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FORÇAS ARMADAS PARA QUÊ?

Oliveiros S. Ferreira

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Forças Armadas Para Quê?
Oliveiros S. Ferreira

Fonte Digital
Digitalização autorizada pelo Autor
do livro em papel
Edições GRD
Rio de Janeiro — GB
1988

© 2004 — Oliveiros S. Ferreira


Índice

 

Nota do Editor
À guisa de prefácio
A Geopolítica do Brasil revisitada
A função de “Poder Moderador” do Exército
As Forças Armadas na Constituição
Forças Armadas, para quê?
As Forças Armadas, como instrumento de política externa
Política externa e defesa: o caso brasileiro
Guerra nuclear, guerra convencional e sistema periférico de defesa
O Brasil na era nuclear
Exame dos modelos de cooperação militar no mundo de hoje


Oliveiros S. Ferreira

 

 

FORÇAS ARMADAS
PARA QUÊ?

 

 


 

 

NOTA DO EDITOR

 

Já tendo criado uma pequena tradição editorial no tocante ao lançamento de obras de cunho político-militar, aí incluídos O soldado profissional, de Morris Janowitz, Luta de guerrilhas, de James Elliot Gross, Viet-Cong, de Douglas Pike, A batalha de Nan Dong, de Roger Donlon, Guerra total e guerra fria, de Harris L. Coles, Teoria e prática da contra-rebelião, de David Galula, todos esgotados, ou, especificamente quanto à revolução político-militar brasileira, o livro do próprio Oliveiros S. Ferreira, As forças armadas e o desafio da revolução, e, ainda, a obra de Antônio de Arruda sobre A Escola Superior de Guerra, (já em 2a. edição, quase esgotada e incluída na “Coleção URCA”, onde também se encontra O poder nacional dos países subdesenvolvidos, de Heitor Marçal), não nos passaria desapercebida a série de ensaios de Oliveiros S. Ferreira, publicada através da revista Política e Estratégia, do Convívio — Sociedade Brasileira de Cultura, editada por Antônio Carlos Pereira.

Forças Armadas, para quê? é um dos capítulos que integram o presente volume, por nós escolhido para o título geral da obra, por seu poder imanente de afirmar a presença do Poder Militar, de cuja atuação cada vez mais o Brasil sente a inadiável necessidade de compreender, para integrá-lo definitivamente como um dos segmentos inafastáveis de sua estrutura social, resultando daí, portanto, parâmetros amplos de sua atuação legítima, em toda e qualquer circunstância.

Matéria que traz em si gigantesco potencial polêmico, indiscutivelmente para abundante meditação, e que deverá fazer surgir mesas-redondas, seminários, debates, tudo fundamentado na seriedade de um trabalho científico — e apaixonante, por que não? —, como costuma ser a elaboração intelectual de Oliveiros S. Ferreira, cujo objetivo é sempre um: o de levar o Brasil a encontrar o seu caminho próprio, capaz de situá-lo, definitivamente, junto às grandes Nações que fazem a História — conduzindo-a. E na certeza de que, assim não procedendo, simplesmente integraremos, de modo irremediável, a farândula daqueles países marginalizados pela incúria de suas pseudo-elites, cuja incompetência, ao guiá-los, faz com que permaneçam mergulhados no atoleiro dos subdesenvolvidos, de difícil e dolorosa compreensão para os que aí se mantêm sufocados.

 

Ribeirão Preto, 4 de agosto de 1988

Gumercindo Rocha Dorea


 

 

À GUISA DE PREFÁCIO

 

 

Prazerosamente atendo ao convite de Oliveiros S. Ferreira para propor um prefácio a seu novo livro. O convite feito durante um de nossos periódicos encontros, embora viesse envolto num significado real, sumamente honroso pelo valor da inteligência do autor, trazia em si, mal disfarçado, um desafio provocado pelos temas abordados.

Com efeito, a marcante meticulosidade com que Oliveiros, de longa data, pesquisa, analisa, esmiuça e propõe interpretações à permanente presença das Forças Armadas no processo político brasileiro, faz dele autor importante e interlocutor sumamente válido para todos aqueles interessados em conhecer ou desejosos de entender de que forma se vem processando essa participação.

Mesmo não concordando com algumas interpretações com que às vezes meu amigo Oliveiros me fustiga sobre fatos políticos recentes, envolvendo figuras militares e que, segundo ele, estão sempre ligados a um planejamento maior, devo reconhecer e proclamar minha admiração pelas manifestações de sua inteligência e meu profundo respeito por sua capacidade analítica.

Mas que razões maiores teriam levado este paulista de São José do Rio Pardo a permitir que sua irrequieta curiosidade o conduzisse à vigilante postura de verdadeira fiscalização da atuação militar? De formação inteiramente civil, já tendo sido considerado como típico produto da então respeitada escola pública brasileira, formado e doutorado em Ciências Sociais, modestamente reconhecendo-se apenas como cientista político e jornalista, Oliveiros S. Ferreira nos brinda agora com uma coleção de artigos abrangendo amplo campo do relacionamento do estamento militar com a sociedade, com a Nação e com o Estado, com incursões profundas e brilhantes no campo da geopolítica e da estratégia. E na análise e crítica desse relacionamento, descontraidamente mas com profundidade e lógica busca o autor delinear o perfil histórico do personagem militar dentro do fato político brasileiro. Nessa tentativa dissecam-se idéias e teorias, fatos e participações, discorrendo da política nacional à geopolítica, das ações imediatas às propostas de ardilosas ações nacionais estratégicas, da crítica ao pensamento militar à contestação da atuação de alguns de seus mais proeminentes personagens, tudo isto é produto da lúcida inteligência e do permanente espírito crítico de meu amigo Oliveiros.

Como prova de sua isenção exemplar apontam-se as críticas exaltadas que eventualmente algumas de suas posições despertam: “porta voz civil do pensamento militar do Brasil” para algumas publicações sul americanas ou “anti-militarista radical” são alguns epítetos colhidos ao longo de sua prolífica produção intelectual.

Mas é possível identificar um ponto comum em toda sua obra e que talvez justifique sua persistência sobre o poder militar. Trata-se de sua obsessão na busca do entendimento correto e completo sobre a tese da hegemonia e o pensamento militar na ação política do Estado, na diplomacia e na guerra.

Como civil e civilista Oliveiros pesquisa os processos de conquista do poder e de que forma grupos ou nações, indivíduos ou Estados entrechocam-se na busca da prevalência de suas posições e na sua manutenção.

Desde a publicação de seus “Os 45 Cavaleiros Húngaros” com uma análise crítica do pensamento de Antônio Gramsci até seu trabalho sobre “As Forças Armadas e a Constituição” registra o autor, com sucesso, a aposição de seu microscópio social sobre o tecido vivo de uma sociedade dinâmica onde grupos definidos com padrões próprios, algumas vezes até éticos, confrontam-se na luta pela manutenção do poder ou simplesmente em sua conquista.

Certamente Oliveiros constatou e registrou que o pensamento militar é marcado profundamente pelo caráter nacional. Que a composição do estamento militar brasileiro, não classista, é oriunda predominantemente da classe média e que, em seus três ramos principais, as Forças Armadas engajam-se decididamente no processo de desenvolvimento do País. Que, talvez, na falta de representatividade da ameaça externa ou da dificuldade de caracterizá-la, parece fácil concluir que se fortaleceu um sentimento de responsabilidade na solução de problemas internos.

Certamente ao final da leitura atenta de alguns destes inteligentes artigos afloram algumas questões que talvez só o tempo esclarecerá: “Estarão realmente as lideranças militares cansadas de sua atuação na arena política? Por quanto tempo?” ou estarão sinceramente convencidas que “o correto papel que lhes cabe é fora da arena política?” Em sua convicção unânime de que lhes cabe assegurar o respeito à Lei e à Ordem, qual o limite que detonará sua ação? Como tirar a atenção dos militares da política? Pela lei ou pela força? Como fazê-los cuidar apenas das coisas da guerra? E que guerra? Contra quem e por quê? Afinal, como ocupá-los?

Esta é realmente a proposta de Oliveiros e o que ele busca ensinar neste seu novo produto.

Estas, algumas das questões. As respostas possivelmente serão prontamente sugeridas pelos leitores face às suas próprias convicções, reforçadas ou formuladas nas conclusões que se alcançam ao final do livro, profundo, minucioso, detalhado, provocante, mas acima de tudo autêntico.

Pode-se até discordar de algumas posições, mas não se pode deixar de admirar o autor e o valor de seu trabalho.

 

Sócrates da Costa Monteiro
Maj Brig do Ar
Comandante do IV Comando Aéreo Regional


 

 

FORÇAS ARMADAS,
PARA QUÊ?

 

 


 

 

A GEOPOLÍTICA DO BRASIL
REVISITADA

 

 

Retomando considerações expendidas da primeira vez em que cuidei da Geopolítica do Brasil — então para Aportes, Paris, a propósito da edição de 1967 — posso repetir que não é o livro que importa em primeiro lugar, mas seu autor. Verdade, há no livro proposições que apresentam a fachada pintada como se de Geopolítica fosse, e por isso impressionam; na realidade, de Geopolítica têm apenas a inspiração, pois são fundamentalmente opções ideológicas — e por isso interessam de fato. Outro fosse o militar, ou o civil, porém, que cuidasse de problemas geopolíticos, e o livro seria relegado ao exame dos especialistas, que são poucos no Brasil. É o homem que dá importância à obra — além do que nela diz; não o funcionário do Estado, mas o homem tout court, o conspirador dos anos 50, vitorioso em 54 e derrotado (há quem disso duvide) em 55, perdedor em 61, triunfador em 64, novamente derrotado para surgir depois, Geisel consule, e não mais abandonar o proscênio. É por isso que nos lançamos sobre a Geopolítica à cata de inspiração para compreender as grandes linhas da política brasileira. E nos decepcionamos em muitos aspectos.

É pela Geopolítica que devemos começar a reler este livro, que será compreendido pelos argentinos como um desafio, pela direita clássica como o pretexto para cobrar uma política externa, pela esquerda para reclamar a democracia não vingada. Pelos liberais, como o ataque autoritário ao liberalismo. Deixemos de lado, se bem quisermos compreender o que o livro oculta, a referência à Rússia e ao comunismo. Afora de mau gosto literário, são episódicas, as atinentes à União Soviética, aquelas referentes ao comunismo correspondendo mais ao que Golbery pensa e como age, ainda assim apenas compreensíveis se o comunismo for tomado como adversário estratégio e nada mais. E, começando pela Geopolítica, toquemos no erro genérico de apreciação.

O erro geopolítico decorre do amor que o general Golbery tem demais pelo Brasil: “De fato, o nacionalismo é, ainda, toda a nossa nobreza. E, se não o for conscientemente, muito importa que o seja” (pág. 99 da edição de 1967. Todas as referências serão dessa edição). Amor que implica lealdade, que não se confunde com o patriotismo — “um mero sentimento, nobre e alevantado e inspirador, embora” —, mas encontra sua expressão no “nacionalismo que é muito mais do que isso, porque é, sobretudo, uma vontade: (...) vontade criadora de engrandecer cada vez mais a Nação”, que é “polarizadora dessa suprema lealdade, sem a qual o homem nem mesmo seria homem...” (págs. 100 e 101, citações feitas sem respeitar a seqüência da frase). Por ser este tipo oitocentista de nacionalista, que em aras da Nação sacrifica o demais, é que pode dizer à pág. 182: “Já dissemos, em oportunidade diversa, que não haverá geopolítica brasileira, que tal nome mereça, sem que considere, de fato, o Brasil como centro do universo”.

Olhando o próprio umbigo. A postura não é geopolítica; é ideológica. Por isso Mahan e Mackinder são vistos com olhos diferentes daqueles de ver e compreender, e seu mérito referido às suas Weltanshauugen, às suas “perspectivas políticas do mundo”, com o que suas construções — que no campo específico são talvez das mais valiosas até hoje já feitas para compreender o triunfo da grande estratégia soviética clássica (a que vai até 1973) e o malogro da norte-americana já em 1945 — passam por “simples hipóteses, (...) meros julgamentos de valor, como tais sujeitos a contestações, à desaprovação ou, pelo menos, a freqüente reajustamento no decurso do tempo” (pág. 31). É o olhar o próprio umbigo (que é o nosso, igualmente) que faz o pensador geopolítico perder a noção da relatividade da importância dos espaços no mundo e, mais do que isso, cultuar a vontade, “vontade coletiva, vontade consciente, vontade criadora de engrandecer cada vez mais a Nação”, na certeza de que o simples fato de olhar o promontório do Nordeste a afirmar que ele é importante para a defesa do norte do Atlântico Sul e para a garantia da segurança norte-americana (seguindo a linha de raciocínio de Spykman) será suficiente para que os Estados Unidos abandonem a política pendular Brasil-Argentina e nos favoreçam. O desejo não é do geopolítico, mas do nacionalista voluntarioso. que, fazendo do Brasil o centro do mundo, pretende transformar sua nação no pólo aglutinador do grande movimento de redenção do Terceiro Mundo.

Soará estranho, talvez, mais foi escrito em 1959 sob o título “Aspectos Geopolíticos do Brasil” — e cito, apesar da extensão, para que se compreenda quanto pode a vontade, isto é, a ideologia, para o general Golbery: “E, no quadro dessa geopolítica da paz, criadora e afirmativa, o Brasil não poderá, nos dias de hoje e em face de um planeta tumultuado ainda mais pela miséria e pela fome do que por ambições expansionistas e de domínio que, aliás, existem de fato e não são, de forma alguma, nem desprezíveis nem remotas, negar-se ao papel que lhe cabe no concerto das nações em prol da redenção de toda essa periferia econômico-social de que ainda participa, e que se estende, tragicamente, desde os contrafortes andinos, através da África toda, do Oriente Médio, da península indiana e do Sudeste asiático, até os confins do mundo indonésio” (pág. 96). E nos ríamos do chanceler Gibson Barboza, sob Médici, oferecendo a mediação do Brasil no conflito árabe-israelense... E não compreendemos como possa ter podido o governo Geisel e possa agora o governo Figueiredo assumirem posições terceiromundistas, eles que vieram da Sorbonne e do governo Castello Branco. De fato, soa estranho, àquela época, relativizar o conflito Leste-Oeste em favor do atendimento da “miséria e da fome” que tumultuam o orbe mais do que “ambições expansionistas e de domínio” — as quais, concede-se, “existem... e não são nem desprezíveis nem remotas”. Estranho para quem leu o livro como se fosse o Vade mecum do anticomunismo militante, e não do pensamento militar em ascensão, preocupado em traçar as linhas da Grande Estratégia, que seriam executadas quando e se os meios (o Poder Nacional) o permitissem. É por isso que a consideração do Brasil a partir da visada ao próprio umbigo é opção ideológica fundamental — quantos porém a soubemos entender, embora já tomada, no governo Castello? Quantos não ficamos na análise da retórica anticomunista (importante, mas não determinante), ou na frase infeliz (“o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”), que fez a desgraça não de quem a proferiu, mas dos que a tomaram como parâmetro de análise, apesar de as recomendações ao Príncipe já estarem impressas desde 1967, para não falar das datas das primeiras publicações dos ensaios que compõem o livro?

A vontade guia o geopolítico, que timbra em fazer de seu país o umbigo do mundo. Quando ela não interfere e a paixão não deturpa a análise, os méritos do pensador e do método vêm à tona. (Ressalte-se que não é o patriotismo, nem a consideração dos dados reais do Brasil que perturbam a análise; é o nacionalismo estilo século XIX, para não dizer o antiamericanismo herdado da FEB, que leva nosso autor a sobreestimar a possibilidade de o Brasil ser a grande potência condutora dos povos do Terceiro Mundo.) Leia-se, por exemplo, a apreciação da futura manobra estratégica soviética: “Assim sendo, na muralha de contenção que o Ocidente peleja em construir (...) duas largas e profundas vias de acesso mais fácil se oferecem ao avanço comunista: (...) — a outra, ainda através do subcontinente hindu ou desbordando-o agora por Oeste, pelo território afegane, rumo à encruzilhada vital do Oriente Médio, já ameaçado de seu próprio interior pela agressão disfarçada em revolução libertadora” (pág. 251).

A noção de guerra subversiva que ressuma dessa citação permeia todo o livro — e não é, ela, ocasional, produto da “guerra fria”; decorre da influência de Thomas Hobbes sobre o pensamento do general Golbery, fazendo que seu liberalismo seja hobbesiano, sem cidadãos. É a segurança que o inspira, apesar da crítica que faz ao filósofo, definido como inspirador dos “defensores do autoritarismo mais rigoroso — (...) os senhores da guerra; os novos Césares, no tumulto de suas ambições insofridas; as minorias usurpadoras e tirânicas...” (pág. 7). Por ser, ele próprio, criatura do “filósofo do Medo”, a guerra que tem na imaginação é permanente — não apenas ininterrupta, mas “total, tanto econômica e financeira e política e psicológica e científica como guerra de exércitos, esquadras e aviações”; não apenas durável, mas global e “indivisível e — por que não reconhecê-lo? — permanente. A ‘guerra branca’ de Hitler ou a guerra fria de Stalin substitui-se à paz, e, na verdade, não se sabe já distinguir onde finda a paz e onde começa a guerra — uma evidência a mais, e esta sob todos os ângulos funesta, da geral confusão de valores em que periga soçobrar a civilização do mundo ocidental” (págs. 24/25).

Perseguido pela permanência da guerra, conhecedor das fragilidades nacionais, como pode o geopolítico, preocupado com construir uma Geopolítica a partir do Brasil, reivindicar o lugar de liderança para seu país?

Quando se mergulha na generosidade das proposições do “O Brasil e a Defesa do Ocidente”, de 1958, fica-se sempre a perguntar quê houve, ao longo do processo que começou em 1945, que infletiu o rumo da nau; quê levou a que o “enriquecei-vos” se tornasse o guia inspirador de todas as ações governamentais, daí fluindo para a sociedade; quê levou a que se perdesse a idéia de que as “promessas do milênio comunista” só poderiam ser eficazmente vencidas se se oferecesse “aos povos subdesenvolvidos da Terra uma alternativa diversa entre a estagnação e a miséria generalizada, de um lado, e, do outro, a industrialização, o progresso material, o poderio nacional, alcançados, embora estes, em regime totalitário, à custa de sacrifícios tremendos”? Permaneceu desse período apenas o antiliberalismo econômico e o preconceito contra os ricos e poderosos: “E, para fazê-lo — apontar essa alternativa — nunca bastarão as prédicas mais ou menos insinceras sobre as virtudes inexcedíveis e sem jaça da livre empresa, a doutrinação cínica em favor da eterna benemerência do capital estrangeiro, as teses cediças sobre as vantagens inigualáveis de um livre-cambismo já defunto e as maravilhas da divisão internacional do trabalho, as apregoadas vocações agrícolas ou as repetidas demonstrações da perfeição admirável pelo mecanismo automático do mercado livre” (pág. 255).

O general Andrada Serpa talvez saiba dar a resposta a estes “quê houve?”. A nós, cabe registrá-los, neste lançamento de 30 mil volumes — e sua seqüência, igualmente não realizada, que é a cega confiança em que seria necessário, para realizar a alternativa, “uma grande... demonstração da vitalidade e poder de criação do próprio regime democrático”.

Neste passo, a visada ao próprio umbigo ganha toda a grandeza: nesta parte infeliz do mundo, o Ocidente desenvolvido deve dar essa demonstração necessária de vitalidade criadora de democracia e de soerguimento rápido dos povos subdesenvolvidos. Deve dá-la na América Latina (e no Brasil) — “mais resguardada de interferências por parte do bloco comunista, mais próxima dos centros propulsores do dinamismo norte-americano...” —, e deve dá-la para a própria salvaguarda do Ocidente, cuja civilização, “atualmente, já se apresenta quase desnuda na sua esterilidade e na sua incapacidade de atração, ante a arremetida pertinaz e desagregadora da ideologia marxista”. Essa é a condição sine qua non para desmentir “as críticas e os ataques contra o capitalismo explorador e mesquinho, a rapinagem sem freio das grandes empresas internacionais, a odiosa prepotência do imperialismo expropriador de bens e escravizador de nações”, provando serem todas falsas (pág. 255). Isto não é Geopolítica — é um programa político de estranhas ressonâncias ideológicas.

Não é a Geopolítica do general Golbery que nos deve impressionar; é sua política — mais do que aquela que fez nos governos, a que enuncia neste livro, cuja reedição, agora, soa sem sentido, a menos que ela seja a reedição do Manifesto-destino da Sorbonne para preparar quadros para as novas etapas por vir. Os liberais, esses terão com que se deliciar neste livro, em que não apenas a empresa é vítima, compreensível, da visão militar; é o próprio sistema político a que denominamos de “liberalismo”. Senão, atentem: “... o mundo decadente de um liberalismo impotente e exausto” (pág. 8); “... do próprio Estado, levado este, também, para alcançar real eficiência em suas múltiplas e interdependentes atividades, a ampliar cada vez mais a esfera e o rigor de seu controle sobre uma sociedade já cansada e desiludida do liberalismo fisiocrático de eras passadas...” (pág. 20). Se essas citações respingadas aqui e ali não bastassem, leia-se todo o livro e perceba-se que, para o general Golbery, a liberdade é importante não porque o homem é um ser livre, mas porque, “além de certos limites, a Liberdade sacrificada determinará, de sua parte, perda vital da Segurança. Os escravos não são bons combatentes — eis a lição que as tiranias aprenderam, no decurso dos séculos” (pág. 15).

O general Golbery do Couto e Silva é, talvez, um dos últimos discípulos de Thomas Hobbes, mesmo a contragosto. Por isso, para ele, a Liberdade — da mesma forma que a Propriedade — é instrumental. Por isso, para ele, como para o general Andrada Serpa, o povo não é ator da História — já o disse no comentário anterior para Aportes, e repito agora. Por isso, e também por não saber fundir a vontade organizadora num projeto autenticamente democrático, nacional e popular — participativo —, a revolução que sugere em Geopolítica do Brasil é a revolução do Estado contra a Sociedade. Talvez por isso, estando o Estado sob crítica impiedosa, tenha autorizado esta nova edição de seu livro, à qual se recusou durante anos, na busca de espaço para realizar a última grande manobra capaz de salvar a oligarquia, ainda que ao preço de sacrificar esta liberdade balofa e de cidadãos que nós, ou alguns de nós, reclamamos.

 

A Geopolítica e o Exército Brasileiro*

 

O livro Geopolítica do Brasil, do general Golbery do Couto e Silva, foi editado em 1967. Ele reúne trabalhos da década dos 50 e tem especial interesse, apesar da idade de alguns textos, se é que se deseja iniciar a sério o estudo da ascensão do Exército ao poder no Brasil. É o autor quem confere, seguramente, importância às idéias; outro fosse o que se tivesse preocupado em discutir os problemas da geopolítica e o livro seria citado, como o general Golbery cita os demais, apenas nos estudos acadêmicos sobre os problemas gerais de Geopolítica. A circunstância, no entanto, de o general Golbery ter sido um dos membros do grupo militar que se convencionou chamar de Sorbonne e um dos articuladores da conspiração que culminou com a ascensão do marechal Castello Branco à Presidência da República em 1964, associada ao fato de haver ocupado, durante todo o mandato do falecido presidente, a chefia de um dos mais importantes órgãos de informação e segurança do governo brasileiro — essa circunstância e esse fato conferem ao livro o destaque que tem, apesar do silêncio que sobre ele se fez, seja pela semi-aridez natural do texto, seja por interesse político-ideológico.

Por mais que o A. reafirme que suas idéias não devem ser tomadas como tendo inspirado ou norteado a ação governamental no período Castello Branco, é difícil ao leitor isolar a pessoa do general Golbery do Couto e Silva da figura do chefe do Serviço Nacional de Informações; é que na Geopolítica do Brasil se resumem — ou se expõem? — muitas das idéias que nortearam a ação do governo Castello Branco e que acabaram por consubstanciar-se na Constituição de 1967 e, last but not least, no Decreto-lei n.° 314, conhecido como Lei de Segurança Nacional. Mesmo que se admita que as idéias pessoais do general Golbery nada têm ou tiveram com a ação do governo Castello Branco, não se pode recusar a quem lê seu livro com olhos de ver e entender o direito de nele encontrar os méritos e as falhas teóricas que fundamentaram toda a política governamental de 1964 a 1967 (quando os méritos foram em maior número em virtude da personalidade do marechal Castello Branco), e a política governamental no período imediato, quando, então, ausentes as cabeças elaboradoras da doutrina da segurança nacional (à exceção, talvez, do general Lyra Tavares, ministro do Exército), as falhas teóricas e os erros práticos apareceram com maior clareza exatamente pelo fato de haver-se cominado a execução de uma política a quem com seus fundamentos não concordava.

Não se trata de examinar o livro do general Golbery à luz das teorias da Geopolítica — essa é tarefa de especialistas, e muito pouco contribuiria para a compreensão do passado e a previsão do futuro. Trata-se, isso sim, de registrar que elementos fundamentaram sua especial visão do processo brasileiro e, levando-se em conta o papel desempenhado pelo A. na elaboração da conduta política do governo Castello Branco, verificar sua adequação à realidade brasileira de 1964 a nossos dias. Trata-se, igualmente, de assinalar, até onde é possível fazê-lo, como a ação governamental e os princípios inspirados na Geopolítica auxiliaram ou trabalharam contra a consecução daquilo que se convencionou chamar de Objetivos Nacionais Permanentes e de Poder Nacional.

Não se deve perder de vista, ao fazer a análise, que se está diante de autor que é militar e de governo que foi militar em sua origem e sua essência. O caráter militar pode ser fator positivo na consideração dos elementos especificamente geopolíticos, pois é na Geopolítica que o soldado vai buscar os elementos físicos inspiradores para estabelecer as suas “áreas de manobra” e as suas “áreas de soldadura”, tendo em vista objetivos que podem ser de paz, mas se destinam à guerra como eventualidade. Esse caráter pode vir a constituir-se em elemento constritor, no entanto, especialmente quando se planeja e executa uma ação política, a menos que se compreendam a Guerra e a Política como participando da mesma natureza. Quando a Política e a Guerra são encaradas como obedecendo às mesmas relações básicas, a manobra militar ganha em flexibilidade pelo fato de as decisões serem adotadas num contexto que não é exclusivamente bélico, e por levar em conta os fatores propriamente políticos que a inspiram; a ação política, por sua vez, adquire maior eficácia em virtude da capacidade de previsão herdada dos princípios gerais da arte da guerra, entre os quais estão a precisão de pensar-se a guerra simultaneamente em termos absolutos e em termos reais (o emprego máximo da violência e seu emprego relativizado pelo alcance dos objetivos políticos propostos à ação), aplicando-se o princípio da tendência aos extremos logicamente concebidos, e a necessidade de considerar a guerra, como fazia Clausewitz, como a atividade humana em que o acaso é um dos elementos componentes fundamentais, graças ao qual a guerra pode ser considerada um jogo. A Guerra e a Política (as duas artes mais sedutoras ao espírito humano) aproximam-se porque são ambas regidas por princípios gerais que se poderiam dizer semelhantes, senão idênticos, dada a extrema parecença que se registra entre uma e outra, seja pelos fins expressos (submeter o inimigo à nossa vontade, como estabelece Clausewitz para a primeira; controlar os valores informativos básicos da cultura para, mediante esse controle, orientar as consciências e determinar as condutas humanas, como se vem estabelecendo na moderna Ciência Política), seja pelos meios empregados (desde a ação maliciosa até o engajamento e o emprego da violência). A Política e a Guerra se identificam plenamente, como assinalava Pierre Naville, na insurreição que consagra a preparação revolucionária. A menos que se faça essa aproximação entre uma e outra, dando-se conta da semelhança de fins e meios, a Política e a Guerra passam a ser duas artes antagônicas e o pensamento político e o militar, que se deveriam completar, excluem-se mutuamente. Ora, dando-se essa exclusão e verificando-se a emergência do grupo militar como determinante da ação política, a Política é sacrificada a uma errônea concepção do que seja a Guerra. Sacrificada no que tem de essencial — a ductibilidade da ação, a manobra tática e a manutenção do contato permanente com a massa.

A organização política ocidental timbrou por isolar a Guerra da Política, submetendo o militar a uma situação de dependência decisória que aos poucos lhe estreitou os horizontes, já que lhe retirou a visão mais ampla dos fins para concentrar sua atenção apenas nos objetivos imediatos da ação. Se a guerra, na opinião de Clemenceau, que o general Golbery endossa às págs. 25 do seu livro, “é um assunto importante demais para que se possa confiá-lo inteiramente às mãos dos generais”, é preciso não perder de vista, no entanto, que ela é simplesmente uma outra maneira de escrever e falar para exprimir o pensamento dos governos. Assim sendo, o militar deve também saber o que aproxima, na essência, o poder de mando do governo daquele do general.

Como acentuava Clausewitz, embora a guerra tenha a sua própria gramática, não possui uma lógica que seja distinta daquela da política — com isso querendo significar que com a guerra não desaparecem as relações políticas nem são elas transformadas em coisa diferente, pela simples e boa razão de que a guerra não é outra coisa senão a continuação das relações políticas pelo acrescentamento de novos meios, na espécie a violência.

Afastando os militares da compreensão mais ampla da ação política, a organização política ocidental fez com que eles perdessem de vista a natureza mesma das relações políticas — que no fundo são o fundamento da ação bélica. Ao assim proceder, reforçou de tal forma no estabelecimento militar as noções especificamente estamentais e castrenses — e dentre elas as disciplinares —, que as Forças Armadas não apenas se transformaram no “grande mudo” de que se orgulhava de ser o Exército francês até o 13 de maio de 1958, como também perderam a faculdade de conceber os recontros como instrumentos de uma ação governamental, participando da natureza das notas diplomáticas e das lutas intestinas dos gabinetes, da mesma forma como deixaram de ver a organização militar também como um conjunto de relações de ajustamento e conflito, portanto políticas. Em suma, acentuando a predominância do chamado Poder Civil sobre o estabelecimento militar, o Ocidente fez dos militares meros commis — com isso separando o instrumento do centro pensante e determinante das ações, e fortalecendo, neles, os aspectos negativos da disciplina e da hierarquia consubstanciados no “ethos burocrático”.

O “ethos burocrático” não se define tão-só pelos seus aspectos exteriores: nas organizações em que ele predomina, o chefe dá as ordens e os que estão em baixo obedecem. Mais do que obediência às ordens emanadas de quem tem poder legal para dá-las (o que, aliás, é condição essencial da eficácia e sobrevivência de qualquer exército, enquanto organização), importa ver como característica fundamentalmente dessa maneira de ver as relações entre as pessoas e os grupos, entre os “governantes” e os “governados”, o fato de que aquele que dá as ordens não se preocupa em saber se elas preenchem uma função aglutinadora na relação de forças em presença; se são obedecidas porque se acredita nelas e no fim que se vislumbra estarem elas perseguindo, ou porque se teme a sanção disciplinar.

O “ethos burocrático” não é privativo do estabelecimento militar; todas as organizações, dada a complexidade de sua administração e a impessoalidade das relações que se estabelecem entre os que têm e os que não têm poder decisório — complexidade e impessoalidade decorrentes da necessidade da maior eficácia e rentabilidade da ação — por ele se regem num grau que varia diretamente com a extensão do grupo social que constrangem. No estabelecimento militar, ele se manifesta com maior rigor porque a eficácia e a rentabilidade das ações não se medem tão-só em termos de ganhos e perdas financeiras, mas também, e sobretudo, de vidas humanas que se poupam ou se perdem. Daí uma das condições, talvez a básica, da eficácia da ação do estabelecimento militar ser a segurança militar como a define Herman Heller: nem sequer o fundamento ético da ordem pode ser discutido — o que significa, de nossa perspectiva de análise, que aquele que dá as ordens também não se pergunta se elas são eticamente fundadas ou se aqueles aos quais se dirige podem apreender seu sentido último.

Escrevendo sobre a burocratização do Exército, Trotsky dizia: “É no Exército que é mais fácil e mais tentador estabelecer este princípio: Cale-se e não raciocine. Mas no domínio militar, esse princípio é tão funesto como em qualquer outro. A tarefa principal consiste não em impedir, mas em ajudar o jovem comandante a elaborar sua própria opinião, sua própria vontade, sua personalidade, na qual a independência deve aliar-se ao sentimento da disciplina. O comandante, e, em geral, o homem treinado a contentar seus superiores, é uma nulidade. Com essas nulidades, o aparelho administrativo militar, isto é, o conjunto dos bureaux militares, pode ainda funcionar, não sem êxito, pelo menos aparentemente. Mas o que é preciso a um exército, organização combativa de massa, não são funcionários bajuladores e servis, mas homens fortemente temperados do ponto de vista moral, compenetrados do sentimento de responsabilidade pessoal, os quais, sobre cada assunto importante, se proporão como dever elaborar conscientemente sua opinião pessoal e defendê-la corajosamente por todos os meios, sem ir contra a disciplina racionalmente compreendida (isto é, não burocraticamente) e a unidade da ação”. E em Minha Vida, resumindo sua experiência militar, dizia, ressaltando em seus justos termos a interdependência entre a “segurança militar”, indispensável à unidade de ação, e a visão das missões políticas que o estabelecimento militar deve sempre cumprir, além da compreensão das relações políticas que se estabelecem dentro do próprio Exército: “Não se pode organizar um exército sem repressão. Não se pode conduzir à morte multidões de homens se o comando não dispõe, no seu arsenal, da pena de morte. Enquanto os maldosos macacos sem cauda que se chamam homens e que se orgulham de sua técnica formarem exércitos e lutarem, o comando colocará os soldados na eventualidade de uma morte possível na frente, ou de uma morte certa na retaguarda. Entretanto, não é o terror que faz os exércitos. Não foi à falta de repressão que o exército czarista se tinha decomposto. Tentando salvá-lo pelo restabelecimento da pena de morte, Kerensky só tinha feito apressar o seu fim. Sobre as cinzas quentes da grande guerra, os bolchevistas criaram um exército novo. (...) O inimigo nos vencia no que nos faltava: pela sua organização militar. (...) Entretanto, a revolução foi salva. Para isso, não foi preciso grande coisa. Só foi necessário que a vanguarda das massas compreendesse o perigo mortal. A principal condição do sucesso era não ocultar nada, e, antes de tudo, não esconder a própria fraqueza, não enganar a massa, chamar as coisas pelos nomes. (...) Para aquele que compreende alguma coisa da história, esses fatos não precisam de explicação. Para o nosso exército, o cimento mais forte foram as idéias de Outubro”.

A posição de Trotsky, fazendo a coesão e a disciplina militares, além do valor guerreiro, dependerem das relações políticas mais gerais que se jogavam nas várias frentes da guerra civil, não decorria de sua posição bolchevista; antes dir-se-ia ser conseqüência de uma posição de conhecimento e ação fundamentalmente revolucionária e da clareza teórica com que via os problemas. Ora, essa posição de conhecimento revolucionária, esse desejo de transformar as antigas estruturas e os antigos hábitos de pensar as coisas que nele encontramos não se vislumbram no livro do general Golbery do Couto e Silva nem se pôde perceber (independentemente do conteúdo das transformações que se sugerissem) ao longo do governo Castello Branco, todo ele eivado de contradições práticas, que foram fruto da contradição maior que se estabeleceu ao nível da visão teórica do processo político geral.

Ainda que se considere que a situação de 1964 não poderia ter produzido, no campo vencedor, um governo que se propusesse a transformação radical das relações políticas na sociedade brasileira, teria sido lícito esperar que o grupo que venceu a disputa pelo poder tivesse a proposição de uma “revolução conservadora” e a levasse avante, colocando as grandes massas disponíveis — as da classe média — a serviço de sua especial visão do processo político. Tal não aconteceu, no entanto, porque apesar da permanência conservadora do governo Castello Branco — tomando-se a expressão conservador no sentido mais amplo e mais digno que o conservantismo pode ter — o “ethos burocrático” (que é a antítese do espírito revolucionário) presidiu toda a ordenação das relações políticas depois de 1964. A incorporação, na Constituição de 1967, das teses do sr. João Goulart sobre a maneira de desapropriar as terras para a reforma agrária (art. 157 § 1.°) e aquelas sobre a centralização administrativa (controle das Polícias Militares, revisão da legislação tributária, redução dos poderes federativos e restrição das funções e prerrogativas do Congresso) dá o tom reformista do governo Castello Branco; mas o conceito de segurança nacional expresso na Carta de 1967 e detalhado no Decreto-lei n.° 314, além da maneira de conceber a organização dos partidos políticos, demonstra a visão burocrático-militar do processo político, concebido não como ajustamento ou conflito, tentativa de domínio das consciências e inclusive violência, mas como um exercício de ordem unida.

Mais importante do que compreender o desejo reformista, que o marcou deveras, o afã centralizador e a concepção burocrática do processo político do governo Castello Branco é assinalar a contradição teórica fundamental presente em todo esse período, a qual terminaria por traduzir-se no elogio da livre empresa e no desprezo jurado pelo lucro e pelo consumo conspícuo; na exaltação da democracia liberal (o Estado de Direito do século XIX), no reforço do Executivo e na extinção da Federação. Produto de um momento revolucionário, o governo Castello Branco teve a fundamentar sua ação não uma teoria revolucionária, mas uma doutrina de segurança; não a esperança, mas o temor.

Esses elementos, que se registram ao longo do governo Castello Branco, estão presentes, apreendendo-se com pequeno esforço de análise, no livro do general Golbery do Couto e Silva, mormente na introdução, significativamente intitulada “O problema vital da segurança nacional”. Nela transparece nitidamente a influência de Thomas Hobbes, o filósofo do “grande medo, o medo cósmico que viu, na Terra, o nascimento da Humanidade e de sua verdadeira angústia existencial, o medo paralisante e tenaz que brota, incoercível, da insegurança eterna do Homem” (pág. 9). Essa influência, no entanto, é negada, ou se pretende negar; de fato, o Autor condena as posições doutrinárias do filósofo de Malmesbury, talvez pelo fato de, insensivelmente, transferir o esquema hobbesiano do plano individual, em que o autor do Leviatã situara o problema — “o homem é o lobo do homem” — para o do Estado, em que, para Hobbes, o “grande Medo” jamais poderia existir, pois o Estado fora exatamente criado para trazer a paz aos homens. É o medo de que a civilização cristã desapareça — “Daí o brado emocionante de Paul Valéry: ‘Nós, civilização, agora sabemos que também somos mortais’” (pág. 20) — que inspira o pensamento do gen. Golbery; e de tal forma se faz sentir a presença desse elemento irracional nas páginas introdutórias, que se poderia dizer que o conceito de Segurança Nacional desenvolvido na Geopolítica do Brasil nele se funda, embora acuse Hobbes de haver-se deixado dominar pelo medo. Vejam-se essas passagens de págs. 9: “E, já velho, respeitado por todos, protegido pela Corte, verdadeiro monumento nacional, a susperestimação da influência de Hobbes na Inglaterra é já sintomática do apego ao autor do De Cive, especialmente quando se sabe que, três anos após a sua morte, o De Cive e o Leviatã são queimados na Universidade de Oxford. Hobbes tremeria ainda, sentindo-se ameaçado como sempre pelo espectro da insegurança que o perseguiria a vida toda, mas que, por outro lado, o havia sustentado na admirável construção lógica de sua monolítica sistematização política” (...) “Hoje, a insegurança do Homem é a mesma, maior ainda talvez. E, na extrapolação dos teoremas hobbianos, o dilema eterno que o aflige, como animal social que é, membro nato e obrigatório de uma sociedade mais ou menos dilatada, mais ou menos complexa, mais ou menos solidária, tende a solucionar-se de novo, unilateral e paradoxalmente, pelo sacrifício completo da Liberdade em nome da Segurança individual e coletiva” (...) “Na verdade, é a insegurança generalizada e crescente em que se debate, agoniada, a humanidade de hoje o ópio venenoso que cria e alimenta essas hórridas visões, capazes, entretanto, de se tomarem uma realidade monstruosa e Superleviatã, senhor absoluto e incontestável da Terra e do espírito humano” (...) “A insegurança do cidadão dentro de cada nação e a insegurança de uns Estados em face dos outros, a visão onipresente da guerra — guerra civil ou guerra subversiva ou guerra internacional — dominam o mundo de nossos dias e explicam, por si sós, essa ânsia neurótica com que os indivíduos — desamparados, as multidões — em pânico, os povos — desiludidos e aflitos, a Humanidade, enfim, se ergue e se lamenta e se debate, disposta até a escravizar-se a quaisquer senhores e a quaisquer tiranias, desde que lhe ofereçam, num prato de lentilhas, um pouco de segurança e de paz”. Essa insegurança afeta não só os indivíduos, mas também as Nações, ameaçadas pelo Leviatã supremo (pág. 9), o “grande Império Universal em que se aniquilará, por fim, a civilização ocidental” (pág. 23). Diante dessa ameaça de guerra total, permanente, global e apocalítica, só resta às “nações de qualquer quadrante do mundo” prepararem-se para ela com determinação, com clarividência e com fé. E o instrumento “da ação estratégica, nesta era de guerras totais, só pode ser o que resulta da integração de todas as forças nacionais (...) seu Poder Nacional, em suma” (pág. 13).

Ainda que não confessada, a filiação a Hobbes já denota o caráter antiliberal do pensamento do gen. Golbery — mas é um antiliberalismo de cunho conservador e não revolucionário, que se traduz na confusão entre o Estado de Direito do século XIX e os princípios da Escola de Manchester com os princípios metajurídicos que informam a normatividade do Direito e a “segurança jurídica” (cf. Heller). Mas o A. não se limita a marcar seu antiliberalismo por sua pressentida filiação hobbesiana; afirma-o, repetidas vezes, seja ao identificar em Hobbes o “patrono, reconhecido ou inconfessado, das modernas ideologias políticas que ameaçam, por todos os lados, o mundo decadente de um liberalismo impotente e exausto” (pág. 8), seja ao proclamar a inanimidade das “veneráveis fórmulas-jurídicas” e o caráter simples e reconhecidamente vão das liberdades políticas (pág. 20), seja ao afirmar que o Estado, para alcançar eficiência em suas múltiplas e interdependentes atividades, é levado a “ampliar cada vez mais a esfera e o rigor de seu controle sobre uma sociedade já cansada e desiludida do liberalismo fisiocrático de eras passadas...” (idem).

O general Golbery recusa-se, contudo, a tirar as conclusões teóricas e práticas de sua crítica do liberalismo e não se furta a louvar Locke, para ele intérprete inexcedível até hoje do liberalismo, cuja falência afirma. Esquecendo-se de que a posição de Locke assenta no primado do indivíduo sobre o Estado tal qual o entendemos hoje e mesmo sobre a Nação (idéia-força que só com o Romantismo surgirá com a conotação conservadora que se lhe empresta), e de que o Estado, para Locke, é o mero depositário do poder de polícia destinado a assegurar os direitos inalienáveis de que goza o Indivíduo no pretendido Estado de Natureza, o gen. Golbery dá por vencida a polêmica com Hobbes ao considerá-lo o precursor do totalitarismo moderno e ao exaltar a Liberdade — não como atributo do Indivíduo anteposto ao Estado, mas como fundamento da Segurança Nacional, com o que ela se torna um conceito meramente instrumental e não moral: “Estejamos certos de que defender a Liberdade é também, graças aos céus, alicerçar em sólidas bases a Segurança Nacional. E se não o fora, miserável seria a vida do soldado nos Estados modernos, mais miseráveis do que as dos torpes mercenários que resguardavam, nos impérios moribundos de outrora, a luxúria e a orgia e o crime das cortes depravadas e corruptas, até que a mão inexorável do destino as sepultasse para sempre na vasa do olvido que se deposita, incessante, ao longo do rio caudaloso da História” (pág. 15). É o mesmo hobbismo que se traduz nos Atos Institucionais, especialmente os dois primeiros, quando se afirma que “a revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação” (Ato n.° l — grifos nossos), e de maneira mais clara no Ato Institucional n.° 2, produto direto da Sorbonne, isto é, do grupo militar a que se filia o gen. Golbery do Couto e Silva: “Considerando que o País precisa de tranqüilidade para o trabalho em prol do seu desenvolvimento econômico e do bem-estar do Povo, e que não pode haver paz sem autoridade, que é também condição essencial da ordem...” (grifos nossos).

Não se entenderá o pensamento do general Golbery do Couto e Silva, nem muito menos a ação política do governo Castello Branco, se não se meditar sobre a contradição interna do pensamento do militar brasileiro, formado no espírito do liberalismo da I República, mas centrado na mentalidade castrense e na afirmação da liberdade como início e não fim, chamado a resolver, como ultima ratio, os problemas políticos criados pelo desajuste entre a Constituição liberal e o país subdesenvolvido e imenso, e lançado, após o desastre da campanha da Indochina, em 1954, nos meandros da “guerra revolucionária” — primeiro de inspiração francesa, em seguida norte-americana.

Na base dessa tortuosa construção mental está a contradição fundamental entre o “ethos burocrático” e as formas políticas de pensamento — mesmo que apanhemos toda a gama exposta por Mannheim em Ideologia e Utopia; de modo especial para a geração de que o marechal Castello Branco foi o expoente, a contradição é entre o “ethos burocrático” e o liberalismo, que pressupõe uma organização política da opinião, do público que discute os problemas e não aceita as decisões vindas de cima. Esse liberalismo é vigente nas camadas médias e superiores da sociedade brasileira, ainda que como mera superfetação.

Apesar de o abuso de certas expressões (“O problema vital da segurança nacional”, “Além de certos limites, a Liberdade sacrificada determinará, de sua parte, perda vital da Segurança”) deixar entrever uma postura irracional diante da existência, apesar de o medo hobbesiano influenciar seu pensamento e de seu engajamento contra o bloco oriental fazer-se em termos de defesa da sobrevivência ameaçada do Ocidente, não se pode inquinar o pensamento do general Golbery de fascista. Ele é um militar formado na escola do liberalismo — ainda que fosse um liberalismo sem vigor social — e um militar que fez a guerra contra o Eixo e acredita na Democracia — ainda que não a defina — como forma específica da organização política do mundo ocidental, mesmo que deva ser reformulada em seus fundamentos. O acontecimento pode parecer menor diante de outros — mas ainda está para ser feita a história de como a campanha da Itália influenciou aqueles que, tendo feito parte do corpo expedicionário, depois se integraram no grupo da Sorbonne, como ela fortaleceu suas convicções democráticas formais e contribuiu para cimentar, ao mesmo tempo, a oposição ao liberalismo brasileiro que se institucionalizaria na Carta de 1946.

Quando o general Golbery critica veementemente os regimes totalitários e teme o fim da civilização ocidental inerme ante as investidas políticas, econômicas e militares do Oriente ateu e comunista, não defende o ideal de liberdade que os liberais cultuaram, nem seguramente defende a propriedade como a defendiam os fisiocratas, para usar seus próprios termos. Ele tem consciência de que o ideal liberal do Estado de Direito sucumbiu — e, na prática, viu-o sucumbir nos campos de batalha da Itália. Incapaz, contudo, de superar a antinomia, que julga existencial, Comunismo versus Democracia e, conseqüentemente, de propor teoricamente um novo sistema político em que a “segurança jurídica” se coadune com a eficácia e a segurança nacional, tem como único ponto de referência, quando se trata de defender a liberdade, aquele que sua experiência concreta de vida lhe permite vislumbrar, isto é, a liberdade de que gozam os oficiais no corpo de oficiais — a qual os regimes nazista e comunista suprimiram ao subordinar o Exército ao Partido. Por isso, a “polis” deve organizar-se como o Exército, em que os oficiais, livres, zelam pelo bem-estar do corpo de tropa.

Porque a liberdade estamental e os valores mais profundos em que formou seu universo de pensamento, discurso e existência desapareceram durante a luta pela implantação da “ditadura do proletariado”, ele também não pode aceitar a proposição de nacionalização da propriedade em geral como fim da ação governamental, porquanto a relação entre essa proposição e aqueles efeitos aparece a seus olhos como necessária. O repúdio à fórmula soviética não o impede de aprovar, no entanto, a nova Constituição, que acabou com o caráter sagrado e o valor monetário da propriedade fundiária. É que a reforma agrária, nos moldes em que a Constituição de 1967 a tornou possível (além do fato de ter sido proposta pelo grupo que se dava como missão defender o Ocidente contra o comunismo) aparece a seus olhos como indispensável à manutenção do equilíbrio político no campo — indispensável, portanto, à segurança nacional. A propriedade assume, destarte, na filosofia de governo da administração Castello Branco, da mesma forma que a liberdade, um caráter instrumental, inclusive a propriedade urbana (indústria, comércio e finanças). Isso porque, lançado na luta sem quartel contra a inflação — cujo término é reputado condição de afirmação do Poder Nacional —, todo e qualquer esforço do setor proprietário contra essa política é visto como resultado do caráter privatista dos proprietários, pouco preocupados com o destino do País e com a construção do Poder Nacional. Nesse clima mental, a restrição moral que se fazia, inicialmente, à atividade econômica movida exclusivamente pelo lucro transforma-se, lenta e inconscientemente, na rejeição política dos valores sociais dos proprietários em geral, cuja conduta econômica e política passa a ser tida como suspeita. Assim, quando o governo Castello Branco chegou ao fim, teve-se a clara impressão de que a propriedade já não era mais respeitada como o fora no início do governo Goulart — e, se tal se deu, deveu-se a que o direito de propriedade, antes de ser proclamado como natural, ou de ser condicionado à sua destinação social (uma fórmula vaga o suficiente para que nela tudo se encaixe, inclusive a perpetuação de seu estatuto jurídico) passou a ser referido à possibilidade, ou não, de contribuir para manter as bases da segurança nacional e de permitir uma maior integração do Poder Nacional. E o fato de essa concepção instrumentalista da propriedade (que se pode ter igualmente por hobbesiana) estar subjacente ao aparato conceitual da Sorbonne explica como o governo Castello Branco — eleito sem dúvida pela intervenção do princípio do erro, mas produto de um movimento solidamente apoiado na propriedade da terra — pôde fazer aprovar uma Constituição que permite a desapropriação da terra com títulos da dívida pública e não mais em dinheiro depositado por antecipação. Ademais, seu governo só poderia ter consagrado essa medida se a maioria do corpo de oficiais à sua idéia se tivesse tornado acessível — isto é, se os oficiais se tivessem habituado a ver a propriedade não como o princípio basilar da organização social, mas como um conceito operativo e instrumental. A esse ponto eles chegaram, sem sombra de dúvida, em virtude de a inflação haver corroído seus vencimentos e reduzido seu status econômico, e de seu status social ter-se vindo abalando, lentamente (em boa parte em virtude da progressiva redução dos salários reais pagos às Forças Armadas), ao longo dos anos que começam com a deposição de Getúlio Vargas, em 1945. Em 1964, ao assumir o poder no Estado, a Sorbonne defrontou-se com um espetáculo que até então lhe parecera ser produto apenas da corrupção de alguns poucos situados nos altos níveis da escala econômica e social. O Exército sentiu os efeitos morais e políticos negativos da manipulação do dinheiro — e, falto de tirocínio na análise dos fenômenos sociais, preso ainda ao “ethos burocrático”, primeiro inculpou o lucro excessivo, depois o lucro simplesmente e, finalmente, perdeu o respeito sagrado pela propriedade. O respeito verbal, assinale-se, não o interiorizado e profundo; a experiência cotidiana e a inadequação do universo de verbalização ao de existência trabalham, contudo, silenciosamente contra a propriedade.

Seguramente, o general Golbery não concordará com as palavras de Trotsky sobre a organização e o cimento do Exército Vermelho. É que para ele, com certeza, as idéias de Bronstein levavam à subordinação do estabelecimento militar à política de um partido inimigo, por sua doutrina e seus objetivos, do Ocidente cristão e da Democracia. Não poderá recusar-se a admitir, todavia, que o Exército Vermelho foi, nas especiais circunstâncias da Revolução de 1917, o garante de uma política ditada por partido que havia tomado o poder em situação difícil e se achava disposto a mantê-lo custasse o que custasse. Ora, abstraída a diferença de conteúdo e as proporções dos dois movimentos, ele não se furtará a reconhecer que o grupo que subiu ao poder no Brasil, em 1964, também se dispunha a mantê-lo, apesar das afirmações em contrário. É possível — e até mesmo correto — que a Sorbonne não tivesse querido conservar-se no poder além do período que o marechal Castello Branco se fixou; é possível — e até mesmo correto — que o objetivo do grupo a que se filiava o general Golbery fosse renovar a democracia e procurar impedir que ela, “exangue de forças e de vontade”, caísse “nos braços abertos do cesarismo” (pág. 21). Mas se o bolchevismo, na Rússia, tinha o partido para impedir que o cesarismo (no caso o “bonapartismo”) se impusesse à nascente “ditadura do proletariado”, o único instrumento político de que dispunha a Sorbonne para impedir o cesarismo no Brasil, apesar de todos os esforços do marechal Castello Branco para impedir que o fato se consumasse, eram, exatamente, malgrado o gritante paradoxo, as Forças Armadas, e, dentro delas, o Exército.

Pelas peculiares condições do desenvolvimento brasileiro, no decurso do qual se registrou a incapacidade de as classes sociais se organizarem politicamente ao longo do território recoberto pelo Estado — isto é, estabelecerem contatos organizatoriamente significativos em todo o território nacional para defender posições de classes coerentes — o único grupo organizado capaz de preencher as funções de partido eram as Forças Armadas, mais claramente o Exército, ao qual se cominou a partir de 1964 a tarefa de impedir o “cesarismo”. Esse fato, que certamente a Sorbonne não desconhecia (e os mais recentes pronunciamentos do general Lyra Tavares deixam entender que sobre ele medita longamente), tendeu a atribuir ao Exército uma outra função, além daquelas próprias da Força Armada; ele se transformou, funcionalmente, num partido político — ainda que seja o partido da Nação brasileira. Contudo, essa transformação de sua função manifesta não foi conscientemente apreendida pelos oficiais, que timbram em apresentá-lo a si próprios e aos demais segmentos sociais como mero garante do Estado, chamado de quando em quando a restabelecer a ordem, ou, como se afirma no preâmbulo do Ato Institucional n.° l, a depor um governo porque os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País — no caso em pauta havia subvertido a disciplina e a hierarquia das Forças Armadas.

Esses problemas não afloram na Geopolítica do Brasil. Não estão presentes no livro talvez porque não tenham preocupado o general Golbery à época em que escreveu os ensaios básicos do livro, nem parecem ter constituído motivo de maior preocupação para o grupo que se constituiu o núcleo de poder no governo Castello Branco. Se uns e outros com eles não se preocuparam, é porque, no fundo, tinham a informar sua perspectiva política de ação e a reconstrução institucional que impuseram ao País a certeza de que, limitado o número de partidos e disciplinada a sua organização, a opinião pública encontraria os seus caminhos nafurais e, com novas instituições adaptadas às exigências da racionalidade presumida da economia, a Democracia seria renovada. Não podiam supor — porque supô-lo seria contrariar a visão liberal do mundo em que se criaram — que a multiplicidade partidária, dada como uma das causas da fraqueza da democracia brasileira, era conseqüência não de uma legislação eleitoral feita ao sabor dos interesses privatistas (o que, até certo ponto, era verdade), mas, fundamentalmente, da multiplicidade de visões segmentares do processo político, da articulação meramente regional dos interesses sócio-econômicos dos grupos situados na mesma posição política (riqueza, prestígio e poder) e da ausência de uma classe politicamente organizada, isto é, organizatoriamente coesa, no conjunto do território nacional.

O que havia de liberal na visão política do grupo da Sorbonne levou-o a crer em que estava diante de uma opinião pública formada, mas mal expressa — apesar de, no instante em que seus membros pensavam o Brasil em sua condição de militares, constatarem estar diante de uma nação socialmente desarticulada, em virtude de as populações dos diferentes arquipélagos dificilmente se comunicarem entre si, não podendo, portanto, estabelecer contatos quantitativa e qualitativamente significativos, capazes de forjar uma opinião pública que tivesse, de Norte a Sul, uma visão coincidente no essencial sobre o futuro do grupo nacional.

O governo Castello Branco, na visão teórica do problema e na solução jurídica que deu a ele, entregou o debate e a equação dos problemas nacionais aos partidos políticos — ainda que pela conjuntura de 1964 a 1967, a ARENA estivesse subordinada ao Palácio do Planalto. Todavia, como a realidade falava mais alto que o liberal-militarismo da Sorbonne, o grupo dirigente teve de aceitar que as decisões políticas cruciais — o Ato Institucional n.° 2 e a candidatura Costa e Silva — fossem adotadas (se espontaneamente ou por pressão, pouco importa) ao nível do Exército e não do partido teoricamente suposto representar a opinião pública suporte da democracia renovada e anticesarista. Aceitou, também, que a decisão coubesse à tropa porque não podia permitir que as Forças Armadas se dividissem, possibilitando essa divisão que os adversários ganhassem alento e o Exército perdesse o poder. Na prática, portanto, ao admitir que o suporte do grupo dirigente era não um partido capaz de arregimentar a opinião pública, mas a rudez das baionetas, o governo reconheceu que o Exército era o seu partido — o partido fardado, como observava já em 1965 um general da reserva mais arguto. Na teoria, porém, o grupo dirigente continuou, como ainda hoje persistem os chefes militares, a não admitir os fatos tais quais são, e a recusar-se a tratar as coisas pelos seus nomes.

O grave na contradição entre a teoria e a prática não é o imobilismo dela resultante, nem a indefinição política básica do governo Castello Branco e, mais ainda, do atual — porque o primeiro governo militar, pelo menos, tinha o sentido da grandeza. O grave é que, pautando seu pensamento e sua conduta pelo “ethos burocrático”, nem o general Golbery pode pretender realizar os propósitos enunciados na sua Geopolítica, nem o governo Castello Branco pôde levar a cabo a transformação institucional profunda do País, e nem o marechal Costa e Silva poderá conciliar a segurança com o desenvolvimento — no fundo construir o Poder Nacional. Não pode, não pôde e não poderá, porque o problema que está por resolver, na proposição teórica da segurança nacional, é estabelecer quem, que força hegemônica conduzirá o processo político, construirá esse Poder e manterá essa segurança.

No livro do general Golbery há algumas indicações de que essa força hegemônica é o Estado, quando não o governo: o “próprio Estado, levado este também, para alcançar real eficiência... a ampliar cada vez mais a esfera e o rigor de seu controle...” (pág. 20); “Assim, a Estratégia... alçou-se... a planos muito mais elevados, caracterizando-se, afinal, na aplicação como uma verdadeira política de segurança nacional. (...) Temos, assim, na cúpula da Segurança Nacional, uma Estratégia, por muitos denominada Grande Estratégia ou Estratégia Geral, arte de competência exclusiva do governo e que coordena, dentro de um Conceito Estratégico fundamental, todas as atividades políticas, econômicas, psicossociais e militares que visam concorrentemente à consecução dos objetivos nos quais se consubstanciam as aspirações nacionais de unidade, de segurança e de prosperidade crescente. A essa Estratégia se subordinam, pois, tanto Estratégia Militar, como a Estratégica Econômica, a Estratégia Política e uma Estratégia Psicossocial...” (pág. 25).

Ora, se é certo que os Objetivos Nacionais só podem ser formulados em toda a sua clareza e adequação à realidade a partir do Estado, também é verdade que não podem ser formulados pelo Estado, enquanto unidade de decisão e ação com legalidade própria, mas apenas por aqueles que compõem o núcleo de poder no Estado. Se a sociedade é organizada ao longo do território, esse núcleo tem correspondência estreita com o grupo social que dá ao conjunto da sociedade a visão de seu Destino; se, porém, inexiste essa organização e igualmente não se verifica a existência do correspondente núcleo hegemônico, que imprima à sociedade a marca de suas idéias, abre-se uma crise de hegemonia ao nível do Estado, visto não haver possibilidades de o núcleo de poder encontrar um suporte válido ao nível da sociedade. Aberta a crise de hegemonia, suceder-se-ão as crises de governo até que, esgotadas todas as possibilidades de afirmação de um grupo social sobre os demais, um dos instrumentos organizados do Estado é chamado a ocupar o vácuo de poder resultante — e o elemento determinante da transformação das funções do instrumento do Estado em núcleo de poder no Estado é o fato de ter ele, ao contrário dos grupos sociais, uma organização nacional capaz de amparar e apoiar o Estado ao longo do território. Configurada essa hipótese, o núcleo de poder retira sua legalidade, sem sombra de dúvidas, do próprio Estado — mas não tem força social em que se apoiar para buscar a legitimidade de sua dominação. Esse núcleo de poder no Estado retirado do próprio Estado poderá continuar pautando sua conduta (isto é, a conduta de seus membros) pelas idéias até então dominantes; enquanto experiência vital e contatos sociais criadores de uma visão do mundo, entretanto, já não mantém mais ligação suficiente com os grupos em que essas idéias, no passado, foram geradas.

Esse é o caso do Brasil, onde as Forças Armadas foram chamadas a ocupar o núcleo de poder no Estado quando se positivou com a renúncia de Jânio Quadros, com o Parlamentarismo e com a volta ao Presidencialismo, finalmente, que grupo social algum era capaz de dar apoio à ação do Estado destinada a reformular as estruturas sociais e suas próprias estruturas para adequá-las às exigências da racionalidade presumida da Economia e do Destino intuído do País. Reconhecer que as Forças Armadas ocupam o núcleo do poder no Estado e que é o governo, na expressão do general Golbery, que formula a grande estratégia não resolve o problema — apenas o agrava, pelo contrário. Num país, cujas áreas sociais ainda não foram soldadas numa mesma visão de Destino, a ocupação do núcleo de poder no Estado pelas Forças Armadas só pode fazer que o Estado se isole ainda mais da sociedade e se veja, de repente, sem suporte social algum mantidas as atuais características do comportamento militar, inspiradas no “ethos burocrático” e na resistência em transformar-se em partido inspirado numa esperança. Se o Estado tem a sua legalidade própria e não a retira das classes sociais — pois é uma unidade de decisão e ação que se define por suas funções e não por fatores causais de que seria mero efeito —, nem por isso ele existe no ar como um fantasma. Teoricamente, sua decisão deve estar a serviço e sua ação corresponder ao projeto, explicitamente formulado ou apenas intuído, de uma força social, existente como realidade ou virtualidade organizatória. Não correspondendo a força social alguma — e é preciso estabelecer que essa correspondência pode dar-se, e na maioria das vezes dá-se com a visão de classe de um determinado segmento, a qual lhe é adjudicada pelo partido que ocupa o núcleo de poder no Estado para fazer uma política em nome dessa visão de classe —, as forças que integram o núcleo de poder não poderão falar em nome da Nação, porque não se identificam com parte alguma da Sociedade Civil. Para falar em nome da Nação e representá-la não basta fazer discursos em que o monopólio legítimo dos meios de violência é invocado como condição primeira da representatividade nacional — especialmente no caso brasileiro, em que o Estado sempre constrangeu a Sociedade Civil e sempre impediu que as classes sociais se transformassem em portadoras de diferentes proposições nacionais de Destino. É por esses motivos que, bem vistas as coisas, a doutrina da segurança nacional nada mais é do que uma doutrina da segurança do Estado — como tal, hobbesiana e passiva nos fins, assim contrariando todas as teorias da guerra de Clausewitz a Mao Tsé-tung, para os quais o fim de guerra é sempre ativo, por isso que tendente a impor nossa vontade ao inimigo.

Por nào ter uma teoria adequada do Estado a presidir a elaboração de sua doutrina, e por não levar em conta o problema da hegemonia em sua noção mais ampla — que é estabelecer qual a força social que, do ponto de vista organizatório, deve ser privilegiada para realizar a adequação da racionalidade presumida da economia à visão do Destino da Nação organizada em função de uma visão de classe — o projeto geopolítico e de segurança nacional da Sorbonne e talvez da totalidade das Forças Armadas terá a duração do momento de inércia da dominação do Estado por seu instrumento. Por não ter correspondência maior com a sociedade, contudo, em outros termos, esse projeto terá a duração da capacidade de a sociedade suportar essa dominação. Para que esse momento de inércia, de dominação, se transformasse em momento de direção — com maior duração, portanto, e capaz de projetar-se no tempo —, seria necessário que o Exército interiorizasse a convicção de que tem a função que na prática acabou por ser sua: a de partido político, cuja missão é organizar a sociedade, ligar os arquipélagos e optar por uma ou outra das diferentes forças em gestação que hoje compõem o quadro social brasileiro.

Para que o Exército assuma essas novas funções, é necessário um salto de consciência, em duas etapas: aquele que, numa primeira fase, corresponderia a vencer a distância teórica que vai de Hobbes a Rousseau, isto é, do Medo à crítica da sociedade com base em valores ético-normativos a serem realizados, e que, num segundo momento, passaria da crítica da sociedade à sua organização num novo relacionamento das forças em presença. Porque permanecer em Hobbes é condenar-se ao suicídio, e porque voltar ao liberalismo, ainda que se queira, é impossível pela própria posição teórica assumida de início e pelas condições gerais da sociedade brasileira, apenas uma disjuntiva se apresenta ao estabelecimento militar brasileiro, a qual não foi até hoje compreendida por seus intelectuais: fazer a Revolução com e para os que nada têm, ou fazer um ersatz dela com e para os que tudo têm, isto é, para o Privilégio — ou para sermos mais explícitos, para o latifúndio, a indústria de baixa produtividade, os bancos e o sindicalismo de Estado. Na escolha dos caminhos, contudo, há-de ver que o segundo, mais fácil e talvez menos cruento, confirmaria a posição subordinada do Brasil no contexto internacional, em virtude das condições em que se deu nossa inserção no mercado internacional de know-how e capitais. E essa posição subordinada não é aquela que, em várias passagens, se depreende da geopolítica do general Golbery.

Se a proposição teórica básica do general Golbery e aquela subjacente à política do governo Castello Branco demonstram uma contradição inibitória da ação (a condenação verbal de Hobbes e a aceitação de seu universo de pensamento; a condenação do liberalismo e o apego à democracia representativa e às formas liberais, ainda que restringidas, de organização da opinião; a defesa do Ocidente — uma categoria abstrata em que a democracia e o cristianismo se confundem com a propriedade privada dos meios de produção — e a condenação do lucro), as proposições geopolíticas do antigo chefe do Serviço Nacional de Informações padecem de igual defeito — apenas que desta feita a contradição é mais flagrante e não se apreende ao nível do universo de pensamento, mas do de discurso. O que, bem pesadas as coisas, traduz, uma vez mais, uma contradição teórica a balizar seu raciocínio e as soluções que oferece para o problema brasileiro.

A Geopolítica só tem sentido se serve para fundamentar na geografia o projeto que um partido afirma ser o do Destino Manifesto da Nação — destino que se demonstra estar inscrito na posição ou na situação geográfica, e que deve ser traduzido por uma política de Estado destinada a tornar realidade o que a geografia permitiu vislumbrar. Para ser eficaz como proposição teórica, a Geopolítica deve ter a complementá-la uma visão do papel do Estado, a qual seja adequada ao Destino Manifesto (correspondente à Weltanschauung pelo menos do grupo hegemônico da Sociedade Civil e suporte do Estado), bem como supor também uma vontade de retirar da visão de Destino as conseqüências necessárias bem assim promover, a partir do Estado, a ação que lhe corresponde. Em outras palavras, a mentalidade geopolítica conduz, pela lógica interna da proposição inicial, a uma política de poder realizada a fim de fortalecer o Estado frente aos demais; é, pois, uma política nacional — para não dizer nacionalista e tendente ao expansionismo. Pouco importa, nessa caracterização sumária, se a expansão se dará para além das fronteiras nacionais, a fim de conquistar o Lebensraum (espaço vital) que o Estado julga indispensável à realização de suas potencialidades, ou para dentro das próprias fronteiras, colonizando o território já legalmente dominado, mas não socialmente ocupado.

O general Golbery tem plena consciência dessas premissas, como se vê das passagens seguintes: “... o fato primacial que vale considerar, no conjunto do panorama internacional, é que cada Estado se move ao impulso potente de um núcleo de aspirações e interesses, mais ou menos definidos com precisão num complexo hierárquico de Objetivos. Para os Estados-Nações de nossos dias, são seus Objetivos Nacionais” (pág. 11); “Eis um setor (o do conceito estratégico nacional) em que pontos de vista alienígenas têm de ser, o mais rigorosamente, banidos. Pois só vale a Estratégia... que for estritamente nacional” (pág. 216); “O Brasil está magistralmente bem situado para realizar um grande destino tão incisivamente indicado na disposição eterna das massas continentais, quando lhe soar a hora, afinal, de sua efetiva e ponderável projeção além-fronteiras” (pág. 219). Todavia, para ele não havia soado nos anos 50 a hora da projeção internacional do Brasil, e talvez mais alto do que realizar as premissas geopolíticas falasse a consciência da necessidade de defender a civilização ocidental e a certeza de que a afirmação do Destino Manifesto brasileiro, na conjuntura mundial dos anos 50, apenas contribuiria para desguarnecer a retaguarda norte-americana, abalando, assim, da perspectiva militar, a defesa integrada do Ocidente contra o império soviético. São essas considerações que levam o general Golbery a sacrificar o Destino Brasileiro à defesa da retaguarda norte-americana: “O que nos ameaça hoje, como ontem, é uma ameaça não dirigida propriamente contra nós, mas sim indiretamente contra os Estados Unidos da América, a qual, mesmo se a entendermos subestimar dando maior ênfase à praticabilidade ainda bastante discutível de um ataque transártico, nem por isso resulta insubsistente, além de que, de forma alguma, pode desmerecer a importância estratégica do Nordeste brasileiro, não para nós, que nada queremos do outro lado do Atlântico, mas para os EUA, que já se engajaram a fundo na defesa da Europa...” (págs. 52/53). O fundamental da posição talvez transpareça nesta passagem, da mesma página: “Se a geografia atribuiu à costa brasileira e a seu promontório nordestino um quase monopólio de domínio no Atlântico Sul, esse monopólio é brasileiro, deve ser exercido por nós exclusivamente, por mais que estejamos, sem tergiversações, dispostos a utilizá-lo em benefício de nossos irmãos do Norte, a que nos ligam tantos e tão tradicionais laços de amizade e de interesses, e em defesa ao mesmo tempo da civilização cristã, que é a nossa, contra o imperialismo comunista de origem exótica”.

A operação mental que o general Golbery pretende fazer — construir uma geopolítica brasileira para auxiliar os Estados Unidos e o Ocidente a defender-se contra o “imperialismo comunista de origem exótica” — é de difícil realização, porque nega, de início, o fundamento mesmo do raciocínio geopolítico, que é a política de poder e a afirmação do Poder Nacional desvinculado do contexto mais geral da civilização em que se insere (desvinculado enquanto realidade de ação, não enquanto afirmação doutrinária e de propaganda). Ecumênico, na medida em que católico e ocidental tendem ao ecumenismo, o general Golbery não se apercebe de que a Geopolítica e o ecumenismo se excluem — logicamente — da mesma maneira que a construção do Poder Nacional e a interdependência entre os que já assumiram responsabilidades na política internacional e aqueles que para elas se preparam. A construção, note-se bem, porque para os poderes nacionais já erigidos a interdependência é a forma histórica da afirmação de sua hegemonia sobre os demais Estados. Desse fenômeno, o que encontra no livre-cambismo sua expressão e seu instrumento, o general Golbery tem consciência, tanto assim que a páginas 255, ao afirmar ser necessário um novo conceito de cooperação para vencer a sedução que o comunismo exerce sobre os povos subdesenvolvidos, declara: “E, para fazê-lo, nunca bastarão as prédicas mais ou menos insinceras sobre as virtudes inexcedíveis e sem jaça da livre empresa, a doutrinação cínica em favor da eterna benemerência do capital estrangeiro, as teses cediças sobre as vantagens inigualáveis de um livre-cambismo já defunto e as maravilhas da divisão internacional do trabalho, as apregoadas vocações agrícolas ou as repetidas demonstrações da perfeição admirável do mecanismo automático do mercado livre”.

O geopolítico votado a só “discernir a margem de possibilidade a aproveitar na construção da maior grandeza, do progresso crescente e da segurança interna e externa do Estado” (pág. 33) choca-se a cada passo com o cristão ocidental cônscio de que a “América Latina — e, em seu contexto, o Brasil — por suas fraquezas econômicas, sua imaturidade política e seu baixo nível cultural, acha-se, sem dúvida alguma, extremamente vulnerável à agressão comunista” (idem), e igualmente certo de que essas deficiências tornam o país essencialmente dependente do Ocidente e em particular dos Estados Unidos “para o seu comércio, o seu desenvolvimento econômico, o seu progresso técnico-cultural, até para a sua própria segurança...” (idem). Daí, o drama íntimo, que se percebe a cada passo do livro, o qual o leva a afirmar que “de fato o nacionalismo é, ainda, toda a nossa nobreza. E, se não o for conscientemente, muito importa que o seja” (pág. 99), ao mesmo tempo que a proclamar que esse nacionalismo deve ser “amadurecido, nacionalismo realista e crítico e, por assim dizer, asséptico, que não mais se coadunará com a corruptora histeria demagógica e bloqueará, por fim, a endemia desvitalizante da teorização balofa e inatual” (pág. 104).

A assepsia mental e o horror à demagogia, que perverte o nacionalismo, fazem-no descrer das capacidades criadoras do povo, politicamente imaturo e culturalmente sem expressão, com o qual deve contar, no entanto, para construir a democracia renovada e o Poder Nacional. O povo, ao longo do livro, não é sujeito da história da Nação, como não o podia ser para Hobbes; é tão-só o objeto de ação estatal destinada a erguer, na dignidade e no realismo crítico, a grandeza do Brasil. Bem perquiridas as razões das coisas, dois elementos estão subjacentes a esse desprezo jurado pelo povo: um, o “ethos burocrático”, que leva o oficial a ver no recruta um mero objeto de suas decisões na rotina do quartel ou no campo de batalha; outro, a identificação, de 1945 a 1964, entre o grupo que desaguaria na Sorbonne e o liberalismo brasileiro, igualmente aristocrático, igualmente antipopular (neste sentido de não conseguir estabelecer as cadeias de comunciação com as grandes massas, reputadas imaturas política e culturalmente) e que da mesma forma fazia da defesa da democracia ocidental e do cristianismo a base da política exterior brasileira (apenas que, no caso dos liberais, essa posição era inspirada não num raciocínio geopolítico, mas no desejo de manter as posições relativas dos grupos na sociedade). É essa identificação entre o grupo militar e as posições do liberalismo brasileiro (a qual estará na raiz de uma série de equívocos fatais cometidos pelos liberais após 1964), que levará o grupo militar a identificar a “histeria demagógica” com o populismo de Vargas, Adhemar de Barros e João Goulart, e a “teorização balofa e inatual” com o de Kubitschek, mais refinado, mas igualmente servindo, pela origem de seu governo e pelas alianças que foi obrigado a fazer até 1960, a objetivos contrários àqueles fixados na Geopolítica. Na sucessão de governos eleitos desde 1945, Jânio Quadros apareceu ao grupo da Sorbonne como a negação da demagogia e, portanto, do populismo — é que, embora ele mesmo um populista, jogou sua sorte eleitoral contra os herdeiros do getulismo, as esquerdas e a demagogia governamental.

Não apenas a ligação circunstancial com os liberais faz o grupo militar triunfante em abril de 1964 erguer-se contra o nacionalismo tal qual vivido até o movimento do general Mourão Filho. Dir-se-ia que para o general Golbery, como para o marechal Castello Branco, aliás, a demagogia e a teorização balofa pervertem o nacionalismo, fazendo-o meio de um fim diferente daquele enunciado para a Nação — o “nacionalismo é, portanto deve ser, só pode ser um absoluto, em si mesmo um fim último — pelo menos enquanto durar a nação como tal” (pág. 102) —, na medida em que a idéia nacional é colocada a serviço de outra idéia força (por exemplo, a luta de classes do esquema marxista) ou, desligada das realidades econômicas e sociais, é transformada em meras palavras que caem “no ridículo dos blefes, das chantagens e da simples bazófia”, colocando em má posição o Poder Nacional. Há, no pensamento do general Golbery (como se observou, ademais, em toda a ação do governo Castello Branco), uma noção da responsabilidade que a Nação deve assumir para poder jogar o perigoso jogo da afirmação nacional, bem assim a idéia de que esse é um jogo reservado àquelas nações que para ele se prepararam na escola da assunção de sérios compromissos que devem ser respeitados para que possamos exigir o respeito aos pactos que conosco firmam. Essa responsabilidade não pode florescer num meio que se sabe desde o início economicamente fraco (seja pela dependência de um único produto exportável, seja pela inflação sem controle), politicamente imaturo e culturalmente despreparado para as tarefas de direção política. Nesse quadro cultural e econômico, a responsabilidade só pode ser assumida pelo Príncipe com Virtù, que pelo ascetismo de sua conduta, pela visão mais larga e fundamentada que tem dos problemas nacionais e pelo descompromisso eleitoral com o povo, seja capaz de imprimir ao Estado, sem demagogia e sem histeria, as diretrizes capazes de afirmá-lo como representante de uma Nação em busca de seu destino. Até certo ponto, o marechal Castello Branco foi esse Príncipe, exemplo de virtudes cidadãs, avesso à demagogia e à bajulação das massas, obstinado em construir a qualquer preço as bases logísticas da afirmação sólida e consciente do Poder Nacional — ainda que para tanto usasse o “internacionalismo de meios” a que se referiu, mais tarde, o ex-ministro Roberto Campos.

É essa concepção a um tempo asséptica e ascética do Poder e de seu exercício que fundamenta o Poder Nacional na geopolítica do general Golbery do Couto e Silva, e que foi o lastro, no seio do povo, da autoridade (não do prestígio) do marechal Castello Branco. Todavia, como o poder não se exerce sozinho e desligado da realidade que se pretende transformar, ela não basta; só é eficaz se se lhe acrescenta a confiança na capacidade criadora do povo, ainda que política e culturalmente imatura, ou se se faz do Príncipe uma idéia não individual, mas coletiva; se o Príncipe é visto não como a pessoa dotada de Virtù, mas como o partido que a fez sua. Essa visão coletiva, moderna, do Príncipe e de sua Virtù não é a do general Golbery — da mesma forma como não é sua a confiança nas virtualidades criativas do povo. Essa falta de confiança levou-o, como aliás todo o grupo da Sorbonne, a contar apenas com a chefia do marechal Castello Branco e apoiar-se na unidade do único partido em que se podiam apoiar: as Forças Armadas, especialmente o Exército.

Essa necessidade de contar com o apoio das Forças Armadas e preservar sua unidade é que permite, também, compreender por que a política exterior do marechal Castello Branco se fez de modo hesitante, afirmando sempre a fidelidade ao Ocidente e à sua potência líder, mas insinuando, aqui e ali, como que para estabelecer as bases de uma independência real, a necessidade de proceder-se em termos geopolíticos, isto é, de política de poder. Já em 1964, o presidente Castello Branco definia aos formandos do Instituto Rio Branco a missão real da diplomacia brasileira: “Não devemos pautar nossa atitude nem por maquiavelismo matuto, nem por uma política de extorsão. Reciprocamente, não devemos dar adesão prévia às atitudes de qualquer das grandes potências — nem mesmo às potências guardiãs do mundo ocidental, pois que, na política externa destas, é necessário distinguir os interesses básicos da preservação do sistema ocidental dos interesses específicos de uma grande potência”. É por ter consciência profunda de sua responsabilidade e a certeza íntima de que não jogava um “maquiavelismo matuto”, nem praticava uma política de extorsão, que o chefe do governo de 1964 podia acrescentar, na mesma ocasião, ao referir-se ao Oriente, tão verberado na Geopolítica e apontado, nela, como o inimigo da civilização cristã: “No Leste Europeu encontramos Estados cuja filosofia política diverge essencialmente da nossa. Essas divergências não têm por que criar entre nós e esses países um estado de hostilidade. As relações que com eles temos, podemos mantê-las e, em certos terrenos, ampliá-las. O comércio entre o Brasil e esses países pode ser mutuamente proveitoso: estamos prontos a aumentar nossas trocas, desde que elas não sejam veículo de influências inaceitáveis”.

Toda a política externa do governo Castello Branco foi votada à construção das bases logísticas da independência do poder nacional. A inspiração hobbesiana de seu pensamento fê-lo esquecer-se, contudo, de que a Nação que ele sinceramente desejava construir grande e independente não se pode fazer sem o plebiscito cotidiano de cada um e todos nós. Daí ter tentado erguê-la burocraticamente, sem mobilizar, sequer, as Forças Armadas para as ingentes tarefas do desenvolvimento nacional. Por isso, falto do apoio entusiasta do povo — pela leitura de seus discursos, sente-se que ele desejava tê-lo como suprema recompensa de sua solidão — e não tendo sabido transformar a idéia da grandeza nacional em mito operante ao nível da realidade, frustrou a realização do projeto nacional implícito na Geopolítica.

Os dados apontados pelo general Golbery no seu livro, no entanto, permanecem imutáveis e condicionantes de um destino; falta, para que a geografia se torne realmente a inspiradora do grande projeto nacional, que um grupo confiante na capacidade criativa do povo se lance à tarefa de reorganizar as Forças Armadas, reformular sua doutrina política e transformá-las no instrumento do partido nacional, popular e democrático da revolução brasileira.


 

 

A FUNÇÃO DE
“PODER MODERADOR”
DO EXÉRCITO

 

 

Advertência preliminar — O texto abaixo é a versão original — com ligeiras alterações formais — de conferência proferida em curso de extensão cultural promovido pelos alunos de Ciências Sociais da Faculdade de Fiosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. As ponderações e criticas feitas durante os debates não foram aqui retomadas, para que o texto primitivo guardasse sua inteireza.

 

Em sua Interpretação da realidade brasileira, João Camilo de Oliveira Torres afirmava: “É desnecessário encarecer o papel político que as forças armadas têm representado na vida política brasileira. (...) E como dominam, em geral, maneiras simplistas, esquemáticas e interesseiras de interpretar a história do Brasil, e como os preconceitos e os lugares comuns falam mais alto do que tudo, o papel das forças armadas continua sendo objeto de confusões sem fim”. Na mesma linha de raciocínio, continuava tentando elucidar questão que dia a dia se torna mais complexa, porque de solução institucional mais difícil: “Das teorias correntes, a que mais se aproxima da verdade é ainda a que tem defendido ultimamente o professor Eugênio Gudin, e que parece foi posta em circulação por Jackson de Figueiredo: as forças armadas são o Poder Moderador da República” (1)

A compreensão do problema melhor se terá se considerarmos o que diz o artigo 88 da Constituição de 1824: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente, vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. E o artigo 99 completava a definição, do ponto de vista que nos interessa: “Artigo 99 — A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada; ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Se tivermos em mente o sistema unitário do Império em que a Coroa nomeava os presidentes das Províncias, compreender-se-á em sua ampla latitude os poderes do Moderador, que além de escolher os senadores eleitos em lista tríplice e aprovar e suspender interinamente as resoluções dos conselhos provinciais, prorrogava ou adiava a Assembléia Geral e dissolvia a Câmara dos Deputados, nos casos em que o exigisse a salvação do Estado, convocando imediatamente outra que a substituísse — depois de mudar o chefe do governo, que presidiria às novas eleições, fazendo uma maioria à imagem da vontade da Coroa.

Vistas as coisas assim, e tomada ao pé da letra a “teoria que mais se aproxima da realidade”, teríamos que as Forças Armadas, que na teoria do Estado são vistas como instrumento do Estado e executor de sua vontade, passariam a ser, no jogo constitucional brasileiro depois de 1889, a chave da organização política da Nação, velando incessantemente pela independência e harmonia dos mais poderes políticos. O que equivale a dizer que o instrumento do Estado tem a incumbência precípua de velar pela harmonia dos três ramos em que se pode manifestar a vontade soberana do Estado, o que constitui aberração teórica evidente e traduz grave descompasso entre a constituição real e a constituição escrita. Ou, o que vem a dar no mesmo, traduz a existência de uma crise para a qual se deve buscar solução.

Defrontado com problema que aberrava do bom senso, padre Brown se perguntava: “Onde um homem esconderia uma folha? Na floresta. Se não houvesse floresta, arranjaria uma floresta. E se quisesse esconder uma folha morta, arranjaria uma floresta morta”. Para completar, em outra oportunidade, suas reflexões ditadas pela inocência de quem acredita nas forças do mal: “...toda obra de arte, divina ou diabólica, tem uma marca indispensável, quer dizer, seu centro é simples; todavia, grande parte do enchimento pode ser complicado. Assim, em Hamlet, a bizarria do coveiro, as flores da moça louca, os fantásticos esforços de Osric, a palidez do fantasma e o sorriso da caveira são tudo excentricidades numa espécie de círculo complicado em torno da simples figura trágica de um homem de preto”. Como Chesterton, poderíamos dizer que há uma marca indispensável, um centro simples na presença atuante das Forças Armadas na vida política brasileira, e que as teorias que em torno dela se fizeram e fazem sobre a chamada função de Poder Moderador do Exército (por ser a força de maior peso específico no conjunto das Armas) são um enchimento complicado feito para recobrir a tragédia não de um homem de preto, simples como todos os homens, mas as vicissitudes de uma organização complexa.

Em todas as teorias que se fazem sobre o problema, os coveiros se tornam mais bizarros, mais moças loucas trazem consigo mais flores, as caveiras gargalham num esgar mais cadavérico e florestas se erguem para esconder as folhas — mas no centro permanece a simplicidade da obra de arte, no sentido em que Maquiavel definia o Estado como uma obra de arte —, que nem todos são capazes de reconhecer, perdidos pela aparência que em torno dela se ergue, às vezes propositadamente: pela fragilidade do Estado, pela ausência de um grupo suporte ou de um núcleo hegemônico na Sociedade, as Forças Armadas são de fato a chave da organização política brasileira. Enquanto não entendermos esse fato simples, nós e as Forças Armadas, o Poder Moderador não poderá de fato velar pela manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes, pela simples e boa razão de que as Forças Armadas tenderão a fazer de sua organização o modelo da organização política, do seu “ethos” o modo de pensar que deve dominar a Nação, e se esquecerão das sábias palavras do príncipe d. Pedro: “Mas devo-lhes advertir que a tropa não é a nação; pertence à nação; mas, como tropa, nem é admitida a votar nas eleições. Aqui temos a Câmara, que é uma autoridade, poderá com mais direito usar da palavra em nome da nação, e aqui estão os eleitores por mim convocados, que poderão falar em nome do povo” (2).

Retomando a imagem do padre Brown, talvez se pudesse demonstrar historicamente, quem plantou a floresta para esconder a folha; quem construiu a ideologia para mascarar a realidade; quem elaborou uma teoria para justificar um tipo de ação.

Na realidade, desde os tempos de d. Pedro, príncipe regente, a tropa impôs a sua vontade ao representante do Estado, porque esse jamais conseguiu produzir as suas duas mil assinaturas contra as duzentas que a tropa lhe apresentava como prova de que falava em nome do povo. Mas o fato real, considerada a relação de forças internas que se estabelecia no Brasil de inícios do século XIX e em fins dele, é que elas sempre apareceram aos olhos dos políticos civis, como assinala Oliveira Vianna em O ocaso do Império, em condições admiráveis para ser exploradas em virtude de sua psicologia específica. E isso porque elas constituíam “em nosso país as únicas classes que possuem um sensível espírito de corpo e um vivo pundonor profissional”. Mas deixemos que o autor de as Populações Meridionais nos trace o retrato do que para ele era a floresta em que se escondiam as folhas: “Esta aliança inteligente das figuras de mais prestígio e popularidade do Exército por meio do afago das suas naturais vaidades e fraquezas não era tudo; mas, apenas, uma operação preparatória ou acessória, uma parte apenas do grande programa de exploração sistemática das forças armadas, desenvolvido, como vimos, desde 1870, com inegável habilidade, pela classe dos políticos civis” (3). Um sociólogo moderno, vítima do “ethos” burocrático e da intriga acadêmica, continuaria Oliveira Vianna com as seguintes palavras escritas em 1954, depois de abril e antes de ser atingido pela cega punição: “Todo o movimento que pratica a realpolitik inclui forças militares em seus esquemas. É que o poder político no Brasil não se manifesta plenamente nem se desenvolve se não conta com um poder virtual de ‘fogo’ (...) Por essas razões é que as forças armadas se tornaram alvo das atenções, insinuações e manobras de todos os partidos ambiciosos. Por isso é que todos louvam o ‘espírito democrático’ do exército nacional” (4). E Oliveira Vianna continuaria: “Como vemos hoje na República, esses truques de tática aliciadora, com que jogavam os políticos de então, não se esgotavam no simples fato de conseguir para o seu clã partidário um vistoso ídolo de farda; isto por si só não teria importância alguma, ou teria uma importância secundária. O objetivo capital dessas manobras estratégicas por eles desenvolvidas estava principalmente em preparar um conjunto de circunstâncias, um ambiente apto a constituir como que um campo de atritos entre as susceptibilidades conhecidas da classe militar e as atitudes políticas dos Gabinetes ou de uma dada situação partidária. Estabelecido este centro de atritos, era então a vez do totem do clã, o poderoso fetiche de dragonas e punhos estrelados entrar em função, como agente unificador, concentrando e personalizando todas as susceptibilidades da coletividade exacerbada. Desde esse momento, toda essa mole armada, posta em movimento sob a ação do espírito de classe, passava a atuar por si mesma — pela ação material da força, ou apenas pela ação moral do pavor; e os objetivos visados pelos seus exploradores eram então alcançados em sua plenitude”.

Oliveira Vianna não se detém aí, no que poderia ser tido como a descrição das crises políticas da república liberal-democrática de 1946 a 1964, e continua: “Era este o mecanismo do sistema de exploração das classes armadas, concebido, organizado e montado pelos políticos do Império e que haveria de ser, dentro em pouco tempo, o ariete com que iriam desmantelar, involuntariamente talvez, o próprio Império. Vê-se que em nada diferia do sistema empregado pelos políticos da República. Esses continuaram aqueles; com esta diferença — que os do Império pareciam revelar uma mais sutil inteligência na seleção dos meios e dos processos a empregar” (5).

Se esse mecanismo foi o ariete com que o clã derrubou o Império, foi ele também que levou o clã a derrubar a República, estabelecendo o hobbismo. Com o que foi inútil plantar a floresta para esconder a folha, que eram os interesses privados do mundo civil, disperso pelo território, sem articulação a não ser no plano teórico-atribuído dos interesses semelhantes e no real-concreto da existência de elementos manobráveis (militarmente decisórios do ponto de vista político) nos centros de poder. Porque na realidade, ao procurar esconder a folha, na verdade escondiam outra coisa. Como diria Oliveira Vianna em sua lúcida análise, mascaravam “uma entidade ambígua e monstruosa”, potência ideológica construída durante a Questão Militar, que, depois, perde sua palidez de fantasma e se transforma em ser concreto: o cidadão de farda, “homem da Ordem e homem do Século, homem de espada e homem de partido, político-soldado e soldado-político”(6). Ambíguo e monstruoso porque, como assinalou o civil que os chefiou na República, “a tendência inabalavelmente pacífica do Império, por um lado, e os defeituosos processos de recrutamento para a tropa, por outro, faziam do Exército uma classe distinta e separada da Nação”, ao contrário do que proclamara d. Pedro antes de a ela ceder. E se considerarmos a baixa densidade material do país, sua escassa densidade dinâmica e sua paupérrima densidade de organização, compreenderemos as palavras de Calógeras: “Começou a desenvolver-se [no Império] uma doutrina especial: os soldados haviam sustentado a Independência; os soldados haviam combatido e sofrido para assegurar a unidade nacional; os soldados haviam salvado o país no decurso da guerra. Uma sorte de mística corporificou-se e cresceu lentamente entre os oficiais: estavam predestinados a ser os salvadores do Brasil das ignomínias partidárias. E o indigno invectivar recíproco entre liberais e conservadores não poupava nem a si próprios, nem o Imperador, nem o regime imperial” (7). Essa “doutrina especial”, hoje, assim se expressa: “O Exército, já o assinalamos, foi desde o início da nacionalidade, a grande armadura que sustentou a unidade da Pátria, preservando-a das ameaças de fragmentação, assegurando a coesão daquela espécie de províncias que tendiam a isolar-se, em compartimentos autônomos, dentro das suas peculiaridades, sob a ação de forças desagregadoras, muitas vezes alimentadas pelo inimigo externo. O quartel representou, na formação do Brasil, a presença do poder central sobre toda a periferia e o interior do imenso território. Era a grande força que o defendia e aglutinava, criando e preservando o espírito nacional, além de concorrer para a mobilidade social” (8).

Foi-se esboçando, assim, lentamente, a fissura entre a Sociedade e o Estado, fissura essa que marcou a história do Brasil e a marcará por muitos anos ainda, até que a densidade material acrescida, e aumentada a densidade dinâmica, a organização permita a existência de um núcleo hegemônico que organize o Estado. E se da altiva, embora sem base na realidade, resposta do príncipe d. Pedro — “a tropa não é a nação; pertence à nação” — passou-se ao cortejar dos militares pelos liberais e pelos conservadores, cada um tendo o chefe de seu clã. Osório e Caxias, depois Pelotas e Deodoro, é porque algo de grave se passava no corpo social. É que começava a falhar a supremacia do princípio monárquico em que o Estado, no dizer de Oliveira Torres, na qualidade de primeiro motor da história, “adquire força, prestígio e esplendor, tornando-se, por isso, um perigo permanente, pois o povo se apresenta perante ele tomado de um santo terror, reverente, como em face de uma coisa sagrada”(9). Mas não é apenas o quebrantar desse santo e reverente temor — que se perdia a olhos vistos à medida que d. Pedro II cedia lentamente seu lugar na cena, — que explica a preeminência que ano após ano, especialmente após a guerra do Paraguai, as Forças Armadas adquirem na vida política do país. O “santo e reverente temor” era bastante para manter unido o território e preservar um mínimo de coerência no funcionamento das instituições, cuja chave, de fato, era o Moderador, isto é, a Coroa. Mas ele não era suficiente para conter as forças dos particularismos, da Sociedade, as quais se procuravam organizar contra o Estado, e que aqui e ali fomentavam rebeliões que a tropa era obrigada a sufocar com maior ou menor sacrifício de vidas humanas.

Se não se entender a dialética dos particularismos e do centralismo, não se entenderá até hoje a história do Brasil — e não se compreenderá nela o papel das Forças Armadas, nem o por que se plantou a floresta para esconder a folha nem como a entidade “ambígua e monstruosa” acabou por assumir funções que, na teoria e na doutrina, não eram e não são suas, mas que a realidade terminou por fazer delas. Pense-se, por um instante que seja, na configuração social e política do Brasil imperial — mas pense-se geograficamente, que é o Espaço e são as servidões das infra-estruturas que tudo condicionarão. O “santo e reverente temor” mantém a fidelidade dos simples, do grande número; mas a extensão territorial e a deficiência das comunicações impedem que o braço do Estado esteja presente a cada instante em todos os lugares, com o dom da ubiqüidade que só é seu e de Deus — e do demônio, por conseqüência. E pense-se que os particularismos devem controlar-se do Rio de Janeiro, onde se reúnem suas representações, ainda que selecionadas pelo Moderador e feitas à imagem da vontade do ministério de turno. Pense-se que sem a cobertura da “grande armadura”, a que se referia o general Lyra Tavares, a Coroa não poderia assegurar “a coesão daquela espécie de províncias que tendiam a isolar-se, em compartimentos autônomos, dentro de suas peculiaridades”. E pense-se, finalmente, que esses particularismos encontram, também eles, no Exército, os totens com que afiançar a vitória de seus clãs. A conclusão é simples e irrecorrível: a “chave de toda a organização política”, a Coroa, depende, em última instância, da tropa concentrada no Rio de Janeiro. E é por isso que, do Império à República, considerando-se também a questão internacional, isto é, o Prata, a história do Brasil se resume na história do comportamento da tropa concentrada no Sul e daquela acantonada no Rio de Janeiro. Isto é, em última instância, depende de estar a tropa unida em torno de um ideal federalista ou unitário, ou dividida em torno deles. As ideologias que mascaram os entreveros pouco contam — o fundamental é a tropa afirmar um Estado em que prevaleçam os princípios da unidade centralizadora, ou da federação.

Observe-se a interpretação que do problema dá Werneck Sodré (para quem os pólos da antítese são claramente outros que os nossos): “Desde que empresara a autonomia, a classe senhorial articulara seu sistema de força militar em três suportes principais: a Marinha, a Guarda Nacional e a tropa mercenária. Criada em 1831, quando o primeiro Imperador foi dispensado de suas funções, a Guarda Nacional era o poder específico da classe senhorial. Sua organização regional, seu processo de recrutamento, confundindo no titular do comando o titular da propriedade, suas missões taxativas, caracterizavam a instituição. Ela se destinava a manter os privilégios da classe dominante e era diretamente acionada por seus elementos. O poder militar era assumido, assim, em cada propriedade, pelo detentor do poder econômico, diretamente. (...) A questão platina foi enfrentada, na área pastoril, pelos seus elementos quando o estancieiro era o chefe militar nato, habituado ao mister da guerra e ao uso do comando, lançando-se à campanha em atividade guerreira proveitosa para a disputa do gado e das pastagens. O conflito contra López. como ficou estudado, altera aquela tradição e exige tropas especiais e um prolongado e generalizado esforço, em que as populações pastoris já não são as únicas a concorrer. Só uma força militar específica, profissional [acrescentaríamos: com densidade de organização distinta daquela da sociedade], atende às necessidades daquele conflito. E essa força militar deve ser recrutada, quanto aos quadros, na classe média, emergindo, plenamente constituída, em 1879, quando a guerra chega ao fim. Ocupa, agora, um lugar que se torna cada vez mais importante. Não tivera a classe dominante necessidade de utilizá-la, como ao clero, para manter-se no poder, uma vez que esse direito não lhe era contestado e a Guarda Nacional lhe era suficiente para a defesa de seus interesses. Tendia ao desaparecimento, e a guerra com o Paraguai assinalou seu fim, a tropa mercenária. O Exército, pouco a pouco, reduz a Guarda Nacional a uma posição inexpressiva, como força militar. Seus comandantes passam a ser apenas os ‘coronéis’, que tanto relevo ganham nas lutas eleitorais” (10).

Decorre claro, da análise de Werneck Sodré, que o Exército — que as necessidade técnicas da guerra obrigam a constituir-se como corpo profissional — responde aos interesses do Estado, ainda que seus quadros sejam recrutados naqueles setores sociais que, aparentemente, não estavam vinculados às classes senhoriais. Todo o comportamento dos clãs, dos fetiches poderosos das dragonas e dos punhos estrelados mostrava, claramente, que a contradição que acabaria por corroer o Império não residia na oposição entre os setores reacionários da classe senhoria! aliados ao “esdrúxulo Poder Moderador”, por um lado, e os setores progressistas da classe senhorial aliados à classe média representada pelo poder militar, por outro. A contradição fatal era mais simples — e por isso sua explicação sempre precisou ser mais complexa. Embora se pudesse dizer simplesmente que residia no fato de o Estado ter-se colocado a serviços dos privatismos que tendiam a destruir a Coroa, que representava o Estado em virtude da peculiaridade da organização política do Império. Se a tragédia de 93 durante anos pesou no subconsciente da Marinha e a inibiu nos movimentos militares subseqüentes, seguramente 89 pesa no subconsciente do Exército — e o faz marchar sempre para a frente, esmagando a Sociedade, para vingar-se do fato de a ela ter cedido no momento em que se fazia mister não ceder. Estranha concepção faz o Exército da Federação, ao afirmar que a República viria a seu tempo, do centro para a periferia, para preservar a unidade da Nação contra as reivindicações regionais...(11).

Reconheça-se, porém, que não era fácil discernir em 1889 — sobretudo quando Ouro Preto, que naquele momento representava a Coroa, busca defender o Poder Central e centralizador, lançando mão do instrumento de que a Sociedade lançara mão em 31 para contrapor-se ao Estado: a Guarda Nacional. No auge da crise, o Estado fragmenta-se enquanto direção política e dominação repressiva — e todos os seus representantes tenderam, no final, apesar da dignidade pessoal com que se comportaram, a fazer a única revolução que se fez no Brasil desde 1549: a da Sociedade contra o Estado. Por um lado, o Exército, temeroso da dispersão — isto é, de ser lançado fora dos quartéis do Rio de Janeiro e de perder assim, pela fragilidade da infra-estrutura, sua força decisória; por outro, Ouro Preto, buscando na Sociedade que já não apoiava o Império, isto é, o Estado, as forças com que lutar contra o Exército, vale dizer, o instrumento do Estado.

Fale de novo Calógeras: “...como anular a ameaça de uma força armada politicante? [Ouro Preto] nunca mascarou sua intenção: diante de um Exército profissional faccioso, em larga proporção nas mãos dos oficiais pelo serviço militar a longo prazo, alinhar uma milícia nacional, igualmente armada e treinada, na base do serviço pessoal e generalizado. A idéia era sadia e sempre foi a pedra de alicerce das forças nacionais contra as forças profissionais. Era, contudo, uma ameaça contra a situação vigente dos regimentos, e contra a noção de oficiais a desempenharem o papel de cidadãos-soldados, amedrontando civis desarmados com o peso das armas a eles entregues, enquanto reclamavam o direito de assim agirem como cidadãos” (12).

É esta crise de direção do Estado — em que o Exército serve à classe senhorial, cansada de votar liberal ou conservador conforme o humor do Imperador ou da Princesa Regente, e de ver a Coroa amputar sua base econômica, ainda que fosse suposta, e a Coroa procura jogar a classe senhorial contra o Exército — é esta crise que faz razoável a interpretação de João Camilo de Oliveira Torres: “Certamente um historiador não tem o direito de usar o verbo no modo condicional. Mas pelo que se poderia esperar da situação de 1889, o Terceiro Reinado se anunciava demasiado revolucionário, seria quase anárquico. A julgar pelas aparências, a República foi uma defesa do espírito de ordem, de autoridade, de disciplina e de hierarquia” (13). Mas é na República, e nos setores conservadores — a dar crédito ao próprio João Camilo — que surge a teoria em que o Exército desempenha a função de Poder Moderador. Esta é a floresta que cabe desbastar para encontrar a folha tão cuidadosamente escondida desde o Império, seja pelos “colarinhos de couro” ou pelos “cadetes fardados”, seja pelos próprios setores civis que se serviram das Forças Armadas para tentar realizar seus objetivos. Não importa que, atrás, tenhamos identificado a folha com os interesses privados do mundo civil; a floresta é imensa e é possível que outras folhas nela tenham sido escondidas.

II

A imagem do Exército como exercendo, nas crises republicanas, o papel de Poder Moderador, isto é, o papel que a Coroa desempenhava no Império, resolvendo as crises políticas mais sérias, aquelas que se diriam crises de regime ou de Estado, pode ser examinada de duas perspectivas:

1. é sem dúvida alguma uma construção ideológica, como tal destinada a mascarar fatos reais. Apesar de construção ideológica, ainda assim traduz fatos que se dão na realidade;

2. é um recurso de análise que reconhece, implicitamente, que os mecanismos de ajustamento dos diferentes grupos sociais — mecanismos esses sociais ou constitucionais — não funcionam.

Da primeira perspectiva, a tendência da análise é descobrir que grupos sociais favoreceriam a criação da imagem ideológica e a que interesses ela responderia. Embora, a rigor, como assinalava Oliveira Vianna para o Império, e Octavio Ianni para a República, todos os partidos se tenham valido do apoio dos totens dos grupos militares, não será exagero interpretativo dizer que foram os grupos que se mostraram incapazes de atingir normalmente o poder depois de 30, especialmente depois de 1945, que mais amplamente difundiram a imagem “moderadora” do Exército, a qual foi incorporada por outros grupos na medida em que ela respondia imediatamente aos seguintes de seus interesses:

a. permitia engajar o Exércio, enquanto corpo profissional, em suas tentativas de atingir o poder por meios outros que os constitucionalmente previstos, ou garantir-lhes a posse do poder, mesmo quando se afastavam do espírito da Constituição;

b. permitia comprometer outros setores sociais com esses objetivos, aglutinando-os em um só bloco histórico, pois a imagem do Poder Moderador trazia implícita, ad usum Delphini, a idéia de que a intervenção militar se faria para fins meramente reguladores da normalidade do processo. Nas palavras de João Camilo, nas crises, compete às Forças Armadas intervir “quando um governo não consegue manter a ordem, ou lança o país em rumos perigosos à segurança nacional” — ou, diríamos nós, quando um governo se afasta daquilo que a opinião média de um determinado “bloco histórico” (aglomerado de grupos sociais sob a hegemonia de um grupo ou subgrupo, de expressão nacional ou regional) considera ser a conduta normal do governo. Realizada a intervenção, a direção do governo voltaria ao mundo civil de acordo com as normas constitucionais;

c. subordinaria o Exército aos interesses do “bloco histórico” dominante, na medida em que incutiria nos quadros a noção de que sua função era manter o ajustamento, supostamente violado, entre os grupos e nada mais, ou então impedir que esse ajustamento fosse violado. Ao Exército deveria ser destinada, sempre, nesta concepção, a função de garante da Lei, na versão conservadora e tupiniquim que esses setores se faziam da noção liberal-democrática da Lei.

Dadas essas premissas, seria interessante à pesquisa comprovar como esses setores viram as intervenções de 1937 e 1955, e a decisão de 1961 — teoricamente, poder-se-ia dizer que nesses momentos o Exército foi visto como faltando ao cumprimento de sua missão “moderadora”, colocado a serviço de grupos exclusivistas (pecados de que se redimiria em 1964), ou como tendo cumprido sua função “moderadora” por aqueles a quem ele garantiu (tendo fugido da legalidade em 1964).

A segunda perspectiva liga-se necessariamente ao que acima se disse. Os mecanismos de ajustamento intersegmentar não podiam funcionar porque respondiam, quer no quadro conservador do pensamento liberal brasileiro, quer na visão do mundo dos que não se consideravam liberais, à concepção que o liberalismo europeu, mais especialmente o contratualismo do XVIII, fazia da relação Sociedade Civil-Estado e dos mecanismos internos de ajustamento na Sociedade Civil. Note-se que propositadamente falei em liberalismo europeu — pois de fato, o que se teve como fonte inspiradora foi a concepção de Lei e de Estado própria do liberalismo europeu, ainda que a Sociedade sobre a qual o Estado brasileiro agia e na qual a Lei era suposta funcionar não fosse européia em sua configuração morfológica e institucional, nem fossem europeus os padrões de cultura vigentes. O que pretendo dizer é que os diferentes “blocos históricos” esgrimiam uma ideologia, ou ideologias que ao invés de refletir, invertidas, as situações reais, cumpriam a função de talhar a forma da realidade com o cutelo da Lei. Em outras palavras, os grupos aspirantes à hegemonia sempre se recusaram a admitir o “princípio da comunicabilidade” (14), isto é, a vigência dos padrões dos simples na conformação dos parâmetros de seu universo de pensamento, sempre a exprimir-se em um universo de discurso europeu e, por europeu, digno e letrado. É que para esses grupos seria aterrador, repetindo João Camilo uma vez mais, por certo, “que alguém concluísse que Canudos representava um modo bronco e rude de dizer a verdade e que o mundo que Euclides representava era falso e postiço, o de Antônio Conselheiro, autêntico e castiço. ‘Canudos não se rendeu!’ exclama Euclides, apavorado com a sua descoberta; o Brasil não se renderia jamais às forças que o desejavam transmutar em realidades ‘caiadas’ de cores artificiais importadas. O Conselheiro, como d. Sebastião, não morreria jamais. E Euclides volta convertido ao Rio. Daí a alienação das classes letradas, de que Euclides seria o símbolo; e ela se fixaria nas formas negativistas citadas: todos os regimes, todas as religiões se equivalem. Pois não é possível confessar de público a falência das ideologias elitistas e urbanas e a vigência das crenças sertanejas e plebéias” (15).

Não interessa saber se todas as religiões se equivalem, ou se todos os regimes são iguais — pelo menos aqui e agora. O que importa é o grito lancinante desse conservador lúcido, que espelha a realidade para a qual, nós, do mundo urbano, ilhado na perspectiva beletrista de nossas formações ideológicas pretensamente populares e científicas, mas na realidade elitistas e sabendo ligeiramente a avestruz, nos recusamos a internalizar: “Mas Canudos não se rendeu...”.

Ora, se Canudos não se rendeu, e se o mundo urbano se recusa a ver a realidade, embora ela permeie seus comportamentos naquilo que são os elementos basilares da conduta social — as formas em que se dá nossa comunhão com este estranho mundo do qual viajante algum até hoje voltou; a compossessão do parceiro na relação sexual, a apropriação do excedente econômico e a posse do poder —; se o mundo urbano se recusa a admitir que até um determinado limite ele responde aos valores que informam os padrões de conduta próprios de uma visão do mundo diferente por não urbana, instala-se no seio da Sociedade uma contradição entre a Constituição escrita e a Constituição real, neste sentido de que aquela não espelha com fidelidade os mecanismos de ajustamento intersegmentar que são vigentes em virtude do primado desta, além da contradição maior entre a exigência de cumprir-se a racionalidade do modo de reprodução ampliado e a sobrevivência de organizações sociais e normas de conduta que respondem, mesmo nas camadas altas, a um modo de produção já vencido pela escala planetária da economia de mercado.

Ora, esses diferentes descompassos conduzem necessariamente a que o ajustamento intersegmentar não possa seguir as normas traçadas pela Constituição escrita e pelo mesmo motivo impedem que haja um “bloco histórico” que se possa reclamar de uma posição realmente hegemônica ao nível da direção das condutas; ele poderá pretender exercer a dominação ao nível do aparelho de Estado, mas ainda assim, à medida em que a racionalidade da Economia reclama uma racionalidade das condutas ao menos ao nível das decisões administrativas, ele, “bloco histórico” aspirante à hegemonia, deverá pagar o mesmo preço que a Coroa pagou durante todo o Império. Só poderá dominar — deixando que Canudos reviva a cada instante com tudo o que tem de bárbaro, primitivo e autêntico — se contar com o apoio do Exército. Mas essa dominação é mais instável do que a dominação da Coroa: esta tinha, ao menos, um elemento místico e mítico a seu favor — o “santo e reverente terror” —, e contava em seu ativo com a progressiva retração da Guarda Nacional, expressão dos privatismos que vão explodir na República e na Federação. Os presidentes republicanos, quaisquer que sejam, não têm a salvaguardá-los este reverente temor — porque a forma presidencial de governo faz deles, mais do que chefes de Estado e chefes da Nação (título de que se poderia reclamar com justiça o Imperador), o chefe de uma facção vitoriosa num pleito sempre contestado pelos que perderam. A sanção do voto popular torna ilegítimo, para a minoria, no dia seguinte ao da eleição, o mandato de quem triunfou — e se mais crises não houve é porque o aparelho coativo do Estado sempre funcionou.

Ora, este chefe de facção, em meio de seu mandato como chefe de Estado e chefe de Governo, deve preocupar-se em começar a encontrar seu sucessor, alguém capaz de assegurar a vitória da facção para que o butim continue sendo repartido sempre entre os mesmos. E nestas circunstâncias, não pode dominar, ainda que revestido de todas as aparências formais do mando, se não tiver o beneplácito do Exército para enfrentar as forças estaduais das facções adversas. Este chefe de Estado, se atilado for, sabe que o Exército não se perdoa 89, porque ao criar a República e a Federação, ele criou uma situação em que sua ascendência, como assinala Faoro, “foi progressivamente diluída com a estruturação das situações estaduais, com as milícias formadas pelos governadores, que anulavam, com seu número e armas, as guarnições militares. Mas com a anulação do Exército não é a federação que lhe toma o lugar, mas o eixo São Paulo-Minas...”(16). O processo de ascensão do Exército ao primeiro plano não é demorado; já em 1924, segundo Faoro, ele desperta e volta a ocupar sua função política, que, segundo o autor de Os donos do poder, “era necessária à Nação, seja no primeiro plano da ação, seja na prudente e interessada reserva”. E adianta: “o fato é que, progressivamente depois de 30, o exército passou a ocupar funções de Poder Moderador (...) restaurando a centralização (...)”(17)

Não é apenas a centralização, que ele restaura. Como forma de direção cultural, retoma os valores do Conselheiro, da sociedade tradicional, além da tradição do cidadão-soldado, e lentamente caminha para cumprir o vaticínio de Floriano, em carta de 1887: “João Neiva — Vi a solução da questão da classe, excedeu sem dúvida a expectativa de todos. Fato único, que prova exuberantemente a podridão que vai por este pobre país e portanto a necessidade da ditadura militar para expurgá-la. Como liberal que sou, não posso querer para meu país o governo da espada; mas não há quem desconheça, e aí estão os exemplos, de que é ele o que sabe purificar o sangue do corpo social, que, como o nosso, está corrompido” (18).

A história da República, por processar-se em ritmo mais acelerado do que a do Império, registra com maior nitidez o avanço da organização nacional e centralizadora sobre os privatismos. Nada melhor para prová-lo do que a leitura dos textos constitucionais em que, por um momento, como se se tivesse alcançado o equilíbrio entre os grupos em pugna, ou o triunfo de um deles, a visão transparente dos fatos é possível:

1824, art. 147 — A força militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima.

1891, art. 14 — As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis do interior. A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais.

Em 1934, já há um título especial na Carta Constitucional: da Segurança Nacional.

O artigo 159 cria o Conselho Superior de Segurança Nacional, ao qual cabe estudar todas as questões relativas à segurança nacional.

1934, art. 162 — As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei.

1937, art. 15 — Compete privativamente à União:

IV — organizar a defesa externa, as forças armadas, a polícia e a segurança das fronteiras;

XXVI — organização, instrução, justiça e garantia das forças policiais dos Estados e sua utilização como reserva do Exército;

art. 161 — As forças armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do Presidente da República.

1946, art. 176 — As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

Art. 177 — Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.

De 1824 a 1891, o salto é tremendo: o que era apenas uma força essencialmente obediente e que só se reuniria por ordem da autoridade legítima, passa a ser uma instituição nacional permanente destinada a manter a lei no interior do país, e obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores. Da legitimidade, passa-se à legalidade — e nos quadros do Direito Brasileiro, à legalidade positiva. Não há mais autoridade legítima a que se sujeitar, e a Constituição obriga as Forças Armadas a defenderem a ela, Constituição positiva. A Carta de 1946, marco final do longo processo, é a Constituição da ilusão liberal, que durou mais do que a rosa do poeta, mas não muito mais: sujeitas à fiel obediência e à autoridade do Presidente da República, a ele devem sujeição dentro dos limites da lei. Interpretação que enseja a República do Galeão, que leva ao 24 de agosto de 1954; ao 11 e ao 21 de novembro de 1955 e, last, but not least, ao 31 de março de 1964. De 1824 a 1946, as Forças Armadas mudaram de natureza e se constituíram, de fato e de direito, em uma instituição nacional permanente (uma organização nacional) e assumiram funções que não são do instrumento do Estado, mas do próprio Estado. Em suma, elas são de fato o Estado.

A folha colocada na floresta não tinha sido escondida apenas pelos interesses privados da Sociedade Civil; a floresta também foi plantada para que ninguém se apercebesse de que a força essencialmente obediente passara a ser uma organização nacional, racional e burocrática, com seus objetivos próprios, condizentes com os do Estado, mas não com os da Sociedade Civil. Para que a consciência desse fato aflorasse — e ainda há os que se recusam a acreditar que Canudos não morreu —, foram necessários anos de crise, não apenas social, política e institucional, mas também crise interna nas Forças Armadas. E nessas crises tendeu sempre a triunfar o “partido fardado” — os “cadetes filósofos”, os “cidadãos-fardados”. Os “cadetes filósofos” compreendem a lógica interna da organização a que pertencem. Eles são florianistas e são eles que empurram os “colarinhos de couro”, que integram o “estabelecimento militar”. São os “cidadãos-soldados” que forçam a organização a fazer a longa escalada que leva ao poder. E se almejam o poder (e só se pode desejar, na luta política, o poder absoluto, ou nenhum), é porque sabem que a Monarquia repousou neles; que a República se fez com eles, a Federação deles se aproveitou, e o arremedo de democracia-liberal de 1946 a 1964 conduziu a que interviessem, velada ou abertamente, em 1950, 1954, 1955 (duas vezes), 1961 e, finalmente, superadas as divergências internas, — tomada consciência de que liberais e conservadores, o que desejavam de Osório e Caxias, era apenas o prestígio para dividir as Armas e partilhar o butim — a intervenção final de 1964.

Em 1964, no ardor da vitória, os que haviam plantado a floresta para esconder a folha de suas ambições, ainda nutriram ilusões de que a história se repetiria como em 45, 54, 55 e 61. Mas eles, que haviam escrito as Constituições, que nelas haviam assinalado a mudança do caráter fundamental das Forças Armadas, não se aperceberam de que outra folha havia sido escondida na floresta, e que essa folha era uma semente, que germinou desde o Império para, a 13 de dezembro de 1968, árvore já crescida, dominar a floresta liberal ou conservadora.

Com o Ato Institucional n.° 5, finalmente, todos os que descreveram as Forças Armadas como o prolongamento do Poder Moderador na República, viram confirmadas, embora contra eles, as suas previsões e análises, na medida em que se institucionalizou o Poder Moderador. Como reza a constituição real do país, baseada na Constituição do Império, com as emendas introduzidas pela situação que evoluiu,

“o Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente às Forças Armadas para que, incessantemente, velem sobre os mais poderes políticos. As Forças Armadas são invioláveis e não estão sujeitas a responsabilidade alguma”.

Esta é a realidade da Constituição. O beletrismo de todos nós impede que o texto constitucional se refaça, mais uma vez, para afirmar, como se lia na Carta Imperial:

“Art. 1.° — O Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros.

Art. 2.° — O seu território é dividido em províncias na forma em que atualmente se acha, as quais poderão ser subdivididas ou agregadas como pedir o bem do Estado.

Art. 3.° — O seu governo é monárquico, eletivo, constitucional e representativo”.

1973


 

AS FORÇAS ARMADAS
NA CONSTITUIÇÃO

 

“A política, hoje, tornou-se a ciência do que é necessário”
Gen. Góes Monteiro

 

O problema em discussão — que função dever ser assinada às Forças Armadas na Constituição? — parece simples. Para alguns, sua solução residiria em alterar o texto constitucional em vigor, retirando dele o que vem de 1891; para outros, esta providência é impensável, e a maneira correta de resolver a equação é deixar o texto da Constituição como está. Ora, se é verdade, como disse padre Brown num dos escritos de Chesterton, que o melhor lugar para esconder uma folha morta é uma floresta (e não havendo a floresta cabe plantá-la para esconder a folha), o analista deve principiar por remover as árvores e buscar descobrir que folha se buscou colocar na floresta para não ser vista por ninguém. Esta remoção, para mim, significa a revisão de muito daquilo que desde 1962 venho escrevendo sobre as Forças Armadas no Brasil. Tal revisão não implica necessariamente a total reformulação do que já disse; trata-se, antes, de repensar a questão para responder à pergunta inicial.

A melhor maneira de enfrentar o desafio é buscá-lo em suas raízes e ver como a árvore cresceu a ponto de transformar-se em problema. Para que se tenha idéia dos termos da questão, nada melhor do que buscar nas Constituições anteriores a resposta que no passado se encontrou para o assunto. A enumeração dos textos constitucionais é importante porque eles exprimem — enquanto Constituição escrita — os fatores reais de poder no sentido de Lassale. Postas lado a lado, as definições presentes nos diferentes textos permitirão talvez a localização da folha morta escondida na floresta.

A dificuldade gráfica de montar o quadro comparativo obrigará o leitor a algum trabalho para estabelecer as diferenças e semelhanças entre os textos.

Posição das F. A. no Texto Constitucional

1824 — Título V — “Do Imperador”, cap. VIII — “Da Força Militar”.

1891 — Título I — “Disposições preliminares” — art. 14 e só.

1934 — Título VI — “Da segurança nacional”.

1937 — Três entradas: “Dos militares de terra e mar”, “Da segurança nacional” e “Da defesa do Estado”.

1946 — Título VII — “Das Forças Armadas”.

1967 — Título I — “Da organização nacional”, cap. VII — “Do Poder Executivo”, Secções VI e VII — “Da segurança nacional” e “Das Forças Armadas”.

1969 — Idem 1967.

Recrutamento

1824 — Art. 145 — Todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independência e integridade do Império, e defendê-lo dos seus inimigos externos ou internos.

1891 — Art. 87 — O Exército Nacional compor-se-á de contingentes que os Estados e o Distrito Federal são obrigados a fornecer, constituídos de conformidade com a lei ânua de fixação de forças. Nos §§ 3 e 4 fixava-se que era abolido o recrutamento militar forçado e que o Exército e a Armada se comporão por voluntariado, sem prêmio, e em falta deste pelo sorteio, previamente organizado.

1934 — Art. 163 — Todos os brasileiros são obrigados, na forma da lei, ao serviço militar e a outros encargos necessários à defesa da Pátria.

1937 — Art. 146 — Todos os brasileiros são obrigados, na forma da lei, ao serviço militar e a outros encargos necessários à defesa da Pátria, nos termos e sob as penas da lei.

1946 — Art. 181 — Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou a outros encargos necessários à defesa da Pátria, nos termos e sob as penas da lei.

1967 — Art. 89 — Toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei.

Art. 93 — Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou outros encargos necessários à segurança nacional, nos termos e sob as penas da lei.

1969 — Repete o texto de 1967, variando a numeração dos artigos: 86 e 92.

Caráter organizatório

1824 — Art. 146 — Enquanto a Assembléia Geral não designar a Força Militar permanente de mar e terra, subsistirá a que então houver, até que pela mesma Assembléia seja alterada para mais, ou para menos. (Note-se que o artigo trata dos efetivos da Força Militar; a Carta de 24 não se refere a nenhum caráter organizatório distinto que mereça nota.)

1891 — Art. 14 — As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes...

1934 — Art. 162 — As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes...

1937 — Art. 161 — As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica...

1946 — Art. 176 — As Forças Armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina...

1967 — Art. 92 — As Forças Armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina...

1969 — Art. 90 — As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina...

Função

1824 — Art. 148 — Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar e Terra como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Império.

1891 — Art. 14 — ... destinadas à defesa da Pátria no Exterior e à manutenção das leis do Interior. A Força Armada é... obrigada a sustentar as instituições constitucionais.

1934 — Art. 162 — (...) Destina-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei.

1937 — Art. 166 — (...) Desde que se torne necessário o emprego das Forças Armadas para a defesa do Estado, o presidente da República declarará em todo o território nacional, ou parte dele, o estado de guerra.

1946 — Art. 177 — Destinam-se as Forças Armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.

1967 — Art. 92, § 1.° — Destinam-se as Forças Armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem.

1969 — Art. 91 — As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem.

Relação com o Estado

1824 — Art. 147 — A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima.

1891 — Art. 14 — (...) A Força Armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos...

1934 — Art. 162 — As Forças Armadas são (...) dentro da lei essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos.

1937 — Art. 161 — As Forças Armadas são (...) organizadas sobre a base (...) da fiel obediência à autoridade do presidente da República.

1946 — Art. 176 — As Forças Armadas (...) são (...) organizadas (...) sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei.

1967 — Art. 92 — As Forças Armadas (...) são (...) organizadas (...) sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei.

1969 — Art. 90 — As Forças Armadas (...) são (...) organizadas (...) sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei.

Forma de estabelecer a subordinação

1824 — Art. 147 — A Força Militar é essencialmente obediente à autoridade legítima.

1891 — Art. 14 — (...) A Força Armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos.

1934 — Art. 162 — As Forças Armadas são (...) dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos.

1937 — Art. 161 — (...) sobre a base (...) da fiel obediência à autoridade do presidente da República.

1946 — Art. 176 — (...) sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei.

1967 — Art. 92 — (...) sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei.

1969 — Art. 90 — (...) sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei.

Autoridade superior

1824 — Art. 102 — São principais atribuições do Imperador, que é o chefe do Poder Executivo, “nomear os comandantes da Força de Terra e Mar, e removê-los, quando assim o pedir o serviço da Nação”.

1891 — Art. 48 — Compete privativamente ao presidente da República exercer ou designar quem deva exercer o comando supremo das Forças de Terra e Mar dos Estados Unidos do Brasil, quando forem chamadas às armas em defesa interna ou externa da União (§ 3.°); administrar o Exército e a Armada e distribuir as respectivas forças, conforme as leis federais e as necessidades do Governo Nacional (§ 4.°).

1934 — Art. 56 — Compete privativamente ao presidente da República exercer a chefia suprema das forças militares da União, administrando-as por intermédio dos órgãos do alto comando (item 7.°).

1937 — Art. 74 — Idem 1934.

1946 — Art. 87 — Compete privativamente ao presidente da República exercer o comando supremo das Forças Armadas, administrando-as por intermédio dos órgãos competentes (XI).

1967 — Art. 83 — Compete privativamente ao presidente exercer o comando supremo das Forças Armadas (XII).

1969 — Art. 81 — Idem 1967 (XIV).

 

II

Algumas primeiras observações podem ser feitas depois da leitura dessa fastidiosa repetição de textos constitucionais. A primeira é registrar a estranha ubiquação das Forças Armadas na Constituição de 1934. Se a Carta de 1937, por não estar dividida em Títulos, Capítulos e Secções, não permite ver com clareza a importância relativa atribuída a cada um dos órgãos estatais neste organograma do Estado, que a rigor é uma Constituição, a de 1934 destoa das demais na medida em que retira as Forças Armadas da subordinação ao Poder Executivo — o Imperador, na Carta de 1824 — para situá-las em título à parte — “Da segurança nacional”. Tal circunstância indica — e para o fato Célio Borja já chamara atenção — que é a partir de 1934 que o conceito de “segurança nacional” entra na vida político-institucional brasileira para não mais sair. Este dado cabe reter na procura da folha morta, acrescido deste outro: é a partir de 1934 que as Forças Armadas, enquanto corpo organizado, se representam no Conselho Superior de Segurança Nacional não apenas por seus ministros, mas também pelos seus chefes de Estado-Maior (art. 159, § 1.°). A este órgão incumbia, então, pelo artigo 159, o estudo e coordenação de “todas as questões relativas à segurança nacional”, não definida em sua especificidade.

A introdução do conceito de segurança nacional na Constituição é sinal dos tempos. Ousaria até mesmo sugerir que o texto de 1934 consagra muitas das idéias do general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, especialmente aquelas que só podem ser devidamente compreendidas se se supor nelas presente a inspiração do marechal Ludendorf sobre a guerra total. Tomem-se alguns dos escritos de Góes Monteiro anteriores à promulgação da Constituição, nos quais procura traçar a “Finalidade política do Exército”:

“O Exército é um órgão essencialmente político; e a ele interessa, fundamentalmente, sob todos os aspectos, a política verdadeiramente nacional, de que emanam, até certo ponto, a doutrina e o potencial de guerra. A política geral, a política econômica, a política industrial e agrícola, o sistema de comunicações, a política internacional, todos os ramos da atividade, da produção e da existência coletiva, inclusive a instrução e a educação do povo, o regime político-social — tudo, enfim, afeta a política militar de um país” (pág. 133). Escrevendo sob o título “O Exército e o Brasil”, o chefe militar da revolução de 1930 afirmava: “Não havendo a opinião pública do país se organizado em forças nacionais, restam as forças particularistas, que não poderão mais dispor e concentrar em suas mãos os interesses de nacionalidade. Ficam só o Exército e a Marinha como instituições nacionais e únicas com esse caráter, e só à sombra delas é que, segundo a nossa capacidade de organização, poderão organizar-se as demais forças da nacionalidade” (pág. 156 — gen. Góes, Monteiro. A Revolução de 30 e a Finalidade Política do Exército, Andersen-Editores, Rio, s/d).

Dessa perspectiva, 1934 assinala o momento em que as Forças Armadas se fazem responsáveis pela segurança da Nação, dispondo-se a assumir a tarefa de organizar a sociedade. Para fazê-lo, devem estudar e coordenar todas as questões relativas à segurança nacional, as quais vão desde a educação até a política internacional, passando pela produção e “todos os ramos da existência coletiva”. Deve ter-se em mente o dado 1934 para ensaiar compreender o que veio a acontecer depois no Brasil, não só em 1937, nem em 1964, mas também no interregno dito liberal-democrático de 1946-64.

É importante lembrar que, lançada em 1934, a semente da “segurança nacional”, embora presente em todos os demais textos constitucionais — porquanto jamais se desfez o Conselho de Segurança Nacional —, brota frondosa no texto constitucional de 1967. Até então, os cidadãos estavam obrigados a prestar o serviço militar ou outros encargos necessários à “defesa da Pátria”; na Constituição que encerra o período Castello Branco, insere-se no artigo 89 que “toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional”. O texto deve ler-se com olhos de ver e compreender: as pessoas jurídicas e naturais — não os cidadãos, curiosamente — são responsáveis pela salvaguarda da segurança nacional; a formulação e condução dela, contudo, são competência privativa do Conselho de Segurança Nacional em sua condição de assessor do presidente da República. Não será exagero dizer que ao se afirmar, no texto constitucional, que as pessoas são responsáveis por uma política de cuja elaboração não participam, nem por representação, se está consagrando o triunfo dos princípios pregados por Góes: as Forças Armadas passam a organizar a Nação, ao menos ao nível do texto constitucional. Ou não será organizar fazer alguém responsável por uma política traçada por outrem?

É igualmente curioso assinalar a evolução que experimenta a relação entre o cidadão e seu dever para com o Estado. Na fase republicana — a contar de 1934, data dir-se-ia mais importante do que até hoje foi considerada — estabelece-se o serviço militar, além dos demais encargos necessários à defesa da Pátria. Ele é obrigação que se impõe para organizar a reserva estratégica, não para defender o Estado. Deste ponto de vista, a Constituição de 1824 retrata com muito mais fidelidade o ideal revolucionário da levée en masse da Revolução Francesa: “Todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independência e integridade do Império, e defendê-lo dos seus inimigos externos ou internos”. A defesa do Estado, para os autores da Carta que o Imperador Pedro I outorgou ao Brasil, é tarefa que cabe aos cidadãos e não a nenhum órgão do Estado. Chamo a atenção dos estudiosos para o artigo 87 da Constituição de 1891; vê-se por ele que o princípio federativo era levado às últimas conseqüências, na medida em que o Exército passa a ser composto de “contingentes que os Estados e o Distrito Federal” eram obrigados a fornecer na conformidade da lei ânua de fixação das forças. De certa forma, o caráter de organização nacional e permanente que a Constituição republicana atribuiu às Forças Armadas perderia em eficácia desde que o espírito particularista a que se referiria mais tarde o general Góes persistisse nos contingentes estaduais.

III

O segundo grupo de observações que se pode fazer é o referente ao caráter organizatório das Forças Armadas e à mudança substancial que se observa neste particular a partir de 1891. Na Constituição de 1824, as Forças Armadas, classificadas de “força militar”, eram dadas como permanentes, neste sentido de permanência de efetivos. Não se as classificavam como organização permanente; simplesmente se registrava no texto constitucional que elas existiam, deveriam ter seus quadros fixados de maneira permanente e eram essencialmente obedientes à autoridade legítima. Com a Constituição de 1891 dá-se o grande salto qualitativo — “As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes”.

Assinale-se, em primeiro lugar, que o texto constitucional rompe a precedência histórica, que sempre se soube dever caber à Marinha, primeira arma singular a ser criada. A relação de forças expressa-se claramente no texto constitucional, que permite ver as épocas em que o Exército fez consagrar na Constituição a sua supremacia sobre o conjunto das Armas e os momentos em que, sendo hegemônico, preferiu que a ordem de precedência fosse respeitada.

A transformação do caráter organizatório da força armada é fundamental, a meu ver. Da perspectiva do Direito Constitucional, não há como justificar a inclusão, no texto constitucional, de uma instituição nacional que seja “permanente” a igual título que o Estado. Aliás, poder-se-ia dizer que a história mostrou serem as Forças Armadas mais permanentes do que o Estado, pois elas criaram o Estado de 1891, o de 1934, o de 1946 e o de 1964 em diante, enquanto continuavam “permanentes”. Qualquer que seja a motivação dos constituintes de 1891, ou a pressão que sobre eles se exerceu, não se pode deixar de assinalar essa mudança como fundamental na evolução dos fatos e indispensável para buscar saber que folha se escondeu na floresta.

Há mais, se se pretende de fato buscar os elementos pertinentes para a análise aprofundada das coisas: se em 1934 se assiste ao triunfo das idéias de Góes Monteiro sobre guerra absoluta, a partir de 1937 tem-se a clara definição de que a hierarquia não pode mais ser subvertida como o fora na República Velha, de 1922 a 1930; além de ser organização nacional permanente, as Forças Armadas passam a ser organizadas “sobre a base da disciplina hierárquica”, forma que se repetirá, aperfeiçoada, em 1946 (“organizadas com base na hierarquia e na disciplina”) e nos demais textos.

Em 1967, registra-se outra mudança no caráter organizatório das Forças Armadas: elas deixam de ser “instituições nacionais permanentes” e passam a ser “instituições nacionais, permanentes e regulares”, como se na realidade tivesse havido contestação ao fato de serem apenas “nacionais e permanentes”. O empenho em afirmar o caráter de “permanentes e regulares” leva a supor que se temeu pela existência de grupos armados irregulares e não permanentes. Apenas o desvio ideológico (a doutrina da segurança nacional) permite explicar esta mudança que em nada altera os dados reais do problema, ou a existência mesma das Forças Amadas.

A questão fundamental, porém, é a de 1891. A ela serei obrigado a voltar.

IV

A terceira ordem de observações diz respeito às funções das Forças Armadas. Pela Constituição de 1824, elas eram empregadas pelo Poder Executivo para a garantia da segurança do Império e sua defesa. É de grande importância ter presente que a Constituição imperial cominava aos cidadãos, pelo disposto no artigo 145, a defesa da integridade do Império e a sustentação da Independência. A segurança e defesa do Império são que se confiavam à força armada, empregada à discrição do Poder Executivo. Da perspectiva do Direito, a colocação é perfeita: aos cidadãos incumbe a defesa do Estado; a segurança dele contra inimigos externos e internos (que não necessitam ser nominados no texto constitucional) compete à força armada, se, quando, onde e como o Poder Executivo determinar. A atribuição das funções e a distinção entre aquilo que incumbe aos cidadãos e aquilo que a tropa deve fazer por ordem das autoridades legitimamente constituídas não merecem reparos.

Da mesma maneira que no tocante à organização das Forças Armadas, em 1891 dá-se salto significativo no que diz respeito às suas funções. Em primeiro lugar, ainda que do texto constitucional republicano tal não conste, o Poder Executivo não tem mais discrição constitucionalmente estabelecida para empregar como, quando e onde quiser a força armada. Como a Constituição dá às Forças Armadas uma atribuição específica, a discrição do Executivo é tolhida. A atribuição constitucional já não é garantir a segurança e a defesa da República, compreendida — como uma leitura não deformada da Carta de 1824 poderá estabelecer — não apenas como conjunto do território nacional, mas o próprio Estado. As Forças Armadas, em 1891, passam a ter a função constitucional de defender a Pátria no Exterior e manter as leis no Interior. Defender as leis não é a mesma coisa que sustentar o Estado; daí seguir-se a clara especificação de que as Forças Armadas devem, são obrigadas, diz a Carta Magna, a “sustentar as instituições constitucionais”. A unidade do Estado, a qual exige a subordinação completa do aparelho de Estado àquilo que Heller chama de núcleo de poder, unidade esta que transparecia claramente da Constituição de 1824, começa a velar-se naquela que é considerada a obra máxima do constitucionalismo liberal brasileiro; prova evidente, poderia dizer-se, de que se haviam dado transformações profundas na realidade e de que os fatores reais de poder tinham sofrido alteração na relação de forças.

A transformação registrada na relação entre as Forças Armadas e o Estado — pois é disto que se trata e é disto que temos de ter consciência ao discutir o problema do papel constitucional das Forças Armadas — é fato duradouro, para não dizer permanente nos anos que se seguem a 1889. Escrevo 1889 porque é na proclamação da República, a ler-se bem os textos constitucionais, que se deverá buscar o início da mudança radical na relação que as Forças Armadas guardam com a sociedade e o Estado brasileiro. Tudo se passa como se em 1889 tivesse tido início processo que só tendeu a acelerar sua velocidade e a clarear seu rumo à medida que os anos se passaram. Se em 1891 as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria no Exterior e à manutenção das leis no Interior, em 1934 — ano de excepcional relevo como assinalei anteriormente — a referência ao Exterior desaparece. Feita a revolução de 1930, eliminada a dissidência tenentista e consolidada a hierarquia, as funções da força militar são definidas simplesmente: a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da ordem e da lei.

As palavras são de excepcional importância; elas têm sempre conteúdo e conseqüência. Muitas vezes dizem, mascarando; outras, escondem, a pretexto de falar. Quando, em 1824, afirma-se que a força armada defende o Império na forma que o Imperador determinar, se determinar — o Imperador, sim, pois ele é o chefe do Poder Executivo —, estabelecem-se funções e hierarquias. A função não é defesa da Pátria, ente abstrato, mas do Império, vale dizer do Estado — ente concreto apesar de apenas ser definido por seus fins e seus efeitos, como ensina Heller, ou de ser visto, por outros teóricos, como a comunidade criada pela ordem jurídica e o território que ele define e recobre. Em 1891, a lembrança do Império está presente; ainda assim, as Forças Armadas já se apresentam com nova face: tendo rompido o juramento de lealdade ao Imperador (“A Força Militar é essencialmente obediente”), elas descobrem a fragilidade da comunidade criada pela ordem jurídica quando esta é confrontada com a força. É engano pensar que o Legislativo e o Judiciário são poderes desarmados e o Executivo possui a força; desarmado é o Estado desde 1889. Desarmado diante da tropa (1889, 1930, 1937, 1945, 1955, 1964, 1969...), à qual a Constituição republicana assina a missão — enquanto obrigação constitucional — de “sustentar as instituições constitucionais”. Em outras palavras, a República descobriu depois de Vigny que o Exército é uma nação dentro da nação; por isto, diz-lhe que sua função é sustentar as instituições erigidas pela Constituição pela qual se organiza o Estado do qual a força armada começa a destacar-se. Gramsci diria que em 1891 a força armada começou a distinguir-se para vir a demonstrar seu sorelliano espírito de cisão em 1934 e 1969.

Em 1891, pela proximidade temporal do Império, ainda se cuida de dourar a pílula: daí falar-se na dupla missão, a externa e a interna. No Exterior, defende-se a Pátria, juridicamente indefinível; no Interior, as leis — não o Estado. É curioso assinalar como os positivistas e os republicanos negam ao cidadão a obrigação de pegar em armas para defender o Estado contra seus inimigos internos, abolindo o “recrutamento militar forçado” e transferindo para as Forças Armadas a tarefa que é do Estado, isto é, a de garantir o cumprimento da lei. Na passagem registrada na Carta de 1891 espelha-se o início da cisão entre o Estado e a força militar — por dura que possa parecer a assertiva. Não é a internalização dos Códigos na alma de cada cidadão que impede a desnaturação das leis; não é a agilidade dos tribunais que garante a eficácia delas. Antes, é a ação militar no cumprimento de sua missão constitucional que dá aos cidadãos a certeza de viver ao amparo da lei.

A ruptura iniciada em 1891 prossegue em 1934: como visto, não há mais a dupla missão, a externa e a interna. As tarefas constitucionais das Armas são defender a Pátria, garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei. Ademais, afora as Forças Armadas voltarem-se completamente para dentro do Brasil, têm acrescida a preocupação de defender a ordem, que grupos delas, aliados a grupos civis, vinham sabotando desde 1922. A inclusão da ordem entre as missões constitucionais aparentemente não faz sentido; não faz sentido porque, a menos que a palavra seja usada em sentido metafísico, metapolítico ou metassociológico (a defesa da ordem que rege qualquer sociedade), dar às Armas a tarefa de garantir a ordem é negar todo o empenho de Góes Monteiro em impedir que elas desempenhem a tarefa de polícia dos governos oligárquicos da República Velha. Conhecendo-se como se conhecem os esforços que o general Góes pôs em acompanhar a elaboração do projeto constitucional, parece difícil que tenha deixado passar expressão que obrigaria as Forças Armadas a intrometerem-se na bulha da política interna. Como ele não era metafísico (embora dado à leitura de abstrusos autores alemães), caberia concluir que a inclusão da ordem no texto constitucional se liga às idéias mais gerais que defendia no período, especialmente aquelas referentes à criação de uma vertebração do País (de uma ordem, por que não?) pela ação das Forças Armadas. É mera hipótese, tentativa de elucidar as coisas; na verdade, é preciso escolher qual o sentido que os constituintes de 1934 quiseram empregar a palavra ordem: “Disposição conveniente dos meios para se obterem os fins”, ou “Tranqüilidade pública resultante da conformidade às leis”? O primeiro sentido, ainda que possa ser acoimado de metafísico, aproxima-se do que o general Góes entendia, à época, devesse ser a finalidade política do Exército; o segundo é que está detrás de nosso gesto quando gritamos “Aqui d’El Rey!”; é assunto de polícia, civil ou militar.

Registre-se que na plantação das árvores que compõem a floresta que escondeu a folha morta já se podem ter dois fatos de extraordinária relevância do ponto de vista da relação de forças: em 1934, as Forças Armadas renunciam a ser o instrumento de uma política externa, contentando-se em ver-se atribuída a função de defensoras da Pátria, e decidem voltar-se para a tarefa de dispor convenientemente dos meios para se obterem os fins que serão definidos pelo Conselho Superior de Segurança Nacional, consagrado pela primeira vez em texto constitucional. A ruptura entre o Estado e as Forças Armadas é, depois de 1930, duradoura. No lapso de 41 anos, elas depuseram o Imperador, autoridade legítima a que deviam obediência, e o presidente da República. Este, pela Carta de 1891, não era o comandante supremo: pela leitura que faço do artigo 48 da primeira Constituição republicana, o chefe do Estado só exerceria o “comando supremo das forças de terra e mar dos Estados Unidos do Brasil” quando elas fossem “chamadas às armas em defesa interna ou externa da União”. Talvez por isto, nas Constituições subseqüentes, o presidente da República seja sempre designado como “comandante supremo”. De qualquer forma, permanece o fato de que em 41 anos foram depostos dois chefes de Estado e feitas duas revoluções no sentido de transformação da forma de Estado. As Forças Armadas, apesar de mudar a forma do Estado, permaneceram. Para o teórico do Estado, dir-se-ia que por sua permanência e pela Machtpolitik que desenvolveram elas se consolidaram como poder soberano que garante o Estado, que perde assim sua característica fundamental.

Ao risco de ser condenado por desvio ideológico, diria que o Estado Novo interrompeu a realização das idéias de Góes Monteiro. Por isto, elas só voltam a impor-se mais tarde, quando ele já não vive e a crise de Estado é patente, e então as Forças Armadas passam a ocupar o Estado. Em 1969, cabe recordar, os ministros militares no exercício da Presidência da República outorgam a emenda constitucional n.° 1. Por ela, além de destinarem-se a defender a Pátria e a garantir a ordem e a lei e os poderes constituídos, as Forças Armadas são declaradas “essenciais à execução da política de segurança nacional”. O ciclo iniciado em 1889 completa-se em 1969: as Forças Armadas estão à margem do Estado, cuja existência garantem. Tenha-se presente que, embora as pessoas físicas e jurídicas — não mais os cidadãos — sejam responsáveis pela segurança nacional, as Armas são essenciais para a execução da política que assegurará o Poder Nacional, política esta que elas mesmas formulam no Conselho de Segurança Nacional. A ligação com o Estado é meramente formal; necessário o cumprimento da formalidade, porém, para que as Forças Armadas possam continuar agindo, de acordo com a boa doutrina, dentro das normas do ordenamento jurídico. A rigor, como dito atrás, Vigny detectara o problema na Grandeza e Servidão Militares: o Exército é u’a nação dentro da nação. Não chegam as Forças Armadas a constituir-se um Estado dentro do Estado; dele, porém, são distintas. Poder-se-ia afirmar, nisto contrariando a boa doutrina, que no momento em que mudam de função passam a ser de fato o Poder Soberano, e o Estado, garantido por elas e inerme ante sua sublevação, não é mais a Suma Potestas, mas apenas poder derivado do ato pelo qual as Forças Armadas decidem ser-lhe fiel.

Da perspectiva em que estou enfocando o problema, é necessário dedicar um parágrafo que seja à Carta de 1937. Ela é curiosa pelo fato de, tendo sido outorgada após um golpe de Estado militar — para favorecer um civil, mas militar do planejamento à execução —, afastar-se radicalmente da tradição de 1891 e 1934. Embora sejam ainda “instituições nacionais permanentes” (art. 161), a função das Forças Armadas simplesmente não é explicitada. Repito: não há, na Carta de 1937, menção alguma ao que devem as Forças Armadas fazer. Andaram bem os autores da malsinada Polaca; por acaso, nas Constituições republicanas, há referência ao que devem fazer os funcionários públicos civis? Isto por um lado; por outro, como que a marcar qual é sua função não expressa, o artigo 166 estabelece no fim do caput que para empregar as “Forças Armadas para a defesa do Estado” o presidente da República “declarará... o estado de guerra”. A conclusão é evidente: para os pensadores civis do Estado Novo, as Forças Armadas tinham como destinação natural fazer a guerra na defesa do Estado, sendo empregada internamente ou externamente, conforme o campo de ação escolhido pelo inimigo do Estado. Neste sentido, a Carta de 1937 restabelece a unicidade do Estado — por isto, quem sabe?, a Constituição de 1946, quando o Poder Civil perde seu caráter ditatorial, restabelece a preeminência das Forças Armadas frente ao Estado.

Essa preeminência não decorre tão-só de eu havê-la deduzido dos textos constitucionais. De fato está inscrita nela a partir de 1891. Na Constituição imperial, rezava o artigo 147: “A Força Militar é essencialmente obediente”. Na Constituição republicana esta cominação desaparece, apesar de permanecer, em 1891, idêntica redação (art. 14). Contradição aparente. No Império, a obediência é determinada; na República é condicionada: “Artigo 14 ... A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos”. A qualificação dentro dos limites da lei é relevante; tanto assim que se repete em todas as Constituições, menos na de 1937. Será difícil discutir nos limites deste artigo a importância que assume tal proposição. Cabe, no entanto, assinalar ao menos o fato para melhor compreensão das conclusões.

Se “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (Constituição de 1891, art. 72, § 1.°), é óbvio que muito menos à força militar se poderia impor comportamento fora da lei. Este não é o caso diretamente em foco, porém; do que se trata é da obediência. A quem era devido o reconhecimento da autoridade, do mando? Aos “superiores hierárquicos”, entre os quais só se incluiria, em 1891, como já visto, o presidente da República se ele se autodesignasse comandante supremo em caso de emprego da tropa no Interior ou Exterior (art. 48). Esta obediência, porém, não é irrestrita como se deduz da Carta de 1824; é limitada àquelas ordens que se situem “dentro dos limites da lei”. Quais são eles? Este é o ponto — e se se tiver em mente que durante a “Questão Militar” (cuja eclosão e desenlace derrubaram o Império) o que esteve em jogo foi a interpretação que os militares e o Gabinete davam (diferentes) do que rezavam a Constituição e as leis, ver-se-á que a força militar se reservou desde 1891 o direito de interpretar a lei. Não precisarei aduzir que nas tertúlias conspirativas de 1961 a 1964 este direito interpretativo era invocado pelos que manobravam contra o presidente da República, comandante supremo; bastará citar a Carta de 1937 para demonstrar que a unidade do Estado não se compadece com a obediência “dentro dos limites da lei”. O texto de 1937 é claro: “As Forças Armadas são (...) organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do presidente da República” (art. 161). A autoridade presidencial, teoricamente, só se exerce nos limites da lei (a menos que ele a viole com o auxílio da força militar).

O desejo de voltarem a ser os intérpretes do limite de sua obediência — condição essencial a que a natureza de “poder soberano” das Forças Armadas possa ser expressa na prática sem coarctação de nenhuma espécie — é a única explicação para que o marechal Eurico Gaspar Dutra, que esteve subordinado “à autoridade do presidente da República”, aceitasse sem nenhuma observação fosse restabelecida em 1946 a tradição republicana: “As Forças Armadas (...) são (...) organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei”. Em 1891 era fácil entender que a força armada era obediente aos seus superiores hierárquicos dentro dos limites da lei. Em 1946, a redação é obscura; O e , que precede o “dentro dos limites da lei” força a pergunta: a que se refere este “dentro”? Note-se que elas “são organizadas... e dentro dos limites da lei”. Não faz sentido completo a frase “sob a autoridade... e dentro dos limites da lei”. Faria pleno sentido esta outra: “organizadas com base na hierarquia e na disciplina e dentro dos limites da lei”? Então, a restrição seria interna corporis: o que explicaria as divisões registradas nas Forças Armadas desde antes do 29 de outubro de 1945, e ajudaria a compreender, tendo igualmente em vista o clima político-militar da época, o Ato Institucional n.° 17, pelo qual a obediência aos superiores hierárquicos não é mais referida aos “limites da lei”, mas ao “princípio do chefe”, de cujo respeito a Junta Militar era muito ciosa.

Nesta linha de raciocínio, caberia registrar que, também do ponto de vista administrativo, as Forças Armadas vão buscando cada vez maior autonomia. Se em 1891 (art. 48 — § 4.°) competia ao presidente da República “administrar o Exército e a Armada e distribuir as respectivas forças, conforme as leis federais e as necessidades do Governo Nacional” (note-se a elasticidade política da expressão “necessidades do GN”), em 1934 a mudança é radical: “Art. 56 — Compete privativamente ao presidente da República: (...) 7.° — exercer a chefia suprema das forças militares da União, administrando-as por intermédio dos órgãos do alto comando”. Neste aspecto, os civis autoritários não conseguiram repetir 1891, já que 1824 não tinha consciência dos problemas de administração: a Carta de 1937 repete a de 1934, neste particular. Em 1946, embora mude a redação (em vez de “órgãos do alto comando” lê-se “órgãos competentes”), o princípio se mantém. Curiosamente, ele desaparece em 1967 e 1969. Observe-se, no entanto, que o que desaparece no período em que as Forças Armadas assumiram as responsabilidades não só da garantia, mas também da tutela do Estado, é toda e qualquer referência ao problema da administração.

As questões fundamentais suscitadas até aqui foram três: o caráter de “instituições nacionais permanentes”, a “obediência dentro dos limites da lei” e as funções, isto é, “defender a Pátria e garantir a ordem e a lei”. O problema da administração é menor, embora relevante. As três questões por assim dizer explodem na Constituição republicana de 1891. É para as circunstâncias político-militares em que se deu a proclamação da República que cabe voltar agora.

V

Será desnecessário insistir na importância que a “Questão Militar” teve no processo da queda do Império. Antes de chegar a ela, pois a análise dos documentos que se produziram no período será fundamental na busca das folhas escondidas na floresta, cabe reportar-nos a 1821, quando o príncipe d. Pedro, regente, se defronta com a primeira sublevação da tropa paga. A palavra com Varnhagen, na História da Independência do Brasil:

“No dia 4 de junho, tendo ido o mesmo príncipe à caça a Santa-Cruz, foi informado da distribuição das proclamações na cidade e de que a divisão se preparava para, em armas, lhe fazer, no dia 5, um requerimento semelhante ao que tinha feito a el-rei, seu pai, em 26 de fevereiro. Julgando poder, com a sua presença, evitar o rompimento, partiu logo no dia 5, às 5 horas da manhã, de São Cristóvão, dirigiu-se ao quartel do batalhão n.° 3, e, chamando o capitão Joaquim Francisco de Sá e Vasconcellos, acusado de principal amotinador, recomendou-lhe que não seguisse distribuindo proclamas nem perturbando o sossego público. É este fato relatado pelo próprio príncipe a el-rei, seu pai, e não foi por certo por passos que deu com feliz inspiração, rebaixando-se a acusar um súdito, quando melhor o podia conter com a lei.

“Regressando ao Paço de São Cristóvão, a fim de assistir ao despacho, foi informado de como o mesmo capitão Sá, logo depois da saída do quartel, mandara tocar a chamada e conduzira o batalhão para o Rocio, e aí estava reunindo os demais corpos da guarnição, todos em armas.

“Informado o príncipe de que a tropa pedia simplesmente a demissão de Jorge de Avilez, mandou o general Caula, secretário dos Negócios da Guerra, responder-lhe que a concedia. Não tardou, porém, a regressar o mesmo Caula, a fim de informar ao príncipe que o próprio Avilez era quem estava à frente das tropas, com propósito de lhe dirigir vários requerimentos. Semelhante recado, trazido ao chefe do Estado nada menos que pelo ministro da Guerra, comprova que ele também estava no conluio, mas não o maliciou o príncipe, generoso e ainda com pouca experiência dos negócios.

“Com esta resposta, montou a cavalo e foi em pessoa para o Rocio. Saíram-lhe ao encontro Avilez e os principais chefes. Perguntou o príncipe, com ênfase: — ‘Quem fala aqui?’ — ‘Eu, pela tropa’, respondeu Avilez. — ‘E que querem?’ — ‘Jurar as bases constitucionais portuguesas’, contestou o general. Replicou o príncipe que não tinha o menor inconveniente de autorizá-los a isto, e unicamente sentia que tivessem posto em dúvida os seus sentimentos constitucionais. Passando então todos à sala do vizinho Teatro de São João, onde se haviam feito os juramentos de 26 de fevereiro precedente, insinuou o príncipe que ele não prestaria o juramento, sem primeiro saber se tal era a vontade do povo, e lembrou para isto que fosse convocada a Câmara e os eleitores dos deputados, não como tais, mas como cidadãos que gozavam da confiança pública.

“O mesmo príncipe, que nessa manhã se havia mostrado demasiado violento, ostentou agora a maior calma e sangue-frio, e ninguém diria que estava assistindo ao rebaixamento da sua autoridade. Quando se instalaram todos na sala, apresentou-se a pedir a palavra o padre José Narciso; e, dizendo que ia falar em nome do povo, perguntou-lhe o príncipe onde estavam as provas da sua missão; lhe respondeu que, se quisesse, dentro de duas horas lhe apresentaria 400 assinaturas. — ‘E eu, retorquiu o príncipe, dentro de dois minutos apresentaria 2.000 em contra’. A isto intervieram alguns oficiais, declarando que, não estando eles habituados a orar, haviam pedido ao padre, que era pregador, que fosse deles o órgão. — ‘Bem, prosseguiu então o príncipe, ouvi-lo-ei da parte dos oficiais e da tropa. Mas devo-lhes advertir que a tropa não é Nação: pertence à Nação; mas, como tropa, nem é admitida a votar nas eleições. Aqui temos a Câmara, que é uma autoridade, poderá com mais direito usar da palavra em nome da Nação, e aqui estão os eleitores por mim convocados, que poderão falar em nome do povo’.

“Sendo-lhe pelo padre, em nome da tropa, pedida a demissão do Conde dos Arcos, perguntou ele: — ‘E quem o há de substituir?’ Respondeu-lhe que a ele competia a nomeação. — ‘Bem; mas quem julgam bom?’ Proferindo em seguida alguns nomes, lembrou-se um oficial de citar o desembargador do Paço, Pedro Alvares Diniz, que era da sua terra. Ao que respondeu logo o príncipe: — ‘Pois será o desembargador Alvares Diniz’.

“Ainda que se achavam já presentes três dos secretários de Estado, faltando só o ministro Conde dos Arcos, que se deu por doente, nenhum deles tomou a si prestar-se a tomar a palavra e a ajudar o príncipe. O Conde da Louzã começou a chorar e a pedir que lhe dessem uma junta, a fim de evitar-lhe a responsabilidade no tesouro, e foi necessário para o calar que o príncipe lhe desse um safanão no braço, perguntando-lhe se tinha perdido a cabeça” (Varnhagen, op. cit., págs. 122/124).

Algum motivo ponderável deve explicar o comportamento do príncipe d. Pedro neste dramático 5 de junho de 1821. A razão da pronta submissão do representante do poder civil à tropa paga sublevada é mais corriqueira do que pode parecer; simplesmente, d. Pedro não tinha meios com que se opor à força armada comandada por Avilez. Chamo a atenção para o sentido heróico da frase com que d. Pedro pretendeu chamar os revoltosos à razão: “... a tropa não é a Nação: pertence à Nação; mas como tropa nem é admitida a votar nas eleições”. A pertença da tropa à Nação não padecia dúvida; o que o príncipe, porém, recusava conceder-lhe era o caráter de intérprete da Nação, quando não o de sua representante única. Insistir em que o príncipe cedeu por não ter meios para opor-se à tropa paga pode parecer ridículo, tal a evidência do fato. Não é, no entanto, pois não se trata do confronto entre dois grupos armados, vencendo o mais forte, ou melhor, cedendo aquele menos armado; estavam em presença o príncipe regente e o comandante da tropa que lhe devia obediência, além de ter a missão de sustentar as instituições régias, das quais d. Pedro era naquele momento representante no Brasil, mas que, apesar disso, depunha e nomeava ministros manu militare.

Da perspectiva sociológica, que é sempre bom ter presente em análises deste tipo, cabe referir as condições morfológicas do País: o centro do poder estava na cidade do Rio de Janeiro; os centros populosos mais próximos, nos quais o chefe do poder civil poderia buscar apoio contra eventuais sublevações, eram Ouro Preto e São Paulo — e, embora não seja especialista, posso imaginar que até que os reforços militares chegassem, dadas as condições das estradas e a precariedade dos meios de locomoção, a partida já estaria decidida em favor dos revoltosos, a menos que o chefe do poder civil recorresse a grupos privados armados, de cidadãos bons ou de libertos armados por não se sabe quem. Qualquer que fosse a solução, o poder civil, dadas as condições da morfologia social, só se poderia manter no Rio se repousasse sobre milícias privadas, empregadas contra a tropa paga, até que chegassem os reforços de Minas e São Paulo. A morfologia criava situação de todo anômala — e colocava o Estado, na pessoa de seu chefe ou representante legal e constitucional, à discrição da tropa, que o apoiaria ou se sublevaria contra ele na dependência da vontade dos seus comandantes.

Em outras palavras — e aprofundar o conhecimento das causas desse fato social e político são para outro estudo — o Estado estava à mercê da tropa pela simples e boa razão de que as condições para que se desse a adesão interior da força militar aos valores que sustentavam a Coroa (real até 1822, imperial depois até 1889) não se tinham verificado com a intensidade coletiva e individual necessária. As condições da legitimidade, para dizer a mesma coisa em outros termos, não se haviam dado em 1821. Ousaria afirmar que a legitimidade da Coroa foi meramente formal e aparente durante o Segundo Reinado, o que explica não a sublevação de Deodoro, instigado pelos republicanos e pelos jovens positivistas do Exército — os quais seguramente não tinham motivos de “fé” (Gramsci) para respeitar o Imperador —, mas, sim, a passividade com que a queda do Império foi recebida e se deu a imediata adesão à República por parte de quantos tinham condições de influenciar, dirigir e mudar o processo. Não se deverá perder de vista, numa tentativa ainda que sumária de explicação ou compreensão, que a paz dos 49 anos do Segundo Império não criou, da perspectiva sociológica, as condições fundamentais para que esta legitimidade se afirmasse duradoura e sem fissuras.

Antes de prosseguir, voltando a assunto já tratado, mas que serve para introduzir o que segue, cabe referir, no mesmo Varnhagen, a segunda tentativa de revolta de Avilez, desta vez feita em 12 de janeiro de 1822. O príncipe, prevenindo-se de qualquer perigo para sua família, retira-a do Rio de Janeiro — fato que provoca um mês depois o falecimento de um de seus filhos — e, atentando para a situação geral, acomoda as coisas para eventualmente asilar-se a bordo da fragata inglesa Doris e escreve às Juntas de Minas e São Paulo:

“Acontecendo que a tropa de Portugal pegasse em armas, e igualmente a desta cidade, por mera desconfiança, dei todas as providências possíveis e convencionaram os de Portugal passar para a outra banda do rio, até embarcarem-se para Portugal; e, como por esta medida ficasse a cidade sem tropa necessária para a sua guarnição, e mesmo sem com que se defender, no caso de ser atacada; exijo de vós, que sois seguramente amigo do Brasil, da ordem, da união de ambos os hemisférios e da tranqüilidade pública, me mandeis força armada em quantidade, que, não desfalcando a vossa província, ajude esta e se consiga o fim por mim e por vós tão desejado, e exijo com urgência. Escrita no Palácio Real da Quinta da Boa Vista, às sete horas e meia da noite de 12 de janeiro de 1822. — Príncipe Regente” (grifos meus; op. cit., pág. 153).

O território não marca apenas as relações entre o Executivo e a tropa paga; imprime seu sinal negativo a toda a História do Brasil até hoje; o espaço é tão grande que as ondas dos movimentos populares ou sociais que têm origem em um Estado não conseguem atingir outro vizinho com intensidade suficiente para transformar a união dos dois em vaga que se espraie e avance pelo terceiro e demais lindeiros, para criar uma consciência nacional no que tange a projetos deste ou daquele grupo social. Desde a colônia, desde as primeiras capitanias hereditárias, o Brasil não se constitui como Nação, isto é, como uma população com projeto; o território ocupado limitava a fixação do futuro: este morria onde não havia mais índio a prear ou onde terminava a cana que abastecia o engenho. Não é esta limitação espacial, este apegar das populações ao território onde realizam sua atividade econômica e onde vivem a sua vida que explica por que o projeto de independência da Inconfidência Mineira não foi além de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro? Não é ele, igualmente ele, que explica a limitação espacial dos projetos da Confederação do Equador, ou da revolução de 1817, ou da Farroupilha?

O espaço, sentenciava Freyer, é conditio realiter dos grupos sociais; sem eles, os grupos não existem, mas é por isto mesmo que eles só formulam seu projeto vital de destino abrangendo tão-só o espaço que recobrem. Leiam-se os relatos sobre o que foram os debates nas Cortes Portuguesas, quando da elaboração da Constituição subseqüente à Revolução Liberal de 1820; ali não havia deputados brasileiros, mas apenas paulistas, fluminenses, pernambucanos... É de estranhar, assim, que a legitimidade que cerca o primeiro Imperador seja tão tênue que não resista aos embates da luta entre portugueses e brasileiros — luta para cuja decisão tem papel relevante, mais uma vez, o Exército, que se vangloriará, anos depois, quando tudo parecia esquecido, do papel que teve na renúncia de abril de 1831?

Os 49 anos de paz do Segundo Reinado possivelmente tivessem fornecido a ocasião de criarem-se as condições para que a legitimidade deitasse raízes e tornasse difícil a mudança das instituições; tenha-se em conta, no entanto, que a guerra do Paraguai sangrou fundamente o corpo nacional — seja no grupo de libertos e escravos, seja no de homens livres, pertencentes à aristocracia dominante ou dela dependentes —, mudando mentalidades e pondo em questão os homens, se não as instituições; que a “Questão Religiosa” deve ter deixado seqüelas fundas na alma do povo católico e simples, o qual, ademais, não havia tido tempo de identificar-se com o projeto de destino que a Coroa poderia ter formulado para a Nação brasileira, pois ela, Nação, não podia sentir, vivenciar este projeto como seu pelo fato simples de que cada grupo incluso estava separado do outro pela distância e isolado pelos regionalismos que só fizeram crescer no Segundo Reinado, ainda que sopitados. Acrescente-se a tudo isso, para completar o quadro de quebra do princípio da legitimidade, que a abolição do trabalho escravo se fez em flagrante violação da Constituição. As manifestações populares que cercam a aprovação da Lei Áurea foram fruto do entusiasmo e da sensação de triunfo dos grupos urbanos; as elites rurais que apoiavam o Império na base da legitimidade tradicional, estas se sentiram traídas; traídas pela simples e boa razão de que a Constituição lhes garantia a propriedade dos escravos, da qual foram espoliados sem indenização alguma, tudo para que o Brasil se adaptasse ao ideário humanitário do liberalismo professado, embora não vivenciado, pelas elites. A Carta de 1824, no tocante à propriedade, rezava com efeito: “Art. 179, XXII — É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para determinar a indenização”.

Não ousaria dizer, dadas as condições determinadas pela morfologia, ou pelo que se pode chamar de as servidões da infra-estrutura; pela Questão Religiosa e pela quebra de confiança da aristocracia na Coroa que violava, em nome de valores morais, a Constituição que lhes assegurava a propriedade do escravo, que a legitimidade do Império tinha condições de permanecer íntegra; não o diria sobretudo quando a propaganda republicana, exercendo-se em todos os meios — e não cuidando os republicanos de estabelecer nenhuma distinção entre escravocratas e defensores do trabalho livre —, abalava ainda mais a crença, que só seria eficaz se tivesse componente religioso (diria Ortega), no poder legítimo do Imperador. O princípio da legitimidade foi-se quebrantando ao longo dos anos; ora, trincando-se o vaso sagrado ao nível da sociedade, nada mais normal que o mesmo fato acontecesse dentro do Exército.

Da perspectiva teórica, muito mais importante do que os cidadãos conservarem seu apego às formas de legitimação (tradicional, carismática ou racional-legal na classificação de Weber) é o aparelho burocrático, o chamado quadro administrativo, manter-se fiel ao dominante. Se os dominados discrepam, o quadro administrativo aí está para fazê-los voltar ao bom caminho traçado pela legalidade formal; quando o quadro administrativo já não mais confia, melhor dizendo, mais não crê nos princípios abstratos, metajurídicos sobre os quais assenta a legitimidade do poder, este está condenado a desaparecer. À rebelião do quadro administrativo contra o dominante só se pode opor o levante dos dominados ou dos dependentes do poder em favor do dominante; era o que d. Pedro I exigia que as Juntas de Minas e São Paulo fizessem em defesa do poder civil contra a sublevação de Avilez.

No confronto final entre o Exército e a Coroa não havia por que as elites defenderem esta última, que tinha encarcerado os bispos (verdade que com o apoio da Câmara) e apressado o fim da questão servil, rompendo, unilateralmente, o pacto constitutivo do Império com o Partido da Ordem brasileiro do fim do século XIX, cujo lema era, como tinha sido o do seu congênere francês de 1830 a 1871, “Família, Propriedade, Religião, Ordem”. Era apenas natural que, sublevado o Exército — ademais trabalhado intelectualmente pelos filósofos positivistas —, a Coroa não tivesse quem a defendesse, dispondo-se a jogar a vida para sustentar o Império. A hegemonia, a 15 de novembro de 1889, há muito que saíra das mãos da Coroa e passara para aqueles que pareciam responder aos apelos do destino determinado pelo espaço chico das Províncias. Estas nada mais eram do que as primitivas capitanias, que tinham formulado há séculos seus projetos de destino, tão acanhados quanto o espaço em que se vivenciava a experiência de suas elites na troca social restrita e não criadora com os setores libertos e com os escravos. Quem respondeu a estes apelos, naquele momento, foi o Exército, inspirado pelos positivistas.

O Exército respondeu aos apelos dos privatismos e depois teve de lutar para impedir a transformação do Brasil em um mosaico de patrias-chicas. Os projetos de destino formulados no espaço acanhado em que as elites regionais continuaram a apoiar sua visão de futuro, em uma espécie de reprodução das experiências de Colônia e do Primeiro e Segundo Reinado, acabaram criando as condições para que o Exército se tornasse o “poder soberano”. Não foi fácil o caminho trilhado de 1821 a 1889; está cheio de humilhação não percebida como tal, de heroísmos individuais e coletivos, de preterições da força militar de linha — até que a consciência disso tudo brota do turvo na “Questão Militar”. Daí à República, percorrendo que seja ínvios caminhos, é uma marcha ininterrupta.

VI

Nada melhor para compreender como o Exército pode encarar as relações entre o Estado e a força armada do que o relato que o general Góes Monteiro faz da reação sua e de alguns companheiros do Exército à aprovação da emenda constitucional n.° 2 à Constituição de 1934, pouco depois da Intentona de 1935. A Carta Magna rezava em seu artigo 165, § 1.°: “O oficial das Forças Armadas só perderá o seu posto e patente por condenação, passada em julgado, a pena restritiva de liberdade por tempo superior a dois anos, ou quando, por tribunal militar competente e de caráter permanente, for nos casos especificados em lei declarado indigno do oficialato ou com ele incompatível. No primeiro caso, poderá o tribunal, atendendo à natureza e às circunstâncias do delito e à fé de ofício do acusado, decidir que seja ele reformado com as vantagens de seu posto”.

A emenda, que dizia? Taxativamente, o seguinte: “Perderá patente e posto, por decreto do Poder Executivo, sem prejuízo de outras penalidades e ressalvados os efeitos da decisão judicial que no caso couber, o oficial da ativa, da reserva ou reformado que praticar ato ou participar de movimento subversivo das instituições políticas e sociais” (grifos meus).

Dê-se a palavra ao general Góes, para saber-se como, depois da Intentona, o governo Vargas pretendeu encaminhar a solução da questão que se colocara para as instituições:

“O general João Gomes, julgando que a lei não permitia uma punição rápida para os rebeldes, dando ensejo e incentivo a novas perturbações, reuniu os generais no Rio de Janeiro a fim de ouvi-los sobre as medidas que desejava fossem adotadas para abreviar a punição. Os generais deram-lhe franco apoio, mas um deles, o general Pantaleão Teles, solicitou o conhecimento prévio destas medidas, pois não queria votar no escuro. Houve discussões, desentendimentos, e o general João Gomes resolveu que cada um justificasse por escrito o seu voto, o que está registrado no Ministério da Guerra. Escrevi um voto incisivo e longo, declarando francamente que era necessário reformar a Constituição, que não julgava apropriada às condições do nosso País. Depois disso, o general João Gomes e o ministro Rao reuniram os líderes das bancadas do Congresso para apresentar emendas à Constituição então em vigor. Foram as famosas emendas n.°s l e 2, a que o senhor se referiu há pouco, contra as classes armadas. Significavam que, por terem cumprido o seu dever, os militares, em retribuição, recebiam uma espécie de castigo. Era um absurdo. Todavia, foram as referidas emendas aprovadas pelo Congresso. Mas, no começo de 1936, os srs. Eduardo Gomes, Oswaldo Cordeiro de Faria, Tasso Tinoco e outros oficiais, antigos “Tenentes”, procuram-me a fim de protestar contra aquelas emendas constitucionais, alcançadas sob pressão, pois muitos deputados e senadores votaram contra, entre eles o líder da minoria, sr. João Neves da Fontoura. Pedi aos oficiais referidos calma e prudência no caso: eu também, que fora o chefe militar da revolução de 30, me sentia atingido muito de perto por essa iniqüidade imposta às Forças Armadas, depois delas terem dado provas tão cabais no seu devotamento ao governo e às instituições. Mas a maldita política era capaz de arrastar o País aos maiores descalabros. Propus-me entender-me pessoalmente com o presidente da República, com os ministros militares e congressistas, a fim de obter a derrogação das emendas. E assim o fiz. Depois, escrevi um memorial fundamentado para justificar o ponto de vista dos militares, mas este não passou de letra morta” (in Coutinho, Lourival, O general Góes Depõe. Livraria Editora Coelho Branco, Rio de Janeiro, 1956, págs. 274/275).

A posição do intelectual do partido fardado, como chamei o general Góes Monteiro em outros escritos, é clara: o Poder Executivo não tem ou não pode ter poderes para punir, à sua discrição, oficiais das Forças Armadas; a elas cabe resolver seus problemas de acordo com suas normas internas e sua visão das coisas. Em outras palavras, o expurgo dos sublevados não poderia ser feito pelo governo, mas deveria ser realizado pelos tribunais militares — donde se segue que à corporação cabe julgar seus membros de acordo com seu direito.

Na realidade, o general Góes resume a perspectiva em que as Forças Armadas, mais especialmente o Exército, se vêem a si próprias e à sua relação com o Estado; se não transparece desta posição que as Forças Armadas se consideram o “poder soberano”, fica claro dela, contudo, que o chefe militar da revolução de 1930 considerava o governo uma coisa, e as Forças Armadas outra. Ora, como no regime presidencialista governo e Estado se confundem na pessoa de seus chefes, segue-se que as Forças Armadas se diferenciam do Estado a que, no entanto, deveriam servir; diferenciam-se, repito, porque não admitem que suas questões internas sejam resolvidas ao nível político estatal, devendo sê-lo interna corporis como convém a todo estamento que pauta sua conduta pela noção de honra e não pela ligação legal estabelecida entre o Estado (ou seu núcleo de poder) e o quadro administrativo. Mais grave ainda se torna a revolta íntima de Góes Monteiro, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias e Tasso Tinoco, quando a Intentona não fora um movimento dirigido contra apenas o Exército, ou esta ou aquela política do governo, mas contra as próprias instituições constitucionais, a cuja defesa o Exército estava obrigado pela Constituição de 1934.

A diferenciação entre o Exército e o Estado explicita-se com as palavras de Góes Monteiro; a consciência dela brotara da realidade, porém, bem mais cedo. Devidamente pesado o texto de Varnhagen citado mais atrás, pode dizer-se que a separação entre o Estado e o “poder soberano” começa a dar-se em 1821. Para os efeitos da análise, contudo, talvez pudesse situar como ponto de partida a Questão Militar, momento político da consciência corporativa, durante o qual não apenas os militares, por seus chefes ou seus intelectuais, têm ciência do que se trata e do quanto se distinguem do Estado, mas também os civis se dão conta de que estão na presença de dois entes políticos. De propósito sublinho entes políticos, pois é disto que se trata quando se discutem as relações entre o Exército e a Coroa. Ia aceso o debate entre Pelotas, porta-voz dos militares em estado de quase-sublevação, e Cotegipe, presidente do Conselho, quando Saraiva intervém. Na versão que Tobias Monteiro nos dá deste debate em Pesquisas e Depoimentos para a História (Editora Itatiaia-Edusp, 1982), não ficam dúvidas quanto a estar-se diante de dois corpos sociais distintos em oposição: “Lendo pois os anais, sente-se que a atmosfera no Senado era opressiva. Foi então que se levantou Saraiva e disse que, apesar de ter evitado sempre discutir a questão militar, vinha perguntar se não haveria um meio de conciliar o governo e o Exército e concitou Cotegipe e Pelotas, bem como seus amigos, a procurarem uma solução para crise tão assustadora” (pág. 77). “Conciliar o governo e o Exército” — não se tratava, assim, de submeter o Exército à discrição do governo, isto é, da Coroa, que era contra a qual de fato a força de terra, que deveria ser “essencialmente obediente”, se estava sublevando, mas antes de harmonizar as partes em litígio. Implicitamente reconhecia-se, ao arrepio da teoria constitucional, que havia um ente de direito chamado Estado e um outro, de força, chamado Exército.

Bem pesadas as coisas, Saraiva apenas traduzia o ânimo do Exército, o qual se expressara numa das cartas que Deodoro dirigira a d. Pedro II por ocasião da memorável crise precursora da República. Na missiva de 3 de fevereiro de 1887, Deodoro havia declarado ao Imperador: “V. M. Imperial em sua alta justiça concordou com o parecer do venerando tribunal, e mandou executá-lo em data de 3 de novembro do ano passado; mas até hoje, senhor, o Exército e a Nação esperam esta Execução” (apud Bonavides e Amaral Vieira, Textos Políticos da História do Brasil. Imprensa Universitária do Ceará, s. d., pag. 778, grifos meus). Esta é a questão fundamental: o Exército, enquanto corporação com sua Lebensfuehrung, distinta daquela do Estado a que serve (conduta de vida, ou no dizer de Gramsci, “modo de vida, de pensar e de agir”), já em 1887 se vê separado do Estado — para não dizer da Nação — e com mais razão apto a afirmar sua Lebensanschauung (visão da vida). Não se trata de afirmar que o que separa o Exército das outras corporações estatais (a burocracia civil, ou a classe política, por exemplo) é uma “visão do mundo”, uma Weltanschauung. Sem dúvida, a maneira de Deodoro ver o mundo é diferente da de Cotegipe, para ficar nos personagens referidos; afora, porém, este prisma pelo qual se recolhem percepções das coisas e que até certo ponto condiciona ou permeia as condutas, há normas de agir, pensar e sentir que estruturam personalidades e estabelecem parâmetros, que por sua vez influenciarão o ato de ver o mundo. Como hipótese de trabalho, assinalaria que ao finalizar a “Questão Militar” o Exército já se vê como corporação distinta do Estado e de suas corporações civis (o funcionalismo em geral), e também separado (embora não diferente, distinto) da Nação. Em 1821, ele agira como ente diverso, em 1887 ele se sabe diferente. Note-se que o Exército tem ciência do risco que corre ao distanciar-se da Nação: o de perder as bases sobre as quais constrói sua existência. É por isto que no manifesto que publicam a 14 de maio de 1887 Pelotas e Deodoro fazem questão (ainda que pela pena de Ruy Barbosa) de proclamar que “as tradições livres da Nação encontrarão sempre no Exército um baluarte inexpugnável e em cada peito de soldado uma alma de cidadão”. Este reconhecimento da ligação entre o Exército e os cidadãos não os impedira de afirmar linhas atrás, sabedores de ser a tropa o “poder soberano”, que a “consciência pública tem certeza de que o Exército brasileiro é a mais estável segurança da paz, da legalidade, da organização civil do Estado” (apud Bonavides, op. cit., pág. 782, grifos meus). Note-se que o Exército não se considera parte subordinada do Estado como estabelecido na Constituição imperial; ele se vê como garante não só do Estado, mas também do Direito Público. O garante, desnecessário reafirmá-lo, não é subordinado de quem defende; é juridicamente igual. É a partir desta posição de garante que o Exército irá intervir para assegurar a execução de medidas gerais prescritas pela Constituição, julgando que sua não execução poderá lesar seus direitos ou de seus oficiais. Não é o que está dito por Pelotas e Deodoro no mesmo manifesto: “Princípios tais, inauditos até agora, fariam da boa fama dos oficiais brasileiros propriedade do governo (...) Mas a jurisprudência do governo exclui da lei o Exército....”? (idem, ibidem, grifos meus). Mais do que isto, todavia: os dois venerandos combatentes do Paraguai, no calor da refrega para limpar à fé de ofício de oficiais que consideravam inocentes, fazem do Exército a condição mesma da existência da Pátria: “Sob tais teorias jurídicas não há Exército nem pode haver Pátria; porque a primeira condição da Pátria é o pundonor dos defensores profissionais de sua honra” (idem, ibidem).

Esse sentimento de distinção não surgiu do nada; para que se o apreenda em sua origem e nas conseqüências de sua dinâmica evolutiva, é preciso reter que a atitude do Exército (pois é ele que fala nas crises do Império) só pode ser vista à luz do fato de que as Forças Armadas, já no Segundo Reinado, são uma corporação, neste sentido de que sua organização produz no interior do grupo uma unidade de vontade e de potência que é expressa pelas autoridades que a própria organização define e cujos limites de atuação estabelece. Ao contrário das outras corporações do Estado, as Forças Armadas têm a caracterizá-las o fato de a Lebensanschauung que constróem ser produto de um que-fazer cotidiano em que as relações pessoais são estreitas a um tempo pela regulamentação corporativa e pela necessidade de desempenhar corretamente a função. Se o funcionalismo civil tem relações pessoais regulamentadas corporativamente, cabe ver que elas não são estreitas (um sociólogo diria “simpáticas”), como na corporação militar, nem esta coesão se impõe a cada um pela necessidade, consciente, de bem desempenhar a função como condição inclusive de sobrevivência. Na verdade, o que distingue fundamentalmente as Forças Armadas das demais corporações do Estado é a circunstância de em si a organização militar ser unificante; a organização dos funcionários públicos civis não o é. Esta é a razão pela qual os funcionários civis têm um tipo psicológico especial, mas nunca terão esprit de corps. Isto é assim porque podem desempenhar sua função sem que haja necessidade de uma abertura maior da consciência de cada um à de cada um e à de todos; eles se igualam ou se assemelham como tipo, mas não se consideram unidos pela mesma organização. Ora, a organização militar, repito, unifica condutas e personalidades; cria uma pessoa coletiva especial e distinta das demais pessoas coletivas que o Estado moderno cria, a começar por ele próprio.

Se a força armada se distingue das demais corporações pelo próprio fato de existir, que dizer do fosso que a separa das demais organizações civis de uma maneira geral, as quais não se constituem como corporações, mas sim como associações? Por isto, dificilmente se poderia dizer que no decorrer de sua ação social eles criam uma pessoa coletiva igual à das corporações civis ou militares. A estes aspectos, acrescentar-se-ia outro: as Forças Armadas, mais do que as associações civis, pautam sua conduta por princípios não vivenciados no lá fora, mas no aqui dentro; mais do que em considerações racionais-legais, em motivos dir-se-iam fundados numa concepção medieval de honra. Se estas observações são corretas, compreender-se-á que a separação entre a força armada e a sociedade, entre o Exército e a Nação (para nos situarmos no clima da “Questão Militar”) existe pela natureza mesma das coisas, e entender-se-á, também, como esta separação pode transformar-se facilmente em distinção, diferenciação, bastando para tal que a corporação militar se sinta marginalizada pela sociedade da qual seus membros procedem, e que esta marginalização seja acompanhada por discriminação política, real ou imaginária.

VII

Se não se quiser dar guarida às observações de Nelson Werneck Sodré sobre as relações entre a sociedade brasileira e o Exército no Império até a guerra do Paraguai, basta ler o que historiadores civis escreveram sobre a desconfiança com que a sociedade via o serviço militar para compreender o que pretendo significar quando me refiro à marginalização social da corporação militar. É importante, porém, apesar de eventuais restrições, citar Werneck Sodré; é que suas palavras traduzem a realidade sentida pelo militar do século XIX e exprimem este sentimento de forma candente: “Enquanto, no Exército, o acesso ao oficialato de mulatos e de negros, particularmente depois da guerra com o Paraguai, passará a ser normal e comum.

“Esse traço de aparente tolerância refletia apenas a desestima pelo Exército: a Nação não se reconhecia nele, não se via nele representada, mas sim na Marinha. (...) A desestima pelo Exército se verificava ainda no fato de lhe serem entregues funções policiais: tais funções, que tendem a avultar com o tempo, estão presentes no pensamento dos reformadores, a cada inovação nas instituições militares terrestres. (...) A sociedade do período áureo do Império, entretanto, não concede ao militar nenhum lugar de destaque. Sua importância individual ou de classe é reduzida. Daí ser comum que as tropas permanecessem longos meses à mercê da sorte, sem perceber vencimentos, fardamento ou quaisquer recursos. (...) A caserna continuava a ser (...) uma espécie de castigo” (História Militar do Brasil, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, págs. 134 e segs.).

Exagero? Leia-se, então, Lyra Tavares, no outro lado do espectro ideológico, e que apesar desse fato não consegue disfarçar a condição de inferioridade em que o Exército vivia e na qual se via no Império:

“Desde que o Brasil se tornou independente, para não remontar ao período colonial, o processo de afirmação da nacionalidade teve no Exército um fator fundamental de aglutinação, de aproveitamento e de valorização do elemento brasileiro (...) A insuficiência dos efetivos do Exército era suprida, de início, por organizações de caráter paramilitar, muitas delas surgidas, nas próprias lutas da Independência, das mais diversas origens.

“Tal foi o caso da Guarda Cívica, de São Paulo, sob a denominação de ‘Sustentáculo da Independência do Brasil’, e dos Corpos baianos, de ‘Jagunços’ e ‘Couraças’, integrados por humildes sertanejos, com fardamentos exóticos, improvisados, e armamento rudimentar, além dos ‘Libertos de Ouro Preto’, dos ‘Libertos de Paracatu’, dos ‘Pardos de Icó’, da ‘Artilharia dos Henriques da Corte’, etc., que a Lei Imperial de 1824, ao estabelecer a primeira organização do Exército, classificou como tropa de 2a. linha.

“Contribuía, também, para isso o temor do serviço militar, a cujo ônus procurava o cidadão escapar, por todos os meios. Era considerável o número de refratários.

“Os oficiais recebiam 4 mil réis por soldado recrutado, de acordo com decreto de outubro de 1837, podendo, os que não desejassem servir, isentar-se mediante a entrega de um escravo ou o pagamento de pesada contribuição em dinheiro. (...)

“Ao passo que a tropa era o estuário natural dos homens de baixa condição, o refúgio dos desamparados da sorte e o castigo dos filhos indisciplinados, as honras do oficialato atraíam o desejo de subir dos jovens sem recursos, servindo, também, de caminho mais acessível para os que, no interior do País, tinham aspirações de carreira e de estudo. A estes, o Exército servia de trampolim barato e acessível entre a província e a corte” (“O Exército e a valorização do homem” in Nosso Exército, Essa Grande Escola, Biblioteca do Exército, Rio de Janeiro, 1985, págs. 186/7).

Tal situação de marginalização em que a sociedade coloca a tropa e em que a tropa se vê antes da guerra do Paraguai, e depois dela — o intermédio do conflito possivelmente tendo servido para vencer barreiras, mas também para acentuar o processo de distanciamento do Exército do Parlamento e da classe política —, esta situação, repito, faz que a força de terra reclame para si os direitos próprios dos cidadãos e ao mesmo tempo, sendo como de fato é uma corporação, coloque-se acima da lei e da cidadania para fazer valer princípios seus, que, insisto, são fundados no que se poderia chamar não de uma razão legal, mas antes estamental. Se Pelotas e Deodoro, no manifesto ao Imperador, citado atrás, reiteram não poder pactuar com o vilipêndio de uma posição que lhes retira a condição de “cidadãos armados, para não nos deixar mais que a subserviência de janízaros”, é o mesmo Pelotas, contudo, quem no calor do debate parlamentar coloca o panache da classe militar acima de qualquer outra consideração. Volto a citar Tobias Monteiro em Pesquisas e Depoimentos...: “O sr. Barros Barreto, senador por Pernambuco, ajuntou com bom senso que sim, ‘se as leis o permitissem’, e Pelotas respondeu: ‘Eu não digo que as nossas leis o permitam; estou dizendo ao nobre ministro da Guerra o que eu entendo que deve fazer um militar, quando é ferido em sua honra, e que fique sabendo o nobre senador de Pernambuco que quem está falando assim, assim procederá sem se importar que haja lei que o vede. Eu ponho a minha honra acima de tudo’” (pág. 66).

Nesse afã por situar-se dentro de uma Nação que o enjeita, de buscar transmitir a imagem de defensor das leis que a constituem, ao mesmo tempo que colocando a honra e o pundonor da classe acima da lei reguladora da cidadania, de cujos benefícios não desejam ser privados no que lhes diz respeito individualmente, já que são “cidadãos armados”, os militares vão encontrar dois grandes adversários externos, no combate aos quais buscarão afirmar-se corporativamente: um, a classe política; outro, a Guarda Nacional. No decorrer da “Questão Militar”, são diversos os pronunciamentos militares em que se contrapõem o desejo do governo de punir os militares acusados de indisciplina e a situação de irresponsabilidade penal de que desfrutam os deputados e senadores. Cunha Matos, um dos que deu origem à grave crise, escrevia em artigos publicados na imprensa da época “não estar resolvido a levantar os insultos que da tribuna irresponsável lhe dirigiu o sr. deputado Coelho de Resende...” (Tobias Monteiro, op. cit., pág. 65). E o próprio Deodoro, em carta ao Imperador, afirmava: “No Parlamento, que representa a Nação, rejubilavam-se, e quase sem imputação, pela irresponsabilidade de que gozam, apraziam-se em molestar e insultar os militares!”. É o mesmo Deodoro, ainda no comando da praça gaúcha, quem, a 6 de outubro de 1886, escrevera a Cotegipe: “Se a sorte determinar o rebaixamento da classe militar, no dia em que eu desconfiar que na frente de soldados não passarei de um comandante superior da guarda nacional, especial e simples vulto político, quebrarei a minha espada e, envergonhado, irei procurar, como meio de vida, e a exemplo de muitos, uma cadeira de deputado para também poder insultar a quem quer que seja” (apud Fialho, Anfriso, História da Fundação da República no Brasil. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1983, pág. 41).

A esse sentimento cabe acrescentar outro, que transparece de documento de teor mais sério, traduzindo desta vez não apenas restrições à classe política, mas ao conjunto da atividade política desenvolvida pelo governo. A carta de Floriano Peixoto ao tenente-coronel e depois general João Soares Neiva, em 1889, meses antes da proclamação da República, ilustra a propensão salvacionista que inspira a corporação; é que ela, alicerçando sua vida na honra, pode colocar-se acima das contingências da vida humana: “10 de julho de 1889 — João Neiva — com tua última recebi a cautela da cruz (...) Vi a solução da questão da classe excedeu sem dúvida a expectativa de todos. Fato único, que comprova exuberantemente a podridão que vai por este pobre País e, portanto, necessidade da ditadura militar para expurgá-la. Como liberal, que sou, não posso querer para meu País o governo da espada; mas não há quem desconheça e aí estão os exemplos de que é ele o que sabe purificar o corpo social, que como o nosso está corrompido. O que pensas a respeito?” (apud Tobias Monteiro, op. cit., pág. 62, nota).

A Guarda Nacional, o segundo adversário, para não dizer inimigo, é a bête noire de todo o processo que acaba culminando com a proclamação da República. Nas relações entre a Guarda Nacional e o Exército espelham-se todos os problemas que vimos apontando; é em torno destas relações que se constrói o que talvez se possa dizer ser a primeira “teoria conspirativa” da História do Brasil. Desta teoria, Fialho, conspirador republicano, dá-nos sobejos elementos em seu livro citado, escrito em 1890; dele retiramos alguns trechos mais elucidativos do estado de espírito com que alguns republicanos viam a realidade: “As verdadeiras causas da revolução (a República) acham-se, pois, na política dinástica, na perspectiva de um mau reinado, que estava iminente, e no plano que tinha o último ministério imperial de abater o Exército, que era a única força real do País” (pág. 7). “Era um dos pensamentos capitais da política do imperador submeter ou dominar os brasileiros por meio do desprezo. Era esta também a política de César e Napoleão I. (...) A própria classe militar não devia escapar à ação desta tática política; antes convinha aos interesses da monarquia abater-lhe o orgulho e a nobre altivez, naturais nos países em que ela tem consciência de sua própria dignidade” (pág. 25). “A monarquia sentia que o seu trono já começava a vacilar. Por isto o Imperador, que desde a sua volta da Europa (agosto de 1888) parecia afastado dos negócios públicos, julgou que era chegado o momento de prevenir o golpe que a ameaçava, por meio da realização de um plano longamente meditado. Este plano consistia em abdicar ele inesperadamente a coroa em sua filha, apoiando-se para este fim na guarda nacional, nos corpos de polícia, em uma guarda cívica expressamente criada e na guarda negra.

“Fazia também parte deste plano um conjunto de medidas financeiras destinadas à contentar os fazendeiros, a fim de retirar aos republicanos o ponto de apoio que neles tinham” (pág. 23).

Alucinação conspiratória atribuir ao Imperador o desejo de perpetuar a monarquia (cuja continuidade estava assegurada pela Constituição) mediante renúncia? Talvez fosse. Atente-se, porém, que era uma alucinação coletiva. Na opinião de Fialho, o plano monárquico só se poderia realizar mediante o abater do orgulho e da altivez da classe militar; na opinião de Ruy Barbosa, em longo artigo publicado a 9 de novembro de 1889 no Diário de Notícias, o objetivo do plano era a eliminação do próprio Exército. Este artigo de Ruy Barbosa, segundo Bonavides e Amaral Vieira, teria sido decisivo para desfazer no ânimo de Benjamin Constant as últimas hesitações sobre o início da ação militar que derrubaria a monarquia; ele merece ser transcrito por resumir os enredos políticos e emocionais de que os civis lançavam mão para aliciar os militares para sua empreitada destinada a subverter a Constituição e estabelecer a República e a Federação — talvez a Federação e a República. Depois de ler o artigo de Ruy, fica-se com a impressão de que d. Pedro II era acusado de dois graves crimes: um, pretender transmitir a Coroa a sua filha, casada há muito com o Conde d’Eu; outro, extinguir o Exército. Para este último “crime”, pediria a atenção do leitor; este aspecto da “teoria conspirativa” merece ser retido a fim de que se possa compreender o que veio depois, na Constituição de 1891. O documento de Ruy Barbosa, extenso como foi publicado, elucidativo como muitas das coisas de seu autor, e publicado sob o título “O plano contra a Pátria”, é o seguinte:

“Já ninguém se ilude quanto aos desígnios da empreitada, a cuja execução estamos assistindo. Os atos sucessivos do Ministério da Guerra e do Ministério da Justiça, providencialmente reunidos nas mesmas mãos, em relação ao Exército e à Guarda Nacional não deixam dúvida nenhuma sobre o projeto subterrâneo, que o gabinete acaricia, e cujo desenlace se aproxima rapidamente. A cada canto, no seio de todas as classes, nos círculos de todas as ordens de idéias e interesses, não há quem não reconheça, quem não aponte, quem não discuta a longa trama tortuosa, que se vai desdobrando para um fim evidente; e é mister que a imprensa não abafe o eco do sentimento geral, da apreensão geral, da geral antipatia com que os espíritos mais diversos nas conveniências, nos princípios, nas aspirações se ajustam na reprovação desse enredo e na previsão, mais ou menos clara, das suas conseqüências funestas.

“Uma prevenção malévola incha de maquinações temerárias o ânimo do governo contra o Exército e a Armada. Quanto mais a população se aproxima destas classes, quanto mais com elas simpatiza, quanto mais estreita afinidade se estabelece entre a vida civil e a vida militar, quanto mais a força armada se retempera nas fontes vivas da evolução nacional, tanto mais profunda se acentua, nas influências que hoje dominam e absorvem a Coroa, a desconfiança contra esse elemento de paz, de segurança, de liberdade. Enquanto noutros países a realeza se compraz, se expande e se revê no desenvolvimento dos Exércitos de mar e terra, buscando fazer deles um laço de união indissolúvel entre a Monarquia e a nacionalidade, aqui, nestes últimos tempos, à medida que a obscuridade eterna vai descendo sobre o espírito do Imperador, uma suspeita maligna envesga contra o soldado brasileiro as disposições da camarilha atarefada em preparar a sucessão do Conde d’Eu. Coube ao Partido Liberal a desgraça de achar-se, num período de gravidade suprema como este, sob a direção em homens cuja ambição se ufana de assentar o pedestal da sua glória sobre o aviltamento dos seus concidadãos. Entregaram-no, pois, traído, a essa obra nefasta em benefício das más inspirações do terceiro reinado, cujo empreiteiro-mor compreendeu a vantagem de encapar a orientação dos seus intuitos sob a responsabilidade de um partido ostensivamente consagrado às reformas liberais, persuadindo-se de que a bandeira destas, a sua popularidade, o seu engodo poderiam habilitá-lo a triunfar contra o País, consorciando habilmente a astúcia com a força, mediante a eliminação ob-reptícia do Exército brasileiro.

“Os documentos dessa conjuração aí avultam na história destes últimos meses, harmonicamente entretecidos numa urdidura cuja evidência só não se patenteia aos idiotas. Por sobre a Armada passa o vagalhão do ministro da Marinha, açoitando-a, estalando-a, enlameando-a, atirando-a ao longe, desagregada, rota, esparsa, na expectativa de anular-se-lhe o civismo, e arruinar-se-lhe a solidariedade pela dispersão, pela cizânia, pela instabilidade das posições. Com o Exército uma política insidiosa e tenaz usa alternativamente a corrupção e a violência, empenhadas no mesmo propósito com a mais óbvia harmonia de colaboração. Um a um vão-se-lhe destacando os batalhões para os pontos mais longínquos do Império, enquanto uma contradança incessante transfere os comandantes dos corpos, buscando levar a toda a parte a confusão da incerteza, e desdar sistematicamente os vínculos estabelecidos pela confraternidade militar entre superiores e inferiores, entre soldados e oficiais.

“Ao mesmo passo, contra todos os compromissos do Partido Liberal, sem a menor explicação plausível na situação interior e exterior do País, organiza-se rapidamente, na Corte, a Guarda Nacional. Os banqueiros presenteados pelo Ministério, co-interessados na política mercantil que o absorve, são chamados a comandar os novos batalhões, atropeladamente recrutados, retribuindo ao governo em atividade na consumação deste seu empenho as benesses, com que ele profusamente os mimoseia nas honras heráldicas, nos arranjos bancários, nas empresas industriais. Graças a esta permuta de serviços, o fardamento, o armamento, o municiamento completam-se com uma celeridade inaudita, que não se poderia exceder, se tivéssemos o inimigo devastando-nos a fronteira, e a salvação da nossa integridade territorial pusesse urgentemente em contribuição toda a energia do governo. Este não põe rebuço nas suas preferências pela instituição rediviva, alvo do ridículo geral no dia da sua reaparição e da antipatia pública no rápido curso do seu desenvolvimento. Um oficial que, a 7 de setembro, levantara a espada, na rua do Ouvidor, contra as gargalhadas dos espectadores, teve dias depois numa condecoração o prêmio da façanha. Põe-se timbre em dar à nova milícia armas de excelência superior às da tropa de linha. Encomenda-se-lhe, ao que se diz, artilharia Krupp, à custa dos argentários, que vieram converter a Guarda Nacional em um ramo armado dos bancos. Aceleram-se-lhe violentamente os exercícios. Empregam-se os inválidos em brunir-lhe e assear-lhe o armamento. E, para que nada falte à pompa do seu triunfo, assegura-se que, à míngua de praças adestradas nas suas fileiras, artilheiros de linha, carnavalescamcnte fantasiados em guardas nacionais, figurarão solenemente, a 2 de dezembro, na parada das milícias do príncipe consorte.

“Entanto, o Exército ir-se-á escoando, batalhão a batalhão, até desaparecer da capital do império o último soldado, e ficar o Rio de Janeiro entregue às forças do Conde d’Eu: a polícia, a guarda cívica, a Guarda Nacional.

“Para encobrir as intenções reais da traça inenarravelmente maligna e grávida de perigos, que acabamos de bosquejar, dando-lhe visos de legitimidade, a velhacaria explorada consiste na mais pérfida e caluniosa propaganda contra o bom nome do Exército e da esquadra, maculados pelas intrigas oficiais, cuja senha se cifra em descrever as nossas forças militares como um ninho de revolução e indisciplina. A falsidade é digna da causa a que serve.

“Em apoio dessa atoarda, propalada com insistência, com jeito, com uniformidade sistemática pelos atos do governo, pelas insinuações da sua imprensa, pelas confidências aparentes de seus familiares, não há, em toda a nossa história, um fato, uma circunstância, um vislumbre de prova indiciativa. Percorramos a crônica destes últimos três anos, desde a primeira emergência da questão militar, desde que os seus sintomas iniciais, denunciando os passos de ensaio na luta do governo contra o Exército e Armada, coincidiam com a moléstia do Imperador e a iminência da ascensão de sua filha ao trono. Onde em todo esse largo trato de tempo o menor toque de rebeldia no procedimento dos nossos bravos soldados, dos nossos gloriosos oficiais?

“Começou esse período na situação conservadora, sob o Ministério Cotegipe, em conseqüência de infrações palpáveis do direito militar, cometidas por ele. Na sua resistência circunspecta, respeitosa, cordata contra o abuso, obedeceu o Exército a impulsos condenáveis, desconhecendo a razão e impondo o capricho? Mas a Nação inteira pronunciou-se por ele. Mas o Partido Liberal em peso levantou-se contra o governo, argüindo-o de tirania contra os brios da farda brasileira, exortando-a a não esmorecer no conflito, e fraternizando com ela, nas confabulações particulares, na imprensa, no parlamento. Mas a representação nacional, pelo seu único órgão são e prestigioso, o Senado, reprovou a atitude ministerial. Mas o atual presidente do conselho, o senador Afonso Celso, foi exatamente quem iniciou, naquela câmara, a moção, onde se convidava o gabinete a recuar de um caminho hostil à legalidade. Mas o gabinete mesmo reconheceu o seu erro, retratando-se dele, penitenciando-se publicamente da culpa, e cedendo sem reserva ao Exército o que o Exército reclamava.

“Teve a questão a sua segunda fase no Ministério 10 de março. Mas de onde proveio ela? Do infausto pensamento já então externado pela família imperial, mediante fatos materiais e escandalosos, de criar uma guarda sua contra a Nação, de entrincheirar-se na escória das ruas contra o povo, de semear pelas sarjetas da cidade os primeiros gérmens da guerra civil. E que fez o Exército? Onde sofreu por ele a ordem pública, a segurança da propriedade, a autoridade dos poderes constituídos? Qual foi o dia em que a imprensa o tachou de ameaçar a Nação? Quando é que o jornalismo brasileiro deixou de estar ao seu lado, animando-o, aplaudindo-o, coroando-o?

“Com o Ministério Ouro Preto sobrevém a terceira crise da questão formidável. Mas por quê? Exatamente porque o inaugurador da situação liberal timbra em pautar o seu governo pelo padrão dos abusos, que a sua parcialidade exprobrava, com toda a eloqüência da sua indignação, aos dois gabinetes conservadores. Metendo no seu seio o Barão de Ladário, esse Ministério nasceu com uma bomba no flanco. Esse nome era um programa contra a Marinha. Contra o Exército o Ministério 7 de junho reviveu, desenvolveu, e entretém a colisão por uma série de revoltas formais contra a legalidade e a dignidade militar:

“Pela prisão do tenente Carolino;

“Pela denegação caprichosa do conselho de guerra;

“Pela demissão do coronel Mallet a bem do serviço;

“Pela exoneração insidiosa do general Miranda Reis;

“Pela censura à oficialidade da segunda brigada a propósito da legítima expansão dos seus sentimentos em aplauso de um mestre venerando (Tte.-cel. dr. Benjamin Constant Botelho de Magalhães), cuja palavra o ministro da Guerra escutara em silêncio aquiescente;

“Pela ordem que remove para as fronteiras do Império o tenente Carolino, roubando-lhe as garantias da defesa militar, e entregando a justiça, no Exército, ao arbítrio administrativo;

“Pela segunda tenção transparente nessa reconstituição violenta da Guarda Nacional;

“Pela missão implicitamente confiada a esta no seu armamento em condições superiores ao da força de linha;

“Pela dispersão gradual dos batalhões.

“E como tem resistido, até hoje, o Exército a esses desmandos, a essas prevaricações, a essas crueldades? Simplesmente requerendo o cumprimento da lei e deixando aos órgãos da opinião a discussão dos seus direitos. Não obstante, um sistema de suspeita, de prevenção, de espionagem se estabeleceu contra ele, como se fosse uma Internacional armada, uma maçonaria carbonária, uma arregimentação de desordeiros refolhados, de cuja presença fosse necessário varrer as imediações do trono, para o entregar nos braços das hostes pretorianas, a cuja inconsciência César confia a herança de seu genro.

“Infelizmente para o governo, a população o conhece, discerne claramente os interesses a que ele serve, os projetos que incuba, os instrumentos de que se utiliza. O povo brasileiro sabe a que procedências se vai buscar a nova guarda nacional, evocada com a instantaneidade de um improviso, e não perde, iludido pelo disfarce dos novos figurinos, a fisionomia da desordem, da capangagem, do elemento anárquico, subversivo e irresponsável, meneado, nas eleições, pelos cabecilhas locais. O povo brasileiro não esquece que essa polícia, armada agora à Comblain, para poder medir forças com a tropa de linha, representou sempre o princípio perturbador, a passividade malfazeja, a violência impune nos anais desta cidade, onde, nos dias da questão abolicionista, foi preciso enjaulá-la, certa vez, num quartel, para evitar sangüinosas desforras contra os sentimentos liberais da população fluminense. O povo brasileiro sabe, enfim, que o Exército não personifica senão as grandes tradições da Pátria, na paz e na guerra, e que os que não confiam nele é porque têm razões para desconfiar da Nação.

“Na sua transição para o terceiro reinado a monarquia orleanizada precisa de massas brutas, de forças passivas, para arremessar contra o País, cortando-lhe a evolução natural e levantando, neste continente, uma potência antiamericana, sob a influência dos preconceitos incuráveis das velhas casas reinantes da Europa, expatriadas pela liberdade vitoriosa e trazidas a estas plagas pela nossa má estrela como agoureiras aves de arribação. Mas o Exército, que não se compõe de revolucionários, também não consta de janízaros. Não é áulico nem político. Não pertence à dinastia nem às facções. É nacional, e é constitucional. É a guarda das instituições contra a desordem e contra a tirania. É a soberania da lei armada. É o baluarte das nossas liberdades orgânicas contra as conspirações que as ameaçarem. Forma em torno do direito popular a trincheira impenetrável do heroísmo; e as opiniões, as propagandas, as reivindicações pacíficas expandem-se legalmente à sombra da sua imparcialidade tutelar. Não há de prestar à escravidão política os ombros com que destruiu a escravidão civil. Aqui está por que as prevenções palacianas se voltam hoje contra o Exército, ao mesmo tempo que nele se concentram as esperanças liberais.

“Com o instinto desta missão nacional, com a consciência deste papel patriótico, o Exército não pode, e certamente não há de subscrever a sua própria extinção, e muito menos o aniquilamento pela desonra, pela calúnia, pela ilegalidade, pela prescrição, esta espécie de morte moral, a que parece quererem condená-lo, antes de dissolvê-lo.

“Se o Partido Liberal, pois, não é um rótulo, um disfarce, uma mentira, considere na terrível responsabilidade, em que se vai emaranhando, com a sua submissão implícita às combinações urdidas na política inepta e calamitosa do Visconde de Ouro Preto. Ao próprio gabinete, se ainda lhe restasse ouvido para ouvir o conselho, ou a súplica dos que não negociam com o bem público, ao Ministério mesmo, em nome de todos os deveres que ligam indivíduos e governos à Pátria e à Humanidade, adjuraríamos a fugir esse despenhadeiro, renunciando ao intento de dispersão do Exército e entrega da capital à tríplice guarda do paço.

“Há quase sempre alguma coisa impalpável e misteriosa no seio dos acontecimentos, que conspira contra as conspirações, mesmo quando estas vêm de cima para baixo; e esse elemento do imprevisto bem poderia voltar-se contra os conspiradores de Sua Majestade” (apud Bonavides, op. cit., págs. 801/808).

VIII

O monarca conspira contra o Exército? Contra aquela instituição que “é a soberania da lei armada”? Tudo isso, na pena de Ruy, será mera invenção conspirativa? Se o for, como disse atrás, está-se diante de fenômeno coletivo — e, como tal, persiste e ganha foros de cidade no Exército. Mais do que isto, a ameaça de dissolução do Exército e da Armada, se não assentar em fatos, será a ideologia, no sentido que Mannheim dava à expressão, do golpe de Estado que derruba o Império. Que outra interpretação pode dar-se à “Mensagem dirigida ao Congresso Nacional pelo generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil em 15 de novembro de 1890”, senão esse de visão distorcida da realidade, pois fatos concretos não se aduzem em prova? Leia-se o que o chefe do Governo Provisório afirma à Assembléia Constituinte, transcrito dos Anaes do Congresso Nacional Constituinte:

“Neste último quarto de século as idéias liberais tomaram grande desenvolvimento e não havia como conter a sua força de expansão. A vitória da democracia era tanto mais de esperar-se quanto era certo que todos os antigos centros de resistência monárquica estavam em adiantado estado de dissolução.

“Como força impulsora de toda a máquina política havia a vontade irresponsável do ex-imperador que, tendo diante de si anulados todos os órgãos do governo consagrados pela Constituição, devia sentir muitas vezes o tédio que a onipotência sem contraste acarreta, principalmente quando no fundo das consciências dos que a exercem há a convicção de sua esterilidade para o bem.

“Deste estado de coisas aparentemente tranqüilo e seguro para a monarquia que sentia, entretanto, as vibrações das grandes e indefinidas correntes que trabalhavam como que subterraneamente a alma nacional, nasceu a idéia de um terceiro reinado que a astúcia e a audácia, servidas por ambições sem limites, deviam plantar no solo da Pátria, ainda em vida do segundo.

“Felizmente para a causa democrática havia desaparecido completamente a nefanda instituição do trabalho servil que trazia o senhor e o escravo acorrentados no mesmo grilhão, ao qual se prendiam, por mil dependências diversas, todas as manifestações da vida econômica nacional.

“Quando a monarquia, prelibando a sua renovação em rebento mais vigoroso, supunha, apesar das grandes resistências republicanas que enfrentaram nas urnas os mil meios de corrupção empregados pelos seus agentes, ter, no Exército e Armada nacionais ameaçados, um último reduto a vencer para submeter a alma nacional, que queria o direito de agir livremente qual fora reconhecido ao escravo, encontrou os soldados-cidadãos firmes e resolutos para ampararem também a causa da liberdade civil” (Anaes, vol. I, 15.XI/31 .XII. 1890, Imprensa Nacional, 1891, pág. 3).

Cabe assinalar, igualmente, a referência ao papel que Deodoro julga dever ter sido o das Armas, jamais reconhecido pelo Império: “Cumpria também elevar o nível das duas classes, que sob o longo domínio do extinto Império mais sofreram sem se rebelar, mais esperaram sem se aniquilar, mais sangue derramaram pela liberdade e pela integridade da Pátria, sem que os seus sacrifícios e o seu heroísmo tivessem outra expressão que não fosse a submissão do autômato, obedecendo à força dirigente. Se há glórias no nosso passado, se há uma história que honra a bravura e a coragem humanas, estas pertencem ao Exército e Armada brasileira (sic).

“Ambos sofreram, ambos lutaram, ambos possuem nomes legendários, como os dos mais celebrados capitães, e ambos jamais desempenharam na Pátria papel compatível com os seus grandes destinos e na altura dos serviços impagáveis prestados à causa da ordem e da legalidade” (op. cit., pág. 6). No fundo, à hipótese da marginalização social da corporação, cabe acrescentar um dado: a corporação desejava que o Estado reconhecesse, no plano político, não corporativo, seus méritos cívicos e políticos, quando não os militares.

Aos poucos, começam a aparecer as folhas mortas que se esconderam na floresta: há uma corporação à margem do Estado, que se ressente de não ter da sociedade a consideração de que se julga merecedora e reclama do Estado as honrarias que seus sacrifícios na guerra faziam crer fossem conferidas sem maiores delongas. O cumprimento do dever, quando a corporação convive com um universo social e político que não é feudal nem corporativo, exige reconhecimento público.

Há outras trilhas que devem ser exploradas, no entanto, para que se possa ter a certeza de se haverem esgotado todos os recursos para identificar as folhas mortas deitadas na imensa floresta que se plantou desde o fatal 15 de novembro, que, destruindo o Império e com ele o Poder Moderador, fez que desaparecesse “a chave de toda a organização política” nacional — e gostaria que esse trecho do artigo 98 da Constituição de 1824 fosse lido como se grifado estivera.

Por que se fez mister a República? Porque se pretendeu implantar o Terceiro Reinado ainda em vida de d. Pedro II, que então abdicaria da Coroa. A hipótese conspirativa não pode ser desmentida, pois a conjura republicano-militar (civil-militar) impediu que se fizesse a prova histórica da assertiva. O grave nas teorias conspirativás é que elas se mantêm na medida em que existe, em toda a sua armação, pelo menos um fato verdadeiro. A teoria armou-se, como se viu em Fialho e Ruy Barbosa, em torno da pretensão do Imperador de transferir o reinado a sua filha — o que era perfeitamente legítimo, possível e constitucional. Esta transmissão, diziam os republicanos, só poderia ser feita pela dissolução do Exército e pela mobilização da Guarda Nacional, além de pelo emprego da polícia e da guarda negra, espécie de organização paramilitar composta de negros libertos antes ou depois do 13 de maio de 1888, supostos defensores incondicionais da princesa. O objetivo da trama palaciana não pode ser provado, como disse, pois o “golpe” imperial foi frustrado com o 15 de novembro. Resta examinar, então, os meios que alegadamente seriam empregados pelo gabinete Ouro Preto para dissolver o Exército, ao que parece a única força de resistência ao projetado golpe contra a Pátria. Examiná-los para ver sua aderência à realidade — e alguma deve existir para que o golpe do Terceiro Reinado pudesse ser vendido ao conjunto do Exército.

Retornemos a Ruy: a presença do Barão de Ladário no Ministério Ouro Preto era “um programa contra a Marinha” (nisto parecia consistir toda a ameaça à força de mar). Contra o Exército, o gabinete Ouro Preto cometera os seguintes atos provocadores e tendentes à dissolução:

1. A prisão do tenente Carolino.

Fialho com a palavra: “A segunda provocação do presidente do conselho foi dirigida a um oficial do Exército que estava comandando a guarda do tesouro nacional. A hora em que se deu o conflito, o lugar, o modo e os fatos subseqüentes: tudo contribui para autorizar a crença de que houve premeditação por parte do ministro.

“Foi na tarde desse mesmo dia que se deu entre o presidente do conselho e o comandante da guarda do tesouro um novo conflito. Ao entrar o Visconde no Ministério da Fazenda e não vendo à testa da guarda, que se formava para fazer-lhe as continências do estilo, o oficial comandante, perguntou por ele. Responderam-lhe que o oficial estava no quarto reservado ao comandante da guarda. ‘Diga-lhe que me venha falar no meu gabinete’, ordenou o ministro. Avisado o oficial, dirigiu-se imediatamente ao pavimento superior à presença do ministro, que o recebeu com esta apóstrofe: ‘O sr. estava dormindo!...’ — ‘Desculpe-me v. exa., eu não estava dormindo, achava-me ocupado no gabinete reservado’ — ‘Não senhor’, replicou-lhe o ministro, ‘o senhor estava dormindo, e um oficial não dorme na guarda. Recolha-se preso ao quartel, e já.’

“O oficial desceu a escada em obediência à ordem do ministro, mas dispunha-se primeiramente a mandar aviso desta ocorrência ao oficial superior de dia à praça para ser rendido por outro oficial, quando o ministro, descendo imediatamente depois dele e vendo-o ainda no vestíbulo do edifício, exproba-lhe irritado a demora em recolher-se preso ao quartel. Em vão lhe pondera o oficial que só aguardava a chegada do seu sucessor no comando da guarda para cumprir a ordem de prisão que recebera. O ministro, aproveitando a presença de um capitão que vinha falar-lhe no tesouro, mandou por ele conduzir preso o comandante da guarda, tenente Carolino.

“Quando se medita em todas as circunstâncias que rodearam este incidente, é impossível não admitir que a prisão do comandante da guarda do tesouro foi inventada unicamente para provocar um conflito que envolvesse o general Deodoro e assim fornecesse o desejado ensejo de reformá-lo arbitrariamente, como já o havia tentado o ministro da Guerra da primeira questão militar. O próprio Visconde de Ouro Preto confessou em seu manifesto publicado em Lisboa, depois da revolução, que dois dias antes da revolução falara ao seu colega ministro da Guerra da reforma forçada do general Deodoro.

“A prisão do tenente Carolino, nas condições em que foi efetuada, tornou ainda mais intenso o desgosto que já lavrava no Exército contra o governo imperial, e particularmente contra o Conde d’Eu, a cujas inspirações, diziam, obedecia o presidente do conselho” (Fialho, op. cit., pág. 70).

O fato, pois, existiu. De sua gravidade só pode ser testemunha o clima da época.

2. “Pela segunda tensão transparente nessa reconstituição violenta da Guarda Nacional” (cito Ruy).

Não cabe retomar as discussões dos historiadores sobre a Guarda Nacional — se foi tão-só instrumento a serviço das chamadas classes dominantes para manter seu poder contra os setores que nelas não se integravam ou se permitiu, na sua primeira fase (a que vai até a reforma de 1850), ampla mobilidade social e política, pela elegibilidade de boa parte do corpo de oficiais, fato que introduzia numa organização de cunho militar o princípio político da condução de seus efetivos. Registre-se, para os efeitos da análise, que a Guarda Nacional era subordinada e sempre o foi às autoridades civis, governadores de províncias e em última instância ao ministro da Justiça. Este aspecto da subordinação é importante, e para ele Sérgio Buarque de Holanda chama atenção em seu estudo “Do Império à República” (in O Brasil Monárquico, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1972), moscando como nas revoltas do Segundo Reinado que extinguiu, Caxias acumulou sempre as funções de comandante da tropa de linha e de governador das províncias sublevadas a fim de ter legalmente sob seu comando a Guarda Nacional da área. Mostra, igualmente, como a primeira tentativa de fazer Caxias comandante-chefe brasileiro na guerra contra o Paraguai malogrou porque os liberais não quiseram atender à sua exigência de acumular estas funções com as de governador da Província do Rio Grande do Sul — para os liberais, um comandante-chefe conservador ainda se entendia, mas não um governador de partido adversário. Quando Caxias, finalmente, assume o comando, os combates já se davam fora do território nacional, de forma que o emprego da Guarda Nacional não tinha a importância política de meses atrás.

Creio que sobre a Guarda Nacional fala melhor que qualquer historiador, defensor ou crítico da instituição o grande intérprete da Constituição de 1824, que foi José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente, no seu clássico Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, publicado originalmente em 1857 e reeditado pelo Senado Federal em co-edição com a UnB em 1978. É denotativo da mentalidade de Pimenta Bueno, no que deve aliás acompanhar a dos seus pares e membros da coterie dominante, que a análise das Forças Armadas seja feita na Secção do seu tratado, “Das atribuições legislativas da Assembléia Geral”. Examinando uma destas atribuições, que é a de fixar as forças de mar e terra, estende-se o Marquês de São Vicente no estudo na conceituação do que seja Força Pública em geral, para adentrar depois na análise das funções da Guarda Nacional, do Exército de Linha, da polícia e da Marinha Militar. Convém reter o que dizia da Guarda Nacional e do Exército de linha — embora aos homens do mar interesse essa definição que dava da Marinha Militar: “A força marítima tem também uma bela e nobre missão especial, semelhante e muitas vezes associada à do Exército de terra. Ela defende os interesses, os direitos e a segurança do Estado em suas diversas relações marítimas”.

Sobre a Guarda Nacional e o Exército de linha, escrevia Pimenta Bueno:

“102. Guarda Nacional — A Guarda Nacional é a maior força, é a nação que se guarda a si mesma, quando cumpre que ela auxilie as forças policiais, ou de linha, na segurança interior ou exterior do Estado; que defenda a Constituição, reprima os grandes crimes e males da rebelião e guerra civil, que mantenha a unidade da Nação, e restabeleça a ordem e tranqüilidade pública, ou que faça respeitar as fronteiras ou o solo sagrado da Pátria contra a insolência estrangeira. Fora, porém, destas ou outras circunstâncias graves a Guarda Nacional não deve ser chamada ao serviço, por isto mesmo que não é uma força ordinária, e porque sobre ser pesado sem necessidade que o justifique, vai distrair inteligências e braços que se ocupam em serviços produtivos e contrariar todos os princípios econômicos de uma boa administração. É por isto mesmo que a subdivisão da própria Guarda Nacional ativa em simplesmente ativa e móvel, não deixa de ser útil, pois que, quando é indispensável infringir tal regra, os inconvenientes ao menos são menores. A lei orgânica desta milícia cívica é digna de toda a atenção pelas variadas considerações que ela deve atender; a que atualmente vigora é a de 19 de setembro de 1850.

“103. Forças policiais — O serviço da segurança interna demanda forças especiais; ao mesmo tempo que elas não precisam do espírito e perícia militar, quais demanda o exército de linha, exigem hábitos apropriados, vigilância constante e adestrada para a prevenção dos crimes, captura dos delinqüentes, e mesmo experiência e conhecimento das condições dos perturbadores profissionais da tranqüilidade pública.

“Esta força simultaneamente civil e militar tem sua organização particular adaptada a seu fim: ela não deve exceder da fixação necessária, mas não deve ser menor que a precisa. Sua disciplina deve ser firme, é um instrumento da lei e ordem interior, não deve ter outra vontade senão essa, e a de ser fiel às autoridades administrativas judiciárias, debaixo de cujas ordens serve.

“104. Exército de linha — Esta força especial tem por grande e principal missão manter a segurança externa do Estado, repelir ou ir desarmar o inimigo, desafrontar a honra nacional, manter seus direitos nas relações internacionais. É a guarda da soberania exterior, que deve ser enérgica, aguerrida, cheia de perícia militar, de amor da Pátria e de sua glória, pronta a marchar, mantida pura por uma disciplina severa. É força que não se cria em dias; que se compõe de diversas armas, estudos, e habilitações importantes e essenciais.

“O quantum desta força depende de diversas relações do País, como são as suas fronteiras, condições geográficas, seu sistema de defesa, situação de relações internacionais, força dos outros Estados, pontos de guarnição fixa, ou montante dela para avaliar o Exército de manobras disponível; e de outro lado dos recursos que a população e as rendas públicas subministram” (Pimenta Bueno, op. cit, págs. 92/93).

Atente-se para o fato de que a Guarda Nacional é vista como a nação que se guarda a si própria, quando cumpre que ela defenda a Constituição, reprima os grandes crimes e males da rebelião e da guerra civil e que mantenha a unidade da Nação. Era uma força conservadora num meio conservador — nada de extraordinário nisto; o contrário mereceria longos estudos. O Exército de linha era força especial com a grande missão de manter a segurança externa do Estado.

A Guarda Nacional não era permanente, ao contrário do Exército, nem deveria sê-lo para não “distrair inteligências e braços que se ocupam em serviços produtivos”; já o Exército de linha é “força que não se cria em dias (...) deve ser enérgica, aguerrida (...)”. A diferença entre uma e outra força é enorme do ponto de vista tático; uma é permanente, neste sentido de que tem existência constante; outra é a maior força da Nação, mas só se reúne quando a Nação está em perigo e a convoca; num entrechoque entre uma e outra, a desproporção é flagrante em favor do Exército.

O livro de Tobias Monteiro, de cujo concurso me valho em algumas passagens deste artigo, elucida alguns aspectos das acusações feitas a Ouro Preto, porque contém a narrativa de entrevista feita como último presidente do Conselho, 14 anos depois do 15 de novembro. Vale a pena reproduzir algumas passagens desta entrevista, a começar pelo que se refere à nomeação do Barão de Ladário para o Ministério da Marinha. A palavra com o Visconde de Ouro Preto, em 1903:

“Antes de subir a Petrópolis, tinha conversado na Tribuna Liberal com vários amigos e a todos mencionei muitos nomes dos que poderiam constituir o Ministério. (...) A supresa que causou a escolha do sr. Ladário foi devida à circunstância de só lá em cima me ter decidido por ele. O homem de quem primeiro me lembrei foi Saldanha da Gama, apesar de ser então apenas capitão-de-fragata; mas ele estava nos Estados Unidos e, urgindo o tempo, eu não dispunha em Petrópolis de código para telegrafar-lhe; mandei então convidar o sr. Elisário Barbosa, com quem tinha muito boas relações pessoais, e s. exa. recusou, sob o fundamento de que não era homem de tribuna e por isso não poderia ser ministro parlamentar. Quando a sua resposta chegou, pedi inspiração ao almanaque da marinha e decidi-me pelo companheiro que escolhi. É verdade que, tomando essa resolução, me inspirei no estado de indisciplina das classes armadas, a qual já vinha do manifesto Pelotas-Deodoro, chamado ‘manifesto dos dois generais’; do comício militar do Recreio Dramático, presidido pelo general Deodoro; da demissão do chefe de polícia Coelho Bastos, dada a pedido, mas sob evidente pressão militar. (....) Eu sabia que a tarefa com o Exército não seria fácil, explicou-nos o Visconde. Mas não fui imprevidente e procurei cercar-me dos elementos que mais confiança me inspiravam. Tinha em grande conta o general Floriano, que meu irmão, quando ministro da Guerra, promovera a este posto; apreciava muito o general Enéias, em cuja firmeza confiava; aumentei o corpo de polícia com gente escolhida; comecei a organizar a guarda nacional. Todas estas medidas não eram contra o Exército, mas contra o espírito de insubordinação que no meio dele pudesse ressurgir e para reforçar a sua ação na defesa das instituições ameaçadas. O senhor sabe que me atribuíram planos levianos de que nunca cogitei, como fosse o de dissolvê-lo. Tanta simpatia me merecia a carreira das armas que a ela entregara o meu segundo filho, então aluno do Colégio Militar. A retirada, para fora da capital, de um corpo de infantaria, que tanto foi explorada, foi feita sob proposta do general Floriano, por conveniência de serviço” (op. cit., págs. 107 e segs.).

Os fatos que fundamentassem a formulação da hipótese conspirativa — o Imperador pretende abdicar para realizar em vida o Terceiro Reinado —, esses fatos existiram: o corpo de polícia foi aumentado, a Guarda Nacional teve sua organização no Distrito Neutro iniciada no gabinete Ouro Preto, que procedera à remoção de um corpo de Infantaria da Capital. A quarta acusação de Ruy igualmente está fundada nos fatos — criados esses últimos, a remoção da tropa do Rio, por sugestão de Floriano Peixoto, cujo perfil de homem recolhido, à sombra, mas sempre sugerindo os passos fatais de parte do governo, é nítido para quem se debruça sobre os depoimentos sobre o período — não sobre sua atuação em especial. A terceira acusação de Ruy não necessita ser provada verdadeira ou falsa; a História incumbiu-se de demonstrar que de nenhuma eficácia foi o “armamento em condições superiores ao da força de linha” que teria sido confiado à Guarda Nacional — repare-se no “ao que se diz” armada de canhões Krupp; no momento em que essa força maior, defensora das instituições, como queria Pimenta Bueno, deveria ter sido acionada para defender a Constituição, a Guarda Nacional se esfumou na tranqüilidade da baía da Guanabara — e em parte alguma se encontrará referência à tentativa sequer de convocá-la para defender primeiro o gabinete Ouro Preto, depois, quando mudou o humor de Deodoro, o trono que ruiu sem o apoio daqueles que haviam garantido a assunção do menor d. Pedro ao trono em 1840, no que mais tarde foi conhecido como o “golpe da maioridade”. Este, como todos os demais, não teria podido realizar-se sem o concurso da tropa de linha, levada a romper os limites da legalidade constitucional pela visão certa ou errada dos civis.

Como vejo as coisas ao final dramático do 15 de novembro?

Os civis conspiraram para levar o Exército ao golpe final. Seria o caso de verificar — comprovado pelos fatos que a intervenção de 15 de novembro serviu fundamentalmente aos interesses privatistas, que depois se arregimentaram na Federação — se no afã de se ver reconhecido como corporação pelo Estado estabelecido sobre uma razão legal, o Exército não serviu ao desejo de révanche dos fazendeiros do café e outros, que se tinham visto privados de sua propriedade com a abolição dos escravos. Que a conspiração civil foi o motor do ato de vontade que levou os jovens filósofos positivistas do Exército a romper a barreira da legalidade institucional e proclamar a República, este fato não padece dúvida; o engajamento de Ruy Barbosa — o futuro Civilista — no artigo transcrito atrás seria disso prova bastante. Poder-se-ia acrescentar, ainda, a narrativa de Tobias Monteiro, apoiada no depoimento de Francisco Glicério, precisa como estilo, correta como técnica jornalística: “‘Venha já’. Dizia simplesmente assim um telegrama de São Paulo, com a assinatura de Campos Sales e recebido em Campinas pelo sr. Francisco Glicério, poucos dias antes da proclamação da República. (...)

“Sem tempo para chegar à casa, que era afastada da cidade, o sr. Glicério pediu pelo telefone roupa para oito dias e anunciou à esposa uma viagem de interesse profissional talvez a Barra Mansa, querendo justificar com esta hipótese a marcha em direção do Rio. O trem partia para São Paulo. (...)

“A irritação militar tinha chegado ao extremo durante o Ministério Ouro Preto e os homens de ação do partido não hesitavam em aumentá-la, aprofundando por todos os meios as dissensões entre o governo e os oficiais, certos de que só daí a República poderia surgir depressa e segura. (...)

“À hora marcada (no dia 10 ou 11 — talvez depois) chegou o sr. Glicério (para uma reunião em casa de Deodoro). Lá estavam Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo, Benjamin Constant, Sólon, Cantuária e o sr. Barbosa. Iniciou-se a conversa. Benjamin Constant fora autorizado a 9, no Clube Militar, pelos camaradas com quem contava, a decidir qual a solução que os acontecimentos deveriam ter. Deodoro hesitava e havia muito tempo que o conciliábulo prosseguia sem que ele proferisse a palavra definitiva, se encabeçaria ou não o movimento para proclamar a República. Na sua opinião, a questão era simplesmente militar e bastava ao Exército derrubar o Ministério” (Tobias Monteiro, op. cit, págs. 97 e segs., grifos meus).

Ouro Preto suspeita, teme, mas não sabe. Por isto, receando ser surpreendido como outros no passado, busca armar o governo de forças capazes de enfrentar a tropa de linha, além de buscar afastá-la da capital por sugestão de Floriano, já comprometido com a conspiração republicana senão por convicção, por espírito de corpo. É o que resulta, pelo menos, do relato que Fialho faz da conversa do ajudante-geral do Exército com Deodoro no dia 14 de novembro: “;Seu Manoel — disse-lhe familiarmente o prudente general —, eu não julgo que as coisas tenham chegado ao ponto em que você deva recorrer a este extremo. Ainda pode haver um meio de entender-se com o Ministério. Você sabe que eu estou ocupando um cargo de confiança, mas, se eu suspeitasse um só momento que o governo persegue intencionalmente a minha classe, eu daria imediatamente a minha demissão, e o meu lugar seria ao lado de vocês. Não precipitemos as coisas; vamos ver o que se poderá fazer para evitar esta grave resolução. — Em todo o caso você sabe que antes de tudo eu sou soldado e seu companheiro” (Fialho, op. cit., pág. 81). Floriano vai mais longe no aconselhamento a Ouro Preto, além de sugerir a transferência de corpos de tropa. Tobias Monteiro, no relato de sua entrevista com Ouro Preto, em 1903, diz: “Sob os nossos olhos caiu então uma folha de papel, carimbada de vermelho, com uma coroa imperial circundada de um cinto fechado, em cuja lâmina se liam as palavras ‘ajudante-geral do Exército’. A carta é datada de 13-11-89 e o seu primeiro período concebido nestes termos, inclusive o grifo: ‘Exmo. amigo e sr. conselheiro. — A esta hora deve v.exa. ter conhecimento de que tramam algo por aí além; não dê importância tanta quanta seria precisa, confie na lealdade dos chefes, que já estão alerta’” (Tobias Monteiro, op. cit., pág. 110). Afora a missiva de Floriano, Ouro Preto tivera conhecimento de informes sobre a iminência do levante;, não lhes dera importância e caminhou tranqüilo para o desastre. Ouro Preto não tem, pois, informações chegadas pelos canais normais da instituição governamental e militar sobre o que se passa no Exército; não tem — e não pode ter, pois os fatos o confirmaram — tropa da Guarda Nacional para enfrentar a sedição; a polícia muito menos lhe serve, apesar de reforçada; a famosa guarda negra, nem falar.

Os fatos que permitiram lançar no espírito militar a semente da dúvida sobre a disposição de Ouro Preto, com relação ao Exército, agindo em nome da princesa Isabel e do Imperador, estavam à luz do dia; bastou apresentá-los como se no entardecer se estivesse. Esta é a questão: as medidas para impedir que d. Pedro II tivesse o destino de d. Pedro, regente, diante da tropa de Avilez em 1821, foram vistas como providências destinadas a extinguir o Exército. O conhecimento da morfologia e de suas implicações para a vida do Estado foi funesto para Ouro Preto e com ele para a Monarquia. A República se instala por obra e graça de uma conspiração bem urdida, alicerçada em alguns fatos, ampliados por força da incapacidade dos chefes do Exército, especialmente Deodoro — enfermo à época —, de discernir o possível do provável e do desejo dos filósofos positivistas de realizar com o apoio de Deodoro a ditadura republicana.

A teoria conspiratíva que se montou só teve êxito porque existiam na realidade as condições para que se acreditasse que o dia se transformara em crepúsculo por obra da vontade dos homens. Essas condições já referi mais atrás: a corporação que não consegue conviver com um Estado fundado na razão legal; a corporação que quer desse Estado o reconhecimento de seus méritos corporativos e de sua ação na guerra, durante a qual, como assinalava Sérgio Buarque de Holanda, com certeza houve negócios excusos que teriam levado depois Floriano a julgar que apenas o governo da espada poderia, lavando a honra nacional com sangue, pôr termo à corrupção.

A essas razões, há de acrescentar agora outras, igualmente importantes, e que são outras tantas folhas que agora se desejam não ser descobertas na floresta plantada para ocultá-las. A primeira delas é que a teoria de que as Forças Armadas são feitas para garantir a lei e a ordem nasce da conspiração republicano-positivista. A primeira formulação dela talvez tenha sido feita por Benjamin Constant para convencer o velho Deodoro da Fonseca a derrubar o Império. O relato é de Fialho, narrando a seu modo o que parece ter sido a reunião a que se referiu Tobias Monteiro: “Rompeu enfim o silêncio o dr. Benjamin para expor o objeto da reunião, e, mais no intuito de anunciar aos republicanos presentes e ao dr. Ruy Barbosa a resolução já tomada na véspera de mudar-se a forma de governo, do que de obter um assentimento, dirigiu ele ao general Deodoro esta alocução (aliás desnecessária se a resolução já tivesse sido tomada):

“General, disse, a força pública não pode intervir na política interna do País, derrubando e erguendo Ministérios.

“Seria esse um papel sedicioso, incompatível com a lealdade militar e missão natural do Exército.

“Pode, porém, e deve, quando são conspurcadas pela tirania as liberdades públicas, quando são falseadas as garantias constitucionais e o poder constituído se torna um inimigo da Nação, intervir, como libertador da Pátria, para uma transformação política” (Fialho, op. cit., pág. 79).

A fala do dr. Benjamin é a clara tomada de consciência daquela postura corporativa e de garante a que me referi mais atrás; ajuda a entender também o problema da relação militar com sua função: sendo funcionário — pois outra coisa não é à luz da Teoria Constitucional —, pode ser representante da soberania e, mais do que isto, garante dela? Em outras palavras, pode o militar ser um cidadão-armado, diferente dos demais que não são funcionários nem têm armas? O grande passo que se dá na consciência do militar, aceitando a tese de origem dita positivista do cidadão-armado, conduz à certeza de que ele é um cidadão igual aos outros — mas armado. Sei que avanço terreno minado, mas é forçoso nele entrar para buscar no fundo do poço as coisas fundamentais. Não posso furtar-me a transcrever, para elucidar pensamentos, a posição que deputados à Assembléia Constituinte assumiram a respeito dos representantes e dos funcionários públicos — citando Carré de Malberg, Théorie Générale de l'État, Vol. II, Recueil Sirey, Paris, 1922, págs. 265 e segs. (note-se que as referências são da sessão de 10 de agosto de 1791): “Partindo dessas idéias, Barnave na mesma sessão estabeleceu nitidamente a distinção entre o representante e o funcionário: ‘Na ordem e nos limites das funções constitucionais, o que distingue o representante daquele que não é senão simples funcionário público é que ele é encarregado, em certos casos, de querer pela nação, enquanto o simples funcionário não é jamais encarregado senão de agir para ela’. Desta vez — comenta Carré de Malberg — está-se em presença da idéia fundamental a que a Assembléia nacional deveria deter-se para exame, a qual dizia respeito ao alcance preciso da representação no direito público: esta idéia é que o representante quer para a nação. Está aí o elemento essencial da definição do regime representativo. Representar a nação é ter o poder de exercer em seu nome uma vontade, possuindo as mesmas características da vontade nacional, isto é, uma vontade livre e soberana” — que o funcionário não tem. No momento em que a vontade corporativa leva o militar-funcionário a transformar-se em militar-cidadão, e esta mesma vontade corporativa o leva a ver-se o garante da pátria, é apenas natural que o militar — funcionário que é com poderes maiores do que os dos representantes — se julgue com o poder de representar a vontade nacional, além de ter-se na conta de sua organização unificante — tese que Góes Monteiro sustentará nos anos 30 sem nenhum rebuço, como vimos no início deste artigo.

A outra folha que deve acrescentar-se às demais é o medo do Exército de ser dissolvido. Preocupação não de todo infundada, diga-se de passagem e descontado o clima passional em que a teoria conspirativa republicana colocava as coisas. O fim da guerra contra o Paraguai trouxe a desmobilização e mais do que ela a redução dos efetivos; pouco importa se a razão fosse a constante crise financeira do Tesouro Nacional ou a suposição de que se perseguia a tropa que se cobrira de glórias nos campos de batalha, ou o temor de que as Forças Armadas se sentissem tentadas a exercer o poder já que tinham as armas. O fato era a redução. A propósito deste temor, note-se que a coterie dirigente no Império tinha nítida consciência do risco que representava para as instituições uma tropa de primeira linha forte. No seu Direito Público Brasileiro, o Marquês de São Vicente retrata — note-se que escreveu em 1857 — este tipo de preocupação: “Acrescente ainda que a maior ou menor quantidade de forças importa maior ou menor despesa ou sacrifício dos contribuintes, maior ou menor desfalque na produção. Uma força excessiva pode mesmo ser perigosa, ameaçar as instituições e liberdades públicas. (...) A força pública é essencialmente obediente e jamais pode reunir-se sem que lhe seja ordenado por autoridade legítima, Constituição, art. 147. Este preceito fundamental é a base da segurança social, sem ele não seria possível conter uma multidão de homens armados; o Exército seria um grande perigo; cumpre que ele seja puramente passivo, que não delibere, sem isso seria impossível que a força legítima de um homem pudesse prevalecer sobre as idéias de milhares” (op. cit., págs. 95/96).

Nada mais natural — tendo em vista a existência desse clima psicológico criado pelo temor de que a corporação viesse a reclamar seus direitos corporativos — que qualquer gesto do governo para impedir que as idéias de milhares prevalecessem sobre a força legítima de um homem fosse interpretado como tendente a dissolver a tropa de primeira linha. Mais do que as outras, essa folha — o medo de ser dissolvido — foi escondida no meio da floresta que se plantou para escondê-la e às demais. E é ela, é o medo de desaparecer como corporação que governa desde então o comportamento das Forças Armadas, basicamente do Exército.

Deixo para outro artigo, pois esse se faz mais extenso do que pretendia, a análise dos debates que se travaram na Assembléia Constituinte a respeito das Forças Armadas. Cabe lembrar ao leitor, no entanto, que foi em 1891 que a força essencialmente obediente se transformou em instituição nacional permanente — e permanente deve ser entendido no sentido alcançado pelo medo. As Forças Armadas transformam-se em instituição nacional permanente para que não possam ser dissolvidas pelo governo, escravo da Constituição. Depois é que o permanente ganhou latitude histórica e se tornou maior do que a duração do Estado, mutável ao sabor da opinião pública e do humor corporativo da Força Armada.

IX

É preciso concluir, pois foi este o desafio que Política & Estratégia a todos lançou: que papel assinar às Forças Armadas na Constituição? A Constituição não muda a realidade; como Lassale, sustento que a folha de papel só subsiste quando retrata os fatores reais de poder presentes na realidade social. Resumidamente, e tendo em vista o tema proposto, na realidade brasileira distinguem-se: 1. uma sociedade ainda não organizada no sentido europeu da expressão (dois mil anos nos separam, afinal de contas, da Europa ocidental), na qual, portanto, as classes sociais não existem enquanto expressão de organização, e 2. a corporação. O Estado, que deve espelhar em sua Constituição a relação de forças entre as classes sociais, tem ficado sempre ao sabor do humor corporativo, até 1969 trabalhado pelo dos grupos sociais (não das classes, note-se, donde o alcance chico dos projetos dos golpes de Estado). Não cansarei o leitor, escrevendo mais sobre a intervenção militar na política. Aos que têm memória da história lida e vivida, cito algumas datas no período que vai de 1821 a 1969: 1821, 1889, 1893, 1922, 1924, 1930, 1935, 1937, 1945, 1954, 1955 duas vezes, 1956, 1959, 1961, 1962, 1964, 1965, 1968, 1969. Estas datas indicam os momentos em que a corporação opôs-se ao Estado, sublevando-se contra a Constituição escrita, mesmo aquela que ela própria, por seus chefes, impusera.

A questão que se coloca não é simplesmente dizer que a corporação doravante será obediente; por sua natureza interna ela se vê como garante do processo. De um lado, temos a corporação que se apresenta como garante dos princípios de Direito, ainda que violando a Constituição. Por outro, temos o Estado, que depende do “poder soberano” das Forças Armadas para fazer cumprir o disposto na Ordem Jurídica, cuja comunidade o funda e ao mesmo tempo legitima as Forças Armadas como corporação. Tenha-se presente que elas só são vistas como órgão do Estado e só podem arrogar-se a pretensão de ser garantidoras da Ordem e da Lei porque a Ordem Jurídica as criaram não como corporação, mas como braço armado, obediente, do Estado. Elas são o que são na Nação por decorrência da Ordem Jurídica e não de sua maneira de organizar suas atividades e criar seu projeto; se não fora o ordenamento positivo que as regula, seriam tão-só um grupo de pessoas armadas a impor ilegitimamente sua vontade aos cidadãos. O Estado é a razão legal; as Forças Armadas são a razão corporativa. Desde 1821, com maiores ou menores atritos, a razão legal tem procurado sem êxito impor-se à razão corporativa. Trata-se, pois, de tentar resolver o problema da quadratura do círculo, fazendo que ou o Estado se acomode à razão corporativa ou a corporação se paute pela razão legal.

Fazer do Estado uma razão de ser corporativa é impossível — apesar de toda a sociedade brasileira estar caminhando para transformar-se em uma imensa corporação de ofício, dos médicos aos pedicuros, passando pelos jornalistas. O Estado não se pode submeter à razão corporativa pelo simples e bom motivo de que a economia que cimenta as relações sociais é uma economia capitalista (?), não corporativa em todo o caso (apesar da reserva de mercado e dos monopólios de fato e legais), e porque existe no Brasil, ao menos como possibilidade, uma sociedade de classes, a qual se opõe enquanto princípio constitutivo à corporação. As Forças Armadas tentaram diversas vezes — pelo menos em 1889 e em 1969 — ocupar o poder e governar o País como se a sociedade se regesse pelos cânones estamentais (feudais). Malograram e tiveram de retirar-se de cena, sem abandonar, contudo, o teatro de operações. A retirada prova, pelo menos, que a sociedade repeliu seu princípio constitutivo. Deixaram, no entanto, é mister dizê-lo, posições avançadas que lhes permitirão reconquistar a qualquer momento a direção do aparelho de Estado, nem que seja para outro malogro retumbante: as empresas estatais, nas quais deitaram pé com os militares da reserva.

Rejeitada por intrinsicamente impossível a hipótese de converter o Estado e a sociedade à razão corporativa, resta a outra, de submeter a corporação à razão legal. Para tanto, note-se, não basta dizer “nós queremos”. É preciso ter presente que não se apagam 164 anos (isto mesmo, de 1821 a 1985) de existência corporativa com meros textos legais. De pouca importância seria voltar à Constituição de 1824, obra-prima do pensamento liberal, que desejava a Nação em armas e cominava às Forças Armadas, fossem as de terra, fossem as de mar, a tarefa exclusiva de defender a integridade das fronteiras contra o inimigo externo. Muito menos teria condições de êxito restabelecer pura e simplesmente o texto da Carta de 1937, preciso, conciso e que foi direto ao ponto: as Forças Armadas só podem ser empregadas na defesa do Estado, externa e/ou internamente, quando o presidente da República, ao qual são obedientes, decretar o estado de guerra. Concordo com Antônio Carlos Pereira em que o efeito de qualquer dessas soluções seria pedagógico e, internalizando-se nas novas gerações oficiais por obra da Escola, acabaria por restabelecer a supremacia do poder civil. Não mudaria, entretanto, solução desse tipo, a natureza fundamental da corporação — e é nela que se faz mister tocar fundo para que o projeto de destino do Brasil possa realizar-se sem que as Forças Armadas se sintam marginalizadas como em 1887, ou temam ser extintas, como em 1889 e agora, como se pode entrever da defesa que seus chefes fazem da necessidade de manter os textos constitucionais tais como a República legou.

Tendo as Forças Armadas se distinguido do Estado, a solução da crise entre essas duas razões (a legal e a corporativa) faz-se pela incorporação da corporação ao Estado. É inútil tentar fugir à relação de forças: o Estado e as Forças Armadas são dois entes distintos. A solução de supremacia do Poder Civil está em dar ao princípio constitutivo do Estado liberal, que é o princípio político e da representação, prevalecência sobre o princípio constitutivo da corporação, que é o burocrático e do funcionário.

D. Pedro, regente, em 1821, intuiu genialmente a diferença que havia entre ele, representante da legitimidade, e a Assembléia, representante da Nação, por um lado, e a tropa, que falava pela voz de outra instituição burocrática, que era a Igreja: “... a tropa não é a Nação. A tropa pertence à Nação; mas como tropa nem é admitida a votar nas eleições”. Quando o funcionário se transforma em cidadão e não quer aceitar sujeitar-se à sua condição primeira, mas utiliza a de cidadão para impor sua visão de funcionário aos cidadãos, o Estado corre o risco de ver este funcionário arvorar-se em representante da Nação, quando não pretender integrar sua estrutura fundante, seu esqueleto, ser seu organizador. A operação de transformar a razão corporativa em razão legal é complicada; tanto mais quanto já Pimenta Bueno sabia que o Exército não é força que se cria em dias. Em outras palavras, a transformação da razão corporativa em razão legal deve dar-se sem que se quebrem as condições objetivas para que as Forças Armadas possam ser organizadas num Dispositivo Estratégico de Dissuasão (como propus várias vezes), o que lhes dará mais e mais motivos corporativos para exigir ver reconhecido seu papel de garantes da Pátria.

É preciso pegar o touro pelos chifres sob pena de morrer da cornada. Transforme-se o Conselho de Segurança Nacional e transfiram-se suas funções — as de sua secretaria-geral — para o Conselho de Estado, que será a chave da organização política nacional, como era o Poder Moderador que os privatismos tentaram derrogar em 1831 e as Forças Armadas deitaram abaixo em 1889. Nesse Conselho, Poder Neutro como era o Moderador e com poderes de dissolução, representam-se os chefes dos poderes do Estado, mais representantes dos Estados federados; a estes homens devem juntar-se os representantes das Forças Armadas, não por seus chefes, os ministros, que são meros funcionários. Nenhum dos poderes do Estado tem chefes guindados a esta posição pelo Fuehrerprincipz. Todos são eleitos: pelos cidadãos, os chefes dos Poderes Executivos da União e dos Estados; por seus pares, os chefes do Legislativo e do Judiciário. Por isto são poderes políticos e por isto sua razão fundante é a razão legal. Com a corporação as coisas passam-se de maneira diferente: ela é mantida pura por uma disciplina severa, como acentuava o Marquês de São Vicente, pois assim o exige sua missão de guardar a soberania exterior. Para que se representem no Conselho de Estado e cumpram o destino que querem fazer delas desde 1889, as Forças Armadas devem eleger seus representantes no Conselho de Estado. Eleger sim, pois o Conselho de Estado será um poder do Estado, político, portanto. É ao Conselho de Estado que elas, Forças Armadas, serão essencialmente obedientes — e será o Conselho de Estado aquele poder que cuidará da paz e da guerra, além de todas as questões atinentes à salvação pública. É o Conselho de Estado que comandará e administrará as Forças Armadas, designando quem exercerá o mando delas em caso de guerra externa ou interna — isto é, quando houver ameaça grave contra a segurança do Estado, a qual não possa ser conjurada pela tropa de segunda linha.

A corporação poderá continuar revoltando-se contra o Conselho de Estado, da mesma maneira que depôs um Imperador e não sei quantos presidentes. Terá, porém, para fazê-lo, de atravessar duas vezes o Rubicão: uma vez, para romper o juramento de obediência, indispensável de ser feito ao Conselho de Estado e não mais vagamente à Constituição; outra vez, para destronar seus representantes, que elegeu.

Se a questão da função das Forças Armadas se coloca no debate político de hoje em dia é porque a redação dos artigos da Constituição não satisfaz amplos setores políticos e sociais. Vai abaixo minha resposta ao desafio lançado por Política & Estratégia:

Artigo — As Forças Armadas são organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e a fiel obediência ao Conselho de Estado, sob cujo comando e administração são colocadas por mandato imperativo da Nação,

Artigo — Ao Conselho de Estado compete privativamente empregar as Forças Armadas como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Estado.

Artigo — Compete privativamente ao Conselho de Estado exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomeando seus comandantes-chefes, quando elas forem chamadas às armas em defesa interna ou externa da União, e removendo-os quando assim o pedir o serviço da Nação.

Parágrafo único — O Conselho de Estado ratificará ou não a escolha do presidente da República nas promoções ao quadro de oficiais-generais.

Artigo — O Conselho de Estado, ao qual compete zelar pela salvação pública, será integrado pelos antigos presidentes da República, pelo presidente da República no exercício da função, pelos presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal federal; por um governador de Estado eleito por seus pares na representação deles; e por um oficial-general da Marinha de Guerra, um do Exército e um da Aeronáutica Militar, eleitos por seus pares entre os integrantes do corpo de oficiais-generais de cada força singular.

Ficam as idéias gerais. Detalhá-las, para quê?


 

FORÇAS ARMADAS, PARA QUÊ?

 

Se no texto anterior, “As Forças Armadas na Constituição”, procurei situar, historicamente e no campo mais geral da Sociologia Política, as causas da separação entre a corporação militar e o Estado brasileiro, neste, além de apresentar o que se discutiu na Constituinte de 1891 sobre o papel da Armada e do Exército na realidade republicana, cuidarei do clima em que as questões se suscitaram. Debordando o tema, tratarei igualmente de problema palpitante, já discutido em 1891, qual seja, a destinação das Forças Armadas. Em outras palavras, retomando considerações já feitas, buscarei responder à pergunta que formulara 20 anos atrás: “Armas, para quê?”.

 

Em sua injustamente esquecida História Constitucional da República dos Estados Unidos do Brasil, livro, como confessa seu autor, que “é o resultado de uma convicção”, dizia Felisbelo Freire, em 1894: “As classes armadas não podiam isentar-se da ação dos agentes que operaram a democratização do espírito nacional, há longos tempos, dominado pelos defeitos e vícios das velhas instituições. Representando elas uma classe da sociedade, em cujo seio refletia-se a ação desses agentes, não podiam abrir para si uma atmosfera própria, que pudesse resistir contra a sua influência. E, se as classes armadas, agindo como fatores da transformação radical por que passaram as instituições políticas, não encontrassem o terreno em via de preparação, a obra revolucionária seria de efeitos momentâneos e acidentais, não podendo levar a organização política, social e econômica do país à fase a que tem chegado, com os melhores resultados, principalmente para a economia dos Estados” (vol. I, pág. IX).

Em 1895, no volume III da obra, Freire cuidava de estudar o debate sobre a Constituição. São dele estas palavras: “Em assuntos militares, o Congresso não usou do direito de discussão e análise com a liberdade indispensável em face do problema tão importante, como os deveres e direitos da força armada, suas funções, suas relações para com os poderes constituídos.

“Em uma moção do sr. Américo Lobo, já tinha exarado um voto de perene louvor ao Exército e Armada nacionais por terem coroado o ideal nacional com a proclamação da República, dando assim à força pública o papel de um dos principais fatores da evolução democrática do país.

“A influência preponderante do Exército na vida política, como agente transformador das instituições, colocou-o em condições especiais com o prestígio social e político que lhe adveio dos acontecimentos. Ele representava então o poder mais efetivo e de existência real na vida pública do país (grifos meus).

“Além disso, o grande número de militares, com assento no Congresso, não deixou de influir sobre o grau de liberdade de ação do mesmo, em discutir as questões que se prendiam à força armada, não porque deles partisse qualquer coação, e sim porque qualquer discussão assumia a expressão de uma questão de classe, uma questão pessoal. Aí está o excesso de prerrogativa das classes militares nas funções políticas de que não foram privadas pelo Poder Legislativo, no exercício do voto, na restrição de sua obediência aos seus superiores dentro dos limites da lei, além da organização permanente que a Constituição lhe deu.

“Nenhuma dessas atribuições foi inovada pela República.

“Elas existiam no Império, quando quis dele fazer a arma de explorações políticas, restringir a obediência à lei, antes que ao princípio hierárquico. Está nas nossas tradições o princípio da permanência do Exército, que, não obstante ser a espada de Dámocles, como outros dizem, suspensa sobre toda a organização política, é uma condição de força das nações, para não viverem entregues à mercê dos vizinhos e poderem defender, além de sua honra, sua própria independência e existência.” (vol. III, págs. 60/61).

A ser verdadeira a análise de Freire, uma das questões cruciais que anima hoje o debate constitucional em torno da função das Forças Armadas — a obediência dentro da lei — é assunto que remonta ao Império. A rigor, pode dizer-se que toda a chamada Questão militar, em suas diferentes fases, está permeada por cruel dilema: o soldado é homem obediente a seus superiores, sejam quais forem, ou antes de mais nada é cidadão, gozando de todos os direitos da cidadania, e só depois soldado? A doutrina corrente no fim do Império, a qual influenciou sobremaneira a atitude do Exército contra a Monarquia, foi a do cidadão-soldado, como tal politicamente capacitado e constitucionalmente autorizado a discutir pela imprensa tudo que lhe parecesse relevante, inclusive dissentindo de seus superiores, desde que não fossem militares as questões em debate.

Não é apenas Benjamin Constant quem, no afã proselitista, busca romper os quadros do que mais tarde viria a ser o fundamento do ethos burocrático, dando origem ao Führerpricipz; na diligência com que se houveram na conquista do Exército para sua causa, que já reunia os conservadores descontentes com a Coroa em virtude da forma abrupta pela qual se fizera a abolição da escravatura, os republicanos cuidaram de difundir doutrinas, segundo as quais a obediência era devida apenas nos limites da lei — e mais do que todos, Ruy Barbosa, cujo arrependimento não tardou muito, conforme se pode deduzir do texto que Política e Estratégia difundiu (vol. III, n.° 3). O empenho de Ruy lida com o incitamento à desobediência; das páginas do Diário de Notícias, em editoriais cotidianos, demole o Império, a Coroa, o Conde d’Eu e a Princesa Isabel, os gabinetes conservadores e liberal, os áulicos; denuncia a corrupção, a violação da lei. Às vezes, o raciocínio é essencialmente jurídico; outras, ao fundamento do Direito junta-se o cuidado em mostrar ao Exército qual o seu caminho, depois de haver recusado reduzir pela força das armas o quilombo de Cubatão.

Para bem compreender o clima que preside a quase inexistente discussão sobre o artigo 14 da Constituição de 1891, é mister apreender em sua real profundidade o sentido desintegrador da disciplina (interna e com relação ao Poder de Estado) dos argumentos de Ruy no Diário de Notícias. Por isso, creio indispensável transcrever trecho de dois editoriais citados por Felisbelo Freire; um, relativo à demissão do coronel Mallet de comando que exercia no Ceará, a bem do serviço público; outro, acerca da obediência, que só se pode dar dentro dos limites da lei!

A propósito da demissão, a bem do serviço público, do coronel Mallet, escrevia Ruy: “A demissão a bem do serviço público em matéria militar é uma criação administrativa do Ministério Ouro Preto, cuja passagem pela gerência das cousas de guerra deixa subvertida a tradição, a legalidade e a disciplina. (...)

“No exército as comissões perdem-se, ou incorrendo na desconfiança de autoridade superior ou pecando contra as regras do serviço. No primeiro caso, a destituição exprime apenas a retração da confiança pessoal do ministro no seu subordinado, a interrupção da harmonia moral entre o segundo e o primeiro. No outro, corresponde a um erro de ofício, a uma transgressão de obrigações profissionais. Naquela hipótese, por isso, a exoneração é simples e sem nota. Nesta invariavelmente se completa pelo conselho de guerra. É que a lei militar não quis deixar ao arbítrio do poder a faculdade de marear a farda. (...)

“Entretanto, é a isto que sob a administração de um general do Exército se pretende reduzir a nobre condição da força armada. Querem janízaros, querem suíços, querem escravos fardados, querem pretorianos venais; não querem brasileiros, sobre cujas dragonas o sol possa dardejar a pino, sem lhes descobrir o azebre das transações indignas. Não é assim que as pastas técnicas estão zelando o melindre das classes militares?”

Sobre as relações entre a disciplina e a lei, esta era a opinião do redator-chefe do Diário de Notícias:

Tem barreiras insuperáveis a disciplina militar, porque nem do exército nem da armada se pode reclamar obediência absoluta. Essas palavras são de Lieber, o maior dos publicistas americanos, aquele cujas obras os publicistas ingleses elevam acima das de Montesquieu, cujos livros, na apreciação de Holtzendorff, representam o mais alto cume da sabedoria política, e cujas opiniões se invocam, nos tribunais anglo-saxônios, em ambos os continentes como decisões quase oraculares. (...)

“Ora, eis alguns dos limites que Lieber lhe estabelece, em seu tratado de moral política (Polilical Ethics, vol. II, p. 157): ‘Legitima-se a desobediência a ordens superiores... finalmente se elas, apesar de legais na acepção literal da lei, forem ilegais, ante o objeto geral e imutável de toda a lei e de todo governo, a saber: a segurança, a prosperidade e a liberdade do povo’. (...)

“Se a mais eminente de todas as autoridades, o próprio monarca britânico mandar praticar por um oficial contra os cidadãos atos ilegais, vexatórios ou opressivos, responsável é por eles o oficial, na mais plena extensão da palavra, ante a lei do país. Tudo o que se conquistou na árdua e porfiosa luta, que principiou a se manifestar mais assinaladamente sob Carlos I, pode resumir-se em poucas palavras, dizendo que a lei é superior a todos ramos do governo; que não há, em parte nenhuma, no seio do Estado, poderes misteriosos, soberanos e inacessíveis, aos quais toque o privilégio de dispensar da legalidade, ou contrariar-lhe o curso. Nisto se resume toda a liberdade civil. Os regimentos de guerra ingleses e americanos não impõem obediência senão a ordens legais. O juramento dos soldados, no código militar prussiano, termina por estas palavras: Obedecerei por toda a parte as leis de guerra, cuja leitura acabo de ouvir, conduzindo-me sempre, na execução de todos os meus deveres, do modo como convém a um soldado intrépido e dedicado à honra (ehrliebend). Não lhe é lícito, pois, fazer nada contra a sua honra e a sua consciência. (...)

“Todavia, o certo é que todo o compromisso de obediência, sem exceção, inclusive o juramento de obediência militar, é condicional e não pode invocar-se em contradição com os fins supremos de todo o governo, os eternos desígnios da humanidade organizada em Estado. O militar não degenera, pela farda, em instrumento insensível, cego, irracional, absoluto dos seus superiores. Quando lhe será lícito, porém, recorrer a essa faculdade extrema? Não se podem preestabelecer regras; porque essas emergências são extremas, e só ao indivíduo apertado na dificuldade compete resolvê-las. (...)

“Enquanto no espírito houver dúvida, está-lhe bem, ao soldado, submeter-se ao superior, ainda quando malsucedido.

“Mas, desde o momento em que se nos tornar claro que a pátria e o chefe estão em campos opostos, cessa de ter sentido o nome de honra empregado para designar a obediência aos superiores; porquanto não há honra contra direito, e o direito nos impõe pugnarmos pela pátria contra tudo.

“Eis os princípios da verdade constitucional, interpretados pelo maior dos mestres. O exército que não souber observá-los, que os transgredir imprudentemente contra a obediência legítima, ou servilmente contra a liberdade necessária não tem a vocação do seu mandato, nem a inteligência do seu dever. Nós acreditamos que o Exército brasileiro nunca deixará de ser, como tem sido até hoje, escrupulosamente fiel a esses princípios.”

Sobre disciplina militar, aduzia Ruy: “Na disciplina vêm a cegueira da estupidez, a pusilanimidade da inconsciência e a submissão da obediência irracional; quando ela não é senão a docilidade inteligente das almas heróicas ao sentimento do direito que as governa, mediante personificações reconhecidas e incapazes de transgredi-lo. Não querem admitir que a mais disciplinadora de todas as forças do poder é o seu império sobre si mesmo, sobre as suas próprias paixões, sobre os seus próprios interesses, e supõem que a maneabilidade das grandes massas armadas se opera pelo medo, assombrando-as com o espetáculo da grandeza dos crimes da autoridade contra a lei. É que não são estadistas, mas gozadores, sibaritas, para quem o governo se reduz a uma satisfação de apetites. A indisciplina moral, política, social, administrativa, encarnou-se neles, para deles se transmitir ao país e à força armada, envolvendo tudo no contágio da desordem, que desgraçadamente se prepara para complicar a grande comoção renovadora na qual a constituição do império soçobrará talvez toda.

“Tendências disciplinares nunca se teve, em parte nenhuma, em grau mais alto do que entre nós a classe militar. A prova está na cordura com que se vai resignando aos golpes do capricho ministerial. Estamos vendo o incidente da guarda do Tesouro encerrar-se com a denegação do conselho de guerra a um oficial maltratado e enxovalhado, cujas instâncias pela defesa da sua honra se inutilizam ante o não quero pertinaz de uma casaca, que meteu na algibeira das abas a coroa, o cetro e os papos de tucano. É um roubo perpetrado impunemente contra o exército em todos os graus da sua hierarquia. É um confisco geral da dignidade militar, deixada agora a mercê das más paixões e dos cálculos maus dos intrumento do governo” (apud Freire, op. cit, vol. I, págs. 365/8).

Não estranha, criado tal clima de paixão político-ideológica, que as relações entre Ouro Preto e o Exército tenham caminhado para o desastre de 15 de novembro. O recontro, aliás, era inevitável; no decorrer da Questão militar, conforme acentuei no texto anterior, eram dois entes distintos que se defrontavam: o Exército e o governo. Partindo de princípios diversos, Freire chegou a conclusões semelhantes: “Os militares, à força de capitulações e fraquezas da autoridade, já tinham conquistado direitos civis, que lhes deram ampla intervenção na política e na resolução dos poderes públicos”. Tendo afirmado parágrafos atrás: “O Exército conquistou no Império todos estes direitos e todas estas regalias, ampliando-se consideravelmente suas atribuições políticas” (Freire, op. cit., vol. I, págs. 207 e 205).

A situação apresenta outros prismas, para cuja relevância para a compreensão global do fenômeno Freire chama atenção no primeiro volume de sua obra, falando da superioridade intelectual de parte dos militares sobre outras camadas sociais: “...pela maior disseminação da cultura intelectual em que já se achava nos últimos tempos do império e que fazia avivar em sua consciência a imprestabilidade das instituições, impotentes para firmar entre nós um regime que desenvolvesse a prosperidade material e intelectual do país” (págs. 371 e 372). Os jovens militares — e é para este aspecto que convém chamar a atenção — estavam entre os que mais acesa tinham essa consciência de que as instituições não se adaptavam a seus fins. Sobre eles, diz Freire (vol. I, pág. 360): “Seus novos elementos, vindos das escolas militares, já tinham plantado uma orientação democrática no Exército, contra a qual era impossível resistir o seu antigo pessoal como a tradição personificada dos antigos hábitos de obediência e passividade. A nova geração era de fato a força mental da instituição”. Essa fermentação intelectual, fruto das novas letras que se ensinavam na Escola Militar, acabaria conduzindo ao famoso decreto com que Benjamin Constant, ministro da Guerra, reforma o ensino militar. Nos Fatos da Ditadura Militar no Brasil, Frederico S. assim resume o que Freire denuncia como a reação monarquista às transformações que se davam na doutrina política inspiradora da ação militar, mas que pode igualmente ser a reação do antigo pessoal à influência antiburocrática dos jovens:

“Num país sem instrução, onde a brutalidade da desordem militar devia primar tudo, a monarquia conseguiu, desde logo, formar a preponderância do elemento civil, coisa que na América Latina só o Chile conseguiu muitos anos depois e a Argentina só ultimamente parece ter realizado. (...) O preâmbulo do decreto em que o militarismo republicano expõe a sua doutrina do soldado político é um curioso monumento, uma verdadeira excentricidade militar e um documento digno de ser registrado, tanto pelas confusas ressonâncias da forma, como pelo emaranhado das idéias”. Nos consideranda, o decreto de Benjamin Constant firmava para o Exército “missão altamente civilizadora, eminentemente moral e humanitária que de futuro lhe está destinada e que jamais será um instrumento servil e maleável por sua obediência passiva e inconsciente que rebaixa o caráter, aniquila o estímulo e abate o moral”. Sobre esse texto, assim continua Frederico S.: “Esse ideal militar sul-americano, que a ditadura achou no presente para o Exército brasileiro e lhe quer garantir no futuro, nem ao menos é uma novidade. Na América Central, o general Benjamin Constant não seria um inovador. No Brasil, porém, a sua teoria é nova. As doutrinas têm o seu destino. Já meio desmoralizado em Guatemala, o militarismo político refloresce no Brasil.

“A ditadura brasileira, no Decreto destinado a reorganizar o ensino militar, começa condenando a obediência passiva do soldado. Começa pela destruição da base de toda a organização militar porque ou é passiva ou já não é obediência” (apud Freire, op. cit., vol. I, págs. 206-207). Haverá diferença entre o pensamento de Frederico S. e o Ruy do período da decepção? Leiam-se estas frases: “O Exército que fez uma revolução e por ela e após ela saboreou o prazer divino da soberania nunca mais se reconciliará com a submissão e a ordem. A sociedade, a cuja epiderme ele adere, viverá daí em diante inevitavelmente dilacerada pelo terrível corrosivo”. “O Exército que aprendeu o direito público deixou de ser Exército; ou se desagrega ou recusa obedecer” (apud. Freire, op. cit., vol. I, pág. 369). Esse, porém, é o Ruy despido de suas roupagens de agitprop da República; é o pensador desconsolado com o golpe de Estado de Deodoro, em 1891, e com a revolta da Esquadra em 1893. Antes da desilusão, porém, fora o redator do projeto de Constituição, que rezava em seu artigo 14, cuja discussão, como Felisbelo Freire assinalou, fora restrita às formalidades, a Assembléia Nacional Constituinte não tendo ido ao coração dos problemas:

“Artigo 14 — As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior.

“Dentro dos limites da lei, a força armada é essencialmente obediente aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais” (cito o texto do projeto).

É significativo que sobre esse texto não se abra discussão em plenário, na Assembléia Nacional Constituinte. Em comissão, José Hygino, senador por Pernambuco, ofereceu emenda, que não sustentou oralmente, retirando do texto do projeto a expressão “permanentes”. Virgílio Damásio, senador pela Bahia, mais radical, propôs pura e simplesmente a supressão do artigo 14. Da tribuna, os Anais não registrando debates, justificou sua tomada de posição. Dos Anais da Assembléia Constituinte, recolhe-se o discurso do senador Virgílio Damásio:

“A minha emenda propunha a supressão do artigo 14. Fui interpelado por um distinto amigo e colega sobre isso: ‘quereis acabar com o exército?’.

“Como? Respondi-lhe. Supondes-me capaz de semelhante ingratidão, quando eu e meus companheiros, que na rua, no meio da propaganda, arriscando a vida e o crédito, contribuímos a distribuir por eles a semente que produziu a messe fecundíssima; conseguimos inocular-lhes nos corações patrióticos o espírito de propaganda que nos animava a combater? Acreditais que eu teria tal ingratidão para esses bravos que no dia 15 de novembro puseram à disposição da idéia vitoriosa a força de suas espadas? Decerto que não! Não quero que me acoimem dessa feia ingratidão. Queria apenas significar, suprimindo o artigo, que ele, o artigo, não o exército, era desnecessário. No Brasil, como em toda parte, as forças armadas são a garantia da ordem no interior e a defesa da honra no exterior. Eu quisera somente que, ou ficasse subentendido, ou então que, a ser expresso, em vez de ser redigido desse modo, fosse como, por exemplo, na velha Constituição, em que se consignava: ‘todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas para sustentar a integridade e a independência da Nação e defendê-la contra seus inimigos internos e externos’. Aí se consignou um dever de honra para todos os brasileiros; não se tratava somente de uma classe, não se dizia que tais deveres competem somente ao exército...”

Tendo Beviláqua, em aparte, declarado: “O Exército é o povo armado”, Damásio responde, prosseguindo: “Mas nós, os velhos soldados da propaganda republicana, somos, por assim dizer, como honorários, que pertencemos também ao Exército, e no momento de perigo para a república ou para a pátria, na hora em que disso houver mister, todos nós, filhos do Brasil, militares ou não, temos o dever de correr às armas.

“Assim, o que dispunha a antiga Constituição era muito mais convenientemente dito do que dispõe o atual projeto; como também melhor dispunha a antiga Constituição dizendo que a força armada é essencialmente obediente e jamais se poderá reunir sem que seja ordenado pela autoridade legítima (apartes).

“É melhor dizer isto do que dizer por esta forma vaga a força militar dentro da lei é essencialmente obediente (apartes).

“... Finalmente, eu pedia a supressão deste artigo ainda por causa da palavra ‘permanente’. Pois, é hoje, quando o Congresso de Washington decide que o arbitramento obrigatório deve ser aceito pelos povos como a melhor solução das questões internacionais; pois, é hoje, quando se coloca à testa de um movimento perigosíssimo, quando não seja bem encaminhado, o próprio Guilherme II; e que quase se propõe o desarmamento da Europa; pois, é hoje, quando se proclama a possibilidade dessa idéia em quase todos os círculos (aparte), quando se pensa que é possível que chegue a um tempo em que não haja exércitos permanentes; pois é hoje quando a Constituição da Suíça dispõe em seu artigo 13 ... (Um deputado: ‘Mas isto é na Suíça’). Mas a Suíça está na Europa e é um pequeno país cercado de inimigos que de toda a parte procuram... (aparte). Eu não me fiz entender bem; queria dizer que a Suíça está rodeada de povos inimigos entre si e aos quais pode convir a toda hora invadi-la, o que aliás já se deu na guerra franco-prussiana, em que um corpo do Exército francês foi internado neste país.

“Pois bem, é nesse país, pequeno, mas que tem bastante fé na garantia de seus direitos, que a Constituição diz: para o poder federal não precisamos de Exército permanente... A Confederação não tem o direito de manter Exército permanente.

“Cada Estado ou cantão tem a força de que precisar, não excedendo 300 homens por cantão, sem se compreenderem, como diz o artigo 13, as forças policiais.

“Eu, sr. presidente, porque não me tenha achado envolvido nesta vida de agitações políticas, ou porque ainda não aprendi bastante neste assunto apesar das lições de experiência dos meus cinqüenta e tantos anos, por isso penso que, por ser este um artigo de lei fundamental e duradoura, podia dispensar-se esta palavra — permanente. Chamam-me os nobres colegas utopista. Mas, há 20 anos, quando Paranhos conseguiu a lei da liberdade do ventre, quem dissesse que dali a 20 anos não só estaria livre o ventre da mulher escrava, como todo homem escravo, que estaria feita a abolição, seria tratado como utopista e visionário. Quem há 10 anos dissesse que no ano em que estamos, no Paço da Boa Vista, se havia de reunir o Congresso Constituinte Republicano, seria tratado de visionário, de utopista, de louco, de conspirador.

“E a Revolução fez-se e nós estamos na República. E assim como temos a República haveremos de ter (quando? não sei, mas há de vir) o congraçamento e confederação das nações, a começar pelas da América, haveremos de ter um supremo tribunal internacional que decida das questões entre os povos e que dispense a espada e a pólvora, pelo menos, na escala em que as temos, permitindo que tantos dignos cidadãos, que tantos braços fortes, úteis e produtivos não fiquem improfícuos e inertes para a lavoura, as artes e as indústrias. (Aparte — ‘Isto é a idade do ouro’.) Isto dissemos nós hoje; mas não o dirão os nossos filhos. É nesta esperança e nesta convicção que eu proponho ao artigo 14 a minha emenda”.

A emenda era praticamente a adaptação da Constituição Imperial aos novos tempos:

“Artigo 14 — Todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas para sustentar a independência, a união e a integridade da República, defendendo-a de seus inimigos externos e internos.

“Artigo 15 — A força armada é essencialmente obediente e jamais poderá reunir-se sem que lhe seja ordenado por autoridade legítima”.

A emenda foi rejeitada. Almino Afonso declarou ter votado contra o artigo 14 do projeto, conforme registra Agenor de Roure em “A Constituinte Republicana” (Anais do Congresso Nacional Constituinte, vol. I, pág. 181).

Não apenas o senador Virgílio Damásio se preocupa com o artigo 14; João Barbalho, discutindo a Federação, critica o projeto de outro ângulo — sem, no entanto, preocupar-se em apresentar emenda ao texto constitucional, o que apenas confirma o estranho comportamento dos membros da Assembléia Nacional Constituinte no tocante à discussão da função das Forças Armadas. A preocupação maior de Barbalho, tal qual a de Damásio ao fim de seu discurso, é com a “permanência” da Armada e do Exército: “A Constituição estabelece que as forças de mar e terra são instituições nacionais permanentes, mas é uma aspiração da democracia moderna que não haja tais instituições com esse caráter de permanência. — (Apartes) — O nobre representante do meu Estado (prossegue Barbalho) há de permitir que diga que não quero propor com isto a supressão do Exército e da Armada, a que o país deve imensos serviços e de que precisa. Mas o que me parece é que a instituição de exércitos permanentes não é uma instituição liberal.

”Poderíamos seguir o exemplo da Suíça. A constituição ali veda à União manter exércitos permanentes, e os cantões apenas podem ter um número limitado de força regulada pela União (apartes), que atualmente é de 300 soldados para cada cantão.

“É uma espécie de descentralização do serviço militar. Sou dos primeiros a reconhecer muitos e grandes serviços que o Exército e a Armada nos têm prestado, mas não há necessidade de se prescrever em uma constituição que haja exército permanente, como se dispõe aqui no projeto, que devemos ter forças de terra e mar permanentes” (Anais do Congresso Nacional Constituinte, vol. II, pág. 151).

É em torno do caráter permanente da Armada e do Exército, portanto, que giram as poucas manifestações sobre o artigo 14 (das Forças Armadas), na Constituinte de 1891. A ser correta a interpretação que dei dos fatos em meu artigo citado de início, a inserção da expressão “permanente” decorreu do medo que tinha o Exército de ser dissolvido, o qual decorria das medidas que Ouro Preto tomara para defender a Coroa, que com justa razão ele julgava ameaçada. A atribuição do caráter “nacional”, esse creio que mais do que à consciência de serem elas forças que recobriam o território brasileiro — pois não o faziam, tendo sempre dependido da Guarda Nacional para defender o território e assegurar o Estado contra as rebeliões registradas nas Regências e no início do Segundo Reinado —, deve ser atribuída à memória da influência dos estrangeiros na organização e ação do Exército durante o Primeiro Reinado. Isso para não falar — são ambas hipóteses que lanço aos pesquisadores — na reação ao fato de o conde D’Eu, dado como inspirador da “conspiração” para instaurar o Terceiro Reinado, exercer importante comando no Exército, sendo francês, contrariando a boa doutrina, segundo apostrofava Ruy.

Quais foram os argumentos expedidos contra o caráter “permanente” do Exército e da Marinha? Busquemos relacioná-los: 1. “É aspiração da democracia moderna que não haja tais instituições com esse caráter de permanência”; 2. “Não há necessidade de prescrever em uma Constituição que haja Exército permanente”; 3. a tendência nas relações internacionais no sentido do arbitramento, sobretudo depois que o Congresso norte-americano manifestou sua preferência por esse processo capaz de assegurar que as tensões internacionais fossem resolvidas por meios pacíficos, eliminando, pois, a necessidade de Forças Armadas permanentes; 4. a possibilidade de chegar-se ao desarmamento na Europa (sendo a Europa, à época, o locus das ações diplomáticas e militares de real significância); 5. o fato de o Brasil ter dez vizinhos não constitui objeto de risco, porquanto a Suíça, cercada de povos hostis uns aos outros, confia na garantia jurídica de seus direitos e não permite que o poder federal tenha exército permanente; 6. Forças Armadas permanentes retiram “tantos braços fortes, úteis e produtivos” da lavoura, das artes e das indústrias; 7. igualmente, elas atentam contra o princípio liberal, que a rigor se confunde com a Federação.

Há mais, porém. Se essas considerações são feitas no decorrer do debate sobre o artigo 14, ao discutir-se seja a forma de composição dos efetivos do Exército e da Armada (por recrutamento, sorteio ou voluntariado), seja a extinção da Guarda Nacional, a questão volta à tona pela voz de outros deputados, igualmente preocupados com a presença do Exército na Nação. A questão, a rigor, poder-se-ia resumir no seguinte: “Armas, para quê?”

Nina Ribeiro, justificando emenda que extinguia a Guarda Nacional, depois de dizer: “Não há nada que justifique a permanência dessa instituição, tal como a temos, sob o regime republicano que abraçamos. É uma instituição morta...”, vai ao que interessa:

“Em substituição à Guarda Nacional, propomos a criação de uma milícia nos Estados, que, como parte da força pública, a secunde na defesa interna ou externa da Nação. Essa milícia satisfaz melhor os fins a que se destina a Guarda Nacional e melhor se coaduna com o regime na Federação, ficando a cargo dos Estados, como na América do Norte. Além da grande vantagem de poder substituir a Guarda Nacional, além de ser uma garantia para os Estados e uma das manifestações de sua autonomia, essa nova milícia traz como conseqüência a diminuição do efetivo do nosso Exército, reduzindo-se ao mínimo possível. Quando a União precisar de forças para a defesa interna ou externa, terá na milícia dos Estados as precisas, cessando assim os inconvenientes da manutenção de um grande exército, que, além de dispendiosíssimo, é muitas vezes um perigo, pois não deixará de influir na política interna e externa, fazendo das mínimas pendências entre as nações questão de honra a resolver pelas armas” (apud Roure, op. cit, vol. I, pág. 141).

Nas discussões sobre a maneira de compor o Exército, há intervenções de delicioso sabor, às vezes desnudando realidades escondidas pela retórica oficial. Tome-se esta afirmação do deputado Retumba: “Como se estabelecer um sorteio militar para que de entre o povo saiam espontaneamente servidores para a Pátria? Não conheceis a ojeriza do povo brasileiro pelo serviço militar?” (idem, ibidem, pág. 143). O assunto tratado por Nina Ribeiro volta em outra ocasião, agora na palavra de Gabino Besouro, que apresentara proposta para que, “em substituição da Guarda Nacional, fossem criadas as reservas do Exército, de acordo com o sorteio por base para o recrutamento militar”. Em defesa de sua emenda, argumentou:

“Nós não temos guarda nacional, isto é, nós não temos reserva do Exército, como se diz que é a Guarda Nacional. É preciso que não se conheça o que seja um sistema de reservas militares para se dizer que uma guarda nacional, e muito menos a que possuímos, seja tal reserva (apoiados). Para ser soldado não basta ser homem de saber, ser homem de letras...

“Nem trazer uma farda bonita (Zama).

“... e ter patriotismo. Para ser soldado é preciso ter alguma coisa: é preciso vocação, é preciso o tirocínio das armas, uma educação especial, que não só se adquire nos exercícios constantes dos quartéis e das escolas. E, se é uma aspiração da humanidade a paz universal, essa paz perpétua — paz do túmulo, como alguém já a chamou; se caminhamos para lá, consignando em nossa Constituição, como preliminar, o arbitramento para todos as questões internacionais, não podemos deixar de organizar as verdadeiras reservas do Exército para podermos com elas reduzir esse mesmo Exército ao seu mínimo possível...” (idem, ibidem, pág. 147).

O acolhimento da idéia de que o mundo, em 1891, caminhava para a paz e o desarmamento era partilhado por Lauro Sodré: “Perante este Congresso, falo como republicano e tenho títulos para referir-me à minha classe com toda a isenção de ânimo. Sei, pelo conhecimento das leis fundamentais da história, que a guerra há de ser eliminada, porque as sociedades evoluem do regime teológico-militar para o regime científico-industrial. Está tocando a seu remate a tarefa principal dos exércitos permanentes, ainda que as classes militares hão de subsistir como fatores sociais indispensáveis, porque elas são garantias da ordem e da paz, condição necessária para o livre funcionamento das indústrias, que hão de ser, no futuro, o grande campo de exercício das atividade humanas” (idem, ibidem, pág. 148). O rigor histórico obrigaria lembrar que na segunda discussão do projeto de Constituição os deputados do Espírito Santo propuseram, no artigo 14, a supressão da palavra “permanente”, alegando, como disse o senador Gil Goulart, que, sendo instituições nacionais, as Forças Armadas são necessariamente permanentes, “tão permanentes como a própria Constituição, enquanto não for reformada”. E acrescentava: “Por outro lado, a palavra permanentes, consignada na nossa Constituição, faz supor que queremos imitar a Europa armada, conservando grandes exércitos sempre em pé de guerra e constituindo uma ameaça às nações vizinhas. Devemos suprimir palavras inúteis, que nos façam presumir com veleidades guerreiras. (...) O Exército e a Armada são indispensáveis à República como os braços fortes do governo para os fins que lhes são traçados na mesma Constituição. A retirada da palavra permanentes não altera o sentido do artigo a que me refiro” (idem, ibidem, págs. 152/3).

Aos sete argumentos expendidos contra o caráter permanente das Forças Armadas, agora cabe acrescentar outros, mais amplos, pois atingem a própria organização do Exército, que deve ter efetivos reduzidos: a. a autonomia dos Estados depende de que o Poder Federal seja fraco; b. a redução dos efetivos do Exército é a maneira racional de diminuir despesas e eliminar o perigo de uma intervenção militar na política interna e, o que é mais significativo, na política externa, pois levados pelo sentimento de honra podem impedir que as questões internacionais sejam resolvidas de modo pacífico; c. a constituição de reservas efetivas, de real sentido militar, permitirá a redução dos efetivos do Exército permanente; d. o caráter permanente das Forças Armadas pode induzir os países vizinhos a atribuir veleidades guerreiras ao Brasil. Além do que, a época dos exércitos permanentes chega ao fim. Esse último continua, sem dúvida, os sete argumentos anteriores.

Esses arrazoamentos contra o caráter permanente, quando não contra a própria existência de Forças Armadas federais, devem ser examinados sem dúvida à luz do contexto de 1891, no Brasil, mas também sub specie aeternitatis, se tal se pode dizer.

II

A reunião dos argumentos contrários ao caráter permanente das Forças Armadas em novos grupos permitirá que se tenha visão mais correta do problema, além de clarear as razões que ainda têm validade e quais as que foram formuladas no clima político de 1891 ou de poucas décadas após a proclamação da República.

Grupo I O argumento federativo

No clima de euforia federativa que presidiu as sessões da Assembléia Nacional Constituinte, era apenas normal que se ressaltasse o fato de que a autonomia dos Estados depende de que a União tenha diminuto poder militar a seu dispor. Essa idéia — obsessiva em alguns constituintes — é ao final contrabalançada por ponderações que a maioria aceita, mas ainda assim encontra guarida no artigo 87, cujo espírito (para não referir à forma) desaparece depois, na sucessão de Constituições pós-1930: “O Exército Federal compor-se-á de contingentes que os Estados e o Distrito Federal são obrigados a fornecer, constituídos de conformidade com a lei ânua de fixação das forças”. O “patriotismo” federativo até não muitos lustros deitava raízes, fundas em alguns contingentes — com certeza até 1964, quando a clivagem passou a ser político-ideológica, sobrepassando as lealdades regionais, muito fortes em inúmeras guarnições da força de terra.

Não se entenderá a articulação do golpe de 1937, por exemplo, senão se tiver presente o peso dos contingentes estaduais na composição do Exército...

Na defesa dos Estados contra eventuais abusos da União, Pinheiro Guedes, por exemplo, pretendia na Constituinte de 1891 que os Estados pudessem formar uma brigada de tropas regulares, e que aquelas unidades federadas que confinassem o mar tivessem autorização para aparelhar pelo menos um navio armado. Por sua vez, José Higino, Anfilófio e Francisco Veiga desejavam que a Guarda Nacional fosse instituição estadual e que só o presidente da República, e não o Congresso, pudesse mobilizá-la em caso de guerra. Mais significativa foi emenda paulista, subscrita por Campos Salles, Bernardino de Campos e outros:

“É da competência dos Estados a organização da Guarda Nacional em seus respectivos territórios.

“§ 1.° Uma lei do Congresso federal determinará os casos em que o Governo da União poderá requisitar o concurso da Guarda Nacional dos Estados.

“§ 2.° É da competência dos poderes federais a organização da Guarda Nacional do Distrito da Capital da República”.

Talvez a melhor indicação do acentuado espírito federativo que prevaleceu na Assembléia Nacional Constituinte de 1891 seja a emenda Francisco Veiga, restringindo as atribuições do presidente da República. Segundo o relato de Roure, ela estabelecia que a União: “a. não poderia conservar qualquer contingente de forças federais nos Estados, desde que contra isso representassem os respectivos governos; b. removeria, mediante representação dos mesmos poderes, os comandantes de tais forças”. Na justificativa, dizia o autor da emenda: “Estão na memória de todos os repetidos e lamentáveis conflitos que se têm dado entre forças do Exército e de polícia local em vários Estados; eles se podem reproduzir e desde que os governadores deixam de ser delegados do Governo Central e não têm gerência alguma, nem a menor inspeção sobre as forças federais que estiverem em seus Estados, parece conveniente a medida da ilustrada comissão, a qual, em caso dado, será salvadora da paz e da ordem”.

A emenda foi aprovada em segunda discussão, sendo rejeitada apenas na terceira! (Apud Roure. op. cit.. vol. I, págs. 156/7.)

O conflito entre a existência da Federação e a de um Exército federal vem de 1891, portanto: resolveu-se em favor da centralização após 1964, quando as Polícias Militares passaram a ser subordinadas a uma Inspetoria Geral no Ministério do Exército, e pelo governo federal convocadas e mobilizadas de acordo com normas claramente contrárias ao princípio federativo tal qual se sustentou em 1891. Cabe perguntar se, consideradas reserva do Exército, as Polícias Militares estão capacitadas a desempenhar essa função, ou podem assegurar apenas a manutenção da ordem interna nos Estados.

O professor Ubiratan Macedo defende o emprego das Forças Armadas na defesa da segurança interna (cf. Política e Estratégia, vol. III, n.° 3). Para o ilustre professor, há casos inquestionáveis e de legitimidade indiscutível no “uso das Forças Armadas no policiamento (em especial por requisição dos Tribunais Eleitorais) das eleições em que as forças policiais podem estar envolvidas como parte”. Outra hipótese por ele suscitada em seu artigo é a de as Forças Armadas serem empenhadas para pôr termo a conflito surgido entre dois Estados federados. Uma terceira hipótese é a da guerra revolucionária — além daquela de as ações guerrilheiras praticadas em territórios vizinhos atravessarem as fronteiras brasileiras. Dessa última hipótese cuidarei mais adiante; sem intuito de polêmica, faço aqui alguns reparos às outras três.

Emprego para garantir a pureza do pleito nos Estados — Caberia perguntar, à maneira de padre Brown — que gostava do óbvio —, se o governo federal também não tem partido político e em conseqüência não alimentará interesse em proteger este ou aquele em tal ou qual Estado. Ironias à parte, a tradição republicana, especialmente a da República de 1946/64, milita em favor da tese de que unidades das Forças Armadas, especialmente do Exército, sejam empregadas para garantir, na sede do município, o cumprimento da lei eleitoral. A presença da tropa federal, quer-me parecer, serve apenas ao que se poderia chamar de efeito demonstração; ela não altera as relações de poder ou de força que se estabeleceram durante o processo eleitoral e mesmo muito antes dele; serve, no entanto, para garantir aos pleitos a aparência de seriedade de que se devem revestir. Evidentemente, não será o constante emprego da força federal que garantirá a liberdade do eleitor. Ela só se afirmará ao longo de processo de fôlego, que começa pela reforma da organização policial erigida no período do autoritarismo, passando por esforços coletivos visando à transformação da mentalidade, segundo a qual a Polícia está a serviço dos interesses do governador, de tal forma que um mero sargento PM ultrapassa tranqüilamente o juiz de Direito. O emprego da tropa federal nesses casos, atendendo apenas ao efeito demonstração, não atinge a raiz dos problemas — é apenas um sucedâneo de que se lança mão para impedir que a coação se exerça ostensivamente à porta das secções eleitorais. A pergunta que então se coloca é esta: é conveniente empregar força federal para mascarar a realidade ou é melhor procurar criar, na reforma da organização policial em sentido amplo, das funções do aparelho repressivo do Estado, condições que permitam aos tribunais eleitorais ter a sua disposição os instrumentos indispensáveis a garantir a lei?

Creio que em boa medida a aceitação da tradição do emprego das Forças Armadas em situações internas de conflitos não classificados como guerra subversiva ou revolucionária — ou de guerra civil — vem do fato de que jamais se quis pensar na formação da Reserva, apesar de em 1891 a questão haver sido aflorada. Não discutirei verdade inconteste, malgrado venha a ferir sentimentos fortemente arraigados ao afirmá-la: a tropa estadual — as PMs — dada as condições de seu emprego diário contra os criminosos comuns adquiriu preparo maior do que a tropa federal para ser engajada em recontros em que a vida se expõe com facilidade. Dessa perspectiva, ela está mais pronta do que muitas unidades do Exército para certo tipo de engajamento. Tão mais pronta que ousaria afirmar que, vistas as coisas desse ângulo, o Exército é a tropa de segunda linha, e as PMs fornecem a tropa de primeira linha.

O conflito interestadual — O problema se situa em igual nível de debate que o anterior. É a tropa de primeira linha — aquela teoricamente definida, como tal — que deve ser engajada para afastar milícias estaduais em situação de conflito? Ou é a Reserva do Exército, preparada para essas missões e adestrada para outras, aquela que funcionará como tropa de primeira linha, secundando no emprego a que de fato tem por obrigação funcional estar na frente?

A questão do emprego da força federal em situações internas — não de guerra revolucionária ou guerra civil, entendamo-nos bem — só será corretamente resolvida depois que se equacionar o problema primordial, que é o da Reserva. Se não se quiser estabelecer a grande Reserva, cujos contornos esbocei em outro artigo (cf. Política e Estratégia, vol. II, n.° 2), é preciso estar atento para a circunstância de que um tipo qualquer de Reserva deverá existir — e ela não poderá ser a tropa das milícias estaduais, toda ela engajada no combate à criminalidade urbana, quando não empregada em funções muito pouco militares, como cuidar, armada, do trânsito, ou de atividades burocráticas.

Essa Reserva deverá estar subordinada, evidentemente, ao Conselho de Estado, cuja criação propus no artigo citado logo de início. A ele subordinada, só pode ser empregada com sua autorização expressa e sob comando dele, Conselho de Estado. A Reserva diminui o peso específico do Exército no conjunto das Armas singulares e, reduzindo os encargos de pessoal na organização especificamente militar, permitirá o rearmamento e o reequipamento de maneira mais suave para o Tesouro Nacional.

Na grande reorganização das Forças Armadas que está por vir — apesar da estreiteza de visão de muitos chefes militares que se recusam a ver o estado mórbido do qual as Armas estão acometidas, umas mais do que as outras, cujos corpos de oficiais se vêem sem função — a criação da Reserva deve merecer especial consideração: uma Reserva apta a exercer funções semelhantes às da Guarda Nacional dos Estados Unidos, atendendo às populações vítimas de sinistros, ou apta a intervir em questões em que não cabe, politicamente, empregar o Exército, e para as quais as PMs, hoje voltadas para funções meramente policiais, numa disputa inglória com as Polícias civis, foram lentamente perdendo preparo. Sei que erguerão vozes ponderadas, ou iradas, contra a idéia de se criar mais um corpo armado. A rigor, não sei ainda se se trata de mais um corpo armado, ou simplesmente de unidades das três forças federais. O importante é que se medite sobre o assunto e se resolva a questão da Reserva.

A sugestão que faço tem como pano de fundo não a necessidade de combater a subversão ou de garantir aquilo que na linguagem de certos grupos militares e civis se convencionou chamar de segurança interna. Penso muito mais na integridade do Estado, neste sentido que explico a seguir: que acontece quando há greve em determinados serviços prestados por empresas públicas, ou mesmo empresas privadas, as quais executam um serviço público? A paralisação desse serviço reveste-se de dois aspectos: um, econômico, imediato; outro, institucional. Os grevistas, agindo dentro de seu mais reto direito (a questão da essencialidade dos serviços públicos é assunto para ser discutido em outra oportunidade), têm em vista apenas o aspecto econômico: paralisada a atividade da empresa, o empregador perde dinheiro e o Estado deixa de recolher substanciais importâncias. Há o outro aspecto, no entanto, para o qual poucos atentam: é que, esses serviços sendo afetados pela greve, o Estado se paralisa — pois o público se vê privado dos serviços que ele, Estado, executa direta ou indiretamente — sem que tenha havido da parte dos trabalhadores a intenção de fazê-lo. Analisando os efeitos das greves nos serviços públicos, G. Belorgey dizia em Le droit de la grève et les services publics (Berger-Levrault, Paris, 1964, pág. 80): “...em primeiro lugar, é manifesto que um certo número de agentes dos serviços públicos econômicos são tão essenciais ao funcionamento regular dos poderes públicos e à continuidade do Estado quanto certos agentes públicos: é em especial o caso dos técnicos que asseguram funções insubstituíveis em matéria de comunicação, de transportes, de distribuição de energia, etc.”.

O que está em jogo — e é isso que pretendo assinalar — é a continuidade do Estado enquanto aparelho prestador de serviços. É para assegurar essa continuidade (repito que não discuto aqui o caso de guerra revolucionária ou guerra civil), entre outras funções — e não para romper a greve, que é assunto da Justiça ou da Polícia Civil —, que se deve pensar na ação da Reserva. Dela, repito, porque o ímpeto centralizador dos chefes do Exército em 1964, especialmente depois de 1969, fez que essas funções de garantir a continuidade do Estado, que poderiam perfeitamente bem ser atribuídas às Polícias Militares — como imaginava o falecido coronel José Canavó Filho, pensando nas oportunidades de emprego da Força Pública de São Paulo bem antes de 1964 —, não possam hoje ser exercidas por elas. É que as PMs estão treinadas mais para enfrentar uma situação de ameaça à “segurança interna”, definida com muita estreiteza de visão, do que para dar continuidade aos serviços do Estado, quando eles são paralisados pelos trabalhadores no exercício de um direito legítimo, legalmente reconhecido, ou que fazem reconhecer como tal “na marra”, como vem acontecendo desde 1979.

A terceira hipótese é a séria: a guerra subversiva. Trata-se, então, de uma ameaça ao Estado. Nesse caso, como previsto no artigo “As Forças Armadas e a Constituição”, o Conselho de Estado pode e deve decidir se na defesa do Estado empregará a Reserva ou as próprias Forças Armadas.

Chamaria a atenção dos especialistas para as lições do general inglês Richard Clutterbuck em seu livro Guerrilheiros e Terroristas (Biblioteca do Exército Editora, Rio, 1980). Em algumas delas, seu pensamento contraria o que expus acima a respeito da criação da Reserva; em outros, cita exemplos históricos que secundam a sugestão, ao lembrar que as Companhias Republicanas de Segurança, na França, “foram formadas para evitar que o Exército fosse chamado a intervir em certas circunstâncias em virtude das constantes intervenções militares na política francesa. A Holanda e a Itália, também, têm esse tipo de força auxiliar...” (pág. 118). No caso inglês, essa Reserva não existe, pois o Exército é empregado normalmente “para apoiar a Polícia na garantia da segurança pública, isto é, na defesa contra os ataques armados, sejam eles a bombas ou com armas de fogo. A defesa contra um ataque armado é a missão normal de um exército...” (pág. 118). Não é esse o aspecto mais importante a ressaltar do livro de Clutterbuck, que analisa com percuciência os problemas da Malásia e do Vietnã, afora movimentos terroristas urbanos. A questão mais relevante, quando discute a guerra revolucionária, é que a polícia civil tem papel tão grande quanto o do Exército no combate à subversão: não tanto pela ação de engajamento quanto pelo desempenho de sua função policial tradicional de investigar, perquirir, andar, ver, anotar, deter. Uma frase resume o pensamento do autor: “O trabalho policial de rotina, se eficiente, permite que o cerceamento das liberdades civis seja mínimo, como foi provado pelas medidas tomadas contra os seqüestradores aéreos. Independentemente do custo em dinheiro e em homens, um trabalho policial contra o terrorismo, feito com eficiência, depende acima de tudo das informações, e essas dependem da cooperação do público” (pág. 115). Não se pense que Clutterbuck tem em vista o combate ao terrorismo urbano; a experiência da Malásia provou a importância da polícia nas chamadas “aldeias estratégicas”. No Vietnã, quando se tentou seguir o exemplo vitorioso na Malásia, a implantação dessas aldeias foi deficiente, exatamente porque se descurou da importância da polícia, cuja função é desmontar as hierarquias paralelas; na Malásia, essa destruição fora “mais importante do que a destruição dos regimentos guerrilheiros, pois que, sem uma verdadeira organização que a grande maioria respeitava e temia... a população não se arriscaria a dar qualquer apoio efetivo para a manutenção da guerrilha. Essa foi a outra grande lição que ficou da vitória do governo” na Malásia (pág. 42).

Com isso podemos passar ao exame dos outros argumentos suscitados contra o artigo 14 do projeto de Constituição na Assembléia Nacional Constituinte de 1891.

Grupo II: Argumentos contrários à permanência

Nesse grupo de argumentos, há-de considerar alguns incisos em separado:

I. Argumentava-se, em 1891, que a situação externa não mais exigia a existência de Exércitos permanentes, na medida em que a tendência universal era a do arbitramento. Ora, em 1903, com o apoio dos fuzileiros navais norte-americanos, acorrendo em defesa dos que se haviam rebelado contra o governo da Grã-Colômbia, o Panamá tornou-se Estado independente e os Estados Unidos obtiveram a concessão para abertura e exploração do canal. Theodore Roosevelt disse mais tarde: I took the canal. Em 1903, a crise do Acre resolveu-se pela fraqueza do Estado boliviano diante do Estado brasileiro, e pela decisão dos Estados Unidos de não transformar o assunto em caso de intervenção — mesmo porque a América do Sul, sobretudo a parte central dela, nunca estivera na primeira linha das considerações estratégicas dos Estados Unidos antes de 1938. É dessa época, igualmente (começo do século), o incidente entre o Reino Unido e a Alemanha, de um lado, e a Venezuela, de outro, quando navios de guerra europeus bombardeiam portos venezuelanos para intimar o Estado central a pagar dívidas contraídas por Estados federados. Apesar de invocada pela Argentina e outros Estados, a “doutrina Monroe” não foi posta em prática. Em 1914, com a I Guerra Mundial, assiste-se pela primeira vez ao emprego en masse de submarinos no Atlântico Sul.

Seria fastidioso enumerar os eventos que comprovam ser mero exercício retórico esperar que as crises internacionais sejam resolvidas todas por arbitramento ou negociação. Apesar disso, nas considerações feitas durante os debates de 1891, uma merece nossa reflexão — na medida em que a “teoria do cerco” e a doutrina de emprego dela decorrente inverteram situações nas relações entre as Forças Armadas e o Estado brasileiro. A observação é aquela segundo a qual as Forças Armadas, sendo permanentes, poderão fazer “das mínimas pendências entre as nações questão de honra a resolver pelas armas”. Aqueles que receiam — pela experiência histórica — a intervenção das Forças Armadas nos assuntos internos deveriam assustar-se, isto sim, com a possibilidade de a advertência de Nina Ribeiro poder tornar-se realidade... Ela exprime temor sério e justificado. A guerra da Argélia comprovou-o: quando, valendo-se da cobertura que tinham do governo local, as forças da FLN buscaram refúgio na Tunísia, o Exército francês construiu peça por peça a doutrina do droit de suite, invadindo território de Estado amigo. Prova-se, assim, que um comando operacional, atendendo a razões meramente operacionais, pode precipitar crise internacional de graves proporções.

II. Argumentava-se, também, que a situação internacional caminhava para o desarmamento, de tal forma que não cabia preocupar-se com a eventualidade de um conflito. Os fatos históricos vieram demonstrar, ao longo dos anos, a inconsistência do argumento expendido na Constituinte. Afora as intervenções norte-americanas nas Antilhas e na América Central — as quais culminam (?) com a guerra de Cuba em 1898 —, a I e a II Guerras Mundiais demonstraram à saciedade que o princípio romano Si vis pacem, para bellum ainda deve ser levado em conta por governos responsáveis. Cabe observar, ainda que a mero título de curiosidade, que a Guerra do Paraguai bem depressa desapareceu da memória dos membros da Assembléia Nacional Constituinte...

Grupo III: Forças Armadas permanentes representam grande dispêndio para o Erário

O argumento é de peso e sempre deve ser levado em conta. O rearmamento, em qualquer hipótese, onera o orçamento nacional; esse ônus é mais facilmente visto como sem sentido quando a deficiência no setor dos equipamentos sociais exige investimentos de infra-estrutura vultosos. Por paradoxal que pareça, a resposta a esse tipo de argumento talvez possa ser encontrada no grupo seguinte.

Grupo IV: A existência de reserva numerosa permite aliviar o peso do Exército permanente

A assertiva, evidentemente, esteve ligada ao problema federativo, na medida em que se pretendeu fazer das milícias estaduais a reserva do Exército. É preciso examiná-la, contudo, à luz de outras situações.

É a partir daqui que devemos cuidar da questão subjacente a todo o debate que se travou na Assembléia Nacional Constituinte, em 1891: armas, para quê?

Tendo ainda viva na memória o que significou o atraso doutrinário das Forças Armadas argentinas na guerra contra o Reino Unido, é sem sentido indagar se uma potência média como o Brasil deve ou não ter Forças Armadas permanentes. Apesar da evidência dos fatos, malgrado a circunstância de a História demonstrar que as guerras não se anunciam com antecedência suficiente para que haja tempo útil de mobilizar uma reserva geralmente mal treinada, ou até mesmo de preparar essa reserva, apesar de tudo ainda existem espíritos que apostam tudo na supremacia da Lei internacional sobre o Poder nas relações entre as nações. Os que assim pensam tendem a confiar a defesa nacional à capacidade de as organizações internacionais impedirem conflitos armados, ou fazer as potências agressoras refluir para suas fronteiras. Os exemplos que mostram à toda evidência que essa aspiração pacifista não se sustenta no plano da realidade parecem não ser suficientes, no entanto. Os defensores da tese da supremacia da Lei sobre o Poder nas relações internacionais concordarão com a afirmação que as organizações internacionais não têm poder suficiente para fazer recuar a União Soviética, quando invade países satélites ou mesmo o Afeganistão; retrucarão, no entanto, que esse poder é bastante para impedir que pequenas potências se entredevorem, ou arrastem as grandes ao confronto fatal. O Oriente Médio, contudo, é a prova da impotência da ONU; o conflito entre a Argentina e a Grã-Bretanha, a demonstração da inutilidade da OEA. Malgrado os fatos apontem para outro caminho, os argumentos contrários à existência de Forças Armadas permanentes, embora de difícil sustentação à luz de qualquer análise objetiva das relações internacionais, constantemente voltam à baila; é que a tendência do ser humano a acreditar num futuro melhor do que o passado e o presente faz que ele sempre se esqueça da sabedoria dos mais antigos.

Não será, contudo, registrando fatos que demonstram a necessidade da existência de Forças Armadas permanentes que se convence os opositores da idéia, especialmente se se imaginar que eles poderão retomar o argumento de alguns constituintes de 1891, opostos ao caráter permanente das Forças Armadas dado seu alto custo para a Nação, além de drenarem recursos em mão-de-obra da agricultura, da indústria e do comércio.

Comecemos, pois, por admitir que Forças Armadas permanentes custam caro. Busquemos em seguida demonstrar que motivos fazem necessário e conveniente que elas existam, subordinadas de que forma for ao Poder Civil; tentemos, finalmente, conciliar a necessidade de sua existência com o princípio de economia de forças, que, se vige para a guerra, deve igualmente ser válido para a economia nacional.

Não discuto, pois, o problema do quanto custam as Forças Armadas em termos financeiros. É uma discussão perdida de antemão. Nesse particular, considero que as despesas feitas com a manutenção das Forças Armadas em estado de preparo para enfrentar a eventualidade de um conflito são o prêmio pago por um seguro: o seguro-segurança da Nação. A idéia não é minha; tomo-a da Introdução do “Roteiro para a Nação Brasileira”, preparado pela Associação Comercial de São Paulo para os candidatos que disputaram a eleição presidencial de 1985. Dizia, o documento em questão, que as despesas com a manutenção das Forças Armadas “não são investimento a fundo perdido; são o prêmio do seguro-segurança que a Nação paga, confiando em que nunca deva valer-se da indenização dos riscos” (in Digesto Econômico, ano XLI, n.° 309, novembro-dezembro de 1984, pág. 8). Mais relevante do que discutir quanto se deve ou se pode gastar do PIB com as Forças Armadas é saber por que elas existem, devem existir no Brasil de hoje e assegurar-se de que essa importância esteja sendo racionalmente gasta...

Apesar de desacreditada pelo mau uso que se fez dela em muitas ocasiões, e também pela campanha insidiosa que contra ela se move em diferentes círculos, a primeira resposta a essa inquietante pergunta — Armas, para quê? — só pode ser dada pela Geopolítica. São poucos aqueles que, nos meios acadêmicos, empresariais ou de imprensa, prestam devida importância ao fato de o Brasil estar cercado por dez vizinhos. Esse dado é em si inquietante, e, não fora o fato de as crises políticas (interoligárquicas em sua maioria) haverem mantido os governos vizinhos ocupados com seus problemas internos, teria sido deveras preocupante no passado. Hoje, a situação nas fronteiras não é a mesma que vigorou até 1959, quando Castro assumiu o poder, e a lógica interna de seu movimento induziu-o a exportar a Revolução. A partir de então, pelo que se poderia chamar de efeito-osmose, os revolucionários que se preocupavam com a dimensão nacional de suas proposições de ação passaram a considerar a América Latina como seu campo de ação preferido: fazer da América Latina um, dez, mil Vietnãs! Em outras palavras, a partir do triunfo da guerrilha de Sierra Maestra, a Revolução bateu às portas do Brasil — às suas dez portas, para ser mais exato, e encontrou-as todas desguarnecidas.

A evolução dos movimentos revolucionários nas fronteiras brasileiras fez que eles não se constituíssem de início em ameaça ao território nacional — à sua integridade, bem entendido, já que não pretendo discutir aqui a questão da revolução no Brasil. Quando os líderes guerrilheiros perderam a perspectiva da tomada do poder pelas armas, alteraram sua estratégia fundamental — e, ao fazê-lo, trouxeram a ameaça à integridade do território para perto das fronteiras brasileiras. Qual foi essa estratégia, de início? A clássica. A guerrilha nada mais é do que uma forma de guerra de movimento, em que a mobilidade da tropa assaltante, a guerrilheira, permite surpreender o adversário onde desejar e aplicar-lhe os golpes planejados, na intensidade prevista. A condição básica da sobrevivência da guerrilha — vista como movimento revolucionário e não guerra de libertação nacional — é que os destacamentos guerrilheiros nas primeiras fases da operação sejam pequenos, não tenham bases fixas de onde lançar seus ataques e possam comportar-se como “peixes dentro d’água”, como aconselhava Mao Tsé-tung. Durante alguns anos, na América Latina, foi possível levar os combates dessa maneira; quando, porém, as forças governamentais conseguiram infiltrar-se nas organizações políticas ou militares que dirigiam a guerrilha; quando as unidades combatentes guerrilheiras aumentaram em densidade e volume, o caráter da guerra mudou, ainda que imperceptivelmente, para ambas as partes. A infiltração nas organizações dirigentes da guerrilha e da subversão permitiu desarticular os quadros; o aumento da densidade e volume das unidades combatentes — considerando o equipamento das forças governamentais — fez que o deslocamento delas para os pontos em que iam dar combate ou praticar ações de sabotagem fosse detectado pelas forças governamentais.

À fase da surpresa, sucedeu-se assim aquela do cerco e aniquilamento — cerco e aniquilamento da guerrilha. A essa fase seguiram-se, em muitos países, o armistício, a anistia e a reintegração dos guerrilheiros na vida social e até mesmo no sistema político nacional Ora, quando nos fins dos anos 70 a guerrilha ressurge, apoiada na evidência de que as oligarquias eram incapazes de dar solução aos problemas nacionais, entre eles a miséria, ela vem inspirada por visão do mundo diferente da vigente nos anos 60: por detrás da doutrina militar existe uma visão catastrófica das relações de guerra: é o discurso Hiroshima que se aplica à guerrilha, neste sentido de que a visão apocalíptica da guerra nuclear (todos os adversários poderão ser destruídos, não havendo campo para aplicar os princípios da realidade ressaltados por Clausewitz) se transfere para a ação guerrilheira. Essa visão de fim do mundo tende a fazer que a guerrilha teoricamente não seja mais uma guerra de movimento, embora continue se apresentando como tal nas frentes de batalha; ela se transforma em uma guerra de desgaste (usura) e aniquilamento total. O fundamento da guerra de desgaste é encontrar nas linhas adversárias, pelo atrito constante em toda a sua extensão ou em boa parte dela, a brecha provocada pelo cansaço, a qual permita a tão almejada ruptura. Ora, a guerra travada sob a forma de guerrilha não pode, por sua natureza mesma, buscar a ruptura; teoricamente, essa só se dá quando o Estado vem por terra, como aconteceu em Havana, deposto Batista e não estando o chefe do Estado-Maior do Exército em condições de impor sua vontade às diferentes facções guerrilheiras. Ou na Nicarágua. Pelas novas táticas guerrilheiras, decorrentes da aplicação da estratégia do desgaste, as forças governamentais passam a experimentar cansaço, afora desespero, que aliás é comum às duas facções em luta, embora seja de natureza diversa. Os guerrilheiros são desesperados do ponto de vista moral; para eles não há Lei, nem Deus. As forças governamentais tornam-se desesperadas a partir da exaustão física e do sentimento de que estão mergulhadas numa guerra sem fim — por isso, também para elas não há Deus, nem Lei. Esse desespero mútuo — “na guerra, cada um faz a lei do outro” — transforma o desgaste em vontade de aniquilamento, subverte as leis gerais da guerra, universaliza, pelas visões do mundo que servem de escudo ideológico, um conflito que é por sua natureza localizado nas fronteiras de um Estado, e transforma a guerrilha, guerra de movimento, em guerra total, isto é, envolvendo população, Forças Armadas, polícia, todo o Estado.

Estado algum está preparado para enfrentar esse tipo de ação guerrilheira, especialmente quando às ações tipicamente militares se associam o terrorismo urbano e o homicídio no campo, como forma de pressão aniquiladora. O que há de atemorizador na guerrilha de desgaste e aniquilamento é que ao contrário da primeira fase, a que vigorou até os anos 70, os guerrilheiros não querem o poder, eles estão à procura do Valhala, à espera do Goetterdaemmerung, e por isso mesmo repudiam o poder de Estado, símbolo de tudo aquilo contra o que combatem. Governo algum pode derrotar quem almeja não a conquista do aparelho de Estado, mas sim a destruição da sociedade de consumo — e sua destruição pela força das armas!

Essa nova fase da guerrilha na América Latina não pode ser desconhecida pelos especialistas; fazê-lo é condenar-se de antemão ao malogro fatal. Se os guerrilheiros não desejam como objetivo a conquista do aparelho de Estado, suas ações passam a ser dirigidas contra não importa que alvo: hoje um rico proprietário, amanhã uma ponte, depois uma escola, tropa que se desloca, estrangeiros... A ação guerrilheira fustiga não apenas o Estado e seus órgãos, mas as organizações sociais. Toda a sociedade entra em crise — com isso, o governo (a menos que faça a Revolução) tende a enfraquecer-se e a ser cada vez mais ineficaz em todos os campos de atividade, desde a economia até a segurança. Esse confronto entre forças díspares, cada uma das quais tendo jurado o aniquilamento da outra e não podendo fazê-lo pelos mais diferentes motivos, faz que o território do Estado se transforme todo ele numa imensa Terra de Ninguém, ocupada durante dias, semanas ou meses pelas forças governamentais; dias, semanas ou meses pelos guerrilheiros. As populações mudarão assim de lealdade conforme a bandeira que esteja hasteada no mastro do prédio da Prefeitura — e a força ocupante que deixar o terreno, por motivos táticos ou estratégicos, tenderá a atravessar as fronteiras nacionais (sendo guerrilheira) para bivacar e se possível reabastecer-se. Não foi isso que teria feito um destacamento do M-19, atravessando a fronteira colombiano-brasileira e parlamentando com o comandante de uma unidade especialmente destacada para acompanhar sua evolução do lado brasileiro da fronteira?

Essa digressão teve por objetivo assinalar que, a partir de um momento que talvez possa ser situado em algum dos anos 70, os Estados vizinhos do Brasil, nos quais a guerrilha mudou de configuração doutrinária, correm o risco de deixar de existir como unidades organizadas de coerção capazes de aplicar uma lei e uma só ao conjunto do seu território. A delicadeza diplomática obriga a calar sobre quais os vizinhos em que vislumbro essa situação de perecimento do Estado — diria apenas que são mais de um, e que essa situação exige Forças Armadas preparadas dentro da doutrina correta para fazer face ao imprevisto. Na verdade, o ato de procurar bivaque e aprovisionamento em território brasileiro pode transformar-se, com o correr do tempo, em ato de ocupação do território. Essa ocupação exigirá da parte do governo brasileiro, a menos que conceda numa revisão de fronteira, que desaloje o invasor; isso significa engajamento. Ora, o combate só poderá ser travado por força treinada para tal, além de estar mais bem equipada do que o adversário. As fronteiras Sul estão por ora livres desse perigo; a Oeste, em toda a extensão do quadrante, e ao Norte, o perigo é real — e tende a tornar-se mais delicada a situação, quando se tem presente que há íntima associação entre a guerrilha da guerra de desgaste e aniquilamento e o tráfico internacional de estupefacientes: cocaína e heroína. É preciso ter consciência de que não é o “ouro de Moscou” que financia a guerrilha; com freqüência, será o dinheiro daqueles contra os quais a ação guerrilheira se dirige.

Os motivos geopolíticos — dez vizinhos, muitos dos quais exibindo evidentes sinais de que seu Estado está em processo de desagregação — conduzem, pois, a que se pague o prêmio do seguro-segurança. A eventualidade de uma guerra de guerrilha conduzida nos moldes a que me referi atrás impõe doutrina diversa daquela que se aplica nos embates clássicos; a nova doutrina requer nova organização, a qual só poderá ser eficaz se resolver os existentes difíceis problemas de relacionamento entre as Armas singulares; muito dificilmente, nesse tipo de operação militar, poderá lançar-se mão de operações de grande vulto dirigidas contra objetivos reputados estratégicos (no sentido convencional). A questão fundamental que se coloca, quando se tem essa perspectiva de ação, é a do comando único no campo de operações.

Haverá outras razões, diversas dessas, para reclamar a existência de forças armadas permanentes?

O “caso Malvinas” deveria estar sempre presente, ensinando que nunca haverá segurança absoluta de que um Estado vizinho não desejará resolver pelas armas antigos problemas de fronteiras, já decididos por laudos arbitrais, mas cuja permanência na memória coletiva de alguns grupos políticos deveria servir de motivo de constante preocupação para a diplomacia brasileira. Ademais, cabe ver que, sendo o Brasil garante de alguns tratados de paz, firmados por vizinhos e não vizinhos, o interesse nacional de assegurar a inviolabilidade do statu quo territorial — cuja alteração só se poderia dar mediante negociações diplomáticas conduzidas na boa e devida forma — esse interesse nacional leva a que o Brasil deve ter condições de fazer valer a letra dos tratados, quando e se alguém se dispuser a rompê-los. Mesmo no caso de não ser o Brasil garante de tratados, ele não pode consentir em que se estabeleça qualquer precedente de mudança de fronteiras por meio de ações militares; consentindo na abertura do precedente, o governo brasileiro está abrindo o flanco para que os vizinhos reclamem a revisão das fronteiras...

É a análise absolutamente racional que induz a resposta à pergunta: “Armas, para quê?”. Para constituir um Dispositivo Estratégico de Dissuasão, única maneira capaz de impedir que haja, na região, alterações territoriais que ameacem nossas fronteiras, ou que algum Estado vizinho decida resolver pendências adormecidas mediante o recurso à força armada.

Aqui cabe deter-se, observar o mapa e aceitar a imposição institucional e organizatória que decorre da geografia humana: é fora de propósito imaginar que a doutrina e a organização necessárias a garantir a segurança territorial e institucional nas fronteiras do Oeste e do Norte sejam as mesmas a vigorar nas fronteiras Sul-Sudoeste e na vasta extensão costeira. Se talvez não haja os dois Brasis da sociologia (mas sim muitos), com certeza a boa lógica exige que a doutrina, a organização (e os equipamentos) sejam diversos nos distintos teatros de operações, pela simples e boa razão de que a guerra a travar-se em cada um deles é distinta nas suas formas.

Formulando hipóteses de guerra, diria que se deve estar atento para duas eventualidades: a primeira, a de guerra contra guerrilha estrangeira infiltrada em território brasileiro, mais imediata e possível; a segunda, guerra clássica, de Estado contra Estado. Essa exige, como já acentuei no artigo “Política Externa e Defesa” (Política e Estratégia, vol. II, n.° 2), a criação de um Dispositivo Estratégico de Dissuasão e de uma Reserva adequada; a guerra contra a guerrilha estrangeira infiltrada exige um corpo permanente altamente especializado e treinado — sem esquecer a Polícia a que se refere com muita propriedade o general Clutterbuck.

Seria fastidioso discutir o grau de probabilidade de a hipótese do conflito na fronteira Sul-Sudoeste converter-se em realidade. Ou aquela de haver necessidade de engajar a Marinha de Guerra em ações estratégicas no Atlântico. A existência de Forças Armadas permanentes não se mede pelo grau de probabilidade, mas pela possibilidade de irrupção de um conflito. A realidade estratégica da África Ocidental Subsaariana fala por si da necessidade de a Marinha de Guerra estar apta a desempenhar missões estratégicas — ainda que seja no quadro do que Morgenthau chama de “política de prestígio”. Da mesma forma, o fermento da crise no Sudoeste não desapareceu e não há evidência de ação diplomática conjugada com visão estratégica para erradicar os motivos de insatisfação. É preciso, pois, estar preparado para a eventualidade, pagando o prêmio do seguro-segurança.

A colocação dessas duas hipóteses leva inevitavelmente à conclusão de que, contrariamente ao que se dizia em 1891, a existência da Reserva, por si, não aliviará o fardo financeiro do Exército permanente — muito embora possa levar à diminuição dos efetivos de primeira linha, tendo em vista a modernização do equipamento e a nova doutrina. Por outro lado, as duas hipóteses conduzem a que as Forças Armadas sejam profissionais — pois apenas o soldado profissional pode ter qualificação técnica para esse tipo de guerra moderna, e apenas ele pode estar sempre em estado de preparo.

A discussão sobre a Reserva, bem assim sobre a necessidade de a tropa ser profissional, pode ficar para outra ocasião.


 

AS FORÇAS ARMADAS,
COMO INSTRUMENTO DE
POLÍTICA EXTERNA

 

É conhecida a caracterização que o general de Gaulle fazia do Exército: “O Exército está a serviço do Estado — com a condição de que haja um Estado”. O general Góes Monteiro costumava dizer que as Forças Armadas são o instrumento da política externa de um Estado — e poderíamos acrescentar, parafraseando de Gaulle: com a condição de que haja uma política externa.

Sirvam essas frases, a título de epígrafe, para introduzir o problema. Sua discussão só poderá prosperar, a meu juízo, se aceitarmos algumas pré-condições. Sem elas, a discussão perderá eficácia, pois se correrá o risco de cada um falar linguagem diferente dos outros.

Primeira pré-condição: as relações internacionais, como as iremos considerar, são relações interestatais. Citando Aron: “... não há dúvida de que o centro das relações internacionais está situado no que chamamos de ‘relações interestatais’, as que engajam as unidades políticas. (...) as relações entre os Estados implicam essencialmente a guerra e a paz”. Por serem tal é que Clausewitz via a guerra como a continuação da política, respondendo uma e outra às regras da mesma gramática, embora sua sintaxe fosse diferente. Essa delimitação do campo não foge a reconhecer que pode haver outros sujeitos nas relações internacionais.

Segunda pré-condição: o discurso das relações internacionais interestatais só faz sentido se se pensar política externa em termos de política de poder. Citando Morgenthau: “As políticas doméstica e internacional nada mais são do que duas manifestações diferentes do mesmo fenômeno: a luta pelo poder”. A política de poder — citando Schwarzenberger — é um tipo de relações entre Estados em que predominam algumas regras de conduta: armamentos, isolacionismo, diplomacia do poder, economia do poder, imperialismo universal ou regional, alianças, equilíbrio do poder ou da guerra. É, em outras palavras, um sistema de relações internacionais em que os grupos se consideram a si próprios como fins últimos de sua ação.

Terceira pré-condição: o raciocínio deve desenvolver-se tendo em vista o que Clausewitz chamaria de “tendência à extremidade lógica”, ignorando numa primeira fase o “princípio da realidade”, o qual impede se alcance a extremidade racionalmente estabelecida.

À luz dessas pré-condições é possível encaminhar de maneira esquemática a discussão do tema proposto.

1. Se é verdade que as relações entre os Estados se desenrolam à sombra da guerra, é indispensável que os Estados possuam uma clara idéia de manobra, ou dito em outros termos, tenham desenvolvido a linha de sua grande estratégia, da qual a política externa é uma das peças. Essa grande estratégia leva em conta os interesses reais do Estado nas suas relações internacionais e deve ter em mente a probabilidade de a intervenção armada ser necessária para afirmar esses interesses. Essa previsão deve orientar a doutrina de emprego e a conseqüente organização das (e cooperação entre as) Forças Armadas.

Assim colocada a questão, a política externa insere-se no quadro da grande estratégia do Estado, e as Forças Armadas passam a ser não o instrumento da política externa, mas sim o meio de que se serve o Estado para defender e fazer valer seus interesses. Essa ação de defesa e afirmação dos interesses pode ser chamada de política externa em sentido amplo — e com fundadas razões.

2. Toda grande estratégia deve ter em mente:

a) os reais interesses nacionais e a gradacão de sua importância, isto é, a clara definição de quais interesses obrigam ao emprego da força, quais exigem a ameaça de emprego, quais recomendam a negociação a partir de uma posição de força;

b) que política se seguirá: de manutenção do statu quo, de prestígio ou imperialista. Essa definição condiciona a aceitação do padrão de política externa: balança de poder, defesa coletiva ou associada, ou isolamento.

É a definição dos termos estabelecidos em a e b que, a rigor, ditará as regras para a elaboração da grande estratégia. Vejamos como se podem definir alguns deles.

 

Interesses nacionais

A definição dos interesses nacionais não pode ser feita com viés ideológico. Normalmente, esse viés tende a supervalorizar as próprias forças e menosprezar a vontade de resistência do adversário. Afastando as ideologias, pode dizer-se que são interesses nacionais:

I — A defesa das fronteiras, tenham sido demarcadas por guerra de conquista, acordos internacionais, laudos arbitrais ou sentenças de tribunais internacionais;

II — Defesa do statu quo no sistema regional em que o Estado se insere, nem que tal defesa se faça para mascarar sua eventual alteração em favor do Estado em questão;

III — Defesa das rotas das quais depende o comércio internacional do país. É preciso ter presente que o grau de dependência absoluta de um país aumenta à medida que é maior a porcentagem do comércio exterior no PIB. Defesa do próprio comércio internacional e do acesso do Estado às grandes correntes comerciais e àquelas de inovação tecnológica;

IV — Defesa dos interesses nacionais em outros Estados. Esses interesses são privados ou são privados com repercussão estatal. Quando o Iraque cassou a concessão feita à Braspetro para explorar seu petróleo, atingiu os interesses de uma sociedade anônima, mas afetou os interesses do abastecimento brasileiro em petróleo.

 

As políticas e seu padrão

A escolha da política (statu quo, prestígio, ou imperialista) está condicionada pelos dados: “Dado — Elemento ou quantidade conhecida, que serve de base à resolução de um problema. (...) O que se apresenta à consciência como imediato, não construído ou não elaborado” (Aurélio).

A opção pela política imperialista permite o bluff, que é agir sem levar em conta os dados próprios e de terceiros. A opção pelas demais, não! Uma política de statu quo ou de prestígio exige que se tenham em conta os dados:

da economia (desenvolvimento e autonomia tecnológicos, autonomia em matérias-primas e combustíveis, capacidade de mobilização industrial para a guerra etc.);

do espaço estratégico-militar (a configuração do terreno, número de vizinhos, vulnerabilidade do ecúmeno principal etc.);

da população (quantidade e higidez); e

da política em sentido amplo (a disciplina social, a capacidade de o governo exercer sua autoridade sobre a nação, a organização eficiente dos elementos econômicos, sociais e políticos).

Qualquer uma dessas duas políticas requer habilidade para conduzir assuntos externos, a qual é função das informações e da habilidade dos governantes saberem conduzir as populações em momentos de crise.

A escolha do padrão é uma decisão política, dessas em que o espírito folga, supostamente liberto das necessidades. Deve ter-se em mente, porém, que, se se faz apelo ao Direito e se o privilegia sobre o Poder nas relações internacionais, não fará sentido rejeitar o padrão de defesa coletiva ou associada. O triunfo do Direito sobre o Poder significa que em última instância o Estado remete a entidades supranacionais ou tribunais internacionais a defesa e garantia de algum de seus interesses. A grande questão na escolha do padrão de defesa coletiva ou associada é a subordinação de forças nacionais a um comando supranacional, quase sempre exercido por nacional do Estado preponderante na organização supranacional, ou de Estado a ele subordinado.

Feitas essas escolhas e estabelecida a grande estratégia é que se coloca o problema das Forças Armadas como instrumento dela, ou da política externa. Cabe repetir Aron: “Mas a teoria das relações internacionais toma como ponto de partida a pluralidade dos centros autônomos de decisão, admitindo o risco da guerra; e desse risco deduz a necessidade de calcular os meios”. Coloca-se aqui com toda a clareza a questão da dissuasão.

Sun Tzu disse:

“1. Nos tempos antigos, os guerreiros hábeis começavam por se tornar invencíveis, depois esperavam que o inimigo fosse vulnerável. (...)

“3. Segue-se que aqueles que são versados na arte da guerra podem tornar-se invencíveis, mas não podem tomar, de um golpe certo, o inimigo vulnerável. (...)”

“4. Daí porque se diz que é possível saber como vencer, sem que necessariamente, por isso, se vença”.

 

A dissuasão

Falar em dissuasão é falar na efetiva existência de um Dispositivo Estratégico de Dissuasão. Isso porque ou a dissuasão é reconhecida como podendo passar da ameaça ao emprego, ou não passará de retórica barata. O DED deve existir para garantir o statu quo territorial, para impor os interesses nacionais e para dissuadir eventuais alterações do equilíbrio de poder no sistema regional em que o Estado se insere. Para a defesa das rotas de comércio e do próprio comércio internacional, ele também pode ser útil, sendo, porém, possível que do ponto de vista militar seja mais interessante ter forças com capacidade estratégica em sentido lato, sem a necessidade de serem dissuasivas.

O objetivo básico da ação diplomática deve ser manter Virgo intacta o statu quo territorial. Isso significa que, enquanto instrumento da ação diplomática — que se confunde com a realização dos objetivos da grande estratégia —, o emprego do DED deve ser subordinado aos objetivos políticos do Estado. É lição de todos os grandes pensadores militares: não se deve conduzir ação militar sem ter em vista o objetivo político definido pelo Estado. Por outro lado, se o Estado não fornece objetivo político ao comandante-chefe, esse deve ter presente que sua ação bélica criará relações políticas novas, as quais influenciarão a paz. Cito o exemplo da “Batalha da Europa”, conduzida por Eisenhower a partir de conceitos exclusivamente militares, que acabou sacrificando a paz.

Ao mesmo tempo, porém, deve ter-se sempre em mente que as ações diplomáticas não podem fechar o leque de opções estratégicas a serem oferecidas ao comandante-chefe. Não é concebível, do ponto de vista da racionalidade das ações, que ao chefe militar só seja oferecido um único partido de ação: fazer a guerra nas condições criadas por ação diplomática desenvolvida sem atenção aos aspectos militares da grande estratégia do Estado.

Segue-se que, no traçar a grande estratégia, o diplomata e o militar devem avaliar as situações para que nenhum deles seja colocado em má posição no desempenho de sua função específica. Isso significa que o diplomata necessita saber qual o estado de preparo das Forças Armadas (especialmente se sua ação naquele momento é cuidar da defesa diplomática dos interesses nacionais impostergáveis, aqueles para cuja defesa cabe o emprego da força), e que o militar deve saber até que ponto o diplomata irá conduzir sua ação, e em que linhas, a fim de ele, militar, poder avaliar qual partido de ação deverá adotar na hipótese de, malograda a negociação, dever empregar-se a força.

Cabe suscitar questão da maior importância na relação entre o Estado e as Forças Armadas: apesar de subordinado ao chefe de Estado e dever ter sempre em mente os objetivos políticos do Estado, o chefe militar sempre deve fazer valer a relevância dos aspectos estratégicos na execução da política externa. Só assim o objetivo político deixará de flutuar no abstrato e de ser mera opção de vontade. Segue-se que o chefe de Estado (e com ele o diplomata) deve atentar para as realidades estratégicas sob pena de comprometer a execução do plano de guerra na eventualidade de ele dever ser posto em prática.

Algumas palavras sobre o problema da constituição do DED: sua existência estimula ações contra as quais ele não se aplica. Por outro lado, ele é inútil para enfrentar ações militares não-interestatais, isto é, a fase insurrecional da guerra subversiva. A montagem de um DED é extremamente cara, especialmente porque deve contemplar simultaneamente as três Armas. O reequipamento de apenas uma delas sem contemplar as demais é cegueira estratégica; afinal, na eventualidade da guerra, as três Armas serão empregadas como um todo e devem ter condições de exercer sua função dissuasiva, ou de emprego se o adversário não se deixar intimidar pela mera dissuasão. Por outro lado, que fazer diante da realidade de o DED não se aplicar enquanto tal ao combate antiguerrilha? Apesar disso é falso o dilema: DED ou Dispositivo Antiguerrilha. Optando pelo DAG, o Estado correrá o risco de sua ação antiguerrilheira dever transformar-se em estratégica contra Estado que abrigue a guerrilha, e para tanto não estar preparado. Optando pelo DED, o Estado corre o risco de não poder enfrentar a guerrilha.

 

Conclusões

Extraem-se duas conclusões fundamentais:

l — a ação diplomática na defesa dos interesses nacionais e a própria decisão sobre que tipo de política externa o Estado vai seguir — manutenção do statu quo, prestígio ou imperialista — são problemas a ser resolvidos pela interação entre o diplomata e o militar;

2 — a decisão sobre que tipo de força armada deve ter o Estado — estratégica de dissuasão ou antiguerrilheira — não deve ser adotada com vistas curtas, que tendem a desprezar o eventual emprego estratégico da força militar. O diplomata, nessa eventualidade, deve igualmente ser ouvido — com a reserva, porém, de que deve saber que no fim de sua ação se encontra o início da ação do militar. Em qualquer circunstância em que for chamado a agir, se o diplomata não tiver de sua função essa noção típica de Aron, o Estado correrá o risco de não poder afirmar seus interesses nacionais, pois a diplomacia tenderá a desarmar o Estado.


 

POLÍTICA EXTERNA E DEFESA:
O CASO BRASILEIRO

 

A crise das Malvinas surpreendeu o Brasil, como aliás, a Grã-Bretanha. Da perspectiva em que me situo, a política do governo Figueiredo foi hesitante de início porque o governo se encontrava em postura estratégica defensiva, a qual — assim como a orientação seguida pela diplomacia brasileira desde o período Costa e Silva até o apelo ao FMI — é responsável pelo fato de o governo brasileiro em seguida ter optado claramente pelas teses argentinas. Não se cuida, aqui, de saber qual deveria ter sido a posição correta; procuro, simplesmente, chamar a atenção para o fato de a crise impor a necessidade da revisão de alguns conceitos estratégicos, arraigados como preconceitos, única maneira de o acontecimento, o imprevisto, não surpreender o País em futuro previsível. Essa revisão não se propõe como mudança de alianças (se é que se pode dizer que o Brasil tem alianças a respeitar), mas dos princípios que inspiram a tomada de posição diante dos fatos. Objetivo, neste trabalho, examinar quais os fatores que levaram o Brasil a ter essa postura estratégica defensiva, além de buscar ensaiar uma concepção de manobra estratégica capaz de lastrear a mudança pretendida. Essa reflexão incidirá muito sobre a necessidade de a política externa apoiar-se numa concepção de manobra; daí, creio, ser necessário definir os termos para que o leitor possa seguir o raciocínio sem maiores dificuldades.

Por postura estratégica defensiva entendo aquela atitude de espírito e aquele conjunto de normas de atuação em que o Direito Internacional — concebido abstratamente e não como produto de relações reais — tem primazia sobre qualquer outro móvel da ação dos Estados nas relações internacionais e serve para mascarar postura mental de menosprezo e aversão pelo Poder e pela Realpolitik. Essas normas acentuam o conseqüente agravamento da inércia do comportamento burocrático — que no entanto não deveria estar presente de modo tão forte na diplomacia —, levando a que os formuladores de uma política internacional e de uma manobra estratégica se recusem a enfrentar o dissenso e a conviver com ele, preferindo o recurso a acordos unânimes (sempre impeditivos da ação estatal) mascarados sob o nome de consenso. Em outras palavras, a postura estratégica defensiva corresponde à atitude de governos sem aspirações a qualquer tipo de liderança ou hegemonia; à atitude de governos não preparados política, social e militarmente (isto é, estrategicamente) para inserir-se, em postura de reivindicação afirmativa de autonomia, na conjuntura internacional do segundo após-guerra, toda ela marcada por conflitos e pela revalorização do poder como instrumento e objetivo nas relações internacionais.

Por manobra, pode entender-se a palavra no sentido doutrinário corrente nos círculos militares, ou em outro mais amplo. Na doutrina corrente, a manobra nada mais seria do que a forma correta de executar a política militar estabelecida pelos Estados-Maiores; a maneira de pôr em prática um plano de guerra. Ao risco da crítica dos puristas, prefiro concebê-la como maneira de regular a ação de uma máquina, ou a arte de governar um navio, como já haviam definido os franceses. Assim, englobo os dois sentidos da palavra, pois entendo a manobra como a maneira de executar uma doutrina militar no caso de a guerra tornar-se presente, e a arte de governar a política da nau do Estado no campo internacional com apoio nas Forças Armadas. Por manobra entendo, pois, a forma pela qual um Estado realiza sua política internacional (ações políticas e militares, na prática estreitamente conjugadas), visando a atingir seus objetivos no jogo de poder internacional: 1 — prevendo ações racionais de governo, concebidas de modo sistemático e executadas de forma compatível com os objetivos a atingir, as quais, sobretudo, façam sentido para seus agentes; 2 — aproveitando os erros que os eventuais adversários possam cometer, e 3 — utilizando em grau máximo relativo os recursos de contenção, pressão e dissuasão para impor sua vontade aos adversários, propondo-se ostensivamente a intervir se necessário e fixando de antemão para si o como, onde e quando. Para a realização eficaz da manobra é indispensável a coerência dos fins colimados, a correta adequação dos instrumentos aos fins e a acertada eleição dos centros de gravidade contra os quais se exercerá a ação política, diplomática ou militar — estratégica em suma.

A manobra, para realizar-se, exige a fixação de um objetivo para a ação internacional do Estado e o estabelecimento dos objetivos intermediários a serem alcançados como indispensáveis a que se chegue ao objetivo final. Ela implica o exame da relação de forças, o qual para ser correto impõe que se tenha presente se as tarefas propostas podem ser realizadas à luz dos dados orgânicos e de conjuntura do sistema internacional em que o país age. O exame da relação de forças exige a distinção entre seus diferentes momentos:

a) a relação de forças objetivas, independentes da vontade dos homens, entre os quais avultam o território (situação e posição), a população (número e composição), o PNB (valor e relação entre os setores primário, secundário e terciário);

b) a relação das forças políticas, isto é, a avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência e organização atingido pelos vários grupos sociais no interior dos países que estão em relação e o grau de homogeneidade, autoconsciência e organização das alianças em que os países estão comprometidos;

c) a relação das forças militares, isto é, a composição numérica, o equipamento, a proporção entre os diferentes serviços, a organização e a doutrina militares em vigor.

Essa análise não tem sentido por si; só adquire significado se serve para justificar uma iniciativa de vontade. Ela mostra, porém, quais os pontos de menor resistência, sugere as operações mais imediatas, indica qual o partido de ação (militar ou político) que será mais frutuoso. Indica, também, que o elemento decisivo de qualquer situação é a força permanentemente organizada; demonstra que só há situações favoráveis à ação internacional do Estado quando essa força pré-existe. Como dizia Gramsci, a quem recorro para seqüenciar os momentos da relação de forças, “os grandes Estados foram grandes Estados exatamente porque estavam preparados para inserir-se eficazmente nas conjunturas internacionais favoráveis e essas eram tais porque havia a possibilidade de inserir-se eficazmente nelas”.

Na fixação dos objetivos da manobra é indispensável ter presente, como assinalava Raymond Aron, que “a vontade emana da política objetivada — do conjunto de relações político-sociais no seio das quais os lineamentos do conflito armado se esboçam e se dissimulam”.

Fixados esses pontos, passo à enumeração dos fatores que conduziram a diplomacia brasileira a uma postura estratégica defensiva até a crise do balanço de pagamentos.

l. A manobra inexiste ou é defensiva

A) — No planejamento da Chancelaria brasileira e, creio, dos Estados-Maiores, seguramente não se cogitava da hipótese de um conflito armado com potência extra-continental, em área lindeira e de especial interesse estratégico para o Brasil. Dos estudos dos diferentes Estados-Maiores, deveria constar, quando muito, a admissão de um conflito entre a Argentina e o Chile a propósito de Beagle. Nesse caso, a ação brasileira deveria ser limitada à pressão diplomática por falta de instrumento de dissuasão, ou, se se ousasse ação no plano militar, efetivar-se-ia mediante ação de efeito mais moral do que prático, apta a esconder a inexistência do instrumento de dissuasão, embora procurando exercer os efeitos dele.

O fato de o Brasil não ter força armada capaz de exercer a função de instrumento de dissuasão na América Latina (considerando as dez fronteiras do Brasil com seus vizinhos) decorre de errônea concepção presente na doutrina militar tradicional, a qual, desde a revolta da Esquadra, minimiza a Marinha na defesa do Território Nacional — em outros termos, desconhece a Marinha como instrumento estratégico. Esse menosprezo da Marinha — e depois da Força Aérea — corre por conta da doutrina militar desenvolvida no período republicano, na qual se atribuiu à Marinha tão-só a tarefa de defender o território nacional, isto é, patrulhar as costas e, quando muito, servir de ala esquerda do Exército, em movimento tático.

Preocupado com o drama interno iniciado com a proclamação da República e ainda não terminado, os Estados-Maiores desconsideraram os problemas internacionais, limitando-se a concentrar no Sul o grosso da tropa e do armamento disponíveis — as memórias dos generais políticos do tempo dão conta do despreparo da primeira e da falta de equipamento —, traçando planos para que, no caso de irrupção do conflito, a reserva estratégica pudesse ser deslocada em 24 horas para o teatro ae operações. Esse deslocamento só se poderia efetuar, na visão terrestre predominante, por via férrea, o que exigiria uma malha ferroviária de primeira ordem. Apesar de a segurança nacional estar em jogo, até hoje as 24 horas serão insuficientes para o transporte da reserva, dada a inexistência de bitolas padronizadas, túneis adaptados ao armamento moderno, rampas e curvas tecnicamente construídas para permitir velocidades médias máximas — e de a opção rodoviária nada haver acrescentado em termos de velocidade.

Não entro nos motivos determinantes da não-racionalidade do comportamento governamental, impedindo a criação das condições necessárias à manobra em qualquer dos dois sentidos da palavra. O que importa discutir é que o retraimento dos assuntos internacionais, além da debilidade organizatória da máquina militar, resultou de trabalho ideológico de anos, fundando-se numa cômoda situação de fronteiras recebida do Império e consolidada no começo do século. À força de ouvir o Itamaraty, a Presidência e a classe política recitarem que não tínhamos ambições territoriais; observando a luta do governo para impor o não recurso à força como norma de solução dos problemas internacionais; convencido — vencido — de antemão de que há um abismo intransponível entre a Servidão Militar e a opinião pública, abismo esse que debilita a reserva e inibe a ação, e tendo contribuído para construir o mito do Brasil que não faz guerras, e consolidar aquele outro, do brasileiro cordial, o Exército elaborou doutrina de emprego da tropa coerente com essas proposições ideológicas. A hipótese de guerra Argentina-Uruguai-Paraguai versus Brasil não fundamentava uma idéia estratégica de manobra; simplesmente era a previsão (fácil de fazer) do que poderia acontecer no futuro. Por outro lado, era hipótese de guerra elaborada nos e para os Estados-Maiores, e não trabalho conjunto da Sociedade, do Itamaraty e dos Estados-Maiores, embora se possam discernir sinais de preocupação da diplomacia com a hostilidade argentina. Afinal, a Argentina era a grande potência sul-americana da época. Como tentarei demonstrar mais adiante, o que havia entre o Itamaraty e o Ministério da Guerra era um grande descompasso: a Casa de Rio Branco, nesse período, tinha um projeto estratégico; o Exército não podia dar-lhe apoio militar. O resultado foi o malogro do primeiro.

Essa doutrina militar, hoje superada, era oficialmente defensiva-ofensiva, quer dizer: na hipótese de um conflito armado, o Brasil só daria combate ao adversário depois de ser por ele atacado. Após resistir ao primeiro assalto das divisões adversárias, as forças armadas brasileiras passariam à contra-ofensiva, visando a restabelecer a situação territorial anterior com a ajuda da reserva estratégica que deveria chegar nas 24 horas seguintes. Até o final dos anos 50, o caráter defensivo da doutrina de emprego era assaz acentuado, a ponto de, no cenário de guerra mais provável, admitir-se o recuo até as barrancas de Itararé.

B) — Com o trabalho individual do general Castello Branco em fins dos anos 50; depois com sua passagem pela chefia do Estado-Maior do Exército e com sua presença atuante na Presidência da República, alterou-se a doutrina militar. Ela deixou de ser configurada na proposição retirada defesa ativa ofensiva para espelhar-se nesta outra: defesa ativa no local retirada se necessário e em última instância ofensiva. Para essa mudança influíram, e muito, as análises das situações de guerra após a paz de 45, quando os conflitos, arbitrados pelas organizações internacionais, muitas vezes faziam que o governo, que tinha seu território nacional invadido, negociasse em posição de fraqueza a recomposição do statu quo anterior. Na nova concepção, mesmo admitindo como válida a hipótese de guerra anterior (AUPxB) e ainda que se concebesse que o inimigo realizasse infiltrações, a diretriz de ação insistia na fortificação da fronteira (alguns pontos dela) para que o adversário não tomasse posse do TN. A insistência em não ceder terreno, configurada a hipótese de guerra, visava a que o cessar-fogo no local não desse ao adversário a vantagem de ter fincado pé em posições estratégicas das quais dificilmente se retiraria no processo (eventualmente longo) de negociações diplomáticas.

Essa mudança na doutrina coincide com o início do descrédito na eficácia dos sistemas de defesa associada e nas organizações internacionais como garantes da justiça internacional e da integridade territorial. Para ser efetiva e racional, porém, essa nova doutrina deveria impor que o Exército perderia seu enorme peso específico no conjunto das armas. Na verdade, a manutenção de cidades-fortins na fronteira, barrando o avanço adversário, não só exigiria o apoio tático da Força Aérea na defesa das “fortalezas”, como o emprego estratégico da FAB contra o território do inimigo, além da atribuição de função dissuasiva à Marinha, conjugada com a função tática, de ala esquerda. A completa montagem da nova doutrina exigiria, pois, o reconhecimento à Força Aérea e à Marinha de que lhes cabia o desempenho de funções e missões estratégicas. Tanto mais que a Doutrina Castello Branco não admitia o recuo até Itararé; as ações defensivas seriam todas de retardamento. Ora, isso aumentava a responsabilidade estratégica das outras Armas.

Há outro aspecto para o qual se deve atentar: quando, antes de ser chefe do SNI, Golbery do Couto e Silva escreveu que a fronteira leste do Brasil passava por Moçambique, ou estava dizendo uma boutade sem sentido, ou enunciava a doutrina de uma Grande Potência (doutrina que identifico no governo Castello Branco), a qual requeria uma Marinha apta a pô-la em prática.

A solução da crise da aviação embarcada, exatamente no governo Castello Branco, demonstrou, no entanto, que a doutrina era nova no tocante à maneira de formular a manobra do Exército na hipótese de guerra tradicional. No demais, nada inovava, pois não era capaz de compreender as funções dissuasivas das outras armas.

C) — No período da guerra revolucionária (1967-1972) houve duas mudanças substanciais na doutrina militar. Pela primeira, acrescentaram-se duas hipóteses novas à tradicional hipótese AUPxB: uma, admitia ações militares no Nordeste, o inimigo tentando estabelecer cabeças-de-praia em algumas regiões (mesmo assim, à Marinha não se atribuiu maior importância estratégica, muito menos à FAB); outra, aceitava a realidade da guerra interna, o desenvolvimento da teoria das fases da guerra revolucionária, inclusive a fase das zonas liberadas. Essa aceitação ou era meramente teorética ou respondia a uma realidade. Aceitação ou resposta, prevalecendo a “doutrina do cerco” — isto é, a doutrina segundo a qual o Brasil estava cercado por governos hostis — e prevenindo-se contra ações guerrilheiras que partiriam de regiões fronteiriças, a nova hipótese previa que a ação deixaria de configurar-se na proposição defesa ativa no local retirada se necessário e em última instância ofensiva para converter-se em ofensiva penetração em território santuário do adversário manutenção/ou retirada para o território nacional.

A mudança na conjuntura latino-americana nas fronteiras e o fim da guerrilha urbana e rural no Brasil eliminaram essa tendência revisionista favorável à guerra preventiva. Note-se o seguinte: a hipótese do teatro de operações no Nordeste era tão fantasiosa quanto a “teoria do cerco”; em segundo lugar, a guerra preventiva não encerrava uma idéia de manobra, e apesar de privilegiar a ofensiva, configurava postura doutrinária tipicamente defensiva. Na verdade, porque o País estava sendo ameaçado de cerco é que se fazia indispensável aliviar as pressões nas fronteiras mediante a ofensiva contra o adversário, possivelmente ao amparo do droit de suite formulado na campanha do Exército francês na Argélia, quando perseguia a guerrilha da FLN dentro do território da Tunísia.

D) — Se o governa Costa e Silva iniciou o reequipamento da Marinha e da FAB — e permitiu a ampliação dos efetivos do Corpo de Fuzileiros Navais —, não foi capaz de dotar essas Armas de poder de dissuasão apto a amparar uma política externa. Góes Monteiro dizia que as Forças Armadas são o instrumento de uma política externa. Se as Forças Armadas inspiram-se na defensiva e não possuem os instrumentos de dissuasão é o caso de perguntar: há política externa?

E) — No governo Médici, o que se alterou no quadro estratégico foi a propaganda em torno do mito da Grande Potência, do Brasil Grande. A situação permaneceu idêntica, no campo da doutrina, exceto no tocante à tecnologia militar, desenvolvida ainda assim para projeto de projeção tática. Não se formulou política externa, manobra, coisa alguma. A fiscalização efetiva das 200 milhas — grande desafio nacional aos Estados Unidos — era, como é ainda hoje, impossível por falta dos mais elementares meios de ação da Armada. As mudanças que houve, registraram-se no chamado Plano de Batalha do Exército — com efetivos incompletos apoiado num recrutamento defeituoso.

F) — A doutrina atual tem muito da de Castello Branco: defesa ativa no local retirada se necessário e em última instância ofensiva. Privilegia o emprego da tropa em situações em que o Brasil pode agir isoladamente; evita ao máximo, qualquer que seja a circunstância, participar de ações coletivas como em São Domingos; não aceitando engajamentos associados, marca ostensivamente o afastamento dos Estados Unidos, sobretudo no que tange ao equipamento.

G) — A doutrina de emprego — seja a tradicional, seja a de Castello Branco, seja a atual — sempre privilegiou a força de terra e, por descurar do concurso estratégico da Marinha e da Força Aérea, jamais pensou em termos de pressão e dissuasão. Esse fato não decorreu diretamente da análise da situação nas fronteiras, ou dos objetivos do Estado. Foi a conclusão coerente da dissociação entre a doutrina militar (e a idéia de manobra nela implícita) e a política que o Itamaraty seguiu até o governo Castello Branco e depois dele, além de ser decorrência lógica de empenho na exclusiva defesa do território. Não se descarte, para a composição desse quadro, a persistência da memória da Revolta da Armada em 1893, e o empenho dos governos republicanos em tornar secundário o papel da Marinha, vista como força de elite, diferenciada e, no começo do século, monarquista. A história republicana, ademais, foi feita toda ela pelo Exército; por outro lado, as crises militares no período 1946-64, especialmente as de 54 e 55, confirmaram a força de terra na convicção de que o crescimento das outras Armas levaria à diminuição de sua influência no conjunto da política nacional. Essas circunstâncias influenciaram a doutrina militar — que se constrói, forçoso é dizê-lo, com os instrumentos de que se dispõe. Por isso, a concepção da doutrina brasileira é terrestre, atribuindo-se à Marinha e à Força Aérea missões táticas de apoio e cobertura.

O importante a assinalar nessa doutrina terrestre é que o emprego da força armada como elemento de dissuasão como tal, parte integrante e instrumento da política internacional, da manobra estratégica não foi considerado. País tradicionalmente dado como pacífico, o Brasil republicano jamais pretendeu que seu potencial militar se transformasse em poder e este em elemento dissuasivo, seja para fins e objetivos próprios e diretos da política do Estado brasileiro, seja para ser empregado como instrumento destinado a assegurar a paz continental.

2. A grande mudança

A) A concepção defensiva e terrestre da doutrina militar, associada ao desinteresse que o assunto política externa mereceu dos Estados-Maiores, e à separação do planejamento estratégico feito pelo Itamaraty daquele elaborado nos Estados-Maiores (além do afastamento da sociedade das decisões estratégicas), privou a chancelaria dos instrumentos normais de execução de uma política internacional e das balizas por onde conduzir esta política.

Abro um parênteses: é preciso ter sempre presente que a política externa soviética é o que é, obra de arte quase acabada, porque há adequação perfeita entre a concepção da manobra e a ação diplomática. Quando a manobra privilegiava a defesa do império euro-asiático, a diplomacia centrou sua ação na Europa sem deixar de buscar apoios à manobra na África e no Oriente Médio (objetos de ações diversionistas e não linha principal ou secundária de primeira ordem de ação), nem de aproveitar-se dos erros do adversário na área de influência dele. Observe-se que, nesta fase, a União Soviética não se comprometeu militarmente no Sudeste Asiático ou na América; o caso cubano (a crise dos foguetes em 1962) foi a prova montada para desacreditar quem acreditasse que a diplomacia poderia executar uma grande política fora do alcance do instrumento da manobra, que era a tropa convencional de terra, ou quem pensasse que a manobra tinha condições de ser alterada ao sabor das conveniências políticas. Ainda assim, a derrota produziu frutos: consolidou a idéia inicial da manobra e preservou a fortaleza-Cuba, que se revelaria necessária na fase seguinte.

Só quando a esquadra soviética pôde chegar aos mares quentes, em 1973, ainda que fosse apenas para cercar o Poder Terrestre da China, é que a manobra soviética mudou: não cuida mais de defender apenas o império euro-asiático, mas de defendê-lo e expandir a influência soviética até onde a esquadra é capaz de operar em condições reputadas boas. É a partir de 1973, e só a partir daí, que a União Soviética se engaja, apoiada também nas forças de intervenção de Cuba e da Alemanha Oriental. A manobra serve à ação diplomática e essa se aprimora na cobertura política do engajamento. O fundamental a reter, e que ainda não foi dito, é que atrás dessa coerência entre política externa e manobra há a decisão de ser potência, a qual harmoniza eventuais conflitos entre o partido, a chancelaria e os Estados-Maiores, que parecem ter hoje a direção do processo. Fecho o parênteses.

B) — O conflito nas ilhas Falkland, além de evidenciar a postura defensiva da diplomacia brasileira, tornou patente mudança substancial na concepção do objetivo da política internacional do Brasil. Digo tornou patente porque os sinais dessa mudança já eram notórios há tempos; apenas que a discussão que se fez em torno da retórica, da forma, impediu se vislumbrasse o conteúdo da ação.

O Brasil, até 1964, sempre quis ser potência e agiu diplomaticamente como tal, mal apoiado pela inexistência de uma correta idéia de manobra e ainda que aumentando os objetivos intermediários a serem primeiro alcançados. Em meus últimos ensaios sobre a política exterior brasileira trabalhei na linha da coerência histórica — isto é, considerei importante demonstrar que o objetivo da política internacional do Brasil, independente de regimes e governos, sempre foi buscar afirmar o país como primeira potência da América Latina, objetivo-fim que exigia se atingisse antes um objetivo-meio, que era o reconhecimento do Brasil como interlocutor válido no círculo restrito das potências mundiais que decidem.

A crise das Falklands precipitou posições, para usar uma imagem da Química, e me permite ver à outra luz aquilo que se fez nos últimos anos.

A divergência dos fins

A consecução do objetivo-meio sempre teve de levar em conta o sentimento hostil que há nas fronteiras com relação ao Brasil; é que se supunha, aliás corretamente, que o aumento das hostilidades acabaria frustrando o diálogo com os “grandes”. Seguramente pesando a importância desse estado de espírito adverso e buscando compensá-lo no jogo diplomático, a Chancelaria nunca buscou afirmar suas aspirações à liderança (nisso apoiada por largos setores do escol culto da sociedade, favoráveis ao isolamento), contentando-se em reiterar a adesão ao Direito e em aproveitar o capital investido na conferência de Haya de 1907 e o beau geste com que nos despedimos mais tarde da SDN. Esse retraimento talvez se explique pelo fato de que a pretensão a ser interlocutor válido, a participar do “círculo restrito dos que decidem”, sempre teve a alicerçá-la pouca coisa além da vontade e dos dados brutos da geografia: a comparação com a Argentina, no Sul, e os Estados Unidos, no Norte, durante muitos anos foi desprimorosa. Essa limitação, ao fazer-se a comparação com a outra potência aspirante à hegemonia no Continente — a Argentina — e ao ter-se consciência, como de fato sempre se teve, de que o adversário que se antepunha no caminho da consecução do objetivo-fim era de fato a Argentina, impôs a vasto espectro da sociedade e ao Núcleo de Poder no Estado partido de ação claro e nítido: se a liderança da América Espanhola poderia ser alcançada mais facilmente pela Argentina, que a buscava com ardor desde o século passado com a “Geração de 80”, e se essa liderança tendia a afirmar-se ostensivamente pela oposição da Chancelaria Argentina aos Estados Unidos, a política brasileira, se é que se pretendia chegar ao objetivo-meio, não deveria jamais hostilizar os Estados Unidos. Essa era a única maneira de, afirmando concomitantemente a individualidade do Brasil e sua distinção dos “latinos” na cena internacional, poder um dia fazer-se intérprete dos sentimentos da América Latina e ser acolhido no “círculo dos que decidem” graças ao fato de o Brasil não ser latino, nem nunca haver hostilizado os Estados Unidos.

Momentos houve, no desenvolvimento dessa política, em que a não hostilidade aos Estados Unidos envolveu claras opções de defesa estratégica, ou em que o desejo de ser intérprete das aspirações continentais fora do âmbito da influência argentina não encontrou fundamentos outros que a vontade de ser grande. Até certo ponto, aplicou-se nessa delicada relação do Brasil com a América Latina e os Estados Unidos aquilo que Euclides da Cunha escreveu sobre o Império: a política brasileira obteve frutos e o país ganhou prestígio talvez mais graças à acelerada erosão das bases do poder e da influência argentinas do que do aumento dessas bases e dessa influência por parte do Brasil.

Qualquer que seja a razão, quando as condições objetivas, a política objetivada de que fala Aron, começaram a indicar ter o Brasil condições de ser interlocutor válido dos que decidem, alterou-se o curso da rota e os governos brasileiros não mais seguiram a linha do passado, que era buscar a hegemonia na América Latina. Essa mudança de curso, fatal para a formulação da manobra e da política externa — porque feita sem apoio em nova doutrina militar de emprego e em Forças Armadas renovadas — deu-se paradoxalmente nos governos militares pós-Castello Branco, exatamente aqueles que foram vistos como pretendendo fazer do Brasil uma potência mundial.

A hipótese de trabalho, que suscito neste ensaio, é a de que os governos pós-Castello construíram um novo objetivo-fim diverso do que a tradição dizia ser o nosso, e ao elaborá-lo e ao procurar dar a ele concreção, criaram o vazio sobre o qual se assenta hoje a política externa brasileira, cujos executores têm consciência (limitada) de que nada a ampara na ação, se não os princípios que ajudou a difundir e as tempestades que com eles semeou.

A bem da verdade deve reconhecer-se que a proposição de o Brasil ser a primeira potência latino-americana não é militar. Ela é civil — mais especificamente vem do Império, e nele mais dos conservadores do que dos liberais. Ela não é defensiva; é ofensiva — mais especificamente se apoiando na Marinha para a realização da manobra. Por isso, também, hibernou depois do Barão do Rio Branco. A supremacia de uma doutrina defensiva e com apoio na tropa de terra explica porque existe o vácuo e como se construiu ele. A ilustração do caso fica ainda mais fácil se se tem em mente a postura defensiva do Exército diante da Nação: ele a domina e refoge à idéia de assim ser; por seus lídimos intérpretes, autênticos intelectuais orgânicos, afirmou ser a “espinha dorsal da Nação” e faz por esquecer ter pretendido assumir essa posição, responsável por sua dispersão territorial sem sentido operacional e por seu desnecessário efetivo superior a 150 mil homens sem treinamento profissional; controla há dezenove anos o poder, e controla diretamente, sem no entanto ter a coragem de admiti-lo publicamente.

A transformação do objetivo-meio em objetivo-fim (ser reconhecido pelos que decidem, vale dizer pelos Estados Unidos e pela União Soviética, não meramente como interlocutor válido, mas como potência de primeira grandeza igual à França, Grã-Bretanha e Alemanha, nem que fosse no ano 2.000) é de responsabilidade militar e provavelmente de inspiração geopolítica. Essa proposição, vejo hoje com clareza, assentava em premissa falsa, que cheguei a denunciar antes da posse do governo Médici: ela desconhecia o montante do custo social da relação custo/benefício presente na proposição, desde que respeitadas as formas vigentes de acumulação do capital. Baseava-se igualmente em erro de princípio, que era pretender construir o Brasil Potência sobre uma doutrina militar defensiva e desprovida da idéia e dos meios da manobra. Quando o sonho econômico se desfez, arrastado no caudal da crise de 1973, o que restou ao governo brasileiro foi o “chauvinismo de grande potência” exercitado contra a Argentina no governo Geisel. Daí ao low profile da conduta diplomática do segundo choque do petróleo, da alta dos juros internacionais, da crise cambial foi um passo — e ao desarmamento estratégico da diplomacia e do país, outro.

Quero dizer com isto tão-só o que veio atrás: a partir do instante em que se formulou um objetivo-fim desproporcionado aos meios disponíveis no quadro da atual forma de acumulação do capital, e inclusivamente contrário à premissa básica da doutrina militar, a Chancelaria não teve mais base para fundar uma ação coerente com o objetivo-fim. Aliás, ela já não queria — e este é o outro lado do problema, vale dizer, a divergência entre os fins dos Estados-Maiores e os do Itamaraty.

A guinada de orientação diplomática

As questões neste terreno são todas entrelaçadas. Pretender atribuir primazias, determinações de última instância etc. é mero exercício acadêmico sem sentido. Cabe registrar — ainda que seja apenas pelo prazer do registro — que o reclamo em prol da abertura das estradas que levariam o Brasil à posição de grande potência no ano 2.000 coincide com a afirmação de duas proposições antitéticas, até hoje vistas como compatíveis pelos estudiosos da política externa brasileira: uma, a denúncia do congelamento do poder mundial realizado pelos Estados Unidos e pela União Soviética com a assinatura do Tratado de Não-Proliferação das Armas Nucleares; outra, a afirmação do princípio da política externa, segundo o qual o Brasil é parte do Terceiro Mundo, já presente nos escritos de Golbery do Couto e Silva nos anos 50.

A denúncia dos fins hegemônicos do TNP fez-se sem dúvida alguma para ressalvar ao Brasil o direito de ingressar no Clube Atômico, via Tratado de Tlatelolco, que prevê a possibilidade de explosões nucleares pacíficas. Ora, a denúncia do congelamento do poder mundial com vistas a ascender ao “Clube Nuclear” traz implícita a convicção de que a política internacional é uma política de poder; país algum pretende a posse da bomba atômica se, em seus círculos dirigentes, não aceita as realidades do poder e se não está disposto a desenvolver política nesse sentido. A identificação do status de grande potência com o de membro do “Clube Nuclear” não conflitava apenas com a posição doutrinária expressa pelo terceiro-mundismo, como veremos a seguir; era incompatível com a doutrina militar defensiva. Ademais, a pretensão nuclear trazia em si problema político de difícil solução no quadro das rivalidades inter-armas no Brasil, presentes, mas nunca admitidas; quem controlará os vetores e a bomba? Solução mista, no estilo daquela dada à questão da aviação-embarcada, não poderia ser alcançada em assunto dessa delicadeza...

A doutrina diplomática do Terceiro Mundo, se é que a tem digna desse nome, é a antítese da política de poder. O terceiro-mundismo nega, fundado em ideal de Justiça Internacional, o direito real e concreto dos governos dos países industrializados de opor obstáculos ao livre comércio Norte-Sul; por outro lado afirma, fundado nesse mesmo ideal abstrato, que esses mesmos governos têm o dever de assistir os países em desenvolvimento. Embora aproveitadas, instrumentalmente, pelo bloco soviético, as posições dos países do Terceiro Mundo nada têm que espelhe compreensão marxista do fenômeno imperialista, nem muito menos daquele da acumulação do capital. É um lampejo de reflexão crítica para uso exterior sobre um malogro interior: o malogro na condução dos problemas econômicos, na solução dos problemas sociais, no encaminhamento da justa inserção dos países no mercado internacional. Incapazes de analisar de perspectiva correta as relações entre as economias desenvolvidas e aquelas em desenvolvimento, os teóricos do terceiro-mundismo lançam sobre os governos do Norte todas as culpas pelo que acontece no Sul sem deitar os olhos sobre as realidades da expansão do capital e da aliança dele com as formas oligárquicas de dominação política e a “maneira nobre de viver” (formas e maneira das quais esses teóricos participam, como creio haver demonstrado em Nossa América, Indoamérica).

Na opção que se impunha ao Brasil fazer, acabaram influindo diversos fatores, que vale a pena sumariar: um, o apelo missionário do discurso do Terceiro Mundo, discurso esse que permitia a um país pacífico e desarmado (porque perdeu a aposta da bomba atômica) assumir posição de retórico destaque mundial; outro, a possibilidade sonhada de chegar a essa posição sem necessidade de agastar os vizinhos infensos à pretensão à hegemonia de um país que era cada vez mais diferente e em certo sentido mais pretencioso por sentir-se de fato diferente.

Centrando a atuação diplomática na defesa das teses do Terceiro Mundo (quando não avançando alguns passos para chegar às lindes do não-alinhamento), a Chancelaria — até dezembro de 1982 — satisfazia às posições doutrinárias que vinha estocando há tempos, inclusive com o reforço de uma adequada leitura do general Golbery do Couto e Silva, e atendia aos reclamos das Forças Armadas, desejosas de encontrar, sempre e mais, motivos reais para legitimar a seus olhos e perante parte do escol culto da Nação — isto é, aquele despreocupado com os problemas militares — o afastamento dos esquemas dê defesa associada. Quando o Itamaraty insistia na predominância do conflito Norte-Sul sobre o Leste-Oeste, sem dúvida respondia a um tipo de conhecimento da realidade internacional e privilegiava determinados valores no lugar de outros; atendia, também, embora de maneira inconsciente, àqueles setores militares que, apregoando os perigos do movimento comunista internacional para a segurança interna, aceitavam que a política externa seguisse seu curso anti-Estados Unidos no limite. Apesar de todas as críticas intramuros, os Estados-Maiores objetivamente defendiam o terceiro-mundismo, pois qualquer alteração de rumo poderia, entre outras coisas, levar o Brasil a adotar de novo esquemas de defesa associada, fatais à política de instalação de uma indústria nacional de armamentos. Os grupos de trabalho constituídos depois da visita do presidente Reagan confirmam essa hipótese.

Em suma, ousaria dizer, o neutralismo pressentido em nossa política externa respondia, ainda que seus executores disso não tivessem consciência, à doutrina militar anti-associativa. Da parte da Chancelaria, ele era uma aspiração, para dizer o menos; da parte das Forças Armadas, vontade de afirmação nacional. Por isso, de Costa e Silva até a crise, período em que se consolida a idéia de uma doutrina militar própria e nacional, rejeitarem-se esquemas de defesa associada e afastar-se, o país, cada vez mais dos Estados Unidos.

O princípio que levou ao erro

A impossibilidade política de fazer a bomba atômica nos anos 70 significou a derrota dos defensores da doutrina de emprego que sua posse trazia implícita (nas Forças Armadas) e a consagração dos periféricos do neutralismo (na Chancelaria). Ao negar-se a adotar gestos políticos ou militares que significassem mais expressivamente um alinhamento aos Estados Unidos em matéria de política externa, ‘e’ associação aos esquemas de defesa associada no campo militar, os vitoriosos nessa luta partiam do princípio de que a guerra nuclear é impensável e, portanto, impossível, e de que no mundo moderno só há uma forma de guerra possível, a qual não mais atingiria o Brasil, pois fora esmagada nos anos 60/70 e a reflexão sobre sua condução amadurecera os espíritos contestadores: a subversiva, ou revolucionária. Eliminada qualquer consideração de política de poder pela impossibilidade de ela se afirmar em sua ultima ratio no conflito para o qual os Estados Unidos eram vistos desejar arrastar o Brasil, a política externa brasileira concentrou-se na solução do conflito Norte-Sul.

Nesse quadro conjuntural — que se altera depois da crise cambial —, a análise da Chancelaria coincidiu com as teses do Exército, fortalecendo a doutrina militar de caráter defensivo e centrada na força de terra. Afinal, para que batalhar para reformular a doutrina e elaborar um esquema de manobra se a guerra clássica estava fora de moda e a nuclear era impensável? Por quê esse esforço, também, se os vizinhos se haviam debilitado? Os interesses nacionais foram restringidos assim a esse ponto; coerentemente, a ação diplomática orientou-se para o campo de batalha do conflito Norte-Sul, as negociações econômicas e a defesa do acordo nuclear com a República Federal da Alemanha (símbolo da aspiração e do fim do sonho de potência nuclear, portanto grande potência no ano 2.000).

Foi nessa conjugação de fatores que a guerra nas Falklands veio apanhar de surpresa a Chancelaria e os Estados-Maiores. O debate que o conflito ensejou não foi ao fundo da questão: ficou na superfície do reequipamento das Forças Armadas brasileiras. O fundamental é examinar os princípios da política externa até então vigentes e sua determinante, mesmo que inconsciente, que é a doutrina militar, além de fazer a crítica dessa última. Afinal, o armamento que a Argentina deu mostras de ter armazenado não parece ter sido adquirido com a intenção de fazer a guerra à Grã-Bretanha.

3. As imposições do conflito

O conflito no Atlântico Sul é mais sério do que a loucura do gesto fatal pode ter deixado entrever. Ele quebrou as alianças e exige do Brasil clara definição por um dos dois campos. Estivesse o Brasil na Europa, poderia afetar indiferença; sendo o que é e estando onde está, será chamado, use da retórica que desejar, a tomar posição a favor ou contra:

a) A América Latina, que o rodeia, e que lhe será cada dia mais hostil se as correntes nacionalistas triunfarem nas fronteiras em decorrência da crise econômica internacional. A opinião pública nesses países associa a ignorância do que seja o Brasil ao temor das pretensões atribuídas aos governos pós-64 a partir de uma leitura errada da Geopolítica do Brasil, do gen. Golbery do Couto e Silva;

b) A Comunidade dos Desenvolvidos (nela incluídos os Estados Unidos, a Europa e o Japão, formando o conjunto do Norte) com a importância que tem para o país como mercado comprador e fornecedor de bens, serviços e empréstimos;

c) Os Estados Unidos, isoladamente, feitos vilão na tragédia dás Falklands;

d) A Argentina isoladamente, donzela do drama.

Os passos da Chancelaria indicam uma nítida disposição de não se isolar. A crise cambial sem dúvida terá reforçado a idéia de que os Estados Unidos e a Europa são vitais, embora haja confirmado também as teses sobre a importância da América Latina, que pelo menos não envia para aqui embaixadores que desprezam as normas da correta etiqueta. O que se sabe e intui da reação dos Estados-Maiores leva a crer que o episódio serviu para reforçar a política de armamentos (independência na fabricação) e firmar em sua posição os que condenavam qualquer compromisso associativo com os Estados Unidos, que no caso apenas teriam provado não ter qualquer desejo de defender o Continente. A resistência da associação tecnológica com indústrias norte-americanas de armamento confirma essa hipótese.

Resumindo razões, enquanto a Chancelaria reforça a retaguarda argentina sem comprometer-se com um anti-americanismo virulento, os Estados-Maiores rejeitam mais e mais qualquer associação com os Estados Unidos. Abro parênteses: merecem estudo específico dois fatos. Um, a mudança de tom pressentida na política externa depois que se tornou evidente o auxílio direto do Tesouro norte-americano ao Brasil durante a crise cambial; outro, o episódio da apreensão do armamento transportado pelos aviões líbios para a Nicarágua. Esse último fato, especialmente, merece estudo pormenorizado na medida em que alguns indícios levam a crer que o Itamaraty teve conduta diversa daquela que lhe foi atribuída por certos setores da imprensa nacional. Fecho o parênteses.

Onde levam essas opções, da perspectiva de longo prazo? Sem uma correta doutrina militar, silenciados os que na FAB advogaram por uma aviação estratégica, e tendo a Marinha a permissão de procurar construir corvetas (emprego defensivo), pode dizer-se que a consolidação da doutrina vigente reforçou, no plano da retórica, o terceiro-mundismo da Chancelaria, que esperava aproveitar-se do conflito das Falklands para desempenhar o papel de intermediária entre as nações de origem espanhola e os Estados Unidos, e confirmou o Exército em sua doutrina defensiva. A crise na fronteira Norte, especialmente no Suriname, lançou a idéia de uma força de dissuasão, anunciada meses antes pelo presidente da República em um discurso protocolar. As dificuldades de estruturar essa força à luz da doutrina vigente (e da separação estanque entre as funções das Armas singulares) aconselhariam que se pensasse mais profundamente o problema, tendo em vista questões como treinamento conjunto, emprego combinado e comando único. A tentativa do Itamaraty é voltar a desempenhar papel que a Chancelaria aspirou a ter anos e anos atrás. A diferença é que, no passado, o Brasil buscava ser intermediário por sentir-se e saber ser diferente; hoje, quer ser intermediário tendo-se transformado mental e politicamente em igual.

Na apreciação do Estado-Maior do Exército, pouco importa que a Grã-Bretanha tenha sabido administrar corretamente o Poder Naval; pouco se lhe dá que as glórias da Argentina na guerra tenham advindo do correto emprego (ainda que a altíssimo preço) de seu pequeno Poder Aéreo Estratégico, ou que a batalha em terra tenha sido travada por um Poder de Terra formado na má escola — muito parecida com a brasileira. O caráter não-associativo da doutrina militar, a predominância do Exército no conjunto das Armas desde 1893 e a rivalidade Marinha versus Aeronáutica inibem qualquer debate regenerador e projetam sua sombra funesta sobre o futuro.

O resultado — e aqui respondo a parte da pergunta que fiz — é que da perspectiva de longo prazo as opções, militarmente, desarmaram estrategicamente o país; diplomaticamente, arruinaram o trabalho anterior à grande mudança pós-Castello e tornaram mais difícil a adaptação da diplomacia a seu ambiente.

4. A primeira conclusão

Cabe ver que há muitos estados dentro do Estado brasileiro, cada ministro traçando diretrizes para sua ação no plano internacional e as executando até que outro proteste e obrigue o Presidente a uma decisão muitas vezes adotada sem correto exame de situação. Essa descoordenação, admite-se que ocorra no plano interno e entre a Previdência Social e o Planejamento — os efeitos catastróficos dela serão suportados apenas pelo povo pobre. Quando, porém, o descompasso atinge a defesa externa e a política internacional, a situação assume aspectos de real gravidade.

Afora essa descoordenação, há um erro de base: o Brasil não tem manobra. Ou se a possui, ela está desconectada da política externa, que se orientava por uma estrada real que a rigor não exige manobra alguma, e por isso (apoiando-se no triunfalismo da retórica terceiro-mundista) serve de álibi inconsciente aos que, no campo militar, rejeitam a manobra associada, recusando não só os engajamentos automáticos, como também pensar nas necessidades da defesa.

Uma conclusão impõe-se, irretorquível, do conflito no Atlântico Sul, a qual é limitadora do quadro geral: a guerra clássica é possível. O reconhecimento dessa verdade deve ilustrar o raciocínio.

5. O interesse nacional

A política externa deve avançar paralelamente à manobra ainda que se possa admitir que a associação entre uma e outra deva ser de tal maneira íntima que não se perceba onde cessa a política diplomática e começa a grande estratégia inspirada na manobra. Se não se adotar de maneira explícita essa regra nos conselhos governamentais, a Chancelaria não terá como implementar sua ação, e os Estados-Maiores, por sua vez, não encontrarão quem lhes dê a justa cobertura político-diplomática nos momentos de crise.

A manobra brasileira não existe. Há-de, assim, formulá-la a partir dos dados mais elementares; antes, porém, deve elaborar-se a Doutrina Política que guiará a reorganização das Forças Armadas, condição indispensável a que se retirem da função de tutores do Estado e sirvam a uma política externa. Estabelecida essa Doutrina Política e fixada a manobra, pode ter-se então a Doutrina Militar, ou de emprego, a qual não pode perder de vista os objetivos políticos fixados pela Chancelaria. Se não é possível levar a Chancelaria a adotar uma linha de ação imposta pela manobra (como foi o caso nos Estados Unidos, o Departamento de Estado aceitando a política da “beira do abismo” com Foster Dulles porque o Pentágono fixara a arma nuclear como única resposta), também não se deve estabelecer uma manobra sem levar em conta os objetivos políticos (como fez Eisenhower no fim da guerra no Teatro Europeu, desprezando os efeitos políticos da conquista de Berlim para ater-se aos aspectos exclusivamente militares das operações de guerra).

Com anterioridade, pois, é preciso elucidar algumas questões.

A manobra existe para que? Para defender os interesses nacionais. Esses não são muitos (se por nacional se entende aquele interesse que é simultaneamente do Estado e da Sociedade), e o acrescentamento deles deve obedecer à regra de ouro de que o povo deve estar sempre consciente de qual é o interesse nacional, pois não se moverá para defendê-lo se não o tiver interiorizado como tal. Tenha-se também presente, sem ambages, que quando se fala em “princípio de autodeterminação dos povos”, deve ter-se presente que se trata de “autodeterminação do Núcleo de Poder no Estado”. Nesse sentido, os Estados Unidos são tão autodeterminados quanto a União Soviética, e a prudência e a prática diplomáticas aconselham a que não se questione a maneira pela qual o povo é chamado a participar dessa determinação. Em outras palavras, as “cruzadas” coincidem com o interesse nacional ou não existem. Não cabe confiar numa manobra e numa política que utilizam disfarces retóricos para ocultar interesses outros que os do Estado e da Nação, vale dizer, os interesses da oligarquia que dirige economicamente o país e os daquela outra, mais restrita, que manda em todos nós.

No caso brasileiro, há dois interesses em torno dos quais a discrepância seria difícil:

1. defesa das fronteiras, tenham sido elas demarcadas por guerra de conquista, acordos internacionais, laudos arbitrais ou sentenças de tribunais internacionais;

2. decorrência desse primeiro: defesa do statu qito territorial no continente, e oposição ativa a que terceiros empreguem a força para alterá-lo.

O primeiro interesse não necessita de explicitação; entender-se-á o segundo se se tiver presente que a aceitação da mudança, pelo emprego da força armada, de situações territoriais juridicamente consagradas pode conduzir, com boa dose de certeza probabilística, a ver questionada a situação das fronteiras do Brasil.

Se as funções do Estado se limitassem apenas à função territorial, isto é à defesa do território, seria fácil fixar — como foi o caso no passado — a manobra à vista desses dois interesses e estabelecer a doutrina de emprego e a política externa correspondente. O Estado tem outras, porém, entre elas a de coordenação, vale dizer manter integrados, na comunidade da ordem jurídica que o define, os grupos sociais que são sua base populacional. Ora, essa função coordenadora exige que a ação diplomática (estatal) recubra o avanço dos interesses econômicos privados ou de empresas estatais além fronteiras; reclama que o Estado tome posição frente às mudanças sociais ocorridas nos países fronteiriços; impõe-lhe a adoção de uma política frente ao problema da mudança social interna, a qual determinará em boa medida a definição da política a seguir diante da mudança além-fronteira, desde que territorialmente contígua ou próxima.

Os interesses que permeiam esses avanços e essa mudança não são nacionais; é bem possível que a sociedade se cinda em torno da definição sobre que fazer em cada caso. Ainda assim, no entanto, o Estado terá que haver-se com esses problemas e encontrar uma saída para eles a cada instante. A questão da mudança social é a mais crucial: uma sociedade conservadora e autoritária como a brasileira dificilmente suportará a revolução nas fronteiras — muito menos as Forças Armadas concordarão com ela. No entanto, é com essa probabilidade que se deve conviver e é para ela que se deve estar preparado.

Para evitar histerias pró e contra; para não se deixar levar por decisões emocionais, e para ter como e onde apoiar uma opção, o problema da revolução deve ser friamente encarado. A revolução social nos países lindeiros é perigosa para os interesses nacionais apenas se suas repercussões afetam a linha principal da manobra e se em seu desdobramento, ela, revolução, põe em risco a estabilidade das fronteiras, ou a função coordenadora do Estado. Fora disso, pode representar ameaça para interesses e privilégios sociais particulares e não nacionais. Nesse caso, a política a adotar é entregar a decisão além-fronteira ao tribunal dos ajustamentos dos conflitos internos.

A questão realmente grave não é a da revolução nas fronteiras; é, isto sim, saber que atitude adotar tendo em vista eventuais obstáculos à expansão brasileira do capital no Exterior. O desenvolvimento brasileiro, mais do que obedecendo ao chamado “modelo exportador”, deve ser visto como desenvolvimento voltado para o Exterior, vale dizer, processo econômico-social que na impossibilidade de realizar em sua plenitude a acumulação do capital internamente (tal a resistência das estruturas tradicionais às transformações que se fazem necessárias para adaptá-las à racionalidade e à lógica interna do capital em expansão) teve de fazê-lo em parte no Exterior. Este processo não é recente; vem de longe e se agora se torna mais evidente é em virtude das denúncias feitas pelos nacionalismos fronteiriços. Esse processo de acumulação pode não ser fundamental para o crescimento da economia brasileira; no entanto, é suficientemente amplo para comprometer o Estado. De fato, como a função do Estado é igualmente proteger os interesses privados de nacionais estabelecidos além-fronteira, e como da realização além-fronteira do excedente depende (ainda que em grau pequeno) o êxito da função coordenadora estatal no espaço interno, pode dizer-se com boa margem de acerto que a defesa desses interesses integra também o que se pode definir como interesse nacional, e que a manobra deve considerá-los, da mesma maneira que a ação diplomática incentivá-los e protegê-los.

Não se concluiria essa parte sem que se fizesse referência à servidão que representa para o Brasil sua dependência externa de suprimento de petróleo e matérias-primas, além do comércio exterior em sentido amplo. É igualmente interesse nacional garantir a rota desses suprimentos e desse comércio exterior. Qualquer que seja a consideração que se faça a respeito da dependência, da internacionalização da economia e da validade político-social do esforço de exportação, se as rotas forem cortadas e cessar o comércio externo estará posto em risco um determinado estilo de vida de amplas camadas urbanas, além de ameaçado o efetivo exercício da função coordenadora do Estado pela probabilidade de uma convulsão social ditada tão simplesmente pela paralisação das atividades produtivas.

Disso tudo resulta que os interesses nacionais podem ser resumidos a quatro: 1. defesa das fronteiras; 2. defesa do statu quo territorial no continente e oposição ativa ao emprego da força para resolver litígios internacionais; 3. defesa dos interesses de brasileiros nos países estrangeiros; 4. defesa das rotas terrestres, marítimas e aéreas do comércio internacional, além do próprio comércio internacional.

Essa defesa se faz ou mediante o apelo ao Direito Internacional, suposto vigente nas relações entre Estados, e o apelo à necessidade abstratamente formulada da paz e da cooperação entre os povos, ou pela identificação desses interesses com o poder nacional, mediante uma política internacional que, sem esquecer o Direito e a cooperação, em última instância fundamente-se no poder ainda que seja para defender o que Morgenthau chamaria de política de statu quo.

O apelo exclusivo ao Direito Internacional, ao contrário do que se pode pensar, leva a uma concepção de manobra e a uma política de defesa: a manobra será essencialmente defensiva, podendo no limite chegar a uma idéia de manobra defensiva-ofensiva como visto de início. O apelo ao Direito Internacional, sendo uma manobra defensiva (manutenção do statu quo territorial), implica — se é que não se deseja aumentar gastos militares — aceitar as teses da segurança coletiva e da defesa associada, nem que seja na formulação limite do presidente Castello Branco, feita para o caso da intervenção em São Domingos.

Esse fato deve ser levado na devida conta: o privilegiamento do Direito sobre o Poder conduz necessariamente à associação de Estados para defender o direito; essa associação conduz à segurança coletiva e à constituição de uma força de intervenção coletiva, na qual os Estados Unidos são um em vinte e poucos e se submete às decisões da maioria — cada um respondendo financeiramente por sua parte no esforço comum. Se o ideal, nesse caso, seria a padronização de armamento, nada obriga em teoria a que assim seja: cada contingente nacional pode usar seu próprio armamento sem que isso comprometa a eficácia das ações de polícia dessa força coletiva de intervenção.

Não faz sentido invocar o Direito, rejeitar os esquemas associados de defesa e não ter Forças Armadas para defender uma política externa.

6. A Nova Doutrina Política

A reconstrução da posição brasileira no sistema interamericano e no sistema mundial não pode realizar-se pela valorização de foros multilaterais além daqueles a que, por dever de ofício e para buscar defender-se dos assaltos dos grandes, é-se obrigado a participar. Ora, esses foros a rigor funcionam na base do chamado consenso para mascarar as divergências insanáveis entre os países-membros, e não da regra democrática da maioria com dissidência; impõe soluções com interesses antagônicos aos brasileiros (ainda que conjunturais), e obrigam o Brasil a assumir a defesa dos mais fracos, por ser deles o mais forte, sem que com isso obtenha vantagens para si, exceto as retóricas e de prestígio. Esse tipo de participação multilateral só faz sentido numa comunidade juridicamente organizada com deveres e direitos devidamente estatuídos e com sanções definidas para os violadores do pacto constitutivo. Na atual conjuntura, que importância faz pertencer ou não, o Brasil, a tantos organismos?

A política internacional do Brasil no período que se abre deve buscar a defesa do cru interesse nacional, tendo sempre presente a manobra capaz de garanti-lo. As organizações internacionais valem o que valem, isto é, quase nada. À ONU, o Brasil deve pertencer por considerações meramente circunstanciais. A adesão a grupos internacionais de cunho econômico, cuja atuação não tem outros efeitos para o Brasil a não ser o compromisso que tolhe a ação, essa adesão deve ser revista com atenção. Afinal, mais dia menos dia será preciso ter vergonha e não se esconder por detrás da pobreza do Nordeste para reclamar empréstimos privilegiados nos órgãos financeiros internacionais — para projetos que não beneficiam o Nordeste. Os sistemas de defesa associados, no estilo do Tratado de Assistência Recíproca, valem o que esse vale se se abandona a perspectiva do apelo exclusivo ao Direito: boas resoluções declamatórias, nas quais não há, da parte dos signatários, disposição alguma de comprometimento mais sério em assuntos que não dizem respeito aos interesses imediatos dos grupos dirigentes dos países membros. Pertencer ao Tiar e à OEA, hoje, é o mesmo que não pertencer. Retirar-se dessas organizações é mais lógico, mais econômico e compromete menos do que pertencer.

O reconhecimento dessa posição implica política de real solidariedade com aqueles governos com os quais o Brasil se tenha comprometido a ser solidário por documentos internacionais formais que criem o casus foederis; determina uma atenção simpática, na intransigente defesa do Direito Internacional, para com os demais países com os quais tenhamos afinidades culturais, históricas ou comerciais. Sem falar em que essa política privilegia o interesse nacional como atrás definido.

O Brasil não é uma potência média, apesar de tudo o que dizem sobre sua posição na escala das economias; é potência de terceira classe. É potência média por acaso aquela que tem, em 124 milhões de habitantes, 10 milhões de casos de esquistossomose, oito milhões de chagásicos, de 40 a 50 milhões de casos clínicos produzidos por subnutrição, 60 milhões de casos de parasitoses intestinais, um milhão de tuberculosos, 150 mil casos de malária, mortalidade infantil de 130/1.000 no Nordeste e 40/1.000 no Rio e em Brasília? Por ser país de terceira classe, o Brasil não deve pretender assumir outra posição que não seja a de espectador da crise em que os outros se engolfam. Quero dizer espectador ativo, isto é, que sabe abrir caminho entre escolhos sem comprometer-se a não ser com aquilo que estabeleceu ser parte de seus interesses nacionais. Quando o desenvolvimento social for uma realidade e o econômico reduzir a dependência externa (ainda que aumentando o comércio internacional) será o momento de reavaliar a política externa e a manobra.

O egoísmo, o trato bilateral valorizando os interesses nacionais tais como caracterizados em sua amplitude genérica, tem uma manobra tendente à completa autonomia de ação, por um lado, e à adoção do padrão da balança do poder, ainda que modificado pelas circunstâncias especiais de nossa posição geográfica, por outro.

Não há manobra digna deste nome que não assente em uma Doutrina Política, isto é, a forma de organizar as Forças Armadas à luz do estágio de desenvolvimento do país (econômico, social e político) e das funções que a elas se devem atribuir no plano interno e no plano externo. A Doutrina Política leva à manobra (soldada com a política internacional) e essa última estabelece a Doutrina Militar, ou de emprego das forças.

O Brasil é o país novo e o país velho; cosmopolita e atrasado. Combina a colhedeira polivalente com o arado a burro ou boi; o refinamento do pensamento abstrato à la page, alimentado pelo vient de paraître na Europa e nos Estados Unidos, com a semi-alfabetização de milhões (cancerosamente reprodutiva nos diplomas universitários); a última droga saída do laboratório europeu ou norte-americano, ou a erva tradicional com o aumento das doenças sociais. Não é a harmônica combinação Pá-Picareta-Cibernética com que nos anos 60 caracterizei o que deveria ser o desenvolvimento combinado; é o caos programático, que tem como substrato uma indústria de comunicação que desnatura as culturas regionais e centraliza a meia-ciência e a ignorância definitiva no saber-quase-nada dos grandes centros; é o triunfo de uma oligarquia pedante, autocrática e desligada do Povo-Nação.

É um país rico-pobre; das empresas débeis e dos empresários despreocupados; do desperdício, do ufanismo, do cosmopolitismo já não de pequenas elites, mas de amplas massas consumidoras; das tantas goteiras das administrações, quando não das janelas e gavetas falsas, para não falar do dinheiro não contabilizado que permite ao país crescer, quando o PIB decai, e as fortunas aumentarem quando a Receita Federal está pobre. Esse contraste define uma Nação de analfabetos, doentes crônicos, sem partidos, sem empresários que queiram ser schumpeterianos e livres, sem sindicatos, anêmica de vontade política. Invertebrada, para dizer como Ortega falava da Espanha antes da Guerra Civil? Talvez não tanto — nos pés de onze jogadores de futebol se estabelece a identidade contra o estrangeiro, a honra se afirma e os ódios nacionais se acendem contra o estrangeiro-inimigo.

O Brasil é isso — e qualquer Doutrina Política de organização das Forças Annadas deve fundar-se nele, buscando transformá-lo sem revolucioná-lo em vão. Esta é uma sociedade que fabrica rapidamente seus anticorpos contra Robespierre e Saint-Just, os incorruptíveis, além de saber disfarçar a tortura e a repressão mais brutal sob o manto da regeneração dos costumes. Não é uma Nação desintegrada — ainda. Poderá sê-lo pelo efeito do desenvolvimento cosmopolita (tomo cosmopolitismo de empréstimo a José Goldemberg), pela progressiva consciência (quem nada tem, tudo tem; quem nada pode, tudo pode) que milhões de pequenos seres que deambulam pelos bairros ricos das grandes metrópoles têm de sua situação de miséria; pelo abastardamento animalesco dos que habitam a urbs transformada em mais uma Calcutá e o país em outro Bangladesh.

A primeira questão concernente à Doutrina Política é: onde atuarão as Forças Annadas? Qual seu teatro prioritário de operações?

A primeira resposta é dupla: no Exterior, garantindo a execução da política externa; no Interior, como teatro secundário, preparando a Reserva Estratégica para a Guerra Prolongada. Donde se segue que a organização que garante a execução da manobra é uma; a que prepara a Reserva Estratégica, outra.

A segunda questão é: sobre qual dos dois países em que se divide o Brasil deve morder a organização das Forças Armadas? Em outras palavras: em que país recrutará ela os seus quadros?

A segunda resposta é simples: a organização incumbida de garantir a execução da política externa deverá morder o país rico, isto é, ir buscar nele os recursos humanos e técnico-materiais; a organização que terá a seu cargo a constituição da Reserva Estratégica só pode estruturar-se com base no país pobre. São de fato dois grandes corpos, cuja função é defender o território e assegurar a política externa e a manobra (um); transformar a sociedade concentrada no país pobre (outro).

Este país ríco-pobre que é o Brasil não se pode dar ao luxo de manter Forças Armadas de grande porte com a atual doutrina de emprego — hoje, elas não integram a Nação e servem para pouco no campo externo, além de onerar os orçamentos e representar perigos políticos. O país deve ter forças aptas a realizar sua função ofensiva ou defensiva no confronto com iguais tecnologicamente sofisticados; quando na defensiva estratégica, elas não podem deixar de desempenhar a função de fustigar o adversário, levando-o a buscar sempre o “caminho de Smolensk” para sua retirada do território brasileiro.

A guerra clássica para a qual as Forças Armadas — não só o Exército — devem estar preparadas só pode ser ganha aproveitando-se a profundidade do território e valendo-se da velocidade. Dessa perspectiva, o recuo em condições estratégicas favoráveis não deve ser descartado — desde que a idéia da Guerra Prolongada se apodere dos espíritos e com ela se ganhe tempo para que a velocidade permita reconquistar território na manobra mecanizada e aéro-transportada. Depois de o inimigo haver invadido o território nacional, apelar à ONU ou à OEA e confiar em suas resoluções é como a jovem violentada chamar por socorro no deserto, ou esperar que o cavaleiro andante lhe restitua a honra perdida. Só a autodefesa garante ao final a integridade do território — se houver homogeneidade racial, cultural e social e igualdade política que leve os homens a morrer pelo que consideram ser sua Pátria. Ó exemplo libanês serve como modelo negativo.

A fronteira terrestre é extensa demais para as Forças Armadas poderem distribuir-se de maneira balanceada ao longo dos eventuais pontos de ruptura. Daí impor-se a configuração dos pontos de gravidade alvo da possível ação inimiga de engajamento direto, o cálculo do quando sua ofensiva perderá seu momento e a preparação das ações destinadas a conter o adversário nesses pontos. Se por deficiência de coordenação das Armas, de ineficácia de comando ou surpresa der-se a ruptura e o inimigo penetrar fundo, a Guerra Prolongada é a única forma de assegurar a vitória a custo econômico suportável, social razoável e humano confiável. A primeira grande batalha, a da resistência ofensiva ou da resistência ruptura retirada será uma batalha tecnológica como o será a última, a da ofensiva ocupação do território adversário: a do país rico, da eletrônica, da manobra mecanizada de envolvimento com a combinação dos poderes de terra, mar e ar tanto tática, quanto estrategicamente. As demais batalhas, na hipótese da ruptura, caberão à forma de guerra que denomino Prolongada; serão as batalhas da astúcia, do despistamento, da ação guerrilheira dirigida pelo Estado-Maior Geral e concertada com a mobilização do país rico destinada à contra-ofensiva que levará o inimigo a recuar pelo “caminho de Smolensk”.

O inimigo, qualquer que seja ele, na hipótese da guerra clássica, agirá com o máximo de força e o máximo emprego de armamento moderno. Desse aspecto, a guerra tenderá a ser total e a comprometer as populações civis — já engajadas na organização do país rico ou na Reserva Estratégica se houver visão aberta para os reais problemas nas fronteiras.

Essas considerações devem ser vistas como tendentes a reformular a política de recrutamento, instrução e o próprio plano de batalha. Persistir na atual organização das Forças Armadas e sua distribuição pelo território é erro; como se trata de jogar com vidas humanas, crime.

Este é um esboço da manobra no campo interno — esboço limitado, pois considera que o peso maior da defesa será suportado pela força de terra. Ora, essa manobra só tem sentido estratégico se a Marinha e a Força Aérea forem vistas como força para engajamento estratégico, além de tático. Ademais, elas são as forças que por excelência irão morder no país rico.

A Doutrina Política, em suma, consiste em ter tropa profissional para o grande embate defensivo e a ofensiva final, e para executar a manobra em apoio à política externa. O fundamento dela é ter sempre pronto o instrumento de dissuasão. O fato de ser tropa profissional, centrada na mecanização, na velocidade e no empenho combinado das três forças reduz os efetivos, mas os completa e prepara, aumentando a operacionalidade da força, especialmente a arregimentada na força de dissuasão. A Reserva Estratégica traz o país pobre para o caminho do país rico: opera (em tempo de paz) sob o lema: o livro, o arado e só depois a espada.

7. A discussão

A manobra a serviço da política externa — e ao mesmo tempo sua inspiradora — deverá estar a cargo do corpo altamente técnico, moderno e sofisticado. A manobra só terá razão de ser se as Forças Armadas que a executarão (potencial ou atualmente) tiverem poder de dissuasão — em suma, se forem forças capazes de executar missões estratégicas. A dissuasão é poder que funciona para impedir agressão ou ato lesivo aos interesses nacionais, e para castigar quem deles é culpado. O caráter dissuasivo de uma doutrina de emprego não se oculta; sua característica é ser ostensiva, devendo os adversários potenciais ter conhecimento de que o instrumento existe e será aplicado.

A dissuasão repousa no Poder Aéreo Estratégico, no Poder Naval e Aero-naval Estratégico e na real capacidade de intervenção do Poder de Terra. Sua eficácia está na razão direta da superação das rivalidades políticas que impedem o Exército de ter sua própia força de tramporte, a Marinha poder ofensivo e sua aviação embarcada de ataque, e a Força Aérea sua aviação estratégica. Da perspectiva do compromisso das Forças Armadas com a defesa exterior, o período 1964-198... foi negativo porque, l — consagrou a supremacia do Exército e de sua doutrina, imobilizando o progresso de qualquer concepção dissuasiva; 2 — não resolveu o litígio Marinha x FAB e impediu o equipamento aéreo da Marinha e do Exército; 3 — neutralizou o desenvolvimento do poderio estratégico de todas as Armas; 4 — não criou instrumento de dissuasão. Em outras palavras, tornou o Brasil inerme.

Essa concepção de manobra que desenvolvi implica necessariamente a não filiação a qualquer pacto coletivo de defesa; o padrão da política internacional e o da política externa é o da balança de poder, de alianças intra e extra-continentais destinadas a impedir a supremacia de qualquer um no cenário de atuação diplomática e de alcance da manobra. A balança não se exige apenas entre os poderes nacionais em presença, mais importante, deve ser exercida entre a retórica da ação diplomática e o alcance do braço armado do país. A coerência da manobra Soviética é o exemplo a ser seguido. A incompetência norte-americana deve ser evitada a qualquer custo.

A manobra aqui esboçada requer definição prévia do Norte da política externa. Ele se resumiria na escolha de um desses partidos de ação: a) volta aos objetivos tradicionais, isto é, fazer o Brasil interlocutor válido no concerto dos que decidem para ser potência hegemônica no continente; ou b) buscar a hegemonia mediante posição de intermediação entre a América Espanhola e os Estados Unidos; ou c) entrosar-se com a América Espanhola para constituir bloco em oposição do Norte, podendo vir a opor-se aos Estados Unidos.

Por infindáveis razões, a opção c não se coaduna com a manobra proposta, embora haja quem, preso às velhas concepções da doutrina de emprego, considere possível adotá-la. Essa afirmação não esconde um fato: o padrão balança de poder requer que não se permita o fortalecimento das posições norte-americanas na fronteira, sob pena de a autonomia da política externa e da manobra serem comprometidas. Exige, igualmente, que os problemas do balanço de pagamentos sejam resolvidos sem o apoio exclusivo do Tesouro dos Estados Unidos. A opção b pode exercitar-se sem necessidade de manobra de espécie alguma, como é o caso, hoje — e por extensão lógica ao extremo, sem necessidade de reequipamento das Forças Armadas, pois assim como a Grã-Bretanha não tolerou o agravo argentino, os Estados Unidos não permitirão agressões ao Brasil, as quais criariam desequilíbrio estratégico em sua retaguarda. Uma política externa verdadeiramente independente requer uma manobra independente, fundada num instrumento de dissuasão, o abandono dos pactos de defesa associada e a volta ao padrão de balança de poder, que é aquele em que o país confia antes de mais nada em seu próprio poder.

Concertam-se as alianças e proclama-se a nova doutrina de emprego para que os interesses nacionais em cuja defesa o pais se engajará sejam conhecidos sem disfarce. Se é difícil manter equilibrada a balança entre a ação diplomática e o alcance do braço armado da manobra, mais difícil será decidir entre a pressão e a coação, isto é, entre a advertência e a interferência na luta de partidos em Estados em que haja interesses brasileiros envolvidos. É preciso ter sempre presente que por fazer opções erradas, os Estados Unidos lutaram sempre do lado mau; se quisermos ficar em nossa própria história, é só lembrar as interferências brasileiras no Uruguai para defender interesses de nacionais brasileiros associados a partido uruguaio, as quais acabaram servindo de pretexto a Solano Lopez, para ver como opções desse tipo são difíceis e devem ser decididas pelo Governo e não pelas Forças Armadas.

Por isso, as alianças devem ser cuidadosamente pesadas; o fundamental não é o regime social interno do país com cujo governo se fazem acordos, mas sim o seu grau de ligação com o sistema internacional. Se a sociedade brasileira é tradicional, a Doutrina Política das Forças Armadas aqui sugerida a transforma e a faz menos temerosa da mudança externa, pois ela será processada antes dentro das fronteiras.

8. A recomposição do equilíbrio

A doutrina baseada num instrumento da dissuasão diminui a importância política relativa do Exército no corpo das Armas — e faz que o equilíbrio entre elas, tendo em vista a exeqüibilidade da manobra, só possa ser arbitrado por um civil. A ligação política externa manobra exige que as Forças Armadas sejam subordinadas a um comando único operacional, distinto daquele do Presidente da República, seu comandante-chefe; requer, em suma, um Ministério da Defesa.

Se a guerra clássica é possível, como o conflito no Atlântico Sul tornou evidente, é preciso que a Nação comande seus destinos, discuta sua política externa, estabeleça sua manobra. Afinal, como se demonstrou nas Falklands, razão tinha aquele soldado raso convocado e preparado no campo de batalha, que, na obra de ficção, dizia ao ver passar o general cheio de condecorações e ele próprio um bravo: “Dele são o poder e a glória; nossos, a lama e o sangue”.

Em outras palavras, a permanência do regime de semi-arbítrio em que vive o Brasil, no qual a segurança nacional é responsabilidade de todos, embora quem defina a doutrina militar e a política externa seja uma meia dúzia apenas, contribui para manter uma doutrina militar centrada na força de terra com funções meramente táticas e defensivas, em que a Força Aérea mal consegue voar, confinada a armamento e emprego táticos, e a Marinha permanece a grande esquecida, pagando o preço do erro histórico de 1893. Essa postura deve mudar — e para que mude é necessário ampliar o número dos que se preocupam, discutem e decidem os problemas de política externa e estratégia.

9. A bomba atômica

Há, subjacente a toda essa exposição — que reflete pontos de vista pessoais, alguns velhos de 20 anos — uma questão: que fazer com relação à bomba atômica?

Encaro duas hipóteses:

1. por um gesto insensato, o governo do Brasil leva uma potência nuclear de primeira classe — isto é, com vetores altamente sofisticados e possuindo a bomba de hidrogênio — a atacar o país com armas nucleares. Nessa hipótese, não há como defender-se, e será inútil pensar em fazer a bomba para uma ação de represália;

2. na fronteira, um Estado — a Argentina — constrói a bomba atômica e a usa como arma de chantagem e eventualmente de dissuasão. Pela desídia dos governos brasileiros que se seguiram a 1964, perdeu-se o tempo (e talvez se tenham alienado as pessoas) indispensável a construir um contra-poder nuclear. Só a construção do poder aéreo, aero-naval e aero-transportado de dissuasão é capaz de evitar o conflito (pelo valor real da represália) e ultrapassar a diferença. É preciso ver, também, que um Estado latino-americano que construa artefatos nucleares, ainda que amparado pelo Tratado de Tlatelolco, desequilibra a balança de poder no continente. As alianças sugeridas acima e a força de dissuasão, cuja necessidade se procurou evidenciar ao longo desse trabalho, são a resposta a esse risco, desde que postas em execução (alianças e construção da força de dissuasão) a tempo. De outra forma, é aceitar as chantagens, como já se aceitou a do Iraque ao violar os acordos sobre a exploração de petróleo. Esta é uma opção a ser feita — embora o correto fosse que tivesse sido feita há vinte anos, quando a ela se poderia ter alinhado outra, que era a do desenvolvimento nuclear autônomo. O perigo da ameaça atômica é mais estético do que real: a bomba terá o poder de destruir uma cidade como São Paulo, admitamos. O poder aero-naval de dissuasão, estratégico, não pode fazer o mesmo? O custo do programa nuclear para fins defensivos por menor que seja, impede a construção das novas Forças Armadas. Há-de abandoná-lo e fazer as Forças Armadas tecnologicamente sofisticadas e montar a Reserva Estratégica para a Guerra Prolongada.

As definições sobre política externa e de defesa são urgentes. Elas é que comandarão o processo de transformação política, social e econômica. A persistir onde estamos, a liberdade de opções se restringirá, a oligarquia continuará dirigindo o processo e os realmente capazes, nas três Armas, terão o destino daqueles que primeiro acreditaram no avião, depois no tanque, e, por último, no emprego conjunto de ambos. As decisões são civis. Os ingleses, que são mestres na arte da guerra, já sabem que há um ramo da Psicologia que se chama “Psicologia da incompetência militar”. Ele não se aprende nas Academias militares, mas no campo de batalha — ao preço de vidas inocentes.


 

GUERRA NUCLEAR,
GUERRA CONVENCIONAL
E SISTEMA PERIFÉRICO DE DEFESA

 

Etiam Diabolus audiatur

 

O problema das relações entre as estratégias da guerra nuclear e da guerra convencional não pode ser corretamente tratado — especialmente quando se deseja verificar o significado que uma e outra têm para os sistemas periféricos de defesa — se não se consideram as profundas transformações ocorridas no pensamento estratégico das potências líderes do mundo ocidental já antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Basicamente, a grande transformação deu-se não ao nível da estratégia stricto sensu, mas dos princípios gerais decorrentes da natureza da guerra, que a devem informar. Seguramente, F. D. Roosevelt não tinha presente as conseqüências militares e políticas — atuais e futuras — da posição expressa em suas anotações, do dia 24 de janeiro de 1943 em Casablanca, após sua conferência com Winston Churchill: “O presidente e o primeiro-ministro, depois de passar em revista toda a situação mundial, estão mais do que nunca determinados a crer que a paz só poderá viger no mundo pela total destruição do poder alemão e japonês. Isso implica a simples fórmula de colocar o objetivo desta guerra em termos de uma rendição incondicional da Alemanha, da Itália e do Japão”(1).

Depois de Casablanca, a guerra deixou de ser um instrumento sério para atingir um fim sério, como queria Clausewitz, para transformar-se em fim em si — em outras palavras, a doutrina da rendição incondicional eliminou da guerra seu caráter político, no sentido mais amplo de instrumento a serviço de uma política exterior coerente, e introduziu na arte da guerra a idéia de que ela é um conjunto de operações militares destinadas a atingir aquilo que em Vom Kriege se definia tão-só como seu objetivo: “O desarmamento do inimigo é por definição o objetivo propriamente dito das operações de guerra”. Ao afastar os objetivos políticos aos quais a guerra deve servir, a estratégia aliada ignorou a outra lição inscrita em Da Guerra, que era a insistência no fim da guerra: “A guerra é pois um ato de violência destinada a constranger o adversárío a executar nossa vontade”. A decisão de Casablanca teve como conseqüência lógica eliminar dos atos militares a intervenção da realidade e fazer que a guerra se aproximasse de seu tipo absoluto, que reclama sempre a busca das extremidades.

As conseqüências que a doutrina da rendição incondicional teve sobre a condução das operações militares depois de 1943 na Europa são do domínio da história e sobre elas não é necessário insistir. Convém, no entanto, fixar que foi graças a essa falsa idéia do que fosse a guerra — e a grande estratégia que deve presidi-la — que o antigo padrão da balança de poder, que regera as relações internacionais com relativo êxito até a paz de Versailles, perdeu sua vigência. Ora, extinto esse padrão, aceitou-se a mudança da fisionomia geopolítica da Europa, na medida em que a Europa Central deixou de ser a zona tampão entre a Europa Oriental (melhor dizendo a Eurásia) e a Europa Ocidental, perdendo sua função de Holder da balança entre o Ocidente e o Oriente, como assinala F. O. Miksche. Com isso, o mundo ocidental (o poder marítimo a que aludia Mackinder) viu-se diretamente confrontado com a união política e geográfica da Eurásia com a Europa Central (o poder terrestre), alterando-se completamente as relações de força mundiais.

A adoção da doutrina da rendição incondicional, fazendo a guerra ter apenas, como assinalado, seu caráter absoluto e não admitindo jamais a intervenção do princípio da realidade na tendência à busca à extremidade, se da parte da elite política dirigente norte-americana respondia, no plano moral da política, ao triunfo dos idealistas sobre os realistas, no plano militar traduzia o desejo de liquidar a guerra na Europa, o mais rapidamente possível a fim de concentrar todos os esforços contra o Japão e, assim, atender aos reclamos de uma opinião pública que, embora não tendo conhecido de perto os rigores da guerra, desejava ardentemente seu fim. O assalto frontal à Europa Festung foi a tradução operacional da urgência imposta às considerações estratégicas pelo ethos idealista influenciado pelas considerações domésticas norte-americanas, da mesma maneira que a desconsideração do presidente e do Joint Chiefs of Staff às sugestões inglesas para atacar os Balcãs resumia, por um lado, o desprezo pela doutrina da aproximação indireta e, por outro, a desconfiança nos propósitos de Churchill, sempre visto pretender a defesa do Império ainda que a mascarando sob as velhas doutrinas da balança do poder europeu.

O bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, que publicamente inaugurou a era atômica e deu origem a uma nova concepção estratégica, nada mais foi do que a conseqüência lógica do abandono do conceito da guerra como instrumento de violência para a consecução de fins políticos e a consagração da doutrina estratégica de que a guerra, enquanto condução de operações militares para chegar à vitória, só pode ser absoluta. A circunstância de a arma atômica, por seus efeitos assustadores, ser tida como a arma absoluta, apenas confirmou os militares e civis norte-americanos (e europeus) na convicção de que a guerra perdera contato com a realidade e por ela não poderia mais ser influenciada. Possivelmente, se as considerações morais e sentimentais que se fizeram sobre os ataques atômicos ao Japão não tivessem despertado sentimento de culpa, inconsciente, mas profundo, em amplos setores da opinião pública norte-americana e mundial, ter-se-ia atentado para a circunstância de que a bomba atômica nada mais fizera do que concentrar (economizar) recursos destrutivos, aumentando o numero de vítimas por Km2, mas não seu número absoluto. Em Hiroshima, por exemplo, foram consideradas mortas e desaparecidas de 70 a 80 mil pessoas; em Nagasaki, de 35 a 40 mil — enquanto o último bombardeio de Tóquio, com armas convencionais, produziu 83.600. Sem dúvida alguma, a mudança quantitativa no poder destruidor das bombas de hidrogênio induz a considerar uma mudança qualitativa, portanto estratégica, na condução da guerra, e a supor que ela de fato se tornou absoluta, a única intervenção possível da realidade para impedir a tendência à extremidade sendo o controle (a intervenção da vontade) da violência, isto é, a possibilidade de fazer da guerra uma escalada de violência imposta não por sua própria natureza e suas próprias leis, mas pela compreensão racional de que a única alternativa à escalada controlada é a guerra total.

A mudança qualitativa no pensamento militar ocidental, que interveio depois de Hiroshima e Nagasaki, do meu ponto de vista, não afetou apenas a estratégia, fazendo que civis e militares procurassem encontrar diferentes graus de absoluto para a guerra absoluta (escalada da guerra atômica tática à estratégica, estratégia preventiva de contra-força, estratégia ex post factum de contra-força ou contra objetivos civis), mas alterou, no Ocidente, o próprio conceito da natureza mesma da guerra. Essa alteração, já visível em Casablanca, significava no fundo a rejeição de Clausewitz, a qual se tornou obrigatória depois que Liddel Hart o sacrificara no altar da estratégia da aproximação indireta, sacrifício no entanto resultante de uma má leitura de Vom Kriege. Com isso, o Ocidente cometeu aquele erro teórico que, dizia Trotsky, a realidade nunca perdoa.

Em que consistiu este erro teórico? Em primeiro lugar, em haver-se afastado a guerra de suas relações com a realidade, isto é, com o “domínio... da existência social”, na qual contam os esforços morais da população, cujo “estado de alma repercute de modo decisivo sobre as forças da guerra”, como ensinava Clausewitz. Seguiu-se, daí, que a arma atômica levou a que a política externa norte-americana fosse feita não em função dos interesses nacionais assumidos ativamente pela população ou seus setores dirigentes, com capacidade de influir, mas das conseqüências políticas implícitas na posse da arma absoluta nas relações de hostilidade com a URSS.

A política externa projetada por F. D. Roosevelt, desconhecendo a tradição de Mahan e Theodore Roosevelt, fundava-se basicamente na substituição dos impérios como Holders e do padrão de balança de poder pelas Nações Unidas, que consagrariam a segurança coletiva — além de buscar construir um sistema global de livre comércio fundado no dólar como moeda-padrão. As Nações Unidas e Bretton Woods necessariamente levariam a um mundo só sob a égide norte-americana. Seguramente, havia interesses nacionais subjacentes a essa proposição — mas por não serem interesses de Estado, nem coincidentes ao nível dos grupos dirigentes, (sem considerar as dificuldades que o crescimento das empresas transnacionais criaram para a elaboração de uma estratégia nacional compreensiva e coerente) —, não eram assaz aglutinantes para garantir a execução de uma estratégia em virtude, por um lado, da lassidez dos laços que ligavam a opinião pública em geral a esses objetivos sinceros, mas irrealistas, e, por outro lado, dos conflitos de interesses entre os diferentes setores do “establishment” em torno de um maior ou menor envolvimento ou do retorno ao isolacionismo. Com Truman, às Nações Unidas e Bretton Woods alinhou-se mais uma pilastra de sustentação dessa política, que foi a bomba atônica, garantia suposta de uma era de superioridade e paz.

Como objetivos nacionais de política externa, a segurança coletiva e o livre comércio apoiado no dólar como moeda-padrão soam como irràzoáveis a longo prazo, dada a presença de elementos antíssistêmicos desde Yalta, além de terem impedido compreender o real significado do conflito que se abrira em 1945, quando as forças vitoriosas na guerra se encontraram no Elba. Sem dúvida alguma, em 1917, o mundo ocidental vira-se confrontado por um desafio ideológico — o qual, no entanto, considerou como não necessariamente interveniente nas relações internacionais desde que a União Soviética respeitasse, enquanto potência, as regras mantenedoras do sistema internacional — coisa que, aliás, ela fez com altos e baixos até 1939, para satisfação de todos que com ela mantinham relações comerciais, diplomáticas e até buscavam assinar pactos de assistência mútua. No imediato após-guerra até a guerra civil na Grécia, os líderes políticos do Ocidente avaliaram nos mesmos termos o problema suscitado pela progressiva satelitização da Europa Central, e em função dessa avaliação estabeleceram linhas de ação para enfrentar uma emergência ideológica e não uma política de poder. Com isso, quero dizer que, embora a máquina de propaganda soviética insistisse em que as expressões “cortina de ferro” e “guerra revolucionária” (cunhada depois) exprimiam ideologias do mundo de negócios, para os líderes do Ocidente traduziam, sem shibollets, a visão que tinham do avanço russo que não podiam deter nos termos do passado porque não contavam com o estado de alma das populações favorável a uma estratégia ofensiva de containment, não possuíam doutrina estratégica para enfrentar os soviéticos em terra e nem forças de intervenção para isso (na medida em que a bomba era catastrófica demais para travar a luta ideológica) e a desmobilizacão subsequente ao armistício tornara insuficiente o poder convencional de represália. O enunciado da Doutrina Truman, que marcou o endurecimento das posições do Ocidente, era todo ele marcado pela visão de que a luta era ideológica e não política (de power politics): “A política dos Estados Unidos deve ser a de apoiar os povos livres que estejam resistindo a pressões... e nosso auxílio deve ser concedido basicamente através de ajuda econômica e financeira, por se tratar de algo essencial à estabilidade econômica e aos processos políticos pacíficos”. Segundo o general Edward B. Atkeson, “o documento elaborado pelo Conselho de Segurança Nacional, conhecido como NSC 20, que era a diretriz vigente àquela época, esclareceu a necessidade de serem contidas as tendências expansionistas soviéticas, mas não levou em conta qualquer necessidade das Forças Armadas para a realização dessa política”. A esse pormenor não se fazia menção pela simples e boa razão de que não havia objetivo político a defender, nem vontade a impor, existindo em troca, conforme reconhecia o próprio Atkeson, a sólida confiança em que o armamento nuclear tornava todas as outras armas obsoletas (2).

Se for correta a afirmação do Prof. Tambs, segundo a qual os marechais soviéticos se inspiraram em Mackinder, creio poder dizer que após a formulação da Doutrina Truman e da política de containment, o Ocidente viu-se sempre em posição estratégica caracterizada geopolitícamente pela inexistência de áreas soviéticas que pudessem ser objeto de pressão ocidental sem risco de guerra total, e política e militarmente pela defensiva em todas as partes do mundo, exatamente pela inferioridade geopolítica. Da perspectiva soviética, a situação era inversa: como o nacionalismo asio-africano era movimento que encontrava profundas simpatias em amplos setores da opinião pública norte-americana e européia e como a Inglaterra e a França tinham demonstrado sua inferioridade militar — esta, em 1954, na Indochina, e ambas, em 1956, em Suez —, a doutrina estratégica do Cremlin foi não a de expandir o poder terrestre, mas sim de minar as bases territoriais políticas e psicológicas da dominação do poder marítimo para construir as bases geopolíticas e políticas indispensáveis à sua própria defesa interna. A ater-se ao levantamento feito por Deitchman, dos 50 conflitos armados registrados entre 1945 e 1970, 19 envolveram conflito direto entre os Estados Unidos e governos ou organizações comunistas — e todas eles se travaram em território nem chinês, nem soviético, mas dos antigos impérios europeus ou japonês, ou em territórios na zona de influência até norte-americana. Esses simples números são indicativos de que a iniciativa estratégica pertenceu à União Soviética, que se beneficiou sempre de sua posição geopolítica e de sua doutrina militar, que fez da arma atômica exclusivamente instrumento da dissuasão absoluta, mas não o nec plus ultra de sua estratégia.

Há outro aspecto que deve ser considerado na estratégia ocidental, basicamente norte-americana —, pelo menos da perspectiva dos países periféricos. Admitindo-se que a guerra convencional, clássica, se travada na Europa termine com a derrota ocidental e que para evitar esse fato faz-se mister usar a arma nuclear como instrumento de dissuasão ou de emprego, na periferia, a guerra tem sido deliberadamente clássica, embora haja quem, considerando-a tal pelo emprego das armas convencionais, prefira considerar muitas delas como guerras não convencionais por serem guerra de guerrilha. No Vietnã, pesou a concepção política vigente desde a guerra da Coréia — o receio de invadir território inimigo para não produzir a escalada nuclear, embora o Vietnã do Norte pudesse ser bombardeado, e não foram levadas em consideração as lições da guerra da Indochina e da luta do Exército francês contra a FLN na Argélia, nem mesmo o resultado nulo da doutrina do bombardeio estratégico da Alemanha nazista.

Na guerra do Vietnã, que assinala o declínio dos Estados Unidos como potência e consolidam sua posição apenas como “guarda-chuva nuclear protetor”, o primeiro erro estratégico foi reconhecer o “santuário” do território do Vietnã do Norte, neste sentido de que ele não poderia ser invadido ainda que de lá procedessem tropas regulares, armas e munições; o segundo foi aceitar a tese de que o Exército regular norte-americano enfrentava uma típica guerra de guerrilha, a qual, associada à doutrina do “santuário”, impediu o desenvolvimento de qualquer concepção estratégica ao nível puramente militar. No que se refere ao primeiro, o anúncio da intenção de invadir o território do Vietnã do Norte poderia ter sido feito com o apoio da dissuasão nuclear — era ato militar na periferia da União Soviética num momento de tensão sino-russa, e de menor gravidade no conjunto das relações internacionais e na relação global de forças do que o desenvolvimento da esquadra de guerra soviética e sua distribuição pelos mares quentes. O segundo erro foi mais grave, porque demonstrou desconhecer-se aquilo que desde sempre os soviéticos, Mao ou Giap, entenderam por “guerra de guerrilhas”. Os argumentos de Trotsky — que da arte de guerra entendia o que aprendera de Clausewitz e Engels —, ainda hoje são verdadeiros:

“O sentido da guerrilha é enfraquecer o mais forte. A guerrilha enquanto tal não pode decidir a vitória final sobre um exército organizado. De fato, ela não se propõe esse objetivo: ela se contenta em frenar, deter, em assestar golpes, em destruir vias férreas e em semear o caos; essas são as suas vantagens enquanto arma do mais fraco nas suas relações com o mais forte” (pag. 470). Se sustentava essa posição teórica em 24 de fevereiro de 1919, em discurso proferido em Moscou, em 24 de Julho do mesmo ano, combatendo aqueles que reclamavam que o Exército Vermelho abandonasse as “doutrinas czaristas” e enveredasse pelo caminho da “guerra de guerrilha”, esclarecia o sentido em que a guerrilha, “a pequena guerra”, poderia ser empregada em uma campanha: “A guerrilha pode ser também uma forma de ação de destacamentos de manobras cuidadosamente constituídos, os quais, apesar de sua total independência, estão rigorosamente submetidos ao Estado-Maior operacional” (pag. 516)(3). Destruído o Estado-Maior operacional, a guerrilha transforma-se em banditismo.

Como no Vietnã se fazia da “pequena guerra” a idéia de que era uma forma específica de guerra e não uma maneira especial de empregar a tropa, a destruição do Estado-Maior operacional não foi considerada como objetivo primordial. Basicamente, no entanto, foi a convicção de que a União Soviética não poderia ser desafiada territorialmente (além de, na realidade, ela ser quase invulnerável, como poder terrestre) ao risco da guerra total, que tornou inoperante a doutrina estratégica norte-americana, debilitou o prestígio político dos Estados Unidos e colocou, para a periferia, novas dificuldades políticas.

Potência imperialista no sentido do século XIX adaptado às condições tecnológicas do século XX, a União Soviética soube valer-se de sua posição de poder terrestre para, a partir da crise dos mísseis de 1962 (Cuba), iniciar o envolvimento do poder marítimo, e da guerra árabe-israelense de 1973, consagrar a grande manobra com o acesso aos mares quentes. A independência das colônias portuguesas na África forneceu-lhe mais um poderoso instrumento nessa ação, que foi o Exército cubano em operações na África. O objetivo da manobra indireta, como se lia em Clausewitz e em Liddel Hart é desarmar sem combate, num processo lento de enfraquecimento psicológico interno e externo, o poder norte-americano de intervenção. Dessa perspectiva, seu arsenal atômico exerce coerentemente a função dissuasiva — não de emprego. A finalidade da manobra é ter as condições estratégicas de defender o poder soviético nas fronteiras naturais da Rússia, assegurando ao menor custo o acesso às matérias primas (alimentos, inclusive) e tecnologia de que necessita e adiar para o mais tarde possível os efeitos antissistêmicos, na URSS e nos satélites, do contato com a civilização ocidental — civilização material e não cultura espiritual.

Nesse sentido, e a ser correta a interpretação, é erro grave de apreciação atribuir ao PCUS uma visão messiânica na condução da política externa russa — ele é basicamente um partido grão-russo, que busca na expansão externa criar condições estratégicas de defender seu poder interno sobre o império multi-étnico. Os governantes soviéticos têm uma superioridade a mais sobre o Ocidente: não se deixam guiar pela teoria conspirativa. Enquanto os especialistas ocidentais discutiam se o rompimento de Tito era efetivo, ou parte de uma estratégia concebida para iludir os basbaques, o PCUS sabia que Tito, enquanto expressão doutrinária era um adversário, que poderia fornecer base territorial aos EUA; enquanto os especialistas ocidentais se perguntavam se o rompimento com a China era real, os soviéticos sabiam que os chineses se haviam transformado em inimigos com capacidade atômica e um enorme potencial humano a ser sacrificado, se necessário. Seu realismo confere-lhes maior flexibilidade política e maior amplitude à sua manobra estratégica.

Essa manobra estratégica só pode ter êxito se, ao poder de dissuasão nuclear, associar-se uma esquadra capaz de permitir ao poder terrestre — o Coração da Terra apoiado em parte da Ilha do Mundo — flanquear pelo mar o poder marítimo e acrescentar à dissuasão nuclear a ameaça clássica do bloqueio das vias de comunicação vitais para a economia ocidental. O erro estratégico ocidental — dos estrategistas oficiais ou heterodoxos — tem sido pensar que a disposição hostil implica necessariamente hostilidade aberta. Tem sido imaginado que na crise dos foguetes em 1962 (Cuba) Kruchev perdeu a face, quando na verdade ele retirou os foguetes das Antilhas, mas manteve uma base avançada na retaguarda norte-americana.

A estratégia soviética deve ser compreendida hoje mais pela periferia do que pelo centro (Estados Unidos e Europa), porque é nela que se realiza a manobra. Alguém dizia do marechal-de-campo Erwin Rommel que não era um estrategista, mas um grande comandante de campo que tinha a intuição suficiente para saber quando um reconhecimento em profundidade podia ser transformado em ofensiva. A manobra soviética procede da mesma maneira: a estratégia é defender o império conquistado na Segunda Guerra Mundial para assegurar a intangibilidade da Santa Mãe Rússia. Reagindo ao poder atômico norte-americano, construíram o seu próprio — mas como poder de dissuasão e nada mais. A manobra pertinente a esta estratégia é fazer reconhecimento em profundidade e avançar ou recuar diante da reação do adversário. Subjacente a esta diretriz, há a certeza de que o Ocidente só se envolverá numa guerra total se a URSS cortar efetivamente suas linhas marítimas de comunicação. Por isso ela ameaça sempre fazê-lo e ocupou os mares quentes — outro avanço em profundidade —, mas não permite que a ameaça se transforme em realidade.

A defesa do Ocidente, se pode haver, está não na retaliação atômica, mas em impedir que o poder terrestre cerque por mar o poder marítimo. Como acentuava Robert E. Walters, o instrumento militar para assegurar a balança de poder entre o poder terrestre e o poder marítimo só pode ser uma marinha, isto é, um instrumento de dissuasão igual ao do adversário, que permita de novo ao poder marítimo flanquear o poder terrestre.

A vítima da paralisia norte-americana — do “estado de alma” da população dos Estados Unidos — é a periferia: não tem poder econômico para equipar-se para a guerra clássica travada sob a forma de guerrilha; não têm, os países mais desenvolvidos dela, condições de estabelecer áreas de influência em que possam barganhar seus interesses nacionais com as grandes potências; não têm poder de intervenção — e possivelmente nem vontade nacional de intervir — para defender seus interesses além fronteiras. Apesar disso, ou por isso mesmo, é na periferia que a União Soviética realiza sua manobra, confiante em que o “estado de alma” norte-americano voltou a ser realmente isolacionista. Confiante não apenas nesse dado moral da realidade; confiante também em que os Estados Unidos ainda não desenvolveram uma doutrina de emprego da tropa capaz de atingir a União Soviética em sua zona de influência, porque Washington faz da guerra, na medida em que seus líderes políticos e militares estão presos à ilusão nuclear, a idéia de que é e só pode ser absoluta. Nessas condições, o problema da periferia é encontrar seus próprios meios de defesa, sabendo que a iniciativa estratégica clássica pertence à União Soviética e que os Estados Unidos não têm como, na guerra clássica, defender interesses supostos seus no além-mar.


 

O BRASIL
NA ERA NUCLEAR

 

Não será demais insistir em que a questão do acesso do Brasil à tecnologia do ciclo completo do átomo, além de ser tratada como “confidencial”, se não “secreta”, é discutida em reduzidos círculos, muitas vezes não comunicantes, e que a opinião pública, nesse campo como em outros referentes a questões estratégicas, não participa da discussão e correta equação do problema.

O grande debate público em torno da questão atômica durou enquanto a posição cambial do Brasil pôde financiar o desenvolvimento do programa nuclear decorrente do acordo com a República Federal da Alemanha; o advento da crise no balanço de pagamentos levou a que o problema nuclear desaparecesse da preocupação geral, sendo substituído na atenção do público pelo debate em torno da moratória — o que não significa que a questão tenha deixado de ser considerada ao nível decisório em que sempre foi discutida. Para os efeitos dessa exposição, interessarão apenas as decisões com implicações estratégicas e capazes de influir sobre a política externa brasileira.

É importante ter presente que a rationale da política nuclear do governo brasileiro obriga a considerar a questão dessa perspectiva estratégica. Na verdade, quer tenha sido o resultado de simples análise da relação de forças entre os países nucleares e não-nucleares nos anos 60, quer tenha sido a conseqüência de uma decisão estratégica longamente amadurecida, o fato público é que a partir de 1967 o Brasil se inscreveu oficialmente no rol das nações que aspiram a ter acesso ao ciclo do átomo e se reservam o direito de realizar explosões nucleares para fins pacíficos. Ademais, passou a fazer parte do grupo muito restrito dos países, cujos governos se recusam a aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

Em 1967, ao subscrever o Tratado de Tlatelolco sobre a prescrição de armas nucleares na América Latina, o governo brasileiro fez registrar sua constância de que o artigo 5.° do tratado deveria ser interpretado no sentido de que por arma nuclear, definida como

todo artefato susceptível de liberar energia nuclear de forma não controlada e “que tenha um conjunto de características próprias de emprego com fins bélicos”,

se entendesse

todo artefato susceptível de liberar energia nuclear de forma não controlada e que tenha um “conjunto de atributos específicos que identificam o artefato como sendo destinado ao emprego para fins bélicos”.

Esse ato do governo Castello Branco chamou a atenção, pela primeira vez, para a circunstância de que o Brasil se reservava o direito de detonar artefatos nucleares, respeitando as condições de notificação etc., estabelecidas no tratado de Tlatelolco. No entanto, essa decisão poderia ser de significado prático nulo se, em novembro de 1968, o Brasil, na administração Costa e Silva, tivesse assinado o Tratado de Não Proliferação, extremamente severo no tocante à disseminação de tecnologia dita sensível. Ao recusar-se a subscrever o TNP, o governo brasileiro apenas acentuou as suspeitas de que por detrás do gesto de Tlatelolco estivesse a firme determinação dos governos militares egressos do movimento de março de 1964 de fazer do Brasil uma potência nuclear.

Será difícil negar que essa interpretação dos dois atos, ao nível da mera análise de discurso, tem fundadas razões de ser. Por outro lado, é preciso anotar que a recusa a subscrever o TNP veio acompanhada de significativa mudança na retórica da diplomacia brasileira, consubstanciada na denúncia do chamado “congelamento do poder mundial” entre as superpotências nucleares, as quais, — na visão brasileira de então — haviam passado a condividir a Presidência do Clube Nuclear, restrito a alguns poucos países, a fim de impedir o acesso dos países não-nucleares à condição de potência de primeira classe.

Quando esbatida contra o pano de fundo dos tratados de 1967 e 1968, a teoria do congelamento do poder, mundial ganha novos contornos, a uma dupla luz: por um lado, é a denúncia de situação de flagrante desigualdade entre os integrantes do Clube Nuclear e os países não-nucleares; por outro, é a tentativa de afirmação indireta do direito do Brasil e dos demais países de ascender à condição de potências nucleares, única maneira de fazerem-se respeitar no grande debate que começa a ganhar corpo, que era o debate Norte-Sul.

A denúncia era erga omnes, abrangendo em 1968 os Estados Unidos, a União Soviética, o Reino Unido, a França e a China, de tal forma que não se configurava como gesto diplomático dirigido contra os Estados Unidos; a afirmação de potência é direta e sem shibollets, na medida em que o governo brasileiro deseja fazer-se respeitar no concerto dos “grandes”, agora denunciados por desejarem reter apenas para si o poder atômico, que viria a se somar ao poder industrial do Primeiro e do Segundo Mundos. Não sem razão, essa denúncia do congelamento do poder mundial coincide com a mudança de orientação estratégica presente na conferência que o marechal Castello Branco proferiu na Escola Superior de Guerra em março de 1967, poucos dias antes de deixar o governo, e com os primeiros indícios de que a política externa brasileira do governo Costa e Silva iria desembocar no mito da grande potência no ano 2.000, durante o governo Médici, e acabar no “espírito chauvinista de grande potência”, que caracterizou todo o governo Geisel, juntamente com uma nítida tomada de posição em favor do Terceiro Mundo.

Não pretendo dizer que os Estados Maiores e a Chancelaria tenham trabalhado em tal e profundo acordo que as peças desse delicado jogo se encaixam na perfeição desejada pela teoria conspirativa. Resulta claro, entretanto, à luz de uma análise que seja menos profunda, que a assinatura do Tratado de Tlatelolco com a constância interpretativa acerca do que se devesse entender por “arma nuclear”, só poderia ter sido feita depois de acordo entre os Estados Maiores e a Chancelaria ou, o que no período se pode dizer ser a mesma coisa, por uma decisão da Presidência. Nessa linha de raciocínio, cabe assinalar que decisão dessa amplitude, envolvendo

a. a decisão de ser potência nuclear;

b. a decisão de alterar a linha geral da conduta diplomática até então vigente,

decisão dessa magnitude, dizia, fez-se sem que a Nação fosse consultada sobre os destinos a seguir. Mais do que isso: a ressalva ao artigo 5 do Tratado de Tlatelolco passou despercebida da opinião pública, que apenas soube que se assinara tratado que permitia a realização de explosões nucleares para fins pacíficos. Da mesma maneira, colocada isoladamente, a denúncia sobre o congelamento do poder mundial aparecia como variante nacionalista do governo Costa e Silva, que nisso se estaria afastando do governo Castello Branco, visto como aliado dos interesses norte-americanos na “guerra fria”.

Da perspectiva de uma análise ex-post e de macropolítica, dir-se-ia que houve premeditação no ocultamente da rationale das ações.

O que importa assinalar, tenha ou não havido esse ocultamente premeditado, é que assistia razão ao general (R) Juan E. Guglialmelli ao dizer em 1974: “...tanto Brasil quanto Argentina, do ponto de vista do Direito Internacional, reservaram-se o direito de produzir, caso necessário, artefatos nucleares, explosivos esses que por ora não foram tecnicamente definidos e classificados com relação á seu uso, pacífico ou militar” (Estratégia, set-out. 1974, pág. 11).

Essa reserva de direito, se assim se pode dizer, impunha a adoção de decisão estratégica da maior relevância, consistente em escolher o tipo de reator a construir e operar para produzir o material indispensável à fabricação do artefato de uso permitido pelo Tratado de Tlatelolco, malgrado as reservas opostas por Estados Unidos, Reino Unido e URSS ao subscreverem os Protocolos Adicionais I e II, como segue:

Reino Unido: “O artigo 18 do Tratado, considerado conjuntamente com os artigos l e 5, não permitiria às partes contratantes do Tratado realizar explosões de dispositivos nucleares com fins pacíficos, a menos que, e até que os progressos tecnológicos tenham tornado possível o desenvolvimento de dispositivos para ditas explosões que não sejam susceptíveis de ser utilizado como armamento”;

Estados Unidos: “O governo dos EUA considera que a tecnologia para fazer artefatos explosivos nucleares para fins pacíficos não pode distinguir-se da tecnologia para fazer armas nucleares, e que tanto as armas nucleares quanto os artefatos explosivos nucleares para fins pacíficos têm igual capacidade para liberar energia nuclear de maneira incontrolável... Por conseguinte o governo dos Estados Unidos entende que a definição contida no artigo 5 do Tratado abarca necessariamente todos os artefatos nucleares. Entende-se, igualmente, que os artigos l e 5 restringem por conseguinte as atividades das partes contratantes definidas no § 1.° do artigo 18”.

URSS — “A União Soviética parte do fato de que os efeitos do artígo 1 do Tratado se estendem, como o determina o artigo 5 do Tratado, a todos os artefatos nucleares e que, por conseqüência, a realização de explosões com fins pacíficos por um ou outro participante do Tratado seria uma violação de suas obrigações previstas pelo artigo 1, e seria incompatível com seu estatuto de desnuclearização. A solução do problema das explosões nucleares com fins pacíficos para os Estados signatários do Tratado pode ser encontrada em concordância com as disposições (...) do TNP e no marco dos procedimentos internacionais da Agência Internacional de Energia Atômica”.

Se a opção argentina se fez pelo urânio natural — maneira lenta, mas menos penosa de chegar ao controle da tecnologia do ciclo completo do átomo (sujeita, ainda, no entanto, à dependência da água pesada) —, o governo brasileiro não sabia que rumo tomar, premido que se achava pela circunstância de não depositar confiança ideológica nos grupos de cientistas que poderiam trabalhar na linha argentina, ou naquela outra, do tório. Esse elemento de ordem ideológica teve seu peso na decisão que se adotou, então; peso não confessado, mas real, na medida em que as pesquisas pouco avançadas que se faziam sobre esses dois caminhos acabaram por ser paralisadas por falta de apoio oficial. Outro fator decisivo foi a mudança que se observava no mundo, o urânio natural sendo substituído pelo enriquecido, segundo alguns especialistas por motivos mais de ordem comercial, do que técnica.

Da perspectiva em que se coloca essa análise, não encontra explicação lógica, nem coerência interna com decisões anteriores, o fato de o primeiro passo no caminho da afirmação como potência atômica pacífica ter sido dado com a compra do reator de Angra I, negócio pelo qual não se transferia tecnologia e não se caminhava de maneira alguma no sentido do ingresso no clube dos “grandes”. Angra I serviu, no entanto, para mostrar o que vale a tecnologia moderna: depois de atrasos sucessivos, o reator de Angra I ainda não tem condições de operação.

O acordo nuclear com a República Federal da Alemanha permanecerá sempre como objeto de discussão acadêmica: foi ou não seu objetivo permitir que o Brasil tivesse condições de fabricar a bomba atômica, na medida em que adquiria tecnologia de enriquecimento do urânio e de reprocessamento do plutônio?

A grande discussão que se abriu logo após a assinatura do acordo Brasil-República Federal da Alemanha repousava, no fundo, na circunstancia de as salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica não parecerem, a muitos governos, suficientes para impedir o Brasil, a partir do acordo e das salvaguardas que pudesse assinar, de atingir o status de potência nuclear fora do alcance das salvaguardas. Essa preocupação — que orientou toda a política da administração Carter com relação ao Brasil — observa-se no Sipri Yearbook 1976, publicado pelo Stockolm International Peace Research Institute. A pgs. 367, com efeito, lê-se: “Politicamente, contudo, o acordo significa a criação de um novo estado nuclear auto-suficiente com capacidade em armas nucleares”. A afirmação partia do pressuposto de que o processo “jet nozzle”, embora convencionado para enriquecimento do urânio a 3%, talvez pudesse produzir urânio com maiores teores de enriquecimento. E o Instituto sueco acrescentava: “Mas urânio altamente enriquecido pode ser usado em uma bomba nuclear ou como gatilho de uma bomba termo-nuclear. De acordo com o cientista-chefe do Departamento Britânico de Energia, a [aquisição de] tecnologia e o investimento requeridos para enriquecer urânio a níveis nucleares são de fato mais difíceis do que os passos posteriores para atingir os níveis de categoria nuclear”.

A questão, como se vê, radicava no fato de o acordo permitir ao Brasil vencer a fase mais difícil do amadurecimento no caminho de potência nuclear-militar, a qual era a do enriquecimento do urânio. Na medida em que o acordo previa também a transferência de tecnologia de reprocessamento do plutônio, a situação se afigurava mais delicada para o Sipri: “Contudo, já a aquisição da tecnologia de processamento de urânio será suficiente para o Brasil assegurar-se potencial nuclear militar. O Brasil será capaz de fabricar armas nucleares desde que comece a operar o seu próprio reator, de fabricação nacional, usando urânio enriquecido nacionalmente e não sujeito a controle internacional algum. É a disponibilidade de plutônio que é essencial, o projeto e a fabricação do explosivo nuclear não mais sendo tarefa muito difícil”.

A previsão da transferência da tecnologia do reprocessamento do plutônio foi, sem dúvida alguma, a cláusula que despertou a atenção dos círculos preocupados com a proliferação nuclear e daqueles inquietos com o possível aumento do número dos membros do Clube Nuclear. Na verdade, como acentuava o livro do Sipri a págs. 368, não havia razões industriais para justificar o investimento na usina de reprocessamento. “Até agora, o único uso industrial significativo do plutônio é para armas nucleares ou outros artefatos explosivos nucleares, e neste caso a lucratividade não tem importância”. Ao ler-se a argumentação dos autores do documento do Sipri, chega-se a uma conclusão inescapável: a suspeita que pesava sobre o acordo nuclear decorria de dois fatos, exatamente os que assinalamos mais atrás: as reservas com que o Brasil assinara o Tratado de Tlatelolco — inclusivamente o fato de não ter cumprido todas as formalidades indispensáveis à sua entrada em vigor — e o ter-se recusado a subscrever o TNP.

A posição do Brasil, quando se viu acuado pela repercussão negativa do acordo com a Alemanha Federal — o qual se apresentou à opinião pública como afirmação de soberania e de independência diante dos Estados Unidos — foi a de protestar pelo testemunho da Agência Internacional de Energia Atômica de que nada do que fosse transferido pela RFA estaria fora das salvaguardas ou poderia ser empregado fora dos estreitos limites delas. Talvez tendo em vista essa repercussão e premido pela necessidade de assegurar-se o fornecimento de urânio enriquecido pela Urenco (a oposição da Holanda ao acordo foi rumorosa), o governo brasileiro assinou salvaguardas com a AIEA, as quais, a juízo de muitos, foram mais rigorosas do que se supunha de início e a causa oculta do malogro do acordo. As salvaguardas foram severas não apenas, creio, pelo fato de a AIEA desejar demonstrar que não permitiria ao Brasil transformar-se em potência nuclear; também pelo fato de a Alemanha Federal não querer ou que as grandes potências nucleares a vissem associada a uma empresa nuclear na América Latina, ou comprometer, por isso, a posição internacional lograda a duras penas depois de 1948.

A rigor, pode dizer-se que muito da reação ao acordo com o Brasil se deveu ao temor de que a RFA dele se servisse para testar armas nucleares, ação política que lhe era defesa pelos acordos de 1955. Muito desse receio correu por conta de uma particular teoria conspirativa da história já que a RFA nunca tal pretendeu. Com efeito, como reconhecia o Grupo de Estudos sobre Política de Energia Nuclear da Ford Foundation e da MITRE Corporation em seu estudo Nuclear Power Issues and Choices, de 1977, “ter uma capacidade potencial de [fabricar] armas nucleares, contudo, não é a mesma coisa que ‘proliferação’ — ter de fato armas reais — como foi demonstrado pelo Japão, pela Alemanha Ocidental, pela Suécia, pelo Canadá, pela Alemanha Oriental, pela Espanha, pela Suíça e outros”, entre os quais, diríamos eu, se pode incluir o Brasil àquela época e ainda agora. Apesar de reconhecer essa diferença fundamental entre “proliferação” e “capacidade potencial”, o relatório Ford-MITRE admitia que o regime de não-proliferação que então prevalecia — e até hoje vige — poderia ser submetido a tensões intoleráveis se muitas nações, que estão apenas a um passo ou dois de ter a capacidade de fabricar armas nucleares decidissem seguir esse caminho — isto é, resolvessem desenvolver as tecnologias do ciclo do combustível nuclear que permitissem a produção, separação e manejo do plutônio ou do urânio enriquecido, usáveis em armas nucleares. Os autores do relatório reconheciam que o controle do ciclo do combustível nuclear em suas partes sensitivas era difícil (págs. 271 e segs.).

A questão fundamental, quando se examina o acordo Brasil-Alemanha, é saber se o Brasil tinha, ou tem hoje, oito anos passados, pessoal qualificado, fundos substanciais e suficientes e tempo para poder realizar um programa nuclear que alcance êxito. O relatório Ford-MITRE reconhecia que esse programa estava dentro das capacidades de muitos países em desenvolvimento “se eles investirem suficientes recursos”. Se o problema da transferência de tecnologia do enriquecimento estava, como ainda está, na dependência de o processo “jet nozzle” revelar-se industrialmente apto, a outra forma de transferência de tecnologia assinalada pelo relatório Ford-MITRE parece ter sido desenvolvida em níveis que para alguns cientistas brasileiros são insatisfatórios, e para algumas autoridades razoáveis, se não bons: o treinamento na operação de processos de enriquecimento e processamento.

O relatório em questão é extremamente minucioso ao descrever o que chama de “caminhos alternativos para a fabricação de armas nucleares”. São quatro caminhos básicos: “1. instalações fora das salvaguardas, construídas especialmente para a produção de urânio enriquecido ou plutônio para armas, ou pesquisa; 2. desvio clandestino de material nuclear de instalações do ciclo do combustível nuclear ostensivamente dedicadas a fins pacíficos e sob salvaguardas; 3. o uso aberto de materiais para explosivos produzidos em instalações do ciclo do combustível nuclear na ausência de, ou depois de retirada do acordo sobre, ou em desrespeito a acordos internacionais que dispõe em contrário; 4. fabricacão de armas nucleares rotuladas de “artefatos explosivos nucleares para fins pacíficos”, usando material obtido nas categorias anteriores”. O relatório é extremamente duro ao afirmar —: “os Estados determinados a abertamente possuir armas, descobrirão que instalações especializadas para materiais militares custarão menos e serão construídas mais depressa do que se se apoiar em reatores de potência. Para produzir plutônio para armas há um pequeno, se tanto, custo extra, e possivelmente uma vantagem, gastando de 50 a 100 milhões de dólares em um pequeno reator para produzir plutônio, do que utilizar um reator de potência que custa entre 500 e 1.000 milhões de dólares e é usado basicamente como usina geradora”. O problema todo é a experiência do pessoal empenhado nas pesquisas e no projeto dos explosivos nucleares. Para os autores do relatório, “se o país escolher realizar uma explosão experimental e tendo em vista objetivos políticos ou adquirir confiança [técnica], a detonação pode ser a primeira notícia pública de um programa, na medida em que a maior parte ou todas as atividades preparatórias podem ser desenvolvidas clandestinamente”.

Essas referências extraídas do relatório Ford-MITRE são importantes, quando se tem presente o noticiário publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 17 de junho de 1981, sobre a remessa de placas de urânio natural, nuclearmente puro, para o Iraque, onde seria irradiado em reator de potência fornecido pela França, depois destruído pela Força Aérea de Israel. Apesar dos desmentidos formais das autoridades brasileiras, há fundadas razões — as fontes em que se obteve a informação e dados obtidos posteriormente — para crer que o jornal tinha razão ao dizer, em editorial de 24 de junho daquele ano, que o urânio remetido ao Iraque deveria voltar para aqui ser reprocessado, no quadro de um programa nuclear diferente daquele firmado com a República Federal da Alemanha, sigiloso e destinado a produzir, no mínimo, artefatos nucleares para fins pacíficos ao amparo do Tratado de Tlatelolco. A unidade de processamento, fundamental nesse esquema, seria um laboratório para análise de materiais irradiados, laboratório esse que segundo declarações feitas à época pelo eng. Hernani Amorin, diretor do Ipen, “pode servir de base para a instalação de uma unidade de reprocessamento”. Um dia antes, também em editorial, o mesmo jornal havia deixado claro que o material impuro que o Ipen processava e transformava em dióxido de urânio, mais a irradiação no reator iraquiano, mais o reprocessamento final no próprio Ipen, tudo isso está fora de qualquer controle da AIEA. O eng. Amorin declarara, consoante o mesmo jornal de 23 de junho de 1981, que o referido laboratório não está sujeito às salvaguardas da AIEA, e hipoteticamente poderia estar habilitado a separar plutônio em quantidades mínimas. Admitiu também que, no futuro, o Brasil poderia produzir artefatos nucleares para fins pacíficos.

Seguramente, o fato de as instalações do Ipen serem todas não sujeitas a salvaguardas levou as autoridades norte-americanas a protestar de maneira reservada junto ao governo brasileiro, solicitando que o Instituto fosse submetido à fiscalização da AIEA. A anuência do Brasil a esse pedido, conforme se noticiou em agosto de 1981, seria a condição para que os Estados Unidos, de acordo aliás com o Non-proliferation Act de 1978, fornecesse urânio enriquecido a 3% para o reator de Angra I. A investida norte-americana não obteve êxito aliás, nem a investida, nem o reator, que até agora não está sendo utilizado a plena carga por causa de defeitos técnicos... A preocupação do governo norte-americano melhor se compreenderá se se tiver em vista que em 1976, graças a “um imperdoável erro de ‘desclassificação’ — como acentua Bertrand Goldschmidt — seguido de não menos imperdoáveis publicações, dados capitais e até lá dos mais secretos sobre a bomba H foram divulgados nos Estados Unidos”.

A leitura bem feita do noticiário dos jornais permitiria acrescentar uma última nota a essa primeira parte da exposição: no campo nuclear, o Brasil estaria preocupado, também, com a construção de um protótipo de submarino atômico, arma de ataque, cujos efeitos psicológicos e políticos são menores do que os decorrentes da posse da bomba nuclear.

A pergunta que se faz, de início, tendo em vista a rationale da conduta governamental brasileira expressa em Tlatelolco, TNP, acordo com a Alemanha, instalações não submetidas a salvaguardas no Ipen, é a seguinte: que teria levado o Brasil a tal atitude? Contra que inimigo potencial? A última questão vem respondida no relatório Ford-MITRE: à págs. 284, lê-se que o Brasil é um país em busca de status nuclear e que tem como rival a Argentina. A resposta à primeira talvez coincida com aquela fornecida à segunda, e talvez pudesse, de forma mais coerente, ser dada da seguinte forma: para realizar o que Morgenthau chamaria de uma política de prestígio e para assegurar-se as condições de retaliação na hipótese de a Argentina vir a possuir sua própria bomba atômica.

O fato de a Argentina, por sobre as divergências políticas entre as diferentes facções militares, perseguir a fabricação da bomba atômica não é segredo. Já em 1974, em artigo sugestivamente intitulado “Argentina, Brasil y la bomba atómica”, o general (R) Guglialmelli dizia na revista Estratégia (set.-out. 1974): “... com efeito, Buenos Aires e Brasília adotaram uma política de uso pacífico da energia atômica que não exclui, para esses fins, a fabricação e o uso de explosivos nucleares”. “Dê-se de barato, contudo, e dada a vantagem argentina na matéria...”. “Ambos os países, segundo vimos, podem fabricar sua bomba atômica, embora a Argentina conte com uma vantagem apreciável e uma maior liberdade de ação em conseqüência da alternativa escolhida para sua política nuclear. O que importaria definir é a conveniência de dar passo tão transcendente”. Guglialmelli concluía que esse passo ainda não era necessário para a Argentina, pois “... uma atitude unilateral da Argentina em favor de produzir um artefato nuclear poderia empurrar o Brasil a uma estreita aliança ofensivo-defensiva com os Estados Unidos...; ao lançamento acelerado de seu próprio programa bélico-nuclear com decisivo apoio norte-americano... Por último, no plano interno dos respectivos países, tampouco parece conveniente distrair os vultosos recursos que exige a fabricação do artefato e o eventual desenvolvimento do potencial nuclear da aplicação em outros objetivos irrenunciáveis e prioritários” no campo do desenvolvimento econômico e social. A realidade posterior a 1974 pode ter alterado a posição argentina, da qual sem dúvida Guglialmelli se fazia intérprete: o acordo Brasil-Alemanha, a guerra das Malvinas e, o que parecia então impossível, o placet do governo norte-americano ao fornecimento de água pesada para o programa nuclear argentino.

Deixando de lado a política de prestígio e concentrando-me no aspecto das relações com a Argentina, importa ver que a fabricação de artefatos nucleares para fins pacíficos ou militares — chamo a atenção para a frase do general Guglialmelli. “... não é possível determinar, antes de seu emprego, a finalidade perseguida na fabricação de artefatos nucleares” — só se entende à luz de uma doutrina militar. Em outras palavras pode perguntar-se: exige a concepção de manobra implícita na doutrina militar brasileira, ou o que é mais importante, comporta o emprego de armas nucleares?

Apesar do caráter sigiloso com que os problemas da doutrina militar são abordados no Brasil, pode dizer-se que ela experimentou as seguintes evoluções:

1. Inicialmente, preocupou-se apenas com a situação na fronteira Sul e Sudoeste. Hoje superada, era oficialmente defensiva-ofensiva, quer dizer: na hipótese de um conflito armado, o Brasil só investiria com o adversário depois de ser por ele atacado. Após resistir ao primeiro assalto das divisões adversárias, as forças armadas brasileiras passariam à contra-ofensiva, visando a restabelecer a situação territorial anterior com a ajuda da reserva estratégica, que deveria chegar à linha de frente nas 24 horas seguintes ao assalto inimigo;

2. No fim dos anos 50 e no decorrer dos 60, alterou-se essa doutrina, que deixou de ser configurada na proposição retirada-defesa ativa-ofensiva para espelhar-se noutra: defesa ativa no local-retirada se necessário e só em última instância-ofensiva. Importa assinalar que essa mudança na doutrina marcou o início do descrédito na eficácia dos sistemas de defesa associada, nas organizações internacionais como garantes da justiça e da integridade territorial, e na capacidade de auxílio dos Estados Unidos. Mais ainda, a nova doutrina partia do princípio de que a guerra nuclear era impensável pelo risco de destruição maciça e recíproca;

3. A doutrina atual tem muito a ver com a retraçada no item 2: defesa ativa no local-retirada se necessário e em última instância-ofensiva. Privilegia o emprego da tropa em situações em que o Brasil pode agir isoladamente; evita ao máximo, qualquer que seja a circunstância, participar de ações coletivas em área não do interesse imediato brasileiro; não aceitando a priori engajamentos associados, marca ostensivamente o afastamento dos Estados Unidos — fato já visível em 1974, quando Guglialmelli se referiu à hipótese de um acordo ofensivo-defensivo com os Estados Unidos.

A doutrina de emprego, nas três versões, sempre privilegiou a tropa de terra e, por descurar do concurso estratégico da Marinha e da Força Aérea, nunca pensou em termos de pressão e dissuasão. Ademais, até o conflito das Falklands, embora os trabalhos na direção de conseguir alcançar a autonomia no controle do ciclo do combustível nuclear tivessem prosseguimento a nível secreto, a hipótese de guerra clássica na América era desconsiderada, (valorizando-se a da guerra subversiva) ou então assentando apenas na suposição de um conflito em que se engajaria fundamentalmente, da perspectiva estratégica, a força de terra.

Ora, a exposição que conduzi até aqui indica que objetivamente se está em busca de introduzir no arsenal brasileiro dois tipos de armas que tenderão a subverter a doutrina militar vigente: o submarino nuclear, que dará à Marinha capacidade de ação estratégica que não possui desde a revolta da esquadra em 1893, e a bomba atômica. Os problemas de investimento subjacentes a essas opções são fundamentais, por serem enormes. Deixemo-los de lado, no entanto.

A construção do submarino nuclear dará ao Brasil a posse de um instrumento de emprego estratégico, que alterará a relação de forças entre Exército e Marinha, mas poderá ser benéfico a uma política exterior que seja bem conduzida, isto é, apoiada numa manobra coincidente com os interesses do país.

A posse da bomba atômica tem outro sentido, aliás duplo: um, referido aos componentes do poder militar; outro, referido à concepção estratégica em sentido mais amplo. No que toca aos componentes do poder militar, tomo o artigo do general Guiglialmelli que venho citando (o de 1974): o poder nuclear no que tange aos componentes do poder militar, implica a análise dos “meios disponíveis, tanto em qualidade, quanto em quantidade, tais como: tipos de artefatos nucleares (fissão, fusão, estratégicos, táticos); existências em estoque; vetores (meios de lançamento) e outros elementos desse sistema de armas, tais como tipo e reforço das rampas de lançamento, sistemas de enlace, redes de comando e alarme, capacidades industriais, meios de defesa (ativa e passiva) etc...”. Afinal, não se disporá de artefatos nucleares apenas para exibi-los; há-de torná-los operativos.

Ora, é neste terreno da passagem da posse da arma nuclear para sua operacionalidade que a questão maior se coloca. Há vários aspectos a considerar. Tomemos alguns, ao acaso:

a) em primeiro lugar, a posse da arma nuclear transformará o Brasil numa potência nuclear? Que significa uma potência nuclear? O marechal Montgomery, citado por Guglialmelli, diz a esse respeito: “que significa a expressão potência nuclear? Do ponto de vista estratégico, pode definir-se uma potência nuclear como aquela que possui uma capacidade mínima para o lançamento de armas nucleares, suficiente para dissuadir a qualquer nação agressora que esteja pensando em fortalecer sua posição mediante um golpe súbito e devastador. A nação atacada deve ter o poder suficiente para devolver o golpe, poder que por sua só existência pode evitar o desastre da guerra. Devolver o golpe até que ponto? Sugeriria — diz Montgomery — devolver o golpe e destruir por completo um número inaceitável de cidades importantes ou áreas, vitais”.

O efeito dissuasivo, portanto, não é o de uma estratégia anti-força, mas sim contra cidades. Essa proposição suscita questão importante, que tratarei mais adiante.

b) em segundo lugar, qual desenvolvimento chegará primeiro ao final: o dos componentes do poder militar, acima relacionados, ou o do artefato nuclear? Se for o do artefato, ainda que a nível experimental como foi a primeira bomba A que explodiu no deserto norte-americano, o País seguramente não terá os capitais necessários a desenvolver os componentes do poder militar aptos a aproveitar para efeitos dissuasivos a sua nova fonte de poder — se é que terá condições de desenvolver mais de um artefato. Dados os problemas envolvidos nesses tipos de pesquisa, creio que o artefato estará pronto antes do poder militar apto a ampará-lo — embora se esteja trabalhando sobre a experiência de outros países e se possam ordenar as pesquisas e o desenvolvimento simultâneos.

Seja o que for, é preciso ter presente que num determinado momento esse tipo de atividade será conhecido em sua plenitude e a reação da opinião pública será contrária a que o Brasil se transforme em potência nuclear. Por uma série de razões sentimentais. O fundamental, porém, não são os motivos sentimentais, mas os que se poderiam dizer estratégicos.

c) Entramos aqui na análise sumária da concepção estratégica mais geral. A posse da arma atômica alterará fundamentalmente uma doutrina militar já ineficiente para fazer frente aos desafios da realidade em que se insere o País neste final de século. Alterará para pior, pois dotará uma das Armas (Exército, Marinha ou Força Aérea) de um instrumento de pressão política interna incomensurável, além de eliminar para sempre a possibilidade de desenvolver-se doutrina militar adequada às exigências da realidade. É que, na verdade, a posse da arma atômica fará da guerra — sobretudo quando se pensa pouco sobre ela e muito sobre problemas internos — um exercício intelectual em que se procurará sempre a tendência aos extremos. Se, só agora, no teatro europeu, os SS-20 e os cruise podem tornar a guerra nuclear possível porque sua precisão permite uma estratégia anti-força e não contra cidades, será possível esperar desenvolver mecanismos tão acurados de lançamento? O que é mais importante, confiar-se-á na arma atômica como um complemento das forças convencionais ou como a arma absoluta?

O importante, para o Brasil — busque ou não os artefatos nucleares — é construir sua força de dissuasão, que não pode estar apoiada na bomba atômica, na medida em que sua posse desequilibra o balanço continental de poder sem que se tenha condições de atender às situações emergentes a esse desequilíbrio. Ademais, a bomba atômica traz consigo o risco de basear-se a estratégia na sua posse exclusiva, o que levará a apoiar qualquer negociação, ou ação defensiva, nela. Ora, contra potências não-atômicas no continente, ela é irrelevante seja para a defesa, seja para o ataque; contra potências atômicas, sua posse levará fatalmente, como levaram os Estados Unidos e a NATO, a uma estratégia suicida.

A dissuasão de que o Brasil de hoje carece, não é tanto a que repousa na bomba atômica, mas sim na construção do Poder Aéreo Estratégico, Poder Naval e Aeronaval Estratégico e na real capacidade de intervenção do Poder de Terra. Ela só terá sentido, no quadro de uma política externa verdadeiramente independente, se houver a volta ao padrão de balança de poder em que o país confia antes de mais nada em seu próprio poder, que é a soma das alianças que souber contratar ao nível bilateral. Dessa perspectiva, e considerando que a fabricação de artefatos nucleares poderá ter efeito contrário ao desejado, na medida em que a sua posse, ao alterar o equilíbrio continental de poder, afetará os interesses de médio e longo prazo do Brasil, a política nuclear brasileira deve rer subordinada a uma concepção de manobra mais ampla do que a que se executa buscando prestígio, ou apoiada na simples retaliação. A disuassão não requer a posse da bomba atômica; exige um poder militar apto a executá-la tendo em vista as peculiaridades do meio em que o Brasil se insere na América Latina. É preciso, ademais, pesando custo e benefícios, tomar consciência de que a bomba terá o poder de destruir uma cidade como São Paulo, mas em compensação o poder aero-naval de dissuasão convencional, desde que estratégico, pode fazer o mesmo em ações sucessivas e não muito distantes no tempo.

A discussão desses problemas, reputo-a fundamental, na medida em que fora de qualquer controle da sociedade, parecem desenvolver-se as condições que levarão a uma fatal alteração da doutrina militar brasileira, tornando-a rígida ao extremo. É preciso ter em mente, como dizia Otto Miksche, que “ameaçar com armas atômicas não é nem estratégia, nem ação própria de estadistas. Não é um sinal de força, mas de fraqueza, algo entre o amadorismo militar e o derrotismo. Estados que baseiam sua política de um modo muito unilateral nas armas atômicas são, como aliados, politicamente não confiáveis e militarmente perigosos”.


 

EXAME DOS MODELOS
DE COOPERAÇÃO MILITAR
NO MUNDO DE HOJE

 

Creio não ser necessário aborrecer os ilustres participantes deste seminário com a descrição pormenorizada da forma pela qual se dá a colaboração militar no mundo moderno. Tenho, porém, a certeza de que devo ressaltar que falo aqui em meu nome pessoal. A ressalva talvez pareça desnecessária a muitos, pois o espírito destes seminários — este é o primeiro, não nos esqueçamos — é exatamente permitir que cidadãos troquem opiniões sem envolver responsabilidades governamentais. Em meu caso, todavia, o esclarecimento se impõe ser feito com muita ênfase — porque afinal existem arquivos e bibliotecas em que não será difícil encontrar referências a meu nome, seja feitas em Marcha de Montevidéu, seja em publicações argentinas e mesmo venezuelanas, nas quais sou apresentado como “el vocero civil más autorizado del Estado-Mayor de Las Fuerzas Armadas brasileñas”. Não que em si a função seja desonrosa; a questão é que não sou e nunca fui porta-voz do EMFA; minha ligação com esse Ministério resumiu-se a participar da organização deste seminário. No Brasil escrevo e publico artigos sobre o estabelecimento militar brasileiro e sobre a doutrina militar brasileira, criticando-a e sugerindo profundas modificações nela. Além de, como são testemunhas o almirante Vidigal e o brigadeiro Deoclécio — com quem há muito anos tive memorável polêmica sobre a importância do Poder Aéreo —, procuro redefinir a função constitucional das Forças Armadas brasileiras em linha de pensamento e conclusão totalmente diversas, senão antagônicas àquela assentada e aceita pelos chefes militares, inclusive do EMFA. Fique, pois, feita a ressalva de que sou porta-voz de mim mesmo — apenas meu, nem mesmo de minha mulher.

Adentrando o tema, acredito que seria mais frutífero apontar alguns aspectos gerais do problema, para que sobre eles possamos discutir e possivelmente chegar a consenso ou acordos tácitos, que eventualmente tenham importância ou interesse para os Estados argentino e brasileiro. Propositadamente digo Estados e não Governos, para que quaisquer constrangimentos de natureza político-partidária ou decorrentes de distintas visões do mundo não constituam empecilhos para a discussão.

As relações entre as nações — sejam aquelas relações especificamente estatais, sejam as de que participam outros atores que não os Estados, mas que alguns teóricos consideram agentes das relações internacionais a igual título que os órgãos estatais — dão-se hoje em cenário que poderíamos chamar de planetário. Com isso quero dizer que o destino de cada Estado está sendo jogado, com paradas mais ou menos altas, em qualquer recanto de qualquer Estado representado nas Nações Unidas. A consciência dessa característica não deve obliterar a de outra: nesse cenário, se as principais ações diplomáticas são as desenvolvidas pelos dois protagonistas; se as ações econômicas relevantes podem ter como agentes Estados menos importantes do ponto de vista do poder militar, as ações propriamente militares não se dão entre os atores principais, mas sempre no máximo entre um deles e um ator secundário. O desenvolvimento tecnológico-militar, no fundo, impõe que as superpotências não se confrontem, na medida em que o duelo entre elas, podendo levar a ascensão aos extremos, acabaria por aniquilar de várias maneiras todo ou boa parte do patrimônio biológico e cultural da humanidade, especialmente o concentrado no Hemisfério Norte.

É para essa contradição, que se criou após 1945 — de resto já conhecida de todos —, que gostaria de chamar sua atenção: enquanto o cenário diplomático era limitado à Europa mais a Rússia Czarista, os conflitos, mesmo localizados, podiam dar-se entre os protagonistas — que eram vários, para felicidade da civilização. A expansão do cenário em 1917, de europeu tornando-se internacional, não impediu que os protagonistas desempenhassem o papel que deles se esperava. Já a transformação do cenário de internacional em planetário, com a descolonização pós-45 e a presença atuante do braço político da União Soviética em quase todos os continentes, tornou impossível, especialmente pela introdução da Bomba na panóplia dos supergrandes, o confronto entre os únicos reais protagonistas das relações internacionais — interestatais no sentido em que Aron as vê. Essa limitação, possivelmente benfazeja, não eliminou o conflito militar como se sonhou nos gabinetes da Casa Branca povoados pelos duendes que construiriam um mundo ordenado pela supremacia das leis do mercado e o poderio dos Estados Unidos, que Franklin D. Roosevelt acreditava serem os campeões da paz e da democracia. A limitação imposta aos supergrandes, proibidos de confrontar-se, apenas contribuiu para diminuir aquilo que Deutsch chamou de diferencial de poder entre as pequenas nações e as supergrandes. Se quisermos tomar a imagem penetrante de Aron, poderemos dizer que a expansão do cenário para nível planetário, associada às rápidas transformações registradas no mundo social e político dos países do Hemisfério Sul (mais especificamente os subdesenvolvidos) após o término da II Guerra Mundial, fez que o franco-atirador (ou o terrorista individual) e a Bomba representassem de maneira inescapável a forma extrema de violência nos conflitos internacionais. A extensão do cenário diplomático para o Planeta fez renascer a importância do Indivíduo ou da organização privada em luta contra a organização estatal; à luz desse fato será preciso proceder a profunda alteração em todos os conceitos que forjamos até hoje para analisar os fatos diplomáticos e as relações internacionais. Não é esse aspecto teórico o que nos preocupa, no entanto.

A expansão do cenário acompanhou fenômeno da maior importância na definição das “forças profundas” de que fala Renouvier: a dupla feição que assumiu a expansão planetária do sistema produtivo, todo ele caracterizado pelo que se pode chamar de Modo de Reprodução Ampliada do Capital (MRAC). Se por um lado, no após-guerra, registra-se aumento na velocidade do processo de autonomia capitalista das nações atrasadas (no sentido em que Luxemburgo toma esse processo em sua obra famosa A Acumulação do Capital), por outro lado verifica-se a criação de obstáculos cada vez maiores à difusão do MRAC. Por paradoxal que pareça, a expansão do cenário diplomático conduziu ao recrudescimento do nacionalismo, que gera o protecionismo e a ineficiência nas nações industrializadas e em vias de desenvolvimento (nefastos, um e outra, aqui como ali, para a implantação do MRAC e o estabelecimento de relações sociais e políticas impregnadas de seu espírito racional), e ao isolacionismo dos países socialistas, que igualmente impede a circulação de bens e o florescer das cem flores de que falava Mao antes da “revolução cultural”. A esses fatores estruturais ligam-se outros de conjuntura a ser levados em conta quer na análise das relações internacionais tout court, quer na das perspectivas estratégicas: a crise da estagflação decorrente dos dois choques do petróleo, e a crise provocada pela alta dos juros no mercado internacional, que se refletiu na crise da dívida externa dos países do Terceiro Mundo, a qual a médio prazo inviabiliza a existência do próprio sistema internacional. A tudo isso cabe acrescentar, como se fosse dado estrutural, o esforço armamentista na União Soviética e nos Estados Unidos, determinante da queda da velocidade e impeditivo da plena acumulação do capital, na medida em que boa parte dos armamentos produzidos pelos dois supergrandes são consumidos — se assim se pode dizer — no mesmo espaço político-econômico (estatal) em que são produzidos. Em outras palavras, não realizam valor embora criem empregos.

A conseqüência de todos esses fatos não deixa de ser curiosa: um cenário diplomático planetário em que o desenvolvimento do MRAC reclama, para a realização da autonomia capitalista das nações atrasadas, que as barreiras alfandegárias e não-aduaneiras sejam abolidas entre as nações, mas no qual o fim do colonialismo e o triunfo político-ideológico da União Soviética em várias frentes fazem ressurgir com enorme atração a idéia do Estado-Nação, que se espelha igualmente nas práticas protecionistas dos países industrializados. Ora, é o Estado-Nação que dificulta a extensão planetária do MRAC e torna inefetivo o poder dos supergrandes, quando aplicado a guerras limitadas. O nacionalismo subseqüente ao fim do colonialismo e a diminuição do diferencial de poder entre os supergrandes e os pequenos levaram, juntamente com o progresso das forças profundas assinaladas mais atrás, a que qualquer cooperação militar duradoura só fosse possível onde o MRAC já se tivesse implantado por força de sua expansão dir-se-ia histórica e quase natural, ou naqueles espaços político-estatais em que a acumulação se dera nos anos pós-45 na base da conquista armada e do trabalho escravo, isto é, no Hemisfério Norte, no tradicional cenário diplomático que começa a montar-se em 1917 para a grande apresentação de 1939.

A hipótese que apresento à sua consideração é a seguinte: a Organização do Tratado do Atlântico Norte e o Pacto de Varsóvia, enquanto expressão formalizada de relações militares de cooperação (cooperação efetiva no caso da OTAN, relações de dominação e subordinação no caso do Pacto de Varsóvia), só se puderam constituir graças à relativa estabilidade das estruturas sociais vigente na Europa, no império soviético e nos Estados Unidos. A estabilidade das estruturas sociais é fator determinante da organização da cooperação militar; outro, sem dúvida, é o temor consensual das élites dirigentes de uma transformação não regrada dessas estruturas ou de aspectos delas, isto é, uma mudança em descompasso com as normas do sistema político. Se, no caso dos Estados Unidos, a hipótese do receio da revolução aplica-se apenas no limite, no caso da Europa Ocidental ela vale para o temor de uma revolução de inspiração soviético-comunista. Dessa perspectiva de análise, é preciso ver que a força integradora do sistema político-social responde em boa medida pelo fato de o consenso das élites poder levar à transformação do comunismo stalinista em eurocomunismo, vale dizer à integração dos PCs nos padrões de dominação vigentes no Ocidente europeu. Na Europa Oriental, a hipótese se explicita no temor de uma alteração brusca demais dos princípios que regem o planejamento centralizado da economia, o controle do partido comunista sobre a vida social e as vantagens que, para a burocracia, resultam de uma ineficiente gestão da economia.

Creio que muitos dos presentes gostariam que alinhasse fatos para comprovar as hipóteses. Antes de chegar aos fatos propriamente ditos, seria conveniente ter presente que a visão que os dirigentes norte-americanos, especialmente ao fim do governo de F. D. Roosevelt, tinham das relações internacionais e do papel dos Estados Unidos no mundo de após-guerra (nisto se integrando ainda que parcialmente na cosmovisão de Wilson) foi em grande medida responsável imediata pelo início da derrocada dos impérios europeus na Ásia e na África; responsável pela desestabilização do poder europeu a nível mundial, agravando a desestabilização sistêmica reinante na Europa do imediato pós-guerra, além de haver criado as condições políticas para a afirmação dos Estados Unidos como potência hegemônica no cenário planetário, até que se dá o surgimento da União Soviética como potência nuclear.

Uma das evidências de que as alianças militares após 1945 se mantêm em função da maturação do MRAC e da estabilidade das estruturas sociais na extensão dos territórios que elas se propõem a defender talvez esteja na circunstância de que os Estados Unidos tinham, em 1960, alianças militares com 42 nações, e que hoje são bem menos os governos que se dispõem a cerrar laços militares com a potência líder do chamado mundo ocidental. O princípio básico da formação dessas alianças, como é sabido, foi a doutrina do containment e a convicção de que a defesa de governos preocupados com a expansão do comunismo não como expressão do poder nacional soviético, mas como ameaça de subversão de estruturas sociais, seria suficiente para assegurar a continuidade dos pactos. Os efeitos anti-sistêmicos do MRAC, teoricamente, vinham-se fazendo sentir desde que houve o contato do Terceiro Mundo com as potências européias. As guerras, especialmente a II Guerra Mundial, apressaram as mudanças — e nessa transformação os Estados Unidos desempenharam papel de relevo, forçando situações de retirada, ou negando apoio aos europeus na ONU. No momento em que as élites dominantes não foram capazes de afirmar-se dirigentes do processo cultural e político, os governos que haviam subscrito as alianças cederam lugar a outros, que viam na expansão do poder nacional soviético — diretamente ou simplesmente pelo aumento de sua influência — a garantia de sua manutenção no poder. Com isso pretendo dizer que os movimentos de libertação nacional — inspirados ou não no marxismo-leninismo, orientados ou não por Moscou — ao subverter as antigas estruturas sociais abriram caminho para que a acumulação do capital se desse em forma semelhante à verificada na União Soviética ou na Europa Oriental, enquanto os governos depostos, que haviam firmado alianças militares anti-URSS com os Estados Unidos, constituíam-se em obstáculo a que o Capital acumulasse de acordo com as forma vigentes no mundo delimitado pela OCDE. Resultaria daí que o fundamental a perquirir no estudos das alianças militares, a fim de investigar as condições de sua maior ou menor duração e a possibilidade de real cooperação entre os países membros, seria registrar a compatibilidade entre as formas sociais em que se dá a acumulação do Capital nos distintos países integrantes do pacto associativo.

Essa compreensão do fato histórico, não é preciso dizer-me, é ex-post, pois teorias desse tipo só se podem tecer a partir da perspectiva ex-post. Chamo sua atenção para a circunstância de que o quadro que procuro compor a partir das premissas que vou estabelecendo pode levar a que se chame em apoio dele a tese de que a História é construída pela Razão, ou mais especialmente pelas negaças dela. Todavia, é preciso correr o risco de palmilhar esse terreno não apenas tortuoso, mas igualmente flanqueado por despenhadeiros. Afinal, quando se considera a história da perspectiva ex-post, há de haver uma certa racionalidade não nas ações isoladas de um estadista, mas no conjunto de ações engajadas ao longo do tempo por pessoas diversas, ou organizações cuja composição humana mudou com o passar do tempo. Ou há essa racionalidade, ou a História passa a ser apenas o reino da casualidade, também possível, mas só vivenciável de outra perspectiva.

Quando se tomam as ações conducentes à assinatura de alianças militares verifica-se quase sem exceção que a permanência delas e, sobretudo, a de seus resultados se dão exatamente naquelas regiões em que as formas sociais de acumulação de capital são compatíveis. Quando a preocupação com essa compatibilidade foi desonrada e a preocupação ideológica dominou — vistas as coisas da perspectiva ocidental —, os pactos militares foram incapazes de evitar as transformações políticas, econômicas e sociais que acabaram conduzindo a seu fim É que, na verdade, as alianças concertadas para atender ao triunfo acadêmico da teoria do cerco da União Soviética a partir de sua periferia mais imediata não levavam em conta as transformações sociais que se davam nos países que a um tempo se protegia e eram trampolins para o eventual ataque — transformações que, ao chocar-se com estruturas sociais e políticas esclerosadas, acabariam pó derrubá-las, fazendo da aceitação da submissão à URSS a condição da transformação social e política desejada. É relevante ter sempre presente a contradição maior ínsita à ação norte-americana: enquanto primeira potência econômica e financeira do mundo, nos países atrasados onde chegavam, os Estados Unidos, necessariamente, introduziam o MRAC, assim trabalhando a menor ou maio prazo contra seus aliados. Essa introdução do MRAC, todos sabemos, não se faz sem violência — social, ou armada, quando não armada e social. Os Estados Unidos assumiram a responsabilidade pela destruição das antigas estrutura sociais que emolduravam um modo pré-capitalista de produção, além das estruturas de dominação tradicionais. Fizeram-no na medida em que a transformação da economia racionalizou e secularizou as condutas individuais. Essa mudança deu-se, porém, antes que se tivessem estruturado organizações sociais capazes de assimilar politicamente as transformações da secularização da visão do mundo. Ora, os movimentos de libertação nacional incumbiram-se de explicitar a face armada da violência, utilizando a Ersatzreligion da Nação em fusão, ou do comunismo para enquadrar o antigo modo de pensar ainda não totalmente transformado pelas novas maneiras de produzir as riquezas e fazer deste enquadramento os alicerces do domínio autoritário ou totalitário do partido único.

Essa visão das coisas, que implica admitir a Razão conduzindo, retamente ou mediante suas negaças, a História, é que permite entender o porquê de as decisões estratégicas fundamentais dos Estados Unidos haverem privilegiado a linha de ação Europa first, condicionando o curso da II Guerra Mundial e o da paz, apesar de o sentimento nacional norte-americano em 1941 voltar-se em boa medida para condução estratégica em sentido totalmente oposto. É sabido que, já em 1939, ao formular os planos de guerra norte-americanos, o Conselho Combinado, que antecedeu a Junta de Chefes de Estado-Maior, traçou os diferentes Planos Rainbow, e o de número 5 foi o que se aproximou mais do que qualquer outro — como assinala Louis Morton em Command Decisions — das condições em que se travou a II Guerra Mundial. Rainbow 5 previa uma defensiva estratégica no Pacífico e operações ofensivas no Atlântico oriental a fim de derrotar a Alemanha e a Itália. Como assinala Morton, em Rainbow 5 achava-se “nitidamente implícito o conceito que emergiu, finalmente, como a estratégia básica da II Guerra Mundial: em uma guerra contra o Eixo europeu e o Japão, a Alemanha era o inimigo principal e, portanto, o esforço principal deveria ser feito na Europa para alcançar a derrota decisiva da Alemanha, no mais curto prazo possível” (Morton, Louis, “Primeiro a Alemanha: o conceito básico da estratégia aliada na II Guerra Mundial”, in As Grandes Decisões Estratégicas, Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, 1977).

Ninguém negará a dificuldade que Roosevelt teve em manter firme a decisão enunciada em Rainbow 5 e depois traduzida no ABC-1, aprovado pelo Conselho Combinado em maio de 1941, sobre o qual se começou a trabalhar em profundidade em junho daquele ano, depois de resolvidas questões de ordem política. O que cabe registrar é que, apesar de o planejamento militar haver privilegiado, entre 1921 e 1924, o Plano Laranja (guerra apenas contra o Japão) e depois haver admitido uma combinação Vermelho-Laranja (Inglaterra e Japão), a verdade é que a idéia de lutar prioritariamente no Atlântico oriental, portanto na Europa, reforçando a defesa do México e das Antilhas, impôs-se porque os interesses econômicos mundiais dos Estados Unidos estavam concentrados no Atlântico oriental, especialmente na Europa, o grande parceiro comercial norte-americano e sociedade recipiente de vultosos investimentos, da mesma maneira que México, América Central e Antilhas.

O fim do conflito na Europa e depois no Pacífico acelerou aquilo que se diria ser a ação da racionalidade própria das forças profundas — e estas forças, auxiliadas pelos ardis da Razão, levam ao Plano Marshall, que acabou por se constituir no ponto de inflexão nas relações entre os Estados Unidos e a União Soviética no imediato após-guerra. Com quase certeza se poderá dizer que a Razão negaceou para que se chegasse à situação que permitiu o “golpe de Praga” em 1948, inflexão que era previsível quando Truman anunciou sua “doutrina” em março de 1947. Marshall delineou seu “Plano” em Harvard em 5 de junho do mesmo ano e Molotov se retirou da reunião de Paris em julho, convocada para discutir a proposta Marshall — situação que pôs fim às ilusões sobre a possibilidade de colaboração entre as duas grandes potências que haviam vencido a guerra.

Como se sabe, o Plano Marshall — finalmente aprovado pelo Congresso norte-americano em junho de 1948, quando se autoriza a aprovação efetiva de 4 bilhões de dólares — culmina longo processo durante o qual as economias da Europa ocidental não se conseguiram recompor, incapazes de recuperar-se da destruição da guerra e de realizar seu crescimento de modo auto-sustentado, especialmente, descontadas as dificuldades da reconstrução do parque industrial, por causa da inflação e pela crise no setor externo, refletida nos déficits no balanço de pagamentos — inflação e crise do setor externo que se relacionam intimamente ainda hoje. Ao ler historiadores norte-americanos da chamada escola revisionista, como por exemplo Joyce e Gabriel Kolko, tem-se desse período a impressão de ter sido aquele em que se conseguiu levar à prática a conspiração do grande capital norte-americano para impor sua hegemonia à Europa e ao mundo. Depreende-se da leitura de The Limits of Power que o período que vai de agosto de 1945, quando Truman suspende a vigência da lei de lend-lease — segundo os Kolko, ato dirigido expressamente contra a Grã-Bretanha para fazê-la concordar com os desígnios expansionistas dos Estados Unidos —, até o final das discussões sobre o Plano Marshall é aquele em que triunfa a conspiração urdida para realizar as idéias centrais da administração Roosevelt no tocante à expansão do capital norte-americano. Essas idéias centravam-se, como sabido, na derrubada das barreiras comerciais e no fim do controle que a Grã-Bretanha exercia sobre a Commonwealth pela vigência da área do esterlino e pela existência de norma pela qual apenas a Grã-Bretanha poderia realizar a conversão em dólar dos esterlinos havidos pelo bloco em suas exportações.

Na verdade, se os Estados Unidos tiveram, como ainda têm por sua posição de maior potência industrial e financeira do mundo, todo interesse em estabelecer a liberdade de comércio (hoje mais do que nunca, dado o vulto do déficit de sua balança comercial), não se pode deixar de ter em conta que a economia européia não se conseguia recuperar malgrado às ajudas parceladas que os diferentes países recebiam isoladamente dos Estados Unidos sem nenhum tipo de imposição como as que se afirmou estarem atadas à concessão do empréstimo de 3,75 bilhões de dólares à Grã-Bretanha, ainda em 1945. A crise econômica (produtiva, inflacionária e cambial) dos países europeus acabou conduzindo, por um lado, a que buscassem ajuda em Washington de maneira franca e aberta, e por outro a que transferissem aos Estados Unidos as responsabilidades da defesa de amplas áreas estratégicas, levando o governo norte-americano a um tipo de engajamento para o qual não estava estrategicamente, isto é, militarmente preparado. Quando se consideram os fatos tais quais expostos nas Memórias de Jean Monnet, fica fácil entender o entrelaçamento deles, imbricação esta que pode ser explicada ex-post pelas negaças da Razão, ou in statu nascendi pela casualidade: “Mas nossos recursos em dólares diminuíam em ritmo alarmante (...) Em junho de 1947, os pagamentos foram efetuados com lastro-ouro do Banco da França. Um novo empréstimo americano foi rapidamente consumado.

“Essa situação dramática” — continua Monnet — “não era específica à França. Também a Inglaterra tinha esgotado seus recursos e, desde fevereiro de 1947, em um reflexo brutal, interrompido de uma vez sua ajuda à Grécia e à Turquia; em 1945, havia julgado que poderia encarregar-se desses países. Essa renúncia inesperada transferiu subitamente para os Estados Unidos uma responsabilidade direta sobre uma zona européia. Truman não hesitou um instante e manifestou nessa oportunidade a capacidade de decisão que iria caracterizar sua presidência. Solicitou créditos e armas para a Grécia e a Turquia. ‘Devemos empreender uma ação imediata e resoluta’, declarou em um Congresso que se tinha tornado hostil a qualquer compromisso financeiro e militar” (grifos meus). A relutância do Congresso norte-americano em aprovar as verbas destinadas ao Plano Marshall (o que fará apenas em junho de 1948, enquanto apropriação, a autorização tendo sido dada anteriormente, e ainda assim em valor menor que o julgado necessário pelo Executivo) é fato que os próprios revisionistas citados admitem. Para vencer essa resistência, segundo a tese revisionista que recorre àquilo que se poderia denominar de “teoria conspirativa”, o Executivo mobilizou o fantasma do avanço comunista na Europa, embora se esquecendo, os revisionistas, de que havia na realidade elementos suficientes para despertar o sentimento, o temor da expansão soviética, que significava de maneira simples a expansão do comunismo enquanto sistema econômico, social e político pela Europa Ocidental.

O que desejo tornar claro, fazendo apelo à figura dos ardis da Razão, é que a Doutrina Truman enquanto compromisso expresso econômico-financeiro — e de engajamento militar suposto — decorreu não tanto da necessidade de expansão do MRAC até a Grécia e a Turquia (só agora parece ter chegado lá), mas do malogro da recuperação econômica da Grã-Bretanha e da necessidade em que o governo trabalhista se encontrou de cancelar gastos militares e econômicos no Exterior para fazer face à crise interna. Esse foi um dos ardis empregados pela Razão — mas ele se sobrepunha a uma realidade que trabalhava no sentido de fazer que o “medo do comunismo” (apresentado por alguns como política conscientemente posta a serviço da expansão dos interesses do capital norte-americano) encontrasse fundamento na análise objetiva de todo comportamento soviético na Europa Oriental. Pode até dizer-se que a percepção que os líderes norte-americanos tiveram das ações soviéticas nos países da Europa Oriental foi assaz dominada pelo medo do comunismo. Isso não impede que a realidade existisse — ainda que possa ter sido determinada pelo medo dos soviéticos de que o santuário da Santa Mãe Rússia fosse mais uma vez violado, e logo depois da sangrenta guerra patriótica. É importante, a esse propósito, apesar de longo, transcrever trecho da Histoire des Démocraties Populaires de François Fejto (edição de bolso de Éditions du Seuil, Paris, 1952, vol. I) sobre a ocupação dos países da Europa Oriental pela União Soviética. Embora Fejto cite Rakosi dizendo que tudo estava previsto desde o início, coloca em dúvida que as coisas se tenham passado como se tudo estivesse estabelecido desde o começo. Não pode deixar, porém, de começar o estudo do período que vai de 1945 a 1947 com essas palavras sintomáticas: “Visto em retrospecto, do ângulo da situação em 1952, o desenvolvimento dos países do Leste, a partir de 1945, aparece como a realização gradual de um plano estratégico concebido pelo Kremlin e executado pelos comunistas dos diversos países. Esse plano, cuja existência é admitida por um observador tão favorável ao ponto de vista soviético como Doreen Warriner, teria previsto desde o fim da guerra a integração progressiva de todos os países do Leste no sistema econômico, político e social da URSS” (pág. 117). Da leitura de alguns textos de Aron pode chegar-se a conclusão semelhante: não é ele quem diz nunca haver acreditado na incorporação da zona soviética da Áustria ao império do Leste, pelo singular fato de que nela não se processaram, nem se intentou fazê-lo, as transformações econômicas e políticas que estavam em curso desde 1945 nos demais países, inclusive na zona de ocupação soviética da Alemanha?

A tudo isso, cabe acrescentar que, antes que o Plano Marshall se tornasse realidade efetiva — o que só se deu, como visto, em 1948 —, entre 22 e 27 de setembro de 1947 reuniu-se em Szklarska Poreba, perto de Wroclaw, na Polônia, a famosa conferência secreta da qual nasceu o Kominform. Ã primeira vista, ela se fez para condenar a política de frente única que até então fora a oficial de Moscou, a qual havia malogrado em conseqüência da expulsão dos comunistas dos governos da Itália e da França; na realidade, foi decorrência do fato de a Polônia e a Checoslováquia haverem pensado com grande interesse na oferta de auxílio feita pelos Estados Unidos. Na conferência, estabeleceu-se a política de “defesa dinâmica” do bloco socialista contra a ofensiva norte-americana. Fejto escreve que tudo se passou nessa reunião como se Stalin tivesse pressa em assegurar seu controle sobre os partidos francês e italiano, “que interessavam diretamente à estratégia soviética na Europa face à contra-ofensiva americana (Doutrina Truman, engajamento americano na Grécia, Plano Marshall)” (op. cit., pág. 190, grifos meus). Se essa era a percepção de Fejto em 1952, quando escreveu sua obra, por que não seria a dos elaboradores da política exterior norte-americana em 1947, especialmente tendo em vista a agressividade do tom dos discursos antiimperialistas? A percepção do adversário, não necessito insistir nessa verdade corriqueira, é fundamental na elaboração de uma política externa. Outro teria sido o desenrolar dos fatos se os norte-americanos, franceses e mesmo ingleses tivessem tido a visão dos fatos que, muitos anos depois, um dissidente foi capaz de formular — e se se aceitar que o objetivo soviético, como sustento, até 1973 foi salvaguardar o santuário da Santa Mãe Rússia, mantendo a qualquer custo os países satélites.

A história da reunião constitutiva do Kominform — tal qual relatada por Fernando Claudin em A Crise do Movimento Comunista (vol. 2, Global Editora, São Paulo, 1986) — é diversa e possivelmente elucidativa de muitos dos passos que se seguem: “O grande regulador da transformação do Leste Europeu — é supérfluo dizê-lo — foi a política staliniana, orientada para articular todos os países dessa zona num sistema político-militar protetor das fronteiras ocidentais da URSS, bem como para ampliar o espaço econômico do que em Moscou se entendia por construção do socialismo. (...) Durante a fase que estamos considerando, Stalin tratou de conciliar a construção de tais regimes com a tentativa de chegar a um acordo mundial, duradouro, com os Estados Unidos” (pág. 488 — a fase em referência é a que vai até o Plano Marshall). No tocante à reunião do Kominform, escreve que as diretivas do Kominform para os partidos francês e italiano eram, taticamente, “estimular a luta de classes no plano econômico (...) para bater os políticos centristas e sociais-democratas que se dobram aos americanos, mas o objetivo estratégico é reconstruir a união nacional com a fração da burguesia ameaçada pela expansão americana...” (pág. 500). Ao analisar o informe de Zhdanov, peça base para a compreensão do processo, segundo ele, diz: “O informe de Zhdanov está sabiamente dosado e estruturado, de forma que Washington possa perceber, sob o punho cerrado, a mão estendida.

“Em primeiro lugar, fica claro que o objetivo não é atentar contra as bases da grande cidadela do capitalismo; mais modestamente, trata-se de conter a sua expansão, como se diz taxativamente no informe (...). Em segundo lugar, Zhdanov assinala, com suficiente inteligibiíidade para os entendidos, a zona em que tal expansão é intolerável para os interesses soviéticos (a área de projeção européia) e a zona que se deve chegar a um arranjo que reconheça a preeminência de tais interesses (Alemanha). Quanto às outras, o porta-voz de Stalin limita-se a registrar a dominação americana (Japão, América Latina) ou o propósito de estabelecê-la (colônias inglesas, francesas, holandesas, China, Grécia, Turquia etc.) sem aludir a qualquer pretensão soviética nelas e deixando de lado a luta revolucionária que aí se desenvolve. (...) Molotov replica: ‘Sabe-se que também os Estados Unidos aplicam uma política de fortalecimento das suas relações com os países limítrofes, como o Canadá, o México e outros países da América, o que é perfeitamente compreensível.’ Ou seja, respeitemos cada um as respectivas esferas de influência e tudo pode ser arranjado. O silêncio de Zhdanov sobre a guerra revolucionária na China e na Grécia equivale a sublinhar diplomaticamente a boa disposição de Moscou em face dos interesses americanos no Extremo Oriente e no Oriente Próximo” (pág. 500 e segs.).

Essa é a visão de um dissidente que continua marxista-leninista ortodoxo; não se pode recriminar os ocidentais por ver e pensar diferentemente a realidade se as primeiras conseqüências da diretiva de “estimular a luta de classes no plano econômico” foram as grandes greves de novembro de 1947 na França, as quais exigiram de parte do ministro socialista do Interior, Jules Moch, a convocação de 80 mil reservistas e a ocupação das minas de carvão por 200 mil soldados, segundo números fornecidos pelos Kolko às págs. 369 e 370 de sua obra citada. Era difícil, nesse clima, discernir o que era um movimento tático, com o objetivo de permitir que o Kremlin assumisse o controle do PCF, de um amplo movimento estratégico de desestabilização da economia francesa e de tentativa de separar a França do bloco ocidental. Mesmo porque, ainda que a greve geral tivesse começado espontaneamente, a CGT e o PCF não puderam deixar de dar-lhe apoio ostensivo...

Na verdade, é preciso muito sangue-frio e uma percepção muito ampla e aguda da realidade para saber distinguir entre um movimento tático e uma ofensiva estratégica. Afinal, o movimento tático pode ser um reconhecimento em profundidade, desses de que Rommel foi mestre na campanha da África. Contra essa possibilidade era preciso adotar providências, mesmo porque, como reconhece Vojtech Mastny em Russia’s Road to the Cold War (Columbia University Press, New York, 1979), “...Stalin provou ser um profissional consumado da estratégia dos objetivos máximos e mínimos, estratégia que seus herdeiros continuaram a perseguir com êxito variável. Apto seja a explorar as oportunidades existentes, seja a criar novas, deixou suas aspirações crescerem até que se tornou consciente de que julgara mal a complacência de seus sócios anglo-americanos — da mesma forma que eles haviam avaliado mal sua moderação. Dessa forma, mergulhou seu país em uma confrontação com o Ocidente que nunca desejara nem supusera inevitável” (pág. 309). Não cabe ver se uma linha mais dura por parte dos Estados Unidos com relação à URSS, antes que a Guerra Fria se tornasse um lugar comum, poderia ter impedido a União Soviética de ocupar os países da Europa Oriental e de fazer deles seus satélites econômicos já na início de 1946, como Fejto observa com muita propriedade. Mastny, com a fina ironia, diz com muita clareza e precisão: “... No fim da II Guerra Mundial, dada a exaustão da Rússia e a sensibilidade de Stalin para o custo da expansão, qualquer política ocidental tendente a restringir seus movimentos teria de ter seguido uma linha mais dura do que branda; também teria tido melhor oportunidade de ter êxito se aplicada mais cedo do que tarde. Pode conceber-se que até mesmo uma ‘diplomacia atômica’ praticada com sangue-frio (seu não emprego tendo contribuído notavelmente para impedir a Guerra Fria) poderia ter obtido o mesmo efeito enquanto os Estados Unidos detivessem o monopólio nuclear. Para falar a verdade, essas conclusões, ainda que plausíveis, são meramente acadêmicas, porque nenhuma dessas políticas poderia ter-se materializado no seu tempo” (pág. 311).

Diante do grande movimento tático de Stalin (como quer Claudin) — para não falar na inocência com que os Kolko apresentam o problema — ou da ofensiva real temida por Kennan (fosse com a possibilidade de a Europa ocidental perder-se como campo de acumulação do capital nas formas ocidentais, fosse com a possibilidade de ela desaparecer politicamente, colocando os Estados Unidos em risco corno previsto nos planos militares desde antes da guerra), o fato é que foi apenas natural que o sentimento de defesa dos Estados Unidos e de muitos setores europeus se acentuasse. Tanto mais que, em 1948, logo após o golpe de Praga, Stalin voltou a lançar mão da estratégia dos objetivos mínimos e máximos, testando a capacidade de resistência dos ocidentais na Europa: o bloqueio de Berlim. O fato de os ocidentais (vale dizer, os Estados Unidos) haverem preterido a sugestão de romper o bloqueio com um comboio militar, objetivando testar as reais intenções soviéticas, não deveria ser interpretado à primeira vista como prova de sabedoria; talvez decorresse da circunstância reconhecida pelo general Edward B. Atkeson em “As crises internacionais e a evolução da estratégia e suas forças” (in Military Review, edição em português, outubro de 1945) de que “o documento elaborado pelo Conselho de Segurança Nacional, conhecido como NSC 20, que era a diretriz vigente àquela época, esclareceu a necessidade de serem contidas as tendências expansionistas soviéticas, mas não levou em conta qualquer necessidade das Forças Armadas para a realização dessa política”. Isso se devia, conforme reconhece o próprio Atkeson, à sólida confiança em que o armamento nuclear tornava obsoletas todas as outras armas. Ora, para empregar a arma nuclear, teria sido necessária uma diplomacia atômica praticada com sangue-frio, como academicamente recomendava Mastny.

Por erro de avaliação das reais intenções soviéticas da parte dos ocidentais; por Stalin ser prisioneiro do sistema soviético e ter sido obrigado a construir um império em seguida à vitória sobre a Alemanha nazista; por desejarem os Estados Unidos criar condições para a expansão do grande capital norte-americano — qualquer que tenha sido o real motivo das ações naquele período, o fato é que os atores diplomáticos se deixaram guiar pelas negaças da Razão. A percepção que os ocidentais tinham da política de Stalin levou-os a constituir a Organização do Tratado do Atlântico Norte, em 1949 — tendo à vista todos os exemplos dá expansão soviética, e num instante em que o poderio dos partidos comunistas francês e italiano já não constituía motivo de reais preocupações com a subversão das estruturas (embora persistindo como ameaça sempre potencial, para uns; sendo inexistente para outros, como os dissidentes marxistas-leninistas ortodoxos).

Retomemos algumas considerações.

Bem examinada a tese central dos revisionistas, a que levaria ela? A afirmar que a ação diplomática norte-americana no imediato pós-guerra teve por objetivo favorecer a expansão do grande capital norte-americano. Os Kolko, a cuja obra nos reportamos, são claros ao assinalar que a ajuda dos Estados Unidos à Europa não começou nem com o grande empréstimo à Grã-Bretanha nem com o Plano Marshall. Dizem eles, à pág. 26 de sua obra: “Bem antes das crises de 1947, que os historiadores, erroneamente, assinalam como marcando uma mudança característica nos propósitos e pretensões da política externa dos Estados Unidos, o governo norte-americano, em 1946, autorizou 5,7 bilhões de dólares em novos empréstimos externos e créditos — quase tanto quanto a média dos três próximos anos...”. Tomados em sua frieza, os números podem dizer muito; examinados os fatos à luz das hipóteses que vêm sustentando a linha de raciocínio deste trabalho, é-se levado a convir em que o resultado final a que se chegou, com a criação da OTAN e a incorporação da República Federal da Alemanha à organização atlântica, em 1955, acabou sendo mais um triunfo da Razão, empregando seus ardis. Na verdade, todos esses empréstimos e doações mais o empréstimo à Grã-Bretanha mais o Plano Marshall simplesmente acabaram por ressuscitar fantasma que se diria sepultado nas ruínas da última guerra européia: o Estado nacional, cujas fronteiras sempre foram obstáculo à expansão do MRAC. A OTAN, tenha-se presente, é uma reunião de Estados-Nações. A Europa que se construiu com a organização de defesa do Ocidente, e depois se estruturou na Comunidade Européia, como dizia o general de Gaulle, cuja forma mentis era em tudo e por tudo contrária à racionalidade ínsita no Modo de Reprodução Ampliado do Capital, foi a Europa das Pátrias.

É o caso de recordar — e os senhores desculparão aborrecê-los com lembranças históricas de todo mais bem conhecidas do que quem lhes fala — que a idéia do general Marshall ao fazer seu famoso discurso de Harvard em 1947 foi que a Europa encontrasse, por sua associação, a maneira de receber o auxílio de que necessitava para recuperar-se. À época, Monnet foi dos poucos que viu claro a oportunidade que se abria para que a Europa pudesse sobrepujar as antigas rivalidades, integrando-se em uma Federação. A conferência de Paris que se seguiu imediatamente à proposta de Marshall, reunindo os governos ocidentais e os do bloco soviético sob a liderança de Molotov, foi a prova inconteste de algumas coisas presentes nas forças profundas, uma delas o Estado Nacional, que encontrou guarida no velho espírito grão-russo, chauvinista e imperialista, presente nas atitudes de Molotov. São os Kolko que reportam a posição soviética: “Quando Bidault propôs que a conferência estabelecesse um plano econômico integrado para o conjunto da Europa, Molotov rejeitou a proposta como uma interferência sem precedentes nos assuntos internos de Estados soberanos...” (pág. 362). Monnet, como dizia, viu claro que os 16 países ocidentais que decidiram atender às solicitações dos Estados Unidos não tinham condições de agir a menos que constituíssem uma federação: “O esforço dos diversos países — escreveu ele a Bidault —, nos atuais limites nacionais, não será, em minha opinião, suficiente. Além disso, a idéia de que 16 países soberanos cooperarão efetivamente é uma ilusão. Acredito que somente a criação de uma federação do Ocidente, com a inclusão da Inglaterra, permitirá que, no tempo desejado, se resolvam nossos problemas e se impeça, finalmente, a guerra. Conheço todas as dificuldades dessa idéia — talvez a impossibilidade delas —, mas não vejo outra solução, se o prazo necessário for concedido” (Memórias, pág. 241). Nessa carta havia condicionante importante para a realização da Federação européia: a participação inglesa. Dez anos depois, escrevendo sobre “O Crescimento do Movimento Europeu desde a II Guerra Mundial”, Altiero Spinelli colocava o dedo na ferida: “Paralelamente às atividades de propaganda de Churchill e do movimento europeu, veio o patrocínio oficial da ação européia pela liderança do governo britânico. Ao Plano Marshall, o governo britânico respondeu, apoiado pelos governos europeus, com a Organização para a Cooperação Econômica Européia e, um pouco mais tarde, com o Conselho da Europa, isto é, com a criação de instituições internacionais que. ainda que dando a impressão de unidade, eram apenas órgãos consultivos, e assim deixava de lado completamente o problema da soberania nacional.

”O Plano Marshall representou a única oportunidade para a Europa unir-se. Se o governo norte-americano tivesse visto através do falso espírito europeu dos britânicos e tivesse concedido sua ajuda condicionando-a à criação de instituições federais no Continente, teríamos agora a união européia, pois nenhuma oposição séria poderia ter sido oferecida pelas forças que favoreciam a manutenção da soberania, exceto, é evidente, a Grã-Bretanha” (in Michael Hodges, ed., European Integration, Penguin Books, 1972, pág. 59).

É importante assinalar que a observação de Spinelli não cai no rol daquelas feitas ex-post, reconstituindo a história a partir dos famosos “se...”. O caminho para a Federação, que passava pela criação de Autoridades supranacionais funcionais, abriu-se a custo pela criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço e alargou-se por ocasião do debate sobre a criação da Comunidade Européia de Defesa. A Grã-Bretanha não integrava a CED — que, como é sabido, foi sepultada pelo voto da Assembléia Nacional francesa graças à união dos nacionalistas tradicionais, dos comunistas e dos gaullistas contra o projetado exército europeu, contando com a por assim dizer abstenção de Pierre Mendès-France. É que, resolvido o imbroglio indochinês, ele não se quis comprometer com uma das formas de solução de problema emocionaimente mais penoso para a França, qual fosse o caso alemão.

Assim, se a intenção dos norte-americanos, como alegam os revisionistas, foi criar na Europa condições para a expansão do grande capital norte-americano, curiosamente, eles a realizaram em detrimento da expansão lógica (lógica de acordo com os parâmetros que podem ser imputados à reprodução do Capital) do MRAC. De fato, como assinala Spinelli, “os primeiros resultados visíveis do Plano Marshall foram deter a ameaça comunista e permitir o reaparecimento da intenção dos grandes negócios monopolísticos setoriais, preocupados em preservar e defender os sistemas econômicos nacionais com os privilégios a eles inerentes” (op. cit., pág. 62). Ora, a expansão logicamente estabelecida do MRAC exige que não haja barreiras alfandegárias nem privilégios de mercado. O renascer dos Estados nacionais, no cenário planetário que se abriu com a explosão da Bomba, acabou conduzindo à crise por que atravessa hoje o MRAC, e com ele as organizações militares feitas para defender situação hoje diversa da existente em 1945-1949. Essa mudança não é apenas estratégica, mas também econômica — o mundo só com que se sonhava em 1945 não se tornou realidade, por mais que os historiadores falem da conspiração dos homens, esquecendo-se dos ardis da Razão —, aliás, o vultoso déficit da balança comercial dos Estados Unidos, em 1986, é disso prova evidente.

II

Foi a partir do fortalecimento dos Estados-Nações que se construiu a armadura de defesa do Ocidente na Europa, as alianças militares sobre as quais os senhores esperavam que eu lhes falasse. Tendo dito que a OTAN se constituiu a partir da associação de Estados nacionais, que têm como fundamento e razão de ser de sua existência a prerrogativa de decidir soberanamente sobre suas políticas de defesa, creio ter dito tudo. A menos que se queira, para continuar na linha de raciocínio acima exposta, afirmar que a pujança industrial de alguns países, ou o panache de sua élite dirigente pode estabelecer políticas menos cooperativas, enquanto a ausência desse vigoroso espírito nacional, ou a crise econômica pode levar à retirada das posições a Leste de Aden e a praticar uma política de defesa extremamente associada à da potência hegemônica da Aliança. Na verdade, se me permiti essa longa digressão histórica, em parte foi sem dúvida para evitar a aridez própria da exposição dos aspectos estritamente militares ou político-militares da cooperação, mas em parte também para chamar sua atenção para certas facetas das forças profundas, habitualmente descuradas no tratamento de temas desse alcance. Afinal, todos os que passamos os olhos por Clausewitz sabemos que é sobre a opinião pública que o cabo-de-guerra deve agir — sendo, portanto, de extrema importância conhecer como se dão os movimentos das forças econômicas, sociais e políticas sobre as quais se irá assentar a estratégia. Essa, é preciso começar a proclamá-lo, não é apenas a arte dos generais; deve antes resultar do amálgama — dessa “mistura de elementos que, embora diversos, contribuem para formar um todo” — da arte dos generais, aprendida nas Academias Militares e nos campos de batalha, com a arte dos demais cidadãos, aprendida na Universidade ou na escola da vida, quando não em ambas. É desse amálgama que poderá resultar ponto de vista fecundo e inovador, capaz de mostrar aos estadistas até que ponto a cega obediência a preceitos exclusivamente militares pode levar a ações contrárias aos interesses nacionais.

As alianças militares constituídas na Europa padecem do vício fatal que Monnet e outros depois dele — dos quais Spinelli é um exemplo — apontavam: estão fundadas sobre a soberania dos Estados, portanto sobre a base movediça da opinião pública. Não é, esse, defeito de que padecem apenas a OTAN e os países democráticos; igualmente o Pacto de Varsóvia, apesar de toda a coerção, ou mesmo coação do Exército Vermelho sobre os países satélites, também assenta sobre bases fluidas. Essas alianças no bloco socialista começam, segundo Fejto na obra citada, com tratados defensivos entre a União Soviética e os países ocupados, a partir de 1948, quando a sovietização dos regimes já era praticamente total. As alianças eram dirigidas contra a Alemanha “ou todo outro Estado que venha a aliar-se diretamente ou de qualquer outra forma com ele”. A União Soviética, em 1948, concluiu tratados com a Romênia, a Hungria, a Bulgária e a Finlândia. “O sistema — escreve Fejto — deveria ser completado pelos tratados polonês-húngaro (junho de 1948), polonês-búlgaro (maio de 1948), polonês-romeno (julho de 1949), checo-búlgaro (abril de 1948), checo-romeno (julho de 1948) e húngaro-checoslovaco (abril de 1949)” (pág. 199).

Ora, apesar dessa rede de tratados e de alianças, depois consubstanciadas no Pacto de Varsóvia — assinado em Moscou a 14 de maio de 1955, ostensiva e oficialmente em resposta à admissão da República Federal da Alemanha na OTAN pelos acordos de março de 1955 —, a União Soviética jamais pôde impedir que, no instante em que a opinião pública formada no culto do Estado-Nação que se supunha morto em 1945 se fez sentir, os governos dos países socialistas ou proclamassem a sua neutralidade diante do Pacto de Varsóvia e da OTAN (como a Hungria revolucionária de 1956), ou exigissem tratamento diverso daquele que a subordinação militar, primeiro, militar-econômico-política, depois, lhes impunha. Esse é o cenário de todas as revoltas que vêm da de Potsdam, em 1953, até a Polônia com o Solidariedade. Da mesma forma, os Estados Unidos não são capazes de fixar-se em uma estratégia coerente diante da União Soviética no teatro europeu pela simples e boa razão de que esta definição básica estará sempre à mercê das flutuações eleitorais nos países da Europa Ocidental e, mais do que eleitorais, das mudanças súbitas ou previsíveis da opinião pública no tocante aos problemas da vida em sociedade, do átomo e do meio ambiente, da vida e da morte, da paz e da guerra em suma.

A Comunidade Européia de Defesa — permitam-me voltar ao assunto — foi disso o melhor exemplo. O governo norte-americano, afrontado pela Guerra da Coréia, praticamente exigiu em 1950 que a OTAN integrasse um forte contingente alemão. Finalmente acabou cedendo aos argumentos europeus, especialmente dos federalistas, e aceitou a CED — ao fim e ao cabo rejeitada pelos franceses, que em seguida aceitaram o ingresso da Alemanha Federal na OTAN...

As alianças em geral — e a OTAN disso é bom exemplo, na medida em que é um covenant livremente consentido — resultam da coincidência dos interesses nacionais frente a um adversário, ou a um perigo iminente. A questão, quando se projetam as alianças contra o pano de fundo da opinião pública, é saber quem define o interesse nacional e o inimigo ou o perigo, ou o grau de sua iminência. Da perspectiva em que me coloquei desde o início — a da estabilidade das instituições e do consensus das élites dirigentes — não é difícil chegar a essas definições, embora não se eliminem, com isso, os problemas inerentes à aliança mesma, o principal dos quais é a relação dos países membros com a potência que dentro dela é hegemônica. Deixando de lado tantos autores ilustres, gostaria de citar um presidente brasileiro, o marechal Castello Branco, que, ao definir as relações entre o Brasil e os Estados Unidos, foi claro ao estabelecer que não se deveriam confundir os interesses do Ocidente com os interesses da potência que defendia o Ocidente, pois eram interesses de grande potência. Esse é o drama das alianças, sobretudo quando, como é o caso da OTAN, o território coberto pelos acordos constitutivos não é um território contínuo — ou em outras palavras, quando entre a potência hegemônica do ponto de vista militar, econômico e financeiro e o primeiro teatro possível de operações existe o Oceano. Tanto esse elemento geopolítico é significativo e comanda as relações militares na Aliança Atlântica que até hoje serão muitos os que, na intimidade, farão sua a observação de Queuille, primeiro-ministro francês: “Sabemos que, uma vez que a Europa Ocidental foi ocupada, os Estados Unidos vieram em nossa ajuda... Mas na próxima vez vocês provavelmente estarão libertando um cadáver”.

Raymond Aron tem razão quando diz que a OTAN enquanto organização militar foi-se constituindo lentamente, de 1949 a 1955. Em seu início, como lembra muito bem Alastair Buchan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte era apenas um pacto de segurança regional sob a égide do artigo 51 da Carta da ONU. E continua em seu ensaio “Problems of an Alliance Policy”: “O senador Vandenberg explicitamente promoveu e defendeu sua famosa resolução de 11 de junho de 1948, em termos da necessidade de reforçar a Carta da ONU criando um pacto de segurança regional no Atlântico sob a autoridade da Carta. Em seu livro, War or Peace, publicado em 1950, Dulles trata a OTAN simplesmente como uma associação regional similar ao Pacto do Rio de Janeiro que foi assinado em 1947” (in Michael Howard, ed., The Theory and Practice of War, Indiana University Press, 1975, pág. 299). A evolução do desafio soviético, ou para ser mais objetivo, a maneira pela qual se perceberam as implicações sociais e militares da sovietização do Leste europeu fez que de um sistema regional de defesa no estilo do TIAR a OTAN passasse a ser percebida pelo bloco soviético como um sistema militar integrado, quando na realidade não o era — e não o é, pelo menos aos níveis de integração e subordinação do Pacto de Varsóvia.

Na verdade, acentuando desde o início o princípio do respeito à soberania dos Estados, a OTAN não pôde evitar que as diferentes visões da política internacional dos países membros permeassem suas relações. O anticolonialismo dos Estados Unidos foi, desde a II Guerra Mundial, motivo de fricção entre os aliados — e explodiu de maneira dramática para a Aliança na crise de Suez, 1956, durante a qual ficou transparente que os interesses nacionais prevaleciam sobre os da Aliança como definidos por sua potência hegemônica. Ao falar à Câmara dos Comuns, sir Anthony Eden foi claro ao dizer que não aceitava como corolário das relações anglo-americanas “que devamos em todos os casos assegurar-nos do acordo de nosso aliado americano antes de poder agir por nossa iniciativa naquilo que sabemos ser nossos interesses vitais”. Õ sentimento anticolonialista norte-americano foi expresso pelo então vice-presidente Richard Nixon em um discurso eleitoral em novembro daquele ano: “Pela primeira vez na história mostramos independência diante das políticas anglo-francesas com relação à Ásia e à África, que nos pareciam refletir a tradição colonial. Essa declaração de independência teve um efeito eletrizante em todo o mundo” (apud Samuel Flagg Bemis, A Diplomatic History of the USA, Holt, Rinehart and Winston, Inc. New York, 1965, págs. 977 e 978).

Esse foi um dos problemas que dividiram a Aliança: o da concepção do mundo. Outro foram os interesses nacionais conflitantes, como no caso do conflito greco-turco em torno de Chipre. Há outro, porém, mais profundo, que decorre da própria visão que cada tradição fez que os governos tivessem das relações internacionais, e das servidões a eles impostas pelo desenvolvimento da tecnologia militar de emprego. Do sugestivo ensaio de Buchan, resulta claro que da perspectiva européia tradicional — não a federalista de Monnet, por exemplo — a defesa da Europa teria sido assegurada com muito mais independência e eficácia se em vez da OTAN a velha tradição diplomática tivesse voltado a dirigir os negócios da Europa: as grandes potências (Grã-Bretanha, França e os Estados Unidos) constituindo um forte sistema central de defesa, cada um dos dois países europeus dando sua proteção àqueles outros mais próximos, e os Estados Unidos se reservando o papel de garante de todo o sistema, por seu potencial nuclear. Seria dessa maneira, diz ele, que os construtores do sistema de Viena se teriam oposto à ameaça soviética. Ao organizar a OTAN com base no conceito de segurança coletiva, ela absorveu países demais, cada qual com seu sistema nacional de defesa (teoricamente subordinado ao sistema global) e deu azo a que, pelo fator do território descontínuo a que aludi, nunca se tivesse absoluta confiança nas garantias norte-americanas no tocante à segurança da Europa diante da ameaça soviética. Ademais, a evolução da tecnologia militar e a introdução de armas nucleares táticas na Europa — e agora os foguetes Pershing e os cruise — complicaram extraordinariamente as relações políticas entre os membros da Aliança, na medida em que retirou dos governos europeus — falamos, é preciso não esquecer, de uma aliança de Estados nacionais soberanos — o controle sobre a paz e a guerra. Seguramente, com o avanço da precisão dos foguetes de novíssima geração e a adoção da estratégia de contraforça, a guerra nuclear na Europa tornou-se possível, e a evolução aos extremos passou a depender da decisão norte-americana. O panache evitou que a França não pudesse decidir sobre a estratégia a adotar — o que demonstra, por melhores que sejam hoje as relações entre a OTAN e a França, que a Aliança não será efetiva, sem a integração francesa. Conta-se com que, na hora crucial, ela se dará e que a França não faltará com sua contribuição à defesa da Europa — mas ninguém perde de vista que ela o fará nos seus termos e dentro de sua doutrina estratégica, que repousa essencialmente no armamento nuclear a ser empregado não mediante o uso das duas chaves, uma norte-americana e outra francesa, mas de uma só, a de Paris.

Creio que já me estendi demasiado, aborrecendo-os com figurações sobre assuntos em torno dos quais os senhores já refletiram mais do que eu. Permitir-me-ia tomar-lhes alguns minutos mais, buscando trazer a discussão desse terreno estratosférico em que a coloquei para outro mais baixo, terra a terra, e sobretudo mais próximo de nós.

Que tipo de colaboração é possível esperar entre os Estados que subscreveram o TIAR, ou entre Estados americanos fora do marco jurídico estabelecido por este tratado?

Não sou daqueles que em nome de u’a moral abstrata costuma condenar o cinismo nas relações entre Estados. Não me agrada, no entanto, aceitar como boas as declarações políticas definidoras de intenções coletivas entre desiguais, pois é sabido que por se destinarem a cumprir efeito meramente retórico dizem demais — muito mais do que seus signatários podem praticar no âmbito de suas jurisdições internas. Do que falo são exemplos típicos os consideranda que antecedem todas as declarações e decisões de conferências interamericanas, desde 1936, para não ir mais longe: “Considerando que a identidade de suas formas democráticas de governo...”, ou continuam na “Declaração conjunta de solidariedade continental”, de 1939: “Os governos das repúblicas da América, (...). Firmemente vinculados pelo espírito democrático que inspira suas instituições...”. Essas são palavras que não podem deixar de inscrever-se em documentos interamericanos, ainda que assinados por Trujillo, Batista e Somoza. Do mesmo modo, quaisquer textos não serão documentos interamericanos se deles não constar com toda a clareza que os Estados que os subscrevem são soberanos — em outras palavras, que as declarações só os obrigam se assim o desejarem, e se forem cumpridas todas as formalidades prescritas por seus respectivos direitos internos para aprová-las, quando for o caso. É contra tal pano de fundo de hipocrisia democrática e realidade soberana que se deve tentar responder às perguntas formuladas mais acima.

A primeira questão a ter presente é que as declarações de intenção sobre a defesa conjunta do continente foram formuladas tendo em vista o então inimigo externo, extracontinental que ameaçava militarmente qualquer um dos Estados signatários: a Alemanha nazista. Posteriormente, o sentido da ameaça mudou, e as declarações válidas para opor-se a um perigo extracontinental materialmente definido foram transformadas em instrumento jurídico-político, que se desejou fosse válido para opor-se a um perigo interno, mas intangível, que ameaçava menos os Estados do que as élites dirigentes, ou as oligarquias, para atermo-nos a uma linguagem comum a toda a América Latina nos primeiro anos deste século. Quero dizer com isso que o TIAR, quando foi subscrito na Conferência de Petrópolis, em 1947, tem por objetivo não confessado a defesa das oligarquias (e dos Estados por elas controlados, ou que as apoiam) contra a ameaça representada pela ação soviética, mais precisamente pelo comunismo. Ora, o comunismo — diferentemente do poder soviético — não era, como não é uma ameaça militar stricto sensu; é uma ameaça a estruturas sociais de dominação. Só se torna ameaça militar quando, como em 1962, o aventureirismo de Kruchev e Castro conduziu o mundo à beira do abismo. Nas análises que se têm feito sobre o TIAR, muitas vezes se esquece de que as eventuais comparações entre ele e a OTAN são desprovidas de sentido pelas seguintes razões:

1. Os Estados europeus desde o fim da guerra e nas avaliações da ação da diplomacia soviética viam-se diante de uma ameaça militar concreta;

2. Essa ameaça militar era de origem externa às fronteiras definidas pelos documentos básicos da OTAN. O perigo da subversão interna da ordem estabelecida tinha sido vencido por aquilo que chamei de consensus das élites dominantes;

3. A OTAN nunca foi, nem poderá ser colocada a serviço da manutencão do statu quo — a menos que se rompa o princípio fundamental sobre qual ela assenta, que é o da soberania dos Estados;

4. A relação de forças na Europa Ocidental afastou o perigo da revolucão social como se a via nos anos imediatamente posteriores à Revolução Russa, ou como se percebia a ameaça soviética de 1945 a 1948.

No que diz respeito ao TIAR, de 1947 a 1965, quando se dá a intervenção em São Domingos, o mais das vezes ele foi empregado como escudo protetor para a manutenção do statu quo e, por evidente erro de visão dos que faziam e fazem a política latino-americana dos Estados Unidos, para garantir a retaguarda da “fortaleza americana”. Reconheça-se que por ocasião da invasão da Costa Rica pela Nicarágua somozista a ação das nações do TIAR foi importante para assegurar o governo de “Pepe” Figueres. Já não foi o caso porém — a pretexto de ser assunto interno —, quando da deposição de Arbenz; e funcionou no conflito Honduras x El Salvador. Ora, cabe convir que a defesa da “fortaleza Estados Unidos” é incompatível com o acendrado amor dos governantes e dos povos latino-americanos por sua autonomia de ação, nem que seja meramente retórica, diante da política do Departamento de Estado norte-americano. Ademais, o TIAR não reúne condições necessárias de operaíividade para impedir que o problema da revolução social seja resolvido mediante o concerto de ações militares. Foi possível, pela decisão unilateral dos Estados Unidos, depois referendada pela OEA, impedir o que se vislumbrava ser uma revolução social em São Domingos, em 1965; não fora possível impedir, porém, o que de fato tinha sido uma revolução social em Cuba, da mesma forma que agora é impossível pôr em ação os mecanismos do TIAR para impedir a revolução social em marcha na Nicarágua, ou as seqüelas da ação internacional dos sandinistas na América Central.

Por sua abrangência advinda basicamente das resoluções da Reunião de Consulta de Caracas, 1954, e pelo desembaraço que presidiu sua elaboração, o TIAR não tem função real nas relações interamericanas de hoje em dia. Da mesma forma que não terá função pacto associativo algum que não tenha a sustentá-lo as premissas sobre as quais assentei algumas das razões da permanência da OTAN até hoje: estabilidade das estruturas sociais e consensus das élites dirigentes sobre os problemas da repartição da renda e da distribuição do poder social. Num continente, como a América Latina, onde o problema da revolução social está constantemente na ordem do dia pelo menos desde 1918 (a Reforma Universitária, em Córdoba) ou 1924 (a fundação da APRA) e onde as formas históricas já assumidas pelas manifestações de hostilidade contra a ordem estabelecida alteraram-se substancialmente, indo da forma clássica das manifestações operárias do século XIX e início do XX (em que se podiam detectar manifestações de anarquismo individualista), passando pela forma clássica da guerrilha (a que vai possivelmente da Revolução Mexicana de 1910, passando pela Coluna Prestes no Brasil, e ganha notoriedade com a instalação de Fidel Castro em Sierra Maestra) para chegar à guerrilha hodierna, que obedece ao que chamo de “efeito Hiroshima” (pelo qual as formas de confronto político-militar são apocalípticas); num continente em que tudo isso mais a explosão demográfica minaram as estruturas sociais e políticas, além do moral das forças da ordem, é sem sentido imaginar a possibilidade de pactos defensivos regionais. Ou alguém imaginaria possível acordo defensivo, no estilo do Tratado do Atlântico Norte, entre Brasil e Colômbia para defender o Estado colombiano contra as ameaças do M-19, ou o Estado brasileiro contra movimento guerrilheiro que surgisse na Amazônia, um país enviando tropas para auxiliar as Forças Armadas do outro? Ou alguém imaginaria politicamente possível, ainda que possível juridicamente, empregar o TIAR para auxiliar o governo de El Salvador a combater a guerrilha que seguramente só se sustenta com apoio externo, configurando ameaça aos fundamentos da autoridade de um governo signatário do Tratado e ademais eleito em boa e devida forma?

Pessoalmente, creio que os documentos consagrando a independência, a autonomia e a soberania dos Estados americanos, subscritos nos diferentes foros interamericanos, são meramente declaratórios e de efeito retórico enquanto não se tiver adotado a decisão de denunciar, no sentido jurídico do termo, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca. Exatamente por ele nada representar — a não ser a possibilidade que se ordene às tropas de Honduras ou de El Salvador que se detenham onde estiverem (coisa que o Conselho de Segurança da ONU poderá fazer talvez com mais eficácia) — é que o TIAR é um instrumento de defesa sem eficácia estatal (insisto na palavra estatal), sua eficácia sendo apenas a de manter a aparência de solidariedade entre Estados não solidários, e de unidade entre Estados cujos governantes conservadores ou liberais, socialistas ou comunistas rejeitam a forma pela qual a potência hegemônica no campo da economia e do fornecimento de armas quer impor sua presença.

Cabe, ademais, ver que o recente conflito no Atlântico Sul evidenciou que os signatários do TIAR não têm semelhante percepção coletiva do que seja o inimigo comum. Ora, quando em uma aliança os Estados membros não são capazes de estabelecer quem é o inimigo comum e de determinar o casus belli, ela não tem razão de ser.

Se as alianças defensivas — as únicas que o Direito Interamericano e o nacional de nossos países permitem — são sem razão de ser e portanto condenadas ao malogro; se a tradição internacional da América Latina tem repudiado alianças ofensivas (sobretudo por não contarem com respaldo na opinião pública dos diferentes países), será possível algum tipo de colaboração que ultrapasse aquela que as Marinhas de Guerra das diferentes nações estabeleceram há anos, adestrando-se para a hipótese de guerra submarina no Atlântico Sul, na eventualidade de um conflito nuclear entre as duas superpotências? As premissas assentadas de início conduzem a conclusão negativa pelo menos em princípio: sendo o desenvolvimento econômico dos países latino-americanos desigual — isto é, não havendo neles condições favoráveis à expansão uniforme do Modo de Reprodução Ampliada do Capital —, é de prever-se que atravessem fases críticas de evolução do ponto de vista social-econômico, donde social e político. A menos que se consiga, superando preconceitos que sempre existiram entre povos que a geografia fez vizinhos e talvez partícipes do mesmo destino, criar condições favoráveis a que a expansão do Capital se dê em condições socialmente mais favoráveis do que as atualmente existentes, diminuindo as possibilidades da revolução social — e em boa medida essa possibilidade está condicionada a que se supere a crise do MRAC em âmbito mundial e se resolva a questão da dívida externa —, será difícil pretender que organizações que espelham em seu comportamento e em seu ethos o que a soberania dos Estados tem de mais seiscentista possam entender-se por cima da servidões das infra-estruturas econômicas e das idiossincrasias nacionais.

Não se deve descartar, no entanto, malgrado a fragilidade de tratados firmados por governos que ainda não puderam resolver em seus territórios as questões do MRAC e da revolução social, a possibilidade de se virem levados pela visão estratégica de seus estadistas e cabos-de-guerra e assinar aquilo que Bluntschli, no seu famoso Le Droit International Codifié, chama de “aliança”: “O tratado pelo qual um Estado promete a um outro seu concurso e seu apoio na busca de um objetivo político comum”. Na explicação, o A. escreve — e estas frases nos parecem importantes: “Uma aliança pode ainda concluir-se para atingir pacificamente um fim político; far-se-á entrar nessa categoria alianças (...) pelas quais dois Estados se comprometem a seguir a mesma linha de conduta em geral ou em um assunto especial. As alianças pacíficas, entretanto, têm sempre por objetivo seguir uma política comum e não se relacionam somente a certas instituições ou a certas empresas comuns” (Librairie Guillaumin et Cie., Paris, 1886, págs. 263 e 264). Na verdade, quando a segurança das fronteiras de dois Estados é ameaçada pela falência de um terceiro enquanto estrutura estatal de dominação e representação internacional, é lícito ao menos pensar em uma colaboração, quando não em uma aliança para salvaguardar interesses comuns e evitar que a disputa de interesses entre os grandes seja aproveitada por grupos políticos dos pequenos com o objetivo de opor entre si os grandes, impedindo solução condizente com os termos do Direito Internacional. Ainda assim, é o caso de notar ser o mesmo Bluntschli quem observa, ao discutir as causas legítimas da guerra, a importância de “reconhecer e admitir a necessidade para cada Estado e para cada povo de se transformar segundo as necessidades políticas da época... Opondo-se à formação de um direito novo, desconhece-se o sopro vivo que anima o direito e impede-se esse último de progredir ao mesmo tempo que a nação. (...) Parece-me que o direito de um povo de recorrer se necessário às armas para dar-se a constituição que ele reclama (...) é mais natural, mais importante, mais sagrado que os manuscritos empoeirados constatando os direitos de uma dinastia” (pág. 302).

É entre esses extremos que a rigor oscila a possibilidade de uma aliança entre nações americanas fora do marco definido pelo TIAR.

Creio ter aborrecido a sua paciência além do limite do suportável. Submeto-me agora às suas críticas judiciosas, nem sem antes lembrar-lhes as frases de Otelo aos representantes do poder de Veneza: Soft you gentlemen, soft you!

***

 


 

NOTAS

(*) Nota do Autor — Escrito originalmente para a revista Aportes (Paris) e publicado em seu número de abril de 1969, este texto não sofreu alterações apesar da evolução da conjuntura. De 1969 para cá, o Privilégio e a Burocracia — além de outras questões que àquela época não se imaginavam existir — alteraram o quadro. O texto permaneceu válido, no entanto, como visão genérica do problema. Com relação ao original, introduzi apenas ligeiras alterações de redação.

(1) João Camilo de Oliveira Torres, Interpretação da realidade brasileira, Livraria José Olympio Editora, 1969, pág. 56.

(2) Francisco Adolfo de Varnhagen, História da Independência do Brasil, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1940, distribuição da Companhia Melhoramentos, pág. 124.

(3) Oliveira Vianna, O ocaso do Império, Companhia Melhoramentos de São Paulo, São Paulo, 1933, pág. 134.

(4) Octavio Ianni, Processo político e desenvolvimento econômico, in Ianni e outros, “Política e revolução social no Brasil”, Editora Civilização Brasileira S/A, Rio de Janeiro, 1965, pág. 45.

(5) Oliveira Vianna, op. cit, págs. 134 e 135.

(6) Idem, ibidem, págs. 135 e segs., especialmente 141.

(7) J. Pandiá Calógeras, Formação Histórica, do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1966, pág. 306.

(8) Gen. A. de Lyra Tavares, O Exército Brasileiro (conferência pronunciada no dia 23 de agosto de 1965, no quartel do 1/7.° Regimento de Obuzes 105, durante as comemorações da “Semana do Exército”). Estabelecimento General Gustavo Cordeiro de Farias, Guanabara, 1967, pág. 9.

(9) João Camilo de Oliveira Torres, A Democracia Coroada, Editora Vozes Ltda., Petrópolis, 1964, pág. 473.

(10) Nelson Wemeck Sodré, Formação Histórica do Brasil, Editora Brasiliense, São Paulo, 1963, pág. 272/3.

(11) Gen. Lyra Tavares, op. cit., págs. 10 e segs.

(12) Calógeras, op. cit., pág. 313.

(13) J. C. Oliveira Torres, A Democracia Coroada, cit., pág. 473, nota 5.

(14) Cf., a propósito do “princípio da comunicabilidade”, Oliveiros S. Ferreira, Nossa América, Indoaméríca, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, págs. 33 e segs.

(15) J. C. Oliveira Torres, Interpretação da realidade brasileira, cit., pág. 340.

(16) Raymundo Faoro, Os donos do poder, Editora Globo, Porto Alegre, 1958, pág. 256.

(17) Idem, ibidem, pág. 256.

(18) Citada em Oliveira Vianna, cit., pág. 137.

NOTAS do Capítulo Guerra Nuclear, Guerra Convencional e Sistema Periférico de Defesa:

(1) Apud Wilmot, Chester. The Struggle for Europe — Fontana-Collins, Londres, 1974, página 1370

(2) Atkeson, Edward B., General — “As crises internacionais e a educação da estratégia e suas forças” — in “Military Review”, edição em português outubro de 1975, páginas 80 e 81.

(3) Trotsky, Leon - Écrites Militaires — Comment la Révolution s’est armée, L’Herne, Paris, 1967.


 

 

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