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Os Portugueses Perante o Mundo

A. J. de Melo Morais

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Os Portugueses Perante o Mundo (1856)
Alexandre José de Melo Morais (1816-1882)

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© 2013 — A. J. de Melo Morais


ÍNDICE DESTE VOLUME

 

•À Nação Portuguesa
•Ao Leitor
•Portugal em sua origem
•Portugal sob o domínio dos Cartagineses
•Portugal sob o domínio Romano
•Estado de Portugal até a entrada dos Godos
•Portugal dominado peles Suevos
•Portugal sob a domínio dos Godos da Espanha
•Do governo Português e sua política, até o tempo de Afonso Henrique
•Origem das Assembléias Gerais
•Amor à liberdade foi o caráter dos Portugueses
•Origem das Assembléias Provinciais
•Portugal independente da Espanha e sob seus Reis
•Afonso Henrique (o Conquistador) 1.° Rei
•Juramento que deu Afonso Henrique, acerca da visão que viu
•Homens notáveis no reinado de Afonso Henrique
•Fé das palavras (Egas Muniz)
•Giraldes sem Pavor, ou a tomada de Évora
•D. Fuas Roupinho, 1.° Almirante de Portugal
•A D. Fuas Roupinho, capitão das galeras d’El Rei D. Afonso Henrique
•Tomada de Lisboa; morte de Martim Muniz
•Valor de Gonçalo Mendes da Maia (o Lidador)
•D. Sancho (o Provador) 2.° Rei
•Calamidades de Portugal sob o reinado de Sancho 1.°, e conduta deste na adversidade
•Homens notáveis do reinado de D. Sancho l.°.
•D. Afonso 2.º (o Gordo) 3.º Rei
•Homens memoráveis no reinado de Afonso 2.º, conforme Rui de Pina
•Santo Antônio (segundo Pedro de Mariz)
•Sancho 2.º (o Capelo) 4.° Rei
•Homens notáveis no reinado de D. Sancho 2.º
•Fidelidade de Martim de Freitas
•Valor de Martim de Freitas, descrito pelo cronista Rui de Pina, em sua própria e antiga linguagem
•Acontecimentos singulares entre dous cavaleiros Portugueses
•Anedota relativa ao cerco de Celorico
•D’El-Rei D. Afonso, 3.° do nome, que chamam Conde de Bolonha, e de muitas cousas notáveis de seu tempo (segundo Pedro Mariz)
•Homens notáveis no reinado de D. Afonso 3.° (D. Paio Corrêa)
•D. Diniz (o Lavrador) 6.º Rei
•Incremento que D. Diniz deu a Portugal
•Liberalidade de D. Diniz
•Homens notáveis no reinado de D. Diniz
•D. Afonso 4.º (o Bravo) 7.° Rei
•A batalha do Salado
•Morte de D. Inês de Castro
•Notas


 

OS PORTUGUESES PERANTE O MUNDO APRESENTADOS PELO

autor

assinatura

(NATURAL DA CIDADE DAS ALAGOAS)
Autor de muitas obras literárias e científicas.

Portugal foi tão grande, que teve por limites os confins da terra!
(DO AUTOR).

 

assinatura

VOLUME PRIMEIRO.
RIO DE JANEIRO
EMPREZA TYPO&. (EM LIQUIDAÇÃO) DOUS DE DEZEMBRO
64—PRAÇA DA CONSTITUIÇÃO—64
1856.


 

À NAÇÃO PORTUGUESA.

 

_____________

 

Nunca se há de apagar na terra a lembrança de vossos feitos, e nem o tempo em seu rodar contínuo, infinito, consumirá, como tem consumido a lembrança de vetustos povos, a memória de vossas glórias passadas, Nação grande e heróica! Vossos antigos Guerreiros, que amedrontaram o poder das Águias Romanas; vossos Marinheiros esforçados, que domaram as fúrias dos mares; vossos Soldados fiéis; vossos Guerreiros invictos e desinteressados; vossos Sábios, acharão limites para as vossas glórias nos confins da terra: e pois que elas são estupendas, e falam mais alto que a inveja estranha; como Brasileiro, julgamos compendiá-las, e com essas preciosas grandezas (por nós conhecidas e apreciadas) aqui e ali espalhadas, cá no centro da América Meridional, levantar este Monumento, em sinal de gratidão, embelezado com as vossas tintas naturais e vô-lo consagrar.

 

Dr. Melo Moraes (A. J. de)


 

AO LEITOR.

 

O gosto que temos pela lição da história, nos levou à presente compilação, unicamente para fazermos sentir aos nossos compatriotas, que descendemos de um povo, que, por seus feitos gloriosos, não tem imitador na terra.

Um escritor Português, compilando os feitos dos seus naturais, demonstrou com a evidência dos fatos, que, nenhuma nação conhecida, teve homens mais esforçados e ilustres, do que a Nação Portuguesa.

Na sua dominação havia brandura e generosidade, e se alguns excessos teve, não são comparáveis aos das outras nações.

Sem sairmos da América, nos diz a história geral, que os Americanos do Norte, para sacudir o jugo Metropolitano, fizeram inauditos esforços, a comprarem a peso de ondas de sangue cada um palmo de terreno que possuem, e por sete anos de guerra cruenta, a sua Independência.

Os Espanhóis da América, quase que tiveram a mesma sorte. Porém, nós, os Brasileiros, recebemos este nosso país abençoado, e mais que muito invejado pelo estrangeiro, como o filho que se emancipa, recebe das mãos paternas o casal e herdade de que já estava de posse.

Éramos todos Portugueses, quantos éramos aqui antes da nossa emancipação política, e para ela fomos todos Brasileiros. O sábio José da Silva Lisboa (depois Visconde de Cairú), e D. Fernando José de Portugal, foram logo depois da chegada do Príncipe Regente D. João VI ao Brasil, os que deram o primeiro passo, para a Independência do Brasil, conseguindo a publicação do memorável Decreto de 28 de Janeiro de 1808, datado da Bahia(1), que franqueou os portos do Brasil ao comércio do mundo.

Este grande acontecimento, que para nós é a mais importante época da nossa história política, e as circunstâncias locais, tinham animado a El-Rei a sua permanência no Brasil. E, certamente, dele não sairia nunca se os acontecimentos de 1820 em Portugal, não o forçassem a deixar o Brasil.

Então, dispostos os ânimos e as cousas depois, da revolução de Fevereiro de 1821, que no Rio de Janeiro apareceu, que obrigou El-Rei a anuir ao novo sistema político proclamado em Portugal, e da sua retirada, e à testa dos movimentos políticos do Brasil o Príncipe ü. Pedro, a Independência se proclamou, e em lugar de Reino-Unido, apareceu a Terra de Santa Cruz, revestida do caráter de Império do Brasil, tendo por seu legítimo Soberano o Imperador D. Pedro I(2)

Assim, pois, conhecendo nós a sorte do Brasil, como colônia portuguesa, em relação a todas as colônias do mundo, chegando de ponto a ser a metrópole de sua antiga metrópole; justo seja que aos nossos compatriotas façamos conhecer a Nação ilustre, d’onde diretamente descendem os Brasileiros, para que quando menosprezada por gente estranha, possamos antepor aos doestos os feitos memoráveis dos nossos antepassados.

Dr. A. J. de Melo Moraes.

OS PORTUGUESES PERANTE O MUNDO

___________

 

Portugal em sua origem.

 

......... que conte declarando
Da minha gente a grã genealogia:
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
(Camões, C. 3.°, Estr. 3ª).

 

É nosso empenho, folheando os anais do mundo, compendiar todas essas grandezas, todos esses feitos estupendos e admiráveis, que os nossos maiores praticaram nas diferentes partes do mundo, onde não havia chegado o valor e esforço humano. Se não fossem os fatos, referidos por testemunhas irrefutáveis, e justificados por pessoas estranhas, concordaríamos com os invejosos das glórias portuguesas, ser impossível que de tão acanhado lugar da terra, como é o pequeno Portugal, saíssem homens, que honraram, em todos os sentidos, o gênero humano:

Um Pacheco fortíssimo, e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo chora;
Albuquerque terríbil, Castro forte,
E outros em quem poder não teve a morte.
(Camões C. 1.°, 14).

Para não sermos precipitado no que temos de dizer, mister é que tomemos a história de mais longe, para mostrar com a ordem dos tempos, que a celebridade dos portugueses vem de eras tão remotas, que parece fabulosa a memória da sua história. No entanto ela vem do berço com eles, e como que solidária nos anais do gênero humano.

Falar contra os fados, sem conhecimentos certos, e maldizer dos homens, sem um motivo veemente, unicamente com o gosto de deprimir, ocultando o merecimento, é justificar em péssima prosa o que disse Filinto Elísio em belos e cadentes versos:

Não vive o néscio, bem que a vida alongue;
Viver é tomar gosto à formosura,
Ao esplêndido universo;
Não se gosta do que se não conhece.

A nação portuguesa, conforme referem vários cronistas, desde que teve o nome de Lusitânia, até a juventude de D. Sebastião (que mediou o longo espaço de três mil anos), obrou tantos prodígios na paz como na guerra, que foi sem dúvida o terror e a admiração de muitos impérios. Passa nos anais do mundo e na história dos primeiras povoadores da Europa, que Luso (Iago) antes da vinda de CRISTO, 1500 anos, deu o seu nome ao reino Lusitano; e contam as tradições, que Tubal, quinto filho de Jafet, neto de Noé, navegando, com os recursos de então, pelo Mediterrâneo, atravessou o estreito (hoje de Gibraltar), e veio à parte mais ocidental da Europa, e, em um sítio ameno e delicioso, fundou com os seus poucos companheiros a primeira povoação da península, a que se chamou por corrupção Setúbal (ajuntamento de Tubal). Por muitos anos governou Tubal esses lugares (pelos anos da criação do mundo, 1800, e 136 depois do dilúvio, 2208 antes da vinda de NOSSO SENHOR JESUS CRISTO). Em seguida a esta tradição, conta-se que Noé, indo a Portugal, admirou-se do povoado de Tubal e do que viu em edifícios e monumentos, e que depois se retirara para a Ásia, onde morreu. Governando com bom resultado o fundador Tubal, não deixou de visitar muitos outros lugares da Península, entre os rios Tejo e Guadiana, penetrando o Algarve, em modo a deixar nos 163 anos do seu governo, quando morreram 63.000 pessoas, descendentes dos seus três filhos. Foi sepultado em um lugar denominado —Promontório Sacro— (hoje Cabo de S. Vicente no Algarve), de que se conservou memória até o tempo de Afonso Henrique.

A Tubal sucedeu seu filho Íbero ou Hibero, inventor da pesca, e o que deu à Espanha o nome de Ibéria, e reinou 37 anos. A Íbero sucedeu seu filho Iubalda ou Idubela, o qual saindo da Lusitânia (que então não tinha este nome), foi viver perto do Ebero, gastando a maior parte do tempo em estudar o movimento dos planetas, a cosmogomia, a magia, e outros conhecimentos que o seu gênio pedia. A Iubalda sucedeu Brigo, que apartando-se do caminho de seu pai e antecessor, procurou engrandecer o reino por um monumento que por si concorresse para a felicidade da nação. Fundou em Coimbra (Conimbriga) antiga, um seminário, ou academia, para estudo, situado na margem do rio Mondego, no mesmo lugar onde sucedeu a moderna Coimbra. Diversas eram as matérias que na Academia Conimbrense se aprendiam, e entre elas tinha subida estima a política d’aquelas eras.

Brigo fez povoar muitas cidades da Lusitânia, como fossem Cetobriga, perto de Setúbal; Medobriga, junto a Port’alegre; Conimbriga, hoje Coimbra; Brigancia, hoje Bragança; Lacobriga, hoje Lagos, no Algarve; e Celiobriga. Mandou povoadores portugueses para a Frígia da Ásia, e para outras partes do mundo. Seu reinado foi de longa duração (52 anos), e por isso teve tempo de executar tantas obras.

A Brigo sucedeu seu filho Tago (que deu o nome ao rio Tejo), o qual seguindo-lhe no mesmo caminho, fez povoar diversos lugares que estavam baldios e desertos. Tendo a paz sempre em casa, cuidou do material da Lusitânia, e morreu com 30 anos de governo: vindo seu filho Beto a suceder-lho, cognominado o Feliz, não somenos ao precedente, o qual fez várias cousas dignas de lembrança, tendo por cabeça de todos os povoados a Setúbal, cujos moradores eram respeitados em atenção à memória de Tubal. Beto adiantou as colônias, povoou de portugueses a Andaluzia, chamados então Betulos ou Bastidos. Acometido por Gerião, o venceu, fazendo-o retirar para a ilha Eritréia ou para Cadiz. Morrendo Beto, com 31 anos de governo, com ele acabou a primeira linha dos reis Lusitanos(3), porque Gerião, capitão de ladrões, astuto político, com outros Africanos, invadiu de novo a Lusitania, sujeitou os povos, introduzindo a idolatria e ritos supersticiosos. Para melhor usufruir as vantagens do poder, declarou-se em guerra aberta contra Osiris, que por suas insolências o matou, pelos anos de 1760 antes de JESUS CRISTO, sendo tão generoso na vitória, quanto valente nas armas, o que depondo ao pai, elevou ao trono os seus três filhos Lomínios, que governaram com tamanha união que parecia incrível; porém não tardaram muito a se separarem do pai, que era antes verdugo que protetor dos seus governados. Negociando com Tifou para que matasse Osiris, Hércules seu filho, desafiando-os em uma batalha campal, foram mortos, e os Portugueses, por circunstâncias, proclamaram Hispalo, filho de Hércules, havendo governado a Lusitânia os Geriões ou Lomínios 42 anos. Hispalo, no governo português e de quem Sevilha tomou o nome de Hispala, reinou 17 anos, administrando a justiça, e entre as cousas memoráveis que instituiu, foi — o costume de se dar sepultura aos mortos e de se deitar dó ou luto pelos falecidos —, no que provou não só grandes, como elevados sentimentos de piedosa religião. Foi em seu reinado que o famoso artífice português Caio Cérvio Lupo, construiu a celebrada torre da Coruna. A Hispalo sucedeu (ano 1702) seu filho Hispano, homem de sublimes pensamentos, e o que deu o nome à Espanha, que então era conhecida pelo de Ibéria. Hispano governou 32 anos e não deixou herdeiros. Hércules, sob o peso enormíssimo dos anos (1667 antes da era cristã), cientificado de não ter seu neto deixado sucessor ao governo, veio à Espanha, onde foi congratulado pelos serviços anteriores feitos aos Lusitanos. E certo Hércules que a sua avançada idide não podia prometer muito, nomeou para sucedê-lo a Hespero, seu capitão, homem de muito valor e reconhecida prudência. Bem que velho, Hércules ainda pôde governar a Lusitânia por 29 anos, pouco mais ou menos; e este tempo foi gasto antes com a doutrina e a política, que com o estridor das armas, por conhecer Hércules que ganha mais uma sociedade com a paz doméstica e tranqüilidade dos povos, que com a guerra; visto que por mais acertada que seja a sua declaração e movimento, é sempre um flagelo que arruina, desmoraliza os fundamentos das repúblicas. Morreu Hércules na idade a mais avançada possível, deixando os Lusitanos no mais doloroso estado de sentimento. Pediu que queria ser sepultado entre os Portugueses, e para o que mandou construir um suntuoso jazigo no Promontório Sacro. O governo português, segundo a última vontade do rei, passou para Hespero, seu capitão, homem como já dissemos, experimentado e prudente, em cujo tempo se crê descobriram os Portugueses as ilhas de Cabo Verde, Príncipe, S. Tomé e as Antilhas, que eram chamadas Hespérides, em honra de Hespero.

Hespero era algum tanto tirano, e por isso desgostoso o povo, se desuniu e fez que Atlante Ítalo, governador da Itália, que lhe deu o nome, invejando a sua fortuna, por imperar sobre um povo grande e empreendedor, que vivia pouco contente, e pela muita ambição, se resolvesse a vir à Lusitânia e tirar lhe a vida, para o que passou a Espanha em 1628 com um formidável exército, e com pretextos de legitimidade unir-se aos Espanhóis, e fez que seu irmão Hespero, para salvar a vida, se passasse à Itália, onde em breve faleceu. Ítalo de posse do governo português, firmou ali a sua residência, tendo de Lucaria uma filha, à que chamou Roma, e um filho a que chamo coro, que lhe sucedeu no governo logo que viu possuir os ânimos e as atenções dos Portugueses. Teve além destes mais Mergites, que foi depois governador dos Aborígenes; Electra, mulher de Camcalasco, mãe de Dardano rei de Tróia; e Maia, venerada como Deusa. Mas obrigado Ìtalo a ir à Itália, deixou seu filho Sicoro no governo, levando consigo um numeroso exército de Portugueses e Andalusos, os quais fizeram em várias ocasiões prodígios de valor.

Ítalo, chegando à Itália, assentou fazer alguns povoados, e entre eles um no monte Aventino, que reservou para seu filho Sicoro; e outro povoado no monte Palatino, que deu a sua filha Roma, que o possuiu e aumentou. A este povoado, que recebeu de seu pai, deu Roma, princesa portuguesa, o seu próprio nome, mal pensando que seria algum dia a sua cidade, a capital do mundo, a cidade por excelência. Assim, não tendo sido o fundador de Roma, o enjeitado da Loba, o favorecido do Tibre, Rômulo enfim, passa por certo terem sido os Portugueses os que lançaram os alicerces da cidade eterna(4). Rômulo e Remo, 800 anos depois, conforme o próprio testemunho dos historiadores Romanos, pretendendo melhorar os costumes do povoado, assenhorearam-se do governo, mudaram a face das cousas por meio de boas leis, engrandecendo a cidade.

Falecendo Sicoro, depois de 55 anos de governo, os Portugueses, vendo-se sem rei, proclamaram a Sicano, filho de Sicoro, príncipe animoso e conveniente a todos os sucessos, que convicto das disposições dos seus, passou à Itália a socorrer os Portugueses, que ali viviam oprimidos dos Cíclopedes, povo feroz e de altura agigantada. Sicoro, vencendo-os em várias batalhas, deixou na Itália ainda mais gente Portuguesa, e voltou para a Lusitânia, ornado de louros, onde morreu com 30 anos de reinado, sucedendo-lhe Siciano, que com as mesmas disposições que seu pai, teve de ir à Itália soecorrer os Portugueses, que de novo foram acometidos. Para socorro, julgou deixar na Sicília um corpo de tropa, e aí fundou um povoado para os abrigar, que recebeu o nome de Siciania, como porção de terra que eles habitavam, hoje Sicília, em honra de Siciano. Siciano governou 31 anos, e por sua morte passou o governo a seu filho Sicilio, que foi valente guerreiro, e governou 44 anos.

Permanecendo o mundo em seu começo, e a humanidade com poucos recursos, e a Europa no estado de perfeita ignorância, diz a história: «1.°, terem vindo os Portugueses em linha reta dos primeiros povoadores da terra; 2.°, ter sido a primeira nação que congregou as ciências, fundando a primeira Academia que apareceu no mundo; 3.°, a primeira nação que instituiu se dar sepultura aos mortos e manifestar a mágoa interna do coração, com o sinal exterior de dó ou luto, o que então não se fazia; 4.° foi a que tentou e realizou as primeiras descobertas no Atlântico; 5.°, foi edificadora da antiga Roma(5).

...que aqui verá presente
Cousas que juntas se acham raramente.
(Camões).

Durante o lapso de anos, que mediou de 1174 a 1553 antes da vinda do Redentor, muitas cousas sucederam dignas de particular lembrança, que a história conserva para memória dos homens, como fossem: a fundação de Jerusalém por Melchisedech, e a morte deste em tempo de Beto; a construção dos soberbos muros de Babilônia, por Semirâmis; a morte de Noé na Itália; a instituição das Vestais por Vesta; a vinda de Fœtonte à Itália; Brigo, filho de Iubaldo, rei português, foi contemporâneo de Abraão, e Gerião reinou em Lusitânia, quando Jacó principiou a servir a Labão, a fim de possuir a encantadora Rachel; Ismael, filho de Abraão e da escrava Agar, morreu por esse tempo; bem como José, filho de Jacó, foi vendido por seus irmãos; Moisés, o favorecido de DEUS, nasceu em tempo do governo de Hispalo.

Morto Sicelio, filho de Sicano, seu filho Luso tomando conta do governo, e sendo muito amado por suas qualidades, era por todos obedecido, e por este amor extremo deram, para perpetuar-lhe a memória, o nome de Lusitânia às terras que governava. O seu governo durou 33 anos. Luso, conforme afirmam as crônicas, significa em língua primitiva — largo — talvez por suas bem construídas qualidades físicas, ou pela posição topográfica do lugar, que ele escolheu para residência, que ficava em frente do largo Oceano Atlântico.

Ao chegar Luso à província que fica entre os rios Douro e Guadiana, o seu primeiro cuidado foi encaminhar-se ao templo de Hércules, venerado dos povos desses lugares, e se fazer proclamar e reconhecer rei, com todas as cerimônias do antigo ritual. Luso no governo deu particular atenção aos moradores dessa província, e parecia esquecer-se das demais partes dos seus domínios, e por serem esses mais amados do rei, os invejosos desta fortuna os apelidaram —Lusitanos.—

Findando a vida, Luso (1467 antes da vinda de JESUS CRISTO), deixou para sucedê-lo seu filho Siculo, nascido na Lusitânia; e este logo que se pôs em termos de se mostrar d’ele digno filho, pôs-se à frente dos seus, e fez tantas proezas contra os estranhos, e principalmente contra os Cíclopes, que os venceu e restituiu à Roma tudo o que ela tinha perdido.

Passando à Sicilia com o intuito de socorrer os oprimidos, não se sabe se Siculo voltou ou se morreu em combate; o que passa por certo é, que os Portugueses não o viram mais, e a falta do rei belicoso e amado foi tal, que se resolveram a se não governarem mais por ninguém. Em segura paz, diz um historiador, viviam os Portugueses sem rei, firmando as suas ações na equidade e na justiça, poderoso edifício da verdadeira liberdade.

Restringiram-se ao apascentamento dos seus rebanhos, e à oração no templo de Hércules, e evitavam a todo o transe as discórdias domésticas, e quando alguma aparecia, era decidida pelos anciões. Por cem anos viveram os Portugueses na mais perfeita união, dando em prática o modelo genuíno do governo republicano, prostituído depois pelos antigos, e mais ainda hoje pelos modernos, inexequível, como o temos em toda a parte onde é admitido, somente em nome para servir de capa a velhacos especuladores, que quais sereias, iludem o povo, pervertendo tudo à encaminhar a seus fins. No entanto, conforme o nosso modo de sentir, é o mais conforme com a razão, e o melhor de todos os modos de existência dos homens.

Depois da morte de Siculo, filho de Luso, apareceu Testa, capitão Africano, querendo o supremo mando, porém como era estrangeiro, os Lusitanos não o admitiram, pelo que foi para a Andaluzia, onde empregando os meios, conseguiu reinar, bem como Romo, que também não foi aceito pelo mesmo motivo.

O Sr. José Liberato Freire de Carvalho, no seu ensaio histórico político (como mais tarde falaremos), afirma com bem fundadas razões, que as fórmulas dos governos republicanos foram estabelecidas em Portugal antes dos Gregos e Romanos; e bem as fórmulas constitucionais do governo representativo, foram do mesmo modo conhecidas ali desde os tempos primitivos da monarquia Portuguesa; e é provável que essas belas doutrinas apregoadas por Montesquieu e Mably, que a França e os Estados-Unidos da América adotaram, fossem bebidas nas origens fecundas das fontes Portuguesas.

Nos últimos anos do interregno, de 1476 antes de JESUS CRISTO, Baco, filho de Semele, não o fabuloso deus do vinho, o valentão da Itália, vindo à Lusitânia com gente belicosa e dada a todos os vícios, não podendo pela força vencer os Lusitanos, pretendeu domá-los com a música e com carícias, e se querendo proclamar rei, os Portugueses repeliram-no; porém Baco, que os via sem chefe, teve o poder de lhes fazer persuadir que o nome de seu filho Lísio, que com ele andava, deferia pouco do de Luso, seu rei amado, porque a alma deste, que tinha ido descansar nos Campos Elísios, se havia infundido em Lísios, que voltava ao governo dos povos; e que convinha que não tivessem para com ele a mesma repugnância, por terem no corpo de Lísio a alma do seu rei Luso.

Os Lusitanos, alegres por tão grata notícia, aclamaram Lísio por seu rei, dando-se parabéns uns aos outros.

Eis aqui quase cume da cabeça
Da Europa toda, o reino Lusitano,
Donde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no oceano:
.........................
Esta foi Lusitânia derivada
De Luso ou Lísio, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros
E n’ela então os íncolas primeiros.
(Camões 3, 20, 21)

Baco, bem que governasse um ano com seu filho, retirou-se para a Itália, e Lísio não durou muito no poder, porque a morte o surpreendeu, e os Lusitanos não querendo mais o título de rei para quem os governasse, elegeram então para seu capitão a Licínio, valido e companheiro de Lísio, homem valoroso e de grandes esperanças, o qual aproveitando-se de um poderoso exército de robustos infantes, e com as melhores e mais luzidas armas que então se havia visto na Espanha (invenção sua de ferro fundido), intentou a guerra. Licínio contra Palatuo, rei dos Valencianos e Andaluzes, o venceu com o seu exército português, apoderando-se de quase toda a Espanha; porém usando mal com os Portugueses, aconteceu que Hércules Tebano, naufragando por esse tempo nas costas da Espanha, vendo a Palatuo em grandes apuros, o ajudasse e venceu ao tirano Licínio, visto que não tinha o mesmo auxílio português que então.. Os Portugueses livres da influência da tirania (1158), instituíram de novo as fórmulas do governo republicano, que tem a razão por lei, a eqüidade por norma, e a justiça por fim.

Quando estas cousas se ali passavam, Gorgoris (brasa ou chama), natural da Lusitânia, achando umas abelhas, e observando-lhes o trabalho, extraiu o mel do cortiço, fez experiências com a infusão das frutas, podendo-as conservar por muito tempo, em modo a fazer as delícias da gula, então desconhecidas; e os Portugueses agradecidos, apreciando esse regalo, pouco tempo depois reconhecendo a doçura da cana, fabricaram o açúcar, e com ele substituíram o emprego do mel das abelhas. Sempre em uso a conservação das frutas no mel, ou no açúcar, desde o ano de 1158 antes de JESUS CRISTO, foram aperfeiçoando essa indústria a ponto de ser mui procurada. Por tão delicioso bocado, que lhes forneceu o industrioso Gorgoris, chamado o Melícula, por ter sido o descobridor do mel na Espanha, recebeu a coroa em 1136, sendo adorado dos seus naturais e pelos Valencianos.

Contam as crônicas que Gorgoris, querendo encobrir o excesso do amor oculto de sua filha, mandou deitar às feras uma criança que ela dera à luz, e constando-lhe, depois de alguns dias, que o inocente vivia, determinou que o lançassem no Tejo junto ao povoado de Santarém.

Uma criada, que por aí passava, vendo uma criancinha viva na praia, apanhou e a levou consigo, dando-lhe o nome de Abidis.

Foi crescendo o enjeitado das feras e do Tejo, e com tão boas disposições, que sabendo de novo Gorgoris, buscou indagar dele, e veio no conhecimento maravilhoso, e pelos sinais inquiritórios o mandou buscar, em vez de ódio, converteu as crueldades pretéritas em extremoso amor. Por suas graças e dotes naturais Abidis atraía a todos; e levado por sentimentos patrióticos, fundou sendo ainda muito moço, a cidade de Astigi, a Astúria, na margem do rio Astura, que pouco depois tomou o nome de Douro.

Por essas eras não estava o mundo sossegado: Tróia tinha a desgraça em casa; suas torres eram devoradas pelas chamas, e por tantas desgraças Ulisses, com alguns dos seus, em baixéis singrando as ondas do Mediterrâneo, atravessou o mar da Espanha, embocou pelo Tejo a dentro, cuja foz não era conhecida, e a três léguas de riba acima, e à esquerda, fundou e deu começo a uma cidade que chamou Ulysipo (Lisboa), e ao mesmo tempo por sua piedade fez construir um templo consagrado à Minerva, em uma praça que denominou Ulisséia. Gorgoris, ciente deste evento, não tardou a ir ter-se com Ulisses, trazendo-lhe presentes, protestando-lhe amizade, e para o que lhe dava sua filha, a mãe de Abidis, a quem o poeta Homero chama Calípso, e o padre Fenelon justifica o mesmo.

Diomedes com outros Gregos povoaram o Minho, e deles dizem virem os povos do Entre-Douro e Minho, Graíos, Gravios, Gronitos e Galegos. Deles era o lugar de Gaio, onde abordaram os Galos, e fundaram um povoado a que chamara Porto Cale (hoje cidade do Porto).

Por nímia licença dos Gregos, já vivendo descontentes os Portugueses, Ulisses julgou prudente retirar-se para Ítaca (1081 antes de JESUS CRISTO), a fim de se não pôr em contestação com Gorgoris seu sogro. Com a retirada de Ulisses faleceu Gorgoris (1079), e tomou conta do governo seu neto Abidis; e conta-se que, por gratidão, este monarca mandou povoar o lugar do Tejo, onde foi achado, ajudado dos Gregos que Ulisses deixou em Lisboa sob as ordens de sua mãe Calípso. A este povoado denominou Escalabis, e ao depois chamou-se Santarém, onde foi sua residência constante.

Como então não fosse bem conhecida a agronomia, Abidis, reconhecendo a sua importância e necessidade, tomou-a sob seus cuidados e a promoveu do melhor modo possível, ensinando praticamente o modo de lavrar as terras, cultivar com método os campos, plantar árvores, fazer enxertos, jungir os bois e acostumá-los ao arado.

Neste estado viviam os povos bem contentes de sua sorte, mal cuidosos de um futuro horroroso. Abidis deixou de existir em 1038, tendo reinado 35 anos, deixando os Lusitanos e os Espanhóis com a sua política em bom estado de civilização; vindo a ser a vinda de Ulisses a Portugal, e a sua retirada, uma época notável.

Por essas eras, outros fatos de muita importância aconteceram, que vem a ser: — Uma seca medonha principiou a desolar a Península, durando (segundo a autoridade de uns 26 anos e de outros 26 meses), de modo que à exceção dos rios Ebro e Guadalquivir, todos os mais secaram em modo a tornar a terra por falta de umidade árida e abrasada, que grande parte do povo morreu de miséria.

Portugal, compartilhando do mesmo infortúnio da Espanha, viu despovoar-se o Algarve, e os que não puderam sair destes lugares, ou morreram, ou passaram-se para o cume da serra da Estrela, outrora chamada Hermínio, na esperança de salvação. Consta da história dessas épocas, que permanecendo no estado cruento de miséria e desgraça aquele continente, experimentou outro fenômeno não menos horroroso, que foi uma tão furiosa tempestade de ventos que a nada respeitou, parecendo o elemento aério revolver as entranhas das terras a ponto de levar tudo consigo. Depois deste medonho acontecimento, a harmonia da natureza se restabeleceu, e os foragidos que se haviam passado para a Itália, voltaram para a pátria, trazendo consigo o poeta Homero.

A presença deste célebre varão na Espanha convidou a muitos Celtas de França a se estabelecerem entre o Douro e o Minho, nas margens do Lima, a povoarem uns o Algarve e outros o Alentejo. Aos povoadores da Galisa chamaram os Gregos Ciporos (que quer dizer agricultores ou jardineiros), pelo gênero de vida que adotaram; porém os Celtas, que queriam a permanência da Lusitânia, reedificaram todos os edifícios que se achavam arruinados (952 antes de JESUS CRISTO), defendendo-se com quanta força podiam.

Foi pelos anos de 932 que os Fenícios vieram à Lusitânia e, passando por aquelas terras, chegaram ao Promontório Sacro (hoje Cabo de S. Vicente), a tirarem dentre as ruínas do Templo de Hércules os restos mortais deste herói, para os levarem consigo a Cadiz. Os Fenícios, reunindo-se com os Gregos, maltrataram os Espanhóis de tal forma, que estes foram às armas (732), e com os Celtas, que haviam saído de Portugal, embora valentes, perderam ações; porém os Andaluzes e Celtiberos desejando aumentar as forças, solicitaram os socorros dos Lusitanos que, em número de 70.000, sairam em sua defesa tão ousadamente, que em breve desbarataram os Fenícios e tudo o que lhes pertencia. Singular foi este acontecimento, que terminando a vitória pelo saque, afirma a história, que os Lusitanos levando tudo a estrago, nada quiseram dos vencidos.

No lapso de anos que mediou de 567 a 589, os Túrdulos e Celtas, por motivos de localidade onde se pudessem estabelecer, desouveram-se tão francamente, que se bateram como leões, ficando vencedores os Túrdulos; porém como fossem os estragos da guerra consideráveis, de quase ambos os lados, fizeram pazes, ficando os Celtas com as partes orientais da Lusitânia, e os Túrdulos com as ocidentais.

Estas cousas sucederam em Portugal (diz Fr. B. de Brito, H. de M. L., livro 1. cap. 28) muitos anos antes de JESUS CRISTO, quando Nabucodonosor, rei de Babilônia, vencendo Faraó, rei do Egito, em batalha, e entrando em Jerusalém à força de armas, prendendo a Sedécias e mais gente do povo, lembrado da grande afronta com que em anos atrás, se partira do cerco de Tiro, onde os Portugueses fizeram maravilhas, quis saciar sua quebra com a grandeza da vingança, e guiando o exército vitorioso contra Tiro, o teve cercado alguns meses, no fim dos quais conhecendo os sitiados quão pouca defesa tinham, se lhe deram a partido, ainda que não foi tão misericordioso como cuidaram no princípio da conquista.

Ganhada esta cidade, mãe e cabeça de Cartago e da ilha de Cadix, mandou Nabucodonosor armar uma grande copia de naus e outras embarcações, as melhores e as mais bem acabadas, que até aqueles tempos se viam, com as quais passou à Espanha, desejoso de vingar o agravo recebido no socorro de Tiro. Conta o referido historiador, firmado em diversas autoridades, que esse rei principiou a vingança por Catalunha, não perdoando a ninguém, fosse qual fosse o sexo e a idade; e os Fenícios, vendo que próximos estavam de Cadix esses inimigos, previnira-se de tudo para a defesa, mandando vir gente de todos os lugares. Isto feito, e em frente os inimigos, foram às armas. Grandes combates padeceram os Fenícios, e grande instância punha o Assírio por entrar na cidade; e na verdade, nela entrara, se o socorro dos Lusitanos não tivesse vindo a tempo, que pôs em contingência aos Assírios de se perderem todos, inquietando-os em rebates contínuos de dia e de noite, e pelejando com tal destreza, que os obrigaram a recolher o campo, e se meterem nas embarcações.

 

Portugal sob o domínio Cartaginês.

 

De Luso não perdeis o pensamento,
Devíeis de ter sabido claramente
Como é dos fados grandes certo intento,
Nem por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
(Camões).

 

Cartago, não tirando as vistas da Lusitânia, e nutrindo mui ponderosos desejos de conquistá-la, mandou Merzebal, general valente, com instruções, à frente de um número considerável de guerreiros, e achando resistência da parte dos Lusitanos, foi vencido por Bancio. Mas os Cartagineses, assim derrotados, fingem-se amigos, e quando se julgam com força suficiente, assenhoream-se da Espanha e depois dividem-na em Tarraconense, Bética e Lusitânia. Pelo comércio e dádivas foram ocupando a Bética,, Andaluzia, e com grande força chegam a Cadix.

Os Espanhóis tarde conhecem a sua ruína, por serem sempre destroçados pelos conquistadores, que os perseguiam à custa dos recursos que lhes fornecia a mesma Espanha. Os Sarrios bárbaros viviam nas montanhas da Beira, bem como para ela foram os povos mais ilustres e antigos da Lusitânia, os descendentes de Tubal, ficando os mais em confusão com os estrangeiros.

Sujeita assim a Lusitânia e Espanha ao poder Cartaginês, teve por seu governador ao general Safo; depois Hymilcon e seus irmãos Hanon e Glisson. Hanon fundou Emínio, hoje Águeda, Aveiro e outras povoações. Os Celtas e Turdetanos, passado o rio Lima, voltam as espadas uns contra os outros, e pela grande mortandade, chamaram ao Lima, o rio Lethes.

Os Cartagineses, que bem compreendiam as vantagens locais da Península, fizeram com que Bohodes, governador da Lusitânia, instituísse feiras e fortalezas em Lagos, no Algarve. Moharbal, governador prudente e experimentado, veio vencer os Gregos de Athenas, que adoravam na Lusitânia ao Deus Cupido, e supondo castigo a enfermidade que ao depois teve, erigiu o templo de Endovélico (Deus do amor profano), junto à Vila Viçosa.

Alexandre, o Macedônio, fez-se reconhecer por Marino, soberano da Espanha e Lusitânia. Amilcar, depois de sujeitar os Espanhóis, veio à Lisboa, onde se casou com uma Portuguesa e teve Anibal, o famoso general. Asdrubal, genro de Amilcar, venceu a Tago, cabeça dos revoltosos da Lusitânia. Anibal, antes da vinda do SALVADOR, 216 anos, sendo ainda muito moço, governou a Lusitânia e deu começo à abertura das suas minas de ouro, para sustentar a guerra contra Roma, que pretendia sujeitá-la. Nas guerras Púnicas contra Cartago, Régulo, prisioneiro, veio à Roma, e em vez de tratar da paz, excitou a guerra. Os Cipiões armam-se contra o Lusitano Anibal, e encontram a mais formal resistência. Conta a história, que Anibal herdando de seu pai Amilcar o ódio contra Roma, este, tendo o filho apenas nove anos, o tomou nos braços e lhe fez jurar ódio inplacável contra os Romanos. Servindo sob as ordens de Asdrubal, sucessor de seu pai, por morte deste, de comum acordo, não obstante a sua pouca idade (26 anos), o proclamam seu general. Logo que se pôs à frente das tropas, o seu primeiro cuidado foi a guerra contra a Itália, para o que fez muitas queixas ao senado de Cartago, contra os Saguntinos.

Este varão primeiro, a que acompanha
O ramo que anunciou a paz ao mundo
É Tubal, povoador da nobre Espanha,
Que neto foi de vosso pai segundo;
A idade de ouro, que esta férrea acanha,
Entre o aurífero Tejo e o fecundo
Gaudiana introduziu, que gozou d’ela
Lusitânia primeiro que Castela.

São Íbero, e Jubalda os que consigo
Separa, este filho, aquele neto;
O do castelo na bandeira é Brigo
De altivos muros fundador discreto:
Discreto é quem com tempo seu perigo
Repara: os outros dous são Tago, e Beto,
Que seu nome ao Tejo, e Betis deram,
E célebres por eles se fizeram.

Nota que todos estes reis ditosos
Por cetros têm na mão curvos cajados,
Com que regiam gados numerosos,
Tesouros de seus séculos dourados.
De Setúbal os prados deleitosos
Eram deles então mui freqüentados,
E de toda Espanha, e de todo o norte,
Primeira povoação, primeira corte.

Não era cheia, como as desta idade,
De adulações, de inveja e de cobiça,
Nem de discórdia, ódio, ou falsidade,
Nem da privança que seu fogo atiça.
Tudo era quietação, simplicidade,
Descanço, riso, amor, paz, e justiça
Ern breve feita aos poucos agravados,
Por falta de escrivães e de letrados.

D’esta tranqüilidade lusitana
Se ocasionou prender este meu louro
Cabelo Gerião, que da africana
Parte veio a estragar a idade de ouro.
De Beto o cetro usurpa a mão tirana,
E tudo quanto de Guadiana a Douro
Se estende até o mar mediterrân’o
Tudo por fraude ocupa o africano.

Morreu, como viveu, a mãos do forte
Osíres egipciano, que pintado
Vês junto a Gerião dando-lhe a morte,
E a seus filhos o reino conquistado.
Aos campos de Guadiana coube em sorte
O que aos mais espanhóis negou seu fado,
Que os primeiros de sangue se tingiram,
E a primeira campal de Espanha viram.

Os três, que vês morrer em desafio
São os lumínios, em que está vingando
Hércules do pai morto pelo tio
A traição, que lhe andaram fulminando:
Este, que introduziu no senhorio
Ganhado, em quanto a Itália vai passando,
Hispalo é, e est’outro, a que acompanha,
Hispano, de quem toma o nome Espanha.

Também de Hespero foi chamada Hesperia,
Este, a que a roda em cima vês pintada
Algum tempo; e, depois, de Íbero, Ibéria,
Mas por Espanha será sempre honrada.
Este, que a Hespero lança com miséria
D’ela toda a poder da lança e espada
Ítalo é, cuja feliz memória
À Itália deu nome a Espanha glória.

Os dous, que junto deles vês pintados,
São Sicoro, e Sicano, que ambos foram
Justos na paz, nas armas esforçados,
Por quem ainda os Lusitanos choram.
Estas mulheres postas a seus lados,
Que reinos fundam, que nações adoram,
Quem são? Que terra sua pátria esconde?
Disse Viriato: a Ocasião responde.

Naturais todas são da Lusitânia,
Filhas de Atlante e de Leucaria bela,
Electra esta se chama, que a Dardania
Deu o rei, que a fundou em triste estrela:
Esta adorada por deidade Urania
Maia se chama, chamam Roma a aquela,
A qual, porque em obra imortal se empregue,
A Roma funda, por mais que ela o negue.

Deu-lhe princípio, nome e habitadores,
Que quase todos eram Lusitanos;
Foram Rômulo e Remo ampliadores,
E se prezam mais destes os Romanos.
Discrepem da verdade os escritores,
Que os campos abulenses, e sicanos
Ganhou e cultivou a espada hespana,
E Roma a seu pesar foi lusitana.

Itália muitas vezes socorrida
Foi de Espanha, a quem tanto hoje atropela;
Vês Ciceleo, que nela acaba a vida
Vitorioso, depois de socorrê-la?
Este filho, que a deixa defendida,
O qual a paz estima, e o culto zela
Do hercúleo templo, e promontório sacro
Já de Tubal sepulcro, e simulacro.

Luso se chama, de quem foi chamada
Lusitânia esta pérola de Marte,
Jóia de toda a Europa mui prezada,
E da guerreira Espanha a melhor parte.
Do norte pelo Douro é limitada,
E do sul pelo Ana se reparte,
De oeste até o oceano se estende,
Do leste o Tejo pelo meio a fende.

Por ser tal, foi de Luso tão querida,
Que os mais reinos, que tinha, desprezando,
Neste somente quis gastar a vida,
Cidades e edifícios ampliando.
Este, que em frota grande, e mui luzida
Vai o mediterrâneo navegando,
É Siculo seu filho valeroso
Em grandes feitos de armas vitorioso.

Os dous, que com pandeiros e folias
O thyrso dão à gente lusitana
O pai e filho são, Baco, e Lísias,
De que também se disse Lysitania.
Este, que de Moncaio as faldras frias
Cobre de morta gente valenciana,
Licínio é, que à lusitana terra
Muitos preceitos ensinou de guerra.

Este, a que estendo a fatal gadelha,
Em quanto neste tronco astutamente
Aprende a ciência da industriosa abelha,
Donde o uso do mel ensina à gente,
El-rei Gorgoris é; nota, que velha
É a ambição! o doce que aderente!
Que um cetro, de que é todo um reino escravo,
Tão pouco vale, que o dão por um só favo.

Abydas neto seu, parto furtivo
Da formosa Calípso, filha sua,
É este, a quem o avô cruel e esquivo
Lança às feras em carne tenra e nua.
Olha d’elas o termo compassivo,
Com que os peitos lhe dão, porque se argúa
Que talvez é dos homens a fereza
Maior, do que é das feras a bruteza.

Vê-lo do Tejo, em que já foi lançado,
Lançado outra vez fora donde aquela
Cerva o peito lhe dá, a cujo lado
Se cria mais montês e esquivo, que ela?
Vê-lo entre os laços, em que foi caçado
Conhecido do avô, e da mãe bela,
Que à polícia o traz em tempo breve,
E foi o melhor rei, que Espanha teve?

Este, que destroçado ao Tejo chega
Depois que a Tróia deixa destroçada
Ulisses é, por cuja astúcia grega
A insigne Ulisséia foi fundada:
A filha incasta Gorgoris lhe entrega,
E foi por ela a casta desprezada,
Que como amor a honra não respeita
O pior escolhe, e o melhor enjeita.

De Túrdulos e Celtas se serviam,
Que eram de Luso os mais exercitados;
Do que os Vetões ferozes desconfiam,
E de Amilcar se dão por agravados.
Entre Tormes, e Cuda se estendiam
Do Douro ao Tejo os Vetões ousados
Inimigos de Celtas transtaganos,
Que longe vão seguindo aos Africanos.

Em sua ausência os Vetões seu ódio avivam
Assaltando-lhes os campos abundosos;
As mulheres e filhos lhe cativam,
Levando à pátria gados numerosos.
Sabido pelos Celtas, como os privam
Dos bens paternos, voltam corajosos
De Espanha abrindo a mais direita via,
Fica na empresa o filho, o pai os guia.

Intentavam tomar desprevenidos
Os contrários Vetões, que os lastimavam;
Mas eles dos Focenses advertidos,
Entre altiva estreiteza os aguardavam.
Carros de seca lenha, conduzidos
Por vagarosos bois diante levavam;
E suposto que Amilcar os admira,
Nem por isso da empresa se retira.

Vendo os seus a vingar-se resolutos
Bravo acomete a máquina inimiga:
Dão fogo à lenha os Vetões astutos,
Espanta aos bois o fogo, que os instiga.
Atropelando vão feros e brutos
A quem mais imaginam, que os castiga:
Rompem Túrdulos, Celtas e Africanos,
Neles fazendo irreparáveis danos.

Seguindo-os vai a grã cavalaria
Dos Vetões, toda tão exercitada,
Que tanto que a falange o fogo abria,
Era logo por ela fracassada.
Amilcar por não ver o fim ao dia,
Acaba os seus na empresa desastrada,
Que um general, por valeroso tido,
Melhor parece morto que vencido.

Este fim teve, a mãos de Lusitanos,
Amilcar de Cartago novo Ascipo,
De África espora, freio de Romanos,
Terror de Espanha, e glória de Ulissipo;
Que canta, pinta, esculpe entre os humanos
Calíope, Nicomaco e Lisipo,
A quem nenhum dos Penos se igualara
Se o filho tanto atrás o não deixara.

Asdrubal, capitão mui valeroso,
Genro de Amilcar, de Anibal cunhado,
Vendo a morte do sogro, o pavoroso
Exército retira destroçado.
Manda por Anibal, que vem furioso
Pela morte do pai, que vinga ousado
Nos Focenses, a quem consome e abrasa,
E depois a cidade ilustre arrasa.

Passa a Cartago, para que suceda
No governo de Espanha, e nela fica
Governando o cunhado, que se enreda
Na guerra dos Vetões, que muito o pica.
Tago capitão deles mais o azeda,
Que de contínuo o frustra e o danifica,
Parando-o tal, que à vil traição se rende,
Que em fim a paz lh’o compra, e nela o vende.

Com dádivas propõe paz simulada,
E confiando nela o adversário
Viu a cavalaria destroçada,
E se viu entre as mãos de seu contrário.
Rico era Tago, e de estirpe honrada,
Foi morto a mãos do Peno sanguinário
Com tão vil ignomínia, que inda agora
A lastimada Lusitânia o chora.

Um Lusitano Celta, que o servia
E vingar-se do injusto Asdrubal trata,
Entre festival pompa o mata um dia,
Que a ferro morre quem a ferro mata.
Com a vida pagou sua ousadia
O valeroso Celta, porque abata
A morte de Pausanias com sua morte,
Pois mais que ele a sofreu constante e forte.
Como em grande tormenta a nau sem leme,
Combatida das ondas, e dos ventos,
Abre a quilha, quebra a antena, a enxarcia treme,
Tudo são confusões, tudo lamentos;
Assim morto Asdrubal, Espanha teme
Novos perigos, novos movimentos;
Que vendo roto o leme do governo
Cada nação inventa outro moderno.

Os Celtas, que de todos desconfiam
Por seu rei a Viriato levantaram
Saguntinos que muito se temiam
De Cartago aos Romanos se encostaram;
Aos Romanos, que aos Penos mal sofriam
Na Espanha, que antes deles ocuparam;
E desta nova liga com Romanos
Seu incêndio nasceu, e nossos danos.

Qual em manhã, que suspeitoso vento,
E negras nuvens a viandante pobre
Predizem tempestade, e n’um momento
Sopra o norte, as nuvens varre, o sol descobre;
Tal o confuso e triste movimento,
Que a pobre Espanha de temores cobre,
Com tornar Anibal a governá-la
Sopra o gosto, foge o medo, o rumor cala.

Foi Anibal de corpo alto, e delgado
De cintura, de espáduas mui fornido,
Barba, cabelo crespo e anelado,
Afilado nariz, rosto comprido;
Gentil homem, cortês, grave, e esforçado,
Astuto, cauto, alegre, comedido,
De regrado comer, de grã constância,
De pouco sono, e muita vigilância.

Amigo de emprender dificuldades,
Inimigo de estar em paz ocioso,
Mui paciente em quaisquer adversidades;
Nelas, imperturbável e ardiloso.
Com bom rosto sofreu calamidades,
Vestiu sempre ao comum, nunca ao pomposo;
Em cobiçar do mundo o senhorio
Foi Africano, e lusitano em brio.

De idade tinha só vinte e seis anos,
Quando prosperamente começava
A governar sagaz Penos e Hispanos;
Que, reciprocamente amado, amava.
Visitou os parentes lusitanos,
De quem mais que dos Penos se fiava,
E se admirou da ínclita Ulisséia,
Que o mar regala, o Tejo lisonjeia.

A Viriato vai ver, que o cetro tinha
Dos Celtas, e com ele pazes trata;
A Castulon desde Évora caminha,
E com Hilmice em matrimônio se ata;
Hilmice, que do sangue ilustre vinha
De Milico (segundo se relata),
Bela sem tacha, rica sem ter sogra.
Partes que buscam mil, e nenhum logra.

Juntos muitos socorros dos parentes
D’ela, da mãe, e de outras nações graves,
Põe em campo uniformes várias gentes,
Que governou sem nunca as ver contrárias;
Com que muitas nações entre os correntes
Douro e Tejo fez logo tributárias,
Que ambos do pátrio sangue se enturvaram,
E pátrias dissensões o derramaram.

Já com cento e cinquenta mil soldadas
E vinte mil cavalos singulares
Cerca Sagunto, a cujos verdes prados
Enchendo vai de estrondos militares.
Resistem-lhe oito meses os cercados,
Rende-os em fim, matando-os a milhares,
E daquela Sagunto antiga e rica,
Nem pedra sobre pedra erguida fica.

Roma, que de Cartago se receia,
Sem volver contra quem Sagunto abrasa,
Por não ir socorrer a casa alheia
Viu presto o fogo d’ela em sua casa.
Presto Anibal o exército recria
Com o qual Pirineus e Alpes arrasa,
E qual raio, que deles desce, logo
Vai pondo toda a Itália a ferro e fogo.

El-rei Viriato, cavaleiro raro
O segue com mui grã cavalaria,
E um Túrdulo senhor, dito Balaro
Com cópia de vassalos o seguia.
Não ficou Lusitano em armas claro,
Que Anibal não levasse em companhia,
E com estes, como ele confessava,
As maiores vitórias alcançava.

Foi a primeira no Tesino ameno,
A que o sangue envolveu dos Italianos;
A segunda no Trebia, que sereno
Viu mortos trinta e oito mil Romanos;
A terceira no lago Trasimeno
Ganhada por valor dos Lusitanos,
Deixando na campanha os fugitivos
Quinze mil mortos, quinze mil cativos.

Não conto peregrinas aventuras,
Ardis, estratagemas e ciladas,
Roubos, misérias, fomes e amarguras,
Encontros, desafios, cavalgadas,
Prodígios, terremotos, desventuras,
Campos talados, terras abrasadas,
Nem feitos mil da gente vencedora,
Que a nossa Espanha os conta, Itália os chora.

Anibal se viu tão favorecido
Da fortuna, que próspera soprara,
Que não quis tomar Roma de atrevido;
Quem tal, de tal soldado imaginara?
O prudente senado, que abatido
Se acha, em quantas empresas intentara,
De estilo muda, de opiniões se desce,
Que o mudar de conselho bem parece.

A Néio ordena, que em mui breve espaço
Com grossa armada sobre Espanha desça,
Porque a sangria, que se dá no braço,
Diverte a enfermidade da cabeça.
Parte Néio Cipião, chega ao regaço
De Empurias, porque d’ele reconheça
Melhor a costa, teatro destinado
Para as tragédias de um, e outro senado.

Esta primeira cena, e vez primeira,
Que Roma por inveja de Cartago
Em nossa Espanha arvorou bandeira,
Primeira causa foi de tanto estrago.
Asdrubal, que regia esta fronteira
E as outras todas dentre o Estreito e Tago,
Ajuntando o poder da exausta Espanha
Contra os Cipiões se opõe presto em campanha.

Começa nova guerra, novo espanto,
Novo pavor os peitos ocupava:
Abrasava-se Itália, e entretanto
Também Espanha em guerras se abrasava:
Tingia-se de sangue o mar em quanto
Do freto Hercúleo ao Bizantino lava,
Cheio de mastros, e de quilhas rotas,
Tristes fragmentos de abrasadas frotas.

A toda Europa, e África os revezes
Alcançaram de tão notáveis danos;
Quem porque socorreu Cartagineses,
Quem porque deu socorros aos Romanos.
A nossa Lusitânia muitas vezes
Socorreu a tal tempo os Africanos,
Que põe na Espanha aos Romanos freio
Matando os dous Cipiões, Cornélio e Néio.

Os irmãos de Anibal vitoriosos
Na Espanha, que já tinham restaurada,
Por socorrer o irmão, como animosos,
De presídios a deixam despojada.
Sabem deste descuido os cuidadosos
Romanos, torna a vir segunda armada,
E o maior Cipião de Espanha estrago,
Vida de Roma, e morte de Cartago.

Toma por força de armas Cartagena,
Desbarata Asdrubal e Masinissa;
Os seus anima, os nossos desordena,
Vitórias ganha, estandartes pisa.
A desterro de Espanha enfim condena
Toda a gente africana, que agoniza,
Vendo, que a deixa apesar dos nossos
Tinta de sangue e esmaltada de ossos.

Trezentos e mais anos haveria,
Que do mais fértil d’ela se lograva;
E dezesseis, que Itália destruía
Anibal, e suas gentes flagelava.
Desbaratadas na Erdonia havia
As romanas legiões, e batalhava
Contra o cônsul Marcelo, que somente
Temeu por forte, e a Fábio por prudente.

Três vezes pelejaram; mal tratado
Saiu Marcelo, e nunca temeroso
Na quarta morto foi, e sepultado
De Anibal, como ilustre e valeroso.
Todo o mundo esperava interessado
D’esta guerra o sucesso duvidoso,
Por a fortuna ter posto em balança
De qualquer dos senados a esperança.

Cipião, e Anibal com tanto estrago
Vitoriosos na Espanha, e fora d’ela,
Voando cada parte a Cartago,
Um a cercá-la, outro a defendê-la.
A cruel batalha vem, na Zama, ou lago
De sangue, que um mar d’ele se viu nela,
Em que Anibal, por desigual partido
De exército inferior ficou vencido.

Qual fosse depois disso a sua vida,
Que se estendeu até sessenta anos;
Qual a potência de Ásia toda unida
Por ele em terra e mar contra os Romanos;
E como foi Cartago destruída;
Não trato, pois não toca a Lusitanos:
Que só conto tragédias, ou venturas,
Em que eles foram principais figuras.

Livre o conscrito e bélico senado
Do cativo temor e adversidade,
Que, como a delinqüente sentenciado,
Lhe pôs ao pé da forca a liberdade;
Toda a indústria volveu, todo o cuidado,
Em perseguir a velha inimizade
Com Lusitânia, como causadora
Dos padecidos males, que inda chora.

E porque à sua custa experimentara
Nosso valor, primeiro que acometa,
Assegura mui bem quanto ganhara
Do nevoso pirene a hercúlea meta.
Em tanto Lusitânia se prepara,
Que mal quem se receia se aquieta,
Querendo antes, ousada e prevenida,
Acometer, que ser acometida.

Entra abrasando os campos do inimigo,
E vem Cipião Nasica a defendê-los,
Que em grã batalha no último perigo
Esteve, de perder-se, e de perdê-los.
Com grã dano dos seus, e mor castigo
Dos nossos, tarde e mal veio a vencê-los,
Pois degolando a muitos Lusitanos,
Viu degolados oito mil Romanos.

Fúlvio lhe sucedeu, que com presteza
Acomete os Vetões em Lusitânia
Duas vezes os vence, e com fereza
Toledo vai cercar na Carpentania.
Dão sobre ele os Vetões com mais braveza
Que se foram cruéis tigres de Hircania;
E se apartam por fim os estandartes,
Com estrago cruel de ambas as partes.

Emílio sucedeu na Pretória
A Fúlvio, e moveu guerra aos Batestanos;
E apenas contra eles se movia,
Quando deram sobre ele os Lusitanos,
Fazendo tão mortal carniçaria
Que poucos lhe escaparam dos Romanos;
Com que uns anos ficou a lusa terra
Posta em descanso, e em silêncio a guerra.
(B. G. Mascarenhas).

 

Recebendo Anibal instruções dos seus, pôs em sitio Sagunto, como aliada de Roma, e a destruiu. Certo de que os Romanos só em Roma podiam ser vencidos, cuidou em viagem, atravessou os Pirineus e chegou ao Reno, daí aos Alpes, com muita dificuldade. Já na Itália, revendo as suas tropas, que constavam de 59 mil homens, apenas achou 26, e, não obstante, tomou logo Turin, derrotou o cônsul Cornélio Cipião, pouco depois a Sempronio (ano 218), onde os vencidos perderam 26 mil homens. No ano seguinte venceu Anibal a Cnêio Flamínio, ficando este morto, depois de perder na ação 15 mil homens, dos quais 6 mil ficaram prisioneiros.

Roma, consternada com tantas perdas, nomeou ditador a Fábio Máximo, que sendo mui prudente, soube poupar as vidas dos Romanos. Findo o tempo da Ditadura de Fábio, deu-se o comando dos exércitos a Terêncio Varro e a Paulo Emílio, que não tendo a mesma prudência de Fábio Máximo, entraram em campanha com Anibal, e foram vencidos no célebre combate de Canas, onde Paulo Emílio perdeu 40 mil homens de infantaria e 2700 de cavalaria. Por este tempo Anibal, mandou por seu irmão Magon a Cartago três alqueires de anéis pertencentes a 5630 cavalciros, que morreram no combate.

Tito Livio pensa que Roma teria sido presa de Anibal, se ele em seguida a esta famosa vitória tivesse marchado sobre ela; porém não aconteceu assim, porque se ficou em Cápua a fim de passar o inverno. Sem socorros de Cartago, o valente Anibal, se conserva nos campos das batalhas e em diminuição diária, em quanto que os Romanos, de instante a instante se fortificavam, engrossando o número dos seus combatentes; todavia marchou sobre Roma (ano 211), e teve que medir-se com o cônsul Marcelo, e ficou indecisa a ação. Em quanto isto acontecia, Asdrubal, irmão de Anibal, é morto por Cláudio Nero; e Cartago por todos os lados perseguida, chama a Anibal para a socorrer, e este não podendo conseguir a paz, que julgava preferível a Cartago, entra em combate com Cipião (202), perde a ação e com ela 40 mil Cartagineses. Não querendo ser testemunha dos infortúnios que se seguiriam a Cartago, foge para Bitínia, lá se envenena, e finda a vida com 64 anos, pelos anos 183 antes da vinda do REDENTOR.

 

Portugal sob o domínio Romano.

 

Livres os Romanos do intrépido Anibal, Roma se apossa da Espanha e da Lusitânia, depois de muito pelejar e ver morto Cipião nos campos do combate. Cipião Cornélio, dotado de prudência, e compreendendo o carácter do povo Lusitano, pôde-o contentar pelo decurso do seu governo. Não sendo permanentes as administrações, a Lusitânia teve de sofrer ladrões cruéis que Roma enviava, a dar motivos a continuadas sublevaçõcs. Os Cartagineses residentes na Lusitânia, mui ressentidos das vexações que sofriam, julgaram ir às armas e pôr fora do supremo mando a Cipião Cornélio, e o vencendo mataram-no, vindo a suceder-lhe, por mandado de Roma, seu filho Cipião, ainda no verdor dos anos, que magoado dos Cartagineses, os perseguiu por toda a parte, merecendo por isso, o título de Africano.

Portugal, por esse tempo, sofreu não só o pesado jugo de Roma, como mesmo pestes e terremotos, em modo de, por muitos dias, não se poder ver o sol, pela escuridade do tempo.

A Cipião Africano, sucedeu M. P. Catão, por antonomásia o Censor, que dividiu Portugal em duas porções (citerior e ulterior), deixando sua memória em muitas inscrições que fez gravar. Os Lusitanos, que se não podiam amoldar ao domínio estranho, não perdiam ocasião de acometer aos Romanos, e em um conflito puderam matar 12.000 Romanos, sob as ordens de Cipião Nassica: por diversas vezes sobre os Lusitanos, vieram Lúcio Emílio, Emílio Paulo, Caio Catínio, C. Calpurnio, Lúcio Postumeu, Tibério Graco, e os derrotaram. Sem um chefe amestrado nas armas e corajoso, pelejavam os Portugueses, até que elegeram por seu capitão a Apimano, que venceu a C. Calpurnio e matou em combate a Terêncio Varro. O intrépido Lusitano, chamado Apimano, que muitas vezes triunfou dos Romanos, veio por fim a morrer em batalha, coberto de glória. Outro Lusitano chamado Cesaron, vence aos Romanos, e morre em outro combate gloriosamente. Galba, diz o padre Soares Barbosa em uma nota às Instituições oratórias de M. F. Quintiliano, depois de ser Pretor em Roma, obteve o governo da Espanha. Os Lusitanos tendo-lhe enviado embaixadores a pedir a paz, lh’a concedeu com as condições mais vantajosas. Em conseqüência do que, congregando-se os Portugueses para concluir o tratado, por uma perfídia a mais negra, se viram de repente cercados de Romanos. De 40.000 que eram, parte foram mortos desapiedadamente, e parte reduzidos a cativeiro e vendidos. Galba foi logo chamado a Roma, e acusado desta perfídia pelo Tribuno L. Cribônio. Catão orou à causa dos Portugueses contra Galba, com tanta inteireza e força, que o fez sumamente odioso ao povo, e parecia ir a ser condenado irremediavelmente, se Galba, como quem já ia a morrer, não trouxesse diante do povo o filho de C. Sulpício Galo seu parente, há pouco falecido e de grata memória, e duas crianças suas, recomendando-as à tutela do povo Romano. A memória de Galo, a orfandade do pupilo e a compaixão das crianças, de tal sorte enterneceram o povo, que Galba foi absolvido. Esta impunidade foi quem suscitou em Viriato, um inimigo formidável dos Romanos, que feito chefe da nação Portuguesa, lhes deu muito que cuidar.

 

O dia de antes tinha Galba astuto
Uma prática feito a muita gente,
Que chamara com seu salvo conduto,
E tratara cortês e alegremente;
Dando-lhe pouco, e oferecendo muito,
Com semblante do intento diferente,
Quanto lhe pedem diz que lh’o concede,
E com falsas carícias os despede.

Com as fingidas novas, que levavam,
Com novos capitães, que lhe vieram,
Novo conselho outra vez tomaram,
Onde as condições novas propuseram.
A paz os Mirtilenses desejavam,
Por despedirem quantos recolheram:
Estes que eram dez mil mais enganados
As querem, por se verem desterrados.

Que como férteis campos lhe ofereciam,
E não temiam tão infame trato,
Em irem desarmados consentiam,
No que não consentiu jamais Viriato.
Pelo contrário os mais se persuadiam
A se ajustarem com jurado pacto,
Ao qual a paz de todos submetessem,
E sempre com Romanos paz tivessem.

Apimano, que andava desterrado
Da pátria, nova pátria desejava
Baucio, porque se via despojado,
Mais que todos a paz solicitava.
Grisaldo, porque estava mui chegado
Ao perigo, com eles concordava,
Vandermilo, e Balaro, como amantes,
Mais que manoplas lhe agradavam guantes.

Viriato, que se vê tão resistido,
Considerando que em se a paz fazendo,
Ficava em toda a Beira obedecido,
E nem por isso a Roma obedecendo;
Chegou o consentir no vil partido,
Porque todos estamos dependendo
D’este particular proveito, d’este
Algoz do bem comum, do mundo peste.

Avisam Galba de que a paz queriam;
Chega à vista dos muros, e ali pára
Saem quantos a paz tratado haviam,
Que um Romano fecial logo declara.
Depois tomada a grama, que traziam,
Que em cerimônias tais sempre se usara;
Preparando um leitão, e pedreneira
Pelo fecial, lhe diz d’esta maneira.

Lusitanos e Ausônios, sósios contentes
Da referida paz, sem que se negue
Alguma condição das precedentes?
Responde-lhe, que sim; e ele prossegue:
Os Deuses, que o domínio tem das gente,
Confirmem nossa paz, e quando chegue
Algum a desfazê-la por inveja,
Bem como este leitão, ferido seja.

Disse; e tomando a aguda, e mui pesada
Pedreneira, com ela deu a morte
À vítima na grama desmembrada:
Ergue a pedra, e prosegue d’esta sorte.
Se sem engano é de mim tratada
Tão justa paz, porque também me importo
Os Deuses que invoquei, e que não querem
Simulados enganos, me prosperem.

E se nisto que faço, engano cabe,
E logo o não descubro, se o entendo,
Todos salvos se vão, e eu mal acabe,
Em caminho esta pedra, que suspendo.
Logo a deixou cair, Roma se gabe
Da cerimônia, com que está vendendo
Inocentes, que neles se fiavam:
Tal a paz era de que sempre usavam.

Galba, depois de tudo concluído,
Aparta os Turdetanos desarmados
Com outros, a quem tinha prometido
Bons campos, uns dos outros separados
E logo com traidor riso fingido
Lhes diz: já estareis desenganados
De que vos trato a todos como amigos,
E de que cessam já vossos castigos.

Quanto melhores são pazes, que guerras!
Porque estas desocupam os possessores,
E aquelas vos darão campos por serras,
Que presto deles vos vereis senhores.
Deixai as armas, e deixai as terras,
Que terras vos darei muito melhores:
Ide quantos quiserdes habitá-las,
Que a todos quantos fordes quero dá-las.

Não andeis revolvendo cada dia
Toda Espanha, com tantos movimentos,
Que a nós, e a vós tem dado essa porfia
Trabalhos mil, e mil enfadamentos.
Este de hoje será feliz dia
Se guardais todos estes documentos,
Tendo estas armas sempre muito prontas
Contra quem vos quiser fazer afrontas.

Com estas, e outras mil razões que dava
O vil traidor, com riso fraudulento,
Aos simples Turdetanos incitava
Com outros muitos ao proposto intento.
Em três partes a gente separava,
Dando a Apimano de uma o regimento
A Baleio de outra, ede outra a Viriato,
Que ele enjeita, temendo o dobre trato.

Escusa-se que contra o pacto feito
Armas traz com intento de volver-se.
Responde-lhe o traidor, que tal sujeito
Para tal ocasião há de escolher-se;
Que está de seu valor mui satisfeito;
Que não há tal preceito de entender-se
Nele, nem nos amigos, que levasse,
Até que aquela gente acomodasse.

Que depois de o fazer, se tornaria,
Quando quisesse, mui seguramente.
Aceita Viriato a companhia
Vão com ele os amigos juntamente.
Despedem-se com mostras de alegria
Da mirtilense, e romana gente:
Fica Galba no campo mui de espaço
Vendo a caça, que vai direita ao laço.

P’ra onde caminhais simples cordeiros,
P’ra onde ides ovelhas inocentes?
Como vão os rebanhos dos carneiros
Ao talho caminhando mui contentes!
Fugi, fugi, dos lobos carniceiros,
Que vos ides meter entre seus dentes.
Tristes das mães! que hão de saber, coitados,
Que em três açougues fostes degolados.

Tornai a trás, mas não torneis, ah tristes!
Porque se atrás tornardes, inda encerra
O mesmo campo de que vós saistes,
Piores lobos do que estão na serra.
Depois que os pastos abrasados vistes,
Com sangue a cinza regareis da terra,
Que sendo vossa, é tal a desventura
Que temo vos negue sepultura.

Já uns longe dos outros caminhavam
Com as guias, que dera o inimigo,
Por três vales, que uns montes separavam
Dispostos à medida do perigo;
Cujos bosques reais prenhes estavam
De gente deputada ao vil castigo,
Que com armas rodeia a desarmada,
Que perturbada fica e desmaiada.

Em partes três se começam crueldades
As mais enormes feras, e insolentes,
Que viram, nem verão largas idades,
Vistas as circunstâncias precedentes.
Quantas traições, e quantas falsidades
Padeceram pessoas inocentes,
A todas excedeu a barbaria
Traidora dos Romanos neste dia.

Nove para dez mil almas seriam
Entre mulheres, homens e meninos
Que a povoar estranhas terras iam,
Segundo imaginavam os mofinos.
De todos só um cento escapariam,
E nos mais todos quantos desatinos
Pode inventar ferocidade humana
Os padeceu a gente turdetana.

Estranho caso, horrenda maravilha,
Que as entranhas dos montes abrandava!
Abraçada com a mãe morria a filha,
E morto sobre o filho o pai ficava!:
Mais presto morre o que mais se humilha,
Que a nenhum a crueldade perdoava,
Que cortam mais, por menos resistidos,
Os golpes dos cabardes nos rendidos.

Parecia que os montes se abalavam,
Movidos do confuso horror que ouviam;
Que as pedras com piedade se abrandavam,
Que os bosques com espanto estremeciam;
Que os vales com gemidos retumbavam,
Que as feras a ser brandas aprendiam,
Emboscando-se humildes nas devesas,
Por não verem tão bárbaras ferezas.

Em um dos vales, que está feito um Nilo
De sangue, estão jogando, caso raro!
Duas maças, Viriato e Vandermilo,
E duas lanças Grisaldo e mais Balaro.
Joga um montante o eborense Eurilo,
Com que serve aos cavalos de reparo
E a Ormia também gentil donzela
Jurando de morrer ou defendê-la.

Era quanto belíssima, animosa
Ormia, e tanto na caça exercitada,
Que a pé corria a serra mais fragosa,
E a cavalo a campanha dilatada.
No desmaio maior mais valerosa
Pegou de uma rodela, e uma espada
A um peão, que Viriato atropelara,
E as vai jogando com destreza rara.

Dos muitos que estes poucos vão matando
Foram cousa de um cento recolhendo
As armas, com que todos, pelejando,
Por meio dos contrários vão rompendo,
Viriato ferido, e animando,
Aqui e ali a maça revolvendo,
Abre caminho, qual leão rompente,
Que a desesperação é mui valente.

Como em campos larguíssimos, e enxutos
Além de Buenos Aires, sempre cheios
De vacum bravo, e de cavalos brutos,
Que não têm donos, nem conhecem freios;
Espantam-se da gente, e, resolutos,
Uns após outros fogem sem rodeios,
Porque inda que em pedaços os desfaçam,
Por onde passou um, os outros passam.

Assim por onde passa Verterminho,
Apesar dos Romanos superiores,
Cavalos e peões fazem caminho,
E Eurilo, defendendo seus amores.
Ó poderoso amor, como adivinho
O fim triste a que atiram teus favores!
Que amor, que em tanto sangue foi gerado
Prediz que será nele rematado.

Já pelo vale acima caminhavam
Os cento, a que os Romanos não seguiam,
Que da resolução, com que marchavam,
Parece que até as plantas se desviam.
Os montes, que tais mágoas escutavam,
Mais cedo a sombra aos vales estendiam,
E a noite rematava, tenebrosa,
Tragédia tão infame e lastimosa.

Do bosque infame a dous, ou três cruzando,
Porque a seguí-los mais não se aventuram:
Já atinando, já desatinando,
Em uns bosques param, que uns penhascos muram,
Onde as muitas feridas apalpando
Mal as apertam, ou se mal as curam,
Ormia lhe empresta luz das luzes belas
Que inda ali cintilavam como estrelas.

Galba depois que viu entrar na rede
Os inocentes peixes, que caçara,
Para em Mertola entrar, licença pede
Em virtude das pazes, que tratara.
Nenhum dos que a governam, lha concede
Que se lha concederam, os assolara;
Dá por quebrada a paz, publica a guerra,
E se parte abrasando o campo, e a serra.

Mas como era cobarde e conhecia,
Que logo toda a gente lusitana
Furiosa sobre ele desceria,
Retirando-se vai com a romana.
Já pelo opaco bosque, em que gemia
O noturno Ascalafo, e a Lesbiana
Nictimene gritava pavorosa,
A diurna luz entrava duvidosa.

Quando Viriato de um altivo monte
Cuidadoso de Baucio, e de Apimano,
Escuta, e olha, se ouve, ou vê defronte
Algum rumor do exército romano.
Em quanto cinge o pálido horizonte
Não vê, nem sente o canto Lusitano
Pé que mover-se possa, ou voz que soe,
Nem ainda ave que por cima vôe.

Parecia que tudo se apartava
Daquele Gelboé, pela crueldade,
Com que em três meriadões desenganava
Nossa caduca e vã fragilidade.
Já outra vez ao bosque se tornava
De furor combatido, e de piedade,
Esta para enterrar aos Turdetanos,
E aquele contra os pérfidos Romanos.

Anima aos valerosos companheiros
A sepultar a gente degolada;
Vê fugir a umas penhas uns cabreiros,
Chega-se, e nelas vê a gente apinhada.
Ó bem aventurados pegureiros
(Lhes grita) ó gente pobre, e descansada!
Não temais estas armas que estão prontas
A defender-vos, e a vingar afrontas.

Pastor fui, como vós, ó nunca fôra
Soldado, nem de ser pastor deixara!
Mas todo o que em repouso vive, ignora
Que custa a honra militar mui cara.
Na desventura me ajudai agora,
Que toda a guerra em desventura pára;
Vamos a sepultar nossos amigos,
Que eu vos irei vingar dos inimigos.

Confiam-se os atônitos pastores
D’estas, e de outras lástimas movidos:
Ferramentas lhe dão, e ajudadores
Que estavam pelos bosques escondidos.
Sepultam corpos, ressuscitam dores,
Lagrimas vêm descer, subir gemidos,
Exéquias funerais caritativas,
Se não muito pomposas, compassivas.

Vão-se ao segundo vale de amargura,
Para que seu pesar se renovasse,
Do qual não escapou viva criatura,
Que o trágico sucesso recitasse.
Acha Viriato a mortal figura
De Baucio; não foi muito que se achasse,
Nem pouco, que ainda fosse conhecido
Corpo tão sanguinoso, e tão ferido.

Ó enganado, e bem morto amigo,
(Lhe dizia e com ele se abraçava)
Pois mais te confiaste do inimigo
Que d’este amigo que te aconselhava!
Servir-me-á de exemplo teu castigo,
Pois para meu aviso se guardava;
E se eu as armas der como tu as deste
À traição morra, como tu morreste.

Ajuda-lhe a fazer a sepultura,
E com os três amigos o põe nela.
Esconde a terra toda a desventura,
Se a terra, sendo tal, pode escondê-la.
O sangue, que com ela se mistura,
Clamando fica por vingança dela,
E a haverão muito presto do inimigo
Porque nunca ao traidor tarda o castigo.

Já no terceiro lagrimoso vale
Mortos sepultam os piedosos vivos:
Pranto não pode haver, que o seu iguale
À vista de tão feros incentivos.
Língua não há, que seu tormento cale,
Nem olhos que não chorem compassivos,
Nem mãos que não enterrem quem estimam,
Nem pés que em sangue podre não se imprimam.

Como os mais, que deixavam sepultados,
Estavam todos nus, e acham vestidos
Uns trinta e tantos; foram logo olhados,
E todos por Romanos conhecidos.
Da novidade os Lusos admirados
Pelos acharem, mais que os nus, feridos,
Investigando a causa de seu dano,
Enlre eles vem já ser morto Apimano:

Que tomando aos contrários uma espada,
(Deles foi a façanha referida)
Tão fortemente dele foi jogada,
Que custou trinta vidas sua vida.
Ó vida (diz Viriato) mal lograda!
Comprada a sangue, e à traição vendida!
Quanto importava que inda não morreras!
Morreram todos, e tu só viveras!

De tua morte me mostras a devassa
Com trinta testemunhas a teus lados;
Justo é que conclusa se me faça,
Para ir proceder contra os Culpados:
Tinta será seu sangue, e pena a maça,
Com que hão de ser à morte pronunciados,
Pera emenda de tão infame excesso
Pagando Roma as custas do processo.

Um castigo ouvirá, com que estremeça,
Em podendo alcançar aos delinqüentes,
Que eu lhe farei, e aqui dando à cabeça,
Puxa a barba, torce a boca, e trinca os dentes.
Acabada esta prática, começa
O juramento, que as antigas gentes
Faziam, para com mais confiança
Solicitarem todos a vingança.

Ajuntaram-se todas as donzelas
Que estavam mortas de cruéis feridas;
E cada qual metendo os dedos nelas,
Com cerimônias hoje não sabidas,
Reverente jurava por aquelas
Almas já de seus corpos divididas,
De vingar o infeliz sangue inocente
Ou cedo, ou tarde, na romana gente.

Feito por todos este juramento,
Jura Viriato, e diz: — pelas entranhas
Que toco, renovando o sentimento
Das minhas contra as íntimas estranhas;
Por este virgem corpo macilenlo,
Vítima exposta às feras dus montanhas;
Pela alma já d’ele despedida,
Pelo que padeceu na morte e vida.

Juro, que hei de vingar nos agressorcs
Tão infame traição e aleivosia,
Solicitando os pátrios defensores
Contra toda a romana monarquia,
Por fomcs, sedes, frios e suores,
Sem descansar de noite nem de dia,
Até ver dos Romanos o castigo,
Sendo-lhcs sempre acérrimo inimigo.

Se algum dia mudar de pensamenlo,
Ou afrouxar da fúria vingativa,
Me abrase o sol, me não refresque o vento,
Seja-me o céu cruel, a terra esquiva;
Sobrem-me penas, falte-me o sustento,
À traição morra, ou de infâmia viva;
Juntos padeça todos estes danos,
Se presto me não vingo dos Romanos.—

Disse com ira; e logo com piedade
Dos mortos solicita a sepultura:
A todos a fez dar com brevidade,
Concluindo a traidora desventura.
A fama de tão grande atrocidade
Já de uma terra em outra se apressura,
E com susurradores estampidos
Enchendo as bocas vai pelos ouvidos.

Como bala de peça despedida,
Que quanto vai mais longe mais aquece,
A fama cada vez mais acendida
Quanto mais longe vai, maior parece.
Pavorosa se espalha e intimida,
Todos enche de horror, tudo entristece,
Qual pasma, qual se indigna, qual já cuda
Que tem sobre a cabeça a espada aguda.
(B. G. Mascarenhas).

 

Viriato, natural da Serra da Estrela, Português sem mistura de outra nação, de pastor humilde passou a ser capitão ilustre; testemunha da cruel tirania e perfídia dos Romanos, larga o cajado e pega da espada, e sobre o sangue das vítimas da traição, jura não embainhá-la sem que primeiro vingue a pátria e os seus. Em campo descoberto, Viriato fez conhecer ao senado Romano, que os Portugueses, não eram Asiáticos, que as águias nacionais tangiam para Roma, como cordeiros ao aprisco... Viriato sorri de Pompeu, e nos campos das batalhas lhe ensinou a brigar; invencível, derrota a Cipião, e lhe diz: que o seu braço é mais forte que a própria Roma, e Roma temendo o seu braço, não se atreve a agredí-lo, covarde o manda assassinar por mão estranha quando dormia!

Quarenta anos se volveram de terror para Roma, e os heróis de mil combates, fogem espavoridos com o peso do braço de um só homem.

 

Desta o pastor nasceu, que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve,
Cuja fama ninguém virá que dome,
Pois à grande de Roma não se atreve.
Esta, o velho que os filhos próprios come,
Por decreto do céu, ligeiro e leve,
Veio a fazer no mundo tanta parte
Greando-a reino ilustre; e foi d’esta arte.
(Camões)

 

Viriato, ávido de vingança, marcha contra Vitélio, e mata no primeiro conflito 4.000 Romanos; 10.600 no segundo; ao pretor Plâncio mata 4.000 soldados de cavalaria, e o vence em outro combate, com lealdade e valor. Logo depois vence e desbarata o famoso exército do pretor Cláudio Unimano, e o de Caio Nigidio.

Trezentos Portugueses carregados de despojos, tendo sido em caminho acometidos por mil cavaleiros romanos, matam a estes, sem que algum sofresse, e chegam à pátria desembaraçados.

O valente capitão Viriato Lusitano, marchando de vitória em vitória, venceu ao cruel cônsul Romano Q. Fábio, bem como a P. Emiliano.

Metelo, não podendo medir-se com o Lusitano, fez ajustes de paz. Q. Fábio foi completamente derrotado com os seus elefantes, bem como o cônsul Q. Serviliano. Este covarde inimigo, não podendo vencer o herói português, peitou a três oficiais estrangeiros que serviam a Viriato, com promessas de grandes recompensas, e o degolaram de noite quando dormia. Só deste modo puderam os Romanos livrar-se de um inimigo tão formidável.

 

Mal acabaram heróis tão famosos,
Sobre a fortuna os ter favorecidos,
Padecendo tormentos afrontosos,
Uns por tiranos, outros por vencidos.
Igual na morte, e feitos valerosos,
Foi Viriato aos mais esclarecidos;
Na origem d’ela não, se não me engano;
Porque não foi vencido, nem tirano.

Causa maior a deu ao feito horrível,
Que, subindo de humilde a memorando,
Morreu por formidável e invencível,
Presto veremos onde, como e quando.
Julgando como em Espanha era impossível
Acabar de extinguir, bem que triunfando,
A hidra consular que ali brotava
Cabeças mais, aonde mais cortava:

Se resolve a passar a Roma a guerra,
Que era o perigo que ela mais temia,
Caminho abrindo pela gália terra,
Levando os passos de Anibal por guia.
No grande coração prudente encerra
O segredo que de outrem ninguém fia,
E quando Flora remoçava Espanha
Pujante estava já posto em campanha.

Parte de Lusitânia resoluto
Em tarde ou nunca mais tornar a ela;
Porque é da guerra ordinário fruto,
Perder a vida e pátria longe dela.
O céu coberto de noturno luto
Parece que sua morte lhe revela,
E que dela pressago o moço louro
Avaro à terra oculta o monho de ouro.

Os pátrios montes, ásperos gigantes,
Pelos olhos das fontes o choravam;
As plantas braços seus tremendo amantes
Parece que de longe lhe acenavam;
Entre seus pés nos vales retumbantes
As águas temerosas se queixavam:
Sendo águas, plantas, montes, fontes, vales
Presságios tristes dos futuros males.

As flores, como enfermas de advertidas
A se murcharem presto se condenam;
As cafilas voláteis encolhidas
Com os bicos as penas desordenam;
As ovelhas das ervas esquecidas
Aos ares balam, porque não serenam:
Que ares, ovelhas, ervas, flores e aves, Retratando-lhe estão prodígios graves.

As terras, em que mais o festejavam,
Com tristeza maior o despediam,
Porque todos os rostos se enfiavam,
Todos os olhos lágrimas vertiam;
Os corações nos peitos se alteravam;
As línguas ao falar lhe emudeciam:
Que línguas, corações, olhos e rostos,
Advinham sua morte e seus desgostos.

Marchavam com mau tempo os bons soldados
Por campinas de lodos impedidas;
Que empresas que hão de ter fins desastrados
Muito de atrás começam de ir perdidas,
Iam de águas e ventos molestados,
Mal alojando em terras mal providas;
Que quando mal começa uma jornada,
Se acha de cada vez pior pousada.

Porém, como da guerra tão curtidos,
Feitos a desprezar comodidades,
De bom imperador favorecidos,
Suportavam quaisquer adversidades.
Os que iam de doenças afligidos
Trocava nos presídios das cidades:
Sempre aumentando e não diminuindo
O tremendo poder que o vai seguindo.

Vandermilo e Belaro conselheiros,
E membros principais de toda a empresa,
Com Apuléio e Brisséio por fronteiros
No governo de tanta fortaleza,
Deixa contra Cipião; três estrangeiros
Por estes quatro na secreta mesa
Admitiu, Dictaleão, Minuro, Aulaces,
Inimigos ocultos e sagaces.

D’esta sorte alcançando livre entrada
À tenda principal do luso Marte,
Que estava aos conselheiros franqueada
A qualquer hora e em qualquer parte.
Lhes descobriu parte da grã jornada
Que intentava fazer com força e arte.
Os três lha aprovam com alegres vultos
E a reprovam depois estando ocultos.

Resolvendo-se a nunca se arriscarem
A tão difícil e propínqua empresa,
E de antes aos Romanos se passarem,
Que passarem dos Alpes a aspereza.
Aulaces, por os dois o aconselharem,
Avisou Messalina com presteza
De seus intentos, porque não houvesse
Tragédia em que mulher se não metesse.

Esta, que então em Córdova assistia,
O correio entretém no hospício grato,
Avisando a Cipião de quanto havia
E dos intentos com que vai Viriato.
Ele que só do nome estremecia,
Vendo caminho aberto a um dobre trato,
Dos Pirineus os passos importantes
Segurar manda com dez mil infantes.

E logo pelo irmão de Messalina
A ela manda vir e ao mensageiro,
Que sendo pobre e vendo aberta a mina
A lealdade vendeu pelo dinheiro.
Por ele a ir e vir se determina
Muitas vezes, que enfim era estrangeiro,
Como quem o mandou, que tal baixeza
Nunca se achou em gente portuguesa.

E depois de bem pago e instruído
Com cartas de Cipião e da leviana
Tarpéia, chega aos três, sem ser sentido
Seu trato vil da gente lusitana.
Foi com grande alegria recebido
Pelas grandes promessas com que engana
O cônsul cauto seu desejo louco;
Mas quem promete muito quer dar pouco.

E como iam marchando os Portugueses
Com a lenteza que Marte requeria.
Pode ir e vir com cartas mais vezes
Urdindo a teia que Cipião tecia.
Viriato ignorando tais doblezes
Já com fogo resolve em cinza fria,
Mais que outras vezes impaciente e fero,
As terras de entre Pireneus e Ibero.

Porque sentindo os passos ocupados
Entendeu que os contrários entenderam
Seus pensamentos, como experimentados,
Sem nunca dar no ponto que lhe deram.
E, achando os Pirineus tão bem guardados,
Como livre a campanha, discorreram
Por ela até ao mar os Lusitanos,
Sem que Cipião se oponha a tantos danos.

Dos quatro espertos cabos, que deixara
Viriato em oposito, tremia,
E mal ao superior faria cara
Quem a súditos seus a não fazia.
Todo volto à traição que maquinara,
Aviso do que intenta aos três fazia,
Por saber que eram já os fementidos
A todos os conselhos admitidos.

Manda por um fecial mui astucioso
A repetir a paz que se rompera,
Desculpando seu trato malicioso,
E culpando a quem culpa não tivera.
Deu orelhas Viriato ao caviloso
Fecial porque como úteis propusera
Algumas condições, diz por remate
Que vá com ele quem das suas trate.

Ofereceram-se logo os estrangeiros
A irem, que era o que ele pretendia,
E Viriato, por serem conselheiros,
Com grã facilidade o concedia.
D’ele se despediram lisonjeiros;
Gente que pouco val, muito varia,
E quando ela governa, é sinal certo
Que a ruína do império anda mui perto!

Foram com grandes festas e favores
Tratados de Cipião e Messalina;
D’ela, pelo interesse dos amores,
D’ele, pela traição que vil maquina;
Tal, que com dos leais fazer traidores,
A traí-los depois se determina,
Para que eternamente o mundo o chame
Duas vezes traidor e, cento infame.

Resume-se por fim, em que se dessem
Presto a morte a Viriato lhes daria
Os três melhores cargos que escolhessem
Entre os muitos e grandes que provia,
Dez mil marcos de prata que pudessem
Repartir entre si, e lhes faria
Grandes mercês, que o grande irresoluto
Nunca promete pouco, nem dá muito.

A Messalina faz da mesma sorte
Muralhas de cristal, torres de vento,
Porque não há mentiras de mais porte
Que as ditas ao fazer de um casamento.
Mui satisfeito Aulaces da consorte,
Futuro prêmio do traidor intento,
Rocebe parabéns, que a dar-lhe vinham,
Se bem que para males se encaminham.

Viriato entre tanto campeava
Sempre à vista do mar talando a terra,
Que em quanto a paz se não efetuava
Assentara de não parar com a guerra.
E vendo que já dela indícios dava
O fumo em todo o vale, campo e serra,
Parou junto às ruínas de Sagunto
Cadáver frio do valor defunto.

Sepulcro eternamente lagrimoso!
Teatro sempre trágico e funesto!
Pela antiga tragédia lastimoso,
Pela que espera, fúnebre e molesto;
Presto mais memorável que ditoso
Se verá, porque o bem se passa presto,
Só nas mágoas que deixa, tem firmeza,
Que, onde morre o prazer, vive a tristeza.

Chegam-lhe aqui os três embaixadores
Da morte, porque só d’ela trataram,
Contando embustes próprios de traidores
Sobre as pazes que dizem negociaram,
Tirando condições de vencedores;
E que ele e Cipião logo as juraram,
Obrigando-se os três a que as jurasse
No mesmo dia em que o Fecial chegasse.

Festejaram-se as novas quatro dias,
Oh quatro vezes infilice sorte!
Como são as mundanas alegrias
Glórias da vida, vésperas da morte!
Oh grande general, que te confias
De estrangeiros nas cousas de mais porte!
Olha por ti, repara o golpe triste:
Mas ah! que ao que há de ser não se resiste!

Ó musa, tu que já me estás mostrando,
Como agulha das ondas empoladas,
O porto a que cansado vou chegando,
Por golfos de memórias soçobradas,
Pois a maior tormenta vai cerrando
Na costa em que as tais são mais arriscadas,
Dá talha ao leme, esforça a voz nas mágoas,
Serei novo Aaião em novas águas.

De Clicie o belo ingrato se apartava,
Do bruto grato a régia adulterina,
E o carro que as irmãs em pranto lava
Aos infantes irmãos Piroes inclina.
Do mundo a quinta idade caducava,
E Viriato da quinta já declina
Quando a última vez por triste caso
O crepúsculo viu cerrar no ocaso.

Cerra-se a noite cheia de portentos
Com tempestade tanto estrepitante
Que em batalha cruel os elementos
Mostrar-se querem a qual mais possante.
Combatem-se água e terra, fogo e ventos,
Baralhando sua fúria repugnante,
Disparando-se entre Eolo e Netuno
Do Tonante os canhões, caixa de Juno.

No cego horror, nos vários estampidos
De guerra tão confusa e repentina,
Desatinados todos os sentidos
Só o quinto no tato errando atina.
Pavorosos e tristes alaridos,
Como de casa que arde, ou se arruina,
O ruidoso estupor acrescentavam,
E os corações mais fortes desmaiavam.

Sai da tenda Viriato bem armado,
Porque em noites ruins mais cuidadoso
Vigia o bom pastor o manso gado,
Procura o bom amante ser ditoso.
Vela a fruta da quinta o bom criado.
Guarda o bom militante posto honroso,
Amaina o bom piloto as pandas velas
Ronda o bom capitão as desoras sentinelas

A breve luz de raios atinando,
De posto em posto vai rondando as postas,
Repreendendo as remissas, e louvando
O brio das que achava mais bem postas.
E depois de a tormenta ir aplacando,
E de ter as vigias bem compostas,
Por já deixarem ver nuvens errantes
Na terra montes, e no céu diamantes,

Se retira, observando mil figuras,
Que trágicas em nuvens sanguinosas
Com disformes e horrendas estaturas
Dão pelos ares vozes espantosas;
Noturnas aves d’entre as mais escuras
Cavernas lhe gemiam temerosas,
E os agoureiros cães tristes uivando,
Lhe vão fugindo, quando vai passando.

De nada se perturba, nem se inflama
Aquele coração nunca turbado;
Entra na tenda, faz da terra cama,
(Que esta era o seu colchão mais regalado)
E do escudo almofada que mais ama,
Somente da cabeça desarmado
Se encosta já no quarto da modorra,
Porque outra vez no d’alva as posta corra.

Tudo os traidores notam de mui perto,
E o sono aguardam que os sentidos priva;
Que não vive o leal (provérbio é certo)
Mais que em quanto o traidor quer que ele viva.
Certo cuidam que tem o prêmio incerto,
E animados com tal espectativa,
Na tenda, a tais deshoras freqüentara,
Entrando vão (Oh! Nunca nela entraram! ..)

Como ladrão que entrando em casa alheia,
Leve assegura o passo cauteloso,
Como amante que timído passeia,
Quando chega a fazer furto amoroso,
Ou como gato, quando se receia
Que se lhe escape o rato buliçoso:
Vão pela tenda os três mais vigilantes
E cautos que ladrões, gatos e amantes.

Confusa luz somente vigiava
Já quase extinta o herói sonolento;
E só da força com que respirava,
Estremecia o terno fraudulento.
Algum sonho cruel o atribulava,
Porque tremendo e reprimindo o alento,
Dava a entender na forma, em que gemia,
Que queria gritar e não podia.

Só de o verem bulir, desanimados
Os três covardes se iam já saindo;
Mas vendo-o sossegar, mais sossegados,
Acabam de entender que está dormindo.
E posto que já vão deliberados,
Quase estão do mau feito desistindo,
Que nenhum ousa de investir primeiro
A tão raro e fortíssimo guerreiro.

Só tu, cego rapaz, para mor mágoa
Rapazia tão vil executaste,
Que derramado tens mais sangue que água,
E nunca de água e sangue te fartaste.
Mal se tempera o ferro em tua fragoa,
Pois que nunca por ele te lograste!
Presto verás que tarde se arrepende
Quem, por te defender, com ferro ofende.

Aulaces por amor de Messalina,
Que em presentes idéias o animava,
Tira de uma catana larga e fina,
Que para tal efeito aguda estava,
E como espiga cega repentina
A cabeça que Espanha sustentava,
E que aspirava a ser muito depressa
De toda Europa singular cabeça.

Ó golpe horrendo, ó bárbaros traidores,
Ó mundo vil, em que tuas glórias param!
Contra quem tantos cônsules, pretores,
Exércitos, legiões em vão se armaram;
Contra quem tantos bélicos furores,
E tantas nações juntas nada obraram;
Obrou o golpe de um traidor, de modo
Que ele só pode mais que o mundo todo.

Olhai vós bem, monarcas, neste espelho
Que nenhum por afável, por possante,
Por liberal, prudente, moço ou velho,
Seguro está de golpe semelhante.
Foi o terdes boa guarda, bom conselho;
Quem se fia em bem quisto, é ignorante,
Que em fim por experiência se tem visto
Que o que faz mais justiça, é mais mal quisto.

Fundava-se Viriato em ser armado,
E nunca tanto o foi algum guerreiro,
Mas por não ser dos naturais guardado,
Veio a morrer à mãos de um estrangeiro.
Sendo feroz leão foi degolado,
Corno se fora tímido cordeiro,
Sobre seu próprio escudo: ó morte triste!
Mas, ó ditoso, tu que a não sentiste!

Dobremos folha aqui; vamos seguindo
Os três covardes, porque já caminham.
Que com o nome as postas desmentindo,
Chegaram aonde seus cavalos tinham;
E sobre eles a mais correr fugindo,
Voam cuidando que seguindo-os vinham,
Que, como o medo peca de advertido,
Sempre o covarde cuida que é seguido.

Chegados a Cipião, grande alegria
Tal nova em todo exército causava;
Todos aplaudem, ele só fingia
Que de tal feito e morte lhe pesava.
Com diferente rosto os recebia,
Desabrido e pesado se mostrava,
Por não mostrar-se cúmplice no feito,
Que todo o medo lhe tirou do peito.

Já não é o Cipião que de antes era
Aos traidores que, tarde arrependidos,
Cada qual seu desprezo considera,
Achando-se enganados e corridos.
A frustrada esperança os desespera,
Vendo-se tão confusos e abatidos,
Que os mesmos a que deram tanto gosto,
Todos lhe dão com a traição no rosto.

Porém, como a Cipião importunassem
Pelas promessas vãs, lhes respondia,
Que os cargos lh’os daria, se vagassem.
O dinheiro que dá-lo não podia,
E quanto à Messalina, que a rogassem,
Porque se ela quisesse, ele queria;
Mas é mulher (repete) e a mais sisuda,
Em um virar de mão, de afeição muda.

Tendo-a por tão mudável, quanto bela,
Não estou a finezas obrigado.
Contudo Aulaces quis falar com ela,
Porque inda nela estava confiado.
Permilte-lhe que possa logo ir vê-la,
Mas de três centuriões acompanhado,
Porque os tratava já com tais desprezos,
Que soltos os trazia como presos.

A Messalina avisado tinha,
Por quanto seu irmão estava ausente,
Que casar com um traidor lhe não convinha,
Que o despedisse desabridamente.
Ela que amava, e via que vinha
Pedir o sim ou não seu pretendente,
Mal dizia Cipião, mal a esperança,
Que seu desejo punha em tal balança.

Posto em sua presença o triste amante,
Suas finezas pálido repete.
Ela por fora rígido diamante,
Dentro, qual cera, ao fogo se derrete;
Está rendida, finge-se arrogante,
Com a língua nega, com ações promete,
Com a voz despede, com os olhos chama,
Vai, fica, quer, não quer, ama e desama.

Mas como já nas pálpebras publica
O neutro aljofar, que encobrir quisera,
Que o muito pestenear o mexerica,
Se recolhe, e de todo desespera.
Oculta desembarga a mina rica
Das pérolas, que presas retivera,
Que como por amor as derramava,
Uma vez que o negou, as sonegava.

Aulaces com paixão perdendo as cores,
Arrancando o punhal, disse iracundo:
Quem foi traidor ao raio dos traidores,
Acabe assim, que assim castiga o mundo.
E por três vezes desprezando as dores,
O peito se passou tão furibundo,
Que quando os três centuriões lhe acudiram,
Desmaiar e cair a um tumpo viram.

Acode Messalina à lastimosa
Tragédia, cheia de mortal espanto;
Grita por cirurgiões, tenta animosa
As feridas que lava com seu pranto;
Sente que vive, fala-lhe amorosa,
Tanto suspira e regala tanto
Que não vê o punhal, porque inda tinha
O ferro d’ele o peito por bainha.

Gentil senhora (lhe diz flebilmente)
Em vida amada, em morte agradecida,
Contente morro de vos ter presente,
E presente vos faço d’esta vida.
Eu fui d’ela o juiz e o delinqüente,
Não vos quero fazer nela homicida,
Nem pode a morte tanto em mim, que possa
Deixar de vos deixar cousa tão vossa.

Mais que as feridas sinto vossas dores,
Cruel vos acho, quando mais piedosa;
Vivi de enganos, morro de favores,
Não pudera ter morte mais ditosa!
Se o fruto não gozei, gozando as flores
Em tal hora a terei menos penosa,
Que não pode temer mortais traspassos
Uma vida que acabo em vossos braços.

D’estas janelas, por que está saltando
Esta alma que me deixa e vos invoca,
Vereis o coração justificando
As ânsias que exalava pela boca.
Este penhor que vô-lo está mostrando,
E vos toca também, pois nela toca,
Vos deixo por lembrança, arrecadai-o:
Disse, expirando de mortal desmaio.

Repara no punhal quase escondido
No lado esquerdo a pálida turbada,
E fica, como estátua, sem sentido,
Tácita um pouco; e logo simulada
Aparta das criadas o alarido,
Os centúrios despede sossegada,
E já livre de toda a companhia,
Sentada junto ao morto, assim dizia:

Passa por mim o trance que estou vendo?
Mas não deve passar, pois estou viva.
Mas como viva estou, se estou morrendo?
Como morro, se estou tão discursiva?
Eu não vivo, eu não morro, eu não me entendo:
Engano deve ser de perspectiva,
Que figurando a cousa desejada,
Está mostrando tudo sem ser nada.

Nada sou, pois não fico, ah triste vida!
Viúva, nem casada, nem donzela;
Donzela não, que já fico abatida;
Casada não, que a morte o atropela;
Viúva não, que não fui recebida.
Logo que fico? Fico nau sem vela,
Horta sem muro, frágua sem obreiro,
Casa sem dono, bolsa sem dinheiro.

Se tal hei de ficar, perdido amante,
Melhor será partir logo contigo,
Mostrando que te sou Tisbe constante,
Na jornada mortal Píramo amigo.
Sai cá fora, agudo e penetrante
Executor de meu e seu castigo,
Legado pio cheio de impiedade,
Último golpe de última vontade.

Tira o punhal, —prosegue,— ó prenda minha,
Como saís do cofre melhorada:
Entrastes nua, e trazeis bainha
De rubis, para ser mais estimada.
Prenda, que um coração por cofre tinha,
Ande em meu coração também guardada:
Nele vos meterei, pois sois lanceta,
Que tão bem sangra parte tão secreta.

Abri, dourada chave, este aposento,
Para que esta alma triste ache saída:
Que sem amor não há contentamento,
E sem contentamento não há vida.
E vida sustentada com tormento,
É morte cada instante padecida.
Padeça de uma vez o corpo, acabe,
Que quem sabe poupá-lo, amar não sabe.

Disse, e na ponta do punhal sangüino,
Encostada a maçã no peito amado,
Deixou cair o peito alabastrino,
Que em líquidos rubis ficou banhado!
Espera, espera, amante peregrino,
(Repete) que vás mal acompanhado,
Oh! pára um pouco! oh! detém-te, amigo;
Oh! não te vás sem mim que já te sigo.

Estando posta em tão mortal trespasso,
Entra Cipião à pressa pela sala.
Tanto que o vê, se soergue sobre um braço,
Severa fala assim, ele ouve, e cala:
Que vens a ver, ó bárbaro Circaço?
Cita cruel, que buscas, dize, fala?
Mas que pode falar quem com vil trato
Mala Aulaces, a mim e a Viriato?

Nunca d’esta crueldade fraudulenta
Te pode desculpar tua língua astuta,
Que é mais traidor o que a traição inventa,
Que quem por seu conselho a executa.
Com o valor a guerra se sustenta,
Tu, por ele faltar, fugiste à luta,
Pois, infamando a pátria, acreditaste
Por invencível a quem mal mataste

Pcrdeste a teus passados o respeito,
Tiraste à Roma de vencer a glória;
Mas sabe, que por este infame feito
Sempre infame será tua memória.
Nunca foste gerado em casto leito,
Filho és de alguma adulterina história,
Que o sangue dos Cipiões nunca podia
Produzir tão nefanda aleivosia.

Que há de dizer de nós todo ocidente
África, Ásia, Galia, Épiro e Grécia,
Se não que teve Roma novamente
Outro Galba traidor, outra Lucrécia?
Não fui, como ela foi, incontinente,
Pois morro por mais casta e por mais néscia:
E tu fazendo da desonra alarde,
Viverás por traidor e por covarde.

Mas não tarda o casti... E aqui atalhada
Foi da morte, ficando já sem vida,
Como a tenra bonina que pisada
No prado foi da fera inadvertida.
Se pálida ficou, se desmaiada,
Mais pálido Cipião entre a luzida
Gente, que o vê sem pulsos e sem brio,
Fica da repreensão cortado e frio.

Manda que juntos sejam sepultados
Em sepulcro de mui luzido e forte
Alabastro, em que estejam bem gravados
Quatro versos, que digam d’esta sorte:
Aqui estão dous amantes mal logrados,
Que a vida separou, uniu a morte
Que cada qual se deu: de tudo teve
A culpa amor; —seja-lhe a terra leve.—
Dictaleão, e Minoro a Roma envia
Presos com maliciosa e vil cautela:
Porque a traição, como alcovitaria,
Se estima e se despreza o autor d’ela.
Mas onde vou? Aonde me desvia
A pena, que entre penas se desvela.
Escrevendo e penando, tendo apenas,
Dado penada nas maiores penas?

Correndo triste as pálidas cortinas,
Suando aljofar, como de afrontada.
Sobre as úmidas ervas e boninas
Vinha saindo a aurora envergonhada.
Por entre nuvens pardas e sangüinas
Vigiava a campanha dilatada
Em que o luso monarca recatado
Sempre achava de ponto em branco armado.

Quando os soldados, à que a sentinela
Do quarto d’alva repartida estava,
Confusos de Viriato faltar nela,
Porque entre eles jamais nela faltava;
Cada qual de seu posto os outros vê-la.
Por ver, se com os olhos o encontrava
Com os olhos que os pés tinha sujeitos
O rigoroso Marte a seus preceitos.

Da caixa rouca enfim desobrigados,
E de tal novidade escrupulosos,
Buscando a tenda vão alvoraçados,
Mais que nunca de o verem desejosos.
Quando cerrada a vêm, ficam turbados
E da entrada que intentam receiosos,
Porque nenhum se atreve a ser primeiro:
Tão respeitado era tal guerreiro!

Qual diz que dorme, qual que não dormia,
Nem dormir a tais horas costumava:
Qual que em outros quartéis presto estaria,
Qual que o buscou, e que em nenhum o achava.
Crescia a gente, o rumor crescia,
E nenhum coração se sossegava,
Que de desditas que inda estão secretas,
São sempre os corações grandes profetas.

Mas juntos capitães e conselheiros,
Como logo entre os mais menos acharam
Os três facinorosos estrangeiros,
A traição claramente suspeitaram.
Entram dos mais antigos, e os primeiros
Que morto o vêm, sobre ele desmaiaram.
A gritos que outros dão, sai da tenda
Quebrando os corações a nova horrenda.

Trovões de gritos vão rompendo os ares,
E dilúvios de lágrimas rebentam
Por todos os quartéis, em que a milhares
Alaridos e lágrimas se aumentam!
Tudo lástimas são, tudo pesares,
Que quanto curam mais, mais se acrescentam:
Nunca perdido bem se chorou tanto!
Nunca morte causou tão grande espanto!

Sempre foi de um exército florido
Bom general espírito alentado,
Que o mantém e o conserva em corpo unido,
Bem que de vários membros agregado;
Que é espírito em membros repartido,
E corpo d’este espírito animado
Se vê, em que faltando a tal cabeça,
Logo o tal corpo a desmaiar começa.

Bem se viu neste exército arrogante,
Que cheio de valor e de experiência,
Faltando-lhe a cabeça, em um instante
Todo o brio perdeu, toda a ciência.
Desmaiado, confuso, sussurrante,
Sem arte, sem valor e sem prudência.
Parecia na trágica agonia
Um labirinto de melancolia.

Carecia de espírito alentado
Com que tivera próspera a ventura;
Estava corpo enfermo e já deixado
Do médico, por não lhe sentir cura.
Tinha a fortuna péssima jurado
No estígio pela própria desventura,
E circunstâncias de tão nobre trato
De não dar mais ao mundo outro Viriato.

Que como por amor avassalava,
E nunca com rigor forçava a gente
A seguí-lo, que sempre amado achava
Quem o seguisse voluntariamente;
Qual por restaurador o lamentava,
Qual por seu natural, qual por parente,
Qual por guia, por pai, por conselheiro,
Qual por irmão, amigo e companheiro,

Não havia queixar de agravo ou dano
(Que exemplo este para os reis de agora!)
Por ele feito a homem lusitano,
Nem a gente da paz merecedora.
Quando se viu mais alto, mais humano
Se mostrou com sua gente vencedora;
Toda a soberba foi contra inimigos,
Toda a humildade entre seus amigos.

Bem que desse caída desditosa,
Não poderá ter morte mais honrada,
Porque história que acaba lastimosa,
É por mais sensitiva mais lembrada.
Deixou a toda Espanha saudosa,
Roma vencida e mal acreditada,
Cheias de altas façanhas as histórias,
E a pátria rica de imortais memórias.

Por mais que no Leteo se sossobraram,
Que encobriram contrários abatidos,
Foram tantas as que eles confessaram,
Que se estão confessando por vencidos.
De serem seus cronistas se prezaram,
E o chama Floro um dos mais floridos,
O Rômulo espanhol melhor dissera,
Raio do povo, a que ele engrandecera.

O tempo que com braço poderoso
Grandes façanhas avarento encobre,
Cada um dia as d’este herói valeroso
Por toda Espanha em mármores descobre.
Cada qual o publica vitorioso,
Que guarda pedra vil memória nobre;
E bem que a pedras não perdoa a guerra,
Se ela as sepulta, ela as desenterra.

De grandes capitães fatal segredo
É morrerem como este Lusitano,
Muito longe das pátrias tarde ou cedo:
Tais Ciro, Aquiles, Alexandre Magno,
Pompeo, Sertório, Anibal, Gofredo,
Temístocles, Teodósio, Trajano,
E nossos generais de maior fama,
Albuquerque, Furtado, Almeida e Gama.

Mas já das honras funerais se trata
Nos quartéis da viúva infanteria;
E agudo ferro já danosa mata
Desterra a mais decrépita hamadria;
Quanto se precipita, se arrebata
Pelo ar com presteza e valentia,
E se acumula com grande arte e conta
Em pira, das pirâmides afronta.

Despojam-se as montanhas e campinas,
Com prolixa atenção examinadas
De quantas ervas, plantas e boninas
Odoríferas são, sendo queimadas;
Tudo alternando vão por lados, quinas,
Colunas, capitéis, frisos e escadas,
Com que em nova Babel nova ousadia
Segunda vez o Olimpo desafia.

Feito de todo aquele contrafeito
Mausoléu que afronta ao celebrado
De tantas musas, sobre andor perfeito
De ciparisso, louro e palma ornado,
Subindo aquele generoso peito
Foi no alto da pira colocado
Com tão ruidoso e fúnebre lamento
Que a terra fez tremer, parar o vento.

Do gentílico rito um venerando
Ministro com melindre reverente
O corpo anda compondo, e susurrando
Várias deprecações confusamente.
Depois sobre altas grades assomando,
Funesta endeixa à circunstante gente
Começa de entoar, e respondendo
Lhe vão de quando a quando em coro horrendo.

A certas pausas brados e gemidos
Entoava entre si tristes e suaves,
Que com tais ânsias eram repetidos,
Que faziam cair de espanto as aves.
E feitas muitas voltas e alaridos,
D’aquele tempo cerimônias graves,
O ministro se desce ao pavimento,
E aplica ao seco o lúcido elemento.

Famélico da pira majestosa
Se vai por lados quatro apoderando,
Em torno d’ele a gente lastimosa
Lastimosas canções anda cantando;
Muitos amigos com paixão saudosa
Se vão dentro no fogo arremessando,
Outros por fora d’ele com espadas
Se matam por vontade a estocadas.

Amigos d’este tempo (digo amigos
Do tempo aqueles que, andorinhas mansas,
Vos apartais do inverno dos perigos,
E vos chegais no estio das bonanças)
Tomai exemplo aqui d’estes amigos
Que envergonhando estão vossas mudanças,
Não vos quero notar de ingratos loucos
Porque inda há bons amigos, mas são poucos.

Estes que então, com mais amor que aviso,
Crendo o rito da vã gentilidade,
Do seu Elísio, ou sacro paraiso,
Esperavam gozar com brevidade;
Mas com quanta confiança e pouco siso
Nestes grandes excesos de amizade
Criam que as almas cheias de alegria
Iam com a do amigo em companhia!

D’esta verdade que não é patranha,
Letreiros inda ali há fidedignos;
De casos tais os há por toda Espanha,
Sempre de mui geral crédito dignos.
Verdade que, se bem parece estranha,
A não podem negar zoilos malignos,
Porque hão de confessar que a gente antiga
Foi menos invejosa e mais amiga.

Já tinha em cinza o fogo sepultado
Aquela maravilha gigantéia,
De jaspe fino campa bem lavrada
Estava de sutil mão dedaléia;
Em urna de cristal depositada
Foi do corpo gentil a cinza feia
E metida na terra, a que oprimira,
O grave peso da soberba pira.

Sepultou junto d’ela o jaspe duro
A terça parte, para que ficasse
O seu sólido corpo mais seguro,
E mais visto da gente que passasse.
E para que o voraz tempo futuro
Tão ilustre memória não tragasse,
Memorando letreiro nele havia
Bem aberto ao buril, que assim dizia:

Repara nesta campa, ó caminhante,
Que solitária as cinzas acompanha
D’aquele triunfador d’essa triunfante
Roma, luso Anibal, Marte de Espanha;
Se por traição da émula* ignorante
Morre, se imortaliza, e mais a acanha:
Foi monarca e pastor, severo grato,
Foi raio, é cinza: foi enfim Viriato.
(B. G. Mascarenhas).

 

Este acontecimento espantoso deu grande abalo aos Romanos, em modo a ser imensamente sentido pelos homens que sabiam avaliar o mérito e o valor de um herói, como era o grande Viriato(6). Roma em tributo de admiração e respeito, celebrou honras fúnebres à memória do invicto Português.

A virtuosa portuguesa Ormia, sendo violada à força por um cavaleiro Romano, depois de o matar, apunhalou-se para não sobreviver à sua desonra.(7)

 

Sabendo de Metelo o que passava,
E de parte o correio examinando,
Depois que por extenso lhe contava
Os martírios, que estava Ormia passando,
Uma carta que d’ela traz lhe dava;
Abre-a, tremendo, seu sinal beijando;
Combatido de pena, e de alegria,
Começa a ler, e vê que assim dizia:

Esposo da alma, tua esposa amada
Posta em poder de desmaiado esposo,
Desposada não é, é despojada
Da honra, e do tesouro mais precioso;
Já de todos esposa sou chamada
De Silo, com quem Cila me desposo,
Ladrando firme fui esposa sua
Do corpo, sendo d’alma esposa tua.

O que não acabaram em muitos dias
Requebros, retenções, regalo, e rogo,
Acabaram com baixas vilanias
Forças, feridas, fúria, ferro, e fogo.
Como quem joga, perde, e tem porfias,
No jugo, jaço, julgo, juro, e jogo,
Jogo o dado, pois dado é sem reparo,
Pica, pena, porfio, perco, e paro.

Dar braços ao contrário, que aborreço,
Que desconsolação, que grande mágoa!
Enxugar sempre os olhos, que humedeço,
Que mar de desamar, que fonte de água!
Ver o que enjeito, e não o que apeteço,
Que neve fria, que amorosa frágua!
Imaginar-me livre, e estar cativa
Que doce imaginar, que pena esquiva!

Não me posso pintar como me sinto.
Ai nobre sentimento, ai vil mudança!
Pinta-me lá, qual eu de cá te pinto,
Ah pintura mortal! ah cruel lembrança!
Considera-me neste labirinto,
Ó Teseo, corre, oh! vem tomar vingança;
E se a matar-me vens, não venhas tarde,
Que espero morrer presto, o céu te guarde.

Qual membro, que do pau atormentado
Logo não deixa obrar as medicinas
Por sangue não deitar, que está apartado
Com a força das dores repentinas;
Negro o golpe se vê, como pasmado
Até que vem as lágrimas sanguinas,
Em tanta cópia, que não há vedá-las,
Por mais, e mais que queiram medicá-las;

Tal Eurilo ficava em acabando
De ler a carta, cujo sentimento
Tão grande foi, que os olhos enxugando
Em que se dava o golpe do tormento;
Um pouco esteve como vacilando,
Mas acudindo logo cento a cento-
Lágrimas, que sem freio correr deixa
Já humilde, e frenético se queixa.

Esposa d’alma, já do corpo esposa,
Esposa alheia, de honra despojada,
Casta Lucrécia qne Tarquínio goza,
Helena, que um traidor levou roubada,
De Lusitânia, Grécia belicosa,
Carpentânia será Tróia abrasada,
Subverta-se o Ilião, como Gomorra,
E morra Menelau, ou Paris morra.

Mas que blasono, ai triste! que imagino?
Que me resulta de ficar vingado?
Se a honra da mulher é vidro fino,
Que não solda, uma vez que foi quebrado!
Quebrado está o espelho cristalino,
Já quem n’ele se olhou, se olha afrontado,
Roubando ao sol da Europa o touro ausônio,
Que sem luz me deixou em capricórnio.

Ditoso aquele, que não é ditoso,
Que grande dita é nascer sem dita;
Porque aquele, que sobe a venturoso,
Nunca vive seguro da desdita.
Sem grã dita não há grã desditoso.
Pois para o ser de ditas necessita;
Toda a desdita, toda a desventura,
Que tenho, me nasceu de ter ventura.

Nunca a tivera, nunca a Ormia vira,
Nunca no fatal cico* a defendera,
Nunca do vale trágico saira,
Ali morrera então, e ela morrera:
Que se a tão alto estado não subira,
A tão subida afronta não descera,
Mas posto que em a ter culpa não tive,
Vingue-se, ou morra, quem sem honra vive.

Assim queixoso, assim desesperado,
A vingar-se de Silo se prepara,
Que delicioso, mais que acautelado,
Sem temor goza da beleza rara,
Contrafeito prazer, amor forçado
Pouco se encobre, presto se declara,
Porque amor, ódio, fumo, rico, e pobre,
São cinco cousas que ninguém encobre.

Pouco ódio encobriu Ormia afrontada,
Muito se contrafez em poucos dias,
Fingindo-se de Silo namorada,
Revestindo as tristezas de alegrias;
A vingança em seu peito imaginada
Vai simulando, e desmentindo espias,
Sai a caçar com seu libidinoso,
E mais que a morte, aborrecido esposo.

Persegue a caça, finge-se perdida
Nos bosques, apartando-se de Silo
Por onde solitária, se afligida,
Desabafa em chorar o amante Eurilo,
Depois que mostra dá de ser fugida,
Tarde a Silo se vem por divertí-lo,
Confia-se em cuidar que muito o ama,
Caçar a deixa, e fica-se na cama.

Volve alto dia, finge-se contente
De fazer tanto a tempo a madrugada,
Que já, para a saída, obediente
A guarda tem da porta, e para entrada,
Feito do feito o papel corrente,
E conclusa a vingança destinada,
Na cama prende mais que nunca odiosa
Seu adúltero lado, cariciosa.

Alta noite o recreia, e o desvela,
Para que não desperte amanhecendo,
Ele se alegra, ela se acautela,
Grã caça, e madrugada prometendo.
De Pafia* apenas a amorosa estrela
Pelo horizonte vinha aparecendo,
Quando da cama salta, e alto grita
Sela, enfreia, tó perra, tó bonita.

Vigiava na alcova, em que dormia,
Uma de cera lúcida atalaia,
E como que avivá-la mais queria,
Finge que a espevita, e a desmaia,
Ao mal desperto Silo mal dizia
Seu erro, porque não achava a saia;
De malha a veste e, cauta, armas duplica,
Finge, que fora vai, e dentro fica.

Donde com pronta orelha o ressonante
Silo, que apenas despertava, escuta,
Que quando a morte está menos distante,
Mais longe a finge, quem desteme a luta.
A mudos passos vira a bradamente,
Tanto, quanto afrontada, resoluta
Com agudo culelo à cama chega,
E de um golpe a cabeça a Silo sega.

Com tal silêncio o fez, e tanta pressa,
Que nem do morto o golpe foi sentido,
No coxim mete a adúltera cabeça,
Que por d’ela capaz tem prevenido.
Outra vez a chamar os cãos começa,
E foi pelos criados respondido,
Que já presos os tem, tudo aviado.
Porta aberta, e cavalo aparelhado.

Cavalga, e parte quando a manhã chega,
Pondo logo os monteiros em desvio,
Solicita as esporas não sossega,
Passa de Guadarrama o porte frio,
De Salamanca frígida Noruega
Vê em dous dias o soberbo rio,
Que então corria todo lusitano,
Se agora corre todo castelhano.

Descança ali da fuga venturosa,
Que passou, sem passar nenhum perigo;
Vai dali a Augustobriga a famosa
Augustobriga, que é Ciudad Rodrigo.
A Almeida chega, pátria venturosa
Do autor moderno, Tito Livio antigo,
Que foi, quanto polito, invejado,
Em vida perseguido, em morte honrado.

A Celobriga passa, hoje chamada
Celorico o leal, pela lealdade
Que a Sancho, o mole, n’ele foi guardada
Quando em sua maior calamidade.
Ladeando a serra chega à desegada
Aufragia, que com grã celebridade
Festeja os matrimônios consumados
De seis semanas, inda festejados.

Não acha a Eurilo, porque já partira
Com seis mil lanças, para Egiditania,
Vai um correio a detê-lo, e vira,
Parte Albano a assolar a Carpentania:
Em quanto tarda Menelau, suspira
A nova Helena, volta de Dardania;
O vulgo a aplaude, e o louva cada hora,
Festejam-n’a as parentas, e ela chora.

Quantas mais festas vê, mais penas passa,
Que as alegrias dobram seus tormentos;
Foge dos espetáculos da praça,
Retira-se aos mais tristes aposentos.
Não há nenhum prazer, que a satisfaça;
Por mais que as primas todos os momentos
A querem divertir, porque advertida
A tem a honra a dar por ela a vida.

Entrando vão Balaro, e Vandermilo,
Cujas consolações não admitira,
Acompanhando o lastimado Eurilo,
Que a vai a abraçar, e ela o retira.
Desculpa-se por tão honrado estilo,
Que a todos move a piedade, e ira,
Contando largamente o que passara
Até o instante, em que ali chegara.

Só lhe calou o morte do inimigo,
Até que o coxim negro desfechando,
Dentre o sal, que é remate de castigo,
Que se dá por delito memorando;
Tira a cabeça, que inda traz consigo,
Exemplo rigoroso a todos dando;
E com o natural painel da morte
Suspenso a Eurilo fala desta sorte.

Este penhor de minha castidade
Te venho apresentar, amado esposo:
Se esposa fui de pouca honestidade,
Força a rendeu, que não gosto aleivoso.
Nunca te adulterou minha vontade,
Se adúltero traidor libidinoso
Te ofendeu, me afrontou levando a palma
Mancha é do corpo, que não toca n’alma.

Quis tua boa fortuna que o matasse,
Vingando minha afronta e teu respeito,
Porque se pôde haver quem te afrontasse,
Não haja quem se gabe de o ter feito.
Se imaginas que o fiz porque corasse
Contigo por tal feito meu defeito
Aqui verás, que a mim própria, homicida.
Pela honra salvar, desprezo a vida.

Disse, e metendo a mão a um diamantino
E secreto punhal, que esconde em breve
Quatro vezes no peito alabastrino,
De rubis matizando a branca neve,
Que o braço varonil tão repentino
Foi, que já quando Eurilo lh’o deteve
Privada tinha, ó trágica agonia!
De vida a Ormia, a todos de alegria.

Sobem gritos ao céu, à terra descem
Lágrimas, como quando chove e venta,
Que de pesar as primas endoudecem,
Matar-se Eurilo com o punhal intenta;
Toma-lh’o Vandermilo, sem que cessem
Os desatinos, com que se lamenta
Ó morte (disse) para que me guardas?
Se hás de vir, tarde ou cedo, porque tardas?

Ai sem ventura, pois tão pouca tenho
Que nem morrer me deixa a desventura!
Aonde irei? se a tal estado venho,
Que ir-me não deixa a morte à sepultura!
Sem falta que de mágoas me mantenho,
Pois vivo, ó vida cheia de amargura,
Acaba já, ó morte, porque aguardas?
Se hás de vir tarde ou cedo, porque tardas?

Desmaiou-se com tanto sentimento,
Que de todos por morto foi julgado,
Mas, conhecendo que inda tinha alento,
A outro quarto em braço, foi passado;
E com grã pompa, mais geral lamento,
Foi o sanguino corpo acompanhado
A um soberbo sepulcro, em que o puseram,
E por fora tais letras lhe escrveram.

À Ormia Lusitana aqui te inclina,
Peregrino, que aqui tens Timocléia,
Dido, Camila, Aspásia, Proserpina,
Timires, Tisbe, Harpálice, Pantéia,
Evadne, Europa, Helena, Clélia, Dina,
Andromada, Zenóbia, Pasilhéia,
Judith, Lucrécia, de Betulia, e Roma,
Pandora em suma a palma a todas toma.

(Mascarenhas).

 

Quinto Serviliano Cépio, autor de tão infame covardia, foi coagido a fazer pazes com os Portugueses da Numídia, que, posto que estavam sem chefe, davam-lhe grandes cuidados.

Um homem de muito mérito, e que era general dos exércitos romanos, sendo desterrado para fugir das perseguições e tiranias de Sila, como asilo passou-se à Espanha, e procurou acolhimento entre os Portugueses, e os aliciando, tomou as armas contra Roma e marchou sobre ela: este homem insigne foi Q. Sertorius, natural de Nurséia. Nos primeiros anos, sob as ordens do grande Mário, combateu os Címbrios e Teutôneos. Quando Mário e Cina entraram em Roma, assassinando os seus inimigos, Sertório manifestou a sua mágoa por ver morrer seus compatriotas. Isto bastou, para lhe adquirir ódio perpétuo.

O senado Romano, sabendo que Sertório à frente dos Portugueses vinha contra ele, mandou quatro exércitos, comandados, além de outros, por Pompeu e Metelo, que foram desbaratados. Caminhando sempre na perseguição contra Roma, Perpena, oficial seu e Romano, invejoso das glórias e valor de Sertório, em um banquete que o ilustre general deu em sua casa (70 anos antes do REDENTOR), teve a baixeza de se conspirar contra ele, e à falsa fé mandar a Antônio, outro oficial, assassiná-lo.

Este acontecimento estranho, praticado em Évora(8), feito na pessoa de um homem respeitável por sua idade avançada e gloriosos feitos, foi geralmente estranhado e sentido pelos soldados de Sertório e povo Lusitano. Perpena não logrou por muito tempo o fruto da sua cobiça, por que caindo nas mãos de Pompeu, foi por este morto.

Diz a história que Espártaco com outros escravos rebeldes, moveram a guerra que Pompeu e Cássio haviam suprimido. Cícero sendo cônsul se conspira contra Lúculo e Catilina. Pompeu, aliado de César, por inveja se separou; e derrotado na Farsália, fica César senhor do Império Romano. Portugal por todo esse tempo sofreu o pesado jugo dos ditadores e cônsules de Roma, por que sem os seus famosos capitães, apenas aqui ou ali acomete a seus opressores. C. Pisão, legado Romano, governou a Espanha, Galiza e Portugal. Sob este tempo sofreu a Península um medonho terremoto. Os Portugueses, depois de Pisão, rebelando-se contra o pretor Q. Calídio, este os venceu.

C. Júlio César, entrando na Lusitânia, 59 anos antes do nascimento de JESUS CRISTO, sujeitou os seus natuturais, e mandou por seu turno governá-la Publio Lentulo, Metelo Nepos, Cicilio Dentato, Cicilio Metelo Nepos. Por este tempo são mortos na África Sipião, Calão, e o rei Juba, êmulo de César, que depois foi morto por Bruto e Cassio, 44 anos antes de JESUS CRISTO.

Quando Augusto, já feito Imperador, veio à Espanha, os Portugueses não lhe quiseram obedecer, porém reduzindo-os por meio de afagos, conseguiu fazer da Espanha e de Portugal província Romana, introduzindo logo aí os costumes, leis, ritos, colônias e linguagem Romana. Só ficou, afirma a história, a língua vasquense nas províncias Vascongadas, onde Biscaio Octavio começou a governar como Imperador, e morreu 13 anos depois da vinda de JESUS CRISTO.

Octaviano, dous anos antes de JESUS CRISTO, dividiu a Lusitânia em quatro comarcas, ou chancelarias, que foram Mérida, Beja, Santarém e Braga. Afirma-se que os Portugueses adoravam a Octavio, e lhe erigiram templos a ser reverenciado, como fosse em Lisboa, Évora, Mertola e Santarém.

Octavio, ou antes Augusto, compreendendo estar a felicidade desses povos na paz, julgou conveniente sustentá-la e garantí-la, e assim os manteve enquanto viveu.

 

Estado de Portugal até a entrada dos Godos.

 

Sujeita ao império Romano a Península, diz um compilador, e como províncias suas a Espanha e a Lusitânia, e sendo governadas por Pretores ou Cônsules, subindo ao trono Constantino o Grande, e indo a combater Maxêncio, um dos seus inimigos, viu uma cruz no céu, com esta inscrição — ER TOUTRO VIXA —in hoc signo vinces: esta visão o fez converter ao cristianismo, e alcançar uma fácil vitória. Constantino, assim compenetrado, cuidou em favorecer o cristianismo e a defendê-lo por toda a parte; instituiu na Lusitânia um vigário, sujeito ao prefeito do Pretório, que então residia em França.

De então começou o governo dos Condes em Portugal(9). Havia, diz a história, no entanto alguns régulos ou reis sujeitos ao império. Depois do Augusto governaram Portugal: Tibério, que entrou para o poder 14 anos depois da vinda de JESUS CRISTO, e governou 22 e meio. Era este homem de péssimas qualidades, sendo cruel, vingativo, desconfiado, e assassino de seu sobrinho. Calígula, filho de Germânico, cruel incestuoso desonrando suas irmãs, deu a dignidade de cônsul a seu cavalo; amou a Herodes estando preso em Roma, e com a liberdade deu-lhe uma cadeia de ouro e o reino da Galiléia. Reinou 3 anos e 10 meses, e 41 depois de JESUS CRISTO.

Entrou, diz a história a luz do Evangelho em Portugal, trazida pelo Apóstolo Santo Iago Maior, que fundou a Igreja primaz de Braga, com o título de Santa Maria Virgem Mãe de Deus. Deixou a S. Pedro Rates por seu primeiro bispo, e a Torquato por bispo de Citanea, junto do rio Ave, entre Braga e Guimarães.

Cláudio, tio e sucessor de Caligula, imprudente, dominado por seus escravos, deixou casar publicamente sua mulher com Silio; adotou a Nero filho de Agripina, sua segunda mulher, em prejuízo de Britânico, seu próprio filho. Reinou 13 anos depois da vinda de JESUS CRISTO.

Foi por esses tempos que entraram na Lusitânia os discípulos do Apóstolo Santo Iago já mártir, cujo corpo traziam de Jerusalém, levaram-no para o padrão da Galiléia, e ao depois para Compostela. Os habitantes de Matosinhos junto ao Porto, se convertem à fé cristã. S. Pedro, tendo sua cadeira em Roma, veio a Portugal confirmar a fé, bem como S. Paulo prega na Lusitânia, onde grangeou discípulos. S. Mansos fundou a Igreja de Évora.

Nero, imperador, monstro de crueldades e torpezas, governou a Lusitânia, e perseguiu barbaramente os cristãos consentindo no martírio de Suzana, Torquato, Victor e Silvestre bispo. Fez morrer em Roma os Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, abrindo caminho à primeira perseguição de sangue aos fiéis de JESUS CRISTO. O reinado desse monstro, que a nada respeitou, durou 14 anos (e 69 da era vulgar).

Galba, velho, que foi 7 meses imperador, subindo ao trono por suas virtudes, foi odioso quando imperador, e morto pelos soldados.

Oto, favorito de Nero, não conseguindo de Galba, adotá-lo por seu suecessor, intriga-o horrivelmente com os soldados, o faz assassinar, e se fez imperador. Por sua morte assume o governo de Roma Vitélio, imperador torpíssimo, e matador como Nero de sua mãe, o qual por suas crueldades e abominações foi lançado no Tibre. Vespasiano, descendente de família obscura, tomando conta do governo com seu filho Tito, destróem a cidade e templo de Jerusalém, e perseguem os Judeus. Foi este homem o primeiro imperador Romano, que acabou de morte natural. Era virtuoso, sábio e liberal com os homens de letras. Seu filho Tito sucedeu-lhe (79 anos depois de JESUS CRISTO) no governo, e se constituiu as delícias do povo Romano; morreu com glória 81 anos depois de JESUS CRISTO. Domiciano, irmão de Tito, porém diferente em tudo, foi cruel, bárbaro, e impudico; em vez de cuidar do bem público, voltou os seus cuidados em perseguir aos cristãos. Por sua morte (96 anos depois de JESUS CRISTO), Nerva governou um ano somente, porém com prudência e valor; sucedeu-lhe Trajano, espanhol, que por suas virtudes Nerva publicamente o adotou por filho. Essas virtudes que o elevaram ao cargo de imperador, se mudaram completamente pelos apetites e excesso do vinho. Perseguiu aos cristãos, e ao mesmo tempo aos judeus. Mandou em Portugal levantar sobre o Tejo a ponte de Alcântara; concluiu a de Chaves, começada por Vespasiano Luso Lusitano; reprimiu o excesso dos judeus em Cirena e outras partes do Levante. A cidade de Lamego foi destruída, por se haver rebelado contra as insolências do ministro Romano, que a governava. Por morte de Trajano (117 anos depois do JESUS CRISTO), Adriano, que em combate matou 500.000 judeus, e perseguiu a igreja, mandou fazer em Portugal inscrições em diferentes edifícios, em que revelassem a sua memória à posteridade. Governou 20 anos, e faleceu aos 138 da era cristã. Antonino sucedeu a Adriano, e ao depois sucedendo a aquele Marco Aurélio, perseguiu aos cristãos e deu ocasião a que os Mouros invadissem Portugal, e entrassem a fazer hostilidades; porém o Português Lúcio Quintilio Galião, à frente dos seus naturais os desbaratou completamente.

Marco Aurélio governou 19 anos, e lhe sucedeu no ano de 180 Vero, homem perverso, incestuoso, com a irmã e sogra, que persistiu contra os cristãos. Sucedeu a Vero, Comodo, que foi ímpio, cruel, ingrato, furioso, incestuoso, e abominável por suas torpezas, morto de veneno: a este sucedeu Pertinax, morto pelos soldados; ao depois Juliano, morto por Severo seu sucessor, tendo apenas 2 meses de governo. Severo, inimigo dos cristãos, depois de muitas desordens, reinou 17 anos, sucedendo-lhe Caracala, assassino de seu irmão, mesmo no seio materno, foi desumano e traidor. Macrino, cruel, aborrecido de todos, e assassino de Caracala, reinou 1 ano, foi morto por Heliogabalo, que lhe sucedeu no trono. Este monstro de crueldades e torpezas, luxurioso, voraz, raivoso, foi morto e arrastado pelas ruas de Roma, e lançado no Tibre, 222 anos depois de JESUS CRISTO.

Alexandre Severo, que era homem douto e amigo dos sábios, modesto e grande capitão, governou bem o império; convencido da verdade do cristianismo adorou a imagem de JESUS CRISTO. A Alexandre Severo, sucedeu Maximino, monstro de crueldades, vicioso e voraz: conta a história que este imperador comia cada dia 64 libras de carne, e bebia 24 copos de vinho. O senado romano, conspirando-se contra ele, elegeu Popieno, que governou 1 ano. Os dous Gordianos, e Balbino governaram bem. Filipe Árabe reinou 5 anos, e protegeu aos cristãos. Décio, assassino de Filipe pai e filho, foi imperador cruel. A perseguição que moveu aos cristãos foi por toda a parte, porém não o temeram os bispos portugueses. Em seu reinado Portugal foi invadido por Alemães, que queimaram tudo o que não poderam roubar. Décio governou 30 meses e acabou afogado em uma lagoa. Galo, igualmente cruel e sanguinário, cometeu crimes horrorosos, e para expiar suas culpas, foi prisioneiro de Sapor, rei na Pérsia, que dele se servia como degrau para montar a cavalo, e ainda vivo, lhe mandou (260 anos depois de JESUS CRISTO) tirar a pele. Caro, apesar de prudente e valoroso, reinou pouco tempo. Cariano, fez consistir o seu governo na morte de muitos inocentes: casou-se nove vezes, e reinou 2 anos. Numeriano foi brando e honesto; o seu governo foi de 1 ano. Diocleciano Augusto, depois de perseguir aos cristãos, mandou à Espanha e a Portugal, fatais decretos contra os cristãos, e entre as inumeráveis vítimas foram a virgem portuguesa Santa Engrácia, S. Vicente, S. Veríssimo, e as Santas Sabina, Christela, Máxima e Júlia.

Maximiano Armeular, não foi menos cruel que seu sogro Diocleciano. Constantino Cloro não teve a mesma conduta, que os precedentes; amigo do povo, aliviou-o dos tributos, casou com a imperatriz Santa Helena, de quem teve a Constantino Magno, que sucedeu a seu pai, e protegeu a Igreja; edificou muitos templos em Roma, e a cidade de Constantinopla; deixou Roma para domicílio dos papas; fez juntar Concílios em Toledo, onde se dividiram as Igrejas e metrópoles da Lusitânia e da Espanha, e deixou o trono em 337.

Constantino Segundo, reinou na Lusitânia, na Espanha e França, e sendo morto três anos depois por seu irmão Constante, que já reinava em Roma, este promoveu o incremento de Portugal. Constante, foi assassinado (ano 350 de JESUS CRISTO) por Maxêncio, que também desesperado suicidou-se. A Constâncio Segundo, que sucedeu a seus irmãos, substituiu Juliano Apóstata, blasfemo, que perseguiu ao cristianismo. O reinado de Joviniano, foi apenas de sete meses e 22 dias: e o do ímpio Valente, foi até o ano 378 em que os Godos o venceram e o queimaram. Adriano, herege, havia introduzido a sua doutrina nos Godos. Foi por esse tempo que S. Damaso, poeta insigne Português, natural de Guimarães, diocese de Braga, sentou-se, por mais de 17 anos, na cadeira de S. Pedro, desde o ano 367 até 385.

Graciano, apesar de virtuoso, foi morto por Máximo, que lhe usurpou uma parte do império, Valentiniano foi afogado em uma lagoa. A Valentiniano sucedeu no governo de Roma Theodorio o Grande, que dizem era Português, nascido entre Braga e Valença do Minho; protegeu o cristianismo, e foi implacável inimigo dos Godos. O autor do Dicionário Histórico acusa-o de várias crueldades, e afirma que por sua ordem foram mortos, em Tesalônica, no espaço de três horas, seis mil pessoas sem atenção de idade, sexo, etc; e que Santo Ambrósio o obrigou a fazer penitências públicas para expiação dos seus pecados.

No reinado de Honório (423 de Jesus Cristo) os bárbaros Setentrionais de Alemanha, Vândalos, Suevos, Alanos, Silingos, incitados por Stelicon, aio e sogro de Honório, que pretendia o império para seu filho Encherio, invadiram e saquearam Roma. Os Vândalos e Silingos, com seu rei Gunderico ocuparam Andaluzia, chamada por eles Vandaluzia. Na Lusitânia e Gália, se estabeleceram Alanos e Suevos, com os reis Hermenerico e Resplandiano, sujeitos à Roma, que depois foram deixando e se tornaram independentes, Constâncio, capitão de Honório, por ele chamado imperador, foi um perseguidor de bárbaros, porém não governou o império senão em vida de Constâncio. Valentiniano, terceiro, filho de Constâncio, sendo aos sete anos eleito imperador, sob a tutoria de Plácida sua mãe, era homem inábil para o governo, no entanto governou o império até 455 da era cristã.

Quase a extinguir-se o domínio dos imperadores Romanos, quer no ocidente, e quer no oriente, pelas continuadas invasões dos bárbaros, foi tomando conta Augústulo do governo do império Romano, sendo deposto por Odoacro, que se fez proclamar rei de Itália a 23 de agosto de 476, pondo fim o título de império a Roma e libertando do seu jugo Portugal e a Espanha.

 

Portugal dominado pelos Suevos.

 

O império Romano, vítima da corrupção e dos vícios desaparecendo de todo, e invadido por bárbaros, perdeu tudo o que possuía, e a Lusitânia que então era província Romana, experimentou a mesma sorte. Conta-se que invadida a Lusitânia, se apossou do seu domínio o rei Hermenerico, Suevo, e ao depois Rechila que a governou por sete anos, 448, depois da vinda do Senhor.

Com a morte de Rechila seu filho Reciário, herege Ariano, casou com a filha de Teodorico rei Godo, de França, e foi reduzido à fé por Balcônio, arcebispo de Braga. Seus inimigos mataram-no degolado na cidade do Porto. Com a morte deste príncipe foi eleito Masdra em Braga pelos bispos e nobreza. Sucedeu-lhe seu filho Remismundo, a quem Teodorico prendeu e cativou, a fim de poder introduzir em Braga e na Galiza o Arianismo.

Depois reinaram Hermenerico, Rechila II, Reciário II, que foi reduzido à Fé Católica por S. Martinho.

Ariamiro, Mero, Eborico Audeca, que foi obrigado a deixar o governo constrangido por Leovigildo, rei dos Godos, e deste modo reunida a Lusitânia, unida a Espanha, assim se conservou até a fundação da nova monarquia.  

Portugal sob o domínio dos Godos da Espanha.

 

Copiando nós os fatos, segundo a ordem dos tempos, diz a história:

Atanarezo no império de Honório teve suprema autoridade entre os Godos na Espanha. Dão-lhe 23 anos de governo, sem nota de tempo: talvez fosse em 410.

Alarico, Húngaro, a quem Honório cedeu as Gálias, e Espanha pelos anos de 408, também sem nota de tempo, lhe contam 23 anos de governo, se bem que logo saiu de Espanha.

Ataulfo, primeiro rei dos Visogodos em Espanha, começou a governar, no ano de 411. Era sobrinho de Alarico: casou com Gala Placídia, irmã do imperador Honório, e por conseguinte Portuguesa, neta do imperador Teodósio. Por ser pacífico, e não querer guerras, de que os soldados tinham lucro nos despojos, o mataram, e aos filhos. Reinou quatro anos.

Por indústria de Stelicon estava a Itália invadida dos Godos, a França dos Borgundos, a Espanha dos Visogodos e Vândalos, os Alanos e Godos ocupavam Catalunha, dita God Alana. Em Ataulfo começou propriamente a monarquia de Espanha, depois feita paz com Honório imperador. A dos Franceses começou em Farramundo seu primeiro rei, oriundo da Germânia ou Alemanha. Foram estabelecidas no ano de 402 as leis Sálicas, que excluem as mulheres e os sacerdotes de suceder na coroa.

Seguiu-se depois o rei Clódio, cabeludo, vencido pelos Romanos, conservado entre os Galos ou Franceses. Moroveu seu sucessor, do qual se dizem Morovinos os reis de França da primeira família, pelejou no ano de 448 contra Átila rei de Hunos, chamado o flagelo de Deus, e o venceu.

Forgo, rei da Escócia, ilustra sua nação. Os Ingleses Saxões se apoderam da Grã-Bretanha em 440, fazendo aí sete reinos pequenos, que padeceram muitas alterações. S. Leão Magno, papa, detém Átila, para que não arruine a Itália: donde fogem alguns vizinhos a Pádua, a refugiar-se nas Ilhas, em que fundam a cidade de Veneza, que vem a ser a capital da república.

Sigerico, filho de Ataulfo, foi assassinado ao oitavo dia de seu reinado, por ter feito pazes com os Romanos.

Valia ou Walia, amigo da paz, fez guerra aos Romanos e os venceu, como aos Alanos, Suevos e Vândalos. Reinou três anos até 419.

Teodorico ou Teodoredo, ou Redrigo, parente do predecessor, governou 32 anos, desde que foi eleito, era eletiva a coroa, ainda que com atenção ao sangue, até 451, em que foi morto na batalha contra os Romanos nos campos Catalaunicos.

Turismundo, filho Teodorico, foi morto pelo irmão e sucessor, no ano de 452.

Teodorico Segundo, matou a Reciário, rei dos Suevos, em Braga, aonde fez grandes hostilidades, desterrou os bispos, perseguiu a Igreja; era herege Ariano. Reinou 14 anos até o de 466, em que também foi morto por outro fratricida, irmão e sucessor seu.

Eurico, ou Eoric, ou Evarico, ocupa Toledo, estende as conquistas à França; continua a perseguição da Igreja, em que muitos mártires derramam o sangue. Governa 17 anos até 483, em que foi morto em Arles de França. Dividia-se a Espanha em três soberanos; parte da Lusitânia, e Galiza obedecia aos reis Suevos; Bética e Cataluna era dos Godos, ou Visogodos; Cartagena, Carpentana, parte da Lusitânia tinha nome de província Romana, já quase desmembrada.

Clodoveo, rei de França, instado por St. Clotides, sua esposa, se fez Cristão em 481, venceu os Alemães, o rei de Borgonha, e matou Alarico rei Ariano. Antes de Clodoveo foi o rei Childerico lançado do trono por suas desordens, e restituido o que era filho de Moroveo.

As forças do império, dissipadas em tempo de Valentino III, Augustulo perdeu os restos do Ocidente, morto por Odoacro rei dos Herulos, a quem venceu Teodorico.

Alarico, segundo filho de Eurico, governou 23 anos até 506, em que foi morto junto à Carcazona por Clodoveo, rei de França. Não perseguiu a igreja.

Genselarico ou Gesalico, filho não legítimo de Alarico, aclamado pelos Godos na menor idade de Amalarico, morreu de melancolia (ano de 510) com quatro anos de governo. Teodorico, rei de Itália, governou Espanha, ou fosse em seu nome, ou do neto, por 15 anos até 526.

Amalarico casou com Clotilde, ou Crotildes, filha de S. Crotildes, rainha de França, e do rei Clodoveo. Perseguiu a mulher por ser Católica; mas os cunhados em vingança o mataram, tendo reinado cinco anos, em 531.

Amalasnita, acha-se mencionado em vários mapas e cronologias como soberano, sem declaração de suas ações, nem do tempo que governou.

Theudo, ou Theudis, tutor de Amalarico, extinguiu de todo o domínio dos Romanos em Espanha, venceu os Franceses: foi morto era seu palácio por certo homem que se fingia louco, (ano de 548) tendo reinado 17.

Theudiselo, Ariano, filho de uma irmã de Totila, rei dos Ostrogodos, por isso, estrangeiro, cruel, torpe, furioso, sem perdoar a casada, nem donzela. Os seus cansados de tantas insolências o mataram em Sevilha em um banquete, ano de 549.

Agila, eleito pelos grandes, herege, perseguiu os fiéis, fez estrebaria na igreja de S. Acisclo. Os Cordovezes o venceram: muitos dos seus se rebelaram; o sucessor Athanagildo o matou com cinco anos de governo no de 554.

No Oriente era Justino (ano de 518) imperador; e logo Justiniano, autor do corpo de direito civil. Seu general Belizario venceu os Persas, os Vândalos, os Godos, caiu em desgraça do Soberano. Narses, Eunuco, foi deposto por Sofia, mulher de Justino II imperador; vindo Longino com nome de Exarco governar Ravena, e parte de Itália: mas os Longobardos a foram dominando, talvez chamados Narses. Tibério II adotado em 578 por Justino, reinou com acerto.

Em França reinava Clotario, em 558, em Soissons, Clodomiro era rei de Orleans, Gildeberto de Paris, Tierry de Austrazia, dividido o reino de seu pai Clodoveo. Reunido em Clotario, se dividiu nos filhos, reinando Sigiberto era Metes, Gontrano em Orleans, Chereberto em Paris, Childerico em Soissões, a quem se seguiu Clotario II em 584.

Athanagildo, capitão rebelado, se fez rei dos Godos em Espanha por 14 anos, sem perseguira igreja. Em seu tempo os reis de Braga deixaram o Arianismo, convertidos por S. Martinho, que depois foi bispo de Dume, e arcebispo primaz de Braga.

Liuva reinou um ano; largou o reino ao sucessor em 568, e se retirou a terras que tinha em França.

Leovigildo, irmão de Liuva, quis fosse o reino hereditário, ainda que alguns sucessores foram por eleição. Tomou Braga, desterrou os bispos, matou o filho S. Hermenegildo, pelo ódio que teve aos católicos. Morreu no ano de 586.

Recaredo imitou ao irmão mártir, não ao pai, predecessor herege, deu paz à igreja, dirigido pelos tios Santos Leandro, Fulgêncio, Isidoro Doutor, Celebrados muitos Concílios, com 15 anos de governo, morreu em 601.

Liuva II, filho de Recaredo, alguns dizem ser bastardo, mas pio, católico, reinou dous anos. Foi assassinado e morto pelo sucessor, em 603, tendo 20 anos de idade.

Victerico, usurpador, herege Arriano, reinou seis anos, aborrecido por seus vícios: em Toledo o mataram (ano de 610) arrastado o cadáver pelas ruas públicas.

Gundemaro, defensor da imunidade Eclesiástica, fez florescer a religião: venceu os de Navarra. No Concílio de Toledo se pertendeu o primado para esta igreja. Morreu em 612.

Sizebuto não consentiu judeus em Espanha sem se batizarem, motivos de muitos fugirem à Franca. Acabou de lançar fora de Portugal os Romanos, que ainda mandavam seus ministros ao Algarve. Fortaleceu a cidade de Évora: fundou em Toledo a igreja de Santa Leocádia. Governou oito anos e meio. Morreu no de 621.

Recaredo II só viveu três meses depois do pai predecessor, e tinha de idade três anos.

Suintila, filho segundo do primeiro Recaredo, pai dos pobres, triunfa nas guerras, destrói os imperiais, sujeita todo Portugal ao domínio Gótico. Na paz se faz odioso pelos vícios e crueldades. O Concílio quatro Toletano, em que estava S. Isidoro, o excomungou com sua mulher e filhos. Os Visogodos o privaram do reino (ano de 631) tendo reinado 10 anos.

Sizenando invade, e ocupa o reino com ajuda do Dagoberto rei de França, a quem deu dez pesos de ouro tão grandes, que bastaram para acabar o grande templo de S. Dionizio em Paris. Promoveu a paz e justiça. Assistiu de joelhos com lágrimas ao Concílio de Toledo. Os grandes e bispos elegiam os reis. Governou quatro anos até o de 636.

Chintila, ou Suintila, eleito rei por votos uniformes da nobreza, e bispos, reconhecido no quinto e sexto Concílio Toletano, aonde fez juramento de não permitir militar, ou viver em seu reino de Espanha algum que não fosse católico; por isso lhe deu o papa Honório o título de rei católico. Desejava fazer a coroa hereditária. Três anos governou, morreu no de 640.

Dagoberlo filho de Clotario rei de França, morreu no ano de 638. Cujos filhos reinaram, Sigiberto na Austrazia e Metes, Clodoveo em Neustria e Paris. Grimaldo quis usurpar o reino, e foi preso. Houve muitas guerras entre estes reis; alguns foram incontinentes, deixadas suas mulheres por concubinas; Clotario III se deixou todo governar pelo mordomo do palácio, como fizeram outros monarcas. Thierry governou em Paris: mas encerrado pelos vassalos, foi tomado para rei Childerico, o qual morto tornou a reinar Thierry. Pipino governou a este rei, e aos sucessores Clodoveo III e Childeberlo II.

No Oriente o imperador Maurício deixou perder os soldados cativos na Pérsia, por não os resgatar. Foi morto com seus filhos por Focas, que morreu às mãos de Heraclio; como Cosroas rei da Pérsia, acabou às mãos do filho Siroes, restituida a Cruz, que vencidos os Persas, Heraclio levou em triunfo a Jerusalém.

Mafoma, Árabe, começa sua Egira, fuga à Medina, ano 622. Compõe o Alcorão, Seita; os sucessores deste falso profeta se dizem Califas Omar, Califa, conquisla a Pérsia. Sua seita se dilata pela África e Ásia. São célebres as seitas de Ali, que seguem os Persas, e outras de Turcos e Mouros.

Malduino rei da Escócia, é afogado pela mulher, a quem os cúmplices queimam no dia seguinte.

Martinha faz coroar em Constantinopla por imperador ao filho Heraclião, que matou seu irmão Constantino, predecessor (ano de 641), filho de Heraclio; mas cortado o nariz a Heraclião, foi desterrado com a mãe, ficando no governo Constante, filho de Constantino, fautor dos hereges, ao qual mataram em um banho. Seu filho e sucessor Constantino Pogonato foi ótimo príncipe, Justiniano II, imperador cruel, teve o nariz e orelhas cortados por Leôncio. Sucedeu-lhe no governo Tibério II.

Tulga, pai dos pobres, rei cheio de zelo e piedade, morreu em Toledo, com geral sentimento, tendo reinado dous anos em 642.

Chindasvinto ou Sindasvinte, sendo general se elegeu a si, e fez eleger o filho sucessor. Governou bem, unindo a justiça à suavidade: juntou Concílio em Toledo; fundou o mosteiro de S. Romão, aonde se enterrou; governou seis anos até 649.

Recesvindo, ótimo príncipe, reinou em paz 23 anos, até 672.

Bamba ou Vamba, de nobre sangue, que veio assistir na Idanha em Portugal, aplicado à cultura da fazenda aí veio a nobreza de Toledo, e custou muito a persuadí-lo que aceitasse a eleição, e segundo os desejos de todos, tomasse o governo das Espanhas. Não podendo mais resistir à sua milagrosa eleição, e força que lhe faziam, se coroou rei em Toledo. Triunfou dos inimigos em muitas batalhas; destroçou uma poderosa armada de Sarracenos. Melhorou as leis e costumes. Seu sucessor lhe deu veneno, de cujo acidente estando meio morto, tanto que escapou, não quis largar o hábito, ficou no mosteiro em penitência, tendo reinado oito anos em 680, morreu daí a sete anos.

Ervigio, maquinada a traição a Vamba, subiu ao trono, que esteve sete anos e deixou ao filho Egica. Governou otimamente. Em seu tempo se celebrou o Concílio 14 Toletanos. Morreu em 687.

Egica governou 14 anos até 701; viu celebrar os ConcíliosToletanos 15, 16, e 17, obrigou os nobres lhe jurassem fidelidade: dividiu o reino, dando ao sucessor Portugal e Galiza; ficou com o restante de Espanha.

Vitiza, tanto que subiu ao trono estabeleceu a corte em Braga; entregue a todo gênero de vícios e crueldade, fez tirar os olhos ao irmão Theodofredo, pai do rei D. Rodrigo. Concedeu aos sacerdotes casarem; e aos homens terem muitas mulheres; proibiu recorrer ao Papa, feito cismático, torpíssimo; mandou arrasar as fortalezas, com outros destemperos. Morreu em Toledo, aborrecido por todos, em 711, com dez anos de governo.

Costa ou Acosta. Acha-se, (diz D. J. de Azevedo), este príncipe nos mapas dos reis de Espanha, com dous anos de governo, talvez no tempo do precedente, ou do seguinte, de quem era irmão.

D. Rodrigo, entregue ao apetite, vítima triste de seu delito, Julião, conde, pai de Cava Florinda, a quem o rei forçara, chamou de África os Mouros. Perde o rei a batalha de Xeres no rio Guadatete, aonde se achou seu cavalo, manto, coroa, e botas. Fugiu penitente com um monge a Portugal, feito eremita no monte de S. Bartolomeu justo à Pederneira. Foi morrer a Viseu, aonde se mostra seu túmulo. Este último dos reis Godos, reinou três anos; perdeu a coroa em 714, em que os Mouros ficaram senhores de Portugal, e de toda a Espanha.

Havia-se formado a república de Veneza desde o ano de 700. Justiniano II volta ao império com seus vícios. Filipico Bardano o mata e é morto. Anastácio quis castigar os soldados e rebelados, e se fez monge em 713. Teodósio também deixou logo a coroa do Império Oriental. Leão Izaurico herege iconoclasta, foi imperador 23 anos até o de 741, mandando queimar as Sagradas Imagens.

Dagoberto II reinou era França desde 711, tendo por ele o mando Carlos Martelo filho de Pipino. O mesmo Carlos tirou do reino a Chilperico, substituiu a Clotario IV, e logo outra vez fez rei a Chilperico, e depois o Thierry II. Chilperico III foi governado por Pipino e Carloman, filhos de Carlos Martelo. Obrigado Chilperico a entrar em um mosteiro, tomou a coroa Pipino, primeiro rei do segundo tronco, ou família; ano de 752. Foi duas vezes à Itália ajudar ao Papa, e lhe fez restituir o que os Longobardos haviam usurpado. Os descendentes de Pipino se disseram Carlovinos de seu filho o imperador Carlos Magno.

Belazin, vem nos mapas sem nota de tempo; seria talvez algum célebre capitão.

Acabat, vem nos mapas; talvez fosse general.

D. Paio, ou Pelagio, filho de Favila, neto do rei Chindasvinto, de um canto das Astuas faz volver a Espanha de seu desmaio. Com os favores do céu, (continua Azevedo) que recebeu de N. S. em Covadonga; venceu muitas vezes aos Mouros, fez a coroa hereditária, ainda que alguns sucessores foram eleitos. Reinou em Oviedo, Leão e Astúrias, renovada a monarquia católica em Espanha que governou desde 717 até 736 vencendo sempre nas batalhas aos inimigos da igreja.

D. Favila, filho de D. Paio, reinou dous anos, morreu na caça, por um urso; ano de 738.

D. Afonso, católico, descendente dos reis Recaredo e Leovigildo, casado com Hermezinha, irmã do precedente, foi o primeiro rei de Leão, que dominou Portugal, e neste reino conquistou terras aos Mouros. Reinou 19 anos; fundou e dotou muitas igrejas; morreu no ano de 757.

D. Froila filho do precedente, venceu os Mouros em Galiza e no Minho: conquistou em Portugal, Beja, Setúbal e outras praças. Em seu tempo trouxeram os cristãos o corpo de S. Vicente para o Algarve, ficando com seu nome o promontório Sacro. Deslustrou Froila suas ações heróicas com dar morte a seu irmão Vimarano, por inveja de ser benquisto. Seus vassalos o mataram no ano de 768 tendo reinado 11 anos.

D. Aurélio serenou com prudência o tumulto dos escravos levantados contra seus senhores. Era irmão do rei Froila, e o matou para lhe usurpar o trono. Foi vergonhosa a paz que fez com os Mouros, obrigando-se a dar cada ano o tributo de cem donzelas cristãs; reinou seis anos até o de 774.

D. Silo, casado com Adozinda, filha do rei D. Afonso, católico, incapaz do governo, posto que bom. Teve paz com os Mouros; venceu na guerra os Galegos; reinou nove anos até 783.

D. Mauregato, filho natural de D. Afonso, católico: cinco anos teve a coroa usurpada com favor dos Mouros, aos quais dava cada ano 100 donzelas; reinou no ano de 789.

D. Bermudo, primo do rei D. Froila, sendo Diácono à instância dos grandes teve o reino três anos, e o restituiu ao sucessor, negando aos Mouros o tributo das donzelas. Entrou monge no mosteiro de Sahagum em 791 e viveu muitos anos depois.

D. Afonso II, o Casto, sobrinho do precedente, e filho do rei Froila, ilustre em vitórias contra os Mouros, aos quais negou o tributo das donzelas. Recuperou Lisboa por assalto; tomou aos Mouros as cidades de Lamego, Viseu, Coimbra e Braga. Fundou o condado de Castela. Erigiu e dotou muitas igrejas. Em seu tempo se descobrio o corpo de Santo lago, em Compostela de Galiza. Quis dar o reino a Carlos Magno, cujo exército desbarataram em Roncesvalhes os Espanhóis, desaprovando o intento de união com a França; reinou 51 anos, e se contarmos desde a morte do pai em 768 que lhe pertencia o reino, são 74 anos, até sua morte em 842.

Roma havia reconhecido por soberano, no temporal, ao Papa, sacudindo o jugo do império. S. Leão III papa coroou em Roma, ano de 800, ao imperador Carlos Magno, rei de França, Itália, e Alemanha, que venceu a Desiderio, último rei dos Longobardos. Seguiram-se muitos reis de França, imperadores de Alemanha. Luiz Pio, deposto pelo império, pelos filhos se restabelece. Carlos Calvo, com o irmão Luiz Germanico venceu ao irmão Lotario, imperador.

Luiz Tartamudo, e Carlos Gordo, reinaram em 877. Luiz III, e Carloman reinaram juntos, estando no berço Carlos Simples. Carlos Gordo, se retirou à Alemanha, eleito Eudès rei de França em 888, tronco da terceira família. Entrou no governo Carlos Simples, e por suas desordens foi metido em Perona em uma torre.

Em Alemanha depois de Carlos Magno foram imperadores Luiz Pio, Lotario, Luiz II, que se fez monge, tendo livrado Itália dos Sarracenos; Carlos Calvo, Carlos Gordo. Amoldo Bestardo de Carloman, e Luiz III em 890.

No Oriente foi o imperador de Constantinopla Constantino Copronimo, deposto do trono, com seu filho Leão IV. Irene reslitui o culto das Sagradas Imagens, e lançada fora do governo, por seu filho Constantino, volta ao trono e lhe faz tirar os olhos. Nicefero, imperador, é morto pelo rei dos Búlgaros, que venceu ao piedoso imperador Miguel Curopalata (ano de 813). Leão Ermeno, é morto na igreja por Miguel Tartamundo, cujo filho Theofilo, ainda que inimigo das imagens, se fez estimar do povo. Seu filho Miguel III, comediante, desobediente à Santa mãe Theodora, foi morto por Basílio Macedônio, a quem queria matar, tendo-o feito sócio do império. Leão VI, o Sábio, casou quatro vezes; foi otimo príncipe.

Começa em 888 o reino de Borgonha, por Rodolfo filho do Conde de Paris. O de Arles em Boisson, unidos ambos depois à Alemanha e França. Os duque e condes pela negligência dos reis se fazem soberanos. Barcelona se erige em condado. Navarra elege rei Eneco Arista. Formam-se os estados de Leão e Castela. Os sete reinos de Inglaterra se unem.

D. Ramiro filho de Bermudo, mandou tirar os olhos à Nepociano conde das Astúrias, que se levantou contra ele. Feito voto a Santo Iago, é visto o apóstolo na batalha de Clavijo, junto a Logrono, mortos setenta mil Mouros. Ganhou aos Mouros o Porto, Lamego, Viseu, Coimbra, que eles haviam outra vez tomado, e Monte-Mor, o velho, aonde fez governador seu tio o abade João. Este, degoladas as mulheres por não serem presas dos Mouros, os destroçou até Seiça, aonde alcançada a vitória, por invocarem a Mãe de Deus, voltando acharam vivas as mulheres e meninos. Morreu no ano de 850 tendo reinado sete anos e oito meses.

D. Ordonho, filho e sucessor de Ramiro, serenou a rebelião dos Vascões, venceu ao arrenegado Musa, em quem os Mouros se fiavam. Em Portugal ganhou Santarém, Leiria, e outras terras, que depois tornaram a poder de Mouros. Fez expôr Ataulfo, bispo, ao touro bravo, que o não tocou, e conhecido sua indolência lhe pediu perdão. Morreu de gota no ano de 866 com 16 de governo.

D. Afonso III, o Magno, pelas grandes vitórias, que alcançou dos Mouros, pelos suntuosos templos que edificou, esmolas que deu. Contra ele se rebelaram os dous filhos que lhe sucederam. Reedificou as cidades de Braga, Porto, Viseu, Chaves em Portugal, que estavam arruinadas. Para sossegar os filhos deu a Garcia Leão Oviedo e Castela, a Ordonho Portugal e Galiza, ficando só com a espada vencedora contra os Mouros, reinou 44 anos até 910.

D. Garcia triunfou dos Mouros em Talavera, governou 3 anos até 913.

D. Ordonho II, aclamado depois de morrer o irmão, pelos bispos e grandes do reino. Tomou Beja a mais guarnecida praça dos Mouros, matou todos os que a guarneciam. O rei Mouro de Merida lhe deu vassalagem. Os condes de Castela, grandes do país se fazem célebres: o rei deles temeu traição, fez vir quatro a Tajares e os matou. Governou 9 anos e meio até 923.

D. Froila, irmão dos precedentes, cruel, matou muitos fiéis vassalos. Morreu de lepra com um ano de governo em 924.

D. Afonso IV, monge, filho de D. Ordonho II, conhecendo-se incapaz do governo, o largou a seu irmão D. Ramiro, e se fez monge no mosteiro de Sahagum. Passados seis meses largou o hábito, foi a Leão, aonde o aclamaram rei. O irmão lhe fez tirar os olhos, o fechou em cárcere perpétuo, ano de 931.

D. Ramiro II fez cruel guerra aos Mouros, tomou Osma e Simancas; reinou 19 anos, morreu em 950.

D. Ordonho III, filho do precedente, sujeitou os Galegos, que se queriam levantar, veio a Lisboa, teve insignes vitórias dos Mouros; reinou cinco anos até 955.

D. Ordonho IV, introduzido pelos grandes em lugar de D. Sancho, que se lhe seguiu, a quem largou o reino em 956, era filho de D. Afonso IV.

D. Sancho o Gordo, por ser gordo, foi deposto do trono. Com socorro do rei Mouro de Córdova Abderramen depôs o precedente; obrigou os condes que governavam Galiza e Minho lhe jurassem fidelidade, em cujo ato um o matou com veneno. Era filho do rei D. Ramiro II; havia obrigado o conde de Castela a vir às cortes de Leão. Reinou 11 anos até 967

D. Ramiro III, filho do precedente, governado pela mãe e tia. Esteve em paz com os Mouros, e lhes abriu as portas pelas dissensões que teve com o sucessor. Tratou mal os condes de Portugal e Galiza, que aclamaram o seguinte rei. Governou Ramiro 16 anos até 985.

D. Bermudo II, Goloso, filho de D. Ordonho IV, muitas vezes vencido pelos Mouros, que levavam os sinos das igrejas para lâmpadas de suas mesquitas, conservou o Minho e Trás-dos-Montes, ocupado pelos Mouros o resto de Portugal. Venceu os Mouros em batalha, mortos setenta mil, ajudado por outros príncipes. Reinou 14 anos até 999.

Pelos anos de 927 começaram os marqueses de Áustria, Brandeburg e Misnia. Acabou o ducado de Saxônia em Oto I, que fez Duque a Hermano Belingen. É duvidoso que pelos anos de 990 fosse queimada viva Maria, mulher do imperador Oto III, por adúltera. Rodolfo rei de Arles erigiu Sabóia em condado para Beroldo, ou seu filho Henrique das mãos brancas. Santo Estevão, duque da Hungria, é feito rei, confirmado pelo Papa. Boleslao em 999 foi o primeiro rei da Polônia, nomeado por Oto III. Os Dinamarqueses invadem Inglaterra.

Em França reinou Roberto, irmão de Eudes, desde o ano de 922, seguiu-se Luiz ultramarino, por ser filho de mãe Inglesa e de Carlos Simples: o Lotario filho deste Luiz, e Luiz V filho de Lotario, últimos de seu sangue. Hugo Capeto, conde de Paris, neto de Roberto, irmão de Eudes, foi coroado rei de França (ano de 987), prendeu em Lan seu competidor Carso, duque de Lorena, coroou a Roberto seu filho, amante das letras e das virtudes.

D. Afonso V, o Nobre, filho do rei D. Bermudo, de cinco anos reinou, pio, caritativo. Sitiava Viseu, d’onde, ferido, se retirou; morreu no ano de 1027, tendo governado 27. Reformou as leis Góticas.

D. Bermudo III, ou Veremundo, filho do precedente, morto na batalha contra D. Fernando seu cunhado, rei de Castela, ano de 1038, com dez anos de governo.

D. Fernando Magno, imperador, de rei de Castela passou a governar Leão, Galiza e Astúrias. Teve pela mãe D. Sancha a coroa de Leão, pela esposa D. Nuna a de Navarra. Tomou aos Mouros Coimbra, Viseu, Seia, Gouveia, e todas as terras de Portugal, que os Mouros possuíam entre o Mondego e Douro. S. Isidoro lhe revelou o fim de seus dias. Repartiu os estados aos filhos, Castela a D. Sancho, Leão a D. Afonso, Portugal e Galiza a D. Garcia. Reinou 29 anos até 1069. Florecio Cid Campeador, D. Rodrigo de Biar, vencedor dos Mouros, que persuadiu ao rei conservasse o nome de imperador, contra o que pretendia o de Alemanha e o Papa(10).

D. Sancho II, o Bravo, perseguiu a seus irmãos, tirou a D. Garcia o reino de Portugal e Galiza, que tivera quatro anos, apesar dos vassalos. Morreu às mãos de um cavalheiro em Çamora (ano de 1072).

D. Fernando, assim anda nos mapas, sem outra nota, parece ser príncipe de curto governo, por isso omitido nos catálogos dos reis, como o seguinte.

D. Sancho III, sem mais clareza vem nos mapas.

D. Afonso VI imperador, filho de D. Fernando Mogno, governou Leão, Portugal, Castela e Galiza, desde 1072 até 1109 por 37 anos. Bravo nas guerras, venceu repetidas vezes aos Mouros. Distribuiu este rei o governo de Portugal a pessoas ilustres. O conde D. Sesnando governou as terras entre Douro e Mondego. Egas Ermigio presidia em Arouca. O conde D. Nuno Mendes no Minho, a quem sucedeu o ilustríssimo conde D. Henrique de Borgonha, ao qual deu em matrimônio sua filha D. Thereza Rainha, com o dote de Portugal, pelos anos de 1092 pouco mais ou menos. D. Urruca, filha mais velha do rei, casou com D. Raimundo, que de Borgonha viera militar a Espanha, e por sua morte com D. Afonso, de quem nasceu D. Afonso VII, que herdou os reinos de Castela e Leão.

Reinou em França ano de 1031, Henrique filho de Roberto, duque de Borgonha. Filipe, filho e sucessor de Henrique, foi excomungado por repudiar sua mulher Berta, e casar com Bertrada mulher do conde de Anjou; morreu no ano de 1108.

Em Constantinopla, o imperador Contantino, moço, ano de 1004, deixou o governo a Zoe sua filha, que fez reinar quatro maridos, Romano Argino, que afogou no banho, para casar com Miguel de Paflagonia*, que a tratou como escrava, mas hidrópico se recolheu no Mosteiro, em quanto Zoe escolheu a Miguel Calafato, que a tirou do trono, e ela com o favor do povo lhe arrancou os olhos, e casou com Constantino Monomaco, que a amou. Theodora irmã de Zoe enganou ao imperador, fez que largasse o império, que ela teve sem casar. Seguiu-se Miguel Stratico, deposto pelos soldados. Isaac Comeno governou mal, e se retirou a um mosteiro. Constantino Ducas em 1057: com sua viúva casou Romano Diogenes que, prisioneiro dos Turcos, voltando livre, lhe arrancou os olhos. Miguel Ducas, filho de Constantino, o qual, preso, casou com sua mulher o sucessor Nicefero Botoniato. Aleixo Issac Comeno o fez, por velho, encerrar em um mosteiro. Em seu tempo foram as guerras dos Cruzados.

Em Alemanha reinou S. Henrique, que guardou castidade no matrimônio com a Virgem Conegundes Imperatriz. Conrado, duque de Franconia imperador, em 1024 teve o reino de Borgonha. Seu filho Henrique III, se fez Senhor da Cúria Romana, que só escolhia para os benefícios os que ele queria. Henrique IV, perseguiu a S. Gregório VII Papa. Rodolfo eleito contra ele, morreu na guerra contra o mesmo Henrique.

Os Cruzados ano de 1099 tomaram a terra Santa, eleito rei de Jerusalém Godefredo de Bulhões seu general duque de Lorena, em cujos sucessores durou o reino 88 anos.

Os Normanos, ano de 1040, conquistaram a Sicília, feito Godescaco Senhor da Calábraia, e Rogério de Sicilia, cujo filho Rogério se coroou rei.

Gerardo conde de Alsácia, é feito duque de Lorena em 1048. Ladislao, rei de Boêmia em 1086. Henrique de Borgonha conde de Portugal em 1087. Cujo, filho D. Afonso Henriques primeiro rei, foi tronco da monarquia Portuguesa.


 

Do governo Português, e sua política até ao tempo de Afonso Henriques

 

As formas constitucionais, (diz o erudito Freire de Carvalho) ou as côrtes em Portugal, têm sido em todos os tempos conhecidos a cousa mais sagrada e importante que politicamente temos possuído; e delas sempre dependeram essencialmente, assim como ainda hoje dependem, as nossas liberdades. É uma instituição mui sagrada, porque sem haver sido sancionada na sua origem por lei alguma escrita, de que as histórias façam menção, sempre gozou do carácter de uma certa lei natural, que, sem necessitar escrever-se com carateres humanos, passa de geração em geração gravada na memória e no coração dos homens. Assim a instituição de nossas côrtes ou de uma representação nacional, se pode mui propriamente denominar uma lei da terra, fundada em imemorial e antiquíssimo costume, mantido entre as ruínas do império Romano por todas as nações do Norte que vieram fundar novos reinos e impérios da Europa, e chegaram até a extremidade dela, o nosso Portugal.


 

Origem das assembléias gerais.

 

Tácito (continua Freire de Carvalho), falando dos costumes dos Germanos, diz no Capítulo 11.°: «Os negócios pouco importantes são regulados pelos chefes; os mais importantes, pela nação.» Mas nem isto nos vieram ensinar os Godos e Visigodos, que a final nos deram as leis: essa lei e esse costume eram as bases das liberdades dos antigos Lusitanos, já antes de serem dominados pelos Romanos, Godos e Visigodos. Se entre eles havia que estabelecer algum regulamento novo para o bem comum da sociedade, serviam-se do meio usado nas puras democracias ou das assembléias gerais, em que cada indivíduo tinha o arbítrio de aprovar ou rejeitar o que nelas se propunha. E ainda nesta ação respirava o ar militar, que sempre distinguiu nossos avós, e em que eram criados; porque um bater de espada no broquel era o sinal de aprovação, e um sussurro inquieto o de desaprovar(11). Logo deste uso e desta prática se vê, que uma das primeiras e essenciais liberdades dos antigos Lusitanos era a discussão e aprovação dos negócios públicos nas suas assembléias gerais, que depois denominamos côrtes.

 

Amor à liberdade foi o carácter dos Portugueses.

 

É verdade (diz F. de Carvalho) que com as conquistas Romanas perdemos este nosso antigo direito político; mas vendo os senhores do mundo que o povo Lusitano não largava as armas, e antes queria morrer livre do que ser escravo de Roma, procuraram a final cativar-nos com esses mesmos dons da liberdade, pela qual nunca tínhamos cessado de pelejar. Sim, cativaram-nos com essas honras e privilégios, que a sagacidade Romana sempre tinha de reserva quando lhe falhavam as armas, isto é, com os foros de colônia e município; foros, que nos faziam quase tocar o nome de cidadãos Romanos, e ao que o mundo desse tempo dava a maior estimação. Por esta maneira conseguiram pela liberdade um domínio que nunca tinham podido conseguir pelas armas; e assim também deixaram a todos os governantes futuros do brioso povo Lusitano a grande e luminosa lição, que um tal povo pode sim por anos ser privado de suas liberdades, mas não pode ser eternamente escravo de ninguém; porque cedo ou tarde toma a heróica resolução de as recobrar.

 

Origem das assembléias provinciais.

 

Na conquista (diz F. de Carvalho) dos Godos e Visigodos, tanto que ela se tornou sólida e pacífica, fomos pouco a pouco voltando a nossos antigos costumes nacionais, que mui análogos eram aos dos nossos conquistadores. Nessa época já vemos serem os reis Godos conduzidos ao trono pelos votos das ordens distintas do estado, e com aprovação geral; e pouco depois logo achamos, que os negócios públicos entraram a ser discutidos pelas mesmas ordens distintas do estado nessas assembléias mixtas, denominadas «concílios nacionais ou provinciais.» Vendo os reis Godos que nada era mais capaz de segurar os seus interesses que as decisões dos concílios, e que estes deviam ser, por conseqüência, as suas côrtes ou estados gerais, tiveram sempre o maior cuidado em os convocar, já de toda a nação, já de alguma província. Neles confessam tanto os bispos como os reis que o motivo destas convocações, é muitas vezes, além dos interesses da igreja, o dos interesses do estado. E com efeito, isto mesmo provam os fatos muito mais eficazmente que as palavras; porque ali se prescreviam as leis fundamentais para a sucessão do trono, e regimento dos que a ele deviam subir; ali se confirmavam de fato as disposições e entronizações dos reis, e se defendiam sua vida e interesses; ali se ordenava ou reformava a legislação: e ali finalmente se conhecia dos crimes mais graves, e dos negócios que influíam tanto direito público como particular. Em uma palavra, nestas assembléias mixtas assistiam tanto os bispos como os grandes da corte(12), a quem os reis também se dirigiam em suas falas; e por fim subscreviam os decretos.

Na entrada dos Árabes muitas destas liberdades se perderam, como sempre acontece na época das conquistas; mas apesar d’isso não morreram de todo, nem de todo se esqueceram. Nas montanhas das Astúrias se salvou a arca santa da nossa aliança política, e com o tempo dela tornaram a sair as tábuas da lei, que haviam escapado ao alfange Maometano. O mesmo já citado autor, o Sr. Antônio Caetano do Amaral, diz positivamente, na sua quarta memória sobre o Estado da Lusitânia neste último período até ao estabelecimento da monarquia Portuguesa, que a forma do governo na monarquia dos reis das Astúrias e de Leão era como se segue: «Continuam a se congregar para a determinação dos negócios graves congressos dos prelados e magnates, convocados, e ordinariamente presididos pelos reis(13).» Logo de tudo o que rapidamente deixamos apontado podemos por conseguinte afoitamente concluir, que as bases do nosso direito público e político, desde os primeiros e primitivos tempos da nossa organização social, foram sempre constitucionais, e nunca filhas de uma autoridade absoluta. E sendo isto assim, que Português brioso haverá que possa consentir em que impunemente se lhe roube tão preciosa herança, ou que seja capaz de a trocar por uma voluntária, e sempre abjeta servidão?


 

Portugal independente da Espanha e sob seus reis.

 

Invadia a Península, os adoradores do Alcorão, e Henrique de Borgonha(14) bisneto de Hugo Capeto, rei de França, à frente dos cavalheiros franceses, veio ajudar a Afonso IV de Castela, a defender a fé da Redenção. Afonso reconhecendo tão bondadoso serviço, assentou pagar-lhe casando-o com Thereza, filha do seu amor (1095), acrescentando ao dote tudo o que sobre a Espanha possuíssem os infiéis. Portugal (Porto calo) era então ocupado pelos discípulos de Mahomet, e depois de 17 vitórias, que a eles ganhou Henrique de Borgonha, os expeliu para longe apossou-se do território e se reconheceu conde de Portugal, título mais honorífico, naquelas eras, que o de duque.

Os altos e incompreensíveis decretos da Providência puseram termo ao viver de Henrique (l.º de Novembro de 1112, na idade de 77 anos), e os seus amplos projetos desceram com ele para o túmulo; porém ficando-lhe um filho digno de o suceder, não tardou muito que os negócios de Portugal mudassem de face.

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Um rei por nome Afonso, foi na Espanha,
Que fez aos sarracenos tanta guerra,
Que por armas sangüíneas, força e manha
A muitos fez perder a vida e a terra.
Voando deste rei a fama estranha
Do Herculano Calpe à cáspea serra,
Muitos para, na guerra esclarecer-se,
Vinham a ele, e à morte oferecer-se.

E c’um amor intrínseco acendidos
Da fé, mais que das honras populares,
Eram de várias terras conduzidos,
Deixando a pátria amada e próprios lares.
Depois que em feitos altos e subidos
Se mostraram nas armas singulares,
Quis o famoso Afonso, que obras tais
Levassem prêmio digno e dons iguais.

Destes Henrique, dizem que segundo
Filho de um rei de Hungria exp’rimentado,
. Portugal houve em sorte, que no mundo
Então não era ilustre nem prezado,
E, para mais sinal de amor profundo,
Quis o rei castelhano que casado
Com Thereza sua filha o conde fosse,
E com ela das terras tomou posse.

Este depois que contra o descendente
Da escrava Agar vitórias grandes teve,
Ganhando muitas terras adjacentes,
Fazendo o que a seu forte peito deve;
Em prêmios destes feitos excelentes
Deu-lhe o Supremo Deus em tempo breve
Um filho, que ilustrasse o nome ufano
Do belicoso reino Lusitano.
(Camões).

 

Afonso Henrique (o conquistador) 1.° rei.

 

Afonso Henrique, herdeiro das virtudes e bravuras de seu pai, bem que sob a tutela de Thereza, achando-se em idade principiou a aumentar seus estados, e em guerra com Castela, viu-se forçado a fazer a paz, intervindo o delegado pontifício. Os sentimentos de seu pai nunca os deixava, e por isso em continuadas guerras com os infiéis, em 1140 ganhou a célebre batalha de Ourique, (no Alentejo) contra cinco reis mouros, sendo na mesma ocasião aclamado rei de Portugal por seus companheiros de armas, título que foi confirmado pelas côrtes de Lamego.

As magnas leis de Portugal, foram promulgadas neste reinado.

Mas já o príncipe Afonso aparelhava
O Lusitano exército ditoso
Contra o mouro, que as terras habitava
D’além do claro Tejo deleitoso;
Já no campo de Ourique se assentava
O arraial soberbo e belicoso
Defronte do inimigo sarraceno;
Posto que em força e gente tão pequeno.

Em nenhuma outra cousa confiado,
Senão no sumo Deus que o céu regia;
Que tão pouco era o povo batizado,
Que para um só cem mouros haveria.
Julga qualquer juízo sossegado
Por mais temeridade que ousadia
Cometer um tamanho ajuntamento,
Que para um cavalheiro houvesse cento.

Cinco reis mouros são os inimigos,
Dos quais o principal Ismar se chama;
Todos exp’rimentados nos perigos
Da guerra, onde se alcança ilustre fama.
[Seguem guerreiras damas seus amigos,
Imitando a formosa e forte Dama,
De quem tanto os Troianos se ajudaram,
E as que o Termodonte já gostaram.]

A matutina luz serena e fria
As estrelas do pólo já apontava,
Quando na cruz o FILHO DE MARIA,
Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele adorando QUEM lhe aparecia,
Na fé todo inflamado, assim gritava:
—Aos infiéis, SENHOR, aos infiéis,
E não à mim, que creio o que podeis!

Com tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa inflamados, levantaram
Por seu rei natural este excelente
Príncipe, que do peito tanto amaram:
E diante do exército potente
Dos inimigos gritando o céu troaram,
Dizendo em alta voz: —Real! Real!
Por Afonso alto rei de Portugal.

Já fica vencedor o Lusitano,
Recolhendo os troféus e presa rica.
[Desbaratado e roto o Mauro Hispano,
Três dias o grão Rei no campo fiei.] Aqui pinta no branco escudo ufano,
Que agora esta vitória certifica,
Cinco escudos azuis esclarecidos,
Em sinal destes cinco reis vencidos(15).

E nestes cinco escudos pinta os trinta
Dinheiros por que Deus fora vendido,
Escrevendo a memória em várias tintas
Daquelé de quem foi favorecido;
Em cada um dos cinco cinco pinta,
Porque assi fica o número comprido,
Contando duas vezes o do meio
Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio.

De tamanhas vitórias triunfava
O velho Afonso, príncipe subido,
Quando quem tudo enfim vencido andava,
Da larga e muita idade foi vencido,
A pálida doença lhe tocava
Com fria mão o corpo enfraquecido;
E pagaram seus anos deste jeito
A triste Libitina seu direito.

Os altos promontórios o choraram,
E dos rios as águas saudosas
Os semeados campos alargaram,
Com lágrimas correndo piedosas.
Mas tanto pelo mundo se alargaram
Com fama suas obras valorosas,
Que sempre no seu reino chamarão
Afonso, Afonso, os ecos; mas em vão!
(Camões).

Proseguiu o Santo Rei (diz Azevedo) as conquistas da Beira e Estremadura Portuguesa: passou ao Alentejo, aonde triunfou de cinco reis Mouros, e quinze Régulos, cujo principal Imperador era Ismael, com infinita multidão de bárbaros. Afonso cheio de piedade e confiança em Deus, atendia à oração, e lição santa entre o maior estrondo das armas. Leu alta noite a vitória milagrosa de Gedeão com trezentos homens sem armas contra o formidável exército dos Madianistas. Elevou o pensamento ao céu, falou a Deus, e disse: «Senhor Todo-Poderoso, bem sabeis, que só para glória do vosso adorável nome tomei as armas contra os inimigos da fé: igualmente podeis dar a vitória a muitos, ou a poucos. Se quereis, que eu seja morto às mãos dos inimigos, cumpra-se vossa vontade Santa: se me concedeis a vitória, será vossa toda a glória.» Adormeceu vestido, inclinada no livro a cabeça: viu em espírito o núncio do Rei Eterno, que lhe dizia: confia, que vencerás estes infiéis, e o Senhor te manifestará sua misericórdia. A este tempo D. João Fernandes de Sousa, camarista do Príncipe, o despertou, dizendo: Aí está um venerável velho a procurar-vos. Respondeu: Entre, se é Cristão. Tanto que o viu, conheceu ser o que na visão se lhe mostrara, ao qual ouviu dizer: «Tende bom ânimo, vencereis e não sereis vencido. Sois amado por Deus, que tem posto os olhos de sua misericórdia em vós até a décima sexta geração, na qual atenuada, outra vez obrará novos benefícios, por efeito de sua piedade. Deus me envia, que ao toque da campainha de minha cela, esta noite, no deserto em que vivi entre os bárbaros há sessenta anos, guardado pelo Senhor, vades sem testemunhas gozar as maravilhas do Altíssimo.»(16)

Venerou Afonso ao Senhor, e seu enviado. Disposto em oração, ao toque sinalado foi, viu de repente fora dos arraiais, no nascente, um raio de luz mais brilhante que Sol, no meio vinha JESUS CRISTO Crucificado, aos dous lados Anjos em forma de mancebos resplandecentes, inclinados a adorar o Senhor. Largou armas e sapatos, prostrado em terra, banhado em terníssimas lágrimas, exclamou: «Para que vindes a mim, Senhor? quereis aumentar minha fé? Nela educado desde o batismo, que recebi menino, vos confesso Deus verdadeiro. Filho do Eterno Padre e da Virgem Maria. Ide manifestar-vos aos infiéis, para que todos em vós creiam. Sem nada se turbar rogava ao Senhor confortasse seus vassalos. Confia, Afonso, lhe diz Cristo da Cruz: Venho estabelecer os princípios de teu reino sobre pedra firme: vencerás não só agora, mas sempre que tomares armas contra os inimigos da Cruz. Acharás os teus alegres; aceita o título de rei, que te derem; pois eu, a quem só pertence edificar e destruir os impérios, quero em ti, e teus descendentes, estabelecer para mim um reino santificado, puro na fé, amável na piedade, que dele seja levado meu nome às nações estranhas. Para teus sucessores conhecerem quem lhes entregou o domínio, comporás as armas das cinco chagas, com que remi o gênero humano, e dos dinheiros, com que fui vendido aos judeus.

Quem poderá explicar os celestiais dons, que acompanharam tão estupenda mercê do Senhor? Foi aclamado Afonso I, rei do Portugal, dizendo-se antes Infante, Príncipe, ou Duque, e ainda em algumas escrituras estava já intitulado rei. Seguiu-se a vitória a 25 de julho de 1139, no campo de Ourique, em que mortos, ou fugidos os mais, voltou Afonso para Coimbra, com muitos mil cativos. Destes foram dous reis Mouros, D. Joas e D. Geraldo de Sia, entregues a S. Theotonio, convertidos, o primeiro Cônego e Sacerdote e o segundo Irmão Converso no Real Mosteiro de Santa Cruz, aonde floreceram em virtudes. Mandou o santo rei fazer pelos mais primorosos artífices uma perfeita imagem do crucifixo, como lhe apareceu. A primeira não agradou por mui incorpada; está na Capela de Jesus a um canto do claustro principal de Santa Cruz, aonde os Anjos se ouviam cantar Matinas. A segunda pareceu mais pequena do que devia ser, venera-se no altar-mor da igreja de Santa Justa, em Coimbra, com fama de milagrosa. A terceira, que mais agradou, esteve na igreja de S. João das Donas, aonde falou à Virgem Santa Feliciana, e cujos ossos, com a imagem do Crucifixo se trasladaram à Sacristia de Santa Cruz, e se guardam no altar do Santíssimo Sacramento da Igreja do Mosteiro, aos pés do mesmo Crucifixo.

O rei de Castela não se opôs ao título de rei de Portugal, quando o soube, ainda que depois o pretendeu sujeitar às cortes. O Papa Inocêncio II o reconheceu no ano de 1142, Alexandre III o confirmou. Nas côrtes de Lamego se estabeleceram logo as leis fundamentais da monarquia. Quis o Rei, que seus estados fossem tributários à Nossa Senhora e a S. Pedro, não como feudo, mas com voluntário tributo e esmola, que mandava dar cada ano a Claravel para o altar, e culto de Nossa Senhora e à Igreja do Príncipe dos Apóstolos em Roma. Em Alcobaça achou frei Bernardo de Brito, o juramento do Rei, feito em 1152, ano do nascimento de Cristo, não da era do César, posto que esta fosse mais usada então em Portugal. Frei Lourenço do Espírito, deu esta escritura em Madrid ao Rei Filipe II, ficando traslados autênticos em Alcobaça, Santa Cruz e outras partes.

Agradecido o novo Rei de Portugal ao Rei dos Céus, deu seu patrocínio aos doze varões Apostólicos fundadores do Real Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, dos quais S. Theotonio primeiro Prior, era Diretor do Rei, que às suas orações atribuía as contínuas vitórias sobre os Mouros. Tomou o grande Afonso o hábito de Cônego III e Irmão da Ordem: largava a espada vencedora na porta do Mosteiro, assistia dentro ao coro com sobrepeliz e murça, entoando louvores divinos. Fundou este incomparável monarca cento e cinquenta grandes Templos, casas de oração e Mosteiros, assim de Cônegos Regulares, como de Monges de S. Bento e de S. Bernardo, sendo Alcobaça o mais rico da Ordem Cisterciente. Fundou a ordem militar de Aviz, que existe, e de Ala, que acabou com o tempo, dedicada a S. Miguel Arcanjo, que viu com braço, aza e espada, prostando diante de si milhares de Mouros, para entrar vitorioso o Rei. Dotou muitas catedrais e obras pias. A primeira praça que tomou aos Mouros na Extremadura, Leiria, reedificou logo em terra deserta, e deu a S. Theotonio, que aí mandou fundar seminário de seus Cônegos Regulares, Missionários, que instruíssem na fé e virtude os povos da província. Vieram de improviso os Mouros, queimaram na igreja os Santos Cônegos, levaram cativos os moradores da praça, em cuja satisfação S. Theotonio mandou seu sobrinho D. João com os caseiros do Mosteiro de Santa Cruz, que sem armas avistando Arronches, praça fortíssima dos Mouros, por milagre a renderam. Restaurou o Monarca Português Leiria, e continuou as conquistas.

Com igual facilidade rendeu os Mouros em Torres Novas. Entrou vitorioso em Mafra, Sintra e outras praças. Para conquistar Lisboa o ajudou a esquadra de quatorze mil soldados Alemães, Ingleses e Franceses, que acaso aí chegaram, com ânimo de militar contra os Turcos na Palestina. Dominado aquele empório do mundo, passou Afonso em triunfo o Tejo, rendeu Alcacere, Serpa, Moura, e as mais praças até Beja. Com sessenta lanças, tomada Cezimbra, descobria campo, quando se avistou com o Rei Mouro de Badajoz, a quem seguiam sessenta mil infantes, quatro mil cavalos: foram acometidos e rendidos ao instante por Afonso, sendo nele o mesmo ver e vencer.

Casou o Rei no ano de 1146 com a Rainha D. Mafalda, filha de Amadeu III, Conde de Sabóia e Mauriana. Dela teve os seguintes filhos: D. Henrique e D. João, que morreram meninos. D. Sancho, que herdou o o reino. D. Urraca, infanta de Portugal, Rainha de Leão, que por ser parenta se apartou do Rei D. Fernando II. D. Mafalda, que morreu estando justa para casar com o Rei de Aragão. D. Thereza, casada com Filipe, Conde de Flandes, e segunda vez com Eudo III, Duque de Borgonha, e D. Sancha. Fora do matrimônio, teve este primeiro Rei de Portugal quatro filhos: Fernando Afonso, alferes-mor do Reino; D. Afonso, grão-mestre da ordem de S. João Baplista, que de Jerusalém passou a Rodes e depois a Malta; D. Thereza e D. Urraca. O defeito que nesta, e em outras faltas Deus permitiu no grande Afonso, bem fica riscado pela penitência heróica, em que exemplarmente perseverou até a morte. Sua esposa mandou fazer a ponte de Canavezes, com um Hospital junto ao rio Tumega: edificou o Mosteiro da Costa em Guimarães de Cônegos Regulares, que depois se deu à ordem de S. Jerônimo: faleceu corn opinião de Santa a 4 de Novembro ano de 1157; seu corpo se depositou em Santa Cruz de Coimbra.

Lançados os Mouros de Santarém, Óbidos, Alenquer, Palmela, Évora, fez trasladar o Rei do Promontório Sacro no Algarve o corpo de S. Vicente, Diácono Mártir a Lisboa, cujo Padroeiro é. Entrou Afonso em triunfo pelo Reino de Leão, para se despicar da má vizinhança, que lhe havia feito seu genro, Rei daquele Reino. Tomou aos Mouros Badajoz; seguido pelo genro D. Fernando, quis aparecer Afonso, mas ao sair da cidade quebrou uma perna em o ferrolho. Preso dos Leoneses, lhes deixou as terras, que ocupara naquele Reino, aonde prometeu ir às côrtes, montando a cavalo, o que nunca mais fez para manter sua real palavra, andando depois em Carruagem. Sabendo Albojaque, Rei Mouro de Sevilha do infeliz sucesso do grande Afonso, veio com formidável exército sitiar Santarém: foi ao instante destroçado, antes de chegar socorro dos Leoneses, que desejavam ajudar ao Rei de Portugal, esquecidas as desavenças passadas. Chegou à Sevilha o exército dos Portugueses, em que o Rei mandava seu filho o Príncipe D. Sancho por general, aonde desde a entrada dos Mouros em Espanha, se não haviam visto armas Cristãs. Estas em breve espaço voltaram triunfantes de todo o poder dos bárbaros, arrastadas suas bandeiras. Chegando a Porto de Mós, o Rei Mouro de Valença, aí foi destroçado pelo valoroso D. Fuas Roupinho, que achou a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, na Pederneira. O qual desfez também duas armadas inimigas, alimpou de Corsários as costas do mar de Portugal, seguindo as ordens do Santo Rei.

Foi mais ilustre o triunfo do grande Afonso, o ano precedente à sua morte. Veio Miramolim de Marrocos, e outros treze Reis, sitiar Santarém, aonde estava D. Sancho, ficando em Coimbra o invencível pai. Corre este à notícia, de cuja vinda pasmam os bárbaros, atacados pelo Rei de uma parte, da outra pelo Príncipe. Morre na batalha Miramolim e outros Reis, ficam muitas léguas juncadas de cadáveres de Mouros, ricos os Portugueses com os despojos, seus Soberanos gloriosos com as vitórias.

Disposto com os mais ternos sentimentos de piedade, recebidos os Sacramentos com exemplar devoção, entregou Afonso, em Coimbra sua alma a Deus, a 6 de Dezembro, ano de 1185, com 76 anos de idade, 57 de governo, e de Rei 46. Foi sepultado no seu Real Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, aonde tem culto imemorial de Santo, pendentes em seu túmulo insígnias de milagres. Guarda-se a espada do Rei como preciosa Relíquia. Até depois de morto foi visto com seu filho D. Sancho ajudar ao Rei D. João I, a tomar aos Mouros Ceuta em África. Em Alcobaça, com paramentos de festa fazem-se as exéquias ao Rei Santo, e como a Santo Bemaventurado, lhe rezavam a Antífona, e a oração, que anda escrita nos livros do coro, e a traz a obra Monarquia Lusitana, parte 3, liv. 11, cap. 39.

 

Juramento que deu Afonso Henrique, acerca da visão que viu.

 

EU DOM AFONSO Rei de Portugal, Filho do ilustre Conde Dom Henrique, Neto do grande Rei Dom Afonso: sendo presente vós o Bispo de Braga, e o Bispo de Coimbra, e o Theotonio, e os mais Magnates, Oficiais, e Vassalos do meu Reino: Juro por esta Cruz de metal, e por este livro dos Santíssimos Evangelhos, em que ponho a mão, que eu mísero pecador com estes meus olhos indignos vi a Deus Nosso Senhor JESUS CRISTO, posto em uma Cruz, nesta forma. Eu estava com meu exército nas terras de Alentejo, no Campo de Ourique, para pelejar com Ismael, e outros quatro Reis dos Mouros, que tinham consigo infinitos milhares de homens. E a minha gente, atemorizada com esta multidão, estava enfadada e muito triste; em tanto, que muitos diziam ser temeridade começar a guerra. E eu triste por aquilo, que ouvia, comecei a cuidar comigo, que faria; e tinha um livro na minha tenda, no qual estava escrito o Testamento Velho e o Testamento de JESUS CRISTO: abri-o e li nele a Vitória de Gedeão, e disse entre mim: Vós sabeis, Senhor JESUS CRISTO, que por vosso amor faço esta guerra contra vossos inimigos, e que na vossa mão está dar-me a mim, e aos meus fortaleza, para que vençamos aqueles blasfemadores do vosso nome. E dizendo isto, adormeci sobre o livro; e logo vi um velho, que se vinha para mim e me dizia: Afonso, confia, porque viverás e desbaratarás estes Reis, e quebrantarás os seus poderes, e o Senhor se te há de mostrar. Estando eu vendo isto, chegou-se a mim João Fernandes de Sousa, Vassalo de minha Câmara e disse-me: Senhor, levantai-vos: está aqui um homem velho, que vos quer falar. Entre, disse eu então, se é fiel. E entrando ele, onde eu estava, conheci ser aquele mesmo, que eu tinha visto na visão. O que me disse: Senhor, está de bom ânimo, vencerás, vencerás, e não serás vencido: és amado do Senhor; porque sobre ti, e sobre teus descendentes depois de ti, tem posto os olhos de sua misericórdia até a décima sexta geração, na qual se diminuirá a descendência; mas na mesma assim diminuída, o mesmo Senhor tornará a pôr os olhos e verá. Ele me manda dizer-te, que tanto que ouvires esta noite, que vêm, tanger a campainha da minha Ermida, na qual vivi sessenta e seis anos entre os infiéis, guardado com o favor do Altíssimo, sairás do teu arraial só, e sem companheiros, e mostrar-te-á sua muita piedade. Obedeci, e com reverência posto em terra, venerei o embaixador, e a quem o mandava. E estando em oração esperando o som da campainha, já na segunda vigília da noite, a ouvi. Então armado com a espada, e escudo saí do arraial e vi subitamente para a parte direita contra o Oriente um raio resplandecente, e o resplandor crescia pouco e pouco em mais: e quando naquela parte pus os olhos com eficácia, logo no mesmo raio, mais claro que o Sol, vejo o sinal da Cruz, e JESUS CRISTO nela crucificado, e de uma e outra parte multidão de mancebos alvíssimos, que eu creio eram os Santos Anjos. A qual visão tanto que eu vi, posta à parte a espada, e escudo, e deixados os vestidos e calçado, humilhado me lancei em terra: e aí derramando muita cópia de lágrimas, comecei a rogar pelo esforço de meus vassalos. E nada turbado, disse: Vós a mim, Senhor! Porque? A quem já crê em vós, quereis acrescentar a Fé? Melhor será que vos vejam os infiéis, e creiam, e não eu, que com a água do batismo vos conheci, e conheço pelo verdadeiro Filho da Virgem e do Padre Eterno. A Cruz era de admirável grandeza e levantada da terra quase dez covados. O Senhor com um suave órgão de voz, que meus indignos ouvidos receberam, me disse: Não te apareci desta maneira para te acrescentar a Fé, mas para fortalecer o teu coração neste conflito. E para estabelecer, e confirmar sobre firme pedra os princípios do teu reino. Confia, Afonso, porque não somente vencerás esta batalha, mas todas as outras, em que pelejares contra os inimigos da Cruz. Tua gente acharás alegre para a guerra, e forte, pedindo-te, que com nome de Rei entres nesta batalha: não duvides, mas concede-lhe liberalmente o que te pedirem. Porque eu sou o que faço, e desfaço Reinos e Impérios. É minha vontade edificar sobre ti, e sobre tua geração depois de ti, um Império para mim; para que o meu nome seja levado a gentes estranhas. E porque os teus sucessores conheçam, quem te deu o Reino, fabricarás o teu escudo de armas com a divisa do preço, com que eu comprei o gênero humano, e com o que eu fui comprado dos judeus: e ser-me-á um Reino santificado, puro na Fé, e pela piedade amado. Tanto que ouvi estas cousas, prostrado em terra o adorei, dizendo: Senhor, porque merecimentos me anunciais tanta piedade? Farei o que mandais: e vós, ponde os olhos de misericórdia em os meus descendentes, como me prometeis; e a gente de Portugal guardai e salvai: e se contra eles algum mal tiverdes determinado, antes o convertei todo em mim, e a meus sucessores, e o meu povo, que amo tanto como único filho, absolvei. Consentindo o Senhor, disse: Não se apartará deles, nem de ti alguma hora minha misericórdia; porque por eles tenho aparelhado para mim grande sementeira, porque os escolhi por meus semeadores para terras mui apartadas e remotas. E dizendo isto, desapareceu; e eu cheio de confiança e suavidade tornei ao exército. E que tudo se passou assim, eu El-Rei D. Afonso, o juro pelos Santíssimos Evangelhos de JESUS CRISTO, em que ponho a mão. Pelo que mando a meus sucessores, que tragam por divisa e insígnia cinco escudos partidos em cruz, por amor da cruz, e cinco chagas de JESUS CRISTO, e em cada uma trinta dinheiros de prata, e em cima a serpente de Moisés, por ser figura de CRISTO. E esta será a divisa de nossa nobreza em toda nossa geração. E se alguma cousa intentar, será maldito do Senhor, e com Judas traidor atormentado no inferno. Feita em Coimbra a vinte e oito de Outubro, da era de CRISTO, mil cento e cincoenta e dous.

Eu D. Afon†so, Rei de Portugal.

D. João, Bispo de Coimbra.
D. Gonçalo de Sousa, Procurador de Guimarães.
João, Metropolitano de Braga.
D. Theotonio, Prior.
Payo Mendes, Procurador de Braga.
Soeyro Martinz, Procurador de Coimbra.
D. Fernão Pires, Mordomo-mor.
Pedro Pais, Alferes-Mor.
Vasco Sanches.
Afonso Mendes, Alcaide-mor de Lisboa.
Mendo Pires, por Mestre Alberto, Chanceler-mor.

PEDRO DE MARIZ (Diálogo de várias histórias).  

Homens notáveis no reinado de Afonso Henriques.

D. Fernão Peres.
Vascos Sanches.
Afonso Mendes.
Mestre Alberto, Chanceler
S. Theotonio, Prior de Santa Cruz.

S. Bernardo vaticina a escravidão dos 60 anos, em que Portugal devia estar sub o jugo estrangeiro, na carta que escreveu de seu próprio punho a Afonso Henrique, nos termos seguintes:

«Dou as graças à V. S. pela mercê e esmola, que nos fez do sítio e terras de Alcobaça, para os frades fazerem mosteiro, em que sirvam a Deus, o qual em recompensação desta, que no céu lhe pagará, me disse, lhe certificasse eu da sua parte, que a seu reino de Portugal, nunca faltariam Reis Portugueses, salvo se pela graveza de culpas, por algum tempo o castigar; não será porém tão comprido o prazo deste castigo que chegue a termos de 60 anos. Claraval, 13 de Março de 1136. Bernardo. — O cativeíro de Portugal, durou 59 anos, 5 meses e alguns dias.»

Diogo Gonsalves, morre valorosamente na batalha de Ourique.
Gilberto I, Bispo de Lisboa.
D. Gonçalo de Sousa.
D. Gonçalo Viegas.
D. Lourenço Viegas.
Gualtero, Primeiro Prior do Mosteiro de S. Vicente de Fora.
Martim Muniz.
Mem Muniz.
D. Mendo.
Payo Guterres.
D. Pero Paes.

 

Fé da palavra (Egas Muniz).

Morto D. Henrique, sua mulher a infanta de Castela tomou o título de Regente de Portugal, e o conservou bem desde 1114 até 1126. Sendo já mancebo D. Henrique, e armado cavaleiro, e talvez aconselhado em tomar o governo que lhe pertencia, que sua mãe, em conseqüência das segundas núpcias, que contraiu com D. Fernando Peres, Conde de Transtamera, Galego, lhe não queria dar. Por este motivo tomou as armas, e prendeu-a no campo de S. Mamede, junto a Guimarães, a 24 de Junho de 1128.

Por motivos de conveniência veio o rei de Leão em socorro de D. Thereza, detida no Castelo de Lanhoso, e foi desboratado na ruga de Valdevez. Sitiou depois a D. Afonso, em Guimarães, e o rendera, se Egas Muniz, seu aio, fugindo, não fora ajustar pazes com o rei de Leão, com certas condições, que o príncipe não quis cumprir. Foi Egas Muniz, com mulher e filhos, a Toledo, oferecer-se ao castigo, por falta de palavra dada, e com o que mui satisfeito ficou o rei queixoso D. Afonso. (Vid. Fr. Antônio Brandão).

 

Mas o príncipe Afonso (que desta arte
Se chamava, do avô tomando o nome)
Vendo-se em suas terras não ter parte;
Que a mãe com seu marido as manda e come,
Fervendo-lhe no peito o duro Marte,
Imagina consigo como as tome:
Revolvidas as causas no conceito,
Ao propósito firme segue o efeito.

De Guimarães o campo se tingia
Co’o sangue próprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor, e a terra,
Com ele posta em campo já se via,
E não vê a soberba o muito, que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.

Oh Progne crua ! Oh mágica Medéia!
Se em vossos próprios filhos vos vingais,
Da maldade dos pais, da culpa alheia;
Olhai, que inda Thereza peca mais,
Incontinência má, cobiça feia,
São as causas deste erro principais;
Sila por uma mata o velho pai,
Esta por ambas contra o filho vai.

Mas já o príncipe claro o vencimento
Do padrasto e da iníqua mãe levava:
Já lhe obedece a terra num momento,
Que primeiro contra ele pelejava;
Porém, vencido da ira o entendimento,
A mãe em ferros ásperos atava;
Mas de Deus foi vingada em tempo breve:
Tanta veneração aos pais se deve!

Eis se ajunta o soberbo Castelhano,
Para vingar a injúria de Thereza,
Contra o tão raro e ingente Lusitano,
A quem nenhum trabalho agrava ou pesa,
Em batalha cruel o peito humano,
Ajudado da angélica defesa,
Não só contra tal fúria se sustenta,
Mas o inimigo aspérrimo afugenta.

Não passa muito tempo, quando o forte
Príncipe em Guimarães está cercado,
De infinito poder; que desta sorte
Foi refazer-se o imigo magoado:
Mas com se oferecer à dura morte
O fiel Egas amo, foi livrado
Que de outra arte pudera ser perdido
Segundo estava mal apercebido.

Mas o leal vassalo, conhecendo
Que seu senhor não tinha resistência,
Se vai ao Castelhano, prometendo
Que ele faria dar-lhe obediência:
Levanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promessa, e consciência
De Egas Muniz; mas não consente o peito
Do moço ilustre a outrem ser sujeito.

Chegado tinha o prazo prometido,
Em que o rei Castelhano já aguardava,
Que o príncipe a seu mando submetido
Lhe desse a obediência, que esperava:
Vendo Egas, que ficava fementido,
O que dele Castela não cuidava,
Determina de dar a doce vida,
A troco da palavra mal comprida.

E com seus filhos, e mulher se parte
A levantar com eles a fiança,
Descalços, e despidos, de tal arte,
Que mais move a piedade, que a vingança,
Se pretendes, rei alto, de vingar-te
De minha temerária confiança,
Dizia, eis-aqui venho oferecido
Até pagar co’a vida o prometido.
(Camões).

 

 

Giraldes sem Pavor ou a tomada de Évora.

 

Eis a nobre cidade, certo assento
Do rebelde Sertório antigamente.
Onde ora as águas nítidas de argento
Vêm sustentar de longo a terra, e a gente
Pelos arcos reais, que cento e cento
Nos ares se alevantam nobremente,
Obedeceu por meio e ousadia
De Giraldo, que medos não temia.
Camões.

 

Giraldes sem Pavor, afirma o mestre André de Rezende, foi nobre cavalheiro em tempo de El-Rei D. Afonso Henrique, e por seus desregramentos, caiu no desagrado de Afonso, e se retirou para o Alentejo, e se alistou no serviço de Ismor, rei infiel, que o ocupou em chefe de ladrões. Este ofício, como diz um compilador, inteiramente degradante, não podia convir por longo tempo a um homem, que na sua mocidade tinha possuído os sentimentos de honra. Giraldes, desejava entrar debaixo das leis do seu legítimo soberano; mas conhecia, que para obter o seu perdão necessitava fazer nm importante serviço: a ocasião se lhe apresentou e ele a não desprezou.

Évora se achava em poder dos infiéis, e Giraldes começou por ajuntar-se com os seus companheiros, a fim de largarem tal meio de vida, e entrarem no caminho de honra, e obedecerem ao legítimo rei. Perto da cidade, estava uma antiga torre, que servia para a vigia dos Mouros, e onde permanecia um, com sua filha, a fim de observarem as correrias dos cristãos. Giraldes fez esconder na vizinhança um certo número de seus companheiros, os quais deviam rapidamente unir-se a um sinal convencionado. Logo que escureceu, ele se encaminhou para a torre, envolto em folhas para não ser percebido, e foi cravando ferros na parede da torre, por onde mansamente foi subindo, até que ganhou a janela. O Mouro naquela noite, tinha encarregado a filha da vigia mas, descuidada, foi surpreendida pelo sono.

Giraldes dentro da torre, deita a moça pela janela; vai ao Mouro que dormia, corta-lhe a cabeça e apodera-se das chaves. Descendo e encontrando a Moura ainda viva, corta-lhe também a cabeça, e aparece no meio dos seus companheiros, com as cabeças das vítimas na mão.Vendo que os seus estavam satisfeitos com semelhante evento, lhes comunicou os seus projetos, e os levou para a torre. Acendeu fogo, segundo costume das sentinelas mouriscas; e a direção que se lhe deu em o mais alto da torre foi a que servia para indicar o lado em que os cristãos acometiam. Giraldes, dirigindo-se logo o Espinchuro, para onde mandou alguns camaradas, com ordem de não poupar a ninguém, viram-se logo a braços com os Mouros que saíram da cidade, e certos do pequeno número de cristãos, os perseguiram em grande cópia. Giraldes apenas viu que os Mouros tinham saído, penetrou por um lado da praça, e degola as guardas e leva a perturbação e o terror a toda a cidade de Évora, por se não saber o número de inimigos, que tão ousadamente promove a destruição.

Os Mouros, que partiram pela parte do Espinchuro, certos deste sucesso, voltam à socorrer os seus, acham as portas tomadas e guardadas pelos cristãos; e aqueles que os atraíram à planice executando fielmente as ordens de Giraldes, os atacam pela retaguarda e os dispersa: Desesperados os Mouros, e por todos os lados combatidos, abandonam a cidade aos vencedores. Restabelecido o sossego, Giraldes permitiu aos Mouros, que sobreviveram à carnagem, de ficar debaixo do certas condições na cidade, ou de se retirarem.

Informando logo depois a Afonso I o serviço que acabava de fazer, obteve o perdão para si, e para seus companheiros, e Afonso para bem justificar o mérito dos seus serviços, entregou-lhe o governo e guarda da cidade de Évora, até que morreu. Desde o instante ern que Giraldes julgou deixar a vida incurta e má, até que expirou, ninguém fui mais fiel e honrado que ele.

(Extaído da Crônica de D. Galvão).

 

 

D. Fuas Roupinho, 1º almirante Português.

 

Vês este, que saindo da cilada,
Dá sobre o rei, que cerca a vila forte,
Lá o rei tem preso, e a vila descercada
Ilustre feito digno de Mavorte!
Vê-lo cá vai pintando nesta armada,
No mar também aos Mouros dando a morte,
Tomando-lbe as galés, levando a glória
Da primeira marítima vitória(17).

É D. Fuas Roupinho, que na terra,
E no mar resplandece juntamente,
Com fogo que acendeu junto da serra
De Abila, nas galés da moura gente:
Olha como em tão justa, e santa guerra
De acabar pelejando está contente:
Das mãos dos mouros entra a felice alma,
Triunfando nos céus com justa palma.
(Camões).

 

O nome deste herói será sempre memorável no hemisfério de Portugal, e certamente que os feitos que o distinguiram tornam-no digno do respeito de todos os homens. No tempo em que era assaltado aquele país, de correrias e invasões quase diárias de Mouros, chegou a Porto-de-mós com grandes reforços o rei de Merida em 1180, mas D. Fuas, que comandava uma fortaleza com pouca força, para um combate, saiu dali com alguns companheiros, e retirado à Serra de Mendiga, d’aqui pediu com urgência aos alcaiades de várias vilas próximas lhe prestassem o socorro que pudessem. Durante essa ausência, acometeu o inimigo a fortaleza, mas apesar da pequenhez da força que a guarnecia, resistiu corajosamente essa diminuta força a todo o poder dos Mouros, que com a chegada da noite retiraram-se assaz fatigados, a descansar em seus alojamentos, entre o rio que corre nas proximidades da vila de Porto-de-mós.

D. Fuas Roupinho deu ordem aos seus, logo que achou oportuna a hora, de atacar os inimigos, desceu com sua gente o alto da serra, e afastou os Mouros, com tamanho vigor e acerto, que a vitória foi completamente dada aos Portugueses, que debandaram os Mouros, com bastantes mortos, e aprisionaram o Rei Mouro, e um seu irmão, entre eflúvios de prazer dos mesmos Portugueses. Acompanhado dos principais prisioneiros, e de parte dos seus companheiros d’armas, seguiu para Coimbra, onde então se achava o rei D. Afonso, e foi com todos os seus soldados, acolhido prazenteiramente daquele monarca, o qual querendo obviar ao progresso de prejuízos que causavam no reino os inimigos, que o assolavam por mar, deu todas as providências para que se armassem e saíssem ao mar as galés que havia, as quais comandadas pelo mesmo D. Fuas Roupinho, encontrando a armada Mourisca, pouco adiante do Cabo de Espichel, a 29 de de Julho de 1180, e travando logo combate, desbarataram completamente os Mouros, entrando depois triunfante em Lisboa, onde foi entusiasticamente aplaudido este brilhante feito d’armas, que fez dar a Roupinho o título de primeiro almirante Português.

(Crônica de D. Galvão).

 

 

A D. Fuas Roupinho, Capitão das Galeras d’El Rei D. Afonso Henriques.

 

Su frente, que de triunfos se corona,
Per que su fama el Tiempo no consuma,
Engrandecer los Hados determinan,
Con luzes, que estos Orbes iluminan.
Silv. Macabeo. Cant. XV. Est. VI.

 

STROPHE I.
Desde as margens auríferas do Tejo
A negociosa Archangel, e té onde
     É Padrão de Albuquerque
     A torreada Goa;
Do Zaire adusto à livre Pensilvânia,
Vejo armadas undívagas nadando!,..
     As variadas cores
Das flâmulas Reais briosas nutam;
     E o longo equóreo plaino
Da irada artilharia ao som retumba!

ANTISTROPHE I.
Mas entre Anglas, Danesas, Russas, Francas,
Batavas quilhas, navegar não vejo
     Os Baixéis Lusitanos,
     Que outr’ora retalhando
Com sucessivo giro os longos Mares,
Iam levar destruição, e a morte
     Da Pátria aos inimigos;
Ou transportavam de Oriental riqueza
     Amplo tributo ao Tejo,
E mostravam ao Mundo ignotas Gentes!

EPODO I
Ah! como te deslembras, Pátria minha,
Da marítima glória, que outro tempo,
     Subiu aos Céus teu nome
Términos alongando ao vasto Mundo!...
     De Lísia o braço invicto
Menos não trovejou no Mar que em Terra,
Mesmo do Império seu na tenra infância!

ESTROFE II.
Vós o atestai, Nereidas, que de susto,
Vos fostes esconder no fundo algozo,
     Quando o forte Roupinho,
     Marítimo Mavorte,
Sobre os Mares vibrou de Afonso o raio!
Quando em nuvem cruenta, a Marte horrenda
     Com júbilo sentada,
Seus ministros cansou, que afadigados,
     Dos que a pugnar morriam,
Almas levavam ao Elísio, ao Orco.

ANTISTROFE II.
Duro foi ver com ímpeto chocando
As armadas galés abalroar-se,
     O canto, o dardo, a lança,
     As emplumadas setas,
Rechinando, e toldando os longos ares:
Ver da espada, e do alfanje aos crebros golpes,
     Cair as bravas hostes
Como caem no campo à foice, as messes!
     Tingir-se em sangue o Pego,
Gritos de raiva e dor, rasgando as Nuvens!

EPODO II.
Este nadando valido algum tempo
Seu trânsito retarda! Sobre o escudo
     Aquele as praias ganha!
Quem, matando-se, evita o cativeiro!
     Quem, como infernal fúria,
Na inimiga galé se arroja armado,
E quanto se lhe opõe derruba, e varre!

ESTROFE III.
Qual depois que após si fechadas sente
O valeroso Turno as férreas portas
     Da renascente Tróia,
     Maior nas armas soa,
Mais sinistro clarão dos olhos vibra,
Revolve com mais força a longa espada,
     E, firme, os golpes todos
Rebate no broquel Septi-taurino,(18)
     Té que ao rio se arroja,
Ganha seus arraiais ileso, e armado;(19)

ANTISTROFE III.
Assim no lenho voador penetra
O Luso Capitão, chovendo estragos,
     Pela inimiga frota.
     Quantos medonhos Gênios
Gera a destruição, e a guerra seguem,
Com horrido estridor em torno dele,
     As negras asas batem !
E apresados conduz ao Pátrio Porto
     Quantos baixéis Mouriscos
Não salvara a fugida, o mar tragara!

EPODO III.
Menos brioso no cruento Ourique
De cerrado esquadrão rompendo o centro,
     Das mãos do fero Abdala
A bandeira remiu c’o a morte dele!..
     Nem ganhou tanta glória
Quando do ímpio Gamir dispersa as Hostes,
O cercado castelo libertando!(20)
ESTROFE IV.
Fadídico Proteu, que a pugna via,
Vezes três meneando a fronte algoza,
     «Que vasto incêndio (exclama)
     «Este clarão promete!...
«Quantas, correndo o tempo, as longas águas
«Terão de ensangüentar, batalhas Lusas!
     «Quantos Mares sem nome
«Das Camenas na voz serão famosos!...
     «Que Promontório, ou Praia
«Não irão assombrar Pendões do Tejo!

ANTISTROFE IV.
«Quantos potentes Reis largando o cetro,
«Do trono se derrubam!.. Quantos Reinos
     «No Culto seu recebem
     «Novas leis, e costumes!..
«Que longínquas nações, em laços de ouro
«Dadivoso comércio enlaça e prende!!..
     «De que alto assombro cheia
«Vè a Europa dos Mares levantar-se
     «N’um novo continente,
«De males, e de bens perene origem!

EPODO IV.
Ouviu do Vate a voz, e estremeceu-se
Toda a Costa Africana!... a dura juba
     Sacudiu despeitoso
D’Adria o Leão rugindo!.. retumbaram
     Os Índicos Palmares,
Correntes do Eritreu a cor perderam,
E o fulgor se eclipsou de Egípcias Luas!
(Costa e Silva).

 

 

Tomada de Lisboa; morte de Martim Moniz.

 

Achava-se Lisboa em 1147 possuída por uma grossa partida de Mouros, e o valoroso monarca Português D. Afonso Henrique, que não cessava de perseguí-los, apesar de não ter à sua disposição tropa numerosa, deliberou acometer os infiéis: passava então à Palestina uma armada de cruzados, que casualmente fundeara na baía de Cascais, e eles, anuindo de pronto ao convite que lhes fizera por um emissário aquele monarca, desembarcaram e tomaram a seu cargo cercar e combater a praia, pelo lado do mar, e depois de um assédio maior de cinco meses, acometeram os sitiantes a cidade no dia 25 de Outubro de 1153, e todos a um tempo: os Portugueses escalaram os muros pelo lado de S. Vicente de Fora, e dali até às portas de Santa Catarina; os estrangeiros desde este ponto até o Tejo, por onde o inimigo muito também sofria da armada de cruzados, até que já fatigado do conflito que durava por mais de seis horas, e tratando de recolher-se ao castelo, como único refúgio que lhe restava, foi vivamente perseguido pelos que o combatiam, e dedicação extremosa de bravo Português Martinz Moniz, que nesse dia pereceu, vítima de sua intrepidez, caindo no mesmo dia o Castelo em poder dos Cristãos: eis como a história relata esta vitória.

Pretendiam os Mouros, fechando a porta do Castelo, vedar aos portugueses a sua entrada; gravíssimo foi o combate nesta luta, mas Martim Moniz, que já se achava mortalmente ferido, e queria animar os combatentes, deitou-se atravessado na porta, indicando aos seus a continuação do ingresso, indicação esta que despertou o ânimo dos sitiantes a progredirem corajosamente no assalto, em seguir até que apoderaram-se do Castelo, ação esta reputada justamente entre as primeiras que cobrem de glória os antigos Portugueses. O rei D. Afonso Henrique, querendo perpetuar ação tão gloriosa, mandou colocar o busto do nobre português por cima da porta em que teve lugar essa ação heróica. Outros atos semelhantes praticaram alguns parentes de Martim Moniz, e é dele que descende Mem Rodrigues de Vasconcelos, o d’Aljubarrota.

 

Valor de Gonçalo Mendes da Maia
(o Lidador).

 

O Grande D. Gonçalo, o Lidador,
Vencendo a Abuleimar lá junto a Beja,
Outro pano mostrava: e o valor
Com que os Lusos venceram tal peleja,
O Rei de Tanger, cheio de furor,
De novo o acomete; pois deseja
A Mértola tomar: mas já desmaia,
Sabendo lh’a defende o Grande Maia.
F. DO N. SILVA.

 

D. Gonçalo Mendes da Maia, por alcunha o Lidador, era genro de Egas Muniz, e tão forçoso, que até os noventa e cinco anos de idade, não havia armamento firme, que ele não quebrasse. Este fidalgo, e adiantado de D. Afonso Henriques, venceu, junto à Beja, duas batalhas em um dia aos Mouros: porém na última, faleceu desalentado. Os Reis com quem ali pelejou, foram, segundo Duarte Nunes; Abuleimar e Aliboasem, Rei de Tangere. Os valorosos Portugueses, que mais acompanharam a Gonçalo Mendes; e de quem descendem muitas famílias nobres de Portugal, foram: D. Gomes Pais da Silva, D. Egas Gomes da Silva, D. Godinho Fafes, D. Mendo Fernandes de Bragança, D. Sancho Nunes, D. Álvaro Rodrigues de Gusmão, D. Egas Pires Cornel, D. Gomes Mendes Gedeão, D. Sueiro, D. Reimão Aires de Valadares, D. Nuno Soares, D. Moço Viegas, D. Monido Viegas, D. Gonçalo Vasques, D. Ligel de Flandres, D. Fernando Mendes, D. Paio Godiis, D. Ero Mendes de Moles, D. Paio Soares Sapata, D. Mem Muniz, D. Pedro Pais Escacha, D. Abaia, D. Paio Delgado, etc. Nun. na Chr. fl. 54. Brandão numera a estes fidalgos de outro modo, como se vê na pág. 3, da Mon. Lus. Liv. XI, Cap. XVI.

 

D. Sancho I, (o Provador) 2º Rei.

 

As vitórias de Sancho, tão sabidas,
Uma bela pintura figurava:
Com gentes da Cruzada, a si unidas,
Ele Silves, e Faro subjugava.
As terras Andaluzes tão batidas
Das tropas Lusitanas; que mandava
Este Grande Guerreiro, venturoso,
Pai de Santas, Afavel e Piedoso.
SILVA.

 

Três dias depois da morte de Afonso Henrique (a 9 de Dezembro de 1185), foi D. Sancho em Coimbra aclamado Rei de Portugal, tendo 31 anos de idade. Em 22 de Julho de 1190 cercou a cidade talvez ajudado d’uns estrangeiros que iam com o Imperador Frederico, chamado o Barba roxa, a conquistar Jerusalém, que o seu último Rei (Guido Lusigniano) tinha perdido. Jerusalém, tomado aos Mouros em 1099, passou depois a ficar no domínio dos infiéis, por espaço de 90 anos, até que Godofredo de Bulhões (duque de Lotaríngia) a retomou à custa de grande mortandade.

Sancho, com 12 mil homens, atravessou as terras dos Mouros até Sevilha, ali fez tamanho destroço, que o sangue dos feridos fez tingir as águas do rio Guadalquivir. No meio de todos os movimentos bélicos, mandou edificar vilas, cidades, edifícios suntuosos, etc.

Portugal, que assim caminhava, teve que sofrer calamidades que Sancho, não as podia remediar, e via este grande homem com bem mágoa, um povo soberano extinguir-se pela fome e peste; e por mais desgraça resistia com as armas na mão aos infiéis, que lhe batiam à porta à cada hora e à cada instante(21).

Sancho forte mancebo, que ficara
Imitando seu pai na valentia,
E que em sua vida já se exp’rimentara,
Quando o Betis de sangue se tingia,
E o bárbaro poder desbaratara
Do Ismaelita rei de Andaluzia,
E mais quando os que Beja em vão cercaram,
Os golpes do seu braço em si provaram.

Depois que foi por Rei alevantado,
Havendo poucos anos que reinava,
A cidade de Silves tem cercado,
Cujos campos o bárbaro lavrava.
Foi das valentes gentes ajudado
Da Germânica armada que passava
De armas fortes, e gente apercebida
A recobrar Judéia já perdida.

Passavam a ajudar na santa empresa
O roxo Frederico, que moveu
O poderoso exército em defesa,
Da cidade, onde CRISTO padeceu;
Quando Guido co’a gente em sede acesa
Ao grande Saladino se rendeu,
No lugar onde aos Mouros subejavam
As águas, que os de Guido desejavam.

Mas a formosa armada, que viera,
Por contraste de vento àquela parte,
Sancho quis ajudar na guerra fera,
Já que em serviço vai do santo marte;
Assim como a seu pai acontecera,
Quando tomou Lisboa, da mesma arte,
Do Germano ajudado, Silves toma,
E o bravo morador destrói e doma.

E se tantos troféus do Maometa
Alevantando vai, também do forte
Leonês não consente estar quieta
A terra usada aos casos de Mavorte:
Até que na cerviz seu jugo meta
Da soberba Tui, que a mesma sorte
Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,
Que por armas tu, Sancho, humildes tinhas.
(Camões).

 

Calamidades de Portugal, sob o reinado de Sancho I, e conduta deste na adversidade.

 

Depois das vitórias que Sancho ganhou aos Mouros, teve Portugal em 1191 de experimentar um flagelo horroroso, não menos temível que a guerra que foi(22). Torrentes de chuva pareciam querer destruir o reino, alagando tudo, e tudo por essa causa sendo destruído. De repente uma grande seca sucedeu a esta inundação, a tornar o terreno tão duro, que não era possível cultivá-lo. A fome apareceu como resultado de todos esses males, matando a muitos e pondo outros em terríveis apuros. O Rei de Sevilha aproveitou-se desta calamidade para vingar os reis Mouros, seus compatriotas, das vitórias conseguidas sobre eles pelo valor português. Tendo sem dúvida providenciado as suas tropas, deu começo a assolar Portugal, queimando tudo o que encontrava e apossando-se da maior parte do novo reino dos Algarves, (que Sancho havia tomado). Os portugueses achavam-se tão oprimidos de miséria, que mal se opunham aos invasores. Sancho, que conhecia a situação dos seus, pôde conseguir sem dezar uma trégua de 5 anos.

 

Homens notáveis do reinado de D. Sancho 1°(23)

D. Álvaro Martins.
Martim Muniz, genro de D. Sisnando.
Mem Muniz.

O Forte Mem Moniz o socorria
Mostrando neste aperto lealdade;
Mouriscos Estandartes abatia
À força da feliz velocidade.

Mem Muniz, neto de Egas Muniz, ambos célebres fidalgos Portugueses, indo com D. Sancho I à conquista dos Mouros de Andaluzia, abateu ali à força de seu invicto braço as luas agarenas, arvorando ao mesmo tempo as sagradas quinas Lusitanas. Já na tomada de Santarém, este valoroso Português foi o primeiro, que depois de subido ao muro, ali arvorou a bandeira Portuguesa: sendo também ele quem abriu a D. Afonso Henriques as portas de Atumarma.

Paio Guterres.

Guterres a Almada combatia
Com força, mas maior felicidade:
Motivo porque sua geração
D’Almadas tem o nome e o brazão.

Paio Guterres, ilustre Português, foi chamado o Almadão, por ele em 1190, tomar a Vila de Almada aos Mouros, reinando D. Sancho I. Deste egrégio tronco descendem os Almadas de Portugal, sempre famosos em todas as expedições militares, como mostraremos.

 

 

D. Afonso 2.° (o Gordo) 3.° rei.

 

Morto depois Afonso, lhe sucede
Sancho segundo, manso e descuidado,
Que tanto em seus descuidos se desmede,
Que de outrem quem mandava era mandado.
De governar o reino, que outro pede,
Por causa dos privados foi privado;
Porque, como por eles se regia,
Em todos os seus vícios consentia.

Não era Sancho, não, tão desonesto
Como Nero, que um moço recebia
Por mulher, e depois horrendo incesto
Como a mãe Aprina cometia;
Não tão cruel às gentes e molesto.
Que a cidade queimasse onde vivia;
Nem tão mau como foi Heleogabalo,
Nem como o mole rei Sardanapalo.

Nem era o povo seu tiranizado,
Como Sicília foi de seus tiranos;
Nem tinha como Falaris achado
Gêneros desonestos inumanos;
Mas o reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A rei não obedece, nem consente,
Quem não for mais que todos excelente.

Por esta causa o reino governou
O conde Bolonhês, depois alçado
Por rei, quando da vida se apartou
Seu irmão Sancho sempre ao ócio dado.
Este, que Afonso o bravo se chamou,
Depois de ter o reino segurado,
Em dilatá-lo cuida; que em terreno
Não cabe o altivo peito tão pequeno.

Da terra dos Algarves, que lhe fora
Em casamento dada grande parte
Recupera co’o braço, e deita fora
O Mouro mal querido jà de Marte.
Este de todo fez livre e senhora
Lusitânia com força e belica arte,
E acabou de oprimir a nação forte
Na terra que aos Lusos coube em sorte.
(Camões).

 

Rui de Pina, na crônica de Afonso II diz, que ele subiu ao trono no mesmo dia em que seu pai D. Sancho I faleceu, na era de 1212, e segundo outros foi no dia 27 de Março de 1211, tendo ele 25 anos incompletos. Casando de 16 anos com D. Urraca filha de Afonso IX, rei de Aragão, teve deste consórcio a D. Sancho e a D. Afonso, que governaram o reino um após do outro. Sua conduta no começo do seu reinado não foi boa, porém corn o tempo mudou, e se tornou por boas leis que então fez amado do povo; de modo que os impostos não pesando muito sobre os seus súditos, consentia que as fortunas aumentassem. Os gêneros de primeira necessidade eram isentos de tributos. Declarando-se contra os infiéis, mandou uma força considerável aos reis de Castela e Aragão para ajudá-los contra os infiéis. Sitiou a Alcacer do Sal, que os Mouros ocupavam, e vindo sobre ele os reis de Badajoz, Córdova, Sevilha e Jaen, D. Afonso os desbaratou, deixando-lhe 30.000 sobre o campo do conflito, entrando neste número os reis de Badajoz e dé Córdova. Depois venceu os reis de Jean e de Sevilha, que acometeram em Elva, dando lugar a que eles fugissem vergonhosamente. Não satisfeito com estas vitórias entrou na Andaluzia onde levou os Mouros em cruel destruição. Bom para com todos, só foi rigoroso com seus irmãos e irmãs, e por cuja causa teve graves contestações com seu cunhado o Rei de Leão, e com o Papa Inocêncio III, testamenteiro de Sancho I. Diz Rui de Pina, que o Papa o excomungou por ser dcsobediente. Morreu com 38 anos no dia 25 de Março de 1223, jaz no Mosteiro de Alcobaça, pertencente à ordem de S. Bernardo.

 

Homens memoráveis no reinado de Afonso 2º conforme Rui de Pina.

 

D. Gonçalo.
Martin Afonso Telo.
D. Pedro Fernandes de Castro, chamado o Castelão,
Mratin Barreguam.
D. Matheus, Bispo de Lisboa.
Santo Antônio.
D. Soeiro de Viegas.

 

O Bispo de Lisboa Alcacer tira
Do bárbaro poder mais execrando:
O qual cego, espumando furor, ira,
Seus bravos esquadrões vêm reforçando.
A soberba dos Reis ali conspira
Contra o Sacro Pastor e Venerando;
Que quatro derrotou vendo no Céu
A Santa Cruz de Cristo, alto troféu.

 

D. Soeiro Viegas, 2.º do nome e XII Bispo de Lisboa, pela conta do mapa de Portugal, tom. III, em 4.º, pag. 105, ganhou em Alcacer do Sal uma assinalada vitória dos Mouros, no reinado de D. Afonso II, a quem foi muito aceito. Este valoroso Prelado em 1219, ajudado de uma Frota de Cruzados, que por causa de temporal se tinha recolhido em Lisboa; e com dous mil soldados Portugueses, ganhou esta expedição. Três Reis Mouros, (outros dizem quatro) o de Badajoz, Córdova e Jaen, vinham auxiliar aos cercados de Alcacer com quinze mil de cavalo, quarenta mil de pé e muitas embarcações. Porém socorreu o Céu aos Portugueses, e trouxe em sua ajuda 32 velas; e unidos os Cruzados aos nossos, derrotaram de tal sorte aos Mouros, que se afirma morrerem deles dous Reis, com trinta mil soldados; comendo juntamente o mar as embarcações inimigas, em que se tinham transportado aqueles infelizes Maometanos. (Brand. Mon. Liv. XII, Cap. X). Já D. Afonso Henriques em 1158, a tinha livrado do jugo Maometano; e nota Brandão, que se libertara Alcacer sem ajuda dos estrangeiros nesta ocasião, em que a tiveram sitiada dous meses; intentando-se em outras, porém sempre sem efeito, sendo eles auxiliadores dos Portugueses. Enfim, em 1191 se tinha perdido pela grande peste e fome, que afligia a todo o reino. (Brand. P IV., Liv. X, Cap. XVI).

Por este tempo foram martirizados em Marrocos 5 religiosos Franciscanos Portugueses, por cujo martírio muito se gloriou S. Francisco de Assis.

 

Santo Antônio (segundo Pedro de Mariz).

 

Era Santo Antônio natural da Cidade de Lisboa, nascido onde hoje está a Casa de sua invocação. Seu Pai se chamava Martim do Bulhões, e sua Mãe Dona Thareja Taveira, ambos nobres em sangue, e virtudes. Aprendeu Fernão Martim de Bulhões (que assim se chamava o Santo ) a língua Latina e outras artes, com muito recolhimento e cuidado, até a idade de quinze anos: então se meteu em o Mosteiro de S. Vicente de Fora, da Ordem de Cônegos Regulares de Santo Agostinho; e sendo por sua virtude e nobreza ali muito visitado, se passou ao Mosteiro de Santa Cruz da Cidade, da mesma Ordem. E nela se achou ao tempo, que passaram os cinco Frades Menores, e depois quando as suas Relíquias vieram de Marrocos àquele Mosteiro, também as recebeu nele. Ficou tão desejoso de lhe ser semelhante na morte, que logo determinou mudar a vida, e hábito. E comunicando este seu desejo com uns Frades da mesma Ordem dos Menores de S. Francisco, que junto a esta Cidade viviam, e a ela vinham pedir esmola, eles lho louvaram, e deram logo ordem, com que no mesmo Mosteiro de Santa Cruz, onde ele estava, recebesse o hábito de sua mão com licença dos seus maiores, e com a mesma se foi com os Frades para a ermida, em que se recolhiam, que era da invocação de St. Antão Abade, e lhe foi causa dele mudar o seu primeiro nome de Fernando em Antônio. Aqui esteve alguns dias, em os quais havida a licença, que lhe já tinham prometido, se embarcou, e foi à Cidade de Marrocos; e posto que nela fez muita diligência para alcançar a coroa, que tanto invejava aos cinco companheiros, não permitiu Deus, que morresse cavaleiro de uma lança, senão acompanhado e seguido de grandes exércitos, que à sua imitação e com sua doutrina dilatassem a fé até morrer por ela. Antes determinando fazer dele grande casa, lhe deu tal enfermidade, com que se viu impossibilitado este seu heróico desejo.

Então se embarcou para Espanha, com esperança de tornar à santa obra; mas sobresaltado de uma grande tormenta, foi aportar à Itália, onde foi recebido; e achando-se em um Capítulo Geral, que cada ano se costumava fazer, alcançou de um Fr. Graciano, que, assim doente como estava, o levasse à província de Romandiola em Itália, a um Mosteiro da sua Ordem, em que viveu algum tempo vida solitária e santa, era uma cela apartada das outras, feita era uma lapa: aqui foi tanta sua abstinência, que quase se não podia pôr em pé, quando vinha tomar refeição com os Frades. Desta maneira o Varão de Deus, não conhecido, cheio de sabedoria, viveu como simples entre os simples; e fora de toda a arrogância, em qualquer sábio mui ordinária, escondeu o lume de tanta graça e eloqüência em seu humilde coração muito tempo com aparência de indouto, até que achando-se acaso em o Mosteiro de Forlivio, em Itália, entre outros muitos Religiosos de várias casas e religiões, que todos iam tomar ordens, foi constrangido a pregar no refeitório, de que todos os Frades presentes se tinham escusado com o caminho. Santo Antônio, obedecendo ao mandado, começou a prática muito espiritual, mas de todo simples e sem arte, nem eloqüência; e nenhum dos presentes esperava mais dele; porque não lhe tinham visto outro sinal de ciência, senão algumas poucas vezes, que falava latim. Mas porque tinha recebida a graça do Altíssimo, e a memória lhe servia de livro, tanto se levantou na pregação em eloqüência de palavras santas e mui doutas, e em profundeza de místicas sentenças, que suspendeu e alumiou o entendimento de todos os presentes, que, como pasmados de cousa não esperada, confessavam, que nunca tal tinham visto, nem em homem humano tal imaginavam; e dali em diante o veneravam como celestial sabedoria. Veio às orelhas de S. Francisco esta nova, e com ela o mandou chamar, e achando nele o que se dizia, o instituiu pregador, e constrangeu, que exercitasse a graça, que de Deus tinha recebido. Neste apostólico exercício prometendo o Santo de si cada dia mais grandezas, e conhecendo S. Francisco serem dons do Céu, ordenou com que fosse o primeiro estudante em Santa Teologia naquela Ordem com Fr. Marisco Inglez, ordenado em um Capítulo Geral, onde aproveitou em poucos dias tanto, que os mestres se espantavam, e em seu louvor diziam maravilhas, das quais provocado S. Francisco, mandou que ensinasse e lesse a Santa Teologia aos seus Frades; e a ele o tinha em tanta estima, que lhe chamava o meu Bispo. Leu Santo Antônio em Montpelier de França, em Bolonha, Pádua de Itália e em outras partes, comunicando sua celestial sabedoria e ciência angélica; é com a vida rigorosa e santa, em que era excelente, começou a ftfzer tais obras, que mais se espantavam da grandeza delas, que do grande número, sendo quase infinito. Porque mandado por Custódio de Limoges, em França, para pregar aos hereges, que naquele tempo perseguiam a Igreja Católica notavelmente, de tal maneira se houve com eles, que com a eloqüência os convencia, e com milagres os confundia; e em uma e outra se fazia maravilhoso ante os olhos de todos. Nesta santa e heróica empresa obrou Deus pelo seu Santo infinitas maravilhas nas províncias de Itália e França, que ora vos não direi, por entender que não estareis sem a notícia delas. Basta saber, que lhe viram o Menino-Jesus nos braços por muitas vezes, e que os peixes fora d’agua ouviram sua pregação, que os homens tinham enjeitado; e que bebeu peçonha de hereges, sem lhe fazer mal, e que pregando a diversas nações, era de todos entendido; e em um mesmo instante era visto em várias partes: e que dele foi o demônio muitas vezes vencido publicamente; e que os Anjos da luz lhe levavam cartas. Enfim, depois de ser ministro de muitas obras da mão da Onipotência, de poucas vistas no mundo, e de muitos chamado Arca de letras sagradas, veio a passar desta vida (dele antes profetizada) em a cidade de Pádua, do senhorão de Veneza em Itália, ano do Senhor, mil duzentos e trinta, de sua idade trinta e seis: quinze em casa de seu Pai, dous no Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa, nove no de Santa Cruz de Coimbra, e na Ordem dos Menores mais de dez anos, cheios de admirável doutrina, virtudes e milagres.

Morto Santo Antônio, e continuando Deus por ele as obras, que fizera na vida, o povo de Pádua e de muitas outras cidades vizinhas, de comum sentimento movidas, pediram ao Papa canonizasse o Santo, de quem tantos bens tinham recebido. Para isto se fez larga prova dos milagres, que em menos de um ano tinha feito; depois de seu trânsito achou-se, que subitamente dera saúde a muitas pessoas tolhidas de várias enfermidades, em diversas vezes; cinco paralíticos, cinco corcovados mui feiamente, seis cegos alumiados, três surdos, seis mudos, dous curados de epilepsia, e outros muitos de febres e dous mortos resuscitados. Com isto, e com a certeza de sua santa e milagrosa vida, foi de comum consentimento canonizado pelo Papa Gregório IX, onze anos depois que passou desta vida, e ordenou-se, que sua festa se fizesse a 13 de Junho.

Neste mesmo dia, que foi em a cidade Espoleto canonizado, se fez em Lisboa, pátria sua, um súbito alvoroço, tangendo-se por si os mesmos sinos e campas, de que todos estiveram admirados, até que souberam a verdade; com a qual ficaram ensinados a fazer em o tal dia grandes festas, como sempre costumaram, suntuosamente; mas não com mais alvoroço e contentamento, que a cidade de Coimbra, que todos os anos por esse dia arde toda em festas e alegrias, muito para ver e louvar. Os moradores de Pádua, obrigados das mercês que recebiam deste Santo, o tomaram por seu Padroeiro e Defensor, e consagraram o altar-mor da sua Sé em seu nome, e sua festa celebram todos os anos com muita solenidade e sempre acompanhada de milagres. E não satisfeitos os Paduanos, em o ano do Senhor, mil duzentos e cinqüenta e nove, edifícaram um grande e custoso templo em honra e nome de Santo Antônio: e no ano de mil duzentos e setenta e três trasladaram a ele suas Reliquias, ao que o Cardeal S. Boaventura se achou presente e abriu a arca, onde o santo corpo estava havia trinta e dous anos; e achando o corpo já resolvido, a língua estava ainda inteira e fresca, com sua cor, como se fora viva, a qual, depois de várias mudanças, que a devoção dos homens causou, está hoje em um rico sacrário transparente, em que se mostra inteira e fresca aos devotos e peregrinos.

Depois de canonizado, resuscitou um seu sobrinho em Lisboa, e mais outras quinze pessoas em diversas partes. E entre os infinitos milagres, que dele se celebram, contarei um notável e gracioso. Uns hereges, por escarnecerem dos milagres de Santo Antônio e da fé, que o povo nele tinha, se foram à sua sepultura, um deles com um pano ensangüentado posto nos olhos, dizendo, que àquela hora lhe foram arrancados à força, e rogaram ao povo lhe alcançasse do Santo saúde. O zombador e ministro desta danada obra começou logo a gritar, e tirando o pano, acharam-lhe os olhos arrancados e pegados nele, com admiração dos católicos, e tanta confusão dos hereges, que convencidos confessaram sua maldade, e reduzidos à fé, alcançaram do Santo saúde ao companheiro, e emendaram a vida. Além de todas estas grandezas, tem-se por averiguado, que não há pessoa em toda a Cristandade, que deste Santo não tenha alguma mercê miraculosa.

E na cidade de Padua é tão venerado, que estando nela outros corpos de Santos, só a este por excelência chamam o Santo, e logo se entende Santo Antônio. E sua sepultura lança de si tão suave cheiro, que parece cousa do Céu: e tem-se averiguado por larga e exquisita experiência, que nenhum judeu, nem infiel sente aquele cheiro, só aos católicos suavíssimo; e ainda que se cheguem perto, não alcançam a celestial suavidade. E pessoa deste Reino, e nele de muita autoridade em virtude e nobreza, fez experimentar esta maravilha com muito cuidado e prudência, e achou-se tão verdadeira, que me deram ousadia para a publicar neste registro de heróicas obras.

 

Sancho 2.° (o Capelo) 4.° rei.

 

Subiu D. Sancho II ao trono Português, no ano de 1223, e bem que ainda muito moço, não quis desmentir o carácter de seus predecessores. Continuando a guerra contra os infiéis, pôde com a perseverança de suas armas, tomar muitas praças, que estavam em poder deles.

A sua conduta severa, ou antes a sua indisposição contra os eclesiásticos, fez que Inocêncio IV o depusesse do trono, e chamasse a seu irmão D. Afonso, Conde de Bolonha, que por esse tempo estava em França.

Vendo-se assim destronado, e seu irmão no governo do reino, dirigiu-se a seu primo El-Rei D. Fernando de Castela, para que o ajudasse, certo de que por sua morte (segundo escreve Acenheiro) lhe ficaria o reino; ao que anuiu o rei, mandando a frente de muitos combatentes D. Afonso de Molina, irmão de seu pai, para o restituir ao trono; porém decretais Pontifícias intimidando aos generais Castelhanos, dessuadiu a D. Sancho de sua pretenção, e se retirou a Toledo, onde morreu de desgostos, a 4 de Janeiro de 1248, com 25 anos de reinado.

Bem que no trono D. Afonso, alguns senhores de Vilas acasteladas, não o quiseram reconhecer como legítimo soberano, e para o que foi mister empregar a força, sendo entre eles o mais celebrado Martim de Freitas, que governava o Castelo de Coimbra.

 

Homens notáveis no reinado de D. Sancho 2.°

 

Martim de Freitas.
Fernão Rodrigues Pacheco.
D. João, Arcebispo de Braga, que representou ao Papa Inocêncio IV contra El-Rei D. Sancho, mostrando a sua incapacidade para o governo.
Martim Gil.

 

Fidelidade de Martim de Freitas.

 

Continuavam os sucessores de Afonso Henriques a seguir os planos e intentos de seu predecessor, libertando o reino dos poderes dos Mouros e dos Espanhóis, mas o desagrado em que incorreu D. Sancho II, deu motivo a ser deposto do trono, e substituído por D. Afonso III.

Martim de Freitas, defendia então a cidade de Coimbra, altamente cercada pelo Conde de Bolonha; e nem promessas nem ameaças foram capazes de abalar os seus princípios de fidelidade a D. Sancho II, que então se havia refugiado em Toledo, e, apenas morto, apresentou-se àquele Martim de Freitas, um enviado do Conde de Bolonha, exigindo a entrega do Castelo; mas ele, pedindo alguma demora para decidir-se a tal exigência, marchou para Toledo, e depois de fazer abrir o túmulo de D. Sancho, beijou-lhe a mão, depositou sobre ele as chaves da Cidade e Castelo, e retirando-se ao acampamento de Coimbra, declarou ao novo monarca tomasse conta da Cidade e Castelo, visto ser o Rei pela morte de D. Sancho. Foi Martim de Freitas prazenteiramente acolhido pelo novo monarca, mas recusou continuar no comando do Castelo e Cidade, que se lhe oferecia, declarando que lançaria a maldição a seus filhos, se recebessem o Castelo com homenagem, e por ter estado sua fé em bastante risco de ser quebrada.

 

Valor de Martim de Freitas descrito pelo cronista Rui de Pina, em sua própria e antiga linguagem.

 

Ho Conde como chegou ha Coimbra antes de fazer grãdes aparelhos para ho cerco, e cõbates mandou dizer ha Dom Martim de Freytas: «Que lhe entregasse ha Cidade, e ho Castelo, como por muitas vezes jaa lhe mãdar a requerer, e por esso lhe faria muita mercee, por que se ho assi nom fizesse, que ho combateria, e ho cobraria tudo com sua perda, e dano.» E Dom Martim de Freytas lhe respondeo: «Que sua mercee poderia comprir sua vontade, e fazer ho que quizesse. porém que fosse certo, que em quanto soubesse, que El-Rey Dom Sancho seu Rei, e Senhor, era vivo, que lho nom entregaria seem seu mandado, ou sabeendo, que era morto, e que ho nom ameaçasse com morte, nem perigos, porque tudo padeceria com boom coraçam por inteyramente comprir com sua lealdade.» Polo quaal ho Conde assentou seu cerco sobre ho Castelo, e ordenou seus combates, com que logo, e depois ho combateu muitas vezes, em que de huma parte, e da outra ouve mortos e feridos.

Mas ho Alcayde, e hos que por sua defençam comsigo tinha eram taaes, que hos cometimentos do Conde não aproveytavam pera cobrar ho Castelo por força, da quaal cauza anojado ho Conde fez juramento ha Deos de nunca se alevantar de sobre elle atee ho tomar por força, ou por fome, e assi ho fez porque ho cerco, foy tam porlongado, que hos de dentro por falecimento dágoa, e de provizões, que jaa nom tinham, como desesperados comiam, e bebiam couzas muy contrayras, e descostumadas da natureza humana, que nom ficaram bestas, caães, gatos vivos, nem hos couros das alimarias mortas. E sendo ho Conde desto certificado hos mandava afrontar, e requerer cada dia: «Que sedessem, e nom padecessem sem cauza, e por contumacia tam asperas cruezas, que ha sua taal façanha era vaã, que nom podia, nem devia levar aho diante».

Aho que Dom Martim de Freytas por sua honra, e fama nom queria obedecer, e dice, que durando, este cerco, padecendo jaa de dentro grande, e mortaal necessidade de sede, que porque viram hum Cavallyro do Conde cavalgado polo rio do Mondego passar, e que ho cavalo de farto nom provou agoa, e que hos de dentro magoados por sua mingoa, e envejosos da deemaventurança da alimaria, fizeram sobresso grandes lamentações, com que alguuns, parentes, e amigos do Alcayde lhe aconcelhavam: «Que pois hos padecimentos incomportaveis que sofriam sem esperança de ajuda, nem socorro, estranho eram taaes, que jaa se nom podiaõ comportar, e elle no Regno era soo ho que sostinha taal profia, que por dar ha ell, e ahos seus has vidas, dèsse ho Castelo aho Conde».

Dom Martim de Freytas lhes respondeu: «Parentes, e meus amigos, que aqui estaaes, nunca Deos queyra, que obedecendo ha esse vosso concelho eu ponha tam grande magoa sobre minha limpeza, nem consinta tamanha traição sobre minha honra, e leaaldade, nas quaaes todas encorreria se désse este Castelo senom aque por minha menagem mo deu, em quanto elle for vivo, e ami nom fica por ver, e conhecer craramente has grandes tribulações que voos, e eu, e todos aqui padecemos, mas se voos quiserdes trazer ha vossas memorias, e poer ante estas vossas necessidades outras muito mayores fomes, e maales, que muitos sendo cercados jaa padeceram, achareis que por manterem suas leaaldades depois que todalas couzas lhe faleciam ha comerem has raizes das viz, ervas, se sosteveraõ, polo quaal deste temor, e afronta prazer aa a Deus por sua piedade, que boom nome, e segurança nossa sedo nos livraraa, e em algum tempo vos alegrareis contardes ha vossos filhos, e amigos estes males, que padeceis, com que nom acrecentareis pouco em vosso louvor, e merecimento, e obrigaçam de boondade, e lealdade, que ha outros em semelhantes cazos constrangeo, essa cazo nosso nos nom desobriga, ca em outra maneyra has vidas, que salvamos, duraram pouco dias, e há infâmia, e deshonra, que por esso recebemos, duraram pera sempre, polo quaal vos rogo, que em quanto poderdes nom me faleçais, e me ajude ca Deos nos acorreraa, e este maal prazendo ha elle non durar aa muito, e por ventura se algum de voos pera seu serviço, ou pera outra sua deleytaçam tiverem dezejos de melhores dizeymo, que aqui estaa minha filha, que hee booa donzela, e que muito amo ha que eu mandarey, que era indo vos sirva de booamente, porque com melhor vontade consentirey, e menos medoeraa, que ela perca ha vertude de sua virgindade, que por mingoa de voos outros, perder eu minha leaaldade, e seer constrangido ha fazer tamanha trayçam, como seria daar como nom devo este Castelo ha quem mo nom deu».

Com estas palavras, que Dom Martim de Freytas dice, ficaram todos muito maravilhados, e louvando muito sua boondade, se esforçaram, e lhe prometeram, que ora fosse com rezam, ou sem ela, eles por satisfazer ha seu dezejo por algum cazo, e afronta, que sobreviesse, ho nom leyxariam, antes todos morreriam primeyro com ele.

Estando Dom Martim de Freytas nesta afronta com ElRei, e avendo jaa hum ano, e quatro mezes, que El-Rei Dom Sancho fora pera Castela, prouve ha Deos de ho levar deste mundo e falleceo em Toledo, como adiante direy, e sendo de sua morte certificado ho Conde seu irmaão, tendo ainda ho cerco sobre Coimbra, como Principe em que avia muita prudencia, e grande piedade, mandou logo ajuntar muyto paõ, e vinho, e carnes, e pescados, e ourras maneyras de refrescos, e mandou levar tudo aho Castello, enviando dizer aho Alcayde: «Que fosse certo, que ElRei Dom Sancho seu irmaão era jáa falecido, e que lhe daria tempo, em que por elle em pessoa, ou por outrem, podesse aver desso verdadeyra certidam, cõ ha quaal entregasse ho Castello.

Dom Martim escolheo certificarse por sy mesmo. E ho Conde ho segurou da hyda, e estada, e seer livre atee tornar aho dito Castello, que entaõ se nom combateria. Dom Martim de Freytas chegou ha Toledo, e como quer que por muito fosse sertificado da morte delRei Dom Sancho, que no Moymento, que mostraram ho viram sepultar, elle ho nom quiz crer, mas por moor certeza fez tirar ha campa, que ho cobria, e como ho vio, e achou que em certo era aquello, se diz, que prezente muitas testemunhas, que trouxe por comprir com sua menagem poz has chaves do Castell o de Coimbra, que levava, no proprio braço direyto delRei Dom Sancho, e depois de lhe fazer por ellas entrega do dito Castello lhas tirou, o trouxe comsigo ha Portugal, e desso tomou escritturas pubricas, e fez cerrar ho Moymento, e se tornou ha Coimbra, e dentro entrou secretamente no Castello, e aho outro dia mandou logo dizer aho Conde, que ho fosse receber, porque jaa lho podia entregar, e lhe devia obedecer: e que ha ele, e nom ha outro algum ho entregaria com booa vontade.

Ho Conde foy logo aho Castello, e ho Alcayde abrio logo has portas delle, e tomou ha molher, e ha filha, e has poz fora dizendo: «Deyxemos este Castello ha cujo hee». E com esso se poz de joelhos diante ho Conde, e com has chaves delles nas maãos alevantadas lhe dice: «Senhor, pois ha Deos prouve que ElRei Dom Sancho, vosso irmaão falecesse tomay vossas chaves, e vosso Castello, e daqui por diante eu vos servirey, e averey por Rey, e Senhor». E logo amostrou aho Conde, e aa nobre gente que era com elle has escrituras das deligencias, que em Toledo por sua honra, e descargo fizera, e acertouse, que hum Cavalleyro do Conde, que era prezente dice ha Dom Martim de Freytas: «Que porque nom pedia perdam aho Conde, por quanto nojo, e des serviço lhe fizera, e por lhe ferir, e matar tanta gente, denegandolhe tanto tempo ha entrega, e obediência do Castello, que era seu.

E Dom Martim em se querendo escuzar pera nom dever de pedir taal perdam, acudiu muy prestes ho Conde, e dice aho fidalgo, que ho reprendia: «Que semilhante perdão em taal cazo Dom Martim nom era obrigado de pedir, porque elle nom fizera erro, mas tinha feyta booa façanha dina de boom Cavalleyro, e leaal fidalgo». E por ela lhe tornava ha dar ho dito Castello pera elle, e pera todos hos que delle decendessem, fazendo menagem ha elle, e ha todos seus erdeyros. E Dom Martim lhe respondeu: «Que lho tinha muito em mercee; e mas que elle por alguma maneyra, nom tomaria ho dito Castello, antes lançava maldiçam ha seus filhos, e netos, e ha todolos, que dele descendessem atee ho quarto graao se por Castello fizessem menagem ha Rei, nem ha outra pessoa de quaalquer condiçam, que fosse.

E com este assi concertado ho Conde leyxou ho Castello de Coimbra, como devia, e se tornou outra vez ha Celorico, onde Dom Fernam Rodrigues estava, & porque da morte delRei Dom Sancho, era jaa beem certificado, e assi sabia, que o Castello de Coimbra jaa era entregue, deu logo aho Conde ho Castello seem mais resistencia, nem cautella. Estes dous foram hos derradeyros Castellos de Portugal, que aho Conde obedecéraõ.

     Qual Gênio, ó musas! inspirou sublime
Um novo pensamento d’honra e brio
Ao grande herói da lusitania gente,
     Que inda hoje ouvido assombra
     A pátria Elísia, e o mundo?
     Mui leais a seu rei os nobres Lusos,
Sem as armas depor, sem dormir sonos,
Velando no espigão do muro firmes
     Desse aspérrimo cerco
     Feros combates sofrem.

     Tu, claro Monda, os duros males viste:
Curvados anciões, sagrados vates,
Cândidas virgens, pávidos infantes
     No regaço da fome
     Morriam cruas mortes.(24)
     Juncada de cadáveres a praça,
Faltava pia terra, que os cobrisse,
Faltava pira funeral ardente,
     Que em chamas devorasse
     Os insepultos corpos.

     Poucos varões, que restam, só lamentam
De não morrerem na campina rasa,
Em cheio guerreando, não fraternas
     Hostes, mas tropa imiga
     De estranha gente e reino.
     Assim os deuses sem piedade os Lusos,
Entre apertos de morte, ou d’honra, deixam;
Porém constante e forte em tais extremos
     Não cede aos duros astros
     O valoroso Freitas.(25)

     Nem sede ou fome, ou bárbaro trabalho,
Nem fatal risco, nem funesto núncio
Da morte de seu rei, o faz descer-se
     D’altas tenções fidalgas
     De peito excelso e firme.
     Sustenta a voz por Sancho; não consente
Mingua em seu nome, que a algum outro ceda
Esse castelo, por que fez menagem,
     Té que vejam seus olhos
     Do rei defunto o corpo.

     Este o pacto: por entre armadas filas
D’esse atônito conde; com semblante,
Qual o de Jove quando desce o Olimpo,
     Já parte o herói sublime,
     Maior do que os seus fados.
     Entra em Toledo; abre a fria campa;
Seu rei vê morto; o régio corpo adora;
Põe-lhe as chaves na mão, e desobriga
     Mais puro que as estrelas,
     Sua palavra d’honra.

     «Guardei-te, ó rei, a fé!» (disse medonho
Com voz que o peito a todos estremece)
E vêm mais majestoso, do que fora,
     Entregar do castelo
     Ao novo herdeiro as chaves.
     Espanta-se do feito o bravo Afonso,(26)
Não visto d’antes; e invejando a Freitas
A glória, com que vêm; por tão formosa
     A ação trocar quisera
     O novo cetro augusto.
A. R. DOS SANTOS.

 

Acontecimento singular entre dous Cavaleiros Portugueses.

 

Em 1245 debaixo do reinado de D. Sancho II, Martim Gil foi nomeado general do exército para atacar os inimigos, cujo chefe, Rodrigo Sanches, filho natural de D. Sancho I, morreu neste combate. Foi no calor da ação, que Rodrigo de Abreu, um dos cavaleiros do exército Real, encontrou no meio do conflito Rodrigo Fafes, homem tão distinto por seu nascimento como por seu valor. Este, que havia perdido o seu cavalo, rogou a Abreu lhe quisesse dar aquele em que montava. Supunha que Abreu moço, e vigoroso jamais lh’o recusaria; mas este amava D. Mencia, filha de Fafes, e até aquele dia, jamais tinha concebido a esperança que este Senhor quisesse conceder-lh’a. Assim, respondeu a Fabes: «O meu cavalo é vosso, mas debaixo de uma condição; que me nomeareis esposo de vossa filha, sem a qual não me agrada o existir.» Ela é vossa, respondeu Fafes impaciente de combater ainda, e para logo montando-se a cavalo se arrojou por entre os inimigos. Abreu que havia obtido por uma espécie de subterfúgio aquela que adorava, quis pelo menos manifestar que ele tinha merecido igual ventura. Ainda que a pé combateu com excessiva coragem; e Fafes confessou que ele teria merecido sua filha por suas belas ações, ainda mesmo que não tivesse aproveitado o favorável momento de lhe fazer conferir a sua permissão.

 

Anedota relativa ao cerco de Celorico.

 

D. Afonso, Regente de Portugal, tendo sido depois, p(el)a retirada de EI-Rei D. Sancho II para a Espanha, reconhecido por quase todo o reino, houveram contudo alguns governadores de praças que hesitaram. Deste número foi Fernão Rodrigues Pacheco, alcaiade-mor de Celorico e comandante do Castelo. Cercado por D. Afonso, começavam-lhe a faltar viveres, e os seus soldados instavam que se rendesse, quando uma ave de rapina deixou por acaso cair das suas garras uma truta, no momento em que passava por cirna do castelo. Pacheco concebeu a idéia de que a truta lhe poderia talvez servir de grande utilidade. Ele a enviou ao Regente, o qual persuadido que os sitiadores se achavam em abundância, levantou o cerco e se foi acampar diante de Coimbra. Celorico tem tido por armas, depois daquele tempo, um pássaro de presa que se assemelha a águia.

(Extraído).

 

D’El-Rei D. Afonso III do nome, que chamam Conde de Bolonha, e de muitas cousas notáveis de seu tempo
(segundo Pedro de Mariz).

 

Porque não ficaram filhos a El-Rei D. Sancho, que no reino lhe sucedessem, foi por concórdia, e consentimento de todos os Portugueses e autoridades do Sumo Pontífice, levantado por Rei o Conde de Bolonha D. Afonso, que governava o reino, e foi o terceiro do nome dos Reis dele, por ser imediato sucessor, e mais propinquo herdeiro d’El-Rei seu irmão. Mas porque a Condessa de Bolonha Madama Matildes, com quem El-Rei era casado, quando veio a governar Portugal, era de tanta idade, que não podia dela esperar filhos: depois que se viu posto na dignidade Real, desejando acrescentar seu estado, e ter quem nele lhe sucedesse, e conformando-se com a opinião daqueles, que só o reinar acham suficiente causa, para as, leis justas se violarem, deixou o primeiro matrimônio, e casou-a segunda vez com D. Beatriz, filha bastarda d’El-Rei D. Afonso, o décimo de Castela, que chamaram o Sábio, e de D. Maria Guilherme de Gusmão, mui formosa dama Castelhana, filha de D. Pedro de Gusmão: com o mais rico e avantajado dote que até aquele tempo se viu em Espanha. Pelo qual dizem, que a Condessa sua primeira mulher, que em França ficara governando o seu condado de Bolonha, depois que lhe não aproveitaram as muitas diligências, que fez, para alcançar a vontade d’El-Rei seu marido, por meio d’El-Rei S. Luiz de França, seu parente, e de outros muitos Senhores da Casa Real, seus parentes e amigos, se queixou ao Papa Alexandre IV da sem justiça que El-Rei lhe fazia. O qual depois de processado legitimamente e bem consultado o negócio, julgou por sentença, que da segunda mulher se apartasse e ficasse com a primeira. E porque sendo-lhe notificada a sentença, não quis obedecer a este mandado, procedeu o Papa contra ele com censuras eclesiásticas, pondo geral interdito em todo o Reino de Portugal, que por sua contumácia (em se não querer apartar da Rainha D. Beatriz, sua segunda mulher) durou nele doze anos, que foram os que a Condessa Matildes depois disto viveu. Por cuja morte, ficando El-Rei desembaraçado deste impedimento, também logo foi livre das censuras eclesiásticas, que o seu reino tinham muito afligido, e a Rainha D. Beatriz havia por sua legítima mulher e os filhos, que já dela tinha, por legítimos por dispensação Apostólica, que o Papa Clemente IV lhe concedeu liberalmente a rogo e petição dos Prelados e Nobres de Portugal. Por este casamento se ajuntaram à coroa deste reino muitas Vilas e Fortalezas, na Província de Alentejo e o Reino dos Algarves, que foi dado a este Rei com todas as terras, que El-Rei seu sogro nele tinha e que pudesse conquistar as mais, que ainda os Mouros possuíam. Com tal condição, que ele e seus descendentes servissem a El-Rei seu sogro em sua vida, somente com cinquenta de cavalo, todas as vezes que para isso fossem requeridos. Mas desta homenagem, e obrigação foi El-Rei livre daí a poucos anos por intercessão de seu filho o Infante Dom Diniz, a quem El-Rei seu Avô fez esta, e outras mercês, quando em idade de oito anos o foi visitar a Castela, posto que contra vontade dos Grandes daquele Reino. Mas a liberdade d’El-Rei, e o muito, que queria a esta sua filha (que as Histórias de Espanha muito engrandecem) valeram nesta parle mais, que todas as contradições de seus vassalos: ficando El-Rei de Portugal, e seus descendentes livre, e absolutos senhores de todo o Reino dos Algarves.

E além disto lhe fez doação em Castela da Vila de Niebla, com todas as Vilas, e Castelos, e Comarcas, que lhe pertenciam, a que chamavam Reino; e na Província, que ora chamamos Além-Tejo, lhe fez também doação das Vilas Serpa, Moura, Mourão, e Moudar, sobre que depois houve muitas diferenças. E moveu-se este Rei Dom Afonso de Castela fazer esta liberalidade a Portugal em gratificação das grandes ajudas de dinheiro, e gente, com que a Rainha sua filha o favoreceu em todo o tempo, que ele foi maltratado, e perseguido de seu filho Dom Sancho, que com outros, ao seu ânimo conformes, se levantou contra ele, e o desapossaram da maior parte de seus Reinos, e constrangeram a viver em tanta miséria, que se a Rainha de Portugal, sua filha, depois de viúva, senão fora a Sevilha acompanhá-lo em tanta tributação com muito dinheiro, e todas suas jóias, sempre morrera miseravelmente. Mas com isto, e com trezentos homens de cavalo Portugueses, que El-Rei seu genro lhe mandou, pagos à sua custa por muito tempo, pôde este Rei resistir aos rebeldes; e alcançando deles algumas vitórias, segurar sua vida, que eles procuraram chegar ao último fim.

Mas porque neste Reino do Algarve, quando lh’o deram havia ainda muitas fortalezas pelo Mouros possuídas, El-Rei Dom Afonso, a quem a ociosidade não aprazia, ajuntou muita gente de armas, e levando em sua companhia o Mestre de Avis, e Dom Paio Corrêa, de nação Português, Mestre da Ordem de Santiago em Castela, homem de muita fama, e grande casa, e muito esforçado Capitão, e que a Cidade Sylves em nove de Janeiro de mil duzentos e quarenta e dous, e outras principais fortalezas dos Algarves tinha já conquistado, quando em serviço d’El-Rei de Castela andava. Com esta companhia começou o nosso Rei sua conquista com tanto favor de Deus, valentia de seus Capitães, e soldados, que em breve tempo (mas não sem grande resistência) se fez senhor da Vila de Faro em o mês de Janeiro de mil duzentos e setenta, hoje já honrada com o título de Cidade; e das Vilas de Loulé, e Albufeira, e outras muitas, lançando por força d’armas os Mouros de todo fora daquele Reino. Pelo qual não somente ajuntou este novo Reino à sua Coroa, e Título; mas também acrescentou em o seu Escudo das Quinas a Orla, que o cerca, do castelos de ouro em campo vermelho, que eram as Armas daquele Reino, e seu novo senhorio na Coroa de Portugal significam.

Na conquista destes lugares, e Reino do Algarve, aconteceu um caso estranho, e digno de memória. Um Garcia Rodrigues Português, no ofício mercador, e no ânimo cavaleiro, e nobre, com quem o Mestre Dom Paio Corrêa nesta conquista se aconselhava, vindo de Faro para Tavila com suas mercadorias, como muitas vezes costumava, soube, que certos Cristãos, Cavaleiros do Mestre, estavam em meio daquela terra cercados de grandíssimo número de Mouros, que com grande crueldade lhe procuravam a morte. Seguiu o mercador o rasto, até que chegou à vista deles: então conhecendo, que os Cristãos não eram mais que seis, e não podiam escapar do grande número dos inimigos, que com muita fereza, e barbaria os combatiam, foi-se aos homens, que traziam a récua das mercadorias, e lhes disse, que se fossem com ela, e entre si as repartissem igualmente, que ele ia morrer com aqueles Cristãos, que em tanto aperto estavam, e que, se ele vivesse, não lhe faltaria de que se sustentasse. Foram-se os criados para suas terras, e o ilustre mercador para onde os cercados Cristãos estavam; e com sua presença, e ajuda não esperada cobraram de novo ânimo para vingarem bem suas mortes, que os Mouros lhe não dilataram muito. Ainda que logo foram eles, e outros da mesma terra bem castigados pelo Mestre, que vindo tarde ao socorro destes, mandou, que a nenhum Mouro, que achassem, dessem vida; que foi logo feito animosamente, e com notável estrago de toda aquela terra, que por estar então de paz com o Mestre, puderam fazer aquela crueldade, e depois de serem também castigados.

 

Homens notáveis do reinado de D. Afonso 3.°
(D. Paio Corrêa).

 

Entrou depois de Sancho a governar
O Reino, D. Afonso, o Bolonhês
Censuras não fizeram moderar
A teima do monarca Português.
Nas terras Algárvias viu brilhar
A D. Paio Corrêa; e desta vez
Aquele reino fica desprendido
Do jugo mauritano aborrecido.
(SILVA)

 

O mais saliente cavaleiro do reinado de D. Afonso III, foi sem contestação, como afirmam os cronistas Cristovão Rodrigues Acenheiro e particularmente Rui de Pina descrevendo o valor e esforços deste ínclito varão, que D. Afonso no governo de Portugal, intentou a conquista do Algarve, que já tinha invadido pelas armas Portuguesas em tempos passados.

D. Paio Peres Corrêa, ajudado de Garcia Anes, e de outros cavaleiros tomou a cidade de Faro, que governava Abem Barah, e capitulando o Mouro, passou a ser governada pelo Português Estevão Pires. D. Paio Corrêa, em seguida ajudado de D. Lourenço Afonso, tomou Albafeira, Loulé e Algessur.

Nestas expedições militares muito se distinguiram o alferes-mor João Afonso, D. Afonso Teles, D. Gonçalo Teles de Belmir, D. Mem Paes, D. Fernando Garcia, Álvaro Garcia, Beltram de Caya Duram Vaz, Mem do Vale e Pedro Rodrigues

 

D. Diniz (o Lavrador) 6.º rei.

 

Eis depois vem Diniz, que bem parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,
Com quem a fama grande se escurece
Da liberalidade Alexandrina.
Com este o reino próspero floresce
(Alcançada já a paz áurea divina)
Em constituições, leis e costumes,
Na terra já tranqüila claros lumes.

Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E de Helicona as musas fez passar-se
A pisar do Mondego a fértil erva.
Quanto pode de Atenas desejar-se,
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva:
Aqui as capelas dá tecidas do ouro,
Do bácaro, e do sempre verde louro.

Nobres vilas de novo edificou,
Fortalezas, castelos mui seguros;
E quase o reino todo reformou
Com edifícios grandes, e altos muros.
Mas, depois que a dura Atropos cortou
O fio de seus dias já maduros,
Ficou-lhe o filho pouco obediente
Quarto Afonso, mas forte e excelente.
(Camões)

 

Morto Afonso, Diniz I lhe sucede pelos anos de 1279, no trono de Portugal. Seu gênio pacífico em vez de armas, entregou-se a outros cuidados de grande valia e apreço. As ciências e artes, as letras e a poesia foram principalmente os objetos dos seus desvelos e favores, e por isso, desejando o seu mor incremento, fundou a célebre Universidade de Coimbra sobre os alicerces da antiga. Passando uma mocidade feliz, no meio de um povo, que o idolatrava, e mui amado de uma esposa virtuosa (Izabel de Aragão), teve por fim de experimentar algumas perturbações, devidas às imprudências de um filho, que lhe sucedeu com o título de Afonso IV.

 

Incremento que D. Diniz deu a Portugal.

 

D. Diniz, foi Monarca amantíssimo de seus vassalos, Pio, Liberal, e Pai da Pátria. Instituiu D. Diniz a Universidade de Coimbra, a Militar Ordem de Cristo, etc. Entre as Cidades, que fez engrandecer, são nomeadas: Braga, Porto, Miranda, Guimarães, Vila Real, Óbidos, etc, além de 44 Vilas pequenas que, ou fundou, ou ampliou.

 

Liberalidade de D. Diniz.

 

As liberalidades de D. Diniz foram: não vexar seus povos com impostos novos, e fora do Reino, indo ele a Badajoz, visitar a D. Fernando de Castela, lhe deu cinqüenta e cinco mil cruzados de ouro, e uma copa de onze mil e tantos cruzados. O mesmo Rei, indo à Aragão, deu vinte mil doblas gratuitas ao Rei d’aquela Coroa, e fez outros grandes donativos a Reis e a Fidalgos. Em toda esta viagem comeu El-Rei à sua custa sempre, por não vexar aos Espanhóis. Mil Fidalgos com suas equipagens o acompanharam então; e os Prelados seguintes: D. Giraldo Martins de Soalhães, Bispo de Lisboa; D. GiraldoDomingues, Bispo do Porto; e o Abade de Alcobaça D. Pedro Nunes, Capelão Mor. (Mon. Lus. P. VI, Liv. VIII, Cap. XI). Sucedeu esta jornada em 1304.

 

Homens notáveis no reinado de D. Diniz.

 

Martim Gil de Sousa.
D. Gonçalo Pereira, Bispo de Lisboa, o pai de
D. Fr. Álvaro Gonçalves Pereira, que foi pai de Nuno Álvares Pereira.
D. João Simão.
Fernão Rodrigues Redondo.
Martim Gonçalves de Sousa.
Mem Rodrigues de Vasconcelos.
Santa Izabel Rainha de Portugal, mulher de D. Diniz.

Esta preclaríssima mulher, tinha uma aversão extrema (diz o Padre Sarmento), a todas as Canções profanas, e era lugar delas aprendeu de memória todos os Hinos, de que usa a Igreja para louvar a Deus. Desprezava o luxo das galas e modas, que tanto são apetecidas pelas pessoas do seu sexo, e qualidade. Era também inimiga dos jogos, e outros inúteis divertimentos; e o tempo que as outras perdem em vaidades, visitas, e bagatelas, empregava a Santa em vários exercidos de caridade, e devoção.

Todos estes preciosos dotes levou Izabel ao estado do Matrimônio (a que foi obrigada por seus Pais, apenas chegou a cumprir doze anos de idade), porque a mudança de estado nada lhe alterou os costumes. D. Diniz Rei de Portugal lhe foi dado por Marido. E suposto, que o que ele procurava era mais a formosura do corpo e nobreza do sentimento, do que a virtude do espírito; contudo, não lhe pôs impedimento algum para poder continuar os seus espirituais exercícios.

Valendo-se pois desta liberdade a virtuosa Rainha, observa em Palácio uma forma de vida mui semelhante à das mais exatas Religiosas, para cujo efeito ordenou um método, que lhe ocupava todo o tempo, distribuindo as horas, e exercícios por conselho, e disposição de Diretores prudentes, de modo que nada fosse incompatível com o seu estado, nem causasse aos outros algum incômodo.

Levantava-se de manhã cedo: e depois de algumas orações vocais, que recitava com grande fervor, passava algum tempo na meditação das Verdades eternas. Rezava depois Matinas, Laudes, e Prima do Ofício divino, antes de assistir ao Santo Sacrifício da Missa, no qual freqüentemente comungava, procurando com este celeste alimento adquirir bastantes forças para o exercício das virtudes.

Todas as outras horas do dia ela santamente as ocupava em atender ao bom regulamento dos seus cuidados domésticos, ou em satisfazer os deveres do próprio estado, em que era fidelíssima, ou em ler a sagrada Escritura, ou por outros livros de piedade, ou finalmente em algum trabalho de mãos, para nunca estar ociosa.

E por mais razões que lhe propunham para a induzir à prática de uma vida menos austera, e conformar-se em tudo aos costumes do século, ela respondia sempre: «Que Jesus Cristo, Suprema Verdade, não se chamava Costume». E quando por outra parte lhe representavam, que aquele seu teor de vida não convinha à qualidade de Rainha, ela respondia: «Que a mortificação no Trono é tanto mais necessária, quanto ali as paixões são mais fortes, e os perigos maiores, e mais freqüentes.»

Além dos jejuns, prescritos pela Igreja, ela observava três cada semana: o Advento todo inteiro: desde o dia de S. João Batista até o da Assunção da Senhora, e passados poucos dias começava outra Quresma até o dia de S. Miguel. E nos dias, em que não jejuava, observava uma estreita parcimônia, tanto no comer, como no beber, a fim de ter sempre o espírito bem disposto para a meditação das cousas divinas.

A caridade para com os pobres foi uma das suas principais virtudes; e costumava dizer, que Deus a elevara ao Trono para poder dar maiores esmolas. E por isso procurava ter notícia das pessoas necessitadas para socorrê-las. E se padeciam enfermidades, algumas vezes as visitava, consolava, e favorecia.

Dotou-a também Deus de um talento particular para reconciliar os ânimos, e pacificar as discórdias. O que logo se ouviu, quando o Duque D. Afonso, irmão de seu Marido, tendo uma grave diferença com este Príncipe sobre a posse de algumas terras, cujo domínio cada um deles pertendia, e estando o Reino por este motivo ameaçado de uma guerra civil, Izabel se interpôs, como mediadora. E para se concluir a paz com presteza, ela, que não tinha apego às cousas visíveis, cedeu espontaneamente ao Duque, por modo de compensação algumas das suas terras.

E renascendo por esta controvérsia uma geral sublevação em Lisboa entre o Povo, e a Nobreza, a tempo que um, e outro partido estavam em termos de medirem as armas; a Santa, montando a cavalo, e metendo-se pelo meio dos dous partidos, com razões, e rogativas, próprias do seu discurso e do seu espírito, sossegou e desfez o tumulto.

Por este amor de Izabel para com a paz, e concórdia dos ânimos, a fim de evitar as ofensas de Deus, se pode bastantemente inferir, quanto haveria de padecer na sua própria casa, achando-se em contínua precisão de ver as desordens de seu Marido! Ela não podendo dissimular as suas dissoluções, já por todos conhecidas, sim lhe locava de tempo em tempo a este respeito; mas sempre sem aspereza, como quem não ignorava, que os lamentos e transportes nesta matéria tanto não emendam aos Maridos, que antes de modo ordinário os fazem mais furiosos.

A sua maior diligência nesta parte era rogar ao Céu pela conversão do real consorte, mostrando-se insensível à sua própria injúria, porque todo o seu pesar consistia na ofensa que se fazia a Deus. E era tal a sua humildade a este respeito, que chegou a cuidar na educação dos filhos ilegítimos d’El Rei, como se fossem seus próprios. E chegaria ainda a mostrar por sinais extremos a benevolência que conservava para com as mães dos mesmos, se não temesse o parecer por este modo, que tacitamente aprovava o seu pecado.

Mas, sem embargo de tanta humildade e prudência, ainda teve a Santa muito que padecer, por causa de um caluniador, que sugeriu e fez crer ao Rei, que ela tinha comércio ilícito com o pajem de que usava para a distribuição das ocultas esmolas que fazia. Era este pajem um mancebo virtuoso, que gostava muito de que a Rainha o empregasse naquelas obras de caridade. E o acusador era outro pajem d’El-Rei, que por diabólica inveja inventou aquela negra calúnia.

Acreditou o Rei facilmente a impostura, medindo pelo seu, o coração da Rainha. E para tomar oculta vingança da imaginada ofensa, um dia, que saiu a passeio até o sítio de Alcântara, dirigiu-se para um forno de cal, e chamando à porta o administrador dele, lhe disse, que no dia seguinte mandaria ali um seu Pajem. E lhe ordenou juntamente, que perguntando ele: «se estava cumprida a ordem d’El-Rei?» isto lhe servisse de sinal para o lançarem logo no forno.

Com efeito, no seguinte dia mandou El-Rei o Pajem da Rainha fazer aquela pergunta no tal forneiro de Alcântara. Mas passando por uma Igreja (que dizem ser a da Freguesia de Santos) quis ouvir uma Missa, segundo o seu louvável costume. E achando uma no Altar, porém já adiantada, resolveu-se ainda ouvir outra inteira.

Entretanto o acusador, que vira partir ao inocente Pajem, e era sabedor da Ordem régia contra ele passada, foi perguntar ao administrador do dito forno se estava já cumprido o que El-Rei mandara? E logo o forneiro, julgando que aquele era o mesmo por El-Rei insinuado, o fez pelos seus sócios lançar no meio do forno, aonde brevemente se reduziu em cinzas.

Chegou pouco depois o Pajem da Rainha, e fazendo a mesma pergunta ao Administrador do forno, lhe respondeu ele: «Podeis dizer à Sua Majestade, que eu já cumpri o que ele ontem me ordenou». Ouvindo isto El-Rei, e reconhecendo naquele sucesso a Mão poderosa de Deus, que punira ao caluniador, e preservara ao inocente; ficou confuso, e juntamente convencido da pureza de Izabel, o que muito contribuiu para ele se resolver a emendar-se nas suas desordens.

Aconteceu ainda outra desgraça, que não causou menor aflição à Santa. Seu filho D. Afonso, já na idade de trinta anos, enganado pelos seus maus Conselheiros, rebelou-se contra El-Rei seu Pai, por cuja causa começou-se a acender uma guerra de conseqüências funestíssimas. Fez D. Izabel quanto pôde para extinguí-la; e além de muitas orações, e penitências de que se valeu para aplacar a ira divina, instou eficazmente ao Filho mostrando-lhe a impiedade, e injustiça de levantar as armas contra o Pai, que lhe dera o ser.

Porém no tempo em que ela assim se portava pelo bem da paz, com sincero coração, foi acusada para com o Rei de favorecer a rebelião do Filho, auxiliando-o secretamente. E logo o Rei, nimiamente fácil em dar crédito às calúnias, privando-a das suas rendas, a fez exterminar para a Vila de Alenquer.

Então muitos Fidalgos, bem persuadidos da sua inocência, e não menos desgostosos da injustiça que se lhe fazia: lhe ofereceram dinheiros e tropas, e ainda algumas praças, em que poderia viver com segurança, e sem alguma dependência. Porém ela, em vez de aceitar aquelas ofertas, exortou aos proponentes a manterem-se firmes e constantes na fidelidade, e obediência, que todo o bom vassalo deve conservar para com o seu Soberano.

Até que por fim, desenganado o Rei, a fez voltar para a côrte, aonde se lhe excusou publicamente, e por atenção sua perdoou ao Infante seu Filho. Aproveitou-se a Santa Rainha desta ocasião favorável, pelo grande amor, que sempre depois lhe mostrou seu Marido, para o confirmar nas suas pias resoluções de proseguir no caminho da salvação; e para atender com ele ao bom governo do Estado, ocupando-se juntamente no exercício das boas obras.

Tendo já este príncipe quarenta e cinco anos de reinado, sobreveio-lhe uma longa e penosa moléstia, que o levou à sepultura: e a Rainha sua consorte, servindo-o com o maior cuidado, e assistência contínua, teve a justa consolação de o ver receber os Sacramentos da Igreja com disposições edificantes, e por último expirar aos seus olhos nos mesmos bons sentimentos.

Mas ainda que a sua dor foi extrema, não foi menor a sua conformidade. E como não tinha apego ao Mundo: logo que se romperam os laços, que nele a retinham, recolheu-se no seu oratório; aonde humildemente prostrada, se ofereceu toda ao Divino Salvador, suplicando-lhe com fervorosa instância, que a recebesse em o número das suas mais humildes servas. E depondo logo as régias galas, cortou-se a si mesma os cabelos, vestiu-se no hábito de Santa Clara, e voltando com este religioso aparato, para onde estava o corpo do Rei defunto, rogou aos Grandes, que ali se achavam, que não a tratassem já como sua Rainha.

E passados alguns dias em jejuns, vigílias e orações, em benefício da alma do Rei, retirou-se para o Mosteiro de Santa Clara, que havia fundado em Coimbra, aonde por sua vontade professaria o religioso instituto; porém as rogativas de várias pessoas pias, e doutas a obrigaram a satisfazer-se com viver só (sem professar) como verdadeira religiosa.

Desde então os seus jejuns eram ainda mais freqüentes, e quase sempre de pão e água. E ocupada toda no exercício das boas obras; os pobres, as viúvas, os órfãos e os presos achavam nela uma mãe caritativa, uma poderosa protetora e uma redentora também os miseráveis cativos, que estavam em poder dos infiéis.

Grassando naquele tempo uma grande fome em Portugal, e particularmente na Cidade de Coimbra, ocorreu a Santa a esta fatal penúria, fazendo vir trigo com abundância de vários países, de maneira que todos confessavam dever-lhe a vida. E tendo ela já feito, depois da morte de seu Marido, uma devota peregrinação até a Igreja de Santiago de Compostela, empreendeu ainda no ano de 1335 uma segunda romaria ao mesmo Templo, por ocasião de novas indulgências. E com efeito a fez a pé, acompanhada somente de duas criadas, com as quais ia mendigando por todas as terras.

Na volta desta viagem soube a Santa, que seu filho D. Afonso, Rei de Portugal, e seu neto D. Afonso, Rei de Castela, estavam em grande discórdia, e já em termos de entrarem em guerra; e como ela recebera do Céu o dom singular de pacificar as dissensões, e introduzir a paz nas famílias, partiu sem demora para reconciliar os dous Reis; porém caindo enferma na Vila de Estremoz, sobre as fronteiras de Castela, reconheceu que estava próximo o fim de sua vida.

Pediu logo o Sagrado Viático, que recebeu com piedade suma, posta de joelhos ao pé do Altar, vestida com o seu hábito ordinário da Terceira Ordem de S. Francisco. E depois de dar graças e exortar ao Rei seu filho, a fazer a paz, e praticar uma vida virtuosa, recebeu a Extrema-Unção, com os mesmos sentimentos de fervor.

E pedindo então que a deixassem só, apareceu-lhe neste retiro a Santíssima Virgem, a quem ela freqüentemente invocava, e a encheu de tantas e tais consolações, que pela grande alegria, que mostrava no seu rosto, dava bem a conhecer o extremo júbilo de que estava gozando o seu espírito, até que, sobre a tarde do dia 4 do mês de Julho do ano de 1336, rendeu a ditosa alma ao seu criador, no sexagésimo quinto ano, da sua idade.

Já na sua vida era chamada Izabel, a Rainha Santa: e muito mais ainda depois de morta. O Rei seu filho fez transportar o seu corpo a Coimbra, aonde com magnificência régia, foi sepultado na Igreja de Santa Clara, como ela queria. E as muitas graças que o Céu concedeu por sua intercessão, fizeram ainda mais célebre o seu nome.

O Papa Leão X, permitiu logo, que se honrasse publicamente a sua memória na cidade de Coimbra. E o Sumo Pontífice Paulo IV, estendeu esta permissão para todo o Reino de Portugal na era de 1612, passados 276 anos, depois de morta a Santa Rainha. O seu corpo se achou todo inteiro, e incorrupto em tempo d’El- Rei D. Pedro II, na solene trasladação, que dele se fez para a magnífica Igreja do novo Mosteiro das Religiosas de Santa Clara, da dita Cidade de Coimbra; tendo já sido canonizada a Santa, pelo Papa Urbano VIII, em 25 de Maio de 1625.

 

D. Afonso 4.° (o Bravo, 7.º Rei).

O Bravo D. Afonso (impaciente
Do governo do pai) lhe sucedeu;
E teima tão sagaz, e impertinente,
Sua fama bem pouco enobreceu

 

Este monarca, de um proceder repreensível, foi mau filho, péssimo pai; porém dizem que, apesar disso, era dotado de um coração flexível. Desde os seus verdes anos, teve a seu lado homens probos, que não lisonjeavam seu altivo gênio; quando subiu ao trono, do mesmo modo encontrou ministros dignos de um Rei, que sabiam ocupar a nobre posição que tinham, chegando um deles em certa ocasião a dizer-lhe — que convinha que S. A. se corrigisse senão.... Senão o que? lhe tornou Afonso, com aspereza. — Senão escolheremos outro Rei, que bem nos governe, e melhor saiba cumprir seus deveres. — Afonso, de então para cá, mudou de conduta, e entrando em seus deveres, combateu os sarracenos, e ganhou a famosa batalha do Salado, dada à Espanha, sob o domínio dos infiéis, em 29 de Outubro de 1340, ficando sobre o campo inimigo 200.000 muçulmanos. Quase no fim de seu reinado, por maus conselhos, mandou matar a D. Inês de Castro, mulher legítima do D. Pedro I, que lhe sucedeu na coroa, em 1357.

 

Este sempre as soberbas Castelhanas
Co’o peito desprezou firme e sereno;
Porque não é das forças Lusitanas
Temer poder maior, por mais pequeno.
Mas porém, quando as gentes Mauritanas
A possuir o Hespérico terreno
Entraram pelas terras de Castela,
Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.

Nunca com Semiramis gente tanta
Veio os campos Hidáspicos enchendo;
Nem Átila, que Itália toda espanta,
Chamando-se de Deus açoute horrendo,
Gótica gente trouxe tanta, quanta
Do Sarraceno bárbaro estupendo,
Co’o poder excessivo de Granada,
Foi nos campos Tartéssios ajuntada.

E vendo o Rei sublime Castelhano
A força inexpugnábil, grande e forte,
Temendo mais o fim do povo Hispano,
Já perdido uma vez, que a própria morte;
Pedindo ajuda ao forte Lusitano,
Lhe mandava a caríssima consorte,
Mulher de quem a manda, e filha amada
D’aquele a cujo reino foi mandada.

Entrava a formosíssima Maria
Pelos paternais paços sublimados;
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E seus olhos em lágrimas banhados:
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados:
Diante do pai ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais chorando espalha;

Quantos povos a terra produziu
De África toda, gente fera e estranha,
O grão Rei de Marrocos conduziu,
Para vir possuir a nobre Espanha.
Poder tamanho junto não se viu.
Depois que o salso mar a terra banha;
Trazem ferocidade e furor tanto,
Que a vivos, medo, e a mortos faz espanto!

Aquele que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co’o pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura espada;
E, se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele, e do reino ser privada;
Viúva, e triste, e posta em vida escura,
Sem marido, sem reino, e sem ventura!

Por tanto, ó Rei, de quem com puro medo
O corrente Muluca se congela;
Rompe toda a tardança; acude cedo
À miseranda gente de Castela.
Se esse gesto, que mostras claro e ledo,
De pai o verdadeiro amor assela,
Acude, e corre pai; que se não corres,
Pode ser que não aches quem socorres.

Não de outra sorte a tímida Maria
Falando está, que a triste Vênus, quando
A Júpiter seu pai favor pedia
Para Eneas seu filho navegando;
Que a tanta piedade o comovia,
Que, caído das mãos o raio infando,
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Pesando-lhe do pouco que lhe pede.

Mas já co’os esquadrões da gente armada
Os Eborenses campos vão coalhados;
Lustra co’o sol o arnês, a lança, a espada;
Vão rinchando os cavalos jaezados.
A canora trombeta embandeirada
Os corações à paz acostumados
Vai às fulgentes armas incitando,
Pelas concavidades retumbando.

Entre todos no meio se sublima,
Das insígnias Reais acompanhado,
O valeroso Afonso, que por cima
De todos leva o colo alevantado;
E somente co’o gesto esforça e anima
A qualquer coração amedrontado.
Assi entra nas terras de Castela
Com a filha gentil, Rainha dela.

Juntos os dous Afonsos finalmente
Nos campos de Tarifa, estão defronte
Da grande multidão da cega gente,
Para quem são pequenos campo e monte.
Não há peito tão alto e tão potente,
Que de desconfiança não se afronte,
Em quanto não conheça e claro veja
Que co’o braço dos seus Cristo peleja.

Estão de Agar os netos quase rindo
Do poder dos Cristãos fraco e pequeno.
As terras como suas repartindo
Ante-mão entre o exército Agareno;
Que com título falso possuindo
Estão o famoso nome Sarraceno:
Assi também com falsa conta e nua
À nobre terra alheia chamam sua.

Qual o membrudo e bárbaro Gigante,
Do Rei Saul com causa tão temido,
Vendo o Pastor inerme estar diante
Só de pedras e esforço apercebido;
Com palavras soberbas o arrogante
Despreza o fraco moço mal vestido,
Que rodeando a funda, o desengana
Quanto mais pode a fé, que a força humana.

Dest’arte o Mouro pérfido despreza
O poder dos Cristãos; e não entende
Que está ajudado da alta Fortaleza
A quem o inferno horrífico se rende.
Com ela o Castelhano e com destreza
De Marrocos o Rei comete e ofende;
O Português, que tudo estima em nada,
Se faz temer ao reino de Granada.

Eis as lanças e espadas retiniam
Por cima dos arneses, (bravo estrago !)
Chamam, segundo as leis que ali seguiam,
Uns Mafamede, e os outros Santiago.
Os feridos com grita o céu feriam,
Fazendo de seu sangue bruto lago,
Onde outros meios mortos se afogavam,
Quando do ferro as vidas escapavam.

Com esforço tamanho estrui e mata
O Luso ao Granadil, que em pouco espaço
Totalmente o poder lhe desbarata,
Sem lhe valer defesa ou peito de aço.
De alcançar tal vitória tão barata
Inda não bem contente o forte braço,
Vai ajudar ao bravo Castelhano
Que pelejando está co’o Mauritano.

Já se ia o sol ardente recolhendo
Para a casa de Tétis, e inclinado
Para o Ponente o Véspero trazendo
Estava o claro dia memorado;
Quando o poder do Mouro grande e horrendo
Foi pelos fortes Reis desbaratado
Com tanta mortandade, que a memória
Nunca no mundo viu tão grão vitória.

Não matou a quarta parte o forte Mário
Dos que morreram neste vencimento,
Quando as águas co’o sangue do adversário
Fez beber ao exército sedento;
Nem o Peno, asperríssimo contrário
Do Romano poder de nascimento,
Quando tantos matou da ilustre Roma,
Que alqueires três de anéis dos mortos toma.

E se tu tantas almas só pudeste
Mandar ao reino escuro do Cocito,
Quando a Santa Cidade desfizeste
Do povo pertinaz no antigo rito;
Permissão e vingança foi celeste,
E não força de braço, ó nobre Tito,
Que assi dos Vates foi profetizado,
E depois por JESU certificado.

Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana terra
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra;
O caso triste e digno de memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha,
Que depois de ser morta foi Rainha.
(Camões).

 

A batalha de Salado.

 

A batalha do Salado, é a ação mais memorável do governo de D. Afonso. A ela foi este rei em pessoa, para glória do nome Cristão e Português. Com ele foram segundo La Cled. Supr., pag. 84. D. Gonçalo Pereira, Arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, seu filho, e Prior do Crato, Gil Fernandes de Carvalho, Grão Mestre de S. Tiago, Estevão Gonçalves Leitão, Ruy Gonçalves de Castelo Branco, Lopo Fernandes Pacheco, Gonçalo de Sousa, Gonçalo Corrêa, neto de Paio Peres, Afonso Giraldes, e D. Fernando III, Bispo de Évora, que levava o Signum Crucis famoso, que se venera no Marmelar, junto a Portel. De Évora nos consta, que levou D. Afonso cem Cavaleiros, e mil peões; e por Alferes Gonçalo Pires Carvoeiro; e das outras terras do Reino Tropas muito luzidas, e bem disciplinadas. Ganhou-se esta batalha em 1340, segundo consta da inscrição lapidar, que transcreve o P. Fonseca em sua Evor. Glor. n. 103. E para que a Espanha ficasse segura das invasões Africanas, mandou auxiliar a Armada Espanhola, que cercava a Algezira, por Carlos Peçanha, Eborense, o qual unido aos vasos Castelhanos destruíram o poder de Ali-Boacem, que com 80 Galeras pertendia introduzir-lhe socorro. Foi esta vitória aplaudida na Europa, que o Papa Benedito XII, além de grandes privilégios, lhe concedeu as dízimas das rendas Eclesiásticas; e o elogiou altamente, e a seus antecessores, por todos terem humilhado aos Agarenos em terra, e mar, com grande aumento da Santa Igreja. Mon. Las. P. IV. Liv. XV. Cap. XI. Nestas letras lhe chama o Vigário de Cristo: Princeps Catholicus etc. Zelator Fidei Christianæ.

Com os Espanhóis tiveram diversos encontros, as tropas Portuguesas, e bastante deram que fazer àquela destemida Nação. O casamento, que naquela Corte se tratou para o príncipe D. Pedro, filho, e herdeiro de D. Afonso IV, foi a causa de tantas desventuras. Gonçalo Vaz, Português, o tinha tratado com D. João Manoel, Ilustríssimo entre os Fidalgos daquela Coroa, em 1335. Gonçalo Rodrigues Ribeiro, o participou a D. Afonso IV Rei d’aquela Monarquia, segundo a política das Cortes; e Gonçalo Vaz de Góes, e outro Gonçalo Vaz, Tesoureiro de Viseu, partiram para Castela para receberem a Infanta D. Constança, em nome de seu esposo D. Pedro. O Rei Espanhol arrependido de a ter repudiado, e sempre enamorado de sua beleza, não consentia, que a preclara Noiva viesse para Portugal. Por esta retenção foi enviado a Castela pelo Rei Português, Álvaro de Sousa; e sendo lá morto, o Secretário cumpriu ali tudo, o que ele levava de instrução. (La Cled. Tom. III, a pag. 40).

Principiaram as hostilidades pelos Espanhóis; e Estevão Vaz de Barbuda, Almirante Português, foi represado em Cadiz, como os Vasos, que comandava, contra o Direito das Gentes, à ordem d’El-Rei de Castela. Sobre este insulto passou à Espanha D. Pedro Afonso, Governador de Vila Viçosa, mas sem fruto. Seguiu-se a guerra entre ambas as Coroas, e o Arcebispo de Braga, e Bispo do Porto, e D. Estevão Gonçalves, Grão Mestre de Cristo, encontrado no Minho um corpo Espanhol de 1300 homens galegos, mataram 300, e ao seu Capitão, e puseram aos demais em fugida. Por mar traziam os Portugueses então 20 Galeras, e alguns navios, comandados por Gonçalo Camelo; o qual fez com elas estragos horríveis em Andaluzia; e por fim mortos 800 Castelhanos, e seu Capitão D. Nuno Portocarreiro: morreram também 20 Portugueses, e entre eles o Comandante Camelo ficou prisioneiro, mas deu-se-lhes em troca por ele o cadáver de Portocarreiro, pessoa em Castela de suposição. Manoel Peçanha foi reforçar a Esquadra Portuguesa, mas andando a devastar Galiza, e depois passando a defender a Costa do Algarve, foi derrotado pelos Espanhóis. Em fim, passou D. Constança, a Portugal, e deram fim todos os desgostos.

Um poeta põe na boca de D. Pedro o seguinte discurso, dirigido a D. Afonso 4.°: —

Portugal vencedor, nunca vencido,
Zombará do poder do mundo inteiro.
Tão ousada será, tão néscia a Espanha,
Que contra nós se atreva a mover guerra?
Não há de inda lembrar-se o seu monarca,
Que te deve os domínios que possui?
Que há bem pouco, cercado de inimigos,
Vendo nas mãos o cetro vacilante,
Mandou a própria esposa, filha tua,
A implorar-te que fosses socorrê-lo,
Ou antes sobre o trono sustentá-lo?
E que do filial pranto comovido,
Não contente em mandar-lhe tuas tropas,
Tu próprio à testa delas, generoso,
Quiseste ir debelar seus inimigos,
E segurar-lhe a c’roa na cabeça?
Há de ofender quem soube defendê-lo?
Quem pode, apenas queira, aniquilá-lo?
Não; quem viu pelejar a teu comando,
Nas margens do Salado os Portugueses,
A atacar Portugueses não se atreve;
E se a tanto chegar a sua insânia,
À maneira dos seus antepassados,
Chorando o opróbrio de ficar vencido,
Caro lhe custará seu louco arrojo.
Oxalá que ele à guerra nos convide!
Poderia teu filho então mostrar-te,
Que te sabe imitar, quando é preciso,
Novos louros cingindo a teu diadema.

O valor Português tem sido tamanho, e a sua bravura no teatro da guerra tem espantado tanto, que levado de admiração o nosso distinto compatriota, o insígne Sr. Dr. Domingos José Gonçalves de Magalhães, no seu poema nacional a — CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS — Canto VIII, disse, tratando da luta com os índios.

Entre os mais bravos do contrário lado
Se ostenta Caiobi, e se recorda
Que já contra Franceses e Tamoios
Bravo em Villegagnon foi aclamado.
Não quer ceder-lhe a palma Cunhambeba,
Nem no zelo cristão, nem na bravura;
E ambos por toda parte se assinalam.
O valor português tem em Ramalho,
E em todos os colonos Lusitanos,
Novos, valentes braços que o sustentam
Nessa noturna, encarniçada luta,
Quais sempre os teve nas diversas partes
Da Europa, África, Ásia, onde seu nome
Com sangue escrito fez-se heróico e grande,
Ao seu vate imortal inchando a tuba,
Que esses duros engenhos mal pagaram!

 

Morte de D. Inês de Castro.

 

Não há histórias (diz um compilador) mais tocante debaixo de certas relações, nem mais terrível debaixo de muitas outras, que a de D. Pedro e D. Inês, cujo recitado forma um dos mais belos episódios do poema de Camões. Pode-se também acrescentar que debaixo de certo ponto de vista, nenhuma história há, de que a moral possa tirar conseqüências tão importantes, pois que as desgraças e os crimes, de que ela abunda, tiveram por motivo uma ilegítima paixão.

O príncipe D. Pedro, filho de El-Rei D. Afonso IV, esposou D. Constança, filha de D. Manoel de Penafiel, o mais poderoso Senhor da Espanha. Esta princesa merecia toda a sua afeição, mas não pôde conseguí-la. D. Inês de Castro, sua Dama, inspirou ao jovem D. Pedro uma paixão violenta, e de igual maneira a sentiu. D. Constança que amava ternamente seu esposo, apenas reconheceu a iminente desgraça, abandonou-se ao desgosto, que depois de nove anos de um himeneu infeliz, em 1345 findou a sua existência.

D. Inês, de quem todos os historiadores à porfia descrevem uma beleza rara, e um carácter cheio de doçura, deu lágrimas sinceras àquela, cuja morte havia originado, e D. Pedro, mais do que nunca sensível às suas graças, deixou respirar a paixão que tanto o incendiava; e apenas pôde, sem ferir a delicadeza, declarou que ela era sua esposa. El-Rei D. Afonso dissaboreou-se em extremo desta conduta de seu filho herdeiro do trono; mas os preparativos da guerra que fazia contra o reino de Castela, e a terrível peste que em 1343 devastando a Europa inteira, foi a Portugal mui funesta, absorveram ao princípio todos os seus cuidados.

Em 1354, D. Pedro esposou efetivamente D. Inês em Bragança, em presença de um Capelão e de um Bispo. Anunciou logo o desejo de a proclamar Rainha apenas subisse ao trono. Muitos Grandes, em a intenção de profundar um fato, que lhes parecia ludibrioso ao reino, empenharam o monarca a propor uma nova esposa a seu filho. D. Pedro repulsou esta proposição com uma extrema firmeza. Então os inimigos de D. Inês, aqueles que olhavam com ciúme a sua aliança com o herdeiro da coroa, redobraram instâncias para com o soberano, a fim de que ele punisse D. Inês com toda a severidade.

Três Senhores sobre tudo, Álvaro Gonçalves, Diogo Pacheco e Pedro Coelho, mostraram contra ela uma animosidade que degenerava em furor. Eles se ofereceram sem pejo ao monarca para assassinar uma frágil e indefensa mulher. Ainda que D. Afonso estava muito indignado, com tudo, estremeceu de igual proposição e marchou a combater os Mouros, que lhe haviam tomado uma cidade em os Algarves.

A sua expedição foi tão curta, quanto venturosa; e apenas regressado, os inimigos de D. Inês renovaram suas sanguinolentas instâncias; eles faziam valer o crédito do Príncipe, e sobre tudo a conservação do estado, que muito precisava fortificar-se com vantajosas alianças, e desta maneira conseguiram o silêncio do monarca, que eles interpretaram segundo as suas intenções.

Os projetos não eram, contudo, tão ocultos, que muitas pessoas da corte não fossem informadas. O Arcebispo de Braga entre muitos, e a Rainha D. Brites, mãe de D. Pedro, o avisaram da conspiração traçada contra D. Inês. Por uma confiança natural, ele se recusou a acreditar igual crime, e julgou que o pretendiam aterrar, para que se afastasse do objeto que amava cada vez mais.

Um dia enfim em que D. Pedro tinha ido à caça, D. Afonso partiu de Monte-mor, e se dirigiu a Coimbra, habitação de D. Inês. Apenas ela soube que El-Rei se aproximava, correu ao seu encontro, prostrou-se aos seus pés, e lhe apresentou seus filhos. A presença destas inocentes criaturas, em as quais ele não podia desconhecer seus netos e a extrema graça de D. Inês ainda afogada em prantos, tocaram tão vivamente o Soberano, que se retirou comovido e quase deliberado a conceder-lhe o perdão. Mas Álvaro, Coelho, e Pacheco jamais cessaram de o importunar; e aproveitando-se da ausência do Príncipe, que lhes tornava a ocasião favorável, tendo diminuído quanto lhes era possível a impressão que D. Inês, e seus filhos fizeram sobre o Monarca, voaram à habitação da malfadada, e os Cavaleiros, nascidos para defender a beleza, se tornaram eles próprios seus horrorosos algozes.

Seria inútil tentar fazer sentir qual foi a mágoa de D. Pedro; mas um carácter qual o seu jamais se podia limitar a lágrimas, e queixas. O excesso da sua exasperação o arrastou a unir-se a Fernando, e Álvaro de Castro, irmãos de D. Inês, a assolar as províncias de Entre Douro, e Minho, e Trás-os-Montes, porque os assassinos de sua esposa tinham ali as suas possessões. No auge da sua cólera, não cogitou que fazia pesar uma áspera vingança sobre imensos inocentes.

Qual não deveria ser pois a aflição d’El-Rei D. Afonso! De dia em dia se aumentavam os estragos em seu reino, a tal ponto, que a Rainha acompanhada de muitos Prelados, tomou o expediente de se dirigir a seu filho, para conseguir dele que depusesse as armas.

O Príncipe jamais queria consentir a menos que lhe não fossem entregues Coelho, Gonçalves, e Pacheco. El-Rei não quis anuir a uma semelhante pretensão, mas como as desgraças de Portugal iam rapidamente crescendo, se deliberou por último, e D. Pedro conveio, em que fossem expatriados os referidos cúmplices. D. Afonso oprimido de desgostos, não menos que pela idade, morreu pouco tempo depois que seu filho se havia reconciliado com ele, na idade de sessenta e sete anos.

D. Pedro subiu ao Trono em 1356 na idade de trinta e sete anos. Começou por se ligar com o Soberano de Castela contra o de Aragão: ele obrava como implacável inimigo dos assassinos de D. Inês, que se achavam refugiados em Castela: assim conseguiu ele que lhe fossem entregues Gonçalves, e Coelho. Pacheco deveu a uma boa ação a ventura de escapar. No mesmo dia em que os seus companheiros foram presos, recebeu aviso por um pobre a quem dava esmola muitas vezes, e fugiu para Aragão.

D. Pedro desesperado por ele se haver subtraído à sua vingança, a exercitou com mais furor sobre os outros. Ele os tinha já declarado traidores à pátria, e feito confiscar todos os seus bens; mandou-os pôr em tormentos, mas não pôde conseguir deles a declaração de mais culpados, nem o que se havia passado em as suas ocultas conferências.

Cada vez mais ressentido, D. Pedro mandou elevar um cadafalso em frente do seu palácio, aonde os doits cúmplices foram justiçados arrancando-se-lhes o coração ainda em quanto vivos, suplício horrível de que Portugal jamais havia tido o menor conhecimento, e pelo qual se deram sentimentos de piedade a homens réus de um delito abominável. Depois foram queimados os seus corpos e as cinzas dadas ao vento.

Estava reservado para D. Pedro apresentar ainda um espetáculo mais extraordinário, e que, provando a extremosa paixão que teve por D. Inês, o fará olhar como um objeto bem digno de prantos.

Dirigiu-se a Cantanhede, acompanhado do todos os Grandes do Reino, e ali jurou que o seu consórcio com D. Inês tinha sido efetuado em a cidade de Bragança. Ordenou que as testemunhas fossem interrogadas, e depois se fez constar à nação. Tinha existido entre os dous esposos isto que se chama afinidade espiritual, e que os historiadores não têm particularizado. Estas afinidades, segundo os tempos, têm sido um obstáculo mais ou menos forte às uniões conjugais. D. Pedro fez conhecer que uma bula do Papa João XXII, lhe havia concedido todas as dispensas necessárias. Estes diversos atos estabeleceram a legitimidade dos filhos de D. Pedro e D. Inês, e os habilitaram para sucessores do trono.

Tendo assim tomado estas louváveis precauções, D. Pedro fez erigir, tanto para si como para sua esposa, dous túmulos de mármore branco; sobre um dos quais estava em pé a estátua de D. Inês com a coroa na cabeça. Foram ambos colocados no Mosteiro de Alcobaça.

Igualmente D. Pedro assistiu à última e estranha cerimônia que vai a ser relatada. Fez desenterrar da Igreja de Santa Clara de Coimbra o corpo de D. Inês, havia mais de sete anos ali depositado. Depois de vestido com toda a magnificência, se lhe colocou uma coroa na cabeça, assentando-o sobre o trono. Então, por ordem do malfadado esposo, todos os grandes, todas as damas da corte, foram prostar-se aos pés daquela que havia tanto adorado, reconheceram-na por sua Soberana, e beijaram-lhe as mãos tornadas em ossos descarnados.

Colocaram-se depois os restos de D. Inês sobre um riquíssimo coche. O mesmo cortejo os veio acompanhando, e a pompa fúnebre marchou assim pelo espaço de dezesete léguas que separam Coimbra de Alcobaça. Os Grandes levavam a cabeça coberta de um capuz, o qual era naquele tempo sinal de maior luto; as damas iam com longos vestidos cobertos com mantas brancas. De ambos os lados da estrada estavam homens com brandões de cera acesos.

Qualquer excesso que fosse permitido reconhecer nestas demonstrações da mágoa do monarca, elas eram contudo tão sinceras, que uma nação naturalmente mui sensível não demonstrou estranhá-las; tomou parte em todos estes atos exteriores de uma tal maneira, que pudesse consolar o coração de D. Pedro.

De resto, logo que se recordam sem disfarce as sem-razões a que esta paixão o conduzira; logo que se lhe fez cargo de haver tomado as armas contra seu pai e seu monarca, e de ter levado a vingança contra os assassinos de D. Inês até ao maior auge; convém dizer também quais sentimentos D. Pedro, falecido em 1367, seis anos depois desta cerimônia, única na história, deixou em a lembrança do seu povo.

Ele foi extremamente chorado; e quando o colocaram junto do túmulo de D. Inês, a dor foi tão geral como sincera. Recordavam-se com satisfação estas palavras muitas vezes repetidas por ele: «Que um Rei que deixa passar um dia sem fazer bem, não merece o título de Rei:» e exatamente se tinha observado que ele se conduzira sempre na conformidade de uma tão bela como proveitosa máxima.

Longe do caro esposo, Inês formosa
     Na margem do Mondego,
As amorosas faces aljofrava
     De mavioso pranto:
Os melindrosos cândidos penhores
     Do tálamo furtivo,
Os filhinhos gentis, imagem dela,
No regaço da mãe serenos gozam
     O sono da inocência.
Coro sutil de alígeros Favônios,
     Que os ares embrandece,
     Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
     Ora, solto, inquieto
Em leda travessura, em doce brinco,
     Pela amante saudosa,
Pelos tenros meninos se reparte,
E com tênue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
     Da ternura e das flores,
Que à bela natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de amor ao mundo apuras
     O prazer da existência!
     Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia,
O límpido Mondego em vão serpeia
C’um benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, almo perfume ;
Em vão se doura o sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
     Por divertir-te, ó Castro!
Objetos de alegria amor enjoam,
     Se amor é desgraçado.
A meiga voz dos zéfiros, do rio
     Não te convida o sono:
     Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos,
     Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
     Sono plácido e mudo;
Não dorme a fantasia, amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na idea, espertam, rompem
     O silêncio da morte.
Ah! que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espetáculo assombroso,
A paixão lhe afigura aos olhos d’alma!
Em marmóreo salão de altas colunas
A sólio majestoso e rutilante,
Junto ao régio Amador, se crê subida;
Graças de neve a púrpura lhe envolve;
Pende augusto docel do teto de ouro;
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;.
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
O monstro da política se aterra,
E, se Inês perseguia, Inês adora.
     Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o Amante
Nos olhos estudar-lhe as leis, que dita;
O prazer a transporta, Amor a encanta;
Prêmios, dádivas mil ao justo, ao sábio
     Magnânima confere!
Rainha, esquece o que sofreu vassala:
De sublimes ações orna a grandeza,
Felicita os mortais, do cetro é digna;
Impera em corações... mas, céus! que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
     Inês sobresaltada
Desperta, e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz bramindo avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora;
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os céus, o Amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atração da formosura,
     Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros!...
     Cai nas sombras da morte
A vítima de amor, lavada em sangue!
As rosas, os jasmins da face amena
     Para sempre desbotam!
Dos olhos se lhe some o doce lume,
     E no fatal momento
Balbucia, arquejando: «Esposo! Esposo!»
     Os tristes inocentes
     À triste mãe se abraçam,
E soltam do agonia inútil choro!
     Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
     Os Amores acodem;
Mostra a prole de Inês, e a tua, ó Vênus!
Igual consternação, e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
     Só nas asas diferem,
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcazes de marfim, virotes de ouro)
Súbito voam dous do coro alado:
Este raivoso, a demandar vingança
     No tribunal de Jove;
Aquele a conduzir o infausto anúncio
     Ao descuidado Amante.
Nas cem tubas da Fama o gran’desastre
     Irá pelo Universo:
Hão de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres,
No torrado sertão da Líbia fera
As serpes, os leões hão de chorar-te.
Do Mondego, que atônito recua,
Do sentido Môndego as alvas filhas
     Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo,
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo.
Já c’roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas lúgubres endeixas.
     Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam:

     Toldam-se os ares,
     Murcham-se as flores:
     Morrei, Amores,
     Que Inês morreu!

     Mísero esposo,
     Desata o pranto,
     Que o teu encanto
     Já não é teu.

     Sua alma pura
     Nos céus se encerra:
     Triste da terra
     Porque a perdeu!

     Contra a cruenta
     Raiva ferina,
     Face divina
     Não lhe valeu.

     Tem roto o seio,
     Tesouro oculto,
     Bárbaro insulto
     Se lhe atreveu.

     De dor e espanto,
     No carro de ouro,
     O númen louro
     Desfaleceu.

     Aves sinistras
     Aqui piaram,
     Lobos uivaram,
     O chão tremeu.

     Toldam-se os ares,
     Murcham-se as flores:
     Morrei, Amores,
     Que Inês morreu!

 

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Notas

(1) Conde da Ponte, do meu Conselho, governador e capitão general da Capitania da Bahia: amigo, eu o Príncipe Regente, vos envio muito saudar, como aquele que amo. Atendendo a representação, que fizestes subir à minha real presença sobre se achar interrompido, e suspenso o comércio desta capitania com grave prejuízo dos meus vassalos e da minha real fazenda, em razão das críticas e públicas circunstâncias da Europa, e querendo dar sobre este importante objeto alguma providência pronta e capaz de melhorar o progresso de tais danos: sou servido ordenar interina e provisoriamente, enquanto não consolido um sistema geral, que efetivamenlc regule semelhantes matérias, o seguinte:

1.° Que sejam admissíveis, nas alfândegas do Brasil, todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias transportados, ou em navios estrangeiros das potências, que se conservam em paz e harmonia com a minha real coroa, ou em navios dos meus vassalos, pagando por entrada vinte e quatro por cento, a saber: vinte de direitos grossos e quatro do donativo já estabelecido, regulando-se a cobrança destes direitos pelas pautas, ou aforamentos, porque até o presente se regulam cada uma das ditas alfândegas, ficando os vinhos, águas-ardentes e azeites doces, que se denominam molhados, pagando o dobro dos direitos, que até agora nelas satisfaziam.

2.° Que não só os meus vassalos, mas também os sobreditos estrangeiros possam exportar para os portos, que bem lhes parecer a benefício do comércio e agricultura, que tanto desejo promover todos e quaisquer gêneros, e produções coloniais, à exceção do Pau Brasil, ou outros notoriamente estancados, pagando por saída os mesmos direitos já estabelecidos nas respectivas capitanias, ficando entre tanto como em suspenso, e sem vigor, todas as leis, cartas régias, ou outras ordens, que até aqui proibiam neste estado do Brasil o recíproco comércio e navegação entre os meus vassalos e estrangeiros. O que tudo assim fareis executar com o zelo e atividade, que de vós espero. Escrita na Bahia, aos vinte oito de Janeiro de mil oito centos e oito: — Príncipe. — Para o Conde da Ponte.
(2) Na parte histórica da nossa Corografia Cronográfica nobiliária e genealógica do Império do Brasil, mostraremos com os fatos, que os mais extrênuos campeões da Independência do Brasil foram os Snrs. D. Pedro I, Coronel Luiz Pereira da Nóbrega, Joaquim Gonçalves Ledo, Cônego Januário da Cunha Barbosa, e Capitão-mor José Joaquim da Rocha, etc, entrando nesse número muitos Portugueses.
(3) Ao mesmo tempo que essas cousas se passavam na Península; Chuz filho de Nemrod, chamado Belo, primeiro rei da Babilônia, adorado como Deus, teve o império dos Assírios, a mais antiga monarquia que se conhece a memória, confundido com a dos Caldeus. Assur, filho de Sem, fundou Ninive. O Egito e a Cítia também foram por esses tempos fundados. Cresso deu o seu nome à ilha de Creta ou Candia. Inaco fundou o reino de Argos. Os Druidas ou sacerdotes filósofos, apareceram pela primeira vez nas terras que hoje se chama França. A Ática foi inundada reinando Ogiges. Na Tessália houve uma grande enchente do rio Eleusis, que matando a todos os moradores, escapou o rei Deucalião e Pirra sua mulher, por se refugiarem no monte, e depois convocando os povos vizinhos, juntaram novos povoadores. A inundação do Eleusis é o que a mitologia chama Dilúvio de Deucalião. Esparta foi fundada por Espero ou Esparto. As Pirâmides do Egito tiveram começo por essas eras no reinado de Orus ou Faraó. Atlas, célebre astrólogo, por contemplar os astros no monte, diziam os antigos, fora nele transformado, e ficou sustentando os Céus sobre os ombros. Amfion, rei de Atenas, promulgou as leis amfiônicas; havendo já senado ali.
(4) Os autores do Dicionário Histórico, afirmam que Roma no princípio consistia em um pequeno castelo sobre o monte Palatino, o que prova que antes de Rômulo já Roma era habitada.
(5) Tendo nós pelo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, emitido a proposição supra, de que a antiga Roma foi fundação portuguesa; tivemos logo depois de entrar em discussão com o Correio Mercantil, e justificamo-nos com as razões que acima seguem.
(6) Quem se quiser profundamente instruir nos feitos estupendos do incomparável Viriato, e na história dos tempos antigos da nação portuguesa, poderá recorrer ao Viriato Trágico, escrito por Braz Garcia de Mascarenhas em 20 cantos.
(7) As mulheres Portuguesas que foram presas pelos Romanos para Castela, de noite se soltaram com o recurso dos dentes e mãos; vestidas de homens, e com armas nas mãos, atiraram-se contra os Romanos e os venceram. Depois disto, voltaram à pátria para o seio dos seus e de suas famílias.
(8) Vede as antigüidades de Évora por André de Resende, Diogo Mendes de Vasconcelos, G. Estaco, e M. S. de Faria.
(9) O título de Conde se derivou de — Cometes — segundo afirma Manoel Severino de Faria (Notícias de Portugal).
(10) Corneille celebrou as ações de D. Rodrigo de Bivar (o Cid Espanhol); porém ao mesmo tempo que este, Portugal também teve o seu Cid, na pessoa de D. Rodrigo Forjaz, que foi contemporâneo daquele e mais valente que ele. Logo que D. Fernando deixou os seus estados repartidos entre os seus três filhos; D. Garcia, o mais moço, teve o reino de Leão com a parte de Portugal, que seu pai havia tomado aos Mouros, conquistadores da Península. D. Sancho que ficou com Castela, pôs-se em contestações com D. Garcia, declarando-se por fim guerra. Forjaz mata um indivíduo, detestado da nação, que governava em nome de D. Garcia. Em críticas circunstâncias estando o exército Espanhol em frente de Portugal, D. Garcia aproveita-se do valor de Forjaz, e este no primeiro conflito bate os Castelhanos. Vindo de novo D. Sancho com dobrada força foi batido em Santarém. Os Castelhanos perderam tanto, que o próprio rei se entregou. D. Bermuiz, um dos irmãos de Forjaz, vindo dar nova da vitória a D. Garcia, lhe disse:— «Vós triunfais, Senhor, mas perdeis meu irmão» Forjaz achava-se mortalmente ferido e D. Garcia abraçando a Bermuiz em lágrimas lhe disse: — «Ah? se Rodrigo morre, eu perco o mais firme esteio do meu trono.»

Forjaz entregando a seu soberano o prisioneiro, lhe perguntando se estava satisfeito, inclina a cabeça sobre o escudo e morre.

Apesar dos cuidados, D. Sancho fugiu, e à frente de suas tropas estava D. Rodrigo de Bivar, o Cid Espanhol, que não achando o braço de Forjaz, tiveram os Portugueses de serem vencidos e o seu rei prisioneiro depois de grande destruição de parte a parte.
(11) Veja-se nas Memórias de Literatura da Academia R. das Ciências de Lisboa, tomo 1, pag. 23: a Memória do Snr. Antônio Caetano do Amaral intitulada: «Estado da Lusitânia até o tempo em que foi reduzida à província Romana.»
(12) Desde o concílio Tarraconense por diante, em 516, em todos os concílios, ainda provinciais, entraram a assistir sempre alguns leigos de cada diocese. Não se deve contudo entender que este fosse o primeiro naquela cidade. No canon 13 deste concílio é que se decidiu isto, e não é provável que a ele assistissem bispos Portugueses. O primeiro concílio em que assistiram senhores Portugueses parece ser o 3.° de Toledo em maio de 589, ao qual também foram os nossos bispos.
(13) Vejam-se Memórias de Literatura Portuguesa, tomo VII, pag. 135; e o Campeão Português em Londres, n. 14, pag. 35 e seguintes.
(14)Trinta e um tem sido o número dos reis de Portugal que sucessivamente ocuparam o trono: dos quais nove pertencem à casa de Borgonha: oito ao ramo da casa de Aviz; três foram de Espanha: e onze inclusive duas senhoras que pertencem à casa de Bragança. A primeira casa começou em 1139 e acabou em 1383: a segunda acabou em 1580: a terceira, em 1640; e a quarta ainda governa na pessoa do Snr. D. Pedro V.
(15) Conservou-se muitos séculos no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra o Escudo com que D. Afonso Henriques pelejava; ignora-se porém como e qnando tão precioso monumento dali desaparecera, restando apenas a mui simples notícia que deixara a seu respeito o Cronista D. Nicoláo, Liv. XI, Cap. 32, pag. 511, concebida neste termo: «Era de páo de figueira, forrado de couro de boi crú, oleado e pintado, e tinha de comprimento cinco palmos e meio, e de largo, no mais largo, três palmos.» Não diz o Cronista quais as cores de que era pintado, mas asseveram vários Historiadores, que era branco, assentado nele uma cruz azul daquele feitio a que chamam potentéia, por ter a haste mais comprida que os braços.

Quanto à Espada do mesmo Rei, ainda hoje se vê no Museu do Porto.
(16) Este fato com mui boas razões e fundamentos o doutíssimo Sr. A. Herculano refutou por supô-lo apócrifo.
(17) Depois da vitória que D. Fuas, obteve do mouro Gomi, dirigiu-se a Coimbra onde estava El-Rei, sabendo que andavam galés de Mouros pela costa fazendo dano, e indo por mandado do rei sobre elas as tomou todas em 16 de Junho.
(18) Formado de sete couros de boi, sobrepostos uns aos outros.
(19) Tum demum praeceps saltu sese omnibus armis
In fluviam dedit: ille suo cum gurgite flavo
Accepit venientem ac mollibus extulit undis,
Et laetum sociis abluta caede remisit.
Virg. Eneiad. L. IX. Vers. XXXV.
(20) Um dos muitos Régulos Mouros, que então ocuparam as terras de Portugal. D. Fuas o cometeu, e derrotou obrigundo-o a levantar o sítio, que havia posto a um castelo nosso.
(21) D. Sancho I, Rei de Portugal, com ajuda de uma armada dos Cruzados, tomou Silves no Algarve, em 1188. O Conde D. Mendo de Sousa, sobrinho do dito Rei, era o general das tropas de terra. Nesta ocasião tomou D. Sancho I Alvor, e o restante daquele país, e se intitulou Rei de Algarve; e pôs ali por Bispo a D. Nicolau. Mon. Lus. Pag. IV, Liv. XII, Cap. XIX. Nesta conquista faleceu D. Álvaro Martins, um dos valorosos Portugueses daquela idade. O Bispo de Coimbra, D. Martinho e seus nobres parentes muito ajudaram a D. Sancho nesta expedição.
(22) O cronista Cristovão Rodrigues Acenheiro, diz em sua linguagem antiga que as calamidades por essas eras foram tais que em Portugal cemoçou grande envernada de chuva, e durou até o primeiro dia do mês de Junho, em tal guiza que todalas meses de pão, e fruitas distruio, e despois que sesou a chuiva veo as meses grande multidãn de vermes, que as comeo até a terra todas; e foi tam grande estio, que durou até quinze dias por andar de Janeiro; e sesando o estio, veo tam grande pestelencia nos homes da terra de Santa Maria, no Bispado do Porto, que em cada um lugar, se moravam muitos adur ficavam treze, e veo mais grãde dor nos homes da terra de Braga, que lhes parecia que ardiam dêtro em si mesmos, e assim morriam, e comiam os homes as vinhas e os agros, assim como besta (*),
(*) O cronista Rui de Pina, no cap. 16, fala d’um espantoso eclipse do sol sucedido no ano de 1199 e bem em outros capítulos traz várias alocuções do rei Sancho I, proferidas em diversas circunstâncias que não as transcrevemos para não tornar demasiadamente extensa esta nossa obra.
(23) Em um Capítulo especial faremos nominalmente menção dos grandes homens da nação Portuguesa, que nos tem escapados no contexto deste nosso escrito.
(24) Morrer morte e dormir sonos, não são pleonasmos, são elegâncias antiquissímas na língua; exemplos:
«Se o posso, ou devo dizer, Jesus Cristo Nosso Senhor não morreu morte tão honrada.»
Pina (Chron. J. II)
Dormimos sonos alheios,
Os nossos não os dormimos.
Sá de Miranda.
(25) Martim de Freitas, alcaide-mor de Coimbra.
(26) D. Afonso, Conde de Bolonha.


 

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