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BRASIL, PAÍS DO FUTURO

Stefan Zweig

—Ridendo Castigat Mores—


 

 

Brasil, País do Futuro
Stefan Zweig

Edição
Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
www.jahr.org

Copyright:
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Odilon Gallotti
Charge: SF Delfim Vieira
Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)

“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia (1947-2002)

© Stefan Zweig


 

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO
AUTOR
Prefácio
Introdução
História
Economia
Civilização
RIO DE JANEIRO
A entrada no porto do Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro.
O Rio antigo.
O verão do Rio.
Algumas coisas que amanhã talvez hajam desaparecido.
Jardins, morros e ilhas.
As ruas pequenas.
Passeio pela cidade.
Arte dos contrastes.
SÃO PAULO
São Paulo.
Visita ao café.
MINAS GERAIS.
Visita às cidades do ouro.
O vôo sobre o norte.
A BAHIA.
Fidelidade à tradição.
Igrejas e festas.
Visita ao açúcar, ao fumo e ao cacau.
RECIFE
Vôo para a Amazônia.
Despedida.
Tabela cronológica.


 

BRASIL,
PAÍS DO FUTURO

[imagem]

 

STEFAN ZWEIG


 

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

 

“Brasil, país do futuro” é realmente uma obra; trabalho cuidadoso e preciso de quem soube observar, sentir, viver este país. Há pesquisa de gabinete, que se percebe na citação de dados e cifras. Há, também, a observação sensível de um intelectual respeitável.

Tratado e, ao mesmo tempo, livro didático sobre História do Brasil. Relatos coerentes que, inclusive, desmitificam certas concepções ilógicas e incoerentes como, por exemplo, a de que o Brasil teria sido descoberto por uma casualidade, a tal da calmaria enfrentada por Cabral.

As percepções sobre a realidade brasileira em nada se assemelha à de inúmeros viajantes estrangeiros que se limitaram a conhecer nosso país através de vista aérea, ou por detrás dos vidros de automóveis confortáveis. Stefan Zweig viu de perto, subiu morros das favelas cariocas, participou de festas na Bahia e Recife, andou por São Paulo.

O livro é perfeito no que retrata o que o Brasil havia sido e era, mas precário em relação ao que seria. Mania de europeus, principalmente os de origem semita: prever errado. Marx previu revoluções na Inglaterra e Alemanha, que ocorreram na Rússia, China, Cuba, contrário do previsto. Stefan Zweig previu evolução tecnológica, fim das favelas, tudo diferente.

Zweig colocou os óculos vermelhos de Kant e viu um Brasil róseo, viu beleza na miséria, riqueza no triste, alegria na dor.

O único defeito da obra: eurocentrismo: ver o mundo a partir do padrão europeu. Os rios sinuosos são vistos como um problema, face ao traçado retilíneo dos rios da Europa. Montanhas, planícies, praias, mangues são considerados comparativamente a uma realidade que não é nossa. Foi essa mania que fez da África o único continente do mundo a ter fronteiras definidas por réguas; separaram tribos, ignoraram os limites geograficamente naturais e criaram problemas que não se sabe serão resolvidos algum dia.

Ressalvada essa pequena restrição, o livro é ótimo. Não é uma historiazinha do Brasil recitando nomes e datas sem significado, há explicações econômicas, políticas, sociais e culturais que esclarecem nossa razão de ser. É o livro que sempre quis ler, li, li novamente e vou continuar a reler.


 

AUTOR

[imagem]

 

Stefan Zweig nasceu a 28 de novembro de 1881 em Viena. Estudou Filosofia e começou a escrever poesias, dramas e traduziu inúmeras obras francesas para o alemão. Pacifista, sonhava com uma Europa unida.

A primeira guerra mundial o desanimou. Iniciou escrevendo pequenas histórias que o tornaram famoso. Sua origem judaica o obrigou a abandonar a Áustria. Problemas de consciência, somados à angústia devido à guerra, levou-o ao suicídio em Petrópolis, em 22 de janeiro de 1942.
     Suas inúmeras obras foram divulgadas em várias línguas, inclusive “Brasil, país do futuro”, hoje esgotado e raro, graças à falta de sensibilidade e bom senso dos editores brasileiros de livros em papel.


 

PREFÁCIO

 

Não é isto apresentação, ou introdução, que, felizmente, o nosso público dispensaria, à fama mundial de Stefan Zweig: é um agradecimento. Foi ele nosso hóspede, aqui viveu algum tempo; foi da Bahia ao Amazonas, de Pernambuco a São Paulo, de Minas ao Rio Grande; demorou, porém, no Rio de Janeiro. É um namorado de nossa terra e de nossa gente.

O Brasil é como as mulheres bonitas: têm apaixonados de toda a sorte, até os desinteressados. Não querem nada, nem um olhar, nem um sorriso, nada. Basta-lhes amar. Chamam a isso “namoro de caboclo”: até a namorada o ignora... Era assim o amor cavalheiresco. Goethe resumiu-o, numa frase: “Se te amo, que t’importa?” Zweig é assim.

Seus livros são editados em seis e mais línguas, — alguns em dezoito! — às vezes em edições duplicadas: inglês para Inglaterra e Domínios e inglês para a América do Norte... Espanha e Íbero-América... Portugal e Brasil... É o escritor mais impresso, mais adquirido e mais lido do mundo: ensaios, biografias romanceadas, ficção pura. O autor é um encanto de convivência, de conversação, de simplicidade: ternura e poesia. Podendo estar, festejado, nos Estados Unidos, como Maurois, ou na Argentina, como Waldo Franck... aqui está, aqui esteve, sem ruído, no Brasil. Aqui, não foi ao Catete, nem ao Itamarati, nem às Embaixadas, nem à Academia, nem ao D.I.P., nem aos Jornais, nem aos Rádios, nem aos Hotéis-palaces... Andou, virou, passeou, viajou, viveu. Não quis nada, nem condecorações, nem festas, nem recepções, nem discursos... Não quis nada.

A Bahia desejou ser vista por ele e convidou-o. Ficou comovido, mas pôs condição: nem ajuda de custo, nem hospedagem oferecidas, nem recepção, conferência, nada. Gostava do Brasil, gostaria da Bahia, não queria mais. Queria Ver, sentir, pensar escrever, livremente...

De tudo, este livro, este grande livro, livro de amor presente e esperança futura que sai em imensas edições, na América, na Inglaterra, na Suécia, na Argentina, em francês e alemão também — seis de uma vez, a menor, a brasileira... É o mais “favorecido” dos retratos do Brasil. Nunca a propaganda interesseira, nacional ou estrangeira, disse tanto bem do nosso país, e o autor, por ele, não deseja nem um aperto de mão, nem um agradecimento.. Amor sem retribuição. Amor de caboclo supercivilizado: a namorada vai saber agora e ficará confusa de tanto bem querer. Ele, porém, já partiu.. Deixou apenas esta declaração. Declaração de envaidecer à formosura mais presumida. Os “pátriaamada”, os “ufanistas” ficarão de cara à banda, pois ninguém até hoje escreveu livro igual sobre o Brasil... O amor faz desses milagres. Se ele fosse político, ou diplomata, ou economista, ficar-se-ia perplexo; a explicação é só esta, Stefan Zweig é poeta: é hoje o maior poeta do mundo, poeta com ou sem versos, mas com poesia, sentida, vivida, escrita pelo mais suave prosador do mundo...

Afrânio Peixoto.
Julho, 1941.


 

INTRODUÇÃO

 

Outrora os escritores, antes de darem um livro à publicidade, costumavam escrever um pequeno prefácio, no qual declaravam por que motivos, de que pontos de vista e com que intenção haviam escrito a obra. Era bom hábito, pois criava desde logo, pela franqueza e pelas palavras dirigidas aos leitores, conveniente entendimento entre um e outros. Desejo, pois, dizer, com a maior sinceridade possível, o que me levou a ocupar-me com um tema, na aparência, muito afastado do meu habitual círculo de atividade.

Quando, no ano de 1936, devia partir para Buenos Aires a fim de tomar parte no congresso do P.E.N.C., recebi convite para, aproveitando essa viagem, visitar o Brasil. Minhas expectativas não eram lá muito grandes. Eu tinha, sobre o Brasil, a idéia pretensiosa que, sobre ele, tem o europeu e o norteamericano, e tenho agora dificuldade de recordá-la. Imaginava que o Brasil fosse uma república qualquer das da América do Sul, que não distinguimos bem umas das outras, com clima quente, insalubre, com condições políticas de intranqüilidade e finanças arruinadas, mal administrada e só parcialmente civilizada nas cidades marítimas, mas com bela paisagem e com muitas possibilidades não aproveitadas — país, portanto, para emigrados ou colonos e, de modo nenhum, país do qual se pudesse esperar estímulo para o espírito. Uma visita de dez dias a tal país parecia-me suficiente para quem não é geógrafo, colecionador de borboletas, caçador, sportsman ou negociante. Demorarei lá oito ou dez dias e depois regressarei depressa, assim pensei, e não me envergonho de confessar esse meu modo insensato de pensar. Acho mesmo importante fazê-lo, porque ele é mais ou menos o mesmo que ainda é corrente nos círculos europeus e norteamericanos. O Brasil, no sentido cultural, ainda hoje é uma terra incógnita como, no sentido geográfico, o foi para os primeiros navegadores. Muitas vezes fiquei surpreso de ver que idéias confusas e deficientes, mesmo pessoas cultas e interessadas por coisas políticas, possuem sobre esse país que, indubitavelmente, está destinado a ser um dos mais importantes fatores do desenvolvimento futuro do mundo. Quando, por exemplo, a bordo, um negociante de Boston, de modo bastante depreciativo falou sobre pequenos países sulamericanos e eu tentei lembrar-lhe que só o Brasil compreende um território maior do que os Estados Unidos, julgou ele que eu estava gracejando e só se convenceu da minha afirmativa diante dum mapa. Encontrei num romance — de autor inglês muito conhecido — o engraçado pormenor de fazer o seu protagonista ir para o Rio de Janeiro a fim de nesta cidade aprender o espanhol. Mas esse autor é apenas um dos inúmeros indivíduos que não sabem que no Brasil se fala português. Todavia não compete a mim, está claro, fazer censuras pretensiosas a outros por seus poucos conhecimentos; eu próprio, quando parti pela primeira vez da Europa, nada, ou, ao menos, nada de seguro sabia sobre o Brasil.

Deu-se então a minha chegada ao Rio, que me causou uma das mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, comovido, pois se me deparou não só uma das mais magníficas paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas lambem uma espécie inteiramente nova de civilização. Aqui havia, inteiramente contra a minha expectativa, um aspecto absolutamente próprio, com ordem e perfeição na arquitetura, e no traçado da cidade, aqui havia arrojo e grandiosidade em todas as coisas novas e, ao mesmo tempo, uma civilização antiga ainda conservada de modo muito feliz, graças à distância. Aqui havia colorido e movimento; os olhos não se cansavam de olhar e, para onde quer que os dirigisse, sentia-me feliz. Apoderou-se de mim uma ebriedade de beleza e de gozo que excitava os sentidos, estimulava os nervos, dilatava o coração e, por mais que eu visse, ainda queria ver mais. Nos últimos dias da minha permanência no Brasil viajei para o interior ou melhor para lugares que julguei situados no interior. Viajei doze, quatorze horas para São Paulo, para Campinas, pensando com isso aproximar-me do coração deste país. Mas, quando de volta examinei o mapa, verifiquei que com essas, doze ou quatorze horas de viagem de trem apenas havia penetrado até um pouco abaixo da pele; pela primeira vez comecei a fazer idéia do incrível tamanho deste país, que propriamente já quase não deveria ser qualificado de um país, mas sim antes de um continente, um mundo com espaço para trezentos, quatrocentos, quinhentos milhões de habitantes e uma riqueza imensa sob este solo opulento e intacto, da qual apenas a milésima parte foi aproveitada. Um país em desenvolvimento rápido, mas apenas incipiente e, apesar de toda a atividade operante, construtiva, criadora, organizadora, um país cuja importância para as gerações vindouras não podemos calcular, mesmo fazendo as mais ousadas combinações. E com surpreendente velocidade desvaneceu-se a presunção européia que muito superfluamente trouxera como bagagem. Percebi que havia lançado um olhar para o futuro do mundo.

Quando o navio zarpou — era uma noite estrelada e, apesar disso, essa cidade com seus colares de pérolas formados pelos focos de luz elétrica tinha um brilho, mais belo e mais misterioso do que as estrelas — estava eu certo de que não era pela última vez que via esta cidade e este país e sabia bem que propriamente nada vira ou em todo o caso não vira bastante. Fiz o propósito de logo no ano seguinte voltar, mais bem preparado e para permanecer maior tempo, para outra vez e mais intensamente experimentar a sensação de viver no que se está desenvolvendo, no porvir, no futuro, e então gozar mais conscientemente a segurança da paz, a boa atmosfera hospitaleira. Mas não pude realizar a minha intenção. No ano seguinte ainda continuava a revolução da Espanha e pensei comigo: espera, até que se tenha uma época mais tranqüila... Em 1938 deu-se a queda da Áustria e de novo esperei um momento de mais calma. Em 1939 efetuou-se a da Checoslováquia, depois ocorreu a invasão da Polônia e em seguida teve início a guerra de todos contra todos, na nossa Europa suicida. Cada vez mais veemente era o meu desejo de me retirar do mundo que se destrói, e de passar algum tempo no mundo que se desenvolve de maneira pacífica e fecunda; afinal cheguei de novo a este país, mais bem preparado do que anteriormente, a fim de tentar fazer dele uma pequena descrição.

Sei que essa descrição não é completa e não pode ser completa. É impossível conhecer inteiramente o Brasil, esse mundo tão vasto. Passei cerca de meio ano neste país e precisamente só agora sei que, apesar de toda a diligência em aprender e de todo o viajar, ainda não posso dizer que conheço o Brasil e sei também que uma vida inteira não bastaria para conhecê-lo. Não vi uma série de Estados, dos quais cada um é tão grande como a Alemanha e a França ou maior do que elas, não percorri as regiões de Mato Grosso e Goiás, que mesmo as expedições científicas não percorrem inteiramente, nem as florestas do Amazonas. Não tenho, pois, um conhecimento perfeito da vida primitiva dessas povoações espalhadas por um território gigantesco e não posso dar uma noção clara da existência de todas essas classes que apenas têm contacto com a civilização: a dos barqueiros que navegam nos rios, a dos caboclos da região do Amazonas, a dos garimpeiros, a dos vaqueiros e gaúchos, a dos seringueiros e a dos sertanejos de Minas Gerais. Não visitei as colônias alemãs de Santa Catarina, cujas casas antigas, diz-se, têm pendurado o retrato do imperador Guilherme e cujas casa, novas, ao contrário, têm o retrato de Adolfo Hitler, nem as colônias japonesas do interior de São Paulo, e não posso dizer com segurança a ninguém se realmente ainda algumas tribos indígenas das matas virgens são canibais.

Das paisagens dignas de serem vistas, algumas só conheço de fotografia, gravuras e livros. Não fiz a viagem de vinte dias de subida no rio Amazonas entre as florestas grandiosas em sua monotonia, não cheguei até as fronteiras do Brasil com o Peru e a Bolívia, e por causa das dificuldades da navegação na estação desfavorável tive que deixar de fazer a viagem de doze dias no Rio São Francisco, o grande rio do interior do Brasil e tão importante na sua história. Não subi o Itatiaia, o monte de três mil metros de altura, de cima do qual se divisa o planalto brasileiro com seus cimos até os longes, na direção de Minas Gerais e do Rio. Não vi a maravilha da cachoeira do Iguassú, que em espumante catarata precipita enormes massas d’água e cuja grandiosidade, segundo o testemunho de visitantes, excede de muito a do Niágara. Não penetrei com machadinha e facão na espessura da mata virgem. Apesar de todo o meu viajar, olhar, aprender, ler e procurar, não penetrei muito além da orla da civilização do Brasil. Tenho que me consolar com a idéia de haver encontrado apenas dois ou três brasileiros que puderam afirmar conhecer o âmago quase impenetrável de seu país, e com a de que estrada de ferro, vapor ou auto, meios esses também impotentes contra a vastidão fantástica desta terra, não me teriam levado muito além dos lugares até onde fui.

Não me é possível expender conclusões definitivas, predições e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil. Os problemas do Brasil relativos à economia, à sociologia e à civilização são tão novos, tão especiais e, sobretudo, dispostos de modo tão indistinto, em conseqüência da vastidão do país, que cada um deles exigiria um grupo de especialistas para esclarecê-lo inteiramente. É impossível ter uma noção completa dum país que ainda não tem uma vista de conjunto completa de si próprio e se acha em crescimento tão rápido que toda estatística e todo relatório já estão atrasados quando impressos. Do grande número de aspectos quero salientar principalmente um que me parece o de maior atualidade e coloca hoje o Brasil numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral.

Esse problema central que se impõe a toda geração e, portanto, também à nossa, é a resposta à mais simples e, apesar disso, a mais necessária pergunta: como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humano pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas a. diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões? É o problema que imperativamente sempre se apresenta a toda comunidade, a toda nação. A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela qual este o fez; é para gratamente testemunhar isso que escrevi este livro. O Brasil resolveu-o duma maneira que, na minha opinião, requer não só a atenção, mas, também a admiração do mundo.

O Brasil, pela sua estrutura etnológica, se tivesse aceito o delírio europeu de nacionalidades e de raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranqüilo do mundo. Nele ainda são nitidamente reconhecíveis, já nas ruas, as diversas raças e sub-raças, de que é constituída a sua população. Aqui vivem os descendentes dos portugueses que conquistaram e colonizaram o Brasil, aqui vive a descendência aborígene dos que habitam o interior do país desde épocas imemoráveis, aqui vivem milhões provindos dos negros que nos tempos da escravatura foram trazidos da África, e milhões de estrangeiros, portugueses, italianos, alemães e até japoneses. Segundo o modo de pensar europeu, seria de esperar que cada, um desses grupos assumisse atitude hostil contra os outros, os que haviam chegado primeiro contra os que chegaram mais tarde, os brancos contra os negros, os brasileiros contra os europeus, os de cor branca, parda ou vermelha, contra os da raça amarela, e que as maiorias e as minorias em luta constante pelos seus direitos e prerrogativas se hostilizassem. Com a maior admiração verifica-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, vivem em perfeito acordo entre si e, apesar de sua origem diferente, porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras, constituindo nação nova e homogênea. Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo — e a importância desse experimento parece-me modelar — o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema. Ao passo que na Europa agora mais do que nunca domina a quimera de quererem criar seres humanos “puros”, quanto à raça, como cavalos de corrida ou cães de exposição, a nação brasileira há séculos assenta no princípio da mescla livre e sem estorvo, da completa equiparação de preto, branco, vermelho e amarelo. O que em outros países está teoricamente estabelecido apenas no papel e no pergaminho, a absoluta igualdade dos cidadãos na vida pública, bem como na vida privada, aqui existe de fato, na escola, nos empregos, nas igrejas, nas profissões e na vida militar, nas universidades, nas cátedras. É tocante ver já as crianças que apresentam todos os matizes de cor da pele humana, voltarem da escola de braço dado, e essa união de corpo e de alma se estende até as classes mais elevadas, nas academias e nos empregos públicos. Não há distinções de cores, exclusões, separações presunçosas. Ao passo que entre nós cada nação inventou uma palavra de ódio ou de motejo para aplicar à outra, como sejam, “Katzelmacher”, ou “Boche”, o vocabulário brasileiro absolutamente não encerra um termo depreciativo para o preto ou para o crioulo, pois quem poderia, quem quereria aqui jactar-se de ser de presumida raça pura? Se a afirmativa de Gobineau, de haver encontrado em todo o Brasil apenas um indivíduo de raça pura, o imperador D. Pedro II, pode ser exagero, o legitimo, o verdadeiro brasileiro tem certeza de ter no seu sangue algumas gotas de sangue indígena. Mas — coisa apreciável não se envergonha disso, bem pelo contrário. A mescla, suposta destrutiva, esse horror, esse “pecado contra o sangue” na opinião dos nossos endemoninhados teóricos de raças, é aqui meio de união de uma civilização nacional, conscientemente utilizado. Sobre esse fundamento se tem erguido segura e constantemente, há quatrocentos anos, uma nação e — fato milagroso — a constante penetração e adaptação recíproca, sob o mesmo clima e as mesmas condições de vida, produziram um tipo absolutamente próprio, o qual de nenhum modo possui todas as qualidades “dissolutivas” proclamadas ostensivamente pelos fanáticos da mitológica pureza de raça. É raro que em qualquer outra parte do mundo se possam ver mulheres e crianças morenas mais bonitas do que essas criaturas gracis e de maneiras tão suaves; é com alegria que se vê no semblante tostado de muitos estudantes inteligência unida a uma modéstia e polidez tão tranqüilas. Certa brandura e uma suave melancolia criam aqui um tipo muito próprio e oposto ao do norteamericano, que é mais enérgico e mais ativo. O que aqui “se destrói”, são apenas os contrastes fortes e, por isso, perigosos. Essa dissolução sistemática dos grupos mais “nacionais“ que “raciais”, que aqui são unidos e sobretudo unidos para a luta, facilitou extremamente, a criação duma consciência nacional única, e é surpreendente que a segunda geração já se sinta só brasileira. Em geral, o filho de estrangeiro é nacionalista. São sempre os fatos, com sua força inegável e visível, que contraditam as teorias dos dogmáticos. Por isso, o experimento do Brasil com sua completa e consciente negação de todas as diferenças, presumidas e insignificantes, de raças e de cores, por seu resultado visível, é a contribuição talvez mais importante para dar cabo dum desvario que, mais do que qualquer outro, acarretou intranquilidades e desgraças ao mundo.

E agora se sabe por que o indivíduo sente a alma tão aliviada logo que pisa esta terra. Primeiramente, pensa que esse efeito calmante é apenas alegria dos olhos, e gozo dessa beleza sem par que, por assim dizer... de braços abertos chama a si o indivíduo que acaba de chegar. Mas em breve se reconhece que essa disposição harmônica da natureza aqui se transmitiu ao modo de vida de uma nação inteira. Alguém que acabou de fugir da absurda exaltação da Europa, saúda aqui a ausência completa de qualquer odiosidade na vida pública e particular, primeiramente como coisa inverossímil e depois como imenso benefício. A terrível tensão que há um decênio repuxa os nossos nervos, aqui desaparece, quase completamente; todos os antagonismos, mesmo os sociais, aqui, são muitíssimo menos acentuados e não têm uma seta envenenada. Aqui a política com todas as perfídias ainda não é o ponto cardeal da vida privada, não é o centro de todo o pensar e sentir. Logo que alguém chega. a esta terra, a primeira surpresa, que depois todos os dias felizmente se renova, é a de ver a maneira amistosa, e não fanática, pela qual os entes humanos vivem neste gigantesco território. Sem querer, respira ele de novo, sente-se bem por haver saído do ar mefítico do ódio entre raças e classes inimigas, e de se achar nesta atmosfera mais humana.

Sem dúvida, há aqui menos intensidade na maneira de viver. Os seus habitantes, sob a influência imperceptivelmente depressiva do clima, desenvolvem menos força impulsiva, menos veemência, menos dinamismo, portanto desenvolvem menos, precisamente as qualidades que hoje em dia, numa superestimação trágica, se apregoam como os valores morais dum povo. Mas nós que experimentamos na nossa própria sorte as terríveis conseqüências dessas exaltações psíquicas, dessa avidez e ganância de poder, sentimos que essa forma mais suave e mais serena da vida é um benefício e uma felicidade.

Longe de mim querer dar a ilusão de que no Brasil já tudo se acha no estado ideal. Muita coisa ainda se acha em início e em transição. A maneira de vida de uma grande parte da população ainda está muito abaixo da maneira de viver de grande parte da nossa. As atividades técnicas e as industriais desta nação de cinqüenta milhões de habitantes, por enquanto, só são comparáveis às de pequenos países europeus. O mecanismo da administração ainda não está bem regulado e muitas vezes tem paradas incômodas. Com um percurso de algumas centenas de quilômetros em direção ao interior chegamos ainda a um meio primitivo, atrasado de um século. Quem chega pela primeira vez ao país, terá que primeiramente adaptar-se, na vida quotidiana, a pequenas faltas de pontualidade e inexatidões, a certa deficiência de energia, e certos viajantes que vêem o mundo, observando-o do hotel e do auto apenas, podem dar-se ainda ao luxo de regressar do Brasil com a presunção de superioridade em civilização e de achar muita coisa neste país atrasada e deficiente. Mas os acontecimentos dos últimos anos alteraram essencialmente a nossa opinião sobre o valor das palavras “civilização e cultura”. Já não estamos dispostos a simplesmente equipará-las à idéia de “organização” e «conforto». Nada favoreceu mais esse erro funesto do que a estatística que, como ciência mecânica, calcula em quanto importa num país a fortuna do povo e quanto é, na mesma, a parte de cada um; quantos autos, quantos banheiros, quantos rádios e quantos seguros correspondem a cada habitante. De acordo com essas tabelas os povos mais cultos e mais civilizados seriam os que têm a maior produção, o maior consumo e o maior número de fortunas individuais. Mas falta nessas tabelas um elemento valioso, o cômputo do espírito de humanidade, que, em nossa opinião, representa o mais importante índice da cultura e da civilização. Vimos que a mais elevada organização não impediu povos de aplicarem essa organização unicamente no sentido da brutalidade, ao invés de o fazerem no sentido humano; vemos que a nossa civilização, no curso dum quarto de século, pela segunda vez, está periclitando. Por isso já não estamos dispostos a reconhecer uma classificação de acordo com o valor industrial, financeiro e militar dum povo, mas sim avaliar o grau de superioridade de uma nação pelo seu espírito pacífico e humanitário.

Nesse sentido — o mais importante, segundo a minha opinião — o Brasil parece-me um dos países mais modelares e, por isso, uns dos mais dignos de estima. É um país que odeia a guerra e, ainda mais, que quase não a conhece. Há mais de um século, com exceção da guerra do Paraguai, que foi insensatamente provocada por um ditador que perdera a razão, o Brasil tem resolvido todas as questões de limites com seus vizinhos por meio de acordos e arbitragens internacionais. O seu orgulho e os seus heróis não são apenas guerreiros, mas estadistas, como Rio Branco e Caxias, que com prudência e firmeza souberam evitar e acabar guerras. O Brasil, cujo idioma se limita ao seu território, não tem desejos de conquistar territórios, não possui tendências imperialistas. Nenhum vizinho pode exigir dele alguma coisa e ele nada exige de seus vizinhos. Nunca a paz do mundo foi ameaçada por sua política, e, mesmo numa época de incertezas como a atual, não é possível imaginar que o princípio básico de sua idéia nacional, esse desejo de entendimento e de acordo, se possa jamais alterar. Esse desejo de conciliação, essa atitude humanitária, não tem sido o sentimento casual dos diferentes chefes e dirigentes do país; é o produto natural dum predicado do povo, da tolerância natural do brasileiro, a qual no curso da sua história sempre se confirmou. O Brasil é uma nação em que não existiram perseguições religiosas sangrentas, nem fogueiras de inquisição. Em nenhum outro país os escravos foram tratados relativamente com mais humanidade. Mesmo suas revoluções interiores e mudanças de regime se efetuaram quase sem derramamento de sangue. Os dois imperadores, que a vontade do Brasil de se tornar independente fez deixarem o país, dele se retiraram sem sofrer vexames e, por isso, sem ódio. Mesmo após rebeliões e intentonas que foram sufocadas, desde a independência do Brasil o, cabeças não pagaram o ato de insurreição com a vida. Quem quer que governe o povo brasileiro, inconscientemente é forçado a adaptar-se a seu espírito de conciliação; não constitui uma casualidade o fato de o Brasil — que entre todos os países da América durante decênios foi a única monarquia ter tido como imperador o mais democrata, o mais liberal de todos os soberanos. E hoje, que o Governo é considerado como ditadura, há aqui mais liberdade e mais satisfação individual do que na maior parte dos nossos países europeus. Por isso na existência do Brasil, cuja vontade está dirigida unicamente para um desenvolvimento pacífico, repousa uma das nossas melhores esperanças de uma futura civilização e pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura. Mas onde se acham em ação forças morais, é nosso dever fortalecermos essa vontade. Onde na nossa época de perturbação ainda vemos esperança de um futuro novo em novas zonas, é nosso dever indicarmos esse país, essas possibilidades.

E por isso escrevi este livro.


 

HISTÓRIA

 

Durante milhares e milhares de anos jaz incógnito e anônimo o gigantesco território brasileiro com suas florestas verde-escuras e sussurrantes, suas montanhas e seus rios e seu mar ritmicamente sonoro. A tardinha de 22 de abril de 1500, de repente aparecem no horizonte algumas velas brancas; caravelas bojudas e pesadas, com a vermelha cruz portuguesa em suas velas, aproximam-se da costa, e no dia seguinte chegam à praia desconhecida os primeiros escaleres.

É a frota portuguesa que, sob o comando de Pedro Alvares Cabral, em março de 1500 zarpara da foz do Tejo, a fim de repetir a inolvidável viagem de Vasco da Gama, cantada por Camões nos “Lusíadas”, aquele “feito nunca feito”, em torno do Cabo da Boa Esperança, em demanda das Índias... Ao que se veio a dizer, ventos contrários desviaram os navios da rota de Vasco da Gama, para essa ilha desconhecida — pois primeiramente é denominada ilha de Santa Cruz, essa costa, de cuja extensão ainda não se faz idéia. Desde que não se considerem como descobrimentos as viagens de Alonso Pinzon, que chegou às proximidades da foz do Amazonas, e a duvidosa descoberta de Vespuccio, parece pois que o descobrimento do Brasil teria cabido a Portugal e a Pedro Alvares Cabral, graças apenas a uma singular combinação entre os ventos e as ondas. Os historiadores, porém, há muito que não estão mais propensos a dar crédito a esse “acaso” pois Cabral levava consigo o piloto de Vasco da Gama, o qual conhecia exatamente o caminho mais próximo, e a fábula dos ventos contrários perde de valor, em face: do testemunho de Pero Vaz de Caminha, que se achava a bordo e afirmou expressamente que eles,. “sem haver tempo forte ou contrário”, se haviam afastado do Cabo Verde. Como nenhuma tempestade os houvesse desviado tanto para oeste que, em vez de contornarem o cabo de Boa Esperança, subitamente aportassem ao Brasil, uma determinada intenção ou — o que ainda é mais provável — uma ordem secreta de seu rei — fez com que dirigisse Cabral o seu curso para oeste. Isso torna mais provável a hipótese que a Coroa portuguesa, já muito antes do descobrimento oficial, tivesse conhecimento secreto da existência e da situação geográfica do Brasil. Há nesse ponto ainda grande segredo. Os documentos que poderiam desvendá-lo desapareceram para sempre, com a destruição dos arquivos, por ocasião do terremoto de Lisboa, e o mundo provavelmente nunca saberá o nome do primeiro descobridor do Brasil. Parece que, logo após o descobrimento da América por Colombo, um navio português foi enviado para explorar essa nova parte do mundo e, de regresso, levou novas informações, ou, já antes de Colombo obter audiência, tinha a Coroa portuguesa conhecimento mais ou menos certo dessa terra, no oeste longínquo. A favor disso há também certos elementos. Mas o que quer que soubesse, evitava Portugal dá-lo a conhecer ao vizinho invejoso; na época dos descobrimentos a Coroa tratava todas as novidades relativas a explorações náuticas como segredo militar ou comercial de Estado, cuja divulgação a potências estrangeiras era punida com a pena de morte. Mapas, portulanos, roteiros, relatórios de pilotos, do mesmo modo que ouro e pedras preciosas, eram encerradas na Tesouraria de Lisboa, como preciosidades, e, particularmente no caso do Brasil, uma divulgação prematura era inoportuna, pois, de acordo com a bula papal Inter Caetera, legalmente pertenciam aos espanhóis ainda todas as regiões até a distância de cem léguas a oeste do Cabo Verde. Um descobrimento oficial dentro dessa zona, nesse momento, só teria aumentado as posses do vizinho, e não as próprias. Não era, pois, do interesse de Portugal anunciar, antes de tempo, tal descobrimento, se de fato ele se dera. Era preciso estar legalmente garantido que essa nova terra pertencia não à Espanha, mas sim à Coroa portuguesa, e isso Portugal, com manifesta previdência, garantira a si por meio do Tratado de Tordesilhas, que em 7 de junho de 1494, portanto pouco depois do descobrimento da América, ampliara a zona portuguesa, das primitivas cem léguas para trezentas e setenta a oeste do Cabo Verde — justamente, pois, tanto que abrangesse ela a costa do Brasil, ao que se diz, ainda então não descoberta. Se essa ampliação foi uma casualidade, não deixou de ser uma casualidade que concorda admiravelmente com o desvio de Pedro Alvares Cabral, da rota natural, desvio que, por outro modo, é inexplicável.

Essa hipótese, levantada por alguns historiadores, de um anterior conhecimento do Brasil e de uma instrução secreta del-Rei dada a Cabral, para que se desviasse muito para oeste, a fim de que por uma “maravilhosa casualidade” — “milagrosamente”, como escreveu ele ao rei da Espanha — pudesse descobrir a nova terra, ganha também muito de credibilidade pela maneira como o cronista da frota, Pero Vaz de Caminha, dá ao rei notícia do descobrimento do Brasil. Ele não manifesta admiração ou entusiasmo de inesperadamente ter aportado à nova terra: consigna apenas secamente o fato, como uma coisa natural. Igualmente o segundo cronista, que é desconhecido, diz apenas “che ebbe grandissimo piacere”. Nem uma palavra de triunfo, nenhuma das suposições, usuais, em Colombo e em seus sucessores, de que, com isso, se houvesse atingido a Ásia — nada mais do que uma notícia fria, que parece mais confirmar um fato. conhecido do que anunciar um novo. Assim, por um ulterior achado de documentos, poderia Cabral talvez ainda perder definitivamente a glória de haver descoberto o Brasil, a qual, aliás, já é contestada com o aportamento de Pinzon ao norte do rio Amazonas. Mas, enquanto não tivermos tal documento, deve o dia 22 de abril de 1500 ser considerado a data em que esta nova nação entrou para a História Universal.

A primeira impressão causada pela nova terra aos navegadores que a ela aportam é excelente: terra fértil, ventos amenos, fresca água potável, abundantes frutos, habitantes afáveis e não perigosos. Quem quer que chegue ao Brasil nos anos seguintes, repete as palavras hínicas de Américo Vespuccio, que, aqui chegando um ano depois de Cabral, exclama: “Se algures na terra existe o paraíso terrestre, não pode ele estar longe daqui!” Os habitantes que nos primeiros dias aparecem, em inocente traje de nudez, aos descobridores, e lhes mostram o corpo nu “com tanta inocência como o rosto”, os acolhem afavelmente. Mas são sobretudo as mulheres que, por seu corpo bem feito e sua condescendência rápida e sem preferências, (gratamente gabada também por todos os cronistas posteriores) fazem esquecer aos navegantes as privações de muitas semanas. Por enquanto não se dá uma verdadeira exploração ou ocupação do interior do novo território, pois Cabral, após o cumprimento de sua incumbência secreta, tem que, o mais depressa possível, prosseguir para sua meta oficial, para as Índias. A 2 de maio, após uma permanência de, ao todo, dez dias, ruma para a África, depois de ordenar a Gaspar de Lemos que com um navio percorra a costa na direção do norte e em seguida regresse a Lisboa, levando a notícia do descobrimento e alguns exemplares de frutos, de vegetais e de animais da nova terra.

A nova de que a frota de Cabral, seja em cumprimento de uma incumbência secreta, seja por mero acaso, atingiu essa nova terra, é recebida com agrado, mas sem verdadeiro entusiasmo, no palácio real. Em cartas oficiais é ela transmitida ao rei da Espanha, a fim de ficar garantido para Portugal o título legal de posse. Todavia a comunicação de que o novo território é uma região “sem ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal”, a princípio confere pouco valor ao descobrimento, Portugal descobriu nos últimos decênios tantas terras e se apossou duma parte tão grande do mundo que a capacidade colonizadora desse pequeno país verdadeiramente está de todo esgotada. O novo caminho marítimo para as Índias garante-lhe o monopólio das especiarias e, só com isso, já uma riqueza imensa. Sabe-se em Lisboa que em Calicut, em Malaca, a riqueza em pedras preciosas, tecidos custosos, porcelanas e especiarias, que há séculos se tornou lendária, está pronta para sofrer uma ousada pilhagem, e a sofreguidão de, com um assalto, arrebatar para si todo esse mundo de cultura superior e de fausto oriental impele Portugal a uma exaltação de intrepidez e de heroísmo, que dificilmente, na História Universal, outra se lhe iguala. Mesmo os “Lusíadas” quase não conseguem tornar compreensível essa nova expedição, semelhante à de Alexandre Magno, que um punhado de homens empreende, a fim de, com alguns navios, conquistar simultaneamente três continentes e, além disso, todo o oceano desconhecido. É que o pequeno e pobre Portugal, que, quase apenas há dois séculos, se libertou do domínio árabe, não possui dinheiro; o rei, toda vez que prepara uma frota, tem de antemão que empenhar o rendimento dela a banqueiros e comerciantes. Portugal também não possui soldados em número suficiente para guerrear ao mesmo tempo, os árabes, os indús, os malaios, os africanos, os selvagens e, em todos os lugares dos três continentes, estabelecer colônias e fortalezas. Contudo, como por milagre, extrai de si todas essas forças; cavaleiros, camponeses, e, conforme certa vez disse Colombo, indignado, até alfaiates abandonam as oficinas, as mulheres, os filhos, todos as suas profissões, e afluem, de todo o país, para os portos. Não os assusta o fato de que, segundo as célebres palavras de João de Barros, se torne “o oceano o mais freqüente túmulo dos portugueses”, pois a palavra “Índias” possui poder mágico. O rei sabe que um navio que regressa de Golconda compensa o prejuízo de dez que se perdem; um homem que resiste às tempestades, aos naufrágios, aos combates, às doenças, está rico para si e para seus descendentes. Como a porta que dá para a tesouraria do mundo de então está arrombada, ninguém quer permanecer na “pequena casa” da pátria, e essa vontade unânime dá a Portugal um êxtase de força e de coragem que, por um século, faz do impossível possibilidade e da inverossimilhança realidade.

Nesse tumulto de paixões, um evento de tanta importância histórica como o descobrimento do Brasil apenas é notado. Nada é mais característico do menosprezo desse fato, do que, em sua epopéia, Camões, entre seus milhares de versos, referir-se apenas vagamente ao descobrimento ou à existência do Brasil. Os marinheiros de Vasco da Gama levaram para Portugal tecidos custosos, jóias, pedras preciosas e especiarias e, sobretudo, a notícia de que nos palácios dos samorins e dos rajás havia milhares de vezes mais do que aquilo. Como, ao contrário, é sem valor o que leva Gaspar de Lemos! Alguns papagaios variegados, algumas amostras de madeira, alguns frutos e a desenganadora informação de que nada se podia obter aqui dessa gente nua. Não leva nem uma pepitazinha de ouro, nem uma pedra preciosa, nem especiarias, nenhuma daquelas preciosidades de que um punhado vale mais do que florestas inteiras de pau-brasil, tesouros que facilmente se podem obter com alguns golpes de sabre, com alguns tiros de canhão, ao passo que os troncos de pau-brasil têm que ser derrubados antes que possam ser serrados, embarcados e vendidos. Se essa Ilha ou Terra de Santa Cruz encerra riquezas, elas só podem ser riquezas potenciais, e têm que ser conquistadas com trabalho penoso de anos. Mas el-Rei de Portugal necessita de lucros rápidos, imediatos, para saldar as suas dívidas. É, pois, preciso dirigir as vistas para as Índias, a África, as Molucas, o Oriente. Por isso, a Terra de Santa Cruz se torna a Cordélia desse rei Lear, a irmã desprezada entre as três irmãs, a Ásia, a África e a América, e, apesar disso, a única que, na hora do infortúnio, se manterá fiel.

O fato de Portugal, inebriado por seus êxitos fantásticos, a princípio quase não se importar com o Brasil é, pois, a conseqüência da lógica inexorável das necessidades, o nome dessa terra não penetra no povo, não lhe dá trabalho à fantasia. Os geógrafos alemães e italianos assinalam a esmo em seus mapas a linha da costa com o nome “Brasil” ou “Terra dos Papagaios”, mas a Terra de Santa Cruz, essa região, deserta e verde, nada tem que atraia navegantes e aventureiros. Mas, se o rei D. Manuel não tem tempo nem propensão para convenientemente aproveitar e proteger esse novo território e ao mesmo tempo não está disposto a conceder a outros nem sequer um palmo do mesmo, porque o Brasil lhe protege a via marítima para as Índias e, sobretudo, porque Portugal, em sua ebriedade de aventura e de ânsia de conquistas, bem gostaria de, com sua mãozinha, abarcar todo o globo terráqueo. Tenaz, perseverante e habilmente pugna ele com a Espanha pelo reconhecimento de que esse território, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, se acha compreendido na zona pertencente a Portugal; quase surge conflito entre os dois países por causa dum território de que nenhum deles verdadeiramente precisa, pois ambos só desejam pedras preciosas e ouro. Mas, a tempo reconhecem quão absurdo seria voltarem armas um contra o outro, quando têm necessidade de homens e de balas para saquearem as novas terras que do céu subitamente lhes caíram nas mãos. Em. 1506 chegam a um acordo, que confirma o direito de Portugal, até então exercido apenas platonicamente.

Da Espanha, a poderosa vizinha, já não há agora que temer. Mas os franceses, que, por ocasião da divisão do mundo entre a Espanha e Portugal, não tiveram o seu quinhão, começam, visivelmente, a dedicar sua atenção a este vasto e belo pedaço de terra ainda não povoado e organizado. Cada vez mais aparecem aqui navios procedentes de Dieppe e do Havre, a buscar pau-brasil, e Portugal ainda não possui nos portos do Brasil navios e soldados, a fim de impedir essas piratarias. Seu titulo de posse legal não passa de um pedaço de papel, e a França, com uma única investida, de cinco, talvez até apenas de três navios armados, poderia apoderar-se da colônia inteira, se quisesse fazê-lo. Para defender a extensa costa é, pois, necessário uma coisa: povoá-la. Se o rei de Portugal quiser fazer do Brasil um território português e conservá-lo para si como bem da Coroa, terá de se resolver a enviar para ele portugueses. O território com sua gigantesca vastidão e com suas ilimitadas possibilidades quer e pede mãos, e cada uma que a ele chega acena para Portugal, solicitando outras e outras. Desde o começo, através de toda a História do Brasil, repete-se este apelo: gente, mais gente! É como se fosse a voz da natureza que quer crescer e desenvolver-se, e para sua verdadeira finalidade, para sua grandeza, necessita do indispensável auxiliar: o homem.

Mas como encontrar colonos no pequeno país, já meio exangue? Portugal, no começo de sua época de conquistas, possui, no máximo, trezentos mil adultos disponíveis do sexo masculino. Destes, um décimo, os mais vigorosos, os melhores, os mais destemidos, já seguiram para bordo e desse décimo nove décimos já pereceram no mar, em combates e em doenças. Como as aldeias estejam despovoadas e os campos abandonados, cada vez se torna mais difícil encontrar soldados e marujos, e, mesmo entre os amigos de aventuras, não se encontra nenhum que queira ir para o Brasil. A camada mais vital, mais intrépida do país, a dos fidalgos, dos nobres e dos soldados, recusa-se a emigrar para lá, pois sabe que na Terra de Santa Cruz não há ouro, pedras preciosas, marfim, e nem mesmo glória para se ir buscar. Os eruditos, os intelectuais, por sua vez, que irão fazer lá, naquele ermo, isolados de toda a civilização, e os comerciantes, que negócios irão realizar num país de canibais nus? Que poderão trazer para Portugal de suas maçantes viagens de ida e volta, quando um único carregamento procedente das Molucas compensa mil vezes o risco? Mesmo os mais pobres camponeses de Portugal preferem lavrar a própria terra a correrem o risco de naquela terra estranha e desconhecida serem devorados pelos canibais. Nenhum nobre, nenhum homem de posição, nenhum rico, nenhum indivíduo civilizado. revela, pois, a mínima vontade de embarcar para essas costas desertas, e por isso os que nos primeiros anos habitam o Brasil, quase não passam de alguns marujos que deram à costa, alguns aventureiros e desertores de navios, indivíduos que por acaso ou preguiça aqui ficaram, e eles se limitam a fazer o que de melhor podem fazer para o rápido povoamento: procriam inúmeros mestiços, os chamados “mamelucos”; diz-se que um deles gerou trezentos. Mas, ao todo, permanecem só algumas centenas de europeus numa terra que já então é tão grande como a Europa.

Por isso torna-se uma necessidade imperiosa promover com violência e método a imigração. Portugal emprega para isso o método da deportação já experimentado na Espanha: todos os alcaides do país são intimados a não mais condenarem delinqüentes, no caso de estes se declararem dispostos a seguir para o Brasil. Para que abarrotar as prisões e para que sustentar criminosos durante anos às expensas do Estado? É melhor degredá-los, pelo resto da vida, para a nova terra; lá, afinal de contas, ainda poderão ser úteis. Como acontece sempre, é o adubo forte e não muito limpo que melhor torna o solo bom para uma futura colheita.

Os únicos colonos que voluntariamente para aqui se dirigem sem serem indivíduos libertados de grilhões, indivíduos com estigma, com sentença judicial, são os cristãos novos, os judeus recém batizados. Mas, mesmo eles não vêm para cá de modo inteiramente voluntário, e sim por previdência e medo. Com maior ou menor sinceridade receberam o batismo em Portugal, a fim de escaparem à fogueira; todavia, com razão, não se sentem por isso mais seguros, à sombra da Inquisição. É melhor, pois, se retirarem a tempo, para uma nova terra, enquanto a mão sanhuda do Santo Oficio ainda não intervém do outro lado do Atlântico. Grupos de judeus batizados e também de não batizados fixam residência nos portos; esses judeus são verdadeiramente os primeiros colonos desta terra. Esses cristãos novos constituem as primeiras famílias da Bahia e de Pernambuco e, ao mesmo tempo, os primeiros organizadores do seu comércio. Com o conhecimento do mercado mundial tratam do corte e do embarque da madeira vermelha, do pau-brasil, que então é o único artigo de exportação do Brasil e cuja concessão comercial um desses colonos, Fernando de Noronha, obteve do rei, por longo prazo. Não só navios portugueses, mas também estrangeiros, aparecem aqui com bastante regularidade, a fim de buscarem essa carga singular, e, pouco a pouco, se formam desde Pernambuco até Santos pequenos povoados marítimos, berços das futuras cidades. Entrementes, em diversas expedições, frotas, pequenas e grandes, avançam até o Rio da Prata e fazem mapas da costa. Mas, desconhecido e sem limites atrás da estreita faixa que para o mundo então representa o Brasil, continua a jazer todo o gigantesco território.

O progresso do Brasil, nos três primeiros decênios, é lento, perigosamente lento. Cada vez mais navios estrangeiros visitam os novos portos — ilegalmente, no modo de pensar de Portugal — a fim de buscar madeira. Em 1530, afinal, el-Rei se decide, para pôr ordem, enviar ao Brasil uma pequena frota sob o comando de Martim Afonso de Souza, o qual apanha logo, em flagrante, três navios franceses e, como primeira impressão, comunica ao soberano o que, desde muito, todos lhe haviam comunicado, a saber, que o Brasil deve ser colonizado, senão o perderá a Coroa. Mas, como sempre, desde o começo da época heróica, os cofres estão vazios; as guarnições nas Índias, as fortalezas na África e a manutenção do prestígio militar, em suma, do imperialismo português, atraem para si todo o capital e toda a energia. Por isso há que tentar uma experiência para “povoar a terra”, ou melhor, uma experiência que nos Açores e em Cabo Verde já dera bom resultado: promover a colonização por meio da iniciativa privada. O território que, por assim dizer, ainda está inabitado, é dividido em doze capitanias, e cada uma delas é doada, com plenos direitos hereditários, a um cidadão, o qual te que se obrigar a desenvolver, por meio de colonização, essa faixa de terra, ou melhor, esse reino — o que aliás é de seu próprio interesse. O que é doado a cada um desses capitães é verdadeiramente um reino: cada um desses territórios não é menor que o próprio Portugal e alguns são tão grandes como a França ou a Espanha. A um nobre que em Portugal nada possui, a um oficial que — em batalhas nas Índias deu boa prova de si e solicita recompensa, a um historiador, como João de Barros, a quem o rei deve gratidão, a todos eles é doada, a cada qual, com uma penada de tinta, uma parte do Brasil, portanto uma região enorme, na expectativa de que, então, eles levem gente para lá, cultivem o território doado e indiretamente o conservem para a pátria.

Essa primeira tentativa de pôr certo método na maneira inteiramente casual e desorganizada de colonização é imaginada com superioridade de espírito. As vantagens para os donatários são imensas; além do direito de cunhar dinheiro, são-lhe concedidos, em troca de pequenos deveres, todos os direitos de um príncipe soberano. Se, com efeito, eles soubessem atrair uma população, seus filhos e netos deveriam ter o mesmo valor que qualquer monarca da Europa. Mas os presenteados são, em sua maioria, pessoas já não muito novas, que há muito consumiram o melhor de suas energias no serviço prestado ao rei; aceitam o território doado como herança para os filhos e netos, sem, todavia, com trabalho enérgico o colonizarem para si próprios. Nos primeiros decênios revela-se que só duas capitanias prosperam, a de São Vicente e a de Pernambuco, — esta última denominada Nova Lusitânia, — graças à racional plantação de cana de açúcar. As demais, por indiferença de seus donatários, falta de colonos, hostilidade dos aborígenes e diversas catástrofes no mar e em terra, em breve caem em estado de anarquia. Toda a costa está ameaçada de retalhar-se; isoladas umas das outras, sem acordo entre si, sem lei comum, sem poder militar, sem fortificações e soldados, acham-se as capitanias constantemente expostas à pilhagem por parte de qualquer poder inimigo e até por parte de qualquer corsário atrevido. Desesperado, escreve a 12 de maio de 1548 Luiz de Góes a el-Rei: “... se com tempo e brevidade Vossa Alteza não socorre a estas capitanias e costa do Brasil, ainda que nós percamos as vidas e fazendas, Vossa Alteza perderá a terra... ” Se Portugal não der uma organização unitária ao Brasil, estará este perdido. Só um representante resoluto do rei, um governador geral, que também leve consigo poder militar, poderá estabelecer ordem e, ainda a tempo, congregar numa unidade os pedaços em que o Brasil se está desfazendo.

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É um fato decisivo para a História do Brasil ouvir a tempo el-Rei D. João III o brado de socorro, e a 1o. de fevereiro de 1549 enviar como governador geral Tomé de Souza. homem que já deu provas de seu valor em África e nas Índias, com a incumbência de em um qualquer lugar, de preferência na Bahia, fundar uma capital, de onde todo o território deverá ser administrado por um governo central.

Tomé de Souza, além do necessário funcionalismo, traz consigo seiscentos soldados e quatrocentos degredados, os quais todos mais tarde se vão domiciliar na cidade ou fora dela. Desembarca-se o material mais necessário para construir uma cidade, e imediatamente todos põem mãos à obra; em quatro meses é edificada uma muralha de fortificação para proteger o local, levantam-se casas e igrejas onde anteriormente existiam apenas míseras cabanas de barro. Instala-se no, por enquanto ainda muito provisório Palácio do Governo, uma administração para a colônia e outra para a cidade, e, como o mais evidente sinal de uma justiça, que afinal é introduzida e já é extremamente necessária, constrói-se um cárcere, primeira advertência de que se quer, no futuro, ordem rigorosa. Todos deverão sentir que já não são indivíduos abandonados, esquecidos, exilados e sem pátria, indivíduos sem direitos e deveres, mas sim que estão sujeitos às leis da pátria e sob a proteção delas. Com a fundação de uma capital e a constituição de um governo geral, o organismo do Brasil, até então apenas amorfo, adquiriu um coração e um cérebro.

Tomé de Souza traz consigo seiscentos soldados ou marinheiros e quatrocentos degredados, ao todo mil homens, com armaduras ou com camisas de trabalho. Mais importantes do que esses mil homens, cujo valor está nos braços e na força, serão para o destino do Brasil os seis homens de batinas pretas e singelas que o rei enviou com Tomé de Souza para direção e conselho espirituais. É que esses seis homens trazem o que de mais precioso um povo e uma terra necessitam para sua existência, trazem uma idéia, a idéia verdadeiramente criadora do Brasil. Esses seis jesuítas possuem uma energia nova e que ainda absolutamente não foi gasta, pois sua ordem é nova e está cheia do santo fervor de dar provas do seu objetivo. Ainda vive o seu fundador, Inácio de Loyola; ainda sua vontade ascética, sua férrea energia pensante e o entusiasmo perfeitamente consciente de seu objetivo lhes dão o exemplo visível da auto-disciplina; como em todos os movimentos religiosos, nos jesuítas a intensidade espiritual e a pureza de costumes, nos primeiros anos, e antes do verdadeiro êxito, se acham no mais alto grau. Em 1550 os jesuítas ainda não constituem um poder espiritual, secular, político e econômico, como nos séculos ulteriores, — e toda forma de poder diminui a pureza moral de um ente humano, como a de um partido. Sem posses, tanto os indivíduos como a ordem, personificam eles só uma determinada, vontade, portanto um elemento ainda de todo espiritual, ainda não inteiramente imiscuído no que é secular. E chegam na melhor hora, pois para sua grandiosa concepção, a de, por meio de campanhas espirituais, restabelecer a unidade religiosa do mundo, o descobrimento de um novo continente representa um lucro inaudito. Desde que, em 1519, na dieta de Worms, o feroz alemão ateou a guerra religiosa mundial, mais de um terço, quase a metade da Europa, já abandonou a Igreja, e o catolicismo, outrora a “ecclasia universalis”, está quase reduzido a uma posição de defesa. Que vantagem, pois, se fosse possível conquistar, a tempo, para a velha e verdadeira fé, os novos mundos que de repente surgiram, e com isso se pudesse criar como que uma segunda e mais larga frente atrás da primeira! Como os jesuítas nada exigem, nenhum salário, nenhuma preferência el-Rei D. João III aprova-lhes a intenção de conquistarem essa nova terra para a religião e permite que seis desses soldados de Cristo acompanhem a expedição. Mas, na realidade, esses seis homens não se limitarão a acompanhar, irão dirigir.

Com esses seis homens começa algo de novo para o Brasil. Todos que antes deles chegaram ao Brasil, fizeram-no em cumprimento de ordem ou vítimas da violência, ou refugiados; quem até então desembarcava na costa do Brasil queria tirar alguma coisa desta terra, madeira ou frutos, ou aves, ou minérios, ou entes humanos; nenhum deles pensara em uma retribuição à terra. Os jesuítas são os primeiros que nada querem para si e tudo querem para esta terra. Trazem consigo plantas e animais para cultivar o solo; trazem medicamentos para curar os enfermos, livros e instrumentos a fim de ensinar os incultos; trazem sua crença e a disciplina de costumes estabelecida pelo seu mestre; trazem, sobretudo, uma idéia nova, a maior idéia de colonização existente na História. Antes deles, entre os povos bárbaros, e, ao lado deles, sob o regime espanhol, colonizar significava exterminar os aborígenes, ou transformá-los em animais; descobrimento, para a moral dos conquistadores do século dezesseis era igual a conquista, subordinação, sujeição, privação de direitos, escravização. Eles, ao contrário, como “os únicos homens disciplinados de seu tempo”, conforme diz Euclides da Cunha, passando por cima desse processo de colonização pelo roubo, pensam no processo de edificação por meios morais, pensam nas gerações vindouras e, desde o primeiro instante, estabelecem na nova terra a equiparação moral de todos entre si. Precisamente porque a população aborígene vive num nível baixo, não deve ser ainda mais rebaixada, reduzida à animalidade e à escravidão, mas sim elevada à condição de seres humanos e conduzida, pela mão do cristianismo, à civilização ocidental: nesta terra deve desenvolver-se uma nação nova, por cruzamento e educação. A essa idéia fecunda deve, afinal de contas, o Brasil ter-se tornado, dum conglomerado dos mais diversos elementos, um organismo, e dos elementos mais evidentemente opostos entre si, uma unidade.

Os jesuítas, está claro, sabem que uma tarefa de tal importância não poderá realizar-se imediatamente. Não são sonhadores vagos e confusos e seu mestre Inácio de Loyola não é nenhum Francisco de Assis, que acredita numa suave fraternidade entre os homens. São realistas, e, graças a seus exercícios, sabem dia a dia refortalecer a sua energia, para vencerem no mundo a imensa resistência das fraquezas humanas. Sabem que a sua tarefa é perigosa e demorada. Mas precisamente o fato de absolutamente visarem, desde o começo, um alvo longínquo, colocado a séculos de distância, na eternidade, distingue-os tão grandiosamente dos funcionários da Coroa e dos guerreiros que querem para si e para a pátria lucros imediatos e visíveis. Os jesuítas sabem perfeitamente que serão necessárias gerações e gerações para que se complete esse processo de “abrasileiramento” e que cada um deles que arrisca a vida, a saúde e as forças nesse começo, jamais verá os menores resultados de seus esforços. É um trabalho penoso, de semeadura, que eles começam, é um empreendimento árduo e, na aparência, sem esperança. Mas o ter ele início numa terra de todo inculta e numa terra sem limites aumenta-lhes a energia, em vez de a diminuir; assim como a vinda oportuna dos jesuítas é para o Brasil uma sorte, o Brasil é, por sua vez, uma sorte para eles, porque é a oficina ideal para seu apostolado. Só pelo fato de ninguém no Brasil haver atuado antes deles, e ninguém atuar a seu lado, podem eles aqui realizar em toda extensão uma experiência de importância histórica. Matéria e espírito, substância e forma, uma terra deserta, inteiramente inorganizada e um método de organização ainda não experimentado combinam-se para criar algo novo e vivo.

Uma felicidade especial nesse ditoso encontro de uma poderosa tarefa com uma energia ainda mais poderosa, que se prepara para realizá-la, é a presença de um verdadeiro chefe. Manuel da Nóbrega, a quem a incumbência, recebida de seu provincial, de seguir para o Brasil nem dá tempo de ir a Roma receber instruções pessoais do superior geral da Companhia, Inácio de Loyola, está na plenitude de seu vigor. Conta trinta e dois anos e estudou na Universidade de Coimbra, antes de haver ingressado na Companhia. Mas não é seu especial saber teológico que lhe confere grandeza histórica, e sim sua enorme energia e sua força moral. Nóbrega — que é estorvado por um defeito no falar — não é como Vieira um grande pregador, nem como Anchieta um grande escritor. É, antes de tudo, um lutador, na concepção de Loyola. Nas expedições para libertar o Rio de Janeiro ele é a força impulsiva do exército e o conselheiro estratégico do governador geral; na administração revela as capacidades ideais de um organizador genial, e à clarividência que se sente em suas cartas, junta uma energia heróica que faz não temer sacrifício algum de si próprio. Somadas apenas as viagens de inspeção que naqueles anos empreendeu ele do norte para o sul, do sul para o norte e através do território, já elas encerram centenas e quiçá milhares de noites cheias de preocupações e de perigos. Em todos aqueles anos é ele governador ao lado do governador, mestre dos mestres, fundador de cidades e pacificador, e não há acontecimento importante na História do Brasil daquela época a que não esteja ligado o seu nome. A reconquista do porto do Rio de Janeiro, a fundação de São Paulo e Santos, a pacificação das tribos inimigas, a criação de colégios, a organização do ensino e a libertação dos aborígenes são sobretudo obra sua. Por toda parte era Nóbrega o iniciador; podem seus discípulos e sucessores, de Anchieta a Vieira, ter-se tornado mais populares do que ele no Brasil, mas não fizeram mais do que desenvolver idéias dele; onde construíram, já encontraram os alicerces. Na História do Brasil, essa “obra sem exemplo na História”? foi a mão de Nóbrega que escreveu a primeira página, e todos os traços feitos por essa mão enérgica e firme permaneceram indeléveis até o presente.

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Os primeiros dias após a chegada dedicam os jesuítas a tomar conhecimento da situação. Antes de ensinar querem aprender, e imediatamente um deles trata de, o mais depressa possível, aprender o idioma dos aborígenes. Já à primeira vista se vê que estes ainda se acham no mais baixo grau da época nômade. Andam inteiramente nus, não conhecem o trabalho, não possuem ornamentos, nem os mais primitivos utensílios. O de que precisam para comer tiram das árvores ou dos rios; logo que consomem tudo o que encontram numa região, mudam-se para outra. Constituem uma raça de boa índole e mansa; guerreiam-se entre si, apenas para fazerem prisioneiros, que devoram no meio de grandes solenidades. Mesmo esse uso canibalesco, porém, não deriva de uma especial crueldade de sua natureza; ao contrário, esses bárbaros dão ainda uma de suas filhas ao prisioneiro como esposa e o tratam muito bem até matá-lo. Quando os sacerdotes tentam desabituá-los do canibalismo, esbarram mais com admiração, da parte deles, do que com verdadeira resistência, pois esses selvagens ainda vivem fora de toda noção de civilização ou de moral, e devorar prisioneiros para eles não significa senão um prazer tão inocente como beber, dançar ou dormir com mulheres.

Esse ínfimo grau do modo de viver parece a princípio um obstáculo invencível para a obra dos jesuítas, mas, na realidade, facilita-lhes a tarefa. Como essas criaturas nuas não possuem idéias religiosas ou morais, é muito mais fácil incuti-las nelas do que em povos em que já domina um culto próprio e em que magos, sacerdotes e xamanes com indignação se opõem ao missionário. A população aborígene do Brasil, ao contrário, é, como diz Nóbrega, um “papel em branco” que macio e dócil aceita a nova prescrição e acolhe todo ensino. Por toda parte os aborígenes recebem sem nenhuma desconfiança os “brancos”, os sacerdotes: “Onde quer que vamos, somos recebidos. com grande boa vontade”. Sem hesitação deixam que eles os batizem e de boa vontade e gratos seguem — e por que não? — os sacerdotes, os “brancos bons”,. que os protegem contra os outros, os “brancos maus”. Naturalmente os jesuítas, como realistas experimentados e sempre atentos, sabem que esse assentimento. indolente e irrefletido, que o ajoelhar-se e o persignar-se de canibais, absolutamente ainda não é verdadeiro cristianismo; mesmo no mais célebre defensor de sua missão em São Paulo, em Tibiriçá, observam-se às vezes reincidências no canibalismo. Os jesuítas não esperdiçam o tempo com estatísticas ostentadoras relativas às almas já conquistadas; sabem que sua verdadeira tarefa está no futuro. Em primeiro lugar é preciso apenas fazer com que essas massas nômades se fixem em sítios, para que se possa tomar conta de seus filhos e dar-lhes instrução. A atual geração, canibalesca, esta já não é possível civilizar de fato. Mas será facil educar, de acordo com a civilização, as crianças, portanto as gerações vindouras. Por isso, para os jesuítas, o mais Importante é criar escolas em que, muito previdentemente, começam com aquela idéia de mescla sistemática que fez do Brasil uma unidade e que sozinha o manteve como unidade. Conscientemente reúnem crianças das choças dos selvagens com os mestiços, já numerosos, e insistentemente solicitam que enviem crianças brancas de Lisboa, ainda que sejam apenas as crianças abandonadas, desamparadas, que são apanhadas nas ruas de Lisboa. Todo elemento novo que favoreça a mescla, é bem recebido por eles, mesmo o constituído pelos — “moços perdidos, ladrões e maus que aqui chamam de patifes”. Eles têm interesse em criar os mestres do povo por meio do próprio sangue do povo, pois os aborígenes no ensino religioso confiam mais nos irmãos da mesma cor ou de cor mesclada, do que nos estrangeiros, nos brancos. Ao contrário dos outros, os jesuítas pensam exclusivamente nas gerações vindouras; realistas e calculistas exatos e clarividentes, são os únicos que têm uma visão verdadeira do Brasil futuro, e, ainda antes que qualquer geógrafo tenha idéia da vastidão desta terra, eles pautam seu trabalho por um padrão exato. O que eles fazem é um plano de campanha para o futuro, e o objetivo desse plano, que permanece fixo através dos séculos, é a constituição desta nova terra no sentido duma única religião, dum único idioma, duma única idéia. Haver sido alcançado esse objetivo é um motivo de eterna gratidão do Brasil a esses missionários que tiveram a idéia de fazer dele uma nação.

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A verdadeira resistência com que em seu grandioso plano de colonização, esbarram os jesuítas, não provém, como a princípio poderia esperar-se, dos aborígenes, dos selvagens, dos canibais, e sim dos europeus, dos cristãos, dos colonos. Até então, para aqueles soldados evadidos, marinheiros desertados, para os degredados, o Brasil era um paraíso exótico, uma terra sem lei, sem restrições e deveres, uma terra em que podia cada um fazer e deixar de fazer o que bem lhe aprouvesse. Sem serem seriamente importunados pela justiça ou pela autoridade, podiam eles permitir-se livre curso aos instintos desregrados; o que na pátria era punido com grilhões e ferrete, no Brasil era considerado prazer permitido, de acordo com a doutrina dos conquistadoras:- “Ultra equinoxialem non peccatur”. Eles se apossavam de terras, onde quisessem e na quantidade que quisessem; capturavam aborígenes onde quer que os encontrassem e, a chicote, os obrigavam a trabalhar. Apossavam-se de toda mulher que encontravam, e o enorme número de mestiços patenteou, em breve, a difusão dessa poligamia desenfreada. Não havia ninguém para lhes impor autoridade, e, por isso, cada um desses indivíduos que, em sua maioria, ainda traziam nas espáduas as marcas do ferrete da casa de correção, vivia, como um paxá, sem se importar com direito e religião e, sobretudo, sem jamais mover as mãos para realmente trabalhar. Ao invés de civilizarem a terra, aqueles primeiros colonos mesmos estavam asselvajados.

Impor disciplina àquela corja brutal, habituada ao ócio e à violência, é tarefa árdua. O que mais horroriza aos piedosos sacerdotes é a desenfreada poligamia e a devassidão. Mas, doutra parte, como culpar esses homens de viverem aqui em concubinato, se não têm eles possibilidades de casar legalmente e constituir família? Como constituírem família, base única da sociedade, se aqui não há mulheres brancas? Por isso, Nóbrega insiste junto a el-Rei para que de Portugal envie mulheres: “Mande Vossa Alteza mulheres órfãs, porque todas casarão”. E como não é de esperar que os fidalgos de Portugal mandem suas filhas para essas terras longínquas, a fim de que procurem elas esposo entre esses devassos, Nóbrega, em sua grande nobreza de espírito, chega a pedir ao rei que envie também as jovens decaídas, as meretrizes das ruas de Lisboa. No Brasil todas encontrariam esposo. Após algum tempo as autoridades religiosas e seculares conseguem estabelecer certa ordem nos costumes. Mas na colônia inteira esbarram eles com uma resistência encarniçada: com a questão da escravidão, que do começo ao fim, de 1500 até quase 1900, é o ponto nevrálgico do problema brasileiro. A terra precisa de braços e não os há aqui em quantidade suficiente. Os poucos colonos não bastam para plantar cana e para trabalhar nos engenhos. Ademais, esses aventureiros e conquistadores não vieram para esta terra tropical, a fim de aqui trabalhar de enxada e pá. Querem aqui ser senhores; por isso, resolvem a dificuldade, apanham os aborígenes como os caçadores apanham lebres e, a chicote, os fazem trabalhar, até que os infelizes caem sem forças. A terra pertence-lhes, argumentam esses aventureiros, com tudo que existe em cima e em baixo dela, portanto lhes pertencem também todos aqueles animais bípedes de cor escura; é-lhes indiferente que esses pereçam ou não no trabalho; para substituir um que morre, vão buscar na alegre caça de índios sessenta outros, e ela constitui um divertido esporte.

Contra essa cômoda idéia intervêm então, energicamente, os jesuítas, pois a escravidão com o despovoamento da terra vai diretamente contra seu plano grandioso e bem traçado. Não podem tolerar que os colonos reduzam os aborígenes a animais de trabalho, porque eles, discípulos de Loyola, impuseram a si, precisamente como a mais importante tarefa, conquistar esses selvagens para a fé, para a terra e para o futuro. Todo aborígene lívre é-lhes um ser necessário para o povoamento e para a civilização. Ao passo que é do interesse dos colonos atiçar as diferentes tribos a constantes combates entre si, a fim de que elas depressa se exterminem e, após toda luta, possam ser comprados os prisioneiros como mercadoria barata, procuram os jesuítas conciliar as tribos entre si e isolá-las umas das outras, no vasto território, por meio do estabelecimento de povoados. O aborígene, como futuro brasileiro e cristão conquistado, constitui para eles a substância talvez mais preciosa desta terra, substância mais importante do que a cana, o pau-brasil e o fumo, por causa dos quais ele é escravizado e exterminado. Como o alimento essencial, o alimento querido por Deus, querem eles colocar na gleba esses entes humanos ainda incultos, como o fazem com os frutos e as plantas que consigo trouxeram da Europa, em vez de permitir que eles depereçam e se asselvagem ainda mais. Expressamente exigem, pois, do rei que seja determinada a liberdade dos aborígenes; segundo o plano dos missionários, não deverá haver no Brasil futuro uma nação de senhores, de brancos, e uma nação de escravos, de escuros, mas sim apenas um povo único e livre, numa terra livre.

Sem dúvida,, mesmo uma carta e uma ordem régias a três mil milhas de distância perdem muito de sua força imperiosa, e uma dúzia de sacerdotes, dos quais a metade se acha sempre percorrendo o território em viagens de missões sem repouso, é muito fraca contra a vontade interesseira da colônia. Para salvarem ao menos uma parte dos aborígenes, têm os jesuítas que transigir na questão dos escravos. Têm que concordar em que sejam escravos dos colonos os índios feitos prisioneiros em lutas “justificadas”, isto é, em lutas de defesa contra os aborígenes, e naturalmente essa cláusula do acordo encontra a mais flexível e elástica interpretação. Além disso, a fim de não serem inculpados de impossibilitarem o progresso rápido da colônia, vêem-se na contingência de aprovar a importação de negros da África. Mesmo esses homens de espírito elevado e humanitário não podem subtrair-se à opinião da época, para a qual o escravo negro é — evidentemente uma mercadoria como o algodão ou a madeira. Nessa época, em Lisboa, uma capital européia, já existem dez mil escravos negros. Nessas condições, por que não permitir que a colônia também os possua? Até os próprios jesuítas se vêem na necessidade de adquirir negros para si; com todo o sangue frio declara Nóbrega que adquiriu três escravos e algumas vacas para o primeiro colégio. Mas os jesuítas se mantêm firmes e inflexíveis no princípio de que os aborígenes não podem ser caça livre para qualquer aventureiro que aqui chegue; eles defendem cada um dos seus neófitos, e essa inflexibilidade com que lutam pelo direito dos brasileiros de cor, será a sua desgraça. Nada tornou tão difícil a situação dos jesuítas no Brasil quanto essa luta pela idéia brasileira do povoamento e da nacionalização do território por meio de homens livres, e com tristeza. reconhece isso um deles, quando escreve: “Teríamos vivido muito mais tranqüilos, se só houvéssemos ficado nos colégios e nos houvéssemos limitado a unicamente prestar Serviço religioso.” Mas o fundador da Companhia não fora em vão soldado; educara seus discípulos para a luta por uma idéia. E essa idéia eles trouxeram com suas vidas para a nova terra: a idéia de nacionalizar o Brasil.

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Ter Nóbrega, em seu plano de conquista do futuro império, reconhecido imediatamente o ponto exato em que deveria ser lançada a ponte para o porvir, revela que grande estrategista era ele. Pouco depois de sua chegada à Bahia, criou sua primeira escola, e com os padres que posteriormente chegaram visitou, em viagens penosas e fatigantes, todo o litoral, desde Pernambuco até Santos, e fundou casa em São Vicente. Mas ainda não encontrou o ponto conveniente para o colégio principal, para o centro espiritual e religioso que pouco a pouco deverá atuar sobre todo o território. À primeira vista essa procura cuidadosa, bem deliberada, dum conveniente fulcro, é incompreensível. Por que não transfere Nóbrega seu quartel general para a Bahia, a capital, a sede do Governo e do Bispado? Mas nesse ponto percebe-se, pela primeira vez, um antagonismo oculto que com o tempo se vai tornar patente e, afinal, até violento. A Companhia de Jesus não quer começar essa obra sob as vistas do Estado e nem mesmo do Papa; desde o começo têm os jesuítas em relação ao Brasil um problema e um objetivo mais elevado do que serem aqui apenas um elemento colonizador, com função de ensino e de auxílio, subordinado à Coroa e à Cúria. O Brasil para eles é um objeto de experiência decisiva, um objeto para a primeira prova da capacidade de realização da força organizadora da Companhia de Jesus, e Nóbrega di-lo sem rodeios: “esta terra é nossa empresa”, e com isso quer dizer: somos responsáveis pela sua realização perante Deus e a humanidade. Os jesuítas tinham, sem dúvida, um objetivo especial, examinado a fundo por eles e não inteiramente perceptível pelos outros. Eis o motivo da desconfiança oculta que os acompanhou no Brasil, desde o começo, através da História. O que, consciente ou inconscientemente, se esforçam por conseguir, não é apenas a formação duma colônia portuguesa entre todas as outras colônias portuguesas, mas sim a duma comunidade teocrática, dum tipo novo de Estado, não sujeito às forças do dinheiro e do poder, como tentaram mais tarde criar no Paraguai. Desde o primeiro instante quiseram com o Brasil criar algo sem par, algo novo, algo de modelo, e uma concepção como essa teria de entrar, mais cedo ou mais tarde, em conflito com as idéias mercantis e feudais da corte portuguesa. Certamente não pensavam em se apossar do Brasil com o intuito de dominá-lo e explorá-lo para sua Companhia e para os fins desta, como afirmam seus inimigos.

Que, porém, eles queriam, em relação ao Brasil, mais do que serem aqui apenas pregadores do Evangelho, que com sua presença queriam implantar e realizar aqui mais e alguma coisa diferente do que realizavam as outras ordens, sentiu-o desde logo o Governo, que, agradecido, se servia deles, mas os vigiava com uma leve suspeita, sentiu-o a Cúria, que não estava disposta a dividir sua autoridade espiritual com ninguém, sentiram-no os colonos, que em sua colonização meramente interesseira se consideravam estorvados pelos jesuítas. Exatamente porque não queriam nada de visível, mas sim a realização dum princípio espiritual, idealista e, portanto, incompreensível para as tendências da época, tiveram os jesuítas desde o começo, constante oposição contra si, a qual, por fim, haveria de vencê-los, expulsando-os da terra em que, apesar de tudo e de todos, plantaram a semente fecunda. Foi, portanto, muito bem deliberadamente que Nóbrega, a fim de evitar, por maior tempo possível, esse conflito de competições, quis estabelecer sua Roma, sua capital espiritual, longe da sede do Governo e do Bispado; só onde ele pudesse atuar sem ser impedido e vigiado, poderia dar-se aquele processo lento e laborioso de cristalização que ele não perdia de vista. Essa transferência do centro de ação do litoral para o interior importa, tanto no ponto de vista geográfico, como no do objetivo de catequese, numa vantagem bem considerada. Só uma encruzilhada do interior, protegida, pela cadeia de montanhas, contra agressões de piratas vindos do mar e, apesar disso, próxima do oceano, mas também próxima das diversas tribos que tinham que ser conquistadas para a civilização e cuja vida nômade tinha de ser transformada em vida de sede fixa, poderia ser a célula germinativa ideal.

A escolha de Nóbrega recai em Piratininga, a cidade de São Paulo de hoje, e a evolução histórica ulterior revelou a genialidade de sua decisão, pois a indústria, o comércio e o espírito empreendedor do Brasil, ainda após centenas de anos, seguiram sua escolha inspiradora. No mesmo local em que ele com seus auxiliares, a 25 de janeiro de 1554, levantou aquela “paupérrima e estreitíssima casinha”, acha-se boje uma grande capital moderna, com seus arranha-céus, fábricas e ruas movimentadíssimas. Nóbrega não poderia ter feito melhor escolha. O clima desse planalto é temperado, o solo é fértil, existe perto dali um porto, e rios garantem a comunicação com grandes cursos d’água, com o Paraná e o Paraguai, e por meio destes com o Rio da Prata; de Piratininga podem os missionários avançar em todas as direções para as diversas tribos e fazer irradiar sua obra de catequese. Além disso, não há por enquanto nenhuma colônia de degredados corruptora das costumes, na proximidade da pequena povoação, a qual sabe logo conquistar por meio de pequenos presentes e bom trato a amizade das tribos vizinhas. Sem muita dificuldade os aborígenes deixam que os sacerdotes os reunam para formarem pequenas aldeias, para constituírem aqueles comunidades, muito semelhantes às coletividades russas de hoje, e pouco tempo depois já pode Nóbrega dizer: “Vai-se fazendo uma formosa povoação”. A Companhia ainda não possui, como mais tarde, ricos bens de raiz, e os parcos meios a princípio apenas permitem a Nóbrega desenvolver o colégio em pequenas proporções. Mas, em todo caso, em breve se forma no colégio uma série de sacerdotes, brancos e de cor, que, uma vez aprendido o idioma dos selvagens, vão como missões volantes de tribo a tribo, a fim de as irem tirando da vida nômade e conquistando para a fé. Acha-se estabelecido um entroncamento, a primeira “escola para muitas nações de índios”, e rapidamente se forma entre o missionário e as tribos domiciliadas um sentimento leal de solidariedade. Por ocasião do primeiro assalto por bandos errantes, já são os recém batizados que, com devotado sacrifício, sob o comando de seu chefe Tibiriçá, repelem o ataque. A grande experiência de povoamento de orientação religiosa, que depois na república jesuítica do Paraguai vai ter a sua criação sem par, está iniciada.

Mas a fundação de Nóbrega constitui também um grande progresso no ponto de vista nacional. Pela primeira vez se estabelece certo equilíbrio para o futuro Estado. Ao passo que até então o Brasil era propriamente apenas uma faixa de litoral com suas três ou quatro cidades marítimas no norte, as quais comerciavam exclusivamente com produtos tropicais, começa então também no sul e no interior a desenvolver-se a colonização. Em breve essas energias que lentamente foram reunidas, de modo fecundo avançarão para o interior e, por curiosidade própria e sofreguidão, irão explorar terras e rios, em toda extensão. Com a primeira povoação disciplinada do interior a idéia preconcebida já se transformou em ação.

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O Brasil conta apenas uns cinqüenta anos de idade, quando, após movimentos fetais incertos, pela primeira vez começa a dar sinais de vida própria e verdadeiramente consciente. De modo lento vão aparecendo os primeiros resultados da organização colonial. As plantações de cana da Bahia e de Pernambuco, embora ainda feitas de modo primitivo, fornecem abundantes lucros. Cada vez mais chegam navios a fim de buscarem matérias primas em troca de mercadorias; ainda não são muitos os que se arriscam, a viajar para o Brasil, e quase nenhum livro dá ao mundo notícia deste vastíssimo mundo. Mas precisamente essa maneira hesitante e esporádica pela qual a colônia atrai para si a atenção do comércio mundial, é, em última análise, a felicidade do Brasil, porque lhe permite um desenvolvimento orgânico. Em tempo de conquistas e de violências é sempre, antes uma vantagem para um território permanecer despercebido e não cobiçado; os tesouros que Albuquerque viu nas Índias e nas Molucas, as presas que Cortez levou do México e Pizarro do Peru para a pátria, desviam do Brasil, de maneira verdadeiramente feliz, a atenção e a cobiça das outras nações. A Terra dos Papagaios continua a ser considerada como uma quantidade desprezível, pela qual nem a própria metrópole, nem os outros países seriamente se interessam.

Não é, pois, propriamente um ato manifesto de guerra fundear em 10 de novembro de 1555 uma pequena frota com o pavilhão francês na baia de Guanabara e numa de suas ilhas desembarcar algumas centenas de homens, pois o Rio de Janeiro então ainda não é uma cidade, nem apenas um povoado. Na meia dúzia de choças esparsas que ali existem, não há um soldado, um funcionário da Coroa portuguesa, e o singular aventureiro que ali iça a bandeira, não encontra oposição alguma à sua ousada aventura. Figura equívoca e atraente, aquele cavaleiro de Rodes, Nicolau Durand de Villegaignon, meio pirata, meio erudito, é um tipo perfeitamente autêntico da Renascença. Conduziu Maria Stuart da Escócia para a corte do rei da França, distinguiu-se na guerra e deleitou-se nas artes. Ronsard tece-lhes louvores, e a corte o teme, porque ele é de conduta imprevisível, espírito de azougue, a quem toda atividade regrada repugna e que desdenha do melhor emprego, das mais altas dignidades, a fim de, livre e desembaraçado, poder entregar-se a seus caprichos, muitas vezes, fantásticos. Para os huguenotes ele é católico, e para os católicos, huguenote. Ninguém sabe a que causa serve, e ele próprio não sabe de si talvez senão que gostaria de realizar algo de grande e especial, algo diferente do que os outros realizam, algo de mais brutal, mais ousado, mais romântico e mais singular. Na Espanha ter-se-ia tornado um Pizarro ou Cortez, mas seu rei, inteiramente ocupado com o país, não organiza conquistas coloniais. Por isso o sôfrego Villegaignon tem que inventar uma. Reúne alguns navios, enche-os de algumas centenas de homens, na sua maioria huguenotes que se sentem mal na França dos Guises, mas também católicos que querem vir para o Novo Mundo, e ávido de glória, como é, previdentemente traz logo consigo um historiador, André Thevet, pois o que sonha não é nada menos do que fundar uma França Antártica, da qual quer ser criador, governador e talvez até príncipe com poderes absolutos. Até que ponto a corte francesa tinha conhecimento desses planos, até que ponto ela os aprovou e mesmo favoreceu, dificilmente se poderá saber. É provável que, no caso de bom êxito, Henrique II se tivesse apossado do seu feito, como fez Isabel da Inglaterra com os dos seus piratas Raleigh e Drake; primeiramente deixa Villegaignon tentar sua sorte apenas como particular, a fim de não cometer uma falta para com a Coroa portuguesa com uma missão e anexação oficial.

Villegaignon, como soldado experimentado, tendo primeiramente em vista a defesa, constrói logo depois de sua chegada, na ilha que hoje tem o seu nome, um forte que denomina Coligny, em homenagem ao almirante huguenote, ao passo que, como prova de respeito ao seu rei, denomina ostentosamente Henrivile a futura cidade fronteira, que, por enquanto, não passa de pântanos e colinas desertas. Inescrupuloso em coisas religiosas, como para essa sonhada colônia não mais encontre na França outros católicos, manda buscar em 1556 um carregamento de calvinistas de Genebra, cuja presença na pequena colônia em breve vai dar lugar a rixas religiosas. Pregadores de duas religiões, que mutuamente se qualificam de hereges, são demais numa pequena ilha. Mas, em todo o caso, a França Antártica está fundada e os franceses, porque não toleram roubos de escravos, dentro de pouco tempo se acham em ótimo acordo com os aborígenes, com os quais entretêm vivo comércio. A partir de então navios franceses viajam regularmente entre a França e esta colônia, ainda não oficialmente reconhecida por ela, como se a mesma fosse seu porto.

Essa invasão absolutamente não pode ser indiferente ao governador português na Bahia. Segundo o princípio de direito então em vigor, as águas do litoral brasileiro constituem um mare clausum e navios estrangeiros não têm permissão de aportar às costas desse mar e de nelas comerciar. Instalar um forte com militares estrangeiros no melhor porto da colônia importa na separação entre o sul e norte e, com isso, na destruição da unidade do Brasil. A mais natural obrigação do governador geral seria desarmar os navios estrangeiros e arrasar tudo o que o inimigo construíra, mas ele não tem poderio para um empreendimento militar de tal vulto. As poucas centenas de soldados que vieram para o Brasil, entrementes já há muito se fizeram agricultores ou donos de plantações, e, após anos de vida cômoda, estão pouco dispostos a vestir novamente a armadura; à geração nova ainda falta qualquer sentimento nacional, qualquer idéia de comunidade. Em Portugal não há a noção exata do perigo, e, como sempre, também não há o dinheiro necessário para uma expedição rápida. O Brasil ainda continua para a Coroa a não ser suficientemente importante para que por sua causa se prepare uma frota dispendiosa. Por isso têm os franceses muito tempo para constantemente se fortalecer e entrincheirar. Só quando um novo governador geral, Mem de Sá, em 1557 é enviado para a Bahia, começam os preparativos para uma ação contra os intrusos. Mem de Sá deposita toda a confiança: em Nóbrega e submete-se inteiramente à sua autoridade espiritual. É de novo Nóbrega quem com toda a sua energia férrea exige uma atuação oportuna contra os franceses. Os jesuítas conhecem melhor o Brasil e estão mais preocupados com o seu futuro do que os negociantes de Lisboa, que dão valor às terras exclusivamente pelo rendimento momentâneo das especiarias produzidas pelas mesmas; os jesuítas sabem que, se os huguenotes franceses conseguirem fixar-se definitivamente nesta colônia, com isso estará para sempre destruída não só a unidade do Brasil, mas também a da religião. O governador geral e Nóbrega alternativamente enviam cartas e mais cartas para Portugal, a fim de pedir que se “faça socorrer a esse pobre Brasil”. Mas Portugal, um segundo Atlas, tem que suportar sobre os fracos ombros um mundo inteiro, e ainda decorrem dois anos até que afinal, em 1559, alguns navios cheguem ao Brasil e Mem de Sá possa pensar numa pequena ação militar contra os intrusos.

O verdadeiro chefe da expedição é Nóbrega, que, junto com Anchieta, conseguiu o maior número possível de seus neófitos, a fim de fortalecer a tropa portuguesa, que é fraca. Junto com o governador geral aparece ele, em 18 de fevereiro de 1560, diante do Rio, e, logo que em 15 de março chegam de São Vicente as tropas auxiliares que rapidamente foram reunidas, desencadeia-se a tempestade sobre o forte de Villegaignon. Para nós hoje essa importante ação, -sem dúvida, parece uma espécie de guerra entre sapos e ratos. Cento e vinte portugueses e cento e quarenta índios investem contra o forte Coligny, que é defendido por setenta franceses e alguns indígenas. Os franceses não conseguem resistir e a tempo refugiam-se na terra firme, junto dos aborígenes seus amigos, a fim de nos morros novamente se entrincheirarem. Para os portugueses isso é uma vitória, pois o forte Coligny, a bastilha, está tomada; sem perseguirem ou aniquilarem os franceses, regressam eles para a Bahia e São Vicente.

Mas é apenas uma meia vitória, pois os franceses continuam no Brasil. Foram rechaçados ao todo cerca de um quilômetro, portanto uma distância que hoje de automóvel se percorre em um a dois minutos. Eles se acham livremente no porto como antes, continuam seu comércio, carregam e descarregam navios, constróem no Morro da Glória outro forte, incitam os tamoios, os índios que são seus amigos, contra os portugueses, e o primeiro ataque a São Paulo por parte de membros dessa tribo foi provavelmente organizado por eles. Mas Mem de Sá não tem forças para expulsar os intrusos. Como sempre no Brasil, desde o começo até hoje, a falta é a mesma: há pouca gente. Mem de Sá não pode dispensar um só braço na Bahia; se o fizer, a produção do açúcar, o principal elemento da economia do Brasil, cessa; além disso,. uma terrível peste matou a maior parte da população. Sem ajuda de Portugal é, pois, impossível expulsar os franceses de suas posições, e essa ajuda faz-se esperar interminavelmente; os colonos de Villegaignon permanecem, sem serem molestados, mais cinco anos no Rio. É novamente Nóbrega quem incessantemente insiste junto à Corte, advertindo-lhe muitas vezes que, se em vez de Portugal, são os franceses que continuam a enviar socorros, a Coroa perderá definitivamente a Baia do Rio de Janeiro e com ela o Brasil. Afinal a rainha escuta suas insistentes súplicas e envia de Lisboa Estácio de Sá, que com as tropas auxiliares preparadas no Brasil, ataca o inimigo. De novo têm início com massas liliputianas as ações bélicas. A 1o. de março de 1565 Estácio de Sá entra com sua frota de guerra na baia de Guanabara e assenta seu acampamento ao pé do Pão de Açúcar, além donde hoje é o bairro da Urca. Mas, fato que hoje nos custa conceber, antes que se dê o ataque ao Morro da Glória, cuja distância ao Pão de Açúcar, de auto, se percorre exatamente em dez minutos, passam-se mais de vinte meses. Só a 20 de janeiro de 1567 Estácio de Sá com seus soldados se lança no ataque ao inimigo. E, num combate de poucas horas e com uma perda de vinte ou trinta homens, dá-se a decisão de importância histórica: se no futuro essa cidade se chamará Rio de Janeiro ou Henrivilie, se o Brasil será um país de língua portuguesa ou de língua francesa. Com duas ou três dúzias de soldados travavam-se então, tanto nas Índias como na América, combates que deveriam determinar a forma e o destino do nosso continente por séculos. Estácio de Sá, ferido por uma flecha, paga a vitória com a sua vida. Mas dessa vez a vitória é decisiva. Os franceses fogem para seus quatro navios e não levam para a França senão a notícia do fumo, cujo alcalóide, em homenagem ao embaixador Jean Nicot, é mais tarde denominado nicotina. Sobre os destroços do forte francês, no Morro da Glória, um bispo benzerá a igreja da futura capital do Brasil.

Foi um combate liliputiano, mas salvou a unidade do Brasil: o Brasil pertence aos brasileiros. Mas agora é preciso desenvolver a colônia, e para isso se seguem quase cinqüenta anos de completa paz para ela. Lentamente se vão alargando os limites para a Paraíba, para o Rio Grande do Norte e para o interior; as povoações dos jesuítas em São Paulo começam a desenvolver-se de modo fecundo, as plantações do litoral fornecem produtos em abundância, e, além da sempre crescente exportação de açúcar e de fumo, prospera outro negócio, um negócio pouco decente, a importação de “marfim preto”. De mês para mês trazem-se carregamentos cada vez maiores de escravos africanos da Guiné e do Senegal, e os infelizes que não morrem durante a viagem, nos navios abarrotados e fedorentos, são vendidos no grande mercado da Bahia. Durante algum tempo essa multidão de negros e o surpreendente número de mamelucos gerados pelos portugueses, esses mestiços de todos os matizes, ameaçaram fazer desaparecer a influência civilizadora européia; nas cidades do litoral existe, duma parte, um punhado de empresários, que, se enriquecem sem limites, e, doutra parte, um sem número de escravos; sem o trabalho equilibrante dos jesuítas, que, por toda a parte, no interior do país,. instalam fazendas e educam os aborígenes para o cultivo do solo, impedem o extermínio destes e, sem preconceitos, favorecem a mestiçagem, talvez o Brasil se tornasse um país africano, porque a Europa se mostrava absolutamente indiferente. Essa Europa, envolvida em numerosas guerras, não tem mais colonos para fornecer, e lá só se encontram poucos indivíduos sagazes, que paulatinamente vão compreendendo o valor desta terra; já em 1587 Gabriel Soares de Sousa escreve em seu roteiro as seguintes palavras proféticas: “Estará bem empregado todo cuidado que Sua Majestade mandar ter deste novo reino, pois está capaz para se edificar nele um grande império o qual com pouca despesa deste reino se fará tão soberano que seja um dos estados do mundo”.

Mas há muito já se foi o tempo em que o Portugal que dominava a metade do mundo, ainda poderia ajudar a alguém, pois seu grandioso sonho romântico, de, para si e para a religião cristã, conquistar os três continentes inteiros, se acabou. O pequeno e valoroso país não se contentara de possuir ambas as costas da África, a oriental e a ocidental, e de submeter as Índias a seu monopólio comercial. El-Rei D. Sebastião, o último e o mais usado sonhador dessa família heróica, sonha com uma cruzada que, duma vez para sempre, deverá dar cabo do poderio muçulmano. Ao invés de distribuir suas melhores forças, seus cavaleiros, seus soldados, pelas colônias e conservar por meio de organizações práticas — o reino dos “Lusíadas”, qual um cavaleiro do Gral, vestido de armadura de prata, reúne todo o seu poder para formar um só exército e traslada-se para a África, a fim de com um só golpe aniquilar o inimigo hereditário, os mouros. Mas o golpe aniquilador não atinge os mouros e sim a ele próprio, e na batalha de Alcácer-Quibir, nessa última e seródia cruzada do Ocidente contra o Oriente, em 1578, é completamente aniquilado o exército português e morto D. Sebastião. A grande exaltação da vontade vingou-se cruelmente: Portugal, o pequeno país, que queria submeter a si o universo, perdeu sua própria independência, e a Espanha usurpou para si o trono que se achava vago. O país, exausto por milhares de batalhas, não pode oferecer resistência; Portugal como reino independente desaparece da História por sessenta e dois anos, de 1578 a 1640. Todas as suas colônias, e portanto também o Brasil, tornam-se possessões da coroa da Espanha.

Filipe II domina por um instante mundial um império também mundial, que excede de muito o de Alexandre e o de Augusto; além da Península Ibérica, pertencem a esse habsburguês Flandres e toda a América já conhecida, três quartos da África e o reino das Índias conquistado pelos portugueses. E esse sentimento de força e de grandeza reflete-se na arte ibérica. Cervantes, Lope de Vega, Calderon produzem suas obras admiráveis; toda a riqueza do globo terrestre flui para esse país triunfante.

O Brasil pouco participa desse triunfo e não tem dele vantagens; ao invés de ganhar em poder, a colônia, que até então não era importunada, pelo fato de, sem o provocar, pertencer ao Reino Ibérico, recebe a visita de todos os inimigos da Espanha; piratas ingleses saqueiam Santos, incendeiam São Vicente; os franceses estabelecem-se temporariamente no Maranhão; os holandeses invadem a Bahia e ali se apoderam dos navios. O Brasil tem que dolorosamente sentir quanto novas potências, desde o aniquilamento da “Invencível Armada”, disputam à Espanha o domínio dos mares. É verdade que nenhum desses atos de pirataria é de maior importância; eles causam apenas pequenos prejuízos e inquietações, que absolutamente não podem impedir o desenvolvimento da colônia. A situação para o Brasil só se torna perigosa quando na Holanda surge um plano bem traçado e bem estudado, não só de saquear portos, mas também de conquistar “het Zuckerland”, como esses bons comerciantes denominam o Brasil, de acordo com o seu melhor produto comercial.

A Holanda, organizada exemplarmente no ponto de vista comercial, conhece bem o valor do Brasil, e dificilmente poderiam haver passado despercebidas aos seus atentos negociantes as palavras dos “Diálogos das grandezas do Brasil”, que diziam possuir este mais riquezas do que as Índias. Por isso não é uma casualidade o fato de em 1621 fundar-se em Amsterdam, segundo os moldes da Companhia das Índias, uma companhia das “Índias Ocidentais” com grande capital, ao que se diz, apenas para comerciar com o Brasil e a América do Sul, na realidade, porém, com uma segunda intenção, a de se apossar do Brasil para a Holanda e para o seu monopólio comercial. Nessa companhia há bons calculistas, que sabem que para um tão grande objetivo é necessário empatar grandes capitais. A fim de ocupar o Brasil e, coisa mais importante, a fim de depois conservá-lo em seu poder, não se pode, como fizeram os franceses, mandar dois ou três navios com colonos cansados da Europa e marinheiros às pressas assoldadados; é necessário preparar uma verdadeira frota e nela embarcar um exército treinado. Nada mostra mais evidentemente o desenvolvimento e a importância que o Brasil adquiriu aos olhos do mundo nesses últimos cinqüenta anos do que o vulto dos preparativos para a agressão. Ao passo que Villegaignon aqui aporta com dois ou três navios para fundar a França Antártica e então se travam os combates decisivos entre setenta e cem guerreiros improvisados, a companhia holandesa prepara desde logo vinte e seis navios com mil e setecentos soldados exercitados e com mil e seiscentos marinheiros.

A primeira investida é contra a Capital. A 9 de maio de 1624 a Bahia é tomada quase sem resistência e os holandeses levam consigo imensa pilhagem. Só então desperta a Espanha; são enviados mais de cinqüenta navios com onze mil homens, que, com as tropas auxiliares indígenas vindas de Pernambuco, reconquistam a Bahia, antes que chegue a segunda frota holandesa com trinta e quatro navios. Reconhecendo-se o valor da colônia até então desprezada, já se centuplicaram os esforços para se conservar a posse da “Terra do Açúcar” — Forçada a recuar na Bahia, a companhia holandesa prepara-se com novos reforços para um novo ataque, e neste é bem sucedida. Em 1635 é ocupada a cidade de Recife e nos anos que se seguem, além da Bahia, todo o litoral do norte. A partir de então existe durante vinte e três anos, no norte do Brasil, um governo holandês.

A atividade colonizadora desses vinte e três anos de governo holandês é, sem dúvida, grandiosa. Supera de muito tudo o que os portugueses fizeram em cem anos. Os holandeses possuem idéias de organização claras e já experimentadas. Não confiam a imigração e a administração a casuais elementos anárquicos, não enviam para o Brasil o refugo do seu país, e sim os seus melhores homens, providentemente escolhidos. Maurício de Nassau, que, como governador da coroa holandesa, administra a nova possessão, além de descender de sangue real, é um verdadeiro fidalgo, espírito perspicaz, superior e tolerante. Traz um estado maior de especialistas, engenheiros, botânicos, astrônomos, eruditos, para colonizar, para europeizar o Brasil. Nada é mais típico da inferioridade do material de civilização que, em comparação com os franceses e os holandeses, enviam para o Brasil os portugueses, do que não possuirmos acerca dos anos de juventude do Brasil nenhuma descrição de valor verdadeiramente literário, da autoria de um português, a não serem as cartas dos jesuítas, ao passo que os franceses, já, após poucos anos, dão ao mundo a obra sobre a “França Antártica”, e Maurício de Nassau faz com que por Barleus seja escrita aquela modelar obra de luxo, com estampas e plantas, que eterniza sua glória e suas atividades.

Maurício de Nassau faz boa figura na História do Brasil. Como humanista trouxe a idéia de tolerância, permite a todas as religiões livre ação, possibilita a todas as artes fecundo desenvolvimento, e mesmo os velhos colonos não podem queixar-se de violência. Na cidade de Recife, em sua homenagem denominada Mauricéia, constroem-se palácios e casas de pedra, abrem-se ruas limpas, e as regiões circunjacentes são exploradas por geógrafos. Importam-se prensas hidráulicas modernas, para a indústria açucareira, tomam parte no comércio negociantes fugidos de Portugal, toda a vida pública é orientada para a estabilidade e o progresso. Garantem-se aos portugueses os seus direitos e aos aborígenes a sua liberdade. De certo modo, com bases humanitárias, realiza Maurício de Nassau o mesmo ideal do povoamento pacífico que com bases religiosas procuram conseguir os jesuítas.

Mas a sorte do Brasil não se decide no Brasil e sim na Europa. Em 1640 Portugal libertou-se da Espanha e sob D. João IV readquiriu sua própria coroa. Com isso dai em diante toda a ocupação do Brasil pela Holanda não tem mais base jurídica. Um armistício dá repouso aos dois países e, como, por sua parte, a Holanda, a nova potência marítima, entra em conflito com a potência marítima, ainda mais nova, a Inglaterra, pode recomeçar-se a luta pela libertação do Brasil; pela primeira vez são forças brasileiras nacionais que a ateiam. Dessa vez não é tanto Portugal, mas sim já a própria colônia que luta pela sua unidade e liberdade. De novo são elementos eclesiásticos que assumem a chefia da luta,. porque reconhecem a importância vital de manter a terra brasileira livre de toda infiltração por elementos protestantes, cuja presença poderia trazer da Europa para o Brasil a guerra religiosa homicida. Em 1649 o Padre Antônio Vieira, uma das figuras diplomáticas mais geniais de sua época, funda em Lisboa uma companhia contra a holandesa, a “Companhia Geral de Comércio para o Brasil”, que, por iniciativa própria, prepara uma frota, e ao mesmo tempo improvisa-se no Brasil, de parceria com os proprietários daqui, que querem reaver suas plantações e engenhos, um exército nacional. Dá-se então um fato surpreendente. Enquanto Portugal ainda negocia com a Holanda e discute se o litoral brasileiro, e quanto deste, deve ficar com ele, e antes que a frota, que Portugal quer enviar em auxilio, parta, os brasileiros atuam por iniciativa própria; passo a passo são os holandeses rechaçados, Maurício de Nassau deixa o Brasil, e a 6 de janeiro de 1654, capitula Recife. o seu último baluarte; os holandeses retiram-se definitivamente. Ao passo que o utópico reino dos “Lusíadas” desaparece tão depressa como foi criado pelo momento fecundo de Portugal, o Brasil se conserva integro para si próprio.

De um modo geral, o episódio holandês na História do Brasil representa uma sorte para este. Durou bastante para, por uma administração exemplar, fazer ver o que neste país, com organização boa e humanista, pode ser realizado e, por outro lado, não durou bastante para perturbar a unidade da língua e dos costumes portugueses; ao contrário, precisamente a ameaça por parte dum domínio estrangeiro criou e fomentou o sentimento nacional. Do norte ao sul, a colônia sente-se agora um país unido, que está unanimemente decidido a com violência afastar do seu organismo toda intervenção violenta em sua vida nacional: tudo o que é estrangeiro terá que dora em diante, amalgamar-se com o que é brasileiro, se aqui quiser manter-se. Na aparência, com essa guerra, o Brasil foi readquirido para Portugal, mas, na realidade, o foi já para si próprio.

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Nessa guerra entre portugueses e holandeses pela primeira vez aparece esse novo elemento ainda desconhecido em suas energias e qualidades: o brasileiro.

Lentamente começou a moldar-se o tipo brasileiro, e a princípio de maneira assaz antagônica. O litoral e o interior do país apresentam um aspecto absolutamente diverso. Nas cidades do litoral penetra constantemente sangue novo: imigrantes, comerciantes, marinheiros e escravos; nas aldeias do interior, ao contrário, conserva-se o mesmo sangue. Os habitantes do litoral são negociantes ou industriais primitivos; seu verdadeiro domicílio está além-mar e, sem quererem, com seus produtos e planos estão com os olhos sempre dirigidos para a Europa. Para os colonos, ao contrário, o domicílio é o solo, e só o solo gera o sentimento completo de união.

A energia mais forte é a dos homens do interior. Eles residem onde não há segurança, e, afeitos ao perigo, começam a gostar dele. Sobretudo em São Paulo começa a formar-se um tipo curioso, o paulista. Constituído de portugueses ou de filhos de portugueses, que têm, no sangue, dum lado, o gosto da vida nômade dos índios, e, doutro lado, o gosto das aventuras dos antepassados europeus, essa nova geração não gosta de lavrar a terra que possui. Há muito que para eles esse trabalho grosseiro é feito por escravos, e a maneira lenta de adquirir riquezas não condiz com seu sangue irrequieto. Com lavoura e criação de gado não se enriquece, enquanto não são elas exercidas em grande escala, com centenas de escravos, e eles querem enriquecer à maneira de conquistadores, enriquecer de uma só vez, ainda que seja com risco da própria vida. Por isso, os habitantes de São Paulo, várias vezes no ano, se reúnem em grandes grupos, para, como bandeirantes, a cavalo, com um bandeira à frente e com um troço de servos e escravos, como outrora os salteadores, se embrenharem pelo interior, não, porém, sem antes fazerem benzer solenemente sua bandeira, numa igreja. Às vezes se reúnem até dois mil homens para tais entradas, e então, por alguns meses, a cidade e os povoados ficam sem homens. Eles próprios não sabem dizer o que vão procurar; são impelidos, em parte, pela aventura, em parte, pela esperança de um achado inesperado, nessas terras imensas e ainda não exploradas. Desde os dias em que os tesouros do Peru e as minas de Potosi foram descobertas, não cessam os boatos acerca dum lendário Eldorado. Por que não estaria ele no Brasil? Por isso os paulistas vadeiam os rios, sobem e descem morros, seguindo por caminhos escabrosos sempre novos, na direção em que o vento impele a bandeira que vai na frente, sempre impulsionados pela esperança de algures toparem com as minas lendárias. Enquanto o precioso metal não se deixa encontrar, enquanto o “hércules do sertão”, Fernão Dias, não descobre ao menos as esmeraldas, trazem eles outro produto: entes humanos. Nos primeiros decênios, essas entradas nada mais são que bárbaras e cruéis caçadas de escravos. Aos paulistas parece mais simples e, ao mesmo tempo, mais interessante, ao invés de comprarem negros no mercado da Bahia, capturarem com cavalos e cães, os aborígenes em sortidas animadas, que excitam os sentidos. Mas, afinal, acham que o mais cômodo é, ao invés de perseguirem com cães os índios amedrontados até grande distância pelas matas a dentro, irem simplesmente buscar os índios das colônias, onde os jesuítas os haviam estabelecido, com tanta ordem, e já os haviam ensinado a trabalhar.

Está claro que essa cavalaria salteadora é de todo ilegal, pois el-Rei afirmou expressamente que os aborígenes são livres, e Anchieta queixa-se desesperado: “Para este gênero de gente não há melhor pregação que espada e vara de ferro”. Por mera cobiça de lucros, esses bandos destroem a obra de colonização dos jesuítas, penosamente realizada durante anos e anos; despovoam-lhes as colônias, levam o terror a regiões longínquas em que reina paz, escravizam e roubam seres humanos não só indefesos, mas também já civilizados e conquistados para o cristianismo. Mas os paulistas, graças à rápida adesão de muitos mestiços, já são tão fortes que preceitos e leis não podem intimidá-los; mesmo as bulas do Papa, contra essas entradas e bandeiras, não têm poder no sertão, nas matas virgens. Esse roubo de entes humanos cada vez se torna mais brutal e ao mesmo tempo vai penetrando mais no território, e na obra de Debret, “Vogage pittoresque au Brésil”, do começo do século dezenove, ainda encontramos um dos mais horrendos quadros, que representa a maneira pela qual homens, mulheres e crianças, todos nus, ajoujados a longas varas, são conduzidos como gado por esses brutais caçadores de índios.

Todavia, esses bárbaros têm, na História do Brasil, um grande mérito. Foi sempre a cobiça, em si desprezível, de lucros rápidos, uma das mais potentes forças que impeliram o homem para regiões longínquas, foi ela que propeliu os navios fenícios, foi ela que atraiu os conquistadores para os continentes desconhecidos, foi ela que, não obstante ser o pior dos instintos, obrigou a humanidade a sair da estagnação e das comodidades. Assim, os bandeirantes, que só querem arrebatar e roubar, paradoxalmente realizam a obra civilizadora da construção do Brasil, pois, por suas penetrações bárbaras e sem objetivo, favorecem o conhecimento geográfico do país. Da Bahia, subindo o rio S. Francisco, de São Paulo, descendo o rio Paraná e o Paraguai, em direção a Minas, subindo a Serra e em direção a Mato Grosso e Goiás, atravessando as matas virgens, procuram e abrem os primeiros caminhos para o território incógnito e, enquanto despovoam, também povoam. Em certos lugares alguns deles deixam-se ficar; com isso originam-se novas células de povoamento, novos centros, dos quais nervos e artérias se estendem para regiões ainda não trilhadas. Operando com a mais encarniçada inimizade contra o plano de povoamento dos jesuítas, eles, com seus sôfregos avanços para o incógnito, aceleram a obra da penetração; representam “uma parte daquela força que constantemente quer o mal, e, apesar disso, cria o bem”, segundo as palavras de Goethe. Também eles tiveram boa parte na obra da criação do Brasil.

São também paulistas os que em uma de suas entradas penetram nos vales inteiramente inabitados de Minas Gerais e ali no Rio das Velhas encontram o primeiro ouro. Um dos bandeirantes leva a nova para a Bahia e outro para o Rio de Janeiro. Imediatamente de ambas as cidades e de muitos outros lugares se estabelecem correntes migratórias para essas regiões inóspitas. Os donos de plantações levam consigo seus escravos, os engenhos são abandonados e soldados desertam; em alguns anos origina-se na zona do ouro um pequeno grupo de cidades: Vila Rica, Vila Real, Vila Albuquerque, com um total de cem mil habitantes. Pouco depois se descobrem diamantes. De um momento para outro o Brasil se torna a mais rica fonte de ouro do mundo e a mais preciosa possessão da coroa portuguesa, pie desde logo garante para si a quinta parte de todo o ouro achado, bem como todo o diamante com mais de vinte e quatro quilates.

A nova província oferece a princípio o aspecto de um completo caos. Como nos primeiros tempos da colonização, naqueles vales remotos, porque ainda não são fiscalizados pelo Governo, sentem-se os intrusos fora da lei e do dever, e o governador geral esbarra como a seu tempo os jesuítas com decidida oposição, logo que quer introduzir ordem e disciplina. Os paulistas defendem-se contra os “emboabas”, os intrusos procedentes do litoral, e dão-se desesperadas lutas, nas quais afinal vence a autoridade de el-Rei. Em última análise é só a cobiça que reúne em bandos os cavadores de ouro, os quais não querem repartir com mais ninguém. as inesperadas riquezas. Mas, por trás de sua obstinada oposição, inconscientemente já atua como vontade mais elevada um sentimento de nacionalidade. Com essas primeiras revoltas contra a autoridade portuguesa os paulistas de modo puramente instintivo exigem, sem todavia formularem sua vontade, que toda riqueza do solo brasileiro pertença ao Brasil, acham absurdo que o ouro que eles — ou melhor, seus escravos — extraem, seja — empregado para a construção de palácios e de gigantescos conventos a milhares de milhas de distância, além-mar, num país que em toda sua vida nunca hão de ver. De certo modo esse primeiro levante, rapidamente dominado, dos cavadores de ouro, contra a autoridade portuguesa, já é o preâmbulo da grande luta pela independência, que, na mesma cidade, no mesmo lugar, meio século mais tarde, irá novamente descarregar suas forças reprimidas. É que o ouro, a mais valorizável substância, deu ao Brasil, pela primeira vez, a consciência de sua riqueza; desde o instante do descobrimento do ouro o Brasil não mais se considera devedor e obrigado a gratidão para com a metrópole; julga-se um país livre, que já pagou cem vezes mais do que, devia.

Esse turbilhão do ouro não dura ao todo mais de cinqüenta anos. Essa preciosa fonte seca, o que para Portugal é uma catástrofe. Mas repete-se sempre na História do Brasil o mesmo fenômeno curioso: o que para a metrópole, para Portugal é uma desgraça, torna-se uma vantagem para a colônia. Logo que cessam as remessas de ouro para Portugal, irrompe neste uma gravíssima crise financeira, que o Marquês de Pombal não pode dominar e que em seu curso ulterior tem como conseqüência a expulsão dos jesuítas e a queda desse ministro. Pelo descobrimento do ouro dá-se uma nova perturbação do equilíbrio e, com isso, uma primeira consolidação da distribuição dos habitantes do Brasil. Novamente grandes massas humanas se trasladam para o interior, que até esse momento é pouco habitado; e mesmo quando o ouro da areia dos rios se acaba, os cavadores de ouro de outrora, que nem ali e nem noutra parte têm domicilio, preferem, a voltar para o litoral, fixar residência nas altiplanuras férteis de Minas Gerais. Com isso de novo — como anteriormente aconteceu com São Paulo — se povoa uma província e se adquire uma nova via de comunicação, o rio São Francisco. Cada vez mais o Brasil de um simples litoral se vai tornando um verdadeiro país.

Mais importante, porém, do que todo o ouro extraído, é para o Brasil o sentimento poderosamente fortalecido de seu próprio valor. Em parte em lutas contra os franceses, que no norte avançam contra o Maranhão, em parte por destemidas incursões em regiões incógnitas e por crescente povoamento do oeste, a população, pelas suas próprias forças, vai ganhando o vale do Amazonas, Mato Grosso, Goiás, Rio Grande do Sul, e uma série de outras províncias, cada uma das quais em território é tão grande como os ou potentes países da Europa, como a Espanha, a França e a Alemanha, ou maior que eles. Numa época em que os Estados Unidos da América do Norte, cuja superfície é igual à do Brasil, conhecem apenas um sexto do seu território, o Brasil se estende quase até os atuais limites, e há muito tempo que a pequena metrópole não mais é padrão, pois, desenhada dentro dos imensos limites desta colônia, parece tão pequena como uma mancha de tinta numa enorme toalha. Quando, em 1750, no Tratado de Madrid, se procura fixar definitivamente os limites do Brasil com as possessões espanholas, tem a Espanha que reconhecer, indignada, que o Brasil já há muito tempo não pode ser limitado pelas antiquadas linhas do Tratado de Tordesilhas, e que pelo direito mais forte do seu trabalho colonial, tornou írritos e nulos todos os parágrafos desse tratado. Pelos fins do século dezoito começa a Europa, começa o Brasil mesmo a compreender como, em sua maneira calma, perseverante, se tornou ele grande, poderoso, unido nos anos que aparentemente decorreram sem acontecimentos de importância. Quanto mais se afasta de sua infância, de sua dependência financeira, tanto mais necessariamente sente a inconveniência e a injustiça de seu livre desenvolvimento ainda ser, de maneira mesquinha, entravado pela tutela impolítica e, além disso, inábil, de Portugal.

Para haurir de sua colônia os maiores lucros possíveis, a Coroa portuguesa envolve o Brasil numa rede de leis que interrompe suas regorgitantes artérias de comunicação com o comércio mundial; o Governo, por exemplo, não permite precisamente ao país, em que o algodão cresce livre e exuberante, a fabricação de artigos têxteis, a fim de forçar o Brasil a importá-los de Lisboa, e proibições como essa se vão multiplicando até chegarem ao despotismo e à estupidez. Assim é que, em 1775, um decreto proíbe fabricar sabão; veda-se a produção de álcool, a fim de obrigar os consumidores a beber mais vinho português. O governador recusa-se a, em seu palácio, receber alguém cujos trajes não sejam de tecidos portugueses. Proíbe-se a um país que já possui dois milhões e meio de habitantes, plantar arroz; a suas cidades não se permite, no século da filosofia e da “Aufklaerung” a impressão de jornais, e nem mesmo de livros; não é permitido a nenhum brasileiro possuir navio, a nenhum estrangeiro viver no Rio de Janeiro, e mal lhe é permitido aportar a esta cidade. Fecha-se o Brasil como se fecha o jardim particular do rei de Portugal. Mesmo no século dezenove, quando Humboldt quer percorrer o Brasil para escrever sua grandiosa obra, que verdadeiramente desvenda o Brasil ao mundo, confidencialmente se ordena às autoridades que, quando um “certain baron Humboldt” aparecer, lhe criem todas as dificuldades possíveis.

Por isso é fácil compreender com que atenção e entusiasmo os brasileiros acompanham a luta pela independência dos Estados Unidos, que à força se libertam de uma tutoria mais suave e mais inteligente e conseguem sua liberdade. Os primeiros organizadores da forma de vida do Brasil, os jesuítas, que se foram tornando cada vez tanto mais malquistos no país quanto mais sua organização se volvia para o que é comercial e fazia concorrência aos colonos, tiveram, por ordem do Marquês de Pombal, de deixar o país. Mas com isso absolutamente não se deram aos brasileiros poderes e direitos sobre seu próprio destino; os vice-reis governam o país exclusivamente para o proveito de Portugal e pouco se interessam pelo desenvolvimento independente do Brasil. Lenta, secreta, mas irresistivelmente, se forma um partido anti-português, ou melhor, um partido que então ainda poderia facilmente ser satisfeito com a simples garantia de igualdade de direitos e com a permissão de o Brasil comerciar com o resto do mundo. O brasileiro, por natureza, não é radical nem revolucionário; com mão leve e hábil ainda seria possível sem dificuldade conservar a posse do país. Mas em Lisboa não se compreendem os seus desejos, e mesmo o Marquês de Pombal, que em vão procura conduzir Portugal a idéias mais esclarecidas e mais condizentes com a época, apesar de alguns melhoramentos econômicos, não concede ao Brasil o completo desenvolvimento orgânico de suas forças. A expulsão dos jesuítas, por ele ordenada, como paliativo, como calmante, e que se realiza sob intensa oposição das povoações partidárias deles, de modo algum se revela ao país como uma vantagem moral ou um lucro material; ao contrário, a hostilidade que os colonas até então opunham a esses organizadores religioso-comerciais dirige-se agora toda contra Portugal. Já anteriormente, por várias vezes, haviam surgido em Minas Gerais, na Bahia e em Pernambuco diversas rebeliões contra os funcionários fiscais de Portugal, mas, porque a elas faltavam ligações entre si, foram sufocadas. Em sua maioria haviam sido revoltas puramente locais contra um novo imposto ou uma nova restrição, explosões impulsivas duma massa abandonada e, por isso, não verdadeiramente perigosa para a autoridade de Portugal. Só no fim do século dezoito tem início, com os conspiradores da Inconfidência Mineira, um movimento nacional inteiramente consciente de seu objetivo e cheio de idealismo.

A Inconfidência Mineira é uma conspiração de jovens e por isso uma conspiração romântica, com discursos afoitos e poesias enfáticas, inabilmente preparada, mas, apesar disso, duma energia característica dessa época. Em 1788 um grupo de jovens estudantes brasileiros discute vivamente na Universidade de Montpellier a necessidade de uma libertação nacional e até procura pôr-se em contacto com Jefferson, o embaixador dos Estados Unidos em Paris, a fim de obter para a sua causa auxílio dessa república. Não há uma verdadeira ação, mas a idéia não morre, e logo que alguns desses estudantes chegam a Ouro Preto, que então é a cidade de maior vida intelectual, constitui-se um grupo com propósitos revolucionários, sob a chefia de José Alvares Maciel, que acaba de chegar de Coimbra, e Joaquim José da Silva Xavier, que, sob o nome de Tiradentes, se tornou o mui decantado herói desse primeiro movimento de libertação verdadeiramente brasileiro. São sempre homens de profissão intelectuais os que se reúnem nesses conventículos: médicos, poetas, religiosos, magistrados, gente da mesma camada social, que está em ascensão e na mesma ocasião dirige a revolução na França — homens que gostam de discutir e que se entusiasmam por livros e idéias, homens que gostam de falar e, dessa vez, falam demais. Em seu entusiasmo, os conspiradores, ainda muito antes de haverem planejado e organizado bem a conspiração, já se vêem chegados à meta e, de boa fé, precipitadamente, procuram adeptos para o seu plano, ainda absolutamente teórico. Assim, o governador, constantemente informado por espiões que se insinuam entre os conspiradores, pode dar-lhes o golpe antes que eles próprios se hajam decidido a atuar. A maior parte deles é condenada à deportacão para a África, o poeta Cláudio Manuel da Costa suicida-se na prisão e só um, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que perante o tribunal, livre e heroicamente, confessa sua convicção, é executado, da maneira mais cruel, a 21 de abril de 1789, no Rio de Janeiro, e os pedaços de seu corpo martirizado são expostos em vários lugares de Minas Gerais “para terrível escarmento dos povos”. Mas com isso absolutamente não se extingue a centelha do movimento de libertação: ela continua sob as cinzas. No fim do século dezoito o Brasil, como todos os seus vizinhos sulamericanos, desde a Argentina até a Venezuela, está inteiramente pronto para se libertar da Europa e espera apenas que chegue a sua hora.

* * *

Um caso ainda retarda essa separação por dois decênios. Portugal nas guerras napoleônicas acha-se na pior das situações que na guerra pode existir: está entre a bigorna e o martelo. Nas exaustivas lutas dos dois gigantes, Napoleão e a Inglaterra, seria naturalmente concedido ao pequeno país permanecer à margem do conflito e neutro. Mas quando a violência reina há um século já não há lugar para os que querem paz; tanto a França, que quer os portos de Portugal, como a Inglaterra, que deles necessita para o bloqueio continental, exigem uma decisão. E essa decisão é terrivelmente cheia de responsabilidade para D. João VI. Napoleão domina o continente, e a Inglaterra o mar. Se o rei se opuser à exigência de Napoleão, este invadirá Portugal e o país estará perdido. Se o rei se opuser à Inglaterra, esta bloqueará o mar e ele perderá o Brasil. Ante essa inexorável escolha, entre o bombardeio de Lisboa pelas tropas de Napoleão e o seu bombardeio pelos navios da Inglaterra, formam-se na Corte dois partidos, o pro-França e o pro-Inglaterra. O rei vacila e, em sua vacilação, pela primeira vez tem consciência do que o Brasil se tornou em três séculos: o mais precioso bem de sua coroa, e, já há muito, não mais uma simples colônia. Pressente que de futuro designar o Brasil como seu, talvez represente mais riqueza, poder e posição no mundo, do que designar Portugal como seu; pela primeira vez o Brasil no prato da balança pesa tanto quanto Portugal.

À última hora a casa de Bragança, quando Napoleão, em 1807, apresenta o ultimatum para que Portugal diga se quer ser a favor dele ou contra ele, toma a decisão: é preferível renunciar a Lisboa, é preferível perder Portugal inteiro a perder o Brasil. Quando Junot, em marchas aceleradas, chega às portas de Lisboa, a Família Real embarca apressadamente com quinze mil pessoas, toda a nobreza, a magistratura, o clero, os generais — last not least — duzentos milhões de cruzados e, sob a proteção da frota inglesa, atravessa o Atlântico. É preciso um desconcerto mundial para que pela primeira vez em três séculos um membro da casa de Bragança pise o solo do Brasil, e quem o faz é o próprio rei de Portugal.

O vice-rei e o mordomo sentem-se em sérias dificuldades. O Rio não tem palácios, não tem acomodações e leitos suficientes para receber tão grandes hóspedes e uma corte tão numerosa. Mas o povo, cheio de entusiasmo, recebe o monarca e com gritos de júbilo o aclama “imperador do Brasil”, pois instintivamente sente que um soberano que, como fugitivo, procura proteção neste país, não poderá de futuro tratá-lo como colônia. De fato, pouco após a chegada do rei, caem as barreiras restritivas. Antes de tudo abrem-se os portos ao comércio mundial, dá-se ilimitada liberdade à produção industrial, cria-se um banco, o Banco do Brasil, criam-se ministérios, monta-se uma imprensa real, pela primeira vez é permitida no país, até então amordaçado, a publicação de um jornal. Surge uma série de institutos que fazem do Rio uma verdadeira capital, academias, museus e um jardim botânico. Mas só em 1815 se estabelece afinal a completa igualdade de direitos dos reinos unidos: Portugal e o Brasil, outrora senhor e servo, são agora irmãos. O que, num decênio antes, nem poderia imaginar-se, e aliás não poderia ser conseguido em séculos pela sabedoria de estadistas, foi obtido em brevíssimo prazo pela personalidade de Napoleão, transformadora do mundo. Por esse evento feliz — as catástrofes de Portugal, nunca é demais repeti-lo, foram sempre eventos felizes para o Brasil — a guerra de independência, que, durante anos, assolou os Estados Unidos da América do Norte, e que custou grandes perdas de sangue aos países da América do Sul, poupa a princípio este país privilegiado, e o Brasil pode calmamente aproveitar a época de intranqüilidade européia, a fim de lentamente consolidar suas fronteiras. Há muito tempo — em 1570 — foram declaradas sem valor as velhas restrições do Tratado, de Tordesilhas. O novo reino dilata-se muito para oeste, ao longo do curso do Amazonas; ao sul adquire-se o Rio Grande do Sul, ao norte a fronteira, que há muito era discutida, desloca-se até a Guiana, e a boa ocasião de estar a Europa ocupada com congressos seduz D. João VI, a, com um assalto repentino, apoderar-se de Montevidéu e anexar — aliás só por algum tempo — o Uruguai ao Brasil como Província Cisplatina. Com o século dezenove a configuração do Brasil está definitivamente estabelecida.

Esses anos da permanência da corte real no Brasil dão-lhe, além de vantagens políticas, vantagens morais extraordinárias. Desde que os jesuítas, no tempo do Marquês de Pombal, foram expulsos do Brasil, sucede pela primeira vez que portugueses de classe culta, eruditos, sábios, fixam residências na capital do país. Revelando mui grande superioridade, o rei manda vir pesquisadores e pintores da França e da Áustria para fundar ou aumentar institutos. Só a partir dessa época possuímos verdadeiros quadros e gravuras do Rio, estudos científicos e descrições que podem ser lidas. O Brasil régio já não é a terra do exílio de outrora, desde que se tornou a terra do refúgio para o seu rei, e em poucos anos torna-se um centro de civilização que imita a européia, bem como a sede de uma corte brilhante e muito estimada. Nada mostra mais claramente a posição mundial desse país novo do que o fato de o imperador da Áustria, o homem mais poderoso da Europa depois da queda de Napoleão, não achar o sucessor ao trono deste reino, D. Pedro, demasiado pouco importante, para lhe conceder como esposa uma irmã de Maria Luiza, sua filha Leopoldina, que foi recebida no Rio com as maiores festas. Se D. João VI pudesse seguir sua própria inclinação, permaneceria o resto da vida no Brasil, cuja beleza e futuro valor em pouco tempo se tornaram patentes a ele, bem como a todos os seus. Mas o seu Portugal, depois que Napoleão da deserta ilha de Santa Helena não pode mais inquietar a Europa, exige ciumento o seu legitimo rei. D. João VI correrá o perigo de perder o trono dos seus antepassados, caso não obedeça ao chamado, que se torna cada vez mais imperativo. Vai adiando sempre a partida, mas afinal não mais é possível fazê-lo: em 1821 regressa a Lisboa, após ter instituído seu substituto no Brasil, o herdeiro do trono, D. Pedro.

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D. João VI residiu doze anos no Brasil, tempo suficiente para reconhecer quão forte, quão voluntarioso, quão nacional o país se tornara com o novo século; no seu íntimo não consegue libertar-se inteiramente do mau pressentimento de que uma união de dois países que distam um do outro três mil milhas, não poderá manter-se sempre. Em vista disso, dá a seu filho, D. Pedro, que ele instituiu defensor perpétuo do Brasil, o conselho de, no caso de necessidade, pôr na própria cabeça a coroa do Brasil antes que qualquer aventureiro dela se apodere. Com efeito, a partida do rei acelera um movimento nacional que exige a independência e que o sucessor ao trono antes favorece do que impede. Após aparente oposição, o jovem ambicioso, levado pelo grande e patriótico José Bonifácio de Andrada e Silva, o primeiro estadista verdadeiramente brasileiro, que, com grande superioridade, sabe aproveitar a ambição do sucessor ao trono, em 7 de setembro de 1822, proclama a independência do Brasil. A 12 de outubro do mesmo ano o defensor perpétuo é aclamado imperador do Brasil com o título de Pedro I, após haver jurado governar o país, não como soberano autocrata, mas sim como príncipe constitucional. Após pequenas lutas, em parte com tropas portuguesas que se mantêm fieis à metrópole, em parte com movimentos revolucionários, é estabelecida a calma exterior no país; a calma interior, porém, é mais difícil de conseguir. O sentimento brasileiro de independência, inebriado por êxitos rápidos e inesperados, quer ainda triunfos mais evidentes. A opinião nacional não sente que esse seu primeiro imperador seja o verdadeiro, o realmente brasileiro; o povo não pode perdoar a Pedro I ser ele português nato, e a suspeita de que este, após a morte do pai, tentaria unir as duas coroas, não quer emudecer. Mais romântico que realista, corajoso, mas em demasia ocupado com questões amorosas e expondo a corte ao arbítrio de sua amante, a Marquesa de Santos, Pedro I, não sabe fazer-se estimado pelo seu povo.

É a guerra desastrada contra a Argentina, na qual o Brasil perde a sua Província Cisplatina, o que dá o abalo decisivo. Considerado do ponto de vista histórico, o êxito dessa guerra representa antes uma vantagem política; pela criação dum Uruguai independente afasta-se de uma vez para sempre todo conflito entre as duas nações irmãs, o Brasil e a Argentina, e ele é substituído por duradoura amizade. Mas em 1828 o Brasil só pensa na perda da foz do Rio da Prata, essa foz que o país há anos ardentemente procura conseguir, e o imperador não pode deixar de sentir esse descontentamento. De nada vale a D. Pedro I o fato de, em 1830, após a morte de D. João VI, recusar ele a coroa de Portugal, que por direito lhe cabe, e com isso fazer ver que inequivocamente se decidiu pelo Brasil; ele continua a ser aqui o estrangeiro, e cada vez mais se organizam contra ele os elementos nacionais. A Revolução Francesa de julho o faz perder o resto de popularidade, pois tudo o que é francês seduz os parlamentares brasileiros, que em seus discursos, leis e debates, estão habituados a imitar o modelo francês, e a cópia do que é francês chega ao ponto de políticos brasileiros importantes se chamarem Lafayette e Benjamin Constant. Só resignação oportuna do imperador, que não goza da estima do povo, pode ainda salvar o trono contra o assalto republicano, e por isso D. Pedro I em 1831 abdica em favor de seu filho, com o exato reconhecimento da situação: “Meu filho tem sobre mim a vantagem de ser brasileiro”. Também nessa abdicação novamente a tradição brasileira é felizmente garantida: realizar revoltas políticas tanto quanto possível sem derramamento de sangue e de modo conciliador. Calmo, sem ser perseguido pelo ódio, o primeiro imperador do Brasil deixa o país.

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O novo imperador, D. Pedro II, “o imperador menino”, pelo sangue um Habsburgo e um Bragança, tem cinco anos de idade por ocasião da abdicação de seu pai. José Bonifácio assume a tutoria, e então à frente e atrás dos bastidores se originam uma politicagem e uma intrigalhada desenfreadas. Para o Brasil, que durante três séculos esteve dependente e tutelado, os direitos parlamentares e a liberdade da imprensa são coisas demasiado novas, para que todos não se embriaguem com elas. Os debates não cessam, a atmosfera política permanece constantemente em alta tensão, por simples gosto de discursar e de fazer política — na realidade sem motivo externo. Um partido trabalha pela instituição duma república, outro procura apressar a coroação de Pedro II, entre eles campeiam as intrigas pessoais. Nenhum governo, nenhum partido parece verdadeiramente estável. Em sete anos quatro vezes é mudado o regente, até que afinal o partido conservador, a fim de obter certa calma, em 1840, consegue a declaração de maioridade de Pedro II. Com quinze anos o imperador menino foi solenemente coroado imperador do Brasil a 18 de julho de 1841.

Quão pouca é a confiança que inspiram ao mundo as constantes rixas e contendas dos políticos sulamericanos, mostra-o a recepção fria que tem o embaixador secreto do Brasil enviado à Europa, logo após a ascensão de Pedro II ao trono, a fim de procurar para o jovem imperador uma esposa que seja princesa. Em primeiro lugar dirige-se ele a Viena, aos Habsburgos, os parentes mais próximos do jovem imperador. Mas, ao passo que outrora sem hesitação foi dada a seu pai, D. Pedro I, uma arquiduquesa, da provisão sempre abundante da Família Imperial, dessa vez o onipotente chanceler Metternich permanece frio e em atitude expectante. Os países da América do Sul, pela instabilidade de seus governos, pelas constantes rebeliões de generais ambiciosos e de políticos apaixonados, perderam muito de seu crédito na Europa. Em 1841 já não se pensa em enviar uma arquiduquesa, através do Atlântico agitado, para um país ainda mais agitado, e, mesmo entre as princesas de menor categoria, nenhuma mostra inclinação, por essa coroa ultramarina. Depois de em vão haver andado, um ano inteiro, pelas antecâmaras em Viena, o mediador tem que se dar por satisfeito com obter para o jovem monarca uma princesa napolitana com pouca beleza e pouco dinheiro, mas, em compensação, mais rica de anos que seu futuro esposo.

Mas dessa vez, como tão freqüentemente ocorre, os políticos profissionais enganaram-se nos seus prognósticos; esse jovem monarca governará pacificamente durante quase meio século, e com dignidade e com a consideração geral, sustentará uma posição difícil de ser mantida. Pedro II é uma natureza contemplativa; é mais um erudito ou um bibliófilo sagaz preso a um trono, do que um político ou um militar. Um verdadeiro humanista de bons sentimentos, para cuja ambição é maior ventura receber uma carta de Manzoni, Vitor Hugo ou Pasteur, do que brilhar em paradas militares ou conseguir triunfos pelas armas. Apesar de, pela sua bela barba e sua aparência cheia de dignidade, causar muito boa impressão, procura ele aparecer o menos possível e passa suas horas mais felizes em Petrópolis junto de suas flores, ou na Europa entre livros e nos museus. Sua atitude pessoal é conciliadora, e, com ela, atua ele absolutamente de acordo com o seu país; a guerra única que em seu longo reinado é obrigado a empreender, a campanha contra Lopez, o agressivo ditador militar do Paraguai, termina, após a vitória do Brasil, com uma completa reconciliação do país vizinho: até os troféus militares são espontaneamente devolvidos à nação vencida. Pela atitude exterior imponente e pela atitude interior prudentemente incolor e fria do imperador, pela superioridade política de seus estadistas, que procuram resolver todos os conflitos de fronteiras por meio de arbitragem e convenções internacionais, pela riqueza visivelmente crescente do país, o qual, ao invés de dilatar pela força os seus limites, procura obter uma consolidação interna, consegue o Brasil nesses cinqüenta anos de reinado de D. Pedro II uma posição respeitável inteiramente nova no mundo.

Um único conflito não é possível resolver em todos esses anos, porque chega até o nervo vital do país, e uma operação demasiado radical implicaria uma incalculável perda de forças e de sangue: é o problema da escravatura. Desde o começo toda a produção agrícola e industrial do Brasil baseia-se exclusivamente no trabalho dos escravos; o país ainda não possui bastantes máquinas nem trabalhadores livres para substituírem esses milhões de mãos pretas. Mas doutra parte, sobretudo desde a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, — de problema social, a questão dos escravos tornou-se problema moral, que oprime a consciência da nação inteira. Com efeito, desde 1851 — oficialmente já desde 1810, por meio dum acordo com a Inglaterra — está proibida toda importação de negros, e com isso proibido está propriamente o tráfico de escravos; em 1871 é completada a lei de proteção, pela lei do “ventre livre”, em virtude da qual a todo filho duma escrava está garantida a liberdade já desde a vida intra-uterina. Por essas duas leis o problema da escravatura praticamente, na verdade, seria apenas uma questão de tempo e não mais de princípio, porque todo aumento do número de escravos — estava impedido e com a morte dos existentes em breve só teria que haver seres humanos livres no Brasil. Mas na realidade nem os importadores de escravos nem os proprietários de plantações longínquas absolutamente fazem caso dessas leis. Quinze anos após a proibição do tráfico de escravos, são importados em 1846 ainda cinqüenta mil negros, em 1847 cinqüenta e sete mil, em 1848 sessenta mil, e, porque o poderoso grupo desses comerciantes de “marfim preto” zomba de todos os acordos internacionais, vê-se o governo inglês forçado a armar canhoneiras, a fim de capturar os navios com o criminoso carregamento. De ano para ano o problema da escravidão se torna o centro da discussão, cada vez mais forte se torna a pressão dos grupos liberais para de uma vez acabar com a “negra ignomínia”, mas, no mesmo grau, ou talvez em grau ainda maior, cresce a resistência dos círculos agrícolas, que, não sem razão, temem que uma medida tão súbita cause uma crise catastrófica ao país, de cuja economia nove décimos assentam no trabalho de escravos. Para o imperador esse problema cada vez mais se torna um conflito pessoal. Como intelectual, como liberal e democrata, como natureza sentimental, embora um pouco habsburguêsmente fria, não pode o imperador deixar de ver com horror a escravidão. Claramente revela sua aversão contra todos os que tratam desse comércio infame, recusando tenazmente conceder um título de nobreza ou uma condecoração a qualquer indivíduo, mesmo ao mais rico, que haja feito sua fortuna com o tráfico de escravos. É para esse homem culto imensamente penoso, em suas visitas à Europa, ante os grandes representantes da humanidade, cuja estima procura, ante um Pasteur, um Charcot, um Lamartine, um Vitor Hugo, um Wagner, um Nietzsche, ser considerado o soberano do único império que ainda tolera para os escravos o chicote e o ferreteamento. Mas ele por muito tempo tem que conter essa sua aversão e evitar toda intervenção nesse problema, consoante as palavras do delírio do Visconde de Rio Branco, no seu leito de morte; “Não perturbem a marcha do elemento servil”, consoantes as palavras de um estadista que queria ver esse problema resolvido de maneira brasileira, isto é, não radical. As conseqüências são de antemão incalculáveis; a oposição apaixonada entre os abolicionistas e os escravocratas é tão inexorável que o trono só se pode conservar como que numa situação de balanço entre os dois partidos, porque o pender para um ou para o outro grupo poderia implicar a sua queda. Por isso, até 1884, durante mais de quarenta anos, o imperador contém o mais possível sua opinião, que, particularmente, é bem conhecida, sobre a questão; uma lei provisória em 1855 determina a libertação de todo escravo, desde que o mesmo haja atingido sessenta anos de idade; com isso dá-se mais um empurrão para frente. Mas o espaço de tempo que automaticamente levou à libertação dos últimos escravos no Brasil, é maior do que aquele que é dado a um velho já enfermo, que ainda quer viver essa hora; por isso D. Pedro II, de acordo com sua filha, a Princesa Isabel, a herdeira do trono, apoia, cada vez mais visivelmente, o partido dos abolicionistas. A 13 de maio de 1888 afinal é assinada a lei, longamente desejada, que decreta definitivamente a imediata libertação de todos os escravos no Brasil.

Por pouco que o velho, imperador não ficou sem nunca saber da realização do seu ambicionado desejo. Nos dias em que o júbilo pela notícia da abolição da escravatura enche as ruas do Rio de Janeiro, D.

Pedro II está gravemente enfermo e em perigo de vida num hotel de Milão. Em abril, com seu habitual desejo de aprender, visitou os museus e os sábios da Itália; esteve em Pompéia e em Capri, em Florença e em Bolonha, andou na Academia de Veneza examinando quadro por quadro e à noite ouviu no teatro Eleonora Duse e recebeu Carlos Gomes, o compositor brasileiro. Um grave pleuriz prosta-o então no leito. Charcot e três outros médicos tratam-no, mas o estado do imperador agrava-se de tal modo que lhe são ministrados os últimos sacramentos. Melhor do que todos os medicamentos e recursos atua nele a notícia da abolição da escravatura. O telegrama dá-lhes novas forças e em Aix-les-Bains e Cannes restabelece-se o imperador a tal ponto que, passados alguns meses, pode pensar em regressar à pátria.

A recepção do velho monarca de barbas brancas, que há quase cinqüenta anos pacífica e dignamente reina no país, é entusiástica no Rio. Mas o ruído de apenas uma rua não exprime a opinião geral dum povo. Na realidade a solução dada ao problema da escravidão criou mais agitação do que anteriormente a luta dos partidos, pois, ainda mais séria do que a haviam prevista os cautelosos, surge a crise econômica. Muitos ex-escravos vão para as cidades, as empresas agrícolas, que de repente são privadas de seus obreiros, caem em dificuldades, e os ex-proprietários de escravos sentem-se lesados, porque não lhes são pagas indenizações, ou indenizações suficientes, pela sua perda de capital empatado em “marfim preto”. Os políticos, que sentem as coisas irem mal, não sabem como resolver a situação, e as tendências republicanas, que no Brasil, desde a proclamação da independência dos Estados Unidos, sempre ardiam sob as cinzas, recebem inesperado alimento por meio dessa forte corrente de ar. O movimento não se dirige propriamente contra o imperador mesmo, cuja boa vontade, integridade e sentimento sinceramente democrático até os republicanos mais radicais não podem deixar de respeitar. Mas a D. Pedro II falta uma condição, e a mais importante, para se conservar uma dinastia: o imperador que então conta sessenta e cinco anos, não possui filho varão, não possui herdeiro masculino do trono. Dois filhos morreram pequenos, a filha está casada com um príncipe d’Eu, da casa de Orleans, e a consciência nacional brasileira já se tornou forte e ao mesmo tempo sensível para não querer um príncipe consorte de sangue estrangeiro. O golpe político propriamente parte do exército, dum grupo muito pequeno, e com uma enérgica resistência provavelmente seria reprimido com facilidade. Mas o próprio imperador, velho e enfermo, e realmente, já há muito tempo, cansado de reinar, recebe em Petrópolis a notícia, sem verdadeira vontade de resistir. Nada pode ser mais odioso à sua natureza conciliadora do que uma guerra civil. Como nem ele nem seu genro revelam rápida decisão, o partido monarquista cai de repente. Quase sem ruído rola por terra a coroa imperial; também dessa vez, em que ela se perde, não é manchada de sangue, como quando foi adquirida; o verdadeiro vencedor moral é novamente o espírito brasileiro de conciliação. Sem qualquer odiosidade, o novo governo dá a entender ao ancião, que durante quase cinqüenta anos foi um bem intencionado soberano do país, que se retire em paz e vá para a Europa. Com nobreza e calma, sem uma palavra de queixa, D. Pedro II, a 17 de novembro de 1889, como outrora seu pai e seu avô, deixa para sempre o continente americano, que não tem lugar para monarcas.

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Desde então os Estados Unidos do Brasil constituem uma república federativa. Mas essa transformação de império em república realizou-se sem comoções intestinas, do mesmo modo que anteriormente a mudança do reino em império é nos nossos dias a ascensão de Getúlio Vargas à presidência; não são nunca as formas exteriores do Estado que determinam o espírito e a atitude dum povo, mas sim apenas o caráter ingênito da nação que, em última análise, lhe dá o aspecto histórico. Em todas as suas formas o Brasil, em essência, nunca se alterou, só se desenvolveu para constituir uma personalidade nacional cada vez mais forte e mais consciente de si própria. Na sua política, quer interna, quer externa, o Brasil inabalavelmente revelou sempre o mesmo método, porque refletia a alma de milhões e milhões: resolução pacífica de todos os conflitos, mediante conciliação recíproca. Nunca com sua própria construção perturbou a construção do mundo e sempre só fez concorrer para ela. Há mais de cem anos não dilata suas fronteiras, e entende-se bondosamente com todos os seus vizinhos; tem dirigido exclusivamente para dentro as suas forças sempre crescentes, tem aumentado constantemente sua população e sua economia e, sobretudo nos últimos dez anos, se tem adaptado, por meio de mais segura organização, ao ritmo da época. Prodigiosamente favorecido pela natureza com território e com infinitas riquezas dentro deste, dotado de beleza e de todas as imagináveis forças potenciais, continua o Brasil sempre com o velho problema de seus primeiros tempos: radicar em seu inexaurível solo entes humanos de zonas superpovoadas e, unindo o velho ao novo, criar uma civilização também nova. Ainda após quatrocentos e quarenta anos, seu desenvolvimento se está incrementando, e nenhuma fantasia é suficiente para imaginar o que esta terra, este mundo, será para a futura geração. Quem quer que hoje descreva o Brasil, inconscientemente já descreve o seu ontem. Só quem simultaneamente considera o futuro do Brasil, vê o seu verdadeiro valor.


 

ECONOMIA

 

O Brasil, cuja superfície é, sem comparação, a maior da América do Sul, e tem uma área superior até à dos Estados Unidos da América do Norte, é hoje uma das mais importantes, talvez a mais importante, reserva do mundo para o futuro. Existe nele imensa riqueza de solo, que ainda não conheceu cultivo, e no seu subsolo há minérios e tesouros que absolutamente não são explorados e quase nem estão descobertos. Há nele possibilidade de viver um número de habitantes que um fantasista talvez calcule melhor do que um estatístico. Já a diversidade de resultados dos cálculos feitos para saber se este país, que hoje conta cinqüenta milhões de habitantes, poderia comportar quinhentos, setecentos ou novecentos milhões, sem que a densidade fosse superior à normal, fornece uma base para se avaliar o que o Brasil poderia ser daqui a um século, talvez já daqui a alguns decênios, no nosso cosmo. Subscreve-se de bom grado a breve afirmativa de James Bryce: “Nenhum grande país do mundo que pertença a uma raça européia possui semelhante abundância de solo para o desenvolvimento da existência humana e de uma indústria produtiva”.

Com a forma de uma harpa gigantesca, desenhando, de maneira curiosa, com sua linha de contorno exatamente o contorno da América do Sul inteira, este país possui terras montanhosas, litoral, planícies, florestas, sistemas fluviais e é fértil em quase todas as suas zonas. Seu clima reúne todas as transições do tropical para o subtropical e para o temperado; sua atmosfera é úmida aqui e seca acolá, marítima na periferia e já alpina no interior; zonas pouco chuvosas alternam-se com outras muito chuvosas, e, com isso, oferecem-se possibilidades para a mais variada vegetação. O Brasil possui os mais caudalosos rios do mundo ou lhes fornece águas, o Amazonas e o Rio da Prata; suas montanhas lembram, em algumas regiões, os Alpes e se elevam, como o Itatiaia, que tem três mil metros de altura e é a mais alta montanha do Brasil, a regiões nevosas. Suas grandes quedas d’água, a de Iguassú e a das Sete-Quedas, suplantam em força a do Niágara, apenas incomparavelmente mais célebre, e estão entre as maiores reservas hidráulicas do mundo; suas cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, ainda em pleno crescimento fantástico, já podem rivalizar com as européias em luxo e beleza. Todas as formas de paisagens do Brasil variam ante o olhar, sempre de novo fascinado; a diversidade de sua fauna e flora há séculos fornece aos estudiosos sempre novas surpresas: só a lista de suas espécies de aves enche volumes inteiros de catálogos, e toda nova expedição descobre centenas de outras espécies. Só o futuro desvendará o que de possibilidades latentes, de minerais, existe no solo. Só uma coisa é certa, é que os maiores depósitos de ferro do mundo, ainda intactos e só eles já suficientes para abastecer durante séculos todo o globo terrestre, aqui se acham; no aspecto geológico dificilmente falta a este possante país uma espécie de minério, de rocha, ou espécie vegetal. Por muito que nos últimos anos se tenha feito por uma primeira inspeção geral para verificar o que o Brasil possui, a verdadeira verificação e avaliação aqui estão ainda no começo e até antes do começo decisivo. Por isso se tem de repetir sempre que este enorme país, graças ao fato de não estar gasto e graças à sua vastidão, representa hoje para o globo terrestre, em muitas partes, já fatigado e esgotado, umas das maiores esperanças e talvez até a mais justificada.

A primeira impressão que dá este país é a duma opulência perturbadora. Tudo é intenso, o sol, a luz, as cores. O azul do céu é aqui mais vivo, o verde é mais carregado, a terra é compacta e vermelha; nenhum pintor poderá encontrar em sua paleta tons de cor mais deslumbrantes, mais irisados do que os que aqui têm as aves em sua plumagem, as borboletas em suas asas. A natureza alcança sempre o seu superlativo: nas trovoadas, que com estrondosos relâmpagos rasgam o firmamento; nas chuvas, que se precipitam como catadupas, e na vegetação, que em alguns meses pulula, formando intenso matagal verde. Mas também o solo intacto desde séculos e milênios responde aqui a todo apelo com uma energia quase incrível. Se nos lembramos do trabalho, do esforço, da habilidade, da tenacidade a que na Europa temos de recorrer para conseguir, dum jardim, ou dum agro, flores ou frutos, ficamos surpresos de encontrar aqui uma vegetação que, ao contrário, temos que conter para que se não desenvolva demasiado impetuosa, demasiado violentamente. Aqui não temos que favorecer o crescimento e sim lutar contra ele, a fim de que em sua bárbara impetuosidade não sufoque o que é plantado pela mão do homem. Espontaneamente e sem trato crescem aqui os vegetais que dão à maior parte da população o alimento, a banana, a manga, a mandioca, o abacaxi. E toda nova planta frutífera, todo novo vegetal, trazido doutro continente para aqui, imediatamente se adapta a este húmus virgem.

A impetuosidade com que esta terra responde a todas experiências que nela se tentam, de maneira paradoxal, várias vezes em sua história econômica, até se transformou em perigo. Aqui se originaram com seqüência quase regular crises de superprodução, unicamente porque tudo corria demasiado rápido e fácil; o Brasil, logo que começava a produzir alguma coisa, tinha sempre de conter-se para não produzir demais. O lançamento do café ao mar ou ao fogo no século vinte é o último exemplo disso. Por isso a história econômica do Brasil está cheia de mudanças surpreendentes, e talvez até mais dramáticas do que as de sua história política. Via de regra, o caráter econômico dum país é, desde o começo, inequivocamente determinado; cada país como que toca um único instrumento e a euritmia não se altera essencialmente no correr dos séculos. Este é um país de jardins, aquele tira sua riqueza de madeiras ou de minérios, aqueloutro a obtém da criação de gado. A linha da produção pode oscilar em diferentes ascensões e descidas, mas de um modo geral a direção permanece a mesma. O Brasil, ao contrário, é o país das constantes transformações. e das súbitas mudanças. Verdadeiramente cada século teve aqui característica econômica diversa e, no desenvolver-se do drama, cada ato tem o nome de um produto: açúcar, ouro, café, borracha, algodão ou madeira. Em cada século, propriamente em cada meio século, o Brasil apresentou sempre outra nova surpresa de sua opulência.

Nos primeiros tempos, no século dezesseis, foi o pau-brasil que deu ao país a sua característica econômica e até o seu nome definitivo. Quando os primeiros navios aportaram a esta costa, a princípio os europeus tiveram grande decepção. Nada encontraram para recolher e levar; o Brasil para eles nada tinha senão sua natureza, uma natureza exuberante, vigorosa, anárquica, que ainda não se submetera ao homem. “Nem ouro, nem prata”, essa fórmula breve da primeira notícia bastou para, a princípio, reduzir a zero o valor comercial da nova terra. Nada era possível tomar dos aborígenes que, admirados, olhavam para os estranhos seres brancos e vestidos, porque nada possuíam além da própria pele e do próprio cabelo. Aqui, ao contrário do que se dera no Peru e no México, não havia, atuado uma civilização nacional que com fibras fazia tecidos, e que extraia das profundezas do solo metais, fabricando com eles adereços. Os canibais nus da Terra de Santa Cruz ainda não haviam chegado ao mais primitivo grau de civilização, não sabiam lavrar a terra, nem criar gado, e mal sabiam construir choças. Apanhavam e comiam o que encontravam nas árvores e n’água, plantavam apenas a mandioca e iam adiante logo que haviam consumido numa região tudo o que esta lhes podia fornecer. Mas de quem nada possui, nada se pode tirar; desiludidos voltaram os marinheiros para bordo, abandonando uma terra da qual não valia a pena levar coisa alguma, pois mesmo os seres humanos que nela existiam, não se apresentavam como artigo utilizável. Se fossem apanhados para escravos e postos a trabalhar, em sua maioria consumir-se-iam sob o chicote após algumas semanas, deitar-se-iam por terra e morreriam. Só o que aqueles primeiros navios levaram para o Velho Mundo foram alguns animais curiosos, alguns macaquinhos e aqueles maravilhosos papagaios multicores que as senhoras européias da alta sociedade mantinham em gaiolas como animais de luxo e por causa dos quais a nova terra às vezes também era denominada Terra dos Papagaios. Foi só na segunda viagem que se descobriu um produto que, em todo o caso, poderia compensar um comércio com esta terra longínqua, o pau-brasil. Esta madeira, que foi denominada pau-brasil, porque na superfície dum corte apresentava uma cor avermelhada, comparável a uma brasa, como madeira não era propriamente tão aproveitável quanto como corante. Mas como tal, porque então não se conheciam outros corantes, do mesmo modo que todo artigo exótico, era muito procurada no comércio.

O governo português está excessivamente ocupado para empreender uma exportação regular de pau-brasil. Para ele, que empenha todo o seu poder militar e marítimo em arrombar as tesourarias dos príncipes indús, o monopólio do pau-brasil é negócio demasiado pequeno e extremamente fatigante. O negócio entretanto é lucrativo. Com um quintal dessa madeira, que em Lisboa, com todas as despesas de transporte e riscos, vale meio ducado, podem obter-se nos mercados franceses ou nos holandeses dois e meio ou três ducados. Mas a Coroa necessita, para seus grandes e grandiosos empreendimentos, lucros rápidos. Por isso prefere, mediante pagamento à vista, arrendar o monopólio dessa madeira a um dos mais ricos cristãos novos, a Fernando de Noronha, que então com seus irmãos de crença refugiados organizam o comércio do pau-brasil em Pernambuco. Mas, mesmo dirigido por ele, esse tráfico permanece pequeno e de modo nenhum pode tornar-se um comércio que possa promover colonização regular e o estabelecimento de grandes feitorias. Um simples corante não é suficiente para dar impulso ao povoamento dessa terra longínqua. Se o Brasil deve desenvolver-se como fator de produção no mercado mundial, é preciso procurar um novo produto mais rendoso e o ciclo do pau-brasil tem que ser substituído por outro mais rápido e mais amplo.

Mas o Brasil — ou melhor a estreita faixa de litoral que já está explorada ainda não possui tal produto. A fim de se tornar fecundo para a economia européia, tem esta terra que ser primeiramente fecundada pela Europa. Tudo o que de plantas e produtos em suas zonas luxuriantes deve crescer e medrar, tem que primeiro ser aqui introduzido, e, além disso, há necessidade de um adubo especial, o homem. Desde a primeira hora de vida do Brasil o homem, o colono como elemento vivificador, fertilizante, revela ser a mais necessária de todas as necessidades. O que o Brasil deverá produzir dependerá do que lhe for enviado pela Europa. Mas tudo o que em plantas e energias humanas a Europa irá emprestar à nova terra, esta lhe restituirá com juros mil vezes maiores. Enquanto, pois, as terras do Oriente, que têm tesouros amontoados para se buscarem, para se roubarem, representam para Portugal um problema de conquista, o Brasil, ainda inteiramente inorganizado, constitui um problema de colonização, que requer empate de capitais.

Como primeira tentativa de transplantação e cultivo de um produto, os portugueses trazem de Cabo Verde a cana de açúcar. E imediatamente essa primeira experiência é de êxito completo — a natureza no Brasil realiza de modo exuberante todo trabalho que lhe é solicitado. A cana de açúcar constitui um produto absolutamente ideal para um país ainda inorganizado, porque seu plantio e aproveitamento requerem insignificantes trabalhos manuais e não exigem instrução preparatória. Mal acaba de ser plantada, a cana cresce aqui, sem exigir cuidados. dando um caule cuja grossura é de duas polegadas, e isso mais de uma vez por ano; com os métodos mais simples, mais fáceis, extrai-se dela o precioso suco. Basta colocar a cana entre dois cilindros de madeira, que dois escravos — pois um boi custaria muito dinheiro — põem em movimento por meio duma haste horizontal, e o infatigável andar à roda dos dois escravos faz girar os cilindros até que esteja extraída a última gota do caldo da cana. Esse líquido verdesujo, pegajoso, é então fervido demoradamente, para se evaporar a água, a reduzido a torrões e pães de açúcar; o bagaço é também aproveitado e as folhas, queimadas, fornecem cinza para adubar o solo. Esse primeiro e mais primitivo método de fabricação é aperfeiçoado em múltiplas tentativas; em breve são montados engenhos junto a cursos d’água, a fim de, em vez da energia humana, utilizar-se a hidráulica. Mas, sob todas as formas, a obtenção do açúcar permanece um processo dos mais cômodos e, além disso, o mais lucrativo que se possa imaginar. Com admirável rapidez o açúcar que esses escravos extraem das canas, se transforma em ouro. Na Europa, desde que, nas Cruzadas, teve ela o primeiro contacto com o civilizado e requintado mundo oriental, surgiu intensa avidez, de uma parte, para especiarias fortes, estimulantes e, doutra parte, para coisas doces e gulodices. Enriquecida pelo comércio florescente, a Europa. não quer mais alimentação espartanamente parca e monótona e procura prazeres mais requintados e mais variados para o paladar. O adoçamento fraco, que até então se fazia exclusivamente com mel de abelha, já não lhe basta. Desde que provou essa nova substância doce, o açúcar, com teimosia de criança exige ela cada vez maior quantidade desse alimento luculiano. E como ainda terão que se passar três séculos até que na época do bloqueio continental, irá ela obter açúcar da sua beterraba, tem ele que ser buscado nas zonas exóticas, como produto de luxo, e os negociantes, certos de uma freguesia sempre crescente, pagam qualquer preço por essa nova mercadoria. Dum momento para outro, o Brasil, então, se torna importante, no mercado mundial. Como as despesas dessa fabricação primitiva do açúcar são quase nulas, pois as terras e o plantio nada custam e os escravos nos engenhos são de todos os animais de trabalho os mais baratos, os lucros ascendem rapidamente e a riqueza que o Brasil — ou melhor, Portugal —, aufere dessa indústria, se torna imensa. De semana para semana cresce a produção; durante três séculos não mais se pode abalar o domínio e o monopólio do Brasil, nesse terreno; a que gigantescos valores a exportação afinal chega, mostra-o o exemplo de que em alguns anos o Brasil exporta açúcar na importância de três milhões de libras esterlinas, soma superior ao valor da exportação total da Inglaterra na mesma época. É só nos fins do século dezoito que os lucros começam a diminuir, porque o Brasil, por superprodução, estraga o preço de compra do seu “ouro branco”. Como aconteceu com todos os outros produtos coloniais, com a pimenta, com o chá, o que, a princípio, por ser raro é uma preciosidade, se torna, pela superprodução, uma coisa trivial. A introdução do açúcar de beterraba dá o último golpe no valor do açúcar de cana, mas o “ciclo” do açúcar desempenhou brilhantemente sua tarefa na história econômica do Brasil, e o ocaso do produto principal já se dá demasiado tarde para fazer periclitar a economia, que já se transferiu para outros produtos. Apoiado naquela frágil haste de cana que os primeiros navios trouxeram do Velho Mundo, o Brasil avançou ereto durante três séculos, para depois, sem esse apoio, prosseguir no seu caminho.

Dentro de pouco tempo, ao primeiro produto de exportação junta-se um segundo, em certo sentido, semelhante ao outro, porque igualmente serve a um novo vício europeu, o tabaco. Já Colombo vira os aborígenes fumarem e os outros navegadores levaram consigo para a pátria o singular hábito. Aos europeus o mascar e fumar umas folhas escuras e tomar às pitadas um pó feito das mesmas parecem a princípio um costume bárbaro. Zombam e desdenham dos marinheiros que mascam esses cilindros grossos e cospem o suco escuro e nojento. Riem-se como de loucos, dos poucos fumantes que com seus cachimbos de argila enchem de fumaça a atmosfera, e na boa sociedade, sobretudo nas cortes, reina rigorosa proibição de fumar. Não é por prazer ou por imitação que a Europa, de repente, se habitua ao fumo, mas sim por medo. Nos terríveis dias em que as grandes epidemias em rápida sucessão invadem e despovoam as mais diversas cidades da Europa, crêem muitos — porque em micróbios ainda não se pensa — proteger-se, da melhor maneira, contra o contágio, fumando constantemente e destruindo com um veneno o outro. Mas depois que as epidemias cessam e com elas termina o medo, as pessoas — de modo semelhante ao que aconteceu em relação ao conhaque, que a princípio só era usado como medicamento — pelo constante fumar já estão habituadas ao fumo e não querem dispensá-lo como não querem dispensar as bebidas. De ano para ano a Europa adquire quantidades cada vez maiores de tabaco, e para fornecê-las o Brasil se constitui grande fornecedor, pois o fumo cresce aqui como planta silvestre e as folhas do tabaco brasileiro são consideradas como da melhor qualidade. O fumo, como seu irmão, o açúcar, não exige minuciosos cuidados. Basta só arrancar as folhas do vegetal, que cresce sem exigir grande trato, secá-las, enrolá-las, e o que aqui quase nada vale, segue para bordo como artigo de grande valor.

O açúcar, o fumo e, em pequena escala, também o cacau, o terceiro objeto cobiçado pelo novo gosto europeu, são as colunas mestras que sustentam a economia do Brasil até o século dezoito. A eles junta-se, logo que a Europa aprendeu a fiar, o algodão, a quarta coluna mestra. O algodão desde o começo existia no Brasil, crescia como planta silvestre nas florestas do Amazonas e em outras regiões. Mas os aborígenes, ao contrário do que sucedia com os aztecas e peruanos, que eram mais civilizados, ainda não sabiam fiá-lo, somente na guerra empregavam eles os flocos de algodão em suas flechas, para com eles incendiar povoados inimigos, e na zona do Maranhão o algodão servia de meio de pagamento, o que é curioso. Ainda menos sabe a princípio a Europa o que fazer com ele; apesar de já Colombo levar alguns flocos de algodão para a Espanha, ninguém percebe a futura importância deste como matéria têxtil. No Brasil, porém, os jesuítas, certamente graças a informações provenientes do México, já em 1549 sabem para que serve o algodão e ensinam os aborígenes de suas aldeias a fiá-lo. Mas só graças à invenção das máquinas de fiação (1770-1773), com as quais se inicia a chamada “revolução industrial”, pode o algodão tornar-se verdadeiramente um artigo de grande comércio.

A partir do fim do século dezoito, sobretudo a Inglaterra, onde trabalham mais de um milhão de operários na indústria de tecelagem, tem necessidade para sua produção mundial de quantidades de algodão cada vez maiores e paga preços cada vez mais altos. Por isso, o algodão, que antes crescia como planta silvestre nas florestas do Brasil, agora é sistematicamente plantado neste país; já no começo do século dezenove o valor da exportação de algodão representa quase a metade do valor da exportação total do Brasil, e esse produto assegura o equilíbrio do comércio. A grande baixa do preço do açúcar é compensada por essa gigantesca exportação, numa dessas rápidas e felizes mudanças que são tão típicas da história econômica do Brasil.

Todos esses produtos, o açúcar, o fumo, o cacau e o algodão, são exportados como matéria prima; ainda será necessário longo desenvolvimento antes que o Brasil esteja bastante livre e bastante adiantado para uma indústria perfeita, organizada e mecanizada. Todo seu trabalho quase se limita à plantação, à colheita e ao embarque dos chamados “produtos coloniais”; limita-se, portanto, aos processos primitivos, que para sua execução nada precisam senão braços. Sem dúvida, muitos braços e baratos. Entes humanos são, pois, a matéria prima mais indispensável, que esta terra, riquíssima de todas as substâncias da natureza, tem que importar, em quantidades cada vez maiores. É talvez a mais curiosa particularidade da história econômica do Brasil o fato de, em cada uma das suas épocas econômicas, ter ele falta da melhor energia motora e ter que importá-la — nos primeiros séculos, o braço humano, no século dezenove, o carvão e, no atual, o petróleo. É natural que naqueles primeiros anos procurasse a energia motora mais barata. A princípio, esforçam-se os colonos por escravizar os aborígenes; como esses, em virtude de sua constituição um tanto franzina, se revelam fracos para o trabalho e os jesuítas constantemente chamam a atenção para os editos régios, relativos à proteção da população aborígene, a partir de 1549 inicia-se uma importação regular de “marfim preto”, da África. Em horrendos navios, denominados “tumbeiros”, porque neles sempre a metade dos negros encurralados e acorrentados morrem durante a viagem, cada mês e, pouco depois, cada semana são embarcados para aqui carregamentos dessa matéria prima viva. Em três séculos o Brasil recebe, no mínimo, mais de três dos dez milhões de escravos que o novo continente importa da África, deste modo saqueada e despovoada. Nunca mais será possível saber exatamente os números certos (calculam alguns que o total de negros importados orce por muito mais milhões), porque Rui Barbosa, em 1890, a fim de abolir essa ignomínia, num gesto de nobreza, ordenou que fossem queimados os documentos existentes nos arquivos, relativos à escravidão.

O tráfico de escravos é durante muito tempo no Brasil considerado não como o mais honrado, mas sim como o mais rendoso negócio; financiado por Londres e Lisboa, fornece ao fretador bem como ao vendedor lucro seguro, graças à necessidade, sempre crescente, de escravos. A princípio o escravo negro, que, em média, é vendido pelo preço de cinqüenta a trezentos mil réis no mercado da Bahia, parece ser relativamente caro, em comparação com o escravo aborígene, que tem apenas a cotação de quatro a setenta mil réis, no máximo. Mas no preço de um ossudo negro do Senegal ou da Guiné devem incluir-se as despesas de frete, os prejuízos de mercadoria avariada na triagem e lançada ao mar, o enorme lucro dos caçadores de escravos, dos tanganhões e dos capitães e, além disso, o imposto de importação de três a três mil e quinhentos réis, que o cristianíssimo rei de Portugal, nesse negócio escuro, faz arrecadar por cabeça, imediatamente na alfândega. Para o fazendeiro a aquisição de negros é tão indispensável como a de enxadas e de pás. Um negro robusto, se, de quando em quando, recebe uma boa chicotada, trabalha doze horas, sem remuneração; além disso, o capital empatado na aquisição de negros também rende juros, pois o próprio escravo em suas poucas horas de descanso aumenta as posses do senhor pelos filhos que procria é que, naturalmente, pertencem a este; um casal de negros adquirido no século dezesseis produz para a família do seu senhor em dois ou três séculos uma geração inteira de escravos. Esses escravos representam a energia motora, e, como o próprio, solo nesta terra vastíssima quase nada custa, mede-se a riqueza dum proprietário de plantações pelo número de negros, tal-qualmente nos tempos feudais da Rússia Se calculavam as posses dum proprietário, não pela quantidade de suas terras, mas sim pelo número de “almas” que possuía. Até boa parte do século dezenove os escravos, cujo número cresce sempre, suportam todo o peso da produção colonial, ao passo que os portugueses apenas como empresários, empregados ou inspetores, vigiam e dirigem o movimento constante das máquinas de trabalho, mantidas em atividade por milhões de braços pretos.

Essa separação demasiado rigorosa da população em preta e branca, em senhores e escravos, é desde o começo perigosa e, se não fosse a ação contrária compensadora produzida pela colonização iniciada no interior do país, inevitavelmente comprometeria a unidade do Brasil. Demais, nos primeiros tempos o vasto território ainda não tem equilíbrio estático, pois no primeiro século e em grande parte do segundo se reúne no norte toda a energia ativa e, por isso, para ali, se dá todo afluxo de homens. Para o mundo de então a zona tropical do Brasil, muito ao contrário do que ocorre hoje, representava a verdadeira tesouraria; ali se concentrou a atividade econômica até que a primeira e sôfrega avidez da Europa por produtos coloniais se satisfez. A Bahia, Recife, Olinda, de simples lugares de baldeação desenvolvem-se para constituírem verdadeiras cidades e constróem igrejas e palácios numa época em que no interior só vão surgindo tímidas choças e igrejas de madeira. Ali descarregam ou carregam, sem cessar, navios europeus; ali chega constantemente a matéria prima constituída pelos escravos negros, ali nove décimos da totalidade dos gêneros coloniais são acondicionados e embarcados, ali se instalam os primeiros escritórios, e os engenhos e as plantações se agrupam perto dessas cidades, para maior facilidade dos transportes. Quem em 1600, 1650 e ainda por volta de 1700 pronuncia na Europa o nome Brasil, com ele não quer dizer senão o norte e, neste, propriamente apenas o litoral, com as suas cidades marítimas já mundialmente conhecidas, com o seu açúcar, o seu cacau, o seu fumo, o seu comércio. Ainda ninguém na Europa, nem mesmo o rei de Portugal, faz idéia de que entrementes no interior — invisível à curiosidade dos navegantes e dos comerciantes, por causa da cadeia de altas montanhas — se iniciou um desenvolvimento, no ponto de vista comercial, talvez menos rendoso, mas incomparavelmente mais seguro. Essa colonização do país por seus habitantes indígenas, metódica e promovida com diligência tenaz e sistemática é o grande feito dos jesuítas no Brasil. Com uma previsão que antecedeu de séculos a dos funcionários fiscais da Coroa e a dos intermediários, para os quais só é lucro o que rapidamente se pode transformar em dinheiro, os jesuítas reconheceram clarividentemente que a base econômica não pode assentar de modo definitivo sobre as conjunturas incertas de alguns artigos de monopólio e nem apenas sobre o trabalho de escravos comprados; um país que quer fazer-se, tem que primeiro aprender a amanhar a terra e senti-la como sua. A grandeza desse empreendimento só pode ser convenientemente considerada por duas faces: pelo seu começo do nada e pelo seu resultado definitivo, hoje patente aos olhos do mundo. Só da forma primitiva milenária e eterna da agricultura e criação de gado poderia desenvolver-se uma economia nacional sólida; o fato de precisamente as tribos ainda inteiramente nômades poderem ser educadas para esse trabalho mais necessário constitui, no sentido ético, o verdadeiro começo da nação brasileira.

Esse trabalho começa em zero. Quando Nóbrega e Anchieta chegam ao país, há o solo, que ninguém amanha, há os aborígenes, que ainda não sabem amanhá-lo, mas faltam as forças unitivas. Há falta de tudo, tudo tem que vir do Velho Mundo, toda cabeça de gado, toda vaca, todo boi, todo porco, todo martelo, toda serra, todo prego, todo enxadão, todo ancinho e, além disso, as plantas e as sementes, e só depois tem que se ensinar com muita fadiga a esses entes nus e pueris como arar, como colher, como fazer estábulos para o gado e como tratar este. Antes que possam convenientemente ensiná-los a ser cristãos, têm os jesuítas que ensinar-lhes o trabalho e, antes de incutir-lhes as noções fundamentais da religião, têm que lhes incutir a vontade de trabalhar. O que para os jesuítas, antes de para aqui embarcarem, era um plano espiritual grandioso, transforma-se num modesto e fatigante trabalho de paciência, que só a força disciplinada de homens que juraram consagrar toda a sua vida a uma idéia, consegue realizar: a civilização do homem pelo cultivo da terra. Nada do que esses primeiros mestres trazem consigo da Europa, livros, medicamentos, utensílios, plantas e animais, é de tanta força vivificadora e tônica para o desenvolvimento do país, quanto a energia rígida, ao mesmo tempo, ardente desse punhado de homens. Rapidamente, como tudo no Brasil, crescem e desenvolvem-se as primeiras aldeias, esses povoados novos, e com justo orgulho podem os jesuítas em breve dizer em suas cartas com que felicidade se realizou essa união, a união do solo com o homem, e o cruzamento de brancos com aborígenes para produzir uma geração nova e ativa. Os padres crêem já que sua obra foi bem sucedida; São Paulo, primeiro a cidade e depois a província, povoa-se; vão surgindo aldeias mais e mais. afastadas do litoral. Mas verdadeira conquista do território não vai dar-se pela via tranqüila, pacífica é metódica que eles prevêem, mas sim por outra via.

A História quando quer realizar uma idéia gosta sempre de afastar-se do plano que o homem traçou,. e de seguir o seu próprio caminho, e assim ocorre também dessa vez. Os jesuítas estabeleceram no solo uma nova geração para que ela o lavre. Mas já a nova geração dos mamelucos transpõe sôfrega as fronteiras que os pios sacerdotes lhe traçaram. Ainda vive no seu sangue o gosto pela vida nômade de seus avós indígenas e também a ferocidade desenfreada dos primeiros colonos. Por que lavrarmos nós próprios o solo, ao invés de fazermos escravos lavrá-lo? Em breve os semi-escuros tornam-se os piores inimigos dos escuros; os filhos dos aborígenes, cujos país os jesuítas salvaram da escravidão, fazem-se os mais terríveis traficantes de escravos, e precisamente em São Paulo, que os jesuítas sonharam ser um lugar de pureza de costumes e unidade espiritual, surge a nova geração dos conquistadores, os paulistas, que em breve se tornam os mais encarniçados inimigos dos jesuítas e dos seus esforços colonizadores. Formando uma tropa guerreira, esses bandeirantes, que de modo curioso se assemelham aos caçadores de escravos africanos, percorrem em suas entradas o território, destroem os povoados, roubam escravos, não só das florestas, mas também das aldeias, e realizam, apenas mais rápida, brutal e violentamente, o princípio jesuítico da progressão radiada, em- todas as direções. De cada uma dessas excursões destruidoras, alguns paulistas ficam nas encruzilhadas, formam-se povoações e até cidades por trás das tropas salteadoras, que regressam com milhares de escravos. O sul fértil começa a ser ocupado por homens e gado; ao lado do homem, mais indolente e mais comodista, do litoral, constitui-se o tipo do vaqueiro e do sertanista, o homem do interior, o homem com uma verdadeira pátria. A primeira das grandes migrações para o interior com sua ação equilibrada e unitiva dá-se, em parte, graças ao plano dos jesuítas em parte, graças à cobiça dos paulistas; o bem e o mal colaboram numa obra comum, com aparente antagonismo, mas na realidade com a mais profunda união. No século dezessete a agricultura e a criação de gado no interior já constituem um contrapeso salutar ao mundo tropical do norte, que depressa floresceu, mas também depressa está murchando e se acha sempre sujeito às oscilações do mercado mundial. Cada vez se torna mais consciente de seu objetivo essa vontade que tem o Brasil de se tornar de um simples lugar de fornecimento de produtos coloniais, um país que se mantenha a si próprio, um organismo que se vá desenvolvendo segundo leis próprias, em vez de ser apenas uma colônia da metrópole.

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No início do século dezoito o Brasil, no que concerne à economia, já é uma colônia rendosa, que se vai tornando, mais importante para a Coroa portuguesa, à medida que esta vai perdendo de seu império universal, índico e africano, as colônias, umas após outras, que vão passando para o poder dos holandeses e ingleses. Já lá se foram para Lisboa os tempos áureos em que, como narram os cronistas, o dia, as mais das vezes, não chegava para se contarem e registarem as rendas provenientes do comércio das índias. Mas o Brasil no século dezessete já é rendoso para Portugal, e há muito estão esquecidas as necessidades dos primeiros tempos, em que o governador tinha que pedir súplice cada cruzado e Nóbrega tinha que mendigar, em Lisboa, algumas camisas velhas, para os seus neófitos. Os brasileiros são bons fornecedores, enchem de mercadorias de valor os navios portugueses, mantêm com os seus rendimentos os funcionários da Coroa e os recebedores, enviam somas já consideráveis para a tesouraria do rei de Portugal. Mas os brasileiros são também bons compradores e importadores; alguns desses reis do açúcar têm mais dinheiro e crédito do que o seu próprio rei, e Portugal não encontra para seus vinhos, tecidos e livros entre todas suas colônias melhor compradora que esta. Com toda calma o Brasil se tornou uma grande colônia, uma colônia incessantemente próspera, e ao mesmo tempo continuou a ser a que menos sangue custou a Portugal, a que menores incômodos dá e a que menos exige empate de capitais. Nem na Bahia, nem no Rio, nem em Pernambuco há necessidade de grandes guarnições para manutenção da ordem. A população cresce constantemente com os anos e, excetuados alguns pequenos tumultos, nunca tenta uma séria rebelião. Não é necessário construírem-se dispendiosas fortalezas como nas Índias e na África, ou enviarem-se para aqui grandes somas; há muito que o Brasil se defende, há muito que se mantém com suas próprias forças.

Não se pode, pois, imaginar uma colônia mais cômoda do que o Brasil, com seu crescimento calmo e incessante, com seu desenvolvimento modesto, quase, por assim dizer, mudo, que se opera quase despercebido pelo resto do mundo. Neste país, que tranqüila e incessantemente se desenvolve e só remete açúcar ou fumo em grandes fardos para os armazéns, nada existe que possa estimular a fantasia ou ao menos a curiosidade da Europa. A conquista do México, o ouro dos incas, as minas de prata de Potosi, as pérolas do Oceano Índico, as lutas dos fazendeiros americanos com os peles-vermelhas, os combates com os flibusteiros do Mar das Caraíbas atraem os poetas e os cronistas para narrativas românticas e fascinam o espírito inquieto da mocidade, que está sempre à espreita de aventuras. O Brasil, ao contrário, durante decênios, verdadeiramente durante dois séculos, não é objeto da atenção mundial. Mas precisamente essa longa obscuridade e isolamento do Brasil foi, em última análise, uma felicidade para ele. Nada favoreceu mais o seu desenvolvimento calmo do que o fato de seus tesouros que podiam ser transformados em dinheiro, de seu ouro, seus diamantes não haverem sido descobertos até o começo do século dezoito. Se esse ouro, se esses diamantes houvessem sido descobertos já no século dezesseis ou dezessete, as grandes nações numa disputa renhida ter-se-iam lançado sobre essa presa. Do Peru, da Venezuela, do Chile os bandos de conquistadores, sem que pudessem ser detidos, teriam invadido o Brasil, este ter-se-ia tornado o campo de batalha de todos os maus instintos e teria sido escavado, dilacerado e retalhado. Mas em 1710, quando o Brasil de repente se revela o mais rico país de ouro do mundo de então, já passou definitivamente a época dos aventureiros e conquistadores, dos Villegaignons, dos Walter Raleighs, dos Cortezes, dos Pizarros, a época bárbara, do gosto pelas aventuras, que nunca mais voltará, em que uns poucos aventureiros decididos com quatro ou cinco navios e algumas centenas de soldados podiam massacrar e subjugar países inteiros. Em 1700 o Brasil já é uma unidade e uma força; possui cidades, fortalezas, portos, e, o que é sempre mais decisivo do que tudo isso, forma já uma comunidade nacional e com ela um exército invisível, que se defenderá com o sacrifício até do último homem contra qualquer invasão estrangeira, e, até à própria metrópole já é com má vontade que ele entrega a renda de impostos e tributos. Só precisa de duas coisas: mais tempo e mais gente. Com tempo, quem tem calma e paciência, será o mais forte.

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O descobrimento do ouro na província de Minas Gerais é mais do que um acontecimento nacional para o Brasil e Portugal. É um acontecimento mundial, que influencia de modo decisivo toda a situação econômica da época; segundo afirma Werner Sombart, o desenvolvimento capitalista e industrial da Europa, no fim do século dezoito, teria sido impossível sem a penetração impetuosa e estimulante do ouro brasileiro nas artérias da vida econômica européia, que imediatamente pulsaram com maior rapidez. A quantidade de ouro que o Brasil, esse país até então despercebido, lança de repente no mercado, é para aquela época quase inimaginável. Segundo os cálculos de Robert Simonsen, que merecem confiança, num vale de Minas Gerais naquele meio século se extraiu mais ouro do que todo o que foi extraído no resto da América até o descobrimento das minas da Califórnia, em 1852. 0 ouro do Peru e do México, que lançou o século dezesseis num acesso de loucura e duplicou e triplicou o valor monetário de todas as coisas (o que Montesquieu tão grandiosamente descreveu em seu célebre estudo “Les Richesses de l’Espagne”), representa apenas um quinto, ou talvez um décimo do que a colônia durante tanto tempo menosprezada fornece à sua metrópole. Lisboa, que estava em ruínas, foi reconstruída com esse ouro, o colossal Convento de Mafra foi edificado com o “quinto” que por lei se tinha que dar ao rei; o súbito florescimento da indústria inglesa só pode dar-se de modo tão grandioso graças a esse adubo amarelo, e o comércio e a transformação da Europa, graças a esse súbito afluxo, adquiriram um impulso rápido. Durante um período curto, durante cinqüenta anos, o Brasil é a tesouraria do Velho Mundo e a colônia mais rendosa e mais invejada que uma nação européia possui. Por um instante quer parecer que o sonho dos conquistadoras se realizou e que se descobria o lendário Eldorado.

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Esse episódio do ouro é de tal modo dramático na ascensão, no curso e no desfecho que a melhor maneira de apresentá-lo é sob a forma duma peça de teatro com diversos atos e cenas.

O primeiro ato dá-se pouco antes de 1700 num vale do território de Minas Gerais, que então ainda não constitui uma província e sim apenas um solo inabitado. Um dia, de Taubaté, pequeno povoado de paulistas, alguns homens montados em cavalos e burros dirigem-se para as colinas entre as quais o Rio das Velhas corre, descrevendo muitas curvas. Como milhares de outros paulistas, esses homens partem para um lugar qualquer, sem conhecerem um caminho e verdadeiramente sem um objetivo certo. Querem apenas achar e levar para casa alguma coisa, talvez escravos, talvez gado, talvez um metal precioso. Dá-se então a descoberta inesperada: um deles, não se sabe se baseado em uma informação secreta ou se por mera casualidade, descobre na areia as primeiras pepitas de ouro e as trás numa garrafa para o Rio de Janeiro. E como sempre basta o primeiro olhar lançado sobre o metal, que misteriosamente tem a cor da inveja, para se iniciar uma migração frenética. Da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo, grande número de pessoas seguem para lá às pressas, montadas em cavalos e burros e a pé, e sobem em embarcações o rio S. Francisco. Marinheiros abandonam seus navios — nessa altura o contra-regra tem que dar início às cenas em que tomam parte grande número de figuras — soldados abandonam suas guarnições, negociantes seus negócios, sacerdotes seus púlpitos, e em rebanhos pretos são os escravos levados para aquele ermo. No primeiro instante a aparente sorte ameaça tornar-se uma catástrofe econômica sem exemplo para todo o país. Os engenhos de açúcar param, as plantações de fumo ficam abandonadas, porque os que dirigem aqueles ou estas se retiram, levando consigo os escravos, a fim de lá, numa semana, num dia, conseguirem tanto quanto com trabalho paciente e orientado, num ano. Os navios não podem carregar, não podem fazer-se os transportes para a Europa. Tudo pára e o Governo tem que baixar leis a fim de impedir o desvio das energias para o interior. Mas, ao passo que nas cidades do litoral estás iminente uma catástrofe produzida pelo súbito despovoamento, o distrito do ouro pelo súbito povoamento está ameaçado do eterno infortúnio do rei Midas, de sofrer fome, embora possua pratos de ouro. Há em abundância ouro em pó e em pepitas, mas não há pão, milho, queijo, leite e carne, a fim de alimentar os dez mil, ou talvez os cem mil homens que se acham naquele ermo, em que não há provisões, gado e frutas. Felizmente, a perspetiva de quintuplicarem, de decuplicarem o preço de sua mercadoria e de receberem o pagamento em ouro faz com que os negociantes decupliquem os seus esforços. Quantidades cada vez maiores de víveres e de outros artigos, como sejam enxadas, pás e peneiras, são enviadas por via fluvial e por terra para o ermo. Abrem-se estradas, o rio São Francisco, que com suas águas barrentas até então vivia tranqüilo, cismador, e que de longe em longe, com intervalos de meses, era navegado, torna-se uma via movimentada. Barcos, impelidos por escravos, sobem e descem o rio, em seguida bois puxam carros, e o ouro, com que se sonhara, viaja em pequenos sacos de couro. Uma atividade febril invadiu subitamente esse país calmo e que trabalhava quase sonolento.

Mas é, como sempre, uma febre maligna, a febre do ouro. Excita os nervos, aquece o sangue, torna os olhos cobiçosos e turva os sentidos. Dentro de pouco, têm início lutas encarniçadas; os descobridores, os paulistas, defendem-se contra os que chegam depois, os emboabas. O que um, com trabalho penoso obtém, o outro arrebata com uma punhalada, e com o trágico grotescamente se mistura o ridículo. Homens que ainda ontem eram mendigos, ostentam agora trajes ridiculamente luxuosos, nas mesas do jogo, desertores e carregadores perdem no jogo do dado fortunas inteiras. E o primeiro ato tem um final de ópera: nesse frenético escavar o solo em milhares de pontos ao mesmo tempo, descobre-se nas proximidades de Diamantina o que é ainda mais precioso do que o ouro — o diamante.

Segundo ato. Entra em cena um novo protagonista: o governador, que zela pelos direitos da Coroa portuguesa. Veio para vigiar à província recém descoberta e, sobretudo, a fim de garantir o direito do rei a um quinto do ouro; atrás dele marcham os soldados, cavalgam os dragões, para estabelecerem a ordem. instala-se uma casa de fundição, à qual tem que ser entregue todo o ouro achado a fim de ser fundido, para que possa exercer-se perfeita fiscalização. Mas a horda bárbara não quer fiscalização; irrompe uma rebelião, que é energicamente sufocada. Então lentamente a atividade desregrada dos aventureiros se vai transformando numa indústria regrada e rigorosamente fiscalizada pela autoridade régia. Pouco a pouco se desenvolvem na pequena região do ouro extensas cidades, Vila Rica, Vila Real e Vila Albuquerque, que em suas choças e em suas casas de barro levantadas à pressa abrigam cem mil pessoas, mais do que Nova York ou qualquer outra cidade norte-americana nessa época, cidades, de cuja existência hoje quase ninguém sabe e das quais também o mundo de então não tinha senão uma idéia vaga. É que Portugal está decidido a proteger o seu tesouro e a não permitir que nenhum estrangeiro se aproxime, nem por uma hora, dessa fonte de ouro. Toda a zona é, de certo modo, cercada com uma grade de ferro; em todas as encruzilhadas colocam-se barreiras, por toda parte soldados patrulham de dia e de noite. A nenhum viajante é permitido penetrar nessa zona, a nenhum cavador de ouro é permitido sair dele, sem antes ser cuidadosamente revistado, a fim de se ver se não leva consigo ouro em pó indevidamente subtraído da casa de fundição e da tesouraria; terríveis são os castigos com que são punidas todas as transgressões das ordens do Governo. A ninguém é permitido dar notícia sobre o Brasil e sobre os seus tesouros, nenhuma carta pode sair do país, e um livro que Antonil (pseudônimo de Andreoni, jesuíta italiano), escreveu sobre as riquezas do Brasil é proibido pela censura. Apenas percebe Portugal que objeto de valor é o Brasil, lança mão de todas as artes da vigilância para evitar a perigosa inveja e cobiça das outras nações. Só a Corte e os empregados da Tesouraria podem saber em que lugares se extrai ouro e em que lugares se extraem diamantes e qual é a contribuição para a Coroa, e ainda hoje não se consegue calcular com segurança os lucros de Portugal nesse século. Mas não há dúvida que devem ter sido enormes, pois para os cofres que há muito estavam vazios, aflui o quinto do ouro; além disso, todo diamante com mais de vinte e quatro quilates tem que ser entregue à Coroa, que por ele nada paga, e há ainda o lucro proveniente das mercadorias que são importadas pela colônia que de repente se tornou rica, e o da elevada renda do imposto sobre os escravos, cuja importação tem que ser dupla do que era anteriormente, para a exploração mais rápida do ouro e dos diamantes. Só então Portugal percebeu que quando perdeu todos os seus domínios nas Índias e na África, ficou com a mais valiosa de suas colônias ultramarinas, precisamente com a terra que os seus “Lusíadas” apenas por alto cantaram e que foi colonizada por seus filhos mais pobres e seus filhos degredados.

O terceiro ato dessa tragicomédia do ouro passa-se aproximadamente setenta anos mais tarde e apresenta a mudança trágica. A primeira cena mostra Vila Rica, diferente e, apesar disso, não diferente. Não diferente está a paisagem com seus morros verde escuros ou escalvados, com o rio que displicente percorre os estreitos vales. Diferente, porém, está a cidade; igrejas altas, grandes e brancas, cujo interior é ricamente ornado com pinturas e esculturas, erguem-se no alto das colinas; em volta do palácio do governador agrupam-se casas luxuosas; nelas reside uma população respeitável e abastada, mas não é mais aquela população esbanjadora e alegre de ontem e de anteontem. Desapareceu algo que dava vida às ruas, às tavernas e aos negócios, desapareceu algo que iluminava os olhares das pessoas, que tornava seus movimento mais lépidos e mais vivos, desapareceu algo, que tornava a atmosfera dali cheia de animação, e esse algo é o ouro. O rio continua a correr, a espumar e, em seu curso, continua a depositar nas suas margens areia. Mas esta, por mais que seja peneirada e lavada, não passa de areia sem valor. Não mais se encontram nela, como outrora, as pepitas pesadas e reluzentes; foram-se os anos em que para alguém enriquecer bastava colocar ali cinqüenta ou cem escravos que, lavando e tornando a lavar a areia, iam dela extraindo o ouro. O ouro do Rio das Velhas era só ouro de aluvião e acabou-se. Para extrair o ouro das entranhas dos montes é necessário trabalho técnico penoso, para o qual a época e o país ainda não estão preparados. Por isso se dá a mudança: Vila Rica torna-se pobre. Os lavadores de ouro de ontem, empobrecidos e tristes, retiram-se com seus muares, seus negros e seus míseros haveres, e as choças de barro dos escravos, espalhadas aos milhares pelas colinas, são carregadas pelas chuvas ou ruem. Os dragões vão-se embora, pois nada mais têm que guardar, a casa de fundição nada mais tem que fundir, o governador já não tem muito que administrar; até a cadeia está vazia, pois em Vila Rica, dificilmente alguém ainda encontra o que roubar ou furtar. O ciclo do ouro cessou.

O quarto ato consta de duas cenas simultâneas: uma em Portugal e a outra no Brasil. A primeira passa-se no Paço Real em Lisboa. O Conselho da Coroa está reunido. Lêem-se os relatórios da Tesouraria, os quais são assustadores. Cada vez chega menos ouro do Brasil e cada vez são maiores as dívidas do reino. As companhias industriais que o Marquês de Pombal fundou, estão às portas da falência, porque não podem mais ser financiadas, e a reconstrução de Lisboa, que começou tão energicamente, está parada. Onde obter dinheiro, desde que o ouro não chega mais do Brasil, e como compensar essa falta? A expulsão dos jesuítas, a confiscação dos seus bens de nada valem; após o primeiro reino do sonho dos “Lusíadas”, desapareceu também o outro reino do sonho: o Eldorado eterno. Enganador como sempre, o ouro prometeu felicidade, porém não cumpriu a palavra. E Portugal tem, que se conformar com ser de novo o que fora anteriormente, um país pequeno, tranqüilo, e, precisamente por essa beleza tranqüila, um país digno de ser amado.

A outra cena, que se passa em Minas Gerais, contrasta inteiramente com a primeira: os lavadores de ouro desceram da inóspita região montanhosa com seus muares, escravos e todos os seus bens móveis e descobriram a fértil zona campestre. Domiciliam-se ali, originam-se pequenos povoados e cidades, as embarcações sobem e descem o rio São Francisco, o tráfego anima-se; um território que era inabitado, cujo solo não era lavrado, torna-se uma província nova, cheia de atividade. O que para Portugal é prejuízo, torna-se vantajoso para o Brasil: este, para substituir o ouro que desapareceu, ganhou uma substância incomparavelmente mais preciosa: ganhou um novo pedaço de seu território para trabalho ativo e frutífero.

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Essa correria para Minas Gerais em busca de ouro representa, no ponto de vista demográfico, verdadeiramente a primeira das grandes migrações para o interior, que se tornaram tão decisivas para o desenvolvimento nacional e econômico do Brasil. Sem essas repetidas migrações dentro do próprio território seria incompreensível o fenômeno de um país de tamanha extensão, no ponto de vista nacional, ter permanecido tão homogêneo que mesmo a língua não chegou a diferenciar-se em dialetos e que do Rio Grande do Sul ao Amazonas, do Oceano Atlântico até o extremo quase inatingível de Goiás reinam os mesmos costumes e, apesar de todas as diferenças climáticas e profissionais, o tipo do povo permanece homogêneo. Como em todos os países de grande superfície, o habitante tem aqui uma relação com o solo diferente dá que tem o camponês dos pequenos distritos europeus, o qual está inteiramente preso à sua casa e às suas terras. No Brasil, onde as terras de todo o interior não tinham dono e onde cada um podia apossar-se das que quisesse, o homem é erradio e empreendedor. Muito naturalmente aconteceu aqui que o habitante, menos preso pela tradição que o camponês europeu, facilmente mudava de domicílio e seguia de bom grado toda nova oportunidade que se lhe oferecia. Por isso as grandes mudanças, na economia brasileira, dum produto de monopólio para o outro, Os chamados ciclos da produção, manifestam-se por migrações e deslocamentos do povoamento do solo, e poderíamos, em certo sentido, denominar esses ciclos tanto segundo os objetos que constituíam a produção como segundo as cidades e zonas que eles criaram. A era da madeira, do açúcar e do algodão povoou o norte, criou a Bahia, Recife, Olinda, o Ceará e o Maranhão. A província de Minas Gerais foi povoada graças ao ouro. O Rio de Janeiro deve sua grandeza à mudança do rei e de sua corte para o Brasil; a ascensão fantástica de São Paulo foi motivada pelo império do café; Manaus e Belém devem seu florescimento súbito ao ciclo da borracha, que foi rápido e breve, E ainda não sabemos quais serão as cidades a que o próximo ciclo, o da siderurgia, irá dar rápido desenvolvimento.

Esse processo de distribuição do equilíbrio, que ainda hoje está em plena atividade, pois o brasileiro, em virtude da sua herança, é por natureza sobremodo erradio, esse processo, que foi constantemente favorecido por uma constante mistura feita graças primeiramente à imigração africana e depois à européia, sempre impediu que a extensão orgânica cessasse inteiramente. Impediu uma separação demasiado rigorosa em classes sociais e fez com que o sentimento nacional predominasse sobre o regional. Aqui e acolá ainda se ouve dizer que este é natural da Bahia e aquele do Rio Grande do Sul, mas, indagando-se melhor, vem-se a saber que o pai ou a mãe quase sempre são naturais de outro Estado; graças a essa constante transfusão e transplantação, esse milagre da unidade brasileira perdura até a época atual, em que pelas maiores possibilidades de comunicação as forças unitivas do rádio e do jornal tornam muito mais natural uma união nacional. Ao passo que o império hispano-sulamericano, que, nem em superfície nem em população, era superior ao império português de outrora, já no plano fundamental, pela divisão em diversas províncias governamentais, fez surgir mais nitidamente as particularidades da Argentina, do Chile, do Peru, da Venezuela em formas dialéticas, em costumes e em tipos humanos, a centralização de governo do Brasil preparou já desde o começo uma forma inteiramente unitária, econômica e nacional, a qual, porque cedo e intimamente se prendeu à alma do povo, não pode mais, ser destruída, mesmo no sentido econômico.

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Tentando-se dar o balanço relativo à época do começo do século dezenove entre a colônia e a metrópole, entre o Brasil e Portugal, encontra-se uma situação completamente mudada. De 1500 a 1600 o Brasil é a parte que recebe, Portugal a que dá: este tem que enviar para cá funcionários e navios, gêneros e soldados, negociantes e colonos, e o número de seus habitantes de cor branca é dez vezes maior que a totalidade dos brancos da jovem colônia. Por volta de 1700 o fiel da balança oscila e pende para o lado do Brasil. Por volta de 1800 já a situação se modifica completamente. Portugal, com os seus noventa e um mil quilômetros quadrados, parece insignificante ao lado do país de oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Só em escravos negros tem o Brasil mais habitantes do que Portugal com todos os seus súditos; em forças econômicas já não se pode comparar o Brasil com a metrópole empobrecida, que cada vez mais vai sendo dominada pelo marasmo econômico. Com muito ou pouco ouro, com seus diamantes, seu açúcar, seu algodão, seu fumo, seu gado, seus minérios e suas forças laboriosas, que crescem intensamente de ano para ano, o Brasil já há muito tempo que dispensou qualquer auxilio. É o filho que agora sustenta o pai, e não o inverso. Por ocasião do terremoto de Lisboa o Brasil manda de presente à metrópole nada menos de três milhões de cruzados para reconstrução da cidade, e abastado em Portugal já só é quem tem posses no Brasil ou negócios com os portos e cidades deste país. O Brasil, em comparação com a “pequena casa lusitana”, é um mundo.

Mas quanto mais forte, mais viril, mais firme se torna o Brasil, tanto mais visivelmente revela a metrópole o receio de que seu filho, que se tornou demasiado forte, possa um dia abandonar a sua proteção. Constantemente Portugal tenta orientar o filho, que já atua por si e já pensa por si, como se este ainda fosse menor. Tem que impedir à força que o filho se torne independente. Ao passo que os Estados Unidos há muito já se governam, ao Brasil não é permitido fabricar tecidos, tem que obtê-los por intermédio da metrópole; a fim de que os armadores portugueses possam ganhar, não lhe é permitido construir navios. Para intelectuais, para técnicos, para industriais não deve haver lugar nem campo de ação no Brasil. Nenhum livro deve aqui ser impresso, nenhum jornal ser publicado, e com a expulsão dos jesuítas tiram-se ainda do Brasil os únicos indivíduos que difundiam um pouco de instrução. É preciso evitar toda e qualquer ascensão econômica independente, toda e qualquer comunicação livre com os mercados mundiais. O Brasil tem que continuar escravo, tem que permanecer colônia, e quanto menos independente, quanto menos intelectual, quanto menos nacional, tanto melhor. Todo movimento de independência é violentamente reprimido. E as tropas portuguesas que estão no Brasil, há muito tempo que não têm, como outrora, o objetivo de defender a colônia contra estrangeiros, pois isso, esta, há muito, pode fazer com suas próprias forças; o que elas têm que fazer é proteger contra a própria colônia o quartel da economia do reino.

Mas sempre se repete o mesmo fenômeno na História : o que durante anos e anos se perde em prudência e indiferença, a violência brutal consegue numa única hora. É deveras singular que Napoleão, o tirano da Europa, seja o libertador deste país da América. Obrigando, pelo avanço célere de suas tropas, o rei de Portugal à partida precipitada, a abandonar Lisboa, obriga-o também e, pela primeira vez, a inspecionar o país que lhe construiu os seus palácios e que durante decênios e séculos foi o mais fiel auxiliar da sua coroa, da sua nação. Em vez dos cobradores de impostos e da polícia aparece agora, pela primeira vez, em sua colônia um membro da casa de Bragança, o rei D. João VI, com toda a sua corte, a nobreza e o clero.

Mas o século dezenove não mais considerará o Brasil uma colônia; D. João VI não pode deixar de solenemente declarar a maioridade do filho que o toma em seus braços e o ergue a ele, o refugiado, o desastradamente vencido. Sob a denominação de Reinos Unidos, o Brasil é equiparado a Portugal, e por doze anos a capital desses reinos está não à margem do Tejo, mas sim à beira da Baia de Guanabara. De chofre ruem as barreiras que isolavam o Brasil do comércio mundial, acabaram-se os tempos das permissões, proibições e decretos severos. Desde 1808 é permitido a navios estrangeiros aportarem aqui e permutarem-se os artigos, sem que os tributos tenham que ser remetidos para a Tesouraria de Lisboa. É permitido no Brasil falar, escrever e pensar, e assim pode afinal ter início neste país, com o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento cultural, que por tanto tempo foi violentamente impedido. Pela primeira vez desde o rápido episódio da ocupação holandesa se mandam vir sábios, artistas, técnicos de nomeada, a fim de aqui promoverem o desenvolvimento de uma civilização própria. Criam-se coisas inteiramente desconhecidas aqui, como sejam bibliotecas, museus, universidades, academias de arte, escolas técnicas, e dá-se ao país inteira liberdade de revelar sua personalidade na civilização do mundo.

Mas quem ficou conhecendo a liberdade e aprendeu a amá-la, não se contém mais enquanto não consegue a liberdade completa, ilimitada. Mesmo esse vínculo já frouxo que une o novo reino ao velho reino de além-mar, sente-o o Brasil como um entrave e um tormento. Só quando o Brasil em 1822 se torna império, começa sua verdadeira independência. Ou melhor, poderia ela começar, pois este país consegue sua independência só no ponto de vista político, porém não no ponto de vista econômico. Com efeito, o Brasil cai então numa situação de dependência econômica em relação à Inglaterra e a outros países industriais, mais grave do que a em que estivera em relação a Portugal, situação essa que dura até os meados do século dezenove: o Brasil, estorvado em seu desenvolvimento pelas proibições de Lisboa, não aproveitou a revolução industrial que nos fins do século dezoito começou a transformar decisivamente o mundo. Até a sua independência pode na exportação de seus produtos coloniais vencer toda concorrência pela modicidade do custo de suas forças laboriosas, pela escravidão, e, no ponto de vista econômico, pode manter-se no primeiro lugar entre todas as colônias americanas. Ainda ao tempo da proclamação da independência, na exportação levava o Brasil vantagem aos Estados Unidos da América do Norte, e as importâncias de suas vendas, em alguns anos, chegaram até a igualar-se às da Inglaterra. Mas no século dezenove surge um novo elemento na economia mundial: a máquina. Uma só máquina a vapor em Liverpool ou em Manchester, que ocupa uma dúzia de operários, produz agora mais do que cem escravos e em breve produzirá mais do que mil, no mesmo tempo. Dai em diante a indústria manual não poderá lutar contra a indústria fabril, do mesmo modo que índios nus com suas flechas não podem lutar contra metralhadoras e canhões. Esse atraso, por si já fatal, é, em relação ao ritmo da época, ainda aumentado por um contratempo. No grande e quase completo catálogo dos minérios do Brasil, falta precisamente a substância energética que é de importância decisiva para o século dezenove, o carvão.

No momento decisivo em que se introduz o emprego dessa nova substância dinâmica para pôr em ação meios de transporte e máquinas industriais, não se descobre no imenso território do Brasil uma única mina de carvão. Todo quilo dessa substância tem que ser importado de longe e tem que ser pago caro com açúcar, cujo valor vai caindo rapidamente. Por isso todo transporte se tornaria dispendioso, e pela estrutura montanhosa do país a construção de estradas de ferro se retarda de irreparáveis decênios e mesmo depois só se vai operando muito lentamente. Ao passo que o ritmo das operações comerciais e do tráfego nos países europeus e nos Estados Unidos da América do Norte de ano para ano se torna dez, cem, mil vezes mais rápido, no Brasil recusa-se o solo a fornecer carvão, as montanhas oferecem obstáculos, os rios fazem curvas como se quisessem opor-se ao novo século. Dentro de pouco tempo mostra-se o resultado disso: de lustro para lustro, o país se atrasa no desenvolvimento moderno, e sobretudo o norte com seus maus meios de comunicação entra numa decadência que mais tarde quase já não é possível deter. Numa época em que linhas férreas triplas ou quádruplas ligam o leste e o oeste, o sul e o norte dos Estados Unidos entre si, aqui no Brasil, cuja área é igual à desse país, nove décimos do território distam de trilhos quilômetros e quilômetros, e, ao passo que os vapores sobem e descem constantemente os rios Mississipi, Hudson e São Lourenço, raramente se vê no Amazonas e no São Francisco a fumaça duma chaminé. Por isso numa época em que na Europa e nos Estados Unidos as minas de carvão e as indústrias siderúrgicas, as fábricas e os centros comerciais, as cidades e os portos trabalham com perda de tempo cada vez menor e a capacidade de produção cresce de ano para ano, o Brasil até boa parte do século dezenove permanece estacionado e impotente nos métodos do século dezoito, dezessete e dezesseis, fornecendo sempre apenas as mesmas matérias primas, e por isso na venda de seus produtos está à mercê do arbítrio do mercado mundial.

Por isso o comércio cai e decai, e o Brasil entre as nações da América passa do primeiro plano para o segundo ou terceiro. Sua situação econômica no início do século dezenove não deixa de ser, de certo modo, paradoxal, pois precisamente o país que possui mais ferro do que talvez qualquer outro, do mundo, tem que importar todas as máquinas, todas as ferramentas. Apesar de produzir algodão em extrema abundância, não pode deixar de importar da Inglaterra os tecidos de algodão. Apesar de possuir imensas florestas, tem que receber do exterior papel e, como ele, todo objeto que não pode ser fabricado como trabalho manual não organizado, primitivo. Como sempre no Brasil, grandes empates de capital que permitissem organizar as indústrias salvariam o país. Mas, desde que cessou o ouro, o Brasil tem falta de capital; por isso suas estradas de ferro, suas primeiras fábricas e suas poucas grandes empresas são construídas ou montadas exclusivamente por companhias inglesas, francesas e belgas, e o novo império, como colônia de grupos anônimos, fica entregue à exploração do mundo inteiro. Numa época em que o ritmo do movimento e a vivificação do espaço por meio de energias fecundas são de importância decisiva para o desenvolvimento da economia nacional, o Brasil, que ainda trabalha com os velhos métodos e com as velhas morosidades comerciais, está ameaçado de um completo marasmo. Mais uma vez sua economia desceu a um nível muito baixo.

Mas é uma particularidade do desenvolvimento do Brasil o fato de este país de possibilidades sem limites sempre vencer cada uma de suas crises por meio duma repentina transformação: logo que o seu principal artigo de exportação o deixa em dificuldades, encontra ele outro, e este mais rendoso. Do mesmo modo que o século dezessete operou tal milagre, da inesperada ascensão, pelo açúcar e o século dezoito pelo ouro e pelos diamantes, o século dezenove realiza-o pelo café. Após o ciclo do açúcar, do “ouro branco”, e o ciclo do ouro “áureo”, começa com o café o ciclo do “ouro pardo”, que depois por curto tempo é substituído pelo ciclo do “ouro vermelho”, da borracha. É uma marcha triunfal sem par, pois com o café o Brasil obtém durante o século dezenove e parte do século vinte um monopólio mundial absoluto: de novo são os velhos e tão característicos fatores, a fertilidade, do solo, a facilidade do plantio, a primitividade do processo de produção, que fazem com que esse novo produto seja muito apropriado precisamente para o Brasil. O café não pode ser plantado, nem colhido com máquina. No seu plantio e na sua colheita o escravo ainda vale muito. E é como o açúcar, o cacau, o fumo, um produto cobiçado pelos nervos gustativos requintados; é propriamente o produto complementar do açúcar e do fumo, pois após uma boa refeição constituem os três uma tríade ideal.

É sempre o sol do Brasil e a fertilidade do seu solo que salvam este país. O que já era delicioso na velha pátria torna-se ainda mais delicioso neste solo novo; em parte nenhuma o café medra com tanto viço e com tal aroma como nesta zona subtropical. Já os séculos anteriores haviam conhecido este produto e sua ação estimulante. Mas o café, quando em 1730 é transplantado para a região do Amazonas e em 1762 para o Rio de Janeiro, ainda é considerado artigo de luxo e sua venda não pode, pois, ser de importância decisiva para a economia nacional; nas tabelas estatísticas ainda figura ele no começo do século dezenove, em quantidade e em valor, muito abaixo do algodão, do couro, do cacau, do açúcar e do fumo. Exatamente como aconteceu com seus irmãos mais velhos, o fumo e o açúcar, a princípio é o hábito a esse admirável estimulante, hábito crescente e que vai penetrando cada vez mais na Europa e nos Estados Unidos, que incita ao seu plantio. Na segunda metade do século dezenove a sua produção e a sua venda começam a crescer muito e o Brasil torna-se o fornecedor de café para o mundo inteiro. Tem ele que aumentar mais e mais sua produção, a fim de atender à procura, centenas de milhares e por fim milhões de trabalhadores afluem para a província de São Paulo, constrói-se o grande cais do porto e os grandes armazéns de Santos, onde às vezes num só dia estão atracados trinta vapores recebendo café. Com a exportação desse produto o Brasil regula durante decênios a sua economia, e os números gigantescos mostram o valor representado por essa exportação. Entre 1821 e 1900, em oitenta anos, o Brasil exporta café no valor de 270.835.000 libras esterlinas e no total até hoje dois bilhões de libras esterlinas; só com isso já está coberta grande parte das despesas e da importação. Mas, por outro lado, por essa monoprodução o Brasil se torna, cada vez mais, dependente dos preços que o café obtém nas bolsas, e o valor de sua moeda, cada vez mais, fatalmente está preso à cotação do café; toda baixa dos preços desse produto tem que acarretar a baixa do valor do mil-réis.

E afinal se mostra impossível deter essa baixa dos preços do café. Os plantadores, seduzidos pelas fáceis possibilidades de venda, vão aumentando constantemente suas fazendas, e, porque nenhum plano econômico organizado se opõe, a tempo, a essa desmedida superprodução, as crises seguem-se umas a outras. Várias vezes tem o Governo que intervir, a fim de evitar uma catástrofe, uma vez, comprando parte da safra, outra vez, criando para os novos plantios impostos tão altos que eqüivalem a uma proibição, e uma terceira vez, mandando lançar ao mar o café que comprou, a fim de impedir uma nova queda dos preços. Mas a crise permanece latente. O preço após ascensões de curta duração torna sempre a cair e cada uma de suas quedas acarreta a desvalorização do mil-réis. O valor da saca de café, que em 1925 ainda é de 5 libras esterlinas, cal em 1936 a 1 1/2 libra esterlina, ao passo que no mesmo tempo o mil-réis sofre uma baixa ainda maior. Mas, no ponto de vista da estabilidade das finanças e do equilíbrio interno, é antes uma vantagem o fato de a soberania do café se aproximar do seu fim e de a opulência ou a crise de um país inteiro não serem determinadas pelo valor eventual do café na bolsa internacional de mercadorias. Como sempre, também nesse caso uma crise econômica do Brasil torna-se para ele uma vantagem, porque força a uma distribuição mais uniforme da sua produção e a tempo faz reconhecer o perigo de jogar toda sua fortuna numa carta única.

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Por algum tempo parece que contra o rei da economia do Brasil, o café, quer surgir uma poderosa pretendente à coroa, a fim de arrebatar para si a soberania, e esta pretendente é a borracha. Ela verdadeiramente teria certo direito moral para justificar sua pretensão, pois não é como o café uma imigrante chegada já bastante tarde, e sim uma cidadã natural do país. A árvore que fornece a borracha, a Hervea brasiliensis, existia nas florestas do Amazonas. Trezentos milhões dessas árvores cresciam ali desde séculos, sem que seu aspecto e seu precioso suco fossem conhecidos pelos europeus. Os aborígenes usavam às vezes o suco que delas escorre, a fim de impermeabilizar as velas de suas embarcações e suas vasilhas, fato esse que foi La Condamine o primeiro a assinalar em 1736, em sua viagem ao Amazonas. Mas essa substância pegajosa, não utilizável pela indústria, porque não pode resistir nem às temperaturas altas nem às baixas, é de vez em quando enviada em pequenas quantidades e em artigos fabricados de maneira primitiva para os Estados Unidos da América do Norte, no começo do século dezenove. A mudança decisiva só se dá quando, em 1839, Charles Goodyear descobre que, tratando a borracha com enxofre, pode transformar-se essa substância noutra menos sensível ao calor e ao frio. De repente se torna a borracha uma dos “big five”, uma das coisas mais necessárias ao mundo moderno, uma coisa quase tão importante, como o carvão, o petróleo, a madeira e o ferro. Precisa-se dela para tubos, galochas e para mil outras coisas, e com o advento da bicicleta e, depois, com o do automóvel seu emprego assume proporções gigantescas.

Até o fim do século dezenove possui o Brasil o monopólio exclusivo da matéria prima desse novo produto. A Hevea brasitiensis só existe nas florestas do Amazonas, o que para o Brasil é uma sorte sem par; ele tem, pois, o direito de ditar os preços. Decidido a conservar só para si esse precioso monopólio, proíbe a exportação de um pé sequer de Hevea, certamente porque se lembra de como ele próprio, pela importação de alguns cafeeiros da Guiana Francesa, pusera em cheque o mais perigoso inimigo. Começa então, de modo semelhante ao que ocorreu por ocasião do descobrimento do ouro em Minas Gerais, um súbito “boom” nas florestas virgens do Amazonas, até então só habitadas por mosquitos e outros bichos. Novamente começa com esse ciclo do “ouro vermelho” uma intensa imigração para uma província até então não povoada. Setenta mil pessoas da região de Ceará que, por causa duma seca repentina, têm que abandonar seus domicílios, são engajadas ou, falando-se com mais sinceridade, compradas pelas companhias, e de Belém enviadas rio acima em embarcações para aqueles ermos. É que vai começar um terrível sistema de exploração naquelas regiões, que distam tanto das leis e da vigilância quanto outrora os vales auríferos de Minas Gerais. Embora não sejam escravos, esses seringueiros praticamente são mantidos em escravidão, por contratos de trabalho e pelo fato de os empresários, ainda não satisfeitos com o lucro obtido na borracha, venderem a esses infelizes trabalhadores presos no “cárcere verde” da floresta virgem os artigos e os víveres de que eles precisam, por preços quatro a cinco vezes superiores ao seu valor. Quem quiser conhecer todos os pormenores do horror desse período, leia o admirável romance de Ferreira de Castro, que com grandioso realismo descreve essa vergonhosa época. O trabalho do seringueiro é terrível; morando em miserável rancho na floresta, isolado de toda a humanidade civilizada, tem ele que primeiro abrir com facão e foice caminho para chegar às seringueiras e depois marcá-las e sangrá-las, tem que várias vezes por dia ir e voltar, sob o calor escaldante, tem que ferver o látex obtido, e, enfraquecido pela febre, com suas forças consumidas, após meses de trabalho, graças a cálculos criminosos, continua devendo ao empresário, que dele exige o que com ele gastou para levá-lo para ali, e o explora no fornecimento de víveres. Se o desgraçado tenta fugir do seu cativeiro, que é eufemicamente denominado “contrato de trabalho”, é caçado, exatamente como outrora o escravo, por guardas armados, e dai em diante tem que trabalhar acorrentado.

Mas graças a essa vergonhosa exploração do trabalho, graças ao monopólio comercial e à procura mundial da borracha, procura que cresce de ano para ano, os lucros aumentam rapidamente, tornam-se fantásticos. Os dias de Vila Rica e Vila d’El-Rei no século dezoito, nos quais as cidades do ouro cresciam rapidamente com luxo e pompa absurda num ermo, parecem haver retornado no século dezenove. Belém floresce, e a mil milhas da costa surge uma cidade inteiramente nova, Manaus, disposta a pelo luxo e pela pompa suplantar o Rio, São Paulo e a Bahia. Avenidas asfaltadas, bancos e palácios com luz elétrica, magníficas casas residenciais e comerciais, o maior e mais luxuoso teatro do Brasil, cujo custo não é inferior a dez milhões de dollars, surgem em plena mata virgem. Todos nadam em dinheiro. Gasta-se um conto de réis, que então vale duzentos dollars, como se fosse um shilling, os artigos do mais requintado luxo chegam de Paris e de Londres em grandes vapores, que mais e mais amiúde sobem o rio Amazonas. Todos especulam, todos negoceiam com borracha, e, enquanto as árvores sangram e no cárcere verde da floresta os seringueiros perecem às centenas e aos milhares, uma geração inteira enriquece no Amazonas com o ouro liquido, como outrora seus antepassados enriqueceram nos vales auríferos de Minas Gerais. Também o país tira proveito, sem dúvida, dessa exportação rendosa, e na balança comercial a borracha com saltos grandes e rápidos aproxima-se perigosamente do café; o advento do automóvel desvenda perspetivas ilimitadas. Mais um decênio, e Manaus será não só a cidade mais rica do Brasil, mas também uma das mais ricas do mundo.

Mais depressa, porém, do que subiu a bola, ela arrebenta. Um único homem insidiosamente a perfura. Um jovem inglês, desrespeitando habilmente por suborno a proibição governamental da saída da Hevea brasiliensis ou de suas sementes do país, leva nada menos de setenta mil dessas sementes para a Inglaterra, onde são plantadas em Kew Gardens, e depois os primeiros pés — são transportados para Ceilão, Singapura, Sumatra e Java. Com isso cessa o monopólio brasileiro e a produção da borracha no Brasil rapidamente decresce. As plantações sistematicamente feitas nas ilhas malásicas, onde em linhas retas de milhas de comprimento se acham enfileiradas como soldados as seringueiras, permitem uma extração muito mais rápida e muito mais fácil do que em plena mata virgem, onde cada seringueira tem que primeiro ser libertada da espessidão da floresta. Como sempre, a produção antiquada e improvisada é vítima da organização moderna e superior.

A descida dá-se mui rapidamente, é comparável à dum alude. Em 1900 o Brasil ainda produz 26.750 toneladas de borracha, enquanto a Ásia apenas quatro míseras toneladas. Ainda em 1910 o Brasil com suas 42.000 toneladas ocupa o primeiro lugar, pois a Ásia só produz 8.200. Mas em 1914 o Brasil com suas 37.000 toneladas é suplantado pela Ásia com suas 71.000, e a partir de então a queda é rápida; em 1938 o Brasil produz apenas 16.400 toneladas contra 36.500 das ilhas malásicas, 300.000 da colônia holandesa, 58.000 da Indochina e 52.000 de Ceilão. E mesmo essas míseras 16.000 toneladas alcançam uma parte apenas do, preço primitivo. O teatro de Manaus já não recebe como outrora as companhias dos maiores teatros da Europa, as fortunas desaparecem, o sonho do “ouro vermelho” já terminou. Outra vez teve fim um ciclo, após haver cumprido o seu dever secreto: dar a uma província que até então estava dormindo, uma mistura de vida e de vitalidade e relacioná-la mais estreitamente, no comércio e nas comunicações, com a totalidade da nação.

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Mais uma vez, no fim do século dezenove se cumpre a mais íntima lei do desenvolvimento do Brasil, a saber, que este facilmente seduzido pelo lucro monetário dum produto principal, tem sempre necessidade de uma crise, a fim de se transformar, e que com isso todas essas crises cíclicas de todo o seu desenvolvimento verdadeiramente lhe foram mais favoráveis do que nocivas. A última grande transformação a que o Brasil foi forçado, não foi a vontade do mercado mundial que lhe impôs e sim sua própria vontade, pela lei de 1888 que aboliu definitivamente a escravatura.

No primeiro instante esse fato causa um violento choque na economia nacional, tão violento que derruba o trono imperial. Muitos dos negros, inebriados pela liberdade, abandonam as zonas rurais e dirigem-se para as cidades. Serviços que só graças ao trabalho não pago davam lucro, cessam, os fazendeiros com a perda dos escravos perdem grande parte do seu capital, e, além disso, a lavoura e a plantação de café, já quase incapazes de concorrer na produção com os métodos modernos mecânicos, estão afinal ameaçadas de ruína. De novo se ergue o brado dos primeiros tempos: braços para o Brasil! braços, gente, custe o que custar! Isso obriga o Governo a atrair imigrantes europeus e asiáticos e promover sistematicamente a imigração, que até então era apenas um laissez-faire, para o qual a atitude do Governo era até esse momento passiva, indiferente. Antes da era do café o Brasil só conheceu uma imigração para a lavoura. Já em 1817 D. João VI mandou vir por intermédio de agentes europeus dois mil colonos suíços, que fundaram uma colônia, que foi denominada Nova Friburgo; mais tarde, em 1825, vieram alguns alemães para o Rio Grande do Sul, e pouco a pouco, pela vinda de uns 120.000 alemães para o sul do Brasil, desenvolveram-se em Santa Catarina e no Paraná núcleos coloniais alemães. Mas toda essa imigração se deu mais ou menos por iniciativa própria dos imigrantes ou pela intervenção de agências privadas. Só mais tarde, quando uma nova produção, grande e rendosa, toma impulso e falta o trabalho dos escravos, resolve o país, e especialmente o Estado de São Paulo, promover a imigração em maior escala do que até então o fizera, financiando a viagem dos que não tinham recursos e pondo à disposição de todos aqueles que quisessem entregar-se à lavoura, lotes de terra. Esses suprimentos ascendem nos anos decisivos a dez mil contos anuais; mas apenas o Brasil abre as portas, afluem as levas de imigrantes. No ano de 1890, a imigração sobe de 66.000 cabeças para 107.000, em 1891 chega ao número, até então não atingido, de 216.760, e mantém-se depois num nível sempre alto, embora variável, que só na época de crise dos últimos tempos baixa a mais ou menos 20.000 por ano.

Essa imigração de quatro a cinco milhões de brancos nos últimos cinqüenta anos importa num enorme acréscimo de energia para o Brasil e ao mesmo tempo lhe proporciona uma imensa vantagem no ponto de vista da civilização e da etnologia. A raça brasileira, que, por uma importação de negros durante três séculos, está ameaçada de se tornar cada vez mais escura, cada vez mais africana, clareia visivelmente, e o elemento europeu, em oposição ao elemento, primitivamente crescente, de escravos analfabetos, eleva o nível geral de civilização. O italiano, o alemão, o eslavo, o japonês trazem de suas pátrias, por um lado, uma energia e uma disposição para o trabalho ainda de todo íntegra e, por outro, a pretensão a um padrão de vida mais elevado. Sabem ler e escrever, têm conhecimento técnico, trabalham com ritmo mais rápido do que a geração mal acostumada pelo serviço dos escravos e não raro debilitada em sua capacidade de trabalho pelo clima. Os imigrantes instintivamente procuram, por toda parte, as regiões que eles acham possuir um clima semelhante ao de sua pátria e em que o modo de viver se possa assemelhar mais ao seu anterior, e por isso são sobretudo os Estados meridionais, o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, que são animados por esse novo ciclo, o do “ouro vivo”. O ciclo da imigração representa para as cidades e para os, Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul o que outrora foi o do açúcar para a Bahia, o do ouro para Minas Gerais e o do café para São Paulo, representa o impulso decisivo que depois, graças à força que continua a atuar, cria povoações, possibilidades de trabalho, indústrias e incrementa a civilização. Precisamente porque esse novo material procede das mais diferentes zonas do mundo — italianos, alemães, eslavos, japoneses, armênios — pode o Brasil manter da maneira mais feliz seu velho método do cruzamento e da adaptação recíproca. Com admirável celeridade, graças à especial energia assimiladora deste país, os novos elementos se adaptam ao meio e, a geração seguinte coopera já, de maneira natural e com igualdade de direitos, para a realização do velho ideal dos primeiros tempos do Brasil: o de uma nação unida por uma só língua e um só modo de pensar.

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Esse surto de progresso que a imigração dos últimos cinqüenta anos determinou, é o verdadeiro agradecimento pelo ato moral da abolição da escravatura. Essa entrada de quatro ou cinco milhões de europeus por volta do começo deste século representa uma das maiores sortes para o Brasil, e, na verdade, uma sorte dupla. Dupla, primeiro, porque essas forças vigorosas e sadias chegam em tão grande número ao país, e segundo, porque a sua vinda tem início exatamente no momento histórico oportuno. Se uma imigração de tal vulto se houvesse dado muito mais cedo, se esses milhões de italianos e alemães tivessem aqui chegado um século antes, quando a civilização portuguesa constituía apenas uma camada delgada, essas línguas e costumes estrangeiros ter-se-iam apossado de diversas províncias e grandes partes do país ter-se-iam italianizado ou germanizado definitivamente. Se, por outro lado, a imigração principal, a imigração em massa, não se houvesse realizado naquela época, de espírito ainda cosmopolita, mas sim na nossa época, de nacionalismo exaltado, os indivíduos já não teriam querido adotar outro idioma e outro modo de pensar. Teriam firme e obstinadamente ficado presos à ideologia de sua pátria e não haveriam adotado as idéias deste país. Assim como o ouro não foi descoberto nem cedo demais nem tarde demais para favorecer o desenvolvimento da economia do Brasil e, apesar disso, não fazer periclitar a sua unidade, assim como o ciclo salvador, o do café, se iniciou exatamente no momento do mais catastrófico retrocesso, a imigração européia em massa se deu precisamente no instante em que poderia operar-se da maneira mais fecunda. Ao invés de tornar estrangeiro no Brasil o que é brasileiro, essa poderosa imigração só fez tornar o que é brasileiro, ainda mais forte, mais variado e mais individual.

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Também no século vinte cumpre-se com isso outra vez a lei, por assim dizer, peculiar deste país, a saber, o Brasil necessita sempre de crises para conduzir sua economia a uma transformação enérgica. Dessa vez, são para sua felicidade não mais crises no próprio país e sim as duas catástrofes de além mar, as duas guerras européias, que dão impulso à sua estratificação econômica. A primeira grande guerra mostra ao Brasil o perigo de haver ele concentrado de modo decisivo quase toda a sua produção para exportação num único produto e não ter desenvolvido suas indústrias. A exportação do café cessa, com isso é ligada subitamente a artéria principal e Estados inteiros já não sabem para onde mandar seus produtos; doutra parte, muitos produtos manufaturados de necessidade quotidiana, em vista da insegurança dos mares e do encarecimento motivado pela guerra, já não são importados. A balança comercial inteira, porque está montada sobre a compra de bilhões de grãos de café brasileiro com demasiada unilateralidade, com demasiada despreocupação e sem se dar atenção ao equilíbrio interior, começa a oscilar perigosamente, e isso obriga o Brasil a modificar-se e a voltar-se para, ao menos, algumas indústrias. Esse impulso, uma vez iniciado, mostra-se vigoroso; durante todos esses últimos anos em que a infeliz Europa está constantemente tolhida por medo de guerra e preparativos de guerra, um grande número de artigos de indústria mecânica ou manual que antes eram importados da Europa, são fabricados no país, e prepara-se certa autarquia. Quem, após alguns anos de ausência, volta ao Brasil, fica surpreso de ver quantos artigos estrangeiros já foram substituídos por nacionais e de como o país, nas medidas de organização, em tão curto prazo soube também tornar-se independente de instrutores e diretores estrangeiros. Graças a esse preparo, a segunda grande guerra já não feriu tão de cheio a economia do Brasil quanto a primeira. Também desta vez foi inevitável uma queda do preço do café e de muitos outros produtos agrícolas, mas a recente baixa do preço do café não arruinou São Paulo como outrora o fez a cessação do ouro com as cidades de Minas Gerais e a catástrofe da borracha com a Amazônia. Já a indústria brasileira aprendera a sabedoria do velho provérbio inglês, segundo o qual não devem carregar-se todos os ovos num só cesto, e já se colocara sobre uma base mais firme do que a que é constituída por um único artigo de monopólio ou artigo central sujeito a todas as oscilações do mercado mundial. Manteve-se o equilíbrio, porque o prejuízo numa linha pode ser compensado pelo desenvolvimento nitidamente crescente da indústria, que produz, em proporções cada vez maiores, no próprio país e com material seu, grande parte do que anteriormente este tinha que importar da Alemanha e dos outros países que agora estão bloqueados. Do mesmo modo que as guerras de Napoleão indiretamente determinaram a independência política do Brasil, a guerra de Hitler criou a indústria deste país, que, da mesma maneira que soube conservar sua independência política, saberá conservar sua independência econômica através dos séculos.

É sempre perigoso lançar do presente um olhar para o futuro. Com seus cinqüenta milhões de habitantes, seu imenso território e uma das mais grandiosas atividades colonizadoras da humanidade, o Brasil está hoje apenas ainda no começo de seu desenvolvimento. As dificuldades que se opõem a seu desenvolvimento definitivo, ainda absolutamente não estão vencidas, e, apesar de intenso trabalho, algumas delas ainda são consideráveis. A fim de poder avaliar bem esse trabalho realizado durante séculos, exige a justiça que também se considerem os obstáculos que a ele se opuseram e continuam a opor-se; não há melhor índice da força de vontade de uma pessoa, bem como da de um povo, do que as dificuldades que num trabalho físico ou moral têm que ser vencidas.

Das duas dificuldades principais que têm impedido o Brasil de empregar a totalidade de suas energias potenciais, uma é patente, ao passo que a outra a princípio se oculta ao olhar superficial. O perigo oculto e perverso para a completa manifestação de suas energias está no estado de saúde da população, o qual nem é silenciado nem menosprezado pelo Governo. O Brasil, este país pacífico, tem dentro de si alguns inimigos encarniçados que anualmente lhe roubam ou debilitam tantos habitantes quanto o faz uma campanha num país em guerra. Tem que lutar constantemente contra bilhões de seres diminutos e apenas visíveis, contra micróbios, mosquitos e outros perversos causadores e veiculadores de doenças.

O inimigo principal ainda continua a ser a tuberculose, que rouba ao país anualmente duzentas mil pessoas. O brasileiro, porque é de compleição franzina, está muito atreito a essa “peste branca”. Demais, concorre para tal fato, sobretudo no norte, a subalimentação ou, melhor, a alimentação defeituosa, e isso num país em que há superabundância de víveres. Já teve início uma decidida ação do Governo, uma luta enérgica contra esse mal, e a campanha deverá ser ainda intensificada nos anos vindouros. Mas, se a medicina, se a ciência moderna não descobrir o meio de cura pelo qual há decênios se anseia, ainda por muito tempo terá o Brasil que contar com esse perigoso inimigo, ao passo que a sífilis, que aqui por propagação durante séculos perdeu de intensidade, poderá dentro de pouco tempo ser exterminada pela terapêutica de Ehrlich.

O segundo inimigo é a malária, que já por sua natureza quase é condicionada pelas circunstâncias climáticas do norte. Esse inimigo foi fortalecido pela invasão inesperada do Anopheles Gambiae, do qual alguns exemplares vindos de Dakar, em 1930, penetraram clandestinamente no país e, como todo fruto, toda planta, todo animal e todo ser humano, rapidamente aqui se aclimataram e se multiplicaram.

O terceiro inimigo é a lepra, que enquanto não se conhecer um tratamento radical ou específico, só poderá ser exterminada por meio de isolamento.

Todas essas doenças, mesmo que não tenham necessariamente êxito letal, causam uma enorme diminuição da capacidade de produção. Principalmente no norte essa capacidade, já diminuída pelo clima, é, em grande parte, muito inferior à européia e à norte-americana, e, se a estatística dá para o Brasil quarenta a cinqüenta milhões de habitantes, a atividade produtiva desse número de pessoas absolutamente não corresponde à de um mesmo número de norteamericanos, japoneses ou europeus, a qual se realiza com uma quota muito mais elevada de indivíduos hígidos e em melhores condições climáticas. Um número espantosamente grande de pessoas continua a não cooperar aqui na vida econômica nem como produtor, nem como consumidor; segundo a estatística, o número de pessoas sem ocupação ou sem determinada ocupação orça por 25 milhões (Simonsen: “Níveis de vida e a economia nacional”), e seu padrão de vida é, sobretudo nas zonas equatoriais, tão baixo que as condições de alimentação às vezes são piores que as dos tempos da escravidão. Incorporar essa massa inatingível de gente das florestas do Amazonas e do interior dos Estados marginais, tanto no ponto de vista da economia como no da saúde, na vida nacional é um dos maiores problemas de que hoje o Governo já muito se ocupa e que, para sua solução definitiva, ainda exigirá decênios.

O homem, considerado como energia produtiva, pois, absolutamente ainda não está aproveitado no Brasil e tão pouco o está o solo com todas as suas riquezas que se acham na sua superfície ou abaixo dela. Nesse caso a dificuldade é patente e não está oculta como no caso das doenças que causam obstáculos à economia nacional. Ela é determinada pela desproporção que ainda continua existir entre a área, o número de habitantes e os meios de transporte. Não devemos deixar ofuscar-nos pela organização modelar e pela civilização moderna do Rio ou de São Paulo, onde são sem conta os arranha-céus e há dezenas de milhares de automóveis. A duas horas de viagem da costa, às modelares estradas asfaltadas se seguem estradas bastante más que, após um dos tão freqüentes aguaceiros tropicais, por alguns dias se tornam intransitáveis ou quase intransitáveis para veículos, e começa o sertão, a zona que ainda não está verdadeiramente civilizada. Toda viagem para direita ou para esquerda da estrada principal torna-se uma aventura. As estradas de ferro não penetram suficientemente o território e com suas três bitolas diferentes são mal ligadas entre si; além disso, são tão lentas e tão pouco práticas que do Rio se vai tanto a Porto Alegre como à Bahia ou a Belém mais depressa de navio do que por essas estradas de ferro. Os grandes rios como o São Francisco e o Rio Doce são rara e insuficientemente navegados, e em conseqüência disso grandes e importantes partes do país, desde que não haja o recurso do avião, verdadeiramente só podem ser atingidas por expedições individuais. Esse gigante, pois continua a sofrer de uma constante perturbação circulatória: o sangue não percorre uniformemente todo o seu organismo, e partes importantes dele são inteiramente aplásicas. Por isso os mais preciosos produtos jazem mudos e ainda inaproveitados no subsolo. Sabem-se hoje exatamente os lugares onde eles existem, mas de nada valerá extraí-los enquanto não houver a possibilidade de os transportar. Onde há ferro, falta a estrada de ferro ou o navio a fim de transportar carvão para ali; onde a criação de gado poderia prosperar abundante e facilmente, falta a possibilidade de transporte para o gado. É um verdadeiro círculo vicioso. A produção não pode desenvolver-se com a conveniente velocidade, porque faltam estradas, e estradas, por sua vez, não podem ser rapidamente construídas, porque à sua dispendiosa construção e conservação no solo acidentado e pouco povoado ainda não corresponderia um tráfego lucrativo, compensador. Acresce ainda a singular fatalidade de que para o novo meio de transporte, o automóvel, o Brasil do século vinte não possui em seu solo o combustível, o petróleo, como não possuía no século dezenove o carvão, e todo o combustível para automóvel, desde que não seja o álcool, tem que ser importado. Para de maneira rápida resolver esse magno problema da dificuldade de vias de comunicação e de transporte, seriam necessários enormes capitais, e o Brasil tem falta deles. O dinheiro sempre foi escasso no Brasil; mesmo os títulos públicos rendem mais ou menos oito por cento, e nos empréstimos particulares a taxa de juros ainda é consideravelmente maior. A desvalorização do mil-réis, já várias vezes ocorrida, e a velha desconfiança em relação a emprego de capitais na América do Sul, desconfiança que se já tornou instintiva, levaram os grandes capitalistas norteamericanos e europeus durante decênios a grande, e talvez excessivamente grande, cautela; doutra parte, nos últimos anos, tem o Governo procedido com certa reserva no dar concessões, a fim de não deixar que os empreendimentos de maior importância vital para o país caiam inteiramente em mãos estrangeiras. Tudo isso tem retardado o processo de industrialização em comparação com o da Europa e dos Estados Unidos; ao passo que na Europa se têm empregado capitais em demasia e com excessiva precipitação, no Brasil algumas coisas permaneceram com um atraso de decênios. Para desenvolver mais rapidamente de um extremo ao outro esse país gigantesco, esse mundo, seria preciso uma dupla fecundação: um grande afluxo de capitais e ainda mais uma constante afluência de homens, que, porém, nos últimos anos tem sido muito dificultada e reduzida pela grande guerra e por suas conseqüências ideológicas. Se os Estados Unidos sofrem de um excesso de capitais acumulados nos bancos sem render juros, se a Europa sofre de um excesso de gente e de falta de espaço, se sofre dum estado que a congestiona e constantemente a conduz a novos e repentinos acessos de loucura na política, o Brasil padece de uma anemia, de uma deficiência de gente para um território tão vasto. O remédio para o Velho Mundo e ao mesmo tempo para este novo mundo, o Brasil, seria uma grande transfusão de sangue e de capital praticada com toda a cautela e paciência.

Mas, se as dificuldades são grandes — elas o foram desde o primeiro dia e continuaram verdadeiramente a ser as mesmas — mil vezes ainda maiores são as possibilidades desta poderosa e abençoada parte do globo terrestre. Precisamente porque a capacidade das energias potenciais aqui, absolutamente ainda não está aproveitada, representa ela uma imensa reserva não só para este país, mas também para a humanidade inteira. Contra as circunstâncias que retardam o seu desenvolvimento, um verdadeiro taumaturgo se pôs ao lado do Brasil para o auxiliar, a ciência moderna, a técnica moderna. Sabemos o que ela já pode fazer, mas não podemos prever o que ainda poderá fazer.

Já hoje quem, passados alguns anos, volta a este país, fica constantemente surpreso de ver que coisas admiráveis ele fez no ponto de vista da centralização, da autonomia e do saneamento do país. A sífilis, que aqui era uma doença hereditária e da qual se falava com a mesma naturalidade com que se fala de um defluxo, está quase exterminada, graças à descoberta de Ehrlich, e não há dúvida de que a higiene em prazo não longo irá reduzir muito a freqüência das outras doenças. Assim como o Rio de Janeiro, há alguns decênios, o mais temido foco de febre amarela, hoje, no ponto de vista sanitário, é uma das mais seguras cidades do mundo, é de esperar que a ciência saiba libertar o norte, tão insalubre, de seus miasmas e flagelos, e fazer entrar para a vida ativa e produtiva a parte da população ameaçada em sua energia de trabalho por febres e subalimentação. Ao passo que há cinco anos se gastavam dezesseis horas para ir do Rio a Belo Horizonte, hoje em avião se faz essa viagem em hora e meia; em dois dias se pode ir do Rio a Manaus, no coração das florestas do Amazonas, para o que antigamente, eram precisos vinte dias; em meio dia se vai à Argentina, em dois dias e meio aos Estados Unidos, em dois dias à Europa, e todos esses números só valem para hoje; amanhã o progresso da aeronáutica tê-los-á reduzido à metade. O vencer as enormes distâncias do seu gigantesco território, essa magna dificuldade do problema econômico do Brasil, já está propriamente resolvido no ponto de vista teórico e em via de resolução no ponto de vista prático. Quem sabe se também a dificuldade dos transportes já não estará vencida em curto prazo por uma nova espécie de aeronaves e outras invenções para os quais hoje a nossa imaginação se mostra demasiado pobre e medrosa? Também o outro obstáculo, aparentemente invencível, o da insuficiente capacidade de trabalho no clima tropical, que diminui a energia individual e ameaça o vigor do corpo, começa a ser atacado energicamente pela técnica. O que hoje ainda só é permitido a poucos locais de luxo, a refrigeração das residências e dos escritórios, daqui a alguns anos estará tão generalizado e será coisa tão trivial neste país como nas zonas frias o aquecimento central. Quem vê o que aqui já se fez e ao mesmo tempo sabe o que ainda está por fazer, tem certeza de que o vencerem-se todas as dificuldades é apenas uma questão de tempo. Mas cumpre não esquecer que o tempo mesmo já não é um padrão uniforme, que ele se acelerou pelo impulso da máquina e pela inteligência humana. Um ano na era atual, de Getúlio Vargas, pode produzir mais do que pode fazê-lo um decênio no tempo de D. Pedro II, ou um século no tempo de D. João VI. Quem hoje vê a rapidez com que crescem as cidades, melhora a organização e se transformam as energias potenciais em efetivas, sente que — em completo contraste com o que se dava anteriormente — a hora tem aqui mais minutos do que na Europa. De qualquer janela que se olhe vê-se por toda parte uma casa em construção, em toda rua e longe no horizonte vêem-se novas moradas, e, ainda mais do que tudo isso, o espírito e o prazer do empreendimento cresceram aqui. A todas as energias do Brasil ainda não aproveitadas e desconhecidas juntou-se nos últimos anos uma nova: a consciência do próprio valor. Durante muito tempo este país se habituou a ficar atrás da Europa, na civilização e no progresso, na velocidade do trabalho e na produção. Humilde erguera o olhar com uma espécie de consciência colonial para o mundo além do Atlântico como para um mundo mais experiente, mais sábio e melhor. Mas a cegueira da Europa, que em insensatos nacionalismos agora se devasta a si própria pela segunda vez, fez com que a nova geração aqui se tornasse independente. Foi-se o tempo em que Gobineau podia zombeteiramente escrever: “Le brésilien est un homme qui désire passionnément habiter Paris”. Já não se encontra um brasileiro e raramente se encontra um imigrante que deseje voltar para o Velho Mundo, e essa ambição de se desenvolver por si só e de acordo com a época revela-se por um otimismo e um ousado espírito empreendedor inteiramente novos — O Brasil aprendeu a pensar de acordo com as dimensões do porvir. Quando constrói um ministério, como agora o Ministério do Trabalho e o da Guerra, o constrói maior do que os de Paris, de Londres ou de Berlim. Quando se planeja uma cidade, conta-se desde logo com o quíntuplo, o décuplo da população. Nada é demasiado ousado, nada demasiado novo para fazer com que essa vontade nova não se atreva a realizá-lo. Após longos anos de incerteza e de modéstia, este país aprendeu a pensar de acordo com as dimensões de sua própria vastidão e a contar com suas possibilidades ilimitadas como se elas fossem uma realidade em breve atingível. O Brasil reconheceu que espaço é força e gera forças, que não são o ouro nem o capital poupado que constituem a riqueza dum país, mas sim o solo e o trabalho que neste é realizado. Mas que país possui mais solo não utilizado, inabitado e não aproveitado do que este, cujo território é tão grande como todo o Velho Mundo? E espaço não é simples matéria, espaço é também força psíquica. Alarga a visão e dilata a alma, dá ao homem que o habita e que ele circunda, coragem e confiança para que ouse avançar; onde há espaço há não só tempo, mas também futuro. E quem vive neste país, ouve o sussurro forte das asas céleres do futuro.


 

CIVILIZAÇÃO

 

“he mais gentil gente”

Martim Afonso de Sousa, em 1531, por ocasião de sua chegada ao Rio.

Há quatrocentos anos na enorme caldeira deste país a massa humana, constantemente mexida e recebendo sempre, novas substâncias, está cozinhando. Está esse processo definitivamente terminado, essa massa de milhões de seres já tomou forma própria, já se tornou uma substância nova? Existe hoje já alguma coisa que possamos denominar a raça brasileira, o brasileiro, a alma brasileira? A raça, o mais genial conhecedor do povo brasileiro, Euclides da Cunha, há muito tempo, que a negou peremptoriamente, escrevendo: “Não há um tipo antropológico brasileiro”. Raça, se é que se quer empregar esse termo equívoco, cujo valor é hoje exagerado e que constitui mais ou menos apenas um recurso para síntese, pressupõe comunidade milenária quanto ao sangue e quanto à história. Mas num legítimo brasileiro todas as reminiscências que dormitam no inconsciente e provêm dos tempos primitivos, têm que sonhar com os mundos dos seus antepassados de três continentes, com os países europeus, as aldeias africanas e a floresta americana. O processo do tornar-se brasileiro não é apenas um processo de aclimatação, de adaptação à natureza, às condições psíquicas e especiais da nação, mas sim sobretudo um problema de transfusão — A maior parte da população do Brasil, excetuados os indivíduos recentemente imigrados, é um produto misto, um produto variadíssimo. Cada uma dessas três estratificações, como se não lhe bastasse a tríplice origem, européia, africana e americana, ainda se estratificou novamente. O primeiro europeu neste país, o português do século dezesseis, absolutamente não é de uma só raça ou de raça pura: é uma mistura proveniente de antepassados ibéricos, romanos, góticos, fenícios, judeus e mouros. A população aborígene do país, por seu lado, compõe-se de duas raças diferentes: os tupis e os tamoios. E os negros então, de quantas zonas da imensa África foram trazidos para cá! Tudo isso constantemente se misturou, cruzou e, além disso, ainda se revivificou pelo incessante afluxo de sangue novo no correr dos séculos. Procedentes de todos os países da Europa e, afinal, também da Ásia, com a imigração japonesa, esses grupos sangüíneos se multiplicam e variam ininterruptamente em inúmeros cruzamentos no território brasileiro. Encontram-se aqui todos os matizes, todos os matizes fisiológicos e caracterológicos. Quem anda pelas ruas do Rio, vê numa hora mais tipos mesclados e, com efeito, já indeterminados, do que noutra cidade num ano. Mesmo o xadrez com seus milhões de combinações, das quais nenhuma se repete, parece pobre em comparação com esse caos de variantes e cruzamentos, nos quais a natureza inesgotável aqui se comprazeu em quatro séculos.

Mas embora no jogo do xadrez nenhuma partida seja igual à outra, esse jogo é sempre xadrez, porque está compreendido nos limites do mesmo espaço e sujeito a determinadas regras. Do mesmo modo a relação com o mesmo espaço e, com isso, a adaptação às mesmas condições climáticas, bem como a continuidade da religião e da língua, produziram determinadas e evidentes semelhanças entre os brasileiros, apesar das particularidades de cada um, semelhanças que de século para século se tornam cada vez mais visíveis. Assim como os seixos num rio torrentoso tanto mais se pulem quanto mais e por maior tempo rolam juntos, por viverem juntos e por incessantemente se cruzarem esses milhões de criaturas, a nítida linha individual da origem se tornou cada vez mais imperceptível e, ao mesmo tempo, o que era semelhante e comum se tornou cada vez mais visível. Esse processo de incessante assimilação por incessante mistura ainda se está operando e a forma definitiva dentro desse desenvolvimento ainda não está fixada e constituída. Mas, apesar disso, o brasileiro de todas as classes e posições já tem o cunho claro e típico duma personalidade étnica.

Quem tentasse derivar de qualquer origem própria do país o que é característico do brasileiro, cairia no inverídico e no artificial, pois nada é tão típico do brasileiro quanto o fato de ser ele um ente humano sem história, ou, ao menos, um ente humano com uma história curta. Sua civilização não assenta como a dos povos europeus em tradições remotas que datam dos tempos míticos, nem pode referir-se, como a dos peruanos e mexicanos, a um passado prehistórico no próprio solo. Embora a nação brasileira nos últimos anos haja realizado muito por novas combinações e por trabalho próprio, os elementos construtivos de sua civilização são em sua totalidade importados da Europa. Tanto a religião e os costumes quanto o modo de viver desses milhões e milhões de habitantes do Brasil pouco devem ou verdadeiramente nada devem ao seu solo. Todos os valores da civilização foram trazidos do estrangeiro por navios de toda espécie, pelas antigas caravelas portuguesas, pelos vapores modernos, e mesmo o mais patriótico e mais ambicioso empenho não pode até agora achar ou inventar uma contribuição importante dos aborígenes para a civilização brasileira. Não existe poesia brasileira prehistórica, religião originariamente brasileira, música brasileira antiga, não existem lendas populares conservadas através de séculos e nem mesmo os modestos inícios de uma profissão artística. Ao passo que nos museus nacionais de etnologia de outros países com orgulho são apresentados os exemplares milenários de escrita e de arte autóctones, nos museus brasileiros nada disso há que ver. Contra esse fato de nada vale procurar e esquadrinhar, e os que tentam hoje declarar brasileiros alguns ritos e danças como a macumba e o samba, com isso encobrem e deslocam artificialmente a verdadeira situação, pois essas danças e ritos foram trazidos pelos negros com suas cadeias e suas marcas de ferrete. Tão pouco são autóctones os únicos objetos de arte que se encontraram no solo brasileiro, os utensílios de argila pintados que se encontraram na ilha de Marajó; sem dúvida, foram trazidos ou aqui feitos por indivíduos de raças estrangeiras, provavelmente por peruanos que desceram, o rio Amazonas até a ilha que fica na sua foz. Temos, pois, que nos contentar com o seguinte: no ponto de vista de civilização, nada de característico na arquitetura, e qualquer forma de arte plástica não remonta aqui a uma época anterior à colonial, anterior ao século dezessete ou dezesseis, e mesmo os seus mais belos produtos nas igrejas da Bahia e de Olinda, com seus altares cheios de ouro e seus móveis entalhados, são evidentes rebentos do estilo português ou jesuítico e quase não podem distinguir-se dos existentes em Goa ou dos da própria metrópole. Onde quer que na História aqui alguém pretenda recuar além do dia em que os primeiros europeus aportaram a esta terra, cairá num vácuo, num nada. Tudo o que hoje denominamos brasileiro e como tal reconhecemos, não é possível explicar por meio de uma tradição própria, e sim por meio duma transformação fecunda, operada pela terra, pelo clima e pelos habitantes dela, do que era europeu.

O que é tipicamente brasileiro é hoje já bastante evidente para não ser confundido com o que é português, muito embora o seu parentesco, a sua filiação, ainda seja perceptível. É absurdo negar essa relação. Portugal deu ao Brasil as três coisas que são de importância decisiva para a constituição dum povo, o idioma, a religião e os costumes, e com isso deu as formas segundo as quais o novo país, a nova nação, pode desenvolver-se. Desenvolverem-se para outro conteúdo essas formas primitivas, sob outro sol e num espaço de outras dimensões e com o afluxo cada vez mais intenso de sangue estrangeiro, foi um processo inevitável, porque orgânico, processo que nenhuma autoridade régia e nenhuma organização armada poderia deter. Sobretudo a direção do pensamento das duas nações foi diferente; Portugal, como país mais velho na História, sonhava com um grande passado, que nunca mais poderia repetir-se, e o Brasil tinha e tem os olhos voltados para o futuro. A metrópole já esgotou, de maneira grandiosa, as suas possibilidades, mas a sua ex-colônia, o Brasil, ainda não atingiu inteiramente as suas. A diversidade está não tanto na estrutura étnica quanto numa diferença de gerações. Ambos os povos, hoje unidos por estreita amizade, não se tornaram estranhos um ao outro; viveram, apenas, de certo modo, separados. O sinal mais claro disso é terem ambos o mesmo idioma. Na grafia e no vocabulário, o português falado em Portugal e o falado no Brasil são ainda hoje quase inteiramente idênticos, e é preciso que o leitor conheça bem o idioma para poder dizer que a obra que tem nas mãos é dum poeta brasileiro ou dum poeta português; e, doutra parte, quase nenhum dos vocábulos da língua tupi ou da tamoia que os primeiros missionários ainda registavam, passou ao idioma português do Brasil de hoje. O brasileiro apenas fala o português de moda diferente do que o faz o lusitano, fala-o mais brasileiramente do que este, e nisso está toda a diferença; o mais curioso é que esse sotaque brasileiro permaneceu o mesmo, do norte ao sul, do leste ao oeste, num território de oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados. O português e o brasileiro compreendem-se perfeitamente, pois se servem dos mesmos vocábulos, da mesma sintaxe, mas na entonação e, em parte também, já na expressão literária começam essas variantes, primitivamente mínimas, a intensificar-se mais ou menos na mesma proporção em que o inglês e o. americano do norte com o mesmo idioma de decênio para decênio se afastam um do outro como individualidades. A influência da distância de mil milhas, de outro clima, de outras condições de vida, de novas relações e novas comunidades necessariamente teve que, após quatrocentos anos, pouco a pouco se tornar perceptível, e lenta mas inevitavelmente teve que se originar no Brasil um novo tipo, um tipo étnico inteiramente específico.

O que no ponto de vista físico e psíquico caracteriza o brasileiro é sobretudo ser ele de compleição mais delicada do que a do europeu e a do norteamericano. O tipo corpulento, volumoso, alto, ossudo, falta quase inteiramente entre os brasileiros. Igualmente falta neles toda brutalidade, violência e veemência, tudo o que é grosseiro, presunçoso e arrogante. O brasileiro é um indivíduo calmo, pensativo. e sentimental, às vezes até com um ligeiro laivo de melancolia, a qual já Anchieta em 1585 e o Padre Cardim julgaram sentir na atmosfera, quando qualificaram esta nova terra de “desleixada e remissa e algo melancólica”. Mesmo no trato exterior as maneiras são visivelmente moderadas. É raro ouvir alguém falar alto ou dirigir-se a outra pessoa, encolerizado, aos gritos. E precisamente onde se reúnem massas humanas sente-se mais claramente essa ausência de vozearia, o que ao estrangeiro causa admiração. Numa grande festa popular, como na Penha, ou numa travessia de barca para uma espécie de festa religiosa de arraial na ilha de Paquetá, nas quais num pequeno espaço se acham milhares de pessoas, e entre estas muitas crianças, não ouvimos algazarra e gritos de júbilo, não vemos os indivíduos incitarem-se mutuamente para uma alegria turbulenta. Mesmo quando se divertem em massas, as pessoas aqui se conservam calmas e discretas, e essa ausência de tudo o que é forte e brutal, dá à sua alegria suave um delicioso encanto. Fazer barulho, gritar, fazer algazarra e dançar desenfreadamente são no Brasil prazeres tão contrários aos costumes que, por assim dizer, se reservam para os quatro dias de carnaval, que servem de válvula de segurança para todos os instintos represados; mas, mesmo nesses quatro dias de alegria aparentemente infrene, numa massa de um milhão de pessoas como que picadas por uma tarântula, não se observam excessos, inconveniências e baixezas; todo estrangeiro e até qualquer senhora podem calmamente atrever-se a andar nas ruas cheias de bulício e de ruído. O brasileiro conserva sempre sua natural delicadeza e boa índole. As mais diversas classes tratam-se mutuamente com uma polidez e cordialidade que a nós pessoas da Europa, tão brutalizada nos últimos anos, sempre causam admiração. Vemos abraçarem-se dois homens na rua. Pensamos que são irmãos ou velhos amigos dos quais um acaba de chegar da Europa ou duma viagem ao estrangeiro. Mas na esquina seguinte tornamos a ver dois homens saudarem-se dessa mesma maneira e verificamos então que o abraço entre os brasileiros é uma praxe absolutamente trivial, uma expansão de cordialidade. A polidez é aqui a forma básica natural das relações humanas e assume maneiras que nós na Europa há muito tempo já esquecemos: em toda conversa na rua conservam as pessoas o chapéu na mão; toda vez que alguém pede uma informação é atendido com todo o interesse; e nos círculos sociais mais elevados. o ritual da formalidade com visita, paga de visita e entrega de cartão é realizado com rigor protocolar. Todo estrangeiro é recebido do modo mais acolhedor e tudo lhe facilitam da maneira mais obsequiosa; desconfiados como, infelizmente, nós europeus nos tornamos ante tudo o que é naturalmente humano, perguntamos a amigos e a indivíduos recém-imigrados se essa patente cordialidade não é apenas formalidade, se essa convivência boa, amistosa, sem visível ódio e inveja entre raças e classes não é uma mera ilusão ótica de uma primeira impressão superficial. Mas todos são unânimes em elogiosamente declarar que a primeira e a mais essencial qualidade do povo brasileiro é ser de boa índole. Todo indivíduo a quem perguntamos repete as palavras dos primeiros que chegaram a essa terra: “É a mais gentil gente”. Jamais se ouviu falar aqui de crueldade para com animais, jamais houve aqui autos da fé da Inquisição. Tudo o que é brutal repugna ao brasileiro, e está verificado por estatística que o assassínio aqui quase nunca é praticado com premeditação, é quase sempre espontâneo, é um crime passional, é o resultado de uma explosão súbita de ciúme ou do sentimento de haver sido ofendido. Crimes ligados a astúcia, cálculo, rapacidade e perversidade são muito raros. Quando um brasileiro puxa da faca, está, por assim dizer, num estado de exaltação nervosa; quando visitei a Penitenciária de São Paulo notei que ali absolutamente não havia o verdadeiro tipo do criminoso, perfeitamente caracterizado pela criminologia. Os sentenciados que ali se achavam, eram indivíduos absolutamente pacíficos, de olhar terno, indivíduos que num momento qualquer de superexcitação haviam sido levados a fazer qualquer coisa, da qual mesmo não tinham noção. Mas em geral — e isto é confirmado por todo imigrado — ao brasileiro é alheio tudo o que é violência, brutalidade e sadismo, mesmo nos mais imperceptíveis traços. O brasileiro é de boa índole e de boa fé e o povo possui aquele traço de confiança e cordialidade que muitas vezes é próprio dos meridionais da Europa, porém que raramente é tão pronunciado e tão geral quanto aqui. Em todos os meses que aqui passei, não vi falta de afabilidade, nem nas classes superiores nem nas inferiores; por toda parte pude verificar a mesma ausência de desconfiança — hoje tão rara — para com os estrangeiros, para com os de outras raças ou de outras classes. Às vezes quando, curioso, ia eu ver as “favelas”, essas pitorescas zonas de pretos que ocupam as encostas dos morros situados em plena cidade do Rio de Janeiro, sentia-me intranqüilo e tinha um mau pressentimento, pois afinal de contas eu ia ali por curiosidade, para ver um nível mais baixo de vida e observar, em casebres de bambu e barro e cujo interior está exposto aos olhares de todos os transeuntes, indivíduos no estado mais primitivo e, com isso, indevidamente, espiar para dentro de suas casas e indagar da sua vida mais íntima. No começo, de fato, eu constantemente esperava, como num bairro de trabalhadores proletários na Europa, receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa pelas costas. Mas para esses indivíduos de boa fé um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles morros, é um hóspede benvindo e quase um amigo; o preto que está carregando água e se encontra comigo, ri, deixando ver sua dentadura reluzente, e ajuda-me a subir os degraus escorregadios de barro; as mulheres que dão de mamar aos filhos, olham-me com afabilidade e despreocupação. E do mesmo modo encontramos em todo bonde, em toda barca, quer estejamos sentados em frente de um preto, quer de um branco ou de um mestiço, a mesma cordialidade. Nunca percebemos algo de separação entre as diversas raças, nem em adultos nem em crianças. A criança preta brinca com a branca, o mulato anda muito naturalmente de braço dado com o negro, em parte alguma há restrição ou sequer “boicotagem” social para as pessoas de cor No serviço militar, nos empregos, nos mercados, nos escritórios, nas casas comerciais, nas oficinas de trabalho, os indivíduos não pensam em se separar de acordo com a cor e a origem, e trabalham pacífica e amistosamente juntos. Japoneses casam com pretas, e pessoas brancas com pessoas mulatas; a palavra “mestiço” não é aqui um insulto, não encerra em si um menosprezo. O ódio entre as classes e o ódio entre as raças, essas plantas venenosas da Europa, ainda não criaram raízes aqui.

Essa extraordinária delicadeza de sentimentos, essa ausência de preconceitos, essa boa fé, essa boa índole e essa incapacidade de ser brutal do brasileiro acompanham-se duma sensibilidade muito grande e talvez excessiva. Não só muito sentimental, mas também sensível, todo brasileiro possui um sentimento de honra muito suscetível e todo especial. Precisamente porque é tão cortês e modesto, toma logo a mais involuntária descortesia por um menosprezo. Não é que ele reaja violentamente como um espanhol, um italiano ou um inglês; por assim dizer, guarda a suposta ofensa. É muito freqüente ouvir o seguinte: numa casa havia uma empregada, preta, branca ou mulata; ela era asseada, afável e calma e não dava o menor motivo de queixa. Uma manhã, desapareceu, e a patroa não sabe e nunca saberá por que ela desapareceu. Talvez a patroa na véspera lhe houvesse dito uma leve palavra de censura, de descontentamento, e com essa palavrinha de censura ou com uma palavra talvez dita em voz demasiado alta, sem o saber, ofendera profundamente a empregada. Esta não se revoltou, não se queixou, não procurou entrar em explicações. Calmamente arrumou o que era seu e, sem nada dizer, se foi embora. Não é da índole do brasileiro justificar-se ou exigir justificação, queixar-se ou mostrar-se zangado e entrar em explicações. Ele só se retrai; é a sua defesa natural, e esse amuo calmo e mudo encontramos aqui por toda parte. Ninguém repetirá um convite que não haja sido aceito mesmo da maneira mais cortês; nenhum vendedor numa casa comercial procura persuadir o freguês, se este hesita na compra, e esse orgulho oculto, essa suscetibilidade do sentimento de honra chega até as camadas sociais mais baixas. Ao passo que nas mais ricas cidades do mundo, em Londres e Paris, e mesmo nos países meridionais da Europa, por toda parte, se encontram mendigos, quase não existem eles neste país, onde a “pobreza nua” muitas vezes quase já não é mais uma expressão de exagero, e essa raridade de mendigos é a conseqüência não dum enérgico decreto, mas sim da hipertrofia da sensibilidade de todo o povo, a qual toma por ofensa mesmo a mais cortês recusa.

Quer parecer-me que essa delicadeza do sentimento é talvez a qualidade mais característica do povo brasileiro. Os indivíduos não necessitam aqui de expansões veementes e violentas, de êxitos visíveis e aproveitáveis para estarem satisfeitos. Não é uma casualidade que o esporte, que afinal de contas constitui a paixão de os indivíduos sobrepujarem-se uns aos outros, neste clima que mais convida para o repouso e para o gozo, não haja adquirido a absurda preponderância que é a causa de uma boa parte do embrutecimento e da desespiritualização da mocidade européia, e que faltem aqui completamente as cenas brutais e frenéticas de êxtases de records que se encontram em ordem do dia nos nossos países ditos civilizados. O que a Goethe em sua primeira viagem à Itália causou muita admiração e simpatia nos países meridionais, o fato de eles não procurarem constantemente finalidades materiais ou — metafísicas. da vida e sim procurarem regozijar-se com a vida em si, duma maneira calma e muitas vezes indolente, aqui se observa sempre com agrado. Os indivíduos aqui não querem muita coisa, não são sôfregos. Após o trabalho ou nas horas do trabalho, conversar um pouco, tomar café, flanar bem barbeado e com os sapatos bem engraxados, ter sua alegria na vida doméstica e no lar é para a maioria o suficiente. Todos os graus do bem-estar, da felicidade, combinam-se com essa calma e serenidade. Por isso é e sempre foi relativamente tão fácil governar este país, por isso Portugal precisou de tão poucas tropas e o Governo necessita de tão pouca pressão e energia para manter paz e ordem. Há aqui muitíssimo menos ódio de grupo para grupo e de classe para classe, graças a esse caráter pacífico e à ausência de inveja.

No ponto de vista econômico e no ponto de vista de êxito técnico essa falta de cobiça, essa falta de sofreguidão, que para mim representa uma das mais belas virtudes do brasileiro, pode constituir certa falha. Comparada com a eficiência total do trabalho na Europa ou nos Estados Unidos da América do Norte, a do Brasil é muito inferior àquela, e já há quatrocentos anos Anchieta assinalou a influência estorvadora que a ação extenuante do clima necessariamente deveria exercer. Mas não pode denominar-se preguiça essa menor atividade. O brasileiro em si é um excelente trabalhador. É destro e compreende rapidamente. Pode ser preparado para todo o serviço, e os emigrados da Alemanha que trazem para o país indústrias novas e, muitas vezes, complicadas, são unânimes em gabar a habilidade e o interesse com que os mais simples operários sabem se adaptar a novas formas de produção. As mulheres revelam muita habilidade nas artes manuais e os estudantes mostram o mais vivo interesse pelas ciências. Seria extremamente injusto qualificar o operário ou o trabalhador brasileiro de inferior. Em São Paulo, o operário, adaptado a uma organização européia e num clima mais favorável, produz exatamente o mesmo que qualquer outro doutra parte do mundo. Mas mesmo no Rio de Janeiro observei, centenas de vezes, pequenos sapateiros e alfaiates trabalharem até tarde da noite em suas acanhadas oficinas e deveras me admirei de como nas construções com um calor infernal, em que só o erguer o chapéu do chão já é um esforço, o difícil trabalho de carregar material continua sem interrupção em pleno sol. Não são, pois, absolutamente a capacidade, a boa vontade e a velocidade individuais que são inferiores. O que no conjunto falta é a sofreguidão européia ou norte-americana de por meio de esforço dobrado progredir na vida mais depressa; é, pois, antes certa falta de estímulo que mantém em nível baixo a dinâmica total. Grande parte dos caboclos, sobretudo nas zonas tropicais, trabalha não para economizar e guardar, mas sim apenas para não passar dificuldades durante alguns dias; como sempre nos países em que o mundo é belo, em que a natureza oferece tudo o que se precisa para viver, em que os frutos em torno de casa, por assim dizer, caem nas mãos dos indivíduos e estes não precisam tomar medidas de previsão para um inverno rigoroso, estabelece-se certa indiferença em relação a ganhar e a poupar; não se tem pressa em relação ao dinheiro e ao tempo. Por que necessariamente hoje aprontar ou fazer isso? Por que não amanhã, por que se dar demasiada pressa num mundo tão paradisíaco? A pontualidade aqui já é muito grande, se qualquer conferência, qualquer concerto começa bastante pontualmente uns quinze minutos depois da hora marcada; se nos adaptamos a isso, nunca chegamos atrasados. Aqui a vida em si é mais importante do que o tempo. Sucede freqüentemente, segundo ouvi de várias pessoas, que após o recebimento do salário, o trabalhador falta dois, três dias ao serviço. Cumpriu com diligência e presteza o seu serviço na semana anterior e ganhou o suficiente para, da maneira mais modesta, modestíssima, passar dois dias sem trabalhar. Para que então trabalhar esses dois dias? Rico não poderá ficar com esses poucos mil-réis; é, pois, preferível gozar calma e comodamente esses dois ou três dias. Talvez seja necessário termos visto a exuberância da natureza daqui para compreender isso. Ao passo que numa planície triste e sem encantos, o trabalho é a coisa única que salva o homem da tristeza da vida, numa natureza tão rica, exuberante de frutos e que dá beleza, felicidade, a vida não desperta tão intensa e violentamente, como entre nós europeus, o desejo de enriquecer. A riqueza, no modo de ver do brasileiro, não é absolutamente o acúmulo penoso de dinheiro poupado graças a inúmeras horas de trabalho, não é o resultado dum esforço frenético e enervante. O dinheiro é algo com que se sonha; tem que vir do céu, e, no Brasil, é a loteria que substitui o céu. A loteria no Brasil é uma das poucas paixões manifestas desse povo exteriormente tão calmo; é a esperança quotidiana geral de centenas de milhares de pessoas. A roda da fortuna gira todos os dias. Por toda parte, em todos os cafés e bares, nas ruas, oferecem-se bilhetes de loteria. A determinada hora da tarde, vê-se grande multidão de pessoas diante do local da extração. As classes mais elevadas, por sua vez, jogam nos casinos, e quase toda estação de águas têm o seu casino. Mas, ainda não é tudo. Aos jogos importados da Europa, à vispora, ao bacará e à roleta, juntava-se um inventado no Brasil, o jogo do bicho, o jogo nacional, que, apesar de rigorosamente proibido pelo Governo, era realizado com o máximo interesse.

Esse jogo do bicho tem uma singular história de origem, a qual por si já mostra de modo claro quão profundamente essa paixão pelo azar corresponde ao caráter sonhador deste povo. O diretor do Jardim Zoológico queixava-se de que este era pouco visitado. Por isso, como bom conhecedor de seus patrícios, teve a esplêndida idéia de fazer sortear cada dia um dos bichos do seu Jardim, um dia o urso, outro dia o burro, outro dia o elefante. Todo indivíduo cujo bilhete de entrada correspondia ao bicho sorteado, recebia um prêmio no valor de vinte ou vinte e cinco vezes a importância da entrada. Deu-se logo o resultado desejado: o Jardim Zoológico durante semanas foi visitadíssimo, mas os visitantes verdadeiramente ali iam menos para verem os bichos do que para ganharem prêmios. Afinal começaram a achar que o Jardim era muito distante e que. era muito penoso irem ali todos os dias. Por isso passaram a jogar particularmente, entre si, de acordo com o jogo do Jardim Zoológico. Surgiram pequenas bancas atrás dos balcões das tavernas e nas esquinas, bancas essas que recebiam o jogo e pagavam os prêmios. Quando a Policia proibiu o jogo, foi ele secretamente relacionado com o resultado da loteria. Para evitar que a Polícia apreendesse qualquer prova, jogava-se em confiança. O banqueiro não fornecia recibo a seus clientes, mas não se conhece caso algum em que não houvesse ele cumprido a sua obrigação. Esse jogo, talvez precisamente por ser proibido, invadiu todos os círculos sociais; toda criança no Rio, mal havia aprendido na escola a contar, já sabia que número correspondia a cada bicho e sabia dizer toda a série de bichos melhor do que o alfabeto.

Não se discute, pois: assim como a grande massa do Brasil absolutamente ainda não tirou do solo todos os valores potenciais, também não tirou de si tudo o que encerra de dotes, de energia para o trabalho, de possibilidades ativas. Mas a produção, vista de um modo geral, tendo-se em conta os obstáculos climáticos e a delicadeza da compleição física, é extremamente respeitável, e em face dos fatos observados nos últimos anos, hesita-se em qualificar de falha uma eventual deficiência de sofreguidão e de impetuosidade, uma falta de muita pressa em progredir. É uma questão que ultrapassa muito o problema brasileiro, saber se a vida pacífica e contente consigo mesma de nações e indivíduos não é mais importante do que o dinamismo exagerado, superaquecido que arrasta uns contra os outros à concorrência e finalmente à guerra, e se no extrair de si todas as suas forças dinâmicas, alguma coisa no terreno psíquico do homem não seca e murcha em conseqüência desse constante “doping”, desse superaquecimento febril.

À estatística comercial, aos números áridos da balança comercial, opõe-se aqui algo mais invisível do que o verdadeiro lucro: uma humanidade imperturbada, não mutilada, e um contentamento sereno. Essa pasmosa frugalidade da maneira de viver caracteriza toda a classe inferior deste país. Esta classe é enorme e constitui uma massa imensa cujo número e cujas condições de vida até agora não puderam ser perfeitamente conhecidos. Quem vive nas grandes cidades quase não a vê. Não está reunida, como a massa norte-americana e européia dos sem posses, em fábricas e oficinas, e não podemos propriamente denominá-la proletariado, porque falta toda ligação entre esses milhões de indivíduos espalhados por todo o país. Os caboclos do Amazonas, os seringueiros nas matas, os vaqueiros nas grandes fazendas de criação, os índios em suas florestas, não raro inacessíveis, em parte alguma estão reunidos, formando povoações distintas, e o estrangeiro (e mesmo o brasileiro das grandes cidades) verdadeiramente pouco sabe da existência deles. Sabe apenas obscuramente que esses milhões de indivíduos existem e que tanto as necessidades como a receita dessa multidão mais baixa, quase em sua totalidade composta de indivíduos de cor, correspondem ao limite mais baixo do nível de vida, correspondem quase ao ponto zero. Há centenas de anos que a maneira de vida desses descendentes, multifariamente mesclados, dos índios e dos escravos não se alterou, e sua vida tem sido pouco influenciada pelos progressos da técnica. A maior parte deles constróem mesmo em um lugar qualquer a sua morada, uma choupana ou um casebre de taipa e coberto de palha. Janelas de vidro já constituem um luxo; um espelho ou móveis, a não ser cama e mesa, são raros nesses casebres do interior do país. Por esse casebre feito pelo próprio dono não paga ele aluguel; a não ser nas cidades, um lote de terra representa uma coisa tão sem valor que ninguém se daria o trabalho de exigir paga de alguns metros quadrados. Como vestuário, o clima não exige mais do que uma calça de algodão, uma camisa e um paletó. A natureza fornece de graça a banana, a mandioca, o abacaxi e o coco, e é fácil criar algumas galinhas e um porco. Com isso estão cobertas as principais necessidades da vida, e, qualquer que seja a ocupação regular ou eventual desses trabalhadores, sempre lhes resta algum dinheiro para o cigarro e para as outras pequenas, muitíssimo pequenas, necessidades de sua existência. Que tais condições de vida dessa classe inferior, sobretudo a do norte, não correspondem mais à nossa época e que com essa pobreza, francamente endêmica em regiões inteiras, a população é debilitada por subalimentação e não é capaz de uma atividade normal, sabem-no há muito os dirigentes e sem cessar são aventadas e estabelecidas medidas, a fim de se remediar essa extrema pobreza. Mas os salários mínimos decretados por Getúlio Vargas ainda não podem ser pagos no interior distante de estradas de ferro e de rodagem, nas florestas de Mato Grosso e do Acre; milhões de pessoas não foram abrangidas nem no ponto de vista dum trabalho regulado, organizado, fiscalizado, nem no ponto de vista da civilização, e ainda decorrerão anos e decênios antes que elas possam ser ativamente incluídas na vida nacional. Como todas as forças de sua natureza, o Brasil até agora não aproveitou, nem como produtora, nem como consumidora de bens, essa grande multidão obscura. Também ela representa uma das enormes reservas para o futuro, uma das muitas energias potenciais deste país estupendo, ainda não transformadas em trabalho.

Por cima dessa massa amorfa espalhada por todo o país, a qual, em grande parte, analfabeta e, em seu padrão de vida, próxima do ponto zero, até agora pouco ou verdadeiramente quase nada pode contribuir para a civilização, ergue-se, aspirando intensamente a elevar-se e sempre crescente em sua influência, a classe média dos pequenos cidadãos, a classe média rural: os empregados, os comerciantes, os artesãos, os múltiplos profissionais urbanos e rurais. Nessa classe absolutamente racional, de maneira mais clara se revela a individualidade brasileira consciente por um modo de vida reconhecidamente pessoal — por um modo de vida que não só conserva conscientemente muito da tradição colonial, mas também de maneira fecunda procura aperfeiçoá-lo. Não é fácil penetrar na existência dessa classe, pois na sua atitude exterior falta toda ostentação; essa classe vive de modo inteiramente simples e que não chamam a atenção, e quase que eu desejaria dizer, vive silenciosa, porque três quartos da existência dos seus membros se passa no círculo da família, de modo inteiramente igual à nossa antiga maneira européia. Uma casa — a não ser no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde nos nossos dias os prédios de muitos andares propriamente pela primeira vez introduziram o tipo dos apartamentos — forma o invólucro que encerra o verdadeiro núcleo da existência, o círculo da família. É quase sempre uma casa pequena com um ou, no máximo, dois pavimentos e três a seis quartos, que, exteriormente, não tem pretensão ou ornatos e, interiormente, é guarnecida de mobiliário muito simples. A não ser em umas trezentas ou quatrocentas famílias da classe elevada, não se encontrarão no país inteiro nenhum quadro de valor, nenhuma obra de arte, mesmo medíocre, livros de valor, nada do conforto que tem o pequeno cidadão europeu — no Brasil é sempre a frugalidade que desperta a atenção do estrangeiro. Porque a casa é destinada exclusivamente à família, o brasileiro não procura fascinar com falsa pompa e pequenas coisas supérfluas. Com exceção do rádio e da luz elétrica e, quando muito, dum banheiro, ela nada mais tem do que nos tempos coloniais dos vice-reis, é também o modo da vida nessa casa é o daquela época; nos costumes alguma coisa de patriarcal do século passado, que entre nós — quase que se lastima dizê-lo — há muito se tornou histórica, conserva-se com todo o seu valor: sobretudo uma vontade tradicional opõe-se conscientemente aqui ao afrouxamento dos laços da vida de família e do princípio da autoridade paterna. Como nas velhas províncias dos Estados Unidos da América do Norte, também aqui a opinião rigorosa da época colonial inconscientemente continua a atuar; encontra-se aqui em pleno vigor o que nossos pais, na Europa, nos contavam do mundo, dos seus pais. A família aqui ainda é o verdadeiro centro dinâmico do qual tudo parte e ao qual tudo retorna. Os membros da família vivem juntos e protegem-se mutuamente; nos domingos reúne-se maior número de parentes; no seio da família resolve-se sobre a profissão, sobre os estudos que o indivíduo deverá seguir. Na família o pai ainda é senhor absoluto sobre os seus. Tem todos os direitos e prerrogativas, está certo da obediência como coisa natural, e sobretudo nos círculos rurais ainda é uso, como entre nós, em séculos passados, beijarem os filhos a mão do pai como sinal de respeito. A superioridade e a autoridade masculina ainda são incontestadas, e é permitido ao homem fazer muita coisa que não o é à mulher, a qual, embora já tenha mais liberdade do que há poucos decênios, se limita principalmente ao círculo de atividade doméstica. A mulher das classes superiores quase nunca anda sozinha na rua e seria inadmissível que, mesmo acompanhada por uma amiga, fosse ela vista na rua sem seu esposo, após o começo do crepúsculo; por isso à noite, como na Espanha e na Itália, as cidades propriamente já são só cidades de homens; são os homens que enchem os cafés, e passeiam nas avenidas, e mesmo nas grandes cidades quase não se poderá conceber que senhoras e senhoritas à noite fossem ao cinema sem serem acompanhadas pelo pai ou por um irmão. Aspirações à emancipação, ou feminismo, ainda não encontraram terreno aqui; mesmo as mulheres que exercem profissões e que constituem aqui uma insignificante minoria em comparação com o número das que se limitam à atividade no lar, conservam o tradicional retraimento. Ainda de menos liberdade naturalmente gozam as jovens. Relações de amizade, mesmo as mais inocentes, com jovens do outro sexo, se desde o começo não estão presas a propósitos matrimoniais, mesmo hoje ainda não são habituais, e o vocábulo “flirt” não pode traduzir-se para o português. Em geral, a fim de evitar todas as complicações, os brasileiros casam extraordinariamente cedo, as jovens, as mais das vezes, com dezessete ou dezoito anos e às vezes antes dessa idade; ter logo filhos e tê-los em abundância são coisas que ainda se desejam e não coisas que se temam. Mulher, casa e família aqui ainda se acham intimamente unidas; a não ser em festivais de beneficência, as mulheres nunca ocupam lugares de destaque, mesmo por ocasiões de solenidades oficiais, e, com exceção, da amante de D. Pedro I, a Marquesa de Santos, nunca desempenharam um papel na vida política. Os norteamericanos e os europeus podem soberbamente considerar isso como atraso, mas essas inúmeras famílias que, calmamente e sem nenhuma saliência, vivem contentes em seus pequenos lares, constituem por seu modo sadio e normal de existência o verdadeiro reservatório de energia da nação. Dessa classe média que, apesar de sua maneira conservadora de viver, tem interesse em aprender e ama o progresso, desse humus fértil e salubre origina-se a geração que com as famílias antigas e aristocráticas começa a tomar parte na direção do país. De certo modo Getúlio Vargas, que é filho do interior e provém da classe média, é a expressão mais evidente da geração nova, que intensa e energicamente aspira a elevar-se e, apesar disso, é conscientemente tradicional.

Acima dessa classe que já vai penetrando todo o país, dessa classe cuja influência cresce de dia para dia e que representa o Brasil novo, mantém-se firme a classe antiga e muito menor, que poderíamos denominar aristocrática, se neste país novo e absolutamente democrático essa palavra não induzisse em erro. Em parte, ainda oriundas da época colonial, em parte, procedentes de Portugal com o rei D. João VI, essas famílias freqüentemente aparentadas entre si, algumas nobres, outras não, verdadeiramente não tiveram tempo para formar uma casta aristocrática; o que elas tinham de comum entre si era apenas o modo de viver e a cultura do espírito altamente desenvolvida, havia várias gerações. Tendo viajado muito pela Europa ou tendo sido instruídos por governantas ou professores europeus, sendo em grande parte ricos ou exercendo altas funções públicas, os membros dessas famílias, desde o começo do primeiro império, conservaram sempre a dependência espiritual em relação à Europa e sua ambição era a de representarem perante o mundo o Brasil como um país civilizado e progressista. Dessas famílias descende a geração dos grandes estadistas, como Rio Branco, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, que de maneira felicíssima souberam dentro da única monarquia da América combinar o idealismo democrático norteamericano com o liberalismo europeu e realizar de uma maneira calma e perseverante aquele método de conciliação de tribunais arbitrais e de tratados que é honroso para a política brasileira. Ainda hoje a diplomacia está reservada quase exclusivamente a essa classe, ao passo que a administração e as funções militares já começam a passar mais para as mãos da classe nova e que está em ascensão. Mas sua influência cultural sobre o nível geral ainda é sensível e benéfica. Mesmo no modo de vida dessa classe antiga falta toda ostentação. Residindo em belas casas com jardins antigos e maravilhosos, as quais, porém, de nenhum modo, pretendem ser palácios, em sua maioria sitas nas partes da cidade outrora quase exclusivamente habitadas por eles, na Tijuca, nas Laranjeiras ou na rua Paisandú, os representantes dessa classe mantêm-se aferrados à tradição no modo de viver, são colecionadores de todos os objetos de valor histórico de seu país e, por sua simultânea limitação ao que é nacional e por sua universalidade espiritual, representam um tipo de civilização muito elevado, que falta quase inteiramente nos outros países sulamericanos e que por seu amor à arte e sua liberalidade lembra muito o austríaco. Essas famílias antigas — para serem antigas basta que aqui existam há cem anos — ainda não foram em seu predomínio cultural deslocadas por uma nova aristocracia da riqueza, porque elas mesmas em grande parte são ricas e aqui as diferenças são muito menos sensíveis do que entre nós na Europa. O brasileiro não conhece o exclusivismo, o que é uma vantagem, e do mesmo modo que nas diferenças raciais também nas diferenças sociais o processo de assimilação é constante. Toda tradição, todo passado aqui é muito curto para não deixar livre e facilmente que as novas formas, apenas em desenvolvimento, do que é brasileiro, os vão substituindo.

Toda a participação individual do Brasil na civilização universal no que respeita tanto à produção quanto à recepção, repousa nessas duas classes, porque a classe mais baixa, em virtude de analfabetismo e isolamento especial ainda não toma parte na formação duma civilização tipicamente brasileira. Para se apreciar devidamente essa atividade específica não se pode esquecer que toda a vida intelectual desta nação conta apenas pouco mais de um século e que antes disso, nos trezentos anos coloniais, toda forma de aspiração à civilização era sistematicamente reprimida. Até 1800 neste país, a que não era permitido imprimir um jornal ou uma obra literária, o livro era uma preciosidade, uma raridade e uma coisa supérflua, pois, se admitimos que por volta de 1800 entre cem pessoas só uma sabia ler e escrever, talvez este número ainda seja exagerado. Primeiramente eram ainda os jesuítas que nos seus colégios cuidavam da instrução, na qual naturalmente antepunham o ensino da religião a toda forma de instrução geral e de acordo com a época. Com sua expulsão em 1759 origina-se um vácuo completo na instrução pública. Nem o governo geral nem os governos das províncias pensam em criar escolas. Um decreto do Marquês de Pombal que cria um imposto especial sobre gêneros alimentares e bebidas, em 1772, para com o produto deste abrir escolas primárias, fica mais ou menos no papel. Com a corte portuguesa mudada de Lisboa, aparece, em 1808, a primeira biblioteca pública no país, e, a fim de dar à sua cidade residencial certo brilho de civilização, o rei manda vir sábios e funda academias e uma escola de belas artes. Mas com isso não se faz muito mais do que uma fachada revestida de uma leve mão de tinta; por enquanto ainda não se realiza nada de grandioso a fim de sistematicamente iniciar a maioria do povo no muito modesto segredo do ler, escrever e fazer contas. Só no primeiro império, em 1823, Se começa a projetar que cada vila ou cidade tenha uma escola pública, cada província um liceu e que se estabeleçam universidades nos mais apropriados locais. Mas ainda se passam quatro anos até que em 1827 seja estabelecida por lei a exigência mínima, a de que em toda grande localidade exista uma escola primária. Com isso afinal se dá o primeiro passo para um progresso, cuja lentidão, todavia, é igual à do caracol. Em 1872, calcula-se que, numa população superior a dez milhões, ao todo, só 139.000 crianças freqüentem escola, e mesmo em nossos dias, em 1938, o Governo ainda se vê na necessidade de criar uma comissão para acabar definitivamente com o analfabetismo.

Ao desejado florescimento duma poesia e literatura próprias faltou, pois, durante séculos, o conveniente húmus para que elas pudessem realmente crescer: o público nacional. Fazer versos, escrever livros era para um brasileiro até quase a nossa época, um sacrifício verdadeiramente heróico, sem esperança de resultado monetário, feito ao ideal da literatura, pois todo escritor, desde que não se pusesse ao serviço do jornalismo ou da política, criava e falava no vácuo. As grandes massas não podiam ler seus livros, porque não sabiam ler, e a delgada camada intelectual, a aristocrática, achava de pouca importância comprar um livro brasileiro e mandava vir romances e livros de versos exclusivamente de Paris. Só nos últimos decênios, pela afluência de elementos habituados à civilização e que por isso sentiam necessidade de civilização, pela enorme expansão da cultura na classe média que está em ascensão, tem-se dado aqui uma mudança. Com toda a sofreguidão que só se observa em nações que durante muito tempo foram reprimidas, a literatura brasileira penetra na literatura universal. O interesse pela produção intelectual é assombroso neste país. Abrem-se livrarias e mais livrarias, a impressão e a ornamentação dos livros melhora constantemente, obras beletristas e mesmo científicas podem chegar a números de edições que há um decênio ainda se considerariam uma fantasia, e a produção brasileira começa já a sobrepujar a portuguesa. Mais do que entre nós, onde o esporte e a política, de modo igualmente fatal, desviam a atenção da juventude, a produção intelectual e a artística estão no centro do interesse da nação inteira, pois o brasileiro tem muitíssimo interesse pelas coisas intelectuais. De inteligência viva, de percepção rápida e, por natureza, loquaz, o brasileiro, como neto de portugueses, sente prazer em belas formas de linguagem, que aqui, nas cartas e nas conversas, se apresentam com especiais delicadezas e, no discurso, facilmente tendem ao arrebatamento. Gosta de ler; é raro ver o trabalhador, o condutor de bonde, num minuto de folga, sem um jornal nas mãos, raro também é ver um jovem estudante sem um livro consigo. Para essa geração inteiramente nova, a literatura não é como para o europeu uma coisa trivial, já de alguns séculos de existência, uma herança, mas sim algo conseguido por ela própria, e ela encontra orgulho e prazer em descobrir-se a si mesma e descobrir toda a literatura universal. Não há exagero em dizer que nos países sulamericanos, mais que em todos os outros, ainda existe certo respeito para com a produção intelectual e que o que é contemporâneo, também graças à modicidade de preço das edições, se difunde mais depressa e mais largamente pelo povo, do que nas nações presas à tradição. Pelo pendor ingênito do brasileiro para formas mais delicadas, a poesia durante muito tempo teve a primazia na literatura nacional. Com as poesias épicas “Uruguai” e “Marília” começou o cultivo brasileiro do verso, que revelou personalidades verdadeiramente eminentes. Um lírico aqui ainda pode de fato tornar-se popular. Em todos os jardins públicos, como no Parque Monceau e Luxembourg em Paris, encontram-se estátuas de poetas nacionais, e até a um, que ainda vive, Catulo da Paixão Cearense, a população — ou melhor, o povo por meio de coleta de moedas de prata — prestou essa tocante homenagem. Este país é ainda um dos poucos que venera a poesia, e a Academia Brasileira de Letras compreende hoje um bom número de poetas, que deram à língua matizes novos e individuais.

Mais tempo foi preciso para se dar na prosa, no romance e na novela a emancipação dos modelos europeus. Mesmo o descobrimento do “bom índio” no “Guarani” de José de Alencar foi apenas uma reimportação de modelos estrangeiros como “Atala” de Chateaubriand ou “Bota de pele” de Fennimore Cooper. Apenas a temática exterior dos romances de José de Alencar e o colorido histórico dos mesmos são brasileiros; a atitude psíquica e a atmosfera artística não o são.

Só na segunda metade do século dezenove foi que o Brasil apareceu com duas figuras verdadeiramente representativas, Machado de Assis e Euclides da Cunha, na literatura universal. Machado de Assis é para o Brasil o que Dickens é para a Inglaterra e Afonso Daudet para a França. Tem o poder de apresentar com realismo tipos vivos que caracterizam o seu país e o seu povo; é por natureza um narrador, e uma mescla de leve humorismo e superior ceticismo dá a todos os seus romances um encanto especial. Com o seu “Dom Casmurro”, a mais popular de suas obras primas, criou uma figura que para seu país é tão imortal como Davi Copperfield para a Inglaterra e Tartarin de Tarascon para a França. Graças à pureza diáfana de sua prosa e à sua visão nítida e humana, Machado de Assis emparelha com os melhores narradores europeus de sua época.

Ao contrário de Machado de Assis, Euclides da Cunha não foi escritor profissional; sua grande obra nacional, “Os Sertões”, nasceu, por assim dizer, de um acaso. Euclides da Cunha, que era engenheiro, acompanhou, como representante do jornal “O Estado de São Paulo”, uma das expedições militares contra os fanáticos de Canudos, seita de rebeldes que existiu no interior do Estado da Bahia. O relato dessa expedição feito com um vigor estupendo e dramático ampliou-se, a tomando a forma de um livro, para constituir uma copiosa descrição psicológica de parte da nação brasileira, do povo e do país, que, depois, nunca mais foi conseguida com semelhante profundeza de visão e perspicácia sociológica Essa grandiosa obra, que na literatura universal é com “Seven Pillars of Wisdom”, na qual Lawrence descreve a luta no deserto, que mais se pode comparar, é pouco conhecida no estrangeiro. Pela sublimidade dramática de sua descrição, pela sua riqueza em perspicácia e pelo seu admirável humanitarismo, está destinada a sobreviver a numerosos livros que na atualidade são célebres. Se a literatura brasileira em seus romancistas e poetas realizou enormes progressos em sutileza e em matizes de linguagem, não atingiu com mais nenhuma outra obra esse proeminente fastígio.

Mas a arte dramática por enquanto ainda está pouco desenvolvida. Não me foi referido o nome de nenhum drama como realmente digno de nota, e mesmo na vida pública e social a arte teatral quase não desempenha papel importante. O fato em si não é de causar admiração, pois o teatro como produto típico de uma sociedade homogeneamente organizada é uma forma de arte que só pode manifestar-se dentro de determinada classe social, e essa classe social no Brasil não teve tempo de desenvolver-se. O Brasil não passou por uma época isabeliana, não teve uma corte de Luiz XIV e uma grande multidão fanática pelo teatro como a Espanha e a Áustria. Toda a produção teatral até um período avançado do império foi exclusivamente de importação — e, em virtude da enorme distância entre o Brasil e a Europa, de importação de companhias inferiores e de artigo inferior. Um verdadeiro teatro nacional não se tentou, nem se promoveu, mesmo sob o reinado de D. Pedro II; as primeiras companhias européias que vieram ao Brasil, representaram em espanhol, e italiano, e francês, e não em português. Na época atual, em que nas grandes cidades com mais de um milhão de habitantes já existiria um público capaz de acolher o teatro, talvez seja demasiado tarde para iniciá-lo, por causa da influência do cinema, que domina tudo.

No que respeita à música, suas condições são semelhantes às do teatro. Nela se sente a falha de uma tradição secular e que se haja entranhado em todas as camadas da população. Faltam os grandes coros organizados, de modo que precisamente as obras monumentais da música, como a Paixão de Mateus, os. grandes requiem, a Nona Sinfonia de Beethoven, os grandes oratórios de Haendel, são desconhecidas do grande público. Os repertórios das temporadas líricas no Rio de Janeiro e em São Paulo são constituídos ainda, como há cinqüenta anos passados, das óperas italianas de Verdi e, na melhor das hipóteses, das de Puccini. Uma ópera como “Tristão e Isolda”, cuja primeira representação D. Pedro II, há quase um século, quis que fosse no Rio de Janeiro, foi levada à cena talvez duas ou três vezes nesta cidade. A música verdadeiramente moderna é desconhecida neste país. Já agora começaram a organizar-se orquestras sinfônicas, mas ainda é a música ligeira, agradável, a preferida pelo público.

Por isso é tão mais surpreendente que este país já numa época em que eram necessários verdadeiro heroísmo e uma vontade de aprender francamente fervorosa para alguém se instruir, haja produzido um compositor ao qual estava reservada uma ruidosa fama mundial, Carlos Gomes. Nascido em 1836, numa cidade do Estado de São Paulo, já aos dez anos aparece ele numa orquestra e, sem ter um verdadeiro mestre, num país em que partituras e verdadeiras representações quase lhe eram inacessíveis, aperfeiçoa-se com tanta força de vontade que já aos vinte e quatro anos pode apresentar uma ópera, “A Noite do Castelo”. Representada em 1861 no Rio de Janeiro, ela, como a sua ópera seguinte, obteve grande êxito. Então D. Pedro II se interessa por esse artista e o manda para a Europa a fim de aperfeiçoar seus estudos. Na Itália chega-lhe às mãos o romance “O Guarani” de seu patrício José de Alencar, em tradução italiana, e imediatamente ele o leva a um libretista e diz-lhe que essa é a obra com que, como brasileiro, quer apresentar o Brasil ao mundo. Em 1870 a ópera é representada no teatro Scala, com grande sucesso. O velho Verdi declara haver achado em Carlos Gornes um digno sucessor, e ainda hoje “O Guarani” — a melhor ópera “de Meyerbeer”, como a qualificou um historiador da música — é de vez em quando levada à cena em teatros da Itália. Um típico exemplar clássico das grandes óperas que fornecem ao olhar, aos ouvidos, tudo em abundância e superabundância, mas não fornecem o suficiente à alma, um exemplar melodioso em sua parte lírica, a obra tem êxito ainda hoje e torna compreensíveis as grandes esperanças que se depositavam na maior ascensão de Carlos Gomes. Mas precisamente porque “O Guarani” se enquadra tão bem nessa época romântica e pomposa de Meyerbeer, é hoje, mais já um documento da história da música, do que uma música viva. A contribuição tipicamente brasileira para a música universal, muito mais do que por Carlos Gomes, que italianizou a música brasileira, foi dada por Villa Lobos. Este compositor é um rítmico vigoroso e original, que sabe dar a cada uma das suas produções um colorido que não se encontra em outros compositores, colorido que em sua vivacidade e em sua misteriosa melancolia reflete misteriosamente a paisagem e a alma brasileiras.

Uma expressão, de modo semelhante, tipicamente brasileira espera-se encontrar na pintura de Portinari, que como pintor brasileiro foi o primeiro que logrou conquistar uma posição internacional em poucos anos. Mas quantas cores, quanta variedade, que enormes e felizes obras ainda esperam nestas sublimes paisagens o artista que, como Gauguin para a Oceania e Segantini para a Suíça, quisesse tornar conhecida do mundo a grandiosa natureza do Brasil! Que possibilidades se oferecem aqui à arquitetura nestas cidades que crescem com uma rapidez febril e que revelam cada vez mais a vontade forte de não mais se formarem segundo o esquema europeu nem o norteamericano, mas sim com um aspecto próprio! Muito se tem tentado aqui nesse sentido e alguma coisa de essencial já se conseguiu.

Nas ciências — nas quais me falta uma visão de conjunto e uma apreciação, por insuficiência de conhecimentos especiais — os últimos anos realizaram um progresso assombroso na apresentação histórica e econômica do país por si próprio. Quase todos os documentos antigos relativos ao Brasil e descrições antigas deste são da autoria de estrangeiros. As descrições verdadeiramente clássicas do Brasil devemos ao francês Thevet e ao alemão Hans Staden no século dezesseis, ao holandês Barleus no século dezessete, ao italiano Antonil no século dezoito, ao inglês Southey, ao alemão Humboldt, ao francês Debret no século dezenove. Mas nos últimos decênios os brasileiros têm tomado a si a tarefa de, baseados nos mais cuidadosos estudos de fontes, tornarem conhecidos o seu país e a sua história, e essa literatura, junto com as muito sólidas publicações do governo da União e dos governos estaduais, constitui já uma biblioteca inteira. Na filosofia há que registar como fenômeno curiosíssimo o fato de o positivismo de Augusto Comte haver fundado aqui uma escola e até um templo; boa parte da constituição brasileira está impregnada das fórmulas e idéias desse filósofo francês, que aqui, muito mais do que em sua pátria, conseguiu influir sobre a vida real. No domínio da técnica sobretudo o aeronauta Santos Dumont adquiriu glória imorredoura por seu primeiro vôo em volta da Torre Eiffel e por sua construção de aeroplanos; a ousadia e energia de seus empreendimentos deram o impulso decisivo para o êxito da aviação. Se ainda hoje se discute se o primeiro vôo humano numa aeronave mais pesada do que o ar foi realizado por ele ou pelos irmãos Wright, essa questão verdadeiramente só indica que Santos Dumont ocupa, sem dúvida, o primeiro lugar ou, na pior das hipóteses, o segundo lugar nesse feito mais eminente e mais heróico do mundo moderno, e isso basta para gravar seu nome para sempre nas páginas da História. Sua vida já por si é uma sublime epopéia de ousadia empreendedora e de abnegação, e inolvidáveis como o seu feito técnico serão os atos de seu humanitarismo, aquelas duas cartas que desesperado dirigiu à Liga das Nações, pedindo que esta proibisse de uma vez para sempre o emprego do avião para o lançamento de bombas e para outras crueldades bélicas. Só com essas duas cartas, que perante o mundo inteiro proclamam e afirmam o espírito humanitário de sua pátria, a figura de Santos Dumont se pôs para sempre ao abrigo de todo esquecimento injusto.

Dando-se, pois, o balanço com números exatos, verifica-se que a atividade cultural do Brasil hoje já é extraordinária. Mas só se faz o cálculo com exatidão, não se considerando como a idade cultural do Brasil a de quatrocentos e quarenta anos e nem como o número de seus habitantes o de cinqüenta milhões. Desde sua independência não conta o Brasil muito mais do que cem anos, conta cento e dezoito, e de sua população hoje ainda apenas um pouco mais de sete ou oito milhões tomam parte produtiva na vida moderna. Toda comparação com a Europa de nada vale. A Europa possui muitíssimo mais tradição e menos futuro, o Brasil tem menos passado e mais porvir. Tudo o que aqui foi eito é uma parte do que ainda está por fazer, muita coisa que o fundo de reserva secular naturalmente concede à Europa, ainda aqui está a realizar-se: os museus, as bibliotecas, a difusão do ensino. O jovem artista, o jovem escritor, o jovem sábio e o estudante têm aqui ainda cem vezes mais dificuldades do que nos estabelecimentos de ensino mais bem dotados e mais bem organizados dos Estados Unidos da América do Norte de adquirir uma visão de conjunto e conhecimentos universais. Ainda se sente aqui às vezes certa estreiteza e distância dos mais atuais esforços de nossa época; o país ainda não está desenvolvido de acordo com suas próprias proporções, ainda todo brasileiro sente que um ano de Europa ou de Estados Unidos da América do Norte é o conveniente último degrau de sus estudos. O Brasil, apesar de todas as nossas loucuras, ainda tem que receber impulso do nosso Velho Mundo.

Mas, por outro lado, também o europeu que chega ao Brasil para visitá-lo mais ou menos demoradamente, tem aqui muito que aprender. Encontra outro sentimento do tempo. Aqui o grau de tensão da atmosfera é menor, os indivíduos são mais afáveis, os contrastes menos fortes, a natureza está mais próxima, o tempo não está tão cheio de ocupações, as energias não se acham tão forte e extremamente tensas. Vive-se aqui mais pacífica, portanto mais humanamente, não se vive tão maquinal, tão padronizadamente como nos Estados Unidos, não se vive tão superexcitado e envenenado pela política como na Europa. Porque neste país há espaço em torno dos indivíduos, uns não acotovelam sofregamente os outros, porque aqui há futuro, a atmosfera é mais tranqüila e o indivíduo está menos aflito e excitado. É uma boa terra para pessoas idosas que já viram muita coisa deste mundo e desejam silêncio e vida retirada numa paisagem bonita e tranqüila, a fim de meditarem em tudo o que viveram e o aproveitarem. É uma terra maravilhosa para pessoas jovens que queiram empregar num mundo ainda não fatigado suas energias ainda não aproveitadas, que possam inteiramente e com alegria adaptar-se aqui e colaborar para o desenvolvimento e o engrandecimento do país. De todos que nos últimos decênios vieram da Europa para aqui, quase nenhum voltou para lá; para os mesmos povos que hoje além-mar se guerreiam insensatamente, o Brasil tornou-se uma pátria comum e pacífica. E, se a civilização do nosso Velho Mundo de fato se aniquilasse nessa luta suicida, saberíamos que aqui há outra em atividade, pronta a tornar uma vez ainda realidade tudo o que entre nós as mais nobres gerações intelectuais em vão desejaram e sonharam: uma civilização humana e pacífica. É esse o mais feliz consolo em alguns momentos da nossa consternação.


 

RIO DE JANEIRO

A entrada no porto do Rio de Janeiro

 

De manhã muito cedo já todos os passageiros, munidos de binóculos e de aparelhos fotográficos, esperam sôfregos a entrada no porto do Rio de Janeiro; nenhum, por mais vezes que já a tenha visto e admirado, quer perder esse magnífico espetáculo. Mas o mar ainda continua azul como nos dias anteriores, ainda nos apresenta sua monotonia repousante, e ao mesmo tempo cansativa. Todavia sentimos que nos estamos aproximando do litoral, percebemos que ele está próximo, já antes de avistá-lo, pois o ar se vai tornando diferente, sentimo-lo mais macio na boca e nas mãos; insensivelmente se acerca de nós um odor vago, produzido no interior das gigantescas florestas, pelo hálito dos vegetais, pelas corolas das flores e pela exalação indescritível e quente dos trópicos, que de maneira suave embriaga e fadiga.

Agora, afinal, ao longe um contorno; uma cadeia de montanhas desenha-se vagamente parecendo nuvens, e à medida que o navio se aproxima, esses contornos se tornam mais nítidos: é a cadeia de montanhas que de braços abertos protege a baia de Guanabara, uma das maiores do mundo. Tão ampla é essa baia, com suas diferentes enseadas, que nela caberiam todos os navios do mundo juntos, e dentro dessa gigantesca concha desabrochada jazem espalhadas como pérolas um sem número de ilhas, cada qual de forma e cor diferente. Algumas delas se destacam do mar ametístico apenas por sua cor cinzenta e uniforme; de longe poderíamos tomá-las por baleias, tão nu e escalvado é o seu dorso. Umas são compridas e rochosas e parecem crocodilos, outras têm casas, outras são transformadas em fortes e outras parecem jardins flutuantes com palmeiras, e, enquanto curiosos admiramos com o binóculo a surpreendente variedade de suas formas, aparecem mais nitidamente os morros do fundo do panorama, também cada um deles de forma caprichosa e diferente da dos outros. Um se apresenta nu e o outro envolto num manto verde de palmeiras; este é penhascoso, aqueloutro é circundado por um cinto resplandescente de casas e jardins; é, como se a natureza, como ousado artista, houvesse tentado colocar todas as formas imagináveis ao lado uma das outras, e por isso deu a fantasia popular a cada um desses vultos montanhosos de pedra nomes variados: Morro da Viúva, Corcovado, Dedo de Deus, Gigante Adormecido, Dois Irmãos e Pão de Açúcar. Este, que é de todos o mais visível, ergue-se à entrada da barra e constitui, como a Estátua da Liberdade em Nova York, o símbolo velhíssimo e inamovível da cidade. No meio de todos esses monólitos e morros ergue-se o chefe dessa família de gigantes, o Corcovado, que suporta uma enorme estátua de Cristo (iluminada de noite por eletricidade) alçada sobre o Rio de Janeiro, para abençoá-lo.

Agora afinal, após havermos passado por uma série de ilhas, avistamos a cidade. Mas não a avistamos toda de uma vez. Não como em Nápoles, em Argel, em Marselha: não descortinamos todo de uma vez esse panorama de casas, mas como um anfiteatro, com degraus de pedra; quadro por quadro, parte por parte, prospecto por prospecto, o Rio de Janeiro vai-se mostrando, como um leque. E precisamente isso torna a entrada do Rio de Janeiro tão dramática, tão incessantemente maravilhosa, pois cada uma das enseadas habitadas cuja soma constitui o ribamar, é separada das outras por cadeias de morros, as quais são como que as varetas do leque: separam cada uma das vistas e, não obstante isso, as unem. Afinal se mostra a figura que tem um aspecto encantador: é uma longa avenida beira-mar com casas, vilas e jardins e que recebe constantemente a espuma das ondas. Já distinguimos nitidamente um hotel de luxo e nas encostas dos outeiros vemos as vilas cercadas de vegetação, mas estamos enganados! Isso é só a Praia de Copacabana, uma das mais belas do mundo, é um arrabalde novo, não é a cidade propriamente dita. Temos ainda que passar pelo Pão de Açúcar, que impede a vista, e só depois de feito isso, avistamos, dentro da baia a cidade, densa e branca junto à ribeira, e que se vai disseminando pelos morros verdejantes. Vêem-se os jardins à beira-mar, recentemente feitos, e o aeródromo, que acaba de ser ganho ao mar. Daqui a pouco vamos atracar e satisfazer a nossa sofreguidão. Mas outra vez nos enganamos. As enseadas que estamos vendo são a de Botafogo e a do Flamengo, o navio ainda tem que prosseguir, ainda temos que passar pela Ilha das Cobras, com seus estabelecimentos da Marinha, e pela Ilha Fiscal com o palácio gótico em que D. Pedro II, dias antes de sua destronização, deu o último baile. E só agora aparecem os arranha-céus, constituindo uma massa vertical; só agora se mostra o cais, só agora pode o navio atracar e estamos na América do Sul, estamos no Brasil, estamos na mais bela cidade do mundo.

Essa entrada de uma hora no porto do Rio de Janeiro é um acontecimento sem par e na irresistível impressão que causa, só se pode comparar com a entrada no porto de Nova York. Mas Nova York saúda mais austera, mais energicamente: com seus cubos brancos como neve dispostos uns sobre os outros, dá a impressão de um “fjord” nórdico. Manhattan é uma saudação viril, heróica, é a vontade humana da América do Norte ereta, é uma explosão de forças reunidas. O Rio de Janeiro não se empertiga diante de quem chega, abre seus braços macios, femininos, recebe-o com grande e carinhoso abraço, atrai, e abandona-se, com certa volúpia, aos olhares admirados. Tudo aqui é harmonia, a cidade e o mar, a vegetação e os montes, tudo isso de certo modo se combina harmoniosamente; mesmo os arranha-céus, os navios e os letreiros luminosos multicores não perturbam o panorama; e essa harmonia repete-se com acordes sempre variados. A cidade, vista dos morros, é uma e, vista do mar, é outra; mas por toda parte há harmonia, pormenores que se reúnem para constituírem uma unidade sempre completa. O Rio de Janeiro é uma natureza que se tornou cidade, e é uma cidade que dá impressão de natureza. E grandiosa e magnanimamente como recebe alguém, sabe conservá-lo; desde a hora da chegada já sabemos que os olhos não se cansarão e a mente não se fartará dessa cidade sem par.

Mais breve, porém, talvez ainda mais perturbadora é a impressão que recebemos desta cidade quando chegamos a ela de avião. Vemos então pela primeira vez o traçado da cidade — vemos como esta se acha situada junto aos morros que a vigiam, e como, por assim dizer, se vai ela diluindo na paisagem. Voamos sobre morros e morros e de repente vemos a amplidão dessa baia que em sua gigantesca concha azul encerra a pérola branca. Vemos, como se houvessem sido traçadas a faca; as linhas das avenidas, que se entrecruzam, vemos as resplendentes faixas estreitas constituídas pelas praias e depois os seixos brancos formados pelas vilas e casas, bem como o azul do firmamento e a água que o reflete. E então parecem sumir-se os morros, porque o avião descreve uma curva; agora é a cidade que com suas casas brancas, como se fosse uma só parede de pedra, nos saúda, e já vemos a fila dos autos em movimento nas avenidas à beira-mar, os banhistas nas praias, sentimos a vida que nos espera e vemos as cores que nos deslumbram. E mais uma, duas, três vezes, voa o avião, cada vez mais baixo, tão baixo que quase roça o telhado do Mosteiro de São Bento. E então rangem as rodas, estamos na mais bela terra do mundo.


 

O Rio de Janeiro

 

Em 1552, há quase quatrocentos anos, escreveu Tomé de Souza quando chegou ao Rio de Janeiro: “Tudo é graça que dela se pode dizer”. Ninguém pode exprimir melhor a impressão que lhe dá o Rio de Janeiro do que o fez, apenas da terra, esse rude iniciador. A beleza dessa cidade, dessa paisagem, com efeito, quase não se pode reproduzir nem pela palavra, nem pela fotografia, porque é demasiado variada, demasiado heterogênea e inesgotável; um pintor que quisesse representar o Rio em toda a sua plenitude e com todos os seus milhares de cores e cenas, não teria tempo para concluir a sua obra em uma vida inteira. E isso, porque a natureza, em capricho sem par de prodigalidade, concentrou num pequeno espaço todos os elementos da beleza que costuma distribuir e disseminar, com parcimônia, pelo território inteiro de outros países. O mar aqui se apresenta com todos os aspectos e cores: é espumoso e verde na praia de Copacabana, lança-se furioso contra os rochedos na Gávea, sereno e azul aconchega-se à praia em Niterói, e carinhosamente abraça as ilhas. Nos morros, cada cume e cada encosta têm forma diferente: um morro é íngreme, pardo e rochoso, o outro é coberto de vegetação; o Pão de Açúcar é alcantilado e pontudo, o cimo do morro da Gávea é plano, como se houvesse sido achatado por um martelo gigantesco, e a Serra dos Órgãos apresenta-se denteada. Cada um difere do outro em sua forma, mas todos se unem para constituírem um círculo fraternal. Há aqui lagoas, como a de Rodrigo de Freitas e a da Tijuca, cujas águas refletem as montanhas, a paisagem e, ao mesmo tempo, os focos da iluminação elétrica; há aqui cascatas, cujas águas se precipitam frescas e espumosas dos rochedos, há aqui córregos e rios, há água em todos os seus aspectos. Há vegetação de todos os matizes, mata virgem até quase junto à cidade com exuberantes cipós e espessura impenetrável; há parques e jardins bem cuidados que encerram árvores, frutos, arbustos dos trópicos, numa aparente desordem e, apesar disso, numa ordem propositada. Por toda parte a natureza é exuberante, mas, ao mesmo tempo, harmônica, e em plena natureza se acha a própria cidade. É uma floresta de pedras com seus arranha-céus e pequenos palácios, com suas avenidas, praças e ruas estreitas de aspecto oriental, com suas choças de negros e gigantescos ministérios, com suas praias de banho e seus casinos. É tudo ao mesmo tempo, uma cidade luxuosa, uma cidade marítima, uma cidade comercial, uma cidade industrial, uma cidade de estrangeiros, uma cidade de funcionários. E, por cima de tudo isso, estende-se um firmamento azul carregado, durante o dia, como se fosse uma tenda imensa e, de noite, semeado de estrelas meridionais. No Rio o olhar, para onde quer que se dirija, sempre se deleita.

Não há cidade mais bela no mundo, e talvez não haja outra que seja mais misteriosa, mais heterogênea. Quem a viu uma vez, não contestará o que acabo de dizer. Não se consegue conhecê-la inteiramente. Já o mar deu às linhas da costa um singular ziguezague, e os morros com suas íngremes encostas impedem a expansão livre e regular da cidade. Por toda parte da cidade encontramos betesgas e curvas, todas as ruas cortam-se de modo irregular, e sem cessar perdemos a orientação. Onde julgamos haver chegado ao fim, esbarramos com outro começo; quando deixamos uma enseada para penetrar no coração da cidade, chegamos surpresos a outra enseada. Em cada caminho encontramos algo novo, uma vista surpreendente das colinas, uma pequena praça, como se houvesse sido esquecida pela época colonial, um mercado, um canal ladeado de palmeiras, um jardim, uma “favela”. Em lugares pelos quais passamos uma centena de vezes, se, por descuido entramos numa rua de menor importância, achamo-nos em outro mundo; é como se estivéssemos sobre um disco giratório que ininterruptamente nos colocasse diante de outras vistas. A tudo isso se junta o fato de se transformar a cidade com uma rapidez espantosa, de ano para ano, mesmo de mês para mês. Alguém que haja estado ausente do Rio por alguns anos, precisa muito tempo para novamente se orientar. Se queremos subir um outeiro, a fim de rever os velhos bairros românticos situados em plena cidade, não o encontramos: foi arrasado e o local que era por ele ocupado, é atravessado por uma grande avenida de prédios de doze andares. Onde um rochedo impediu a passagem, há agora um túnel, onde havia mar, hoje existe um aeródromo, onde há três meses numa costa distante do centro da cidade caminhávamos na areia, há agora um grupo de vilas; todas essas transformações operam-se aqui com uma rapidez fantástica. Por toda parte acontece alguma coisa, por toda parte há cor, luz e movimento, nada se repete, nada combina e, não obstante isso, tudo é acorde. O passear a pé, que em outras grandes cidades quase não dá prazer, aqui ainda é uma fonte de satisfação e de alegria pelos descobrimentos quotidianos que fazemos. Onde quer que nos achemos, encontramos deleites para o olhar. Se vamos à casa de um amigo e durante a conversa casualmente olhamos pela janela do sexto andar, ampla e majestosamente, como nunca a havíamos visto, depara-se-nos a baia de Guanabara com suas ilhas pitorescas e com os vapores que a navegam. Se na mesma casa entramos num aposento com janela para os fundos, já não vemos o mar, mas temos diante de nós o Cristo iluminado do Corcovado e os vultos escuros dos morros. As fileiras de luzes da rua prolongam-se, a perder de vista, e, se nos debruçamos na sacada, vemos em baixo um bairro de negros com pequenas choças e luzes de cor. Se queremos ir à cidade, temos que passar por cima dum morro; a todo momento pedimos ao amigo, que está dirigindo o automóvel, que pare, a fim de não perdermos outra vista maravilhosa. Se queremos ir a um subúrbio, para ali nos divertirmos em olhar as pequenas lojas multicores, achamo-nos de repente entre grandes palacetes feudais com jardins seculares. Se subimos de bonde para Santa Teresa, a fim de passarmos algum tempo inteiramente em contacto com a natureza solitária, de súbito nos achamos sobre um aqueduto construído no século dezoito, e, alguns minutos depois, no meio dum grupo de casas de apartamentos. Num quarto de hora podemos ir de uma praia ao cimo de uma montanha, em cinco minutos, de um mundo de luxo à mais primitiva pobreza das choças de barro e, em mais cinco minutos, podemos estar novamente em pleno movimento cosmopolita de cafés luxuosos e num turbilhão de automóveis — tudo aqui se mistura, se confunde, pobre e rico, novo e velho, paisagem e civilização, choças e arranha-céus, negros e brancos, carroças antiquadas e automóveis, praia e rochedo, vegetação e asfalto. E tudo isso brilha com as mesmas cores deslumbrantes, tudo é bonito, tudo é mesclado e sempre fascinante. Nunca nos cansamos, nunca nos fartamos. Nunca abrangemos o perfil inteiro da cidade, pois ela tem algumas dezenas, aliás centenas, de perfis. De qualquer lado, de qualquer plano, de qualquer ponto que olhemos a cidade, ela é sempre outra; é outra, vista do seu interior, do seu exterior, de cima, de baixo, dum morro, do mar, duma rua, dum avião, duma barca, de qualquer casa, de qualquer aposento. A quem saiu do Rio, todas as cores em todas as outras cidades parecem sem brilho, os habitantes nas ruas, monótonos, e a vida parece demasiado ordenada, demasiado uniforme. Depois que deixamos essa cidade, tudo para nós é desencanto; tudo nos parece sombreado, após essa ebriedade de cores e formas, após essa divina variedade.

No Rio a vida pode ser boa para todos. A idéia de aqui ser rico, de viver em uma dessas casas maravilhosas cercadas de parques e situadas nos outeiros da Tijuca é muito sedutora. É mais fácil ser pobre aqui do que noutra grande cidade. O mar é livre para o banho, e a beleza para todos os olhos; as pequenas necessidades da vida custam pouco dinheiro, as pessoas são afáveis e é infinda a multiplicidade das pequenas surpresas diárias que fazem feliz uma pessoa, sem que ela saiba o porque disso. Há, na atmosfera, algo de brando e repousante que faz com que o indivíduo se torne menos combativo, talvez também menos enérgico. Esta paisagem, como tudo o que é belo e sem par na terra, dá ao indivíduo um misterioso consolo. De noite, com seus milhões de estrelas e de luzes, de dia com suas cores claras e vivíssimnas, ardentes e explosivas, no crepúsculo com sua leve neblina e jogos de nuvens, em seu calor fragrante e em seus aguaceiros tropicais, esta cidade sempre é encantadora. Quanto mais tempo a conhecemos, tanto mais gostamos dela. Mas quanto mais tempo a conhecemos, tanto menos podemos descrevê-la.


 

O Rio antigo

 

Para compreendermos verdadeiramente uma cidade, uma obra de arte, uma pessoa, temos de conhecer o seu passado, a história da sua vida, a sua evolução. Por isso em toda cidade que para mim é nova dirijo-me em primeiro lugar aos alicerces sobre os quais ela se ergueu, a fim de compreender o seu presente por meio do seu passado. Nada mais natural do que no Rio procurar eu primeiramente o Morro do Castelo, a colina histórica, onde há quatrocentos anos, vencidos os franceses, os portugueses, após a vitória, lançaram a pedra fundamental da cidade. Mas a minha procura foi inútil. O morro histórico fora arrasado. Não é mais possível encontrar uma pedra, um torrão de terra dele. O terreno há muito que está nivelado e ruas largas percorrem a esplanada. Fenômeno curioso! O Rio antigo desapareceu e o novo se acha sobre um solo inteiramente diferente daquele em que assentava a cidade dos séculos dezesseis e dezessete. Onde hoje estão as ruas alfaltadas, primitivamente, só existiam pântanos e baixadas insalubres, inabitáveis, percorridas por pequenos cursos d’água; os primeiros colonos fizeram suas moradas nos morros. Só pouco a pouco puderam os habitantes, com a terra dos morros, ir ganhando terreno aos pântanos e ao mar, secando o solo nos vales, atulhando ou canalizando os cursos d’água e, ao mesmo tempo, aterrando pedaços da baia. Depois foram sendo arrasados os morros que dificultavam o trânsito. Assim a cidade em trezentos anos se alterou completamente, e tudo, ou quase tudo, o que era histórico foi vitima dessa sôfrega transformação.

Mas com isso não houve grande perda, pois nos séculos dezesseis, dezessete e até boa parte do século dezoito a Bahia foi a capital do Brasil e o Rio era muito pobre, muito pequeno para construções artísticas e palácios luxuosos. Mesmo quando no começo do século dezenove a corte portuguesa fixou residência aqui, os hóspedes involuntários não encontraram abrigo condigno. Tudo o que é histórico data, pois, quando muito, do fim da época colonial, e uma casa de cento e cinqüenta anos, ao contrário do que sucede na Bahia, aqui já goza de venerabilidade. São as poucas ruas próximas da Alfândega do Rio, que ainda não foram alteradas em sua genuinidade, as que melhor nos dão uma idéia dessa época colonial, de seu estilo e dos modos de então. Elas ainda são tipicamente portuguesas e, em sua despretensão e modéstia, dão uma impressão agradável. Seus prédios, de um ou dois pavimentos, outrora caiados de várias cores, não possuem outro ornato senão as belas grades de ferro batido das cadas; esses prédios, que perderam a sua distinção de outrora, são agora exclusivamente ocupados por estabelecimentos comerciais. No primeiro pavimento há lojas, armazéns, nos quais podemos ver as mercadorias empilhadas. As mais das vezes sentimos o cheiro de tais ruas, antes de as vermos, pois essas ruas estreitas próximas do porto, as últimas que restam da época colonial e não sofreram transformação, tresandam a peixe, frutas e legumes. Não temos necessidade das excelentes descrições de Luiz Edmundo na sua obra “O Rio no tempo dos vice-reis” para fazermos idéia de como essas ruas estreitas deveriam ser horrivelmente empestadas e sufocantes numa época em que homens e gado ocupavam as ruas e ainda não se observavam as mais primitivas leis da higiene. Mesmo os poucos edifícios públicos dos tempos coloniais foram construídos às pressas, economicamente, sem plano, nem ambição, e representam, na melhor das hipóteses, cópias baratas dos edifícios portugueses. Só meia dúzia de velhos lamentam o desaparecimento do “Rio antigo”, mas como isso, em verdade, não fazem mais do que inconscientemente lamentarem a própria velhice. Na realidade o Rio com tudo o que de si removeu, pouco ou nada perdeu. Dos tempos coloniais merecem conservarem-se apenas algumas igrejas, sobretudo a de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, admiravelmente situada, e a de São Francisco, bem como o Aqueduto com suas graciosas curvas e, quando muito, como testemunho daquela época, uma ou outra dessas pequenas ruas. A igreja e o mosteiro de São Bento constituem um grande monumento e um testemunho imperecível do passado do Rio.

Essa igreja de São Bento escapou à transformação dos séculos, entrincheirando-se corajosamente e isolando-se desde o primeiro dia, num outeiro; por isso foi conservado esse edifício, cuja construção foi iniciada em 1589 e que é no Rio o único monumento imponente do século dezesseis. E não esqueçamos que uma obra de arte do século dezesseis é para o Novo Mundo o que são para nós, do Velho Mundo, o Partenon e as Pirâmides. Sozinha no seu outeiro, com sua vista ainda não encoberta pelos prédios altos situados junto dela, olhando livremente para todos os lados, constitui essa igreja uma maravilha de beleza e de tranqüilidade nessa metrópole, que progride agitada e retumbante. Só nesse outeiro o tempo no Rio parou, só ali a sôfrega vontade de renovação nada conseguiu modificar. Ainda existe a velha e escabrosa ladeira que conduz ao alto do outeiro, a mesma que há trezentos anos subiam os peregrinos, e do mesmo terraço do qual outrora se viam atracar os galeões de Portugal e os pequenos veleiros, vêem-se hoje os grandes transatlânticos que lenta e majestosamente seguem o seu caminho.

Vista por fora a igreja de São Bento com o seu mosteiro contíguo não tem uma aparência particularmente imponente nem especial, é um edifício austero espaçoso com pesadas torres redondas. O mosteiro com sua forma quadrangular parece mais uma fortaleza, e, de fato, em tempos de guerra serviu como tal. Sem grande expectativa entramos no templo, cujas pesadas portas são artisticamente entalhadas. Mas, apenas chegados ao interior, ficamos deslumbrados. Há um instante ainda estávamos na intensa luz solar do Rio, agora é apenas uma penumbra cor de mel que nos envolve, uma claridade velada, amortecida como a de um nebuloso ocaso do sol. Não distinguimos formas e contornos; o espaço e as formas diluem-se nessa neblina luminosa. Só então percebemos que essa luz provém do ouro que doura todas as paredes. Mas não é uma cor berrante, retumbante, de metal dourado, e sim um brilho muito suave, um leve brilho que cobre as colunas e os painéis. Todas as linhas, todas as superfícies continuam-se suavemente e, misturadas com a luz do dia, que penetra pelas clarabóias, produzem esse brilho flutuante que, como tênue fumaça, percorre a ampla e espaçosa nave.

Pouco a pouco os olhos se vão habituando e conseguem perceber pormenores. E então reconhecemos que aquilo que em nossas igrejas é feito de pedra, metal e mármore, as balaustradas cinzeladas, os painéis, as decorações, aqui é feito de madeira do país. Mas não podemos dizer se essa madeira é pintada ou revestida de uma camada muito fina de ouro, uma camada tão tênue e artisticamente aplicada que reproduz. delicadamente toda curva e atenua de maneira admirável o encaracolado do estilo barroco. Apesar de a igreja de São Bento não ser comparável, em originalidade ou em magnificência, a grandes catedrais da Europa, os artistas que a fizeram conseguiram efetuar uma coisa sem par: conseguiram de maneira feliz e nova dominar a matéria, lograram uma harmonia perfeita nesse crepúsculo de ouro, que nunca mais esquecemos. E esse agradável comedimento reina também no mosteiro, em suas galerias largas, pavimentadas de lages, nas pesadas portas pretas de madeira, na biblioteca bem proporcionada, no seu claustro. Percorremos essas galerias frescas protegidas por espessas paredes contra os sons e ruídos, como se percorrêssemos outra época. Esquecemo-nos de que nos achamos num país meridional, ao sul do equador e sob outras estrelas. Poderíamos crer acharmo-nos num convento de beneditinos da Suíça ou da Alemanha, num desses antiquíssimos refúgios dos bibliófilos. Mas de repente nos achamos junto a uma janela e a vista magnificamente nos lembra em que lugar estamos: com seus arranha-céus e palácios, com suas ruas movimentadíssimas, estende-se em grande superfície o acúmulo de casas de uma metrópole moderna sob a sentinela de seus morros. Lá em baixo está a baia com seus navios e ilhas e cintila o mar tropical. Em toda parte no Rio, em todos os lugares, mesmo nos mais isolados e mais solitários, experimentamos essa incomparável duplicidade de cidade e paisagem, do que é transitório e do que é eterno.

Esse mosteiro e o outro situado no morro de Santo Antônio, o Rio, os conserva, como monumentos do seu passado. É o seu diploma de nobreza, que testemunha a idade e a distinção de sua civilização. Embora tudo o que é mesquinho e tudo o que é pobre da época colonial continue a desmoronar e desaparecer, embora a cidade em sua sofreguidão se transforme de ano para ano, perdurará esse áureo resplendor.


 

O verão do Rio

 

Vai começar o mês de novembro. Os amigos que encontro fazem-me todos a mesma pergunta: onde vai passar o verão? Ir passar nos lugares de montanha os meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março, que na Europa se dizem de inverno, é um axioma, ou, ao menos, um velho costume, que o imperador D. Pedro II introduziu na sociedade do Rio. Ele transferia no verão a sua residência para Petrópolis. A corte o acompanhava e a sociedade seguia esta; todas as embaixadas, legações e ministérios transferiam suas atividades para essa cidade-jardim próxima da capital do país e mais fresca, que hoje, graças ao automóvel, é uma espécie de subúrbio do Rio. Durante a estação estival, nos meses de férias escolares, a família reside numa vila em Petrópolis e o comerciante ou o funcionário de alta categoria sobem de auto à noite e descem de manhã: já não é uma viagem.

Já não é uma viagem, é antes um passeio. Vinte ou trinta minutos de percurso pela Baixada que a energia do Governo soube conquistar aos pântanos, produtores de malária. Depois, uma estrada larga, bem cimentada, em curvas de pequeno raio, galga a serra. Serpejante vai ela subindo; aos poucos se vão descortinando a planície e a baia, percorrem-se quilômetros e mais quilômetros, e o ar que vem de encontro a nós se torna mais fresco. Afinal uma mutação. e — após pouco mais de hora e meia de viagem — chegamos ao alto; casinhas de aspecto agradável, diante das quais passa um rio, ocupam os dois lados da estrada, e estamos numa cidadezinha de veraneio, de feição um pouco antiga, com suas pontes pintadas de vermelho e suas vilas algo antiquadas. Não sei por que julgo estar numa cidadezinba alemã de província. E tenho razão. Há muitos decênios o imperador mandou vir para Petrópolis colonos alemães e estes construíram suas casinhas à maneira alemã; deram-lhes nomes alemães e em seus lindos jardinzinhos plantaram, como faziam em sua terra, gerânios. Até o palácio do imperador lembra o de um pequeno príncipe alemão, lembra um desses palácios, que por uma magia houvesse sido trasladado para uma serra do Brasil; tudo possui um formato bonito, gracioso, e só nos últimos anos é que as novas vilas deram à cidade um aspecto mais pretensioso. Agora nessa cidadezinha tudo se condensa um pouco, as pessoas e as casas; nas ruas que haviam sido feitas para carruagens pesadas, vagarosas, transitam numerosos automóveis, a agitação do Rio pouco a pouco se vai estendendo para Petrópolis. Mas o encanto do lugar nunca poderá ser seriamente ameaçado, pois a própria natureza é encantadora aqui, os morros já não são íngremes e sim formam ondulações; por toda parte nessa cidade dos jardins brilham e flamejam as flores. Durante o dia a coluna do termômetro sobe bastante, mas as noites, ao contrário do que acontece no Rio, são frescas; o ar de Petrópolis ainda não é o ar ozonizado, revigorador, das regiões montanhosas, mas já é fresco e puro, levemente perfumado pelas exalações das florestas e dos jardins.

Quem quiser ir para uma verdadeira região montanhosa, terá que subir mais, ir para Teresópolis, cuja altitude é de algumas centenas de metros maior do que a de Petrópolis; a diferença entre as duas localidades é comparável à que se observa entre uma região austríaca e uma suíça. Em Teresópolis o cenário é mais estreito e mais austero, as florestas são mais escuras e os morros mais alcantilados; dum ponto da Serra dos Órgãos avistei inesperadamente, como de um pináculo, a região inteira até o Rio, e quase fiquei vertiginoso. As vilas não se acham como em Petrópolis, umas ao lado das outras, e sim distantes entre si, esparsas como quintas de camponeses no meio da vegetação. Em Teresópolis e em Friburgo, que é de origem suíça, vi pela primeira vez no Brasil paisagem semelhante às alpinas, e é interessante o fato de os que veraneiam em Teresópolis e Friburgo serem na maioria europeus, ao passo que os brasileiros tradicionalmente se reúnem em Petrópolis.

Os meus amigos perguntaram-me, pois, por qual dos três lugares eu havia optado para passar o verão. Optei pelo Rio. Quis passar o verão nesta localidade, pois só conhecemos uma cidade, um país, conhecendo os seus extremos; nada sabemos da Rússia, se a vimos sem neve, nada sabemos de Londres, se não a vimos com seu nevoeiro. E não me arrependo da minha resolução. No verão faz muito calor no Rio, mas talvez seja mentira que, nos dias ardentes, se possam cozer ovos no asfalto. Achei Nova York mais desagradável do que o Rio quando lá começa o calor úmido e as casas se tornam verdadeiras estufas. O que torna no Rio o verão tão penoso é o fato de durar ele muito, três e mesmo quatro meses. Durante o dia suportamos facilmente o calor, pois é um belo calor, completo, puro, se assim podemos falar; é o calor de um sol intenso, de um firmamento radiante, que, sem nuvens, se estende sobre a baia e lhe acentua até o máximo, as cores, por si já muito vivas: quem não viu no Rio esse branco das casas, quando os raios batem nelas de cheio, quem não viu o verde malaquite das palmeiras, quem não viu o azul do mar no verão, só conhece essas cores em tons amortecidos, atenuados, mesclados. Mas esse calor intenso tem suas naturais atenuações. De tantas em tantas horas, com uma pontualidade inteiramente não. brasileira, sopra do mar uma brisa, que refresca, e, se não precisamos ir ao centro da cidade, é um prazer passearmos na praia — mas não muito depressa. Mais dificilmente suportáveis são as noites, quando essa brisa cessa e sentimos a umidade, a densidade, a saturação da atmosfera fazer tal pressão sobre a pele que todos os poros se abrem. Mas em geral a série de dias sufocantes não é longa, e uma trovoada subitamente fá-la cessar. Essas trovoadas são de tal violência que me mostraram serem verdadeiras as descrições de Joseph Conrad. O que então cai não é chuva, é o firmamento inteiro que de repente se precipita como o conteúdo de uma pipa emborcada. Não são relâmpagos que, quais veias azuis, surgem no firmamento, como na Europa — são explosões, e o trovão que a eles se segue, faz tremer as casas. Com um quarto de hora de chuva a água nas ruas chega a um metro de altura, interrompe-se todo o trânsito, ninguém ousa sair à rua. E, decorrido mais um quarto de hora, o firmamento inocentemente mostra de novo a sua cor azul, como se nada soubesse da sua crise de furor, a claridade apresenta-se intensa através da atmosfera filtrada, e respiramos surpresos e aliviados, como após uma explosão da qual escapamos por um milagre. E, depois, novamente dias e dias de sol radiante e de firmamento sem nuvens: — assim é o verão do Rio.

Em suma é suportável. Dois milhões de pessoas suportam-no, sem se queixarem e mesmo satisfeitas. Tratam apenas de se adaptar a ele. Todos usam trajes de linho, a cidade inteira anda de branco, e a partir de novembro, o Rio torna-se uma praia balneária; das ruas próximas do mar as pessoas vão em trajes de banho, uma ou duas vezes por dia, refrescar-se no mar; às cinco horas da manhã, antes de tomarem café ou irem para o trabalho, vão as primeiras pessoas para a praia, e isso continua até a noite. Em alguns dias podem ver-se na praia de Copacabana cem mil pessoas.

Nada é mais errado do que acreditar que os cariocas se esgotem com o calor. Ao contrário, é como se esse calor estagnado neles se reunisse para uma única erupção impulsiva, que se dá com regularidade de calendário, no carnaval. carnaval do Rio, como se sabe, em alegria e entusiasmo, é sem par no mundo, onde agora reina tamanha tristeza. Durante meses faz-se economia e se ensaia, pois para cada ano se criam novas canções e músicas. E, como o carnaval no Rio é uma festa popular, uma explosão de prazer, uma manifestação de alegria da população inteira, por toda parte ouvimos essas canções, já antes da festa, a fim de que cada um possa cantá-las com os outros; ouvimo-las nos casinos, nos restaurantes, no rádio, no gramofone e nos casebres dos negros; por toda parte se ensaia, para a grande parada da alegria coletiva. Quando o calendário dá afinal a permissão, fecham-se por três dias todas as casas comerciais e é como se a cidade inteira houvesse sido picada por uma tarântula gigantesca. A população vive nas ruas, até alta noite dança-se, canta-se e faz-se um barulho infernal com todos os instrumentos que se possam imaginar. Cessam todas as diferenças sociais, criaturas que não se conhecem andam de braço dado; dirige-se a palavra a qualquer pessoa; pouco a pouco a animação recíproca se exalta, e o barulho incessante vai crescendo a ponto de chegar a uma espécie de loucura; vêem-se foliões exaustos deitados na rua, sem que hajam bebido uma gota de álcool; apenas dançaram e fizeram tanto barulho que ficaram extenuados. Mas o que é mais curioso, o que é tipicamente brasileiro é o fato de, até nesses êxtases, a gente mesmo das classes mais baixas nada perder de seu espírito de humanidade e não cometer brutalidades; apesar da liberdade de usar máscara, nada acontece de brutal, de inconveniente numa multidão frenética e que anda numa roda viva de dia e de noite; o gritar e o dançar até não poder mais, a liberdade orgíaca de falar alto, de descomedir-se desabafam-se na vertigem desses três dias. O carnaval parece uma dessas trovoadas tropicais do verão. E, depois, novamente a conduta comedida de antes, a cidade retorna à sua ordem anterior. O verão está festejado, o calor estagnado abandonou as pessoas, o Rio é novamente o Rio, a cidade que, calma e altiva, reflete sua própria beleza.


 

Algumas coisas que amanhã talvez hajam desaparecido

 

Algumas das coisas singulares, que tornam o Rio tão colorido e pitoresco, já se acham ameaçadas de desaparecer. Sobretudo as “favelas”, as zonas pobres. em plena cidade, será que ainda as veremos daqui a alguns anos? Os brasileiros não gostam de falar dessas “favelas”; no ponto de vista social e no ponto de vista higiênico, constituem elas um atraso, numa cidade muito limpa e que, por um serviço modelar de higiene, em alguns anos se libertou inteiramente da febre amarela, que outrora nela era endêmica. Mas as “favelas” apresentam um colorido especial no meio dessa figura caleidoscópica, e ao menos umas dessas. estrelinhas do mosaico deveria ser conservada no quadro da cidade, porque elas representam um fragmento da natureza humana primitiva no meio da civilização..

Essas “favelas” têm a sua história. A gente humilde que, em parte, vive com salários muito pequenos, não podia morar em casas de aluguel situadas. dentro da cidade; vir diariamente dos arredores da cidade ao local do serviço, e, depois, voltar para casa seriam duas viagens por dia, que acarretariam despesas de passagens. Por isso, procuraram eles, nos morros e nos rochedos situados dentro da cidade, para os quais não há ruas, um local e construíram uma casa,. ou melhor, uma choça, sem perguntarem de quem era o terreno. Para a construção de um desses mocambos. não há necessidade de arquiteto. Pegam-se alguns bambus e fincam-se no solo. Enchem-se os vãos entre os bambus com barro amassado. Soca-se o chão. Cobre-se o casebre com palha. E está ele pronto. Não precisa de janelas de vidro, algumas folhas de zinco apanhadas em qualquer lugar servem de janelas. Uma cortina feita de um saco velho cobre a entrada, que, quando muito, ainda é embelezada por pedaços de madeira, de caixões. E a choça é igual à que há centenas de anos seus avós construíram na aldeia brasileira ou africana. O mobiliário não é lá muito rico — uma mesa feita pelo próprio dono da casa, uma cama, alguns bancos — e, nas paredes se acham pregadas algumas figuras coloridas, tiradas de velhas revistas. Esses moradores também não têm algumas comodidades modernas. Assim é que a água tem que ser carregada da fonte que fica em baixo, na planície, por um caminho de degraus feitos no barro ou no rochedo; ininterruptamente se vêem mulheres e crianças carregando para cima do morro o precioso líquido em vasilhas sobre a cabeça, não em potes — esses custariam muito dinheiro — mas em latas de querosene. A iluminação elétrica não chega a esses casebres, à noite neles tremeluzem apenas pequenas lamparinas de querosene. E sempre o caminho íngreme subindo degraus, pedras e escadas, muitas vezes resvaladiço e raramente limpo, pois entre os casebres andam os bichos mais diversos, cabras e gatos famintos, cães sarnosos e galinhas magras, e as águas servidas correm, sem cessar, pelas vielas. A cinco minutos de uma praia de luxo, de uma avenida, parece-nos estarmos numa aldeia da Polinésia ou da África. Vemos o máximo de primitividade, a maneira mais simples de habitar e de viver, uma maneira que na Europa ou nos Estados Unidos da América do Norte já quase não se acredita existir. Mas, coisa curiosa, o espetáculo nada tem de aflitivo, de repulsivo, de vergonhoso, pois esses moradores se sentem ali mil vezes mais felizes do que o nosso proletariado em suas casas de cômodos. Moram em casas próprias, podem ali fazer e deixar de fazer o que quiserem; à noite ouve-se que cantam e riem — ali eles são senhores de si. Se aparece o proprietário do terreno ou uma comissão que os obriga a se retirarem; para se abrir no local uma rua ou um bairro residencial moderno, eles calmamente se mudam para outro morro. Nada os impede de carregarem consigo os seus casebres. E, como esses casebres estão situados no alto dos morros, nos mais inacessíveis recantos, têm a mais bela vista que se pode imaginar, a mesma vista que têm as mais caras vilas de luxo, e é a mesma natureza luxuriante que ali orna seus lotezinhos com palmeiras, e generosamente lhes dá bananeiras essa maravilhosa natureza do Rio, que não deixa a alma ser melancólica e infeliz, porque, incessantemente, afaga, com sua mão macia e tranquilizadora. Quantas vezes subi aqueles degraus escorregadios, de barro, para visitar essas zonas de gente humilde. Nunca vi por ali uma pessoa pouco afável ou uma pessoa triste. Como essas “favelas” desaparecerá uma parte interessante, um pedaço incomparável do Rio, e quase não posso imaginar os morros da Gávea e outros sem esses pobres casebres, colados na rocha, que com sua primitividade lembrem quanto de supérfluo temos e exigimos.

Também outra originalidade do Rio em breve será vítima da ambição civilizadora e talvez também da moral — como em muitas cidades da Europa, Hamburgo ou Marselha — as ruas de que não se fala, a zona do Mangue, a grande feira do amor, a yoshivara do Rio. Oxalá ainda a última hora aparecesse um pintor, a fim de retratar essas ruas, quando elas à noite brilham com luzes verdes, vermelhas, amarelas e brancas e sombras fugitivas, constituindo um espetáculo oriental, misterioso pelos destinos acorrentados uns aos outros e semelhante ao qual não vi outro em toda minha vida. Nas janelas, ou melhor, nas portas se acham como animais exóticos por trás das grades, mil ou talvez mil e quinhentas mulheres, de todas as raças e todas as cores, de todas as idades e naturalidades, negras senegalescas ao lado de francesas, que já quase não podem encobrir com arrebiques as rugas produzidas pelos anos, caboclas franzinas e croatas obesas, e esperam os fregueses, que em incessante préstito espiam pelas janelas, a examinar a mercadoria. Por trás de cada uma dessas mulheres se vêem lâmpadas elétricas de cor, que iluminam com reflexos mágicos o aposento posterior, no qual se destaca da penumbra o leito, que é mais claro, um clair-obscur de Rembrandt, que torna quase mística essa atividade quotidiana e, além disso, assombrosamente barata. Mas o que é mais surpreendente, o que, ao mesmo tempo, é brasileiro, nessa feira, é a calma, o sossego, a disciplina; ao passo que em ruas como essas, em Marselha, em Toulon, reina grande barulho, se ouvem risadas, gritos, chamados em voz alta e gramofones, ao passo que lá os fregueses bêbados, europeus, berram nas ruas, aqui, nas do Rio reina calma e moderação. Sem se sentirem envergonhados, os homens passam diante daquelas portas para às vezes desaparecerem ali, como um rápido raio de luz. E por cima de toda essa atividade calma e oculta está o. firmamento com suas estrelas; mesmo esse recanto, que em outras cidades, de qualquer modo, consciente e envergonhado de seu comércio, se concentra nos bairros mais feios e mais decaídos, no Rio ainda tem beleza e se torna um triunfo de cor e de luzes variadas.

Será que também os velhos bondes abertos irão desaparecer e ser substituídos por bondes modernos, fechados? Seria muito de lastimar, pois eles dão às ruas do Rio uma nota especial. Que espetáculo, do qual nunca nos cansamos, oferecem esses bondes abertos superlotados, em cujos estribos homens vão dependurados como pingentes! E à noite quando eles trafegam e a luz do seu interior ilumina os semblantes pretos, escuros, ou claros, parece sempre que um ramalhete de várias cores vai passando! E como é agradável viajar nesses bondes! Nos dias mais quentes, mais sufocantes, compramos neles, por alguns tostões, a mais bela, a mais fresca brisa e, ao contrário do que acontece nos automóveis fechados, vamos vendo à direita e à esquerda as casas comerciais, o movimento, a vida da cidade. Em nenhum outro veículo se pode ver melhor o Rio do que nesse meio de condução das classes modestas; graças a esses bondes e às minhas pernas, creio conhecer realmente hoje o Rio. E não tenho que me envergonhar dessa minha predileção, pois também D. Pedro II gostava tanto desses veículos antiquados que reservou um para seus passeios democráticos. Que erro, se fizessem desaparecer esse romantismo um pouco barulhento e tremulante para terem o que todos os outros têm e, com isso, perderem algo que só o Rio possui: sua vivacidade colorida e despreocupada!


 

Jardins, morros e ilhas

 

À noite, quando chegamos à janela e o mar está calmo e não venta, sentimos na atmosfera suave, saturada, perfumada de misteriosas essências e resinas, que no Rio nos achamos sempre entre árvores e jardins. Árvores e jardins encontramos por toda parte. Não andamos um minuto sem vermos vegetação. Muitas ruas são guarnecidas de árvores, em volta de quase todas as casas se vêem tufos de folhagens com flores e frutos, e quanto mais nos afastamos do mar, tanto mais abundantes são os parques. Algumas das vilas desaparecem quase inteiramente dentro da abundância da vegetação que as circunda. Sempre e por toda parte se tem sob os olhos o verde dessa vegetação. Em alguns lugares ela aumenta para formar grandes jardins, como o da Praça Paris e o da Praça da República, mas, dentro da cidade, a natureza é reprimida, subjugada, vigiada. Na Tijuca, porém, ela já invade impetuosa, como um oceano, é um emaranhado denso de árvores, arbustos e cipós; parece que esses troncos e copas lutam entre si por saírem da verde espessura, em busca da luz do sol. A floresta daqui não é como as da Europa, que permitem a visão a muitos metros da distância, é uma massa escura e compacta; quando nela tentamos penetrar, após alguns passos, sentimo-nos presos, isolados, como sob um sino de mergulhador, sentimos o ar que respiramos estranho e condensado como o hálito quente e úmido dum animal gigantesco e perigoso; a uma hora de distância da cidade chegamos à zona da floresta virgem.

Por isso o Jardim Botânico do Rio, que, no dizer de todos os especialistas em botânica (eu não o sou), é o mais rico do mundo, é uma maravilha e um encanto. Nele há tudo o que a mata virgem encerra, sem haver, entretanto, o horror, a infinidade, a impenetrabilidade e o perigo desta. Nele há todas as árvores, todas as plantas, todos os fenômenos dos trópicos nos seus mais perfeitos exemplares; podemos facilmente admirá-los. Já os dois renques de altas palmeiras da entrada, que se apresentam tão magnificamente simétricos e firmes como a colunata dum templo milenário da Grécia, constituem um quadro maravilhoso, a aléia triunfal que um rei, D. João VI, há quase um século e meio mandou fazer para si. Vi inúmeras palmeiras, aqui no Brasil e em outros países, e penso nunca ter sabido quão magnífica e majestosa, quão verdadeiramente régia pode ser uma palmeira, antes de ter visto essas, que são direitas como um fuso, que têm o caule admirávelmente redondo e revestido de uma couraça de malhas finas e um cimo alto, muito alto. E ao lado delas, à direita e à esquerda, estão os vassalos vindos de todos os países e zonas, de Sumatra e Malaca, da África e do Equador, uma família de gigantes da mais variada espécie. Não sabemos como lhes dirigir a palavra, não sabemos os seus nomes, não conhecemos os frutos de formas e cores estranhas, que eles produzem, mas sentimos que esses gigantes são de origem antiquíssima e meditamos nos lugares exóticos e longínquos donde eles vieram, para, aqui reunidos, oferecerem suas formas e suas cores. E, sombreadas por arbustos de vários matizes, nas bacias ou tanques — propícios, as grandes flores da vitória, régia; nas partes mais elevadas do jardim, nas partes florestais, árvores e arbustos das nossas zonas, que, no estrangeiro, reconhecemos como amigos. Esse jardim é um museu vivo e ao mesmo tempo um perfeito fragmento da natureza, pois nada é mais genial em sua localização do que o fato de estar ele encostado a um grande morro. Por esse fato temos a ilusão de que, partindo dum parque e duma grande cidade, essa vegetação ondulante. prossegue para o interior, para dentro do país, para o mundo inteiro; e aqui estamos apenas no início de enormes surpresas. Nem por um instante nos sentimos cercados. É como se dum promontório, de repente, chegássemos junto ao mar; é uma visão inesquecível da infinidade da natureza.

Mas é menos grandioso o outro parque do Rio, o Parque da Cidade, na Gávea? Não, apenas é diferente. Tinha por fim servir apenas à beleza e não, como o Jardim Botânico, também à ciência. Foi oferecido ao governo da capital por um cidadão que o fizera, para de uma vila situada no alto abranger com um olhar tudo o que a paisagem do Rio contém de variedade, o mar e os morros, os vales e a exuberância da vegetação. Esse parque proporciona uma infinidade de vistas encantadoras: vêem-se aqui rampas suaves e ali lindas flores, cujos matizes rivalizam com os das araras, vê-se aqui um lago e acolá um terraço; todas as artes da arquitetura de jardim acham-se habilmente aplicadas a esse parque. E, além de tudo isso, temos no Rio um firmamento claro e límpido, que como um disco azul distribui a luz, mais intensa e, ao mesmo tempo, mais difusamente, de modo que cada uma das cores se descarrega com intensidade, por assim dizer, explosiva e revela exatamente os mais leves contornos duma árvore. E, além de todas essas magnificências, afinal a que torna a natureza completa; o grande silêncio.

Esses parques são tão grandes que neles raramente nos encontramos com alguém; no Rio, podemos estar ditosamente sós, dentro duma grande cidade. Nesses parques o silêncio é completo e o solo, com mil lábios quentes e invisíveis, respira o ar brando e cálido.

Vou agora a lugares mais altos. Será possível vermos morros dentro duma cidade sem a vontade de os galgar, sem o desejo de ver nitidamente difundido o emaranhado de pedras e de vegetação em que vivemos? É fácil satisfazer o nosso desejo, pois a ascensão do Corcovado, que se ergue 700 metros acima da cidade e dentro dela, e do alto do qual o Redentor lança sua benção sobre a baia de Guanabara, nem se pode qualificar de excursão; em vinte minutos um automóvel, percorrendo as curvas de pequeno raio na estrada sombria, chega ao alto. E dali se descortina um panorama inolvidável. Afinal, afinal vejo do alto toda a cidade com sua baia, seus morros e suas lagoas, suas ilhas e seus navios, suas casas e suas praias. Afinal vejo desenhado com cores azuis, verdes e brancas o traçado do Rio, e, ao mesmo tempo, sua imponência. Açoitado pelo vento e apoiado na estátua do Redentor, abranjo com o olhar o panorama completo da cidade. É realmente a vista de todas as vistas e, apesar disso, impossível de ser fotografada, como tudo no Rio, porque é demasiado dilatada em suas perspectivas. Há vista em todas as direções, para o leste e para o oeste, para o norte e para o sul; vejo o mar que continua sem fim, a Serra dos Órgãos, a planície, as praias, a baia e a cidade; só agora, dessa grande altura, compreendo essa singular combinação.

E o Corcovado é apenas um dos morros do Rio. É o mais, visitado, só porque é comodamente acessível aos turistas, graças à estrada de ferro e à autoria. Quantos caminhos nesses morros e outeiros, quantas vistas se descortinam de cada um deles, do Alto da Boa Vista, do Pico da Tijuca, da Mesa do Imperador, da Vista Chinesa, do Morro de Santa Teresa, de todos os recantos e terraços sem nome! O que, visto do cimo do Corcovado, parece reunido, visto de outros pontos, se separa, se divide, e o panorama, como num filme, se decompõe em diferentes paisagens: nunca acabamos de ver o Rio. Nunca podemos conhecê-lo até o fim, e isso constitui a sua verdadeira beleza, a sua beleza imperecível.

Dos morros vi na imensa baia ilhas e mais ilhas: umas, pardas e rochosas, e outras, verdes e floridas, todas, como num brinquedo de gigantes, espalhadas a esmo na superfície azul. Então não devo também visitá-las? Não posso deixar de visitá-las, ao menos algumas delas. Tomo uma barca, grande e larga; primeiramente passamos junto às ilhas próximas do porto, que em sua maioria servem a fins de utilidade, como, por exemplo, a em que se acha a Escola Naval e as que têm depósitos de petróleo; só após uma hora nos aproximamos das ilhas mais interessantes. Algumas são apenas recifes escalvados, sobre os quais se vêem pousados bandos de aves, e noutras há palmeiras e algumas casas velhas. Afinal chegamos a Paquetá e de repente me sobrevêm as velhas lembranças da infância, as lembranças dos livros de viagens: de Colombo em Guanaani, do Capitão Cook em Taiti e de Robinson Crusoé em sua ilha, pois Paquetá é uma dessas ilhas ditosas, abundantemente florida, um verdadeiro paraíso. Nela não há autos, nem balneários elegantes, como em Honolulu e Hawai, que por dinheiro venderam sua inocência. Num carro velho puxado por cavalos percorro as praias; de vez em quando vejo uma casinha, uma chácara, um jardim; fora disso só encontro natureza não alterada, magnificamente tropical. Tenho a impressão de que essa ilha não pertence a ninguém e pertence a todos. Mas — admirável contraste, o Rio é verdadeiramente inesgotável na arte dos contrastes — separada de Paquetá por apenas um pequeno estreito, existe uma ilha, a de Brocoió, que é de propriedade particular. De uma pequena ilha inabitada o seu proprietário fez para si um paraíso encantador e no meio dele colocou uma belíssima casa, com terraços para todos os lados, com todo o conforto da nossa época, com livros, um órgão e atraentes quartos para convidados. Enquanto Paquetá é inteiramente natureza, Brocoió é inteiramente civilização. Num jardim bem tratado, cujos muros são de pedra e cujo chão é coberto de cascalho, brincam cães e vêem-se pavões e animais raros; jardins amplos ladeiam o caminho que conduz a uma elevação. Em meia hora percorre-se esse reino inteiro. Que solidão abençoada, nessa ilha, sob palmeiras que se erguem para um firmamento eternamente azul e dão sombra a um mar também eternamente azul! E solidão, solidão consoladora por tanto tempo quanto o espírito quiser tê-la: um movimento, e a lancha-automóvel põe-se em marcha, em meia hora o indivíduo está de novo na cidade e em pleno burburinho. E, quando o contorno dessa ilha com as altas palmeiras vai desaparecendo nas ondas, já pergunto a mim mesmo se realmente vi tal coisa ou se apenas sonhei com ela. Novamente bebo (e quantas vezes já o fiz nesta cidade!) uma gota da profusão do prazer deste mundo!


 

As ruas pequenas

 

As grandes avenidas constituem o que é novo, o que é grandioso no Rio; poucas avenidas do mundo podem comparar-se com elas, em grandiosidade do traçado e em beleza do aspecto. São ruas para veículos, ruas para paradas, ruas modernas. Mais do que de sua deslumbrante magnificência, porém, gosto das ruas pequenas, de importância secundária, que me fazem andar sem saber para onde, que me seduzem com encantos pequenos, naturais, meridionais, e dão uma impressão tanto mais romântica quanto são mais pobres, mais primitivas, mais despretensiosas. Também as mais pobres — e precisamente estas — estão cheias de cor, de vida e de aspectos variados. Não posso fartar-me de vê-las. Nada nelas é preparado, disposto, para atrair a atenção dos estrangeiros, nada nelas é pitoresco, e seu encanto não está na arquitetura, na estrutura, e sim precisamente no contrário, na barafunda, no casual, que torna atraentes todas essas ruas, e cada uma delas, noutro ponto de vista. O passear a pé, que para mim é um velho prazer, tornou-se no Rio um vício pessoal; quantas vezes no Rio saí para dar um passeio de um quarto de hora e, conduzido pela curiosidade, duma rua para outra, regressei após quatro horas, sem me lembrar do percurso ou de um nome qualquer das ruas por onde andara nessa cidade das incessantes novidades e enlevos. E nunca tive o sentimento de haver perdido e desperdiçado tempo.

Passear pelas ruas pequenas e estreitas do Rio é retroceder no tempo. Acho-me num mundo colonial em que tudo ainda estava próximo, à mão, em que ainda não corriam os automóveis e não havia os sinais luminosos para o trânsito, em que ainda se andava comodamente, não se procurando muito mais do que a sombra que tornava o vagar mais agradável; mesmo as ruas mais distintas eram estreitas. Vejo-o ainda hoje na Rua do Ouvidor, a velha rua das casas comerciais de luxo. Nela é proibido o trânsito de veículos — como na “Calle Florida”, de Buenos Aires — e ele seria mesmo impossível, pois durante o dia o movimento de pedestres nessa rua é muito grande; todo verdadeiro carioca diariamente passa por ela, algumas vezes. Nessa rua o movimento incessante de pessoas é tão intenso que mal se vê uma polegada do calçamento, e esse vaivém, graças à ausência do ruído infernal dos automóveis, torna o passear ali um prazer infindo. Mas à direita e à esquerda encontro outras ruas; não há razão de indagar seus nomes, pois não posso retê-los. Longas e estreitas, cruzam-se e cortam-se, e, de vez em quando, se vê uma rua larga com ruidosos bondes, todos superlotados, ou com automóveis que buzinam; nenhuma dessas ruas se distingue pela arquitetura, a maior parte dos seus prédios são de dois pavimentos e sem ornatos e com lojas sem portas de madeira ou de vidro. Mas o fato de portas de madeira ou de vidro não impedirem que de fora se veja o interior das lojas torna cada um desses negócios um quadro de gênero. Ali se acha sentado num canto com três empregados o sapateiro e está pregando uma sola; acolá se vê uma quitanda com cachos de bananas pendurados do alto da porta, réstias de cebolas, que balançam, melancias cortadas e tomates, que formam montículos vermelhos. Ao lado, uma farmácia ou uma drogaria; mais adiante uma casa de vinhos; um barbeiro preto ensaboa o rosto do freguês; um empalhador está consertando o assento duma cadeira. Ali trabalha o marceneiro, aqui corta carne o açougueiro; no pátio mulheres lavam e torcem roupa; aqui uma casa de loterias, com centenas de bilhetes pendurados, convida a tentar a sorte; acolá o tabelião escreve em seu cartório de porta escancarada. Aqui podemos ver todos em seu trabalho, e onde vemos um povo no trabalho, vemos sua vida real. Vemos como as pessoas moram; vemos a modesta cama de ferro atrás da oficina, separada desta apenas por uma cortina; vemos como essas pessoas comem, como passam todas as suas horas. Nada é oculto, encoberto, e nada é mecanizado, padronizado. E quanta coisa há que ver aqui, quantas coisas diferentes, pois no Brasil ainda continua, imperturbavelmente, o trabalho manual, que na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte pouco a pouco vai desaparecendo. Num passeio podem aprender-se, de visu, todos os trabalhos manuais: tudo aqui é tão sem mistério e, ao mesmo tempo, tudo admiravelmente colorido; aqui o preto, ali o branco, acolá o moreno, e todos em seus trajes claros e as mulheres com vestidos de cores, e tudo isso brilhando com intensidade, ainda dez vezes maior no esplendor radiante desse sol intenso. E os cafés — quantos são eles? Quem poderá contá-los? Em cada esquina existe um e o movimento neles não cessa, até tarde da noite. Então, em contraste com o escuro das casas, cintilam e luzem esses locais como se fossem cavernas resplendentes, movimentadas até altas horas da noite, pois nessa cidade a vida não cessa, os bondes trafegam ininterruptamente e às cinco horas da manhã já vão para as praias os primeiros banhistas. Quanta vida nesses milhares de ruas e quanta vida em início — por toda a parte crianças, crianças de todas as tintas e mesclas, e todo esse tumulto de cores e de movimentos atenuado por uma afabilidade tranqüila, por uma perfeita harmonia, e isso é o que é tipicamente brasileiro. Onde quer que nos achemos, mesmo nas zonas mais abandonadas e mais pobres, encontramos a mesma polidez. Mesmo onde, em vez de casas, apenas vamos encontrando choças e as ruas se vão perdendo entre rochedos e vegetações, temos o sentimento de que essa gente, graças a uma frugalidade inata, está contente com o seu mínimo de bem-estar.

E, de vez em quando, descubro coisas novas. Aqui de repente uma praça da época colonial com distintos palácios e grandes parques fechados, acolá um mercado que lembra, em sua abundância, quadros de van Gogh e Cézanne; mais adiante, de modo inteiramente inesperado, vejo um pedaço de porto com barcos de pesca amarrados aos cais e sinto um forte cheiro de algas; prosseguindo, encontro um parque que não conheço e, noutro ponto, à sombra duma casa alta, alguns casebres em ruínas, ou subitamente uma igreja velha. Há ruas que terminam inesperadamente e para seguir adiante temos então que passar por cima de rochedos. Quero ir a uma festa suburbana e acontece-me que duas ruas antes de lá chegar me vejo num bairro de luxo. Quero ir à estação da estrada de ferro e vou dar num parque imperial. Nada combina e, apesar disso, tudo combina; constantemente fico surpreso e nunca me farto. Vaguear, perambular e descobrir, esse prazer que, de todas as cidades da Europa, Paris foi a última a nos proporcionar, tornei a encontrar aqui, na forma mais sedutora...


 

Passeio pela cidade

 

A Avenida Rio Branco é a rua principal do Rio. É, ou melhor, era o orgulho da cidade. Há pouco menos de quarenta anos apoderou-se do Rio a ambição de fazer o mesmo que as grandes cidades européias e possuir uma avenida, uma rua grandiosa no coração da cidade. E, porque o Rio, como muitas outras cidades, sonhasse tornar-se uma Paris, sentiu-se seduzido a imitar o Boulevard Haussmann, que o grande prefeito parisiense com ousadia abriu através da barafunda de ruas velhas * Mas o projeto. dessa suntuosa avenida carioca já se julgava ousado por adotar as medidas das avenidas européias e dar-lhe, a largura de trinta e três metros. Os habitantes mais idosos do Rio, habituados às suas ruas estreitas e sombrias dos tempos coloniais, sacudiram a cabeça e acharam que essa largura excessiva era demasiado ousada. Mas o projeto se executou. Construíram-se nessa avenida um suntuoso teatro, muito semelhante à Ópera de Paris, a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes, um hotel, que para a época era de luxo, e desde logo, a fim de se assinalar a nova rua como o centro intelectual e cultural, levantaram-se nela prédios de seis andares, que altivos olhavam para os telhados dos palácios e palacetes mais baixos e mais antigos. Os largos passeios foram feitos com belos mosaicos pretos e brancos, o leito foi asfaltado, as casas comerciais e clubes apressaram-se em ter as suas largas e belas fachadas feitas de acordo com a arquitetura que então era a mais moderna. Essa avenida tornou-se na realidade uma rua magnífica, e com orgulho podiam dizer os brasileiros que ela era digna de figurar ao lado das mais célebres avenidas da Europa.

Mas na América, neste continente que progride com uma intensidade toda outra, é sempre erro e modéstia prejudicial pensar e calcular de acordo com padrões europeus. O tempo e o espaço têm na América outra medida dinâmica. Aqui todas as coisas se desenvolvem mais rapidamente e, sem dúvida, também envelhecem mais depressa. E por isso, em virtude do crescimento tropical do Rio e do seu movimento, que aumenta de modo fantástico, há muito já a Avenida Rio Branco se tornou demasiado estreita e está sempre obstruída de automóveis, que só podem avançar lentamente, cheia de ruído e de gente e, além disso, à direita e à esquerda atravancada pelos andaimes das constantes reconstruções de prédios. É que as luxuosas construções de 1910 já não parecem bastante luxuosas e ousadas, o hotel de luxo de outrora já está condenado à demolição e em seu lugar será levantado um prédio de trinta e dois pavimentos; as casas de seis andares ou recebem novos andares ou são completamente transformadas; o que há trinta anos parecia grande e até colossal, hoje parece pequeno e de estilo antiquado. O Teatro Municipal, por falta de espaço, não pode mais aumentar suas proporções, a Escola de Belas Artes e a Biblioteca Nacional perderam sua superioridade, e, como acontece com as avenidas do centro de Paris, com a Friedrichstrasse de Berlim e com a Regent Street de Londres, as casas comerciais de luxo começam a mudar-se dessas rua de grande movimento para ruas menos barulhentas. Essa avenida hoje não é muito mais do que a rua de trânsito obrigatório, uma rua sem cunho especial e sem valor artístico; precisamente o caráter que lhe haviam reservado, o de distinção, se perdeu, porque ela hoje procura apenas servir à época e já não é suficiente para esta mesma.

Para poder atender perfeitamente ao seu ritmo cada vez mais rápido, o Rio tem necessidade de outras avenidas mais largas, e, forçado pelo constante congestionamento das suas principais ruas, trata resolutamente de abrir mais avenidas. À direita e à esquerda — os projetos são verdadeiramente grandiosos em seu arrojo — o Rio vai rasgando novas avenidas. Arrasam-se morros, demolem-se quadras inteiras, perfuram-se túneis, abrem-se largas vias de comunicação cimentadas nas encostas dos morros. A tempo uma administração previdente reconheceu que pouca vantagem há em construir prédios muito altos, Se ao mesmo tempo a cidade se vai mais e mais expandindo para a zona rural. As antigas ruas principais, a da Carioca, a do Catete e a das Laranjeiras, as que vão para a Tijuca e para o Meyer embaraçam mais o trânsito do que prestam serviço a ele, e, para irmos de automóvel dos novos bairros residenciais, ao centro da cidade, gastamos meia hora ou mais. É preciso, pois, ganhar espaço, custe o que custar, e o meio que se revelou mais fácil, mais prático foi obtê-lo do mar. Tirar por meio de aterro uma faixa de duzentos e mesmo de quinhentos metros de largura de uma baia que se estende por muitas milhas, não era subtrair muito dum mar imenso, mas era ganhar muitíssimo para a cidade. As grandes avenidas à beira-mar, que hoje emolduram o quadro e são embelezadas por árvores e jardins, pela vista para o mar e para a paisagem com suas formas sempre cheias de variedade, dão ao Rio moderno uma nova beleza que compensa a perda do seu antigo romantismo. Parecem as margens das páginas dum livro. Cada página desse livro como que aberto pela mão de Deus apresenta uma nova beleza e não nos cansamos de sempre folheá-lo. Graças à singular configuração com que o mar, com cinco ou seis enseadas, se insinua na cidade, a vista em cada uma das curvas Se apresenta variada. Só podemos realmente comparar o Rio com um leque pintado em que cada uma das suas lâminas compreende uma parte do panorama, mas só o leque completamente aberto mostra o panorama inteiro.

Quem percorre de auto essas avenidas à beira-mar ou — se está disposto a andar algumas horas — as percorre a pé, passa verdadeiramente por seis, sete ou oito cidades totalmente diversas. Do lado esquerdo da Avenida Rio Branco partem todas as ruas que conduzem ao porto e com isso à parte comercial da cidade. Ali atracam os grandes transatlânticos, dali partem as barcas para as ilhas, ali está o mercado com suas verduras e frutas, ali se acha o aeroporto com suas andorinhas prateadas, ali se reúnem as docas, os arsenais e os alojamentos da Marinha. Num grupo orgulhoso e novo erguem-se os edifícios de alguns ministérios, que são prédios de doze, quatorze e dezesseis andares, de estilo moderníssimo. De acordo com um plano ousado quase toda a administração do grande país está reunida num único bloco. Embora o porto, a zona comercial e a dos edifícios administrativos tenham um colorido um pouco mais variado do que em outras cidades, o aspecto do que é moderno aqui ainda parece internacional. No nosso passeio ainda não vimos a verdadeira beleza, a beleza própria do Rio, a qual não está nem no que é útil nem no que é histórico, mas sim na incomparável arte com que a cidade consegue resolver harmonicamente todos os contrastes.

O precioso colar de avenidas à beira-mar, que de noite resplende com seus milhares de pérolas cintilantes, inicia-se logo que acaba a Avenida Rio Branco; a Praça Paris, onde esse colar começa, é, por assim dizer, o seu fecho artístico. O nome da capital da França não foi dado por acaso a essa praça. Sem dúvida, os urbanistas franceses que a projetaram, pensaram na praça da Concórdia, quando à noite resplandece com suas lâmpadas de arco. A Praça Paris tem vista para a baia com suas ilhas e morros fronteiros, nela o luxo do que é urbano junta-se à prodigalidade da natureza em um quadro inolvidável. Entre o mar azul e as fileiras de casas há uma larga faixa verde, pela qual automóveis e ônibus, azuis, vermelhos, verdes e amarelos, passam em disparada como animais enfurecidos, sem entretanto aturdirem a vista por sua velocidade e os ouvidos por seus uivos, como acontece na maior parte das ruas. Ali o olhar pode repousar e contemplar o que quiser. Vê a fila animada de palácios e hotéis, a baia com sua orla branca constituída por Niterói, os navios e as barcas ou num outeiro a velha e nobre igreja de Nossa Senhora da Glória.

Esse primeiro olhar acredita já ter abrangido tudo, o panorama inteiro, mas quão pouco viu, quanto ainda o espera! Depois da Praça Paris a rua se estreita e se aproxima do mar e a ela se segue a Praia do Flamengo. Nesta existiam outrora as antigas residências distintas, as quais, com um ou dois andares e cercadas de jardins, olhavam, modestas, para a baia. Mas o local com essa vista livre e com a brisa refrigerante tinha um valor muito grande. Edifícios de onze e doze andares erguem-se agora ali e as palmeiras gigantescas, que eram mais altas do que os antigos prédios, já quase não chegam ao peito dos novos. A vista da baia torna-se cada vez mais reduzida, pois em frente se eleva altivo o Pão de Açúcar, um enorme rochedo, de noite ornado com uma coroa de luzes, que vigia a entrada da baia e diante do qual têm que passar humildemente todos os navios que transpõem a barra. E, novamente uma curva, estamos noutra enseada, a de Botafogo. Já não temos a vista ampla; cremos estar à margem dum lago cercado por morros e estamos entre outros morros e outeiros. É próprio do segredo do Rio, no que se refere às suas paisagens, o fato de seus morros, graças à sua conformação irregular, de qualquer ponto que sejam vistos apresentarem uma silhueta diferente; o que visto de Botafogo parece íngreme, visto do Flamengo parece pouco alcantilado; uma das faces dum mesmo rochedo está coberto de mato, a outra é escalvada e a terceira ocupada por casas até o alto, e do mesmo modo pelo incessante ziguezague a baia modifica seus contornos em todas as suas curvas. Nessa multifária cidade o mesmo mar e a mesma montanha, em virtude da indescritível variedade das perspetivas, parecem sempre novos e surpreendentes. Ao invés de tornarmos a encontrar o mesmo aspecto, vemos sempre em tudo aspectos novos.

E, prosseguindo, inesperadamente nos achamos noutra enseada, a da Praia Vermelha, que está tão escondida numa garganta estreita entre dois morros, tão afastada dos bairros residenciais que precisei semanas para achá-la. De repente a paisagem é toda outra. Desaparecida está a cidade, perdida está a vista da baia de Guanabara. Nenhuma casa de luxo, nenhum trânsito, nenhuma atividade, só ondas, rochedo, praia e silêncio. Temos a impressão de que estamos no fim do nosso caminho, no fim da cidade.

Mas estamos apenas noutro começo, em um dos muitos começos pelos quais esta cidade sempre se inicia, de modo surpreendente. Basta percorrer duas ruas e um túnel através dum rochedo, na aparência impérvio, e achamo-nos subitamente na praia de Copacabana, cuja beleza supera a de Nice e a de Miami, estamos na praia talvez mais bela do mundo. Por incrível que pareça, com esses cinco minutos de percurso, do Rio ao Rio, achamo-nos à beira dum mar inteiramente outro, noutra atmosfera, noutra temperatura, como se houvéssemos viajado algumas horas. E o mar que vimos na Avenida Beira-mar é, com efeito, outro, diferente, porque é água de uma baia quase inteiramente fechada. É, sem dúvida, mar, porém um mar subjugado, atenuado, que já não tem força para se erguer em ondas furiosas e, apesar, de toda sua amplidão, já não consegue apresentar nítido fluxo e refluxo. Mas em Copacabana de repente nossa fronte cercada pelo vento está diretamente ante o Atlântico e sabemos e sentimos que, numa extensão de milhares de milhas até a Europa e a África, nada se acha diante de nós senão esse mar imenso. Fortes, verdes e espumosas, as ondas, essas parelhas de Netuno, com crinas brancas, lançam-se contra a praia muito larga, clara e resplendente. O mugido das ondas sussurra nos ouvidos, e tão forte é esse embate das ondas contra a praia, tão intensa é a respiração do gigante Atlântico que, da água pulverizada, emanam iodo e sal. Tão rico de ozônio é o ar nessa praia que muitas pessoas habituadas à atmosfera suave e um pouco quente não suportam residir nessa praia sempre tão estrepitosa, nessa atmosfera sempre tão saturada de umidade. Mas como é refrigerante! Com cinco minutos de percurso de automóvel estamos com uma temperatura ambiente de menos quatro ou cinco graus. À centena de segredos desta cidade, dos quais só quem nela reside há muito tempo é sabedor, pertence o fato de aqui, de esquina para esquina, as temperaturas diferirem sensivelmente, de no mesmo bairro a rua de trás poder ser quente, a da frente fresca, a da direita arejada e a da esquerda calmosa, só porque ela se acha em determinado ângulo com a direção da brisa do mar ou porque essa brisa não lhe pode chegar, por causa dum morro. Assim, por exemplo, o início de Copacabana, que se chama Leme, não é tão procurado, não tem tanto valor, embora só diste um quilômetro do resto da Avenida Atlântica e, na aparência, tenha a mesma frente para o mar. A praia de Copacabana é a praia de luxo. Ela tem um magnífico hotel, excelentes bares, dos quais um com uma orquestra de ciganos, um casino de jogo, um largo passeio e, além disso seus costumes próprios — e por isso algo não brasileiros. Só em Copacabana vemos, como nas estações de verão européias e norte-americanas, moças trajando calças e homens em camisa de esporte sem casaco. Nessa avenida há restaurantes e bares com mesas ao ar livre. Nela não há armazéns, não passam caminhões, pois essa praia quer destinar-se exclusivamente ao luxo, ao prazer, ao esporte, ao passeio, às cores, ao gozo do corpo e dos olhos. Essa avenida é, em última análise, por assim dizer, a cabine de luxo para o banho, nessa gigantesca praia, que, em certos dias, reúne cem mil pessoas, sem que com isso fique demasiado cheia. Às vezes se tem a impressão de que essa praia não pertence propriamente à cidade do Rio, de que ela, de maneira semelhante à que se deu em Nice, mas de maneira mais grandiosa, foi artificialmente anexada a uma grande cidade de trabalho, de atividade, para o gozo dos estrangeiros e das pessoas de vida faustosa, e só pouco a pouco penetrou na vida, no organismo da cidade. De fato, há vinte anos existiam ali algumas casinhas tímidas, que tinham ousado erguer-se nas dunas de areia. Mas desde que se descobriu o gosto pelo ar, pelo sol, pela água e se inventou o automóvel, levantaram-se em Copacabana quarteirões inteiros com assombrosa rapidez. Com a mesma facilidade com que em Viena se vai ao Prater ou em Paris ao Bois de Boulogne vai-se hoje à Copacabana, ao passo que outrora ir ali ainda era fazer uma excursão e quase uma viagem. Se Copacabana não é o coração é, de certo modo, o pulmão do Rio. Mas em toda sua beleza uma coisa é simbólica: é que sentados ou de pé nessa praia e voltados para o mar, verdadeiramente temos o Rio pelas costas, pois essa avenida olha — sem dúvida, através dum oceano — para a Europa. Ela é tão novieuropéia como a Avenida Rio Branco há trinta anos o era, e é característico o fato de os estrangeiros e de os viajantes gostarem mais de viver na Avenida Atlântica, do que os verdadeiros cariocas que nela se sentem mais em casa alheia do que na própria casa.

E mais uma curva e julgamo-nos levados subitamente por asas mágicas para a Suíça; ali, a algumas centenas de metros da praia, uma lagoa, a Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de morros. Nas suas margens, que são planas, surge com espantosa rapidez uma cidade inteiramente nova de vilas, mas os morros vigiam essa lagoa e de noite os contornos escuros deles se refletem no espelho negro das águas. Mas prossigamos. Apenas um rápido olhar para essa lagoa, que está dentro duma metrópole e para a qual os românticos casebres de negros olham despreocupados. Ainda temos que percorrer outra longa praia, a de Ipanema, e mais outra, a do Leblon, onde as casas e as palmeiras da avenida ainda são novas. Só depois começa a Avenida Niemeyer. Aberta na rocha, como a Corniche da Riviera, ela, seguindo muito perto da costa, que cada vez é mais rochosa, mais abrupta, olha para baixo, para o mar, que ali se mostra agitado e mais perigoso. Mas, à direita, os morros, cobertos de vegetação, de palmeiras e de bananeiras, nos tranqüilizam e protegem. O trajeto é cheio de variações até o Joá, onde um outeiro nos concede repouso e uma ampla vista. Descortina-se uma enseada com seus rochedos, avistam-se ilhas e desenrola-se o panorama dos morros distantes; por trás desses bastidores coloridos está oculta a cidade — estamos na zona rural. Mas por quanto tempo essa zona ainda será rural? Um ano? Um decênio? A pergunta tem razão de ser, pois um pouco mais adiante, na Praia da Tijuca, os terrenos estão divididos em lotes; onde agora a areia branca enche os sapatos de quem ali passa, se erguerá em breve uma nova fila de casas, em frente ao mar. Quem poderá dizer onde o Rio irá terminar, onde realmente acabará?

E mais uma volta e de novo outro mundo. O automóvel, em curvas de raio curto, sobe o morro e durante um quarto de hora estamos na mata; quase não vemos uma casa, quando muito alguns casebres, meio encobertos por bananeiras, nos quais mora gente humilde. Já começamos a esquecer-nos de que pretendíamos fazer uma excursão de uma hora dentro dos limites da cidade e temos a impressão de nesse período de tempo nos havermos afastado deles, quilômetros e quilômetros. Mas de repente numa volta olhamos para baixo e lá está novamente a cidade! O seu aspecto é todo outro, porque a vemos de outro lado, reconhecemo-la e não a reconhecemos. E, qualquer que seja o caminho que tomemos, subindo ainda mais para a Vista Chinesa, para a Mesa do Imperador ou regressando pela Tijuca, esse velho bairro aristocrático, por toda parte se deslocam as perspectivas; um aparelho fotográfico gastaria dez dúzia de filmes para retratar os mais maravilhosos desses aspectos. E depois estamos de novo na cidade, não sabemos de que direção viemos e em que direção fomos ainda depois de algumas semanas de permanência no Rio não nos orientamos — e outra vez nos achamos em avenidas, como a do Mangue, guarnecida de palmeiras, e passamos pela Praça da República. Em uma ou duas horas demos a volta, não a uma cidade, e sim a um mundo, e, ainda levemente atordoados, achamo-nos em pleno tumulto de entes humanos e de casas comerciais: uma dessas ruas do Rio lembra a Cannebière de Marselha, a outra, subindo um outeiro íngreme, Nápoles, os milhares de cafés cheios de homens que conversam, Barcelona ou Roma, os cinemas, com seus grandes cartazes, e os arranha-céus, Nova York. Achamo-nos ao mesmo tempo por toda parte e, apesar disso, sabemos por essa singular harmonia que estamos no Rio.


 

Arte dos contrastes

 

Uma cidade para ser interessante deve ter em si grandes contrastes. Uma cidade exclusivamente moderna é monótona; uma cidade atrasada, com o tempo, se torna incômoda; uma cidade de proletários causa tristeza e uma localidade de luxo, após pouco tempo, provoca tédio e mau humor. Quanto mais camadas possui uma cidade e quanto mais colorida é a escala em que seus contrastes se graduam, tanto mais atraente é ela; é o que acontece com o Rio. Nesta cidade os extremos divergem muito, mas apresentam transições entre si, de especial harmonia. A riqueza aqui não é provocadora. As casas feudais, que são montadas com um gosto estupendo, não apresentam fachadas que chamem a atenção. Estão espalhadas no meio da vegetação, estão circundadas de belos jardins com lagos e possuem um mobiliário selecionado, em geral de estilo colonial; pelo fato de elas não serem faustosas e com aspecto de casas de cidade, e sim estarem inteiramente relacionadas com a natureza, dão a impressão de alguma coisa que cresceu organicamente e não de alguma coisa pretensiosamente colocada diante dos nossos olhos; temos que procurá-las para as achar, mas, se nos é dado o prazer de ir a uma dessas casas como convidados, não nos cansamos de admirá-las, pois de qualquer aposento o olhar pode deleitar-se com a paisagem. No jardim lagos artificiais refletem caramanchões; varandas abertas com ladrilhos e azulejos portugueses antigos dão ensejo a sentir-se a exalação suave das flores e das árvores e, ao mesmo tempo, protegem o interior contra a intensa luz solar. Nada aqui é sobrecarregado e provocante, pois a riqueza aqui se acha geralmente em poder das famílias antigas, que foram educadas na civilização e tradição; o que elas colecionam são na maioria obras de arte antiga, colonial, quadros e livros de sua própria pátria. Por isso não há nessas casas a impressão muitas vezes desagradável de coisas amontoadas sem seleção. Precisamente nessas casas feudais é que vamos compreender a origem antiga da civilização brasileira. Mas a apenas dois passos do portão de uma dessas residências podemos estar numa “favela” ou num bairro operário; aquela e este, cercados ambos pela mesma vegetação verde escura e banhados pela mesma luz radiante, não se perturbam mutuamente. De certo modo, nesta cidade, pela força unitiva da natureza, o contraste não foi suprimido, mas se tornou menos forte, e essa constante e suave influência recíproca dos contrastes parece-me característica do Rio. O arranha-céu e o casebre, as avenidas suntuosas e as ruas estreitas e de casas baixas, as praias e os morros, que altivos erguem seus cabeços, tudo parece mais completar-se do que se hostilizar. A vida social tolera nesta cidade todos os contrastes; podemos tomar um sorvete numa confeitaria refrigerada, que por seus preços lembra as de Nova York, e muito perto dela, muitas vezes no mesmo prédio, podemos tomá-lo por alguns tostões e podemos com o mesmo terno de brim andar num automóvel ou num bonde com os operários; nada nesta cidade se hostiliza, e encontramos em todas as pessoas, no engraxate e no aristocrata, a mesma polidez que aqui une harmonicamente todas as classes sociais. O que se separa com hostilidade e desconfiança nos outros países, aqui se combina livremente. Quantas raças encontramos nas ruas: o preto de casaco roto, o europeu com o terno bem talhado, o caboclo de olhar grave e cabelos pretos e lisos; em centenas e milhares de matizes, as mesclas de todos os povos e de todas as nacionalidades, mas todos, não como em Nova York e outras cidades, separados em bairros, aqui negros, ali brancos, acolá mestiços, mais adiante italianos, irlandeses ou japoneses. Todos aqui se misturam, e a rua, pela grande variedade das fisionomias, se torna um quadro constantemente cambiante. Que habilidade se torna necessária, aqui, para atenuar os contrastes, sem destruí-los, para conservar a variedade, sem a preocupação de ordená-la e organizá-la, à força!

Que essa cidade conserve tal habilidade! Que não seja acometida do delírio geométrico das avenidas retas, dos nítidos cruzamentos, da horrenda idéia da excessiva regularidade das modernas cidades grandes, que sacrificam à simetria da linha e à monotonia das formas, precisamente o que sempre é o incomparável de toda cidade: suas surpresas, seus caprichos e suas angulosidades e, sobretudo, seus contrastes — esses contrastes entre o velho e o novo, entre a cidade e a natureza, entre o rico e o pobre, entre o trabalhar e o flanar, contrastes que aqui se gozam em sua harmonia sem par!


 

SÃO PAULO

São Paulo

 

Para apresentar a cidade do Rio de Janeiro teria eu propriamente que ser pintor e para descrever São Paulo precisaria ser estatístico ou economista. Teria que reunir números e compará-los, copiar tabelas e tentar tornar compreensível por palavras o crescimento, pois não são o passado e o presente de São Paulo que o tornam tão fascinante, mas sim o seu crescimento, desenvolvimento e velocidade de transformação, por assim dizer, vistos numa película cinematográfica feita em câmara lenta. São Paulo não fornece um quadro, porque constantemente se está ampliando e sua transformação se opera com muita rapidez. A melhor maneira de mostrá-lo seria por meio duma película duma película que de hora para hora se fosse desenrolando mais depressa. Nenhuma outra cidade do Brasil e poucas do mundo inteiro podem comparar-se em impetuosidade de desenvolvimento a essa, que é a mais ambiciosa e mais dinâmica do país.

Vejamos, pois, alguns números, apenas a fim de termos uma idéia desse desenvolvimento. Nos meados do século dezesseis edificam os jesuítas algumas choupanas e casas em redor do seu colégio; os séculos dezessete e dezoito ainda vêem à margem do rio Tietê uma cidadezinha sem importância, que é mais um quartel general ou acampamento do que uma residência permanente dos bandos errantes, dos paulistas, que partindo dali percorrem, nas célebres e mal afamadas entradas, grandes regiões do país à procura de presas, sem, todavia, realmente enriquecerem a si e a cidade com sua captura de índios. Ainda em 1872, São Paulo, com seus 26.000 habitantes e suas ruas estreitas e pobres, ocupa o décimo lugar entre as cidades do Brasil, é muito inferior ao Rio, que tem 275.000, à Bahia, que conta 129.000 habitantes, é inferior mesmo a cidades cujos nomes o estrangeiro nem conhece, como sejam Niterói, que tem 42.000, e Cuiabá, que conta 36.000 almas. Mas é o café, o grande rei, o primeiro que manda suas tropas de trabalho para São Paulo, e a ascensão, uma vez iniciada, assume proporções fantásticas. O número de habitantes em 1890 já é de 69.000, e no decênio seguinte ascende a 239.000. No ano de 1920 a população é de 579.000, por volta de 1934 é superior a um milhão e hoje já está acima de um milhão e meio, sem que se tenha podido verificar o menor sinal de diminuição da velocidade do crescimento. Em 1910 foram construídas 3.200 casas, em 1938 mais de 8.000, número que por si só de nenhum modo permite perceber inteiramente a proporção do crescimento, pois entre os novos prédios há muitos arranha-céus, os quais correspondem a dúzias das casas de outrora, pouco espaçosas e de um andar. O coeficiente do aumento exprime-se melhor pela importância dos aluguéis, que a partir de 1910 subiu de 43.173 contos a uma quantia quase vinte vezes maior, a cerca de 800.000 contos. Constroem-se atualmente ao menos quatro casas por hora nessa cidade, que, desde a época em que a indústria acabou com a soberania do café, possui mais de 4.500 fábricas e, de fato, domina mais ou menos toda a vida mercantil do país.

Que causas determinaram tão fantástico crescimento e ainda hoje o favorecem? Em essência, são elas as mesmas causas geográficas e climáticas que há quatrocentos anos fizeram Nóbrega escolher o mesmo local, como o mais apropriado do Brasil para uma expansão eficiente e rápida. Um dos melhores portos da América do Sul, o de Santos, está perto da cidade de São Paulo, o planalto facilita as comunicações em todas as direções, os grandes cursos de água, o Paraná e o Rio da Prata, são facilmente atingíveis, o solo, a chamada “terra roxa”, é fértil e próprio para toda espécie de lavoura, a energia hidro-elétrica existe em abundância e por preço módico. Tudo isso já é suficiente para explicar o crescimento rápido dentro dum país que constantemente se potencia a si próprio. Mas o fator decisivo foi desde o começo o clima, que, apesar de saturado de sol, nesse planalto de oitocentos metros de altitude, nunca exerce sobre a atividade humana a mesma ação debilitadora que exerce nas zonas trópicas e nas cidades marítimas. Já no século dezessete se mostrou que o paulista se desenvolvia com um espírito mais enérgico, mais ativo do que o faziam os demais brasileiros. Os paulistas, os verdadeiros portadores da energia nacional, “semper novarum rerum cupidi”, descobriram e conquistaram a região, e esse gosto por empreendimentos ousados e esse desejo de progredir e de expandir-se transmitiu-se, nos séculos posteriores, ao comércio e à indústria. O verdadeiro impulso para o progresso foi trazido pelos imigrantes nos últimos decênios do século dezenove. Instintivamente procura o imigrante condições de vida e clima que correspondam aos que tinha em sua pátria; os italianos, que constituem a maioria dos imigrantes, encontram em São Paulo o clima do norte e do centro da Itália e o sol do sul da Europa. Eles não têm que se adaptar; trazem consigo toda sua energia e ainda a fortalecem no Brasil. O imigrante tem sempre maior sofreguidão de progredir do que o filho do país, não possui bens de herança dos quais possa viver sem trabalho, e tem que adquirir tudo pelo labor. Isso aumenta a sua atividade, isso faz com que dispenda maior energia. E essa energia e esse espírito de empreendimento estimulam os filhos do país; justamente os brasileiros mais dispostos para o trabalho e mais ambiciosos se estabelecem em São Paulo, onde encontram esses trabalhadores mais civilizados, mais bem preparados e mais operosos. O capital, por sua vez, aflui em massa para o espírito de empreendimento, uma roda engrena na outra, e assim a máquina do progresso de ano para ano trabalha com maior velocidade. Quatro quintos do total produzido hoje de modo organizado e industrialmente no Brasil têm origem em São Paulo. Esse Estado, mais do que qualquer outro da União, mantém a economia nacional em equilíbrio; é, de certo modo, o centro muscular do Brasil, o órgão da sua força.

O músculo é, sem dúvida, no organismo um dos elementos mais necessários, mas não é um órgão bonito. Quem espera ter da cidade de São Paulo impressões estéticas, sentimentais ou pitorescas, fique sabendo que São Paulo é uma cidade que cresce para o futuro, e ela o faz tão rápida e sofregamente que não presta muita atenção ao seu presente e ainda menos ao seu passado. Quem procura algo de histórico em São Paulo, encontra-lo-á tão pouco quanto em Houston ou em uma das outras cidades norte-americanas do petróleo. Mesmo o próprio colégio do fundador da cidade, edifício que deveria ter sido conservado como um panteão, há muito foi demolido para em seu lugar ser levantado um prédio qualquer. Do seu século dezessete, do seu século dezoito São Paulo quase nada conservou, e quem quiser ver uma morada paulista do século dezenove, não perca tempo, pois nessa cidade se arrasa com rapidez quase assustadora tudo o que ainda lembra o dia de ontem, o de anteontem. As vezes tem o visitante a impressão de não estar numa cidade, mas sim num enorme local de construção. A cidade vai-se estendendo para todos os lados, para leste, oeste, norte e sul, e em toda a parte se constrói; no centro, na parte comercial, transformam-se as ruas, umas após outras, e quem há cinco anos esteve em São Paulo, voltando ali, sente-se desorientado como se estivesse numa cidade a que chega pela primeira vez. Por toda a parte tudo se torna demasiado estreito, demasiado baixo, demasiado pequeno; as ruas exigem imperativamente maior largura e obrigam a se edificarem prédios altos, constroem-se viadutos, por toda a parte tudo se transforma sofregamente e com certo egoísmo. Assim se tem em São Paulo ainda hoje a imagem viva do desenvolvimento e da transformação duma verdadeira cidade de colonos e duma cidade de imigrantes. Essas cidades de imigrantes não cresceram, como as cidades da Europa, lenta e concentricamente, mas sim rapidamente e a esmo. Um imigrante qualquer ganhara um pouco de dinheiro. Como não houvesse casas de aluguel, construiu às pressas (o terreno não custava muito e a mão de obra era barata) em um lugar qualquer uma casa, uma dessas casinhas sem arte que aqui se encontram por toda a parte. Cada uma delas é composta de uma loja e de um primeiro pavimento com dois ou três quartos. Se o proprietário era um italiano, pintava a fachada com cores vivas, de amarelo, vermelho ou azul. Uma casa ia-se juntando a outra, formava-se uma rua e mais uma e mais outra, e pouco a pouco se tinha uma cidade. Nenhum imigrante tinha certeza de que moraria sempre nessa casa; talvez se mudasse para outra cidade, talvez com suas economias regressasse para sua terra, talvez enriquecesse e então construísse uma casa mais bonita, uma daquelas vilas de luxo sobrecarregadas de ornatos em falso barroco ou em estilo oriental, que há trinta anos aqui no Brasil eram consideradas elegantes. A idéia de estabilidade, de fixidez e da completa incorporação do indivíduo como cidadão no Estado não podia deixar de faltar inteiramente a esses imigrantes ainda nômades, e por isso essas cidades, no que concerne à arquitetônica, só podiam ser provisórias, só podiam ser um casual ajuntamento de muitas moradas, alguma coisa que foi crescendo desordenada e irregularmente, alguma coisa que tão facilmente se resolve demolir como facilmente se resolve construir. Uma casa de vinte anos aqui é considerada antiquada como entre nós, na Europa, uma de duzentos anos, e é demolida com a mesma pressa com que foi edificada.

Só desde que a indústria, o comércio e a riqueza se desenvolveram tão rapidamente parece ter São Paulo descoberto que há muito é uma cidade grande e que tem o dever de apresentar-se como tal. De repente em São Paulo tudo se tornou demasiado acanhado, demasiado pequeno, as ruas, as praças, as igrejas, os edifícios públicos, os edifícios dos bancos, os hospitais, e com vontade resoluta a cidade então se entregou ao trabalho de transformar-se. Quem hoje chega a São Paulo, observa um dos fatos mais interessantes. Pode ver com que energia nessa cidade se operam transformações e as coisas provisórias são substituídas por definitivas. Por toda a parte se trabalha, constroem-se viadutos, fazem-se jardins, rasgam-se avenidas no centro, da cidade, levantam-se grandes edifícios públicos, e tudo isso de acordo com planos, planos que, conforme me disseram, dada a rapidez vertiginosa de crescimento da cidade, durante a sua execução já se mostram insuficientes. Superando uns aos outros em altura, erguem-se no centro os arranha-céus, a fim de solucionarem o problema do espaço, e ao mesmo tempo nos outeiros os bairros residenciais se vão estendendo em círculos cada vez maiores. E também no ponto de vista etnográfico a cidade se modifica completamente. Ao passo que outrora ela se dividia de acordo com as nacionalidades dos imigrantes em um bairro italiano (São Paulo é uma das maiores cidades italianas do mundo), um armênio, um sírio, um japonês e um alemão, tudo isso agora se funde, e a cidade segundo aspectos meramente representativos se distingue numa zona central com formas de arquitetura acentuadamente norte-americanas e numa cidade de residências e jardins, situada na periferia, ambas capazes de, em alguns anos ou decênios, se tornarem belas num sentido novo. Já agora, se do alto de um dos arranha-céus lançamos um olhar sobre a extensa área levemente ondulada, temos muitas vistas aprazíveis. Mas o principal em São Paulo, nessa cidade tipicamente progressista, é o que está surgindo e não o que já está concluído; mais intenso que mesmo nos Estados Unidos da América do Norte vi o fenômeno de uma cidade que, por assim dizer, se remodela completamente e toma aspecto inteiramente novo. Coisa semelhante na América do Sul só vi em Montevidéu. Se queremos, pois, persistir na idéia de beleza, não podemos dizer que São Paulo é uma beleza presente, mas sim futura, uma beleza não tão visível quanto energética e dinâmica, uma beleza de amanhã, a qual, pelo que vemos hoje, sentimos que, precisamente agora, surge com sofreguidão e impetuosidade.

É ainda o trabalho que caracteriza essa cidade. São Paulo não é cidade para os que querem gozar a vida, nem cidade preparada para ostentação: tem poucos passeios, poucas paisagens e poucos locais de diversões, e nas ruas vemos quase só homens, homens apressados, pressurosos, em atividade. Quem não está trabalhando ou tratando de negócios, após um dia de permanência em São Paulo, já não sabe como passar o tempo. Nessa cidade o dia tem o duplo do número de horas e a hora o duplo do número de minutos que têm aquele e esta no Rio, porque todas as horas são completamente cheias de atividade. Em São Paulo há tudo o que é novo, tudo o que é moderno, uma boa indústria manual e casas de negócio de luxo muito seletas. Mas pergunto a mim mesmo: quem nessa cidade tem tempo para gastar em luxo, em gozos, ao invés de utilizá-lo para obter lucros? Sem querer, lembro-me de Liverpool e de Manchester, dessas cidades essencialmente laboriosas, e, na realidade São Paulo está para o Rio como Milão para Roma, como Barcelona para Madrid. Milão e Barcelona, que não são capitais, sedes do governo e depositárias das obras de arte do país, também são superiores a Roma e a Madrid em energia ativa. O Estado de São Paulo sozinho, graças ao clima menos quente, que não diminui a atividade dos imigrantes europeus, tem mais indústria e comércio do que todo o resto do país

São Paulo é mais moderno, mais progressista que as outras cidades do Brasil e, por isso, mais parecido com as cidades norte-americanas e européias pela sua organização intensiva. São Paulo nada tem da maravilhosa amenidade do Rio, dessa atmosfera que constantemente seduz à contemplação e ao belo ócio; a harmonia musical que paira sobre o Rio e toda a baia de Guanabara, é em São Paulo substituída por um ritmo, um ritmo célere, intenso, como a pulsação cardíaca dum corredor que corre e corre cada vez mais e se inebria com a sua própria velocidade. O que a São Paulo ainda falta em beleza é compensado por energia, que aqui nessas zonas tropicais se torna muito mais surpreendente e valiosa, e dá-se um fato que ainda é mais importante: essa cidade sabe que ainda tem que conseguir sua forma, e, como é animada de uma grande rivalidade em relação ao Rio, de uma vontade de não parecer inferior a este, menos artística do que este, podemos esperar que ela nos próximos anos nos proporcione toda espécie de surpresas.

São Paulo atualmente ainda não possui muitas coisas dignas de serem vistas, e as três que possui, têm em sua grandiosidade um ressaibo pouco agradável. Existe nessa cidade o Museu do Ipiranga, que representa da maneira mais excelente e por meio duma exposição bem concebida todas as variedades da fauna e civilização brasileira. Mas o que senti ao percorrer as salas desse museu foi mais um desejo do que uma satisfação, pois eu preferia ver esses numerosos beija-flores e papagaios de diversas cores em seu meio, na natureza, livres, em vez de empalhados, e sabia que a algumas horas de distância desse museu já começa a mata e, enquanto ainda estava diante das vitrinas, sonhava com essas regiões fantásticas. Tudo que é exótico, logo que é posto em exposição e esquematizado, cessa de parecê-lo; torna-se imediatamente árido como um assunto de ensino, como uma categoria rígida, e por isso senti um pouco (contra a minha razão, que admira um museu desses e sabe avaliar o trabalho que ele representa) que no meio duma natureza tão impetuosa e luxuriante, a natureza aprisionada é um absurdo. Um desses macaquinhos interessantes, saltando livremente de uma árvore para outra, certamente me entusiasmaria como uma mercê da natureza, mas cem exemplares de macacos empalhados, enfileirados e expostos junto duma parede despertam apenas curiosidade técnica. Já os jardins zoológicos não dão completa impressão de realidade natural, e, muito menos o fazem os museus, mesmo quando eles, como esse de São Paulo, são dirigidos com extremo zelo e organizados para constituírem um todo grandioso.

Tudo o que está preso contrista — e por isso também não deixei de sentir o coração oprimido quando vi a outra coisa digna de ser vista, a Penitenciária, o célebre presídio de São Paulo, estabelecimento modelar que honra muito os seus diretores, a cidade e o Estado. Nessa penitenciária o problema do estabelecimento penal, problema que no ponto de vista moral nunca pode ser inteiramente resolvido, é encarado no sentido mais humano, e a nação que não adota a pena de morte, esforçou-se por tratar os seus criminosos de acordo com os princípios mais razoáveis e mais modernos. Nessa penitenciária a humanidade no tratamento dos correcionais não é abolida à semelhança do que se faz em outros países como um atraso, e sim conscientemente desenvolvida e promovida de acordo com a idéia de que o preso deve realizar o trabalho que é mais apropriado para ele, e de que o estabelecimento inteiro deve constituir de certo modo uma comunidade autárquica, em que tudo é feito pelos penitenciários. Vemos nesse estabelecimento, que é grande, muito asseado e construído de acordo com os preceitos da higiene, todo o serviço ser realizado quase exclusivamente pelos presos; eles fazem o pão, manipulam os medicamentos, trabalham no serviço das clínicas e das enfermarias, plantam as verduras e lavam a roupa; quase nunca há necessidade de recorrer a alguém estranho ao estabelecimento. Todo pendor para uma atividade artística é favorecido pelos dirigentes, o estabelecimento tem uma orquestra e vários penitenciários aprendem a pintar e a desenhar. E, assim, num país que nas zonas mais dificilmente acessíveis ainda conta um número bastante grande de analfabetos, o presídio dá ao indivíduo o ensejo de aprender o que deveria ter aprendido na escola. Não se pode imaginar nada mais modelar do que esse estabelecimento, que por si já poderia corrigir a pretensão européia que julga serem as instituições da Europa as mais aperfeiçoadas do mundo. Apesar da perfeição dessa penitenciária, respiro aliviado logo que afinal a última das pesadas portas de ferro que transpus, se fecha atrás de mim; novamente respiro liberdade e vejo pessoas que dela gozam.

Com semelhante desafogo deixo também o Instituto Butantan, embora nele haja visto coisas grandiosas e aprendido coisas de importância. O que ali atrai a curiosidade do público — de nada gosta mais a humanidade do que de ver o perigo sem estar exposto a ele — pouco me interessou, a saber, como se tiram ali as serpentes venenosas de seus abrigos, como se agarram as mesmas e se lhes extrai o veneno. Isso já eu vira, havia anos, nas Índias, e sempre me causa horror ver o homem, à custa da impossibilidade de defender-se um animal subjugado, dar um espetáculo ou uma diversão. O Instituto Butantan há muito tempo estendeu a sua atividade além do seu objetivo inicial, o de estudar as serpentes e preparar soros contra os venenos desses animais; nos últimos anos desenvolveu-se para constituir um grande instituto de pesquisas, no qual trabalham proeminentes especialistas com os mais modernos aparelhos. Numa hora em que ali me foram explicadas as diversas tentativas de transplantações e de análises químicas, aprendi mais do que durante anos, em livros; para nós leigos a demonstração objetiva é o único meio de nos serem apresentados de modo mais compreensível os problemas abstratos. E, porque justamente o visível, o palpável, é o que mais me excita a fantasia, nada em Butantan me impressionou tanto quanto um frasco de tamanho médio que continha pequenos cristais esbranquiçados; o veneno de oitenta mil serpentes, que é conservado sob forma concentrada e cristalina nesse frasco, é o mais terrível de todos. Cada um desses cristaizinhos, apenas visíveis e que poderiam desaparecer inteiramente debaixo de uma unha, pode com facilidade matar num segundo um homem. Mil vezes mais do que nas maiores granadas está condensada nesse frasco precioso e terrível a aniquilação, um milagre maior do que o dos célebres contos “As mil e uma noites” nunca vira e tivera eu nas mãos a morte em forma tão concentrada como no instante que segurei esse frasco frio e frágil. Esse fato incompreensível que é a destruição possível de um ente humano, com todas as suas idéias e toda a sua experiência, em um segundo, a parada súbita dum coração e de todos os músculos, só porque um cristalzinho muito menor do que um grão de sal lhe penetra no organismo, e o de ver essa possibilidade — já incompreensível em se tratando de um único ser — multiplicada por cem mil, tinham algo de comovente e, ao mesmo tempo, de grandioso. Todos os aparelhos desse laboratório de repente se tornaram para mim forças que arrancam da natureza o que há de mais perigoso, para em outro sentido, num sentido fecundo, servir a ela própria, e com respeito olhei, de súbito, para essa casa que repousa solitária no meio da vegetação dum outeiro, essa casa cercada pela natureza e que poderosamente domina a natureza, graças ao infatigável espírito humano.


 

Visita ao café

 

Se no Brasil fazemos uma visita, é-nos oferecido café, qualquer que seja a hora do dia, café simples, saboroso, em pequenas xícaras. É uma praxe amável, como todas nesse país hospitaleiro. O café é bebido aqui não como na Europa ou melhor, ele verdadeiramente não é bebido, mas sim tomado de um só trago como um licor — é ingerido muito quente, tão quente que, como se diz aqui, um cão sairia correndo aos uivos, se sobre ele se derramassem algumas gotas. Quantas dessas xícaras um brasileiro consome em média por dia, dificilmente poderia ser verificado por estatística; — penso que sejam dez a vinte — e também seria difícil decidir apoditicamente qual a cidade em que o café é mais saboroso. Com grande zelo todas as localidades do Brasil pretendem para si a glória do melhor, do mais perfeito preparo dessa bebida. Imparcialmente a tomei, com o mesmo entusiasmo, nos cafés do Rio, onde a xícara custa duzentos réis, numa fazenda, em Santos, cidade do café, e mesmo no Instituto do Café em São Paulo, onde o seu perfeito preparo, por assim dizer, é elevado à altura duma ciência, e, após ter feito ali o curso, recebi um saco desse produto e a mais conveniente máquina de fazer café para continuar a praticar. Por toda parte, o café tinha o mesmo aroma mágico, era igualmente forte e estimulante dos nervos, era um fogo negro que tornava os sentidos mais claros e os pensamentos mais lúcidos.

Esse potentado negro poderia aqui ser denominado El-rei Café, pois, no ponto de vista econômico continua á dominar esse enorme país, e de Santos, seu porto, governa, em maior ou menor grau, todos os mercados e bolsas do mundo; dezesseis dos vinte e quatro milhões de sacas de café que a humanidade consome, são produzidos pelo Brasil: em última análise, são esses pequenos grãos pardos a verdadeira moeda do país. Com café compra e paga o Brasil as poucas matérias primas que lhe faltam, trigo e sobretudo gasolina, bem como as máquinas e os instrumentos técnicos. Por isso o preço do café no mercado mundial era o verdadeiro termômetro da economia brasileira; se o seu valor subia, florescia o país inteiro, se ameaçava baixar, o Governo queimava o café excedente ou o lançava ao mar. O café representou aqui, em última análise, durante um século, ouro e riqueza, lucro e perigo; do seu valor e da sua influência dependia até certo ponto a balança comercial do país inteiro; não foi o valor do mil-réis que em alguns anos determinou o valor do café, e sim o preço do café no mercado mundial que determinou o valor do mil-réis.

O café, esse grande potentado das finanças do Brasil, é, como muitos indivíduos que hoje estão ricos, um imigrante neste país. Sua verdadeira pátria é a Etiópia, e diz a lenda que pastores ali um dia observaram, com surpresa, que suas cabras, depois de haverem roído certo arbusto, saltavam com mais viveza. Não tardaram em experimentar eles próprios os grãos desse arbusto e verificaram que os mesmos sem nenhum dano para a saúde, exerciam uma ação especial e diminuíam a fadiga, motivo pelo qual denominaram a bebida feita com esses deliciosos grãos kahma (de kaheja, que significa impedir o sono). Os árabes levaram o revigorante elixir para a Turquia; por ocasião do cerco de Viena sacas de café caíram em poder dos austríacos, dentro de pouco tempo abriu-se nessa cidade o primeiro café e o uso dessa bebida escura se tornou moda em toda a Europa, — uma moda passageira, como a boa Madame de Sevigné erroneamente pensou, quando zangada disse de Racine: “Cela passera comme le café”. Mas o café continuou — Racine também — e emigrou para a Guiana Francesa, onde os pés e os grãos de café foram medrosamente guardados como segredo comercial. Do mesmo modo que mil anos antes os chineses escondiam a matéria prima da seda, o casulo do bicho da seda, a todos os estrangeiros e ameaçavam castigar com a pena de morte a quem deixasse sair do país um casulo do bicho da seda, até que dois monges levaram para a Europa um casulo dentro dum bordão oco de peregrino, o governador de Caiena, cumprindo uma ordem severa da metrópole, não permitia a nenhum estrangeiro acesso às plantações de café. Mas, felizmente para o Brasil, esse governador tinha uma esposa e essa, em 1727, em ou após um momento de fraqueza, presenteou o sargento-mór Francisco de Mello Palheta com alguns cafeeiros. Com isso o imigrante pardo entrou no Brasil e, como todos os imigrantes, em pouco tempo se aclimatou neste país. Primeiramente se domiciliou no norte do Brasil, na região do Amazonas e no Maranhão, junto do açúcar e do fumo, seus irmãos — o café sem eles é sempre um prazer incompleto; pouco a pouco em 1770 se dirigiu para o sul, para o Rio de Janeiro. Em torno dos morros da Tijuca, onde hoje já os arranha-céus ameaçam disputar o terreno às casas rurais, apossou-se para si das terras e pôs a seu serviço milhares de escravos. Mas a atmosfera no Rio ainda não lhe agradava inteiramente; em seguida ele se apoderou das províncias do Rio e de São Paulo e, após uma migração milenária, dali estendeu o seu império sobre o mundo inteiro. De acordo com sua origem oriental, tornou-se cada vez mais um tirano, e de seu trono real, em São Paulo, avassalou toda a economia brasileira. Mandou construir para si os mais magníficos armazéns, mandou vir navios de todas as partes do mundo, ditou o valor do dinheiro, lançou o país, em terríveis especulações e crises perigosíssimas e atirou até seus próprios filhos — em número de bilhões e bilhões — ao mar, porque o mundo não queria pagar-lhe todo o tributo.

Julguei de meu dever fazer uma respeitosa visita a tão poderoso senhor, senhor que tantas vezes me estimulou no trabalho e em inúmeras horas me aumentou a alegria na roda de amigos. Sem dúvida, para irmos à residência desse rei, temos hoje que penetrar no país mais que outrora. A princípio, quando o café foi trazido da África pelos portugueses — Henrique Eduardo Jacob narra encantadoramente a história dessa migração em seu livro — as plantações ainda ficavam muito perto da costa. Os vales em torno de Santos e algumas das magnificas chácaras do Rio de Janeiro, na Tijuca, foram durante séculos plantações de café; das lavouras eram as sacas carregadas diretamente para bordo às costas dos escravos. Mas em decênios o solo, depois de ter produzido bilhões e bilhões desses grãos mágicos, pouco a pouco se foi tornando cansado, e os grãos de café perderam em tamanho, eficácia e aroma. A duração da vida de um cafeeiro é de oitenta anos, exatamente quase a idade patriarcal do homem. As plantações de café foram-se transferindo cada vez mais para o interior do país, do vale do Paraíba para São Paulo, onde a terra vermelha e fértil produzia quatro vezes mais do que o solo do Rio, de São Paulo para Campinas, sempre mais e mais para o interior. De solo não aproveitado nunca o Brasil teve falta. Vamos, pois, para a zona do café, vamos para onde agora é a sua terra! Uma viagem noturna de doze horas de trem do Rio a São Paulo, dessa cidade mais três horas de estrada de ferro para Campinas, antiga colônia dos jesuítas, mais um pequeno percurso de auto e estou em plena zona do café e, finalmente, numa fazenda.

Fazenda ou “hacienda”, em espanhol — por que essa palavra me é familiar? Por que tem ela sobre mim um efeito tão curiosamente romântico, por que desperta em mim sentimentos tão esquecidos e fortes? Ah! reconheço-a; nada fica tão gravado na nossa memória quanto os livros que lemos com entusiasmo na adolescência. Como vira eu com a imaginação juvenil, nos romances de Gerstäcker, de Sealsfield, essas fazendas do Brasil e da Argentina, e essas casas de fazendeiros em plena floresta tropical ou nos imensos pampas, esses lugares remotos sempre cercados de perigos e de inauditas aventuras! Como era ardente o desejo de um dia experimentar essas aventuras! E agora me acho nesses lugares; não chego montado num cavalo fogoso, e sim conduzido por um automóvel que, através duma entrada coberta por uma trepadeira florida, me conduz ao pátio. Mas, com efeito, a casa da fazenda é exatamente igual às das velhas gravuras e às das descrições dos romances da adolescência, uma casa de um andar, baixa, no meio duma imensa propriedade e cercada dos quatro lados por uma varanda larga. Perto dessa casa, em volta duma pequena praça quadrada, estão as casas dos trabalhadores, e lembro-me, graças às minhas leituras, de que ali moravam, há pouco mais de cinqüenta anos, os escravos, e à noite estavam sentados nessa praça e entoavam suas cantigas melancólicas; talvez um ou outro desses pretos de cabelos brancos que perambulam tranqüilos e contentes nessa praça, ainda se recorde daqueles tempos. Mas logo que penetro na casa hospitaleira, retorno à época atual. É verdade que se vêem ainda os tetos apainelados à maneira antiga, o velho e belo mobiliário de jacarandá, as baixelas de prata e os oratórios da época colonial, piedosamente conservados. Mas há muito que essas casas de fazenda já não se acham no ermo, já não são casas a que às vezes chega um viajante após uma viagem cheia de perigos, e sim propriedades como casas de campo modernas, com todo conforto, com piscina de natação, campos de jogo, rádio, gramofone e livros, entre os quais muitos dos escritos por mim. Em vez do perigo de outrora, reina hoje nas fazendas alegria e afabilidade; o século técnico soube tornar habitável mesmo o mundo tropical e a mais triste solidão.

Em torno da casa da fazenda, estende-se em amplas, suaves e numerosas ondas de colinas a plantação; cada uma dessas casas parece uma ilha num mar imenso de vegetação. Mas essa vegetação — adeus romantismo! — é de fato muito monótona, e não posso deixar de dizer que as plantações de café ou, ainda mais do que essas, as plantações de chá de Ceilão, são, em verdade, muito tediosas. Os cafeeiros, todos da mesma altura e da mesma largura e com o mesmo verde, são separados uns dos outros por espaços bem iguais, e tenho a impressão de estar vendo uma coluna militar, em uniforme verde-folha em vez de em uniforme pardo, marchando sem entusiasmo; em pouco tempo os olhos se cansam de ver essas colinas plantadas com regularidade, e alegro-me quando se me depara uma plantação de bananas, que, com suas moitas desordenadas, dá uma impressão de maior individualidade e não tão triste e monótona. Mas o que se quer do cafeeiro não é beleza e sim fertilidade; cada arbusto destes, que nem têm a altura de um homem, produz anualmente no mínimo dois mil bagos (nessas plantações só se faz uma colheita por ano) e, como nessas fazendas muitas vezes se colhe café de centenas de milhares de pés, podemos compreender o segredo dessa terra fecunda, que produz fabulosas quantidades de café saboroso.

O trabalho da colheita é o mais simples que se possa imaginar. Em relação a ela a técnica ainda nada inventou que tornasse supérfluo o trabalho manual; do mesmo modo que há séculos, os bagos de café são colhidos pela mão do homem, e talvez os trabalhadores de hoje entoem as mesmas cantigas monótonas que outrora os escravos entoavam para acompanharem os mesmos movimentos monótonos. Depois os bagos de café são levados a granel, em carroças e autocaminhões, para a casa da fazenda, e ali se prestam algumas cerimônias a El-rei Café: ele é bem lavado e exposto ao sol para secar; em seguida os bagos são descascados por meio de máquinas, os grãos, depois de limpos, são passados por condutores e sobre peneiras e ensacados.

Com isso está (ou parece estar) terminado o trabalho. Esse processo nada tem de romântico; é semelhante ao que se pratica com as vagens de ervilha, e só uma coisa me causou surpresa em todas essas operações — a ausência completa de aroma. Eu pensava que, percorrendo um cafezal com milhares de cafeeiros, deveríamos sentir o odor de café, que de todas as bebidas é a mais aromática, um odor delicado, como sentimos num campo de cereais, em toda floresta ou onde se estão derrubando árvores. Mas, coisa curiosa, o café é absolutamente inodoro, oculta seu aroma no íntimo do grão. Todos os misteriosos sais, óleos e outros componentes que, quando os grãos de café são torrados, exalam aroma intenso, antes disso permanecem inteiramente imperceptíveis; podemos andar dentro do café em grão e não sentimos cheiro algum, como acontece quando andamos na areia seca; de olhos vendados, numa dessas fazendas, não poderíamos dizer se os sacos contêm algodão, café ou milho. Foi uma pequena desilusão para mim, que esperava encontrar no café uma exalação agradável, ver que milhares de sacas desse precioso estimulante dos nervos estavam empilhadas sem exalarem o mínimo aroma, como se fossem sacos de cimento.

A segunda surpresa tive em Santos, o maior porto de exportação do Brasil. Eu julgava que com o ensacamento do café estava ele pronto para ser exportado, mas vi nessa cidade que o trabalho recomeça. Nem todos querem o mesmo café, uns preferem o café graúdo e outros o café miúdo. Também nos matadouros da Argentina vi que as qualidades de carne já são classificadas, de acordo com o paladar dos diversos países, em carnes magras e gordas, em carnes de reses grandes e de reses pequenas. Em Santos, nessa grande e ardente fornalha, todos os grãos de café têm que sair das sacas. Novamente são amontoados em enormes quantidades, que então são aspiradas para o interior dum tubo, que é o maior bebedor de café do mundo; o café corre para cima e para baixo, passando por uma série de peneiras, de sorte que os grãos maiores se separam dos menores; mãos femininas destras vão retirando dessa corrente de café os grãos que não prestam, os grãos mal desenvolvidos. Assim o café é separado em diversas qualidades, que recebem nomes diferentes. Uma máquina que automaticamente pesa e conta, despeja exatamente cinqüenta quilos de uma e mesma qualidade de café em cada saca, que já traz o número e a marca da qualidade, e, enquanto a saca que, havia um instante, estava vazia e rapidamente se encheu, é transportada por uma faixa rolante, outra máquina cose a boca da saca. Só depois dessas separações requintadas e supertécnicas está o café realmente pronto para viajar e pode seguir para todas as zonas da terra nos navios que o estão esperando.

O embarque também é muito interessante, pois as sacas não são carregadas para bordo sobre os ombros dos estivadores, e nem, como estamos habituados a ver noutros portos, guindastes em uma rotação elegantemente suave colocam linguadas de sacas no porão do navio. Em Santos se estende para o navio uma ponte de aço, que se adapta a uma das escotilhas. Essa ponte suporta uma faixa rolante sobre a qual as sacas (muito mais comodamente do que os passageiros) são diretamente conduzidas do armazém para bordo. É interessante ver essa corrida silenciosa; do mesmo modo que os carneiros dum rebanho seguem um atrás do outro numa vereda estreita, as sacas de café seguem uma atrás da outra do armazém para bordo, primeiro subindo e depois descendo. Só vendo isso é que verdadeiramente podemos imaginar que quantidades fantásticas de carga o bojo de navio consegue conter (pois os números são sempre abstratos), e, como no porto de Santos diariamente grande número de navios, um atrás do outro, esperam a sua vez para receberem café, podemos fazer idéia das enormes quantidades desse produto consumidas pela humanidade em cada hora.

Afinal o voraz navio engoliu café em quantidade suficiente. Um apito, e a faixa rolante pára, uma ou duas sacas, ainda propelidas pela velocidade, caem no porão. Então o vapor dá o sinal de partida, as turbinas põem-se em movimento e pouco a pouco nos afastamos do cais. As casas ainda brilham ao sol, vejo ainda as palmeiras esbeltas. Mas cada vez mais longe vai ficando a vegetação desse mundo tropical, e dentro em pouco já só indistintamente diviso os morros, e, afinal, já mesmo essa última saudação do reino do café se some. Desapareceu! Desapareceu e já é uma lembrança!

Mas quando em casa tomo uma xícara dessa bebida, que entre todas é a mais saborosa e a mais amiga dos artistas, o aroma suave me evoca o sol tropical que pôs no mais íntimo do grão do café o fogo secreto, a luz ardente que no Brasil embeleza todas as coisas da existência, e me evoca toda árvore e toda enseada dessa paisagem estrangeira, que, enquanto me achava nela, me estimulava o desejo de sonhar e agora que estou distante dela, desperta uma saudade dessas zonas em que a natureza cria livre, abundante, e prodigamente.


 

MINAS GERAIS

Visita às cidades do ouro

 

Vila Rica e Vila Real, as mais ricas e mais afamadas cidades do Brasil no século dezoito, hoje já não se encontram nos mapas. Os cem mil habitantes que as povoavam, numa época em que Nova York, o Rio de Janeiro e Buenos Aires ainda eram povoações sem importância, dispersaram-se, e mesmo os pomposos nomes, essas cidades perderam. Vila Rica, que o povo mais tarde desdenhosamente denominou Vila Pobre, hoje se chama Ouro Preto e não passa de uma cidadezinha romântica de província com algumas dezenas de ruas pedregosas. No lugar em que existia Vila Real, encontra-se hoje uma pobre aldeia que humildemente se abriga à sombra da nova capital do Estado de Minas Gerais, da moderna Belo Horizonte. O brilho e a grandeza dessas cidades duraram apenas um século.

Esse brilho fugaz de riqueza e ouro que então se percebeu no mundo inteiro, era proveniente do pequeno Rio das Velhas e dos flancos dos morros entre os quais corre este: tudo isso foi uma aventura iniciada por aventureiros e que não se repetiu. Pelos fins do século dezessete penetra pela primeira vez nessa zona inóspita um grupo de bandeirantes, um grupo daqueles indivíduos destemidos que, partindo de São Paulo, percorrem todo o território à procura de escravos e de minérios; andam dias e semanas por desfiladeiros e morros sem encontrarem uma povoação, um vestígio humano. Mas não desistem do seu intento, pois os morros apresentam cintilação metálica nos pontos em que há roturas do terreno, e o solo tem um brilho vermelho escuro como se estivesse cheio de forças misteriosas. Afinal a sorte lhes acena: o Rio das Velhas, que de Ouro Preto para Mariana, em seu curso impaciente, esboroa as encostas dos morros, com sua areia, leva ouro, ouro puro, e em grande quantidade; basta colocar a areia em vasilhas de madeira denominadas bateias e sacudi-las, e as preciosas pepitas se depositam. Em parte alguma do mundo, no século dezoito, o ouro se apresenta tão abundante e tão superficialmente como nessa região montanhosa do Brasil. Um dos bandeirantes leva em pequenos sacos de couro o primeiro ouro extraído. para o Rio de Janeiro, outro leva-o para a Bahia, e imediatamente começa um assalto àquele ermo, assalto só comparável ao que se deu por ocasião do descobrimento das minas de ouro da Califórnia. Os donos de roças de cana as abandonam, os soldados deixam os seus quartéis, os padres as suas igrejas, os marinheiros os seus navios. Em embarcações e montadas em muares e cavalos e a pé, enormes multidões se dirigem para ali, levando consigo seus escravos pretos; pouco depois chega de Portugal a primeira, a segunda e a terceira leva, e aos poucos se reúnem tais massas humanas que se torna iminente uma escassez de víveres nesse ermo sem criação de gado e sem lavoura. Inicia-se uma atividade desordenada, pois ainda não há ali autoridade para zelar pela observância das leis. É pena que nos falte a verdadeira testemunha ocular literária, o Bret Harte brasileiro, a fim de nos descrever as coisas fantásticas ocorridas nesse primeiro tumulto, que deve ter sido sem par. Os paulistas, os descobridores, combatem os emboabas, os intrusos, Na opinião daqueles o ouro é sua propriedade exclusiva como recompensa pelas inúmeras expedições que seus país e seus irmãos, partindo de São Paulo, em vão haviam empreendido. Os paulistas são vencidos, mas nem por isso há paz. Onde há ouro, há violência. O número de assassínios, roubos e furtos cresce de hora em hora, e, desesperado, exclama o Padre Antonil em seu precioso livro: “Nenhuma pessoa de bom senso pode duvidar de que Deus fez descobrir tanto ouro nas minas só para castigar o Brasil”.

Durante mais de dez anos reina nesse vale longínquo completo caos. Finalmente intervém o governo português, a fim de garantir para si o seu quinhão do ouro que esses aventureiros sem disciplina esbanjam ou por meios sub-reptícios mandam para fora do país. É nomeado um governador para a nova província, o Conde de Assumar, o qual segue para ali, com tropas de infantaria e dragões, a fim de defender a autoridade da Coroa. Para garantir uma fiscalização exata do ouro uma de suas primeiras medidas é proibir a saída da província de toda pepita deste metal. Todo ouro tem que primeiramente ser entregue à casa de fundição que ele fundou em 1710, na qual o Governo pode logo retirar a parte a que por lei tem direito, um quinto de todo o ouro extraído. Mas os cavadores de ouro odeiam toda espécie de fiscalização. Que se importam eles nesse ermo com o rei de Portugal? Sob a chefia de Filipe dos Santos reúnem-se dois mil homens, toda a população branca e semibranca de Vila Rica, e ameaçam o governador, que, inteiramente surpreendido pela inesperada revolta, acede a todas as exigências dos cabeças, num acordo que lhe é imposto. Mas às ocultas trata de reunir suas tropas e assalta de noite os insurretos em suas casas. Filipe dos Santos é esquartejado, parte da localidade é incendiada e dai em diante se consegue ordem em Minas Gerais com os métodos mais severos e mesmo mais cruéis. Aos poucos, no meio do laborioso formigueiro de escravos e de lavadores de ouro, os míseros casebres de barro e os barracões feitos às pressas começam a ser substituídos por boas casas, e assim se vai formando uma verdadeira cidade. Em volta do palácio do governador, da casa de fundição e da cadeia, que é de não menor importância para uma administração em ordem, vão-se levantando casas de pedra; ruas estreitas irradiam-se da praça principal, pouco a pouco se erguem igrejas, e ao mesmo tempo com a imensa riqueza que é extraída do solo por cinqüenta ou cem mil escravos, invade essas cidades um luxo absurdo, um luxo frenético, pueril, que está em grotesco contraste com a solidão desse vale ermo. Só em Vila Rica, Vila Real e Vila Albuquerque, no começo do século dezoito se extrai maior quantidade de ouro do que em todo o resto da América, inclusive o México e o Peru. Mas nesse ermo há pouco que comprar com ouro; por isso os infelizes loucos que o extraem, ávidos se precipitam sobre todas vistosas bugigangas que os negociantes conseguem levar para esses vales quase inacessíveis e vendem com fabulosos lucros. Aventureiros que ainda ontem eram mendigos, ostentam hoje seus trajes de veludo e suas meias de seda e pagam em ducados por uma pistola tauxiada vinte vezes o valor dela em moedas de prata na Bahia; uma bela mulata custa mais do que na corte do rei da França a mais cara cortesã. Todos os cálculos, todos os valores, em virtude da abundância do metal que todos obtêm com facilidade, tornam-se ali absurdos; indivíduos maltrapilhos perdem no jogo de dados e de cartas, numa noite, quantias com as quais na Europa se poderiam obter os mais preciosos quadros de Rafael ou de Rubens ou equipar navios ou edificar os mais maravilhosos palácios. Mas esses indivíduos que há muito se julgam demasiado distintos para pegarem numa pá, preferem comprar com seu ouro escravos e mais escravos, para que estes lhe extraiam mais e mais ouro. O mercado de escravos da Bahia não pode fornecê-los em número suficiente e as embarcações quase não bastam para transportar toda essa mercadoria preta. E assim cresce a cidade de ano para ano; todas as colinas estão cobertas pelas habitações desses animais de trabalho e já se tornam mais bonitas as residências dos proprietários de escravos e dos exploradores de ouro. Elas são construídas mesmo com dois andares — sinal de muita riqueza — e enchem-se de móveis e de objetos de adorno. Artistas, seduzidos pela esperança de lucros, dirigem-se das cidades do litoral para ali, a fim de edificarem igrejas e palácios e ornarem as fontes com esculturas. Mais alguns decênios de tal ascensão vertiginosa, e Vila Rica será a cidade mais opulenta, mais bela e mais populosa da América.

Mas o mago enganador, da mesma maneira que surgiu como um fogo fátuo, desaparece. O ouro do Rio das Velhas era apenas ouro de aluvião e, passados cinqüenta anos, nada mais resta das preciosas areias auríferas. Para irem buscar o pérfido metal nas entranhas dos rochedos, dos quais séculos ou talvez milênios com trabalho invisível o extraíram e reduziram a pepitas, faltam a esses lavadores de ouro a energia, o aparelhamento e, sobretudo, a paciência. Durante algum tempo tentam abrir galerias nos rochedos, para atingirem o precioso metal, mas seus esforços são inúteis e dentro de pouco se retira essa multidão nômade. Os negros são levados novamente para as roças de cana, alguns dos aventureiros fixam domicílio nos vales férteis situados a menor altitude; um ou dois decênios mais tarde,, as cidades do ouro estão abandonadas. As choças de barro em que habitavam os escravos, ruem, os ventos e as chuvas carregam as suas coberturas de palha, as casas da cidade caem em ruínas e durante quase dois séculos não se constróem outras. Como nos primeiros tempo, novamente é penoso ir a esses lugares esquecidos, olvidados.

Até a atual capital de Minas Gerais, fundada no fim do século passado, o acesso graças a técnica moderna é fácil; um avião em uma hora e meia vai do Rio de Janeiro ao planalto de Minas Gerais, para atingir o qual os bandeirantes gastavam dois meses de viagem e o trem ainda precisa dezesseis horas. No Brasil podem encontrar-se as mais singulares variantes no domínio da construção das cidades, como em todos os outros. Belo Horizonte não é uma cidade que se foi desenvolvendo organicamente, e sim uma cidade que foi projetada e fundada graças a vontade, deliberação e cálculo com previsão de decênios. Modernizar a capital primitiva, tradicional, de Minas Gerais, a antiga Vila Rica, que hoje se chama Ouro Preto, teria sido deitar a perder um documento sem par da História do Brasil; por isso o Governo resolveu fazer uma capital inteiramente nova e para isso escolheu o mais belo local, no ponto de vista de paisagem, e o mais favorável, no ponto de vista geográfico e climático. A princípio estava estabelecido que ela seria denominada Cidade de Minas, mas, em virtude de suas amplas vistas — vêem-se ali os mais lindos ocasos do Brasil preferiram dar-lhe o bonito nome de Belo Horizonte. Mas, muito antes de lhe darem o nome, muito antes de começarem a abrir a primeira rua, essa cidade já estava inteiramente traçada num projeto de grande previsão. Nem a sua configuração, nem o seu desenvolvimento, nada deveria ser deixado ao acaso; de antemão todo futuro bairro residencial tinha seu destino determinado, toda rua, sua largura e direção fixadas e todo edifício público tinha que ser imponente e estar em harmonia com o aspecto da futura cidade; como Washington, Belo Horizonte é o resultado feliz e modelar dum projeto não estorvado por nenhum passado e que tinha em vista só o futuro. Longos diâmetros dividem o círculo em que a cidade, conservando distâncias e intervalos regulares, se desenvolveu e continuará a desenvolver-se em uma ordem bem planejada, bem calculada. No centro estão reunidos os edifícios públicos, e ruas simétricas, ornadas de longas faixas ajardinadas, dirigem-se para fora da cidade. Cada rua tem o nome de um Estado ou de uma cidade ou de uma grande personalidade do Brasil, de modo que um passeio por Belo Horizonte proporciona um curso sistemático de corografia e história do Brasil. Planejada de início como uma cidade-modelo, Belo Horizonte realiza esse plano por meio de modelar organização e asseio; ao passo que nas outras cidades nos encantam a variedade dos contrastes, a mistura e confusão pitorescas de diversas camadas cronológicas, em Belo Horizonte surpreende-nos uma completa e agradável homogeneidade. Cidade absolutamente bonita, porque nascida duma idéia, Belo Horizonte tem conservado nitidez de linhas, e o objetivo da idéia que deu origem a seu projeto, ser capital dum Estado que é tão grande como um reino europeu, torna-se de ano para ano mais patente. Fundada em 1894 e contando hoje mais de 150.000 habitantes, pela sua situação favorável e seu excelente clima, está em crescimento rápido e, graças ao projeto previdente, absolutamente harmônico. Apesar de todo cálculo, não se poderá prever até que ponto essa cidade se desenvolverá. Se se efetuar sistematicamente a exploração metalúrgica desse riquíssimo Estado e Minas Gerais desenvolver sua energia industrial, a próxima geração conhecerá o nome de Belo Horizonte talvez tanto quanto o do Rio. ou o de São Paulo.

Ir de Belo Horizonte para Ouro Preto, da nova para a antiga capital, é viajar do futuro para o passado, do amanhã para o ontem. Apenas deixamos as ruas bem asfaltadas da capital, a estrada começa a lembrar-nos muito o passado, pois o barro vermelho com o calor produz poeira e após um aguaceiro se transforma numa papa pegajosa; como outrora, ainda hoje não é muito cômodo ir ao mundo do ouro. Olhando do planalto de Belo Horizonte a região, pensei que além da serra alcantilada se estendesse uma grande planície tropical. Mas a estrada com incessantes curvas, subidas e descidas continua sempre nas montanhas; em alguns pontos chega a altitudes de mil e até mil e quatrocentos metros, e então se descortina um panorama que em sua grandiosidade só é comparável aos da Suíça: morros seguem-se a morros como gigantescas ondas imóveis e parecem constituir um oceano verde e infindo de floresta. O vento sopra forte e odoroso nessas alturas, e seu sussurro brando é o único ruído nessa solidão. Nenhum carro na estrada, apenas uma ou outra choupana num trajeto de algumas horas, nenhuma lavoura, nenhum toque de sino, nenhum canto de ave — sempre tão somente o som primitivo do começo dos tempos nesse mundo deserto, sem vida, que parece ainda não conhecer o homem. Mas nessa região erma, bela e inculta, há algo que de modo curioso excita a fantasia; sinto que ali, na terra, nas pedras e nos rios, se oculta um segredo especial. Um brilho curioso desprende-se das superfícies de rotura dos morros, uma fulgência de minério e metal. Mesmo que por leitura e por estudo não o soubesse, já por esse brilho julgaria que esses morros encerram uma riqueza de metal ainda não explorada e quase incalculável. A própria estrada, com seu barro pulverulento, tão abundante de ferro que lhe dá uma cor vermelho-escura, que, já após curto trajeto, o automóvel apresenta um brilho tão purpurino como o carro do profeta Elias, revela essa riqueza. Revela-a também o Rio das Velhas, que arrasta a areia refulgente; um subsolo cheio de preciosos quartzos ali se acha oculto, e decênios ou talvez séculos ainda passarão antes que a sofreguidão humana os extraia. Mas nenhuma enxadada e nenhum ruído de máquina perturbam o silêncio dessa solidão; a estrada, ora subindo, ora descendo, segue descrevendo curvas, e já estou tão acostumado a essa sublime soledade que espero só tornar a encontrar gente em baixo, nos vales; aqui em cima, penso, não vive ninguém e nunca viveu um ente humano.

De repente, numa curva aparecem as duas torres brancas duma bonita igreja. E quase fico assombrado ante esse súbito aparecimento de uma obra de arte nessa grande solidão. Mas, noutro outeiro, uma segunda igreja, também bela e branca, e mais adiante, uma terceira. São três das onze igrejas que protegiam a importante cidade de Vila Rica e agora protegem a pequena cidade adormecida de Ouro Preto. Essas igrejas proeminentes, que altivas elevam sua beleza para o firmamento, ao passo que abaixo delas está alguma coisa pequena e incerta como um resto esquecido ou abandonado — essa cidade que, subitamente se cansou e, expoliada pelos seus habitantes, não pode mais refazer-se do seu esgotamento — essas igrejas dão à primeira vista uma impressão de algo imaginário. Nada se modificou nessa cidade, ao passo que no Rio de Janeiro e em São Paulo se começa a construção de um prédio em cada hora e por toda a parte as dimensões aumentam de modo fantástico, com um vigor de crescimento tropical. Pela praça principal em que se vê o ex-palácio do governador, cuja autoridade se exercia sobre cem mil pessoas, passam alguns indivíduos e desaparecem nas ruas estreitas e pedregosas, e muares troteiam, exatamente como nos tempos coloniais, em longas récuas, carregados de lenha. Em aposento escuro trabalha o sapateiro com o breu, o fio e a ferramenta iguais aos que usava seu trisavô, escravo ou filho de escravos. As casas parecem tão cansadas que dão a impressão de se haverem encostado umas às outras para se ampararem; seu reboco está tão velho e arruinado como o semblante dum ancião. Sei que sobre o calçamento de pedras das ruas dessa cidade, como sobre o das de Mariana, andaram os antepassados dos atuais habitantes. Ao anoitecer tenho a impressão de que essas pessoas são as mesmas de outrora ou os seus espectros. As vezes me admiro de que os relógios das igrejas batam horas. Mas para que baterem horas, para que indicarem o tempo, se ele está parado? Cem anos ou duzentos anos nessa cidade não parecem ser mais que um dia. Passo, por exemplo, por uma série de casas queimadas; não vejo telhado, nem vigamento, somente paredes nuas, enegrecidas pela fumaça e em parte caídas. Penso ter ocorrido ali um incêndio, há uma semana, há um mês, e não se terem removido os escombros. Mas informam-me que essas são as casas a que em julho de 1720 o governador Conde de Assumar mandou atear fogo. Em duzentos e vinte anos ninguém se mexeu, nem para reconstruí-las, nem para demoli-las. Em Ouro Preto, Mariana e Sabará tudo ficou como estava na época dos escravos e do ouro. Sobre as cidades do ouro abandonadas o tempo passou com asas invisíveis e que nelas não roçaram.

Mas, precisamente esse estacionamento dá hoje a essas irmãs abandonadas, Ouro Preto, Mariana, Sabará, Congonhas do Campo e São João d’El-Rei, especial encanto. Do mesmo modo que numa vitrina dum museu, nessa região, no meio duma paisagem variada, a imagem da época e da civilização coloniais se conserva tão perfeita como em nenhum outro lugar da América e talvez ainda mais expressiva do que em qualquer outro. Essas velhas cidades mineiras são hoje a Toledo, a Veneza, a Salzburgo, a AiguesMortes do Brasil, constituem história ilustrada e, além disso, história de uma civilização nacional única no gênero. É que, por estranho que pareça, nessas cidades longínquas, que então não eram ligadas por nenhuma estrada com o litoral, com o resto do mundo, e nas quais só se haviam reunido aventureiros incultos, ávidos apenas de ouro e de lucros rápidos, se originou, no curto período de florescimento, uma arte inteiramente própria; as igrejas e capelas dessas cinco cidades, edificadas por um único grupo de artistas residentes nessa região, fazem parte dos mais originais monumentos da época colonial que o Novo Continente possui. Para vê-los vale a pena fazer uma viagem bastante complicada.

Essas igrejas brancas, bem proporcionadas em suas dimensões e que dos outeiros de Ouro Preto, Sabará, Congonhas do Campo, Mariana se saudam irmãmente, não apresentam linhas novas, não têm arquitetura tipicamente brasileira. São todas construídas no barroco chamado jesuítico, e os projetos das mesmas certamente vieram de Portugal; são suplantadas pelas igrejas de São Bento e de São Francisco do Rio de Janeiro, no que concerne à riqueza dos ornatos, e pelas da Bahia, no que respeita à antigüidade. O que as torna dignas de serem vistas e inolvidáveis é a maneira harmônica pela qual combinam com a paisagem inteiramente erma. E sua singularidade está no milagre de tais edifícios, grandiosos e artísticos, terem podido surgir nessa zona, então inteiramente isolada do mundo civilizado, no milagre, ainda hoje não completamente explicável, de no meio daquele bando que rapidamente se formou, de cavadores de ouro, de aventureiros e de escravos haver existido um pequeno grupo de artistas e operários brasileiros capazes de executarem de maneira perfeita o rico trabalho de ornamentação com esculturas e pinturas dessas igrejas. Talvez nunca se chegue a saber donde partiu esse grupo errante, que percorria muitas milhas duma cidade do ouro para outra, a fim de, numa comunhão orgânica, erguer nelas esses monumentos de fé, cujo brilho se estende até longe por sobre a exploração cobiçosa do ouro. Só uma figura se destaca desse grupo, a do plástico desse grupo fecundo — Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

O Aleijadinho foi o primeiro artista verdadeiramente brasileiro e já tipicamente brasileiro, porque era um mestiço, filho dum mestre carpinteiro português e de uma escrava negra. Nascido em Ouro Preto em 1730, época em que essa cidade ainda nada mais era do que uma multidão de gente que pressurosa acorrera para ali, uma localidade sem verdadeiras casas, igrejas e palácios de alvenaria, cresceu ele sem professor, sem mestre e sem os mais leves rudimentos de cultura. O que nesse mulatinho logo despertava a atenção era a sua fealdade demoníaca, que lhe dava uma espécie de fraternidade com Michelangelo, cujo nome provavelmente ele nunca ouviu e de quem nunca viu uma obra. Com suas beiçolas, suas orelhas grandes, seus olhos injetados e que sempre olhavam com cólera, sua boca torta e inteiramente desdentada e seu corpo deformado, certamente tinha ele já em sua juventude uma aparência tão repugnante que, como dizem os cronistas, toda pessoa que inesperadamente o encontrava, era tomada de espanto. A isso se juntou a partir dos quarenta e seis anos a horrível enfermidade que o mutilou, carcomendo-lhe primeiramente os dedos dos pés e depois os das mãos. Mas nenhuma mutilação pode impedir que esse indivíduo, tão cruelmente assinalado pela natureza, trabalhasse. Todas as manhãs esse lázaro brasileiro era levado por seus dois escravos para a sua oficina ou para uma igreja e eles o sustentavam para que não caísse, amarravam-lhe nas mãos sem dedos o cinzel ou o pincel, a fim de que o infeliz pudesse trabalhar. E só quando já era noite, eles o levavam de liteira para a casa, pois o Aleijadinho sabia o horror que causava. Não queria ver ninguém e nem ser visto por ninguém. Só queria o seu trabalho, que o fazia esquecer a sua sina triste e insuportável, vivia exclusivamente para o seu trabalho e, graças a ele, viveu até os oitenta e quatro anos.

Comovente tragédia dum artista em cuja alma sombria talvez estivesse encerrado um verdadeiro gênio e a quem um destino perverso impediu de revelar todas as suas possibilidades. Talvez esse mulato aleijado realmente pudesse tornar-se um escultor cujas obras viessem a ser conhecidas pelo mundo inteiro. Mas, preso a uma cidadezinha afastada da civilização, em plena solidão tropical, sem professor, sem mestre, sem camaradas que o auxiliassem, sem estudos, sem fazer uma idéia dos grandes modelos, esse pobre bastardo só pode aproximar-se, com dificuldade e por caminhos incertos, de produções de real valor. Solitário, como Robinson Crusoé na sua ilha, Antônio Francisco Lisboa, no atraso cultural dessa cidadezinha de cavadores de ouro, nunca viu uma estátua grega, nem mesmo uma cópia de Donatello ou de um de seus contemporâneos. Nunca sentiu a superfície branca do mármore, não conheceu o auxílio do fundidor de bronze, nunca teve a seu lado um colega para lhe ensinar as leis da arte e os segredos da execução técnica transmitidos de geração a geração. Ao passo que os outros são encorajados, se exaltam por emulação ambiciosa, ele se achava sozinho numa solidão que aniquilava a alma, e tinha que adquirir, inventar o que os outros há séculos encontram pronto e acabado. Mas o ódio à humanidade, a aversão que ele sentia diante de sua própria figura repugnante, impelia-o a engolfar-se mais e mais no trabalho e fugir a si próprio por um caminho penosamente lento. Suas esculturas de ornato são apenas de bom gosto, são engenhosas, apenas no ponto de vista do trabalho manual, mas, quanto às figuras, não saem do esquema do barroco. Só aos setenta, aos oitenta anos, conseguiu ele uma expressão artística própria, individual. As doze grandes estátuas de pedra-sabão, dessa curiosa pedra mole, mas resistente ao tempo, que ornam a escadaria da igreja de Congonhas do Campo, apesar de todos os seus erros técnicos e imperfeições, têm grande imponência. Genialmente adaptadas ao cenário, respiram elas ao ar livre com forte movimento (ao passo que na sua reprodução em gesso, existente no Rio de Janeiro, dão a impressão de inanimadas). Uma alma indômita revela-se nas atitudes altivas e estáticas dessas estátuas. As penas e as torturas duma vida triste e mutilada nelas se transformaram numa obra de arte ou, ao menos, num efeito artístico.

Também os outros artistas dessas igrejas, em parte anônimos, tiveram que vencer imensas dificuldades. Não havia nesses lugares as lajes para a construção dos edifícios, o mármore e os instrumentos para esculpir, mas eles tinham o ouro e tinham-no em profusão. Podiam dourar as balaustradas de madeira, as molduras e as esculturas, e por isso os altares desses templos são refulgentes. Podemos imaginar como aqueles primeiros habitantes, que moravam em casas miseráveis, que mal tinham uma cama e nada possuíam senão a roupa do corpo, um punhal e um enxadão, se sentiam orgulhosos de subitamente essas igrejas brancas com toda a magnificência das imagens e das esculturas fazerem penetrar em sua vida bárbara e desregrada uma idéia de beleza sobrenatural. Dentro de pouco tempo mesmo os pretos não quiseram ficar atrás dos outros. Também eles quiseram ter suas igrejas, em que os santos deveriam ser pretos como eles, e deram suas pequenas economias a fim de que se construíssem para eles igrejas com igual magnificência. E foi assim que se ergueu em Ouro Preto a igreja de Santa Ifigênia, mandada construir por “Chico Rei”, um escravo que na África fora príncipe de sua tribo e por achados de ouro sobremodo felizes comprara a liberdade para si e para os escravos que eram de sua tribo. Essa coroa de igrejas resplende hoje, numa região solitária e montanhosa, sobre as cidades que estão esquecidas, e constitui um aspecto único e um verdadeiro consolo para os olhos. O que os rios com eterno trabalho carregaram para essa região, o que os morros escuros deram de seus tesouros, que absolutamente ainda não foram de todo extraídos, transformou-se no mais nobre e mais duradouro valor desse mundo: em beleza. Há muito tempo que as cidades, os habitantes desapareceram desses vales ermos, mas as igrejas permanecem como sentinelas e testemunhas da grandeza passada. Ouro Preto, em sua triste decadência, a Toledo do Brasil, e Congonhas do Campo, situada mais aprazivelmente e coroada de ternas palmeiras, sua Oviedo ou Assis, resistiram ao tempo, conservando fielmente o passado. Foi com razão que o Brasil se resolveu a conservar intacto como “monumento nacional” esse precioso legado, e ainda mais, porque Ouro Preto também em sua história se tornou, pela Inconfidência Mineira, um lugar de peregrinação especial e não apenas um prazer para os olhos e a alma. Misteriosamente sentimos na existência verdadeiramente incompreensível dessas cidades a múltipla magia desse metal amarelo que faz surgir cidades no ermo, provoca nos mais rudes aventureiros o amor à arte, estimula, como sempre, os bons e também os maus instintos, desse metal que, apesar de ser frio e pesado, provoca nos seres humanos os mais ardentes e sagrados sonhos, desse impostor misterioso e indestrutível, que perturba, o mundo.

Lançando um último olhar para essas colinas romanticamente tristes com suas igrejas que se libram como asas de anjos, deixo esse mundo singular que o trilho enganador do ouro, séculos atrás, encantara como uma Fada Morgana no espaço deserto. Mas não quero deixar esses vales auríferos sem ter visto com os próprios olhos uma partícula, ao menos, do misterioso elemento que impeliu os homens para ali, não quero partir do mundo do ouro, sem haver tocado em ouro. É muito fácil satisfazer esse desejo. De vez. em quando, de passagem, ainda vejo um homem dentro do Rio das Velhas a sacudir, à maneira antiga, a areia numa peneira; também isso não se modificou em duzentos anos. Pobres cavadores de ouro e, de modo nenhum, mais românticos ainda tentam ali a sorte, pois é permitido a todos procurar, à maneira antiga, o ouro de aluvião. Eu gostaria de observar um desses pobres em seu penoso trabalho de procurar ouro, mas me aconselharam a não desperdiçar o tempo pois esses indivíduos paupérrimos, durante horas e horas e, muitas vezes, mesmo durante dias e dias, em vão sacodem a peneira e em vão colhem a areia. Quando um deles, enfim, em sua peneira encontra uma pepitazinha pode dar-se por muito feliz. À custa dela pode viver outra vez alguns dias parcimoniosamente, para assim, continuar, semana após semana, a sacudir a peneira e procurar ouro. Procurar ouro na areia dos rios tornou-se ali um trabalho trágico, desesperado. Ao passo que um bom achado às vezes recompensa o trabalho de anos dos garimpeiros, esses francos-atiradores da caça do ouro mourejam mais do que o mais pobre trabalhador. A obtenção do ouro há muito tempo que só é possível conseguir de uma maneira organizada e coletiva, como nas minas modernas de Morro Velho e do Espírito Santo, que são dirigidas por engenheiros ingleses e servidas por máquinas norte-americanas. Essa indústria, que leva o homem da luz do dia para as entranhas da terra, é complicada, mas é interessante e digna de ser vista. O ouro de Minas Gerais, desde que conheceu a brutalidade dos homens, se escondeu deles nos rochedos. Não quer mais deixar-se apanhar, mas nos milhares de anos de caça o homem se tornou mil vezes mais hábil e mais astuto do que seus antepassados. Com a técnica inventou o homem uma arma eficiente, e em galerias profundas, e cada vez mais profundas, procuram as máquinas atingir o perverso metal. Os poços já têm uma profundidade de mais de dois mil metros, e gastam-se não minutos, mas sim horas, para de elevador chegar à galeria mais profunda. Nela realiza-se o grande trabalho. Com perfuradores elétricos o minério escuro é reduzido a pedaços, que são carregados para o elevador em vagonetes puxados por burros, pobres burros condenados para sempre como prisioneiros perpétuos a trabalhar e a dormir ali nas galerias iluminadas por luz elétrica; também eles como os homens são escravos e vítimas do ouro. Apenas três vezes por ano, na Páscoa, em Pentecostes e no Natal, quando se interrompe o trabalho, esses animais podem passar um dia fora das minas, e, apenas vêem a luz solar, começam a zurrar e saltar de júbilo e espojam-se voluptuosamente, alegres por se acharem de novo na luz, da qual por tanto tempo estiveram privados. Mas o que nesses vagonetes é trazido para a superfície do solo absolutamente ainda não é ouro puro. É apenas um minério bruto, pardo, sujo, duro, um conglomerado em que mesmo o olhar mais penetrante não consegue distinguir brilho de ouro. Mas máquinas possantes pegam os pedaços do minério, que com enormes martelos são fragmentados e triturados até que formem uma massa mole constantemente atravessada por uma corrente d’água; essa massa é passada por peneiras e sobre mesas vibratórias. O que é metálico vai sendo mais e mais separado da massa restante, sem valor. A areia já depurada, já bem fina é então várias vezes submetida a processos elétricos e químicos até que, após inúmeras fases delicadas, que dificilmente podem ser descritas de modo pormenorizado, esteja extraída do minério a última partícula de ouro. Em seguida pode o elemento puro ser fundido em cadinhos.

Durante uma, duas horas, observei com atenção e interesse todos esses processos ideados graças a inúmeros fatos de experiência; vi centenas e até milhares de pessoas nessa enorme indústria, os trabalhadores nas galerias, nos elevadores, junto às máquinas, os carregadores, os fundidores, os foguistas, os engenheiros e os diretores. Ainda me retumba nos ouvidos o trovejar dos martelos e, em conseqüência da incessante mudança de escuridão para luz artificial e depois para luz natural, ainda me doem os olhos que viram coisas demais. Já vi tudo isso, só ainda não vi o ouro puro, o resultado visível de todo esse trabalho fantástico. E tenho sofreguidão de saber quanto produz esse labor dos oito mil homens que diariamente trabalham nessa indústria, quanto, que quantidades de ouro, a complicada atividade desse imenso maquinismo e o trabalho de todas energias psíquicas, manuais, químicas e elétricas empregadas produzem em ouro diariamente. Afinal chego a ver a produção diária e quase me espanto, pois parece absurdamente pequena. Não é, como eu julgava, um montão de ouro, não forma grandes blocos como nas câmaras de Montezuma — não é mais do que um pequeno bloco de ouro, do tamanho de um tijolo; Não é, pois, mais do que apenas um pedaço de metal que essas oito mil pessoas com o auxílio de complicadíssimas máquinas, num trabalho engenhosamente organizado, conseguiram obter do solo, e esse tijolo de ouro paga essas oito mil pessoas, dá os juros dos capitais empatados e ainda alimenta os acionistas. Mais uma vez percebi a diabólica magia que esse metal de cor amarela, há milênios, exerce sobre a humanidade. Pela primeira vez notara eu todo o absurdo dessa servidão quando em Paris, nos subterrâneos do Banco da França, vira como ali em uma espécie de fortaleza, a muitos metros abaixo da superfície do solo, jazia empilhada em barras, morta e fria, a pretendida riqueza da França, milhões e bilhões verdadeiramente imaginários, quando vira quanto trabalho, quanta arte e energia psíquica se haviam despendido numa mina artificial em Paris para esconder no solo o ouro penosamente dele extraído na África, na América e na Austrália. E no Brasil, noutro extremo do mundo, vi reunidos no trabalho de oito mil pessoas o mesmo afã, a mesma arte, a mesma energia psíquica, para astutamente arrancarem do solo o mesmo metal, unicamente a fim de ele, em um lugar qualquer, ser metido no subterrâneo dum banco. Compreendi que não devia zombar do desvario dos cavadores de ouro de Vila Rica que ostentavam seus trajes luxuosos, pois o velho delírio ainda hoje é o mesmo, apenas modificado nas suas formas. Esse metal frio ainda incita, mais energicamente do que todos os dínamos e ondas espirituais, a humanidade, e determina, de maneira incalculável, os acontecimentos do mundo. E precisamente quando vi diante de mim o simples e tosco tijolo de ouro veiou-me à mente a absurdidade que esse vil metal gera.

Deu-se uma coisa singular comigo nesses vales auríferos. Eu fora ali para compreender melhor o poder do ouro, a sua ação, no lugar de sua origem, diante de suas formas reais. Mas nunca percebi mais profundamente o absurdo desse delírio do que no instante em que eu, sem o mínimo respeito, toquei no tijolo de ouro, produto do trabalho recente e invisível de milhares de mãos; esse tijolo nada mais era do que metal duro e frio. Nenhuma vibração e nenhum calor se me transmitiram às mãos, nenhuma excitação chegou aos meus sentidos, nenhum respeito provocou esse tijolo em mim. E não pude compreender que tivesse sido vítima dessa ilusão a mesma humanidade capaz de produzir criações radiantes como essas igrejas resplendentes e de nelas respeitosamente guardar o legado perene da eternidade: a arte e a fé.


 

O VÔO SOBRE O NORTE

A BAHIA

Fidelidade à tradição

 

Com essa cidade teve início o Brasil e, com direito podemos dizê-lo, a América do Sul. Nessa cidade levantou-se o primeiro pilar da grande ponte lançada sobre o Atlântico, nela originou-se de matéria européia, africana e americana a mistura nova que ainda fermenta eficazmente. Veneremos, pois, a Bahia antes de a admirarmos! Essa cidade tem a prerrogativa de ancianidade entre todas as da América do Sul. Com seus quase quatrocentos anos, com suas igrejas, sua catedral e seus castelos, a Bahia é para o Novo Mundo o que para nós europeus são as metrópoles milenárias, o que para nós são Atenas, Alexandria e Jerusalém: um santuário da civilização. E, como ante uma fisionomia humana, sentimos respeitosamente diante dessa cidade que ela tem uma história, um passado glorioso.

A atitude da Bahia é a de uma rainha viúva, de uma rainha viúva grandiosa como as das peças de Shakespeare. A Bahia está presa ao passado. Há muito tempo que entregou o régio poder a uma geração mais nova e sôfrega. Todavia não abdicou, conservou sua posição e, com esta, uma incomparável dignidade. Altiva e ereta olha do alto para o mar, no qual, séculos atrás, todos os navios se dirigiam para ela; ainda traz os antigos adereços, constituídos por suas igrejas e sua catedral, e essa dignidade de atitude continua a existir na sua população. Podem as cidades mais novas, podem o Rio, Montevidéu, Santiago, Buenos Aires ser hoje mais ricas, mais poderosas, mais modernas, mas a Bahia tem sua história, sua civilização própria, seu modo de vida próprio. De todas as cidades do Brasil foi ela a que mais fielmente respeitou a tradição. Só pelas suas pedras e ruas se compreende a História do Brasil, só essa cidade nos permite compreender como de Portugal nasceu o Brasil.

A Bahia é uma cidade conservadora, uma cidade fiel à tradição: protegeu seus antigos monumentos contra a apressada invasão do que é novo e, através dos séculos, conservou íntegra, exteriormente, sua fisionomia e, interiormente, sua tradição. A quem se aproxima da Bahia pelo mar, não se apresenta ela diferente do que o fazia no tempo dos vice-reis e dos imperadores. Em baixo está o porto com suas ruas comerciais, em grande parte modernizadas, e no alto acha-se a cabeça de pedra, a cidade em forma de fortaleza, a cidade que, calma e imponente, esperava o visitante. Na parte alta foram-se concentrar, há quatro séculos os colonos por trás de estacadas para estarem protegidos contra os assaltos dos piratas e dos aborígenes. O baluarte de barro pouco a pouco foi sendo substituído por uma muralha, atrás da qual se foi erguendo, com segurança, a cidade; dentro de pouco tempo os seus habitantes ousaram construir igrejas e palácios sobre o rochedo alcantilado, e a cidade conservou assim um admirável perfil, uma linha régia. Na América do Sul nada posso comparar com essa atitude altiva e majestosa com que a Bahia olha por cima do seu porto e seus castelos para o longe, para o Atlântico.

Subindo o caminho íngreme, estreito e ladeado de casas muito velhas, reconhecemos quão rica já foi essa cidade. Ela não está empobrecida hoje, não decaiu. Estacionou apenas, e isso lhe dá a beleza que têm todas as cidades que passaram decênios e séculos sonhando, como Veneza, Bruges, e Aix-les-Bains. Demasiado soberba para impetuosa acompanhar a época moderna e erguer arranha-céus, a fim de rivalizar com o Rio e São Paulo, por outro lado, demasiado viva para decair como as cidades do ouro, de Minas Gerais, permaneceu ela o que era: a cidade do antigo Brasil português, e só nela percebemos a origem do Brasil e a tradição secular deste país.

Por toda a parte nessa cidade sentimos a tradição. A Bahia, ao contrário de todas as outras cidades brasileiras, possui um traje próprio, uma cozinha própria e uma cor própria. Em nenhuma outra parte as ruas mostram tanta variedade de cores como na Bahia, onde a população africana e a colonial antiga se conservaram sem grande modificação; sem cessar julgo estar vendo, como quadros vivos, as cenas do “Brasil pittoresque” de Debret, todas aquelas coisas de outrora que já há muito tempo desapareceram das outras cidades grandes. É verdade que automóveis percorrem as ruas da Bahia, mas na cidade velha muares com cangalhas ainda carregam frutas e lenha; nessa cidade ainda podem alugar-se burros por hora, como se alugam automóveis numa cidade moderna, e no porto a carga, como nos tempos dos fenícios e dos romanos, não é embarcada por meio de guindastes, é transportada para bordo às costas de carregadores. Vendedores ambulantes com seus chapéus de palha de abas largas trazem sobre os ombros, como se fosse o travessão de uma enorme balança, um pau de cujas extremidades pendem os cestos com a mercadoria, e na feira noturna os feirantes estão sentados diretamente no chão junto a velas ou a chamas de gás acetileno, entre montões de laranjas, abóboras, bananas e cocos. Ao passo que estão atracados ao cais os grandes e poderosos transatlânticos, baloiçam ainda próximo da terra as pequenas embarcações de vela que chegam das ilhas e vão para elas e cujos mastros formam uma floresta oscilante. E até ainda se vêem as jangadas, que constituem uma curiosidade sem par. São formadas de três ou quatro troncos de árvore ligados entre si sem nenhuma arte, e encima desse conjunto há um assento estreito. Não se pode imaginar coisa mais primitiva que essas jangadas. Mas seus tripulantes saem nelas para o mar alto; é incrível que haja tanta coragem. Conta-se que um vapor norteamericano, havendo avistado uma dessas embarcações distante do litoral, dirigiu-se para ela, pensando que se tratasse de uma jangada de náufragos. Na Bahia tudo, com as mais variadas cores, se mistura, o presente e o passado. Nessa capital encontra-se a velha Universidade com a sua celebérrima Faculdade, a mais velha do país, a Biblioteca, o Palácio do Governo, hotéis e clubes esportivos modernos. Basta andarmos mais duas ruas e achamo-nos numa esfera portuguesa; casinhas baixas, cheias de pessoas, de atividade, com as mil formas do trabalho manual, e logo atrás os mocambos, as choças de crioulos, entre bananeiras e pés de árvore-do-pão. Há ruas asfaltadas e muito perto delas ruas calçadas com pedras brutas; na Bahia podemos, num período de dez minutos, estar em dois, três ou quatro séculos diferentes, e todos eles parecem genuínos. O verdadeiro encanto da Bahia reside no fato de nela tudo ainda ser genuíno e não propositado; as chamadas “coisas dignas de serem vistas” não se impõem ao forasteiro, acham-se incorporadas de um modo imperceptível, no conjunto. Velho e novo, presente e passado, luxuoso e primitivo, 1600 e 1940, tudo isso se une para formar um só quadro, emoldurado por uma das mais tranqüilas e aprazíveis paisagens do mundo.

No permanente pitoresco o que há de mais pitoresco são as baianas, as pretas gordas, de olhos escuros, com seu vestuário especial. Esse vestuário, as baianas, mesmo as mais pobres, usam-no sempre, todos os dias, e não podemos imaginar outro mais pomposo. Não é comparável com nenhum outro, não é africano, não é oriental, não é português, mas sim, os três ao mesmo tempo. Consiste num turbante, enroscado com apurada arte, vermelho, verde, amarelo, azul ou multicor, mas sempre de tom vivo, uma bata branca e uma saia de enorme roda e com a forma de sino. Não posso deixar de suspeitar que as avós ou bisavós dessas crioulas na época da saia-balão tivessem visto em suas senhoras portuguesas as crinolinas e houvessem conservado essa moda em seus vestidos de chita, como símbolo de distinção. Ainda um pano dramaticamente lançado sobre os ombros, que também serve para pôr sobre a cabeça quando sobre ela carregam potes d’água ou grandes cestos, e mais umas pulseiras de metal barato. Assim anda trajada cada uma dessas pretas baianas, cada qual, porém, com outras cores, outros matizes. Mas a imponência dessas baianas propriamente não está no traje, está no garbo com que o usam, no seu modo de andar, nas suas maneiras. Sentadas no mercado ou na soleira duma porta, dispõem elas a sua saia como se fosse um manto real, de modo que parecem estar sentadas dentro duma enorme flor. Nessa atitude imponente, vendem essas princesas de cor as mercadorias mais baratas deste mundo, iguarias gordurosas ou condimentadas que preparam num fogareiro de carvão, iguarias tão baratas que uma folha de papel seria muito cara para nela as embrulharem. As iguarias são entregues aos fregueses em pedaços de folha de bananeira. Essas baianas têm no andar a mesma majestade que apresentam quando assentadas. Carregam sobre a cabeça uma arroba, cestos com roupa, peixe, ou frutas; é um prazer vê-las andarem com isso pelas ruas, de pescoço altivamente erguido, com as mãos nos quadris, com o olhar sério e desembaraçado. Um ensaiador que tenha que ensaiar um drama no qual apareçam personagens régias, poderá aprender muito vendo essas princesas do mercado e da cozinha. À noite, quando as vemos em suas cozinhas escuras, apenas iluminadas pelas chamas do fogão, preparando com misterioso zelo as singulares iguarias, não podemos deixar de pensar nas feiticeiras da antigüidade. Não, não há nada mais pitoresco do que as pretas da Bahia, nada mais variegado, mais genuíno, mais original do que as ruas dessa cidade. A Bahia, e só a Bahia nos permite conhecer e compreender o Brasil.


 

Igrejas e festas

 

A Bahia não é só a cidade das cores, é também a cidade das igrejas, a Roma brasileira. Dizer que ela possui tantas igrejas quanto dias tem o ano pode ser um exagero, como o é afirmar que na baia de Guanabara existem trezentas e sessenta e cinco ilhas. Na realidade devem ser umas oitenta igrejas. Mas não há dúvida de que elas dominam a cidade. Em geral, nas grandes metrópoles, a proeminência das velhas igrejas há muito já foi superada pelos arranha-céus e pelos edifícios modernos; nada talvez seja mais simbólico do que o velho templo que outrora dominava a Wall Street em Nova York, hoje se esconde intimidado na sombra dos palácios bancários. Mas na Bahia as igrejas ainda dominam a cidade. Elas se erguem altas e imponentes em suas praças e largos, perto dos seus conventos com jardins, e cada qual tem o seu padroeiro: o de uma é São Francisco, o de outra São Bento e o de uma terceira Santo Inácio. Com elas teve início a cidade; elas são mais antigas do que o Palácio do Governo e os outros palácios da cidade. Implorando a proteção divina na nova terra, em torno delas se foi constituindo a cidade e, quando os marinheiros, após semanas e semanas em que só haviam visto o céu e o mar, afinal avistavam terra, a primeira coisa que viam era a atitude pia das torres. E a sua primeira visita era a uma igreja para agradecerem a Deus pela feliz viagem.

A maior, porém, não a mais bonita, dessas igrejas é a catedral, que está junto ao velho colégio dos jesuítas, a igreja das grandes recordações, na qual está sepultado Mem de Sá, terceiro governador geral, e de cujo púlpito pregou o Padre Antônio Vieira. Foi das primeiras do Brasil e certamente também a primeira da América do Sul cuja entrada foi revestida de mármore; os mesmos navios que da Bahia levavam açúcar para a Europa, traziam mármore. Esses homens de fé nada achavam demasiado caro para suas igrejas. As ruas eram estreitas, sombrias e sujas, nove décimos da população pobre habitavam em choupanas e mocambos. Mas as igrejas nessa terra, que não conhecia luxo, deveriam ter toda a magnificência; por isso se mandavam vir azulejos de Portugal para a ornamentação das paredes, e com ouro de Minas Gerais se revestiam os trabalhos de madeira. E então surgiu a rivalidade entre as ordens. Se os jesuítas tinham uma igreja ampla e magnífica, os franciscanos queriam ter uma ainda maior e mais pomposa. De fato, a igreja de São Francisco é ainda mais pura, porque mais harmoniosa em suas proporções. Que encanto há nas galerias do seu convento, cujas paredes são revestidas de belos azulejos, nas suas salas ornadas com preciosas obras de talha em jacarandá, nos seus tetos empainelados! Em todos os detalhes sente-se que um gosto apurado presidiu à sua feitura. Mas também os carmelitas quiseram uma igreja não menos bonita, o mesmo se deu com os beneditinos e, em seguida, igualmente à gente de cor quis a sua igreja com uma Nossa Senhora do Rosário e um São Benedito. Por isso existem hoje na Bahia igrejas e conventos por toda a parte; quase não podemos percorrer as ruas maiores sem darmos com uma igreja ou um convento que não tenha seu encanto como antigüidade. Todo crente que desejasse fazer sua devoção, encontrava na Bahia colonial uma igreja para cada hora do dia. Graças a essa rivalidade religiosa, existem na Bahia igrejas demais para ficarem inteiramente cheias, e precisaríamos dias e dias para admirar cada uma delas em todas as suas singularidades e em todos os seus detalhes.

Essa abundância de igrejas surpreendeu-me. Nas cidades mais novas do Brasil, em comparação com o que ocorre na Europa, as igrejas relativamente não são numerosas. Perguntei ao amável sacerdote que me acompanhou por ocasião de minha visita a um dos templos, se a Bahia ainda era tão religiosa como outrora. Ele fez um leve sorriso e disse: “Sim, o povo aqui é religioso, mas o é a seu modo”. A princípio, não compreendi a significação desse leve sorriso, que não exprimiu negação nem crítica, mas apenas sublinhou suas últimas palavras. Esse modo especial de ser religioso não é possível combinar bem com a nossa idéia de religião e só nos dias seguintes o fiquei conhecendo. A Bahia é de todas as cidades do Brasil a que tem mais gente de cor; conservou, como tudo do passado, sua antiga população ainda não clareada no mesmo grau em que, pelo afluxo de europeus, o foram as das outras cidades do Brasil. Os pretos, desde séculos, têm sido os mais fiéis, os mais zelosos, os mais apaixonados adeptos da Igreja, mas a sua fé tem um colorido especial, próprio. Para os escravos africanos, para esses indivíduos ingênuos e de mentalidade primitiva, a igreja não era um lugar de recolhimento espiritual, do sereno engolfar-se em si mesmo; no catolicismo o que os atraia era a pompa, o misterioso, o colorido, a opulência do rito, e já há quatrocentos anos dizia Anchieta que a música era o que mais os convertia. E ainda hoje nessa gente de boa índole e facilmente impressionável a religião se acha indissoluvelmente presa a solenidades, alegria e espetáculo; toda procissão e toda missa têm para eles algo que bem-aventura. Por isso a Bata é a cidade das festas religiosas. Um dia santo na Bahia não é apenas um número impresso em vermelho no calendário, torna-se obrigatoriamente dia de festa para o povo, dia de espetáculo, e a cidade inteira empenha-se em, de qualquer modo, festejá-lo. Quantas festas religiosas há por ano na Bahia ninguém pode dizer-me com segurança, porque provavelmente o povo, levado por um curioso sentimento, por um misto de verdadeira religião e de prazer em assistir a espetáculos, vai sempre aumentando o número delas.

Um forasteiro não precisa muita sorte para assistir a uma dessas festas populares na Bala. Tive a feliz oportunidade de ver a do Senhor do Bonfim. O Senhor do Bonfim tem na Bahia uma igreja, que com uma encantadora vista está situada numa colina a cerca de uma hora e meia de distância da cidade e durante uma semana inteira constitui o centro dos mais diversos festejos. As casinhas existentes no largo do Bonfim são alugadas pelas famílias da cidade, que ali recebem visitas e lhes dão de comer. O grande largo é destinado aos muitos milhares de pessoas que, na maior alegria, passam as noites da semana de festas ao relento. Toda a fachada da igreja acha-se profusamente iluminada à eletricidade e à sombra dos coqueiros estão armadas numerosas barracas, nas quais se vendem comidas e bebidas; pretas baianas, acocoradas na relva junto de seus fogareiros, regalam o público com suas variadíssimas guloseimas baratas, e atrás delas dormem, no meio daquele banzé, seus filhos. Carrocéis rodam, passeia-se, dança-se, conversa-se, toca-se música; dia e noite aflui o povo para com sua devoção e alegria despreocupada prestar o seu culto ao Senhor do Bonfim. Mas a cerimônia principal e inolvidável dessa semana de festa é a lavagem da igreja. É característico para a Bahia o modo pelo qual se originou essa usança, que não existe senão nessa cidade. A igreja do Senhor do Bonfim era primitivamente de gente de cor. Parece que um dia um padre da paróquia fez ver que convinha na véspera da festa do Senhor do Bonfim lavar o piso da igreja e limpá-lo perfeitamente. Com prazer esses cristãos pretos incumbiram-se disso. Que boa oportunidade para essas almas sinceramente piedosas demonstrarem ao Senhor do Bonfim o amor e o respeito que ele lhes inspirava! Eles queriam lavar e limpar muito bem a sua igreja e no dia marcado todos lá estavam para participarem da honra de fazer uma boa limpeza na casa do Senhor do Bonfim. Com esse trabalho absolutamente piedoso teve começo essa cerimônia. Mas de acordo com a mente pueril e ingênua desses indivíduos a lavação da igreja (como todo ato religioso) transformou-se numa festa. Eles esfregavam e varriam, cada qual com maior empenho, como se quisessem expurgar de pecados suas almas; centenas e milhares acorriam de perto e de longe, e de ano para ano a afluência se tornava maior. De repente a piedosa usança se transformou numa festa popular, numa festa tão ruidosa que escandalizou o clero e foi proibida. Mas a vontade que o povo tinha de continuar com a sua festa, conseguiu restabelecer a cerimônia da lavagem da igreja do Senhor do Bonfim. Hoje constitui ela uma festa da cidade inteira e uma das mais impressionantes que vi em toda a minha vida.

Começa com um préstito que percorre uma grande parte da cidade, pois a população inteira quer ver esse espetáculo, e gasta quase duas horas para chegar à igreja do Senhor do Bonfim. É um verdadeiro préstito popular, não é como o do carnaval de Nice da atualidade um préstito subsidiado, para fins de reclame, por comerciantes e por uma agência de turismo. É verdadeiramente impressionante a primitividade desse cortejo. Na praça do Mercado reúne-se de manhã uma multidão de pessoas para a romaria e já se acham ali muitos autocaminhões e pequenas carroças puxadas por burros, estas e aqueles enfeitados com os meios mais baratos. Oh! como é interessante e primitiva essa ornamentação! Os cavalos são cobertos com colchas de renda, as rodas dos veículos são enfeitadas com papel de seda de várias cores, prateiam-se os cascos dos burros e douram-se os barris para a lavação, que são barris comuns do mercado; toda essa ornamentação pode importar em uns duzentos mil réis no máximo. Mas o que torna imponente o préstito são as baianas que, com fervor religioso e majestade, carregam sobre a cabeça jarras com flores durante todo o longo trajeto, com um sol intenso. Essas rainhas pretas, que a fim de completarem seu traje colorido, ainda pediram emprestado aqui um lenço rendado e acolá um colar, radiantes de felicidade por servirem ao Senhor do Bonfim e serem admiradas pelo povo, dão uma impressão aparatosa. Em carroças muito primitivas estão sentados os rapazes, cada um com uma vassoura sobre o ombro, e sem cessar toca uma banda de música desarmoniosa, mal ensaiada. Tudo isso brilha e se agita na claridade intensa, e por trás está o mar azul e por cima o firmamento, também azul. É uma exuberância de cores e de alegria.

Enfim, o cortejo se põe em movimento. Ele, em cuja frente vão as mulheres numa longa fila com as jarras na cabeça, segue lentamente pelas ruas da cidade, pois todos querem vê-lo. Das portas, das janelas partem vivas ao Senhor do Bonfim; as pessoas idosas estão sentadas em suas modestas cadeiras de vime diante de suas casas, pois também desejam ver o cortejo. Para o povo brasileiro, para este povo que é o mais frugal do mundo, um espetáculo como esse já é uma festa. Como esse préstito com as jarras das quais não deve derramar-se uma gota d’água, gasta quase duas horas para chegar à igreja do Senhor do Bonfim, nós seguimos de automóvel para esperá-lo lá. Mas já encontramos a igreja cheia.. Mulheres, homens e inúmeras crianças pretas e risonhos estavam ali aglomeradas à espera do cortejo, havia gente trepada nas janelas, gente na sacristia e nos degraus das escadas; por toda a parte apinhavam-se cabeças e a multidão fremia de impaciência. Mas só mais tarde compreendi o fato — a espera nessa gente facilmente emotiva exalta a sofreguidão e produz uma espécie de prazer sensual. Quando o primeiro tiro de morteiro avisou que numa curva do caminho aparecera o cortejo, deu-se uma dessas explosões de júbilo que raramente eu vira. As crianças bateram palmas e sapatearam de alegria, os adultos gritaram: “viva o Senhor do Bonfim”, e a igreja inteira retumbou durante um minuto esses brados de júbilo. Mas o cortejo ainda vinha muito longe. Pude ver pelos semblantes que a exaltação ia crescendo. A cada tiro de morteiro, novo viva ao Senhor do Bonfim, novas palmas, novo alarido, e cada vez era maior o entusiasmo. Não posso deixar de confessar que alguma coisa dessa sofreguidão e desse entusiasmo se transmitiu a mim. E o cortejo mais e mais se aproximava. Afinal as primeiras mulheres do préstito, com toda imponência, transpuseram a porta da igreja e foram colocar as flores sobre o altar. Vi do alto como avançavam eretas entre duas alas estrepitosas de ovações, vi também a agitação da multidão aglomerada, e ouvi de milhares de bocas uma só exclamação: viva o Senhor do.

Bonfim, viva o Senhor do Bonfim! Percebi nitidamente uma grande sofreguidão naquela gente, que parecia um enorme animal colorido, pronto a lançar-se sobre sua presa. Afinal chegou o momento desejado. Com jeito e energia alguns policiais fizeram a multidão afastar-se para poder ter início a lavagem do templo. Sob constantes exclamações de júbilo da multidão — despejou-se água das jarras no piso e alguns indivíduos tomaram das vassouras. Mas esses primeiros indivíduos ainda o fizeram de uma maneira piedosa, humilde, inteiramente com o respeitoso intuito de executar um serviço religioso, em primeiro lugar inclinaram-se diante do altar e benzeram-se. Mas em breve os outros que também queriam servir ao Senhor do Bonfim, não puderam conter-se; a impaciência da espera, os gritos e as exultações os tinham exaltado. E subitamente teve início na igreja uma atividade que parecia realizada por uma centena de diabos irrequietos. Uma tirava a vassoura da mão do outro, muitas vezes uma vassoura passava sucessivamente pelas mãos de três, quatro, dez indivíduos; outros que não tinham vassoura, ajoelhavam-se e esfregavam o piso com as mãos e todos gritavam: “viva o Senhor do Bonfim”, as crianças, com suas vozes finas e estridentes, as mulheres e os homens. Era um verdadeiro delírio, a mais violenta histeria coletiva que até hoje tive ocasião de observar. Uma jovem, certamente fora disso calma e circunspecta, desprendendo se dos seus, ergueu os braços e, com o semblante de gozo e extático como o de uma bacante, começou a gritar “viva o Senhor do Bonfim, viva o Senhor do Bonfim”, até lhe faltar a voz. Outra que de tanto gritar e exaltar-se desmaiou foi carregada para fora da igreja, e os demônios loucos continuavam a esfregar e lavar como se os seus dedos tivessem que sangrar. Havia algo de tão violentamente arrebatar e contagioso nessa lavação cheia de gozo que não tive certeza de que, se me achasse no meio daqueles indivíduos exaltados, não agarrasse uma das vassouras. Foi verdadeiramente o primeiro acesso de loucura coletiva que vi e que ainda se tornou, mais inverossímil pelo fato de ocorrer numa igreja, sem uso de álcool, de estimulantes, sem música, e em pleno dia, sob um céu magnífico e radiante.

Mas o segredo da Bahia está no fato de nela, por influência hereditária, o que é religioso misturar-se misteriosamente no sangue com o que é gozo, no fato de a expectação sôfrega e a exaltação monótona provocarem sobretudo nos crioulos e mestiços tal inesperada facilidade de inebriar-se. Não é por acaso que a Bahia é a cidade dos candomblés e das macumbas, em que velhos ritos africanos cruentos se combinam de maneira singularíssima com fanatismo pelo que é católico. Muito se tem escrito acerca dessas macumbas, e todo forasteiro jacta-se de, graças a um amigo, haver visto uma macumba “verdadeira”. De fato, a singularidade, o caráter estranho desses ritos, apesar de os negros haverem sido forçados a cuidadosamente ocultá-los à polícia, adquiriu o valor de uma curiosidade e há muito já conduziu a encenações semiverdadeiras como nas Índias as exibições dos yogis contratados pela Agência Cook para os turistas. A macumba que vi, sinceramente o confesso, foi, sem dúvida, uma cena arranjada. Por volta da meia noite, depois de andarmos meia hora numa mata subindo e tropeçando, passando por cima de pedras — a dificuldade do acesso tem por fim aumentar a ilusão — chegamos a uma choça, em que, numa luz baça, uma dúzia de crioulos e crioulas se achavam reunida. Eles tocavam pandeiro, marcando com isso o compasso, e cantavam em coro uma melodia, sempre a mesma, e já essa monotonia excitava e causava impaciência. Apareceu então o feiticeiro com sua vítima e começou a dançar, de vez em quando ele bebia cachaça e mascava fumo, e todos dançaram e cantaram até que um deles caiu com os membros rijos e os olhos revirados. Eu não tinha dúvida de que tudo isso fora preparado e ensaiado, mas, pela dança, pela bebida e, sobretudo, pela horrível e irritante monotonia da música, havia ebriedade na própria cena, a mesma ebriedade que na igreja do Senhor do Bonfim, onde o prazer que os indivíduos sentiam no alarido, na exaltação, dominara os mais calmos, os mais tranqüilos. O que no resto do Brasil já foi polido pelos costumes modernos, o que já tem suas origens encobertas pelo que é europeu e foi por ele suplantado — tudo isso, o primitivo, o instintivo, e o extático, ainda se conserve em vestígios misteriosos na Bahia, e em algumas raras manifestações sentem-se ainda resquícios da sua existência.


 

Visita ao açúcar, ao fumo e ao cacau

 

Eu fizera em São Paulo uma visita ao café, ao ex-potentado do país; quis também visitar seus irmãos, o açúcar, o fumo e o cacau, que haviam tornado esse país rico e afamado. Senhores tão eminentes não vêm ao nosso encontro. Temos que viajar algumas horas para irmos às suas residências. Mas a fadiga que a viagem possa causar é bem compensada, pois o trajeto para Cachoeira, através da ubérrima zona em volta da capital baiana, é uma seqüência de lindas vistas. Nessa zona encontramos primeiro as florestas de palmeiras, florestas tão espessas, escuras e extensas como eu nunca vira. Eu havia visto, as mais das vezes, palmeiras isoladas, palmeiras como sentinelas solitárias de uma velha choça, como guardas num parque, ou, formando renques, em alamedas das cidades do sul da Europa. Mas nessa zona elas se acham muito próximas umas das outras, caule junto de caule, como, numa legião romana, lança junto de lança, e essa abundância é apenas um primeiro sinal da fertilidade dessa região baiana. Depois passamos por longas áreas plantadas de mandioca, com cuja raiz se prepara uma farinha saborosa e nutritiva, um dos principais alimentos do país e que foi para a população primitiva o que para os chineses é o arroz, e que, ainda hoje, com a banana e a fruta-pão, é a mais generosa dádiva da natureza para todo pobre.

À medida que prosseguimos no nosso trajeto, vão as lavouras apresentando outros aspectos. Como bambus, erguem-se caules; todos têm a mesma altura, e à direita e à esquerda da estrada se vêem os mesmos vegetais. A grande quantidade dos mesmos objetos é sempre monótona, e por isso uma plantação de cana é tão enfadonha como uma plantação de café ou de chá em seu verde uniforme. Não, o açúcar não parece ser um hospedeiro agradável, nada tem para oferecer e para mostrar. De repente, numa curva da estrada, encontramos um veículo, e no primeiro momento pergunto a mim mesmo: isso será uma daquelas velhas gravuras coloridas existentes no Museu Nacional do Rio ou será uma realidade? É o perfeito veículo de 1600, um carro tosco cujas rodas em vez de terem raios ainda são discos maciços, como em Pompéia, há três mil anos. E os seis bois que o puxam, ainda, têm uma argola no focinho para a soga, como se vê nas figuras egípcias, e o negro que conduz o veículo traz uma camisa de riscado de várias cores como usavam os escravos, e as canas são levadas para o engenho exatamente da mesma maneira que nos tempos coloniais. Talvez o engenho ainda seja o mesmo, embora algumas chaminés no horizonte pareçam indicar a existência de refinarias modernas. Mas de novo percebi admirado (e beneficamente esclarecido!) que a indústria mecânica e moderna no Brasil existe apenas numa faixa estreita do país, percebi quantos usos antigos, quantos métodos, antigos ainda existem nele. Pode ser que isso seja causa de desvantagem para a economia nacional. Mas. que prazer dá isso a todos os olhos que se fadigam com a monotonia do mundo! Respeitosamente, pois, de passagem cumprimento o velho potentado, o açúcar: ele ainda protege o sagrado legado do produto da terra contra as seduções das artes químicas e fornece ao país e ao mundo com sua doçura algo da energia extraída desse sol e da inesgotabilidade do solo abençoado desse país.

Também seu irmão mais escuro, o fumo, mostra-se mais conservador do que eu supunha. Em Cachoeira, a velha cidade histórica e na qual várias casas ainda têm seteiras para defesa contra os índios, existem as maiores e mais afamadas fábricas de charutos do país. Como velho devoto de Santa Nicotina tinha eu nessa cidade que agradecer o prazer que me haviam dado muitos charutos deliciosos, e, consciente de minha culpa, em silêncio queria calcular quantas dessas plantações com milhares e milhares de folhas eu, em todos os anos de meu vício, havia transformado em fumaça. Escolher é sempre difícil, e por isso visitei todas as três fábricas. Mas, “fábricas” é no caso uma palavra hiperbólica. Eu receara encontrar só possantes máquinas de aço que recebessem numa das suas extremidades as folhas de fumo dispostas em camadas e fornecessem pela outra os charutos prontos, encapados, com cinta e talvez mesmo já arrumados nas caixas. Fábricas como essas sempre me dão a impressão de estar vendo grandes autômatos e não um verdadeiro processo de transformação. Mas nada disso existe nas fábricas de Cachoeira. No Brasil, o fabrico de charutos também não é mecanizado. Todo charuto nesse país é feito à mão, ou melhor, na feitura de cada um trabalham quarenta ou oitenta mãos hábeis. E podemos — o que para todo fumante é uma surpresa observando a sucessiva transformação, perceber admirados quanto trabalho se oculta sob a fina capa dum charuto. Centenas de moças morenas acham-se sentadas nas salas da fábrica uma ao lado da outra e cada grupo delas exerce uma atividade diferente. Percorrendo essas salas, podemos assistir à evolução inteira dum charuto. Na primeira sala vemos o fumo como chega da plantação, em grandes folhas já secas, que exalam um cheiro forte, penetrante. Após a primeira escolha, feita por mulheres, sentadas entre montões de folhas de fumo, são retirados os talos. Só depois, começa o enrolamento das folhas para formarem os charutos. Outro grupo de operárias corta com facas os charutos de acordo com uma medida. Mas por enquanto os charutos estão nus, falta-lhes ainda a capa, que lhes vai dar forma e sabor. Mas, singular perversidade da natureza! o Brasil, há séculos, o país que mais fumo produz, tem todas as espécies deste vegetal, menos a que fornece as folhas com as quais se fazem capas, porque ela não existe aqui. Por isso as folhas para as capas, aos bilhões, são importadas de Sumatra, e para todo charuto que despreocupadamente fumamos, concorrem dois continentes, a Ásia e a América, e nós, as mais das vezes, o fumamos num terceiro continente. Revestido afinal o charuto da capa, outra operária tem que fazer a ponta, outros dedos morenos colocam-lhe a cinta e ainda outros colam o selo (no Brasil tudo é selado a não ser a criança recém-nascida). Só então são os charutos envolvidos em celofane e colocados nas caixas, que recebem uma marca feita a fogo. Quase me envergonho de pôr um charuto na boca desde que fiquei sabendo quando trabalho exige a feitura de um deles. E, quando vi as centenas de dorsos curvados de tantas raparigas, com sentimento de culpa percebi quantos dorsos eu curvara assim. Mas tais escrúpulos não duram muito. E, como nessas fábricas me presentearam com caixas de seus excelentes produtos, antes de eu chegar de volta à Bahia alguns desses escrúpulos se haviam desvanecido em fumaça azul.

O terceiro dos três potentados do norte do Brasil, o cacau, não pude visitar em sua própria residência, pois se dá melhor em zonas úmidas e quentes, sob as ramadas de árvores silvestres, que lhe fornecem o calor de estufa, tão favorável a ele — e tão desagradável para nós — calor no qual ele, entre miríades de mosquitos, melhor se desenvolve. Mas felizmente possui esse potentado uma elegante casa na capital baiana, o Instituto do Cacau, onde podem ver-se mais comodamente os cacaueiros com flores e frutos, ao mesmo tempo. O cacaueiro apresenta a singularidade de, a um tempo, ter flores e frutos; quando uns frutos já estão maduros, outros se acham em via de amadurecimento, e a colheita pode, pois, fazer-se quase continuamente. As sementes são amargas — também isso aprendi na Bahia — e são necessárias operações muito trabalhosas que consistem em purificação, extração da gordura e esterilização, antes de os sacos de cacau poderem ser postos a bordo por meio de aparelhos movidos por eletricidade. Só nesse Instituto é que foram introduzidos métodos inteiramente modernos; ele é ao mesmo tempo estabelecimento comercial, depósito, museu e universidade do cacau, e nele aprendi em uma hora mais do que, em casa, lendo uma centena de livros.


 

RECIFE

 

Com pesar, pois a Bahia é muitíssimo bonita, muitíssimo sedutora, embarco no avião que me leva para o norte, para a cidade de Pernambuco ou Recife ou Olinda. Qual dos nomes deverei usar? A cidade tem verdadeiramente três nomes. Quando negociantes despacham mercadorias para ela, a denominam Pernambuco Mas gosto dos velhos nomes das duas cidades irmãs, Recife e Olinda, as quais verdadeiramente já se fundiram em uma; há anos que me ressoa a melodia das três sílabas musicais “Olinda” e me recorda livros antigos e lendas da época remota em que essa cidade tinha um quarto nome: Mauricéia. Assim deveria chamar-se ela em homenagem a Maurício de Nassau, que a conquistou e queria fundar no Brasil uma pequena Amsterdam, com ruas muito limpas e um belo palácio de estilo holandês. Seu encomiasta, o erudito Barleus, transmitiu-nos as plantas e projetos num grande volume in-folio, único monumento que resta do domínio holandês. Em vão procurei em Recife o celebérrimo palácio, as poderosas cidadelas, as casas com suas colinas holandesas e os moinhos de vento que Maurício de Nassau trouxera como recordação da pátria; tudo havia desaparecido inteiramente. Do passado nada mais resta senão as velhas igrejas portuguesas de Olinda e umas poucas ruas coloniais com pouco movimento, tudo isso embelezado por uma paisagem amena e aprazível. Olinda nada tem da grandiosidade da Bahia, não tem a magnífica vista da cidade alta; é um encanto romântico inteiramente imerso na tranqüilidade da natureza, um lugar cismador, há séculos sozinho consigo mesmo, e quase não olha para sua irmã, que é mais moça e mais cheia de vida. Recife é toda progresso e vida: possui um hotel que honraria qualquer localidade da América, um belo aeroporto, ruas modernas, e, quanto a serviços públicos modernos, está entre as primeiras cidades do Brasil. O prefeito da cidade está dando cabo dos mocambos, as choças de pretos, que acho tão românticas, e — tentativa muito digna de nota, fazendo construir para os proletários casas próprias. Eles recebem, para irem pagando lenta e suavemente, casinhas claras, e aprazíveis, com luz elétrica e boas instalações sanitárias; daqui a alguns anos ou decênios Recife será uma cidade modelar. Vemos em Recife muitos contrastes; da cidade antiga para a nova, da floresta para a cidade, em Recife, muitas vezes só há um passo. Nela nada é indiferente ou rotineiro e cada dia descobrimos outra coisa.


 

Vôo para a Amazônia

 

Sigamos para o norte. De Recife para Belém, que fica na foz no rio Amazonas, temos que viajar de avião. De vapor essa viagem é de tantos dias quantas são as horas que precisa para fazê-la um avião. Os aparelhos são hidroplanos pequenos, não muito cômodos, que quase de hora em hora aterram numa cidade do litoral. Antes de chegarem a Belém fazem pequenas paradas em Cabedelo, Natal, Fortaleza, Camocim, Amarração e São Luiz, cidadezinhas pitorescas, em cada uma das quais eu gostaria de passar um dia, a fim de ficar conhecendo as suas particularidades. Mas, como por enquanto os hidroplanos param nelas só uma ou duas vezes por semana, tenho que me contentar com um rápido olhar do alto para essas cidades antigas com suas ruas claras e casas brancas. Bem sei que com essa maneira de viajar por via aérea deixo de ver muitos dos interessantes detalhes e particularidades do norte do Brasil. Mas, doutra parte, por essa vista do alto adquiro uma nova idéia acerca da imensidade desse país e da abundância de terra virgem de que ele ainda dispõe para o futuro. Essa impressão é muito mais convincente do que a que teria eu, se houvesse viajado de vapor ao longo da costa ou tentado atravessar de trem ou de automóvel essa região. O que nesse quadro cheio de incessantes variações causa maior surpresa são os rios. Do hidroplano avistam-se entre a Bahia e Belém ao menos uma dúzia de grandes rios, cada um dos quais em comprimento e largura pode rivalizar com os grandes cursos d’água da Europa. Quando olho para o mapa quase me sinto envergonhado de nunca haver ouvido o nome de um sequer desses rios. Ao contrário do que se deveria esperar, não têm eles grandes portos nas suas fozes; neles não vejo um vapor e só raramente diviso pequenas embarcações de vela ou canoas. Só essa vista do alto me permite compreender por que esses rios que deveriam constituir as comunicações naturais entre o interior e o litoral, se recusam tão obstinadamente, a servir de vias de comunicação. É que em vez de se dirigirem em linha reta, com forte correnteza, para o mar, descrevem, sem cessar, curvas, como gigantescas serpentes azuis, e com isso decuplam o seu curso e perdem a impetuosidade. Do fato de eles por essas numerosíssimas sinuosidades impossibilitarem transportes rápidos do interior para o mar e vice-versa resulta que a região por eles percorrida é muito pouco povoada e nela só de raro em raro se vê uma estrada ou uma aldeia. Na extensão de milhas e milhas, jaz a imensa solidão verde como nos tempos da criação do mundo e nos em que os primeiros navegadores europeus aportaram a essas costas. Só quando no vôo se vê essa terra maravilhosa refrescada por brisas suaves e com toda a sua feracidade, que é interrompida apenas na pequena região em que um deserto de sal brilha como neve recém-caida, pode compreender-se quanto tempo ainda terá que decorrer antes que as suas incomensuráveis possibilidades estejam inteiramente aproveitadas. A maior parte do Brasil ainda continua pertencendo a uma geração futura.

Chegamos afinal a Belém.

Desde a adolescência ansiei por ver o Amazonas, o rio mais caudaloso, desde a adolescência, desde que pela primeira vez li alguma coisa acerca de Orelhana, que, na mais memorável de todas as viagens, foi o primeiro a descê-lo numa pequena canoa, partindo do Peru — desde a adolescência, quando no Jardim Zoológico de Viena vi os papagaios que ostentavam o brilho de suas cores, e os ágeis macaquinhos, e li nas tabuletas: Amazonas. Agora me acho na foz do Amazonas, ou melhor, numa das suas fozes, das quais cada uma é mais larga do que a de qualquer dos nossos rios da Europa.

Belém mesma a princípio não é tão impressionante como eu esperava, pois não se acha diretamente à margem do rio e não o alcança livremente com a vista. Mas é uma cidade bonita, movimentada, de amplas proporções, com avenidas largas, grandes praças e interessantes palácios antigos. Há quarenta ou cinqüenta anos teve Belém a ambição de tornar-se uma metrópole moderna e talvez mesmo a capital do Brasil. Isso ocorreu quando começou a grande alta da borracha e o norte do Brasil ainda tinha nas mãos todo o monopólio da Hevea brasiliensis. Nessa época a borracha que em embarcações descia o Amazonas, com rapidez fantástica se transformava em ouro e em Belém reinava opulência. Belém, como Manaus, construiu então um grande e magnífico teatro, que hoje é quase inútil, para receber condignamente os Carusos; edificaram-se muitas vilas de luxo, e parecia que, graças ao “ouro vermelho”, a economia do Brasil iria, como outrora, depender sobretudo do norte. Sobreveio a crise, que se foi mais e mais agravando, as companhias internacionais e as casas comerciais perderam sua importância ou desapareceram. Desde então Belém voltou a ser o que fora antes, uma cidade magnífica, mas de pouco movimento. Mas percebe-se que ela vai ter um novo surto de progresso quando terminar a guerra, pois, graças à sua feliz situação geográfica é o ponto inicial para todas as linhas de aviação que se possam imaginar. De Belém, em direção para o norte, seguem aviões para Cuba, Trinidad, Miami e Nova York, em direção para o oeste, para Manaus, Peru e Colômbia, em direção para o sul, para o Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Montevidéu e Buenos-Aires, e, em breve, novamente seguirão, em direção para o leste, para a Europa e África. Em Belém, dentro de poucos anos, surgirá, terá que surgir um dos grandes centros nervosos da América do Sul, e, sobretudo quando as imensas regiões do Amazonas tiverem sido exploradas, realizar-se-á grandiosamente o sonho que Belém teve outrora, o de tornar-se uma grande capital.

As grandes coisas dignas de serem vistas que Belém possui, são seus dois jardins, o zoológico e o botânico, os quais encerram exemplares de toda a fauna e de toda a flora da Amazônia. Quem não teve a sorte, tempo e coragem de subir o Amazonas, numa viagem de dias, ver o “deserto verde”, como denominam a Amazônia, porque, numa monotonia ininterrupta, mas grandiosa, se estendem as florestas à direita e à esquerda do rio, pode, andando por caminhos cobertos de saibro e cômodos, nesses jardins ter uma idéia da mata virgem, pode respirá-la e olhá-la. Vi em Belém a célebre Hevea brasiliensis, a árvore da borracha, que prometeu riqueza a essa zona e depois a deu ao mundo inteiro, em vez de dá-la somente à sua pátria; pude sangrar uma dessas árvores e, um minuto depois, do pequeno talho escorreu um líquido branco e pegajoso. Vi também outra maravilha, a árvore que os aborígenes veneravam como sagrada, porque é a única que não permanece no seu lugar, muda de raízes e migra. Migra de fato, pois estende tanto sua ramagem que esta se fadiga e se inclina para o solo. A ramagem penetra nele, adquire novo vigor, formam-se novo tronco e galhos, e durante isso o tronco velho seca e cai. Assim a árvore avança alguns passos, e, apesar de o tronco já ser outro, a árvore é a mesma. Deste modo migra ela, admirada pelos selvagens como um ser que tem alma, que tem sabedoria. E mais outras maravilhas: os troncos gigantescos que há muito um homem não consegue abarcar, os cipós emaranhados, os variadíssimos arbustos, as aves coloridas, os peixes delgados e transparentes, alguns dos quais têm na parte anterior e na posterior um farol, como os automóveis — maravilhas duma natureza cuja prodigalidade e capricho não têm fim. E tudo isso não se apresenta ordenado como num museu, não é cultivado artificialmente. O tempo é pouco para ver tudo, e não me sinto com suficientes conhecimentos de botânica. No fim da viagem sinto verdadeiramente que estou apenas no começo. Quanto mais olho para o mapa, tanto mais vejo que grandes partes desse país gigantesco ainda não visitei. Não deveria eu demorar mais duas semanas, dois meses, para subir o rio Amazonas e prosseguir para Mato Grosso e Goiás, estados meio inexplorados e que só muito poucos brasileiros verdadeiramente conhecem? Não deveria penetrar mais, penetrar no perigoso e, por isso, misteriosamente sedutor da floresta virgem, para conhecer toda a energia ainda íntegra da natureza tropical? Mas aonde iria parar eu e onde seria o fim? Não seria cada vez maior a tentação de penetrar mais e mais? E não será talvez demasiada pretensão, com uma viagem de poucos meses, pensarmos que conhecemos realmente um país que é um mundo e, em grande parte, um mundo ainda não inteiramente explorado mesmo por expedições arrojadas? Viajar no Brasil é sempre descobrir coisas novas, e temos que nos conformar com o fato de que no Brasil a ninguém é possível ver tudo. Ser razoável é saber resignar-se no momento oportuno, e por isso tive que dizer a mim mesmo: por essa vez basta!

Portanto voltemos para o aeroporto. Ao lado do avião em que sigo para os Estados Unidos, acha-se outro que está de partida para Manaus. Vejo o possante aparelho alçar vôo e rumar para as zonas minhas desconhecidas. Ainda não deixei o Brasil e já começo a ter saudades dele, já começo a sentir o desejo de em breve voltar a este país maravilhoso. No momento em que a hélice do aparelho em que vou partir, principia a girar, desperta-se em mim toda a gratidão pela felicidade e pelos conhecimentos com que essas semanas inolvidáveis me presentearam. Quem teve a sorte de conhecer uma parte apenas da inesquecível superabundância do Brasil, já viu beleza suficiente para o resto da vida.


 

Despedida

 

Quem visita o Brasil, não gosta de o deixar. De toda a parte deseja voltar para ele. Beleza é coisa rara e beleza perfeita é quase um sonho. O Rio, essa cidade soberba, torna-o realidade nas horas mais tristes. Não há cidade mais encantadora na terra.


 

TABELA CRONOLÓGICA

 

Partida da frota portuguesa comandada por Vasco da Gama para as Índias — 7 de julho de 1497.

Partida da frota portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral para as Índias — 9 de março de 1500.

Chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil — 22 de abril de 1500.

Fernando de Noronha inicia o comércio do pau-brasil — 1501.

Américo Vespuccio chega ao Brasil na frota de Gonçalo Coelho — 1503.

O nome de América aparece pela primeira vez num mapa (Waidseemüller) — 1507..

Fernão de Magalhães, na primeira viagem de circumnavegação, chega ao Brasil, — 1519.

0 Brasil é dividido em capitanias — 1534..

Tomé de Sousa, o primeiro governador geral, chega à Bahia, trazendo em sua companhia os primeiros jesuítas, entre os quais se encontra o Padre Manuel da Nóbrega — 1549.

Chega ao Brasil o seu primeiro bispo — 1552.

Fundação de São Paulo pelo Padre Manuel da Nóbrega — 1554.

Os franceses sob o comando de Villegaignon aportam ao Rio de Janeiro — 1555.

Aparecimento do livro de Hans Staden “Viagem ao Brasil” — 1557.

Publicação da obra de André Thevet “Les Singularités de la France Antarctique” — 1558.

Combate de Mem de Sá contra os franceses no Rio de janeiro — 1560.

Expulsão dos franceses e fundação da cidade do Rio de Janeiro — 1567.

Portugal cai sob o jugo da Espanha — 1580.

Conquista da Paraíba — 1586.

Conquista do Rio Grande do Norte — 1598.

Fundação da Companhia das Índias Orientais — 1602.

Conquista do Ceará — 1611.

Conquista do Maranhão e fundação de Belém — 1615..

A Bahia cai em poder dos holandeses — 1624.

Olinda é ocupada pelos holandeses — 1627.

Portugal recupera sua independência — 1640.

Revolta em Pernambuco contra os holandeses — 1645.

Terminação definitiva da ocupação holandesa — 1654.

Tratado de paz entre a Holanda e Portugal — 1681.

Descoberta do ouro em Minas Gerais — 1693.

Minas Gerais é elevada à categoria de província — 1720.

É sufocada a sublevação. de Vila Rica motivada pela fundação das casas de fundição — 1720.

Chega o café ao Brasil — 1723.

Descoberta de diamantes — 1729.

Criação da província do Rio Grande do Sul — 1737.

Antonio José, o primeiro dramaturgo brasileiro, foi queimado pela Inquisição em Lisboa — 1739.

Criação da província de Goiás — 1740.

Criação da província de Mato Grosso — 1748.

Tratado de Madrid, que estabeleceu os limites entre a América espanhola e a América portuguesa (o Brasil) — 13 de janeiro de 1750.

Terremoto de Lisboa — 1755.

Expulsão dos jesuítas do Brasil — 1759.

O Rio de Janeiro passa a ser capital do Brasil — 1763.

Conspiração em Minas Gerais para tornar o Brasil independente — 1789.

Execução de Tiradentes — 1792.

Fuga da Família real de Portugal 1807.

Sua chegada ao Rio de Janeiro — 1808.

Abertura dos portos brasileiros ao comércio universal — 1808.

A população do Brasil é avaliada em três milhões e meio, dos quais quase dois milhões são escravos — 1808.

Aparece a “History of Brasil” de Roberto Bouthey — 1810.

O Brasil é elevado à categoria de reino — 1815.

D. João VI regressa para Portugal — 26 de abril de 1821.

D. Pedro, seu filho, proclama a Independência do Brasil e é coroado imperador com o titulo de D. Pedro I — 1822.

É publicada a obra “Voyage dans l’intérieur du Brésil” de Saint.Hilaire — 1823.

o Brasil perde a Província Clisplatina — 1828.

Abdicação e partida de D. Pedro I — 1881.

Declaração da maioridade de D. Pedro II — 1840.

Proibição da importação de escravos — 1850.

Primeira estrada de ferro no Brasil — 1855.

Guerra do Paraguai — 1864-1870.

Telégrafo entre o Brasil e a Europa — 1874.

O número de habitantes ultrapassa o de dez milhões — 1875.

Abolição da escravidão no Brasil — 13 de Maio de 1888.

Abolição da monarquia e proclamação da república — 1889.

Morte de B. Pedro II no exílio — 1891.

Santos Dumont voa em torno da Torre Eiffel — 1901.

Euclides da Cunha publica “Os Sertões” — 1902.

O número de habitantes do Brasil ultrapassa o de trinta milhões — 1920.

O número de habitantes do Brasil ultrapassa o de quarenta milhões — 1930.

Getúlio Vargas assume a presidência — 1930.


 

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Novembro 2001

 

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