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O PARAÍSO SEXUAL DEMOCRATA

Janer Cristaldo

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O Paraíso Sexual Democrata
Janer Cristaldo


Fonte Digital
Documento do Autor
jcristaldo@gpmail.com

©2012 — Janer Cristaldo

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ONDE ME DESCOBRI TRADUTOR

 

A vida é uma caixinha de surpresas. Em meus dias de piá no Ponche Verde, jamais imaginaria que um dia seria tradutor. E muito menos que minha primeira tradução seria do sueco. (As traduções do francês e do espanhol viriam mais adiante). Aliás, naqueles dias, nem imaginava que a Suécia existia. E que iria me atrair poderosamente, a ponto de um outro dia, bem mais tarde, fazer minhas malas e ir morar no paraíso dos Sveas.

Só mesmo sendo jovem para fazer a loucura que fiz. Deixei em Madri, chorando, a mulher que adorava, e rumei ao norte. Ela, também chorando, rumava ao sul. Tenho certeza que hoje não teria forças para repetir tal insanidade. Eu conhecera Estocolmo há uns vinte dias. Caí lá em dezembro, em plena noite nórdica. Quatro horas da tarde, noite profunda. Me senti em Plutão e era em Plutão que queria aterrissar. Eu fugia do Brasil e do Terceiro Mundo, do carnaval e do futebol, da miséria e do subdesenvolvimento. Henry Miller dizia que os verdadeiros problemas humanos só surgem depois de resolvidos os problemas do estômago. Queria conhecer aquela sociedade onde os problemas do estômago já haviam sido resolvidos.

Fui para não voltar. Estava irritado com o Brasil e desejoso de paraíso. Não que pretendesse abandonar a mulher que adorava. Pensava em levá-la para lá mais tarde, onde viveríamos juntos os verdadeiros problemas da condição humana. Mal cheguei, minha primeira providência foi encontrar um curso de sueco. Verdade que todo sueco fala inglês. Mas meu inglês era escasso. E eu queria falar a língua local.

Mas as razões que nos impelem a viajar nem sempre são as que alegamos como motivo de partida. Conscientemente, eu fugia de um continente militarizado, do Brasil, do samba e da miséria. As gaúchas recém começavam a libertar-se dos preconceitos de Roma, e eu tinha pressa. Sem falar que, na época, o mito sexual por excelência eram as “adoráveis louras nórdicas”. Quando o sol cai por trás dos fiordes, dizia uma atriz, só nos resta ir para casa e fazer amor. É para lá que eu vou, pensou este ingênuo que vos escreve.

Sim, ingênuo. Pois as suecas eram bem mais inacessíveis do que insinuavam os pacotes turísticos. Tanto que minha primeira “sueca”, de sueca nada tinha. Era uma brava cidadã soviética, de Ashkhabad, no Turcomenistão.

Tinha pômulos asiáticos e deles muito se orgulhava. Como língua comum tínhamos o sueco, do qual conhecíamos umas dez palavras. “Jag, vacker” — me confessava Gysel, indicando seu rosto. “Eu, bonita”. Acontece que eu partira em busca das louras vikings. “Du vacker i Ashkhabad”, respondi. “Tu bonita em Ashkhabad”. “Jag, mycket exotisk”, insistia a camarada. “Eu, muito exótica”. Em suma, acabei partilhando do gosto dos Sveas — que assim se chama aquela tribo que erigiu a Suécia — pelos rostos orientais. Gysel casou-se com um sueco. Não que lhe agradassem os branquelas do Norte. Ocorre que faria qualquer sacrifício para jamais voltar a seu universo soviético.

A adorável loura nórdica surgiu bem mais tarde, afinal elas não dão em cachos à beira da estrada, como imaginam os latinos. Encontrei-a em uma festa, num daqueles verões em que o sol jamais se põe e os suecos correm desvairados pelos florestas. A noite não caía, o dia não amanhecia e o vinho jamais findava. Olhando de hoje, vejo tudo como sonho. Naquela noite, corri nu atrás de uma sueca nua, numa noite branca como o dia, pelos bosques dos hiperbóreos. Deve ter sido sonho mesmo. Ou não. Afinal a ela está dedicado este livro.

Se bem me lembro, naquela noite que não era noite, ensinei os nórdicos a dançar samba, logo eu que detesto samba, o que deve dar uma vaga idéia de meu estado etílico. Summa av kardemuma, como dizem os suecos: acabamos coincidindo na mesma cama. Amor? Nada disso, era puro porre. Em todo caso, daquela coincidência — como direi? — quase geográfica, resultou uma cálida amizade que embalou meus dias junto ao Ártico. Lena, a quem eu chamava de Lena Lena — lena significa doce em sueco — iniciou-me nos melhores autores suecos, e a ela devo minha descoberta de Karin Boye e a tradução de Kalocain ao brasileiro.

Há viagens e viagens. Conheço não pouca gente que gosta de conhecer culturas primitivas, bugres em estado selvagem. São em geral pessoas que vivem em países civilizados, ou que imitam as que vivem em países civilizados. De minha parte, prefiro a civilização. Não vejo maior encanto em tais viagens. Até já fiz uma. Em dezembro de 1975, estive no Saara argelino, mais precisamente em El Hoggar, onde vaguei por quinze dias pelo deserto, guiado por tuaregues e harratines.

Foi uma viagem fascinante, devo confessar. Nas noites ao relento nas montanhas, tomei um porre de estrelas e quase fiquei surdo com o zumbido estridente do silêncio. Ouvir os tuaregues contando histórias em torno à fogueira, em meio a uma noite gélida, é também algo que não se esquece. Diria que as viagens que mais me encantaram foram esta e mais duas navegando pelos fiordes noruegueses. Mas do Assekrem só me restaram o silêncio das noites geladas, os vultos embuçados dos tuaregues e as silhuetas das montanhas. Nada trouxe da cultura tuaregue, muito menos de sua língua, o tamahak, que já nem a falam.

Quando viajamos à civilização, o legado é outro. Da Suécia, junto om as paisagens nevadas e as noites brancas, trouxe uma língua, trouxe uma cultura distinta, mais um pouco da literatura dos Sveas. Lá, me descobri como escritor. Eu havia lido pelo menos uns quinze livros sobre o país antes de partir. Mal comecei a juntar palavra com palavra com palavra, fui descobrindo um país que não me fora mostrado pelos autores que havia lido.

São estranhos os fatores que nos levam para lá ou para cá. Meus desejos de deserto começaram lá perto do Círculo Polar Ártico. Em um exercício de vocabulário de uma aula de sueco, soube que tinha como colega uma författarina. Isto é, uma escritora. Era uma suissesse elegante e charmosa, e chamava-se Federica de Cesco. (Em 2008, saiu um filme sobre sua vida, Der rote Seidenschal). Quantos livros havia escrito? Ah — me respondeu com certo enfado — mais de cinqüenta.

Fiquei com um pé atrás. Era bastante jovem, mais de cinqüenta livros me parecia um exagero. Nunca havia visto uma författarina de perto, muito menos uma que tivesse escrito meia centena de livros. Passei no apartamento dela. Em uns dois metros de estante, ela tinha algumas das traduções de alguns de seus cinqüenta livros. Meu ceticismo caiu por terra. Perguntei qual considerava o mais importante deles.

— Ah! Só escrevo best-sellers. Nada de importante. Mas gosto muito deste aqui.

Passou-me um livro sobre El Hoggar, o país dos homens azuis. Falava da geografia dos tuaregues e harratines que habitam o extremo sul da Argélia. Havia na obra um certo deslumbramento de europeu em visita ao Terceiro Mundo. Mesmo assim, o livro incitava à viagem. O que me espantou naquele momento foi encontrar alguém que vivia de escrever, escrevia muito e não dava importância alguma ao que escrevia. Estava em Estocolmo paga por sua editora, para criar uma novela ambientada em aeroportos internacionais. Federica me deixava pasmo. A ela devo minha opção pela escritura. Se esta moça — pensei com meus botões — escreveu mais de cinqüenta livros e acha que só escreve bobagens, vou escrever pelo menos um, que não considero bobagem. Assim surgiu O Paraíso Sexual Democrata.

Assim surgiu também o tradutor. Para preservar — e testar — meu sueco, mergulhei na tradução de Kallocain, editada pela eBooksBrasil, do infatigável difusor da boa literatura, o Teotonio Simões. O livro havia sido publicado em papel em 74, no Rio de Janeiro, pela Cia. Editora Americana. Mas a edição esgotou rapidamente e hoje a obra de Boye só pode ser encontrada em sebos, e olhe lá! Naquela tarde em que me despedi de Lena Lena em Arlanda, mais uma vez chorando, ela nem desconfiava que estava exportando Karin Boye para o Brasil.

O Paraíso decorre de uma estada em Estocolmo nos anos 71 e 72. Ou seja: do alto deste livro, quatro décadas vos contemplam. A Suécia é um país pequeno, mas dinâmico. Muda rapidamente. Quando lá vivi, as prostitutas eram vistas como uma espécie de assistente social e beber álcool nos bares era proibido. Hoje, quem busca uma prostituta pode ser preso. E o álcool, embora permaneça proibido nos supermercados, é servido em qualquer bar. Estocolmo ficou mais alegre.

O Brasil também mudou. Naqueles anos, até livrinho sueco dava cana cá entre nós. Daí minha insistência em mostrar a pornografia, que era livre na Suécia, e a nonchalance com que os jornais tratavam a temática sexual. Hoje, nestes dias de Internet, até a pornografia decaiu no Brasil.

O livro envelheceu. Mas permanece como uma foto do passado daquela nação boreal.

Janer Cristaldo
Agosto, 2012


Janer Cristaldo

 

O PARAÍSO SEXUAL DEMOCRATA

eBooksBrasil
2012


 

A
Tania Koetz
e
Lena Hoffman

 

 

 

 

I CAME TO SWEDEN TO FIND HAPPINESS
I GO FROM SWEDEN AND HAVE NOTHING...
(Frase anônima escrita em março 72, na estação de metrô Östermalmstorg.)


 

ÍNDICE

O paraíso do amor
Admirável Suécia nova
O computador te vê
Batalha no Jardim do Rei
Mortos sem sepultura
Reino dos cães felizes
Educação para a vida e a morte
O sexo nosso de cada dia
A indústria da solidão
Horror ao contato físico e onanismo
O sexo pago no país do amor livre
Moral dupla
O pecado sueco
O marido domesticado
Casamento de consciência
As proezas sexuais do primeiro-ministro
Uma carioca em Estocolmo
Hötorget, consciência do mundo
Summa av kardemumma
Bibliografia
Notas
Referências da 1ª edição


 

 

O PARAÍSO DO AMOR

 

Não existe paraíso na terra, mas a Suécia é sua mais perfeita aproximação. — Bertil Ohlsson, diretor da Administração do Mercado de Trabalho

 

Como continuar falando em paraíso aos estudantes, quando eles crêem que o paraíso já existe na Suécia? — Queixas de um sacerdote francês

 

Voltemos atrás no tempo... um longo tempo atrás.

Houve uma vez uma terra cheia de densas florestas e pequenos, ocasionais, obscuros lagos. Lá nevava, pesada e persistentemente. Os dias eram tão longos como a noite e todos tremiam de frio. A adorável loura sueca tremia solitária, melancólica e deprimida. O forte, generoso viking também tremia, preocupado e infeliz, cheio de profundos pensamentos.

Ambos sentiam a falta de algo, mas não sabiam o quê. Até que um dia, quando finalmente o sol rompeu as nuvens, tiveram uma brilhante idéia. Assim nasceu o amor sueco e tornou-se extremamente popular. Logo todas as amoráveis louras e os fortes, generosos vikings se amavam. Até os ursos polares tornaram-se mansos e perambulavam amistosamente pelos caminhos. O amor espalhou-se como fogo e penetrou no âmago de cada ser, nas fábricas e nos campos. E em seu amor, os felizes suecos produziam mais e mais, como se faz quando se ama. Finalmente acabaram adquirindo — quase — o mais alto padrão de vida do mundo.

Em verdade, o amor tornou-se tão importante para os suecos — diz-se — que eles inventaram a neutralidade enquanto os outros povos lutavam e pareciam gostar disso. Assim tinham mais tempo para o amor.

À medida que a nova idéia tomava corpo, os habitantes fugiam para o campo, a natureza e os animais. Infelizmente, o sistema de trânsito também rendeu-se ao amor sueco e tornou tudo confuso (primeiro dirigia-se pela esquerda, depois pela direita, e por isso a Suécia é freqüentemente chamada de o País do Meio Termo). O amor espalhou-se até os mais importantes campos da atividade humana, como o comer. A smörgasbord logo se tornou o prato predileto do povo, quase uma obsessão. Neste ponto, os cientistas começaram a interessar-se pelo fenômeno. O amor foi analisado minuciosamente, e muitos foram considerados mestres por seus conhecimentos do assunto. Homens de negócios ficaram felizes ao perceber o que o amor significava como exportação.

Logo após, o país inteiro foi devastado por fervorosos observadores estrangeiros, e jornalistas dos quatro cantos do mundo transmitiam as boas novas do incomparável amor sueco e seu soberbo modelo. Enquanto isso, as adoráveis suecas e os robustos vikings viviam de um modo admirável como sempre o haviam feito.

Para celebrar sua brilhante descoberta, reuniam-se cada Midsommar (1) na luminosidade irreal do Sol da Meia-Noite, em intermináveis festas de amor, dançando, rindo e bebendo.

E assim, este pequeno país, acima do círculo polar Ártico, com suas densas florestas e sombrios lagos e longas noites e frios invernos e densa neve e brancas noites estivais, tornou-se um verdadeiro Paraíso do Amor.

Assim diz-se, pelo menos.”

 

Assim relata o Instituto Sueco a história do país para estrangeiros, turistas ou imigrantes. O bem humorado relato, em inglês (com texto de Bertil Torekull e ilustrações de Lennart Frantzén), divulga os dois aspectos graças aos quais a Suécia é observada por todas as nações: a liberdade sexual e o bem-estar material, em suma, o paraíso terrestre. Ilustrando a historieta, desenhos mostram o robusto viking (sexo coberto pela bandeira nacional) e a adorável loura passeando seminus pela floresta próxima a uma cidade. Fábricas e trens soltam pelas chaminés nuvens de fumaça em forma de corações. Mais adiante, um quadro dantesco de lutas, ódio, explosões, incêndio, violência — o mundo. Em meio ao caos, um oásis — a Suécia — onde o viking e a loura trocam ternuras e acariciam um urso polar.

Morando algum tempo no país e familiarizando-se com o idioma e o povo, o estrangeiro descobre aos poucos duas características — obsessões quase — nacionais: o gosto pelos recordes e pela estatística. Para começar, consta ser a Suécia o primeiro país no mundo a organizar um serviço estatístico eficiente. A partir daí, os recordes e primeiros lugares tornam-se monótonos: na Europa, a Suécia possui o mais alto nível de vida, paga os melhores salários, tem a mais elevada renda per capita, tem o maior número de: leitores de jornais, supermercados, carros, barcos a vela e a motor, rádios, TVs e telefones por habitante. Possui ainda o menor número de acidentes em relação à densidade de carros por habitante.

No mundo: suas crianças são as mais sadias do globo (ou seja, a mortalidade infantil é menor), seus cidadãos os mais longevos (média de vida: 75 anos), têm o maior numero de leitos hospitalares e dentistas por habitante, ocupa o primeiro lugar no consumo específico de aço, a assistência social é a mais perfeita, as diferenças entre os grupos (não se fala em classes) sociais são as mínimas, etc., etc., etc. Todos os dias, um jornalista ou expert descobre um recorde ou primeiro lugar. Um dos últimos: por ocasião do surgimento de atentados terroristas através de cartas-bombas, descobriu-se ter sido um sueco o primeiro a inventá-las.

A obsessão pelos recordes é tal que, por ocasião das Olimpíadas no México, houve quem propusesse conferir a nacionalidade sueca a todos os campeões olímpicos. A sugestão não foi aceita, mas a visão do país como campeão absoluto deve ter embalado o sonho de muitos.

Certos primeiros lugares são propalados mais discretamente e mesmo violentamente contestados. A Suécia ocupa o primeiro lugar na Europa nos casos de blenorragia por habitante (347 casos para cada 100.000 pessoas em 67), mas “porque seus serviços de estatística são mais rigorosos e a declaração das doenças venéreas é obrigatória”. Sobre a famosa estatística dos suicídios, Eisenhower criou um incidente diplomático ao declarar que o socialismo sueco era tão entediante que o país detinha a mais elevada taxa de suicídios do mundo. As contestações a Eisenhower baseiam-se também na sinceridade da estatística nacional. Em verdade, a Suécia não detém este recorde. Sua colocação varia conforme as fontes: por vezes ocupa o quinto lugar, quando não o sétimo, outras informações já falam em décimo. Um dado é comum a todas: a Hungria em primeiro posto.

Internacionalmente, associa-se ao país os conceitos de liberdade e neutralidade. Os historiadores suecos, em sua maioria, constroem uma imagem da Suécia como o berço da liberdade no mundo. A independência seria uma velha tradição dos camponeses que expulsaram do país reis estrangeiros como Erik da Pomerânia e Cristian da Dinamarca, e empreenderam grandes viagens ao largo da costa atlântica européia. Ao chegarem à Normandia (o nome alude aos homens do norte) buscaram relacionar-se com os naturais da região. Estes, ao pedirem para falar com o chefe dos normandos, ouviram a resposta: “Não temos chefes, somos todos iguais.”

Uma atual instituição jurídica, o allemansrätt (direito de todos os homens, literalmente), remonta aos tempos vikings e é apresentada com orgulho ao estrangeiro, por ser única no mundo. Segundo o allemansrätt, todo cidadão pode passear, pescar ou caçar, atravessar, colher flores, cerejas ou cogumelos em terrenos de propriedade privada. A instituição denotaria o amor dos vikings à liberdade, a não aceitação de limites em seus caminhos. A própria geografia do país não permitiria a escravidão de seus habitantes. “Os camponeses suecos, diz um escritor italiano, jamais conheceram a tirania dos senhores feudais, não sabem o que seja o jus primae noctis. Em um território plano, os tiranos não podiam encontrar rios onde estabelecer linhas de defesa ou montanhas onde erguer seus castelos na rocha.”

Apresentar a Suécia como berço da liberdade é empresa temerária. Uma análise menos deslumbrada do presente e passado suecos turva um pouco a beleza das tradições e instituições nacionais. Vilhelm Moberg, em Min Svenska Historia, estima em 100.000 o número de escravos do país durante os três primeiros séculos da Idade Média, ou seja, um quinto da população, estimada em 500.000 pessoas. Os demais historiadores silenciam sobre o assunto. Como defesa de sua afirmação, Moberg apresenta fatos e documentos incontestáveis. Um dos parágrafos das Upplandslagens Manhelgdsbalk estipula que se alguém encontrar uma criatura ou escravo de um outro, receberá um terço do valor do achado. Outros diplomas da época provam ser o escravo nada mais que um pertence de seu senhor, que tinha o direito legal de cortar-lhe a perna ou braço (o que não interessava ao proprietário, pois diminuía-lhe a força de trabalho) e mesmo de matá-lo, desde que comunicasse à autoridade o fato no dia em que o cometera. Os escravos constituíam para os camponeses uma força de trabalho indispensável, executando tarefas julgadas indignas por seus senhores: alimentação dos porcos, ovelhas e cabras, limpeza dos estábulos, etc. O cavalo e o boi, animais de mais elevado status, eram alimentados pessoalmente pelo camponês. Enquanto este semeava o campo, seus escravos vigiavam os porcos.

Os escravos eram então divididos em quatro grupos: prisioneiros de guerra, escravos por nascimento, escravos voluntários — que se entregavam aos camponeses em troca de alimentação ou pagamento de dívidas — e membros da guarda do rei.

Segundo Moberg. somente após 1335, ninguém mais podia ser chamado escravo na Suécia. A instituição fora abolida do direito, pelo menos. No entanto, em 1650, a Svensk-Afrik-Afrikanska Kompaniet traficava escravos e até mesmo construiu um forte para armazenamento da mercadoria no golfo da Guiné, denominado Carlsborg, em homenagem ao rei Karl X Gustav. A história sueca não registra este fato.

Segundo Clara Neveus, arquivista e pesquisadora, somente em 1920 foi eliminada totalmente a escravidão do pais. Um exame da situação atual da mão-de-obra importada põe em dúvidas esta afirmação. O trabalhador imigrante é o escravo voluntário deste século, que implora aos industriais dos países desenvolvidos sua escravização. Recebe, é verdade, salário em moeda forte e possui direitos trabalhistas. Mas é discriminado — admite-se a imigração, não o imigrante — e executará os trabalhos servis que Svensson (2) julga indignos de um ser humano.

Hoje a palavra liberdade quase inexiste no vocabulário político sueco. Em geral, será sempre associada à sexualidade. Quando Svensson condena a repressão e a ausência de liberdade dos países que o cercam, no mais das vezes está se referindo não às instituições políticas, mas sim à ética sexual.

Numa tarde de julho 72, em Sergeltorget, no centro de Estocolmo, um casal nu protestava contra a conferência da ONU para preservação do meio ambiente. Uma pequena multidão o cercava, indecisa entre o protesto do cartaz e a nudez do par. Dois policiais assistiam à cena. Interrogados se nada proibia a nudez pública, responderam: “Somos livres. Em princípio, nada proíbe que alguém ande nu nas ruas. Se porém a cena fere sua moral, o senhor pode reclamar. Pediremos então ao casal que se afaste.”

No entanto, por ocasião da realização da conferência, um dispositivo policial imenso impedia a aproximação de qualquer manifestante do local das reuniões, estivessem vestidos ou não.

A neutralidade é outro cartão de visita apresentado ao mundo. Em Leva i Sverige, de Tomas Hammar, livro que pretende não apenas ensinar o idioma mas também introduzir os imigrantes aos hábitos e instituições nacionais, lê-se: “Um país que se mantém afastado das guerras e não toma posição por nenhum lado é chamado neutro. Hoje, todos sabem que a Suécia pertence aos Estados neutros. Foi durante o final do século XVIII que a neutralidade tornou-se a linha da Suécia.”

O país esteve em guerra pela última vez em 1814 contra a Noruega, há século e meio portanto. Este período de paz e manutenção de uma atitude neutra durante as duas guerras é apontado como um dos fatores responsáveis pelo milagre sueco, ou seja, a passagem de um país agrícola e pobre (há um século, Estocolmo era uma das cidades mais sujas e cheia de mendigos da Europa) a uma nação industrial hoje invejada por todos os governos do mundo. Dag Hammarskjöld, como secretário-geral da ONU, e Gunnar Jarring como mediador no Oriente Médio, difundiram internacionalmente esta imagem de neutralidade. Para preservá-la, a Suécia recusou-se a participar da OTAN e do MCE. Neutralidade não significa porém que os nacionais renunciem a expressar suas opiniões em política internacional. Olof Palme, atual primeiro-ministro, já liderou passeatas contra a presença dos EUA na Indochina. A invasão da Tchecoslováquia pelas tropas russas foi condenada em 68. No ano seguinte, no Conselho da Europa, a Suécia protesta contra os métodos políticos do regime militar grego. Por ocasião da tomada do poder pelo exército, os suecos quiseram boicotar a junta militar recusando-se a viajar às praias gregas durante o verão, o que representaria um golpe duro à indústria turística do país. Mas os preços e o sol helênicos acabaram abafando a coerência política dos concienciosos Svenssons. Alguns intelectuais radicalizam suas neutralidades, recusando-se a beber vinhos gregos, espanhóis ou portugueses, para não fornecerem divisas a regimes ditatoriais. Mas como o único vinho sueco é destilado da batata, e a Romênia ou Argélia não possuem uma cultura enológica que possa competir com Espanha ou Portugal, as preocupações etilopolíticas acabam ficando no plano das intenções.

A propalada neutralidade não resiste a uma análise histórica mais detida. Durante a II Guerra, o país não só forneceu ferro à Alemanha como ainda permitiu a invasão de seu território pelas tropas germânicas que atacariam Narvik. Em 43, quando a situação melhorou para os aliados, o trânsito de soldados foi interrompido e o suprimento de ferro reduzido. Sem dúvida nenhuma, através desta atitude dócil, o país manteve-se fora da guerra. Quanto a “não tomar posição por nenhum lado”, parece que se preferiu não pensar muito na ocasião neste outro aspecto da neutralidade.

Na própria instituição do asilo político já se observa parcialidade. Sob o ponto de vista jurídico fazem-se duas distinções conforme o país de origem do refugiado. Se vem dos países da cortina, receberá asilo político. Vindo de qualquer outro país, poderá pedir auxílio por razões humanitárias. A distinção evidencia o preconceito ideológico de que só no leste ocorrem perseguições e crimes políticos. Mesmo neste caso, a atitude sueca não tem sido das mais admiráveis. Após a última guerra, o país recebeu 30.000 fugitivos da Lituânia, Estônia e Letônia. Cedendo à pressão russa, o governo entregou aos soviéticos parte dos soldados bálticos refugiados em seu território. Em outras palavras, condenou-os aos campos de concentração e à morte.

Na Idade Média admitia-se a concepção de paraíso com certa hierarquia. Determinados privilégios, como uma maior proximidade e melhor ângulo de visão do Senhor, distinguiam as classes dos beatos, veneráveis e santos, anjos e arcanjos. Como toda ficção, a teologia refletia o momento histórico vivido por seus mestres. Após os ideais libertários da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos Humanos, as idéias de Marx, Lênin e Mao, a concepção de paraíso sofre necessariamente uma reformulação. No Éden nórdico não existem portanto classes sociais, esse evento sociológico dos países capitalistas e não democráticos. Falar em sociedade de classes para um sueco referindo-se ao seu país é ofendê-lo em seu mais íntimo orgulho. O ofensor receberá então uma chuva de dados, que começam pela renda per capita e o PNB — esse novo índice da felicidade dos povos — nacionais, até um inevitável confronto estatístico com os EUA. Estes roubam uma série de primeiros lugares aos suecos. Mas Svensson não vê mendigos em suas cidades, não é racista, não assassina presidentes nem invade o Vietnã.

Mas ao analisar a sociedade sueca, os sociólogos deparam-se com certas diferenças de ganho e nível de vida entre proprietários, funcionários públicos e operários. Temos então, não classes, mas grupos sociais I, II e III, respectivamente.

O eufemismo não convence, embora as diferenças entre classes sociais tenham sido bastante atenuadas. Nas ruas todos vestem igual, pobres não existem, cada família em princípio dispõe de carro e telefone. O direito à educação é uma realidade e não apenas um belo parágrafo na Constituição. A instrução obrigatória é de nove anos e todo aquele que quiser cursar a universidade recebe um empréstimo do Estado, que o dispensa de trabalhar para o custeio dos estudos. A universidade é gratuita. Para ingresso, basta a apresentação do certificado de conclusão dos estudos de segundo ciclo, exceto nos cursos de medicina, odontologia e politécnicos, onde é feita uma seleção devido ao excesso de demanda.

Todo e qualquer cuidado hospitalar é gratuito, trate-se de uma fratura rápida ou um câncer. Os medicamentos só são pagos até a quantia de 15 coroas, o que exceder a esse valor é pago pelo Estado. Toda consulta médica (excetuando clínicas privadas) custará 7 coroas. Em caso de doença ou desemprego, a Försskringskassa (3), a divindade onipresente que a todos protege, paga um salário doença ou desemprego que permite ao segurado viver dignamente. Aos 67 anos todos passam a receber uma pensão estatal. O Estado, através de sua assistência, construiu uma das raras sociedades do mundo onde cidadão algum precisa preocupar-se com a refeição do dia seguinte.

As diferenças de classe surgem num nível mais elevado. O carro importado, a lancha, o veleiro, a sommars tuga (4) são símbolos de status inacessíveis ao grupo social III, os operários. Estes, por sua vez, formam o contingente de turistas que mais divisas fornece à Espanha e Grécia. O operário sueco viaja a Rodos ou a Mallorca como o paulista classe média vai a Santos. Com uma diferença: o paulista leva mais tempo.

Uma passagem de trem, segunda classe, ida e volta, de Estocolmo a Malmö, no Extremo Sul da Suécia, custava, em 72, 190 coroas. Uma passagem ida e volta Estocolmo-Palma de Mallorca, em jato, mais 15 dias de hospedagem em um bom hotel com as três refeições, pode ser comprada em certas épocas por 195 coroas. Muitos jovens de Malmö que estudam na Universidade de Estocolmo deixam de visitar suas famílias nas férias por razões de economia. Duas semanas no Mediterrâneo resultam mais baratas que um fim de semana com os pais na Suécia.

Espanha e Portugal suprem ainda uma pequena falha, quase um lapso da assistência do Estado aos nacionais. A gratuidade dos cuidados médicos não é extensiva aos odontológicos. Em caso de um tratamento longo, Svensson economizará dinheiro se vier fazê-lo na Península Ibérica.

O grau de lazer conquistado pelos suecos originou a profissão de fritidskonsulent, orientador de tempo livre. Tem por função orientar excursões pela floresta ou na neve, organizar corridas, ensinar navegação a vela, hipismo, natação, esquis ou patins. A profissão é atualmente das mais bem remuneradas e tem excelentes perspectivas futuras.

Mas a sociedade do bem-estar não estendeu a todos os seus benefícios. Maurit Paulsen, escritora que por ter trabalhado na indústria é mais realista que intelectuais e sociólogos, reclama que orgulho profissional e alegria criativa — satisfação no trabalho — não existem senão para certos grupos altamente privilegiados. Esses grupos possuem isoladamente mais vantagens do que imaginam: boa educação, elevado salário, trabalho agradável. Com estas vantagens surgem automaticamente outras: são esses grupos que praticamente sozinhos consomem cultura, são bem menos controlados que os operários. Todas as instâncias da sociedade crêem mais em uma pessoa altamente instruída que em outra com baixa instrução, e isto depende muito do fato de existir uma linguagem comum entre o grupo social I e os detentores do poder (que são os mesmos). “As pessoas altamente instruídas têm todas as possibilidades de fazer com que seus filhos herdem suas boas vidas, dando a eles uma motivação para o estudo que nosso grupo não pode dar a nossos filhos.”


 

 

ADMIRÁVEL SUÉCIA NOVA

 

Sinto-me muito menos otimista do que me sentia quando estava a escrever o Admirável Mundo Novo. As profecias feitas em 1931 estão a realizar-se muito mais depressa do que eu pensava. — Aldous Huxley, Retorno ao Admirável Mundo Novo

 

Comparar a Suécia ao Admirável Mundo Novo e 1984 já se tornou lugar-comum, tanto na Suécia como no estrangeiro. Os que assim caracterizam a sociedade erguida pelos social-democratas esquecem que todas as nações, com maior ou menor rapidez, dirigem-se a utopias como as de Huxley e Orwell. Por um lado, a expansão demográfica acaba se traduzindo em coletivizacão e aniquilamento do indivíduo. Por outro, controle dos cidadãos, ausência de conflitos de classes e submissão ao poder estatal são metas prioritárias de qualquer governo do leste ou oeste, esquerda ou direita. Os méritos — ou deméritos, conforme a visão ideológica do leitor — da Suécia consistem apenas em aproximar-se mais rapidamente do modelo de Huxley.

Em Retorno ao Admirável Mundo Novo Huxley estabelece algumas diferenças entre sua obra e 1984. Nesta, a sociedade é controlada quase exclusivamente pelo castigo e medo ao castigo. “No mundo imaginário de minha fábula, o castigo não é freqüente e é, de modo geral, suave. O controle quase perfeito exercido pelo governo é realizado pelo reforço sistemático do comportamento desejável, por numerosas espécies de manipulação quase não-violenta, tanto física como psicológica.”

Há mais de quatro séculos, os suecos sabem que a repressão faz mártires, e os mártires, adeptos. Não repetiram o erro de Roma, que por ter queimado os cristãos é hoje a sede do catolicismo. Ao fim do século XV a Igreja Católica possuía na Suécia 21% dos bens de raiz do território, enquanto que a Coroa não possuía mais que 5,6%. Gustav Vasa, tirano que unificou e construiu a Suécia como nação, não proibiu o catolicismo, mas confiscou os bens da Igreia a favor do Estado, em 1527. Em 1595, os católicos foram proibidos de realizar cerimônias públicas mas lhes foi deixado o direito de catequese privada. Pouco a pouco a Igreja sueca separou-se de Roma, apoiando-se na doutrina luterana e transformando-se em Igreja do Estado. Em 1617, praticamente nada mais restava do catolicismo. Qualquer cidadão poderia adotá-lo — sob pena de exílio. E não foram as românticas razões alegadas de busca do sol e temperamento mediterrâneo que fizeram a rainha Cristina, bisneta de Vasa, refugiar- se na Itália em 1654, mas sim o fato de ter adotado o catolicismo no 23.° ano de seu reinado. “Ela não podia viver sem o Papa em Roma, diz Tage Danielsson, e renunciou à coroa, o que foi uma grande sorte para nós, pois caso contrário seríamos talvez todos católicos hoje em dia.”

Assim, graças a uma política não repressiva, o catolicismo e suas conseqüências pouca influência tiveram nos rumos do país.

“Se um golpe de estado ocorresse na Suécia, disse Lênin, o governo revolucionário começaria oferecendo um jantar ao ministério burguês que havia derrubado... e os capitalistas se apressariam em retribuir-lhe esta polidez.” A observação caracteriza com exatidão a atual técnica política dos social-democratas, os detentores do poder. Em Adalen, 1931, ocorreu o último episódio sangrento da história política do país. Na tentativa de reprimir manifestações grevistas, o governador provincial chamou tropas militares. Dos choques entre manifestantes e exército resultaram cinco trabalhadores mortos. O episódio até hoje horroriza a consciência nacional, e a ele devem os social-democratas sua ascensão ao poder, em 1932, com promessas de paz. “Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo”, afirma O‘Brien, um dos oligarcas de 1984. Eliminando a repressão como método de manutenção do poder, os social-democratas até hoje governam. Além disso, o comportamento eletivo do povo é dirigido por um eficiente aparato publicitário, a ABF — Arbetarnas Bildningsförbund, Associação Educacional Operária — que utiliza o bem-estar como instrumento de controle. Svensson bem que gostaria de experimentar novas idéias de governo. Mas teme que seus recordes e performances sejam superados, seu status diminua. Há um sentimento geral de que o país começou a existir em 1932, e os social-democratas lembram isto a todo momento. Sem a segurança econômica o amor à servitude é impossível, dizia Huxley. Os tecnocratas do Partido Social Democrata sabem disto e hoje a democrática Suécia é em verdade um país de um só partido.

Um episódio ocorrido durante a Conferência sobre Preservação do Meio Ambiente, organizada pela ONU em Estocolmo em 72, ilustra o método de ação dissuasiva dos serviços de segurança. Grupos de jovens contestatários pensavam denunciar a conferência como uma farsa. Consideravam que se a ONU não tinha condições de acabar o conflito vietnamita, pouca autoridade moral lhe restava para falar em defesa do meio ambiente. Além disso, quem, senão os EUA, membro mais influente da ONU, era responsável pela mais sistemática destruição ambiental com seus bombardeios no Vietnã? Quando tentavam planejar a forma de protesto e reunir simpatizantes, líderes até então desconhecidos começaram a surgir e imiscuir-se nos grupos. Diziam pretender organizar uma conferência paralela à da ONU, um woodstock escandinavo, mais precisamente, um woodstockholm. Já dispunham de barracas para os participantes, alimentação, palco para shows e aparelhagem de som. E quem diz woodstock diz marijuana. Os contestatários da conferência da ONU não pensaram duas vezes e partiram para a Conferência Paralela de Protesto, a 30 quilômetros de Estocolmo. A cidade ficou limpa, exceto de alguns gatos-pingados que pouco trabalho deram ao esquema de segurança. A conferência paralela só apareceu na imprensa quando a polícia interveio numa orgia com menores de 14 anos. O protesto contra os EUA foi assumido por Olof Palme, primeiro-ministro, que evidentemente declinou de caracterizar o encontro como farsa.

O transporte de Estocolmo ao local da conferência paralela — como também alojamento, alimentação e som — foram providenciados pela prefeitura de Estocolmo. Não houve repressão alguma, pelo contrário, estímulo. A liberdade de expressão foi garantida, a democracia não foi ferida. E todo mundo ficou contente: autoridades, membros da ONU e os próprios contestatários, que em sua ingenuidade nórdica, talvez jamais descubram a farsa de seu protesto. Para que reprimir quando se pode organizar?

Esta psicologia de rebanho se evidencia melhor nos desfiles comemorativos do 1º Maio. Nessa data, milhares de stockholmare levam bebês e cães ao Kungsträdgården, largo situado no centro da cidade, para solidarizar-se com o operariado internacional enquanto passeiam ao sol. Organizam-se em filas de seis, ostentando bandeiras vermelhas imensas, faixas e cartazes, e esperam pacientemente a hora exata de partida, dada pela polícia, postada atrás e à frente das longas filas. Pouco difere o desfile de uma procissão religiosa: nos cartazes, palavras de ordem socialistas, e nas bandeiras, em vez da cruz, a foice e o martelo.

“A sociedade descrita no Admirável Mundo Novo é um Estado Mundial em que a guerra foi eliminada, diz Huxley, e onde o primeiro objetivo dos que a conduzem é impedir a todo custo que seus súditos causem perturbações. Conseguem isso por (entre outros métodos) legalização de um certo grau de liberdade sexual (tornada possível pela abolição da família) que garante praticamente os habitantes do Admirável Mundo Novo contra qualquer forma de tensão emocional destrutiva — ou criadora.” Na admirável Suécia Nova, que vive há um século e meio sem guerras, a família e o matrimônio perderam muito de seu prestígio histórico (5) e a liberdade sexual é estimulada pelo Estado através da escola e imprensa. Em lugar da antiga pedagogia repressiva, o adolescente é hoje compelido à prática sexual. Mesmo preferindo um relacionamento platônico ao sexual, a pressão educacional o conduzirá a este último.

Em entrevista a Roland Huntford (6), diz o diretor do Departamento de Educação Sexual da Superintendência de Escolas, Dr. Gösta Rodhe: “Não temos modelos éticos em educação, nem regras para comportamento sexual. Regras significam repressão. E repressão da sexualidade conduz à agressão. Por outro lado, introduzindo a liberdade sexual, removemos as agressões”. Esta liberdade é porém limitada qualitativamente. Interrogado se o grande volume de análise e dissecção de temas sexuais não acabaria destruindo o sentimento, o Dr. Rodhe responde tranqüilamente: “Talvez. Mas não queremos que as crianças iniciem sua vida sexual numa nuvem de emoção. Emoção deve ser removida, do sexo. Queremos que as crianças discutam o assunto e cheguem até ele juntas, racionalmente.”

Graças a esta pedagogia, o decantado amor sueco hoje é algo tão mecânico quanto o escovar dentes. O ato amoroso é uma questão de higiene física e mental, ou ainda uma afirmação de independência. A adolescente inicia-se sexualmente aos 11, 12 ou 13 anos, em geral. Nem tanto por amor ao esporte, mais por pressão social e educacional. Talvez seja ainda impúbere, talvez o ato só lhe dê satisfação física um ou dois anos mais tarde. Mas a vergonha de ser virgem a impele a uma relação muitas vezes penosa, sem volúpia alguma.

A identificação do indivíduo com o Estado, em outras palavras, a anulação da individualidade, é outra característica constante de sociedades tipo Admirável Mundo Novo, 1984, Este Mundo Perfeito, Kallocain. E também da sociedade sueca. Huntford coleta fatos reais que superam qualquer ficção. Em 1968, num processo por assalto, o Estado colocou um advogado para a defesa do acusado, um jovem sem recursos. Sentindo-se prejudicado com o defensor designado, pediu um outro, direito que lhe era conferido por lei.

— Você sabe o que acontecerá, perguntou o juiz, se insistir em seu pedido? Não é coisa fácil trocar advogado em meio a um processo. Eu terei de adiar o julgamento, você terá de esperar alguns dias mais, e então o novo advogado precisará de algum tempo para estudar o caso. Você já pensou quanto custará isto à sociedade? Será um bocado de dinheiro.

O acusado, considerando natural que os interesses do Estado estejam acima dos seus, retirou o pedido, arriscando-se à condenação.

Os advogados que gostam de lutar acirradamente em juízo não são bem vistos pelos suecos. Isso significa contestar o Estado. O promotor público de Göteborg criticou ferozmente pela imprensa um advogado que ganhara uma causa (em questão de evasão de divisas) aproveitando-se de uma brecha legal. Explorar os furos da lei, medida de êxito profissional do advogado em todos os demais países, é considerado imoral na Suécia.

— Ele quebrou o espírito da lei, acusou o promotor, é um traidor desta pátria. O dever de um bom cidadão é seguir as intenções gerais dos legisladores, e não burlar a lei explorando ardilosamente detalhes.

Huntford é provavelmente o primeiro analista a observar a inexistência quase absoluta da absolvição nos processos criminais. “A função de uma corte não é decidir se o suspeito é culpado ou inocente, mas denunciar o crime, e decidir a penalidade pela culpa estabelecida por inquérito preliminar. A polícia é permitido encarregar-se de todo o processo e chegar a uma espécie de prévio veredicto antes que o acusado seja levado a julgamento. Um homem pode ser mantido em custódia por meses enquanto a polícia instrui seu caso. Por outro lado, dificilmente um suspeito é levado a julgamento sem que se tenha um caso muito sério, no qual a culpabilidade do réu esteja fora de qualquer cogitação. Como o objetivo deste procedimento é fazer o judiciário parecer infalível, a absolvição não seria apenas uma afronta à promotoria, como também uma cicatriz no sistema.”

Em 1970, um homem foi acusado pelo assassinato de sua esposa em Estocolmo. O processo mal começara e tornou-se evidente o mau desempenho da promotoria. Esta limitava-se a intimidar o acusado, e em qualquer outro país, o processo resultaria numa absolvição para o réu, considerada a boa atuação da defesa. Mas não na Suécia. A promotoria subitamente interrompeu o processo.

— Se o caso prosseguisse, disse o chefe da Polícia Nacional numa entrevista, chegaríamos a um deplorável resultado (absolvição) e teríamos perdido a confiança do público. Nosso trabalho teria sido prejudicado. Nossa eficiência depende de cooperação e nosso sistema baseia-se nas confissões. Não sei o que faríamos se nossos prisioneiros começassem a defender-se a si próprios e a recusar cooperação durante os interrogatórios. Um caso como este seria suficiente para destruir nossa reputação. Mas creio que conseguimos interromper o caso antes que nos causasse um dano irreparável.

A inexistência da absolvição implica, em outras palavras, na infalibilidade do Estado. Nas demais nações, o acusado é considerado inocente até que se prove o contrário. Para os suecos, especialmente para os mass media, prisão é sinônimo de culpa. “A presunção instintiva, diz Huntford, é que no conflito com o Estado (ou o coletivo), o cidadão (ou o individual) é necessariamente o errado.”

Esta fidelidade ao Estado supera por vezes a conjugal. Não é raro se encontrarem na imprensa consultas do gênero: meu marido sonega imposto. Devo denunciá-lo às autoridades tributárias? A resposta é invariável: antes deste passo extremo, tente convencê-lo a retificar sua declaração.

O esforço na supressão do indivíduo é não apenas deliberado, como confessado publicamente. Olof Palme, quando ministro da Educação, dizia a um grupo de colegiais:

— Vocês não vêm à escola para alcançar algo pessoalmente, mas para aprender a funcionar como membros de um grupo.

E Sven Moberg, parlamentar e ministro da Educação, declarou a Huntford:

— A nova escola rejeita individualidade, e ensina as crianças a colaborarem entre si. Rejeita competição e ensina cooperação. As crianças são ensinadas a trabalhar em grupo. Resolvem os problemas em conjunto, não sozinhas. A idéia básica é que elas são consideradas antes de tudo como membros da sociedade, e a individualidade é desencorajada.

Um artesão, que construíra só sua própria empresa, afirma ao jornalista sul-africano que a inclinação do sistema educacional é quebrar a individualidade e promover o coletivo.

— Você não poderia erguer uma empresa como a minha sem ser um indivíduo. Mas isso são coisas passadas. Não quero que meus filhos e netos sejam educados para indivíduos. Seriam infelizes. Assim sendo, deixemos a geração que surge ser dirigida para o coletivo. Serão muito mais felizes. A Suécia é uma sociedade coletiva, e aqui não há lugar para o individual.


 

 

O COMPUTADOR TE VÊ

 

Forças impessoais sobre as quais quase não temos controle parecem estar a empurrar-nos a todos na direção do pesadelo do tipo do Admirável Mundo Novo; e este impulso pessoal está sendo conscienciosamente acelerado por representantes de organizações comerciais e políticas que desenvolveram um número considerável de novas técnicas de manipulação, em proveito dos interesses de uma minoria, dos pensamentos e sentimentos das massas. — Aldous Huxley, Retorno ao Admirável Mundo Novo

 

Pessoas identificadas por números, câmaras de TV vigiando os transeuntes, o Estado-Deus onipotente que a todos dá segurança em troca da liberdade individual — eis algumas das características da Suécia atual intuídas em 1940 por um de seus mais vigorosos — e desconhecido — talentos literários, Karin Boye. Em sua obra Kallocain, descreve uma sociedade cujos membros, à semelhança de 1984 (publicado em 49), são constantemente vigiados por olhos e ouvidos eletrônicos. Mesmo à noite, na escuridão dos quartos, a vigilância não cessa, graças aos raios infravermelhos. O que causou inclusive uma queda na curva de natalidade, ou melhor, na produção de soldados para hipotéticas e longínquas guerras empreendidas pelo Estado Mundial. O controle é tão perfeito a ponto de serem os elevadores os únicos locais onde podiam reunir-se eventuais conspiradores, pois devido a razões técnicas, não possuíam os olhos e ouvidos da polícia. Todos os cidadãos prestam serviço militar e policial contínuos, habitam em apartamentos estandardizados — um quarto para solteiros, dois para famílias — e como vestes dispõem de três uniformes, um para trabalho, outro para o tempo livre e um terceiro para serviço militar e policial. Os porteiros dos edifícios têm por função principal informar a polícia política das visitas recebidas pelos inquilinos, exigindo-lhes identificação e marcando horário de entrada e saída.

Nesta atmosfera já asfixiante, Leo Kall, cientista da Cidade Química n.º 5, descobre a droga sonhada por todos os profissionais de informação do mundo: kallocain. Com apenas uma dose, todo indivíduo que tenha idéias associais confessa alegremente e sem reservas sua culpa.

— Eis uma descoberta importante, diz Leo. Daqui em diante, criminoso algum negará a verdade. Agora nem mesmo nossos mais profundos pensamentos são nossos, como pensávamos, sem razão. Sim, sem razão. Dos pensamentos e sentimentos nascem palavras e ações. Como poderiam ser os pensamentos e sentimentos coisas privadas? O companheiro-soldado não pertence inteira ao Estado? A quem pertenceriam então suas idéias e sentimentos, senão ao Estado? Até então, eram as únicas coisas que não podiam ser controladas — mas agora o meio foi encontrado.

Quando alguém objeta ter sido devassado o último refúgio da vida privada, Leo responde alegremente:

— Mas isso não tem importância alguma. A coletividade está pronta para conquistar a última região onde as tendências associais podiam esconder-se. Vejo agora simplesmente a grande comunidade aproximar-se de sua culminância. Leo Kall anuncia uma legislação da mais devastadora espécie até então conhecida pela espécie humana, a legislação contra idéias e pensamentos hostis ao Estado.

— Talvez demore, mas virá certamente.

Karin Boye suicidou-se em 1941, antes da ocorrência dos elementos de sua ficção na sociedade em que vivera. A Suécia contemporânea, sob certos aspectos, parece ter sido construída nos moldes descritos em Kallocain. A droga não foi descoberta, mas nem por isso o controle do indivíduo deixa de ser eficiente.

Todo sueco ao nascer receba um número que o acompanhará até o túmulo. 470702 — 9916, por exemplo, e um típico número pessoal. As seis primeiras cifras indicam a data de nascimento, 2 de julho de 1947. O número pertence a um homem, pois as três cifras seguintes, 991, são ímpares. Para uma mulher, teríamos, por exemplo, 864. A última cifra, 6, é dada por computador e estabelece a univocidade do número pessoal, para que o mesmo não seja atribuído a duas pessoas. Para conferir-se se o número está correto, dobra-se alternadamente suas cifras, começando pela primeira, o que resulta em 08 7 00 7 00 2 18 9 02 6.

Somadas as cifras uma a uma, temos 8 — 7 — 7 — 2 — 1 — 8 — 9 — 2 — 6 = 50, o que indica estar correto o número, pois esta soma é divisível por 10.

A identificação por números causa terror apenas a literatos românticos. Na época dos computadores e da superpopulação, mais que uma solução prática é uma necessidade. Ainda que irracionalmente, todos os governos a utilizam. No Brasil, onde a burocracia vive uma fase medieval, cada cidadão possui dezenas de números: CPF, identificação policial, título eleitoral, certificado de reservista, carteira do INPS, carteira de motorista, carteira estudantil e outros.

Na Suécia — que no campo da informática bate mais um recorde, o do maior número de computadores no mundo — o registro eletrônico de dados toma aspectos alarmantes. Em quase todas as circunstâncias de sua vida, Svensson é interrogado sobre seu número pessoal. Ao se matricular na universidade, comprar a crédito, solicitar auxílios sociais, assinar contrato de trabalho, internar-se em hospital, pagar multas de trânsito, casar ou divorciar-se, estará alimentando um banco de informações, ou seja, um computador com respectivo programa e memória. Não existem praticamente limitações para o tipo de dados que podem ser registrados num computador, verdadeiros ou não. “A limitação prática dos dias atuais, diz Harry Björk, em Kontrol av Individen, é que as informações devem ser expressas em letras e cifras.”

Os bancos de informação trabalham em conexão mútua. Quando um novo banco pretende instalar-se, não irá pedir informações na casa de cada cidadão para alimentar sua memória. É mais rápido e econômico comprá-las dos demais bancos. Não tendo ainda os legisladores se pronunciado sobre o assunto, este comércio se encontra em próspero desenvolvimento no país. Como cada informação é acompanhada do número pessoal, o trabalho de justaposição de dados é elementar. “Assim sendo, continua Harry Björk, pode-se preparar maquinalmente a descrição detalhada da vidade grandes grupos de seres humanos. É perfeitamente viável que um dossier deste tipo possa tornar-se valioso para o adversário de Svensson, quando Svensson está em conflito com alguma empresa, autoridade, ou mesmo parte privada. Informação é poder, e aquele que tudo sabe sobre Svensson tem uma formidável vantagem, pois:

-Svensson não sabe quais informações sobre sua pessoa o adversário tem.

-Se Svensson sabe isso, não sabe de onde as informações provêm.

-Se há erros nas informações, Svensson por um lado torna-se suspeito de faltar com a verdade, e por outro não tem possibilidade alguma de obrigar o banco de informações a uma correção.”

O ensaísta, ele próprio técnico em computação, sugere um exemplo no qual dados totalmente inocentes, uma vez combinados, produzem novos efeitos. A compra de um casaco de pele para senhora, número 42. A é casado com a senhora A, que veste 38. “Os que dispõem destes dados combinados, dando apenas asas à fantasia e talvez se informando um pouco sobre a vida privada da família, têm elementos para tudo entre a difamação, calúnia e chantagem.”

O Svensson tem sua vida devassada por dezenas de bancos de informações. Deixando de lado os bancos privados, Peter Speil, estudioso dos aspectos legais da questão, enumera algumas das informações possuídas pelos bancos de órgãos estatais: situação censitária, informações sobre menoridade, desligamento da igreja sueca, nacionalidade, profissão, estado civil, situação militar, porte de armas, nascimento fora ou dentro do matrimônio, situação adotiva, núpcias civis ou religiosas, renda líquida total, persistência do matrimônio durante o nascimento de filhos, data do divórcio, renda de diferentes fontes remuneradas, renda tributada, certificados ginasial e colegial, auxílios para estudo, capacitação para diferentes profissões, ocorrência de tumor canceroso, auxílio social recebido, acidentes de trabalho, data da morte (com a hora exata). A lista é incompleta. Nos bancos de dados das associações universitárias estudantis, constam desde os certificados obtidos até eventuais contribuições para guerrilhas no exterior.

Nenhuma lei regula o comércio de informações. À semelhança do mundo de Karin Boye, integridade pessoal — o direito de um particular a que informações sobre sua situação privada não sejam acessíveis nem utilizadas por terceiros sem sua anuência — tornou-se um mito na Suécia atual.

Mas nem só computadores vigiam Svensson. Em Estocolmo, ao flanar pela T-Centralen (7) e determinadas ruas, ao entrar em bancos e lojas, seus movimentos são seguidos dia e noite por câmaras de TV. Na T-Centralen estão dispostas agressivamente sobre as escadas rolantes, pouco acima da cabeça de quem sobe ou desce. Nas ruas, vigiam discretamente do alto de edifícios. Policiais equipados com walkie-talkies e baionetas adaptadas a metralhadoras manuais podem interceptar, sem nem mesmo correr, qualquer transeunte indicado por alguma das centrais de TV da polícia, situada eventualmente a quilômetros do local onde o suspeito se encontra. Providas de lentes zoom, as câmeras podem passar de um plano geral a um close-up do rosto de um transeunte, mediante o simples apertar de um botão. Segundo a polícia, tais aparelhos servem para controlar o tráfego. Mas durante manifestações políticas públicas, são utilizadas pela SÄPO (8) para filmar os demonstrantes.

Os toaletes em Estocolmo raramente são utilizados para suas funções específicas. Além de ponto de encontro universal de homossexuais e tribuna livre, em Estocolmo servem de esconderijo para compra e venda de tóxicos, mercancia de pequenos furtos (roupas, discos, filés) e consumo de álcool. As centrais de metrô são povoadas por uma fauna oriunda da sociedade do bem-estar, tunelbanafolket, gente dos metrôs. Jovens em sua maioria, sem problemas materiais nem perspectivas na vida, praticamente vivem nos subterrâneos, de onde saem à superfície no verão para tomar um bocado de sol. Subsistem graças a pequenos roubos nas butiques e supermercados. Os vasos sanitários são os recipientes ideais para se desembaraçarem de roupas velhas ou mercadorias comprometedoras por ocasião de batidas policiais. Em reportagem sobre o problema, sugeria-se em EXPRESSEN a instalação de câmaras de TV nas cabines, para vigiar o usuário em um momento indubitavelmente mais íntimo que o sexual. A ser aceita a sugestão, restará como último refúgio inde-vassável o elevador. Como em Kallocain.

— Assim, torna-se a vida uma constante angústia e perigo, quando se foge da grande comunidade, o Estado, diz Leo Kall. Definindo um aos mais enraizados sentimentos do sueco atual, trygghet. A palavra não tem correspondente exato no português, pode ser associada a um misto de segurança, tranqüilidade, confiança. Svensson só se sente tryggad em solo pátrio, como a criança sem angústias nos braços da mãe. Bort bra, hemma bäst é um dos mais populares refrões. No estrangeiro é bom, em casa melhor.

“Ele sente-se protegido de todos os perigos do mundo, diz Huntford. Teme mortalmente ser privado do amplexo da segurança onipresente. É como um bebê não nato, aderido ao útero, com medo do nascimento e do exterior desconhecido.”

Para bem conhecer-se Svensson, deve-se acompanhá-lo em suas fugas rotineiras às praias do Mediterrâneo. A passagem da Suécia, cosmos ordenado e perfeito, à Mallorca ou Rodes, caos primitivo e selvagem, constitui um choque à sua psique e desestrutura seus mecanismos de defesa. Na Suécia, quando o sinal está fechado para pedestres, somente carros trafegam. À meia-noite, com neve caindo, temperatura abaixo de zero, sem nenhum automóvel à vista, Svensson espera o sinal verde para atravessar. Em cada estação de ônibus, metrô ou trem, uma tabela indica com precisão de minutos o horário exato de chegada dos veículos, e Svensson pode acertar seu relógio por eles. Se quer postar uma carta, desce ao distribuidor automático de selos mais próximo, introduz uma moeda numa fenda, recebe os selos e coloca a carta numa caixa ao lado, cuja coleta é feita pontualmente a determinadas horas do dia. Se a provisão de selos do distribuidor está esgotada, telefona a um número indicado na caixa e no dia seguinte recebe em seu endereço os selos desejados, com um pedido de desculpas do correio. O mundo que o cerca faz sentido, é ordenado pela razão. Confia na autoridade, e esta confiança lhe é correspondida.

Chega a Mallorca e não entende mais nada. É a aventura, a descoberta de um mundo perigoso e fascinante, cheio de riscos. Nas ruas existem mendigos, aleijões chantageando esmolas com suas chagas, cegos vendendo bilhetes de loteria, crianças implorando centavos. Que faz o Estado neste país, se é que existe? Nos cruzamentos, as sinaleiras são uma mera sugestão ao transeunte, via de regra não aceita. Svensson vê no pedestre espanhol que se lança com desenvoltura na maré do tráfego um individualista primitivo e associal, tipisk av latinska länder, típico dos países latinos. Deve adivinhar onde ficam as paradas de ônibus, pois não existe sinal algum que sugira a existência de uma. Os coletivos, segundo aviso fixado acima da cabeça do motorista, têm capacidade para 60 passageiros, mas transportam 150. E não partem em minutos exatos, mas só quando a lotação (150) completou-se. Alguns só têm 14 assentos, e espaço para 136 passageiros em pé. Svensson não entende como pode existir um Estado que não se preocupa com a comodidade e conforto de seus cidadãos. Em sua terra, dificilmente terá que puxar da carteira para pagar passagem, pois já possui o femtiokort, que renovado mensalmente por 50 coroas, lhe dá direito a utilizar qualquer transporte coletivo urbano mediante simples apresentação. Quem não o possui, paga em dinheiro e recebe o troco instantaneamente através de uma máquina operada pelo condutor. Passageiros em pé não podem ultrapassar os 10. Na Espanha, além do condutor, depara-se com o cobrador, que heroicamente abre caminho através dos 150 passageiros, distribuindo cédulas rasuradas e imundas como troco. E mais, existe o fiscal. Svensson não entende a existência de um fiscal. Pois não concebe que alguém possa pensar em burlar a autoridade.

Svensson quer informações meteorológicas e apanha o Diário de Mallorca. Em vez das indicações precisas e detalhadas a que está habituado, encontra uma obra-prima gongórica: conforme noticiamos ontem, previa-se tempo chuvoso para hoje, no entanto não choveu pois massas ciclônicas por nós imprevisíveis dada a insuficiência de aparelhos de nosso observatório modificaram nosso prognóstico. Quanto à previsão para amanhã, anunciamos tempo bom e ensolarado, sempre, evidentemente, com a ressalva de que nossos aparelhos não têm condições de prever mudanças imprevisíveis. Svensson sente-se num mundo mágico e ilógico, suas defesas psicológicas fraquejam, a glacialidade de seu temperamento nórdico funde-se, Svensson torna- se expansivo e humano, até mesmo nas relações com seus patrícios. Ao voltar para casa, enverga novamente sua máscara abominável.

Pior o regime, melhor o homem, dizia Witold Gombrowicz ao voltar ao norte, após seu exílio voluntário em Buenos Aires. Coincidentemente, é para Mallorca que fogem os rebeldes de Este Mundo Perfeito, de Ira Levin. Palma ou Barcelona, com suas ruas imundas e farrapos humanos ambulantes, transmitem mais vida e calor que a arquitetura racional e asséptica de Farsta ou Hässelby, cidades planejadas tão perfeitas a ponto de a vida ter-se tornado mortalmente tediosa.

As sociedades perfeitamente organizadas de Karin Boye, Huxley, Orwell e Levin garantem bem-estar em troca da liberdade, a realização da justiça coletiva pela destruição do indivíduo. Entre liberdade e bem-estar Svensson não pensa duas vezes. Mas voltará sempre às terras latinas. Fora do alcance do olhar do Grande Irmão, experimenta o risco e a aventura. Por algumas semanas sente-se adulto e responsável.

Em entrevista concedida ao jornalista italiano Enrico Altavila, o professor Bror Rexed, técnico em planejamento e ideólogo do Partido Social Democrata, anunciava pequenas novidades facilmente previsíveis para esta década: TV em cores em quase todas as casas, a possibilidade de telefonar diretamente a qualquer cidade do mundo, a recepção quotidiana de programas televisivos via satélite, dois automóveis por família. Mas a grande revolução seria outra. A Suécia já possui o maior número de cérebros eletrônicos por habitante no mundo. Em pouco tempo, todas as empresas e ministérios dependerão dessas máquinas pensantes. Não apenas o desenvolvimento urbanístico, os planos industriais, a circulação das cidades, como também os programas dos homens políticos serão ditados pelos cérebros eletrônicos. Nenhum membro do governo ou da oposição poderá fazer promessas deslumbrantes em contradição com o cálculo dos computadores.

Para eliminar o congestionamento das cidades, pensa-se em transladar as fábricas ao campo. Para evitar que os homens de negócios venham às cidades, será estendido o uso do videotelefone — já usado em forma experimental — que permitirá a diversas pessoas distantes umas das outras conferenciar juntas como se se encontrassem no mesmo lugar, e consultar ao mesmo tempo os robots. Ter-se-á atingido uma simbiose entre cérebros humanos e eletrônicos.

— Encaminhamo-nos para a passagem da máquina calculadora ao cérebro eletrônico, que será apenas comparável à troca da pena de ave pela máquina de escrever — conclui o professor Rexed. — Industriais e cientistas serão cada vez mais anônimos. Estamos preparando um mundo espantosamente racional.


 

 

BATALHA NO JARDIM DO REI

 

Por si os álamos, Alex, são apenas álamos altos. — Paulo Bisol, Os Álamos

 

12 de maio de 1971 é uma data histórica para muitos stockholmare, de profunda significação democrática. Técnicos em urbanização tentaram executar naquele dia uma decisão tomada após meses de planejamento: serrar quatro olmos centenários do Kungsträdgården (Jardim do Rei) para construir uma estação de metrô. Mal chegaram os operários encarregados do trabalho na praça, alguns freqüentadores impediram o “ato criminoso” e reuniram imediatamente, através de contatos telefônicos, uma pequena multidão. A polícia tentou intervir, inutilmente. Os estocolmenses permaneceram alguns dias em vigília cívica, fizeram fogueiras e compuseram canções. A terminal de metrô foi esquecida, árvore alguma foi derrubada. A partir do incidente foi elaborada uma peça teatral, gravou-se um long-play e um jornal foi criado, Almbladet, A Folha de Olmo. Os contestatários insurgiam-se contra os “abusos da tirania”. Algumas frases de Almbladet:

“A luta pelos olmos é também uma luta por uma democracia mais autêntica.”

“Serrar os olmos teria sido democrático? A salvação dos olmos foi uma vitória da democracia.”

Telegramas de todo o país, brevemente endereçados a Bosque de Olmos, Kungsträdgården, Estocolmo, felicitavam os amigos dos olmos pela “vitória contra a burrice e o abuso de poder”, pelas “exigências do povo contra a linguagem do poder”, pelo “violento golpe desferido à burocracia”. Outros desejam “êxitos na democrática luta pelos olmos”. Até hoje, a então fundada Sociedade Amigos dos Olmos mantém-se vigilante para impedir qualquer atentado feito às árvores em questão. Membros são escalados para vigiá-las 24 horas por dia. Em caso de qualquer ameaça, uma cadeia telefônica é rapidamente acionada para salvar os olmos e a democracia.

A batalha dos olmos foi liderada pelo grupo Alternativ Stad (Cidade Alternativa) que pretende salvar Estocolmo da fúria dos planejadores do trânsito e da indústria imobiliária. Stockholm ska vara bilfri, Estocolmo deve ser livre de automóveis, é sua bandeira de lutas. Sua primeira preocupação: devido ao desenvolvimento urbano, a cidade — construída sobre 14 das 34.000 ilhas do arquipélago — dispõe de apenas 80 metros quadrados de área verde por habitante. (Porto Alegre, com a mesma população, dispõe escassamente de um metro quadrado por cabeça.) Em 24 de agosto de 69, organizou-se o Dia sem Automóveis. Milhares de estocolmenses deixaram seus carros na garagem e saíram a pé pelas ruas, gozando o silêncio e a pureza do ar. “365 dias por ano sem automóveis”, “carros ou homens”, diziam os cartazes. Mas como a manifestação prolongava-se além do horário permitido pelas autoridades e iniciava a atrapalhar o tráfego de curiosos que observavam, de seus carros, o protesto, a polícia expulsou com violência os pedestres das ruas que cercam Sergeltorget.

Enquanto Alternativ Stad e simpatizantes lançam-se contra o automóvel e protegem os olmos, os últimos vestígios de individualidade ainda existentes em Svensson vão sendo eliminados através de um planejamento urbano e arquitetura concebidos exatamente para isso. “Planejamento urbano, diz Ingrid Jussil, ideóloga social-democrata, precisa enfatizar o coletivo. Podemos conseguir isto forçando o povo ao contato um com outro. Desta forma, podemos, por exemplo, socializar a criança desde pequena. A sociedade tem que decidir como o povo deve viver.”

“Após a revolução de 17, os russos forçaram habitantes da cidade e do campo a viver em imensos blocos de apartamentos. Esta política não só facilitava a espionagem e controle como também encorajava um modo coletivo de pensar. As casas privadas foram banidas, pois poderiam encorajar o individualismo burguês.” (9) Da mesma forma, a casa é vista com maus olhos na Suécia. A municipalidade, através de legislações sucessivas, atribuiu-se a si o direito de aprovação e eventual alteração dos projetos de construção, como também a prerrogativa de decidir quem vai construir e o que será construído.

Segundo Lennart Holm, diretor-geral da Superintendência do Planejamento Nacional, “imóveis isolados são prejudiciais. Encorajam a estratificação social, e queremos evitar isso. Não podemos permitir que o povo preserve suas diferenças. O povo precisa renunciar ao direito de escolher seus próprios vizinhos.”

Os ideólogos social-democratas consideram a arquitetura e planejamento urbano como instrumentos para transformação da sociedade na direção estabelecida pelo partido. “Arquitetura — diz Huntford, com a anuência dos arquitetos — tornou-se um instrumento do Estado e agente de sua ideologia. A função do arquiteto é oficialmente definida como modificar a sociedade.”

Svensson é coagido — tanto através dos círculos de estudo da ABF como da política de concessão de créditos para construção da casa própria — a optar pelos centros de serviços coletivos. Tais centros são quarteirões autônomos com lojas, farmácias, restaurantes, cafés e uma praça central. Os edifícios possuem centros de lazer, creches, restaurantes e instalações para lavagem de roupas, de uso comum de seus moradores. “Nosso sistema educacional visa a socializar o povo em idade ainda tenra — diz o prof. Bror Rexed. — E aos jovens repugna a idéia de casas privadas longe do centro. Eles aprenderam que isolamento não é bom e querem transferir-se para o centro.”

Huntford relata uma conseqüência caricatural desta política. EmSvappvaara, já além do círculo polar Ártico, onde a densidade populacional é de um habitante por milha quadrada, foi criada uma cidade cujo centro é um comprido bloco de apartamentos de quatro andares e mais de 200 metros de ponta a ponta. Em 65, Svappvaara abrigava 600 pessoas. Espaço não faltava para casas, jardins e sítios. Mas, conforme declarações de um jovem arquiteto da Superintendência do Planejamento Nacional, “viver em casas separadas provoca isolamento e restringe os contatos. Eu estou interessado na vida coletiva e quero ver isso difundido. Removendo as facilidades do lar e transferindo-as para dependências coletivas, pode- se forçar o povo a viver em comunidade. Então eu quero ver mais restaurantes coletivos, onde todos comem juntos. Não existe nada tão isolante como a refeição familiar feita em conjunto, entre quatro paredes”.

Ainda segundo Huntford, o arquiteto sueco não é mais um artista, mas um sociólogo. A estética é sacrificada em favor da funcionalidade. “Uma arquitetura anônima deve ser a conseqüência lógica de um estilo anônimo de vida.” O jornalista sul-africano reforça sua tese citando o arquiteto T. Ahrbohm:

— Simpatizo com a arquitetura anônima e desaprovo construções que são monumentos a quem as concebe. Housing não é a expressão da personalidade de um arquiteto, mas um instrumento da sociedade. Deve promover mudanças.


 

 

MORTOS SEM SEPULTURA

 

Três suecos viajam na mesma cabine de um trem. Dois se conhecem há muito e contam piadas. O terceiro ouve em silêncio. Após algum tempo, não podendo mais conter-se, apresenta-se:

— Desculpem, chamo-me Perr, os senhores permitem que eu também ria?

Os suecos, ao ouvir esta anedota, não a captam em seu significado, como a um brasileiro, por exemplo, não surpreende ou revolta o fato de receber troco em balas ou goma de mascar, como se estas tivessem curso forçado. O meridional que pretenda satirizar os hábitos nórdicos com a anedota ficará decepcionado. Medelsvensson, além de não possuir o mínimo senso de humor, conceberá o episódio como perfeitamente ocorrível. Jamais pensaria em rir de piadas contadas por desconhecidos. Não manifestar externamente o que lhe vai por dentro, eis umas das mais rígidas normas de seu comportamento. Se vai ao teatro e gosta da peça, aplaudirá com a ponta dos dedos. Um cantor popular estrangeiro queixou-se certa vez de que os suecos aplaudem por filas. Sem que a primeira fila tenha aplaudido, a segunda não se decidirá a fazê-lo.

Se o vizinho deixa as luzes do carro acesas, não o avisará, isso não lhe diz respeito. Não mostra a um colega as fotos de sua família, jamais lhe passaria pela cabeça que o outro pudesse apreciar o gesto. Não pede cigarros a um amigo, mas ao perguntar se ele não tem um para vender-lhe, já leva na mão uma moeda de 25 öre.

Há poucos anos foi promovida uma campanha nacional para introduzir o uso do tu nas relações diárias. Até então, nem uma dona de casa tutearia uma doméstica. E para não chamá-la com excessiva reverência, tratando-a de senhora, dizia: Pode Anna me alcançar aquele par de sapatos? Mesmo universitários tratavam-se entre si por senhor. A iniciativa do tuteamento cabia ao mais velho. Hoje, um estudante tuteia sem maiores hesitações um catedrático.

Este fechamento em si mesmo, respeito e medo ao outro, foram herdados de seus antepassados e da própria terra, e hoje torna-se mais radical ainda em razão das atuais estruturas sociais do país.

O observador não-nórdico carece de condições para entender qualquer hábito ou manifestação cultural sueca, se não conhece a história e geografia escandinavas.

(Os equívocos mais freqüentes ocorrem com Ingmar Bergman. Muitos críticos afirmam ser o verão para Bergman símbolo de vida, fuga da morte, despertar dos instintos. Um outro: na concepção bergmaniana, o sacerdote nada mais é senão um assistente social. Ora, Bergman não está sendo em nada original ao associar o verão à vida, este é um dos sentimentos mais intensos de seu povo. Durante os oito meses do inverno escandinavo, sol é propaganda da agência de turismo. No dia 30 de abril. Valborgsmässoafton, os estocolmenses, muitas vezes sob a neve, comemoram em Skansen, em torno a uma fogueira, o retorno da luz e do verão. A 13 de dezembro, quando em Estocolmo o dia clareia às 9 horas e escurece às 16, homenageia-se a luz, é o dia de Santa Lúcia. Mais ao norte, na Lapônia, durante quase um mês, a noite é contínua. Ao meio-dia, uma vaga luminosidade no horizonte insinua a existência do sol. Os primeiros povos que habitaram a região enviavam sentinelas ao mais alto monte, em busca de notícias da Grande Luz. Mal a sentinela vislumbrava os primeiros raios do sol, voava da montanha ao vale transmitindo a boa nova ao povo. O retorno da luz era comemorado como o grande acontecimento do ano.

E quando Bergman apresenta um sacerdote como assistente social, está apenas fotografando um padre sueco, Desde os tempos em que Gustav Vasa encampou os bens da Igreja Católica e fundou uma igreja nacional, as funções sacerdotais pouco têm de místicas.)

O auto-isolamento do sueco, segundo Vilhelm Moberg, tem suas primeiras causas na própria geografia da região: “A Suécia era e continua sendo um grande reino de florestas, onde desde o princípio existia urna grande distancia entre os homens. O sueco está impregnado de sua qualidade de habitante da floresta. Tomou muitos sobrenomes da floresta: Björk, Gran, Ek, Kvist, Gren, Rot, Hägg, Bok, Rönn, Alm, Lind, Stam, Ask, Asp (10).” As distâncias entre cada um teriam seu aspecto positivo: o sueco era obrigado a ajudar-se a si mesmo, nenhum vizinho poderia assisti-lo. Por outro lado, este isolamento originou senso de limites, auto-suficiência, desconfiança e preconceitos contra estranhos. “Vivia sua vida enclausurado; o que acontecia do outro lado de sua cerca não lhe dizia respeito. Eis uma verdade banal mas inegável: na solidão o sueco nutria suas repressões, e conseqüentemente, a dificuldade para conviver aberta e naturalmente com outros homens. Em um ponto são todos os estrangeiros unânimes ao caracterizar-nos: temos dificuldade de relacionamento.”

A endoutrinação intensa do governo social-democrata no sentido de extirpar este sentimento atávico de conduzir o povo a hábitos e práticas coletivos, através de escolas, círculos de estudo e mesmo da arquitetura, fracassou. Cadáveres encontrados semanas ou meses após a data da morte em apartamentos na região de Estocolmo são notícias rotineiras na imprensa, nem merecendo mais grandes manchetes. Um dos últimos casos, talvez pela falta de acontecimentos mais importantes, ocupou as primeiras páginas. Em maio 72, descobriu-se o cadáver de um velho aposentado, cuja morte ocorrera seis meses atrás. Estava caído na cozinha. Foi visto por operários de uma construção ao lado do edifício, no centro de Estocolmo. Ninguém o conhecia, parente algum o visitava. Sua presença não fazia falta a ninguém.

Os vizinhos, interrogados pela imprensa, declararam tê-lo visto pela última vez antes do Natal. Como não o conheciam pessoalmente, jamais se inquietaram por sua ausência.

Não é difícil imaginar-se a morte despercebida de um aposentado isolado do mundo e dos homens. Mas casos menos concebíveis já ocorreram. O cadáver de um estudante foi encontrado em uma residência estudantil quatro semanas após sua morte.

A bem da verdade, tais fatos não ocorrem apenas entre os suecos. Em fevereiro 72, em Sidney, Austrália, um passante pede fogo a um homem sentado em um banco. O interpelado não responde. No dia seguinte, o passante o encontra no mesmo lugar, na mesma posição. Toca-o com a mão, o homem não move um músculo. Morrera há nove dias atrás.

Em fevereiro 70, em Lyon, França, foi forçada a porta do apartamento onde residia Aristide Cails, por falta de pagamento de aluguel. Lá dentro, seu esqueleto. Morrera em 64. Como os aluguéis eram descontados diretamente em sua conta bancária, sua existência só foi notada quando seu saldo chegou a zero.

Reflexo deste drama universal, os jornais suecos mantêm nos classificados uma rubrica — Personligt (pessoal) — onde diariamente centenas de pessoas isoladas e machucadas pela vida buscam outras, tanto para relacionamento sexual ou afetivo como também simplesmente para um passeio ou para tomar juntos um copo de vinho.

A proteção total concedida pelo Estado ao cidadão é, uma das causas deste abandono. A pensão paga a todos aos 67 anos fundamenta-se na consideração de que o auxílio aos pais na velhice não constitui dever dos filhos, mas do Estado. O afastamento físico entre pais e filhos ocorre quanto estes atingem a idade universitária, passando então a morar em residências estudantis ou pequenos apartamentos. As visitas espaçam-se. Após um certo tempo passa a ser inclusive descortês visitar os pais sem um prévio contato telefônico. A segregação etária aumenta à medida que os anos passam. Hoje, muitas crianças encaram um ancião como um exemplar de zoológico, pelo fato de jamais terem convivido com um. Uma aposentada de 72 anos optou pela fuga desta solidão: embarcou para o Brasil e hoje mora em Recife, onde já construiu três escolas com material de prédios demolidos na Suécia. “Minha vida começou agora”, afirmou.

Tal ostracismo tem origem numa velha instituição viking, o ättestupa, palavra que hoje significa precipício. Nos tempos vikings, era o penhasco do qual os anciões se jogavam — voluntariamente ou empurrados em caso de hesitação — diante da assistência da família. Segundo a crença religiosa vigente, quem morresse na cama não teria acesso ao Valhala, destinado apenas aos guerreiros mortos em batalha — ou no ättestupa. Sob a ficção religiosa, a realidade de um solo e clima hostis ao homem: quem não trabalha não come.

Da mesma época data o ölgrav (literalmente, cerveja da tumba). Uma morte era sempre celebrada pelos familiares e vizinhos com uma cervejada em torno ao caixão do defunto. Uma boca a menos é sempre motivo de alegria.

A alimentação, desde a era glacial até os tempos social-democratas, constituiu problema e pomo de discórdia para os escandinavos. Antes do evento dó cristianismo na Suécia, no caso do nascimento de uma filha, não era raro abandoná-la na floresta. Uma mulher seria sempre uma carga para a família, um varão nova força de trabalho. Na mitologia nórdica vemos o reflexo destes tempos de fome. Enquanto o catolicismo — religião intensamente marcada pela sexualidade — acena a seus crentes com as 44 mil virgens no paraíso, no Valhala abate-se todos os dias o porco gordo Särimener, que ressuscita na manhã seguinte, para ser carneado novamente pela tarde. E na história escandinava, encontramos talvez a única rainha que experimentou fome, Margareta Valdemarsdotter — Rei sem Calças para seus desafetos — promotora da União de Kalmar que originou a comunidade nórdica (Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia) escreve em 1369 a seu esposo, rei Hakan, da Noruega, que ela e seus servidores se ressentem da falta de alimentos e bebida. Não têm provisões para as necessidades do dia, e teme que seus servos a abandonem por razões de fome.

Antes, era a luta do homem contra uma natureza avara de seus recursos, que só se renderia a técnicas agrícolas posteriores, e olhe lá! Hoje, o problema é antes de tudo de orientação política e segurança nacional. Para garantir sua “neutralidade” no caso de um bloqueio econômico, a legislação do país dispõe que 80% da produção de alimentos deverá ser feita em seu solo, apesar do clima desfavorável à agricultura. Mais que uma continuidade da Europa, a Suécia é um prolongamento da Sibéria. Não fossem as correntes do Gulf Stream, aquecidas pelos trópicos, o país estaria constantemente coberto pela neve. Em tais condições, a agricultura e pecuária exigem uma série de cuidados que encarecem o produto final, o que se reflete não apenas nos hábitos alimentares como também no modus vivendi. Fossem os alimentos importados, seriam mais baratos. Christina Kellberg, em reportagem em DAGENS NYHETER, propunha algumas questões embaraçosas: Temos condições de ser hospitaleiros? Hoje, nossa economia não permite a hospitalidade dos velhos tempos, mas sempre desejamos conviver com nossos amigos. Precisaremos chegar ao ponto de pedir-lhes que paguem suas despesas?

Os suecos concluíram pela resposta afirmativa. Ou cada um paga as despesas da visita, ou não se confraterniza. Em muitos lares, na cozinha há um aviso:

Adoramos ver nossos amigos tanto quanto possível, mas isso torna-se muito caro. Deixe portanto algum dinheiro nesta caixinha para cobrir os custos da comida.

LISTA DE PREÇOS

Almoço 5 coroas

Diária com pernoite 10 coroas

Cerveja 3 coroas

Garrafa de vinho 5 coroas

Crianças abaixo de 10 anos metade do preço

Uma dona de casa relata à reporter sua experiência de uma visita de parentes à stuga:

— Eu e meu marido fomos para o campo numa tarde de segunda- feira. A stuga estava ocupada por nossa filha e genro. Concordamos em dividir os gastos em comida. O varubuss (11) passou, ela comprou mantimentos, pagou e entrou com caixas e notas. O custo total era de 40 coroas, 20 para cada casal. Mas meu marido não quis pagar as maçãs (4 coroas), pois o pátio estava cheio delas.

— Ah é? — disse a filha com azedume. E pagou 22 coroas. Na terça-feira, o pai apanhou uma das maçãs compradas. A filha arrancou-a das mãos, pois ele não havia pago maçã alguma. Na quarta-feira, pai e mãe voltavam para a cidade.

Muitos casais das gerações mais velhas, por uma questão de dignidade, recusam-se a cobrar — ou pagar — despesas de festas. Condenam-se então a um isolamento ainda maior, pois não têm realmente condições de receber em casa. Mas por outro lado, muitas vezes Medelsvensson não pode receber gratuitamente suas visitas por estar pagando as prestações de seu veleiro, lancha ou stuga.

Os bravos suecos construíram uma bela nação, cujo nível de vida é o mais alto de toda a Europa. Mas standard se paga caro, e o preço traduz-se não apenas monetariamente, como também no deterioramento das relações humanas.


 

 

REINO DOS CÃES FELIZES

 

Ser Humano! Um povo místico elaborou conceitos em torno desta palavra! Como se houvesse algum valor em ser humano! Ser Humano! Isto é apenas uma concepção biológica. Eis algo que precisamos abolir tão rápido quanto possível. — Karin Boye, Kallocain

 

Numa sociedade onde as relações entre seus membros tornam-se tão espinhosas, o cão atinge um alto status. Além dos grupos sociais I, II e III, poderíamos acrescentar um IV e V, pela ordem, cães e trabalhadores estrangeiros: Embora a indústria dependa totalmente da mão-de-obra imigrante, o cão possui um status em muito superior ao do trabalhador imigrante. Atualmente, 300 mil operários, provenientes na maioria da Finlândia, Iugoslávia e Grécia, executam nas fábricas, restaurantes e hotéis o trabalho pesado e sujo recusado por Svensson. Se os imigrantes subitamente cruzassem os braços, Volvo e SAAB, para falar só na indústria automobilística, teriam de fechar suas portas. No entanto, Svensson sempre terá mais preocupações com seu cão que com o imigrante. “Estranho povo o nosso, observa o escritor contemporâneo Ivar Lo-Johansson, tão preocupado em proteger a natureza, e tão pouco interessado, tão pouco amável em relação aos humanos”. Não surpreende pois que Axel Munthe tenha dedicado O Livro de San Michele “a S. M. a Rainha da Suécia, Protetora dos Animais Maltratados e Amiga de Todos os Cães”. Os direitos autorais do livro são em parte destinados a reembolsar os pastores lapões pelos danos causados pelos ursos aos rebanhos de renas. Assim os ursos ficariam a salvo de caçadas e armadilhas.

A constituição — como a de qualquer outro país — garante as mesmas oportunidades a nacionais e estrangeiros, embora jamais se encontre um sueco abrindo buracos na rua ou servindo em restaurantes. A economia do país depende do imigrante, mas estes vivem segregados em ghettos, trabalhando às vezes até 16 horas por dia, embalados pelo sonho da vila e do automóvel na volta ao lar. O isolamento é quase total. Uma família de iugoslavos que vivia há 10 anos no país foi entrevistada por professores de um curso de línguas. A mãe não falava o idioma mas disse que seus filhos falavam “fluentemente o sueco, aprenderam com as crianças do vizinho”. Interrogadas as crianças, descobriu-se que estas, além do serbocroata, falavam o finlandês.

Em 72, surgiu um jornal — Invandrare (Imigrante) — em sueco, que em verdade preocupa-se mais em informar os deveres dos operários estrangeiros que de defender-lhes os direitos. Dedicadas aos cães e seus cuidados, existem centenas de publicações, desde revistas e jornais até inesgotável literatura especializada. Nas bibliotecas e livrarias, ao lado de O Primeiro Bebê, encontra-se O Primeiro Cão, O Primeiro Gato. Nos supermercados, alimentação para cães e gatos, nacional e importada, é consumida paralelamente pelos estrangeiros. Não só por ser mais barata, como também incomparavelmente mais gostosa que certos pratos nacionais, como o surströming e blodpudin (arenque podre e pudim de sangue).

Fatos ilustram o zelo dos suecos por seus cães. Em 09.08.72, AFTONBLADET apresenta uma reportagem de última página (5 colunas x 27 cm) sobre um pastor alemão que ficou uma semana encerrado em um canil, num sítio em Eslöv, por descuido da proprietária. Os vizinhos, normalmente cheios de dedos no caso de relacionamento com seres humanos, foram sensibilizados pelos uivos do cão e passaram a alimentá-lo por uma abertura. O animal foi libertado por um comitê constituído pela polícia, inspetor dos serviços sanitários, veterinário e representante da Liga de Proteção aos Animais, de Lund. Sua proprietária mereceu o repúdio nacional.

Ainda em 72, surgiu — e foi festejada pela imprensa — em Estocolmo a primeira ambulância para animais da Europa. Seu telefone está acoplado ao 90.000, número memorizado por todos mal aprendem a falar, pois atende casos de doença, assalto, suicídio, incêndio e emergências outras. A ambulância não atende apenas cães e gatos, como também raposas, esquilos e texugos feridos nas estradas ou aves marítimas envenenadas pelo petróleo. Olle Larsson, proprietário e chofer, conta que a polícia muitas vezes o auxilia a abrir caminho no tráfego, com sirenes, para um socorro mais rápido aos animais feridos.

O amor aos cães tem por vezes conseqüências trágicas — e perturbadoramente sintomáticas. Em setembro 72, um casal de velhos foi esmagado por um carro quando tentava apanhar o cão que lhe escapara em direção à estrada. Ambos morreram antes que a ambulância chegasse ao hospital. O cãozinho foi salvo.

Mesmo assim, há quem pense ser injusto o tratamento recebido pelos cães. Um leitor escrevia a EXPRESSEN, perguntando por que se mata um cão quando este passa a morder homens, pois afinal, quando um homem mata outro, é condenado à prisão e não à morte. “No entanto, continua o revoltado leitor, ele é muito mais perigoso para a sociedade que o cão. Abaixo a injustiça!”

Violeta, uma imigrante argentina, consciente desta psicologia, passou a explorá-la. Ao dirigir-se a Forsäkringskassa ou Socialbyrå para receber seguro desemprego ou assistência social, leva consigo um cão emprestado. Afirma ser atendida com mais rapidez e menos entraves burocráticos utilizando este recurso, pois o funcionário tudo fará para que o cão não passe fome.

Esta tendência a dedicar mais afeto aos animais que a seres humanos é uma das chaves para decifrar-se o drama do homem anônimo e isolado das metrópoles super-desenvolvidas. O fenômeno não é exclusivamente sueco, ocorrendo também nos EUA e demais países europeus, tanto mais intensamente quanto mais industrializado é o país. Na Alemanha, por exemplo, a lei dispõe que um cão pastor necessita de 12m2 para habitar, enquanto um gastarbeit (trabalhador-hóspede, eufemismo utilizado para designar mão-de-obra imigrante) necessita apenas 8. Analisando este fetichismo do animal, diz Desmond Morris:

“Se os seres humanos que nos são mais próximos são incapazes de dar-nos o que precisamos, sempre podemos dar um pulo até à butique de animais mais próxima, e por uma soma modesta, oferecer- nos uma ração de intimidade animal. Pois o animal doméstico possui uma certa inocência, não nos interroga, nem nós colocamos questões a seu respeito. Ele nos lambe as mãos, roça-se docemente contra nossas pernas, enrola-se para dormir sobre nosso regaço, e com o focinho, nos esfrega e aperta. Nós podemos mimá-lo, acariciá-lo, carregá-lo como a um bebê, coçá-lo atrás das orelhas e mesmo abraçá-lo.”

Em suma, o animal doméstico é o substitutivo ideal das relações humanas nas sociedades onde a busca de mais e mais standard elimina progressivamente o contato pessoa a pessoa. Afeto todos têm a oferecer, o problema é recebê-lo. O cão aceita incondicionalmente toda e qualquer manifestação afetiva, sadia ou neurótica, expressada em pontapés ou afagos. Daí seu status.


 

EDUCAÇÃO PARA A VIDA E A MORTE

 

Quando a liberdade política e econômica diminui, a liberdade sexual tende em compensação a aumentar, dizia Huxley em prefácio ao Admirável Mundo Novo. Sintomaticamente, a organização responsável pela transformação de costumes e idéias relativas à sexualidade foi criada um ano após a ascensão da social-democracia ao poder. Riksförbundet för Sexuell Upplysning (Liga Nacional para Informação Sexual), RFSU, é uma associação intimamente ligada ao governo, fundada em março de 1933, por Elise Ottensen Jensen, jornalista de origem norueguesa, com o auxílio de alguns militantes sindicalistas. Constava de seu programa original de atividades a luta pela instituição da educação sexual nas escolas, a criação de centros de informação sexual (fixos nas cidades e equipes ambulantes nas zonas rurais), abolição da lei sobre anticoncepcionais, direito ao aborto e esterilização nos casos de necessidade biológica, médica ou social e revisão da legislação que condenava o homossexualismo e a zoofilia.

As reivindicações de então são hoje direitos adquiridos. As restrições sobre venda e publicidade de anticoncepcionais foram abolidas, sendo que a partir de 1946 ficaram os farmacêuticos legalmente obrigados a possuir preservativos em estoque. Hoje, o condom pode ser comprado em distribuidores automáticos nas ruas, mictórios, residências estudantis. Práticas homossexuais deixaram de constituir delito em 1944, exceto quando um dos parceiros é menor de 18 anos. (Isto gerou protestos irados em considerável parcela da sociedade, pois nas relações heterossexuais o caráter delituoso só se configura no caso de menores de 15 anos.) A sodomia excepcionalmente seria condenada enquanto crueldade contra animais. O aborto foi autorizado em 1938 nos casos de fraqueza física, gravidez causada por violação e possibilidade de transmissão de moléstias hereditárias à criança. Segundo emenda ao texto legal aprovada em 1946, o aborto passou a ser autorizado quando, em razão das condições de vida e outras circunstâncias, o nascimento de uma criança poderia prejudicar seriamente a saúde física e psíquica da mãe. Em 1963 passou-se a considerar como justificativa para a interrupção da gravidez doenças ou más-formações graves verificadas no feto durante a vida intra-uterina.

A educação sexual nas escolas, discutida pelo governo desde 1935, só se tornou obrigatória a partir de 1956. O livro padrão, Handledning i Sexualundervisning, ao lado das noções básicas de mecânica e fisiologia sexual, anticoncepcionais e doenças venéreas, apresentava uma visão moralizante do sexo, mostrando a abstinência como atitude altamente recomendável para a felicidade futura de cada um, e fazendo a apologia do casamento tradicional . Esta orientação é hoje violentamente criticada, e, na prática, não é seguida. Para modernizar a instrução sexual nas escolas, foi criada em 1964 uma comissão de nove membros, da qual faz parte Maj-Briht Bergström-Walan, professora de pedagogia da educação sexual na Universidade de Estocolmo e chefe do Instituto Sueco de Pesquisas Sexuais. As proposições desta comissão prometem ser em nada conservadoras, pois segundo a pedagoga, a educação sexual deve buscar

— suprimir ou atenuar os comportamentos negativos e impregnados de preconceitos face à sexualidade, isto é, liberar a sexualidade das concepções repressivas. Ela deve ajudar os jovens a resolver seus problemas sexuais presentes e futuros e a eliminar os sentimentos de medo, insegurança e culpa causados por uma educação errônea. A educação sexual deve contribuir ao desabrochar de uma vida sexual feliz, satisfatória e enriquecedora;

— ajudar cada um a compreender que todo indivíduo, jovem ou velho, casado ou solteiro, homem ou mulher, hetero ou homossexual, tem direito a uma atividade sexual que corresponda a seus desejos desde que não fira a liberdade sexual de outrem;

— ajudar os jovens a compreender o caráter de reciprocidade das relações sexuais, isto é, compreender que a sua experiência sexual é a mesma do parceiro. Deve mostrar ainda que a sexualidade é uma atividade social, regida por regras sociais, e que ninguém pode a ela ser constrangido pela palavra ou pela força;

— encorajar a tolerância ante os que agem e pensam diferente, sejam pervertidos ou maníacos sexuais, abstinentes, casados ou solteiros, liberais ou conservadores;

— mostrar aos jovens uma concepção moderna do papel dos sexos. Deve insistir sobre a igualdade entre o homem e a mulher e pôr em evidência que os numerosos sinais de diferenciação dos sexos foram inventados pela sociedade. Este ensino contribuirá para a emancipação da mulher e criará melhores condições para que se estabeleçam relações satisfatórias entre o homem e a mulher;

— levar os jovens a aceitar a sexualidade, evitando que esta seja glorificada de forma irreal. Os riscos, os problemas, as possibilidades de conflito e as dificuldades da vida sexual devem ser trados e discutidos;

— ensinar os jovens a não individualizar desmesuradamente a sexualidade e não a reduzir a uma vida a dois. É preciso observar as implicações sociais e antes de tudo políticas da sexualidade;

— evitar a apresentação de uma imagem simplória do matrimônio e da família tradicionais, a fim de evitar as decepções que poderiam surgir de uma concepção por demais romântica. A concepção tradicional do casamento e da família está em mutação.

Esta tendência é muito nítida na Suécia atualmente. Precisa-se levar em conta esta tendência nos cursos sobre sexualidade e discuti-la. Isto implica também em apresentar outras formas de vida sexual como alternativa ao casamento.

Transpondo na prática pedagógica suas reivindicações por um ensino realista e não moralizante, Maj-Briht Bergström-Walan apresenta como sugestão aos educadores extratos de cursos que proferiu, gravados em fita magnética.

 

CURSOS COM CRIANÇAS DE SETE ANOS

 

(No quadro, a imagem de um menino e uma menina, nus. Todos os detalhes do corpo são cuidadosamente reproduzidos. A professora está sentada diante do quadro os alunos formam um círculo em torno dela.)

Prof.ª— Temos aqui um menino e uma menina. Que diferença vocês notam neles? Sim, Johan, que achas?

Johan — A menina tem cabelos longos e o menino cabelos curtos.

Prof.ª— Certo. Mas não existem outras diferenças?

Dennes — Sim, o menino tem um tico e a menina tem qualquer coisa parecida com um buraco.

Prof.ª— Muito bem, disseste tico. Alguém aqui conhece algum outro nome para aquilo?

Peter — Para mim é um pipi.

Rune — Quando eu estava no hospital, havia um que chamava aquilo de torneira.

(Todos explodem na risada e a atmosfera torna-se mais descontraída.)

Anita — Um pênis, senhorita.

Prof.ª— Perfeito, muito bem. E as meninas têm também qualquer coisa. Dennes disse que era um pequeno buraco. Que outro nome se pode usar?

Rosemarie — Vagina.

Prof.ª— Isso mesmo. Chamemos então estas coisas de pênis e vagina. Os dois servem para algo. Para quê? (Ouve-se aqui e ali tímidas suposições.) Vocês sem dúvidas já notaram que o papai e a mamãe se acariciam ternamente e se beijam. Por que eles fazem assim?

Hans — Porque eles se amam.

Prof.ª— E quando duas pessoas se amam, elas gostam de dormir juntas na mesma cama, como vocês vêem nesta figura. (Mostra uma nova imagem: um homem e uma mulher estão deitados, nus, e se abraçam.) Que é que eles estão fazendo juntos? Isto se chama coito ou ato sexual?

Rosemarie — Não.

Rune — Ela não sabe nada.

Prof.ª— O homem introduz seu pênis na vagina da mulher e isso é maravilhoso para os dois. Eles fazem assim porque se amam muito. Mas, às vezes, eles também fazem assim por uma outra razão. Qual?

Marie — Para ter filhos.

(A professora explica então brevemente a fecundação, depois mostra imagens nas quais o desenvolvimento do feto é esquematizado.)

Prof.ª— Que tamanho vocês acham que tem a criança nesta figura, quando começa a viver no ventre da mãe?

Rune — Ela é grande como uma mancha de tinta.

Prof.ª— Bem. Mas o ventre onde está a criança é o mesmo lugar para onde vão a carne e os legumes que comemos?

Rosemarie — Não, a criança está no útero.

Prof.ª — Muito bem. O útero torna-se então cada vez maior para dar lugar à criança. E a criança vai crescendo, crescendo. Após nove meses, que acontece?

Marie — A criança nasce.

Prof.ª— e para onde vai a mamãe?

Rune — Para a clínica.

Prof.ª— Muito bem. Às vezes, ela vai acompanhada de seu marido, noivo, ou da pessoa com quem ela vive, ou ainda, vai só, se ninguém vive com ela. (A professora explica brevemente como é um parto.) Mais tarde, a mamãe amamenta o bebê, mas o papai não deve também fazer qualquer coisa?

Johan — Sim, ele deve trocar as fraldas e limpar a banheira.

Dennes — Sim, ele deve fazê-lo tanto quanto a mãe.

Prof.ª— Exato: os dois devem cuidar da criança, e não é nada ridículo que o pai dê a mamadeira ou trate das fraldas. Esta gravura representa uma família. Todos fazem algo. Um menino ajuda o irmão menor, o papai ajuda o menino e a mamãe ajuda o papai. Não é sempre fácil viver-se juntos, vocês talvez já tenham notado, mas devem-se fazer esforços...

 

CURSO PARA ALUNOS DE 11 ANOS

 

Prof.ª— Vamos falar hoje de criança. Todos vão participar da lição. Vocês contam o que sabem e eu conto o que sei. E eu sei muito, porque uma vez trabalhei como parteira. Vocês sabem o que faz uma parteira?

Uma menina — Ela trata das crianças quando nascem.

Prof.ª— Certo. E onde trabalha uma parteira?

Menina — Numa clínica ou num hospital.

Prof.ª— Todas as crianças nascem numa clínica ou num hospital?

Um menino — Não, alguns nascem nos táxis.

Prof.ª— É verdade, pode acontecer. Mas é melhor que o nascimento ocorra numa clínica ou hospital, pois a criança precisa de muitos cuidados. (A professora mostra a foto de um recém-nascido com poucos minutos de idade.) Que faz uma criança quando nasce?

Menina — Grita.

Menino — Come.

Prof.ª— Sim. Que é que ele come?

Menino — Leite.

Prof.ª— Sim, leite. E de onde vem o leite?

Menina — Da mamãe.

Prof.ª— E como se diz quando a mamãe dá o seio à criança para que ela beba o leite?

Menina — Ela o amamenta.

Prof.ª— E a criança, que faz?

Menina — Ela mama.

(A professora mostra a foto de um parto.)

Prof.ª— Como uma criança vem ao mundo?

Menina — A mamãe pare um bebê.

Prof.ª— Sim, mas de onde vem o bebê?

Menino — Sai da vagina.

Prof.ª— Certo. Que é a vagina? Vocês já devem ter visto uma espada que se põe numa bainha. Bem, a vagina da mulher é como uma bainha, um tubo, e a criança sai por esse tudo. Mas a vagina serve para alguma outra coisa?

Menino — Serve para o ato sexual.

Prof.ª— Que quer dizer ato sexual?

Menino — É quando se faz a fecundação.

Prof.ª— É um pouco difícil de explicar. Vou fazer urn desenho no quadro. (Desenha os órgãos genitais femininos.) Como se chama isto?

Menina — útero.

Prof.ª— Certo. E isto aqui?

Menino — É a vagina.

Prof.ª— Muito bem. E lá? (Silêncio) Não adivinham? São os ovários. (Indica um aluno.) Tu tens ovários?

Menino — Não.

Prof.ª— Não, tu não tens. Mas que é que tens em vez dos ovários?

(Silêncio) Que é que tens nos ovos? Quando tu os tocas, sentes como pequenas pedras, como bolinhas de gude. Como se chama isso?

Menino — Culhões.

Prof.ª— Bem, isso se chama testículos. Tu sabes que às vezes os ovos se contraem quando se tem frio ou quando se toma um banho e o corpo se resfria. É para proteger os testículos, pois eles são muito frágeis e precisam duma certa temperatura. É por serem tão sensíveis que não te sentes nada bem quando alguém te dá um soco nos ovos. Por isso não se deve jamais golpear alguém nesse lugar. Mas nós, mulheres, não temos testículos, mas sim ovários. Que há dentro dos ovários?

Menino — óvulos.

Prof.ª— Certo. E que há dentro dos testículos?

Menino — Esperma.

Prof.ª— Certo. Mas qual á o verdadeiro nome?

Menino — Espermatozóides.

Prof.ª— Bravo. Então, os espermatozóides do homem fecundam os óvulos da mulher. E agora, voltemos àquilo que um de vocês chamou de ato sexual. Pode-se fazer um ato sexual sem que haja fecundação? Pode-se fazer alguma coisa para evitar a fecundação?

Menina — Se toma pílulas.

Prof.ª— Ah bem! Que pílulas?

Menina — Pílulas antibebês.

Prof.ª— Que são as pílulas antibebês?

Menina — Quer dizer, contra os bebês.

Prof.ª— Sim. As pílulas antibebês devem evitar a fecundação. Existem outros métodos além das pílulas?

Menina — O aborto.

Prof.ª— Bem, o aborto é uma questão complicada que veremos mais tarde. Vejamos primeiro os outros métodos que permitem evitar que a mulher seja fecundada. Que se pode usar?

Menino — Balões.

Prof.ª— Que queres dizer com balões? Todo mundo diz balões?

Maioria — Não.

Menino — Eles parecem balões que se podem encher.

(A professora mostra um condom no quadro.)

Prof.ª— É isto que vocês chamam de balões? Quem conhece um outro nome?

Menino — Capote inglês.

Prof.ª— Mais ou menos, mas a palavra que procuramos é condom.

Menina — Existe nos distribuidores automáticos.

Prof.ª— Exato. Quando se põe uma coroa, se obtém condons.

Menino — Não, eles custam três coroas.

(RISOS)

Prof.ª— Vejo que sabes muito. Pode-se comprá-los também nas farmácias, institutos de beleza ou drogarias. (A um menino.) Achas que teus pais têm relações sexuais?

Menino — Sim.

Prof.ª— Os adultos sentem muito prazer quando têm relações sexuais, eles não as têm só para ter filhos. Vocês sabiam disso?

Vários — Não.

Prof.ª— Então, o ato sexual traz prazer quando as pessoas se amam, mesmo que não queiram ter filhos. Podem-se ter relações com qualquer desconhecido?

Menino — Não, só com pessoas que a gente conhece.

Prof.ª— Não está mal...

Menino — Com qualquer um que se conhece depois de algum tempo, quando se gosta de qualquer pessoa.

Prof.ª— Gostas de alguém?

Menino — Não.

Prof.ª— Não, tu és ainda muito novo. Mas é muito natural e muito bom gostar de alguém. Eu amo meu marido, e é maravilhoso amar-se o homem com que se está casada. Mas infelizmente as coisas nem sempre são assim.

Menina — Meus pais vivem brigando. É porque eles se amam que fazem assim?

Prof.ª— Bem, pode acontecer que duas pessoas briguem, mesmo quando gostam uma da outra. Mas voltemos à fecundação. Como se sabe que é possível fecundar uma menina?

Menino — Quando elas têm regras, aos 14 ou 15 anos.

Prof.ª— Pode-se ter a primeira menstruação aos 10 anos?

Menina — Sim, os judeus e católicos.

Prof.ª— Não, não é verdade, não sou judia nem católica e tive minha primeira menstruação aos 10 anos. É muito cedo. Em geral, a primeira menstruação vem aos 12 ou 13 anos. Quando se deve saber o que é a menstruação?

Menina — Antes de tê-la.

Prof.ª— Estou completamente de acordo contigo.

Menina — A gente usa umas coisas esquisitas de algodão.

Prof.ª— Que queres dizer?

Menina — Cintas.

Prof.ª (mostra algo ao quadro) — Isto se chama cinta higiênica. Para que serve?

Menina — Para não sujar as roupas.

Prof.ª— Sim, e também existem os tampões, que são diferentes. (Desenha um no quadro.) Têm um pequeno cordão numa extremidade. Põe-se assim o tampão e se puxa o cordão para tirá-lo. Algumas mulheres preferem as cintas, outras os tampões. Em qualquer dos casos, é muito importante mantê-los limpos e trocá-los constantemente.

(A professora fala em seguida dos cromossomas e da hereditariedade. As crianças perguntam sobre cesarianas, gêmeos, esterilidade, alimentação do feto durante a gravidez, aborto e suas conseqüências.)

Menino — Quando a criança começa a se mexer no útero?

Prof.ª— Com quatro meses e meio ou cinco.

Menina — Os gêmeos nascem ao mesmo tempo?

Prof.ª— Não, eles vêm um após o outro.

Menino — Não há o perigo de que a criança rasgue o útero?

Prof.ª— Não. Vocês sabem em que se encontra o feto? Numa bolsa de água.

Menino — Que que é a umidade das mulheres?

Prof.ª— Que queres saber? Ah, entendo. É aquilo que a mulher secreta quando está excitada sexualmente. Quando ela torna-se terna com um homem e deseja o ato sexual, ela secreta um líquido no interior e no orifício de sua vagina. Mas o líquido nada tem a ver com a fecundação. Pode-se muito bem ter filhos sem que apareça esse líquido. Vocês querem ter filhos?

Alunos — Sim.

Prof.ª— Mas é preciso que vocês esperem um pouco. Isso atrapalharia os estudos, e depois, vocês não têm casa. Qual é a melhor idade para ter filhos?

Menino — Vinte anos.

Menina — Entre 17 e 18.

Uma outra — Quando se é capaz de sustentá-los.

Prof.ª— Muito bem. Agora a aula terminou. Até a vista.

Na opinião de Huntford, esta pedagogia revolucionária constitui mais um instrumento de controle do indivíduo pelo Estado. “A RFSU promove uma visão do sexo como válvula de escape da sociedade. O Estado, ansioso por controlar o cidadão absolutamente, tomou a sexualidade em mãos. A mentalidade do bem-estar introduziu--se mesmo no ato humano fundamental, e os suecos, embora encorajados a liberar suas frustrações políticas através da conduta reprodutiva, são no entanto admoestados a fazê-lo decente, higiênica e assepticamente. O cidadão precisa sentir que o Estado cuida dele, mesmo no que seria seu último reduto privado.”

O realismo pedagógico sueco não abrange apenas a sexualidade. Contos de fadas foram substituídos por relatos — em linguagem simples — nada fantasiosos sobre temas que vão desde o divórcio até a guerra no Vietnã. Em Viagem a Três mostra-se a Espanha para crianças de oito a dez anos: “As pessoas lá são postas na prisão e mesmo assassinadas se não pensam como um velho general imbecil chamado Franco.” Em O Pai de Mia se Muda, a mãe explica à sua filha que papai não voltará mais. “Eu e teu pai vamos nos divorciar.” A pequena chora transtornada. Mais tarde, ao entrar em contato com o novo companheiro de sua mãe, vê que as coisas não são tão terríveis, pois afinal, ela também às vezes troca de companheiros de jogos.

Um destes livros — O Vovô de Lasse Morreu — destina-se a explicar para crianças o que acontece quando um ser humano morre. É recomendado para crianças que são atingidas por alguma morte em suas proximidades ou que simplesmente se interrogam sobre a morte. O texto é de Anna Carin Eurelius e Monika Lind.

Ao chegar em casa, Lasse encontra todos chorando. Pergunta o que aconteceu e fica sabendo que seu avô morrera. Lasse quer saber então o que é morrer.

— Bem, tu entendes — diz o pai —, vovô estava tão cansado e doente que não suportava viver mais.

— Vovô sente alguma dor?

— Não — disse papai —, ele não sente absolutamente mais nada.

— Por que vocês choram então?

— Nós choramos porque não encontraremos mais vovô.

— Quando ele volta? — quis saber Lasse.

— Ele nunca mais voltará, pois não existe mais.

— A gente precisa morrer? — pergunta Lasse.

— Sim — diz papai —, um ser humano não pode viver tanto quanto quer. Ele torna-se gasto e deixa de funcionar. Exatamente como aconteceu com tua bicicleta.

Algum tempo depois pergunta Lasse:

— Onde está o vovô agora?

— Ele está na terra, debaixo da grama — diz papai.

— Ele não tem medo de ficar completamente só?

‐ Não, ele não tem medo, pois não sente mais nada.

— Ele voltará a se levantar?

— Não, o vovô jamais voltará.

— Vai ficar pra sempre debaixo da terra?

— Sim — diz papai —, e aos poucos vai se tornar também terra. Tu sabes, é como as folhas que caem no chão no outono. Elas se tornam terra depois de algum tempo.

— Que acontece com a terra então? — pergunta Lasse.

— Da terra nascem flores, grama e árvores. Todas as plantas se sustentam da terra. As anêmonas, as tussilagens e todas as outras que existem.

Lasse pensa um instante e pergunta:

— Dói quando a gente se torna terra?

— Não, a gente não sente absolutamente nada — diz papai.

— As crianças morrem?

— Sim, se elas ficam muito, muito doentes ou se sofrem um acidente.

Lasse quer saber o que é um acidente:

— É quando, por exemplo, a gente corre na rua e é atropelado por um carro. Por isso as crianças nunca devem brincar ou correr pelas ruas — diz papai.

No dia seguinte, quando Lasse brinca, encontra uma anêmona na grama. Havia recém-desabrochado. Lasse olhou para ela e abanou:

— Alô vovô — disse triste para si mesmo.


 

 

O SEXO NOSSO DE CADA DIA

 

Já nas imediações da Central Ferroviária de Estocolmo, o turista do Sul sente estar penetrando num mundo altamente erotizado. Nos quiosques, ao lado de jornais e revistas de todo o mundo, publicações pornográficas que abrangem desde zoofilia até sexo mesclado com torturas e espancamento. Nas ruas vizinhas, dezenas de porrklubbar (12) anunciam filmes pornográficos e live-shows — relações hetero e homossexuais, em todas as suas variantes, apresentadas em um pequeno palco, ante um público de vinte a trinta pessoas. Os assistentes são sempre convidados a participar do espetáculo, mas raramente alguém aceita tal cortesia dos atores. A propósito, diz-se ser a Escandinávia a única região do mundo onde o teatro faz séria concorrência ao cinema.

Em vários pontos da cidade existem distribuidores automáticos de revistas pornográficas. Pondo quatro coroas num orifício, nosso turista pode apanhar publicações que satisfazem o mais imaginoso dos apreciadores do gênero.

Sexo não constitui mistério na Suécia. E esta desmistificação tornou-o triste. “Geralmente, disse certa vez o Dr. Malcolm Tottie, do Ministério da Saúde, os suecos fazem o amor em poucos segundos, sem proporcionar prazer à mulher. No campo da técnica amorosa, a Suécia é subdesenvolvida.”

O temperamento lúbrico do latino existe graças aos, vinte séculos de repressão do catolicismo. O sexo, segundo a Igreja, é algo demoníaco, perverso, fruto proibido. A mulher é um poço de luxúria abominável, através dela entraram a morte e o pecado no paraíso. Tocar ou beijar o corpo de uma mulher constitui, para S. Tomás, pecado mortal. Santos, como Orígenes, que levaram às últimas conseqüências esta concepção da mulher, castraram-se. Graças a estas proibições, a idéia de sexo sempre seduziu as civilizações católicas. Não tendo recebido educação sexual na escola, a primeira experiência de um latino é um encontro com o desconhecido. Para um sueco, contato com um sistema de mucosas cuja anatomia e funcionamento já lhe são conhecidos a partir de esquemas e fotos.

Esta naturalidade ante a questão — a criança deve aprender a servir-se do sexo como aprende a servir-se dos talheres — segundo filosofia oficial dos encarregados da educação sexual — origina uma certa promiscuidade responsável pelo alto índice de gonorréia no país, especialmente na faixa dos 12 aos 20 anos.) Isto explica a difusão do condom preferentemente a qualquer outro preservativo, por ser o único de certa eficácia na prevenção a doenças venéreas. A imprensa diária anuncia condons em todas as formas, cores e sabores. Às vésperas de longos feriados e festas são oferecidos abatimentos convidativos no preço para compras a partir de 30 unidades. “Os feriados são longos, diz um anúncio, compre preservativos em número suficiente.” Outro alerta: “A cada 80 minutos, um adolescente contrai gonorréia. Use condom.” Um outro previne as jovens que partem em férias para as praias do Mediterrâneo sobre a péssima qualidade dos preservativos estrangeiros, acrescentando ainda que os latinos não os utilizam de bom grado. Melhor levar um bom estoque na bolsa.

Na guerra publicitária do condom, a RFSU abalou o mercado com o lançamento de Black Jack, preservativo de cor preta que veio ao encontro da mística do erotismo negro alimentado pelas nórdicas. Um pênis com ar malandro vai se erguendo aos poucos e vestindo o condom como a uma blusa de malha. O quadro final, o pênis totalmente ereto e encapuçado, com um ar de desafio, virou moda. Black Jack é hoje um personagem nacional, ostentado com orgulho pelos adolescentes, em blusas ou botões adquiridos nas butiques da RFSU.

Torcendo um jornal sueco e um brasileiro, tem-se a diferença entre ambos: deste escorrerá sangue, do primeiro esperma. O sensacionalismo é o mesmo, abstraídas as raras excessões de bom jornalismo. Uma coluna em EXPRESSEN (principal vespertino, com tiragem de 600 mil exemplares num país de 8 milhões de habitantes), assinada pelo casal de psicólogos daneses Inge & Sten, mantém alta a vendagem do jornal. A mesma coluna é também assinada no Ekstrabladet, em Copenhague, e Dagbladet, em Oslo. As consultas dão uma idéia dos hábitos sexuais escandinavos:

TENHO ORGASMOS AO ANDAR DE BICICLETA

Tenho um grande problema. Sinto-me mais ou menos imbecil ao dizer isto, mas é grave para mim: já aconteceu que às vezes me acabei ao andar de bicicleta. Sou anormal?

Adolescente inquieta

Cara inquieta!

Não é absolutamente incomum que o ciclismo possa ser sexualmente estimulante, como o hipismo também pode sê-lo. Mas nem todas as mulheres do mundo podem sentir-se satisfeitas tão facilmente.

Evidentemente, isto não é lá muito prático (e talvez seja mesmo um pouco perigoso) em meio ao tráfego... Fora isso, não há nenhum motivo para inquietações, pelo contrário.

UMA GAROTA FICA SEMPRE NA MÃO

Somos cinco companheiros, dois rapazes e três garotas. Como somos os únicos jovens da redondeza, os feriados aqui são terrivelmente monótonos. Andamos lendo ultimamente sobre sexo grupal e nos perguntamos como dois rapazes podem satisfazer três garotas ao mesmo tempo? Até agora, conseguimos dar conta de uma por vez. A terceira fica sempre decepcionada. Como resolver este problema?

Cinco que se interrogam

Caros cinco!

Desculpem-nos se somos um pouco antiquados e moralistas. Recebemos muitas cartas sobre sexo grupal, e já conversamos com muitos que já o praticaram. Julgamos ser isto um problema muito, muito melindroso mesmo. Existem muitas experiências bem sucedidas neste sentido, mas em muitos casos acaba-se fracassando no terreno dos sentimentos.

Claro, existem também dificuldades práticas, puramente técnicas, que não podem ser subestimadas, mas não constituem enfim o mínimo problema. Podem ser resolvidos com conhecimento, fantasia e amabilidade.

Mas os sentimentos são mais capciosos e complicados. Acontece — como vocês já observaram — que alguém fica sempre frustrado. E no entanto, não se teve essa intenção...

MEU PÊNIS É PEQUENO DEMAIS

Tenho quase 20 anos e um grande problema. Meu pênis é pequeno demais, penso. Isso tem pouca importância, dirão vocês, mas não para mim. Meu pênis mede 5 cm em estado normal, e ereto mal chega aos 12.

O Pequeno

Caro pequeno!

A maioria dos homens pensa ter o pênis por demais pequeno e julgam-no menor que a média! Em geral supervalorizam o significado das dimensões do pênis. Apóiam-se na antiga adoração do falo, na qual o pênis constituía algo mais ou menos divino. Ainda subsiste muito da velha concepção de cópula, isto é, que copular é introduzir o pênis e cavalgar a rédeas soltas. Se combinamos esta concepção com o fato de que a maioria das mulheres dificilmente atinge o orgasmo numa cópula comum com o pênis na vagina, incorre-se então num mal entendido. É então perfeitamente compreensível que tanto a mulher como o homem cheguem à conclusão de que há algo errado no pênis — e o erro consistiria em suas dimensões. Fosse maior, tudo seria paz e alegria e os orgasmos viriam saltando como pipocas numa panela...

Embora a conclusão seja compreensível, nem por isso deixa de ser completamente errada!

Em vez de preocupar-se com o tamanho do pênis, devem homem e mulher concentrar-se em algo muito mais importante: em adquirirem ambos uma técnica sexual efetiva que os satisfaça. E esta técnica pouco tem a ver com o pênis na vagina, senão pelo contrário, com os dedos, língua, fantasia, jogos amorosos, paciência e confiança.

SEXO ANAL DOEU

Julgo vocês geniais e cultos, mas aconteceu-me algo que desejo em todo caso contar, pois pode resultar em erro. Pois é, meu amado e a abaixo-assinada quiseram — após alguns drinques a mais — variar um bocado nossas relações (que aliás já são bacanérrimas).

Então — sexo anal!

Oi, oi, como doeu! Por várias semanas. Talvez tenhamos exagerado na dose, mas mesmo assim — avisem aqueles que são tão entusiastas como nós. Não foi nada agradável.

Uma que perdeu a virgindade por todas as partes

Caros!

Primeiro será melhor que expliquemos em que consiste sexo anal. Em suma, é a relação na qual o homem introduz o pênis na abertura anal da mulher. Muitos crêem ser este método empregado apenas entre homossexuais, como também serem apenas os homossexuais a utilizá-lo. Não é verdade.

Muitos homossexuais jamais experimentaram sexo anal. Por outro lado, a prática não é das mais incomuns entre homem e mulher. Considerando as cartas que recebemos, podemos constatar a existência de três tipos de mulheres:

— as que imediatamente gostam da descoberta;

— as que aprendem a apreciá-la pouco a pouco, e

— as que jamais sentiram qualquer prazer com esse método.

Homossexuais de grande experiência nos afirmaram serem três coisas fundamentais:

— que se empregue um bom lubrificante, vaselina ou algo semelhante;

— que tudo seja feito com muita calma, especialmente no momento da introdução;

— que o parceiro passivo — o que recebe o pênis — não contraia os músculos de nervosidade ou angústia. Pelo contrário, deve relaxá-los completamente de forma que o músculo anal, de forma anelar, possa ser alargado sem problemas.

Os dramas sexuais se sucedem diariamente na coluna de Inge & Sten. Por escabrosos e insolúveis que pareçam, sempre são vistos com tolerância e sempre comportam uma resposta cheia de otimismo. Um ancião de 70 anos não consegue mais uma ereção? Com paciência, auto-sugestão e esforço ela virá. Uma garotinha de 13 anos teme que um pênis seja por demais grande para recebê-lo, ouviu dizer que chega a 12 cm de diâmetro quando enrijecido. Bobagem, o membro masculino tem quase a mesma espessura de uma salsicha de cachorro quente. Além disso, a vagina permite a passagem de um bebê. Coragem e boa sorte!

Este correio, publicado em livro, tornou-se best seller na Escandinávia e já foi traduzido para o francês. Defendendo-se da acusação de serem mecânicos da sexualidade. Inge & Sten dizem ser especialistas de uma certa mecânica de precisão. Ora, que se espera do reparador de veículos senão que ponha um carro em bom estado? Ninguém espera dele um discurso sobre os méritos da conduta do automóvel.

Considerado o êxito da experiência de EXPRESSEN, cada jornal ou revista tem hoje seu sex expert. Carlösten Nordmark, especialista em questões sexuais do semanário LEKTUR, responde a uma leitora em dúvidas:

FAÇO AMOR COM DOIS HOMENS AO MESMO TEMPO

Tenho 18 anos e já estive com muitos rapazes desde os 14. Agora, ando com um kille (13) dois anos mais velho. Nós nos encontramos há dois anos, mas só começamos a ir para cama no ano passado.

Meu problema é que meu namorado insiste em que seu amigo participe de nossas relações. Tudo começou uma tarde, quando tomávamos vinho e jogávamos cartas. Conversamos um bocado sobre sexo. Eles falavam das diversas tjejer (14) com quem já tinham dormido. Quando meu namorado foi ao banheiro, seu amigo começou a abraçar-me e eu lhe retribuí. Estávamos nisto quando meu namorado voltou, até pensei que ele ficasse com ciúmes. Pelo contrário. Ele já estava excitado com a idéia de que estivéssemos fazendo amor e quis então que o fizéssemos a três.

Éramos um pouco tímidos, tínhamos pouca prática Acabou que ambos fizeram amor comigo, primeiro seu amigo, depois ele, do modo normal. Logo após nos sentíamos mais tímidos ainda, bastante envergonhados. Mais tarde eu e meu namorado conversamos sobre isto, e concluímos que havia sido gostoso. Decidimos convidar seu colega para uma outra visita.

Enfim, a coisa repetiu-se algumas vezes. Ora é divertido, ora é chato e às vezes eu gostaria mesmo de estar apenas com meu namorado. Experimentamos novas posições. Meu namorado prefere quando sugo e beijo seu pênis enquanto seu colega penetra-me do modo normal. Eles acham isso gostoso pra burro.

Não estou muito certa, mas me parece que eles não deixam de contar tudo isto para seus amigos — ambos são bastante gabolas quando têm trago na cuca. Seria desagradável para mim chegar a confirmar isso.

Me pergunto como acabam tais situações e também se outras pessoas fazem o mesmo.

Resposta:

Certamente muitos experimentam sexo grupal. Provavelmente alternando prazer, alegria, ciúme e discussões. Sempre ocorrerão mais complicações neste tipo de relacionamento do que nos comuns, a dois. Por outro lado, muito raramente uma relação grupal é prolongada e regular.

Você teve muitos killar e possui talvez uma significativa experiência em matéria de sexo. Mas sexo não é apenas quantidade, mas também qualidade. Você manifesta sua inquietação pela dupla situação com seus parceiros. Uma coisa é certa:

Comprovado que os rapazes se gabam da situação entre seus companheiros, você deve negar-se a participar novamente dessas tardes a três. Uma regra básica de relações humanas é não falar mal ou ser indiscreto a respeito de amigos, menos ainda de quem se é sexualmente íntimo. Interrogue-os diretamente. Se afirmarem não ter ocorrido nenhuma indiscrição, confie neles. E aproveite a ocasião para dizer o que pensa sobre gabolices.

Quanto ao resto, depreende-se que você aceitou voluntariamente a situação — sexo a três — e, em certa medida, até tomou a iniciativa. Não tenha pois complexos de culpa quanto a isso. O que vocês três fazem juntos não diz respeito a mais ninguém, desde que todos o façam livremente.

Você escreve no entanto que às vezes gostaria de fugir à combinação. Se você assim o quer, faça-o. Não se deve admitir constrangimentos ou ameaças. E tente eliminar os sentimentos de culpa que você experimenta após. Ou pese o gozo e o arrependimento e faça uma escolha: quanto vale o prazer?

Por último: uma situação a três finda do mesmo jeito que as outras situações que se deterioram, isto é, da mais inesperada ou esperada forma. Ciúme, inimizade, discussões dramáticas, amargor constante, ou ainda, a relação se quebra em pedaços.

Seria menos difícil e fatigante se todos chegassem a um acordo e lembrassem sempre com alegria e gratidão os bons momentos passados juntos.

Esta atitude complacente — presente em todos os sex experts — não é partilhada por alguns. Em declarações sobre a publicação de sua autobiografia, Liv Ullman, quinta esposa de Ingmar Bergman, afirma:

— Apesar de estarmos vivendo numa época em que os conceitos tradicionais de família e amor mudaram totalmente, em especial aqui na Escandinávia, eu ainda penso que quando se ama, é preciso dedicar-se total e ilimitadamente. Não admito que o homem que amo e que afirma me amar dedique atenções e afetos a outras mulheres.

Não aceito isso, nem sob pretexto de que se trata de relações efêmeras.

Liv Ullman diz começar a sentir-se puritana — a seu modo — à medida que se aproxima da idade madura:

— Trata-se de uma forma de pensar oposta ao meio em que vivo, mas não posso deixar de exigir certa moral nas relações que tenho.

Por sua liberalidade ao encarar tudo que se refere a sexo, a Suécia é internacionalmente associada com as idéias de revolução sexual, liberação da pornografia, emancipação feminina. As suecas não simpatizam muito com tais associações, mas orgulham-se de terem abolido a hipocrisia e a moral dupla. “Se honestidade significa sinceridade, somos as mulheres mais honestas da Europa.” Se pornografia é algo inofensivo, de consumo constante mesmo quando proibida por lei, porque não liberá-la? A revolução sexual é apresentada ao mundo como um grande passo em direção a uma sociedade justa e humana.

Paralelamente a tais intenções, é inegável a importância do erotismo na economia do país. Em 1969, apenas o principal editor de pornografia avaliava sua cifra de negócios em cerca de 170 milhões de coroas. Amor livre e liberdade sexual são imagens que se traduzem em divisas, e não só através da exportação de livros e filmes. O “pecado sueco” atrai desde mão-de-obra imigrante a turistas, em grau bem maior que o sol da meia-noite. Nos últimos anos, cresceu o número de congressos e conferências em Estocolmo, um local em verdade bastante esquerdo para encontros internacionais, pois situa-se no Extremo Norte europeu, próximo ao círculo polar Ártico. Talvez Gunnar Eriksson, diretor da Facit, empresa que abastece o mercado internacional de máquinas de escritório, tenha mostrado, sem suspeitar disso, uma das causas de atitudes tão liberais:

— Consideremos — diz Gunnar Eriksson ao jornalista francês Pierre Desgraupes — um país com uma população reduzida como a Suécia. Mesmo intensificando a produção não se pode pretender fabricar tudo. Forçosamente é preciso escolher. Por outro lado, tampouco se pode esperar um lucro substancial da venda de seus produtos num mercado interior assim pequeno.

É preciso então escolher um objeto capaz de abrir caminho no mercado internacional. Para isso não conheço senão dois métodos: ou fabricar aos milhões exemplares de não importa qual objeto já fabricado em outros lugares e vendê-lo abaixo de seu custo de fabricação mundial graças a uma mão-de-obra superabundante e um custo de fabricação baixo, ou fazer construir, em grande escala e para o mercado mundial, por uma mão-de-obra altamente qualificada, e por conseqüência bem paga, uma especialidade, um objeto que nós talvez vendamos ao mesmo preço que os concorrentes, mas que se imporá por sua qualidade superior, ou, o que ainda é melhor, porque nós seríamos os únicos a fabricá-lo. Este último é o nosso método.

— O problema para um industrial sueco é então simples: trata-se de buscar no oceano atulhado da produção e necessidades mundiais, pequenas ilhas, os pequenos pontos, o setor altamente qualificado de produtos especializados onde temos chances de nos implantarsolidamente. É uma questão de imaginação, e ao mesmo tempo, realismo.

A propalada revolução sexual é antes de tudo uma revolução comercial. “Homens de negócios ficaram felizes ao perceber o que o amor significava como exportação.”

Hoje, a pornografia desce lentamente para o sul. Em Copenhague, o visitante começa a respirar esperma, desde a estação ferroviária. A febre tem suas razões: a pornografia foi liberada em 69, constituindo ainda novidade. Além disso, os daneses, rivais de longa data dos suecos, sempre querem dar um passo além destes. Neste comércio, conseguiram-no: hoje exportam pornografia até mesmo para a Suécia. Em Amsterdã, no Zeedjik, o turista vê o que apenas esperava encontrar nas capitais escandinavas. O governo alemão está prestes a liberar a pornografia. Beata Ushe, empresária defensora dos direitos humanos e da liberdade de imprensa, tem toneladas de filmes e revistas estocados para inundar o mercado germânico, tão logo possa fazê-lo legalmente. Até mesmo Paris e Londres já ostentam tímidas e discretas sex shops. Observando-se a direção sul tomada pelo fenômeno, não são de estranhar-se as angustiadas alocuções de Paulo VI, tentando preservar a Itália da “degeneração dos costumes”. Portugal e Espanha talvez se mantenham imaculados por mais alguns anos ainda, pois lá até mesmo Playboy e Lui são proibidas.

Mas a descida para o sul parece ser inexorável.


 

 

A INDÚSTRIA DA SOLIDÃO

 

Sozinho? Você procura uma mulher para longa ou curta relação? Nós temos certamente a mulher de seus sonhos entre nossos 38.000 membros do maior clube da Escandinávia para pessoas sem preconceitos.

MULHERES MADURAS PROCURAM JOVENS

Catálogo com cerca de 400 anúncios são enviados contra a remessa de 25 coroas. Trocam-se fotos nuas. Discrição assegurada. Agência de contatos box 511, 701 07 Örebro.

Anúncios em Expressen

 

A Suécia ocupa o primeiro lugar na Europa quanto ao número de telefones por habitante, dispondo Estocolmo de 1.032 aparelhos para cada 1.000 pessoas. Paradoxalmente, esta facilidade de comunicação torna mais difícil o relacionamento entre as pessoas. O contato face a face, de corpo presente, é substituído pela relação metálica e fria estabelecida pelos fones. Visitas de surpresa a amigos ou familiares não são consideradas de bom tom. Exige-se um prévio contato telefônico, que pode estender-se de cinco minutos a duas ou três horas nas chamadas urbanas a taxa é a mesma, substituindo eventualmente a visita. As próprias necessidades sexuais são por vezes satisfeitas por fio. As poseringar não mais se surpreendem com clientes que as chamam apenas para excitar-se com diálogos, ocorrendo mesmo casos de clientes honestos a ponto de, após satisfeitos, enviarem pagamento pelo correio às profissionais.

Numa sociedade capitalista, toda necessidade significa possibilidade de ganhos. Empresários com imaginação criaram uma verdadeira indústria da solidão. Sem falar “nos jornais que faturam” milhões com seus anúncios de poseringar, sex shows, filmes pornográficos — a produção de instrumentos masturbatórios mobiliza somas nada desprezíveis. Mas até aqui, o consumidor recebe em troca de seu pagamento uma mercadoria que o satisfaz. Mas ultimamente, alguns homens de negócio com mais visão e ousadia descobriram ser bem mais lucrativo não fornecer mercadoria alguma pelo pagamento. Nos últimos anos, os vespertinos tiveram suas páginas inundadas por anúncios de clubes de contatos. Em geral, é precisamente a palavra ensam? (só?) que intitula, com grandes letras, o anúncio. Os clubes oferecem contatos femininos para curta ou longa duração, satisfazendo estas ou aquelas medidas, ou práticas sexuais. Os interessados, mediante pagamento de 50 a 100 coroas, recebem um formulário no qual explicam suas manias e exigências eróticas. Junto recebem ainda uma farta relação das práticas sexuais de algumas associadas, cuja identidade é escondida sob um número. Mediante o pagamento de outras 50 ou 100 coroas, o interessado recebe os endereços dos números que assinalou. Em geral pertencem a prostitutas (que, por definição, não trabalham de graça), velhas e deficientes físicas.

Existe no país, desde 1971, a figura do Konsumentombudsman (KO), agente governamental encarregado da defesa do consumidor. A figura do KO é antiga no direito sueco, datando de 1809, quando fora instituído o justitieombudsman, uma espécie de procurador-geral do Estado, com a intenção primitiva de vigiar, por conta do Parlamento, os eventuais abusos de direito cometidos por magistrados, funcionários e militares em exercício de comando. Atualmente, o KO visa a transformar o consumidor-objeto em consumidor-cidadão, e sua função principal consiste em lutar contra a publicidade mentirosa. Ao descobrir ou ser informado por um consumidor de tal publicidade, o KO busca a retificação ou supressão do reclame incriminado, por vias amistosas. Nada conseguindo, submete o caso a uma corte composta de três representantes da vida econômica, das associações de consumidores e três magistrados, cuja decisão é inapelável e em geral favorável ao consumidor. O KO já obteve ganhos invejáveis. A publicidade de cigarros não mais apresenta jovens casais felizes reunidos à beira-mar ou em restaurantes, pois o KO considera que tal reclame dá a impressão de que uma reunião entre jovens é inconcebível sem cigarros. Uma campanha louvando as virtudes de um bracelete “biomagnético”, na cura do reumatismo, insônia e dores de cabeça, e que teria sido favoravelmente recebida pelo ministro japonês da Saúde, teve de ser abandonada. Um anúncio que prometia a perda de 10 quilos em 30 dias também teve de sumir das páginas dos jornais. O curso, enviado mediante o pagamento de 25 coroas, consistia em algumas folhas mimeografadas contendo alguns conselhos de nutrição e uma dieta para uma semana.

Até hoje o KO não se ergueu em defesa dos milhares de indivíduos enganados pelos industriais da solidão. Talvez por não considerar solidão como algo comerciável, nem pessoas que pagam por companhia como consumidores. Talvez por não ter recebido queixa alguma dos ludibriados: Svensson se envergonharia ao admitir ter caído em tal arapuca.

A industrialização das dificuldades de contato entre os suecos atingiu inclusive o campo dos prazeres solitários. Uma considerável diversidade de aparelhos masturbatórios, destinados eufemisticamente a massagens, são anunciados na imprensa diária. Jornais como EXPRESSEN e AFTONBLADET deixam os melindres de lado e anunciam abertamente a finalidade da mercadoria:

MELHORE SUA CONDUTA SEXUAL E RESOLVA SEUS PROBLEMAS

Para mulheres

VIBRAMATIC: bastonete de massagem fabricado em borracha macia, peniforme. Vibramatic é carregado com baterias e quase sem ruído. Seis meses de garantia. Preço: 82:50.

EVAMATIC: bastonete de massagem com vibrações em torno do clitóris mesmo quando inserido na vagina. Seis meses de garantia. Preço: 52:50.

Para homem e mulher

ANEL PUBIANO: aumenta e mantém a ereção. Preço: 23:50.

PÚBIS DE LUXE: o mesmo acima, com estimulador do períneo. Preço: 26:10.

CLITOMATIC: estimula o clitóris ao mesmo tempo que aumenta e mantém a ereção do homem. Preço: 53:90.

CLITOMATIC BATERIA: aparelho como o anterior, porém com vibrador quase silencioso acoplado ao estimulador clitoridiano.

Para homens

TRONCO FEMININO: inflável, com vagina. Preço: 102:50.

VIBRADOR VAGINA: adaptado com aparelho de massagem. Preço 158:—

KARINA, A BONECA INFLÁVEL

Karina é um produto de qualidade nórdica, tem 150 cm de altura e suas medidas são 88-64-94. É fabricada em vinil macio, cor da pele, bilaminado. Obs.: O plástico é 60% mais macio que o de qualquer outra boneca. Karina dispõe de vagina e é entregue com fina peruca de cabelo natural, como também com vaselina. Preço: 290:—

 

Se a partir dos temas debatidos numa sociedade, podemos auscultar suas aspirações, as relações humanas na Suécia tomam um perigoso rumo. Tom Selander, em Manipulation med Människan, interroga o professor Börje Uvnäs, expert em farmacologia do Karolinska Institutet e Gösta Bohman, líder do Partido Moderado, sobre a possibilidade do amor em pílulas, uma substância que proporcione satisfação sexual direta:

Selander — Já se fizeram experiências com ratos, cujos centros cerebrais de prazer estavam ligados a eletrodos. Ao apertar um botão, os ratos estimulavam eletricamente esses centros, e acabaram preferindo isto à comida, cópula ou sono. Cotinuavam apertando os botões até caírem desmaiados pela fadiga. Isto abre certas perspectivas.

Uvnäs — Em certas partes básicas do cérebro existem centros de bem-estar, instinto sexual, de todas as nossas reações emocionais básicas, que podem ser excitadas através de estímulos dessas regiões cerebrais. Com esta técnica, podemos estimular qualquer célula ou ramificação nervosa. Isto implica que, por exemplo, se colocarmos o eletrodo em um outro local adequado do cérebro do rato, ele se tornará agressivo cada vez que seja enviado um impulso elétrico.

Selander — Isso produz algum efeito nocivo?

Uvnäs — Não, é uma conseqüência natural da função do sistema.

Selander — Poder-se-ia aplicar isto em seres humanos para dar-lhes um prazer artificial?

Uvnäs — Isto parece-me estar um pouco distante, mas penso ser possível. Não existem diferenças fundamentais entre ratos e homens, neste caso. Simultaneamente com operações do cérebro, foram feitas experiências nas quais se estimulavam diferentes centros nervosos. Os pacientes experimentavam então diferentes sensações, conforme a parte estimulada.

Selander — Que dizem os resultados da pesquisa de um meio de aumentar a satisfação sexual?

Uvnäs — Se encontrássemos uma pílula que desse satisfação sexual direta em situações adequadas, certamente ela se tornaria muito popular. O impulso sexual pode ser amortecido, como também intensificado com hormônios ou derivados sintéticos destes. Mas eu creio também ser possível aumentar o impulso sexual através de meios químicos que atuem diretamente no cérebro. Uma substância que é muito atual é L-Dopa, primeiro estágio da dopamina, que é uma das substâncias que existem no cérebro. L-Dopa provou ser muito efetiva no combate ao mal de Parkinson. A maioria dos pacientes são velhos. Muitos tiveram seus impulsos sexuais intensificados após grandes quantidades de Dopa, sem que conseqüências biológicas graves tenham sido observadas. Isto indica que se pode aumentar o impulso sexual com meios relativamente simples.

Bohman — Mas grande parte da satisfação sexual é psiquicamente condicionada.

Uvnäs — Inclusive as funções psíquicas são influenciadas por esses meios, pois elas são resultado de processos bioquímicos.

Bohman — Então não existiria diferença alguma entre corpo e espírito. Ambos dependeriam das drogas que ingerimos.

Uvnäs — O espírito tem um fundamento bioquímico.


 

 

HORROR AO CONTATO FÍSICO E ONANISMO

 

Eles apertaram-se as mãos. Inacreditável! Algo necessariamente anti-higiênico, e além disso, tão íntimo que nos dá vergonha. Tocar no corpo de um outro, intencionalmente! — Karln Boye, Kallocain

 

Quando um viajante do sul estende a mão a um sueco ao ser-lhe apresentado, terá feito um gesto inútil. Svensson lhe responderá com um rápido e cortês aceno de cabeça, pois não vê razões para uma troca desnecessária de micróbios. Para quem chega a Estocolmo por trem, a recusa não causará surpresa. Ao comprar passagem na Central Ferroviária, encontrará um guichê de vidro que separa hermeticamente os funcionários do cliente. A comunicação é feita por microfones. A passagem é posta na metade interna de uma espécie de prato encravado no balcão e o dinheiro na metade externa. Acionando-se uma alavanca, o prato faz um giro de 180 graus e o bilhete e as cédulas trocam de posição. O intercâmbio de micróbios foi mínimo. Mesmo nos quiosques e supermercados, se o estrangeiro entrega o pagamento nas mãos do caixa, este lhe indicará incisivamente uma superfície de borracha ao lado da registradora onde o dinheiro deve ser posto. Depois então apanhará as cédulas e depositará o troco no mesmo lugar.

Em Leva i Sverige, os estrangeiros são alertados serem os nacionais extremamente cuidadosos na expressão de seus sentimentos. Um abraço ou um beijo na face são gestos por demais íntimos para serem tomados em público. Pelas mesmas razões, decepcionam-se em suas viagens aos países do sul, ao interpretar abraços e saudações calorosas como sinais de profunda amizade, quando em verdade não passam de palavras e gestos dirigidos a qualquer um. O autor adverte: “Os suecos são talvez incomumente medrosos em mostrar seus sentimentos através do toque corporal. Mas existe uma longa tradição de abertura e espontaneidade na Suécia. Sempre foi, por exemplo, perfeitamente natural que as crianças corram nuas ao sol nas praias. Homens e mulheres trocam de roupas atrás do mínimo arbusto. Isto é perfeitamente natural.”

Este medo elucida um dos mais comuns hábitos sexuais de Svensson, o posering. A palavra é de difícil tradução para o português. Significa o ato de posar, posagem, se quisermos criar um neologismo. Designa ainda a mulher que posa, a versão nórdica da prostituta. O ato consiste num streaptease e na exibição detalhada do corpo e genitais. O cliente pode masturbar-se enquanto olha. Não pode tocar o modelo. E talvez nem mesmo o deseje.

Conseqüência deste horror obsessivo quase, observa-se nos mictórios públicos em Estocolmo umas das mais estranhas formas de relacionamento homossexual, cuja ocorrência só é concebível na Suécia. Senhores muito respeitáveis, com gravata, chapéu e capa de gabardine, pasta de executivo em punho, masturbam-se em pé até o orgasmo, excitando-se com a visão mútua dos membros. Encontros posteriores não são combinados nem desejados. O ato consuma-se ali mesmo, assepticamente, sem atrito de epidermes ou egos.

Um episódio da jurisprudência mostra quase caricaturalmente esta psicologia. Em 1912, dois músicos acusados de homicídio eram defendidos por um certo Karlsson. Após um longo processo ambos foram declarados inocentes. A razão principal da suspeita devia-se ao fato de serem estrangeiros. Eufóricos com a libertação, beijaram o juiz. Este, desesperado, debatia-se e gritava: “Não me beijem. Beijem Karlsson.”

A partir desta obsessão, não é de surpreender a alta incidência de masturbação no Paraíso do Amor. O ato é prático, higiênico, grátis, e uma imaginação fértil pode torná-lo até mesmo mais interessante que uma relação ocasional. Lars Ullerstam, paladino da revolução sexual no país, reivindica uma melhoria dos serviços da sociedade em matéria de erotismo. Reclama que os escotófobos não devem ser constrangidos a suportar espetáculos em geral entediantes para satisfazer-se finalmente com uma cena de coito que dura um piscar de olhos. Exige filmes que apresentem onanismo, coitos, atos lésbicos, zoofilia, sexo grupal, etc., de modo a satisfazer os mais diferentes apetites. “Seria desejável que se pudesse arranjar as salas de modo que os espectadores pudessem se masturbar.” A reivindicação de Ullerstam, feita em 64, caiu em terreno fértil. Hoje alguns porrklubbar oferecem a seus clientes uma lekstuga (15), de onde poderão ser vistos os filmes e live shows através de um espelho sem estanho. Para a higiene íntima, uma pia e um rolo de papel higiênico.

Em EXPRESSEN, Inge & Sten respondem a um celibatário de 44 anos, cujas súbitas ereções matutinas ao dirigir-se ao trabalho causavam-lhe embaraço. “No ônibus sou obrigado a disfarçá-la com o porta-documentos. Existe algum meio para acabar com essas ereções inesperadas?”

“Sim, as mulheres!, responde o casal de psicólogos dinamarqueses. A resposta pode parecer elementar mas não há dúvidas de que se você utiliza a seiva e os instintos que o atormentam a intervalos regulares, o problema será automaticamente resolvido. Ninguém tem vontade de folhear um livro de culinária após um bom jantar. O onanismo fornece igualmente um excelente paliativo para acalmar uma fome urgente. Ficando nas comparações culinárias, isso talvez não seja gastronomia, mas supre a função do sanduíche. Evidentemente, seria preferível uma refeição íntima, a dois, com uma pessoa de seu gosto. Mas se a necessidade é imperiosa, vai-se a um quiosque comprar um cachorro-quente para enganar o estômago. Nem sempre se dispõe de tempo e dos meios necessários para se oferecer um jantar íntimo.”

O Estado, através da instrução sexual nas escolas, também estimula a prática. Num dos manuais de educação sexual para ginásio, Tillsammans (Juntos), pode-se ler esta introdução:

“Cada ser humano possui um instinto sexual — em outras palavras, um apetite — que tem de ser satisfeito... A necessidade de comer é comum a todos os seres humanos. O mesmo ocorre com as necessidades sexuais.

No entanto, nem todos conseguem viver juntos com um parceiro em um relacionamento regular. Inabilidade para encontrar um companheiro, divórcio, idade, etc., podem impedir isto. Contudo, o impulso sexual pode tornar-se intenso e deve ser mitigado de alguma forma, por exemplo, pela masturbação, com ou sem leitura de pornografia.”

E em sua coluna diária, Inge & Sten comentam e discutem as mais eficientes técnicas masturbatórias:

 

UM BOM MÉTODO PARA ATINGIR-SE O ORGASMO

 

Apesar de minha idade, já tive uma vida sexual bastante avançada, com diferentes parceiros e isso foi realmente bom. No entanto, cheguei ao orgasmo apenas com um desses homens.

Um outro dia, durante o banho, senti subitamente um delicioso prurido ao fazer a higiene íntima com a ducha. Sem conter minha curiosidade, sentei-me confortavelmente na banheira. Imaginem minha surpresa e minha maravilhosa experiência! A ducha constitui um aparelho de massagem barato. O orgasmo veio imediatamente, sem ser esperado.

No entanto, pergunto-me agora se este inofensivo (assim o creio) recurso é um bom método para que eu lentamente me exercite de modo que os homens não precisem trabalhar em vão e se eu algum dia poderei atingir o orgasmo com eles?

18 anos e contente

Cara contente!

Ducha manual — pois é uma dessas que você emprega, não? — é um conhecido e eficiente aparelho de massagem usado por muitos. O método é totalmente inofensivo, desde que se tome cuidado que a água não aqueça demais e queime. Também é correto que se pode exercitar a capacidade de atingir o orgasmo através da masturbação, seja com dedos, ducha, aparelho de massagem ou qualquer outra coisa.

 

AJUDE-A ASSIM A ATINGIR O ORGASMO

 

Eu tinha apenas 14 anos quando tive minha primeira relação, que não foi muito bem sucedida. Eu jamais atingia o orgasmo, pois meu garoto sempre acabava primeiro. Nessa idade eles pensam apenas em si mesmos e não no outro. Isto talvez explique meu ceticismo ante qualquer coisa que diga respeito a rapazes. Mesmo agora, com meu atual namorado, dificilmente atinjo o orgasmo durante a relação. As coisas melhoram quando me masturbo. Dependerá isto do fato de que tive tantas relações em minha adolescência? Que faço?

Pouco felizes 18 anos

Cara 18 anos!

Não, isto não depende absolutamente do primeiro coito mal sucedido. Senão de que as mulheres em geral têm mais dificuldades em atingir a satisfação total. O que é mais difícil durante o ato do que quando a mulher se masturba. Por isso pode ser de grande auxílio que se aproveite parcial ou totalmente a masturbação quando se está junto com o namorado, amante, marido ou seja lá quem for.

A mulher pode fazê-lo pessoalmente — embora muitas possam sentir-se um pouco tímidas no início — como pode também ensinar a seu parceiro sua técnica preferida, de modo que ele possa auxiliar com os dedos ou língua. Sendo o clitóris um órgão sensorial de função capital na vida sexual da mulher, é fundamental que o homem saiba que cada uma tem seu método próprio para estimulá-lo. Podemos inclusive dizer não existirem duas que empreguem a mesma técnica.

A maioria não começa diretamente pela extremidade clitoridiana, mas sim acariciando, massageando ou simplesmente esfregando a crista que se encontra incrustada sob a pele. Outras estimulam o clitóris apenas no início, continuando depois com estímulos mais abrangentes, com mais dedos ou mesmo a mão para massagear não só toda a região clitoridiana como também a parte superior, peluda, do sexo.

O mercado de aparelhos masturbatórios sofistica-se mais e mais, atendendo as exigências da procura e concorrência. Já se pode escolher entre vibradores de duas ou três velocidades, elétricos ou a pilhas, com ou sem lâmpada interna na extremidade, etc. Um consulente pede informações aos psicólogos:

Minha esposa quer encontrar um aparelho de massagem silencioso. Até agora, tem usado um em forma de bastão marca Stimulant, distribuído pela RFSU. Em algumas ocasiões vocês mencionaram um, elétrico, marca Sanovit. Qual dos dois é o mais silencioso?

O nível de som muitas vezes é dispersivo, fazendo certamente muitas mulheres deixarem de lado um aparelho. Na apreciação dos mesmos, este aspecto não deve ser esquecido.

Inabituado a fortes ruídos

É perfeitamente correto que o ruído possa constituir um problema. Muitas vezes os aparelhos elétricos são mais silenciosos que os a pilhas. Temos mencionado seguidamente Sanovit por muitas razões: é relativamente silencioso, bom e barato. Mas, mas, mas. Sabe-se que Sanovit — vendido na Dinamarca — não é patente sueca, o que significa que não deve ser vendido nas lojas suecas antes de ser testado e receber registro sueco. E não será testado antes que um importador exija isso. Esperamos que algum atacadista seja iluminado pela idéia. Não temos certeza se Novanon (aparelho de massageminfrassô-nico) existe no mercado na Suécia. É muito bom e silencioso — mas lamentavelmente caro também. Algumas centenas de coroas.

A revolução sexual no Paraíso do Amor originou o surgimento de não poucos párias afetivos. Um deles confessa-se a Inge & Sten:

Muitos casais lhes escrevem e contam suas intimidades. Um homem solitário encontraria lugar em sua coluna?

Sou divorciado. Minha mulher nem queria ouvir falar de vida sexual. Eu era obrigado a satisfazer-me sozinho com o auxílio de revistas pornográficas. Depois com o tempo, essas revistas cessaram de excitar-me. Meu médico aconselhou-me o divórcio. Conservei algumas feridas profundas após a separação. Disso resultou uma impossibilidade de estabelecer contato com novas mulheres. Em compensação, minha vida onírica tornou-se bastante densa. Um dia, tive a idéia de transcrever meus sonhos. Após a releitura eu me masturbava e isso foi uma revelação fantástica. Adquiri o hábito de tomar notas de meus sonhos: como eu despia as garotas, como enfiava minhas mãos sob suas calças, como eu lhes beijava o ventre, como brincava com seus seios e púbis, como elas me cobriam de beijos por toda parte (notem que me esforço para ser conciso e não entrar em detalhes). No princípio, minha maior dificuldade foi de resistir à tentação de masturbar-me durante a redação mesma de minhas notas. Tinha pressa em chegar ao ponto final.

Minha primeira redação remonta há 10 anos. Hoje, tenho 45 e reuni uma bela coleção de sonhos. Talvez alguns possam se satisfazer com a leitura de livros pornográficos. Trata-se no entanto de ações vividas por terceiros. No meu caso, meus contos tratam de mim. É comigo que muitas mulheres vivem maravilhosas experiências.


 

 

O SEXO PAGO NO PAÍS DO AMOR LIVRE

 

Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade e a devassidão a perturbará com desordens de toda espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca num palácio; suprimi a cloaca e o palácio se tornará sujo e infecto. — S. Tomás

 

Existe algo podre no Paraíso do Amor, é a conclusão a que se chega após uma rápida leitura de seus jornais e semanários. Publicações como Se e Fib Aktuellt (correspondentes a Veja ou Realidade) vendem suas edições à base de manchetes como: Meus clientes exigem que eu ame de botas, Neste restaurante você pode dançar nu e fazer o amor com quem quiser, Leia o relato da noite de amor comprada por nossa repórter no primeiro bordel para mulheres, Ela recebe 25 homens por dia, Os serviços sexuais que você pode receber por 50 coroas, etc. Ilustrando tais manchetes, beldades nórdicas exibem seus louros trigais. Jornais como DAGEJNS NYHETER, A FTONBLADET E EXPRESSEN (tiragens diárias superiores a 500.000 exemplares cada um, num país de oito milhões de habitantes) faturam somas consideráveis anunciando shows e filmes pornográficos, como também telefones e horários de prostitutas, sob a eufemística rubrica de massagem ou posering (modelo). Muito já se escreveu sobre a Suécia, negando taxativamente a existência da prostituição. Como poderia existir amor pago num país onde são livres as relações sexuais? O fato indica que seus autores não se deram ao menos o trabalho de folhear as nöjessidor (páginas de diversões) de qualquer vespertino. Ao lado dos cartazes cinematográficos, sexklubbar anunciam suas mercadorias: filmes homo e heterossexuais, espancamento, sadismo, zoofilia, lesbianismo e atos sexuais no palco, loterias. A maioria dos clubes oferece all service para maior conforto de seus clientes.) Profissionais já dispensam a rubrica modelo ou massagista e anunciam abertamente: “Karin, a Rainha do Busto”, ou “Tina e Nina posam para você”, e mesmo “Casal posa. Ambiente agradável. Sem pressa.” As poseringsflickor (16) em Estocolmo são em geral bem instruídas, provêm de lares estáveis, e só raramente consomem narcóticos ou álcool. Pertencem a todos os grupos (memento: na Suécia não existem classes) sociais e em sua maioria possuem formação secundária completa, quando não superior. Recebem em média 1.000 coroas diárias (o salário médio mensal de um sueco oscila entre 3 e 4 mil), atendendo de 5 a 10 fregueses por jornada. Suas despesas são de 100 a 150 coroas diárias pelo aluguel do quarto, mais 25 a 28 pelo anúncio no jornal, além naturalmente do que se poderia chamar de instrumentos de trabalho: preservativo, toalhas e aparelhos estimulantes. Estes dados são fornecidos por um grupo de estudantes de sociologia da Universidade de Estocolmo, a partir de uma pesquisa feita entre 69 profissionais escolhidas ao acaso através de anúncios no DAGENS NYHETER. Seus serviços obedecem a uma tabela de preços uniforme. O préstimo menos caro é posering, 30 coroas. Por 60, além de posering tem direito a massagem sueca, ou seja, manual. Massagem francesa — oral — ou espanhola — entre os seios — custam 75 coroas. O ato propriamente dito situa-se entre 150 e 200 coroas. E sexo anal, em obediência às leis da oferta e da procura, está no topo da tabela: 300 coroas.

Como se explica a existência de prostituição no país onde as relações entre os sexos são isentas de tabus e preconceitos? Onde perder a virgindade não constitui desonra, mas dever a ser cumprido até no máximo 15, 16 anos? Onde não existe moral dupla, onde mulher e homem gozam dos mesmos direitos ante a lei e a sociedade? Os organizadores da pesquisa tentaram uma resposta, perguntando às poseringsflickor o porquê de suas escolhas.

93% das entrevistadas declararam razões de ordem econômica. O sonho mais comum é um tryggad futuro, uma casa de campo, o início de uma atividade própria. Um pequeno grupo apresenta o pagamento de dividas como causa determinante. Todas iniciam a trabalhar pensando abandonar logo o ofício. Sintomaticamente, nem as entrevistadas mencionam, tampouco os entrevistadores indagam a respeito de um dos principais estímulos da opção. A remuneração é skattefri — palavra mágica —, ou seja, livre de tributação, em virtude da impossibilidade de controle. Em um país onde a taxação direta sobre a renda chega a 65%, a única profissão a oferecer tal possibilidade, por força há de atrair vocações. Mas este aspecto jamais seria confessado ou admitido pelos honestos Svenssons. Reabilitar a figura humana da prostituta, apresentá-la ao público como uma mulher feliz e ciente da necessidade de seu ofício, um misto de assistente social e psicóloga, parece ser a maior preocupação da imprensa. Mas sonegar imposto, isto é, burlar o Estado-Provídêhcia, o Deus que a todos oferece trygghet, eis algo verdadeiramente execrável, um crime de lesa-igualdade.

Os jovens sociólogos são parciais e nada objetivos na orientação da pesquisa. Se carne humana e sensações eróticas encontram alto preço no mercado, isto denota uma intensa e inesgotável procura. A pergunta Por que a mulher se prostitui? não desvela o cerne da questão, ou seja, Por que os homens pagam? Quisessem os pesquisadores buscar honestamente as causas do fenômeno, deveriam ter interrogado os clientes. Karin, posering em Malmö, cujo diário foi publicado em SE, aproxima-se mais que os analistas de gabinete das verdadeiras causas da prostituição:

“Em muitos casos, não é apenas por necessidade sexual que meus clientes me procuram. Muitos contam serem recém-divorciados, e eu observo neles necessidade de calor e companhia.

Jovens estudantes sem condições de freqüentar bares aparecem pelas mesmas razões e querem então preferentemente bater papo, pois raramente têm ocasião de contato com garotas.

Alguns vêm regularmente e pagam apenas massagem francesa, pois suas esposas se recusam a sugar-lhes o pênis. Outros exigem relação anal pelas mesmas razões.

A caça ao standard talvez seja outra das razões pelas quais os homens nos procuram. Isto tornou-se uma obsessão para muitos. Para poder comprar tudo, marido e mulher trabalham, mas é esta que cuidará das crianças e da casa quando o marido não trabalha. Tarde da noite, quando ele a busca, ela não está em condições físicas de recebê-lo. Ou ainda ele vive fora de casa, trabalha 16 horas por dia ou mais, viaja continuamente, tudo pelas sagradas razões do standard. Esta situação possibilita a abertura de clubes pornográficos para que os freqüentadores possam ter suas necessidades sexuais satisfeitas. Mais tarde, torna- se parte do standard possuir condições de comprar uma mulher de quando em quando.

Fala-se das garotas e clubes nos locais de trabalho, lê-se sobre elas nos jornais. Uma visita aos clubes torna-se então tão necessária quanto o carro. E para pagar pornografia é necessário curvar-se e trabalhar ainda mais. Tenho pena dessa gente que se torna escrava e não nota o que acontece com ela mesma.

Ao lerem isto, vocês pensarão: Ela própria é uma escrava da caça ao standard. Sai de casa em busca do dinheiro e vende-se como posering para consegui-lo. De fato. Mas eu quero ir à escola, instruir-me, receber maior salário. Posso defender-me dizendo ser jovem, não sabia a que estava me entregando. Só quero escapar disto tão logo minhas contas estejam pagas. E farei isso. Espero poder escapar para algum lugar onde felicidade consista em algo mais que pornografia e caça ao standard.”

Não só a imprensa como também autoridades se esforçam para criar uma imagem da prostituta feliz e emancipada econômica e socialmente. Na mesma pesquisa citada, o inspetor criminal Sven Lerheden declara: “Elas trabalham com total independência, isto é, nenhum proxeneta arranja clientes para elas. Tampouco existe uma máfia que as explore.” No entanto, Karin denuncia em seu diário que as garotas nos porrklubbar não recebem um vintém por suas exibições. Seu dinheiro é ganho totalmente atrás da cena. Os visitantes pagam altos preços pela entrada. Este dinheiro vai direto para o bolso do proprietário do clube, que não o divide com ninguém.

“O proprietário no entanto sabe muito bem que as garotas faturam alto com posering, massagens e relação sexual após as cenas no palco. Sabe, e aproveita-se disso. Precisa-se escolher então entre abandonar o local ou entregar-lhe 50% do que se recebe!”

Um exemplo de Göteborg: duas modelos posam das 10 às 19 horas em um instituto de massagem e para isso pagam 200 coroas por dia como aluguel. Às 19 horas vão direto para um porrklubb onde trabalham a noite toda dançando e posando. Não recebem nada por suas apresentações em cena. E do dinheiro que recebem atrás do palco, devem renunciar à metade. “Assim é explorada a falta de iniciativa das garotas que não conseguem um apartamento próprio. E muitas vezes, quando o senhorio descobre com que se trabalha, passa a exigir um aluguel extra para que o movimento continue.”

Em agosto 72, a polícia estocolmense prendeu um iugoslavo de 21 anos que mantinha 30 modelos sob sua proteção. Em um ano, de apenas seis garotas (as únicas implicadas no processo) recebeu 82.000 coroas por aluguel de quartos. A prisão de proxenetas estrangeiros tem ocorrido com certa freqüência nas três principais cidades, Estocolmo, Göteborg e Malmö. Os empresários suecos do ramo são mais precavidos juridicamente. Sabe-se que o Amor Sueco S.A. é dominado por dez poderosos e invulneráveis senhores, que só em Estocolmo controlam a maioria dos 150 bordéis e porrklubbar, com suas 2.500 prostitutas. As futuras profissionais são testadas e instruídas em escolas para o ofício. O faturamento anual dessa máfia é de 30.000.000 de coroas.

Quem se iniciava na profissão com a intenção de abandoná-la tão logo tivesse um carro, casa própria ou economias, descobre não ser tão fácil adquirir rapidamente status através da prostituição. Mas após viver algum tempo sem chefe nem relógio ponto e sem necessidade premente de dinheiro — sempre se pode consegui-lo no dia seguinte — dificilmente alguma voltaria a submeter-se a um trabalho rotineiro, mal pago e tributado.

Os reis da prostituição compram uma série de apartamentos, mobiliam-nos adequadamente, revestem de tábuas as paredes, arranjam espelhos, encomendam telefones (através do nome de terceiros) e anunciam o local como ateljér. Cada noite fazem a ronda dos ateljér em seus automóveis de luxo e colhem em cada um uma nota de 100 coroas que as poseringar deixam numa gaveta após a jornada de trabalho. Com esse dinheiro compram obrigações que guardam em cofres particulares. Não é declarada renda nem bens. Um outro expediente para fugir à tributação é a conta em bancos suíços.

A polícia conhece não só esta situação como também a identidade dos magnatas do lenocínio. Como em quase todos os países, as leis não proíbem a prostituição, mas sim a exploração da mesma. E como em qualquer pais, só é criminoso, e como tal punido, quem deixa atrás de si provas de seu delito. Os industriais suecos do ramo são muito cuidadosos quanto a este aspecto.

Nas páginas de classificados dos jornais diários, empresas que produzem pornografia procuram “senhoritas bem torneadas para filmes para cavalheiros”. As candidatas sabem perfeitamente que esperma no rosto, relações com cães ou porcos, espancamento, constituem a rotina do ofício. Tampouco ignoram que serão possuídas nas telas por milhares de espectadores. O trabalho é bem remunerado, mas só torna rico o dono da empresa. As autoridades suecas curiosamente não configuram o fato como exploração da prostituição alheia. Alegam que a liberação da pornografia diminuiu o índice de crimes sexuais. A afirmação é correta. Mas o povo que se orgulha de ter abolido a moral dupla e a hipocrisia ainda não ergueu um monumento a esta mártir do bem-estar social.


 

MORAL DUPLA

 

Chamam-se assim, minha muito querida, essas vítimas públicas do deboche dos homens, sempre prontas a entregar-se ao seu temperamento ou ao seu interesse; felizes e respeitáveis criaturas que a opinião infama e a volúpia coroa, e que muito mais necessárias à sociedade do que as recatadas, têm a coragem de sacrificar, para servi-la, a consideração que essa sociedade ousa negar-lhes injustamente. Vivam as que a este título honram meus olhos! Eis as mulheres verdadeiramente amáveis. As únicas verdadeiramente filósofas. — Sade

 

Os magnatas do Amor Sueco S.A., através da imprensa, constroem um quadro idílico da profissão. Se alguém declara não apreciar o fato de que mais e mais mulheres sejam integradas no mercado de carne humana, é tachado de intolerante e sem largueza de visão em matéria de sexo. Recentemente, rádio e jornais divulgaram entusiásticas reportagens sobre um bordel-cooperativa onde as garotas participavam do capital e da direção do mesmo.

— Aqui existe um espírito de camaradagem genial e verdadeiramente democrático, assegura Nina, uma das cooperativadas. Nenhuma concorrência, exatamente como na China.

Mas como afirma Jan Guillou em reportagem para Folket i Bild (uma das raras publicações independentes, pois não aceita anúncios nem está ligada a qualquer partido), o diretor Karl-Otto Olofsson-Hirsch situa-se de um modo ou outro atrás de um investimento de um milhão de coroas. O imóvel custou-lhe 820.000. As poseringar não possuem milhão algum e jamais serão diretoras. A progressista e democrática iniciativa não passou de mais um passo na racionalização e monopólio da indústria de mulheres.

Em janeiro 71, o deputado Sten Sjöholm apresentou uma moção no Parlamento sugerindo a estatização dos bordéis. Suas razões: o Estado vende bebidas alcoólicas e cigarros e não se escusa por receber dinheiro por ambos os lados. Tabaco e álcool são certamente mais prejudiciais para um homem que uma visita ao bordel. A situação presente dos poseringsateljér origina mal-estar e problemas sanitários. Ao mesmo tempo a necessidade de sua existência é inegável. O representante do Partido do Povo exigia um monopólio estatal dos bordéis para sanear o pântano da pornografia. Toda organização privada no ramo seria proibida. Segundo Sjöholm, todos ficariam contentes com esta legislação. Ninguém seria perturbado por vitrines obscenas (17) ou sexklubbar, todos procederiam mais discretamente e as profissionais seriam examinadas regularmente. A presente exploração desordenada das mulheres seria substituída pela responsabilidade da sociedade e cuidados mais humanos.

Esta proposição é um reflexo de uma das reivindicações de Lars Ullerstam, que em 1964 escrevia em seu panfleto De Erotiska Minoriteterna (18)

“Criar bordéis! A criminalização destas instituições e uma das maiores besteiras de nossa época. Autorizando os bordéis, se remediaria a miséria sexual da sociedade e se diminuiria o número de gravidez fora do casamento. Mas principalmente não se precisaria mais temer a perigosa criminalidade que a prostituição de rua traz consigo. Os gigolôs perderiam seu mercado e ninguém mais teria de pagar preços exorbitantes pelos prazeres sexuais.

Os bordéis preenchem uma importante função de higiene social. Estas instituições seriam evidentemente dirigidas por médicos e assistentes sociais e a direção geral da Saúde Pública controlaria suas atividades. Assim organizada, a indústria de bordéis ofereceria garantias razoáveis de trabalho e colocação. Muitos jovens de ambos os sexos acorreriam a este ofício humanitário. Uma organização racional poderia fazer com que os preços da consumação sexual baixassem consideravelmente. Para adolescentes na puberdade e pobres poderiam existir preços reduzidos. Para os celibatários, os bordéis significariam um grande ganho de tempo, ao menos em casos mais urgentes, e assim lhes sobraria mais tempo para estudos.

As mulheres sexualmente extenuadas poderiam repousar enviando seus maridos a estas casas de prazer sem ter de temer complicações. Sendo as festinhas e bailes formas de sociabilidade de nossa civilização, uma visita ao bordel após estas preliminares seria uma medida natural de higiene.

A função mais importante dos bordéis seria no entanto aliviar a miséria dos indivíduos que, por diferentes razões, não podem por si mesmos encontrar objetos de satisfação sexual.”

A sugestão do Sjöholm não foi bem recebida, tanto pelos seus pares como pelas diretamente interessadas na questão. Argumentou-se que estatizar os bordéis significaria oficializar a existência de marginais da pior espécie de uma sociedade de classe. As poseringar em sua maioria dizem não ao projeto. Suas razões são fundamentalmente uma: a renda seria então controlada e, conseqüentemente, tributada. Karin comenta em seu diário a instituição dos bordéis estatais:

“A idade das garotas nunca deverá ser inferior a 21 anos, assim todas terão uma chance de aproveitarem seus melhores anos de um modo mais normal. Antes de começar a posar, devem pensar se poderão suportar a profissão consideradas as desvantagens do ofício. Deverão ser aposentadas após no máximo um ano de trabalho. Os serviços deverão ser tão bem pagos que elas não precisem prestá-los por muito tempo. Pois é apenas por razões econômicas que nos jogamos na vida.

Por isso espero, que no caso de se se estatizar os bordéis, não seja cobrado imposto destes ganhos. Neste caso o Estado se tornaria indiretamente culpado pelo fato de as garotas permanecerem na profissão mais que o necessário para eventuais economias para o arranjo de uma casa, automóvel ou dívidas de estudo.

Gostaria também de dizer ao sr. Sjöholm, que apresentou, sob certo aspecto, uma boa proposta, algumas palavras: o senhor não gostaria de ver sua filha nesta profissão. Meu pai também não. Mas ele tampouco deseja que filhas de outros sejam destruídas.”

Apesar de sua lardeada quebra de tabus e eliminação da moral dupla, os suecos não estão preparados para aceitar a prostituta como um elemento constitutivo da organização social. Na sociedade aperta e sem classes, assim se apresenta uma prostituta, segundo Jan Guillou, em Folket i Bild:

“Lena vê seu trabalho como uma atividade socioterapêutica. Ela sabe significar muito para homens solitários e não vê razão alguma no mundo para duvidar disso. Mas ela será sempre uma puta, inexoravelmente. Seu chefe é considerado astucioso, progressista, livre de preconceitos e com espírito de iniciativa. Possui sommarstuga em região exclusiva do arquipélago, freqüenta o Operakällare e é considerado alguém neste mundo. Mas não Lena. Jamais será algo mais que puta. Vive no temor de que seus pais saibam da vida que leva, de que os filhos tenham problemas na escola.”

Em suma, a prostituição na Suécia em pouco difere da dos demais países. Nem mesmo a prostituição de rua foi eliminada. Nas vias elevadas que circundam Hötorget podem-se observar mulheres descendo de um carro e entrando em outros que as esperam em fila sob a neve. Nisto talvez resida a mais significativa diferença entre a prostituição em Estocolmo e nas capitais do Sul. Nestas, as profissionais fazem fila e os clientes as abordam. Lá, a situação inverte-se. O mercado é vasto.


 

O PECADO SUECO

 

Svensson, ao entrar em um supermercado ou lancheria no Brasil, ficará tão excitado quanto o turista tupiniquim visitando uma sex shop na Escandinávia. Não há povos sem tabus. Os suecos, ao eliminarem o do sexo passaram a cultivar o do álcool. Sprit só é vendido no Systembolag, loja de monopólio estatal que permanece aberta das 9 às 18 horas durante a semana, fechando às 13 horas de sábado. Nas tardes de sexta e manhãs de sábado, filas — evento raro nos países nórdicos — de previdentes cidadãos congestionam os systembolag. Nas caixas um aviso previne: esteja pronto para identificar-se. De 10 em 10 minutos um sinal sonoro lembra os funcionários de exigir documento dos clientes atendidos naquele instante. Se o identificado estiver na lista negra dos alcoólatras ou se for menor de 18 anos, não poderá comprar nada. Deverá contentar-se com o insípido melanöl (quase-cerveja, poderíamos traduzir). Este pode ser adquirido nos supermercados, tendo sido sua venda também proibida para menores em junho de 72. A bebida possui no máximo 3% de álcool. A embriaguez dos consumidores é mais psicológica que física.

O consumo atual per capita de sprit pelos suecos é bastante inferior aos índices da Itália, França ou Espanha. No entanto, em Estocolmo se tropeça em mais bêbados do que em qualquer outra capital européia. Os latinos bebem, os suecos se embriagam. Enquanto os meridionais sofrem um processo de mitridização tomando umas que outras ao final de cada jornada, Svensson encharca-se no fim de semana. Não sabe beber. Começa com akvavita, a cachaça nacional, continua com cerveja, acrescenta vinho, prossegue com vodka, finaliza com uísque ou o que houver. Os skal (saúde) se sucedem. A palavra viria de skalle (cérebro), recipiente em que os vikings brindavam a vitória sobre os inimigos, cujos crânios erguiam aos lábios. Muitos intercalam café e licores. Com tal dose, nem uma centopeia mantém-se em pé. Nos fins de semana em Estocolmo, velhos e jovens, homens e mulheres cambaleiam e vomitam pelas ruas e estações de metrô o hálito azedo de muitas misturas.

Em relação ao álcool, impera o mesmo sentimento relativo ao sexo nos países católicos. Uma latina envergonha-se ao comprar anticoncepcionais, Svensson intimida-se ao comprar álcool. As compras feitas no systembolag são postas em um pacote de plástico com a inscrição Hall Sverige Rent, Mantenha a Suécia Limpa. Como a latina sente-se mal carregando pelas ruas um pacote de cintas higiênicas, Svensson vexa-se ao portar bebidas. Quem bebe é bêbado, parece ser o axioma que determina seu comportamento. Não se admite que alguém possa beber, não para cair, mas simplesmente para degustar a. bebida e alegrar-se. Para esconder o plástico revelador, muitos usam uma pasta. E acabam identificando-se de outra forma, como a brasileira que passa a pedir nas farmácias o empacotamento das cintas higiênicas fora da embalagem padrão.

Ao saírem de automóvel para uma festa ou giro noturno, alguém do grupo fica sempre sem tomar um gole. 0,5% de álcool no sangue, constatado pela polícia através do teste do balão, constitui rattfylleri, embriaguez ao volante. Significa prisão e perda da carteira por um ano. Ao transgressor é permitido escolher a época do ano em que deseja cumprir a pena — um ou dois dias de trabalhos forçados. Deve chegar ao local a pé, ou conduzido por outro. A condenação é inapelável e não tem instrução preliminar. Sob o ponto de vista da segurança no trânsito o rigorismo é louvável. Mas não se pode deixar de pensar em fanatismo quando se considera que a ingestão de dois ou três bombons recheados a uísque ou licor podem terminar em cadeia.

O caso de um hoteleiro que precisava passar seu carro de um lado para outro da rua ultrapassa qualquer caricatura que se queira fazer desta obsessão nacional. Como sentia-se embriagado, decidiu empurrá-lo. Surpreendido pela polícia quando “dirigia a pé”, foi condenado por um juiz intransigente.

A nossa filosofia irresponsável do “quanto mais se bebe melhor se dirige” causa horror e incredulidade ao nórdico. Uma sueca quis saber o que acontece no Brasil quando alguém, alcoolizado, é interceptado pela polícia ao dirigir em excesso de velocidade.

Paga-se 20% da multa ao guarda e diz-se boa noite.

Meu Deus, isso é corrupção! — descobriu ela.

Os imigrantes que servem em bares e restaurantes têm a melhor chance de conhecer esta psicologia. Svensson, superdesenvolvido, cosmopolita, superior, pede com segurança, e em tom que exige pressa e solicitude, um cachorro-quente ao servidor eslavo, latino ou árabe. Ao pedir cerveja, pede-a em voz baixa, sua superioridade encolhe, seu cosmopolitismo e desenvolvimento resultam inúteis.

Não faltou quem visse nesta fraqueza de Svensson promessa de grandes lucros e passasse a explorá-la. Agências de viagens organizam atualmente rápidos tours marítimos até as ilhas finlandesas Turku e Abo. Svensson paga 10 a 20 coroas por uma viagem de 12 a 24 horas, ida e volta. No navio, as bebidas são skattefria, livres de impostos. Svensson bebe quanto pode e jamais lhe passará pela cabeça descer em terra durante a rápida — e meramente formal — atracagem do barco. Navegar é preciso, chegar não é preciso.

Embriagar-se é uma das mais antigas e cultivadas tradições do país. Um de seus primeiros soberanos. Fjolner, rei dos Sveas (19), encharcou-se — literalmente — ao morrer afogado numa gamela de hidromel, ou seja, em um barril de chope da época.

Mais recentemente, em 1775, Gustav III instituiu o monopólio do álcool. As vendas beneficiavam a casa real e embriagar-se tornou-se uma questão de patriotismo. Operários recebiam parte do salário em sprit. Em frente às igrejas vendia-se bebida para animar os fiéis. O consumo per capita de álcool puro, consideradas as crianças, atingiu os 40 litros anuais. A cifra atual é de quatro.

Para combater a criminalidade e violência conseqüentes, foram fechados os bares e surgiram dezenas de nykterhetföreningar, ligas de sobriedade. Em meados do século XIX as ligas reuniam 100.000 membros numa população de 3.800.000. Vilhelm Moberg evoca a significação destes movimentos em seu romance Soldat:

“Ele sabia o que tinha de agradecer ao templo. Fora seu segundo lar, e uma escola ao mesmo tempo: os livros que tomara emprestado e lera, como aprendera a expressar-se, a escrever protocolo, liderar uma reunião. Jamais m esqueceria o que o templo significara para ele. Talvez um dia, ao tornar-se velho, escreveria as memórias de sua juventude. Não esqueceria então de falar no que tinha a agradecer ao guia n° 2078 da Ordem do Templo, mostraria ao mundo inteiro sua dívida de gratidão.”

As ligas antialcoólicas adquiriram uma influência tal no país a ponto de organizar em 1909 um plebiscito. Optou-se então por um regime seco, com a proibição total do álcool. Em 1914, Ivan Bratt liberalizou a legislação instituindo o motbok e controle individual. O motbok, abolido em 55, consistia numa ficha de controle individual a ser apresentada pelo cliente no ato de compra de bebidas. Cada cidadão tinha direito a três quartos de litro mensais de bebida alcoólica, não tendo as mulheres casadas direito nem mesmo a esta dose. A compra de vinho era livre, mas seu consumo anotado no motbok. A venda poderia ser cancelada a quem o comprasse em excesso. A concessão do motbok dependia de uma prévia investigação da vida privada do solicitante.

Um atentado aos direitos humanos é hoje consagrado como norma jurídica no direito público sueco. Em cada comuna, uma liga de temperança vigia o comportamento do cidadão. A liga dispõe de poder coercitivo para determinar o tratamento compulsório numa instituição estatal de qualquer um que “regularmente use do álcool em detrimento de si mesmo ou de outros”. Não há apelo contra essa ordem e a polícia pode recorrer à força para executá-la. “É importante observar, comenta Huntford, tratar-se de um caso no qual o cidadão pode ser privado de sua liberdade por uma ordem administrativa sem o devido processo legal.” Paralelamente, nas terras impregnadas pelo catolicismo, os abusos do poder estatal incidem acentuadamente sobre a questão sexual. Diariamente prostitutas são presas ilegalmente, sem flagrante nem ordem judicial, com a anuência da sociedade. Mas estas arbitrariedades não constituem lei, ficando no plano do poder de polícia, por definição arbitrário. Resta sempre o recurso do habeas corpus, o que inexiste na Suécia em prisões — ou internamento compulsório para tratamento, como quisermos — de alcoólatras.

A luta contra o alcoolismo é financiada com o lucro da venda do álcool. Os systembolag são certamente as únicas lojas do mundo que fazem publicidade contra suas mercadorias. Afixado em cada registradora, um cartaz tenta dissuadir o cliente da compra de bebidas fortes, sugerindo vinho como sinal de bom-gosto.

Algumas vozes começam a erguer-se contra este puritanismo em relação ao álcool. Bosse Gustavson, em seu romance Systemet, protesta contra o que considera um tratamento cruel contra os membros mais fracos da sociedade. Um de seus personagens afirma que em lugar algum do mundo um alcoólatra sente-se tão miserável, marginal e inútil como na Suécia. “Por isso tornamo-nos rapidamente imprestáveis e doentes e morremos mais rápido que em outras terras.”

Segundo Bosse, é um mito afirmar-se que quem bebe muito não pode cuidar de seu trabalho e viver em sociedade, pois desde os mais baixos aos mais altos cargos encontram-se homens que bebem e dão conta de suas funções. Muitos bebem nos locais de trabalho, e comportam-se, mas mesmo assim são despedidos. “Depois tornam-se dependentes aos langarna (20) e são forçados a ingressar nos grupos de alcoolistas que perambulam em volta dos systembolag. O que cair na lista de alcoólatras jamais conseguirá um emprego.”

Bosse Gustavson reivindica a venda de vinhos nos supermercados, a descentralização dos systembolag e sua abertura às 8, e um tratamento mais humano e isento de preconceitos para com os bêbados. Condena a rattfylleri mas acha que não deve ser punida com a cassação da carteira de motorista. “Conheço um escritor que se mantém vivo graças à carteira. Para dirigir é obrigado a manter-se sóbrio ao menos de vez em quando. A carteira de motorista é um importante fator de sobriedade.”

Rígido em relação ao álcool, o governo é bastante liberal em relação ao tóxico. Seu consumo não é proibido, mas sim o tráfico. (Como os consumidores teriam então acesso ao produto é algo ignorado pela lei, pois a venda do tóxico não é legal.) A prefeitura de Estocolmo financia bares onde centenas de adolescentes se reúnem para drogar-se. Oferecendo aos viciados um local de reunião, tem melhores condições de assisti-los e controlar o tráfico. Três gramas de marijuana é o máximo que cada um pode ter consigo. Se tiver uma quarta será considerado traficante. As batidas policiais são sempre recebidas com entusiasmo e alegria pelo pessoal. Para livrar-se dos gramas comprometedores o traficante as distribui gratuitamente três a três.


 

 

O MARIDO DOMESTICADO

 

Os termos em que hoje é colocado na Suécia o debate da função dos sexos já dizem muito sobre as posições alcançadas. Cada vez se fala menos em questão feminina, usando-se preferentemente a expressão discussão do papel dos sexos. E já se consagrou nos meios de comunicação o conceito de emancipação masculina, ou seja, o direito de o marido ficar em casa cuidando das crianças, quando for mais oportuno que a mulher se dedique à vida profissional. Fiel à sua política de fazer a revolução antes que o povo a faça, o governo apresentou em 68 um relatório às Nações Unidas — O Estatuto da Mulher na Suécia — onde reivindica a modificação das atribuições dos sexos de forma que tanto o homem como a mulher tenham as mesmas condições práticas de exercer ativamente um emprego e cumprir suas funções de pais. “Para que a mulher atinja fora do lar a posição social correspondente a seus direitos de cidadania, o homem deverá assumir uma maior responsabilidade na educação dos filhos e cuidados domésticos. Uma política que se esforça, por um lado, em tornar a mulher igual ao homem na vida econômica e, por outro, consolida ao mesmo tempo sua tradicional responsabilidade na manutenção do lar e cuidados às crianças, tem poucas chances de realizar o primeiro destes objetivos. Este não poderá ser atingido senão educando e encorajando o homem a participar ativamente de sua função de pai e lhe conferindo, nesta qualidade, os mesmos direitos e deveres que à mulher. Isto implicará provavelmente numa diminuição das pretensões profissionais por parte dos homens. A luta pela redução do tempo de trabalho se revestirá conseqüentemente de grande importância. Neste sentido, seria necessário pesquisar-se como estas reduções poderiam ser judiciosamente repartidas na semana para aumentar as possibilidades de o homem efetuar sua parte de trabalho no lar.”

O atual status da mulher sueca — citado e aspirado pelas feministas de todo o mundo — é culminância de uma série de conquistas que remontam há dois séculos atrás. Um dos primeiros marcos da emancipação data de 1845, quando a mulher conseguiu igualdade de direitos de herança. Em 1862 adquiriu direito a voto nas eleições municipais, e em 1884 fundava-se uma das primeiras associações femininas do mundo, a Fundação Frederika Bremer. Em 1909 foram declaradas elegíveis às eleições comunais e em 1921 obtinham o direito a votar e serem votadas nas eleições ao Parlamento, juntamente com uma nova legislação que instituía igualdade de direitos e deveres para ambos os cônjuges. Em 1925, o Parlamento afirma o princípio de igualdade salarial, em verdade efetivado apenas em 1960, regulamentado por acordo entre a Confederação Geral do Trabalho e a Confederação Patronal Sueca. E em 1947 estabeleceu-se a isonomia salarial para funcionários públicos — mesmo tratamento para homens e mulheres tendo o mesmo tipo de emprego.

As atuais feministas parecem ter descoberto ser a função histórica da mulher pôr o homem na cozinha. Em Estocolmo, vê-se mulheres com revólver e cassetete policiando as ruas, com hábito e bíblia em punho pregando nas igrejas, onde exerce função sacerdotal. Dirige ônibus e metrô, luta boxe e assalta bancos, atividades tradicionalmente masculinas. No entanto, a mais propalada e divulgada conquista é a do hemmaman, o homem do lar, ou melhor, o dono de casa. Sendo a empregada doméstica um luxo inacessível a quase todos, ficará em casa quem tiver inferior situação profissional. Numa sociedade em que o Estado assegura igual tratamento salarial para ambos os sexos, muitas vezes será o marido quem levará roupas e trocará fraldas. Por outro lado, considera-se fundamental para a saúde psíquica das crianças a participação do pai em sua educação.

Rita Liljeström, socióloga, afirma: “No mundo ocidental, a mãe é o personagem central. Pedagogos e psicólogos americanos chamam o mundo das crianças de universo materno. O universo infantil é um universo de sonhos. A maioria das crianças, sob a influência dominante das mulheres, se habitua às normas femininas; pede-se aos homens assegurar a subsistência da família ou fazer carreira, e para isso devem renunciar a seus papéis de educadores e deixar o controle e responsabilidade das crianças às mulheres. A paternidade é considerada antes de tudo como um dever social e não como um fenômeno de raízes biológicas que traz satisfações psíquicas. Como a sociedade não considera a fibra paterna como o equivalente masculino da fibra materna, os pais sensíveis e sonhadores são considerados como fracos e efeminados e esta desvantagem é agravada pelo fato de que os cuidados às crianças fazem parte das ocupações tradicionais femininas.”

Esta distribuição de tarefas é aceita sem grandes discussões pela atual família sueca. Não é desconhecido de ninguém — pelo contrário, faz-se uma discreta divulgação do fato — que Olof Palme reparte com sua esposa os trabalhos de cozinha e cuidado dos filhos. Num debate sobre o papel dos sexos, um jovem pai declarava não conhecer nada de mais irritante que ser felicitado por pessoas gentis porque ajudava a mulher a ocupar-se do filho.

— Tento então explicar que não se trata de ajudar e que se poderia muito bem felicitar minha mulher por sua ajuda. Nós nos dedicamos tanto um como o outro ao nosso filho e não encontramos razão plausível alguma para agir de outra forma.

 

A partir de 1970, o ensino de artes domésticas teóricas e práticas tornou-se obrigatório para ambos os sexos na escola. Até então, os alunos podiam escolher entre trabalhos em madeira, metais ou têxteis, o que formalmente resultava na escolha de madeira e metais pelos alunos e têxteis pelas alunas. Hoje, todos, sem distinção de sexo, têm três horas semanais de artes domésticas no oitavo ano, e duas no nono. Nesta classe, consta também do programa o aprendizado dos cuidados a serem dispensados aos pequenos. Mesmo assim, a idéia da divisão tradicional do trabalho resiste a ser abolida. Os livros de artes domésticas da década de 60, embora comuns a ambos os sexos, mostravam em suas ilustrações apenas mulheres trabalhando na cozinha e cuidando de crianças. Os editores, violentamente acusados de discriminação, defenderam-se dizendo nada mais terem descrito senão a realidade.

Embora se considerem as mais emancipadas mulheres do mundo, as suecas admitem sua situação de desigualdade em relação ao homem. A igualdade salarial legalmente estipulada não corresponde à situação de fato: hoje, a diferença salarial é de cerca de 17%. Um economista calculou em 66 existirem no país 800.000 pessoas que formavam um potencial de mão-de-obra não utilizado, em sua maior parte mulheres. Utilizada esta mão-de-obra a renda nacional aumentaria em 25%. De fato, apenas 53% das mulheres trabalham fora de casa. Ocupam em geral uma faixa de trabalho semelhante à ocupada pela mão-de-obra imigrante, a faixa dos empregos mal remunerados e que dispensam maior qualificação. No Parlamento, existem 47 mulheres num total de 350 deputados. Duas mulheres ocupam pastas num governo constituído por 19 ministros. Numa comissão organizada pelo Ministério da Educação em 69 para estudar o papel dos sexos, nenhuma mulher teve assento. O número de creches do país — condição fundamental para a liberação da mulher dos cuidados domésticos — é insuficiente, e além disso, só mulheres trabalham nelas.

As tentativas de modificar este status partem tanto do governo quando das associações feministas. Segundo a política de empregos do governo, “as agências de trabalho devem abolir as barreiras existentes entre os sexos no mercado de trabalho. Os homens em busca de emprego devem, desde que isso seja possível, ser orientados para profissões femininas e empregados, por exemplo, na guarda de crianças, doentes, pessoas idosas ou no setor terciário. Se existem ainda agências com seções diferentes para mão-de-obra masculina e feminina, estas devem ser suprimidas imediatamente”.

E Maud Hägg e Barbro Werkmäster, militantes da organização Grupo 8, alertam suas companheiras de sexo: “Antes de aceitar viver com um homem, ensina-lhe a cuidar da casa e da cozinha, e a coser. Suporta que ele faça tudo isso mal, mas não o substitui. Decide a maneira pela qual o trabalho será dividido entre vocês. Ensina-lhe a dizer não às suas necessidades e sim às tuas. Assina tu mesmo o contrato de locação. Guarda teu nome de solteira e fá-lo figurar no catálogo telefônico...”

Em meio a este estado de espírito, duas personalidades do país foram nacionalmente execradas. Pia Dagemark, atriz principal de Elvira Madigan, e Carl Gustaf, o príncipe herdeiro, ao declararem publicamente ser o lugar da mulher na cozinha. O príncipe, com esta declaração, ajudou a cavar o túmulo da monarquia no país. Há muito existe um discreto projeto para a instauração da república, mantido em silêncio em razão da estima unânime dedicada a Gustaf VI Adolf, homem culto e sensato. Espera-se sua morte para abolir a figura do rei, puramente decorativa nos dias atuais. O olhar pouco inteligente do príncipe herdeiro e suas atitudes menos ainda constituem argumentos de peso a favor da república.

As feministas constituem a única parcela da opinião pública que ousou assestar baterias contra um monstro sagrado nacional, Ingmar Bergman. Suas angústias metafísicas não atraem muito os pragmáticos Svenssons ao cinema, mas como o cineasta internacionalmente conhecido é um dos mais refinados cartões de visita do país, crítico algum ousava contestá-lo. As feministas não tiveram tais pudores. Sem mais cerimônias, acusaram a visão bergmaniana da mulher de reacionária e ultrapassada. Marguereta Ekström não se conforma que “as idéias abstratas, as interrogações endereçadas a um céu mudo, a esperança e a angústia dos sonhos, os dilemas morais e os remorsos” pertençam a um mundo exclusivamente masculino. Keity Klynne, analisando Beröringen (21) vai bem mais longe:

“Das profundezas da terra, David (Elliot Gould) exuma a madona pura e bela. Karin (Bibi Andersson) é pura, jamais cometeu adultério, é mãe. Quando a escultura é exposta à luz, os vermes despertam para a vida e destroem-na interiormente. David diz que eles destroem também a criança. Karin não é mais pura, deteriora-se interiormente, e através dela, David. As larvas tornam-se um símbolo do amor ou talvez da sexualidade, surgem da escuridão e aniquilam aqueles que atingem. Seria interessante ouvir um psicanalista traduzir esta linguagem simbólica. Não seria isto uma erupção de um ódio secreto às mulheres e inimizade sexual em Bergman?”

As lutas feministas sempre originaram certas reivindicações diante das quais não é fácil conter-se o riso, e as suecas não constituem exceção quanto a isto. Nina Estin, militante de um grupo feminista radical, protestava em 64 no congresso Sexo e Sociedade realizado em Estocolmo, contra a ausência de pornografia endereçada ao sexo feminino.

— Diz-se que a nudez masculina não excita as mulheres. Como se pode pretender conhecer os desejos femininos em matéria de nudez masculina quando as convenções proíbem que as mulheres exprimam suas preferências? Nenhuma revista especializada oferece às jovens a possibilidade de se habituar à graça do nu masculino. O homem, ao contrário, cresce num universo atapetado de fotos de pin-up.

Em 66, Nina Estin fundou a revista Expedition 66, onde, ao lado de bem servidos cavalheiros de lança em riste, liam-se relatos de leitoras de suas aventuras eróticas no estrangeiro e slogans do tipo “Mulheres, não hesitem em beliscar as coxas de um rapaz bonito de restaurante, os homens não se privam de contatos servis”. Graças a suas ilustrações, a revista teve suas três únicas edições esgotadas. Pelos homossexuais.

O projeto de Nina Estin, embora fracassado, preparou terreno para atitudes menos discriminatórias na imprensa. Em 72, atendendo pedidos de leitores, EXPRESSEN iniciou a publicação de fotos de louros efebos, com sexo às vezes semi-ereto, às vezes coberto por uma flor ou chapéu, deitados languidamente numa lancha ou rochedo.

DAGENS NYHETER, principal matutino, já teve de enfrentar a ira de Nina Estin, ao publicar em sua seção feminina fotos de uma exposição de pães em Nova Iorque. Um deles, vindo do Peru, representava uma mulher desnuda com seios imensos. Ao ver a foto, Nina Estin correu para a cozinha e confeccionou um pão a seu modo, revestido dos atributos masculinos. Enviou-o à redação, e ao telefonar exigindo a publicação da foto de seu pão como prova de que o jornal não fazia discriminação, teve como resposta uma gargalhada: “É lindo, podemos comê-lo?”

Na antológica coluna de Inge & Sten, uma leitora manifestava estar farta de ouvir falar desses homens que retêm a ejaculação. “Quando encontro um homem em uma porta que recua um passo e me diz: primeiro as damas! penso imediatamente em minha vida sexual. Tenho 25 anos e conheço meu marido desde nove anos atrás. Cansei de chegar primeiro na corrida ao prazer e disse isto a ele. Gostaria de mudar um pouco e isso acaba me dando complexos em ser demorada, quando me diz que sou lenta para gozar. E mais ainda, um membro rígido demais não me interessa, pelo contrário. Eu o prefiro quando se torna amolecido e de uma doçura acetinada. Então, me descontraio e obtenho minha própria ejaculação.”

Tais movimentos histéricos reivindicam sempre, não uma situação de igualdade entre os sexos, mas uma inversão do binômio explorador-explorado. Neste sentido, Nina Estin e suas seguidoras podem se considerar vitoriosas: já surgiram em Göteborg e Estocolmo, com aplausos de muitos jornais, bordéis para mulheres. Musculosos varões, vestidos em malha colante, esperam em poses lúbricas suas clientes, em geral velhas e deficientes físicas.

As reações contra tais excessos não se fizeram esperar, entre elas as nascentes Uniões para os Direitos dos Maridos. Em meio a tudo isso, Tage Danielsson, em História da Justa Gudrun, faz uma bela sátira à situação.

“Então, no devido momento, apresentaram-se Gudrun e Albin ao burgomestre e disseram sim ao mesmo tempo, pois Gudrun decidira ser injusto que um dissesse sim antes do outro. Como Gudrun, Albin tinha na mão um buquê de flores.

Ao chegarem ao apartamento que Gudrun ainsla possuía de seu primeiro matrimônio, ela mostrou a Albin uma longa lista que havia feito. Entre outras coisas, lá constava:

— passar uma camisa equivale a estender duas camas;

— fazer o telecafé a lavar pratos na janta;

— pregar um botão corresponde a arrumar um contato estragado;

— amamentar uma criança a lavar duas fraldas sujas;

— roncar à noite de modo a acordar uma parte implica no direito da parte acordada a ler primeiro o jornal na manhã seguinte;

— compra de provisões equivale à limpeza da sala de estar e vestíbulo;

— fazer a bainha em lençol a pôr o lixo no incinerador;

— lavar um par de meias a esvaziar os cinzeiros em todo o apartamento.

Isto tudo e muito mais constava da longa lista de Gudrun.

— Viveremos de acordo com esta lista, disse Gudrun, para que tudo seja justo. Este é o alfa e ômega do matrimônio.

Assim viveram Gudrun e Albin um longo tempo juntos, comendo duas batatas cada um à janta, quatro centilitros de conhaque ao café nos sábados e faziam o amor mais tarde tão justamente quanto possível na escuridão da noite. Um dia disse Gudrun:

— Albin, creio que vou ter um filho.

— Então eu terei outro, disse Albin por força de hábito.

Mas, como vocês entendem, foi Gudrun sozinha que teve um filho. As coisas tornaram-se então difíceis para que tudo fosse repartido justamente. Que Albin lavasse fraldas enquanto Gudrun amamentava não constituía maior problema, mas havia tanto a fazer durante o dia que Albin pediu licença do trabalho — e isto não era senão justo, pois Gudrun precisara fazer o mesmo. Quando a criança gritava à noite, os pais acordavam e olhavam para o esquema afixado sobre a cama. Nas datas ímpares Albin fazia plantão das duas às seis, nas datas pares Gudrun. Nos meses com 31 dias, a última noite era dividida de modo que Albin vigiava das duas as quatro e Gudrun o rendia das quatro as seis.

Graças à grande gentileza e bondade de Albin, as coisas foram resolvidas sem resmungos e o pequeno cresceu e começou a falar. Mostrou ser uma criança inteligente e justa, pois a primeira palavra que disse foi mapa e a segunda pama.

Um dia disse Albin:

— Seria genial que nosso filho tivesse uma irmã.

— Não olha para mim, disse Gudrun, agora é tua vez!

Então Albin não agüentou mais, e além disso, nem concebia como isso poderia ocorrer. Hoje, Gudrun espera outra vez um homem com senso de justiça.”


 

CASAMENTO DE CONSCIÊNCIA

 

— Mas então quantos filhos é necessário ter-se nesta região antes de se poder casar? — perguntou certa vez um sacerdote luterano a dois jovens que julgavam ser muito cedo ainda para legalizarem sua situação, pois tinham apenas um filho.

Os nórdicos nunca deram muita importância ao matrimônio. Os primeiros missionários cristãos a percorrerem a Escandinávia atritaram-se com os camponeses ao condenar seus costumes. As relações pré-matrimoniais eram tranqüilamente consentidas. A prática da nattfrieri existiu até meados do século XIX na Noruega, Suécia e Dinamarca. A palavra pode ser traduzida por “caçada noturna”, em bom português. Em sua forma mais corrente, consistia na visita feita por rapazes a moças não casadas, no próprio quarto destas. Ambos dormiam apenas dormiam — juntos, com a anuência da família da moça. As carícias eram em geral de superfície, e para maior segurança a moça vestia uma camisola especial, a “camisola de dormir juntos”. O jovem permanecia totalmente vestido. Ao menos, assim relatam os cronistas. Após dormir com vários rapazes da vizinhança ou aldeia, a moça elegia um e passava a repelir os demais. Caso ficasse grávida, ninguém a condenaria e o eleito a pediria em casamento. Acertado o noivado com os pais, estes convidavam então o noivo para “dormir” com a filha. Ao evidenciar-se a gravidez, era marcada a data de casamento.

Estes hábitos nórdicos explicam a rápida passagem da Igreja Católica na história da Suécia. Os autóctones experimentavam uma alergia a essa doutrina triste que condenava as melhores coisas da vida, o álcool e as mulheres, chegando ao cúmulo de proibir que se bebesse durante as cerimônias religiosas.

Hoje o País apresenta mais um recorde na questão matrimonial: a mais baixa estatística de matrimônio do mundo. A conclusão é dada por uma pesquisa feita pelo Instituto Sociológico da Universidade de Upsalla. Em 71 ocorreram apenas 39.000 matrimônios, quando em 66 a cifra era de 61.000. Na década de 40, quando o casamento ainda era popular, em cada 1.000 habitantes casavam-se 9. Em 66 o índice havia baixado para 7,8 em 70 para 5,4 e em 71, o recorde, 4,9. E a tendência persiste.

O declínio progressivo do matrimônio não é porém sinônimo de extinção da convivência conjugal. Os analistas do fenômeno consideram que os suecos se cansaram de prometer coisas que nem sabem se poderão cumprir diante de um sacerdote ou juiz. O relacionamento entre duas pessoas é algo privado que dispensa papéis e assinaturas. O problema dos filhos não existe, pois o Estado protegerá a criança sem perguntar o estado civil dos pais. E a mãe solteira passará a ser chamada de senhora desde o momento em que registra o filho. Nestas condições surgiu o medvetensäktenskap, o casamento de consciência. O casal simplesmente slar sina pasar ihop, ou seja, juntam as trouxas e passam a morar sob o mesmo teto. O avanço da nova instituição é confirmado pelas estatísticas. Em 71, das 115.000 crianças nascidas no país, 20% nasceram fora do matrimônio. Em Estocolmo, o índice atinge os 50%.

Em verdade, o assim chamado casamento de consciência não é lá tão consciencioso. Além do cansaço de assinar papéis e fazer promessas talvez insustentáveis, existem razões de ordem bem mais prática. Ser solteiro, e mesmo divorciar-se, significa considerável economia. Ao casar, o imposto sobre a renda passa a ser calculado sobre o montante da renda do casal. Se ambos trabalham, incidirão numa faixa tributária bem mais alta do que se fossem solteiros, declarando então separadamente seus ganhos. Desta pressão fiscal decorre que muitos casais legalmente constituídos divorciam-se apenas para aumentar suas rendas. Continuam vivendo juntos e pagam agora menores impostos. Alguns casais com três ou quatro filhos — caso bastante raro — ao ganharem um outro são às vezes coagidos a recorrer ao divórcio para sustentá-lo. Esta situação modificou-se em 72, quando a legislação tributária passou a permitir a declaração individual dos cônjuges.

Mas a pressão do Estado no desestímulo ao matrimônio não se faz sentir apenas na incidência de tributos. A mãe solteira ou divorciada recebe mais vantagens da assistência social que a casada. Tem direito a auxílio-moradia, auxílio complementar a seu baixo salário e seu filho terá preferência na fila para uma vaga na creche.

EXPRESSEN, analisando o problema, propõe um confronto entre dois casos rotineiros. O funcionário público A e o vendedor B recebem cada um 5.000 coroas. Ambos têm três filhos e alugam um apartamento de quatro quartos por cerca de 800 coroas. A é casado com a mãe de seus filhos. A família paga o aluguel total. A mulher precisa ficar em casa, mas espera na fila para uma vaga na creche para os filhos, onde pagará 10 coroas por criança e dia.

B não é casado com a mãe de seus filhos. A família receberá então auxílio moradia e auxilio-complemento à baixa renda num total de 670 coroas. As crianças terão preferência na creche e o preço será apenas de uma coroa por dia. A mulher disporá do dia livre, e se conseguir um trabalho com salário de 1.900, o auxílio-moradia ainda será de 545 coroas. Estas facilidades permitem que o casal possua inclusive dois domicílios e até mesmo babysitter, vivendo em condições bem mais confortáveis que o casal A, legalmente constituído. Não ser casado se traduz em uma economia de mais de 1.000 coroas ao mês, skattefria.

Legislador algum promulga leis sem ter previamente analisado suas possíveis conseqüências. A tributação da renda e os auxílios sociais sempre constituíram, em todos os países, instrumentos de política familiar.) Os social-democratas, além de concederem uma série de vantagens sociais às uniões sem vínculos legais, tributam mais pesadamente as legalmente constituídas. O propósito da extinção do matrimônio é manifesto.

No campo das relações conjugais, o casamento perdeu muito de sua sacralidade cristã. As consultas feitas na imprensa diária dão uma idéia dos problemas vividos pelos cônjuges. EXPRESSEN abre a coluna de Inge & Sten com a manchete.

 

POSSO MIJAR EM MINHA ESPOSA?

 

Mijar é uma função muito natural — mijar nas calças é no entanto um embaraçoso acidente. Acontece que agora passei a julgar eroticamente excitante este desastre e não posso deixar de lembrar certas ocasiões em que minha esposa se urina involuntariamente. Em fantasia, brinco prazerosamente com as circunstâncias dessas ocasiões.

Ultimamente comecei a imaginar como seria genial se eu e ela nos mijássemos mutuamente enquanto mantemos relações. Pessoalmente consegui isso. Minha esposa, apesar de dispor-se à coisa, não consegue, excita-se demais. Quanto ao resto, temos uma convivência normal e feliz, porém eu me envergonho um pouco, tenho certas dúvidas a respeito do que relatei.

Casados há 10 anos

Podemos apenas responder que embora seu pequeno interesse não seja lá tão comum, tampouco é raro. Se ambas as partes estão interessadas — ou pelo menos nenhuma é forçada — não seria então impossível alcançar o objetivo almejado com um pouco de exercício.

Ainda em EXPRESSEN, Bernt Bernholm e Maj-Brith Bergström-Walan aconselham uma esposa que se julga quadrada:

 

QUERO DORMIR APENAS COM MEU MARIDO

 

Meu marido e eu estamos casados há quatro anos e nos conhecemos há dez. Tenho 28, ele 30. Nunca recebi qualquer educação sexual na escola, mas sim de meu marido. Ou através de livros que ele me dá para ler.

Até um ano atrás, tudo ia bem. Agora ele começou a pensar que se trata de uma fraqueza de minha parte jamais ter dormido com qualquer outro homem. Embora eu tenha procurado estimulá-lo a partir do que ele me ensina como também experimentado novas posições que ele sugere. No entanto, ele pouco se entusiasma com meus esforços. Diz apenas não sentir nenhum desejo.

Eu, pelo contrário, quase sempre sinto vontade, e por isso a situação não é das melhores. Ele não mais me abraça nem beija, nós temos contato sexual no máximo uma vez por mês. Isto também se deve ao fato de que nossa filha de dois anos vem deitar-se conosco todas as noites.

Sou de fato um pouco quadrada, pois não consigo imaginar-me dormindo com outro homem que não o meu marido.

Sua embaraçosa situação tem muito em comum com a de muitos outros que estão casados no mesmo espaço de tempo. A rotina sempre surge num casamento após certo tempo e acaba invadindo naturalmente o sexual. Tudo indica no entanto que você continua satisfeita com seu marido e não quer experimentar um outro, o que não significa que você seja antiquada ou cheia de preconceitos. Não ter preconceitos não significa necessariamente trocar de parceiro.

A partir do que você escreveu pode muito bem ter acontecido que ele simplesmente cansou-se de você. Ou ainda que ele está decepcionado consigo próprio, com o trabalho ou em suas relações com os outros. Talvez ele tenha problemas que não quer compartilhar com ninguém.

A sua filha, ao vir dormir com vocês, constitui naturalmente um problema. Seria melhor se vocês a convencessem a dormir em sua própria cama.

Um outro casal sugere a Inge & Sten um modo absolutamente original para chegar-se ao orgasmo:

 

NÓS FAZEMOS ASSIM

 

Tenho 70 anos e já pus 12 filhos no mundo. Acompanho sempre sua coluna, a qual julgo cheia de ensinamentos. Já li bastante sobre as diferentes maneiras de se atingir o orgasmo, de modo que quero contar como fazemos: meu marido entra em mim com ambas as mãos e aplaude. Assim atinjo o orgasmo. Espero que isso possa servir de auxílio para alguém. Amistosas saudações.

Edith

Cara Edith!

Receba também nossos aplausos.

 

Em meio a tudo isso, não falta quem queira casar de véu e grinalda. Lotta e Irén, homossexuais, comoveram a opinião pública ao falarem abertamente na TV 2 sobre suas situações, problemas e sonhos. Ambas, desde pequenas, sentiam atração pelo mesmo sexo, reprimindo-a. De experiências fracassadas com rapazes, cada uma teve um filho. O de Irén está num orfanato, o de Lotta mora com ambas. Vivem harmonicamente um matrimônio de fato, mas aspiram algo cuja ausência as torna insatisfeitas:

— Gostaríamos imensamente de casar, para legalizar nossa situação. De preferência numa pequena igreja de província em Norrland.

A aspiração de Lotta e Irén seria inconcebível em qualquer outro país. Mas na Suécia, as perspectivas de legalização de uma união homossexual, ainda que longínquas, não são tão imagináveis como se possa pensar. Jornalistas receberam com entusiasmo a iniciativa do canal 2, esperando que o programa induza o governo a encarar com mais liberalidade a idéia de oficializar tais uniões.

Uma iniciativa similar já foi tomada pelo deputado social-democrata Paul Dam, ao apresentar um projeto de lei ao Parlamento pedindo o reconhecimento oficial dos casamentos a três, quatro, cinco ou seis pessoas, tendo os participantes direito à troca de parceiros entre si. As famílias coletivas já são um fato no país. Suas causas são em primeiro lugar econômicas. Numa família coletiva, um dos cônjuges — se assim podemos dizer — cuida dos filhos de todos, enquanto os demais trabalham. Os ganhos são postos numa caixa comum e os gastos em residência e alimentação diminuem.

Os membros das storfamiljer — grandes famílias — alegam ainda a necessidade de experimentar novas formas de convivência, uma outra alternativa para o casamento tradicional. A storfamilj busca quebrar o isolamento a dois decorrente da célula familiar através dos estímulos emocionais e intelectuais proporcionados pelo contato diário com mais pessoas. O membro de um destes grupos sempre tem alguém próximo a si para conversar. O sentimento de não mais precisar ficar só num quarto vazio lhe possibilita mais segurança ante a vida. Não mais dependerá de uma pessoa, mas de várias. A possibilidade de que mais tarde seu cadáver seja descoberto meses após sua morte torna-se distante.

Os legisladores tendem aceleradamente a reduzir o matrimônio a um ato meramente contratual, despojando-o das pompas que o caracterizaram pelos séculos como instituição. Considera-se que o casamento não é mais do que uma forma de coabitação voluntária entre pessoas autônomas, e como tal deve ser contraído mediante simples registro, e dissolvido com o pedido de um dos cônjuges, após um período de reflexão. Para uma média de 50.000 casamentos anuais, a cifra de divórcio tem sido de 10.000. O divórcio pode ser obtido mediante o pedido de uma das partes, para o que se requer a separação de corpos por um ano. Projeto de lei apresentado ao Parlamento em fevereiro 73 pretende reduzir o período de um ano por seis meses de reflexão para os casais sem filhos, quando apenas uma parte solicitou a separação, e ainda para os casais com filhos menores de 16 anos. Quando ambos estiverem de acordo quanto ao pedido e não tiverem filhos menores de 16, o divórcio será concedido na hora. O projeto é apoiado por social-democratas, centristas e liberais. Em outras palavras, a partir de 74 a Suécia terá batido provavelmente mais um recorde: será o primeiro país do mundo a ter legalizado o assim chamado amor livre.


 

AS PROEZAS SEXUAIS
DO PRIMEIRO-MINISTRO

 

O casamento entre capitalismo e liberdade é tão desigual quanto o casamento entre um lobo e uma ovelha. — Goran Palm, Indoktrineringen i Sverige

 

ESTOU SURPRESO COM MINHAS PROEZAS SEXUAIS, declarou Olof Palme, segundo manchete em três colunas publicada por EXPRESSEN. As declarações do primeiro-ministro referiam-se ao livro Mars 1970, ficção erótica do autor danes Klaus Rifbjerg, onde Olof Palme desaparece em companhia de Margarethe, princesa herdeira da Dinamarca. O primeiro-ministro declarava não ter tido tempo para ler o livro, mas tendo recebido um resumo do mesmo, sentia-se “terrivelmente lisonjeado, consideradas as capacidades sexuais que o autor de Mars 1970 me atribui. Aliás, já comuniquei isto ao adido de imprensa da Embaixada Real da Dinamarca em Estocolmo”.

O episódio ilustra a tolerância do Estado em relação aos mass media. A liberdade de imprensa — fenômeno que ocorre apenas nas sociedades onde a imprensa é impotente para modificar o regime — na Suécia é quase total. A lei que a regulamenta é de ordem constitucional. Para modificá-la, é necessária aprovação de duas legislaturas parlamentares. Segundo os termos da lei, nenhuma censura pode ser aplicada a livros, jornais, revistas ou brochuras. Difamação, pornografia, revelação de segredos militares são por sua vez suscetíveis de enquadramento na justiça criminal. A pena atingirá o editor e a polícia não tem o direito de fazer investigações para determinar a fonte de um artigo. Por outro lado, todo cidadão tem livre acesso aos documentos públicos em poder de autoridades, exceção feita dos documentos “privilegiados” (médicos e militares). A publicação de tais documentos é também livre.

Os crimes de imprensa são examinados por um júri composto de nove membros, sendo que as partes podem recusar qualquer membro que julguem objetável. Uma sentença condenatória exige concordância de pelo menos seis. Mesmo assim o réu pode ser absolvido pelo tribunal. No entanto, em caso de absolvição pelo júri, o tribunal não pode condená-lo. Os processos por crimes contra a lei de imprensa são raros no país, dez a vinte casos anuais. Em geral são motivados por agravos pessoais e resolvidos por conciliação entre as partes.

A tolerância não se limita apenas à pornografia. Na revista Vi, Jan Hinderson — em artigo que seria considerado de alto teor subversivo em qualquer outra nação que não a Suécia — relata ironicamente as conseqüências de sua recusa ao serviço militar. Em tais casos, um sueco tem duas chances: ou presta serviço militar sem armas — no caso é aproveitado em comunicações, enfermagem, burocracia — ou totalvägra, ou seja, recusa-se totalmente a qualquer prestação militar. Será encarcerado então por um mês. Convocado pela segunda vez, se continuar insistindo em totalvägra, será recolhido à prisão por mais dois meses. Chamado pela terceira vez, sua pena será de três meses. Na quarta, quatro meses, e então não será mais convocado.

— Alguns altos senhores da guerra julgaram que eu restaria lá por dez meses, diz Jan Hinderson, e eu fui até lá precisamente para informá-los que eu não pretendia absolutamente fazer isso.

Hinderson foi conduzido ao gabinete do comandante por um oficial que, “com um ar de lorde inglês que encontrara um rato morto em seu vinho Porto”, anunciou tratar-se de mais um totalvägrare. O comandante teve uma única reação: pediu por telefone uma arma e um uniforme.

Interrogado sobre as razões de sua recusa, Jan Hinderson explica julgar inúteis os gastos militares da Suécia, só superado pelos EUA, URSS e Israel.

— Se tanto a URSS como EUA querem manter a calma na Europa seria totalmente fantasioso pensar que algum desses blocos atacaria a Suécia. E se o fizessem, nossa defesa seria impotente ante as forças da OTAN ou do Pacto de Varsóvia. E no caso de guerra mundial, acabaríamos morrendo devido à chuva radioativa, fôssemos atacados ou não.

Hinderson julga que só no caso de uma rápida guerra com um país vizinho — por exemplo, se a Dinamarca resolvesse retomar Skane — poderia a defesa sueca ter algum desempenho. Mas em tal hipótese, nem os militares pensam.

O comandante sugere a Hinderson o serviço sem armas. A sugestão não é aceita, pois Hinderson apóia a FNL no Vietnã (e estando no Exército está proibido de fazê-lo) e além disso não quer integrar-se de forma alguma, com ou sem armas, no sistema militar.

Um suboficial e um soldado entram no gabinete com um revólver e um uniforme, que são postos numa mesa. O comandante, com um acento marcial, dirige-se a Hinderson:

— Eu lhe ordeno, Hinderson, a apanhar o uniforme que está nesta mesa. Ouviram as testemunhas que eu dei uma ordem a Hinderson?

As testemunhas anuem e Hinderson afirma negar-se a cumprir a ordem.

— Compreenderam as testemunhas que Hinderson negou-se a cumprir a ordem?

As testemunhas balançam afirmativamente a cabeça.

— Então eu ainda pergunto a Hinderson se ele quer cumprir a ordem de apanhar a arma.

— Eu recuso.

Terminada a cerimônia de recusa, o comandante pergunta a Hinderson se sabe que pertence a um grupo muito reduzido.

Que se torna cada vez maior!

É, talvez se torne maior, resmungou o comandante.

As Forças Armadas não parecem dar muita importância a críticas. Telegrama para um Soldado de Chumbo é uma canção de Cornelis Vreeswijk, de relativo sucesso popular. Nela se fala de um soldado cujo corpo é de chumbo, “mas de que consiste sua alma, ninguém descobriu, ainda. Seu cérebro é maciço — lançar-se na batalha é seu único instinto vital. E se recebe uma ordem sacrifica então sua vida. Sua obediência é total. Seu nariz volta-se para o inimigo sob as ordens de um general”.

E o trubadur conclui:

Um soldado para mim
um soldado para ti!
Iniciamos a produção
e planejamos uma intriga.
Quando tivermos suficientes,
começamos uma guerra.

Uma das raras proibições da legislação de imprensa é a de publicar nomes de pessoas envolvidas em processos sub judice. Os repórteres policiais contentam-se com vagas indicações sobre a identidade dos implicados: italiano foi preso por proxenetismo, milionário sonega imposto, mulher assaltou banco. Os nomes de suspeitos e mesmo de criminosos presos em flagrante delito só podem ser divulgados após pronunciamento da sentença penal. No caso de o implicado ter sido julgado inocente, seu nome não foi difamado. A legislação sueca não concede aos jornalistas o poder que possui, por exemplo, um repórter brasileiro, de destruir reputações e carreiras, quando não vidas.

Mesmo com tais cuidados, ainda se manifestam nas páginas policiais as diferenças de classes e conseqüentes privilégios. Em Indoktrineringen i Sverige, Göran Palm protesta contra a disparidade de tratamento concedida pelos repórteres policiais, conforme o status social dos implicados. Um menor (16 anos) é condenado por roubo. Aftonbladet dedica-lhe uma longa reportagem, entrevista sua mãe e dá detalhes de sua vida pregressa: fora preso por embriaguez durante uma demonstração, fumava haxixe e para comprá-lo praticava pequenos furtos. O repórter informa cheio de cuidados o nome do rapaz. Um mês após, no mesmo jornal, lia-se o relato do acidente automobilístico provocado pelo “filho de um milionário” que causou ferimentos graves na acompanhante. O filho do milionário, que dirigia seu carro de luxo, presente do pai, não teve seu nome nem idade citados no jornal. O mesmo não ocorreu com sua jovem acompanhante, que perdera um olho, tivera um braço paralisado e reduzida a capacidade de fala.

O único meio de comunicação de massa submetido a censura é o cinema. A censura cinematográfica sueca é uma das mais antigas do mundo. O Comitê de Censura Cinematográfica, cujos membros são escolhidos pelo governo, foi criado em 1911 e existe até hoje. Um filme pode ser interditado parcial ou totalmente se é capaz de incitar o espectador ao crime ou devassidão, de perturbar relações com potências estrangeiras, de comprometer a segurança do país, ou ainda se atenta contra as leis. Embora este comitê tenha interditado totalmente mais de uma centena de filmes na década de 60, hoje suas funções são meramente teóricas. Atos sexuais em primeiro plano — vaginais, anais, orais — não são impugnados pelo comitê. Não se considera que tais cenas incitem a devassidão. Por outro lado, um filme como Richard Milhouse Nixon, a White Comedy, de Emile de Antonio, que reduz o presidente americano a suas dimensões de crápula, tem projeção permitida em qualquer cinema do país, sem que se julgue que isso possa perturbar relações com potências estrangeiras. E os violentos panfletos políticos produzidos pelo Chile ou Cuba, não obstante sua péssima qualidade artística, são muito apreciados por Svensson.

Em relação aos filmes para crianças, o Comitê do Filme Infantil tem critérios bem mais rígidos. As aventuras do Pato Donald são muitas vezes censuradas.

— O Pato Donald, disse um dos membros do Comitê, é malvado e agressivo. Pode divertir os adultos, os quais conseguem compreender o significado das sátiras de Disney. Pessoalmente desconfio muito das gargalhadas que este pato cruel provoca nas crianças, especialmente entre os pequenos mais sensíveis. Por isso somos obrigados muitas vezes a cortar algumas de suas cenas.

Hoje, o Parlamento tende a eliminar toda e qualquer censura prévia cinematográfica para adultos. A proposta apresentada em 69, propõe que as responsabilidades sejam fixadas como na legislação de imprensa. Cada filme seria assinado por um produtor responsável juridicamente pelas eventuais transgressões à lei. Diretores, realizadores e atores estariam eximidos de qualquer responsabilidade.

Rádio e TV são controladas pelo Estado, através da Sveriges Radio, empresa paraestatal intimamente ligada ao governo. Não aceita publicidade, provindo sua receita dos impostos pagos pelos usuários de aparelhos receptores. O controle da programação é feito por um Conselho Superior de Radiodifusão, cujos sete membros são escolhidos pelo governo. Reunidos certa vez para decidir quais seriam os temas não recomendáveis para teledifusão, acabaram não encontrando nenhum. Nudez masculina ou feminina não constitui novidade para os telespectadores. Debate-se desde a existência de Deus aos dramas de prostitutas ou homossexuais. Em janeiro 72, TV 1 apresentava uma reportagem sobre a Suécia, feita por um holandês. Ao mostrar os aspectos da tolerância em relação à pornografia, a câmara filmava um livro pornográfico folheado lentamente, página por página, em primeiro plano. Após a reportagem, um casal nu simulava uma série de posições recomendáveis para relacionamento sexual durante a gravidez.

Não dependendo de publicidade, a TV pode dar-se ao luxo de defender o consumidor. Em programas e informações sobre consumo, experts fazem uma análise impiedosa dos produtos existentes no mercado. A crítica abrange desde a propaganda feita em torno do mesmo até a razoabilidade da margem de lucros do fabricante, Por que o reclame do creme dental X afirma ser este o melhor de todos? Onde reside sua superioridade? Por que seu preço ao consumidor é Y, quando seu custo de produção é Z? A única reação que resta ao fabricante ou distribuidor é aceitar o debate, pois as leis não lhe permitem acionar o apresentador por difamação. Ou perder seus clientes.

Sob este clima irreal de livre expressão do pensamento, a realidade de uma imprensa dirigida e castrada pela autocensura. O autor de The New Totalitarians observa que, se na maior parte das democracias do leste rádio e TV são administradas pelos departamentos de comunicação, na Suécia, como em muitas ditaduras, ambas são controladas pelo Ministério de Educação, constituindo não um instrumento de informação, mas de formação da opinião pública. “Quando a pequena tela invadiu os lares suecos, na década de 60, o acontecimento constituiu a chegada do mundo exterior. Isto quebrou, pela primeira vez na história, o isolamento da população. Muitos viram pela primeira vez um estrangeiro na TV. O povo foi arrancado do século XIX e posto face aos meados do século XX. Intelectualmente primitivo e subdesenvolvido, o sueco era fantasticamente vulnerável ao novo meio. O Sr. Olof Palme (então ministro de Comunicações) percebeu isto.

Utilizou a TV como arma política, e ao tornar-se ministro da Educação, levou rádio e teledifusão consigo.”. Hoje, o objetivo da TV e rádio é provar a Svensson que ele vive no melhor dos mundos e condicioná-lo à ideologia do governo vigente. “O espectador é convidado a ver quão mal vivem as pessoas em toda parte e considerar quão afortunado ele é. Imprensa e jornais seguem a mesma linha. Não se trata apenas de mostrar que ele tem o mais alto nível de vida e a melhor assistência social, mas que na realidade é superior em tudo, particularmente em política e cultura.”

Na imprensa escrita, a livre expressão também é muito relativa. Os cinco principais jornais do pais pertencem a partidos políticos. Expressen, Dagens Nyheter e Göteborg-posten pertencem aos liberais. Aftonbladet, aos social-democratas e Svenska Dagbladet, aos conservadores. Os partidos políticos por sua vez são financiados desde 1965 pelo governo, inclusive os comunistas, que dispõem de um pequeno jornal, Norrskenflamman, em Lulea. com tiragem de 3.000 exemplares. Segundo os homens de imprensa, a notícia deve ser usada para mudar a sociedade e influenciar o povo.

— Este é o objetivo da imprensa, diz Olof Lagercrantz, diretor do Dagens Nyheter, e a intenção de apenas informar é conservadora. Num pequeno país como a Suécia, um jornal das dimensões de Dagens Nyheter tem uma influência enorme, pode modificar a opinião pública.

Vivendo em um país onde não há espécie alguma de censura à imprensa, Svensson não tem condições de receber informações objetivas. As notícias lhe são entregues já desvirtuadas conforme a óptica política do partido que dirige o jornal. E autocensura sempre é mais eficiente que qualquer censura externa. Leif Carlsson, jornalista conservador e católico, queixava-se a Huntford da impossibilidade de qualquer ataque aos ideais social-democratas pela imprensa.

— Como trabalho num jornal nominalmente conservador, posso escrever o que penso. Todos acreditam em igualdade hoje — naturalmente. Mas os céus me ajudem se tento dizer o contrário. Não há chances de que um ataque direto seja impresso, de modo que tenho de camuflar meus pensamentos.


 

UMA CARIOCA EM ESTOCOLMO

 

— Odeio esta terra, odeio esta gente. Eles são frios, desumanos, parecem máquinas, diz Nina (chamemo-la assim), carioca de cor, hoje cidadã sueca.

Semi-alfabetizada, crioula de morro, cabrocha de escolas de samba, Nina prefere não contar como chegou a Estocolmo. Graças à sua cor, encontrou logo um marido, um engenheiro sueco. Após seis anos de residência no país, nacionalizou-se. Trabalha em um ateljé de costura. Sempre que possível, comunica-se com suas clientes num francês aportuguesado, pois seu sueco mal supera o nível de conhecimentos necessários para fazer compras.

— E não me pergunte por que não volto para o Brasil. É desumano fazer essa pergunta. Além disso, eu não sei a resposta.

Este gesto defensivo sintetiza os dramas íntimos vividos pelos imigrantes latinos na Escandinávia. Imersos num universo cinzento e frio, onde os próprios sentimentos adquirem modulações ininteligíveis para os meridionais, os latinos sentem estar vivendo em um outro planeta.

Modus vivendi, hábitos sociais e estados de espírito são condicionados pela geografia do país. Luminosidade é rotina para o meridional, para o nórdico objeto de adoração religiosa. No rápido verão (Nina diz ter caído o último num domingo), quando um sol frio e distante banha sem muito entusiasmo Estocolmo, louras de pele caricaturalmente branca sentam-se em bancos, degraus ou mesmo no chão, levantam saias ou eslaques até as coxas, abrem as blusas e, imóveis, contemplam de olhos cerrados o sol. Man drömmer bort vintern, diz-se, expulsamos o inverno à força de sonhos, e onírico é o gesto com que adoram a luz.

— Eu ria delas quando cheguei aqui, conta Nina. Hoje, mal aparece sol, vou pra rua adorá-lo junto.

O verão de 72 foi considerado pelos meteorologistas o mais quente do século. A temperatura atingiu certo dia 31 graus, o que ocorrera pela última vez em 1939. Nesse dia morreram cinco homens no país, dois de insolação e três com problemas cardíacos. Os jornais berravam em manchetes: ONDA DE CALOR INVADE O PAÍS.

Nos dias de mais intenso verão, durante uns 15 dias o sol se esconde às 22 horas e se ergue às 2. Em Estocolmo, as noites são brancas, macias, irreais. Uma febre percorre a cidade toda, em cada face sente-se alegria, angústia e irritação. Ninguém consegue dormir, sabendo que, há sol lá fora. As florestas e as ilhas enchem-se de noctâmbulos. Mas a falta de sono e o prenúncio do inverno transformam a euforia em irritação quase. Mais algumas semanas e tudo será neve e escuridão outra vez.

Tal ambiência explica a mais difundida prática social sueca, hemmakväll, tarde em casa, literalmente. Mas hemmakväll é muito mais que simplesmente passar a tarde ou noite em casa. Com antecedência, convida-se um ou mais amigos — ou eventualmente nenhum — para viver algumas horas calmas, com música, bebida e levande ljus, luz viva. Uma janta iluminada eletricamente é sacrilégio. Nina não gosta de velas, lembram-lhe velório. E sente saudades do Rio, onde as pessoas saem de casa para encontrar-se, onde uma festinha é algo decidido na hora e não com uma semana de antecedência.

O universo de sentimentos que a rodeia é-lhe impenetrável. Na própria palavra amor — kärlek — está implícita a idéia de jogo. Lek significa jogo, brincadeira, divertimento, passatempo.

Längtan, talvez o mais característico sentimento nórdico, jamais poderá ser experimentado ou mesmo entendido por Nina. Längtan é quase um mal nacional, um misto de saudade, melancolia, langor. Distintamente de saudade, längtan admite uma forma verbal, att Längta. E uma forma verbal implica em passado, presente e futuro. Enquanto o latino sente apenas saudades do passado, o nórdico também a sente em relação ao amanhã Jag Längtar efter sommaren, tenho saudades do verão. Não do passado, mas do que está por vir.

Längtan é insatisfação permanente. No verão, Svensson aspira inverno, neve, esquis. No inverno, deseja o sol. Se está na Suécia, tem saudades do estrangeiro, países distantes. Estando nestes, só aspira uma coisa, a volta ao lar. Verner von Heidenstam tenta traduzir Längtan em poema:

Jag längtar hem sen atta langa ar.
I själva sömnen har jag längtan känt. Jag längtar hem.
Jag längtar var jag gar — men ej till människor!
Jag längtar marken,
Jag längtar stenarna där barn jag lekt.

(A tradução em português é apenas aproximativa, pois não temos vocábulo que signifique precisamente att längta. A tradução mais próxima, porém ainda grosseira, seria ter saudade.)

Tenho saudades de minha terra desde oito longos anos.
Mesmo em sonhos saudades senti.
Tenho saudades por onde vou — mas não dos homens.
Tenho saudades do chão,
Tenho saudades das pedras onde criança brincava.

Att längta não é privilégio de poetas. Nina sentia-se confusa ante uma revista em cuja capa, ao lado da foto de uma mulher com ar sofrido, lia-se uma única manchete: ELA EMAGRECEU 33 QUILOS DE HEMLÄNGTAN, saudades da terra, do lar.

Mas längtan não é o menos complexo dos sentimentos nórdicos. A grubbel, segundo Dominik Birmann, é verdadeira autofagia, “uma das perturbações da alma engendradas pelo enclausuramento hibernal sobre si mesmo, obsessão existencial, hamletiana, cheia de remorsos, escrúpulos indefinidamente ruminados, tolerados, saboreados em deleitação morosa”. Tentando uma tradução, pode-se definir att grubbla como ruminar, cultivar negros pensamentos. Estado de alma menos alegre ainda é a lappsjuka, a doença da Lapônia, que na verdade não afeta os lapões, mas o sueco comum. Lappsjuka é uma obscura impulsão de ordem emocional, um estado físico-psíquico, intimamente relacionado com a paisagem sepulcral das longas noites do inverno. Às vezes, nas cidades do Sul, ouve-se falar de habitantes do Norte que tiveram visões ou exterminaram a família a machadadas. É o orgasmo liberador da lappsjuka.

Próximo a lappsjuka situa-se outro sentimento típico nórdico, não tão intenso e bem mais freqüente, tungsinne. Mais uma vez a palavra é intraduzível nos idiomas dos países de sol, pois seus povos desconhecem o sentimento. Em português, espírito do pesadume seria uma boa aproximação do conceito.

Neste universo de emoções tão pouco meridionais surgiu há século e meio uma seita do frio, o laestadismo. Laestadius, seu fundador, pregava aos lapões, suecos e finlandeses do norte a experiência do mundo interior e o êxtase. “O ensinamento laestadiano, diz Dominik Birmann, que não perdeu totalmente sua influência em Norrland, reaviva constantemente o sentimento do pecado e o remorso nas consciências. A confissão pública dos pecados, fora dos ofícios, provoca pouco a pouco o êxtase dos fiéis, que começam a gritar e a chorar. Certas ocasiões, a histeria tornava-se tal que acabavam dançando, lutando e fornicando lado a lado, o que provocou uma interdição temporária da seita.” Alguns remanescentes dos laestadianos ainda podiam ser encontrados na Lapônia em 1935, os siikavaaristas. Seu líder, Sigurd Siikvaara, pregava o fim dos tempos e entregava-se com seus seguidores a orgias de álcool e sexo. Justificavam-se com S. Paulo: “A lei não foi feita para os justos, mas para os pagãos e pecadores.”

O inverno nórdico impregna tão profundamente a psique sueca a ponto de Almqvist julgá-lo a causa da juventude única do país na Europa: “Pois se um terço somente do nosso ano é produtivo e evolutivo, enquanto os dois outros nos contraem e nos encerram, os dois mil anos que nossa nação viveu na Europa são na realidade setecentos, em comparação com os que viveram os povos cujos anos são quase totalmente produtivos, educativos e criadores de cultura.”

Para fugir desta ambiência plutônica, Nina refugia-se junto aos raros brasileiros (uma centena em Estocolmo) que resistem à glacialidade do clima humano nórdico. São noites de feijoada, cachaça (adquirida em barcos brasileiros) e samba. Seu marido é sempre ausente, não entenderia as gargalhadas e a efusão dos amigos de sua mulher. Na colônia, Nina sempre está informada do último samba, do último vencedor da Esportiva ou dos campeões futebolísticos do ano. Fim de festa, volta bêbada e só para casa, ao encontro de um marido que lhe é impenetrável, estrangeiro. Os brasileiros estão por demais ocupados com as adoráveis louras, que adoram confraternizar com povos distantes e exóticos.

Às vezes, Nina dorme no metrô e desperta em alguma terminal em meio à neve e à floresta, a quilômetros da cidade. Ao receber à noite um telefonema distante perguntando “onde estou?”, os brasileiros já sabem tratar-se de Nina.

Vibraria com uma reprimenda, um insulto, até mesmo uma bofetada, enfim uma manifestação de ciúmes qualquer de seu marido. Mas um sueco jamais se entregaria a tais sentimentos primitivos. Nina lembra, incrédula, o caso de um brasileiro que após uma festa, levou para o apartamento dele uma jovem esposa sueca. Ao acordar no dia seguinte, ela apanha apressadamente o telefone:

— Preciso contar a Arne que fiquei esta noite contigo. Ele gosta muito de ti e ficará contente.

Arne, por sua vez, queria saber:

— Mas que beleza! É teu primeiro brasileiro? Fugitiva do convívio sueco, discriminada pela colônia brasileira, mesmo assim Nina não abandonará a Suécia. No Brasil, suas chances oscilam de doméstica a prostituta. Lá, em vez de lavar chão ou entregar-se nas ruas, será auxiliada pelo Estado sempre que estiver sem emprego ou dinheiro. Possui carro e telefone, tira férias quando bem entende, já conhece quase todas as praias do Mediterrâneo. Se vai a um restaurante ou clube, sua cor suscitará inveja, jamais hostilidade.

Mais importante que tudo isso: os suecos tratam-na à sua maneira — como ser humano, e não como um membro inferior da espécie. Impossível voltar ao país tropical, onde segundo já desprestigiado mito, todos são solidários e amigos ante o infortúnio alheio.

Revelaria falta de tato quem a interrogasse sobre seu ódio e apego a Suécia.


 

HÖTORGET, CONSCIÊNCIA DO MUNDO

 

Quando amas, gastas energias; depois ficas contente, satisfeito e não te importas com coisa alguma. Todo esse negócio de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, e sexo que azedou. — Orwell, 1984

 

Hötorget num sábado de verão. Nos largos situados no centro comercial de Estocolmo, jovens e velhos manifestam-se contra e a favor de todos os países. Cartazes pedem a retirada de Portugal de Moçambique, Inglaterra da Irlanda, EUA da Indochina. Jograis apresentam canções revolucionárias e recolhem dinheiro para o Vietnã e países do Terceiro Mundo. Um franco-atirador, para poupar energias, registrou sua mensagem num gravador em torno ao qual uma pequena multidão ouve atentamente. O autor, sentado fora do círculo, observa as reações de seu público. Um outro traça um esquema do sistema solar e afirma que os homens procedem de Júpiter. O Exército da Salvação e as mais estranhas seitas religiosas fazem seus proselitismos com muita música e estandartes.

Em Hötorget pode-se captar o conceito que os suecos fazem de si próprios em relação ao mundo. Em todos os países há injustiças, erros, miséria, opressão, todos os governos são falhos e Svensson é solidário com todos os revolucionários. Julga sua ação — assim define a coleta de dinheiro e apresentações de cartazes e jograis — de importância decisiva no processo histórico. Consideram-se não apenas simpatizantes, mas membros da FNL vietnamita. Ao ingressar na universidade, além das taxas devidas à associação estudantil e matrícula, pagam contribuições (voluntárias) a FNL e FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), ou a qualquer outra organização guerrilheira de preferência pessoal. A discriminação destas taxas encontra-se no próprio recibo fornecido pela universidade como comprovante de matrícula.

Durante a participação americana na guerra do Vietnã, a cada bombardeio sobre Hanói, apanhavam seus cães e filhos e dirigiam-se em passeata até a embaixada ianque. Por ocasião dos bombardeios do verão de 72, a impressão dada pelos jornais era de que Hanói ganhara a guerra graças às manifestações em Estocolmo. Manchetes de um dia: A SUÉCIA PROTESTOU COMO NUNCA, NIXON ESTÁ DESESPERADO. E no período das últimas eleições americanas fez- se no país uma intensa campanha a favor de MacGovern, que não dispensou nem mesmo decalcomanias nos automóveis.

Olof Palme já liderou várias manifestações de protesto, tendo sido o único estadista que ousou comparar Nixon a Hitler, durante os “bombardeios para paz”, do Natal de 72. Na ocasião, a Suécia enviou 14 milhões de dólares para construção e reconstrução de hospitais em Hanói, sem falar nos auxílios anuais constantes, estatais e privados, ao Vietnã do Norte. Palme estabeleceu ainda um paralelo entre os bombardeios de Hanói e as matanças de Guernica, Obradour, Lídice e Katya, provocando um incidente diplomático por suas declarações. Washington chamou seu encarregado de negócios na Suécia e recusou-se a receber o novo embaixador sueco nos EUA. Um apelo em favor do armistício no Vietnã, organizado pelo Partido Social Democrata, recebeu em 15 dias mais de 600.000 assinaturas.

Em janeiro 73, o governo sueco aprovou crédito para a reconstrução do Vietnã no valor de 100.000.000 de coroas. Em 69, uma dotação de 180 milhões já fora destinada ao mesmo objetivo, mas como a paz não fora até então conseguida, a quantia foi dedicada à assistência humanitária. E no período 74-75, 1% do PNB será destinado a auxílio ao Terceiro Mundo, segundo decisão do Parlamento, o que significará dois bilhões de coroas.

Esta atitude altruísta funciona como mecanismo de manutenção do poder, manipulado pelos social-democratas. “Posso apenas agradecer a Deus por todo este antiamericanismo e protesto contra a guerra do Vietnã, disse um diretor da Bofors. Não fosse esta válvula de escape sabe você o que aconteceria? Todos esses jovens militantes estariam atacando a defesa nacional, ou fazendo agitação para a nacionalização de firmas como a nossa. As coisas se tornariam bem mais difíceis então, especialmente quando o governo é extremamente sensível às pressões da juventude. Não, eu não sou antiamericano, mas sinto-me aliviado ao ver que o antiamericanismo manteve esse ardor distante de nós.”

Com a retirada das tropas americanas do Vietnã, uma outra válvula precisará ser encontrada. A tarefa não é difícil, para Svensson há milhares de lutas e reivindicações a serem encampadas, fora da Suécia. O sete de setembro último, por exemplo, foi efusivamente comemorado em Estocolmo. EXPRESSEN dedicava suas duas páginas centrais ao sesquicentenário da Independência do Brasil. Numa página inteira, uma foto — posada, esclarece o repórter — de uma mulher sendo torturada no pau-de-arara, ou papegojpinnen. Thomas Hammarberg, que assina a reportagem, escreve: “Hoje o Brasil comemora sua Independência. É uma data nacional e há exatamente 150 anos o país tornou-se independente. O presidente falará à nação e certamente louvará o desenvolvimento econômico do país e a posição do Brasil como nova potência. Mas não dirá nada sobre a pobreza, a oposição e os prisioneiros políticos.”

Durante os primeiros dias de setembro, nas universidades, Casa de Cultura e mesmo nas ruas de Estocolmo, cartazes denunciavam o regime brasileiro, apresentando um mapa do país, dados sobre analfabetismo e distribuição de rendas, informações sobre o Esquadrão da Morte e as fotos de Garrastazu Médici e Sérgio Fleury. Na Rádio Suécia, TV e instituições de ensino foram organizados debates e palestras por refugiados políticos pertencentes ao FBI (Front Brésilien d‘Informations) com sede na Argélia. Numa dessas promoções, organizada pela Seção Brasil do Comitê América Latina, os bravos jovens suecos davam sua contribuição à redenção do povo brasileiro: cantavam canções revolucionárias ao som de guitarras e aplaudiam as perspectivas de imediata tomada do poder pelas esquerdas, confirmadas pelo confereneista. O ardor dos suecos pelo Brasil é tal que o governo brasileiro já foi acusado de estar invadindo a Amazônia, “reserva florestal de propriedade de todas as nações”.

Para Svensson, Lamarca e Marighella (este tem vários livros publicados em sueco) são dois ídolos do povo brasileiro, e organizações como VPR, MR8, POC, POLOP, JUC, AP, PCB, PC do B — há muito extintas e sepultadas — são entidades revolucionárias atuantes que tomarão o poder mais cedo ou mais tarde. Esta visão irreal da situação política presente lhes é transmitida pelo não pequeno contingente de brasileiros que buscaram o exterior por razões políticas. Para o imigrante, seja este jurista, poeta ou filósofo, a Europa oferece em princípio duas chances: lavar pratos, carregar lixo, varrer ruas e trabalhos do gênero, ou casar com uma nacional. Nem sempre tendo a ventura — cada vez mais rara — de situar-se em um país através do casamento com uma de suas cidadãs, e não desejando submeter-se a trabalhos servis, os refugiados brasileiros escolhem uma terceira opção: interpretam o papel de revolucionários e guerrilheiros. A figura do guerrilheiro tem alta cotação no mercado europeu de sofisticações. Teenagers dormem com Guevara desenhado em seus lençóis, esfregam o corpo com sua efígie decalcada em toalhas, levam-no às boates da moda em suas blusas. Assim nasceu o FBI, de infeliz sigla. Seus membros conseguem sem dificuldade arrecadar belas somas à custa do idealismo ingênuo da juventude européia. Com estes subsídios para a redenção do povo brasileiro, locomovem-se de capital em capital, residindo em bons hotéis, dando entrevistas à imprensa e organizando a “retomada do poder”. O sonho deve ser alimentado, não deve acabar.

Que garantias legais eu teria no Brasil para lutar contra o governo? — perguntou impetuoso revolucionário sueco, em um debate realizado nas dependências da ABF. A pergunta define perfeitamente o espírito revolucionário das esquerdas suecas. Todos estão dispostos a qualquer luta, desde que lhes sejam dadas garantias contra ferimentos, doenças, fome, morte. Trygghet antes de tudo. O exemplo dos 400 suecos que foram lutar nos campos de Espanha contra Franco hoje não estimula ninguém. Esta psicologia não causa espanto num país onde o governo prefere organizar e financiar a contestação a reprimi-la. O conferencista foi honesto na resposta, o que arrefeceu imediatamente os ímpetos libertatários de Svensson.

Tudo é perfeito no Reino dos Sveas. Explorações, injustiças e crimes só ocorrem além das fronteiras do país, a crer-se nas palavras de ordem e slogans das manifestações. A realidade não é porém tão idílica. A sociedade do bem-estar está ainda distante da eliminação do binômio senhor-escravo. Carne humana é mercadejada pelos magnatas da pornografia. “Com a mesma indiferença fria com com que se vende peixe ou salada ou qualquer outra mercadoria.” Os trabalhadores estrangeiros, embora recebam os melhores salários e serviços assistenciais da Europa, vivem marginalizados em ghettos e só têm acesso a profissões, servis. Empresários suecos instalam fábricas em Portugal e índia, sob o pretexto oficial de ajudar estes países a se ajudarem. Erguer uma indústria de tecidos na Suécia é insensatez. Melhor será auxiliar o desenvolvimento de Portugal ou do Paquistão. Instala-se lá a indústria com uma série de isenções fiscais a investimentos estrangeiros, num país onde o imposto de renda não atinge nem um terço do sueco. A mão-de-obra é dez vezes mais barata, o que possibilita a oferta de um salário digno, ou seja, o dobro do ganho pelo operário português ou paquistanês. Mas cinco vezes inferior ao que teria de ser pago ao operário sueco. Os requisitos antipoluição e segurança do trabalho são menores. O custo transporte torna-se então insignificante diante dos lucros. E exploradores e explorados brindam, felizes, à relação que os une.

A extraordinária amplitude de visão das esquerdas suecas lhes impede de ver o que ocorre sob seus pés. Johan Bergenstrale é um das raras consciências a encarar honestamente seu país. Em seu filme Jag hetter Stelios (Eu me chamo Stelios) — baseado no romance de um autor grego — denuncia o desprezo solene dos suecos em relação ao imigrante que lhe lava os pratos. Em um dos mais inteligentes momentos do filme, Stelios — imigrante grego — reúne suas últimas coroas e compra dois filés e duas garrafas de vinho para confraternizar com uma sueca que o agredia eroticamente. A medida que bebem, Stelios torna-se terno e romântico, ela vermelha e sensual. “Eu te amo”, murmura Stelios, bêbado e sincero, com um sotaque doloroso. A garota apenas ri. A luta desesperada na cama transcende o meramente sexual. Stelios não possui apenas a fêmea excitada e aberta, mas toda a Suécia. Sua relação é de animal para animal, rompeu-se o elo escravo-senhor. Foi aceito como homem, pela primeira vez sente-se integrado no país hostil. Pela manhã, desperta do sonho. A garota está vestida e em pé. Friamente, avisa-o de que precisa abandonar o quarto. Stelios encolhe-se como um feto na cama. Não possuíra ninguém, fora possuído.


 

SUMMA AV KARDEMUMMA

 

Condenar ou elogiar incondicionalmente a sociedade erguida pelos suecos é a atitude rotineira de quase todos quantos escrevem sobre a Suécia. As imprecações condenatórias são sempre ridículas. Fundamentalmente, protestam contra a pornografia, costumes sexuais, imoralidade. Como se moral fosse um conceito absoluto para todas as, latitudes. Os índices de alcoolismo e suicídios são apresentados como argumentos definitivos para a negação da experiência sueca.

Outra atitude não menos ridícula é a laudatória. Jornalistas em rápido turismo pela Escandinávia visitam sex shops e porrklubbar, vêem o sol da meia-noite, colhem estatísticas deslumbrantes nos folhetos distribuídos pelo Instituto Sueco, e de volta a seus países publicam tratados sobre o paraíso do amor, da liberdade e do bem-estar.

Os turistas do Sul, em especial os latinos, não voltam de seus tours pela Suécia sem inesquecíveis vivências eróticas com as adoráveis louras nórdicas. O macho latino, em seu orgulho viril, jamais admitiria ter conhecido o amor sueco apenas em pornofilmes ou relações pagas.

E assim o país ganha uma reputação no exterior que pouco ou nada tem a ver com sua cultura e instituições. “Em verdade, também Svensson vende uma imagem falsa de seu país na tentativa de promover o turismo. Um caso provocou longas polêmicas em 72: uma agência de viagens distribuía propaganda turística de Estocolmo no exterior, onde se mostravam mulheres conduzindo ônibus com seios nus.

A visão apresentada ao longo deste trabalho pode parecer um pouco negra, por vezes tétrica. Mas “os verdadeiros problemas —dizia Henry Miller — só surgem após satisfeitas as exigências do estômago e do sexo”. Os suecos vivem problemas da condição humana. Os latinos, não solucionamos ainda os problemas da condição animal.

Sempre que um grupo de latinos estiver reunido em Estocolmo, alguém — quando não todos — estará vomitando imprecações contra a Suécia. “Nossos países são pobres e subdesenvolvidos, dizem, mas lá ninguém apodrece encerrado num apartamento.” Em parte têm razão. É um pouco difícil conceber — dado o temperamento latino — que alguém tenha de enfrentar a morte só, entre quatro paredes, em países como a Itália, Espanha, Brasil. Mas, os contestadores da sociedade sueca não lembram — ou preferem esquecer — que nestes países, mendigos e indigentes só não apodrecem nas ruas porque a emanação de gases perturbaria os transeuntes e formaria uma péssima imagem dos poderes administrativos. Se cadáver não exalasse mau cheiro, ninguém teria pressa em retirá-los das ruas.

Enrico Altavilla, em Svezia, Inferno e Paraíso, comentando a pobreza de humor e ingenuidade nórdicas, observa que a Suécia é uma utopia realizada graças à falta de malandragem: “Entre nós, em compensação; ninguém é bobo. Com os resultados que todos conhecemos.”

A Suécia é hoje invejada por todas as nações, e isto deve-se fundamentalmente ao pragmatismo de seus habitantes . O clima, a geografia, o inverno nórdicos não permitem metafísicas. Costumes como o ättestupa e o grävöl bem demonstram isto. Antes de perguntar-se que lhe esperava após a morte, o primitivo autóctone da Escandinávia precisava, para manter-se vivo, lutar sem tréguas contra o ambiente que o envolvia. O cristianismo só poderia aclimatar-se num clima tépido, jamais no Saara ou na Lapônia. Enquanto outros povos criavam religiões, artes e sistemas filosóficos, Svensson tratava de subjugar a natureza e transformar em conforto as asperezas da vida diária. A Suécia deu ao mundo cientistas, pesquisadores, inventores. Jamais filósofos.

A experiência sueca comporta não poucas críticas. A destruição gradativa do individuo é decorrência lógica dos mundos perfeitos. Comentando as diferenças entre o mundo em que vivera e o Admirável Mundo Novo, diz Huxley:

“O nosso era um pesadelo de excessiva falta de ordem; o deles, no século VII d. F. (depois de Ford), de ordem em demasia. No processo de passagem de um extremo ao outro, haveria um longo intervalo, imaginava eu, durante o qual o terço mais afortunado da raça humana faria o melhor aproveitamento de ambos os mundos — o mundo desordenado e caótico do liberalismo e o demasiado ordenado Admirável Mundo Novo, onde a perfeita eficiência não deixaria lugar para a liberdade ou iniciativa pessoal.”

Mas as suposições do ensaísta inglês não se confirmaram. O intervalo entre a excessiva falta de ordem e a ordem em excesso não ocorreu. “É verdade que, no Ocidente, homens e mulheres gozam ainda de uma larga medida de liberdade individual. Mas até naqueles países de tradição de governo democrática, esta liberdade, e até o desejo desta liberdade, parece encontrar-se em declínio. No resto do mundo a liberdade para os indivíduos já desapareceu, ou esta manifestamente em vias de desaparecer.”

Hoje, a Suécia é uma nação onde nenhum homem ou mulher tem uma velhice infamante. Nenhum cidadão precisa estender a mão para desconhecidos para pedir-lhe o dinheiro da refeição seguinte. Ninguém é humilhado ou escarrado por ter nascido sem — ou perdido — um braço ou perna. Pelo contrário, o deficiente físico é o ser humano mais bem assistido pelo Estado, a ponto de todos os toaletes públicos possuírem entradas e vasos especiais para paraplégicos. Apenas tais conquistas já justificam os métodos totalitaristas de manutenção do poder dos social-democratas, que afinal, foram os engenheiros da Admirável Suécia Nova.

Problemas existem, o bem-estar tem suas moléstias. Jovens perdidos e intoxicados em meio ao concreto parece, ser a mais grave delas. A prostituição não foi — nem será — eliminada. Além disso, a Suécia envelhece. No país onde a média de longevidade é a mais alta do mundo, os nascimentos são poucos. O desejo de um certo padrão implica na renúncia a uma prole numerosa, quando não a todo e qualquer filho. O número ideal de componentes de uma família é três para Svensson. Pais com dois ou mais filhos tornam-se cada vez mais raros. O vértice da pirâmide etária tende a igualar-se à base. Isto faz a Suécia ainda mais dependente da mão-de-obra estrangeira.

Por outro lado, a perfeição de determinadas instituições põe em risco o próprio sistema. Um operário, estando desempregado, recebe do Estado o necessário para comer e viver dignamente. Se arranjar um emprego na faixa salarial mais baixa — onde as possibilidades são conseqüentemente mais amplas — receberá poucas coroas a mais, trabalhando oito horas por dia, do que quando não fazia nada. Pouco ou nenhum é o estímulo ao trabalho. A longo prazo, isto atemoriza os governantes, que já começam a inquietar-se com a perfeição das leis sociais.


 

 

 

BIBLIOGRAFIA

Em sueco:
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ASKLUND e WICKBOHM: Vagen tili mognad, Estocolmo, 66.

Em inglês:
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LINNÉR, BIRGITTA: Society and Sex in Sweden, Estocolmo, 71.
TOREKULL, BERTIL: Love in Sweden, Estocolmo, 70.

Em italiano:
ALTA VILLA, ENRICO: Svezia, Inferno e Paradiso, Milão, 67.

Em francês:
BERGSTRÖM-WALAN, M. B., JOACHIM ISRAEL, ALVAR NELSON e outros: L‘expérience Scandinave, Paris, 71.
BIRMAN, DOMINIK: Suéde, Lausanne, 68 DESGRAUPES, PIERRE: Enquete sur la Suède, Estocolmo, 65.
FARAMOND, GUY DE: Une politique du bien-être, Paris, 72.
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SANDLUND, MAJ-BRITT: Le Statut de la femme en Suède, Estocolmo, 70.
SÕDERGERGH, BENGT: La culture et l‘État, Paris, 71.

Foram ainda feitas pesquisas nos jornais Expressen, Aftonbladet, Dagens Nyheter e Svenska Dagbladet e nas revistas Se, Lektur, Fib- Aktuelt, Vi, Folket i Bild e Chaplin como também nos folhetos distribuídos pelo Instituto Sueco.


 

 

Notas
1 Solstício de verão
2 Svensson: sueco médio
3 Caixa de seguros, o INPS sueco
4 Casa de veraneio no campo
5 Ler capítulo Casamento de Consciência
6 Jornalista sul-africano, autor de The New Totalitarians, livro de leitura obrigatória para interessados no problema sueco.
7 Estação central de metrô.
8 Säkerhetspolis, polícia de segurança
9 Huntfold.
10 Bétula, abeto, carvalho, galho, ramo, raiz, cerejeira, faia, sorveira, olmo, tília, tronco, freixo, choupo.
11 Ônibus que distribui víveres na zona rural
12 Clubes pornográficos
13 Gíria, de origem cigana, para designar rapaz
14 Tjej significa garota
15 Sala de diversões
16 Literalmente, garotas que posam
17 Após fevereiro 71, os clubes pornográficos foram proibidos de afixar suas mercadorias na vitrine, para resguardar o direito dos que não querem ver pornografia.
18 As Minorias Eróticas.
19 Suécia, em sueco Sverige, vem de Svearike, reino dos Sveas
20 Vendedores ambulantes clandestinos de Sprit
21 Titulo brasileiro: A Hora do amor


 

JANER CRISTALDO
O PARAÍSO SEXUAL DEMOCRATA
(Referências da 1ª edição)

Bonecas de plástico com sexo térmico, sexo sem emoção, pílulas para o orgasmo, a solidão industrializada, pessoas identificadas por números, seres humanos trocando suas vidas pelas de animais, cadáveres insepultos em plena metrópole, o Estado Infalível que aniquila o indivíduo, câmaras vigiando transeuntes, tecnocratas que utilizam o sexo e o bem-estar como instrumentos de controle e manutenção do poder — estes elementos só existiam, há poucos anos, em ficções de profetas do fim. Hoje, fazem parte do quotidiano — e muitas vezes superam as previsões de Huxley e Orwell — de alguns milhões de seres humanos. habitantes de um certo paraíso situadopróximo ao Círculo Polar Ártico, destinado geologicamente a ser um deserto de neve, não fossem as correntes quentes do Gulf Stream.

O autor, jornalista, advogado e licenciado em filosofia, mostra em O Paraíso Sexual Democrata uma face surpreendente e inesperada da Suécia.

REVELAÇÕES DE UM BRASILEIRO QUE SAIU DO FRIO

Janer Cristaldo por certo vai irritar muita gente. Estudioso das ciências humanas e sociais, o autor enfoca sob prisma absolutamente novo, aspectos da sociedade nórdica, nada lisonjeiros e até bastante contundentes. O que vale, no entanto, não é só a originalidade de suas observações, mas a acuidade de sua análise, a lógica de suas conclusões. Não o move por certo o desamor à Suécia, mas a angústia pela sua opção, desgarrada das raízes do ser humano.

Para a nossa morena imaginação tropical irritará a derrubada do paraíso de afrodisíacas ninfas louras, ou aborrecerá aos nossos ideólogos do absurdo a desmistificação do celebrado socialismo sueco. A verdade, porém, é que dá para pensar num mundo em que o estatismo absoluto, levado ao paroxismo, violenta as fronteiras da intimidade da pessoa humana, explorando-lhe as suas reservas vitais e lúdicas, drenando-lhe as manifestações para a exaustão, no intuito de exercer o controle de suas forças, programando a sua liberdade, cerceando a sua espontaneidade. E o que nos oferece esse mundo onde o Estado é o senhor onisciente? Segurança social, elevada renda per capita, moeda forte, perfeitas estatísticas, etc, etc? Em troca de quê? — De amor sem solidariedade, de sexo sem emoção, de orgasmo semsatisfação, de liberdade sem participação. É algo que nos recorda as alegorias cristãs sobre o inferno...

Mais que um fato de agora o que nos revela este livro são as perspectivas do amanhã. O Estado Tecnológico — cujo estágio inicial parece haver a Suécia alcançado — constitui um desafio à nossa Imaginação no que tange à sobrevivência histórica dos seres humanos como tais.

Cabe, pois, a pergunta ao término dessa radiografia do paraíso ártico: cruel realidade ou sinistra antevisão do futuro?


 

©2012 — Janer Cristaldo
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Agosto 2012

 

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