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QUEM É O POVO NO BRASIL?

Nelson Werneck Sodré

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Quem é o Povo no Brasil?
Nelson Werneck Sodré
(27/04/1911–13/01/1999)

Fonte digital
Digitalização de
Cadernos do Povo Brasileiro - 2
[Exemplar Nº 2113]
Diretores:
Álvaro Vieira Pinto
Ênio Silveira
Civilização Brasileira, Rio, 1962 [julho]

Capa: Eugênio Hirsch - ©

Versão para eBook
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© 2008 — Nelson Werneck Sodré

NOTA: Não é cópia digitalizada do original, mas uma transcrição.
Foram conservados dados considerados essenciais a um documento histórico

USO NÃO COMERCIAL-VEDADO USO COMERCIAL


Quem é o Povo no Brasil?

Nelson Werneck Sodré


OBRAS DO AUTOR

História da Literatura Brasileira, S. Paulo, 1938 — 2ª ed. Rio, 1940 — 3ª ed. Rio, 1960 — Panorama do Segundo Império, S. Paulo, 1939 — Oeste, ensaio sobre a grande propriedade pastoril, Rio, 1941 — Orientações do Pensamento Brasileiro, Rio, 1942 — Síntese do Desenvolvimento Literário no Brasil, S. Paulo, 1943 — Formação da Sociedade brasileira, Rio, 1944 — O que se Deve Ler para Conhecer o Brasil, Rio, 1945 — 2ª ed. ed. Rio, 1960 — História do Vice Reinado do Rio da Prata, Rio, 1947 — A Campanha Rio-grandense, Rio, 1950 — O Tratado de Methuen, Rio, 1957 — As Classes Sociais no Brasil, Rio, 1957 — Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro, Rio, 1958 — Introdução à Revolução Brasileira, Rio, 1958 — Narrativas Militares, Rio, 1959 — A Ideologia do Colonialismo, Rio, 1960 — Breve História do Brasil, Buenos Aires, 1962 — Formação Histórica do Brasil, S. Paulo, 1962.

A aparecer

História da Propriedade no Brasil — A Propriedade da Terra — História da Sesmaria — Memórias de um Soldado.


ÍNDICE

Conceito de Povo
Conceito de Povo no Brasil
Povo e Poder


CONCEITO DE POVO

 

Poucas palavras têm um emprego tão freqüente quanto a palavra povo. Na linguagem política, nenhuma a excede em uso. “Vontade do povo”, “interesse do povo”, “defesa do povo”, são expressões correntes, repetidas por quantos falam e escrevem. Como o ato político por excelência, nas democracias do tipo do Brasil, é o ato eleitoral, — quando são escolhidos os “representantes do povo”, — a realização desse ato, dos preliminares à apuração de resultados, corresponde a um período em que o consumo da referida palavra é mais intenso: todos os interessados dizem dirigir-se ao povo, apelam para o povo, proclamam os direitos do povo.

Esse uso imoderado, embora natural nas condições em que vivemos, por parte de pessoas as mais variadas, e dirigindo-se, também, aos grupos mais variados, deu à palavra povo uma significação tão genérica que a despojou de qualquer compromisso com a realidade. Na boca ou na pena dos homens públicos, hoje, — e claro está que isso não acontece somente no Brasil, — povo é uma abstração. Cada um é livre de atribuir à palavra povo o significado que bem imaginar. E, particularmente, incluir-se em pessoa naquilo que imagina ser o povo. Mesmo na linguagem política, — e é no plano político que o seu uso tem importância, — aquela palavra mágica, refrão a que todos se apegam, fórmula para todos os problemas, sésamo para todas as portas, não tem limitações, contorno, características.

Expressa, de modo vago aliás, todos os que participam da vida política, e mesmo a maioria dos que dela não participam. Ninguém aceitaria a sua própria exclusão do campo a que se aplica o letreiro povo. Todos se consideram povo. Uma secreta intuição, entretanto, faz com que cada um se julge mais povo quanto mais humilde a sua condição social: é este um título, aliás, — e o único, — de que os desfavorecidos da sorte não abrem mão. Eles nada possuem, mas por isso mesmo orgulham-se de ser povo. Esse orgulho corresponde, espontaneamente, ao sentido da definição que liga o conceito de povo à situação econômica dos grupos, camadas ou classes sociais.

Algumas correntes, realmente, interpretando os fatos políticos, identificam o povo com os trabalhadores, e admitem que os trabalhadores constituem as massas populares, ou a sua maioria, sendo desprezíveis, no conjunto daquelas massas, os não trabalhadores. Outros, mais rigorosos, aceitam como trabalhadores e, conseqüentemente, como povo, apenas os produtores de bens materiais. É verdade, sem dúvida, que, em todos os tempos, em todas as fases históricas, os trabalhadores ou, mais restritamente, os produtores de bens materiais, constituíram, e constituem, a massa principal do povo, e desempenharam, e desempenham hoje, com mais forte razão, o papel fundamental no desenvolvimento da sociedade. Mas é também fato indiscutível que, em todas as fases históricas, e ainda hoje, na fase histórica que estamos vivendo, as massas populares abrangeram, e abrangem, camadas muito variadas da população, nelas compreendidas as que não produziam, e não produzem, bens materiais, e até mesmo aquelas que se distinguiam pela circunstância de aproveitar o trabalho alheio para se diferenciar das outras.

A idéia de que o povo é constituído apenas pelos produtores de bens materiais é uma inequívoca limitação, na grande parte dos casos, — no caso do Brasil, por exemplo. Há trabalhadores, na sociedade brasileira, e na sociedade de todos os países, que não podem ser englobados entre os produtores de bens materiais e, entretanto, pertencem ao povo. Os empregados não produzem bens materiais, nem os funcionários, nem os intelectuais. Seria justo excluí-los do conceito de povo? Parece que não. Por aí vemos que o critério econômico restrito não pode servir de base a uma conceituação aceitável e justa. Outros critérios, mais amplos, que englobam entre os trabalhadores também aqueles que realizam um trabalho útil à sociedade, e não apenas um trabalho que resulte na produção de bens materiais, seriam mais justos, sem qualquer dúvida. Mas não levariam ainda a um conceito exato de povo.

Antes do exame de um critério que possa levar a um conceito exato de povo, é importante assinalar que o conceito de povo não pode ser definido senão considerando as condições reais de tempo e de lugar. Povo, hoje, no Brasil, não é o que era há um século; não é a mesma coisa que nos Estados Unidos; nem o que é na China. A composição dos grupos, camadas e classes que constituem o povo muda ao longo do tempo, e varia de país em país, de nação em nação. Dentro de um mesmo país, a referida composição muda conforme a sociedade evolui: é pacífico que o operário brasileiro faz parte do povo, hoje. Mas há cem anos não havia operários, no Brasil. Isto significa que não havia povo? Parece que não.

Povo, há cem anos, era uma coisa, entre nós; hoje, é outra. Há cem anos, faziam parte do povo grupos, camadas e classes que, hoje, não fazem parte do povo. Uns continuam a existir, a ter um papel, mas deixaram de fazer parte do povo; outros se extinguiram, e por isso deixaram de fazer parte dele; terceiros surgiram mais tarde, e passaram a fazer parte do povo ou não passaram, conforme o papel social que desempenham. O conceito de povo evolui, portanto, muda conforme a sociedade muda. Mas é certo que tais mudanças não são arbitrárias e acidentais; e por isso há sempre critérios justos para se definir o conceito exato de povo em cada fase distinta.

Há, evidentemente, em todos os tempos, população e povo. Os dois termos designam a mesma coisa apenas na fase inicial da história humana, a da comunidade primitiva, quando não existem classes: povo é então toda a população. A divisão do trabalho assenta em condições naturais e não em condições sociais; assenta nas condições de sexo e idade: o homem realiza determinado trabalho; a mulher, outro; o velho, outro. É uma divisão natural: não torna alguns elementos mais ricos do que os outros, nem mais poderosos. Mas quando a sociedade se desenvolve, surgem as classes sociais e, com elas, a divisão social do trabalho: uns trabalham, outros usufruem do trabalho alheio. A partir desse momento povo já não é o mesmo que população: os termos começam a designar coisas diferentes. E não há, a partir de então, critério objetivo para definir o conceito de povo que não esteja ligado ao conceito da sociedade dividida em classes.

Daí por diante, até os nossos dias, povo será um conjunto de classes (ou camadas, ou grupos), ficando outras classes, (ou camadas, ou grupos) excluídas do conceito. Mas como as classes não são fixas e estáticas, e a situação de umas em relação às outras também muda, povo não significa sempre a mesma coisa, isto é, não tem sempre a mesma composição social, não agrupa sempre as mesmas classes. O conceito de povo, pois, — histórico como todos os conceitos, — não coincide com o de população. O vazio, o abstrato de que se reveste, no nosso tempo, na linguagem política usual, deriva da tendência a confundir o verdadeiro, justo e exato sentido do termo. A insistência na confusão visa a sonegar a realidade, esconder o fato de que a sociedade se divide em classes e que nem todas as classes estão incluídas no conceito de povo. Em cada fase histórica este conceito tem determinado conteúdo, refletindo a estrutura social vigente e na dependência das condições econômicas imperantes.

Nos fins do século XVIII, quando ocorreu a Revolução Francesa, o povo compreendia a burguesia, que usufruía o trabalho alheio, e os trabalhadores, da cidade e do campo, além de camadas intermediárias; a nobreza feudal, contra cuja dominação se levantaram aquelas classes, não fazia parte do povo. Analisando a revolução de 1848, na Alemanha, ocorrida meio século depois, um historiador mencionaria, com justeza, que a contra-revolução temia “o povo, isto é, os trabalhadores e a burguesia democrática”. Na revolução russa de 1905 participa, como parte do povo, a burguesia rural, que detém, na época, segundo os dados da propriedade, a metade das forças produtivas no campo. Na luta contra o tzarismo, para derrocar a autocracia, participam, segundo um intérprete fiel, como forças capazes de conquistar a vitória decisiva, “o proletariado e os camponeses, desde que consideremos as forças essenciais e distribuamos a pequena burguesia agrária e urbana (que faz parte também do povo) entre uns e outros”.

Em diferentes fases históricas e em diferentes países, portanto, o conceito de povo corresponde a diferentes agrupamentos de forças sociais. Há uma composição específica para cada situação concreta; não uma situação eterna e imutável; povo não é a mesma coisa em diferentes situações históricas. Mas, evidentemente, encontra-se um traço geral, permanente, que atravessa a história e se repete em cada lugar, algo que existe em qualquer tempo e em qualquer lugar, quando se trata de povo e se procura definir o conceito, para compreender o papel dessa força social na vida política. Esse traço é o seguinte: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive.

As classes compreendem as parcelas da população que, por sua situação objetiva, têm interesses comuns a defender, na decorrência do “lugar que ocupam em um sistema de produção social, historicamente determinado pelas relações em que se encontram com respeito aos meios de produção (relações que, em grande parte, ficam estabelecidas e formalizadas nas leis), pelo papel que desempenham na organização social do trabalho e, conseqüentemente, pelo modo e pela proporção em que percebem a parte da riqueza social de que dispõem”. As classes são produto da história, e o lugar que ocupam é também historicamente condicionado. A história humana não passa do desenvolvimento das classes, das lutas e das mudanças nas relações entre elas. Em cada fase histórica, pois, em condições determinadas, certa classe, ou certas classes, agrupam-se num conjunto que se conhece como povo, e só é válido para tal fase.

Povo, assim, é algo que escapa à confusão e à abstração da linguagem retórica, cujo fim, consciente ou inconsciente, está em obscurecer o sentido concreto e o conteúdo social do conceito. Sua indiscriminação tem sentido demagógico evidente, em contraste com aquele conteúdo e com todas as formas de que se reveste. Numa sociedade dividida em classes, a população se reparte em classes dominantes, exploradoras, de um lado, e classes dominadas, de outro, aquelas que as primeiras oprimem, exploram e privam de direitos, inclusive e principalmente dos direitos políticos. Realizam essa exploração, entretanto, afirmando sempre que representam o povo. Estão interessadas, pois, em que o conceito de povo seja vago, arbitrário e confuso. Tão confuso que englobe exploradores e explorados.

A essa ambiguidade, que impede distinguir entre população e povo, junta-se outra, que impede distinguir entre nação e povo, conceitos que se referem também a coisas diferentes. Freqüentemente, no que se refere a problemas internos, mas também no que se refere a problemas externos, ou de política exterior, as classes dominantes, que se dizem povo, afirmam, ao decidir sobre aqueles problemas segundo os seus interesses de classe, que o fazem em defesa dos interesses “nacionais”, na preservação dos direitos “nacionais”, e repetem amiúde a expressão “tradições nacionais”. Confundem, assim, os seus interesses com os interesses nacionais e supõem encarnar a vontade nacional, isto é, a vontade do povo. As classes dominantes, entretanto, inclusive porque minoritárias, não representam o povo, no geral, e nem sempre representam a nação, embora detenham o poder, dominem o Estado e proclamem a sua identidade com o que é nacional. Existe o deliberado propósito de confundir todas as classes e os seus interesses, como se estes fossem comuns e idênticos em todos os problemas, e a classe que detém a representação política fosse apenas a intérprete de todas as classes porque com interesses idênticos aos de todas elas.

É exato que em alguns casos, — e só o exame de situações concretas permitiria distinguir bem as características de cada um — as classes dominantes realizam o que é do interesse da maioria das classes, ou das classes majoritárias, mas isso não é uma regra e está longe de ser a regra. Acontece sempre, entretanto, quando o interesse da classe dominante é também defendido, preservado ou mantido. A Independência do Brasil foi um problema político que uniu as classes sociais brasileiras: realizando-a, a classe dominante de então representou o desejo e o interesse das demais, mas também o seu particular desejo e interesse. Logo em seguida, entretanto, ao empolgar o poder, deixou de representar o interesse de todas as classes, porque organizou o Estado de acordo com os seus interesses, exclusivamente. Ninguém pode sustentar que o interesse de um senhor de engenho da época fosse idêntico ao de seus escravos. Bastaria o fato de ser, um, proprietário de escravos e os outros, escravos, para tornar claro o antagonismo de interesses. Ao realizar a Abolição, a classe dominante teve também o apoio das classes dominadas, no Brasil, mas realizou-a quando lhe convinha como classe. São casos em que os interesses de um grupo aparecem como interesses comuns, e a classe dominante representa a nação, ao decidir por ela, porque representa, eventualmente, a vontade da maioria, embora seja, em número, minoria, e não tenha a posse do poder por vontade da maioria.

Mas, na maior parte dos problemas, e nos problemas fundamentais, o interesse das classes é divergente, quase sempre antagônico, e as decisões tomadas pela classe dominante e apregoadas como do “interesse nacional” são, na realidade, única e exclusivamente, do seu interesse de classe, ferindo o interesse das classes dominadas, inclusive privadas do direito de protestar contra isso ou, de qualquer maneira, do direito de fazer prevalecer os seus interesses. Há manifesta ambiguidade, politicamente determinada, no fato de investir-se a classe dominante do papel nacional, de defensora do “interesse nacional”. No caso brasileiro, essa ambiguidade se concretiza, por exemplo, quando a classe dominante exclui do direito de representação política extensas parcelas do povo, sob pretexto de serem constituídas por analfabetos; quando impõe tributos que oneram vencimentos e salários, tornando extremamente difícil a vida dos trabalhadores e da pequena burguesia; quando prefere aliar-se a forças estrangeiras, para defender os seus privilégios, temendo o povo mais do que àquelas forças, e por isso mesmo negando a essência do que é nacional.

Em política, como em cultura, só é nacional o que é popular. A política da classe dominante não é nacional, nem a sua cultura. Povo e nação não são a mesma coisa, na fase atual da vida brasileira, mas esta é uma situação histórica apenas, diferente de outras, uma situação que se caracteriza pelo fato de que as classes que determinam, politicamente, os destinos do país e lhe traçam os rumos, tomam as decisões em nome da “nação”, mas não pertencem ao povo, não fazem parte do povo. Interpretando uma fase da vida peruana, em conferência de 1888, um escritor daquele país disse: “Não formam o verdadeiro Peru os agrupamentos de criollos e estrangeiros que habitam a faixa de terra situada entre o Pacífico e os Andes; a nação é formada pelas multidões de índios disseminadas na banda oriental da cordilheira”. No Brasil, naquele ano de 1888, o da Abolição, seria considerado a sério quem afirmasse coisa análoga, que a nação era formada pelos negros libertos, pelos mestiços, pela massa de camponeses, pelos que de forma alguma participavam do poder, ou mesmo da representação, e de forma alguma participavam das decisões nacionais?

A norma de arrogarem-se as classes dominantes o direito de apresentarem-se como povo e como nação está fundamente ancorada na história. É que, até os nossos tempos, todas as revoluções, isto é, todos os grandes movimentos que alteraram a situação das classes sociais umas em relação às outras, consistiram em derrocar o domínio de determinada classe, que cumprira a sua missão histórica, substituindo-a por outra, que vinha em ascenção. Eram revoluções que substituíam uma minoria por outra minoria, e esta outra assumia o poder, dominava o Estado e transformava as instituições, amoldando-as aos seus interesses; era o grupo que se capacitara para o domínio e que exercia o domínio, tendo sido chamado ao domínio pelas condições de desenvolvimento econômico. Por isso, e somente por isso, quando da derrocada de uma classe minoritária historicamente superada, a classe minoritária historicamente nova conseguia a cooperação das classes majoritárias, ou, pelo menos, a sua aceitação pacífica. A forma comum dessas revoluções consistia em serem, todas, revoluções de minorias. A maioria se colocava, consciente ou inconscientemente, a serviço da minoria ascencional, e o conjunto novo que forçava a mudança (classe minoritária ascendente mais as classes majoritárias dependentes) constituía, para efeito daquela transformação histórica, o povo. E isso permitia à classe minoritária ascendente a norma de falar, no poder, em nome do povo, como se, realmente, o representasse.

Cada nova classe que passava a ocupar o poder em lugar de outra, também minoritária, via-se obrigada, pela necessidade política, para alcançar os fins a que se propunha, para defender os seus interesses, a apresentar esses interesses não como seus apenas, mas como os interesses comuns de toda a sociedade, os interesses do povo. E expressava esses interesses em termos ideais, apresentava as suas formulações e teorias revestidas do caráter de generalidade, as suas normas como as únicas racionais e dotadas de vigência absoluta e até do condão da eternidade. E moldava a vida social de forma conveniente, definindo como sagrados os seus interesses, fixados como se fossem da totalidade, protegendo-os com a lei e com a força, e tentando protegê-los ainda pelo costume; e definindo como crime tudo o que atentasse contra os seus interesses, punindo e perseguindo os que o cometiam, ou apenas punham em dúvida o seu caráter sagrado e eterno.

Mas, na realidade, nada é eterno, e o sagrado de hoje pode ser o sacrílego de amanhã. Passou o tempo dos golpes de surpresa, das revoluções executadas pelas minorias conscientes à frente das massas inconscientes. Chegou o tempo em que as revoluções sociais só podem ocorrer com a participação das massas, isto é, das classes majoritárias, até aqui caudatárias das classes em minoria; chegou o tempo em que não há revolução social sem participação do povo, não como alavanca de minorias, mas compreendendo os motivos de sua participação e exigindo função dirigente que lhe compense os sacrifícios. Estamos, pois, vivendo a última fase histórica em que uma classe dominante minoritária pode arrogar-se o direito de se incluir entre o povo, de afirmar que defende os interesses do povo quando na verdade defende apenas os seus interesses, de apresentar-se como intérprete de todas as classes, de definir-se como nação. A eternidade dos sistemas políticos já não é aceita por ninguém. Quando a humanidade alcança o desenvolvimento a que chegamos em nosso tempo, admitir como final determinado sistema político seria negar o progresso humano; seria o mesmo que admitir que os nossos conhecimentos chegaram à plenitude, constituem o fim dos conhecimentos. Seria negar a própria ciência.

Claro que há sempre um pensamento conservador, alimentado pela classe dominante minoritária, em afanosa busca de eternidade para a sua dominação e obrigada a explicá-la e a justificá-la. Isto acontece porque, freqüentemente, as idéias se atrasam em relação à realidade: o conhecimento humano é condicionado pela ordem social e, portanto, entravado quando existem forças que buscam eternizar-se no poder. Conservadores são aqueles que não verificam quanto o processo histórico avançou objetivamente e quanto os seus conhecimentos estacionaram em situações precedentes. A separação entre a teoria e a prática social leva, finalmente, à perda de crédito, apesar do amplo e complexo aparelho de difusão de idéias e de conceitos. Quando a realidade nega objetivamente a validade de conceitos, conhecimentos, idéias e doutrinas, sua vigência está irremediavelmente condenada e não há propaganda capaz de salvá-la. Ora, a realidade política do mundo atual nega a eternidade do sistema em que as classes minoritárias se apresentam como povo, e aponta o seu fim generalizado e próximo. A realidade política do mundo atual afirma a presença do povo na história, como força motriz do desenvolvimento humano. E isso acontece porque o povo tomou conhecimento e consciência da necessidade de afirmar os seus direitos e defender os seus interesses, atingindo, portanto, à liberdade. Chegou à consciência da necessidade, que define a liberdade, após prolongado processo histórico, mas em condições diversas conforme cada país.

Todo país tem sua estrutura social peculiar, em dada fase histórica: as classes dominantes não são as mesmas em todos os países; as classes que constituem o povo também não são as mesmas. Para se definir o conteúdo do conceito de povo é preciso encará-lo segundo uma situação histórica determinada e segundo as condições concretas de cada caso, tomando como base a divisão da sociedade em classes. E é preciso não esquecer que o desenvolvimento social e o que se conhece, no curso desse desenvolvimento, como revolução, faz com que a composição das classes, e conseqüentemente a composição do povo mudem constantemente. Compondo-se de classes, camadas e grupos diferentes, o povo apresenta contradições internas. Admiti-lo como formando uma unidade é pura ilusão. Distinguir essas diferentes classes, camadas e grupos, e compreender as suas contradições não significa, entretanto, isolar umas das outras, mas situá-las devidamente. O critério justo sobre o conceito povo ajuda a compreender o papel das massas na história, particularmente na fase atual, e situa devidamente o complexo processo de desenvolvimento por que passam países como o Brasil, em que profundas mudanças estão ocorrendo e em que o mais importante aspecto do que é novo está, precisamente, na presença do povo na vida política.


 

CONCEITO DE POVO NO BRASIL

 

Deixamos de lado, propositadamente, a fase em que o Brasil era colônia. É suficiente, para definir quem é o povo no Brasil, considerar algumas fases de sua existência autônoma: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Convém repetir o que convencionamos aceitar como geral no conceito de povo, antes de situar os três momentos particulares referidos: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive. Definindo, em relação a cada uma das três fases, quais as tarefas do desenvolvimento progressista (nos dois primeiros) ou progressista e revolucionário (no último), e quais as classes, camadas ou grupos que se empenharam (ou se empenham) na solução objetiva daquelas tarefas, teremos definido quem era (e quem é) o povo em cada uma.

***

Comecemos pela mais antiga, a da Independência. A partir da segunda metade do século XVIII, particularmente no seu final, o problema político fundamental, no Brasil, é o da Independência: realizar a Independência constitui a tarefa do desenvolvimento progressista, naquela fase. Cada fase coloca os problemas quando esboça ou alcança as condições para resolvê-los. O problema da Independência, assim, não apareceu acidentalmente: condições externas e condições internas fizeram com que surgisse, esboçaram e depois definiram objetivamente as condições para resolvê-lo. A essência dos laços que subordinavam o Brasil a Portugal, na referida fase, encontrava-se no regime de monopólio comercial, que assegurava à metrópole participação espoliativa na renda das trocas entre a colônia e o exterior, no sentido da exportação e no sentido da importação, além da espoliação realizada com a tributação interna desigualmente distribuída, onerando os menos afortunados, como é da boa prática colonial em todos os tempos.

A quem interessava a Independência? Externamente, interessava a quem se propunha conquistar o mercado brasileiro: a burguesia européia, em ascenção rápida com a Revolução Industrial, e particularmente a burguesia inglesa, classe dominante em seu país. A expansão burguesa era incompatível com os mercados fechados, com as áreas enclausuradas, com o monopólio comercial mantido pelas metrópoles em suas colônias. Quando as condições mundiais estivessem amadurecidas, e os fatos, — no caso, as guerras napoleônicas, — assinalassem o desencadeamento do processo, a Inglaterra, dominadora dos mares, isto é, da circulação mundial de mercadorias, participaria ativamente dos movimentos de autonomia na área ibérica do continente americano.

A quem interessava a Independência, internamente? Antes de verificar este ponto, convém ter uma idéia da estrutura social brasileira na época. Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes no Brasil. Desses quatro milhões, um milhão e duzentos mil são escravos. Do ponto de vista social, a população se reparte em: a) senhores de terras e de escravos, — que constituem a classe dominante, — e são em vastas áreas, senhores de terras e de servos, quando nelas existem relações feudais; b) pessoas livres, não vivendo da exploração do trabalho alheio, agrupadas numa camada intermediária, entre os senhores, de um lado, e os escravos e os servos, de outro, camada que recebera grande impulso com a atividade mineradora, compreendendo pequenos proprietários rurais, comerciantes, intelectuais, funcionários, clérigos, militares; c) trabalhadores submetidos ao regime da servidão; d) escravos.

Como os servos e escravos, tanto quanto os pequenos grupos de trabalhadores livres que se dispersam particularmente em áreas urbanas, não têm consciência política, embrutecidos que se acham pelo regime colonial, só participam da luta pela autonomia a classe dominante de senhores e a camada intermediária. Esta, incontestavelmente, participa desde muito cedo da referida luta e está presente em todos os movimentos precursores dela, movimentos que, como a Inconfidência Mineira, reúnem militares, padres e letrados. Pelas condições que caracterizam a vida colonial, entretanto, a luta pela autonomia só poderia ter possibilidades de vitória quando englobasse a classe dominante. E esta padece de vacilações constantes; só esposará o ideal da Independência em sua fase final, empolgando-o, para moldar o Estado segundo os seus interesses.

Está profundamente interessada no que a Independência tem de fundamental: a derrocada do monopólio de comércio. Suas vacilações, entretanto, não se prendem apenas à tradição colonial — quando era procuradora da metrópole aqui; prendem-se ainda ao temor de que a pressão externa contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo encontre na autonomia oportunidade para alcançar seus objetivos, e prendem-se também ao temor de que o abalo social que a autonomia pode proporcionar traga-lhe ameaças ao domínio, particularmente no que se refere à ascenção do grupo mercantil. A camada intermediária também está interessada na autonomia, pela qual elementos seus já combateram e se sacrificaram, e não apenas os do grupo mercantil, mas muitos outros, os intelectuais, padres e militares à frente. Servos e escravos não têm consciência política do processo, embora acompanhem-no com o seu apoio, na medida do possível.

Se a tarefa do desenvolvimento progressista do Brasil, nessa fase histórica, é a realização da Independência, como vimos, e se o povo, em tal fase, é representado pelo conjunto de classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva daquela tarefa, o povo brasileiro abrange, então, todas as classes, camadas e grupos da sociedade brasileira. Claro está que cada uma com o seu coeficiente próprio de esforço e de interesse: a classe dominante com as suas vacilações e pronunciamento tardio; a camada intermediária com a sua vibração; as demais na medida da consciência política de seus elementos. Ocorre que essa composição política é transitória: conquistada a Independência, com a manutenção da estrutura colonial (e por isso mesmo não se trata de uma revolução), povo tornar-se-á outra coisa. Dele já não fará parte a classe dominante senhorial que tratará, na montagem do Estado, de afastar totalmente as demais classes, camadas e grupos do poder e da participação política, como veremos adiante.

Situemos, agora, a fase em que o país muda de regime, com a derrocada da monarquia. Qual era a tarefa progressista a realizar no Brasil, em tal momento? Era, certamente, a de liquidar o Império, que representava o atraso. O Brasil apresentava-se agora muito diferente: sua população atinge a catorze milhões de habitantes; nela, os escravos, ao fim da penúltima década do século, são cerca de setecentos mil. A área escravista reduziu-se muito e mantém-se em estagnação econômica; mas a área da servidão ampliou-se muito, quanto ao espaço, embora compreenda principalmente zonas fora do mercado interno. Dos catorze milhões de habitantes, admite-se que apenas trezentos mil sejam proprietários, compreendidos parentes e aderentes: constituem a classe dominante. Nela, a velha homogeneidade desapareceu, entretanto, verificando-se uma cisão: há uma parte que permanece ancorada nas relações de trabalho da escravidão ou da servidão, e outra parte que aceita, prefere ou adota relações de trabalho assalariado. Desapareceu a homogeneidade porque, em determinadas áreas, as velhas relações foram, a pouco e pouco, substituídas por novas relações.

O Brasil passou, na segunda metade do século XIX, por grandes alterações, realmente: as cidades se desenvolveram depressa, em algumas zonas a população urbana cresceu em poucos anos, o comércio se diversificou e se ampliou, apareceram pequenas indústrias de bens de consumo, o aparelho de Estado cresceu, surgindo o numeroso funcionalismo que desperta tantas controvérsias, mas a divisão do trabalho multiplicou também as suas formas, aparecendo atividades até então desconhecidas. As profissões ditas liberais passaram a atrair muita gente; desenvolveu-se o meio estudantil; atividades intelectuais começaram a ocupar espaço na sociedade urbana. Ora, tudo isso revelava o aumento da velha camada intermediária colocada entre senhores e escravos, ou entre senhores e servos, ou entre patrões e empregados. Aparece, agora, com fisionomia definida, tão definida quanto lhe permitem as próprias características, como classe média, ou pequena burguesia. É curioso notar que constitui uma peculiaridade brasileira, e não só brasileira, o fato de ser a pequena burguesia historicamente mais antiga do que a grande burguesia e do que o proletariado. Nos fins do século XIX, sua importância é destacada, quando a burguesia começa a definir-se, recrutada particularmente entre os latifundiários, e o proletariado dá os primeiros passos, recrutado principalmente no campesinato.

As relações de trabalho no campo sofrem grandes alterações também. Enquanto algumas áreas permanecem aferradas à escravidão, que só abandonam com o ato abolicionista, e outras permanecem aferradas à servidão, as que se desenvolvem economicamente excluem o trabalho escravo, que as entrava, e começam a operar com o trabalho assalariado, em parte com os elementos introduzidos pela imigração sistematizada. É um processo paralelo e conjugado em que os polos antagônicos crescem interligados, diferenciando nos latifundiários uma camada que passa a constituir a burguesia, e diferenciando nos trabalhadores uma camada que passa a constituir o proletariado e o semi-proletariado. Esse processo se desenvolve também nas áreas urbanas, onde proletariado e semi-proletariado aumentam lentamente seus contingentes. Com a extinção do trabalho escravo, permanecerão as relações feudais e semifeudais no campo, conjugadas ao latifúndio. Nas áreas urbanas, a burguesia amplia muito depressa o seu campo, com as atividades comerciais, industriais e bancárias.

O Império fora estabelecido como forma de servir a uma classe dominante homogênea, constituída pelos senhores de terras, que o eram também de escravos e de servos. Agora, as condições são outras, e ele já não atendia aos interesses da classe dominante cindida entre latifundiários, senhores de terras e de servos, e burgueses. Não atendia, com mais forte razão, aos interesses da pequena burguesia. Nem aos do reduzido proletariado; nem aos do semiproletariado; muito menos aos dos servos. A tarefa progressista, nas condições brasileiras dos fins do século XIX, consistia em liquidar o Império, não no que representava de formal e exterior, mas no que tinha de essencial: todas as velhas relações econômicas e políticas que entravavam o desenvolvimento do país. Que classes, camadas e grupos estavam interessadas, pelas suas condições objetivas, em liquidar as velhas instituições, tão profundamente ancoradas no período colonial e transferidas ao período autônomo? Se a Independência reunira o apoio de todas elas, com uma participação proporcional à força de cada uma e ao grau de consciência política de seus elementos, já a República não provocaria a unanimidade. As classes interessadas na implantação do novo regime compunham uma ampla frente, encabeçada pela burguesia nascente, a que se somavam a pequena burguesia, o proletariado, o semiproletariado e os servos. Como acontecera com a Independência, a burguesia nascente se mostrava vacilante; a pequena burguesia, que esposara muito antes o ideal republicano, era mais enérgica em suas manifestações; o reduzido proletariado e particularmente o semiproletariado não haviam alcançado ainda o grau de consciência política necessário a uma participação eficiente; e a servidão permanecia estática, isolada no vasto mundo rural. Quem constituía o povo, então? Estas classes, evidentemente, as que estavam interessadas na tarefa progressista, historicamente necessária, de criar a República. A classe latifundiária não fazia parte do povo. Seu último serviço fora a Independência.

Gerada a circunstância em que se consumaria a derrocada do velho regime, a classe média, representada particularmente pelo grupo militar, assumiu a direção dos acontecimentos. Mas a burguesia nascente apressou-se em compor as forças com o latifúndio para poder moldar o novo regime na conformidade com os seus interesses e os das velhas forças sociais. Como por ocasião da Independência, assiste-se a um processo claramente repartido em duas fases: a primeira, em que o povo, representado pelas classes interessadas na realização das tarefas progressistas, opera unido e consuma os atos concretos relativos à transformação historicamente necessária; a segunda, em que a classe dirigente, a que detém a hegemonia na composição que constitui o povo, torna-se a nova classe dominante, e comanda as alterações à medida dos seus interesses, preferindo a retomada da aliança com as forças do atraso à manutenção da aliança com as forças do avanço. A unidade tácita e eventual da primeira fase se desfaz; as contradições e os antagonismos de classe reaparecem.

Estas duas fases repetem-se em todas as oportunidades em que as transformações se limitam a substituir a dominação de uma minoria pela dominação de outra minoria que, transitoriamente, recebe o apoio da maioria e dele se vale para chegar ao poder. Isso não aconteceu apenas no Brasil, evidentemente; aconteceu por toda a parte, ao longo dos séculos, mas por toda a parte as condições para que os fatos se passassem desta maneira foram se tornando cada vez mais difíceis. No Brasil também: quando da Independência, a clase dominante dos senhores não teve muitas dificuldades para separar-se das outras classes, camadas e grupos sociais que com ela haviam constituído o povo, para a tarefa progressista da emancipação: essas dificuldades não faltaram, contudo, e foram assinaladas nas rebeliões provinciais que sacudiram o novo Império até os meados do século XIX. Mas os senhores venceram esses obstáculos, dominaram as rebeliões e tomaram conta totalmente do País, impondo-lhe as formas políticas e institucionais que lhes convinham.

Depois de consumada a República, as coisas já se tornaram mais difíceis. A classe dominante minoritária desligou-se, realmente, do conjunto em que se compunha com as outras classes, camadas e grupos sociais, constituindo o povo, e isolou-se no poder, a fim de desfrutá-lo sozinha. Mas encontrou grandes obstáculos para conseguir seu intento. A pequena burguesia brasileira, antiga na formação e antiga nas reivindicações políticas — e a República era uma dessas velhas reivindicações, esposada desde os tempos coloniais — defendeu bravamente as suas posições e houve necessidade de cruentos choques para desalojá-la. O florianismo foi a sua expressão específica e desempenhou papel importante na história política brasileira. Para manter-se no poder, a burguesia nascente foi obrigada a rearticular-se com a classe latifundiária, exercer ações de força e montar um sistema de repressão, a chamada “política dos governadores”, que abrangia todo o País. Mais do que isso: foi obrigada a articular-se com forças externas para manter-se no poder. Quando Campos Sales, estabelecido o domínio das oligarquias, transaciona o funding com o imperialismo inglês, articula uma frente dominante que associa latifundiários, burguesia e imperialismo, contra o povo brasileiro.

Vimos, de forma prática, ligando o conceito às situações históricas concretas, quem era o povo brasileiro, em duas fases distintas. Estamos em condições, finalmente, de definir quem é o povo brasileiro, hoje, nos dias que correm, na fase histórica em que vivemos, de que participamos. Qual a tarefa progressista e revolucionária, na atual etapa da vida brasileira? Note-se: pela primeira vez aparece o conceito de revolução quanto às tarefas históricas, no que se refere ao nosso País. A Independência e a República, com efeito, foram tarefas progressistas, mas não foram tarefas revolucionárias: a classe dominante permaneceu a mesma, embora, no segundo caso, tivesse, depois da mudança do regime, repartido o poder com a nascente burguesia, continuando hegemônica. Agora, trata-se de liquidar, definitivamente, a classe latifundiária, tornada anacrônica pelo desenvolvimento do País. Trata-se de substituí-la. Trata-se, ainda, de quebrar a aliança que a vincula ao imperialismo, derrotando também a este e barrando-lhe a ingerência no processo nacional.

Qual a estrutura da sociedade brasileira, nos nossos dias? O Brasil mudou muito, realmente, em relação ao que era nos fins do século XIX, quando se instaurou a República. Participou, de uma forma ou de outra, de duas guerras mundiais, e sofreu os efeitos da maior crise atravessada pelo regime capitalista. As guerras e a crise tiveram importantes reflexos em nosso País: permitiram rápidos impulsos à sua industrialização e a conquista do mercado interno pelo produtor nacional. Foram pausas transitórias na pressão imperialista, e por isso tivemos oportunidades desafogadas de progredir mais depressa. Mas não foram causas do progresso. As causas acham-se sempre ancoradas no desenvolvimento das forças produtivas e na acumulação decorrente. O processo, nas fases especiais referidas, apenas teve seu ritmo acelerado. O fato é que, no século XX, o Brasil vai se tornando, cada vez mais depressa, um País capitalista. Não importa aqui, evidentemente, analisar as características desse capitalismo, que se desenvolve em País de economia dependente, com estrutura de produção entravada ainda pelos remanescentes coloniais. Importa constatar o fato.

O desenvolvimento capitalista, cuja demonstração mais evidente se encontra na forma e na rapidez como reagiu a economia nacional aos efeitos da crise de 1929, teve profundos reflexos na estrutura social do país e em sua vida política. À proporção que as relações capitalistas se ampliam, a burguesia brasileira cresce e se organiza, definindo as suas reivindicações políticas; e, paralelamente, crescem o proletariado e o semiproletariado, que se organizam, definindo aquele as suas reivindicações políticas. Por força dos mesmos efeitos, reduz-se o poder da classe dos latifundiários e no campo fermentam inquietações. Aumenta a pequena burguesia, que se multiplica em atividades, em disputa de melhores oportunidades. Está presente nos grandes episódios políticos: as campanhas de Rui Barbosa, o tenentismo, a revolução de 1930. No vasto mundo rural, o campesinato começa a acordar do sono secular: aparecem as revoluções camponesas, travestidas de fanatismo religioso; primeiro Canudos, depois o Contestado, e prossegue na luta dos posseiros e nas organizações atuais, as Ligas Camponesas, que tanto surpreendem e assustam os que acreditavam piamente na eternidade do conformismo.

A classe dos latifundiários continua dominante, mas suas perspectivas são agora cada vez mais estreitas. Somente subsiste mediante alianças: a) aliança com o imperialismo, de que aproveita os empréstimos constantes para financiamento de safras invendáveis, mas que já a protege mal, porque força a baixa dos preços dos produtos que ela coloca no exterior, explora a comercialização do que ela produz, e fala até em reforma agrária, que parece um sacrilégio; b) aliança com uma parte da grande burguesia comercial, bancária e mesmo industrial — que também se associa ao imperialismo,— desejosa de substituir os latifundiários como curadora deles, mas necessitando, internamente, de apoiar-se nesse velho e carunchoso reduto do atraso, pelo temor de transformações que ultrapassem os seus anseios e interesses. O imperialismo joga com as duas classes: a velha, que o serviu tão bem e que ele subordina tão dócil e facilmente com as manipulações do comércio exterior e com os empréstimos; e a nova, que ele subordina graças à associação de interesses e com novos empréstimos. Está presente por toda a parte: quando um brasileiro acende a luz, faz a comida, fala no telefone, toma o bonde, escova os dentes, raspa a barba, liga o rádio, vai ao cinema, em todos esses momentos encontra a presença do imperialismo, e a sua mão rapace, que lhe cobra o preço de todos os atos da vida cotidiana.

A burguesia cresceu muito, de fato, e comporta perfeitamente, agora, a divisão clássica em grande, média e pequena. Quanto ao imperialismo, ela está mais próxima dele quanto mais alta, mas em todos os três níveis há elementos que sofrem as suas ações e que as combatem. O proletariado desenvolveu-se amplamente também, nas áreas urbanas principalmente, mas também no campo. Os numerosos elementos antes submetidos a servidão começam a transitar para o semiproletariado: vastas áreas territoriais vão sendo integradas na economia de mercado, restringindo-se a servidão e semi-servidão. É o campesinato que oferece as alterações mais evidentes e denuncia mudanças inevitáveis. O latifúndio está condenado e a própria burguesia concorda com essa condenação, temendo, contudo, efetivá-la, pois ampara-se ainda, na luta contra o proletariado, nessa base secular do atraso. O campesinato está sacudindo, a pouco e pouco, as suas peias, e apresenta reivindicações recebidas com indisfarçável alarma pela classe dominante.

O poder está repartido entre a alta burguesia e os latifundiários, ligados, todos, ao imperialismo. Estas classes exercem o poder, porém, sob fiscalização rigorosa e combate continuado; as pressões provêm das demais classes, internamente, e do imperialismo, externamente. A resultante é, esporadicamente, favorável ao interesse nacional, porque mesmo a alta burguesia tem ainda frações ligadas aos interesses brasileiros, mas estes lances isolados resultam de circunstâncias especiais, como aquelas de que resultou a siderurgia do Estado, ou de campanhas tempestuosas, como a de que surgiu o monopólio na exploração petrolífera. O cerne da aliança que une a alta burguesia, a classe latifundiária e o imperialismo reside na política econômica e financeira, cujo aparelho é zelosamente defendido, passando e sucedendo-se governos aparentemente contrastantes mas permanecendo rigorosamente a mesma política e o mesmo grupo burocrático que representa a confiança da frente antinacional.

Na luta pelo poder, refletem-se, como é normal, as profundas contradições e antagonismos que assinalam a presente fase histórica e correspondem ao quadro real, à situação objetiva. Essa luta, aparentemente, é travada pelos partidos, mas quando praticamos uma análise mais atenta e verídica aparece o verdadeiro contorno dela, que ultrapassa amplamente o âmbito dos partidos, transferindo-se a outras organizações que suprem as deficiências com que os partidos colocam os termos daquela luta: os sindicatos, as organizações estudantis, as Forças Armadas, a Igreja, esta ainda com ponderável influência no campo. Tais organizações estão mobilizadas, participam ativamente da luta política. Vista em grande escala, essa luta apresenta em relevo o problema democrático.

O avultamento do problema democrático deriva de que a manutenção das liberdades democráticas permite o esclarecimento político, e o esclarecimento político permite a tomada de consciência pelo povo, e a tomada de consciência pelo povo permite a execução das tarefas progressistas que a fase histórica exige. Manter as liberdades democráticas, significa, pois, inevitavelmente, ter de enfrentar aquelas tarefas e resolvê-las, segundo a correlação de forças, quando as forças populares são muito mais poderosas do que as que estão interessadas na manutenção de uma estrutura condenada. Para mantê-la, entretanto, torna-se indispensável suprimir as liberdades democráticas. O clima democrático asfixia progressivamente as forças reacionárias, que se incompatibilizaram definitivamente com ele, pedem, imploram um governo de exceção, um golpe salvador, uma poderosa tranca na porta a impedir a entrada do progresso. Tentam, com a freqüência determinada pelas circunstâncias, a sinistra empresa, perdem sucessivamente todas as oportunidades, sendo levadas ao desespero. Mas procuram recuar em ordem, sempre, sacrificando alguns quadros de mais evidência, substituindo-os, recondicionando-os, e seguem outro caminho, o de apresentar uma fachada democrática que esconda o fundo antidemocrático. Buscam, por todos os meios, organizar uma democracia formal em que seja estigmatizado como subversivo tudo o que fere o poder exercido pelos latifundiários e pela alta burguesia em ligação com o imperialismo, em que seja punível qualquer pensamento contra o atraso e a violência de classe. Essa ânsia exasperada em deter a marcha inevitável da história, em sustar o processo político, ameaça o País com a guerra civil, pois as forças antinacionais não recuarão ante ato algum que lhes prolongue o domínio. Assim como no campo internacional o imperialismo preferiria conflagrar o mundo, com a guerra atômica, a ceder as suas posições, no campo nacional aquelas forças preferem conflagrar o País a ver derrotados os seus interesses. Poderão chegar a isso, ou não, entretanto, na conformidade com a correlação de forças sociais.

Quais as tarefas progressistas e revolucionárias desta fase histórica, então? Libertar o Brasil do imperialismo e do latifúndio. Realizá-las, significa afastar os poderosos entraves que se opõem violentamente ao progresso do país, permitindo o livre desenvolvimento de suas forças produtivas, já consideráveis, e o estabelecimento de novas relações de produção, compatíveis com os interesses do povo brasileiro; significa derrotar o imperialismo, alijando sua espoliação econômica e ingerência política, e integrar o latifúndio na economia de mercado, ampliando as relações capitalistas; significa, politicamente, assegurar a manutenção das liberdades democráticas, como meio que permite a tomada de consciência e a organização das classes populares; significa impedir que a reação conflagre o País, jugulando rigorosamente as tentativas libertadoras; significa, concretamente, nacionalizar as empresas monopolistas estrangeiras, que drenam para o exterior a acumulação interna, as de serviços públicos, as de energia e transportes, as de mineração, as de comercialização dos produtos nacionais exportáveis, as de arrecadação da poupança nacional; significa a execução de uma ampla reforma agrária que assegure ao campesinato a propriedade privada da terra e lhe dê condições para organizar-se econômica e politicamente e para produzir e vender a produção; significa, conseqüentemente, destruir os meios materiais que permitem ao imperialismo exportar a contra-revolução e influir na opinião pública e na orientação política interna; significa desligamento total de compromissos militares externos; significa relações amistosas com todos os povos.

Quais as classes sociais interessadas na gigantesca tarefa progressista e revolucionária com que nos defrontamos? Parte da alta, média e pequena burguesia, a parte de cada uma desligada de associação, compromisso ou subordinação ao imperialismo; o proletariado; o semiproletariado e o campesinato, com participação ativa na medida da consciência política que apresentem os seus componentes. Povo, no Brasil, hoje, assim, é o conjunto que compreende o campesinato, o semiproletariado, o proletariado; a pequena burguesia e as partes da alta e da média burguesia que têm seus interesses confundidos com o interesse nacional e lutam por este. É uma força majoritária inequívoca. Organizada, é invencível. Para organizá-la, entretanto, para permitir que seus componentes tomem consciência da realidade, superando o concentrado bombardeio da propaganda imperialista, arrimada em poderosos recursos materiais e detentora do aparelho de difusão do pensamento, faz-se indispensável o regime democrático, de liberdade de pensamento, de reunião e de associação. Estão excluídos do povo, pois, nesta fase histórica, e agora para sempre, enquanto classes, os latifundiários, a alta burguesia e a média comprometidos com o imperialismo, como os elementos da pequena burguesia que o servem. É o conjunto das classes, camadas e grupos sociais que compõem o povo que representa, assim, o que existe de nacional em nós.

O povo, entretanto, agora como em fases anteriores, divide-se em vanguarda e massa. Massa é a parte do povo que tem pouca ou nenhuma consciência de seus próprios interesses, que não se organizou ainda para defendê-los, que não foi mobilizada ainda para tal fim. Faz parte das tarefas da vanguarda do povo, conseqüentemente, educar e dirigir as massas do povo. Só sob regime democrático, na vigência das liberdades democráticas, isto é possível, e é justamente por isso que as forças reacionárias se opõem desesperadamente à vigência daquelas liberdades, e permanecem profunda e vitalmente interessadas em impedir que as massas se esclareçam, tomem consciência de seus interesses e das formas de defendê-los, e se organizem para isso. Embora disponham de poderosos recursos e do domínio quase total do aparelho de difusão do pensamento e influam, por isso, ainda bastante sobre as massas, estas lêem no livro da vida, que é muito mais rico em ensinamentos do que os livros impressos ou a palavra falada, e a realidade as ensina, concretamente, todos os dias.

O que diferencia a tarefa progressista de hoje das tarefas progressistas do passado é a amplitude de que se reveste sob as condições atuais. O que a faz revolucionária, como em alguns casos do passado, mas não no Brasil, é que a transformação agora incluirá a substituição da classe dominante. O que a torna específica do nosso tempo, na perspectiva geral do mundo, isto é, o que ela apresenta de novo, enquanto revolucionária, e peculiar ao caso brasileiro, mas também nos casos idênticos ao do Brasil, que os há, é que não se processará mais a simples substituição de uma minoria por outra minoria, apoiada esta, tácita ou conscientemente, pela maioria que, somada com aquela minoria, constitui eventualmente o povo. O novo, no processo político, está justamente em que a classe dominante minoritária, ou a associação de classes dominantes minoritárias — no caso, principalmente latifundiários e parte da alta burguesia — não será substituída por uma nova classe dominante minoritária, mas por todo o conjunto que compreende o povo. Isto é: não será possível à parte da burguesia que se integra no povo realizar a revolução com o apoio de todo o povo e, conquistado o poder, alijar o restante do povo da participação nele. Em termos políticos: trata-se de uma revolução democrático-burguesa, mas de tipo novo, em que a componente burguesa não terá condições para monopolizar os proventos da revolução. As possibilidades de operar o desenvolvimento material e cultural do Brasil para proveito apenas da burguesia estão encerradas.


 

POVO E PODER

 

Não era sem razão que a Constituição de 1824 consignava que aos parlamentares cabia o tratamento de “altos e poderosos senhores”. Eles eram, realmente, altos, poderosos e senhores, — senhores de terras e de escravos ou de servos, altos pela distância vertical que os separava dos que não eram senhores, poderosos porque retinham todo o poder, reservavam-se todos os proveitos políticos da Independência e moldavam o Estado à imagem e semelhança de sua classe, faziam dele instrumento adequado à defesa de seus interesses.

Os direitos políticos eram hierárquicos: ficavam excluídos das eleições, preliminarmente, todos os que se compreendiam na faixa dos “cidadãos ativos”, isto é, os que trabalhavam, os criados de servir, os que operavam a jornal, os caixeiros das casas comerciais, todos os que, em suma, auferiam rendimentos líquidos anuais inferiores ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca. E, claro, os escravos, que não eram considerados brasileiros, conforme determinava o artigo 5.°, em seu parágrafo primeiro. Mais tarde esse dispositivo foi emendado: os escravos passaram a ser considerados brasileiros; mas não eram considerados cidadãos. Os eleitores do primeiro grau deveriam ter rendimento líquido anual superior ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca; os de segundo grau, que escolhiam os deputados e senadores, deveriam tê-los superiores ao valor de 250 alqueires de farinha de mandioca; aos candidatos a deputados exigia-se rendimento superior ao valor de 500 alqueires de farinha de mandioca; aos candidatos a senadores, superior a 1.000 alqueires. Era a hierarquia da mandioca, padrão da moeda política no novo País. Além disso, aos candidatos a deputados e senadores exigia-se ainda a qualidade de proprietário foreiro ou rendeiro por longo prazo de bem de raíz no campo, de fábrica ou estabelecimento industrial. Ficavam excluídos, assim, os que auferissem renda de atividade mercantil. Eram ou não eram “altos e poderosos senhores”?

Com a Maioridade, que encerra, praticamente, o período de intensa agitação popular ligado ao processo da Independência, os “altos e poderosos senhores” ficam absolutos no poder. Em 1841, encerram o País num círculo de estreita subordinação ao poder central e entregam à polícia amplas atribuições judiciárias. Criam ainda o Conselho de Estado, característico da classe senhorial. Em 1846, reformam a lei eleitoral, tornando-a mais dura do que a anterior e, nela, a pretexto da desvalorização da moeda, fixam os direitos eleitorais em base metálica, dobrando, conseqüentemente, os mínimos antes exigidos. Não se falava em analfabetos, naquele tempo; não era necessária essa discriminação para afastar o povo dos direitos políticos; o povo era privado desses direitos pelas exigências da renda. A lei era clara: só os “altos e poderosos senhores” podiam ser eleitos.

Mas, em 1850, o Brasil tinha pouco mais de oito milhões de habitantes, dos quais mais de dois e meio milhões eram escravos. Isto é: em cada três brasileiros, um era escravo. Decreto de 5 de julho de 1876 declarou que o País tinha 1.486 paróquias eleitorais e 24.637 eleitores, para uma população de dez milhões de habitantes. O eleitorado, assim, reduzia-se a 0,25% da população. Esta exiguidade mostra a tremenda pobreza da classe média brasileira, na época: ela não participava do elementar direito eleitoral, próprio e privativo da classe senhorial. No Município Neutro, segundo dados citados por Joaquim Nabuco, o colégio eleitoral inferior a 6.000 eleitores compunha-se de 2.121 funcionários civis e militares, 1.076 negociantes, 616 proprietários, 398 médicos, 211 advogados, 207 engenheiros, 179 professores, 145 farmacêuticos, 236 artistas, 58 guarda-livros, 76 clérigos, 56 despachantes, 27 solicitadores, etc.

“As eleições primárias — conta um historiador — sempre foram a turbulência e a pancadaria dentro e fora das igrejas, à pergunta sacramental se alguém tinha que denunciar suborno ou concluio para que a eleição recaísse em determinadas pessoas. Nesses conflitos, venciam os grupos mais poderosos ou mais vantajosamente armados. As eleições secundárias eram a fraude, a assinatura dos eleitores em folhas de papel em branco remetidas aos presidentes das províncias”. João Francisco Lisboa, severo observador dos costumes, depõe assim: “A violência parece ser uma das condições indeclináveis do nosso sistema eleitoral. Durante a crise, e sobretudo no dia da eleição, o espanto e o terror reinam nas cidades, vilas e povoações; os soldados e carcereiros percorrem armados as ruas e praças; há gritos, clamores, tumultos de todo gênero; dir-se-iam os preparativos de uma batalha, não os de um ato pacífico, e a cena do feito termina às vezes com espancamentos, tiros e descargas”. O ensaísta maranhense define adiante as eleições, na época, como “sistema combinado da trapaça, falsidade, traição, imoralidade, corrupção e violência”.

As alterações ocorridas na sociedade brasileira, na segunda metade do século XIX, que desembocariam na mudança de regime, conseqüentes às alterações ocorridas na estrutura econômica do País, pressionariam no sentido da inevitável ampliação dos direitos políticos. A agitação começou em 1855, com a Lei dos Círculos. Contra ela manifestou-se o Senado num pronunciamento característico: “Os deputados e senadores não sairão mais dentre as pessoas notáveis e bastante conhecidas para se fazerem aceitas por uma província inteira; os empregados subalternos, as notabilidades de aldeia, os protegidos de alguma influência local serão os escolhidos”. Era a reação dos senhores rurais contra “a chusma”. Cresceu a agitação com a reforma eleitoral pela eleição direta, tese dos liberais, desde 1862, que o Gabinete Sinimbu tentaria transformar em lei, o que só ocorreria com o Gabinete Saraiva, em 1881. Os debates foram longos e agitados: o projeto proposto por Sinimbu, vitorioso na Câmara por 81 contra 16 votos, foi acintosamente rejeitado pelo Senado. Mas, mesmo na Câmara, o dispositivo que concedia aos não católicos o direito de voto foi recusado, motivando a invectiva de Silveira Martins: “Câmara de servis”!

Mas já naquele tempo se levantava, com José Bonifácio, o Moço, o direito de voto para os analfabetos. A reforma mantinha as exigências fundadas na renda, e a nova concessão se tornaria inócua. E Joaquim Nabuco queria que “o direito de voto fosse extensivo a quantos a lei impõe o dever de morrer pela pátria, de modo que o sistema eleitoral não continuasse a ser uma comédia cheia de incidentes trágicos, ou uma tragédia cheia de incidentes cômicos”. A queda do Gabinete Sinimbú transfere o problema ao Gabinete Saraiva. Este chefe liberal ascende ao lugar que deveria caber a Nabuco de Araújo e que não lhe foi dado porque era partidário do sufrágio universal. Nabuco dissera, antes: “A eleição será de poucos, tão concentrada como está a propriedade... O remédio para isso estaria, Senhores, no imposto territorial que dividisse a grande propriedade inútil ou não cultivada e concorresse para regularizar as posses dos colonos ou rendeiros, e os direitos respectivos”. Palavras que, em 1871, correspondem às alterações sociais a que a reação conservadora ficaria surda. Palavras que custaram a quem as disse o alijamento da chefia do Gabinete que tornaria vitoriosa a eleição direta, num projeto rascunhado por Rui Barbosa, que sugeriria também um imposto sobre os aluguéis de casas, habitualmente majorados, em recibos falsos, destinados a provar que o inquilino pagava mais de cem mil réis anuais pela residência alugada, sendo esta uma exigência eleitoral cujo sentido discriminatório é evidente.

A eleição direta afetava apenas o formal, porém. Não tocava a essência do problema da representação. Ainda assim, a tramitação do projeto foi lenta, agoniada, tempestuosa. O mal não estava na lei, argumentava-se, mas “na massa ignorante da nação”. Escrevendo ao seu querido Gobineau, o Imperador afirmava, referindo-se ao problema: “Em todo caso, eu não tenho confiança senão na educação do povo”. Pedro II achava que o sufrágio universal era uma calamidade e que novas leis eleitorais “só poderiam ser perfeitamente bem sucedidas quando a educação política for outra que não a do nosso povo”. Era antiga, e peculiar a uma sociedade dominada por “altos e poderosos senhores”, a tendência em atribuir todos os males à “ignorância” do povo, e a admitir que só a “educação” deste permitiria o avanço político. E estava claro que os “altos e poderosos senhores” não estavam interessados nem na educação do povo nem em seu avanço político.

A aplicação da lei provou a sua inocuidade: “quando o Senador Dantas, Presidente do Conselho, assegurou à Câmara, em 1884, que a oposição teria do Governo, nas eleições daquele ano, as maiores garantias de liberdade, correu pelos bancos dos conservadores uma gargalhada geral: era porque os profissionais da fraude já estavam senhores das fraquezas da lei, portanto do segredo de burlá-la, e sabiam o que podiam valer aquelas promessas de garantia”, depõe um historiador. Em 1886, em plena campanha abolicionista, os conservadores no poder asseguraram a eleição de uma Câmara de prática unanimidade conservadora; e o Gabinete liberal de Ouro Preto, o último do regime, asseguraria, no poder, uma Câmara de prática unanimidade liberal. Nabuco de Araújo dizia que não havia, no Brasil, possibilidade de se formarem verdadeiros partidos políticos, “porque a sociedade brasileira era em geral homogênea e não havia nela, portanto, nada que a pudesse dividir profundamente”. É verdadeira realmente que a área política, — não a nação, — era homogênea, porque monopolizada pela classe dominante; o povo estava excluído dela. Se aquela área pertencia a uma só classe, não havia, de fato, divisão profunda entre as facções partidárias. A divisão existiria, e seria profunda, se da área política, e da representação particularmente, participassem as classes que constituíam o povo. E isso não acontecia.

Daí, conseqüentemente, a estreiteza do campo eleitoral, reduzido, já no final do regime, àquelas duas e meia dezenas de milhares de eleitores a que se referira Nabuco, a 0,25% da população do País. E as escolhas, que hoje nos parecem curiosas, mas que eram naturais, de um senador, como Afonso Lamounier, em Minas Gerais, por 54 votos, em 1888, já nos fins do regime. Taunay reuniu os dados eleitorais relativos ao Senado do Império, em um de seus trabalhos, sempre copiosos de informação. Examinemos esses números que comprovam a estreiteza do campo eleitoral, o monopólio sobre ele exercido pela classe dominante, a exclusão total do povo da vida política.

Na primeira escolha de Senadores, em 1826, para só falar nos que foram nomeados, o Pará elegeu J. J. Nabuco de Araújo com 94 votos; o Rio Grande do Norte elegeu Afonso de Albuquerque Maranhão com 21 votos; Alagoas elegeu Felisberto Caldeira Brant Pontes com 67 votos; o Espírito Santo elegeu Francisco dos Santos Pinto com 31 votos; Santa Catarina elegeu Lourenço Rodrigues de Andrade com 32 votos; Mato Grosso elegeu Caetano Pinto de Miranda Montenegro com 10 votos; São Paulo elegeu José Feliciano Fernandes Pinheiro com 108 votos; o candidato que alcançou maior votação foi Francisco Carneiro de Campos, na Bahia, com 502 votos. Nos meiados do século, o Amazonas, em 1852, levou ao Senado Herculano Ferreira Pena com 45 votos; o Espírito Santo, em 1850, a José Martins da Cruz Jobim com 64 votos; Mato Grosso, em 1854, a José Antônio de Miranda com 65 votos. Nos fins do regime, era ainda possível a escolha de um senador preferido por apenas 158 votos, como aconteceu, no Espírito Santo, em 1879, com Cristiano Benedito Otoni. O senador que alcançou maior votação em todo o período monárquico foi Evaristo Ferreira da Veiga, em 1887, em Minas Gerais, com 10.572 votos, sendo escolhido em detrimento de Manoel José Soares, que alcançara 10.900 votos. Logo após a adoção da eleição direta, e em um dos maiores colégios eleitorais do país, na Bahia, Rui Barbosa foi reconduzido à Câmara com pouco mais de 400 votos. Claro está que o povo não participava dos pleitos eleitorais e, portanto, na época, da atividade política, e, conseqüentemente, do poder.

A república burguesa é a forma política corrente que promove a ascenção capitalista seja, como nos Estados Unidos, sob roupagens clássicas, seja, como em países europeus, apenas disfarçada sob aspecto que revelam a conciliação com remanescentes feudais, chegando, na Inglaterra, a ostentar uma imponente e inócua fachada monárquica. Mas, no Brasil, a república não surgira de um processo por assim dizer clássico, o processo em que ela parece como o coroamento final das relações capitalistas amplamente implantadas. O capitalismo brasileiro dava apenas os primeiros passos, e carregava pesadíssimas heranças, a do passado escravista e a da resistência das relações feudais peculiares a uma área colonial. Devia, por tudo isso, apresentar uma fachada que a identificasse com as repúblicas existentes, — com o seu aparato institucional, — e um fundo em que se escondiam as profundas deficiências políticas ligadas ao atraso econômico. O capricho na fachada foi levado a extremo rigor, e adaptou-se, — não houve cópia, como se afirma geralmente, — a mais avançada lei básica, a dos Estados Unidos, para vestir o corpo desigual do País ainda recém egresso do escravismo. Concederam-se ao povo, formalmente, os direitos democráticos peculiares à revolução burguesa, mas não foram criadas as condições, — nem estava no poder dos indivíduos criá-las, — que permitissem tornar concretos aqueles direitos.

No que diz respeito à representação, e só este aspecto nos interessa aqui, revogou-se de plano o sistema eleitoral fundado na renda para se estabelecer o sufrágio universal. E só então surgiu, porque só então se tornou necessário, o problema do analfabeto. O voto era um direito concedido apenas aos homens maiores, com as exclusões conhecidas dos incapazes; mas apenas aos homens maiores que soubessem ler e escrever. Ficava, assim, excluída a mulher, — uma grande vítima da sociedade burguesa. Ficava excluído também o analfabeto. Se alfabetizar-se fosse um ato de vontade, apenas, isto é, se o regime tivesse condições para oferecer a todos o ensino de alfabetização, ainda assim a discriminação seria discutível. Como não era esse o caso — o Brasil estava longe de atingir uma etapa de desenvolvimento em que a alfabetização se constituísse em objetivo da classe dominante — a discriminação tinha um sentido antidemocrático evidente, e um claro conteúdo de classe. Foi aceita, entretanto, com naturalidade, por todos os motivos ligados ao meio e à época, e ainda porque a inteligência conservava, no Brasil, e ainda conserva, um timbre aristocrático, que classifica o homem culto, ou mesmo aquele rudimentarmente dotado de meios de entendimento e de expressão.

Encerrado o período de turbulência, em que a classe dominante, a dos latifundiários, associada à burguesia nascente que encabeçara a mudança do regime, retomou o poder e dele excluiu sumariamente os representantes da pequena burguesia, os militares que haviam participado dos acontecimentos, articulou-se um aparelho político simples, simétrico e eficiente, a que o governo Campos Sales deu pleno acabamento com a “política dos governadores”: os Estados federados eram entregues às oligarquias locais, ou à conjugação delas, que os geriam como feudos, e limitavam ao mínimo a representação. Os candidatos eram escolhidos pelo aparelho político, que os selecionava, e eram por ele consagrados em prélios eleitorais meticulosamente montados, com o concurso de funcionários bem treinados no ofício. As autoridades eleitorais eram as comuns, e todas da confiança das oligarquias, que monopolizavam o provimento das funções públicas, servindo-se delas para acaudilhar as componentes pequeno-burguesas.

O quadro aparece em todos os seus traços justamente nos episódios que contrastam com a rotina, nos casos de dissenção, de discrepância, de oposição: quando algum candidato não escolhido pelo aparelho oficial tenta o sucesso das urnas, quando isso ocorre no plano nacional, com a substituição do presidente, quando das derrubadas de oligarquias, etc. Contra os insubmissos lança-se a força total do aparelho, desde a polícia até o mecanismo das nomeações, desde o comando dos “coronéis” até o engenhoso sistema das atas falsas. E tudo culmina nos reconhecimentos, quando as comissões especiais, no Congresso, depuram tranquilamente os adversários, nas “degolas” conhecidas, afastando os que ousaram infringir essa curiosa ortodoxia da obediência. As eleições não merecem fé, as apurações não merecem fé, os reconhecimentos não merecem fé. E isto durou até 1930, quando as condições do País impuseram mudança. Foi então que um dos mais sagazes seguidores dos velhos processos disse a conhecida frase: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Traduzida em linguagem corrente, poderia ser entendida assim: “Façamos, nós da classe dominante, as modificações necessárias para que permaneçamos como classe dominante”.

A revolução de 1930, que correspondeu a novo impulso da burguesia brasileira para ampliar a sua participação no poder, com o apoio da pequena burguesia, criou um sistema eleitoral diferente, tornando o voto secreto, extensivo às mulheres e apurado por um aparelho especial, uma justiça específica. Manteve, entretanto, a exclusão dos analfabetos, isto é, dos elementos que não tinham, por condições de classe, acesso à cultura. A classe dominante não lhes permitia esse acesso, e punia-os por isso. Mas aí as condições eram muito diferentes: havia um operariado numeroso, dotado do mínimo de organização, e uma pequena burguesia cada vez mais interessada pelo problema político. As agitações da primeira República, rebeliões militares, campanhas de Rui Barbosa, tenentismo, assinalavam o fim de um sistema. O surto industrial, durante a primeira Grande Guerra, fizera crescer rapidamente o proletariado; antes de terminado o conflito, apareceram as primeiras grandes greves; o Partido Comunista foi organizado, em 1922, e a principal estrela do tenentismo aderira às “doutrinas exóticas” às vésperas da revolução de 1930. O engenhoso sistema eleitoral, em que os mortos votavam, as “degolas” se sucediam e as quarteladas alvoroçavam o País, estava condenado. Era mesmo necessário antecipar-se à revolução popular.

Mas, logo após a revolução que alterara o sistema eleitoral da forma antes referida, quando a vida política recebia saudável sopro renovador, apareciam personagens novos, partidos novos, correntes novas de opinião, as oligarquias tratavam de alijar os elementos ligados ao tenentismo, vindos no bojo do movimento militar, representantes típicos da pequena burguesia. Como os militares que fizeram a República, eles eram bons como instrumento, como executantes, como agentes da tomada do poder; para governar, para participar do poder, apresentavam inúmeros inconvenientes: tinham honestas idéias reformistas, algumas vezes, e até mesmo, em uns poucos casos, procuravam pô-las em prática; não respeitavam antiquíssimos direitos adquiridos, tradições mantidas pelo conformismo, desejavam representação democrática e mesmo justiça. Era demais, evidentemente. Começou a reação que, iniciada com a rebelião de 1932, deveria encrespar-se na vigorosa campanha de repressão que levou à revolução de 1935 e, pelos tortuosos caminhos do estado de sítio e do estado de guerra, chegou, finalmente, à ditadura do Estado Novo. Durante dez anos, o Brasil não conheceu eleições.

A segunda Guerra Mundial permitiu ao País novo impulso à sua industrialização, entrando agora no campo dos bens de produção. A derrota do nazi-fascismo impunha o retorno das instituições democráticas. Foi adotada, então, a legislação eleitoral anterior, com pequenas modificações, mantida a discriminação do analfabeto. A vida política voltou a agitar-se e novo período intercalar e breve de liberdade de opinião ocorreu. O grande fantasma, agora, era o proletariado: cumpria reduzí-lo. Foram tomadas as medidas necessárias: cassou-se o mandato de mais de vinte parlamentares comunistas, fora os estaduais, colocou-se o Partido Comunista na ilegalidade, controlou-se a atividade sindical nos moldes da ditadura estadonovista. Os governantes da primeira República diziam que a questão social, no Brasil, era um caso de polícia; os da segunda tornaram-na, realmente, um caso de polícia. Supunham-na passível de solução através das ações do subdelegado. O aparelho de prevenção e de repressão a qualquer idéia que não coincidisse com os interesses da classe dominante cresceu e se especializou, passando, inclusive, a ser controlado pelo imperialismo. Até se transformar, nos dias que correm, nessa organizada e rendosa “indústria do anticomunismo”, a que estamos assistindo.

O eleitorado brasileiro compreendia, em 1945, quando o Brasil retomou a fachada democrática, 7.460.000 eleitores. Em 1954, atingiu a 15.105.000. Para as eleições de 1958, foi exigida rigorosa depuração. Preocupava a determinadas forças políticas dominantes a crescente participação popular nas eleições. O objetivo foi excluir os que “mal sabiam assinar o nome” e tinham a ousadia de pretender competir com os doutores, de participar da escolha política. Em todos os países, normalmente, o eleitorado cresce com o tempo, quando menos pela simples força do aumento vegetativo da população adulta. No Brasil, assistiu-se a esse fato singular: a redução do eleitorado que, dos 15.105.000 de 1954 passou aos 13.780.000 de 1958. Mais de um milhão de brasileiros perdeu o direito de votar. Desses quase catorze milhões, comparecaram ao pleito daquele ano apenas 11.340.000; em cada cinco brasileiros, um deixou de usar o direito de voto. Não se apurou, certamente, mas é fácil deduzir que, entre os quase dois milhões de faltosos, haveria esmagadora maioria de elementos do povo.

Comparando o eleitorado de 1958 com a população do País, à base do censo de 1950, chega-se à triste conclusão de que constituía parte minoritária da população ativa. Havia, no Brasil, realmente, cerca de 31.000.000 de maiores de 18 anos. Um eleitorado de 13.780.000 constituía, portanto, 44% daquela população adulta. A maioria dela, apta pela idade ao exercício do voto, ficava privada de votar: quase 17.000.000 de brasileiros sofriam dessa privação, em 1958. Se considerarmos as estimativas da população para 1962, verificaremos que o total de brasileiros gira em torno de 75.000.000, e o total de maiores de 18 anos em torno de 45.000.000. O eleitorado, entretanto, permanece sendo da ordem de 15.000.000. Isto quer dizer que, se, em 1958, em cada dois brasileiros maiores, um era privado de votar, em 1962, em cada três brasileiros maiores, dois são privados de votar. É, assim, uma democracia que encolhe, enquanto o País se amplia. Mas esse encolhimento é o objetivo ideal das classes dominantes, que almejam uma consulta eleitoral ainda mais restrita, censo alto, eleição indireta, governos de elites, e outras fórmulas que apenas revelam horror ao povo, receio de suas sentenças, pavor de seus pronunciamentos.

A discriminação contra o analfabeto está longe de ser universal. Ao contrário, está ligada ao colonialismo mais retrógrado e revela a presença de classes dominantes incompatibilizadas com as mais rudimentares formas de democracia. Tal discriminação não existe na Inglaterra, mas não existe também na índia, nem no Ceilão, nem na Indonésia. Constitui, pois, fórmula antiquada destinada a negar ao povo os direitos políticos. Proibindo o voto ao analfabeto, realmente, proibe-se o voto ao menos provido de meios materiais, aos pobres, desde que, no Brasil, educação é privilégio de classe, isto é, depende da posse de meios materiais. O proletariado não dispõe desses meios; o campesinato também não dispõe desses meios; é o povo, por conseguinte, que não dispõe desses meios. No Ceará, para mencionar apenas um exemplo, havia 70% de analfabetos, na Capital, em 1940, baixando para 68%, em 1950; no sertão, em 1950, a maioria dos municípios apresentavam um índice de 77,4% de analfabetos, em alguns atingia a 88%, e 75% da população cearense estava no campo. Indaga-se: quem votava, no Ceará, que classes estavam representadas nesse eleitorado? Esta é uma forma de discriminar. Mas há formas de proteger, de criar e manter privilégios. Para indicar uma delas, tomemos outro exemplo, o de Sergipe: os impostos que gravam os latifundiários permanecem, ali, insignificantes, o territorial jamais atingiu 3% do total dos impostos (era de 2,08% em 1945, e de 2,49% em 1958); o de transmissão causa mortis jamais atingiu 2% do total de impostos (era de 1,06% em 1945, e de 1,99% em 1958). Assim se caracteriza uma estrutura econômica que condiciona a estrutura social e molda a estrutura política.

Mas não é tudo, está muito longe de ser tudo. Não apenas se nega a parcelas majoritárias do povo os direitos políticos. Vai-se mais longe, conspurcando a participação das reduzidas parcelas de povo que têm acesso a esse direito privativo das elites. No Ceará, as eleições de 1958 realizaram-se em plena seca, fenômeno que apenas dá colorido às misérias do latifúndio, empobrecendo mais os pobres e enriquecendo mais os ricos, e constituindo-se, em suma, num dos mais rendosos negócios de latifundiários e comerciantes da zona assolada. Segundo depoimentos insuspeitos, os órgãos destinados a acudir às vítimas do flagelo funcionaram como órgãos eleitorais, carreando recursos para os candidatos das classes dominantes. É conhecida a longa história eleitoral de órgãos como o DNOCS e o DNER. Eis um depoimento, entre muitos outros, de como se processam as eleições: “Cabo eleitoral de candidato de bolsa bem recheada, conforme fotocópia existente, escreveu bilhete no verso da chapa de um político cearense, em presença do candidato a vereador da UDN, sr. Pedro Rodrigues, de Porteiras, propondo comprar votos de um a vinte a Cr$ 1.500,00; de vinte em diante a Cr$ 2.000,00. Assinou o proponente com a maior naturalidade do mundo. O original acha-se à disposição da Justiça Eleitoral. O escândalo não ficou só nisso. Na apuração, em Milagres, perante a respectiva Junta Eleitoral, estavam vereadores que tinham vendido votos aos ricaços vindos da Capital, a fim de comprovarem a saída dos mesmos nas urnas para o direito de recepção da segunda parcela do contrato. A primeira fora paga à vista...”

Outro depoimento: “Os negócios de compra e venda de votos, às claras, sem a mínima reserva, assumiram naquele município proporções nunca vistas no interior do Estado. Para deputado federal, houve quem gastasse um milhão e meio de cruzeiros. Para deputado estadual, a despesa de cada um atingiu 350 mil cruzeiros”. Terceiro depoimento: “Ao chegar em Porteiras, verifiquei que candidatos procedentes desta Capital e de outras partes do Estado haviam instalado, no centro da praça principal... seus quartéis-generais e passavam a comprar votos à razão de Cr$ 1.000,00. O eleitor recebia 50% no momento da transação, assinava uma promissória e deixava o título com o candidato ou seus agentes até o momento de votar. Após a votação, recebia o saldo... Mais tarde, porém, surgiu um problema novo: certos candidatos elevaram a cotação do voto para Cr$ 2.000,00. Em face disso, diversos eleitores voltaram à presença daqueles aos quais já haviam vendido os votos, tentando rescindir os contratos... A fim de assegurar a votação comprada, houve candidatos que instituiram o “voto de mochila”. Distribuíam as suas cédulas dentro de minúsculas sacolas de morim, dotadas de um elástico que o eleitor prendia à perna quando ia votar. Isso evitava que a chapa viesse a ser trocada pelos candidatos ou chefetes locais”.

Esta, entretanto, é a pequena corrupção. Mais importante, mais significativa, é a grande corrupção. No pleito presidencial de 1960, as forças políticas ligadas ao imperialismo, aos latifundiários e à alta burguesia realizaram “investimento” gigantesco. A mobilização de recursos para dominar e controlar os órgãos de orientação da opinião pública foi um espetáculo variado e curioso. Aquelas forças operaram uma demonstração de poderio econômico capaz de desanimar qualquer pessoa habituada a acreditar na representação eleitoral. E, hoje, já se chegou à conclusão de que as possibilidades de eleição de candidatos populares reduzem-se enormemente, diante do poderio econômico. Pois ainda mesmo essa precaríssima democracia, em que todos são desiguais perante a lei, pode levar as classes dominantes a derrotas e a situações difíceis, como aconteceu em agosto de 1961. Resta-lhes, em casos tais, pelos seus agentes, declarar interrompido o processo democrático, inválida a vontade popular, quebrados os dispositivos constitucionais. Detidos pela reação do povo, num episódio de profunda significação, aqueles agentes manobraram para uma emenda constitucional votada na calada da noite, tirando ao povo o direito de ter no poder o candidato de sua predileção. Tais decisões não revelam força, entretanto; revelam fraqueza. O imperialismo, os latifundiários e a alta burguesia não têm mais condições, no Brasil, apesar da grande e da pequena corrupção, para viver sob regime democrático, ainda que débil. Suas possibilidades para isso chegaram ao fim.

Resta-lhes uma nova linha de ação, que reduza ao mínimo ainda a própria representação eleitoral, com a elaboração de normas eleitorais, como em outros e grandes países, quanto à tradição política. A lei eleitoral francesa, por exemplo quebra inteiramente a proporcionalidade direta entre o número de eleitores e o número de representantes que escolhem. A lei eleitoral argentina estabelece que o partido maioritário fica, automaticamente, com maioria esmagadora de representantes, mesmo que a sua vitória tenha sido por reduzida margem, não havendo também proporcionalidade direta, mas inversa, entre o número de eleitores e o número de representantes. Há leis eleitorais de todos os tipos, evidentemente, e encontra-se sempre uma que sirva à espoliação da vontade popular. O problema é velho, as soluções variadas são velhas também.

Nos Estados Unidos, por exemplo, após a Guerra de Secessão, a 14ª Emenda à Constituição dava aos negros o título de cidadãos e o direito ao voto. Para evitar que os sulinos a burlassem foi baixada a 15ª Emenda, determinando que nem a União nem os Estados podiam impedir o direito de voto a qualquer cidadão, não importando “a raça, cor, ou prévia condição de servidão”. Foram aprovadas, entretanto, leis estaduais que proibiam o direito de voto aos que não fossem proprietários de certa extensão de terras. Os negros quase não possuíam terras e perderam, assim, aquele direito. Aconteceu que muitos brancos também não possuíam terras. Foi deliberado, então, que poderia votar todo aquele que pudesse ler um trecho da Constituição ou compreendesse a sua leitura, mesmo que não tivesse a porção de terras exigida pela lei. Todos os negros, praticamente, eram analfabetos, e foram privados do direito de votar. Mas aconteceu que havia também analfabetos brancos: quanto a estes, a autoridade escolhida pelos brancos decidia que entendiam perfeitamente o texto da Constituição que lhes era lido. Tais leis não podiam ser inquinadas de inconstitucionalidade: não violavam o direito de sufrágio por motivo “de raça, cor, ou prévia condição de servidão”. Se isso aconteceu no Sul, as coisas, no Norte, apresentavam aspecto diferente, mas no mesmo sentido. Lá, a discriminação era contra os imigrantes. Os Estados do Norte, então, estabeleceram a condição de saber ler e escrever para a conquista do direito de voto. Todas as leis discriminatórias foram mantidas pela Corte Suprema, que só liquidou a chamada “cláusula do avô”, que estados nortistas defendiam, exigindo-se dos novos eleitores que provassem, para conquista do direito de voto, que os seus respectivos avôs já tivessem gozado desse mesmo direito em 1860.

Há sempre possibilidades, pois, para a elaboração, pelos representantes de forças políticas retrógradas e agonizantes, de leis eleitorais que lhes prolonguem a agonia e a posse do poder. Mas tais leis, no fim de contas, provocam a reação profunda do povo, e podem levar a situações difíceis. Acontece que, ainda na vigência delas, as classes dominantes, ou os seus grupos no poder, sejam derrotadas. Resta, como na Argentina, declarar, com a simplicidade da violência, que as eleições em que o governo é derrotado não são válidas, que as eleições existem apenas para conferir chancela democrática à ditadura de classe. Essa confissão é muito difícil de ser feita. Seria a confissão de que as classes dominantes, no exercício do poder, não representam o povo, como alardeiam.

Há que distinguir, finalmente, entre corpo eleitoral e povo. No caso particular do Brasil, vimos como, entre 45.000.000 de adultos, só 15.000.000 são eleitores: população é uma coisa, povo é outra; população adulta é uma coisa, povo é outra. Eleitorado é uma coisa, povo é outra. Que distinção existe entre eleitorado e povo? No caso particular do Brasil, as classes estão desigualmente representadas no corpo eleitoral de 15.000.000 de pessoas: é provável que a quase totalidade dos latifundiários e da alta burguesia faça parte do eleitorado; os seus elementos têm para isso, desde que adultos, todas as condições, nada há que os discrimine. Mas já as outras classes estão representadas no eleitorado por frações, e não pela totalidade: essa fração pode ser estimada como razoável no que diz respeito à pequena burguesia, mas o mesmo não acontece com o campesinato, representado por fração mínima de seus elementos, e pelo proletariado e semiproletariado que, embora representado por uma fração maior do que a do campesinato, está longe de integrar o eleitorado na proporção de sua força numérica. Se isso acontecesse, os resultados eleitorais, em nosso País, seriam muito diferentes do que têm sido. Dizer, pois, que as eleições representam a oportunidade em que o povo se manifesta, define a sua vontade, escolhe os seus representantes, é uma falsidade que não resiste à menor análise. Um exame meticuloso da composição de classe do eleitorado brasileiro prova que as classes estão nele des­pro­por­cio­nal­men­te representadas, sempre em detrimento daquelas que, realmente, constituem o povo. É fácil, aliás, verificar o fato, pela desproporção, evidente à simples observação, entre a vontade popular, manifestada, aqui e ali, por acontecimentos e processos não sistemáticos, e a vontade do eleitorado, manifestada por ocasião dos pleitos.

Mas chegou, sem a menor dúvida, a fase em que as tarefas progressistas e revolucionárias desta etapa histórica, em nosso País, têm de ser cumpridas, em que o seu cumprimento é inevitável. Se elas se cumprirão por um processo meramente político ou se serão cumpridas por um processo violento, depende das classes dominantes superadas e do imperialismo a que servem, sendo certo que o povo prefere o caminho pacífico. As classes dominantes, no Brasil, assumem cada vez mais o papel de forças subversivas — elas sim — porque desrespeitam a lei, sempre que o cumprimento da lei lhes fere ou ameaça os interesses. São elas que fomentam a agitação no País, pelo uso e abuso da autoridade e da violência, criando situações de intranqüilidade e ferindo todos os direitos. São elas as minorias insatisfeitas. São elas que servem a interesses estrangeiros, por eles subvencionadas largamente. São elas a anti-nação, rasgando e negando tudo o que é nacional, o interesse nacional, a riqueza nacional, a cultura nacional.

Quem é o povo, hoje, no Brasil? São as partes da alta e da média burguesia que permanecem fiéis ao seu País, é a pequena burguesia que, salvo reduzidas frações corrompidas, forma com os valores nacionais e democráticos, é o numeroso campesinato que acorda para a defesa de seus direitos, é o semiproletariado e, principalmente, o proletariado, que se organiza amplamente e comanda as ações políticas. É este o povo que vai realizar a Revolução Brasileira.


CADERNOS DO POVO BRASILEIRO

Os grandes problemas de nosso País são estudados nesta série com clareza e sem qualquer sectarismo; seu objetivo principal é o de informar. Somente quando bem informado é que o povo consegue emancipar-se.

Primeiros lançamentos

1 — Que São as Ligas Camponesas?
        Francisco Julião
2 — Quem é o Povo no Brasil?
        Nelson Werneck Sodré
3 — Quem Faz as Leis no Brasil?
        Osny Duarte Pereira
4 — Por Que os Ricos Não Fazem Greve?
        Álvaro Vieira Pinto
5 — Quem Dará o Golpe no Brasil?
        Wanderley Guilherme

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