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Manuel Odorico Mendes

Opúsculo Acerca do Palmerim de Inglaterra e do Seu Autor

No qual se prova haver sido a referida obra composta originalmente em Português

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Opúsculo Acerca do Palmerim de Inglaterra e do Seu Autor
No qual se prova haver sido a referida obra composta originalmente em Português (1860)
Manuel Odorico Mendes (1799-1864)

Fonte digital
Exemplar da Harvard College Library
The gift of Frederick Athearn Lane, of New York, N.Y.
(Class of 1849)
Escaneado por Google
Disponível no Google Books
http://books.google.com

Transcrição, atualização ortográfica e editoração
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© 2009 Manuel Odorico Mendes
USO NÃO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL


Índice

Nota Editorial
Opúsculo Acerca do Palmeirim de Inglaterra e do Seu Autor
Primeira Parte
Em que se demonstra de quem seja o original
Segunda Parte
Em que se ajuiza da obra e do estilo
Terceira Parte
Em que se diz quanto se pôde colher da vida e dos escritos do nosso famoso clássico


 

Nota Editorial

Sobre a importância deste Opúsculo, dou a palavra a João Francisco Lisboa que, na Biografia de Odorico Mendes, escrita e publicada em 1862, incluída na edição da Ilíada em Versos Portugueses (disponível no eBooksBrasil.org) escreveu:

“Contestava-se a Portugal a glória do haver sido a pátria do autor do Palmerim de Inglaterra. Francisco de Moraes, dizia-se, não fizera mais do que traduzir ou imitar o romance originalmente escrito em espanhol. A princípio ainda se fazia tal qual resistência à estranha e injusta pretenção, mas a final cedia-se já, e por tal modo, aos especiosos argumentos de Salvá e outros, que um escritor de tanta consciência, gravidade, e erudição, como o autor do novíssimo Dicionário Bibliográfico, chegou a sancionar com a autoridade do seu voto a usurpação espanhola. Assim, o afamado Palmeirim de Inglaterra estava já definitivamente desnaturalizado de português, e Luiz Hurtado, e não Francisco de Moraes, era o seu legítimo e verdadeiro autor.

Indignado contra esta espoliação, Odorico Mendes escreveu um opúsculo, simples, conciso, substancial, e com argumentos irrefragáveis e concludentíssimos, não só reivindicou para a literatura portuguesa este malbaratado fruto do engenho de Francisco de Moraes, mas suscitou à memória obliterada dos contemporâneos a fábula do poema, os seus mais imaginosos episódios, e as graças do estilo e locução que tanto o recomendaram sempre à admiração dos homens de gosto apurado, desde Cervantes até Walter Scott e Southey. Esse opúsculo, fê-lo imprimir aqui, vai em dous anos, sem outro estímulo e interesse mais que o de servir à glória da língua em que fala e escreve.

Acreditá-lo-eis? Nem um só jornal, político ou literário, fez a mais simples menção deste acuradíssimo trabalho, ou anunciou sequer a sua publicação! E ainda não há muitos meses, discutindo incidentemente o assunto, afiançavam algumas folhas diárias de Lisboa que a origem portuguesa do célebre romance de cavaleria nunca fora objeto de dúvida! Deus sabe entretanto se os poucos argumentos e datas que invocaram concluíam a favor de Portugal ou da Espanha. Mas o que ainda desta feita certamente não fariam, era citar o nome e a obrinha de Odorico Mendes, se já depois de encerrado o curto debate, em que chistosa e reciprocamente se motejaram, alguma alma perdida não fizesse a um deles a revelação daquele profundo e impenetrável segredo.”

Tantos anos passaram, tantas águas rolaram... e acreditá-lo-eis? Domingo, 9 de março de 2008, em um blog denominado O Estado da Questão, Francisco Marques, advogado em Esposende-Barcelos, Portugal, sobre a autoria do Palmerim de Inglaterra, escreveu:

“Hoje, é pacífica, a atribuição da autoria do PALMEIRIM DE INGLATERRA a Francisco de Morais. Sobretudo, depois de WILLIAM EDWARD PURSER, em 1904, o ter demonstrado, sem margem para dúvidas, na sua obra “Palmeirim of England: Some remarks on this romance and controversy concerning its authorship - Dublin.”.”

Nem uma linha, uma palavra sequer sobre este Opúsculo de Odorico Mendes, publicado em 1860! Mas não é caso único. Em Palmerim de Inglaterra: Para educar e divertir o príncipe (e o leitor), Francisco Ferreira de Lima, Prof. Adjunto do Depto. de Letras e Artes, doutor em Língua Portuguesa pela USP, publicado em Sitientibus (Feira de Santana, n. 13, p. 91.113, jul./dez. 1995), disponível na web em pdf, escrevia:

“Francisco de Morais pode ser perfeitamente enquadrado nesse perfil. Discussão sobre se ele ou Hurtado é o autor do Palmeirim de Inglaterra à parte, a não ser que se queira fazer a novela da novela, tão a gosto de certo tipo de estudioso, o Palmeirim de Inglaterra é o que se pode chamar de obra-prima.”

Nem vou relembrar que entre os direitos morais do Autor está o da atribuição de autoria. Mas culpa não cabe aos citados, premiados por uma busca aleatória na internet. Como ter notícia de um Opúsculo raro, que não passou da primeira edição de 1860?

E mais: sem dúvida o Palmerim de Inglaterra é uma obra-prima, já o reconhecia nada menos, nada mais que Cervantes. Só ao Palmeirim e ao Amadis pouparia da fogueira.

Obra prima, citada, elogiada, até glorificada... mas tente o eventual leitor encontrá-la nas livrarias, mesmo na maioria das bibliotecas! O que o inquisidor não conseguiu, o descaso com os clássicos de nossa língua se encarregou de fazer. Até nos sebos é obra rara, de quase impossível garimpagem. Mas poderá ser encontrada no books.google.com. É fato comum, da vida, quase, louva-se e incensa-se o autor, não se difunde a obra!

Se com a obra isso aconteceu, imagine-se então com este Opúsculo que trata da autoria dela! Está, também, disponível em forma digital, graças aos bons serviços do Google. Mas em ortografia datada, o que dificulta sua difusão junto às novas gerações. É o que, primeiro, justifica esta edição. Após, o fato de ser, dizem, tirante as notas às traduções, o único texto em prosa autorado por Odorico Mendes.

Além, claro, de ser um aperitivo para leitura do próprio Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, indiscutivelmente dele, como atesta o Opúsculo de Odorico Mendes.

Como foi dito e o eventual leitor já se deu conta, trata-se de uma segunda edição, agora digital, de obra rara, extraída da digitalização pelo Google Books de exemplar da primeira edição. Não é para os estudiosos, que serão melhor servidos pela digitalização do Google. É para o grande público (sei, não tão grande) e especialmente para as novas gerações que poderiam achar árida a leitura de algo em ortografia do século XIX, entremeada por citações do século XVI.

Para conservar o sabor, mantive muito do que, apesar de desusado, continua nos dicionários correntes, como cousa (coisa), vêspora (véspera), engorladores (engroladores), escultados (esculpidos). Mantido também o que pareceria hoje do linguajar vulgar, mas tem abrigo na literatura clássica, v.g.: inda (ainda), (até). Mas té li, por clareza: té ali.

Nas pinturas e outras passagens em que Odorico transcreve o Palmerim de Inglaterra, tive que decidir se mantinha o português em que fora escrito ou atualizava a grafia. Decisão fácil: atualizei. Que os muito interessados, os estudiosos e especialistas façam o download da edição escaneada pelo Google.

Receiando, mantido, em lugar de receando — é ter receio, certo? desconheço quem tenha receo! —. Essas reformas ortográficas...

Nem precisaria dizer, mas digo: capa e índice não constam da fonte digital. No mais, as protocolares desculpas por eventuais erros de digitação, revisão ou editoração.

É isso. Boa leitura!

Teotonio Simões
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OPÚSCULO ACERCA
DO
PALMEIRIM DE INGLATERRA
E
DO SEU AUTOR.


Francisco de Moraes foi reconhecido sempre como autor do romance ou poema de cavalaria Palmeirim de Inglaterra, desde que se averiguou não o ser D. João II, nem o infante D. Luiz, nem algum dos príncipes de Portugal; falsa opinião que, vogando fora do reino, dentro nunca teve sectários. Porém em 1826, no Catálogo dos livros espanhóis e portugueses impresso em Londres por Vicente Salvá, literato aliás de grande merecimento, ora atribui-se a paternidade a Miguel Ferrer, ora a Luiz Hurtado; o que se lê na página 163 da primeira parte e nas 156 e 157 da segunda. Funda-se, para arrancar aos portugueses a palma de Inglaterra, conforme a expressão do imortal Cervantes, em sair à luz o livro espanhol em 1547, o português só em 1567, edição de Évora, por André de Burgos; razão que parece irrefragável; mas, sendo a única, tendo eu para derribá-la muitas e muito mais fortes, expô-las vou, na certeza de que ninguém mais disputará plausivelmente contra o nosso Francisco de Moraes, porque nada se opõe à evidência.

Este opúsculo dividir-se-á em três partes: numa demonstrarei de quem seja o original; em outra, ajuizarei da obra e do estilo; na última, direi quanto pude colher da vida e dos escritos do nosso famoso clássico.

*


PRIMEIRA PARTE.


Constante é que Francisco de Moraes, afeiçoado à casa dos Linhares, esteve com um na corte de Francisco I. Disto não se duvide, porque ele mesmo, na dedicatória à infanta D. Maria, se explica assim: “Eu me achei em França os dias passados em serviço de Dom Francisco de Noronha (este ainda não era conde, só o foi depois da renúncia do primogênito D. Inácio), embaixador d’el-rei nosso senhor e vosso irmão, onde vi algumas crônicas francesas e inglesas; entre elas vi que as princesas e damas louvavam por extremo a de Dom Duardos, que nessas partes anda tresladada em castelhano e estimada de muitos. Isto me moveu a ver se achava outra antigualha que pudesse tresladar, para que conversei [com] Albert de Rennes em Paris, famoso cronista deste tempo, em cujo poder achei algumas memórias, e entre elas a crônica de Palmeirim de Inglaterra, filho de Dom Duardos, tão gastada da antigüidade do seu nascimento que com assaz trabalho a pude ler: tresladei-a, por me parecer que pela afeição de seu pai se estimaria em toda parte, e com desejo de a dirigir a Vossa Alteza.”

Segundo o tomo 3 do Quadro Elementar das relações políticas e diplomáticas de Portugal pelo visconde de Santarém, Paris, 1843, — era embaixador em França em Novembro de 1543 D. Francisco de Noronha, ao depois conde de Linhares: este diplomata acalmou com muita habilidade a indisposição de Francisco I por el-rei de Portugal não lhe ter participado o casamento da infanta D. Maria (do mesmo nome que sua tia a filha de D. Manuel e D. Leonor) com o príncipe D. Filipe, e principalmente por ajustá-lo com um inimigo da coroa de França; e o soberano de Portugal contestou com os motivos produzidos pelo embaixador. Em Abril de 1544, escreveu D. João III ao bispo de Tanger D. Gonçalo Pinheiro, seu embaixador em França, a respeito dos corsários; tornou-lhe a escrever em 28 de Julho e em 2 de Agosto do mesmo ano. Em 13 de Dezembro de 1548, por uma carta credencial, foi de novo nomeado o mesmo D. Francisco de Noronha.

Em duas embaixadas pois serviu o segundo conde de Linhares, uma até 1543, a outra principiando em 49, atenta a data da credencial. Ora, asseverando Moraes ter estado em França os dias passados, expressão indicadora da sua recente chegada, e ajuntando que dirigia o Palmeirim à princesa, entre outros motivos, por haver em França recebido mercês da rainha cristianíssima, viúva de D. Manuel e mãe da mesma D. Maria; segue-se que não se trata da segunda embaixada, porque dessa vez o conde só podia estar em Paris muito depois do falecimento de Francisco I, acontecido em Março de 1547, quando sua viúva já não residia em Paris: é fato incontestável que esta senhora, morto o marido, foi-se logo para Flandres, d’onde acompanhou a seu irmão Carlos V para Espanha.

Assentado que Moraes só esteve em França até 1543, e ao chegar a Portugal ofereceu o Palmeirim à filha de D. Manuel, deita isso para o começo de 1544. Como é que o tradutor de uma obra saída em 1547 dedicou a sua versão em 1544? Esta só consideração desmorona todo o edifício de Salvá; mas, ex abundante, apresentarei outras não menos convincentes, intrínsecas ao poema português. — Antes de entrar nelas, tocarei em mais uma indução de Salvá ou de seu filho, que se escorou num acróstico de cujas iniciais forma-se a oração Luis Hurtado autor al lector dá salud. Primeiro, nessas estâncias confessa que verteu a obra; segundo, a palavra autor só se refere ao acróstico, de Hurtado certamente; e refira-se embora ao poema, autor é o que faz alguma cousa, e uma tradução é alguma cousa. Restritamente se diz autor quem traça ou inventa a idéia, e só neste sentido é inaplicável ao tradutor; e, se hoje mais freqüentemente se toma na acepção restrita, no tempo de Hurtado e muito depois não era assim, quer em Espanha quer em Portugal: Cosme Ferreira de Brum, que metrificou os argumentos da Eneida vertida por Franco Barreto, a este chama autor no soneto que lhe dirigiu; e o padre Viegas, da Companhia de Jesus, que do italiano traduziu um livro de piedade, apelidam-no autor todos os censores, mais os que lhe deram as licenças para correr. Fraquíssima e inconcludente prova é a que se funda num vocábulo de ambiguo sentido.

Afirmei que Hurtado se confessa tradutor; vejamos o acróstico:

Liendo esta obra, discreto lector,
Vi ser espejo de echos famosos;
Y viendo aprovecha a los amorosos,
Se puso la mano en esta lavor:
Halle que es muy digno de todo loor
Un libro tan alto, em todo facundo
Rebiven aqui tos nuevos que al mundo
Tomaran renombres de fama mayor.

   Aqui los passados su nombre perdieron,
Dejando la gloria a questos presentes:
Olvido se tenga de aquellos valientes
Aviendo mirado lo questos hizieron,
Vereyslos, lectores, en quanto subieron
Tratando las armas; en las aventuras
Obrando virtudes, dejaron a escuras
Roldan y Amadis, que ya perecieron.

   Aquí Palmeirin os es descubierto,
Los echos mostrando de su fortaleza:
Leeide, pues es hystoria de alteza
En todo aplacible; con dulce concierto
Coged com sentido: en ello despierto
Todas las flores; de dichos notables
Oyendo sentencias, que son saludables;
Robando la fruta de agenos huertos.

   Direte, lector, aqui solamente,
Aqueste tratado no dejes de aver,
Sabiendo quan poco puedes perder;
Aviendo mirado el bien de presente,
La habla amorosa y estilo eloquente,
Veras las razones y gracias donosas;
Dirás no aver visto batallas famosas,
Si aquestos mirares, em todo excelentes.

Nestas coplas, onde não há beleza de estilo nem cousa que cheire a poesia (ao contrário das poucas de Moraes inseridas entre as suas prosas, versos em que se aproxima do modo singelo e afetuoso de Bernardim Ribeiro), gaba Hurtado o livro e o eleva acima do Amadis e do Orlando Furioso, gabos só próprios de um tradutor e muito impróprios de um autor; e o verso Robando la fruta de agenos huertos é prova plena de não ser dele a composição original; mas o que tira até a esperança de dúvida é a primeira estância. Hurtado sim originalmente compôs o acróstico, de cuja invenção não lhe negaremos a glória.

Vamos agora ao seio do poema, e dele desentranhemos claras e importantes razões, que tem de convencer os mais obstinados.

Francisco de Moraes, residindo em Paris de 1540-1543, enamorou-se de uma dama da rainha D. Leonor, apelidada Torci, de uma família ainda hoje conhecida: não o aceitou a dama, por discordarem na idade; o que patenteia o seu discurso — Desculpa de uns amores —, onde chora o seu desengano. Esta desventura foi causa de haver, nos capítulos 137-143 do Palmeirim, introduzido umas justas em honra das quatro senhoras francesas Mansi, Telensi, Latranja e Torci: nestas justas, que finge terem sido sustentadas em Dijon por Floriano do Deserto, ele dá sempre a melhor a Torci, que era donzela, sendo casadas as três; e nessa ficção, em desforra do desprezo que sofreu em Paris, à larga discorre sobre a inconstância do belo sexo do país, e até parece que em Mansi quis representar a duquesa d’Etampes, por quem Francisco I menoscabou tanto a consorte, que o tinha sido do português o afortunado rei D.Manuel. — Antes de proseguir no meu propósito, apontarei que Moraes, em tal episódio inteiramente da sua fantasia, fala como se o achasse na crônica geral dos feitos antigos e obras notáveis dos franceses; reparo este que me servirá oportunamente.

E tornando à matéria, cabe lembrar que Hurtado, na edição de 1547, traz os mencionados onze capítulos: fica pois evidente que o suposto compositor não havia de inserir no seu livro uma ficção nascida da aventura do seu futuro tradutor; que a composição portanto não é de Luiz Hurtado, o qual por certo nunca a atribuiu a si: foi Salvá quem lhe quis outorgar esta mercê. — João de Brito de Lemos diz, no Abecedário Militar: “E até o Palmeirim de Inglaterra, feito por Francisco de Moraes, que na nossa língua tanto se avantajou, foi traduzido em espanhol.” Ninguém o contrariou, nem a Manuel de Faria, nem ao bisneto de Moraes o padre Balthasar Telles; e depois de estabelecida a cousa por contemporâneos, como o foi Gandavo, não sei porque o dito de um bibliógrafo de 1826, baseado numa data mal interpretada e numa palavra ambígua, mereça crédito algum.

O douto e diligentíssimo autor da História Geral do Brasil, na sua nota 40 do tomo primeiro, disse: “É sabido que há quem pretenda que Lobeira não foi mais que tradutor do Amadis. Quanto ao Palmeirim, a questão parece menos duvidosa, porquanto, na edição de Toledo de 1547, se declara ser autor do livro Luiz Hurtado. Moraes veio depois: publicou a primeira edição portuguesa em 1867.” Ora o sr. Varnhagen, que deu a sua História Geral em Madri, estava com os ouvidos cheios das alegações de Salvá, homem justamente célebre, e em boa fé lhe adotou a opinião, atendendo somente às iniciais do acróstico. Já opus a Salvá a dedicatória de 1544; ao diante falarei da suposta primeira edição de 1567. — Ao sair o primeiro tomo da nossa História Geral, entre outras considerações, asseverei ao sr. Varnhagen ser insustentável o parecer do espanhol; ao que me respondeu que esperaria as minhas razões para se decidir: assim, constitui-me na obrigação de dissertar sobre este assunto.

O que muito cumpre louvar, sendo muito para agradecer, é que o senhor Varnhagen, por amor da verdade, me ajudou no empenho que tomei. Não possuindo eu a tradução de Hurtado, que nem se encontra nas melhores bibliotecas de Paris, ele próprio, em Março de 1858, na do Museu Britânico (onde levemente anotaram à margem do livro que Hurtado é o escritor original) indagou-me os pontos necessários: por trabalho e exame seu, viemos a conhecer que o espanhol não omitira os capítulos das justas em honra das quatro francesas; o que dá-nos a certeza de que o episódio não foi um enxerto do suposto tradutor, sim um dos ornatos do poema primitivo. Neste fato assenta uma das provas cabais em favor do Ariosto português. Hoje o historiador brasileiro, à vista de tais raciocínios e documentos, está longe do parecer de Salvá; com gosto se convenceu de que tão imaginosa e admirável poesia pertence originariamente à língua e literatura dos nossos maiores.

O episódio das francesas, posto que no tom de todo o romance, não tem com ele uma íntima e indispensável conexão. O de Miraguarda, por extremo exalçado nos encômios de Miguel de Cervantes, entra essencialmente na ação principal: sendo vencido Albayzar, sultão dos turcos, pelo príncipe Florendos em nome da mesma senhora, esta o mandou preso para a corte de Espanha, enquanto fossem cativos na Turquia el-rei Polendos e os cristãos seus companheiros; e a prisão de Albayzar fez o inimigo soltar os cavaleiros em troca do seu sultão; a troca repôs o negócio no pé em que era antes daquela traição, dando tempo ao velho imperador Palmeirim de preparar-se para a guerra, que logo os Turcos lhe declararam. Miraguarda, uma das personagens essenciais ao desfecho, era portuguesa, e nas margens do Tejo, perto de Tomar, ainda existem ruínas do castelo de Almourol, onde a imaginação do poeta aposentou aquela dama. Quem estuda o Palmeirim a cada passo reconhece a predileção do autor para com Miraguarda, e o comprazimento com que se estende nos louvores da terra, e a preferência em que a tem sobre todas as de Espanha; reconhece que Moraes, tão abundante nas descrições, mais se esmerou nas do seu Portugal, nem perde ensejo de exaltar os naturais, talvez com quebra dos demais Espanhóis: este esmero é causa do especial elogio de Cervantes ao episódio mais belo de toda a obra.

Em prova do seu particular amor a Portugal, aqui transcrevo uma passagem do capítulo 53: “Bonançou o vento, e acharam-se tão longe de Inglaterra, como aqueles que eram lançados na costa de Espanha, e tão metidos nela que quase estavam no fim da terra da belicosa Lusitânia, província então povoada de muitos e mui esforçados cavaleiros, onde, por virtude do planeta que a rege, os houve sempre mui famosos; posto que naquele tempo os que maior fama tinham eram idos em busca de Recindos, seu natural rei e senhor, de quem se então não sabia, por estar na prisão de Dramusiando. E reconhecendo os marinheiros e piloto a terra, determinaram sair na cidade de Alta Rocha, que depois chamaram Lisboa, cujo nome dizem que se derivou dos fundadores dela.” E mais adiante: “A horas de vêspora, sendo no mês de abril, se achou ao longo da ribeira do Tejo, que com suas mansas e graciosas águas rega os principais campos da guerreira Lusitânia.” Repare-se em que nunca o autor aplica epítetos assim honrosos a qualquer outra porção de Espanha.

No capítulo 60, para encarecer a formosura de Miraguarda, põe o elogio dela na boca do herói Palmeirim, que aliás estava todo entregue a sua senhora Polinarda; e são estas as palavras: “E olhando mais acima, vendo o vulto de Miraguarda, foi tão salteado daquela primeira mostra que, não sabendo que cuidasse, por estar desapossado do juízo e entendimento, ficou algum espaço suspenso, e tornando algum tanto em seu acordo, pondo os olhos nela, começou a dizer: Senhora, agora vejo o que não cuidava, e já me não espanta fazer tamanhos extremos este vosso cavaleiro, pois por tamanho extremo se combate.” — E no capítulo 61, com o mesmo intento, acrescenta Moraes: “Porém primeiro esteve olhando o vulto de Miraguarda, que lhe pareceu a mais formosa cousa do mundo, e se então não tivera a vontade em outra parte tão sujeita, soubera mal determinar quem fazia vantagem uma a outra, Polinarda a ela ou ela a Polinarda. E crendo que, ocupando muito a vista naquela imagem, ofendia o amor de sua senhora, virando as rédeas se foi, sem saber que via levasse.”

Aqui ajunto mais uma passagem, do capítulo 149: “As naus principais vinham cobertas de toldos ricos de pano de seda e ouro, e as de menos qualidade de outros panos de cores broslados e cortados de muitos laços e galantarias, com que ficavam tão louçãos, que pareciam competir com os brocados e púrpuras de que as mais nobres se ataviavam. Arnedos, rei de França, veio em uma nau com a rainha, e Florenda e Graliamar suas filhas, com alguns cavaleiros para sua guarda. Em outra Recindos e a rainha, também com sua guarda. Em um galeão, que entre a frota fazia maior soma e maior rebolaria, veio a bela Miraguarda, e nele o gigante Almourol e Florendos, com alguns cavaleiros velhos para sua defesa; que, como Recindos tivesse por certo que a tenção do imperador era casá-la com Florendos seu neto, herdeiro do império, quis fazer dela tamanho caso que, com consentimento de Arnedos, houveram a sua nau por capitânia, e nela só se pôs bandeira na gávea, farol na popa, como a mais principal.”

Enfim, reforçando a prova da predileção do autor para com a sua portuguesa, direi do que passou na cerimônia dos casamentos. Sendo os filhos legítimos de D. Duardos os dois maiores cavaleiros, era de esperar que fossem eles e suas noivas os mais considerados, e seus recebimentos os primeiros; mas não aconteceu assim: por ordem do imperador, começou-se pelo do sultão Belagriz, não só por ser monarca, mas sobretudo por se ter batizado e convertido ao cristianismo; e quanto aos outros príncipes, começou-se pelo de Florendos, inferior na valentia a seus primos Floriano e Palmeirim; e isto, ajunta Moraes, “por honrar mais Miraguarda, que veio tão soberba, tão altiva, com tamanha confiança, como se naquele ato ela fora a que menos ganhara.” Reflita-se que as noivas dos cavaleiros mais conspícuos eram rainhas e princesas, e só Miraguarda uma simples fidalga; o que imaginou o poeta para realçar o merecimento pessoal da sua portuguesa, a quem talvez coloca acima da mais formosa, ou nunca abaixo.

No meio daquela cerimônia dos casamentos de príncipes e soberanos, com o fito sempre de engrandecer e recordar as cousas pátrias, conta miudamente como também se receberam os Portugueses Almourol e Cardiga, e conclui assim: “Alguns cronistas dizem que o filho que d’entre ambos nasceu se chamava Tranconio, e que um dia, atravessando o Tejo abaixo do castelo de Almourol, se afogou; donde este passo se chamou algum tempo o pego de Tranconio: depois corrompendo-se o vocábulo, se mudou em pego de Tancos daqui veio chamar-se assim a povoação que em nossos dias se fez à borda do mesmo pego.” Só a um português, e por ventura nascido naquelas vizinhanças, lembrara interromper a descrição de umas festas reais para ocupar-se de uma vilota insignificante, como então era Tancos. — Estando Portugal unido à demais Espanha, só nomeia-se o rei Recindos; e quando este morre na primeira batalha campal, é o Português Almourol quem, para defender seu cadáver, depois de lhe ter defendido valorosamente a vida, peleja até acabar, sem elmo nem escudo; provando, digamo-lo com Camões,

Aquela portuguesa alta excelência
Na lealdade firme e obediência.

E não satisfeito de o honrar por cima de qualquer outro vassalo espanhol, ao descrever o autor as sepulturas dos reis cavaleiros na Ilha Perigosa, coloca o esqueleto de Almourol, armado de lança, à cabeceira do sepulcro do velho imperador Palmeirim, como para o guardar; aludindo assim à sua fidelidade.

Moraes, sem perder ocasião de exaltar os seus, pondo Miraguarda a competir com Lionarda noiva de Floriano, com Polinarda noiva de Palmeirim, entre as princesas tomou uma espanhola à sua conta: a pobre Arnalta, rainha de Navarra, é a única representada como devassa e inconstante, nem lhe concedeu a honra de casar conjuntamente com as três damas que lhe levavam a palma, sendo ela a quarta em beleza; o que se pode verificar nos capítulos 66, 103, 110 e 130, e sempre que aparece na cena. — Será crível que o Espanhol Hurtado buscasse uma Espanhola para imputar-lhe as ações e os sentimentos mais baixos, e escolhesse uma Portuguesa para ser o exemplo da altivez e da dignidade e isenção, segundo se exprime o autor? Será crível que nunca achasse uma frase para honrar os Espanhóis em geral, e procurasse tantas e tão belas em louvor dos belicosos Lusitanos?

Quem atenta esta questão com olhos imparciais, vê que o Português, iscado das preocupações recíprocas de ambos os povos, aproveitou a vez para engrandecer homens e mulheres da sua terra à custa do reino irmão. Ainda hoje o vulgo nutre certa zanga para com os outros Espanhóis; indisposição mais viva no tempo de Moraes, coetâneo de D. Manuel; o qual, pretendente da coroa de toda a península, tinha renovado o ódio aceso nas batalhas de D. João I. Ignora alguém que referem os Castelhanos mil anedotas contra seus vizinhos? Versam não poucas em persuadirem-se estes que as senhoras da demais península são namoradeiras e fáceis; engano mal fundado no desembaraço delas, maior que o das Portuguesas, não excetuadas as mesmas Lisbonenses; engano que tem metido alguns cavaleiros em aperto e vergonha, por se haverem adiantado com Espanholas da boa sociedade. Moraes pois seguiu nessas passagens os preconceitos de seus concidadãos; o que era moralmente impossível a Hurtado, que só as conservou na sua tradução pelo dever de fiel intérprete.

Não contente o Português de vilipendiar a Arnalta de Navarra, traça a história de três guapos cavaleiros, que serviam as filhas do duque Calistrao de Aragão; mas que, ao tempo que esperavam galardão dos seus merecimentos e casar com elas, saíram casadas com três criados de seu pai, bem desiguais delas em toda a qualidade — Uma só vez menciona o desar de certa portuguesa, a qual se rendeu a Floriano do Deserto, o Páris e o Teseu do romance: isto se lê no capítulo 128; mas o poeta, que em semelhantes casos, acontecidos com o mesmo Floriano, deixa correr à revelia a causa das mulheres, neste se apressa a desculpar aquela, com a gentileza de mancebo, com o perigo em que se meteu para salvá-la, com o arrependimento que à dama sobreveio.

O livro castelhano apareceu em 1547, ano do nascimento de Miguel de Cervantes, que dele teve notícia; pois é inadmissível o contrário em quem tanto estudara a matéria, em quem louva o Palmeirim sobre todos os de cavalaria, em quem o emparelha com os poemas de Homero. E por que singular capricho o Espanhol Cervantes, contemporâneo de Hurtado, regalaria a literatura estrangeira com uma obra que tamanha honra fizera à do seu país? E por que descuido inconcebível o mesmo Hurtado, que viveu e publicou livros depois da edição do português em 1567, não lhe disputou a primazia? Quando el-rei D. João III concedeu-lhe, para si e seus descendentes, o apelido de Moraes Palmeirim, era boa ocasião de mostrar Hurtado que, se o governo vizinho tanto honrava ao seu tradutor, mais o devia honrar o governo espanhol; era boa ocasião de reclamar a paternidade que se lhe negava: mas disto nada aconteceu. Reflita-se ainda que na dedicatória trata-se de D. João III como de pessoa viva, e se ela fosse para a edição de 1567, assim não falara o autor; porque o rei faleceu muitos anos antes dessa edição. Felizmente as razões em favor do nosso romanceiro fundam-se na verificação de épocas bem determinadas e em fatos históricos autenticados. — Já previno a objeção de que Cervantes, embora desconheça a Hurtado como original, também desconhece a Moraes: a minha resposta e descarga tem de nos levar a discutir qual seja a primeira edição, e qual o motivo da conjectura de Cervantes, que, se desconhece o verdadeiro autor, pensava todavia ser um Português; ponto principal da questão.

Chegado Moraes a Lisboa no fim de 1543 ou logo no princípio de 1544, como já provei, ofereceu o livro à infanta, que por instruída e amiga das letras o aceitou e estimou: vindo o livro impresso de fora, a dedicatória foi em manuscrito, precedendo licença de D. Maria, pois sem prévia permissão ninguém podia consagrar uma obra a qualquer pessoa real. Aparecendo anônimo o Palmeirim, deu lugar a supor-se de outrem e não de Moraes; tendo-se espalhado ser composto por um rei ou por um infante, o boato circulava ainda no tempo de Cervantes, que o mencionou dubitativamente: a imaginação tende a adjudicar um belo escrito a um grande senhor. A dedicatória nem veio na primeira edição, nem na segunda, só na terceira a publicou Afonso Fernandes em 1592: dela não teve Cervantes notícia quando compunha o seu Quixoíe, concluído muito antes de o dar à imprensa.

A primeira edição é a que na quarta, em 1786, se alcunha de segunda, que existia na biblioteca de S. Francisco da Cidade, em carácter entre gótico e redondo (são palavras do editor de 1786) que dá mostras de ser impressa fora do reino. Sim, foi impressa fora do reino, provavelmente em Paris, onde Moraes a compôs entre os anos de 1540 e 1543; mas apareceu sem autor nem dedicatória, segundo o afirmou no seu Anonimus scripsit o douto D. Nicolau Antônio; que, sendo de Sevilha e um dos melhores críticos da península ibérica, não fala de Hurtado, cujo nome contudo vem no acróstico de 1547. E porque não trata ele de Hurtado e omite o autor? é porque sabia da edição mais antiga, onde Moraes não se nomeou, mas estava certo de não ser Hurtado o escritor original. — Quanto a sê-lo D. João II ou D. Luiz, é cousa que se refuta facilmente ao considerar-se que a inquisição, no tempo de D. João III, meteu o Palmeirim nos seus índices expurgatórios: a inquisição no princípio não tinha a força, que depois teve, para anatematizar uma obra de tão altas personagens. Tocarei ainda neste ponto quando falar no estilo do nosso primoroso clássico.

Desejando incluir neste opúsculo todas as notícias que pude colher, e tendo asseverado que o Palmeirim atraiu o anátema da inquisição, o que também concorreu para o desaparecimento dos exemplares da verdadeira primeira edição do começo de 1544; vou resumir agora os esclarecimentos que me comunicou o sr. Antônio Nunes de Carvalho, um dos lentes atuais de Coimbra e um dos meus examinadores naquela universidade há mais de quarenta anos. “Achando-me em Londres, encontrei ali D. Vicente Salvá, sujeito muito erudito e conhecedor de livros raros. Na primeira parte do seu catálogo, diz que Miguel Ferrer foi o autor do Palmeirim; mas na segunda, em razão de um acróstico achado por seu filho no fim da edição espanhola de 1547 e 1548, declarou-se por Hurtado. Examinei o exemplar, único dessa edição que se conhece, e mostrei-lhe que Miguel Ferrer era simplesmente o impressor da segunda parte, que sucedeu a Fernando de Santa-Catherina, impressor da primeira; que Hurtado foi o tradutor castelhano, e talvez com medo da inquisição, fugiu de nomear-se claramente e se ocultou no acróstico. Mas o Salvá não se quis desdizer. — Das indagações que fiz em Londres e Paris, depois de ratificadas em Portugal, colegi que Francisco de Moraes, indo por secretário de D. Francisco de Noronha, embaixador em Paris no tempo de Francisco I, aí compôs o Palmeirim, ajudando-se de uma velha crônica existente em francês ou em provençal; que, de volta com o embaixador, o dedicou à infanta D. Maria; que, sendo bem acolhido, o traduziu Hurtado em castelhano; mas que a inquisição o inseriu nos seus índices, juntamente com o Cancioneiro de Rezende, a Rupica pneuma de João de Barros, a comédia Eufrosina de Jorge Ferreira e outros muitos livros.”

As noticias do sr. Nunes de Carvalho, de acordo com as minhas, dão a suspeitar que Salvá queria por força o Palmeirim para a literatura espanhola: primeiro o ofertou a Ferrer, confiado nas palavras este pequeno fruto, outros escritores, mis defectos, mi trabajo, como se Ferrer não pudesse aplicar essas palavras a tradutores e impressores, mas exclusivamente aos autores; ao depois, elas perderam a magia, e foi Salvá escorar-se no termo autor, para esquecer-se de Ferrer e brindar a Hurtado; porém não se deteve em meditar o acróstico, bastando-lhe as iniciais.

Verdade é que D. Nicolau Antônio diz que o Palmeirim foi do espanhol vertido em italiano por Lucio Spineda, versão impressa em Veneza em 1584 e em 1609. Verdade é que Bure, na Bibliographie Instructive, diz que do castelhana o verteu Jacques Vicente, edição de Lyon em 1553 e de Paris em 1574. Daqui se poderia inferir não ser português o original; mas, além de já estar demonstrado que o é, repare-se em que na Europa se estuda mais o castelhano, e quem o sabe dispensa-se de estudar o português pela muita semelhança de ambos; e se isto é assim hoje em dia que, principalmente na Alemanha, mais se cultivam as línguas e as respectivas literaturas, dantes era pior, e a nossa apenas conhecida fora das Espanhas. Se uma tal indução fosse bastante, e o tradutor das obras matemáticas de Anastácio da Cunha não tivesse nomeado o autor, agora poderia afirmar-se que não eram dele; pois que Anastácio da Cunha, lente de Coimbra, onde conversei [com] pessoas do seu tempo, não tem em Portugal e no Brasil um só exemplar ou cópia do seu livro original. Destes argumentos são para alegar, ou quando em contrário faltam maiores, ou quando acompanham a outros e os vem apoiar. Ignoramos nós que Brasileiros, Portugueses e Espanhóis agora mesmo traduzem das traduções francesas muitos livros alemães ou ingleses?

O editor de 1786, citando Afonso Fernandes que em Lisboa reimprimiu o Palmeirim em 1592, bem nota que ele, chamando segunda a sua terceira edição, não teve notícia de uma das duas anteriores; somente o de 1786 insiste no erro de ter como primeira a de Évora em 1567; erro, que atrás combatido, passo a desfazer de todo. — Afonso Fernandes, necessariamente maduro ao estampar de novo o Palmeirim, como quem era já dono de uma livraria e tinha empreendido várias impressões, admitamos que apenas contava trinta e cinco anos. Se a edição de Évora fosse a primeira, e segunda a da biblioteca de S. Francisco, seguir-se-ia que esta fora feita no intervallo de 1567 a 1592; suponhamos (hipótese a mais favorável a Salvá) que o foi em 1575, seguir-se-ia também que a de Fernandes saiu dezessete anos depois da alcunhada segunda, e que em 1575 o livreiro tinha uns dezoito anos, e concedamos de barato que só tivesse dezesseis: como pois não houve dela notícia um reimpressor, apesar das indagações do seu ofício, e um reimpressor já taludo ao tempo da ignorada publicação? como ninguém o advertiu, existindo muitos que eram homens feitos em 1575? como, desaparecida a pseuda segunda edição, conservavam-se exemplares da erigida em primeira, que, por mais antiga e portanto mais estimada, era a que devera ou estar esgotada ou tornar-se rara? Não é natural que o Palmeirim na sua estréia em português fosse mais festejado e lido que oito ou dez anos adiante? A verdade solve todas estas incoerências: havia exemplares da edição de Évora, por ser a mais moderna; ocultou-se a Fernandes a existência da de 1544, por ser a mais antiga, por tê-la consumido a avidez com que a procuravam nacionais e estrangeiros, em uma época propícia a escritos sobre cavalarias, da moda da Europa mesmo depois do D. Quixote.

Continuemos. O imperito editor de 1786, mencionando a versão de Jacques Vicente, assim discorre: “Esta notícia de Bure nos leva a crer que, muito antes que Moraes escrevesse este livro, o havia já em francês como tradução do espanhol; não sendo inteira ficção o que Moraes diz na dedicatória. ” E a mim um tal discurso me leva a crer quanto era superficial quem o proferiu. Que! citando ele a dedicatória, não se dignou de combinar as datas? não verificou a época das duas embaixadas? não viu que o autor falava de D. João III como de pessoa viva, sendo portanto a mesma dedicatória anterior à edição de 1567, pois que o rei faleceu em 1554? Nada: com a idéia fixa de ser a primeira a edição de Évora, a este erro subordina todos os seus raciocínios; e estou que Salvá aí bebeu a esperança de assegurar a Ferrer ou Hurtado, ou a qualquer Espanhol, a invenção do nosso grande clássico e elegantíssimo prosador. Ora, dado que não seja aquilo inteira ficção, de modo nenhum prova ser espanhol o original; provaria sim que nem era de Moraes nem de Hurtado, mas simples cópia de crônicas francesas e inglesas, como reza a dedicatória; onde se vê que em castelhano estava trasladada a história do D. Duardos, não a de seu filbo Palmeirim; do qual havia uma velha crônica, mas não um poema, como é o de Moraes. E se este confessa tê-la achado entre os papéis de Albert de Rennes e que a trasladara, não querendo vestir-se com roupas alheias, para que teria negado ao Espanhol a primazia da composição? Expliquemos.

É fato, incontestado pelo mesmo Salvá, que os livros de cavalaria, para emprestarem às suas patranhas um certo ar de verdade, costumam dizer que as descobriram em manuscritos antigos. Advirta-se que Salvá o confirma, para não tirar ao seu Hurtado as honras da originalidade: seja pelo que for, tem nisto razão; e Cervantes, que busca arremedar as maneiras de tais fabuladores, afirma que nada fez senão copiar o Quixote, composto pelo prudentíssimo Cide Hamete Benengeli; o que sabe toda a república das letras ser totalmente imaginário. Autores sem serem de patranhas tiveram igual capricho: basta exemplificarmos com Florian, que chama o seu lindo poemeto Eliezer Nephtali uma tradução do hebraico por certo Israelita do Cairo. E a este propósito, não me levem a mal que, sem embargo do que diz em abono do meu Virgílio Brasileiro, ofereça ao leitor o que me acaba de escrever o meu bom amigo M. Ferdinand Denis, o Francês que melhor tem avaliado a literatura da nossa língua. A sua carta serve-me, não só para comprovar o que digo, mas para apoiar-me na autoridade de um sábio que, nem sendo Português nem Espanhol, julga o Palmeirim uma produção de Moraes; e no Catálogo de Salvá, que me emprestou, escreveu à margem por sua letra que as razões do bibliógrafo não bastavam para despossuir o nosso romanceiro de uma paternidade que sempre se lhe assinou. Eis aqui a sua carta:

“6 janvier 1859. Monsieur et ami, — Ce que vous souhaitez sur lœuvre de Francisco de Moraes se trouve hereusement dans le Repertório Americano; livre que je possède, c’est vous dire que ces notes bibliographiques sont à votre disposition: venons au second point. Ginez Perez de Hita, né dans la ville de Murcia, excita vivement l’admiration de Walter Scott. Cet habile romancier écrivait en l’année 1595, et prétendait avoir trouvé l’histoire charmante qu’il donna à l’Espagne dans un auteur arabe. Faria e Sousa, que bien vous connaissez, ne l’aimait pas (Não o estranho, porque Faria e Sousa, erudito embora, nem possuía um gosto seguro nem imparcialidade), mais il constate son prodigieux succès (voir les notes à propos de la Canção xv de Camoens). Au temps de Scudery le livre de Hita eut également une vogue extraordinaire, mais c’était au temps de Scudery. Enfin l’interprète des Odes de Francisco Manuel do Nascimento traduisit en français la première partie, sans obtenir beaucoup de succès. J’en ai donné moi même un fragment plein de vie dans mes Chroniques Chevaleresques d’Espagne et de Portugal, Paris, 1839, 2 vol. in 8. — Ce livre (j’entends l’œuvre de Hita) n’est nullement indigne d’être cité par le fidèle et harmonieux traducteur de Virgile, auquel j’adresse de nouveau mes compliments.”

Estabelecido (pelos exemplos que citei, e por este de Hita que me forneceu M. Ferdinand Denis) que dizer um romanceiro que trasladou os seus contos não é argumento infalível de serem uma versão na força da palavra; estabelecido que as justas em honra das quatro francesas foram da invenção de Moraes, nascidas de uma das suas próprias aventuras, e não achadas na crônica geral dos feitos antigos e obras notáveis dos franceses; estabelecido que o episódio de Miraguarda, intimamente conexo com a ação, parto foi da sua fantasia, e bem assim quanto se refere ao castelo de Almourol, ao de Cardiga, à vila de Tancos, Tomar e outros lugares da guerreira Lusitânia; estabelecido enfim que ele dedicou a obra uns três ou quatro anos antes de aparecer a de Hurtado, a conseqüência lógica é: Francisco de Moraes foi quem originalmente compôs o Palmeirim de Inglaterra.

Não negarei que ele se ajudasse dos papéis de Albert de Rennes, ou das crônicas de Joannes d’Esbrec, Jaymes Biut e Anrico Frusto, a quem qualifica de autênticos escritores; conquanto nomes tais não se encontrem em nenhum catálogo, em nenhum dicionário histórico, nem haja em França notícia alguma deles. Creio mesmo que tantos casos, tantas e tão variadas pelejas, duelos, torneios, justas, festas, exéquias, pinturas, descrições, caracteres diversíssimos, encantamentos e desencantamentos, maravilhoso tão bem imaginado; creio sim que tudo isto, numa ordem admirável, num estilo delicioso, não podia ser criado em três para quatro anos. É já pasmoso que Moraes, bebendo aqui e ali as inspirações, de seu fantasiasse outros sucessos e dos mais belos, misturando sempre com arte, por não desmentir a qualidade de escritor das Espanhas, as cousas da sua própria terra.

Quem recusasse a Moraes o título de original, por se ter aproveitado de pensamentos alheios, recusá-lo-ia a Lucrécio, que adotou os de Epicuro; a Virgílio, que se serviu de Platão, de Pitágoras, de Ênio e dos historiadores da velha Roma; a Camões, que se modelou por Castanheda e Barros nas suas narrações; ao nosso contemporâneo Garrett há pouco falecido, o qual na sua Adozinda com tanto engenho renovou a xácara da Silvana, a cuja cantilena fomos embalados e adormentados nós os Brasileiros e Portugueses: da pecha não se livrariam Milton e Tasso, Ariosto nem Dante, Ovídio nem Homero. Só Deus é o criador: as segundas criações do homem, mais ou menos, são disfarçadas imitações ou acrescentamentos. Original é o autor que do já criado forma novas combinações; quem tudo imagine e invente, não o há neste mundo.

DIGRESSÃO.

É de lastimar que Espanhóis, cuja literatura, abundantíssima e toda patriótica, encerra imensas belezas e rasgos tão sublimes, cuja poesia dramática ministrou másculas idéias a Franceses da primeira plana; é de lastimar, digo, tenham a mania de mendigar obras estrangeiras para se ornarem, sem a menor precisão de alheios atavios. O padre Isla, por exemplo, verteu o Gil Braz de Lesage, e pretendeu provar, sem dúvida com erudição, que o insigne romancista furtara um autógrafo espanhol e o trasladara; sendo um dos seus argumentos não poder um Francês pintar com tanta verdade os costumes do reino vizinho. Não seria pequena a lista dos estrangeiros que têm escrito sobre este ou aquele país com mais individuação e melhor que os respectivos nacionais. Nem Lesage pinta especialmente os costumes dos Espanhóis: escolheu sim a Espanha para o lugar das mais das cenas do seu livro; mas os costumes propriamente ditos são do mundo inteiro, e as pinturas daquele extremado filósofo moralista agradam igualmente ao Europeu, ao Americano, ao Asiático e a todos os povos; o que lhe dará no futuro leitores, quando muitas celebridades atuais terão desaparecido. —Não se pode bem conceber como um talento que em duas das suas comédias ombreou com Molière, como um homem de carácter nobre, que recusou lucrativos empregos para gozar da independência, furtasse manuscritos e mentisse descaradamente: enquanto se não encontrar um autógrafo espanhol, os imparciais dirão que o Gil Braz é de Lesage. O padre Isla, Faria e Sousa, quantos enegrecem com tal nódoa a reputação de autores quais Lesage e Diogo Bernardes, barateando a honra dos outros, podem fazer suspeitar da sua.

Alguns Franceses, a quem as razões em favor de Lesage parecem decisivas, admitem contudo uma do padre Isla para esbulharem Vasco de Loboira do seu Amadis; opinam que Lobeira, sendo Português, não tivera escolhido o seu herói na Gaula: por semelhante raciocínio, o Orlando não é de Ariosto, nem o Oberon de Wieland, nem de Racine e Corneille todas as suas tragédias. Um dos engorladores da versão da obra, o conde de Tressan, escreve no discurso preliminar: “Quelques savans attribuent la première invention de ce roman à Vasco de Lobeira, Portugais; mais nous croyons qu’ils lui font trop d’honneur.” Que estupendíssimo e peremptório argumento! Com ele, podem-se negar os descobrimentos dos maiores engenhos, podem-se derribar as reputações melhor assentadas. Não foi porém do toque desse mau tradutor; nem de outros mais modernos, o erudito M. Bouillet, que no seu Dictionaire Universel imparcialmente restituiu a Lobeira o seu legítimo haver.

Mas cesse a digressão. Lesage, que teve um campeão insuperável no falecido François de Neufchâteau, que tem vivo um de válida e robusta lança na pessoa de M. Patin, cujo elogio ao grande romancista foi coroado pela Academia Francesa; Lesage não há mister socorro de mão estranha. Quanto a Lobeira, podia eu opor-me aos seus impugnadores, mostrando que o verbo tresladar, em que também se fundam, nem sempre significava traduzir; muitas vezes queria dizer extrair; que Lobeira sim extraiu o romance de velhos contos, mas deles compôs um todo; que os dois sonetos na língua primeva portuguesa em louvor do mesmo Lobeira, ou sejam de Antonio Ferreira, ou sejam de D. Diniz, (o que é melhor, porque o rei foi contemporâneo do romanceiro), provam ser a obra daquele autor, pois Miguel Leite Ferreira, que publicou os Poemas Lusitanos, afirma que os tais sonetos foram escritos no idioma do romance, e esse editor leu o original; que o conde de Tressan, asseverando ter visto o Amadis em língua parecida ao limosim para adjudicá-lo aos Franceses, fez um argumento contra producentem: que o limosim então se aproximava da língua falada em Aragão, na Galiza e em Portugal, escrevendo portanto Lobeira na vulgar do seu país; que o português de hoje é o mesmo galego polido, principalmente no século de D. Manuel e D. João III. Mas, além de que esta matéria me afastaria do que me propus neste opúsculo, consta-me que foi já vitoriosamente ventilada por um escritor de Portugal.


SEGUNDA PARTE.


Ter-se-á observado que intitulo poema o Palmeirim de Inglaterra: como tal o considero. Posto que, amigo dos bons versos, reconheça a dificuldade imensa de os bem tecer, não os julgo essenciais à poesia; com quanto confesse que animam e realçam o pensamento, e que se privaram de um auxílio poderoso os que deles prescindiram. Mais poeta é Chateaubrtand que o comum dos metrificadores, mais até que muitos que têm obtido justos aplausos: a sua epopéia é só comparável às de primeira ordem. A poesia essencialmente requer uma vigorosa fantasia, um pincel apto para copiar as maravilhas da natureza, o profundo conhecimento dos afetos e das paixões, variedade, estilo harmonioso e pitoresco, adequado ao sujeito; requer uma força de razão, um método perfeito, na marcha da epopéia e da tragédia, e uma completa experiência da sociedade e dos costumes, nas cenas cômicas.

Se Moraes, em vez de citar os livros de que extraiu ou finge extraída a sua fábula, dissera que ia cantar os seus cavaleiros e invocara as Musas, ou cousa que as valha, ninguém duvidaria de que o dele fosse um poema, como já se não duvida de que o sejam os Martyres, o Telemaco, e mais alguns. E leva o Palmeirim, não ao de Chateaubriand, mas aos outros e à chusma dos compostos em verso, a vantagem de ostentar pinturas mais vivas e enérgicas, imaginação e magnificência mais sustentadas. Embora se lhe anteponha o Telemaco pelo fim moral e toques sensíveis e pela correção do estilo, vence-o o Palmeirim no vigor da fantasia, na variedade, no interesse da ação e no maravilhoso.

PLANO E DESFECHO DO POEMA.

D. Duardos de Inglaterra, entrando numa floresta encantada por Eutropa, ficou preso no castelo do sobrinho da fada, o qual naquele príncipe tentou vingar antigos agravos de família; e, na ausência de D. Duardos, sua mulher Flerida pariu uns gêmeos: ao que nasceu primeiro batizou com o nome de seu avô Palmeirim, imperador de Constantinopla; ao segundo, com o de Floriano do Deserto. Foram os meninos roubados por um selvagem, cuja mulher os criou com o seu próprio filho Selvian. A nova da perda de D. Duardos alvorotou os ânimos; em sua demanda partiram Primaleão de Constantinopla, Arnedos rei de França, Recindos rei de Espanha, Belagriz sultão de Niquéia, Vernao de Alemanha e outros muitos cavaleiros. Nenhum conseguiu libertar o preso do poder de Dramusiando, senhor do castelo, e todos lhe fizeram companhia na prisão.

Entretanto, cresciam os gêmeos e se roboravam nos mais duros exercícios. Floriano, indo caçar com dois leões pela trela, extraviou-se na selva e deu consigo na corte de Inglaterra, onde serviu desconhecido a sua própria mãe Flerida. E Palmeirim, andando a espairecer ao longo da praia com saudades e mágoa do apartamento do irmão, embarcou numa galé que ali abordara, persuadindo a Selvian seu colaço a acompanhá-lo: este foi ao depois o seu fidelíssimo escudeiro. Chegando a Constantinopla também desconhecido, apresentou-se ao imperador, que o mandou servir a Polinarda sua neta, filha de Primaleão e de Gridônia. Armados cavaleiros os dois, um em Londres, o outro na Grécia pelo seu próprio avô, começaram a correr as aventuras; o que é de rigor nos livros de cavalaria. Palmeirim, namorando-se da princesa a quem servia, saiu para se tornar digno dela; que, apesar do amor que tinha ao cavaleiro, se lhe esquivava, porque não se lhe sabia a geração.

Após improfícuas pelejas e tentativas, apoderou-se Dramusiando de todos os contendores, mesmo de Deserto, o qual, bem que mais valente, como já tivesse derribado a todos e entre eles a dois gigantes, não pôde ganhar a vitória ao derradeiro, isto é, ao dono do castelo; caindo ambos dessangrados, foi Deserto metido no conto dos outros. Era Palmeirim o destinado a libertar seu pai e os demais cristãos. A esse tempo não constava de quem fossem nascidos os gêmeos: ao depois Daliarte, filho natural de D. Duardos, mágico o mais sábio, foi que declarou a origem de seus irmãos paternos.

Poupado o vencido pelo vencedor, a rogos dos cavaleiros com quem Dramusiando se portara generoso, de inimigo tornou-se o gigante o mais fiel amigo dos cristãos, entrando no grêmio do catolicismo. Desencantou-se o castelo, o que dependia de ser o dono derribado por alguém. E o nosso autor, que tinha a peito assinalar os mais estrênuos, para interessarem quando os mostrasse na ação principal, imaginou tantos casos e maravilhas que, descontado o que pudera achar nas velhas crônicas, no meu conceito é um dos engenhos que mais se aproximaram de Homero no fantasiar: digo no fantasiar, não em outros predicados admiráveis do cantor da Grécia; que foi o geógrafo, o historiador, o teólogo e o filósofo, daqueles tempos remotos.

Espalharam-se os cavaleiros em busca de aventuras, que são de assombrosa variedade; os mais valentes foram-se a Portugal, onde havia a contenda mais célebre depois da do castelo de Dramusiando. Ali Florendos venceu a Almourol guardador de Miraguarda, gigante que já tinha vencido a muitos campeões; enamorado o príncipe daquela dama, em seu nome triunfou dos bravíssimos Tenebror, Luyman de Borgonha, Belcar, D. Rosuel, Tremorão, Goarim, Frisol, Graciano, Blandidom, Francian, Floramam, Beroldo, Onistaldo, e Pompides; mas, travando-se com Floriano, foi duvidosa a vantagem; e se Daliarte não declarasse que o defensor do vulto de Miraguarda era seu primo Florendos, certo fora este derribado. Porém Moraes, para nunca desluzir a sua Portuguesa, excogita sempre um meio de se não render o que tem de conseguir a mão da formosíssima dama: assim o fez outra vez que, pelejando Florendos com Palmeirim, interrompeu-os o escuro da noite; e, quando iam continuar sem se conhecerem, cessou o combate por ordem da voluntária Miraguarda, que mandou sair do castelo o seu campeão por não ter logo derribado a Palmeirim, intimando-lhe que durante um ano deixasse de vestir armas. — No exílio, encontrou-se Florendos com Floramam, que num vale delicioso de Portugal vivia como pastor, desgostoso de ser vencido em Constantinopla; e aí travaram uma intimidade que durou sempre. Esta passagem, imitada de Virgílio, não foi inútil ao Tasso no episódio de Herminia, onde o Italiano primou e muito excedeu ao Português no delicado e no mavioso.

A fama de Miraguarda feriu nos ouvidos a Targiana, herdeira do trono da Turquia, cujo servidor era Albayzar de Babilônia; ordenou-lhe a dama que viesse a Portugal fazer confessar a todos que ela em formosura se avantajava à dona do castelo. Ali Albayzar, doente o guardador Almourol, ausente Florendos a cumprir o mando imperioso de sua senhora, bateu-se com Dramusiando, a esse tempo campeão de Miraguarda; mas, interrompida a contenda pela noite, receiando a valentia do antagonista, ou querendo a todo o preço oferecer a Targiana o escudo, furtou-o e desapareceu. Dramusiando se lhe pôs logo na pista; Miraguarda, frouxa um pouco a sua fereza, lembrou-se de Florendos. Armelo, escudeiro deste, foi encontrá-lo na ribeira do Tejo: contou-lhe como Dramusiando guardava o castelo: como certo cavaleiro, com quem pelejara, furtou-lhe o escudo; como enfim Miraguarda só dele Florendos esperava a restituição do seu vulto. O príncipe, em cata de Albayzar imediatamente, achou-se em grandes perigos e fez grandes proezas.

Numa das suas inumeráveis caravanas, entrado Floriano em uma fusta, foi nela acometido por Auderramete, irmão natural de Albayzar e capitão de quatro galés: Auderramete prendeu os da fusta e seguiu viagem para a sua terra. Aí Floriano, ainda não tendo uma senhora particular, amante vago de todas as belas, excitou uma viva paixão em Targiana, batalhou em seu nome, e foi o Páris desta Helena trazendo-a para Constantinopla, onde o pobre Albayzar estava metido em façanhas por amor dela. O Grã-Turco mandou reclamar a pessoa de Floriano: o imperador não o consentiu; enviou contudo a princesa Targiana a seu pai, acompanhada de el-rei Polendos e muitos cavaleiros. O Grã-Turco atraiçoadamete os prendeu, com o intento de os não soltar antes da entrega do desencaminhador de sua filha. Sendo este o nó do poema, daqui em diante vai crescendo o interesse até o desfecho.

Estando Albayzar em Constantinopla combatendo pela sua ingrata e prostrando quantos se lhe opunham, ei-la em companhia de Floriano quase ao momento em que o cavaleiro das Armas Negras, ou Florendos, afinal tomou-lhe o escudo e o mandou apresentar-se a Miraguarda. Esta o remeteu à corte de Espanha, onde permanecesse prisioneiro, enquanto o fossem na Turquia os cavaleiros cristãos; pois Albayzar só foi ter ao castelo de Miraguarda quando Targiana, que assistiu à pendência dele com Florendos, já tinha partido, e já se sabia da traição feita aos que a foram acompanhar.

Restituídos os cristãos, entrando Albayzar na Turquia, declarou-se a guerra: foi ele o generalíssimo dos seus; Primaleão o dos contrários. Desata-se o poema na segunda batalha campal, onde foi morto Albayzar por Floriano do Deserto, onde acabaram numerosos bravos de parte a parte, e se o campo ficou pelos cristãos, caríssimo custou a vitória. Homero desatou a Ilíada pelo duelo de Aquiles e Heitor; a Odisséia, pela matança que nos pretendentes fez Ulisses. Virgílio desatou a Eneida pelo duelo de Enéias e Turno. Ariosto desatou o seu Orlando pelo duelo de Ruggiero e Rodomonte. Francisco de Moraes trilhou novo caminho, rematando com uma batalha campal. — Daliarte, que no fim toma o primeiro lugar e provê a tudo, recolhe os feridos e leva os cadáveres para a Ilha Perigosa, aonde se foram também os vivos; a saber, não só as damas, como Primaleão, D. Duardos, Palmeirim, Floriano, Dramusiando, Florendos, Floramam, Platir e outros. Lá conservou-se aquela gente, até que partiram para seus reinos e senhorios, menos as viúvas, as quais ficaram chorando seus maridos ali sepultados: uma só tornou ao seu governo, Arnalta de Navarra, cujo tenro filho necessitava da presença e do auxílio materno.

Daliarte saía às vezes da ilha e sempre a encantava, isto é, a escondia a todos os olhos: por último, tendo já partido os reis, príncipes e cavaleiros, para seus respectivos países, foi assassinado o mágico; e, como não a tivesse desencantado, ainda hoje é desconhecida a Ilha Perigosa ou Encoberta. Assim fecha-se a obra com um traço digno da criadora imaginação de Francisco de Moraes.

Antes dos episódios e do mais de que se compõe o poema, falarei das principais personagens, com a possível brevidade.

AS DAMAS.

As mais notáveis, excetuadas as feiticeiras, são Flerida, Gridônia, Paudrícia, Miraguarda, Polinarda, Lionarda, Targiana, Arnalta e Arlança. — Nas primeiras duas representa-se a ternura maternal que, principalmente em Flerida, pinta-se com vivíssimas cores. — Paudrícia é um belo exemplo de resignação e constância num desgraçado amor. — Miraguarda é altiva, nobre, voluntária e senhora de si. — Polinarda, amorosa, mas comedida, sacrifica tudo ao seu dever, devora penas e ciúmes, sem nunca faltar ao decoro. — Lionarda, honesta e boa, é uma daquelas princesas prontas a casar segundo a vontade dos seus e o interesse da coroa. — Targiana teve uma quebra na honra; mas cobriu o seu desar com o futuro procedimento, com a gratidão e fidelidade aos próprios inimigos. — Arnalta é vaidosa, inconstante, desonesta e desenvolta. — Arlança, moça agigantada e nascida de má raça, tornou-se digna de ser mulher de Dramusiando pelo favor e ajuda que deu aos cristãos, quando Alfernao quis arruinar o cavaleiro do Selvagem. — Seria prolixo nomear as outras que figuram no poema.

O IMPERADOR PALMEIRIM DE CONSTANTINOPLA.

Este, por ser ancião e avô dos príncipes mais esforçados, é a quem se consagra o máximo respeito. Velho e quase decrépito, ainda mostrou firmeza em recusar ao Turco a entrega de Floriano, em rejeitar os casamentos que os potentados muçulmanos lhe propuseram, de Polinarda com o sultão da Pérsia, de Florendos com Armênia irmã do sultão. Seu carácter dominante é o da boa fé e generosidade; o que patenteia pela maneira irrevogável de tratar os próprios inimigos, especialmente na ocasião em que, pedindo-lhe Primaleão que se apoderasse de Albayzar em represália dos retidos na Turquia, assim o impugnou: “Filho se, além de ver Polendos e Belcar e todos essoutros cavaleiros presos, te vira também a ti, não creias que com cautelas fora do meu costume trabalhara de vos soltar, ainda que todas as outras esperanças de remédio tivesse perdidas. Antes consentiria ver-vos morrer juntamente na prisão que usar de cousas desonestas a mim: essa diferença quero que haja de mim ao Turco; que é a própria que há d’entre os bons aos maus. Albayzar não tem culpa dos erros do Turco; por isso não seria razão pagar os males que essoutro faz.” — Outros predicados do seu nobre natural são a delicadeza, cortesia e decoro, em que nunca se desmente. — Morreu de mágoa e anos, antes de se decidir a vitória.

PRIMALEÃO

Era o pai de Florendos, Platir e Polinarda. Cauteloso e conhecedor da arte militar, foi escolhido pelo imperador como generalíssimo. Esteve na prisão de Dramusiando, sendo o primeiro dos que ali se acharam em socorro de D. Duardos. Combateu-se com o seu Florendos para o experimentar, e não levou a melhor. Brilhou no comando e mostrou uma firmeza imperturbável, já provando a sua perícia como general, já pelejando como simples cavaleiro.

D. DUARDOS

O pai do grande Palmeirim foi pelo sogro nomeado chefe do campo todo; ficando porém a Primaleão o mando inteiro do campo e da cidade, e desta a guarda aos cuidados particulares do imperador Vernao de Alemanha e d’el-rei Polendos de Tessália. Bateu-se com os seus Floriano e Palmeirim no castelo de Eutropa, sendo vencido por um e outro. — Na primeira batalha campal, depois da missa, repartiu a cavalaria em seis esquadrões: um, ao mando do sultão Belagriz; o segundo, ao de Recindos; o terceiro, ao de Arnedos; o quarto, ao de Polendos; o quinto, ao de Vernau; o sexto ficou debaixo das suas próprias ordens. — Primaleão, desejoso de andar solto no campo e de o visitar, enjeitou naquele dia qualquer governança especial, pondo-se no rol dos aventureiros; que eram, além de outros menos afamados, Belcar, Drapos, Mayortes, Palmeirim, Floriano, Platir, Florendos, Blandidom, Beroldo, Floramam, Graciano, D. Rosuel, Belisarte, Onistaldo, Tenebror, Francian, Pompides, Estrelante, Albaniz, Daliarte, Roramonte, Dragonalte, Luyman de Borgonha, Germã d’Orleans, Tremorão, Rosirão de la Brunda, Dramusiando e Almourol.

O CAVALEIRO DA FORTUNA, OU DO TIGRE, OU DO DRAGÃO.

É este Palmeirim, o gabadíssimo do poema e o mais perfeito: valente por cima do mesmo Floriano, constante e virtuoso nos amores, nenhuma pecha ou fraqueza tinha. Apaixonou-se por sua prima Polinarda, e crendo-se de inferior condição, escapou-se, para com o esforço e coragem merecer a sua mão. Numerar todos os seus feitos de armas era um não acabar; só apontarei os mais assinalados.

O primeiro é ter quase vencido, sem se conhecerem, a seu irmão Deserto ou cavaleiro do Selvagem; mas no ponto extremo, ignorando ser de ambos a mãe, Flerida, com dó como se fosse do seu sangue, os veio apartar. O segundo é o livramento de seu pai das prisões de Dramusiando e Eutropa. O terceiro é a morte do gigante Braçanor e dez cavaleiros; vindo porém em auxílio dos onze Astipardo sobrinho do gigante com outros dez de refresco, acertou de passar por ali Albayzar, que remeteu contra eles e ajudou a Palmeirim; pelo que Moraes, na última batalha campal, faz morrer o general dos Turcos, às mãos de outrem que não deste herói.

É pasmoso o ter derribado de um só encontro ao gigante Albarroco. Ganhou a Ilha Encoberta ou Perigosa, ao depois sepultura dos príncipes. Matou o gigante Pavoroso e conquistou a ilha Profunda. Matou o gigante Vacoliom, socorrendo a cinco dos seus amigos e libertando a uma donzela. Nas duas grandes batalhas, ele sobre todos, Floriano com imperceptível diferença, Dramusiando e Florendos, foram os que mais se distinguiram da parte dos cristãos, superiores os quatro a Albayzar. — Tornaremos a Palmerim nos episódios e encantos.

FLORIANO, OU O CAVALEIRO DO SELVAGEM, OU O DAS DONZELAS.

Na pintura desta personagem, que oferece aventuras as mais variadas, descobre o maior talento Francisco de Moraes. Quase tão valente como Palmeirim, possuía a mesma coragem e ardor, a mesma nobreza de sentimentos; mas, inconstante e volúvel, entregava-se a todas as mulheres que o consentiam, aborrecendo-se delas facilmente: preso contudo de amor e casado com a rainha da Trácia, aquietou-se e converteu-se à razão. No castelo de Dramusiando, derribou a Recindos, Arnedos, Primaleão, encontrou-se lança a lança com seu mesmo pai, prostrou Pandaro e Daliagão; mas, como Dramusiando o achasse cansado, ficou a vitória indecisa; o que provou que sua valentia era maior que a deste gigante. Com ele bateu-se outra vez; mas, sendo já muito amigos, ao conhecerem-se não foram por diante.

Na Turquia, donde consigo trouxe a princesa Targiana, causa da guerra, venceu a Auderramete, irmão natural de Albayzar. De volta, matou em Constantinopla o gigante Albuzarco. Matou, além de outros, o gigante Bracolão, libertando a uma donzela; de quem alcançou pagar-lhe o serviço à custa da honra. Em seguida, matou a Baleato irmão de Bracolão. Do castelo de Calfúrnio, a quem matou e de quem libertou várias senhoras, trouxe a giganta Arlança, e respeitou-a, contra o seu costume, porque a destinava para mulher de seu amigo Dramusiando: com Arlança vieram outras donzelas, e com todas entrou em Toledo, que diz o autor então chamava-se Brusia. Aí prostrou a cinco bravos cavaleiros, venceu a Albayzar e ordenou-lhe que se apresentasse à rainha da Trácia, com quem estava desposado o vencedor. Indo-se de Toledo, no caminho libertou a uma donzela a quem dois cavaleiros queriam forçar, e ordenou-lhes que fossem à corte de Espanha apresentar-se às damas da rainha, e jurassem não vestir mais armas sem licença delas. Derribou em Navarra a Dragonalte; mas casou-o com Arnalta, uma das muitas com quem satisfez desejos, a qual aceitou um marido da mão do amante.

No castelo de Miraguarda justou com Florendos, mas não quis entrar com ele em batalha de espada, para não causar a seu primo um desar ante aquela dama tão rigorosa; derribou Almourol, matou a um e deixou por morto a outro de dois cavaleiros que, vendo Florendos entretido em curar as feridas de Almourol, tentaram furtar o escudo de Miraguarda. Na última batalha campal foi quem matou a Albayzar; não coube este feito a Palmeirim, porque era obrigado ao sultão, e preferiu derribar morto ao da Pérsia, que ousara apetecer e levantar olhos para sua senhora Polinarda.

DRAMUSIANDO.

Sendo mortos pelo gigante Farnaque todos os cavaleiros que, sem armas, acompanhavam a uma festa a princesa Agriola, Trineu de Alemanha e Palmeirim de Oliva, o avô do herói principal, vingaram-se no gigante e recobraram a princesa. Eutropa, irmã do morto, criou-lhe o órfão e jurou despicar-se: fez um castelo, encantou-o, metendo-se nele com toda a família. Armado cavaleiro o sobrinho, quis logo satisfazer-se nos matadores do pai; mas a fada o impediu, maquinando que ali viesse em quem fartasse o rancor. Veio com efeito D. Duardos, genro de Palmeirim de Oliva; que, adormecendo na floresta, Eutropa lhe tirou a espada, e quando ele acordou, estava preso, como já disse. Dramusiando generosamente o tratou, bem assim a todos os cavaleiros cristãos; pelo que, depois de vencido e de desencantado o seu castelo em razão da vitória do herói, pouparam-no os vencedores e tornaram-se muito seus amigos, principalmente Floriano e Palmeirim. Todavia Eutropa em uma nuvem desapareceu, indo-se aonde pudesse empecer os cristãos. Assim, esta aventura, cheia de belíssimos incidentes, fecha a primeira parte do poema.

Dramusiando, gigante sim, mas não em demasia corpulento, em esforço apenas cedia aos dois maiores cavaleiros; constante e virtuoso nos amores, como o seu vencedor e Florendos e Floramam, bravo e leal, é dos melhores caracteres que traçou Moraes. Esteve a ponto de vencer a Florendos, sem se conhecerem; foi o duelo apartado por Palmeirim. Ele, o mesmo Palmeirim e Floriano, pelejaram com os gigantes Barrocante, Albuzarco e Albarroco; e como Palmeirim, tendo já dado cabo de Albarroco, viesse ajudá-lo contra Barrocante, recebeu Dramusiando o golpe e recusou o auxílio, e posto que tal golpe fosse o mais formidável e lhe fizesse perder muito sangue; obteve derribar o contendor, que era o mais valente dos três inimigos.

Duas vezes pelejou com Floriano: de ambas, indecisa a vitória, ficou sempre a melhoria com Floriano, bem que não claramente. Mas no desembarque dos Turcos em Constantinopla foi quem mais se distinguiu, entrando pelo mar com escudo e armas para combater com um gigante, a quem veio a matar, conquanto saísse tão quebrantado que por alguns dias não pôde entrar em conflito. No último encontro com Framustante, em luta encarniçada, afinal deu cabo deste gigante formidável. O seu concurso e denodo foram os mais extremados, exceto os de Floriano e de Palmeirim.

FLORENDOS, O CAVALEIRO TRISTE OU DAS ARMAS NEGRAS.

Era na valentia o quarto; na pureza dos amores igualava ao primeiro. Não se achou na aventura de D. Duardos, porque, entretido em defender o escudo do vulto de Miraguarda, ao chegar ao castelo de Dramusiando, achou a empresa concluída. No de Almourol, venceu a muitos em nome de sua senhora; mas, não podendo com Palmeirim, a altiva Portuguesa o mandou sair; então, como Floramam, se fez pastor, segundo acima se refere. Em Espanha executou grandes proezas. Libertou a uma donzela no castelo de Astribor, acabando a este gigante e os seus apaniguados. No de Arnalta, venceu-lhe os cavaleiros e soltou muitos dos seus amigos; aí resistiu aos desonestos desejos da rainha por amor de Miraguarda.

Na batalha de doze por doze, antes da primeira campal, escolheu-o Floriano por companheiro, imediato a Palmeirim; e então aparecem os mais esforçados de parte a parte. Prostrou de um encontro ao rei de Armênia; fez maravilhas ao lado de seu pai; derribou o gigante Pandolfo; com seu irmão Platir, cercados ambos de inimigos, matou o gigante Pasistrato. Foi, numa palavra, dos que mais concorreram para ficar o campo em poder dos cristãos.

ALBAYZAR.

É este o mais distinto inimigo, e em valentia fica entre Florendos e Floramam. Já contei como furtou o escudo de Miraguarda, como ajudou a Palmeirim, como foi vencido por Florendos, como esteve preso em Espanha, como soltou-se em troca de Polendos e outros cavaleiros. Filho do sultão Olorique de Babilônia, por morte do primogênito herdou o império; ajuntou-o com o da Turquia, em cujo trono sentou-se casando com a herdeira Targiana. Para vingar o desacato de Floriano, corruptor desta princesa, declarou guerra aos cristãos, sendo nela o general em chefe. A causa da guerra é semelhante à da Ilíada: Homero faz perecer a nação a que pertencia o roubador de Helena, e Francisco de Moraes faz morrer Albayzar às mãos do próprio que lhe viciou a prometida esposa; o que põe a moral do poema antigo acima da do Palmeirim. Mas, segundo o discorrer da idade média e ainda nesta nossa gabada de polida, um cristão sempre tem razão contra os infiéis, salvo se a cousa desarranja a outro cristão mais poderoso; e também as máximas políticas adotadas entre as nações da Europa, são totalmente mudadas a respeito das nações da África e da Ásia, e mesmo das nações da nossa América, à exceção dos Estados Unidos do Norte, que tem muitos navios que se podem armar. — Gosto às vezes de digressões; perdoem-me os leitores.

O infiel sustentou umas justas em Constantinopla, em nome de Targiana, contra Floramam, Tragonel, Esmeraldo, Luyman de Borgonha, Blandidom, Pompides e outros, até que o venceu Florendos. Foi da batalha dos doze por doze; atacou Constantinopla com todo o seu poder. Posto que esforçado, não era escrupuloso em matérias de honra; o que o torna digno do seu fim, bem que tivesse motivo razoável para ser contra os cristãos: Moraes contudo teve a arte de diminuir a força desse motivo.

FLORAMAM, O CAVALEIRO DA MORTE.

É dos mais belos caracteres do poema. Tendo seu pai feito envenenar a Altéia, com quem ele desejava casar, andava com os ossos dela, até que por traça do dito seu pai lhe foram roubados; e sustentou em memória da morta, a quem foi sempre fiel, umas justas em Constantinopla, derribando a insignes cavaleiros, até que o foi pelo da Fortuna; do que desgostoso, partiu e se fez pastor. Foi um dos escolhidos para entrar na batalha dos doze por doze. E na segunda campal, como fosse rei de Cerdenha, comandou uma das capitanias em que se dividiu o exército. — Omito algumas cousas em que já toquei, ao falar de outras personagens.

OS MÁGICOS E AS FADAS.

Dos mágicos o principal é Daliarte do Vale Escuro, bastardo de D. Duardos, meio irmão de Palmeirim e Floriano, e inteiro de Pompides, esforçado cavaleiro que o mesmo D. Duardos houve da filha de uma fada: é como o gênio que vela sobre a família de Palmeirim, e quem desmancha as manobras dos mágicos inimigos.

Sardamante é o encantador da copa, que ministra uma das mais engenhosas aventuras; da qual ao diante faremos um resumo.

Alfernao era um mágico menor, que, a pedido de Colambrar a quem Floriano matara os filhos gigantes, atraiçoadamente o colheu às mãos; e foi então que Arlança valeu ao cavaleiro, de quem ela ao depois recebeu grandes mercês.

Além de Urganda, celebérrima no Amadis de Gaula (não entra nas fábulas do Palmeirim, mas dela e suas maravilhas trata o autor ocasionalmente), a maior feiticeira é Eutropa; que, não só no castelo do sobrinho e na Ilha Perigosa, mas excitando os cristãos uns contra os outros, buscou a ruína da família de Palmeirim. — É notável Drusia Velona, por cuja arte foi transportada numa nuvem Lionarda, já mulher de Floriano, e levada por dois grifos a uma serra, onde a sabedora Melia, infanta da Pérsia, fundara e encantara um castelo. Moraes nutre a sua imaginação com as lembranças de outros livros, principalmente do Amadis, de quem tirou estas fadas, mas de um modo novo e seu.

OS EPISÓDIOS.

Seria necessário um bom volume para dar conta dos episódios; muitíssimos são de tal merecimento, que é difícil escolher entre eles. Afora os dos castelos de Dramusiando, de Miraguarda e o das Francesas, dos quais dissemos bastante na exposição do plano e noutros lugares, falaremos de alguns, não esquecendo os de encantamentos, onde se mostra riquíssimo o engenho de Moraes.

A ILHA PERIGOSA

Andando Palmeirim ao longo da costa, viu um batel grande sem gente e com dois remos. Apesar do seu escudeiro Selvian, meteu-se no batel, e depois de um dia e uma noite, foi levado a uma ilha fragosa toda coberta de espessos arvoredos. Subiu um estreito caminho por áspera e íngrime rocha, e descansando três ou quatro vezes, achou-se num campo; aí num padrão leu este letreiro: Não passes mais avante. A rocha, de espantosa altura, digamo-lo com o autor, era “de pedra talhada tanto por igual, que parecia mais obra composta por mãos de mestres excelentes, feita por compasso e medida, que não da natureza. E inda que a ilha tivesse bem quatro léguas em torno, em toda ela não havia outro porto onde podessem sair nem desembarcar senão aquele aonde a barca de Palmeirim veio ter.”

Tornou ele a subir por caminho mais largo até ao cimo da montanha; andou e revirou tudo, e a noite cerrou-se negra, ainda mais por causa da espessura dos bosques. Com o elmo à cabeceira, passou na relva até ao romper do dia, cuidando em sua senhora; e, corrida a ilha, chegou a um descampado com sua fonte de mármore no meio, cuja água saía pelas bocas de animais escultados, e tanta que fazia um riacho: ao pé dois tigres e dois leões estavam em cadeias de metal, presas ao mármore, tão compridas que da fonte se podiam alargar três braças. Quis passar adiante; mas na pedra da pia leu em letras vermelhas: Esta é a fonte d’água desejada. Rodeou, e outras letras diziam: O que nesta pia beber toda as cousas de esforço acabará. Mais avante viu estoutras: Passa, não bebas. — Em razão dos contraditórios letreiros, tentou Palmeirim recuar; mas, com vergonha de si mesmo, acometeu a um dos tigres, acometeu o outro e os dois leões, e depois de um combate cheio de incidentes, matou os animais e bebeu da fonte.

Aproximou-se de um castelo bem torneado e gracioso, com alta cava d’água e ponte levadiça. Em torno havia quatro padrões de jaspe e sobre cada padrão um escudo. Chegou-se ao primeiro, e leu em campo negro: Não me levará ninguém. Pegou no escudo, mas saiu-lhe um homem corpulento e armado, a quem combateu e rendeu. Tomou-lhe o elmo, porque o seu fora espedaçado por um dos leões, e deitou-se ao segundo escudo, onde achou em campo azul: De maior perigo sou eu. Saiu-lhe um cavaleiro de armas vermelhas, que foi logo morto aos golpes do herói. Chegou-se ao terceiro escudo, onde em campo verde diziam umas letras azuis: Comigo se ganha a honra. E terceiro campeão, com armas da cor do escudo, sustentou valentíssimo um renhido combate, mas caiu aos pés de Palmeirim. No derradeiro, em campo de prata lia-se em letras de ouro: Comigo está a vitória. Tirou-o do padrão para ajudar-se dele, porque o outro já não prestava; veio-lhe ao encontro o quarto cavaleiro. O duelo foi o mais áspero; teve Palmeirim muito que fazer, mas enfim deu cabo do formidável contendor.

Acabadas as batalhas, pintadas com tanta eloqüência, entrou Palmeirim no castelo. As casas e torres estavam sobre esteios de jaspe de altura de dez braças (aqui me sirvo quase das palavras do autor), o pátio coberto de umas pedras de preço verdes e brancas, cortadas a igual compasso e medida, a modo de xadrez. No meio havia esguichos d’água, saindo com tanta fúria que subiam ao mais alto das casas, cujo madeiramento era de uma invenção nova e subtil. Palmeirim, depois de olhar tudo, por uma escada grande foi ter a uma sala tão artificialmente lavrada, que todas as outras cousas lhe pareceram pequenas em comparação dela. Estava ali postado um gigante, espantoso e tamanho quanto nunca vira outro, com uma pesada maça de ferro; o qual, vendo que o herói queria entrar na sala, a esgrimiu com tanta continência que bastara a pôr medo a qualquer outro. Palmeirim remeteu ao gigante, que, parecendo natural, era artificial e fantástico; e, dando-lhe um golpe da espada, o fez vir à terra, como cousa morta e sem sentido que era.

Dentro já da sala, achou-se em ampla varanda com saída só para umas casas fronteiras; e entre a varanda e as casas, por vão medonho e altíssimo, derivava-se um rio d’água negra e triste, sem outra passagem que uma trave estreitíssima, tão gasta e podre que parecia não sofrer em si qualquer peso. Esteve confuso o bom cavaleiro; mas, lembrando-lhe que seu avô de Constantinopla correra igual aventura, e que na determinação dos homens está o cometer os perigos, largou as armas, exceto a espada, receiando que o peso delas fosse para mais seu dano; e “pondo o pé no pau e o coração em sua senhora, ia firmando-se sobre a espada; mas, quando chegou ao meio dele, começou de dobrar-se para baixo e rachar-se por tantas partes, que Palmeirim se teve de todo por perdido.” Então invocou a formosura e o amor do Polinarda, e caminhou por aquela trave delgada como se fora por uma ponte segura; e ainda não estava de além, quando surgiu das casas uma velha muito idosa, descabelada e o rosto rasgado, clamando: “Que me presta meu saber, se por um só homem tantas vezes há de ser destruído?” E lançando mão de Palmeirim, após si o pretendeu precipitar naquele profundo rio; mas ele tanto se firmou nos pés, que a velha o não pôde vencer.

Nas casas não achou mais que mulheres e gente de serviço; depois de examiná-las, mandou chamar o cavaleiro com quem se bateu no começo. Este, de nome Satiafor, disse-lhe ser o castelo o da Ilha Perigosa, obra que se reputava da sabedora Urganda; que, morrendo ela, a deixou encantada, com estes paços e a fonte das alimárias; que Eutropa, vencido o sobrinho, não podendo resolver o sultão de Babilônia a vir contra Constantinopla, desencantou a ilha e o castelo; que trouxe consigo os três a quem matou Palmeirim; que estes eram parentes dela, e chamavam-se Titubante o Negro, Medrusao o Temido, Forbolando o Forte. Acrescentou que os cavaleiros de Eutropa tinham em prisão a dois que, tendo rendido a ele Satiafor e ao segundo e terceiro campeões, afinal se renderam ao quarto. — Palmeirim desceu à prisão, onde encontrou carregados de ferros a dois amigos seus, Belisarte e German d’Orleans. E empossando-se do seu domínio, o encomendou a Satiafor, partindo com os dois amigos para outras aventuras; e o seu batel, sendo guiado por encantamento de Daliarte, o lançou em Portugal junto ao castelo de Almourol.

A CÂMARA DE URGANDA

Tornando Palmeirim à sua conquista, examinou o jardim com Satiafor, Platir, Beroldo e Daliarte. A descrição do arvoredo e pomar, das fontes e do mais, como logo veremos, não deixa que desejar, tanto na magnificência quanto na graça do estilo. Na seguinte manhã disse-lhe Satiafor: “No meio daquele jardim, onde ontem passastes e eu visito cada dia, em lugar mais descoberto e desocupado que todos, achei agora uma câmara quadrada e grande, da mais singular obra e invenção que nunca vi; porque, inda que as outras obras desta casa sejam havidas por milagrosas, a meu juizo e parecer, está muito por cima delas. Não pude entrar, que achei a porta ocupada de dois gigantes temerosos que a guardam. Podeis ir vê-la, senhor, que, segundo suspeito, naquela casa deve estar algum tesouro, de muito tempo depositado para galardão dos outros trabalhos que nesta terra passastes.” Fizeram tamanho alvoroço estas palavras em todos, que sem mais aguardar pediram armas e saíram ao jardim. O palácio, de mármore branco e finíssimas esculturas, despedia do coruchéu uma haste de prata, na qual se engastava uma grimpa de matéria incorruptível: de uma banda se via o céu estrelado com todos os planetas, representados conforme a opinião dos antigos; em cada canto da casa, uma árvore, iguais em comprimento e grossura, altas como o coruchéu, e ricas vidraças pintadas com passos da história.

Platir, com licença de Palmeirim, arrostou os guardadores, que levantaram as maças; quis passar um peitoril baixo que havia na porta, um dos gigantes o agarrou, e lançando-o fora, tornou a seu posto; corrido o cavaleiro, cerrou mais duas vezes, e aconteceu-lhe o mesmo. Então Beroldo experimentou a sua fortuna, e não foi melhor que a de Platir. Impaciente o do Tigre, sem esperar por Daliarte, acometeu, e teve igual êxito: a diferença foi que, para o lançarem do peitoril, uniram-se ambos os gigantes; porque uma imagem de ouro que estava sobre o arco da porta, a modo de velha em trajo antigo, lhes bradou que não deixassem violar o seu tesouro a homem indigno dele.

Descorçoado já, por testemunhar que a flor de todo o esforço desfalecera na ventura, todavia a tentou Daliarte; e, ao saltar sobre os degraus do peitoril, prostraram-se os gigantes, e a imagem, de uma boceta que tinha no regaço, tirou uma chave de ouro pequena, deixando-a cair por um cordão de seda preta, que o sábio Daliarte recebeu e abriu com ela a porta. Após entrando os outros, examinaram a câmara. Continha uma biblioteca imensa, cujas estantes de ouro assentavam em animais e aves desse metal, que pareciam respirar, e as guarnições dos livros do mesmo toque, eram cravadas de pedraria pelos cantos e pelas brochas. Em cerco da casa no alto das paredes, onde a livraria não chegava, imagens de vulto representavam as mais assinaladas formosuras, com roupas e cores tão novas como se foram daquele dia, o trajo conforme à época, e as feições tais que não pareciam corpos sem vida. Os cavaleiros só naqueles vultos se entretinham, mormente quando ali deram com alguns que traziam na vontade.

Em uma das quadras estava Urganda em sua mocidade, com um volume nas mãos, sentada em cadeira de ouro de singular artificio. À dextra ficava-lhe a bela Oriana, filha de Lisuarte da Grã-Bretanha, com letras no regaço que declaravam seu nome, e assim as tinham todas; à esquerda, Briolanja rainha de Sobradissa, Leonorina princesa de Constantinopla, a infanta Melicia, Olinda, e mais ninguém. “Crê-se, diz o autor, que as outras que tiveram nome de formosas, como no livro d’el rei Amadis se conta, não eram merecedoras daquela imortalidade.” — Em outra quadra, estava Iseo de la Brunda, Genebra mulher de Artus e amiga de Lançarote del Lago, a segunda Iseo das brancas mãos, com algumas que então concorreram na Grã-Bretanha; que a tenção de Urganda era deixar memória das maravilhas daquela terra, por ser dali natural. — Na terceira quadra estavam das mais modernas: a imperatriz Polinarda, Agriola de Alemanha, Gridônia, Flerida, Francelina, tiradas segundo a idade em que mais floresceram. E inda que todas desta quadra fossem por extremo formosas, Flerida parecia que levava o preço delas. — Na última quadra estavam as que naqueles dias concorriam: Polinarda filha de Primaleão, Miraguarda, Lionarda, Altéia, Sidela de Lacedemônia, Arnalta de Navarra; que “inda que suas obras não fossem dignas daquela casa, o parecer o merecia.” No meio destas sobressaía Polinarda, que também nesta quadra como que fazia inveja às outras: “mas isto não parecia assim a Florendos, se ali fora; e tivera razão, que Miraguarda lá se lhe conhecia uma mostra tão confiada que lhe parecia que lhe usurpavam seu lugar.”

Corrida e examinada bem toda a casa, Palmeirim o conquistador da ilha, com aprovação dos companheiros, a doou ao sábio Daliarte, que a aceitou por saber que nela ainda havia de fazer grandes serviços. Estes serviços entram na ação principal, como já o expusemos.

A COPA ENCANTADA.

Estando o imperador na Horta de Flerida depois do jantar, entrou uma donzela agigantada, feia mas graciosa: por cima de uma cota de cetim branco e tela de ouro trazia marlota azul com barras também de ouro e de pedras preciosas; o primoroso bordado representava uma caçada de montaria e de volateria; na cabeça, lindo chapéu de guedelha azul airosamente inclinado à banda. Ela, de riquíssima caixa que tomou a um dos seus escudeiros, tirou uma copa de composição que ninguém soube determinar, a qual se guarnecia de gemas tão escuras, que nem se lhes distinguiu a qualidade; e ali declarou que, já cansada de correr as outras cortes em busca de quem desencante a copa que tinha entre as mãos, esperava achá-lo na do imperador Palmeirim, que era a mais assinalada; porém que, antes de provarem a aventura, cumpria que dela soubessem o mistério.

Contou que, na Trácia reinando o grande mágico Sardamante, sua bela filha Brandisia namorou-se de um vassalo de nome Artibel; que este ia conversá-la subindo à torre do castelo; que certa noite, ao descer por uma corda, foi visto por Brandimar; o qual, irritado, pois também ardia pela princesa, bateu-se com Artibel; e que, ao ruído acudindo o rei, Brandimar descobriu-lhe o caso e expirou das feridas. Sardamante alcançou por sua arte que a filha era prenhe; aguardou que parisse, e a Artibel arrancando o coração pelas costas, metido naquela copa o mandou oferecer a Brandisia. Esta, proferindo lástimas e mágoas, encheu de lágrimas a copa, e tirando o coração de dentro, ao pai a reenviou com as lágrimas, dizendo que fossem elas o pago da sua crueza; que lhe ficava o coração de Artibel, para que na morte ambos tivessem a mesma conformidade que em vida; e vestindo-se de reais atavios, como para uma festa, meteu no seio entre a carne e a camisa a relíquia do amante, e atirou-se da torre por onde ele soía entrar.

O rei, sepultada a filha, deu à neta o nome de Lionarda, encerrou-a na mesma torre, onde a teve até quatro anos; ao depois, em vale para isso acomodado, fez um encantamento, e nele a deixou oculta: quem olhava de longe via umas torres e edifícios grandes, que desapareciam de perto, “E tomando, ajuntou a donzela, a copa em que sua filha chorava, congelou as lágrimas dentro, da maneira que vedes. Ao tempo da sua morte, porque o reino ficava sem herdeiro, mandou que fosse levada por todas as cortes para a provarem os cavaleiros; e aquele que fosse de tanta virtude, que tomando-a na mão a fizesse tornar em sua claridade e perfeição para nunca mais a perder, cressem que passava a todos os outros em valentia e amor, e que este desencantaria a Lionarda, e casasse com ela e fosse rei de Trácia. E sendo que o amor que tivesse antes lho empedisse, então Lionarda recebesse de sua mão o marido que lhe desse.”

Disse que, se algum fosse tão namorado que não devesse nada ao que desencantasse a copa, esse tomando-a nas mãos, a faria igualmente clara e conservaria as lágrimas desfeitas; mas que, passando-a a qualquer menos apaixonado, ela sofreria mudanças, pois o desencantá-la só pertencia a quem possuísse ao mesmo tempo o amor e a valentia no máximo grau; pelo que, ainda sendo especial cavaleiro, quem não fosse namorado podia tê-la sem mudança nenhuma. — Disse mais que, desencantada ela, servidor ou dama, que nas lágrimas se mirasse, nestas veria a própria figura de quem amasse, alegre ou triste conforme tivesse o amor. — Disse finalmente que, depois de desencantada, se de novo a provassem, os mais desfavorecidos achariam nela ardor insofrível, segundo os quilates dos desfavores de cada um; e quem nisto excedesse a todos faria produzir a copa acidentes muito maiores.

Ordenou o imperador que principiasse a aventura, e a rogos da donzela foi ele que a encetou; mas, como velho e frio, nada obteve, conservando-se a copa tal qual estava. O mesmo aconteceu aos veteranos Primaleão, Vernao e Polendos. A Graciano porém, aceso no amor de Clarisia, a copa aclarou-se tanto que pensaram nada mais restar: contudo, ao passá-la a seu irmão Guarim, escureceu-se como dantes. Beroldo, extremoso para com Onistalda de Normandia, pondo os olhos nela e pegando na copa, esta se lhe tornou ainda mais clara, desfeitas um tanto as lágrimas. Conseguiu Platir muito menos que Beroldo; Belisarte, um pouco mais que Platir; Darmiante igualou a Belisarte; a Francian escureceu-se totalmente a copa. Vieram outros, e os que mais honra ganharam foram Polinardo, Roramonte, German de Orleans; porém nenhum chegou ao príncipe Beroldo. — Ali não havendo mais cavaleiros, descontente a donzela de se não acabar a aventura, lembrou-se o imperador de Floramam, que debaixo de uma árvore derramava as suas mágoas, e mandou-o chamar. Ele, encomendando-se à memória de Altéia, pegou da copa, que tornou-se de cor tão viva, desfazendo-se as lágrimas, a ponto que todos, menos a donzela, tinham a aventura por concluída; porém nas mãos de D. Rosuel perdeu muito da viveza e claridade com que a deixara Floramam.

Neste passo, entrou pela Horta de Flerida um cavaleiro corpulento, com armas de verde e extremos de branco; só Primaleão conheceu que era Dramusiando. Quis beijar as mãos ao imperador, que lhas não deu e sobre modo o gasalhou. Feitos os comprimentos à imperatriz e às damas, chegou-se a Polinarda, a quem via pela primeira vez; ficou sem saber julgar se ela ou se Miraguarda era mais para ser servida; e a dúvida fê-lo desmerecer na experiência da copa: com efeito, provando-a, quase igualou a Floramam; a quem talvez excedera, se à vista de Polinarda não mostrasse aquela indecisão.

Quando, um tanto já sãos das feridas que se deram entre si, Albayzar e Florendos estavam para tentar a aventura, apareceram mais dois cavaleiros, que se detiveram sem cortejar a ninguém, por não estorvarem a festa, visto que Albayzar ia tomar a copa. Este, pondo os olhos em sua senhora Targiana, conseguiu tanto como o príncipe Floramam. O cavaleiro que trazia um dragão pintado no escudo e seu companheiro souberam do imperador o caso; ambos se lhe ajoelharam e beijaram as mãos. Nisto levantou-se Florendos, e invocando a Miraguarda, obteve mais que todos, porque as lágrimas se desfizeram totalmente sem haver nelas mácula alguma. Interrogada a donzela sobre a conclusão da aventura, respondeu que às lagrimas ninguém podia dar maior perfeição; porém que provassem outros, e se a copa não fizesse mudança, nele se encerrava o mais valente e namorado cavaleiro; a fazer mudança na mão de outrem, seria sinal de haver alguém mais extremado em armas; que nos amores ninguém o podia superar.

Pediu o imperador aos desconhecidos que experimentassem. Um (conheceu-se depois ser Floriano do Deserto) invocando a Targiana, proferiu palavras amorosas; mas, como não partiam do coração, a copa escureceu como nunca assim tinha sido. Então disse-lhe a donzela que, se em armas não valesse mais que nos amores, o aconselhava a deixá-las. Retorquiu ele que, se as mulheres dessem o galardão segundo o merecimento de quem as serve, muito lhe pesava o desastre; mas que, sendo ao contrário, contentava-se com o amor que lhes tinha: réplica esta com que as damas nada folgaram. — Voltou-se a donzela para o último; este, que era Palmeirim, tomou a copa: ela ficou no estado perfeito em que estivera nas mãos de Florendos, que dali não podia passar. “Tornem outros, acrescentou a donzela, a experimentar; se não houver quem, provem os que já provaram: todavia não consinta vossa alteza que este cavaleiro (aqui apontou para Floriano) seja um deles porque, sendo mesmo a aventura acabada, o seu desamor é capaz de enegrecer a copa, que tanto agora está clara.” Com este gracejo muito riram as damas e os circunstantes.

Acabada assim a aventura, a copa não fez mudança ao passar a outros cavaleiros. A imperatriz pegou-a, e viu nela o marido como se o tivesse face a face. Correu até chegar à infanta Polinarda, que nas lágrimas desfeitas divisou a Palmeirim atribulado, e temendo que outrem o observasse, de sobressalto a copa e os membros lhe tremeram, e depressa a transmitiu a uma dama, com medo de que lhe caísse das mãos. À medida que a tomavam damas e servidores, via cada um o que tinha em quem amava; e nos rostos aparecia o prazer e o desprazcr, segundo os quilates do amor ou do desamor. Palmeirim por seu turno distinguiu dentro a Polinarda com semblante sereno, onde nada se podia determinar. E Floriano enfim achou uma infinidade de mulheres descontentes, sendo as mais irosas Targiana e Arnalta. “Que vedes lá, disse-lhe a donzela; achais por ventura a paga do merecimento de vossas obras?” Respondeu-lhe o cavaleiro: “Vejo que não me favoreceis jamais, ainda que vos servisse muito bem: creio entretanto que vós e as do vosso sexo de mim seriam melhor servidas que de outros que na copa fizeram melhores mostras.” A isto nada replicou a donzela.

Começou-se a prova dos desfavorecidos. O imperador e outros não sentiram mudança; mas D. Rosuel não pôde suster a quentura da copa. Foi passando de mão em mão, até chegar a German de Orleans; tão asperamente o queimou, que nem um momento a sofreu, e a cor dela era de vivas brasas. Floriano e Albayzar não sentiram ardor nem diferença. Ao cavaleiro do Dragão tornou-se tão roxa e fervente, que pôs espanto a quem olhava; o ardor foi tamanho, que as entranhas parecia que se lhe assavam dentro no corpo. Depois de o lamentar, o imperador lhe tomou a copa, que subitamente perdeu o ardor.

Por último, chegou a Florendos; e tais eram os desfavores de Miraguarda, que o fogo se levantou em chamas, os membros ardiam-lhe, e uma grave dor intrínseca o atormentava: ninguém nele enxergava mais que a labareda, cujo ruído apressado e medonho metia medo e compaixão. Da alma lhe saíam suspiros cansados por entre o rugido do fogo, em tom piedoso e triste, com que a sala tanto se comovia, que só nela soavam prantos e soluços. A imperatriz e Gridônia se quiseram intrometer naquele perigo, e soltavam palavras magoadas contra Miraguarda; mas Florendos, na frágua em que estava, não podia sofrer culpas a quem o matava. Sacou-lhe o imperador a copa, mas o fogo não parava; e a imperatriz e Gridônia quase mortas, com as damas todas, erguiam choro tamanho, que os paços como que se assolavam.

Polendos foi-se à donzela da Trácia em busca de algum remédio, conquanto pensasse que Florendos estava já todo em cinzas. “Sou tão mofina, disse ela, que bradando que me ouçam, ninguém o quer fazer.” Sossegado porém tudo, menos o fogo de Florendos, continuou assim: “Alto e invencível imperador, a aventura desta copa é acabada, e o fogo de Florendos só pode ser apagado por virtude destas lágrimas, e por mão do cavaleiro que a desencantou: cumpre que esparza esta água sobre as chamas, que elas se acabarão; porque fogo gerado por mulher tão crua, podem-no extinguir unicamente lágrimas de mulher tão piedosa, como quem estas chorou.” O cavaleiro do Dragão, logo tomando a copa, a vazou sobre as labaredas; imediatamente se desfizeram, e posto que algum espaço Florendos parecesse morto, afinal tornou a si.

DESENCANTAMENTO DE LIONARDA PELO CAVALEIRO DO DRAGÃO.

Tocava a Palmeirim desencantar a princesa; partiu pois com a donzela da Trácia. Avistando-se com Carmélia, avó de Lionarda, furtou-se aos cumprimentos dos cortesãos, que, tendo-o por seu futuro monarca, principiavam a adulá-lo; mas, sendo a intenção do herói manter-se fiel a Polinarda, os tratou como iguais. Sem demora, em companhia de alguns senhores e do seu colaço e escudeiro, montou ao cimo de uma coluna, em cujo vale de alegres arvoredos avistou umas torres e suntuosos edifícios, de coruchéus e varandas magníficas, de alvas colunas de mármore maravilhosamente obradas.

Quando em sitio assim aprazível cuidava que a aventura não era de tanta monta como as por ele ganhadas, um cavaleiro autorizado por cãs e experiência ponderou que não se fiasse nas mostras de fora; que o negócio era sério, e se preparasse para estupendos e inauditos perigos. O herói agradeceu-lhe os conselhos, prometendo lembrar-se deles, caso acabasse em bem aquele acometimento. Porém os demais, esperançados de futura privança, começaram a gabar-lhe o denodo, afirmando que para a sua pessoa era nada o que havia de passar. Palmeirim, desprezando lisonjarias e vãs palavras, cavalgou e deitou-se pelo outeiro abaixo.

Neste passo, o ar de brilhante se converteu em cerração: os companheiros o perderam de vista, e não se enxergavam uns aos outros; os sinais temerosos foram a ponto de caírem alguns dos cavalos quase sem acordo; os demais, perdidas as estribeiras, se apegavam aos colos dos seus, e assim recolheram-se à cidade, rasgadas as roupas de se roçarem pelos matos, que nenhum se lembrava de si nem do caminho. Selvian, que ficara impedido no outeiro, ao ver e ouvir os trovões e terramotos, com a ânsia de ajudar a seu senhor, a trote correu após ele; mas, sem saber como, achou-se na cidade, a tempo que a névoa começava a desfazer-se.

Palmeirim, transviado e metido naquela negregura, nem sabia aonde guiasse, nem porque modo se defendesse de uma dor secreta que parecia arrancar-lhe o coração. Nisto, uns corpos quase invisíveis por força o tiraram da sela e o derribaram no chão; e, posto que sacasse da espada e ferisse a uma e outra parte, seus golpes não achavam em quem fazer dano. Quis montar do novo a cavalo, e o seu estava mui longe; de mais a mais, tomaram-lhe a espada e armas, do que entrou a cobrar algum receio. Cansado de bracejar com aqueles corpos sem almas, sentou-se indeciso; que, sendo cada Tez maior a escuridade, nem podia ir por diante nem tornar atrás.

Conhecendo que tais cousas não tinham conselho, ergueu-se encomendando-se aos trabalhos que ordenasse a fortuna; e, desestimado qualquer acontecimento, ainda que fosse dar fim a seus dias, determinou vendê-los o mais caro, pois, esforçando-se quanto pudesse, com a vida satisfaria o que se deve à honra. Pesava-lhe estar sem armas, temendo que a falta delas o estorvasse na tenção; e mais o espantava ter-se-lhe a alma entristecido, de maneira que sentia os membros desamparados de quase toda a sua virtude.

Pelo outeiro veio rolando uma vozeria lúgubre, misturada com medonho estampido, que parecia fundir-se a terra; viu-se ele num ílhéu de negro pego em redor, que figurava rebentar do mais recôndito fundo, e quem olhava a sua cor, desmaiado o coração, de todo esmorecia. No meio do ilhéu, ao pé de uma árvore mal assombrada, munido um cavaleiro das próprias armas de Palmeirim, gritou-lhe: “Com os fios desta tua espada eu desfarei esses ossos, e as tuas carnes serão o manjar das alimárias, e a glória das tuas obras finar-se-á, sem haver mais notícia dela.” Considerando o herói que nos membros corporais estava toda a sua defensa, investiu; o feroz contrário de golpe levantado o recebeu. Subitamente os cobriu uma névoa espessa como as passadas; mas Palmeirim por entre a escuridão levou nos braços o outro, que lhe enterrava a espada pelos peitos até à empunhadura, do que sentia tamanha dor como se aquilo fora verdade; mas, apesar da dor, andou a braços com o fantasma, até que o prostou de cansado. Ao tempo que, tirando de si mesmo a espada, ia cortar a cabeça ao inimigo, esvaecida a nuvem, achou-se com todas as suas armas no campo, desaparecendo quem dantes as trazia: vestido com elas, se lhe dobrou a confiança.

Aclarado logo o dia, descobriu ao longe entre alegres arvoredos os edifícios que avistara do outeiro. Como não era perito em nadar e só nadando podia passar o pego, receiou e refletiu; pois, mesmo saltando ao pego de altura tão desmedida, carregado com o peso das armas, podia afogar-se, e a sair bem do salto, não tinha por onde subir à outra banda. Em tanto, n’água divisou muitas alimárias enormes e espantosas, que o esperavam para lograr suas carnes, e sobre quais seriam as primeiras contendiam entre si; de modo que, favorecendo-se umas a outras, representavam um desafio ou batalha de tantos por tantos. No conflito muitas, ao morrerem, davam urros que na cidade soavam, como se fossem dentro nela; até que finalmente ficaram todos os contendores estirados no campo.

Acabada a peleja, Palmeirim rodeou a ilha em busca de alguma passagem, e onde faziam as águas um remanso destinguiu um batel cujos remeiros eram quatro onças de grandeza desmarcada, presas a umas cadeias grossas: o arrais à popa era um leão envolto em sangue, como que se mantinha dos passageiros. Espantou-se de que um homem, da outra parte acenando que o passassem, se atrevesse a cometer semelhante perigo: desamarrou-se o batel, e ainda o homem de todo não era dentro, quando o leão o despedaçou em suas unhas, tragou-lhe as carnes, e repartiu o corpo aos remeiros. Porém, vendo Palmeirim que na ilha morreria por não haver nela mantimento algum, depositou a esperança na fortaleza das armas; foi descer, não achou por onde senão por uma laje que ia até à borda d’água, e tão lisa que nenhuma presa oferecia. Crendo que lançando-se por ela chegaria em pedaços, duvidou um pouco; mas, socorrendo-se ao remédio último, que era o encomendar-se a Polinarda, animado caminhou pelo meio da laje; e, como tais medos só fossem aparências, sem dano algum chegou abaixo. Os remeiros desamarraram o batel; ele, de escudo embraçado e o ferro em punho, ao meter-se dentro, ficou só no batel, evaporando-se os guardadores.

Tomou os remos e atravessou o rio. Quando pensava na altura da subida, íngreme e alcantilada, que por nenhum lado se podia trepar, dependuraram da rocha um cesto roto e velho por um cordão fraco e delgado, que mal sustinha o peso. Não havendo outro caminho, cogitou Palmeirim se deixaria as armas para ficar mais leve; mas, ao começar a despi-las, com tenção de só conservar a espada, reteve-se, porque poderia passar por onde lhe fossem necessárias. Então, com todo o arnês meteu-se no cesto, e sem ver quem tivera pelo cordel, foi levantado com tão quedo e vagaroso compasso, que a detença lhe aumentava o temor. Estando já em grande altura, sentiu o cesto se desfazer por alguns lugares, o cordel adelgaçar-se e destorcer-se em um fio estirado, apenas visível. Neste medo e afronta, novamente invocou a Polinarda, e a fé no seu amor para com ela foi de tanto merecimento, que o alou e pôs na borda do campo da batalha das alimárias; das quais, assim como do pego, nem havia sinal.

Gastou-se e dia: a Lua, cheia e em toda a sua força, apareceu com tão vivo resplendor, a modo que saía do seu natural; os rouxinóis e outros passarinhos começaram a festejar a noite, e ao som de seus cantos adormeceu Palmeirim ao pé de uma árvore. Acordou na alvorada com a música daquelas aves, alegre para ouvir e saudosa para contemplar; mas, crescendo a claridade do sol que assomava, espalhando-se as aves para buscar seu mantimento, levantou-se o cavaleiro, e ao nascente viu as torres e edifícios que do outeiro enxergara, bem como os arvoredos que o circundavam; encaminhando-se às casas, deu com o seu cavalo preso a um tronco, selado e enfreiado da maneira que o perdera. Nele seguiu sua via, e saíram-lhe dois enormes gigantes com armas as mais lustrosas. Remeteram contra ele, e Palmeirim os recebeu: um, apanhado pelo meio do escudo, esvaeceu-se em ar; o segundo, inda que o encontrasse rijo, nenhum dano lhe fez, e quando o herói puxou da espada, sumiu-se-lhe de repente.

Palmeirim esporeou o cavalo para aproximar-se de alguns homens que de uma torre iam levantando a ponte levadiça do fosso, e antes que o fizessem entrou por ela e pela porta, que não tiveram tempo de cerrar. Achou-se com os homens de volta, num pátio cercado de casaria nobre e muito para ver; mas não lhe deram vagar dois gigantes, que o investiram de maças nas mãos. Saltou ele do cavalo e os acometeu a pé; tocados os gigantes pela sua lança, também se desvaneceram. Procurando caminho para os altos, por baixo de uns arcos descobriu uma portinhola, donde nascia uma escada a pino e estreita, pela qual apenas podia caber um homem, tão comprida que longo espaço gastar-se-ia em trepar. Andando por ela um pouco, as paredes das ilhargas se lhe começaram a tremer: ora afigurava-se-lhe cair a abóbada e esmagá-lo; ora achava-se entalado, não podendo menear-se. Com trabalho excessivo chegou ao topo da escada, e ali deixou ela de tremer.

No cabo de um corredor extenso e largo, obrado por maravilha, dois grossos cadeados fechavam uma porta grande; ao pé, desenrolada uma serpente enorme, além de ocupar todo o portal, alongava-se muito pelo corredor. Fera e horrenda a catadura, sua composição criava temor em quem lhe punha os olhos; sobretudo lá se lhe sentia uma viveza esperta que tirava a esperança de a levarem por manha, quando não a pudessem conquistar por força. Tinha penduradas ao pescoço tantas chaves, quantas as fechaduras; e, vendo Palmeirim que tão desconversável porteiro não as daria a ninguém, remeteu para feri-lo: a serpente empinou-se irosa e abrasada, expelindo chamas pela boca. Em tanta afronta, meteu-lhe a espada por uma das ventas, em demasia largas; o monstro soprava por elas tamanha quantia de fumo, qüe o ar congelou-se e enegreceu a ponto de nada se enxergar: com a dor da ferida soltando bramidos e urros, deitou-se fora do corredor, e foi assombrando a cidade enquanto lhe passava por cima.

Dissipado o fumo, livre o herói daquele medo, achou à porta as chaves, onde o guardador as deixara; abriu os cadeados e entrou. Como a serpente dos perigos vãos era o derradeiro, nenhum obstáculo encontrou; a discorrer a uma e outra parte, admirou salas e aposentos, em comparação dos quais os ganhados a Eutropa e os de Daliarte no Vale Escuro pouco ou nada valiam. Ouviu então falar mulheres num quarto próximo; estas, à vista de homem armado, correram por umas varandas que davam sobre um jardim; seguindo-as ao jardim, peça tão bela quanto se podia imaginar, à sombra de vastos loureiros e em torno de uma fonte da mais nova e maravilhosa invenção, destinguiu sentadas formosíssimas donzelas, das quais uma a todas se avantajava: era Lionarda. Algumas se ergueram para o cortejarem; a princesa o agasalhou com a afabilidade e graça com que a prendara a natureza.

Como Sardamante deixasse escrito que a passagem da serpente por cima da cidade seria o sinal do desencantamento, os moradores em tropel acudiram, entraram de súbito e prostraram-se a Lionarda. Alguns também quiseram beijar a mão a Palmeirim, que não o consentiu; pois, embora fosse extrema a formosura da princesa da Trácia e o seu reino e senhorio muito para desejar, o fiel cavaleiro susteve-se na lembrança do amor da sua senhora Polinarda, enjeitando aquele partido. Carmélia veio com andas para conduzir a neta à cidade; onde a receberam com festejos e pompa, e serviram o cavaleiro com toda a magnificência.

Passados oito dias, ao dispor-se Palmeirim a partir com Selvian, vendo os magnatas que ele se calava a respeito do casamento, encomendaram ao facundo e sábio duque Radialdo que nisso lhe falasse. O duque expôs o negócio, encarecendo a belleza e os teres da joven rainha; mas Palmeirim, apesar do reforço que ao duque ministrava a eloqüência da donzela da Trácia, persistiu em seu propósito. Lionarda ficou descontente; sua avó recorreu ao segundo partido, ao de receber a neta a marido que lhe escolhesse o desencantador, conforme ao testamento de Sardamante. Assim o prometeu o cavaleiro, pensando logo em seu irmão Floriano, que ainda vivia isento, sem ter sujeita a vontade. Consolando a princesa, ponderou a donzela que, sendo Palmeirim namorado de outra dama, o casamento com ele não podia ser feliz; com a sua natural inteligência aventou que o eleito seria Floriano, e disse que este era tão gentil e bom cavaleiro como o irmão, e que, não tendo ainda fixado o seu amor, o entregaria todo a Lionarda. Esta convenceu-se das razões e acomodou-se.

Carmélia tratou com Palmeirim de enviar à corte de Constantinopla a neta com a donzela; por quanto, sendo ali a flor de toda a cavalaria do mundo, podia ela deparar com um príncipe digno de sua mão. E por esta maneira tão natural traça Moraes que a jovem rainha se veja com as outras princesas; o que era conducente ao bom acabamento, segundo o plano de apresentar no fim todas as personagens, formando um grupo e reunindo quanto era interessante, na ocasião do conflito geral que desata o poema.

DESENCANTAMENTO DA MESMA LIONARDA POR SEU MARIDO E POR DALIARTE

Passada a cerimônia dos casamentos, num domingo estando a espairecer as damas em uma floresta, subitamente escureceu o dia e baixou uma nuvem que as encobriu; levantou-se logo e se desfez, aparecendo no ar dois grifos desmesurados, que arrebatavam nas asas a rainha da Trácia. Esta, rotos os toucados e carpindo-se, ia espalhando clamores; os cavaleiros, deixada a montaria, acorreram ao sítio, com tenção de ir em sua busca e tornar às aventuras. Mas Daliarte o estorvou, dizendo que repousassem, que a empresa tocava ao cavaleiro do Selvagem.

Tendo este corrido inutilmente a uma e outra parte, já sem esperança ao pé de uma serra fragosa, eis que se lhe tornou a claridade como se fora noite; a chuva era muita, nem havia povoado que o abrigasse. Então ele e seu escudeiro perceberam gritos de mulher, que rompiam pela escuridão dos ares, e alguns ais de pessoa aflita o obrigaram a virar as rédeas aonde soavam, que era para o cume da serra, de altura imensa e de áspera penedia quanto se possa imaginar. Aproximando-se, pareceu-lhe que as vozes vinham da mesma rocha; afirmou-se mais, e viu nela uma boca à maneira de portal, por onde podia caber um homem a cavalo. Voltou-se para deixar o seu ao escudeiro; mas este havia desaparecido por obra de Daliarte, que só ao cavaleiro queria manifestar a cova.

Entrou por ela o do Selvagem, e quanto mais andava mais perto ouvia os gritos e gemidos; e, tentando avançar, foi retido pelo cavalo, que parou espantado daquela treva horrorosa; desmontou-se e caminhou a pé, de espada na mão. Cessaram as vozes, de que muito lhe pesou; cria ou que era morta a pessoa, ou que já se tinha consumado o agravo. Apressou-se, e em breve deu consigo num quadrado cheio de rochedos em roda: o campo era verde e gracioso, com fontes e jardins; as quadras eram ocas, de portais cortados na pedra viva, lavrados por excelência, e serviam de entrada aos aposentos da infanta Melia, autora daquela maravilha. Não havia ouro, mas o artifício grandemente superava a matéria: salas e salas, corredores e corredores, abertos na rocha com simetria e compasso; a elevação tamanha e singular, que ninguém pensara que fosse aquilo feitura de homens.

Examinou as casas, cuja luz descia por clarabóias do mais alto do rochedo: enfiavam os aposentos uns com os outros, sem obstáculo à entrada; só uma câmara tinha grossas fechaduras em sua porta de ferro puro, mas lavrada com histórias antigas. Não tentou abri-la, por ver que a fortaleza lho impedia; mas no cabo da derradeira quadra, num salão que em tamanho, altura e primor, a todos se avantajava, uma estátua, encaixada na parede, numa velha representava a fundadora da casa; em cerco, outras figuras havia e grupos de mármore, com o que pouco se deteve para atentar em cousa que mais o espantou.

No meio avultava uma serpente de metal, que enchia quase toda a largura da sala. Erguida sobre a cauda, alto o colo, o rosto vivo, temerosa a catadura, bem que fosse artificial, criava medo em quem lhe punha a vista. O do Selvagem andou-lhe em derredor, e viu que tinha ao pescoço uma chave de ouro pendente de um cordão fino do mesmo, e a chave tão pequena que mal se enxergava; e olhando mais atento, descobriu uma abertura, por baixo das conchas, onde serviu a chave. Ao tempo que a quis tirar, abriu-se com ela um postigo: divisou dentro da serpente quatro círios verdes em castiçais de ouro, que ardiam sem se consumirem, dois ao poente e dois ao nascente: no meio dos círios, em alcatifas riquíssimas e num coxim de seda verde à cabeceira, estava a sua formosa Lionarda em toda a perfeição, conquanto o escuro do lugar e a luz dos castiçais a fizessem descorada; os vestidos eram os próprios que trazia na floresta à hora da sua perdição.

Por mais que bradasse, não lhe pôde quebrar o sono; e, como de isento se tornara amoroso e fiel, começou a lastimar-se, e no desespero arrancou da espada, e a golpes tentou desfazer a serpente. Eram em vão os golpes; mas ela, em chamas, encobriu-se-lhe da vista. Cessou o cavaleiro, temendo que o fogo causasse dano à sua senhora, e o fogo se aquietou; e, quando já não sabia que remédio buscasse, apareceu-lhe Daliarte, à inglesa trajado e sem armas, porque a pressa não lhe deu lugar a vesti-las. Depois de se abraçarem, disse-lhe o sábio que a empresa havia mister a ciência de um e o valor do outro; que na força do lume daqueles círios sustinha-se a vida de Lionarda, e por isso ardiam sem se consumirem; que, não sendo assim, acabada a matéria de que se compunham, a dama acabaria seus dias. Mandou cerrar o postigo e repor a chave ao colo da serpente, e saíram para o campo.

Assim que puseram pé fora da casa, escureceu; dissipada a cerração, o cavaleiro do Selvagem achou-se desacompanhado do mágico seu irmão. Nisto, remeteu a ele um touro enorme e feroz, que o lançou tão alto quanto era o penedo, e quando baixou caiu no pescoço do touro; este o levou a uma cova medonha, no fim da qual havia uma sotéia grande e bem obrada, onde o depôs e desapareceu. Em torno viam-se estátuas de Mouros famosos concorrentes no tempo de Amadis e Esplandion, e no lugar de mais autoridade, Armato rei da Pérsia, de coroa na cabeça, com letras na coxa esquerda que declaravam seu nome.

Enquanto pascia os olhos naquelas maravilhas, entrou uma velha toda arrugada, que mal se sustinha, e fingindo espantar-se do encontro, atroou a sala de vozes terríveis, impróprias de mulher tão fraca, pedindo ajuda às estatuas contra o violador do seu paço: as estátuas buliam e levantavam as espadas; mas, assim que Floriano se meteu em defesa, elas ficaram quedas e evaporou-se a velha. Tornou o cavaleiro à quadra em que jazia a serpente, e já topou-se com a mesma velha, pegada à fechadura para guardar a porta: ele parou indeciso, por não pôr as mãos em mulher; ela medrosa, como quem não ousava aguardá-lo, com os ombros forçou a porta e cerrou-a sobre si, quebrando-lhe os cadeados, nem que fossem de cera. Quis entrar Floriano, e sentiu que outrem lho vedava de dentro; porfiou, e a velha cedeu. Acompanhava-se ela de quatro homens de arneses lustrosos, a quem se queixava do desacato; e, cada um acenando feri-lo com sua maça, logo que o do Selvagem resistiu, consumiram-se em ar juntamente com a velha.

Salvo de tais impedimentos, olhou em redondo, e sobre uma coluna de bronze viu em castiçal de ouro acesa uma vela de cera branca, tão fina que sem o lume fora imperceptível. As paredes eram cheias de armários de madeira entalhada, com fechaduras e chaves: nuns estava parte da livraria da infanta Melia; noutros, louçãos vestidos e toucados, com pedraria sem preço, que a mesma infanta, ao modo do tempo, fez para sua sobrinha filha de Armato, a qual faleceu em vésperas do seu casamento. Ainda que esta riqueza fosse para contentar a qualquer cobiçoso, não se contentava ele, porque não podia haver à mão o seu principal tesouro.

Nesta aflição, visitou-o de novo o sábio Daliarte, que lhe disse com rosto alegre: “Agora, senhor cavaleiro, que de vossa parte está feito tudo que a vós convinha, deixai a mim o remate de vosso descanso; que, apesar de quem vo-lo quis estorvar, sereis tornado a ele.” Então perlustrou bem a casa, e por consentimento de Floriano, deixando a este o imenso tesouro, por sua arte mandou para a Ilha Perigosa a livraria de Melia, que se foi incorporar á que lhe concedera Urganda. Concluída a partilha, própria de irmãos, da coluna tirou Daliarte o pavio, e assim folou: “Nesta pequena sustância estava toda a vida da senhora Lionarda, e em quanto a não pudéramos haver, pudéreis ser mal descansado: já agora, nem o poder de Targiana que isto ordenou, nem o saber da grã Drusia Velona qüe o fez estorvará fazer-se tudo à nossa vontade, e descansareis do trabalho.” Saiu logo da casa, tornando ao salão da serpente.

Com o pavio numa das mãos, e na outra um livrinho de couro preto que achara sobre a coluna debaixo do castiçal, ordenou Daliarte ao irmão que abrisse o postigo da serpente com a chave que ela tinha ao colo, e lendo certas exclamações no livro escritas, apagou-se o lume dos círios, não todos, porque se a um tempo se extinguissem expiraria a rainha; mas, à medida que se apagava um, Daliarte o reacendia com o pavio, cujo fogo, de qualidade contrária, além de conservar a vida, quebrava a ordem do sono. Tanto que os círios todos foram de novo acendidos, em si tornou a rainha, cuidando que despertava de um sono costumado; porém, vendo-se naquela estreitura, esteve a considerar, não lhe lembrando o que se passara depois de ser arrebatada. Contou-lhe tudo o mágico, e se dispôs a acabar com o desencantamento, a instâncias de Floriano, que não podia ver sua senhora tanto espaço dentro daquela máquina.

Sem nada aguardar, o sábio Daliarte meteu o pavio pelas ventas da serpente; a qual, deitando chamas pela boca e olhos, ergueu-se e deu pela casa três ou quatro saltos, e a cada salto abalava-se todo aquele aposento. A rainha tornou a cair sem sentidos; e, com mágoa das penas do cavaleiro do Selvagem, apressou-se Daliarte a introduzir a mão pelo postigo e a extinguir os círios: a serpente se abriu de súbito por uma ilharga, pois o seu todo na força do fogo se sustinha. Mas, como durasse o desfalecimento de Lionarda, com dó do irmão, que a ele se socorria, tornou a ler o livro, e assim totalmente veio a si a rainha e precipitou-se nos braços do marido. Foi quebrado o encantamento.

Mostraram a casa a Lionarda, que ainda com susto a esteve correndo; e na sala da coluna achou peças de tanta invenção, preço e riqueza, que, deslembrando os males passados, com alvoroço desejou ataviar-se de algumas e apresentar-se às amigas, não tanto para matar saudades, como por ir com a natureza e índole das mulheres, que darão vida e alma por cousa que às outras cause inveja. E com efeito, convindo nisso Daliarte, como não podia levar tudo, vestiu-se e enfeitou-se do melhor, que era acima de quanto vira até aquela hora, com tenção de parecer bem e escurecer as demais princesas. Despediu-se deles o mágico e partiram com o escudeiro para Constantinopla; onde o braço de Floriano ia ser de grande ajuda a seus amigos e parentes.

DOTES DA COMPOSIÇÃO E DO ESTILO.

O nosso poema é mesurado em sua marcha, as partes intimamente ligadas formam um todo completo; e bem que muitíssimas sejam as personagens, o autor numa só reúne o máximo interesse, e o vai graduando e o reparte com os outros, sobressaindo sempre o herói principal. Neste ponto é mais regular que o Ariosto: Ruggeiro muitas vezes contrabalança a Orlando e atrai mais a simpatia; Palmeirim, todos lhe ficam abaixo evidentemente, e nele se coadunam qualidades e virtudes que em nenhum de tantos se acham juntas; as maiores empresas e façanhas sempre lhe são reservadas. — Em Moraes, os combates variam infinitamente; emboca a tuba de Homero com extremada valentia. É para admirar o como consegue exprimir a grandeza e horror dos conflitos com as palavras mais simples e vulgares, e não raramente se remonta ao sublime.

Uma das dificuldades, vencidas por Ariosto, é conduzir diversíssimas ações não as confundindo jamais; o mesmo se observa no Palmeirim. O poeta português, a excetuarmos, uma cena entre Floriano e um ermitão, é geralmente mais casto que o Ferrarez; a imaginação de um orça pela do outro, e o mesmo digo da correnteza e afluência de expressões; o seu estilo ostenta igualmente abundância e variedade, porém o de Ariosto é mais conciso e castigado, sobretudo mais poético e arrojado.

Quando mesmo o nosso Moraes não fosse tão engenhoso, não se lhe poderia negar a insigne honra de ser um dos que mais poliram o português. A nossa língua, melhorada no tempo de D. João II, era já bela nos escritos de Gil Vicente e de alguns mais antigos; todavia, quem desses autores passa a João de Barros e a Francisco de Moraes, sente logo uma diferença manifesta: a linguagem do Palmeirim é tal, que salvas algumas terminações e poucas mudanças de letras, quase todas as suas palavras se reproduzem hoje em dia nos livros que não se moldam pelo francês. E este predicado é prova inteira de que a obra não podia ser de D. João II ou do infante D. Luiz: quem lê os escritos desses tempos, comparando-os com o Palmeirim, tem que este é um século mais moderno, posto que Moraes nascesse pouco depois da morte de D. João II, e fosse contemporâneo do infante D. Luiz.

É para notar a harmonia da prosa no nosso autor, o compasso de seus períodos, a propriedade e riqueza dos termos e das expressões, a simplicidade unida à força é a clareza: prosa tal é preferível ao verso, quando este não é modulado pelos Virgílios, Camões, Tassos e Racines. Para dar uma idéia do belo estilo de Moraes, farei alguns extratos das suas pinturas e descrições.

PINTURA DE UM COMBATE JUNTO AO CASTELO DE DRAMUSIANDO.

Com muito ímpeto remeteram juntamente, e encontrando-se em cheio assim das lanças como dos escudos, foi o estrondo tão grande como se caíra uma rocha. De uma parte e outra vieram todos ao chão, uns com a força do encontro, outros pela fraqueza dos cavalos; somente Platir, Beroldo e Polinardo, que por ajudar melhor seus companheiros se desceram muito prestes dos seus. E postos todos a pé, arrancando com fúria das espadas, os escudos embraçados, a um tempo começaram a mais cruel e temerosa batalha que no mundo se poderá ver; andando tão vivos e acesos nela, com tamanho acordo, ardideza e desenvoltura.. ..sem conhecer-se vantagem de nenhuma das partes, nem em nenhuma delas fraqueza.. ..O rachar dos escudos foi de maneira que em pequeno espaço se semeou o campo deles. Aquelas formosas sobrevistas e singulares divisas, armas de tanto preço de que os mais vinham cobertos, foram tão prestes desfeitas, que já se não sabia enxergar a louçainha delas, antes estavam tão tintas de sangue, que se não podia crer que algum tempo foram de outra cor. O retinir dos golpes era tamanho, que por todas as partes daquele vale soava com tamanho estrondo, como se todo ele se fundira.. ..Eles andaram em sua porfia por mais de uma hora, combatendo-se de tal sorte, que no cabo não havia armas nem forças para pelejarem; mas seus espíritos lhas emprestavam aos membros para se poderem suster. Não consentiu o grão sábio Daliarte .... antes acudindo entrou no campo à maneira de velho anciano, em cima de uma serpe temerosa e grande com verga de fogo na mão, e tocando com ela, em terra caíram sem acordo.. ..Feito isto, se foi contra o castelo, lançando a serpe pela boca e ventas tão grande quantidade de fumo negro e espesso, que todo o ar foi congelado dele, de feição que nada se podia ver, assim dentro da fortaleza como fora dela, senão algumas chamas vivas que às vezes por entre o fumo saíam com tamanha fúria, que parecia que tudo queimavam quanto se lhe punha diante.

DESCRIÇÃO DO JARDIM DA ILHA ENCOBERTA.

Era feito em repartimentos, que se dividiam uns dos outros cem ruas largas tanto por compasso, que em nenhuma parte parecia que saíssem fora dele. Plantados pela borda uns olmeiros crescidos e de muita rama, todos de um tamanho e medida e postos por ordem igual, que lhe dava muita graça. De um ao outro, por todo o comprimento das ruas, havia caniçadas de tantas galantarias e invenções quantas não parecia possível caberem no juízo humano, tão novas como se foram acabadas aquele dia; o chão das ruas lajeado com pedras brancas e verdes à maneira de lisonjas, com que ficavam mais nobres e galantes; quantos eram os repartimentos que no jardim se faziam, tantas eram as diferenças de árvores, ervas e outras flores, conformes ao lugar: que em uns havia arvoredos de troncos mui grandes, as ramas tão altas que pareciam tocar as nuvens, e tão bastas que apenas se podia andar entre elas, de qualidade e natureza que na maior força da calma se meneavam com vento, e o sol por entre as suas folhas não tinha força para impedir a sombra; em outros, outras árvores criadas para uso da vida, de tão singulares frutas quanto a natureza se podia esmerar; em outra parte, flores contínuas de todo o ano, de tantas diversidades de cores, quantas a primavera traz consigo quando se mais refina; em alguns, campos verdes sem nenhuma outra mistura, de uma erva baixa quase tosada, para ali lograr o sol quando a humanidade o desejasse; em outro repartimento havia rochas de penedia áspera e fragosa cobertas de hera e outras ervas, conforme a sua propriedade: do mais alto delas desciam canos d’água, que ao descer vinham dando de pedra em pedra, e eram compostas por tal arte, que o rugido d’água nas pedras formava toda quanta harmonia rouxinóis e outros passarinhos alegres podem fazer no tempo que mais são para escutar. No pé da rocha todas aquelas águas se recolhiam em tanques cercados de uma pedra cristalina lavrada de maçonaria de obra romana, cheia de tanta sutileza e galantaria para dar contentamento aos olhos, quanto ao juízo humano seria trabalhoso comprender.

O que nestas cousas era mais de notar é que nenhuma delas padecia corrupção, mas antes estavam no própio ser e virtude com que as ali plantaram: as árvores com sua folha, as flores com sua cor, os campos com sua graça e verdura, as rochas com sua aspereza; e sobretudo, em lugares convenientes, fontes d’água clara, que saída delas se sumia por canos secretos, e logo tornava a sair por esguichos apertados, com tamanha fúria como lhe fazia trazer a força com que saía, caindo em pias da mesma pedra grandes e lavradas do lavor dos tanques. Dali se repartia aquela água por lugares diversos, uma para uma parte, outra para outra, todas por canos de metal postos por ordem, com que se regava geralmente todo o jardim, e cada cousa sobre si; isto não por mão de ninguém, mas a mesma ordenança dos canos ia visitando e correndo tudo. Não sem mistério se regava de contino; que esta água era de tanta excelência, ou a propriedade da terra o causava, que na virtude dela se sustinha cada cousa sem corromper.

INCÊNDIO DA FROTA MUÇULMANA.

Albayzar, que de seus imigos tinha conhecimento, não se fiava tanto da fortuna, que à discrição dela quisesse deixar suas cousas; antes, como bom capitão, se atalaiava para o porvir. E tanto que lhe pareceu que em todas as miudezas do exército tinha provido como convinha ao estado da guerra, por conselho dos principais dela, mandou pôr fogo a toda a frota, deixando somente algunss bergantins e navios pequenos, de que se pudesse servir para mantimentos: toda as outras naus, galés, carracas, todo gênero de navios se consumiu no fogo, de que o povo recebeu sinalado espanto; que viam que ficavam alojados nos campos de seus imigos, ofrecidos a guerra tão sinalada e cruel, na qual por força lhe convinha vencer ou morrer, pois toda a outra salvação lhe era tirada d’ante os olhos, e só na força de suas mãos estava a esperança de vida...

Depois que o fogo começou de arder, bem parecia a tal obra de ânimos cruéis e desejosos de vingança, que, espalhada e tendida a chama ao longo d’água, parecia que esta mesma ardia; com tanta força soprava para o ar, misturada com fumo negro e espesso, que impedia a vista e o céu. Além disso, o breu e o alcatrão lançava de si um vapor incomportável e mau, que enjoava os homens, de sorte que os espíritos dentro nos corpos não podiam respirar. Obra de tão sinalada crueza nunca se viu em nenhum tempo; que, conto a frota fosse em si tão grande que quase coalhava o mar, e entre ela houvesse algumas naus de maravilhosa grandeza, guarnecidas de púrpuras, sedas e outros atavios de muito preço e valia, segundo a opinião dos príncipes que nelas vieram, e tudo isto à vista deles e de seus vassalos se visse consumir e desfazer em brasa por seu própio mandado e ordenança, não havia quem com olhos fixos em tamanha destruição pudesse estar olhando; té os próprios autores e conselheiros de tal obra, e Albayzar com eles, vencidos de compaixão de tão áspera façanha, se metiam em suas tendas por não dar testemunho dela.

O ruído do fogo soava mui longe, a chama parecia combater as nuvens, toda a matinada do mundo parecia que tinha parte em tão sinalado incêndio. Os da cidade... cuidaram fora algum mau recado, mas, depois que por ordem viram tender o fogo e que ninguém dava pressa para apagá-lo, logo caíram na tenção de seus imigos. O imperador se mandou levar a uma torre, e vendo cousa tão espantosa, não o houve por bom sinal... A imperatriz e as damas... trespassadas de medo, se recolhiam a suas casas, onde com lágrimas e pregarias se socorriam ao remediador de tudo. Sete dias contínuos durou o queimamento; no cabo deles, que o fumo se começou a desfazer e descobrir o mar, vendo-o vazio e desemparado de tamanha frota, fazia nova saudade nos própios senhores dela.

CHEGADA A CONSTANTINOPLA DE FLORIANO COM A RAINHA DE TRÁCIA.

Um dia depois de vésperas, estando o imperador sobre a estância donde sempre costumava ver o campo e as escaramuças, e da outra parte a imperatriz, princesas e damas, às janelas... viram atravessar por entre a cidade e o arraial um cavaleiro, que no ar e seguridade parecia cheio de soberba e confiança de si mesmo. Cavalgava um cavalo alazão grande, armas de ouro e prata, esmaltadas sobre o ferro à maneira de troços, metidos uns por outros, e em muitos lugares manchadas de sangue, como quem as não trazia ociosas.... No escudo em campo de prata o Amor preso pelos cabelos a uma coluna de ouro, a lança tendida ao través do pescoço do cavalo, no ferro uma bandeirinha branca de tafetá, em sinal de seguridade e paz. O escudeiro lhe trazia outro escudo coberto de couro negro, na mão outra lança para se lhe fosse necessária.

Vinha em sua companhia uma dona em um palafrém murzelo, vestida à guisa de Turquia: as roupas de cetim branco, cortadas a muitos cortes sobre outra seda negra, que lustrava ao longe; os golpes nalguns lugares tomados com troços de ouro, guarnecidos de pedras pela bordadura, toda em roda lavrada de bastidor, largura de um palmo; vinham por extremo entalhadas e esculpidas algumas histórias antigas, tanto ao natural, como se aquele fora o próprio original delas. O toucado era também turquesco, composto de uma trunfa alta de seda negra, lavrada do mesmo jaez da roupa, se não quanto era de muito maior preço. Os cabelos soltos por baixo, lançados ao longo das costas, tais que parecia que ficavam as outras peças de menos estima. Trazia rosto coberto por não ser conhecida.

DESCRIÇÃO DAS ARMAS DOS CRISTÃOS PRESTES PARA A PRIMEIRA BATALHA CAMPAL.

Dom Duardos, o imperador Vernao e o sultão Belagriz, tiraram armas de branco e negro com troços de ouro, que estremavam uma cor da outra, fortes e louçãs; no escudo, em campo negro, grifos negros com letras de ouro no bico, que diziam o nome de quem mais tinham na vontade.

Primaleão e el rei Polendos saíram de armas brancas sem nenhuma louçainha; nos escudos, em campo branco, a roca partida, como Primaleão soía trazer, sendo mancebo e andando de amores com Gridônia sua mulher.

Recindos e Arnedos, reis de Espanha e França, tiraram armas conforme a sua idade, mais honestas que louçãs, de morado e pardo a quarteirões; nos escudos, em campo pardo, leões rompentes.

El rei Estrelante, Belcar seu tio, tiraram armas de negro e ouro, fortes e honestas, porque não havia muito tempo que el rei Frisol e Ditreo eram mortos; nos escudos, em campo negro, umas árvores de ouro.

Palmeirim de Inglaterra e Florendos tiraram as suas de verde, cravadas de malmequeres de ouro e branco; nos escudos, em campo branco, a Fortuna deitada de bruços, em sinal de não confiarem nela seus feitos.

El rei Floramam de Cerdenha e o cavaleiro do Selvagem tiraram armas de azul semeadas de ouro, mais louçãs do que ao parecer requeria a vida de Floramam. Nos escudos vinham diferentes: que Floramam trazia no seu, em campo negro, a Morte com uma donzela pela mão; o do Selvagem, em campo pardo, um selvagem com dois leões por uma trela, que era sua divisa costumada e tão conhecida no mundo.

Dragonalte rei de Navarra, Albanis de Frisa rei de Dinamarca, vieram armados de roxo com passarinhos de prata; nos escudos, em campo vecde, o Amor com um cavaleiro debruçado ante ele e com os pés em cima, que esta foi a divisa que Miraguarda mandou a Dragonalte que trouxesse toda sua vida, quando Florendos o venceu ante ela no castelo de Almourol.

O príncipe Beroldo, Onistaldo seu irmão, tiraram armas cobertas de ouro manchadas de negro; nos escudos, em campo negro, fogos do mesmo ouro; os elmos, da mesma sorte.

Polinardo e Francian saíram de verde e roxo, cortadas as cores em tiras, metidas umas por outras; nos escudos, em campo verde, mares de prata.

Blandidom e Frisol tiraram as suas de amarelo e negro, à maneira de cunhas; e nos escudos, em campo amarelo, grifos negros cravados com rosas de ouro.

Pompides e Platir traziam armas de verde compostas de esperança; nos escudos, em campo verde, touros brancos, que desta divisa se pagava muito Pompides.

O príncipe Graciano e Goarim seu irmão vieram de branco e verde, as cores estremadas com cordões de ouro; nos escudos, em campo branco, mares de verde compostos de boninas de muitas cores.

Boramonte e Belisarte vieram de vermelho sem nenhuma outra mistura; nos escudos, em campo sanguino, a Esperança morta, com quem já não a havia mester.

Dom Rosuel e Dramiante tiraram armas de branco, semeadas de rosas de ouro, tomados os elmos com cordões do mesmo; no escudo, em campo de ouro, cisne branco.

Vasiliardo e Dirdem, filhos de Mavortes, saíram de pardo com florestas de arvoredos; os escudos, da mesma maneira.

Tenebror e German d’Orleans não tiraram nenhuma louçainha; somente o que soíam, que eram armas das cores de suas damas.

Luyman de Borgonha e Tremorão tiraram armas de amarelo, conforme a seu cuidado; que Tremorão, desconfiado de haver sua dama, tomou aquela cor, e Luyman, não tendo que esperar, seguiu o mesmo; nos escudos, em campo amarelo, a Tristeza pintada de negro.

Daliarte do Vale Escuro e Dom Rosirão de la Brunda tiraram armas brancas sem louçainha nenhuma; no escudo de Daliarte, Apolo em campo verde, como sempre costumou; no de Dom Rosirão, em campo vermelho, a cimitarra de Membrod, de cuja origem descendia.

Dramusiando saiu por si só em um poderoso cavalo ruço rodado, armado de folhas de aço muito fortes; o escudo também de aço com uns debruns do mesmo, que o faziam mais rijo. Como fosse grande e trouxesse armas tão fortes e fosse bem quisto, sempre o olhava o povo com muita afeição, e nele tinham muita esperança.

DESCRIÇÃO DAS ARMAS DOS CONTRÁRIOS.

Albayzar, soldão de Babilônia, herdeiro do estado do Turco, capitão geral do campo, saiu em um cavalo que para aquele dia tinha guardado, muito bom, que lhe mandara el rei de Media, armado de armas verdes, semeadas de esperança de sua vitória; no escudo, em campo verde, uma imagem de ouro dos peitos acima, tirada ao natural de Targiana, guarnecida de muita pedraria, mais para o ver e guardar que para oferecer aos encontros. E como viesse com o rosto desarmado, a viseira levantada, e de seu natural airoso e gentil homem, parecia merecedor de tamanho carrego.

O soldão de Pérsia tirou armas de verde e branco, metidas umas cores por outras, com estremos de pedraria e ouro, feitos à maneira de P, por ser a primeira letra do nome de Polinarda, a que então era mais afeiçoado que a nenhuma pessoa do mundo, e que esperava que lhe ficasse por prêmio ou despojo da vitória; no escudo, em campo de prata, a Esperança contente, vestida de verde, a modo de donzela; na orla do escudo em roda, o nome inteiro de Polinarda.

El rei de Caspia tirou armas amarelas, manchadas de negro em sinal de descontente de ser vencido na batalha passada; no escudo, em campo negro, uma onça com as unhas envoltas em sangue, como quem esperava banhar as suas no de seus inimigos.

El rei de Trapisonda veio armado de roxo, com passarinhos de prata cravados nas armas com as asas abertas; no escudo, em campo azul, o deus Mars pintado ao modo antigo com o rosto feroz e temeroso.

El rei de Pártia veio diferente dos outros, com armas brancas, limpas e luzentes, sem nenhuma composição; no escudo, em campo branco, um leão espedaçado, por memória de outro que matara sendo mancebo.

El rei de Etólia tirou armas de roxo e morado, cores pouco alegres e quase conformes, sem nenhum estremo; no escudo, em campo roxo, um touro negro.

EI rei de Armênia veio armado de pardo com rosas de ouro miúdas; no escudo, em campo pardo, a ave Fênix, em sinal de ser uma só no mundo a senhora que servia.

El rei de Bamba tirou armas de ouro com estremos de prata; no escudo, em campo de prata, um leão dourado.

El rei de Bitinia saiu de verde com barras brancas, cortadas umas sobre outras; no escudo, em campo verde um tigre de ouro de martelo, cravado em roda, a orla de pedraria de muito preço.

O príncipe Argelao de Arfafia tirou as suas do mesmo toque d’el rei de Bitinia, por lhe ser afeiçoado e pousar com ele.

Todos os outros cavaleiros sinalados saíram armados ricamente, de que se não faz menção por serem da parte contrária, de que se não pode haver tão inteira informação, que se possa escrever na verdade.

Framustante, com outros sele gigantes do exército, saíram de armas luzentes e fortes, de aço grosso e liso sem nenhuma mistura; que, como fossem tantos e tamanhos de corpo que sobejavam muito por cima de toda a outra gente do campo, e os arneses e elmos resplandecessem ao longe com raios acesos que o sol fazia sair, geraram grande temor nos ânimos de seus contrários, em especial daqueles que a esperar tamanhos monstros estavam desacostumados, e por conseguinte, grande confiança de ter vitória e vingança, nos de sua parte.

CENAS DIVERSAS DO PRIMEIRO CONFLITO GERAL.

Rotas as batalhas de uma e outra parte, alguns dos que entraram nas primeiras se retiraram por cobrar alento, não entrando na conta Primaleão, Palmeirim, nem os daquela massa; que estes parecia que não naceram para cansar. O romper das armas, rachar de escudos, quebrar de lanças, soava tão longe e com tamanho estrondo, que parecia que ali se consumia e desfazia toda a geração humana; os alaridos de alguns bárbaros fendiam as estrelas, os gemidos dos feridos, e dos que naquele ponto acabavam de dar a vida, com tamanha lástima se representavam nos ouvidos de seus amigos, que não havia a quem não provocasse a lágrimas e dor.

A imperatriz com toda sua casa, vendo tal batalha e com tanta crueza, lembrando-lhe o que nela aventuravam, se meteram em seu aposento: ali, assolando os paços com gritos, parecia que a destruição deles era chegada. Este pranto se esparziu por toda a cidade, e as matronas e donas de maior autoridade, postas em cabelo e as faces rasgadas, saíam pela rua gritando té o paço, onde em pequeno espaço se juntaram muitas, como quem no imperador esperavam verdadeiro remédio e socorro... O imperador, como já forças e idade o desemparassem,... não supria naquelas afrontas segundo seu costume, antes com ânimo mais feminil que de homem esforçado resistia aqueles medos.

Dom Duardos, capitão geral, como viesse de refresco, desejoso de mostrar suas obras, antes de quebrar a lança, derribou três cavaleiros, depois com a espada abria caminho por antre a força dos imigos. Albayzar, que o mesmo confiava de si e o próprio desejo trazia, se fez tanto sinalar entre os seus, que nenhum outro se olhava com mais inteira confiança... O gigante Almourol, que té ali entendera em guardar Recindos seu senhor, vendo que contra ele com uma maça de muitas puas se vinha o gigante Dramorão, a quem a mais da gente dava caminho, se lhe pôs diante: Recindos, que lhe quis pagar sua lealdade com ajudá-lo, segundo sempre costumava, viu que da outra acudia outro gigante em favor de Dramorão, e como seu ânimo não fosse para enjeitar alguma afronta, o recebeu acompanhado de seu esforço. Recindos era já velho, cansado, desacostumado de tamanhos casos; falecendo-lhe socorro, foi tão cargado dos golpes de Trafamor, que assim se chamava o gigante, que cortado dos fios de sua espada té o intrínseco de suas entranhas, caiu a seus pés morto, dando fim à vida no em que sempre o desejou... Chegou ali o gran Palmeirim de Inglaterra, cansado e trabalhado do muito que fizera, coberto de sangue assim seu como de seus imigos, que vendo tamanho desastre e perda, remeteu a Trafamor: por algum espaço se combateram; mas no fim, como ninguém os apartasse, Trafamor pagou a morte de Recindos, ficando Palmeirim tal, que foi forçado sair-se da batalha.

A este tempo o príncipe Beroldo de Espanha, tornado de novo à batalha, ouvindo dizer a morte de Recindos seu pai e de Onistaldo seu irmão, perdido o juízo natural, como cousa bruta e sem nenhuma razão, se meteu na força dos imigos, fazendo façanhas entre eles, com desejo de chegar aonde seu pai estava e ali dar fim à vida juntamente com a de seu irmão, por lhe não ficar tamanha lástima... Por certo, esta se podia chamar a mais mal-aventurada batalha que a natureza podia ordenar, porque, além de tantas mortes de singulares príncipes e esforçados cavaleiros, nascia deles outro modo de tristeza...: por uma parte, veríeis entrar os filhos de Belcar, Dom Rosuel e Belisarte, rompendo os imigos, perguntando por seu pai, pelejando sem nenhum concerto nem ordem; por outra parte, Francian filho de Polendos, bradando pelo seu. Então, como fossem tamanhas pessoas, tão chegadas ao imperador, cada um os seguia e acompanhava; além disso, com soluços e lágrimas faziam a batalha.

Beroldo chegou aonde Recindos seu pai estava; ali achou o gigante Almourol com o elmo perdido, o rosto descoberto, a cabeça desgrenhada, os olhos envoltos em sangue e lágrimas pola morte d’el rei seu senhor; a catadura temerosa, tal que com ela fazia medo; a espada tomada com ambas as mãos; e pelejava valentemente, ainda que com soluços, tendo sete ou oito cavaleiros mortos a seus pés, com tenção de naquele próprio lugar sepultar seu corpo, em sinal da muita fé, amor e lealdade, que lhe sempre tivera... Primaleão trabalhou por tirar da batalha Almourol, por o ver sem elmo e as outras armas rotas, e com muitas feridas. Mas a sua fiel brutalidade de tanta constância estava acompanhada, que nunca o puderam desviar dela. Ali recresceu grã número de imigos, que o soldão de Pérsia... entrou de novo com gente folgada... Com esta gente veio o gigante Gromato, extremado em forças, que, rompendo os imigos, chegou a Almourol, mas o esforçado Florendos se lhe pôs diante... Almourol, antes que Gromato se pudesse aproveitar de um golpe com que descia, cerrou com ele a braços, onde recresceu muita gente de uma e outra parte, cada um por acudir ao seu. Por derradeiro, Almourol acabou nas mãos de Gromato, a quem também Beroldo cargou de tais golpes, que ambos a um tempo fizeram fim.

TRISTEZA E TERROR EM CONSTANTINOPLA DEPOIS DA PRIMEIRA BATALHA.

Acabado de se apartarem os capitães com sua gente, por consentimento de Albayzar e Primaleão, retiraram do campo os príncipes mortos para lhes darem sepultura... Muito mais triste pareceu este recolhimento do que o fora a mesma batalha... resolveu-se tudo em pranto; que, como não vissem diante si os imigos e vissem seus amigos já mortos, cuja conversação perdiam perpetuamente, a dor que disso tinham trazia choro e o causava muito mais; que viam que cada príncipe vinha cercado de seus filhos e vassalos, que descobertas as faces envoltas em lágrimas, recontavam suas proezas e feitos: traziam à memória a falta de suas obras: chamavam-os nomeando-os por seus nomes, pedindo-lhes que respondessem, e de ver que invocavam cousa impossível, com vozes altas e tristes que pareciam chegar ao céu, convertiam a todo o mundo a ajudá-los neste pranto.

Desta sorte chegaram à cidade; acharam a imperatriz... com todas as outras princesas e damas, que no campo tinham seus penhores, chorando sobre os corpos de Recindos rei d’Espanha e de Onistaldo seu filho. As mais delas os saíram a receber em cabelo, que já sabiam sua desventura, e cada uma perguntava pelo que lhe mais doía. Quando à rainha de França e Francelina foram presentados os maridos mortos e espedaçados, a outras os filhos e irmãos cobertos de sangue e feridas, pode-se crer que esta foi uma das mais lastimeiras cousas do mundo; que, como as mulheres nas paixões acidentais têm menos sofrimento e tudo querem pagar com lágrimas e choro, de tal sorte fizeram seu pranto, que não havia pessoa, que as ouvisse, que não chorasse com elas movidas a piedade. Algumas rasgavam as faces, outras destruíam os cabelos, merecedores de não os tratarem assim. Entre estas houve em quem a paixão teve tanta força que, esmorecidas e fora de seu acordo, foram levadas a suas pousadas.

Muitas senhoras e damas, entrando por entre as capitânias, rompendo a ordem delas, com gritos perguntavam por seus maridos, filhos e irmãos: as que os achavam eram em tal estado, que os não podiam receber senão com pena e pouca esperança de saúde; as outras, que dos seus não tinham notícia, como doudas os queriam ir buscar ao campo onde suas vidas acabaram, e ali acabar também com eles... A imperatriz de Alemanha, a rainha d’Espanha, abraçadas com seus maridos, envoltas em seu própio sangue, com lágrimas os cobriam e banhavam, com as mangas das camisas lhes limpavam as feridas, beijando-as muitas vezes; que o amor, onde está, nenhum empedimento põe a cousa tão desacostumada. Grande espaço se consumiu nisso, e com grã fadiga Primaleão e Dom Duardos as fizeram recolher.

Cardiga mulher de Almourol, que tinha seu marido nos braços, não havia quem a abalasse, antes com temerosos urros e palavras cheias de grã dor e lástima chorava sua desaventura e desemparo. Com esta mostra de amor de Cardiga, lembrando a maneira de que seu marido morrera, nem havia pessoa de tão rijo coração que ousasse apartá-la dele, e a rogo de Dom Duardos a rainha Flerida, a quem as feridas de seu marido e filhos traziam trespassada, se chegou para ela e a consolou e acompanhou, té aquele primeiro ímpeto fazer termo.

O grande imperador Palmeirim, em cujos ouvidos toda esta desaventura foi representada, como já não fosse para esperar tamanhos medos, a natureza o desemparou, de maneira que, tolhido de toda a força e vigor corporal, ficou desemparado de sua virtude, sem nenhum sentimento em seus membros. Para pior, variou-se-lhe o juízo e o entendimento, ficando de todo sem ele; e, como já fosse chegada a sua hora e estas mostras começassem a ser indício, aquela noite morreu a sua ave, de que em seu livro se faz menção, dando antes da sua morte gritos espantosos e tristes.

DEFEITOS DA COMPOSIÇÃO E DO ESTILO.

Convém parar nos extratos: a querer-se dar uma completa análise de todas as belezas, fora mister um grosso e extenso volume. Vamos agora aos defeitos da obra.

Moraes, como já o provámos, compô-la em três para quatro anos; pouquíssimo tempo, se refletirmos que o Palmeirim é pelo menos da longura do Orlando Furioso. Embebido na composição do todo, no entrecho de tantas aventuras e episódios, não pôde limar o seu trabalho; seu estilo, ainda que admirável em geral, às vezes é deleixado e incorreto. No começo lê-se a obra com fadiga: isto vem de que o autor, em vez de principiar como um poema, faz citações e toma o ar de um compilador; mas quem vence a repugnância dos primeiros capítulos, é recompensado com o interesse crescente, sobretudo quando os cavaleiros se vão jnntando no castelo de Dramusiando. Posto que o todo seja otimamente ligado, deseja-se que seus capítulos sejam melhor divididos: não raramente corta ele uma história, e no meio do capítulo enceta ou continua outra bem diferente; o que lhe é comum com o Ariosto, a quem sobre modo se assemelha.

Moraes não sabe tocar a sensível corda do amor; falta-lhe o profundo e o mavioso de Virgílio na antigüidade, ou de Torquato Tasso, ou de alguns trágicos e romanceiros modernos; alambica nas falas as expressões, e é nisto da escola de Petrarca, sem ter contudo a sua delicadeza. O forte do homem é a imaginação: comparável comumente ao cantor Ferrarez, muitas vezes a Homero, quase nunca o é a Virgílio. Tem fluido e nervoso estilo, dicção pura e variada, é cheio de belíssimas imagens; mas a abundância de suas expressões de quando em quando lá degenera em profusão e prolixidade: repete os vocábulos no mesmo período sem precisão. Em alguns lugares quis imitar os antigos; é sem gosto a sua imitação: tal é uma em que ele traduz e encaixa pedaços de Virgílio.

Não apontarei como pecha a confusão de idéias geográficas, históricas e cronológicas; porque todo mundo sabe que nos livros de cavalaria há uma geografia, uma historia e uma cronologia, que só eles conhecem, e criam reis e príncipes e reinos a sabor da sua fantasia. Mas aponto como repreensível o findar sempre cada capítulo com uma sentença, as mais das vezes destituída de graça e o seu conceito vulgar. Em poucas passagens, parece falho na gramática; porém, tendo sido tão más as primeiras edições, injusto é imputar-lhe este defeito; há talvez omissão de palavras que regularizariam o sentido.


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TERCEIRA PARTE.


Qual seja o lugar do nascimento de Francisco de Moraes, é ponto contestado. Seu bisneto o padre Balthasar Telles, da Companhia de Jesus, diz na sua História da Etiópia, cap. 1.°: “Por estas duas causas se fingiram da Etiópia histórias mais aéreas e mais escusadas no mundo do que foram as do nosso insigne Brigantino Francisco de Moraes no seu mui celebrado e fabuloso Palmeirim de Inglaterra; porque este autor, com a amenidade do seu florido engenho e com a suavidade de seu eloqüente estilo, só pretendeu recrear os leitores com fábulas doutas e ficções engenhosas.” — O editor de 1786, crendo que o adjetivo Brigantino exclusivamente significa natural de Bragança, nele se apoia para combater a opinião do abade Diogo Barbosa Madiado, que, depois de ter dado a Moraes por pátria aquela cidade, o chamou filho de Lisboa. Ora, se o padre Balthasar tivesse dito claramente que o seu ilustre avô era de Bragança, devera seu testemunho prevalecer ao de Barbosa; mas Brigantino, assim como indica o lugar do nascimento, indica também a família: Brigantino pode mostrar simplesmente que ele descendia dos Moraes de Bragança; e o nosso do padre Balthasar parece dizer unicamente que o avó e o neto pertenciam àquela nobre linhagem.

Por outra parte, o pai do poeta, o cavaleiro de Cristo Sebastião Valcaçar, viveu em Lisboa e tinha um morgado em Xabregas, onde a rainha D. Catherina edificou uns paços, pagando-lbe pelo sítio duzentos mil réis de juro, conforme se lê no citado Barbosa: não é muito que Moraes nascesse junto de Lisboa, em Xabregas, assento do morgado de seu pai; embora a sua parentela e ascendência fosse de Bragança. A casa reinante no Brasil e em Portugal teve o seu antigo solar naquela cidade; só por isso ainda hoje os membros dela se denominam Bragações, outra forma de Brigantinos, sem embargo de não nascerem ali; sendo certo que, depois da elevação de D. João IV, os príncipes desta casa viram a luz junto de Lisboa, e do ramo primeiro ao presente brotam os renovos no Brasil.

São tudo conjecturas, mas parecem-me admissíveis as em favor de Lisboa ou seus arredores. O autor no Palmeirim, falando do Tejo, diz que este rio banha os principais campos da guerreira Lusitânia; o que parece um dito próprio de natural de suas margens, e não de um de Bragança. Os campos regados pelo Tejo estão longe de ser os melhores de Portugal, pois lá se acham os de Entre Douro e Minho para lhes disputarem a primazia; e, se Moraes fosse do norte do reino, fugiria de rebaixar comparativamente as terras junto às quais fosse nascido. Note-se mais que as cidades e lugares de Portugal de que trata no seu longo poema, são todos perto de Lisboa: Tancos, Tomar, o castelo de Almourol, o de Cardiga, etc. Uma só vez nomeia a cidade do Porto; e os homens lá de cima, segundo a expressão dos Lisboetas, são largos em louvar as suas cousas.

Já disse quem era seu pai: sua mãe foi Juliana de Moraes. Chamou-se Francisco de Moraes Palmeirim; apelido que se lhe concedeu em paga da sua obra, e que muitos dos seus netos conservam: consulte-se a Genealogia de Belchior Gaspar de Andrade, no titulo de Moraes Palmeirim, cujo original esteve, não sei se ainda está, na Biblioteca da Real Casa das Necessidades; consulte-se também o tomo quarto da Genealogia de Fr. Gaspar Barreto, que esteve, não sei se ainda está, na Bibliotheca de S. Bento da Saúde.

É igualmente duvidoso o dia e ano em que nasceu; mas, como esteve em Paris de 1540 a 1543, sendo rejeitado pela donzela Torci por já ser idoso, pode-se conjecturar que estava com os seus quarenta ou mais, e devia ter nascido ou no fim do século XV ou logo no principio do século XVI. Dos seus amores mal afortunados nada mais direi, porque atrás vem suficientemente mencionados. — Casou, depois de voltar de França, com Bárbara Madeira, filha de Gil Madeira, de quem houve numerosa descendência, como o afirma o alegado Leitão de Andrade. Foi tesoureiro de D. João III, o que atesta o foro de probidade em que andava; professou na ordem de Cristo aos 17 de Abril de 1566 e foi nela comendador, segundo consta da História Genealógica da Casa Real: honras adquiridas sem dúvida em prêmio dos seus serviços diplomáticos e como tesoureiro. — Morreu violentamente, afirma-o Diogo Barbosa, à porta do Rocio de Évora em 1572, sendo então maior de setenta anos.

Há uma carta ou memorial de D. Inácio de Noronha a D. João III, notado por Moraes, no qual aquele magnata pede a el-rei que passe o título de conde a seu irmão D. Francisco, cedendo o mesmo D. Inácio do seu direito de primogenitura. Dessa carta, onde se alude aos serviços do filho segundo na embaixada de França, vê-se que Moraes era como o letrado e conselheiro dos Linhares, e que de sua pena se serviam: por esta razão é que o nosso autor foi de secretário com D. Francisco, naturalmente para guiá-lo com seu saber e experiência. Naqueles tempos em Portugal, assim como hoje na Rússia, na Áustria e noutras monarquias absolutas, de embaixador ou ministro enviavam qualquer dos grandes, não poucas vezes ignorante, e em sua companhia alguém dotado de conhecimentos e prudência: trocavam-se desta maneira os lugares, pondo-se o mérito abaixo do acaso do nascimento; usurpava-se a glória a quem se devia a boa gerência dos negócios, consignando-se a outrem em cujo nome esses negócios corriam. Repare-se em que o Visconde de Santarém louva a perícia com que o embaixador se portou na corte de Francisco I, e nem sequer menciona a Moraes; porém aí permanece a carta ou petição para testemunhar quem era a alma daquela embaixada. Isto me lembra certas belas igrejas e fábricas, feitas em tempo de tal ou tal monarca, das quais se ignora quem fosse o arquiteto.

O que acima acabo de expor é mais um ponto por que se tocam os autores do Orlando e do Palmeirim. Ariosto de uma imaginação de fogo, a quem talvez julgavam incapaz de tudo em que se requer juízo sólido, por certo que o mostrou cabal, quando enviado pelo duque Afonso junto ao papa Júlio II, quando encarregado de sufocar tumultos em uma província infestada de salteadores, e ainda em outras conjunturas. O vulgo assenta que os homens de engenho mal prestam para cousa séria, e como que exige para os empregos e funções públicas que o candidato seja pesadão e seco de pensamento. Eu ouvi cá em Paris, a certo aprendiz de diplomata, que pouco ou nada valiam as letras e ciências para a diplomacia; que o essencial era que o sujeito soubesse bem receber e apresentar-se; ao que pudera acrescentar que um dos mais necessários estudos, pospondo-se mesmo o dos tratados e leis, é o de conhecer a cor das luvas que se deve trazer em dadas ocasiões, e qual dos copos se há de oferecer ao vinho que o escanção ministra nos banquetes. — Muito engenhoso era o insigne Rubens, e desempenhou contudo missões difíceis e importantes junto a James I rei de Inglaterra, junto a Felipe IV de Espanha, junto à republica das Sete Províncias Unidas.

Este costume, o de nomear-se um figurão para o posto superior e alguém de boa cabeça para segundo, vogava no tempo do Conde de Tarouca, o mesmo que fez o tratado de Utrecht sobre os nossos limites na Guiana; pois, ainda que fosse honrado e instruído, estava muito abaixo de D. Luiz da Cunha, que o acompanhou na enviatura: a este último, talento de conta, é que devemos os artigos daquele tratado, âncora que segura as nossas possessões ao Cabo de Orange, contra a cobiça e pretenções do Governo Francês, há mais de um século. — Houve outra enviatura a Paris, onde um grande do reino, de cujo nome me não lembro, tinha a seu lado o filólogo João Franco Barreto, que tanto fez em pró da língua e literatura pátria.

No principio do reinado do primeiro imperador, no Brasil tentou-se íutroduzir o mau costume dos velhos governos, e nomeou-se para encarregado de negócios, em uma das cortes estrangeiras, certo estudante filho de um titular de fresca data, e para seu secretário um hábil bacharel em leis, que lhe fosse mentor: graças porém ao progresso das nossas instituições liberais, o secretário de então é considerado como um dos nossos melhores diplomatas, e o filho do fidalgo novo naufragou na carreira.

Já vimos que o Palmeirim, vindo impresso de fora do reino, dedicou-o Moraes à infanta D. Maria em princípios de 1544; que a dedicatória, em manuscrito, nem foi estampada na segunda edição de 1567; que só começou a sê-lo da terceira em diante, por Afonso Fernandes, em 1592; que houve quarta edição em 1786. Em nossos dias, há uns dezeseis ou dezoito anos, publicou-se em Lisboa uma quinta, que não pude haver à mão; consta-me que é muito conforme à quarta, porém com ortografia mais regular. — Verteu a obra em castelhano Luis Hurtado em 1547, como o demonstrámos na Primeira Parte. Verteu-a em francês Jacques Vicente; publicou-se esta versão, em Lyon no ano de 1553, em Paris no de 1574. Verteu-a em italiano Lúcio Spineda; versão impressa em 1584 e em 1609. Não pude averiguar se a traduziram em alemão ou em inglês, ou em qualquer das outras línguas; bem que Manuel de Carvalho, editor dos Diálogos, oferecidos em Junho de 1624 a Gaspar de Faria Severim, executor mor do reino, afirme que o Palmeirim “foi tão celebrado por todas as províncias da Europa, que cada uma o quis fazer próprio traduzindo-o.”. — Há poucos anos, M. de Monglave fez outra versão em francês, diretamente do original português; mas não pude alcançar o seu livro.

Além do admirável Palmeirim de Inglaterra, que lhe grangeou o posto eminente que ocupa entre os clássicos, Moraes compôs: 1.° Diálogo entre um fidalgo e um escudeiro, no qual se mostra a sem razão, da altiveza daquele para com este; 2.° Diálogo entre um fidalgo e um doutor acerca da preferência das armas às letras ou das letras às armas; 3.° Diálogo, em estilo jocoso, de amores de uma regateira com um moço da estribeira; 4.° Petição ou carta de D. Inácio de Noronha a D. João III a respeito da renúncia do título de conde em D. Francisco de Noronha; 5.° Desculpa de uns amores que teve em Paris com a donzela Torci. — Posto que todos estes opúsculos sejam escritos com vivacidade e graça, em linguagem excelente, não podiam libertar a Moraes das mãos do esquecimento, de que o arrancou o seu engenhoso poema.

O abade Diogo Barbosa Machado assina-lhe também: — Relação das festas que Francisco I fez nas bodas do duque de Cleves com a princesa de Navarra no ano de 1541; — Relação das exéquias e enterramento de Francisco I em 1546. Ora, é possível que a primeira seja de Moraes; porém a segunda não o é certamente, porque ele já não estava no reino de França em 1546, nem a morte daquele monarca sucedeu em 1546, mas em 1547. — Se ainda se conserva a correspondência oficial de D. Francisco de Noronha com o governo de D. João III, esses escritos se devem considerar de Moraes, segundo o que acima fica expendido, embora estejam em nome do embaixador.

O mesmo Barbosa também lhe atribui: — Libro que trata, de los valoresos hechos em armas de Primalion hijo del emperador Palmeirin, y de su hermano Polendos, y de Don Duardos principe de Inglaterra, y de outros preciados cavalleros de la corte del imperador Palmeirin. — Esta obra (nisto sou do parecer de Francisco José Dias, editor de 1786) não é de Moraes: 1.° porque este a cita, e a contradiz e conta alguns fatos por maneira bem diferente, afirmando que os leu em mais antigos e autênticos autores; 2.° porque o nosso clássico amava a nossa língua e não gostava de escrever em outra; 3.° porque o modo de narrar de um e outro livro não parece de um mesmo escritor.

Esse livro espanhol consta que foi composto por uma senhora Portuguesa, e no fim dele se lêem os seguintes versos:

En este esmaltado y muy rico dechado
Van esculpidas muy bellas labores
De pazes e guerras y castos amores
Por mano de duena prudente labrado.
Es por exemplo de todos notado
Que lo verosimil veamos en flor,
Es de Augustobrica aqueste labor
Que agora em Medina se ha estampado.

Com estes versos concorda D. Nicolao Antônio nestas palavras: “Anonima quædam fæmina author est prosaici illius nec parum celebrati poematis... Lusitanam fuisse Lusitani credunl scriptores.”

Seja o livro de uma senhora portuguesa ou de outrem, certo não é de Moraes; e com razão conclui o editor do Palmeirim, em 1786, que, pelo testemunho do mesmo livro e de D. Nicolao Antônio, — pela antigüidade das edições do Primaleão, — pela absoluta diversidade do estilo, — e muito mais pelo amor e predileção do nosso autor à lingua portuguesa, está bastantemente demonstrado não ser dele esse livro escrito em castelhano. Assim que, tem ele um só título que o recomende à posteridade, mas um titulo grande, como bem poucos podem alegar.

ELOGIOS DE VÁRIOS AUTORES AO NOSSO POEMA,

Pero de Magalhães Gandavo, na sua ortografia, edição de Lisboa de 1590, diz: “Vede o estilo da linguagem de Lourenço de Caceres, de Francisco de Moraes, de Jorge Ferreira, de Antonio Pinto, e de outros ilustres varões que na prosa tanto se assinalaram, descobrindo com seus engenhos peregrinos o segredo da gravidade e formosura deste nosso português.”

Diogo Fernandes, autor da terceira e quarta parte do Palmeirim (obra medíocre, como são as de quase todos os continuadores) na dedicatória diz: “Há tanto se deseja a segunda parte do Palmeirim de Inglaterra, por quão bem a primeira tem parecido aos que a leram.”

Balthasar Gonçalves Lobato, no prólogo da quinta e sexta parte, escreve: “Pareceu tamanha ousadia querer alguém seguir a Crônica de Palmeirim de Inglaterra, por quão bem assim ela, como a terceira e quarta parte da mesma, tem parecido, que antes a temeridade que a outra cousa se pode com razão atribuir.”

Miguel de Cervantes, parte I cap. 6, põe isto na boca do cura: “y esa palma de Inglaterra se guarde y se conserve como a cosa unica, y se haga para ella otra caja como la que halló Alejandro en los despojos de Dario, que la diputó para guardar en ella las obras del poeta Homero. Este libro, señor compadre, tiene autoridad por dos cosas: la una, porque él por sí es muy bueno, y la otra, porque es fama que le compuso un discreto rey de Portugal. Todas las aventuras del castillo de Miraguarda son bonísimas y de grande artificio; las razones, cortesanas y claras, que guardan y miran el decoro del que habla con mucha propriedad y entendimiento. Digo, pues, salvo vuestro buen parecer, señor Maese Nicolás, que éste y Amadís de Gaula queden libres del fuego, y todos los demás, sin hacer más cala y cata, perezcan.”

Manuel de Faria e Sousa, Coment. a Las Rimas de Cam. part. 4, pag. 102, assim o exalta: “De las historias no verdaderas entre los vulgares tiene el primero lugar nuestro Portugues Francisco de Morales con su parte primera del Palmeirin Ingles: puede servir de magisterio a los que quisieren escrivir una historia fabulosa.” — O mesmo Faria, na sua Europa, repete: &lauo;Desta suerte de libros, de que despues daquel primero escribieron tantos en Europa, es primero en bondad el de Palmeirin de Inglaterra, escripto por Francisco de Morales en tiempo del rey Don Juan III, obra que algunos creyeron ser del rey Don Juan II.” Torna a dizer no cap. 9; “Aun en los años de los reys Don Juan II y Don Manuel y Don Juan III, permanecia mucho desto (fala da linguagem bárbara) quando Francisco de Morales, con su Palmeirin de Inglaterra, subito dió mejor luz a nuestra lengua.”

Além destes testemunhos e dos citados no corpo do Opúsculo, muitos outros há em favor da excelência do nosso autor; mas citarei ainda dois nomes respeitáveis, Walter Scott e Fr. Franscisco de S. Luiz: o primeiro, engenho superior; o segundo, homem douto e de bom gosto, que deixou úteis escritos, posto que abaixo da sua capacidade. A pouca extração que têm os livros em Portugal, e o mesmo se pode afirmar do Brasil com leve diferença, faz que os nossos homens de letras ou se calem ou a medo produzam alguma cousa. De mais, não se quer ler português; e quem nesta língua escrever, deve traduzir a obra em francês e esconder o original.

Tenho ouvido a Portugueses e a Brasileiros que a nossa raça apenas se deve honrar de possuir Camões; porém os que assim falam têm à má lógica de fazer uma exclusão geral sem conhecerem os excluídos; são de todo alheios na matéria. Não é mal aquinhoada a literatura que, entre os prosadores, se ufana dos nomes de Castanheda, Francisco de Moraes, Barros, Damião de Goes, Pinto Pereira, Couto, Sousa, Lucena, Fernão Mendes, Jacintho Freire, Vieira, padre Bernardes, Theodoro de Almeida, e tantos outros; e entre os escritores em verso, tem Gil Vicente, Sá de Miranda, Ferreira, Camões, Diogo Bernardes, Corte Real, Sá de Menezes, Lobo, Vasco Mousinho, Gabriel Pereira, Garção, Diniz, Tolentino, Bocage, Francisco Manuel, Durão e Sousa Caldas, Garrett e mais alguns e não quero falar dos vivos, entre os quais há engenhos de primor.

Mas paro aqui. Estou persuadido que, na Primeira Parte, provei exuberantemente o que me propus; que, na Terceira, quase nada me ficou por dizer. Quanto à Segunda Parte, o assunto não foi esgotado; melhor e mais miúda análise se pode obter: mas o meu fim unicamente foi dar uma breve noção das belezas de Francisco de Moraes, e chamar a atenção adormecida sobre um escritor em quem se reúnem os mais excelentes predicados.

 

FIM.


 

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Junho 2009