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PERESTROIKA

da esperança à “nova pobreza”

Oliveiros S. Ferreira

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Perestroika - da esperança à “nova pobreza”
Oliveiros S. Ferreira

Fonte Digital
Digitalização autorizada pelo Autor
do livro em papel
Ed. Inconfidentes - 1990

© 2004 — Oliveiros S. Ferreira

 


 

Sumário

Introdução
1. A revolução e a esperança
2. A lição da vodca
3. Os objetivos da reforma
4. As causas da crise
5. O plano e o mito
6. Os preços e a teoria
7. A questão da inflação
8. Da esperança à “nova pobreza”
9. O grande debate
Notas

 


 

Introdução

 

 

A crença de Jorge Wilson Simeira Jacob no mercado, por injusto que ele seja, deriva de sua fé na liberdade. Essa postura intelectual, que em certo sentido é ativista, deverá marcar profundamente a história do Instituto Liberal de São Paulo. Por detrás dessa confiança no mercado — confiança que é uma veemência, não um fanatismo; uma força interior, não uma fúria irracional —, reside uma concepção pessimista da natureza humana. O homem (se não aprendi com ele, reforcei em nossas tertúlias essa convicção que também é minha há muito tempo), é cobiçoso; não é bom, pois tende ao mal. Por isso, o empresário não deve ser defendido à luz daquelas ingênuas afirmações que fazem dele um anjo. Se Sorrel via no empresário um “capitão de indústria” com todos os atributos de quem comanda tropas, Jorge Jacob vê nele um ambicioso, o típico “lobo do homem” de Hobbes. Para impedir que essa ambição e a cobiça que está por detrás dela se transformem em malefício para a sociedade, ou oprimam a liberdade do cidadão, meu interlocutor de longas horas sempre disse, e dirá, que o mercado é o único mecanismo institucional apto a controlar a ambição — pela simples e boa razão de que, no mercado, o empresário se defrontará com mil e uma outras ambições.

Cometeria uma injustiça com Jorge Jacob se passasse ao leitor a impressão de que ele defende o liberalismo porque é empresário. O contrário é verdadeiro: sustenta o primado das liberdades e da cidadania para poder exercer sem constrangimentos políticos sua função de homem de empresa disposto a correr riscos. De minha longa convivência com empresários brasileiros, foi dele, e de seu companheiro do Instituto Liberal Roberto Caiuby Vidigal, que ouvi amargas queixas pelo fato de serem poucos os intelectuais que, no Brasil, se engajam na luta pelo liberalismo enquanto sistema coerente de defesa das liberdades individuais e da liberdade de mercado — essa última adaptada, conforme assinalam os documentos que vão sendo produzidos pelos Institutos Liberais espalhados pelo Brasil, às condições do desenvolvimento brasileiro.

Pensando em dar sua contribuição para fortalecer no País a idéia do mercado — obscurecida por longos anos de populismo estatizante — e de reforçar os laços da cidadania, portanto a liberdade, Jorge lançou-me há alguns anos (dois, creio) o desafio — pois de fato foi dessa forma que as coisas se passaram — de comentar algumas palestras que personalidades soviéticas haviam feito na Universidade de São Paulo durante campanha de esclarecimento que o Partido Comunista da União Soviética então fazia da política realizada por Mikhail Sergueievitch Gorbachev, conhecida como perestroika. Aceitei o desafio da maneira como foi lançado — como se fosse uma brincadeira de amigos. É que, não sendo sovietólogo, estava, como estou, consciente de que correria o risco de dizer coisas de menor importância a propósito do fato político mais relevante da segunda metade do século XX. Esse fato, todos estamos hoje convencidos disso, é o refluxo do socialismo real (aquele que dominou o horizonte intelectual do Ocidente desde 1917) e o reencontro dos que se dizem herdeiros de Lenin com a realidade humana, plasmada pela ambição e pela cobiça — a ambição pelo dinheiro e a cobiça pelo poder! Aceitando o desafio, verifiquei que as palestras, em si reveladoras, eram insuficientes para os fins didáticos em vista. Ademais, a tarefa não era fácil, pois se tratava de discorrer sobre fatos que se davam em realidade histórica extremamente movediça — e a circunstância de o que era uma tentativa de recuperar a economia soviética ter-se transformado num irreprimível movimento que destruiu o bloco socialista e abalou a solidariedade e a solidez do Império Soviético (a ponto de o problema das nacionalidades ameaçar desagregar o Estado soviético) apenas veio demonstrar o quão movediço era o terreno em que teria de mover-me. Tão mais movediço e difícil de percorrer, quando o próprio Gorbachev havia delimitado o campo, ao dizer que o socialismo é uma coisa e o stalinismo outra, essa sim semelhante ao brezhnevismo, ao burocratismo e a quantos “ismos” impediram o desenvolvimento daquilo que se supôs devesse ser o socialismo. No relatório apresentado à reunião plenária da Comissão Central do PCUS, realizada em 27 de janeiro de 1987, Gorbachev dizia a esse propósito: “Ocorreu uma espécie de absolutização das formas de organizar a sociedade que se criaram na prática. Mais ainda, semelhantes concepções eram, no fundo, identificadas com as características essenciais do socialismo, encaradas como invariáveis e apresentadas como dogmas que não dão lugar à pesquisa científica”.

Deixando de lado os aspectos de estratégia e política internacionais, era preciso comentar as teses e a ação de Gorbachev no terreno por ele oferecido à luta. De nada adiantaria afirmar dogmaticamente os erros do comunismo russo e as virtudes do liberalismo ou do mercado. Era necessário buscar no pensamento marxista, até mesmo no bolchevismo, com o que demonstrar que Gorbachev não é o primeiro a condenar a esclerose de um sistema, crise essa que reside na eliminação do mercado, mas sim que é aquele sagaz dirigente, que teve condições que lhe permitiram tentar alterar o curso das coisas. É claro que Gorbachev não agiu inspirado pelo Espírito Santo; que foram o totalitarismo político, a falência do planejamento centralizado traduzida na inflação e no déficit público, que, provocando a “nova pobreza”, obrigaram um grupo de comunistas soviéticos a reconhecer que muita coisa deveria ser revista se se desejasse manter o poderio relativo da União Soviética no mundo e o poder interno do Partido no país. Os fatos reduziram também esse poder a muito pouco!

A tarefa, assim, não era fácil; especialmente difícil, se se pretendesse dar um certo ar de realidade ao comentário, tal a rapidez com que os acontecimentos se vêm sucedendo na Europa Central e na União Soviética. Preferi, por isso, em vez de fazer um estudo conjuntural, voltar aos tempos da Academia e lançar mão de textos — velhos alguns, recentes outros — que permitissem introduzir o leitor nos meandros do pensamento socialista e do socialismo real, no caso o soviético, a fim de que fosse possível a quem nunca se ocupou dessas coisas compreender os fundamentos teóricos da crise que abala a União Soviética. Por isso, dei como substítulo ao trabalho “Uma visão ortodoxa da perestroika”. É a visão da ortodoxia, que contraponho à de outros. Não é tarefa fácil.

As coisas, porém, dizia um intelectual argentino — que por acaso foi político — devem ser feitas; ainda que mal, devem ser feitas. Nesse espírito, e esperando não incorrer no erro que Gorbachev apontava nos críticos do stalinismo, é que me abalanço a escrever estes comentários a textos que retratam as dificuldades vividas hoje em dia pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Alguns estranharão o tom geral do estudo. Tenho por hábito, quando cuido desses assuntos, tratá-los como Tácito dizia que se deveria escrever a História: Sine ira et studio — sem cólera, nem parcialidade.

 

 


 

 

A revolução e a esperança

 

 

A revolução russa de 1917 foi dos fatos mais marcantes do século XX. De nada adiantará, no afã propagandístico, querer desmerecer a importância histórica da tomada do poder pelos bolchevistas, reduzindo-a a mero golpe de Estado como os outros. Da perspectiva da análise técnica dos golpes de Estado, a ação militar desencadeada em 27 de outubro (ou 7 de novembro, pelo calendário ocidental) poderia ter sido eliminada dos livros escolares se — como já se escreveu alhures e inclusive se publicou no Brasil — o governo presidido pelo social-democrata (menchevista) Kerensky, que buscava dirigir a Rússia desde a revolução de fevereiro de 1917 (que derrubara o czar) tivesse tido à sua disposição um regimento de Exército leal ao poder legal.

A questão é que esse regimento não existia. Dificilmente teria sido encontrado no caos que se instalara na Rússia, por muitas razões. Uma delas é que o czarismo se consumira e perdera sua aura religiosa de legitimidade em decorrência da insensibilidade dos governos e da aristocracia — e demais segmentos da classe dominante — diante das tensões políticas e sociais que se vinham acumulando pelo menos desde a famosa revolta camponesa de Pugatchev (1773) e explodiram na revolução de 1905, logo sufocada. Outra causa foi a corrupção dos altos e médios funcionários e da própria estrutura militar (corrupção que havia alcançado seu auge na guerra de 1914, cujas vítimas foram os soldados que combatiam inteiramente desassistidos). Na verdade, o descaso do governo de São Petersburgo pela tropa permitia entrever, desde os primeiros meses da I Guerra Mundial, o desfecho de fevereiro de 1917. A esses fatos da realidade, há-de acrescentar-se, sem dúvida, a propaganda pacifista dos comunistas (bolchevistas), dos sociais-democratas e dos socialistas-revolucionários, afora a agitação revolucionária dos bolchevistas. Desenvolvida dentro das forças armadas, essa propaganda e essa agitação abalaram ainda mais a disciplina já desacreditada por derrotas sucessivas, afora indispor os soldados contra os oficiais.

Tudo o que havia acontecido antes de outubro de 1917 militara contra a existência de um único regimento leal capaz de enfrentar as milícias bolchevistas e defender o governo legal. Depois, mas só depois de o golpe de Estado haver-se transformado em revolução, os regimentos apareceram — e eram exércitos “brancos” para contrapor-se ao “vermelho” da bandeira bolchevista. Eles tinham a guiá-los na ação idéias emocionalmente menos sedutoras do que as dos comunistas, que, além de falar uma linguagem aparentemente igualitária e democrática, haviam lançado, preparando psicologicamente as massas, palavras de ordem capazes de abalar as nacionalidades e a Santa Mãe Rússia para todo o sempre: paz, autodeterminação dos povos, liberdade e terra aos camponeses: Ao prometer a terra aos camponeses, pouco lhes fez, aos bolchevistas, contrariar a doutrina, que pregava a coletivização; o que lhes interessava, acenando com a possibilidade de criação de uma classe de pequenos proprietários, era construir as condições indispensáveis a contar com o apoio dessa massa de trabalhadores para estabelecer seu governo. Dez anos depois da distribuição das terras, Stalin assassinou milhões no processo da coletivização forçada da agricultura. Hoje, Yeltzin restabelece a propriedade privada e as nacionalidades buscam libertar-se de Moscou!

Pretender menosprezar esses fatos, esquecer aquilo que o movimento de outubro teve de inspirador, inclusive no Ocidente, durante os primeiros anos que se seguiram à tomada do poder pelos bolchevistas, seria no dizer de experimentado amigo, já falecido, “mentir para dentro”, pretextando defender os valores da democracia.

Não há pior cegueira na condução de qualquer política do que desconhecer os fatores de força do adversário. Por isso, sempre considerei erro crasso menosprezar a influência que a revolução russa de 1917 teve sobre os intelectuais do Ocidente. É conhecida a importância que, no processo de transformação dessa influência em fato político de relevância, teve a máquina de propaganda montada pela Internacional; da mesma maneira, sabe-se que foram diversificados os métodos de sedução, cooptação e até mesmo de “patrulhamento” avant la lettre (o ato de colocar no index, no gelo, os que não eram simpáticos à “causa do proletariado”). Registre-se contudo, ao lado desses fatos, que se a propaganda conseguiu esconder, primeiro, os erros da revolução, e logo em seguida os crimes de Stalin, é porque a contrapropaganda não foi capaz de convencer os intelectuais nem parte do proletariado de que o regime soviético era pior (da perspectiva dos ganhos materiais e políticos das classes despossuídas) do que os que viviam a perturbação da Europa do primeiro pós-guerra — agitação política, desemprego, recessão —, especialmente depois da grave crise econômica de 1921. A atuação da máquina soviética de propaganda, que concentrava fogos sobre os críticos da URSS, acusando-os de estar a serviço da reação (até o fim da guerra civil e da intervenção ocidental na URSS), ajuda a compreender por que os relatos que os intelectuais militantes ou simpatizantes que visitavam a Rússia faziam da construção de uma nova sociedade e de um novo tipo de homem fossem aceitos como verdadeiros. É que esses intelectuais possuíam aquela qualidade que Gramsci dizia ser indispensável para que os homens do povo, os “simples”, acreditassem nas coisas: tinham autoridade intelectual e moral. Gostemos ou não, no período que vai do armistício de novembro de 1918 até 1939 com o Pacto Ribbentrop-Molotov, que selou a aliança entre a Alemanha nazista e a União Soviética, assistiu-se na Europa ao nascimento e desenvolvimento de uma esperança alicerçada na idéia de que na União Soviética se estavam criando as condições para o desaparecimento do Estado, para o fim do egoísmo simbolizado no chamado darwinismo social do capitalismo ocidental, e para a extinção da miséria graças ao estabelecimento de um regime de plena igualdade política e social — sem falar na transformação de uma sociedade feudal em industrial. Não se questionem, hoje, as bases e o acerto dessa esperança, invocando o fato de Trotsky e muitos outros — que purgaram no exílio na Sibéria ou nos subterrâneos da Lubianka (a sede da Tcheka, hoje KGB) — haverem feito o possível para demonstrar os erros feitos e apontar os crimes que se cometiam. Durante todo esse tempo, Trotsky foi tomado ou por um revolucionário mais perigoso do que Stalin, por inimigo jurado da ordem democrático-burguesa, ou por agente do nazi-fascismo. Para quem conhece pouco a história soará estranha a afirmação — mas em 1945, no auge da alegria pela vitória na Europa e pelo fim do Estado Novo no Brasil, Luís Carlos Prestes condenava, no famoso comício no estádio do Pacaembu, aplaudido por comunistas, simpatizantes e muitos liberais, o “nazi-nipo-trotsky-integral-fascismo”! Os demais condenados por Stalin eram vistos como gente da mesma laia — portanto indignos de ser acreditados. Aos que não viveram o período e não sabem o que foi o drama humano de quantos ousaram romper com o stalinismo — trotskystas ou não — recomendaria que lessem o The God that failed, livro de memórias em que Arthur Koestler, Ignazio Silone e Richard Wright (os que viveram o drama de dentro, por ter pertencido aos quadros do PC), e André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender (os que foram simpatizantes) relatam suas experiências; ou esta obra humana a todos os títulos que é Memórias de um revolucionário de Victor Serge. Lendo esses livros, farão idéia do impacto da nova esperança alimentada pela grande máquina de propaganda, além do isolamento a que foram submetidos os que romperam. Não se credite tudo à propaganda — afinal, não há produto que se venda à base da propaganda, se não é bom, ou não aparente sê-lo.

A revolução de 1917 procedeu de um ano o fim da hecatombe de 1914-18 — e o horror dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, afora o tempo, nos faz esquecer, ou nos inibe imaginar o que foi a mortandade (o açougue, diziam os franceses), a desumanidade da Primeira Guerra Mundial, que Pierre Miquel, em livro memorável, documenta ter sido o ensaio geral da bestialidade assassina que espantou o mundo civilizado a partir de 1939. O horror das trincheiras explodia em gritos de “paz! paz! paz!”, que a incompetência de muitos sufocava com ofensivas sem sentido estratégico ou tático, cujo único resultado era a dizimação de regimentos inteiros. A promessa de paz que a revolução de 17 trouxera consigo sublevou as mentes. Quando terminavam a guerra civil e a intervenção ocidental na União Soviética (1920), o Ocidente já tinha diante de si a crise da qual o triunfo fascista, com a Marcha sobre Roma, em 1922, seria (ao lado da violenta queda dos preços em 1921) um dos primeiros sinais sérios de que a economia capitalista — que os bolchevistas haviam feito responsável pela guerra — estava enferma e enfrentava grandes desafios. Não era apenas o capitalismo, mas também o liberalismo (que sempre tinha sido visto como sinônimo do sistema econômico), que entrava em uma sucessão de perturbação graves.

Não cabe fazer a história das crises econômicas que se sucederam a partir de 1921. Cabe apenas lembrar que a de 1929 explodiu como bomba atômica sobre o sistema capitalista. Seus efeitos de radiação, estendendo-se à Europa, levaram pouco tempo depois à ascensão do nazismo. A coletivização forçada da agricultura, em 1927, havia produzido, na União Soviética, miséria que Koestler, depois, retratou em páginas pungentes — sem que deixasse de estar sempre presente em seu pensamento a situação das grandes massas desassistidas dos Estados Unidos e da própria Europa Ocidental. Sucede que a miséria produzida pela coletivização forçada e os 20 milhões de pessoas que morreram no processo (morreram ou foram simplesmente assassinadas) — os números são os de Roy Medvedev, divulgados na União Soviética — não foram vistas nem propagadas. A crise de 1929 irrompeu sob os olhos de um mundo em que havia liberdade para descrever a miséria humana; quando ela se deu, quantos não foram os que se sentiram culpados por defender um sistema que não era capaz de dar emprego ou de comer a pessoas que apenas reclamavam trabalho? Quem lê as páginas com que Manchester descreve as migrações internas nos Estados Unidos no início dos anos 30 (The glory and the dream) compreenderá a revolta que possuiu os que se recordavam do horror das trincheiras, da frivolidade das elites da belle époque, da futilidade dos políticos da Terceira República francesa, para não dizer da estreiteza mental dos aristocratas dos regimes feudais da Europa Central.

Com o triunfo do nazismo na Alemanha — logo denunciado pelos bolchevistas como a salvação do capitalismo, mediante o acordo entre o grande capital, o exército e um partido de celerados —, foi mais fácil fazer a defesa da Pátria do Socialismo, tanto mais quanto o arquiinimigo de Stalin, Trotsky, não cessava de sustentar que a Rússia era socialista, que a burocracia poderia ser desalojada por meio de uma revolução política e que se fazia mister defender a Rússia em qualquer circunstância contra as tentativas de assalto do capitalismo.

O mito da revolução e a esperança que ela suscitara — é mister recordar, embora doa a muitos — fez esquecer durante bom tempo que Ribbentrop e Molotov, em nome de Hitler e Stalin, haviam trocado juras de amor sobre os destroços futuros da Polônia e dos Estados Bálticos; que a invasão da Polônia e da Bélgica, em 1939, encontrou os partidos comunistas quietos em suas posições, apenas condenando a “guerra interimperialista”. A invasão da União Soviética, em junho de 1941, foi o perdão que Hitler deu a Stalin por ter pactuado com a Alemanha nazista e ter permanecido neutro no conflito, enquanto a França era forçada a render-se. Foi essa invasão, também, que mudou a postura dos partidos comunistas — que então, vendo sangrar a Pátria Mãe do Socialismo, se engajaram com vigor na Resistência, pretextando ter sido os primeiros e os únicos a opor-se aos nazistas. O sacrifício de 20 milhões de soviéticos, nos campos de batalha ou de extermínio, e a relevância da contribuição militar soviética para a derrota do nazismo fortaleceram a antiga esperança. Será inútil tentar esconder os fatos que estão gravados na História — e para que se tenha idéia do clima em que se vivia no mundo, cito caso passado num país de pouca importância política para a União Soviética de Stalin, como o Brasil: pessoa amiga, simpatizante do PCB, ao ver minha assinatura juntamente com a de mais 17 (eles eram de fato intelectuais, eu era apenas estudante) denunciando o Congresso da Paz de 1949 como uma manobra do PCUS, louvou minha coragem...

O que sempre me deixou surpreso ao refletir sobre essa postura tipificada na esperança foi o fato de os cerca de 60 milhões de mortos do stalinismo (na União Soviética já se admite como certo número próximo a 40 milhões, sem contar aqueles milhões que foram transferidos para a Sibéria por suspeita de colaboração com o nazismo) pouco contarem para quantos se condoíam com a sorte de seis milhões de judeus, às vezes se esquecendo dos milhares de outros seres humanos assassinados nos campos de concentração nazistas. Era uma diferença estética essa que se fazia entre os mortos do stalinismo e os do nazismo. Eticamente, os crimes eram iguais, mas, como as razões ideológicas que haviam conduzido ao açougue stalinista tinham sido diversas, os 60 milhões deixaram de existir. Da mesma maneira como os milhões que o Khmer Rouge massacrou no Camboja não se mencionam nos círculos bem-pensantes preocupados com os crimes de guerra no Vietnã. Nunca consegui entender o porquê desse juízo estético formulado por pessoas da maior respeitabilidade intelectual e, por que não afirmá-lo?, moral. Até agora não consigo compreender como a supressão das liberdades civis e políticas e os 60 milhões de mortos (inclusive toda a velha-guarda bolchevista, a que criara a esperança!) contaram pouco diante do fato alegado de que o regime bolchevista havia resolvido os problemas da fome, da saúde e da educação. Ao tentar compreender a pequena importância emprestada às liberdades e à vida humana, a resposta que pude dar ao que me entristecia foi que esses intelectuais faziam do seu humanismo visão estreita e dir-se-ia inspirada pelo mais cru materialismo, transportando o reino da Liberdade para o da satisfação das necessidades materiais. Respeite-se a opção — mas então teria sido logicamente necessário lembrar que o nazismo, quando sua máquina de propaganda rivalizava com a da Internacional e seduzia outros intelectuais, também apontava o fato de no III Reich não haver mais fome, de todos terem escola, de os problemas de saúde terem sido resolvidos e de haver “alegria pelo trabalho” — para os “arianos”, evidentemente.

Será sempre difícil explicar a sedução que até hoje a União Soviética exerce sobre muitos — embora, possivelmente, o que parece difícil se torne simples se pensarmos, com algum cinismo, que o vencedor tem sempre a facilidade de atrair as simpatias dos que se dizem neutros. Na guerra de propaganda, a União Soviética tem-se revelado desde o início um winner. Pouco adiantou Kruchev crucificar Stalin no XX Congresso do PCUS. Muitos, então, se deram conta de que os escritos reunidos no The God that failed, de 1949, eram reais e o regime stalinista não fora o mar de alegria em que haviam navegado por anos a fio. Reforçou-se, a partir daí, o pequeno número dos que denunciavam a União Soviética. Os vencedores, porém, têm sempre a ajuda da sorte: divulgado na versão obtida pelas autoridades norte-americanas, o Relatório Kruchev sofreu logo a objeção da fonte: “Obra da CIA”. Depois, quando se soube, nos círculos bem-pensantes, que ele era verdadeiro, o Ocidente demonstrou mais uma vez que sabia jogar fora as suas grandes oportunidades: coincidente à irrupção da Revolução Húngara, os pára-quedistas ingleses e franceses desceram em solo egípcio e Israel iniciou sua ofensiva contra o coronel Nasser, que havia nacionalizado a Companhia do Canal de Suez. Com isso, os tanques soviéticos em Budapeste e o assassínio de Imre Nagy e Paul Maleter (afora o de milhares de outros combatentes da liberdade) ficaram pequenos diante do fiasco imperialista em Suez. O curioso é que o crédito pela derrota anglo-franco-israelita foi dado à União Soviética, cujo governo fez a ameaça de soltar seus foguetes balísticos com ogivas nucleares contra a Inglaterra e a França, se não suspendessem as operações, e não a Eisenhouwer, que fizera saber a Londres e Paris, sem alarde, que reduziria a libra esterlina e o franco francês à expressão mais próxima do nada. Coisas da propaganda e da contrapropaganda...

Cabe ver que muito do crédito dado ao stalinismo — foi ao “Guia genial de todos os povos”, como a propaganda chamava Stalin, que se atribuiu, antes de mais nada, o triunfo soviético em todos os setores, do econômico ao militar — decorreu do fato de a Internacional haver difundido, insistindo nela até a exaustão, a tese segundo a qual fora graças ao PCUS, sob a liderança de Lenin e depois de Stalin, que a União Soviética se transformara de nação feudal em país industrializado. Em meio à crise que hoje desagrega a URSS, talvez seja de menor importância voltar a esse ponto. É preciso, no entanto, dizer alguma coisa sobre ele, pois há em muitos ambientes brasileiros, políticos, militares e sindicais, a firme convicção de que a perestroika só pôde acontecer porque, antes disso, o PCUS fizera a transformação redentora, resolvendo os problemas sociais da população. Um exemplo de como a propaganda pode desviar o raciocínio de seu leito muitas vezes racional se encontra no livro de Aganbeguiam “A revolução na economia soviética”, onde afirma candidamente: “A Rússia, como é sabido, era um país essencialmente agrário e excessivamente atrasado. Ocupava o quinto lugar mundial pelo volume de produção industrial, e o quarto na Europa, enquanto pela importância de sua população (143,5 milhões de habitantes) ultrapassava a América e os países da Europa” (grifos meus). E segue, furtando-se às comparações: “Em 70 anos de poder soviético, a URSS tornou-se um Estado industrial poderoso...”. Depois de mostrar as dificuldades — sem dúvida alguma reais — enfrentadas pelo poder soviético após a revolução, a intervenção ocidental e a guerra civil, a NEP e a coletivização da agricultura, o conselheiro de Gorbachev dá como triunfo o fato de que a URSS, em 1941, produzisse “já 10% da produção industrial mundial”. E cita como realizações o fato de, em relação a 1913, a produção industrial haver crescido oito vezes (13 na indústria pesada), a produção agrícola 1,4 vez, os investimentos seis vezes, e o transporte de mercadorias sete vezes (1).

Ora, sem negar, pelo contrário insistindo em que a URSS, na década de 80, era a terceira economia do mundo, só perdendo em valor do PIB para os Estados Unidos e o Japão, é importante assinalar que esse fato ou feito (como queiram), não brotou do nada; que das ruínas da Guerra Civil não poderia ter nascido em 20 anos uma potência industrial se não houvesse na sociedade russa — ainda que dilacerada pelos conflitos armados internos, de uma enorme brutalidade — os meios necessários para que a retomada do crescimento fosse possível. Esses meios eram os de sempre: Capital (é preciso ter presente que os ativos imobilizados sofreram muito com a guerra civil), o Homem (as agruras dos combates de novembro de 1917 a novembro de 1920, quando as últimas tropas “brancas” embarcam na Criméia, não podem ter provocado uma sangria descomunal nos quadros técnicos intermediários), e a Tecnologia. Esse é o ponto crucial, pois a ele se liga a questão da organização da produção, das normas de trabalho, das relações de poder dentro das unidades produtivas. O Exército Vermelho espelha bem a interligação dos três aspectos do problema, pois foi apenas depois que a organização (portanto a tecnologia disponível) se impôs (o depoimento é de Trotsky em “Minha Vida”), com o auxílio dos oficiais (fator, humano qualificado) do Exército czarista, é que foi possível vencer os “brancos” e a intervenção ocidental. Em outras palavras, a sociedade russa de 1917 — com mais razão a de 1914, antes que as batalhas da Primeira Guerra causassem a usura facilmente imaginável — tinha em si, ainda que desigualmente distribuído, um estoque de Capital, de Homem e de Tecnologia suficiente para permitir que, após quatro anos de guerra externa e mais três de guerra civil, fosse possível retomar o caminho do desenvolvimento econômico. Quero com isso dizer que as dificuldades que o poder soviético encontrou para realizar o progresso material foram mais de ordem política (o regime político e a concepção de como deveria organizar-se a produção) do que propriamente de ordem material e tecnológica. Tanto essas reservas se haviam acumulado, que a taxa média de crescimento do PIB, de 1860 a 1913, foi de 5% ao ano, porcentagem nada desprezível.

O ponto sobre o qual desejo insistir é que não foi a ausência de condições materiais — o desenvolvimento das forças produtivas — que embaraçou desde o início os progressos do Estado soviético, mas, sim, foram as condições políticas em que se procurou realizar seu desenvolvimento. Não pretendo negar a evidência de que a Rússia czarista era, em 1913, uma sociedade que se poderia dizer agrária. Quero assinalar tão apenas que a partir da guerra da Criméia, em 1852/56, a autocracia russa tomara consciência de que a Rússia era “quer mais fraca, quer mais pobre do que as potências de primeira classe, e ademais mais pobre não só em recursos materiais, mas também mentais, especialmente em assuntos administrativos”. Essa pungente reflexão do grão-duque Konstantin Nikolayevich, citada por Paul Kennedy, estaria na base de todos os esforços que, a partir do final do século, se fizeram no sentido da construção de uma rede ferroviária, da industrialização assente na produção de carvão, ferro e aço e empresas de grande porte. Essa decisão, mesmo acompanhada da abolição da servidão no campo, desenvolveu, mas não modernizou o país — e Kennedy aponta com razão que seria difícil fazê-lo, dado o aumento anual do número de camponeses não educados e o elevado número de analfabetos na população global.

São as condições político-institucionais — a autocracia, a excessiva intervenção do Estado em todos os assuntos internos que pudessem dizer respeito à segurança do território, dada a ameaça das potências estrangeiras, e ser impeditivos da marcha colonial para Leste, afora as condições de vida das populações rurais — que fazem que o PIB russo, que é o primeiro das potências européias de 1830 a 1850, ceda o passo exatamente dessa década (a da segunda revolução industrial) em diante, chegando, em 1890, na terceira posição. Sem falar no declínio do PIB per capita, praticamente estável de 1830 a 1860, crescendo em 1870, para, daí em diante, declinar até 1890, quando acusa marcas pouco superiores às de 1830. Nesse fim de século, a Rússia coloca-se em sexto lugar na lista das seis maiores potências européias. Esses dados podem ser associados a outros: em 1914, a renda nacional da Rússia era de sete bilhões de dólares contra 37 dos Estados Unidos, ficando ela no sétimo lugar numa lista de oito potências, incluindo-se nela os Estados Unidos. A renda per capita, em 1914. era de 41 dólares contra 377 da registrada para os Estados Unidos — e a posição relativa da Rússia na lista das oito maiores potências é a oitava...

Estamos, assim, diante de uma nação que é, a um tempo, forte e fraca, como assinala Kennedy. Forte por sua produção industrial, que a tornava, em 1914, a quarta potência industrial do mundo, com uma produção de aço, nesse ano, superior à da França e à da Áustria-Hungria; igualmente era de notar-se que a indústria têxtil continuava crescendo em volume; que a produção de carvão saltara de 6 milhões de toneladas, em 1890, para 36 milhões, em 1914; que a rede ferroviária era, em extensão, maior do que a da Alemanha (embora a imensidão do território russo a tornasse pequena, relativamente). Os fatores de fraqueza vinham do peso da massa rural sobre a população — especialmente gravoso esse peso, se se atentar para a qualidade, especialmente a educação, e para outra circunstância, que era o alcoolismo. Aos fatores de ordem demográfica, há-de se acrescer a deficiência tecnológica em geral. Ela impunha servidões à indústria e à sociedade, mas ainda não tão grandes que impedissem o desenvolvimento da indústria. Outro fator que — tendo em vista a concentração operária nas cidades, especialmente São Petersburgo e Moscou — contribuiu para o avanço, lento, mas ainda assim avanço tecnológico (indiscutivelmente menos rápido do que o registrado na Alemanha e na Grã-Bretanha, para não falar nos Estados Unidos): a penetração do capital estrangeiro que se vinha realizando na Rússia, na extração de petróleo, na mineração, na indústria metalúrgica, química e mesmo têxtil. As vantagens da mão-de-obra barata, que pudessem atrair os investimentos estrangeiros, não impediram que, com o capital e o controle administrativo, os estrangeiros trouxessem consigo uma certa tecnologia... Nesse terreno, não se estabelece acordo entre os historiadores; uns adotando a posição que Lenin vulgarizou, segundo a qual a maior parte da indústria russa estava em mãos de investidores estrangeiros; outros, como Clarkson, apontando para evidências de que novos investimentos nas áreas industriais críticas já estavam sendo feitos por capitalistas russos em 1913.

É preciso ter presente — e as análises que Trotsky faz do processo que conduziu à revolução de 1917 apontam nesse sentido — que havia duas Rússias distintas: a industrial e a rural. A Rússia urbana era combativa e conseguia arrancar, pelo desenvolvimento do espirito reivindicatório meramente econômico-corporativo das classes sociais em formação, concessões sobre concessões da autocracia, como, por exemplo, o reconhecimento da existência de sindicatos operários e, já em 1912, leis sobre seguros de acidentes do trabalho e um sistema de seguro saúde com contribuições dos trabalhadores, dos patrões e do Estado, sistema esse colocado sob controle dos operários, como assinala Clarkson na sua A history of Rússia.

Na Rússia, escrevia Trotsky em 1906, poderia dizer-se que até o capitalismo fora criação do Estado. Tinha razão: o aparato burocrático da autocracia, em parte devido à estrutura social do país, em grande parte para fazer face às ameaças externas e à necessidade de expansão colonial para o Leste, a burocracia corrompida tudo dominava e tudo superintendia. Inclusive o sistema financeiro, estatal, voltado para a industrialização, mas não para a Agricultura (2).

Esses números e essas reflexões têm por objetivo tão-só mostrar — sem buscar desmerecer o que se fez, dadas as condições adversas criadas pela Guerra Civil — que o PC não encontrou a Rússia de 1917 como um país feudal e essencialmente atrasado.

Cabe aqui mencionar as reformas realizadas por Stolypin, depois da revolução de 1905, as quais embora combatidas em sua implementação, buscavam na teoria dar aos camponeses proprietários de pequenos lotes uma maior autonomia diante não dos latifundiários, mas das aldeias, das comunas agrárias da velha tradição russa, que decidiam sobre o que plantar nessa época do ano e não naquela, com isso desestimulando o produtor individual. Por outro lado, dizer que foi graças ao domínio soviético — e aos 60 milhões de mortos — que se superaram os problemas decorrentes da carência é desconhecer a realidade em que se vive, hoje, na União Soviética, 73 anos depois da tomada do poder e de brutal exercício desse mesmo poder.

A expressão “nova pobreza”, que emprego no título deste opúsculo, não é minha; lia-a no livro de Ernst Mandel Além da perestroika. Mandel, como se sabe, é renomado pensador trotskysta. No volume I dessa obra, pode ler-se, a certa altura, que a experiência soviética conduziu a uma “nova pobreza” “em grande escala no país. Dezenas de milhões de pessoas, entre as quais os inválidos, os estropiados, os mutilados, os deficientes, as viúvas, as mães chefes de família (ainda se diz ‘mães abandonadas’, na URSS), os vagabundos alcoólatras, os jovens marginalizados vivem, de longe, abaixo do nível vital. Uma fração não negligenciável de trabalhadores das categorias mais mal remuneradas vivem igualmente abaixo do mínimo vital. Segundo o professor Leonid Gordon (entrevista publicada no Notícias de Moscou, em 3 de janeiro de 1988), o mínimo vital está situado atualmente em torno de cem rublos por habitante e por mês. Nos serviços, o salário médio não vai além de 117,3 rublos mensais. Dois salários, nesse setor, devem manter no mínimo três pessoas — para não dizer quatro por família, caindo assim abaixo mínimo vital!” (3).

A situação, em 1988, não seria tão diversa daquela encontrada em 1913 — com o que, se se deseja ver os fatos honestamente, com olhos de ver e compreender, pode chegar-se à conclusão de que a morte de 60 milhões de pessoas foi em vão, na medida em que o que se realizou nesses 70 anos de maneira alguma foi uma proeza, pois não é grande feito sair de um ponto e chegar a ele, dando longas e penosas voltas, décadas depois.

A descoberta desse truísmo por parte dos que haviam acreditado na esperança deu-se por etapas. Após o relatório Kruchev, foram precisos 12 anos para que, invadida a Tchecoslováquia e esmagada a Primavera de Praga, se começasse a dizer que havia um “socialismo real”, pecaminoso, imperialista, mas havia também outro em que a liberdade seria construída pela Sociedade Civil sob formas democráticas. Em 1968, voltou-se inconscientemente a 1945, quando o mundo descobrira que havia dois socialismos: o soviético, possivelmente responsável por alguns excessos na repressão à liberdade, e o socialismo democrático triunfante na Grã-Bretanha com a vitória do Partido Trabalhista, a nacionalização das minas de carvão, da indústria do aço e do Banco da Inglaterra, e o estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde. A partir do fim da Primavera de Praga, passou-se a discutir na Europa as novas formas que poderiam assumir as relações econômicas e sociais num socialismo diferente do “real”. Com isso, aos poucos, voltou-se a cuidar de situar a Liberdade no reino que sempre fora seu, o do Espírito.

A esperança, a fé na revolução humana que se estaria fazendo na União Soviética, só se desvaneceu quando as realidades do poder impuseram a todos a certeza de que o “socialismo real” era de fato real! Muito diferente daquele que se aprendera nos livros, cabe ressaltar. Foram precisos anos, no entanto, para que a verdade saltasse aos olhos dos que se recusavam a ler o que se tinha escrito, muitas vezes com sangue, a respeito da União Soviética e do stalinismo (e algumas vezes, poucas, mas pungentes, do próprio período leninista).

Talvez o tempo necessário para abrir, hoje, os olhos de intelectuais e empresários a respeito das realidades da economia possa ser menor do que os 73 anos já vividos desde 1917, ou os 61 que decorreram da crise de 1929 — graças, dessa vez, ao fato de os líderes soviéticos terem dado o sinal de alerta: a sociedade e o Estado soviético correm riscos porque a economia está estagnada. Mais importante, eles diagnosticaram a doença: a produção estagnou porque se desprezou, durante décadas, o mercado.

Os textos que apresento em seguida têm em comum, apesar de produzidos em diferentes épocas, uma coisa que poderá parecer insólita: escritos por marxistas ilustres, tendem a mostrar que para eles, que pensaram sobre a revolução ou a fizeram, o mercado é realidade diante da qual cessam os argumentos dos maus teóricos. O mercado e a moeda! A esquerda sempre desprezou ambos. Por isso, no debate em torno do “socialismo real”, os críticos do que se passava na União Soviética — os críticos de esquerda, bem entendido — fixaram-se nos aspectos políticos da ascensão da burocracia, nos sociais da existência da nomenklatura e na separação entre a economia militar e a economia civil. Poucos se lançaram à análise dos problemas econômicos gerais que, depois da crise de 1973, começaram a surgir na Europa Oriental. Os que não entendiam da moeda, pretendendo entender de economia marxista, fizeram por desconhecer as leis gerais da economia e cuidaram da União Soviética e dos países do bloco socialista como se, neles, a contabilidade nacional fosse diversa da que se faz nos países do Ocidente. Isso, apesar de a inflação provocada pela alta dos preços do petróleo, em 1973, haver atingido duramente todos os países do bloco soviético.

 

 


 

 

A lição da vodca

 

 

É preciso, pois, começar por uma lição de economia — exposição de fatos e não de teorias.

O alcoolismo sempre foi um problema russo. Clarkson, no livro citado, diz que no fim do regime czarista se fizeram esforços para impedir essa praga social, limitando o quanto cada freguês poderia comprar de espíritos. Os camponeses encontraram a solução: ficar sóbrios até acumular álcool suficiente para tomar uma bebedeira... A carraspana dos mujiks e dos habitantes das cidades tem muito a ver com o que se pretende demonstrar.

A perestroíka não é o triunfo do capitalismo na União Soviética. E possível que ao fim e ao cabo alguém diga que esse é o rumo para o qual marcham as coisas, e todos acreditem, pois parece que se chegará lá. Na verdade, porém, crer em que as mudanças pretendidas de início por Gorbachev tiveram o sentido da restauração capitalista é mentir para dentro, não compreender a realidade dos processos histórico-políticos. A nova política econômica que Gorbachev procurou introduzir na União Soviética foi, assim a entendo, uma tentativa extrema de mobilizar energias políticas (evidentemente humanas) para impedir que o Estado soviético — aqui entendido no sentido amplo de organização “estatal”, “social” e “humana” — desaparecesse tragado pelas contradições que se criaram entre as necessidades da sociedade e as relações de produção ditadas pelos interesses da burocracia, cujo domínio sobre o país não decorre da implantação do bolchevismo, mas deita fundas raízes no passado russo. É por pretender reformar uma sociedade em que a burocracia tem privilégios e poderes, que remontam não se sabe a que século, que a proposição de Gorbachev é de difícil realização na moldura do Estado conhecido como URSS e sob o domínio do PCUS.

A rigor, as “necessidades” não são apenas da sociedade; são igualmente do Estado soviético (agora no sentido estrito do termo), consumido por déficit público de magnitude não conhecida, mas enorme (guardadas as proporções do PIB, igual ou maior do que o norte-americano), além de aprisionado pelas distorções teórico-práticas a respeito do papel do Estado como supridor de capitais e da função do déficit público no desenvolvimento econômico.

A percepção de que algo andava errado na União Soviética não é de Gorbachev: Kruchev já detectara boa parte dos problemas. O antigo secretário-geral teve o mérito histórico de denunciar os crimes de Stalin, abrindo caminho para que a história da revolução fosse escrita com objetividade maior. As reformas que pretendeu realizar na economia, no entanto, ou por mal formuladas, ou por encontrar resistências burocráticas insuperáveis, malograram. Depois dele, apenas Andropov, egresso dos quadros da KGB, soube ver onde residiam alguns dos problemas mais graves e tentou atacá-los. Vencido pela idade, nada pôde fazer a não ser denunciar, com estardalhaço, o perigo que o alcoolismo representava para o poder soviético.

As reformas de Gorbachev vieram na linha que Andropov começara a traçar; curiosamente, uma das primeiras e a mais rica em experiências a respeito do que seja o sistema econômico foi aquela com que se pretendeu combater o alcoolismo, simbolizado no alto consumo de vodca. Ao observar o ardor com que Gorbachev investiu contra a vodca e os álcoois em geral, ressalta como aspecto curioso o fato de esse “quadro” bolchevista, de superior nível intelectual, conhecer pouco ou quase nada do funcionamento do sistema econômico. Ousaria mesmo dizer que foi a experiência com a vodca que alertou o governo soviético para as dificuldades de proceder as reformas profundas sem o apoio de largas camadas da população e sem atentar para a racionalidade do processo econômico. Esse apoio só poderia ser obtido, vencendo as resistências burocráticas, pelo apelo ao consumo; pelo aceno da perspectiva de um melhor nível de existência material nos lares, da possibilidade de o cidadão soviético médio poder desfrutar de um padrão de vida semelhante aos dos cidadãos da Europa Ocidental. O apelo ao consumo, a sedução do bem-estar — casa individual e eletrodomésticos e itens de vestuário.— poderia convencer setores da população da necessidade de fazer pressão para que o cliente fosse ouvido (ainda que de maneira descoordenada) pelos burocratas produtores. A mobilização da opinião, no entanto, só se poderia dar a partir do momento em que houvesse liberdade de crítica e em que os cidadãos que conservam o traço místico do caráter russo pudessem se exprimir, reclamando o que entendem ser uma reforma moral da sociedade soviética. A questão fundamental subjascente à glasnost e à perestroika é, pois, conciliar a liberdade de crítica com o papel dirigente do PCUS. Gorbachev e seus aliados tiveram o problema em mente, e a hegemonia do partido na sociedade e no Estado já não existe.

Voltemos à vodca, parte importante desse processo, não apenas do ponto de vista econômico, como também do político e psicossocial. Um dos biógrafos de Gorbachev, Zhores Medvedev, irmão do historiador Roy e residente na Grã-Bretanha, retrata com fina ironia o problema da “guerra à garrafa” no início da era Gorbachev.

O alcoolismo assumira, na União Soviética, as características de calamidade pública que o haviam marcado no período czarista. Naquele então, a calamidade era tamanha que a venda de vodca foi proibida no início da guerra de 1914. A medida manteve-se durante todo o período da vida de Lenin e o início da era de Stalin. Em 1927, contudo, relata Medvedev, não tendo numerário para sustentar o Estado, Stalin legalizou a vodca: “A produção e a venda de vodca e outras bebidas alcoólicas foram introduzidas em 1927 por motivos econômicos. Stalin não hesitou ao falar a esse respeito em entrevista concedida a uma delegação de trabalhadores estrangeiros. Era importante ‘... introduzir o monopólio estatal da vodca para obter o capital de giro necessário ao desenvolvimento de nossa industria com nossos próprios recursos, evitando assim a submissão aos estrangeiros’. Em 1927, o Estado recebeu cerca de 500 milhões de rublos provenientes da venda da vodca, ou seja, 10% de seu orçamento...”. A contribuição da rubrica “álcool” na receita do orçamento soviético foi em crescendo: em 1972, para um orçamento de 175 bilhões, a vodca canalizava para o Estado 19,2 bilhões. Por volta de 1983, as vendas de vodca representavam cerca de 15% do movimento comercial do país. A venda de vodca e bebidas alcoólicas em geral estava-se tornando “claramente uma parte cada vez mais importante do orçamento do Estado”.

A questão, assinala Medvedev, é que os custos sociais do alcoolismo passaram a ser maiores do que os impostos arrecadados: aumento da criminalidade, baixa da produtividade, aumento do absenteísmo, aumento do número de crianças, problema com pais alcoólatras, redução da expectativa de vida, aumento do número de acidentes de trânsito. Em maio de 1985, o Comitê Central do PCUS, o Conselho de Ministros e o Praesidium do Soviet Supremo adotaram medidas para conter o consumo de bebidas alcoólicas, estabelecendo penas de multa elevadas e de prisão com trabalho forçado para determinadas infrações. Em 1988 deveria ter terminado a produção de bebidas alcoólicas de frutas e grãos.

Estabelecida a proibição, o sistema econômico funcionou para desespero dos que acreditavam que fatos econômicos se combatem com decretos. Cito esse trecho do livro de Medvedev, apesar de longo. Ele é ilustrativo, tanto mais se considerarmos que em 1988 se descobriu, para espanto geral, que o açúcar de beterraba se tornara bem escasso em muitas regiões da URSS, porque era aproveitado para produzir, clandestinamente, bebida alcoólica de má qualidade. Eis o que diz Zhores Medvedev a respeito das conseqüências econômicas dos decretos antivodca:

“A nova política a princípio foi recebida com aprovação. Mas no final de 1985, as conseqüências começaram a aparecer. Na maioria das lojas de alimentos, o álcool era a única mercadoria rentável à venda. Uma vez retirado, os lucros caíram e os salários e bonificações do pessoal foram afetados. Demorou algum tempo para serem abertas lojas especiais de bebidas alcoólicas (popularmente conhecidas como ‘os últimos bolsões de resistência’) e todos os dias formam-se filas enormes (chamadas de ‘laços de Gorbachev’) à sua porta. Muitas vezes as pessoas esperam horas na fila para comprar o maior número possível de garrafas. Os que bebem socialmente e só querem conseguir vinho para festas e comemorações têm a mesma dificuldade de aquisição que os alcoólatras. O mercado negro de vodca e vinho proliferou, e os preços chegam a atingir o dobro ou o triplo dos oficiais. No final do último ano agrícola, milhões de toneladas de frutas ficaram apodrecendo nos campos. As destilarias de vinho e de vodca haviam recebido instruções no sentido de começar a produzir sucos de frutas, aguardente de suco de frutas, Kvas e outras bebidas não alcoólicas, mas não tinham equipamento para fazê-lo. Muitas fazendas coletivas do Azerbaijão e da Moldávia, que plantavam frutas e vinhedos, estavam quase falidas no fim do verão. A produção de vodca foi reduzida em 30 ou 35%, mas como resultado da diminuição da renda e da moeda circulante, muitos trabalhadores ficaram sem receber sua bonificação habitual de fim de ano. Os tribunais estavam cheios de pessoas que haviam infringido as novas leis. O número total de casos não é conhecido, mas uma nova rede de instituições penais foi instalada para suplementar o grande número já existente de campos de trabalho para prisioneiros. Presume-se que a idéia por trás das novas colônias penais era que é contraproducente misturar bêbados com criminosos comuns. O decreto de 17 de setembro de 1985, que oficializa essas colônias, tornou possível transferir pessoas julgadas e condenadas por crimes de bebida antes de setembro, e também criminosos primários infratores de outras leis” (4).

A lição deve ter aproveitado à liderança soviética: a produção e venda de bebidas alcoólicas produziu receita para o Estado; o alcoolismo fez o Estado ter despesas para acudir mal e parcamente às conseqüências sociais negativas da praga social; o combate ao alcoolismo determinou a criação de uma nova rede de instituições penais, com custos de instalação e despesas de manutenção... Afora, um ano depois, o açúcar começar a faltar à população. E meses depois, ter-se liberalizado a venda de espíritos!

 

 


 

 

Os objetivos da reforma

 

 

Quando se fala da economia soviética, é preciso ter presente que, apesar de todos os seus vícios estruturais, ela é a terceira ou quarta economia do mundo. Para que aquilo que Gorbachev chama de “reestruturação” (perestroika) se tenha tornado necessário, foi preciso que esses vícios tivessem produzido danos à altura da grandeza do PIB soviético — o que significa que a deterioração da economia começou a afetar o Estado, sua capacidade militar e seu domínio, ou pelo menos o domínio do Partido sobre a população. O mito construído durante a guerra civil (da revolução até o fim da intervenção em 1920) já não pode ser usado para justificar malogros; a teoria do “cerco capitalista”, tão cara a Stalin até a assinatura do tratado com Ribbentrop, e depois do ataque nazista em 1941, da mesma maneira não explica mais coisa alguma; o argumento da “Grande Guerra Patriótica” nada esclarece, pois se está em paz; a “guerra fria” não pode ser mais dada como responsável pela crise econômica. Inexistindo argumentos reais ou fictícios para mascarar os erros da burocracia e os vícios da estrutura econômica, só restava a Gorbachev um caminho: atacar o mal pela raiz. É, assim, na economia soviética, nas relações entre o partido, o governo, os gerentes de fábricas, os responsáveis pela produção agrícola e, sumamente importante, entre toda essa estrutura e os trabalhadores rurais e urbanos que se devem buscar as causas de tantos males que afligem a sociedade soviética.

Qual é o objetivo da perestroika? No relatório apresentado à reunião plenária da Comissão Central do PCUS em 27 de janeiro de 1987 — “Sobre a organização e a política do Partido no domínio dos quadros” —, Mikhail Sergueievitch Gorbachev afirmava: “O XXVII Congresso do Partido [realizado em fevereiro e março de 1986] nos incumbiu, a nós, membros da Comissão Central, da grande responsabilidade de assegurar a materialização da linha estratégica orientada para a aceleração do desenvolvimento sócio-econômico do país. É precisamente assim que o Bureau Político encara a situação e o papel da Comissão Central na presente etapa da vida da sociedade soviética”. Mais adiante, dizia: “Foi exatamente nesta situação, camaradas, que levantamos a questão do desenvolvimento sócio-econômico acelerado do País e da reorganização. Trata-se, de fato, de uma virada e medidas revolucionárias. Falamos na reorganização e nos processos a ela ligados de uma profunda democratização da sociedade, tendo em vista autênticas transformações revolucionárias e globais da sociedade. Tal reviravolta radical é necessária, pois não temos outro caminho. Não podemos recuar e não há para onde recuar. Devemos seguir, conseqüente e firmemente, a política do Plenário de abril de 1985 da CC e do XXVII Congresso do PCUS, avançar e levar a sociedade a um nível qualitativamente novo de desenvolvimento” (5).

Em 1988, no Relatório à XIX Conferência Nacional do PCUS, em 28 de junho — “Sobre o curso da realização das decisões do XXVII Congresso do PCUS e as tarefas de aprofundamento da perestroika” —, o secretário-geral voltava a acentuar a urgência e a necessidade das reformas: “Os três últimos anos da vida de nosso país podem, com toda a razão, ser considerados como anos de uma importante mudança. Graças aos esforços do Partido e dos trabalhadores, foi possível impedir que nosso país continuasse a deslizar para uma crise nos domínios econômicos, social e espiritual. Atualmente, a sociedade conhece e compreende melhor o seu passado, o presente e o futuro. A política da perestroika, traduzida em programas sócio-econômicos concretos, está-se tornando obra de milhões de pessoas”. (6)

Em que se traduz essa crise tão grave, cuja solução deve ser radical e urgente?

No documento “Tarefas do partido no âmbito da reestruturação do sistema de gestão da economia” — relatório apresentado ao plenário da CC do PCUS em 25 de junho de 1987 —, Gorbachev investe contra “preguiçosos, vadios e ladrões” que “vivem à custa dos outros e à vontade”. E alerta: “Os trabalhadores estão preocupados, e a preocupação é legítima, camaradas”. Por toda parte, o secretário-geral vê “indisciplina, negligência, má administração e irresponsabilidade” (7). Essa postura social patológica — causa e conseqüência — sem dúvida alguma contribuiu para que se delineasse, na segunda metade dos anos 70, aquilo que “à primeira vista parecia inexplicável”. Como diz o secretário-geral a respeito da reestruturação no livro que escreveu para divulgá-la: “O país começou a perder impulso. Os insucessos econômicos eram mais freqüentes, as dificuldades começaram a se acumular e deteriorar, e os problemas não solucionados multiplicaram-se. Começaram a aparecer na vida social elementos do que chamamos de estagnação e outros fenômenos estranhos ao socialismo. Formou-se uma espécie de freio que afetou o desenvolvimento sócio-econômico. E tudo isso aconteceu numa época em que a revolução científica e tecnológica abria novos horizontes para o progresso econômico e social”. Mais adiante, ele investe contra os aspectos da crise moral: “Começou a decadência da moral pública: o forte sentimento de solidariedade forjado durante os tempos heróicos da revolução, dos primeiros planos qüinqüenais, da Grande Guerra Patriótica e da reabilitação pós-guerra estava enfraquecendo. O alcoolismo, o consumo de drogas e o crime aumentavam. A penetração de estereótipos da cultura de massa estranha à nossa [cultura] gerou vulgaridade e mau gosto, aumentando a aridez ideológica”. (8)

Há um livro sumamente interessante para aqueles que desejam compreender o fenômeno soviético moderno: “Capitalismo, comunismo & coexistência” em que J. K. Galbraith reúne conversações suas com o economista soviético S. Menshikov, que integra o corpo editorial da revista World Marxist Review, editada em Praga. A análise que Menshikov faz da crise é dramática, porque não há nele nenhum apelo político, pelo contrário presente sempre nos escritos de Gorbachev. A crise, segundo o economista, decorre da carência de mão-de-obra que começou a verificar-se nas cidades na década de 1970, “até secar completamente”. Afora essa falta de trabalhadores para a indústria, a visão distorcida do que deve ser a economia socialista agravou o problema: “Ao mesmo tempo, nós passávamos a utilizar os trabalhadores empregados com uma eficácia cada vez menor. A eficiência de nossos trabalhadores não era tão alta quanto nós gostaríamos que fosse: até pelos nossos padrões, ela era baixa. Muitas fábricas acumularam um excesso de trabalhadores, que recebiam salários, mas eram mantidos como que na reserva, sendo aproveitados somente quando se tornavam necessários, por exemplo, quando era desejável aumentar a produção subitamente no final de um período de planejamento”. Não apenas isso: também a crise do petróleo. A alta dos preços de petróleo, gás e carvão em 1973 “provocou um desaquecimento da economia, particularmente nos países da Europa Oriental” — a retração do mercado centro-europeu afetou a economia soviética, que tem mercados cativos nesses países.

Menshikov observa: “A União Soviética é produtora e exportadora de petróleo, de modo que não foi atingida. Mas, no início da década de 1980, nós alcançamos um limite físico em nossa produção; ela deixou de aumentar e nós permanecemos numa espécie de patamar”. (9)

Quando se lê com atenção o livro de Medvedev, a caracterização global do fenômeno é mais complexa. Em primeiro lugar, a causa da crise econômica, do que se depreende da leitura, não pode ser buscada na falta de mão-de-obra na indústria (há, aliás, no argumento de Menshikov, uma contradição: se falta mão-de-obra, como é possível às fábricas estarem “estocando” trabalhadores para os “picos” do planejamento?). Antes, pelo contrário, deve ser encontrada na diminuição do número de trabalhadores na agricultura, sem aumento da produtividade agrícola. O êxodo rural é uma das causas da crise da agricultura soviética, ao lado de outros fatores naturais e de organização da produção. Falando da colheita de 1985, Medvedev afirma que “era cada vez mais difícil manter o ritmo da colheita, pois a população rural continuava a diminuir”, apesar de poder dizer-se que, em 1985, menos pessoas saíram do campo do que em 1984. O problema, porém, é que cada trabalhador (homem ou mulher) que falta na colheita se traduz num problema para os que ficam, pois trabalham mais, e para os responsáveis pelas fazendas estatais, ou pelas fazendas coletivas. Tanto o êxodo rural é importante na crise da agricultura soviética, que, em julho de 1985, a Comissão Central e o Conselho de Ministros baixaram decreto estabelecendo que não se deveria empregar força de trabalho rural na indústria ou nas cidades em geral. “Os camponeses — diz Medvedev — mais uma vez haviam perdido sua liberdade de movimento e de escolha de trabalho”.

A crise agrícola é de difícil solução, dada a estrutura política e os preconceitos ideológicos que emperram o desenvolvimento da iniciativa individual e inibem os progressos advindos de privatização da terra, mas também em conseqüência de não haver condições de atingir a produtividade desejada, se o inverno chega mais cedo e impede a colheita e a semeadura de inverno, afora a lixiviação do solo estar reduzindo ano a ano a produtividade da terra. Não apenas o problema agrícola, porém, está na base daquela crise a que Gorbachev sempre se refere como causa determinante da perestroika. Na realidade, para usar expressão muito em voga no Brasil, a União Soviética está perdendo o trem da história, na medida em que não acompanhou como se fazia necessário os progressos tecnológicos da “terceira onda”. (Note-se que a preocupação de Gorbachev é com o setor civil da economia. O setor militar, com toda a certeza, embora possivelmente com grau de sofisticação tecnológica menor que a indústria bélica norte-americana ou européia ocidental, tem condições de competitividade.) Em abril de 1985, sempre segundo Medvedev, o secretário-geral comunicava ao plenário da Comissão Central que a aceleração do desenvolvimento industrial e agrícola dependia estrategicamente do progresso técnico e científico. Segundo ele, as fábricas soviéticas eram velhas — e os laboratórios dos institutos de pesquisa não produziam novas tecnologias. Em junho daquele ano, a Comissão Central realizou reunião especialmente dedicada aos problemas da aceleração técnico-científica. Significativamente, o relatório de Gorbachev tinha por título “A questão fundamental da política econômica da URSS”. Nesse relatório, dava-se ênfase à informatização da economia e ao desenvolvimento de tecnologias modernas.

Não apenas aí reside o gargalo da economia soviética. Os recursos materiais e as matérias-primas encontradiços na parte ocidental da URSS a custo mais baixo (em função da proximidade dos centros industriais) estavam quase esgotados, e “reinstalar a indústria na Sibéria era extremamente oneroso”. A questão das matérias-primas, especialmente, é importante nesse contexto, não tanto pelo choque do petróleo de 1973, como Menshikov fez questão de afirmar, mas por uma questão de custo de produção. Medvedev afirma textualmente: “O custo de produção do petróleo siberiano era quase o dobro do custo de produção do petróleo dez anos antes. Houve [1985] falta de energia, em parte causada pelos métodos obsoletos usados para transformar petróleo e carvão em eletricidade”. (10)

Se, em 1973, o choque do petróleo desorganizou as economias da Europa Oriental e, em conseqüência, afetou a produção soviética exportável para esses países, o antichoque que se veio delineando ao longo dos anos 80 apanhou os planejadores soviéticos de surpresa. Em 1986, a queda dos preços do petróleo no mercado internacional foi considerada pelos dirigentes soviéticos como uma conspiração das Sete Irmãs. Em março daquele ano, os preços do bruto caíram a 10 dólares o barril — e o petróleo siberiano custava mais caro. Sem dúvida, dados os laços políticos, a Europa Oriental, Cuba e o Vietnã poderiam continuar comprando petróleo russo a preços superiores aos do mercado internacional. Sucede que as vendas ao mercado internacional (82 milhões de toneladas em 1983) seriam afetadas, comprometendo a importação de tecnologia estrangeira. É importante ter presente que o petróleo, segundo os dados de Medvedev, representa 70% dos rendimentos soviéticos em moeda forte. Pela queda dos preços do petróleo, a balança comercial soviética, que tivera superávit de sete bilhões de dólares em 1984, apresentou déficit de um bilhão de dólares em 1986 (a dívida externa soviética estava, então, em 30 bilhões de dólares!). O déficit na balança comercial obrigou a reduzir a importação de cereais para a alimentação do gado, afora a aumentar o número de cabeças a ser abatidas. “Em março de 1986, diz Medvedev, o rebanho bovino, suíno e ovino nas fazendas coletivas e estatais caiu abaixo dos níveis de 1978 e, pela primeira vez em dez anos, o declínio incluía vacas leiteiras [matrizes]”. (11)

Este é o estado da economia soviética em 1985, 68 anos depois da revolução: uma crise agrícola que se vinha estendendo fazia décadas; produção industrial tecnologicamente atrasada com relação aos padrões do Ocidente; sistemas de gestão voltados menos para a eficiência do que para manter vivo o mito do “pleno emprego” (a estocagem de mão-de-obra é exemplo dessa mentalidade administrativa); crise na balança comercial e, embora só revelado mais tarde, acentuado déficit público permeando todo o processo. No relatório ao plenário da Comissão Central de junho de 1987, Gorbachev afirma a respeito da situação financeira da URSS, em linguagem quase monetarista: “temos grandes tarefas no domínio das finanças, sistema de crédito e circulação monetária. Não estamos em condições de implantar o novo sistema econômico sem as resolvermos. O maior obstáculo que encontramos nessa esfera é a forte discrepância entre as finanças, crédito e massa monetária e o volume dos bens materiais em circulação, o excesso de meios de pagamento no mercado. O rublo atual não funciona suficientemente bem como instrumento regulador da conjuntura econômica”. (12)

 

 


 

 

As causas da crise

 

 

Quais são as causas que conduziram a economia soviética a essa encruzilhada em que é preciso escolher entre a modernização e o atraso, implicitamente entre o mercado e a intervenção estatal na economia?

As causas da crise são muitas, sendo uma delas especificamente teórica — e por “teórica” quero dizer a maneira pela qual os dirigentes pensam a atividade econômica. Esse pensar a economia concreta, sem dúvida alguma, pode ser tido como fator derivado de tantos outros; se o coloco em primeiro lugar é porque a maneira pela qual se concebe a atividade econômica inspira as ações que tendem a tornar a percepção do mundo um fato real.

São muitos os cidadãos soviéticos que assim pensam. Na revista Nash sovremennik, publicada pela União dos Escritores da República Socialista Federada Soviética Russa, Mikhail Antonov escreve: “Contudo, provavelmente não devamos esperar nada mais, pois não pode haver uma reestruturação da economia e da sociedade que tenha êxito sem que se reestruture a consciência das pessoas, sem orientá-la para uma nova maneira de pensar. Em outras palavras, temos de rejeitar conceitos teóricos ultrapassados e adotar novos para enfrentar as exigências de hoje. (...) Um dos maiores defeitos da economia política do socialismo é que ela ignorou o valor de uso. (...) A razão para isso é que os mais importantes cientistas no campo da economia política do socialismo não estavam interessados no homem e em suas necessidades”. Antonov, no mesmo artigo — dele tenho cópia xerox, infelizmente sem que nela se mencione a data da publicação —, cita discurso proferido pelo acadêmico Victor Afanasyev na conferência de Todas as Sociedades de Escritores e Cientistas sobre ciência prática, realizada em 1984: “Revelar a essência do homem sob o socialismo e o comunismo significa ajudar a encontrar soluções para os problemas globais da humanidade. Para fazer isso, a economia política do socialismo deveria introduzir em seus ensinamentos a categoria do sentido da vida, da missão do homem no mundo”.

Os economistas soviéticos, ou os socialistas em geral, não estão atentos às alterações que se dão no comportamento humano e não as traduzem em regras para a direção dos políticos. Por isso Antonov os fustiga duramente: “Embora muitas pessoas estejam alarmadas pela rápida difusão de conceitos hedonistas em países socialistas, uma tendência que faz do prazer o fim último da vida, ela no mais das vezes não mereceu atenção de nossos economistas”. E concluiu essa parte de suas observações num tom altamente moralizante, que aliás perpassa todo seu artigo, em que se nota a preocupação com a queda do nível de educação e cultura do povo soviético, com a falta de interesse pela leitura e pelas coisas culturais e, conseqüentemente, com o egoísmo que, no dizer de Vasil Bykov, escritor bielo-rruso que ele cita, alterou a balança da natureza humana: “As coisas que unem as pessoas — diz Antonov —, e não as coisas que os afastam, fazem uma nação. A destruição desses laços coloca uma ameaça mortal para qualquer nação”.

As causas da crise que Gorbachev retrata são, pois, inicialmente, de origem teórica e igualmente moral: uma economia política que não cuida do valor de uso — isto é, da importância que cada bem possui para o consumidor no momento em que decide comprá-lo —, fixando-se apenas numa compreensão errônea da tão discutida lei do valor de Marx. Afora isso, há o desconhecimento, no nível da teoria, do alcance prático para a atividade econômica da ampla disseminação de valores hedonistas, da busca do prazer individual, os indivíduos esquecendo “os laços que unem as pessoas para construir uma nação”.

No Relatório de janeiro de 1987, Gorbachev cuida do problema: “A causa principal, o que o Bureau Político considera indispensável revelar com toda a franqueza no Plenário, consistiu em que a CC do PCUS e os dirigentes do país, em primeiro lugar por força de razões subjetivas, não conseguiram perceber a tempo e em plena medida a necessidade de mudanças, o perigo de crescimento das situações de crise na sociedade, e elaborar uma linha inequívoca de superação desses fenômenos e de um aperfeiçoamento mais amplo das potencialidades latentes do sistema socialista.

“Na elaboração da política e da atividade prática prevaleceram as tendências conservadoras, a inércia, a tendência de pôr de lado tudo o que não se enquadrava nos esquemas habituais, assim como a má vontade de resolver os problemas sócio-econômicos prementes.

“(...) A indicação de Lenin, de que o valor da teoria reside na reprodução exata ‘de todas as contradições que se verificam na vida’, freqüentemente era ignorada. As concepções teóricas sobre o socialismo, sob muitos aspectos, permaneceram no nível dos anos 30 e 40, época em que a sociedade estava resolvendo problemas completamente diferentes.

“(...) Tal atitude para com a teoria não podia deixar de repercutir negativamente — e fez-se sentir de fato — nas ciências sociais e no seu papel na sociedade. É um fato, camaradas, que no nosso país era freqüentemente estimulado todo tipo de teorização escolástica que não tocava os interesses ou problemas vitais de quem quer que fosse, enquanto as tentativas de análise construtiva ou de avanço de novas idéias não obtinham devido apoio”. (13)

No livro de propaganda que tanto êxito de livraria alcançou em todo o mundo, Gorbachev escreve: “Em meu comunicado de 22 de abril de 1983, durante a reunião festiva dedicada ao 113° aniversário do nascimento de Lenin, eu me referi a suas opiniões com relação à necessidade de se considerarem as exigências das leis econômicas objetivas no planejamento e sistema de computação de custos, e o uso inteligente das relações mercadoria/dinheiro, além dos incentivos materiais e morais”. (14)

O hedonismo e a crise moral aparecem referidos ostensivamente no relatório sobre a organização e a política no domínio dos quadros, de 27 de janeiro de 1987: “A conseqüência inevitável disso foi a queda de interesse pelos assuntos sociais, as manifestações de ceticismo e de falta de espiritualidade, a diminuição do papel dos estímulos morais do trabalho. Cresceu uma camada de indivíduos, entre os quais jovens, cujo objetivo na vida se limitou à prosperidade material e à vantagem por todos os meios.

“A sua posição cínica tornava-se cada vez mais belicosa, envenenando a consciência de outras pessoas e originando uma onda de parasitismo. O aumento da bebedeira e da deliqüência e a divulgação da toxícomania tornaram-se índices de queda dos costumes sociais.

(...) “Os processos negativos ligados à corrupção dos quadros da legalidade socialista revelaram-se de forma extremamente aberrante no Uzbequistão, na Moldávia, no Turcomenistão, em várias regiões do Casaquistão...”.

“É claro que as organizações do partido e o Partido em geral lutaram contra fenômenos do gênero, tendo excluído das fileiras do PCUS um número substancial de elementos corruptos, entre os quais aqueles que praticavam o peculato, o suborno e a falsificação dos índices econômicos, violavam a disciplina do Partido e do Estado e abusavam das bebidas alcoólicas. (...) Tudo o que foi dito, camaradas, comprova quão séria foi a situação que se criou em diversas esferas da sociedade, quão necessárias são profundas transformações”. (15)

 

 


 

 

O plano e o mito

 

 

A visão reformada da realidade, produto de teorias mal formuladas, foi responsável pelo fato de as ciências sociais, em geral, e da economia política, em particular, não terem sido capazes de acompanhar e orientar as mudanças ocorridas na sociedade soviética. Acompanhar e orientar, digo, tendo em vista que a sociedade soviética é uma sociedade centralmente planificada. Ora, essa visão distorcida, associada ao planejamento imperativo e minucioso, levou a que nos círculos dirigentes se supervalorizasse o Plano. Supervalorizado nos meios decisórios de uma sociedade organizada totalitariamente, o Plano desceu como mito para os cientistas sociais, os dirigentes de empresa e os quadros de ativistas. O Plano era o Sanctum sanctorum do socialismo!

A avaliação dos méritos do planejamento é capital na análise da perestroika, porquanto durante bom tempo — especialmente no período que vai da revolução de 1917 até o pós-Segunda Guerra — essa técnica de administrar as coisas e orientar (imperativamente, repito) a atividade econômica distinguia o socialismo do capitalismo. Compreender o que tenha sido o Plano é fundamental para marcar as diferenças entre um sistema econômico e outro.

O Plano, sempre se afirmou, era uma das bases do poder soviético. Quem o diz é Leon Trotsky, ao analisar os resultados do I Plano Qüinqüenal, cujos êxitos “demonstraram à burguesia de todo o mundo que a revolução proletária é uma coisa mais séria do que lhe parecera a princípio”. O organizador do Exército Vermelho — cuja frieza como comandante de operações merece ser contrastada com a veemência com que fustiga adversários e defende a URSS — não esconde seus elogios à concepção em si do planejamento: “Os dados fundamentais do planejamento estão incluídos primeiramente na Revolução de outubro e depois nas leis fundamentais do poder soviético. (...) Realizou-se um grande trabalho criador. Reconstruiu-se o que havia sido destruído pela guerra civil e pela guerra imperialista [a intervenção ocidental na URSS depois da revolução]. Criou-se uma série de empresas grandiosas, grandes fábricas e setores inteiros da indústria. Demonstrou-se assim com fatos a capacidade de o Estado proletário organizado dirigir a economia por métodos novos, e criaram-se valores materiais em ritmo pouco usual. Tudo isso sobre o fundo do capitalismo mundial moribundo. O socialismo como sistema demonstrou seu direito à vitória histórica não nos capítulos de O Capital, mas sim na prática das usinas hidrelétricas e dos altos fornos. Marx teria preferido, sem dúvida, esta demonstração prática”. (16)

O êxito do Primeiro Plano Qüinqüenal — que Trotsky, líder da Oposição de Esquerda, admite antes de proceder à arrasadora crítica de suas realizações e à análise dos erros cometidos — foi um dos elementos decisivos para a conversão de muitos intelectuais europeus e americanos à causa do socialismo. Quando Trotsky escreve as linhas que citamos, pode referir-se ao “capitalismo mundial moribundo” porque a crise de 1929 vinha deixando por onde passava no orbe uma esteira de destruição de estruturas econômicas e daquelas estruturas sociais nas quais, nas sociedades organizadas, os indivíduos encontravam referência valorativa para afirmar sua identidade. O Primeiro Plano soviético era o triunfo do socialismo sobre o mundo capitalista. Todos os teóricos do marxismo clássico haviam assinalado que o fim do capitalismo estava inscrito em seu próprio processo de reprodução e acumulação do capital — nisto que esse processo não é controlado por ninguém. Para os marxistas o capitalismo individual — e são milhares deles no mercado — não pode ter o controle da acumulação de seu próprio capital (do desenvolvimento da produção de sua indústria), pois no mercado ninguém estabelece lei, nem prevalece o desejo ou a razão. O capitalista individual — esta a lição de Rosa Luxemburgo, uma das grandes cabeças teóricas da esquerda revolucionária da social-democracia alemã, assassinada na revolução alemã de 1919 — depende “de um mercado sempre maior para seus bens”, no qual ele não tem o controle “seja do aumento atual da procura em geral, seja da procura de sua especial qualidade de bem”.

O capitalismo apresentava aquilo que Luxemburgo chamava de “licença e anarquia do mercado”. Ora, o planejamento soviético retumbantemente vinha acabar com essa anarquia, permitindo que se estabelecessem relações harmônicas entre a oferta e a procura, investimentos e acumulação e o Estado (o proletariado, no dizer propagandístico e entusiasta dos primeiros bolchevistas) controlasse a produção.

Quando se confrontava o que acontecia na URSS do plano qüinqüenal realizado em quatro anos e três meses (Trotsky) com a crise que se havia instalado insidiosamente no mundo capitalista em 1921 e oito anos depois explodiria nos Estados Unidos e se espalharia pela América Latina e pela Europa, era difícil negar a evidência: diante da agonia do capitalismo mundial com suas misérias, erguia-se o poder soviético, cuja imponência se exprimia nas usinas hidrelétricas e na siderurgia. Que boa parte desse êxito fosse de propaganda ou devido ao trabalho escravo, pouco importava. O êxito aparente era o tribunal diante do qual se depunham as armas da análise crítica e da moral política.

Quando, nos anos 50, após a Segunda Grande Guerra, o PIB soviético acusou crescimento igual se não superior ao de muitos países europeus, de novo o Plano voltou a ser apresentado como solução para os problemas econômicos e sociais — tanto mais que, dizia a propaganda, a URSS realizava esse progresso sensacional sobre as ruínas de uma economia industrial destruída pela guerra. Era uma meia verdade. A outra metade dela é que os exércitos soviéticos haviam levado para a URSS o saque de boa parte das indústrias da Europa Oriental que ainda estavam de pé, a título de reparação de guerra, e o trabalho escravo continuava sendo a norma na Rússia stalinista. Isso pouco importava, contudo, para os que acreditavam na propaganda.

Ora, apesar do caráter mítico do Plano, a economia soviética acusa graves recuos. No relatório de janeiro de 1987, Gorbachev estabelece a verdade: “Tudo isso, camaradas, fez-se sentir negativamente no desenvolvimento de muitas esferas da vida da sociedade. Tomemos a produção material. Os ritmos de incremento do rendimento nacional nos últimos três qüinqüênios diminuíram em mais de 50%. No tocante à maioria dos índices, os planos não se cumpriam desde o início dos anos 70. (...) Não obstante o considerável incremento em comparação com o ano passado, o acréscimo de importantes índices, como as receitas reais per capita, o produto bruto da agricultura, a produção industrial de artigos de consumo, o volume de investimento de capital, a entrada em funcionamento de fundos básicos e o lucro na economia nacional não atingiu (sic) as metas previstas no plano”. (17)

No relatório de junho de 1987, Gorbachev volta ao assunto: “Camaradas! Hoje, quando se debate a questão da reestruturação radical do sistema da gestão econômica, devemos recordar uma vez mais a situação da nossa economia no dobrar dos anos 70 para os anos 80. Naquele período, a taxa de incremento econômico baixou a um nível que significava, de fato, o índice da estagnação econômica. Cedíamos uma posição após outra. O atraso em relação aos países mais desenvolvidos crescia gradualmente nos domínios da elevação da eficácia e da qualidade da produção, assim como no desenvolvimento técnico-científico”.(18)

Longe estão os tempos em que Trotsky, perseguido, comparava a pujança do poder soviético com o moribundo capitalismo mundial. Agora, o secretário-geral do PCUS reconhece que a pátria-mãe do socialismo cedia passo em muitos setores fundamentais, perdendo a primazia para “os países mais desenvolvidos”. A mudança de enfoque só não foi percebida pelos que ainda vêem na URSS a meca da esperança: aquilo que no início dos anos 30 era o “capitalismo mundial moribundo”, no fim dos anos 80, são os “países mais desenvolvidos”.

Não pretendo responsabilizar o planejamento pelos malogros do plano soviético. A empresa capitalista funciona, hoje, com base, entre outras, na técnica conhecida como planejamento estratégico (seguramente por influência do pensamento militar na atividade empresarial). O que pretendo verificar é se o plano malogrou por culpa da concepção de planejamento ou se o atraso da economia soviética em relação aos países capitalistas se deveu a acasos e infortúnios, como os choques do petróleo e dos juros, que destruíram muitas economias no Ocidente — e na Europa Central.

Nada melhor para dirimir a dúvida do que dar a palavra aos bolchevistas.

No relatório à Comissão Central do PCUS, de janeiro de 1987, Gorbachev procura responder à questão crucial, sem formulá-la: por que malogrou o plano? Descrevendo a situação geral do planejamento na URSS até o XXVII Congresso do PCUS, em fevereiro-março de 1986, diz ele: “Na área do planejamento foram acumulando-se sérias deformações. O prestígio do plano como principal instrumento da política econômica era abalado por atitudes subjetivistas, por desequilíbrio e instabilidade e por uma tendência de abranger tudo — inclusive minúcias — por uma grande quantidade de resoluções de caráter regional e setorial, aprovadas para além do plano e, por vezes, sem levar em consideração as possibilidades reais. Freqüentemente, faltava aos planos fundamentação científica. Tais planos não visam à formação de proporções econômicas eficazes, não davam a devida atenção ao desenvolvimento da esfera social e à resolução de muitas tarefas estratégicas (...) Nesta conjuntura ganhava vulto a irresponsabilidade, eram inventadas diversas normas e instruções burocráticas. A atividade viva era suplantada pelo administrativismo, fingida diligência e ‘exaltação da papelada’ ”. (19)

Em 1987, pois, o planejamento soviético é denunciado como fonte de atitudes burocráticas, por ter sido estabelecido sem fundamentação científica e por possuir a tendência de tudo abranger nas menores minúcias.

Na verdade, Gorbachev dizia, em outras palavras, que o planejamento estava sofrendo dos males que Trotsky apontara como podendo acometer qualquer tipo de plano: “Não se pode criar a priori um sistema definido de economia harmônica. A hipótese do plano não pode conter em si as velhas desproporções, nem evitar o desenvolvimento de novas desproporções. A direção centralizada não constitui apenas uma garantia enorme, mas também cria o perigo dos erros centralizados, isto é, multiplicados. Apenas uma regulamentação permanente do plano no processo de sua realização, sua reconstrução parcial e total sobre a base da experiência adquirida podem assegurar um caráter econômico efetivo” a ele (20, grifos meus).

No relatório apresentado ao plenário da CC do PCUS, em junho de 1987, Gorbachev volta a analisar a questão. Desta vez, pode notar-se que o secretário-geral cuida de defender o planejamento das críticas dos que temem que a inexistência dele impeça o chamado “equilíbrio da economia”, isto é, a manutenção do pleno emprego (mesmo que seja na forma de “estocagem de trabalhadores”). Diz Gorbachev: “O perigo de desvalorizar os princípios de desenvolvimento planificado e diminuir o equilíbrio da economia nacional como resultado da ampliação da autonomia das empresas e anulação do sistema de diretrizes de plano é um problema também a considerar. Em nossa opinião esses receios são infundados. Pensar que um órgão central pode prever todos os processos em curso em nossa enorme economia significa estar imensamente iludido. A atividade do Glospan e de outros departamentos para equilibrar a economia nacional terá como apoio os interesses e a responsabilidade econômica das empresas, a que se juntará o aumento do papel das relações contratuais na produção”.

Quando se vai adiante na leitura dessa parte do relatório de junho de 1987, nota-se claramente que a visão que Gorbachev tem de planejamento é de um plano não imperativo, embora amplamente abrangente: “Considero que [o plano] deve determinar as principais prioridades e objetivos do desenvolvimento sócio-econômico do país, aprovar as orientações básicas da política estrutural e de investimentos e do progresso técnico-científico, assim como as tarefa de desenvolvimento do potencial científico, cultural, de instrução e de garantia da capacidade defensiva do país. (...) As normas e os estímulos econômicos constituirão o principal instrumento de administração das empresas. Essas normas e estímulos elevarão o interesse das empresas e uniões de produção em procurar, orientando-se pelos indicadores de referência, vias para satisfazer eficazmente as necessidades sociais”. Essas normas destinavam-se, segundo Gorbachev a “equilibrar o plano e a economia”. Em outras palavras, o plano só poderá funcionar, e a economia só poderá desenvolver-se se houver estímulos econômicos que elevem o interesse das empresas. O princípio do interesse (na extremidade lógica ele se confunde com a ambição) no processo econômico começa a ganhar foros de autoridade. (21)

No relatório de junho de 1988, um ano depois, a atenção de Gorbachev volta-se de novo para a crítica do planejamento, diremos “burocratizado”: “Dizia Lenin que o Estado socialista não era já um Estado ‘no sentido rigoroso da palavra’, mas um ‘meio-estado’, que cede gradualmente lugar à autodeterminação social.

“Infelizmente, depois da morte de Lenin, vingou, na teoria e na prática, o conceito de Estado exatamente no sentido velho do termo, no sentido ‘pleno’. Ficava sob a orientação estatal uma esfera excessivamente alargada da atividade social. A ânsia de planificar e controlar a partir de cima todos os pormenores da vida manietou a sociedade e tornou-se sério entrave à iniciativa das pessoas, organizações sociais e coletivos de trabalhadores. Esta situação levou ao aparecimento, entre outras coisas, de uma economia e uma cultura ‘paralelas’, parasitando na incapacidade dos organismos estatais em satisfazer de forma plena e oportuna as necessidades materiais e espirituais da população. A burocratização das estruturas estatais e o definhamento da criação social das massas implantaram na sociedade um modo de pensar estático e unilateral”. (22)

De novo volta a crítica aos efeitos paralisadores do planejamento, à possibilidade que ele abre para o domihio burocrático e, mais importante ainda, ao fato de o planejamento centralizado, minudente, imperativo, ter criado uma economia “paralela” — a economia subterrânea, ou informal.

A crítica mais contundente ao planejamento de parte de um bolchevista, creio que pode ser encontrada em Leon Trotsky. O texto a que nos vimos reportando — El fracaso del plan quinquenal — compõe-se de uma série de artigos escritos em Prinkipo, em 1932, quando já tinha sido expulso do Partido Comunista e estava desterrado, em exílio interno. Esses artigos merecem ser lidos não apenas pelo tom polêmico contra os autores do I Plano Qüinqüenal, mas também pelo desdém com que trata os “amigos da URSS”, aqueles “pequenos burgueses, muito pouco dispostos a molestar-se em ter uma opinião sobre fato tão complexo como a Revolução de Outubro”, que, ao defrontar-se com as cifras oficiais do Plano Qüinqüenal, encontraram nelas “apoio para suas simpatias atrasadas”. Maldosamente, ele acrescenta: “por fim ‘reconheceram’ generosamente a República Soviética em recompensa pelos resultados econômicos e culturais que alcançou. Para muitos deles, esta ação de heroísmo moral foi motivo para realizar uma viagem interessante com tarifa reduzida”. Trotsky já começava a entender dos métodos empregados pela máquina de propaganda da Internacional para suscitar simpatias. O texto que transcrevemos deve ser visto à luz da posição de Trotsky no período, já vislumbrada nas citações anteriores: “Tomamos o Estado operário tal qual é e dizemos: é nosso Estado”. E apelava para a defesa dele, apesar de todos os erros e torpezas burocráticas.

No artigo “As condições e os métodos da economia planificada”, ele diz: “Se existisse um cérebro universal como o descrito pela fantasia intelectual de Laplace; um cérebro que captasse ao mesmo tempo os processos da Natureza e da sociedade, medisse a dinâmica de seu movimento, projetando a priori os resultados de sua ação”, ter-se-ia “um plano economicamente definitivo e sem erro algum”. Esse plano começaria “por calcular os hectares de forragem e terminaria pelos botões dos casacos”. E continua: “Na verdade, a burocracia imagina possuir um cérebro semelhante. Por isso se desprende com tanta ligeireza do mercado e da democracia soviética”. Mais adiante, Trotsky retoma o tema do mercado: “Os inumeráveis participantes da economia do Estado e particulares, coletivos e individuais, manifestam suas exigências e a relação de suas forças não só pela exposição estatística das comissões do plano, mas também pela influência inevitável da oferta e da procura. O plano se verificará, e em grande medida se realizará, por intermédio do mercado. A regularização do mercado deve basear-se nas tendências que nele se manifestem a cada dia”. É o mercado, pois, “base da experiência adquirida”, que assegurará o “caráter econômico efetivo” do plano.

Como se tamanha dose de heterodoxia à luz do marxismo-leninismo-stalinismo não bastasse, o líder da Oposição de Esquerda acentua sua visão da importância do mercado para o plano: “Os organismos anteriormente citados [os órgãos especializados do Estado, isto é, o sistema hierarquizado das comissões do plano, de cima a baixo] devem demonstrar sua compreensão econômica por meio do cálculo comercial. O sistema da economia transitória não pode ser enfocado sem o controle do rublo. Isso exige, portanto, que o rublo seja igual a seu valor. Sem a firmeza da unidade monetária, o cálculo comercial não serve mais do que para aumentar o caos” (23). Em outras palavras, os que elaboram o plano e acompanham sua aplicação devem ter suas atenções voltadas para o mercado: a regularidade dele, ou o equilíbrio entre a oferta e a procura deve dar-se não mediante a decretação de normas burocráticas de planejamento, mas sim atendendo às “tendências que diariamente se manifestam no mercado”. A moeda deve ser estável — portanto a inflação de preços deve ser combatida... Estranha lição de um façanhudo bolchevista dos anos 30!

Em outro artigo, desta vez dedicado à NEP e à inflação, Trotsky volta a cuidar da estabilidade da moeda. Dada a relevância do tema para a discussão, no Brasil, do problema de “realizar o desenvolvimento econômico auto-sustentado com inflação”, voltaremos a esse texto mais tarde, ao analisar as posições de Gorbachev sobre o assunto. Neste passo, limito-me a duas citações desse artigo, referentes ao mercado: “Com o pretexto de eliminar as desproporções no curso da NEP [a NEP foi a retificação na política econômica introduzida por Lenin após a guerra civil para restabelecer a atividade econômica, duramente afetada pelo “comunismo de guerra”. Essa retificação recebeu o nome de Nova Política Econômica, conhecida pela sigla NEP], a burocracia liquidou a própria NEP e substituiu os métodos do mercado pelo emprego, cada dia mais arbitrário, dos métodos de coerção”. Mais adiante, lê-se esta frase carregada de verdade: “O cálculo econômico é impossível sem as relações de mercado”. (24)

Na verdade, o problema prático, mais do que teórico (pois afeta toda a estrutura do poder tanto na URSS quanto nos países em que o Estado intervém na direção da economia), é aquele do mercado. A experiência soviética e a lucidez com que sempre encarou os problemas econômicos fizeram Trotsky decidir, com a arrogância que lhe era peculiar, a questão que hoje faz os economistas e os políticos do mundo socialista quebrar a cabeça: o cálculo econômico é impossível sem a existência do mercado. Que é esse mercado?

Para a economia marxista pré-Gorbachev, o mercado sempre apareceu, antes de mais nada, como assinalara Luxemburgo, como local de “licença e anarquia”, locus em que ninguém estabelece leis, nem prevalece o desejo ou a razão. O capitalista individual depende de um mercado cada vez maior para poder colocar os bens que produz em quantidade necessariamente crescente, não tem controle algum sobre o que nele ocorre, controle “seja do aumento atual da procura em geral, seja da procura de sua especial qualidade de bem”. Essas licença e anarquia fazem presente ao “capitalista individual que ele é dependente da sociedade, da totalidade de seus membros produtores e consumidores”. É o mercado, sempre na linha do raciocínio que Luxemburgo expôs na sua obra A acumulação do capital, que por assim dizer coloca uma questão que exige resposta apesar de ser difícil: “como é possível a cada capitalista individual encontrar no mercado os meios de produção e o trabalho de que necessita para realizar as mercadorias que produziu?” (25). Não se dará resposta correta a essa pergunta se se disser que o capitalista individual produz o que passa pela cabeça — com certeza ele o fará durante o tempo necessário a perceber que “a licença e a anarquia” exigem dele um comportamento menos voluntarioso e mais atento às realidades da ação de milhares de agentes, que não se comunicam entre si diretamente, mas, por assim dizer, estabelecem entre eles contatos secundários (como diria a Sociologia clássica) pelos quais são capazes de perceber, analisando o comportamento de compradores e vendedores, de fornecedores seus e clientes seus, qual a tendência à alta ou à baixa de preços, à maior ou menor procura de determinados bens e não de outros. A idéia de mercado está associada àquela outra, mais geral — e só pode ser entendida a essa luz —, de que a atividade humana, quando considerada do ponto de vista coletivo, não pode ser presa no espartilho do planejamento, tantos são os elementos que influenciam os indivíduos a ter esta ou aquela conduta econômica. Na realidade, se fosse possível estabelecer com precisão aritmética que todos os consumidores do produto X teriam idêntico comportamento num determinado momento do processo de produção e venda, o planejamento seria fácil de fazer e extremamente eficiente. Sucede, porém, que as motivações econômicas de cada qual são diversas das de seus semelhantes; poder-se-ia dizer que a conduta econômica dos indivíduos, embora possa ser vista como uniforme quando se trata do comportamento hedonístico, cada qual buscando maximizar seu prazer, na verdade não tem parâmetro algum que possa medi-la. Em citação anterior de Trotsky, pôde ver-se a dificuldade de fazer um planejamento integrado e centralizado, o qual durante muitos anos foi visto pelos teóricos marxistas como a solução perfeita para a licença e a anarquia do mercado.

Nessa linha de raciocínio, a de construir uma economia planejada desde quantos alqueires se plantará de milho até quantos jeans serão produzidos, os defensores do planejamento e adversários do mercado repetiram o erro daqueles que Hayek chamou de “racionalistas construtivistas”, que fundamentavam sua argumentação “na ficção de que todos os fatos relevantes são conhecidos por alguma mente e que é possivel construir, a partir desse conhecimento dos fatos particulares, uma ordem social desejável. (...) Parecem ignorar por completo que esse sonho simplesmente deixa de levar em conta o problema central suscitado por toda tentativa de compreender ou moldar a ordem da sociedade: nossa incapacidade de reunir num conjunto passível de uma visão geral todos os dados que integram a ordem social”.(26) As motivações econômicas, como quaisquer outras, decorrem dos dados que integram a ordem social, a psicologia coletiva e a individual; se não é possível reunir num conjunto passível de uma visão geral esses elementos, como será possível prever quantos alqueires de milho deverão ser plantados?

O mercado é, possivelmente, uma criação lógica — a mais real delas, no entanto; tão concreta que Kautsky (expoente da social-democracia alemã, herdeiro intelectual de Marx e Engels, depois acoimado de “renegado” por Lenin), ao resumir a doutrina econômica de Marx, expendia algumas considerações curiosas sobre o tema. É importante que o leitor tenha presente que não é o “renegado Kautsky” quem está sendo citado. No Prólogo à edição argentina de “La doctrina econômica de Carlos Marx”, M.S. escrevia: “Qual foi o motivo que levou a Editorial do Estado de Literatura Política de Moscou a editar a obra de um homem como Kautsky, inimigo da Revolução Soviética e porta-voz em muitas ocasiões dos piores interesses dos círculos contra-revolucionários do mundo inteiro? Fez-se a edição porque foi escrita na época em que Kautsky ainda era marxista”... Provocando a ira do tradutor soviético, que procura mostrar que nesse ponto Kautsky se afasta do ensinamento de Marx, o líder social-democrata escrevia: “O preço mais alto de algumas classes de vinho baseia-se em que as correspondentes classes de uva se cultivam apenas em determinados lugares. Neste caso, a lei do valor, em geral, perde sua força, posto que tropeçamos aqui com o monopólio. E é já sabido que referida lei pressupõe a presença da livre concorrência”(27). Em outras palavras, a lei do valor, fundamento da economia política marxista, só tem expressão teórica e prática se houver mercado. Ora, o planejamento necessariamente elimina o mercado; poder-se-ia concluir, portanto, que o planejamento socialista impede que a lei do valor marxista seja aplicada na economia. Os chineses compreenderam, depois da virada dos anos 80, essa verdade e demonstraram que a lei do valor tinha sido mal compreendida por Mao Tsé-Tung. Antes, porém, da chacina da Praça da Paz Celestial...

O problema do mercado está presente nas considerações de todos os que pensam o mundo econômico no bloco soviético depois do reconhecimento expresso do malogro da economia planificada. No instrutivo diálogo com Menshikov, já referido, Galbraith aflora o problema com nitidez. O economista soviético havia dito que o importante era encontrar o equilíbrio entre o que deve ser feito pela administração centralizada das grandes empresas e o que tem de ser feito nos outros níveis da economia. E acrescentara: “É preciso haver uma divisão clara aqui”. Ao que contrapôs Galbraith: “Uma divisão de acordo com as exigências do mercado?” A resposta de Menshikov foi simples e direta: “De acordo com as exigências do mercado, sim; este é um dos significados das reformas de Gorbachev”(28). Mais adiante, Menshikov aprofunda a questão. Depois de descrever as funções teoricamente próprias dos organismos de planejamento, afirma: “A atividade destes órgãos foi se concentrando no racionamento e na alocação de recursos, e passou a incluir a produção atual. Em outras palavras, os órgãos centrais e os ministérios tomaram-se um substituto do mecanismo normal de mercado. Eles quiseram assumir o que no sistema capitalista é realizado pelo mercado, a compra e a venda direta de mercadorias entre empresas. (...) A burocracia — a burocracia centralizada — estas dezoito milhões de pessoas não estavam fazendo o que deveriam fazer de acordo com os princípios do socialismo, mas sim tentando tornar o lugar do mercado, tentando fazer o trabalho do mercado. E fracassaram. O que pretendiam é simplesmente impossível, por mais bem-intencionados que elas possam ter sido”(29). O economista soviético avança em seguida o que entende deva ser feito para evitar o aparecimento de tendências monopolísticas: “Como eu disse, embora os preços dos principais produtos ainda continuem sendo fixados pelos órgãos governamentais, a maioria dos preços serão resultado dos mecanismos de mercado no sentido de que dependerão do comprador e do vendedor”. E dá uma definição de mercado que merece ser gravada:

“Será o mercado que fixará o preço, pois, afinal, o que é o mercado? O mercado não é apenas aquele mercado onde se compram pepinos ou coisa parecida; o mercado, na realidade, são todas as transações entre as empresas, e é ele que fixa os preços neste curso das relações diretas entre as empresas”(30). Está longe, bem longe, a idéia do mercado como licença e anarquia!

A realidade dos preços na União Soviética antes da perestroika era a dos preços administrados, ou seja, aqueles fixados pela administração. Sem antecipar a questão dos preços, cabe observar que Gorbachev, no relatório de 27 de janeiro de 1987, dizia que: “a atividade viva era suplantada pelo administrativismo”, que dava origem a princípios subjetivistas na fixação dos preços e “à falta de atenção para com a regularização da procura e da oferta”(31). No relatório de 28 de junho de 1988, depois de apresentar resultados positivos da política de incentivos e estímulos econômicos, acrescenta: “Afinal de contas, camaradas, o que é importante para nós é o resultado final. Uma vez que o mecanismo econômico foi posto em ação e nos assegura a melhora dos resultados reais, isso é exatamente o que precisamos. Trata-se de uma elucidativa lição! Os organismos da planificação devem, em suma, ser orientados no sentido de reverem profundamente os seus critérios e transferirem o centro da gravidade da ‘pressão pelo plano’ para os mecanismos de estímulos econòmicos”(32). Na verdade, o que Gorbachev está recomendando é que se abandone o plano e se dê atenção aos incentivos e estímulos econômicos, que não são subsídios, causa do déficit orçamentário, mas sim o respeito aos incentivos presentes no mercado.

A discussão sobre a importância do mercado na economia ganha amplos setores intelectuais na União Soviética. Em mesa-redonda realizada pela direção do boletim Século XX e paz, publicado pela Comissão Soviética de Paz, o historiador L. Batkin, por exemplo, ao reclamar a criação de “estruturas paralelas” que permitam um trabalho criativo no campo intelectual e da educação, diz: “Os burocratas estão tentando amendrontar-nos com o bicho-papão do ‘pluralismo’. Mas todos temos consciência de que nenhuma sociedade existiu sem pluralismo, da mesma maneira que nenhuma economia existiu sem um mercado”. E adiantava essa observação de grande valia nos dias que correm no Brasil: “O mercado proibido torna-se um ‘mercado negro’; deve haver um ‘pluralismo negro’ ”(33).

A questão do mercado, na União Soviética e nos países do bloco socialista que defendem a perestroika, não é mais um problema teórico a ser resolvido. Todos têm consciência de que pior do que a licença e a anarquia do mercado denunciadas pelos teóricos do marxismo, no início do fim do século XIX e início deste, é a carência, a ausência daqueles bens a que se tem direito como direito social. O mercado hoje já é aceito como o único meio racionalmente econômico de regular preços — e salários, inclusive. A questão com que todos se defrontam, porém, é de como realizar a transição de uma economia administrada, isto é, em que os preços são fixados pela burocracia central, que atende inclusive a seus próprios interesses grupais ou pessoais, para uma economia de mercado. Essa burocracia são aquelas 18 milhões de pessoas a que se referiu Menshikov. Os riscos econômicos e sociais presentes na adoção da economia de mercado não são pequenos: fechamento de fábricas ineficientes, fixação de salários em níveis de mercado, dispensa de trabalhadores desnecessários ou não habilitados (fim da estocagem de mão-de-obra).

Na Polônia, a questão é igualmente candente, talvez porque — como gostam de dizer os poloneses — a perestroika tenha começado ali, por fruto da clarividência do partido, ou do empuxo das massas sob a liderança do Solidariedade. Segundo ampla notícia publicada pelo boletim A Polônia contemporânea, n°8/1988, 2° ano, o grupo independente “Consensus” — patrocinado pelo Movimento Patriótico do Renascimento Nacional — realizou aprofundada discussão sobre a questão do mercado. O prof. Zbigniew Kamecki, membro da Comissão Econômica Européia da ONU, expressou por ocasião dessa mesa-redonda a opinião de que “o mercado pode ser conciliado apenas com uma determinada forma de socialismo e não com todas as formas de socialismo”. Em outras palavras, a palavra mercado é compatível com o socialismo, embora não com todas as suas formas... As restrições que o prof. Kamecki faz ao mercado não são a esse locus em que as empresas individuais trocam livremente seus produtos; para ele, socialismo e mercado não serão compatíveis apenas se o mercado levar ao enriquecimento excessivo de alguns à custa de outros. Para ele, igualmente não se conciliam socialismo e mercado “onde os monopólios têm uma liberdade ilimitada, embora desde logo acrescentemos que liberdade eles também podem ter nas condições do socialismo”. O prof. Kamecki coloca igualmente questão que está no fundo de todas as críticas à perestroika e às reformas econômicas que Gorbachev quer introduzir na URSS e são implantadas em alguns países do bloco soviético. “... afirmou que o socialismo é um certo sistema de valores, um desses valores baseia-se em que o socialismo não pode levar à miséria, mas tem de almejar à elevação do nível de vida dos trabalhadores. Diante disso, com o socialismo estará conforme o mercado que levar à elevação do bem-estar e da efetividade (sic)” (grifos meus). Aquilo que na tradução se diz ser “efetividade” pode, no contexto geral da intervenção do prof. Kamecki, ser entendido como “eficiência” ou “eficácia”. O que Kamecki teme — e todos sabem que também na Polônia se pratica a política da “estocagem de mão-de-obra”, isto é, é comum uma indústria ter mais operários do que de fato necessita, seja para aguardar instruções de produção no pico do plano, seja para que se possa simular haver terminado o desemprego — é “a liquidação de um número significativo de estabelecimentos de produção agrícola, por serem pouco efetivos e produtivos”.

Esse é temor de um economista. O governo polonês, no entanto, parece — até por motivos de ordem política — haver desconsiderado o problema. No mesmo número do boletim citado, o dr. Jarzy Malkowski, porta-voz do governo para assuntos de reforma econômica, diz que a liquidação de algumas empresas não se está realizando por serem elas as piores, mas por não terem perspectivas de futuro: “Trata-se — disse ele — de empresas que não sabem se adaptar às condições modificadas ou não têm possibilidade de fazê-lo”.

A situação polonesa é mais complexa e, na Polônia, a consciência da reforma chegou mais cedo. Não me furto a transcrever um longo trecho de matéria dedicada ao assunto “mercado”.

Em entrevista publicada na revista Perspectives Polonaises, 31° volume, 1988, o prof. Urszula Wojciechowska responde de maneira clara à pergunta do entrevistador: “O bem-estar de uma nação dependeria, então, da aceitação do mecanismo de mercado pela sociedade?”. O professor polonês é claro: “Não se encontrou até agora mecanismo econômico mais eficaz do que o mecanismo de mercado. É conveniente esclarecer imediatamente: ‘do que um bom mecanismo de mercado’, porque ele não funciona corretamente em toda parte. Numerosas obras foram escritas no Ocidente sobre as formas e as condições de um mercado eficiente, isto é, de um mercado que estimula o progresso.

”Acredito que nossa rejeição do mecanismo do mercado decorreu não apenas de premissas doutrinárias, de uma identificação desse mecanismo com o capital e a exploração, mas também do medo das conseqüências que adviriam de um confronto entre a economia socialista e o mercado mundial. Creio que se tratou, nesse particular, de uma escolha mais ou menos consciente, tendo em vista assegurar às sociedades dos países socialistas um certo nível de satisfação de suas necessidades ao preço de uma qualidade inferior e de uma menor eficiência. É possível que, historicamente, esta escolha tenha sido correta. (...) É preciso tirar a lição de que não se pode atingir o progresso agindo à maneira antiga... Donde a idéia de uma reforma assentada sobre o mecanismo do mercado, isto é, sobre os fatores da riqueza e do progresso. Esse mecanismo implica, para o dirigente de empresas, o risco de sua eliminação do mercado (uma falência) e, para o empregado, a perda de um trabalho ao qual estava habituado (...)

“Ora, o risco tem duas faces. De um lado da medalha, um desconforto psíquico e, do outro, um móvel para a ação. Mais ele nos torna ativos, empreendedores, mais esses traços se manifestam na prática econômica e mais a sociedade se torna rica, mais as tensões diminuem, mais o indivíduo se sente materialmente assegurado”.

O importante a reter é a defesa que o prof. Wojciechowska faz, logo a seguir, do risco e dos inconvenientes que a passividade traz para toda a sociedade. Deixemo-lo falar:

“Quando fugimos ao risco como móvel de ação, quando buscamos cuidar antes de tudo de uma partilha igual, quando eliminamos a coerção econômica enquanto mecanismo que separa as atividade racionais das atividades irracionais, quando o igualitarismo se torna um valor supremo, caímos na armadilha de um risco ainda maior. Porque, então, atitudes passivas se tornam explícitas, forjam-se sistemas de valores incompatíveis com as leis econômicas e, em definitivo, não apenas temos dificuldades em evitar uma estagnação econômica, mas continuamos, afora isso, a ter de haver-nos com uma diferenciação social. Diferenciação que, entretanto (apesar das palavras de ordem oficiais), não está de maneira alguma em correlação com a contribuição dos indivíduos ou dos grupos para a criação das bases materiais da vida em sociedade.

“Apenas o mecanismo de mercado pode separar o joio do trigo. Este voto social cotidiano por tal ou qual produto, tal ou qual serviço — um voto através dos preços. Privando-se dessa escolha cotidiana, renunciamos de fato ao direito de definir, nós mesmos, nossas necessidades, assim como ao mecanismo capaz de satisfazê-las. Ademais, permitimos um dispêndio de energia social em setores que não nos servem para nada a todos nós, enquanto sociedade — uma perda irreparável. Olhe, por favor, a forma que tomou em nosso país a estrutura da produção, a maneira pela qual nela se repartem o mercado de trabalho e as reservas de matérias-primas, como agimos no dia-a-dia, como desperdiçamos nosso tempo, ainda que seja para convencer os outros de que isso tudo deve mudar...”

Voltemos à União Soviética, para encerrar esta parte. Na URSS, defrontam-se dois tipos de mentalidades — e de pessoas —, umas defendendo, outras protestando e trabalhando contra a perestroika. Os primeiros, segundo o escritor Anatoli Strelyani, em artigo publicado na Znamya e reproduzido no boletim What do You have to say, editado pela agência de notícias Novosti, são os “mercadores”, os tovarniks (tovar em russo quer dizer mercadoria); os segundos são os “cavalarianos”, assim chamados porque “pretendem resolver todos os problemas rapidamente sem pensar muito”. Todo o artigo de Strelyani é dedicado a mostrar a estupidez do planejamento centralizado, introduzindo a certa altura as idéias de Lenin contra a “utopia burocrática”, que se traduzia, exatamente, no desejo de tudo resolver planejando. O que interessa, neste passo, no artigo de Strelyani, é sua colocação do problema do mercado, que segundo ele, desde os anos 60, era considerado por alguns especialistas como o responsável pela fixação de preços, os quais permitiriam realizar por intermédio do lucro a reprodução ampliada do capital e o progresso social. Sobre o mercado, Strelyani diz estas palavras que, a meu ver, tudo resumem: “A mente das pessoas — este é o real teatro de ação. Um ‘cavalariano’ pode lutar contra um ‘mercador’ na consciência de um homem ou mesmo na consciência de todo um escritório. Um aspecto típico de nosso tempo é que esta luta está aumentando de intensidade se o ‘cavalariano’, que está acostumado a pensar o mercado como algo criminoso e hostil, olhasse melhor para esse mercado, tomaria consciência de que o mercado é, de fato, todo o povo, pessoas que querem comprar algo de acordo com seus gostos e capacidades, trabalhadores, engenheiros, toda classe de pessoas. O ‘cavalariano’ que olhasse melhor tomaria consciência de que ter medo do mercado, de suas decisões e indicações, suspeitar que o mercado tenha más intenções é ter medo de nós próprios. O ‘cavalariano’ tomaria consciência de que dar ao mercado uma oportunidade para ‘expressar suas opiniões’ significa fortalecer e desenvolver os direitos dos consumidores; significa dar ao consumidor maiores oportunidades para participar da direção da economia, seja como possuidor de uma certa quantidade de dinheiro, seja como trabalhador de fábrica. Como possuidor de dinheiro, o consumidor encorajará o produtor cujos bens ele aprecia mais e ignorará aquele cuja produção é pobre. E como trabalhador ele também atuará como um consumidor, porquanto sua empresa é também consumidora, com os mesmos direitos de um consumidor individual. A prova do mercado é, de fato, uma prova realizada pelo povo. (...) Ele [o cavalariano] tomará consciência de que as relações entre as mercadorias e a moeda são em sua essência uma linguagem, e as empresas capitalistas falam essa linguagem com seu próprio sotaque, enquanto as empresas socialistas podem e devem falar essa linguagem com seu próprio sotaque, o sotaque socialista”.

Essas observações sobre o mercado introduzem elemento novo e doutrinário na discussão, que é o fato de a produção de mercadorias ser uma linguagem, e a relação mercadoria-moeda (tipicamente) é a mesma para as empresas capitalistas e socialistas, cada uma falando-a com seu próprio sotaque. Isso implica reconhecer, e o fato é da maior importância, que a economia fala uma mesma linguagem independentemente da questão de a propriedade ser privada ou estatal. O fundamental, sempre, é respeitar as regras da gramática da linguagem da produção de mercadorias. Com isso, podemos passar a ver o problema dos preços e da inflação no discurso da perestroika.

 

 


 

 

Os preços e a teoria

 

 

A alta de preços que acompanha os primeiros passos da perestroika poderá constituir-se, nos termos do apoio popular, no grande empecilho para o êxito das reformas que Gorbachev pretende introduzir na economia. Nada mais normal — considerando o indivíduo como é e não como o ser racional que se pretende deva ser — que as pessoas considerem má e errada uma política econômica cujo resultado imediato é alta do custo de vida decorrente da eliminação de subsídios e da introdução do referencial do mercado para os preços. Teoricamente, poder-se-á convencer cada qual de que alta dos preços resulta de acertos necessários a que o mercado volte a funcionar — e de que, se normalizando as relações entre os agentes econômicos, cada mercadoria e serviço sendo comprada e vendida por seu preço de mercado, a tendência será a estabilização dos preços desde que fatores que induzem à inflação e pouco ou nada têm a ver com o jogo de mercado tenham sido neutralizados. A perestroika enfrenta, hoje, o desafio dos preços, para não dizer também o da escassez de gêneros, que decorre seja de uma má colheita, seja de um aumento da massa de salários na economia, o que levou a um aumento da pressão da demanda, seja da inflação existente na União Soviética, da qual se fala, mas cujas conseqüências práticas não são explicadas ao conjunto da população. É que, no fundo, lá como cá, uma das causas básicas da inflação é o déficit público, na URSS estimado em cerca de 11% do PIB, o que quer dizer dezenas de bilhões de dólares — situação para a qual não se vê saída a curto prazo.

Na teoria clássica do marxismo, “o preço é a expressão monetária da magnitude do valor da mercadoria”, como ensinava Kautsky na obra citada mais atrás. Esse valor é expresso pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzir a mercadoria em questão, considerando o trabalho contido em todos os insumos. Ao mesmo tempo que afirma que o preço é a expressão monetária da grandeza do valor da mercadoria, Kautsky não pode fugir de dizer que o preço exprime também o valor de troca do bem-mercadoria com o valor da mercadoria-dinheiro, que no fim do século XIX tinha como referência o ouro. Em outro trecho de sua obra, o pensador social-democrata alemão estabelece que o valor de uma mercadoria nunca se manifesta isoladamente, mas sempre na relação de troca com outra mercadoria. E acrescenta: “Esta relação não está influenciada apenas pela magnitude do valor, mas também por outras circunstâncias. Com isso surge a possibilidade de uma discordância entre o preço e o valor. Em outras palavras, a quantidade de trabalho socialmente necessária para produzir uma mercadoria não se expressa, nem necessariamente nem sempre numa igual quantidade de dinheiro. É por isso que o preço é diferente do valor.”(34)

As “outras circunstâncias” a que se referiu Kautsky podem perfeitamente ser definidas como a “oferta e a procura” sempre presentes no pensamento econômico liberal, realidade sobre a qual influi, sem sombra de dúvida, o estímulo do interesse individual. A expressão “interesse individual” não é minha — é de Trotsky, desta feita em A revolução traída. Em várias passagens desse livro escrito em 1936, já expulso do PCUS e vivendo no exílio, Trotsky tem uma visão da formação dos preços que se afasta da ortodoxia econômica e ideológica que prevaleceu na URSS até Gorbatchev, ou da candidez com que se vê, no Brasil, a questão.

A descrição que Trotsky faz da reação dos camponeses soviéticos às providências que o governo bolchevista adotava ao fim da guerra civil para assegurar o abastecimento normal das cidades deveria ser tomada em consideração pelos que constantemente lançam mão do tabelamento ou de decretos para regulamentar a economia — afora caçar boi nos pastos: “Mas o conflito entre a realidade e o programa do comunismo de guerra revelou-se cada vez mais: a produção não deixava de baixar, não só em virtude das conseqüências nefastas das hostilidades, mas também porque faltava aos produtores o estímulo do interesse individual. A cidade pedia aos campos o trigo e as matérias-primas sem nada dar em troca, a não ser vinhetas coloridas a que se chamava dinheiro devido a um velho hábito. O mujik enterrava as suas reservas. O governo mandava destacamentos de operários armados para recolher o grão. O mujik semeava menos”...

A solução para a crise, relata o antigo comandante do Exército Vermelho, foi o mercado: “Lenin notou a necessidade de restabelecer o mercado pela existência no país de milhões de explorações campesinas isoladas e acostumadas a definir pelo comércio as suas relações com o mundo circundante. A circulação das mercadorias devia fazer a ‘soldadura’ entre os camponeses e a indústria nacionalizada. A fórmula teórica da ‘soldadura’ é muito simples: a indústria deve fornecer aos campos as mercadorias necessárias, a preços tais que o Estado pode renunciar à requisição dos produtos da agricultura.

“O saneamento das relações econômicas com os campos constituiu, sem dúvida, a tarefa mais urgente a mais espinhosa da NEP. A experiência depressa mostrou que a própria indústria, embora socializada, tinha necessidade dos métodos do cálculo monetário elaborados pelo capitalismo; o plano não podia repousar apenas sobre os dados da inteligência; o jogo da oferta e da procura é — e será por muito tempo — ainda a base material indispensável e o corretivo salvador” (35, grifos meus).

A preocupação com a oferta e a procura não é apenas do “profeta desarmado”, como Deutscher chamou o Trotsky do exílio. Gorbachev a ela também se refere em muitos de seus pronunciamentos. Por exemplo, no relatório apresentado ao Plenário da Comissão Central em 27 de janeiro de 1987, ele dizia com clareza: “Os preconceitos relativos ao papel das relações monetário-mercantis [seguramente se refere ao uso da moeda como padrão de valor e referência dos preços das diversas mercadorias], à vigência da lei do valor e freqüentemente a sua contradição direta ao socialismo como sendo algo estranho faziam surgir tendências voluntaristas na economia, a subestimação da autogestão econômica, a ‘nivelação’ na remuneração do trabalho, dando origem a princípios subjetivistas na formação dos preços, a violações da circulação monetária e à falta de atenção para com a regularização da procura e da oferta”.(36)

Os “princípios subjetivistas” a que se refere Gorbachev podem ser mais bem avaliados quando se lê com atenção a descrição que Zhores Medvedev faz do sistema de preços na União Soviética até a ascensão do atual secretário-geral e ainda vigente na maioria dos setores, malgrado todos os esforços que estão sendo envidados para regularizar a oferta e a procura. Chamaria a atenção do leitor para o nível de subsídios acordados aos mais diferentes produtos e serviços — e também para a circunstância de que, no momento em que o combate ao déficit público obriga à supressão de alguns desses subsídios, senão de todos, é apenas normal que os preços subam, buscando sua paridade. Que diz Medvedev? “O Estado soviético dá bons subsídios aos produtos e serviços essenciais (pão, leite, aluguel, aquecimento, serviços de saúde, educação, transporte público, aposentadoria e benefícios sociais etc.). Isto é necessário na maioria das sociedades. Mas os líderes soviéticos foram além. Relutando em desviar-se do dogma e tentando estabelecer um vínculo razoável entre os custos de produção e os preços, os produtos e matérias-primas que não são absolutamente essenciais nem renováveis também foram subsidiados (desde petróleo, eletricidade, serviços postais e telefônicos, até alimentos não-essenciais, como manteiga, açúcar, óleo vegetal, os preços de hotéis, viagens aéreas, turismo, serviços de táxi, cinemas, teatros, livros sobre política e literatura, etc.). O Estado fornece aquecimento para as casas, gás, água e televisão totalmente de graça, e como conseqüência disso tais serviços são usados de maneira excessiva e antieconômica.

“Nos anos 30, quando a população urbana estava entre 30 e 40 milhões, era relativamente simples manter esses serviços. Mas na década de 80, quando a população urbana chegou aos 180-190 milhões, ficou extremamente difícil. (...) É um azar para Gorbachev que o reconhecimento da inflação e o aumento de muitos preços tenham que ser feitos durante seu mandato, e não durante os de Andropov ou Chernenko”. Antes, Medvedev havia referido alguns números relativos ao ano de 1986: “No discurso de 7 de setembro em Tselinograd, Gorbachev fez um apelo (...) Deixou claro que os custos [de produção] estavam muito altos e que seria difícil continuar subsidiando o preço no varejo. Mais de 20 bilhões de rublos do orçamento anual eram gastos pelo Estado só para subsidiar o preço da carne. Isto é mais do que o orçamento anual dos serviços de saúde (16 bilhões de rublos em 1983). (...) Os preços de varejo dos produtos de origem animal não mudavam desde 1962, e os preços de outros produtos alimentícios eram idênticos aos de 1953”(37).

Na reunião plenária da Comissão Central de 25 de junho de 1987, Gorbachev expõe com maior clareza e em maior extensão o que entende deva ser o papel dos preços numa economia que necessita ser reestruturada.

“Sem a reforma radical da política de preços, outro importante componente da reestruturação, os novos mecanismos não poderão funcionar.”

Ora, qual é essa política de preços, como é ela elaborada, afora sabermos que os subsídios desempenham enorme papel, agravando o problema do déficit público? Em artigo publicado na revista Problems of Communism (maio-junho de 1986) Boris Rumer, pesquisador associado do centro de Pesquisas Russas da Universidade de Harvard, mostra como se fixam os preços e quais as dificuldades que os economistas soviéticos estão encontrando para resolver os problemas suscitados pelo apego à teoria marxista do valor do trabalho. Diz Rumer: “A fixação dos preços na URSS deriva da teoria de Marx sobre o valor trabalho, os preços sendo determinados na base do trabalho expendido (direta ou indiretamente) na produção de um dado produto mais do que sobre a base de alguma forma de cálculo da qualidade e utilidade desse produto. Isso faz empresas, que operam mal, parecer boas e justifica excessos de gastos de recursos. (...) Aqui encontramos um choque entre a ortodoxia ideológica e as exigências da prática econômica. A ‘prática’ requer, antes de tudo, cálculo do valor de consumo. Os economistas soviéticos, no entanto, por motivos ideológicos, não podem admitir que a teoria do valor trabalho não mais funcione, ou conceder a viabilidade do conceito de ‘utilidade marginal’.

“O reconhecimento de que o preço é função da utilidade, não apenas do trabalho despendido, implica repudiar a teoria do valor trabalho de Marx, algo que os ideólogos do partido dificilmente poderão aceitar; se a teoria do valor trabalho é minada, que permanece, então, do marxismo em geral?”

Gorbachev parece pouco preocupado com essas firulas ideológicas. No relatório que começamos a citar mais acima, ele é claro: “O preço deverá desempenhar um importante papel estimulador no ordenamento da utilização dos recursos dos gastos, melhoria da qualidade dos artigos, aceleração do progresso técnico-científico e racionalização do sistema de distribuição e consumo. Nesse domínio, teremos de adotar atitudes político-econômicas novas e adequadas à atual etapa de desenvolvimento do país”(38).

Menshikov, o economista que vimos citando em debate com Galbraith, também parece ligar pouca importância ao fato de o marxismo, na sua versão mais corrente, estar indo para o espaço, na medida em que se desnuda a natureza da formação dos preços e se verifica que a teoria do valor-trabalho não permite entender o funcionamento da economia moderna nem suas necessidades. No debate com Galbraith, ele diz a certa altura que, “se uma fábrica for suficientemente eficiente para oferecer um bom produto a um preço mais baixo, ela evidentemente poderá fazê-lo”. O preço, para Menshikov, não é mais fixado pelo valor do trabalho acumulado, mas pelo mercado: “Será o mercado que fixará o preço, pois, afinal, o que é o mercado?... são todas as transações entre as empresas, e é ele que fixa os preços neste curso das relações diretas entre empresas”.(39)

Gorbachev aborda, no discurso referido, temas extremamente controvertidos, ainda não discutidos no Brasil: “O baixo custo dos recursos naturais suportou durante muitos anos o sistema de preços. Mas os atuais preços do carvão, petróleo, gás e energia elétrica não asseguram já condições indispensáveis ao autofinanciamento do sistema energético e de produção de combustíveis do país. Continua a existir a ilusão de que os recursos naturais são baratos e inesgotáveis, e a economia é orientada para o aumento contínuo de sua extração, consumo e exportação”.

O secretário-geral ataca, então, o problema dos subsídios que oneram o orçamento nacional, os quais foram criados para tornar viável uma política de preços baixos: “A política de preços infundada que tem sido aplicada conduziu ao aparecimento e rápido aumento dos subsídios estatais para a produção e comercialização de diversos tipos de artigos e serviços. O orçamento estatal concede anualmente subsídios no valor geral superior a 73 bilhões de rublos. Por outro lado, em muitos tipos de produção, são obtidas taxas de rentabilidade injustificadamente altas, que de modo algum refletem a eficácia da produção, pois são também resultado das deficiências na formação de preços.

As empresas que produzem artigos de preços injustificadamente baixos não têm estímulos para aumentar a produção” (os grifos são meus, buscando chamar a atenção dos governantes preocupados em fixar preços artificialmente baixos). Gorbachev continua: “Pelo contrário, aquelas que obtêm lucros excessivos, devido ao alto preço de seus artigos, não estão interessadas em diminuir os gastos e elevar a eficácia da produção. Nesse contexto são simplesmente impossíveis relações econômicas normais” (40). Há outro aspecto na fixação dessa estrutura artificial e subjetivista de preços, ao qual Gorbachev não alude, mas que é referido por G. Kulagin em “Nomemnklatura, price, profit”, citado no artigo de Rumer. Kulagin, a propósito, era à época diretor de uma grande indústria de máquinas. Com a introdução de maquinaria mais moderna, a fábrica começou a dar aquilo que Kulagin chamou de “lucro indecentemente grande”. Sucede que a estrutura burocrática fazia que esse lucro fosse transferido para o orçamento do ministério, fazendo que o aumento do lucro não tivesse efeito algum sobre os fundos de incentivo da empresa. Assim sendo, os dirigentes da fábrica decidiram propor a redução do preço das máquinas. O ministro a que a fábrica estava subordinada — na URSS, cada setor produtivo está subordinado a um ministério — concordou com alguma relutância. O Comitê Estatal de Preços também consentiu na redução. O ministro da Fazenda, no entanto, foi contra — pela simples e boa razão de que acusava o lucro da empresa como receita no seu orçamento. As razões da burocracia fazendária impediram, portanto, a redução de preços que se tornara possível pelo progresso tecnológico.

Gorbachev tem consciência de que não pode dar passo maior do que a perna; por isso, ressalta no relatório de junho de 1987 que “os preços dos artigos mais importantes devem ser definidos, obviamente, de modo centralizado...”. Isso não impede que refute por antecipação argumento dos que temem a alta dos demais preços: “As mudanças nos preços a varejo, em vez de deteriorar o nível de vida, deverão contribuir para que as camadas de trabalhadores de algumas categorias passem a viver melhor, concretizando os princípios de justiça social” (41). As informações mais recentes sobre as discussões em torno da perestroika e da crise que atravessa o programa incidem sobre as repercussões da alta de preços sobre o moral da população. No relatório ao Plenário da Comissão Central em junho de 1987, citado acima, Gorbachev ressalta a questão: “Uma coisa deve estar clara: dadas a importância e a complexidade da reforma dos preços, a sua preparação exige o máximo de cuidado. Impõe-se mobilizar as forças necessárias para efetuar rapidamente um enorme trabalho. Não podemos esquecer de que, sem resolver o problema da reforma dos preços, não conseguiremos elaborar o plano qüinqüenal da nova maneira, nem aplicar um sistema único de gestão econômica” (idem).

A questão dos preços sempre foi o calcanhar-de-aquiles de qualquer sistema centralizado em que os princípios do mercado são postos de lado. Note-se que mesmo insistindo na necessidade de permitir a variação dos preços e em fazer deles uma como que espécie de termômetro da atividade econômica, a sugestão de Gorbachev ao Plenário da Comissão Central é “mobilizar forças... para efetuar rapidamente um enorme trabalho”. Verifica-se, por esse ponto, que para ele se trata de intervir para resolver a questão dos preços e não de permitir que os mecanismos de mercado restabeleçam a verdade dos preços. Este é o nó da questão — o nó górdio, diria, e como dificilmente aparece quem se disponha a cortá-lo para resolver a questão, o problema dos preços nas economias centralmente planificadas, ou vivendo sob intervencionismo estatal, continua impedindo o estabelecimento de um padrão de cálculo econômico em torno do qual a economia possa ajudar-se o mais possível por si.

A questão dos preços está, pois, indissoluvelmente ligada ao funcionamento do mercado e a esta abstração chamada lei de oferta e da procura, levada muito a sério por marxistas ilustres.

 

 


 

 

A questão da inflação

 

 

A questão dos preços, a vigência da lei da oferta e da procura e a possibilidade de restabelecer as leis do mercado numa economia planificada ou sujeita a fortes controles por parte do Estado, essas questões todas se ligam estreitamente à da inflação. A inflação soviética, provocada entre outras causas pelo elevado déficit público, é sem dúvida uma das determinantes da desesperada tentativa de Gorbachev de alterar os rumos da economia na URSS. No Brasil, só agora é que se quer romper o círculo viciosos de preços e salários — sem no entanto aceitar as conseqüências econômico-sociais do reajustamento monetário. A inflação normalmente está associada a um aumento da base monetária e do déficit público, e, para resolver as duas questões, havia até 15 de março de 1990 os que recomendavam o não pagamento, pelo Estado, da dívida interna, dada como responsável pelo déficit público, quando não de parte dele. Se não houve o calote, houve um confisco. Mas é outra história. Voltemos aos marxistas coerentes.

No “Relatório sobre a crise econômica mundial” apresentado ao III Congresso da Internacional Comunista, em junho de 1921, Trotsky cuida da inflação e da dívida interna ao analisar os efeitos da guerra sobre a economia dos diferentes países. Apesar de muito do raciocínio ter como base o fato de os bens produzidos durante e para a guerra terem sido por ela destruídos — ou, em outras palavras, foram produzidos bens econômicos que não se reproduziram, deixando de acumular capital —, cabe citar algumas passagens desse texto, porque permitem estabelecer fundada relação entre dívida pública e déficit público, especialmente quando ele se traduz por despesas que acabam por não ser reprodutivas no conjunto da economia. É o caso do déficit gerado por empresas estatais improdutivas. A rigor, uma empresa que acusa déficits operacionais está consumindo insumos e pagando mão-de-obra para produzir um conjunto de bens que, no final e no seu conjunto, não se reproduzem economicamente, não permitem acumular capital — é como se tivessem sido destruídos pela guerra. Essa não reprodução se estima pelo cálculo econômico espelhado nos preços. Se a operação comercial se solda por um prejuízo, ele está a indicar ou que os preços não foram capazes de resgatar os gastos feitos com a produção e, portanto, não produzem excedentes suficientes para a produção recomece no nível em que teoricamente parou quando os bens foram colocados à venda, ou então que, por motivos não-econômicos, os custos de produção estão muito acima dos preços fixados pelo mercado. Passemos, no entanto, a Trotsky, no relatório à Internacional já referido:

“Como é sabido, o capitalismo como sistema econômico é cheio de contradições. Durante a guerra, essas contradições atingiram proporções monstruosas. Para conseguir os recursos necessários à guerra, o Estado recorreu essencialmente a duas medidas: a primeira, a emissão de papel-moeda; a segunda, uma inundação de empréstimos. Assim, como meio empregado pelo Estado para sugar do país bens materiais efetivos, para depois destruí-los na guerra, entrou em circulação uma quantidade sempre crescente dos assim chamados títulos de crédito (bônus do Tesouro). Quanto maiores se tornavam as despesas do Estado, isto é, quanto mais os valores efetivos eram destruídos, tanto maior era o amontoado de pseudo-riquezas, de valores fictícios que se acumulavam no país (...) O capital fictício — papel-moeda, bônus do tesouro, empréstimos de guerra, títulos bancários etc. — representa ou a recordação de um capital já gasto ou a expectativa de um capital ainda por vir. Mas no momento não corresponde a um capital efetivamente existente. Todavia, funciona como capital e como moeda e isso tende a fornecer um quadro incrivelmente distorcido da sociedade e da economia contemporânea em seu conjunto. Tanto mais a economia se empobrece, tanto mais rica é a imagem refletida no espelho do capital fictício (...) O Estado é devedor de centenas de bilhões. Essas centenas de bilhões existem como riqueza de papel no bolso daqueles que emprestaram ao governo. Mas onde estão os bilhões reais? Não existem mais. Foram queimados. Estão destruídos. Que esperança podem ter os detentores de títulos?”

Depois de outras considerações, Trotsky estuda o caso alemão e, após referir-se ao fato de a regulamentação dos aluguéis significar o bloqueio completo da construção de casas, vai direto ao ponto da suspensão do pagamento da dívida pública: “Para ‘relançar’ a economia alemã é necessário estabilizar sua moeda, isto é, é necessário cessar a emissão de papel-moeda adicional e reduzir a quantidade já em circulação. E para fazer isso é necessário suspender o pagamento dos débitos, isto é, declarar a bancarrota do Estado. Essa medida implica, no entanto, por si própria, uma violenta ruptura do equilíbrio, na medida em que comporta uma transferência de riqueza dos atuais detentores para outras mãos e provoca assim uma áspera luta de classe para uma nova distribuição da renda nacional” (42).

A teoria e a prática não demonstraram que para cessar a emissão de papel-moeda fosse necessário deixar de fazer o pagamento da dívida pública; mas a teoria e a prática demonstratam que Trotsky tinha razão ao dizer que o “calote” rompe o equilíbrio social e acirra extraordinariamente a luta de classes, fazendo de seu objeto uma nova redistribuição da renda. Os teóricos “burgueses” que aconselham o “calote” interno deveriam refletir sobre essas sábias considerações do lider bolchevista.

A inflação é um dos fantasmas que persegue Trotsky, como pode ver-se, pelos menos desde 1921, quando apresentou o relatório citado acima ao Congresso da Internacional. No livreto El fracasso del plan quinquenal a que já me referi, ele volta a cuidar do assunto — 11 anos depois de ter feito as judiciosas considerações sobre o capital fictício produzido pela emissão de papel-moeda sem nenhuma correspondência com valores reais produzidos pela economia. Em dois artigos, pelo menos, cuida do assunto da inflação e de seus efeitos sobre a economia. Num deles, intitulado precisamente “NEP, a inflação monetária e a liquidação da democracia soviética”, o adversário de Stalin escreve: “A firmeza da unidade monetária, o chervonetz, era a arma mais importante da NEP. Possuída pela vertigem, a burocracia decidiu que já se havia entrado com pé firme no reino da harmonia econômica; que os êxitos de hoje asseguravam automaticamente os êxitos ulteriores, e que o chervonetz não era mais um freio para aplicação do plano, mas, pelo contrário, uma fonte independente do capital de investimento. Em lugar de regularizar os elementos materiais do processo econômico, a burocracia dedicou-se a tapar os buracos com a ajuda das máquinas de imprimir [ moeda ]. Em outras palavras, lançou-se abertamente pela via da inflação ‘automática’. (...) Que significação pode ter para o operário uns rublos a mais se, ao faltarem os produtos alimentícios, vê-se obrigado a adquiri-los no mercado por preços dez vezes maiores?” (43).

Em outro artigo, “O ano da reparação capital”, Trotsky é ainda mais explícito no que tange à inflação: “Deter com mão de ferro o processo de inflação e restabelecer uma firme unidade monetária. Essa operação, difícil e incômoda, não é realizável sem uma brutal contenção dos investimentos, sem o sacrifício de várias centenas de milhões que foram aplicados em empreendimentos prematuros (...) a fim de evitar a perda de bilhões no futuro.

“Há de bater momentaneamente em retirada no domínio industrial, assim como no domínio agrícola. Não é possível determinar de antemão uma linha definida de retrocesso, só a reparação do capital de base da economia poderá indicá-la”. (44) Na linguagem econômica de hoje, essas proposições soariam como monetaristas e destinadas a provocar a recessão como meio de eliminar a inflação...

 

 


 

 

Da esperança à “nova pobreza”

 

 

Creio possível parar por aqui. A glasnost, primeiro, e a perestroika, depois, abriram um processo de conseqüências ainda imprevisíveis na Europa do Leste, depois na Europa Central e, com certeza, de grandes repercussões sobre as economias da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do próprio Japão. Não cabe, neste trabalho, entrar pelos meandros da política internacional e das conseqüências estratégicas da luta quase desesperada que Gorbachev trava para conseguir que a economia soviética atinja níveis de produtividade capazes de competir com a europeu-ocidental ou a norte-americana, além de produzir para atender às necessidades dos habitantes da URSS. Os problemas objetivos com que se defronta a economia soviética não são de hoje — e por objetivos quero dizer simplesmente, no caso da Agricultura, aqueles que decorrem da natureza, e não da organização política e social. O drama da agricultura soviética, afastada qualquer consideração sobre o sistema da coletivização (que retirou o incentivo individual, reconhecido pelo próprio Trotsky como indispensável ao relance econômico), é que a Natureza é muitas vezes madrasta. O outono que chega cedo demais, ou o inverno que se prolonga, qualquer alteração no ritmo das estações afeta drasticamente a colheita ou a semeadura, com graves repercussões sobre a balança comercial (pois se deve importar alimento e ferragens) e sobre o balanço de pagamentos. Se à Natureza se acrescentar a estrutura da propriedade, a rigidez burocrática da gestão, o desinteresse de todos pelo trabalho nas fazendas coletivas e agora a ressentida falta de mão-de-obra no campo, ver-se-á que os problemas de abastecimento do país não são fáceis de resolver. Isso na agricultura. Na indústria, os fatores objetivos não residem na Natureza, mas no sistema econômico e político. É sobre eles que Gorbachev desejou e quer agir — num processo que começou com a glasnost e agora coloca o Politburo diante da crise das nacionalidades, da inflação denunciada abertamente, da escassez de gêneros alimentícios e produtos essenciais, da corrupção que se busca combater abertamente e do crime organizado que se reconhece existir na pátria do socialismo.

Talvez o mais importante a registrar seja que, 70 anos depois da Revolução que tanto comoveu o mundo, porque viria pôr termo à carência e suprir o indivíduo daquilo de que necessitava, as autoridades soviéticas são obrigadas a reconhecer que a carência persiste, que os serviços públicos de saúde são deficientes, que a infância, no campo, é desassistida, que os milhões de aposentados e pensionistas, entre esses as viúvas de guerra, percebem benefícios que não ficam tão à frente daqueles que se pagam no Brasil.

Os dados sobre a pobreza e a miséria não são inventados pela imprensa ocidental e capitalista. Ernest Mandel, dirigente do movimento trotskysta IV Internacional, a quem já me referi, relata a pungente situação dos “novos pobres” na URSS, em livro que mereceria leitura e meditação dos que ainda acreditam na “esperança” do ano 17. Mais atrás, citei alguns trechos do livro. Permito-me fazer novas transcrições para assinalar quão desoladora é a situação social na União Soviética, em alguns casos chegando a lembrar a de países com cujo drama estamos familiarizados:

“Estimativas realistas calculam a massa dos pobres na União Soviética acima de 50 milhões de pessoas, incluindo as crianças dessas famílias, ou seja, 20% da população. Seus rendimentos atingem apenas 50 rublos mensais por família, enquanto o salário de um operário altamente qualificado se situa em torno dos 300 rublos, e o salário médio em torno de 200 rublos. (...)

“Mais inquietante ainda foi a evolução da taxa de mortalidade infantil. Enquanto era de 22,9 por mil em 1971, atingiu 26 por mil em 1985. Era a mais elevada da Europa Oriental... Na 19a. conferência do PCUS, que se realizou no fim de junho de 1988 em Moscou, o ministro da Saúde Pública sintetizou essa situação lamentável nestas fórmulas: ‘No domínio da mortalidade infantil, ocupamos a 50a. posição entre os países: ela é mais elevada na URSS que nas ilhas Maurício ou em Barbados... No que concerne à esperança de vida, ocupamos a 32a. posição entre países’. (Pravda, 30 de junho de 1988)” (45). As causas da mortalidade infantil referidas mais adiante são típicas de países subdesenvolvidos ou daqueles em que a vida humana (como no caso brasileiro) conta pouco: “falta de esterilização da roupa de cama, leite não pasteurizado, superlotação do estabelecimento” hospitalar. O “INPS” soviético é igual ao brasileiro: o médico de uma policlínica deve consagrar 7,5 minutos para cada paciente, e, desse tempo, cinco minutos são dedicados a preencher papéis. Ainda segundo Mandel, o jornal francês Libération de 3 de fevereiro de 1987 resume relatório de Valentina Terechkova à Conferência da União das Mulheres Soviéticas, em 30 de janeiro daquele ano, no qual a autora estigmatiza “a falta de vagas nos jardins de infância e nas creches, a ausência de precauções sanitárias, responsáveis pelo aumento das doenças contagiosas da infância, o aumento da mortalidade infantil situada ao nível do dobro da dos países capitalistas mais avançados, etc. Não menciona a angustia sexual das mulheres soviéticas, que, entretanto, é evidente” (46).

Poder-se-ia dizer, sem medo de errar, que a eliminação do mercado e da propriedade privada, conseqüência do planejamento centralizado, na URSS foi responsável pelos avanços iniciais da economia depois de 1927 (ao preço dos 60 milhões de mortos que quase todos teimam em esquecer), e, depois dos anos 60, pela queda do crescimento econômico. Não apenas essa eliminação é conseqüência de obstinação doutrinária no entanto. O desastre é conseqüência do desconhecimento das leis da economia por parte do Politburo — e a centralização e a ditadura stalinista nisso tiveram um grande peso. A rigidez doutrinária e burocrática conduziu a economia soviética ao labirinto em que se encontra e do qual não sairá sem auxílio maciço do Ocidente. Que aliás necessita do espaço soviético e da Europa Central para ter onde acumular capital! A corrida armamentista contou muito na crise da economia soviética — e ela traduz, na forma exacerbada com que se deu enquanto fenômeno econômico e social na URSS, a que ponto as idéias de segurança militar podem comprometer a segurança econômica, social e política de uma Nação, quando os suprimentos em armamento para as Forças Armadas ultrapassam os limites do razoável. Se fôssemos aprofundar o estudo desse capítulo e cuidássemos da economia norte-americana, chegaríamos sem dúvida a conclusões apontando para situações semelhantes no futuro.

As leis da economia são poucas e simples. É por isso que podem ser violadas por quantos pretendem construir o paraíso na terra, apoiados num modelo de dominação burocrática em que o empresário é desprezado, enquanto agente econômico, e o consumidor simplesmente ignorado. Sucede, porém, que essas regras do comportamento econômico — melhor dito do que leis — não podem ser desrespeitadas sob pena de 50 anos depois o caminho de volta estar fechado e o desastre esperar os dirigentes políticos. Essas regras são simples:

1. a chamada lei da oferta e da procura, a que se referia também Trotsky;

2. não se deve perder de vista que o mercado existe — nem que seja conhecido como “mercado negro”. Kautsky, como vimos atrás, foi dos primeiros, no campo marxista, a reconhecer que a lei do valor, fundamento da economia marxista, só funciona numa economia de mercado em que o cálculo econômico predomina;

3. é preciso ter em conta que tudo tem um preço. Esse será pago pela sociedade, quando os agentes econômicos se furtarem a fazê-lo ou quando o Estado insistir em que tal custo não existe. Nesse caso, a diferença entre o custo do que se produz e o pelo que o produto deveria ser vendido, mas não é, tem de ser coberta por impostos; quando os impostos são insuficientes, ou não se pagam, a diferença é coberta pela emissão monetária ou de títulos da dívida publica. Em última palavra, pelo déficit publico, isto é, pela inflação;

4. apenas o setor produtivo da sociedade produz valor. O Estado produz aquilo que Trotsky chamava de capital fictício. Sobre esse capital fictício, que leva à inflação, não pode haver nenhum progresso econômico firme, mas apenas a construção do desastre.

Possivelmente pudessem resumir-se todas essas regras de comportamento econômico numa só: há-de haver moeda estável, como queria um bolchevista chamado Leon Trotsky. Em outras palavras, não pode haver inflação. Se razões de política econômica (ou política governamental em sentido amplo) levarem a uma expansão da base monetária e à alta de preços, essas devem ser compatíveis e estreita e positivamente correlacionadas com o aumento da produtividade e o avanço tecnológico das novas gerações que ingressam no mercado de trabalho.

Se apenas a sociedade que trabalha produz valor e se o déficit público é gerado entre outras causas pela destruição de bens provocada nas empresas estatais por uma política de custos que nada tem a ver com a realidade do mercado, ou por uma política de preços de cunho paternalista ou protecionista, o bom senso indica que o Estado deve afastar-se da produção. Tanto nos Estados burocráticos e totalitários, quanto nos Estados democráticos (ou aparentemente democráticos) quando o governo gere empresas, elas incham em pessoal e seus custos não guardam relação com coisa alguma. Na economia soviética, como procurei mostrar com abundantes citações, o pleno emprego existe porque há um estoque de mão-de-obra em cada fábrica. Em outras palavras, elas empregam mais pessoal do que o necessário. Por isso, nem todos trabalham, pela simples e boa razão de que não há o que fazer, ou então os turnos de trabalho são curtos em demasia (da perspectiva econômica) e os trabalhadores aproveitam o tempo livre para dedicar-se à economia paralela, que é outra das mazelas denunciadas por Gorbachev.

A reversão de uma economia centralmente planifícada, dirigida ou regulamentada para uma economia de mercado não se faz da noite para o dia. Poder-se-ia tentar a experiência da ultrapassagem rápida, aplicando choques ditos ortodoxos, sem levar em conta os aspectos sociais e humanos da questão. Gorbachev, em muitos de seus pronunciamentos, chamou atenção para o fato: governo algum resistiria ao protesto popular contra a tentativa de aplicar uma política dessa natureza num país da extensão e complexidade étnica e social da URSS e com a cultura “estatólatra” que nele vigora. Educado nos princípios do intervencionismo, e cuidando das repercussões políticas de sua ação econômica, Gorbachev pretende introduzir um novo tipo de economia mediante intervenções diretas na economia, e não sinalizando aos agentes econômicos (que existem na URSS) quais os caminhos de mercado que devem e podem ser seguidos.

Se se condena o stalinismo e o comunismo pós-Stalin pelos crimes que cometeram, não se pedirá que a reconversão da economia soviética — ou de qualquer economia — aos princípios da economia de mercado se faça à custa do sacrifício de outros milhões de seres humanos. A tarefa não é fácil. Será, no entanto, muito mais difícil se se pretender restabelecer o mercado via decretos e ações administrativas, regulando os passos que devem ser dados pelos agentes econômicos para que a economia volte a florescer. O problema, como ficou claro em outras passagens, é político — portanto de relação de forças sociais em presença. Esse fato não deve nunca ser esquecido, da mesma maneira que esta “lei”: ao mercado só se chega por mecanismos de mercado.

O liberalismo não é defensor do empresário. Enquanto agente econômico racional e movido pela cupidez, o empresário tem tudo para ser contra o mercado, que é o único tribunal eficiente capaz de controlá-lo. É por isso que antes de defender o laissez-faire, que na sua lógica interna acaba por criar o oligopólio tão a gosto de muitos empresários brasileiros, o liberalismo sustenta que aquilo que deve ser defendido é o mercado, sendo o consumidor o juiz supremo da eficiência do empresário, voraz ou não.

A defesa do mercado, contudo, convém repetir, não se pode fazer usando instrumentos de intervenção, mas enquanto possível apenas aqueles de mercado. Essa verdade elementar — que se resume nesta frase também de Trotsky: “quem quer os fins, aceita os meios” — não é percebida por muitos economistas, políticos e empresários brasileiros.

 

 


 

 

O grande debate

 

 

À guisa de conclusão, acrescento algumas considerações sobre a crise brasileira. Desde que se reconheceu a existência do “socialismo real” e desde que a União Soviética perdeu a aura de misticismo que cercava a realização do socialismo a partir de 1917, acentuou-se no Brasil a polêmica em torno da miséria. Essa preocupação, é bom ter presente para não fazer como o avestruz, não é modismo ideológico, pois decorre de pressão da realidade. O esforço teórico para resolver a questão da miséria corta necessariamente dois planos: o político (construído sobre postulados ético-normativos), e o econômico (que se ergue sobre a realidade, ou aquilo que imaginamos ela seja). Cada qual desses planos evolui de acordo com sua lógica interna, uma excludente da outra, é bom ter presente. Por isso, buscar justapô-los mediante a superposição dos critérios ético-normativos aos da lógica econômica é criar condições para que qualquer projeto governamental ou societário de acabar com miséria se perca em contradições insanáveis. Insanáveis, no sentido de que as contradições do projeto bolchevista acabaram criando a sua própria “pobreza”.

Em muitos círculos, no Brasil, para não dizer em quase todos, triunfou a tendência mais cômoda do ponto de vista emocional: no confronto intelectual com a miséria, forçou-se a justaposição dos dois planos e não apenas se deu primazia aos argumentos ético-normativos, como se fez questão de esquecer as ponderações da lógica econômica. Nesse particular, a influência católica, secularmente avessa ao frio raciocínio econômico, foi predominante no pensamento social brasileiro desde os anos 30, ainda que não reconhecida, como da mesma maneira é influente nos dias de hoje, pela presença constante da miséria e pela ação da Teologia da Libertação.

Quando se estuda o grande debate que se travou e ainda se fere no Brasil entre os defensores do mercado e os da regulamentação da economia pelo Estado, verifica-se que o universo de pensamento e o discurso de muitos que sustentam essa ou aquela posição têm, por paradoxal que pareça, muito em comum. Na medida em que ainda não se deram no Brasil as condições para organizar a Sociedade Civil — isto é, um tipo de organização social, conflituoso por definição, que se auto-ordena de forma a permitir que os interesses dos diferentes grupos sociais se confrontem diretamente sem a mediação do Estado —, a visão “geral” do mundo (“geral” no sentido em que o inglês era a “língua geral” na Índia colonizada) até hoje vigente é a dos grupos agrários, industriais, comerciais, financeiros, sobretudo os agrários e os industriais que sutentavam o esforço de industrialização apoiados no Estado. Não é este o momento de voltar às considerações sobre a formação histórica, social e política do Brasil que expendi no ensaio “Uma caracterização do sistema” publicado na Teoria da Coisa Nossa. Nunca será demais repetir, no entanto, que foi a predominância da visão do mundo dos setores agrários que forjou uma maneira especial de os grupos sociais (e os indivíduos que os compõem e representam, não nos esqueçamos) tomarem posição diante das coisas dos mundos religioso, familiar, social e político. Essa maneira de posicionar-se diante do mundo permitiu aos pioneiros da industrialização ver no Estado não o adversário da iniciativa individual, mas sim o supridor dos capitais de que necessitavam, ou da proteção aduaneira e policial de que careciam. Esses setores e seus “intelectuais” tomaram o Estado como servo (de fato, durante toda a República Velha o controlaram, de Prudente de Moraes a Washington Luiz) e por isso nunca se perguntaram se estavam ou não vendendo a alma ao diabo que aparentava servi-los. Mais importante, não quiseram saber de onde provinham os capitais que o Estado lhes adiantava.

A preeminência do Estado sobre a sociedade brasileira desde a chegada do primeiro governador-geral, Tomé de Souza, em 1549, e a ocupação do governo na República Velha pela classe proprietária (que era cultural e politicamente dirigente) explica por que nunca se discutiu a importância da burocracia na condução do processo político, para não dizer a origem dos capitais do Estado. Esta atitude de não indagar, investigar, não é própria apenas dos homens de ontem. Ainda hoje são muitos os que se recusam a ver na burocracia outra coisa que não o conjunto de pessoas que controlam os papéis nas repartições ou retiram a espontaneidade dos comportamentos nas empresas. A burocracia assim vista é a burocracia enquanto fato social, inseparável da divisão social do trabalho. Preocupa-me a outra face dela: a burocracia enquanto fato político, de poder. Esse fenômeno burocrático, político, não é produto dos regimes totalitários; pelo contrário, se desconsiderarmos os períodos históricos antigos em que vigorou o chamado “despotismo oriental” ou o “modo de produção asiático” (períodos essencialmente burocráticos, como o do Egito dos faraós), essa burocracia qua factum político nasce com o Estado moderno. É o governo, o conjunto de “magistrados”, os que exercem funções diferenciadas em função do saber que de fato possuem ou lhes é atribuído magicamente pela sociedade, que tem poder sobre os demais funcionários e sobre todos os cidadãos. Rousseau apontou o perigo do burocratísmo no “Contrato Social”; Marx mostrou como ele funciona e como os “magistrados” têm poder decorrente da diferenciação funcional e do controle do Exército e da economia em suas obras sobre a crise francesa de 1848 a 1871. Apesar de tantos escritos, ainda há os que vêem na burocracia apenas e tão-só o objeto de estudos acadêmicos sobre as organizações complexas. As penetrantes análises da oposição a Stalin sobre o carácter da burocracia ou os estudos que se fizeram sobre o III Reich de pouca valia têm sido para os que se dedicam a estudar a crise brasileira. A bem dizer as coisas, seja porque retiram suas condições materiais de existência do aparelho de Estado (e com isso se associam, mesmo que mal-aquinhoados, na distribuição entre os burocratas do excedente arrebatado da sociedade produtiva), seja porque fazem do ser humano uma falsa idéia, otimista, supondo-o bom e deformado pela cobiça capitalista, a verdade é que à esquerda e à direita ainda se vê o Estado como o grande regaço em que se nutrirão as forças que construirão o desenvolvimento brasileiro. Essa idéia, percebe-se, é semelhante à que faziam, no início do século, os que começaram a industrializar o País.

Essa visão do Estado, como provedor de recursos por ele próprio gerados, relega o esforço produtivo da sociedade a terceiro plano. O que importa notar é que tal postura intelectual é a nutriz do pensamento não apenas dos que combatiam o liberalismo e agora voltam suas baterias contra o que chamam de neo-liberalismo. Muito são os empresários privados que têm do Estado a mesma percepção idealizada, segundo a qual o Estado pode criar recursos. É difícil convencer uns e outros, defensores verbais da livre iniciativa e os adversários dela, da elementar verdade de que o Estado não cria recursos e não os cria porque não se produz valor economicamente mensurável na atividade estatal enquanto tal. Com isso quero dizer que o Estado, enquanto “unidade de dominação e coletiva de decisão e ação”, que detém o monopólio legítimo dos meios de violência (ou supunha controlá-lo), esse Estado nada cria, pela simples e boa razão de que o serviço burocrático não é uma atividade produtiva. Por não sê-lo, é que a atividade burocrática é mais alienante do que a exercida na agricultura, no comércio ou na indústria ou nos bancos.

A adesão dos intelectuais e dos empresários a essa ideologia burocrática, que se aproveitou de mil e um capilares para espraiar-se pelo conjunto da sociedade, teve dois efeitos graves para o entendimento do processo brasileiro (e quando digo entendimento, digo condução política):

Primeiramente, tal apego à visão de um Estado criador de recursos permitiu que se esquecesse de que os recursos do Estado se originam de sua capacidade legal de concentrar nas mãos da burocracia, pelo expediente de impostos, taxas e contribuições extraordinárias, parte do excedente produzido pela sociedade. Quero dizer que o Estado absorve parcela do valor produzido pelos que produzem, concentra-a em suas agências de crédito e a devolve à sociedade como se fossem recursos estatais. O principio da “economia de forças” e aquele outro da “concentração de forças”, básicos na condução da guerra, são igualmente fundamentais para que se dê a dominação do Estado sobre a sociedade produtiva. Sendo escassos os recursos visíveis gerados na sociedade produtiva, o Estado tem condições legais, inerentes à sua simples existência, de gerenciá-los de maneira concentrada e aplicá-los naqueles setores que a burocracia privilegia segundo critérios próprios ou fixados no intercâmbio entre os burocratas e a setores das classes proprietárias necessitados de aportes de capitais sem grandes riscos (na suposição, por eles tida como real, de que o Estado é servo da sociedade). Com isso, a burocracia aumenta seu poder sobre a sociedade e dá-se ao luxo de alimentar e difundir a ideologia que sustenta que o Estado é supridor de recursos. Historicamente, há-de considerar que nem sempre os impostos diretos tiveram peso especifico maior do que os indiretos (pagos por toda a população) nos orçamentos da União. Inexistíndo praticamente os impostos diretos, basicamente o imposto sobre a renda — a das pessoas físicas, aquele recaindo sobre as jurídicas tendo sido durante muitos anos meramente simbólico —, os que se beneficiavam dos capitais do Estado não sentiam na caixa das empresas ou na pessoal o que era o Estado apoderar-se de parte do excedente social para distribuir recursos e criar empregos. Ademais, é preciso ver que, politicamente, o fato de a burocracia estabelecer hoje prioridades que favoreciam determinados setores e, amanhã, outras, auxiliando setores diferentes, comprometeu praticamente todos os grupos empresariais produtivos nesse jogo com cartas marcadas que tendia a aumentar o domínio estatal sobre a sociedade, dada como desorganizada e incapaz de oferecer um projeto para o Brasil.

O segundo efeito da impregnação da sociedade pela ideologia de que o Estado cria recursos foi a beatificação do déficit público. Nesse sentido o exemplo dos Estados Unidos, no imediato após-guerra, foi nefasto para o Brasil. Uma leitura errada, para não dizer enviesada do New Deal, e o desconhecimento de que os efeitos da Grande Depressão sobre o emprego e a economia norte-americana só cessaram com a Segunda Guerra Mundial, e não com as políticas do New Deal, fizeram que se passasse a considerar normal o déficit público coberto por emissão de moeda, desde que o dinheiro emitido fosse aplicado em investimentos. Os efeitos multiplicadores sobre o tamanho da burocracia (Parkinson) desse tipo de operação governamental nunca foram considerados. A euforia do desenvolvimentismo do período Kubitschek (misturada a uma boa dose de nacionalismo e a uma viciada teoria do desenvolvimento capitalista em nível mundial), mais os efeitos políticos e sociais do ingresso em força das massas no processo social e político urbano combinaram-se com a ideologia do Estado criador de recursos (que vinha dos anos 30, para não ir mais longe) para fazer do crescimento econômico pela emissão monetária e inflação a receita do sucesso.

Essas idéias básicas que permeiam a sociedade e a classe política brasileiras impuseram-se no período militar pós-1967 — e se impuseram pela simples e boa razão de que o partido que dirigiu o processo de 1964, especialmente de 1969 até 1985, era de formação e organização burocráticas, alheio ao mundo da produção. As Forças Armadas, como dizia ilustre economista, são “requisicionistas” e não “produtoras”. Quando, depois da crise cambial de 1982, se verificou que o déficit público que se acumulara acusava simplesmente a falência do Estado, foram poucos os que cuidaram de buscar as razões da quebra onde ela deveria estar: no desperdício dos recursos apropriados do excedente social. O desperdício registrava-se não apenas nos meandros do labirinto burocrático e no déficit público sempre presente. Estava também na construção de um sistema produtivo ineficiente (tal qual na URSS e em outros regimes e Estados): as empresas estatais. Praticamente todos os que podiam vocalizar a crise e suas soluções, dos mais diferentes partidos, cada qual “requisicionista” a seu modo, cuidaram de encontrar um inimigo que fosse grande o bastante para não ser destruído (pois se o fosse, a ideologia dos capitais gerados pelo Estado seria desmascarada), mas importante o suficiente para justificar que contra ele se chamasse a ira de todos, desviando-a da ineficiência burocrática e do déficit público. Esse inimigo foi a dívida externa.

Essa visão distorcida dos fatos econômicos, a qual sustenta a burocracia e é por ela sustentada, só deixará de prejudicar o Brasil quando, no interior da sociedade produtiva, se criarem condições para reverter a situação — isto é, quando se construir uma economia de mercado e se retirar o Estado das posições que ocupa no processo produtivo, seja como detentor de capitais nas empresas públicas ou de economia mista, seja como agente legal regulador da atividade econômica, qualquer que seja ela.

Essa ideologia burocrática de que existem recursos próprios do Estado — associada à sua irmã siamesa, que é a condenação apriorística do mercado — responde em boa medida pela miséria que não encontrou corretivo até agora.

A miséria tem sido vista como problema econômico e social, moral, se quisermos, como caracterizei no início destas considerações finais. Poucos atentaram para o fato de ela ser, antes de mais nada, o resultado de uma situação de poder, de uma correlação de forças em que o sistema, como caracterizei anos atrás, triunfou. Que é o sistema, enquanto expressão de uma situação de poder? Em 1966, eu o defini como um “emaranhado de interesses contraditórios os quais se tomam realmente solidários no campo do governo (confundido com o Estado pelo presidencialismo). Essa confusão entre o ‘cérebro social’, que é o Estado, e seu executor, o Governo, permite que se utilize a força e o poder daquele para realizar objetivos próprios e personalizáveis, atendendo assim, em determinados momentos, os interesses de um grupo contra os de outros”.

A essas palavras poderia acrescentar que a burocracia funciona como elemento catalisador desses interesses, permitindo que aquilo que é contraditório se torne solidário no plano do Estado. Em 1966, acreditava, tendo presente as condições institucionais de então, que essa articulação de interesses contraditórios (a diferente racionalidade produtiva que se registra na Agricultura tradicional, na Indústria moderna e no setor terciário, que é a um tempo velho e novo) foi possível graças ao sindicalismo de Estado e ao imposto sindical. Extinta a participação do Estado no imposto sindical pela Constituição de 1988, e assegurado formalmente a autonomia sindical, o elo da articulação deve ser procurado em outro elemento, porquanto o sistema continua impedindo que se dê o pleno desenvolvimento capitalista no quadro de uma economia de mercado. Diria que, hoje, no Estado considerado democrático da Constituição de 1988, quem articula todos esses interesses contraditórios e impede a ruptura do sistema — a revolução que se anuncia há décadas na explosão demográfica e na retração dos investimentos produtivos — é a associação entre a burocracia das empresas estatais ou simplesmente funcional e a classe política, e que o locus dessa articulação é o Congresso composto por representação proporcional.

Fique a idéia para discussão posterior e retornemos à miséria como decorrência de uma situação de poder. Por situação de poder entendo o “conjunto de circunstâncias de fato, de ordem individual, familiar, coletiva; política, econômica e social” no qual se expressa uma relação de dominação consentida, referida ou não à propriedade, mas sempre atinente àquela relação, que é de subordinação não necessariamente política, mas muitas vezes, na maioria delas, eleitoral. Em outras palavras, situação de poder é uma conjuntura na qual os que determinam o contorno que podem tomar as circunstâncias de ordem individual, familiar, coletivas em suma, referentes à apropriação dos bens políticos, econômicos e sociais, decidem de molde a manter sempre a mesma relação sócio-política (eleitoral) na qual eles são sempre os dominantes, exercendo essa dominação de maneira direta ou por interpostas pessoas que partilham da mesma visão do mundo. Essa conjuntura, para ser permanentemente favorável aos que decidem, deve expressar-se politicamente no Congresso. É nele que se dá a diluição dos conflitos ideológicos e se articulam os interesses supostamente contraditórios. A burocracia tem, nessa articulação e nessa diluição, papel importante, pois é ela que detém o saber técnico de que depende a inclusão de verbas, estas e não aquelas nos orçamentos, agora votados e emendados pela classe política. O burocrata e o congressista são a expressão real das diferentes situações de poder que existem no País; vivem delas e as perpetuam para eternizar sua dominação.

Ora, quem leu “Uma caracterização do sistema” ou a obra pioneira de Raymundo Faoro, “Os donos do poder”, compreenderá que coisa são as situações de poder que impedem o florescimento de uma economia de mercado e concorrem para que a regulamentação burocrática da economia persista em detrimento do consumidor e do avanço tecnológico no Brasil. Na verdade, na situação de poder que existe desde tempos que a memória das jovens gerações já não alcança, não há força endógena capaz de criar condições para que a questão da miséria seja equacionada e resolvida.

Uma vez que o problema da miséria seja encarado do prisma do reforço da autonomia das condutas e não de sua regulamentação de fora e de cima, pelo Estado, heterônoma portanto, o equacionamento da questão implica:

1. desenvolver em cada qual a consciência dos direitos individuais e da cidadania. À medida que essa consciência se expande socialmente, isto é, à medida que um maior número de pessoas se torna consciente de que são cidadãos e de que seus direitos se defendem por sua organização e pela amplicação da autonomia social e da liberdade política (e civil), maior será a probabilidade de serem postos em dúvida os fundamentos legais ou ideológicos da situação de poder. É insensatez supor que se alcançará uma economia de mercado sem abalar a situação de poder existente; ou imaginar que a superação da miséria se dará sem trincas nela. Por isso, os defensores do statu quo sustentam a regulamentação (qualquer que seja o tipo) da economia, os incentivos e subsídios (maneira ideal de manter uma situação de poder social, político e econômico) e a intocabilidade, senão dos privilégios, pelo menos das ditas “prerrogativas” da classe política;

2. transmitir ao grande número, que é ou o consumidor ou o cidadão miserável ou não, um projeto de organização da sociedade e do Estado. Esse projeto deve trazer claramente expresso o papel que os novos cidadãos desempenharão na República. Ele será claro na ênfase nos princípios do mercado e seus condicionantes: respeito ao consumidor, concorrência, preço como indicador do processo econômico, custo das opções. Não apenas na economia esses princípios podem ser aplicados. A coerência interna (responsável pela harmonia dialética) dos sistemas exige que os mesmos princípios aplicados ao sistema econômico vigorem no sistema político-institucional: se o mercado é o reino da autonomia, a política deverá consagrar o Congresso como a arena em que a autonomia dos cidadãos se exprimirá; se o consumidor deve ser respeitado como juiz supremo das ações econômicas, o cidadão também e muito mais; se as empresas devem reger sua relação com o meio circundante pela concorrência, os partidos políticos também — e se a empresa não pode impedir o outsider de vir tentar sua oportunidade no mercado, os partidos políticos não podem frustar a vontade dos independentes de tentar sua sorte.

A alteração das situações de poder vigente transferirá o problema da distribuição de renda do decreto-lei regulamentador para o conflito harmonizador das diferenças dos pontos de vista. Não quero dizer que basta o fiat liberal para que tudo se resolva; insisto apenas em que a miséria não decorre da propriedade privada, mas de uma situação de poder em que os miseráveis estão desorganizados e em que os interesses sociais contraditórios se harmonizam no Congresso ou nos gabinetes burocráticos — um e outros sendo como arenas de difícil acesso, em que o oligopólio é a regra de ouro, a burocracia e grupos privados tudo intermediam e em que aos poucos o Estado vai financiando tudo, das eleições às aposentadorias.

A questão da miséria não se resolverá do dia para a noite. Não será resolvida nunca, porém, da mesma forma que a inflação, se não se mudar o enfoque com que se tem cuidado do problema. Ela não é fruto da concentração de rendas e do egoísmo dos empresários. Pelo contrário, o egoísmo se exerce sem medida, a renda se concentra e a miséria existe porque não se faz esforço algum para romper a situação de poder. Os que alardeiam pretender ultrapassar a conjuntura de dominação não são capazes de compreender o fenômeno “situação de poder”, do qual se beneficiam no Congresso ou na relação social local, ainda que aparentemente estejam do lado de lá dos dominantes. Não percebem que a realidade do sistema eleitoral os beneficia, integrando-os no sistema que se estrutura cada vez melhor e se consolida sempre.

Com isso termino.

 

 


 

 

Notas

 

 

1. AGANBEGUIAN, Abel G., A revolução na economia soviética: a perestroika. Trad. de Ludmila Lumanisakio et alii, 1987, pág. 58. Publicações Europa-América, Ltda.. Portugal

2. As referências sobre o desenvolvimento russo até 1914 são tomadas de CLARKSON, Jesse D., A history of Rússia, Random House, New York, 2a. ed., 1969, e de KENNEDY, Paul, The rise and fali of the great powers, Random House, New York, 1987.

3. MANDEL, Ernest, Além da perestroika, trad. de João Machado et alii, Editora Busca Vida, São Paulo, 1989, vol. I, pags. 28 e 29.

4. MEDVEDEV, Zhores, Gorbachev. Trad. de Sieni Maria Campos. José Olímpio Editora, Rio de Janeiro, 1987, págs. 168 e segs.

5. A proposta de Mikhail Gorbachev. Reunião de textos de M. S. Gorbachev. Trad. da Agência de Imprensa Nóvosti, Moscou. Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1988, págs. 3 e 10.

6. Op. cit., pág. 93.

7. Op. cit., pág. 54.

8. GORBACHEV, M. S., Perestroika. Trad de J.Alexandre. Editora Best Seller, São Paulo, 19a. ed., s.d., págs. 17 e 21.

9. GALBRATTH, J. K. & MENSHIKOV, S., Capitalismo, Comunismo & coexistência. Trad. de Carlos A. Malferrari. Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1988, págs. 19 e 17.

10. MEDVEDEV, Zhores, Op. cit., pág. 174.

11. Op. cit., pág. 230.

12. A proposta..., Op. cit., pág. 76.

13. Op. cit., págs. 5 e 6.

14. GORBACHEV, Op. cit., pág. 25

15. A proposta..., Op. cit., págs. 8, 9 e 10.

16. TROTSKY, Leon, El fracasso del Plan Qüinqüenal, sem indicação de tradutor, Ese Editor, Buenos Aires, 1973, pág. 15.

17. A proposta..., Op. cit., págs 7 e 14.

18. Op. cit., pág. 65.

19. Op. cit., págs. 6 e 7.

20. TROTSKY, op. cit., pág. 16.

21. A proposta..., Op. cit.,págs 72 e 73

22. Op. cit., pág. 113.

23. TROTSKY, op. cit., págs. 61 e segs.

24. Op. cit., págs 67 e 68.

25. LUXEMBURGO, Rosa, The accumulation of capital, Routledge and Kegan Paul Ltda., Londres, 1951, págs. 44 a 46.

26. HAYER, Freedrich A., Direito, Legislação e Liberdade, Visão, São Paulo, 1985; Vol. I, págs. 9 e 10.

27. KAUTSKY, Karl, La doctrina económica de Carlos Marx, trad. de Anny Dell’Erba, Lautaro, Buenos Aires, 1946, pág. 119.

28. GALBRAITH & MENSHIKOV, op. cit., pág. 33.

29. Op. cit., pág. 37.

30. Op. cit., pág. 55.

31. A proposta..., Op. cit., pág. 7.

32. Op. cit., pág. 101.

33. XX Century and Peace, The Soviet Peace Committee, Moscou, n° 2/88, pág. 24.

34. KAUTSKY, op. cit., págs. 49 e segs.. Para uma mais completa explanação sobre a teoria do valor e sua refutação, cf. von Boehm-Bawerk, A ‘teoria da exploração’ do socialismo, II - José Olímpio Editora, Rio de Janreiro, 1987.

35. TROTSKY, Leon, A revolução traída, trad. de Rogélio de Moura Brázio, Edições Delfos, Lisboa, 1973, págs. 70 e 71, grifos meus.

36. A proposta..., op. cit, pág. 7.

37. MEDVEDEV, op. cit., págs. 200 e 183.

38. A proposta..., op. cit., pág. 74.

39. GALBRAITH & MENSHIKOV, op. cit., pág. 55.

40. A proposta..., op. cit., pág. 74.

41. Op. cit., págs. 74 e 75.

42. TROTSKY, Leon, Problemi della revoluzione in Europa, a cura di Livio Maitan, Arnoldo Mondadori Editore, Milano, 1979, págs. 134 e segs.

43. TROTSKY, El fracasso..., Op. cit., pág. 68.

44. Op. cit., pág. 88.

45. MANDEL, Ernest, Op. cit., págs. 30 e 32.

 

 


 

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