa três sinais de seus padrões de consumo: as chaves do carro, o maço de cigarros e o celular. Na época, não havia a atual diversidade de tons de chamada. Quando um soava, todos corriam a empunhar o seu.

Naquela época, um fenômeno curioso ocorreu no Chile. Motoristas que eram multados por estar falando ao celular não estavam falando em celular nenhum. Usavam objetos que simulavam o celular, para aparentar status.

O celular foi barateando. Quando até mesmo prostitutazinhas de rua passaram a andar com um na cintura, escassearam os celulares nas mesas de bar. Já não constituíam mais distintivos de classe social. Mesmo assim, o ridículo persiste. Seguidamente vejo três ou quatro pessoas, sentadas em uma mesa, cada uma conversando com alguém distante em algum outro lugar da cidade ou do país. Ora, não me passa pela cabeça ver pessoas reunidas para falar com pessoas distantes.

Se celular é obviamente útil, mesmo necessário, também virou praga. Nada mais irritante estar assistindo a um filme quando toca o maldito aparelhinho. Mesmo em bares, consegue irritar. As pessoas sempre falam em tonalidade mais alta quando ao celular e ficamos submetidos a ouvir desde piadas bestas a confidências íntimas. Isso sem falar daqueles que o usam para jactar-se publicamente de posses ou status. Estes são legião. Nos primórdios da era do celular, conheci um negro que ordenava à sua secretária que o chamasse seguidamente. Sentia-se importante sendo buscado a toda hora. Sem falar nas dondocas que insistem em comunicar ao mundo: “querido, estás vindo no blindado ou na Pajero?” Não estou criando. Esta, juro que ouvi.

Celular já era. Estamos na era dos smartphones, iPads e iPhones. Particularmente aqui em São Paulo. Na rua, restaurantes, salas de espera, ônibus ou metrô, para onde quer que você olhe, há alguém plugado a um desses aparelhinhos. Segundo a Folha, em comparação com o aparelho convencional, o smartphone cria uma relação mais intensa com o dono, às vezes até de dependência. Esse comportamento já está chamando a atenção de psicólogos e psiquiatras, que tentam definir a barreira entre excesso e normalidade.

Segundo Cristiano Nabuco, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, “começam a pipocar casos preocupantes de relação absurdamente descontrolada”. Uma paciente de 17 anos pegou um vôo para Ilhéus (BA) e, quando chegou lá, se deu conta de que estava sem o telefone. Teve crise de abstinência, começou a chorar e só saiu do aeroporto quando a mãe mandou o aparelho, em outro vôo.

Ano passado, andei namorando o novo fetiche. Uma amiga me mostrou um iPhone em um bar e devo confessar que me senti tentado. Eu falava de minha última viagem pelos fjordes, falei do sol da meia-noite em Tromsø e ela imediatamente acionou o GPS e mostrou-me a costa norueguesa, Tromsø, Vesterålen, as ilhas Lofoten, Bodø, Ålesund, Trondheim, Bergen, em suma, todo meu trajeto estava ali na telinha, sem que eu precisasse desenhar. Bom para conversar sobre viagens, pensei. Comentei a entrevista de um escritor pouco conhecido, ela digitou o nome do fulano no aparelho e lá estava estava ele, falando em alto e bom som, à minha frente. Bom para discutir literatura, comentei com meus botões. Isso sem falar em correio eletrônico, navegação pela Web e outros recursos tipo cursos de língua, dicionários eletrônicos, música, ebooks.

Fiquei tentado, dizia. Mas, refletindo melhor, tenho tudo isso em meu computador. Certo, o computador fica lá em casa. Tenho até um notebook e um netbook – aliás já obsoletos –, mas tenho certo pudor em levá-los a meus bares. Quando saio de casa, quero distância da Internet. E se vou a um bar, quero beber, ler, conversar, tudo menos navegar. Meus portáteis, só os uso em viagens. De qualquer forma, me envergonharia ser confundido com essa massa toda de gentes que vive plugada a um smartphone.

Há uns três anos, em entrevista para o Libération, a socióloga Catherine Lejealle dizia:

— Quando se coloca a questão “você prefere perder sua carteira ou seu celular?” a grande maioria responde: a carteira. Porque se perco meu celular, estou morto. No fundo, o celular tornou-se nossa memória íntima. Mais útil que um canivete suíço, ele faz tudo: despertador, caderno de endereços, álbum de fotos... Ele serve também de cofre para jogos com as novas aplicações. Veja nos transportes: quando as pessoas se entediam, elas teclam no celular, como uma criança brinca com seus brinquedos.

Fossem só as crianças... Não há dia em que eu não veja barbados imersos em joguinhos e alheios ao que ocorre a um metro de seus narizes. Neoludita, minha evolução parou em um precário celular, que nem Internet tem. De modo algum me sinto morto sem celular ou gadgets outros. Meu celular é do neolítico da era das comunicações e só o uso aos sábados e domingos. Das 13 às 15 horas. É quando estou esperando, na rua, alguém para confraternizar. Sou imune à nova doença. Talvez um dia chegue à época em que vivo e pense em uma dessas engenhocas. Se for o caso, não será para exibi-la em bares. Mas apenas para uma consulta rápida.

Modernidade sim! Mas devagar.

Maio 15, 2012


 

 

DO CÁLCULO RENAL À EPIFANIA

 

Nada se cria, tudo se copia, dizem as gentes. Se existe um campo onde este axioma impera, este campo é o das religiões. A começar pelo judaísmo. Não existe Bíblia sem o Egito, dizia Thomas Römer, especialista em história bíblica. O monoteísmo judaico já está em Akenathon. Com a diferença de que Akenathon teve existência atestada na história. E de Moisés, o patriarca dos judeus, não temos sequer um sinal de sua passagem no tempo. A autoria da Torá – Pentateuco, para os cristãos – não procede, pois no último dos cinco livros, o Deuteronômio, Moisés narra sua própria morte. Nem Cristo ousou tanto, deixou este relato para os evangelistas. Freud, em Moisés e a religião monoteísta, faz de Moisés um discípulo de Akenathon que teria se associado aos judeus para ensinar-lhes a religião monoteísta.

Quanto aos cristãos, tiveram ainda mais religião de quem copiar. O Novo Testamento é uma apropriação indébita – para não dizer roubo – do livro dos judeus, acrescido de mitos gregos e do paganismo. A História está repleta de deuses nascidos de virgens e mortos no solstício de inverno. A vasta proliferação de denominações cristãs era tendência já embutida no próprio cristianismo. No Brasil contemporâneo, elas brotam como cogumelos após a chuva e fazem feroz concorrência aos católicos.

Não há religião hoje que não seja uma sopa de religiões antigas. Os tais de neopentescostais, que infestam as cadeias de televisão no mundo todo, são outros que se apossam do Livro a seu modo. O mesmo fizeram os espíritas. Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer e construiu sua ficção. Mesmer era médico, estudava teologia e retomou a antiga picaretagem da imposição das mãos. Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros.

Há alguns anos, recebi visita de amiga que há décadas não via. Para minha surpresa, revelou-se espírita e umbandista. Profundo mistério. Sempre vi o espiritismo como uma religião de origem francesa, inspirada nas teorias de Mesmer, e a umbanda como um culto animista de origem africana. Não via como alguém podia assumir coisas tão díspares. Saí então a pesquisar. E descobri coisas que, como a jaboticaba, só ocorrem no Brasil.

Segundo J. Alves Oliveira, em Umbanda Cristã e Brasileira, no dia 15 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São Gonçalo, município fluminense próximo ao Rio, então capital federal. “Foi um escândalo” – escreve Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo -. “Embora haja indícios de incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas diversas formas de macumba que existiam no Rio de Janeiro do século 19, os kardecistas não os admitiam por considerá-los espíritos marginais e pouco evoluídos. Quem recebeu o caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio Fernandino de Moraes, um rapaz de 17 anos que se preparava para entrar para a Escola Naval”.

O achado do Zélio Fernandino parece ter vindo de encontro a alguma inconsciente aspiração brasílica e fez escola. Assim como os católicos se apossaram do livro judaico, os umbandistas reivindicaram para si o mediunismo, trouvaille de Allan Kardec. Segundo Alves Oliveira, o caboclo teria assim se revelado: “Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios [caboclos], devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho [o médium Zélio de Moraes] para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou”.

O espiritismo então abrasileirou-se, para desalento de seus mentores europeus. Contei então a história do Zélio Fernandino à minha amiga. Que a desconhecia totalmente. Ou seja, nem sabia como se havia operado a fusão de duas religiões em seu cerebrinho. A lambança é tal que já há centros orixás da umbanda, santos católicos e retratos de pregadores do Santo Daime posicionados em lugares estratégicos dos terreiros. E já existe inclusive o umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira.

O Santo Daime desbundou. É um culto sem pé nem cabeça, criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo, a Virgem... e a floresta amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então adaptou-se. Assumiu elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos, que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de cipó.

São Paulo, com a maior clientela de crentes potenciais do país, é um semental de novas fés. Outro dia, zapeando na televisão, descobri uma nova igreja, a bereana. E porque bereana? Porque em Atos está escrito: “E logo, durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali chegados, dirigiram-se à sinagoga dos judeus. Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”. A palavrinha se repete só mais duas vezes e já deu origem a uma igreja. Afinal os judeus de Beréia era mais nobres que os de Tessalônica. E mais nada sabemos de Beréia. Mas quando descobri a nova crença – há coisa de uma semana – as igrejas já eram três: temos a Igreja Evangélica Bereana, a Batista Missionária Bereana e a Adventista Bereana. Com tantos pastores proclamando a independência, a igreja deve ser das mais lucrativas.

E as religiões continuam saltando como pipocas na panela. Em 11 de novembro do ano passado foi criada a Igreja Templária de Cristo na Terra. Seus adeptos seriam nada menos que a reencarnação dos Cavaleiros Templários, braço militar da Igreja Católica formado por monges com voto de pobreza que aceitaram a tarefa de proteger os cristãos dos muçulmanos. De novembro para cá, são apenas seis meses. E a novel igreja já tem um primeiro-ministro, quatro bispos, 20 ministros e 560 mestres, cada qual encarregado de cuidar de 70 fiéis. Walter Sandro Pereira da Silva, o apóstolo fundador, vive “uma vida simples”, em uma casa em São Bernardo do Campo (o “solo sagrado”), com nove dos ministros, sua mãe e cerca de 80 cães e gatos – a igreja tem como tarefa tirar animais da rua.

Quem nos conta é Willian Vieira, repórter da CartaCapital. Com 70 fiéis para 560 mestres, temos 39.200 seguidores. Tudo isso em seis meses, o que dá mais de 6.500 adeptos por mês. O que dá mais de 1600 conversões por semana. Mais de 230 por dia. Mesmo sentado à mão direita do Pai, o Cristo – que, após três anos de pregação, mal teve um gato pingado para acompanhá-lo ao monte Calvário – deve estar se roendo de inveja.

Walter Sandro, pernambucano pobre de Gravatá, descobriu cedo sua missão. Tinha 2 anos e meio e procurava desesperado a chupeta perdida, quando o Arcanjo Miguel veio em seu auxílio pela primeira vez. “Foi quando apareceu este ser dizendo que ela estava debaixo da cama e que eu devia procurar o Salmo 91.” Quando os pais encontraram o pequeno, ele tinha a chupeta na boca e a Bíblia na mão: milagre. “Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos”, dizia o premonitório texto bíblico.

Walter Sandro veio para São Paulo bebê e só voltou a falar com o arcanjo aos 13 anos, quando foi visitar sua cidade natal. Miguel disse-lhe que deveria pregar. Virou evangélico. Anos depois, quando começou a vender seguros, descobriu o dom da retórica e passou a dar palestras motivacionais: deixe de fumar, emagreça, conquiste o amor.

A epifania mesmo só ocorreu em novembro passado, quando Walter Sandro estava prestes a entrar no ar pelo canal UHF 58. Um novo milagre se deu. “O Arcanjo Miguel materializou-se e disse para eu abrir a igreja. Foi tão forte que tive uma crise de cálculo renal. Fui ao banheiro e ele veio e disse pra botar a mão na urina. Eu pus. E saiu uma pedra do tamanho de meio grão de feijão.” À meia-noite o programa foi ao ar já com o nome de Igreja Templária. As reuniões começaram como uma espécie de maçonaria, que aos poucos incorporou doses de Reiki, ioga e passe espírita. Uma pitada de Oriente, outra de espiritismo. Jogue tudo num caldo de cristianismo, misture e agite bem. Está criada uma nova religião.

Com apenas seis meses de existência, além do prédio na Rua Leais Paulistanos, a igreja tem sedes no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Minas Gerais. É mantida pelo “Carnê da Gratidão”, um boleto com depósito de 33 reais em uma conta do Banco do Brasil. “A pessoa não paga. Ela doa.” E ganha, de quebra, o número do celular de um dos mestres para ligar quando quiser, todo dia até as 2 da manhã. “Qual seu problema? Bem, às vezes Deus não cura agora para testar sua fé”. Vinte pessoas se revezam em três turnos para atender 3 mil ligações por dia no telemarketing. Se tudo der certo e o arcanjo ajudar, em breve a igreja terá seu canal UHF (que custou 120 mil reais) para levar, “em cadeia nacional”, a mensagem do fim do preconceito. “Nós não temos nenhum.”

Você está desempregado e o mercado não está para peixe? Crie uma religião. É aposta segura. Nenhum outro ramo do trabalho lhe proporcionará tais retornos em apenas meio ano.

Maio 17, 2012


 

 

FACEBOOK DESGASTA UMA ANTIGA PALAVRA

 

Já comentei há quase dez anos. O século passado, entre outros atributos, foi sem dúvida o da desvalorização das palavras. A começar por democracia. Sistema de governo almejado por todos os povos no Ocidente, onde cada indivíduo tinha seus direitos e liberdades garantidas, logo foi tomado de assalto pelos comunistas e passou a significar o contrário. As sedizentes repúblicas democráticas do Leste europeu não passaram de tiranias brutais,onde o direito mais ao alcance do cidadão era a prisão ou o gulag.

Paz foi outra palavrinha que sofreu bastante. Quem talvez mais a tenha desfigurado no mundo foi esse vigarista de mão cheia, chamado Pablo Picasso, com sua pombinha da paz, sempre sobrevoando os países que só queriam e faziam guerra. Não adianta cercar uma boa doutrina, dizia Nietzsche. Os porcos criam asas.

Quem definiu com verve o fenômeno foi George Orwell, em 1984, certamente a ficção mais significativa do século passado. Na sociedade controlada pelo Grande Irmão, guerra era paz, liberdade era escravidão e ignorância era força. Esta estratégia tem-se repetido ad nauseam. Sem ir mais longe, aí está o PT, brandindo um projeto em nome da liberdade de imprensa, que no fundo pretende exatamente o contrário: sufocá-la.

Nestes dias de Internet, a palavra que mais se desgastou foi certamente amigo. O fenômeno terá começado com o Orkut e se intensificou no Facebook. Fulano quer ser seu amigo, nos informa o site. Ora, não é assim que uma amizade se inicia. Como posso aceitar como amigo pessoa que não conheço?

Qual a intimidade com um milhão de amigos? – pergunta-se o Nouvel Observateur. A revista qualifica o Facebook, com seus 900 milhões de utilizadores em apenas oito anos de existência, como o terceiro país do mundo, por sua população. Uma de suas características seria redefinir as relações sociais e mesmo as práticas culturais.

Pode ser. Mas se mexe com a vida de muita gente, na minha não mexeu quase nada. Verdade que, através destas ditas redes sociais, reencontrei pessoas que há décadas não via. Isto desde o Orkut. Esta me parece ser uma função importante do Facebook. Também o utilizo para divulgar meus artigos. Serve também como meio de comunicação rápida entre pessoas. Sei que há gentes encontrando o amor de suas vidas na rede. Vá lá. Eu prefiro os métodos antigos, de encontro pessoal, seja em universidade, bares, ambiente de trabalho.

O Facebook serve para dar voz a quem antes não a tinha. As pessoas podem discutir, manifestar-se, chiar, protestar, denunciar. Mas para isto existem os blogs, ao alcance de quem quiser mostrar sua cara ao mundo. Esta é, a meu ver, a grande revolução da Internet. Se antes eu precisava de meio de comunicação para dizer ao mundo o que tenho a dizer, agora posso dizê-lo dispensando as mídias tradicionais. Neste sentido, a Internet começou tímida e blog era, em suas origens, uma espécie de diário íntimo de adolescentes. Logo os jornalistas descobriram o poder de comunicação destas páginas e hoje os blogs competem em pé de igualdade com a grande imprensa. A tal ponto que já começam a ser censurados. Sinal de que incomodam.

Mas se em algo o Facebook mexeu, foi sem dúvida com as palavras. Particularmente com esta antiga palavrinha, amizade. Segundo a socióloga Divina Frau-Meigs, entrevistada pelo Nouvel, a boa escala de interatividade é em geral de 60 a 80 pessoas, podendo ir até uma centena para os mais extrovertidos. Essas pessoas são verdadeiros “amigos”, com os quais se tem contato freqüente e com os quais se evolue na vida.

Ora, tenho concepção bem mais estrita de amizade. Tanto que divido meu mundinho entre amigos, relações de bar e conhecidos. Amigos, a meu ver, são sempre poucos. Relações de bar é círculo mais amplo e conhecidos é a soma dos dois anteriores e mais os outros tantos com quem tropeçamos na vida. Já amizade é plantinha que exige tempo para crescer, muitas vezes décadas. Uma das coisas que mais detestei em meus dias de Florianópolis foi a mania dos ilhéus de dirigir-se a quem quer que seja com esta palavrinha: “amigo!” Há quem ache simpático e hospitaleiro este comportamento. Eu o considero abominável. Desvaloriza uma palavra cheia de significado.

Que os usuários do Facebook convencionem chamar de amigos a todo e qualquer interlocutor, isto é uma convenção que a ninguém está proibida. Mas nada tem a ver com amizade. Pode até que, destes contatos, surja uma relação de amizade, e mesmo namoros e casamentos. Nem sempre sei do que gosta meu vizinho. Mas posso descobrir afinidades com uma pessoa do outro lado do oceano.

De minha curta experiência no Facebook – dois anos, talvez – encontrei bons interlocutores. Mas a maioria deles eu já conhecia através do blog. Já me encontrei com muita gente, aqui e no Exterior, que conheci via Internet. Como mudei de cidade mais de dez vezes em minha vida, gosto de reencontrar na rede as pessoas que deixei para trás. Hoje converso com amigos de Paris ou de Dom Pedrito como se estivesse sentado com eles numa mesa de bar. Esta é, sem dúvida, uma das grandes vantagens do Facebook. Mas minha relação de amizade era anterior.

Existe um milhão de amigos? – pergunto eu. Minha pergunta é meramente retórica. Claro que não existe. Amigos são sempre poucos e raros. Ainda há pouco eu comentava o perverso ranço cristão do “amai-vos uns aos outros”. Como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, esta ordem exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.

Pessoalmente, só ouso qualificar como amigo alguém com quem já convivi uns bons vinte anos. E a experiência de minhas últimas décadas tem me sussurrado que é melhor esperar uns quarenta. Já ultrapassei a sexta década e meus amigos, se for contá-los nos dedos, sobra dedos. E me sinto muito feliz por tê-los tantos. Sem falar que, em função de meu espírito nômade, estão dispersos por várias geografias e nem consigo reuni-los numa mesma mão ou mesa.

Para o Facebook, amigo virou sinônimo de qualquer um. Amizade passa a ser sentimento de quem está conectado à rede. Não deve estar longe o dia em que a primeira providência para conseguir amigos será comprar um computador.

Maio 19, 2012


 

 

SOBRE AMIZADE, AMOR E DOENÇA

 

Sábado passado, escrevi sobre o frívolo conceito de amizade que está se tornando usual em função das redes sociais. Se, durante séculos, amigo era um ser muito especial, hoje amigo é qualquer um. Nestes dias em que se fala de um milhão de amigos, a discussão merece mais algumas considerações.

Há uns bons dez anos, comentei L’Amicizia secondo i filosofi, de Massimo Baldini (Città Nuova, 1998), uma antologia de textos filosóficos sobre a amizade, com um ensaio do antólogo à guisa de prefácio. Trata da amizade em seu sentido mais nobre, e não da amizade irresponsável proposta por alguém que jamais vimos. Os filósofos, no caso, são aqueles que a história consagrou como tais, e não professores que os papagueiam e se julgam pensadores. A reflexão é oportuna, nestes dias em que a amizade muitas vezes passa a depender de uma visão de mundo uniforme.

Quem hoje tem 60 anos, sabe disso. Terá perdido amigos por escaramuças no Camboja ou Vietnã, por determinações de Moscou, Pequim ou Cuba, em suma, por eventos distantes que nada têm a ver com uma relação entre duas pessoas. O teórico desta perversão foi Sartre que, por questões de ideologia, rompeu laços com Camus. “A amizade, ela também, tende a ser totalitária” — disse um dia o agitador da Rive Gauche ao futuro prêmio Nobel — “urge o acordo em tudo ou a ruptura, e os sem-partido eles próprios se comportam como militantes de partidos imaginários”. É a versão xiita da amizade: ou você aceita minha ideologia, ou não podemos ser amigos.

Assim, com satisfação vejo que Aristóteles, na longínqua Atenas, distante no tempo e no espaço, desde há mais de dois mil anos concorda comigo. No livro oitavo da Ética a Nicômaco, afirma não ser possível ser amigo de muitos com perfeita amizade, como não é possível estar enamorado ao mesmo tempo de muitos. “Aqueles que têm muitos amigos e que tratam todos familiarmente, não parecem ser amigos de ninguém”. Para o estagirita, um milhão de amigos nem pensar.

Cícero, ciente das responsabilidades da amizade, recomenda atenção para que não comecemos a gostar de alguém que algum dia poderemos odiar. Amizade não é coisa para jovens, mas deve ser decidida quando o caráter está formado e a idade já é madura. Sêneca, como bom estóico, acha que o sábio deve bastar-se a si mesmo. O que não impede que ele aceite com prazer um amigo que lhe seja vizinho. Para o pensador de Córdova, o sábio é impelido à amizade não “pelo interesse, mas por impulso natural”. Amizade que se funda no interesse é um “vilissimo affare”. A distância não tem o poder de prejudicar a amizade. É possível manter relações com amigos ausentes, por quanto tempo se quiser. Em verdade, a proximidade torna a amizade complicada. A amizade é sempre útil, enquanto o amor é muitas vezes absolutamente nocivo.

Abelardo acentua o caráter seletivo da amizade. “Ninguém será pobre se possuir tal tesouro, tão mais precioso quanto mais raro. Os irmãos são muitos, mas entre eles é raro um amigo; aqueles a natureza cria, mas estes só o afeto te concede”. Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, define: “é um contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. No que vão duas restrições. Os amigos devem ser sensíveis, porque um monge, um solitário podem não ser maus e no entanto viver sem conhecer a amizade. E virtuosos, porque os maus têm apenas cúmplices. Em suma, só os homens virtuosos têm amigos. O que Abelardo está dizendo, no fundo, é que um mau-caráter não pode ser amigo de ninguém.

Uma distinção mais lúcida vamos encontrar em Kierkegaard, para quem o cristianismo aboliu a amizade. Segundo o pensador dinamarquês, o amor humano e o valor da amizade pertencem ao paganismo. Pois o cristianismo celebra o amor ao próximo, o que é distinto. Para esta religião, só o amor a Deus e ao próximo são verdadeiros. O cristão deve aprender a desconfiar do amor profano e da amizade, pois a predileção da paixão é no fundo um ato de egoísmo. Entre o amigo e o próximo há diferenças incomensuráveis. A morte não pode extirpar o próximo. Se a morte leva um, a vida subitamente fornece um outro. A morte pode tomar de você um amigo, porque ao amar o amigo no fundo você a ele se une. Mas ao amar o próximo você se une com Deus, por isso a morte não pode tomar-lhe um próximo.

Para Nietzsche, a mulher é incapaz de amizade, conhece apenas o amor. Mas seus contemporâneos homens não percorreriam mais os sendeiros da amizade. Por dois motivos. Primeiro, porque o amor entre os sexos prevaleceu sobre a amizade. Segundo, porque o cristianismo substituiu o amigo pelo próximo. Para seu profeta, Zaratustra, “vosso amor ao próximo é vosso amor por vós mesmos. Fugis rumo ao próximo fugindo de vós mesmos. Não vos ensino o próximo, mas o amigo. Não aconselho o amor ao próximo. Aconselho o amor ao remoto”.

Sou avesso a isso que chamam de amor. Ou talvez avesso à palavrinha. Os filmes de Hollywood, que sempre terminavam com um indefectível “I love you”, vulgarizaram o tal de amor. Sem falar que, no fundo, é um sentimento que leva facilmente ao assassinato. Se você, leitora, um dia sentir que outro alguém a considera a única pessoa de sua vida, melhor sair de perto. De preferência, correndo. Há algumas décadas, surgiu uma novela na televisão brasileira intitulada “Quem ama não mata”. Solene besteira. Só mata quem ama. Ao sentir que perde o que julga ser único, o bruto raciocina: se não és minha, não serás de mais ninguém”. Daí a matar é um passo.

Prefiro a amizade, mesmo na relação com mulheres. Em algum momento do Quarteto da Alexandria, Lawrence Durrel dizia ser a amizade preferível ao amor porque mais duradoura. Verdade que amigos também perdemos, mas a ninguém ocorre matar alguém porque perdeu sua amizade. Amor é doença antiga, já diagnosticada pelos gregos. Assim narra Plutarco o caso de um jovem enfermo:

— Erasístrato percebeu que a presença de outras mulheres não produzia efeito algum nele. Mas quando Estratonice aparecia, só ou em companhia de Seleuco, para vê-lo, Erasístrato observava no jovem todos os sintomas famosos de Safo: sua voz mal se articulava. Seu rosto se ruborizava. Um suor súbito irrompia através de sua pele. Os batimentos do coração se faziam irregulares e violentos. Incapaz de tolerar o excesso de sua própria paixão, ele tombava em estado de desmaio, de prostração, de palidez.

Quando Antíoco – pois assim se chamava o enfermo – recebeu Estratonice como presente de Seleuco, seu pai, desapareceram os sintomas da doença. Que talvez tenha contagiado Seleuco, pois afinal era o marido de Estratonice. Mas isto já é outra história.

Eram bons observadores, os gregos. O tal de amor é gostoso quando o experimentamos. Mas ridículo quando visto com certa distância. Amor, diria, é coisa para jovens. Jovem tendo sido, é claro que fui acometido pelo mal. (O pior é que às vezes tem recidiva). Uma vez adulto, optei pela amizade.

Que tampouco dura a vida toda. Diria que perdi dois excelentes amigos de longa data. Um, porque recebeu o título de Dr. pela USP. Outro, porque não gostou de crônica que escrevi sobre a teoria da relatividade. Que se vai fazer? Conto outra hora.

Maio 21, 2012


 

 

PARA QUANDO TRAVESTIS NO JUDICIÁRIO?

 

O racismo no Brasil, hoje, é fundamentalmente negro. O racismo que antes existia, por parte dos brancos, era mitigado e jamais foi militante. Havia – e ainda há – quem não gostasse de negros, e isto a meu ver é direito de cada um. Isso de amai-vos uns aos outros é coisa de católicos. Eu amo quem me agrada amar. Não me vejo obrigado a gostar de ninguém, seja branco ou seja negro. Respeitar alguém como ser humano, detentor de meus mesmos direitos, isto sim. Mais não me peçam.

Desde há muito venho denunciando este racismo negro, que não ousa dizer seu nome. Já em 2006, eu comentava um monstrengo jurídico, de autoria do senador Paulo Paim, o projeto de lei n° 3.198/2000, também chamado de Estatuto da Igualdade Racial. Na ocasião, já fora aprovado pelo Senado e tramitava em regime de prioridade na Câmara dos Deputados. De uma só tacada, Paulo Paim extermina legalmente os mulatos do território pátrio: “para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”.

Demorou mas chegou até nós. Está sendo introduzida legalmente no Brasil a classificação ianque, que só consegue ver pretos e brancos em sua sociedade e nega a miscigenização. Este sórdido projeto é antigo, fruto da exportação dos conflitos raciais dos Estados Unidos para um país onde o negro sempre conviveu bem com o branco, tanto que o mulato constitui um contingente considerável da população. Mal foi eleito, o Supremo Apedeuta saiu arrotando urbi et orbi que o Brasil era a segunda nação negra do mundo, depois da Nigéria.

Até mesmo uma pessoa aparentemente culta, como Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, prestou-se a corroborar o sofisma safado: “como declarou o presidente Lula, o estreitamento das relações com a África constitui para o Brasil uma obrigação política, moral e histórica. Com 76 milhões de afrodescendentes, somos a segunda maior nação negra do mundo, atrás da Nigéria, e o governo está empenhado em refletir essa circunstância”. Ao colocar todos afrodescendentes no mesmo saco dos negros, o ministro demonstrou que, nos círculos do poder, mesmo homens cultos se dobram à bajulação.

Ora, segundo o IBGE, a população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus. Com o projeto do senador, não teríamos mais mulatos (ou pardos, no jargão do IBGE), mas apenas afrobrasileiros. O que os ativistas negros esquecem é que o mulato pode denominar-se tanto afrobrasileiro como eurobrasileiro. Tanto afrodescendente como eurodescendente. A tônica no afro tem intenções óbvias: aumentada artificialmente a população negra, torna-se fácil pressionar os legisladores para obter mais vantagens para os que não são brancos. Os ativistas negros no Congresso querem ganhar privilégios no tapetão da semântica.

Sensível ao apelo dos votos, o tucano Geraldo Alckmin encaminhou na época, à Assembléia Legislativa, projeto de lei que estabelecia o acréscimo de pontuação aos afrodescendentes no concurso público para a Defensoria do Estado. Após os Estados Unidos estarem abandonando a política das ações afirmativas, o governador paulista, em um gesto de mimetismo terceiro-mundista tardio, afirmava: “Estamos fortalecendo nossa proposta de ações afirmativas”. É um modo de dizer.

O que Alckmin ignorou foi o artigo 5° da Constituição, que reza: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Alckmin era então visto como uma alternativa à permanência do Supremo Apedeuta no poder. Triste alternativa, a de um político que, em sua ambição de votos, começa sua campanha rasgando de uma penada a Constituição brasileira. Se já rasgava a Carta Magna enquanto candidato a candidato, podemos imaginar o que ousaria quando no poder.

Nas últimas décadas, os movimentos negros insistiram na idéia de que raça não existe, ser negro seria apenas uma questão de melanina. Quando começou a surgir no Brasil a infeliz idéia ianque de cotas, tanto para a universidade como para admissão em empregos públicos, assistimos a uma súbita reviravolta: raça agora existe e deve ser declarada. O malsinado projeto do senador gaúcho determinava que, em várias circunstâncias - no Sistema Único de Saúde, nos sistemas de informação da Seguridade Social, em todos os registros administrativos direcionados aos empregadores e aos trabalhadores do setor privado e do setor público - o quesito raça/cor seria obrigatoriamente introduzido e coletado, de acordo com a autoclassificação.

Se afirmar a existência de raças era sinônimo de racismo, a noção de raça passou a ser algo bom, digno e justo. Para a advogada Flávia Lima, coordenadora do Programa de Justiça da ONG Núcleo de Estudos Negros, em Florianópolis (SC), a classificação dos indivíduos segundo a raça pode ser um instrumento na luta contra o racismo. A obrigatoriedade de registro da cor seria um ponto positivo do Estatuto, já que permite investigações sobre racismo em diversas esferas da sociedade.

Se aprovado na Câmara este projeto infame, os negros e mulatos teriam carteirinha única, e esta jamais seria a de mulato. Imagine o leitor se um deputado branco sugerisse a instituição da carteirinha de negro. Seria imediatamente comparado a Hitler, que identificou os judeus com a tecnologia Hollerith de cartões perfurados da IBM.

Não sei que rumos tomou o projeto de Paulo Paim. Mas há dois anos foi aprovada a Lei n.° 12.888 – 20 de julho de 2010 – a qual instituiu algo também chamado de Estatuto da Igualdade Racial. Que visa obviamente a conceder aos negros mais direitos que os brancos. Com a oficialização do racismo no país por unanimidade pelo STF, com sua decisão de 26 de abril passado, foram dadas as bases para as reivindicações mais estapafúrdias dos movimentos negros.

Leio que a Frente de Luta Pró-Cotas Raciais no Estado de São Paulo está pressionando por cotas raciais em concursos para juízes e procuradores públicos em SP, a antiga reivindicação de Geraldo Alckmin. Um abaixo-assinado, que será entregue às autoridades estaduais, reivindica cotas nas universidades, nos concursos de acesso ao serviço público, incluindo processos de escolha de juízes, procuradores, cargos de confiança.

Na avaliação da frente, as cotas sociais utilizadas na USP, Unicamp, Unesp e Fatec, não resolvem o problema da desigualdade entre negros e não negros. “Vários estudos apontam que a adoção de cotas raciais é o único meio capaz de mudar o perfil elitista de seus cursos”, afirma.

Há boas décadas eu me perguntava: uma vez garantido por lei o acesso dos negros à universidade, que acontecerá se não encontrarem lugar no mercado de trabalho? Eu mesmo respondia: seriam criadas cotas no mercado de trabalho. Sem me pretender profeta do óbvio, a reivindicação aí está. O que se pede, hoje, é que prova de negro valha mais que a de branco nos concursos públicos.

Ainda ontem, os líderes do núcleo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) do PT pretendiam se reunir com Fernando Haddad, pré-candidato do partido à Prefeitura de São Paulo, para apresentar idéias de combate ao preconceito na capital paulista. Se a reunião ocorreu, não sei. Mas entre as reivindicações dos militantes estava uma campanha de incentivo a professores transgêneros nas salas de aula, além da adoção do “kit-gay” como ficou conhecido o material do MEC.

Vamos deixar de preconceitos, gente! Para quando travestis no Judiciário?

Maio 25, 2012


 

 

JURISTAS LEGALIZAM CHUVA

 

A Comissão de Juristas do Senado, que discute mudanças no Código Penal, aprovou ontem proposta para descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio. Pelo texto, não haveria mais crime se um cidadão fosse flagrado usando entorpecentes. Atualmente, a conduta ainda é considerada crime, mas sujeita à aplicação de penas alternativas. É o que leio nos jornais.

Os doutos senhores, ao que tudo indica, acabam de declarar que a chuva é legal. Em todas as metrópoles do país, zumbis fumam crack a céu aberto, muitas vezes com a presença complacente da polícia, e uma Comissão de Juristas vem agora propor a descriminalização das drogas. O senhores juristas incorrem no mesmo ridículo das passeatas da maconha, que pretendem legalizar o que há muito é permissível. A lei que criminalizava o uso das drogas desde há muito virou letra morta e só agora os legisladores parecem ter percebido a mudança.

Nada de novo tenho a dizer sobre o assunto. Ano passado, a Veja nos trazia a surpreendente revelação de que drogas eram consumidas livremente no principal prédio da Universidade de Brasília, inclusive em salas de aula. O site publicava um vídeo com flagrantes de uma festa organizada por alunos da Biologia, onde cerca de 3.000 pessoas participavam do evento, que teve a apresentação de bandas de rock.

“Um breve passeio era suficiente para constatar a disseminação da droga no local. Jovens não se preocupavam em esconder a prática e preparavam cigarros de maconha na frente de todos. Grupos usavam salas de aula para dividir os entorpecentes. Tudo dentro do Instituto Central de Ciências (ICC), o prédio-símbolo da universidade.

“A Polícia Militar não foi vista no mal iluminado câmpus Darcy Ribeiro, localizado a quatro quilômetros do Congresso Nacional. Em greve, agentes de segurança da universidade também não incomodaram os usuários. Dois porteiros do prédio pareciam cochilar. Não havia qualquer controle que impedisse a presença de menores de idade no local”.

Desde há muito as drogas vêm sendo consumidas livremente nas universidades de todo o país. Os campi constituem verdadeiros templos onde os drogados buscam refúgio. Os alunos da USP, sem ir mais longe, preferem arriscar-se a assaltos e estupros a serem perturbados pela presença da polícia. A universidade, no Brasil, é o foco disseminador de duas pragas, as drogas e o marxismo. Isso sem falar em outros males gálicos, como o estruturalismo, lacanismo, desconstrutivismo. Estes, pelo menos não tão letais.

As drogas se popularizaram no Brasil através da universidade. Nos tempos em que vivi na Fronteira gaúcha, maconha ou cocaína eram coisas da capital. Bastou a universidade chegar lá e as ruas foram tomadas, à noite, por bandos de jovens drogados. Que o digam Dom Pedrito, Bagé, Livramento. Assim como a universidade, a droga chegou na Campanha para ficar.

No final dos anos 50, droga era coisa de marginais. Lembro de ter visto reportagem na revista Cruzeiro, em que um repórter deixava crescer a barba para infiltrar-se junto a presidiários. Na época, antes ainda da tomada do poder em Cuba por Castro e Guevara, barba era distintivo de bandido. Era preciso descer ao “tenebroso mundo do crime” para se conhecer os meandros do mundo da droga. A maconha era conhecida como a erva do diabo. Só tornou-se coisa de gente fina quando passou a ser consumida pelos universitários americanos. Com um nome que indicava sua procedência mexicana, marijuana. Com os Woodstocks e Beatles e roqueiros da vida, a cannabis ganhou status acadêmico. Não por acaso o fumacê brasiliense era animado por bandas de rock. Rock e drogas sempre andaram juntos.

Como pretendem as autoridades combater as drogas quando o país recebe de braços abertos Beatles, Rolling Stones et caterva, os grandes difusores internacionais das drogas? Obviamente, nenhum dos alunos que participaram da festa regada a drogas na UnB foi desligado da universidade. Como não foram desligados da PUC de São Paulo, nem da Estácio de Sá no Rio, nem da USP, nem da UFSC ou da UFRGS, nem da Urcamp ou da Funba.

Curta é a memória das gentes. Droga se tornou uma questão de equilíbrio social. Pelo jeito ninguém mais lembra quando, em 2003, Anthony Garotinho, então secretário de Segurança do Rio de Janeiro, ficou seriamente preocupado com o caos social decorrente do fim do tráfico: “Imagine se nós conseguíssemos fechar todas as bocas-de-fumo por uma semana e não fosse vendido um papelote de cocaína ou um grama de maconha? O que aconteceria com 700 mil pessoas depois de três dias sem usar droga, em crise de abstinência?”

Toda política de repressão às drogas tem redundado em rotundo fracasso. Nos fins de semana em São Paulo – ou em qualquer capital do país – é mais fácil encontrar um baseado do que um melhoral. Que esperam as autoridades para legalizar o consumo de drogas?

Ora, direis, então se não se pode combater o roubo e o assassinato, legalize-se tanto o roubo como o assassinato. O argumento não procede. O assassinato tira uma vida, o roubo subtrai bens. A droga não tira nada de ninguém. É o que se chama de crime sem vítima. Não faltará quem argumente que vítima sempre há, no caso o usuário. Pode ser. Mas suicídio não está tipificado como crime em nosso Código Penal. Se suicídio não é crime, porque criminalizar a pressa com que uma pessoa se suicida?

A douta Comissão do Senado sugeriu, porém, uma ressalva para a hipótese do uso de drogas. A pessoa poderá responder a processo caso consuma “ostensivamente substância entorpecente em locais públicos, nas imediações de escola ou outros locais de concentração de crianças ou adolescentes ou na presença destes”. Nessa hipótese, o usuário ficará sujeito a cumprir uma pena alternativa, se for condenado. A pena envolveria uma advertência sobre os efeitos do consumo de drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Alguém vai proibir raves ou shows de rock no país, que reúnem multidões de adolescentes? Duvido. Na última Virada Cultural organizada pela prefeitura paulistana, a droga correu nas ruas de São Paulo. Proibirá um dia a prefeitura a distribuição generalizada de drogas que ela própria patrocina?

Os doutos juristas decidiram que, pela proposta, o simples fato de ser realizada venda de uma substância entorpecente seria considerado tráfico de drogas.

— Se a pessoa é surpreendida vendendo, não importa a quantidade, é tráfico — disse o relator.

Pelo jeito, estão propugnando a distribuição gratuita de drogas. Como comprar se não há quem venda? A elite de nossos juristas está agindo como formigas enlouquecidas ante um temporal, que já nem sabem para onde vão.

Maio 29, 2012


 

 

SE AINDA SOU GAÚCHO

 

Me pergunta um leitor: ainda és gaúcho? É uma boa pergunta.

Minha definição de gaúcho não é a que vige no Brasil, a de gentílico de quem nasceu no Rio Grande do Sul. Entendo como gaúcho o homem que nasce no campo, entre vacas, ovelhas e cavalos. Não concebo como gaúcho gente nascida no asfalto. Quanto aos cetegistas, recorro à definição dos catarinenses. Qual é o menor circo do mundo? São as bombachas. Só cabe um palhaço dentro.

Nasci na pampa, entre vacas, ovelhas e cavalos. Sei o que é o gaúcho. É homem que geralmente nasceu pobre, vive afastado do mundo contemporâneo e tem uma visão peculiar de mundo, que nada tem a ver com a do homem urbano. Para começar, um gaúcho sabe o que é horizonte, noção cada vez mais rara nas cidades. Em minha infância, tive 360º graus de horizonte, que se situava a mais de légua de distância. Isso mexe com a psicologia de qualquer um.

Nasci em um deserto verde, salpicado de capões de árvores e umbus solitários. Quando fui para a cidade, meu primeiro espanto foi ver que nossa propriedade terminava no pátio. Lá no Upamaruty, terminava no horizonte. Meu espanto só foi maior quando passei a morar em apartamento. Meu espaço terminava na janela.

Meu pai, quando foi para o “povoado” – em função de minha educação – sentiu-se como peixe fora d’água. Cheguei em Dom Pedrito numa época em que botas e bombachas eram sinônimo de “grosso lá de fora”. Mesmo assim, Canário enfrentava a cidade com suas pilchas. Que não eram para bailes, mas seus trajes costumeiros lá no campo. Quanto a mim, larguei as botas, por uma questão de conforto. Mas mantive as bombachas. Com sapatos. O que me valeu muitas piadas no colégio. Acabei traindo os meus. Optei pela calça corrida. Meu pai morreu amargurado, longe dos pagos. Jamais se adaptou à vida urbana. Sentia falta das lides do campo, das vacas e dos cavalos.

A tapera ficou lá fora. Por muitos anos a visitei, meus tios e primos ainda viviam lá. Um belo dia, um fazendeiro da região procurou-me em Porto Alegre. Precisava de uma saída para o Uruguai e me perguntou se eu não queria vender meu “campinho”. Pensei um pouco e considerei que aquele rancho fazia parte do passado, eu jamais voltaria para lá. Virei bicho da cidade e não tinha mais vocação para fazendeiro. Com dor na alma, passei-lhe a escritura. Naquele dia, morri um pouco. Mas que fazer? Não havia porque manter um pedaço de terra ao qual eu jamais voltaria.

Em 77, antes de ir para Paris, levei até lá minha companheira, para mostrar-lhe os campos onde havia nascido. Foi certamente a viagem mais dolorosa que já fiz. O Fusca atolou uma boa légua antes de chegarmos a meu rancho e continuamos a pé. Era inverno e um mar revolto de alhos-bravos e flexilhas agitava as coxilhas e canhadas. Subi pelo Cerro da Tala, em cujo cume havia a Toca da Onça. Era um buraco sob uma pedra onde, crianças, nos escondíamos, para tratar de nossos mistérios. De minha lembrança, me parecia uma imensa caverna. Tentei entrar na Toca da Onça. Já não cabia.

Desci o Cerro da Tala, e entrei pela sanga no Passo do Vime, onde a prima Corininha, acocorada, lavava roupas sobre o empedrado. Eu me postava do outro lado do filete de água, para espiar aquele intrigante triângulo escuro que as mulheres tinham entre as pernas. Rumei à Casa, último resquício da herdade, onde em meus dias vivera tio Ângelo. Era um precursor. Um belo dia entre os dias, decidiu que teria um rádio.

Era tido como um visionário. Sua primeira providência foi cortar o mais reto e alto dos eucaliptos, no eucaliptal do Toto Ferreira, a uma boa légua de distância. Teria uns quinze, talvez vinte metros de altura. Falquejado, foi levado por uma junta de bois até a Casa. Providência seguinte, pintá-lo de vermelho. O erguimento do poste foi uma operação mais ou menos como a construção das pirâmides, da qual participei com muito orgulho. Com quatro máquinas de alambrar, levantamos o poste e o colocamos num buraco frente ao oitão do rancho.

Era o primeiro passo para a instalação do rádio, o cata-vento. Depois chegaram as baterias, de Villa Indarte, no Uruguai. Depois, finalmente chegou o rádio, um Telefunken mastodôntico, que só meu tio sabia operar. O universo começou a entrar em nosso pequeno mundinho. A propriedade do tio Ângelo passou a ser conhecida como Estabelecimento do Pau Vermelho. Quando o sol começava a cair, a gauchada chegava de longe, para escutar rádio. Meu tio, com a solenidade de um sacerdote, girava o dial e viajava pela Argentina e Uruguai.

À medida que me aproximava da Casa, o coração batia com mais força. Tudo deserto. Sentei-me na laje onde meu tio afiava facas e gritei: “Ô de casa!” Corininha apareceu na porta e perguntou: o que o senhor deseja? Com a voz já embargada, respondi: o tio Ângelo está?

Não estava mais. Ela reconheceu-me e nos abraçamos chorando. Meu rancho ficava a uma meia légua dali. Desci pela canhada e fui revisitar nossa cacimba. Era julho e escorria pelas bordas. Debrucei-me sobre o pedregal e sorvi com gosto aquela água salobra, com sabor de infância. Minhas lágrimas se misturaram às águas da cacimba. Chorei como terneiro desmamado.

Aquela canhada, desci milhares de vezes, sempre em pânico. Ficava até tarde da noite, sob o cinamomo à frente da Casa, ouvindo dos adultos histórias de assombração. Geralmente voltava para meu rancho lá pela meia-noite, hora sinistra, sob um luar gelado que tornava a noite clara. E corria desesperado de um vulto que me perseguia e não me dava quartel, juro que não minto. Era minha sombra. Durante muitos anos, tive medo de passar à noite por um cemitério. Também, pudera, até meu cavalo ficava sestroso, quando uma alma penada montava na garupa.

Nunca mais voltei lá. Nem quero voltar. Dói muito. Se ainda sou gaúcho? Diria que não. Tive um passado de gaúcho, mas este passado ficou perdido no tempo. Bati na marca e saí a correr mundo. Vivi em cidades onde a geada é grossa de mais de palmo. Vaguei por terras onde no verão o sol não se põe e no inverno é noite o dia todo. Ouvi línguas que mais parecem doença da garganta. Estou mais longe dos cavalos e vacas que dos restaurantes da Europa. Faz 33 anos que não volto aos pagos onde nasci. A Paris ou Madri, vou todos os anos.

Nasci na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de três em três quilômetros há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras. Canário me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo.

Em verdade, diria que nem brasileiro sou. Nasci voltado para o Prata, me sinto melhor em Montevidéu, Buenos Aires ou Madri do que em Porto Alegre ou São Paulo. Martín Fierro foi o primeiro poema que ouvi em minha vida, recitado por meu pai nas fogueiras do galpão. Falar espanhol me proporciona mais prazer do que falar português. Foi minha língua de cuna. Mas isto pouco importa. Não há lei no mundo que obrigue quem nasceu no Brasil a sentir-se brasileiro. Minha infância foi mais platina que rio-grandense.

Infeliz do ser humano que morre igual como nasceu. Não evoluiu. A vida, as viagens, as cidades me transformaram. Virei cidadão do mundo e não consigo mais viver no deserto. Seria um tour de force dizer hoje que sou gaúcho.

Mas à minha infância, continuo fiel.

Junho 08, 2012


 

 

CADEIA URGENTE PARA AS VOVÓS ASSASSINAS

 

Odete Prá chama-se a senhora de 86 anos que matou com três tiros, em Caxias do Sul (RS), no sábado passado, um vagabundo que invadiu seu apartamento para roubá-la. Quando li a notícia, logo pensei com meus botões: a vovó vai se incomodar. Não deu outra.

Leio no Terra que o delegado Joigler Paduano afirmou nesta segunda-feira que a mulher deve ser indiciada por homicídio doloso, isto é, quando há intenção de matar. “Ela vai responder pelo delito de homicídio, que, na verdade, foi o que aconteceu, em razão da morte do assaltante, independentemente de ele ter entrado na casa dela pra assaltar ou de ela ter reagido em legítima defesa”, disse ele.

A vovó foi prudente. Não cometeu o erro clássico das mocinhas de cinema, que dão só um tiro no bandido sem certificar-se de que de fato o mataram. O bandido se recompõe e acaba fazendo a heroína passar por maus quartos de hora antes que o mocinho a salve. Dona Odete - se é que foi ela quem atirou - preferiu ter certeza de que havia eliminado a ameaça. Rematou seu feito com mais dois tiros.

O que foi muito oportuno. Se o ladrão sobrevivesse, talvez acabasse sendo processada pelo próprio, por tê-lo impedido em seu trabalho. Se alguém acha que exagero, em muito se engana.

Aconteceu em 2008, em Belo Horizonte. Um sórdido comerciante teve o desplante de impedir a legítima ação de um assaltante que assaltava sua padaria. Wanderson Rodrigues de Freitas, o assaltante, apresentou queixa-crime contra o comerciante na 2ª Vara Criminal do Fórum Lafayette, alegando que “a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos”.

Mas o juiz Jayme Silvestre Corrêa Camargo, que julgou o pedido, não militava nas hostes dos defensores dos tais de Direitos Humanos. Considerou uma “afronta ao Judiciário” a intenção do suposto criminoso em passar de autor para vítima. O suspeito alegou que foi “ofendido na sua integridade corporal” e por isso pediu à Justiça que o comerciante, Márcio Madureira Vieira, fosse enquadrado no artigo 129 do Código Penal. “Após longos anos no exercício da magistratura, talvez seja o caso de maior aberração postulatória. A pretensão do indivíduo, criminoso confesso nos termos da própria inicial, apresenta-se como um indubitável deboche”, disse Camargo.

Pode soar como piada, mas nem tanto. Nestes dias em que só criminosos têm direito de andarem armados, em que a própria polícia recomenda à vítima submeter-se à vontade da bandidagem, a pretensão do cidadão Wanderson Rodrigues de Freitas não deixa de ser coerente. E isso não é de hoje. Há uns bons vinte anos, numa cidade do interior de São Paulo, uma senhora já avançada em idade teve sua cada invadida por um ladrão. Tinha um revólver em casa, atirou e... milagre, acertou o bandido. Quase foi linchada pelos defensores de bandidos. Não conseguiram colocar a velhota na cadeia. Mas conseguiram desarmá-la.

O juiz Camargo rejeitou a queixa-crime por considerar que o comerciante agiu em legítima defesa. Na decisão, alegou que não vislumbrou nenhum excesso por parte da vítima, que “teria apenas buscado garantir a integridade física de sua funcionária e, por desdobramento, seu próprio patrimônio”. Nadando contra a corrente do direito contemporâneo, mandou o cidadão Wanderson Rodrigues de Freitas para a cadeia. Não acompanhei o desenrolar do caso. Como a decisão era de primeira instância, ele ainda podia recorrer a instâncias superiores. Não seria surpresa para mim se a sentença foi reformada pelos magnânimos juízes das supremas cortes nacionais.

Na época, um leitor comparou a atitude do ladrão que reivindica o direito de assaltar sem que sua vítima reaja com o que o MST vem fazendo há muito. A lembrança é pertinente. Com uma diferença: Wanderson advogava em causa própria. Causas próprias não são bem vistas nestes dias de direitos coletivos. Estivesse Wanderson integrado a uma quadrilha dos sem-terra, dificilmente um juiz falaria em indubitável deboche. O mais provável é que garantisse aos quadrilheiros a posse da propriedade roubada. Ai do proprietário que ousar reagir à invasão de suas terras.

Ou se fosse índio. Neste caso, poderia reivindicar até mesmo o direito de matar, em nome de antigas tradições tribais. O fato é que a pretensão do assaltante – de garantir seu direito a assaltar – não é insólita neste país em que a certas pessoas é permitido invadir terras, prédios, fechar estradas, roubar bancos, estuprar – remember Paiakan! – e até mesmo matar. A FUNAI, por exemplo, não considera crime a prática indígena de enterrar vivas crianças indesejadas.

Sem ir mais longe, o capitão-de-mato Tarso Genro, então ministro da Justiça, defendia na época o sagrado direito daqueles que um dia pegaram em armas contra o Estado, assaltaram bancos, seqüestraram diplomatas e assassinaram pessoas inocentes.

O erro de Wanderson foi não pertencer a uma tribo. Ou a um movimento social. Ou a um grupo terrorista. É também o caso da vovó de Caxias. Como não pertence a nenhum movimento social, terá não poucas incomodações no final da vida.

Mutatis mutandis, a história se repete na França. Suponho que o leitor ainda lembre de Mohamed Merah, o jovem que matou sete pessoas em Toulouse e Montauban, no sul da França, em março passado. Reivindicava seus massacres em nome da Al-Qaeda, mas assegurou que tinha atuado sozinho e que tinha em mente novos atentados, além dos cometidos entre os dias 11 e 19 de março. Cercado durante 32 horas por 300 ou mais policiais armados, Merah resistiu à bala à ordem de prisão. Foi morto pela polícia por resistência à prisão. Pois não é que o pai do inocente jovenzinho apresentou nesta segunda-feira uma denúncia em Paris pelo que considera o “assassinato” de seu filho? São uns assassinos esses policiais. Em vez de oferecerem flores ao terrorista, cercaram-no com fuzis. E atiraram, que horror!

Estamos vivendo a época da absolvição sumária dos criminosos, antes mesmo de qualquer julgamento. Bandido surpreendido em flagrante é sempre inocente, até prova em contrário. Mas que prova se pede contra um homem que confessou seus sete assassinatos e ainda promete outros?

Voltando a este nosso país incrível: os assaltados precisam ser urgentemente reeducados. Que história é essa de reagir à bala contra um pobre excluído que busca por meios não muito ortodoxos, é verdade, sua justa parte na repartição do bolo social. Por que não oferecer um cafezinho ao coitadinho e perguntar-lhe se aceita cheque ou prefere moeda sonante? Seria muito mais civilizado.

Precisamos acabar com essas vovós assassinas. Cadeia nelas.

Junho 11, 2012


 

 

HULA GARU

 

Com a idade, fica cada vez mais difícil encontrar autor ou leitura que fascine. Já não consigo encontrar em um livro o deslumbramento com que li Fédon, o Quixote ou as Viagens de Gulliver. Verdade que nos últimos 2.300 anos não surgiu um novo Platão, faz meio milênio que não surge um novo Cervantes e pelo menos uns quatro séculos que não ocorre um novo Swift. Nosso século não produziu ainda outro Orwell ou Fernando Pessoa. José Hernández morreu há mais de cem anos e ainda não surgiu no continente poeta que se lhe equipare. Nietzsche morreu com o século passado e a humanidade ainda não o repôs.

Enfim, o século recém está começando. Mas tendo a desconfiar que tão cedo não teremos gênios de tal porte. Olho em torno, e não vejo nada de mais importante na área da literatura ou poesia. Ou nosso século é estéril, ou talvez necessitemos de um bom distanciamento no tempo para reconhecer o gênio.

O gênio, de modo geral, tem consciência de seu gênio. No prólogo a Novelas Ejemplares, Cervantes faz seu auto-retrato. Nesta confissão de um homem machucado pela vida, lamenta seus dentes, “ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis y son mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros”. Também glorifica a mão perdida em Lepanto, “herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los pasados siglos ni esperan ver los venideros”. Ali está o homem, mutilado pela vida, mas inteiro e orgulhoso de seus feitos. Mais tarde, ciente da grandeza de sua obra, Cervantes dirá de Cervantes:

“tú, que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para gloria de la diestra!”

Swift, que curiosamente é mais conhecido no Brasil como um autor de histórinhas infantis, não foi exatamente um homem benquisto pelos seus contemporâneos. Deão de Saint Patrick, em Dublim, Irlanda, escreveu anonimamente a maior parte de suas obras. Diz a lenda que sua obra maior, As Viagens de Gulliver, teria sido jogada de uma carruagem pela janela adentro do editor. Mas seu estilo era inconfundível. Para que se tenha uma idéia do humor do deão e de seu conflito com a própria época, bastaria citar esta reflexão sua: “Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, podeis conhecê-lo por este sinal: todos os cretinos se aliam contra ele”.

Pessoa se revela em um de seus ensaios, Heróstrato:

“A avassaladora produção literária tornará a seleção igualmente avassaladora, pela reação. A verdadeira produção abundante de livros bem escritos fará com que muitos livros antigos pareçam menos bons do que quando se destacam de um pano de fundo de nada. (...) A competição entre os mortos é mais terrível do que a competição entre os vivos; os mortos são mais numerosos”.

Aqui o homem já diz ao que vem. Quando afirmava que o gênio é o mais comum dos homens, tão comum a ponto de passar despercebido em sua época, obviamente falava de si mesmo. Hostil à celebridade, Pessoa morreu quase inédito e considerava ser editado uma ofensa à genialidade.

Depois de ler estes autores – e outros menores mas nem por isso menos importantes – fica difícil encontrar pensamento novo na literatura contemporânea. Existem é claro reflexões sobre os dias que correm, que não poderiam ter sido feitas por quem não os viveu. Mas muitas vezes os homens do passado demonstram mais conhecimento do presente que nossos coetâneos.

Em minha idade, o mesmo está acontecendo com as demais artes, particularmente com o cinema. Fui iniciado com Chaplin, Bergman, Louis Malle, Fellini, Kurosawa, Peckinpah, cineastas personalíssimos, cujas obras eram sempre esperadas com sofreguidão. Hoje, está difícil encontrar quem os substitua. Depois destes, vi obras interessantes, dessas que jamais encherão várias salas ao mesmo tempo.

Sempre me comovem La Strada e Noites de Cabíria, de Fellini. Como aliás quase todos seus filmes. Adoro Bas Fond, do Kurosawa (vi o filme em Paris, não sei qual o título brasileiro), como também seus demais filmes. Curto muito também o Buñuel, particularmente O Anjo Exterminador. Falando nisso, alguém viu J'irais comme un cheval fou, do Arrabal? Vale a pena. Pelo que sei, não passou no Brasil.

O dileto entre os diletos, que vejo e revejo com prazer, é A Festa de Babete, de Gabriel Axe. Certamente, o mais belo e sensível filme que já vi. Mexeu muito comigo também The Map of Human Heart, de Vicent Ward, que creio não ter passado no Brasil. No fundo, a busca de uma filha pelo pai, um esquimó que, por circunstâncias da vida, tornou-se fotógrafo em um bombardeiro inglês durante a Segunda Guerra. Comovente.

Mash, de Robert Altman e A Vida de Brian, de Terry Jones, até hoje me fazem rir, particularmente este último. É a mais ferina sátira já feito pelo cinema ao cristianismo. Palombella Rossa, de Nanni Moretti, ataca os comunistas. (Só passou no Brasil quase clandestinamente, em um festival no Rio). Louve-se o engenho do cineasta: consegue fazer um filme dinâmico e divertido que se passa praticamente o tempo todo dentro de uma piscina.

Morri de rir vendo East Side Story, produção alemã da romena Dana Ranga. (Passou em um cinema escondido nos confins de São Paulo. Quando fui ver, tinha apenas três espectadores). Outro filme belíssimo que vi foi Lepota Poroka (em francês, La Beauté du Peché), do iugoslavo Zivko Nikolic, com uma atriz divina, Mira Furlan. Uma moça que vivia nas montanhas da Iugoslávia, vai trabalhar em uma colônia de nudismo na costa montenegrina. O conflito cultural é inevitável.

Em Estocolmo, lá por 71, vi outro belo filme que jamais deu as caras por aqui, The Bus, do turco Tunç Okan. Um grupo de imigrantes turcos clandestinos é jogado dentro de um ônibus, que é abandonado em plena T-Centralen, a estação central do metrô de Estocolmo. Foi o primeiro filme que vi sobre a condição do imigrante na Europa.

Ultimamente, os melhores que vi foram Adeus Lênin, do alemão Wolfgang Becker, e Slogans, do romeno Gjergj Xhuvani, uma sinistra comédia situada nos dias da ditadura de Nicolae Ceaucescu. Muito Além do Jardim, de Hal Ashby é outro filme importante. Nos remete imediatamente a nosso Primeiro Magistrado, o Supremo Apedeuta.

Fora isto, tenho vivido relativamente longe do cinema. Difícil encontrar algo novo nesta idade, dizia. De qualquer forma, com alguma paciência, sempre se cata alguma obra-prima perdida na televisão. Foi o que aconteceu nesta madrugada. Vi Hula Garu (Um Paraíso Havaiano), bela surpresa do cinema japonês, filme do qual jamais havia ouvido falar, dirigido por Sang-il Lee.

O relato é inverossímil. Estamos em 1965, na pequena cidade mineira de Iwaki, no Japão. Ante a iminência do fechamento das minas, a Joban Coan Mining Company resolve construir um Centro Havaiano. Sob protesto dos moradores, é colocado um anúncio convidando moças que desejem aprender hula, a dança típica do Havaí. O encarregado Yoshimoto convida a senhorita Madoka Hirayama para dar aulas às interessadas.

Reação violenta da comunidade, que acha que todo mundo deve mourejar nas minas e que corpo de baile é coisa de prostitutas. Contra tudo e contra todos, Madoka insiste em seu projeto e vence. Acaba tendo a adesão dos mineiros. Suas garotas provam que se pode criar um mundo onde se pode trabalhar e ao mesmo tempo sorrir.

A história é inverossímil, afirmei. No entanto, as resenhas do filme me informam que o relato é verídico. Que o Parque Havaiano Joban foi inaugurado em 15 de janeiro de 1966. Esperava-se um público de 1000 pessoas durante a semana e umas 3000 nos fins-de-semana e dias de festa. A realidade é que o empreendimento se converteu num sucesso que atraiu 1,5 milhão de pessoas no ano. Em 1990, trocou o nome para Spa Resort Hawaiians e continua evoluindo, embora se mantenha como manancial termal integrado na estrutura social da região.

Madoka Hirayama teria hoje mais de 70 anos e ensinou 318 bailarinas. A demonstração mais cabal de que a grande arte enobrece e é capaz de comover uma aldeia de mineiros, que só viam na vida um sentido, a extração de carvão.

Lindo e comovente. Recomendo vivamente.

Junho 22, 2012


 

 

GIGOLÔS DAS ANGÚSTIAS HUMANAS AMPLIAM MERCADO DE TRABALHO

 

Leio na Zero Hora: “Encilhar o cavalo, preparar a sela e seguir um circuito pelo picadeiro no ritmo ditado pelo instrutor. Terminada a seqüência, conduzir o cavalo para a baia, ajudar a limpar e alimentar o animal. Luciano Batista Nascimento, 12 anos, cumpre esse ritual uma vez por semana. Não é treino nem brincadeira. É terapia”.

Mais precisamente, equoterapia, uma das últimas modas criadas pelos ditos terapeutas. Acabo de descobrir que fiz terapia desde criança e não sabia. Nasci quase em lombo de cavalo, desde pequeno os encilhei e não os conduzi à baia porque isso é coisa que não existia em meus pagos. Após a cavalgada, largávamos o animal no campo. Vai ver que é por isso que sou hoje um ser mentalmente tão saudável. Claro que há quem me tome por insano e julgue que necessito urgentemente de terapia. Que se vai fazer? Impossível agradar a todo mundo.

Que cavalgar é bom, quem vai negar? Pequeno, tive um petiço, bichueco por sinal, mas foi nele que aprendi a montar. Mais tarde, tive cavalo de gente grande, e sempre gostei de lidar com eles. Nunca imaginei que isto constituísse terapia. Para mim, era meio de transporte, trabalho e lazer. Transporte para ir à escola ou visitar meus tios, trabalho na hora de ligar com o gado, lazer quando simplesmente saía a cavalgar ou caçar. É óbvio que uma criança urbana se sentirá muito bem, longe da cidade, montando um cavalo. Daí a ser terapia, me parece embuste dos psis. A menos que se considere que fazer algo agradável é sempre terapêutico.

Segundo a reportagem, na quarta série do ensino fundamental, Luciano já repetiu o ano duas vezes e dava trabalho à mãe, Rejane Nascimento, e aos professores da Escola Jardim Vila Nova, Porto Alegre, por causa da falta de disciplina e das notas baixas. Em acompanhamento psicológico e neurológico para investigar as causas da dificuldade de aprendizado, chegou à equoterapia por sugestão da diretora da escola, Tânia Araújo, que percebeu que ele gostava muito de cavalos. Segundo ela, o desempenho na escola tem melhorado com a continuidade do tratamento. A mãe de Luciano também nota que as sessões semanais que ele frequenta desde março fizeram diferença.

Essa agora! Andar a cavalo ajuda no rendimento escolar. Mais um pouco e os terapeutas descobrem que nadar, andar de bicicleta ou praticar qualquer esporte prazeroso estimula uma criança a aprender.

Equoterapia está na moda. Para quem pode pagar, é claro. Há anos venho denunciando estas vigarices, que só servem para enganar a classe média urbana. Digo classe média urbana, pois jamais enganarão um camponês, cujo filho precisa de um cavalo para ir à escola. Cavalo, no caso, não é luxo, mas meio de transporte.

Há horas venho denunciando estes gigolôs das angústias humanas, que transformam em doença circunstâncias banais da existência, para delas tirarem seus rendimentos. Ano passado, eu comentava uma nova vigarice que surgiu no mercado, a terapia do luto. No UOL, li entrevista com Cissa Guimarães, atriz que optara pela terapia do luto após perder o filho.

“A terapia do luto foi fundamental para que eu conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano”, diz a atriz. “Consegui isso com a ajuda terapêutica de Adriana Thomaz. Com ela, entendi melhor a morte, como fazer a conexão com o amor do meu filho e como reaprender a viver.”

Pelo jeito, o homem contemporâneo, apesar de milênios de evolução, ainda não aprendeu a lidar como o mais corriqueiro dos fatos humanos. Se a moda pega, os terapeutas do luto vão brotar como cogumelos após a chuva. Se cada vez que morre uma pessoa querida, temos de pagar um analista para enfrentar sua morte, o leitor pode ter uma idéia do baita mercadão que se abre aos gigolôs das angústias humanas.

Os psis continuam ampliando seu mercado. Na Folha de São Paulo de ontem, li que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) vai permitir mais sessões de terapia, num máximo de 20, por e-mail, MSN ou Skype. Até aí nada de mais, vivemos dias de Internet. O que me deixou perplexo foi ler que a orientação psicológica na web atende problemas pontuais do paciente, como dificuldades de adaptação em uma nova cidade, problemas escolares do filho ou questões afetivas.

Se entendi bem, a cada vez que se muda de cidade, devemos consultar um psicólogo. Nossa! Já vivi em nove cidades e nunca consultei nenhum. Devo ser um desajustado. Para começar, inicialmente não precisei adaptar-me a uma cidade. Mas à cidade, pois vinha do campo, de alpargatas e bombachas. Lá, não existia mais campo aberto, horizontes, vacas e cavalos. Mas ruas acanhadas, pátios exíguos, nem sombra de horizonte, nem de vacas e cavalos. Mas gente, muita gente. Apesar de a cidade ser pequena.

Fui depois para as cidades grandes. Em Porto Alegre, não sabia nem como descer de bonde andando. Precisei adaptar-me à nova e complexa geografia, a horários mais rígidos, aos transportes urbanos. Mais adiante, troquei de país. Novas necessidades. Precisei aprender como usar o metrô, como comunicar-me em línguas que não as minhas, como enfrentar hábitos e culinárias que desconhecia. Jamais me ocorreu pedir socorro a psicólogo algum. Sempre enfrentei tais mudanças como um desafio. Mudar bruscamente de cidade – e mais ainda de país – é sempre um teste para nossa capacidade de sobrevivência. Só o que faltava buscar um terapeuta para adaptar-me a Estocolmo, Paris ou Madri.

Vejo ainda que psicólogos se tornaram necessários para resolver problemas escolares e questões afetivas. Ora, problemas escolares existem desde que existem escolas. E questões afetivas sempre acompanharam quem nutriu por alguém algum afeto. Fazem parte do dia-a-dia de cada um. Pelo que se depreende da decisão do CPF, cada cidadão deve andar com um psicólogo a tiracolo.

O que nos leva a um mistério. Como faziam os homens d’antanho - daqueles tempos em que a psicologia não se instalara ainda como ciência – para resolver esses tremendos dramas humanos, como a morte de um próximo, uma mudança de cidade, o rendimento escolar ou as crises afetivas? Mistério, profundo mistério.

Não bastassem os gigolôs das angústias humanas transformarem em doença os problemas banais do dia-a-dia, os psicólogos já estão cozinhando no forno novas enfermidades da era internética. Segundo o psicólogo Larry Rose, que estuda problemas mentais ligados à tecnologia, o smartphone acentua males psiquiátricos. Para o autor de iDisorder, redes sociais também afetam comportamento e narcisismo, depressão e obsessão são os problemas mais comuns em estudos com usuários.

Hoje, com smartphones e redes sociais pedindo atenção permanente das pessoas, a lista de problemas cresceu para uma dezena de sintomas de males psiquiátricos, disse Rosen à Folha de São Paulo.

“Mais gente está se tornando mais narcisista, ou está se apresentando para o mundo como se só se importasse consigo própria. Mais gente está ficando obcecada e compelida a checar constantemente o telefone. E há uma pesquisa que mostra que mais pessoas estão ficando deprimidas quando não têm coisas maravilhosas para mostrar aos outros no Facebook.”

Para Rosen, que divide a autoria de iDisorder com Nancy Cheever e Mark Carrier, os problemas descritos por eles são fonte de atrito nas relações interpessoais e pioram nossa qualidade de vida. Para organizar essa tese, o livro apresenta um capítulo para cada tipo de transtorno tecnopsicológico. Ao final de cada um, há um trecho de autoajuda, que mostra dicas de como evitar o problema. Os autores defendem que, cada vez mais, psicólogos não podem ignorar a tecnologia. Não há como cuidar de um adolescente sem entender qual personalidade ele exibe no Facebook, por exemplo. E isso também é verdade para muitos adultos.

Não vai demorar muito, os computadores, smartphones e tablets serão vendidos em pacotes com assistência técnica e psicológica acopladas. Preserve sua saúde mental. Nos dias que correm, só um anormal – como este que vos escreve – pode viver sem apoio psicológico.

Junho 26, 2012


 

 

AIATOLÁS EMPURRAM HOMOSSEXUAIS À PROSTITUIÇÃO

 

Se há algo que até hoje não entendi, é essa obsessiva preocupação que têm certas culturas em determinar como as pessoas devem se comportar na cama. Se não há violência nem desrespeito ao parceiro, que cada um se divirta como melhor lhe apraz e boa sorte a todos.

A humanidade, de modo geral, não pensa assim. Desde o Antigo Testamento, a sexualidade tem sido preocupação dos legisladores, laicos ou religiosos. Salvo alguns interregnos históricos como as antigas Grécia e Roma, o livre exercício do sexo sempre tem trazido dores de cabeça aos cultores do prazer sem culpa.

Em maio passado, a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA) divulgou em Genebra um relatório sobre a situação da homossexualidade que revela que dez países permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo e 12 admitem a adoção de filhos por parte de casais. O homossexualismo é ilegal em 78 países e punido com pena de morte em cinco. Irã, Arábia Saudita, Iêmen, Mauritânia e Sudão penalizam a homossexualidade com pena de morte, o que ocorre também em algumas regiões do norte da Nigéria e do sul da Somália.

O que não deixa de ser significativo. Se a prática é duramente penalizada em 78 países – em geral situados na Ásia, África e Oriente Médio – a tentação deve ser dominante em tais geografias. No Ocidente, salvo infames exceções, você deita com quem bem entender e o Estado nada tem a ver com isso. A Europa é a região onde os direitos dos homossexuais são mais atendidos – diz o relatório – enquanto que na América Latina o maior problema é a violência, pois a maioria de países não conta com legislação que proíba a homofobia. A palavrinha teria sido cunhada pelo psicoterapeuta George Weinberg, em 1965.

“Eu inventei a palavra homofobia para expressar que havia um medo de homossexuais. Havia um medo de homossexuais, que parecia estar associada ao medo de contaminação, o medo das coisas para as quais eles lutaram - lar e da família - a desvalorizar. Era um medo religioso e levou a grande brutalidade como o medo sempre faz”.

O que só comprova que psicoterapeutas excelem em dizer bobagens. Para começar, não entendo como medo possa ser o móvel da repulsa a homossexuais. Quem tem medo destes senhores? Por outro lado, como tenho afirmado, a construção do neologismo está rotundamente errada. Se o homo grego significa mesmo, e fobia significa medo, homofobia quer dizer o mesmo medo, e não medo a homossexualismo como hoje se pretende. A tal de homofobia, no fundo, é pretexto de ativistas homossexuais para garantirem mais direitos do que os heteros.

Nas Américas, salvo alguma ilhota da América Central, homossexualismo há muito deixou de ser crime. Neste ano da graça, a punição com morte só ocorre no Irã e quatro países árabes. No país dos aiatolás, com uma curiosa peculiaridade. Homossexualismo é proibido e punido com morte. Mas trocar de sexo é inclusive incentivado pelo Estado. A medida foi avalizada pelo revolucionário aiatolá Khomeini.

Não ouse, no Irã contemporâneo, travestir-se. Macho é macho e fêmea é fêmea. Homem não pode usar chador, nem mulher pode usar vestes masculinas. Mas os sábios aiatolás lhe permitem trocar de sexo. Feita a cirurgia, o homem passa a usar chador. (Nada de vestir-se despudoradamente à ocidental, é claro). Mas atenção: não volte a usar vestes masculinas. Trate de renovar o guarda-roupa. Usar suas antigas roupas agora é crime.

Reportagem transmitida ontem no GNT mostrava este aparente paradoxo do regime dos aiatolás. Em verdade, a mudança de sexo não é exatamente uma permissão. E sim uma imposição. Se você, homem, gosta de homem, trate logo de cortar o que o identifica como homem e transforme-se em mulher. Só então poderá ter relações com homens.

Ou vice-versa. Se você é mulher e gosta de mulher, trate de fechar essa fenda obscena e construa um pênis, ainda que discreto. Antes da cirurgia, não ouse desfilar pelas ruas sua futura condição. A menos que porte consigo um documento provando que a cirurgia foi permitida.

Numa sociedade islâmica, tal opção terá suas conseqüências. Quem muda de sexo é expulso da família e obviamente da vida social e do mundo do trabalho. A solução, pelo menos para as recém-mulheres, é a prostituição.

Acontece que, por definição, não há prostituição no Irã. Se o Ocidente ainda debate a questão do sexo pago, coube ao islâmico Irã desatar o nó, apelando também à castidade. Há mais de dez anos, o jornal conservador Afarinesh noticiava que duas agências do governo haviam encontrado a fórmula para resolver o problema. Seriam criadas as chamadas “casas de castidade”, onde o cidadão poderia exercitar sua luxúria em ambiente seguro e saudável. De acordo com o artigo, o plano envolvia o uso de forças de segurança, líderes religiosos e do judiciário para administrar as casas.

De acordo com os números oficiais da época, cerca de 300 mil profissionais trabalhavam nas ruas da capital, que tinha então 12 milhões de habitantes. Para o aiatolá Muhammad Moussavi Bojnourdi, as casas de castidade se justificam “pela urgência da situação em nossa sociedade. Se quisermos ser realistas e limparmos a cidade dessas mulheres, precisamos usar o caminho que o islã nos oferece”.

Este caminho é o sigheh, o matrimônio temporário permitido pelo ramo xiita do Islã, que pode durar alguns minutos ou 99 anos, especialmente recomendado para viúvas que precisam de suporte financeiro. Reza a tradição que o próprio Maomé o teria aconselhado para seus companheiros e soldados. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um. As mulheres são pagas pelo contrato. Esta prática foi aprovada após a “revolução” liderada pelo aiatolá Khomeiny, que derrubou o regime ocidentalizante do xá Reza Palhevi, como forma de canalizar o desejo dos jovens sob a segregação sexual estrita da república islâmica. Num passe de mágica, a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Não há mais bordéis. Mas casas de castidade. A cidade está limpa.

A mudança de sexo, autorizada pelo Estado, pode parecer à primeira vista uma brecha para os homossexuais em uma teocracia islâmica. Na verdade é uma imposição tirânica dos aiatolás, que empurra todo homossexual à prostituição.

Isto é, ao sigheh. Pois no Irã não existe prostituição.

Junho 27, 2012


 

 

CATÓLICOS DESCONHECEM CATOLICISMO

 

Segundo o Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado hoje, a Igreja Católica teve uma redução da ordem de 1,7 milhão de fiéis, um encolhimento de 12,2%. Se em 1970 havia 91,8% de brasileiros católicos, em 2010 essa fatia passou para 64,6%. Quem mais cresce são os evangélicos, que, nesses quarenta anos saltaram de 5,2% da população para 22,2%. O aumento desse segmento foi puxado pelos pentecostais, que se disseminaram pelo país na esteira das migrações internas. A população que se deslocou era, sobretudo, de pobres que se instalaram nas periferias das regiões metropolitanas. Nesses locais, os evangélicos construíram igrejas no vácuo da estrutura católica.

Nada de espantar. O que é um católico? Nem os católicos sabem o que é ser católico. Em 2007, comentei pesquisa publicada pelo do Le Monde des Religions, suplemento do jornal francês Le Monde, segundo a qual só um católico entre dois – na França, bem entendido - cria em Deus. Que significa ser católico? Ir à missa? Ser batizado? Levar os filhos ao catecismo? A estas definições institucionais, os pesquisadores preferiram uma definição sociológica: é católico todo aquele que se declara como tal.

Se na culta França nem os católicos crêem mais em Deus, que pode sobrar para este inculto Brasil, onde as crenças cristãs se misturam ao espiritismo, umbanda e até mesmo Santo Daime? Como esperar uma fé sólida de quem desconhece a própria doutrina que professa? Não espanta pois que os evangélicos, oferecendo uma fé mais à la carte, estejam sequestrando o rebanho da Santa Madre. Quem desconhece o que crê, crê em qualquer coisa.

Ateu, ao longo destas crônicas, tenho lembrado aos católicos algumas verdades que eles desconhecem. Por exemplo, há quem creia que Cristo nasceu em Belém. Ainda hoje, o El País noticiava que a Unesco declarou a igreja da Natividade patrimônio da Humanidade. Até aí nada demais. O problema é o que vem adiante: “A basílica da Natividade, construída no século IV, marca o lugar no qual nasceu Jesus, segundo a tradição cristã”. A basílica fica em Belém.

Permito-me repetir o que venho afirmando há décadas. Cristo nasceu em Nazaré. Não por acaso era chamado de Nazareno. A Igreja pretendeu situar seu nascimento em Belém por ser cidade mais prestigiosa.

Escreve Renan, em A Vida de Jesus: “Cristo nasceu em Nazaré, pequena cidade da Galiléia, desconhecida até então. Toda sua vida foi designado pelo nome de Nazareno e só por um esforço que não se compreende é que se poderia, segundo a lenda, dá-lo como nascido em Belém. Veremos adiante o motivo dessa suposição, e como ela era conseqüência necessária do papel messiânico que se deu a Jesus”.

Segundo Renan, Nazaré não é citada nem no Antigo Testamento, nem por Josefo, nem no Talmude. Enquanto Nazaré da Galiléia era um vilarejo anônimo, Belém da Judéia portava o prestígio de antigas profecias. Nazaré era aldeia era desprovida de qualquer prestígio. Tanto que, em João 1:46, Natanael pergunta: “Pode haver coisa bem vinda de Nazaré?” Que nascesse em Belém, portanto.

Lucas também adere à lenda do nascimento em Belém:

Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. Este primeiro recenseamento foi feito quando Cirino era governador da Síria. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. Subiu também José, da Galiléia, da cidade de Nazaré, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam ali, chegou o tempo em que ela havia de dar à luz, e teve a seu filho primogênito; envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.

Os evangelistas, ao situarem o nascimento de Cristo no reinado de Herodes e evocarem o recenseamento de Cirino, desmontam a própria tese. Diz Renan:

“O recenseamento feito por Cirino, do qual se fez depender a lenda que ajunta a jornada a Belém, é posterior, pelo menos dez anos, ao ano em que, segundo Lucas e Mateus, nascera Jesus. Com efeito, os dois Evangelhos põem o nascimento de Jesus no reinado de Herodes (Mateus,II, 1,19,22; Lucas, I, 5). Ora, o recenseamento de Cirino foi feito só depois da deposição de Arquelau, isto é, dez anos depois da morte de Herodes, no ano 37 da era de Ácio. A inscrição pela qual se pretendia outrora estabelecer que Cirino fizera dois recenseamentos é reconhecida como falsa. O recenseamento em todo caso não teria sido aplicado senão às partes reduzidas à província romana, e não às tetrarquias. Os textos pelos quais se pretende provar que algumas das operações de estatística e registro público, ordenadas por Augusto, chegaram até o reinado de Herodes, ou não têm o alcance que se lhes quer dar, ou são de autores cristãos que colheram esse dado no Evangelho de Lucas”.

Ou seja, quando a própria igreja nega o texto bíblico, que se pode esperar dos católicos? Ainda hoje há cristãos desavisados que julgam que Cristo era cristão. (Sem falar nos que têm certeza de que Cristo era católico). Ora, Cristo nunca foi cristão. Era judeu. Em sua época, não existia nada que se pudesse chamar cristianismo. A palavra cristianismo nem existe na Bíblia. Encontramos, isto sim, a palavra “cristãos”. Mas apenas nos Atos, II, 25, bem depois da morte de Cristo:

Partiu, pois, Barnabé para Tarso, em busca de Saulo; e tendo-o achado, o levou para Antioquia. E durante um ano inteiro reuniram-se naquela igreja e instruíram muita gente; e em Antioquia os discípulos pela primeira vez foram chamados cristãos.

Há quem julgue existir um só deus na Bíblia. Nada disso, o Antigo Testamento é politeísta. Os deuses eram muitos na época do Pentateuco. Jeová é apenas um entre eles, o deus de uma tribo, a de Israel. Em La Loi de Moïse, escreve Soler: “Ora, nem Moisés nem seu povo durante cerca de um milênio depois dele – os autores da Torá incluídos – não acreditavam em Deus, o Único. Nem no Diabo”.

A idéia de um deus único só vai surgir mais adiante, no dito Segundo Isaías. Reiteradas vezes escreve o profeta:

44:6 Assim diz o Senhor, Rei de Israel, seu Redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o primeiro, e eu sou o último, e fora de mim não há Deus.

Num acesso de egocentrismo, Jeová se proclama o único:

7 Quem há como eu? Que o proclame e o exponha perante mim! Quem tem anunciado desde os tempos antigos as coisas vindouras? Que nos anuncie as que ainda hão de vir. 8 Não vos assombreis, nem temais; porventura não vo-lo declarei há muito tempo, e não vo-lo anunciei? Vós sois as minhas testemunhas! Acaso há outro Deus além de mim?

Ou ainda:

45:5 Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cinjo, ainda que tu não me conheças. (...) 21 Porventura não sou eu, o Senhor? Pois não há outro Deus senão eu; Deus justo e Salvador não há além de mim.

Só aí, e tardiamente, surge na Bíblia a idéia de um só Deus. Jean Soler nota uma safadeza nas traduções contemporâneas da Bíblia: Jeová está sumindo. Fala-se em Deus ou Senhor, em Eterno ou Altíssimo. Como Jeová é apenas o deus de Israel, melhor esquecer o deus tribal. Ao que tudo indica, alguns tradutores fazem um esforço para transformar um livro politeísta em monoteísta. Substituiu-se a monolatria - culto de um só deus nacional - pelo monoteísmo, culto de um deus único.

Só um testezinho final para meus eventuais leitores católicos. Depois da morte do Cristo, Paulo se jacta: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”. O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”.

Acontece que, naquela sexta-feira no monte Calvário, se um foi crucificado, vários foram ressuscitados. Leiamos Mateus, 27:50 e seguintes:

De novo bradou Jesus com grande voz, e entregou o espírito. E eis que o véu do santuário se rasgou em dois, de alto a baixo; a terra tremeu, as pedras se fenderam, os sepulcros se abriram, e muitos corpos de santos que tinham dormido foram ressuscitados; e, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos.

Perguntinha aos católicos que julgam conhecer sua própria doutrina: quem eram estes santos homens e a que título foram ressuscitados? Por que os evangelhos posteriores não os citam e a Igreja sequer fala deles? Terão os demais evangelistas achado o puchero por demais gordo?

Sou todo ouvidos.

Junho 29, 2012


 

 

SOBRE SEXO E CEREJAS

 

Homossexualismo tem cura? Esta parece ser a grande discussão nacional, nestes dias em que a Câmara debate em Brasília se psicólogos podem ou não oferecer tratamento para a homossexualidade. Na berlinda, projeto de decreto legislativo do deputado João Campos (PSDB-GO), da bancada evangélica, que pretende rever resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe que psicólogos emitam opiniões públicas ou tratem a homossexualidade como um transtorno.

Proponho outra pergunta: gostar de cerejas tem cura? Claro que evangélicos jamais porão em cheque o apreço por cerejas. Mas se encarniçam contra um outro prazer bem mais intenso que o de comer cerejas. Ainda há pouco, eu manifestava meu espanto com essa obsessiva preocupação que têm certas culturas em determinar como as pessoas devem se comportar na cama. Se não há violência nem desrespeito ao parceiro, que cada um se divirta como melhor lhe apraz e boa sorte a todos.

Em meus dias de Folha de São Paulo, quando escrevi um artigo abordando a possível homossexualidade de Cristo – e por que não? Se os evangelhos nada dizem sonbre sua sexualidade, qualquer hipótese é permissível. Assexuado é que não deveria ser – recebi telefonema de um pastor, perguntando se eu não estava precisando de cura. Disse-me que tinha uma casa que abrigavam muitos ex-homossexuais. Ora, pastor, confesso que jamais vi um destes seres de perto. Entendo que uma pessoa possa ser ex-marido, ex-sacerdote, ex-comunista. Mas por que ser ex-homossexual? Se era homossexual, a prática lhe era prazerosa. E se lhe trazia prazeres, por que a ela renunciar?

Quando se pergunta se homossexualismo tem cura, claro está que se fala em doença. Durante séculos, exceto em algumas culturas pagãs, este comportamento foi visto como perversão ou doença, e só em 1973 a homossexualidade deixou de ser classificada como tal pela Associação Americana de Psiquiatria. Em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais. Em 1991, a Anistia Internacional passou a considerar a discriminação contra homossexuais uma violação aos direitos humanos.

No Brasil, a Associação Brasileira de Psiquiatria, em 84, considerou a homossexualidade como algo não prejudicial à sociedade. No que foi seguida, no ano seguinte, pelo Conselho Federal de Psicologia, que acabou estabelecendo mais tarde regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual. Considerou-se então que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio, nem perversão e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade. E aqui reside o nó górdio da questão. Os evangélicos querem permitir que psicólogos tratem a homossexualidade de clientes. A militância gay vê nesta atitude preconceito.

Quinta-feira passada, 28 de junho, quando ocorreram os debates em Brasília, foi proclamado o Dia Mundial do Orgulho Gay. Para o deputado João Campos, a resolução do CFP veda que o psicólogo atenda o homossexual que queira se tratar, como se esse paciente fosse um cidadão menor. Ora, por que um cidadão desejaria tratar-se de algo que lhe é prazeroso? Só mesmo por razões religiosas, que vêm no homossexualismo um pecado e incutem no homossexual sentimentos de culpa. Azar de quem é suficientemente pobre de espírito para cair na armadilha dos religiosos.

Conheço e convivi com homossexuais durante toda minha caminhada. Eles estão a nosso lado, em praticamente todas as circunstâncias da vida, escola, universidade, trabalho ou lazer. Fiz meu ginásio no início dos anos 60, em Dom Pedrito, pequena cidade fronteiriça, que teria na época uns 13 mil habitantes. Em minha classe havia pelo menos três homossexuais, que me acompanharam durante quatro anos. Muito antes que a Associação Americana de Psiquiatria deixasse de classificar homossexualismo como doença, muito antes de a OMS ter retirado a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, não víamos neles nada demais, a não ser uma opção sexual distinta. Claro que alguma piada rolava, mas jamais foram discriminados.

Dom Pedrito – já contei – foi o berço de Rui Bastide, líder político local, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, que jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses. Isso há meio século atrás.

Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: “O Brasil vai perder muito com esta cassação”. Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. “Já procurei até médico” - confessou-me um dia Bastide -. “Mas que vou fazer? É a minha natureza.” Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide.

A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados.

Para quem se criou em meio a este ambiente de tolerância, causa espécie que hoje, 50 anos depois, esteja se debatendo na capital do país se a prática é ou não doença. Segundo o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Humberto Verona, o profissional que insistir em tratar homossexualidade sofrerá processo ético. Em entrevista à Folha de São Paulo, diz o psicólogo: “A homossexualidade não é doença, não é um distúrbio. É proibido ao psicólogo oferecer tratamento e cura. O psicólogo que entender que é uma doença pode sofrer um processo”.

Em meio a isto, entra na dança a psicóloga evangélica Marisa Lobo, que explica porque é contra a resolução. Interrogada se é possível tratar a homossexualidade, responde: “É possível atender o sofrimento psíquico, eu não falo em tratamento. É possível uma pessoa buscar ajuda psicológica para mudar sua opção ou orientação. Não estou tendo preconceito. Homossexual que se aceita tem mais é que ser feliz do jeito que ele escolheu, e que lhe sejam garantidos todos os direitos. Mas e esses que procuram ajuda, que não se aceitam?”

Marisa Lobo, que se apresenta como “psicóloga cristã”, está sendo ameaçada de ter seu registro profissional cassado caso não negue sua fé. O Conselho Federal de Psicologia acatou denúncia contra a psicóloga por divulgar isto nas redes sociais, assim como nas palestras em que participa. Para evitar a cassação, deveria retirar de seus perfis nas mídias sociais toda e qualquer menção à sua fé, ou parar de exercer a profissão.

Há exageros de parte a parte. Por um lado, nenhum religioso pode impor a uma sociedade laica sua visão de mundo. Se quiser impô-la a seu rebanho, sinta-se à vontade. Por outro lado, se existem até médicos católicos e juízes espíritas, por que uma psicóloga não pode se dizer cristã? De minha parte, acho que quem crê na Santíssima Trindade, na ressurreição do Cristo e na virgindade de Maria, não pode sequer participar de uma banca de doutorado. Mas eu sou ateu e isso é apenas meu modo de ver a coisa. Conheço doutores crentes que continuam julgando teses, que se pretendem científicas, e nem por isso o mundo vem abaixo.

Que mais não seja, se alguém descobriu algo de perverso nas cerejas e quer ajuda para evitá-las, não vejo porque negá-la. O azar é dele.

Junho 30, 2012


 

 

VIAGEM A MOSCOU E PEQUIM DE UMA PROSTITUTA GAÚCHA

 

O leitor deve estar espantado com o título. Desde quando prostitutas viajam tão longe? Viajam sim, e muito.

Citei rapidamente em crônica passada, sem deter-me no assunto, As Muralhas de Jericó, do comunista gaúcho Josué Guimarães, que morreu em 1986. São relatos de sua viagem à União Soviética e China comunista em março-abril de 1952, como correspondente especial do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro. O livro foi escrito em junho daquele ano e só publicado em 2001, doze anos após a queda do muro de Berlim e dez anos após o desmoronamento da União Soviética. Só agora fui ler o livro. É leitura atrasada, mas nem por isso inútil.

Se olharmos para o século passado, temos de concluir que foi o século que mais prostituiu escritores na História. A revolução de 17 constituía um marco de definição obrigatória para todo intelectual. O craque de 29, a ascensão do nazismo, a nova sociedade soviética da qual ainda não se conhecia os gulags, todos estes fatores levaram os homens de idéia a defender – ou pelo menos a simpatizar com – o socialismo pregado por Marx. No continente europeu, uma intensa agitação intelectual conduziu os escritores, artistas e pensadores à ação política. “Que homem generoso” –pergunta-se Sábato em Apologias y Rechazos –, que jovem idealista não se inclinaria a julgar como uma grande esperança aquele acontecimento histórico?”

Até aí, tudo muito compreensível. Ocorre que, mal instalada a revolução, Lênin já mostrou as garras, fuzilando oponentes. Como teve vida curta após 17, não pode matar muita gente. Stalin, seu sucessor, fez nada menos que 20 milhões de cadáveres. E o “homem generoso”, de que falava Sábato, continuou prestando seu apoio à revolução e mesmo negando que na União Soviética houvessem gulags, fuzilamentos sumários, tortura, miséria e fome. O regime de Stalin patrocinou então visitas a Moscou, cercando seus convivas de mordomias, para mostrar as excelências do socialismo.

Neste turismo ideológico embarcaram os mais reputados escritores do século. Entre nós, Jorge Amado, Graciliano Ramos e algumas dezenas de intelectuais menos conhecidos. No Rio Grande do Sul, a honraria coube a Josué Guimarães. Como ainda não havia se estabelecido o conflito sino-soviético, o escritor comunista estendeu sua viagem a Pequim.

Na apresentação do livro, Maria Luiza Ritzel Remédios afirma que o autor-narrador parece sentir-se como o Josué da Bíblia que, no comando dos israelitas, penetrou a citadela inexpugnável, pois ele está a alcançar a União Soviética até então separada do mundo ocidental. E aqui já vai um equívoco da prefaciadora. Os anos 50 constituíram talvez o auge da influência de Stalin no Ocidente. Escreve Josué:

“Este livro tem a pretensão de derrubar as muralhas que separam, praticamente, o Ocidente do Oriente, fazendo deste mundo um só. Para tanto faltam engenho e arte. Porém, se não tiver a força e a magia das trombetas do Profeta, se não for capaz de destruir as muralhas simbólicas que hoje têm o nome de Cortina de Ferro, que pelo menos sirva para tirar desse muro de indiferença uma única pedra. Só isto justificaria a veleidade de publicá-lo. Pois a fresta assim aberta daria para que duas mãos se apertassem, fraternalmente, iniciando uma era de compreensão e vontade, únicos sentimentos que ainda poderão devolver a Paz aos homens”.

No fundo, Josué quer absolver Stalin dos crimes tremendos de que, já na época, era acusado. Ao falar da muralha da China, Josué a define como um símbolo de defesa de um povo que, até hoje, não encontrou segurança e que sabe que nenhuma barreira material será capaz de deter a ambição de outros povos, o desejo de destruição de outras gentes. Talvez seja a Muralha, nos dias de hoje, um símbolo muito vivo para os chineses. (...) está a ensinar-lhes que só uma coisa poderá deter uma agressão: é a união de todos, o trabalho de sol a sol e um sentimento de igualdade que lhes dê força e independência”.

Em 52, Mao estava plenamente empenhado na formidável tarefa de matar chineses. Mas nada disso interessa a Josué. Em seu turismo, o autor tem a ventura de ver o Grande Timoneiro na Praça Vermelha:

“Mao Tse-tung já chegou. Daqui se avista o presidente cercado de seus auxiliares e do general Chu Têh (...) Sou capaz de distinguir o seu famoso sorriso daqui de onde estou. Ambos já tiveram a cabeça a prêmio, na sede de vingança do exilado de Formosa. Pela de Mao Tse-tung, que, antes de mais nada, é um intelectual dos mais puros, foi oferecida a quantia de 250 mil dólares”.

O intelectual dos mais puros matou 65 milhões de compatriotas seus. Em Moscou, então, tudo é lindo.

“O nível cultural do povo soviético talvez seja hoje um dos mais elevados do mundo. Tive grande preocupação em observar este aspecto. (...) Uma tarde, a delegação brasileira, ao deixar o Hotel Nacional, teve a atenção de todos despertada para uma aglomeração à porta de uma livraria que nós havíamos visto várias vezes. Homens e mulheres disputavam a primazia na porta e muitos outros saíam de lá de dentro empunhando um livro qualquer. Fomos nos informar do que havia. E o espanto foi tanto, para nós, brasileiros, que ninguém comentou o sucedido depois, ruminando lá as suas incompreensões e engolindo seco seu espanto. Tratava-se, simplesmente, de mais uma edição de um livro sobre filosofia, disputado de tal maneira que me lembrou episódio igual, numa banca de São Paulo, no dia em que saiu uma edição nova da revista Grande Hotel, uma cretiníssima coleção de histórias de amores mal correspondidos de mistura com a vida secreta de Hollywood e conselhos sobre a melhor maneira de encontrar um marido.

“E seriam intelectuais os que tanto esforço faziam para comprar um pesado livro sobre filosofia? A resposta é negativa e verdadeira. Talvez seja difícil para nossa mentalidade compreender o interesse do operário de uma fábrica qualquer por um assunto sério, de cultura. Ou o desejo da moça que dirige um trem elétrico subterrâneo – naquele esplêndido Metrô de Moscou – em comprar um livro que trata de problemas transcendentais, fora das coisas diárias ou das estórias de casamentos frustrados. Mas para eles isso é uma coisa natural e não representa nenhum esnobismo ou atitude”.

Nenhuma palavrinha sobre as prisões de intelectuais e dissidentes, que há muito vinham sendo enviados para os gulags. Este é o tom sempre baboso do livro. Tudo é grandioso, eficaz, inteligente, tudo é esperança no futuro e no homem novo, nas observações de Josué. Nenhuma palavrinha sobre a sufocação da literatura por Zdanov. Nenhuma menção ao desastre na agricultura provocado por Lyssenko.

Se na época os crimes de Mao eram pouco conhecidos, sobre os crimes de Stalin o autor não podia alegar desconhecimento. Pois três anos antes de sua viagem, havia estourado em Paris a chamada affaire Kravchenko, depois da qual não mais era permissível a uma pessoa informada ignorar o que ocorria na União Soviética. Já falei de Kravchenko. Falo de novo. Particularmente porque jamais li qualquer menção de algum autor gaúcho – e muito menos nacional – a este personagem.

Em 1949, Victor Kravchenko, alto funcionário soviético, denunciou em Paris os crimes de Stalin. Tendo trocado a URSS pelos Estados Unidos, relatou esta opção em Eu escolhi a liberdade, livro em que denunciava a miséria generalizada e os gulags do regime stalinista. O livro foi traduzido ao francês em 1947 e teve um sucesso fulminante. A revista Les Lettres Françaises publicou três artigos difamando Kravchenko, apresentando-o como um pequeno funcionário russo recrutado pelos serviços secretos americanos. Kravchenko processou a revista, no que foi considerado, na época, o julgamento do século. No banco dos réus estava nada menos que a Revolução Comunista.

Em seu testemunho, Kravchenko trouxe ao tribunal Margaret Buber-Neumann, mulher do dirigente comunista alemão Heinz Neumann, como também o ex-guerrilheiro antifranquista El Campesino, ambos aprisionados por Stalin em campos de concentração. Kravchenko, que perdeu toda sua fortuna produzindo provas no processo, teve ganho de causa. Recebeu da revista francesa, como indenização por danos e perdas ... um franco simbólico.

A história de Kravchenko é fascinante, envolve diversos países, desde a finada União Soviética até Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, e até hoje não houve cineasta que ousasse transpor sua odisséia para as telas. Seu livro rendeu-lhe boa fortuna. Levado à falência com os custos do processo, foi morar no Peru, onde investiu em minas de ouro e de novo enriqueceu. Acabou suicidando-se em um hotel em Nova York. A partir de seu processo, ninguém mais podia negar o universo concentracionário soviético. 1949 é a data limite para um homem que se pretenda honesto abandonar o marxismo. Três anos depois, Josué ainda louva a União Soviética de Stalin.

Há um detalhe curioso em As Muralhas de Jericó. Tendo sido escrito em 1952, permaneceu inédito por meio século, só tendo sido publicado postumamente em 2001. Ora, de 52 para cá, muita água correu sob o moinho da História. Em 1956, Nikita Kruschov denunciou, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, os crimes de Stalin. Não era a CIA, muito menos a imprensa capitalista ocidental que os denunciava, mas o mais alto dirigente soviético. Kravchenko era um dissidente, mas Kruschov era o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Se a affaire Kravchenko, apesar da farta abundância de provas, deixara alguma dúvida em comunistas mais testarudos, a partir do XX Congresso nenhuma dúvida mais era permissível.

Em 89 caiu o Muro e em 91 desmoronou o império tão amado por Josué. Seria mais que oportuno, para a imagem póstuma do escritor, que seu depoimento permanecesse inédito. Mas pelo jeito a viúva acreditou nas potocas do marido.

Aconselho vivamente os leitores a comprar o livro de Josué. Para ver quanto um escritor pode ser venal, a ponto de vender a alma por uma viagenzinha.

Julho 06, 2012


 

 

PS FRANCÊS QUER ENXUGAR GELO

 

“Muitas vezes me perguntei em que consistia a superioridade deste mundo chamado de grande, mas não encontrei sequer uma resposta. É possível que seja muito agradável usar roupa fina, fazer as leis segundo seu agrado e conversar disparates sobre a virtude; mas seria bem melhor que não se tivesse tanta presunção. E é disto que o mundo padece tanto. Assentam-se à cadeira dos juízes e julgam-nos sem piedade. Sua polícia nos persegue; seus prefeitos mandam matar nossos homens; seus sacerdotes nos prometem o inferno e seus magnatas especulam com nossa fome. No entanto, mal a iluminação pública é reduzida à metade, todos eles saem a nos procurar pelas ruas. E afinal, quando ali nos vemos à sua frente, só em roupa íntima, desaparece toda sua arte e persuasão, murcha completamente a presunção, cessa a arrogância; e nesse momento, balbuciam como pequenos meninos a perdir dois tostões de doces...”

Quem assim escreve é Amélie Hélie, em suas memórias de cortesã, Mes Jours et mes nuits. Nascida em 1878, foi uma das grandes atrações dos bordéis de Paris, onde era mais conhecida como Casque d’Or. Seu sofrido lamento merece ser lembrado nestes dias em que a franco-marroquina Najat Vallaud-Belkacem, ministra dos Direitos da Mulher e porta-voz do governo, declarou ao Journal du Dimanche: “Meu objetivo, como o do Partido Socialista, é ver a prostituição desaparecer”.

Começou mal o governo de François Hollande. No jornalismo on line, vejo fotos das profissionais parisienses manifestando nas ruas e ostentando cartazes em defesa do ofício:

LIBERTÉ?
EGALITÉ?
PUTES ELIMINÉES?

Segundo o Nouvel Observateur, os partidos políticos são todos favoráveis à abolição da prostituição. Ano passado, o Parlamento adotou uma resolução que preconisa a penalização dos clientes. Agora, sob o argumento de que a prostituição é uma violência às mulheres e às prostitutas, mesmo as « tradicionais », que são vulneráveis social e economicamente, a França pretende extirpar a dita mais antiga das profissões. Os socialistas jamais se curam da mania de utopia.

Logo na França, país em que as prostitutas sempre foram cantadas no mundo da cultura e das artes. Quem não lembra da Nana, de Émile Zola? Ou da Boulle de Suif, de Maupassant? Ou, mais contemporaneamente, da terna Irma, la Douce, de Billy Wilder? Toulouse-Lautrec vivia entre elas e as imortalizou em seus affiches. Um pintor afeito aos temas religiosos, como Rouault, não poupou pincel para pintá-las em seu ambiente.

Diz Lujo Bassermann, em A História da Prostituição:

“Se Paris é cognominada a cidade do amor, semdúvida não se trata do amor conjugal, mas sim da prostituição, embora no sentido mais geral: desde as grandes amantes, aravés das cortesãs e moças amáveis, até o último degrau com as meretrizes de rua mais ou menos sob controle ou suas colegas dos bordéis. E não resta dúvida sobre a existência de uma relação especial entre Paris e as diversas formas de amor que existem e existiram nas grandes metrópoles. Em nenhuma delas, contudo, atuaram de forma tão atraente como naquela cidade.(...) A atração especial da cidade de Paris com relação às diversas formas de amor é muito antiga, quase veneranda, e muitos dos pares amorosos mais célebres encontram-se atualmente tão apagados quanto as figuras do portal principal da Notre Dame, cuja beleza apenas se pode imaginar : Heloísa e Abelardo, por exemplo, tão ludibriados”.

Aposta risível a dos socialistas. Mania de síndico novo que assume um condomínio antigo. A prostituição jamais será extinta. Primeiro, por ser muito difícil determinar quando uma mulher recebe ou não pagamento por sexo. Segundo, porque a tendência no Ocidente é regulamentar a prostituição. Nos dias em que vivi na Suécia, as profissionais eram vistas como beneméritas, assistentes sociais que supriam as carências dos desvalidos do ponto de vista sexual ou emocional. Verdade que hoje, no reino dos Sveas, prostituição é crime. Isto é, crime para o cliente. A prostituição continua sendo permitida. Toda mulher pode vender seu corpo. O que não se pode é comprá-lo.

Os antigos demonstraram mais sensatez. Sólon foi o primeiro legislador a reconhecer suas nobres funções, merecendo de Filémon justa homenagem em sua oração fúnebre:

“Por isto te tornaste um benfeitor de teus cidadãos, reconheceste nessa instituição só o bem e a tranqüilidade do povo. Ela se tornava absolutamente necessária numa cidade em que a juventude turbulenta já não se podia conter, nem obedecer à mais imperiosa lei da natureza. Instalando mulheres em certas casas, preveniste desgraças e desordens de outra forma inaceitáveis”.

Desde tempos imemoriais, a prostituta é personagem constitutiva de todas as sociedades. Foi louvada tanto por Tomás de Aquino como por Sade. Diz o aquinata:

“Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade e a devassidão a perturbará com desordens de toda a espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que a cloaca num palácio; suprimi a cloaca e o palácio tornar-se-á um lugar sujo e infecto”.

O divino marquês é mais efusivo:

“Chamam-se assim, minha muito querida, essas vítimas públicas do deboche dos homens, sempre prontos a entregar-se ao seu temperamento ou ao seu interesse; felizes e respeitáveis criaturas que a opinião pública infama e a volúpia coroa, e que muito mais necessárias à sociedade do que as recatadas, têm a coragem de sacrificar, para servi-la, a consideração que essa sociedade ousa negar-lhes injustamente”.

Melhor entendimento do mundo teve o rei Ludwig I, que nomeou Margaret Trautmann como ministra da Cultura e das Artes da Baviera. Esta senhora, longe de ser uma acadêmica, administrava um bordel em Munique. Quando o ministro da Justiça mandou fechar a casa, Trautmann pediu uma entrevista ao rei. Alegou que sua casa era um ponto de encontro de poetas e artistas, nobres e políticos, que lá se reuniam para cultivar o espírito, claro que sempre na boa companhia de suas pupilas.

Ludwig não hesitou. Ordenou a reabertura do bordel e a nomeou ministra. Os socialistas franceses, em seu afã de síndicos novos, começam seu governo pretendendo enxugar gelo. O máximo que farão é empurrar a prostituição para a clandestinidade.

Julho 07, 2012


 

 

PREPÚCIO DIVIDE ALEMANHA

 

Em 26 de junho passado, um tribunal do distrito de Colônia, Alemanha, tomou a decisão de declarar a remoção do prepúcio por razões religiosas como lesão intencional e, portanto, ilegal. “O direito de uma criança a sua integridade física supera o direito dos pais”, afirma a decisão.

Segundo uma pesquisa, 56% dos alemães concordam com isso e 32% se dizem contra. O presidente da Ajuda à Infância Alemã, Georg Ehrmann, faz parte do primeiro grupo: “o direito da criança à uma infância sem ferimentos deve ser um consenso compartilhado por todas as comunidades religiosas”. A Federação dos cirurgiões para crianças, a Câmara dos médicos alemães e a Sociedade Alemã de Cirurgia da criança não recomendam a operação.

Os alemães compraram uma briga feia. A circuncisão, um dos distintivos dos judeus, já está prescrita no Gênesis. Foi imposta a Abrão – quando ainda se chamava Abrão e não Abraão - quando este completou 99 anos. Jeová lhe aparece e diz: Eu sou El-Shaddai, anda na minha presença e sê perfeito.

Disse mais Deus a Abraão: Ora, quanto a ti, observarás a minha aliança, tu e a tua descendência depois de ti, nas suas gerações. Eis a minha aliança, que será observada entre mim e vós, isto é, tua geração depois de ti: todos os vossos machos serão circuncidados. Circuncidar-vos-eis na carne do prepúcio; e isto será por sinal da aliança entre mim e vós.

À idade de oito dias, todos os vossos machos serão circuncidados, de geração em geração, tanto o nascido em casa como o comprado por dinheiro a qualquer estrangeiro, que não for da tua linhagem. Com efeito será circuncidado o nascido em tua casa, e o comprado por teu dinheiro. Minha aliança estará marcada na vossa carne como aliança perpétua.

O incircunciso, o macho cuja carne do prepúcio não tiver sido cortada, esta vida será extirpada do seu povo: ele violou minha aliança.

A circuncisão, junto com a observação do shabat e dos preceitos culinários, são as três características que constituem a identidade judaica. Verdade que Jeremias fala de duas circuncisões, a da carne e a do coração. Com isto o profeta quer dizer que, da mesma forma que a circuncisão do prepúcio liberta o órgão viril de sua glande, o coração deve se abrir aos mandamentos de Jeová.

Jeremias 9:25:

Eis que vêm dias, diz o Senhor, em que castigarei a todo circuncidado pela sua incircuncisão: ao Egito, a Judá e a Edom, aos filhos de Amom e a Moabe, e a todos os que cortam os cantos da sua cabeleira e habitam no deserto; pois todas as nações são incircuncisas, e toda a casa de Israel é incircuncisa de coração.

Para o rei Saul, prepúcio de incircunciso é moeda de troca. Quando propõe a mão de Mical, sua segunda filha, a Davi, este a recusa, dizendo ser um homem pobre e desprezível. Saul faz uma segunda proposta. Se Davi é pobre, isto não é obstáculo para que se torne genro do rei. Saul quer, como dote, cem prepúcios de filisteus. Em verdade, queria que Davi caísse nas mãos dos filisteus. Davi, muito zeloso, traz a Saul não cem, mas duzentos prepúcios de filisteus. Mesmo assim, Saul não entrega Mical.

Em Atos, Paulo quase morre por ter levado ao templo Trófimo, incircunciso. Atos 21:29 e seguintes:

Porque tinham visto com ele na cidade a Trófimo de Éfeso, e pensavam que Paulo o introduzira no templo. Alvoroçou-se toda a cidade, e houve ajuntamento do povo; e agarrando a Paulo, arrastaram-no para fora do templo, e logo as portas se fecharam.

E, procurando eles matá-lo, chegou ao comandante da coorte o aviso de que Jerusalém estava toda em confusão; 32 o qual, tomando logo consigo soldados e centuriões, correu para eles; e quando viram o comandante e os soldados, cessaram de espancar a Paulo. Então aproximando-se o comandante, prendeu-o e mandou que fosse acorrentado com duas cadeias, e perguntou quem era e o que tinha feito.

E na multidão uns gritavam de um modo, outros de outro; mas, não podendo por causa do alvoroço saber a verdade, mandou conduzí-lo à fortaleza. E sucedeu que, chegando às escadas, foi ele carregado pelos soldados por causa da violência da turba. Pois a multidão o seguia, gritando: Mata-o!

Ontem ainda, a Conferência Européia de Rabinos criticou severamente a decisão judicial, e a qualificou como o maior ataque aos judeus desde o Holocausto perpetrado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. O presidente dos rabinos, o titular de Moscou Pinchas Goldschmidt, afirmou durante a reunião dos religiosos de Berlim que “a proibição da circuncisão põe em dúvida a existência da comunidade judaica na Alemanha. Se a resolução for mantida, não vejo futuro para os judeus na Alemanha”, afirmou de forma taxativa Goldschmidt, convencido de que a decisão judicial acabará se incorporando à legislação alemã.

Em verdade, não só a Alemanha levantou a questão da circuncisão. Na Noruega, discute-se a proibição pura e simples, e na Holanda há um apelo nesse sentido de uma associação médica. Como a circuncisão é praticada também pelos muçulmanos, não faltarão também os gritos de islamofobia. Particularmente na Alemanha, que abriga uma considerável imigração árabe e turca.

Tem a religião direitos sobre os corpos de crianças que nem idade têm para compreender o que lhes estão a fazer? Os religiosos acham que sim. A Torá exige a circuncisão do recém-nascido antes do oitavo dia. Embora o Alcorão não a prescreva, a tradição é forte. Na Alemanha, a mídia já fala em Kulturkampf, choque cultural.

O Hospital Judaico de Berlim pratica entre “70 a 80 circuncisões por razões religiosas por ano, um terço em meninos judeus e dois terços em pequenos muçulmanos”. Seu presidente, Dieter Graumann, afirmou ser escandalosa a decisão de Colônia. “Em todos os países do mundo, este direito religioso é respeitado”.

Segundo o acadêmico Micha Brumlik, autor de vários livros sobre a relação entre judaísmo e a história alemã, “o judaísmo e o islã não são bem-vindos aqui”. Para uma outra professora, especialista em filosofia judaica, “sem a circuncisão, não pode haver vida judaica na Alemanha”.

Os judeus insistirão na intolerância dos alemães. Esquecem a própria intolerância quando Jeová promete castigar o Egito, Judá, Edom, os filhos de Amom e Moabe, e todos os que cortam os cantos da sua cabeleira e habitam no deserto, porque são incircuncisos. Não lembram que quase mataram Paulo por ter levado Trófimo ao templo. Deixam de lado os cem prepúcios dos filisteus pedidos por Saul a Davi como dote por Mical.

A queda de braço está lançada. Pessoalmente, duvido que os alemães consigam proibir uma tradição milenar judaica. Os judeus, obviamente explorarão a idéia do holocausto para se colocarem na condição de perseguidos. Os árabes alegarão islamofobia. E continuarão mutilando seus filhos.

Espantoso constatar como, cinco ou mais milênios depois do Gênesis, o prepúcio consegue dividir um país.

Julho 13, 2012


 

 

A ÚLTIMA PRESCRIÇÃO DE MEU UROLOGISTA

 

Por mais afável e simpático que um médico seja, não é exatamente por prazer que o procuramos. Quando os procuramos no consultório, sempre é sinal de problemas. Tenho um médico, no entanto, que me apraz consultar. É meu urologista.

Sempre que ando na rua, levo leitura debaixo do braço. Nunca se sabe quanto vamos esperar em um bar ou consultório e não suporto ficar olhando o nada. Sem falar que sempre estou com leituras atrasadas. Há alguns anos, quando visitava o urologista, levava comigo um tratado de teologia.

— Ah, você gosta disso? – me perguntou.


Gostava. De lá para cá, nossos encontros terminam sempre com troca de bibliografias. Ele é judeu, ateu e vive imerso em leituras religiosas. Quando termina minha consulta propriamente, ele puxa uma pasta cheia de livros e me convida ao bom diálogo:

— Vamos agora ao que interessa.

Enquanto discutimos a origem dos deuses, as contradições dos textos bíblicos, as peregrinações de Paulo pelo Mediterrâneo, as deturpações dos preceitos do Antigo Testamento pelos redatores do Novo, a papisa Joana e o estercorário, seus clientes se amontoam no consultório. Sempre saio da consulta com uma prescrição... de livros. Há um café Frans no shopping aqui perto de casa. Se passo por lá entre 11hs e meio-dia, é certo que vou encontrá-lo absorto em seus leituras. Quando coincidimos na rua, ele já vai puxando de sua pasta seus mais recentes achados.

Em minha última consulta, enquanto seus pacientes pacientavam, entre outros títulos, prescreveu-me um que julgo excelente. Interrompi minhas outras leituras e dediquei-me ao ensaio de Pepe Rodríguez, Mentiras Fundamentais da Igreja Católica. É obra na trilha de O que Jesus disse? O que Jesus não disse, de Bart Ehrman, teólogo que perdeu a fé pesquisando as cópias existentes dos textos bíblicos. Mas Rodríguez é bem mais abrangente. Pretende mostrar como a Igreja Católica mentiu ao se apropriar dos textos do Antigo e Novo Testamento. Em verdade, o título fica aquém das dimensões da obra, que mostra deturpações dos livros biblícos em função de interesses de poder ou rivalidades entre sacerdotes, muito antes de a Igreja existir. À guisa de degustação, transcrevo dois trechos. O livro é em espanhol. Cito a tradução portuguesa:

Deus, plenamente ciente do que fazia, ocultou ao seu povo eleito o advento futuro do seu Filho, o Salvador, obrigou-o a odiar as nações vizinhas sabendo que o seu Filho pregaria justamente o contrário, forjou de si próprio uma imagem com as suas respectivas atribuições divinas, atribuições essas que, agora, no seu novo testamentum, há-de modificar, obrigou-o a cumprir leis e rituais que seu Filho abolirá, por os considerar inúteis, levou-o a seguir sacerdotes que nos novos tempos surgirão como falsos – senão hereges -, estenderá o seu manto protector a toda a humanidade, etc. Não nos podemos deixar de perguntar: por que não o fez antes?

Não eram também criaturas de Deus os demais povos da Terra quando os excluiu da sua “aliança eterna”? Ao alterar suas posições, não reparou que causava um dano profundo ao seu povo hebreu? Se o Deus do Velho Testamento é o mesmo Deus que inspirou o Novo, é evidente que alguém, antes ou depois, terá vergonhosamente mentido.

Sobre os critérios de seleção dos quatro evangelhos, entre os sessenta existentes:

A seleção dos evangelhos canónicos foi feita no concílio de Niceia (325) e ratificada no de Laodiceia (363). O modus operandi ou o processo utilizado, para distinguir entre textos verdadeiros e falsos foi, segundo a tradição, o da “eleição milagrosa”. Foram apresentadas, de facto, quatro versões para justificar a preferência pelos quatro livros canónicos:

1) depois de os bispos terem rezado muito, os quatro textos voaram por si sós e foram pousar-se sobre um altar;
2)puseram todos os evangelhos em competição sobre um altar e os apócrifos caíram ao chão, enquanto os canónicos não se mexeram;
3)depois de escolhidos, os quatro foram colocados sobre o altar e foi pedido a Deus que se neles houvesse qualquer palavra falsa os fizesse cair no chão, o que não ocorreu;
4)o Espírito Santo, na forma de uma pomba, penetrou no recinto de Niceia e pousando no ombro de cada bispo sussurrou a cada um deles quais eram os evangelhos autênticos e quais os apócrifos. Esta última versão revelaria, além do mais, que uma boa parte dos bispos presentes no concílio eram surdos ou muito incrédulos, visto ter havido grande exposição à seleção – por voto maioritário, que não unânime – dos quatro textos canónicos actuais.

Santo Irineu (c. 130-200) procurou fundar em bases intelectualmente sólidas a selecção dos livros canónicos quando escreveu que “o Evangelho é a coluna da Igreja, a Igreja está espalhada por toda a Terra, a Terra tem quatro direcções, e como há quatro ventos cardiais, é necessário que existam quatro Evangelhos. (...) O Verbo criador do universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, e é aqui que o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos.

Sobre estes últimos arrazoados, o autor comenta:

Esta ciência espantosa baseia-se no seguinte texto do Apocalipse: “Depois disto vi quatro anjos que estavam de pé nos quatro ângulos da terra, e retinham os seus quatro ventos para que não soprasse sobre a terra vento algum...” (Ap 7, 1). Apesar de esta informação proceder da inspiração de Deus, não passa de um atestado da enorme ignorância que reinava então. Hoje, que sabemos que a Terra é redonda e não tem os quatro ângulos que se lhe atribuía ao imaginá-la plana, com quantos evangelhos nos deveria obsequiar o Verbo para se pôr em dia com o mundo actual?

Julho 20, 2012


 

 

ESQUERDAS ANALFABETIZAM UNIVERSIDADE

 

Após terminar Direito e Filosofia, comecei a trabalhar em jornal e passei duas décadas afastado da universidade brasileira. Digo da brasileira, porque nesse período tive quatro anos na Université Sorbonne Nouvelle, em Paris. Da qual também mantive distância. Nesses quatro anos, tive só 16 horas de aula, das quais apenas quatro foram muito úteis. Em verdade, nunca pensei em fazer doutorado. Queria apenas curtir Paris. Se a condição para uma bolsa era defender uma tese, tudo bem. Foi o que fiz. Só então fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar.

Em 81, a Folha da Manhã fechou as portas. A Caldas Júnior estava à beira da falência. Eu, que enviava uma crônica diária para Porto Alegre, fiquei pendurado no pincel. Às margens do Sena, mas desempregado. Meu orientador ofereceu-me mais um ano de pesquisa, mas recusei. Estava longe de minha mulher – que tivera de retomar seu trabalho após dois anos comigo em Paris – e com vontade de voltar. Acabei mudando de mala e cuia para Florianópolis, onde passei a lecionar literatura na UFSC, como professor visitante. Foi meu retorno à universidade.

Fiquei perplexo. Boa parte de minhas aluninhas, em final de curso – de Letras – não tinha noções mínimas de vernáculo. A meu ver, não podiam sequer ter entrado na universidade. (Digo aluninhas, pois os varões eram raros). Certa vez, ao reprovar uma negrinha em último ano de curso, tive de ouvir choro e ranger de dentes. “Racismo, professor, racismo. Eu nunca tirei zero nesta universidade”.

Então é porque teus professores não lêem tuas provas – respondi. Chamei-a ao estrado. E mostrei a ela o colar de zeros que havia distribuído a mais doze alunas brancas. Não fossem elas, provavelmente seria processado por racismo.

Mais tarde, reprovei a sobrinha de um deputado. Foi, a meu ver, o gesto que me fez ser ejetado da universidade. Não sabia que a festa de formatura da moça seria a festa do ano da cidade, e que 300 convites já haviam sido enviados. Se soubesse, com mais prazer a teria zerado. Resumindo: ao voltar à universidade, nos anos 90, descobri que tivera melhor formação no ginásio Nossa Senhora do Patrocínio, em Dom Pedrito, no início dos 60. Em trinta anos, o ensino universitário havia decaído irremediavelmente.

Leio recente pesquisa segundo a qual apenas 35% das pessoas com ensino médio completo podem ser consideradas plenamente alfabetizadas e 38% dos brasileiros com formação superior têm nível insuficiente em leitura e escrita. É o que apontam os resultados do Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf) 2011-2012, pesquisa produzida pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) e a organização não governamental Ação Educativa.

Ou seja, mais de um terço dos universitários são analfabetos funcionais. O que não me espanta. Isto eu já havia constatado na universidade, há mais de vinte anos. Segundo outra pesquisa também recente, Lula está em primeiro lugar em votação do programa televisivo “O Maior Brasileiro de Todos os Tempos”. Quando um analfabeto é considerado o maior brasileiro de todos os tempos, isto significa que para os brasileiros ser culto é o que menos importa. O que importa é ter sucesso.

A História é uma eterna luta entre alfabetizados e analfabetos, dizia Nestor de Hollanda, de saudosa memória. Em seu livro A Ignorância ao Alcance de Todos, o autor defendia a tese de que os analfabetos estavam avançando inexoravelmente em todas as áreas. Dito e feito. Agora tomaram os campi de assalto. Por obra dos legisladores nacionais, um analfabeto de pai e mãe já pode ostentar em seu currículo um diploma de curso superior. A reprovação, único instrumento eficaz de controle da qualidade de ensino, virou coisa do passado. Se no secundário está se tornando proibida, nos cursos superiores é cada vez mais rara e mesmo inexistente.

Conta-me um amigo, professor de universidade privada, que não pode reprovar nem mesmo alunos que jamais assistiram a suas aulas. O ensino virou um teatro, onde o aluno finge que aprende e o professor finge que ensina - disto está consciente todo professor que costuma olhar-se no espelho antes de entrar em sala de aula. Mas, segundo Hollanda, havia alguma esperança. Alguns alfabetizados já haviam se infiltrado nos quartéis.

Retomo uma entrevista de Veja, de novembro de 2008, que explica em boa parte a decadência do ensino nacional. Segundo a antropóloga Eunice Durham, professora da USP e ex-secretária de política educacional do Ministério da Educação (MEC) no governo Fernando Henrique, a responsabilidade desta catástrofe deve ser atribuída aos cursos de pedagogia.

— As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor conceitos científicos de média complexidade. Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado delas. Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres.

Não por acaso, só fui reprovado uma vez em minha vida em meus cursos universitários. Foi na Filosofia da UFRGS – então URGS – na cadeira de pedagogia. A faculdade só oferecia licenciatura e os alunos foram obrigados a assistir às aulas das pedagogas. Masturbação acadêmica total. As professoras, que não tinham conteúdo nenhum a oferecer, abominavam as aulas expositivas e se compraziam a ensinar ridículas técnicas de ensino, em geral de extração ianque. Me opus violentamente ao embuste e fui solenemente reprovado. Devo ter sido o primeiro – e talvez o único – acadêmico a ser reprovado naquele curso.

Tive de repetir a cadeira. A situação era tão tensa que, ao encontrar-me com a professora, eu e ela éramos acometidos de taquicardia. “Professora – sugeri – acho melhor aprovar-me logo, esta situação faz mal para nós dois”. Ela concordou comigo. Fiz, no ano seguinte, uma formatura individual.

O problema ocorre basicamente nas tais de ciências humanas. Cursos que, a meu ver, se fossem extintos seria uma benção para o país. Prossegue a professora Durham:

— Há dois fenômenos distintos nas instituições públicas. O primeiro é o dos cursos de pós-graduação nas áreas de ciências exatas, que, embora ainda atrás daqueles oferecidos em países desenvolvidos, estão sendo capazes de fazer o que é esperado deles: absorver novos conhecimentos, conseguir aplicá-los e contribuir para sua evolução. Nessas áreas, começa a surgir uma relação mais estreita entre as universidades e o mercado de trabalho. Algo que, segundo já foi suficientemente mensurado, é necessário ao avanço de qualquer país. A outra realidade da universidade pública a que me refiro é a das ciências humanas. Área que hoje, no Brasil, está prejudicada pela ideologia e pelo excesso de críticas vazias. Nada disso contribui para elevar o nível da pesquisa acadêmica.

Tampouco por acaso, o rebotalho da História – os velhos marxistas – até hoje dominam “as Humana”, como se dizia – e escrevia, juro – na UFSC. Foram “as Humana” da USP que difundiram o marxismo no ensino universitário brasileiro, em detrimento de conhecimentos banais – mas fundamentais - como o bom manejo do vernáculo.

A repórter pergunta o que, exatamente, se ensina aos futuros professores. Responde Durham:

— Fiz uma análise detalhada das diretrizes oficiais para os cursos de pedagogia. Ali é possível constatar, com números, o que já se observa na prática. Entre catorze artigos, catorze parágrafos e 38 incisos, apenas dois itens se referem ao trabalho do professor em sala de aula. Esse parece um assunto secundário, menos relevante do que a ideologia atrasada que domina as faculdades de pedagogia.
- Como essa ideologia se manifesta?
- Por exemplo, na bibliografia adotada nesses cursos, circunscrita a autores da esquerda pedagógica. Eles confundem pensamento crítico com falar mal do governo ou do capitalismo. Não passam de manuais com uma visão simplificada, e por vezes preconceituosa, do mundo. O mesmo tom aparece nos programas dos cursos, que eu ajudo a analisar no Conselho Nacional de Educação. Perdi as contas de quantas vezes estive diante da palavra dialética, que, não há dúvida, a maioria das pessoas inclui sem saber do que se trata. Em vez de aprenderem a dar aula, os aspirantes a professor são expostos a uma coleção de jargões. Tudo precisa ser democrático, participativo, dialógico e, naturalmente, decidido em assembléia.

Se hoje um terço dos universitários são analfabetos funcionais, não é preciso ir muito longe para saber quem os analfabetizou. O pior é que a peste, apesar da queda do muro de Berlim e do desmoronamento da União Soviética, não dá sinais de arrefecer neste país que aspira a pertencer ao Primeiro Mundo, mas ainda vive a reboque da História.

Julho 21, 2012


 

 

QUANDO CALOTE VIRA ONIOMANIA

 

As piadas antigas são sempre atuais. Quem não lembra daquele senhor que foi queixar-se ao médico de que tinha sarna?

— Que sarna que nada – disse o médico –. Um homem de sua condição social tem escabiose.

A Folha de São Paulo de hoje traz um caso interessante sobre como pintar com palavras eruditas o que vulgarmente atende por um nome bem banal. Nos traz a notícia de um contador de 31 anos que não conseguiu mais pagar a comida nem o passe de ônibus:

“Cheguei ao fundo do poço em três anos. Devia cerca de R$ 35 mil quando ganhava R$ 1.000 por mês.” O contador, que não quer se identificar, participa de reuniões do Devedores Anônimos em São Paulo, um grupo de apoio a pessoas que sofrem de compulsão pelas compras (oniomania).

Em meus dias de guri, isso tinha outro nome. Quem assim se portava, só por eufemismo chamávamos de irresponsável. Na verdade, era um caloteiro. E merecia ser punido. Hoje é um oniômano. E faz terapia. Desde 2010 – prossegue o jornal - três grupos desse tipo foram abertos na capital paulista, na Grande São Paulo e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o grupo mais antigo, que funciona nos Jardins desde 1998, aumentou o número de encontros de um para dois por semana desde janeiro.

Pelo jeito, ao lado dos equoterapeutas e bototerapeutas, temos agora os oniomanoterapeutas. Nestes dias de crédito fácil, a profissão tem futuro. Me pergunto como serão as reuniões desses grupos. Vai ver que discutem as melhores fórmulas de como rolar a dívida, de banco a banco, de cartão a cartão.

Ainda não decidi se sou honesto ou bobalhão. Nunca tive dívidas em minha vida. Jamais comprei além do que poderia pagar. Deve ser herança de meu pai. Camponês, se horrorizava ante a idéia de dever algo para alguém. É fácil. Basta não pretender dar passo maior que as pernas. Isso de comprar o que não se pode comprar está minando a economia de muitos países. Só vim a usar cartão de crédito há poucos anos. E isso porque hoje é impossível viajar sem cartão, mesmo que você tenha dinheiro a granel.

Foi esta mania que gerou a chamada crise do subprime nos Estados Unidos, desencadeada em 2006. Segundo leio na rede, os subprimes incluíam desde empréstimos hipotecários até cartões de crédito e aluguel de carros, e eram concedidos, nos Estados Unidos, a clientes sem comprovação de renda e com histórico ruim de crédito. Eram os chamados clientes ninja (no income, no job, no assets): sem renda, sem emprego, sem patrimônio. Essas dívidas só eram honradas mediante sucessivas “rolagens”, o que foi possível enquanto o preço dos imóveis permaneceu em alta.

Quando os juros dispararam nos Estados Unidos - com a conseqüente queda do preço dos imóveis - houve inadimplência em massa. O que arrastou vários bancos para uma situação de insolvência, repercutindo fortemente nas bolsas de valores de todo o mundo.

A mesma mania está na origem da crise espanhola, o que fez muita gente devolver imóveis de alto preço que haviam comprado sem ter lastro. Sem ser economista, suponho que o mesmo fator terá gerado a crise na Grécia. O Brasil vai em bom caminho. Com São Paulo na liderança. Abençoado país este nosso. O que no Primeiro Mundo gera crise econômica, no Brasil é tratado como doença passível de terapia.

Não por acaso São Paulo abriga três grupos de Devedores Anônimos. Confesso jamais ter visto cidade onde tanta gente vive de aparências. Foram picados pela mosca azul, como diria o Machadinho. Status oblige. Conheci não poucos casos de perto. O mais emblemático foi o de um vizinho de bairro, em cujas festas caí meio por acaso. Era pessoa culta e generosa, gostava de gente em torno a si e de cozinhar para a alegria de seus convivas. Vivia confortavelmente em um apartamento de uns 150 m2, onde pelo menos uma vez por mês reunia seu povo. Sua mosca azul terá sido uma belíssima baiana. Que um dia deve ter-lhe sussurrado: quem sabe a gente compra uma casa em Alphaville?

Comprou. Agora havia mais espaço para os convivas, que podiam dançar em torno à piscina. Várias vezes fui convidado para tais festas, o que me gerava um problema. Não tenho carro e acabava pagando uns 300 reais de táxi. Ou seja: comer de graça chez mon hôte me custava bem mais caro do que pagar uma refeição em um bom restaurante. Mesmo assim, eu rumava a Barueri, que mais não fosse pelo prazer da festa.

Mon hôte era obcecado pelas cabrochas. “Foi por elas que vim para o Brasil”, costumava dizer. Suas festas eram sempre ornadas por negras tão lindas quanto sua companheira. Contratava garçons e banda de música. Mas o que é bom dura pouco, dizem as gentes.

Sufocado por dívidas, sem poder sequer pagar o condomínio, recorreu aos convivas. Fui sensível a seu drama. Em um primeiro momento, pensei em contribuir com cinco mil reais, a fundo perdido, em memória daqueles dias de festa. Na caminhada rumo ao banco, pensei melhor: peraí, eu não vivo em condomínio de luxo, não tenho carro nem piscina. Quem precisa de ajuda sou eu. Minha generosidade diminuiu para mil reais. Na hora de depositá-los, pensei mais uma vez: tampouco tenho condições de dar festas para 50 ou 60 pessoas. Repassei apenas 500 reais.

Pelo que sei, boa parte de seus convivas dele se afastaram. Se não todos. Houve quem contribuísse com remédios, mas não com dinheiro para a vida farta. Ele deve ter considerado que, na hora do infortúnio, os “amigos” se revelam como são e desaparecem. Ocorre que fere o bom senso pedir ajuda para viver em condomínio de luxo a pessoas que não têm condições de viver em condomínio de luxo. E que talvez neles jamais viveriam, mesmo que as tivessem.

O mal parece ser universal. Na rica Suécia, me dizia um político: “Todo mundo é rico aqui, não é verdade? Todos têm carro, casa secundária, iate ou veleiro, não é verdade? Não é. Todos estão pendurados em empréstimos que jamais poderão pagar”.

Não tenho idéia do que foi feito deste – como direi? – oniômano. Certamente não estará freqüentando grupos de devedores anônimos, não era homem de iludir-se com modismos. Tampouco tinha contatos com o poder, a ponto de viver de corrupção. Homem de saúde frágil e bastante além del mezzo del cammin di nostra vita, deve ter encontrado sua selva escura. Se é que ainda vive.

Eles são legião em São Paulo. O crédito fácil lhes dá uma ilusão de riqueza. Pelo menos por alguns anos. Até que a fonte seca. A imprensa fala em consumo compulsivo. Vá lá! Mas no fundo, no fundo mesmo, o que os impele a gastos além das posses é a maldita mania de status.

Deste mal não sofro. Nunca me ative a bens. Respeito o homem rico que vive com inteligência, mas estes são raros. O que mais grassa neste mundinho são os novos ricos, que vivem de aparências. As posses que uma pessoa possa possuir não me impressionam. Mas me rendo a uma virtude cada vez mais rara, a cultura. Virtude que não exige muito dinheiro. Mas é cada vez mais escassa. Meu anfitrião era homem culto. Mas deixou-se picar pela mosca azul. Ou talvez pelas cabrochas.

Clínicas privadas estão tratando a nova “doença” junto com a dependência química. Ora, dependência química é orgânica, ataca o organismo do doente. Consumismo depende de volição. Não ter vontade suficiente para deixar de consumir o que não se pode consumir, não me parece ser doença, mas falta de caráter.

Mas, obviamente, tratar falta de caráter como doença é sempre mais civilizado.

Julho 23, 2012


 

 

SOBRE OS PRAZERES DA TEOLOGIA

 

Pelo jeito, deixei um conterrâneo inquieto em crônica passada. Um leitor me pergunta:

— Janer, uma dúvida me inquieta: Como alguém que não crê em Deus se motiva a dedicar tanto tempo nas coisas Dele? É a luta por alguma causa beirando como que o fervor religioso ao praticar o proselitismo ou a inquietação da alma que põe à prova as suas convicções? Será que alguém que não acredita em Papai Noel demoraria tanto tempo estudando sobre o mesmo e tentando mostrar a uma singela criança que ele não existe?

Bom, eu considero que sem estudar história das religiões é difícil entender o mundo. E particularmente o Ocidente, que foi formatado pelo cristianismo. Respiramos cristianismo todos os dias, toda a hora. A ética e cultura ocidentais, instituições e ensino derivam do cristianismo. Há muito defendo a idéia de que história das religiões deveria ser ensinada a partir do secundário. Mas atenção: história das religiões e não religião. Como as religiões são milhares, melhor ater-se à história do judaísmo, cristianismo e mesmo a do Islã, cada vez mais influente no mundo atual e inclusive no Ocidente.

Papai Noel é uma lenda que não teve influência alguma. Hoje só serve para estimular o consumo e fazer girar a roda do comércio. Santa Klaus não impõe uma ética nem influencia legislações. É apenas um penduricalho do Ocidente.

Gosto de ler a Bíblia. Tenho treze em minha biblioteca, para comparar traduções. Desde a Tanak judia à Bíblia de Jerusalém, que se pretende uma tradução ecumênica. Aí se pode ver como os textos bíblicos foram adaptados conforme os interesses sacerdotais ou políticos da época. Cada um puxa brasa para seu assado. Entre minhas bíblias, tenho inclusive uma nítidamente marxista, publicada pelas edições Paulinas. Com imprimatur de Dom Vital J. G. Wilderink, bispo de Itaguaí. Os tradutores mexeram de tal modo no texto, que a transformaram num panfleto marxista.

Adoro ler teologia, ver as acrobacias e os arabescos colaterais que os teólogos fizeram para justificar o injustificável. Se há algo que me diverte na história da Igreja Católica, são os dogmas. Verdades reveladas por deus, são imutáveis e definitivos. Justo por isto nos causam tanta perplexidade.

Os dogmas são mais de quarenta e os católicos em geral não os conhecem. Um dos que gosto de enunciar é o da transubstanciação da carne, promulgado oficialmente em 1551 pelo Concílio de Trento. Os católicos, de modo geral, acreditam que o pão e vinho consagrados durante a missa são símbolos do corpo e sangue de Cristo. Ora, quem assim pensar, está cometendo heresia. Para o Magistério da Igreja, transubstanciação significa a conversão literal do pão e do vinho na carne e no sangue de Cristo. Sei que é duro, para um homem contemporâneo, admitir que a cada comunhão está praticando um ato de canibalismo. Mas dogma é dogma e estamos conversados. Todo católico é um hematófago profissional.

Outro dogma divertido é o da Santíssima Trindade. Javé, o deus ancestral dos judeus, passa a partilhar sua divindade com o Jesus dos cristãos e mais um terceiro personagem imaterial, o Espírito Santo, que os textos joaninos preferem chamar de Paráclito. Mas o deus hebraico, nos textos antigos, não tem filho algum. Quem reivindica essa paternidade - à revelia do pai, diga-se de passagem – é o Cristo. O feroz Javé assume então a face de um pai amoroso. Ocorre que aí já temos dois deuses. Isso sem falar no Espírito, o ruah hebraico, que pode ser traduzido como ar em movimento, hálito ou vento. De onde viria talvez o terceiro elemento da deidade.

Para Harold Bloom, em seu excelente Jesus e Javé, a unificação destes três em um só, isto é, o dogma da Trindade, “sempre constituiu a linha crucial de defesa da Igreja contra a imputação judaica e islâmica de que o cristianismo não é uma religião monoteísta”. É um achado da Igreja, saliente-se, pois a palavra trindade não consta da Bíblia. O máximo que encontramos é Javé falando no plural, ou Paulo apresentando Jesus e o Espírito como intimamente ligados a Deus, indicando assim que, na Divindade, Deus, Jesus e o Espírito formam uma unidade. Tudo isto para fugir a qualquer semelhança com as tríades divinas das religiões pagãs, chupadas pela Igreja Católica, em que um deus-pai, uma deusa-mãe e um filho formam uma família de deuses, sendo muitas vezes mencionados juntos, como Osíris, Isis e Hórus no Egito. Ou o deus lunar, a deusa solar e a estrela Vênus na Arábia. Ou ainda Brama, Rudra e Vixnu da Índia.

É por pressão do imperador Constantino (306-337) que se cria nessa época o dogma da Santíssima Trindade. Constantino precisava de um deus forte para seu império e adotou a nascente religião. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, com a história do Pai, Filho e Espírito Santo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um. O aparelho da Gradiente sumiu do mercado. O três-em-um do Atanásio continua tendo muita demanda. Mas isto já é outra história.

Outra questão divertida é a do filioque.Tivessem os teólogos se contentado com este malabarismo conceitual para construir um sistema religioso monolítico, até que o dogma da Trindade não seria de difícil intelecção. Ocorre que os teólogos são minudentes e uma complicada peripécia iria provocar uma violenta cisão na cristandade em 1054.

Segundo o Evangelho de João, o Espírito Santo procede do Pai. Assim o entendeu o Credo niceno-constantinopolitano, que no ano de 381 já repetia esta profissão de fé. Sabe-se lá porque cargas d'água, os latinos acrescentaram ao filio do Credo a partícula que, professando que o Espírito procede do Pai e do Filho. Os cristãos orientais acusaram então os latinos de haver alterado os símbolos da fé. Em 444, Cirilo da Alexandria afirmava que o “Espírito é o Espírito de Deus Pai e, ao mesmo tempo, Espírito do Filho, saindo substancialmente de ambos simultaneamente, isto é, derramado pelo Pai a partir do Filho”. São inúmeros os teólogos que eram do mesmo aviso. Mas os cristãos gregos não conseguiam aceitar a polêmica conjunção, o e (em latim, que. Daí filioque).

O caldo engrossou quando o Concílio de Toledo, em 589, oficializou o símbolo da fé com o filioque, e considerou anátema a recusa da crença de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Não bastasse o absurdo conceito do três-em-um - inteligível se levamos em conta a preocupação de fugir ao politeísmo - discutia-se agora a relação de um com os outros dois. Pensamento dogmático é assim mesmo.

O debate percorreu os séculos. As comunidades se cindiram em 1054 e até hoje não chegaram um acordo sobre esta questão literalmente bizantina. Ainda recentemente, em 1995, João Paulo II tentava esclarecer a questão do filioque com o patriarca Bartolomeu I, numa tentativa de melhorar as relações com os orientais. Daí se originou a expressão “questões bizantinas. Isto é, discussão de sutilezas inúteis. Inúteis, mas partiram a Igreja em dois no início do primeiro milênio.

Os ateus são pessoas que lêem muito sobre religião. O crente crê e basta. O ateu procura entender. Não por acaso, a mais reputada história do cristianismo, em sete volumes, foi escrita por um ateu. Em História das Origens do Cristianismo, Ernest Renan traça o percurso da triunfante seita dissidente do judaísmo, desde Cristo até o reinado de Constantino, que “inverteu os papéis, e fez do mais livre e espontâneo religioso um culto oficial, sujeito ao Estado e não já perseguido, mas perseguidor”.

Não satisfeito, Renan escreveu ainda uma colossal história do judaísmo em outros sete volumes. Não imagine o leitor que Renan, sendo ateu, seja hostil ao cristianismo. Pelo contrário, é fascinado pela figura humana do Cristo, e sua Vida de Jesus - primeiro volume da história do cristianismo - hoje é um clássico para quem queira entender a trajetória do nazareno. Renan era tão fascinado pelo Cristo a ponto de sua obra ter sido incluída no Index Prohibitorum da Igreja Romana. Toda pessoa fascinada pelo Cristo sempre vai bater de frente com os papistas.

Nunca fiz proselitismo, jamais convidei alguém a participar de minha visão de mundo. Ser ateu exige uma fibra que muitos não possuem. O cristão se porta com honestidade para merecer a recompensa eterna. Nós somos honestos sem esperança de recompensa alguma. Não nos apoiamos em bengalas. Na hora de morrer, não pedimos água à nenhuma divindade. Isto não é para todos.

Mas me reservo o direito de fazer perguntas. Exerço apenas o sagrado direito da expressão de pensamento, hoje consagrado em todas as democracias do Ocidente.

Julho 25, 2012


 

 

FÉ REMOVE MENSALÃO

 

Seguidamente, leitores me pedem opinião sobre candidatos. Ora, a vida me ensinou que é mais seguro opinar sobre o bóson de Higgs do que sobre um candidato. O sistema eleitoral brasileiro é falho, somos levados a votar em pessoas que desconhecemos. Voto distrital que é bom sempre é defendido pelos políticos, mas jamais aprovado. Políticos sabem, por instinto, que não é bom ser conhecido de perto.

Político, por definição, é um homem que mente. As regras do jogo o impelem necessariamente a mentir. O que importa é arrebanhar votos. Político diz o que cada platéia pede. E omite tudo o que cada platéia rejeita. Se não mente por intenção, mente por omissão. Se não mente hoje, mentirá amanhã. Políticos pertencem a partidos. Precisam seguir a política de seus partidos, mesmo que dela discordem. Se o partido decide fazer coligação com um canalha, o candidato tem de aderir ao canalha. Vimos isto recentemente, com todas as letras, o impoluto Lula abraçando o malvado Maluf, procurado em todos os países – menos no Brasil – pela Interpol. Vimos também seu delfim para a prefeitura paulistana, o tal de Haddad que quase ninguém conhece, tendo de engolir a ignomínia.

Faz mais de vinte anos que não voto. Meu último voto, confesso sem pejo algum, eu o dei a Collor. Não por seus belos olhos. Mas porque o outro candidato era Lula. Hoje, se ainda votasse, entre Lula e Maluf, votaria no “esforçado filho do imigrante árabe”, como já foi chamado. No que, suponho, não seria reprovado por nenhum petista. Afinal, Maluf hoje é unha e carne com Lula.

Há quem julgue que o PT tem origens operárias. Outro dia, encontrei na rua meu urologista predileto – aquele das leituras teológicas – e ele me perguntou:

— Sabias onde o PT foi fundado?

Sabia. Foi em um colégio de elite de meu bairro, o Sion. Onde estudou a aristocrática Marta Teresa Smith de Vasconcelos Suplicy. Meu urologista imaginava que fosse num sindicato do ABC, como muitos imaginam. PT nada tem a ver com trabalhador. Tem a palavrinha na sigla por devoção a um mito do século XIX, o de que a redenção da humanidade residiria na classe proletária. Nunca residiu. O século passado o demonstrou sobejamente.

Antes mesmo de o PT existir, eu denunciava o PT. Explico. O PT nasceu em 1980. Ora, desde 75, quando colunista da Folha da Manhã, em Porto Alegre, eu desfechava minhas baterias contra senhores como Marco Aurélio Garcia, Tarso Genro, Flávio Koutzii, Luiz Pilla Vares, os pais fundadores do partido no Rio Grande do Sul. Sem falar no que escrevi contra a ideologia que os alimentava. Contra o Tarso, o que escrevi daria uma pequena antologia. Que eram todos comunistas, até as pedras da Rua da Praia sabiam. Mas ai de quem dissesse que eram comunistas! Era um infame delator, um reles dedo-duro. Em pleno regime militar, ser comunista servia como escudo protetor.

Entendo que um adolescente, lá pelos anos 80, votasse no PT. Um jovem ainda não teve tempo de ler o necessário para visualizar o DNA do partido. O PT é filho de uma partouse entre a Igreja Católica e os diversos grupos comunistas e anarquistas que vicejavam no Brasil. Conseguiu consolidar-se uma década antes da queda do Muro. Tivesse surgido depois dos anos 90, não teria cacife para chegar ao poder.

Que pobres diabos que se beneficiam de esmolas estatais votem no PT, isto também entendo. O que não se entende é ver pessoas adultas e bem informadas, intelectuais, funcionários públicos e professores universitários votando em um partido que nasce obsoleto, em um candidato tosco e semi-analfabeto. Pior ainda, que ostenta como virtude sua falta de instrução. Verdade que desde fins do século XIX alimentou-se o mito da salvação pelo proletariado. Ora, os eleitores de hoje tiveram mais de um século para constatar que proletários não salvam ninguém.

O PT nasceu no Estado mais politizado do país, embalado pela USP e pela Igreja. Por essa mesma USP que foi a grande difusora do marxismo no Brasil e por essa mesma Igreja que o adotou através da sedizente Teologia da Libertação. A eleição de Lula, apoiada pelas elites intelectuais do país em pleno século XXI, significou que estas elites ainda vivem espiritualmente no século XIX.

Mesmo assim, certa vez dei meu voto ao PT. Não que vote em partidos. Nas raras vezes em que votei, votei em pessoas. Nos anos 70, havia em Porto Alegre um engraxate, uma dessas figuras que lê sem método algum, o que não era incomum naqueles anos. Imbuído de um marxismo vulgar misturado a certas idéias anarquistas, tinha uma cadeira na praça da Alfândega. Enquanto lustrava sapatos, discorria sobre o homem e o mundo. Resolveu candidatar-se a vereador. Pelo PT. Considerei que se sentiria melhor sentado em uma curul na Câmara Municipal do que engraxando ajoelhado ante sua cadeira na praça.

Votei nele. Foi eleito. Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. O poder subiu-lhe à cabeça. Algumas semanas depois, já andava caçando empregadinhas na rua, em seu carro funcional. Morreu de forma infame o pobre diabo, esfaqueado em uma briga com um seu vizinho. Descobri então que, em se tratando de política, nem em engraxate se pode confiar.

Nos últimos anos, nutri simpatias por um deputado federal paranaense, eleito pelo PSDB. Em seus pronunciamentos, era sempre objetivo, correto, preciso, sem jamais apelar ao bla-bla-blá de políticos. Se um dia voltasse a votar, pensei, tenho um nome. Esse homem é honesto.

Era. Hoje está flertando com o PT. Nada como o tempo para ensinar. Ainda bem que havia tomado a decisão de não votar. Se houvesse votado neste senhor, hoje estaria envergonhado de ter sido enganado como uma criancinha depois de velho. Político, quando não faz na entrada, faz na saída.

Os franceses fazem uma distinção entre politique politique e politique politicienne. Por politique politique, entende-se a grande política, a administração da polis. Por politicienne, a pequena política, a politicagem. Ontem, zapeando no Facebook, encontrei uma conclamação a participar de política. Não da politique, mas da politicienne.

Alguém aventou: política é sinal de corrupção. A interlocutora que teclava do outro lado reagiu: “é esse o senso comum que a mídia com muita competência, faz as pessoas acreditarem, que nenhum político presta, daí os corruptos podem fazer o que lhes der na cabeça e os ignorantes políticos permitem isso com essa posição. Então indiretamente quem não se envolve em política também, é responsável por toda essa lama de corrupção que felizmente, não são todos os políticos que se envolvem não”.

Tomado de um espírito de porco que às vezes me acomete nas madrugadas, decidi divertir-me um pouco. Desconfiei que se tratava de mensagem de petista. Não deu outra. Militante se queixando da mídia, só podia ser petista. Mídia era bom quando denunciava as corrupções do Sarney, Collor, quando denunciava o plano real. Quando denuncia as corrupções do PT, a mídia vira burguesa. Lá pela meia-noite, decidi provocar:

— Não é bem que nenhum político preste. E sim que nenhum político do PT presta. Os outros, de modo geral, também não prestam. De vez em quando se salva algum. Mas uma só andorinha não dá quorum.

A resposta veio de bate-pronto:

— Os politicos do PT sao os que prestam os outros sao uma corja que por muitos anos depenaram esse pais, só nao ve isso quem é muito ignorante mesmo ou então que é igual a eles. mas quem ta na “sorbonne” não ve nada disso só ve e ouve a mídia burguesa e aquilo que quer ver e ouvir,portanto sua opinião pra mim não vale nada.

Não sei o que me causou mais perplexidade. Se ouvir dizer que “os politicos do PT sao os que prestam” ou ouvir falar em mídia burguesa. Burguesia é palavrinha que hoje só alguns desvairados ao estilo de Luciana Genro ou demais militantes do PSOL ainda usam.

— Ok! – respondi -. Então por favor cite um só deputado do PT que condene os mensaleiros. Ou você é daqueles militantes que acham que o mensalão é criação da imprensa? Você fala em mídia burguesa. Ora, burguesia é palavra que morreu com o muro de Berlim. Nem o Zé Dirceu ousaria pronunciar hoje a palavrinha.

A reação foi surpreendente:

— vc é a própria figura da burguesia, e não vou te citar deputado do pt contra o mensalão, porque todos que são inteligentes, sabem bem que é mesmo um produto da mídia e que sempre foi usado por governos anteriores e ninguém falava nada.O próprio Roberto Geferson ja reconheceu que o mensalão foi um bom produto de marketing.

Essa agora! Mensalão é produto da mídia burguesa. A gente vive e não ouve tudo. Aventei que até Lula, o líder máximo das hostes petistas, já havia pedido desculpas pelo mensalão. E citei seu discurso de agosto de 2005:

“Queria, neste final, dizer ao povo brasileiro que eu não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas, porque o povo brasileiro, que tem esperança, que acredita no Brasil e que sonha com um Brasil com economia forte, com crescimento econômico e distribuição de renda, não pode, em momento algum, estar satisfeito com a situação que o nosso país está vivendo”.

A moça, que afinal de contas não era tão moça assim, que o diga seu vocabulário pré 1989, reagiu violentamente:

— Vi esse video agora e vi também a entrevista na época. Se vc fosse inteligente ou bem intencionado, saberia interpretar o pedido de desculpas do nosso presidente, que não tem nada a ver com essa coisa toda, mas ja vi que vc só sabe ver, ouvir e interpretar o que interessa à tua ideologia, deve ser isso que a “sorbonne” te ensinou né, fazer o que?

Isto é, um pedido óbvio de desculpas pelas falcatruas do PT exige agora um hermeneuta. Precisa ser interpretado. Suponho que seja inclusive esta a posição de Lula. Pois, apesar de ter se desculpado pelo mensalão há sete anos, hoje tem afirmado que o mensalão nunca existiu e é produto da mídia. O analfabeto-mór confia na falta de memória dos brasileiros. Imbuído do espírito de porco que me acometera na madrugada, perguntei à petista atroz de que Lula se desculpava. Estava pedindo desculpas à nação por algum verbo mal conjugado ou plural mal flexionado? Que me dissesse então de que ele se desculpava.

— Não vou mais perder meu tempo com alguém que além de desagradável, é muito ignorante, que não sabe interpretar o que le, e ainda: se acha o tal , não aceita que um trabalhador seja presidente e usa a palavra MENSALÃO com tanta vontade que deve ser um dos defensores do mesmo nos governos anteriores. Prefiro um LULA que não conjugue verbos com tanta facilidade do que um BURGUES, NEOLIBERAL e REACIONÁRIO ... ah ainda bem que não somos amigos nem aqui no face.... só mais uma coisa: se quer saber do que o LULA se desculpou, procure uma professora que o ensine a interpretar!!!!!

Acontece que, em meio à madrugada, eu não tinha professora ao alcance da mão. Mas aquele “burguês, neoliberal e reacionário” me rejuvenesceu. Transportou-me aos anos 70, quando eram os palavrões ideológicos prediletos das esquerdas. Menos o neoliberal, que surgiu mais recentemente.

Daqui a uma semana, começa a ser julgado o mensalão que nunca existiu. O PT confia na fé de seus militantes. Só mesmo uma fé, firme e cega, para remover mensalões.

Julho 27, 2012


 

 

ONDE ME DESCOBRI TRADUTOR

 

A vida é uma caixinha de surpresas. Em meus dias de piá no Ponche Verde, jamais imaginaria que um dia seria tradutor. E muito menos que minha primeira tradução seria do sueco. (As traduções do francês e do espanhol viriam mais adiante). Aliás, naqueles dias, nem imaginava que a Suécia existia. E que iria me atrair poderosamente, a ponto de um outro dia, bem mais tarde, fazer minhas malas e ir morar no paraíso dos Sveas.

Só mesmo sendo jovem para fazer a loucura que fiz. Deixei em Madri, chorando, a mulher que adorava, e rumei ao norte. Ela, também chorando, rumava ao sul. Tenho certeza que hoje não teria forças para repetir tal insanidade. Eu conhecera Estocolmo há uns vinte dias. Caí lá em dezembro, em plena noite nórdica. Quatro horas da tarde, noite profunda. Me senti em Plutão e era em Plutão queria aterrissar. Eu fugia do Brasil e do Terceiro Mundo, do carnaval e do futebol, da miséria e do subdesenvolvimento. Henry Miller dizia que os verdadeiros problemas humanos só surgem depois de resolvidos os problemas do estômago. Queria conhecer aquela sociedade onde os problemas do estômago já haviam sido resolvidos.

Fui para não voltar. Estava irritado com o Brasil e desejoso de paraíso. Não que pretendesse abandonar a mulher que adorava. Pensava em levá-la para lá mais tarde, onde viveríamos juntos os verdadeiros problemas da condição humana. Mal cheguei, minha primeira providência foi encontrar um curso de sueco. Verdade que todo sueco fala inglês. Mas meu inglês era escasso. E eu queria falar a língua local.

Mas as razões que nos impelem a viajar nem sempre são as que alegamos como motivo de partida. Conscientemente, eu fugia de um continente militarizado, do Brasil, do samba e da miséria. As gaúchas recém começavam a libertar-se dos preconceitos de Roma, e eu tinha pressa. Sem falar que, na época, o mito sexual por excelência eram as “adoráveis louras nórdicas”. Quando o sol cai por trás dos fiordes, dizia uma atriz, só nos resta ir para casa e fazer amor. É para lá que eu vou, pensou este ingênuo que vos escreve. Sim, ingênuo. Pois as suecas eram bem mais inacessíveis do que insinuavam os pacotes turísticos. Tanto que minha primeira “sueca”, de sueca nada tinha. Era uma brava cidadã soviética, de Ashkhabad, no Turquimenistão.

Tinha pômulos asiáticos e deles muito se orgulhava. Como língua comum tínhamos o sueco, do qual conhecíamos umas dez palavras. “Jag, vacker” - me confessava Gysel, indicando seu rosto. “Eu, bonita”. Acontece que eu partira em busca das louras vikings. “Du vacker i Ashkhabad”, respondi. “Tu bonita em Ashkhabad”. “Jag, mycket exotisk”, insistia a camarada. “Eu, muito exótica”. Para conversar, ela usava um dicionário russo/sueco e eu conferia em um inglês/sueco. Precisávamos de uma palavra vital antes de qualquer avanço. Que em sueco era sluta e em russo заканчивать. Em inglês, finish.

Em suma, acabei partilhando do gosto dos Sveas - que assim se chama aquela tribo que erigiu a Suécia - pelos rostos orientais. Gysel casou-se com um sueco. Não que lhe agradassem os branquelas do Norte. Ocorre que faria qualquer sacrifício para jamais voltar a seu universo soviético.

A adorável loura nórdica surgiu bem mais tarde, afinal elas não dão em cachos à beira da estrada, como imaginam os latinos. Encontrei-a em uma festa, num daqueles verões em que o sol jamais se põe e os suecos correm desvairados pelos florestas. A noite não caía, o dia não amanhecia e o vinho jamais findava. Olhando de hoje, vejo tudo como sonho. Naquela noite, corri nu atrás de uma sueca nua, numa noite branca como o dia, pelos bosques dos hiperbóreos. Deve ter sido sonho mesmo.

Se bem me lembro, naquela noite que não era noite, ensinei os nórdicos a dançar samba, logo eu que detesto samba, o que deve dar uma vaga idéia de meu estado etílico. Summa av kardemuma, como dizem os suecos: acabamos coincidindo na mesma cama. Amor? Nada disso, era puro porre. Em todo caso, daquela coincidência - como direi? - quase geográfica, resultou uma cálida amizade que embalou meus dias junto ao Ártico. Lena, a quem eu chamava de Lena Lena – lena significa doce em sueco – iniciou-me nos melhores autores suecos, e a ela devo minha descoberta de Karin Boye e a tradução de Kallocain ao brasileiro.

Desta estada, resultou um livro sobre a Suécia, O Paraíso Sexual Democrata – o primeiro a ser escrito por um jornalista brasileiro - e mais duas traduções de autores suecos, inéditos no Brasil. Pelo que sei, sou o primeiro tradutor no Brasil a traduzir diretamente do sueco. Traduções anteriores de Pär Lagerkvist e Selma Lagerlöff foram feitas a partir do inglês.

Há viagens e viagens. Conheço não pouca gente que gosta de conhecer culturas primitivas, bugres em estado selvagem. São em geral pessoas que vivem em países civilizados, ou que imitam as que vivem em países civilizados. De minha parte, prefiro a civilização. Não vejo maior encanto em tais viagens. Até já fiz uma. Em dezembro de 1975, estive no Saara argelino, mais precisamente em El Hoggar, onde vaguei por quinze dias pelo deserto, guiado por tuaregues e harratines.

Foi uma viagem fascinante, devo confessar. Nas noites ao relento nas montanhas, tomei um porre de estrelas e quase fiquei surdo com o zumbido estridente do silêncio. Ouvir os tuaregues contando histórias em torno à fogueira, em meio a uma noite gélida, é também algo que não se esquece. Diria que as viagens que mais me encantaram foram esta e mais duas navegando pelos fiordes noruegueses. Mas do Assekrem só me restaram o silêncio das noites geladas, os vultos embuçados dos tuaregues e as silhuetas das montanhas. Nada trouxe da cultura tuaregue, muito menos de sua língua, o tamahak, que já nem falam.

Quando viajamos à civilização, o legado é outro. Da Suécia, junto com as paisagens nevadas e as noites brancas, trouxe uma língua, trouxe uma cultura distinta, mais um pouco da literatura dos Sveas. Lá, me descobri como escritor. Eu havia lido pelo menos uns quinze livros sobre o país antes de partir. Mal comecei a juntar palavra com palavra com palavra, fui descobrindo um país que não me fora mostrado pelos autores que havia lido.

São estranhos os fatores que nos levam para lá ou para cá. Meus desejos de deserto começaram lá perto do Círculo Polar Ártico. Em um exercício de vocabulário de uma aula de sueco, soube que tinha como colega uma författarina. Isto é, uma escritora. Era uma suissesse elegante e charmosa, e chamava-se Federica de Cesco. (Em 2008, saiu um filme sobre sua vida, Der rote Seidenschal). Quantos livros havia escrito? Ah - me respondeu com certo enfado - mais de cinqüenta.

Fiquei com um pé atrás. Era bastante jovem, mais de cinqüenta livros me parecia um exagero. Nunca havia visto uma författarina de perto, muito menos uma que tivesse escrito meia centena de livros. Passei no apartamento dela. Em uns dois metros de estante, ela tinha algumas das traduções de alguns de seus cinqüenta livros. Meu ceticismo caiu por terra. Perguntei qual considerava o mais importante deles.

— Ah! Só escrevo best-sellers. Nada de importante. Mas gosto muito deste aqui.

Passou-me um livro sobre El Hoggar, o país dos homens azuis. Falava da geografia dos tuaregues e harratines que habitam o extremo sul da Argélia. Havia na obra um certo deslumbramento de europeu em visita ao Terceiro Mundo. Mesmo assim, o livro incitava à viagem. O que me espantou naquele momento foi encontrar alguém que vivia de escrever, escrevia muito e não dava importância alguma ao que escrevia. Estava em Estocolmo paga por sua editora, para criar uma novela ambientada em aeroportos internacionais. Federica me deixava pasmo. A ela devo minha opção pela escritura. Se esta moça - pensei com meus botões - escreveu mais de cinqüenta livros e acha que só escreve bobagens, vou escrever pelo menos um, que não considero bobagem. Assim surgiu O Paraíso Sexual Democrata.

Assim surgiu também o tradutor. Para preservar – e testar – meu sueco, mergulhei na tradução do livro. Brindo os leitores com a versão eletrônica de minha tradução de Kalocaína, editada pela ebooksbrasil, do infatigável difusor da boa literatura, o Teotonio Simões. O livro havia sido publicado em papel em 74, no Rio de Janeiro, pela Cia. Editora Americana. Mas a edição esgotou rapidamente e hoje a obra de Boye só pode ser encontrada em sebos, e olhe lá!

Um belo dia chegou o dia de adquirir juízo. Morei com um boliviano que me dizia: “Sos un boludo, che! En Brasil hay una mujer que te quiere. Que haces en esta tierra de hombres tristes?” Voltei.

Na tarde em que me despedi de Lena Lena em Arlanda, mais uma vez chorando, ela nem desconfiava que estava exportando para o Brasil um dos mais soberbos momentos da literatura universal.

Julho 30, 2012


 

 

KASHRUT, A COZINHA QUE DIVIDE

 

O judaísmo e o crucial problema das panelas - Comer, para mim, sempre foi um momento de comunhão. É quando confraternizamos com amigos ou mesmo pessoas que não são exatamente amigas. Os estadistas começam suas conversações com seus pares com um lauto jantar, para amaciá-los durante as conversações. Depois da bona-chira, tudo é negociável. A boa cozinha, teoricamente, une.

Mas nem sempre. Há uma certa culinária que divide. Falo da kashrut, a culinária judaica. Y a las pruebas me remito. Estou lendo o livro mais insano que já li em minhas seis décadas de caminhada. Casher na prática, do rabino Ezra Dayan. Já comentei, em crônicas passadas, a interdição judaica a misturar carnes com lacticínios. Baseados numa prescrição do Deuteronômio, que se repete no Êxodo, os judeus não misturam o leite com a carne. “Não cozerás um cabrito no leite de sua mãe”. A interdição diz respeito ao cabrito, mas o judaísmo rabínico a estendeu a tudo que se refere a carne e leite. Se ficassem os rabinos por aí... Mas não ficaram. A interdição atinge os utensílios em que se colocam lacticínios e carne.

— É proibido cozinhar leite numa panela onde já cozinhamos carne ou carne numa panela onde cozinhamos leite, independentemente de quanto tempo se passou de seu último uso. Portanto, deve se tomar o cuidado de ter em casa panelas específicas para carne e, outras, para leite, e é recomendável que sejam diferentes ou que estejam devidamente assinaladas.

— Se, por acaso, alguém cozinhar leite numa panela de carne, que foi usada para cozinhar carne nas últimas vinte e quatro horas, tudo ficará proibido, inclusive as panelas, a não ser que o volume de leite seja sessenta vezes maior que o da carne cozida nela anteriormente. Se não se sabe quanta carne havia, deve-se calcular sessenta vezes o volume do material da panela. Nesse caso, a panela é proibida para o cozimento de qualquer tipo de alimento, pois absorveu carne e leite que ficaram proibidos. Esta continuará proibida até que passe pela hag’alá (submersão em água fervente, capaz de fazer a panela expelir alimentos absorvidos). Contudo poderá ser vendida a um não-judeu.

— Se a panela de carne não foi usada para cozinhar carne nas últimas vinte e quatro horas, mesmo se foi usada para esquentar alimentos de carne neutros (parve), ou para alimentar alimentos de carne frios, o leite que for cozido nesta panela não ficará proibido, pois o sabor da carne que foi absorvido pela panela já se deteriorou e não tem mais a capacidade de proibir o leite que é cozido agora.Contudo, a panela ficou proibida pois agora tem carne e leite absorvidos nela. Esta proibição continua mesmo após vinte e quatro horas do incidente, e só terá fim quando for realizada hag’alá na panela.

— No caso de utensílios de cerâmica, a hag’alá não é eficaz e, portanto, não há como “casherizá-los”. Em caso de grande prejuízo, um rabino deve ser consultado, pois às vezes existe a possibilidade de permiti-los. De qualquer modo, será permitido vendê-los a um não-judeu.

— Se alguém começou a cozinhar leite numa panela de carne que não foi usada nas últimas vinte e quatro horas e, no meio do cozimento, teve conhecimento disso, deverá imediatamente despejar o leite numa panela de leite, pois o uso da panela de carne foi proibido para o leite. Neste caso, o leite permanece permitido, como foi explicado anteriormente.

— Uma panela de carne que foi coberta com uma tampa de uma panela de leite, ou ao contrário, se ambas estavam quentes, tudo fica proibido, a não ser que haja, no conteúdo da panela, sessenta vezes o volume da tampa. Isto, se a tampa foi usada, em cozimento de leite ou carne, nas últimas vinte e quatro horas.

Se não foi usada nas últimas vinte e quatro horas, a panela e a comida continuam permitidas, e a tampa se torna proibida, pois absorveu carne e leite. Contudo, há costumes entre os ashkenazim de proibir a comida e a panela também, principalmente quando a tampa tiver cavidades estreitas difíceis de serem limpas. Porém, se a comida tiver um volume sessenta vezes maior do que o lugar estreito que armazena resíduos ou, segundo outra opinião, do que o volume da tampa, continuará permitida.

— Se a panela estava fria e a tampa quente, e houve possibilidade de que alguns pingos caíram da tampa sobre a comida, esta deve ser descascada, quando possível. A panela e a tampa só ficam proibidas se havia umidade no lugar de contato entre elas.

— Se a panela estava quente e a tampa fria, se o vapor (que já se aqueceu acima de 45ºC) da comida começou a subir, tudo fica proibido, a não ser que a comida tenha um volume sessenta vezes maior do que o volume da tampa, e então, só a tampa ficará proibida.

— Se a tampa e a panela estavam frias ao se encostarem, deverão ser lavadas, e a comida continuará permitida.

— Se a tampa e a panela estavam limpas e secas ao se encostarem, e não continham nenhum alimento, continuam permitidas, mesmo se estavam quentes.

 

Pode um não judeu cozinhar para um judeu? - Antes de ir adiante: os caraítas, seita judaica dissidente, têm uma interpretação mais restrita ao “Não cozerás um cabrito no leite de sua mãe”. Se os rabinos entendem que falava da proibição de comer carne e leite juntas, os caraítas entendem estas palavras ao pé da letra. É somente quando se cozinha carne de cabrito que não se deve colocar nela leite de cabra ou queijo, manteiga ou creme de leite ou coalhada feita com leite de cabra. Nada impede a um caraíta comer carne de cabrito com leite de ovelha ou vaca. Só que isto vai gerar um problema com as panelas. Se antes se necessitava de duas, uma para o leite e outra para carne, agora serão necessárias panelas específicas para os diferentes tipos de carne e leite, de origem caprina, ovina ou bovina.

Volto à kashrut. Se ler teologia já é algo divertido, um tratado teológico-culinário é um dos sumos prazeres do espírito. Ezra Dayan é minucioso e não recua diante de possibilidade alguma do contato do leite com a carne. Como fica o problema de quem usa dentadura? É recomendável que tenha duas dentaduras, uma para o leite e outra para a carne. Mas o bom rabino é um poço de tolerância. Se é recomendável, “isto não é obrigatório”.

Não bastasse isto, há o problema do Bishul Acu’m, isto é, os alimentos cozidos por não-judeus. Pode um judeu comer comida feita por um não-judeu? O problema é complexo. Inúmeras são as prescrições do rabino. Me atenho a algumas.

— Mesmo se o não-judeu que cozinhou é nosso funcionário, como por exemplo, uma empregada doméstica, a comida também fica proibida. Contudo, para os ashkenazim, se existe a possibilidade de que os judeus, moradores daquela casa, tenham mexido no fogo durante o cozimento, a comida será permitida. Porém, esta situação somente era comum antigamente, quando se cozinhava com brasa. Hoje, com os fogões modernos, esta possibilidade é muito mais remota.

— Se o não-judeu está cozinhando na casa do judeu, para si próprio, mesmo para os ashkenazim a comida será proibida. Portanto, quando permitimos a um não-judeu cozinhar para si próprio, ele deverá fazê-lo em utensílios específicos para ele,pois, senão, estes ficarão proibidos para nós.

— Há lugares, como restaurantes, hotéis e salões de festas, onde um judeu liga o fogo e todo o resto do cozimento é feito por não-judeus. Para os ashkenazim, isto é válido, porém para os sefaradim, o correto é que o judeu participe também do cozimento.

— Para considerarmos que um alimento foi cozido por um judeu, este deve ter sido colocado por um judeu sobre o fogo, ou no forno, em lugar onde possa ser cozido, não bastando apenas acender o fogo. Este é o costume sefaradi.

— Os ashkenazim costumam considerar que basta o fogo ser aceso por um judeu e, portanto, mesmo que o não-judeu coloque a panela sobre o fogo e faça tudo o que for necessário para o cozimento, o alimento será permitido.

Não menos importante na culinária judaica é a intenção de quem cozinha. Se um não-judeu cozinhou sem querer cozinhar, passa. Mas se cozinhou querendo cozinhar, anátema seja.

— Quando o alimento foi cozido por um não-judeu, sem que este tivesse intenção alguma de cozinhar, o alimento não fica proibido. Portanto, se um não-judeu acendeu uma lareira com intenção de aquecer o ambiente, e dentro da lareira havia comida, e esta se cozinhou, não fica proibida. Porém, se o não-judeu tinha a intenção de cozinhar, mas não esta comida e sim outra, neste caso a comida do judeu ficará proibida. Portanto, se havia algo no forno e o não-judeu, sem saber, colocou sua comida e a cozinhou, e acabou cozinhando a comida do judeu junto, esta fica proibida.

A quantia cozinhada permissível vai depender também de proporções.

— Quando o judeu participa do cozimento, no início ou no final, nos seguintes casos, o alimento fica permitido: quando o não-judeu colocou uma panela ou uma carne sobre o fogo e, antes de atingir um terço do cozimento total, o judeu virou a carne ou remexeu na panela. Quando o judeu colocou a comida sobre o fogo, e o não-judeu terminou o cozimento, mesmo antes de ter atingido um terço do cozimento total, contanto que o não-judeu não tenha tirado a panela de sobre o fogo ou virado a carne.

Muito cuidado com os peixes. Peixes têm dois lados.

— Se um não-judeu fritou um peixe de um lado, e o judeu o virou e fritou o outro lado, o peixe fica proibido, pois um lado foi completamente cozido pelo não-judeu, e o lado que foi cozido pelo judeu, provavelmente absorveu da gordura e do sabor do lado proibido do peixe.

Mais ainda:

— Um alimento que atingiu um terço de seu cozimento e foi retirado de sobre o fogo e, depois foi recolocado sobre o fogo por um não-judeu, é permitido. Porém, se não atingiu um terço de seu cozimento, é proibido, mesmo se quem o retirou de sobre o fogo foi o não-judeu. Se há dúvida quanto ao nível de cozimento atingido, se alcançou ou não um terço, o alimento é permitido.

Atenção aos ovos:

— Ovos cozidos por não-judeus são proibidos. Contudo, se o judeu os cozinhar um pouco, não ficam mais proibidos, e não é necessário que os cozinhe um terço de seu cozimento.

E por que estas prescrições todas? Aqui vem o melhor:

– Nossos sábios proibiram alimentos cozidos por um não-judeu para evitar assim casamentos com não-judeus, pois, comendo a comida deles, criamos certa intimidade e isto pode levar a um casamento.

E depois chamam de racistas quem critica o judaísmo.

 

Pode um judeu comprar pão de um padeiro não-judeu? - No início de seu tratado teológico-culinário, o rabino Ezra Dayan considera que “a dieta alimentar judaica não só preserva o corpo e alma do judeu, mas também lhe serve como documento de identidade. A kashrut é algo que une o povo... Ao comer casher, estaremos unindo os integrantes do povo judeu e, quem sabe, aproximando a vinda do Mashiach”.

Que a kashrut apresse a vinda do Messias não é fácil de entender. Mas teria por função a elevação espiritual do ser humano: “aquele que ingere alimentos proibidos, está prejudicando a si mesmo e ao mundo, pois acaba causando estragos em sua alma e no mundo todo, sem levar em conta o fato de ter perdido a oportunidade de se elevar e estar mais próximo de sua meta. Nossos sábios comentam que aquele que ingere alimentos proibidos cria uma crosta em torno de seu coração, isolando-o das boas influências e de bons ensinamentos”.

Ou seja, leitor: eu, tu e todos nós, que não comemos casher, temos uma crosta no coração, prejudicamos a nós e ao mundo, causamos estragos em nossa alma e no mundo todo, estamos afastados das boas influências e de bons ensinamentos. Só pode elevar-se espiritualmente quem é judeu e segue as prescrições da kashrut. Mas se a kashrut une, por outro lado tem o sentido de separar. Continua o bom rabino:

— O pão é o alimento básico do ser humano e assim o foi durante o decorrer da história. Ele também provoca proximidade entre as pessoas, tanto em refeições conjuntas como em seu preparo e aquisição. Nossos sábios temeram que, ao comer o pão dos não-judeus,venhamos a nos juntar a eles e, fatalmente,venhamos a nos casar com suas filhas e, conseqüentemente, praticar idolatria. Portanto, proibiram o pão do não-judeu. Esta proibição foi decretada mesmo sobre o pão de um não-judeu que não tenha filhos ou que não pratica a idolatria.

— Há quem permita, aos ashkenazim, mesmo quando não há padeiro judeu, comprar pão de padeiro não-judeu, contanto que todos seus ingredientes sejam permitidos. Contudo, há quem proíba, se há padeiro judeu.

— Pão caseiro assado por um não-judeu é proibido, mesmo quando não há padeiro judeu, pois o motivo da proibição é evitar casamentos mistos e, se comer o pão dele, acabará comendo toda a refeição com ele, criando assim grande intimidade.

— Se o não-judeu acendeu o fogo e o judeu colocou o pão no forno, ou o judeu acendeu o fogo e o não-judeu colocou o pão no forno, ou se o não-judeu acendeu e colocou o pão e o judeu somente jogou um pedaço de madeira ao fogo, em todos os casos o pão é completamente permitido. Mesmo se tratando de um pão caseiro feito por um não-judeu.

— Se um forno foi usado duas vezes seguidas e, na primeira vez, um judeu jogou ao fogo uma madeira e, na segunda vez, não, se sobraram brasas do primeiro uso ao usá-lo pela segunda vez, este pão será permitido. Porém, se for usado uma terceira vez, já não será permitido, pois as brasas que restam no terceiro uso, já não são mais do primeiro fogo do qual o judeu participou ao usar a madeira. Isto vale para os sefaradim.

Quer dizer, não só não se pode comprar pão de não-judeu, como tampouco consumir pão feito por algum vizinho ou amigo não-judeu. Se é que judeu pode ter amigo não-judeu. No fundo, reserva de mercado. O mesmo acontece com o vinho.

 

Pode um judeu tomar vinho cuja garrafa foi chacoalhada por um não-judeu? - Não pode. Pode um vinho ser casher? Pode. Mas que é um vinho casher, se entre uva e uva não existe distinção alguma? Em La Loi de Moïse, Jean Soler explica. Se você pergunta a um enólogo israelita qual é sua definição de vinho casher, você arrisca de metê-lo em apuros. Ele lhe responderá sem dúvida, de forma evasiva, que não há verdadeiros critérios. Sabendo que a noção de vinho casher é desconhecida da Bíblia, você pensará talvez que seu embaraço provém disto. Mas se você insiste, ele dirá: “vinho casher é um vinho que foi feito, do começo ao fim,por judeus”.

Ou seja, mais uma reserva de mercado. Continua o autor de Casher na prática:

— A Torá nos proibiu de beber ou ter qualquer tipo de proveito de vinhos que foram usados na prática de idolatria. Este vinho é chamado de “yáin nessech”. Por causa disto, e também para criar uma cerca que nos proteja de casarmos com não-judeus, nossos sábios proibiram beber ou ter qualquer proveito de qualquer vinho que tenha sido feito ou tocado por não-judeus. Este vinho é chamado de “stam yenam”. Existem também motivos mais profundos para proibir “stam yenam” e, segundo a Cabalá, a pessoa que o bebe causa um grande mal à sua alma e põe em risco sua parte no Mundo Vindouro.

— Quando o não-judeu que fez ou tocou o vinho não for idólatra, apesar de ser proibido bebe este vinho, será permitido ter outro tipo de proveito dele. Portanto, se um muçulmano, por exemplo, tocou no vinho, não precisamos despejá-lo. Neste caso, se o não-judeu mexeu no vinho sem intenção, ou não sabia que era vinho, este será totalmente permitido.

Mas como o vinho se torna proibido? Explica o bom rabino:

— Uma garrafa fechada não fica proibida se tocada por um não-judeu, mesmo que este a tenha levantado e agitado.

— Mesmo uma garrafa aberta que foi levada por um não-judeu não se torna proibida se este não a agitou e não tocou diretamente no vinho. Porém, se o derramou, o vinho se tornará proibido. Com mais certeza, o vinho será permitido se o não-judeu apenas tocou na garrafa, por fora, sem movê-la.

Quer dizer, o problema é chacoalhar. Mas como saber se a garrafa foi ou não chacoalhada por um goy? Profundo mistério. No fundo, não só a produção mas a comercialização e manipulação do vinho deve ser reserva de mercado de judeus. Mas Ezra Dayan vai mais longe:

— Há pessoas elevadas que não tomam de um vinho que foi visto por não-judeus. Contudo, pela lei judaica, este vinho nos é permitido. Tratando-se de um não-judeu que não é idólatra, não há nenhuma razão para evitarmos esse vinho.

Ou seja, se você quiser tomar um vinho com as “pessoas elevadas”, só pondo uma espessa cortina entre você e as elevadas pessoas. Mas estas pessoas elevadas podem beber vinho com um muçulmano. Que, não por acaso, está proibido de beber vinho.

 

Pode o cachorro de um judeu comer a mesma comida de um cachorro de um não-judeu? - Já vão longe estas considerações sobre a culinária kashrut, e isso que estou resumindo. O livro do rabino Ezra Dayan tem 190 páginas, ricas em regras e interditos para elevar espiritualmente o ser humano e evitar que uma crosta se forme em torno a nosso coração. Já ia colocar um ponto final a esta síntese, mas não resisto a mais um quesito. Pode o cão de um judeu comer a mesma comida que o cão do não-judeu?

Poder, pode.

— Se alguém cria um cachorro, há quem diga que é permitido comprar-lhe ração feita de alimentos proibidos, que contenha mistura de carne proibida. Pode-se comprar, para este fim, carne proibida por nossos sábios.

Mas não é conveniente.

— É possível permitir carne proibida pela Torá, contudo, é melhor evitar.

 

Uma culinária racista e reserva de mercado - Por que tantas e tais prescrições? – pergunta-me um leitor. Para começar, Javé é um deus tribal. Protege os seus e não admite que estes se relacionem com membros de outra raça, que cultuam um outro deus. Está lá, no Pentateuco. Javé, deus ciumento, fere com uma praga os filhos de Israel por se relacionarem com mulheres que cultuam não ele, mas um outro deus, Baal de Fegor. Finéias, filho de Eleazar, traspassa com uma lança, de um golpe só, o israelita e a midianita que mantiam relações em uma tenda.

Números 25, 3: Estando Israel assim ligado com o Baal de Fegor, a ira de Javé se inflamou contra Israel. Javé disse a Moisés: toma todos os chefes do povo. Empala-os em face do sol, para Javé: então a ira ardente de Javé se afastará de Israel. Moisés disse aos juízes de Israel: mate cada um aquele dos seus homens que se ligaram a Baal de Fegor. Eis que veio um homem dos filhos de Israel, trazendo para junto de seus irmãos uma midianita, sob os próprios olhos de Moisés e de toda a comunidade dos filhos de Israel, que choravam à entrada da Tenda da Reunião. Vendo isso, Finéias, filho de Eleazar, filho do sacerdote Arão, levantou-se do meio da congregação, tomou na mão uma lança, seguiu o filho de Israel até a alcova e lá o transpassou, juntamente com a mulher. E a praga que feria os filhos de Israel cessou.

Fica bastante claro, no livro do bom rabino, que as interdições alimentares visam criar uma cerca que proteja os judeus de casar-se com não-judeus, em obediência ao bíblico racismo. Como o cozinhar ou comer juntos pode levar à confraternização – como de fato leva -, é bom que seja evitado. Judeu não pode casar-se com não-judia. Pode uma judia casar-se com não-judeu? Até que pode. Neste sentido, os rabinos são tolerantes. Pois inverteram a ordem de descendência. Se na Bíblia a descendência se transmite de pai para filho, conforme atestam as genealogias do Antigo Testamento, no judaísmo rabínico é de mãe para filho. Judeu é quem é filho de mãe judia, ao arrepio do Livro. Então pode.

Entre 9 de fevereiro e 9 de março de 1807, Napoleão Bonaparte constituiu na França um sinédrio – conselho judeu de 71 membros – que sucedeu à Assembléia de Notáveis, que tinha por função oficializar as medidas de secularização em matéria de decisões doutrinárias, do ponto de vista da lei judaica. Ao sinédrio e aos notáveis, o imperador fez doze perguntas. Entre elas, esta: uma judia pode casar-se com um cristão e uma cristã com um judeu? Ou a lei pretende que os judeus se casem apenas entre eles?

Está faltando um Napoleão em nossos trópicos, para bem dividir as águas. Os judeus com cidadania brasileira precisam decidir se respeitam as regras do país onde escolheram viver ou se preferem seguir regras escritas na Judéia há cinco mil anos. Para o rabino Ezra Dayan, a pergunta napoleônica não tem sentido algum. É melhor que judeus não comam com não-judeus, porque esta confraternização arrisca resultar em casamento. Estamos ante algo insólito, uma culinária racista. O comer, em vez de unir, divide.

Esta prática endogâmica cobra seu preço, a doença de Tay-Sachs. Segundo os médicos, é uma desordem neurodegenerativa, presente principalmente em crianças, decorrente de uma atividade deficiente de uma enzima específica, a lisossomal hexosaminidase A, que produz um acúmulo intracelular de substratos e um progressivo déficit neurológico. Esta síndrome apresenta uma freqüência elevada em determinados grupos étnicos, sobretudo nos judeus ashkenazi. Não por acaso, muitos judeus procuram hoje católicas para casar-se. E por que católicas? Bom, elas já conhecem – ou deveriam conhecer – a parte judaica do Livro. Meio caminho andado para a ortodoxia.

Em segundo lugar, uma óbvia reserva de mercado. Se em cidades onde os judeus são gatos pingados não há sentido em comida casher, o caso muda de figura em grandes centros como São Paulo, Buenos Aires, Paris, Londres, Nova York, onde as comunidades judias constituem um mercado a não se deixar de lado. Judeu só pode comer o que judeus produzem, só pode comprar o pão de padeiro judeu, só pode beber o vinho que judeus confeccionam. Sobra até para os cães. Cachorro de judeu deve comer o que judeus produzem para que seus cachorros comam. Isto abarca até mesmo a restauração, pois uma garrafa de vinho aberta não pode ser chacoalhada por um garçom idólatra.

Para que serve um rabino, além de cortar pintos e benzer carnes? Para produzir teologia. Precisam então merecer seus salários. Constróem então uma culinária dogmática, que raia a insanidade. Ao longo da história, os judeus se queixam de serem reduzidos a guetos. Ora, quem constrói tais guetos, senão eles mesmos?

Estamos diante de um caso raro, em que a culinária, que normalmente une povos, serve para dividir.

Agosto 05 - 22, 2012


 

 

QUANDO UM I DIVIDE A IGREJA

 

Volto a meus prazeres diletos, as discussões teológicas. Em Marcos, por exemplo, Cristo morre às 9h da manhã, no dia do Pessach, a manhã seguinte à refeição do Pessach. Em João, Cristo morre um dia antes, no dia da preparação do Pessach, em algum momento depois do meio-dia. Isto é o de menos. Bart D. Ehrman, em quem colho estas incongruências, apresenta uma bateria de outras que mostram a discrepância dos quatro evangelhos. Em Jesus, interrupted, traduzido no Brasil com o rebarbativo título de Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi?, o autor pergunta:

— Quem realmente foi ao túmulo? Apenas Maria (João 20:1)? Maria e outra Maria (Mateus 28:1)? Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé (Marcos 16:1)? Ou mulheres que tinham acompanhado Jesus da Galiléia a Jerusalém – possivelmente Maria Madalena, Joana, Maria mãe de Tiago e “outras mulheres” (Luca 24:1 ver 23:55)? A pedra realmente havia sido roladas da entrada da tumba (como em Marcos 16:4), ou foi rolada por um anjo quando as mulheres estavam lá (Mateus 28:2)? Quem ou o quê elas viram lá? Um anjo (Mateus 28:5)? Um homem jovem (Marcos 16:5)? Dois homens (Lucas 24:4)? Ou nada e ninguém (João)? E o que foi dito a elas? Para mandar os discípulos irem “para a Galiléia”, onde Jesus os encontraria (Marcos 16:7)? Ou para recordar que Jesus tinha dito a elas “enquanto estavam na Galiléia” que teria de morrer e nascer novamente (Lucas 24:7) Depois as mulheres contam aos discípulos o que viram e ouviram (Mateus 28:8) ou não contam nada a ninguém (Marcos 16:8)? Se elas contam a alguém, a quem é? Aos 11 discípulos (Mateus 28:8)? Aos 11 discípulos e a outras pessoas (Lucas 24:8)? A Simão Pedro e a outro discípulo não identificado (João 20:29)? Qual é a reação dos discípulos? Não reagem, porque o próprio Jesus aparece imediatamente a eles (Mateus 20:9)? Não acreditam nas mulheres, porque parece um “desvario” (Lucas 24:11)? Ou vão até a tumba ver com os próprios olhos (João 20:3)?

E durma-se com um barulho destes.

Ehrman tem uma trajetória curiosa. PH.D. em teologia pela Universidade de Princeton e professor de estudos religiosos na Universidade da Carolina do Norte, saiu de biblioteca em biblioteca mundo afora, para conferir não os originais dos textos sagrados, que não existem mais – nem mesmo suas cópias, que tampouco existem – mas as cópias de cópias de cópias que ainda restam. Disto resultou um primeiro livro, Misquoting Jesus: the Story behind Who changed the Bible and Why, traduzido como O que Jesus disse? O que Jesus não disse?.

Se antes acreditava que a Bíblia era a palavra de Deus, Ehrman descobriu que sua elaboração era humana e muito humana – com todas as deficiências de uma obra humana. E perdeu a fé. Seu itinerário foi mais ou menos o meu. Perdi a fé lendo a Bíblia. Mas não perdi meu tempo em bibliotecas comparando cópias antigas. Bastou-me o texto, mesmo traduzido.

Ehrman propõe uma leitura não vertical da Bíblia, começando no início de cada livro e indo até o fim. Mas uma leitura horizontal, isto é, você lê uma história em um dos evangelhos, depois a mesma história em outro Evangelho, como se tivessem sido escritas lado a lado, em colunas. E você compara as histórias cuidadosamente, em seus detalhes. Não há fé que resista a tal leitura. A Bíblia torna-se um livro muito humano, organizado por editores sem preocupação alguma com a coerência.

Ainda há pouco, falei sobre os corpos de santos que foram ressuscitados, segundo Mateus, por ocasião da crucificação do Cristo. Os demais evangelistas não voltam a falar deles e o episódio até hoje constitui um problema para os teólogos católicos. A que título foram ressuscitados? Que foi feito deles após a ressurreição?

Mas este não é o problema maior, e sim um outro, que passa despercebido ao leitor apressado. Se foram ressuscitados durante a crucificação, isto também significa que ressuscitaram três dias antes do Cristo. Como fica então Paulo com seu brado triunfante na primeira epístola aos Coríntios? “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”.

Acontece que as epístolas de Paulo foram escritas antes dos Evangelhos. I Coríntios foi escrita em Éfeso, cerca de 55 d.C. E Paulo sequer suspeitava que Marcos, mais tarde, iria escrever tal disparate. (Seu evangelho foi escrito em Roma, talvez entre 75-80 d. C. Para a Igreja Católica, entre 60-70 d.C. Mesmo assim, após as epístolas paulinas). Pois se muitos ressuscitaram antes de Cristo, a ressurreição do crucificado estava longe de ser a primeira vitória contra a morte.

Em Marcos também está a ressurreição de uma criança por Cristo: cumi, Talita, cumi. Em João, autor do último dos Evangelhos canônicos (finais da 1ª década do século II), Cristo ressuscita Lázaro. Quer dizer, ressurreição era algo mais ou menos banal na época. Só que Paulo, ao que tudo indica, não fora informado.

O problema dos 27 textos do Novo Testamento é que foram compilados mais tarde, em 367 d.C., por Atanásio, o bispo de Alexandria, no Egito. Ao escrever as epístolas ou os evangelhos, tanto Paulo como os evangelistas ignoravam que seriam mais tarde reunidos em um só volume. Cada um foi contando sua versão do Cristo, sem importar-se com as demais versões, o que aliás nem poderiam fazê-lo. Daí que o Novo Testamento – como também o Antigo – às vezes está mais para samba do crioulo doido do que para documento histórico.

Teologia é coisa séria. A Igreja já partiu-se irremediavelmente em dois, em função de três letrinhas, o que de filioque. E dividida permaneceu até hoje, entre Romana e Ortodoxa.

Já foi pior. Houve época em que a Igreja esteve a ponto de cindir-se por uma única letra. No início do século IV– conta-nos Ehrman – na época de Ário, professor cristão da Alexandria, praticamente a Igreja inteira concordava que Jesus era ele mesmo divino, mas que havia apenas um Deus. Mas como exatamente isso funcionava? Como ambos podiam ser Deus?

Ário considerava ter havido um tempo no passado distante antes do qual Cristo não existia. Ele passou a existir em determinado momento. Embora fosse divino, não era igual a Deus Pai; como era o Filho, era subordinado a Deus Pai. Eles não eram “da mesma substância”; eram “similares” em substância.

O oponente mais conhecido a esta tese era Atanásio, justo aquele que seria mais tarde responsável pelo cânone do Novo Testamento. Para Atanásio, o Cristo era feito exatamente da mesma substância – homoousias, em grego - que o Pai. Nada a ver com substância similar – homoiousias. E a Igreja arriscou cindir-se por um i.

Foi quando o imperador Constantino, que havia se convertido ao cristianismo para unificar seu império fragmentado, deu-se conta que uma religião dividida não podia produzir unidade. Convocou então o Concílio de Nicéia, em 325 d. C., que optou pela posição de Atanásio. Há três pessoas em Deus. Elas são distintas umas das outras. Mas cada uma é igualmente Deus. Todas as três são seres eternos. E todas as três são feitas da mesma substância.

Entendeu, ó herege?

Agosto 14, 2012


 

 

SOBRE A HUMANA MESQUINHARIA,
A GRATIDÃO E A GENEROSIDADE

 

Ainda não morreu o dia e está provocando intensa celeuma no Facebook a revelação feita hoje por Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo, da linha dura do ministro Ricardo Lewandowski, do STF, em julgamentos recentes. Anteontem, numa das turmas do STF, o ministro negou habeas corpus para um carcereiro acusado de peculato em Tatuí, em São Paulo, condenado por furtar o farol de milha de uma moto. O valor, apurado em perícia: R$ 13.

Em outro julgamento, contra um pescador que fisgou ilegalmente doze camarões em Santa Catarina, o ministro foi voto vencido: Gilmar Mendes e Cesar Peluzo, da mesma turma, defenderam o trancamento das ações. Em um terceiro julgamento, sobre o furto de uma bermuda, acompanharam Lewandowski: o réu tinha antecedentes criminais.

Lewandowski, se alguém ainda lembra da primeira sessão de julgamento do mensalão – ou Ação Penal 470, como preferem os petistas – é aquele ministro que deu seqüência à manobra protelatória do renomado defensor de um dos mensaleiros, Márcio Thomaz Bastos, ao reivindicar o desmembramento dos processos, alegando que um juiz de primeira julgaria mais rapidamente que o STF. Sua intenção era que o tribunal julgasse apenas três dos réus, que têm foro privilegiado, encaminhando os outros 35 para a primeira instância.

Nesta sua chicana – pois de chicana se trata - teve como cúmplice Lewandowski, o ministro revisor do processo, que puxou do bolso um improviso de setenta páginas, cuja leitura durou 80 minutos. Para debater uma questão já julgada – e negada – pelo tribunal, o desmembramento do processo.

O ministro trazia seu voto pronto. Sabia que o chicaneiro-mor do mensalão alegaria a necessidade do desmembramento. Isto é, o ministro julgador agiu em concerto com a defesa dos réus. Que vote pela absolvição dos réus é direito seu – escrevi na ocasião. Que participe de uma manobra espúria para absolvê-los, isto se chama cumplicidade.

A celeuma ora provocada se deve ao fato de Lewandowski ter absolvido, ontem, o deputado federal João Paulo Cunha (PT-SP), da acusação de beneficiar a agência de publicidade de Marcos Valério com um contrato na Câmara em troca de R$ 50 mil. O ministro também votou pela absolvição do empresário – que em 2003 distribuiu milhões de reais a políticos do PT e outros partidos que apoiavam o governo Lula no Congresso - e de dois ex-sócios acusados de participar dos mesmos crimes atribuídos a João Paulo.

A indignação dos leitores, em primeiro lugar, não procede. Se um homem vai ser julgado, isto significa que pode ser absolvido ou condenado. Considerar que todo juiz está obrigado a condená-lo é o mesmo que instaurar um tribunal de execuções. Lewandowski tem o sagrado direito de absolver ladrões de milhões e condenar ladrões de merrecas e de uma dúzia de camarões. Para isso foi togado. Mas não é isto que está em jogo, e sim a visão abrangente do ministro.

Um homem que furta um farol de milha de uma moto ou fisga doze camarões ao arrepio da lei merece mesmo ser condenado. Que mais não seja por sua curta visão, ao arriscar a liberdade por centavos. É um mesquinho, de cérebro de minhoca. Outra coisa é pensar mais alto. Quem rouba 50 mil é pessoa que tem projetos, ambições.

Treze merrecas mal dão para comer um sanduíche. Cinqüenta mil reais já têm funções mais nobres: conforto da família, uma viagem à Europa, um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Roubar farol de milha é muita tacanhice. Já formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta é pensar grande.

Uma coisa é apropriar-se de 13 reais. Isto até desmerece o Brasil no concerto das nações. Que país emergente é esse em que um cidadão arrisca sua liberdade por dois dólares? Merece cadeia mesmo. Outra coisa é uma generosa distribuição de renda entre os denodados políticos quem têm por missão administrar o país.

“Eu acho que o juiz não deve ter medo das críticas, porque o juiz vota ou julga com sua consciência e de acordo com as leis, não pode se pautar pela opinião pública”, declarou hoje Lewandowski, após participar de uma audiência pública no STF. Não pode mesmo. O ministro é um homem corajoso. Apadrinhado pela mulher do capo di tutti i capi, ao medo sobrepõe a gratidão. Como dizia Hernández, nos conselhos do Viejo Vizcacha:

Lo que más precisa el hombre
tener, según yo discurro,
es la memoria del burro,
que nunca olvida ande come.

Como o burro de Fierro, Lewandowski não esquece onde come. No julgamento dos próximos réus, todos eles homens de larga visão e ligados ao partido do governo, terá inúmeras ocasiões de manifestar sua gratidão.

Ainda ontem, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou que fez acordo com o Grupo OK, do senador cassado Luiz Estevão, para o repasse à vista de R$ 80 milhões aos cofres públicos pelo desvio de recursos das obras do prédio do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP). Há 12 anos, Estevão foi acusado de fazer parte de uma rede de corrupção que entre 1994 e 1999 se apropriou de R$ 169 milhões destinados à construção de uma nova sede do Tribunal Regional de Trabalho de São Paulo. O valor total do acordo chega a R$ 468 milhões. Anunciado com estardalhaço como o “maior valor em casos de corrupção do Brasil e talvez do mundo”, o dinheiro do acordo, no entanto, está longe de compensar o prejuízo de R$ 169 milhões - valor estimado nos anos 1990. Com correções, esse rombo seria de quase R$ 1 bilhão.

O ex-senador não está preso nem precisa de habeas corpus. Com a nonchalance de um balconista que errou no troco, afirma que pagará os R$ 468 milhões à União. “Por incrível que pareça, embora eu negue o crime, é melhor eu pagar e tirar esse aprisionamento. Tem o ditado 'devo, não nego e pago quando puder'. Eu sou contrário: não devo, nego e pago sob coação”.

Generoso, o Estevão. Pelo acordo, o ex-senador – cujo patrimônio ele próprio estima em R$ 20 bilhões - dará uma entrada de R$ 80 milhões e outras 96 parcelas de R$ 4 milhões. Argent de poche. Em troca, terá o processo que corre na Justiça suspenso e parte dos mais de 1.200 imóveis em seu nome serão liberados. E estamos conversados. Não se fala mais sobre o assunto. Ministro algum lembrou de exigir dos outros réus a devolução do farol de milha ou dos doze camarões.

Seja generoso como o ex-senador. Para não se incomodar com picuinhas, paga meio bilhão de reais. Mas não ouse roubar um farol de milha, furtar uma bermuda ou pescar uma dúzia de camarões ao arrepio da lei.

Ministro que se preze pensa grande, abomina tais mesquinharias e as pune com todo o rigor da lei.

Agosto 24, 2012


 

 

POLIAMOR SOA MELHOR

 

Leio no UOL que uma união conjugal entre três pessoas foi lavrada em um cartório em Tupã, interior de São Paulo. Segundo Claudia Domingues do Nascimento, tabeliã do cartório e redatora do texto, a escritura estabelece regras relativas aos bens dos parceiros, na hipótese de algum deles adoecer, morrer ou mesmo desistir da relação. “É como um contrato particular de compra e venda.”

A tabeliã afirmou que o trio tentou, sem sucesso, formalizar a escritura de união estável em outros cartórios. “Aí eles descobriram que minha tese de doutorado é sobre união poliafetiva [entre mais de duas pessoas] e me procuraram”, disse. Se antes era o Legislativo que determinava o regime legal do casamento, ao que tudo indica hoje tese de doutorado produz legislação. Segundo o UOL, o documento lavrado “pode ser a primeira escritura de união conjugal entre três pessoas no país”.

Pelo jeito, os neojornalistas perderam a memória. Ou têm preguiça de pesquisar. Há quatro anos, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada “poliamorismo”, admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.

Ou seja, a teoria não surgiu ontem. E sites jurídicos não só estão substituindo o Legislativo, como modificando o regime de transmissão de bens entre herdeiros. Mais ainda, estão legitimando a poligamia. Nada contra. Estou apenas constatando.

Já escrevi sobre o tal de poliamor. Apesar de ter vivido muito mais de duas relações paralelas, confesso desconhecer tal teoria. Em meus dias de jovem, chamava-se isto amasiamento, adultério, infidelidade. Ou ainda, vendo a coisa por outro ângulo, de donjuanismo. Ou casanovismo.

Mais adiante, anos 70 para cá, começou-se a falar em relação aberta. Tudo dependia do consenso do casal. Conheci casais que viveram unidos a vida toda, mantendo este tipo de relação. Era um relacionamento honesto, sem mentiras. Mas o Direito jamais reconheceu direito à herança por parte de quem não fosse a mulher legítima. Neste sentido, o matrimônio funcionava como proteção. O marido podia ser infiel à vontade, sem precisar dividir seus bens com a Outra, como se dizia então.

Poliamorismo soa mais elegante. Procurei a palavrinha nos dicionários. Não encontrei. Nem meu processador de texto reconhece a palavra, sempre a sublinha em vermelho. Fui ao Google. Já está lá. Escreve um jurista: “As relações interpessoais de cunho amoroso, por vezes destoam do padrão habitual da monogamia entre os casais formados por pessoas de sexos diferentes. Assim, encontramos relacionamentos afetivos que envolvem um casal, vale dizer um dos cônjuges e um parceiro ou parceira, os quais se desenvolvem simultaneamente. Ditas relações são denominadas de poliamorismo ou poliamor, e se constituem na coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas ao matrimônio”.

Ah! As palavras... Eu conhecia poligamia, poliandria, até mesmo policromia. Mas o tal de poliamorismo é para mim novidade. Quem diria? Cheguei aos sessenta e ainda descubro palavrinhas exóticas. Me restam no entanto algumas dúvidas. Já que a palavrinha amor é parte constitutiva do novo palavrão, me pergunto: é preciso que exista o tal de amor? Ou sexo puro também serve? O conceito é extensivo a todas as profissionais que curtimos em nossas vidas, ou profissional não vale? Aquela distante namorada, que encontramos de ano em ano, é poliamor? Ou um amorzinho mixuruca, sem direito à herança?

Os muçulmanos são mais práticos. Todo crente tem direito a quatro mulheres e estamos conversados. Não se fala em amor nem poliamor. Mas não precisamos ir até o Islã. No livro que embasa a cultura ocidental, temos o rei Salomão. “Tinha ele setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração”, lemos no I Reis. Poliamantíssimo, o sábio rei. Bem que gostaria de ter meu meigo coração assim pervertido.

Após a morte do empresário de Rondônia, a amante, que por lei não teria direito à partilha de bens, entrou na Justiça com uma ação declaratória de união estável, dizendo que dependia financeiramente dele e que compartilhou com ele esforço comum na formação do patrimônio. O pedido foi contestado pelos dois filhos do casamento, que pediram a condenação dela por má-fé e argumentaram que a lei nacional baseia-se no relacionamento monogâmico. Segundo trecho do artigo usado na sentença, “as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo”.

Alvíssaras! Novidade na cultura ocidental. Finalmente o Direito reconhece que o tal de amor não precisa ser monogâmico. Mas minhas dúvidas permanecem. A sentença não estabelece quantas pessoas se pode amar ao mesmo tempo. Só duas? Ou vinte também vale? E o harém do rei Salomão? Pode? Tampouco esclarece se uma mulher pode amar dois ou mais homens. Pelo que se deduz da questão, quando um homem ama duas mulheres é poliamor. Já uma mulher amando dois ou mais homens, vai ver que é puta mesmo.

Segundo a tabeliã de Tupã, o trio é formado por um homem e duas mulheres, todos profissionais liberais, sem filhos, solteiros e residentes no Rio de Janeiro. “Eles se conhecem há muito tempo, e, desde 2009, passaram a viver uma relação estável.”

Existem muitas pessoas que vivem nessa situação, mas que não sabem que é possível formalizá-la em documento - disse a tabeliã. “Eu estou surpresa com a repercussão desse fato. Estou sendo procurada por pessoas que vivem em condições semelhantes.” É o milagre dos neologismos. Se amasiamento, adultério ou infidelidade soavam mal, poliamor é louvável, digno e justo. O mesmo aconteceu com homossexualismo. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, homossexuais não mais existem. Agora são todos homoafetivos.

Comentei há pouco. Em defesa da nova terminologia, o ministro disse que o vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, de autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem:

“Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais”.

Pena que o neologismo está errado. Há horas venho afirmando – e parece que sou o único alfabetizado a perceber isto – que o homo, de homossexual, é palavra grega que quer dizer mesmo. Homossexual, mesmo sexo. A palavra homoafetivo, se formos fiéis ao étimo, quer dizer mesmo afeto. Ora, mesmo afeto não quer dizer nada específico. Quer dizer apenas que você tem o mesmo afeto que outra pessoa tem por você. Mas homoafetivo, segundo a desembargadora desocupada, seria um eufemismo para homossexual. Não é. É palavra que foi construída errada.

Independentemente de ser uma construção errada, o novo conceito trará insuspeitadas conseqüências jurídicas. Homoafetivos já podem casar. Homoafetividade exclui o tal de poliamor? Obviamente não. Se um homem pode amar duas mulheres, por que não poderia amar dois homens? Nada impede. Se obedecermos à boa lógica, em breve teremos três ou mais homens (ou mulheres, por que não?) registrando suas relações estáveis em cartório. O velho casamento católico vai virar partouse. De novo, nada contra. Apenas constato.

Segundo o tabelião Angelo Faleiros Macedo, do 5º Cartório de Notas de Ribeirão Preto, “a legislação ainda não prevê isso, mas as relações poliafetivas precisam ser protegidas. Elas existem de fato. No começo vai haver alguma dificuldade na elaboração do documento, pela novidade, mas depois será algo corriqueiro.” Segundo ele, a escritura feita em Tupã deverá provocar um aumento na procura aos cartórios para o registro de relações poliafetivas.

E ainda há astrólogos que crêem ser o comunismo o grande inimigo da família ocidental e cristã.

Agosto 25, 2012


 

 

LONGO É O CAMINHO DE UM RIBAMAR ATÉ O ENTENDIMENTO

 

Leio na Folha de São Paulo de hoje:

Sabe a razão pela qual a empresa estatal dificilmente alcança alto rendimento? Porque o dono dela -que é o povo- está ausente, não manda nela, não decide nada. Claro que não pode dar certo.

Já a empresa privada, não. Quem manda nela é o dono, quem decide o que deve ser feito -quais salários pagar, que preço dar pela matéria-prima, por quanto vender o que produz-, tudo é decidido pelo dono.

E mais que isso: é a grana dele que está investida ali. Se a empresa der lucro, ele ganha, fica mais rico e a amplia; se der prejuízo, ele perde, pode até ir à falência. Por tudo isso e por muitas outras razões mais, a empresa privada tem muito maior chance de dar certo do que uma empresa dirigida por alguém que nada (ou quase nada) ganhará se ela der lucro, e nada (ou quase nada) perderá se ela der prejuízo.

Só pode ter sido obra de um antigo porco capitalista – dirá o leitor tradicional da Folha, ao deparar-se com esta desabrida ode ao capitalismo. Ou, para usar uma nomenclatura contemporânea, obra de um pérfido neoliberal. Nada disso, ingênuo leitor. O texto tem a lavra de um velho e empedernido poeta comunista, que nasceu em 1930 e só agora, 82 anos depois, parece ter descoberto a América.

O poeta é José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, nome que adotou para diferenciar-se dos tantos Ribamares do Maranhão. Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro no dia 1º de abril de 1964, 28 anos após a denúncia das primeiras purgas de Stalin em 1936, quinze anos após a denúncia dos gulags por Viktor Kravchenko em Paris, em 1949, nove anos após a denúncia dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev, em 1956, no XX Congresso do PCUS. Isto é, o Ribamar atroz aderiu ao partido quando a nenhum cidadão honesto era mais permissível ignorar os crimes do regime soviético.

Em 1971, partiu para o exílio e foi acolhido de braços abertos por Moscou, a nova Jerusalém das esquerdas. Mas logo preferiu viver no bom mundo capitalista, passando a residir em Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires.

Em 1982 - 47 anos após a denúncia das primeiras purgas de Stalin em 1936, 33 anos após a denúncia dos gulags por Viktor Kravchenko em Paris em 1949, mais de um quarto de sécuo após a denúncia dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev em 1956, no XX Congresso do PCUS – escreve o “poema” abaixo, em homenagem aos 60 anos do PCB:

Eles eram poucos
e nem puderam cantar muito alto
a Internacional
naquela casa de Niterói, em 1922.
Mas cantaram e fundaram o Partido.

Eles eram apenas nove.
O jornalista Astrojildo, o contador Cristiano, o gráfico Pimenta,
o sapateiro José Elias, o vassoureiro Luís Peres,
os alfaiates Cedon e Barbosa, o ferroviário Hermogênio
e ainda o barbeiro Nequete, que citava Lenin a três por dois.

Em todo o país eles não eram mais de setenta.
Sabiam pouco de marxismo
mas tinham sede de justiça
e estavam dispostos a lutar por ela.

Faz algum tempo que isso aconteceu.
O PCB não se tornou o maior partido do ocidente,
nem mesmo do Brasil.
Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis
tem que falar dele.
Ou estará mentindo.

De fato, quem quiser contar a história do país, terá de falar do partido. Mas não de heróis, que heróis o PCB não teve. Teve apenas assassinos, celerados e cúmplices de um dos maiores assassinos do século.

O Ribamar precisou de quase meio século para render-se à evidência histórica. Tempo mais que suficiente para a prostituta maranhense construir uma carreira literária, abiscoitar aqueles prêmios que a burritsia nacional reserva para os fiéis cultores do obscurantismo e pretender-se inclusive nobelizável. Para quem vive em torre de marfim, seguido ocorre a tentação da mosca azul. Recém em fevereiro deste ano, Gullar ousou criticar a Disneylândia das esquerdas:

Nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem permissão. É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez – a 19ª – o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país.

A dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à Revolução Cubana, desde sua origem em 1959. Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.

Nos primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre “paredón”, em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles eram culpados.

E nossas certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova Cuba revolucionária.

Gullar precisou de mais de meio século – 53 anos – para descobrir que um país comandado por 47 anos pelo mesmo homem era uma ditadura. Longo é o caminho de um bolchevique até o entendimento.

Sabíamos todos – continua o vate - que, além do açúcar e do tabaco, o país não dispunha de muitos outros recursos para construir uma sociedade em que todos tivessem suas necessidades plenamente atendidas. Mas ali estava a União Soviética para ajudá-lo e isso nos parecia mais que natural, mesmo quando pôs na ilha foguetes capazes de portar bombas atômicas e jogá-las sobre Washington e Nova York. A crise provocada por esses foguetes pôs o mundo à beira de uma catástrofe nuclear.

Mas nós culpávamos os norte-americanos, porque eles encarnavam o Mal, e os soviéticos, o Bem. Só me dei conta de que havia algo de errado em tudo isso quando visitei Cuba, muitos anos depois, e levei um susto: Havana me pareceu decadente, com gente malvestida, ônibus e automóveis obsoletos.

Como se precisasse visitar Cuba para saber que os cubanos viviam na miséria. Como se precisasse visitar a ilha para saber que os cubanos optavam por morrer nas águas do Caribe a continuar vivendo sob o regime de Cuba. O pronunciamento do poeta ocorreu por ocasião da visita de Dilma Roussef a Cuba, que manteve silencioso obsequioso em relação aos atentados aos direitos humanos na ilha dos irmãos Castro:

Do contrário, como entender a atitude da presidente Dilma Rousseff que, em recente visita a Cuba, forçada a pronunciar-se sobre a violação dos direitos humanos, preferiu criticar a manutenção pelos americanos de prisioneiros na base aérea de Guantánamo, o que me fez lembrar o seguinte: um norte-americano, em visita ao metrô de Moscou, que, segundo os soviéticos, não atrasava nunca nem um segundo sequer, observou que o trem estava atrasado mais de três minutos. O guia retrucou: “E vocês, que perseguem os negros!”.

A verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do governo.

Ora, o Ribamar viveu sem tugir nem mugir em regime de onde não se podia sair sem a permissão do governo e manteve o mesmo silêncio obsequioso da guerrilheira marxista. E agora, do dia para a noite, canta as glórias do capitalismo.

Curta é a memória das gentes. Após ter feito sua fortuna literária defendendo o comunismo, Gullar agora quer faturar mais uns trocados atendendo do outro lado do balcão. Mais alguns meses, e a macróbia messalina maranhense estará sendo celebrada como um campeão da luta pela liberdade no Ocidente.

Agosto 26, 2012


 

 

DEUS ÚNICO? ONDE?

 

Escreve-me Franciene: “sinto muito que você tenha deixado de crer em Deus por causa da falibilidade humana... Preferível se tivesse deixado de crer na humanidade”. Engana-se a leitora. Deixei de crer em Deus por causa da falibilidade divina.

Em qual deus você gostaria que eu acreditasse, Franciene? Naquele deus dos judeus que manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire? Ou no deus dos cristãos, que promete o fogo eterno a quem não estiver com ele?

Cá entre nós, nenhum desses deuses me serve. Por outro lado, leio a Bíblia não como manifestação da palavra divina, mas como obra literária. Um deus não seria tão incoerente. Incoerência é coisa humana.

Prossegue a leitora: “Bem, pensei que falávamos do único Deus que existe, o Deus da Bíblia, o Deus dos Judeus, o Deus dos Cristãos...”

Bem se vê que a leitora jamais leu a Bíblia atentamente. Não há um só deus no Antigo Testamento:

Diz Labão a Jacó: “Mas ainda que quiseste ir embora, porquanto tinhas saudades da casa de teu pai, por que furtaste os meus deuses?”
Diz Jacó à sua família: “Lançai fora os deuses estranhos que há no meio de vós, e purificai-vos e mudai as vossas vestes”.
Diz Jeová aos hebreus: “Porque naquela noite passarei pela terra do Egito, e ferirei todos os primogênitos na terra do Egito, tanto dos homens como dos animais; e sobre todos os deuses do Egito executarei juízos; eu sou o Senhor”.
Canta Moisés este cântico a Jeová: “Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor? a quem é como tu poderoso em santidade, admirável em louvores, operando maravilhas?”
Disse Jetro, o sogro de Moisés: “Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses; até naquilo em que se houveram arrogantemente contra o povo”.

O Pentateuco está repleto de deuses. Astarote, Baal, Dagom e por aí vai. Em momento algum Moisés afirma ser Jeová o único deus. Aliás, até o próprio Jeová reconhece a existência de seus pares, quando determina: “Não terás outros deuses diante de mim”. Os deuses eram muitos na época do Pentateuco. Jeová é apenas um entre eles, o deus de uma tribo, a de Israel. Em La Loi de Moïse, escreve Jean Soler: “Ora, nem Moisés nem seu povo durante cerca de um milênio depois dele – os autores da Torá incluídos – não acreditavam em Deus, o Único. Nem no Diabo”.

A idéia de um deus único só vai surgir mais adiante, no dito Segundo Isaías. Reiteradas vezes escreve o profeta:

Assim diz o Senhor, Rei de Israel, seu Redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o primeiro, e eu sou o último, e fora de mim não há Deus.

Num acesso de egocentrismo, Jeová se proclama o único:

Quem há como eu? Que o proclame e o exponha perante mim! Quem tem anunciado desde os tempos antigos as coisas vindouras? Que nos anuncie as que ainda hão de vir. Não vos assombreis, nem temais; porventura não vo-lo declarei há muito tempo, e não vo-lo anunciei? Vós sois as minhas testemunhas! Acaso há outro Deus além de mim?

Ou ainda:

Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cinjo, ainda que tu não me conheças. (...) Porventura não sou eu, o Senhor? Pois não há outro Deus senão eu; Deus justo e Salvador não há além de mim.

Só aí, e tardiamente, surge na Bíblia a idéia de um só Deus. Jean Soler nota uma safadeza nas traduções contemporâneas da Bíblia: Jeová está sumindo. Fala-se em Deus ou Senhor, em Eterno ou Altíssimo. Como Jeová é apenas o deus de Israel, melhor esquecer o deus tribal. Ao que tudo indica, alguns tradutores fazem um esforço para transformar um livro politeísta em monoteísta. Substituiu-se a monolatria - culto de um só deus nacional - pelo monoteísmo, culto de um deus único.

Mas a leitora não desiste: “ler a bíblia como uma obra literária é uma opção. A bíblia é o único livro que pode ser lido junto com o seu Autor”.

Quanto a ser Deus o autor da Bíblia, todas as igrejas cristãs admitem a autoria humana, a tal ponto que até hoje não se sabe muito bem quem escreveu o quê. Sem ir muito longe, fica claro que Moisés não escreveu o Pentateuco, já que nele narra sua própria morte. Das treze cartas atribuídas a Paulo no NT – segundo o teólogo Bart Erhman, em Pedro, Paulo e Maria Madalena - sabe-se que apenas sete são incontestavelmente dele. Seis das cartas diferem em vocabulário e estilo literário utilizado, pontos de vista teológicos representados e o contexto histórico das epístolas: algumas das cartas pressupõem uma situação que surgiu bem depois da morte de Paulo. Um deus onisciente não cometeria tais lapsos.

Franciene volta à carga: “Bem, pensei que falávamos do ÚNICO DEUS que existe, o Deus da Bíblia, o Deus dos Judeus, o Deus dos Cristãos...”

A idéia do deus único emerge lentamente do seio de uma cultura onde havia vários deuses. Quando Paulo vai a Atenas pregar a nova doutrina, alguns filósofos epicuristas e estóicos se perguntavam quem seria aquele conversador. Levando-o ao Areópago, quiseram saber: “Poderemos nós saber que nova doutrina é essa de que falas? Pois tu nos trazes aos ouvidos coisas estranhas; portanto queremos saber o que vem a ser isto”.

Os atenienses, muito cautos em relação aos deuses, haviam erguido inclusive um altar ao Deus desconhecido. (Nunca se sabe...). Paulo pega a deixa e deita verbo:

“Passando eu e observando os objetos do vosso culto, encontrei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais sem o conhecer, é o que vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens”.

Os atenienses não entendem o novo deus. Entendiam os deuses de cada nação. Havia os deuses gregos, romanos, egípcios, persas. Que deus era esse que não pertencia a nação nenhuma? Ora, não pertencendo a nação nenhuma, disto decorria uma consequência inevitável: era o deus de todos os homens. Quando ouviram falar em ressurreição de mortos, gozaram com a cara do apóstolo: “Acerca disso te ouviremos ainda outra vez”.

Isso sem falar que o deus dos judeus nada tem a ver com o deus dos cristãos. Para Arnold Toynbee, foi o cristianismo paulino que transformou Jesus em um deus encarnado. Em vida, Cristo não poderia ter aceitado essa condição, pois era judeu. Segundo as escrituras cristãs, por pelo menos duas vezes Jesus repudia a sugestão de que fosse divino. Pode ter se denominado Filho de Deus, mas isto não era algo aplicado somente a Jesus. Para Bart Erhman, a idéia de que Jesus era divino foi uma invenção ainda posterior, encontrada apenas no evangelho de João.

Para Erhman, ser o Filho de Deus não significava ser divino. “No Antigo Testamento, Filho de Deus pode se referir a vários indivíduos diferentes. O rei muito humano de Israel era chamado de Filho de Deus e a nação de Israel era vista como filho de Deus. Ser o Filho de Deus costumava ser o intermediário humano de Deus na Terra. O Filho de Deus tinha uma relação especial com Deus, como aquele que Deus escolhera para fazer sua vontade. Em Marcos, Jesus é o Filho de Deus porque é aquele que Deus escolheu como Messias, que deve morrer na cruz para fazer a expiação como um sacrifício humano. Mas não há uma única palavra nesse Evangelho sobre Jesus ser realmente Deus”.

Com o surgimento do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a nova seita foi lentamente voltando ao politeísmo. É por pressão do imperador Constantino (306-337) – escrevi há pouco - que se cria nessa época o dogma da Santíssima Trindade. Constantino precisava de um deus forte para seu império e adotou a nascente religião. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um. O aparelho da Gradiente sumiu do mercado. O três-em-um do Atanásio continua tendo muita demanda. Mas isto já é outra história.

Resta ainda uma perguntinha. Se o Filho era tão eterno quanto o Pai, por que o Pai esperou tantos séculos para apresentá-lo a seu povo, os judeus? Ao entregar as tábuas da Lei a Moisés no monte Sinai, bem que Jeová podia ter avisado: “a propósito, eu tenho um filho. É rebelde e contestador, acho até que vou fazer um novo testamento”.

Espero em algo ter contribuído para o conhecimento do Livro a Franciene.

Agosto 29, 2012


 

©2012 Janer Cristaldo

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Agosto 2012

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