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O PROBLEMA MUNDIAL

Alberto Torres

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O Problema Mundial
[Le Problème Mondial - 1913]
Alberto de Seixas Martins Torres
[1865-1917]

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Fonte Digital:
Le Problème Mondial
Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1913

Tradução e anotações:
Teotonio Simões*

Copyright
© 2000-2006 Alberto Torres


 

ÍNDICE

 

 

[Dedicatória no exemplar original]
Nota do Autor sobre a primeira edição
Introdução
O Problema Humano
A Idéia da Paz e Sua Evolução
A Luta e a Vida
A Idéia da Guerra, Hábito Banal de Nosso Espírito. O Homem não tem Instinto Belicoso
A Paz, o Conhecimento e o Pensamento Humano
A Guerra, Fenômeno mais Social do que Nacional. A Paz, Conseqüência da Evolução
Como Resolver estes Problemas?
O Patriotismo
As Crises Sociais e Econômicas. O Cálculo Pessoal e o Pensamento Altruísta
O Papel Internacional da América e a Doutrina de Monroe
Conclusão: A Organização da Paz
Notas


ALBERTO TORRES

LE PROBLÈME MONDIAL


(Estudos de Politica Internacional)

Rio de Janeiro
Imprensa Nacional
1913


LE PROBLÈME MONDIAL

[Dedicatória, manuscrita, no exemplar disponível na Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em São Paulo]

Ao prezado amigo Herculano de Freitas, uma das mais penetrantes e retas inteligências deste país, suplica Alberto Torres que distraia algumas horas de seu labor administrativo e de sua absorvente ação política, para a leitura deste livro, que, caracterizando um grave fenômeno da política mundial, põe em realce todo o problema futuro do Brasil.

Rio, 6-11-913
Copacabana,
263, Barata Ribeiro

 


 

O PROBLEMA MUNDIAL

 

A publicação deste livro foi retardada por motivos absolutamente involuntários. Superando dificuldades sem número, seu autor acredita dever dá-lo à publicidade no momento em que a humanidade, às voltas com todos seus problemas sem solução, corre o perigo de obedecer à sugestão de seus impulsos e de seus prejuízos ou de aceitar a sentença de um fatalismo cético sobre o poder de seu Pensamento.

Este livro é ainda um ensaio. Suas idéias serão desenvolvidas em uma outra obra: “Orbis Humanus”; onde colocar-se-á em relevo a verdade que o conhecimento do homem e da sociedade sendo falseado por idéias conceituais e pré-juizos, os julgamentos e as pretendidas soluções dos problemas morais, políticos e sociais não terão outro efeito que o de elevar os conceitos verbais que traduzem as normas em vigor sobre os valores dos homens e das sociedades em novas divindades, tanto mais exigentes nos julgamentos e nas seleções sociais quanto os reformadores acreditem dever demonstrar a superioridade de seus princípios perante este sugestivo e terrífico tribunal da Moral, que ocupa, nos caracteres fracos e nas inteligências passivas, o lugar dos mistérios da natureza no espírito do selvagem.

É uma arma que possui um estranho e terrível poder capaz de fazer aparecer as formas mais singulares e mais sombrias do despotismo, em crises de que apenas a força será, em última análise, o verdadeiro juiz. A guerra, de um lado, a opressão dogmática nas coisas da vida prática, de outro, serão o efeito inevitável.(1)

O ideal moral será a primeira vítima, erigida em instrumento da força ou fulcro de uma maré de ascetismo servil, para estourar em seguida em uma nova crise em que todas as dificuldades que se mostram hoje serão agravadas pela opressão exercida sobre os sentimentos, sobre os pensamentos e sobre as vontades, e por um longo tempo de esquecimento. Os mais belos ideais morais são realizáveis, mas não podem ser colocados como regras de julgamento em uma sociedade em que todas as idéias são convencionais e cuja ordem é anárquica.(2) Os homens, os povos e as sociedades não ocupam o lugar determinado pelas condições de sua natureza, mas a que resulta de acidentes arbitrários da vida e da História. A situação de moralidade, perante o criterium contemporâneo de julgamento, é um atributo da força, uma vitória da astúcia ou um fato da sorte.

É a lição que resulta deste sangrento acesso de loucura da guerra do Oriente, feita sem lógica, que engana, entretanto, o julgamento dos espíritos comuns, da mesma forma que os acidentes do relevo de nosso Planeta parecem às pessoas ignorantes uma objeção à esfericidade da Terra.

A paz mundial é o passo que se impõe à civilização, como condição do estudo deste formidável enigma do homem e da sociedade.

 

Rio de Janeiro, setembro, 1913

A.T.


 

INTRODUÇÃO

 

Este livro é o desenvolvimento de estudos realizados no curso dos anos de 1910–1912.(1) Estes estudos não estavam destinados a serem reunidos em um volume. Tendo sido publicados, alguns, na imprensa do Rio de Janeiro, enquanto que os outros esperavam os lazeres que me permitiriam lhes dar o último retoque, estavam destinados a não ultrapassar os limites desta publicidade, frente às idéias gerais que aí estavam expostas formarem o vigamento de uma futura obra definitiva de política mundial.

Duas razões fizeram-me mudar de resolução.

Primeiro, o desenvolvimento, dia a dia mais visível, das tendências da evolução social contemporânea, fazendo ressaltar, de um lado, não como simples abstração (a idéia completamente conceitual dos filósofos e dos moralistas) mas como um fato positivo, a existência da sociedade humana(2), englobando, em um todo geográfico e em uma teia de relações, todos os cantos da Terra e os homens de todas as raças; e, de outro, o progresso nesta multidão apenas misturada, de forças e de impulsos não podendo levar muito provavelmente senão a um estado prolongado de retrogradação e de perturbações, na ausência de uma finalidade, de uma direção e de um controle na vida das pessoas e das sociedades, materialmente ligadas entre si por meios de comunicação e instrumentos econômicos, mas sem inteligência entre as aspirações, as idéias e as necessidades.

Este mundo novo, reunido pelas estradas de ferro, os navios, o telégrafo, requer instrumentos semelhantes de acordo e de conciliação entre os espíritos e os atos, as pessoas e os agrupamentos sociais e políticos.

O “orbis romanus”(3) era uma simples ficção entre continentes e oceanos contendo imensos cantos desertos e enormes multidões desconhecidas. O “orbis” não existia ainda. O ecúmeno cristão abarcava ainda menos a Terra e a sociedade.

A Terra não começou a existir, para a consciência e para o conhecimento humano, senão em nossos dias; não data senão de ontem, após a exploração das regiões centrais da África. A Antropologia e a Sociologia apenas começam a desvendar os mistérios dos costumes, das línguas e das religiões dos selvagens.

O fato da posse da Terra pelo espírito humano é um fenômeno de nosso tempo. Seguido de todas as relações que o movimento espontâneo dos interesses começa a estabelecer, este fato representa, na sucessão das grandes etapas da evolução, o início de uma era e de uma era que pode-se dizer a da evolução consciente de nossa espécie, enclausurada até aqui entre os limites do mundo conhecido e as fronteiras nacionais.

Neste redemoinho, o conjunto das forças em jogo nas sociedades e o das que sobretudo extravasam os limites nacionais bem como os problemas políticos e sociais já constatados pelos pensadores e outros, mais profundos e mais sutis, que começam a aparecer no formigar dos fatos diários, apresentam crises e interrogações que é preciso prevenir e resolver.

Colocando analogias de lado, superficiais, a situação das idéias, dos fatos e dos interesses coloca os destinos do mundo em uma posição parecida à do encontro da civilização romana com o mundo bárbaro, no século V, e do conflito das instituições e dos costumes políticos do século XVIII com o espírito de liberdade, vitorioso no mundo dos pensadores e na burguesia.

O quadro desta nova crise é, entretanto, bem mais vasto, e os elementos em ação bem mais complexos e poderosos.

Desde agora, esta questão coloca-se naturalmente: a saída destes empurrões e destes movimentos será abondonada ao acaso, ação caprichosa da soma dos móbeis particularistas que fazem as forças ativas e comuns das sociedades e destas estreitas e mesquinhas políticas, enquadradas em seus preconceitos nacionais e entravadas por todos as mexericos e todos as embaraços de ineptas ambições pessoais, de partidos e de agrupamentos?(4) Ao lado das conquistas materiais da civilização, o espírito humano não chegou a um estágio igual de desenvolvimentos que lhe permita beneficiar-se da consciência destas realidades sociais e políticas para preparar o encaminhamento das correntes sociais para sua saída evolutiva e pacífica?

Esta questão, como a que Turgot(5) colocou-se, antes da Revolução, e que se dedicou a responder, procurando conquistar a boa vontade de Luiz XVI e da Corte, para o espírito de reforma, e a que Washin­gton e estes espíritos gigantescos dos fundadores da República Americana apresentaram à Convenção da Filadélfia e durante os primeiros anos da vida constitucional dos Estados Unidos, será seguida, como nestes dois casos, da resposta dos fatos, segundo o espírito e o caráter dos homens encarregados neste momento da direção dos povos.

A República Americana, com toda sua influência durante o século XIX, na América e no mundo, é uma obra de previsão política; a República Francesa, com seus efeitos, é a obra da ação das idéias e da reação das instituições, combatendo-se sem cálculo e sem medida.(6)

As forças que se encontram atualmente em conflito não são idéias, estando estas fracas para dirigir e controlar correntes tão vastas de tendências e de fatos: são apetites, ambições, interesses; e se não for do lado dos governos, é totalmente ilusório esperar ver constituir-se um corpo, ou surgir uma cabeça, capaz de domar e regular os impulsos das correntes impetuosas que conduzem as sociedades à mais aterradora das cri­ses humanas.

Eis a advertência que parece urgente fazer aos homens de Estado.

A segunda razão que me fez apressar a publicação destes estudos é pessoal, mas não sem valor, quanto a seu resultado prático. Enquanto estavam quase esquecidas em meu país, onde o sentimento geral e o espírito do povo e das instituições sendo pacíficos, o problema da paz não interessa como problema prático, algumas das idéias que servem de premissas às minhas conclusões eram externadas no estrangeiro. Esta antecipação, tendo, a princípio, o efeito, que não é de se menosprezar, de diminuir a eficácia prática das idéias, devido a autoridade ganha pelo autor, tem, também, a de fazer perder às idéias externadas uma parte de sua força, como elo do raciocínio, em um fim determinado. O público, habituado a receber uma idéia com uma certa aplicação, está predisposto a não renovar seu exame em uma outra direção, perdendo, assim, a causa de que esta idéia era uma contribuição válida, por esta cristalização anterior, um elemento de sucesso.

Citarei, por exemplo, a coincidência de um dos pensamentos capitais de meus estudos, a da orientação futurista da política e de todo processo mental de estudo das questões sociais, a solução devendo consistir sempre na representação ideal da saída futura do fenômeno, mostrado pela observação da marcha no passado e de seu estado presente, com a Filosofia futurista de um pensador europeu, em que a idéia do porvir não entra senão como bandeira para adesão de seus compatriotas e de encorajamento para uma obra de expansão e de imperialismo.(7)

Esta idéia não tendo sequer conexão com meu pensamento, a palavra futurismo, lançada entretanto pela imprensa aos quatro ventos da opinião, faria talvez uma crista1ização contrária ao meu pensamento, nestes tempos em que os espíritos mostram uma tão forte tendência para receber a marca de sugestões puramente verbais.

Bem mais próxima de meu pensamento é esta bela observação de Bergson[8] de que a vida sendo a mobilidade, o amor maternal “observável até na solicitude da planta pela sua semente”, ”nos mostra cada geração inclinada sobre a que a seguirá”. A determinação da vida em criar a vida e a do passado e do presente em produzir o futuro são justamente duas idéias capitais de meu pensamento.

Intimamente ligada a esta é a idéia da predição dos fenômenos sociais, idéia mãe da Sociologia para todos os sociólogos, desde Augusto Comte até Giddings e Lester Ward, e aceita por espíritos habituados aos métodos das ciências experimentais tal como Wilhelm Ostwald.[9]

Insisto particularmente no curso deste trabalho na discussão da existência de um instinto combativo ou de um impulso agressivo na natureza humana. Esta questão é uma das que melhor serve para mostrar o singular capricho de certas tendências supostamente científicas para estabelecer julgamentos contrários ao testemunho cotidiano e geral dos fatos sobre premissas que não têm o ar científico senão porque são obscuras, incompreensíveis. Quem quer que observe os costumes das sociedades contemporâneas, mesmo as menos policiadas, não pode recusar-se a canstatação deste fato de que a luta física é excepcional, que é evitada pela maioria das pessoas, mesmo em caso de provocação e de agressão. Os menores atentados contra as pessoas são punidos em todos os códigos; e, mesmo nos lugares onde seria ilusório esperar fosse garantida pelo socorro da autoridade e da força pública, os atentados contra as pessoas são sobretudo raros.

Se existisse verdadeiramente, esta pretensa compulsão inata, seria já de tal modo refreiada pelas forças da hereditariedade e da educação, que seria já tempo de compreender que o momento chegou de não se servir mais dela como pretexto nos casos justamente em que ela menos age sobre os que combatem: no caso de guerra. De fato, o soldado é o último a experimentar a compulsão e a paixão da luta.

Mas o que há de mais interessante é que a observação dos sentimentos e dos costumes dos selvagens, feita agora com métodos mais sérios, contradiz a suposição deste pendor para a agressividade nas populações; o selvagem é tanto menos belicoso quanto mais rústico ele é.[10]

Minha interpretação sobre as causas prováveis da origem das guerras não é a interpretação comum.

A explicação encontrada na luta do homem contra a natureza para a procura da nutrição, e ao impulso do instinto sexual, tem o defeito de ser muito antropocêntrica, atribuindo a estas funções comuns uma importância maior do que devem ter tido para o homem primitivo.

Os fatores mesológicos de seleção exerciam provavelmente uma compensação quase mecânica entre as necessidades e as satisfações. As outras interpretações vêm de exemplos e de generalizações feitas sobre a observação dos animais domésticos e do homem; e é preciso lembrar que, na criação de animais e na sociedade, atua sempre um elemento artifi­cial e arbitrário que basta para afastar qualquer naturalidade e qualquer lógica às relações de ser a ser e de ser com o meio.

Minha interpretação está ademais de acordo com as conclusões da ciência que atribuem aos fenômenos geográficos uma importância mais considerável na evolução primitiva da espécie[11] e que ligam a origem das guerras a um estado mais avançado do desenvolvimento humano[12]. Razões de ordem antropológica, histórica e psicológica convenceram-me que, nascida por ocasião de acidentes naturais e de migrações, a guerra logo ganhou, com as primeiras organizações sociais, uma natureza essencialmente política.

Na parte deste livro relativa às relações da guerra com as raças insistiu-se um pouco, para mostrar a força sugestiva do interesse político, latente nas sociedades, sobre as idéias correntes nos diferentes países, sobre a influência do ideal de expansão da Alemanha sobre certas correntes de sua opinião científica. Estou seguro que esta influência está bastante atenuada nos centros intelectuais alemães e reconheço ainda que esta tendência não tem sido exclusiva da Alemanha, tendo encontrado adeptos na Inglaterra, nos Estados Unidos e em França.

Esta questão parece definitivamente liquidada e é preciso esperar que este argumento não será renovado para justificar a sobrevivência de instituições contrárias a nosso estado de civilização e assim se realizará o voto eloqüente de Jean Finot[13]: “Sobre as ruínas da mentira das raças nascem assim a solidariedade e a verdadeira igualdade, ambas baseadas no sentimento racional do respeito da dignidade humana.”

Uma última palavra se impõe. Seja qual for o destino que tenha as conclusões deste trabalho – e os fatos contemporâneos e os do futuro próximo, mais do que seus argumentos, lhe darão a melhor das confirmações(14) – há uma afirmação a se colocar como a essência mesmo deste livro: a do direito e do dever da civilização de preservar as riquezas da Terra contra a exploração imprevidente e ávida e de defender as raças e as povos atualmente colocados em posição de inferioridade contra a opressão das outras raças e dos outros povos dotados pelas instituições e os costu­mes do passado de vantagens artificiais e transitórias de poderio e de sugestão.

Não se fez citações no curso deste trabalho senão quando foi para atribuir a seus autores a paternidade de idéias verdadeiramente originais e, mais raramente, para apoiar afirmações sobre elementos de fato, e para ligar as idéias do livro às idéias dominantes no alto pensamento contemporâneo. É preciso, entretanto, registrar aqui a dívida do autor para com Ernest Nys em seus eruditos trabalhos sobre a História do Direito Internacional, por um grande número de ensinamentos reunidos no capítulo sobre a evolução da idéia da paz, algumas observações e ligeiros vislumbres tomados na obra de Paul Janet “Histoire de la Science Politique” e um pequeno número de fatos, de interesse mais anedótico, colhidos na Évolution politique de Letourneau(15).

A necessidade da paz permanente é uma idéia vitoriosa no pensamento dos verdadeiros homens de Estado. Em seu discurso de 21 de Dezembro de 1912, no Senado Francês, Raymond Poincaré pronunciou estas palavras que concordam totalmente com a apreciação feita neste livro sobre a guerra turco-balcânica:

“Assistimos, senhores, a um dos acontecimentos mais consideráveis e das maiores conseqüências que foram registradas desde há muito nos anais da Europa. Esta questão do Oriente, que permaneceu durante séculos como um enigma tremendo, esta questão do Oriente, a que as grandes potências por um entendimento tácito, evitavam, tanto quanto possível, procurar soluções radicais e definitivas, vai sem dúvida regular-se agora por uma força inevitável no sentido que corresponde melhor às idéias francesas.”

Esta constatação da antiguidade da questão do Oriente e de sua solução próxima, cheia de conseqüências e de acordo com as idéias francesas, não é a afirmação deste fato que com o pesadelo do Oriente há uma tradição e uma instituição do passado às vésperas de desaparecer?

E se se lembra as palavras pronunciadas por Pichon(16) por ocasião do tratado de arbitragem franco-americano, para interpretar esta alusão às “idéias francesas”, não se pode duvidar do sentido íntimo das palavras veladas do Presidente da República Francesa.

Todo mundo faz justiça e rende homenagem aos sentimentos pacifistas do Imperador da Alemanha e aos esforços empregados por S.M. para assegurar a paz no mundo.

William Taft e Sir Edward Gray trocaram, por ocasião das conversações para o tratado de arbitragem anglo-americano, com os aplausos de todos os partidos políticos, do Clero Americano e do dos Estados Unidos, de personagens as mais eminentes destes dois países, palavras que, melhor que o tratado mesmo, valem por um voto e por um programa de ação pacifista. O próprio nome do futuro presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, vale por um programa de pacifismo e de política de soluções sociais democráticas.

As grandes reformas não dependem freqüentemente senão de um acontecimento de advertência para serem realizadas. Este acontecimento, no caso presente, seria, talvez, o maior transtorno que perturbou a marcha de nossa espécie. Por que não nos poupar este perigo, perante a evidente demonstração de sua probabilidade?(17)

Rio de Janeiro, janeiro, 1913

A.T.


 

O PROBLEMA HUMANO

 

A História não é senão uma sucessão de lutas. Os interesses humanos não tendo sido, até nossos dias, senão assuntos de deba­tes e pretextos para batalhas, o progresso social é um fato quase mecânico, sobre o qual nossa razão e nossa vontade não exerceram senão um controle negligenciável. A luta não é, entretanto, senão uma das formas da atividade humana. E o primeiro problema de nossa civilização é o de saber se nosso espírito não atingiu este estado de desenvolvimento em que a luta física entre as nações deve desaparecer: se este procedimento anormal de nossa atividade, resíduo de velhas paixões e de antigos preconceitos, sob a exaltação impulsiva dos motivos mais grosseiros do homem primitivo e da sociedade em sua primeira infância, não é contrário à adaptação da nossa natureza ao nosso meio físico e social.

Este problema submete ao julgamento de nossa época uma reforma de costumes políticos cujo fim é estabelecer a ordem no mundo e em seus agrupamentos pela solução racional das crises do desenvolvimento social sem as perturbações da guerra e da revolução.

A luta do homem contra o homem não é uma necessidade de nossos instintos nem de nossas necessidades. Sem mesmo se ater à afirmação de alguns antropólogos de que nossos ancestrais primitivos não conheceram o homicídio nem os combates com seus semelhantes, é preciso levar em consideração o fato de que não se encontrou ainda vestígios do crime de sangue nem da guerra nos esqueletos do homem anterior à idade neolítica. A guerra não existe, como um fato comum, pelo menos, nos costumes dos outros primatas nem nos da maioria das outras espécies animais.

A destruição do nosso semelhante pelo crime e pela guerra representa assim uma espécie de deformação do nosso caráter genérico. Quase exclusivamente vegetarianos e frugíferos, de uma natureza mais tímida que bravia, desarmados para os combates, feitos para os movimentos ágeis, para a corrida, para a fuga, os primatas não têm a natureza agressiva, nem mesmo ofensiva.

A guerra não é o fato do instinto, na medida que esta palavra responde ao conjunto dos poderes hereditários da animalidade ligados à conservação da vida e à reprodução, mas o produto de uma inteligência social, de uma primeira camada de sentimento e de vontade, estimulada e embalada até à paixão e ao delírio pela incapacidade de resolver.

Sua fonte moral está em parte na ativa atração dos conflitos de cobiça e dos duelos da concorrência, mas, sobretudo, na perseguição destes sonhos infantis, destas felicidades ilusórias e destes tesouros que sempre atraíram, mais do que a satisfação das necessidades naturais, as ambições dos homens.

A guerra é um fenômeno social e, sobretudo, político; é o resultado da ambição mais do que da necessidade; foi criada pela força de comando. O primeiro verdadeiro chefe de um bando de homens foi o primeiro guerreiro.

Nas sociedades organizadas, os governos, apoiados na Moral e no Direito, poderosamente ajudados pelas religiões, chegaram a suprimir o duelo e a guerra privada. A paz no interior do país, é no interesse dos que governam; mas, nas relações exteriores, já que a ambição dos condutores de povos está toda voltada justamente para o lado dos povos vizinhos, a luta física se manteve, pela força do choque entre as ambições concorrentes. E – vede como é verdadeira, esta verdade da natureza política da guerra – a luta física não se apresenta mais, após a criação dos primeiros chefes tribais, na vida interior dos povos, senão como reação contra a autoridade dos chefes, autoridade que justamente a mantém no exterior, como revolução.

Por que se deseja a guerra?

Por que esta ameaçadora paz armada, sempre à espreita das nações?

Por que este perigo constante de perturbações na sociedade?

Porque a política, na vida das nações, e na do mundo, é uma forma atrasada da atividade humana, estando vários séculos atrasada em relação à civilização.

A Moral, a Justiça, as noções de consciência e de bom senso não são, nas relações de povo a povo e de governantes para governados, senão frouxos princípios indefinidos, ou grosseiras convenções, dissimulando, sob a aparência do bem público, interesses de classes e de grupos sociais.

A política não responde mais ao estado real da sociedade humana nem das sociedades nacionais.

Mesmo se se reduz o seu conceito à forma precisa de uma realidade imediatamente verificável, não é mais possível contestar a existência da sociedade humana, ou, se se deseja ainda restringir a idéia de uma sociedade humana, composta destes povos, em diferentes graus de cultura, que se conhecem, estando expostos às influências que ligam as raças e as nacionalidades na trama de um certo número de costumes e de interesses comuns. A comunidade destes interesses e esta semelhança de costumes mostram que o homem começa a realizar uma existência de relações, superiores às relações nacionais, como estas são superiores aos relacionamentos de classe, de comuna, de família.

Examinando as estatísticas da produção mundial de gêneros alimentícios, verifica-se, apesar das predições de Malthus, de seus discípulos e dos advogados do imperialismo, que esta produção não é insuficiente para nutrir o bilhão e seiscentos milhões de habitantes da Terra.(1) Nosso planeta conta, além de suas vastas regiões exploradas, com terras suficientes para nutrir a humanidade e permitir sua multiplicação. Se se observa os progressos da ciência aplicada e das indústrias, fica-se surpreso com as invenções destinadas a aumentar a vida e o conforto. Os meios de transporte e de locomoção permitem espalhar as mercadorias, não importa de que ponto da Terra, em todas as direções, até aos antípodas. O homem contemporâneo não tem necessidade de combater para se nutrir e para conquistar o bem-estar.

A superfície da Terra está conhecida, a sociedade dos homens se compreende e se entrelaça. Os instrumentos materiais de troca se multiplicam; os laços morais e sociais ganham, dia a dia, mais força, mais extensão, mais afinidade; o comércio e as relações econômicas, o crédito e o banco, as finanças e os negócios, alimentam toda uma vida nova, cálida, complicada e variada, de relações de amizade, de concorrência pacífica.

Nossos sentimentos e nossas idéias coroam este oceano de vida mundial com uma espuma, perolada e brilhante, de simpatias e solidariedades.

A luta física é uma afronta ao nosso senso moral. Fere o sentimento de piedade, que se encontra no fundo do coração do mais rústico dos homens de nosso tempo. Ameaça a paz do coração e nossas mais profundas afeições; revolta a fé e as crenças religiosas; confunde, nas batalhas, amigos e inimigos, confrades e adversários; e não deixa, atrás de si, senão o espetáculo de duas sociedades entre as quais o ódio ergueu, por longos anos, a muralha de uma separação absoluta.

Pretendeu-se que a guerra fosse um fenômeno inevitável da existência, um instrumento necessário da seleção, um meio de civilização, de cultura, de progresso, uma idéia tão metafísica quanto a de obter a paz pelo advento do milenium, da era da fraternidade e da felicidade. A guerra é um fato da História, tanto quanto a vida em tribo, a magia, a escravidão, o totemismo, a exogamia ou a endogenia, o politeísmo, o feudalismo, o império, a cavalaria, a Reforma, as grandes descobertas e os flagelos, foram, ou são, fatos históricos. Embora sendo condenável, e tendo sido condenada desde os primeiros dias da História, a guerra pode ter sido uma necessidade, um hábito de que os homens não conseguiram se libertar, uma etapa de sua evolução. Sua missão está cumprida, seu tempo chegou, eis o que mostra o presente, e de que toda a vida moderna é a prova flagrante.

Isolado do mundo político, o homem é em toda a parte inimigo da guerra. Seja qual for seu país de origem ou o país em que vi­va, seu sentimento e sua razão o associam à ordem. Qualquer que seja sua indústria(2), em qualquer lugar para onde o conduza sua ambição, seu interesse e o dos seus estão ligados à manutenção da paz e das boas relações entre os povos. Sobre a paz repousam o crédito, a circulação comercial, as trocas econômicas; apenas ela permite e facilita os cálculos de probabilidade, nas lutas da vida. As vantagens políticas e as glórias militares lhe são indiferentes, ou antipáticas.

Para o homem contemporâneo, a imagem da Pátria é a do país que protege, ao abrigo das leis e dos costumes, o futuro da família. Como sociedade permanente das famílias, a Pátria deve assegurar, antes de tudo, a ordem e o progresso, sobre os quais repousa o problema vital dos agrupamentos mais avançados de nossa espécie: o futuro dos filhos.

É sobre a base deste sentimento fundamental de nossa natureza, feito de amizade e de amor, súmula de todos os outros sentimentos, que é preciso considerar os fatos da solidariedade social.

O altruísmo, esta espécie de renúncia a uma parte de nosso “eu” no interesse dos outros, tem por fundamento o amor à família. Embora nascida em uma fase já avançada da vida social, após a formação das primeiras hordas, talvez mesmo após os primeiros clãs, a família é a sociedade por excelência.

Alguns filósofos e filantropos desejaram assentar o sentimento de solidariedade social na escala descendente do amor à Humanidade, à Pátria e à Família. É a inversão mesmo da realidade; e o ideal da paz, confundido nesta concepção utópica, não pode senão sofrer. O militarismo, de outro lado, sustenta a superioridade da Pátria sobre a Família.

A utopia de uns, a falsidade convencional de outros os fazem cair no mesmo erro lógico.

É bastante duvidoso que a concepção dos positivis­tas seja um ideal legítimo e possa deitar raízes, como um verdadeiro sentimento. Não há, talvez, nesta idéia, senão a confusão da escala dos sentimentos com a gradação das três sociedades, em virtude de sua massa. O hábito de tudo reduzir a sistema, a tendência a classificar, não nos permite sempre abarcar um pensamento complexo, sem a ajuda de uma imagem, ou de uma tabela. Este escalonamento do sentimento altruísta, não sendo nem natural nem prático, torna-se um obstáculo ao desenvolvimento da solidariedade humana, um argumento contra seu progresso. A vida social tem por condição o altruísmo, mas o altruísmo tem como forma primária o amor familial. A solidariedade coletivista dos primitivos não tinha por base a abnegação, mas o desejo material de segurança, sobre uma camada, ainda bem delgada, talvez, de instinto animal de ajuda mútua. Precedendo a família, precedeu seus motivos morais, o desinteresse de suas relações, o instinto de sacrifício pelos outros. A ilusão, se ela algum dia existiu, da supremacia do amor patriótico sobre o amor à família, inspirado no interesse de defesa pessoal, seria transformado, por força da sugestão, nas mãos dos chefes e dos padres, em instrumento político.

A subordinação do amor familial ao amor à Pátria contrária à natureza, sofisma e meio de opressão política, é a razão concreta dos céticos, contra os progressos do altruísmo. O sentimento não é jamais uma invenção teórica; nasce no espírito e desenvolve-se com o espírito.

Se esta idéia fosse verdadeira, teria uma conseqüência que precisaria ser levada em conta, nas relações da família e do estado: o patriotismo e o amor à família não poderiam encontrar-se em divergência, pelo motivo mesmo de que o primeiro pressupõe uma forma superior de altruísmo. Não se poderia conceber uma sociedade nacional, dominada por um sentimento de alto patriotismo, que impusesse o sacrifício do outro sentimento, mais simples, mais elementar, mais afetivo. Por esta motivação profunda e íntima da natureza humana, enraizada em nosso corpo e em nosso espírito, a integridade e a independência da Pátria não são senão condições de vida em sociedade: o interesse que as criou não se transforma em afeição senão como desenvolvimento da afeição pela pequena sociedade familiar. O trabalho e a luta pela família são a regra de vida da generalidade dos homens; o trabalho e a luta pela Pátria, o caso excepcional de algumas minorias; o trabalho e a esforço pela Humanidade, um caso ainda bem raro.

Se os interesses gerais contêm algum atrativo para todo mundo, é que eles contêm um outro interesse, o da sociedade fundada sobre o amor e a hereditariedade. A Pátria, inimiga, que ameaça sua segurança e a esperança de seu bem-estar, não pode deixar de representar, para homens normais, uma imagem odiosa e revoltante.

A Pátria guerreira, a pátria que repousa seu ideal político nos sonhos de luta e no sucesso das armas, é uma pátria que mantém, na alma dos povos, sobre a sorte de sua posteridade, um problema que eles não podem resolver com as previsões e os cálculos de sua razão; não pode ser a pátria de seu coração e de sua inteligência.

Dizer que a aspiração à paz supõe a supremacia do amor pelo gênero humano não é, pois, mais verdadeiro do que dizer que o patriotismo impõe o sacrifício do amor familiar.

No meio destas criações de nossa imaginação, hoje destruídas, para serem amanhã reedificadas, a vida refaz sempre, com os fatos, a réplica à mentira de nossos sonhos; e os povos, não compreendendo os sistemas, mas sofrendo com sua prática, não crêem nem na política, nem nos governos, para seguirem tímidos, o caminho de um humilde senso comum.

É preciso, pois, destruir as velhas doutrinas, sem as substituir por outras, igualmente irreais.

A guerra, ao contrário do que pensam os que a têm como um fato de instinto e de natureza, é uma das formas mais artificiais de nossos costumes. Não é senão o resultado desta concepção teatral da vida, desta imagem passional dos fatos sociais, de que a poesia, o romance, a arte, o direito e a política fizeram o espetáculo ordinário de nosso espírito, refletido, pela sugestão, sobre o mundo exterior, da mesma forma como os outros preconceitos e as outras visões do homem primitivo. Ela é uma aberração de nosso espírito, semelhante ao animismo, aos “totens”, aos “tabus”; uma aberração mais resistente, apenas, porque, sendo um fato mais prático, mais geral e mais variável, ela se alimenta de todos os objetos e em todas as fontes da vida e da sociedade: é como que o coroamento de outros preconceitos e de outros erros.

Crê-se que ela é eterna, porque se crê que nós somos basicamente batalhadores; é um dos preconceitos de nossa consciência de convenção: o homem é dado a querelas e às batalhas por natureza. Os verdadeiros representantes da natureza humana foram sempre, pelo contrário, as multidões pacíficas e sofredoras das pessoas de labuta e de trabalho, as multidões esmagadas pelas aristocracias armadas, graças à sorte e à astúcia, com instrumentos de guerra mais poderosos.

O determinismo da vida social não selecionou indivíduos e grupos definidos, no curso da evolução. Agindo sobre grandes massas, por movimentos violentos e formidáveis, que as forças físicas influenciaram poderosamente, fez da História esta longa seqüência de combates em que os eleitos pelo sucesso, rapinadores ou astuciosos, calcaram sob os pés, nas multidões, as belas searas de homens de coração e de espírito.

E uma vez que, nesta sucessão de poemas e de roman­ces vividos, a razão não tinha voz, não havia lugar nos espíritos para os problemas da vida. É por isto que a luta gerava outras lutas; que a paz entre os povos trazia em seu seio a guerra civil. Não conhecendo seus interesses, o homem não sonhava em lhes dar soluções, não sabia sequer transformá-los em problemas. A guerra e as revoluções repetiam-se, assim, como crises, a cada nova excitação das necessidades. Depois, os sistemas cuidaram de legalizar esta concepção teatral da vida.

Mas é tão verdadeira a incompatibilidade dos sistemas com os fatos, que os velhos sistemas não são mais práticos que os novos. Em todos os lugares em que a política desejou transformar em fatos teses doutrinárias, realizou ideologia retrógrada ou ideologia utópica. É porque, nesta inversão da normalidade, que criou nos espíritos este estado permanente de idealidade dramática, a paz tomou a posição de um ideal, que pareceu uma utopia, ao lado das mais transcendentes abstrações, dos sonhos mais fantásticos. A paz não é, entretanto, uma concepção metafísica; não é sequer, um simples conceito abstrato, como a justiça, o direito, a arte ou a ciência: é um estado, uma realidade constante; a mais verdadeira e a mais permanente de todas as realidades sociais, que se prolonga, pela continuidade, em todas as horas e em todos os lugares de nosso planeta. Não é a paz que é anormal, mas a guerra, que a entrecorta com suas crises e seus acessos.

Há como que um desacordo entre a evolução do ani­mal, no homem, e a evolução de seu espírito. Os intérpretes materialistas de nossa vida animal e psíquica, enganados pelas aparências, e sob a inspiração do senso comum, atribuíram uma influência preponderante, no curso de nossa existência, aos móveis de nossos apetites e de nossas afeições. A verdade, entretanto, é completamente outra. A vida dos instintos, dos apetites e das afeições realiza-se e desenvolveu-se, automática, material, cega, sob o impulso de forças de que o homem não tomou consciência, mesmo em um estado avançado de seu desenvolvimento. As necessidades da existência não foram quase objeto do pensamento humano; não foram senão preocupações instintivas imediatamente ligadas à sensação das necessidades. Os mais perturbadores e mais ignorados problemas da vida e da sociedade são ainda os que se relacionam com as nossas necessidades elementares, com as nossas vibrações profundas de seres e de viventes.

Ao lado desta ignorância de seu ser real, o homem formou para si, desde os primeiros vislumbres de seu espírito, toda uma vida de criações e de imagens, de mitos e de lendas, de invenções poéticas e miraculosas; e a atração dos sonhos e dos mistérios exerceu sobre sua história e sobre seu desenvolvimento uma influência bem mais considerável do que a de suas necessidades. Entre o vale plano a suave, que devia conduzir ao campo rico em caça e em belos frutos, e a montanha em que a feiticeiro subia, toda manhã, a pedra onde morava o espírito criador de um elemento, a alma fantasiosa e sonhadora do selvagem preferia a vereda rude que deveria aproximá-lo das nuvens e do sol, portadores de água e leite, de vida e calor, do “maná” e das dádivas do céu, para todos os crentes... Ao longo de toda a História, o esforço do espírito tende a furtar-se à realidade; a viver a vida mágica, a vida religiosa, a vida de arte, a vida de invenção.

Este lado místico de nossa natureza, inspirador das primeiras descobertas práticas, atuou, sobretudo, como fonte do espírito aventureiro e empreendedor. O desconhecido, o longínquo, brilham ao olhar inflamado do sonhador como que a antecipação do além. É uma espécie de céu ao alcance das ambições terrestres. As primeiras conquistas que não resultaram de acidentes meteorológicos, não foram senão a realização destes sonhos. A poesia épica dos primeiros povos é a prova disto.

O homem apenas começa a descer a encosta de sua montanha de sonho; retoma sua vida real, sua vida de fato; e, comparando suas intrigas cavalheirescas com a miséria e os mistérios de seu corpo e de sua alma, apercebe-se que viveu a combater por feitiçarias, enquanto que o bom ocultava-se em outro lugar. E a paz é o retorno ao bom vale...

Nossos problemas vitais, as dúvidas que se relacionam com a vida da alma e do sangue do homem e da espécie, os trabalhos do espírito que deveriam abarcar o conjunto de nossa existência ativa, nesta atmosfera e nesta trama em movimento, animada, vivente e vivificante, de nossas relações com as coisas, com os seres, com nossos semelhantes, são folhas ainda brancas da mais prática e da mais necessária do todas as ciências. Ignoramos tudo o que se relaciona com o contato de nosso organismo e de nosso espírito com os fatos ordinários e os fenômenos anônimos do meio e da sociedade e que forma o princípio profundo e substancial de nosso caráter.

O envoltório social de nossa psique foi feito ao contrário de nossa natureza. Nossa ciência, a ciência acadêmica, é uma ciência de verdades laterais, de conhecimentos teratológicos. O homem tem necessidade de se conhecer, em sua vida normal, em sua estrutura e em seu funcionamento ordinário.

Este conhecimento é a primeira tarefa da paz. Estes problemas desconhecidos, ou voluntariamente relegados, são as fontes de todos os transtornos da sociedade.

A filosofia dos que governam não é uma filosofia idealista, nem sequer uma filosofia realista: é simplesmente uma filosofia de convenção. O governo e a direção da sociedade são feitos por pensamentos medianos; da mesma forma que a opinião é feita por julgamentos de senso comum.

A guerra existe, é aceita, eis o fato, a realidade aparente, eis a única verdade suportável para os espíritos que se assustariam, a cada passo a ser dado na vida, se fosse necessário raciocinar para dar este passo.

Esta idéia é uma noção artificial; não representa a vida humana, não representa a vida de cada um de nós; tem tanta relação com nossa existência e a de nossas famílias quanto o belo gesto de um ministro e o discurso eloqüente de um deputado com seu desjejum e seus negócios.

O olhar que lançamos às coisas do mundo está ainda muito embaçado pelo espetáculo íntimo de nossas ilusões e muito perturbado pela recordação de nossos medos, para que se possa perceber as verdades simples da ciência simples e clara da vida.

É esta ciência que dá a melhor resposta à objeção dos negativistas, quando recusam toda realidade à noção de progresso, porque esta noção pressupõe a idéia de “bem” e a idéia de “bem” a de um modelo, de uma unidade, de um padrão de felicidade, de satisfação, ou de bem-estar, impossível de encontrar e de formular. Esta unidade existe, entretanto, e pode ser relacionada, em sua expressão mais simples, com o fenômeno elementar da “vida”, cujas manifestações e desenvolvimentos, avanços e retrocessos, aperfeiçoamentos e degenerações, são visíveis e apreciáveis ao olho atilado de qualquer horticultor, de qualquer criador de gado, de um bom fazendeiro, de uma governanta esperta. Relacionar os progressos da sociedade humana com desenvolvimentos da vida humana, é lhe dar uma unidade simbólica, capaz do produzir visões de conjunto e análises de uma exatidão científica, sendo esta unidade possível do se decompor em valores certos, indiscutíveis. Parece, aliás, pela simples intuição, que não se engana nisto, em Moral, se se toma por criterium, na direção da conduta, não o bem, que se pode ter por abstrato, mas o interesse da vida, de sua própria vida, da do outro. E sobre o eixo, muito simples e claro, desta concepção prática do progresso, os desenvolvimentos racionais e positivos levam a conclusões bem mais amplas e mais nobres que as dos dogmas e dos princípios normativos, desenganados pelos fatos.

E esta redução do bem, da felicidade e do bem-estar à sua expressão elementar, nos faz voltar a outra redução dos problemas sociais: a redução das operações e dos desenvolvimentos da sociedade à unidade individual e ao composto mais simples desta unidade: a família. A obra de fundação de uma ciência social deve repousar na constatação das realidades deste conjunto de seres e dos movimentos que formam a sociedade no espaço e no tempo. O indivíduo é sua unidade elementar; a família, seu núcleo mais sintético.

Dizei, pois, ao homem de senso comum: amai a Pátria e a Humanidade mais que a vossa família; e, sorrindo intimamente de vossa ingenuidade e de vossa astúcia , virá a desconfiar de vós, da Pátria e da Humanidade, e não tratará senão de se defender, a si e sua família, destes sentimentos de convenção

O patriotismo da Filosofia militarista é uma mentira, ou um engano, para a maioria das pessoas.

A veneração nos liga ao passado, ao culto de nossas glórias e de nossos antepassados, pela força de um sentimento que nada tem de comum com o misticismo e o medo das crenças religiosas de nossos ancestrais. As tradições e as instituições, perpetuando-se, pela História afora, como atributos e qualidades subjetivas da raça e do povo, envolvem a sociedade, como o éter de nossa vida moral. A emoção estética da paisagem amada nos segue até o ponto onde se estende o horizonte do país natal ou do lugar onde moramos, até no máximo, onde nos seguem o canto de seus pássaros e o perfume de suas flores. Mas nossas vontades e nossos caracteres se unem, na sociedade, pelos laços dos costumes, das leis, dos interesses, das relações de comércio, mais íntimos em cada país; e, sobretudo, por esta sensação de ajuda mútua e do apoio mútuo, esta vasta reaproximação de vizinhança moral, prolongamento do sentimento doméstico, de que ele se inspira e se alimenta. É este sentimento dinâmico o sentimento propulsor que nos conduz, apontando para o futuro, para a sorte de nossa linhagem. A Pátria é, acima de tudo, o átrio futuro das “gens” que levamos em sementes, em nosso corpo. O lar do homem moderno está ligado à sua imortalidade genética, na perpetuidade da família.

É sob esta concepção real da continuidade social que a paz retoma sua natureza de estado normal da vida humana e mundial, estado às vezes perturbado, mas destinado a se tornar durável e definitivo, se se dispõe a banir do espírito as ilusões da concepção teatral da vida, a tomar nas mãos os problemas positivos da existência.

É sob este ângulo que se mostra o absurdo preconceito dos que, condenando, como a maioria dos civilizados, o duelo e as represálias físicas entre pessoas, nos falam da honra e da dignidade da Pátria, em um tom cavalheiresco e heróico, como se esta honra e esta dignidade fossem diferentes de nossos deveres de probidade e de civilização. Esta honra de convenção foi a honra petulante dos senhores, o estandarte da bravura brutal do feudalismo, a imagem do orgulho do dominador e da avidez do senhor da terra e do servo. A verdadeira honra nacional, a honra inalienável e imprescritível, não se repara nem com sangue nem com a morte; reside em um dever mais alto que o de arriscar a existência nas disputas aleatórias das armas: é a honra que repousa na missão de trabalho e na consciência de responsabilidade para com o legado de bens, de civilização e prosperidade, de que somos os guardiões atuais, e o futuro é o nosso credor.

O homem contemporâneo é cosmopolita nas relações de família. Enquanto, em cada país, quase todos obedecem a preconceitos de classe e de raça, a escrúpulos de educação e de posição social, ninguém repele o estrangeiro do seio de sua família. Cada um de nós é o amigo, pelo coração e pelo espírito, pelos laços mais fortes que os da simpatia, de pessoas que não foram jamais vistas, que permanecem, às vezes, em um ponto longínquo da terra. Cada um de nós está associado, pela identidade de interesses, a outros homens, esparsos por todas as regiões do mundo, adversários freqüentemente de nossa Pátria, enquanto que nossos compatriotas são nossos concorrentes. As concorrências e as divergências de interesses se cruzam, nos mapas geográficos, como correntes de solidariedade e de rivalidade, tão fortes quanto as relações políticas. As crenças religiosas e as idéias filosóficas, morais e sociais, reúnem, em associações íntimas, multidões dispersas pela Terra. As estradas de ferro, os correios, o telégrafo, o telefone, o automóvel, formam uma rede de comunicações, de trocas, de correspondência, de entendimento, prático, estreito, freqüente, entre seres e instituições de todos os quadrantes da terra. A sociabilidade já introduziu o hábito gentil das visitas por cartão postal...

Para responder aos políticos que pregam a paz armada e a guerra, em nome de interesses econômicos, o homem não tem senão que escolher, na vasta extensão de nosso planeta, o canto da terra em que a prosperidade lhe seja prometida sem os riscos e os sofrimentos da guerra. Para responder aos que invocam o patriotismo, em nome de uma aspiração de supremacia e de hegemonia nacional, basta-lhe voltar os olhos para a Suíça, a Bélgica, os Países Baixos, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, o Brasil, para outros países novos, onde o bem-estar e as alegrias da vida são frutos de uma prosperidade feita sem o ressaibo da inveja e do ódio.

 

II

 

As forças que empurram o mundo em direção à solidariedade e à paz, em formação no decorrer do último século, estavam apenas latentes, ou circulavam em um pequeno mundo de pensadores e de apóstolos.

A paz não era um problema; era apenas uma aspiração: um sonho sentimental, para as almas generosas; uma concepção de doutrina, para os teóricos do Direito. A política não se ocupava dela ou se ocupava apenas como um belo motivo oratório, adequado para ornar as perorações, para falar dela com este tom de melancólico pesar com que as consciências desembaraçam-se dos trabalhos que não têm nem a força nem a coragem de realizar.

Os primeiros passos da ação pacifista foram dados nos Estados Unidos e na Suíça; e esta origem da propaganda tem uma expressão extremamente sugestiva. As duas primeiras verdadeiras democracias de nosso tempo, repúblicas edificadas sobre sociedades verdadeiramente liberais sem influentes tradições reacionárias, deveriam ser, elas também, as primeiras nações a se aperceberem da existência de uma vida e de interesses superiores aos da agitação guerreira dos estados.

Esta vida desapercebida eclodiu nos dois fenômenos coletivos mais marcantes de nosso tempo: o capitalismo e a questão social; a internacionalização das finanças, do dinheiro, do crédito e a internacionalização das massas proletárias e de suas reivindicações. Das Bolsas e mercados financeiros, fábricas e manufaturas, surgiram questões e problemas colocados acima das divisões geográficas. Era a manifestação flagrante, e de força formidável, da sociedade mundial e de sua vida supranacional.

A política recebeu-lhe o contragolpe; e, por um destes movimentos súbitos que caracterizam a rapidez da eclosão dos problemas em nosso tempo, as idéias que não eram senão aspirações, convicção dos pensadores, ou programas de algumas raras associações, retomaram o caminho dos gabinetes ministeriais, aberto, em um êxtase de misticismo, pelo criador da Santa Aliança, passando assim do terreno da doutrinação para o terreno dos projetos de governo. Os dois países tidos sob o aspecto de civilização como berços das mais notáveis invenções da indústria moderna, e em relação à cultura, como modelos de quase todas as constituições políticas – a Inglaterra e os Estados Unidos – fizeram da ordem mundial o programa de sua política, seguidos imediatamente pela Suíça, a França e a Dinamarca.

Se os tratados de arbitragem ilimitada anglo-americano e franco-americano foram derrotados no Senado dos Estados Unidos(3), a política pacifista dos Estados Unidos e da Inglaterra nada perderam em firmeza e em progresso. São dois países ganhos para a causa da paz; e esta conquista é definitiva, porque são países cujos interesses vitais – concentrados, quanto ao primeiro, na força e na energia de seu desenvolvimento fundado completamente em suas forças sociais e econômicas, e, quanto ao segundo, por esta situação particular de um país que chegou a seu estado de consolidação, situação que lhe impõe a necessidade de se absorver na reorganização de seu imenso império e na solução de problemas que se chocam com sua estrutura tradicional – lhes impõem, não apenas evitar a guerra mas aspirar a se encontrar frente a uma perspectiva definitiva de paz. Seria preciso atribuir aos ingleses e aos americanos uma verdadeira ignorância de seus interesses para acreditá-los capazes de pensar de outra maneira.

E este interesse é também o da Franca, nação de gênio e de cultura, de entusiasmo e de devotamento, capaz de exercer uma ampla influência civilizadora, mas levada, às vezes, por impulsos cavalheirescos, a empreendimentos contrários às suas instituições e aos seus ideais; freqüentemente desviada dos seus objetivos naturais, devido a uma economia congestionada de capitais sem aplicação no país.

Campo de batalha secular do mundo latino e do mundo bárbaro, centro principal das lutas da formação das nacionalidades, a França herdou um pendor guerreiro. Primeiro mercado financeiro do mundo, está mais que qualquer outro país exposta às ambições, às intrigas, às alucinações da especulação e das cobiças coloniais. É a “pars minoris resistentiae”(4) de seu caráter nacional; mas o espírito francês, esclarecido e progressista, o caráter honesto e laborioso de seu povo, e, acima de tudo, de sua brilhante cultura, são garantias sólidas do interesse da paz.

Há apenas uma, entre as grandes potências, cujo futuro “parece”(5) depender da sorte das armas: a Alemanha.

Colocada, como os Estados Unidos, na primeira frente do avanço e do crescimento, a Alemanha, exuberante de energia, ardente de força, ambição e poder, não encontrou ainda a base econômica, financeira e territorial de sua expansão; e possui, em seu patriotismo, em seu espírito de nacionalidade e de disciplina, em seu exército e em sua frota, instrumentos imponentes de atividade. É esta a melhor força deste grande centro de saber, de alta filosofia e de admirável poesia?

Sim, enquanto houver a paz armada e ameaças de guerra, enquanto, devido ao próprio fato da paz armada e à força da Alemanha, as outras potências tiverem necessidade de manter, para com esta temível rival, a atitude de desconfiança que, por todos os lados, a cerca. A Alemanha sofre de um impulso irresistível para a expansão, e seu melhor instrumento é sua força militar. É um fato, uma imposição da vida, uma realidade inelutável, que nem as disposições pacíficas do Imperador, nem a influência do Centro católico, nem o interesse crescente da indústria, nem o obstáculo, bastante considerável, do socialismo, terão talvez a força de sustar.

E não é somente neste impulso para se acalmar e para crescer que se encontra o impulso conquistador da Alemanha; este é o elemento característico de seu impulso puramente nacional; mas, na Alemanha, como em todas as grandes potências, age poderosamente a necessidade de formação de capitais, o principal estímulo da ação de suas classes influentes. A Inglaterra e a França são, por excelência, países de importação de capi­tais; excluindo suas colônias, e aí ainda, é preciso não esquecer que o desenvolvimento dos ingleses tem mais o caráter de uma disseminação da raça do que o de um crescimento da nação, e que o gênio colonial francês não chegou ainda a reparar os erros de seus primeiros revezes(6), toda sua atividade no mundo se limita a uma ação de extração de capitais.

Os Alemães, como os outros povos que emigram, mas de uma maneira bem mais considerável do que todos os outros, agem por ocupação e por capitalização. Exercem assim uma dupla ação conquistadora. É o que, de outro lado, começam a fazer, por um desvio de sua política nacional e como conseqüência do desenvolvimento do espírito mercantil, certos financistas americanos, na América do Sul.(7)

Seria pueril tergiversar com coisas que são a conseqüência de uma longa elaboração histórica. A fase militar da civilização deve eclodir em uma crise imperialista da Alemanha. Questão de crise de idade, deste país e do mundo. Mas esta fatalidade pode encontrar seu corretivo no espírito de transação das outras potências; e é isto que os povos interessados em estabelecer a paz devem ter em vista. A Alemanha julga-se no direito de crescer e, por bem ou por mal, queiram ou não as outras, ela tratará de crescer. Se as potências compenetram-se desta verdade e da necessidade de colocar um ponto final no ciclo das agitações militares, uma disposição conciliadora para com a Alemanha, para lhe dar seu “lugar ao sol” nas regiões dos povos bárbaros e coloniais, pode ser a base para uma combinação de paz estável.(8)

Se este acordo não for coroado de êxito, a Alemanha, a Inglaterra, as Estados Unidos e a França – os verdadeiros árbitros, neste momento, dos destinos do mundo – terão que responder perante o futuro por uma crise mundial(9), feita de confusões e de excitações de toda espécie de rivalidades políticas, de conflitos agudos, de classe, de nacionalidades, de interesses sociais e econômicos, de supremacia e de submissão de povos.

As pessoas que governam e as que dirigem a opinião, parafraseando os acontecimentos com exposições teóricas, exemplos do passado e pitadas de bom senso, não se deram conta o suficiente da complexidade, da extensão e da intensidade que as flutuações da vida social adquiriram em nossa época.

Enquanto os pensadores, presos no círculo de sua especialidade, ou no ângulo de seu ponto de vista, não chegam senão a esclarecimentos parciais de aspectos de nossos problemas; enquanto os governos, presos nas malhas da rotina e da intriga, obsecados por fórmulas, embaraçados pelos entraves e sujeições dos partidos, imaginam que a marcha da sociedade é feita por fatos diários da política e da administração, as correntes que revolvem as camadas profundas do sentimento, da vontade a do pensamento das multidões, os problemas de seus apetites e de suas aspirações, sobem e sucedem-se, mais enérgicas e violentas, ao passo e à medida que a civilização expande-se e que as relações humanas multiplicam-se.

Sob as mesmas etiquetas com que sempre se classificaram os problemas, a humanidade renova hoje o velho tema de seu eterno deba­te sobre o direito de viver e o direito de gozar(10). Os céticos crêem o problema insolúvel e o ignoram, para não aceitá-lo; mas, um fato – e o problema da vida e de seu fim é o mais positivo de todos os fatos – não pode mais ser um problema insolúvel, a menos que se renuncie a ser racional ou a fazer intervir a razão nas coisas práticas; e, se a velha questão se renova em nossos dias, é porque sua solução não foi nunca tentada, nem sequer iniciada.

A História que conhecemos não é a história das sociedades humanas(11), a sociedade não fazendo história, já que não se conhecia a si mesma. Neste caudal de acontecimentos que compõe a vida registrada e contada na história, apenas se vê condutores de multidões e nobrezas, batendo-se por ambição, explorando a fome de uns e espalhando por toda a parte a fome. Salvo heróicas e rápidas revoltas, os povos, isto é, mais de três quartos dos homens, não se deram sequer ao trabalho de pensar que eles tinham o direito de não morrer.

Compartilhando com os guerreiros a direção destes acontecimentos, os padres e os letrados deram sua contribuição, nestas lutas, com os valores das idéias, das convenções e dos preconceitos de suas classes e de suas profissões; as guerras e as revoluções conduziram, então, bandeiras religiosas, filosóficas, morais e jurídicas: combatia-se por princípios. O povo continuava a sofrer fome e a não ter consciência disto.

Se a fome não é um fato tão saliente nas sociedades contemporâneas(12), as multidões incorporadas a estas sociedades, tendo compreendido suas necessidades, cresceram tanto que a crise ganhou em extensão o que perdeu em intensidade; e, ao lado destas multidões, pulula, inquieto e agitado todo um mundo novo, de todas as raças, quase inapercebido ainda há algumas dezenas do anos. E todos este mundo é conscientemente guiado pelo mesmo sentimento e o mesmo interesse que os camponeses do século XVIII não ousavam sequer reconhecer para si mesmos: todo este mundo quer viver e se julga no direito do gozar. Deixando-se conduzir, nas revoluções, sob o estandarte de belos programas, o que estas pessoas apressam-se a apresentar no caixa, nos dias de vitória, é sempre o crédito de uma boa colocação ou de um bom negócio.

As sociedades formam-se do acordo com seus modelos: e, se as idéias preconizadas por pessoas que não as executam são boas para inspirar discursos e para excitar as lutas, os vitoriosos de todos os partidos tomam por modelos os nobres ociosos que eles substituem. O pequeno arrendatário e o bilhardário de Wall Street reproduzem, sob vestes modernas e com maneiras mais discretas, a velha comédia dos castelões e dos escudeiros...

Hierarquizada pelos privilégios da sucessão hereditária, e pelas fortunas de especulação e de valorização, a sociedade é um modelo permanente de ambições fáceis e de assaltos à riqueza. Não se quer mais produzir, despreza-se o campo; todo mundo procura as cidades: as indústrias a princípio, o comércio em seguida, e depois...o bilhão!

A causa das perturbações e das crises do passado, tendo sido o despotismo das aristocracias a título do direito do mais forte e da tradição, a organização política e social de nossos dias apenas substitui esta nobreza pela aristocracia do dinheiro, abrindo-lhe o acesso a todo mundo e oferecendo como modelo às ambições os procedimentos mais descarados de concorrência.(13)

A valorização das pessoas, medida pelo dinheiro e pelo sucesso dos mais audaciosos, é o contrário da democratização pela elevação, o ideal dos bons espíritos.(14) Esta não pode ser construída senão so­bre a seleção social de acordo com a cultura.

E estes fatos são a obra do Estado e de sua organização jurídica. Tendo encontrado instituições feitas à imagem e para o proveito das classes superiores, o estado moderno as ultrapassou com seus princípios individualistas e democráticos. A força deste direito, de um lado, e a interpretação do individualismo, de outro, no sentido favorável ao predomínio do capital, mantiveram o contraste das classes, aguçando-lhes as rivalidades. A prova é o relativo sucesso da legislação social de alguns países, a despeito do caráter socialista desta legislação, onde o desejo de acalmar as agitações operárias, mais do que o de dar um lugar ao trabalho no jogo das forças econômicas, torna as medidas insuficientes.(15)

Entre o luxo dos arrivistas e a pobreza do grande número, não há mais fronteira prática; e a ambição dos audaciosos exacerba a amargura irritada dos decaídos e a avareza, sobressaltada, dos vencedores. A vida social, desdobrando-se, mostra as camadas sepultadas dos apetites humanos. Este grande processo de nosso tempo é comum à Inglaterra e à China, semelhante nos Estados Unidos e no Egito.

Este problema geral engloba todas as questões que se agitam na política das nações e na política internacional; e a sorte das nações e de suas aspirações depende dos que sabem colocar-se sobre esta corrente, prevendo-lhe as crises e seguindo-lhe os desenvolvimentos, não em cada país, nem em cada assunto particular, mas no conjunto do movimento humano. O destino das colônias inglesas, por exemplo, depende mais, hoje, da direção das tendências sociais e econômicas do mundo do que de uma mais sábia organização do Império Britânico.(16)

É um erro crer seja possível a uma só nação ou a algumas grandes potências isolar-se e dispor de seus destinos e dos de outros países, como as potências dinásticas do passado. A consciência das sociedades se torna mais forte que a autoridade de seus poderes políticos e cada perturbação da evolução social traz em si mesma a sua sanção e seu corretivo, perturbando completamente, ademais, a marcha natural das coisas.(17)

Sobre o fundo ameaçador deste problema, a incapacidade, a negligência, a leviandade, os preconceitos, a intolerância, acendem e aguçam competições religiosas, étnicas, morais, políticas...

A intransigência de uma separação sistemática, a cupidez de alguns banqueiros, a ambição de um político, são às vezes causas das mais graves conseqüências. Não há força capaz de permitir a uma só nacionalidade dirigir, por seus próprios esforços, a política destes problemas.(18)

A impotência desta atitude parcial e deste ponto de vista tradicional, em face dos acontecimentos, é um fato verificado em nossa época. A diplomacia e a força da Alemanha, da Inglaterra e da França dispensaram uma energia considerável para chegar a uma meia solução, ainda oscilante, sobre a questão do Marrocos.(19) A ambição de influência sobre o Mediterrâneo e a animação expansionista da Itália, aguçadas pelo insucesso do irredentismo(20) e ajudadas pela mais feliz aliança de todas as energias nacionais: a igreja, a nobreza, os banqueiros, os proletários, até mesmo os socialistas, não chegaram a dar às armas, embora valorosas, dos italianos senão vitórias do guerrilha sobre o aldeão tripolitano.

Igualmente, a força moral das potências acaba do recolher o mais cabal desmentido à eficácia de seus esforços para a pacificação, frente aos conflitos do Oriente. A rivalidade das raças e das religiões, alimentada, durante séculos, pelas ambiciosas intrigas dos impérios, acabou produzindo entre os povos balcânicos e a Turquia a luta inevitável que deveria saciar os ódios nas feridas abertas no vencido.

A alma dos povos é conduzida para outra direção que não a dos governantes; e esta alma prossegue sua rota, atraída pelos dois pólos de suas antigas duas direções: o ideal e as necessidades. Desviada pelo sobrenatural, pelo milagre e pelo fantástico das cosmogonias, dos mitos e dos cultos, o ideal está ainda desencaminhado por concepções de pura invenção(21), modelos dogmáticos, sistemas filosóficos acabados, ou éticas combinadas com os fatos, mas não adaptadas aos fatos; e as necessidades são urgentes, violentas, imperiosas.

São elas ou sua idealização, porque é preciso perceber que não há nada na vida que não seja suscetível de idealização, que se apresentam como modelos, e que impõem suas lutas, suas vitórias, suas paixões, suas alegrias, suas seduções, à admiração, à ambição, à emulação e inveja do grande número. O espetáculo marcante de nosso tempo é o do contraste das grandes fortunas e a miséria; seu estado psíquico, o amargor deste contraste; o motivo dominante, o desejo de eliminá-lo pela fortuna, animado pela certeza da possibilidade e pela esperança de consegui-lo. A esta esperança, a vida social dá, como exemplo comum de sucesso, não o trabalho paciente da produção, mas o mais aleatório, do comércio, das profissões liberais, da especulação, dos negócios.

A moral dogmática tendo provado sua impotência para refrear os apetites e as paixões (e eis uma verdade que é preciso considerar, para deduzir dela todas as conseqüências) nossa cultura é muito fraca, muito hesitante, mais rica do que sólida, mais brilhante do que real, para vigiar e para conter a maré das aspirações populares.

Esta maré, crescente pela atração da magnificência da vida da alta sociedade, acirrada pelo contraste, renova, em todas as sociedades, o velho problema, em sua forma clara e reconhecida, e os que governam têm que escolher entre dar solução ao problema, ou vê-lo explodir na grande revolução.(22)

Neste paroxismo, o futuro corre o risco de ser agitado por três correntes igualmente perigosas. Primeiro, os fatos espontâneos da sociedade, soma total dos apetites, dos sentimentos e dos pensamentos de todo mundo; todo homem, como toda sociedade, não hesita em se colocar como árbitro absoluto, no tempo e no espaço, dos destinos da Terra e dos outros homens. A força, por sua vez, não pode levar senão a deflagrar a guerra. A possibilidade, enfim, talvez, o perigo mais temível, de uma nova onda mística, em que, sob velhos símbolos e mitos sobrenaturais, ou então sob a cobertura de concepções científicas, o princípio de autoridade espiritual e do dogma e o despotismo dos julgamentos pré-estabelecidos tomariam o lugar das soluções ditadas pelo estudo racional da natureza, as únicas capazes de conduzir a humanidade para o seu objetivo.(23)

Jamais, na História, a sociedade mostrou tanto que não pode dispensar ser governada; jamais a necessidade de governos fortes se impôs como agora; mas esta força deve ser mesclada com uma autoridade racional e científica; e requer, imperiosamente, a criação de um centro mundial permanente, limitado mas supremo, de controle, de vigilância, de conselho, de solução e de direção.(24)

O estabelecimento deste poder requer a paz; a paz é sua condição; é preciso chegar a ele, já que as soberanias políticas são incapazes de dar solução aos problemas e controlar-lhes os desenvolvimentos.

Basta a constatação deste fato, de que a ambição, generalizada nas massas, traz seu limite mecânico em si mesma, sendo impossível à totalidade dos homens ou às grandes maiorias satisfazê-la para mostrar que o problema é solucionável.(25) Os próprios fatos da universalização das possibilidades e da generalização das capacidades, rebaixam, de um lado, o nível social e dão, de outro, aos que dirigem, a idéia-força, de uma eficácia intuitiva, para construir as *convicções e para levar à submissão.

Esta convicção e esta submissão serão fáceis, com a ajuda, a princípio, de uma organização mundial que empreenda a solução prática dos problemas gerais e, em seguida, por um trabalho de direção das consciências na base de uma ética fundada no conhecimento da natureza humana, como energia e como produtora de energias.(26)

A Moral humana reporá então, com toda a riqueza da substância e todo brilho da forma, em seu devido lugar a vida, não como tendência, paralela ou divergente, das necessidades, mas como símbolo do objeto final dos desejos: o fim extremo, no porvir, alcançado por uma linha reta, tendo por ponto de partida um sentimento humano.


 

A IDÉIA DA PAZ E SUA EVOLUÇÃO

 

O ideal cosmopolita sempre existiu, pela paz e organização do mundo, no sentimento e na concepção da humanidade.

Não se poderia colocar em dúvida que o desejo da paz não foi a aspiração constante, embora contínua e reprimida, das multidões anônimas, esmagadas no correr dos tempos sob as cavalgadas invasoras e pisoteadas pelas falanges dos conquistadores. As migrações primitivas, ocasiões prováveis, entre um pequeno número de outras, das primeiras guerras, não revelam o propósito de agressão pela força das armas; representam, sobretudo, uma sucessão de fugas, retiradas, êxodos de povos, empurrados primeiro pelos acidentes físicos, transformados, em seguida, em perseguidos e perseguidores, por força da vida inculta em ambientes ignorados.(1)

Quando estas populações encontraram, entre os poetas, os apóstolos e os filósofos humanitários, os intérpretes de seus sentimentos e de suas dores, a idéia da paz foi formulada em palavras que rivalizam com as formas mais eloqüentes do pensamento moderno.

Ela lançou raízes na parte mais fértil do cérebro humano.

Os povos inteiramente isolados, protegidos pelas montanhas e pelos cursos de água, pelo mar e pelos pântanos, das incursões dos nômades das pradarias e das “estepes”, como os Esquimós das regiões árticas da América, não conheceram a guerra, ou não a praticaram entre seus agrupamentos, o que prova que outros motivos que não o de um pendor natural para a hostilidade são as causas das primeiras lutas armadas.

A consciência da anormalidade da guerra foi atestada por esta confissão de um Pele Vermelha ao viajante Léhontan: “os cães valem mais do que os homens; não importa qual seja sua nação, não se guerreiam”.

Os egípcios, o povo de civilização mais clássica e mais fiel às tradições, tinham uma natureza pacífica; não fizeram a guerra de conquista senão em uma idade avançada de sua existência. A lenda do “Abandonado”(2), perdido, em viagem para as minas do Hunen, e recebido, na ilha do Double, povoada por serpentes, pela serpente-rei, que o cercou de cuidados e o devolveu ao Egito, carregado de presentes para o Faraó, não é senão uma epopéia à hospitalidade.

A consciência do Direito é atestada no Código de Hamurabi(3), lei feita, diz a inscrição de seu monumento, “para destruir o perverso e para que o forte não suprima o fraco”. A história da Babilônia, na época dos Sumérios e dos Acádios, oferece, ainda, outros exemplos de doçura dos costumes, em oposição aos dos Assírios, dos Persas, de quase todos os povos, Semitas, ou de outras raças, da Ásia Ocidental. Na “Descida de Ishtar ao Hades”, Allatu, senhora do mundo, após ter contido seu aborrecimento ao saber que sua irmã estava à porta de seu reino, ordenou que ela fosse conduzida à sua presença e que fosse tratada “segundo as antigas leis”, palavras que concordam com a lenda, quase universal, de uma vida primitiva, a vida no Paraíso, onde o homem viveu inspirado por sentimentos de candura e santidade.

As idéias de igualdade dos homens, de fraternidade entre indígenas e estrangeiros, de injustiça e de crueldade da guerra, estão expressas em quase todas as filosofias e religiões.

Que significa, no simbolismo de Zoroastro a vitória final de Ormuzd sobre Arimã, senão que o reino da paz deveria coroar a supressão definitiva do mal?

Na Índia, o Código de Manu prescreveu o respeito e o amor por todos os seres animados, conseqüência do dogma da “vida universal, espalhada na natureza”. Este princípio, despojado do animismo e do panteísmo de todas as concepções espirituais dos Hindus, contém o primeiro esboço das idéias de unidade mecânica e de continuidade evolutiva da Terra e de seus habitantes.(4) Suas aplicações compreendem, desde a vida do homem e dos animais, o corpo e a saúde, o respeito à dignidade, à fraqueza, ao pudor, até à vida dos vegetais.

As máximas de Confúncio e de Mêncio estão impregnadas de um espírito de amor ao próximo de uma inspiração tão alta que se os creria saídos da pena de um moralista moderno.

O maniqueísmo condena a guerra, bem como qualquer destruição da vida.

No cristianismo, a idéia da paz pode ser considerada um artigo de Moral prática e um verdadeiro programa. Para o Cristo, “a paz deveria reinar entre as homens”, eles deveriam se amar uns aos outros; deveriam amar seus inimigos. Isaias previu a paz universal: ”Um príncipe virá que derrubará a árvore da discórdia; os povos farão arados de suas espadas e enxadas de suas lanças”.

A Igreja combateu a guerra, declarando-a indigna do homem e apropriada somente para as feras, até Constantino. Assim se exprimiam os padres da Igreja: Clemente de Alexandria, Tertuliano, Orígines, Lactâncio: ”nós somos os filhos da paz, em Jesus Cristo”.

Afirmou-se que a Grécia não tinha o sentimento da igualdade humana, que não conheceu a noção da paz internacional. A afirmação aproxima-se da verdade a julgar pela palavra de seus filósofos, de seus moralistas e de seus poetas. Sócrates, Platão, Aristóteles tinham a guerra como fato da natureza e como direito do mais forte. É preciso invocar os estóicos e os cínicos para reencontrar os sinais de um ideal de fraternidade humana, diz-se.[5]

A civilização helênica está ligada, na opinião universal à apologia da força e da luta, do direito do mais forte e do abuso impiedoso da vitória. O patriotismo era, para os gregos, a forma mais ampla da solidariedade social e este sentimento limitava-se ainda no amor por cada uma das pequenas cidades soberanas.

Mas esta reserva dos pensadores não tem o alcance mo­ral nem social que se lhe atribui: não é senão o reflexo, na inteligência grega, tão penetrante e tão astuciosa, da pressão de uma necessidade política. Para este povo forte e inteligente, que atingiu, durante o curto período de alguns séculos, a altura de uma civilização dedicada à beleza do homem e da natureza, que realizou toda uma existência consagrada à glória da força e ao culto dos sentidos, à êxtase apolínea e à embriaguez dionisíaca; entre os quais o gênio humano desenvolveu o máximo de intelectualidade e de senso estético, seu território era uma ilha de cultura, um éden de graça, de riqueza e de poesia, restringido e prensado por uma multidão de tribos e nações bárbaras.

Para este mundo de eleitos, a única política possível era a da defesa permanente, da exclusão intransigente, da hostilidade. Uma palavra, um gesto, um dia de fraqueza, valeria talvez pela perda de uma qualidade do caráter, um começo de fusão ou de invasão: seria prejudicar a pureza desta jóia sem mácula da Hélade.

O filósofo, o poeta, o moralista, devia orientar suas palavras, as lições e as sugestões dadas ao grande público. O controle da fidelidade nacional era uma necessidade imperiosa, de segurança pública, para o bem da conservação da raça, das nações e da civilização. Estas pequenas repúblicas, pulverizadas neste território, sob a ameaça sempre constante do “Grande Rei” e dos outros bárbaros, dilaceradas por guerras intestinas, não se conservariam independentes, se não tivessem se mantido despertas e em guarda, por um apelo constante ao patriotismo. E os sentinelas do civismo não se permitiam teorias humanitárias neste tempo em que os partidos e os grandes homens se trocavam, no ágora e nas assembléias políticas, as acusações de venalidade e de traição que Demóstenes e Esquino perpetuaram em seus discursos.

A História está toda cheia de exemplos destas transações de consciência que impõem aos mais fortes espíritos a renúncia às convicções. Mas a verdade profunda e íntima é que o coração grego era sensível a esta afeição humana, que os gregos tinham consciência da igualdade dos homens em face deste conjunto de caracteres e deste nível específico de superioridade e de limitações qua nos fazem reconhecer-nos como semelhantes, e que eles previram que o homem caminhava para um futuro de paz. Se não aplicaram formalmente estes sentimentos e estas idéias em suas relações com os outros povos, foi porque isto seria uma fraqueza e uma renúncia política.

Nas doutrinas das seitas órficas encontra-se já expressa, desde o século quarto da era pré-cristã, o parentesco do homem com Deus.

Esta verdade transparece, ainda, em mais de um conceito entre os grandes pensadores gregos. “O homem nasceu para a sociedade”; ”o destino da humanidade é para um império único”; “não há crise mais revoltante do que a injustiça armada”: diz Aristóteles. O que é isto senão a paz internacional, pela organização do império humano? Platão, discretamente, coloca na boca de Hipias, esta incisiva prafissão de fé: “Todos vós que estais presentes, eu vos considero meus pais, meus irmãos e meus concidadãos – segundo a natureza e a despeito da convenção, porque, segundo a natureza, o semelhante é parente do semelhante, mas a convenção, este tirano da humanidade, nos violenta freqüentemente contra a natureza.” A sinceridade do pensamento íntimo está evidente, sob o disfarce da citação. Eurípides considera “o escravo honesto o igual do homem livre”. “Quem quer que não respeite o Direito, seja o próprio filho de Zeus ou de um outro ainda mais ilustre, pertence, para mim, ao reino dos vilões.” “Faltou pouco, diz um escritor, para que as barreiras da nacionalidade fossem derrubadas e que se visse surgir o ideal do cosmopolitismo, encontrado, em toda sua amplidão, nos cínicos”[6]. Platão e Aristóteles combatem, enfim, a doutrina de Licurgo, porque ela baseava-se no princípio exclusivo da preparação para a guerra. A bravura militar não é a primeira virtude do cidadão; a guerra de cidade contra cidade conduz à guerra de povoação contra povoação e à guerra de família con­tra família; à guerra, enfim, ao fundo do coração humano...

Apesar da prudente reserva e do patriotismo exclusivista que a “razão de estado” impunha aos helenos, e do esforço de seus pensadores para reforçar o militarismo, a palavra de Aristóteles, na “política” quando discute a organização constitucional da Lacedemônia, é extremamente sugestiva: “Que vantagem terão os trabalhadores em suportar a dominação dos guerreiros? Que interesse levá-los-ia a suportá-los?” O gênio do filósofo que, em sua concepção da arte de governar o estado, tinha compreendido que a política é uma arte empírica, inseparável da vida real(7), não pode se furtar à evidência do fato, já existente, da revolta dos trabalhadores contra a organização militar. E passa a discutir os meios de suavizar as cargas do militarismo e a expor os meios empregados entre os cretenses, para conciliar as duas classes.

Toda a obra de Aristófanes é uma série de hinos e de invocações à paz. Ésquilo, a poeta herói, cuja passagem pela terra de Atenas projetou o duplo reflexo do gênio trágico e do laureado das batalhas, viu o sinal de um julgamento de Zeus nas vitórias de Maratona, de Salamina e de Platéia, mais forte que o próprio zelo pelo destino da Hélade. ”Toda injustiça, exclamou, malogra no obstáculo do Direito.” Frente à vitória da fragilidade grega sobre o colosso persa, reconheceu a energia da força moral que cavalga e que doma a massa brutal dos organismos. ”Quando a força – e esta força estava toda nas algumas centenas de Maratona e nos milhares de Salamina – e o Direito caminham juntos, seria impossível ver mais bela parelha.”

Era a justiça construtora do progresso esforçando-se para fazer sobreviver, neste punhado de bravos, as sementes que deveriam reproduzir e multiplicar os melhores troncos de homens para esta obra indefinida de perfeição – o ideal dos sonhos de todos os mitos, na vida no Paraíso – para a qual a história mostra a marcha de nosso pensamento, com uma lenta peregrinação. O sangue dos Gregos de Ésquilo, reconheçamo-lo, para a tranqüilidade dos três quartos da humanidade condenadas pelos justiceiros do selecionismo armados com o compasso antropométrico – não participou diretamente desta obra, através de suas linhagens, desaparecidas, ou apagadas, na sombra da História: mas estas grandes vitórias permitiram aumentar as obras de arte, e transmitir ao futuro a herança dos pensamentos e dos monumentos, que nos chegaram, através da civilização romana e da idade média, como as primeiras fontes da filosofia, da ciência, da estética e da política.

Para Epicuro, a paz é a condição primeira da existência, a fonte do contrato assinado entre os homens para a satisfação de suas necessidades(8); reconhece a realidade do progresso, e, com o progresso, o desenvolvimento deste contrato de ajuda mútua. É o princípio de todos os epicuristas. A paz de Epicuro era a paz da alma, a paz do espírito; mas, para obtê-la, era preciso realizar a paz material, a paz com os outros homens. É o mesmo pensamento que se reencontrará, mais tarde, em Lucrécio, que, do estado selvagem da natureza, chega, por intermédio das idéias de contrato e de progresso, ao estado de sociedade e de paz. Esta idéia, transformada mais tarde, pelo utilitarismo, é o fundamento da concepção social de Hobbes; de d’Alembert, que vê no interesse mesmo do homem a razão de preferir a família a si mesmo, a Pátria à família, o gênero humano à Pátria, chegando, por esta sucessão, ao “amor universal”, “espírito da virtude”, de Holbach, de Saint Lambert que, no Catecismo Universal, professava: ”a natureza nos impede de dar à nossa Pátria serviços que cremos funestos ao gênero humano”.(9)

Voltemos aos cínicos, sem nos deixarmos influenciar pelo preconceito, com que a adversidade dos filósofos seus rivais e, em seguida, a caricatura mais que a crítica, envolveram estes pensadores, tipos de virtudes rígidas, que, tendo vivido com o povo, são os melhores intérpretes de seus sentimentos, de suas queixas e de seu ideal. É provável que, em um futuro balanço da mentalidade grega(10), venha-se a fazer justiça aos ”filósofos do proletariado“, à medida que a vitória das idéias os colocar entre os precursores, como o evolucionismo restaurou as figuras de Anaximandro, Anaximenes, Heráclito, Empédocles e de Lucrécio. Diógenes, o “cidadão do mundo”, ensina a supressão das barreiras que separam os homens, tais como as diferenças de classes e de nacionalidade, os privilégios do sexo. A assimilação dos bárbaros aos Helenos é pregada por Eratóstenes, e por seu mestre Ariston, estóico muito impregnado de cinismo. Professando em primeira mão a igualdade dos homens e o governo absoluto, os cínicos foram os inspiradores do Império Universal de Alexandre, discípulo de Aristóteles, mas desviado da doutrina do mestre, para realizar a fusão dos Helenos com os Orientais. Não se poderia encontrar uma prova mais forte da eficácia de uma doutrina filosófica.

Os estóicos gregos, com seu princípio da unidade do gênero humano, deduzido da lei mais ampla da ordem universal, da harmonia de todas as partes do Universo, traziam um programa de cosmopolitismo e de paz: pregavam a República Universal. Apolônio não fazia senão repetir este cre­do professando: ”Deve-se ter todos os homens como amigos e irmãos, na família de Deus”.

Os “thiasoi” helênicos, fraternidades de culto que precederam as primeiras associações cristãs, ignoravam as barreiras de casta, de tribo e de cidade, aceitando, em princípio,a identidade religiosa dos homens.(11)

Em Épiro, pequeno reino semibárbaro, ligado à Hélade por sua influência sobre o oráculo de Delfos, tendo algumas colônias perfeitamente gregas, mais grega que a Macedônia, nasceu Cyneas, discípulo de Demóstenes, confidente e embaixador de Pirro, o primeiro conselheiro que ousou, talvez, pregar a seu senhor a superioridade da paz; propagador em Roma das idéias de Epicuro, e que, toda sua vida, durante as guerras de seu rei, foi o advogado infatigável da paz e o negociador com os governos estrangeiros. Seu nome, mais tarde, foi títu1o de um projeto de paz geral.

Enquanto a Grécia evolui por divisão, multiplicando o número de suas pequenas autonomias, que enfraquece a nação em proveito das cidades, Roma desenvolve-se por absorção, por incorporação – por epigênese(12), diria um naturalista. O espírito do gênio grego está no indivíduo, na independência, na cultura; o da civilização romana, na organização, no direito, na ordem. Roma produziu o Direito e o Império, recebe e consolida o cristianismo, desenvolve, durante séculos, a cultura grega. Sua obra, sem originalidade, é a mais vasta e mais poderosa que a Humanidade já contemplou.

Crescendo através de alianças, de adoções, de tutelas, de protetorados, de conquistas, tinha a mão firme, mas a alma doce, no comando; impõe o governo, respeitando os costumes, as tradições, a religião. Com seu crescimento, aumenta igualmente, pelo reerguimento das populações, a civis romana. O título de cidadão romano propaga-se, assim, de uma fronteira a outra, até que ao cidadão romano sucede o súdito do Império: à “civis romana”, o “orbis romanus”.(13)

Por que supor que o romano, tendo começado soldado e o tendo sido sempre, teria acabado por se dar a ilusão da paz romana, para enfeitar-se com a glória da pacificação do mundo?

É recusar a Roma a necessidade e a lógica de sua evolução. Roma acabou fundando a paz, porque seu desenvolvimento como nação coesa, em sua posição geográfica e em sua época, a conduzia a criar uma certa ordem. Esta ordem não podia ser estabelecida, evidentemente, senão pela força das armas, mas basta colocar-se em seu lugar e no seu tempo, para reconhecer que as primeiras alianças de Roma foram verdadeiros fenômenos de gravitação política, como suas conquistas foram atos de conservação, motivados pelo seu crescimento.

Entre crescer ou ser esmagada, dilema a ser decidido apenas pela espada, Roma cresceu, fundando uma ordem, que realizou uma paz, e uma paz profundamente liberal, em todas as suas instituições. Em sua longa existência, a concepção da autoridade da paz, fundada sobre a fraternidade de todos os homens, viveu e encontrou apóstolos, nos mais altos intérpetes de seu pensamento.

Os estóicos romanos permanecem fiéis aos princípios dos fundadores gregos da escola. Epiteto, Sêneca, Cícero, Marco Aurélio, professam e esforçam-se por praticar a Moral social da igualdade humana; proclamam os direitos dos povos e das nações estrangeiras.

O estrangeiro, o bárbaro, o liberto, o mercenário, escravo, pode ser um homem e o cidadão não sê-lo. O sábio que é o único rei, é também o único cidadão. Não representava tal fato revirar todo o sistema do mundo antigo, procurando o título de homem fora do direito de cidade? pergunta Paul Janet[14] e acrescenta:

“Um outro princípio estóico conduzia às mesmas conseqüências: o princípio da unidade do gênero humano, princípio que repousa em outro, mais geral ainda, o da ordem universal e da harmonia de todas as partículas do Universo”.(15)

O culto da Paz Romana, a idéia de uma grande democracia, organizada sob a tutela de Roma, diz Renan[16] estava no fundo de todos os pensamentos, ao fim do século I.

Terêncio cunha a sentença da igualdade humana: ”Homo sum et nihil humani a me alienum puto”(17). Antonino via com aversão o emprego das armas. Da mesma forma, Marco Aurélio, que escrevia, refletindo sobre suas próprias batalhas e vitórias: ”A aranha orgulha-se de apanhar uma mosca; este se rejubila de caçar uma lebre; este outro de matar um javali; outros enfim, de vencer os Sarmatas; do ponto de vista dos princípios, todos bandidos”. Vespasiano mandou erigir um templo à Paz. Os “Fetiales” e o “Jus Gentium” estão impregnados da consciência de um direito, não apenas do estrangeiro, mas das nações estrangeiras.

Cícero, para quem o homem deve ser amado como sendo nosso semelhante, e não apenas enquanto cidadão, reconhecia o Direito Natural, que não deriva do Édito do Pretor, nem da Lei das Doze Tábuas, mas ex intima conscientia. Da razão comum à lei comum, da lei comum à lei universal, chega à concepção da justiça para com o inimigo, ao respeito às nações inimigas, à conclusão da guerra, quando a paz não apresenta risco.

Marco Aurélio é a figura mais saliente, o medalhão mais representativo da Roma pagã. Imperador e filósofo, concilia o interesse e a ambição de sua pátria com a mesma ponderação que emprega, no fundo da alma, para equilibrar a filantropia do pensador estóico e os deveres do soldado; faz a guerra como homem de estado, não como conquistador. Seu império é quase um império constitucional, com vários conselhos de governo, oficiais e oficiosos, tais como o Senado e o círculo dos filósofos seus amigos, de onde sua bondade e sua moderação tira sempre a inspiração para uma ação benfazeja.

Em seu reino e em sua pessoa, fixam-se nitidamente as correntes que conduzem os acontecimentos: a onda dos sentimentos e das idéias e a onda das necessidades e dos interesses; a força moral e a força política; a secular e a espiritual; o pensamento e a vontade; o ideal e a realidade. Desta convergência de fatores, resulta uma concepção e uma ação práticas, que se fundam na fórmula do oportunismo. Sente-se já que as duas tendências que equilibram os movimentos da humanidade não são opostas, mas, apenas, que o fator “ideal” está sempre um pouco atrasado.

O homem deveria caminhar para Deus, sob o jugo da força. A idéia de império continha, em germe, sob o resíduo da ambição pessoal e da violência, a elaboração da ordem. Para esta nação vigorosa e ativa, a aspiração ao Império era a expressão política do ideal da unidade do gênero humano. A política de Alexandre foi, com todos as excessos de um temperamento morbidamente exaltado, uma política de ordem, em que se encontravam fundidos os pensamentos de todas as filosofias gregas: a unidade do Império e o direito da força de Aristóteles; a tolerância dos estóicos em relação à barbárie, levada até ao desejo da assimilação, marcando mesmo esta preferência. Em Marco Aurélio, figura sã, a política é consciente e equilibrada. Este tinha uma ciência e uma arte, na direção de seus atos.

“O homem deve viver segundo a natureza, durante os dias de vida que lhe são dados sobre a terra; e quando o momento chega de ir-se, submete-se com serenidade... Tudo o que te convém me convém, ó cosmos! Nada é prematuro, nada está fora do tempo, de tudo o que nasce, graças à tua força. Faço meu fruto do que trazem tuas estações. Tudo vem de ti, tudo está em ti, tudo está a caminho de ti.

Cidade de Cecrops, eu te amo disse o poeta; porque não dizer também:

Cidade de Júpiter, eu te amo?

Homem, fostes cidadão da grande cidade!”

Estas palavras contêm a palavra da filosofia e a palavra da prática; a teoria e a arte; as prescrições da Moral e o sentido do útil; resumem as leis da ciência e as lições da experiência; são a verbo da política.(18)

A partir deste momento, as duas correntes que envolvem as forças progressistas não desaparecerão mais.

O cristianismo continua a fazer, nas massas populares e na sociedade dos unilaterais de orientação moral, “os verdadeiros sábios, segundo Mencius, porque eles conservam a serenidade da primeira idade”, a obra da regeneração íntima. Místico e prático, eleva pela fé e sustenta com a esperança; mas quando seu ideal caminha junto com as ambições e os interesses, produz, com Constantino, uma nova forma de imperialismo. Presidindo a concílio de Nicéia e cristianizando seu título de “Pontifex Maximus”, ele arroga-se, pela primeira vez na Cristandade, a pretensão de concentrar em uma só mão os dois poderes da política humana: o poder das consciências e o poder dos atos. Era ainda, em suma, uma aspiração prematura de paz, pela reunião do ideal e da ordem.

Na Idade Média, dominada, a princípio, pelo duelo da Igreja com o Império, a ilusão da ordem pela dominação universal encontrou suficiente força na necessidade de paz, e mais atrativos ainda nas ambições para se manter, apesar das decepções anteriores. Os príncipes e os reis que pretenderam o cetro do universo foram quase todos homens ávidos e violentos; alguns Papas não valiam mais que eles; mas se se penetra as intenções íntimas das duas partes, é fácil ver que, sob o fermento das lutas e das ambições, trabalhavam as forças do pensamento e do interesse que cavavam lentamente, nas rochas das instituições, dos negócios e dos cultos, o leito em que deveriam correr as formas futuras da civilização. A guerra era uma fatalidade, mas as consciências e os interesses protestavam em alta voz. O pensamento e a ambição de todos os grandes dominadores de homens traduziam-se em planos audaciosos e esforços fervorosos para fazer avançar o movimento social e para acelerar os fatos, colocando em ação toda a energia da vontade e toda a força das armas, nesta mescla de povos confundidos. Atingir, logo, a paz pela unidade do mundo, é o desejo dos Imperadores. A aspiração à ordem servia-se da ambição de império, como que de uma máquina.

O trabalho dos pensadores, de um e de outro lado, consiste, por isto, em justificar a guerra e em regulamentá-la. Para servir à causa do futuro, uns e outros consentem em transigir com o presente. A definição da guerra, em todas as obras, gira em torno da idéia de que ela é um meio para reparar injustiças; mas sendo o pensamento de todos o de organizar a humanidade sob uma única autoridade, chegaria a hora em que toda injustiça seria reparada pelo chefe único, temporal ou espiritual, do gênero humano. Os espíritos mais estreitos, os utilitários submetidos à idéia da pressão do egoísmo e da paixão, propõem e aceitam fórmulas jurídicas que valem como reconhecimento da influência de uma ação eficaz do pensamento sobre a natureza brutal das nações, que supõem – não se saberia bem porque – mais incorrigível que a dos indivíduos.

A teoria da separação dos dois gládios(19) não teve a força de conciliar os adversários; de um e de outro lado, a convicção da necessidade da ordem estava nitidamente estabelecida, e a confiança na possibilidade de fundar uma autoridade geral, tanto mais quanto era difícil, em meio a todos estas suseranias divididas e subdivididas, chegar à formação de potências nacionais, capazes de se contrabalançar.

Os grandes pontífices: Gregório VII, Inocêncio III, Gregório IX, Inocêncio IV, e os grandes pensadores do Púlpito: Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, S. Bernardo, Egidio Colona, compreendiam o problema e viam o interesse da Igreja; e, por isto mesmo, pelo que querem alcançar, acomodam-se aos obstáculos: professando o princípio da unidade, querendo envolver toda a humanidade no corpo místico da Igreja e no todo ecumênico, estes apóstolos travestidos de homens de estado visavam domar o império e vencer os infiéis; mas “a guerra, dizia o Decreto de Graciano, tinha por finalidade a paz”.

Os grandes imperadores, Henrique VI e Frederico II, com seus conselheiros e seus jurisconsultos, combatem o Papado e os pequenos senhores. Ockam, Jean de Bodin e Marsílio de Pádua sustentam a unidade e a paz. Aqui, ainda, se os caracteres mais apegados às realidades do presente e os espíritos mais tímidos não querem se arriscar a considerar todo o conjunto do problema, a vontade firme dos chefes mostra com clareza seu fim. Os Basileus, em Constantinopla, continuam a ostentar o título de Césares; os pensadores de espírito mais lúcido objetivam a unidade imperial do mundo.

A preocupação permanente dos dois partidos é lutar contra os pequenos senhores e contra as guerras privadas: notável aliança de pensamentos, em que as duas idéias de império e de paz se colocam a serviço uma da outra. A identidade deste ideal, às vezes inconfesso, mostra-se nas denominações das épocas de paz: “a paz do Rei”, “as trevas”, ou “a paz do Senhor”.

Em fins do século VII, a confraria dos “Irmãos da Paz”, fundada por um carpinteiro, assume a missão de fazer observar a paz. Um dominicano, Jean de Vicence, convoca, em 1233, um congresso das cidades da Lombardia, em que foi assinado um ato de pacificação geral. Dominicanos, franciscanos, algumas seitas heréticas, fazem-se missionários da paz. Yves de Chartres, Gerhoc, Nicolas de Cues, pregam a paz. Os escritores atribuem ao Pontífice e ao Imperador, como missão principal, a manutenção da paz.

É em meio desta algazarra, destas lutas diplomáticas e destes debates, que um vivo clarão ilumina a horizonte, revelando o problema e mostrando-lhe a solução: é a palavra de Dante em “De Monarchia”.

Este livro é o primeiro ensaio de uma construção sociológica e de uma síntese da evolução humana e de suas leis. Baseia-se nas grandes leis que dirigem o entendimento universal, espalhado na multidão do gênero humano; entendimento realizado, não no homem isolado, mas na totalidade dos homens, da mesma forma que a matéria-prima toma forma na multidão das coisas gerais e individuais. O gênero humano realiza, assim, esta capacidade indefinida que pré-existe em cada indivíduo em particular, mas que nem um exprime em sua plenitude. Para que a humanidade obtenha a liberdade e a justiça, é preciso que seu entendimento coletivo atinja a sabedoria; e, como o homem precisa de repouso para adquirir sabedoria, a humanidade precisa de paz. A monarquia universal é o instrumento da paz, da sabedoria, da justiça e da liberdade.(20)

Uma coletividade que tem um objetivo único tem necessidade de um chefe único. As faculdades do homem tendem todas para um único fim: o homem é dominado por uma única força: a inteligência. O homem, filho do céu, governado por um único movimento, deve ter um único diretor. Por toda parte em que há possibilidade de litígio, existe um juiz; entre vários litigantes, é preciso um juiz supremo. O mundo bem organizado é aquele em que reina a justiça; a Justiça é mais perfeita, quando é obra do que tem mais boa vontade e mais poder. Oras, o maior obstáculo à vontade reside nas paixões. O Senhor do mundo, nada tendo a desejar, não tendo paixões, não tendo inimigos, sua justiça não encontraria obstáculos.

Destas premissas, por deduções lógicas, Dante chega, com argumentos políticos e metafísicos, à conclusão da unidade pelo império; e, com argumentos históricos e teológicos, à conclusão da predestinação do povo romano para o governo dos povos.

Fazendo abstração de seu método peripatético, de seus argumentos teológicos e metafísicos, não é possível desconhecer, nesta concepção, o germe de mais de uma idéia de nossa psicologia social contemporânea. A forma do pensador, às vezes metafísica, sempre ampla e majestosa, parece mais de uma vez vaga e indefinida; suas concepções são vastos símbolos, amplos esboços de idéias e de projetos em estado latente, ou ainda confusas, no espírito de seus contemporâneos. Não se poderia esperar encontrar em uma obra desta época a linguagem rigorosa e precisa empregada hoje para exprimir as mesmas idéias; mas o livro de Dante ensolarou esta idade de trevas, e sua luz lança ainda um belo crepúsculo por trás dos trabalhos de pesquisa de nosso tempo. Suas idéias são aceitas por Cino e por Bartolo.(21)

Dante simboliza, em De Monarchia, o estado político da Idade Média, como, na Divina Comédia, o estado moral e religioso. Seu livro é um quadro exato do espírito político de sua época; e sua perspectiva está repleta deste horizonte em que se encontram as idéias primeiras da política contemporânea.

Prematuro o projeto, utópica sua forma, o ideal e o pensamento evoluíram.

A nebulosa da sociedade medieval se reparte em grandes massas, que se concentram, pouco a pouco, em poderosas nacionalidades. À idéia do império sucede a de concerto e de equilíbrio: o cuidado da diplomacia e dos congressos é, a partir de agora, resistir a qualquer tentativa de supremacia.

Wycliffe e os lallordistas, John Colet, Erasmo e Tho­mas Morus, com o espírito mais livre, na ilha do Norte, mantêm a aspiração da paz humana, em sua forma menos contingente, mais idealista.

No Direito das Gentes, a escola filosófica adota os princípios da unidade do gênero humano e da independência e soberania das nações, procurando fazer do Direito um instrumento da paz. Vittoria, Suarez, Grotius, Puffendorf, Leibnitz, Vattel, são os criadores de uma doutrina profundamente humana, de uma notável influência na política de seu tempo.

Os homens da Renascença, humanistas e humanitários, são partidários declarados da paz.

Jean de Vives, professor da filha de Henrique VIII, escreveu a Papas e Reis, para lhes dizer: “Não digais que sois incapazes de estabelecer a paz entre os príncipes. Tende a coragem de não procurar, como tantos Pontífices e sábios, pretextos para defender a legitimidade da guerra”. Campanella, na Monarchia Messiae, defende a paz, na unidade do príncipe papal.

Nos primeiros dias do século XVII a preocupação do concerto europeu e da guerra aos infiéis conduz os espíritos à idéia de um acordo mais sólido entre as soberanias européias. Tudo leva a crer que o famoso projeto atribuído por Sully a Henrique IV, de uma grande aliança européia, com uma assembléia permanente de sessenta delegados nomeados pelas nações, é apócrifo; mas, se Henrique IV não concebeu esta idéia, ou se não imaginou realizá-la, é provável que as questões da época terão levado espíritos como o do ousado bearnês e de seu ministro, a pensamentos deste teor. De qualquer maneira, Sully imaginou o projeto e o registrou, nas Memórias de Henrique, o Grande.

A publicação, em l623, do “Novo Cyneas”, ou discurso de Estado, apresentando os meios e as ocasiões para o estabelecimento da paz geral e da liberdade de comércio para todo a mundo, de Emeric Crucé, prova que a idéia estava no ar.

Este discurso, cujo título lembra o embaixador pacífico de Pirro, atribui as guerras às paixões dos príncipes e sustenta a possibilidade da paz geral. Uma cidade seria escolhida onde os soberanos teriam perpetuamente seus embaixadores, formando uma assembléia que julgaria todos os conflitos. Se algum soberano resistisse à decisão de tão notável companhia, incorreria na desgraça de todos os outros príncipes, que teriam os meios de chamá-lo à ordem. Eis, em rudimento, as idéias de congresso e de tribunal internacionais e a de sanção às suas decisões.

Crucé propõe Veneza para sede deste congresso de embaixadores, porque é um estado neutro e indiferente a todos os príncipes. Característica notável deste projeto, para sua época: inclui todos os países, até a China, a Pérsia, a Etiópia, as Índias Ocidentais e Orientais. Duas pessoas deveriam tomar a iniciativa de convocá-lo: o Papa, no mundo cristão; e o rei da França, junto aos infiéis.

Grotius inspira-se visivelmente em Crucé, no De Jure Bello ac Pacis. “Pelo que acabo de dizer, vê-se que seria útil e de certo modo necessário o estabelecimento entre as potências cristãs de uma espécie de corpo, com assembléias em que seus litígios fossem decididos pelo julgamento dos outros não interessados; e que se procurasse o meio de forçar as partes a se conciliarem, sob condições razoáveis.”

Em 1660, o célebre William Penn, o “quaker” fundador da Pensilvânia, propõe, em seu “Ensaio de paz na Europa, no presente e no futuro”, o projeto de um tribunal de arbitragem.

O projeto, bem conhecido, do Abade de Saint Pierre, propunha “a aliança perpétua das nações, contribuindo cada uma, proporcionalmente às suas rendas, para a segurança e a defesa comum da grande aliança; a cessação do emprego das armas e o recurso à conciliação e à mediação.” Para as nações que se recusassem a executar os julgamentos e as regulamentações desta aliança, que fizessem tratados contrários às suas decisões ou preparativos para a guerra, a Grande Aliança armar-se-ia e tomaria medidas contra o Estado recalcitrante, até sua completa submissão. Uma assembléia permanente tomaria as decisões necessárias para a manutenção da paz.

Este projeto teve uma grande notoriedade em seu tem­po, recebeu adesões e críticas, e até mesmo algumas sátiras, mas parece ter exercido muita influência sobre os tratados internacionais que lhe sucederam.

Kant retoma o ideal do “bom abade”. Aqui, então, não é mais o filantropo, um sonhador desconhecido, é o pensador cujo espírito gigantesco abarcou todos os ramos do conhecimento, que estudou as instituições e os costumes, no passado e no presente, com toda a sagacidade do psicólogo, do filósofo, do sábio; é o precursor de Laplace na hipótese da nebulosa e de Darwin no transformismo. Reconhece que a guerra foi uma necessidade da humanidade em seus primeiros tempos, mas sente a incompatibilidade crescente entre a paz armada e a organização do trabalho.

Seu projeto contém artigos que se relacionam com muitos dos grandes princípios do Direito das Gentes e do Direito Público, com prescrições proibitivas, tais como: a proibição de todos os que fizessem tratados de paz, de inserir cláusulas pelas quais se reservassem o direito de fazer a guerra; nem um estado (grande ou pequeno) poderia ser adquirido por outro, por via de herança, troca, compra e venda, doação; os exércitos permanentes desapareceriam com o tempo; era proibido aos estados contrair dívidas para aplicar o dinheiro em negócios exteriores; nem um estado deveria se intrometer na constituição ou no governo de um outro estado; nem um estado permitir-se-á na guerra medidas odiosas que possam impedir o restabelecimento da confiança recíproca, tais como a morte, o envenenamento, a violação de uma capitulação, o incitamento à traição. As principais idéias de organização da paz eram: a constituição dos estados deveria ser republicana; o direito das gentes seria fundado sobre uma federação de estados livres; o direito cosmopolita (o termo é de Kant) seria limitado às condições de uma hospitalidade universal.

Após Kant, Jeremy Benthan, a alma cosmopolita, aquele a quem Bolivar denominou de o legislador do mundo, propôs a redução das forças militares das potências européias, a emancipação das colônias e a formação de um tribunal, composto por dois delegados de cada potência, para decidir dos conflitos internacionais, tendo o poder de declarar o estado recalcitrante despojado de seus direitos perante a Europa e fixar os contingentes que os estados deveriam fornecer para reforçar a execução dos julgamentos do Tribunal.

John Stuart Mill é igualmente autor de um projeto de criação de uma Corte Internacional de Justiça.

A estes nomes seria fácil acrescentar muitos outros, para provar que a paz é a aspiração deste entendimento da espécie humana de que falava Dante, prevista por estes espíritos profundos e penetrantes que entreviam, para além do desenvolvimento dos fatos próximos da evolução social, o sentido das realizações futuras de nossa espécie. Leibnitz, Marbly, Voltaire, o Abade Raynal, Volney, Condorcet, Diderot, Auguste Comte, Herbert Spencer, Littré, Victor Hugo, Cobden, Gladstone, Louis Guyau, G. Tarde, o Abade Gratry, E. Laboulaye, Gambetta, Joseph Garnier, Fréderic Passy, Novicow, D. Pedro II, foram partidários da paz, confiantes em sua realização.

No alvorecer do século XIX, as mais belas palavras sobre a paz partem de Santa Helena. É Napoleão que as diz. O amargor do exílio e suas decepções teriam feito do conquistador um profeta da fraternidade ou seria ainda, sob este aspecto, o representante tardio da linhagem de arquitetos de impérios universais levando à paz? Eis suas palavras: “Se, por volta dos últimos dias deste século, um chefe de Estado apresentasse-se à Eu­ropa, levando em suas mãos estes dois benefícios: a supressão das despesas militares e a organização anfictiônica da Europa, este homem ganharia tal força sobre os corações e as consciências, que obteria o poder absoluto so­bre a Europa“! O último dos Césares não teria podido conceber a paz senão como uma conquista e como o começo de um Império... mas, previu que era este o sonho a ser realizado, o desígnio político a ser transformado em fato, no fim do século XIX.

Das anfictionias gregas às “Fetiales”, do tratado de Ramsés I com os Hititas, no ano XXI do primeiro dos Ramessidas, ao Congresso de Viana, tratados, conferências e congressos marcam as passos progressivos da paz; mas a humanidade não tinha ainda tornado posse dos formidáveis instrumentos que deveriam revolucionar o mundo: a consciência da liberdade política, a obra tradicional dos germanos, desenvolvida e propagada pela Inglaterra, pelos Estados Unidos, pela França;(22) o vapor, a navegação, as estradas de ferro; a eletricidade com o telégrafo; o progresso surpreendente da imprensa, com o jornal e o livro; a prática quase habitual dos bons serviços, da mediação e da arbitragem; o reconhecimento dos direitos sociais do proletariado.

As assembléias da revolução tinham procurado colocar sobre os princípios pacifistas a política internacional da nascente democracia.

Ainda uma vez,um Imperador, um autocrata, retoma a velha idéia romana e medieval, o sonho de Napoleão; mas este imperador, alma crente e apaixonada, educado por uma espécie de filósofo suíço de nome La Harpe, não tinha a força de talhar para si um império mundial, para nele fazer reinar a paz; e, então, não será mais o império que será seu instrumento, é o concerto das potências – tanto isto é verdade que as forças superficiais das instituições humanitárias se prestam todas a apoiar as tendências que crescem e caminham para se tornar realidade.

O tratado da Santa Aliança, assinado em Versalhes em 25 de setembro de 1815, sob a iniciativa do Czar Alexandre I, mistura de misticismo cristão e de reação política, tem o encanto de uma flor prematura que veio antes da estação, crescida no canto de um velho muro. Este muro era a velha utopia imperial; o mundo governado pela autoridade dos eleitos de Deus;(23) e é, ainda, sob a inspiração deste sonho, que a idéia renasce, em 1863 e 1870. É Napoleão III que a apresenta às potências, mas seus dois projetos, propostos sem convicção íntima e sem oportunidade, entre as hesitações e os desvios de uma política sem objetivo e sem firmeza, estavam condenados desde a início. O princípio das nacionalidades, de que estavam impregnados, não era o único grande defeito destes projetos.

É ainda da Rússia que parte a nova tentativa de que resulta a reunião das duas conferências de Paz, em Haya. Tanto uma quanta outra realizam inestimáveis progressos no Direito das Gentes e emitem votos favoráveis ao desarmamento; estabelece-se a Corte de Apreensão e a Corte Permanente de Arbitragem.

O aumento contínuo do número dos julgamentos arbitrados foi, durante o século XIX, o seguinte: de 1820 a 1840, oito julgamentos; de 1840 a 1860, trinta; de 1860 a 1880, quarenta e quatro; de 1880 a 1900, noventa. O número de tratados de arbitragem, assinados de 1903 a 1911, subia a mais de 120.

O Brasil impõe-se, em sua constituição política, o dever de evitar as guerras de conquista e de empregar o recurso à arbitragem antes de declarar a guerra. Esta idéia tem sua origem no projeto preparatório da Constituição, devido a Magalhães Castro. Graças ao homem de estado eminente que dirigiu nossa política exterior durante estes últimos anos, o Barão do Rio Branco, temos a primeiro lugar entre os países que têm tratados de arbitragem, tendo já obtido uma alta posição entre os que, nos litígios arbitrais, deram provas de fidelidade ao direito.

A política exterior do Brasil teve sempre a inspiração de um sincero desejo e de um verdadeiro ideal de paz. O governo republicano deu a estes motivos a eficácia de um programa prático.(24)

Na segunda conferência internacional da Paz, é o Brasil que, pela voz de Ruy Barbosa, fez-se advogado das pequenas potências, defendendo o princípio de igualdade jurídica das nações contra o projeto de organização da Corte Internacional de Justiça, apresentado pela Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, em que estas potências, que são a grande maioria das nações soberanas, seriam representadas por um pequeno número de delegados.

Um brasileiro, Sá Vianna, apresentou ao Congresso Científico Latino Americano, reunido em Montevidéu, a idéia de uma sanção às violações dos tratados de arbitragem: a perda do direito à neutralidade das outras potências, infringido àquela que houvesse violado um tratado de arbitragem. Sustenta o princípio de que a arbitragem deve aplicar-se a todas as questões, qualquer que seja sua causa e sua natureza.

Iniciada nos Estados Unidos, na Suíça e na Bélgica, a propaganda popular faz-se hoje por um grande número de associações internacionais e locais; conta com numerosos jornais e revistas, uma rica literatura. Sua atividade é, sobretudo, muito intensa e sua influência considerável, mesmo nos meios governamentais, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França e na Suíça.


 

A LUTA E A VIDA

 

Esta exposição dos progressos da idéia da paz e da solução pacífica dos conflitos internacionais conduz-nos a constatar que a solução destes problemas práticos do homem e das sociedades depende da questão da necessidade da luta física.

Esta questão resolve-se por si mesma. A guerra não é o móbil da vida, não é sequer uma lei da natureza. Por toda parte onde a natureza fez surgir seres dotados de sensibilidade, de poder de assimilação, de crescimento e de movimento, se o curso da existência destes seres oscila entre a agregação e a decomposição, entre a vida e a morte, estes fenômenos realizam-se mecanicamente, e o conjunto de seus esforços dirige-se, seguindo um movimento progressivo, para a multiplicação da vida.(1) A atividade dos seres não tem senão um objetivo enérgico, poderoso, tenaz: a que se dá com o fito de desenvolver e de reproduzir a vida.

A vida é a finalidade da vida. É a destinação de todo este mundo infinito de seres, subtraídos à inércia e à insensibilidade; e, se esta tendência é o fato característico da existência e da natureza do mundo orgânico, não se poderia compreender uma natureza, uma força, uma energia, que tivesse por fim o de se destruir. A existência do mundo orgânico implica a existência de uma energia, de uma força, de uma tendência: o fato impulsionador básico do próprio fenômeno da vida, o movimento inicial que terá realizado a transformação de uma primeira partícula de matéria em matéria sensível. Esta força, esta energia, este caráter, esta simples relação talvez, de que nossa consciência testemunha a existência nos fenômenos da célula e do homem, qualquer que seja a nome que lhe dermos, é um imperativo da vida e de propagação da vida.

É um argumento puramente verbal o de recusar a aceitar as conseqüências destas relações observadas de causa e efeito, sob o pretexto de uma pretensa concepção finalista da vida. Os resultados observados sendo indiferentes à existência ou a não existência de um objetivo pré-determinado na direção da vida, os resultados previstos lhe são igualmente indiferentes. O fim físico, o efeito da continuidade dos fenômenos, não tem nada a ver com a destinação prescrita por uma finalidade pré-concebida; não deixa de ser uma pré-destinação evolutiva da matéria vivente... para viver.

Se a luta entre os seres é uma realidade, sua reunião nos meios ambientes implica uma espécie de solidariedade, de uma natureza inteiramente física. Os seres encontrados em um meio físico qualquer, independentemente de toda espécie de rivalidade ou de subordinação, completam-se reciprocamente, associam-se sem o saber e sem o querer(2), já que a existência de uns é condição da existência de outros. Até mesmo entre os infinitamente pequenos, as bactérias, por exemplo, enquanto umas provêm com suas secreções excrementais a alimentação das outras, outras beneficiam-se com o saneamento do meio.(3)

Deste fato ao fato de associação, há apenas um simples movimento, seja devido ao hábito, a uma impressão mnemônica, ou a qualquer outra causa. Desde as primeiras organizações, desde as mais simples combinações multicelulares, toda a vida orgânica não é outra coisa senão um vasto espetáculo de associações: prova evidente que, o motivo da existência sendo, não o egoísmo, mas o esforço para viver, o primeiro meio de assegurar-se a vida, após a alimentação, é o associar-se. No caso da associação sexual dos indivíduos e de seu plasma germinal, que se diria uma forma avançada desta tendência a se associar, a vida, na quase totalidade dos seres, não é senão um encadeamento de associações, sucessivamente generalizadas e diferenciadas, chegando, nos organismos superiores, a estes tecidos complicados e perfeitos que fazem com que certos biólogos contestem a natureza celular de sua estrutura.(4)

Seja qual for a teoria adotada a respeito da origem da vida e das causas que produzem sua conservação e provocam-lhe o desenvolvimento, não há nada de menos verdadeiro que o dizer-se que o regato pelo qual corre o drama da formação e dos progressos da vida é a luta con­tra qualquer um ou contra qualquer coisa. A vida luta pela vida, eis a verdade primordial, a redução à sua expressão mais simples, a sua unidade, o seu “will”(5) rudimentar, deste desejo, vontade ou poder do mais simples ser, em seu primeiro relacionamento com o mundo exterior. A luta contra todos os outros seres viventes não é nem o desejo nem o objetivo, nem o esforço da atividade; não aparece senão como um segundo elemento do funcionamento da existência: como o resultado, não do móbil espontâneo da natureza, mas de uma reação contra um obstáculo encontrado. É já um fenômeno de relação; e se tem como efeito, entre os seres inferiores, a destruição de vidas, dá a vitória à própria vida pela sobrevivência dos mais aptos e pelo crescimento da vida em seu conjunto.

A luta não é, no mundo orgânico inferior, senão um agente secundário de seleção, de que o agente principal é o desejo do viver e o esforço para viver o primeiro instrumento.

Nesta lenta sucessão de fatos da evolução, da qual cada etapa está ligada às antecedentes como em uma continuidade lógica, não se poderia compreender uma camada da natureza desperta da imobilidade para se agitar e se multiplicar que não encontrasse, à sua volta, os primeiros elementos de subsistência:(6) estes elementos encontram-se sempre ao lado do protoplasma vivo. Os primeiros pequenos aglomerados de plasma vivo sujeitar-se-iam à condenação à morte se tivessem por destino destruírem-se entre si. A matéria de onde surgem deve alimentá-los; e desta primeira servidão da camada inferior à subsistência da superior nasceu esta lei animal, não de luta, mas de sacrifício das espécies às espécies superiores. A realidade é que o espetáculo da vida natural não é um espetáculo de luta, mas um espetáculo de esforço pela vida, onde a força e o poder de uns submete e sacrifica todos os que lhe são inferiores. A luta não existe senão entre iguais em força, e esta igualdade se torna, no próprio interesse da conservação da vida, um motivo de conciliação e de acordo, de associação e de ajuda mútua.

Mas nesta hierarquia dos seres vivos e nesta exploração das espécies inferiores pelas espécies superiores, todos os espíritos habituados à contemplação objetiva da natureza e dos fenômenos da vida, mesmo os que professam idéias favoráveis ao egoísmo do móbil vital e a combatividade de seus processos, reconhecem a existência de uma espécie de sentimento, de simpatia ou de interesse entre os viventes superiores e os viventes inferiores; do homem, sobretudo, para com os viventes inferiores.

Este interesse, que é um fato positivo das relações naturais, reconhecido por qualquer espírito esclarecido; observável nos costumes de todos os seres, em sua curiosidade e sua aproximação, uns para os outros; que inspira a todo homem normal a tendência a poupar as vidas mais insignificantes, se não parecem lhe trazer dano; fonte do sentimento e do trabalho de domesticação, de sustentação e de criação de certos animais inúteis para o homem e que lhe seriam um estorvo se não fosse este sentimento de estima recíproca entre os animais, este interesse mostra que há uma espécie de associação elementar, regulada pelo espírito de harmonia entre os viventes.(7)

Tanto quanto se pode firmar pé sobre este terreno, ainda tão movediço, da ciência da vida, de seus elementos, de seus processus e de seu mecanismo, uma das conclusões que se pode tirar das teorias opostas sobre estas diferentes questões é que a luta não é uma condição da vida, uma de suas operações essenciais: não é nem o fato criador nem a causa da vida. Entre as operações da vida; operações de formação, tais como a assimilação e a reprodução; operações de transformação e de diferenciação, tais como a divisão do trabalho, nunca a luta se apresenta como um fato inseparável da existência, necessariamente ligada a seu nascimento, às suas mudanças cíclicas, à estrutura de seus componentes, nem sequer aos seus meios de desintegração e morte. A luta não é uma coisa essencial à vida; é um acidente de seus desenvolvimentos e de sua história; não resulta dos fatos ordinários, normais, espontâneos, naturais, equilibrados, da formação e da organização dos seres, mas surgiu como uma espécie de corretivo à anormalidade, um meio de eliminação do excedente de vidas, uma reação da natureza contra o excesso e as desproporções da assimilação e da reprodução: uma espécie de revolução dos impulsos naturais, em suma, excitados pela fome, ou pela miséria.

Não há lei geral em Biologia senão a da economia de subsistência e de economia de energia: a luta exige um dispêndio excessivo de energia; é uma forma de atividade em que a natureza coloca em risco todas as suas aquisições de vida: é, assim, um fato contra a natureza.

Nos meios viventes inferiores, este instrumento mecânico é secundário e supletivo; nos meios animais superiores, em que o instinto aparece, é excepcional, revolucionário.

Há em todas as ciências uma multidão de questões que não são senão questões de palavras. Cada ciência, cada escola, cada sábio, tem sua tecnologia: e, se as diferenças de significação dos termos na linguagem científica e na linguagem vulgar permitem mal-entendidos, as divergências entre escolas e sábios formam uma confusão muitas vezes inextrincável.

Se esta expressão “luta” da língua portuguesa, e seus equivalentes em outras línguas, de origem latina(8), reproduz muito infielmente a significação do inglês “struggle”, esta não implicando sempre, como aquelas, a idéia de oposição, de esforço ou de combate contra quem quer que seja, ou contra qualquer coisa, ainda menos aceitável é no sentido amplo, metafórico, em que Darwin empregou o “struggle for life” para representar todo esforço animal sobre a natureza bruta, ou sobre um outro animal. O “struggle” dos ingleses é este esforço, e também o combate pela vida. A luta responde à idéia exata do esforço contra um obstáculo ou contra uma oposição; não compreende o sentido de uma atividade que se exerce sobre uma coisa inerte ou sobre um ser que não resiste.

No sentido de esforço, ou no de concorrência, o termo “luta”, seria aceitável, apesar de sua inexatidão(9), ajustando-se aos dois fatos reais da existência: o esforço pela vida, como fenômeno individual, e a concorrência pelos meios de subsistência, como relação ordinária entre os seres vivos. Aí está toda a verdade, na medida que se trata de um fenômeno geral. A luta, enquanto fato de oposição e de combate, é excepcional na seleção natural, em que o esforço pela vida e a concorrência não fazem vítimas, ou não fazem vítimas senão nas refregas, mais pungentes mas não trágicas, em que a presa está condenada com antecedência. Nestes casos não há luta.

Adotando o termo luta, a ciência lhe atribuiu um sentido estranho à sua natureza. De fato, a maioria dos atos compreendidos sob este termo na linguagem científica não são atos de luta, mas atos de reação. Quer se trate de natureza e de fenômenos físicos, da ação do homem sobre a terra para explorá-la e para se defender do clima e dos acidentes meteorológicos, o homem não se coloca em luta contra as coisas; não se opõe às suas forças, não cogita sequer em vencê-las nem em desarmá-las; pensa apenas em submetê-las ao seu desejo ou em se defender delas. O agente aqui, que é o homem, não exerce um ato de agressão nem de ofensa. Se sua ignorância fez dele, até nossos dias, um impiedoso destruidor da natureza, o que explica o erro corrente de que a vida é uma luta contra a natureza, esta espoliação de um suposto inimigo inerte não justifica a imagem de combate dado ao espetáculo do esforço humano sobre seu patrimônio natural. No que tange aos animais, todos os que observaram seus costumes constatam logo a associação dos semelhantes e dos iguais, desde as formas mais simples de seres vivos e, em seguida, o fato da dominação de uns pelos outros e o do sacrifício das espécies inferiores às espécies superiores. Os casos excepcionais de combate entre indivíduos e grupos igualmente dotados são apenas crises eventuais da ordem animal, devidas a acidentes físicos, fomes, imigrações, etc.

A escravidão e o sacrifício mais que a guerra seria o fenômeno normal da evolução.

A luta pela vida, em seu sentido mais preciso, a de Darwin e, sobretudo, dos neodarwinistas, de fator quase exclusivo das seleções naturais, tem um outro alcance completamente diferente, quando avança da seleção natural para a seleção social(10); são os caracteres favoráveis à sociedade que levam vantagem sobre os caracteres aproveitáveis ao indivíduo.(11)

Se o estado atual de nossos conhecimentos não permite mais considerar a luta pela vida como o único nem mesmo como o principal fator das seleções(12), a luta não sendo, nas seleções naturais, senão o resultado indireto dos fatores lamarckianos do meio e da reação orgânica, não foi para o homem, em sua forma física, senão uma etapa provisória de sua evolução, devida à incapacidade de suas faculdades superiores.

A consciência, adquirida pelo homem, de seu poder sobre a natureza e de seus interesses, o conhecimento de seu organismo, de seu espírito e de suas relações com o meio, não podem ter senão o efeito de substituir o inconsciente instrumento seletivo da animalidade pelos instrumentos da experiência e da razão.(13)

É somente então que as seleções serão verdadeiramente naturais e evolutivas em nossa espécie. Os mais aptos sobreviverão, por efeito de sua verdadeira superioridade relativa, sem agressão e sem astúcia.


 

A IDÉIA DA GUERRA, HÁBITO BANAL DE NOSSO ESPÍRITO. O HOMEM NÃO TEM INSTINTO BELICOSO

 

O aspecto da política internacional parece fazer crer que a humanidade desenvolve, dia a dia, seus instintos de combatividade e que a guerra é, de fato, o objetivo e a aspiração dos povos.

Seria ocioso lembrar os números das estatísticas militares para mostrar o peso sempre crescente dos armamentos. Não são somente os pensadores, são os homens de estado, que proclamam todos os dias que os orçamentos militares sobrecarregam as finanças públicas e que o imposto, sempre crescente, ameaça não mais ser suportável. Das grandes potências às pequenas, da Inglaterra, sempre preocupada em manter sua marinha em situação de a opor a qualquer combinação possível de seus inimigos prováveis, à Alemanha, com uma das melhores marinhas do mundo e com a força de um exército que lembra, com os armamentos aperfeiçoados de hoje e os métodos engenhosos da ciência militar, as multidões instáveis e guerreiras dos persas e dos Assírios, cada país contemporâneo comporta-se como se estivesse cercado de inimigos e sempre ameaçado por uma súbita invasão.

Os fatos e os costumes mostram que os perigos da guerra tornam-se, dia a dia, menos prováveis. No mundo político, onde a razão do interesse social e econômico é freqüentemente substituída por esta outra razão convencional, escondida sob a etiqueta da razão de estado, as pessoas preconizando em alta voz a necessidade ou a fatalidade da guerra, observando a marcha militarista e atiçando os ciúmes, as rivalidades populares e as intrigas diplomáticas, juram-se em voz baixa que tudo isto é apenas “política” e não poderiam explicar, no fundo de seus pensamentos, o “porquê” da paz armada.

A verdade é que, salvo raras exceções, o dito comum aos homens de estado de que os exércitos são mantidos para manter a paz, exprime suas convicções íntimas: sabem que fazer a guerra é coisa muito difícil, mas o que não percebem é que sustentando a doutrina da guerra e aumentando os meios de fazer a guerra, mantêm a única força sobre a qual repousam a filosofia e a política da guerra.

É um problema muito interessante o da Psicologia da política militar e do “porquê” da paz armada. Certo, há ainda espíritos suficientemente belicosos e cheios de ambições guerreiras, para manter em certos meios este ardor cavalheiresco que leva a sonhar com batalhas encarniçadas e com gloriosas conquistas; e, em maior número ainda, almas suficientemente ingênuas para se prestarem às tramóias do militarismo; mas, se se descarta os motivos do temperamento, da hereditariedade e da educação e do interesse pessoal, mais ou menos disfarçado, e a aceitação banal do preconceito circulante e da idéia consagrada apenas pela autoridade do tempo, é quase certo que os espíritos mais esclarecidos entre os partidários da paz armada encontrar-se-iam embaraçados para darem a razão da conservação dos exércitos e da política militar.

Desde a guerra russo-japonesa, e antes da guerra da Itália na Tripolitana e o último conflito turco-balcânico, seria hiperbólico dizer que houve guerras. Algumas expedições contra populações selvagens, os empreendimentos da França no Marrocos, algumas destas guerrilhas, tão sangrentas quanto grotescas, de certos países pequenos, mereceriam mais serem registradas como “fatos diversos” da vida mundial, desvios políticos ou acessos de loucura coletiva, do que com o nome de guerras. É fácil de se ver porque se lutou nestes casos: o espírito de turbulência, a obstinada intolerância de alguns povos, a ambição de influência explicam bem estas lutas.

Entre os povos avançados, entre os que são reputados como pertencentes à humanidade civilizada, não se combate; todo mundo está empenhado em manter a paz; todos propõem-se a renovar e a reafirmar os laços de amizade e de harmonia entre os povos; mas, as marinhas e os exércitos servem o interesse dos poderosos, e exercem sobre os fracos a alta justiça e a boa razão do mais forte.

Onde estão, entretanto, o fundamento, o motivo e o interesse prático, causas desta política que impele as potências a exagerar seus armamentos até manter em pé de guerra exércitos e marinhas que se diria feitos para um eterno e urgente perigo? Desejou-se encontrá-lo no interesse das seleções nacionais. Mas, o que é uma nação? É uma raça, toda uma raça, ou o ramo homogêneo de uma raça, para que as seleções possam realizar-se útil e naturalmente nas guerras? As nações de nosso tempo são frações de raças e de nacionalidades, ou compostos de raças e de nacionalidades.

A seleção pelas armas não levaria senão a perpetuar esta confusão de elementos étnicos e nacionais, justamente o resultado das guerras passadas.

Imaginar-se-ia realizar o sonho da união de uma raça, tida como superior, para lhe dar, pela guerra, a dominação do mundo? Mas, então, porque pensar em recorrer à guerra, se esta superioridade é real?

A História não prova que a “vontade de poder” foi sempre mais ativa e mais enérgica nas competições entre os povos mais fortes e, por isto mesmo, concorrentes?

A guerra destruiu justamente os povos mais dados à guerra: os Assírios, os Hititas, os Persas, os Fenícios, os Macedônios, os Scitas, os Vândalos, os Mongóis, os Árabes; uns desapareceram completamente, outros foram quase anulados como povos soberanos, ou como sociedades válidas. Os turcos começam a ver apagar-se sua antiga intrepidez. A força e a coragem consomem-se.

Se as seleções coletivas realizadas pelas guerras são seleções retrocessivas, as guerras individuais feitas pelo regime militar e nos campos de batalha são exatamente o contrário do progresso, para a raça e para a nação. A influência do militarismo sobre os costumes, os casamentos, a família, a paternidade, a economia e o trabalho, a perda de força e de sangue recaindo, nos tempos de guerra, sobre a elite da juventude, tudo isto dá o mais solene desmentido à influência seletiva da guerra.

Como meio de educação da energia e do caráter, William James já se encarregou de provar que à nossa civilização não faltam ocasiões para a aplicação e o exercício de nossos corações e de nossas forças morais, no que estas faculdades têm de mais nobre. As obras dos padres, das damas de caridade, dos médicos, dos marinheiros, dos homens de estado, dos mineiros, de tantos outros homens de trabalho e de fé, não exigem menos coragem do que o impulso cego do soldado, o desatino desta excitação dos combates, onde nem o mérito nem a vontade escolhem as vítimas e os vencedores. A vida e a morte colocadas em jogo, eis o que é a guerra: a guerra moderna, sobretudo, com suas armas de longo alcance, de grande poder destrutivo.

Percorrendo a série dos argumentos de seleção e de energias, chega-se a se agarrar ao instinto combativo do homem. É preciso voltar a ele e nele insistir.

Para os teóricos da guerra, ela é, mais ainda que uma necessidade da natureza, uma verdadeira função do animal humano, a imposição de nossos instintos: a luta é a condição da existência. A ambição dos homens e das potências leva a combater, a conquistar e a ganhar, às custas dos mais fracos.

Vejamos, contudo, mais de perto, a verdadeira natureza do homem e sobressairá que todos nossos pendores naturais e primitivos nos conduzem, pelo contrário, a evitar a luta violenta, os riscos e os perigos da guerra. Nosso instinto fundamental é o de conservação. Para conservar sua existência, o homem procura, a princípio, adaptar-se a assegurar-se a tranqüilidade, a procurar seus semelhantes; a ganhar pacificamente, pelo esforço pessoal e, depois, pela associação, a nutrição e o bem-estar. Pelo seu segundo instinto natural, o da conservação da espécie, mais ainda que pelo outro, a natureza humana procura apenas a segurança e a paz, únicas garantias das relações e da prosperidade do pequeno meio familiar.

O homem é, no âmago de seu ser, de um instinto essencialmente defensivo. As necessidades e as aspirações humanas, em estreita dependência da natureza e baseadas nesta natureza, levam os homens a se voltarem para a natureza e a se associarem, para aproveitarem seus produtos. A conservação do indivíduo e a associação dos indivíduos, são a lei básica de nossa espécie.

O instinto conduz à paz, e a paz é a regra da vida. Se existe, nas sociedades, um motivo ofensivo e guerreiro, este motivo não resi­de na natureza do homem, da maioria dos homens, pelo menos; é o resultado de um fenômeno mais complicado, mais avançado, das sociedades já formadas.

A luta entre os homens é um fato social, não é um fato natural; mas a sociedade, sendo ela mesma apenas uma associação de interesses e de necessidades, não produziria senão uma luta distributiva na paz se, pelo fato das desigualdades e das ambições que daí resultam, os mais hábeis não fossem levados a se colocarem por sobre a sociedade, para se assegurarem uma parte maior dos lucros sociais.

Não foi a força que teve o cetro de comando, durante a vida das primeiras sociedades: foi a astúcia. A força sempre esteve do lado das grandes massas, mantidas, entretanto, por baixo das aristocracias e dos governos, em escravidão, em servidão, sob despotismos mais ou menos confessos. Apropriando-se dos domínios, da riqueza e do capital, atribuindo-se a melhor parte dos benefícios sociais, o homem hábil foi dirigido por um motivo mais requintado e mais artificial do que seu instinto: agiu sob o impulso de um interesse que apenas a sociedade pode fazer nascer, em um estado transitório dos costumes em que as ambições não encontraram seu ponto de conciliação. A luta do homem contra o homem é assim um fato social, fato resultante do choque das aspirações entre os seres mais bem dotados, e da imperfeição da civilização para satisfazer as necessidades sem conflitos, sem subordinação e sem sacrifício.

Mas se a luta social fosse apenas uma luta de inteligências e de capacidades, seria sempre pacífica. O homem, não podendo ter surgido nos desertos ou sobre geleiras, encontrou, por toda parte em que surgiu, a alimentação e os elementos de vida. Um meio físico não produz senão os indivíduos que pode nutrir(1). Há uma relação exata entre a capacidade de nutrientes de uma terra e a população que produz.[2] Se os mais hábeis chegaram a dominar as massas, é que chegaram a constituir sobre elas uma força moral mais forte, uma autoridade, um poder. É por esta força que se constituíram os governos; são os governos que estabeleceram o uso da guerra, entre as sociedades. A luta física consentida, aprovada, legalizada, é um fenômeno político da sociedade.

A guerra é o resultado da organização política dos povos.

Olhai, agora, a vida de cada uma das sociedades nacionais, da tribo selvagem até a mais avançada das nações contemporâneas: tudo aí é organizado de modo a garantir e a consolidar a segurança pessoal. O chefe poupa e protege a vida dos súditos, o senhor tem um interesse pessoal na conservação e na saúde dos escravos. Ao contrário da luta física, aí não se vê senão um profundo sentimento de respeito pela existência e de proteção à vida. Deixai de lado os casos doentios dos grandes criminosos, do despotismo, e encontrareis que por toda parte o próprio interesse dos dominadores os conduz a assegurar-se súditos tranqüilos e bem de saúde. Tudo se organiza no sentido de proteger a vida. As tiranias e as revoluções não são senão, ordinariamente, questões de rivalidades e de ambição política. Os déspotas por instinto e por temperamento são muito raros; as revoluções populares, fatos excepcionais.

No interior de cada país os homens jamais lutaram senão pela ambição de um outro homem. O que era seu interesse privado, doméstico, civil, econômico, industrial, seu pendor natural, seus costumes, suas aspirações, os levavam à acomodação, à transação, até mesmo ao sacrifício. Se fosse verdade que o homem tem um instinto de luta física, que o instinto de conservação e a ambição levam à guerra, seria absolutamente inconcebível que, durante o curso de tantos séculos, as fortes e esmagadoras maiorias que sempre formaram o fundamento e a base da pirâmide social, não tivessem encontrado o meio de se apoderarem das armas e dos instrumentos de luta, para abater as pequenas minorias dominantes. A guerra é, portanto, o produto da inteligência do homem, não de seus instintos.

A história das revoluções e das conspirações não é senão uma conseqüência de ambições políticas, de assaltos ao poder, de vinganças e de represálias de partido. Os interesses e os fatos da vida real, profunda e prática, dos homens e das famílias, são totalmente estranhos a estas lutas: os próprios interesses das classes não entraram em conflito senão sob a instigação da ambição de poder político: a ambição de supremacia, mais que a própria avidez e a ambição material, está na base da ambição política dos indivíduos como das coletividades. O desejo de dominar, o brilho e a majestade do poder, o gozo do fausto e da realeza, a arrogância da dominação, foram sempre impulsos mais fortes do que a cupidez e o desejo de posse.

Nietzsche aproximou-se mais da verdadeira natureza do homem do que os darwinistas. “O aspecto geral da vida não é a indigência, a fome; muito pelo contrário, a riqueza, a opulência, o absurdo, a prodigalidade mesmo — onde há luta é pelo poder... É preciso não confundir Malthus com a natureza”.[3]

A criança e o selvagem apaixonam-se pelas coisas vistosas e majestosas, gostam de imitar as atitudes imperativas de comando e não se põem a lutar senão sob o impulso de uma excitação já anormal. Pessoalmente, de homem para homem, a luta física não obedece a uma inclinação da natureza; não resulta nem só do desejo, nem só da cobiça, friamente representada no espírito. Há uma lei do mínimo esforço na aquisição das coisas a na satisfação das necessidades, que se manifesta na criança, como no selvagem e no adulto civilizado. Já que a natureza comanda a vida, a conservação e o prazer, o próprio animal, e o homem mais ainda, cujos movimentos, hábitos e instintos foram moldados pela adaptação no sentido da busca do bem pelos meios mais fáceis, procuram poupar as forças, evitar as fadigas e os perigos. É preciso que se levante, entre o desejo e a coisa desejada, uma necessidade violenta, que o espírito se exalte sob a dor, ou sob o perigo, que a paixão perturbe a alma, para que o impulso guerreiro substitua a fria inclinação natu­ral. E, ainda, é preciso que o perigo da luta seja menos sensível que o da procura pacífica. O instinto vital vigiando a conservação, mesmo em estado de paixão, mantém os hábitos de adaptação e doma os impulsos combativos: o homem procura antes empregar os meios esquivos, até mesmo a astúcia e os embustes, do que se bater.

É bastante comum ouvir falar de instinto, de inclinação natural, de pendor da natureza humana, para explicar os crimes de sangue, a ferocidade, o canibalismo, a paixão e o furor da guerra. São afirmativas absolutamente opostas à nossa verdadeira natureza animal. Certo, o homem primitivo teve costumes cruéis e sanguinários; certo, há mesmo nos meios civilizados indivíduos desprovidos de interesse pela vida e pela integridade dos outros, mas da existência destes tipos primitivos ou excepcionais há uma distância muito grande à afirmação de imputar à natureza a causa dos comportamentos passionais.

Se é necessário ligar a origem do homicídio a um fato qualquer, este fato é provavelmente a caça[4]; foi na caça que o homem desenvolveu este prazer de exterminação, tornado um impulso passional, desde nossos rudes ancestrais; a necessidade de alimento foi provavelmente o primeiro motivo para a caça. Mas se se atém à observação de que as espécies inferiores eram naturalmente abundantes; que por toda parte onde o homem vivia deveriam igualmente pulular seres mais fracos, colocados ao alcance de seus movimentos tranqüilos e ordinários, é preciso concluir que o homem deve ter evitado os meios de aquisição de comida que o expusessem à ferocidade dos animais mais vigorosos do que ele e à hostilidade dos outros homens.

Para com os animais mais fortes, cercados de espécies mais fracas, de que ele era também dominador, seu primeiro sentimento foi, sem dúvida, um sentimento defensivo. O caçador primitivo era, naturalmente, o ma­tador de espécies mais fracas, a vítima das mais fortes. Sua atitude era de ameaça e de agressão para com as primeiras, de medo e de defesa em relação às outras. Para apanhar os animais das pequenas espécies, foi levado intuitivamente a exercitar-se na arte das armadilhas, a munir-se de armas leves, fáceis de manusear, a multiplicar sua engenhosidade por mil artifícios de astúcia e de agilidade, mais do que a empregar a força: é o movimento espontâneo de todo ser vivo. O perigo o cercava, por toda parte, vindo das feras. Começou por defender-se, a se esconder contra os assaltos, a cavar buracos nas cavernas, a subir nos ramos de árvores e nos rochedos. O ataque das feras inspirou, inicialmente, o medo; com o medo, a necessidade e o hábito da defesa. O perigo permanente fez nascer o ódio, o ódio e a necessidade de defesa, nos encontros imprevistos, por ocasião da aguada dos animais, inspiraram os primeiros ataques por vingança, forçou os primeiros duelos animais. Destes duelos, resultou que o homem adquiriu a consciência de uma superioridade em destreza, em calma, em resolução. Animou-se; aventurou-se em excursões; fez, sobretudo, emboscadas; ligou-se a esta outra paixão sedutora e embriagadora que é o espírito da aventura: tomou a ofensiva. Mas esta iniciativa, se não foi o resultado de uma longa guerra, seus inimigos cercando-o e fatigando-o de todos os lados, foi o efeito de uma intensa luta íntima contra os móveis e os pendores mais profundos da natureza. O homem não passou da atitude defensiva para a de agressão em seu relacionamento com os outros animais, senão forçando seu caráter, fazendo violência aos seus instintos, criando sobre suas faculdades espontâneas uma estratificação secundária, uma nova camada de móveis morais.

O grande fato trágico da natureza não foi a combatividade: o homem bruto, original, ainda envolvido em sua casca de hábitos ancestrais, foi algo menos nobre e menos digno que o selvagem caçador e guerreiro das populações chamadas primitivas: foi um animal voraz e frouxo, prestes a lançar a mão sobre toda vida inerme ao seu alcance, do mesmo modo indiferente com que sacrificamos aos nossos apetites ostras, caça e animais domésticos; mas receoso, assustado e trêmulo perante toda força evidentemente superior, toda luta perigosa, todo desconhecido e todo mistério.

Começando a combater aos poucos; na defensiva, a princípio; por ódio, depois; animado pelos primeiros sucessos; criou em sua estrutura moral uma função nova e um objetivo anormal, sem raiz em sua própria pessoa: o produto desta nova relação com os outros seres que se poderia ligar talvez à evolução intermediária do quadrúmano frugívoro, habitante dos ramos de árvores para o bípede andarilho, comedor de ervas e de pequenos animais. A vida não impõe uma necessidade de luta, tem apenas necessidade de crescimento.

Se o trabalho da vida e da geração faz vítimas, se contém um drama perpétuo de vitórias e de sacrifícios, não é que a árvore de poderosa ramagem possui o instinto, e o destino, de abafar as plantas pequenas nascidas das sementes caídas sob sua folhagem: é que os grãos não encontraram seu lugar de vida ao sol.

Só, o animal é um destruidor voluntário de vidas; mas a condenação a este cruel destino leva em si mesmo seu contrário e sua punição: destruindo as vidas, o animal caminharia para sua própria destruição se não interviesse entre seu apetite e o reino vegetal, o equilíbrio protetor da espécie e, entre sua cobiça e os outros seres animados, o cuidado de sua defesa: eles também são ativos e combatentes.

Deixemos de lado a questão da necessidade da alimentação animal para o homem e para os outros seres vivos. O fato de que existem carnívoros não é uma prova de que esta necessidade existe. A natureza é bastante cheia de contradições para que se não se permita crer que há fatos na natureza que são acidentes e desvios da naturalidade. O homem foi, e é ainda em alguns lugares, canibal; mas ninguém ousaria afirmar que este hábito responde a uma necessidade de sua natureza. O cachorro e o lobo são carniceiros, mas não comem seus semelhantes.

Na perseguição à vida, não é a tarefa dos animais lutar, mas procurar alimentação. Segundo sua força e sua inteligência, o animal nutre-se às expensas de seus inferiores. A regra natural é a tirania dos mais fortes, o sacrifício dos mais fracos; portanto, nada de luta, de combatividade, de agressão e de defesa; os fortes perseguem, os fracos tratam de escapar; os fortes não exercem senão sua superioridade natural de participantes de uma espécie, de inteligência, de número, de nocividade, de movimentos; os fracos não têm senão que fugir ou se deixarem apanhar. Não há luta na desigualdade de forças.(5)

Coloquemos agora o homem perante o homem, frente à frente. São seres iguais em força e em aparência, igualmente armados. Sua semelhança impressiona os espíritos; medem-se reciprocamente as forças; na dúvida, evitam-se ou tratam de se entender; com a identidade física, outras semelhanças começam a se mostrar: a voz, as gestos, os movimentos, as gostos, as inclinações, os objetos primitivos de trabalho, de caça, de ornamentação, as primeiras roupas, a habitação. A floresta e a pradaria são ricas em frutos e caça; fazer um inimigo a mais, é aumentar o perigo; associar-se, é, pelo contrário, multiplicar os meios de aquisição e de êxito. A inclinação natural do homem para com o homem foi necessariamente a associação. O homem foi um animal de agrupamento, desde os tempos mais recuados.

Mas o temor, o ódio e o espírito de aventura, que a caça excitou, lançam, na pequena sociedade, as sementes da ambição, da avidez, da paixão. A vida é uma educação permanente. No mundo animado, o meio ambiente é uma estufa, e o trabalho intelectual, o instrumento da adaptação e da utilização. Nestes meios primitivos, entretanto, tudo é rude, grosseiro, selvagem. Para conseguir habitação, para alimentar-se, para proteger-se contra os perigos, para franquear seu caminho, é preciso lutar contra obstáculos materiais, forças inertes, terrivelmente obstinadas em sua resistência à ação do homem; é preciso escalar rochedos, atravessar rios, combater as feras; enfim, o homem primitivo tem necessidade de desenvolver sua força física e, no espírito, a inteligência defensiva, astuciosa, lesta, sempre atenta e sempre em guarda, e o caráter, audacioso mas sem coragem, tenaz sem ser enérgico; a ferramenta moral necessária para lançar-se nas sombrias empreitadas da força frente a multidões de inimigos escondidos, igualmente astutos, às vezes desconhecidos. Este gênero de vida criou a emulação; a emulação esboça e acaba por estabelecer uma hierarquia, que chega, afinal, a fazer surgir um chefe mais forte, provavelmente o mais hábil nesta espécie de política de trapaças que é a inteligência prática do selvagem. Eis a sociedade, o governo, o estado embrionário, que estão formados.(6)

Tudo leva a crer que a luta física não foi um hábito nas primeiras sociedades.

A História traz à luz os costumes pacíficos de certos povos, isolados por acidentes naturais, nas ilhas, entre pântanos, cercados de montanhas, perdidos nas geleiras e nos desertos. Estes povos levam uma existência patriarcal sob a forma comunitária, com hábitos de trabalho e de associação às vezes notáveis, como as do Egito proto-histórico, na organização do trabalho agrário e na dos de irrigação.[7]

Se for necessário ater-se ao nosso caráter primordial, às camadas mais antigas de nossas almas, adquiridas do ancestral da espécie e dos escalões mais baixos, não é a combatividade que é necessário ver no fundo de nosso espírito: é um egoismo receoso e astucioso; e é neste egoismo que se baseou a associação entre iguais que se temiam reciprocamente e que viam na união de suas faculdades e de seus músculos um reforço de seu poder sobre a natureza e os outros seres.

A combatividade não é uma inclinação inata de nossa natureza, foi uma faculdade adquirida; resulta de fatos de relação, não de necessidades individuais; nasceu, mais ainda, em um estado já avançado da evolução humana e de inclinações superpostas em nosso espírito a nossas inclinações originais e instintivas.

Até uma idade ainda bem próxima de nós, por toda parte onde uma raça forte e conquistadora tratava de se apoderar de um território, o uso geralmente praticado era a exterminação de todos os que resistiam e de todos os que, por seu número e sua força, seriam um obstáculo à posse tranqüila da terra. Os colonizadores civilizados eram impiedosos na prática destas eliminações sumárias. Tratava-se, aqui, de fatos políticos, isto é, de ações coletivas de povos constituídos e organizados, agindo sobre outros homens sob o impulso moral, não de um instinto animal, mas de uma superioridade moral consciente e de “direito de civilização”. Para o Mongol de Gengis-Khan e de Timur-lenk, como para o colonizador inglês, espanhol e português da América, a eliminação dos habitantes dos territórios conquistados não era um simples impulso animal, era uma deliberação raciocinada. Deste hábito resultou a quase supressão de imensas massas humanas, de inumeráveis tribos, até mesmo de povos e nações. Invertamos agora a lição destes acontecimentos e veremos que se o homem fosse dotado de um impulso instintivo para o homicídio e para a guerra, resultaria que a espécie humana não teria podido sobreviver senão através de tipos excepcionais de seres isolados e sem coesão, presa certa das feras suas inimigas, em breve destruída, como todas as espécies de ani­mais extintos, pela avidez inconsciente de nossos antepassados.

Se se leva ainda mais longe esta coleção de móveis que inspiraram os crimes de sangue e as carnificinas, contadas nos documentos históricos, ou transmitidas pela tradição, é certo que as necessidades e precisões de nossa conservação e de nosso desenvolvimento desempenharam um papel insignificante, em relação a outros impulsos, absolutamente artificiais, adquiridos por meio de sentimento e de inteligência: gostos e motivos de emulação, vaidade e orgulho, bem menos essenciais, menos profundos e menos vitais, que os da natureza.(8)

O amor, a procura da fêmea, a emulação e o ciúme em torno da mulher, desempenharam um papel marcante nestes dramas que, explodindo em cenas trágicas, conduzem às vezes os povos a lutas sangrentas. É o único móvel que se poderia atribuir, ao lado do desejo de alimentação, ao impulso de um instinto.

Aqui, entretanto, os fatos contradizem ainda a relação de causalidade entre os impulsos do instinto e os arrebatamentos da luta física.

No que se refere à alimentação, é preciso muita teimosia para afirmar que ela é a causa das lutas humanas, frente aos próprios resultados da civilização. O que se chamava, até uma época próxima de nós, de mundo civilizado não era senão uma vasta extensão da Terra onde pequenas minorias gozavam de todos os bens da fortuna e de todo o supérfluo do luxo, às custas de uma enorme massa, embrutecida, miserável, famélica, humilhada pela necessidade, exaurida pelo trabalho árduo, devorada, até a medula, por toda espécie de taxações e de penas. O instinto animal destas massas não lhes deu força nem lhes inspirou o pensamento de sacudir de seus ombros o animal de presa que as devorava; e se a História nos fala, às vezes, de revoluções, não são quase nunca as pessoas labutadoras e necessitadas, a humilde tropa dos trabalhadores, a multidão dos sujeitos aos impostos arbitrários que se revoltam: são as pessoas das cidades, os segundos da equipe social, que, levando atrás de suas bandeiras alguns milhares de pessoas indigentes da cidade, inconscientes de seus deveres e de suas necessidades, reclamavam a parte de poder e de comando que acreditavam devida à sua fortuna. Foi preciso que a sociedade fosse fundada, no decorrer do século XIX, sobre uma ordem mais pacífica, para que a povo tivesse consciência de seus direitos e os governos dessem-lhes atenção. A guerra foi feita sempre às custas dos mais fracos, contra seus interesses e contra seus destinos: ela jamais deu satisfação às necessidades dos povos; não foi senão a paz que começou a abrir os espíritos à contemplação de sua miséria e os lábios à reclamação de seus direitos.(9)

É quase uma piada lembrar os impulsos passionais, os combates cavalheirescos da galanteria, como prova de uma fatalidade instintiva de certos arrebatamentos de nossa natureza. Certo, o instinto sexual, com suas rudes paixões, para os materiais, e suas ilusões romanescas, para os sentimentais, tem um considerável papel na história de nossas lutas. É mesmo, neste período que se poderia dizer que responde à adolescência do gênero humano, cuja tradição nos transmite as fantásticas lendas, de uma verdade que flutua entre o mito e a heroicidade, o fio de ouro que liga toda a fábula destes poemas, tecidas de altos vôos épicos e repelentes atrocidades.

Segundo as crônicas dos deuses, as epopéias bizarras dos Júpiter, dos Dionisios e dos Apolos, as aventuras dos Hércules e dos Teseus, todos os grandes romances da cavalaria primitiva fazem de algumas figuras esculturais de mulheres o objeto e o pretexto para imensos torneios sanguinolentos.

Seria contudo verdade que a mulher por si mesma, pela atração de sua beleza e de seu encanto, fosse para os homens, dos quais estes deuses eram a representação alegórica(10) (seres com apetites ordinários e rudes) a causa destas longas intrigas, através de perigos inumeráveis e de horríveis provas? O amor antigo era por demais físico, por demais material, gozador e exigente, por demais fácil de ser satisfeito e ser desprezado, para que se suponha a exclusiva influência da paixão amorosa no heroísmo e no sacrifício de homens que, em suma, viam as mulheres como escravas, freqüentemente repudiadas.

Até nossos dias, ainda, a História está mais ou menos cheia de sinais romanescos, líricos, às vezes malignos e cruéis do eterno feminino: muitos assassinatos, duelos, raptos, sombrios combates ao redor de castelos, talvez até mesmo algumas batalhas, foram episódios deste eterno romance que envolve a crônica de nossa espécie.

A procura ou a conquista da mulher exerceu, certamente, uma influência mais considerável na história das lutas humanas do que a luta pela comida. O instinto sexual é o mais apaixonante, o mais enlouquecedor, de todos os instintos. As alucinações da paixão amorosa são mais comuns, mais aceitas mesmo, confundindo-se freqüentemente com o sentimento, do que as alucinações de qualquer outro móvel de nossas almas.

Excitado, entretanto, no calor dos combates, o selvagem, a quem a mulher inimiga vinha se oferecer, advogando a causa da vida perante o veredicto de sua virilidade, pelo argumento de suas formas nuas, volta os olhos para a seduzente imagem e cede. A exaltação da ira cede frente a atração da volúpia.

Não é aqui o lugar para lembrar tudo o que é obra da mulher, por sua beleza, por sua graça, por seu sentimento, na história da simpatia e da cooperação. Não se trata aqui de refutar a famosa tese da origem da combatividade nisto que se chama o instinto. Acabamos de constatar que o instinto sexual é o mais poderoso de todos os motores de nossos impulsos animais; acabamos de reconhecer, ainda, que mesmo despojando o amor de sua força e de seu poder de sugestão, de tudo o que há nele de exageração poética e romântica, é a causa mais comum dos desvios da probidade e da razão, até mesmo entre as pessoas normais. Poder-se-ia então dizer que a mulher e o amor constituem, de um modo qualquer, nas causas do estado de paz armada e das possibilidades de guerra?

Este instinto, como o da luta pela vida, deixou de influenciar, até mesmo se pensarmos em uma influência longínqua, as agitações da política e as rudes paradas militaristas.

É que o instinto natural entra bem pouco na história destes conflitos e destas colisões de povos.

A observação dos costumes contemporâneos vem nos mostrar que, como a necessidade de alimentação, de conforto e de bem-estar material, o instinto sexual e o amor não vêm à tona, na inspiração dos atos humanos, senão à proporção em que a homem toma consciência de sua natureza e dos direitos que dela decorrem.(11) Uma das causas da irritação das classes inferiores e do proletariado, no mundo civilizado, encontra-se justamente nas decepções do amor. As mais belas mulheres das classes operárias abandonam a sociedade de seus jovens camaradas para procurar acolá a comodidade e o luxo; e os operários de nosso tempo começam a se revoltar contra esta espoliação do seu direito de amar. As gerações miseráveis que se sucederam no curso da História conheceram o amargor desta decepção. E esta ânsia do mais humano dos sentimentos não as levou à revolta.

Nesta fase imaginativa da vida humana, o amor que inspirou aos mais fortes o lirismo triunfante dos poemas, os raptos e as seduções (lirismos vencidos), não inspirou às pessoas pobres senão a poesia melancólica, o sacrifício, as consolações religiosas.

Não se fazia a guerra por isto.

É preciso que voltemos atrás para precisar nosso pensamento. Sendo nosso objetivo o de provar que a guerra não responde a nenhuma verdadeira necessidade dos povos; que o problema da paz chegou ao estado de maturidade e deve ser posto como problema prático aos espíritos dos homens de estado, é preciso seguir os argumentos dos militaristas; e, já que os partidários da guerra começam por invocar uma pretensa compulsão de nossos instintos e de nossa natureza, é preciso colocar em seu devido lugar o valor deste primeiro argumento.

O que é preciso entender por instinto e por natureza humana?

Há verdadeiramente um sentido preciso nas noções que correspondem a estas palavras? Costuma-se apoiar nestas expressões como se se tratassem de valores matemáticos; fala-se de instinto, de homem primitivo, de natureza animal, como se houvesse uma escala dos estados de sensibilidade e de inteligências desde as ações reflexas dos animais até o raciocínio do filósofo e do sociólogo; como se fosse possível precisar um momento, na evolução, em que o homem tivesse adquirido sua forma específica; como se o tipo humano não fosse entre indivíduos de épocas diferentes, e, em uma mesma época, entre as raças, as nacionalidades e as classes, de uma tão grande diversidade.(12)

O tipo do homem inculto de nossa época e o do sábio são de uma diversidade mais marcante, talvez, que o do selvagem e do antropopiteco.

Chega-se até mesmo a falar, contudo, de um “instinto” de ferocidade e de crueldade no homem.

Não são senão erros sobre sérias questões de Antropologia, de Psicologia e de Biologia, cujos princípios ainda imprecisos fazem com que os sábios enfrentem sempre sérias dificuldades e disputem entre si sem cessar.

Não é preciso se demorar nestas polêmicas, verdadeiros exercícios de acrobacia mental sobre palavras. A questão deve ser e pode ser colocada em termos práticos: a combatividade é uma necessidade, uma condição da existência do homem e da sociedade, um meio de obtenção dos elementos de conservação e de desenvolvimento do indivíduo e da espécie?

Eis o que parece demonstrado não ser verdade.

Avancemos, contudo, no estudo de alguns dos móveis das guerras do passado e do presente.

A História é muito freqüentemente uma falsa testemunha que mereceria comparecer perante o tribunal do bom senso. O acervo de conclusões arrojadas enunciadas pela crítica histórica é causa de uma multidão de precipitações e erros na ciência social.

O homem primitivo foi combatente e agressivo; portanto a guerra é uma condição da natureza humana: eis o argumento em torno do qual gira toda a dialética militarista.

O fato é verdadeiro, mas a conclusão é absolutamente falsa.

O homem primitivo, nosso antepassado, era o habitante de uma natureza bruta, selvagem como ele, que acabava de passar pelas últimas grandes fases de sua formação geológica. A crosta da terra era dura e áspera; sua superfície, coalhada de obstáculos e armadilhas; variações de clima e de relevo embaraçavam, por toda parte, o passo e a vida. Os últimos avanços das geleiras apenas acabavam de retroceder; os movimentos sísmicos, as secas, as inundações, os “dilúvios”, multiplicavam-se entre os passos do homem, parando-o, fixando-o, desviando-o, fatigando-o, de todos os lados.

Daí estas ondas e estas corridas de populações e de nações, estes deslocamentos de massas, estas invasões e estas conquistas que tinham como efeito verter das montanhas para as pradarias, de lugar para lugar, multidões perseguidas pelo frio, pela esterilidade do solo, pela fome, e de lançar das estepes longínquas sobre os clãs povoados e os campos cultivados, estas avalanchas bárbaras que inundavam e devastavam os países.

O homem, perseguido pelos aguaceiros, pela muralha ascendente dos glaciais, pela seca, pelos tremores de terra, recebeu desta vida errante e conturbada a educação do terror e do medo, uma alma inquieta, a necessidade de franquear seu caminho para lugares mais seguros e mais acolhedores. Daí nasce em seu espírito, atormentado pela crueldade da natureza, a indiferença pela vida e pelo interesse do outro.(13)

Era o instinto que o conduzia? Sim, mas não era o instinto que o lançava sobre a povoação pacífica, encontrada por acaso em seu caminho; era o sofrimento, era o desespero de encontrar em algum lugar o abrigo para sua aflição; era a paixão, enlouquecida pela tormenta, pelos obstáculos e pelas surpresas da partida; e, depois, era a agonia da caminhada pelas encostas das montanhas, pelas areias do deserto, pelos espinhos das florestas.

É esta vida de lutas materiais, de obstáculos físicos, de surpresas desconhecidas e aterrorizadoras que criou no espírito humano a ferocidade agressiva. Os sentimentos que daí resultaram refletiram-se na espécie e na parcela da espécie abalada pelos fluxos e as ondas das migrações.

Foi nesta escola que se formou o arrebatamento belicoso de nossa espécie; e estes movimentos se reproduziram em extensão, ao longo dos séculos, por força do impulso primeiro, durante estas épocas em que todo movimento caminhava como uma força espontânea e sem freio, até que, estando suprimidas suas causas, o hábito perpetuou-lhe os costumes, em que outros fatos e outros motivos apropriaram-se da força adquirida.

Em certos estados de selvageria e mesmo em algumas civilizações, como entre os Aztecas, a guerra era freqüentemente feita com o fito de capturar vítimas para os sacrifícios religiosos. A que objetivo natural do homem este hábito poderia corresponder?

Evidentemente, o fundo de misticismo e o impulso idealista que levavam os espíritos a procurar o elo de ligação do mistério de suas almas com o mistério do Universo, não entravam em nada nestas hediondas cerimônias sacrificiais. Não eram senão um rito religioso; e este rito não tinha provavelmente outra origem que a comemoração de uma recordação tradicional da raça: os irmãos queimados no país de origem, quando de um acidente natural; os inimigos levados à fogueira, quando de uma conquista. Eis guerras que não eram senão hábitos absolutamente fúteis, sobre o pretexto da invocação poderosa da divindade.

Os Incas, por outro lado, não faziam a guerra senão com um fito de proselitismo. O ideal destes estranhos soberanos de um grande império comunitário não era domar, massacrar, nem reduzir à escravidão as povoações vizinhas, mas submetê-las à fé do Deus Sol: guerras religiosas, estas, feitas aliás com uma humanidade rara, consistindo sua maior severidade em os fazer arrepiar caminho, frente aos povos absolutamente selvagens, indignos de serem incorporados ao império.

Certo, houve, nestes tempos, guerras, ou melhor, expedições guerreiras de um povo contra o povo vizinho, motivadas por um objetivo de cupidez: roubo de colheitas e de rebanhos, de caça, de objetos já cobiçados, talvez; esta não devia ser, entretanto, a causa habitual dos conflitos, como não o é também entre os selvagens contemporâneos.

Para estes, a guerra é outra coisa que não um meio de luta pela vida, ou um estado de existência: faz-se por ódio, por rivalidade, por antagonismo tradicional, por superstição, por vingança. O orgulho da tribo, seu renome, susceptibilidades, todos estes escrúpulos frívolos mas apaixonantes, tão poderosos entre os espíritos fracos, cristalizados, mais tarde, na virtude cavalheiresca e na honra militar, tudo isto fala mais alto nestas almas rudes do que os interesses práticos, quase sempre desapercebidos pelas pessoas sem ambições, nos meios em regra pródigos nos grosseiros gêneros alimentícios procurados.

É em certos círculos de antropologistas, dos quais o espírito, como o de todos os especialistas, deixa-se cerrar no círculo de sua ciência quanto mais nela se aprofundam, que se encontram os partidários mais ardentes desta estranha doutrina que liga a guerra à natureza íntima do homem, como sendo um atributo de sua própria vitalidade. A observação habitual dos costumes dos selvagens, de sua crueldade, de sua inconsciência, de sua perpétua e incessante combatividade, faz crer que estes seres, que parecem representar o tipo humano em estado de natureza, são amostras da espécie em sua forma originária. O selvagem de hoje é, entretanto, um tipo transformado, como o próprio homem civilizado. Seria absurdo crer que o negro do centro da África está no mesmo estado em que se encontrava, por exemplo, o homem de Neanderthal.(14)

Estas raças não poderiam se furtar às leis da evolução, de regressão, e retrocessão(15); modificaram-se, avançando em um sentido ou em um outro. A fixidez é impossível na natureza. Tudo o que se pode concluir de sua selvajaria e de seus atrasos, é que o movimento de transformação se faz com uma extrema lentidão e que prossegue no sentido do desenvolvimento de certos hábitos rudimentares.

A vida, nem que seja só pela prática de certos atos, pela repetição e pela imitação, é uma educação, portanto, uma seqüência de transformações. O selvagem de nossos dias não é senão o homem encurralado pelos acidentes da natureza e pelos outros homens, nas florestas, nas ilhas, nos desertos, no alto das montanhas; suas más inclinações aguçaram-se e irritaram-se no isolamento sobre uma terra agreste e em um estado perpétuo de luta; seus sentimentos são impulsos fixados e superexcitados durante séculos pelo que se poderia denominar a civilização às avessas.

Este homem não é o igual do homem primitivo, de uma animalidade virgem de experiência social; fixado no fundo de seu vale, escondido pela cortina de suas florestas e no limite, ainda mais forte, de seu terror; desconhecendo o mundo e seu semelhante; impotente, por esta ignorância, frente ao ataque de seus inimigos e às catástrofes da natureza, tem a alma envenenada por uma longa experiência de dores, de misérias e de angústias e pelas provações das migrações e deste eterno estado de sítio que o aquartelou em seu rochedo ou em sua “taba”.

Mesmo para este rude aventureiro das florestas, a guerra é outra coisa que não o meio de roubar gado ou milho. Não arrisca sua vida senão pela glória de seu “totem”, em vingança de algum insulto, em represália, para se dar a medida de sua força. É por estas palavras que um chefe índio fazia a pregação de suas narrações de guerra, após ter se vangloriado de ter comido mais de cinco mil inimigos e de se comparar com o jaguar: ”eu sou grande; eu sou poderoso; eu sou forte”. Todos estes repastos de carne humana não eram senão afagos ao seu orgulho, homenagens prestadas à sua “vontade de poder”(16). Sabe-se que a antropofagia não tem sua origem no gosto pela carne humana, mas em uma causa de natureza religiosa. Por seus sentimentos e suas preferências, o selvagem corresponde mais ao homem migrador da idade proto-histórica e talvez a alguns tipos bárbaros da idade média. É um tipo avançado no sentido da excitação da combatividade e da embriaguez do sangue: o modelo atrasado de uma espécie de atavismo feroz. É um desenvolvimento, não uma paralisação.

A física da Terra é o primeiro regulador da evolução humana. O homem, simples brinquedo ao sabor dos fenômenos, encurralado, perseguido, arrastado, em massas, do deserto para a montanha, de uma estepe para uma floresta, sempre em guarda, empurrado pela tempestade, ou por outra vaga humana, viveu séculos a fugir da terra e da água, do gelo e do calor, a se massacrar, a se substituir, a se misturar. A perspectiva longínqua das nações não é senão uma sombria e confusa sucessão de raças que se chocam, destroem-se, misturam-se, fazendo suceder seus fluxos e ricocheteios, sob a pressão de causas físicas. Os acidentes naturais foram, necessariamente, as causas das migrações, as origens das conquistas, dos deslocamentos, das invasões. As lendas lhe dão seu testemunho.

A natureza continuou a ser, por muito tempo, agressiva. Para cada pequena tribo, para cada nação já formada, o meio tinha sempre ameaças e surpresas. O hábito ajudando, as religiões inspirando as “guerras santas”, as cruzadas, os massacres dos infiéis, depois a ambição dos mais fortes e dos mais hábeis, em suma, o despotismo e as conquistas começaram a fundar nas almas este elo moral, feito de ódio, de vaidade, de suspeição, de orgulho, de leviandade, cuja liga serve para cunhar a moeda de dupla face do patriotismo e da hostilidade.

Desde então, a guerra perpetuou-se por tradição, como uma instituição de natureza profundamente política. E de que ela é uma criação da sociedade e um fenômeno puramente político, temos a prova na supressão do duelo e da guerra privada, em quase todos os povos, e a perfeita regeneração dos descendentes dos selvagens, educados por civilizados. Toda a ferocidade acumulada nestas almas por um herança de diversos séculos desvanece-se de uma geração para outra, apenas com a influência da educação.

Supõe-se ainda encontrar em certas inclinações de nosso temperamento social um argumento favorável à natureza belicosa de nosso caráter; o espírito de querela, o gosto pela discussão, pelo debate, pela difamação, pela intriga, os hábitos turbulentos de alguns, a mania de demandas(17) de outros.

Todos estes caprichos humanos, não têm nada a ver com o espírito belicoso, mesmo quando tomam uma certa importância, pelo contágio, ou pela influência dos que se deixam dominar por eles.

O querelante, o intrigante, o burguês processador, o homem de espírito turbulento, são naturezas totalmente opostas às dos grandes generais e dos fazedores de revoluções. Seu ardor não os conduz jamais aos torneios cavalheirescos; e se a palavra e os gestos de alguns agitadores chegam às vezes a conduzir as massas nas guerras civis, estas não são senão relações acidentais entre fatos sociais e psíquicos que, confundindo-se, não se relacionam se não houver a intervenção de outros elementos.

As revoluções e as guerras civis de nosso tempo não são o efeito nem do espírito de combatividade das multidões nem das agitações dos políticos; resultam de causas bem mais profundas: a existência em todas as sociedades de problemas não resolvidos; a longa e dolorosa irritação das massas, sob a pressão de necessidades e aspirações jamais satisfeitas.(18)

São estados emotivos das opiniões e dos povos, e, enquanto estados emotivos, representam o despertar da sensibilidade e da consciência popular até então adormecidas.

Para bem compreender este caráter das guerras civis e das revoluções é preciso ter em vista o pensamento que alinhava e que penetra o conjunto deste trabalho: as perturbações violentas da ordem social são fatos políticos e resultam da hierarquia e da organização impostas às sociedades. Evoluções, guerras sociais e guerras civis têm sido, até nossos dias, lutas de concorrência política, em que os que exploraram, nas sociedades, a profissão política, com seus conselhos, seus estados maiores e seus partidos, fizeram o jogo de suas ambições e de suas forças.(19)

Se a evolução política não chegou ainda a este estado normal em que a direção da sociedade será a atribuição dos seres de elite, de saber e de caráter, é de se notar já um avanço considerável no fato de que a guerra não é mais um meio admitido de competição política. Obteve-se, à força de disciplina, talvez até um pouco, à força de educação, mas sobretudo, pela força do alargamento dos quadros dos profissionais da política, a paz, ou uma trégua durável, para esta espécie de conflito.

Não é verdade que exista, nas sociedades modernas, uma necessidade de combatividade física, que procuraria desaguar na guerra civil, após longos estados de paz internacional. Não é apenas este ardor, mas também, o traço guerreiro das lutas políticas nacionais, que são coisas apagadas de nossos costumes. Encontra-se ainda alguns povos e nações de um caráter mais ardente, em que os acidentes da política provocam às vezes crises quase explosivas; mas, mesmo entre estes povos não se bate mais por grandes palavras e as multidões não se deixam embalar pelas explosões oratórias de seus tribunos.(20)

As guerras civis e as revoluções prováveis de nosso tempo são as dos interesses e dos problemas sociais. Aí não se encontraria nada de instintivo, nada de emocional, nada de agressivo, no sentido de uma tendência natural para a luta física.


 

A PAZ, O CONHECIMENTO E O PENSAMENTO HUMANO

 

Em torno da idéia da paz universal, bem como do todas as que traduzem ideais, aspirações e programas políticos, reina, no pensamento de quase todo mundo, uma grande confusão.

A paz universal é um ideal: isto, imediatamente, basta para despertar a desconfiança dos que se supõem pessoas práticas; é uma aspiração moral que se confunde freqüentemente com a da fraternidade humana, da felicidade de nossa espécie, de uma nova era de bem-estar para todo mundo: e eis que a chamam de ilusão, utopia, crença no “milenium”; lembra, ainda, algo de irrealizável como o projeto de um regime social construído com todos os detalhes, tal qual a República de Platão, a Utopia de Thomas Morus e certos sistemas coletivistas e socialistas; e descarta-se toda possibilidade de acordo.

Para o espírito de todos (e este todos compreende muitas pessoas bem colocadas na direção de nossos destinos e de nossas opiniões) a mera menção da palavra “ideal” faz perder toda confiança e toda seqüência no pensamento. O ideal para estas pessoas, que não têm dele sequer uma noção bastante nítida nas coisas da arte e da poesia, não é senão sinônimo do sonho, do imaginário, do fantasista. Salvo o ideal religioso, que quase todo mundo admite pela mesma razão que faz afastar os outros: o hábito e a disciplina do espírito às convenções dominantes; tudo que se assemelhe a um ideal assusta as inteligências e faz parar as vontades. O espírito de nossa época é uma espécie de pintainho de chocadeira que não gosta de se arriscar longe do calor e fora do vidro protetor de sua habitação; e, em nossas democracias contemporâneas, a melhor forma que as pessoas da política encontraram para se assegurar a benevolência dos povos é de se conformar à sua indolência, ao seu negativismo, ao seu pavor de pensar.

Descartou-se da vida privada e da vida política a inspiração do ideal, sob o pretexto de positivismo e de bom senso; e não se percebeu que esta concepção empírica do caminhar de nosso pensamento e de nossa vontade em direção ao futuro encerra uma espécie de impulso mecânico, sob o comando do hábito, do interesse imediato e das convenções, que faz de nossa passagem na vida e dos movimentos da sociedade, algo como a agitação de um doente sofredor de uma in-coordenação dos movimentos que não lhe permitiria colocar os pés senão para o lado e para trás.

Sua noção epistemológica à parte, e esta não interessa senão às relações de nosso espírito com o conhecimento e a realidade, o ideal tem, para nossa inteligência, toda outra significação: não é o oposto do real e do positivo, mas o oposto da idéia. A idéia representa uma criação mental existente no espírito; o ideal não é senão sua representação futura. Idéia e ideal são fatos intelectuais, semelhantes aos fatos morais de satisfação e de aspiração.(1)

O ideal poderia ser definido: uma idéia em aspiração ou a aspiração de uma idéia; e, por extensão, por causa da insuficiência de nossa língua: a aspiração de um sentimento. Nossas inteligências estão cheias de idéias, nossos corações cheios de aspirações; não há espírito, mesmo entre os que têm concepções céticas da vida, que não seja guiado de alguma maneira por um objetivo puramente ideal, colocado, em abstração, no futuro. A paixão filosófica, o amor à arte e à ciência, o cuidado com o estilo, a própria alegria estética, não são outras coisas, em suma, senão ideais, sucessões de ideais e de realidades, cadeias de desejos e de prazeres, que se renovam sem cessar. A mera adesão a uma idéia, mesmo a uma idéia negativa, a mera crença na Ciência, na Filosofia, na Arte, encerra o culto de um ideal, já que a prática e o exercício do estudo e da contemplação impõem um movimento constante do espírito no sentido de uma abstração que não é real.

Nossa existência não é outra coisa que uma marcha contínua da realidade para a idealidade(2). Tudo o que nós nos representamos no futuro não é senão uma imagem ou um ideal. A mais simples das vidas, a mais inculta, é toda feita destes encadeamentos de pequenas predições e realizações que formam o rastro contínuo do ser pensante e do ser que age. A idéia seria impossível sem o exemplo dos fatos percebidos; e o fato não existiria sem sua concepção anterior(3). O jantar e o repouso, a noitada no cabaré e os lazeres do domingo não são senão pequenos ideais, para o espírito do trabalhador inculto.

Entre este sentido, que é o sentido mais justo, e o sentido popular, de que se fala a toda hora, há um outro relacionado à concepção de certas aspirações de um objetivo puramente moral, geralmente confundidas com nossas inclinações sentimentais. O ideal não é então senão a excitação de certos estados de sentimento. É sua concepção romântica.

Há, certamente, sempre, um estímulo de sensibilidade em qualquer direção psíquica nossa. Agimos, todos, primordialmente, em razão de nossa sensibilidade. Opor, entretanto, a sensibilidade que inspira a direção geral de nossos movimentos, de nossas idéias e de nossos atos, como argumento contra a verdade destas idéias é raciocinar imperfeitamente, já que não se faz senão substituir a questão da superioridade das idéias pela da superioridade dos temperamentos.

Se se abstrai os casos doentios, todas as maneiras de sentir a vida e o meio são inclinações naturais em um sentido favorável à adaptação. Não há necessidade de se admitir uma fórmula preconcebida do progresso, nem supor qualquer predestinação finalista para nosso porvir, para crer nesta idéia elementar de que nossa existência, efeito de um conjunto de causas favoráveis para a eclosão e o desenvolvimento da vida, implica a necessidade de uma espécie de harmonia e de equilíbrio entre o ser vivo e seu meio envolvente.(4) Esta harmonia, que se pode conceber em um grau de aproximação tanto mais justo quanto for o conhecimento que o homem tiver de seu meio e que ele exercer seu poder de raciocínio começa, seja ela física, moral ou mental, pelos fatos de sensibilidade. Ser sensível, eis o primeiro traço de consciência: e quem é que, no presente, não tem o sentimento da atrocidade da guerra e da contradição de sua existência com nossos costumes e nossas instituições? É esta sensibilidade que explica justamente as razões apresentadas para lhes dar uma base racional, desde que se abriu seu debate no tribunal da razão.

Haveria muito a dizer, o que seria demasiado longo, sobre os problemas morais e psicológicos de nossa sensibilidade; sobre a piedade e a caridade, sobre a impassibilidade e a indiferença, sobre a extensão de nossa impressionabilidade, frente a estes grandes males humanos que abarcam, em conjunto, povos e épocas, sem que nossos olhos e nossas orelhas recebam o contra-golpe direto; mas, se existe um fato psíquico comprovado pela experiência, é justamente a força de nossa inclinação para a abnegação e o sacrifício. O número dos seres devotados a obras altruístas não se compara com o número dos que a indiferença retém no egoísmo e a perversidade na prática do mal.

Do misticismo ascético ao ceticismo de Timão de Atenas, a gama da sensibilidade tem graus inumeráveis mas é absolutamente idêntica em dois pontos principais: o homem não ama o sacrifício do homem; o homem tem o culto do sentimento e do pensamento(5). São fatos que poder-se-ia chamar de minimus de sensibilidade moral coletiva. O militarismo e a guerra são, por si mesmos, prova disto. Não se combate senão por patriotismo, isto é, pela força de um sentimento moral superior, que se crê exigir, em certos casos extremos, o sacrifício do estrangeiro ao bem-estar dos nossos. O patriotismo e o militarismo são fatos de sensibilidade altruísta aplicada em um grau de desinteresse e de abnegação que o ideal da paz está longe de pedir.

Entre estas duas inclinações altruístas, entretanto: a bravura militar que leva à batalha por uma cega renúncia da pessoa, e o amor à paz, que inspira o ideal de uma entente entre os povos, qual testemunha um estado de sensibilidade mais elementar e mais baixo?

As multidões e as pessoas do mundo ignoram as coisas da guerra e suas causas, a política e suas intrigas, os interesses da sociedade e a influência da política militar sobre seus interesses(6); como fato de consciência, conhecem apenas de coração a velha canção da guerra e do patriotismo e caminham pelas sendas abertas pelos preconceitos, qual rebanho obediente, para um sacrifício incompreendido e uma glória inconsciente.

A pieguice dos pacifistas seria menos humana, menos normal, que esta sensibilidade de convenção ou de hábito, de passividade ou de paixão, que faz com que nos arremetamos contra homens, declarados nossos inimigos por decreto oficial, por motivos de que não temos quase nunca consciência?

Mas a concepção talvez um pouco doutrinária, embora justa, do ideal, e a impulsão do sentimento e da sensibilidade tem pouco a ver com o problema da paz, tal como ele apresenta-se aos olhos dos que o olham do ponto de vista político contemporâneo. Para estes, o problema da paz não é, nem mais nem menos, que o mesmo velho problema do concerto e do equilíbrio europeu, generalizado a todo o mundo graças à dilatação das relações e à multiplicação dos interesses, e suscitado por razões mais potentes.(7)

Se não é necessário renunciar à origem e natureza moral de nosso ideal, é preciso ver que o problema não está mais colocado co­mo uma aspiração, mas como uma questão política, como a equação política do presente, colocada pelos fatos, e pedindo, como todas as questões de fato não uma solução teórica, mas o complemento e o coroamento de um outro fato.(8) A aspiração da paz, tal como se apresenta aos nossos olhos, deve ser desembaraçada de seus atributos puramente morais e afetivos, vista à parte de seus objetivos, nobres mas indiretos, e talvez longínquos, de fraternidade humana, de estabelecimento de um regime de amor e de justiça entre os homens e as nações. São ideais, dos quais nos aproximaremos pelo estabelecimento da paz, mas não são os objetivos do problema atual. A paz, pelo seu lado social e pelo estado de ordem material que se propõe criar, a paz como um es­tado policiado generalizado, é uma aspiração positiva, amadurecida pelos interesses do homem, das sociedades e dos governos: eis a etapa atual da política pacifista.

E aqui se coloca, de início, uma primeira questão; a da exatidão desta posição do problema e da possibilidade de estabelecer seus dados e prever-lhe a solução.

Opôs-se, em trabalhos recentes[9], à lógica do pacifismo e à pretensão de predição do método das pesquisas políticas e sociais, uma contestação radical: os fatos sociais pertenceriam à ordem dos fenômenos inacessíveis ao nosso raciocínio, ao domínio do incalculável: seria impossível prevê-los, buscar solução para eles. O conhecimento humano permaneceria sempre aquém das operações complexas dos fatores da vida social...

Lembremos, desde logo, que, segundo a própria confissão de seu autor, esta teoria da incalculabilidade das operações da sociedade aproxima-se da doutrina da imprevisibilidade de Bergson, e que este filósofo chega, ao contrário de seu confrade, a conclusões bem mais otimistas, a respeito da guerra e de outros problemas humanos.(10)

Esta objeção preliminar à possibilidade de dar solução aos problemas sociais é passível de uma séria crítica, igualmente preliminar. A questão teórica do alcance do poder de nosso conhecimento é uma questão essencialmente metafísica. Foi suscitada a propósito dos grandes e perenes debates das categorias fundamentais do conhecimento, das questões de substância e de forma, do ser e do não ser, da essência, do realismo e do idealismo, do absoluto, do infinito, do tempo e do espaço.

Desenvolvidos até imensas profundezas e sutilidades microscópicas, estes debates pareciam destinados a consumir sem resultados o esforço e o tempo dos espíritos mais eminentes. Foi então que veio a idéia de questionar a própria capacidade de nossa inteligência para lhes dar satisfação. Era, vê-se, uma maneira de contornar a dificuldade, por uma negação de competência e de autoridade. Outros encontraram, mais tarde, uma solução, talvez mais hábil e mais lógica: a inutilidade das pesquisas sobre as causas primeiras e finais.(11)

Em metafísica, a solução era aceitável: primeiro, porque a esterilidade dos debates era um argumento bastante concludente, para a doutrina; segundo, porque a insuficiência de nosso poder de conhecimento está perfeitamente apoiada pelos fatos de nossa experiência e pelos dados de nossa razão. As categorias metafísicas mostram, por sua mera enunciação uma natureza de tal modo vaga e fluida que é quase impossível conceber-lhes a posição em termos de problemas.

Mas esta palavra “metafísica” é uma palavra de que se abusa: fez-se com que descesse das idéias transcendentais para o das coisas e dos fatos, desde que o espírito encontrou-se perante questões não suscetíveis de solução pelos métodos das ciências exatas: daí, a aplicação da objeção epistemológica e lógica às questões da vida social.(12)

O calculável é um conceito matemático e permanece nas matemáticas, na medida que se trata de problemas puramente abstratos. Fora do abstrato, não há mais calculável, ou, o que vem a dar no mesmo, há sempre, em todo raciocínio e em toda pesquisa, mais do que o calculável. Mesmo neste terreno tão positivo das Matemáticas, não seria preciso colocar, com Poincaré, na base do conhecimento, esta vaga e indefinida faculdade da intuição?(13) Daí, uma primeira fraqueza da idéia do calculável.

Mas nas aplicações mais rigorosas das Matemáticas, o cálculo não substitui os dados dos sentidos, dos instrumentos, da experiência e esta outra faculdade de golpe de vista e de conjunto que faz com que cer­tos práticos se tornem homens de gênio, não agindo sobre outra base que a da intuição.

Desde que se abandone o terreno das aplicações em que as Matemáticas reinam soberanas, o cálculo perde quase toda sua força. Os problemas da vida não são jamais problemas suscetíveis de cálculo. Se os fa­tos do mundo orgânico compreendem freqüentemente problemas de mecânica, de física, de química, suscetíveis de redução à simbologia dos números, não apenas a maioria dos fenômenos que compõem a vida não o são, a menos que se confunda o emprego do cálculo, meio de raciocínio e de solução, com operações e fórmulas de uma natureza mais mnemônica; mas também as pesquisas mais sérias mostram que, para além dos fenômenos classificáveis nos quadros de nossas ciências, a vida contém uma multidão de elementos que não têm sido ainda percebidos por nossos instrumentos de pesquisa e pelos poderes de nossa inteligência. Todos os problemas sobre a organização vital e sobre o funcionamen­to íntimo da vida desdobram-se em outros problemas. O cálculo é impossível, para efeitos práticos, onde não é possível definir unidades.

As ciências da vida estariam, pois, condenadas, junto com as ciências políticas e sociais, a uma completa esterilidade prática. Todo mundo reconhece, entretanto, que há, em Biologia, um certo número de co­nhecimentos bastante seguros e um número já considerável de aplicações úteis; e, se é verdade que algumas destas aplicações e destes conhecimentos têm sido levados a generalizações prematuras, que não deram todos os resul­tados desejáveis, e se pode ser que estejam perdidos em falsos caminhos ou paralisados por obstáculos imprevistos, a culpa não é da incalculabilidade dos fatos biológicos, mas, ao contrário, à excessiva fidelidade dos sábios aos princípios e aos métodos de suas ciências, a esta estreiteza de atenção e este ciúme que retém os especialistas no círculo de seus pensamentos e que os conduzem a impor os resumos particulares de seu ângulo de observação e de sua zona de conhecimento a fatos que pedem outras luzes e uma mais vasta investigação.

A preocupação com o cálculo e o rigor dos métodos de observação e de experimentação são causas freqüentes do insucesso destas ciências, que levariam a conclusões bem mais úteis e interessantes se os sábios não se deixassem encurralar no seu círculo restrito de idéias, nem se desviar, pela curiosidade das pesquisas, no labirinto infinito de estéreis ou inoportunas investigações.(14)

Os problemas humanos reduzem-se a questões de utilida­de e de oportunidade, e toda verdade, como toda idéia puramente teórica, que não responde às interrogações de sua hora e de seu lugar é nociva. Avançar o progresso da ciência para além dos problemas apresentados pelos fatos, é conturbar a evolução, perturbar violentamente o desenvolvimento contínuo e metódico de sua caminhada para o futuro.(15). E a ciência dos sábios e a dos inventores, com o rigor técnico de seus métodos e suas curiosidades parciais ou laterais, é responsável por muitas revoluções no progresso do espírito humano.

A culpa do atraso e dos desvios de nosso conhecimento não está na insuficiência de nossos métodos de pesquisa, mas na estreiteza de nosso golpe de vista e na enervante sedução que a lógica e o trabalho da profissão exercem sobre os sábios.

Não nos cabe mostrar, nestas páginas, a natureza destes poderes de nosso espírito encarregados de reunir os elementos dos problemas práticos, de fazer sua triagem, análise, classificação, induções e deduções. O que é certo é que cada etapa de nosso desenvolvimento nos mostra que há, ao lado das verdades e dos fatos reunidos nos sistemas, todo um mundo de outros fatos, de fenômenos e relações, sobre os quais agimos constantemente e que agem sobre nós, cujo conjunto nos envolve bem mais estreitamente e nos penetra mais profundamente do que os fenômenos registrados nas prateleiras de nosso conhecimento intelectual.(16)

Enquanto a inteligência e a ciência fizeram suas luzes penetrar e desenvolveram seus ramos na direção dos problemas excepcionais da vida, seguindo a direção que a própria origem da investigação científica traçou para o espírito dos sábios, quase toda nossa existência é feita de uma sucessão de fatos desapercebidos, que formam o rascunho no qual o espírito de todo mundo exerce continuamente uma faculdade, ou um conjunto de faculda­des, em que se poderia desembaraçar da observação, da experiência, do julga­mento, da escolha, das associações de todo tipo, uma mescla de dados empíricos e de raciocínio.(17)

Bergson[18], tendo compreendido bem toda a extensão deste lado de nosso espírito e dos fatos que ele domina, encontrou, em sua dis­tinção da intuição e da inteligência, a chave deste mistério perturbador. A propósito de sua teoria, não se pode deixar de evitar a observação que, nes­te retorno à intuição, o eminente filósofo parece ter-se deixado seduzir por esta preocupação com a unidade, esta necessidade de caracterização, de diagnose, que está no fundo da curiosidade e da ambição de todo intelectual, dos que, sobretudo, tendem a cunhar verdades definitivas.

A intuição, desenvolvimento do instinto, é talvez uma forma de ação mental muito simples, rápida, elementar, para este trabalho, que é, em suma, a função normal de nosso cérebro, de dirigir e controlar os movimentos de nossos passos nos acidentes da vida. Não é apenas por es­ta espécie de projeção de nossa luz interior(19) sobre as coisas do exterior, por estas sínteses instantâneas, que lembram as representações, mais simples ainda, das reações senso motrizes, que adquirimos o costume das coisas exte­riores e que perseguimos o curso de nossa vida no tempo e no espaço.

O saber e seus métodos, colocados pelo espírito de eru­dição no primeiro plano de nossa mentalidade, não é, de fato, senão a paisa­gem escolhida pelo gosto estático das inteligências sobre o fundo das coisas complexas e profundas da existência.

A vida flui toda, em sua normalidade e em sua grandeza, entre as duas fronteiras do instinto e da inteligência; e, da mesma forma que os fatos e as funções desta parte média de nossa vida, a mais vasta em alcance e a mais forte em intensidade, é alimentada por uma multidão compli­cada de relações, a ação do espírito sobre este mundo é uma ação bem mais penetrante e mais variada que a da intuição(20).

Ao lado das coisas da vida prática, as invenções e os progressos realizam-se a passo lento, por gradações progressivas. Os podero­sos engenhos agrícolas de nosso tempo são engrandecimentos da charrua dos egípcios, e nossas imponentes máquinas são aplicações do fogo, descoberto por nossos ancestrais, habitantes das cavernas(21). Foi por intuição que nossos ancestrais conceberam seus primeiros instrumentos e que os multiplicaram e aperfeiçoaram? Evidentemente, não. Da primeira sensação que teria sugerido a possibilidade de uma invenção, aos raciocínios que levaram aos grandes aperfeiçoamentos contemporâneos, o espírito de nossos antepassados passou por mais trabalhos que os da única operação quase reflexa da intuição.

Se é possível encontrar aí traços de intuição pode-se ainda isolar elementos de observação e de experimentação, da concepção e da generalização; mas tudo isto, como muitos outros elementos, tais como a aná­lise e talvez mesmo um certo poder de golpe de vista e de aprofundamento feito de associações e de percepções de diferentes naturezas, entrelaçam-se e confundem-se de tal modo no correr de nossa vida mental que seria fortuito pretender fixar seus caracteres e seu conjunto.

O defeito do pensamento erudito, no estudo das questões colocadas pelos problemas modernos, é que reconhecendo os vazios de seu sa­ber, não tem a coragem de romper seus quadros e procurar em algum outro lu­gar novos espécimes e novas hipóteses. Bergson, por exemplo, parece inclinado a entreabrir, no meio deste instrumento da intuição, uma nova clareira sobre o largo horizonte das realidades metafísicas e o mundo, ainda mais vaporoso, do infinito e do absoluto, talvez mesmo da crença. Evidentemente, não haveria lugar para instrumentos como a observação, a experimentação e a análise; e seria irônico referir-se neste caso à concepção e à generalização.(22)

Para os que tendem a fechar o círculo de seus conheci­mentos e de suas pesquisas no mundo da realidade humana, e, além do mais, nesta atmosfera de coisas e idéias úteis ao homem e à sua vida, a questão coloca-se de maneira completamente diferente. Não temos que calcular, já que, como diz muito justamente Jules de Gaultier, todos estes problemas são incalculáveis, mas não temos também de envolver, com nosso pensamento, todo o horizonte da extensão e da duração. Não temos sequer de encontrar e descobrir; não temos senão que constatar, registrar e exercer sobre esta multidão de documentos uma multidão de operações mentais, de toda sorte e de to­da natureza, que devem nos conduzir a nos representarmos antecipadamente os acontecimentos.(23)

Ora, se qualquer homem de inteligência média pratica, todos os dias, com a ajuda destes procedimentos vulgares que se confunde sob as denominações populares de senso comum e de bom senso, operações sobre os diversos problemas de sua vida e da vida do próximo, operações de que não se tem consciência da mesma forma como não se tem consciência do funcionamento de nosso espírito nos trabalhos da inteligência, não é menos verdadeiro que o trabalho mental dos homens mais educados é feito por uma série de operações inteiramente diferentes das de nossos estudos e de nossos exercícios escola­res, e que, na prática destas profissões que exigem uma preparação científi­ca ou técnica, a bagagem de nossos estudos é quase sempre inútil. A profis­são é exercida com idéias da experiência e da observação, totalmente independentes das idéias teóricas.(24)

Se estes fatos são inegáveis, não há senão uma dificuldade a superar, no que se refere a problemas que não têm fins materiais e não se ligam a assuntos concretos. O julgamento do grande público compreen­de bem a soma de talento empregado por um arquiteto na construção de um edifício, por um engenheiro na de uma estrada de ferro, por Edison em uma in­venção. Como chamar o poder, ou os poderes, que fazem a diferença entre a simples perfeição técnica de um bom executor e a arte superior de um espírito criador? Eis aí mesmo no puro domínio da ação do espírito sobre a matéria, uma primeira questão que não é fácil responder. Quando se ascende a este mundo das criações intelectuais que não se corporificam em massas e em linhas, a coisa é bem mais complicada.

A invenção e o pensamento são, no mundo das concepções e das generalizações, não somente incompreensíveis para o grande público, mas pairam quase sempre acima do espírito crítico da época; mesmo as mais altas inteligências não se deram conta ainda do valor das invenções do espírito abstrato. Em verdade, o preço dos grandes poemas e dos grandes sistemas filosóficos é dado mais pela estima do que por uma verdadeira cotação nas tro­cas do espírito. Seria um trabalho negativo em muitos casos o de verificar a força efetiva de um pensamento, apenas pelo valor do pensamento, na evolução humana até nossos dias.

E, entretanto, ninguém contesta a realidade desta for­ça que permitiu aos pensadores gregos prever e antecipar as pesquisas e, muito freqüentemente, as soluções de nosso tempo.

A existência deste poder de percepção superior, desta espécie de faculdade de generalizações rápidas e obscuros cálculos abrevia­dos de que não retemos os fatores mas que chega a conclusões nítidas e fre­qüentemente precisas, não poderia ser contestada por espíritos verdadeiramen­te observadores.(25) E esta constatação pode ser feita de uma maneira clara na história da administração e da política.

A capacidade de administrar é um talento que não tem nada de comum com a intuição e, ainda menos, com a inteligência, no sentido de faculdade do conhecimento. Há homens iletrados que são excelentes administradores, às vezes mesmo admiráveis organizadores, enquanto muito freqüente­mente homens de alta cultura e vasto saber técnico fracassam na direção de pequenos negócios. Isto, no que se refere à administração privada.(26)

E na política? Poder-se-ia, verdadeiramente, negar a efetiva e consciente influência exercida sobre os destinos dos povos pela ação destes homens que a sorte dotou do privilégio de transformar em atos as concepções de seus cérebros?(27)

Aí está a grande verdade de que a história fornece um abundante dossiê cheio de provas: nossa vida é, acima de tudo, obra dos modos de agir dos grandes dominadores de homens. A Revolução Francesa e Napoleão, por exemplo, exerceram sobre os acontecimentos da América uma influência tal­vez mais considerável que a de seus colonizadores; e, se o grande Imperador não previu este efeito indireto de seus passos, sobre o mapa do novo mundo, não é menos verdadeiro que previu a influência de sua legislação e de sua or­ganização administrativa sobre a França, bem como a de suas vitórias sobre o destino da Europa. E Napoleão era um conquistador, um político de improvisações e de impulsos; mas Washington, este, deixou registrados em seus escritos os traços de muitas glórias e acontecimentos futuros da República de que foi um dos grandes fundadores.(28)

Toda a História está cheia de previsões e de predições. Seria quase pueril tentar esboçar um inventário delas. E vem a propósito aqui assinalar uma idéia capital: a vida dos povos e os grandes movimentos da so­ciedade sendo feitos da soma e da interação das relações as mais grosseiras e as mais superficiais dos homens, é mais fácil colocar e resolver um proble­ma político do que resolver um problema de psicologia individual ou de relações pessoais diretas.(29)

Nas flutuações das gerações e neste perpétuo trabalho de tecelagem das vidas sobre a tecedura do meio físico e do meio humano, o estudo da História social e o estudo comparativo das sociedades permite apli­car todo o conjunto de nossos poderes intelectuais e de nossos métodos. A análise é fecunda em resultados, do ponto de vista da economia e da estatística social, mas o método característico da política social é um método de conjunto, de vastas sínteses, de largas operações de associação e de generalização sobre os fatos correntes da opinião e da ação pública.

E justamente porque toda esta enorme massa móvel de fenômenos obedece, inicial e substancialmente, às pressões das leis físicas e porque os movimentos das células deste corpo multiplicam-se infinitamente, resulta daí que o conjunto formado por esta imensidade de partículas e esta trama infinita de fios apresenta uma forma sintética compacta em que análise penetra, mas de que as linhas salientes e os desenhos rudes e enérgicos destacam-se, nítidos e claros.(30)

E nestes progressos e neste ritmo dos movimentos huma­nos em direção aos seus destinos futuros, em suas ondulações e em suas dispersões, percebe-se e pode-se descrever uma História moral do homem, correndo com uma cadência e uma sucessão perfeitas e uma geografia dos sentimentos e das idéias. As primeiras noções, lançadas no espírito com as primeiras sementes de cereal lançadas na terra; o primeiro rebanho; a primeira pedra ta­lhada para a defesa e a primeira centelha de fogo; as formas ainda grossei­ras da palavra articulada, da gravura, do agrupamento tribal e das primeiras tentativas de arte – nossas primeiras conquistas intelectuais, em suma – guardam, em relação às nossas primeiras invenções materiais, a mesma relação existente entre o sentimento afetivo pelo campo e o amor filial e paterno e a necessidade de um abrigo no fundo de uma caverna, sob o teto de uma choupana.

Os fatos da evo1ução material formam como que a estrutu­ra física que os fatos da evolução espiritual envolvem em uma espécie de at­mosfera; e da mesma forma que a atmosfera não teria existência sem seu planeta e que sofre a influência das leis que mantém este no equilíbrio uni­versal, e das de sua própria atividade, a vida psíquica do homem, da família, da comuna, da Pátria e da Humanidade se manifesta como a emanação do ser que vive e das coletividades que se agitam sobre a Terra, banhadas de ar, calor e luz.(31)

Esta atmosfera recebe, em seus contornos, a forma do corpo central; mas se, no estudo dos fenômenos físicos, a observação e a experimentação apóiam-se quase sempre na análise e ascendem, por generalizações graduais, pela classificação e pela diferenciação, da poeira dos fatos microscópicos até às leis gerais, os métodos que lembram o microscópio e o bisturi de dissecação são instrumentos quase inúteis, nas pesquisas das leis do movimento social.(32)

Quem tenha feito um pouco de estudo sobre as relações espirituais do homem, em sua vida moral, jurídica e social, comparando-as com os fatos da ciência positiva, fica desde logo convencido que estas relações complicam-se de tal modo que nosso espírito desperdiçaria suas forças inutilmente se se aplicasse ao estudo analítico de todas as combinações e de todas as formas que elas apresentam. Este método conduziria a uma espécie de virtuosidade sociológica, de bizantinismo, de casuísmo.(33)

É apenas na política que reduzindo a largas unidades e submetendo a um foco de exame bem compreensivo o relevo das grandes correntes da evolução e das fases aparentes de suas transformações e de suas modalidades na vida histórica e na vida contemporânea das sociedades que se chega a perceber-lhe os movimentos mais evidentes, reguladores do conjunto.

A ciência da vida social é uma ciência de generalizações e de sínteses; está baseada em verdades diretivas, bem como no conhecimento dos meios de ação destas verdades. Sobre o fundo de nossos instintos, de nossos impulsos, de nossos sentimentos e de nossas idéias, evoluindo progressivamente, sem mudar de natureza, em todas as fases da civilização e sobre todos os pontos da Terra, sob forma de necessidades, de interesses e de relações, vê passar e flutuar o oceano perpétuo de nossas existências.(34)

Desde os primeiros monumentos erigidos pelo homem pensante, em que, fazendo abstração das coisas de sua vida prática, exprimiu suas aspirações, sob a invocação da religião, de suas afeições e de suas solidariedades, até às obras da Moral e da Filantropia contemporânea, encontra-se virtudes e motivos altruístas que se mostram como o próprio fundo de nossa natureza social. Estas sugestões agem diretamente sobre os espíritos e formam uma predisposição espontânea para a simpatia e para a ajuda mútua[35]; e, se esta predisposição cede, às vezes, frente aos motivos egoístas, o conflito mesmo dos interesses impõe a retificação das faltas e dos crimes do egoismo. Todo interesse ferido procura apoio, defendendo-se, em uma razão moral, e, já que, feita a soma, o número dos que reclamam e que protestam é mais alto do que o dos que se contentam com a ordem das coisas, as conquistas do bem alargam-se e unem-se para se consolidar.(36)

A diversidade dos sistemas de Moral nos diversos costumes, cultos religiosos e formas políticas não permite fechar em doutrinas os princípios que resumem as inspirações da alma humana. A mais justa e a mais simples classificação seria talvez relacionar à tendência em direção ao “altruísmo” o pólo positivo e para a “astúcia” e a “força” o pólo negativo de nossas inclinações. É o terreno em que as duas escolas extremas de interpretação de nossos motivos colocaram o debate sobre a natureza da alma humana.(37)

A História contém uma poderosa lição de otimismo. A Humanidade, ignorando sua natureza íntima e a extensão de seus poderes, aperfeiçoou as formas de sua atividade e realçou a concepção de seus objetivos e de seus destinos; e, por um contraste tão justo quanto imprevisto, enquanto renuncia a reinar sobre a natureza, seu aperfeiçoamento, seu bem e sua felicidade, feitos pelo desenvolvimento de sua energia e de seu poder de produção, formam o fim inconsciente, o fim adaptativo, do trabalho de seu cérebro e de seus braços. As nações e os governos são os instrumentos do progresso e da prosperidade do homem; existem para o bem do homem e não o homem para a glória e a fortuna das nações e dos soberanos.(38)

Determinando como finalidade do trabalho evolutivo da História o “interesse da vida”, de que o bem do homem, em sua saúde e alegria, é o complemento; seu progresso, o caminhar para a mais perfeita adaptação ao meio; e a expansão de sua energia produtora, a força dinâmica de seu ser social; chega-se a dar à ciência um método superior a todos os que dirigiram até nossos dias o pensamento moral e político dos povos.(39)

As fronteiras não separam mais raças escravas e raças livres. O homem colocou sua personalidade acima das divisões convencionais dos mapas geográficos. A emigração espontânea e livre, a igualdade dos direitos dos indígenas e dos estrangeiros, alargaram a idéia de Pátria até a de um abrigo para as desilusões e para novas esperanças. O interesse econômico, que o egoismo político havia nacionalizado, fortifica, tomando como ponto de partida a concorrência pacífica, a energia e a riqueza das nações.

Já que o método indutivo é insuficiente para a elaboração das leis sociais; que a História atesta a permanência de certos princípios diretores, que a luta dos interesses torna-se um instrumento destes princípios; que o objetivo da evolução pode ser definido em uma fórmula simples, o método das soluções históricas pode ser expresso como sendo a aplicação contínua deste ideal prático, por meio de generalizações históricas e sociais, retificadas pela sua representação futura.

Tendo em vista o objetivo natural de nossos passos sobre a Terra, dirigi-los segundo os sentimentos de solidariedade que a História mostra ter sempre dominado através dos azares e das flutuações das lutas, e coordenar os interesses particulares com este fito e estes sentimentos, pode bem ser o esboço da operação habitual de solução dos problemas sociais.

O futuro encerra a riqueza, os bens e as alegrias da Humanidade. Resolver um problema humano não é outra coisa que subtrair um destes bens aos mistérios dos dias vindouros. Os grandes benfeitores de nossa espécie têm sido os aventureiros que não foram intimidados pelos riscos desta exploração no infinito das verdades desconhecidas.

Os problemas sociais não são insolúveis. A verdade é que jamais se tentou encontrar suas soluções. O que se tem por princípios das ciências sociais e políticas não é senão um conjunto de idéias dogmáticas, regras preconcebidas e convencionais, de aplicações irrefletidas de crenças religiosas e de preconceitos empíricos.

É preciso substituir este amontoado de sistemas e de doutrinas “a priori” pela observação e a experimentação de nossa natureza e da natureza da sociedade, para delas fazer surgir, das lições de seu próprio funcionamento, não sociedades sem Deus nem rei, segundo a fórmula revolucionária, mas sociedades sem Deus e sem rei, com Deus e com rei, mas em que nem Deus nem nenhuma outra autoridade no mundo (quaisquer que sejam sua origem ou seu título) ajam como inimigos do homem(40)

Esta obra, a inteligência humana não pode ainda realizá-la por razões que se impõem.

O pensamento humano não exerceu senão uma influência indireta sobre as sociedades. Era, não apenas fraco em si mesmo, de uma consciência pouco segura, para governar os espíritos, como à autoridade mesmo e ao prestígio dos pensadores faltava força. Aos antigos governos, fundados pela violência e apoiados na violência, a democracia substituiu governos apoiados na astúcia política.(41)

Nula na política, a autoridade dos homens de saber é quase nula nas sociedades. Ocuparam e ocupam ainda uma posição secundária, em comparação com os que têm o poder.

Daí, os obstáculos à eficácia de seus trabalhos: a timidez, às vezes mesmo o medo, frente às prevenções, os preconceitos, os interesses imediatos: o desencorajamento e a falta de esperança na realização das soluções. São estas as causas desta espécie de virtuosidade a que se resignou o pensamento. As pesquisas pessoais e as das pequenas associações, quase impotentes, de sábios, não chegaram a resultados muito consideráveis. As verdades práticas não são idéias de ciências especiais, mas sínteses complexas, como todo fato de organização, e movediças, como toda vida. É preciso alguma coisa a mais do que o conhecimento de uma ou de várias ciências para controlar-lhes os desenvolvimentos.


 

A GUERRA, FENÔMENO MAIS SOCIAL DO QUE NACIONAL.
A PAZ, CONSEQÜÊNCIA DA EVOLUÇÃO.

 

Ao lado da noção complexa e obscura da idéia da paz, é preciso assinalar sua noção simplista e lateral. É uma noção erudita e sobretudo jurídica. É a idéia corrente nos meios políticos e na imprensa.

A paz e a guerra são fatos internacionais; e as nações, sujeitas desta ordem de relações, unidades que se repartem nitidamente nas cartas geográficas dividindo os territórios e as populações de acordo com as fronteiras e as divisões morais das nacionalidades.

Desta posição do problema resultam alguns equívocos no debate. Enquanto os filósofos vêm a humanidade e esta sociedade ideal que englobam em uma unidade teórica, os juristas, os políticos e as pessoas práticas vêm apenas países, soberanias, povos separados e colocados frente a frente, como legiões, se não hostis, ou pelo menos divergentes, inteiramente independentes.

Esta maneira concreta, quase geográfica, de encarar os dois fenômenos da paz e da guerra, obedece, inicialmente, à direção impressa pela tradição e pela história ao nosso olhar. As nações primitivas eram sobretudo povos, isto é, coleções de indivíduos, feixes integrados de pessoas. Tudo era tribal e local para eles, dos deuses às idéias práticas. O Olimpo e o céu estavam separados em países. A exogamia, criando uma espécie de relações entre os agrupamentos selvagens, era uma instituição de espírito tribal ou de espírito local.

Desde então, com o desenvolvimento e o crescimento das nações, o alcance de nosso olhar aumentou, mas não ganhou nem esta amplidão total, progressivamente atenuada, que permite abarcar em uma mesma luz todo o horizonte global do planeta e da nossa espécie, nem esta penetração analítica que permite atravessar as concepções cristalizadas no espírito para atingir realidades e traços misturados em seu conjunto e definidos sob a influência de novos fatores evolutivos.

A humanidade dos filósofos e dos filantropos era uma humanidade ideal; as nações dos espíritos práticos, realidades de tradição e de convenção. Os primeiros acreditavam-se avançados e progressivos porque tinham o poder de representar-se no espírito a imagem deste estado futuro em que a humanidade seria apenas uma sociedade, reunida, por relações gerais, em um só todo. Mas se a imagem dos idealistas, concebida desde os primeiros dias da civilização, confirma esta verdade de que nosso espírito possui um poder de representação lógica do porvir, estavam enganados por uma ilusão quando acreditavam possível realizar a paz em uma humanidade que não tinha existência porque ela não se conhecia: não se conhecer era não existir.(1)

Do outro lado, os que se acreditavam práticos não eram senão espíritos limitados e medrosos: careciam do sentido de generalização e de desenvolvimento para atingir e compreender as verdades que não são de tradição e do sentimento de ação e de vontade, para seguir o caminho das verdades percebidas.

Se a verdade não estava nem com uns nem com outros, a lógica do senso comum tendia a manter o debate entre os dois pontos extremos. É um dos defeitos de nosso raciocínio que tomemos sempre o afirmativo e o negativo como posições extremas, radicalmente opostas. Nada na vida possui esta forma nítida de um contraste absoluto. O nada e o existente, o ser e o não ser, não se representam, neste mundo, senão de uma maneira aparente, nas formas da vida e da morte; e, ainda aí, quantos mortos não estão escondidos na formação de uma vida e quantas vidas não surgem dos despojos de uma outra vida...(2)

Crer na eternidade da guerra e crer na fatalidade da paz, era apenas tomar, sobre uma questão ideal, um dos dois pontos de vista: o ponto de vista empírico, que se supunha prático, e o ponto de vista filantrópico, que se supunha moral.

Se o primeiro era cético e limitado, o segundo era sentimental e abstrato; ora, nem a verdade nem o bem realizam-se através de retornos ao passado nem por saltos no desconhecido. A idéia é um guia, mas é também uma ilusão, enquanto não surgirem condições para sua realização.

Era preciso ter o gênio de Dante para dar, entre as trevas do século XIII, à imagem da paz, a forma da realização de um pensamento do entendimento humano.

Que poderia ser, este entendimento humano, neste tempo em que as sociedades, convulsionadas ainda pelos choques violentos das mais terríveis migrações humanas, não tinham ainda terminado este trabalho de apaziguamento e de ordem necessária à harmonia entre povos que se haviam combatido e que começavam já a entrever, para além das fronteiras conhecidas e para além mar, outros povos e outros continentes com os quais seria preciso ainda combater e disputar a posse e a dominação da Terra?

A história das guerras é uma história de migrações, de descobertas de terras, de ocupações. A conquista não foi, de início, senão um fato impulsivo; começou a ter um lugar no quadro do pensamento político apenas depois da criação de uma espécie de sistema filosófico e jurídico: após o batismo dos fatos na água lustral de uma doutrina.(3)

Mas vestindo esta roupa de legitimidade, guardou seu caráter de necessidade social. Enquanto a Terra não estava inteiramente conhecida, o espírito humano ainda não tinha podido percorrer a superfície do planeta, conhecer e estudar o conjunto da humanidade, suas raças, suas nacionalidades, a guerra era uma fatalidade. Não se caminha no desconhecido, sem se chocar com obstáculos: e o oceano e as cadeias de montanhas não são obstáculos mais sérios do que o conflito de interesses, de sentimentos e de idéias que não se compreendem.

Depois, as guerras encontraram novos pretextos. Questões dinásticas e questões religiosas; ambições de império e ambição ecumênica; conflitos de raças, conflitos de interesses, direitos de soberania, direitos feudais, honra nacional, tudo era bom para justificar as declarações da guerra e a abertura das hostilidades. Desde os tempos pré-históricos, os ritos religiosos haviam dado à guerra e aos seus acidentes, mas sobretudo à abertura das hostilidades, um caráter litúrgico de sacramento. A explicação destes ritos encontrar-se-ia talvez em uma espécie de vaga e surda consciência da injustiça da guerra, mas os sábios não gostam de se aventurar nesta explicação. A guerra era impura; o guerreiro maculava-se na prática de sua tarefa; a nação, os guerreiros, os atos de guerra estavam sujeitos a toda uma série de purificações, nas cerimônias catárticas. Era, por acaso, o objetivo destas cerimônias evitar ou conjurar a guerra, diminuir as probabilidades e as causas da guerra? Não, a guerra existia, fazia-se a guerra por hábito, da mesma forma que se fazia as refeições ou se dormia.

Não se discutia a guerra, sobre sua justiça, suas causas. Tinha causas? Não se estava bem certo disto: talvez a vingança do sangue derramado, a explicava às vezes; a necessidade de comida, outras; a exogamia, a ambição... Mas, a tudo isto, podemos chamar corretamente de causas? Eram apenas ocasiões. A causa era a guerra em si mesma, isto é, este estado emotivo e passional do homem, que fez dele, por um longo período de sua vida, um animal de alma hostil e agressiva. A guerra justa e a guerra injusta dos Fetiales(4) não era justa nem injusta senão de acordo com o grau de obediência e de fidelidade à fé religiosa deste culto. Desta inspiração dos motivos cultuais da guerra, os costumes tiraram de fontes da mesma inspiração estes outros impulsos da honra, do orgulho, da cavalaria, que foram, durante séculos, o excitante da paixão belicosa. Tudo isto era chamado de causas de guerras.

Nos tempos modernos, estas causas tomam uma forma mais enganosa. Começa-se a sentir, graças à sugestão dos altos espíritos e aos primeiros murmúrios do sentimento dos povos, que era preciso revestir a cupidez, a rapacidade, a criminosa negligência dos príncipes, de pretextos confessáveis. São então estados, impérios enormes e reinos sem fronteiras em que populações esquecidas, ou esmagadas, não chegavam mesmo a cultivar a primeira camada do solo, em que as riquezas não eram exploradas senão para satisfazer as necessidades imediatas dos senhores, que se lançavam, entretanto, sobre outros povos, sob o pretexto ostensivo de uma afronta ou de um direito ferido, sob o pretexto de consciência de ocupação e de conquista, mas, em verdade, para satisfazer esta paixão de vencer e de dominar, fermentada nas almas por alguns milhares de séculos de desordens e de tumultos.

Esta idéia ingênua das causas de guerra pertence ao número considerável de erros em circulação, a título de leis e de verdades políticas. Não há um caso sequer, talvez, em que a História não mostre, antes da crise que fez eclodir a luta, todo um encadeamento de fatos, estabelecendo entre os dois povos este estado de hostilidade que deveria levar à guerra. É sempre a mesma história de dois povos rivais vizinhos, de um grande povo que cresceu ao lado de um outro que cai, raças em progresso e raças em decadência, civilizações em alta e civilizações em baixa. Tudo isto evolui durante anos, séculos. Desde a primeira hora em que estes povos se conheceram, seus chefes e seus homens eminentes compreenderam que eles eram inimigos que viriam a se bater. Era algo previsto, preparado, certo. O dia vem enfim em que a consciência de sua força se apresenta nitidamente ao espírito de um destes povos; os espíritos tinham-se excitado, à medida que este estado avançava; o momento soara, na vontade do mais forte; um pretexto aparecia, como por encanto: eis uma causa, eis a causa da guerra.

Não houve jamais, nem haverá jamais, causas de guerra. A guerra é a manifestação de um estado de civilização e este estado de civilização é aquele em que o homem, senhor desconhecido de uma Terra desconhecida, teve que sofrer as surpresas e as violências de suas explorações e de seus conflitos.

Esta fatalidade resultava do estado da Terra, do estado do homem, do estado da sociedade. Não se conhecia inteiramente a Terra até quase nossos dias. Para descobri-la, para estudá-la e para explorá-la, foram precisos oitenta séculos de batalhas entre os homens, todos ignorantes do terreno que pisavam e ignorando-se a si próprios.

Durante uma longa época, a humanidade histórica e civilizada viveu fechada entre quatro mares e as montanhas que formam o diafragma central da Ásia, partida em dois mundos: o mundo cristão e o mundo dos infiéis, pulverizados em uma multidão de povos. O cérebro humano não conhecia seu corpo.

Hoje em dia, o mundo está percorrido, estudado e compartilhado por povos que se conhecem e que mantêm relações entre si.

É o começo de uma era, no sentido positivo, o mais preciso desta palavra: a era do conhecimento da Terra pelo entendimento do homem; a era da tomada de posse da Terra, pela inteligência esclarecida do homem. Não mais migrações, não mais descobertas, não mais explorações.

Nada do que passou, durante esta longa etapa da evolução em que o espírito do homem sofreu as dores de sua gestação para a vida da consciência, subsiste no mundo. Inteiramente ao contrário desta tendência à flutuação, à mudança, às usurpações, aos acotovelamentos dos povos, o que se nota é o desejo geral e a tendência confessa para a estabilidade e a calma, para a fixação e o apaziguamento. À idéia do crescimento por invasão, sucede a idéia do crescimento por expansão: o “serum” da paz injetado em um hábito de luta. Os povos desejam progredir, mas não são mais estes povos teratológicos, de cabeças monstruosas e de numerosos tentáculos, são povos conscientes e inteligentes, desenvolvidos em todas as camadas da sociedade, nos quais a sensibilidade e a razão substituíram a obediência cega e reflexa dos povos antigos, conduzidos pelo capricho dos dominadores. Desaparecidas as causas permanentes das confusões, neste longo período de formação da sociedade, graças à posse e ao conhecimento de nosso “habitat”, as consciências retomam e buscam encontrar os fins e os métodos de uma nova vida.

As ocupações dos territórios selvagens da América foram ocasião de guerras de exterminação e de escravização: as ocupações dos territórios africanos ainda apresentaram exemplos monstruosos de desprezo pela vida humana; a obra de exploração levada a cabo, a consciência despertada pela indignação, a questão das relações entre civilizados e selvagens foi retomada, sob a forma de problemas de educação e de autoridade. Os conflitos de propriedade e de soberania renovam-se, mas colocam-se em uma posição de compromisso entre o poder da força e o direito da civilização.

O estado das coisas, o que se poderia chamar de seguimento espontâneo do desenvolvimento da sociedade, chegou assim a uma espécie de parada para repouso, para reconhecimento, para segurança. O progresso dos sentimentos e idéias ajudando, este estado material encontrou-se coincidindo com uma disposição geral de tranqüilidade. O homem refaz-se de seus esforços gigantescos para crescer; é senhor de seu bem e de sua consciência. Seria também já senhor de seus sentimentos, de sua inteligência e de sua vontade? Eis a questão.

Mas se as coisas deste longo passado desapareceram, há ainda traços de que subsistem. O homem não tem consciência da relação entre os motivos subjetivos de seus passos e a causa física destes motivos; se o estímulo da guerra era a força da necessidade de descoberta e de possessão, a surpresa da possessão, a consciência mesmo da ocupação tranqüila e pacífica, que é o estado geral dos espíritos, não suprimiram de vez o marchar desta força, ativa durante tantos séculos, e que, não conhecendo sua finalidade, não era medida pelo seu efeito. O sentimento belicoso permaneceu como um traço hereditário e de tradição.

As idéias, os costumes, as instituições, os princípios, as convenções, as organizações do militarismo tinham criado para si uma força, um poder, uma tradição, um hábito. As sociedades não são educadas pelo exemplo e a lição dos pais e mestres, que dirigem seus passos e dão as razões, a cada mudança de sua vida. Sua educação é um trabalho espontâneo de observação. Quando os fatos ultrapassam as idéias, e quando o fim atingido não é o pretendido, a relação da tradição com suas causas sobrevive à supressão destas e a força da tradição passa a funcionar no vazio, ou procura novos apoios, sobre os quais chega às vezes a se enxertar.(5)

O sentimento belicoso e a doutrina da necessidade e da normalidade da guerra sobreviveram à civilização que os fez nascer e às condições que os mantinham. Entretanto, o sentimento foi estreitado no círculo dos profissionais da guerra. Sozinha, a teoria da guerra prega vitoriosa sobre as ruínas de seu Templo.

Os fatos estão aí para prová-lo. Não apenas o número das guerras diminuiu e o tempo de paz se alargou, como as próprias guerras de nosso tempo não estouram senão com dificuldade, após muita hesitação, e são obstaculizadas por uma infinidade de obstáculos: sinais de agonia de uma instituição que já teve seu tempo. Se cada potência parece preparada para invadir e para massacrar o inimigo, todas as potências não fazem outra coisa que, com efeito, oporem-se à guerra. Há um sentimento generalizado, nas potências, da necessidade de impedir as guerras. A preparação para a guerra destruiu a guerra.

Os efeitos e os resultados das guerras não se parecem mesmo com as conquistas do começo do último século.

Após a guerra de 1870, com a cessão da Alsácia-Lorena, e do Chile e do Peru, com a cessão de Tacna e Arica; a guerra dos Estados Unidos com a Espanha dá, em suma, um resultado favorável à liberdade dos povos: a independência de Cuba.(6) Na guerra do Transvaal, para se apropriar de um território vizinho de suas possessões sul-africanas, prolongamento de sua influência econômica, a Inglaterra despende mais vidas e dinheiro talvez do que se estivesse em guerra com uma potência européia. Na China, as potências européias e o Japão fazem uma demonstração que tem por efeito, em lugar da conquista do Império do Sol, sua incorporação ao mundo ocidental. A Rússia e o Japão, envolvidos em uma luta intensa, transigem por um tratado que consolida a soberania da China. A Itália é infeliz na Abissínia. A anexação da Coréia ao Japão e a ocupação do Egito pela Inglaterra são os efeitos de acontecimentos políticos e financeiros mais do que de empresas de expansão. Se a Áustria-Hungria anexa a Bósnia e a Herzegóvia, um novo estado é constituído no Oriente europeu: a Bulgária. A comparação destas alterações na geografia política com as do passado até o meio do século XIX mostra de forma evidente a ruína da política de conquista. Ao lado do progresso dos meios de fazer a guerra, o direito e a moral internacionais avançaram também, a um passo mais ligeiro e mais seguro.

O caso do Marrocos é admirável como expressão deste fato. Três potências rivais cobiçam durante anos este império bárbaro que desmorona. Encontram suas ambições paralisadas pelo choque de seus interesses, pela oposição da opinião pública, e por esta espécie de impedimentos dos outros gabinetes que é o reconhecimento mesmo, confesso, não apenas da injustiça, mas também da fraqueza do espírito de conquista, confissão de que o tratado secreto franco-inglês é a prova eloqüente.

As negociações entre a França e a Alemanha arrastam-se entre detalhes inextrincáveis, durante longos anos, para chegar a uma convenção que submete a autoridade francesa no Marrocos a constantes usurpações.

A esta seqüência de vitórias negativas do espírito militarista a Itália acrescenta o caso notável da Tripolitana. O vôo político da Itália era à primeira vista uma auto-sugestão de seu temperamento e de sua tradição. A Itália unificada era, para muitos espíritos, a Roma renascente. A unidade é feita na dor de uma grande fratura na fronteira norte-oriental. O irridentismo aflui na corrente do velho rio romano. Do lado do Adriático e do Mediterrâneo, a “águia romana” espreita o objetivo de seu vôo: alguns passos avançados na Argélia; as iniciativas de Crispi, junto à Alemanha; algumas desavenças com a Áustria; depois, a aventura trágica da Abissínia. O problema da expansão é também um problema demográfico e econômico para a Itália: o excesso de população, a crise dos distritos rurais, a emigração, atraem a atenção dos homens de estado. É preciso encontrar em algum lugar uma colônia que sirva de terreno de descarga para este excesso de energias, o lugar para a recuperação de suas forças e o desaguadouro dos produtos de seu trabalho: com a ajuda da finança, a questão religiosa entrecruzando-se em suas alternativas de confusão e aproximação, todo este conjunto de forças e de impulsos cai sobre a Turquia, na Tripolitana.(7)

É o epílogo de uma grande ambição e de um grande sonho, o coroamento de um ideal longamente amadurecido, nas proporções mínimas de sucesso. Não é sobre a Itália que deve cair a desilusão: é o espírito militar que mostra sua impotência.

A guerra turco-balcânica... mas, não é uma velha história, desde as Cruzadas, que encontra aí sua última palavra?

Tudo isto prova que a política internacional, obedecendo aqui à ação dos mesmos fatores da política interna das nações, não é mais um jogo de príncipes, dispondo, na penumbra dos gabinetes, do destino dos povos. Não há mais lugar para o segredo e para as intrigas sutis, em assuntos diplomáticos: os segredos são encarados em toda parte com desconfiança; as negociações secretas são combatidas, nos países de organização constitucional. Leibnitz havia assinalado com justeza o estado de coisas, em sua objeção ao projeto do Abade de St. Pierre: a impossibilidade de obtenção da concordância dos príncipes. Não é mais do acordo dos príncipes que se trata agora, suas vontades foram envolvidas na corrente da vontade geral.(8)

O problema humano, entretanto, desdobra, na ruína das instituições passadas e de suas idéias, questões novas e novas exigências. A sociedade, dividida pelo critério do progresso em sociedade cultivada, sociedade civilizada, sociedade policiada; mundo bárbaro e mundo selvagem, está separada, pelo critério da iniciativa e da energia, em sociedade avançada e sociedade retrógrada. A Filosofia, a Moral e a Religião propagam as idéias da unidade do gênero humano, da igualdade dos homens. As leis sancionam os princípios das ciências morais, com a abolição da escravidão.

Neste grande todo, dotado de vida e de espírito, começa a se esboçar, pela palavra e pela imprensa, uma espécie de órgão de pensamento e de discussão. Isto que se poderia chamar, sem insistência, aliás na analogia, o cérebro humano, dotado de idéias, de aspirações, de métodos e de instrumentos de ação, mais concentrado nas velhas civilizações, difundindo-se por todos os lados, onde quer que se encontrem homens que estudem, que pensem, que produzam; pode-se constatar as manifestações de uma espécie de caráter mundial, na vontade dos homens que se ligam a ideais e a objetivos sem interesse nacional.

A vida social, moral, intelectual e econômica dos povos, rompe os quadros políticos, espalha-se, propaga-se, mescla-se mesmo; nota-se não somente uma mudança interstical de pessoas, idéias e interesses, como ondas mais fortes de relações sociais. Sozinha, a função política, desembaraçada das outras, concentra-se e localiza-se; as soberanias políticas, seu instrumento prático, limitadas de um lado, exclusivas de outro, mostram-se, então, insuficientes para o controle da vida social, estranhas ao conjunto dos sentimentos e dos interesses do país, que não podem reter, que não podem abarcar. Se todas as pessoas e todos os agrupamentos sociais de uma mesma nacionalidade não têm consciência da existência destes problemas pessoais e destes interesses particulares, dependentes de causas e de relações sobre as quais o órgão político nacional não tem controle ou sobre as quais não age senão de maneira incompleta ou lateral, a existência destes problemas não é menos verdadeira. Os dois principais problemas de nosso tempo, o do capital e o do trabalho, considerados muito estreitamente, aliás, sob o ângulo limitado das relações entre capitalistas e salariados, nas indústrias manufatureiras, estão entre aqueles perante os quais os poderes nacionais são impotentes. Os problemas da produção e do consumo, fontes de muitas crises de trabalho e desta grave crise de encarecimento da vida, estão espalhados por todo o mundo e são insolúveis pela ação de cada governo.(9)

O equilíbrio das sociedades rompeu-se pelo efeito da direção dada à instrução e ao desenvolvimento das ambições e das capacidades, fazendo surgir duas novas questões: ao lado da do direito ao trabalho, a do dever de trabalhar; e, ao lado da do dever de trabalhar, a do direito aos meios de trabalho e do direito ao “minimum” de recompensa, calculada pelas necessidades da vida, da saúde e da reparação das forças dispendidas. São grandes problemas sociais e econômicos que reclamam soluções harmônicas.(10)

A ocupação dos territórios que pertencem a bárbaros e a selvagens levanta a questão do direito de seus possuidores à vida, à saúde, à propriedade das terras, a compartilhar da civilização. A sociedade, que não pode mais escravizá-los, não pode, da mesma forma, abandoná-los. Uma casta de selvagens livres, misturados entre civilizados, não seria eliminada, sem outras graves perdas e sem perda de alguns progressos morais de nossa espécie: o respeito à vida do outro, o respeito devido ao semelhante. O caso dos povos e nações em estado de civilização média, levanta problemas idênticos, no interesse de sua conservação, de sua prosperidade e da influência de sua ação, sobre a política geral. A incorporação dos selvagens e dos bárbaros ao mundo político impõe aos povos superiormente colocados a tarefa da guarda da civilização e da defesa do progresso. As seleções sociais operam o nivelamento das sociedades, fazendo elevar-se as classes inferiores, alargando as superiores: ao mesmo tempo elementos contrários ao aperfeiçoamento, ao mesmo tempo motivos para criar um instrumento de direção e de controle mundial. A área territorial e as riquezas naturais não bastam mais, em alguns países, às populações que se multiplicam, às necessidades e às ambições que se desenvolvem, aos capitais, ao trabalho, às capacidades. São excessivos em outros.(11)

Como resolver estes problemas?

É em relação a esta questão que a idéia da paz mostra toda a força de sua natureza prática e de sua oportunidade, todo o alcance de sua necessidade e de seus resultados benfazejos.


 

COMO RESOLVER ESTES PROBLEMAS?

 

Pela força natural das coisas e pela marcha espontânea dos acontecimentos, responderia, dogmaticamente, qualquer crédulo do fatalismo moderno. O negativismo é uma filosofia de vitórias sempre notáveis, porque reúne, na mesma atitude de impassibilidade, os que não desejam resolver e os que não sabem resolver, os que não querem andar e os que não sabem andar.

Apenas, não há nada, na vida social que seja verdadeiramente espontâneo, que nasça e que evolua mecanicamente, automaticamente, como que impulsionado pela energia de um motor desapercebido mas eterno. Nada há de mais metafísico do que a concepção deste determinismo.(1)

Sob o impulso psíquico dos instintos, dos sentimentos, de idéias e vontades, a vida social é feita de uma soma de atos e de relações. Tudo isto é deliberado, tudo isto é refletido. Cada um de nós, sendo governado um pouco por si mesmo, e bem menos do que se supõe, é governado pelos atos e as relações de todo o mundo; sobre isto, a tradição, os costumes e as instituições do passado fazem cair a opressão e os embaraços de uma multidão de convenções e entraves. O passado, sendo o oposto do progresso e da civilização, é o primeiro regulador social de nossos passos: e nisto se verifica o mais crasso erro da noção clássica do conservantismo: conserva as idéias e os costumes contra o interesse da conservação das coisas e das pessoas.(2)

Estes pretensos fenômenos não são forças, não parecem espontâneos senão porque nós não reagimos sobre eles com nossa razão esclarecida pela crítica de seus efeitos; e, enquanto a razão desinteressada não controla os acontecimentos, há uma razão que se serve deles, fazendo entrar em seus cálculos as probabilidades formuladas pela força das coisas: a razão dos apetites e dos interesses pessoais. Este é o verdadeiro soberano, a verdadeira divindade destes pretensos poderes naturais do mecanismo social. Esta razão, durante muito tempo, permaneceu nas mãos dos soberanos e das aristocracias; passou agora para as mãos dos homens de negócio.(3)

É esta a vontade (deixemos de lado toda questão de psicologia pessoal) que governa o mundo.

Mas esta resposta fatalista não encontraria apoio no mundo político, onde todo mundo está, felizmente, de acordo com a idéia de que os fatos da vida social traduzem-se em problemas e que estes problemas pedem soluções. E, nisto, a política mostra um sentido bem mais científico do que o de muitas ciências.

Pela ação das nações superiores, apoiadas pelas armas, respondem os imperialistas; e sob este nome é preciso alinhar dois exércitos: os militaristas clássicos, partidários das instituições tradicionais e da disciplina social à força das armas; e os selecionistas literais, exegetas de Darwin, que transportam materialmente nas ciências morais e políticas, esquecendo as lições de seu grande mestre e de seus melhores discípulos, os métodos da Biologia, da Anatomia Comparada e da Antropologia, sem assinalar a verdade, embora evidente, que a estrutura física de nosso organismo seria impotente para produzir toda a vida que chegamos a realizar, se não fosse dotada de certos poderes, ainda não percebidos por estas ciências, as de nossas funções psíquicas, sobre as quais os séculos de vida em sociedade operaram transformações que os caracteres morfológicos e as funções fisiológicas de nosso organismo estão longe de exprimir e de reproduzir.(4)

Pela revolução, respondem os libertários e os socialistas. “Laissez faire, laissez aller, laissez passer”(5), replicam os liberais da escola clássica; solução que outros adotam nesta simples forma negativa: evoluamos. A evolução é para estes uma espécie de Providência sem volição e sem finalidade. Pela força da civilização e da cultura, respondem, enfim, os melhoristas, os crentes, certos da direção consciente do progresso humano, conduzido por um Destino, ou por uma Providência.(6)

O negativismo passivo e o negativismo finalista sabem, entretanto, que, no indivíduo e na sociedade, todo trabalho do espírito obedece em todos os momentos a uma determinação que não é menos consciente e menos deliberada porque resulta dos antecedentes: sua resposta não faz senão impor ao homem renunciar a contribuir com as idéias e as energias ganhas por ele e por seus ancestrais, para preparar o porvir. Bem ou mal, com razão ou sem ela, nenhuma sociedade, em nenhuma época, jamais procedeu assim.

Não se poderia achar outro elemento senão este da ação deliberada das inteligências, desde as lições do mestre-escola até os atos dos homens de estado, para distinguir as sociedades que avançam das sociedades estacionárias; e os problemas de obter, de fixar e de consolidar os progressos são tanto maiores quanto a ação das inteligências é mais rápida e mais intensa.

Se as inteligências se abstêm de agir, se os que pensam renunciam à atividade, os espíritos práticos, os políticos, as pessoas de negócio, tomam posse da direção, e, sem conduzir os acontecimentos, corrompem as soluções e desviam a evolução. Não é apenas a guerra, mas também a revolução, a retrogradação, as vacilações, a falsa direção da política, que são os efeitos da cupidez e da paixão, conduzida pela ignorância. É esta realidade que se toma por uma espécie de marcha espontânea das coisas.(7)

Não se encontraria solução nestas respostas. Primeiro, a espada não é padrão de medida dos valores e das capacidades dos povos. Há já séculos que o homem não se bate mais para ter pão, que não emprega mais as armas para conquistar seu campo de cultivo. O homem suportou, em sociedade, quase sem se revoltar, a miséria, a fome, a escravidão. Os conflitos de patrimônio e de dinheiro são dirimidos por transações ou perante os tribunais; as ambições e as necessidades encontram no trabalho, em lutas pacíficas, seu meio de satisfação. Não é o indivíduo, não é mesmo a sociedade que impõe a guerra à política: é a política que cria as causas das lutas armadas.

Dos argumentos do militarismo, nenhum é menos exato do que o de atribuir as guerras a causas sociais e econômicas. As lutas sociais e econômicas não levam à guerra, se não fosse a política a se servir delas como um instrumento ou como um pretexto, e a ambição desregrada, que não é um fato econômico. A conquista de todo um país seria um amargo espólio, para povos esfomeados, oprimidos pelas tiranias e pelas guerras. O destino dos povos na paz era objeto de simples estima, nas preocupações dos reis. A célebre promessa de Henrique IV, que todo francês podia “colocar, todo domingo, a galinha na panela”, testemunha eloqüentemente o que foi dito. A guerra era a profissão dos reis e dos nobres: e eis sua única e verdadeira causa. A sociedade e o povo das grandes nações conquistadoras não eram senão multidões miseráveis e subjugadas, nos tempos mais brilhantes da glória militar.

Não há nenhuma civilização que seja fruto da guerra. Todas as guerras não foram, pelo contrário, senão desvios e explorações da força e da civilização das nações, em proveito dos guerreiros e dos chefes. E se as expedições militares levaram às vezes, em seus movimentos, ondas civilizadoras e de cultura, este progresso artificial não compensa as ruínas das civilizações destruídas pelas guerras. O helenismo macedônico, edificado sobre as ruínas da Grécia, é um helenismo decadente e artificial. A obra de Alexandre desaparece, o que dela restou, com a prosperidade material de algumas cidades, no meio de desertos e de países decadentes, é a cultura da velha Grécia, misturada aos restos de culturas inferiores do Oriente.

O trabalho, o trabalho do espírito e do braço humano eis o verdadeiro herói do grande poema da vida.(8) Sua vitória é feita dos esforços da energia e da persistência, sem armas e sem apoio moral. Esquecido pelos poetas, pisoteado pelos reis, desprezado pelos deuses e padres, o trabalho é o símbolo majestoso da grandeza de nossa espécie, diante do qual deve prostrar-se a alma humana. Apenas a ele, nesta luta constante contra a destruição vitoriosa e aclamada, a Humanidade deve o saber e a arte, a beleza e o conforto, a justiça e o amor, todos os frutos benfazejos e criadores desta energia produtora que é a alma mesmo da vida. A guerra, pelo contrário, é o fruto de ambições, de paixões, de preconceitos, dos quais todo homem civilizado aprendeu, há muito, a duvidar e que ninguém mais demonstra nas outras manifestações da vida, exceto na política. São os procedimentos e os costumes da política que são incompatíveis com a sociedade; é a política que perturba a ordem das sociedades contemporâneas.(9)

Prosseguir na via do imperialismo é renovar a tentativa, tantas vezes abortada, agora mais difícil, da política de conquista. Para que finalidade? A de renovar ainda uma vez o sonho de um império ecumênico? Seria insensato sonhar com isto. A de formar nações ainda mais fortes que as potências atuais? Isto não seria encontrar uma solução, mas aumentar e multiplicar as complicações e as dificuldades. Os conflitos e as lutas destas enormes potências ateariam fogo aos quatro cantos da Terra. Seria a guerra permanente, pela impossibilidade de equilíbrio.

A formação de impérios é impossível desde que a autoridade política foi fundada na vida social e que a vida social propagou-se para fora das fronteiras. O único grande império dos nossos dias, a Inglaterra, é um império nominal, sobre um conjunto de povos livres, mais livres mesmo do que muitas nações soberanas. Este império seria o ideal da organização pacífica da humanidade; sua própria existência é a prova da possibilidade desta idéia: unicamente, o império humano não pode ser contido nas malhas de uma raça ou de uma nacionalidade. A humanidade organizada não se compreende senão como uma democracia de nações.(10)

Cada país inclui, nos limites de seu território e no seio de sua sociedade, os mesmos problemas; as soluções naturais estão freqüentemente fora de sua jurisdição. Os que representam a parte mais esclarecida e mais forte da humanidade, agindo isoladas e nas alianças transitórias de nossos dias, formam forças que se equilibram. Seus interesses estão em conflito. As próprias alianças não respondem a correntes homogêneas de interesses gerais e permanentes. Se um projeto de ação é inspirado no interesse geral, a reação dos outros sanciona os protestos da opinião pública; se se inspira em um objetivo civilizador, as ambições confundem o bom desejar, logo paralisado pela emulação e pelas desconfianças.

Enquanto isto as opiniões revolucionárias reúnem as massas populares, formadas destes milhões de sacrificados, de vítimas, de desclassificados e exaltados, sempre prontos à revolta. A política da inércia não pode ter como efeito senão as explosões parciais ou gerais, a anarquia.(11) A evolução dos povos novos seguirá a mesma tendência de lutas entre as camadas rivais da sociedade, agravadas pelo ódio das raças. Na Índia, no Egito, começam a aparecer os sinais precursores deste estado de espírito: a educação do indígena faz apenas revoltados; na Alemanha, o excesso de população, a necessidade de capitais, a exuberância de energia, pedem espaço e trabalho, horizontes de expansão e de atividade; na França, na Itália, na Espanha, em Portugal, na Turquia, os problemas do trabalho e da miséria fermentam questões políticas e econômicas, sobrevivências de lutas religiosas, o Japão e a China reorganizam-se de acordo com o modelo das nações militares, fazendo aparecer perante os espíritos a imagem da potência amarela, fundada em centenas de milhões de habitantes; na Inglaterra, a questão social, a autonomia da Irlanda, os interesses das colônias, a consolidação do Império, a defesa do Reino-Unido e das colônias, a organização do exército e da milícia territorial, os progressos da democracia, alguns sinais até de espírito revolucionário, tudo isto ameaça destruir a ordem deste império da lei e da paz. Nos Estados Unidos, a questão social, os abusos do capitalismo, os conflitos de raças, as exigências do interesse nacional em crise entre dois oceanos, um espírito mercantil exagerado, a exploração da terra e das riquezas superexcitada, começam a mostrar, nesta resplandecente e precoce civilização, um fundo de esbanjamento imprevidente.(12)

Em nome do que legitimar a solução imperialista; sobre que direito fundar sua iniciativa e sua autoridade; sobre que força apoiá-la, nesta missão civilizadora?

Evidentemente em nome de uma superioridade, fundada na civilização e na força. Não discutamos sobre a noção de civilização; aceitemo-la tal qual é admitida e consagrada pelo uso. A civilização seria então um certo grau de desenvolvimento das sociedades representando um certo grau de aperfeiçoamento de um conjunto de caracteres, segundo o “criterium” de uma época. É a única definição que não contém o elemento arbitrário de uma unidade de valor para este fenômeno, tão relativo e tão condicional. Mas, aceitando esta definição, é-se forçado a lhe recusar toda conseqüência que tivesse um alcance definitivo.

A noção de civilização sendo uma noção convencional, seu conteúdo podendo mudar de acordo com o ponto de vista e o julgamento do espírito, seria totalmente injusto evitar um julgamento de inferioridade e de superioridade, sobre os dados atuais do conceito. Tal povo, de uma alta cultura, pode ter falta de moralidade, e tal outro, muito moralizado, ter falta de gênio e de cultura intelectual. O próprio estado avançado segundo os caracteres aparentes que respondem à idéia de civilização no espírito popular, poderia exprimir o simples efeito de um concurso acidental de fatores ou o resultado de uma exploração muito ousada da terra. É preciso limitar a idéia a seu aspecto atual e à sua forma condicional.

O direito imperialista da civilização e a função educadora e tutelar das potências seriam então uma espécie de mandato passageiro, exercido sucessivamente pelos povos, segundo os acidentes de sua evolução.

A Alemanha seria hoje um dos grandes curadores de povos em estado de interdição; mas a Prússia de 1848 não teria merecido um pequeno papel de tutor de qualquer bando de negros no interior da África, e a Alemanha do século de Luiz XIV teria merecido também seu conselho de família; e já que ninguém poderia prever as mudanças que os acidentes políticos podem imprimir à forma dos impérios contemporâneos, da Europa, nada prova que ela não venha a retrogradar ainda até uma posição secundária, no número das potências.(13)

O exemplo tomado à Alemanha dá bem a idéia da fragilidade deste título ao direito de império, fundado sobre o estado da civilização. Apenas o título de civilização não poderia, aliás, apoiar o direito; seria preciso ainda apelar para a força; e eis nos voltados para o trabalho de refazer durante algumas gerações a luta das potências à força de armas... e a supremacia militar será talvez amanhã dos japoneses e dos chineses.

Há uma pretensão de superioridade, fundada sobre a raça. É o lado mais sério da doutrina imperialista.(14)

A velha doutrina de Conde de Gobineau sobre a desigualdade das raças recebeu o reforço de uma adesão que lhe deu o apoio da ciência. Esta doutrina afirma a superioridade da raça branca do Norte da Europa, a dos dolicocéfalos louros de olhos azuis e de estatura alta, descendentes legítimos do nobre povo indo-europeu, da casta semidivina dos arianos. São os civilizadores de Roma, da Grécia, da Índia, os depositários de toda a cultura humana, os melhores, pela disciplina, pela moralidade, e pela força...

Esta teoria jamais foi unânime e obtém cada vez menos autoridade na ciência. É preciso assinalar inicialmente a coincidência deste esforço científico com as tendências políticas em ação nos meios europeus. É um fato constatado na história do pensamento este da natureza tendenciosa de muitas opiniões e doutrinas cientificas.(15) Fato de sensibilidade, de convicção, de fé, esta predisposição do espírito é um fator considerável na evolução das idéias. É de assinalar na ciência do século XIX, ao lado de sua parte positiva, uma atitude evidente de prevenção contra a filosofia do século XVIII; às suas conclusões muito ousadas e freqüentemente muito ligeiras, a ciência conservadora foi levada a opor razões mais fundadas: e esta ciência caiu, por sua vez, nos erros de sua inspiração.

Levantando o problema das populações, Malthus levou sua lógica, sob a sugestão da crise social e econômica inglesa, a conclusões reacionárias(16) tão ousadas quanto as utopias dos homens da Enciclopédia e da Revolução. Se Darwin, inspirando-se completamente no pensamento do economista, não se deixou desencaminhar, graças ao rigor de suas observações, da justa posição científica, seus discípulos, os neodarwinistas, deixaram-se embalar pelo entusiasmo de seus princípios e de suas convicções. Eles fazem sobretudo obra política, mais que ciência: e se em sua inteira boa fé e com seu paciente método são conduzidos às vezes a úteis e sérios trabalhos, sua influência geral sobre os pensamentos está carregada de perigos.

No que se refere à questão das raças, sua opinião não é a de todos os sábios, nem a da maioria dos sábios, nem mesmo a dos que se recomendam por estudos feitos com métodos mais aprofundados e mais circunspectos. Estes chegaram à conclusão de que, para além das mensurações antropométricas, os caracteres psíquicos e sociais mostram que o dolicocéfalo louro do Norte da Europa não é um tipo superior, definitivamente paralisado pela evolução da espécie, mas somente o tipo vitorioso em seu meio, durante a duração de uma longa etapa do desenvolvimento humano.

Esta raça tende a perder a vantagem de sua antiga superioridade; e os selecionistas, eles mesmos o constatam, lamentando-o, aliás. As seleções de nosso tempo, feitas sob outras condições de clima, de toda sorte de influências físicas, naturais e de costumes, sem lutas violentas cotidianas, são já obra de inumeráveis gerações que fazem, há tempo, o trabalho de submeter o meio físico à ação de sua vontade, de sua ciência, de sua arte, e a vida social à ordem e a sentimentos de serenidade. O tipo humano que não encontra mais as condições materiais em que se formou, degenera no calor das habitações, no conforto, no meio de todos estes cuidados e deferências com que a sociedade envolve sua nova criatura, o animal polido, o homem aperfeiçoado pelo desenvolvimento do espírito; mas degenerar aqui não significa outra coisa que fazer outra adaptação lucrativa para a vida.(17)

É por isto que os homens de outras raças, tais como os braquicéfalos do Mediterrâneo e do centro da Europa,(dos quais somos, em grande parte, descendentes), mais ágeis, mais nervosos, entram em concorrência, com a vivacidade, a ductilidade, a imaginação, a percepção e o julgamento rápido e mais útil nas lutas intensas e os esforços instantâneos, fulgurantes, das inteligências e dos caracteres em nossa época.

A adaptação física e social é o grande modelador do homem.(18)

Nascida nas praias do Mediterrâneo, a civilização foi erigida sobre uma raça que ninguém assimilou ao homem do Norte: os Egípcios. Foi introduzida entre outros povos estranhos à sua linhagem: os Semitas. Floresceu e floresce entre os povos de origem mongólica, malásia e polinésica da China e do Japão. Entre as multidões que falam línguas de raízes arianas, não se poderia negar que a proporção dos descendentes das supostas raças nobres do Norte é hoje em dia mínima. Mestiços de todo tipo, eis a grande maioria das populações, na maior parte das nações modernas.

As pesquisas dos egiptólogos nos haviam já desvendado a existência de uma civilização anterior à helênica, rica em invenções, hábil nas construções da arte monumental, avançada nas artes plásticas, de uma profunda emoção religiosa, de uma nobre e delicada sensibilidade moral. Esta raça era uma raça castanha. As probabilidades de sua origem, asiática ou africana, excluem toda idéia de filiação com as raças do Norte e com as do centro da Europa; mas quando os enxadões dos operários de Schliemann e de Evans(19) exumaram as ruínas de Micenas e de Creta, descobrindo os palácios reais das civilizaçáes egéia e minoana, de uma idade bem anterior às invasões do Norte, obra evidente de povos de origem mediterrânea, a idéia da superioridade ariana ou teutônica caiu por terra diante da demonstração desta verdade: as fontes de nossa civilização brotaram de cérebros de homens do Mediterrâneo, quase seguramente do sul do Mediterrâneo.

Esta prova bastaria para anular a pretensão de superioridade da raça loura; mas, prosseguindo em seus estudos, a ciência chegou a constatar que, ao lado das diversidades físicas de grandeza e forma aparentes, verificadas na estrutura humana, nada autoriza a afirmação de uma desigualdade na constituição cerebral, em seu desenvolvimento, em seu poder de aperfeiçoamento. A relação entre os caracteres físicos e os caracteres psíquicos não foi jamais estabelecida de uma maneira definitiva, incontestável. Pesquisas recentes do mais ilustre dos antropólogos americanos, Boas,(20) provaram que os caracteres somáticos de uma raça modificam-se sensivelmente de uma geração para outra, com o deslocamento para um outro meio. São caracteres que as observações antropométricas haviam chegado a classificar rigorosamente. Provou, quanto a estes caracteres, ligados habitualmente à capacidade psíquica do homem, que o tipo de raça não é um tipo definitivo, irrevogavelmente fixado. A própria cor, quase irredutível entre os extremos, cede à ação do ambiente, mas a cor não foi relacionada com os caracteres psíquicos.

Ratzel, com sua alta autoridade em matéria de etnografia, já havia escrito esta frase: “A raça, como tal, não tem nada a ver com a civilização”. Seria insensato negar que em nosso tempo a mais alta civilização esteve nas mãos das raças brancas ou caucásicas; mas é um fato igualmente importante, de outro lado, que, por milhares de anos, em todos os movimentos civilizadores, assinalou-se uma tendência para elevar todas as raças à altura de seus encargos e deveres, sendo realizada, desta forma, a grande concepção da Humanidade, concepção proclamada como atributo distintivo da sociedade moderna, mas cuja realização é ainda contestada. Lancemos, entretanto, nosso olhar para além do estreito e breve curso dos acontecimentos que chamamos arrogantemente de História da Terra, e deveremos reconhecer que membros de todas as raças trouxeram contribuições à história que se desenvolve deste tempo à história dos tempos proto-históricos e pré-históricos.[21]

Mas a ciência reservou ainda ao princípio da igualdade da espécie humana uma vitória ainda mais notável.

A obra poderosa de Gobineau, o advogado genial das pretensões do nobre sangue ariano, as visões de Nietzsche do passado helênico, sonhos de seu gênio romântico, exaltado pela admiração da grandeza teatral desta época forte e agitada que a poesia tornou heróica, e que contemplava, com sua imaginação épica e através de sua cultura filológica, sem nem um sentido de realidade histórica, era bastante para a dialética, mas não fornecia à teoria o fundamento de um monumento durável.

Esta base foi encontrada por alguns discípulos de Darwin. Exagerando o fator da luta pela vida na seleção natural, o grande filósofo naturalista havia atenuado a eficácia deste fator, na seleção social; e, lógico com sua concepção do transformismo, admitiu a transmissão hereditária dos caracteres adquiridos, formados no indivíduo pela luta pela vida, inicialmente, pelos fatores acessórios da adaptação, da seleção sexual, etc., depois, de modo a realizar, transmitida pela hereditariedade, a sobrevivência dos mais aptos e a fixar e aperfeiçoar a espécie, até que novos fatores viessem a operar a caracterização de novas espécies.

A esta teoria dão adesão seu amigo, o autor simultâneo do transformismo e da seleção natural, A.R.Wallace, Bates, Bateson, todos os representantes ingleses da ortodoxia darwinista. A doutrina da variação das espécies por saltos ou por mutações de H. de Vries, a da variação e da hereditariedade de Mendel, o lamarckismo e todos os seus ramos, as teorias das partículas proto-plasmáticas de Spencer e dos aderentes, doutrinas de Maegeli e de Roux não eram contrárias à idéia fundamental da perfectibilidade dos caracteres das raças, transmitidos de geração em geração.

Viu-se então produzir-se na ciência um movimento significativo. O professor Auguste Weissmann, sábio alemão, antigo médico do arquiduque austríaco, professor em Friburgo, dedicado, durante os primeiros anos de sua vida a estudos de Biologia e mais tarde de Zoologia, surpreendeu de repente o mundo científico com sua teoria do plasma germinal, pela qual, constatando a separação e a independência do plasma germinal e do plasma somático nos organismos, chegou à conclusão da distinção irredutível das raças e da intransmissibilidade dos caracteres individuais.

Pouco depois, à mesma época, um outro sábio alemão, o antropologista O. Ammon, empreendia seus estudos comparativos sobre as raças e concluía pela apologia da raça teutônica, pregando o direito de império do novo povo eleito dos deuses, fundado na superioridade mental e moral.

Combinando suas idéias antropológicas com a doutrina de Weissmann, funda nestas teorias uma doutrina de conclusões sociais práticas em que se estabelece em princípios científicos a superioridade das aristocracias hereditárias, a força e a energia dos Germanos, seu direito de submeter as raças e as nacionalidades inferiores, a necessidade de desenvolver o poder colonial da Alemanha, de aumentar sua força naval, de fazer aumentar seu comércio e sua colonização nos países novos, mantendo e desenvolvendo relações comerciais, por intermédio dos alemães estabelecidos no estrangeiro e mantendo sua fidelidade à Pátria, à lei, aos costumes nacionais, ao Kaiser.

Este esforço científico, que levou à criação de duas ciências, colunas do imperialismo alemão, é contemporâneo dos últimos tempos do governo de Bismarck, à época da organização legislativa, financeira e social da Alemanha, das lutas do “Kulturkampf”(22), de um lado, e das primeiras leis contra os socialistas, de outro; das primeiras dificuldades e vacilações do novo Império no funcionamento prático de suas instituições, de seu regime fiscal, das lutas econômicas entre a indústria, o comércio e a agricultura, dos começos de sua política colonial e da organização de sua força naval. Para apoiar a “política prática”, a política da “mão de aço”, eis fundada a ciência prática, bíblia das idéias que deveriam inflar as velas da “Deutschland über alles”(23) em sua viagem de triunfo através dos mares e continentes.

Se as teorias de Ammon não tiveram âxito, a doutrina de Weissmann, após todas as concessões e todos os sacrifícios que seu autor lhe impôs para conciliá-la com as objeções da ciência, permanece definitivamente condenada. As pesquisas recentes provaram que não há diferença substancial entre o plasma germinal e o plasma somático e que não é possível explicar a evolução orgânica sem admitir a transmissão dos caracteres adquiridos.[24]

A doutrina da desigualdade das raças perdeu seus pontos de apoio em todas as regiões da ciência.

A raça é o produto do meio físico em um estado determinado da Terra. É o meio que lhe determina os caracteres. Nenhum agrupamento humano trouxe predisposição espontânea, ganhou qualquer superioridade, ou caiu em inferioridade, senão por força da modelação do indivíduo e das gerações pelo meio em que sofrem o processo da formação orgânica e mental.

Na comparação do valor relativo das raças é preciso considerar o criterium de avaliação e idade da civilização. É um fato verificado que, pelos traços naturais do sentimento, do caráter e, às vezes, da inteligência, eliminando-se os hábitos de disciplina e de cultura, as raças asiáticas e africanas não demonstram inferioridade em relação às européias. O exemplo do Japão é notável. A civilização chinesa é sobretudo feita de sentimento, de amor ao próximo, de espírito de solidariedade. A tese de uma constância na estrutura do cérebro humano e na extensão de suas funções, desde a época pré-histórica das descobertas dos primeiros instrumentos úteis à vida, foi sustentada com brilho.[25] Desde então, o exercício desenvolveu as aptidões, sem aumentar a capacidade. Sem ir até esta conclusão, talvez um pouco contrária à lei da evolução, pode-se parar na idéia média de que a inferioridade, compensada pela adaptação, pode ser anulada pelos meios de educação de nosso tempo.

A fase histórica da civilização egípcia compreende apenas o tempo de sua decadência. A única das nações civilizadas da antiguidade longínqua que sobreviveu às vagas de migrações e de invasões, é uma das raças mais débeis entre as que foram incorporadas à civilização. O contato da civilização começa, entretanto, a acordar estes espíritos e estes caracteres adormecidos por tanto tempo em uma hipnose servil ou talvez em um sono reparador.

Etíopes, núbios, e líbios foram assimilados à civilização egípcia; cooperaram com os fenícios e os gregos, e mais tarde com os árabes, ao lado dos bárberes, à civilização mediterrânea.

Para admitir a incapacidade das raças tidas por inferiores seria preciso admitir que os meios tropicais e equatoriais não poderiam produzir seres aptos à civilização; mas esta suposição, que os fatos refutam por todos os cantos, é desmentida pelo aperfeiçoamento do tipo africano em outras regiões: nos Estados Unidos e no Brasil, entre outras.

Selvagens ou decadentes, os representantes destas raças não são nem degenerados nem incapazes.

A experiência da capacidade das raças, em todos os lugares em que são colocadas nas mesmas condições de civilização, como no Brasil(26), não é contrária nem aos descendentes do negro africano nem aos indígenas. Colocados em uma posição social de evidente inferioridade, mostram uns e outros uma capacidade de trabalho e qualidades de sociabilidade que os fazem freqüentemente vencer os obstáculos dos preconceitos, do desprezo e da solidariedade dos brancos. Estes filhos de canibais chegam a se tornar civilizados de uma alta moralidade e de um espírito refinado. Que dizer da sorte desta poderosa força de hereditariedade, da sentença de condenação devida ao estigma de um ignóbil plasma germinal, incuravelmente envenenado pela “tara” étnica?

De outro lado, raças humanas prosperam ou degeneram nos meios tropicais e equatoriais, segundo as condições do meio físico e do meio social. É um fato verificado, por longa experiência.

A raça pois não poderia dar aval às nações que pretendessem exercer no mundo, motu proprio, o jus imperii.

A civilização, expressão de um estado de desenvolvimento cujo conjunto não responde a nenhum “criterium” e cujos elementos não são medidos por unidades conhecidas e definidas, não encontra nos meios de que dispõe e nos membros que a compõem uma força ou uma autoridade competente para esta obra de dirigir e de controlar os problemas complexos de nossos dias.

Não há força, de título nem de direito tão legítimo nem tão poderosa, para esta tarefa. O direito e a força, a força e a moralidade, a cultura e a força, não são exclusivas de uma ou de um pequeno número de potências, não são sequer coexistentes e proporcionais. A confusão da força com o direito, da moralidade e a força, argumento habitual do militarismo, não existe, de fato, em nenhuma sociedade contemporânea; é absolutamente contrária ao testemunho da História e encontra uma séria objeção nos costumes do presente. Os jornais, a literatura e a observação dos melhores espíritos oferecem para tanto documentos instrutivos e evidentes.

Não há uma moralidade da força e um direito da força. Falar deles é jogar com as palavras. Indeciso e débil frente aos fatos e às exigências da natureza, este conjunto de princípios convencionais que formam o Código das leis morais responde a uma inclinação que é até mesmo oposta à força e que traz a marca de um profundo sentimento de amor e de ajuda mútua. Mais vacilante e mais controverso, ainda, o Direito é, entretanto, uma formação secular de princípios empíricos reguladores das relações sociais(26), sobre a competência da conciliação. O juiz é a paz em ação; e as melhores obras jurídicas do mundo, como a “Common Law”(27) e o Direito Romano, não são outra coisa que o lento trabalho da necessidade de ordem nos conflitos dos apetites e das paixões.

As nações, associações políticas, não podem isolar entre suas fronteiras, com suas rivalidades, suas desconfianças e suas ameaças, resolver os problemas da sociedade humana e de cada um de seus agrupamentos, dependentes de forças e de causas gerais; não podem conter e conciliar, nos moldes de suas políticas isoladas e de inspirações opostas, vidas e negócios que se estendem e se entremeiam, em toda a extensão do globo.(28)

Como para certos interesses especiais: o telégrafo, os correios, a navegação, as estradas de ferro, todas as relações de direito e de economia tendem a reclamar acordos. O interesse das populações, apertadas na área estreita dos territórios nacionais, a necessidade de prover à vida e ao porvir de todos e de explorar a Terra em benefício da totalidade de seus habitantes; de regular a conservação de seus climas e de suas riquezas; de medir sua exploração no interesse das gerações futuras(29); de assegurar o progresso das nacionalidades, dos agrupamentos e dos indivíduos colocados em posição de inferioridade frente aos critérios e os modelos contemporâneos de seleção criados pela força de uma injusta distribuição dos meios de concorrência e de obstáculos colocados a seus sucessos pelas forças morais, sociais e econômicas constituídas segundo o espírito de hierarquia, por privilégios e monopólios de todos os tipos; de conservar e estimular a civilização; de resolver, por soluções verdadeiramente humanas, os problemas de adaptação, de educação e de hereditariedade; tudo isto impõe à Humanidade concentrar-se e conciliar-se, para encetar a obra sã de substituir por dias de saúde e alegria os dias de sangue e de luto que se anunciam para o porvir.

Para que a civilização cumpra seus deveres e exerça legitimamente seus direitos; para que faça a política universal da conservação de suas obras e da continuação do progresso, livre dos desvarios e dos perigos da paixão e da ambição particularista(30), é preciso estabelecer o repouso, a ordem, a estabilidade: é preciso dar solução, pela propriedade, pela produção, pelo direito e pelo dever do trabalho, às crises da fome e da miséria, que excitam as paixões revolucionárias: é preciso fundar a paz sobre o equilíbrio dos homens, em lugar de esperar o equilíbrio, instável e desigual, das nações.

A guarda e o controle dos interesses que ultrapassam as fronteiras nacionais, superiores aos fins das nacionalidades, pedem órgãos, um centro de ação. Este órgão não pode ser um simples corpo de justiça; é preciso que seja um instrumento de alta política(31) e de alta previdência. Para assegurar o repouso sonhado por Dante, é preciso estabelecer o poder cosmopolita de Kant.

Este poder, do qual as agências internacionais, os tratados de comércio e de arbitragem, a Corte de Apreensões e a Corte Permanente de Arbitragem são esboços rudimentares, será o coroamento político desta vitalidade mundial, manifestada em todos os fatos da sociedade contemporânea: os fenômenos de associação moral, intelectual e social, de crédito e de banco, de empresa comercial, de transportes, etc.; e de que o automobilismo e a aeroestação, como instrumentos materiais mais visíveis, dão a imagem sugestiva.


 

O PATRIOTISMO

 

O sentimento patriótico é para muitos um obstáculo à manutenção da paz. É um pré-juízo. E o absurdo deste pré-juízo será ressaltado pela análise deste sentimento, tal como se apresenta nas sociedades contemporâneas.

Uma interessante revista francesa[1] fez, há cerca de três anos, uma pesquisa entre escritores e políticos sobre esta tese: ”a idéia de patriotismo tende a evoluir”?

A questão continha em si mesma sua resposta. Tudo evolui no universo: a matéria, os seres e as idéias...

Na verdade, o que a revista parisiense desejava saber era justamente o contrário do que perguntava, isto é, se o patriotismo tende a se dissolver, se é um sentimento condenado a ser suprimido por força dos elementos que levam o homem a estender sua solidariedade com seu semelhante para além das fronteiras políticas.

Expressa assim, nesta forma concisa, a questão continha ainda outras confusões.

Qualquer espírito, mesmo pouco vivo e fértil, teceria sobre este assunto, com tiradas filosóficas e um pouco de literatura, discursos mais ou menos sugestivos, cheios de imagens, mais ou menos brilhantes. Já passou o tempo em que tais divagações sobre fórmulas e palavras impunham autoridade; qualquer inteligência mediocremente esclarecida exige hoje mais justeza e nitidez na representação das coisas, das idéias e dos sentimentos.

Antes de se perguntar sobre a evolução do patriotismo, é preciso entender o que é a Pátria. A noção de Pátria pode representar uma realidade objetiva: o país com seu povo, ou sua imagem subjetiva(2). As duas idéias, enfim, são susceptíveis, mesmo em seu sentido vulgar, de mais de uma interpretação.

Se se pudesse dar a um selvagem africano uma noção aproximada da idéia que ligamos à palavra Pátria, pedindo-lhe o que pensa a respeito, é quase seguro que nos daria sua definição reportando-se ao totem de sua tribo, o ser que, segundo os preconceitos da religião elementar dos povos primitivos, representa o laço comum da tribo. Um bárbaro, um pouco mais avançado na civilização, ligaria a palavra à comunidade presidida pelo deus que a conduz, apoiada e protegida nas viagens de migração, e que lhe dá a terra que habita. Para um romano, ou para um grego, a pátria era a terra demarcada, tal qual a área de Cartago medida pelo couro de Dido(3), sob o reflexo da auréola dos deuses de seu povo e santificada pela lembrança dos antigos.

Do totem à divindade, a veneração pelo ancestral exprimia realmente o laço que ligava os homens entre si e à terra habitada. O totem, o ser que o homem divinizou por uma espécie de veneração, e, para os povos de uma idade mais recente, o herói, o semideus, o deus, foi, sempre, a imagem de um primeiro ser, forte como nenhum outro, que, por seu vigor, por sua graça, pela superioridade conferida por um gênio das florestas, havia ganho o poder supremo sobre uma raça inferior, fundado um povo de eleitos ou presidido às origens da associação.

A religião, reunindo todas as concepções intelectuais do homem, como hoje em dia a filosofia, dominou a idéia de Pátria, associando-a à origem, à ascendência do povo. O povo, sendo uma grande família rústica, em um meio desconhecido, cercada de inimigos, tinha sempre os olhos fixados no passado em que, para além da névoa das lendas, brilhava o sol protetor que a havia guiado.

Com a ambição de religião universal, no cristianismo, a noção de Pátria ligou-se à idéia religiosa; e, submetida com as outras idéias da antiguidade, à forja da idade média, fixou-se, com as noções modernas, em uma abstração de duas faces: em uma, a marca intelectual do espírito grego e romano gravou a expressão do laço afetivo entre o homem e o país natal; a pátria era o lar de um povo; na outra, os hábitos militares mantiveram a noção de hostilidade contra os outros povos, o que era a forma material do sentimento dos antigos. A pátria é, para os povos modernos, o país da família e do trabalho e um acampamento militar, suas fronteiras sendo, a uma só vez, a muralha da grande propriedade comum e um cerceamento. As duas noções, fundidas no espírito popular, traduzem-se por um obscuro sentimento de carinho pelo país natal, de encanto pela paisagem da infância, dos dias de trabalho, de luto ou de alegria, de veneração pela lembrança dos antepassados, de amizade pelos vizinhos, e, ao mesmo tempo, de zelo pelo país e por seus bens, de preocupação pela vida, pela sorte e pelo futuro pessoal e dos seus, ameaçados pelo inimigo; de terror e de ódio, enfim.

Mas o primeiro destes laços, o de relação afetiva, estética, com o solo natal, ou fundada no interesse – o sentimento do burguês das cidades e do camponês – era um laço muito frágil para a vida moral destas sociedades, agitadas pelas terríveis convulsões das lutas feudais e dos combates entre as grandes monarquias e os impérios.

A forma do patriotismo belicoso, o patriotismo da bandeira e da questão de honra, agressivo, romanesco e dramático, era mais próprio para apaixonar as almas e para influir sobre os espíritos do que este outro sentimento, fraternal e pacífico, em uma época em que as imaginações se excitavam nos choques dos impulsos bárbaros, nas lutas de conquista. Cavaleiros e bardos clarinavam por todas as camadas da sociedade o barulho de seus feitos de armas e de suas aventuras de amor em novelas e “canções de gesta”, fazendo crer às almas ingênuas destes tempos que a vida e a atividade social, a inspiração e o objetivo da natureza do homem encontravam-se nestas explosões violentas em que se jogava a vida, ao choque das espadas e dos escudos, pela mão de uma castelã, ou pela conquista de um império.

A política e a literatura, traduzindo em fórmulas e em símbolos esta concepção de patriotismo, fixaram-na e propagaram-na; e a noção intelectual, com este poder dominador inerente às idéias indiscutidas que a imprensa espalha e faz circular(4), ganhou uma força dogmática sobre as inteligências.

Do mesmo modo que a renascença da cultura clássica introduziu na sociedade da idade média a fórmula dos Gregos e dos Romanos, as letras, a história da cavalaria e o romance feudal transmitiram às gerações sucessivas o tipo do patriotismo militar, brilhante como o metal dos escudos e vibrante como o som da trompa.

As pessoas de direito, chanceleres ou confessores, conselheiros intelectuais dos grandes chefes, faziam as leis, inspirados neste princípio; políticos e diplomatas faziam, nas cortes, as combinações de interesses à sombra da divindade guerreira que parecia reunir o caráter e a alma dos povos. Às vezes, de uma alma de poeta e de filósofo, partia de um retiro ignorado, um vão olhar sobre o futuro, um traço de luz humana e elevada: a ciência dos “patrícios” apressava-se a apagar a centelha e a arte cortesã substituía a luz da verdade, que começava a manifestar-se, pela chama resplandecente da paixão e da violência.

Com o desenlace deste drama colossal, entre nações, na aventura napoleônica, a corrente da evolução militarista precipitou-se no declive que a devia espalhar e dispersar, mas o livro, esta arma que não se destrói facilmente e que não se enferruja, perpetuou, com o classicismo nas idéias e nas formas de arte, as noções(5) jurídicas, sociais, políticas e literárias do espírito militar; e ainda hoje, quando em algum rincão do mundo, entre as populações estranhas às lutas políticas, sem nenhuma lembrança de guerra, a imagem da Pátria é invocada, emana dos lábios dos oradores e da pena dos jornalistas com a armadura de Joana D’Arc.

Estas concepções tinham, entretanto, raiz na solidariedade primitiva das nações de unidade étnica.

Não há uma só nacionalidade moderna que seja formada pelos mesmos elementos e caracteres homogêneos que reuniam os povos antigamente, disciplinados, em perfeita coesão, sob a dominação poderosa das primeiras monarquias medievais.(6)

As sociedades políticas não obedecem mais aos laços clássicos de unidade: a identidade de raça, de religião, de língua, de hábitos, de leis, não é mais o tecido com o qual se faz a bandeira das nações modernas. Entre os mais antigos, sob uma aparente unidade, diversas raças confundiram-se, as religiões alternaram-se ou atenuaram-se, os costumes se transformaram: há federações étnicas, jurídicas, de línguas, de religiões e de costumes. Em todas, os interesses econômicos passaram a influir com forças de expansão, acalmando-se para além das fronteiras.

As idéias de sociedade política, de nação e de estado acabaram por fazer brilhar a forma das definições jurídicas; e os jurisconsultos fazem prodígios de esforços para encontrar fórmulas que correspondam à forma dada pelos novos agrupamentos de povos sobre seus territórios, nas classificações doutrinárias. Estas idéias ligam-se à idéia moral e política da Pátria.(7)

Não existe um só país formado por uma raça ou mesmo por um tipo nacional homogêneo.

Nas nacionalidades do velho continente, elementos adventícios, reunidos após guerras e tratados, colocaram, lado a lado, em cada território, agrupamentos distintos. A França, a Alemanha e a Itália estão semeadas de populações estranhas ao seu tipo primitivo; todos os outros países oferecem diferenças ainda mais marcantes; e, deixando de lado certos povos asiáticos, entre os quais se encontraria talvez o caso excepcional de nossa tese, o novo continente é um grande laboratório onde todos os elementos e caracteres de raça, de religião, de costumes e de língua reencontram-se aproximados sob a proteção da mesma lei e da mesma autoridade, resistindo à fusão.

No Brasil, o descendente do primeiro colonizador português, o do africano, do indígena, do italiano, do alemão, do eslavo, ao lado do colono de hoje, não encontrariam senão dificilmente no conjunto dos elementos da noção clássica de Pátria e mesmo no maior número entre eles a raiz de um sentimento sério e profundo; e o Brasil é um país de colonização lenta e limitada.(8)

Nos Estados Unidos, o herdeiro de um dos primeiros ocupantes da Virgínia é o compatriota do alemão recentemente chegado e que não fala sequer a língua inglesa. Para o primeiro, a pátria é o país do olmo de Washington, a paisagem da vasta e verdejante campina em que o general da Independência fez suas retiradas triunfais, o abrigo de Mount Vernon que o viu nascer e de onde lançou, sobre os destinos da nação, a benção profética do “Farwell Adress”.(9) Para o outro, é o país escolhido para o abrigo de uma nova existência, livre de decepções materiais ou morais e talvez de perseguições políticas, país cuja perspectiva surgiu em sua alma, magoada pelas dores passadas, mas encorajada pela esperança, sonhando com a paz, a ordem e a prosperidade, como a terra prometida para o repouso de seus últimos dias e para o porvir dos filhos.

Mesmo entre os descendentes dos primeiros colonizadores, a relação entre o homem e o país não é a mesma que entre nossos antepassados; o número dos “desenraizados” multiplica-se por toda parte. Mudando de província, de paisagem e de meio, o homem deixa atrás de si os laços de parentesco e de afeição, esquece seus hábitos, adquire novos prazeres, afinidades e maneiras novas. Este fato é comum e mais marcante nos paises novos, democráticos, sem tradições e sem preconceitos hereditários.(10)

Os elementos concretos e os elementos subjetivos da antiga noção de Pátria descompuseram-se; uma nova noção começa a formar-se com alguns elementos antigos e outros elementos novos, não ainda para fixar-se: a evolução é contrária à fixidez; mas para dirigir, durante dezenas e centenas de anos, o sentimento de relação entre o homem, o meio e a sociedade nacional.

Na maioria dos indivíduos, o sentimento patriótico é feito de traços e de frações dos mesmos componentes antigos, mas a proporção destes componentes é completamente outra; e o que deve caracterizar a natureza do patriotismo moderno, é a inversão de seu móbil, o deslocamento da bússola que o dirige.

O patriotismo de outros tempos tinha sua raiz no passado e mantinha a alma agressivamente voltada contra o estrangeiro; o país era a região sagrada dos antepassados, o cenário das lendas divinas, onde os túmulos e os monumentos mantinham os olhos no passado. Os primeiros homens, divinizados, tornam-se a sabedoria perfeita e absoluta cujos conselhos eram pedidos como princípios diretores da existência: o Deus Criador e Revelador de todas as religiões tinha relações com os fundadores da nação e lhes transmitia as leis imortais que os deveriam guiar, bem como à sua posteridade. De outro lado, o estrangeiro era o inimigo de Deus, da verdade, da lei e, portanto, da Pátria.

Um dos efeitos mais notáveis das religiões primitivas nos destinos do homem foi o escravizamento de seu julgamento à lei do passado.(11) Há um erro na afirmativa vulgar de que a luta pela vida foi a origem da hostilidade entre os homens. Se fosse possível admitir um homem primitivo, agindo com calma e serenidade sobre o meio material para obter a subsistência e o conforto, este homem encontraria nas próprias leis do equilíbrio e da compensação da física terrestre e da ação social as soluções de suas lutas;(12) mas o terror do desconhecido e o medo do imprevisto, que o assaltavam, conduziram-no para o sobrenatural, de um lado, para a guerra, de outro.

Desde que criou um legislador soberano e absoluto que lhe ordenava leis imutáveis, ele tornou-se escravo do passado e acostumou-se a buscar na palavra revelada de Deus e na dos antigos a lição para seus atos; a história, espírito de classicismo, a escolástica, a força da autoridade, base ainda de algumas das ditas ciências, consolidaram este hábito; a sabedoria dos antigos era o oráculo de nossos pais.(13) O julgamento humano enganou-se ao estimar o valor do passado. Em lugar de procurar em seus fatos e acontecimentos os dados e os elementos das leis sociais, fez destes mesmos fatos exemplos, modelos e leis da conduta. O homem imitou e copiou o passado, em lugar de estudar-lhe os fenômenos e de analisar-lhe os caracteres, para deles deduzir depois as regras da vida.

Criando estas leis pela síntese e submetendo-as ao controle da representação ideal do desenvolvimento de nossa natureza e da natureza da sociedade no futuro, teria um guia, baseado em uma observação superior às contingências que envolvem os fatos particulares. Estas leis formariam uma espécie de código científico da finalidade e do destino do homem; resumir-se-iam em um ideal realizável de progresso.(14)

O homem preferiu, ao contrário, voltar as costas ao destino de sua existência e à estrela polar de seu espírito: a concepção ideal do porvir, deduzida da síntese das observações do passado, do estudo da Terra e de sua natureza animal e social.

Os costumes, as leis, as tradições e os sentimentos da aristocracia deram à tendência retrospectiva do sentimento de relação social com o solo um outro fundamento: o da nobreza de sangue, apoiando-o nas glórias do passado e enaltecendo-o em razão da antiguidade. Os fastos da nobreza, muito influentes na imaginação popular, fortificaram, pela corrente literária, a crença na superioridade do passado, de seus homens e de suas instituições.

A pátria, lar dos ancestrais, “terra pátria”, é a imagem retrospectiva do amor pelo país natal, como os outros conceitos baseados na tradição, na obediência ao costume, no exemplo e na imitação, são movimentos retrocessivos do espírito, aplicados a todas as expansões da vida.

A veneração é, sem dúvida, uma das mais belas fibras morais da alma humana; não é, entretanto, um agente psíquico da vida.

A luta industrial, sucedendo a luta guerreira, com todos seus efeitos práticos: a supressão dos privilégios de casta; a reaproximação dos grupos sociais; interessaram o homem mais intimamente pela sua própria sorte, pela sua conservação e a de sua espécie, criando outros laços de solidariedade com a terra, suas riquezas, seus produtos e seus instrumentos.

O olhar humano, liberto da névoa que o obscurecia, começa a ver mais claro o mundo e a vida; o homem ganha a consciência nítida de seus interesses e de seus destinos; compreende que sua sorte depende desta espécie de segunda visão que faz do problema do amanhã o objetivo constante de seus atos. O espírito de economia desenvolve-se bem como a ambição de força e de capital, a previdência, a faculdade de previsão, o estudo das probabilidades de sucesso e de sorte, a perseverança: o homem volta seu olhar para o futuro.(15)

Com o desenvolvimento da ambição, o zelo pela sorte da família fortifica-se: o sentimento humano, dividido até então por todo tipo de crenças, torna-se objetivo e concentra-se nas afeições reais; o amor absorve a fé; a divindade verifica-se nas formas diversas do ideal, que para as almas mais simples resume-se ao problema da sorte dos filhos.

À sedução das aventuras, sucede a ambição da segurança, da tranqüilidade, de paz, única base do trabalho contínuo e previdente.

O ambiente dos costumes e das idéias começa a se saturar de um espírito de harmonia, de comércio, de indústria, de solidariedade.

No local onde nos instalamos, se não contemplamos sempre a árvore secular que lembra a memória paterna, olhamos, com mais ternura, os brotos que seguirão a vida dos descendentes; a emoção estética da pátria é representada por uma imagem primaveril, em lugar da imagem outonal que atraía o olhar de nossos pais.

Costumes mais suaves e mais humanos, leis mais liberais e direitos mais seguros, garantias mais sólidas para o desenvolvimento moral e econômico, criam uma atmosfera simpática, iluminada pela impressão otimista da esperança.

Da noite de terror, que envolvia o berço do homem primitivo, os tempos marcharam até nossos dias, até a aurora em que acordamos. O passado foi conduzido pelo pânico para o mistério sobrenatural e para a luta à mão armada; o presente é conduzido pela esperança para as realidades tranqüilas da vida. É que o homem começou a conhecer a Terra, a descobrir seus segredos, a aprender como a tratar, para colher-lhe os frutos, sem a destruir.(16)

Para a maioria dos habitantes de um país, as questões externas, os armamentos, as possibilidades de guerra, os problemas militares, são assuntos quase estranhos, e sempre antipáticos, às preocupações da vida; e, se não fossem os jornais que trazem toda manhã, ou de tempo em tempo, as novidades da agitação política; se não houvesse letrados, inclinados a estas questões porque as supõem superiores ao entendimento das inteligências comuns, estes assuntos não perturbariam sequer o repouso das pessoas que trabalham.(17)

A pátria moderna tem seu ambiente físico e sua imagem estática na paisagem da habitação e das horas de repouso; seu ambiente social na família, no círculo dos amigos, dos clientes, das vastas relações econômicas e intelectuais de nossa época. A sensação de segurança e de proteção legal tranqüiliza e encoraja os espíritos. No sentimento natal, que liga a maioria dos homens às afeições do passado, o zelo, predominante, pela sorte dos filhos, enxerta-se a atração mais intensa, mais animada, mais encorajadora, do interesse pela conservação e pelo progresso da terra dos descendentes.

Para o homem contemporâneo, a pátria dos filhos sucedeu a pátria dos pais, de nossos ancestrais. E se sua alma, reservando para o passado o culto da veneração, voltou-se para o futuro, e dirigiu seus passos considerando seu destino e a sorte da posteridade, a natureza do sentimento patriótico foi desta maneira modificado.

O laço que unia na antiguidade os naturais de um país era mais estreito, mas não possuía a marca moral que tem em nossos dias. A religião, particular ao povo, representava o fim do homem ligado ao de seu Deus em uma solidariedade estreita, no pequeno rincão do país natal, contra o Deus e os homens do país vizinho. O interesse pela defesa e pela posse do país os mantinha nesta disciplina, sob a ameaça opressiva da hostilidade estrangeira.

A posse tranqüila do país(18), a influência dos costumes industriais sucedem aos costumes militares, o regime da autoridade legal(19) substituindo o arbítrio dos chefes guerreiros, a consciência da segurança e da proteção jurídica espalharam pelo territórios dos países uma rede de solidariedade mais forte e mais íntima porque une os indivíduos entre si em lugar de os submeter a um poder ou a um símbolo superior.

Os elementos da raça, da religião, dos costumes e da língua, tendo sido atenuados, as comunidades nacionais perderam o caráter corporativo; os elementos morais, sociais e econômicos, tendo sido desenvolvidos, a forma de associação fortificou-se.

A pátria tornou-se assim o habitat de uma sociedade baseada no entendimento entre os indivíduos no interesse da conservação e da prosperidade da geração presente e da sorte da posteridade, governada pela consciência de um mesmo fim e de uma proteção legal efetiva. O patriotismo é a expressão da solidariedade nacional.(20)

A sociedade e o território são os elementos estáticos desta unidade; o interesse comum, moral ou material, seu agente dinâmico, para os indivíduos de uma mesma época e projetando-se para o futuro. A confiança na proteção da lei constitui o invólucro abstrato desta massa de inteligências e vontades.

É interessante seguir, nem que seja um pouco, os sinais de decadência dos elementos clássicos da idéia de pátria. O que, entre todos, tornou-se o mais fraco é o da raça.

Tomemos, por exemplo, o Japão, e, nos dois ramos principais de seus habitantes: o ramo continental e o ramo oceânico, encontraremos sinais variados de raças distintas: malásios, polinésios, chineses, manchus, mongóis, etc. O exemplo é talvez o mais típico, graças à unidade aparente do povo japonês.

A idéia de nacionalidade, em seu sentido clássico, é, em geral, a que se busca representar pela palavra “raça”(21)

Se em tempos em que as migrações eram mais difíceis e mais lentas, foi impossível preservar, em um território isolado como o do Japão, uma raça única, é fácil compreender a variedade que se produziu nos outros países, em que as correntes migratórias precipitaram-se violenta e freqüentemente. A pretendida unidade da raça indo-européia é apenas uma ficção, resultante da supremacia política dos “arianos” sobre as populações primitivas dos países conquistados;(22) e, ainda, após a invasão dos arianos, não é difícil encontrar, em quase todos os países europeus, outros elementos migratórios: os turanianos, mongóis, bárberes, semitas de várias origens, etc.

É uma verdadeira utopia sonhar em formar raças nacionais, em nossa época, nos países novos.(23)

O perfeito conhecimento do globo, de sua geografia física, política e econômica, o grande desenvolvimento dos meios de comunicação, de transporte e de comércio, a intensa expansão das iniciativas e das ambições, multiplicam e aumentam as migrações individuais e coletivas.

Uma outra concepção falsa do problema das novas nacionalidades é a que depreende seu desenvolvimento da introdução de imigrantes das raças européias, porque se atribui o insucesso dos descendentes dos habitantes primitivos, indígenas ou estrangeiros, a uma espécie de degeneração étnica. Esta observação parcial e contraditória não é verdadeira senão nas colônias oficiais, onde os novos imigrantes são acolhidos e localizados com privilégios e deferências excepcionais, enquanto permanecem as condições especiais que mantêm estas populações como um povo estranho ao meio, animado pelo ardor de colonos.(24)

Não se desejou ver, na prosperidade destes imigrantes, o entusiasmo natural dos novos exploradores, estimulados pela esperança e pela ambição e ajudados pelo governo. Os que se espalharam por todo o país obedecem igualmente ao impulso inicial deste espírito de aventura, que é um grande propulsor de iniciativas; mas as gerações que se sucedem aos colonos imigrados declinam sempre, até não mais mostrarem nenhuma superioridade, após o élan da ambição e as condições privilegiadas da colonização deixarem de agir.

Esta vantagem que têm sobre os nacionais não ultrapassa a vida de uma geração; mas a verdadeira causa da decadência de seus descendentes é a mesma da dos descendentes dos habitantes primitivos: a facilidade da vida, a ausência de um idêntico apoio do governo e, sobretudo, a educação que lhes foi dada por este ensino de pedantismo, de ociosidade e de fadiga que toma o lugar da educação nas escolas.(25)

As novas gerações esquecem depressa as lições de coragem e de trabalho, para aprenderem as flores de retórica e teorias inúteis, e para ambicionar as doçuras do parasitismo.

Em quase todos os lugares os costumes perderam uma grande parte de sua força, como elemento de coesão nacional, Enquanto nota-se a tendência universal para a uniformização de certos hábitos, apesar do interesse das pessoas e das condições locais, torna-se menos sensível a generalização, em cada país, dos antigos hábitos nacionais(26). Com a invasão dos hábitos mundiais que se generalizam e a manutenção de alguns hábitos locais, são os hábitos nacionais que se desvanecem.

A língua, não sendo sempre uma única, como, por exemplo, na Suíça, não parece tender para a unidade.

A religião, ou, para dizer melhor, as religiões são um elemento eclipsado como fator político, mas suscetível de ser retomado. Sendo o mais absorvente de todos os móbeis da consciência moral, desenvolvem-se com energia e tendem a formar uma malha fechada de solidariedades.

Uma ligeira análise do valor prático do sentimento religioso na vida e na conduta dos povos contemporâneos, prova que, enquanto no curso normal da vida social este sentimento exerce uma grande influência, há uma grande contradição entre esta influência e a situação dos crentes nas ocorrências mais graves da vida das sociedades.

Impotentes para realizar praticamente as promessas e as esperanças de sua Moral e de sua Filosofia, as religiões, crendo-se universais, manifestam a extrema debilidade de sua força na hostilidade de pessoas da mesma crença mas que pertencem a diferentes nacionalidades. Católicos batem-se contra católicos, protestantes contra protestantes, provando assim que a simples fraternidade entre fiéis de mesmo credo que o laço religioso deveria realizar, a fraternidade geral parecendo impossível a muitos crentes, não resiste, na prática, a motivos de natureza material.

No seio do mesmo povo, nas guerras civis, católicos e protestantes repartem-se entre os partidos combatentes e massacram-se sem darem atenção à fé.

A religião não é, entretanto, na prática, nem um laço de fraternidade entre os homens, nem sequer uma linha de divisão entre as nações e os grupos sociais: se não une universalmente os crentes, não os separa tampouco, em cada país, dos adeptos de outros credos.

Seu destino é formar um simples laço espiritual entre os indivíduos. A indiferença pela fé nos campos de batalha e nas lutas políticas internas, está portanto na lógica de sua natureza, salvo a confissão, que dela resulta, da impotência de todas as religiões para realizar o ideal da fraternidade. Reunindo as consciências sob os princípios da Fé, da Filosofia e da Moral, as religiões podem exercer sobre as sociedades uma salutar ação coesiva se se dedicam a dirigir os crentes na prática destes princípios na vida social, sem fazer deles bandeiras sectárias.(27) Toda dificuldade do problema da influência religiosa reside neste ponto. Mantidos na elevada região das consciências, os ideais religiosos não ferem nem atacam a forma temporal das sociedades; podem funcionar, em geral e soberanamente, como fatores de controle e de exemplo. Assim que descem desta esfera para a da vida prática, o sentimento religioso perde a serenidade e a tolerância, as virtudes capitais da disciplina das consciências(28). Padres e fiéis passam a confundir os objetivos e os interesses da moral prática e política com as nobres sugestões da crença; e, já que estes interesses são mais imperiosos, a moral espiritual corrompe-se, a idéia religiosa é tragada, e a crença torna-se uma divisa sediciosa, sem seiva espiritual.

É a grande causa do enfraquecimento do laço religioso. Não podendo manter a celestial beatitude que inspirou os mártires e os apóstolos, a religião degradou-se em seita. A obra de proselitismo, contentando-se com um minimum de fé e de consciência moral em cada indivíduo, esforça-se para crescer no sentido do número dos fiéis; ao objetivo de fortificar a cultura espiritual, sucede o de aumentar as populações de fiéis; o culto torna-se o fim principal, senão único, das Igrejas, em prejuízo da Fé, da Moral, da Filosofia.

Todas as religiões podem ser tidas como boas, na medida que se contentem em ser puramente religiões. Em seus credos, vistos do mesmo horizonte dos fins morais, manifesta-se o sonho eterno da perfeição que o homem sempre procurou nas alturas, enquanto destruía seu planeta.

O perigo para os interesses práticos da sociedade não está nas lutas espirituais das religiões mas justamente em seu deslocamento para fora deste terreno.

Nas disputas religiosas, da mesma forma que nas lutas entre as nações e os partidos políticos e sociais, verifica-se sempre a mesma doença das coletividades: a impetuosidade passional das grandes massas.(29)

Cada indivíduo normal é, no domínio de sua consciência e de sua inteligência, uma unidade equilibrada pela razão: dois indivíduos que se reúnem, não podendo justapor seus julgamentos, já que não há duas naturezas iguais, criam uma regra convencional(30) de conduta, orientada para o fim comum; e, assim por diante, nas coletividades mais complexas. Se a direção é racional, concentra-se exclusivamente no objetivo da convenção entre as consciências, e a ação coletiva é útil. Mas a direção racional pede um pensamento diretivo superior, capaz de concentrar, em um poderoso foco, o sentimento e a idéia social, e uma sociedade cultivada, capaz de refletir o ideal; se estes elementos espirituais vêm a faltar, o centro diretor declina, a paixão aflora e a associação transforma-se em centro de fanáticos, de energúmenos, de revolucionários ou de reacionários. Com o apóstolo S. Pedro a religião foi uma sociedade de místicos e de mártires; com Gregório VII, uma sociedade política e diplomática militante. O mal das religiões é o mesmo de todas as coletividades: a paixão, a intolerância, a intransigência, a força impulsiva e irrefletida, que domina a razão.(31)

O perigo social não está nem no espírito religioso nem no espírito anti-religioso, nem mesmo nas lutas entre as duas forças; está no morbos passional da sociedade.

Não há religião nacional nem nação religiosa ou anti-religiosa. Idéia abstrata da sociedade política, a nação pode coexistir com todas as tendências religiosas ou fora delas, ter sua religião, ou não ter, evoluindo e desenvolvendo-se sob a inspiração única dos princípios políticos, sociais e econômicos que regulam a conduta da sociedade temporal. O homem associa-se para diversos fins e segundo objetivos diferentes, e da mesma forma que, em cada consciência, não se poderia conceber conflito entre os pensamentos que conduzem o indivíduo, para diferentes associações, as associações assim formadas devem reencontrar-se, no terreno prático, sem repugnância e sem disputa.

A sociedade política, e, portanto, a Pátria contemporânea, é composta por indivíduos de raças e de religiões diferentes; os costumes, tendendo a tomar formas universais, quanto aos aspectos superiores e gerais da vida, perdem os traços de caráter, enquanto que subsiste uma infinidade de variantes, devidas a influências locais, quanto aos atos comuns da vida(32). De todas as formas históricas, a língua apenas, salvo exceção, mantém-se.

Mas a língua não é um traço distintivo, sendo comum às vezes, a mais de um país; não é mais, em cada país, um elemento verdadeiramente tradicional. Obra da inteligência popular, profundamente evolutiva devido à adaptação e sob a influência das necessidades, da civilização e do progresso, transforma e multiplica, rejeita e adota, incessantemente, imagens e símbolos de expressão.

A pátria moderna, não sendo o país de uma raça e de uma nacionalidade, de uma religião e de indivíduos ligados por costumes idênticos, não sendo mais fundada na tradição, tornou-se um corpo político, social e econômico, uma sociedade voluntária.(33)

Este laço substitui o laço necessário das antigas sociedades nacionais. Há, assim, um fundo de acordo, de convenção tácita, na forma das nações modernas.

O espírito de livre associação semeia populações cultivadas sobre a Terra, onde surgia outrora a fauna do homem rústico e do homem bárbaro. O patriotismo, de instinto social que era, tornou-se um móbil racional e afetivo.

Nestas sociedades, a natureza do país e de sua exploração, as regras convencionais de segurança e de proteção comum que se traduzem na ordem legal(34), criam interesses de reciprocidade e de ajuda mútua. Há um forte elemento de cooperação e de mutualidade moral e material entre os grupos que as compõem.

Cada indivíduo tem, diante de si, um horizonte de interesses gerais, diferentes de seus próprios interesses, que se estende por todas as classes e todos os grupos sociais; contempla a perspectiva de um interesse futuro, o destino da posteridade, ligado à riqueza do país e dependente de sua geração.

Da reunião destes interesses comuns aos homens da mesma geração, e do sentimento de previdência no interesse das gerações futuras, resulta a consciência da nacionalidade. A Pátria é a alma da nação; o patriotismo, o sentimento afetivo entre os homens de uma mesma geração e destes para com os homens do futuro, no seio de um povo fixado sobre um território.

Não basta, entretanto, reconhecer a existência de um certo número de interesses comuns aos indivíduos que habitam o país e permanentes para além do presente, para conservar nítida no espírito a idéia de pátria: é preciso, ainda, fixar a natureza destes interesses, definir os direitos que deles decorrem.(35)

Interesses e deveres do homem desenvolveram-se lentamente, no curso da História, por conquistas parciais. O absolutismo apresentava o Estado como o único representante da coletividade. A plebe dos indivíduos não possuía interesses próprios, resultantes da natureza humana: não possuía senão “direitos”, faculdades que o poder soberano concedia, aos pouquinhos, por bem ou por mal, não em consideração da natureza humana, mas para consagrar a existência de posses e de faculdades já adquiridas. Os direitos do indivíduo, com uma finalidade patrimonial, inicialmente, e política, em seguida, não exprimiam, em nenhuma sociedade, garantias ao exercício das faculdades naturais do homem, à satisfação da necessidade de viver e de progredir. O indivíduo não era, de início, uma unidade reconhecida; torna-se reconhecido, mais tarde, para efeitos bem limitados, com as revoluções e as conquistas, à medida e à proporção em que as novas camadas da sociedade subiam e incorporavam-se ao Estado.(36)

O dito de Metternich: “o mundo começa com o barão” era uma síntese histórica.

Entretanto, já que as classes que faziam as reivindicações não as conquistavam senão porque já se encontravam muito fortes, o que realizavam, efetivamente, era sua ascensão: os direitos declarados para a imensa massa do povo não eram senão títulos nominais.(37)

Redigidas em forma de garantias jurídicas subtraídas à nobreza, as leis constitucionais consideram somente direitos, independentemente da liberdade, segurança e igualdade política, as aquisições materiais e intelectuais já conseguidas pelo homem. Não protegem a vida senão como expressão da existência; mas não reconhecem a todos os homens perante a sociedade, o direito a este conjunto de faculdades e de bens elementares indispensáveis para que a existência não seja uma simples maneira de vegetar, para que o organismo disponha, sempre e em qualquer lugar, na casa, nas ruas, no campo, de luz, de ar, de nutrição, de salubridade, de higiene, de roupa confortável e decente; para que o espírito possa adquirir as noções necessárias à vida e ao trabalho; para que as condições de sucesso sejam iguais para todos no esforço pela cultura e pelo aperfeiçoamento, desde que as capacidades sejam também iguais.(38)

Para a sociedade de nossos antepassados, todo o sistema dos direitos humanos parecia subordinado ao postulado de Aristóteles: ”o homem é um animal político”. Filho e servidor do Estado, ele era sub-rogado nas faculdades e nos poderes que este lhe cedia: criador e cooperador do Estado, é hoje seu associado; e a fração de liberdade a que ele renuncia deve valer uma parcela igual de garantias à vida real, prática, orgânica, de seu corpo e de seu espírito.

A igualdade perante a lei tem, hoje, um sentido que deve abarcar a vida em toda sua plenitude; deve compreender o dever de apoio a todos para o bom êxito do maximum de desenvolvimento das faculdades.

Passando do regime dos privilégios para o da igualdade, o progresso do direito se fez, de alto a baixo pela sucessiva incorporação dos indivíduos e das classes à camada dominante.(39) Em todas as nacionalidades clássicas, e nas que as imitaram ao chegarem ao estado de nossa civilização, a igualdade legal exprimiu-se pela supremacia de uma classe dotada de privilégios efetivos sobre uma multidão gratificada por títulos de eleitores, pelas primeiras letras e pelas quatro operações.

Sociedade, nação e pátria são idéias elegantes, abstrações de luxo intelectual, nos meios dos governantes e da burguesia letrada e econômica: o povo não conta senão na retórica dos discursos políticos e pelo uso de um direito de voto que os dominantes conduzem pela infinidade de meios de pressão e de astúcia de que dispõem, e que exerce, às vezes, apenas para se lançar cegamente na via do impressionismo e da utopia.

Nesta aristocracia de fato, o patriotismo é uma virtude profissional dos políticos e dos funcionários e uma distinção hierárquica dos intelectuais e da burguesia.(40)

Para a burocracia, os políticos e a burguesia, a Pátria é uma espécie de visão cuja imagem ressente-se de sonhos cavalheirescos, de vagas sentimentalidades romanescas, de arcaísmos inconscientes, de ligação material com a terra e de paixão doentia por seus símbolos. No fundo, os oradores de nossas democracias repetem, em suas declamações patrióticas, as mesmas bravatas dos cavaleiros e dos bardos dos tempos feudais. A pátria é, materialmente, o país natal; o compatriota, o filho do mesmo país. É um sentimento artificial que, salvo sob o impulso da paixão guerreira, sacrifica todo mundo, todos os dias, na luta dos interesses pessoais. É a noção mais egoísta, sendo também a mais turbulenta, que, ligando-se ao país, dispensa a solidariedade. O compatriota não é o irmão no trabalho, aquele com o qual nos dispomos a partilhar os meios de subsistência e de prosperidade; é o inimigo, como nós, do povo vizinho; aquele que irá para o campo de batalha, enquanto continuaremos a levar nossa vida, porque ele é o homem pobre do país(41): a “carne de canhão” dos sacrifícios religiosos oferecidos à divindade marcial de nossos domínios e de nossa “honra” de suseranos agrícolas, industriais e eleitorais...

Reservando-se o privilégio e, por assim dizer, o sacerdócio desta divindade retórica, as classes educadas exercem, com seu culto ritual, a ditadura de seus interesses de indivíduos, ou, mais freqüentemente, de grupos econômicos. Para o futuro, todo o alcance de suas previsões e de seus sentimentos não ultrapassa o zelo de assegurar para os filhos a sucessão patrimonial: zelo cego, de que os transtornos da sociedade, as flutuações econômicas e o esbanjamento dos herdeiros mostram a completa inutilidade. A única segurança séria a assegurar para a descendência, no sentido familiar, deve ser buscada pela constituição de sociedades em que a vida encontre todas as condições de desenvolvimento e de ordem social, política e econômica, todas as garantias de estabilidade.(42)

E já que esta noção arcaica do patriotismo não responde a nenhuma realidade objetiva, é freqüentemente apenas uma expressão cética do formalismo, ou então uma consciente ironia.

A forma social do patriotismo, com o interesse enérgico de sua realidade, o calor e a seiva de sua circulação pelos canais da vida ampla e complexa da sociedade, a simpatia pelo vizinho, o irmão na família legal, o associado, no esforço; e, sobretudo, por este sentido de previdência que faz experimentar o valor da ordem política e econômica, da paz da prosperidade e da justiça, como garantias à descendência, é uma força de progresso, enquanto que a outra não é senão uma âncora de inércia.


 

AS CRISES SOCIAIS E ECONÔMICAS.
O CÁLCULO PESSOAL E O PENSAMENTO ALTRUÍSTA.

 

As nações primitivas, formadas por conquista ou por migração pacífica, tinham, quando se instalavam em um território, famílias e tribos fortemente ligadas por uma estreita solidariedade.

No país de origem, a memória das lutas ancestrais contra a natureza, contra as feras e contra os vizinhos, sagrara, em ritos e em lendas, os seres superiores, protetores e diretores dos povos nas horas trágicas de perigo e nas boas horas de esperança. A religião local, protetora, ofensiva e defensiva, era assim o ideal supremo que ligava os homens na família das almas.

Viajando, em seguida, por bosques e desertos, por rios ou sobre as planícies das estepes, expulsas de suas choças por uma horda invasora, fugindo de uma localidade sob a pressão de um acidente natural, este laço tornava-se sempre mais estreito. A influência crescente da divindade, a língua, os costumes, as primeiras noções de moral e de direito, tudo isto resultante do caráter do país natal e da raça, dos azares das lutas na terra de origem e pelos caminhos do êxodo, introduziam outras forças de atração e de harmonia. Uma nação era, durante a infância da humanidade, um bloco típico de indivíduos, dirigidos, disciplinados, mesclados, em uma atmosfera de preconceitos e de regras: os “tabus”, os “manas”, os “totens”, etc; sobre o terreno prático de uma comunhão de interesses quase animais.

Seguindo o impulso da necessidade de defesa e da proteção mútua, as comunas humanas desenvolveram-se e cresceram, pouco a pouco. As nações fixadas nos territórios, constituíram-se então estas grandes massas de homens que adquiriram, sempre sobre o impulso de forças étnicas, religiosas, morais e econômicas, excitadas pelo sentimento, mais resistente de hostilidade para com os outros povos, o tipo durável e definitivo das nações de hoje. Tal foi a origem das nacionalidades, nos continentes das velhas civilizações.

Entre estes povos, sedentários uns, nômades outros, a atração dos objetos preciosos, das especiarias, das madeiras, dos metais, das pedras e dos minerais, excitada por um ardente espírito de aventura, traça, entre as comunidades que se desenvolvem e as costas, os vales cheios de florestas, as bacias longínquas, as minas, as ilhas, os leitos dos grandes rios, os do Mediterrâneo e dos mares interiores da Europa e Ásia, as praias dos oceanos que cercam o triplo continente primitivo, as ilhas do Oceano Índico, dos mares malásios, polinésios e chineses, estas rotas que, desde os caminhos rústicos das migrações até aos trabalhos de gênio dos Babilônicos, dos Assírios, dos Gregos e dos Romanos, desde as ousadas travessias dos malásios e dos polinésios até aos empreendimentos navais dos Egípcios, dos Fenícios, dos Gregos e dos Cartaginenses, formam a rede de relações e de transportes entre povos que o comércio começava apenas a interessar. Destas relações, criadas por estes longínquos movimentos, o que resta na civilização é sua influência sobre os costumes mais estáveis e sobre as instituições mais tradicionais dos países.

A descoberta da América e do caminho marítimo para as Índias, a sucessiva revelação das terras destes continentes e destas ilhas, as travessias e os trabalhos quase miraculosos dos grandes navegadores, abrem uma nova era para a distribuição dos homens sobre a terra e para a sua evolução. Os países antigos estavam povoados por bandos mais ou menos solidários, disciplinados, sob um laço estreito, ou sob uma dura autoridade política. Para as ambições pessoais, não havia senão a pequena satisfação de mesquinhas porções do saque, subtraídas à vigilância do chefe da expedição, ou da comuna. No que se refere ao livre comércio, ele era tão difícil, tão atravancado de obstáculos, tão perigoso, que parecia mais uma espécie de pilhagem associada e organizada. Sob o impulso das descobertas, as novas regiões conheceram a forma moderna de povoamento por ocupação colonial, em camadas sucessivas, isoladas, com um outro objetivo. Durante o período colonial, as populações emigradas traziam, para o lugar em que se estabeleciam, com o laço político de fidelidade à coroa, o sentimento de tradição patriótica, a identidade de língua e de religião, quase sempre uma nova incitação, muito ardente; não vinham para estes países tocadas pela perseguições de nações rivais. Aventureiros ousados, ambiciosos, partiam, atraídos pela sedução das riquezas. Incultos, sem escrúpulos quase, fundaram nos países ocupados uma ordem material feita de pequenas concessões para o equilíbrio e para a conciliação de interesses. A colonização das terras descobertas não foi feita sob a pressão do inimigo e sob a inspiração de apoio mútuo e da solidariedade; foi obra das ambições pessoais, sob o encantamento dos Eldorados e dos Ofir, de fantásticas e inesgotáveis riquezas. Os países de origem colonial têm por móbil psíquico de formação a avidez sem freio dos aventureiros. Esta etapa da evolução marca um grau destacado no processo de emancipação individual: o da independência das ambições.

Mais ou menos humanos, mais ou menos moralizados, dependendo da civilização e da camada da sociedade de que provinham, dependendo da época em que faziam a imigração, estes homens não viam seus novos países com os olhos místicos de peregrinos, caminhando para a terra prometida, para uma existência de paz patriarcal e de calma prosperidade, mas com os olhos faiscantes pelo reflexo da imagem das minas, ardentes de avidez frente à miragem das florestas, ricas em caça e especiarias exóticas, apaixonados pelas fortunas em perspectiva. Dos conflitos e das relações destes aventureiros sairam as populações dos países de colonização até a época de suas independências. O mesmo caminho foi seguido nos que permaneceram sob a dominação das antigas metrópoles. E se a suavidade dos costumes mudou muito a forma das relações entre indígenas e colonos, naqueles países, e nos que, em nosso tempo, estão submetidos à colonização dita civilizada, o fim quase exclusivo de comércio e de intensa exploração, visando o enriquecimento, que é o objetivo colonial, faz com que as relações das raças sejam sempre anormais e que os indígenas sejam desviados de seus hábitos e de sua maneira tradicional de vida, encontrando-se na alternativa da miséria ou do escravizamento se se resignam a serem inferiores aos colonos, ou da revolta, se chegam a aproveitar a instrução teórica e pedantesca que lhes é dada nas escolas e nas universidades coloniais.

Alguns elementos de poderosa influência moral exercem um certo poder salutar sobre estes meios desordenados, aparando e suavizando de alguma maneira os choques contínuos entre indígenas e colonos: a influência dos puritanos, ao Norte da América; do catolicismo, dos jesuítas, sobretudo, ao sul; dos pastores protestantes, um pouco por toda parte. Mas estas influências são singularmente frágeis e esporádicas, para que tenham uma ação eficaz e durável.

Os povos exploradores constituem-se em uma alma prática, objetiva, realista, quase abjeta; as pessoas que emigram são os que se desligam mais facilmente das relações morais e afetivas, enquanto que a audácia e a ambição crescem neles. A Fenícia, modelo de país colonial no mundo antigo, material em todos os seus motivos, sem poder de idealização, sem nobreza ética em seu culto e em seus costumes, produziu Cartago, o império voraz e empreendedor, onde um punhado de banqueiros explorava multidões de escravos, exaurindo descuidadamente as terras e massacrando brutalmente o estrangeiro.

Nos países já mais avançados, em que a sociedade começava a ter uma forma mais estável, o indivíduo rompendo a crosta da comuna, havia estabelecido na política o regime da hierarquia, e, na economia, o regime da servidão, mais ou menos ostensiva, mais ou menos legal. A formação das nobrezas de origem militar e de origem econômica enche toda a história política e social do mundo, desde os tempos da vida comunitária. Aristocracias que sobem e aristocracias que descem, eis o eterno vai e vem das flutuações históricas até a eclosão de nossa era,(1) isto é, desta era em que a liberdade de pensamento, assegurada e animada pela imprensa, as grandes invenções industriais, o vapor e a eletricidade, o enorme desenvolvimento dos meios de transporte, de crédito, de comércio e de exploração da terra, o desenvolvimento e a vulgarização da instrução, criaram em todos os países uma situação nova, caracterizada por estes traços principais: a excitação das ambições, dirigidas pelo mesmo motivo do enriquecimento, sobretudo nas classes superiores e nos países colocados em posição de supremacia; o desenvolvimento paralelo, graças ao aumento do poderio do capital, da classe, senão totalmente ociosa, e ela o é em proporção considerável, dos que vivem de renda e dos atacadistas de negócios.(2)

O comércio, colocado sempre à frente dos movimentos econômicos, graças a seus lucros mais sedutores e natureza de seu trabalho, criou, em torno de sua iniciativa um pouco fictícia, um mundo de indústrias artificiais e de negócios acessórios, de instrumentos intermediários inúteis e nocivos. O desenvolvimento considerável e a detestável direção da instrução deslocam do trabalho e da produção para as profissões liberais e para todas estas ocupações um tanto parasitas, multidões a cada dia mais numerosas.(3)

A fortuna a qualquer preço, eis o ideal colocado diante de todos os olhos; mesmo os que produzem, quer nos velhos como nos novos países, não sonham senão em enriquecer; e eis o mundo que, sob o novo molde do capital, da indústria e da especulação, recomeça o velho conflito da ambição e do trabalho.

Todo este mundo coloca-se perante seu semelhante, perante a Terra, e perante o futuro, como se o apetite de cada um não pudesse ser limitado e como se toda a extensão da Terra não tivesse outro destino que o de suportar a carga desta imensa sociedade, brilhante e frívola, dos grandes capitalistas e da alta sociedade. O encarecimento da vida torna-se um fenômeno universal, estendendo a desordem destas sociedades em que a vida é cara e difícil para todo mundo, enquanto que os que se crêem instruídos e os que possuem alguma coisa julgam-se no direito de não produzir e de exigir tudo dos outros e da Terra. Dir-se-ia que, no espírito de nossos contemporâneos, a exploração das riquezas, a exploração das reservas da Terra, traduzem-se pela dilapidação de tudo o que ainda existe, em produtos desejáveis, sobre a crosta de nosso planeta. E esta observação é de fato exata, já que, por toda parte, onde a pressão excepcional das populações não as retém nos velhos terrenos explorados, todos abandonam, mesmo nos países novos, as terras velhas, para correr a desbravar e a desmatar terras virgens.(4)

Financistas e exploradores colocam-se perante as riquezas da Terra como se elas fossem o monopólio de sua geração e de seu pequeno comitê de privilegiados. É preciso explorar as riquezas, valorizá-las, para o lucro da humanidade, eis a palavra de ordem destes exércitos de bolsistas e de corretores e de seus colaboradores. Ninguém considera inicialmente que esta Terra que exaurimos sem cessar, há quase uma centena de séculos, tem antes necessidade de um trabalho de conservação e de reparação; que já há muitos territórios prejudicados por nossa avidez; muitos climas alterados por nossa incessante destruição; muitos fenômenos naturais, cursos e regimes de água, produtividade e fertilidade dos terrenos, destruídos pela mão do homem; espécies animais e vegetais preciosas, suprimidas e degeneradas.(5)

Estes estragos da natureza não encontraram ainda financistas filantropos, dispostos a tentar a obra benfeitora da regeneração do planeta. É preciso enriquecer-se, enriquecer os associados, prometer e, mesmo, freqüentemente, dar, grossos dividendos a milhares de capitalistas; portanto é preciso explorar sempre.

Durante este tempo, o homem do mundo é, em meio da camada suposta de civilização material que o envolve, um animal limpo e enfeitado, explorando para seu proveito e sob a inspiração de seu capricho, sob formas polidas, com um ar de deferência pela miséria, manifestada na caridade (forma direta de curar o mal social, cujo efeito principal é fazer esquecer-lhe as causas) a maioria da humanidade, composta pela mesma multidão, mais ou menos abandonada, esfarrapada, quase animal em uma imensa parte do globo, adormecida e lentamente eliminada, nas outras, apenas nutrida e enganada com os direitos nominais e uma instrução superficial, quase sempre nociva, nas multidões dos campos e das cidades do mundo civilizado.

Nossa presunçosa civilização é uma civilização que não tem consolação para o homem, e não a tem também para com a Terra. Seu progresso material é feito por saques de nossa avidez contra o futuro.(6) Seu progresso social não é senão um progresso de forma, em que as seleções operam-se obedecendo a forças artificiais em que preponderam as instituições do passado, as tradições, os elementos hereditários de fortuna, o nome de família, a posição, os acidentes eventuais. Formados segundo estes modelos e este criterium, o talento, a capacidade e o caráter não são vantagens, não predispondo senão ao fracasso, frente à subalternidade, à hipocrisia, todo este conjunto de condições de impersonalismo, da falta de idéias e de sentimentos, que fazem a essência da habilidade, a chave do sucesso, na concorrência de nossos dias.

À constatação desta verdade, replica-se que tudo isto é natural(7), que não é preciso ver aí senão o funcionamento espontâneo dos fenômenos sociais e econômicos o que é uma absoluta mentira. Não se chega sequer a compreender a facilidade com que as pessoas pensantes, que são os primeiros usurpados por esta prática das “pessoas práticas”, destes que agem na vida apenas sob o impulso de seus interesses pessoais e do interesse de seus clientes, submetem-se a esta cega concepção da ditadura da incompetência e do apetite. Na verdade, os pretensos movimentos espontâneos da sociedade não são outra coisa que a ação de impulsos e interesses pessoais.(8) Se estes interesses fossem absolutamente livres, seria o caso de se perguntar se não é justamente para defender cada um de nós, a verdade e o porvir, da nossa ação e da dos outros, agindo sobre nosso patrimônio como selvagens ou como bestas, que há governos, sábios, líderes de opinião. Mas a verdade é que os interesses pessoais de todos não são de todo livres e que são regulados por uma espécie de hierarquia de preconceitos e de ambições, artificial e injusta(9), e, mais ainda, pela ação destes elementos superiores da vida econômica das sociedades que dão os modelos, os exemplos e a direção à vida contemporânea, que dirigem e controlam a corrente dos negócios, que fazem o progresso e a ruína dos países e das localidades, a alta e a baixa dos valores, o câmbio e o crédito. O mundo é, de fato, governado pela finança; e a finança é hoje por força da confusão econômica das sociedades, governada(10) pelo espírito de especulação. Um regime econômico em que nem o interesse do homem e da sociedade, nem o da Terra, do trabalho e do consumo, são os objetos diretos, os fins principais dos pensamentos e dos negócios, é um regime desviado de qualquer atividade espontânea e de qualquer nexo natural.

É entretanto esta a força que governa o mundo. O comércio, a indústria, a agricultura, são forças civilizadoras; na verdade, todos os que se ocupam de negócios se crêem agentes civilizadores, porque crêem fazer comércio; estes instrumentos, em seu funcionamento normal(11), são elementos essencialmente pacíficos; e as pessoas de negócios mesmo são partidárias da paz e julgam-se sinceramente ameaçadas por qualquer perigo de guerra. Só que, toda sua ação sendo contrária ao equilíbrio das forças econômicas e ao funcionamento harmônico da sociedade através da organização do trabalho, pelo desenvolvimento da produção e da distribuição das coisas que interessam à vida e à saúde dos povos, sua ação é uma preparação contínua de conflitos, uma eterna gestação de guerras. As lutas internacionais contemporâneas giram em torno destes interesses e destas ambições exageradas, excessivas, inoportunas.

O comércio, sendo o propulsor da vida econômica, os conflitos de seus fatores artificiais produzem conseqüências nefastas nas relações das raças entre si e das nacionalidades fortes e avançadas com as jovens nacionalidades e as nacionalidades em atraso, o criterium da raça não podendo justificar os pretensos direitos de protetorado, de tutela, de evicção e de expropriação que se arrogam os países avançados, menos ainda justificados pela superioridade eventual destas nacionalidades, resultado de uma seleção histórica feita em conseqüência de fatores e poderes tão artificiais quanto os que selecionam os indivíduos.

A própria supremacia deste fito comercial, quase exclusivo, nas relações dos povos avançados com os povos jovens e os povos em atraso(12), basta para mostrar a nulidade do título principal de sua pretensão à direção: o título de superioridade moral. O comércio não é em si mesmo um agente moralizador; é bem conhecida a história dos abusos das empresas de comércio colonial e os artifícios empregados no comércio para o benefício de indivíduos, de classes, de cidades e de países, contra interesses bem mais consideráveis, para que se reconheça a imoralidade consumada da prática usual deste instrumento de progresso.

O comércio, como toda instituição humana, toma a natureza do móbil psíquico que o anima. Sua normalidade verdadeiramente natural(13) consistiria em fazer operar entre os homens e as sociedades os movimentos de troca necessários às necessidades da vida, que, sendo o fenômeno mesmo de nossa existência, é a razão primeira de ser de tudo o que fazemos. Mas a vida é uma das coisas com que o comércio menos se ocupa, e somente como aplicação de sua atividade, não como objetivo. Os gêneros alimentícios ou o álcool, as roupas ou o ópio, os instrumentos de trabalho ou o luxo, tudo isto é comércio e bom comércio.

Os homens de pensamento ainda não compreenderam que a humanidade sempre foi governada efetivamente pelo espírito e pela vontade dos que se apropriaram dos meios de poder.(14) Este exercício do poder é a verdade mais positiva da História. Os que a negam, na suposição de um impulso mecânico dirigindo o mundo organizado, cometem a falta de atribuir aos desenvolvimentos da existência uma realidade estranha à realidade psíquica, uma vida independente da vida mental, que seria, então, uma superfetação enquadrada no espírito humano, sem coordenação e sem função. Os que atribuem ao poder uma influência inevitável sobre nossos destinos, esquecem, por sua vez, que o poder não é senão o meio de realizar a existência e que o abuso e os desvios deste meio não foram senão os sinais de uma fase da evolução individual e social em que nem o homem nem a sociedade haviam chegado à consciência dos meios positivos de adaptação.(15)

Sempre governada pelas inteligências e pelas vontades, a sociedade desembaraça-se lentamente de seus entraves; mas não viu inicialmente senão os laços políticos de dominação; e, como conseqüência, enganou-se de finalidade; e, tomando o símbolo pela realidade, atacou os governos e a idéia do poder.

Desta reação, de um caráter essencialmente político, resultou a tendência ao enfraquecimento do poder governamental, de um lado, o que não é a solução a procurar, e o desenvolvimento de outros poderes sociais e pessoais, dotados de todos estes instrumentos de privilégio, de pressão, de monopólio, de preferência, de influência, resultantes das causas tradicionais, dos modelos e dos padrões de valor admitidos.(16)

Os governos foram destituídos de sua autoridade discricionária; e se é necessário rejubilar-se por isto, resta ainda examinar se esta decadência do poder dos corpos políticos e das administrações, não terá feito outra coisa senão aumentar o número dos opressores, tornados, talvez, um peso mais difícil de suportar.(17) Mesmo se se admite, o que parece provável, um grande progresso no uso do poder, é certamente verdade que a conquista da liberdade pelo desenvolvimento do indivíduo e pela limitação do Estado não fez outra coisa que fortificar a outra força de direção e de governo: a dos poderes pessoais; e esta força não é nem mais legítima nem menos perigosa que a outra.

Não era pois a força nem o prestígio dos governos o que deveria ter sido atacado; não é ainda por sistemas socialistas, nem pela adoção destas medidas diretas que os governos contemporâneos empregam para combater os males sociais, procurando a cura dos sintomas e dos acidentes imediatos, meios de atender ou amenizar os sofrimentos visíveis que não fazem senão adiar as crises, escondendo os problemas verdadeiros e suas causas profundas, mas pela ação racional da lei e do poder a serviço do pensamento e da experiência, no controle, na fiscalização e na política das atividades individuais.(18)

Deste enfraquecimento, deste fracionamento do poder e deste desenvolvimento do poder individual, não sobrou nas sociedades senão um estado de anarquia, o começo desta anarquia sonhada por alguns discípulos de Nietzsche, mas que não lhes deixará sequer a sombra de um entusiasmo, de tal forma terá escurecido, nestas sociedades banais, a utopia sedutora do seu ideal estético. Um estado de anarquia em que a potência cairia nas mãos de bolsistas e de agentes de negócios não é feita para satisfazer o sonho dionisíaco e apolíneo dos filósofos e dos estetas da força e da beleza.

Mas o que impressiona sobretudo no espetáculo da sociedade contemporânea, e é ai que reside o xis do problema, é que nem o enfraquecimento teórico dos governos nem o desenvolvimento do individualismo exprimem um avanço do pensamento, um progresso do poder das inteligências sobre as vontades e sobre as ações. O pensamento e o saber humanos não progrediram senão como instrumentos dos desejos, como meio de satisfação imediata das necessidades. Nesta sociedade, em que toda uma multidão de sábios, de inventores, de homens de letras, lançam-se à pesquisa dos meios de realizar as ambições mais odiosas e os caprichos mais refinados das pessoas mundanas, a marcha do pensamento no sentido da direção social é quase nula.(19)

O espírito e o pensamento são coisas secundárias, subordinadas, acessórias, nesta vida moderna, feita de agitação e de ambição. Os homens que sabem e que pensam não ocupam, perante os verdadeiros diretores de nossos destinos, senão uma posição subalterna: não é deles que vem a iniciativa e o controle dos atos que dispõem da vida e da sorte das sociedades. Não fazem mais que suprir os meios, os conselhos e informações aos manipuladores dos negócios e da política.(20)

A impotência das pessoas que pensam lhes deu a convicção da ineficácia prática de seus esforços. Do insucesso de algumas corajosas tentativas vem, em grande parte, a resignação dos pensadores a esta função de arte e de especulação em que se alojaram. A outra causa vem do caráter teórico e sistemático do pensamento clássico, transportado para o pensamento moderno. O revés dos velhos sonhos e das velhas construções apenas desencorajou os espíritos, que não buscam outras formas de soluções que as das teorias e sistemas preconcebidos.

Muito fracos para imporem-se à sociedade das pessoas de negócio e dos políticos, os homens de pensamento receiam a luta que seria preciso travar para se apropriarem das posições e do poder e não temem menos o julgamento destes soberanos da mediocridade sobre suas idéias e mesmo sobre seus destinos.

Os fatos da vida social são assim fatos de vontade e de energia sem direção intelectual.(21)

De sua submissão direta à autoridade de seus chefes, mentalmente inferiores; da servidão abstrata à corrente das idéias e dos interesses dominantes; de sua consciente incapacidade de resolução e de ação, resultam esta ciência e este pensamento ainda tão vacilantes, levados por alguns espíritos, sob a sugestão da ambição e da especulação, às ousadias mais exageradas, mas cujos princípios fundamentais oscilam, deslocam-se e substituem-se a cada momento e as conclusões aparentemente mais sólidas não duram o tempo de uma geração.

As descobertas inabaláveis do pensamento humano são descobertas abstratas; sua aplicação à vida traduz-se em problemas tão graves como se estas leis não existissem, sendo todas insuficientes para explicar isoladamente um só fenômeno e para produzir um efeito que interesse à vida e à ação. O que é prático, não tendo sido sugerido senão para satisfazer os interesses imediatos das classes superiores, é inútil ou nocivo pela estreiteza de seu efeito e pela falta de um estudo comparativo deste efeito com outros aspectos do problema e outros fatos da vida e da sociedade.

É preciso que o pensamento tome a direção da sociedade. Se o estado da sociedade o pede, a própria insuficiência de sua obra não faz outra coisa do que dar a prova disto. No desenvolvimento da evolução da espécie, é tempo de compreender o princípio tão simples de diferenciação que marca seu lugar a cada instrumento, a cada órgão, a cada peça da grande vida mundial. Todo órgão é feito para funcionar; todo sentimento e todo pensamento são feitos para se transformarem em atos. As próprias criações de arte e a própria especulação metafísica chegam aí indiretamente. É a esterilidade forçada do pensamento que explica os seus abortos. A falta de soluções pré-estabelecidas não é uma razão para permitir à sociedade viver em estado de alienação mental. Se os sistemas prontos e acabados não tiveram êxito é que a vida não é susceptível de ser submetida a sistemas.(22) Não é propriamente para a ordenar, para governá-la, para impor-lhe regras e prescrições, que é preciso colocar o pensamento na direção social; é, ao contrário, para reagir contra esta multidão de regras, de prescrições, de opressões, que vivem em suspenso no ar de nossas sociedades; para destruir os entraves artificiais e as usurpações de interesses sobre interesses, de necessidades sobre necessidades; para defender o indivíduo, a sociedade, a Terra e o futuro, da opressão e da anarquia criadas pela soma das atividades heterogêneas dos apetites e das ambições(23).

O pensamento que é preciso colocar na direção dos negócios práticos não é este pensamento lateral dos especialistas nem o pensamento obstruidor dos sábios de profissão, circunscritos os primeiros entre os muros de seus conhecimentos, paralisados, os outros, pelo ferramental e o mecanismo rígido de seus princípios, de suas concepções e de suas doutrinas: é o pensamento cujo preparo e a cultura consistem no desenvolvimento mais vasto e mais profundo do poder de exame e de raciocínio, na maior aptidão para o alargamento do golpe de vista, em um hábito muito exercitado de análise e de síntese: um pensamento largo e iluminado mais do que rico e pleno.(24)

O conjunto e a extensão deste pensamento encontraria sua expressão completa em uma Filosofia prática das coisas, dos fatos e da vida, e em uma Política da experiência. Esta Política tenderia a fazer ver a vida e suas mutações, a sociedade e seus movimentos, como um eterno processo evolutivo que não se poderia jamais interpretar por regras nem englobar em sistema, mas do qual seguir-se-ia as transformações e os progressos a fim de lhes permitir a livre sucessão sobre a Terra com todos os elementos de assimilação intimamente e essencialmente livres, no meio da evolução dos outros seres.

A política, ao colocar o pensamento nesta atitude de vigilância e de exame, seria a ação permanente desta Filosofia prática.(25)

As operações desta ciência e desta técnica de conjunto resumir-se-iam neste problema de todas as horas: compreender o método de ação dos fenômenos para seguir o desdobramento dos anéis e das voltas de nossas vidas no rascunho da sociedade. Este desdobramento realizou-se, com crises, mas sem quebras, durante séculos de agitações, de uma existência de revoluções, em cada pessoa e em cada sociedade... Não deve pois ser tão difícil de compreender.

Filosofia e política condensar-se-iam em um oportunismo colocado entre a experiência e o ideal.(26)

Somos muito arrogantes de nossa civilização. De fato, seria inexato dizer que o homem fez verdadeiros progressos de conjunto, no conhecimento e na prática dos meios de sua adaptação ao meio. Calculando o que fizemos na Terra, nossas obras não compensariam o cômputo de nossas destruições. A sociedade não tem senão algumas dezenas de séculos de vida e o que ela destruiu, riquezas criadas durante os tempos de formação de nosso globo, é espantoso. Tudo o que há de construído na superfície do planeta não é nada perante a enormidade de suas ruínas.

No que se refere às nossas relações de homem a homem e às relações entre as sociedades, é de notar o progresso da suavização dos costumes, mais humanidade, um evidente desenvolvimento de nossos instintos de solidariedade e de ajuda mútua.(27) Nossa natureza é tão boa, nossos sentimentos tão espontaneamente inclinados para o amor, que a despeito dos obstáculos oferecidos à nossa inexperiência e aos embaraços que nos criamos com nossas próprias mãos, por causa de nosso saber feito de convenções e de preconceitos, o homem fundou uma sociedade em que as relações habituais são marcadas por um espírito de sociabilidade e mantidas por uma finalidade de solidariedade.

Não se trata aqui senão de um progresso do sentimento: e o sentimento, não se aplicando, em geral, senão a coisas próximas, diretas, imediatas, engana-se quase sempre sobre o valor dos bens e dos males de nossa vida e sobre suas causas.(28) Não atinge as fontes longínquas dos fatos da vida e complica freqüentemente os acontecimentos, em seu desvelo em socorrer as manifestações aparentes de nossas infelicidades.

O sentimento é distraído ou cego frente aos grandes problemas humanos, desenvolvidos lentamente no tempo e no espaço. É preciso que o pensamento envolva-se aí, que uma percepção mais profunda sirva-se do sentimento como que de um instrumento, para que o interesse altruísta alce-se dos pequenos fatos contemporâneos da vida, dos sinais aparentes de nossas fraquezas, de nossas lutas, de nossos males. A inteligência aplicada às coisas práticas está muito ligada ainda a estas manifestações superficiais de nossas crises: é a ciência dos médicos, dos moralistas, dos juízes e dos advogados, a piedade dos padres, indo direto ao indivíduo, sempre fixado nos detalhes. A técnica das aplicações e das invenções sempre teve uma finalidade comercial e o móbil altruísta conseqüentemente torna-se secundário, quando existe.(29)

A escravidão do espírito à civilização material foi levada tão longe que o próprio pensamento especulativo e o pensamento artístico estão subordinados à indústria da publicidade. O editor e o público comandam freqüentemente os pensadores e quase sempre o pensamento: a democracia e os negócios de imprensa, árbitros das seleções intelectuais: eis o estado da autoridade do espírito.

Entre a vida industrial, tão intensa, e a ordem moral e política das sociedades, há um vazio enorme. A desproporção entre o sucesso das ciências técnicas e o das ciências do homem e da sociedade é tal que o interesse das pessoas práticas, de um lado, e a timidez dos homens de pensamento, de outro, relegou as últimas às abstrações doutrinárias e à ideologia. E entretanto nada mais que a uma só destas ciências, e a mais empírica de todas, o Direito, a civilização é devedora deste grande serviço: a ordem material de nossas sociedades.(30)

É isto que explica o desprezo dos governos e dos povos, frente aos avisos e exortações dos competentes. Um pouco hesitantes, confundidas, ainda, nos jornais, nas revistas e na tradição, com as sugestões do bom senso e do senso comum(31), estas verdades vivem da vida fictícia dos conceitos, que se é livre para aplicar ou rejeitar. Todo mundo é crítico e juiz, nos assuntos da sociedade e da política; e é sempre a coisa mais fácil do mundo que qualquer um eleve sua voz para discutir com o homem de saber.

A falta de pensamento, na direção das sociedades, a levou aos extremos de uma crise, de que não sairá pela simples ação das forças sociais tidas como espontâneas, sem graves abalos na política das nações e em suas relações internacionais. A política está, em geral, aquém dos problemas e das necessidades atuais das nações; e a política internacional, com seus instrumentos imperfeitos de relações diplomáticas, é absolutamente impotente para conter e controlar as novas correntes da vida. A ordem que nos envolve, construída sobre uma experiência ultrapassada e em teorias preconcebidas, não assegura nem a paz nem o desenvolvimento das sociedades em que a extensão e o caráter teórico da instrução e o desenvolvimento dos meios de exploração industrial e de comércio de tal modo multiplicaram as ambições e desequilibraram os fatores econômicos, que a luta entre estas multidões ambiciosas, em busca de meios de enriquecimento rápido, atenuada até o presente pela tímida exploração das riquezas, mais visível e crescente nas rivalidades das potências nos territórios dos selvagens e dos bárbaros e nos países novos, ameaça tomar um aspecto de gravidade desconhecido na História. A dissolução do Império Romano, tragado, com o poderio de seu povo e de sua produção, pela monopolização das terras e das riquezas nas mãos da ordem eqüestre, da ordem senatorial e dos “curiais” estes aristocratas tão ociosos quanto rapaces, e a progressiva monopolização das terras e das riquezas na Europa, até o fim do século XVIII, com seu estarrecedor espetáculo de ruínas, de fome, de crimes e de miséria, não dão senão o esboço, em miniatura, dos resultados de nossa civilização, conduzida pela ambição dos candidatos a bilionários, ou pelos sonhos, mais modestos, da grande massa, envolvida nos negócios. O tempo das grandes manufaturas, das indústrias colossais, das concentrações, dos monopólios, dos “trusts”, matando o valor e a capacidade do indivíduo, na maré das massas, da mediocridade, da vulgaridade, escravizando os povos aos reis das finanças, dos negócios e dos privilégios, leva à absorção da vida social pela cabala dos audaciosos, ao Baixo Império da avidez, ou à revolução universal.(32) Toda vida contemporânea agita-se em torno do capital e da ambição. Estes dois elementos não asseguram ao porvir a menor garantia de ordem e de progresso. É preciso dar ao trabalho a supremacia na hierarquia dos valores econômicos(33); é preciso que o pensamento controle os conflitos de interesse entre os ambiciosos instruídos e fortes para a luta, apoiados no capital e no poder político, e as pessoas que apenas acabam de entrar no mundo da concorrência.(34)

Esta crise traz em si mesma a indicação de sua solução: o desenvolvimento das ambições e das capacidades sendo desmedida, a concorrência mostrar-se-á de tal forma aguçada e dura entre as classes superiores, que o absurdo desta pressão de avidezes contra a Terra, desta luta de ambições umas contra as outras, e de todo mundo contra as multidões mais fracas e menos preparadas, saltará aos olhos.(35) Sob os móbeis da ambição e do capital, enquanto a Terra oferecer riquezas novas, este formigar de pioneiros e de especuladores pode, contudo, estender-se e multiplicar-se, vindo a crise pronunciar-se quando não houver mais tempo para pará-la. O mundo prolongará então, por alguns anos, seu velho romance, com seus novos senhores dominiais e, graças à fortuna mobiliária, seus galantes cavaleiros da bolsa, sucedendo-se na direção da sociedade.

Será o retorno à barbárie, com instrumentos mais aperfeiçoados de guerra e meios mais potentes de devastação da Terra e de exploração do semelhante. O estado permanente de guerra arrastará ao estado permanente de revolução, a luta entre as nações tendo a mesma origem e a mesma natureza a luta entre as classes e a vida social levando-a a se impor à vida política, no interior dos países e nas relações internacionais.

Para que esta idéia força de que falamos como meio de solução seja útil, ativa e eficaz(36), é preciso que se torne o programa de uma política, visto que o desenvolvimento das profissões intermediárias, do parasitismo, da exploração da terra, sob o aguilhão da ambição e do comércio, sob o do próprio comércio e não sob o das necessidades das populações e do interesse da vida, tende a semear a guerra e a revolução, fazendo retrogradar o gênero humano.

O retorno ao trabalho e à terra, o velho conselho dos fisiocratas, é o artigo primeiro deste programa político; mas esta política pede uma força superior à dos governos nacionais.(37)

A Humanidade tem o dever de salvaguardar as riquezas inexploradas da Terra, reservas destinadas ao gozo das gerações por virem e defender as que estão em exploração contra a exploração imprevidente e ambiciosa; guardar e desenvolver a civilização; controlar o desenvolvimento das raças e dos tipos nacionais(38), no sentido da melhor adaptação aos meios. Para este trabalho conservador e progressivo, para esta política cósmica, eugênica e social, é preciso que ela se organize, sem reação contra as instituições do passado e contra as tradições, mas sem permitir igualmente que elas entravem os progressos individuais e nacionais, resultantes das aptidões naturais.

O ideal a seguir na prossecução deste fim não pode ser o de algum dos sistemas preconcebidos pelos filósofos e os economistas; ele resume-se na idéia de substituir a ambição pela vontade de eficiência e de produção, móbil real de nossa vida, e colocar no lugar do desejo do bem-estar pela fortuna, a certeza do bem-estar pela segurança do homem e o sucesso de suas capacidades e de suas forças no esforço sobre o meio.

E, da mesma forma que esta política não pede a renúncia dos bens pessoais e dos direitos adquiridos, não leva a restrições à soberania dos estados. A competência dos poderes mundiais, encarregados do controle dos novos problemas humanos, não deve tocar nas faculdades atuais das nações.(39)


 

O PAPEL INTERNACIONAL DA AMÉRICA E A DOUTRINA DE MONROE

 

Sob o pretexto de discutir a “doutrina de Monroe” deu-se lugar às interpretações mais obscuras e mais ambíguas. As condições políticas de nosso continente e da civilização mundial são tão diferentes das de 1823 que seria quase absurdo ver os povos americanos renovar a declaração de sua independência, da inviolabilidade de seu território e da igualdade de direitos de seus poderes aos das soberanias européias, tal como era dito na célebre mensagem do presidente Monroe.

A situação jurídica das nações americanas está definitivamente consagrada; e, nas condições atuais de nosso continente e do mundo, nenhuma nação européia teria a idéia de nutrir sobre o território da América as pretensões que as animavam durante a formação das nacionalidades americanas e que aplicam ainda aos territórios selvagens e bárbaros do continente africano.

À época da doutrina de Monroe, podia-se distinguir, no primeiro plano da política mundial, os seguintes grandes caracteres da evolução: a expansão das idéias da Revolução Francesa, combatidas pela Santa Aliança; a emancipação das Colônias européias na América; o equilíbrio europeu, como forma de balanceamento das forças entre as nações de espírito tradicionalista; o começo das imigrações pacíficas nos paises novos da América; a abertura do livre tráfico das nações comerciais da Europa com as antigas colônias, até então enfeudadas ao monopólio das metrópoles; a influência do individualismo e do liberalismo econômico de Adam Smith e de Ricardo; o desenvolvimento dos instrumentos de crédito e de comércio e o dos meios de transporte, graças ao vapor, na navegação e nas estradas de ferro.

São estes fatores que, agindo sobre o espírito de Canning, de Monroe, de Jefferson, de John Quincy Adams e de Calhoun, inspiraram as declarações que contêm o pensamento e a atitude da Inglaterra em face à recente emancipação dos povos sul-americanos, e a dos Estados Unidos em face a este movimento político, em relação às pretensões coloniais das grandes potências sobre os territórios destes países e da Rússia sobre os territórios limítrofes aos Estados Unidos.

É preciso ter em vista todos os seus elementos para ter a justa compreensão dos princípios formulados pelo Presidente Monroe.

Tendo compreendido a delicada situação criada pela aliança com a França durante a guerra da Independência, e pela semelhança das instituições dos Estados Unidos com as doutrinas da Revolução Francesa, os homens de estado americanos, há alguns anos antes, haviam sentido a necessidade de definir sua atitude em face às lutas políticas e à mudança das formas de governo na Europa e de preparar seu país para defender-se da reação que os partidos absolutistas opunham ao desenvolvimento do espírito de liberdade e das instituições democráticas. Face à aliança das monarquias européias contra o progresso revolucionário da França e, mais tarde, contra a revolução espanhola, os homens de Estado americanos tiveram que examinar a extensão de seu envolvimento com o pensamento liberal, a dimensão de seus atos, os perigos que poderiam ameaçar a próspera República, como conseqüência do medo de seu exemplo para os partidos avançados e da solidariedade com as tentativas de transformação política na Europa. Estes acontecimentos tendo inspirado àlguns espíritos a idéia de colocar os Estados Unidos na vanguarda liberal, inspiraram a Washington o sábio conselho de seu “Farewell Adress”, em que, reafirmando enfaticamente a independência absoluta dos Estados Unidos, implorava aos seus compatriotas para que evitassem toda intervenção na política européia e evitassem responder a qualquer proposição de aliança e de acordo com os países dos velhos continentes, o conselho não impediu menos outras explosões do liberalismo americano por ocasião da independência da Grécia e da tentativa de Kossuth para a emancipação húngara.(1)

Por certo, quando o presidente Monroe redigiu sua célebre mensagem, este fator, de caráter político, estava em segundo plano; mas se se considera que a iniciativa da idéia não pertenceu aos Estados Unidos, mas à Inglaterra, onde foi exposta por Canning.(2), que, justamente nesta época, sustentava contra a Áustria, a Prússia e a Rússia a política de resistência à intervenção das potências monárquicas para sustentar o princípio da legitimidade, nos países revolucionados; intervenção efetuada exatamente então na Espanha em favor dos Bourbons; é preciso reconhecer que a declaração dos dois governos pela independência das Repúblicas sul-americanas de origem latina exprimiu o pensamento da opinião liberal contra a opinião reacionária. É verdade que a Inglaterra via também na independência das Repúblicas sul-americanas a abertura de novas saídas para seu comércio marítimo; mas, esta razão não era predominante: primeiro porque, pela tradição de sua política, os interesses materiais da Inglaterra harmonizavam-se com o liberalismo, e em seguida porque a ameaça à independência das Repúblicas sul-americanas não partia mais da Espanha, mas da ambição que poderia surgir no espírito das grandes potências, diretoras do equilíbrio europeu, e que faziam precisamente a intervenção na política continental da Espanha. Da parte destas potências, teria podido esperar uma política de portas abertas nas colônias.

A declaração de Canning sobre a independência das antigas colônias espanholas era um complemento da política que a Inglaterra fazia na Europa. Considerando livres as novas nacionalidades, a Inglaterra aplicava à sua existência internacional o mesmo princípio de não intervenção que praticava em relação à política da antiga metrópole. Era no fundo a mesma idéia de respeito à vontade popular e ao governo representativo que fez ser reconhecido pelo tratado concluído em Chaumont em 1814.(3), e pela qual lutou, durante a formação das novas nacionalidades, junto ao Império Napoleônico, durante as violências da Santa Aliança na Espanha, na Itália e na Grécia.

Quanto aos Estados Unidos, se este pensamento político não respondia explicitamente à palavra de Monroe, basta notar que este homem de Estado pertencia ao partido democrata, representante, durante o longo período de formação constitucional da grande república, de um programa avançado, inspirado nas idéias de Jefferson.(4), adepto fervoroso dos princípios da Revolução Francesa, para reconhecer que esta idéia estava incluída na tese do homem de Estado americano.

Os Estados Unidos e a Inglaterra assumiram, então, a posição que deveria transformá-los em modelos dos dois tipos de governo representativo no século XIX a monarquia constitucional e a república federativa: sua ação internacional estava profundamente embebida deste espírito de liberdade política, revelado em inúmeros documentos diplomáticos e expresso em mais de um tratado.

A doutrina de Monroe procede pois, na genealogia das idéias políticas, do mesmo princípio de liberdade que os anglo-saxões aplicavam às suas instituições internas, que a filosofia política do século XVIII definiu, principalmente na obra de Montesquieu, que a Revolução Francesa formulou em princípios legislativos e que os dois países de raça anglo-saxônica propagaram, um no velho mundo, e o outro na América, nas instituições hoje dominantes.

Do ponto de vista comercial, a Inglaterra, senhora dos mares, e os Estados Unidos, conhecendo bem os grandes elementos de prosperidade industrial de que dispunham, viram que a inviolabilidade do território americano era a condição de seu desenvolvimento econômico, neste mundo aberto à iniciativa de suas indústrias e de seus capitais.(5) Neste terreno ainda, o instinto do povo britânico indicava-lhe que o poder de sua marinha mercante assegurava sua preponderância no regime de liberdade comercial. Combater o poder colonial estrangeiro, era fortificar seu poder mercantil. A Inglaterra foi assim, no começo do século XIX , a iniciadora desta nova forma de relações comerciais que suprimiu as empresas de caráter mais ou menos oficial, diminuiu progressivamente o poder das “chartered companies”.(6), descentralizando e individualizando assim os instrumentos do comércio exterior. Deve-se a este movimento o ânimo poderoso que animou as iniciativas e transformou em realidade o livre exercício do comércio marítimo que os navegadores das cidades livres do mar do Norte e do Mediterrâneo haviam fundado, com a tolerância, ou a proteção interessada, dos governos. Era o começo desta sociedade internacional de comerciantes e de industriais que tende a suprimir do terreno dos interesses mercantis o espírito de nacionalidade.(7) Deste fenômeno nasceu a tendência ao cosmopolitismo e à neutralidade, não políticas, mas econômicas, do comércio. Os estabelecimentos coloniais da Espanha na América e a ocupação eventual de territórios por outras potências, eram restrições à sua expansão econômica, que os Estados Unidos e a Inglaterra não poderiam permitir.

De outro lado, a colonização adquiria, com a independência americana, um aspecto totalmente novo.

A idéia de colonização estava ligada, até então, às idéias de invasão e de ocupação territorial. Colonizar significava, na linguagem econômica e política dos povos europeus, povoar por iniciativa das metrópoles.

Com a independência dos Estados Unidos e das Repúblicas sul-americanas, dois fatos importantes deveriam ser assinalados: o desenvolvimento da emigração espontânea e a existência de territórios despovoados, encravados nos territórios das antigas colônias. Nada mais natural que ver reaparecer, na política internacional, dada a fraqueza das nascentes Repúblicas, a cobiça das nações militaristas.

Era uma dificuldade para os Estados Unidos em suas relações com a Rússia, a Inglaterra, a Espanha e a França. A despeito de todo o rigor de seu desenvolvimento, a eventualidade de um pensamento ambicioso no futuro, não era coisa a se desprezar totalmente; anunciava-se mesmo praticamente, em conflitos de fronteiras, durante a presidência de Monroe, com a Inglaterra e a Rússia. Era portanto ato hábil aproveitar o momento em que as grandes potências européias debatiam-se nas crises da reconstituição das nacionalidades e da restauração da legitimidade, ao mesmo tempo em que novas Repúblicas surgiam na América, tendo interesses idênticos.

O momento era verdadeiramente ideal para colocar a pedra angular de uma política que deveria defender a integridade nacional e dar um ponto de apoio ao desenvolvimento da influência e, eventualmente, da expansão do país.

A mensagem do Presidente Monroe continha duas afirmativas diferentes: a primeira opunha à intervenção e à conquista, o princípio da soberania das novas nacionalidades; a outra, mais expressiva em seu alcance, opunha ao direito de ocupação, o princípio de integridade, não, precisamente, dos territórios nacionais, mas do território americano. Para os americanos contemporâneos de Monroe, a América era uma espécie de entidade política contendo um certo número de soberanias e um território colocado ao abrigo das ambições européias, salvo as possessões já existentes..(8)

A Doutrina de Monroe não continha nem um ponto nem um compromisso defensivo; era apenas uma declaração, mas esta declaração tinha em seus termos, suficiente elasticidade para permitir aos Estados Unidos a atividade política necessária para o desenvolvimento e crescimento de sua influência.

Em uma palavra, a doutrina de Monroe, em seu alcance verdadeiro, não significa senão esta coisa muito simples: que o Direito das Gentes fazia lei para as nações da América, como para as da Europa; não trazia nenhuma inovação às regras clássicas do Direito Internacional sobre a soberania e igualdade dos Estados, formuladas por Grotius e por Vattel; não criava sequer um princípio político americano; manifestada em mensagem, valia o que valem as idéias emitidas por homens de Estado. Jamais os Estados Unidos julgaram-se forçados a invocá-la em favor das potências americanas da mesma maneira como não se sentiram jamais embaraçados pelas restrições à sua liberdade de ação mais extensas que as do Direito Internacional. Ela esteve sempre em vigor como a opinião política do povo americano, de uma eficácia preventiva, poderosa e salutar.

As conseqüências mais notáveis que decorrem de sua execução e de seu desenvolvimento salvo no que interessava particularmente aos Estados Unidos, são as conclusões que M. Drago.(9) pretendera tirar dela, sobre a cobrança à mão armada das dívidas públicas e a ampliação que lhe deu Theodore Roosevelt.(10), em sua mensagem de 1905.

É interessante reler a parte final do parágrafo desta mensagem que se remete à Doutrina Monroe:

“Estas considerações levam-me a dizer o que deve ser um dos objetivos da Doutrina de Monroe. É um dever que nos é imposto o de empregar todos os esforços possíveis para dirigir em direção à paz e à ordem aquelas repúblicas irmãs que tiverem a necessidade de socorro.”

Não há que se enganar sobre o alcance que estas palavras deram ao papel dos Estados Unidos. De uma posição simplesmente defensiva, começam a prometer seu apoio prático, uma espécie de cooperação eficiente para a manutenção da paz e para a conservação da ordem, na vida íntima das repúblicas americanas. Este apoio, este “socorro”, esta animação, pouco importa o nome que se lhe dê, apresentava duas faces, visivelmente antagônicas, sob a forma de uma solidariedade com as aspirações e os interesses dos povos de origem latina; de um lado, o esforço para a conservação da paz internacional; de outro, todas as dúvidas e todas as incertezas e desconfianças que podem surgir desta estranha medida de segurança em relação “à ordem” das outras nações.

Não se poderia dissimular que a afirmação de Roosevelt continha, em palavras penetradas de excelentes sentimentos, a mesma pretensão que a diplomacia européia sempre se reservou para exercer sobre povos independentes um certo número de poderes forçosamente arbitrários; mas o que se depreende com um vigor marcante é a promessa de uma iniciativa amigável dos Estados Unidos a favor da paz, no continente; e destas promessas os governos americanos sempre souberam desincumbir-se.

Se esta parte da mensagem é interpretada segundo o pensamento expresso pelo antigo presidente na passagem do mesmo documento sobre a reunião, então próxima, da Conferência de Haia, onde o eminente homem de Estado manifestava a esperança de que deste congresso resultaria um progresso notável na aplicação da arbitragem para a solução dos conflitos internacionais, percebe-se claramente seu pensamento de dirigir o continente para uma política de solidariedade, tendo em vista a paz.

Esta face nova do desenvolvimento da doutrina conduziu a comparar o caráter da política americana, assim definida pelos Estados Unidos, com a doutrina do equilíbrio europeu. A forma de Monroe era uma constatação espontânea da igualdade das nações americanas; ao princípio de uma oligarquia internacional das grandes potências, equilibrando respectivamente suas forças e desdenhando a dignidade e a liberdade das pequenas potências, substituía-se o amplo reconhecimento da autonomia de todas as unidades nacionais da América. A fórmula do presidente Roosevelt continha expressamente a declaração de uma hegemonia dos Estados Unidos; não se poderia negar, de boa fá, a existência desta espécie de autoridade e de controle político, dissimulada na afirmação do dever de socorrer as outras nações, dever cujo exercício continha virtualmente a faculdade de tomar conhecimento de seus negócíos e de seus interesses exteriores e domésticos.

A doutrina Roosevelt era pois uma retrogradação neste conjunto de opiniões que se tem por hábito chamar de Direito Internacional Americano; e este movimento para trás mostra-se mais evidente quando se compara as palavras do presidente com a atitude dos delegados americanos na Conferência de Haia nos trabalhos de organização do Tribunal Internacional de Justiça, claramente contrária ao princípio de igualdade jurídica dos Estados.

As palavras de Roosevelt e a atitude dos delegados americanos representam apenas, pelo menos, um desvio da linha geral da política americana. E se se reflete que os Estados Unidos encontravam-se então, em razão da guerra de Cuba, em um estado de entusiasmo e de exaltação patriótica.(11) da qual é fácil deslizar para a exaltação imperialista, não se surpreende vê-los desviar-se, sob o governo do comandante dos “rough riders”.(12) de sua linha tradicional de respeito pela soberania das nações irmãs; e isto foi tão bem compreendido que as palavras da mensagem e os atos dos delegados americanos em Haia não alteraram nem a cordialidade das relações nem o respeito recíproco das nações da América.

Os Estados Unidos deveriam logo tomar um grande relevo no quadro da política internacional. Alguns acontecimentos recentes marcam uma direção nova e mais larga na política americana; são o discurso pronunciado em Christiana por Roosevelt, sobre a paz mundial, as palavras do Secretário de Estado Philander Knox, lembrando o caso clássico de aplicação da arbitragem internacional entre os Estados Unidos e a Inglaterra, na solução de suas questões de fronteiras e afirmando a política pacifista dos Estados Unidos, a resolução do Congresso de nomear uma comissão de homens de Estado para estudar, com os outros governos, o estabelecimento da paz, e os tratados de arbitragem ilimitada, assinados pelo presidente Taft com a Inglaterra e a França.

Com esta iniciativa, os Estados Unidos elevaram e alargaram o programa de sua política internacional até um horizonte mais vasto, a doutrina Monroe foi absorvida na doutrina da paz.

A paz mundial é hoje a doutrina política dos homens de Estado americanos, o programa oficial da política dos Estados Unidos.

Tendo avançado até este ponto e convertido em programa político a mais alta aspiração humana, não se pode supor que, de seu lado, as Repúblicas sul-americanas detêm-se frente à sua grande irmã do Norte para reclamar os benefícios da mensagem de Monroe e para esperar e agradecer os favores das promessas filantrópicas de Roosevelt.

Os Estados Unidos tem certamente o direito de assumir uma posição de iniciativa política perante as nações americanas; pode reclamar, sem nenhuma desautorização destas repúblicas, uma certa faculdade de representação de suas aspirações e de suas tendências perante as outras nações do mundo, de expor teorias e princípios que, traduzindo os sentimentos e respondendo aos interesses destas nações, são aplicáveis à vida e ao futuro de suas irmãs de origem latina, sendo livre a estas aprová-los, segui-los, tolerá-los e refutá-los; mas o que seria absurdo é que, após a iniciativa do governo dos Estados Unidos, alçando corajosamente o vôo de sua política até propor às nações européias o estabelecimento da paz, as nações sul-americanas mantivessem-se em posição de fidelidade e de dependência em relação à sua grande irmã do norte, em nome de uma doutrina fora de uso, que não tem interesse e não pode ter aplicação senão em virtude de guerras e por ocasião de conquistas..(13)

Evidentemente, a veneração dos povos americanos por sua grande irmã do norte, seu reconhecimento pelos serviços prestados à paz americana, à causa de civilização e da humanidade, deve expressar-se pela aceitação de um direito de iniciativa e de direção nesta política geral das nações americanas resultante da identidade de sua evolução social e política, de que os Estados Unidos souberam fazer valer os princípios com uma inteira sinceridade e uma alta inteligência. Trata-se, pois, de uma política da América frente às potências dos outros continentes, livre de toda hostilidade e prevenção, sem outro pensamento de solidariedade ou de unidade continental fora deste fim comum. Esta política, os Estados Unidos a declararam explicitamente: é a política da paz universal.

A América, em pleno estado de paz, tendo o olhar voltado para o futuro maravilhoso que a espera graças à riqueza de suas terras, à energia e à inteligência de seus filhos, não tem nada a temer nem a defender, salvo os perigos que ela se criará por suas próprias mãos, ou que lhe virão das crises sociais universais. A Europa não é mais para ela o continente das metrópoles, mas a fonte da civilização e da cultura, a terra de origem de algumas de suas raças, o berço de um grande número de seus habitantes, a colaboradora de seu progresso e de sua riqueza material. Do ponto de vista político, nenhuma sombra de ameaça, nenhum ponto de rivalidade, nenhum interesse discordante, nenhum sentimento menos cordial, explicaria que nos deixássemos levar pelas preocupações de defesa militar que nos atormentaram outrora, povos novos e fracos que éramos, face às potências fortes e ambiciosas..(14) A Europa nos olha com a curiosidade, o interesse e a estima que lhe inspiram nosso progresso; nós a contemplamos com a ternura mixta de veneração e com os olhares de jovens povos que têm necessidade de suas luzes e do apoio de sua civilização e de sua cultura.

Os perigos da civilização americana anunciam-se na própria vida de suas nacionalidades e em sua situação particular, em face dos novos problemas sociais e econômicos. Mais exposta à repercussão das lutas econômicas contemporâneas, não tem a temer senão a corrupção da própria civilização, pela influência do capitalismo e da especulação, e a dissolução de suas nacionalidades por força destes elementos e da expansão vitoriosa das potências econômicas.

A maioria das nações americanas não tem razões para serem mais amigas dos Estados Unidos que dos povos europeus, mais reconhecidas à sua amizade e a seus serviços que aos de qualquer outra nação. Pela raça, pelos interesses, pela civilização e pela cultura, pelas freqüentes relações intelectuais, econômicas e financeiras, olham quase todas com a mais viva simpatia quer para o lado do velho continente quanto para o Norte.

Do ponto de vista da corrupção da democracia e dos abusos do capitalismo e da expansão econômica, não têm menos a temer dos Estados Unidos que de qualquer outra grande potência.(15)

É preciso entretanto banir do espírito o pensamento de uma solidariedade americana, em oposição à Europa, em antagonismo à sua política, divorciada de suas aspirações e de seus destinos.

Os fatores predominantes na política internacional quando da declaração de Monroe foram alterados ou substituídos.

As lutas políticas evoluíram do terreno revolucionário para a forma política das competições dos partidos; o problema da liberdade política, tal como foi colocado pelos pensadores do século XVIII encontrou sua solução em quase todos os países europeus, ou então está em vias de encontrá-la; a concorrência, sofrendo o influxo do progresso e da decadência material dos povos, não se prende mais aos embaraços dos monopólios de Estado e das restrições oficiais. Neste regime de liberdade, com a multiplicação dos instrumentos de comércio, as trocas aumentaram de tal forma que as distinções de nacionalidades desaparecem pouco a pouco na trama da concorrência entre indivíduos e associações; o equilíbrio europeu consolidou-se em duas forças de um antagonismo mais aparente que real: a política de ocupação territorial conclui a liquidação do despojo africano; a Ásia e o Oriente mediterrâneo começam a reunir-se à civilização ocidental, adaptam-se às suas idéias, procuram nivelar-se ao plano de sua cultura.(16)

Este estado de coisas dá à política pacifista proposta pelos Estados Unidos toda a força e todo o calor da oportunidade.

Fenômenos novos produzem-se na vida dos povos. Uma vez conquistada a liberdade política, esta conquista da burguesia, é o proletariado que reclama o direito à vida, à saúde, ao bem-estar, interesses mais sérios que os do voto e da igualdade perante a lei(17) e, entretanto, repelidos, quase ignorados, sob o monte dos privilégios políticos e econômicos, acumulados durante séculos de despotismo e de preconceitos.

As terras novas e sedutoras da América, onde se ignora a fome, terras sempre abertas às aspirações das classes pobres, começam a atrair massas de imigrantes, deslocados pacífica e voluntariamente.

A questão operária, traduzindo as necessidades e as aspirações dos proletários, inconscientemente expressas até hoje em vagas fórmulas demagógicas, e aguçada pela política, criou uma nova e mais perigosa perturbação nas instituições e nos costumes das velhas sociedades nacionais da Europa: a emigração espontânea oferece sempre, pouco a pouco, novos terrenos à aspiração e ao trabalho das multidões oprimidas.(18)

O aspecto de contraste e de oposição assim dissipado, os dois continentes mais civilizados da Terra encontram-se diferenciados pelos caracteres particulares a seu estado social e econômico, à sua formação, às tendências paralelas de sua marcha: um, em pleno crescimento orgânico; o outro em estado de recomposição.

A Europa rejeita os resíduos fermentados por longas e dolorosas revoluções. As lutas de religião, de raças, de nacionalidades, as das liberdades populares contra a autoridade, estão há pouco apaziguadas; e, sob a influência das idéias que fazem o patrimônio de sua inteligência, estorvadas por suas tradições e preconceitos, suas sociedades reconstroem-se, na dor e na angústia da agitação e das reações.

Transportado para o solo americano, o pensamento europeu, desde então, aplainou nosso caminho das rudezas das lutas de religião e das lutas de tradição política(19); nestas novas nacionalidades formadas pela imigração, o espírito de raça dissolveu-se na solidariedade e na concorrência dos indivíduos; e se a agitação operária se apresenta, esporadicamente e de uma maneira isolada, em alguns pontos do continente, deve-se atribuí-la à repercussão de idéias de importação, agitadas mais por hábito do que por convicção, e a esta desastrosa política que favoreceu, em alguns países, com o protecionismo industrial, a concentração das massas operárias(20)
Alguns povos americanos, por hábito profundamente arraigado; pela aceitação sem exame de princípios e de teorias jurídicas e políticas; pela sobrevivência dos sentimentos das lutas coloniais; e, sobretudo em conseqüência de interesses e de ambições políticas, deixaram-se levar pelo espírito de imitação das rivalidades e das intrigas da diplomacia européia. Resulta daí esta atmosfera de inimizades, de simpatias e de oposições de abuso e de violências, agitada de tempo em tempo pela leviandade do patriotismo declamatório com o aplauso dos espectadores ociosos das lutas políticas.

A consciência de nossos verdadeiros interesses e de nossos destinos começa, contudo, a mostrar-se. Não tendo que resolver os terríveis problemas que perturbaram a sorte de nossos irmãos de além-mar, os americanos compreenderam que é preciso concentrar suas forças e suas energias para a consolidação da ordem, entre eles.

Nossas riquezas inexploradas atraem os capitais; as terras sem cultura atraem o braço sem trabalho; terras e minas abrem a sedução da fortuna às ambições do capital e às necessidades dos trabalhadores. Somos o laboratório onde se elabora uma nova humanidade, sem tradições, sem preconceitos, sem entraves, tendo diante de nós uma fonte de imensas riquezas.(21)

E a América surgiu, perante a Europa, não em antagonismo, mas como o fruto de suas idéias e o terreno de solução de um grande número de dificuldades. Há, certamente, uma política americana, mas esta expressão “política” perdeu o sentido clássico de competição entre grupos opostos para se enobrecer com o sentido de uma orientação favorável a todas as correntes de opinião.(22)

Esta política é a política da democracia. Em organizando a democracia política, a América não fez senão tomar o problema humano onde o colocou o pensamento do século XVIII, dando-lhe sua solução; mas o espírito do século XVIII não tendo podido ver o fundo mesmo do problema parou nas soluções puramente políticas.(23)

É preciso consolidar esta obra, mas é preciso igualmente realizá-la e consolidá-la, pelo estudo, o controle e a direção das crises sociais e individuais e dos fenômenos de equilíbrio das forças e das capacidades. A liberdade política e civil é uma liberdade de pura forma; é preciso que seja enxertada sobre a árvore vigorosa da segurança social e econômica. É a missão a que a América está predestinada e a consecução desta missão está inseparavelmente ligada à realização da paz permanente.(24)

Os Estados Unidos compreenderam e assumiram a responsabilidade de a propor ao mundo: é o que mostram a iniciativa dos antigos Presidentes Roosevelt e Taft e a eleição de Woodrow Wilson. Esta iniciativa deu à bela e gigantesca nação a glória de criar um imperialismo novo, o imperialismo moral das idéias, fundado na inspiração da influência pela força da justiça, da honestidade dos interesses, pela irresistível fatalidade do bem. Segui-los e apoiá-los neste caminho não é um ato de subordinação à nação mais forte, nem um gesto de desconfiança para com as outras nações; é prosseguir, frente aos novos problemas humanos, a lógica de nossa política; é colocar-nos, frente aos povos e aos governos, como amigos mais livres e mais avançados, para começar a solução de suas próprias dificuldades.

Eis o que deve ser o desenvolvimento natural da idéia de Monroe, desenvolvimento, por sua vez, do ideal de Washington e do ideal de Canning.(25)


 

CONCLUSÃO:
A ORGANIZAÇÃO DA PAZ

 

Desde que esta idéia da organização da paz permanente apresentou-se aos espíritos, traduziu-se na forma que a tradição dos fatos internacionais havia estabelecido entre as nações, de um Congresso das Potências.

É a idéia do margrave Ernest de Hess Rheinfels, de Émery de Crucé, do abade de Saint Pierre, de Kant, de Penn,(1) de quase todos os autores de projetos de organização da paz. Mas estes Congressos, embora tivessem, em alguns projetos, atribuições políticas, eram, sobretudo corpos judiciários. Esta idéia de que a guerra resulta da questão que a precede imediatamente, e que a decisão deste litígio à moda das questões judiciárias suprime a guerra e suas causas, fez os espíritos penderem para o lado da solução pela arbitragem, forma da justiça voluntária nas relações privadas que foi desenvolvida até fazer-se dela um permanente meio de justiça.

Os bons ofícios e a mediação, que se encontra no projeto do abade de Saint Pierre, foram inteiramente rejeitados nas tentativas de organização prática; e as duas Conferências Internacionais da Paz(2), recomendando e regulamentando estes meios amigáveis de solução dos conflitos, não chegaram sequer a sonhar em torná-los atribuição permanente de um Congresso das Nações.

A organização da Justiça Internacional apresenta-se assim como a única solução dos problemas políticos do mundo.

É preciso prosseguir com os trabalhos, mesmo que se ache que esta solução é imperfeita e sobretudo incompleta.

Esta maneira de encarar o problema da paz resulta, entretanto, de uma ilusão de julgamento histórico.

As guerras são, sobretudo, fatos políticos e sociais, provenientes de causas profundas, quase sempre 1ongínquas, às vezes inapercebidas, de que os motivos ocasionais não são senão pretextos ou clarões explosivos. As questões jurídicas, os conflitos justificáveis, no dão senão muito raramente ocasião para hostilidades.

O que é necessário para assegurar a paz, é criar, ao lado da Corte Internacional, um corpo de caráter político, uma espécie de anfictionia mundial, composta de uma elite de homens políticos, de um talento flexível e de um vasto saber, reunindo, ao mesmo tempo, a finura do diplomata, a largueza e a penetração de vista do homem de Estado, a ciência do sociólogo, do jurisconsulto e do economista, encarregado de vigiar os acontecimentos da política internacional, para prevenir-lhes os conflitos, submetendo-os a todos os meios possíveis de solução amigável.(3)

As exceções ordinariamente feitas à aceitação do julgamento arbitral, que são também objeções opostas à organização de uma corte obrigatória de justiça internacional, não se relacionando com a verdadeira razão da insuficiência deste corpo para assegurar a paz, são a melhor prova desta insuficiência. Os conflitos que interessam à integridade, aos interesses vitais e à honra das nações, são, todos, casos eventuais, conseqüências ou incidentes, das causas longínquas de que acabamos de falar. Estes fatos não são na verdade justificáveis, e o estudo sério das causas supostas das guerras deixaria talvez muitas dúvidas sobre a existência de guerras devidas a causas de um caráter verdadeiramente litigioso.

A reflexão sobre as verdadeiras causas das guerras, sobre estas exceções habituais ao recurso da arbitragem e sobre o sistema proposto nos tratados de arbitragem ilimitada, assinados entre os Estados Unidos, a Inglaterra e a França e rejeitados pelo Senado dos Estados Unidos, confirma a necessidade deste corpo, organização muito prática, desenvolvimento natural da diplomacia, de seus Congressos e de suas Conferências, de que ela herda meios e procedimentos.

O Congresso Permanente das potências deve ser dotado do poder de executar e de reforçar os julgamentos da Corte Internacional de Justiça e de um certo número de atribuições deliberativas sobre estes assuntos e estes interesses característicos da evolução contemporânea das sociedades que se pode chamar, tendo em vista sua generalidade, sua proeminência sobre os interesses dos estados, e sua extensão para além das fronteiras, de questões supra nacionais.

É o primeiro passo, na organização política do mundo tal como o requerem os problemas postos pelo estado social do presente.

Não é necessário, contudo, parar na criação destas duas instituições. Esta necessidade de ordem e de estudo, este desejo de ter consciência das coisas da vida e da sociedade, aspiração de todos os nobres espíritos, impõe a necessidade de uma organização que possa tornar-se o centro do trabalho intelectual de todo o mundo, o escritório de revisão das pesquisas pessoais e de comparação dos resultados obtidos em cada questão e das conclusões parciais, ao efeito de sua aplicação. Sem caráter obrigatório nem dogmático, os trabalhos deste corpo sábio – generalizações e sínteses provisórias, progressivas ou definitivas – dariam às pessoas de estudo um guia e pontos de abrigo em suas pesquisas, vindo a ser para a política internacional sobretudo e para os governos um admirável corpo consultivo.

Estes sábios, escolhidos em todos os países, entre os homens de coração nobre e de alto espírito, cercados de todas as condições de conforto e de segurança social e moral, dotados de todos os meios de estudo e de pesquisa, exerceriam certamente sobre a vida dos povos e sobre os atos dos governos uma salutar influência apaziguadora, de razão, de espírito prático. Seria o progresso natural, realizado em condições de eficácia, dos Congressos científicos contemporâneos.

São idéias simples, naturalmente desenvolvidas de instituições já existentes e em funcionamento, de que todo o mundo reconhece as vantagens e das quais poder-se-á verificar os resultados.

A negação da necessidade e da oportunidade destas criações não seria senão a expressão de uma atitude negativista, sem base em nossa natureza e sem fundamento nos interesses de nossa espécie.

Discute-se, atualmente, a racionalidade de nosso espírito. Deixemos de lado o debate filosófico; substituamos a Razão pelo Pensamento(4), neste centro de nossas almas onde se faz o equilíbrio de nossos atos, a coordenação de nossas funções, e perguntemo-nos, de boa fé, e com toda franqueza de espírito, se o governo das nações e do mundo, mereceria ser a única coisa abandonada pela civilização aos impulsos, aos apetites e aos cálculos individuais.

Seria recusar ao nosso espírito, na política, a capacidade que ele prova ter em todas as outras manifestações da vida.


 

NOTAS

(*) — Esta tradução do Le Problème Mondial foi feita para uso pessoal do tradutor, quando da elaboração de sua dissertação de mestrado Repensando Alberto Torres, disponível na ebiblioteca pública eBooksBrasil. As notas do Autor estão entre [ ]. As do tradutor, ou seguem as do Autor, ou estão entre ( ).

 

O Problema Mundial

(1) – Dois temas permanentes na obra de Torres: o pacifismo e uma visão “prática dos problemas práticos”, que se contrapõem respectivamente ao imperialismo (não em sua visão economicista restrita, mas do sentimento imperialista, segundo de Seillière) e a uma visão doutrinária e dogmática. Este sentido prático das coisas práticas aproxima Torres ao mesmo tempo dos escritos dos federalistas (The Federalist Papers, Hamilton, Jay, Madison), dos conservadores ingleses (particularmente Burke) e essencialmente de Donnat. (Cf. Estève, L. – Une Nouvelle Psychologie de L’imperialisme, E. Seillière, 1913, Librairie Félix Alcan, Paris; Hamilton, A.; Jay, J. e Madison, J. – Le Féderaliste, 1902, V. Gíard & E. Brière, Paris; Burke, E. – Reflections on the Revolution in France, 1973, Penguin Books, Londres; Donnat, L. – La Politique Experimentale, 1885, C. Reinwald, Libraire-Éditateur, Paris) Este último aspecto da obra aproxima-a, sem dúvida, de uma das características essenciais do pensamento político (quer de cunho liberal, quer de cunho autoritário) de origem anglo-saxônica. Esta questão é colocada em relevo por L. Duguit, em prefácio à obra de W. Wilson em sua edição francesa (L’État): “Desprezando teorias e generalizações, os juristas ingleses e americanos se atêm em geral à exposição analítica das legislações positivas que estudam; mas também, não deixam de apontar o papel social das instituições políticas e as deformações que recebem sob a influência dos fatos. Mas construções jurídicas à maneira alemã, concepções político-metafísicas à maneira francesa, sínteses sociológicas, não as encontraremos na obra destes publicistas.” (Duguit, L. in Wilson, W. – L'État, V. Gierd & E. Brière, Paris, 1902, Prefácio. Note-se que este é o tema básico de Burke na obra mencionada.

(2) – As idéias de convenção, convencionais, para Torres, são idéias que não correspondem aos fatos, mas que perduram por força da convenção. A questão de uma ordem anárquica, a princípio, pode parecer uma contradição em termos. Este ponto é importante, uma vez que um dos temas constantes da obra de Torres refere-se à organização (necessidade de organização nacional, necessidade de organizar uma ordem internacional). Aqui seria necessário fazer a diferença entre uma ordem dada (que pode ser anárquica) e uma ordem organizada (fruto da interferência racional humana, na ordenação). Assim, a uma ordem anárquica se contrapõe uma ordem racional. Esta ordem racional não pressupõe a ausência de dissenso, mas é a convivência organizada de dissensos, com um consenso sobre as formas de superação dos dissensos. Isto fica claro na justificativa de Torres ao seu projeto da Corte Internacional de Justiça. Cf. Pg. 12 e sgs do “Vers la Paix”.

Introdução

(1) – Alberto Torres refere-se aqui aos estudos publicados em “Vers La Paix”.

(2) – A existência de fato e não como idéia convencional de uma sociedade humana é dada para Torres pelo desenvolvimento dos laços reais que uniriam a espécie sobre a superfície da Terra. Esta idéia que é compartilhada na época por muitos dos militantes pela paz (Norman Angell, entre outros), retorna hoje como um dos pontos centrais do pensamento aglutinado em torno do Clube de Roma (Cf. Peccei, Aurelio – The Human Quality, l977, Pergamon Press, Cap. 8, Londres.)

(3) – Em latim no original. Interessante notar que a obra que Torres pretendia escrever teria o título de “orbis humanus”. A inspiração é evidente, e adquire mais sentido ainda se notarmos ser Torres um jurista e ter grande apreço pelo Direito romano como força unificadora do orbis romanus.

(4) – Podemos apontar este trecho como uma das demonstrações mais cabais da unidade do pensamento do Autor, tanto no que se refere ao plano internacional quanto ao plano nacional, expresso em “A Organização Nacional” e em “O Problema Nacional Brasileiro”. A importância da constatação de que os interesses “particularistas”, representados pelas ambições pessoais, de partidos e de agrupamentos, crítica evidentemente dirigida contra o liberalismo, têm raízes nos próprios fatos da época, vide, por exemplo, as guerras colonialistas. Esta crítica, entretanto, feita tanto à esquerda (Marx, p.ex.) como à direita (Mussolini, p. ex.), não leva forçosamente a um pensamento de cunho autoritário. Se se chega à constatação de que os interesses particularistas têm sua raiz na dissociação entre público e privado originada pela propriedade privada (Marx, A Ideologia Alemã), faz-se uma crítica radical às próprias causas de porque os particularismos impedem uma ordem “racional”, uma vez que esta ordem tem sua própria “racionalidade”, mas é uma racionalidade “espontânea”, selvagem. Se se chega à constatação que os interesses particularistas sempre se imporão, uma vez que a “natureza humana é má”, as decorrências podem levar à necessidade evidente de um Leviatã. A crítica de Torres ao individualismo, ao evolucionismo social e ao sentimento imperialista, além de sua ênfase no caráter natural do sentimento de “ajuda mútua”, parecem indicar que nega uma “natureza humana má”. Em O Problema Mundial, inclusive, os interesses particularistas não aparecem como interesses particularistas do povo “eternamente esmagado até hoje”, mas dos reis, dos barões, dos governantes, dos Estados nacionais. Uma crítica que tem sua origem na corrente baboeufiana da revolução francesa. (Cf. Kropotikine, P. – La Grande Rivoluzione, 1913, Edizione del Gruppo del Risveglio, Genebra, Caps.l e 2, 1 vol.)

(5) – Turgot, Washington e Haeckel, três das pessoas que Torres admirava. Segundo Roquette-Pinto, Torres tinha o retrato dos três em sua sala de estudo. Turgot, fisiocrata, discípulo de Quesnay, apresentara um plano a Luiz XVI de que constavam: diminuição das despesas da corte, livre circulação dos cereais, sistema representativo em assembléias eleitas, supressão das corporações. Este projeto encontrou o repúdio dos parlamentares, conjugado com o da nobreza e das classes pobres hostis à liberdade do comércio dos cereais, que levaria sem dúvida à alta dos mesmos. É interessante notar que seus sucessores, Necker, Calone e Brienne tiveram todos uma política semelhante. Torres, nesta passagem, afirma que Turgot orientava-se para o bem público ao propor as reformas, o que poderia ter evitado, entende-se, a própria eclosão revolucionária. Próximo a Torres neste juízo está Jaurés, que, em sua História Socialista, afirma: “Se não tivesse havido na sociedade francesa do século XVIII outro vício além dos restos deploráveis de um sistema antiquado, não necessitaria ela de um método revolucionário para se curar. Teria sido fácil, por exemplo, proceder a uma remissão gradual dos direitos feudais e à libertação progressiva dos agricultores. (..) O que restava de feudalisno nas nossas instituições e costumes não era já senão um vestígio: a centralização monárquica tinha desempenhado para com o poder feudal um papel revolucionário, e não era na verdade necessária uma nova revolução para arrancar as últimas radículas, por absorventes e incômodas que fossem, da velha árvore feudal de que Luiz XI, Richelieu, Luiz XV tinham cortado as raízes mestras. Mas a nobreza representava um duplo papel, e era funesta tanto num como noutro. Não se limitava só a manter, na nova sociedade monárquica centralizada e ativa, um detestável resíduo feudal. Corrompia e desviava do bem público a nova centralização real. (Jaurés,J. – História Socialista 1789-1900, 1901, Antiga Casa Bertrand, Lisboa, pgs. 21/22, grifo meu, para chamar a atenção para o mesmo argumento que o utilizado por Torres para se contrapor aos interesses particularistas, contrários ao bem público).

De Washington, Torres admirara certamente o sentido realista em política. De Haeckael, confessadamente, o monismo, do qual partilha.

(6) – Aqui, Torres especifica, com mais detalhe sua avaliação das duas revoluções capitais do século XIX. A Revolução Americana, obra de previsão política (Washington), a Revolução Francesa, o combate sem tréguas (rechaçado o plano de Turgot). A evitabilidade revolucionária, pela obra de previsão política, será diversas vezes enfatizada por Torres não apenas nesta obra, como ainda em A Organização Nacional e em O Problema Nacional Brasileiro. A forma: o atendimento do bem público, os interesses gerais da civilização e da humanidade, a submissão dos interesses particularistas aos interesses do grande número.

(7) – Sem dúvida, Torres faz referência ao Manifesto Futurista de Marinetti, publicado em Le Figaro, em 1909. Este Manifesto não era, como normalmente se supõe, apenas de cunho literário. Visava eliminar da Itália qualquer influência estrangeira. Neste último aspecto, foi superado pelo fascismo, que tem no futurismo um precursor. Este futurismo é visto por Torres como expressão do sentimento expansionista e imperialista. Esta crítica de Torres, premonitória, ousaria eu dizer, ao próprio movimento fascista, onde estes dois sentimentos certamente atingiram o ápice, soa como uma crítica do próprio Torres ao uso que na década de 30 fizeram de seu pensamento.

[8] Bergson – L'évolution créatrice. [Nota do Autor]

Torres afirma que o pensamento de Bergson está mais próximo do seu, o que parece indicar a afirmação de uma anterioridade de formulação alegada por Torres, o que pode realmente proceder, uma vez que, do pensamento de Haeckel, facilmente poderia ter tirado as mesmas conseqüências. E Haeckel é com seu monismo, uma das fontes do pensamento de Torres, confessamente.

[9] – Wilhelm Ostwald – Les fondements énergétiques de la science de la civilisation. [Nota do Autor].

Ostwald destaca-se ainda, e principalmente, por seus trabalhos de físico-química. Lester Ward (1841-1913) e Franklin Giddings (1855-1931), foram influenciados por Comte, Tarde e Spencer.

[10] – Hobhouse – Morals in Evolution; Wheeler – The Tribal and Intertribal Relations in Australia; Man 1911, 15; Grubb – An unknown People in an unknown land, Man, 1911, 57 [Nota do Autor]

L.T. Hobhouse foi professor de Antropologia na Universidade de Londres, antecedendo aí Malinowski e Radcliffe-Brown.

[11] – Buckle, Peschel, Ratzel, Issel, etc. [Nota do Autor].

[12] – A. Reibmayr – Contribuition à l'histoire des caractéres raciaux et nationaux. [Nota do Autor]

[13] – Jean Finot, Le préjugé des races. [Nota do Autor]

(14) – O livro foi escrito antes da 1a. guerra mundial, o que poderia dar motivo, e certamente deu, a uma reação contra os movimentos pacifistas anteriores. No Brasil, com o movimento de Bilac e o empolgamento da opinião pública, na época contrária à Alemanha, os efeitos certamente foram de igual teor, o que influiu provavelmente para colocar o aspecto pacifista da obra de Torres em segundo plano. É de se notar ainda que Torres contrapôs-se a Bilac contra o recrutamento obrigatório, favorável que era à organização milicial da defesa, ao estilo Suíço, contra a existência de exército permanente.

(15) – É, em toda a obra de Torres, a única menção que se encontra de agradecimento à contribuição de alguns pensadores, mesmo assim delimitada à contribuição a alguns aspectos pertinentes à obra em pauta. É inegável que Torres estava inteirado do movimento intelectual de sua época, além de ter dívidas patentes para com Spencer, Comte, Haeckel, os Federalistas.

(16) – Político e diplomata francês (1857-1933). Foi ministro dos negócios estrangeiros de Clemenceau. Torres aqui, certamente, refere-se à defesa feita por Pichon do tratado de arbitragem ilimitada que foi proposto ao Senado americano, sendo por este vetado.

(17) – Nesta passagem final da Introdução, fica claro que Torres não era o “sonhador” que não previa a guerra que se aproximava. O perigo da guerra é ainda reiterado por ele inúmeras vezes no próprio corpo da obra.

O Problema Humano

(1) – Esta população refere-se à década de 1910. Em relação à capacidade ou não dos recursos da Terra possibilitarem alimentar sua população, até hoje é questão altamente discutível. Alguns assumem a posição francamente negativa. Entre eles, figuram principalmente os que advogam um crescimento populacional zero ou um controle da natalidade. Os argumentos são conhecidos. De outro, os que acreditam na possibilidade dos recursos da Terra poderem ser racionalmente explorados, o que permitiria a alimentação não apenas da população atual mas também a dos anos vindouros. É interessante a defesa deste ponto de vista na imprensa brasileira, a respeito da superprodução de alimentos, feita por Aloysio Biondi (Shopping News, 27.11.77, pg. 3). Para uma discussão da questão, Cf. Dubos, René – Um Deus Interior, 1975, Melhoramentos/EDUSP, particularmente o capítulo 8; Mesarovic, Mihajilo e Pestel, Eduard – Momento de Decisão, o Segundo Informe ao Clube de Roma, 1975, Agir, particularmente o capítulo 7; Ward, Bárbara e Dubos, René – Uma Terra Somente, 1973, Melhoramentos, particularmente o Capítulo 11, Parte IV.

(2) – O sentido que Torres empresta à palavra indústria, bem como muitos dos seus contemporâneos, não tem o que lhe emprestamos hoje. É mais amplo, compreendendo, freqüentemente, qualquer atividade humana que transforme a matéria-prima bruta ou mesmo o produto agrário natural bruto.

(3) – Estes tratados foram rechaçados pelo Senado em nome do isolacionismo americano. Acreditava-se que envolveriam os Estados Unidos diretamente nas questões européias. A intenção dos mesmos, contudo, como aponta Torres, era outra.

(4) – Parte de menor resistência. Em latim no original.

(5) – As aspas são do original. Por este e alguns outros textos de jornal, Alberto Torres foi acusado de simpatias pela Alemanha, justificando o expansionismo germânico, já perfeitamente identificável na época. O sentido do trecho que se segue, contudo, indica bem precisamente o sentido analítico em que Torres se refere à Alemanha. Sobre a questão, cf. Lima Sobrinho,Barbosa, Presença de Alberto Torres, 1968, Ed. Civilização Brasileira, Rio.

(6) – Alberto Torres refere-se aqui aos insucessos franceses na expansão de sua política colonial, principalmente na África. Deve-se notar que neste trecho praticamente justifica a política colonial dos povos europeus, com a ressalva, certamente, feita na Introdução. (pg. X)

(7) – O reconhecimento da ação do capital americano na América do Sul é um dos temas freqüentes na obra de Torres. Cf. A Organização Nacional e O Problema Nacional Brasileiro, Ed. Nacional, S. P., 1938, 2a. Edição.

(8) – Mais uma vez, a posição dada por Torres à missão civilizadora da Europa. Posições semelhantes poderiam ser encontradas mais tarde no que se refere aos antecedentes da II Guerra Mundial, hoje taxadas de capitulacionistas, em relação à Alemanha. Parece, contudo, indiscutível que a intransigência quanto à permissão para que a Alemanha se expandisse na África e Ásia teve um papel bastante acentuado para acirrar os ânimos da Alemanha. O mesmo poder-se-ia dizer em relação à Itália.

(9) – Estes acontecimentos, levando à 1a. Guerra Mundial, ao Tratado de Versalhes e à submissão incondicional da Alemanha estariam também seguramente pavimentando o caminho da ascensão do nazismo na Alemanha e encaminhando a Europa para a II Guerra Mundial.

(10) – Neste ponto começa ampla análise de Torres referente ao problema da igualdade. A afirmação da contraposição entre o direito de viver e o direito de gozar, que Torres coloca na raiz da questão social, é vista por ele como algo perfeitamente superável, pela ação de uma política orientada não por interesses particularistas, mas para o bem público. Esta mesma contraposição, que lança raízes antigas nas profundezas do pensamento ocidental, é apontada por um contemporâneo de Torres como a própria semente do socialismo. Cf. Laveleye, Émile de – Le Socialisme Contemporain, 1894, Félix Alcan – Éditeur, Paris, Introdução. É de se notar que Laveleye também critica os interesses particularistas, a concorrência desenfreada, e chega mesmo a uma afirmação que lembra as de Torres no referente ao papel das armas: “Esta ordem repousa, de­fi­ni­ti­va­men­te, no apoio das bai­one­tas.” (pg.XLII, op. cit.)

(11) – Diversas vezes, na obra de Torres, inclusive na última (As Fontes da Vida no Brasil, 19l5, Papelaria do Brasil, pg.27 e sgs) a história até então é vista como a submissão do povo esmagado pelos reis, barões, etc. e, finalmente, pelos interesses particularistas. Ao mesmo tempo em que há aí a afirmação deste tipo de história como a “história que conhecemos”, afirma-se a existência de uma outra História, a dos dominados. Esta, por sua vez, é uma repetição constante, para Torres, da dominação, porque este povo não percebera ainda que “tinha o direito de não morrer”. É interessante notar que esta perspectiva é, inclusive, a da historiografia mais recente, inclusive no Brasil.

(12) – A questão da fome, aqui, pelo que se segue, deveria provavelmente ser entendida em termos comparativos, com situações históricas anteriores. É o que afirma com “ganhou em extensão o que perdeu em intensidade”. Parece, entretanto, que esta afirmação poderia ser objeto de uma discussão mais aprofundada, principalmente se considerarmos que menciona ainda a incorporação de “todo um mundo novo, de todas as raças, quase inapercebido ainda há algumas dezenas de anos”. É na realidade o tema freqüentemente repetido, onde se relativiza as situações presentes, comparando-as com as passadas. Assim, também, é que vai indicar as tendências para a paz. Comparativamente com a situação anterior “parece-lhe” estar havendo um movimento em direção à paz.

(13) – A crítica à aristocracia do dinheiro, apresenta-se aqui, bem como em outros trechos da obra, e em outras obras (As Fontes da Vida no Brasil, A Organização Nacional) como a crítica à democracia. Não se deve, contudo, inferir daí uma crítica à democracia “em abstrato” mas à democracia como se apresenta na prática ao seu exame. Uma análise de seu projeto constitucional mostra que não cogita em negar in limine valores que hoje atribuímos à democracia (p. ex. os direitos humanos). É uma crítica que se aproxima mais das críticas iniciais ao próprio capitalismo, críticas estas esposadas pelos próprios socialistas. As críticas à democracia burguesa têm a mesma origem: a Revolução Francesa. Não se exige, a partir da constatação dos limites da liberdade e da igualdade burguesas o fim da liberdade e da igualdade, mas a realização da liberdade e da igualdade de fato. Provavelmente assim poder-se-ia entender a defesa da pequena propriedade por Torres, no mesmo sentido em que ela seria defendida por Proudhon.

(14) – O “elitismo” de Torres é típico nesta passagem. Todo o seu projeto constitucional revelará o mesmo espírito, conseqüência direta da afirmação da racionalidade. A cultura [não confundir com detentores de diplomas] tomaria o lugar do dinheiro como medida do valor das pessoas. O modelo, obviamente, guarda muita semelhança com a própria organização do judiciário. É um tema utópico por excelência, muito antes, inclusive, de Saint Simon.

(15) – A crítica é contundente: não se trata de acalmar as reivindicações operárias, mas de “dar um lugar ao trabalho no jogo das forças econômicas”. O trabalho está subjugado, as medidas para acalmar as agitações operárias não mudam a situação. Mas a mudança poderia ser feita no dilema moderno, pela Revolução ou pela Reforma. Este dilema, seria falso tentar encontrá-lo em Torres, na sua forma moderna, que tem por referencial um outro universo de discurso. Para Torres a questão coloca-se “racionalmente”, em nome dos valores que afirma: os interesses da vida.

(16) – A política surge como a arte da previsão, É preciso “prever para prover”, um tema comtiano presente constantemente na obra de Torres.

(17) – A “marcha natural” das coisas deveria ser vista em conexão com o que é dito acima: ”evolução social”. Esta evolução tende à racionalidade (no sentido em que o homem é um animal racional, não da racionalidade abstrata). E precisa da paz para se desenvolver. A guerra, como “não racionalidade”, já que contraria os interesses da vida, é também, portanto, contrária à ordem natural. Ao mesmo tempo, os interesses da vida sobrepõem-se ao interesse nacional.

(18) – O problema humano (da espécie) sobrepõe-se, em Torres, ao interesse nacional que, na perspectiva internacional corresponde aos seus interesses particularistas no plano nacional. Ao mesmo tempo, nega a solução através do Império, propondo-a pelo entendimento. Na análise que faz da evolução da idéia da paz, mostra os que pretenderam alcançá-la pelo estabelecimento do Império Universal; para ele, contudo, a idéia será a de uma federação, mais próxima à Commonwealth do que do Império Napoleônico.

(19) – Em 1902, acordo ítalo-francês estabelece a troca de Marrocos por Trípoli, o que origina crise na Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Áustria). Em 1905-1906 tem lugar a primeira crise de Marrocos, com o protesto alemão contra a penetração francesa no Marrocos. Em 1906, na Conferência de Algeciras, é confirmada a política de portas abertas no Marrocos. A Entente Cordial sai fortalecida (França-Inglaterra-Rússia) com o isolamento da Alemanha. Em 1911 tem lugar uma segunda crise no Marrocos, em virtude de compensações territoriais dadas à Alemanha no Camerun. A Itália ocupa Trípoli e o Dedecaneso. Os conflitos na região do Marrocos durariam até a deflagração da 1a. Grande Guerra.

(20) – Movimento italiano para ocupação sobretudo de Trieste e do Tirol Meridional. Estas aspirações visavam sobretudo a Áustria (Tirol do Sul, Ístria e mar Adriático).

(21) – Novamente o tema do desvio da razão.

(22) – O velho problema que menciona é o do existente entre o direito de gozar e o direito de viver, expresso pela necessidade da vida. Cabe aos que governam solucioná-lo. A opção apresentada é a revolução, não como desejável, nas como resultado da não solução do problema. A revolução não é a opção do povo, mas o resultado da não solução do grande problema.

(23) – De todas as soluções, “as únicas capazes de conduzir a humanidade para seu objetivo” são as “ditadas pelo estudo racional da natureza”. É a crença na razão iluminista contrapondo-se ao irracionalismo (representado pelo misticismo, pela autoridade espiritual e do dogma, pelo despotismo dos julgamentos pré-concebidos). Contrariamente a muitos de seus contemporâneos, Alberto Torres reconhece o conflito, privilegiando a solução racional do mesmo, para evitar o confronto.

(24) – Este trecho é fundamental, por sua clareza, para o entendimento do governo forte apregoado por Torres. Sua força adviria não da coerção via força, mas de sua autoridade moral, racional e científica. No caso, inclusive, de sua esfera mundial. O mesmo projeto que Torres apresenta para a organização da política internacional é o que apresentará para a organização nacional, expressa em seu projeto constitucional. Trata-se de um governo forte, mas não “legitimado” pela força. Sua legitimação advém do reconhecimento universal de sua imparcialidade, de sua “autoridade racional e científica”.

(25) – A atualidade do problema é evidente. O reconhecimento de limites ao crescimento é uma tônica em escritos recentes, principalmente nos relatórios do Clube de Roma. Para uma discussão da questão, cf. Peccei, Aurelio – The Human Quality, 1977, Pergamon Press, Londres, principalmente o Cap. 5, item 3 – “Limits Everywhere” pg.87 e sgs.

(26) – Esta ética está ligada à afirmação de uma natureza humana. Esta natureza humana apresenta-se para Torres como boa, cordata, em ligação com a natureza, com a Terra, pacífica, levada à ajuda mútua. Se para alguns, contudo, o desvio desta situação deu-se pela propriedade, para Torres as causas serão cósmicas (avalanchas, inundações, etc), tanto que os povos que não as sofreram não conhecem a guerra.

A Idéia da Paz e sua Evolução

(1) – As causas físicas (terremotos, enchentes, etc.) como enfatiza o próprio autor no prefácio, é uma das características do pensamento do Autor. Reaparecerão em As Fontes da Vida no Brasil.

(2) – Esta afirmação de Torres é discutível. Não corresponde à verdade factual, pelo menos como é entendida por Weigall, Arthur – Histoire de l'Égypte Ancienne, 1949, Payot, Paris; Alfred,Cyril – Os Egípcios, 1966, Ed. Verbo, Lisboa; Yoyotte, Jean – Égypte Ancienne, in Histoire Universelle, 1956, Encyclopédie de la Pléiade, Paris, vol. 1.

(3) – Ao mesmo tempo, devemos nos lembrar que Hamurabi foi quem pessoalmente criou o Império Babilônico. O reino que herdou foi por ele dilatado e tudo indica que seu Código tinha muito mais a finalidade de garantir a centralização do Império do que a de “destruir o perverso e para que o forte não oprima o fraco”. Cf. Goossens, Godefroy – Asie Occidentale Ancienne, in Histoire Universelle, 1956, Encyclopédie de la Pléiade, vol.1

(4) – Este Código atribuído a Manu (600?-250? A.C.) ao mesmo tempo reflete também a estrutura social fundada no regime de castas (de instituição divina) que compreende: guerreiros (chatrias), sacerdotes (brahamanes), camponeses (visia), servos, submetidos e mestiços (sudras) e os sem casta (parias). É óbvio que Torres faz vistas grossas sobre isto.

[5] – Faguet, Émile – Le Pacifisme [Nota do Autor]

Note-se que foram também os estóicos que apresentam uma idéia de totalidade orgânica, podendo ser discutível, inclusive, o apresentarem um monismo. Cf. Goldschmidt, Victor – L'Ancien Stoïcisme, in Histoire de la Philosophie, 1969, Encyclopédie de la Pléiade, Paris, vol. 1.

[6] – Gomperz – Les Penseurs Grecs [Nota do Autor]

(7) – Outro tema caro a Torres e que permeia toda sua obra: a política é uma arte empírica, inseparável da vida real. Daí a aproximação que fizemos entre ele e o pensamento mais de cunho anglo-saxão do que o de cunho francês ou alemão.

(8) – Epicuro foi o primeiro a apresentar a sociedade como fruto de um contrato social, no dizer de Marx, K. em A Ideologia Alemã, [1968, Progress Publishers, Moscou, pg. 149]. Marx afirma mesmo que os epicuristas eram os verdadeiros iluministas da antiguidade.

(9) – Esta limitação de St. Lambert, Torres também a fará ao seu projeto de constituição.

(10) – Esta justiça é feita por Jean Brun em Les Socratiques, in Histoire de la Philosophie, 1969, Encyclopédie de la Pléiade, Paris, vol 1., até mesmo chamando-os de filósofos do proletariado. Um dos discípulos de Crates, filósofo cínico, discípulo de Diógenes, o cínico, foi Zenão de Cittium, fundador do estoicismo. Aos estóicos Torres reconhecerá a discutível idéia de terem formulado um monismo. A posição de Torres, se remontarmos aos gregos, é visivelmente a dos cínicos e dos estóicos, principalmente dos segundos, que não teria dificuldade de unir ao monismo de Haeckel. É visível o quanto esta idéia o envolveu, conferindo o que coloca na boca dos estóicos como suas próprias proposições “princípio de unidade do gênero humano, deduzido da lei mais ampla da ordem universal, da harmonia de todas as partes do universo, um programa de cosmopolitismo e de paz, a República Universal” todos estes temas e propostas serão encampados por Torres.

(11) – As diversas tentativas de federação na Grécia têm a mesma postura em relação aos homens. Franz Altheim amplia, inclusive, a questão, discutindo a liberdade de culto no interior do Império Romano [Altheim, Franz – El Dios Invicto, 1966, EUDEBA, Buenos Aires]; o mesmo argumento é encontrado em Lepelley, Claude – L'Empire Romain et le christianisme, 1969, Flammarion, Paris.]

(12) – A. Torres foi estudante de Medicina no Rio, antes de cursar as Academias de São Paulo e de Recife. Isto justifica não apenas este uso do termo embriológico aqui, como também muitos outros de origem evidentemente biológica que podem ser encontrados em sua obra, além dos óbvios que podem lhe ter vindo pela sociologia da época.

(13) – Mais uma vez esclarece-se porque Torres pretendia chamar de “orbis humanus” a obra que planejava escrever.

[14] – Paul Janet – Histoire de la Science Politique [Nota do Autor]

(15) – Mais uma vez Torres volta a mencionar os estóicos, no mesmo sentido já apontado.

[16] – E. Renan – Les origines du christianisme [Nota do Autor]

(17) – “Homem sou e nada que é humano me é estranho”. Em latim no original.

(18) – É evidente o entusiasmo de Torres. É evidente também o monismo expresso nesta passagem: “Tudo veio de ti, tudo está em ti, tudo está a caminho de ti”. Compare-se ainda a afirmação de Torres de que o interesse da vida é a própria vida com: “o homem deve viver segundo a natureza, durante os dias de vida que lhe são dados sobre a terra..” Marco Aurélio era estóico.

(19) – Menção à separação entre César e Cristo; entre a ordem temporal e a ordem eclesiástica.

(20) – Torres aqui está expondo. Sua tradição republicana, de republicano histórico, veria uma ordem internacional mais de cunho republicano do que monárquica, apesar da admiração que sentia pela Inglaterra, uma monarquia republicana, como afirmam alguns na época. E deixa claro em outros trechos.

(21) – Termina a exposição, com as ressalvas necessárias.

(22) – Estranha passagem para um “autoritário”! Note-se a menção à consciência da liberdade política e ao reconhecimento dos direitos do proletariado.

(23) – É óbvia a menção de tais projetos meramente como recurso para historiar a idéia da paz, não de adesão a eles – “O mundo governado pela autoridade dos eleitos de Deus” não encontraria em Torres um defensor, ele que propunha para o Brasil: “reformas sociais humanas e da organização da sociedade livre, pela política da representação social, da solução racional dos problemas, livres de cânones, livres de impérios, sem Reis, com Deus, ou sem Deus, mas, certamente, sem Papas”... – (As Fontes da Vida no Brasil, op. cit. pg. 27).

(24) – Não apenas uma menção ao governo republicano, República pela qual lutara Torres, mas também a afirmação, uma vez mais, de um programa prático como condição de eficácia.

A Luta e a Vida

(1) – Após as menções seguidas aos estóicos, seria suficiente conferir-se esta passagem com a citação anterior do estóico Marco Aurélio para vermos a fonte que inspirou a Torres muitas de suas posições, bem como a linhagem de suas idéias.

(2) – A interdependência entre os viventes não é uma questão de vontade, mas uma questão objetiva, de fato. A solidariedade não corresponde a uma inclinação “boa” da natureza humana, mas é esta própria natureza, necessária.

(3), (4) – Notamos aí um tema clássico da sociologia, o marchar do inorgânico para o orgânico, do indiferenciado para o diferenciado, que permanece na sociologia desnudado de sua forma biológica, nos temas da complexidade crescente, no da diferenciação e até mesmo no da modernização (esta contraposta à simplicidade).

(5) – Em inglês no original

(6) – A modernidade desta visão evolucionista é patente.

(7) – O espírito de harmonia entre os viventes lembra as mais modernas noções ecológicas, bem como a crítica ao distanciamento homem/natureza da tradição romântica. Corresponde, inclusive, a um padrão mais antigo, que poderíamos com Raymond Williams denominar de teoria da pastoral (Cf. Raymond Williams, The Country and the City, 1975, Paladin, Londres; também Leo Marx, A Vida no Campo e a Era Industrial, 1976, Melhoramentos/EDUSP, São Paulo), da qual a tradição romântica seria apenas uma das expressões, o arcadismo outra. No entender mais moderno, não seria apenas uma propensão do homem para a natureza, como o locus perdido, mas uma necessidade biológica.

(8) – Pacifista, Alberto Torres, embora certamente evolucionista, não transfere para o social o evolucionismo como muitos em seu tempo, principalmente os que tentam ver na ordem capitalista selvagem da época uma manifestação da luta pela vida e conseqüente sobrevivência dos mais aptos. Esta justificativa evolucionista para o caos capitalista é bem notada por Laveleye (op. cit. pg. XVIII) que, inclusive, constata, com espanto, a defesa do evolucionismo feita por socialistas. Torres observa, com justeza, que struggle não significa o mesmo que luta, fight, não envolvendo oposição, mas esforço.

(9) – Por não usar outro termo, apesar da menção acima, prejudica sensivelmente a clareza deste trecho.

(10), (11) – Torres deixa patente que a seleção social é diferente da natural, enfatizando o social como sobrepondo-se ao individual nas seleções sociais. A seleção natural teria um caráter individual, a seleção social, um caráter ”socializado”? A mera associação resultante da sociedade, definiria uma nova dimensão à seleção? Este ponto é interessante, por pressupor uma não coetaneidade entre indivíduo e sociedade; a sociedade não é um fato natural, portanto, mas um grau na evolução.

(12) – A importância do meio e da reação orgânica é reconhecida atualmente, embora não na forma lamarckiana mencionada por Torres.

(13) – Este ponto evidencia o que foi acima dito (comentário às notas 10-11) sobre a não coetaneidade para Torres do homem/sociedade. Mais, ainda, a própria evolução social segue a racionalidade, que indicaria ao homem o caminho da experiência e da razão.

A Idéia da Guerra, hábito banal de nosso espírito. O homem não tem instinto belicoso

(1) – Opinião confirmada pelo pensamento ecológico contemporâneo: um eco-sistema está em estado permanente de equilíbrio instável; deixado assim, tende a limitar cada uma das formas de vida existentes em seu interior, dinamicamente, através de compensações. Em nota na edição original, afirma Torres:

[2] – “A viabilidade e a aptidão para viver restabeleceriam o equilíbrio entre os seres inferiores e os meios, independentemente da intervenção de qualquer ato voluntário de eliminação dos inferiores pelos superiores. Entre o homem, é preciso recorrer a uma causa psíquica para explicar o excesso de populações além de toda proporção entre a produtividade da terra e o número de seus habitantes, como na China.” [Nota do Autor]

[3] – F. Nietzsche – O Crepúsculo dos Deuses [Nota do Autor]

[4] – Aristóteles, Augusto Comte [Nota do Autor]

(5) – Se levada ao extremo esta idéia é correta; não o é, contudo, quando há um quase equilíbrio de forças, a luta decidindo finalmente quem a ganha, uma vez que a vitória é impossível de ser prevista pela mera avaliação das forças de que dispõe cada um dos contendores. Mas não parece que Torres dê a esta afirmação um alcance tão amplo. Refere-se à perseguição à vida; neste caso parece que alguns são presa, outros caçadores, pela própria força com que a natureza os dotou. Os casos de vitória seriam raros, esporádicos, mais notáveis exatamente pela excepcionalidade.

(6) – Para Torres, portanto, o Estado e a hierarquia são resultantes não da ordem natural, não um dado, mas fruto do próprio processo da luta pela vida. Entretanto isto não seria imaginar o homem como nômade, isolado, sem a proteção do bando? A ir nesta direção, parece mais provável a hipótese de W. Wilson, que vê na família e na extensão desta os elementos constitutivos do Estado. Mesmo esta interpretação, contudo, não anularia as conseqüências visadas por Torres, uma vez que o pai teria sua posição garantida exatamente pela maior sagacidade (Conselho de Anciões, etc.). As hipóteses que vêm na propriedade o surgimento do Estado implicariam em uma época tardia, já com o abandono do nomadisno, como época da formação do Estado. Neste caso, o argumento de Torres parece que não resistiria.

[7] – Elisée Reclus – L’homme et la terre [Nota do Autor]

(8) – Ou seja, Torres retoma o argumento de que a ordem natural (necessidade de conservação) não implica em guerra. Ou seja, a “perversão da natureza” é que causa a guerra. Neste particular, Torres é realmente filho do século XVIII, guardando pontos de contato óbvios com Rousseau, por exemplo.

(9) – A guerra motivada contra o inimigo não da população, mas dos que sobre ela exercem um jugo. A paz é que permite o surgimento das reivindicações do povo.

(10) – Hoje parece estranho que Torres combata uma concepção tão “antiquada”. É de se notar que Torres é um escritor do começo do século e a discussão do eterno feminino é uma discussão séria na época.

(11) – A proximidade com o direito natural é mais do que aparente. É essencial para a compreensão do pensamento de A. Torres aproximar sua concepção de Direito da do Direito Natural. A natureza humana confere aos homens determinados direitos. Mas o distanciamento de uma ordem natural faz com que os homens desconheçam os direitos decorrentes de sua própria natureza humana. É necessário que ele tome consciência de sua natureza para que tome consciência também dos direitos que dela decorrem. O argumento é interessante, porque casa o direito natural com uma visão sociológica do Direito. O direito é natural, nas não é por ser natural que é conhecido por todos os homens. É preciso que a razão descubra o que é natural.

(12) – É preciso ainda relacionar o que se segue com a observação acima. Torres contesta o instinto e a natureza humana como dados. Não se trata de valores matemáticos, afirma. A natureza humana parece aqui ser contestada por Torres. Parece-nos, entretanto, que é mais como força de argumentação da forma como ela é ligada à guerra pelos que Torres combate do que pelo argumento em si. Do contrário seria uma evidente contradição no interior do pensamento de Torres, hipótese que, claro, não pode ser descartada. Mas são tais as menções à natureza humana, que a hipótese inicial parece mais plausível. Mas esta natureza não é dada de uma vez por todas, exceto no que tem de biológica, no interesse da vida. Natureza portanto que o homem compartilha com todos os demais viventes.

(13) – Torres tenta traçar a gênese do procedimento humano de indiferença à vida. O instinto é o instinto de conservação. Mas não é ele a causa da guerra; por si só não levaria à indiferença pela vida do outro. Dai a necessidade de fazer intervir os acontecimentos cósmicos (avalanchas, terremotos, etc.), a caça. É a necessidade, não o instinto, que faz com que o homem acabe guerreando.

(14) – Esta idéia de Torres é evidentemente muito moderna, incrivelmente moderna, se pensamos que a Antropologia de seu tempo ainda estava permeada pela noção das sociedades “primitivas”.

(15) – A evolução não é ligada por Torres aqui à noção de progresso, com que nos habituamos. Inclusive a evolução é vista como um caso particular de avanço (também não ligada à noção de progresso). Evoluir para ele é adaptar-se; sem noção de progresso necessariamente implícita. Adaptar-se pode ao mesmo tempo ser regressão, evolução e retrocessão. Daí afirmar a possibilidade de avanço em um sentido ou em outro. Ou seja, o progresso não é inevitável, não corresponde a uma lei geral da evolução. É claro, contudo, que subjacente à idéia de evolução, inclusive como apresentada aqui, hoje, não podemos deixar de pensar em progresso, principalmente quando vem junto com regressão e retrocessão. Mas mesmo estes termos não implicam em não progresso, mas em não adaptação, ou forma particular de adaptação, mais ainda, em um sentido de adaptação: para adaptar-se é preciso desenvolver certos mecanismos novos; ou desenvolver mecanismos rudimentares. É evidente, também, que para nós cada uma destas palavras vem carregada de um sentido de progresso. Não parece ser este, contudo, o sentido em Torres. É preciso aprimorar a razão, mas não é inevitável seu aprimoramento, seria em termos mais gerais a conseqüência desta afirmação da evolução em Torres.

(16) – A expressão nietzschiniana empregada aqui tem um sabor claramente sarcástico.

(17) – Do que se segue, nota-se que Torres não vê na superação da guerra um estado de não conflito entre pessoas, ou grupos, um estado idílico.

(18) – É o reconhecimento de causas justas para a irritação das massas, contrariadas em suas necessidades e aspirações. Pelo que se segue, é o descobrimento da própria natureza, mencionada antes por Torres. Neste sentido seria manifestação de racionalidade, não de irracionalidade.

(19) – Com todas as letras, Torres afirma que quem causa as guerras são os que exploram, enganam o povo, não atendendo suas aspirações e necessidades. Resultam da “hierarquia e da organização impostas às sociedades”. Este trecho assume importância tanto maior quanto é afirmado ser o pensamento que alinhava “o conjunto deste trabalho”.

(20) – É de se contrastar esta afirmação com a que se lhe segue: a primeira com que não encontra respaldo nos fatos, pareceria; a segunda encontraria. Não passou por Torres a possibilidade talvez de que as multidões se deixassem empolgar pelos tribunos exatamente pelos interesses e pelos problemas sociais? Ou, pelo contrário, a afirmação da racionalidade iria ao ponto de afirmar a impossibilidade de tal ocorrer?

A Paz, o Conhecimento e o Pensamento Humano

(1) – Torres, claramente, vê na idéia e no ideal representações lançadas em direção ao futuro. Na medida que a idéia representa uma criação mental existente no espírito, não pré-existe ao espírito. É um fato intelectual, não um fato metafísico. Ideal não é pois senão a pretensão de realização da idéia, lançada no futuro. (uma idéia em aspiração, ou a aspiração de uma idéia) Para tirar o sabor “metafísico” destas idéias certamente recorreríamos hoje às palavras projeto e programa, no que se refere à política.

(2) – Compare-se com esta afirmação de Marcuse: “A realidade só é concebível como a realização do que hoje se qualifica de utopia” ou esta de Oscar Wilde: “O progresso nada mais é do que a realização da utopia” (in Bussiek, Hendrik – Transformación de la Sociedad, 1976, Monte Avila Ed., Caracas, pg. 9). A realidade é o que é dado, a idealidade é a realização atualizada do ideal.

(3) – A concepção de Torres da idéia neste caso não é “idealista”, no sentido pejorativo que costuma tomar a palavra. A idéia não pré-existe ao mundo, pelo contrário, “seria impossível sem o exemplo dos fatos percebidos”. E completa Torres “o fato não existiria sem sua concepção anterior”. Não se trata da marcha da idealidade para a realidade, mas sim a da realidade para a idealidade.

(4) – Aqui Torres reforça a recusa a uma concepção pré-concebida de progresso, ou a concepção finalista. Mas afirma a necessidade da existência corresponder a uma harmonia entre ser e meio ambiente.

(5) – Ao mencionar o homem como o faz aqui, está evidentemente implícita a noção de natureza humana.

(6) – A desatenção é vista por Torres como um fenômeno natural na sociedade. A não participação é o normal.

(7) – Na linguagem de Torres, a paz apresenta-se como um problema de ordem prática, não como expressão da idéia da paz, ou um ideal de paz a ser realizado. Apresenta-se como uma necessidade.

(8) – Não é por corresponder a um ideal de fraternidade entre todos os homens que a paz deveria ser realizada, mas por corresponder a um problema político, portanto de ordem prática. Não se chegará à paz através da realização do ideal de fraternidade entre os homens, mas à fraternidade pela paz.

[9] – Jules de Gaultier – Mercure de France, 19l2: La Présomption sociologique [Nota do Autor]

(10) – A questão é claramente a da irracionalidade/racionalidade.

(11) – “A inutilidade das pesquisas sobre as causas primeiras e finais”. Torres coloca-se claramente em uma posição agnóstica.

(12) – A afirmação que daí decorre: a da especificidade do social e ao mesmo tempo a impossibilidade de lidar com esta especificidade por via do cálculo, ou por via de pesquisas sobre as causas primeiras e finais.

(13) – Torres coloca a intuição ligada ao sentido prático das coisas. É óbvio ainda que por cálculo Torres entende as quatro operações, não ao uso de fórmulas (que afirma mnemônicas) em algumas ciências.

(14) – A negação dos métodos de experimentação e de observação, além do privilegiamento da intuição pareceriam conduzir à negação afirmada por Torres da racionalidade. Soaria como uma contradição no interior do pensamento do autor, não fosse a afirmação seguinte de que “os problemas humanos reduzem-se a questões de utilidade e de oportunidade”. O gradualismo é patente.

(15) – Torres leva ainda adiante a questão, imputando à ciência que avança além dos problemas colocados pelos fatos, como conturbação da evolução. O desenvolvimento da ciência não apresenta para ele um fim em si, mas deve atender a uma ordem diferente de considerações de ordem prática.

(16), (17) – A defesa da intuição como instrumento de conhecimento é mais que patente, bem como um certo apelo a um empirismo “não científico», através da utilização do raciocínio, como se este fosse inato.

[18]L’évolution créatrice – [Nota do autor]

(19) – Torres aponta uma direção além da intuição e da inteligência, de uma mescla de intuição, de observação, de experimentação.

(20) – Embora identifique o papel da intuição, Torres acredita que a ação do espírito ultrapasse a mera intuição. É como se acreditasse em um aperfeiçoamento do espírito.

(21) – A distinção na direção aqui apontada é entre descobertas e aperfeiçoamentos.

(22) – Aqui Torres delimita seus pontos de contato com Bergson. Não é de se estranhar que em um Brasil do início do século Torres fosse visto como uma pessoa a caminho de um certo misticismo. É interessante notar os pontos de contato com um pensador contemporâneo, René Dubos, em O Deus Interior (op. cit.)

(23) – Na obra de Torres é o trecho em que mais fica claro o que entende por problemas e soluções de ordem prática.

(24) – A questão do conhecimento é aqui esboçada por Torres, mais como problema que lhe é apresentado do que realmente como solução dada. Afirma aqui a supremacia da prática.

(25) – Não nega um poder de percepção superior, que liga a uma faculdade do espírito que não define.

(26-29) – O papel do indivíduo na História é visto por Torres como fundamental. Compartilha a posição de Tarde.

(30) – A vista de conjunto é mais importante, portanto, do que a analítica.

(31) – Expressamente refere-se a uma evolução espiritual, mas como emanação dos seres que vivem e das coletividades que se agitam sobre a Terra, não a ligando aqui ao papel do “grande homem”.

(32)-(33) – A impossibilidade de leis gerais da sociedade para Torres evidencia-se aqui. É a mesma questão que se colocava Claude Bernard em relação ao corpo humano.

(34) – Grandes sínteses, grandes generalizações, nem o método indutivo, nem o dedutivo. É quase que a defesa de um método compreensivo, a la Weber.

[35] – P. Kropotikin – L’Entr’aide [Nota do Autor]

(36) – Embora contra os particularismos, Torres aqui afirma que a própria defesa dos particularismos, tendo que se apoiar em uma razão moral, acaba por alargar esta razão moral, em um trabalho de aperfeiçoamento.

(37) – Torres identifica com clareza os dois pólos de discussão da natureza humana (o homem é bom, o homem é mau). Sem afirmar nenhuma delas, e o motivo é identificar uma diversidade de sistemas de Moral, ressalta de todo o volume que assume a primeira posição.

(38) – Importante como elemento indicativo da ligação de Torres com o pensamento do século XVIII e como indicativo do que o separa dos que vieram a utilizar (e deturpar) seu pensamento na década de 30.

(39) – Este é o complemento da crítica feita à ciência pela ciência. É também a definição dos valores pelos quais Torres examina as questões da paz, no plano internacional e o da organização nacional, no plano interno.

(40) – Torres volta a enfatizar a observação e a experimentação (que certamente deveriam ser ligadas à observação e à experimentação a partir de grandes sínteses e de vistas abrangentes) e reafirma os interesses da vida. O linguajar certamente não faria com que os autoritários de 30 concordassem com ele.

(41) – Uma política “despolitizada”, baseada no saber, no exercício da racionalidade, nos interesses do homem, é o que Torres propõe não apenas aqui como também em seu projeto constitucional. Os pontos de contato com a política experimental de Donnat são mais do que evidentes.

A Guerra, fenômeno mais social do que nacional.

A paz, conseqüência da evolução

(1) – Mais uma vez, Torres mostra os pré-requisitos para que o que se apresentava como ideal se torne um problema prático. Afirmar uma humanidade, que não existe senão como idealidade, como argumento para a paz é utópico. É necessário antes que esta humanidade se torne humanidade objetivamente, pelo conhecer-se. É a mesma questão que Torres coloca em relação ao Brasil em A Organização Nacional: “Se em toda parte, as sociedades não receberam organizações próprias, senão simples construções provisórias, com materiais em ruína; se o Estado não é, ainda, mais que mera corporação policial, e órgão de comando, por violência ou por sugestão; no Brasil, onde a sociedade não chegou a reunir sequer os elementos agregantes da tradição nem a sociedade existe, nem o Estado: e Estado e sociedade hão de organizar-se reciprocamente, por um processo mútuo de formação e de educação.” (A Organização Nacional, op. cit. pg.l7/18)

(2) – À lógica bipolar, Torres contrapõe uma lógica do movimento, da transmutação. É interessante notar que ao afirmar a lógica do movimento o exemplo dado refere-se à vida, na negação da polaridade vida/morte. Nesta medida, Torres faz a vida transcender a existência.

(3) – A doutrina, fixando um quadro de referência, impede o conhecimento de fato. São idéias de convenção, dogmas, cristalizações de idéias, que impedem reconhecer as questões como questões de ordem prática que exigem soluções de ordem prática. Mas as doutrinas não são criadas arbitrariamente. No caso em pauta, a guerra era um fato. A partir do momento em que este fato encontrou uma doutrina, um sistema que o justificasse, cristalizou-se no pensamento político como um fato necessário.

(4) – A guerra em si não é justa nem injusta. É necessário um quadro referencial para que ela assim se apresente. No caso, a adesão a uma crença. A causa das guerras não poderia ser vista a partir deste quadro de referência.

(5) – Torres não advoga Torres não advoga que o sistema de idéias e realidade social sejam coetâneos. Os ritmos de mudança entre o sistema simbólico e o referencial empírico divergem. O sistema simbólico persiste, mesmo quando os fatos que lhe deram origem já desapareceram.

(6) – Em 1840 surgira o primeiro movimento a favor da emancipação de Cuba. Este movimento só se afirmou a partir de 1895. Em 1898, com a intervenção norte-americana, a Espanha foi obrigada a ceder Cuba aos Estados Unidos, sob cuja administração ficou até 1902. A nova república passou fases críticas de perturbações internas nos anos de 1906, 1909 a 1913; neste ínterim também ocorreu uma grave insurreição de negros, bem como em 1917. Todas as vezes houve intervenção dos Estados Unidos.

(7) – O excesso de população e questões econômicas são reconhecidos por Torres como motivos para guerras. Daí sua proposição sobre a imigração. Este ponto é interessante de ser notado, uma vez que se considerarmos apenas as obras de Torres referentes ao Brasil (particularmente: A Organização Nacional e O Problema Nacional Brasileiro) ficaríamos com a impressão de que Torres é contra a imigração, tout court. Aliando-se o que diz ao O Problema Mundial com o que é dito nas obras “nacionais”, a questão fica mais matizada.

(8) – É o filho da Revolução Francesa falando. Compare-se a crítica radical do capítulo anterior sobre os governantes dispondo dos destinos das populações de seus países. Não é mais a vontade dos soberanos que decide da vida dos povos, mas a vontade geral (Rousseau) – Interessante ver a análise de Rousseau sobre o projeto do Abade de St. Pierre: Rousseau, J.J – Écrits sur l’Abbé de St. Pierre, in Oeuvres Complètes, 1964, Encyclopédie de la Pléiade, vol. III, pg. 588.

(9) – Um dos elementos que para Torres torna necessário o estabelecimento da paz é o grande problema da questão social. Neste particular, Torres alarga a discussão, ao limitar a questão social aos países desenvolvidos e introduzindo o conceito de pauperismo para pensar sobre os países periféricos. A levar a sério esta proposição, a presente formulação limita inclusive seu projeto constitucional para o Brasil. Este deveria ser visto como um passo de solução para os problemas, que, contudo, não encontrariam a solução definitiva senão a nível internacional.

(10) – O diagnóstico de Torres dos problemas contemporâneos leva em consideração tanto a questão social quanto o direito à auto-determinação das colônias. Esta posição vai ser expressa no projeto constitucional que apresenta para o Brasil, o que permite inferir que faz parte do núcleo em torno do qual organiza seu pensamento.

(11) – Torres esboça uma crítica à divisão territorial internacional, ocorrida “por acaso”, ao sabor dos desenvolvimentos históricos. No projeto constitucional apresentado para o Brasil este problema retorna, na possibilidade dada à União de dividir racionalmente o território.

Como Resolver estes Problemas?

(1) – É a crítica de Tarde, digna de ser retomada se constatarmos a proliferação, sob o signo do evolucionismo do século XIX, de teorias supra-históricas da História. Torres faz intervir a vontade na História, mas não ao seu bel prazer, é o que fica claro no parágrafo seguinte.

(2) – O passado, as relações de todo mundo pesam sobre a vontade individual, que encontra aí seu limite, sem ser negada. A crítica ao conservantismo separa Torres de muitos de seus contemporâneos. É interessante notar que Le Play era um conservantista, no estilo criticado por Torres, que critica expressamente Le Play em outra obra, e que este defensor das monografias era o sociólogo a quem Oliveira Vianna se ligava.

(3) – Ou seja, até então apenas a vontade dos soberanos contava. É necessário que a vontade do povo passe a contar, afirma Torres. Constata, contudo, que a vontade (a razão) que passou a decidir não foi a razão nem dos sâbios nem a do povo, mas a dos homens de negócio.

(4) – Retoma Torres, uma vez mais, a crítica ao darwinismo social.

(5) – Parágrafo interessante, em que Torres delimita seu pensamento em relação aos libertários e socialistas, em relação aos liberais da escola clássica, em relação aos evolucionistas. É interessante que não critica os liberais, tout court, mas delimita bem da escola clássica.

(6) – Torres dizia-se a si mesmo um melhorista; Os pontos que ressalta desta posição podem lançar alguma luz sobre seu pensamento:

1. A crença na força da civilização e da cultura;

2. Há uma direção consciente no progresso humano;

3. Esta direção consciente é conduzida por um Destino ou por uma Providência.

A razão, assim intervém, mas há algo que transcende a razão, um Destino, uma Providência, que age na História através da razão dos homens.

(7) – O elitismo de Torres é patente nesta passagem. Mas, diferenciemos, não se trata de um elitismo que se eterniza. Esta passagem deveria ser matizada pela possibilidade do aperfeiçoamento da razão no povo. O trabalho desta elite não é o de conduzir e só conduzir, é o de esclarecer, de educar, para a elevação do povo, pela solução dos problemas práticos.

(8) – Torres coloca o trabalho no centro da História. Esta posição não é circunstancial. Em A Organização Nacional e em As Fontes da Vida no Brasil volta a insistir neste ponto.

(9) – A crítica à política aqui não poderia ser entendida como uma crítica a toda política, a qualquer política. Aqui, Torres entende a política como a política comum, corriqueira, da disputa, dos cargos. A política que propõe é uma política racional, da solução de problemas racionalmente, não pela disputa. Os procedimentos e os costumes da política são os elementos criticados realmente. Em A Organização Nacional, afirma: “Educação pela consciência e pelo exercício, o que vale dizer por um programa, isto é, por uma política: eis o meio de transubstanciar este gigante desagregado em uma nacionalidade”. Uma política programática, que contrapõe a um procedimento e a um costume que não são programáticos. Assemelha-se muito às criticas modernas a uma política “sem ideologia“. (A Organização Nacional, op. cit, pg. 18)

(10) – A crítica já mencionada ao Império encontra aqui sua expressão mais cabal. A menção à Inglaterra, como um Império nominal e como exemplo da futura organização internacional que imagina, é esclarecedora. A impossibilidade do Império Universal é dada porque “a autoridade política foi fundada na vida social”, ou seja a soberania reside no povo, “na vida social.” E propõe uma democracia de nações.

(11) – Torres reconhece a rivalidade entre as classes, cujo resultado, a permanecer a “política da inércia”, resultará na revolução. Importante é que diz que os países novos seguirão em sua evolução a mesma tendência, com a agravante dos ódios das raças. Ou seja, embora afirme que nos países novos o que existe é o pauperismo, afirma também que a superação do pauperismo, com a evolução destas sociedades, fará surgir nelas os mesmos problemas da questão social evidentes nos países desenvolvidos, se não forem tomadas medidas.

(12) – O reconhecimento de que existem limites para o crescimento é evidente nesta passagem. A crítica à forma de evolução da sociedade americana também. Torres contudo não acusa o capitalismo, mas seus abusos.

(13) – A noção de progresso contínuo, linear, encontra uma vez mais em Torres um argumento contra. A História é vista como um feixe de possibilidades, em que, no caso, a Alemanha é dada como exemplo.

(14) – Não há obra de Torres em que este tema não volte seguidamente. Hoje, parecer-nos-ia um exagero. Na época, entretanto, era um dos temas centrais, principalmente no Brasil, onde muitos defendiam o “branqueamento” da população brasileira, como condição para o progresso.

(15) – Torres reconhece o uso político das doutrinas políticas. Estas doutrinas seriam expressão de interesses. Alguns, hoje, colocariam a questão em termos de ideologia e consciência.

(16) – A diferença entre o que poderíamos chamar de preocupações ecológicas de Torres com as preocupações contemporâneas (de alguns ecologistas) é que Torres descarta continuamente o problema da população. O crescimento populacional em si, para Torres, não é um problema. O problema coloca-se na distribuição desta população sobre a superfície da Terra, no esbanjamento dos recursos naturais, na imprevidência, na irracionalidade de todo o sistema internacional.

(17) – Este ponto completa o que já dissemos sobre a questão da evolução em Torres. A evolução não é necessariamente ligada à noção de progresso, nas à de adaptação. No caso, “degenerar é ... adaptação lucrativa para a vida”.

(18) – Une Torres o conceito de evolução social e evolução natural. Esta, no que tange à adaptação física, aquela no que diz respeito à adaptação social. O homem adapta-se à sociedade, a sociedade adapta-se ao meio, o homem adaptando-se igualmente a este. Estas adaptações, porém são diferentes: o tipo de evolução social difere da evolução natural.

(19) – Schliemann (1822-1890), arqueólogo alemão, fez escavações em busca de Tróia. Não localizou uma Tróia, mas diversas. Evans (1851-1941), arqueólogo inglês, foi diretor do Ashmolean Museum, de Oxford e descobridor da civilização minoana.

(20) – Franz Boas (1858-1942), antropólogo alemão. Em 1888 transferiu-se para os Estados Unidos, lecionando Antropologia na Universidade de Columbia. Foi um dos mais ferrenhos combatentes contra a teoria da desigualdade entre as raças.

[21]The History of Mankind [Nota do Autor]

(22) – Termo alemão que significa luta pela civilização e pelo qual se designa o conflito de direitos políticos e legais entre o Estado alemão e a Igreja Católica. Iniciado em 1872, durou até 1887, com a reconciliação formal com o Vaticano. Teve seu aspecto mais agudo na Prússia.

(23) – Alemanha acima de tudo, em alemão no original.

[24] – P. Kropotkin – Inheritance of aquired characters, Nineteenth Century and after, 1912 [Nota do Autor]

[25] – Remy de Gourmont – Mercure de France, Une loi de constance intellectuelle [Nota do Autor]

(26) – O Direito é visto por Torres como a mais empírica das Ciências Sociais. É um instrumento para a ordem social.

(27) – Em inglês no original – Direito costumeiro

(28) – Ou seja, a internacionalização da política impõe-se não por um ideal, mas porque os laços (a interdependência, diríamos hoje) entre os homens estenderam-se por todo o globo.

(29) – Este trecho, em que Torres insiste em algumas preocupações “ecológicas”, retornará sempre ao todas as suas obras.

(30) – Torres reconhece a existência do conflito entre os homens, mas não tem o ideal da “reconciliação”. A noção que surge é a do equilíbrio, não a da superação da contradição. A afirmação da propriedade, aliada à sua defesa da pequena propriedade, dever-se-ia entender como a extensão da propriedade como condição da resolução da questão social.

(31) – Comparar com a defesa do projeto em A Caminho da Paz.

O Patriotismo

[1]Les Annales Politiques et Littéraires. [Nota do Autor]

(2) – A diferenciação entre a noção objetiva e a subjetiva é essencial para se notar a questão do patriotismo em Torres. A questão objetiva não é posta em discussão. É o país com seu povo, ponto. O que vai discutir sempre é a imagem subjetiva. É em relação a esta imagem subjetiva que vai chegar à definição de Pátria como a Pátria dos filhos.

(3) – Segundo a lenda grega, filha de Muto e irmã de Pigmalião, rei de Tiro. Depois que Pigmalião mandou assassinar seu esposo, Dido fugiu para a África onde fundou Cartago (cerca de 850 A.C.), medindo e delimitando a área da futura cidade com um couro.

(4) – Não há aqui uma crítica à imprensa, que a imagem que tentaram pintar de Torres nos inclinaria a encontrar. Em seu projeto constitucional garante a mais ampla liberdade de imprensa.

(5) – O mesmo podemos dizer em relação a esta passagem. Reconhece a importância da imprensa para divulgar idéias, mesmo as “idéias de convenção”, mas não propõe nenhuma censura.

(6) – A imagem que Torres faz aqui das primeiras monarquias medievais é certamente um tanto quanto forçada.

(7) – A ordenação da nação é dada pelo Direito, é o que se pode extrair deste trecho. Esta posição é explicativa para a importância dada por Torres à reforma constitucional. É evidentemente uma visão instrumentalista do Direito, que teria a possibilidade de corresponder à forma dada pelos agrupamentos humanos e/ou dar-lhes forma.

(8) – Contra o ufanismo de um Afonso Celso, Torres afirma que a Pátria, subjetivamente, em sua noção clássica, nada representa para os brasileiros.

(9) – Em inglês no original

(10) – Entre estes países “novos, democráticos, sem tradições e sem preconceitos hereditários”, certamente estaria incluído para Torres o Brasil. País novo, assim chama ele o Brasil. Sem tradições, reconhece que o é. Sem preconceitos hereditários, é o republicano histórico falando, o mesmo que no projeto constitucional vai conservar o não reconhecimento de títulos ou privilégios hereditários.

(11) – Anticlerical, cultuador da razão iluminista, Torres compartilha com os radicais franceses da crítica à religião como força obscurantista.

(12) – A religião, o sobrenatural, o misticismo são para Torres inimigos da razão. Nesta medida, são empecilhos para o desenvolvimento da evolução. A religião, Torres só vai admiti-la enquanto um corpo de valores morais, mas vai considerá-la perniciosa no seu aspecto místico.

(13) – A prisão ao passado encontra em Torres um crítico radical. O passado só tem sentido enquanto pode fornecer elementos para o conhecimento do social, nunca como fonte de tradição. A autoridade fundada no passado tem, conseqüentemente, sua refutação também.

(14) – Torres precisa aqui o metro com o qual dever-se-ia medir o desenvolvimento.

(15) – O olhar humano liberto da névoa que o obscurecia: a superstição, a religião mística.

(16) – A aprender e a não fazer, desta contradição sai toda a problemática de Torres que poderíamos chamar de “ecológica”.

(17) – O mesmo tema abordado anteriormente da não participação. O povo está normalmente alheio à “grande política”. É como se estes grandes problemas fossem realmente “criados”, não naturais.

(18) – Torres retira de uma penada o grande argumento militarista: o da segurança nacional. A posse tranqüila do país é uma questão altamente discutível. Em que medida a posse é realmente tranqüila? Em que medida uma ordem internacional garante esta posse sem que haja uma coerção implícita, a força das armas? Seriam certamente perguntas que um defensor do militarismo faria.

(19) – O argumento anterior pode prolongar-se neste. A autoridade legal por si mesma, diriam, não existe senão porque tem os instrumentos necessários para afirmar-se como autoridade, caso disputada. O argumento certamente era do conhecimento de Torres, jurista ele mesmo e, portanto, familiarizado com a temática de que a lei só se manteria pela sanção. A conseqüência óbvia é que, conhecendo o argumento, Torres afirma mais uma vez a possibilidade da razão, da civilização impor-se por si.

(20) – Uma solidariedade certamente, pelo que foi dito acima, baseada no entendimento.

(21) – Aponta corretamente Torres um dos usos freqüentes na época da palavra raça, no sentido de nacionalidade, inclusive no Brasil, onde é inconteste o fato de não se poder falar de uma raça nacional.

(22) – O mesmo argumento já foi utilizado por Torres em relação aos países “avançados”.

(23) – Completa-se o argumento mencionado na nota 21.

(24) – Em sua obra “internacional” Torres retoma uma questão central de suas obras “nacionais”: do protecionismo governamental aos imigrantes estrangeiros em detrimento do homem do campo nacional; é o que está por trás desta crítica de Torres.

(25) – Ou seja, dá-se uma adaptação social, para empregar os argumentos anteriormente utilizados por Torres.

(26) – De onde se concluiria que a “defesa dos valores nacionais” não encontraria em Torres um partidário. Os hábitos locais contudo permanecem, afirma, em prejuízo dos hábitos nacionais. Este movimento, favorável segundo Torres à paz, ajuda-nos a definir um pouco melhor o seu tão propalado nacionalismo.

(27) – Esclarece-se aqui a posição de Torres em relação à religião. É uma posição jacobina matizada.

(28) – A separação entre Igreja e Estado que decorre daí é evidente.

(29) – A impetuosidade passional das grandes massas não é vista por Torres como uma situação normal das massas, conforme a visão de alguns autoritários contemporâneos. É vista como um estado patológico, uma vez que cada indivíduo, afirmará a seguir, “no domínio de sua consciência e de sua inteligência” é “uma unidade equilibrada pela razão”.

(30) – Esta regra convencional poder-se-ia pensar como sendo a lei. O contratualismo a que se liga o argumento que se segue é por demais explícito para que insistamos nele. A direção racional não supera o contrato, mas é um executor e deve manter a coletividade na direção acordada.

(31) – O mal aqui deveria, certamente, ser entendido no sentido de doença.

(32) – Retoma o argumento já apontado na nota 26.

(33) – A pátria como uma sociedade voluntária: o que pressupõe um contrato. O fato de identificar corpo político, social e econômico com uma sociedade voluntária confirma esta interpretação.

(34) – As regras convencionais aqui são mais especificamente identificadas com a ordenação legal, conforme apontado na nota 30.

(35) – Ou seja, do contrato decorrem direitos, segundo a natureza dos interesses que a ele levaram os indivíduos.

(36) – Crítica do “autoritário” Alberto Torres ao autoritarismo. Ao absolutismo chamaríamos hoje autoritarismo.

(37) – Esta crítica certamente é de uma modernidade impressionante: diríamos hoje, a hegemonia é conquistada antes na sociedade civil.

(38) – Certamente, como para Kropotikin, a Constituição da Revolução Francesa para Alberto Torres seria a de 1793, elogiada também por Jaurés, Buonarroti, Louis Blanc, Barbès, a que, pela primeira vez, colocava a questão da democracia social. Os direitos à luz, ao ar, seriam reconhecidos somente na Conferência sobre meio ambiente realizada pela ONU em 1972, em Estocolmo. O primeiro princípio da Conferência reconhece o direito à alimentação adequada; o 3o. o direito de respirar ar não poluído.

(39) – É o mesmo argumento de Marshall (Cidadania, Classe Social e Status, 1967, Zahar, Cap. III).

(40) – É o reconhecimento por Torres de que o resultado foi uma aristocracia de fato, quando o que pensa é uma igualdade de fato. Os dados mais recentes da sociologia parecem confirmar a questão colocada por Torres, com o renascimento das teorias elitistas. Não é outra a conclusão tanbém de Homans (Cf. Homans, G.G. – Social Behavior, Its Elementary Forms, 1974, Harcourt Brace Jovanovich,Inc, N.Y., pgs.307-3l0).

(41) – O “nós” utilizado tem um certo ar de autocrítica. Da primeira pessoa do plural, passa-se a seguir à terceira.

(42) – É a questão da segurança social sendo colocada em princípios do século. Se lembrarmos que a crítica ao militarismo e à idéia convencional da Pátria encontra acolhida em Torres, poderíamos, talvez ousando um pouco, afirmar uma contraposição entre segurança social/segurança nacional. Dissemos ousadia por ser uma questão que não se colocava ao autor da forma que estamos concluindo. A crítica às classes educadas delimita também a posição elitista de Torres, na afirmação da imobilidade dos sábios.

As Crises Sociais e Econômicas.
O Cálculo Pessoal e o Pensamento Altruísta

(1) – Torres afirma aqui a especificidade de nossa época em relação às anteriores. Corresponde à ascensão da burguesia e o aparecimento do cidadão como categoria política.

(2) – Identifica ainda uma das contradições fundamentais: a extensão dos direitos políticos em termos de igualdade política mas convivendo com a desigualdade de fato.

(3) – A crítica ao academicismo, às profissões liberais, para as ocupações parasitas (alguns diriam trabalho improdutivo hoje) é comum a todas as obras de Torres.

(4) – A exploração indevida do solo, outro tema recorrente em Torres. Note-se que todos estes pontos de que fala não dizem respeito apenas ao Brasil, como se pode ver pela afirmação “mesmo”. É claro que as afirmações deste teor têm a situação brasileira como pano de fundo. Mas é de se notar que assume a formulação de generalidade, ponto evidente de ligação entre as obras “nacionais“ de Torres e sua obra “internacional”. Matiza também a questão vista por Torres e afirmada como conhecimento da “realidade nacional”. É claro, aqui, que esta realidade não é tão específica quanto se pretenderia depois.

(5) – A abundância em toda a obra de Torres de temas “ecológicos” indica ser este um dos componentes essenciais do pensamento político torreano. Diríamos mesmo ser sua espinha dorsal.

(6) – A crítica moral à civilização (enquanto civilização) une-se aqui à crítica ecológica.

(7) – Datar o pensamento de Torres é aqui essencial. Note-se que a economia da época (e não apenas no Brasil) levava o darwinismo social a sério e a defesa da economia liberal estava na ordem do dia.

(8) – Avança a crítica e mostra a quem interessa a expressão da doutrina de que se trata de uma “ordem natural das coisas”.

(9) – Ou seja, a liberdade econômica, a liberdade de expressão dos interesses, nota-o Torres, responde a uma hierarquia; o que contradiz em termos a liberdade.

(10) – A crítica aqui, reconhecendo que o mundo é governado pela finança (alguns diriam, o capital financeiro), estende-se ao regime econômico.

(11) – Torres faz aqui uma diferenciação essencial para que entendamos sua crítica (e ele a faz inclusive nas obras “nacionais”) em relação aos intermediários. O comércio, como tal, é um instrumento da paz, ligando-se à tarefa da distribuição dos bens necessários ao consumo. As duas únicas coisas importantes na economia são para ele: o trabalho que produz, o consumo que atende necessidades. O comércio só tem a função de fazer chegar os produtos produzidos aos consumidores. Desviado de sua função, vira especulação, deixa de ter uma função pacífica, deixa de ser comércio.

(12) – Amplia a crítica ao comércio para a crítica entre a relação dos países avançados com os povos jovens e os povos em atraso, pelo interesse predominante comercial que o anima. É claro que corresponde a um tempo em que o padrão de trocas entre o centro do sistema capitalista e sua periferia correspondia ao padrão de importação de matérias-primas e exportação de manufaturados.

(13) – Aqui fica mais clara ainda a diferenciação que Torres faz em relação ao comércio, diferenciação que mencionamos na nota 11.

(14) – Aqui dois pontos sobressaem: um realismo político e

(15) o poder como um meio e não como um fim. Do primeiro, resulta a supremacia da política, do poder institucionalizado (como diria Burdeau) sobre as outras “instituições” humanas. Do segundo, a necessidade da lei para subordinar o exercício do poder (conseqüência direta da fase de evolução atual). É a finalidade do poder que deve ser visada, não o poder em si.

(16) – A crítica ao liberalismo é evidente. A posição liberal do quanto menos governo melhor não é para Torres a solução a ser procurada. À medida que o poder se enfraquece, afirma, “outros poderes sociais e pessoais, dotados de todos estes instrumentos de privilégio, de pressão, de monopólio, de preferência, de influência” acabam se desenvolvendo. É evidente que o tema da reconciliação entre os homens, dispensando a necessidade de um poder está fora das cogitações de Torres. Igualmente a possibilidade que vê de um poder que não corresponda necessariamente aos detentores dos outros poderes. As conseqüências lógicas desta posição são ou a afirmação de um governo efetivamente autoritário ou uma sociedade em que o equilíbrio entre os diversos poderes fosse mantido ou, finalmente, a submissão à lei, mas uma lei que correspondesse aos interesses mais altos da humanidade (como afirma Torres) e não aos interesses particularistas. Pelo que se segue parece claro que é a terceira a opção de Torres.

(17) – A reter: o rejubilar-se com a destituição dos governos da autoridade discricionária. (grifo meu)

(18) – A afirmação da “ação racional da lei e do poder a serviço do pensamento e da experiência, no controle, na fiscalização e na política das atividades individuais” parece indicar que a opção de Torres é mesmo a referida acima. Não se trata de um mero equilíbrio entre os poderes na sociedade, mas, pelo uso da lei, o controle das atividades individuais, no sentido de que correspondam ao que a lei expressa. O mero equilíbrio conduziria ao que Torres critica abaixo; a que o poder caísse nas mãos dos bolsistas...

(19), (20) – A racionalidade, sendo o que é visado por Torres, deveria no seu entender ser representada (ou encontrada) nos homens que sabem e que pensam. Mas, vê Torres, eles ocupam uma posição subalterna, a serviço exatamente dos manipuladores dos negócios e da política.

(21) – Os homens de pensamento é que deveriam, portanto, estar no centro do poder. Este é um elemento óbvio de “elitismo” no pensamento torreano. Mas o elitismo não é necessariamente de cunho autoritário. Os mecanismos de acesso ao poder e sua gestão é que, mais precisamente, definiriam o autoritarismo.

(22) – O ponto mencionado acima fica mais claro ainda nesta passagem: não é para aplicar um sistema que os homens de pensamento deveriam ser chamados ao poder. Lembremo-nos de que os sistemas fechados conduzem, para Torres, ao imperialismo, às idéias de convenção, a tudo o que ele combate ao longo de todas as suas obras.

(23) – Na obra de Torres este é o trecho a que define o porquê e o para quê colocar o pensamento na direção social; que também define o conteúdo da ordenação jurídica. Destacamos do conjunto: “Não é propriamente para a ordenar, para governá-la, para impor-lhe regras e prescrições, que é preciso colocar o pensamento na direção social; é, ao contrário, para reagir contra esta multidão de regras, de prescrições, de opressões, que vivem em suspenso no ar de nossas sociedades; para destruir os entraves artificiais e as usurpações de interesses sobre interesses, de necessidades sobre necessidades; para defender o indivíduo, a sociedade, a Terra e o futuro, da opressão e da anarquia criadas pela soma das atividades heterogêneas dos apetites e das ambições.”

(24) – O pensamento não equivale em Torres, como fica claro pela passagem, nem à tecnocracia, nem em um conselho de sábios por profissão. Corresponde muito mais ao que poderíamos chamar de um pensamento “aristocrático”, por falta de outro termo, ou prático, no sentido torreano.

(25) – A política como Filosofia prática corresponde aqui ao pensamento prático, avesso aos sistemas, mas não preso ao círculo da especialidade.

(26) – Ou seja, os dados da experiência fornecem o material com o qual se caminha em direção ao ideal.

(27) – Este trecho justifica também a nossa afirmação de que o sistema de Torres implica um juízo de valor prévio sobre a natureza humana, considerada boa, apesar de posição assumida por ele contra qualquer juízo eu relação à natureza humana. (Cf nota 37).

(28) – É necessário um casamento entre sentimento e inteligência (pensamento), com

(29) – o motivo altruísta controlando a ciência. É a temática já mencionada de que a ciência não se justifica por si.

(30) – Jurista, ele mesmo, Torres vê no Direito uma ciência prática, empírica, que ordena a sociedade. O modelo da ciência do Direito é certamente o que tem em mente ao falar das Ciências Sociais ou do pensamento prático.

(31) – Implica também em um elitismo, mas não necessariamente em um autoritarismo, tanto que reconhece que estas verdades encontram-se misturadas com sugestões do bom senso e do senso comum. O conhecer para discutir, que se segue, implicaria em suas conseqüências em um autoritarismo, caso se determinasse o privilégio do saber. Não parece ser esta a intenção de Torres, pelo menos. (Cf. nota 23)

(32) – A decadência ou a revolução, entre estas duas opções conhecidas, Torres introduz o seu “melhorismo”.

(33), (34) – A proposta evidente é o da aliança entre o trabalho e o pensamento, com o pensamento controlando o conflito entre ”os ambiciosos instruídos e fortes para a luta, apoiados no capital e no poder político, e as pessoas que apenas acabam de entrar no mundo da concorrência”. Aí está em germe o Poder Coordenador.

(35) – A própria crise traz em si a sua solução... Não como a realização de um Destino, ou de uma Providência, ou de uma Lei, mas porque “o absurdo saltará aos olhos”. O absurdo é contra a Razão.

(36) – “As necessidades das populações e do interesse da vida”, mais uma vez como gabarito para se aquilatar a utilidade. Do contrário, a política tende a semear “guerra e revolução”.

(37) – Lembremo-nos de que Turgot era um dos que tinham seu retrato na sala de estudo de Torres. Mais, a proposta de Torres não é a volta à terra para o Brasil (o que também vai propor, mais como fixação do que como volta) é para o mundo todo. Deixar a ociosidade e voltar à terra é inclusive o artigo primeiro do programa proposto.

(38) – Sem dúvida um lapso torreano. A utilização do termo raça, no sentido usual de seu tempo, que ele combate, destoa de todo o conjunto de sua obra.

(39) – Aqui se evidencia o grande dilema de Torres, ao mesmo tempo a limitação de seu pensamento. Como executar uma política com o alcance visto sem que se toque nos bens pessoais e nos direitos adquiridos, no interior de cada nação? Como não restringir a soberania dos Estados e não tocar nas faculdades das nações e executar esta política ao nível internacional? Pelo desenvolvimento da razão, pelo entendimento, pela negociação?

O Papel Internacional da América e a Doutrina de Monroe

(1) – Político húngaro (1802-1894). Lutou pela autonomia da Hungria e pela proteção aos agricultores e pastores. Delegado à Dieta húngara, publicou pela primeira vez no país uma gazeta parlamentar, o que lhe valeu três anos de prisão (1837-40). Proclamou a independência da Hungria e tornou-se ditador. Após ser derrotado em luta contra a Áustria (1849) passou aos Estados Unidos, depois à Inglaterra, fixando-se finalmente na Itália.

(2) – Político inglês (1770-1827).

(3) – Torres parece passar por alto todos os interesses ingleses envolvidos na questão. Mas, no conjunto do capítulo ressalta não ignorar o problema; apesar disto, mostra a importância do sentimento de respeito à vontade popular. O que é discutível é se esta vontade popular estava presente.

(4) – É de se notar que Jefferson compartilhava com Torres de um certo pastoralismo, conforme indicado, no que tange a Jefferson, por Marx, Leo (A vida no campo e a era industrial, 1976, Melhoramentos/EDUSP).

(5) – Torres reconhece aqui que o “liberalismo comercial” britânico estava escudado por forte armada. Ou seja, um liberalismo de fundamentos econômicos óbvios. É importante porque pareceria, em algumas passagens do capítulo, que Torres esquece-se disto, quando não o faz.

(6) – Em inglês no original. Refere-se aos monopólios estabelecidos pela Coroa, através de cartas reais.

(7) – O tema relacionando a expansão industrial e comercial à negação das nacionalidades ganhou posteriormente uma importância enorme. A literatura de hoje sobre o tema é vasta e por demais conhecida.

(8) – Esta afirmação da América como uma espécie de entidade política já trazia em si, pela posição dos Estados Unidos na América, o imperialismo que Torres criticaria.

(9) – Luis Maria Drago, advogado, político e magistrado argentino (1859-1921). Quando ministro do exterior de seu país, enviou, em 1902 uma nota ao governo americano, que recebeu o nome de Doutrina Drago: o princípio de que os Estados não devem recorrer ao emprego da força para compelir outros Estados a saldarem suas dívidas pecuniárias. Na segunda conferência internacional de paz, em Haia, em 1907, a doutrina foi aceita por 39 nações, mas somente algumas a ratificaram. Esta doutrina já havia sido sugerida por Hamilton.

(10) – Drago criticara a doutrina Monroe, no que tinha de aspecto imperialista, em relação à cobrança a mão armada; Roosevelt amplia a questão. Torres vai apontar, contudo, que a forma de Roosevelt pôr a questão comportaria duas interpretações, uma delas claramente imperialista.

(11) – Torres parece simplificar demais a questão. Como já apontamos em nota anterior, o simples fato de considerar a América como uma entidade política, afirmação esta feita por um dos estados americanos, implicava no seu desdobramento posterior de cunho imperialista ou, pelo menos, tutelar.

(12) – Em inglês no original. Refere-se aos membros voluntários de um regimento de cavalaria, organizado na guerra hispano-americana.

(13) – A questão é colocada por Torres aqui não apenas da ótica da pretensão tutelar americana, mas também na crítica ao tutelado; para que houvesse a tutela seria necessário que as nações sul-americanas mantivessem-se “em posição de fidelidade e de dependência em relação à sua grande irmã do norte”.

(14) – A crítica “antecipada” à doutrina de segurança nacional está aqui presente.

(15) – O inimigo a temer, portanto, não é os Estados Unidos, mas qualquer corrupção da democracia, qualquer dos abusos do capitalismo e da expansão econômica, por parte de qualquer país, não apenas dos Estados Unidos. Mais, por outros textos de Torres não apenas por parte de outros países mas também do próprio fenômeno internamente.

(16) – Um tema periférico mas importante em Torres: o da incorporação dos povos novos e jovens ao mundo Ocidental (mais especificamente à Europa), como caminho para a civilização. Ressente-se claramente de um eurocentrismo.

(17) – É o filho de Baboeuf falando. Trecho importante na obra de Torres que, juntamente com outros já apontados, indica não a recusa da liberdade política, mas a extensão da questão para as liberdades sociais, melhor seria, talvez, dizermos direitos. Afirma serem mais sérios que os do voto e da igualdade perante a lei; não afirma serem estes não importantes, apenas que não são o bastante.

(18) – A emigração como forma de superação da questão operária nos países europeus pareceria chocar-se com as restrições de Torres aos imigrantes feitas em suas obras “nacionais”. Pelo contrário, matiza a questão: não se tratava evidentemente de ser contra a imigração, mas dos favores excepcionais oferecidos pelo governo em detrimento do trabalhador do campo brasileiro; disciplinar a imigração, certamente; mas seria de todo incompreensível que, insistindo como o faz não apenas aqui mas mesmo, em A Organização Nacional e em O Problema Nacional Brasileiro, na emigração como fator de alívio para a questão social, fosse contrário à imigração.

(19), (20) – Neste parágrafo há evidente uso de dois pesos e duas medidas. O pensamento europeu, inicialmente, é apresentado como um aplainador de caminhos, após ter sido transportado para o novo mundo. A seguir, este mesmo pensamento, quando se trata da questão operária é apresentado como sendo idéias de importação, “agitadas mais por hábito do que por convicção”. E isto apesar de reconhecer que “a política que favoreceu o protecionismo industrial e a concentração das massas operárias” (ou seja, o capitalismo e a urbanização) poderiam dar margem para justificar a questão operária.

(21) – Não vê a articulação existente entre a América e o velho continente que limitaria o elaborar desta “nova humanidade”? Vê e aponta, no início do parágrafo. Mas a possibilidade de realização é vista exatamente porque algumas questões que a Europa resolveu já aparecem resolvidas no continente americano, além de estar este liberto das tradições, preconceitos e entraves. A Europa não se desdobra na América senão como a realização das idéias européias.

(22) – “Favorável a todas as correntes de opinião”: a pluralidade destas correntes encontrará em Torres um defensor também no projeto constitucional que propõe para o Brasil.

(23) – Torna-se claro que a política da democracia para Torres, englobando as soluções políticas, não deveria parar aí. Corresponde ao problema humano como era colocado pelo pensamento do século XVIII, que não teria “podido ver” o fundo do problema (a democracia social, como se constata pelo parágrafo seguinte).

(24) – Não se trata de negar a liberdade política e civil, nem de postergá-la em nome da segurança social e econômica, mas de “enxertá-la” na segurança social e econômica, inclusive para que deixe de ser uma liberdade de pura forma.

(25) – O “imperialismo novo”, o das idéias, encontra em Torres um defensor. Este trecho ajuda a colocar o problema do nacionalismo em Torres no seu devido lugar, distinguindo-o dos que o sucederam. Torres não apresenta uma posição xenófoba em relação “às idéias importadas” tão encontradiça nos pensadores autoritários da década de 30 (que, ao mesmo tempo, importavam as de que gostavam).

Conclusão: a Organização da Paz

(1) – Em 1027 no Sínodo de Elne propôs a Trégua de Deus que saiu da Pax Dei, proibindo a guerra privada para certos períodos específicos. No século XIV propunha o que Torres já mencionou, e Pierre Dubos propunha um tribunal permanente de arbitragem. O Nouveau cynée de Émeric Crucé é de 1603; o An Essay Towards the Present and Future Peace of Europe, de William Penn, é de 1694 e o Le projet pour rendre la paix perpétuelle, em 3 volumes, foi escrito por Saint Pierre de 1713 a 1717.

(2) – Realizadas em Haia, respectivamente em 1899 e 1907. Na primeira é que foi criado o tribunal internacional de arbitragem, conhecido a partir de então como Corte Permanente de Haia.

(3) – A proposta de Torres, que no Vers la Paix recebera já a forma de um projeto de convocação de uma Conferência, guarda em muitos aspectos um parentesco com sua proposta de um poder Coordenador para o Brasil (e vice-versa).

(4) – Falar de uma racionalidade do espírito humano dá a entender uma natureza racional que seria própria ao ser do espírito. Torres foge desta discussão deixando de trabalhar, recusando-se expressamente, a trabalhar com o conceito de racionalidade assim colocado. Substitui por Pensamento, característica observável a partir do comportamento. Ou seja, o homem não é um animal racional (o que pressuporia a discussão de uma natureza racional no ser do homem), mas um animal que pensa. Mas este pensamento poderia ser racional ou não? Ou seja, a questão da racionalidade subjaz ao próprio texto, não sendo eliminada pela formulação de Torres.


 

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