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O B E S T I Á R I O

Mauro Gonçalves Rueda

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O Bestiário
Mauro Gonçalves Rueda

Versão para eBook
eBooksBrasil.org

Fonte Digital
Documento do Autor
maurorueda5@hotmail.com
maurorueda@uchoanet.com

Capa:
Diane chasseresse
Escola de Fontainebleau
Meados do século XVI
Fonte Digital:
Museu do Louvre

© 2003 — Mauro Gonçalves Rueda


 

Índice

Prefácio
  1 — O Capeta Com Todo o Prazer.
  2 — O Homenzinho Que Não Era Deus.
  3 — A Consciência. Malaquias! A Consciência!
  4 — A Rita.
  5 — Sebastian: A Lenda.
  6 — Narciso No Espelho.
  7 — Um Bagulho Bota Pra Derreter.
  8 — Na Corda Bamba.
  9 — O Diário.
10 — Wall & Delbut.
11 — Os Sócios São Ratos.
12 — Asas Partidas.
13 — O Fugitivo.
14 — Humilhação.
15 — Phelóphidas.
16 — Fragmentos Cotidianos.
17 — Mero Acaso?
18 — Aversão.
19 — Góia.
20 — Metrópoles.


 

O B E S T I Á R I O

(Diário De Uma Besta)

—Contos—

MAURO GONÇALVES RUEDA

São José do Rio Preto — 1.998


 

 

Para Joyce e Maricy
Julio Cortazár pelo seu livro de Contos “Bestiário”
Meus irmãos, Moisés e Maurício

 

 


 

PREFÁCIO

 

Qualquer metrópole que se preze, apesar de suas anomalias e visível decadência, tende a ser uma loucura em todos os sentidos. A violência, o medo, o exagero, as novidades, o velho, o novo e a miscelânea inenarrável. Assim é e assim retratam as paisagens em concreto, asfalto, espigões de cimento, favelas, viadutos e passarelas. O luxo e a miséria se contrastam no mesmo quadro quase fantasmagórico em sombras mal delineadas. É o fantástico engendrado na realidade. A necessidade do surrealismo superando a fragilidade das Instituições. A nostalgia e as tendências evolutivas. O dia, a noite, a sempiterna valsa dos loucos corações e mentes que jamais encontraram limites para suas realizações. A fumaça estagnada no ar, os cafés e casas noturnas com músicas ao vivo. O som do tráfego que rima com o tráfico e os disparos de armas com projéteis perdidos, incrustados nalguma parede ou em algum corpo estirado na calçada e coberto por manchetes de jornais. Contudo, ainda brotam flores em meio ao concreto e náusea, como diria Drummond.

Na calada da noite, madrugada formada e encorpada, rolam as maiores aventuras. Como o corpo que despenca do décimo andar para pairar — por um átimo —, sair na foto, e espatifar-se no cimento rústico. Da mesma forma que o corpo que vai perdendo suas fibras e os músculos se degenerando. E apesar do silicone e das cirurgias, os jovens também acabam se mumificando um dia. Nas mãos calejadas do operário; nas bagas de suor que encardem os colarinhos dos engravatados; na maquilagem das pequenas prostitutas de agências de modelos; dos jovens acompanhantes com seus corpos másculos; dos casais que saem a procura de um travesti; dos punks e suas tribos; das bichas velhas desencantadas a mirarem-se no espelho da decadência; do engraxate que sonha vencer (n) a vida; do trombadinha cheirando cola e fumando crack; das ratazanas correndo pelos becos ensujecidos da existência; dos humilhados dormindo nas filas da previdência e os corpos largados pelos bancos das praças.

Em meio a todo esse festival retratado em mural antigo, o contemporâneo rasga o pano do palco e ganha o seu espaço na eternidade do ontem. A poesia também se constitui de deformações e anomalias. Aberrações da natureza destes seres e suas mentes caóticas. A grande poesia costuma se refazer nas dores e nas tragédias. A poesia concreta, crua, dura e real da metrópole muito doida que não respira, arfa asmaticamente. Se lhe devemos uma Ode? Na realidade, o fadário quase nos obriga. Devemos muito mais. Por sua frieza e seu sarcasmo. Por sua indiferença e melancolia. Por sua prole de desesperados e angustiados. Por seus malucos e loucos. Enfim, por tudo o que se encolhe e se esconde nas sombras e porões. Nos esgotos e bolsões de lixo e miséria. Nós devemos mais que uma simples ode à essa deusa denominada metrópole. Palco do último espetáculo. Onde todos são atores, atrizes e diretores. Onde todos são autores e artistas anônimos. Onde todos são doentiamente pirados! Ou não! Afinal, “de perto” nem todos são normais.


 

O CAPETA COM TODO O PRAZER

 

Sentado na praça, matava o tempo e se deixava enfarado a coçar o saco e olhando para “porranenhuma”. A cidade era assim: cocozinho de mosca. Havia um surto epidêmico de raiva. Cães e gatos malucos, às centenas. As pessoas cagavam-se com medo de serem atacadas. Trancafiavam-se dentro de casa. “Ele” ria e tomava conta da cidade vazia. Que se fodessem os cães, gatos e os habitantes! Aliás, os habitantes eram mais nocivos do que qualquer epidemia de raiva ou loucura. Era o que pensava.

Quando anoitecia, ficava contando as crianças que brotavam dos canteiros da praça. De quando em vez, algum falecido saía de seu túmulo para passear pelas ruas vazias da cidadezinha decadente. Certa noite, apanhara um velho touro que passava sobrevoando muito baixo, pachorrento e descuidado. Segurando pelo rabo, rodopiou o pobre animal por sobre a cabeça dando-lhe piparotes no meio dos cornos e enfiando-lhe o dedo no cu. Logo, cansado daquela brincadeira tola, apiedou-se do indefeso ruminante e acabou liberando-o. O bicho saiu manso, pairando por sobre a torre da matriz local indo desaparecer na linha do horizonte, para lá de onde as vistas podiam alcançar. Não tinha certeza se a população conhecia ou fingia desconhecer tais fatos. Era-lhe indiferente.

Em outra ocasião, apanhara uma mula sem cabeça pastando no jardim da praça. Não havia nada de anormal com o bicho. Exceto a cabeça. Ou melhor, a falta dela. No mais, ao seu ver, não passava de uma simples mula que, havia perdido a porra da cabeça, sabia-se lá o motivo!

De um “nadaquefazer”, no inspecionar as qualidades do quadrúpede, pensou em traçar a mula. Não havia barranco por perto e, “comer mula sem encostá-la em barranco não era “quenêm...”. De forma que, o ruminante acabou escafedendo-se da situação “vexante” ileso. Sua vida era mais ou menos essa repetitividade, o enfaro, o desconexo...Vivia por ali, criando calos nas popas, sentado pelos bancos, numa pasmaceira sem tino. Com isso, acabara se aborrecendo.

Tanto se aborrecera que, emputecido da vida, juntou uma jararaca pelo rabo e deu-lhe uma porrada de nós. Passou o resto da noite lá, naquela peleja. Cada vez que a tinhosa conseguia livrar-se dos nós, apanhava a vítima e tornava a aplicar-lhe vários outros nós: cego, de marinheiro, boiadeiro e alguns que acabara inventando na hora. Cansado, meteu um bicudo no rabo da cobra e voltou para casa andando e mijando. Mijando e andando pela Avenida Pedro de Toledo.

Mês de agosto sempre fora mês de cachorro louco. Já, na quaresma, era mês de lobisomem. Havia dito para o senhor Desidério, que a cidade estava empestada de lobisomens desmunhecados. Que não passavam de umas bichonas que adoravam piroca. O homem não gostou da brincadeira. Era sério, sisudo. Cerrou os cenhos e com a carantonha fechada, deixou-o falando com a própria sombra. A cidade o considerava impertinente, débil mental, cria perdida em beira de estrada. Apesar dessas e outras, nem se dava ao trabalho de argumentar. No mais, infernizava a quem pudesse. Comentavam-se à socapa que, o pároco da cidade, não se sabia ao certo, mas costumava deitar olhos perniciosos sobre seus fiéis..

Padreco miúdo, italiano e espaventado. Santíssima castidade! Durante os sermões e serviços clericais aos domingos, sujeito enrolava sua litania em linguajar que findava numa mistureba que somente ele entendia. Os fiéis ouviam bocejando, enfarados, fingindo entender tudo. Quem deseja passar por burro? Mas ele, o desgrenhado não:

— Vai entender que porra esse padreco discorreu. Vai ver, mandou todo o mundo tomarnocu e os palhaços: “Amém!”.

Comentava com os poucos fiéis que ainda fomentavam a coragem em saírem para as ruas. Parolava e esbodegava-se de rir. Ria, gargalhava e mijava-se todo. Tinha bexiga solta. Aliás, diziam que ele tinha era tudo solto. A bexiga, os intestinos, a língua e, sobretudo, os parafusos e porcas das moleiras.

Zanzava pelas ruas espiando pelos buracos das fechaduras; pelas gretas das portas e janelas. Arisco, ligeiro, de natureza rapace e desconjuntado das cadeiras e colunas ‘causo da capoeira’ que lutava e gingava girando feito carrapeta, metia medo em todos. Dava pulo do macaco que traumatizava o adversário e currupiava emitindo uns gritinhos feito Bruce Lee. Cismarenta, a polícia deixava de lado. Bicho doido que carecia de internação em hospício. Pegar que jeito? Se se fosse parar para analisar, a população bem que agradecia à Deus aquelas pestes de gatos e cachorros babando e escumando pelos cantos da boca. Pelo menos, tinham lá seus motivos para manterem-se trancafiados e trancafiar os filhos e as filhas donzelas. Mesmo porque, o tal não era de pouco bico e já lá estava convencendo que era gostoso e coisa e tal, puxando pelo braço, metendo os cinco dedos, alisando, desviando pralguma moita ou lugarzinho ermo e no mais, lá se ia uma virgindade para o beleléu.

— Frente e verso que é prámode a bichinha viciá e procurá de retro! — destrambelhava a falar sem papas naquelas conversas indelicadas e depreciativas das honras alheias.

Coisa besta! Satanás é quem vai de retro escarvando o chão, quando acoitado nos conformes das mandingas e conhecimento de que, os cornos nem sempre significam que o bicho é a besta. Haja vista que, até clube dos que ostentavam cornos, já por aquelas paragens, havia sido fundado e registrado nos livros como entidade prestadora de serviços públicos. Pareciam sentir orgulho em serem mansos, conformados, ufanos e dadivosos das galhadas sem dor. Mesmo porque, brotavam e nem se tinha tento. Era-se o último a saber mesmo e, quando se descobria, já estava com ninho de passarinhada chocando. O lesado lá, algures, deveras, mais do que sorridente e feliz — feito um corno mesmo. Quem ousaria dizer que um sujeito alimentando tais pensamentos tão análogos com a filosofia, era maluco de babar-se e comer a merda que acabara de fazer? Louco era o cacete!

Que nem cacete aquilo já nem era mais. Não é que égua no cio, recostada em porteira, trancava o fiofó e saía escoiceando e bufando feito o demo, possessa! E não?! O danado do malquisto, para espalhar-se ainda mais os “tereretetês”, era dos bem servidos. Que o dissesse a bicha velha, a “titia” da cidade, que teve que costurar o canal do esgoto. Quis, a corajosa da bichona e foi toda-toda. Berrou, bufou, escarvou o chão e naquele “vem cá neguinha maluca”, empurrou. No que voltou, parecia saca-rolhas: trouxe hemorróidas e pregas e varizes e se não acodem em tempo, hemorragia na certa.

— Ô Bicho dos infernos! — imprecavam os pais e maridos, mais atormentados e torturados que condenados nos umbrais, divisando padecimentos futuros.

Mas quem poderia dizer? Desgosto? Cansaço? Tédio? Desaparecera do dia para a noite. A cidade suspirou aliviada. Algumas pessoas, no entanto, quedavam saudosas. A população pagou novena, trezena e despacho em encruzilhada, num fuzuê descomedido que, só se presenciando a barafunda para contar nos pormenores e somenos. O filhodaputa desaparecera, afinal! Foi então que, não se sabe que pacto ou desarranjo, os gatos e cães voltaram ao normal. E a população resolveu sair para as ruas “desaflita”, tentando esquecer tantos estragos, reconstituir-se e restabelecer os bons costumes e a moral. Como se tais princípios realmente fincara raízes algum dia, por aquelas paragens.

Mas fora um verdadeiro inferno: todos sentiam-se coniventes, desconfiados e com a cabeça abarrotada de caraminholas, pesando mais do que deveria.

— O filhodaputa! — rezingavam estapafúrdios, cara no chão tanto vexame e, sequer sabiam o nome do capeta, filho do cão! Tinhoso e debochado no que concerne às tradições da família e às coisas do Alto, lá de Deus que, no mínimo, diziam, deveria ter tirado férias por aquelas ocasiões sinistras e tempos idos, imemoráveis!...


 

O HOMENZINHO QUE NÃO ERA DEUS

 

Somente observando atentamente o cara, poder-se-ia chegar a conclusão que, seguramente, havia ultrapassado o limite delineador entre a sanidade e a loucura. Por um segundo, o investigador tivera uma estranha sensação desconfortável: “aquele homenzinho algemado, cabelos emplastados, os olhos vazados pela insônia, a tez pálida e inconfundível dos noctívagos, ainda que parecesse um farrapo humano, à qualquer momento, poderia realmente transformar-se nalgum tipo de psicótico — maníaco – homicida” — Sentiu o calafrio percorrendo-lhe as entranhas quando seus olhos mergulharam naquele olhar abissal, de gente desvariada. Então pensou ainda: “creio que deveríamos tê-lo algemado com as mãos para trás, às costas. E não daquela forma: com as duas mãos à frente do corpo, prontas para uma bordoada no primeiro ao seu alcance” — concluiu cismando de si para consigo, bastante preocupado por não ter tomado maiores precauções.

O homenzinho foi literalmente atarracado por dois fortes policiais visivelmente nervosos e conduzido ao gabinete do delegado. As instalações eram acanhadas. Tratava-se de uma saleta abafada, recendendo à catinga de suor e fumaça de cigarros. Havia um ventilador agarrado ao teto girando moroso, meio que a contragosto. A poeira e o mofo haviam-se tornado visíveis sobre os livros inúteis na estante de madeira, atrás da mesa do delegado que parecia absorto com aquele monturo de papéis encardidos. Fora empurrado para uma cadeira frente à mesinha. Acomodou-se mal, como pôde e permaneceu à espera.

Sentado frente daquele homem gordo, de terno surrado e gravata com bolinhas ridículas, seu olhar ultrapassava os limites e linhas de tempo e espaço para ir se distanciar, buscando milhares de anos luz do local onde se encontrava à mercê daqueles que o haviam feito prisioneiro sem qualquer reação da sua parte. Era contra o uso da violência. Sempre fora, conforme seus princípios.

— Podem se retirar — disse o delegado aos investigadores.

— Mas, doutor... — ensaiou o investigador baixinho, de bigodinhos de pó de café encimando os finos lábios.

— Eu disse que está tudo bem. — assegurou o delegado com extremada frieza e indiferença para com o “maluco” cabisbaixo na sua frente.

Os investigadores se entreolharam incrédulos, matutando sobre qual dos dois seria o mais demente? O homenzinho ou o balofo do superior a apaticamente emitir-lhes aquelas ordens que deixavam margens à questão em voga. Finalmente saíram sem mais. Haviam cumprido com seus deveres. Se o homem dava uma ordem, então?

O delegado esperou que os dois se retirassem. Somente então, passou a mão pelo queixo redondo, sentindo a pele oleosa. Em seguida, cravou um olhar penetrante no homenzinho ali, inerte, com seu jeito insosso e amorfo. O outro permaneceu deliberada e vagamente mirando através do que não existia. O barulho estridente de uma sirene cortou os ares. “O parvo sequer piscara. Teria mesmo ficado biruta?”. Pensava o delegado, absorto em acender um cigarro. Aspirou profundamente a fumaça, mexeu-se incomodado na cadeira. A modorra e o calor daquele dia pareciam acentuar-se à cada segundo. Finalmente o delegado dirigiu-se ao sujeito passivo e entranhado em seu mundo.

— Ei cara!, você saberia, por acaso, me explicar como se faz para torturar uma formiga? Era uma pergunta absurda, sem qualquer propósito. Esperou a reação do outro que havia captado a questão e notadamente, esboçava um sorriso sádico, porém abatido e visivelmente enfarado. O silêncio tomou conta da saleta. A mosca zumbiu pelo ar emitindo aquele som irritante.

— Muito bem, pode me explicar, hã? — voltou à carga o delegado, a acompanhar o vôo do inseto com seu olhar mórbido. O homenzinho penetrou-lhe as retinas e respondeu:

— O senhor deve saber, doutor. É especialista, estudado... — retrucou o algemado.

O gordo pensou com seus botões que, “aquele tipinho não passava de uma besta”. Concluíra que adorava um desafio. Às vezes, um bastardo daqueles era uma boa oportunidade de se livrar da monotonia do expediente. Permaneceu calmo, fincou os cotovelos no tampo da mesa e expeliu a fumaça em direção ao desafiante enquanto emitia a frase com denodo:

— Uma barata, digamos?. Se você estivesse sozinho num quarto com uma barata, o que faria? Aquela era outra pergunta aparentemente sem propósito. O homenzinho percebeu a filosofia da acareação e respondeu apático:

— Eu jamais gostei delas. — Uma resposta evasiva com pitada de escárnio. Um interessante jogo psicológico.

— Muito bem! Muito bem! — Concordou o delegado emprestando ênfase à voz forjada. Bateu a cinza do cigarro e em seguida bufou:

— E um rato?

— O quê? — perguntou o outro.

— Um rato, cacete!. Faria o quê com um rato? — rosnou o delegado querendo impor sua autoridade através da voz que, levemente alterada, subira alguns decibéis no volume.

— Sei não, doutor. Os ratos são nocivos, acho...

— O.k. Nocivos, não é? — O sorriso brotou dos lábios da autoridade com ares de perceptível malícia. Talvez houvesse chegado à conclusão, naquele instante, que havia faturado um ponto em sua guerrilha psicológica. Aparentava uns cinqüenta anos, pouco mais com seus cabelos nevados, olhar inquiridor e a paciência adquirida com o tempo de serviço. O homenzinho o achara interessante. Parecia bastante inteligente e, à princípio, polido. Divagava com seus pensamentos quando foi abalroado pela nova pergunta desconexa:

— O ser humano?

— Hã? — indagou numa espécie de muxoxo, o homenzinho que acabara de regressar de sua viagem de divagações.

— Você acredita que o ser humano seja nocivo... às vezes? — ironizou, acrescentando o “às vezes”. Em seguida, acendeu outro cigarro. O cinzeiro encontrava-se abarrotado. Havia uma garrafa térmica com café sobre a mesa. Papéis e canetas. Um copo descartável ainda intato. O delegado apanhou o copo, derramou café o suficiente para o “bico de pito”, sem oferecer para o depoente. Apenas aguardava em silêncio, do alto de sua mal disfarçada empáfia.

— Nocivo?.. — O homenzinho havia perdido o fio da meada. Não sabia o que responder. Permaneceu em silêncio, aquiescendo sem resposta. O delegado sorveu o café, observando atenta e profundamente o meliante para enfatizar em seguida:

— Digamos que você seja um traste, entende?

O outro anuiu com um gesto de cabeça e o delegado continuou:

— Um traste, um pária, um monte de bosta, como dizemos por aqui!...

— O que tem? — Retalhou o outro.

— O que têm, porra!? — Explodiu o delegado, voltando ao embate:

— Você é um pária, um monte de bosta e por isso, acredita que o resto da humanidade, seja igualzinha a você. O que faria? — Finalizou a questão enfático.

— Bem doutor, eu não sou Deus, sabe?

— Não? Você acredita mesmo que não seja Deus? — atacou o delegado com ironia e perspicácia. A coisa ia começar a esquentar, pensava.

— Acredito sim, doutor. Não sou Deus. — respondeu.

— E porquê tanta convicção?

— Bem, é que às vezes, eu nem sei responder a uma perguntazinha simples ou, o que fazer mediante determinadas situações constrangedoras.. — respondeu com propriedade o algemado a estampar ar de cansaço. Para ele havia uma eternidade que encontrava-se ali, sentado frente àquele sujeito “meio goiaba, obtuso”. O joguinho já não parecia tão interessante. As peças do quebra — cabeças eram inconsistentes. Cartas marcadas sobre o fundo falso. O delegado também parecia sentir o fastio. Era como se ambos já houvessem vivido aquela cena patética.

— As pessoas pensam que você é louco, sabia? — advertiu a autoridade com a pergunta maçante.

— Às vezes. — confirmou o outro, desinteressado do papo.

— Às vezes o quê?! — explodiu o gordo, quase perdendo o controle da situação, sem atinar-se que já havia perdido a parada há algumas perguntas atrás. Ocorreu-lhe que aquela espécie de gente, por incrível que pudesse parecer, era astuta, perspicaz e com um nível elevado de capacidade mental. O abatido homenzinho, desta vez não perdera o fio da meada e respondeu sem afetações:

— Às vezes, eu até acredito no que dizem por aí... Essas coisas de eu ser louco, perigoso, doente mental.. Umas conclusões difíceis de serem concebidas. — Aquilo sim, era resposta, pensou o suarento delegado. Mais um arrocho e o sujeito entregava-se de bandeja. Gato acuado. Afinal, a psicologia jamais falhara, enquanto tortura.

— Então, se você não é louco, homicida, doente mental, pária, bosta e o que dizem por aí, o que é então? — arrematou o delegado como quem houvesse bradado o velho jargão, “Heureca!”. Havia pego seu oponente com as calças nas mãos. Colocara-o, com destreza, em cheque. O suor brotava-lhe em bagas junto às banhas do pescoço apertado pelo nó da gravata e o colarinho sebentos.

O detido permaneceu em silêncio, refletindo. Parecia fechado, na defensiva ante o “xeque” do seu verdugo. Na realidade, tratava-se de uma única questão: “ficar respondendo essas baboseiras para quê? Nem conheço essa besta, metido a espertinho”. A conclusão do homenzinho acorrera-lhe à mente de forma inapelável, decisiva e concludente. Seus olhos pareciam vidrados; os músculos das faces deixaram-se trair pelo ríctus perceptível e seus lábios fremiam levemente quando respondeu:

— Sabe, doutor?.. — indagou, realizando uma pausa proposital, estratégica, para continuar em seguida:

— Eu sempre tive muita paciência com baratas, ratos, loucos, homicidas, doentes mentais, párias e até mesmo bosta. (Acentuara a palavra que o próprio delegado havia usado para denegrir sua imagem. Julgara justo, afinal).... É, sempre tive. — Continuou como se estivesse muito distante, discorrendo sobre outra pessoa que não ele, o assassino —. Por isso, eu acho que já deu para perceber que não sou louco e muito menos, fraco das moleiras. Deu sim! O senhor também não é nada burro e sabe muito bem porque matei aquela gente.. — deixou no ar. Pausa longa. O delegado que concluísse.

— Eu gostaria de saber, realmente... — resmungou o delegado como quem não conseguisse compreender o que estava se passando.

O homenzinho levantou-se lentamente, deixando o incrédulo delegado boquiaberto, observando e sentindo a urina escorrer-lhe pelas pernas. O outro sorriu para ele e enfatizou:

— Sabe sim, doutor. O senhor sabe muito bem que não sou Deus.

Não, aquele homenzinho que havia assassinado quatro pessoas da própria família, não era Deus. Não poderia. Contudo, também não era louco. Apenas um homenzinho. Uma porra de um homenzinho! Uma titica! Um monte de bos...

O delegado pensava e sentia a bexiga se afrouxando, aliviando-se sem nenhum controle. O homenzinho deu a volta em torno da mesa, encaixou os braços pelo pescoço empapado de suor do representante da Lei e passou a apertar, sufocando-o lentamente. As únicas reações foram aqueles sons repugnantes, um leve esbater-se para, ato contínuo, o corpo todo tremer e relaxar. Com as duas mãos, embora algemado, aparou a cabeça grisalha do gordo e torceu. Como se destroncasse uma ave indefesa. procurou as chaves, retirou as algemas e, em seguida, saiu caminhando para a porta e ganhou a rua. O sol bufava furioso e derretia o asfalto. Não deveria ser mais que duas horas da tarde. É, não passavam das duas...

— Ah, se eu fosse Deus!... — rezingou o homenzinho para si próprio e, alçou vôo por sobre os prédios, desaparecendo em meio às nuvens claras e sem nenhum presságio de chuva.


 

A CONSCIÊNCIA. MALAQUIAS! A CONSCIÊNCIA

 

Saco cheio, Malaquias? Estressado, hã?! O lotação sacolejando e esse maldito fedor de suor infestando o ar! Comprimido entre dois sovacos, Malaquias sentia-se muito “junkie”. Ou seria “Punk”? Vontade de dar um vomitão. A mulher engravidara: trigêmeos! Falta de porra, não fora. Também, mandou “amarrar as trompas da égua velha”. Putaquepariu! Morava num barraco e o governo dizia que era casa. C.D.H.U. Um ano após o casamento, Deus mandou logo três. Tudo menina. Uma mais linda que a outra. Bem, não dava para diferençar muito não. Justiça seja feita: cara de uma, o “cú” da outra. Lembrou-se que Cu não tinha acento. Ou melhor, não levava acento. Sabia disso porque era meio poeta, meio boêmio, meio compositor e filhodaputa por inteiro, além de odiar o patrão. Odiava, mas, cobiçava a gostosa que ele, o patrão desalmado, traçava após o expediente. Cara cuzudo! Nasceu virado pra lua!

Malaquias?.. Quem era Malaquias, mesmo? Um bosta com três garotinhas para criar e uma porcona pesando quase duzentos quilos para suportar. Sim, quase duzentos após a droga da cirurgia. Castrada. Tão bonitinha no altar. Tinha o álbum do casamento: a mulher, um verdadeiro monumento escultural, torneado e lapidado por mãos angelicais. Ultimamente? Velha pachorrenta, fedendo à perfume barato. De puta, aliás. Com toda aquela banha esparramada sobre a cama e, ainda tinha a arrogância de manter uma empregadinha que, nem mesmo os cachorros teriam coragem de acasalar.

Embriagado, Malaquias? Embriagado, o caralho! Só umas no bar da esquina para suportar o segundo tempo dessa contenda. “Ondejáseviu?”. Levantar às cinco, enfrentar a burocracia de um escritório de merda; voltar para casa às sete e ter saco para desviar de merda, brinquedos, roupas, sapatos, choros, ranho, banha e reclamações?! Não paciência que agüente! Eu já estou “porraqui”! Estafa não dá somente em rico fresco. Pobre também sofre, desgasta. Acha que não?

Dizem as más línguas que Malaquias tá broxado. Logo, logo, tá queimando o anel de couro. Malaquias está com umas olheiras profundas que fazem dó! Deu de rezingar feito velho de uns tempos para cá. Falar sozinho feito uma mula, sabe? Anda que é só trapo, o infeliz! Vai saber se não, doença ruim? Levou duas advertências em uma semana. Um pé na firma, outro na fila do desemprego. No olho da rua. Já imaginou? Com três pequerruchas para criar! Deve ser a merda da cachaça! Acaba com o cara de um dia para o outro. Também, chegar em casa e ter que trepar numa jararaca daquelas! Jararaca? Aquilo parece um hipopótamo! Eu, hein!...

— Licença? — pediu educadamente Malaquias para o sovaco sobre seu nariz. Saiu espremido, comprimindo-se sob sovacos e saltou na primeira parada do bairro. Frente ao boteco. Como resistir? Não era de ferro.

A mesinha no canto, vazia. Sentou-se aliviado.

— O de sempre! — pediu para o homem atrás do balcão. Quebra gelo e, uma loiríssima, estupidamente. O primeiro trago é sempre uma foda com ph! Desce arranhando, rasgando, embucetando. Malaquias um “beise” de marijuana? Mas a maconha para Malaquias era uma merda: “Fico xarope, saca? Viajando mais que o presidente da República”. E ficava mesmo. Quem o conhecia sabia disso. Um homem aos quarenta anos fumando maconha é... É o que, Malaquias? Contracultura, porra!

— A montanha deve estar me esperando. Se a montanha pudesse vir à Maomé, eu tava fudido! Graças às banhas e pelancas, ela não se move nem para peidar, a ingrata.

— Quéisso, Malaquias?! Só mais umazinha, bem gelada, hã? A saideira nunca fez mal `a ninguém, pelo que eu saiba.

— À ninguém que leve uma vida normal. A minha saideira é pior que sentença de morte. Cada minuto de atraso, é um trauma psicológico. E já meio que recomposto, de pé recostado ao balcão, acabava tomando a saideira.

Malaquias caminhando em direção à sua casa. Financiada em vinte e cinco anos. Na cabeça uma parafernália de pensamentos intrínsecos. Cara vivido, casar chegando aos quarenta. Titubeio irreversível! Mais uns três, quatro anos, arrumava uma puta e amigava sem compromissos.

A consciência: Malaquias bundão! Filosofia diarreica. Fazer o quê, agora? Mato a baleia com o machado? Picoto a bicha e salgo feito carne de sol. Daria para alimentar as três princezinhas durante uns dois anos, no mínimo! Emitiu uma risadinha amorfa com a idéia. Achava-se genial. Empanturrava as meninas com toucinho. Ou seria toicinho? Não, era toucinho mesmo. Daria uma olhada no dicionário. Antes, lia jornal, ouvia música, tocava bandolim.. E agora? Aquele banheirico de nada. Nem cocô se podia fazer em paz e lá vinha uma: “vai pai, tá na portinha!”. Não, não era bem assim porque, nem falar as meninas sabiam, direito. Pobrezinhas! E dormir? Dormir, era um inferno. A bicha roncava, peidava, bufava e, qualquer dia, Malaquias ia amanhecer achatado feito uma lagartixa que um caminhão passara por cima. Aquele mastodonte dos infernos! Era vida para um homem decente?

Vai, Malaquias! Mete uma bala no cocuruto! Faz as malas e desaparece no mundo. Vai dar a bunda. Tomar porres monumentais! Tantas xoxotas no planeta e você aí, na mão?! Trepar com aquele trambolho que jeito? Aquilo nem tem buceta mais. Além disso, o cheiro de mijo.. Vai pelo cheirinho, Malaquias. Quando pensa que tá dentro, falta metro e meio para chegar na portinha. Goza como se cagasse, filhodaputa! Mata a vaca e presenteia o cunhado com as três gatinhas! Vai, Malaquias. Seu bunda — mole!

— Acho que tô variando! — resmungou Malaquias em seu caminhar trôpego, a passos comedidos, indecisos, com medo de chegar à reta final. O sol havia-se deitado há muito. Demorara mais do que costumava e aquilo seria, com toda a certeza, garantia de disparatada discussão infindável com a mulher. Além do mais, teria que preparar, ele mesmo, sua própria janta. Sem contar que, as três meninas já ensaiando as primeiras palavras, enrolando, tropeçando no linguajar, mal pisasse porta adentro, viriam pedindo, implorando coisas que ele, com aquele salário de proletário, jamais teria condições de. Pior do que falar era entender e pressentir que algo não estava certo. Vida fora dos eixos!

— Que merda! — choramingou Malaquias mirando as estrelas que despontavam no céu. E chorou. É, Malaquias chorando pela primeira vez após o casamento. Após o quebra gelo, após as lourinhas geladas, após o cheiro de sovacos no lotação, após o porra do patrão o ter advertido verbal e pessoalmente, após ponderações, considerações, aquele sentimento de impotência e perdição. Somou uns etecéteras e tais que seus sentimentos resolveram escarafunchar no coração passarinho ferido e magoado; asinha quebrada, sem poder voar. Um dó sem tamanho. Autocomiseração do catso! Último dos que esperam a vida inteira no final da fila e, chegada a vez, descobre que já não há mais nada. Levaram tudo. Nem migalhas. Malaquias enxugou com o braço o risco de lágrimas doridas. Vontade de morrer. De morrer ou matar que, tanto fazia àquela altura do campeonato.

— To ficando troncho! Deve ser isso... — murmurava aporrinhado e espezinhado pela consciência. Acinte. Aviltante situação. Acabar num hospício. “Vai virar pra sentir a sensação de estar cagando para dentro. Vai virar assassino e parar na cadeira elétrica. Vai virar o caralho! Vai se foder!”.

— Vou, vou mesmo! — concluiu, desta vez berrando para a sua própria consciência.

Avistou o portão. Madeira mesmo. Faltava recurso orçamentário para a compra de tijolos e portão decente. Adentrou o quintal após um safanão no velho portão emperrado e um bicudo no cachorro viralata. “Meu Deus, para que cachorro se mal conseguia sustentar a própria família?!”. A porta somente encostada. Algazarra das meninas e o barulho do aparelho de TV. misturando-se pelos ares. Entrou murcho. As três interromperam a balbúrdia e correram ao seu encontro como se ele, Malaquias, fosse o Deus delas. O Deus dos abandonados e aflitos. Correram e foram se aninhando em seu colo, após acirrada disputa pelo melhor espaço. Disputavam o primeiro beijo e os primeiros afagos. Ele se entregava, tentando disfarçar o efeito do álcool ingerido. Na sala, a mulher dava início à intolerável ladainha:

— São horas, seu merda?!

— Problemas com condução, benzinho. Muita gente. Perdi os dois primeiros....

Espalhou as três pequenas pelo chão, dirigindo-se para a sala. Abaixou-se e beijou a bochecha da mulher gorda e suarenta que, sequer desviou o olhar da tela do televisor. Novela interminável. Insuportável. Clonando sonhos de graça para a desgraça da família desunida. Gorda, beliscando doces com avareza de esfomeada. Indiferente para com o mundo ao seu redor. Ele esperou pelo esporro que não aconteceu. Restou meio perdido.

— Foi a droga do lotação. — murmurou baixinho, resignado. Muito mais para a sua consciência do que para a mulher e, com o olhar marejado, dirigiu-se para a cozinha onde as três pequenas esperavam por ele para, de forma resoluta, saciarem a fome que começava a incomodar suas barriguinhas estufadas pelas flora e fauna intestinais...


 

A RITA

 

Modorrento domingo estampado na camiseta e no calção com o sol “frigindo” a tarde. Transpirando a cervejinha super gelada, consumida aos tragos comedidos. Dera Deus fosse poeta maior: caderno e caneta sobre a mesa. Cigarros, isqueiro e moscas. O olhar de soslaio, miramirando enternecido o vai e vêm dos anjinhos. Cigarro aceso entrededos e o estômago fraquinho, enjoado, a forçar o que tragado para fora. Segurava-se, não dar vexame.

Na mesa em frente, quatro papoulas desabrochando em flor. Mais chamava a atenção, já no pilequinho da cerveja, o frutinho amadurecendo temporão. O olhinho vesgo beliscava coxinhas cruzadas; tostadinhas pelo iluminado sol. JesusCristinho, nada tinha a ver com tanta carência e desafeto. Desafeto de poeta não poder sugar mamãozinhos adocicados, em calda postos. Dois gominhos de tangerina, azedinhos na ponta da língua indomável.

— Porção filezinho? — O garção solícito, indagando.

— Hunhum! — Lambia os beiços que, lábios nem eram mais.

Na dobra do papel, letrinhas miúdas:

Ana Rita, laços de fita
Tranças nos cabelos
Corpinho coberto de chita.

Amor à primeira fisgadela. Paixão imberbe, adolescente. No encontro dos olhares, Rita sorria. Relia os versinhos, airosa. Ele, confuso, já não sabia se, fumava a porção, derramava o sal na cerveja ou se usava o cigarro aceso e no cinzeiro esquecido, para escrever. Tanta aflição!

O contorno do quadril e as perninhas cruzadas. Coxa sobre coxa. Oferenda em dádivas doidivanas sob a mini-saia. Cabelos encaracolados. Em meio ao desatino, perdeu conta das cervejas. No cruza, descruza, tantos pelinhos doirados! Oxigenados? Treze, quinze aninhos? A safadinha flertando, no pressuposto das entrelinhas, o que tinha para oferecer. Descruzou, abriu um tiquinho assim, ó! Somente por maldade. Judiação!

Diamante bruto. Lapidamento moroso com arestazinhas aqui e acolá. Mais de quinze? Nem isso! Tão rolinha! Viçosa! Mais um tiquinho e o olhar fingido da ingrata no olhar cobiçoso do tarado. Filezinho acebolado, sal e limão derretendo na ponta da língua tresvariada. Oh, perdição! Pecado necessário e cometido visando o reino do céu. Na brancura, guardando o Éden suplicado! Suplício dos sentimentos e padecimentos. Desejos gozosos:

— Abre mais um pouquinho, anjo!

Lia os pensamentos clamorosos, ardentes, febris, tostando o coração dentro do peito lacerado. Tanto sorria, quanto abria outro tantico. Assim, como quem nem...

— Ai, que morro! — Sussurrou não, pensou com a dor lancinante magoando-lhe tanto e a bandidinha sorria. Estratégia milimetricamente planejada. A perninha esquerda mais acima da direita. De forma que...

— Te pego, parto ao meio! Ai quem dera! — Nas faces, misto de dor e prazer contorcendo-se a rogar:

— Ai, seu louco! Ingrato! Me esgana, esfola todinha!

E a língua procurando, garimpando rubi escondido nas grutinhas. As duas mãozinhas delicadas, empurrando a cabeça em desassossego encosta abaixo:

— Mais! Desce mais, meu colibri! Assimmmm!.

Mergulhado no fundo do poço, morrendo afogado, esbaforido tanto líquido ingerido, o puto afoito, desesperado.

Necessário tanta tortura? Bendita adolescência de anjo safado a provar-lhe que o mapa verdadeiro. Porém, dúvida crudelíssima: teria acesso ao tesouro?! Maldita depressão, insegurança. Começara a sentir-se um rato. Ratinho indefeso no destino fadado à prisão da ratoeira mortal. Tudo por causa daquele naco de queijo!

Todos os sábados e domingos, a mesmíssima coisa: bulindo sem bulir. Matando sem querer matar. Descobrindo que o que conta nesse tipo de dor, é a própria dor martirizante das flechas no corpo em chagas. Ela tão criança ainda e, já tão abusadamente mulher?!... Ah!, ingrata! Onde fostes perder a inocência ainda estampada? Não sabias que eu viria resgatar-te?

De forma que, sentia-se não somente um tarado mas, lobo faminto, feroz, atroz, diante da caça acuada, fragilzinha, entregue às delícias das torturas. O prazer da dor no gozo urgente. Paixão não escolhe suas vítimas. Nem idade. Arde em chamas e pronto. E as olheiras do sono perdido, naquela servidão? Homem amanhecido, vira besta — fera! Azedume no trato com o próximo. Efêmero sentimento da cobiça impossível e inarredável. Espicaçara mil vezes aquele desejo e a sanha do colibri envelhecendo, carente do néctar, do pólen, da seiva, do mel... Derrotado, entregara-se de vez!

No baile do clube, as primeiras frases redescobertas. Primeiros toques tímidos na premência de encontrar a mina, olho d'água brotando. Ternura soterrada em desejos reprimidos. Um mês depois, cupim roendo as bordas, já não suportava mais. Bicho, animal sedento, atacou a presa. Vítima indefesa. Mergulhara até o fundo do lago sereno, buscar pedrinhas coloridas. Menino sem saber nadar, braçadas à esmo, em busca da margem do outro lado.

— Quem me salva?! Amparai-me que cometo loucura!

O anjinho fechava os olhinhos contritos, sempre esganada, pedindo mais. Necessário escafandro para chegar até o fundo. Em busca de pérola na conchinha aberta, vertendo seiva e sussurros na sangria desatada dos sentidos.

— Dói!

Na dor, o prazer. Pensou, voltando a mergulhar. Desta feita, mais fundo. Quase rancoroso, tanta espera para chegar ali. Quantas vezes? Até esvair-se, sem forças, sem fôlego para voltar à tona. Bandida!

— Ai, violência!. — Os lábios entreabertos, a saliva na pontinha da língua, no céu da boca. Louca. Vadia. Safada. Cadelinha! Emendava o vocabulário farto, tanta sede.

Liqüidificador em alta rotação, a gostosinha. Mais chamas, labaredas, fogo que o próprio inferno! Derretia chumbo, alianças de ouro, estanho, cobre e ferro maciço em busca da pedra filosofal. Bruxa escandalosa!

Enfeitiçado, babava-se todo. Ela fez xixizinho?! Fez sim que, ele sentiu a vagabunda forçando a bexiga e gozando delírio de tara inconcebível para florinha tão delicada e mimosa. Gata no cio, dragava-lhe as entranhas. Ela: cravava-lhe as unhas nas costas de lobo peludo, nas nádegas de escafandrista. Todo marcado, ferido de tirar sangue. Uma marca escandalosamente roxa no pescoço, onde ela sugara, a vampira! Sanguessuga ferina! Insaciável. Ele quarenta e quatro. Ela, somente muito tempo revelara os dezesseis, a vampira debochada!.

Dera para debochar dele que já não agüentava mais de quatro, cinco, seis... Queria vinte vezes numa única noite? Decerto! Até sangrar. Até restar poça de suor e gozo sobre o linho branco do lençol. Ah, bandidinha safada! Muito amor requentado no fogo brando dos quarenta passados. Ela, doidivanas.

Tirou-lhe tudo. Fugiu com outro. Ele descobriu, sem graça. Desejo de morte. Passarinho sem ninho. Aflito. Mortinho de saudade da pombinha branca da paz perdida. Porquê fora confiar em colibri sem asas?! Pombinha sem alma!

Sábado e domingo no mesmo bar. Desesperançado. Bêbado, caindo pelas sarjetas, destronado o rei sem reino. Chorinho miúdo por nada. Nem lhe toque naquele nome, já rolam lágrimas. Nunca mais que ela apareceu? Não. Nem vai. E a saudade que nunca desfeita? As cicatrizes tantas. Noites que se transformaram em eternidades! Definhando, definhando e, solto, cambaleante pelas ruas, cantarolando a canção do Chico:

— “A Rita levou meu sorriso. No sorriso dela o meu assunto ....A Rita matou nosso amor de vingança...”.

Da herança não poderia reclamar que, isso ela deixara. Ah, Ana Rita! Ajoelhado frente à imagem de São Francisco, ouvindo disco de Noel, meteu uma bala na cabeça e, saiu por aí, em busca da Rita:

— Anjinho de Deus!...


 

SEBASTIAN: A LENDA

 

Apontara a arma sim, mas não para matar. Acidente. Fora um fatídico acidente. Contratempo. A bala ricocheteara e, por infelicidade, descaso do destino, alojara-se na nuca do homem, penetrando-lhe a caixa craniana. Sebastian desejava apenas provisões: arroz, feijão, enlatados, cigarros.. Talvez, um litro de uísque. Nada saíra como planejado. Nada. De forma que, acabou realizando um verdadeiro assalto. Caixas e caixas foram carregadas das prateleiras do supermercado. Aí sim, encontrava-se naquela situação inusitada. Como não ir até o fim? Mesmo porque, sabia que em breve, estariam atrás dele. Não havia outro sujeito na ação. Sebastian era o sujeito e encontrava-se atolado até o pescoço.

— Porra!, não pretendia ferir ninguém. Somente umas coisinhas para uma semana, no máximo, duas. Merda! — Sussurrava, carregando o furgão pela traseira. Era uma droga de um furgão que não poderia levá-lo tão distante dali que, a polícia, em breve não o encontrasse e fizesse dele, uma “peneira”. Atira-se primeiro para ler os direitos em seguida. Nada mais que fazer!

Sobrecarregou o furgão, principalmente ou, prioritariamente, com enlatados, cigarros, fósforos, pilhas para lanterna, lampião, enquanto sua mente turbilhonava, doía-lhe a cabeça latejando-lhe as têmporas. Apanhou a doze com a caixa de balas. Talvez necessitasse. Possuía um trinta e oito e duas caixas de munição. Duas facas para caça, uma velha mochila, um cobertor surrado e uma manta de couro.

Dinheiro não lhe serviria para nada. Não a partir daquele trágico momento. Preferiu caixas com flocos, cevada, café, açúcar, sal, cerveja, álcool, querosene em lata, outras miudezas e porcarias com as quais ia entulhando o velho e decrépito furgão. Observou o homem caído atrás do balcão, já sem vida e sentiu as lágrimas brotarem. Saiu dali cantando os pneus bastante surrados.

Por sorte, não havia alarme no supermercado. Percorreu vias secundárias, tomou a interestadual e, chegando a altura da região desértica, saiu pelas trilhas. Havia um abismo e pretendia atirar o furgão pela encosta abaixo. Talvez o dessem por morto. Dirigia em velocidade frenética. Contou quase trinta horas sem parar, sem pregar olhos e chegou ao “Vale das Sombras”. Estranho nome para um local deserto, sol causticante e com temperatura elevadíssima. Encontrava-se fatigado, mais morto do que vivo. Lá embaixo, um precipício e à sua direita, montanhas, cavernas e locais onde bem poderia esconder-se.

Parou para meditar, tomando generosos tragos de uísque. Era tudo que necessitava naquele momento. Parar. Dar um tempo. Pensar. Havia levado consigo o rádio e pilhas. Farolete? Sim. Eram algumas de suas esperanças. Começou, ou melhor, deu início a uma busca que terminaria quando o sol estivesse se pondo. Encontrara uma caverna incrustada em meio às rochas. Era profunda, não muito larga, escura, não perceptível — quase — e, por algum milagre da natureza e reparo de um destino tão desastrado, havia uma pequena, diminuta bica de água interna que brotava em meio à duas rochas e mal corria, morrendo a poucos metros após a nascente.

— Deus! Oh, Deus!, era tudo de que eu necessitava! — exclamou euforicamente, descarregando as mercadorias para dentro da caverna. E tanto trabalhou que, suas pernas pareciam de borracha e seus membros endureceram já não mais comandados por sua vontade leonina. Caiu exausto ao lado do furgão. Permaneceu longo tempo aspirando e expirando o ar febricitante dos moribundos sob o sol escaldante do deserto.

Não havia sol e as estrelas brilhavam no céu quando despertou. Apanhou o galão de combustível e dirigiu quatro quilômetros em linha reta, afastando-se do local. Era necessário o sacrifício. Não conseguia manter-se sobre as pernas, mas o fez.

— Tudo certo! Tudo! Agora falta muito pouco. — disse à si próprio e parou à beira do precipício. Espargiu gasolina por várias partes do furgão, desengatou-o e o forçou a rolar precipício abaixo. Pensou que, talvez, houvesse necessidade de usar a arma para causar o incêndio e a explosão. Contudo, não fora necessário. O furgão mergulhou no espaço e passou a ricochetear pelas arestas do rochedo em seu caminho e, antes mesmo de chegar ao seu destino explodiu em chamas. Sebastian sentiu-se aliviado. Ou quase.

Teria que retornar. Era uma longa caminhada e o frio e o vento sibilante roubavam-lhe as forças em sua exaustão. Passou a caminhar feito um moribundo embriagado. Havia uma galhada em meio ao caminho. A partir dali, pretendia revolver as areias com a galhada ressequida e apagar os rastros do furgão, além de suas próprias pegadas que pareciam afundar cada vez mais, à cada passo arrastado com sacrifício e suor.

Amanheceu febril, à boca da caverna e com a galhada fortemente presa em uma das mãos. Sentia-se doentio e incapaz de sussurrar uma única palavra. Sua garganta encontrava-se ressequida e o corpo estilhaçado pelos tombos que havia levado durante a noite. Um helicóptero podia ser ouvido ao longe.

Uniu o que lhe restava de forças e arrastou-se, carregando atrás de si, os galhos ressequidos. Enfiou-se caverna adentro e, a galhada, como que providencial, tapou a entrada, enroscada em meio à greta das duas rochas. Caiu e deixou-se rolar até a bica de água. Era pouca. Por horas permaneceu ali, buscando saciar a sede imensurável que o fustigava. Ouviu, mais uma vez, o ronco do helicóptero passeando lá fora, no alto e, desmaiou.

Recobrou a consciência muito tempo depois, com as gotas de água respingando-lhe pelo rosto. Por alguns segundos teve a sensação de que havia sonhado. Contudo, o ronco de um monomotor, o ladrar de cães e o vozerio de homens fizeram-no recobrar a consciência de vez.

— Tô ferrado. — pensou. Sentiu na boca, o gosto amargo dos derrotados e tomou uma decisão radical.

Preferia morrer a ser conduzido a um tribunal. Então saltou, apanhou o revólver, a doze e as caixas de munição. Arrastou-se lentamente até a entrada e pode observar os homens afastando-se. Havia pelo menos uma dúzia deles, com cães e fortemente armados. Uma verdadeira caçada.

O próprio vento havia incumbido-se de apagar as pegadas e soprara os resquícios do olor humano. Por isso, talvez, os cães não houvesse conseguido farejá-lo. O monomotor voltou a roncar em altitude baixa e desapareceu. Os homens caminhavam lentamente com seus cães farejadores. Sebastian sentia as mãos trêmulas apertando a doze. Teria realmente a coragem para atirar em algum daqueles homens? Pensava nisso naquele momento e não havia resposta de imediato. Apenas que, sentia-se aliviado. Talvez voltassem. Não uma ou duas. Mas várias vezes. Novas buscas. Até...

Retornou para seu vezo arrastando-se, apanhou um litro de uísque e serviu-se demoradamente no gargalo. Em seguida, com a faca de caça, abriu seis latas de cerveja e, estrategicamente, colocou-as de forma que, cada gota de água não fosse perdida. Em breve sentiria sede.

O tempo parecia deslizar moroso. Arriscou: apanhou o rádio, conectou o fone de ouvidos e passou a girar o dial lentamente, em busca de notícias. Conseguiu sintonizar uma boa estação, abriu uma lata de feijão e passou a se alimentar, mastigando com prazer e sofreguidão. Uma hora depois, ouviu um boletim informativo. O xerife do condado declarara à imprensa que as pistas tornavam-se evidentes e que o assassino (aquela palavra chocou-o), seguramente teria morrido carbonizado.

— Está blefando, o filho da mãe! Não há indícios ou corpos que provem que havia alguém dentro do furgão. É um jogo, eu sei! — concluiu irritado, Sebastian.

Lá fora, anoitecera. Encontrava-se abalado e precisava repousar. Esfriava consideravelmente. Se a temperatura despencava ao longo da madrugada, durante o dia, seria capaz de fritar um ovo sobre alguma pedra. De forma que, ajeitou-se como pode. Não acenderia nada: nem fogo, lampião ou lanterna. Não por enquanto. Havia o perigo de cobras e outros animais peçonhentos mas teria que correr o risco. Adormeceu rapidamente e sonhou.

Sonhou com a mãe que jamais conhecera. O pai que o açoitava com cordas molhadas e vivia embriagado. Sonhou com o homem e seu olhar vazio, absurdo, quando a bala estourou-lhe a nuca. Então passou a caminhar pelo longo corredor da morte. Havia um soldado de cada lado e um padre que não parava de rezar e quanto mais rezava, mais Sebastian se deixava convencer que aquele era o destino de todos: a morte. De uma forma ou de outra, todos têm o seu dia. Era estranho o capacete na cabeça, pés e mãos imobilizados. Iriam ligar aquela “porra” e ele iria se debater por alguns segundos e tudo estaria terminado. Não era tão ruim, afinal...

Sebastian era um osso duro de roer. Sua aparência era selvagem e zombeteira. Contudo, seu coração se esvaia em prantos. Com isso, .passou a noite rolando de um lado para outro e, por um momento, pensou haver emitido um berro descomunal que espalhou-se por toda a planície e pelo deserto. Apesar do frio, estava transpirando em bagas. Consultou o relógio de pulso com ponteiros fluorescentes. Marcavam cinco horas.

Seu primeiro pensamento fora que, poderia estar em sua casa, ou melhor “naquele buraco”. Sem ter o que comer, o que fumar; sendo escorraçado de um lado para outro. No entanto livre. Sem a alma de um infeliz a lhe atormentar todo o tempo. É, poderia...

Permaneceu quieto. Ouvia os pingos em ritmo metódico da água caindo dentro de uma das latas, o vento sibilante soprando lá fora as areias finas. Não havia ladrar de cães, ronco de motor ou vozerio. Somente o sussurro intermitente da solidão. Arrastou-se, até a boca da caverna. Somente então, percebera que as duas enormes rochas quase impediam que um homem pudesse passar por ali. Afastou um pouco os galhos e viu a imensidão do deserto e sentiu-se ainda mais solitário e vazio.

Passou a anotar em uma caixa de flocos, os dias do mês e da semana. Talvez houvesse uma margem de erro de dois ou três dias, mas acertaria com o rádio. Começou a trabalhar de forma a racionar alimentos e água. Distribuiu enlatados e perecíveis. Acabou descobrindo que, com a faca, conseguira algo maravilhosamente necessário: abrir um pouco mais a bica no grotão e, ao invés de gotas metódicas, um pequeno veio brotou manso e límpido. Festejou aquilo com meia lata de água fresca. Em outra lata, colocou café solúvel, água e açúcar. No entanto, não ousava arriscar a acender o fogo. Tomou alguns tragos e percebeu o quanto era terrivelmente ruim. Fumou dois cigarros e voltou a rastejar até a boca da caverna. Parecia mais uma fenda em meio às rochas. Passou longo tempo observando o vazio e o vento carregando o que conseguia arrastar. Seus olhos começaram a arder e então, resolveu tomar um trago e ligar o rádio em busca de novas notícias sobre o caso. Passou a tarde ouvindo músicas e embriagando-se. Nada de notícias. Retirou o fone dos ouvidos, desligou o aparelho porque, considerou que, necessitava economizar pilhas e resolveu comer alguma coisa. Feijão e ervilhas.

No décimo quinto dia, não suportava mais aquela maldita rotina e, além disso, suas juntas, pareciam pesar feito chumbo. Precisava sair dali e caminhar um pouco. Então o faria pelas cinco horas da manhã ou, ao anoitecer. É, seria melhor ao anoitecer. Correria menos riscos e não iria distante para não se perder e para que, no dia seguinte, o vento houvesse apagado suas pegadas nas areias. Quinze dias e nenhuma notícia. Teriam dado por encerrado? E suas provisões?

No décimo sétimo dia, chegara à conclusão que se pegava muito mais arrastando o corpo exaurido do que propriamente caminhando. Até onde era possível divisar somente areia, dunas delas, rochedos e uma ou outra touceira de uma espécie de sarça, mato ressequido que insistia em lutar contra o sol e a falta de água, feito os cactos. Não havia conseguido encetar mais que dez passos. Voltou para seu recôndito quase que de quatro, feito um animal. Suas barbas e cabelos começavam a se emaranhar e crescer de forma desmesurada. Havia perdido vários quilos e nas últimas noites, já não conseguia pregar olhos. Tomou a resolução de praticar alguns pequenos exercícios todos os dias. Não o fez.

Vigésimo primeiro dia e dentro da caverna havia um amontoado de caixas, latas vazias, um engradado que servia de mesinha, além de seis ou sete latas contendo almôndegas e feijão. Um pacote de biscoitos e mais nada. A solidão e o medo tomaram proporções alarmantes.

No trigésimo dia, atirou em pequenos camundongos e lagartos. Acendeu uma pequena e discreta fogueira e deliciou-se com uma comedida refeição para uma fome sem tamanho. Não havia outro jeito. Tivera que arriscar quanto ao tiro. Conseguiu fazer um arco e algumas flechas não muito eficazes para caçar lagartos e cobras. Talvez houvesse algum animal de maior porte do outro lado daquela vastidão. Seu estômago doía e ele próprio sabia sobre suas condições frágeis e seu corpo cada vez mais debilitado e caquético.

No trigésimo oitavo dia, sentia os efeitos de um jejum forçado. Três dias sem ter com o que se alimentar. Havia tentado uma espécie de verme parecido com minhoca, mas sinceramente, o estômago não aceitara. Água. Havia percebido quando o pássaro pousara sobre uma enorme rocha a pouca distância dali. Resolvera não arriscar e saiu arrastando-se em direção a ave e quase fraturou a clavícula com o coice da doze. Contudo acertara, o que fora de suma importância. Sentiu os olhos marejarem. Será que alguém ouvira o tiro? A carne não era tão ruim. Não de todo. Mesmo com aquela aparência asquerosa. Provavelmente um terrível e repugnante abutre devorador de carniça. Vomitou os primeiros pedaços, em seguida, forçou-se a devorar aquela coisa e mantê-la em seu organismo. Havia salgado-a o bastante para sentir aquele horrível gosto adocicado que o fizera colocar para fora os pedaços ingeridos.

Pelas anotações efetuadas, havia chegado ao quadragésimo quinto dia. Havia passado três noites espreitando o pequeno bando. Ou melhor, matilha. Seriam cães? Coiotes? Hienas? Já não conseguia discernir. Na quarta noite, finalmente, abatera um deles. Achou que deveria ser algum cão selvagem. Cortou em tiras, salgou a carne e racionou de forma metódica, minuciosa, enquanto caçava ratos e lagartos com flechas e sua pontaria que melhorara em muito nas últimas semanas.

No final do terceiro mês, conseguira devorar um cacto. Por sorte não era venenoso. E sequer havia pensado em tal questão. A polpa não tinha gosto algum. Talvez servisse para saciar a sede. O efeito foi terrível porque o estômago permanecera em chamas por vários dias, apesar da água ingerida a cada meia hora, bem marcada.

Parou de anotar os dias. Com certeza passara dos cem. Sentia-se macilento. Os lábios gretados sob os bigodes. Sua aparência retratava as penúrias pelas quais vinha passando. Deixara o rádio de lado. Resoluto passou a caminhar à esmo, percorrendo quilômetros com o revólver, a doze e a faca. Não havia nada mais do que deserto. Quilômetros e quilômetros de areia e rochas e pedras e arbustos ressequidos. Seu aspecto animalesco impregnado pela paisagem rústica o aprisionava feito uma pintura nalgum quadro de parede. Um animal doentio. Desses que, às vezes, o próprio veterinário resolve sacrificar para colocar termo aos sofrimentos incompreensíveis e enlouquecedores. Sebastian, por fim, passara a variar. A ter visões anômalas e patéticas.

Havia perdido a conta dos dias. Sua memória falhava ou resolvera traí-lo. Restara-lhe uma bala. Uma única bala no tambor do revólver. Seus pés arrastavam-se desgovernados sobre as areias escaldantes. Se conseguisse chegar a algum lugar, um vilarejo qualquer, talvez pudesse voltar a ser um homem novamente. Simples e esquecido. Talvez. Delirava. Caso não conseguisse, bem, ainda havia uma bala no revólver.....


 

NARCISO NO ESPELHO

 

Invocar a loucura. Ou, mais precisamente, fazê-la explodir. Diante do espelho. Os olhos congestionados e o rosto por completo, sendo redesenhado. Não um bosquejo à lápis. Ou uma pintura a óleo, através de finos pincéis. Mas sim, à forma dos que, por hábito, já não conseguem evitar as avarias do álcool e do sono. E, consequentemente, parecem estar inchados todo o tempo.

Hábito ou vício, não importa! Quando os tanques de guerra começaram a tomar as ruas e as pessoas debandaram apavoradas ele avaliou, ponderou e acabou dando de ombros.. Bem, o exército realizava manobras e acrobacias com seus mananciais bélicos. Um cachorro aproximou-se de um enorme tanque com suas lagartas, a fumaça do óleo expulsa de suas entranhas, bufando feito um hipopótamo e o cachorro cheirou-o de forma indiferente, ergueu a pata traseira e urinou naquele monte de ferro e engrenagens ameaçadores.

Do outro lado da rua, a garota de jeans e tênis, cabelos soltos e longos, levou a lata de refrigerante aos lábios e sorveu, tranqüila. Fazia calor. Sempre fizera calor. Jamais percebera. E apesar do sol escaldante, do mormaço, a praça e lanchonetes foram ficando vazias. Feito o próprio domingo dentro da alma. Dia sem pé nem cabeça.

Outro tanque surgiu no fim da rua, ferruginoso, bufando e estacou, girando aquele cano de descarga no alto e apontando para um ponto qualquer que não dava para precisar muito bem. Talvez a manobra fosse somente para impressionar. Os militares sempre foram exibicionistas, meio palhaços...

Então, eles perfilaram-se ao longo da rua junto à praça da matriz. Como se fosse uma parada militar e, em seguida, silenciaram. Eram muitos. Toda aquela movimentação demonstrativa do poderio de força, já não se parecia ou, em nada lembrava uma parada militar. Muito pelo contrário. Na realidade, não dava para se chegar à conclusão alguma. Essa era a realidade.

Logo em seguida, se assentaram as tropas com seus carros blindados, canhões, bazucas, lançadores de morteiros, metralhadoras, fuzis, barracas e, de repente, a praça foi transformada em um verdadeiro quartel do exército com sua cavalaria blindada. O sol esturricava a merda dos cavalos que pastavam receosos.

Havia ou fez-se, um silêncio espectral que tomou conta de tudo. Não se ouvia uma única palavra. O próprio vento negava-se a passar por aquele quadro patético e bizarro. Somente uma mosca ousou zumbir de forma zombeteira e desapareceu ao longe.

O homem que tinha o rosto inchado e os olhos congestionados e que, mirava-se no espelho todos os dias, despertara de ressaca. Ele apanhou um litro de uísque, tragou no gargalo, abriu um pouco — quase nada — sua janela que dava para a praça e ficou observando aquele cenário inaudito e achando hilário. Feito invocar a loucura e fazê-la explodir em mil estilhaços de granadas.

Não havia tumulto, constatou. Nem greve, atentado ou outro perigo eminente de invasões ou revolução. Não havia sequer, possíveis inimigos. Não que soubesse. Contudo, quatro caças da força aérea efetuaram vôos rascantes, quase acrobáticos. Dois helicópteros munidos de metralhadoras, sobrevoaram a praça. Ninguém conseguia entender o que estava ocorrendo. Não havia guerrilhas ou levantes.

A praça tomada e sitiada preocupava o povo que, de paz com a vida, começou a questionar se, por acaso haviam-se cometido alguma infração para que fossem tomadas medidas tão drásticas. Ás quatorze horas, do outro lado da rua, uma mulher emitiu uns gritinhos de êxtase e prazer. Acabara de atingir o orgasmo. O marido, após baixar as portas do estabelecimento comercial, resolvera matar o tempo ao invés de ficar observando aquela “palhaçada inexplicável”, por uma fresta da janela. Dissera à mulher:

— Vão se fodeire! — com seu sotaque aportuguesado.

Por volta das quatorze e vinte, três garotos se armaram em trincheira numa água-furtada de uma das residências e prepararam suas munições: bolas de saibro, bolinhas de aço, e estilingues com borracha de câmara de ar de bicicleta. Para eles, que o exército desse o primeiro tiro. Então, teriam motivos o suficiente para responderem ao fogo.

Um velho senhor já meio aborrecido, apanhou sua espingarda e o que restara da munição para caça, indo prostrar-se junto à janela, alerta, na tocaia. Sua arma era apenas uma “pica-pau”, de carregar pelo cano.

Às quinze horas precisamente, quando o relógio da matriz começou a badalar, por pouco um soldado não apertou um botão. A situação tornara-se tensa e, parecia inevitável que não viesse ocorrer uma catástrofe incompreensível, transformando-se numa verdadeira carnificina.

Nas emissoras de rádio e TV, a programação era normal. O homem da cara inchada acabara de descobrir que seus pés também haviam inchado consideravelmente. Deu de ombros e voltou a deitar-se. Em poucos segundos estava sonhando com um alambique.

A situação era inusitada. O cachorro urinou em mais um dos tanques e em meio aquele campo de batalha psicológico, encontrou-se, por acaso, com uma cadelinha no cio. Os dois se cheiraram; deram umas lambidas e em acordo mútuo, transaram ali mesmo, até que, cada um resolveu sair para o seu lado. Era tarde e necessariamente, permaneceram dando voltas, esperando impacientes que o processo ocorresse e eles pudessem desvencilhar-se da famigerada engatada.

Ninguém ria ou enxotava os animais. Somente um soldado pensou na namorado e recostou-se no companheiro da frente. Era a tensão. A solidão. A carência afetiva. Ou talvez, fosse segundas intenções mesmo. Não importava, afinal. Poderiam morrer à qualquer momento.

As beatas que limpavam o interior da matriz, se ajoelharam diante do altar e puseram-se a rezar de forma contrita. Os helicópteros saíram de cena. Um bando de abutres entrou em cena. Sobrevoava em círculos concêntricos e largos sobre a praça. A situação tornara-se insuportável.

Eram o silêncio, a expectativa, o tiquetaquear das horas nos relógios de pulsos e até mesmo as batidas cardíacas arritmicas. Tensão intolerável. Aos poucos os cães, pássaros, borboletas e até mesmo os abutres haviam desaparecido. E o quartel general ali, desconexo, silencioso, sem um piscar de olhos. Bagas de suor brotando à socapa e molhando as fardas. Respirar era o limite.

A noite descerrou seu manto de forma morosa, apática, inconvincente. Como quem protestasse contra os abusos do poder. As pessoas, animais de terra e ar, haviam deixado o fato hediondo de lado. Porque alguém considerara tudo aquilo como um fato hediondo. Embora, não soubessem dizer o que significasse “hediondo”.

Finalmente a noite fez-se clara. A lua alvíssima. Um manto sarapintado pelas estrelas luzidias. Eram tantas quantas as que o general usava. Ou mais. Fora o mesmo general do Comando Maior quem ordenara para que toda a energia elétrica fosse suprimida e sobretudo, que nenhuma besta, quadrúpede, ousasse ligar uma lanterna, um farolete, lampião ou mesmo, palito de fósforo.

Os grilos calaram-se, amiúde. Sapos não coaxavam mais. De somenos importância. Tudo aquilo era ridículo, mas ninguém dizia. Ninguém ousava. A lenta agonia das horas. Às vinte e duas, o homem inchado que invocava a loucura e mirava-se no espelho, bocejou. Houve uma certa expectativa lá fora.

O Narciso tinha os olhos congestionados e encontrava-se convicto de que tudo era uma merda. Suas roupas puídas e amarrotadas. As botas rotas até que lhe caíam bem. Achava. Necessitava sim, de uma bebida forte. Estava com problemas de gases. Sorriu frente ao espelho já com aquela decisão resoluta, inadiável. Por fim, saiu para a rua e viu o exército inteiro à postos. Não havia armas ensarilhadas. Todas encontravam-se em guarda, devidamente municiadas nas mãos trêmulas dos atiradores. Por algum tempo ficou observando o quadro. Não sabia se emitia uma gargalhada ou se tornava para dentro da casa. Pensou: “posso sair do meu quarto e caminhar. Afinal, sou um cidadão livre”.

E, acreditou em seus próprios pensamentos e deu os primeiros passos. Em algum lugar do mundo, deveria haver pelo menos um barzinho aberto.

Saiu caminhando meio hesitante. Passou pelos primeiros tanques, as primeiras metralhadoras, trincheiras, baterias antiaéreas. Olhares acompanhavam seus passos de forma irritadiça; nervosos, tensos. No entanto, ele já havia alcançado metade do percurso quando, de rosto e pés inchados, sem alguma perspectiva de vida, foi sutilmente traído.

As veias do pescoço saltaram num esforço vão de conter o inevitável. Então ele pensou: “Foda-se!”, emitindo sonoro peido. Foi o mesmo que lançar uma granada em meio àquele formigueiro bélico. A primeira rajada, cortou-o pela metade, junto ao ventre e a saraivada continuou a pipocar de forma furiosa, ininterrupta. Ninguém sabia mais em quem atirar, mas todos atiravam. Nas casas, para o alto, nos vultos, sombras, escombros, nos próprios companheiros e aquilo durou toda a noite, até que, finalmente, amanhecera.

O Narciso já não necessitaria de seu velho espelho.

Um projétil de canhão havia mandado pelos ares, o seu quarto. Estilhaços do que fora o espelho, jaziam espalhados. Contudo, em algum pedaço minúsculo do vidro espelhado, alguém poderia jurar que um olho inchado e entristecido, vertia sangue. Como se chorasse. Como se, simplesmente, chorasse sua lágrima de sangue.


 

UM BAGULHO BOTA PARA DERRETER

 

O sol ardia febril, derretendo o asfalto e o homem sobre o andaime da construção pensava que a continuar daquele jeito, acabaria com os miolos cozidos. Há mais de um mês, todas a noites, sentia uma terrível e implacável dor. Dissera à mulher que ia acabar nalgum hospício. Começou a sentir vertigens e transpirava aos cântaros, deveras. Por isso, parou por alguns instantes.

— Mão na massa aí, negrão! — berrou o engenheiro de obras, fiscalizando tudo.

— À putaqueopariu! — sussurrou o negrão, vendo aquela meleca preta, encardida, escorrendo pelo furo da botina. Estava derretendo.

Lá embaixo (olhava para baixo e sentia-se despencando), as moças que passavam do outro lado da calçada também começavam a derreter. Então ele viu os seios enormes da mulher murchando, as pelancas do ventre, coxas e a gostosona caminhava e ia se desmanchando toda sob o sol escaldante. Ficava aquele rasto decomposto, sapatos, saia, sutiã, calcinha.

Uns pêlos misturados com cabelos e dentes espalhados pela calçada. Um executivo passara com uma pastinha sob o braço e a pasta permaneceu grudada no chão. O negrão ria e achava tudo aquilo muitíssimo engraçado. Acontecia, às vezes, nos últimos tempos. É, vinha acontecendo coisas estranhas e ele somente fazia por emitir aquela gargalhada estrondosamente debochada.

O fiscal da obra tirara o capacete para enxugar a testa e quando passou o lenço, as peles soltaram-se e ao invés de suor, havia sangue no lenço empapado.

— Bem feito, filhodaputa! — pensou o negrão, sentindo a orelha pingando feito uma bica. Piche escorrendo. Caiu sobre a tábua do andaime e permaneceu ali. Era engraçado. Mas também, era nojento.

O sol não dava tréguas. Queria que uma nuvem permanecesse por alguns minutos a escondê-lo. Contudo, o céu encontrava-se límpido, muito claro. Por um momento, o operário pensou que tudo não passasse de imaginação, devaneio, delírio. Havia tomado umas a mais na noite anterior, durante a partida de futebol. Era um clássico: Fla X Flu, no Maracanã. De forma que. Inevitável...

— O desgrenhado do Romário me perde um pênalti, o bunda-mole! Até eu convertia! Continuava “pensamentando” com a caçamba ao lado e a colher de pedreiro na mão. A unha de um dos dedões da mão esquerda havia caído. O dedão começara a derreter. Lembrou-se do que dissera à mulher de que estaria ficando troncho das moleiras. E estava mesmo. Agora dera de ver coisas!

Emitiu um risinho sacana. Meio insano. E quando riu, sua dentadura despencou lá do alto. Mas nem se deu conta de que seu lábio inferior havia derretido. Dizia à si próprio:

— Quem precisa de uma merda daquelas? Toda frouxa, ferindo a gengiva. Ora, foda-se! — disse de uma forma estranha, sibilante. Contudo, não estava importando-se com nada daquilo porque tinha certeza de que havia ficado lelé da cuca.

— Tô matusquelo! Eu disse à porra da minha nega que eu ia acabar ficando groselha. Ela disse que eu estava ficando frouxo. Nem agüentava dar umazinha direito. Tentei explicar mas ela nem deu pelota. Ficou zoando com a minha broxada. Tô acabado e xarope da cabeça. Eu sei porque dói pra cacete aqui dentro. Dói tudo. Fico cego na hora. Não vejo mais nada na frente. Ou melhor, começo a ver coisas. Como pessoas derretendo, virando uma meleca pegajosa e nojenta. Tem hora que meu pinto parece um pedaço de chouriço todo flácido... (flácido é uma palavra e tanto. legal mesmo!).. Então, eu pego nele e parece que vai derreter entre os meus dedos. Tento enfiá-lo na boceta da nega, mas aquilo lá é chavasca, por acaso? Aquela beiçada mole, morta, começando a derreter também!...

Acabara esquecendo-se do trabalho. Divagava sem remorsos. Não queria matar o tempo ou cozinhar o galo como a maioria dos funcionários da obra fazia, não. Era uma coisa lá, muito particular. Somente dele. Não se importava em ter que trabalhar. Mas, também não dava a mínima em ficar à sombra, coçando o saco. Continuou:

— Queria ver aquele veado do departamento de pessoal com aquela putinha que passa todo o tempo rebolando de um lado para outro...Ah, ia ser o maior barato! Os dois atarracados feito cachorros no cio e derretendo. Ele dentro dela. Ela engolindo ele e o chefão, o bonzão da boca, chegando sorrateiro. Putz!

No que emitiu aquele “Putz”, o queixo do negrão derreteu até às orelhas e ficou parecendo que ele estava rindo o tempo todo e para tudo e todos. Mas voltou a pensar:

— É só fruto da imaginação! — tirara de letra aquela frase concludente que ouvira não sabia muito bem onde e quando. Mas era “ducacete”. Se era! E nem percebera que suas orelhas escorriam morosas, como se fossem apenas suor.

Não conseguia lembrar se havia ou não, dado um tapa numa mufa e por isso, estava viajando no efeito. Achava graça um cara fumar um “beise” e ficar vendo aquelas coisas todas. Mas, sinceramente, não conseguia se lembrar.

Talvez tivesse até fumado. Às vezes, dava uns tapas e metia na cabeça que ia botar pra ferrar no trampo. Depois, passado o efeito, vinha aquela maldita depressão. Vontade de comer doce. Deitar e dormir até o próximo século. Efeitos colaterais. Alguém dissera isso também, de efeitos colaterais e nunca mais esquecera daquelas palavras. Gostava de frases bem feitas, diferentes e as ouvia procurando decorar de forma que, na primeira oportunidade, fazia uso das mesmas de forma acentuada, sentindo-se o bamba. Contudo, não passava mesmo, era de um pé sujo. Contudo, se conseguia lembrar de palavras e frases, presumira que estava legal dos miolos. Ou pirado de vez porque, já estava meio confuso e parecia uma porra de uma salada tudo o que pensava e ficava chamuscando-lhe a cachola e os miolos.

A mão esquerda, a que segurava o tijolo, foi junto com a argamassa. Ficou uma coisa estranha. Parecia que ele havia massacrado um gato preto com o tijolo e a massa e então, começava a ficar vermelho, brotando sangue. Feito a virgem que chorava sangue. Pensou o quanto seria complexo uma virgem chorando sangue. No entanto, preferiu deixar de lado que, nesse tipo de assunto não era de bulir. De forma que, passara a trabalhar somente com a mão direita e, sem as duas orelhas e os lábios.

Os dedos dos pés também haviam derretido e pingava aquele treco escuro lá embaixo. “O palhaço que olhar para cima, vai levar colírio no zóião!”. Pensou. Pensou e, quando olhou para baixo, viu somente o capacete do mestre de obras e um amontoado encardido num macacão azul de brim.

— Um fresco a menos para torrar a paciência! — concluiu satisfeito com o resultado. O sol desceu mais um pouco e o próprio edifício parecia um pudim. Um amontoado de porra ou manteiga.

Isso era uma coisa que o negrão não conseguira definir de forma exata. Sabia que estava derretendo. Sentiu que não tinha mais os pés, nem as mãos e parou de trabalhar em definitivo.

Afinal, como poderia trabalhar, assentar tijolos sem as mãos? Sentou-se no andaime e ficou observando as coisas derretendo: carros, mulheres, homens, edifícios, caralhos, pererecas, asfalto, tijolos, operários, lotações, o morro lá distante, muito distante....

— Será que a minha nega também tá virando papa?

Emitiu uma gargalhada sonora e gostosa. Foi então que, as duas pernas soltaram-se frouxamente. Ficou somente com a bunda preta se equilibrando no andaime porque os dois braços, também começavam a virar manteiga, derretendo lentamente. Sabão preto. Ria feito um palhaço. Riu tanto, mas tanto que, acabou despencando lá do alto.

Desceu os andares ainda rindo. Esborrachou-se no meio dos entulhos e restos da obra. Permaneceu ali: mortinho da silva. Chamaram ambulância, a mulher do cara, os parentes.

— Falei pro desgraçado não fumar aquela porra! — choramingava um mulatinho com dois olhos esbugalhados e vermelhos feito tição de fogo, rindo de se cagar e rolando pelo chão.

Ninguém conseguia entender patavina. Uma tragédia daquelas e o cara lá, falando merda e rindo feito uma besta, sem nenhuma consideração pelo falecido e os parentes ali à sua volta. O mulato continuava a gargalhar, rolando sobre a areia misturada com cimento e cal. Então percebeu que todas as atenções encontravam-se voltadas para ele. Olhou para aquele ajuntamento de gente e para o companheiro morto e disse:

— Eu falei! Avisei que ia dar merda, mas ele quis!

E, em seguida, começou a derreter, com o sol trincando, às duas e meia de uma tarde de segunda-feira.....


 

NA CORDA BAMBA

 

Contou os dez andares do edifício, calculou, realizou contas e projeções mentais um tanto complexas. Não que estivesse ou pretendesse subir ao décimo andar. Encontrava-se num pequeno apartamento do décimo e, enquanto deliciava-se com um copo de uísque puro, sem gelo — noite fria — observava junto ao parapeito, a rua lá embaixo. Caía uma garoa fina e o vento soprava, conforme sua concepção, “insinuante e sibilinamente”.

Talvez fosse o tédio da metrópole, a pressão, a insegurança, o estresse... Do outro lado da rua, o edifício em frente. Subiu contando os andares com o olhar e parou no décimo. Havia uma luz tênue por detrás das cortinas e pode perceber uma silhueta que passara várias vezes de um lado para outro do que deveria ser a sala. Ou seria o quarto?

Poderia ser tanto um, quanto outro. Pensava, retornando ao barzinho da estante onde serviu-se generosamente. Sem gelo. Permaneceu debruçado ao parapeito, a mente divagando. Pensamentos inconclusos, atabalhoados.

— Ei, você aí! — gritou para a silhueta do décimo, do outro lado da rua. Poderia gritar porque ninguém ouviria mesmo. Então, continuou:

— Sabia que esta cidade encontra-se infestada, empestada de gente maluca? Isso aqui parece uma manicômio! — Berrou e em seguida sorveu mais um trago do uísque e acendeu um cigarro. Voltou a concentrar-se em seu objetivo.:

— Às vezes, as pessoas atiram-se de seus apartamentos e espatifam-se no asfalto lá embaixo! Depressão. Acho que deve ser isso. Brigam com namorados, com a esposa, o patrão. São maníacas, suicidas. Elas acham, ou acreditam que, essa loucura possa ser a solução para os problemas: a morte....

Caminhou pela sala pensando, meditando.. Havia uma trena, arco e flecha em um armário. Não conseguia lembrar-se da corda. Disporia de uma corda resistente? Um cabo de aço? Calculou quantos metros do seu apartamento ao outro, do lado de lá da rua. Tornou ao parapeito. Não havia sacada. Não gostava. Uma criança brincando, correndo... Essas coisas ocorrem, às vezes. Preferia os parapeitos. Eram mais seguros. Mentalmente esticou a corda da sua janela até a janela do outro prédio. Quem poderia morar num lugar daqueles? As pessoas estão se tornando cada vez mais estranhas.

Não queria pensar. Contudo, pensava. Não queria sentir a solidão. Contudo, sentia. Talvez um filme? Música? Era um sujeito de bem com a vida. No mais possuía seu próprio apartamento e a firma de corretora. Um bom carro. Poderia apanhar o carro e procurar uma mulher se desejasse. Ou dar umas voltas. Tinha cartão de crédito, dinheiro na conta bancária, algumas ações e não era feio ou complexado. O que mais poderia desejar?

Chegara à conclusão (um tanto confusa àquela altura. Não do andar do edifício, mas sim, de seus próprios pensamentos), que talvez não tivesse o direito de desejar coisíssima alguma. Tratava-se de justiça. Não desejava autoprivilégio. Da mesma forma, não possuía nenhum sentimento de autocomiseração. Era um homem como qualquer outro em meio àquele amontoado de espigões, antenas, paranóicos, pirados, pingentes, infelizes, atabalhoados. Era um qualquer e pronto. Era o que era.

De forma que, após estirada a corda (em pensamento), caminharia sobre ela. Na corda bamba. Feito nos circos quando em criança no Interior. Alguns detalhes: sem a rede lá embaixo e a altura. Era um risco. Garoava e ventava de forma ininterrupta. Ao invés de guarda-chuva, para o eventual equilíbrio, usaria o copo até à borda. Iria tomando aos goles, até chegar do outro lado. Mas, e se falhasse?

Bem, bem.. Se falhasse, seria somente mais um doido espatifado no asfalto. Um rosto (se é que sobrasse um), ou melhor, um corpo anônimatologicamente sem vida. Existe tal palavra? Anonimatologicamente.. Pronunciou de forma lenta, compassada. Não sabia e nem iria procurar no dicionário. Detalhe de somenos importância para os fatos. Então, a idéia tomara forma, contornos delineados, corpo, vida própria.

Rebuscou no armário. Arco, flecha, a trena forte com suas garras precisas. A corda? Poderia jurar que havia uma. Sempre há uma corda para uma hora de necessidade. Enforcar-se no banheiro, por exemplo. Riu da idéia. No entanto, sabia que não estava tão errado assim e a corda existia, realmente.

— Há sempre uma corda quando se é precavido. — observou já um tanto quanto “alto”. Voltou ao parapeito. A silhueta do outro lado caminhou: “Continua viva. Talvez a minha espera”. Voltou a rir e o copo escapou-lhe por entre os dedos estilhaçando-se no chão. Apanhou outro, deixou a bebida transbordar, mas não bebeu. Colocou os objetos na sacola, abriu a porta e desceu pelo elevador de serviço.

Já na calçada, lembrou-se de que havia esquecido da blusa. Fazia um frio enjoado, penetrante. Atravessou a rua e preparou-se, psicologicamente, para colocar em prática o seu plano. O porteiro do prédio cochilava com uma revista nas mãos, de forma que, fora mais fácil do que esperava. Subiu pelas escadas. No quinto andar, sentiu o quanto encontrava-se fora de forma. Parou para respirar, tomar fôlego. Transpirava. Voltou a subir. Chegou ao décimo andar cansado. Deu um tempo. Não seria fácil convencer fosse lá quem fosse, a colaborar com o seu projeto. Apertou a cigarra e esperou.

— Quem é? — perguntou uma voz suavemente delicada do outro lado.

Seu coração disparou. Pensou consigo “a mulher deve ser graciosamente bela com esta voz dócil, sussurrada e insinuante.”. E era, constataria em seguida.

— Por favor.. Eu preciso conversar com a senhorita. Eu resido do outro lado da rua, eis o meu cartão. — Enfiou o cartão por baixo da folha da porta.

— O que o Sr. deseja e como posso ter certeza de que o Sr. é realmente quem diz ser?

— Sou proprietário de corretora como a senhorita leu aí no cartão e eu gostaria de dar uma olhada no edifício em frente ao seu. Sabe como são os negócios.. Visto por outro ângulo. Fregueses exigentes...

— Não sei.. — respondeu a moça do outro lado da porta.

— Olha, vou enfiar a minha carteira de identidade. A senhorita poderá constatar através do “olho mágico”. Às vezes, costumo sair num ou outro jornal. Coluna social. — corrigiu, abaixando-se e passando a identidade por baixo. A moça apanhou, conferiu.

— Prometo não demorar mais que alguns segundos. É importante. — disse o homem de fora. Era ele mesmo. Cartão, identidade. Não havia dúvida, já o havia visto, talvez...

Abriu lentamente a porta, espiando desconfiada pelo vão, com o trinco de segurança. Ele sorriu e disse boa noite. Pediu mil desculpas pela inconveniência do horário e, foi entrando. A moça era, realmente, um “bom pedaço”. Pelo jeito, morava só. Dissera que era funcionária da agência perto da Cásper Líbero. Ah, Caixa Econômica Federal. Tocou de leve a mão dela. Sentiu uma certa atração.

— Permite-me? — perguntou apontando para a janela.

—Ah, sim! — respondeu a moça de forma polida. Chamava-se Lígia. Ele Dagoberto. Haviam apresentado-se um ao outro? Não conseguia lembrar-se. Dali, observou a sua sala no edifício em frente, décimo andar. Perfeito.

— Perfeito! Excelente! — disse ele com satisfação acentuada.

— Então tá. — respondeu a moça sem nenhuma ênfase, indiferente.

Chegara à parte mais complexa do plano. Mil invencionices. Talvez não, seguramente ela não consentiria. Começou a explicar-se. Mentia. Dizia que era para a cena de um filme publicitário. Na realidade, estaria preso por um cabo invisível. Chegou até a porta e apanhou a sacola, retirou seus apetrechos.

— Está vendo? Esta parte eu afixo aqui, no parapeito. É seguro e não há com o que se preocupar. Em seguida, atiro “ armou a flecha no arco com a corda atada — a flecha ao meu apartamento. Largo! Acertou na primeira tentativa.

— Meu senhor, não posso concordar com uma loucura dessas! O senhor há de convir comigo que se, digamos, venha ocorrer uma fatalidade? Eu serei cúmplice. Serei presa por partilhar, consentir, ser conivente. O senhor entende?

Ele sentiu a firmeza da trena e voltou-se para Lígia:

— Sei, sei! A senhorita tem toda razão em demonstrar preocupação. Todavia, posso afirmar-lhe que é mais seguro do que se possa imaginar e, no momento exato em que os holofotes estrategicamente forem ligados e o helicóptero pairar sobre os dois prédios, a senhorita poderá sentir-se completamente aliviada e isenta de qualquer preocupação. Eu lhe asseguro de forma veemente. — disse Dagoberto como se estivesse discursando para uma platéia lá embaixo.

— Moço, por favor! — tentou em vão, Lígia.

— Não se preocupe. Basta não tocar na trena, por favor. — respondeu saindo apressadamente. A moça permaneceu estática, petrificada. Não sabia o que fazer. O cara não parecia louco. Ou parecia? Às vezes, os malucos enganam a gente e são muito, terrivelmente inteligentes. Arquitetam planos com minúcias e nuanças que, nenhum outro ser comum o faria. Pensou em discar para a polícia. O corpo de bombeiros. O resgate. Aquele homem estava tentando suicidar-se. Sequer havia levado sua carteira de identidade. Era mais uma prova de sua conivência para com o ato suicida.

— O que faço, Deus?! — perqueriu caminhando de um lado para outro e estacou perplexa. Pasmada de horror. Sentiu que iria vomitar. O homem estava de pé, do outro lado, com um copo — sim era um copo e, acenava para ela.

Talvez fosse tarde. E, se ele estivesse contando a verdade? As pessoas fazem de tudo para venderem uma boa imagem aos telespectadores. Era um homem bem sucedido. Ele havia dado três ou quatro passos, equilibrando-se precariamente. Parecia embriagado. Levemente bêbedo. Sorria com o copo na mão. Tomou um trago rapidamente e, voltou a equilibrar-se. Ela fechou os olhos.

O homem havia dado mais três passos curtos e arrastados, equilibrando-se na corda. O vento não era forte, mas poderia fazê-lo perder o equilíbrio. Além disso, chuviscava. Ou melhor, garoava. Não havia porra de holofote algum. Sequer helicóptero. O sujeito era maluco mesmo. Com o copo na mão..

Quase perdeu o equilíbrio e por pouco, não despencou lá do alto. Uma rajada mais consistente daquele vento gélido e adeus comercial. Ela correu para o telefone e discou para a polícia que acionou o corpo de bombeiros que, acionou o Destacamento de resgates, a Defesa Civil, o Hospital mais próximo que acionou a sirene e a imprensa e dezenas, centenas de pessoas, se acotovelando lá embaixo, apreciando o espetáculo.

Holofotes, sirenas, helicópteros, escada “magirus”... O homem havia chegado quase que na metade do percurso e continuava rindo, gargalhando, firme em seu propósito quando, o tempo parou: estaca fincada no coração do vampiro desgraçado. Eles pensam que são imortais. Os vampiros e alguns malucos das grandes metrópoles. Eles sempre pensam que são imortais, concluiu Lígia, tentando conter as lágrimas e a histeria...

— Pensam que são imortais!...


 

O DIÁRIO

 

Eu havia adquirido o hábito de escrever da mesma forma que o havia feito quanto ao hábito de ler. Das longas noites insones, em conseqüência das violentas crises asmáticas, muita coisa eu havia adquirido. Em contrapartida, outras, havia irrecuperavelmente perdido. A poeira adentrando o velho casarão, penetrando pelos poros, refocilando os vezos das memórias encafuadas por tantos quartos e cômodos meus conhecimentos numéricos pudessem contar. Na realidade, “O Diário” passara a ser escrito por essa época remota e recendendo a mofo e poeira ancestral. Mesmo porque, após quase meia centena de anos, lá estava eu, escarafunchando baús antigos abarrotados de roupas, pérolas, jóias, chapéus, calçados, em antiquados guarda-roupas e outros móveis empilhados pelos cantos da estranha casa.

Nos primeiros dias, eu apenas reportava-me a contar algumas reminiscências nostálgicas de uma infância remotamente amarfanhada pelo tempo. Anotava à guisa de não perder de todo, em meio a tantos lapsos, os encantos do menino mirrado e doentio que eu fora — primogênito dos nove irmãos. Juntava cacos. Colava fatos. Recortes. Feito minha mãe, minhas tias e sobretudo minha avó, costurava com a mesma paciência, os retalhos da existência já corroída pelas traças e sofrimentos. Não que tudo houvesse saído às avessas, contudo, não era bem o que eu esperava ou sonhara um dia. Encontrava-me casado, tinha uma filha, uma casa que ia pagando com dificuldade e exercia a profissão de jornalista. Muito mais pela subsistência do que por amor à profissão. Gostaria de poder viver da literatura. Escrever. Compor canções e não mais que isso.

(Desperto porque acabo de fugir de um pesadelo antigo. A sinfonia de violinos adentra-me os ouvidos e espalha-se pelo enorme salão em que o corpo jaz dentro de um caixão de segunda. Apenas os violinos e o corpo dentro do ataúde. Penso em quem estará dentro daquela coisa de madeira no meio do salão que foi meticulosamente encerado e logrado daquela poeira fina de eras que havia pelos cantos e paredes recobertas pelas teias das aranhas. Tenho medo, confesso. Talvez, ao me aproximar o suficiente, eu consiga ver o meu próprio corpo. Além disso, odeio esse olor nauseabundo de flores. Não vou mergulhar no poço. Permaneço intato, parado junto ao umbral, observando de soslaio a cena.).

Então, vieram-me casos. Narrava-os em estilo simples, feito uma “besta” porque, saudosista como todo descendente de espanhóis, em minhas veias o sangue cigano empurrava-me de volta pelo mesmo caminho traçado. Em incontáveis noites, despertava desesperadamente atônito e alarmado com a realidade dos sonhos. De forma que, corria a escrever para apascentar os fantasmas antigos que me acompanhavam desde a infância.

Julguei por bem que “O Diário de Uma Besta”, viria a calhar quanto às anotações por sua natureza e conteúdo, embora outros contos fizessem parte do conjunto. Mesmo porque o escritor argentino Cortazár havia escrito o seu “Bestiário”, se não me falha a memória, editado como livro de estréia. Eu não havia estreado aos 43 anos e já começara a tornar-me impaciente. Talvez, um tanto quanto enfarado com tanto escrever e meter pelas gavetas. Aliás, como o fizera com todos e tantos sonhos ao longo dos anos vividos. Até que, de alguma forma, descobri que já não havia necessidade de deitar-me para sonhar e despertar com algum novo fato na memória. Eu estava vivendo entre o “Diário” e a realidade do cotidiano no qual sentia-me cativo e desgostoso dado o relacionamento com a sociedade. Sobretudo em função de ter que, necessariamente, reportar todas as áreas dentro do jornalismo. A política me fascinava e ao mesmo tempo punha-me asco nas entranhas. Viscerais eram minhas batalhas internas contra o regime vigente. Distante da cidade da minha infância. Dos meus mortos e das minhas saudades e lembranças.

(Não consigo criar coragem para ultrapassar os liames do que me resta ao nível consciente. Por isso, permaneço macambúzio frente ao caixão sobre os cavaletes no meio do salão. O enorme cristo, a cabeça pendente de lado, com sua dor inenarrável parece ofuscar o meu medo. Talvez desejasse dizer-me que todos sofremos. Inevitavelmente, a vida é somente uma passagem pela qual, sofremos muito mais do que possamos aquilatar. Mesmo quando idealizamos uma existência fornida por momentos de felicidade e contentamento. Nunca fui contente. Não há necessidade de dizer porque Ele sabe; está sentindo com sua dor e seus espinhos. Contudo, permaneço empacado feito uma velha mula. Não arredo pé.).

Então passei a conviver com eles: os fantasmas. Passeavam pela casa com a naturalidade daqueles que, com o passar dos anos, adquiriram seus direitos inalienáveis. Eram parte de meus sonhos e realidade. Vivíamos bem e, não obstante tais visões e fatos mudarem gradativamente minha rotina, talvez eu houvesse vivido com eles para sempre, como uma velha família de ciganos: peregrinando de um cômodo para outro; de uma cidade à outra; de um sonho de somenos importância para as vicissitudes da realidade.

Às vezes pegava-me a palrar longamente com os velhos mortos sentados em suas cadeiras de palhinha a tricotar; a mascar nacos de fumo para cusparar na areia vermelha do terreiro ou, a ouvir-lhes as infindas histórias de tempos ignotos e rebuscados com uma riqueza em detalhes e nuanças que, eu mesmo acabava confuso quando interrompido por alguém, enquanto respondia a algum ausente de corpo, mas presente em espírito.

Em uma noite abafada, estressado e acossado por problemas financeiros — dívidas que me fustigavam e desafiavam a capacidade há doze anos, aproximadamente —, deitei-me com dez edições de jornais mal iniciadas e encalhadas no winchester do computador. Eu já não suportava mais escrever crônicas, editoriais, mentiras político-administrativas e publicá-las sabendo que o povo conhecia e aquilatava o volume de mentiras e verdades em cada lauda ou cada página do periódico do qual eu era editor e uma espécie de “faz de tudo”, que acabava nada fazendo tanto nojo causava-me então o jornal.

(Às vezes, me sinto confuso com tudo isso. Estou diante do teclado e ao mesmo tempo, junto ao batente da enorme porta de gonzos rangentes. Então, sei que algo vai acontecer. Mesmo porque, é necessário — mister que algo ocorra de forma urgente. Caso contrário, talvez eu jamais volte a recuperar a sanidade. Ou o muito pouco que ainda me resta do que julgo ser sanidade. O Cristo sorri um sorriso triste, melancólico. Uma baga de suor escorre-lhe pela fronte ferida e cai-lhe no olho, está ardendo porque ele o fecha e é como se chorasse por um único olho. O olho da dor e do medo em segredos guardados. Acho que nos conhecemos. Ainda assim, não ouso arredar pé de onde me encontro e penso estar seguro de não sofrer um colapso fatal..).

Deitei-me e já lá estava à caminho da velha casa. Era sempre o mesmo caminho ao longo dos anos e jamais mudara. Percorria-o a passos arrastados, inseguro, com medo de perder-me e não conseguir encontrar meus fantasmas. Quando menos esperava quedava-me diante deles, a discutir problemas corriqueiros. De terno, gravata e sapatos brilhantes. Enfim, impecavelmente vestido, discutia com meu falecido pai uma nova distribuição dos aposentos. Não que houvesse algo errado com eles, mas o salão, o enorme salão que mais parecia ter sido projetado para conferências, poderia muito bem ter sido dividido em dois ou três quartos. Afinal, a família é consideravelmente numerosa e estamos um tanto quanto apertados pelos quartos minúsculos e mal distribuídos.

Minhas irmãs — estas vivas e morando a alguns quilômetros de onde eu resido atualmente — participavam do sonho com a velha e acirrada baderna da infância que sempre acabavam nos causando problemas. Desandavam os fatos em verdadeira parafernália de tempos idos e soterrados pelos anos com os problemas do ontem ou que eu teria que enfrentar no dia seguinte. Despertava frente ao teclado já com boa parte de um texto digitado, bastando tão somente salvá-lo em “meus documentos” ou em disquete, como se fora um sonâmbulo que desperta no alto do telhado quando o perigo parece eminente e a situação torna-se preocupante e assustadora.

Lia, relia. De forma que, com o passar dos dias — ou das madrugadas —, já não havia necessidade de uma revisão quanto à fidelidade dos fatos sonhados com o que encontrava escrito no micro. Tudo isso, começou a causar-me problemas seríssimos e relevantes quanto ao relacionamento com minha esposa e filha e, mesmo com as pessoas pelas ruas ou, em algum departamento público. Mesmo porque, às vezes, sem que eu percebesse, estava a discutir com o meu avô e, quando dava por mim, as pessoas pareciam atônitas, abismadas a perscrutarem-me com seus olhares inquiridores de lunáticos. Não poderiam entender. Eu não conseguia compreender o que se passava, portanto, não poderia esperar que eles compreendessem ou viessem a entender.

(Fico observando o quadro e já não me importo com as flores e as velas. O morto talvez, este sim causa-me um certo repúdio. Mesmo que aquele corpo lá, um dia, tenha me pertencido e doravante, seu destino seja o mesmo reservado para todos nós, simples mortais enquanto encarnados. Ora, que se dane! Ninguém aparece para velar o morto. Nem mesmo os velhos fantasmas que eu tanto esperava encontrar tão logo deixasse esta existência e o corpo físico. Nem mesmo meu avô com quem tudo aprendi sobre reencarnação!).

Há alguns anos atrás, eu passara por graves problemas espirituais, avaliados como caso para psiquiatria. Os pesadelos, a insônia, as visões, ouvia e sentia a presença dos mortos com o pavor do garotinho que buscava no colo do avô, a segurança para seus pesadelos e medos daqueles estranhos seres que assombravam a casa em que morávamos então. Da mesma forma que me acostumara com os mortos que caminhavam pela casa; sobre o telhado; batiam nas paredes ou apareciam onde menos eu esperava, acostumei “após a idade madura”, a dividir meu espaço com eles, a tratá-los como meus iguais e, as coisas melhoraram, de forma que, se não nos entendíamos plenamente, dava para que nos suportássemos de um jeito ou de outro.

Nos últimos três ou quatro anos, não posso afirmar com precisão, senti que algo rompia-se aqui dentro, em meu cérebro, quase me levando às raias da insanidade. Sem que eu percebesse, caía em depressão; sentia-me estressado; com a patética síndrome do medo; a paranóia tão comentada nos últimos tempos; o pânico das ruas; das pessoas. Pegava-me com tremores nas mãos; perdendo a coordenação motora; a mente embotada; a insegurança; o medo de tudo – agorafobia? — o que me causava crises horríveis; suores e calafrios. A hipersensibilidade auditiva e até mesmo o olfato se me haviam sido alterados então. Acontecera de repente, em uma tarde de julho ou agosto, quando eu me sentara ao meio-fio para chorar de forma copiosa sem saber o que fazer da vida e o que vinha ocorrendo comigo e à minha volta. Sentia-me excluído do processo social; marginalizado pelos próprios companheiros; encarcerado numa espécie de trama maquiavélica que armavam para acabar de vez com todos os meus sonhos e esperanças. A minha vida havia sido transformado em um verdadeiro caos.

Nascia então, a idéia do diário com datas e nuanças, o que eu sempre considerara como coisa de adolescente. Deixei de lado e passei a escrever alguns contos de forma aleatória, pensando em como escrever “O Diário de Uma Besta”. Não o animal, mas o bobo da corte. O “Bestiário”, as aberrações, o surrealismo, o realismo fantástico, qualquer coisa parecida ou que se acercasse disso. Saiu-me um livro impressionante: “A Cidade Morta das Varejeiras”. Talvez o melhor livro que eu já havia escrito. De forma que este “O Diário de Uma Besta”, acabou sendo relegado a segundo plano, embora não descartasse a idéia de escrevê-lo. Sobretudo nos últimos meses em que, por mais que eu tente evitá-lo, os meus fantasmas me impedem de fazê-lo com meus sonhos, aparições, sugestões e outras tentativas — que acabam funcionando —, em chamar a minha atenção.

(De repente sinto que algo tenta empurrar-me em direção ao caixão. Concentro minhas parcas energias em evitar que tal fato ocorra. O medo começa a dominar minha capacidade de raciocínio e autodomínio. Sei que o corpo dentro do ataúde não é outro senão o meu próprio corpo e a última coisa que desejo neste momento é ver o que restou do que um dia eu fora. Não vou. Ainda não me sinto preparado para a fatalidade. Começo a sentir o pânico tomando conta de todo o meu ser).

Quando passei a ver os urubus carregando os bois macérrimos pelo céu em busca das nuvens; crianças criando asas e sobrevoando por sobre os telhados das casas; legiões de mortos em procissão pelas ruas nas madrugadas; vermes brotando das paredes; uma enorme varejeira copulando com seres humanos e a reunião do prefeito (encarnado) com os desencarnados, na praça matriz, em muitas madrugadas, então deixei com que as coisas fruíssem de forma natural, como se tudo fosse algo que realmente fizesse parte deste quadro bizarro que meus olhos fitam no escuro de minha mente embotada e entregue às ruminações das parvoíces dos seres humanos desta cidadezinha de merda.

A maioria dos fatos são reais, diga-se de passagem. O teor de muitas recordações daria para colocar qualquer semovente preocupado com as conseqüências em deixar acontecer à sorrelfa, tantos embaraços e entrelaçamentos sem procurar um modo — ainda que através da medicina —, de evitar possíveis danos mentais. Contudo, agrilhoado, observo alguns algozes — atrozes; outros bons e luminescentes desencarnados que acompanham meus passos ou descansam ao meu lado na modorra das madrugadas abafadas deste verão incandescente.

(Quando a mulher suicidou-se dentro da banheira do casarão eu ainda não morava nesta cidade. Foi por isso que em muitas noites eu podia ouvi-la ou visualizar seu espectro sombrio, quase macabro, em agonia pelos cômodos do casario da praça onde morei por alguns anos. Da mesma forma que, em criança, vinham sentar-se ao pé da cama, sussurrando coisas que me atormentavam e me apavoravam de tal forma que, jamais pude esquecê-los. Deste fadário de excentricidades — não direi anomalias —, é que refaço; colo cacos; vou cerzindo estas linhas ancestrais e que me põem as paredes da alma a criar musgos, ranhuras, poeira e bolor).

Esta madrugada, após conturbadas horas de sono, despertei disposto a colocar termo nesta narrativa. Mesmo porque, sinto que ela possa trazer engendrada em seu âmago, muito pouco de literatura. Há em sua constituição, algo que desaprovo em se tratando de classificá-la como um conto ou algo no gênero literário. Não obstante tais considerações, o desejo de terminar o livro, é o que me impulsiona. Além disso, sinto que venho perdendo o controle sobre “O Diário”, com sua forma excêntrica e desigual. Outros contos são fragmentos do cotidiano que, uma vez retocados, podem buscar salvação na literatura. Entretanto, em nada me agradam esses estilhaços mal delineados e inconjuntos do diário. Por mais que eu tente dar sentido ou melhorá-los emprestando-lhes forma conjunta, literariamente passível de alguma espécie de classificação, não consigo sequer conceber tais escritas como sendo de minha autoria. Isso também me põe deveras intrigado e, amiúde, estudo-lhes as formas, o conteúdo e busco razões para levar a termo e mantê-lo em meio aos contos como parte do conjunto da obra. Nada consegue convencer-me. Tenho me sentido um mero objeto em mãos hábeis que, brincam em fazer aparecer e desaparecer moedas e bolas das mangas de um paletó velho, surrado e puído. Começo a ficar enfarado e aborrecido com o que venho escrevendo. Sinto ímpetos de selecionar todo o texto e “deletá-lo”, varrendo-o da memória e da tela. Não sei também, mas o considero o pior de todos. O menos aceitável, não chegando sequer a ser razoável como a maioria dos outros contos que também não considero grande coisa. Contudo, permaneço como que atado frente ao inusitado. Como a esperar o desfecho de toda essa acrobacia mental que os dedos digitam nervosos e impacientes tanto quanto minha própria mente consciente.

(Por incrível que possa parecer, embora de forma inusitada, de repente, sinto-me compelido a observar o repugnante e assustador ataúde que se mantêm passivamente à espera. Permaneço aterrado ante a possibilidade daquilo com que terei que me confrontar se deixar que esse impulso me leve a dar os primeiros passos em direção aos arranjos mortuários. O enorme salão impregnado pelo olor de flores e velas, acaba me deixando ainda mais apreensivo e melancólico. Sinto que sou compelido a ceder a essa tentação maluca de seguir em frente — passo-à-passo —, até tocar a madeira e olhar as faces; os olhos semicerrados; os lábios e a tez amarelada e sem vida que ali jaz..).

Quando fui internado pela primeira vez, somente tomei ciência de que me encontrava em uma casa de cuidados destinada à doentes mentais, duas semanas após a crise pela qual fui acometido tornando-me violento e auto-destrutivo, conforme comentavam-se então. Não eram os fantasmas o que me levavam à loucura, mas sim, os vivos. Os calhordas e biltres com os quais eu vinha convivendo diariamente em meu trabalho jornalístico. Contudo, me fora impossível explicar aos médicos e à sociedade. Muito menos convencê-los de que meus sonhos, muito provavelmente, fossem minha única salvação. O único antídoto contra a loucura real.

Somente senti que havia algo de terrivelmente grave em toda aquela desfaçatez ao perceber que, vinham me dopando de forma violenta e metódica, como se procurassem me roubar as réstias de lucidez que teimavam em vicejar entre a realidade e o fantástico mundo no qual não conseguiam penetrar com suas terapias e investidas atrozes. Sentia-me uma verdadeira cobaia e, em dados momentos, zombava não somente deles, mas de minha própria sorte ou falta desta. Mesmo porque, eu sempre tivera em mente escrever um projeto para cinema intitulado “O Poeta Na Porta do Hospício”. Eu que sempre mantivera-me estritamente ligado à loucura através da imaginação um tanto conturbada, à cada ano sentia que esses laços estreitavam-se cada vez mais e, absurdamente me encontrava a perambular em meio a quadros mal delineados de dois mundos que se entrelaçavam e se rompiam a todo momento, o que, seguramente, metia-me um pavor a corroer-me as entranhas da alma. A loucura que tanto me fascinara, vivia a aterrar-me de forma sagaz e metódica. Por isso arquitetei minha fuga. Por isso, recusava-me a aceitar as visitas de consolo, piedade e compaixão que não me devolveriam o que eu poderia ter perdido ou estava por perder.

Na realidade, não sei determinar ao certo há quanto era cativo e o que planejavam quanto a minha “interessante maluquice”. Minha insanidade que eu jamais considerara senão, uma forma de defesa contra a insanidade deles. Afinal, vivemos circundados por “malucos de pedra” (e este não é um termo que se faça uso porque é incorreto), o tempo todo e em todos os lugares. É o que se costumam dizer por aí. E eu, simplesmente concordo com essa quase teoria. Somos todos malucos em derradeira instância. E, em muitas e nas mais variadas situações, tal diagnóstico poupou a vida de muita gente ou tirou, o que dá no mesmo.

Esta noite tive outro sonho, apesar da alta dosagem de drogas as mais variadas e de cunho e sais específicos da psiquiatria. À bem da verdade, em momento algum trataram-me com seus antiquados métodos deploráveis que acabam levando o paciente a uma espécie de vida vegetal. Não obstante, acredito que tenham exagerado todo o tempo nas doses e nos sais medicados. São fortes o suficiente para levarem à lona o mais feroz dos animais irracionais. O sonho veio, como sempre: me acorrentando e me tragando para as profundezas de seus abissais segredos e horrores.

(Enquanto volvia à velha casa de fazenda, sempre pelo mesmo caminho — já me referi a tal fato —, sentia que aos poucos ia perdendo algo de meu ser de forma lenta e inevitável. Eu sempre tive medo de perder tudo o que amei na vida. Por isso, o que parecia que eu sempre estivera a perder, era justamente o que eu mais amava. Minha companheira, minha filha, meus irmãos, pais, amigos... Jesus!, mesmo em sonhos, uma presa medíocre e amedrontada! Acabei perdendo a direção, o rumo. Caminhei a esmo o tempo todo, talvez em sentido contrário ao que deveria. No entanto, sabia que, naturalmente, havia deixado o hospício para trás. Eu simplesmente caminhara o tempo todo para distante daquela casa de malucos e, quando dei por mim, estava aqui, à porta do salão, envolto pelo quadro dos portais de duas folhas da entrada, observando aquele ataúde e esperando os serviços de exéquias. Por isso também, observo demoradamente o rosto envolto pela dor e perdão do Cristo. Enquanto meus pés deslizam pelo salão. Finalmente transponho a barreira do medo. Não há nada à perder. Às vezes, não temos mais nada que perder e somente nos resta o último e desesperado ato. A meio trajeto volto a pensar nas circunstâncias. Tudo não passa de um pesadelo. Sobremaneira, no entanto, sinto a realidade com todo o seu fascínio aterrador. Acerco-me finalmente do caixão. Conquanto não consiga fitar o que há dentro dele, penso em meu corpo estirado. Mórbido. Horripilante e doentio!)..

Quando finalmente crio coragem e volvo meu olhar moroso em direção ao interior daquela derradeira morada, sobressaltado constato que não há nada ali dentro. Ninguém. Nenhum corpo. Atônito e aliviado ergo o olhar ao Cristo que me fita com sua imensurável complacência. Ele me sorri e, lentamente, sinto que todo seu corpo começa a criar vida. Suas mãos feridas soltam os cravos que o mantinham preso. Não quebraram-lhe os joelhos e os pés que se apoiavam na cravelha do madeiro, assentam-se com graça e naturalidade, sem ferimento algum. As lágrimas são quentes, posso senti-las brotando e correndo-me pelas faces. Ele desce da cruz e caminha para a saída com sua cintura cingida pelo manto branco que lhe cobre as partes pudendas. Meu Cristo! Sinto ímpeto de seguí-lo e adorá-lo. Perco o medo da perda de repente. Sei que já não há mais necessidade daquele medo constante de perder tudo o que mais amo na vida porque acabo de ganhar, de encontrar. Sorrio.

Observo o caixão vazio e sei porque ele ainda continua vazio. A cruz de madeira rústica vazia à cabeceira. Sei porque o caixão está vazio. Digo:

— É somente porque continuo aqui, de pé, ao lado dele. Somente por isso.

Pensei que encontraria meu corpo dentro dele, mas ele está vazio. Nada mais que isso. E eu tenho a convicção de que continuará vazio enquanto eu mantiver o que me resta fora dele. Enquanto eu estiver aqui fora, ao seu lado, mirando-o, ele continuará vazio. É somente um ataúde vazio, nada mais! E eu continuo aqui, parado, ao seu lado, esperando. Sei disso porque, passamos a vida eternamente esperando, esperando, esperando. É tudo o que me resta: esperar......


 

WALL & DELBUT

“Para Teotonio Simões, porque sonhar, às vezes, é necessário”

 

Tropeço em que o avesso da manhã estiolando a paciência, enfarava Wall. Mesmo porque, para ele, tudo não passara de mera persistência do destino. De qualquer forma, era madrugada lá fora. Macambúzio, Wall deixava-se recostado junto a porta da cabana a mirar as estrelas. Em sua mente embotada, havia tão somente espaço para a noite e os astros; o silêncio quase abissal entrecortado vez ou outra pelo ciciar do vento carregando as folhas e farfalhando na relva dos canteiros. Não conseguia compreender porque havia tornado-se tão distante dos seres e, consequentemente incompreendido.

“Excesso de informação”, dissera-lhe certa feita, Delbut, velho companheiro das madrugadas.

“Excesso? — questionara abismado para responder em seguida —, jamais houve excesso em desejar saber e acumular conhecimentos, meu caro parceiro. Eis a realidade”.

“Ou o que para você possa parecer realidade e, no entanto, para o resto do mundo à sua volta, não passar de pura maluquice”, retrucara Delbut, acendendo o toco de cigarro que retirara de um dos bolsos do velho, surrado e puído paletó.

“Talvez seja. É possível que sim, contudo, o que posso fazer quanto a isso?”. — Indagara Wall, sorrindo complacente.

O pequeno Delbut aspirou a fumaça pensativo, meditabundo. Sabia de antemão que não encontraria resposta para aquela pergunta. Não uma resposta que satisfizesse o companheiro. Conhecia-o de forma suficientemente a fundo para chegar a conclusão que, por mais que tentasse, não encontraria argumentos para convencê-lo de que eram pessoas diferentes das outras. Talvez de todo o resto da humanidade. Não sabia ao certo.

“Bem, bem, não sabe o que eu poderia fazer, não é mesmo, Delbut?”.

“Não. Sinceramente, não sei, Wall. E ainda que eu supusesse sabê-lo, não faria a mínima diferença, não é mesmo?”.

“Sofismas! Falácia!... Deixemos tudo isso de lado, Delbut. Afinal, não há importância real em encontrarmos respostas para certas perguntas, concorda?”

“Plenamente” —, respondera na ocasião, Delbut com ar de enfado.

Sentia-se incomodado com a lembrança que o fustigava. “Delbut, o pequeno grande sábio”, como costumava tratá-lo na maioria das vezes, havia deixado esta existência há alguns anos atrás e legara-lhe somente boas, excelentes recordações. Amara-o qual um irmão, ainda que jamais necessitasse confessar tal sentimento. E não o faria, seguramente. Wall sempre fora bastante desajeitado para com seus próprios sentimentos da mesma forma que o era com o seu corpo. Todo ele, descomunal, mal-arranjado, desconjuntado e desproporcional se comparado com as pessoas de estatura comum. Wall chegava a ser quase um gigante perto do companheiro. Não que Delbut fosse realmente “pequeno”, mas sim, porque Wall havia ultrapassado um pouco os limites em sua fase de crescimento. Juntamente com o seu tamanho desproporcional, desenvolvera a genialidade e a bondade. Dentro do peito ancho, o coração não menos largo e espaçoso abarcara o sentimento da raça humana e todo o universo caberia dentro dele, em seu coração de menino disfarçado de gigante com seus dois metros e um centímetro de altura.

Conhecera Delbut durante o percurso entre a França e a Espanha. Dali, rumaram para a Itália, sempre caminhando lado a lado, a palrar sobre filosofia, poesia, música, teologia, entre outros assuntos. Se por acaso sentiam-se enfarados com o rumo das conversações, quedavam-se emudecidos por longo período, ruminando cada qual suas próprias idéias sem que um interferisse no silêncio do outro. Respeitavam-se de forma mútua e camarada.

Da Europa, partiram para a o Continente Asiático, não sem antes prometerem que, volveriam ao Ocidente e então chegariam a América do Sul, passando antes pela América Central. E desta forma, levariam à termo seus propósitos, apesar dos contratempos e a saúde debilitada de Delbut. Não que Wall permanecesse o tempo todo isento das moléstias e outros males que fustigavam as demais pessoas expostas a vidas tão irregulares e desregradas. Não possuía nenhuma grande reserva de energias ou saúde além da que herdara dos pais e desenvolvera ao longo dos anos com suas caminhadas e abstinência de quaisquer tipos de vícios, exceto do tabaco. Contudo, jamais ousara desprender grandes esforços físicos além das longas e infindas jornadas. Sobretudo em se tratando de trabalhos. Jamais trabalhava. A menos que fosse veementemente necessário realizar uma ou outra tarefa leve com o intuito de ganhar o suficiente para alimentar-se ou comprar algum livro ou um vidro de aspirinas.

Durante sua estada na Índia, Wall, sempre acompanhado pelo amigo Delbut, caminhara vários dias atrás de um grupo de hindus que perambulava sem destino de um canto para outro, como se tivessem — eles, os hindus —, por objetivo ou meta, ficar girando em volta de si próprios, em círculos, buscando o elo para colocarem termo àquilo que denominavam ciclo. Porque consideravam os círculos, algo vicioso e que faziam parte do ciclo da existência. Uma vez encontrado o elo e rompido de vez, sairiam fora do círculo vicioso e teriam cumprido sua missão, já que não haveria mais o ciclo. Algo mais ou menos assim, segundo entendera Delbut e, por dias seguidos, debatera com Wall a teoria dos círculos e ciclo da existência.

Se Wall poderia ser considerado um erudito, Delbut “o Pequeno”, não deveria ser menosprezado ou comparado com a maioria dos homens que não costuma raciocinar ou ainda, que raciocinando, não consegue chegar a lugar algum senão ao ponto de partida. Delbut, na realidade, à seu modo, tornara-se um verdadeiro sábio ao longo dos anos e peregrinações. O que mais o encantara fora a cultura tibetana, embora desaprovasse de forma irritada a adoção de castas o que, para ele, tornava os seres desiguais. Alguns mais poderosos que outros e, portanto, propensos a cometerem injustiças contra seus iguais. Na Índia também deixara-se irritar com a miséria de famílias numerosas que, morriam a míngua mas não abatiam uma vaca para saciarem a fome. Achava tudo aquilo um absurdo. Apesar que, tinha como princípio, o respeito pelos costumes e religiões de outros povos. Delbut era descendente de índios da América Central e Wall, que não sabia explicar o porque de seu nome, era descendente de franceses. Embora, afirmasse possuir nas veias o sangue dos espanhóis. Na realidade, acabava sempre caindo em contradições quanto à sua descendência e chegara a afirmar, certa ocasião, que tivera parentes mouros e conquistadores, provenientes de um continente desconhecido e que continuava inexplorado por outras raças e resguardado das civilizações corrompidas dos tempos modernos.

Se Wall inventava e reinventava com o mais desinteressado desplante, Delbut mantinha-se fiel às suas origens e primeiras afirmativas. Jamais voltava atrás em questões tais como descendência, crença, filosofia, princípios e, tinha na sinceridade e honestidade, valores insofismáveis e inerentes ao ser humano. De forma que, um parecia parte do outro e de tal que, pareciam complementar-se como parte de um quebra-cabeças que fosse encaixado e uma vez tendo sido realizado, não se deveria mexer em tais peças para que não fosse destruído todo um trabalho árduo e secular. Por longos anos, os dois peregrinaram por searas e conheceram os homens e seus costumes através dos mais diversos, longínquos e estranhos rincões e paragens.

Ao longo de tantos anos e estradas, acabaram consolidando uma amizade imortal e imaculada. Proveniente do respeito, da sinceridade, da honestidade, do carinho e das mais fatigantes provações. Jamais um deixou que o outro tivesse que enfrentar qualquer adversidade sozinho. Foram companheiros e serviram-se; apoiaram-se e defenderam-se todo o tempo frente a tudo e a todos. Dessa forma, cresceram espiritual, moral e intelectualmente, acumulando conhecimentos, somando às suas bagagens, os aprendizados mais profundos e valorosos que os seres podem adquirir durante suas passagens pelo planeta. Mais do que companheiros, acabaram transformando-se em cúmplices porque o sucesso de um, passara a depender do outro. Se um conseguisse crescer interiormente, não o faria de forma egoísta ou solitária. Dividiam nas conversações, contendas e buscas de respostas e compreensão, os frutos do crescimento como almas imortais e ligadas de forma tão profunda que, às vezes, chegavam a confundir-se. Seus pés tornaram-se bolhas de água e, da carne viva, as mesmas feridas doíam e importunavam a ambos. Da mesma forma que a fome, o frio, o sol escaldante, fustigavam aqueles dois parceiros inseparáveis em suas buscas inexplicáveis e jamais reveladas. Mesmo porque, nem Delbut, nem Wall saberia responder o que buscavam em suas peregrinações ou porque o faziam. Contudo, faziam e buscavam. Como se algo, da mesma forma que os ligava tornando-os inseparáveis, os empurrasse sempre adiante. De forma incessante e determinada. A amizade, talvez fosse um dos maiores sustentáculos de toda a aventura dos peregrinos Delbut e Wall.

O pequeno Delbut, ao longo do percurso pela América do Sul, como qualquer ser humano que, com o passar dos anos, desgasta-se e passa a emitir sinais de uma fadiga incontrolável, à exemplo de quando estivera em N.Y., quedara-se enfermo e, por longos meses, tiveram que interromper a jornada, mantendo-se em um país frio, junto à Cordilheiras famosas e largamente conhecidas em todo o Continente. Viviam entre pastores e descendentes de índios. Mascavam folhas alucinógenas e palravam acerca da natureza de suas existências e o que haviam realizado afinal, durante todos aqueles anos que começavam a parecerem-lhes séculos, milênios ou algo intemporal.

Enquanto Delbut parecia seguir por algum caminho desconhecido e mantido em segredo, Wall, lentamente adquirira os hábitos do lugarejo e seu povoado. Eram bons seres. Muito calmos e pacatos; simpáticos e místicos. Aprendera com eles, o idioma latino. Conhecera a história de seus ancestrais. Lera seus grandes poetas e prosadores. Apreciara prazeroso as canções harmoniosas e de cunho melancólico, com seus versos que continham na cerne, o sofrimento, as lutas e guerrilhas; regimes militares e cruéis que espalhavam e fomentavam a miséria, o sofrimento e a injustiça. Ao mesmo tempo, esse mesmo regime, nutria esperanças de liberdade e igualdade. Mesmo porque, sua gente vivia de forma fraternal. Pelo menos aqueles poucos descendentes de uma cultura secular que havia conhecido nas montanhas e ermos mais afastados das cidades de grandes portes.

Seu companheiro Delbut, contraíra várias moléstias ao mesmo tempo e, perdera de forma definitiva, o interesse pela cultura do povo ou de toda a existência, à medida em que sentia, tornar-se cada vez mais impossível readquirir suas energias e saúde. Entregue ao leito em uma choça, passava o tempo a mascar as folhas, a ter visões e acirradas conversações com os espíritos ancestrais daquelas paragens e de outros rincões desconhecidos. Wall apenas o ouvia sem jamais interferir em suas “pelejanças” e contendas com seus fantasmas. Mesmo quando este encontrava-se em estado de êxtase, mergulhado no torpor alucinógeno das drogas que vinha consumindo cada vez em maior quantidade porque serviam-lhe de sedativo e apascentavam-lhe as dores e os humores alterados, Wall permanecia à beira de seu catre a observar e ouvir suas divagações. Delbut mergulhava em mundos fantásticos e tão contraditórios dada a natureza com que costumava descrevê-los — algumas vezes, tão primitivos, para de imediato, torná-los tão futuristas e avançados para o tempo em que viviam que, aquela barafunda acabava tornando-se uma espécie de romance épico; algo novelesco com diversos fundamentos. Talvez tudo não passasse da miscelânea fornecida por seus conhecimentos adquiridos durante suas peregrinações. Por vezes, Wall chegava a pensar em ficção científica. Seres extraterrestres, deuses mitológicos e espíritos errantes do mundo das sombras.

Por longo tempo, ambos viveram ali daquela forma. Para Delbut, eram seus últimos meses de vida. Já para Wall, a doença e a degeneração de seu amigo, passaram a pesar-lhes sobre os ombros e o coração sem medidas. De forma que, pressentindo a gravidade da situação, Wall acabara tornando-se um tanto casmurro e ensimesmado. Já havia discutido com alguns nativos que forneciam as folhas ao amigo e pareciam apreciar em Delbut, os efeitos que desencadeavam em alucinações e histórias fantásticas, embora tivessem consciência do que realmente estava ocorrendo. Uma espécie de Xamã de tribo distante dali, viera visitar Delbut e permanecera por longos e friorentos dias ao lado do catre do “Pequeno Espírito Morada”. Era assim chamado pelo velho e caquético índio que gozava de prestígio e respeito entre os moradores da região por ser uma espécie de guru e feiticeiro poderoso.

Observando o velho índio de soslaio, Wall acompanhava seus rituais estranhos junto ao amigo que parecia corresponder às expectativas das pesquisas e buscas do Xamã que jamais demonstrava cansaço nas suas madrugadas e dias de vigília. Wall queria que todos deixassem seu companheiro em paz e, parassem de fornecer-lhes as folhas alucinógenas que, se pareciam reanimar e aliviar as dores de Delbut, aos poucos, roubavam-lhe cada vez mais a sanidade e a capacidade de raciocínio. Por isso, andou botando para correr vários fornecedores ávidos e interessados no pequeno homem que, Delbut ficara sabendo tempos depois, “possuía o conhecimento de muitas encarnações e fizera-se morada de incontáveis espíritos de variadas naturezas”.

“Hijos de una putana!” —, vociferara certa feita o enfurecido e desconjuntado Wall, prestes a arrebentar alguns ossos daqueles pequenos homenzinhos de tez morena que possuíam no olhar, uma melancolia abissal e comovedora. Apesar das constantes ameaças, os índios não deram-lhe a mínima importância e uma nativa de cabelos negros feito as noites sem luar, achegara-se a ele e tomando-lhe as enormes mãos vermelhas, passara a beijá-las e acariciá-las com uma ternura de esposa dedicada. Chamava-se Inara e possuía a beleza de uma jovenzinha à flor de seus dezessete anos, enquanto ele, Wall, lembrava-se estar desembocando no vale do meio século de sua estranha existência de humano.

Aquele gesto inesperado e carinhoso tocara-lhe de forma tão profunda o coração que o gigante Wall, passara a sentir as entranhas sendo queimadas e consumidas pelas chamas abrasivas da paixão por uma fêmea. Sentimento até então, desconhecido por ele. Tomou-a nos braços e carregou-a para um lugar afastado e sem saber ao certo como proceder, acabara magoando-a com seu pênis desproporcional para o órgão virginal e imaculado da menina que o adoraria pelo resto de sua existência sobre a face da terra.

Enquanto Delbut labutava contra o estranho mal que o consumia, mesmo sabendo-se perdido, Wall passava seu tempo aprendendo a lidar com a terra, plantando e colhendo. Pastoreava as ovelhas tosquiando-as ao lado de Inara que vivia a sorrir-lhe como se possuísse, todo o tempo no olhar, o viço da eterna juventude e o brilho imaculado das estrelas que sarapintavam o céu com seus fulgores. Seu ventre crescia e Wall acabara descobrindo que havia plantado sua semente. À princípio permanecera chocado e incrédulo por alguns dias de estranha angustia. Após consultar uma velha índia, à custo, conseguira entender o significado do que se passava. Por fim, convicto de que, em alguns meses, assistiria a vinda ao mundo, o seu rebento, seu coração de gigante tornara-se feito um lago de águas profundas e serenas dentro do peito ancho.

Certa manhã, Delbut dissera adeus à esta vida abarrotada de tribulações e partira para outros prados que, segundo o Xamã, ele — Delbut —, havia descrito como uma miragem de excelentes fluídos, com muito verde e fartura em todos os sentidos. Embora — dissera ainda —, lá não houvesse necessidade dos seres buscarem junto à natureza os alimentos, uma vez que não sentiam desejos, prazeres ou sofrimentos. Eram seres etéreos e nutriam-se do Princípio Universal do Todo. Uma espécie de fluído que, aspiravam como quem necessita do ar para viver na face do planeta Terra. O velho índio conduziu a excêntrica cerimônia de suas exéquias e seu corpo foi cremado em enorme fogueira e suas cinzas espalhadas pelos ventos que uivavam pelos montes andinos.

Então Wall, naquela noite, deixara-se recostado junto à sua cabana a mirar as estrelas e a pensar em duas coisas ao mesmo tempo: na morte de Delbut, seu companheiro de jornada e no nascimento de Delbut II, seu pequeno filho que o Xamã e os habitantes do lugarejo diziam ser a volta do espírito que mal havia deixado o corpo físico um dia antes do nascimento do pequeno fruto do ventre de Inara. Portanto, na realidade, havia-se realizado tão somente uma espécie de transição: Delbut deixara o instrumento já fatigado, esgotado e sem o sopro da vida para renascer em um corpo recém formado, abarrotado de vigor e energia, concebido pelo amor entre Inara e seu melhor amigo, com o intuito de completar o velho ciclo das encarnações.

Mirava as estrelas e compreendia. Ou assim chegara a conclusão, uma vez que, tão logo seu filho nascera e ele, Wall, o chamara aos prantos pelo nome, o bebê parecera-lhe entrar numa espécie de transe e observá-lo como que a penetrar-lhe os recônditos da alma e despertando aquela estranha sensação de que há muito, muito tempo, ambos se conheciam. Por isso Wall mirava as estrelas e dizia à si próprio, somos inseparáveis. Sempre fomos e seremos. E permaneceu ali recostado a meditar e a sentir a presença do velho companheiro até que a última das estrelas fosse recolhida do manto do céu e seu filho começasse a chorar lá dentro, deitado e aquecido junto ao corpo da mãe. Os primeiros galos cantaram forte criando uma sinfonia que estendia-se pelos vales e montanhas andinos. Wall sorriu para o primeiro raio de sol e sussurrando o nome “Delbut II”, adentrou sua choça de forma desengonçada com seu corpanzil que chegara a meio século de existência com a serenidade e a paz de quem conhecia os dois lados da existência pela qual, todos nós nos esforçamos por passar com serenidade e sabedoria para que ela não nos seja vã.


 

OS SÓCIOS SÃO RATOS

 

Era um homem alto e forte. Suas faces desenhadas de forma acentuada ressaltavam dois enormes olhos melancólicos feito aposentos à luz de velas. Além disso, os lábios eram grossos, carnudos, carregando um eterno sorriso um tanto quanto enigmático. Às vezes, patético. Cabelos aparados com um corte estranhamente desleixado, deixando cair sobre as vastas sobrancelhas, pequenas mechas desiguais com aquela cor mal definida. Eram como se, por nascença, fossem castanhos e mais recentemente, aos 28 anos, começassem a cair e embranquecer.

Suas mãos eram enormes, fortes, portentosas feito duas tenazes. Seguramente seria capaz de, sem desprender o mínimo esforço, esmagar a cabeça de um homem. Da mesma forma, tudo o mais em seu corpo medindo algo mais que dois metros, era visivelmente quase que anômalo.

Somente algo parecia destoar do resto do conjunto e não fazer parte daquela enorme montanha de músculos mal distribuída. Contrastava com o corpanzil saudável, a pobreza mental aparente à primeira vista. A incapacidade em articular palavras e o raciocínio infantilizado de uma criança sem idade definida, comprovavam tal teoria. Nunca sabia-se ao certo qual seria o seu comportamento frente ao mais simplório e corriqueiro problema que viesse a desafiar-lhe a capacidade de raciocínio.

De forma que, quando viera ao mundo, fora imediatamente adotado por um casal sem filhos. Primeiro porque, sequer a mãe sabia “quem havia sido o bastardo do pai de seu filho não menos bastardo”. E, segundo, ao dar à luz aquela criança descomunal e forte, fragilizada e bastante adoentada em decorrência dos excessos cometidos em sua vida desregrada e mundana, viera a perecer, descansando e livrando-se de tantas tribulações que a acompanharam desde a adolescência tornando-a tão frágil quanto uma garotinha de quinze anos, embora não somasse mais que vinte quando da realização do parto. O casal que se propusera a adotar o pequeno e desconjuntado gigante de fraldas não era nada novo e contava com seus razoáveis 50 anos, mais ou menos.

Por longo período, o casal havia realizado tudo o que fora possível e por fim, desistira quando descobrira que o menino tinha algumas “pequenas deficiências”, conforme vinham atestando os médicos consultados regularmente. Pequenas deficiências que o impediam de assimilar as aulas ministradas desde o grupo escolar. Contudo, tais deficiências, não o invalidavam para o trabalho. A mãe adotiva, Srª Margareth, mimara-o aos extremos, tratando o filho como se fora o eterno bebezinho indefeso e problemático. O pai, Sr. Herbert, fora aposentado pela Cia de Carvão Costa & Costa Ltda com problemas pulmonares. Tinha seus dias contados e não os perderia com algo mais que não fosse o merecido repouso.

A indenização do aposentado rendera-lhe uma pequena e humilde casa de madeiramento bom e um terreno que constituía um quintal espaçoso o suficiente para que “Coyote”, futuramente viesse a instalar ali, o seu futuro negócio. O velho falecera pouco tempo depois e nunca soubera que o filho adotivo, possuía inteligência e perícia descomunal para consertos de automóveis em geral. Todavia, “Coyote”, conseguira um sócio e ambos convenceram “a velha mãe” a financiar a construção do barracão nos fundos do quintal, bem como a compra de ferramentas e licença da firma para poderem dar início aos negócios.

Seu sócio, Peter, era conhecido por onde andara pela alcunha de “Ratão” e possuía uma extensa e considerável lista de infrações contra a lei. Contudo, jamais conseguiram apanhá-lo com “a mão na massa”. O que “Coyote” possuía a mais em tamanho, faltava em “Ratão” que, era miúdo, esperto e senhor da retórica. Seria capaz de convencer um freguês a gastar o dobro do que pagaria por uma peça da melhor marca, por uma de qualidade inferior, somente para mantê-lo à vista, com pequenos e lucrativos reparos.

Estava, desta forma, constituída a sociedade: “MECÂNICA E FUNILARIA ON THE ROAD”, de propriedade de Luck, Peter e Margareth. E a primeira medida que Peter tomou, fora para que, Margareth, realizasse seu seguro de vida e assinasse vários documentos, incluindo cláusulas, parágrafos e incisos obscuros quanto ao testamento. Esperteza não lhe faltava: se Peter possuía o aspecto de quem viveria um século, a velha sócia, seguramente não passaria de dois ou três anos. De forma que os dois dividiriam tudo: inclusive a casa da frente.

— E seremos felizes para sempre com nossa casinha onde morar; nossa oficina para faturarmos o necessário e termos uma vida generosa para com nosso futuro de pobres sofredores neste mundo ingrato. — O discurso do pequeno Peter quase levou o gigante Luck às lágrimas. Contudo, acrescentou:

— Com a mãe, né? — Sua expressão parecia carregada de apreensão naquele momento.

— Evidente que sim, sócio. Não deixaríamos a boa “mama” de fora em hipótese alguma.

— Tão tá. Assim, todos assinamos. — Respondeu Coyote com um sorriso basbaque nos lábios.

Percebia-se a sua ingenuidade ao rabiscar o nome nos documentos da mesma forma que a mãe. Ambos mal sabiam assinar o próprio nome e, menos ainda, ler. E o sujeitinho do Cartório local, levou “unzinho por fora”. Naquela noite, inauguraram o evento com várias latas de cerveja e embriagaram-se e abraçaram-se diante da mãe tartamuda e desconfiada que sorria quando a pegavam no colo e a beijavam com seus lábios de hálito quente e recendendo a álcool. A pobre senhora temia pela sorte do filho e, algo lhe sussurrava à consciência alerta que aquele “merdinha falador” seria capaz de vender a própria mãe pelo dinheiro. No entanto, pediu a Deus para que jamais abandonasse sua “ovelhinha indefesa”, caso ela, mãe, viesse faltar um dia.

A festança durara até tarde da noite, adentrando a madrugada e, somente não amanhecera porque “Coyote”, ao contrário de “Ratão”, esparramou-se no primeiro canto disponível e roncou feito um touro. Então observou a oficina, ferramentas, macaco hidráulico, máquina de solda elétrica, lixadeira, furadeira de bancada, morsa, entre outros. No canto, em vermelho sangue, o aspirador e o valioso calibrador de ar já instalados e funcionando. Haviam gasto uma pequena fortuna e valeria a pena. Provavelmente fossem da região, a oficina mais bem equipada que já se montara por aquelas paragens. Faltava a ele, Ratão, aprender a lidar com aquela geringonça toda. Já deitado, considerou: “ É, no caso de Luck sofrer um acidente qualquer ou coisa assim, terei que superar a situação. Aprenderei de forma rápida e eficiente. Além disso...”. Não terminara o pensamento, caindo em sono profundo e passou a sonhar com suas urdiduras um tanto maquiavélicas e irreveláveis.

No primeiro dia de trabalho, ajeitaram o quadro de ferramentas; lubrificaram bombas e chaves; afiaram a talhadeira; conferiram o ar do compressor; testaram o carregador de baterias; a firmeza dos cavaletes; procuraram por quase um quarto de hora o punção e o martelo de bola de ferro maciço e, ao anoitecer, voltaram a tomar mais algumas cervejas. Jantaram com a mãe e assistiram o noticiário no velho aparelho de TV. Afinal, fora o primeiro dia e se não aparecera um freguês sequer para conferir o óleo ou verificar a água do radiador é porque ainda não fora espalhada de forma devida, a notícia. Resolveram afixar uma placa no cruzamento da rodovia interestadual, a um quilômetro dali.

— E outra junto à lanchonete, hã? —, arriscou Coyote querendo colaborar naquela parte em tomar decisões.

— Não há necessidade. A lanchonete fica a 100 metros do cruzamento. —, retrucou Ratão com um sorriso de falsa complacência.

— Pensei que ajudasse. —, observou Coyote acabrunhado e algo infeliz, como se pedisse desculpas.

— Pensou bem mas, não há necessidade. —, respondeu o outro com certa astúcia e delicadeza.

— Sei desmontar um motor e remontar inteirinho, sem sobrar um parafuso. Sei sim! Nisso eu sou muito bom. Tenho boa memória e já olho para o carro e sei onde está o problema! —, discursou eufórico, Coyote, carente em demonstrar sua eficiência na recente sociedade.

— Bem... (Ratão fez uma pausa mais ou menos breve, de efeito e em seguida prosseguiu)... a mãe fica com a parte da bóia, do rango e isso é importante porque, nenhum homem consegue trabalhar com o estômago vazio. Você — disse apontando para Coyote —, será o nosso homem da ação. Ninguém mais do que você para mostrar aos fregueses porque a firma é a melhor de todas ao longo desta rodovia. (Coyote abriu um sorriso abestalhado de contentamento). Eu, você sabe, tenho certo tino para o comércio, as negociações. Papelada, preços, orçamentos, compras, reposição do material, essas coisas, entende?

O grandalhão concordou aquiescendo e balançando muito a cabeça. A mãe permaneceu com seu silêncio inquebrantável. Olhar miúdo, desconfiado. Então, Ratão resolveu acrescentar.

— Claro, evidente que, os lucros deverão ser divididos em três partes iguais, tirante as despesas, aquisição de material e a conta bancária em nome da empresa, o que dá no mesmo porque nós três estamos aplicando no mercado financeiro, correto?..

... A conta sendo da empresa, consequentemente é dos três, certo?

— Correto. —, concordou Coyote apressadamente. Em seguida, dirigiu o olhar em busca da aquiescência da velha mãe, mas ela já havia se levantado e se dirigia para o quarto como se fosse um corpo estranho; alheia a tudo o que se discutia ali. Ratão matutou e concluiu que a velha poderia pôr tudo a perder caso virasse a cabeça oca do filhinho contra ele. Afinal, não precisavam dele e, sem dúvida, poderiam arranjar-se muito bem. Não haviam vivido juntos sem o velho por um bom tempo? E bem! Levavam uma vida acima da média. Era um detalhe de suma importância, aquele da velha. Se era!

— Quero ver aquele pátio abarrotado de camionetas e furgões e carros e motores para serem abertos e fechados. Trocar muitas peças e cardãs! —, disse num repente o sócio Coyote.

— Nós veremos, sócio. Em breve veremos. Pode ter certeza do que estou lhe dizendo. —, respondeu Ratão meio distante. Os dois permaneceram absortos por algum tempo como se sonhassem. Então Coyote quebrou o silêncio:

— Vou descansar. Acho que amanhã teremos um longo dia pela frente.

— Está bem, sócio. Vou assistir ao jornal e já me recolho também.

— Boa noite, então. —, disse Coyote.

— Bons sonhos! —, respondeu Ratão com um sorriso malicioso nos lábios.

Iam para o terceiro dia e Coyote sentia-se desanimado. Ratão não dera-se por vencido. Não tinha nada à perder, afinal. Às dez horas a mãe anunciou o almoço. Apesar de não terem trabalhado, comiam feito animais. Encontravam-se empanturrando seus estômagos quando ouviram uma buzina. Entreolharam-se e Coyote, surpreendentemente uivou de contentamento. Saiu correndo.

— O primeiro freguês! O primeirão!

— Esse panaca vai acabar atrapalhando-me nos negócios com sua euforia besta. Capaz de trabalhar de graça para esses filhos de uma cadela.

— Boa tarde! —, cumprimentou o homem bem vestido de dentro do Ford que, visivelmente encontrava-se com o pneu traseiro do lado direito furado.

— Boa tarde, senhor! é o pneu, não é? —, perguntou Coyote.

— É.. e por descuido, não tenho um macaco comigo. Espero que possam atender-me nesse horário tão impróprio —, disse o homem ao ver Ratão com uma coxa de galinha pela metade.

— Fique tranqüilo, meu caro. Meu sócio cuidará do seu Ford. Venha, vamos tomar algo em nosso escritório.

Enquanto Coyote levantava a traseira da camioneta, desaparafusava, ajeitava, buscava chaves e transpirava feito um animal, Ratão oferecia uma cachaça de engenho ao primeiro freguês. Havia uma mesinha, duas cadeiras, um velho cofre e um pequeno armário no que fora destinado a ser o escritório. O alvará de licença destacava-se na parede, emoldurado num quadro estravagante.

— A gente sempre acaba se esquecendo de alguma coisa. —, disse o homem estalando a língua após tragar a cachaça.

— Essa vida atribulada.. —, observou Ratão estudando minuciosamente cada detalhe do freguês: roupas, falas, gestos. Parecia-lhe tratar-se de alguém que poderia ter uma boa grana na carteira. Encetaram um bom papo e Ratão não deixava, cuidadoso que era, o copo do homem esvaziar-se.

Vinte minutos depois, o serviço estava pronto. Coyote assomou à porta e anunciou:

— Está pronto, Sr. ...

— Walter. Prazer.

— Prazer. Mas, como eu dizia, o pneu está em perfeitas condições. Dei uma calibrada nos outros três. Verifiquei água, óleo e aproveitei para limpar o pára-brisa.

— Ora, ora, não havia necessidade de tantas atenções. Todavia, fico-lhe muito grato, meu jovem. —, disse o homem com um sorriso de satisfação estampado nos lábios.

— Ah.., Luck, retire o carro para este senhor enquanto acertamos.

— Está bem, sócio! —, respondeu prontamente Coyote, achando engraçado que Ratão o tivesse chamado pelo nome e não pelo apelido.

O malandro Ratão aproveitou para “sangrar” o primeiro freguês. O homem estava meio alegre tanto pela bebida quanto pelos serviços prestados. Achou meio puxado mas pagou. Apertou a mão de Ratão e saiu.

— Boa viajem Sr... Sr....

— Walter, meu filho. Ah, e muito obrigado pela atenção. —, disse dirigindo ao desconjuntado Coyote que alisava as mãos no macacão nervoso e contente com o seu desempenho.

— Ora, não foi nada! Nada mesmo! —, respondeu Coyote.

Os sócios permaneceram parados, observando o Ford tomar a rodovia e desaparecer. Então Coyote disse:

— Lá se vai mundo fora o nosso primeiro trabalho, hein sócio?

— Você esteve realmente ótimo, meu caro! Ah como trabalhou direitinho! —, disse Ratão pondo-se a rir satisfeito. Havia cobrado três vezes mais do que qualquer outro cobraria pelo serviço prestado e, tinha um verdadeiro panaca, idiota, que ainda colaborara checando o óleo, a água; calibrando o ar dos pneus. Ganhara pelo dia de trabalho e pelos dias parados.

— Bem, bem, que tal arrumar aquela confusão? Recolocar as chaves em seus devidos lugares enquanto eu faço o lançamento do dinheiro no livro caixa, hein Coyote? Afinal, não queremos desleixo por aqui, não é mesmo?

— Éééé.. sócio! Faz parte dos negócios. Nada de desleixo. Vou limpar as ferramentas e recolocar tudo nos lugares, certo?

— É isso aí sócio. E, parabéns pelo trabalho. —, elogiou Ratão.

— Coisinha de nada. —, respondeu Coyote voltando ao trabalho.

— Coisinha de nada. —, imitou Ratão com sarcasmo. Riu, tirou o dinheiro do bolso. Separou algumas notas e enfiou no bolso traseiro da calça. A metade lançou no livro caixa. Sonhava acordado, fazendo planos e nem percebeu que Coyote encontrava-se ali, à sua frente.

— Quanto cobrou do homem? —, indagou Coyote.

— Coisa miúda, sócio. Sabe como são os negócios. O primeiro freguês atrai o segundo e, além do mais, foi um serviço pequeno. Concorda?

— Claro, claro. —, respondeu Coyote em sua simplicidade.

— Então — continuou Ratão —, cobrei trinta dólares.

— Mas isso é muito! O serviço não ficaria em quinze, sócio! —, exclamou Coyote que sabia o que argumentava.

— O importante é que deixamos o freguês satisfeito, Coyote. Entende? Um homem satisfeito, pagaria até mais.

— Bem, isso é lá verdade. É sim.. —, respondeu Coyote saindo e dando de ombros. Ia em direção a casa contar minuciosamente à mãe como fora. Ratão ria com trinta dólares na caixa e mais quinze no bolso. Por fim emitiu baixinho:

— Porra!, sangrei o infeliz até a última gota de sangue. Desse jeito, em breve não teremos um freguês sequer. Preciso controlar-me. — Em seguida, puxou a porta do escritório e dirigiu-se para a casa com muita sede. Tomaria uma boa cerveja, era o que tinha em mente.

— Trinta dólares em caixa. O primeiro freguês, mãe! —, dizia eufórico o grandalhão Coyote à sua velha mãe. A mãe, por sua vez, não tocou naquele assunto e foi taxativa:

— Sobrou um pouco do almoço, termine de comer.

— É o que vou fazer, mãe. Porquê você não almoça mais um pouco sócio? —, perguntou a Ratão que acompanhava a conversa.

— Estou satisfeito em todos os sentidos. Preciso de uma boa cerveja para comemorar o início da nossa prosperidade. —, disse abrindo a velha geladeira e retirando uma lata de cerveja. Antes nunca havia cerveja naquela geladeira. Não que a mãe soubesse e agora, até mesmo seu Luck começara a adquirir maus hábitos e vícios.

Os negócios começaram a render. Os fregueses apareciam. Coyote parecia um animal para trabalhar e Ratão, para roubar. A mãe andava macambúzia, havia contraído uma forte gripe. Sempre novos fregueses. Os que já haviam passado por ali, jamais retornavam. Ratão cobrava até a água no radiador.

— A mãe não está bem. Acho que precisa de um médico. —, disse Coyote preocupado.

— Isso não é nada. Apenas um resfriado passageiro. Coisinha que um bom chá, aspirinas e repouso sanarão. Confie em mim. —, respondeu Ratão com o livro caixa na mão.

Seguramente não estava dando a mínima importância ao que pudesse ocorrer com a velha. Aliás, percebera o quanto a “querida mama” andava desconfiada e com os humores alterados, sempre observando-o de soslaio e rezingando pela casa. Ratão prontificou-se a preparar o chá enquanto Coyote colocava a oficina e as ferramentas em ordem. Algo que acabava reforçando a imagem do Rato para o sentimental Coyote. Uma preocupação com a mãe era algo, amiúde comovedor. Se era! E, seguramente, Ratão faria qualquer coisa pela “querida mãezinha”. Esse era um fato do qual ninguém deveria duvidar. Nem mesmo o mais céptico dos seres. Quanto ao sócio — o grandalhão e prestativo Coyote —, Ratão sabia que teria que cuidar muito bem dele a partir do momento em que a querida mama partisse dessa para “a melhor”.

Por algum tempo, Coyote continuaria sendo peça fundamental aos planos de Ratão, portanto......


 

ASAS PARTIDAS

 

Que a cidade agonizava seu caos não restava dúvidas. Matava-se por prazer. Já não se tratava de vingança, queima de arquivo, defesa da honra, do território. Já não bastavam o tráfico, o tráfego louco(muito louco), psicótico atirando do alto do edifício nas pessoas que passavam lá embaixo, nas calçadas. Não, não bastava somente a paranóica violência dos corações e mentes empedernidos. Havia ultrapassado todos os limites se é que havia limite na loucura.

Sentado sobre a mala de couro surrado, observava toda aquela loucura desenfreada e isso, mal saíra da estação ferroviária — Estação da Luz — Que nome! Bobeasse roubavam-lhe as calças. Na sola do pé, incomodando a meia, o dinheiro parco dentro do sapato. Vão ter que cafungar o chulé da vítima. Se vão!

Mãe dissera “não vai que aquilo lá é um horror”. “Coisa ruim dos infernos! Não sabia colocar-se em seu devido lugar, não? Filhodeumaégua!”. Berrara o pai alucinado. Vai dar com os cornos pelo mundo que ele é vasto e profundo. Muito mais que vasto ou profundo, o mundo não é para qualquer, não. A vida, aquela vida de cidade grande é para cabra sem preceito que, sem amor pela própria carne, não se importa com bala perdida, violência de bandido e polícia. Coisa séria. Mas não se falava mais no caso. Punha termo e pronto. Ia. Benção. Tô indo. Fui. E da janelinha do trem, moroso, apitando na curva, ia deixando para trás a cidadezinha acanhada, a praça e seus bancos antigos, a igreja matriz acenando o crucifixo lá na torre. Casas amontoadas, paupérrimas, ruas de terra, pastos, canaviais, gado pastando, burro, cavalo, galinha, porcos, as meninas, os manos, as manas. Mãe acenou chorosa, lamentando a partida, o filho perdido para a vida e o mundo de Deus. Pai turrão, casmurro, fechou o cenho e rangeu os dentes vencido. Filho é filho. Dessas coisas que partem em mil cacos o coração dentro. “Adeus, seu bicho arretado da gota. Caipira sonhador do cacete!”.

O pai excomungando lá parado, olhar querendo marejar e ele firme. Um cigarro pós outro. E o filho mais velho, primogênito se indo e adeus. Escreve? Manda notícias? Vai ficar onde naquele inferno? Não havia parentes, conhecidos, nada em que se encostar. Ia fazer o que naquela desgrameira de cidade ruim? Tentar a vida? Que vida? Fugir do cabo da enxada, do cafezal, do algodão, da foice, do canavial, do mangueirão dos porcos? Estudar não quis. Nem havia como. Ia fazer o quê sem diploma num lugar onde lixeiro e padeiro vivem com canudos enfiados no rabo se exibindo e esbanjando conhecimentos e cultura? Por fim vai! Vai pros quintos dos infernos de uma vez. Para o raio que o parta!

O pai foi ao botequim da esquina e encheu a carcaça de pinga do engenho. Da amarela, curtida na sicupira. Ah, sujeitinho cabeça dura! O desgrenhado mal sai dos cueiros e vai dando no pé, se esquecendo que um dia já habitou bem aqui, ó! Aqui sim! Fazia gesto obsceno mostrando para a mulher e os outros filhos. Três meninas, quatro meninos. A mãe de terço nas mãos, desfiando rosário de aflição pelo filho e pelo velho que, pouco mais, acabava tendo um troço ali, caindo durinho, estorcendo-se todo, babando e revirando os olhos feito um lunático. Valei-me minha santa!

O trem apitando. Mãe — a mão cuidada, meio caminho, nem no alto, nem no baixo amarfanhando a barra do vestido remendado — Olhos são para ver e chorar filhos nascendo e um dia, sem mais porque, partindo. Vida parva! Tinha o que carecia ter, não? Comida quente, roupa lavada, botina, cama e teto. Queria mais o quê? Fosse então com sua ambição e segredos. A cidade era aquela coisa amorfa. Sofria de artrite, reumática, poça de água estagnada, apodrecendo. O rato roía na despensa. Havia muito era rato, barata, gambá, cobra, lagarto, poeira, fofocas, peleja e futuro algum de um nada. Então vai!

O português do armazém, “vai se fodeire! Cá prá nós, capiau, baguá tem mais é que se fodeire mesmo!”. Portuga de uma figa. Língua de trapo, com filha embuchando sem saber quem o pai do filho se formando nas entranhas. Mal de língua comprida do pai. Castigo vem à cavalo. No fofocar cotidiano, as comadres de muro e cercas de quintais nos tititis e coisas de somenos, pau na vida dos outros. Um pé de pau nos próprios olhos a ser retirado para dar com a língua no olho do outro. Não dissera Jesus um dia lá? Então? Povo mesquinho que vivia de intriga, fofoca e inveja. Invejavam o menino? Se ele queria ir para cidade grande, tentar ser alguém, que fosse. Mais maldade e esculhambação porque não tinham mais o que fazer. Decerto tinham filhos e filhas santos. Plêiade do Senhor. Bando de pardal esvoaçante. Mariposas desgovernadas em volta do bico de luz. Lamparinas ardendo com o fogo no rabo. Tinham nada a ver com vida alheia! Não tinham, contudo, falavam. Isso lá é que era ignorância e pestilência untadas pela maldade. Maledicências!

Mãe se deixou — pobrezinha —, definhar por uns tempos. Inconformada, na cama. O bom filho à casa torna. Não torna? Não conhecia a história do filho pródigo? Fé de mãe desafia toda e qualquer perdição. Deu de variar naqueles pensamentos aziagos, atormentando-se, encafuada em seu vezo secreto na alma de passarinho ferido.

Será que cometera alguma danura? Fugia sem que se soubesse motivo? Idéia mais besta se lhe vinha assim, assim, seu! Arreda, tentação dos quintos! Não conhecia o filho, decerto? O menino sempre fora bom. Sabia porque o criara nas entranhas e o trouxera à luz. Então desconheceria a índole do próprio rebento? Decerto! Tinha seus repentes, mas juízo não faltava porque fora criado no cortado, rédeas curtas na brabeza do pai e na psicologia da mãe. Então, não tinha nada à ver com joio. Separado, modéstia parte, havia trigo e dos bons naquele lar humilde mas de muita honestidade e trabalho.

De qualquer forma, o pai ia pra roça, mãe tornava ao leito, abatida. Desejo de viver desatino? Ingratidão de filho é o que cala fundo e abre chagas que cicatrizam mais não. Perdoar já havia, claro. Mas restava aquele ressentimento dorido, inclemente. Pai voltava da roça, mãe no fogão disfarçando a dor e aquele mal de agouro. Sonho transformando-se em pesadelo. Desespero de querer o filho de volta. O tempo sem tempo indo. Feito a eternidade do para sempre. O nunca mais. Me acode, Jesus!

De lá pensava; me acode minha mãe! Os olhos irritadiços a mirar o vai e vem desenfreado do gado sem abôio. Os automóveis, a fumaça, as ruas sem fim, tanta gente, tanta! Ia fazer o que ali? Não arredava a bunda de riba da mala, sem coragem para um passo sequer.

Havia chegado amanhecendo o dia. Pelas quinze horas, as pernas bambas, a fome se acumulando, remoendo dentro em roncos o estômago. Frágil feito pintassilgo, ousou dirigir-se à primeira pastelaria que avistara. Se arrastamdo lento, moroso, à medo, desconfiando de tudo e de todos. Pão, manteiga, leite e café. Pavor em tirar o dinheiro de dentro do sapato. Disfarçando, transpirando vergonha e aflição.

Pagou, meteu o troco no bolso sem conferir, apanhou a mala e saiu para a rua apinhada de gente. Aquela gente estranhamente movida pela pressa, como se fugisse de boi na invernada. Dobrou uma esquina, olhando os prédios, os carros, o sem fim e sem tino que era tudo aquilo. Deu de topo, encontroada com um poste parado. Ou o poste viera ao seu encontro de propósito? Pura maldade. Viu estrelas debaixo do sol mirrado, labutando contra nuvens e fumaça. Respirou fundo — óleo diesel —, tossiu. Por sorte, a mala aos seus pés. Apanhou e voltou a caminhar a esmo.

A mãe sentia um aperto dentro do peito. Coração apequenando. Saudade amofinando. Um mês e cadê notícias? Não ficara de escrever tão logo chegasse na capital? Esquecera decerto. O que poderia impedir se sabia — é verdade, mal e mal —, escrever algumas frases? Acontecera coisa ruim? Não. Tinha proteção. Mãe desfiava contas cerzindo um manto de preces sem fim. Então, proteção é o que não poderia faltar ao filho. Não somente não faltava como carecia e de sobra que mãe sabia muito bem o quanto.

Por sorte, aos tropeços, acabara enfiado em uma pensão barata. Na argamassa, tijolos, cavadeira, coisinhas que lhe moíam o corpo esfalfado e a mente aparvalhada. Alma, nem se lhe conto! Sentia saudade do interior. Quanto dói! A família, a mãe, o pai, os manos e as manas. Deu de sentir saudade até mesmo dos cachorros e dos porcos e galinhas pelo terreiro da casa estorvando. De fato, pai tinha tento em que decisão não se toma assim: mão na frente e outra atrás. Somente porque se quer e pronto. Aprendera. Ia tocando.

De uma pensão vagabunda para outra pior. Dormia em barraco. Findava uma obra, saía atrás de outra. Dava duro. Pegava no pesado até o corpo esmorecer, fatigado, já sem força sequer para manter-se nas pernas. Mas ia levando. Não escrevia. Havia um branco, um torpor mental misturado com aquela mágoa de desilusão ferindo. Não ia escrever mentindo que estava bem se estava mais era à beira de um colapso. Então? Jamais contara uma mentira sequer para os seus, não seria depois de homem já feito e lá no longe, um mundo de distância. Continuaria pelejando até que melhorasse e ia conseguir porque, capiau quando bota na cabeça que rabo de porco serve de saca-rolhas, não há adversidade ou contratempo que se lhe dobre a conclusão. Apesar da refrega que a vida lhe dava. Era aquilatar os solavancos e continuar tocando em frente sempre. Fazer mais o quê? Dia mais, dia menos, a sorte decerto lhe sorriria. Ilusão!

Esquecera, malsinado o destino, que a sorte é traiçoeira e que tanto fez quanto faz para a vida se se vive por assim viver. Deu no que deu e garrou a tragar umas cachaças no fim do expediente. Certa manhã de ressaca, do barraco dividido com mais três companheiros, sequer ousou pôr pés para fora. Ficara rolando atormentado a segunda-feira toda no catre enquanto lá fora tudo emergente, desesperado gado, formigueiro e rebuliço desgovernado. Noite caindo, criou coragem ao botequim sanar ressaca que era coisa ruim demais.

Se juntou com os malandros. Não havia moleza no ambiente. Se cuidavam os safardanas com trezoitão na cinta, navalha e punhal. Jeito simplório, criando massa muscular em conformidade com seus vinte anos pouco vividos, o menino topou uma parada e acabaram metendo uma bala no coração de um frentista de posto de gasolina somente para arrebanharem uns poucos reais e um carro na hora da fuga. Ia, chapado pela maconha, rindo feito besta dentro do carro em alta velocidade. Quanto mais o carro se sacudia, mais ele ria com o trabuco na mão. Mostrara firmeza na hora de atirar. Era o que tinha que ser feito. Fizera. Conseguiram escafeder-se pelas favelas e morros. Havia selado sua sorte. Não recebera grande monta, mas ficara com a arma, quatro ou cinco baseados para fumar e um troco para uma loira gelada no bar.

Descobria que a vida era pura safadeza. Então de sofrer, acabou ruim. Secando dentro o coração aflito. Com a polícia atrás, no seu rastro. Fugindo feito cão doido e enraivecido. Matando para não morrer. Aprendendo a ser mais rápido que o inimigo. Feito as fitas das salas de cinemas. Numa agência bancária, a câmara flagrando sua proeza de cabra ruim. Sangue fervendo, trocou tiros com os homens fardados da patrulha que passava pelo local. Fugira mais uma vez. Desta feita com os bolsos recheados. Sobraria mais, já que um dos seus ficara lá, no meio do asfalto com o corpo estirado e recheado. Passou a cheirar. Fumaça já não dava barato. Tomou conta de ponto no morro, com fama firmada, respeito imposto à bala. Que se danasse a vida. A vidinha comedida e o bom comportamento! Fodesse o mundo e os sonhos que perdera pelo caminho.

Dera por si que, não somente havia perdido sonhos. Ele próprio já desconhecia quem era e quem poderia vir a ser dali tocando em frente. Valente com duas armas nove milímetros, procurado pela lei e jurado por tantos desacatos e fanfarronice. Afora a maldade, sentia prazer em torturar e matar. Coisa adquirida com o pó que dilatava suas narinas. Bicho ruim. Cabra safado. Sem preceito ou dignidade. Sem respeito ou amor pela vida. Matava por matar. Ficara assim. Mãe e pai nem sequer sonhavam. Quem na frente do noticiário da TV? Nem havia por aquelas bandas. Jornal não chegava lá tão fácil. Seu paradeiro e nome verdadeiros quem saberia? Havia fotos. Retrato falado. A filmagem durante a ação na agência bancária. Depois vieram os seqüestros que andavam em voga e aquilo sim é que era ganhar dinheiro fácil. Quem pegava um cão tinhoso feito ele? Que polícia que nada!

Em dois anos, o estrago era tamanho que, já não havia milagre que desse jeito em tantos males. Cinco assassinatos; três seqüestros; três assaltos a agências bancárias; jurado de morte pela polícia e outras gangues. Enfim, sua folha corrida tornara-se tão longa quanto as contas sem conta do fio de rosário que a mãe desfiava.

Sequer percebeu a metamorfose. Sua fisionomia bastaria como prova. Envelhecia, estropiado e malquisto. O corpo fechado em terreiro, tinha adquirido marcas e cicatrizes causadas pelas contendas e fugas. Mas o que mais impressionava era sua carantonha. Feição do Tinhoso. Alcunhado, “Capeta”.

Um santo não pode ter seus direitos assim, vilipendiados, caçados e roubados! De Santo a Capeta, quem se daria ao desplante? O menino era bom, não era? Mãe sabia que sim. Pai ainda sentia os tremores nas mãos e os calafrios. Mas era coisa da cachaça. Afirmavam, não era o menino deles. Jamais seria. Aquela coisa ruim, rosto disforme, talhado por navalha? Qual o quê?! A polícia dizia que era. Mãe e pai que não e fim.

O menino havia desaparecido ia para mais de oito anos. Nunca mais uma notícia e vinham com coisa e loisa? Conversa mais besta aquela! Coisa lá do sargento mais o cabo do destacamento da cidade. Permaneceram na varandinha da casa por umas duas horas questionando o pai. O velho ia respondendo nos conformes. Sabia de nada não. Foto não tinha. Documentos, menos ainda. O filho nunca escrevera. Notícia alguma. Ia respondendo e ficando enfarado com tudo aquilo. Conversa sem tino e sem fim...

A mãe já perdia a conta daquele poço sem fundo de contas querendo solucionar a situação de vez. Por isso que, resolvida, saiu lá de dentro, mirou o sargento dentro dos olhos de peixe morto e boi sonso; tirou medidas enquadrando o cabo em seu foco e puxando o pai para dentro da casa, deu com a porta na cara dos dois de fardas, injuriada da vida e de tudo o mais.

— Ara, mas que conversa! Se tiver vivo, um dia aparece. Senão... — olhou para o marido que quedava vencido, entregue —, se não ( por alguma tragédia que Deus nos livre ), deixa a gente em paz que de padecimento, já pagamos por nós e por ele! Vão cuidar das suas vidas, seus coisas ruins do governo descarado!

A mãe desabafou, cerrou a tramela e deixou por conta de Deus. O dia se foi, cedendo espaço para a noite porque quando o crepúsculo chega no interior, já noite então e com o sol ido, bate na gente, uma melancolia que parece nunca, jamais ter fim. Dor de anjo, passarinho com asas partidas. Parece até que é a sina da gente. E não?!...


 

O FUGITIVO

 

Aquela determinação fixara-se em sua mente feito um enorme cartaz colorido em uma parede caiada em branco: fugir, fugir, fugir.. Não importava como o faria, conquanto, ao menos tentasse. Por isso, ele atirou-se ao chão e passou a arrastar-se sobre os cotovelos, deixando o grupo de detentos que erguia e baixava as enxadas no mato rasteiro que insistia em brotar feito praga em meio às plantações de mandioca e feijão. Tratava-se de uma luta desesperadora. Contudo, uma boa luta. Por isso, revigorou-se e continuou de forma determinada e frenética em sua estratégia quase suicida.

Os guardas passaram a caminhar de um lado para outro. O ar havia se tornado pesado. Alguns presos procuravam chamar a atenção dos vigias com pedidos patéticos e absurdos como água, “aliviar as necessidades”, uma surucucu imaginária foi perseguida durante alguns minutos até que, o chefe em comando, o sargento Gonzalez, alimentou sua arma fazendo-a rugir ferozmente para o alto, berrando em seguida:

— Todos aos seus postos, seus filhos-da-mãe! — Possuía um senso aguçado e pressentira o início de uma confusão e rebelião sem fundamentos ou motivos aparentes. Era um homem truculento e, juntamente com mais cinco subordinados, tomava conta de cerca de cinqüenta e quatro homens calejados pelo sofrimento e malandragem dos cárceres da penitenciária estadual do condado de K..... Por isso, cortou, pelo resto do período, as paradas para os detentos irem se aliviar ou matar a sede. Algo parecia-lhe errado. Fora da naturalidade legal das coisas e fatos.

O fugitivo Pietro, ouvira o disparo junto à cerca que limitava a vasta área de plantação. Por um segundo pensou que havia sido descoberto. Aferrou-se à terra e prendeu a respiração. Não ouviu passos ou cães ladrando. Então voltou a vislumbrar a cerca de arame farpado. Arrastou-se por baixo e uma ponta rasgou-lhe a camisa na altura do ombro.

— Droga! —, vociferou entredentes, avançando furioso.

Tomou a direção dos bosques, correndo sempre agachado e percebeu que restava-lhe, a partir de então, correr e correr e... talvez, rezar. Passou por uma parte do bosque atingindo as macegas de capim perto da rodovia. Ainda teria uma oportunidade, caso não o estivessem esperando do outro lado, ao longo da rodovia. Não, não estavam.

Naquele exato momento, o primeiro sargento alinhou os homens e deu-se o início à chamada. Um guarda franzino bradava em alto e bom som o nome de cada prisioneiro e o mesmo respondia prontamente.

— Pietro! — Houve um silêncio amargo, inquietante, absoluto. O guarda voltou a berrar:

— Prisioneiro 1-2-7-5, Pietro. — Pela segunda vez o prisioneiro não respondera. O sargento Gonzalez começou a contar mentalmente seus prisioneiros, bufando, ruminando, para em seguida, bradar:

— Todos para o ônibus, rápido!

Apesar da ordem peremptória e enérgica, todos os presidiários pareciam cansados, abatidos e lentos. E, enquanto cada pé arrastava-se em direção à porta do ônibus mais conhecido por “Jaula”; e enquanto o sargento corria até seu carro e tentava manter contato com a direção do presídio através do rádio, Pietro atravessou a interestadual de mão dupla em direção aos pântanos.

O alarme soou dentro e espalhou-se pelas imediações da penitenciária. Ou alguém fugira ou, fora apanhado com um tiro de doze nas costas e àquela altura deveria estar correndo em direção ao céu, ou inferno. Esperaram e quando ouviram os cães, então souberam que o fugitivo ainda estava vivo. O diretor contatou o xerife e quinze homens com cinco cães tomavam rumo aos campos de plantações.

As pernas avançaram pela terra seca, passaram pelas plantações de capim alto e finalmente, Pietro chegou ao rio. Sem hesitar, atirou-se dentro das águas turvas e deixou seu corpo seguir com a correnteza. Talvez fosse lógica em demasia a sua fuga rio abaixo. Contudo, o que contava era o tempo de vantagem. Em sua mente, sabia que o xerife, seus homens e cães já estavam em seu encalço.

Os cães farejavam e avançavam rapidamente pelo campo de plantações até atingirem o local em que Pietro havia-se arrastado por sob a cerca de arame farpado. Eles farejavam e estavam na pista correta da fuga. O fugitivo poderia ter atravessado o bosque, o matagal e conseguido carona na interestadual.

— Ele não seria tão estúpido. —, analisou o xerife Juan, ordenando que seguissem adiante. Os cães insistiam em atravessar a pista e carregaram consigo a patrulha de busca. O fugitivo, deixou-se arrastar pela corredeira, conseguiu atingir a margem esquerda do rio e, agarrando-se ao mato ribeirinho, forçou-se a sair de dentro da água. Sentia suas forças extinguindo-se lentamente. Dali em diante sua jornada tornar-se-ia ainda mais incerta. O sol caíra no poente e ele meteu os dois pés nas águas pútridas do pântano.

— O jogo da sorte! — Emitiu quando sentiu que a água escura já batia em sua cintura.

Os cães continuavam arrastando os cinco homens que serviam de guia para os outros dez e o xerife. Corriam direto para o local onde o fugitivo atirara-se nas águas do rio. Enquanto isso, Pietro avançava de forma obstinada pântano adentro. Ali, muitos corpos acabaram apodrecendo ao serem alvejados durante as tentativas de fuga. Mas ele não! Pietro não pretendia ser mais um número nas estatísticas, simplesmente riscado do mapa. Recobrou as forças e avançou em meio aos troncos e juncos. Havia alcançado uma parte do pântano que proporcionava-lhe vantagem considerável. Era mister aproveitar-se daquele detalhe.

Os cães ladravam obstinados pela margem do rio. Alguns erguiam a cabeça para o lado certo como se apontassem a direção; outros apenas farejavam o ar. Somente então, o policial Pablo, treinador e adestrador dos cães percebeu que o fugitivo usara a velha artimanha: havia espalhado pimenta moída pelo caminho. Era uma explicação pouco ou nada convincente. Portanto, não fez qualquer referência quanto aquela possibilidade para os demais e concluíra que, por enquanto os cães, seguramente haviam perdido a pista porque o homem atirara-se nas águas do rio. Em seguida acrescentou:

— Embora não seja possível um homem nadar contra a forte correnteza, esta seria a lógica. No entanto, deve ter descido. É isso, desceu e em algum ponto, vamos encontrar novas pistas.

— Tem certeza do que está afirmando, policial Pablo? —, indagou o xerife de forma duvidosa e irritadiça.

— Somente um tolo tentaria nadar contra a força dessa água, xerife.

— Então vamos descer pela margem. —, ordenou o xerife.

— O caminho provável é o do pântano. —, observou o policial.

— Mas é praticamente impossível atravessar aquele maldito pântano. —, rezingou o xerife.

— Talvez seja esta a intenção, xerife. Nunca ouvi dizer que alguém houvesse conseguido tal intento. Ou foi alvejado ou afundou até os cornos naquele lamaçal putrefato. Contudo, continuo acreditando que seja a lógica.

O manto negro da noite espalhou-se por todo o céu sarapintado por poucas estrelas. Enormes e potentes lanternas foram acionadas. O xerife ordenou que o policial Pablo prosseguisse nas buscas enquanto ele, Juan, retornaria dali para comunicar-se com o diretor do presídio e pedir reforços. O cara tinha ido longe demais para a sua parca paciência. Sob o comando do policial Pablo, ao invés de procurarem pistas pelas margens, o grupo seguiu direto em direção ao pântano.

A noite havia caído em definitivo e as estrelas salpicavam o céu. A lua banhava o pântano juntamente com a luz emitida pelas lanternas. Pietro havia vencido a primeira etapa. Conseguira sair do outro lado e, aquela façanha, conferia-lhe, no mínimo, doze horas de vantagem sobre “os implacáveis caçadores da justiça”.

Distante, em meio ao emaranhado de vegetação aquática, tabôas e troncos podres, Pietro avançava com o que restara-lhe de forças. Por volta da meia-noite, sentiu seus pés tocando terra firme novamente, variando o traçado quase que óbvio de sua rota de fuga. Desde então, suas pernas passaram a acompanhar os pés feridos e petrificados pelo frio. Suas mãos, buscavam avidamente pelas enormes sanguessugas que carregara consigo do pântano. Podia senti-las e arrancá-las à força, não era o melhor método. No entanto, não havia outra forma. A pequena estrada das muitas vicinais, ainda não fora tomada pelos faróis dos carros da polícia e o fugitivo aproveitou para avançar ainda mais.

Os policiais comandados por Pablo e seus cães tiveram que voltar. Nenhum homem gozando a plenitude de sua sanidade mental ousaria adentrar naquela fedentina em noite daquelas. A partir dali, ficaria por conta do xerife. Certamente o apanhariam caminhando a esmo por alguma via secundária. Havia a hipótese ainda, do pobre diabo já ter cavado sua própria sepultura no meio do pântano.

Por volta da duas horas da madrugada, o fugitivo embrenhara-se por um vasto campo cultivado com tenro milharal. Mesmo no escuro, apanhou uma espiga e passou a mastigá-la. Sentiu que aquilo somente aumentava ainda mais a sede. No entanto, a idéia das sanguessugas ainda prevalecia, além do frio que o fazia tiritar de forma intermitente.

Às três da manhã, após passar várias mensagens pelo rádio e dizer — ou melhor, berrar —, algumas poucas e boas para o policial Pablo e seu grupo, o xerife Juan, escoltando vários homens e praguejando, saiu para as vias secundárias e as vicinais da redondeza.

— Se aquele desgraçado conseguir escapar estamos fodidos! Vou comer o fígado de cada um de vocês!

Logo os carros começaram a rodar. Os cães voltariam ao trabalho somente quatro ou cinco horas depois. O fugitivo avistou o enorme estábulo e a casa da fazenda. Não conseguia calcular o quanto percorrera em termos de distância. A única certeza que possuía, era a de que não poderia continuar caminhando. Não além do estábulo. Por isso, Pietro dirigiu-se exatamente para ele. Mesmo que o xerife e sua manada de beócios estivessem à sua espera e gritassem:

— Surpresa!...

.... quando ele adentrasse o estábulo e, as luzes começassem a serem acesas, ofuscando-lhes as vistas..

Sentiu um terrível tremor e o calafrio percorreu-lhe todo o corpo. Talvez estivesse com febre. Não descartava a possibilidade de contrair malária ou qualquer doença proveniente do pântano. Seus dentes batiam. Seu corpo alquebrado tiritava. Contornou o velho estábulo com suas imensas portas trancadas por cadeados e correntes. Havia uma tábua solta...

A polícia instalara-se estrategicamente em cada via com um carro e dois policiais bem armados ao longo de todo o trecho que, “provavelmente o fugitivo teria que passar”...

Havia uma tábua solta e Pietro arrastou-se para dentro da escuridão. Recostou-se em um monte de feno e deixou que seus olhos se acostumassem com aquela negritude quase indevassável. Ouviu um leve vagido. Tratava-se de um bezerro. Percebeu ainda, duas vacas, um cavalo e, do outro lado, junto às portas, um trator com seus aparatos de arar. Deslizou cuidadoso na escuridão em direção aos cochos em comum. Havia um longo cocho para ração e outro para água. Não percebeu a presença de galinhas ou cães, o que, seguramente, o denunciaria. Enfiou a cabeça na água. Sorveu longos tragos a intervalos curtos. Havia um certo regozijo entre o homem e os animais enquanto tragava da mesma água que os quadrúpedes. Por isso, talvez houvesse brotado em sua consciência um sentimento que o aproximava um pouco mais da natureza e do próprio Criador. Ouviu os grunhidos dos porcos do outro lado. Deveriam ter construído os chiqueiros na parte dos fundos, um pouco mais afastado da casa. As coisas funcionavam desta forma, acreditava. Saciada a sede, voltou a arrastar-se até o monte de feno. Havia vários fardos e ao lado, uma espécie de silo improvisado para o milho. Enfiou-se o mais que pode por entre os fardos de feno e.. apagou.....

 

II

 

O jovem Pietro acabara de completar vinte e cinco anos quando a Justiça o enviara para o fundo de uma cela com uma sentença de três anos e meio de reclusão. O rapaz havia furtado um vídeo, algumas latas de cerveja de uma lanchonete e parcos trocados da caixa de um velho e decrépito açougue. A família ignorara o fato, como quem se livrasse de um fardo demasiado dos ombros.

Da cadeia local, o rapaz havia sido transferido para o Instituto Penal Agrícola, após um ano de convivência com as pequenas sacanagens das celas abarrotadas por toda espécie de malandros de segunda categoria. No entanto, Pietro sentira-se abandonado e traído porque, em um ano e seis meses não recebera uma única visita e sua namorada enviara-lhe uma carta simplesmente rabiscada com um frio e desinteressado “adeus”. Então, aos vinte e seis anos e meio, o garoto rebelde, desaparecera do Instituto Penal.

Concomitantemente com sua fuga, a Juíza que cuidava do caso, havia expedido o mandado de soltura que, por ironia do destino denominado xerife Juan, fora parar em alguma gaveta do esquecimento. Seis meses após a fuga, o xerife metera suas mãos sedentas sobre o garoto e, conseguira que o enviassem para a penitenciária do condado. Incansável defensor da Lei e exímio justiceiro quanto aos próprios interesses, Juan conseguiu acrescentar cinco anos à sentença anterior do “merdinha fujão”. A primavera voltara e Pietro havia completado trinta anos com, praticamente cinco deles, trancafiados nalgum cofre recendendo à podridão. Por isso, jamais desistira de fugir, embora seu bom comportamento em nada influenciasse as autoridades constituídas. Para elas, autoridades, o prisioneiro não passava de mais um arquivo morto. Às vésperas de poder voltar a mirar o sol sem as barras de uma grade ou muros fortemente vigiados por tiras armados, o diretor Lark e o xerife Juan, armaram mais uma das suas, com a ajuda do primeiro sargento Gonzalez.

O garoto fujão, havia se transformado em um homem alto, forte e espadaúdo. Era, sem dúvida, inteligente e de têmperas lancinantes, providas por um curto pavio, prestes a pegar fogo. No entanto, de forma incompreensível, aquele animal que carpia, fazia faxina, rebentava pedras e carregava enormes fardos em seus largos ombros, parecia ter adormecido o seu lado irascível, de fera acuada. Havia se transformado num grandalhão forte e manso demais para o gosto do xerife e do diretor penitenciário.

Na madrugada de 20 de setembro do ano da graça de l.99., o detento Ed — o assassino —, impiedoso e com pena a cumprir pelo resto de sua existência sobre a face da terra, caiu sobre Pietro — feito um animal —, empunhando uma faca confeccionada dentro da própria cela, com uma colher. O temido Ed, acabou na horizontal com o pescoço quebrado e sua própria faca cravada no abdome. Pietro sofrera algumas escoriações leves e um corte na canela que ele usara para acertar um de seus golpes na cabeça do seu agressor. Então, o garoto encontrava-se novamente propenso a deixar de lado suas esperanças de ser livre, passando de mero ladrãozinho a assassino de alta periculosidade.

— Vou te foder do primeiro ao quinto, meu camaradinha! —, disse-lhe o primeiro sargento Gonzalez, aproveitando para esbofetear o prisioneiro quando este parecera-lhe indefeso, algemado e fortemente amparado por dois policiais.

— Filhodaputa! —, bradou Pietro impulsionando o corpo para a frente e soltando o pé direito que foi de encontro ao maxilar do sargento arrebentando-lhe a mandíbula inferior e fazendo alguns bons dentes afrouxarem-se junto ao osso do maxilar.

— Que tal dez, quinze ou uns trinta anos nesta pocilga, hein Pietro? Seu bicha desgraçado! —, ironizou o primeiro sargento com uma barafunda de aparelhos nos dentes e o maxilar inferior preso por gesso junto ao pescoço.

— O que acha que eu seria capaz de fazer com o seu pescoço cheio de papas se eu o pegasse de jeito, hein, sargento corno? —, respondeu Pietro usando da mesma ironia, embora não houvesse nenhuma graça naquilo tudo.

— Vou fazer com que apodreça nesta merda, seu filho-de-uma-cadela! — vociferou o sargento Gonzalez, retirando-se em seguida, do local denominado “fossa”, pelos detentos.

O condenado pensou em redargüir, contudo, calou-se. Não conseguia respirar direito e aquela maldita fedentina acabaria, literalmente, o matando. Tratava-se de um buraco reforçado por cimento e com fezes até à cintura de um homem. Acima, havia uma grade com barras de ferro maciço e um policial de guarda dia e noite. O pão e a água eram servidos através de uma portinhola. Por isso, Pietro acreditava que não desejavam vê-lo morto tão cedo. Mas sim, apodrecendo aos poucos e, invariavelmente, transformando-se naquilo que recendia a esgoto e que o fazia vomitar cada vez que metia algum naco de pão mofado garganta adentro.

O infeliz saíra dali ( ou melhor, fora arrastado ), sem forças sequer para continuar respirando. O sargento não gostou nada daquilo. Sua ira ainda o martirizava. O “filhodamãe” não poderia morrer. Não por enquanto. E, com isso, o levaram para a enfermaria após um interminável banho.

 

III

 

Amanhecia o dia e o fugitivo pode vislumbrar seus companheiros de sono naquele celeiro que prometera jamais deixar-se esquecer. Mesmo porque, junto a uma das paredes, econtrara pendurado um macacão de trabalho azul e desbotado; um enorme chapéu de palha; duas botas surradas e salpicadas de merda; um par de luvas e uma foice sem cabo.

Pietro vencera a fadiga com o que recobrara de energia após um sono povoado por pesadelos e calafrios. Estava com febre e antes de apossar-se de todos aqueles aparatos, retirou uma enorme sanguessuga que deleitara-se durante toda a noite tragando o seu sangue quente e ávido de liberdade. Em seguida, meteu-se pela fresta em que entrara e saiu dali à passos largos, quase correndo.

O xerife Juan havia mobilizado toda a força disponível, além dos guardas e do próprio sargento que conduzia, juntamente com o policial Pablo, novas buscas com seus cães de faro aguçado. As estradas e vias haviam sido bloqueadas e os matagais passaram a ser palmilhados em uma febricitante busca como quem cavasse a terra com as próprias mãos na sede e febre do ouro nalguma jazida recém descoberta.

O fugitivo encontrava-se a dez quilômetros daqueles farejadores implacáveis. Em meio a plantação de milho, Pietro trocou de roupas, fez um “bolo” com suas velhas vestimentas de presidiário, embrulhou-as num trapo que surripiara do celeiro e voltou a concentrar-se em sua missão: fugir, fugir, fugir...

 

IV

 

Durante o período em que se encontrava inconsciente num leito da enfermaria do presídio, Pietro havia recebido não somente soro e vitaminas mas, no mínimo, dois litros de sangue, tal a condição em que se encontrava. Seu estado era deplorável e, segundo o xerife e o sargento Gonzalez, os médicos deviam traze-lo de volta ao mundo real à qualquer custo. As recomendações foram diretamente passadas ao médico e enfermeiros, com o aval do diretor penitenciário. Ninguém queria que “o merdinha fujão, viesse alegar futuramente, que não haviam lhe dado uma oportunidade de voltar à vida dos normais”.

O presidiário havia definhado e, não fosse sua estrutura “cavalar”, o médico já teria amputado suas pernas e, muito provavelmente, metade de seu corpo. Contudo, Pietro era obstinado, mesmo à beira do abismo. Reagiu e lentamente voltou a se recuperar. Procurava não demonstrá-lo. Passava o maior tempo possível drogado e com ares enfermiços. Inegável que o médico soubesse que ele já poderia voltar a andar — capengando, mas.. sinceramente...

Passou-lhe pela mente que, talvez o médico o estivesse poupando porque sabia o que o esperava quando estivesse pronto para sair do leito. Então, o próprio médico, num ato de caridade, deixou-o de cama por muito mais tempo que o necessário, alegando que se o colocassem de pé, iria desmoronar e inquestionavelmente, todo o trabalho que ele realizara, cairia por terra, juntamente com o pobre infeliz.

O detento sabia que o cirurgião o observara realizando exercícios durante aquelas quatro semanas, em meio às expectativas do sargento Gonzalez e do próprio xerife. Apesar disso, de forma agradecida, passou a contar com a colaboração daquele homem envelhecido que tinha as mãos e sobretudo, a alma calejada por tantos sofrimentos e desgraças ali ocorridas. Quando o “chefe” — como era conhecido —, emitiu seu parecer final com alta, prescreveu que o doente teria, pelo resto de sua vida, problemas com as pernas e uma propensão muito grande em adquirir doenças viróticas, em decorrência do tempo que passara “na fossa”.

O diagnóstico médico garantira-lhe, pelo menos mais três semanas atirado em uma cela separada e com algumas comodidades. Ninguém desejava perdê-lo para a morte. Queriam-no vivo e pronto para novas provações e humilhações. Enquanto seus algozes procuravam mantê-lo nesta, Pietro preocupava-se em readquirir suas energias e habilidades na calada das noites, com seus exercícios e golpes de lutas marciais, misturados com brigas de ruas com as quais tanto estivera em contato durante sua infância e início da juventude.

Certa manhã, o sargento, acompanhado por dois soldados, retiraram-no brutalmente de sua cela.

— Terminou a mordomia, seu porco. Dê graças à Deus por não ter morrido.

O detento não emitiu uma única palavra. Sempre acompanhado por um guarda particular, passara pela lavanderia; pelos “olhos-de-bois”; faxina no pátio; nas celas e, quando chegava o momento de recolher-se, então, sentia que os primeiros castigos impostos começavam a surgir: seu destino era a solitária.

Fugir, fugir, fugir... Antes que perdesse o juízo e acabasse com aquele algoz patético e macilento com um único golpe. No início da plantação de milho, Pietro fora posto, ao lado dos burros para arar as terras. Seus ombros haviam criado calos e suas forças redobraram. Nem mesmo o sol, o cansaço e o desmaio o impediam de alimentar sua obsessão: fugir. Acabou com isso, ganhando a simpatia de vários detentos e, sua alimentação parca, fora redobrada:

— Em consideração. —, oferecia-lhe um dos detentos, o seu pedaço de pão.

— Continue assim, garoto. Enfie o pé no rabo desses lazarentos! —, incentivava o velho Pancho com seus cinqüenta anos, roubando da cozinha um belo bife e oferecendo-o ao mais novo ídolo da família dos exilados do mundo.

O “merdinha havia recuperado-se e, estava na hora de aprender novas e inesquecíveis lições”, segundo o sargento. Então, o inferno havia recomeçado.....

 

V

 

Os jornais noticiaram, duas semanas após a fuga que, o detento Pietro, havia sido dado como morto ao tentar atravessar o pântano. O diretor penitenciário concedeu a entrevista fornecendo detalhes e emitindo seu parecer final ao dar o caso por encerrado. O xerife concordou que as roupas — ou parte delas —, segundo análises da perícia, pertenciam ao fugitivo e que, nenhum ser humano seria capaz de atravessar o pântano sem deixar vestígios. O único que encontrava-se em dúvida, era o sargento Gonzalez.

— Pois para mim, o desgraçado ainda está vivo por ai! — Vociferava para a sua amante, Rosita.

— Ah, lá vem você com essas tolices! Esqueça. O infeliz está morto e acabou. —, retrucava a amante.

— Eu não acredito em tal hipótese de forma alguma. Mesmo porque, o filho da mãe era demasiado esperto.

— Não encontraram peças de seu vestuário e inclusive dois números de sua camisa boiando na podridão fétida do pântano? Está morto e chega! — Redargüiu a mulher de forma peremptória desta vez.

No entanto continuavam a discutir. Enquanto os dois palravam à sorrelfa, e o diretor penitenciário dava o caso por encerrado e o xerife afrouxava a vigilância nas estradas e rodovias, o fugitivo havia deixado barba e cabelos crescerem e, perambulava feito um mendigo por lugares ermos de uma pacata cidadezinha, à cinqüenta quilômetros dali. Transformara-se em uma sombra vagando nas noites e dormindo em casas abandonadas, celeiros, obras inacabadas, terrenos baldios, becos ensujecidos e até mesmo, em redes de esgoto. No entanto, sua alma continuava alimentando e ruminando uma nova centelha que diferia daquela antiga de fugir, fugir e fugir. Havia, finalmente chegado a hora da vingança.

 

VI

 

Naquela manhã, Pietro havia vagado em círculos e, uma idéia acorreu-lhe à mente. Retornou ao pântano e chafurdou nas águas pútridas e lamacentas suas roupas de presidiário, após trocá-la com as que apanhara do celeiro. Cuidara, então, em deixar alguns vestígios pouco antes de voltar a pisar terra firme. Talvez não fosse uma excelente idéia perder tempo com aquele detalhe maluco, no entanto, acabou deixando-se levar pela intuição e o fez. Havia, aparentemente, dado certo. Era “pagar para ver”. No momento considerara que, talvez , ou muito provavelmente, aquela havia sido a melhor idéia que tivera desde quando resolvera fugir. Fugir ou morrer. Porque nada mais importava, então. E o fizera com exímia perfeição que até mesmo os peritos o haviam dado por morto. Ou, quem sabe, tudo não passasse de blefe? Considerou que aquele ponto já era carta fora do baralho. Nada mais teria importância.

Poderia considerar-se um homem livre. Porquê não? Sim, estaria livre, não fosse a alma dilacerada e a mente revivendo os sofrimentos e humilhações impingidos por seus algozes...

— Vamos lá burro manco! — Ironizava o sargento Gonzalez diante de todos e da força que ele, Pietro, desprendia ao puxar o arado feito um animal, sulcando a terra árida e ressequida feito sua própria alma.

Certa feita, desmaiara e tivera dois dias de enfermaria com um diagnóstico de desidratação e anemia profunda. Sua tez havia sido queimada pelo sol escaldante e sua constituição não parecia a de um homem que estivesse com qualquer problema anêmico, embora seu abatimento fosse perceptível. Se o médico diagnosticara, após uma bateria de exames.... Então resolveram deixá-lo em paz por algum tempo. Foi obrigado a ingerir vitaminas e repousar o suficiente para recuperar. Com certeza, “arrepender-se-ia de ter nascido”. Mesmo porque, o sargento havia jurado por todos os santos e demônios que o vergastaria até abrir-lhe gretas no lombo, cobrindo-o com sal e merda para tostá-lo de forma adequada. Fora a frase que ouvira então...

Então... então o inferno chegara à Pietro ao invés dele, Pietro, ir parar no inferno. Se bem que... Bem, aquilo tudo não havia se transformado no verdadeiro inferno? Ou poderia haver algo pior? O inferno não existia e jamais existiria para aquele prisioneiro que envelhecera e transformara-se num homem que não podia mais crer em Deus ou diabos; céu ou inferno; justiça ou.. Afinal, o que haviam feito com aquele rapaz de vinte e cinco anos?

Quando as tiras do couro curtido lanharam as costas largas e os ombros espadaúdas do prisioneiro, todo o seu corpo contorceu-se num ríctus dorido, enquanto seus dentes rasgavam-lhes as carnes dos lábios, contendo urros de dor e ódio. O sangue brotara pelas feridas e escorrera pelo chão, enquanto os demais prisioneiros eram obrigados a presenciar aquele espetáculo degradante.

— Vão acabar matando esse pobre desgrenhado! —, rezingara Alonso, um grandalhão atroz que, um dia, tivera uma das pernas dilacerada e amputada dentro do presídio.

— Não vão não, cara! Pode apostar como Pietro vai deixar todos esses filhos da puta com o rabo entre as pernas. — Respondera Pancho, o maluco da cela 75.

Os ferimentos causados pelos castigos levaram Pietro novamente para a enfermaria. O sargento Gonzalez, apesar do ódio, sempre mantivera uma certa cautela. A morte lenta e dolorida; humilhante; mesclada com o a insanidade e o prazer mórbido, era a sua obsessão indisfarçável. Para o prisioneiro restava uma única obsessão: fugir. Tão somente fugir.

Cada vez mais “ausente”, “manso”, “distante”, em decorrência de tantos castigos impingidos por seus algozes, o condenado que passava mais tempo na enfermaria do que em qualquer outro lugar, acabou recebendo o apelido de “Túnel do Tempo” — respeitável, apesar dos pesares e chacotas. O tempo: implacável e sórdido daquele estranho rapaz doentiamente emudecido e incapaz de qualquer tipo de reação contra a adversidade, o sofrimento e a ausência de esperanças.. Bem, ali estava ele, em liberdade finalmente! No entanto, por mais que planejasse sua vingança, faltava-lhe algo para levar adiante os projetos arquitetados. Sim, o ódio havia morrido juntamente com seus anseios, seus sonhos, suas esperanças. Havia tornado-se um homem maduro e rústico, embora, algo estranho houvesse ocorrido em seu interior. Já não era o mesmo: impetuoso, determinado e sagaz. Sua sede de vingança parecia-lhe algo tão distante quanto sua juventude ou a estrela a brilhar no manto da noite eterna.

Por algum tempo pegou-se a rondar a casa do sargento e sua amante. Seguia-lhe os passos, conhecera sua rotina e hábitos. Poderia ter dado cabo daquele algoz empedernido que, de repente, parecera-lhe muito mais com um pobre homem doentio, portador de insanidade mental e outras doenças muito ruins como o ódio contra seus semelhantes e contra si próprio. Naquela noite, por um átimo, pensou em torcer-lhe o pescoço suarento e consumar de vez todos aqueles anos de espera. O homem parecera-lhe tão frágil em roupas de paisano. Na realidade, não passava de um pobre monte de banhas e pelancas que ia consumindo-se com suas viscerais crises de ódio e impotência em dar cabo da humanidade.

O fugitivo observou-o por longo tempo durante o trajeto que o levava da lanchonete até sua casa. Seus passos cansados, um tanto alto pelo excesso de álcool consumido, o cigarro pendendo no canto dos lábios. Com um pouco mais de atenção, o seu algoz revelava-se frágil e debilitado tanto quanto um canceroso em estado terminal. Observou-o tentando enfiar a chave na fechadura. Não passava de um homenzinho ridículo. Terrivelmente ridículo, patético e com os pulmões carcomidos tanto quanto o fígado e as entranhas laceradas pelo ódio e a cirrose.

O fugitivo, de longas barbas e óculos de armações redondas, metido em roupas discretas de cavalheiro, baixou o olhar, antes mesmo que o gordo sargento adentrasse a porta aberta e, dando meia volta, passou a caminhar na direção oposta. Já não sentia ódio. Não alimentava o ranço da vingança. Sentia-se um pouco triste. Mais envelhecido e um tanto cansado. Mirou demoradamente as estrelas que luziam no alto. Encetou sua marcha sem destino definido.. Somente então, sentiu que algo se havia rompido feito os grilhões e ele continuou caminhando até desaparecer no fim da rua. O orvalho tornara-se cristalino, límpido e abundante naquela madrugada que fora perdida para sempre.....


 

HUMILHAÇÃO

 

O homenzinho permaneceu lá, estacado, transido, muito quieto, transpirando à socapa e, sobretudo, esperando. Havia um século, uma eternidade naquela espera desarrazoada. A vergonha encorpara, criara sombras em seus pensamentos e momentaneamente ameaçavam-no feito as pessoas que observavam e ao observarem-no, perscrutavam sua alma. Gente estranhamente curiosa. Às vezes, não. Nem se importavam com sua presença destoando de tudo o mais, em virtude de seu jeito de se vestir, todo mal ajambrado.. Os chinelos de dedos, a calça puída, surrada, com um remendo tão inconveniente e disparatado quanto a vida, às vezes.

O homem da caixa registradora havia notado sua presença. Contudo, não havia como parar para atendê-lo. A fila infinda de carrinhos abarrotados perdia-se de vista. “Um mundo de víveres, suprindo casas bem estruturadas”. Não saberia precisar de onde rebuscara tal pensamento. Refocilando o lamaçal da memória de homem simples, humilde, olhos no chão?

Era freguês da mercearia. Não dos melhores. Atrasava uns dias, semana... Na realidade chegara a atrasar mais de mês. Contudo, pagava. Era homem de brios, honesto. Casado, mulher e filhos para sustentar. Não gostava de pedir fiado. Vergonha corando as faces. Rosando a tez esquálida sob a barba por fazer.

Ruminava os pensamentos. A conta havia aumentado de forma astronômica naquele mês. Denotava preocupação. Perceptível seu embaraço. Em casa havia somado, subtraído, tirando de um lado, acrescentando de outro. Não havia jeito, nem como pagar. Situação quase deplorável: as despensas vazias. Nem óleo, nem arroz ou feijão. O emprego escasso, raro. Nos últimos tempos vinha mantendo a casa e a família através de bicos no mercado informal. Ia tocando, como costumava dizer. Pedia emprestado. Agiota sabe que o caboclo está no fundo do poço, tira proveito, põe juros lá nas alturas. Acaba de afundar o infeliz. Caíra nas mãos de dois desses exploradores sem coração. Não conseguia sair. Devia um ano de prestações da casa. Não possuía nada de valor para vender. Aliás, coisa de valor acaba perdendo o valor na hora da venda. Sempre a mesma coisa...

Além do mercado, havia a farmácia, o açougue, as prestações da casa, os agiotas, água, luz.. Começara a passar noites insones. Qualquer hora, um ataque cardíaco, um derrame.. Sabe-se lá! Ia fazer o quê? Fugir? Não. Se bem conhecia sua natureza... Honra, honestidade e um pouco de dignidade que, lentamente, os patrões e os credores iam roubando, massacrando, espezinhando..

Limpou o suor da testa com a costa da mão. Transpirava em bagas. Os pensamentos à sorrelfa. Agitação incontrolável, devastadora. Não havia escolhido hora ou dia apropriados para conversar com o proprietário da mercearia. Pensou em sair, voltar quando o movimento houvesse diminuído. Não o fez. Seria o mesmo que fugir. Não era homem de se esconder, fugir ou ficar protelando. Sincero, dizia o que havia que. Angustia tomando corpo, num crescendo imensurável. Tinha para receber do patrão, não tinha? Então?

Era como tratava o prefeito: de patrão. Prestara serviços para o município ao longo de dezoito anos. O político quando não presta, não há o que dê jeito. Situação deplorável. Uma cambada. Quadrilha! Gente roubando, construindo, trocando de carro à cada seis meses e o homem — o tal patrão —, reclamando da situação. Arrecadação ruim. Certamente que se tratava de uma forma de discriminar, perseguir. Não puxava saco de patrão. Fosse por eles ( o prefeito e seus assessores ), ele e a família morreriam à mingua. De fome. Por vezes sentia-se cativo de seus algozes. Caso de reação, perderia os direitos. Consultara os Códigos Civil e Penal: coisas antiquadas, ancestrais, mumificadas no papel. A Justiça mais injusta que já se criara e sancionara com a aprovação unânime de homens intelectualizados. Um país de atrasos é o que era. “Ou é?”. Ocorreu-lhe que vivia o momento nefando da história.

Os pensamentos baralhando: desconexos em sua diversidade ao medir proporções de injustiças tantas contra os direitos do cidadão ultrajado, vilipendiado. Não, não havia medidas. Somente mágoas aflorando, crescendo dentro do peito e da mente. Gigantesca, enfarruscada, ferindo, matando, enquanto o país mergulhado naquela orgíaca barafunda: recessão, desemprego, falências, fome, doenças...

Hora e meia ali parado, esperando, ruminando pensamentos e mágoas. Ressentimentos. Ilusões esmaecidas, frustrações. Em sua idade não era fácil recomeçar. Não nos dias atuais. Além do que, havia o medo, a insegurança, estresse, sindrome do pânico... Há quatro anos vinha tentando livrar-se daqueles sintomas doentios. Vendesse a casa, não pagaria as dívidas. Não em sua totalidade. Bola de neve. Forçou-se a concentrar no momento; em seu propósito; necessidade momentânea: o básico para suprir as panelas, matar a fome da família.

Se crescia a angustia, diminuía a auto estima, reduzia a coragem, a decisão de expor a situação de forma honesta e direta. Sem rodeios ou meias-palavras. Pensou em Deus. Fiar uma prece. Era de coração, do fundo da alma, humilde, sincera, suplicante. Desesperada, diria! Havia sido atingido pelas raias do desespero. Caixas de compras abarrotadas; carrinhos superlotados desfilando diante de seus olhos. Pura humilhação. Necessidade e temor.

Então, percebera que suas mãos tremiam, suas pernas estavam trêmulas. Havia dentro do peito aquele sentimento de impotência; confrangimento que feria. Podia sentir a dor. Deus sabia o quanto doía. Não o prefeito e seus assessores nadando no que havia de fartura. Mergulhados em falcatruas e corrupção. Então não percebiam os funcionários públicos que não encontravam-se diretamente ligados a rede? Fornicadores impávidos da paciência humilde e sem voz para retrucar. Muitas, faziam por instinto de maldade. A maldade enfronhada, enraizada em seus corações empedernidos. Sequer davam importância aos eleitores e a política se aproximando. Votariam na mesma corja e naquele círculo vicioso criando vínculos sem fim. Havia um ciclo. Para tudo sempre há um ciclo e, mais dia, menos dia, ele chega a seu termo. Fecha ou rompe o elo. Não demoraria muito. Era nada o tempo. No entanto, para gente como ele, uma eternidade em humilhações e disparates. Difícil suportar.

Pensou em quanto tempo passara ali esperando. A vida o ensinara a enfrentar determinadas situações: filas, esperas infindas, sempre o último, sempre a mesma humilhação de, chegada a sua vez, ter que voltar outro dia, outra hora... Observou de soslaio, o movimento havia diminuído consideravelmente. Na primeira oportunidade, falaria com o proprietário. Todas as terças-feiras era a mesma coisa: percorria o comércio pedindo desculpas, implorando crédito, confiança. Havia quem compreendesse a situação. Às vezes, um ou outro, negava-se a um entendimento considerando que seria melhor perder pouco do que deixar acumular. Não perdia. Fazia questão de pagar. No fundo, entendia a atitude, a medida, por mais que soasse intransigente. Ia retrucar? Ele devia. O farmacêutico ou o açougueiro tinham lá seus direitos e razões. Vender fiado é arriscar-se se todos consideram a crise como forma de não cumprir com seus compromissos. Pesava e ponderava prós e contra, como se ele, o devedor, fosse o credor, o proprietário do mercado, da farmácia, do açougue. Todos possuem direito ao teto, ao trabalho, a alimentação, aos programas de saúde, a educação.... Mas e daí? Coisas que haviam inventado e escrito em papel. Ficavam bem no papel. Transbordava a alma saber que todos possuíam perante as Leis, os mesmos direitos e deveres. Nunca funcionara. Jamais funcionaria e esta era a realidade.

O último freguês da fila preenchera a folha de cheque. Saíra. Ele titubeou, indeciso por um instante. Em seguida retomou coragem, determinação e foi se chegando, diminuindo feito um bicho acuado, escarafunchando no antiquado baú da memória, as palavras e frases mofadas, fugidias e ranças com as quais explicar-se. Faltava-lhe o início da fala na voz trêmula, envergonhada, acabrunhada, macambúzia. Explicou-se o melhor que pôde. Sem pedir nada.

— Semana que entra? —, perguntou o homem sisudo, enérgico, de olhar esmagador a percorrer-lhe as entranhas da sinceridade.

— Já era para ter acertado, mas... —, deixou a frase incompleta, fragmentada.

— Está bem. Seguro mais esta semana. —, resmungou o proprietário do alto de seu poder de negociação. Não era um homem ruim. Não poderia classificá-lo, de forma alguma.

O homenzinho abaixou o olhar. Por um segundo, rebuscou o que dizer. Havia secado por dentro. Por fim, olhou para o credor e emitiu uma espécie de muxoxo:

— Brigado, então.

Disse à seco. Foi saindo. Arrastando as sandálias. O mundo desmoronando. Não tivera coragem o suficiente para pedir mais um “tiquinho”. Coisa de nada: arroz, óleo, feijão, farinha. Deixara-se acovardar, impotente. O outro não respondera. Voltara a concentrar-se na caixa registradora. A tarde reclinara, crepuscular. Sentiu o olhar marejando. Pensou na família. Pensou no patrão. Foi caminhando lentamente: a rua sem fim e a decepção. Havia falhado. Algo dentro dele também havia sido irremediavelmente partido, estilhaçado. O que dizer à companheira que o esperava com os filhos famintos?

Quarenta e cinco anos. Um homem feito, caminhando à esmo, com o olhar voltado para o chão, escondendo as lágrimas insistentes, frias feito aço de ponta de faca, lápide. Frias feito a palavra não. Então pensou: teria coragem um dia para, gritar até arrebentar os tímpanos da vida, do destino, dos homens? Teria?........


 

PHELÓPHIDAS

 

Phelóphidas descobrira, desinteressado que, aquela madrugada transformara-se numa espécie de eternidade. Delimitador algum entre sanidade mental e loucura. Tão somente lassidão e desinteresse. Ao menos se lhe parecia e, com certa acuidade, lhe concernia. Não que o jovem Phelóphidas fosse algum débil mental, como costumavam julgá-lo, mas contrário a tais premissas, seu QI —, não se pode necessariamente precisar porque, havia usado uma espécie de catapulta e dado um salto fenomenal. Esse talvez, o motivo pelo qual ele se parecesse muito mais com um ser de outro planeta do que com um jovem adolescente comum.

— Talvez o sol nem volte a brilhar — Pensou.

Mas não havia importância. Que importância há nessas coisas todas, afinal? Como se a vida pudesse, realmente, forjar algum significado através do qual, um ser humano viesse emprestar-lhe o devido valor... Phelóphidas apertava o pênis ereto, absorto. Respiração compassada. Excitado. O aparelho de TV, sintonizado no especial da madrugada, exibia um filme amorfo.

No vídeo, por uma fração de segundos, uma mulher aparentando 30 anos, aproximadamente, exibiu-lhe rechonchudas nádegas brancas. Phelóphidas estendeu a mão tateando, sem desviar sua atenção da cena. Encontrou a lata de cerveja que, levou aos lábios, sorvendo longa e sofregamente. Tudo parecia-lhe tão apático, insosso e atemporal....

Lá fora, no quintal, um gato miou no cio. Ervas emaranhavam-se, atingindo a cintura de um homem. Quase um metro de altura. Phelóphidas volveu o olhar enervante para a avó que começara a desprender aquele odor nauseante, enjoativo. A velha permanecia inerte na poltrona ao lado.

Mesmo com as flores que, esforçavam-se por atenuar o odor fétido, o ar permanecia denso na pequena saleta que, à cada hora passada, tornava-se ainda mais sufocante naquela penumbra mortiça. Havia no ar, algo de sórdido, mórbido, maligno. Havia e Phelóphidas sabia disso. E este era o fato que mais o irritava além de... Bem, bem... Ele sabia!...

No único castiçal, restara a cera remanescente do que fora uma vela que ardera por tempo considerável. Phelóphidas sabia que algo acontecera. O tempo havia estacado. Porquê a mulher na tela não virava-se de vez? Apertou os colhões na expectativa.

O olhar opáceo, leitoso e aparvalhado da avó deixara-o constrangido. Não muito. Mas, enfim, atrapalhava. De forma que, manuseava o pênis discretamente. Por alguns instantes, observou as mãos ressequidas da velha. Suas faces arderam febris. Procurou espantar — imediatamente —, aqueles pensamentos. Aberração. Um quadro bizarro nas trevas de sua mente. Algo insano. Ergueu-se à custo, molemente e, com um pano qualquer, cobriu o rosto apático e sem expressão alguma da velha caquética e morta. Não sentira nada. Sequer uma ponta de emoção. Nem medo, ou ansiedade em livrar-se dela. Afinal, nunca importara-se com a velhota. Seguramente, não seria após a morte.

Sua mente turbilhonou. Um pipocar, matraquear de arma automática. Os pensamentos o deixavam confuso. Por isso, preferia evitá-los de alguma forma. Então, tornou a concentrar-se no vídeo da televisão e a esperar. Quanto tempo se passara; havia transcorrido, afinal? Talvez uma semana, um mês? E a velha? Movera-se, realmente?.

Impressão. Havia momentos em que poderia ouvir — ou juraria ser capaz de.. —, aquele gorgulho roufenho, proveniente da garganta da velha agonizando. Querendo expulsar de dentro de suas entranhas o ar e as palavras à um só tempo.

— Groouuu!... — Era como alguém que estertora, agonizante. Como se pedisse por socorro ou, lançasse qualquer espécie de maldição sobre alguém. A velha deixara escapar aquele som proveniente de muito distante, para além do compreensível ou imaginável. Algum fosso escuro, infindo que ia dar no....

.... Inferno! Vai para o inferno, acho... — Pensou observando o vulto desgrenhado do expecto. Uma enorme mosca zumbiu por sobre sua cabeça, violentando aquele silêncio que lhe parecia a própria eternidade. A débil luz que emanava do vídeo sem nenhum som, esmaecia, em dados momentos, bruxuleando até quase se extinguir.

— E se tudo escurecer? — Procurou fechar os olhos para saber como seria. Mas não era o mesmo. As trevas. O silêncio e as trevas. Voltou a olhar para a velha. Imóvel. O odor fétido adentrou-lhe as narinas e quase o fez vomitar toda a cerveja que ingerira com aqueles dois pacotes de “chip’s”.

— Se decompondo! Fétida! Isso é nojento. Bastante nojento mesmo! — Sua mente escarafunchou outros tempos, embriagada pela cerveja. As moscas haviam-se multiplicado. Dezenas, centenas delas bailavam em torno da velha. Pousavam, voltavam a alçar vôo, zumbindo como que a zombar dele, Phelóphidas. A nona havia apodrecido. Tinha certeza de que ocorrera. Contudo, já era de se esperar que aquilo viesse ocorrer mais cedo ou mais tarde. O que restara acabaria emitindo gases, criando bichos e poluindo o ambiente com aquele cheiro nauseante.

— Nojeira dos infernos! —, voltou a imprecar, tentando ao mesmo tempo concentrar-se na TV. Sentiu o estômago revolver-se em ânsias. Tudo aquilo era, na realidade, pior do que havia sentido antes. O pavor que tomara conta de seu ser ao perceber que a velha não resistiria por muito tempo. Por isso ele mesmo resolvera pôr termo aos sofrimentos da avó. Não suportava mais vê-la sofrer.

— A maldita coisa está morta. Morta e podre. E isso, isso é tudo, cara! Vamos compor uma canção, escrever versos porque a maldita velha está podre e continua rindo como se ainda pudesse esperar que algo mais ocorra nos próximos anos. Ela apenas está morta ao meu lado e já não sofre mais. Isso é tudo, ouviu? — Declinou exasperado como quem explicasse à própria consciência que passara a incomodá-lo.

Sentiu o vento gélido adentrando por alguma frincha da sala e atingindo-o diretamente na nuca. Virou-se sobressaltado. Pela primeira vez sentiu uma ponta de medo. Se não aparecesse ninguém em mais dois ou três dias no máximo, teria que sair para o quintal e cavar ele mesmo, uma cova para a velhota.: Um buraco qualquer e pronto.

— Conquanto seja bem fundo! —, concluiu absorto.

Atirá-la dentro, cobrir com terra e algumas folhas secas e mato rasteiro. Afinal, ela apodrecera. Observando atentamente, poderia jurar que, algo começara a mover-se sob o pano.

— Vermes? Deve ser isso: vermes deslizando de um lado para outro. —, concluiu.

No entanto, sentiu um frio formando um bolo em seu estômago. Um arrepio danado percorrendo-lhe todo o corpo. Medo. Sem que se desse conta, o medo absurdo começara a agigantar-se e tomar conta de todo o seu ser. Espezinhava-o, fustigando sua mente e imaginação.

— Não, não posso deixar-me levar. A velha está morta e isso tudo não passa de impressões ruins. Talvez o efeito da cerveja, este cheiro...

Um roçagar sob o manto que cobria o cadáver, colocou-o em alerta, tamanho o susto.

— Foda-se! —, imprecou entredentes, encarando o cadáver da velha decrépita, morta e recendendo a podridão e coisas ancestrais.

— É isso mesmo, sua velha porca! Dane-se, porra! —, repetiu, dessa vez vociferando às paredes.

Mas a velha não respondia. Mesmo quando sua cabeça pendeu para o lado de Phelóphidas, fixando-o com aquelas duas cavidades escuras onde, até alguns dias atrás, dois olhos moribundos repousavam febricitantes.

Então, Phelóphidas saltou da poltrona e percebeu que a velha parecia sorrir-lhe. Ocamente. A boca aberta num O de abissal terror. Ele voltou a encolher-se em sua poltrona. Seu corpo todo tremia de forma incontrolável. Desviara o olhar mas, sabia que aquela maldita noite, aquela macabra noite, nunca, jamais chegaria ao fim.......


 

FRAGMENTOS COTIDIANOS

 

(Retalho número um)

 

Bia mirou-se no espelho procurando uma possível, ou melhor, provável “erupção” na face direita. Apenas e tão somente uma diminuta e violácea mancha se destacava em sua tez pálida, à despeito do uso ostensivo e desregrado da maquilagem. Certamente a inflamação de uma espinha interna. Fora a conclusão a que chegara, enquanto calçava os sapatos de saltos baixos para a lida cotidiana.

Aos 25 anos, Bia tornara-se uma garota extremamente obcecada por sua independência. Galgava, rápida e objetivamente, uma escadaria que a levaria, inevitavelmente, aos mais altos e cobiçados escalões em sua carreira. À qualquer custo. À qualquer preço.

Proveniente da constrangedora pobreza interiorana, Bia rapidamente se esquecera da família miseravelmente fustigada e açulada pelo destino impiedoso. Inconformada com as privações e a deselegância da modesta sociedade com a qual vira-se obrigada a conviver por muitos anos, Bia decidira deixar para sempre aquele lugar. Suas amigas, à princípio, apenas afastaram-se indiferentes para, mais tarde, cultivarem uma espécie de asco e inveja pela “putinha enrustida” que, visitando o pessoal durante as férias, demonstrava com seu orgulho e fricotes, o quanto o ser humano é capaz de se deixar transformar quando empenhado na busca da riqueza e da fama.

Quatro anos depois, aparecera com um “Monza”, talão de cheques, cartões de crédito, roupas ousadíssimas e caras, jóias e, segundo as velhas amigas, “um jeitinho bem nojentinho e cocô de falar que, botava qualquer um de fígado amargando”.

Contudo, Bia ascendera a ponto de “mostrar para aquela gentinha, do que era capaz”. Até mesmo o ex-namorado que a deixara por uma daquelas babaquinhas da classe média do lugar, levara “ o seu devido choque” quando, caminhando pela avenida principal da acanhada e modorrenta cidadezinha a vira passando lentamente em seu incrementado carrão. O ex-namorado, os dois filhos e sua “gata borralheira” com o bucho inchado esperando mais um daqueles “porquinhos” que as mulheres dali, procriavam de forma abundante e inconseqüente.

Por fim, rodeada pelos destacados nomes da alta sociedade da metrópole e, sobretudo, com sua agenda completamente tomada por compromissos relevantes, esquecera-se de vez daquela gente toda. Inclusive, pais e irmãos.

A mancha ardia e quanto mais coçava-se, tanto mais o comichão aumentava. E durante o sono, suas unhas esmaltadas, acabaram por ferir levemente o local que, sangrara e, embora ardesse e tanto coçasse, verificara estupidificada que não se tratava de uma simples acne inflamada. Mas sim, de um purulento e asqueroso “vulcão” que tomava conta de boa parte do rosto, estendendo o seu purpúreo círculo por toda a face, até a orelha e o queixo belamente desenhado.

Desesperada deixara o consultório médico. Nenhum dos especialistas em Dermatologia, aos quais se expusera, pudera sanar aquele repugnante mal. Trancafiada em seu apartamento há quinze dias, ao despertar de um sono intranqüilo e povoado por terríveis e avassaladores pesadelos — desde então constantes —, no auge do desespero, concluíra que a morte seria sua única cúmplice naquela degradação lenta e aterradora. O tumor crescera de forma desmesurada e rompera-se por toda a face, espalhando-se pelo pescoço e se alongando pelo tórax num vergão sangüinolento, fazendo verdadeiro estrago em torno de um dos montículos tão cobiçados de seus seios voluptuosos.

Embora houvesse ingerido exagerada dose de barbitúricos, e atirado-se na cama com uma revista para a qual posara em todo o seu esplendor, beleza e sensualidade, não deixara a vida que se lhe tornara por demais cruciante. Apenas caíra em profundo e letárgico sono do qual despertaria ainda mais deprimida e derrotada. Sua beleza e grandiosidade, foram reduzidas a uma pústula que a tornara irreconhecível.

Todas as forças que lhe restavam, romperam suas cordas vocais e bailaram estridentes e agonicas num berro inumano e monstruoso, enquanto o sol ardia por sobre os espigões de concreto da grande cidade. Em seus olhos muito abertos, o pavor retratava a sua total demência. Debilmente mirara-se pela última vez no espelho partido ao meio, a refletir somente o lado direito de seu corpo. O esquerdo, ainda intacto, não era retratado. Apenas um amontoado de carnes putrefato fora fixado segundos antes do sol entrar por onde os vidros haviam sido estilhaçados. As vidraças panorâmicas que davam para o vazio entre o céu azul e claro e o negror desolado e zombeteiro do asfalto da rua que ainda bocejava lá embaixo....

 

(Retalho número dois)

 

Às duas da madrugada, o cara ficou invocado. Levantou-se da cama de um salto. Vestiu-se indiferente. Passou um café forte. Fumou dois cigarros sentado à porta do casebre. A mulher e os cinco filhos ressonavam inocentemente lá dentro. Apanhou o revólver, alimentando-o com cinco projéteis, fechou a porta atrás de si e saiu caminhando à esmo pelas ruas vazias. Fazia frio. As ruas eram longas, sem fim. A vida, o destino, o futuro, tudo sem nexo. Foi caminhando à passos lentos.

Em alguma esquina, encontrou uma joalharia. Arrebentou com golpes firmes e ruidosos a vitrina que, acabou se estilhaçando após alguma resistência. O alarme soava invariavelmente. Um som estridente, monótono, tenso, desafiador.

Atirou duas vezes antes de ser atingido pelos disparos dos seguranças da empresa.

Madrugada: os jornais rodavam enfurecidos suas manchetes em tinta e sangue.

 

(Retalho número três)

 

Na realidade o rapazola não sabia bem o que estivera fazendo todo aquele tempo. Era tão somente um garoto ainda. A mãe, precavida, prevenira toda a família: “O menino me parece com um jeito estranho de uns tempos para cá que, Deus me livre e guarde se não anda...”. Calou-se. Melhor resguardar-se, às vezes.

A menina, Sara – apenas nove, dez anos —, ela sim, poderia realmente ter alguma noção do que era aquela coisa. Do que estava se passando em verdade. Afinal, o pai e a mãe faziam ali, indiscriminadamente, bem à olhos vistos. E bem que Sara, apesar da pouca idade, já estava se tornando uma mocinha, encorpando.

O casebre dividido em dois cômodos, separados por um surrado e puído cobertor, abrigava a família e mais o rapaz que era “meio pancada”, filho do Tião mais uma daquelas “piranhas” através das quais os homens costumam se descobrir antes de firmar pé e tomar tento botando família.

“Castigo de Deus!”...

“Filho bastardo!”....

“Tinha que dar nisso aí!”....

Lincharam o infeliz do bobinho antes mesmo que a polícia chegasse e o pai ficasse sabendo dos fatos. Apenas a mulher do Tião permaneceu por longo tempo, estática, observando a cena: o garoto linchado e a menina Sara de olhos esbugalhados, com as mãos crispadas, o corpo sem vida sobre o colchão maltratado....

“Quase uma mocinha, já!”...

 

(Retalho número quatro)

 

Era uma ratazana. Dessa enormes e assustadoras. Lembro-me muito bem. Ela veio se chegando arisca, escarafunchando e deslizando pelos cantos do quarto. Estacava de repente erguendo a cabeça afilada, sentindo o ar com suas narinas aguçadas. Tentei esboçar — eu juro —, uma reação qualquer. Tudo o que consegui, foi permanecer imóvel e aterrorizado. Ela se aproximou sorrateira do catre em que eu me deitara. Vinha, emitindo uns guinchos estridentes, experimentando, impaciente, faminta. Não havia som quando berrei. Havia um túnel liso, sem as cordas vocais, em minha garganta rasgada...

De forma que, por mais que minha mente emitisse o desesperado grito, apenas um gorgolejar desesperado fruía pela cavidade antes mesmo de chegar aos lábios. Quando a gorda e aterradora ratazana começou a mastigar minha orelha, tudo o que pude fazer, foi agarrar-me à idéia que se me roçara pela mente naquele momento de angustia: “Tudo não passa de um maldito pesadelo”.

“Havia mesmo uma ratazana? Ou melhor, há essa ninhada que ‘chia e guincha’ agora dentro de algum compartimento em meu corpo? Porquê não consigo despertar de vez? E mais essa: todos ficam me observando. Dizem coisas que não ouço, não consigo entender!...

“Quando ela, a maldita ratazana, passou a mastigar minhas narinas, em seguida os lábios e finalmente os olhos, percebi que não havia dor. Por isso, somente poderia ser um pesadelo... Senão, é claro que eu sentiria dores horríveis... Então, deixei que continuasse o pesadelo quando vieram e me enterraram. Ouvi a terra caindo sobre o caixão. Mas não importa, tudo não passa de pesadelo e, daqui à pouco, terei que me levantar para o trabalho. Provavelmente, alguém virá me despertar. É, provavelmente alguém terá que, necessariamente, fazer isso porque eu mesmo, eu não consigo despertar deste maldito pesadelo!”...

 

(Retalho número cinco)

 

Ora azuis, ora verdes. Às vezes, tendiam para o amarelo de forma encantadora. Desbotando para um cinza muito claro o que acabava confundindo à todos que ousavam fitá-lo demoradamente. Vivos, lépidos, sedutores e sonhadores...

Logo que abrira os olhos — incrível, inacreditável mas, já viera ao mundo com aquelas duas jóias! —, deixara a todos estarrecidos, boquiabertos. Como era possível?! Tanto que, durante toda a sua infância, as titias, priminhas e vizinhas, faziam-lhe a corte. O verdadeiro reizinho de França com sua beleza embriagadora. Deus exilado do Olimpo. Tão logo atingira a idade para os primeiros namoricos, Méphis fora inevitável e decididamente “abalroado” pelas gatinhas. Os amigos afastavam-se dele ante a impossibilidade de uma concorrência. As cocotas chegavam a se engalfinhar por sua causa.. Loucura!

À princípio, toda aquela balbúrdia não lhe parecera de todo tão má. A mãe, possessiva, vigiava enciumada o seu tentador garanhão. Até mesmo Félix, o delicado do bairro, enrustira-se para o seu lado, tornando-se obsessivo em seu íntimo, a cultivar aquele amor impossível. Idolatria desconexa.

Se à princípio fora algo apreciável, não durou tanto para cansá-lo, roubando-lhe a privacidade. As garotas todas o perseguindo todo o tempo, em delírios e desejos mal disfarçados. Aos poucos sua beleza passara a incomodar. Então fizera, de forma ininterrupta, o uso de óculos escuros. Lançara mão daquele artifício todo o tempo possível. Contudo, embora procurasse permanecer no anonimato, tentando camuflar o feitiço de seus olhos, não o conseguia. As garotas pareciam adivinhá-los.

Tornara-se infeliz. Sentia-se perseguido por legiões de aladas deusas. Ninfas sedentas e sedutoras tomavam-no de assalto, decididas a possuí-lo. Como quem possui um bibelô, talvez. Já não conseguia dormir e muito menos, se alimentar. Definhara em sua estrutura dionisíaca. Contudo, “os malditos olhos” permaneciam sempre imutáveis, vivazes, seqüestrando as almas. Arrebatando as tempestivas paixões.

Por incontáveis vezes, dizia à si mesmo que era preferível dar cabo à vida. Faria qualquer coisa para possuir dois olhos comuns. Como todo o resto do mundo. Um segundo de paz. Um, apenas. Aquilo tudo acabaria, certamente, levando-o à total loucura....

Não, Méphis não possuía aqueles dois buracos negros, escavacados, deformando-lhe as faces e quebrando aquela homogeneidade em sua beleza. Não, não nascera privado dos globos oculares. Apenas cansado, arrancara “os malditos” para que pudesse ser um homem comum. Quase igual aos demais.....

 

(Retalho número seis)

 

Nada mais o seduzia tanto quanto os carnudos e róseos lábios que, delicadamente entreabria para, deliciado percorrer com sua ágil e potente língua. Dali também, após mordiscadas e lépidos beijinhos, em verdadeiros chupões, sugava o néctar embriagador. De preferência, as sedutoras e provocantes ninfetas.

Desta forma, passara boa parte de seu tempo com a cara enfiada entre duas pernas. Extasiava-o a idéia de poder esfregar ali todo o seu rosto e, se possível fosse, penetrar até o mais profundo daqueles venturosos ninhos de prazeres e deleites gozosos. Embora as ninfetas fossem, por suas liberdades e libertinagem, as mais visadas, não dispensava — em hipótese alguma —, a espécime já adulta e devidamente explorada.

Fora uma dessas. Um jeito provocativo, sensual, adúltero que o seduzira de forma incontestável. A experiência e voluptuosidade proporcionaram-lhe novos prazeres. Então rendeu-se aos caprichos da maturidade, afastando-se definitivamente das pouco sensíveis e bem menos vorazes ninfetinhas.

Era aquele entreabrir; aquele envolver; agasalhar que, num jogo minuciosamente engenhoso o arrebatara de vez, tornando-o um escravo possesso. As primeiras sensações surgiam de forma morosa. Era como que um tubo de sucção, o aspirando e comprimindo com suas paredes úmidas e quentes. À princípio deixara-se deslizar somente cabeça e pescoço. Logo, ombros e tórax....

Certa feita, no auge do prazer incontrolável, sentiu-se penetrando até o mais profundo. Fora o mais louco mergulho. Ela mastigou-o em seu interior. Degustou-o lenta e voluptuosamente. Ambos possuídos pelo mais contundente e insaciável prazer. Sufocado procurou o ar. Percebeu que encontrava-se aprisionado e, por mais que se debatesse, não conseguia retroceder um milímetro sequer. Ela trancara seus lábios retendo-o em seu interior para sempre, talvez....

Se encolheu para acertar-se numa posição menos incômoda enquanto pensava em algo e, somente então, percebera que uma fina, tênue membrana, o envolvera e que, sem notar, passara a boiar numa espécie de líqüido. Chutou forte, tentando esboçar uma reação, um protesto qualquer. Em seguida acomodou-se conformado e resignado..

Afinal, concluiu, o mundo lá fora não era tão seguro assim. Nem mesmo aqueles lábios já lhe despertavam tanto prazer como presumira até então....

 

(Retalho número sete)

 

É absurdo! Contudo, procuro amiúde, lembrar-me do que aconteceu de fato. Talvez eu tenha somente enlouquecido. A merda é que, por mais que eu procure me lembrar, mais e mais me vejo terrivelmente inapto a chegar a uma conclusão que aquiete em meu ser, este estado de desespero e angustia.

Recuo no tempo. Teço teias e fio conjecturas. Sempre, inevitavelmente acabo me perdendo no embaraço obscuro de lembranças relapsas. Não consigo definir de onde vim, o que faço e, por mais que eu tente me comunicar com as pessoas, elas continuam passando sem que me percebam. Abordo-as desesperado e, em vão, percebo que não podem me ouvir ou sequer, verem.

A única lembrança concreta que me fustiga a mente, é aquele quadro horrível em que muitas pessoas choravam inconsoláveis à volta de um caixão lacrado. Em seguida, tudo volta a tornar-se indistinto. Os rostos, as ruas, as casas. E, de repente, quando começo a me sentir próximo de uma resposta, uma explicação qualquer para este enigma, sinto algo romper. Ao mesmo tempo em que mil cenas desfilam morosas por minha mente. Fragmentos da infância, coisas e fatos desconhecidos, remotos, distantes... Por quanto tempo, afinal. Sim, quanto tempo ainda?...

 

(Retalho número oito)

 

Penso como se houvesse apenas metade. É, meio pensamento. A outra metade, ele adiava impreterivelmente, sem jamais importar-se com a situação. Na rua, sorria metade. Metade da conversação, ele travava. De repente, saia deixando as pessoas esperando. Sem conclusão alguma. No banheiro, driblava a outra metade. As pessoas estranhavam. Principalmente quando passou a se trajar conforme sua natureza.

Pensou metade naquela manhã. Metade sonolento, metade disposto, desperto. Dormira pela metade. Metade dele, ingeriu meia xícara de café que era metade palha e, meio apressado, meio tranqüilo, saiu para a rua que, para ele, possuía apenas um lado. O que na realidade quase irreal em seu jeito meio sem jeito, era somente metade da rua. Meio aceno. Meio cumprimento. Meia olhadela numa das coxas que passara e não.

A vida toda, metade. A namorada meio impaciente, chamara-o de “meio homem” e, pela primeira vez em sua meia vida, ficara meio zangado. No emprego, apelidaram-no “meia foda”. Ganhara meia promoção. Metade fora rebaixado no cargo que exercia pela metade. Nunca dera metade da importância que pensavam que ele pudesse dar às meias zombarias.

Na metade daquele dia, quando percebera finalmente que sua vida era uma bosta, meio de saco cheio, colocou metade do corpo sobre os trilhos do trem. O trem o matou? Nunca soubemos. A outra metade da sua história, jamais nos foi confiada.....

 

(Retalho número nove)

 

Aderbal sentia ímpetos de gritar. Em virtude do pavor que tomava conta de todo o seu ser. Sempre. Uma espécie de medo sem causas. Ou, no mínimo sem diagnóstico. Afirmavam os médicos. O clínico geral, o psicólogo, o psiquiatra e por fim, o parapsicólogo. Nem mesmo o “Pai de Santo” ou o “Médium vidente”... Nenhum conseguira descobrir a natureza de seu medo. E Aderbal continuou com o seu medo. Trancado dentro de casa. À sete chaves. Tremendo ao menor ruído. Gritando frente às sombras. Cultivando pesadelos e, incomunicável, sentia medo do próprio reflexo junto ao espelho.

Aderbal sentia ímpetos de gritar. Como sentia pavor do próprio grito, não gritou. Acabou tendo um ataque cardíaco fulminante. Coitado, morreu de susto por causa do medo. Ou, de sua sombra que fora projetada junto a janela quando, à luz difusa e bruxuleante, adentrara o quarto para deitar-se.

 

(Retalho número dez)

 

Percebera que sua imobilidade era perenal. Ou melhor, por mais que tentasse, não conseguia mover-se. Mesmo porque, seu corpo havia inchado, dobrado em tamanho e peso. Sentiu que tornara-se uma figura descomunal. Totalmente irreconhecível. Estranha. E algo, em algum lugar dentro dele, começara a mover-se. Lentamente. Tentou concentrar-se para descobrir o que lhe ocorria, mas sua lucidez, sua capacidade de raciocínio, deixavam muito a desejar. A mente parecia embotada, anestesiada. Quando aquela sensação de que algo, realmente se movera dentro dele voltou de forma lenta e pegajosa, somente então, como que num clarão de lucidez, ocorrera-lhe que aquela coisa ou, fosse o que fosse, movia-se em seu próprio cérebro. Ou seria o cérebro quem se movia dentro da caixa craniana?

Relaxou durante alguns segundos, tentando em seguida, amiúde, concentrar-se. certamente formar-se-ia em sua mentalização, a imagem daquilo que movia-se dentro dele. Poderia ser que sim, afinal, não custava tentar. Passara muito tempo concentrando-se. Desistia? Quase. Foi quando uma forma mal delineada, uma imagem, à princípio amorfa, surgiu-lhe: “Oh Deus! Absurdo!”. Sussurrou entredentes, transpirando à socapa, em bicas, aterrorizado.

Contudo, por mais que parecesse absurdo, ilógico, a coisa passara a mover-se de forma mais livre e ousada e, era exatamente em seu cérebro que ela fora aninhar-se. Não, não podia crer naquilo. Quem acreditaria, afinal? O enorme “bigato”, arrastava-se deixando um sulco gosmento por onde passava. Somente então conseguiu lembrar-se da salada. Alface. Não havia outra explicação: as larvas! Quantos milhares daqueles bichos nojentos e gosmentos, em breve, não estariam se multiplicando e passeando dentro de sua caixa craniana, embotando seu cérebro, deslizando de um lado para outro? Quantos, afinal?!...

 

(Retalho número onze)

 

A madrugada arrastava-se molemente, num fastio que impregnara-lhe a alma e os pêlos. Deitado na cama, sem o menor movimento, ouvia o badalar das horas no relógio da torre da igreja matriz local. “Uma bosta a matriz, o relógio, essa cidade!”. Imprecava e sorria feito um “aleijão mental”. Heresia. Sequer atinara que pensamento mais absurdo era aquele. Mas, enfim, era mesmo uma porcaria. A cama se mexera, realmente?

Cravou o olhar céptico na parede branca à sua frente e, por uma fração de segundos, pensou ter visto a parede se deslocando lentamente. Para o lado? Como se de repente, adquirisse vida própria? “Que porra de idéia é essa?”. Melindre, deslize: “Estarei pirando?”. Voltou a rir de suas conclusões. A maneira como formulara a pergunta. Tinha seu jeito. Contudo, na realidade, voltou a ter a mesma sensação: a parede se deslocara. A cama se mexera. Algo parecia, seguramente, ceder. “Que merda! Deve ser o peso da feijoada”. Concluiu, tentando afastar aquela sensação intermediária entre o pesadelo e a realidade.

De repente, era como se alguém lhe houvesse dito algo num sussurro. Sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o corpo, enquanto a cama começara a flutuar. Lentamente. O que estaria se passando, afinal? Fechou os olhos tentando livrar-se do medo que começava a tomar conta de sua mente de forma a se avolumar. Contudo, os sussurros fizeram-no saltar, então já aterrado.

Permaneceu imóvel, transpirando; a respiração ofegante, o coração dentro do peito aos saltos.. Sombras passaram a brincar em sua frente. Ia começar a gritar quando o zumbido rompeu seus tímpanos e aquela mão bailou junto ao seu rosto, suspensa no ar.

O grito restara congelado na garganta que ardia e seu corpo foi erguido da cama que pousara suavemente após deslocar-se para o outro canto do quarto. Lá fora, um cão ladrou longamente. Foi quando, sem perceber, ultrapassou o telhado perdendo-se no espaço infinito e, adquirindo velocidade incalculável, passou por antigos mundos e planetas e constelações. De forma incompreensível, pôde perceber ainda que, voltara com a mesma rapidez com que saíra de seu próprio corpo.

Antes de se perder completamente pelo vale sombrio que o atraía, puxando-o de forma inapelável, sentiu que algo se rompera e era como se começasse a cair nalgum vazio abissal. Continuava caindo sempre. Mesmo sem o corpo. E não conseguia descobrir porque já não havia corpo: ele havia se desvencilhado de suas sensações que também, lentamente, iam se esmaecendo...

 

(Retalho número doze)

 

— Que bosta! — Imprecou. E, segundos depois, não somente imprecou, como o fez aos brados. Em alto e bom som.

— Bosta! Há uma semana estamos aqui e, até o momento, não parou de ventar um segundo sequer. Vento e poeira. Terra, terra vermelha, pegajosa!.

Havia poeira por toda parte. Despertava tossindo; a garganta ressequida tanto pó. As narinas, os olhos...

— Até a alma! Estamos chafurdados na poeira até os cornos! —, berrava irado.

A mulher temia o vento. Limpava, limpava. E o vento assobiando, trazendo a poeira vermelha, ancestral. Camadas e camadas acumulando-se dentro da casa. Até que a situação tornara-se insuportável. Mesmo porque, não podiam abrir portas ou janelas e, por isso, descobriram que estavam, definitivamente, isolados do mundo. Do mundo?..

Um dia ele ficou muito danado da vida, apanhou seus tarecos, a mulher e, enfrentando dunas que impediam as portas de serem abertas, resolveu sair dali para sempre. Somente então, descobriram que a cidade havia sido recoberta pela poeira. Era não mais que um deserto. Dunas e dunas que iam se perder distante, onde nem pensavam em avistar os confins.

— Não te falava, mulher? Essa cidade é uma bosta! Sempre foi!.

A mulher que nunca abria a boca, concordou arrematando:

— Choveu bosta em pó e, babau, cidade!

Os dois iam caminhando. Um vento iracundo, intermitente soprava às suas costas. Como se fosse o capeta rindo.


 

MERO ACASO?

 

Creio que seja feito um mergulho, entende? Quando a existência da gente chega a um determinado ponto; quando não há mais nada que se possa fazer para forjar novas circunstâncias que nos levem a continuar acreditando que, com um pouco de sacrifício, talvez algo possa vir a ser mudado, então tudo o que nos resta a fazer é o que costumamos usar como um chavão, lugar comum: “mergulhar de cabeça e ver no que vai dar”. E, sinceramente, estou prestes a fazê-lo. Não há como evitar. Não se pode pensar duas vezes ou esperar e esperar que algo ocorra. Porque tudo o que podemos vislumbrar, não passa de um beco sem saída. É como caminhar por algum longo e lúgubre corredor, sabendo o que te espera.

No final deste corredor, bem, todos sabemos o que nos espera, não é mesmo?

Eles te jogam sentado naquela merda como se você fosse algo diferente, talvez importante. Prendem todo o seu corpo e te colocam uma coroa. Não é mais ou menos assim? Uma bela coroa e um negro capuz. Na realidade, todos os reis que nela tomam assento, não passam de vilões. Quando você realiza seu último pedido, após o padre resmungar um monte de asneiras que em nada irá ajudá-lo, então eles baixam a chave e a corrente chega até o seu cérebro. Dizem que dá até mesmo para sentir o cheiro adocicado da carne. Churrasco mal passado. Mas isso pode ser somente mais uma dessas piadas de mau gosto. Não pode ser outra coisa senão uma terrível e patética piada!

Durante um longo período de reclusão, estive meditando sobre a existência. Sabem essas coisas de família; esposa; filhos; amigos; parentes; emprego; patrão?.. Você, de repente, sem que perceba, transformou aquele pequeno apetrecho de passeio em um fardo muito, muito maior e mais pesado do que você poderia imaginar ou, pensava que conseguiria arrastá-lo de um lado para outro. Então a mente vai ficando pejada, embotada e começam os problemas. Os verdadeiros problemas. Mas feito ratos, essas pequenas cobaias de laboratórios, fomos condicionados: aprendemos a cultivar a paciência, a fé, a esperança... Essas coisas que nos alimentam interiormente, espiritualmente, entendem? Não violamos os direitos do próximo porque aprendemos muito cedo a discernir o certo do errado. Então ouvimos a voz implacável da consciência: não roubar, não matar, não trapacear, não mentir. E, no entanto, na maioria das vezes, passamos o tempo todo mentindo para nós mesmos. É incrível como mentimos quase que o tempo todo para nós mesmos com nossas atitudes, atos e pensamentos. Protelamos porque mentimos e acreditamos em nossas próprias mentiras. Vai dar tudo certo. No fim, as coisas acabam se ajeitando. Não há motivo para desespero, afinal!.

Acreditamos em nosso “Bom Deus!”. Como se pudéssemos classificá-lo de bom, ruim, ou qualquer outro adjetivo. Vamos lá cara! É somente uma fase difícil e as fases negras, por mais longas e empedernidas que sejam, também passam. Acreditamos que após a tempestade, certamente virá a calmaria. A recompensa vem após o esforço determinado, constante e ferrenho nesta labuta interminável. Sempre damos um jeitinho de acreditar em recompensas e benesses porque fomos condicionados. Estive meditando sobre essas coisas todas. E muitas outras mais. Podem crer que sim, rapazes! Eu sempre estive meditando sobre muitas coisas à minha volta, perceberam?...

Eu disse que, se existe algo para se passar uma existência meditando, talvez seja sobre a Justiça e o propósito de nossas vidas. Mas as pessoas não estão muito preocupadas com tais questões. Tudo é tão esdrúxulo, banal, emergente! Não se chega à lugar algum quando se perde tempo em meditações ou coisas assim... Ação! Tudo não passa de um átimo de tempo. Mesmo que, às vezes, pensemos que tudo seja uma verdadeira eternidade em nossas existências e à nossa volta.

Uma coisa que parece nos consolar é que, há sempre um infeliz pior do que a gente a se estropiar pelo caminho tortuoso. Sinceramente, não sei até em que ponto, tal comparação é válida. Se há alguém que esteja pior do que a gente, é porque, sinceramente, amanhã talvez possamos estar piores do que hoje. Mas refutamos tal idéia. Está tudo bem, camarada. Vamos lá, o importante é que jamais abandonemos o barco e sigamos sempre em frente: mãos e braços fortes de timoneiros.

Mas sempre nos esquecemos dos ratos nos porões e eles, lentamente, estão fazendo seu trabalhinho sujo. Estão, aliados à ferrugem ou, o que quer que seja, corroendo o casco do navio e o único propósito deles, é levar-nos à pique. Falta pouco agora, berram os marujos decrépitos e aterrorizados com nossa tripulação de fantasmas e sombras mortas recostadas pelos cantos da embarcação de nossas almas dilaceradas. Contudo, conduziremos este navio até ao cais mais próximo. Mesmo que estejamos mentindo o tempo todo. Ainda que nem um de nós acredite mais nesse papo sem nexo. E todos sabemos que, apesar de marinheiros, não encontraremos em toda a tripulação, uma única alma que saiba nadar! Pura ironia, mas é a realidade.

Quando fiz referência a reclusão, não quis dizer, necessariamente que encontrava-me à ferros. Parece estranho ou engraçado mas, somente então, cheguei a conclusão que, desde criança, sempre fui um recluso. Sempre pelos cantos, escarafunchando pelas gavetas do cérebro as explicações e o porquê da vida. A fome, a doença, o medo, a insegurança, a humilhação, o caos.... Talvez tais questões tenham tomado tempo demasiado importante de minha própria existência e, por isso mesmo, eu tenha me afastado da convivência natural com as pessoas e a sociedade. Contudo, é praticamente inútil lutar contra a natureza das coisas e a nossa própria natureza como seres. De forma que, acredito na reclusão mesmo estando-se em liberdade. Embora eu também tenha minhas dúvidas quanto ao que denominam liberdade. Não consigo chegar a uma explicação sensata quando penso em liberdade na sociedade em que vivemos. Se é que podemos denominar esse conjunto de fatores e dias que se sucedem de viver. Ainda que para a maioria de nós, o simples fato de se continuar respirando, comendo, cagando e fodendo seja considerado viver.

Há exatos, 53 anos, venho pensando no que me refiro a “mergulho”. Esta obsessão incomoda-me de forma avassaladora. Além disso, não tenho conseguido dormir em paz há muitos anos. As crises depressivas e o que me parece ser o início de um problema grave de insanidade mental, estão se tornando cada vez mais constantes. Provavelmente pela idade e um pouco desta vida sedentária forjada pelas circunstâncias. Digo circunstâncias porque estes são tempos ruins. Há recessão, desemprego e exploração. Um homem que, aos 53 anos não conseguiu adaptar-se ao seu tempo e a vida comum, certamente possui problemas graves. Na realidade, não sei bem ao certo.. Algumas pessoas afirmam. Talvez estejam julgando o que desconhecem. Provavelmente, nunca tiveram tempo para olhar em torno delas e perceber o que está se passando. Ou tenham percebido e continuado com seus passos firmes, seguros, à larga. Com ouvidos moucos e vistas grossas. Sempre foi mais cômodo encontrar defeitos em outras pessoas do que alguma virtude. No mais, somos todos perfeitos e isso é o que nos interessa. Mas eu discordo de tudo isso. Discordo, muitas vezes, de minhas próprias conclusões. Da maioria delas, quero dizer. Acho que é isso. E isso, é somente um dos tantos conflitos. Somente um deles.

Mas eu dizia, é necessário, quiçá, não se perder tanto tempo com coisas fúteis, de somenos importância. Decidir de forma urgente e mergulhar. Ir até o âmago, até o fundo de tudo e do nada já que, tanto faz quanto fez.. Sobretudo e particularmente neste caso. Um caso, digamos, um tanto atípico.

Mas tudo isto não passa de um jogo! Um mero jogo, se é que me entendem?! Talvez, se eu me explicasse melhor... Mas não hoje. Não há tempo para explicações —, a vida é urgente, o mundo é urgente, tudo... Até mesmo a morte e, eu não tenho tempo à perder. Vocês acreditam mesmo que o acaso exista? E que eu esteja aqui por acaso, mera coincidência? Não, não! Todos erramos o tempo todo, mesmo que acertemos boa parte deste mesmo tempo. Ainda assim. Então, nada é por acaso e eu, bem, como eu já disse, não tenho mais tempo.

Eu estava dizendo.. Ou melhor, tentando transmitir à eles, parte da situação. Que a festa que eu jamais fizera estava prestes a chegar ao seu termo. Quanto mais eu tentava, menos compreendiam ou prestavam atenção ao que eu precisava dizer-lhes. É engraçado como de repente, assim, sem mais nem menos, todos tornam-se ocupados demais para perder alguns segundos com o próximo! Puro egoísmo e, com isso, perdemos muitas coisas importantes. Pelo simples fato de não termos disposição para lamúrias. Ou ainda, um segundo do nosso precioso tempo para ofertá-lo a alguém. Por isso evitamos olhar para os olhos das pessoas. Por isso, mudamos de calçada. Não queremos problemas. Não temos paciência. Nos deixamos trancafiados em nossos parcos cubículos mentais e esquecemos o resto do mundo à nossa volta. Nossos corações já não batem mais! Vão aos trancos, solavancos; disparados e disparatados: como se fugissem de dentro de nossos próprios peitos. Eu sei disso porque já cometi o mesmo erro. E nos pegamos abandonados quando mais precisávamos de uma única criatura...... Conseqüências! Tudo são conseqüências e não coincidências. Não há tramóia alguma do destino como costumam afirmar algumas pessoas. Mesmo porque, nós somos o que fazemos de nós. Nos tornamos nossos próprios fantasmas ou anjos. Verdugos ou companheiros...

Se me permitem, já que consegui estender-me até este ponto, vou tentar explicar melhor como tudo teve início. Como eu dizia, sempre busquei na meditação, um ponto de referência que conciliasse o mundo conturbado em que vivemos e o conturbado “por acaso” em minha mente. Não, não! Eu sinto muito mas, já não há tempo suficiente para tanto. Estou prestes a mergulhar e não há como voltar atrás. Se alguém prestar atenção, talvez acabe descobrindo o que desejo realmente dizer. Talvez...

Não sei se tal mergulho fará com que as coisas se resolvam de vez. Ao menos no meu caso. Não que eu seja egoísta. Contudo, trata-se de uma questão de ir até o fim. De buscar um novo caminho, uma nova opção. Não há mais nada que possa ser feito quanto a tal decisão. Nem careço que me estendam a mão neste momento ou, venham a julgar este meu ato. Condenável ou não, não importa mais. Se houvesse tempo!. Ah, se eu pudesse recomeçar e recomeçar e tentar e tornar atrás!. Não importa. Salto, afinal. Ou melhor, inicio o mergulho e sei que não existe o acaso. Começo a cair; inicio a jornada. Atroz, veloz, sem tempo para meditar no que ora faço, deixo-me levar. Tão somente mergulho. Cada vez mais e mais. Até o fundo. Até o fim. Sei que o poço é abissal. Que desde tempos idos, ancestrais, de eras inescrutáveis, muitos já fizeram o mesmo...

Nunca soubemos o que, na realidade, ocorreu.

Tentam nos convencer, com algumas teorias e estudos estapafúrdios, que ninguém consegue. Que tudo não passa de ilusão. Que as conseqüências são catastróficas e malignas. No entanto, eu já não poderia mais ficar esperando e dando ouvidos a teorias inconsistentes. Ou mergulhava ou continuaria o resto de minha existência a rezingar macambúzio e incrédulo contra este mundo e suas anomalias e percalços. Melhor dessa forma. Continuo mergulhando. Mergulhando, mergulhando...

Há um momento em nossas vidas que, necessariamente, ou tomamos medidas drásticas — ainda que choquem e sejam contra todos os princípios da sociedade e humanidade —, ou jamais sairemos de dentro desta cela abarrotada de conceitos e costumes preestabelecidos e frustrantes que tanto pregam, preconizam e jamais são colocados em prática. Um momento em que, ou mergulhamos ou continuamos acreditando no mero acaso.

É isso!... Por enquanto, apenas continuo caindo. Não sinto nada, para ser sincero. Apenas meu corpo pede descanso e minha alma paz. Infelizmente, não posso fazer nada. Sou somente um ser que acaba de mergulhar fundo e... Bem, vocês sabem que não existe acaso!... E ainda que houvesse, já não há mais importância alguma em tudo isso. Sinceramente, não há!... Vocês sabem disso... Afinal, sou somente um homem desesperado em busca de paz e conforto para minha mente e minha pobre alma malfadada a tantos percalços!.

Provavelmente o que vou relatar, poderá soar de forma irônica, contudo, de repente, começo a perceber imagens, sons, fatos ocorridos e mal delineados de quando eu era tão somente uma criança.. Como se.. Ora, como se isso tivesse alguma importância diante das manchetes dos jornais: “DOENTE MENTAL PRATICA CHACINA E SUICIDA-SE”... Como se algo mais realmente tivesse alguma importância!...


 

AVERSÃO

 

Caminhava de um lado para outro da sala mortuária. Vez em quando estacava e mirava o rosto da velha. Setenta anos, obesa, contudo, bastante forte para a idade e alguns bons quilos a mais.. Botava tento nas feições da mulher e pensava que, “a porra da dita cuja nem parece estar morta”. Mas estava! Haviam amarrado-lhe o queixo com um lenço para que mantivesse a boca fechada. “Nem dentro do caixão a filha de uma cadela não consegue manter esse vaso sanitário fechado!”. Rezingou mentalmente. Os olhos não houve quem desse jeito: duas bolas de vidro sem vida a mirarem o outro lado. Ou estariam zombando dele, Regoberto?

— Velha caninana! Jararaca! Cafetina desgraçada! — Sempre alterado, berrava para dentro. Em seu âmago e vezo atormentados.

— Você não presta, rapaz. Nunca prestou. Sabia disso desde o momento em que botei os olhos em você, seu tipinho desqualificado! — Dizia-lhe a sogra, durante os embates. Ele espumava de ódio. A filha e esposa Risoleta, choramingava pelos cantos magoada, maltratada e prestes a um colapso.

— Ó velha linguaruda dos infernos!

— Biltre! Safardana! Inútil! —, retrucava a sogra.

Apesar das diferenças, da aversão acompanhada pelo palavrório picante, terminavam cansando-se daqueles duelos acirrados que, iam amainando, apascentando o ódio e recolocando os humores em seus devidos lugares. Somente então, Risoleta deixava de chorar e fungando, corria para a cozinha passar um café fresco para os dois. Ele fazia fita. Preferia se aquartelar, ofendido. A velha nem se dava. Mais de um ano morando com a filha. Ou melhor, com o casal.

Esse negócio de casamento é uma porra delicada. E sogra, já viu, né: encrenca na certa!-dizia-lhe Honório, o amigo e compadre.

— Fazer o quê? Mandar a velha para um asilo? Para alguma pensão de putas? — questionava Regoberto irritado e na defensiva.

— Pois é.. A vida tem dessas e outras!.

Grande filósofo que tu és sua mula, seu semovente, ruminante! —, destrambelhava Regoberto ofendendo e não, seu amigo e compadre Honório, voltando a concentrar-se na garrafa de cerveja sobre o balcão

Permaneciam longo tempo naquele silêncio abissal. Terminavam uma, o garção trazia outra, mesmo que não houvesse sido solicitado. Ia marcando na conta. Os dois ruminando idéias, absortos e ensimesmados. Regoberto macambúzio já nem se lembrava mais do velho companheiro ao seu lado: destrambelhava destemperado pelas searas do padecimento. Cruz que carregaria até quando? Somente Deus sabia! Velha danada de forte, boca de bueiro, fossa, palrava pelos cotovelos, à sorrelfa. Dava baixaria por nada. Difícil chegar à bom termo; sem esculhambações e um “vá-à-puta-que-a-pariu!”. Se a porra da sonsa da mulher nada mais fazia que chorar?

Nem de um lado, nem do outro. Mirradinha, aflita, se retorcendo num canto: chorando e rezando; rezando e chorando. Certa feita, fizera xixi nas calcinhas quando Regoberto, no auge da contenda, ameaçou transformar a velha em peneira com uma faca de cozinha. Pobrezinha da mulher! Tinha culpa daquelas desavenças? Nem tinha nada que.. Em verdade, tratava-se de uma santa.

Baixava na mesa, mais um “quebra-gelo”, pura, branquinha. Em breve, os dois sairiam dali escorando um no outro, indo baixar no bordel da cidade. Risoleta sabia. Não se importava, conquanto que “tornasse ao lar, o seu querido bem”. A velha, muitos anos de padecimentos nas mãos do genro, percebia odores e olores outros: cachaça e perfume de mariposas. Caía de pau em defesa da filha. Tinha que meter a colher em sopa dos outros? Regoberto observou atentamente as feições cadavéricas da falecida e sentiu um calafrio: “A desgraçada está se rindo”. Encanou com a idéia que fixou-lhe na mente.

“Não. Afinal os mortos não ficam rindo assim, assim... sem mais nem menos”. Procurava aquietar no peito, o coração aos solavancos. Velha tinhosa. Megera indomada. Não era esse o nome da peça? Iam-se distantes os bons tempos! De namoro. Conversa na sala. O sogro, “um gentleman”. Cavalheiro. Pobre homem transformado em gato e sapato por aquela desalmada! Certamente havia morrido de desgosto em ter que viver ao lado da megera. Venenosa!

Dirigiu-se até à cozinha. Tragou dois cafés. A cachaça que havia escondido já era. Fumava absorto lá fora. Solitário, observando a longa alameda florida: Avenida da Saudade. “Que o raio a partisse!”. No céu os astros forravam o manto negro da noite morosa, dolente, capenga e inesquecível. O sogro sofrera um enfarto fulminante. A porra da velha ficara dando trabalho durante um ano com aquele maldito derrame. Coisa de maluca. Toda mijada na cama. Cuidados especiais. Roendo a herança. Uma casa vendida somente para o tratamento inútil. De bom mesmo, somente a enfermeira: “gostosa, uma coisa de louco!”. Deixava o compadre com água na boca. Passara nos beiços, na beira da cama da velha moribunda. Somente pirraça, vingança. Prazer mórbido. Valera a pena, afinal.

Poucas pessoas ressonavam nas cadeiras em torno do ataúde. Pronunciara “ataide”. Meio de pileque:

a velha agourenta dentro do ataíde
olhos arregalados
queixada amarrada
o que é, Mané?
porra, é minha sogra
um monte de estrume e mais nada
!”.

Emitiu um sorriso irônico, sarcástico. Pura maldade. Que se fodesse a alma da velha! Quem gosta de velha é asilo e cemitério mesmo...

O compadre Honório roncava num banco da saleta ao lado. Roncava, babava e soltava gases. Muito mais que a velha apodrecendo dentro do caixão. O filho de uma vaca tomara todas, chorara falsamente nos ombros do amigo e da comadre Risoleta, bafo de cachaça difícil se suportar. Deu pêsames até para coveiros e se abancou, escorregou no banco e adeus viola! Folgado. Era outro que carecia de uns bons sopapos nas ventas.

Regoberto ruminava. Ruminava Regoberto. Quase toda a herança com remédios e enfermeiras e consultas e os cambau! Sacrifício e desperdício inúteis! Carecia, decerto? Salvavam a velha? Deixassem morrer logo. Cessavam os sofrimentos e poupavam-lhe a dinheirama que enfiaram no cu daqueles médicos lazarentos, larápios e salafrários dos quintos. Acendeu um cigarro no toco do outro e continuou caminhando de uma lado para outro, mirando as estrelas luzindo no céu. Não amanhecia nunca? Enterrar a velha, o passado, recomeçar. Até depois de finada a desgrenhada continuava atazanando e apoquentando. Paciência Regoberto! Paciência, meu filho!

Mas que paciência o cacete?! Saco cheio da vida, da defunta, do velório, do compadre, da Risoleta e seu choro infindável, sem consolo que bastasse e sem tréguas. A droga da velha era coisa remota. Recendia a mofo e poeira ancestrais. Coisa de era idas. Então, chorar para quê?! Não sofrera com o padecimento da mãe? Melhor tivesse ido mais cedo e poupado tantas dores para todos. A vida é essa zorra mesmo e quem dá jeito em merda se, quanto mais se fuça mais fede?

Fez meia volta. Estacou. Bateu continência para a capela com o cigarro entre os dedos. Riu daquela palhaçada. Lembrou-se do serviço militar. Jovem, muito jovem, Regoberto já era! Havia se desgastado com aquelas noitadas. Maltratado e, inconcebível, mas já começava a broxar de tanto enfaro da vida. Compadre Honório não se mancava não? Cinco filhos e o danado não saía da zona do meretrício. Ele, Regoberto, cinco anos de casado e nada de filhos. No médico: “falta de líquido espermático”. Sinsenhor. Concordara com o médico. Queria dizer: “que se foda o líquido, a porra e fui!”. Fez o tratamento? Que tratamento? Enjoasse daquela vida, adotava um molambento qualquer e jogava no colo de Risoleta que, duvidasse acabava criando leite nas tetas. Mulher é assim, um bicho estranho que, sabe-se lá em que pensava o criador na hora de botar essa obra de arte num mundo tão atribulado?! Fez arremesso de bituca. Consultou o relógio de pulso. Resolveu voltar para dentro, ver as coisas como iam.

Caminhava lengando uns passos sem vontade alguma. Pensando vazio, sem nexo, na morte da bezerra. “Da vaca velha”. Reconsiderou. Sem mais, sentiu um dó da pobre velha. Havia sofrido um tanto e mais. Talvez, até mesmo, viesse a sentir saudade da jararaca. Afinal com quem mediria forças? Bateu um sentimento de piedade, uma coisa estranha... Pensou: “Era o que me faltava, acabar chorando por causa daquele amontoado de pelancas e veneno”. Mas também não era assim. A velha tinha lá suas razões. Não era nenhuma toupeira. Mulher vivida e sagaz estava ali. Pena, estirada dentro de um caixão. Amanhecesse ia para debaixo da terra comer capim pela raiz. Riu da tirada. Comer capim pela raiz. Não conseguia se lembrar de onde ouvira aquela mas, tinha outra da mãe do sujeito que, havia cometido suicídio. Mas como? Com cinco facadas nas costas. Gargalhou. Aquela era ótima. Muito boa mesmo. Suicidou-se com cinco facadas nas costas. Porra!, era o máximo. Resolveu protelar. Contornou o canteiro e voltou a subir a alameda. Pensando besteiras.

Tornou a consultar o relógio. Talvez todos estivessem dormindo no velório. Velório sem cachaça e piada fica uma coisa monótona, triste, sem graça. Aí vai baixando aquele sono irresistível e não tem quem suporte. Vez em quando um soluço, um suspiro dolente. Coisa mais maçante! E as horas, então? Uma eternidade! Arre que, não voltava lá senão quando chegasse o momento de baixar a sogra para a cova. No mais, quem iria se lembrar que ele existia numa situação daquelas? E veio-lhe a lembrança da velha. Transformando-se em imagem. Fantasma iracundo, furioso, bufando feito o demo com a desfeita. Arrepiou-se todo.

Ponta de medo? Estaria sentindo uma fisgada de medo, realmente? Ia pela metade da longa avenida já pensando em tornar ao velório. E se a porra do fantasma da velha aparecesse naquele exato momento, ali, assim, sem mais nem menos? Ainda mais com aquele funesto lenço amarrando-lhe a queixada, a boca toda retorcida, contorcendo-se numa risada e imprecando contra seus pensamentos e sentimentos ao mesmo tempo! Olhou para os lados, para trás. Vira um vulto lá no alto, realmente? Esforçava-se para descartar tais pensamentos. A mente embotada e abatida pregando-lhe peça às custas da falecida. Afinal, a pobre velha não era lá tão má assim...

Era! O pior é que tinha a certeza absoluta que, se ela pudesse erguer-se daquele caixão e sair atrás dele somente para pregar-lhe uma boa peça, ela o faria sem remorsos. Decerto não conhecia a velha jararaca? Uma vez na vida, duas na morte porque, com os mortos não se manga que é coisa séria. O capeta atenta. Alma de coisa ruim, em anjo é que não se molda. Também, já estava com o saco cheio daquela megera! Se aparecesse metia-lhe logo umas bordoadas e capaz de se atracar com a alma da defunta e sair rolando alameda na maior pancadaria da história. Velha ranheta dos quintos!.

E o vulto tornou a surgir lá no alto. Desta vez bem mais nítido com sua saia longa e suas madeixas brancas. Ilusão. Mera ilusão. Concluiu sem concluir, já com intenção de fazer meia volta e bater em retirada. Olhou para trás, lá embaixo e.. lá estava o vulto. Ou melhor, a alma da velha bruxa. Foi então que começou a bater o desespero e o sem saber o que fazer. Não iria se borrar todo feito uma criança. Muito menos rezar para uma alma penada que, em breve, estaria ardendo no fogo eterno. Que se danasse. Parou por ali mesmo. Nem subindo, nem descendo. Nem mirando lá para o alto, nem lá para baixo. Com o olhar meio que nos próprios sapatos. Bons sapatos, brilhantes. Acendeu outro cigarro...Trêmulo e acuado.

Desviava pensamentos e atenção daquela imagem a refocilar as caraminholas e os interiores de sua mente que o transia tanto o medo que crescera num repente. Buscava puxar pela memória algum fio de descaso com aquele fato absurdo. Cismava a divagar mirando estrelas que fugiam-lhe impiedosas. Coruja piando em madeiro de cruz? Agouro de alma purgando, recendendo à enxofre e de pauta com o Satanás a choramingar preces emergentes. “Velha desgrenhada!”. “Espectro das profundas!”. Ia classificando a alma e a memória da sogra em revolta e desespero ousando erguer a cabeça mirando alto e baixo. Foi então que Regoberto travou de vez.

Travou porque, buscou experiência e coragem: ousava avançar dois passos para cima, o fantasma da velha acompanhava seu malogro realizando movimento contrário: dois passos para baixo, ao seu encontro. Inverteu o processo em sentido à capela lá embaixo: a velha volitou dois passos em sua direção. Pegou-se a rezar. Ou melhor, tentando articular com o resto de lucidez que lhe restava, tal artimanha.

Cristão arrependido, murmurava sua prece trôpega sem atinar-se que, quanto mais o fazia, mais distante se tornava a imagem do Senhor por quem implorava contritamente aflito. Porquanto se esforçasse com fervor, a prece diluía-se em frases incompletas, misturando o que aprendera em criança durante as aulas de catecismo e as “palhaçadas” em adulto, à mesa de bar, cônscio e senhor de si frechando o mundo invisível com suas tiradas irônicas. Afinal, jamais acreditara em alma penada, assombração ou vida pós morte. Por fim, questionava-se em seu descalabro: “Onde a misericórdia do Pai?!”. Que levasse a alma passarinha agourenta de vez, oras bolas!

Perdido. Balbuciou perdão torto, roto, sem consistência ou fé. Sem valia o que não se crê. Tarde. Demasiado tardia a tentativa em enraizar crença em cabeça de burro velho e empacado em sua casmurra teoria de que “banquete de vermes não torra paciência dos vivos e muito menos vem emputecer a mente já pejada tantos problemas cotidianos”. Gritar não que, mesmo que tentasse, não conseguiria. Sem cordas vocais. Correr então? Fora de cogitação que, “pernas para que as quero, haviam sido roubadas”. Desamparado e sem muletas de crença alguma, deixou-se paralisado pelo pavor. Tardio arrependimento!

Tornou a ousar: erguia um olhar temeroso. Se uma já era por demais, duas almas então? Fardo para centro de macumba. Osmose de mentalidade mediana e imprecavida? Fosse lá que fenômeno estivesse ocorrendo — pensou em fotogênese —, passara dos limites. Que porra aquilo cada vez mais se aproximando sem tocar com os pés no cimento da alameda? Cerrou fortemente os olhos álacres. Há poucos centímetros, a velha — ou o que fora um dia —, estendera-lhe a mão com um sorriso de escárnio nos lábios gretados que, apesar de amarrados pelo lenço, entreabriam-se o suficiente para exalar um sopro que pairava no ar estagnado como se fosse uma espécie de som onomatopéico imitando o “Regoberto, querido!”.

Já não havia como fugir do contato gélido, encalacrado na mente e na mão que, sem se dar conta, ele mesmo estendera. A alma da velha jararaca! Unidos, as mãos coladas firmemente, a alma da velha já não se sentia tão só, a conduzir seu parceiro de contendas pelas veredas da insanidade.

Ria, chorava, imprecava, gargalhava, babava-se e, soltando a bexiga lentamente, Regoberto deixava-se conduzir pela alma que ninguém além dele, poderia ver ou saciar......


 

GÓIA

 

Góia encontra-se sentada no canto do cômodo vazio. Está trajando somente uma minúscula calcinha branca de rendas. No sorriso, reflete seu espírito irônico. Espelho da alma. Seus olhos são negros e profundamente vivos feito estrelas fulgindo em noite sem luar. Acompanho seus movimentos com as pernas. O vai-e-vêm de suas coxas bem torneadas que se abrem e se fecham deixando entrever o montículo de pêlos púbicos. Seu monte de Vênus. A deusa debochada do mundo amorfo dos párias. Góia também me observa atenta. Meu corpo nu contrasta com sua formosura. Sou todo decrépito e sem carnes. Apenas e tão somente, peles recobrindo a ossatura raquítica.

— Você é tão apático.... Sei lá!... —, ela me diz de repente, sem mais nem menos.

— É, acredito que sim. —, respondo com acentuada indiferença. Não dou a mínima importância aos comentários tecidos por Góia. Ela sabe disso tanto quanto eu.

— Talvez seja a morbidez...

— Não sei a que você está se referindo. —, respondo com a mesma indiferença. Em seguida acrescento —, talvez seja a sua presença.

Ela abre as pernas estrategicamente. Posso ver melhor a abertura de sua vagina por baixo do tecido. Ela sabe o que está fazendo. Adora provocar. Disfarço. Se eu acabar perdendo a paciência, vamos terminar discutindo. Por isso, forço-me a permanecer calado o máximo possível. Enquanto ela continua com seu jogo de putinha provocadora, abre um sorriso sensual. Bela. Sua beleza e suas formas são capazes de deixar qualquer sujeito, por mais indiferente que seja, maluco. Sinto vontade de torcer-lhe o pescoço, morder-lhe os seios até sangrar. Seus lábios carnudos, a língua que passeia de um lado para outro de forma sensual... Tudo não passa de um jogo. Ela sempre encontra uma forma de me provocar. Estou ficando excitado e irritado ao mesmo tempo e Góia sabe disso, a filhadaputa!

— Você é um grande sacana, sabia? —, pergunta-me com ares de colegial.

— E você, uma verdadeira putinha. Uma cadelinha que sabe muito bem o que fazer para encher o saco e torrar a paciência de alguém.

— Você gosta, sua bicha enrustida.

— Acho melhor você não começar com esse papo sacana de “bicha”, “fresco” e sei lá o que mais.. Sinceramente! Não consigo entender como você pode ser tão hipócrita, minha freirazinha disfarçada de vaca. Qualquer dia desses, juro que acabo torcendo seu lindo pescoço até transformá-lo em frangalhos. Sinto não poder fazer isto agora. Não nas condições em que me encontro. Contudo, você sabe muito bem que não pode me manter aqui assim por muito tempo.

Sua risada espalha-se pelo quarto. Permanece por alguns segundos pairando pelos ares e desfaz-se em estilhaços. Góia é assim. Sempre foi terrivelmente maquiavélica e pirada. Completamente doida. Sempre ultrapassando todos os limites. Testando a porra da paciência da gente. Penso em matá-la. Talvez fosse melhor. O amor é algo estranho, às vezes. Não sei!. Acredito que mais dia, menos dia, acabo matando Góia e, direi que tudo não passou de uma prova de amor. Deus!, como amo essa vagabunda, essa cadela endemoninhada!.

Certa feita — não sei porque, mas ocorreu-me recordar o fato justamente neste momento em que tento não prestar atenção nos seus gestos provocativos —, viajamos mais de setenta quilômetros de carona por uma rodovia interestadual até chegarmos a uma cidadezinha encalacrada em algum buraco sem saída. Ela simplesmente tomava uma decisão e eu a acompanhava feito um cachorrinho de estimação. Durante a viagem, passara o tempo todo alugando o babaca que nos apanhara na estrada. O sujeito estava puto com a minha presença e sabia que não ia rolar nada. Absolutamente. Mesmo que eu saltasse do carro e os dois fossem para algum ermo. Góia já havia traçado seu plano e durante toda a viagem, era somente o que tinha em mente.

Adentramos aquele lugar estagnado e poeirento numa boa caminhada de três quilômetros. Eu somente a seguia. Ela fumava um baseado e ria o tempo todo. Eu me pegava profundamente irritado e comecei a sentir-me enfarado com tudo aquilo. O centro da cidade não passava de uma praça, uma igreja velha caindo aos pedaços e alguns casarões coloniais. “Mais uma roubada!”. —, eu havia pensado naquele dia, sob um sol escaldante e uma temperatura em torno de quarenta graus. A casa que ela procurava ficava bem no centro. Mais dois passos e sairíamos fora do mapa. Havia um sujeito alto, moreno, deitado em uma rede somente com um calção largo, os bagos de fora. O sujeito ficava me olhando o tempo todo e alisando os ovos. Não sabia qual era a dele mas ele descobriu o que eu tinha para lhe dizer em pouco tempo. Eu estava usando coturnos. Ergui-me da cadeira de palhinha e enfiei-lhe o bico do coturno bem no meio do saco. O cara urrava e começou a rolar pelo chão. Saltei para a rua e me mandei sem olhar para trás. Acredito que Góia tenha permanecido por lá durante uma semana, lambendo o saco do cara e transando com ele. Era dessa forma que ela agia e sempre agiu, a vagabunda.

— Sempre achei que você fosse uma bicha enrustida, cara. — Ela recomeça a falar, tentando me provocar. Faço ouvidos moucos para seu papo. Não quero conversa fiada. Então ela volta à carga:

— Sabe de uma coisa? Acho que todo poeta tem seu lado bicha. Coisa mal resolvida, entende? Você sempre foi um desses tipos que jamais se definiram de verdade. Por isso, nunca senti vontade de transar com você. Além disso, não podia. Não ia conseguir. Sinceramente, você sempre foi o único amigo que tive que jamais fez alguma coisa por mim sem pedir que eu abrisse as pernas logo em seguida. O irmão que eu sempre sonhei....

— Vá te foder, Góia! Irmão o cacete! —, respondo com certo asco do papo furado.

Ela se ergue morosa e, recostada na parede de cal branca, fica me observando. Sei que ela está ruminando seu desprezo. Uma côdea de ódio e outra de amor. Acho que estou ferrado. Olho à minha volta e me ocorre que, simplesmente não há saída. Os caras que Góia contratou para cuidarem de mim estão lá fora esperando. São sádicos, contudo, servis. Ela dirá o que fazer quando achar que chegou o momento. E eles, bem, simplesmente obedecerão feito dois cães de guarda.

De forma brusca, Góia precipita-se ao meu encontro. Seu tênis acerta meu estômago. Tento me curvar pensando em amenizar a dor mas é impossível. Estou com os dois braços algemados e os pés amarrados de forma a permanecer imóvel. O suor começa a brotar em bagas por todo o meu corpo nu. Cerro os olhos enquanto cravo os dentes nos lábios para não berrar. Ela emite uma gargalhada. A única vaca que emite risadas de escárnio. Abro os olhos e ela está entre minhas pernas. Descalça o tênis do pé direito e começa a alisar meu saco e minha bunda. Não quero sentir nada. É inútil, eu sei. Góia também. Ela controla a situação e meus sentimentos. Sabe de cor cada pensamento que se passa por minha mente embotada pela dor. Seu pé desliza sobre meu corpo, ela esfrega o dedão em minhas faces molhadas. Em seguida brinca com meus lábios. Eu abro a boca. Não quero sentir dor. Estou farto da dor. Ela sabe disso e tem certeza que não vou arrancar-lhe o dedo do pé com uma bela dentada, embora fosse meu desejo. Em seguida posso presumir o que ela fará, a vagabunda. Abrirá as pernas, afastará a calcinha e forçará a bexiga até se aliviar em cima de meu corpo. Ela sempre faz isso. É seu jeito de me humilhar e sentir prazer ao mesmo tempo. Eu preciso matá-la. Não sei como mas é a única solução. Antes que ela resolva colocar um termo em toda essa palhaçada.

Naquela noite. Após deixá-la com o sujeito. Caí na estrada e voltei para a casa de meus pais onde permaneci trancafiado durante quarenta e dois dias na frente de uma máquina de escrever. Foi um processo doentio, patético, que quase levou-me à insanidade. Eu somente escrevia e escrevia. Sem importar-me com o que ou se tocaria fogo em tudo tão logo terminasse. Eu estava somente varrendo os porões sombrios da mente e da alma. Se não o fizesse, provavelmente acabaria me atirando do alto de algum prédio. Enquanto isso, Góia cuidava do imbecil e seus bagos com a marca do meu coturno.

Continuo concentrado, forçando a mente no que aconteceu durante aquele período porque a cadela está fazendo seu trabalho sujo sobre meu corpo neste exato momento. Penso: se não estivesse imobilizado... Enquanto Góia continua com seu sadismo e posso sentir o líquido quente em jatos esparsos me atingindo o peito.

Pneumonia. Após todo aquele tempo ingerindo aquelas malditas anfetaminas e alguns barbitúricos, pesando não mais que 45 quilos, sem dormir e sem me alimentar, acabei despertando numa cama de hospital. Não consigo me lembrar mas, creio que aquela fora a terceira vez que eu ficara doente em decorrência de meus atos e reclusão doentios.

A enfermeira é uma mulher gorda, durona, de gestos decididos e sobretudo, sem o menor sinal de quem deseja fazer amizade com seus pacientes esfarrapados e implorando pela convalescência. Somos em três, eu, uma velha senhora e uma jovem de cor que, passa mais tempo trancafiada no banheiro fumando às escondidas do que, propriamente no leito. Ela carrega o frasco de soro e o pendura em um gancho na janela. Nos preocupamos tanto com nossas doenças que, fumamos as gimbas um do outro.

Todas as manhãs, a enfermeira volumosa aponta para uma balança no canto do quarto. Confere meu peso e em seguida manda que eu sopre num cone inverso. Não dá! O bocal é demasiadamente largo e tudo o que consigo é emitir um halo sem forças. Ontem ela colheu sangue de alguma veia junto a virilha. Com tantos lugares para se picar... A velha senhora — lembro-me de fragmentos que continuam em minha mente —, naquela noite, permanecera muito quieta, imóvel. Sem rezingar ou tossir de forma desesperada. Na calada da mesma noite, devo ter cochilado e pela manhã, ao despertar, a velha já não se encontrava mais lá. Perguntei por ela mas ninguém me deu uma resposta. Somente mais tarde cheguei à conclusão que ela havia partido desta para a melhor.

Finalmente a maluca terminou o seu serviço e perdeu todo o interesse que me dispensava. Sinto-me aliviado tanto quanto ela porque, de repente, ela vai entrar em depressão e ficar esparramada num canto olhando para o imenso vazio que é sua existência e o mundo à sua volta. O fato ocorre ao final de cada sessão. A tresloucada não precisa viver desta forma. Os pais são ricos e, no entanto, ela vive suas aventuras de “bicho grilo”, hippie mal resolvida e problemática. Chafurdando as narinas no pó, queimando erva ou tragando vinho vagabundo em companhia de uns tipos inúteis e umas piranhas da barra pesada, como se fosse, realmente, encontrar solução para seus conflitos interiores e espantar seus fantasmas mentais mergulhada no inferno das drogas. E eu que pensei, de alguma forma, com meu patético amor, pudesse tirá-la daquele beco escuro, arrastando-a para alguma nesga de luz. A literatura e a música são nossos elos. Da mesma forma que o teatro, o cinema e os movimentos artísticos e culturais continuam nos prendendo com toda essa paranóia. Amor e ódio. O medo subjugando nossos sentimentos mais simples e “amolecados”.

— Você está fodido, cara! Eu juro que vou esmagá-lo como se faz com uma pulga, entendeu? Está me ouvindo sua bicha?.

Neste momento tem início a sessão tortura, parte dois. Góia desbunda a falar sem eira nem beira, como se fosse uma puta desesperada que não conseguiu chegar ao orgasmo. Penso no descontrole emocional que um drogado pode chegar em caso de não conseguir o maldito “barato”. São tão dependentes e frágeis escravos que matam por causa de um bagulho de bosta de vaca enrolado na palha. Góia é mais ou menos medíocre quando neste estado. Ou melhor, talvez seja muito mais do que isso: inteiramente ridícula e horrivelmente exposta.

— Não está prestando atenção no que estou tentando te dizer, cara! Está se fazendo de desentendido e dando uma de besta para cima de quem, hein? Não me olhe desta forma, está sacando? Você me causa asco quando me olha assim. Você não consegue mais ficar de pau duro quando eu urino em você, seu viado, seu puto? Não, não vai conseguir nunca mais porque, o medo já tomou conta da tua cabecinha de ameba. Você não passa de um monte de merda sonhando em ser poeta ou teatrólogo ou sei lá que porra que não se define. Deseja tudo ao mesmo tempo — multívolo, não é? —, e não é nem uma coisa, nem outra. Eu saco gente igual a você, seu puto. Mas eu vou te ferrar desta vez, cara. Ouça isto: você vai se foder!

Permaneço calado e estático. Não vou irritá-la ou dar-lhe motivos para que convoque seus cães de guarda para mais uma sessão de porradas. Talvez eu nem suporte mais uma dessas demonstrações de quem é que manda. Com Góia é sempre assim: “quem é que manda”. Não importa se vai ter que rolar cartões de crédito, folhas de cheque especiais do pai ou da mãe. Para ela, quando seu ódio se sobressai, nada permanece inatingível ou irrealizável. Se Góia deseja, então, nada pode ser considerado obstáculo em detrimento de seus desejos mais absurdos. Continuar me mantendo cativo e a espera de algum fim inimaginável é, possivelmente, o seu maior desejo nos últimos vinte dias. O que Góia não sabe é que, após os dois últimos meses em que não nos vimos, ou seja, para ser mais exato, o período que passei na casa de meus pais e no hospital, deixaram-me terrivelmente debilitado e apto a uma recaída que, acredito, poderia ser fatal dado meu estado. Estou numa pior e a filhadaputa não percebe que posso me “mandar desta para outra estação à qualquer momento”. Enquanto penso de olhos fechados e transido pelo pavor que me abarca, Góia faz um sinal. Quando abro os olhos, seus dois “jagunços” encontram-se de pé, ao meu lado.

Os meus olhos procuram os de Góia. Ela baixa a cabeça e vejo brotar um sorriso de seus lábios. Talvez ela presencie pela última vez, a “terceira parte da sessão quem manda”. Foi o adjetivo que encontrei para qualificar esta merda toda. Os caras parecem uns gorilas e adoram espancar, queimar com cigarros, introduzir coisas, cuspir e, como se fossem adeptos da tara de Góia, mijar sobre a gente. Sinto-me um verdadeiro cano de esgoto. Tento manter contato com a vagabunda sem despertar a ira de seus cachorros. Mas ela continua impassível. Permanece com aquele maldito sorriso sádico nos lábios e me observa de soslaio, como se fosse mergulhar novamente em seu mundo de delírios e ficar dando voltas em seus labirintos mentais.

— Góia, por favor! —, tento desesperado interromper o processo de transe no qual ela vai se deixando adentrar. Contudo, ela seria a única a ouvir-me.

— Por favor!... —, volto a sussurrar quando o pontapé me atinge a altura dos rins. Contorço-me e mesmo algemado e amarrado, o que resta de meu corpo parece responder aos estímulos brutais. Um soco nos lábios abre um sulco por onde o sangue brota de forma abundante. Finalmente, resolvo deixar. Vou deixar que me chutem, me soquem e me arrebentem até que tudo se finde. Não posso mais suportar essa situação. Góia já se encontra “do outro lado, perdida e inatingível”. Sei que ela não me ouviria e nem ouviria mais ninguém porque encontra-se em verdadeiro transe. Outra personalidade — há várias que se manifestam em Góia —, impede que qualquer ser humano mortal se aproxime de seu estranho e atabalhoado mundo. Outro soco e, desta vez, sinto o impacto. Deslizo por um cone escuro e vazio. É o mesmo que eu soprava durante minha estada no hospital. “Não vou suportar, mais essa, Góia! E eu te amo. Como eu sempre te amei, sua cadela!”...

É uma pena, mas não consigo encontrar Góia. Nem mesmo quando sussurro que a amo. Ou quanto sinto a hemoptise rompendo todas as resistências de meu organismo debilitado. Góia nunca esteve tão distante quanto neste momento. Talvez a mais longa e inenarrável distância que ambos tenhamos colocado entre nós. Feito este abismo que nos separa. Eu ainda sussurro e posso ouvir pela última vez, enquanto deslizo: “Góia!”.... Minha voz transforma-se na de uma criança de cinco anos. Ouço meu próprio choro de menino abandonado. As lágrimas rolam quentes e o sal delas mistura-se com o açúcar do sangue, transformando-se em soro. Ele, este soro, de alguma forma, sanará as feridas de meu corpo e de minha alma. Pena que eu não possa dizer isso à ela: Góia!... Contudo, já não faz diferença. Góia sabe disso. Todos nós sabemos. Cada qual palmilhando suas sendas, searas e ermos sombrios, todos nós — eu disse isso a Góia numa noite de luar, sob as estrelas fulgentes —, não buscamos nada mais do que a nossa própria essência. Mesmo que ela não seja exatamente aquilo que sonhamos ou idealizamos um dia. Contudo, esta busca é inevitável e, às vezes, catastrófica.... Terrivelmente!. Noutras, incrivelmente redentora, Góia. Por mais que acreditemos que tudo o que fizemos durante todo o tempo, pela longa jornada, não foi mais que perder e perder... Góia!...


 

METRÓPOLES
(Recortes)

 

Um:

 

A viela na semi escuridão, toda mal iluminada, o homem em pé, recostado na parede suja do edifício em ruínas, caindo aos pedaços. Havia prazer e ansiedade estampados em sua face macilenta. Trajava um terno meia-vida e, recendia à perfume barato. Um vulto encontrava-se agachado a sua frente. Suas mãos seguravam a cabeça do que parecia ser uma mulher, puxando-a de encontro ao seu pélvis. Ele havia fechado os olhos e encontrava-se profundamente concentrado naquele momento em que o estampido ecoou e o projétil entrou-lhe por entre os olhos, no meio da testa.

Houve um momento de suspense valsando no ar. A mulher amparou o corpo para que não caísse sobre o seu, enfiando a mão no bolso, retirando a carteira. Era tudo o que lhe interessava. Mesmo que o homem houvesse tido uma enorme ereção no momento em que a bala alojara-se em seu crânio e pelo buraco jorrassem miolos, sangue e algo que não conseguia distinguir. Ela não olhou para a fisionomia do homem. Odiava vê-los agonizantes. Contudo, ele, o homem, sequer havia emitido um gemido ou algo assim no momento fatídico. Apenas encontrara a ereção que negava-se a surgir. Demorava. A adrenalina forjava o medo e o medo impedia-o de concretizar seu desejo. Tratava-se de um homem comum em busca de algum prazer. Talvez fosse casado. Provavelmente. Seus olhos permaneceram abertos. O sangue escorrendo pelo canto direito dos lábios, em filete moroso.

Ela soltou o corpo que, literalmente, escorreu até o chão imundo. E permaneceu lá, sem vida. Ela não olhou para trás, mas disse: “Merci”. E apressou os passos.

Seu companheiro a esperava a alguns metros, saindo das sombras. Continuaram caminhando abraçados. Ela havia passado a carteira para o cúmplice. Profissional. A bala penetrara na testa com precisão. Somente os profissionais são capazes de façanhas como aquela. A frieza na hora de puxar o gatilho e a pontaria. Uma única cápsula deflagrada. Um estampido breve na madrugada.

Ela retirou as luvas de pano, alisou o tórax do amante com ternura. Já não se lembrava do pobre homem que ficara lá atrás, estendido na calçada com um ar de espanto e prazer estampados no rosto sem vida. Era somente uma vítima. Fazia parte do grande jogo dela, vida. Alguns tinham que perder para que outros pudessem ganhar. Lei do mais forte. Lei do Cão. Ninguém sobrevive numa metrópole se cultivar sentimentos melosos, frouxos. Necessário a crueza e o concreto dentro da alma e do coração empedernidos. A vida nas metrópoles jamais fora ou seria fácil para ninguém. Ou era ele, o homenzinho, ou.

Bem, a vida não era grande coisa. Nunca fora. Havia o desemprego. A recessão. A concorrência desleal. Essas coisas. Ou se mata ou se morre. Cada um tem o seu dia. Não poderia ter feito nada. Não se deixa que o inimigo viva para contar pormenores da batalha.

Ela sorriu para seu amante e cúmplice e ambos desapareceram no fim da viela integrando-se ao anonimato da existência. Apesar da madrugada que esfriara consideravelmente, ambos transpiravam e sentiam calor. Enquanto isso, a vida continuava à mil.

 

Dois:

 

Às 21hs e 17ms, chegara ao barraco. Encontrava-se terrivelmente fatigado e horrivelmente indisposto, além de irritadiço. Nervos à flor da pele. A mãe o esperava. O pai não havia chegado ainda. Ou melhor, havia chegado sim, mas deveria estar em algum boteco com os amigos, tragando a sua cachaça e jogando palito.

Dirigiu-se ao banheiro — se é que aquilo pudesse ser assim denominado —, entrou debaixo de uma torrente de água gelada. Fazia frio. Esfregou-se rigorosamente como se desejasse tirar do corpo alguma doença de pele. Havia sido o lotação. O odor de cecê. Aquilo era horrível e ele mesmo, quanto mais irritado ficava, mais catinga exalava das axilas. Havia percorrido bom trecho do percurso, naquela lata de sardinha, muito bem acoplado a uma morena de corpo fenomenal, “da hora, mano”. Sentira que ela comprimira suas nádegas volumosas contra seu quadril. O sacolejar do lotação. Não havia assistido “A Dama do Lotação”, mas poderia descrever muito bem a sensação. Não suportava mais. Transpirava aos cântaros. Gostaria de poder foder aquela potranca. À ponto de chegar ao orgasmo. Desceu na última parada. Aquilo doía que era “quenêm”. Mal conseguia andar. Com os testículos doloridos e talvez inchados. A morena continuara viajem. Porcarias e compensações, havia pensado. Agora esfregava-se.

Aproveitou para aliviar a tensão; livrar-se da dor. Era solteiro. Andava duro. Não poderia se dar ao luxo de procurar mulheres nas bocas. Acabou ejaculando com um certo complexo de culpa e raiva. Terminou o banho. Lembrava da vidinha pacata do interior. Da praça, da igreja, do coreto, dos burros pastando pelos canteiros do jardim. Das meninas e das festas. Sobretudo, do cineminha poeira. Saudade. Batia saudade. Desejava observar as estrelas como fazia no interior, garotão. Sonhador. Não havia tempo para sonhar. Havia perdido os sonhos e o tempo deles.

Sentado no degrau da porta do barraco ouviu a mãe desligando o aparelho. Emitiu um boa-noite. Os chinelos arrastando-se para o quarto. O pai chegaria em breve. Não, não conseguira mirar estrela alguma naquela “porra de céu poluído”. Fumou demoradamente mais dois ou três cigarros. Recolheu-se. Tinha que pular muito cedo. Pensava na morena. Não queria, mas pensava. Talvez no dia seguinte?.. Roncava com a boca escancarada, babando um pouco, sonhando com a tal morena.

Às três horas da manhã foi que se ouviram os berros. Armou o maior pandemônio na vizinhança e ele lá: sentado ao pé da porta, com um machado na mão, sorrindo feito uma besta. Havia estraçalhado o velho pai com a arma, aos berros de que a mãe o estaria traindo com aquele velho desgraçado. Levaram-no para o manicômio e deixaram a mãe aos cuidados dos vizinhos e do Serviço Social do município.

A morena procurou dentro do lotação. Procurou um, dois, três dias seguidos e, por fim, desistiu. Talvez o cara não houvesse gostado..

 

Três:

 

Haviam chegado tarde. Ele cinqüentão, cabelos grisalhos, pasta de executivo na mão. O outro jovem, traje esporte, alguns livros e um ar de enfaro. Conheciam-se de vista. Afinal, residiam no mesmo condomínio. Certamente esbarravam-se casualmente em meio a tantas idas e vindas. O senhor era empresário bem sucedido, casado, proprietário de alguns imóveis e uma fazenda no interior. A mulher encontrava-se de férias com os dois filhos. Casal.

O jovem voltou a apertar o botão do elevador. Demora. Não havia ascensorista naquele horário. Não havia necessidade. Somente o vigia na portaria. Se bem que, do jeito que os índices de violência aumentavam à cada dia.... Não importava. Havia violência o tempo todo em todos os lugares. Nas ruas, no caminho para o trabalho, no sinal de trânsito. Nada garantia uma vida e não seriam dois homens com armas no coldre e junto à porta de um elevador que garantiriam o bem-estar. Voltou a concentrar-se no jovem ao lado.

Barba bem feita, cabelos aparados. Sem os cacoetes dessa juventude que somente se expressa através de gírias. Descobriu logo o porque: medicina. Ginecologia. Muito jovem, não? Até que sim. Até que não. E blablablá. Nada de elevador que parecia adormecido em algum andar. Não saía do sexto e, certamente, alguém o prendia. Estariam fazendo coisas? Essas maluquices que se costumam fazer em elevadores após umas e outras?

O senhor apresentou-se. Não o havia feito até então. Voltava de uma longa e cansativa reunião. O jovem anuiu com a cabeça. As reuniões eram maçantes. Cacetes. Por fim ouviram o ruído do elevador. As luzes em contagem regressiva a cada andar. As portas se abriram. Cerimônia. Quem entrava primeiro? Educação, cavalheiros. Coisa difícil nesses tempos difíceis e de muita violência e individualidade. Cada um vivendo para si. Entraram no assunto. A vida tornando-se uma pua. Corroendo os sentimentos. A solidão em meio a multidão.

Incrível como a gente se sente só mesmo estando rodeado por centenas de pessoas! Concordavam plenamente. Sétimo andar. Nono. Pena. Poderiam tomar um uísque. Bater um papo, ouvir uma música. Gostavam de música boa, mesmo sendo popular. Tornaram ao assunto da solidão, da violação dos direitos e dos sentimentos do homem. Daquela guerra de nervos. Da exploração massiva. Do medo. Do tédio, do ódio, do tráfico, das notícias cada vez mais ricas em detalhes mórbidos. Mentes estioladas. Coisa sórdida. O país havia se transformado num verdadeiro puteiro político. Velhos e novos prostitutos da velha e decadente política. E com tanto para se viver...

Veja como são as coisas. Passaram pelo sétimo e foram papeando até o nono. A mesma cortesia na hora de deixarem o elevador. Morava no apartamento tal, número tal. O jovem acabara aceitando o convite. Havia simpatia mútua. Desligado o alarme, aberta a porta, entraram. A sala suntuosa. O homem atirou a maleta sobre o conjunto estofado. Soltou o nó da gravata. Que ficasse à vontade. Preferia com soda, com gelo, puro? O que gostaria de ouvir? Ouviram João Gilberto. Vinícius. A medicina era um campo seguro. Ginecologia. Muitas xoxotinhas e coisa e tal. Mas não era coisa para se comentar. Voltaram a discutir política, economia, medicina, violência, futebol e estética.

Licença para uma ducha breve. Claro. Pediram pizza. Pizza sempre caía bem à qualquer hora. Por um momento, o velho pensou. Mal conhecera o rapaz e ele lá na sala, tragando o seu uísque. Fosse um psicótico, um maníaco, um tarado? Saiu do banho com o roupão bordado com a iniciais no bolso. O rapaz havia desabotoado a camisa, arregaçado as mangas. Mesmo com o ar condicionado ligado, o uísque fazia o sangue ferver. A pizza havia chegado. Antes, porquê não tomava uma ducha rapidinho. Foi. Voltou para a sala enrolado em uma toalha. Mais nada por baixo. Entraram na pizza.

Duas e meia da manhã, Bach espalhava-se pela sala. O uísque começara a dar aquela sonolência. Hora de uma cheiradinha. Coisa de nada. A mulher até que nem se importava. Preocupava-se sim, com as crianças. Estimulava. Pode cafungar que é da boa. Cheiraram. Os ânimos voltaram. Mas a solidão pairava pelos ares. Passaram a se sentir afetados, ouvindo Maysa, na fossa. Uma coisa louca, queimando por dentro. Ambos com olhares cúmplices. Não demoraria muito estariam chorando um no ombro do outro.

O senhor entrou no quarto. Demorava um pouco. O rapaz passeou pela sala, deixou cair a toalha. Nu e solto. Dirigiu-se ao quarto. Demoraram. Ouvia-se um abrir e fechar de gavetas. Um riso abafado. Por fim, silêncio absoluto. O aparelho repetiu o CD o resto da noite. Quando o dia amanheceu furioso com suas centenas de apitos, buzinas e canos de descarga de automóveis pelas ruas apinhadas, o rapaz despertou.

Gostava da cor vermelha. Coincidência. Ambos gostavam. Abrira exceção e deixara o convidado à vontade. Vestira ligas, sutiã, calcinhas brancas. Haviam dormido agarradinhos, juntinhos. Teriam feito de tudo para afastar o maldito fantasma da solidão. Qualquer coisa.

 

Quatro:

 

Durante a “batida” policial, apesar de já haver completado dezoito anos, faltavam-lhe alguns documentos. Sobretudo a Carteira de Trabalho com registro do empregador. Camburão. Mas parara no bar apenas para comprar cigarros. Voltava do Cursinho. Não estava com os livros e cadernos nas mãos? Bastava uma ligação. Tinha direito, aliás. O pai viria apanhá-lo. Era gente de bem. Não via porque era cego. Não queria? Tinha bronca de estudante? Que merda! Junto com o rapaz, mais quatro sujeitos estranhos. Uns animais. Verdadeiros animais com suas carantonhas, tatuagens, aqueles músculos de estivadores. Para onde o estariam levando?

Dentro do camburão encolhia-se calado. Os outros quatro observavam seu “jeitinho” de garotão da alta. Alguém sempre acaba se dando mal. A vida sempre injusta. O mundo uma injustiça sem termo. Nada que explique. A viatura sacolejava. Calor infernal. Um mulato dera com a cabeça em uma quina e emitira uma avalanche de palavrões, metendo o pé na lataria do veículo policial. Demorou um bocado para chegarem.

Não sabia onde se encontrava. Distrito policial. Não dera tempo de ler. Os tiras já iam puxando, agarrando pelos fundilhos e colarinho, empurrando para dentro. Sequer lavraram ocorrência ou ouviram os cinco. Meteram-no em uma cela aperta e fétida. Passaram ferrolho e cadeado. O garoto berrou que tinha direito. Um telefonema. Um dos detentos, cara lanhada por lâmina de navalha mandou que ele se calasse e deixasse de frescura. Que estava parecendo um viadinho chupador de pau. Calasse a boca logo ou acabava levando umas porradas. Olhou para o “animal”. Aliás, os quatro pareciam animais enjaulados. E ele ali, bem vestido. Pensou que se tivesse sorte, sairia dali sem traumatismo. Calou-se e recostou-se num canto. Muito encolhido. Quieto. Ruminando pensamentos ruins, assustadores e inevitáveis.

Os outros esparramaram-se pela cela. Não diziam coisas. Observavam o garoto. Os minutos passando lentos. As horas morosas, sem pressa alguma. Um deles começara a emitir um ronco baixo que foi crescendo, avolumando-se. Levou um cutucão do mulato tatuado. Refez-se e voltou a adormecer. Aquilo o aborrecia. Se ao menos conversassem entre eles, poderia saber o que estariam pensando. Lembrou-se de “Barrela” do Plínio Marcos. Sentiu a pontada funda do medo revolvendo-lhe as entranhas. Porra!, não tinha nada que se lembrar daquela peça. Não conseguia fechar os olhos. Não havia assistido “Lúcio Flávio”? Então? Dormiu de touca, babau pregas. Um olho no peixe, outro no gato. Não dormiria. Os outros se ajeitaram.

Haviam, na confusão, arrancado-lhe o relógio do pulso. Um dos policiais. Não dava para precisar há quanto tempo encontrava-se naquela cela. Talvez dessem por sua falta e por sorte, o encontrassem. Mas o pai dormia feito uma pedra. A mãe. Talvez a mãe estivesse esperando ele chegar. Costumava cumprir tal ritual, embora ele chegasse tarde. Não tinha nada que ter entrado naquele boteco de ponta de vila para comprar cigarros. Que azarão!

Começou a sentir o sono chegando. Um silêncio abissal tomara conta de tudo. Por onde andariam os tiras, afinal? Ninguém. Uma palavra sequer. Sentia-se tenso. O medo o fazia transpirar, embora fizesse frio. Vez ou outra podia ouvir algum veículo rodando pelas ruas lá fora. Passou a sentir fome e sono. Não dava para estirar-se. Não havia como. Se havia algo que evitaria naquela noite, seria deixar algum daqueles sujeitos irritado. Encolheu-se ainda mais. Sua mente turbilhonava. Presa do medo e da ansiedade. Pela manhã estaria na rua. Nada iria acontecer. Era preciso manter-se alerta e silencioso. Como se não existisse. Não dar colher para o sono. Cuidar-se e ficar na sua. Faria como planejara.

Despertou sobressaltado. Havia cochilado. Por pouco não havia estirado-se naquele chão de cimento e deixado que seu corpo, vencido pelo sono, fosse recostar-se em um daqueles brutamontes. Somente então percebeu que os quatro fumavam. O cheiro impregnara a cela. Era maconha, com certeza. O grandalhão ofereceu um “tapinha”. Agradeceu à medo. Os outros tiraram onda e o chamaram de “Mané”.

Pelas tantas estavam altos. Curtindo o barato. O tatuado ficou invocado falando coisas, resmungando, rezingando, xingando os tiras. O garoto pensou que aquele cara ainda ia acabar arrumando problemas para todos eles. Mas aos poucos os outros também começaram a participar da zorra. A balbúrdia aumentara em muito. Passaram a berrar coisas sobre as mães dos tiras. Que tira era tudo filho da puta. Umas coisas sem tino. Seu coração acelerado parecia prestes a saltar pela boca. Não participava. Não queria se sujar com os tiras. Estava tudo em paz. Não demoraria e o dia viria e pronto. Iria para casa. Um contratempo. Lapso. equívoco e tudo bem. Ninguém o ameaçara.

A zoeira continuava. Porque a mãe não se sabia quem estava cobrando um michê muito do fajuto e coisa e loisa. Até que os tiras apareceram. Abriram a cela dando porrada. Os caras revidaram. Houve disparos. Dois detentos caíram agonizantes. A merda estava feita. Algemaram os outros dois. Carregaram todos para a viatura. Ele estava junto. Testemunha. Não era caso para ser testemunhado. Acontecera o pior. Os safardanas, maconheiros! Os pés-de-chinelos, vagabundos de terceira. Presuntos! Os dois bateram as botas dentro do camburão em movimento. Os outros dois olhavam para o garoto e riam. Diziam não ter mais jeito. Era o mundo escroto. Mundo cão. Estavam fodidos. Os tiras nunca deixavam rastro. Quando faziam um serviço, limpavam tudo. Sem testemunhas. O garoto começou a tremer e a choramingar. Um dos presos olhou para ele e disse que seria assim, rápido. Sem dor. Sem traumas. Não era de todo ruim. Mal dava tempo de dizer amém. Desova.

A viatura policial rodou por muito tempo. Uma eternidade. Até que parou. Era só mato em volta. Desova. O rapaz começou a chorar quando os tiras abriram a porta de trás e os retiraram de dentro daquela gaiola. Desova era assim mesmo. Ainda pediram ajuda para os dois que estavam jurados para removerem os corpos e jogá-los no mato. Em seguida, um que era cabo, mandou que ficassem de joelhos. Parecia cena de filme. Um filme estranho. O garoto levou um tapa, ajoelhou-se. Chorava. O mulato mandou que ele calasse a boca e fosse homem pelo menos uma vez na vida. O garoto estava muito assustado, de joelhos, olhando para os tiras sem rostos. Eram umas faces sem sinais de vida. Como se não tivessem sentimentos. Viu quando sacaram armas. Não as que carregavam nos coldres. Mas armas próprias para alguns serviços que, vez em quando, eram obrigados a fazer. Então o rapaz pensou que faltava muito para amanhecer e que jamais iria amanhecer. A boca cheia de formiga. Presunto. Um maço de cigarros. Porque não fizera o que a mãe recomendara. Afinal, cigarro é uma merda. Era, não era? “Filho o cigarro, um dia, mais cedo ou mais tarde, acaba te matando!”. — Dissera a mãe. Deveria ter deixado de fumar. Vício assassino!...

 

Cinco:

 

Quarenta e cinco. Quase meio século! Chegara, afinal, a uma idade consideravelmente razoável. Acreditava, portanto, que se tivesse que morrer, poderia fazê-lo de forma mais tranqüila a partir daquela data. Houve um tempo em que encontrava-se convicto de que não passaria dos 33. Novo. Acreditava piamente que aos 33 iria para a cidade dos desencarnados. E no entanto. Não que houvesse realizado muito mais do que fizera até os trinta e três. Provavelmente, segundo suas estatísticas, havia ocorrido sim, uma pequena decadência.

Enfim, passara pelos trinta e três e nem se dera conta. Até que chegara a quase meio século. As pessoas estão morrendo muito jovens nesses tempos ruins e difíceis. Havia passado não somente pela idade que estipulara viver — como se fosse senhor de seu tempo e seu destino sobre a face da terra —, continuando a remar, ano após ano. Havia passado por muito mais do que esperava. Passara pela fome; vergonha; perdera a dignidade em certas ocasiões; fora humilhado; maltratado; os sentimentos espezinhados, aviltados, haviam feito com que sofresse mais que o necessário... A vida sempre cheia de mistérios e segredos!

Quem sabe, doravante, já que chegara até ali, porque não aos cinqüenta? Não faria grandes coisas ou conquistaria o mundo, não. Certamente que não esperava nada disso. Sequer realizaria projetos de monta. Contudo, daria para passar uns cinco anos repletos de paz e tranqüilidade. Merecia. Não merecia?

Em pensar que perdera as contas em que chegara às raias da loucura! Um colapso fulminante. Houve um tempo, ao longo da jornada, em que tudo o que planejava acabava transformando-se em frustrações e desarranjos emocionais. Empregos... Quantos? Perdera a conta. Nunca conseguia se acertar. Quando pensava que teria um pouco de paz, o inferno desabava sobre sua cabeça e ombros e, lá ia ele, começar tudo novamente.

Quem disse que se casaria? Nem pensar! Não daria certo mesmo. Pois casou. Era necessário então, cuidar em não botar tudo à perder. Por pouco — tanta cobiça e descuidos —, não somente perdia a companheira como cometia asneiras e tragédias. No entanto, continuava firme: a mesma companheira, a eterna luta lado à lado diariamente. Após casar-se, descartara a possibilidade dos filhos. Não daria certo. Tanto que esperara cinco anos para, após vários tratamentos, poder ouvir o balido estridente do primeiro filho. Aí vieram mais três. Como sustentá-los em tempos tão complexos e com tanta insegurança e violência o tempo todo à sua volta? Meio na marra foram dando um jeito. Ele e a companheira.

Certo, passara por maus pedaços. Afinal, a vida não é um mar de rosas. Mas também, vivia criando bicho-papão o tempo todo. Tenso, irritadiço, doentio. A maldita ansiedade! Sempre sofrendo por antecipação. No final, acabava dando tudo certo. Era uma questão de paciência, fé, esperança e muita, muita persistência. Mas o importante era acreditar em si próprio e não se deixar macambúzio, esmorecendo sem objetivo e objetividade.

Quarenta e cinco! Sentia vontade de derramar lágrimas. Ímpetos de berrar e sair em disparada pelas ruas e praças a bendizer a porra da vida. Conteve-se. Afinal, não era mais uma criança, um jovem. Necessário cuidar-se. O coração, os pulmões. Soubesse teria deixado o maldito vício do tabaco. Praticado exercícios regularmente. Não teria se entregado às noites de insônia e aos humores avessos, aziagos. Ao fastio e aquele estado depressivo que sempre o acompanharam ao longo de sua existência. Seguramente viveria mais trinta, quarenta. Chegaria aos cem anos. Em pensar que cultivava aquela idéia absurda de morrer aos trinta, trinta e três!

Caminhava apressado. Desejava chegar em casa. Dividir aquela alegria com os familiares. Não era todo dia que se chegava a tal idade. Nem qualquer um. As pessoas viviam menos. Cada vez menos à cada dia. Os tempos árduos, violentos, de confrontos contínuos com o sistema e as dificuldades ao longo do caminho. Tudo havia se transformado. Selva. Arena. O homem engolindo o próximo. Pisando no pescoço. A concorrência desleal. A bala perdida, o câncer, o coração fragilizado... Morria-se assim, assim... Feito um passarinho. Tantas doenças e o organismo humano cada vez mais frágil a ponto de uma gripe qualquer; um alimento estragado; alguns poucos fungos; uma injeção mal aplicada...

Atravessou a avenida com passos largos e decididos. A pasta de trabalho na mão. O jornal apertado no sovaco. Na outra mão um buque de flores. Era para a mulher. Como se o aniversário fosse dela. Contrário ao egoísmo. Carecia dividir sua felicidade extremada com os seus. As crianças. O cachorro, o gato, os vizinhos. Ora, todos saberiam que ele acabara de completar 45 anos e, sequer percebeu o sinal aberto, a freada brusca, o carro vinha aproveitando a ladeira, daria tempo. Voou pelos ares e foi estatelar-se no asfalto, sob as rodas do carro, por cima dos escarros, mirando sabe-se lá o quê?!...

 

Seis:

 

“Intragável aquele ar de arrogância em Lindaura. Lucrécia não que, viera ao mundo com o rei de França nos ovários, a puta. E Marie, então? Deus nos livre! Nome mais destoante e malsoante querendo ser francês com cara de Interior. Lá dos cafundós. Dizia: “Mon Amour”, “Merci”, “Bonjour”. Tudo com biquinho de cu, somente para impressionar. Aquelas roupas, que mau gosto! Parecia puta. “Petit”, com T mudo, efeito sonoro. “Monsier”. “Mademoisele”. Caralho, que escrotismo! Oxigenada. Vai ver, passava água oxigenada na xereca, a vaca de presépio”.

“E o corno do Alvares lá, com aquela cara de orgulho. Todo arrogante com o bigodinho fino, afrescalhado. Parecia mais uma bichona envelhecendo. Passava leve camada de pó-de-arroz. Maquilagem para recobrir a palidez de noctívago, estróina, fanfarrão. Disputava Marie nas cartas. É o que dizem. Já viu coisa assim? A casa com piscina, os convidados, gente da imprensa, os sociáveis. Coisa de arromba! Um luxo, queridinha! Putaria à “finesse”. Aí começavam a surgir as bichas e sapatas. “Amiguinhas” do Luís e da Dorinha. Tem gente que quando não quer, não enxerga mesmo!”.

“Vê o Luizinho, que coisa mais louca? Puxou ao pai, a bichona. Chofer particular: um baita de um garotão todo musculoso e vai ver, o maior papacu das bocas. Já Dorinha dava cada baixaria nas “Boites”, era assim que ela escrevia? Pra mim buate é buate: igual a puteiro. Tudo uma merda só. Mas eu dizia, baixaria de se pegar aos tabefes e bofetões com as sapatas todas porque, cada dia tinha caso com uma”.

“Acho que a gente deveria ter um pouco mais de respeito. Afinal, a menina tá lá, estendida. Foi, foi e pronto, esquece. Morte mais besta. Esse caso ainda vai dar em sururu! Se vai! Foi ooverdose, não foi? Coca?”.

“Que coca, menina?! Morfina no duro. Quero dizer, na veia. Dose homérica. Elefantíase! O quê? Mas é burrinha! A seringa tinha problema de elefantíase, entende? Seringa usada para aplicar injeção em cavalos. Cheia. Dava para deixar a cidade toda pirada. Aplicou tudo, de uma só tacada. Do jeito que estava, foi encontrada. Agora sente o drama, a baixaria. O que vai feder! O que vão descobrir de coisa podre por causa dessa asneira que Dorinha cometeu, nem te conto”.

“O Luizinho já vem sendo citado nas colunas sociais e policiais como provável amante do motorista particular da família. O pai, parece estar tendo um caso com um jovem da idade do filho, embora não tenham feito maiores referências. E a mãe, a Marie do biquinho de cu de pato, uma fanchona das mais concorridas de toda a história da cidade. A filha tinha à quem puxar. Filho de peixe?! Eu, hein!”.

“Bicha é foda mesmo! Falta de respeito, gente! Deixem a morta-suicidada em paz, porra! Vem me dizer que vocês são santas?”.

“Perto dessa gente, até que... Sei lá, acho que deveríamos era permanecer na nossa, porque no fundo, no fundo, todas nós já pegamos um biquinho em algumas festinhas deles. Vão me dizer que não, hã?”.

“Cala-te boca! Quero mais é desaparecer por um bom tempo. Até que as investigações sejam engavetadas ou algum pato entre de gaiato nessa tragicômica palhaçada circense. Quem tem cu tem medo meninas.”

“Eu não, estou limpa. Limpíssima! Não fico por aí dando sopa ao azar! Sei me cuidar. Não vou em barca furada. Muito luxo para quem nunca teve nada, acaba em trenzinho da alegria. E vocês sabem muito bem que quando o trem descarrila, pobre das bichas. As primas pobres; a ralé dessa gente desbundada!”.

“Já viram velório mais ‘Amaury’ que este? Parece festa para entrega do Oscar! Coisa de louco. Eu vou mais é aproveitar, tomar todas, cheirar umas, arrumar algum bofe e derramar umas lágrimas de crocodilo no colo do doidivanas!”.

“Não disse, estava demorado para que a bicha soltasse a franga.”

“Ah, deixa pra lá queridinha. Cada uma na sua. Ela que se foda.”

“É mais o que ela deseja!”.

“Lembram? Somente agora é que me veio à mente aquela história do casamento. Manter as aparências da família. Caçaram aquela pobre coitada para o Luizinho e, armaram a maior farsa da história. Lembram? A Lucinha? Pobrezinha! Está entregue às favas até hoje, fazendo tratamento e tudo o mais. Não diz coisa com coisa. Vive entupida de comprimidos. Levou até choque no hospício.”.

“Até eu, minha filha! Até eu teria entrado em estado de choque. Ela mal havia casado, ainda em lua de mel — se é que houve e, um belo dia, ao entrar no quarto, o Luizinho lá, de quatro, todo travestido com um crioulo desse tamanho mandando ver. Eu, hein!”.

“Não sei se é verdade, dizem. Na primeira noite, durante várias tentativas, ele pediu para que Lucinha enfiasse um treco lá nele. Ela ficou desconcertada. Não estava preparada para tanto. Umas coisas!”.

“Eu só sei que, do jeito que ela abriu a porta, estacou e ficou. Precisou ser carregada, babando, rindo um riso doido, dolente, sem nexo. Até hoje ela ri de forma lunática. Nunca mais conseguiu recuperar a sanidade. Acho que a cena fica se repetindo em seu cérebro... Essas coisas da psiquiatria. De maluquice, sei lá!”.

“Bem que esse puto merecia se foder pra deixar de ser enrustido. Não sei o que essa gente pensa. Todos uns putos e viviam pegando no pé da Dorinha. Acho que foi por isso que ela meteu bronca até ultrapassar todos os limites”.

“Essa Marie, mulherzinha mais cadela! Gente, que nojo!”.

“Para mim são todos uns filhos da puta! A Marie, o Luizinho e o Alvares, bicha velha de bigodinho francês. Mania de francês, essa gente!”.

“Sou mais a Dorinha que era toda escancarada, assumida e não tinha essas frescuras de fazer biquinho não. Apesar de miudinha ia logo partindo pro pau e não afinava pra fanchona nenhuma. Pelo menos que eu saiba, nunca deu moleza pra ninguém. Era sapata mas era gente pra cacete!”.

“Olha só o trio! Agora se abraçam, debruçam sobre o caixão, derramam lágrimas. Desse jeito vão acabar envenenando a alma da falecida, os putos!”.

“Coisa mais mórbida, sórdida... Estão é fazendo pose para foto de revistas e jornais: família chora unida a perda de ente querido. Imaginem a falsidade. Puta sacanagem!”.

“Eu vou é me mandar desta merda. Não suporto essa baixaria. Povo mais nojento, asqueroso. Vocês ficam? Então, adeus.”.

“Vou ficar para ver no que vai dar. Coisa boa não sai daqui, podem ter certeza.”

“Vai lá bicha, vai. Aproveita e pede para o garção trazer mais umas taças para nós. Afinal, somos filhas de Deus também. Não estamos velando a falecida? Então? Acho que merecemos o mesmo tratamento que esses grã-finos de merda. Vai, vai!”.

“Não empurra, porra! Já estou indo! Já estou indo!”.

“Aproveita e manda lembranças e condolências à falecida!”.

“Ai, que coisa mais chiquérrima! Velório vira festa de gala!”.

“Acho que vou trocar de sexo e virar puta rica!”.

“Acho que quando morrermos, só vai ter cachaça e maconha. Pé-rapado, veado e puta em nosso velório, queridinha. Portanto, pára de sonhar que está virando delírio, ouviu!”.

“Não fode, pô! Não fode a paciência sua bichinha esculhambada!”......

 

Sete:

 

Havia qualquer coisa de enigmático na moça. Seu semblante era fornido por uma palidez mortal; os olhos circundados pelas negras e profundas olheiras; um sorriso sempre à meio caminho e jamais de todo desenhado nos lábios. Sua voz sumida, como se viesse de longe, muito distante. Na primeira noite, o primeiro beijo e Altamirando sentira um certo arrepio percorrendo-lhe todo o corpo quando constatara que a mulher parecia transmitir aquela sensação de coisa morta, sem vida, gelada. Não lhe parecera quando a vira pela primeira vez. Contudo, não conseguiria fugir. Não sem antes desvendar todo aquele mistério.

Vira a garota sentada na varanda de sua casa. Casa simples e muito bem cuidada: com jardim, canteiros floridos e uns ares de nostalgia interiorana. Das noites nas praças, dos coretos e bandinhas. A moça parecera-lhe bastante solitária e melancólica. Olhando para “sabia-se lá onde”. Ar meditativo e tristonho. Altamirando sentiu o coração saltar-lhe dentro do peito quando seus olhos cruzaram com os dela. Parecia mergulhar nalgum profundo poço de água serenas que o envolvia com sua profundidade e segredos guardados a sete chaves. Bateu paixão. Foi o que pensou. Tanto pensou que sequer conseguira pregar olhos naquela e em muitas outras noites antes que fosse ter com a garota um que de prosa, após enviar meia floricultura com vários cartões melosos de apaixonado adolescente. Logo ele, com seus quase quarenta anos de vida.

A garota, Marisa, demonstrara-se recatada e bastante acabrunhada com a ousadia do conquistador. À maneira dos antigos romances de folhetins, aceitara o convite para uma conversa amena, sem grandes formalidades ou um compromisso, desde que a palração ocorresse em sua residência. Altamirando compareceu no dia e horário marcados com uma precisão metódica. Levava uma caixa de bombons e um buquê de rosas.

À convite, adentrou a sala da residência e, feito um cavalheiro, sentou-se com uma postura que jamais esperava ter que adotar. Em poucos minutos iniciavam uma conversação de conhecimentos. Uma senhora de aproximadamente cinqüenta anos servira-lhes chá aromatizado e biscoitos. Deveria ser a mãe. Não ousou perguntar. Sequer ela dissera de quem se tratava. Naquela noite tudo não passara de conversa informal, sem o menor sinal de prosperidade para Altamirando que, no máximo, conseguira apertar a mão da moça na hora de se despedir.

Em casa, o quarentão assobiava valsinhas melódicas e emitia suspiros feito um verdadeiro adolescente. O amor era capaz de tudo! Rolou de um lado para outro a noite toda. Saltou da cama para o trabalho sem pregar olhos. Na repartição pública, o solteirão parecia outra pessoa. Abrira um sorriso que seus companheiros de trabalho desconheciam. Havia um ar de felicidade estampado em seu rosto outrora lacerado pela dor da solidão e rejeição. Trabalhara com afinco, apesar das olheiras e do cansaço. Ao término do expediente, parecia renovado e desceu os sete andares pela escadaria. Não desejava perder tempo com o elevador. Ganhou a rua a cantarolar baixinho. Era outro homem. Alguém que, sequer ele mesmo conhecera até então.

Os encontros passaram a ocorrer de forma constante, já que, fora convidado — no início —, a realizar uma visita somente no final da semana. Ganhara mais duas visitas com direito a um jantar na casa “de sua doce amada”. Com vinte dias de um aparente namoro, Altamirando conseguira finalmente beijar-lhe a face. Ambos pareceram petrificar-se naquele momento. Um mês decorrido, e o primeiro beijo. Foi quando ele sentiu seu corpo arrepiar-se todo e os lábios sem vida, gelados e parecendo mármore, colados aos seus, sugeriam roubar-lhe uma dose considerável de suas energias, deixando-o de pernas bambas. Despedira-se de forma embaraçada, com aquela sensação de que havia acabado de beijar... Bem, foi o que pensou: parecia ter beijado os lábios de um cadáver. Ou fora somente impressão? Talvez estivesse tão afobado em sua imensurável e incontrolável paixão que, seus sentimentos o haviam traído de forma tão grotesca.

Desde então, vinha esforçando-se para afastar aquela horrível impressão. Contudo, a cada nova despedida, na hora do beijo, seu coração parecia gelar dentro do peito tanto quanto os lábios de sua amada. Saía da casa com pressentimentos os mais estranhos e mórbidos que se poderia conceber. Ganhava a rua com a sensação de que se encontrava perdido e que, uma parte de seu ser, de sua alma, havia deixado de existir a partir do beijo. Intrigado dirigia-se a uma lanchonete e pedia uma dose cavalar de conhaque.

Apesar das perguntas sem respostas e daqueles sentimentos esdrúxulos, Altamirando continuava a cultuar sua namorada com seus beijos gélidos e abissais. Acostumara-se. Tanto que, resolvera mandar tudo o mais para o inferno e curtir sua estranha paixão por sua não menos estranha Marisa.

Sem que percebesse, o apaixonado Altamirando, havia comprado alianças e realizado formalmente, o pedido de noivado e casamento a um só tempo. Sua enamorada aceitara o noivado com uma pequena ressalva e condição: de que ainda era muito cedo para formalizarem um possível casamento.

Ainda sem que percebesse, Altamirando continuava se transformando. De forma tão acentuada que, tornara-se pálido, esquálido, macambúzio, cismarento e como comentavam os companheiros da repartição, “ amorfo a ponto de parecer mais com um zumbi do que o velho e maçante solteirão que conheciam há tempos atrás”.

Cansado de esperar por uma decisão que, à cada dia parecia-lhe ainda mais distante e impossível de ocorrer, o amorfo noivo resolvera que aquela noite seria decisiva. Ou sim, ou não. Marisa teria que emitir o seu parecer, tomar uma decisão e já havia passado da hora.

O dia fora longo. Arrastara-se moroso. Altamirando conferia o relógio a cada cinco minutos e, a cada dez ou quinze, levantava-se e dirigia-se ao banheiro ou ao café. Não conseguia concentrar-se no trabalho. Sua mente era um verdadeiro turbilhão de frases e pensamentos desencontrados. Ensaiava o que dizer. Teria que, definitiva e necessariamente, demonstrar firmeza. Não era possível continuarem daquela forma. Afinal, tinha um bom emprego; ganhava um salário razoável e suficiente para viverem bem e confortavelmente. Não se opunha quanto a companhia da velha senhora (incrível mas, não sabia quem era na realidade), que deveria ser sua mãe. Poderiam continuar morando na casa dela ou mudarem-se para o seu apartamento que, não era lá um palacete, mas confortável e prático.

Passou da mera arquitetura mental das frases a sussurros entrecortados e ininteligíveis. Os companheiros chegaram a conclusão que ele havia pirado. Estava delirando. Aquela vida de solteiro... Bem, a solidão acaba deixando qualquer um ruim das bolas. E o velho Altamirando passara, finalmente, a delirar. Aliás, há um bom tempo vinha definhando. Chegaram a apostar que ele estaria metido em alguma enrascada ou, o que poderia ser pior, talvez alguma doença ruim. Incurável. Necessitava de ajuda, estava mais do que explícito em seu jeito, sua aparência.

— Que situação! —, exclamava o chefe do departamento.

— Pois é! Decerto descobriu um câncer ou... — Sabe como são os solteirões nesses dias em que o sexo tornou-se um risco mortal!.

Horário de almoço, o aflito não arredou pé de sua mesa de trabalho. Seu estado era deplorável. Parecia encontrar-se à beira de um colapso, um enfarto.

Bem, o que se poderia fazer para ajudar um pobre diabo que, sua terrível e decrépita aparência era o suficiente para manter as pessoas o mais distante possível dele?

As horas continuaram se arrastando, moribundas. O aflito homenzinho esquálido acercava-se do mesmo diagnóstico: um pobre moribundo tentando sobreviver a uma desconhecida e tenebrosa batalha interior. Cogitava-se quanto a necessidade da presença de um médico no local. Nunca se sabe o que pode acontecer com um sujeito numa situação dessas....

Quando os cartões de ponto começaram a ser picados, o infeliz ergueu-se à custa de esforço sobrenatural. Arrastou-se pelo corredor. Acabou descendo de elevador. Solitário porque os amigos passaram a evitá-lo. Seus pés arrastavam-no pela calçada em direção à casa de sua amada. Contudo, sua mente embotada, já não articulava frases ou projetos. Era como se houvesse um vazio imensurável em todo o seu ser, sua mente, sua existência.

Continuou caminhando a esmo. Passou frente a casa de Marisa. Não parou. Não havia porque fazê-lo. Não conseguia se lembrar de nada. Não conseguia conectar-se com a realidade, o mundo, a vida. Nada. Absolutamente nada. Continuou caminhando sem olhar por onde pisava, sem saber porque e para onde se dirigia. Apenas ia. Seguia sempre em frente.

Desapareceu no fim da rua. Foi indo, foi indo...

A noite caiu descerrando mansamente o manto sarapintado por estrelas que teimavam em reluzir, apesar da fumaça negra da poluição da metrópole que bocejava mas jamais dormia. Jamais dormia —, a velha sonâmbula.

 

Oito:

 

Todas as noites, sempre o mesmo. Não era possível de se distinguir se se tratava de um grito gutural de algum animal ferido ou, um berro estranho e macabro de alguma criança que possuía problemas mentais. Poder-se-ia arriscar a afirmar que, tanto fazia ou, seria a mesma coisa tétrica e aterradora.

O bairro ficava afastado do centro da cidade; a casa velha e sombria, quedava encravada em um terreno bastante irregular e aparentemente abandonado se comparado com a vizinhança. Embora a própria vizinhança não fosse lá essas coisas, com ruas não menos irregulares e casebres amontoando-se uns sobre os outros o que acabava configurando-se naquele quadro de favela tão comum nas grandes cidades.

No quintal, o mato crescia à olhos vistos; o muro pichado em toda a sua extensão, havia se deteriorado e em alguns pontos, fora derrubado e usado como passagem, formando uma trilha que ia dar em outra rua, nos fundos da construção. Aquilo era uma intrínseca variação de infrações do Código da construção civil, além do comprometimento administrativo.

O que se sabia é que, na velha casa, habitava um casal idoso o bastante para se preocupar com algo mais que não fosse a própria vida —, se é que havia vida em tudo aquilo. Se é que havia uma quase extinta réstia de vida que ainda persistia feito um derradeiro hausto em seus ombros curvados sob o fardo implacável do tempo e da própria existência. Por isso mesmo, jamais saíam de dentro da casa e menos ainda, tomavam conhecimento se o muro estava caindo ou se o mundo começara a desmoronar à sua volta.

A casa era uma construção antiga, destoando das demais construções vizinhas. Tudo indicava que fora uma das primeiras construções a serem erigidas no local que poderia ter sido, em tempos remotos, um bairro nobre. Algumas pessoas ouviam os gritos e no entanto, julgavam melhor cuidarem de suas próprias vidas a descobrirem o que poderiam ser aqueles sons que cortavam o silêncio das noites feito foices afiadas. Diziam que o local era assombrado. Sobretudo os namorados, os putos, os maconheiros e malandros que usavam o local para realizar suas transações. Vez em quando, ouvia-se era tiroteio. Feito filme de bang-bang do velho faroeste.

Como a extensão do terreno fosse bastante desproporcional se comparada com os demais terrenos cortados, divididos e reduzidos em toda a vizinhança, o Sr. Brasco e sua esposa Lucila que, residiam do outro lado da rua muito estreita, na casa em frente, eram os que mais sentiam-se incomodados com aqueles sons aterradores que soavam na calada da noite.

— Há algo de muito estranho nesses berros ou urros, sei lá que diabos! —, reclamava Lucila ao marido que, apesar de sentir-se importunado, a última coisa que faria seria adentrar aquele lugar durante a noite. Uma bala perdida, um “desgraçado de um traficante”...

— A polícia é quem deveria solucionar a questão e no entanto, encontra-se fora de cogitação. Não seremos nós, portanto.... —, replicava Brasco à esposa, deixando reticências em tudo o que dizia.

O casal conhecera os velhos de outros tempos. Idosos o bastante para criarem alguma espécie de animal que emitisse aqueles sons horríveis. Além do mais, pelo que sabiam, jamais tinham visto crianças com eles. Portanto, possuíam tão somente a si próprios, além da casa, do terreno e, provavelmente de seus proventos. Suas compras eram entregues por uma rapazola que deixava os dois — sempre dois —, pacotes do mercado na área dos fundos e saía dali como quem tivesse dado de frente com o capeta.

Estranhavam o fato daqueles sons, de alguma forma, terem surgido de repente, de uns quinze ou vinte dias. Não se poderia afirmar com precisão. Talvez, ninguém houvesse prestado atenção e o problema passasse desapercebido. Não eram aparelhos de TV. ou rádios, eram os tiroteios e os gritos comuns com sirena de polícia, carros em alta velocidade com motores envenenados... De forma que, somente de uns poucos tempos para cá haviam dado conta que, ocorria algo de anômalo naquele local assustador. Além do mais, apesar dos pesares, aqueles perdidos viviam se reunindo no local, fumando maconha, craque, ou bosta de cavalo. Talvez fosse algum imbecil que, após cheirar algumas carreiras, se invocasse com a porra da vida e passasse a uivar e berrar feito um débil mental, pensando ter se transformado em algum lobisomem.

Corriam boatos ainda que, o local poderia ter sido, em tempos remotos, um cemitério. Coisa macabra. Local de desova poderia ser. Mas, se alguém parasse para analisar, local de desova não acabava se transformando em cemitério? Umas coisas de maluco. O fato é que, ninguém ali estava disposto a perder tempo em descobrir o que havia de verdade ou mentira por detrás de tantas histórias e boatos. Apenas e tão somente, que às vezes, no cu da madrugada, Brasco despertava com o mulher agarrada em seu corpo a tremer enquanto os berros enchiam a noite de um lamento angustiante e tenebroso. Aquilo, aos poucos, ia minando com a paciência de Brasco que ponderou e chegou a conclusão que se não se colocassem termo naquela coisa funesta, a sua mulher acabaria ruim das moleiras, a dar-lhe trabalho. Voltava a dormir, prometendo que no dia seguinte daria início a um abaixo-assinado entre os moradores da redondeza, dirigindo o documento à prefeitura e à delegacia de polícia mais próxima. No dia seguinte acabava, estiolado e alquebrado, esquecendo-se da promessa que realizara à mulher naquela mesma noite.

Dessa forma as coisas continuavam e, tudo indicava que deveriam permanecer para todo o sempre. Pois ninguém tomava a iniciativa em descobrir o que poderia estar ocorrendo e naturalmente, colocar termo à tudo aquilo.

Certa madrugada, Brasco despertou ouvindo o chinfrim que vinha lá de fora. Abriu um pouco o vitrô da sala e viu o ajuntamento das pessoas e os carros da polícia. Calçou apressadamente os chinelos e foi espiar o que ocorria, na esperança que o caso houvesse, finalmente, sido solucionado.

Decepcionado olhou os dois corpos estendidos na calçada, junto ao muro. Haviam trocado tiros com os policiais da velha “Rota” do Batalhão “Tobias de Aguiar” e acabaram virando presunto. Além disso, parecera-lhe que “aquela porra resolvera não gritar naquela noite”.

Nem naquela noite, nem em nenhuma madrugada dali em diante. Estranhamente os berros haviam cessado. As madrugadas se sucediam tranqüilas, silenciosas. Desde então, havia patrulha constante e ostensiva na rua. A presença dos policiais havia rechaçado com os bandidos e os vândalos. De forma que os moradores do local já podiam dormir aliviados e em paz.

Ao despertar certa manhã para trabalhar, Brasco estranhara as máquinas da prefeitura que começavam a derrubar o que restara do muro; avançavam terreno adentro e, certamente, iam deitar por terra a velha casa. Pensou nos velhinhos. Provavelmente houvessem recolhido o casal, abrigando-o em alguma Instituição. Era para isso —, exatamente para esses casos que havia o Serviço Social, afinal. Não era? Pois, então!

Dois dias depois, já não havia mais nada e o terreno passava pelos serviços de terraplanagem. Brasco, desligado, não assistira ao noticiário e sequer lera os jornais. A polícia havia encontrado o casal em estado de decomposição e, no porão da velha casa, um garoto — ou o que parecera haver sido um dia, um garoto —, morto e acorrentado.

A nota jornalística frisava que havia perecido dado o seu estado de desnutrição. Inanição. Supunha-se que, na ausência dos velhos que tratavam dele, as madrugadas haviam sido povoadas pelos berros tétricos e pavorosos. Berros animalizados e bestiais. Nada mais que pedidos de socorro. Somente isso.

— Que coisa horrível! —, concluiu Brasco quando finalmente soube do caso. Pensou então, acho que de agora em diante, vamos poder dormir tranqüilos...

 

Nove:

 

Sabe, ficava aqui pensando com meus botões? O que será que esses caras pensam? Nem sei se pensam, na realidade. Mas suponhamos que o façam... Olhem para o estado em que me encontro dentro destas roupas puídas, rotas, miseráveis. Os cabelos, as barbas, todo mal acabado, chegando aos cinqüenta e estirado pelas sarjetas e parques. Durante o dia perambulando pelas ruas desta metrópole, sem destino. Mendigando uma côdea de pão. Perturbando os transeuntes que passam apressados com o jornal debaixo do braço, a pastinha de executivo, em direção aos seus empregos. O que pensam de um sujeito assim, no estado em que me encontro?

Vagabundo! Pensam isso, provavelmente. Mendigo, safado. Ainda em condições de trabalhar e por aí, dando trabalho. É claro que pensam. Documentos? Não possuo nem identidade mais. Tudo roubado. Carteira de Trabalho, CIC, RG, Certificado de Prestação do Serviço Militar — fui cabo —, título de eleitor. Mas acreditam? Vão acreditar o que? Tava fumando maconha, hein seu velho safado? Bebendo por aí, perturbando a paz, violando a lei, violentando os direitos das pessoas, prejudicando o trânsito, roubando. Devia estar roubando. Com essa cara de pilantra. Adianta explicar alguma coisa? Dizer que não fuma maconha porra nenhuma? Que não queria perturbar ninguém e muito menos infringir leis?

Logo comigo querem tirar onda com esse papo furado de leis? Conheço boa parte dos Códigos Civil, Penal, Defesa do Consumidor, essas coisas. Tenho um pouco de estudo. Não tenho diploma, é verdade. Não consegui estudar, mas e daí? Hoje em dia até gari estuda. Vim lá do Interior. Prestei vestibular e entrei em três Faculdades. Não dava. Quem consegue estudar após uma jornada de trabalho que parece mais um regime de escravidão? Sem tempo para nada. Nem roupas; nem calçados; nem dinheiro para condução? Não são desculpas, mas eu não conseguia manter os olhos abertos dentro da sala de aula. Discutia com o professor de Literatura. Filosofia, História, Economia. Porra, eu poderia ter me formado em Direito, Letras, Comunicação com especialização em Jornalismo. Não dava.

Teve uma hora que mandei tudo para o inferno. Fiquei meio perdido. Está certo, sempre fui meio confuso ao tomar decisões na vida. Meio precipitado. Dando com “os burros n’agua”. Mas a úlcera me corroía as entranhas. Como eu poderia me concentrar nas aulas? Sentado lá no fundo, sem tomar banho, com aquela maldita marmita fedendo; todo cheio de complexos, sem amizades? Saía da faculdade tarde, tinha que caminhar um estirão sem fim. A dor corroendo, matando. Chegava a chorar. Nem dinheiro para um copo de leite, um cafezinho, um maço de cigarros. Trabalhava feito um burro no campo. E daí?

Devem olhar para mim e concluir: “Que merda! Que lixo! Entulho social! Pária!”. Conheço bem esses tipos. São todos arrogantes. Uns palhaços de fardas. Pensam que são os donos do mundo e da verdade. Lá no Interior é a mesma bosta. Tudo uns safardanas de uns beócios acéfalos pensando com o rei na barriga e merda na cabeça. São uns corruptos. Os políticos são todos uns filhos da puta! Pensam somente na grana, no poder. Acreditam que podem se perpetuar no poder. Uns tipos de chapéu no cabeção vazio. Q.I. de alface. Ostra em coma! Falando “nóis fumo; nóis vortemo; seje isso; seje aquilo” e se achando os maiorais. Fui revisor de jornal. Conheço esses caras. Depois, quando deixei a faculdade, fui trabalhar em jornais. Fui revisor, redator, repórter, diretor, editor. Fiz de tudo um pouco e para quê? Olha as condições em que me encontro!

O policial me aborda pedindo documentos. Documentos o cacete! Aí, já vira malandro. Andarilho. Os andarilhos andam. São perigosos. Larápios. Tinhosos. O delegado olha com desprezo. Manda para algum buraco por aí. Não vão querer enfiar um traste desse em uma das celas, vão? O filho de uma cadela está é a fim de pegar uma bóia, um lugar quente para dormir. Joga no Tietê. Joga lá no cu do mundo. Põe num trem lá para a casa do caralho a quatro e foda-se. Não queremos sujar essa porra dessa cidade que já anda um lixo, um esgoto.

São palavras que um delegado deva usar? O cara estudou para quê? Ficar berrando o tempo todo essas frases recheadas de palavrões? Exemplo aos subordinados. São todos uns animais. Violentos, brutos, sem escrúpulos! Até entendo essa revolta. Uns caras que não chegaram a terminar o colegial. Ganham uma porcaria para enfrentar bandidos melhor armados do que eles. Não conseguem sustentar os filhos. Aceitam subornos. Arriscam suas vidas por uma sociedade descriminadora, egoísta. Os filhinhos de papais com os rachas nas madrugadas. Fumando maconha, cheirando cocaína. Vão lá, prendem, autuam, vêm os pais, advogados, soltam. A Justiça sempre lerda e cega. O processo é arcaico. Pensei nos tempos de estudante, quando me engajei, militante da esquerda, do Partido Comunista, fazendo panfletos e saindo pelas ruas, sonhando que iria mudar o país. Um país socialista, cheio de igualdades, sem essas injustiças para com os pobres, os trabalhadores. Estava errado. Continuamos cometendo os mesmos erros há séculos e nunca aprendemos.

Fiquei com o saco cheio daquela vidinha de merda. Entrevistando políticos corruptos e tendo que redigir mentiras e mais mentiras. Nunca consegui sair da merda porque quem é honesto neste país, não vai para lugar nenhum. Ficava observando os caras dividindo propinas nas redes públicas da Saúde, do Ensino. Do caralho a quatro. Fui assessor de imprensa da Câmara. Dava nojo. Assessor de gabinete de vereador. O puto ia comigo até a agência bancária, eu sacava o dinheiro na caixa e ele levava o melhor, a nata do bolo e eu ficava com aquela mingua que não dava para pagar condução. Pensam que não conheço o esquema! Mas olhem só para o meu estado! Farrapo humano. Réstias de consciência!

Vão meter os pés em meus fundilhos e me pôr para correr. Volto para as ruas. Dormir nos bancos de praças. Como dizia Belchior: “Os humilhados dos parques com os seus jornais”. Conheço música. Conheço Vandré, Caetano, Gil, Torquato, Capinam, Elomar. Conheço literatura: Drummond, Cecília Meireles, Ignácio de Loyola, Maiakowisk, Dostoiévski, Traikov, Franz Kafka, João Ubaldo Ribeiro, António Callado, Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Cacilda Beker, João Guimarães Rosa, Leminsk, Oiticica, Patrícia Galvão, Alberto Dines, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, Taiguara, Lula, João Amazonino, Getúlio Vargas, Tche Guevara, Fidel Castro, a putinha da esquina da rua em que eu morava, Guarnieri, Plínio Marcos. Esses caras pensam que sou algum panaca. Catador de papel. Fuçador de lixo. Pedidor de esmolas. Entrevistei Gonzaguinha, Luiz Vieira, aqueles putos do Don e Ravel naquela época estranha. Fiz teatro. Escrevi. Participei de festivais. Tive músicas gravadas. Não decolei, foi essa a porcaria. Não conseguia escrever a merda que eles gostam de ler. A maioria do povo brasileiro gosta de porcaria. Harold Hobins, Og Mandino. Preferem Paulo Coelho, a Gilberto Freyre. Preferem Sabrina e Gugu Liberato a Oswald de Andrade São patéticos. Marimbondos de Fogo. Que coisa mais escrota! Daqui uns dias imortalizam o homem que preferia o cheiro das estrebarias a ter que suportar o cheiro do povo que o sustentava. São todos iguais. Mas olhem para o meu estado. Vê se vão acreditar. Vamos discutir literatura, música, cinema, teatro. Falar sobre fusa, semifusa, colcheia, semicolcheia, acidente da nota, pauta, clave de fá e clave de sol. Vamos discutir Gabeira e sua teoria verde. Que tal o Tropicalismo? Antropofagia? Derrubaram o muro da vergonha. Tivemos aquelas diretas meio que indiretamente. Pintaram as caras sem saber o que faziam. Lavagem cerebral diziam os mais antigos. Os bem antigos, aliás. A Bethe Mendes foi na porra da cidade em que eu morava no Interior. O lula, o Zé Dirceu. Conversava com essas figuras da política nacional. Conheci o Pimenta da Veiga em noite de autógrafo. Conhecem Dinorath do Valle, por acaso? Claro, evidente que não conhecem. Uma das melhores escritoras deste país cego, sem o hábito da leitura, da boa música. Até que gosto do Zeca Pagodinho. É uma figura. Prefiro ele do que aquele baiano metido a besta — o do Olodum, aquele tal de Carlinhos Brão. Vai tomar no cu com aquele papo de viado. O Tom Zé é um cabeça. E nem por isso fica com aquele papo de viado. O Jorge Amado, o Dorival Caymmi. Mas vou discutir o quê com esses caras? Essa geração de gênios dos bytes e megabytes!

Em pensar que nasci em Santo André! Tomei ojeriza pelo povo do Interior. Quero dizer, parte daquela gente. Com aqueles chapéus, aquelas botas e presidentes de Legislativos. Pode? Os caras mal entendiam de bosta de vaca e lá administrando, criando leis, projetos, indicações... Porra!, dá para ficar revoltado, indignado. A gente vai se sentindo aviltado, violado e violentado em todos os direitos que possuímos e não ao mesmo tempo. Esses Direitos! Essa Constituição! A gente lá, discutindo “Os Pensadores”, fazendo boca de urna, fazendo recital em porão de teatro e os lazarentos descendo o pau na moçada. Não tem lógica. Não tem como entender esse país, esse povo, essa política, essa polícia, essa justiça! E eu aqui...Não sei como não algemaram. É porque sou franzino, raquítico. Mal sabem que pratiquei karatê a vida toda! Fiquei ruim das vistas de tanto ler. De que adiantou? Sérgio Ricardo quebrando o violão e jogando na platéia que uivava. Não entendiam nada. Se naquele tempo não eram capazes de entender, imaginem agora, esses viadinhos tiradores de meleca e navegadores da Internet sem destino algum?! Que merda! Estou me sentindo um rato de esgoto. Fome. Sono. O que mais sinto é sono. Estou o tempo todo cansado. Deve ser anemia. Ou a idade. Caralho como sinto sono. Necessito de doze horas de sono por dia. Não agüento mais ficar acordado a noite toda lendo. Meus óculos já não colaboram.

Eu estou parecendo Vicente Celestino com aqueles dramalhões circenses. Já cantei em circo. Mas não sou cantor. Tenho pavor a microfones. Fui trabalhar na construção civil e não deu. Não tenho forças. Sou meio desnutrido. Já nasci cansado. Gosto de ficar parado, pensando, observando as coisas, as pessoas. As pessoas são neuróticas. Estão pirando, com tiques, manias. Perdendo o juízo, cada dia mais violentas, interiorizadas, vivendo somente para si, o momento imediato, urgentíssimo. Não podem perder tempo para uma conversa, uma mesura, um cinema. Hoje estão todos trancados na frente do micro. DVD. Com medo das ruas, das praças, da esquina. Elas têm medo dos bandidos que tomaram conta das cidades e dos morros e sentem medo da polícia porque não sabem de onde virão os tiros. A realidade virou jargão. Ou seria o contrário? Eu não suporto noticiário de televisão. Somente desgraças e violência. Novelas e programas de auditórios. Acho que vão me enquadrar por vadiagem. Mas eu apanho papelão, coisas por aí e vendo. Como um sanduíche de pão com mortadela e compro livros usados, nos sebos. Se me botarem numa cela com uns caras malucos? Digo que estou doente, que estou com o vírus. Capaz de dizerem: “Ótimo, nós também. Estamos em família e em jejum”. Aí o bicho vai pegar. Melhor me deixarem solto. Vou continuar caminhando por aí pelas ruas, pelas cidades, estados. Se der, cruzo a fronteira, vou para outros países. Dou a volta ao mundo em oitenta encarnações. Preciso conhecer o Tibet. A Índia de Ghandi. A França de Binochet. Eu lá quero saber de François Miterrand ou De Gaulle? Quero saber dos Kenned’s? Quero mais é ver a Andie MacDowell de perto. A Júlia Robert, a Demi Moore. Tô cagando para esses políticos encarniçados com suas operações cirúrgicas e escândalos de esperma em saia de secretária. Que se fodam eles! Mas será que não vão me liberar nunca? Há quanto tempo estou aqui esperando a boa vontade desses mequetrefes? Vou me levantar, sair e adeus. Tô com o saco cheio dessa merda.

Não tenho família. Já tive, não tenho. Sou um andarilho. Não tenho documentos. Não sou um número em disquete ou memória de computador. Não voto. Não pago impostos. Não compro a prestação. Não tenho posses. Não tenho que me preocupar com a Receita Federal. Não como ninguém. Não dou. Não roubo. Não mato. Não brigo e nem discuto. Vou por aí, caminhando e vendo as coisas. Apenas conservei o hábito de fazer uma prece na hora de dormir e isso é tudo. E é muito porque, muita prece o santo acaba enfarado, com o saco cheio dessa raça de safardanas. Mas eu dizia, um dia como, dois fico em jejum, dormindo, lendo, vendo as pessoas que passam. Se me dão um naco de pão, aceito. Se me negam, não me importo. Não tenho chatos ou piolhos. Tomo banho sempre que posso. Se consigo roupas troco. Verdade que nem roupas velhas estão dando ou jogando fora mais. Reciclam tudo. Até merda estão reciclando. E eu rio dessas coisas. Rio porque vão acabar reciclando peido, gases. É isso aí, acho que vou sair de fininho por aquela porta e eles nem vão perceber a minha presença ou a minha ausência. Sou um presente ausente. Decerto que um dia desses qualquer, vão se dar conta de que já não me encontro mais aqui, sentado neste banco duro, esperando a vontade deles. Estou indo. Como dizia um amigo meu lá do Interior, o Márcio Jacovani: “Fui!”. Ah, vão tomar, vão! Acho que tenho meus direitos, afinal....

 

Dez:

 

Hora do banho. A enfermeira pensou, “no mínimo sujou toda a roupa de cama outra vez”. Havia adquirido uma certa ojeriza pelo trabalho. Enfermeira particular de um velho gagá que se borrava o tempo todo. E ainda lia para ele. “Médico de Homens e de Almas”, da Taylor Caldwell. A história de Lucano — São Lucas —, o único dos Apóstolos que mesmo sem chegar a conhecer Jesus, havia escrito o seu Evangelho.

São Lucas era médico e revoltado contra Deus porque não aceitava o sofrimento humano, as doenças, a miséria. Por isso lutava contra os princípios do Senhor, combatendo a dor e o sofrimento do ser humano, praticando a Medicina de graça, levando alívio aos pobres que jamais poderiam pagar. Com isso, ficara evidente que, seu desafio tornara-se uma forma de praticar a caridade. O livro enlevava. A enfermeira lera a volumosa obra cinco vezes. Fazia-o pela sexta, com o sexto paciente.

O pobre homem perdera, após o derrame, todo o controle da bacia para baixo. Mal e mal, movia os braços, o velhote sacana. Deixava deslizar a mão para os joelhos da enfermeira. Uma graça de moçoila aos 21 anos, aproximadamente. Corpo muito bem estruturado e distribuído; beleza inenarrável. Duvidava que poeta ou pintor pudesse retratar tanta beleza. O velho balbuciava Lucin.. Lucin... E a língua travava-se-lhe e o pensamento fugia por alguma frincha do cérebro embotado. De forma que, ficava naquela ladainha, babando pelo canto da boca, querendo, desejando e nada dizendo.

A família abastada, remunerava e bem. Trabalho nojento aquele. Não conseguiam compreender como uma moça que tinha tudo para desfilar pelas passarelas pudesse optar por profissão tão, tão... Não encontravam adjetivos. O filho, o neto, a nora, a neta. Na realidade, talvez viessem a se sentir aliviados se o velho deixasse tanto padecimento e fosse falar com seus fantasmas lá do outro lado. Enfim, a vida apronta cada uma!

A enfermeira passara a transpirar e aos poucos começou a sentir-se incomodada com tanto trabalho e tanta imundície. O velhinho havia realizado uma verdadeira balbúrdia. Quanta porcaria, Jesus! Limpava-o com a paciência de Jó. São Lucas de saias. Realizou o serviço miserável e estafante. Recolheu as roupas sujas, enfiou-as no enorme saco plástico. Para a lavanderia. O quarto arejado já não recendia à merda e o tubo de bom ar quedava sobre a mesinha da cabeceira, ao lado da cama. Ajeitou o espectro humano com os travesseiros de forma que pudesse ministrar-lhe a refeição. Sopinha. Olha o aviãozinho! Abra a boca! O velho ia obedecendo. Chegava a esboçar um sorriso. Patético. Se muito, sessenta anos. Não, talvez nem isso e, Deus!, que situação deplorável. Sentia vergonha e não. Mesmo porque, a moça o limpava com uma naturalidade tão profissional que, seguramente acabava restituindo um pouco da dignidade que a doença havia roubado ao paciente. Anjo de saias! Santa disfarçada em moça de carne e ossos. Observava o busto, a cintura, os tornozelos. Escultural. Uma obra divina! O velho ainda conseguia discernir. O cérebro continuava, entre lapsos, tão lúcido quanto a certeza de que seus familiares sentiam asco do que ele havia se transformado. O filho, a nora, os netos. Todos evitavam adentrar o quarto em que jazia esquecido, não fossem a faxineira e a Lucinda, sua enfermeira. Uma santa, a menina!

A moça ajeitou-o, sentou-se na cadeira ao lado da cama. Hora da leitura. Os olhos do ancião acompanhavam os lábios tenros, úmidos. A face e os trejeitos que cada página emprestavam à enfermeira. Praticamente não acompanhava a leitura com atenção devida. Seus pensamentos atabalhoados encontravam-se mergulhados naquele profundo poço de solidão e melancolia; agonia e aflição em busca da juventude perdida. Fosse jovem a tomaria em casamento. Tão linda! Adormecia sonhando. Um que de lamento. Outro de paixão e adoração pela companheira que continuava lendo e somente muito tempo depois, vinha a perceber que o velho já havia mergulhado em sua lagoa azul de sonhos.

Deixava o livro sobre o colo. Permanecia algum tempo observando o velho. Pobrezinho! Que sofrimento. Quanta vergonha não estaria passando?! Certamente que sim. Sabia que o velho não somente pensava — apesar da dificuldade —, mas sentia. Isso era o pior. O sentimento ferido do velho leão vencido pela doença implacável. Pena, comiseração. Um dó de romper no peito as fibras da bondade. Enfim, se lhe tomava razão e sentimentos, aquela revolta implacável. Odiava. Com o mesmo amor e piedade, por sua vez, o ódio crescia, tomava forma, ganhava corpo, impregnava o quarto com seus fluídos maléficos. Sentia gana de acabar de vez com tudo aquilo. Não seria difícil. Poria fim a tanto sofrimento e humilhação. Ele nem sentiria. Não chegaria a emitir sequer um suspiro. Tão fácil.

Passou a caminhar de um lado para outro. Já havia permanecido junto dele, paciente, demasiado tempo. Com os outros não fora daquela forma. Fizera o serviço e pronto. Remira todos os pecados. Punha termo à dor, à humilhação. Não era correto deixar uma alma presa a um corpo que era consumido lentamente pela agonia. Estava em tempo. Uma dose. Sabia ministrar uma dose bem aplicada. Quem iria pedir uma autópsia, mandar abrir aquele traste inútil? Todos esperavam ansiosos pela partida do inválido. Com os outros cinco pacientes não demorara tanto para terminar de ler o livro.

Apanhou o grosso volume. Não, não faltava muito. Mais duas noites, no máximo três. Nunca lia enquanto o paciente dormia. Somente quando não percebia, jamais intencionalmente. De forma que, teria que ter paciência. Faltava pouco agora. Menos de l00 páginas. Voltou a recolocar o livro na mesinha. Observou atentamente o homem que dormia. Um fio de baba corria pelo canto da boca entreaberta. Apenas 100 páginas e adeus sofrimento. Dores e humilhações. Limpou com um lenço o canto dos lábios do ancião. Cobriu-o com cuidado e esmero. Uma última olhadela. Foi deitar-se na cama, do outro lado do amplo quarto. Não mais que 100 páginas. Mais duas, no máximo três noites e.... O que importava? Cerrou os olhos, sentiu o sono tomando conta de seu corpo fatigado e murmurou, 100 páginas. A noite caiu completamente sobre a metrópole que, muito doida, parecia, lá do alto, uma procissão com muitas velas e luzes de neon.....

 

FIM

Mauro Gonçalves Rueda.
São José do Rio Preto, 1.998.

 


 

 

(Para: Roberto Ferreira, Márcio Jacovani, Aluízio Canuto, Telma Catib Galvão,
Joscelino Soares, Márcia Martins, Daniel Firmino, Benê e Lori Ferreira,
Cesar Menegueti, Fernanda Sala Barrios, Érico Ferreira, Luiz Jardim,
Yonei Scotelari, Eliselma Cavenaghi, Paulo Casanova, Jayme de Souza Filho,
Zé Luiz, Sérgio Carvalho que cantou “Raimundo Rei”, Andréa Ribeiro “Se Eu Cantar” e para toda a cambada de malucos dos idos 70/80 de Rio Preto)

 

 


 

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REGISTRADO NO EDA DE ACORDO COM A LEI N.° 9.610/98.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. BY: MAURO GONÇALVES RUEDA.


©2003 — Mauro Gonçalves Rueda
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Março 2003

 

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